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Atas da IX Semana de Estudos Medievais 16 a 18 de novembro de 2011 Organização Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva Juliana Salgado Rafaeli Leila Rodrigues da Silva Programa de Estudos Medievais Instituto de História Universidade Federal do Rio de Janeiro Atas da IX Semana de Estudos Medievais Copyright © by Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva; Juliana Salgado Rafaeli e Leila Rodrigues da Silva (org.). Direitos desta edição reservados ao Programa de Estudos Medievais (PEM) Instituto de História (IH) | Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Largo São Francisco de Paula, 1 - sala 325-B Rio de Janeiro, RJ. CEP: 20051-070 Fax.: (21) 2252-8032 - Ramal 104 E-mail: pem@historia.ufrj.br | http://www.pem.historia.ufrj.br Edição: Alexandre Santos de Moraes ISBN: 978-85-88597-15-0 SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da; RAFFAELI, Juliana Salgado; SILVA, Leila Rodrigues da (org.). Atas da IX Semana de Estudos Medievais / Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, Juliana Salgado Raffaeli e Leila Rodrigues da Silva (organizadores). -Rio de Janeiro: PEM, 2012. Bibliograia: ISBN: 978-85-88597-15-0 1. História Medieval 2. Programa de Estudos Medievais 3. Instituto de História. I. Título. IX Semana de Estudos Medievais Coordenação Geral da IX Semana de Estudos Medievais Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva Leila Rodrigues da Silva Comissão Organizadora Adriana Conceição de Souza André Rocha de Oliveira Bárbara Vieira dos Santos Carolina Coelho Fortes Marcelo Fernandes de Paula Priscilla Marques Campos Rita de Cássia Damil Diniz Rodrigo Ballesteiro Pereira Tomás Comissão Cientíica Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva - UFRJ Edmar Checon de Freitas - UFF Leila Rodrigues da Silva - UFRJ Maria do Amparo Tavares Maleval - UERJ Mirian Cabral Coser - UNIRIO Sandro Roberto da Costa – Instituto Teológico Franciscano Apoios ABREM - Associação Brasileira de Estudos Medievais ITF - Instituto Teológico Franciscano NUEG - Núcleo de Estudos Galegos da UFF PPGHC - Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ PROEG - Programa de Estudos Galegos da UERJ Translatio Studii - Núcleo Dimensões do Medievo da UFF Patrocínios Faperj Pró-reitoria de Extensão da UFRJ - PR-5 SUMÁRIO Apresentação ............................................................................................................. p. 5 Participações especiais de professores convidados FONTES, Luís. O norte de Portugal entre os séculos V e XI: o contributo da Arqueologia. MARTINS, Manuela. Poderes, territórios, povoamento, arquiteturas e urbanismo: Bracara Augusta entre os séculos I a.C. e IV AD. MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Do Vergel de consolação ao paraíso: atalhos de um percurso. Comunicações Adriana Conceição de Sousa Manifestações do sobrenatural na História Wambae de Julian de Toledo: o Maravilhoso como argumento político no Reino Visigodo (séc. VII) ........................................................................................ p. 10 Alinde Gadelha Kühner Santa Cruz de Coimbra e suas alianças segundo as hagiograias ....................... p. 21 Aline da Costa Silva A Heresia Cátara no Languedoc ............................................................................. p. 30 Álvaro Mendes Ferreira Crescimento e declínio do cultivo de trigo na Ilha da Madeira durante o século XV .................................................................... p. 38 Ana Clara Marques Lins Relexões sobre as hagiograias ibéricas elaboradas em ambientes religiosos entre os séculos XI a XIII ..................................................... p. 49 Ana Clara homazini Racy A Travessia da Cruz: a introdução do Cristianismo na Islândia no ano de 1000 e suas expressões político-culturais ............................................ p. 60 Ana dos Anjos Santos Um olhar sobre o outro: uma análise sobre as concepções de alteridade e identidade no relato de João de Plano Carpine ................................ p. 73 André Luis Caruso Cruz Junior Um exemplo de utilização de hagiograias como instrumento de defesa/propaganda: as Hagiograias Marianas Catalãs no século XIII .............. p. 84 André Rocha de Oliveira Relexões sobre o papel das muralhas na cidade medieval .................................. p. 92 Andréa Reis Ferreira Torres As relações entre monacato e episcopado na Península Ibérica Centro-Medieval e suas representações hagiográicas ........................................ p. 102 Anna Beatriz Esser dos Santos As Narradoras da Cantuária - Representação das mulheres em Geofrey Chaucer ............................................................................................ p. 114 Bárbara Vieira dos Santos Considerações sobre as viúvas nos Concílios de Toledo: primeiras relexões ................................................................................................. p. 125 Bruna Cruz Baptista A imagem na Idade Média: um breve estudo ..................................................... p. 134 Bruno Gonçalves Alvaro Os eixos de poder no Episcopado de Singüenza no século XII: uma análise comparativa de suas estratégias e táticas ........................................ p. 142 Bruno Marconi da Costa O conceito de feudalismo em Portugal - uma discussão historiográica ........... p. 155 Bruno Uchoa Borgongino O corpo: perspectivas teóricas e historiograia medievalista .............................. p. 166 Carolina Coelho Fortes Os estudos como elemento de identidade entre os frades dominicanos no século XIII: os casos dos conversos e das monjas .................... p. 178 Daniel Augusto Arpelau Orta Genealogia política como identidade nobiliárquica. O estudo da Crônica do Conde D. Duarte de Meneses (século XV) ..................................... p. 190 Diego Schneider Martinez O reinado de Honório (395-417) entre a incerteza e a esperança ................... p. 203 Douglas de Freitas Almeida Martins Sociabilidade e “economia moral na Vita Secunda de Tomás de Celano (1244 – 1247) ....................................................................................... p. 215 Douglas Mota Xavier de Lima A diplomacia na construção da Campanha de Ceuta ......................................... p. 226 Eduardo Cardoso Dalon Transição e Hierarquização no mundo germânico ............................................ p. 236 Eduardo Luiz de Medeiros Análise da estrutura da fonte cronística e registros chancelares na monarquia francesa entre 1180 e 1230 ...................................... p. 248 Elaine Cristina Senko E a Aurora alcançou Sahrazad: relexões sobre a Mímesis na obra “As Mil e uma Noites” ............................................................................... p. 259 Érica Margas Cima As relações entre os Reinos Ibéricos na Narrativa dos Feitos de D. Jaume I de Aragão (1208-1276) ............................................. p. 271 Fabíola Simão Dias Da Costa Os Bispos-Santos de Gregório de Tours .............................................................. p. 282 Flávia Vianna do Nascimento Sacerdotis Profanus: a crítica ao clero em Decamerão, de Giovanni Boccaccio ........................................................................................... p. 288 Francisco de Souza Gonçalves Bárbara Cecília Kreischer Projeções históricas, literárias e míticas do episódio de Inês de Castro: do medievo à contemporaneidade ............................................. p. 299 Guilherme Marinho Nunes As igrejas próprias no discurso eclesiástico: um estudo comparado das Atas Conciliares Visigóticas ........................................... p. 310 Gustavo Parizotto Moraes Reis, imperadores e grandes senhores: o imaginário construído por Afonso X na Segunda Partida .................................................... p. 325 Igor Salomão Teixeira Como se constrói um santo? Observações a partir do Inquérito de 1321 para a canonização de Tomás de Aquino ............................. p. 336 Ingrid Brito Alves da Assunção Considerações sobre o peril de santidade nas Vidas dos Padres de Mérida: o caso do abade Nancto ........................................................ p. 344 Isabel Adelorada Ciappina Igreja no Ocidente sob a perspectiva de Erasmo de Rotterdam no século XVI ..................................................................................... p. 352 Izabela Morgado da Silva Breves considerações sobre a marginalidade no Reino Visigodo a partir das Atas Conciliares Toledanas .............................................................. p. 356 Jaqueline de Calazans As condenações ao Priscilianismo nas Atas do I Concílio de Toledo .............. p. 366 Jéssica Furtado de Sousa Leite Paisagem alterada: intervenção urbana em Sevilha no século XIII - ordens monásticas ....................................................... p. 377 Juliana Ribeiro Bomim A cura do corpo nos milagres de Santo Domingo de Silos ................................. p. 388 Juliana Salgado Rafaeli Os conlitos com a hierarquia monástica e as autoridades eclesiásticas nas obras de Valério do Bierzo (séc. VII) ....................................... p. 396 Leonardo dos Santos O judeu errante, o judeu errado - do antisemitismo na Baixa Idade Média - ódio e intolerância contra os judeus na Alemanha durante a Peste Negra ................................................................... p. 408 Letícia Sousa Campos da Silva Sobre a glória dos mártires e dos confessores: os usos sociais da literatura no Período Merovíngio .................................................................... p. 419 Lívia Carine Falcão de Souza A trajetória dos hagiógrafos Tomás de Celano e Gonzalo de Berceo e os saberes médicos no século XIII ................................. p. 432 Luiza Zelesco O São Luís Militar de Joinville .......................................................................... p. 439 Marcelo Fernandes de Paula Considerações sobre a violência na Península Itálica no século XII ............... p. 448 Marciele Cavalcante da Silva Sexualidade e matrimônio: um olhar sob as perspectivas religiosas de Martinho Lutero .............................................................................. p. 460 Maria Valdiza Rogério da Silva Relexões sobre os conlitos entre o papado, o Império e as comunas na Península Itálica no século XIII ...................................................... p. 468 Mariana Bonat Trevisan D. Pedro I de Portugal: variações e contradições da masculinidade régia nas crônicas de Fernão Lopes (século XV) ....................... p. 480 Nathalia Agostinho Xavier A ortodoxia cristã e o “outro” nas Atas dos Concílios Bracarenses e nos escritos de Martinho de Braga: considerações sobre um projeto de Mestrado .................................................... p. 488 Nathália Cardoso Rachid de Lacerda Balanço bibliográico acerca do discurso eclesiástico sobre a Peste de Justiniano .................................................................................... p. 498 Nathália Silva Fontes A moralização sexual de clérigos em Castela Medieval: relexões a partir de uma cantiga de Santa Maria ............................................... p. 509 Paulo Duarte Silva Mercadores, Pastores, Timoneiros: Considerações sobre o poder eclesio-episcopal na admoestação de Cesário de Arles (502-542) ................... p. 517 Rafael Costa Prata Guerra em castela no século XII: Relexões sobre o ideal militar Castelhano a partir de uma análise do poema de mio cid .................................. p. 529 Rafael de Mesquita Diehl A liturgia dos ritos de coroação e as relações entre os poderes espiritual e temporal (séculos XIII-XIV) ............................................ p. 541 Rafaella Caroline Azevedo Ferreira de Sousa A justiça segundo os príncipes: concepções políticas na realeza medieval portuguesa na primeira metade do século XV ....................... p. 554 Raquel Hofmann Monteiro O grande desvairo - A visão camoniana sobre o episódio de Inês de Castro ................................................................................... p. 563 Rodrigo Ballesteiro Pereira Tomaz Uma virtude na construção da santidade: a caridade na Vita Sancti Aemiliani e na Vita Fructuosi ............................................................. p. 574 Rodrigo dos Santos Rainha A relação mestre-discipular na Primeira Idade Média: reletindo sobre as inluências de Cícero e Agostinho ....................................... p. 587 Rodrigo Prates de Andrade A conquista de Maiorca e a valorização positiva do mouro no Livro dos Feitos de Jaime I de Aragão (século XIII) ..................................... p. 599 Rômulo Santiago de Melo Construindo São Francisco no discurso da pregação na Legenda Áurea ......... p. 610 Tiago Quintana Deuses e destinos: a representação mitológico-literária do Destino em Édipo Rei e na Völsunga Saga .......................................................... p. 619 Vanessa Gonçalves Bittencourt de Souza Os milagres de monges na obra Vitae Patrum de Gregório de Tours .............. p. 629 Vanessa Gonçalves Paiva O arrependimento nas Vitas Sanctorum Patrum Emeretensium: o exemplo do monge bêbado ................................................................................. p. 638 APRESENTAçãO As Semanas de Estudos Medievais são regularmente promovidas pelo Programa de Estudos Medievais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, desde 1991. Nesta edição, assim como nas demais, visamos estimular relexões e diálogo acadêmico multidisciplinar sobre o medievo, propiciar um ambiente de troca intelectual entre pesquisadores em formação e especialistas e contribuir para a consolidação do medievalismo em nosso país. Desse modo, buscamos com a IX SEM garantir as condições para a divulgação da produção acadêmica de discentes em nível de Graduação e Pós-graduação de todo o país. Tal produção pôde ser debatida por docentes que atuam no ensino superior e possuem experiência em pesquisa. Durante o evento, alunos de diferentes instituições de ensino, que concluíram seus cursos a partir de 2009 ou que ainda estão cursando, e com formação em diversas áreas História, Filosoia, Letras, Pedagogia e ains - puderam dialogar e aprimorar seus conhecimentos no campo dos estudos medievais. Estiveram presentes no evento discentes e docentes provenientes da UFRJ, UERJ, UFF, UFRRJ, UCP, PUC-SP, UFS, UFG, UFES, UFPR, UFSC, UFMT, UFRGS, UFMG, UFPA, UFBA, Estácio de Sá, Veiga de Almeida e Gama Filho. Reairmando o nosso compromisso com o diálogo interdisciplinar, a atividade contou ainda com a participação de dois especialistas em arqueologia, Luís Fernando Oliveira Fontes e Maria Manuela dos Reis Martins, ambos da Universidade do Minho, Portugal, que ministraram conferência e cursos. Na publicação ora apresentada, reunimos, além de materiais fornecidos pelos professores convidados, os textos das comunicações orais apresentadas durante a IX SEM, que foram disponibilizados pelos autores. Coordenação do Programa de Estudos Medievais 9 MANIFESTAçÕES DO SOBRENATURAL NA HISTORIA WAMBAE, DE JULIAN DE TOLEDO: O MARAVILHOSO COMO ARGUMENTO POLÍTICO NO REINO VISIGODO (SÉC. VII) Adriana Conceição de Sousa (Mestranda PEM - PPGHC - UFRJ)1 Introdução Em minha pesquisa de mestrado, orientada pela professora Leila Rodrigues da Silva (PEM/PPGHC/UFRJ), comparo os discursos relacionados à realeza em duas narrativas produzidas na Península Ibérica do século VII, a hagiograia Vita Desiderii, escrita pelo rei visigodo Sisebuto (612-621) em 615, e a Historia Wambae, escrita pelo bispo Julian de Toledo provavelmente na década de 680. Tenho observado, em particular, o peso atribuído pelos autores dos textos ao caráter cristão, ou não, da conduta dos monarcas, sendo esse o elemento norteador das caracterizações que os mesmos recebem, bem como o fator determinante dos seus sucessos ou insucessos como governantes. Entende-se que essa concepção estaria profundamente relacionada à relação que se estabelece entre a monarquia visigoda e o episcopado ibérico a partir da conversão oicial da aristocracia gótica em 589. Em que pesem os conlitos e dissonâncias que se veriicam ao longo do século VII entre determinados reis e bispos quanto a questões especíicas,2 o tom geral dos discursos produzidos pelo episcopado, ou sob sua inluência, no que concerne aos monarcas e ao regnum visigótico, é o da valorização da unidade política e religiosa, Bolsista Capes. Podemos citar como exemplo as contradições e discordâncias mencionadas por Rivera Recio e Antonino Gonzalez Blanco. Cf.: RIVERA RECIO, J. F. Cisma episcopal en la Iglesia Toledanovisigoda? Hispania Sacra, Madrid, v. 1, n. 2, p. 259268, 1948 e GONZALEZ BLANCO, A. El decreto de Gundemaro y la historia del siglo VII. Antiguedad y cristianismo, Murcia, n.3, p. 159-169, 1986. 1 2 10 fundamentada na centralidade e no correto exercício do poder pelos soberanos cristãos de Toledo, ao menos no nível da ideologia.3 Entre os principais defensores dessa proposta no reino visigodo, encontramos os bispos Isidoro de Sevilha (560-636) e Julian de Toledo (642-690), autor do relato que teremos por objeto neste trabalho. Nesta comunicação, apresentarei parte da análise que está sendo realizada em minha pesquisa sobre a Historia Wambae regis. Aqui nos ocupam as manifestações do sobrenatural associadas à presença e/ou atuação do rei Wamba por Julian de Toledo. A presença de ambas, por si, pode ser considerada um indício do caráter legitimador que a Historia Wambae assume em relação a igura de Wamba. Consideramos, entretanto, que o valor simbólico desses eventos prodigiosos4 requer um olhar especíico. No que concerne ao documento em questão, como todo, cabe salientar que se trata, juntamente com as atas conciliares e da legislação do mesmo período, de um dos poucos registros existentes sobre acontecimentos ocorridos no reinado de Wamba (672-680). Cf.: ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Sacralidade e monarquia no Reino de Toledo (sécs. VI-VIII). História Revista, Goiânia, v.11, n. 1, p. 179-192, 2006; STOCKING, Rachel. Bishops, councils and consensus in the Visigothic Kingdom, 589-633. Ann Arbor: University of Michigan, 2000; VALVERDE CASTRO, Maria del Rosario. Ideologia, simbolismo y ejercicio del poder real en la monarquía visigoda: un proceso de cambio. Salamanca: USAL, 2000. p. 195-215, dentre outros. 4 Cabe indicar aqui que, neste trabalho, a categoria “maravilhoso” se confunde com a do “milagre”, que, segundo Jacques Le Gof, vem a ser o sobrenatural e o extraordinário autorizados, devidamente restritos e cristianizados pelo discurso eclesiástico, ao serem dotados de uma única origem: Deus. O autor aponta para a predominância do miraculoso, em detrimento do maravilhoso em um sentido mais geral, nos textos da Alta Idade Média, o que seria fruto da preocupação e do esforço das autoridades cristãs desse período em controlar ou eliminar elementos oriundos do imaginário pré-cristão na sociedade. Cf.: LE GOFF, Jacques. Lo maravilloso y lo cotidiano en el Occidente medieval. Barcelona: Gedisa, 1986. p. 11, 13-14, 17. Ainda que consideremos a referida fusão conceitual perpetrada pela Igreja nos primeiros séculos da Idade Média, nossa preferência pelo uso do termo “maravilhoso” ou “prodigioso” aqui se justiica com o im de as manifestações do sobrenatural associadas a Wamba não se confundirem com aquelas associadas aos homens santos do discurso hagiográico, na medida em que o problema das similitudes e diferenças entre elas requer uma discussão especíica, à qual não podemos nos dedicar neste trabalho. 3 11 Tal dado levou alguns dos autores que escreveram sobre o período a reproduzir quase inteiramente o relato do bispo Julian de Toledo sobre a coroação de Wamba e os primeiros acontecimentos do seu reinado, com destaque para a derrota imposta à rebelião liderada pelo duque Paulo na Gália visigoda.5 O aspecto questionável dessa abordagem reside na ausência de uma relexão mais aprofundada no que diz respeito ao caráter retórico - e, portanto, ideologicamente orientado - da narrativa. Embora não descartemos outras possibilidades de leitura do documento, e que muito de seu conteúdo se refere de fato a acontecimentos reais,6 é justamente a Historia Wambae como construção discursiva, produto de estratégias ideológicas de seu período histórico, o objeto do estudo que aqui se apresenta, mais que propriamente os eventos e indivíduos aos quais ela se refere. Convém apontar brevemente, por isso, algumas contribuições relevantes para esta relexão, e com as quais dialogo ao longo deste trabalho. Gregorio Garcia Herrero, por exemplo, apontou que a Historia Wambae tinha menos o objetivo de cantar louvores a Wamba, do que afastar, ao menos no plano do discurso, a possibilidade da desintegração política do reino, que rebeliões como a de Paulo traziam todo o tempo à tona. O autor faz referência à questão do maravilhoso na HW, apontando que seriam poucas, mas ressaltando, no entanto, seu valor signiicativo, no sentido de reforçar a aura sacral que cercaria Wamba e sua gente,7 além de servir para evidenciar a provável distância cronológica entre a narrativa e os eventos aos quais se refere: para ele, a época de redação mais provável para a Historia Wambae são os primeiros anos do reinado de Egica (687-702).8 Podemos encontrar exemplos desse tipo de abordagem em THOMPSON, E. A. Los godos en España. Madrid: Alianza, 1971. p. 295-299 e MIRANDA CALVO, José. San Julian, cronista de guerra. Anales Toledanos, Toledo. v. 3, p. 159-170, 1971. p. 164-170. 6 COLLINS, Roger. Visigothic Spain, 409-711. Oxford: Blackwell, 2004. p. 92-93. 7 GARCIA HERRERO, Gregorio. Julian de Toledo y la realeza visigoda. Antigüedad y Cristianismo, Murcia, n.8, p. 201-255, 1991. p. 202; 210. 8 Idem. Sobre la autoria de la Insultatio y la fecha de composición de la Historia Wambae de Julian de Toledo. Arqueologia, paleontologia y etnograia, Madrid, n.4, p. 187-213, 1998. p.195, 201-203. 5 12 Antes dele, Suzanne Teillet, já havia indicado que a historia nessa narrativa assume um duplo sentido: o do evento histórico propriamente dito, mas também o de narrativa ediicante, ou exemplum, voltado à ilustração de uma verdade doutrinal, o que distinguiria sua natureza daquela de textos historiográicos escritos na Península Ibérica visigótica anteriormente, como os elaborados por Isidoro Sevilha.9 A autora aponta que, se cremos na imagem descrita por Julian de Toledo, Wamba atuou em seu reinado de modo a imitar os reis do Antigo Testamento,10 o que indicaria a possibilidade de o autor estar apresentando os fatos menos em função do que foram e mais como o que ele considera que deveriam ter sido, isto é, que o bispo toledano aproximasse Wamba dos reis de Israel não porque o primeiro tivesse efetivamente se inspirado neles durante o seu reinado, mas porque o relato em si visava, dentre outras coisas, apresentar um modelo de monarca a ser seguido. Eustáquio Sanchez Salor, por sua vez, apresenta outros elementos que denotariam uma construção consciente por parte de Julian de Toledo no sentido de reproduzir marcos bíblicos na Historia Wambae: além dos prodígios citados, os paralelos se manifestam na fala atribuída a alguns personagens, como o arrependido bispo Argebado, que se dirige ao rei para pedir perdão utilizando as palavras do ilho pródigo da parábola bíblica.11 Considerações como a dos autores anteriormente citados nos permitem avaliar que se faz necessária a análise da Historia Wambae menos como registro de eventos históricos e mais como construção discursiva, destinada a orientar e doutrinar seu público no âmbito de uma ideologia especíica com cuja defesa seu autor se via comprometido. TEILLET, Suzanne. Des Goths a la nation gothique: les origines de l’idée de nation en Occident du Ve au VIIe siècle. Paris: Les Belles Lettres, 1984. p. 586, 602-603. 10 Ibidem, p. 600-601. 11 SANCHEZ SALOR, Eustaquio. El providencialismo en la historiograia cristiano-visigótica de España. Anuário de Estúdios Filológicos, Extremadura, v.5, p. 179-192, 1982. p. 185. 9 13 O maravilhoso na Historia Wambae A Historia Wambae compreende em si um conjunto de quatro textos, sendo que o relato aqui considerado corresponde ao intitulado Historia rebellionis Pauli adversus Wambam.12 Nele, como mencionamos, narram-se os primeiros acontecimentos do reinado de Wamba: sua aclamação pela nobreza, descrita como unânime, sua coroação e unção pelas mãos do bispo de Toledo na época, Quirico, e suas primeiras expedições militares, com destaque para a que derrota a rebelião da aristocracia da Gália, liderada pelo dux Paulo, que havia sido enviado pelo rei para reprimir um levante anterior e termina inlamando os revoltosos ao invés do contrário. Conforme também antecipamos, o foco desta análise reside na construção da HW como argumento político em favor da monarquia. O momento em que a narrativa é produzida é identiicado por diversos estudiosos como o auge do desgaste dos vínculos formais existentes entre os reis de Toledo e os demais segmentos nobiliárquicos, estes dominando o cenário provinciano com crescente autonomia, fato do qual rebeliões aristocráticas como a liderada por Paulo seriam sintomáticas.13 Daí adquire sentido a produção de um relato que atribui a esse cenário desfavorável um signiicado que reforçaria, ao invés ameaçar, a crença na infalibilidade dos “religiosíssimos” monarcas toledanos e, por que não dizer, das autoridades eclesiásticas que lhe davam suporte. No interior dessa argumentação, entendemos que as menções a prodígios e eventos maravilhosos assumem um papel fundamental. Isto porque a HW se constrói inteiramente de modo a demonstrar a intrínseca ligação entre legitimidade/legalidade, virtude e favor divino, Utilizamos como base o título e a tradução de Pedro Rafael Diaz y Diaz. Cf.: DIAZ Y DIAZ, Pedro Rafael. Julian de Toledo: ‘Historia del Rey Wamba” (Traducción y notas). Florentia Iliberritana, Granada, n.1, p. 89-114, 1990. Para simpliicar a redação, nos referiremos ao documento como Historia Wambae ou HW, ainda que a análise esteja centrada no relato da rebelião de Paulo, que é apenas uma parte do conjunto que a Historia Wambae agrega. 13 GARCIA MORENO, Luis A. El estado protofeudal visigodo: precedente y modelo para la Europa carolíngia. In: FONTAINE, Jacques; PELLISTRANDI, Christine (Orgs.). L’Europe héritière de l’Espagne wisigothique. Madrid: Casa de Velazquez, 1992. p. 17-43. 12 14 utilizando para isso o exemplum representado na igura de Wamba. As manifestações do sobrenatural serviriam, assim, para evidenciar o elo entre a pessoa e as ações do monarca legítimo e a vontade de Deus. As referências escolhidas para a análise são duas.14 A primeira diz respeito a um prodígio que teria se dado durante a cerimônia em que se realizou a unção de Wamba, em Toledo: En efecto, de seguida desde lo alto de la cabeza, donde el óleo había sido vertido, alzose en forma de columna un vapor semejante al humo y del mismo sitio de la cabeza viose revolotear un abeja, señal que constituía un presagio de la felicidad que se aventuraba.15 A segunda se registra já no momento em que o exército a serviço de Wamba está prestes a derrotar completamente seus adversários: Fue entonces cuando se manifestó la divina protección, mostrando-se con signos inequívocos, pues, según se reiere, pareció le a un hombre de país extranjero que el ejercito del piadoso soberano se hallaba protegido por los ángeles de la guarda y que los propios ángeles llevaban sobre el campamento del mismo ejercito los símbolos de su protección en su revoloteo.16 As duas referências citadas, apesar de breves, merecem contextualização. S. Teillet já indicara que as duas cenas seriam inspiradas em passagens do Êxodo, na Bíblia – o que reforçaria a leitura segundo a qual Julian de Toledo estaria apresentando um Garcia Herrero apresenta as “coincidências” cronológicas apontadas por Julian entre, por exemplo, a data de coroação de Wamba e a data da derrota deinitiva de Paulo, como um exemplo de manifestação do sobrenatural na narrativa. Cf.: GARCIA HERRERO, Gregório. Julian de Toledo y la realeza... Op. Cit., p. 210. Embora não discordemos do possível sentido providencialista de tais referências, e de que isso as tornaria parte da argumentação do autor na dimensão que aqui destacamos, para os ins desta comunicação, optamos pelos “sinais divinos” descritos como se dotados de materialidade visível, e pertencentes, por isso, à categoria do maravilhoso. Cf.: LE GOFF, Jacques. Op. Cit., p. 9-10. 15 HW, 4. 16 HW, 23. 14 15 paralelismo entre os reis de Toledo e os reis de Israel.17 Entretanto, sendo muitos os milagres e prodígios bíblicos que poderiam ser mencionados, entendemos que é necessário problematizar o sentido da escolha destes em particular. O primeiro dos eventos, dentro de uma tipologia de eventos miraculosos, poderia ser qualiicado facilmente como “presságio/sinal”. Isso pode indicar a inluência da concepção de Gregório Magno (540604) a respeito da função do milagre, “que é ser um sinal (signum), quer dizer, para Deus a ocasião de uma teofania e para o homem uma lição ou um aviso”.18 Na Historia Wambae, o sentido desta referência parece ser o de reforçar a idéia de que a própria divindade referendava, no momento da unção do novo monarca, todo o processo que o conduzira ao poder. A preocupação, manifesta por Julian de Toledo nas passagens imediatamente anteriores do documento,19 de descrever um processo de aclamação e coroação rigidamente regulamentar, também indicam a intenção de desqualiicar possíveis questionamentos quanto ao rigor dos procedimentos políticos e formais que alçaram Wamba ao trono toledano. O que, lembremos, não pode ser considerado indício, por si só, de que contestações à legitimidade de Wamba fossem infundadas. Pois, como nos lembra Bernard Guenée, não era raro autores de TEILLET, Suzanne. Op. Cit., p. 602. Convém apontar que Julian de Toledo não é o primeiro intelectual eclesiástico a tecer esse paralelo: algumas décadas antes, na própria Península Ibérica, Isidoro de Sevilha, por exemplo, em suas Sententiae, exortava os monarcas a imitar o exemplo de humildade do rei Davi. Cf.: ISIDORO DE SEVILLA. Lib. III. Cap. XLIX. In: ____. El libro 2º y 3º de las Sentencias. Sevilla: Apostolado Mariano, 1991. p. 128. A caracterização de Wamba por Julian teria sido inspirada em Saul, o primeiro rei a ser ungido na Bíblia, mas que perde o poder em virtude de seus pecados. Para Garcia Herrero, esta seria uma evidência da distância temporal entre a Historia Wambae e os eventos que narra, já que denotaria um julgamento a posteriori voltado à igura de Wamba, o qual tomou algumas medidas contrárias aos interesses do bispo de Toledo durante seu reinado, além de ter perdido o trono por meio de uma deposição que ainda hoje é objeto de controvérsia historiográica. Cf.: GARCIA HERRERO, Gregório. Sobre la autoria de la Insultatio... Op. Cit., p. 190, 192. 18 VAUCHEZ, André. Milagre. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude (Orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Imprensa Oicial; Bauru: Edusc, 2002. 2v., V.2. p. 197-212, p. 200. 19 HW, 2-3. 17 16 crônicas e histórias medievais transmitirem à posteridade, ao invés dos acontecimentos em si, somente a lembrança do que eles deveriam ter sido.20 Sendo um presságio, a manifestação de Deus na cerimônia da unção de Wamba referendava não apenas os atos políticos que a antecederam, mas também os que estariam por vir. A descrição das ações de Wamba no combate a rebelião da Gália, da sua atenção ao exercício das virtudes cristãs, paralelamente ao combate dos vícios de seu próprio exército, e os sucessos militares que se seguem, visam demonstrar a conirmação do “sinal” manifesto no momento da coroação. A segunda das duas referências, em que anjos aparecem misturados ao exército do rei, escoltando-o em direção aos inimigos, também tem um sentido particular. Dionisio Perez Sanchez comenta que alusões a anjos eram presentes em muitos textos produzidos no reino visigodo, o que sugeria uma metáfora que atrelava as hierarquias da sociedade terrena às da sociedade celeste, com claros propósitos legitimadores.21 No caso da HW em especial, é signiicativo que Julian apresente Wamba recebendo suporte não apenas da sua própria corte, como também da corte celestial. Dentro da própria Historia Wambae podemos encontrar alguns elementos que podem nos ajudar a oferecer mais explicações para essa imagem. Assim que Wamba aparece recebendo as primeiras informações sobre a movimentação de Paulo e seus cúmplices na Gália,22 Julian o apresenta tendo que lidar com o fato de contar com um reduzido contingente militar para combater a revolta. O bispo toledano airma que a decisão de Wamba de marchar em direção à Gália com poucos homens teria sido uma opção do próprio rei, interessado em, desse modo, demonstrar aos rebeldes e aos francos que lhes apoiavam o valor guerreiro de seus leais súditos. GUENÉE, Bernard. História. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude. Op. Cit., 2v., V.1. p. 523-536, p. 531. 21 PEREZ SANCHEZ, Dionisio. Poder político y dominación social: la función justiicativa de los ángeles en el mundo visigodo. Studia Historica. Historia Antigua, Salamanca, n.26, p. 187-217, 2008. p. 195, 209, 216-217. 22 HW, 9. 20 17 Porém, deve-se levar em consideração o dado de que Wamba, algum tempo depois de sufocada a rebelião de Paulo, viu necessidade de instituir uma lei que estabelecia pesadas punições a aristocratas que recusassem auxílio militar ao rei, fosse no combate a revoltas internas ou incursões estrangeiras.23 A lei falha em cumprir com seus objetivos, ao que tudo indica, já que o sucessor de Wamba, Ervigio (680-686), no XII Concilio de Toledo, se sente obrigado a atenuar as punições atribuídas pela legislação tendo em vista que os processos judiciais não progrediam no reino, tamanha a quantidade de indivíduos impedidos de testemunhar em juízo.24 Assim, podemos compreender a escolha de Julian em mencionar, do modo como o fez, o suporte divino ao exército do rei toledano como parte de uma estratégia discursiva que convertia o dado negativo que era a provável inferioridade numérica do exército que apoiava Wamba em dado positivo. Primeiramente, apresentando a decisão do rei de avançar contra o inimigo com os homens que tinha a disposição como uma demonstração de coragem, ao invés de falta de alternativas; posteriormente, indicando que um soberano devidamente eleito por Deus estava sempre em posição de vantagem: se a lógica natural das coisas anunciava a derrota, a vontade divina e a assistência da corte celestial assegurariam que a razão e a vitória mantivessem-se sempre do lado certo.25 Cf.: GARCIA MORENO, Luis A. Historia de España Visigoda. Madrid: Cátedra, 1989. p. 172-173; COLLINS, Roger. Op. Cit., p. 101-102. 24 XII CONCÍLIO DE TOLEDO. In: Concílios Visigóticos y Hispano-romanos. Ed. Jose Vives. Madrid: CSIC. Instituto Enrique Florez, 1963. p. 383. Algum tempo depois, no XIII Concílio toleano, indivíduos que participaram da rebelião de Paulo foram até mesmo perdoados e realocados em suas posições, em posse de suas antigas propriedades. Para uma avaliação das implicações de tais medidas durante o reinado de Ervigio, cf. FRIGHETTO, Renan. O problema da legitimidade e a limitação do poder régio na Hispania visigoda: o reinado de Ervígio (680-687). Gérion, Madrid, v. 22, n, 1, p. 421-435, 2004. 25 A leitura de Gregório Garcia Herrero também identiica lógica semelhante no texto, que para ele estaria associada à época de redação do texto, o reinado de Egica, marcado por conlitos militares intensos, inclusive com os francos, acusados de apoiar Paulo na Historia Wambae. O estudioso considera que o objetivo de Julian de Toledo seria incentivar a nobreza que estaria lutando ao lado de Egica contra seus inimigos. GARCIA HERRERO, Gregório. Sobre la autoria... Op. Cit., p. 199200. 23 18 Mais que isso: Julian de Toledo oferece um argumento que se pretendia capaz de invalidar as pretensões de setores nobiliárquicos que contestassem a autoridade do monarca no plano econômico ou militar. Atribuindo à autoridade dos reis toledanos suportes e implicações que transcendiam os vínculos e disputas que perpassavam a sociedade hispanovisigoda, o autor pretende demonstrar que a centralidade e prevalência do poder dos reis e a unidade do regnum a eles subordinado dependia de fatores alheios às forças políticas os quais, concreta e presentemente, colocavam sua existência em xeque a todo momento. Conclusão Mencionamos anteriormente que para autores eclesiásticos inluentes, como Gregório Magno, milagres serviam para que Deus se anunciasse aos homens, demonstrando o seu poder. Consideramos que é também sobre isso que versa a Historia Wambae. Tratar-se-ia de um relato que visava demonstrar, dentre outros pontos, a infalibilidade de Deus e, logo, de seus eleitos. Este dado também nos permite discutir o uso político que se fez dessa concepção no reino visigodo. Expressões do maravilhoso que há muito apareciam em narrativas hagiográicas destinadas ao elogio dos homens santos, para atestar sua santidade, aqui se apresentam de modo a reforçar a credibilidade do elo que uniria o monarca legalmente eleito e consagrado à divindade à qual ele devia o seu poder. Observamos como, na narrativa de Julian de Toledo, citações e paráfrases bíblicas aparecem não apenas como um lugar-comum literário, mas como elementos dotados de signiicados especíicos no interior do discurso que se apresenta no relato. Seja reforçando a legalidade e legitimidade de um possivelmente controvertido processo de eleição ao trono, seja demonstrando e atribuindo causa à invencibilidade bélica de um rei abençoado pela corte celestial, o recurso ao maravilhoso/miraculoso bíblico se encaixa dentro de uma retórica que cristianiza a memória dos eventos inscritos na conturbada história política do reino de Toledo. A referência a esses milagres na Historia Wambae se explicaria, 19 assim, dentro de uma lógica que atribui à fé e à vontade de Deus preponderância sobre outros fatores explicativos dos sucessos e insucessos dos diversos atores e grupos políticos em choque na sociedade visigótica. 20 SANTA CRUZ DE COIMBRA E SUAS ALIANçAS SEGUNDO AS HAGIOGRAFIAS Alinde Gadelha Kühner (Mestranda PEM - PPGHC – UFRJ) A pesquisa para a elaboração desta comunicação relaciona-se à nossa dissertação de mestrado, Hagiograia e Santidade no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Neste projeto, estudamos duas hagiograias medievais escritas em Santa Cruz de Coimbra com o intuito de compreender como a construção de santidade dos dois fundadores – Telo e Teotônio – contribuiu para a legitimação do nascente mosteiro. Um dos tópicos da análise destas hagiograias concerne às alianças perpretadas pelos dois. O mosteiro agostiniano de Santa Cruz de Coimbra foi fundado nos arredores da cidade por volta de 1130. Seus fundadores já eram cônegos ao decidirem viver sob uma regra – transformando-se em cônegos regrantes. Dois desses primeiros agostinianos – Telo e Teotônio – foram temas de hagiograias escritas por seus discípulos. Em nossa análise, partimos do pressuposto que estas duas narrativas foram produzidas para que a memória e a legitimação da fundação do mosteiro se perpetuassem. Antes de abordarmos como as hagiograias representam as alianças político-religiosas dos dois fundadores, apresentemos os hagiografados e as hagiograias. D. Telo, o primeiro a ser mencionado, nasceu cerca de 1076, no então Condado Portucalense. Os dados sobre a sua vida são escassos, permitindo pouco mais que conjecturas. Cogita-se que tenha realizado sua formação escolar no studium da Sé de Coimbra, onde iniciou sua vida clerical. Servindo no capítulo da catedral, possivelmente participou da formação inal de Teotônio, a partir do momento em que este chegou de Viseu. Trabalhando no posto de arquidiácono, peregrinou a Jerusalém com o então bispo de Coimbra, D. Maurício. Segundo o hagiógrafo, a partir desta viagem D. Telo teria começado a desejar ter a possibilidade de fundar um mosteiro de cônegos regrantes. 21 Sob o episcopado de D. Gonçalo, Telo alcançou o cargo de arcediago, função que exerceu até a fundação do mosteiro e pela qual era denominado mesmo após 1131. Quando D. Gonçalo morreu, em 1128, Telo esperava ser promovido a bispo. D. Afonso Henriques, porém, patrocinou a eleição de D. Bernardo, então arcediago de Braga. O arcediago de Coimbra, pouco depois, começou a providenciar a fundação de Santa Cruz, cuja inauguração oicial deu-se em 1131. Já idoso e doente (contava então com cerca de cinquenta e cinco anos), fez eleger Teotônio como prior do mosteiro. Trabalhou na construção do edifício da comunidade, como idealizador e supervisor das obras, enquanto sua doença permitiu, e depois passou a ter uma vida dedicada a orações. Morreu cinco anos depois da inauguração do mosteiro. A hagiograia sobre Telo, Vita Tellonis Archidiaconi, foi escrita no priorado de D. João Teotônio, sobrinho de D. Teotônio e sucessor deste. Seu escritor, D. Pedro Alfarde, neste momento era escriba do mosteiro e, trinta anos depois de escrever esse texto, assumiu o priorado do cenóbio. O período em que a hagiograia foi escrita, cerca de 1155, foi um momento em que o mosteiro lutava por independência jurídicoreligiosa em relação ao cabido da Sé de Coimbra. O manuscrito que contém a narrativa recebeu o epíteto de Livro Santo, por ter esta narrativa como primeiro texto, mas a maior parte do códice é composto por documentos usados para a legitimação dos interesses do mosteiro, como privilégios papais. Aires Nascimento airma que Pedro Alfarde assume a Vita Tellonis como um prólogo a toda a documentação.1 Escrita em prosa e em latim, a vita é relativamente curta. Apresenta um terço do tamanho da hagiogragia dedicada a Teotônio, e neste curto espaço, como assinalado, algumas páginas são inserções de documentos de Inocêncio II, concedendo privilégios ao mosteiro. O espaço de elogio ao mestre é muito breve – um pouco no início e um pouco no inal da hagiograia, algo invulgar. A maior parte do texto é dedicada à atuação política de Telo dentro de seu contexto político-religioso e também às ações realizadas com o propósito de fundar Santa Cruz de Coimbra. NASCIMENTO, Aires. Santa Cruz de Coimbra e suas hagiograias medievais. Lisboa: Colibri, 1998. 1 22 Teotônio nasceu por volta de 1082 em Tui, na Galiza. Na década seguinte, mudou-se para Coimbra, sendo educado pelo seu tio D. Crescônio, então bispo da cidade. Morto Crescônio, Teotônio transferiu-se novamente, estabelecendo-se em Viseu, onde foi ordenado presbítero por D. Gonçalo. Na Igreja de Viseu icou por cerca de vinte anos, sendo ordenado Prior (por D. Gonçalo) um tempo depois de ter sido ordenado. Durante este tempo, peregrinou a Jerusalém duas vezes. Na segunda, Teotônio quase icou permanentemente na Terra Santa, numa comunidade de cônegos regrantes que lá se encontrava. Voltou a Viseu para deixar a paróquia em ordem antes de icar permanente em Jerusalém, mas nesse período D. Telo o convenceu a fundar o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e ser seu primeiro Prior. Permaneceu no mosteiro até a morte, sendo atuante como Prior por dez anos e como cônego comum por mais dez, a partir do momento em que abdica do priorado. Morreu em 1062. A hagiograia sobre D. Teotônio, Vita beatissimi domini heotonii, foi escrita aparentemente por um discípulo do Prior, anônimo. Conjectura-se que tenha sido escrita no mesmo ano da sua morte, por não mencionar a canonização regional de que foi alvo, um ano depois de seu falecimento. Apresentando trinta páginas (em edição moderna), a hagiograia é relativamente longa, escrita em prosa e em latim. A narrativa sobre Teotônio, ao contrário da de Telo, apresenta milagres e exorcismos supostamente realizados pelo santo, como os que serão aqui narrados. Mas a ênfase não se encontra nestes eventos sobrenaturais, mas sim no comportamento exemplar, na espiritualidade, na relação de D. Teotônio com os poderes seculares de seu tempo. A fundação de um mosteiro nos moldes agostinianos, em Coimbra, relaciona-se com o contexto da tradicionalmente chamada “reconquista”2 e de expansão dos ideais da vita vere apostolica.3 No 2 O termo encontra-se entre aspas por denominar a guerra entre muçulmanos e cristãos pelo poder na Península Ibérica de forma unilateral, sendo uma reconquista apenas para os cristãos. E o próprio uso desta palavra pressupõe que a Península, antes da ocupação muçulmana, pertencia aos reinos cristãos que a disputavam com os muçulmanos, o que desconsidera a descontinuidade entre reinos cristãos visigodos e os reinos cristãos que disputavam a península. 3 Opúsculo escrito no século XII, provavelmente anônimo. No texto, distinguem-se claramente os modos de vida dos monges e dos clérigos, atribuindo aos primeiros um modelo de vida mais compatível com a herança apostólica. O opúsculo inluenciou tanto os regulares quanto reformas no meio canonical. 23 momento em que os cristãos estavam promovendo o que chamaram de “reconquista” da Península Ibérica, as reformas eclesiásticas vindas do restante do continente estavam também sendo implantadas, em oposição à liturgia moçárabe remanescente na maior parte da península. A chegada da via agostiniana pode ser entendida como parte desse esforço de adequar a península aos ensejos romanos de uniicação da liturgia. O restante da Europa, no século XII, já conhecia as reformas monásticas de Cister e Cluny e estava passando por um momento de crise religiosa, em que parte da população buscava imitar a vida apostólica, em oposição à opulência, despreparo e isolamento de parte dos clérigos e monges da Igreja. A Igreja, porém, não reconhecia grande parte dessas tentativas de imitar os apóstolos, e elaborou o seu próprio meio de chegar a essa imitação: o opúsculo vita vere apostolica, mencionado acima. A oposição à vida dos clérigos seculares conforme feita neste texto inspirou reformadores a aconselharem mudanças para os cônegos. A partir daí, começou o processo de distinção entre cônegos regulares e cônegos seculares. Os primeiros, sob inspiração agostiniana, conjugaram vida pastoral e monástica, reorientando “o ideal de pobreza para a disponibilidade de pregação, no cumprimento de conselhos evangélicos de nada levar para o caminho e de dar gratuitamente o que sem mérito havia recebido” (Mc 6,8). Parte do esforço da moralização pretendida ao clero cristão passava também pela formação do mesmo, além dos opúsculos e sínodos. Para esta educação, em Portugal, Santa Cruz de Coimbra foi fundamental. A escola do mosteiro, assim como a sua biblioteca, são referências no que tange às primeiras manifestações culturais portuguesas. As referências bibliográicas proporcionadas por tal biblioteca foram fundamentais para a escrita dos textos crúzios, como podemos perceber no desenrolar de nossa pesquisa. Na análise das hagiograias que se segue, no entanto essas referências não são perceptíveis. Apenas os trechos em que as alianças político-religiosas aparecem serão mencionados, já que um breve resumo de cada uma foi escrito no início do texto. Dada a grande extensão da narrativa sobre Teotônio, mesmo esses trechos serão reduzidos devido ao exíguo espaço de que dispomos. 24 D. Telo, D. Teotônio e as alianças políticas segundo as hagiograias Comecemos por D. Mauricio, bispo de Coimbra entre 1099 e 1109. Conjectura-se que D.Telo e D. Mauricio viajaram para Jerusalém por volta de 1109. O verbo aqui utilizado, “viajar”, pode ser estranhado, mas descreve melhor a ação da narrativa analisada do que “peregrinar”. D. Telo e D. Mauricio, segundo a narrativa do texto, não tinham metas espirituais para irem à Terra Santa. Objetivavam realizar um exame das instituições clericais ali encontradas, mais do que fazer uma peregrinação com ins devocionais. Nove anos depois, D. Mauricio “ foi instituído papa” pelo Imperador Henrique V. Pedro Alfarde não deixa de mencionar o episódio embaraçoso, o fato de um aliado de D. Telo ter sido antipapa, mas o faz de forma breve, sem desqualiicar D. Mauricio. Não menciona a denominação de antipapa, culpabilizou somente o Imperador pelo ocorrido. O apelido atribuído a D. Mauricio, Burdino (burro), depois desse episódio, não é mencionado. D. Mauricio não recebe adjetivos, ou seja, não é desqualiicado com seu apelido depreciativo e tampouco é elogiado ao longo do período da narrativa em que é mencionado. D. Gonçalo, seu sucessor, foi bispo de Coimbra entre 1109 e 1128. É pouco mencionado na hagiograia de D. Telo, possivelmente por não ter tido participação em nenhum evento particularmente relacionado à fundação do mosteiro, mas é qualiicado como sendo “de boa memória”. Na Vita heotonii, tampouco, D. Gonçalo tem maior importância: sendo superior de D. Teotônio na diocese, D. Gonçalo o faz Prior da Igreja de Viseu, cargo que o santo ocupa por quase vinte anos, como já citado. Gonçalo, nesta hagiograia, é mencionado apenas neste momento, e sem adjetivos. Durante o seu bispado, teria sido realizada uma campanha para que D. Teotônio fosse promovido a bispo de Viseu. D. Teresa teria apoiado essa “candidatura”, mas D. Teotônio teria recusado por não valorizar as honras temporais, segundo o hagiógrafo. Concordamos, porém, com a hipótese de Aires Nascimento: D. Teotônio não aceitou o cargo para não ferir a hierarquia eclesiástica, que punha D. Gonçalo como seu bispo sufragâneo, e não por falta de ambição. A posição de Teotônio foi de obedecer a hierarquia eclesiástica, não aceitando indicações leigas para um cargo eclesiástico, mesmo que potencialmente fosse o favorecido. 25 Com a morte de D. Gonçalo, D. Telo seria o seu sucessor “natural”, por ser arcediago de Coimbra. Não tendo sido eleito bispo, D. Telo direciona sua atenção para outro projeto, embora na hagiograia não se admita que o bispado era um objetivo: a criação de um mosteiro regrante nos moldes do Mosteiro de S. Rufo de Avinhão, que conheceu na sua viagem a Jerusalém. Para isso, contou com a ajuda fundamental de D. João Peculiar, captador de recursos e posteriormente apoiador do mosteiro tanto quando era bispo de Porto, e depois, como arcebispo de Braga. Tendo sido desde sempre um grande aliado de D. Telo, o futuro arcebispo de Braga é elogiado desde sua primeira aparição na narrativa. É um dos personagens mais destacados pela adjetivação, numa hagiograia marcada pela exiguidade de adjetivos. D. Bernardo (1128 - 1147), sucessor de D. Gonçalo, é uma igura controversa nas hagiograias. Tendo sido ele o favorito de D. Afonso Henriques em relação ao bispado de Coimbra e sendo o vencedor da disputa, teve seus aliados na eleição desqualiicados como “inimigos da religião” na narrativa sobre D. Telo. Já a narração da fundação do mosteiro, na segunda hagiograia, é realizada subtraindo-se os conlitos de interesses que existiram naquele momento. D. Bernardo, então bispo de Coimbra, que desejava a submissão jurídica do mosteiro ao Cabido da Sé, não tem sua postura descrita na obra. Ao contrário, é adjetivado como “venerando” (uenarabilis). Ou seja, forjase um apoio que não existiu. Representa-se um consenso unânime diante da santidade do propósito do mosteiro, como se todos os agentes históricos do momento assim tivessem agido – destacamos D. Bernardo por ele ter sido rival do mosteiro, mas os outros agentes igualmente teriam apoiado incondicionalmente a fundação. Outra aliança do período da fundação do mosteiro destacada pela hagiograia é a do então papa, Inocêncio II. Ele recebe nas hagiograias os elogios de praxe devidos a um papa e, dada a importância dos seus textos direcionados ao mosteiro, privilégios, suas cartas são indexadas na hagiograia, algo incomum. É a natureza do manuscrito – uma coletânea de documentos que privilegiam o mosteiro, encabeçada por essa hagiograia – que justiica tal inserção. Foi também a forma de demonstrar o apoio do papa da época, fundamental num ambiente hostil à continuidade do mosteiro tal como foi formulado, como era Coimbra. 26 Há que destacar os cônegos regulares de Santa Cruz de Coimbra mostravam-se favoráveis à Reforma Papal, com a qul a Igreja preocupava-se em atingir muitos objetivos, dentre estes: diminuir a ingerência laica nos assuntos clericais, organizar as instituições religiosas em torno de Roma, a moralização do clero (que perdia cada vez mais credibilidade). Nesse sentido moralizador, convocou-se em 1059 um sínodo lateranense condenando a simonia4 e o concubinato, dentre outras reprovações. Neste sínodo, Hildebrando di Soana (futuro Gregório VII), criticou a Regra de Aix, então vigente para os cônegos. A regra seria por demais permissiva, especialmente em relação à alimentação e à regulamentação da propriedade privada, o que deixaria os clérigos com um modo de vida muito próximo dos leigos.5 Um dos cânones do sínodo aconselha os clérigos a buscarem formas de vida apostólica em comunidade. Esse cânone encontrou resistência a esse cânone, e a partir desse momento são postas as condições para a distinção entre cônegos regulares e cônegos seculares. Inocêncio II, ao conceder privilégios e reiterar a necessidade de se proteger o mosteiro de seus inimigos, reconhecia a comunidade como aliada às reformas que buscava implementar. Telo, ao regressar da viagem que fez a Roma para pedir tutela e proteção do Papa, alcançou seu intento, por meio dos três documentos que trouxe na bagagem, anexados na hagiograia. Tutela direta no primeiro, proteção militar no segundo (carta a Afonso Henriques) e proteção eclesiástica no terceiro (carta ao bispo). As alianças dos fundadores não se restringiram a eclesiásticos, incluindo também os governantes da região. Primeiramente, a rainha D. Teresa, e, posteriormente, D. Afonso Henriques, denominado Rei de acordo com as suas autotitulações, não como a Igreja de Roma o denominava, como se verá. Algum tempo depois do anti-papado de D. Mauricio, D. Gonçado “de boa memória”, sucessor deste no bispado de Coimbra, morre em 1128. Como já destacado, D. Telo, sendo o arcediago, seria o sucessor Tráico / venda ilícita de coisas sagradas ou espirituais, tais como sacramentos, dignidades, benefícios eclesiásticos. 5 MARTINS, Alberto. O mosteiro de Santa Cruz de Coimbra na Idade Média. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2003. 4 27 “natural” no bispado, e no seu intento foi apoiado por D. Teresa. Este episódio, porém, se deu depois da Batalha de S. Mamede, quando D. Teresa e D. Afonso Henriques disputaram o mando sobre o Condado Portucalense, e ela já havia perdido poder sobre o Condado Portucalense, o que a impediu de inluenciar nesta decisão. D. Afonso Henriques, seu iho e vencedor da batalha, não apoiou a eleição de D. Telo, e D. Pedro Alfarde atribui essa posição à “imaturidade” do infante, e não a uma escolha política estrategicamente pensada. D. Afonso Henriques privilegiava o arcebispado de Braga, por ser de sua alçada territorial. Seguindo sua estratégia, apoiou o arcediago de Braga, D. Bernardo, que foi eleito. A aliança dos crúzios com D. Terexa, aliás, foi importante, como a Vita heotonii não esconde. Mesmo quando comete falhas, D. Teresa não é alvo de especial censura. Em momento algum foi realizada uma crítica especialmente severa à condessa. Mesmo com a estreita relação entre os fundadores do mosteiro e D. Teresa, suas falhas não deixam de ser mencionadas. Primeiramente, tenciona entrar na igreja em que D. Teotônio rezava uma missa tendo como acompanhante seu “ainda amante”, D. Fernando. As aspas indicam que, segundo o texto, eles posteriormente casaram. Mas, como no momento da narrativa não eram casados, icaram envergonhados com o olhar de reprovação de D. Teotônio e não chegaram a entrar. Supostamente, segundo a narrativa, regularizam sua situação, mas não há indícios concretos de que tal casamento tenha se concretizado.Logo depois, é narrada outra falha de D. Teresa: ansiosa, tenta apressar o andamento de uma missa que o santo rezava. Todo um capítulo é usado para descrever a situação – a pressa, a repreensão, a missa sendo realizada de forma completa, o arrependimento de D. Teresa pelo mau comportamento. A conclusão que se ica desses dois trechos é que o objetivo de narrar os erros de D. Teresa não era tanto realizar uma reprovação à condessa, mas elogiar D. Teotônio por não fazer acepção de pessoas, concedendo privilégios aos poderosos. O foco da Vida de S. Teotônio no que tange às alianças é a importância da relação da família real de D. Afonso Henriques com o prior do mosteiro. D. Afonso Henriques mostra-se importante não só por muito aparecer na narrativa, mas também no tratamento dispensado a ele, que acompanha as suas auto-denominações, não as dadas pela Cúria Romana (que só reconhece A Henriques como rei 28 dezessete anos depois da escrita da hagiograia). Isso se dá devido à importância da aliança do rei com o mosteiro, por meio de ofertas, incentivos a doações e garantia de segurança. D. Teotônio era conselheiro do rei, como se pode perceber na passagem em que ele exorta o rei a libertar os cativos moçárabes, já que não se pode tratar um cristão como se trata um iniel. Além de conselheiro, D. Teotônio foi taumaturgo para com a família real: curou uma enfermidade sua mediante orações e de seu santo toque e, por meio de orações, salvou a rainha Mafalda e o bebê em um parto difícil. Conclusão Como se pode perceber, as representações dos aliados de D. Telo e D. Teotônio são realizadas especiicamente de acordo com os interesses locais do mosteiro – mesmo que contrariem algumas posições da Cúria Romana. Os nomes de tratamento dispensados a D. Teresa e a D. Afonso Henriques são um sinal disso: ela, rainha; ele, duque, e depois rei. Não que isso signiique uma ruptura com Roma, apenas sinaliza o caráter local das hagiograias. Sendo uma família de grande importância política para o mosteiro – antes mesmo da fundação - mesmo suas falhas não são narradas de forma enfaticamente reprobatórias. O que importava na narrativa não era enfatizar erros da família real, mas ressaltar as qualidades dos dois fundadores e os elos mais fortes dessa aliança – sempre desculpando e minorizando os erros dos nobres em questão. O mesmo ocorre com Mauricio, anti-papa entre 1118 e 1121, foi um importante aliado de D. Telo, e por isso seu apelido – Burdino – não foi utilizado. Se não furtou-se a narrar o episódio do antipapado, Pedro Alfarde foi breve na narrativa, apenas mencionando o ocorrido e deixando toda a culpa pelo problema sobre Henrique V. Não elogiou D. Mauricio,mantendo-se o mais neutro possível, mas sem negligenciar a importância do ex-enviado papal para a carreira eclesiástica de D. Telo. Na hagiograia de D. Teotônio, D. Mauricio é apenas mencionado quando inevitável, por fazer parte do contexto narrado. 29 A HERESIA CÁTARA NO LANGUEDOC Aline da Costa Silva (Graduanda LITHAM - UFRRJ) A heresia sempre foi algo preocupante para a Igreja. Para os escritores eclesiásticos, a palavra heresia designava uma doutrina contrária aos princípios da fé oicialmente declarada; algo que maculava a Igreja de Cristo. Esta questão começa a se ligar ao Estado depois de Constantino, que tornou o cristianismo uma religião lítica. De acordo com Monique Zerner,1 a história da heresia seguiu o ritmo do poder, e quanto mais forte ele era, com maior irmeza a heresia era identiicada e perseguida. As primeiras heresias se caracterizavam por um caráter ilosóico e teológico que fazia uma especulação racional em torno dos princípios ou dogmas cristãos. Já as heresias da Baixa Idade Média são de cunho popular se pautando numa nova visão ética da Igreja no Ocidente Medieval. De acordo com Falbel2 faziam uma crítica, e nesta crítica à Igreja observa-se uma tentativa de apontar desvios nos representantes da Igreja, que desvirtuavam a verdadeira imagem da religião de Cristo. Os homens seculares também atuavam contra a heresia. Para eles, a heresia era considerada uma falta tão grave que equivalia à quebra de um juramento de idelidade do vassalo a seu senhor, de tal modo que a “inidelidade” social e religiosa se confundiam. A Igreja começou a reprimir as heresias de maneira mais enérgica a partir do século XI.3 Mas a ausência de uma legislação precisa fazia com que os heréticos fossem tratados ora com clemência, ora com excessivo rigor. Um cânone para a heresia apenas surge com o Concílio de Tours (1163) e o terceiro Concílio de Latrão (1179). O Concílio ZERNER, Monique. Heresia. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002. 2v. V. 2. p. 503-521. 2 FALBEL, Nachman. Heresias medievais. São Paulo: Perspectiva, 1977. 3 Ibidem, p.15. 1 30 de Tours tratava com maior ênfase do afastamento dos iéis, já o Concílio de Latrão tratava das práticas coercitivas, apelando a bispos e príncipes para que investigassem casos de heresia. A excomunhão também foi usada como meio de induzir o poder secular a participar da perseguição e do combate à heresia. De acordo com Falbel, o aumento das heresias pode estar relacionado ao crescimento demográico e no “(...) impulso cultural e espiritual motivado pelo chamado Renascimento do século XII”.4 O autor chega ainda a identiicar os séculos XII e XIII como séculos heréticos dado o grande número de heresias que apareceram neste período. Dentre as numerosas heresias do período, encontramos o catarismo que esteve muito presente no Languedoc,5 entre outros lugares. O nome “Cátaro” aparece pela primeira vez nos “Sermões contra os cátaros” do monge Eckbert Von Schönau, pronunciados em 1163. É difícil se saber ao certo como os cátaros eram, pois a documentação que nos resta são atas de interrogatórios, bulas e cânones católicos produzidos ao longo da perseguição da Igreja aos hereges. Os únicos documentos dos hereges que teriam restado seriam três manuscritos do século XIII: uma cópia do Novo Testamento acompanhada de um ritual litúrgico provençal, outra cópia do Novo Testamento com um evangelho apócrifo e uma coletânea de textos heréticos, que teria sido anotada pela inquisição.6 Mas ainda assim, a maioria dos autores sobre o tema airma que nenhum documento cátaro conseguiu chegar até nós. Também conhecida por albigense,7 esta heresia teria se expandido no Midi8 devido a ostentação da igreja romana e de seu clero, que Ibidem, p.19. Languedoc é a contração de “Lingua de Oc”, que quer dizer “língua do sim”. Esta região se encontrava no Sul da França, na Occitânia, sendo uma região conhecida, além dos cátaros, pela produção trovadoresca. 6 Cf.: ZERNER, Monique. Op. Cit., p. 518. 7 A nomenclatura “albigense” dá a falsa ideia de que esta heresia estaria circunscrita apenas a Albi, quando na verdade ela circulou por todo Languedoc. Outro ponto importante é que muitas vezes a nomenclatura Albigense se refere a todos os hereges da região, inclusive os valdenses. 8 Sul da França. 4 5 31 possuía considerável poder secular. O catarismo“(...) se apresenta como um estranho sincretismo em que, ao fundo dualista, maniqueu,9 se sobrepõe elementos herdados de muitas outras heresias”.10 Os cátaros do Languedoc teria origem ancestral oriental, sendo “herdeiros” dos bogomilos,11 e de acordo com Stephen O’Shea12 rapidamente teriam conquistado milhares de seguidores. Segundo Daniel-Rops, a heresia cátara havia contaminado vários estratos da sociedade do Languedoc, havendo “crentes” desde os poderes públicos, senhores, e famílias nobres, embora muitos não se declarassem hereges. Inclusive, muitos trovadores foram acusados de serem hereges cátaros.13 O essencial da crença é o dualismo, que prega que neste mundo se debatem dois princípios: o Bem e o Mal, dois deuses que tem como campo de batalha a terra. Questionavam que este mundo não poderia ter sido criado pelo Deus bom, pois se assim o fosse seria perfeito como o Deus. Logo, o mundo seria uma criação do Deus mau, ou Lucibel. Dentro da crença cátara, Os Deus bom criou o mundo invisível dos espíritos perfeitos; o deus mau criou o mundo invisível da Religião fundada por Mani, baseada em dois princípios fundamentais e conlitantes: o Bem e o mal. Em sua forma mais radical, levava seus iéis à abstinência de coisas sexualmente geradas e rigorosos jejuns. Cf.: LYON, Henry R. Dicionário de Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. 10 DANIEL-ROPS. A Igreja das Catedrais e das Cruzadas. São Paulo: Quadrante, 1993. 10 v., V.3. p. 589. 11 Adeptos de uma seita herética búlgara do século X. A seita possuía origem no Maniqueísmo, e eram dualistas, acreditando num Deus bom, que teria criado o mundo espiritual, e num Deus mau, que teria criado o mundo material. Cf.: LYON, Henry R. Op. Cit. 12 O’SHEA, Stephen. Los Cátaros: La herejia perfecta. Buenos Aires: Vergara, 2005. 13 Por este prisma, o Amor Cortês poderia simbolizar uma homenagem do crente imperfeito ao Perfeito e à moral cátara. A inquietação por eles vivida devido a sua incapacidade de conseguir se elevar ao nível de Perfeitos fazia com que estes vissem nas trovas uma maneira de representar seu desejo em um momento também chegar a Perfeito e como forma de expressar sua admiração a estes. Outro olhar seria o de que a dama louvada nas trovas seria, na verdade, a igreja cátara. Neste caso, a dama inatingível seria a própria igreja cátara e seus valores, e o trovador, seu iel que de tudo faz para conseguir alcançar. Cf.: ROUGEMONT, Denis de. Amor y Occidente. Ciudad Del Mexico: Leyenda, [s/d]. 9 32 matéria, onde reside o pecado. (...) Tendo feito surgir a terra do nada, Lucibel quis povoá-la; fabricou corpos com barro e (...) conseguiu capturar e seduzir alguns espíritos puros, para encerrar dentro desses invólucros de terra. Pelo atrativo da concupiscência, deu a conhecer às primeiras dessas criaturas o ato da carne, e, cada vez que uma criança nasce, o espírito mau encerra no seu corpo a alma de um anjo decaído. Entretanto, o Deus bom apiedou-se dos anjos acorrentados na terra. Resolveu enviar-lhes a sua Palavra, pela voz de um mensageiro. Reuniu os anjos iéis e propôs-lhes essa difícil missão. Todos recusaram, exceto um, Jesus, a quem Deus chamou desde então de ilho.14 Lucibel, ou Lúcifer, teria sido um anjo supremo, que teve inveja do poder de seu Senhor, e por tal motivo teria sido expulso dos céus, trazendo consigo vários anjos, os quais Jesus, anjo que ocupou o lugar de Lucibel nos céus, teria vindo salvar. Antes de Jesus os homens teriam vivido nas trevas servindo a Jehová, que para os cátaros seria Lucibel.15 E por isso apenas o Novo Testamento é utilizado por eles, uma vez que o Antigo Testamento seria obra do Deus mau. Os membros da seita cátara acreditavam que homem deveria trabalhar para se desprender do que é carnal. O corpo não seria algo criado por Deus, pois é suscetível a males e se destina a Morte. Logo, é um simples trapo do qual devemos nos livrar. Uma de suas principais crenças era a ressurgimento, o que negaria a crença na morte e ressurreição de Cristo. Para os cátaros Jesus jamais possuiu um corpo humano, apenas a aparência de um. Caso Jesus tivesse se tornado homem, teria se convertido em uma criatura de Lucibel. A caminhada de Jesus sobre as águas e o seu encontro no monte com os profetas seriam provas de sua natureza divina, e DANIEL-ROPS. Op. Cit., p.589-590. O Antigo Testamento diz que este céu e terra teriam sido criados por Jehová, e sendo tudo neste mundo obra de Lucibel, Jehová seria Lucibel para os cátaros. Cf.: RAHN, Otto. Cruzada contra el Grial. Madrid: Hiperión, 2007. p. 99. 14 15 33 não humana. Não possuindo um corpo humano, Jesus teria sofrido apenas em aparência na cruciicação, e teria podido ascender aos céus. Os cátaros também rejeitavam os milagres de Jesus pois “¿Como hubiera podido curar los males físicos El que consideraba el cuerpo como un obstáculo para la redencíon de la alma?”16 Logo, os milagres de Jesus teriam sido apenas metáforas sobre a conscientização dos homens sobre a Verdade Divina por meio de Jesus. O catarismo pregava também o desprendimento dos bens e privação dos desejos. Os Perfeitos praticam o desprendimento absoluto dos bens da terra, da propriedade, do casamento, de toda alegria carnal, e por isso estavam certos da salvação imediata. De acordo com Otto Rahn, a moral cátara não era a moral cristã, pois por mais que a moral cristã fosse rígida, esta não exigia a mortiicação da carne, nem o desprezo à criação terrestre, nem a dissolução de todos os vínculos terrenos. Tras llegar a la última fase de la existencia material, los perfectos se preparaban para un último viaje; su vida abnegada les aseguraba que tras morir no regresarían, sino que su espíritu encarcelado sería por in libre para unirse a la divinidad eterna e invisible.17 O’Shea fala que o uso da terminologia “Perfeitos” se dava pelos perseguidores dos cátaros, fazendo alusão a hereges perfeitos, completos. Entre eles se chamavam apenas de cristãos, cristãos bons, bons homens ou mulheres, e amigos de Deus. Estes seguidores da seita que haviam atingido tal estágio viviam em bosques e covas, se dedicando às atividades de culto quase que exclusivamente. Os cátaros não acreditavam nos sacramentos católicos, pois para eles “a puriicação procederia diretamente da justiça de Cristo”,18 RAHN, Otto. Op. Cit., p.103. O’SHEA, Stephen. Op. Cit., p.27. 18 MACEDO, José Rivair. “Um grupo em busca de perfeição espiritual: os cátaros na França medieval”. Conferência apresentada na VI Jornada de Estudos do Oriente Antigo: crenças, magias e doenças, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, no dia 19/05/2000. p. 2. Disponível em http://www.gtestudosmedievais. ufrgs.br/cataros.pdf. Acessado em 10/04/2011. 16 17 34 sendo os únicos “sacramentos” cátaros o consolamenium, uma espécie de batismo no Espírito onde o seguidor se torna um Perfeito não havendo caminho de retorno, a ordenação, a penitência e a quebra do pão.19 O consolamenium era um caminho radical, e uma vez eleito Perfeito o seguidor da heresia deveria se submeter às rígidas regras desta, sem volta. Isto fazia com que muitos crentes “[...] hesitam perante uma renúncia tão radical e preferem esperar o instante da morte para serem ‘consolados’”.20 E por tal, como fala O’Shea, os crentes eram em número muito maior que os Perfeitos. Aos ‘crentes’, apenas se pede que não participem daquilo que poderia associá-los ao desenvolvimento da sociedade terrestre, ilha de Satanás; por exemplo, deverão recusar qualquer juramento, pois o juramento é prestado em nome de um Deus que não é o verdadeiro. Deverão também esquivar-se a toda obrigação militar.21 Se um crente morresse antes de ser “consolado” acreditava-se que sua alma se mudaria para um novo corpo. E se este crente tivesse cometido muitos pecados, este poderia retornar, inclusive, no corpo de um animal. Dentro da seita cátara, há a condenação de manifestações presentes no culto católico, como a cruz, as imagens e as relíquias.22 As cerimônias cátaras ocorrer pelo menos uma vez por semana, e nela um Perfeito lia uma passagem do Novo Testamento e a interpreta a sua maneira. O Antigo Testamento é visto como uma obra inspirada pelo Deus do mau. FALBEL, Nachman. Op. Cit., p. 41. DANIEL-ROPS. Op. Cit., p. 591. 21 Idem. 22 Mas apesar da rejeição aos elementos presentes nas cerimônias católicas, DanielRops fala que havia similaridades com o catolicismo nas práticas cátaras, como o “banquete sagrado”, que de acordo com o autor lembraria mais o ágape primitivo do que a Eucaristia, e uma espécie de conissão chamada de appareillamentum. Os cátaros rejeitavam a Eucaristia, pois para eles ela jamais poderia se transformar misticamente no corpo espiritual de Jesus, como aposta Otto Rahn. 19 20 35 A heresia possuía ainda um caráter “anticristão”, tratando a Igreja de Roma como fruto do mal, e antissocial, aniquilando a sociedade por meio de suas práticas (como a abstinência sexual e o suicídio coletivo). O suicídio era permitido entre os cátaros desde que não fosse realizado por medo, sofrimento ou tédio. Se o fosse realizado por algum destes motivos, a alma continuaria a padecer do mesmo mal.23 Já que dentro desta crença a verdadeira vida apenas se encontrava depois da morte, o suicídio era uma forma de libertar o espírito e se unir ao espírito de Deus, regressar aos céus e retornar a verdadeira vida. Um aspecto interessante da heresia cátara que vale ser mencionado é a equidade com a qual, de acordo com O’Shea, homens e mulheres eram vistos. De acordo com ele, dentro desta crença o ser humano teria passado por diversas encarnações, e nestas por diferentes posições sociais e sexo, o que ressaltava que o que importava era a natureza imaterial, divina e assexuada de cada um. “Si los sexos se empeñaban en juntarse y, por tanto, prolongar su estancia en el mundo material, podían hacerlo libremente, fuera del matrimonio, que era otro sacramento infundado inventado por una voluntad sacerdotal de poder”.24 Apesar disso, Falbel ressalta o perigo que era a mulher e a tentação que ela provocava. Caso um Perfeito tocasse uma mulher, mesmo que acidentalmente, teria de se submeter a três dias de jejum para se puriicar.25 Vale ressaltar que esta equidade não signiicou igual posição social entre homens e mulheres, nem uma promoção da posição feminina na sociedade. Apenas reconhecia-se esta equidade devido a natureza assexuada do espírito, que seria a mesma entre ambos os sexos. Apesar de a Igreja ter iniciado o combate à heresia de maneira mais branda, as camadas populares eram extremamente violentas com os “perigosos” hereges. Os hereges eram considerados por eles como perigosos seguidores do demônio. Num primeiro momento, a Igreja iniciou o combate ao catarismo com movimentos pacíicos, como a “Cruzada Espiritual” (1147-1209), Cf.: RAHN, Otto. Op. Cit., p. 113. O’SHEA, Stephen. Op. Cit., p.30. 25 Cf.: FALBEL, Nachman. Op. Cit., p. 36-59. 23 24 36 que buscava a identiicação e conversão dos hereges ao catolicismo. Privação de feudos a quem abrigasse hereges e excomunhão também eram meios usados para refrear a heresia. Mas, como as tentativas mais pacíicas não funcionaram como a Igreja esperava, em 1209 tem início a Cruzada Albigense, que atraiu muitos cavaleiros devido às indulgências oferecidas pelo papa Inocêncio III. A cruzada teve seu im em 1244, e pôs im ao caratismo no Languedoc de acordo com os autores. Mas este não foi o im dos cátaros no Midi e em outras regiões da Europa, onde sua presença ainda se fez sentir no século XIV. 37 CRESCIMENTO E DECLÍNIO DO CULTIVO DE TRIGO NA ILHA DA MADEIRA DURANTE O SÉCULO XV Álvaro Mendes Ferreira (Mestre Translatio Studii – UFF) A cronística quatrocentista e da primeira década quinhentista é unânime em airmar a fertilidade na Ilha da Madeira, em particular na triticultura. Alvise Cadamosto chama-a de fertilíssima; num dos relatos compilados no Códice Valentim Fernandes, o trigo é-lhe gabado como “ho mais fremoso [...] do mundo”; Diogo Gomes diz-lhe fértil (“fertilis”); Zurara cita as suas “muy abastosas nouidades”.1 O mais relevante não é o emprego de semelhantes tropos da fertilidade de certa terra – tão usual que por si não exprimia mais que uma mediocridade –, mas que tais airmativas procurassem fornecer, conforme veremos, números, recurso raro para tratar da produção agrícola nesse tipo de fonte. Neste trabalho pretendemos compreender, com vistas a uma pesquisa mais aprofundada, por que o cultivo do trigo, que se mostrara tão próspero nos começos da colonização em 1419, perde terreno para a cana-de-açúcar e, já a partir da década de 1470, a Madeira passa de exportadora a importadora cerealífera. A carestia de trigo em Portugal Se no plano econômico, o século XV caracteriza-se pela continuação e mesmo agravamento da crise da centúria anterior, a Europa cristã, apesar de perdas territoriais na sua porção oriental para os otomanos, ao mesmo tempo inicia a expansão colonial que será o gérmen de sua futura hegemonia mundial. Os primeiros movimentos CADAMOSTO, Alvise. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988. p. 9; Códice Valentim Fernandes. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1997. p. 139; GOMES, Diogo. De prima inventione Guineae. In: Códice Valentim Fernandes. Op. Cit., p. 306; ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica dos Feitos Notáveis que se Passaram na Conquista da Guiné por Mandado do Infante D. Henrique. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988. Cap. LXXXIII, p. 308. 1 38 orientam-se pelas costas magrebinas e pela Macaronésia e são empreendimentos patrocinados sobretudo pelas coroas de Portugal e de Castela, sem que isso signiique a ausência de mareantes ou capitais estrangeiros. Sem pretender adentrar no complicado tema das causas da expansão ultramarina portuguesa no Quatrocentos, parece bem razoável supor que não pequeno papel desempenhou o déicit frumentário de que sofria continuadamente o reino.2 Como Portugal carece, de forma geral, de terrenos propícios ao cultivo do trigo,3 não era autossuiciente e via-se obrigado a importar. Numa civilização na qual os excedentes agrícolas eram escassos e as vias de comunicação, precárias, essa dependência de abastecimento externo do principal produto alimentício representava verdadeiro fator de desestabilização social, ainda mais em vista de que um dos fornecedores de Portugal era a rival Castela.4 Houve cartas régias proibindo a exportação de grãos em 1272, 1331 e 1391,5 e as Ordenações Afonsinas recolhem uma lei de D. Afonso III que interditava em absoluto a exportação quer do grão, quer da farinha, sob pena de conisco (Livro V, título 48).6 Em 1437, sob D. Duarte, a exportação do trigo estava sujeita à aprovação régia e ao encargo da dízima, o que pretendia estorvar economicamente tal comércio (“porque a nossa teençom he a dita saca seer vedada o mais que podermos”).7 Por outro lado, a importação era facilitada, quando não feita na forma de corso de navios que Cf. WALLERSTEIN, Immanuel, he Modern World System. San Diego: Academic Press, 1994. V. I. p. 42: “In the long run, staples account for more of men’s economic thrusts than luxuries. What western Europe needed in the fourteenth and ifteenth century was food (more calories and a better distribution of food values) and fuel. Expansion into Mediterranean and Atlantic islands […] provided food and fuel.” 3 BARROS, Henrique. O Problema do Trigo. Lisboa: Cosmos, 1944. p. 34-35. 4 GODINHO, Vitorino Magalhães. Os Descobrimentos e a Economia Mundial. Lisboa: Presença, 1983. v. IV. p. 11-12. 5 Ibidem, v. III. p. 218. 6 ORDENAÇÕES AFONSINAS. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984. v. V. p. 174-175. 7 Ibidem, p. 175-176. 2 39 passavam por águas portuguesas. Portugal abastecia-se com o trigo da Inglaterra, Flandres, Alemanha, França (sobretudo Bretanha), Marrocos e da Sicília.8 A dependência alimentar, mesmo de gêneros de base, não era desconhecida na Baixa Idade Média: os Países Baixos, por exemplo, importavam trigo da região do Báltico. No entanto, ao contrário de Portugal, dedicavam-se a atividades econômicas de alto valor agregado – pastoreio, cultivos industriais como plantas tintórias, fabrico de têxteis –, que lhes asseguravam certa folga no sistema de trocas. Poucos, por seu lado, eram os produtos lusos demandados nos demais mercados europeus – vinho, azeite e sal – que se mostravam competitivos. O vinho e o azeite produziam-se em toda a bacia mediterrânica e as importações do primeiro pelo Norte europeu eram mais bem servidas pelas vias luviais (vinícolas no Alto Reno p. ex.) enquanto as do segundo tinham pouca acolhida pela concorrência do sebo, banha da baleia, cera e manteiga locais. Restava apenas o sal, muito difícil de obter nas porções mais úmidas, frias e pouco ensolaradas do setentrião. Assim a balança comercial portuguesa, com essa pauta estreita de exportações, devia já se apresentar deicitária. Os primeiros movimentos da expansão almejariam, portanto, equilibrar as inanças do reino apropriando-se do ouro do tráico guineense, cujo câmbio em prata era extremamente favorável aos europeus,9 e também expandindo a área de cultivo cerealífero. Os resultados das aventuras pelas terras magrebinas no que tange ao abastecimento frumentário, todavia, parecem ter sido desastrosos, pois as praças lusitanas, isoladas e predatórias, ou despovoaram os campos circundantes, ou implantaram-se em zonas de cultivo muito inexpressivo. Ceuta, Alcácer-Ceguer, Tânger e Arzila só satisfaziam à metade das suas necessidades.10 GODINHO, Vitorino Magalhães. Op. Cit., v. III. p. 223-231. Em Arguim, na virada do século XV para o XVI, a relação do valor entre ouro e prata era de 1:3. Cf.: Códice Valentim Fernandes. Op. Cit., p. 24. A essa altura na Europa, antes da invasão da prata americana, era de 1:10 a 1:12. Cf.: SMITH, Adam. An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1952. Liv I, cap. 11, p. 92. 10 GODINHO, Vitorino Magalhães. Op. Cit., v. III. p. 251. 8 9 40 Pão ou açúcar? Embora usada como ponto de aguada e carnagem nas viagens às Canárias pelo menos desde meados do século XIV, a Madeira só começa a ser povoada por volta de 1419 (talvez a partir de 1424 ou 1425).11 As primeiras explorações agrícolas da colônia, como era de se esperar, procuram reproduzir na medida do possível os cultivos que se praticavam na metrópole e, assim, a vinha e o trigo acompanham os primeiros colonos. Nesses pródomos, é o trigo o principal produto, favorecido pelas condições geográicas e pela abundância de terras, concedidas em regime de sesmaria. A fertilidade da Ilha da Madeira sobressai nas crônicas do Quatrocentos e inícios de Quinhentos. O italiano Cadamosto avaliava a relação entre sementeira e colheita do trigo entre 1:70 e 1:60 para os inícios da colonização e entre 1:40 e 1:30 ao tempo da sua viagem em 1445;12 Francisco Alcoforado, em 1:60 para inícios da colonização;13 Diogo Gomes, em mais do que 1:50 para essa mesma época;14 um relato compilado por Valentim Fernandes, em 1:15 em 1506.15 Mesmo considerando-se a natureza excepcional dos solos vulcânicos da Madeira, arroteados por coivara,16 o que incrementava ainda mais a fertilidade pela camada de cinza, os valores são assombrosos. Para a Europa pré-industrial, Carlo M. Cipolla estimou esse índice em 6 e mesmo para o cinturão do trigo dos Estados Unidos dos anos 1970 OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. Nova História da Expansão Portuguesa: a expansão quatrocentista. Lisboa: Presença. p. 44-51 e CARITA, Rui. História da Madeira (1420 – 1566): povoamento e produção açucareira. Funchal: SER, 1989. p. 32. 12 CADAMOSTO, Alvise. Op. Cit, p. 9. O relato data de 1463 ou 1464. 13 ALCOFORADO, Francisco. Relação. In: FERREIRA, Pe Manuel Juvenal Pita. A “Relação” de Francisco Alcoforado Funchal: Jornal da Madeira, s/d, p. 57. Pita Ferreira julga a relação como testemunho direto de princípios da colonização, na qual Alcoforado teria participado ao lado de Zarco. Cf.: p. 22. 14 Códice Valentim Fernandes. Op. Cit., p. 306. 15 Ibidem, p. 139. 16 Ibidem, p. 138, 305. 11 41 orçaria por 30.17 Na Provença do século XVIII, valia 5.18 Slicher van Bath considera para os cereais paniicáveis durante a Idade Média o índice entre 3 e 4 e reputa elevados os rendimentos em Gosnay (Inglaterra) de 8 a 16 nas safras de 1332 a 1343.19 Sabe-se muito bem o cuidado que se há de ter com a contabilidade agrária medieval, mesmo naquelas empresas mais bem administradas (geralmente mosteiros).20 Em todo o caso, conforme observa Vitorino Magalhães Godinho, o importante nos índices que nos fornecem os cronistas é o seu valor marcadamente descendente, sem dúvida resultante da exaustão dos solos, mas também provavelmente pela progressiva marginalização das searas aos solos menos úberes.21 O fato é que, a despeito dessa alta fertilidade, já em 1466 encontramos a primeira referência à importação de trigo que se intensiicará ao longo dos anos, a ponto de, em princípios do século XVI, a produção madeirense bastar para si apenas durante três meses, complementandolhe o consumo as naus oriundas sobretudo dos Açores, a tal altura o novo celeiro português.22 Malgrado a situação alimentar crítica de Portugal, a retração do trigo na Madeira não é espantosa se considerarmos outros fatores além CIPOLLA, Carlo M. História Econômica da Europa Pré-industrial. Lisboa: Edições 70, 1984. p. 143. 18 BRAUDEL, Fernand. La Méditarranée et lê monde méditerranéen à l’époque de Philippe II. Paris: Armand Colin. V. I. p. 389. 19 BATH, Bernard Slicher van. História Agrária da Europa Ocidental (5001850). Lisboa: Presença, 1984. p. 28, 178. 20 O tímido desenvolvimento de processos de quantiicação a partir da Baixa Idade Média exige cuidados redobrados do historiador que pretenda trabalhar com números. Ainda em 1535 no Tratado del Esphera y del Arte del Marear, obra técnica cujas concepções não eram das mais triviais, o português Francisco Faleiro dedicou o último capítulo a ensinar a ler algarismos. O capítulo intitula-se “Reglas para deprender a cõtar de guarismo en muy breue tiempo” e trata exclusivamente de explicar o valor posicional dos algarismos indo-arábicos. Cf.: FALEIRO, Francisco, Tratado del Esphera y del Arte del Marear. Munique: J. B. Obernetter, 1915, p. 88-90; CROSBY, Alfred. W. A Mensuração da Realidade: a quantiicação e a sociedade ocidental (1250-1600). São Paulo: Unesp, 1999. Passim. 21 GODINHO, Vitorino Magalhães, Op. Cit., V. III. p. 235. 22 SERRãO, Joel. Le blé des îles atlantiques: Madère et Açores aux XVe et XVIe siècles. Annales E. S. C., Paris, n. 3, p. 339-341, 1954. 17 42 da demanda reinol; muito pelo contrário, desconcertante à primeira vista é que desempenhasse papel preponderante durante tanto tempo na vida econômica da Madeira. Quando da colonização, a conjuntura econômica era a pior possível para a cerealicultura: desde meados do XIV a ins do XV os preços dos cereais baixavam e, inversamente, devido à contração demográica, os salários subiam.23 A rentabilidade da empresa triticultora madeirense deve ter sido baixa, pois a) havia distâncias relativamente longas a vencer para os mercados mais próximos, isto é, a África (cerca de 800 km) e Portugal (cerca de 1000 km), para a venda de produto de baixo valor em face do volume; b) por se tratar de ilha e ademais em fase de colonização, a mão-de-obra, assalariada ou servil, era provavelmente escassa, encarecendo-lhe ainda mais o custo numa conjuntura altista; e c) à ilha só era permitida a livre exportação após o ensacamento de 1.000 moios para o tráico da Guiné, onde o trigo era trocado por ouro em pó e escravos.24 Conforme os cálculos de Godinho, baseados nos números de Cadamosto, em meados do século XV a ilha produziria 3.000 moios de trigo, mil dos quais consumidos pela própria população madeirense.25 Ora, isso signiicaria que metade do excedente comerciável era açambarcada por um oligopsônio forçado, o que entravava o escoamento a mercados mais vantajosos e reduzia o poder de barganha dos triticultores. A alta produtividade, diante de condições econômicas tão adversas, só poderia ter o efeito de depreciar mais ainda o preço do trigo. Diogo Gomes menciona que as messes eram tamanhas que as “todo ano as naus de Portugal lá iam e adquiriam [o trigo] como por nada” (“naues Portugalie omni anno illuc venurunt et quasi pro nihilo habuerunt”).26 O trânsito do trigo para a cana-de-açúcar como artigo preponderante de exportação, concluído talvez por volta de 1470,27 ABEL, Wihelm. La Agricultura: sus crises y conjuncturas. México: Fonde de Cultura Económico, 1986, p. 70-90; FOURQUIN, Guy. Histoire économique de l’occident médiéval. Paris: Armand Colin, 1971. p. 316-322. 24 Códice Valentim Fernandes. Op. Cit., p. 282. 25 GODINHO, Vitorino Magalhães, Op. Cit., V. III. p. 233. 26 Ibidem, p. 306. 27 SERRãO, Joel. Op. Cit., p. 338. 23 43 pode ser entendido como a tentativa de realizar o verdadeiro propósito dos emigrados: o estabelecimento de empresas agrícolas que, pelos altos rendimentos, compensassem os custos com transporte a longas distâncias. Como bem relembra João José Abreu de Sousa, Portugal não sofria pressões demográicas no Quatrocentos e ainda vastas regiões da Estremadura e do Alentejo estavam por colonizar, valendo o direito das sesmarias em todas as terras devolutas dessa região.28 As vantagens do açúcar sobre o trigo são diversas: a) a elasticidade preço-demanda do açúcar, então produto de luxo e com pretensas propriedades medicinais, era altíssima ao passo que o trigo, item básico de alimentação, é relativamente inelástico;29 os agricultores madeirenses poderiam obter enormes lucros se fossem capazes de oferecer o açúcar no mercado europeu por um preço ainda que ligeiramente inferior ao praticado de usual, o que era de todo viável pelas condições climáticas favoráveis e pela fertilidade da terra; b) o açúcar era produto de alto preço “unitário”, o que justiicava o comércio à longa distância; c) para além da provável queda da fertilidade, de se esperar agravada ademais pela tradição agrícola mais ineiciente da Europa meridional,30 o crescimento populacional numa ilha de relevo acidentado e chuvas irregularmente distribuídas,31 deve haver incrementado as diiculdades de acesso à terra, elevando-lhe por conseguinte o preço, o que, por seu turno, convertia a propriedade fundiária em bem demasiado caro para se permitir cultivos de baixa rentabilidade. Em 1454, ou seja, após meras três décadas de colonização dum território virgem, Diogo de Teive vendeu a Diogo Gonçalves Barbinhas uma terra no Funchal por 2.000 reais brancos.32 SOUSA, João José Abreu de. História Rural da Madeira: a colonia. Funchal: Direção de Assuntos Culturais, 1994. p. 11. 29 Cf.: FLORES, Edmundo. Tratado de Economía Agrícola. México: Fondo de Cultura Económica, 1961. p. 75. 28 30 Por exemplo, emprego do pousio bienal em vez do trienal como no Norte europeu e a associação mais frouxa entre lavoura e pecuária a im de se obter estrume. MAZOYER, Marcel; ROUDART, Laurence. História das Agriculturas do Mundo: do neolítico à crise contemporânea. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 249-258. 31 A fachada norte, de barlavento aos alísios, recebe a maior parte das precipitações (chuva orográica) embora disponha, por conta do relevo acidentado, de menos terras aráveis que a sua contraparte sul. CARITA, Rui. Op. Cit., p. 88. 32 Ibidem, p. 107. 44 Se assim as coisas se deram, então por que desde início não se concentraram esforços nos canaviais em detrimento das searas? A isso tentaremos responder na conclusão. A expansão dos canaviais produziu decerto um corte entre os agricultores: muito mais lucrativa que a triticultura, exigia, porém, capitais muito maiores em fatores de produção e mão-de-obra. A Coroa lusa, apercebendo-se das vantagens para seu erário, alinhouse aos interesses dos canavieiros. Em carta de 1483, D. Diogo, então detentor do Senhorio da Madeira, submeteu a concessão de sesmarias por uma légua à roda de Funchal à aprovação do vedor da fazenda a im de evitar a arroteia de terrenos lorestais, fornecedores da lenha de que necessitavam os engenhos para o reino do açúcar. Dois anos depois, D. Manuel, o novo senhor da ilha, quem a incorporou no patrimônio realengo, limitará a concessão de sesmarias na banda norte aos canaviais e às vinhas. Em 1508, o monarca interdita em absoluto novas lavras em toda a ilha “pera semear pam nem pera outra alguma outra cousa” tirante “pera se fazerem canaveaes pera açuquares”.33 Que a negligência do trigo fosse fundamentalmente econômica patenteou-a o italiano Giulio Landi, quem visitou o arquipélago em 1525, período já de recuperação dos preços cerealíferos: “Quando semeada, a ilha produz enorme quantidade de trigo, porém a cobiça fez com que os homens o negligenciassem e se dedicassem ao cultivo da cana-de-açúcar, pois tiram daí maiores lucros” embora o grão que aí se produzisse fosse “mais pesado” (“gravius”) e “melhor a qualquer outro importado” (“melius alio quocunque importato”).34 Essas considerações todas que tecemos aqui estão no patamar de hipóteses. Para validá-las, algo muito mais ambicioso que permite este trabalho, precisaríamos determinar a rentabilidade das empresas triticultoras e açucareiras ao longo do século XV. A seção seguinte não fornece resultados, mas um esboço de elementos a serem pesquisados. Apud SOUSA, João José Abreu de. Op. Cit., p. 32-35. Apud GODINHO, Vitorino Magalhães. Op. Cit., p. 236: “Frumenti maximam copiam ferret insula si seretur, verum opum cupiditas fecit, ut homines facere negligerent, ed ad saccari culturam se converterent, propterea quod ex eo maiora capiunt vectigalia.” 33 34 45 Uma proposta de trabalho: a rentabilidade das empresas triticultora e açucareira Para determinar a rentabilidade das empresas na Madeira precisaríamos estimar os seguintes parâmetros: a) produção por empresa; b) preço do trigo e do açúcar nos mercados negociados; c) custos com transportes e mão-de-obra; d) taxas, impostos e aforamentos; e) capital ixo. a) Godinho preocupou-se já em estimar o volume da produção frumentária da Madeira, conforme mencionado acima, e mesmo aquela por empresa agrícola. Ao entender como proprietários os 150 moradores mencionados por Zurara, os 2.000 moios excedentários dariam, por empresa, a média de 13,6 (o suiciente para alimentar por um ano cerca de 40 adultos).35 Entretanto a base de semelhantes cálculos (a cronística) é muito duvidosa e requer maiores reinamentos. Como é pouco razoável supor que todas as herdades tivessem as mesmas dimensões e a mesma qualidade, os resultados por empresa deveriam variar a ponto de, num quadro de baixa cerealífera, estiolar as pequenas empresas e favorecer apenas às grandes o acúmulo de capital necessário para a conversão à cultura da cana-de-açúcar. A extensão das empresas poderia ser estimada consultando-se inventários, cartas de doação e semelhantes documentos, associandoos a um estudo ino da topononímia. Essas mesmas fontes poderiam também servir a provar a hipótese de que apenas as grandes empresas se transformaram em canaviais. b) A história sistemática dos preços do Portugal medieval ainda está por se fazer. No entanto, para os cereais, Mário Viana fornece-nos extensa lista que permite idéia do movimento global.36 Infelizmente os GODINHO, Vitorino Magalhães. Op. Cit., V. III. p. 233. VIANA, Mário. Alguns preços de cereais em Portugal (séculos XIII–XVI). Arquipélago, Açores, 2ª série, v. 11-12, p. 207-279, 2007-2008; OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. Preços na Idade Média. In: Dicionário de História de Portugal. Porto: Livraria Figueirinhas. 6 v., V. 6. p. 487-488. Neste artigo, Oliveira Marques lamenta a ausência de estudos, mesmo sobre séries descontínuas, e, muito signiicativamente, o verbete em questão foi enxertado na adenda do último volume do dicionário. 35 36 46 preços foram expressos apenas no valor nominal das moedas, não no seu conteúdo em prata, mediante o qual se poderia acompanhar com mais segurança o movimento num período de depreciação monetária. c) As diiculdades do item anterior fazem-se aqui ainda mais presentes, embora, para o caso da mão-de-obra escrava, fontes como relatos de viagem costumem oferecer dados acerca dos preços. d) As taxas e impostos são facilmente dedutíveis, por um lado pela legislação, e por outro pelas receitas da capitania e do senhorio da ilha. Os valores dos aforamentos informam-nos os próprios contratos. e) O capital ixo é estimável mediante a consulta a contratos de compra e venda bem como de registros de empréstimos e de adiantamentos de parte das colheitas, o que permite indiretamente determinar o montante empatado no estabelecimento duma empresa agrícola. Outrossim há de se considerar os investimentos nas levadas (canais de regadio) e nos socalcos, característicos para o aproveitamento agrícola da ilha. Como se vê, em última instância, aquilo que o estudo das empresas triticultoras e açucareira na Madeira durante o século XV pede, pelo volume de material a ser estudado, é a radiograia mesma dessa sociedade. À guisa de conclusão a) A triticultura permitiu a capitalização para a transição ao plantio intensivo (embora não monocultor) da cana-de-açúcar, que demandava recursos relativamente muito mais elevados pela aquisição de mão-de-obra escrava e construção do engenho ou o pagamento de banalidades elevadas pelo seu uso. b) A triticultura madeirense, embora não tenha sanado a carência de frumento no Portugal continental, prestou-se para ajudar o estabelecimento dos primeiros colonos numa região cujo controle era fundamental como base de apoio à expansão pelo atlântico africano.37 RILEY, Carlos. Ilhas atlânticas e costa africana. In: BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirti (Orgs.). História da Expansão Portuguesa: a formação do império (1415-1570). Navarra: Círculo dos Leitores, 1998. p. 147. 37 47 c) A persistência do trigo como principal cultivo deve ser entendida não apenas em termos exclusivos duma pretensa racionalidade econômica capitalista, mas sobretudo da função que a triticultura exercia não só no sistema alimentar como também simbólico dessa sociedade.38 d) A substituição do trigo pela cana-de-açúcar orientou-se pela lógica das vantagens comparativas: apesar de rentável, o trigo podia-se semear noutras porções do domínio português, em especial nos Açores, de clima temperado. O arquipélago madeirense, de clima subtropical, favorecia justamente o cultivo da cana-de-açúcar. Cadamosto percebeu essa superioridade climática ao compará-la com outras duas zonas importantes de fabrico de açúcar para Europa, a Sicília e o Chipre, de invernos menos brandos.39 Como os cultivos industriais tendem a ser mais rentáveis que os cerealíferos (e, portanto, melhor justiicarem os custos com transportes de longo curso) e a apresentar maior elasticidade-preço quanto à demanda, ter-se-ia tornado mais vantajosa a conversão das searas em canaviais. Recordar, porém, que o símbolico está intimamente articulado ao econômico. É provavelmente muito mais ao cristianismo que às preferências etílicas que se deve a implantação da vinha até as pouco promissoras terras nortenhas durante a Alta Idade Média e a Idade Média Central (mesmo considerando-se a elevação da temperatura média no período). No entanto, tão logo se constituiu um mercado mais desenvolvido a partir do século XII, as videiras recuam para posições mais “econômicas”. Cf.: GODELIER, Maurice. La part idéel du réel. In: ___. L’idéel et le matériel: pensée, économies, sociétés. Paris: Fayard, 1984. p. 167-220. 39 CADAMOSTO, Alvise. Op. Cit., p. 13: “país [...] temperado, mas aí não faz frio digno desse nome como no Chipre e na Sicília” (“paese [...] temperado mai non li fa fredo de conto como e inciperi e in cicilia”). 38 48 REFLEXÕES SOBRE AS HAGIOGRAFIAS IBÉRICAS ELABORADAS EM AMBIENTES RELIGIOSOS ENTRE OS SÉCULOS XI A XIII Ana Clara Marques Lins (Graduanda PEM - UFRJ)1 O projeto coletivo Hagiograia e História: um estudo comparativo sobre a santidade2 tem como uma de suas iniciativas o levantamento de informações sobre a temática da santidade nas Penínsulas Ibérica e Itálica, entre os séculos XI e XIII, para a composição de quatro Bancos de Dados, todos eles visando informações referentes ao recorte temporal mencionado: um contendo hagiograias ibéricas; um possuindo hagiograias itálicas; um tendo veneráveis ibéricos; e um contando com veneráveis itálicos. No presente texto pretendemos utilizar o Banco de Dados das Hagiograias Ibéricas (já publicado). Para, a partir das informações nele contidas buscarmos traçar um peril das hagiograias produzidas em ambientes religiosos entre os séculos XI a XIII. Tal trabalho faz parte do trabalho monográico de inal de curso ainda em estágio inicial, no qual pretendemos reletir sobre as hagiograias elaboradas em ambiente monástico na Península Ibérica dos séculos XI a XIII. Foram abordadas aqui, porém as elaboradas também em ambiente religioso não monástico, com o intuito de, no decorrer da pesquisa, poderem ser traçadas comparações. Pensamos relevante esclarecer, inicialmente, o que, neste trabalho será chamado de hagiograia e o que entendemos por reconhecimento oicial. Como hagiograia, consideramos todo aquele texto que consista em um relato sobre a vida ou o culto de um santo; podendo ser, também, o estudo de tais textos. E enquanto reconhecimento oicial, Bolsista PIBIC- UFRJ desde março de 2011. Projeto registrado no Sigma sob o número 5013 e vinculado ao Grupo de Pesquisa Programa de Estudos Medievais, cadastrado no Diretório de Grupos do CNPq desde 2002. 1 2 49 entendemos que seja um reconhecimento dado pela Igreja (tanto em âmbito universal quanto local) a uma pessoa considerada como digna de receber culto religioso cristão. Foram tabulados os seguintes dados: porcentagem de hagiograias por século de redação; porcentagem de hagiograias correspondente a cada tipo de relato; porcentagem de relatos por língua de redação; quantidade de hagiograias produzidas por instituição; quantidade de hagiografados pela quantidade de hagiografados oicialmente reconhecidos; porcentagem de hagiografados pertencentes à mesma instituição que produziu o relato; tipo de relato pelo século de redação; língua de redação pelo tipo de relato; hagiograias produzidas por século e língua; estado de vida dos hagiografados pela quantidade de hagiografados que receberam reconhecimento oicial; quantidade de hagiografados reconhecidos oicialmente por mosteiro de produção; estado de vida do hagiografado por século de redação; quantidade de hagiografados oicialmente reconhecidos por século de produção do relato. Serão apresentados, então, os dados levantados sobre as hagiograias produzidas em comunidades religiosas diversas: monástica, canônicas e mendicantes, e apontamentos iniciais com relação a eles. Quanto à informação porcentagem de hagiograias por século de redação (ver gráico 1), foi possível veriicar que o século XIII é o que concentra maior quantidade de relatos (52%) produzidos em ambiente religioso. Cabe, portanto, questionar não somente o porquê deste aumento gradual (visto que a produção cresce do século XI ao XIII de forma contínua) na escrita deste tipo de relato, mas o porquê deste crescimento em ambientes religiosos. Podemos pensar em algo a partir da consideração feita pelo Banco de Dados em questão, quando procura entender o porquê do crescimento da produção hagiográica em geral, e não somente em ambientes religiosos, no século XIII: Ainda que muitas obras possam ter se perdido, comparando com o número de produzidas nos séculos anteriores, este dado aponta para um incremento da literatura hagiográica no período, fruto, certamente, do surgimento de escolas urbanas, maior riqueza 50 circulante, organização da Igreja sob a direção de Roma e da consolidação das línguas romance.3 Temos que considerar, porém, que as comunidades mendicantes também estão sendo contadas – e estas só vieram a se estabelecer no decorrer do período em questão, o que impedia uma produção das mesmas em séculos anteriores ao século XIII. Há, porém, um crescimento na produção do século XI para o XII, então, um estudo posterior, no qual apenas sejam consideradas as hagiograias produzidas em ambientes monásticos, forneceria dados que ajudariam a conirmar, ou refutar, a possibilidade acima levantada – a de que o crescimento da produção hagiográica em comunidades monásticas ibéricas no período poderia estar relacionada “a uma maior riqueza circulante, organização da Igreja sob a direção de Roma e consolidação das línguas romance” (SILVA, 2009). Gráico 1 No que diz respeito à porcentagem de hagiograias correspondente a cada tipo de relato (ver gráico 2), temos a ressaltar que quase a metade das hagiograias trata da temática vida; merecendo destaque também os textos mariológicos (12%); os relatos de martírio, milagres SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da (Coord.). Banco de dados das hagiograias ibéricas. (séculos XI ao XIII). Rio de Janeiro: Pem, 2009. Disponível em www.ifcs.ufrj.br/~frazao/hh1.pdf. Acesso em 3 de junho de 2011. 3 51 e trasladação (8% cada); e louvor (6%); enquanto que as demais temáticas aparecem em quantidade aproximadamente equivalente (de 1% a 3%). Quanto aos mariológicos, podemos associa-los à devoção mariana. Já quanto aos demais, estariam relacionados à “divulgação” de um hagiografado, e à promoção de seu culto, já que estes tipos de relatos poderiam ter elementos que reairmariam a santidade de um personagem, contribuindo para a atração de peregrinos e ofertas? Gráico 2 Quanto à informação tabulada porcentagem de relatos por língua de redação (ver gráico 3), cabe aqui ressaltar que a maioria das hagiograias é escrita em latim (69%), tal dado nos leva a concordar com a observação feita na conclusão do Banco de Dados de hagiograias ibéricas, “(...) os clérigos, religiosos e leigos letrados, ou seja, os conhecedores do latim, mantiveram-se como público alvo preferencial no período”.4 Mas pensar que é signiicativo que a outra parte das hagiograias (31%) esteja escrita em línguas romance nos leva, também a alguns questionamentos: não estar escrito em latim signiica, necessariamente, que a obra possua algum tipo de pretensão de atingir setores que não os letrados na “língua culta”?, ou seja, podemos inferir que a produção em línguas romance indique uma intenção de aproximação com os demais iéis da igreja (e não apenas os indicados na citação acima)?; se 4 Idem. 52 sim, temos, então, de nos questionar acerca do porquê de os ambientes religiosos desejarem essa aproximação. Gráico 3 Ao veriicarmos a quantidade de hagiograias produzidas por comunidade (ver tabela 1), notamos que a produção hagiográica está bastante distribuída entre todas as comunidades tabuladas (cada qual produzindo cerca de uma a três hagiograias), com exceção, no entanto, do Mosteiro de San Millán de la Cogolla, que conta com quatro hagiograias produzidas nos séculos em questão, sendo que este número sobe para doze, se acrescentarmos as hagiograias produzidas no âmbito deste mosteiro e da paróquia de Berceo. Cabe, então, questionar o porque de tal concentração de produção. Sabe-se, pelo levantamento de dados que grande parte desta produção foi elaborada por um mesmo autor (Gonzalo de Berceo), o que, porém, não nos traz uma resposta tão concreta, cabendo perguntar, então, quais fatores além da presença de um grande autor teriam contribuído para tal quantidade de produção. 53 Quantidade de hagiograias produzidas Provavelmente em comunidade monástica 3 Mosteiro de São João de Burgos 2 Mosteiro Beneditino 4 Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça 2 Divergência entre os autores 6 Mosteiro de San Millan de la Cogolla 4 Mosteiro de San Millan de la Cogolla e paróquia de Berceo 8 Mosteiro de Silos 2 Mosteiro de São Pedro de Cardenha 2 Mosteiro de São Cucufate de Valés 1 Convento Dominicano 3 Convento Franciscano de Zamora 3 Convento Franciscano 2 Provavelmente em um centro monástico ou escola eiscopal riojana 2 Mosteiro de São Domingo de Silos 2 Mosteiro de São Zoilo de Carrião 1 Mosteiro de Celanova 1 Mosteiro de San Juan de la Peña 3 Mosteiro de Sahagún 1 Mosteiro de São Salvador de Oña 1 Provavellmente em mosteiro beneditino 1 Mosteiro cluniacense ou colegiada 1 Ordem das Mercês 3 Mosteiro de São Miguel de Cuixá 2 Mosteiro de Montserrat 1 Mosteiro Cisterciense 2 Mosteiro de Santa Maria de Huerta 1 Mosteiro de Asan 1 Comunidade Tabela 1 Ao tabularmos a quantidade de hagiografados pela quantidade de hagiografados oicialmente reconhecidos (ver gráico 4), podemos ver a porcentagem dos que foram considerados como dignos de receber um relato hagiográico e que, também, a Igreja considerou como dignos de receber algum tipo de reconhecimento oicial. Dos hagiografados, cerca de um terço (29%) se enquadra dentro deste caso. Surge, então, a questão: as hagiograias desses personagens foram escritas já buscando a sua promoção para um futuro reconhecimento oicial? Foram, ao contrário, escritas após o reconhecimento oicial? Foram escritas 54 buscando, apenas, a promoção do hagiografado e seu culto entre a comunidade e grupos vizinhos? Seria a hagiograia uma forma eicaz de promover não somente o culto, como também o reconhecimento oicial de um personagem? Gráico 4 Quando tabulada a porcentagem de hagiografados pertencentes à mesma comunidade que produziu o relato (ver gráico 5), pode-se investigar, com mais precisão acerca das intenções envolvidas na produção de um texto desse tipo. Considerando que cerca de um terço (29%) dos hagiografados pertencem à ordem de produção da hagiograia, percebe-se uma ampla intenção em promover o culto de santos especíicos, por parte desses autores – principalmente se considerarmos que boa parte dos hagiografados sequer era religioso (dos 65 em questão, apenas 25 o eram), e os 29% incluem todos os tabulados e não apenas os 25 religiosos. Logo, caberia questionar se haveria a intenção da promoção destas comunidades, por meio da escrita de hagiograias sobre membros das mesmas e se também não haveria uma intenção, com a escrita de tais textos, de buscar um reconhecimento oicial para os hagiografados, também como forma de promoção da comunidade. 55 Gráico 5 Ao tabularmos o tipo de relato pelo século de redação (ver gráico 6), percebemos dados signiicativos, dentre os quais: os relatos mariológicos são todos do século XIII; os relatos de vida são, em grande parte, do século XIII também; já os de martírio são quase todos do século XI; e os de relíquias são todos do século XI. Ficando, então, a questão de se há a existência de “preferências” por tipos de relatos em ascensão/decadência na medida em que os séculos decorrem, e, em caso positivo, cabe-nos perguntar o porquê disso. Sabendo, porém, de antemão, que os mariológicos podem ser associados ao grande desenvolvimento da devoção mariana no século XIII, justamente o século no qual são produzidos. Gráico 6 56 Veriicamos, também, a língua de redação pelo tipo de relato (ver gráico 7), e pudemos observar que: das 30 obras escritas em latim, 21 são vidas (que é o tipo de relato predominante). Mais da metade dos relatos mariológicos não são produzidos em latim. Isto nos faz supor que considerar tal dado como uma tentativa dos hagiógrafos de, através de seus relatos e da devoção mariana, aproximar os iéis da Igreja (caso a escrita em línguas romance seja, realmente, uma forma de tentar se aproximar de outros públicos que não apenas os clérigos e religiosos letrados em latim); os relatos de trasladação são todos eles em latim – seria este dado uma indicação de que a intenção desse tipo de documento fosse a de ser “oicial”, na “língua culta/oicial”, no sentido de a trasladação poder ser considerada como uma espécie de reconhecimento oicial? Gráico 7 Pensando nas hagiograias produzidas por século e língua (ver gráico 8), notamos que até o século XIII a grande maioria das hagiograias é escrita em latim, e, a partir daí, passa a haver uma “distribuição” maior entre as línguas de redação. Se considerarmos que a escrita em latim se destinava a “clérigos, religiosos e leigos letrados”5 podemos pensar que as em línguas romance se destinavam a outro tipo de público. Então, por que, a partir do século XIII, começa a se popularizar a escrita em outros idiomas? Se for uma tentativa de se aproximar de outro tipo de público, por que justamente a partir do século XIII? 5 Idem. 57 Gráico 8 Ao tabularmos o estado de vida dos hagiografados pela quantidade de hagiografados que receberam reconhecimento oicial (ver gráico 9), notamos que metade dos religiosos hagiografados recebeu reconhecimento oicial; apenas um dos sete leigos mereceu tal reconhecimento; e todos os onze religiosos ordenados6 o receberam. Dos bíblicos e clérigos, nenhum recebeu este tipo de reconhecimento; enquanto que as hagiograias que tratam de diversos personagens não puderam ser consideradas nesse quesito. Sendo assim, cabenos perguntar: por que há total incidência de canonização entre os religiosos ordenados? Gráico 9 Religioso ordenado: membro de uma comunidade religiosa que foi ordenado clérigo. 6 58 Quando veriicamos a quantidade de hagiografados reconhecidos oicialmente por comunidade de produção do relato (ver gráico 10), percebemos que das comunidades produtoras de hagiograias, nenhuma escreveu sobre mais de um personagem que tenha, antes ou depois, recebido reconhecimento oicial da Igreja. Não poderiam, então, as comunidades em particular, ter força suiciente de inluência para que ocorresse o reconhecimento pela igreja dos hagiografados? Se vemos, porém, que dos que redigiram de uma a quatro hagiograias muitos tiveram cerca de 50% ou mais dos hagiografados reconhecidos, podemos pensar, sob uma ótica diferente, sobre a força de inluencia que eles possuíam parra inluenciar neste processo. Gráico 10 Pudemos, veriicar, portanto que há muito a ser pesquisado no que tange à produção hagiográica religiosa ibérica entre os séculos XI a XIII, constituindo-se este trabalho, apenas, em um levantamento inicial de questões e observações. 59 A TRAVESSIA DA CRUZ: A INTRODUçãO DO CRISTIANISMO NA ISLÂNDIA NO ANO 1000 E SUAS EXPRESSÕES POLÍTICO-CULTURAIS Ana Clara homazini Racy (Graduanda Translatio Studii - UFF) Introdução: Colonização da Islândia e instauração das primeiras igrejas e bispados A chegada dos primeiros colonos, de origem norueguesa em sua maioria, na Islândia é datada, geralmente, por volta dos anos 870, relacionada à iniciativa de três exploradores, Gardar Svavarsson, Naddodd e Floki Vilgerdason (o primeiro sueco e os dois últimos noruegueses) durante o reinado, na Noruega, de Harald CabelosBonitos. Entretanto, há indícios de que anteriormente a esta data, monges irlandeses já tinham passado por esta região e no período de colonização norueguesa da Islândia, estes monges foram denominados pelos noruegueses como Papar. Constituído por anacoretas cristãos de origem irlandesa, segundo o indicam objetos diversos da cultura material encontrados, tais como livros irlandeses, sinos e báculos. Na obra intitulada Landnámabók,1 escrita por Ári horgilsson,2 o Sábio (1068-1148), trata-se dos primeiros homens que migraram para a Islândia a im de lá se estabelecerem. Nesta obra é registrada a chegada de cerca de 400 colonos na região e há também as primeiras Existem 5 versões para o Landnámabók (O Livro dos Assentamentos): o primeiro foi o Sturlubók (1275-1280), compilado por Sturla hordarson (1214-1284), mas foi perdido no incêndio em Copenhagem em 1728. O segundo foi o Hauksbók, compilado por Hauk Erlendsson por volta de 1306-1308. A terceira versão medieval da obra foi o Melabók (1300-1310), provavelmente compilado por Snorri Markússon, morto em 1313. A quarta versão, já escrita no período moderno, foi o Skardsábók, compilado antes de 1636 por Björn Jónsson. Por im, registre-se o hórdarbók, compilado pelo Reverendo hórd Jónsson, antes do ano de 1670. 2 Ari é considerado o primeiro historiador nativo a escrever em língua vernácula, e onde a historicidade de diversos eventos relatados nas sagas é questionada, não há muitas dúvidas acerca do que horgilsson trata em seu Íslendingabók, pois sua obra pretendeu-se dotada de um caráter factível. Educado na escola em Haukdale, onde recebeu o trainamento clerical, um de seus tutores foi o sacerdote Teit, ilho do bispo Ísleif. STRÖMBÄCK, 1975, p.15. 1 60 referências sobre a Islândia presente nas fontes; a primeira sendo da obra atribuída a Beda, O venerável (c.632-735) intitulada De Temporibus ou De Temporum Ratione, na qual menciona uma ilha chamada hule, econtrada depois de 6 dias de navegação partindo-se do norte da Bretanha. Segundo o autor, em tal ilha não haveria nem luz do dia durante o inverno, nem escuridão durante o dia no verão. Entretanto, Beda morreu cerca de cento e vinte anos antes da chegada dos noruegueses à Islândia. Quanto à estruturação da colonização da Islândia, por volta de 930 foi instituído o Althing, espécie de parlamento que atuava como aparelho judicial e legislativo e que dividia a sociedade sob o comando de trinta e nove chefes locais, que exerciam um goðorð (poder) de caráter político e religioso, assumindo funções sacerdotais. Esses eram chamados de goði.3 O poder do chefe era legitimado por seus seguidores, os þingmenn, que eram livres para escolherem suas alianças, não havendo a igura de um rei governante da região, e o poder não era de caráter centralizado. A característica do sistema político-judicial islandês consistiuse no estabelecimento de alianças de caráter pessoal, pois não havia uma igura ou instituição que exercesse o poder centralizador na região, como dito anteriormente, porque este, baseava-se na habilidade individual dos chefes locais, geralmente famílias de fazendeiros proprietários de grande lotes de terras; de acumular riquezas, amigos, ligações entre famílias e coniança. Além do mais, não havia garantias aos ilhos dos chefes do exercício futuro do poder político, porque estes diicilmente acumulavam terras e bens em quantidades suicientes para perpetuar a sua inluência e impor-lhe a hereditariedade. Conseguiram tão somente passar adiante seu comando, quando os chefes sulistas criaram bases políticas, sendo os Haukdælir a primeira família a possibilitar essa estabilização de poder no início do século XII, em decorrência de alianças com instituições Vésteinsson (2000) refuta a perspectiva de alguns autores que associaram a origem etimológica do termo goði a “deus”, denotando na expressão um caráter de chefe e sacerdote. Pois, segundo ele, estes chefes não necessariamente exerciam estas funções sacerdotais, porque não há claras manifestações ou templos construídos que assegurassem uma posição religiosa para estes membros da sociedade islandesa. 3 61 eclesiásticas, onde a primeira sede episcopal islandesa foi estabelecida na região sul. Assim, puderam manter não somente sua chefatura assegurada como outrossim garantiram-na às gerações futuras. Inicialmente, segundo Vésteinsson (2000), tratando da tentativa de converter a Islândia ao cristianismo, houve duas expedições missionárias enviadas pelo arcebispo Adaldag de Hamburg-Bremen, nos anos de 980, mas as tentativas foram infrutíferas. Posteriormente, o próprio rei Óláf Tryggvason enviou à região o sacerdote hangbrand, mas este teve muitos problemas na Islândia e acabou sendo exilado. Porém, por pressão do rei norueguês, durante a assembléia anual realizada no Althing, entre os anos de 999 e 1000, decidiu-se que a Islândia iria se converter ao cristianismo. Como pode se perceber, tal iniciativa vinculou-se, originariamente, muito mais a demandas de cunho político articuladas pela realeza do que a uma efetiva atividade missionária que tivesse difundido e promovido a aceitação da nova religião na região. A conversão teria ocorrido, de maneira geral, de acordo com as fontes, paciicamente, e esteve intimamente ligada à ambição de chefes locais, príncipes, reis e aristocracias em busca de poder e airmação social, tanto no interior quanto no exterior da Islândia. O primeiro bispo Islandês foi Ísleif Gizurarson (1056-1080), que teve por ilho e sucessor Gizur (1082-1118), sendo este o responsável pela implementação do pagamento do dízimo na região e provável promotor da primeira compilação do Landnámabók, dividiu a Islândia em dois bispados, um situado em Holar , integrando as regiões do norte, e outro em Skálholt em 1082, articulando as demais regiões. O primeiro bispo de Holar foi Jón Ogmundsson (1106-1121) e o primeiro islandês com características do que se pode denominar como historiador e trabalhos de cunho semelhante aos de Ari horgilsson foi Sæmund Sigfusson (1056-1133), sendo a ele atribuída a autoria da Edda em Prosa. Tanto Sigfusson quanto Ogmundsson tiveram sua formação na França, pois no primeiro século do estabelecimento do cristianismo na região, monges possuidores de melhores condições inanceiras ou que tivessem sido apadrinhados por algum clérigo, geralmente passavam alguns anos realizando seus estudos monásticos em regiões como Inglaterra e França. 62 Não há testemunhos de igrejas em sítios arqueológicos escavados que possam indicar, com precisão, a fase inicial do cristianismo na Islândia. Os sítios de enterramentos parecem sempre estar localizados fora das propriedades rurais, normalmente situadas há algumas centenas de metros destas. Os sepultamentos pagãos aparentemente foram abandonados de forma abrupta por volta do ano 1000. Então, pode se questionar onde e como os mortos teriam sido enterrados a partir de então, pois não parece razoável que houvesse tantas igrejas nas primeiras décadas do século XI que pudessem receber os sepultamentos, sem considerarmos as longas distâncias que deveriam ser percorridas até a chegada naqueles possíveis locais. Portanto, deve ter ocorrido um processo de transição entre as formas pagãs e a cristã de sepultamento. Algumas covas foram encontradas em lugares isolados, com cerca de cinco corpos dispostos em cada delas, e supomos tratarem-se de enterramentos cristãos em decorrência do modo como os corpos estavam alinhados. As Sagas dos islandeses, O Landnámabók e a Kristni Saga tratam sobre as 35 igrejas que supostamente foram construídas no século XI ou antes. Dispomos do relato da construção das igrejas de Gizurr Hvíti e Hjalti Skeggjason, em Vestmannaejar, iniciada no dia seguinte ao da chegada de ambos em missão de cristianização dos islandeses. Geralmente, estas construções (mesmo que algumas não tenham de fato ocorrido se não nos relatos das sagas) situam os seus sacerdotes numa posição heróica, uma vez que os templos teriam sido erigidos em locais de antigas práticas pagãs. De qualquer forma, segundo Vésteinsson, teria sido exíguo o número de igrejas construídas no período inicial da atividade missionária na Islândia. Pelo que se pode apurar nas Sagas dos Islandeses, os diversos chefes locais teriam erigido 27 igrejas logo após a conversão, que, segundo treze daquelas sagas, estariam localizadas em seus próprios patrimônios fundiários. Snorri Goði é mencionado como um dos primeiros chefes locais a assumir características heróicas nos moldes cristãos, além de Snorri Karlsefnison, ambos homens que viveram em ins do século X e princípios do XI, mas cujos relatos assumem padrões vigentes no século XIII. As igrejas também podiam ser removidas dos locais onde originalmente haviam sido construídas, em decorrência 63 de catástrofes naturais, por exemplo, segundo a antiga legislação cristã, sendo inclusive transplantadas as sepulturas originais. Desta forma, nos séculos XII e início do XIII, era relativamente comum as igrejas serem encontradas perto das propriedades rurais, prática que se estendeu até o período moderno. Os conceitos de Religião Popular e Religião Formal No presente projeto serão utilizados os conceitos de Religião Popular e Religião Formal estabelecidos por Karen L. Jolly,4 bem como a sua caracterização da conversão cristã como evento e processo. Segundo a autora, o problema da cristianização das sociedades medievais foi debatido exaustivamente em diversos níveis, desde um grande panorama de toda uma dada sociedade até questões mais individuais e pontuais. Recorreu-se, por exemplo, à análise de poemas, de hagiograias, de leis etc., bem como à tentativa de avaliação da “sinceridade e plenitude” da conversão de determinadas iguras históricas, ao uso de objetos e à manutenção de crenças que expressariam continuidades de práticas pagãs num âmbito já cristão. Muitos destes estudos e proposições tomaram como referencial a Etnograia Histórica que, por sua vez, foi adaptada da Antropologia, porém a autora critica a utilização destas proposições por muitas vezes não serem capazes de compreender o Cristianismo em sua totalidade, complexidade e multiplicidade de formas. Como airma Jolly, a conversão é um processo bem como um evento, envolvendo graduais transformações das culturas envolvidas. A autora enfatiza o processo de conversão centrado na esfera doméstica, associada ao feminino e ao âmbito de ação das mulheres, enquanto o batismo seria o primeiro passo, a ação que marcaria o cristianismo como evento. Compreende-se por Religião Formal a junção entre a tradição doutrinal e a hierarquia da Igreja, e os homens inseridos neste universo clerical são considerados dominantes pelo fato de unirem, em suas funções, conhecimento e poder. Por Religião Popular entende-se o produto de uma comunidade em sua totalidade, JOLLY, Karen L. Popular Religion In Late Saxon. North Carolina: he University of North Carolina Press, 1996. 4 64 a experiência cotidiana da religião, incluindo também a experiência da religião formal, já que aquela seria “uma faceta de uma ampla e complexa cultura, consistindo nas práticas e crenças comuns à maioria dos que crêem”.5 O termo folclore, como conceito não religioso, seria mais apropriado do que a expressão paganismo ou magia para a abordagem do tema, pois aquele refere-se à transmissão de práticas e crenças germânicas que perderam seu potencial religioso para se inserirem no contexto do cristianismo popular. Jolly propõe, outrossim, que este processo de cristianização teve êxito sobre antigas práticas pela aculturação, pois que a cultura germânica triunfou em sua transformação, discordando da proposição feita por Jacques le gof, de que estas sobrevivencias pagãs ocorreram em decorrência de uma falha na efetiva cristianização destes povos germânicos. Os sacerdotes são considerados, pela autora, como mediadores entre a cultura folclórica e os ensinamentos cristãos, sendo agentes na criação de um Cristianismo popular. Karen L. Jolly propõe, ainda, que, através da análise de determinadas práticas compreendidas, por exemplo, nas fontes médicas e litúrgicas, pode-se perceber como ocorreu uma notável assimilação das culturas européias pela religião cristã, mais do que uma esperada relação de conlito entre pagãos e cristãos. As fontes tradicionais, geralmente oriundas de uma produção clerical, revelam conlitos e oposições. Escritores como Gregório de Tours e Beda, o Venerável, seguiram uma longa tradição de dividir o mundo de forma dualista, opondo pagãos a cristãos, magia ao milagre, o demônio a Deus etc. Fontes populares permitem enxergar a relação entre cultura popular e clerical, denominada pela autora como “áreas cinzentas”. Desta forma, pode-se perceber com maior clareza os níveis de assimilação ocorridos entre estas categorias aparentemente opostas. Segundo Jolly, as invasões vikings na Inglaterra Anglo-Saxônica produziram um efeito particular sobre o cristianismo. Esta presença fomentou tanto um intenso crescimento da religião popular quanto das igrejas locais, com ações como, por exemplo, a instituição do Danelaw. Ainda que a autora não negue o efeito impactante destas 5 Ibidem, p. 9 (tradução livre). 65 incursões sobre os ingleses, caracteriza este contexto, marcado por conlitos e acomodações culturais, como um processo de aculturação que deu ensejo a uma fase dinâmica de aumento das manifestações de religião popular na região. “Inevitavelmente surgiram conlitos entre as forças centrífugas de expansão nas áreas rurais e as forças centrípetas que tentou controlá-las a partir da hierarquia da Igreja. Esta tensão engendrou uma nova síntese, o Cristianismo popular”.6 Uma perspectiva teórica a que também recorremos no projeto é a utilizada por Hilário Franco Júnior, em especial o conceito de Cultura Intermediária, valorizando uma área de intereção entre as culturas e não apenas a troca isolada de alguns fragmentos culturais, o que naturalmente alteraria o sentido de Cultura Popular. “Só se assimila, modiica ou se critica aquilo que se entende ou se pensan entender. Aquilo que não é estranho. Aquilo que faz parte do universo comum, da cultura de todos. Da cultura intermediária enim, espécie de koiné cultural que fornece a matéria prima trabalhada de forma própria por cada segmente social”.7 Uma interessante questão a se ressaltar na obra é a observação feita por Jean-Claude Schmmit,8 pois, segundo ele, falar em sobrevivências pagãs na religiosidade medieval, tem-se como postura ultrapassada metodologicamente, porque toda crença ou rito é um conjunto de práticas que só possui sentido enquanto experiência realizada em determinado contexto histórico, político e cultural. Outra categoria abordada na obra de Franco Júnior que assume relevância para o presente trabalho é sua caracterização do folclore, um elemento integrante da mitologia9 que, por determinadas razões históricas, manteve-se ligado a certas tradições que foram sendo ultrapassadas no âmbito de certos segmentos sociais. Contudo, esta cultura folclórica permanece com seu fundo mítico, mesmo sendo Ibidem, p. 46. FRANCO Jr., Hilário. A Eva barbada. Ensaios de mitologia medieval. São Paulo: Edusp, 1996. p. 36. 8 SCHMITT, J.C. Religion populaire et culture folklorique. Annales ESC, Paris, n. 31, p. 945-946, 1976. 9 “(...) pois toda mitologia é um conjunto de mitos construído por adaptação, inversão e negação de elementos míticos de outras culturas com as quais ela tem contato.” (p. 49) Destaco, por exemplo, o reaproveitamento de templos pagãos convertidos em igrejas cristãs, não somente por fatores econômicos, mas pelo reconhecimento da sacralidade daqueles locais. 6 7 66 modiicada e adaptada com o passar do tempo através da transmissão anônima e oral. Para o autor, não se trata de degeneração nem de sobrevivência, mas de um conteúdo adaptado a e selecionado por certos contextos históricos, o que constitui o folclore como mitologia residual. Franco Júnior, utilizando-se do trabalho de Philippe Walter,10 levanta diversas questões pertinentes que enfatizam o cristianismo medieval em sua condição de ideologia, permitindo-lhe a assimilação de mitologias estranhas a ele no intuito de descarcterizar e englobar outras culturas. Reconhece, outrossim, que o cristianismo não teria conseguido se impor caso não atendesse às necessidades espirituais daqueles que pretendia evangelizar. Análise da conversão a partir das fontes Acerca das fontes utilizadas para a elaboração do projeto, Siân Grønlie (2006) airma que o Íslendingabók11 foi escrito para os bispos horlák Runólfsson12 e Ketill horsteinsson13 por Ari horgilsson, sendo que este é considerado o pai da história dos islandeses, tratando em sua obra do assentamento e da conversão ao cristianismo baseandose nos moldes europeus e numa longa tradição de história oral. A obra pode ser considerada, outrossim, como o livro da história das famílias, tanto por mostrar as relações entre Ari e seu tutor Teitr na parte relativa à conversão e do início da Igreja na Islândia, assim como uma teia de relações entre diversas famílias, como por exemplo a dos Haukdælir, de onde vieram os dois primeiros bispos, Ísleif e Gizur. Seu interesse está claramente voltado para os aspectos seculares que nortearam a cristianização e seu caráter Legal e Institucional, sem que o aspecto religioso fosse o de mais relevante nessa obra. O Landnámabók14 e a Kristni Saga (c.1250-1284) têm ambas muitas características em comum, pois são centrados na tradição oral, WALTER, Philippe. Mythologie chrétienne: Fêtes, rites et mythes du Moyen Âge. Paris: Entente, 1992. p. 287. 11 1122 – 1133. 12 1118 – 1133. 13 1122 – 1145. 14 Cf. nota 1. 10 67 tratando da genealogia e da lei. Porém a Kristni Saga já possui seu estilo de escrita mais associado às sagas, por conter um número considerável de versos skáldicos, por exemplo. Pode-se associar o Landnámabók e a Kristni Saga com o Íslendingabók, pois, no estudo das sagas, uma das primeiras teorias demonstra que originalmente o Landnámabók foi compilado a partir de uma primeira versão do Íslendingabók, e o restante do material, que foi encontrado, se encaixou nos moldes das duas outras obras, Íslendingabók e Landnámabók, e entrou na Kristni Saga. Por outro lado, Kristni Saga está inserida mais dentro dos padrões das hagiograias de uma Europa latinizada do que o Íslendingabók e apresenta aspectos de uma história missionária; contendo conlitos entre pagãos e cristãos, milagres realizados, os exempla, o simbolismo cristão. A obra foi preservada num manuscrito medieval intitulado Hauksbók, escrito de próprio punho por Haukr Erlendson após sua versão do Landanámabók. Em algumas das primeiras edições da Kristni Saga, airma-se que essa foi escrita por Haukr no início do século XIV, porém vários estudos posteriores mostram a imprecisão desta datação, refutando-a e apontando a Kristni saga como uma espécie de continuação do Landnámabók, escrita em meados do século XIII. Siân Duke (2005) airma que a Kristni Saga cobre um longo período da história da Islândia, de aproximadamente 150 anos. Desde a conversão ao Cristianismo (999-1000), mesmo antes, com a chegada dos primeiros missionários, horvald e Fridrek por volta de 981 e, posteriormente Stefnir e hangbrand, enfatizando a ação e presença destes, a conversão Legal no Althing; até o início da Igreja na região. Além disso, a obra estabelece retratar uma história do cristianismo islândes de forma independente e como ponto central, com esta frase que explicita de forma objetiva esta proposição: “Agora este é o começo de como cristianismo chegou na Islândia”.15 O autor, assim como Siân Grønlie (2006), ressalta outrossim as características da Kristni Saga fortemente ligadas à genealogia e à lei. Adentrando nos relatos presentes nas fontes supracitadas, podemos perceber na Kristni Saga os relatos acerca da tentativa incial 15 DUKE apud KAHLE 1905, 1. 68 da conversão da Islândia, como no sexto capítulo, sobre Stefnir, a saga nos conta: O rei Óláf mandou Stefnir para a Islândia em missão cristã, mas quando ele chegou, as pessoas o receberam muito mal, pois todos lá eram pagãos. E, enquanto viajava pelo norte e pelo sul e ensinava ao povo a verdadeira fé, pouco valor foi dado aos seus ensinamentos. Quando Stefnir percebeu então seu vão esforço, começou a destruir templos, lugares de adoração e ídolos. Então, naquele verão, no Alþing, decidiu-se que Stefnir seria condenado pelo fato de ser cristão. Podese perceber, contudo, que ele havia sido expulso em razão de seus atos de destruição e não pelo fato de ser cristão, como já airmado anteriormente. No segundo capítulo da Kristni Saga, quando o bispo Friðrekr e Þorvaldr vão para Giljá e lá encontram uma das pedras onde os islandeses costumavam praticar sacrifícios (nela viveria um espírito da pedra); O bispo encaminha-se a ela e entoa cânticos e salmos até que a pedra se quebra; assim, Koðran e todos os seus parentes recebem o batismo, exceto seu ilho Ormr que continua sendo pagão. Þorvaldr e o bispo estavam em Giljá para as celebrações de outubro, depois de viajarem por diversas regiões da Islândia em missão. Dois berserks aparecem gritando e intimidando as pessoas, que solicitaram ao bispo que destruísse aqueles berserks: o bispo consagrou o fogo sobre o qual os Berserkir iriam caminhar e, como resultado, estes icaram severamente queimados. Depois disso, as pessoas ali presentes os atacaram e mataram. Muitos que então presenciaram aquelas cenas foram batizados. Aqui se percebe claramente o exemplum cristão, porque depois de haver ocorrido tal evento, em que os cristãos saíram vitoriosos, desacreditando os pagãos, inúmeras pessoas teriam aceitado receber o batismo. Outrossim, seria importante ressaltar o fator explicitamente político acerca da conversão, como é demonstrado no capítulo XI sobre Kjartan. A saga diz que esse, que era pagão e islandês, no dia das festividades de São Miguel, com a vinda do rei, foi indagado por Óláf se desejava se converter, ao que Kjartan prontamente respondeu que, se tivesse a mesma honra que ele tinha na Islândia, prometeria jamais retornar lá. Assim, Kjartan foi batizado com a promessa do rei. Nesta mesma festividade Þangbrandr conta ao rei tamanha animosidade que 69 vem sofrendo por parte dos pagãos na Islândia e Oláf, irado, condena alguns pagãos à morte, tirando as posses e prendendo outros. Hjalti e Gizurr airmam, ainda no capítulo XI, que o rei Óláf declarou que aqueles que aceitassem o batismo com boa vontade não deviam ser punidos. Gizurr também diz que, pelas ações pouco ortodoxas de Þangbrandr, como, por exemplo, haver matado muitos homens pela Islândia, as pessoas diicilmente deixariam de tratá-lo como um estrangeiro. Assim, o rei diz que tomará alguns homens bem nascidos como reféns até que efetivamente o Cristianismo tenha progresso na Islândia, como desejava Hjalti em seu discurso. Em decorrência disto, muitos homens foram batizados, inclusive Hallfrøðr, icando o próprio rei responsável por seu batismo, nomeando-lhe “Poeta Aborrecido” (pelo fato de haver negado antes o batismo) e presenteando-lhe com uma espada para conirmar a alcunha dada. Outro fator interessante de se ressaltar é a prática de erigir templos cristãos em antigos locais de culto pagão, como aparece no capítulo XII Sobre Gizurr e Hjalti, em que o próprio rei Óláf havia cortado a madeira para a construção de uma igreja em Horgaeyrr, airma-se que lá anteriormente eram praticados sacrifícios e haviam locais de adoração pagãos. Posteriormente na saga aparecem os conlitos na Assembléia entre pagãos e cristãos, envolvendo Gizurr e Hjalti, ao ponto de ambos os lados se declararem estar separados das leis um do outro. Depois disso os cristãos demandam à Síðu-Hallr que proferisse suas leis e explicasse o que era converter-se ao Cristianismo. Hallr concordava com o goði Þorgeirr, de que os Islandeses deveriam ter um único orador das leis, mesmo que este ainda não fosse batizado. Assim, Þorgeirr colocou sobre a cabeça sua capa e passou todo o dia e a noite desta forma, até o mesmo horário no dia seguinte.16 Os pagãos tomaram a decisão de sacriicar duas pessoas de cada região, chamada de “quartel” e pedir aos deuses para não permitirem que o cristianismo se espalhasse pela Islândia. No dia seguinte, Þorgeirr discursou sobre como seria ruim para o povo não ter a mesma lei dentro da Islândia. Naquele verão toda a assembléia foi batizada e a determinação foi de que todos deveriam acreditar em um único 16 Cf. AĐALSTEINSSON, 1999, p. 103-124. 70 deus, porém as antigas leis poderiam continuar vigentes no que dizia respeito à orientação das crianças e sobre comer carne de cavalo (hábito entre os pagãos islandeses, em que este animal era associado ao deus Odin). Além do mais, as pessoas poderiam continuar sacriicando em segredo, se quisessem, mas seriam banidas da Islândia caso houvesse uma testemunha. Conclusão A partir da análise da bibliograia e das fontes indicadas, podemos perceber que estas últimas apontam para violentos confrontos ocorridos entre os primeiros missionários cristãos enviados pelo rei norueguês Óláf Tryggvason e os habitantes islandeses, apontando para uma possibilidade de interpretação oriunda da visão de homens da Igreja em um período bem posterior ao retratado. Porém a conversão é decidida de forma pacíica, pois a lei aparentemente tinha uma forte ligação com a sociedade, regulando até mesmo a esfera religiosa, pois a conversão ao cristianismo é decidido na Assembléia anual por volta dos anos 999-1000. Portanto, haviam mecanismos já presentes na sociedade pagã islandesa que permitiram a conversão ocorrer desta forma? Como as esferas político-culturais atuaram nesta via e quais transformações e conlitos ocorreram no seio desta sociedade islandesa agora em processo de conversão? De acordo com as principais fontes utilizadas, a Kristni Saga e o Íslendingabók, pode-se perceber o caráter extremamente político da Assembleia islandesa e sua forma própria de legislar. Entretanto, havia a imposição e pressão por parte do rei norueguês na região em defesa da instauração do cristianismo e o envio de missionários gerou diversos conlitos, pois estes, na tentativa frustrada, na maioria das vezes, de conversão, utilizaram-se de métodos violentos contra a população local. Tanto mais reletindo acerca da possibilidade em haver uma guerra civil, pois um pouco antes da decisão tomada à favor da conversão à nova fé, ambos os lados, pagão e cristão, colocaram-se como foras da lei. Desta forma, o goði Þorgeirr (mesmo professando a religião pagã) decide no Althing anual a conversão da Islândia. Portanto, podemos perceber não somente um aspecto político da conversão em relação à vigência das leis estabelecidas pelo Althing. 71 Mas, também, pressões externas por parte do rei norueguês na região, através da formação de um discurso derivado do projeto político cristão enquadradando-se nos moldes desta realeza que cada vez mais tomava fôlego e força em sua dominação. Além do mais, os conlitos não necessariamente indicam uma ausência de efetiva conversão, até porque esta questão não caberia na análise da conversão enquanto evento e processo. Pois, como airma Karen Jolly, as “zonas cinzentas” seriam estas áreas de interseção em que o Cristianismo popular se apresenta com maior força, em que o folclore se manifesta imbuído da herença cultural de valores e crenças da sociedade islandesa. 72 UM OLHAR SOBRE O OUTRO: UMA ANÁLISE SOBRE AS CONCEPçÕES DE ALTERIDADE E IDENTIDADE NO RELATO DE JOãO DE PLANO CARPINE Ana dos Anjos Santos (Graduanda PEM – UFRJ) Introdução O propósito de nosso artigo é traçar considerações sobre a viagem do franciscano João de Plano Carpine ao Império Mongol no século XIII a partir dos conceitos de alteridade e identidade. Durante a sua viagem, o franciscano elaborou um relato de viagem, no qual descreve as situações e lugares por onde passou, assim como descreve características desse povo asiático, que lhe era desconhecido e instigante. Neste relato são descritos costumes como alimentação, vestimenta, religiosidade e práticas militares. Utilizando como base teórica as conceituações de Tomáz Tadeu sobre identidade e alteridade, pretendemos discutir essas duas formas de identiicação no texto escrito por João. Como, em sua descrição, o autor constrói a relação de dependência entre essas noções do “eu” e do “outro”? Como essas deinições, ao se construírem, também criam relações de poder? Qual o propósito da deinição desse “outro” asiático para o autor franciscano? Como podemos enxergar a “desestabilização” da identidade e da alteridade no relato de viagem de João de Plano Carpine? Essas são algumas das questões abordadas ao longo deste trabalho. Este trabalho relaciona-se à nossa pesquisa de conclusão de curso, que é desenvolvida no âmbito do Programa de Estudos Medievais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e está vinculado ao Projeto de Pesquisa Hagiograia e História: um estudo comparativo sobre a santidade, com orientação da Professora Doutora Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva. 73 João de Plano Carpine: relexões biográicas João de Plano Carpine foi o enviado do Papa Inocêncio IV, em 1246, para uma missão diplomática. Sua meta era entregar uma carta do líder religioso da Europa Ocidental para o então Imperador Mongol, Guiuc, demonstrando contrariedade ao tratamento dado aos cristãos pelo exército mongol. João nasceu no que hoje é conhecido como o território de Magione, na Península Itálica, mas que em sua época tinha o nome de Plano Carpine. Talvez tenha participado de uma ordem cavalheiresca em sua mocidade. Após tornar-se franciscano, João passou a exercer vários cargos de direção: foi preceptor de muitas províncias franciscanas e circulou da Escandinávia à atual Espanha, chegando a ser consagrado como bispo da Dalmácia.1 Por sua trajetória na Europa, podemos entender que João possuía certo grau de importância e capacidade para suportar uma longa viagem e tentar estabelecer acordos com o Imperador mongol. É possível observar, por meio de seu relato, que seus contatos nos principados estabelecidos nos territórios, conhecidos atualmente como Polônia, Boemia e Hungria, foram de grande utilidade em sua viagem ao Império das Estepes Asiáticas. O contato prévio com príncipes, reis e governantes mostra um planejamento do percurso, e possível percepção de que em alguns lugares passaria por mais diiculdades do que em outros, pois recebeu não só conselhos sobre o melhor itinerário a ser seguido, como também cartas de recomendação e salvo-condutos. Além disso, esse contato anterior com autoridades revela seu lugar social de prestígio entre os príncipes e reis. Em sua viagem para o Oriente, João produziu um relato de viagem, no qual apresentava todos os detalhes que lhe pareciam relevantes: descrições de clima, geograia, hidrograia, povoados que encontrou no percurso. Mostra as diiculdades da prática da viagem no medievo. O itinerante medieval tinha que passar por montanhas, estradas precárias, por vezes sendo as que haviam restado das vias romanas, que eram ainda muito rudimentares. Havia também as insuiciências dos transportes. Há de se levar em consideração ainda a insegurança, MOLLAT, Michel. Los exploradores del siglo XIII al XVI. México: Fondo de Cultura Económica, 1990. 1 74 devido aos senhores ou cidades que buscavam recursos por meio do roubo ou do conisco dos carregamentos dos viajantes; as diiculdades de alojamento; o pagamento de taxas e pedágios. Tudo isso resultava na oneração da viagem, tornando-a mais custosa. Quando chegou ao seu destino, descreveu minuciosamente um povo que para ele era desconhecido; quase tudo lhe parecia diferente, estranho e digno de ser registrado. Os Mongóis Antes de Gêngis Khan, como viviam os mongóis? Esta questão é importante para compreendermos o contexto e cultura vigentes quando do nascimento do futuro governante mongol. Os mongóis eram um grupo nômade do Extremo Oriente, assim como os tártaros, os naimanos e os keraítas. Os mongóis tinham um modo de vida nômade que era praticado nas estepes, onde tinham que suportar as condições extremas de frio nos invernos rigorosos e o calor abrasador dos meses de verão. Dependiam de vastos rebanhos, em especial de ovelhas e de cavalos. As ovelhas eram usadas para alimento e a lã era utilizada para fabricação de panos para roupas ou para as tendas onde habitavam. O cavalo é visto por muitos2 como um fator fundamental para a compreensão desse povo, pois o cavalo das estepes asiáticas era menor, resistente e forte; diferentemente do cavalo europeu. Essas características proporcionavam a mobilidade necessária para a vida nômade e também a rapidez e velocidade para a guerra. Segundo Philips, os mongóis eram nômades, com uma economia voltada para a criação de vários animais: ovelhas, cabras e cavalos; tinham um regime patriarcal e eram polígamos. Além disso, a sociedade era dividida por clã, ou seja, vários grupos familiares que sempre estavam lutando pelo poder, tanto internamente, quando um líder morria e a sucessão era disputada, quanto externamente, resultando na descentralização política e militar.3 2 3 PHILLIPS, E. D. Os mongóis. Lisboa: Verbo, 1971. Idem. 75 Gêngis Khan Gêngis foi o nome escolhido para o novo Khan dos mongóis quando este conseguiu uniicar seu povo. Seu nome de nascimento era Temudjim, porém seu titulo o deinia como ‘Senhor das Terras’. Gêngis Khan pode ser considerado um homem que obteve sucesso, já que nos últimos vinte anos da sua vida iniciou com êxito a conquista da China, anexou o canado Caraquitai, e em duas implacáveis campanhas, de 1200 e 1201, derrotou o império do Xá Khwarizm. Gêngis Khan foi o responsável por centralizar e uniicar os mongóis sob seu comando. Em seu governo, elaborou um conjunto de leis e regras para a manutenção da ordem, a chamada Yassa, que constituía uma codiicação das práticas existentes e acréscimos de seu governo. No Yassa havia preceitos morais: honrar o justo e o inocente; respeitar o instruído e o sábio de todos os povos; não roubar; não trair a ninguém e respeitar todas as religiões. Porém, segundo pesquisadores, esse conjunto de leis era relacionado apenas para as questões internas, não abrangendo, salvo exceções, o estrangeiro. Havia também leis que legitimavam a expansão pretendida por Gêngis Khan. Partia-se do principio de que o imperador era escolhido pelo Grande Céu Azul para conquistar e governar a terra, de modo que a resistência a qualquer exigência mongol de submissão representava uma revolta contra a maior divindade dos mongóis. A Expansão Mongol No século XIII, os mongóis haviam se unido, tornando-se um Império com pretensões de expansão. Os primeiros a sofrerem com essa ameaça foram os russos e os cumanos, que tiveram suas terras invadidas. Elas foram recuperadas, mas em 1236-7 os mongóis voltaram novamente à região. O exército mongol estendeu suas invasões e chegou a Kiev em 1240, assim como nas regiões das atuais Polônia e Silésio. Em 1241 destruíram os exércitos dos povos que viviam nas atuais áreas polaca, alemã e depois húngara.4 O exército húngaro foi vencido em Mohi, perto de Budapeste, em 11 de Abril de 1241. 4 76 Segundo Le Gof: (...) o grande acontecimento mundial no século XIII é a formação do Império Mongol. O gigante genial que se ergue no limiar do século é Temudjim, que se fez chamar chefe supremo, Gêngis Khan (...) De um império das estepes, Gêngis Khan transformou o mundo mongol nômade em um império universal (...).5 Jack Weatherford escreve que: Em uma conquista após a outra, o exercito mongol transformou a guerra em um acontecimento internacional de múltiplas frentes, que se estendiam por milhares de quilômetros. As técnicas de luta inovadoras de Gêngis Khan tornaram obsoletos os cavaleiros da Europa medieval com suas armas pesadas, substituídos por uma cavalaria disciplinada que se movimentava em unidades coordenadas. Em vez de coniar em fortiicações defensivas, Gêngis Khan fez uso brilhante da velocidade e da surpresa no campo de batalha, bem como aperfeiçoou a guerra de sítio a ponto de acabar com a era das cidades muradas. Gêngis Khan não apenas ensinou seu povo a lutar através de distancias incríveis, mas a manter sua campanha por anos, décadas e, inalmente, por mais de três gerações de luta incessante.6 E ainda: Em 25 anos o exercito mongol subjugou mais terras e povos do que os romanos em 400. Gêngis Khan, juntamente com seus ilhos e netos, conquistou as civilizações mais demasiadamente povoadas do séc. XIII. Sejam medidas pelo número total de povos derrotados, pela soma dos países anexados ou área LE GOFF, J. São Luís - Biograia. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 45. WEATHERFORD, J. McIver. Gêngis Khan e a formação do mundo moderno. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 18. 5 6 77 total ocupada, as conquistas de Gêngis Khan foram mais do que duas vezes maiores comparadas a qualquer outro homem na História. Os cascos dos cavalos dos guerreiros mongóis chapinharam nas águas de todos os rios e lagos do oceano pacíico ao mar Mediterrânico. No seu apogeu, o império cobriu entre 17 e 19 milhões de quilômetros quadrados contíguos, uma área quase do tamanho do continente africano e consideravelmente maior do que as Américas do Norte e Central e as ilhas do Caribe juntas. O território se estendia da tundra nevada da Sibéria às planícies quentes da Índia, dos arrozais do Vietnã aos campos de trigo da Hungria e da Coréia aos Bálcãs. A maioria das pessoas vive hoje em países conquistados pelos mongóis; em um mapa moderno, as conquistas de Gêngis Khan incluem 30 paises e bem mais de três bilhões de pessoas.7 As tentativas de aproximação entre o Ocidente cristão e o Império Mongol ocorreram quando Guiuc (1246-1248) e Mangu (12511259) foram os grã-khans. Sob Oguedai, as prerrogativas mongóis, baseadas no Yassa (código) de Gêngis Khan,8 foram impostas às regiões sedentárias dominadas. Quando da morte do segundo grãkhan, os fundamentos do Império tinham sido completados em toda a região das estepes.9 Ainda que Oguedai Khan tivesse indicado seu neto Shiramun como sucessor, sua viúva, Toreguene,10 conseguiu, mediante manobras políticas, assegurar a escolha de seu ilho Guiuc como imperador, na Ibidem, p.19. Sobre o Yassa ou Yasaq de Gêngis Cã, cf.: LAMB. H. Gêngis Khan: emperador de todos los hombres. Madrid: Alianza, 1985. p. 61-67 e 186-189. 9 PHILLIPS, E. D. Op. Cit., p. 87. 10 As mulheres parecem ter desempenhado importante papel no Império Mongol. Quando da vacância do trono de grão-cã, por ocasião de falecimento, a regência cabia à viúva do morto. Sobre os trabalhos das mulheres mongóis, ver: Ibidem., p. 38. Sobre as mulheres na corte mongol, cf.: ROSSABI, M. Women of the Mongol Court. Disponível em http://www.woodrow.org/teachers/history/world/ modules/ mongol/sexrexandhex.html. Acesso em 15 de outubro de 2011. 7 8 78 kurultai de 1246, contra a vontade de Batu, que comandava a Horda de Ouro.11 Batu era formalmente súdito do Imperador, mas nunca prestou vassalagem a Guiuc Khan. Havia uma disputa rigorosa pelo poder entre os descendentes das casas de Tolui (Mangu, Hulégu e Cublai) e Djútchi (Batu) e os das casas de Oguedai (Guiuc) e Tchagatai.12 Foi exatamente nesse contexto de mudança imperial que foi enviado o primeiro diplomata ocidental à corte mongol, o italiano João de Plano de Carpine. Seu relato sobre algumas das regiões de domínio tártaro,13 elaborado ao longo de sua viagem (1245-1247), representa um documento ocidental pioneiro sobre os mongóis. Abordagem teórica Para compreender o relato de João de Plano Carpine sobre os mongóis utilizamos como base conceitual os escritos de Tomaz Tadeu O termo “horda” vem do francês horde, uma variação da palavra mongol ordu (acampamento, sede da corte). A tenda de feltro era a casa mongol, chamada ger. Portanto, o nome “Horda de Ouro” é explicado pelo provável fato de a ger de Batu ter decorações douradas. A Horda de Ouro compreendia a atual Rússia européia meridional-oriental, a Ucrânia, o Cáucaso e o Cazaquistão. Sobre as ger, ver: PHILLIPS, E. D. Op. Cit., p. 34-36. 12 SAUNDERS, J. J. he History of the Mongol Conquests. London: Routledge & Kegan Paul, 1971. p. 105-106. 13 Cf. MARGULIES, M. Os judeus na história da Rússia. Rio de Janeiro: Bloch, 1971. p. 297. Uma das tribos mongólicas uniicadas por Gêngis Khan se chamava tata. Como em grego o termo tártara signiica “inferno” e como os mongóis, aos olhos da Europa, representavam verdadeiros demônios, muitas vezes tidos como os habitantes de Gog e Magog, citados no Apocalipse de São João, houve uma conjunção dos dois termos para a designação desses “bárbaros”. Surgiu então um termo genérico, embora errôneo, baseado no etnológico mongol e no mitológico grego. No decorrer do tempo, como o distanciamento entre os mongóis que icaram na Ásia e os que, por conta das invasões, foram assimilados a novas culturas, surgiu um novo grupo étnico na Rússia, no médio Volga, ao qual foi atribuído o nome “tártaros”. Estes, advindos, grosso modo, da fusão entre búlgaros (turcos) do Volga e mongóis, na época da Horda de Ouro, são islâmicos e vivem atualmente na República Autônoma da Tartária (em russo e em tártaro, Tatarstan), que faz parte da Federação Russa. Sua capital é Kazan. 11 79 da Silva. O professor da área de educação e currículo, juntamente com Stuart Hall e Kathyrn Woodward, produziu uma obra, cuja pesquisa está voltada para a construção social da identidade e da diferença.14 Para este autor, a conceituação e a formação da identidade estão relacionadas de forma dependente para com a alteridade. A conceituação do que o eu é (identidade), na verdade representa tudo o que o eu não é (diferença).15 Esses dois conceitos, portanto, são indissociáveis. Entendemos assim que, quando o franciscano identiica o “outro”, no caso o povo mongol, só está tentando descrever o que o “eu”, que seria o Ocidente medieval, não é. Não haveria necessidade de ressaltar em seu relato as características culturais do povo analisado se estas fossem exatamente iguais as dos europeus, pois seriam, portanto, um único grupo. Podemos exempliicar essa relação de dependência entre a identidade e a alteridade no relato de João quando ele escreve: Crêem num Deus único, que consideravam criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, e crêem que ele é doador tanto dos bens como dos castigos desse mundo, mas não o cultuam com orações ou louvores ou qualquer rito. Além disso, tem alguns ídolos feitos de feltro, à imagem do homem, e os colocam de ambos os lados da porta da tenda; debaixo deles, põem um pedaço de feltro, em forma de úbere;16 crêem que são os protetores dos rebanhos e lhes propiciam o benefício do leite e dos ilhotes de animais. Fazem também outros ídolos de pano de seda e os veneram muito.17 DA SILVA, Tomaz Tadeu. A produção social da identidade e da diferença. In: DA SILVA, Tomaz Tadeu; HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 73102. 15 Ibidem, p. 74-75. 16 Glândula mamária. 17 CARPINE, J. P. del. História dos Mongóis [1245]. In: CARPINE, J. P. del et al. Crônicas de Viagem: franciscanos no Extremo Oriente antes de Marco Polo (1245-1330). Trad. intr. e notas de Ildefonso Silveira e Ary E. Pintarelli. Porto Alegre/Bragança Paulista: EDIPUCRS/EDUSF, 2005. p. 9-97. p.35. 14 80 Neste trecho o franciscano identiica a divindade cultuada pelos mongóis como a mesma cultuada no Ocidente europeu cristão. Porém, ele se diferencia através da descrição das práticas religiosas, quando aborda as outras entidades religiosas, que considera como ídolos, o que seria uma prática diferente da do ideal cristão e, portanto, recriminada. Também podemos perceber, por meio dos conceitos de Tomáz Tadeu, que essas duas concepções não apenas estão em relação de dependência, como também criam e reforçam relações de poder.18 As airmações de identidade e alteridade são, por outro lado, operações de incluir e excluir. No momento em que são formuladas, a identidade e a alteridade acabam diferenciando os grupos, e classiicando “nós” e “eles”. Essas conceituações estão relacionadas com a produção social da classiicação. E quando se classiica, é nítido que também hierarquiza as atitudes e as pessoas envolvidas. Desestabilização é outro quesito na construção da alteridade e da identidade. Com relação aos costumes, João escreve: Estes homens, isto é, os tártaros, são mais obedientes aos seus senhores do que alguns homens que vivem no mundo, sejam religiosos ou seculares (...). Entre eles nunca ocorrem lutas, rixas, ferimentos, homicídios. Entre eles, não há saqueadores e ladrões de coisas valiosas.(...) Um respeita o outro e são muito amigos entre si; repartem bastante proporcionalmente entre si os alimentos, embora sejam poucos. Também são muito pacientes.19 Aqui podemos perceber que o franciscano elogia algumas características e comportamentos do povo que observava. Um dos ideais de comportamento que tinha em sua mente é, para ele, executado com perfeição pelos mongóis. Apesar de ser um ideal da Europa cristã medieval, este não era seguido rigorosamente por todos que pertenciam àquela sociedade, inclusive alguns religiosos, como o próprio franciscano escreve. O ideal era algo a ser buscado 18 19 DA SILVA, Tomaz Tadeu. Op. Cit., p.81-84. CARPINE, J. P. del. Op. Cit., p. 41. 81 e atingido pela comunidade européia, mas também por todas as outras sociedades, já que se acreditava existir uma só verdade e um só comportamento correto. Percebemos uma desestabilização do “eu” e do “outro” neste mesmo trecho da obra do frade da ordem menor. Isso porque a identidade e a alteridade não são ixas, ao contrário, são móveis, e por isso o que enxergamos no “eu” pode também aparecer no “outro” e viceversa. A identidade e a diferença são marcadas pela indeterminação e pela instabilidade: não existe nenhum referencial natural ou ixo que estabeleça essas deinições. E porque existia na obra de João de Plano Carpine, assim como existe nos dias atuais, a necessidade de diferenciar-se? Qual seria sua motivação? Segundo Tomaz Tadeu: (...) é a viagem em geral que é tomada como metáfora do caráter necessariamente móvel da identidade. Embora menos traumática que a diáspora ou a migração forçada, a viagem obriga quem viaja a sentir-se “estrangeiro”, posicionando-o, ainda que temporariamente, como o “outro”.20 Uma das respostas que podemos apontar é a necessidade de se autolegitimar e identiicar que impulsiona a deinição do mongol como o “outro”. Perante a exuberância da corte mongólica,21 o frade procura se colocar como o certo. João procura estabelecer uma hierarquização, na qual o seu “eu” está acima do “outro” asiático. Outra resposta seria a indeinição das questões diplomáticas entre o Oriente e o Ocidente. No relato do franciscano, há diferentes caracterizações do mongol. Em alguns momentos ele os elogia, em outros os critica ou menospreza. Percebemos que quando os caracteriza de forma positiva, na verdade está aproximando-os do ideal que possui de sociedade, que é do europeu cristianizado; da mesma forma quando os descreve de forma pejorativa seria o afastamento desse ideal. 20 21 DA SILVA, Tomaz Tadeu. Op. Cit., p. 88. CARPINE, J. P. del. Op. Cit., p. 86-90. 82 Considerações inais O franciscano fazia essa dupla caracterização do mongol, ora positiva ora negativa, porque no momento em que escreve não sabe se haverá uma aliança ou uma guerra da Europa contra Império Mongol. Se descrevesse o mongol apenas com características favoráveis, não poderia legitimar um possível ataque dos europeus cristãos aos mongóis, mas se só os descrevesse negativamente diicultaria o discurso para uma possível aliança ou acordo diplomático. Portanto, sua descrição não é simplesmente o que viu e o que observou, mas é fruto do contexto em que estava inserido. A dúvida em relação ao Império Mongol e os questionamentos se ocorreriam alianças ou guerras foram fatores que não deixavam o franciscano escrever com apenas um posicionamento, fosse ele positivo ou negativo. Era interessante escrever dessas duas formas, para que posteriormente, se necessário, se utilizasse uma delas. Além disso, seu relato sobre os mongóis é, na verdade, uma construção que está envolvida nas relações de poder daquele contexto. O diferente é sempre o outro e o discurso de quem o descreve tenta, quase sempre, não apenas mostrar as diferenças, mas também hierarquizar essas diferenças. O franciscano da Península itálica, ao descrever sua viagem ao Império Mongol, constrói o seu relato com esses instrumentos: de diferenciação e hierarquização, mostrando sempre que o ideal europeu, ou seja, o seu próprio, está acima do oriental. 83 M EXEMPLO DE UTILIZAçãO DE HAGIOGRAFIAS COMO INSTRUMENTO DE DEFESA/PROPAGANDA: AS HAGIOGRAFIAS MARIANAS CATALãS NO SÉCULO XIII André Luis Caruso Cruz Junior (Graduando PEM – UFRJ) A história dos movimentos heréticos medievais ganha sua justiicação junto aos estudos em História da Igreja, pois, como airma Miguel Unamuno “el dogma vivia de las herejías como la Fe vive de dudas. El dogma se mantenía de negaciones y se airmaba por negaciones”. Dialeticamente, a ortodoxia cria a heresia e esta conirma aquela. A heresia era uma ameaça para a Igreja e como tal precisava ser combatida. Diversos meios foram utilizados para bloquear a ação destes elementos vistos como heterodoxos, desde pregações e catequeses até violência aberta. O presente trabalho se inscreve no âmbito dos estudos das estratégias utilizadas pela instituição eclesiástica frente à questão das heresias. Sendo assim, nosso objetivo é traçar algumas relexões a respeito da produção hagiográica na região da Catalunha ao longo do século XIII - mapeada a partir do “banco de dados das hagiograias ibéricas”, produzido pelo projeto coletivo Hagiograia e História: um estudo comparativo da santidade – focando, sobretudo, nas hagiograias com temáticas marianas, visto que são a maioria no corpus documental de que dispomos. Esta escolha será explicada com maiores detalhes no decorrer do artigo, por meio das estatísticas coletadas pelo projeto coletivo. Por im, cabe ressaltar que esta pesquisa tem como objetivo inal a redação do trabalho monográico para obtenção do grau de bacharelado e é orientada pela Prof.ª Dr.ª Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva. 84 Hagiograia e Heresia: relação possível? Antes de dar início à análise da produção hagiográica catalã no século XIII, convém que se deina hagiograia e se delimite, em linhas gerais, os propósitos identiicáveis deste tipo de produção literária. Para tanto, a deinição proposta pela professora Andréia Frazão será extremamente útil. Em suas palavras, as hagiograias são textos cuja “temática central é a biograia, os feitos ou qualquer elemento relacionado ao culto de um personagem considerado santo, seja um mártir, uma virgem, um abade, um monge, um pregador, um rei, um bispo ou até um pecador arrependido”. Segundo essa deinição, os textos hagiográicos correspondem a toda produção literária que faça referência a alguém considerado santo ou que se pretenda identiicar como tal. Dentro desta deinição estão englobados diversos tipos de textos, desde poesias, passando por narrativas, até documentos oiciais. Este dado, num certo sentido, diiculta a análise desta produção em conjunto, visto que o universo de produções é vasto e diferenciado. Os motivos pelos quais se produziam hagiograias são os mais diversos, porém é possível delimitá-los, segundo Baños Vallejo, “a un in de ediicación”. Para De Certeau “visa a ediicação (uma “exemplaridade”)”. Desta maneira, as hagiograias têm, como um de seus principais propósitos, ediicar os iéis. É importante ressaltar que a função ediicadora, aqui, está sendo entendida de duas maneiras. A primeira, como forma de induzir à virtude a partir dos exemplos que as vidas de personagens veneráveis representavam para a comunidade. No entanto, também é possível pensar “ediicação” no sentido de infundir conceitos morais e/ou religiosos. Desta forma, hagiograias como as de Maria não pretendiam induzir à virtude por meio do exemplo, mas incentivar um tipo de devoção especíica. A relação entre hagiograias e heresia pode ser pensada a partir destas duas acepções de “ediicação”. Naquela em que se pretende “induzir à virtude”, o foco está numa conduta desejável que se requer do iel. A Igreja por meio das vidas de santos difunde um modelo ideal de conduta e, assim, combate “desvios” comportamentais. Ao se falar em 85 “ediicação” como “infusão de sentimentos religiosos”, as hagiograias atuariam como uma forma de reairmação de determinados preceitos, a ortodoxia. A relação das hagiograias com as heresias se estabelece quando o grupo herético ameaça um dogma e leva a instituição eclesiástica a combatê-lo, reiterando alguma parte da doutrina. Movimentos heréticos nos séculos XI, XII e XIII Como foi salientado no início deste artigo, a Igreja nunca foi um monólito. Sempre houve elementos que fugiam ao controle institucional. Entretanto, ao longo dos séculos XII e XIII, há na Europa medieval o surgimento de uma contestação especíica. Os movimentos heréticos deste período foram divididos por André Vauchez em dois grandes grupos: os da corrente evangélica e os da corrente dualista. Os primeiros seriam orientados por uma crítica contundente à conduta do clero e às estruturas existentes, sem, contudo, proceder a uma rejeição de dogmas. Este grupo, em sua maioria formado por leigos, acreditava que o direito à pregação não era exclusividade dos eclesiásticos e que bastava apenas viver de acordo com o Evangelho para que se tivesse garantido esse privilégio. Por vida condizente com o Evangelho acreditava-se, principalmente, na renúncia das riquezas. É possível destacar como principal movimento desta corrente os chamados valdenses ou pobres de Lyon. A corrente dualista, ao contrário da evangélica, não questiona apenas fatores de ordem disciplinar, pois, para estes grupos, os ensinamentos da Igreja são errados. Nesse sentido, caracterizam-se por colocar em questão dogmas fundamentais, como o batismo e o casamento. Além disso, tem uma perspectiva dualista do mundo, em que dois princípios antagônicos – o Bem espiritual e o Mal material estão em batalha ao longo da História. Ainda segundo Vauchez, “para além daquilo que as opõem, a corrente evangélica e a corrente dualista tem em comum a recusa de uma salvação que dependeria da mediação da Igreja visível e do sacerdócio institucional”. Elas, sobretudo, estavam em harmonia com as inquietações da época em que surgiram. 86 Os cátaros: origem, doutrina e expansão A origem dos cátaros é tema controverso. Alguns especialistas os situam em tradições dualistas do Oriente, do bogomilismo, mais precisamente. Porém não há consenso, visto que no Ocidente também houve grupos dualistas em sua história, como os priscilianistas e maniqueus. O fato é que a partir da virada do primeiro para o segundo milênio, o Ocidente experimenta novo vigor da crença dualista, representado pelos grupos cátaros. O termo cátaro vem do grego e signiica puro – uma referência ao estilo de vida ascético que levava parte dos seus adeptos. Contudo, os cátaros também receberam outros nomes ao longo de sua história, entre eles albigense, que alude a região de Albi, onde tiveram grande projeção, patarinos. O principal ponto da sua doutrina diz respeito à visão dualista que tinham do mundo. Assim, para os cátaros, o universo material havia sido criado por um Deus Mal que estaria em constante conlito com um Deus Bom, que, por sua vez, seria responsável pela esfera espiritual. O homem seria um fragmento de espírito aprisionado num corpo material. Ele deve tentar a todo custo mortiicar esta matéria a im de conseguir superá-la e dela se libertar. Nesta busca por libertação, o ser humano seria ajudado por Cristo, uma espécie de ilho adotivo de Deus. Seu nascimento de Maria não passaria de uma aparência, bem como seus sofrimentos. Na realidade, o que salvaria o homem não seria a Paixão, mas os ensinamentos de Cristo. Além dessa crença fundamental, os cátaros também professavam a rejeição ao Antigo Testamento; diferenças entre um Cristo Bom e outro Mal, que teria se manifestado em Paulo; negação da Igreja Romana e dos seus sacramentos; identiicação do matrimônio como prostituição; recusa da crença na ressurreição da carne. A organização da igreja cátara era centrada numa divisão entre os perfeitos e os crentes. Aqueles eram reconhecidos por seu extremo ascetismo, enquanto estes não precisavam observar grandes restrições. Para ingressar na categoria dos perfeitos, era necessário que a pessoa passasse por uma cerimônia chamada Consolamentum, que consistia na imposição das mãos e no toque com o Evangelho. Na realidade, 87 todos os adeptos do catarismo precisavam passar pelo Consolamentum no leito de morte, porém aqueles que o recebiam durante a vida, tornavam-se perfeitos e precisavam se submeter a uma dura rotina de privações. As doutrinas cátaras experimentaram sua maior expressão na região sul da atual França, no Languedoque. Isto ocorreu por várias razões, dentre as quais é possível citar o desenvolvimento econômico experimentado ali que, entre outros fatores, possibilitou o contato entre comerciantes de diferentes procedências, principais pregadores do catarismo; fraca efetivação da ação reformista papal naquela localidade, que produziu um clero pouco zeloso quanto a seus costumes e excessivamente tolerante com a introdução herética. Além da forte presença cátara no Languedoque, outros lugares também receberam grupos desta heresia. Este foi o caso das atuais Itália, Alemanha e Espanha, nesta última, sobretudo, na região da Catalunha. Presença cátara na Catalunha A historiograia sobre a presença cátara na região da Catalunha é escassa. Um dos primeiros trabalhos a tratar desta temática é a obra de Marcelino Menendez y Pelayo, Historia de los heterodoxos españoles, escrita em ins do século XIX. No entanto, a maior parte dos estudos sobre este tema foi produzida por Jordi Ventura i Subirats, no início da década 1960; são dele El catarismo en Cataluña e La valdesia de Cataluña, ambos com forte tom nacionalista. A principal via de explicação para a expansão cátara na região da Catalunha é aquela que associa as relações senhoriais e comerciais existentes entre ambos os lados dos Pirineus. Além disso, há que se ter em conta outros dois fatores. O primeiro diz respeito à explosão demográica vivida na Occitana, o que favoreceu a migração de grandes contingentes populacionais para terras catalãs. Segundo, após a instauração da Cruzada Albigense por Inocêncio III, no início do século XIII, muitos cátaros fugiram do Languedoque e se refugiaram na Catalunha. A primeira referência aos cátaros catalães de que se tem notícia é motivo de controvérsia entre os pesquisadores do tema. Para Ventura 88 i Subirats é possível airmar que as primeiras aparições de cátaros na região datam da década de 60 do século XII. Carles Gascón Chopo critica essa hipótese, airmando que a documentação em que se baseia Ventura i Subirats é duvidosa e que a primeira comunidade cátara catalã, na verdade, só se formaria nos anos de 1290. Discussões a parte, fato é que a presença cátara na região pode ser observada, sem problemas, a partir do inal do século XIII. Deste período em diante, a heresia se estendeu por toda a região catalã, ainda que fosse mais forte em algumas e menos evidente em outras. As hagiograias marianas catalãs do século XIII: instrumento de defesa/propaganda? A produção hagiográica do Reino de Aragão, onde se insere a Catalunha, é extremamente rica. Segundo catalogação feita pelos pesquisadores do projeto coletivo Hagiograia e História: um estudo comparativo da santidade, para a publicação do Banco de dados das hagiograias ibéricas. Séculos XI, XII e XIII, ao todo foram produzidas ali trinta e uma hagiograias no período assinalado. O que leva o Reino de Aragão a igurar como o segundo maior pólo produtor de hagiograias ao longo dos séculos XI, XII e XIII na Península Ibérica, atrás apenas do Reino Castelhano-leonês. Das trinta e uma hagiograias produzidas no Reino de Aragão, doze (aprox. 40%) foram elaboradas no século XIII, na região da Catalunha (GRAF. 1). Dentre estas doze, seis (50%) possuem temática mariana (GRAF. 2). Outro fato importante a ser apresentado aqui é o aumento de hagiograias catalãs no século XIII: 53%, se comparado ao século XI, e 41%, se comparado ao século XII. Por im, vale ressaltar que todas as hagiograias produzidas na Catalunha no século XIII foram feitas em vernáculo (GRAF. 3). 12; 39% Aragão 19; 61% GRAF. 1 89 Catalunha Outras 50% 50% Marianas GRAF. 2 10 8 Ver nácula 6 Latim 4 2 0 Séc. XI Séc. XII Séc. XIII GRAF. 3 O foco principal do presente trabalho está nas hagiograias marianas produzidas na Catalunha durante o período citado e como elas podem representar um indício da atuação eclesiástica frente a heresia cátara. Como já foi dito anteriormente, foram produzidas seis hagiograias marianas no século XIII, mais precisamente em sua segunda metade, na Catalunha, são elas: Augats, seyós, qui credets Déu lo Payre, Bailada deis goigs de Nostra Dona, Flor de Lir, verge Maria, Flor de paradís, Set goigs de la verge Maria, Virolai de Madona Santa Maria. Todas estas hagiograias foram escritas em verso, vernáculo e giram em torno das percepções de Maria a respeito do seu Filho nas diversas fases da vida deste: nascimento, infância e Paixão. A linguagem utilizada tende a ser bem expressiva, com a utilização de adjetivos que denotam sofrimento, como, por exemplo, “si es dolor tan gran con es la mia”, alegria, enim, emoções bem humanas. O primeiro aspecto que precisa ser destacado diz respeito ao conteúdo destas hagiograias. Todas elas se referem ou aos gozos de Nossa Senhora: Anunciação e Encarnação, visita a sua prima Santa Isabel, nascimento de Jesus, adoração dos Reis Magos, encontro de 90 Jesus no Templo, ressurreição de Jesus, coroação da Virgem Imaculada no Céu, ou aos sofrimentos que ela havia passado por causa de seu ilho. A doutrina cátara prega que a Encarnação, os sofrimentos de Cristo e sua morte foram apenas aparentes, negando seu caráter estritamente humano. Desta forma, retornar a Maria e, conseqüentemente, reforçar o caráter humano do Cristo, nascido da Virgem, seria uma maneira de reairmar o dogma frente à heresia que ameaçava a ortodoxia. De acordo com Jerome Baschet, “de fato, é preciso tratar conjuntamente da Virgem e da Igreja, pois, a partir do século XII, a exegese airma que tudo o que se diz de uma pode ser aplicado à outra”. Esta airmativa do medievalista francês traz outro aspecto fundamental ao nosso estudo. Se Maria é a representação da Igreja, escrever hagiograias sobre a primeira seria exaltar e reairmar a posição preponderante da segunda. Talvez este aspecto possa elucidar aquilo que Certeau airma: “a vida de santo indica a relação que o grupo mantém com outros grupos”. Reforçar a imagem de Maria/Igreja, seria uma forma de legitimar o poderio da instituição eclesiástica frente a estas correntes heterodoxas. Uma vez que Maria, assim como a Igreja, é vista como mãe e esposa do próprio Cristo e tem prerrogativas indiscutíveis. Considerações inais As relações entre a utilização das hagiograias como instrumento de defesa da Igreja frente à ameaça herética ainda é um tema pouco estudado no meio acadêmico. Análises mais aprofundadas sobre a temática podem revelar possíveis estratégias que a instituição eclesiástica lançava mão em defesa da ortodoxia. Procurou-se demonstrar com esse trabalho, a partir da análise de um grupo especíico de hagiograias, aquelas com temática mariana, que este tema mantém algumas relações com o fortalecimento da ortodoxia. Assim, começamos a apresentar nossas primeiras relexões que visam demonstrar como a presença de cátaros na região da Catalunha no século XIII inluenciou os produtores de hagiograias daquele local. 91 REFLEXÕES SOBRE O PAPEL DAS MURALHAS NA CIDADE MEDIEVAL André Rocha de Oliveira (Graduando PEM – UFRJ) Introdução O trabalho que se segue está relacionado à pesquisa que visa a redação da monograia de im de curso. A pesquisa em questão – vinculada ao projeto coletivo Hagiograia e História: um estudo comparativo da santidade, sob a orientação da professora Andréia Frazão, desenvolvido no Programa de Estudos Medievais (PEM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – tem por objetivo o estudo da cidade medieval e sua relação com a produção hagiográica episcopal. Neste trabalho, faremos uma relexão sobre um aspecto presente na maioria das cidades ocidentais nos séculos inais da Idade Média, as muralhas. Antes de começarmos a falar das muralhas propriamente ditas, é importante deinirmos o que é cidade, ou, pelo menos, o que entendemos por tal, para melhor compreensão do trabalho que se segue. As características levadas em consideração para a caracterização de um aglomerado como cidade provocaram, e ainda provocam, diversos debates entre os estudiosos. Acreditamos que, dentro destes, três teses merecem destaque, a saber, Henri Pirenne,1 Peter Mann2 e Henri Pirenne defendia que a cidade estava intimamente relacionada com a atividade comercial, indicando que seu desenvolvimento estava associado às necessidades dos mercadores, que necessitavam de lugares seguros para armazenarem os seus produtos, enquanto não estivessem em viagem. PIRENNE, Henri. As Cidades da Idade Média. 4 ed. Lisboa: Edições Europa-américa, s.d.. 2 Peter Mann acreditava que a evolução das cidades estava associada à sua posição em relação à área circundante, levando em consideração que o maior ou o menor isolamento em relação às cidades vizinhas inluenciava no seu progresso. BARROS, José D’Assunção. A Cidade Medieval: Os grandes debates historiográicos. Rio de Janeiro: Cela, 2003. p. 32. 1 92 Marcel Roncayolo.3 A escolha por estes autores e suas teses se deve ao destaque dado às muralhas. Cada um desses historiadores citados acima atenta para uma característica ímpar. Pirenne acredita que o amadurecimento das cidades está associado com o desenvolvimento comercial veriicado a partir do século IX; Mann defende que uma análise satisfatória da cidade só pode acontecer mediante a paralela análise da área circundante, e Roncayolo nos atenta ao fato de que, mesmo no período de maior primazia das cidades durante a idade média, esta continuou a ser essencialmente rural. Todas estas características podem ser relacionadas às muralhas: a necessidade de um local seguro para armazenamento de mercadorias, presente em Pirenne; as relações com as áreas vizinhas, que aconteciam por meio dos portais, única forma de contato entre o interior e o exterior da cidade, de acordo com Mann, e os achados arqueológicos, referente à maior muralha em perímetro já encontrada, de apenas seis quilômetros, podem complementar a observação de Roncayolo quanto à distribuição populacional no período medieval. O que quisemos demonstrar ao abordar a posição destes historiadores é a importância que as muralhas podem exercer sobre a cidade, principalmente a medieval. Seja por aspectos políticomilitares ou socioeconômicos, as muralhas tinham papel essencial na organização citadina; a disposição dos bairros e a dicotomia centroperiferia eram deinidas pela presença destes cinturões de muros. Seu valor simbólico ultrapassava em grande escala a sua própria utilidade; as muralhas eram a divisão entre o limpo e o sujo, o seguro e o perigoso, como observa Le Gof em texto que será trabalhado mais adiante. Mas esta dicotomia simbólica ia além: era também, através de suas portas, como destaca Cesare de Seta, a entrada para a salvação.4 Esse simbolismo era ainda mais presente nos próprios citadinos, que ao estarem cercados por essas imponentes construções adquiriam Marcel Roncayolo chamava atenção para o fato de a maioria da população (90%) vivia fora das cidades até inais do século XVIII, o que não nos permite exagerar o tamanho das cidades. BARROS, José D’Assunção. Op. Cit., p. 31. 4 DE SETA, Cesare. Las Murallas, Símbolo de La Ciudad. In: DE SETA, Cesare; LE GOFF, Jacques. La ciudad y las murallas. Madrid: Cátedra, 1991. p. 21-66. 3 93 o sentimento de pertença a uma comunidade, ou seja, as muralhas poderiam assumir o papel de agentes constituidores de identidade. O seu papel prático também é extenso, segundo Ribeiro.5 Os muros serviam, além de instrumentos de defesa primária, como delimitadores judiciais e aduaneiros, visto que a justiça e os impostos cabiam, na maioria dos casos, principalmente nas cidades italianas, ao responsável pela cidade, e não ao condado onde esta se inseria. Prova dessa autonomia judicial, aduaneira e até política pode-se encontrar no fato de as próprias cidades, em muitas das vezes, serem as responsáveis pela construção de suas muralhas. A partir do século XII, com o aumento demográico, tornou-se necessário ampliar o perímetro das antigas muralhas já erigidas ou construir outras em lugares que antes não estavam presentes. Este processo, extremamente caro, não ocorreu em todas as cidades. Vale destacar que nem todos os centros urbanos possuíam seus perímetros fortiicados. O fato de existirem cidades sem nenhum vestígio de muralhas é encarado, de início, como sinal de uma suposta pobreza, ou seja, apenas as mais ricas conseguiam ediicar os muros. Devemos nos atentar um pouco sobre tal questão, taxar esta ou aquela cidade de rica ou pobre pela simples existência de cinturões de muralhas nos parece uma visão um tanto reducionista. Supor que dentro de um espaço como a Europa medieval não existiram aglomerados urbanos que, simplesmente, não quiseram ediicar muros, seja por sua localização geográica, seja por qualquer outro fator, é ir contra a heterogeneidade que caracteriza o citadino. Se todas as cidades ricas fossem iguais, de um lado, e todas as pobres também fossem análogas entre si, o estudo sobre as muralhas já teria entrado em declínio, uma vez que não haveria sentido estudar diversas vezes “uma mesma coisa”. Tentar eliminar as diferenças por meio de uma concepção simpliicadora pode ocasionar, no que concerne às cidades medievais, o que os antropólogos consideram ser o futuro sombrio do etnocentrismo: o reducionismo da variedade cultural. Assim, ainda que possamos encontrar pontos comuns em uma ou outra aglomeração urbana RIBEIRO, Maria do Carmo Franco. Braga entre a época romana e a Idade Moderna. Uma metodologia de análise para a leitura da evolução da paisagem urbana. Portugal: Universidade do Minho, 2008. p. 134. 5 94 medieval, não devemos generalizar, pois assim poderão se perder as singularidades das experiências históricas particulares. A seguir, vamos aprofundar um pouco mais no que alguns autores dizem sobre o papel da muralha no mundo medieval. As muralhas nas visões dos autores Os estudos voltados para a análise das muralhas suscitam grande interesse entre os pesquisadores dedicados, dentre outros campos, à História Urbana, principalmente no que se refere ao período antigo e medieval, quando estas, em sua maioria, são erigidas. A seguir, buscaremos demonstrar os pontos de vista de alguns destes autores, com destaque para os interessados nas muralhas das cidades do período medieval. Serão apresentadas, aqui, as ideias dos autores Jacques Le Gof, Roberto S. Lopez e José D’Assunção Barros. A escolha por estes historiadores se deve, em primeiro lugar, às suas nacionalidades, uma vez que acreditamos ser bastante útil em um estudo como este não icarmos presos apenas aos trabalhos produzidos em um único lugar, inluenciados apenas por este ou aquele modo de se fazer História; em segundo, e principalmente, pelo fato de que cada um aborda a questão levantada de maneiras distintas. Para tal, utilizaremos como aporte o texto Construcción y destrucción de la ciudad amurallada. Una aproximación a la relexión y a la investigación de Le Gof, publicado em La ciudad y las murallas,6 uma compilação dos trabalhos relacionados à temática da muralha; A Cidade Medieval – Os grandes debates historiográicos,7 livro em que, como o título deixa claro, José d´Assunção Barros busca ressaltar os principais debates historiográicos relacionados à cidade medieval, e A Cidade Medieval,8 que consiste em uma entrevista de Lopez conduzida por Marino Berengo. Jacques Le Gof Em a Construcción y destrucción de la ciudad amurallada. Una aproximación a la relexión y a la investigación, as muralhas são vistas DE SETA, Cesare; LE GOFF, Jacques. Op. Cit. BARROS, José D’Assunção. Op. Cit., p. 36-42. 8 LOPEZ, Roberto S. A Cidade Medieval. Lisboa: Presença, 1988. p. 7-13. 6 7 95 como uma etapa para a compreensão do fenômeno urbano, visto que suas sucessivas construções ou até mesmo as suas demolições interferem diretamente no desenvolvimento morfológico da cidade. O que nos ica claro em um primeiro contato, é que Le Gof pretende lançar luz sobre a metodologia a ser utilizada no estudo das diversas etapas da existência de uma muralha e de como estas interferem na vida dos habitantes da cidade. A primeira questão levantada pelo autor refere-se à problemática a cerca dos trabalhos a serem desenvolvidos pelos estudiosos dos recintos fortiicados. Tal problemática consiste, principalmente, na longa duração, uma vez que algumas muralhas persistem da Antiguidade até meados do século XIX, ou até depois, impondo, consequentemente ao seu estudo, o método regressivo. Este método incide na necessidade de se partir dos vestígios atuais para se “reconstruir o passado”, procedimento que inviabiliza o estudioso de cair em qualquer espécie de determinismo.9 Devido à escassez de fontes escritas para análise, se torna necessária a utilização de múltiplos tipos de documentação, como o imagético, o arqueológico e o cartográico, por exemplo. Após elucubrar os aspectos metodológicos para a pesquisa das muralhas, o autor passa à temática propriamente dita. Le Gof começa por abordar as fases de construção das muralhas. No que concerne ao período em questão, a idade média, o autor cita dois momentos de intensa atividade no seu erguimento, a saber, “el del auge demográico y económico del siglo XII-XIII, y el de la defensa militar del siglo XIV”.10 A seguir, o autor discute as causas da construção e / ou demolição relacionando-as com fenômenos como “el nomadismo, las invasiones, el surgimiento de feudalismo y la articulación del poder urbano con el nacimiento del Estado Moderno”. 11 O determinismo acontece quando historiadores, inluenciados por já saberem o que virá a acontecer no futuro de tal época, tendem a excluir certos aspectos ou adaptá-los para que estes se “encaixem”, manipulando assim os resultados de seus estudos, mesmo que sem intenção. O fenômeno chamado de “retrodição” por Barros é uma maneira de se fugir de tal armadilha. 10 DE SETA, Cesare; LE GOFF, Jacques. Op. Cit., p. 13. 11 Idem. 9 96 Seguindo com as elucidações sobre a construção das muralhas, o autor destaca três aspectos, a saber, o tecnológico, o econômico e o sócio-político. No primeiro, deve-se observar a mão-de-obra envolvida, os materiais utilizados e os especialistas responsáveis pela construção; em relação ao segundo, indagar se tal construção provocou crises econômicas que podem ser interpretadas como fator de distinção, pois apenas as cidades mais ricas teriam como erguer muralhas sem colocarem sua economia em risco. Quanto ao terceiro aspecto, há que se levar em conta a posição da população frente aos impostos cobrados e o trabalho propriamente dito para se erguer tal muro. Finalmente, em sua análise sobre o papel da muralha no período medieval, Le Gof explora questões concernentes à organização e divisão do território citadino, bem como as características do seu imaginário em relação a tais construções. O principal ponto a ser elucidado sobre a inluência das muralhas na organização citadina recai sobre a distinção centro-periferia, que é onde o autor se prende com maior atenção. Estar dentro dos muros signiicava estar no centro, estar envolvido em uma gama de assuntos e responsabilidades que cabiam aos “verdadeiros” citadinos, era viver no limpo, se sentir integrado em uma mesma comunidade, estar na cidade e não no campo, mas principalmente, estar seguro. Enquanto isso, viver fora dos limites das muralhas denotava estar na periferia, ou seja, longe da “civilidade” e dos códigos citadinos, era estar no sujo, além de propenso a todos os perigos e violências. Por último, cabe ainda destacar a importância sagrada, militar e econômica dos muros. Quanto ao sagrado, havia igrejas e os conventos dentro de seus limites;12 o papel militar das muralhas remonta-se às suas origens, que visava na maioria das vezes a proteção dos que estavam em seu interior; por último, sua importância econômica residia nas portas, que era por onde as mercadorias entravam e saíam dos perímetros da cidade. É bem verdade que existiam muitos mosteiros fora das cidades, mas seu caráter sagrado se devia a presença das igrejas, que desde os tempos do Império Romano estavam organizadas dentro de cidades, e também aos conventos das Ordens Mendicantes, que se situam dentro do âmbito amuralhado. 12 97 Roberto S. Lopez Em entrevista conduzida por Marino Berengo, Lopez trata, em conjunto com o entrevistador, de algumas questões relativas à muralha. Cabe destacar que por se tratar mais de uma conversa do que uma entrevista propriamente dita, ambos são responsáveis pelas conclusões que são alcançadas. Para este autor português os muros serviam como elemento caracterizador das cidades e as portas possuíam um valor simbólico muito além de um simples lugar de transição entre o interno e o externo. O portal de uma cidade transmitia diversos tipos de mensagens, seja por meio de escritos gravados em suas portas, seja pela presença de emblemas dos seus santos protetores, característica marcante nos portais das muralhas medievais. Destarte, excedendo o fato de caracterizar as cidades e possuir atributos simbólicos, as muralhas serviam ainda como deinidoras dos aglomerados urbanos no espaço, além disso, inluenciavam também a própria organização interna destes. Como deixa claro uma passagem do entrevistador quanto ao assunto: “Além disso, as muralhas e as portas inluenciam a ordem interna: há pouco falávamos de sentinelas, e é justamente em função das portas e da defesa das muralhas que habitualmente se articula a estrutura dos bairros”.13 Sobre a construção das muralhas, a discussão principal gira em torno de “quem” patrocinou os cinturões: se foi o monarca, como uma iniciativa que visava facilitar o controle sobre tal cidade, uma vez que, estando encerrados dentro de seus perímetros, os citadinos se tornariam mais propícios a atender aos desejos do senhor; ou se, pelo contrário, sua ediicação não se deve à vontade do soberano e sim dos citadinos contra o mesmo, como é o caso das cidades do norte da Itália. Enim, vale exaltar a participação dos habitantes na ediicação de tais muros, uma vez que, sem o pagamento de impostos ou sem o trabalho empregado pelos mesmos nas construções, a muralha nunca icaria pronta. Ou seja, apenas com o consentimento dos citadinos a muralha poderia ser construída. Para concluir esta parte, é importante frisar a importância simbólica que as muralhas tinham em relação às cidades para os seus próprios habitantes. Para tal, Lopez se vale de exemplos em que a destruição das muralhas foi um meio utilizado para punir a população: 13 LOPEZ, Roberto S. Op. Cit., p. 12. 98 “Quando Rotário conquista e pretende punir Génova, arrasa-lhe as muralhas; Frederico Barba-Ruiva fará o mesmo em relação a Milão, não destruirá todo o aglomerado (como em tempos erradamente se julgou), mas mandará arrasar as muralhas”.14 José D’Assunção Barros Em busca por uma deinição da cidade medieval, Barros indica que a mesma se insere no modelo de urbanismo fechado proposto por Fernand Braudel,15 no qual as muralhas, além de estarem associadas às questões de segurança, deiniriam os contornos da cidade. Segundo este historiador brasileiro, a presença de muros interferia no crescimento da cidade, que, por isso, só podia se expandir por etapas, etapas que se davam por meio de contínuas reconstruções dos cinturões de defesa. Estas empreitadas só ocorriam em grandes intervalos de tempo, visto que esta era a obra pública mais cara da época. Continuando com os efeitos deste modelo de crescimento, o autor elucida as implicações que estas sucessivas reformas no perímetro das muralhas provocaram na disposição social dentro da cidade. Estas obras demoravam um intervalo de tempo muito grande entre uma e outra, pois adiavam o seu início ao máximo possível, só começando quando não havia mais espaço dentro dos muros. Esse procedimento acabou por, segundo as próprias palavras do autor, “conferir às cidades medievais uma isionomia urbana muito peculiar [...] os bairros mostram-se habitualmente compactos e – tanto quanto podiam sem ameaçar a vida de seus moradores – as casas desenvolviam-se em altura”.16 Além desta implicação na paisagem da cidade medieval, o autor aborda também as consequências sociais de tais reformas, que trazem para dentro das muralhas parte da antiga periferia. A seguinte passagem é bem elucidativa quanto a esta questão: “De fato, trazer Ibidem, p. 10. Para Braudel, as cidades possuíam tendências, que, de período em período, variavam em relação à abertura ou ao fechamento para com o mundo externo. Para mais, ver: BRAUDEL, Fernando. As Cidades. In: ___. Civilização material, economia e capitalismo – séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1977. 2v. V. 1: As estruturas do cotidiano, p. 471-477. 16 BARROS, José D’Assunção. Op. Cit., p. 38. 14 15 99 arrabaldes para dentro dos muros sempre signiica incorporar novos padrões de inclusão, bem como abrir mão de uma parte daquele setor externo e marginalizado do qual a cidade também se alimenta”.17 É, também, válido ressaltar alguns dos aspectos mentais relativos às formas de sociabilidade, ou, como denomina o autor, o “modo intramuros de viver”.18 De imediato, o autor exalta os inconvenientes de viver “fechado” na cidade, onde se podem identiicar alguns destes malefícios: “falta de água potável quando os poços estão contaminados; ou o de nos anos difíceis conviver com lixos acumulados que provocam infecções e doenças endêmicas”.19 Mas só identiicar os problemas não era suiciente para se ter um esboço do que era a complexidade da vida do citadino medieval, para tal, cabe mais uma vez citar as palavras do próprio autor: “Uma espacialidade murada – a um só tempo proporcionadora de segurança e isolamentos, de promiscuidades e convivências forçadas, de solidariedades e desconianças – resulta neste modo urbano de vida que tem atraído as atenções dos medievalistas”. Para encerrar, Barros identiica a muralha como um elemento constituinte da vida urbana, destacada na paisagem e atuante na própria vida social dos citadinos. Conclusão Como pudemos notar, as muralhas foram fundamentais no período medieval, suas construções, ampliações e destruições afetaram profundamente tanto os habitantes das cidades, os citadinos, quanto os que fora delas viviam. Sua presença delimitava tanto o espaço físico quanto o jurídico. O simbolismo presente tanto abstrata quanto concretamente (no caso das portas) foi outro fator de destaque. As diferentes análises feitas pelos autores acima citados nos permitiram chegar a características importantes destas cercas: as dicotomias centro-periferia; as motivações para sua construção, e as etapas de crescimento. Todas estas contribuíram para que possamos aprimorar cada vez mais o conhecimento produzido sobre as muralhas. Ibidem, p. 39. Ibidem, p. 40. 19 Idem. 17 18 100 Para tal produção de conhecimento, cabe aqui destacar as contribuições efetivas dadas pela arqueologia; seu trabalho na recuperação e interpretação dos objetos e vestígios encontrados é fundamental para que diversos estudos possam ser realizados. As descobertas dos perímetros amuralhados nos permite idealizar o tamanho desta ou daquela cidade, a ausência de tal perímetro pode nos instigar, como já observado anteriormente, a problematizar de maneira mais profícua a presença ou não de tais muros em determinada localidade. Enim quanto maior puder ser a contribuição da arqueologia, mais completos serão os trabalhos sobre estas imponentes construções. 101 AS RELAçÕES ENTRE MONACATO E EPISCOPADO NA PENÍNSULA IBÉRICA CENTRO-MEDIEVAL E SUAS REPRESENTAçÕES HAGIOGRÁFICAS Andréa Reis Ferreira Torres (Graduanda PEM – UFRJ) O presente trabalho visa apresentar algumas considerações acerca das representações hagiográicas das relações entre o desenvolvimento da vida monástica e a atuação episcopal de abades de mosteiros da Península Ibérica na Idade Média Central. Dentre os nossos objetivos estão analisar as relações entre santidade, ideal monástico e função episcopal. Para tanto, analisaremos a obra Vida e Milagres de São Rosendo, produzida na Galiza do século XII, bem como as informações levantadas para a elaboração dos Bancos de Dados do Projeto Coletivo Hagiograia e História: um estudo comparativo da santidade, coordenado pela Prof.ª Dr.ª Andréia Frazão, desenvolvido no âmbito do PEM e do PPGHC. Vamos nos focar nos dados relativos ao estado de vida e às funções desenvolvidas na ordem e na hierarquia eclesiástica dos personagens identiicados, de modo a reletir melhor acerca do fenômeno da santidade no recorte selecionado e como este se relacionava à atuação de religiosos e clérigos. O Projeto Hagiograia e História Parte do núcleo de pesquisas sobre hagiograias ocidentais, no âmbito do Programa de Estudos Medievais e do Programa de Pós-Graduação em História Comparada, o projeto conta com a participação de pesquisadores de diferentes níveis de formação e tem como principal objetivo estudar o fenômeno da santidade no medievo por meio da análise de textos hagiográicos e dos dados biográicos de pessoas que foram cultuadas, ainda que por um curto período de tempo, levando a possibilidade de análises macro, a partir da visão de conjunto oferecida pelos bancos de dados, e micro, por ser ponto de partida para pesquisas individuais que abordam de maneira mais aprofundada casos particulares, seja de determinado personagem que 102 foi venerado ou uma produção hagiográica especíica. Os bancos de dados permitem ainda disponibilizar informações para pesquisadores não envolvidos no Projeto, bem como incentivar o diálogo com interessados em outros períodos e outras áreas da História. A pesquisa foca como recorte espaço-temporal as Penínsulas Ibérica e Itálica nos séculos XI ao XIII e os seguintes eixos de análise: o caráter propagandístico das hagiograias; o crescimento da espiritualidade leiga; a organização da Igreja sob a liderança do Papado; a coexistência e os conlitos entre as crenças e práticas da religiosidade, ou seja, não oiciais, e as impostas por Roma; os discursos de gênero, e os centros intelectuais. Já foi publicado um volume que apresenta dados sobre a produção hagiográica da Península Ibérica nos séculos XI a XIII, contando com 136 ichas que organizam informações sobre as obras produzidas no período e que tratam da vida de pessoas que receberam algum tipo de culto em períodos diversos e de variadas origens geográicas. Vale ressaltar que as informações obtidas pelos Bancos de Dados são referenciais, logo estes não se pretendem uma cópia iel das produções hagiográicas nem das manifestações de santidade do recorte. Atualmente estamos trabalhando no Banco de Dados dos santos ibéricos, que reúne, até o momento, 103 ichas com informações biográicas acerca de personagens que foram venerados dentro do recorte mencionado, tendo como critério para escolha dos dados não apenas o âmbito espaço temporal, mas também leva em consideração questões institucionais e a forma como esses veneráveis foram cultuados ao longo do tempo. Sendo assim, entre os dados levantados iguram, por exemplo, os nomes dos veneráveis, informações sobre o culto, formação intelectual, ordem ou instituição religiosa a qual se vincularam, função desenvolvida na ordem e na hierarquia eclesiástica, hagiograias em que iguram e seus atributos e representações. Buscouse também levantar dados a respeito da trajetória de vida dos santos e dos relatos de seus milagres. Para o objetivo desta comunicação, concentramo-nos nos seguintes dados: grau alcançado na hierarquia eclesiástica; ordem e instituição a qual estavam vinculados; e função desenvolvida na hierarquia eclesiástica ou na ordem. A partir das informações 103 levantadas, chegamos aos seguintes números: dentre os 103 santos, 22 são bispos e 19 são abades de mosteiros ligados à Regra Beneditina; 6 acumulam as duas funções; 3 são bispos vinculados às ordens monásticas beneditinas, mas sem função na mesma.1 Dentre os bispos abades beneditinos,2 3 são do século XI,3 2 do século XII4 e 1 do século XIII.5 Vida e Milagres de São Rosendo A obra aqui analisada trata da biograia de São Rosendo, bispo de Mondonhedo e fundador do Mosteiro de Celanova, nascido em Salas, perto de Santo Tirso, cuja memória constituiu-se o dotando de um caráter de personagem histórico de grande importância para a história da Galiza, tendo sido protagonista de ações políticas, eclesiásticas e familiares que marcaram os séculos X a XIII. Sua vida foi escrita ao inal do século XII, pelo monge de Celanova Ordonho, a partir de obras e materiais recolhidos previamente por outro monge chamado Estevão, no qual se mesclam memórias documentadas de sua vida com tradições locais. Apesar de a obra trazer especiicamente o nome do seu autor, Ordonho, os autores ainda não chegaram a um consenso a respeito do quanto Estevão teria participado, uma vez que seu nome aparece em edições anteriores, como nas Acta Sanctorum,6 em Florez7 e nos Portugaliae Monumenta Historica.8 Geraldo de Braga, Ordonho de Astorga e Pedro de Osma. LINAGE CONDE, A. Los Orígenes Del monacato benedictino en la Península Ibérica. Leão: Centro de Estudios e Invetigacion “San Isidoro”. Consejo Superior de Investigaciones Cientiicas Patronato Jose Maria Quadrado, 1972. 2.v. V. 1. p. 373. 3 Alvito, Ebôncio e Gegório Ostiense. 4 Herberto de Sardenha e Martin de Huerta. 5 Bernardo Calvo. 6 HENSCHEN, Godofredo. Acta Santorum Martii a Ioanne Bollando S.I. colligi feliciter coepta. 1668. T. I. 7 FLOREZ, Henrique. España Sagrada. heatro Geographico-Historico de Iglesia de España. Madri: Oicina de Pedro Marin, 1739. T. XVIII, p. 106. 8 HERCULANO, Alexandre (Org.). Portugaliae Monumenta Historica. In: Scriptores. Lisboa: s.n., 1856. V. 1. p. 33s. 1 2 104 A edição critica e bilíngüe (latim-castelhano) da Vida e Milagres de São Rosendo aqui utilizada data de 1990 e foi elaborada por Manuel C. Díaz y Díaz, Maria V. P. Gómez e Daria V. Pintos. A edição é precedida de um estudo crítico, elaborado a partir da análise de dois manuscritos medievais preservados – C, ms. Iluminado 184: Vida y Milagros de San Rosendo, da Biblioteca Nacional de Lisboa, escrito por volta de ins do século XIII, e E, Alcobaça 24 (Antigo CXXXIII), da mesma biblioteca. Conta também com a transcrição de outros documentos relevantes9 para a pesquisa acerca da vida de Rosendo e um estudo anatômico-antropológico das relíquias do santo. A respeito da vida dos autores se sabe pouco. Quanto a Ordonho, não se conhece qual sua condição social originária, mas imagina-se que seus pais fossem proprietários livres, com alguns bens, isso pelo fato de terem entregado o ilho a um mestre, fora ainda do convento de Celanova, onde ingressou na adolescência, como mostram os trechos da MR 15. Após abraçar a vida monástica, continuou dedicado aos estudos, uma vez que o título de magister aparece nas epígrafes da obra. Já no que diz respeito a Estevão, sabe-se apenas que foi monge de Celanova e que recebeu o honroso título de maestro. Quanto ao tempo 9 Documentos referentes a Celanova, utilizados pelo autor da VR: 1) La infanta Jimena, hija de Ordoño II y Elvira, conirma a Froila Gutiérrez, hermano de san Rosendo, la villa de Villare. Madri: Archivo Histórico Nacional, Tumbo de Celanova, f. 174v-175, 936; 2) Froila y su mujer Sarracina ceden su villa de Villare a san Rosendo para que allí construya su nuevo monasterio. Madri: Archivo Nacional, Tumbo de Celanova, f. 93r-93v, 936; 3) Ylduara, viuda de Gutier Menendiz y madre de san Rosendo, da al monasterio de Celanova villas, prsqueras y una copiosa lista de objetos. Madri: Archivo Historico Nacional, Cartulario de Celanova, 938; 4) Donación de san Rosendo al monasterio de Celanova. Madri: Archivo Historico Nacional, Tumbo de Celanova, f. 2v-4, 942; 5) Testamento monastico de san Rosendo. Madri: Archivo Historico Nacional, Tumbo de Celanova, f.2-2v, 977; 6) Alfonso V, al tiempo que conirma todas las donaciones anteriores a Celanova, describe las circunstancias en que tuvo lugar la primera donaci’on a los abuelos de S. Rosendo. Madri: Archivo Historico Nacional, Tumbo de Celanova, f. 4v-5, 1007; 7) Escritura de fundacion del monasterio de Caaveiro, La Coruña, en que parece haber intervenido san Rosendo. Madri: Archivo Historico Nacional, Tumbo de Caaveiro, f. 2-3. 8) Breviarios: Breuiarium almae ecclesiae Compostellanae, Salamanca, 1569; e Breuiarium monasticum secundum ritum et morrem Congragationis Sancti Benedicti Vallisoleti, Salamanca, 1569. 9) Texto da Canonização de S. Rosendo pelo Cardeal Jacinto Bobo (Cf. GARCIA Y GARCIA, A. A propos de la canonization des Saints au XIIe siècle. Revue de Droit Canonique, Estrasburgo, n. 17, p. 3-15, 1968. 105 em que viveu, podemos apenas fazer associações com o período em que a primeira parte do Livro de Milagres, de sua autoria, foi escrito, a saber, por volta de 1150.10 Quanto à datação, os estudos de Manuel C. Díaz y Díaz mostram que seria impossível determinar apenas uma data para toda a obra, sendo que o mais acertado seria considerar que a Vida foi iniciada anteriormente a 1172, data em que Rosendo foi elevado pelo cardeal Jacinto; que os livros I e II dos Milagres (capítulos 1-10 e 11-19) foram compostos no máximo até 1150. Ainda no livro II, encontramos o capítulo 20, que foi adicionado posteriormente, provavelmente por volta de 1185. Após esta data, foi escrito o livro III dos Milagres e somente após 1200, podendo chegar até 1260, foram compostos os milagres 39-42.11 Representações da vida monástica e da atuação eclesiástica de São Rosendo Membro de família da nobreza da região da Galiza, aparentada aos reis de Leão, sendo sua mãe, Ilduara, prima de Afonso III e seu pai, Gutierrez, cunhado de Ordonho II.12 Inicia sua vida eclesiástica aos dezoito anos como bispo de Mondonhedo, depois da morte de seu mentor, Sabarico de Mondonhedo, em 925. Rosendo é descrito como sendo dotado de uma inclinação para o ascetismo, que o põe em contato imediato com os movimentos monásticos contemporâneos.13 Foi primeiramente abade de São Salvador de Portomarín e, posteriormente, construiu o mosteiro de Celanova em terras doadas por seu irmão Froila e contando com contribuições de diversos DÍAZ Y DÍAZ, Manuel C.; GÓMEZ, Maria V. P.; PINTOS, Daria V. Ordoño de Celanova: Vida y Milagros de San Rosendo. La Coruña: Fundación Pedro Barrié de la Maza, 1990. p. 46. 11 Ibidem, p. 51. 12 SAEZ, E. Los ascendientes de San Rosendo: notas para el estudio de la monarquía astur-leonesa durante los siglos IX y X. Hispania, Madrid, n. 8, p. 3-25, 1948. 13 DÍAZ Y DÍAZ, Manuel C.; GÓMEZ, Maria V. P.; PINTOS, Daria V. Op. Cit., p. 27. 10 106 nobres, inclusive os reis Ramiro II, Ordonho III, Sancho I, o Gordo, e Ramiro III. A documentação enfatiza seu contato direto com os reis de Leão e diz ter sido ele encarregado em diversas ocasiões do governo de extensas e diferentes regiões da Galícia, sobretudo com Ramiro III, sob cujo governo Rosendo exerce sua autoridade moral e eclesiástica na corte real, com a qual colabora assiduamente. Foi encarregado da diocese de Iria por um ano; contribuiu para a expulsão dos Normandos da Galícia, e participou de campanhas contra os muçulmanos. Abriu mão dessas tarefas e se recolheu em Celanova, tornando-se abade após a morte de Fránquila, e morrendo de causas naturais em 1 de março de 977. Em 1172 é elevado aos altares em uma espécie de canonização episcopal pelo cardeal legado Jacinto Bobo, momento que marca o início de seu culto oicial e manutenção da devoção popular. A narrativa da obra apresenta Rosendo, já desde o relato de sua infância, com características que o tornariam apto a se tornar o personagem digno de memória e culto, ou seja, Rosendo é apresentado como possuidor de virtudes associadas tanto ao topos hagiográico quanto ao ideal monástico beneditino. Virtudes como traços de castidade, humildade, paciência e caridade, bem como uma valorização pelo ato de abandonar o século. Logo após, é relatado o relevante fato de ter sido Rosendo consagrado bispo quando tinha apenas dezoito anos, primeiramente de Dumio, depois de Mondonhedo e a seguir da Sede de Iria, sempre sob a legitimidade de um rei - no que diz respeito às duas primeiras sedes, o episcopado foi concedido por Ordonho III, e a terceira, por Sancho I. Tal traço se mostra interessante, uma vez que na época de produção da hagiograia, ou seja, a Idade Média Central, o que se observava era uma tendência a tirar dos monarcas tal atribuição, delegando-as ao poder papal. É como bispo da Sede de Iria que Rosendo tem os mais marcantes feitos de seu episcopado narrados por Ordonho. No tempo em que São Rosendo regia a igreja de Iria, segundo se assegura, quase toda a Galiza foi invadida por uma multidão de normandos, e a província de Portugal foi devastada por uma forte incursão de sarracenos; o 107 rei Sancho se encontrava ocupado na região de Toledo destruindo todos os dias campos de vinhas e grãos e expulsando os inimigos do território dos cristãos; sendo assim, o bispo Rosendo, como, segundo já dissemos, havia nascido de estirpe real, tomou para si as funções régias no secular e as episcopais no eclesiástico.14 Esse trecho da Vida é de grande importância para seqüência estabelecida no relato da vida e atuação de Rosendo. Ao longo de todo o texto, o santo torna-se cada vez mais próximo do ideal monástico de caráter cenobítico. O autor procura destacar sempre que Rosendo, mesmo quando da fundação de Celanova, não abandona suas obrigações episcopais, o que seria impossível caso este seguisse um modelo de vida eremítica ou anacoreta.15 Segundo Díaz y Díaz, o capítulo 18 da Vida trata-se de uma interpolação que tenta enfatizar a propensão de Rosendo à conversão monástica, uma vez que ao invés disso ele poderia ter tido grandes glórias nos âmbitos eclesiástico e político, pois além de ser de origem tão nobre, ainda contava com a total coniança dos reis.16 De um modo geral, Ordonho parece procurar estabelecer um equilíbrio entre o papel de Rosendo como bispo e como monge. Este ponto pode ser entendido a partir do ponto de vista de André Vauchez, que airma que o modelo de santidade do século XII mesclava as virtudes tradicionais, como origem nobre, atuação política e militar, sendo capaz de defender seu povo tanto de inimigos temporais, povos invasores, quanto dos espirituais, demônios que causam danos no corpo e na mente, com aquelas inspiradas, sobretudo, pela Reforma Gregoriana, como a castidade, a caridade, o asceticismo e principalmente a humildade.17 No entanto, a sua trajetória de vida caminha para um progressivo afastamento do episcopado em direção à vida monástica. O hagiógrafo aponta para um movimento bem registrado, como se observa a partir VR 18. DÍAZ Y DÍAZ, M. C. San Rosendo y su época. Rudesindus, Lugo, n. 2, p. 30, 2007. p. 78. 16 Ibidem, p. 60. 17 VAUCHEZ, A. La sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Âge. Roma: s.n., 1988. p. 332-333. 14 15 108 de documentos notariais, a respeito da participação de Rosendo na construção e reforma de mosteiros, mas tais eventos se deram em período anterior às suas atuações episcopais e não a posteriori, como relata o autor. Tal trajetória é consolidada pela fundação do mosteiro de Celanova, ação que marca para o autor a entrada do santo na vida monástica, quando teria assumido o hábito beneditino e se posto sob a autoridade de um abade, escolhido por ele, Fránquila de San Sebastian. Assim, Rosendo se torna abade apenas no im de sua vida, eleito pela comunidade do mosteiro, o que pode ser observado como uma airmação do autor no que diz respeito à progressiva adoção à RB por parte de Rosendo, uma vez que ao fundar o mosteiro, o abade foi escolhido por ele, ao passo que sua própria elevação a abade se deu por eleição como previa a Regra. Interessante também neste sentido é a descrição que Ordonho faz do discurso de Rosendo antes da morte, demonstrando uma insistência em que o abade seja eleito pela comunidade de monges e que este seja alguém dotado de todas as virtudes necessárias, sobretudo a sabedoria, para guiar os discípulos.18 Monacato na Galiza dos séculos X ao XII Faz-se necessário dedicar algumas palavras ao desenvolvimento do monacato na região da Galiza para estabelecermos aquilo que entendemos como o ponto em que estava este processo por ocasião da produção da obra, sobretudo, por existirem diversas posições historiográicas divergentes a respeito desse desenvolvimento e principalmente acerca da inserção da Regra Beneditina no noroeste peninsular. É notável a presença do monacato e a singularidade com que este se estabeleceu na Galiza desde sua cristianização, primeiramente com a formação de eremitérios ou moradas de anacoretas seguidores dos ensinamentos dos chamados Padres do Deserto. Tais moradas acabaram, em alguns casos, tornando mosteiros onde foi implantado o modo de vida cenobítico, como é o caso de San Pedro de Rocas e San Julian de Samos. 18 VR 39. Cf. também: RB 64, 1-2. 109 O primeiro impulso dado a esse processo partiu do monge Martinho de Dumio, no século VI, fundando mosteiros, escrevendo obras de caráter evangelizador, das quais se destaca de Correctionem rusticorum, na qual tratava de sobrevivências do paganismo e de como deveria se lidar com elas. Seu trabalho se estendeu também ao nível institucional, com o estabelecimento da hierarquia eclesiástica que conigurou a formação das dioceses de Braga e Lugo e a uniicação de preceitos dogmáticos, como vemos em Parrochiale suevum.19 Posteriormente, foi Frutuoso de Braga o grande responsável pelo desenvolvimento do monacato na Galiza, já no século VII, uniicando o modo de vida sob a forma de pactos monacais, de caráter contratual, em que se estabelecia um regime hierárquico no topo do qual estava a igura do abade. No ambiente frutuosiano foram produzidas duas obras, a Regula Monacorum e a Regula Communis, que reunia a tradição de Martinho de Dumio, bem como elementos do monacato oriental20 e, inclusive, da Regra Beneditina. Esse Codex Regularum não deve ser entendido como regra no estrito senso do termo, mas como uma reunião de normas vigentes nos mosteiros da época de modo a formar o que Linage Conde chama de federação cenobítica,21 base do monacato galego de tipo pactual. É sob esses parâmetros que se conigura a tradição monástica visigótica, que vigorava ainda nos tempos de São Rosendo, no século X, quando o seguimento exclusivo da regra beneditina ainda não era uma realidade bem estabelecida para a Península Ibérica e menos ainda para a região da Galiza. São Salvador de Celanova, mosteiro fundado DAVID, P. L’organisation ecclésiastique du royaume suève au temps de Saint Martin de Braga. Etudes historiques sur la Galice et le Portugal du Vie au XII siècle, Lisboa-Paris, v. 10, p. 1-82, 1947, ___. Una edición crítica más reciente del texto. Corpus Chrislianorum, Tumholti, n. CLXXV, p. 413-420, 1965. 20 Estes trazidos em grande parte pela regra de Isidoro de Sevilha, conhecedor de Agostinho, Pacomio, Basílio, Jerônimo e Casiano. Cf. VELAZQUEZ SORIANO, Isabel. Relexiones en torno a la formación de un Corpvs Regvlarvm de época visigoda. In: Espacio y tiempo en la percepción de la antigüedad tardía: homenaje al profesor Antonino González Blanco. Murcia: s.n., 2006. p. 540. 21 LINAGE CONDE, A. El monacato en Galicia de San Martín a la benedictinización: un problema. In: COLOQUIO MONACATO GALLEGO, 1., 1981, Ourense. Actas ... Ourense: s.n., 1986. p. 36-37. 19 110 por Rosendo e tido como um dos mais importante da época, ao lado de San Julián de Samos, estabeleceu sua vida monástica dentro das tradições herdadas dos tempos visigóticos, mas trilhando já por novos caminhos.22 Dentre as novidades apresentadas por Rosendo estão a intenção de substituir pequenos mosteiros pobres por outros ricos e inluentes e seu esforço por solenizar a liturgia,23 ações fortemente inluenciadas pelo modelo cluniacense, bem como a forma de escolha abacial, feita a partir de eleição pelos membros da comunidade de monges. É justamente no período pouco posterior à vida de Rosendo, na passagem do século X para o XI, que ocorre uma intensiicação na inluência beneditina sobre o monacato galego, apesar do ainda importante peso da tradição visigótica, sobretudo sob o reinado de Fernando I (1037-1065) se estabelecem de maneira deinitiva à relações entre Cluny e a coroa leonesa. É neste tempo, mais precisamente em 1055, que ocorre o Concílio de Coyanza, tido como marco importante da beneditinização do reino de Leão. Alguns autores ponderam a importância de Coyanza para o processo de implantação da Regra Beneditina na Galiza por sua distância temporal da chamada Concordia de Antealtares, que documenta em 1077 a aderência deste mosteiro à dita Regra.24 Devemos considerar aqui que não se trata de uma modiicação em forma de ruptura, da qual Coyanza teria sido responsável, mas sim ter clareza da série de eventos pontuais que incorporaram o ideal cluniacense à vida monástica galega durante todo o século XI. Além disso, a proximidade com Cluny, motivada em grande parte por razões políticas, não deve ser testemunho deinitivo da beneditinização de um mosteiro. No caso especíico de Celanova, menções à regra beneditina só são feitas de maneira totalmente clara no decorrer no século DÍAZ Y DÍAZ, Manuel C.; GÓMEZ, Maria V. P.; PINTOS, Daria V. Op. Cit., p. 27. 23 MATOSO, J. San Rosendo e as correntes monásticas de sua época. Do tempo e da História, Lisboa, n. 5, p. 5-27, 1972, p. 22-23. 24 ANDRADE CERNADAS, J. M. El monacato benedictino e la sociedad de la Galicia medieval (siglos X al XIII). A Coruña: Publicacións do Seminario de Estudos Galegos, 1997. p. 40. 22 111 XII, marcadamente num documento de 13 de abril de 1139, sob o abaciado de Dom Pelayo, no qual se diz que Celanova é regida pelas sancte regule et Benedictini norma.25 A relação abaciado-bispado Alguns pontos devem ser salientados ao analisarmos a relação abaciado-bispado, uma vez que, ao tratar sobretudo da região da Galiza, tal fenômeno poderia marcar uma sobrevivência da Regula Communis até o século XI, que previa a igura do episcopus sub regula, dotado de certas características, como as funções de ensinar e doutrinar, supremas na função de bispo e enfatizadas pela posição de abade, e seu importante papel no movimento de ocupação territorial e nas jurisdições conseqüentemente formadas por mosteiros e igrejas de uma determinada região, a partir do exercício do ministério episcopal nas igrejas que se encontravam ligadas à abadia governada pelo abadebispo. Linage Conde fala sobre a profusão de bispos que fundaram mosteiros dentro de nosso recorte espaço-temporal e cita José Mattoso, em seu texto sobre a abadia de Pendorada,26 no qual diz que a característica mais importante do monacato espanhol é a sua relação íntima com o episcopado, uma vez que os monges eram geralmente clérigos também e logo submetidos à autoridade episcopal, assim como aponta para os diversos casos de abades que se tornam bispos e de bispos que escreveram regras e fundaram mosteiros. Linage Conde diz ainda que o mecanismo de contribuição dos bispos à fundação ou restauração de mosteiros se dava pela concessão de igrejas da diocese.27 Esse mecanismo vinculava os cenóbios aos bispos tanto jurisdicional quanto economicamente, sendo que alguns mosteiros representavam apenas parte do patrimônio da diocese, enquanto outros podiam se Tombo de Celanova, doc. 522, 719. Cf.: ANDRADE CERNADAS, J. M. Op. Cit., p. 44. 26 MATTOSO, José. L’abbaye de Pendorada des origines à 1160. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade, 1962. p. 46. 27 LINAGE CONDE, A. Los Orígenes del monacato benedictino en la Península Ibérica... Op. Cit., p. 368. 25 112 tornar centros da vida eclesiástica, exclusivamente nos casos em que bispos se tornavam abades.28 José Mattoso diz ainda que uma mudança pode ser observada no inal do século XI, que se baseia numa clara diminuição da autoridade episcopal, que se acentuaria até meados do século XII, o que parece marcar um paradoxo, já que as concepções cluniacenses e gregorianas previam um amento da autoridade episcopal, mas o que ocorre é a decisiva diminuição desse poder assim que os grandes defensores do movimento desaparecem. Considerações Finais O que podemos observar, então, é que o período que tratamos neste trabalho foi marcado por transformações no que tange à relação mantida entre os cenóbios e o poder episcopal, colocando o mosteiro de Celanova e a atuação de Rosendo no centro das discussões a respeito de tais transformações. Além disso, há que destacar o papel imprescindível que a tradição visigótica exerceu no noroeste peninsular e, sobretudo, na região da Galiza, que se manteve mais acentuadamente ao longo do tempo do que em outras áreas da Península Ibérica. A partir do cruzamento feito, tendo como base o Banco de Dados dos Santos Ibéricos vemos que durante os anos da chamada Idade Média Central, há uma diminuição geral na ocorrência de bispos relacionados a ordens beneditinas e logo tornam-se mais raros os casos que repetem o exemplo de Rosendo, um santo que no século X atuou a maior parte de sua vida exercendo as funções de bispo e abade. Sendo assim, vemos uma possibilidade de comparar as informações do BD dos Santos Ibéricos com aqueles apresentados pela Hagiograia de São Rosendo, que o torna bispo a vida toda, mas abade apenas ao inal dela, ou seja, que tenta levar ao ideal monástico a impressão de que tal modo de vida seria incompatível com a atuação episcopal. 28 Ibidem, p. 370. 113 AS NARRADORAS DA CANTUÁRIA - REPRESENTAçãO DAS MULHERES EM GEOFFREY CHAUCER Anna Beatriz Esser dos Santos (Mestranda PPGHC - UFRJ) Os Contos da Cantuária1 foram um marco para a Língua Inglesa, pois têm o objetivo de ser um extrato da vida dessa sociedade do inal do século XIV. A partir deste, serão veriicadas as transformações sociais ocorridas no período e como os ideais cristãos foram articulados pelo autor da obra. Deste modo, será analisado o discurso presente no Conto da Prioresa, no Conto da Mulher de Bath, no Conto do Moleiro, no Conto do Mercador, no Conto do Marinheiro, no Conto do Escrivão, no Conto do Clérigo e no Conto de Chaucer, no que diz respeito à atuação da mulher e seu espaço na sociedade medieval e em como a historiograia aborda os valores de conduta femininos presentes nesses Contos, comparando-os com a crítica social presente em Chaucer. Os Contos da Cantuária começou a ser produzido em 1386, e não chegou a ser concluído, devido à morte do autor em 1400. Estes Contos têm o objetivo de ser um extrato da vida e da sociedade Inglesa do inal do século XIV. Esta obra propicia a discussão sobre diversos aspectos vigentes na cultura da época. Quanto à estrutura narrativa, os Contos da Cantuária têm como ponto de partida, uma peregrinação composta por vinte e nove peregrinos, que incluem o próprio Chaucer entre eles. Estes peregrinos rumam à cidade da Cantuária, para visitar o túmulo de São homas Beckett, arcebispo da mesma cidade, assassinado durante o reinado de Henrique II, em 1170, por ter jurado idelidade ao Papa quando dos conlitos entre o poder da Coroa e o do Papado. Quando param em Southwark, reúnem-se na Taberna do Tabardo, onde o Albergueiro sugere aos peregrinos que cada um conte uma história, o melhor narrador ganharia um jantar como prêmio. Os Contos estão precedidos por um Prólogo onde são apresentados, todos os personagens; que representam os membros CHAUCER, Geofrey. Os Contos da Cantuária. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo: T.A. Queiroz, 1988. 1 114 da aristocracia como o Cavaleiro e o Escudeiro; membros do clero como a Prioresa, o Monge, o Frade, a Freira e seu Secretário, o oicial de Justiça Eclesiástica, o Pároco, o Vendedor de Indulgências e o Estudante de Oxford; da burguesia temos o Mercador, o Médico, o Advogado, a Mulher de Bath (fabricante de tecidos) e o proprietário de terras alodiais; das classes populares temos o Feitor, o Moleiro, o Carpinteiro e o Camponês. O conteúdo das histórias também são relacionados à posição social e ao temperamento dos seus narradores. Na verdade, Os contos de Cantuária constituem uma pintura da sociedade da época e, pela variedade dos gêneros em que se enquadram os diferentes contos, apresenta um panorama completo da literatura medieval. Mais que tudo isso, porém, é uma análise da natureza humana. O Tempo de Chaucer Para nossa análise é necessário abordar algumas transformações sociais, econômicas e políticas da Inglaterra do século XIV, analisando também o plano religioso Inglês e como essas questões inluíram para a construção dos “Contos” por Chaucer. O período em que viveu nosso autor (1340-1400) abrange os reinados de Eduardo III (1327-1377) e Ricardo II (1377-1399), que assinalam características da transição do inal do Feudalismo para o início da época moderna em que a Inglaterra começara a se irmar como um reino autônomo, mesmo tendo momentos de crise.2 De uma forma mais especíica, ao nos centrarmos na Baixa Idade Média Inglesa, observamos ter nela abrigado, num mesmo momento, Para esta temática, utilizaremos como referência as seguintes obras: BOITAN, Piero e MANN, Jill. he Cambridge Chaucer Companion. Londres: Cambridge University Press, 1986; DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento. Lisboa: Estampa, 1994. 2v., V.1. p. 19-83; DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do Feudalismo. Lisboa: Estampa, 1982; GARDNER, John Champlin. he life and times of Chaucer. Nova York: Alfred A. Knopf, 1977; LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Estampa, 1984. 2v.; ___. Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; MANN, Jill. Chaucer and the Medieval Estates Satire. Londres: Cambridge University Press, 1973. MISKIMIN, Harry. A Economia do Renascimento europeu (1300-1600). Lisboa: Estampa, 1998. p. 209-354; FRANCO Jr., Hilário. Idade Média. Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1995; FRYDE, Natalie. La crisis de La baja edad media en Inglaterra según la investigación anglosajona de los últimos veinte años. Barcelona: Crítica, 1997. 2 115 os desastres provocados por uma grande fome, por uma grande peste e por uma seqüência de guerras, agrupadas no que chamamos atualmente de a Guerra dos Cem Anos (1337-1453). De acordo com Hilário Franco Júnior, além de se caracterizarem por uma serie de batalhas contra a França em uma disputa que debatia questões especíicas como as reivindicações entre as dinastias Plantageneta e Capetíngia, tinham como objetivo a quebra com “os vínculos feudais entre si: o rei da Inglaterra era vassalo francês”,3 onde a necessidade de se manifestar as pretensões ao trono francês em 1337 foi a forma da nobreza inglesa para “restabelecer seu poder e controlar o próprio Estado”.4 Veriica-se durante a vida de Chaucer, uma nova articulação feudal. No século XIV, as relações servis foram sendo substituídas gradualmente por terras arrendadas e pagamentos em dinheiro. Também devido à guerra, a monarquia estava se fortalecendo; uma prova desta maior consciência percebe-se nos Contos de Chaucer, que se tornou um marco no desenvolvimento da língua Inglesa. O que é possível perceber de maneira geral sobre o reinado de Eduardo III foi que este período foi assinalado por uma liderança inglesa que se enfraqueceu nos últimos anos do reinado; assim, acumularam-se diiculdades inanceiras trazidas tanto pelos gastos com a guerra como com a mortalidade ocasionada pela peste negra. Após o falecimento de Eduardo III, o reino foi icando cada vez mais instável, o Parlamento tornou-se cada vez mais inluente e a divisão entre os lordes e os comuns mais nítida. Além do fator político, durante a época de Chaucer, há também a questão religiosa, essencial como pano de fundo às críticas feitas aos membros do clero para os contos analisados. A Inglaterra no plano religioso,5 a que contribuiu para o questionamento que a sociedade Inglesa fazia à Igreja Católica da FRANCO Jr., Hilário. Op. Cit., p. 105. Ibidem, p. 107. 5 Para a elaboração desta síntese sobre o momento religioso da época de Chaucer, foram utilizadas as seguintes obras: BALARD, Michel. Idade Média Ocidental: dos Bárbaros ao Renascimento. Lisboa: Dom Quixote, 1996. p. 307-382; BERLIOZ, Jacques. Monges e religiosos na Idade Média. Lisboa: Terramar, 1994; VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995; PILOSU, Mario. A mulher, a luxúria e a Igreja na Idade Média. Lisboa: Estampa, 1995. 3 4 116 época à respeito das condutas e das práticas, tem como fator inicial de ruptura o evento conhecido como O Grande Cisma do Ocidente, a divisão que ocorreu entre 1378 e 1417, que veio contribuir para a crise por que passava a instituição eclesiástica. Com esta crise na liderança papal, a população cristã icava abalada com tanta instabilidade, que além de estar agravada pela crise da Europa no im do século XIV, contava também com mostras da corrupção que rondava os membros do clero. Todo esse clima de descrença em relação à Igreja que marcou a parte do século XIV, culminou em críticas de vários setores em relação aos gastos excessivos e à cobiça dos clérigos. No decorrer das últimas décadas do século XIV, veriica-se um aparecimento de heresias por toda a Europa, assim como críticos à Igreja. Como tentativa de reairmar a crença da população no clero, os pregadores adquiriram uma importância pela Europa, aliados ao movimento de peregrinação. Segundo André Vauchez, locais como Santiago de Compostela, Roma, Montserrat, Jerusalém e o Túmulo de homas Becket em Canterbury, que é o mote central dos “Contos da Cantuária”, “se tornaram grandes pólos de peregrinação”.6 Neste momento de mudanças no plano religioso, percebe-se que as mulheres religiosas estavam em campo crescente onde tomavam seu espaço dentro do universo religioso. Nesta época, existia o imaginário de certos modelos de mulheres. Havia o modelo de Eva, que levou Adão e, conseqüentemente, toda a humanidade para os sofrimentos terrenos: “O principal papel que a mulher (Eva) tem no Antigo Testamento é o de instrumentum diaboli, um instrumento que causa a perdição do gênero humano, resgatado depois pela descida do Salvador”.7 Há também outros exemplos do Velho Testamento onde a visão da mulher enquanto instrumento diabólico é um componente presente na religião judaica e depois na cristã. Há por exemplo em Sansão que, por meio de um engano feminino, de Dalila, arca com a morte de vários ilisteus ou Salomão, que ajoelha diante de um falso ídolo por uma mulher. 6 7 VAUCHEZ, André. Op. Cit., p.77. PILOSU, Mario. Op. Cit., p.29. 117 Esse perigo representado pela mulher tentadora se enquadrava em uma noção cultural em que a mulher assumia um papel subordinado ao homem. Os perigos a evitar são a traição da religião tradicional e também a perdição, o desencantamento do desejo e a impureza que conduz ao inferno. Porém no Novo Testamento, há também outros modelos de mulher, há também Maria Madalena, que é a pecadora arrependida, a que se redime. Vemos que as atitudes de Jesus para com a mulher estrangeira (samaritana), a adúltera (depois associada à Maria Madalena) condenada ao apedrejamento eram de igualdade e compaixão. E principalmente, a igura que representa o modelo máximo de virtude, Maria, Mãe de Jesus, que se mostrou um exemplo de resignação, boa conduta e amor à Deus pois enfrentou todas as adversidades para dar à luz e criar o Salvador, aquele que guiaria os homens; resgatando assim, os pecados cometidos por Eva. Assim, A mulher não será, portanto, mais o instrumento material através do qual se exerce a tentação de Satanás: a Virgem resgatou o pecado original de Eva, a primeira tentadora, e a mulher já não é considerada perigosa como tal.8 À partir do século XIII percebeu-se uma maior entrada de mulheres na vida religiosa; foram criados muitos mosteiros, por iniciativas de famílias aristocráticas ligados à ordens já existentes. No século XIV, tornou-se evidente para os clérigos que certas mulheres adquiriram maior autonomia – e em alguns casos superioridade – em relação aos clérigos homens. Mas, apesar da criação de um número importante de mosteiros, muitas mulheres, principalmente as de meio urbano e burguês, não encontravam lugar nesses estabelecimentos, já que estes exigiam um dote que só permitia a entrada das pertencentes à famílias muito abastadas. Essa situação só muda com a entrada de mulheres para as ordens terciárias, ordens criadas para leigos, e que acabaram com o monopólio da aristocracia no recrutamento de freiras e irmãs.9 8 9 Ibidem, p.32. BERLIOZ, Jacques. Op. Cit., p. 199. 118 É possível perceber assim que essa classe de mulheres religiosas, formava um grupo bastante heterogêneo que abrangiam desde as aristocratas, até as mais humildes, que exerciam diferentes posições; seja cuidando dos mais pobres, sejam reclusas, sejam as que não se iliaram juridicamente às ordens; enim, que desta forma, conseguiram um espaço para sua articulação neste espaço de maioria masculina. Podemos perceber que, embora a mulher estivesse, na teoria, destinada a permanecer na submissão no casamento, vemos, principalmente no trabalho de Chaucer, que este discurso teórico em relação à conduta feminina era amplamente discutido e questionado mesmo pelas mulheres, que encontravam subterfúgios para que nem sempre se comportassem como o prescrito nas normas. Em alguns dos Contos, o que se percebe no comportamento de alguns dos personagens é que a maioria das pessoas conhecia o discurso da moral cristão em relação às questões já apresentadas neste capítulo, porém nem sempre aplicavam este discurso na vida prática. As Mulheres nos Contos Madame Eglantine, a prioresa que está acompanhando o grupo de peregrinos até a Cantuária, é uma personagem à parte dentre da Obra, já que sua simples presença nestes contos já mostra uma crítica de Chaucer. Isso só pode ser percebido ao se comparar com os estudos dos cotidianos das religiosas nos conventos do período medieval, pois este espaço estabelece regras, direitos e deveres que permeavam a vida das religiosas. Percebe-se a ironia sutil de Chaucer ao descrever o peril da Prioresa logo no prólogo, pois se trata de um cargo religioso de grande importância e não de uma crítica pessoal. No prólogo, Chaucer apresenta um peril de Madame Eglantine, como uma senhora reinada, dotadas de boas maneiras, o que a diferenciava da maior parte dos peregrinos. Seus modos à mesa são de corte, não deixando cair nenhuma migalha em seu colo e não mergulhando demais os dedos no molho. Ao comer, ela estendia a mão gentilmente até a carne e limpava os lábios muito bem após comer, de modo que nenhuma marca aparecesse em seu copo. Ao peril delineado de Madame Eglantine, se delineia ao mesmo tempo, uma crítica direta, pois comporta alguns elementos 119 da proliferação de hábitos e modos de corte no interior da Igreja, principalmente nos conventos. Por exemplo, no início da apresentação sobre Madame Eglantine, Chaucer menciona Santo Elói, pois este santo era conhecido por nunca ter feito um juramento. Então, jurar em seu nome, signiicava o mesmo que não fazer juramento nenhum. Santo Elói era muito utilizado nos círculos nobres do período e fazer menção a ele era uma forma de mostrar que se conhecia a moda da Corte: “A maior praga que rogava era ‘por Santo Elói’”.10 Percebemos, portanto, que há não só uma caracterização do estamento no qual pertence a Prioresa, mas também, uma crítica de Chaucer ao fato desta narradora praguejar por Santo Elói, por este signiicar um juramento falso. É mais um traço negativo do comportamento de Madame Eglantine. Na verdade, o comportamento de Madame Eglantine representa uma realidade medieval, a de que a maioria das freiras que ocupavam altos postos dentro da Igreja adivinha da nobreza. André Vauchez nos explica que, muitas vezes, estas religiosas eram ilhas mais jovens que não tinham o dote necessário para se casar. Assim, a decisão de enviálas para conventos era freqüente, assim como a promoção de cargos se devia à boa nascença e aos bons contatos. Provavelmente, a prioresa pertencia a uma linhagem nobre, já que ocupa um dos maiores cargos a que uma mulher pode chegar, dentro da hierarquia eclesiástica no medievo.11 A Prioresa possuía animas de estimação, mais um costume das damas da Corte, e alimentava-os com leite, carne e o melhor pão produzido. E chorava se um deles morria ou se alguém os espancava. Salientamos aqui, a contradição criada pela ação da Prioresa em dar de comer aos cachorros os melhores alimentos em um momento em que vemos o clima de revolta no campo de efetuar, de uma forma nunca antes vista, contra a excessiva cobrança de impostos por parte da Coroa, que tentava a qualquer custo manter guerra contra a França.12 CHAUCER, Geofrey. Op. Cit., p. 4. VAUCHEZ, André. Op. Cit., p. 44. 12 SELVATICI, Monica. Igreja Católica e sentimento religioso na Inglaterra do século XIV. Revista Aulas, Campinas, n. 4, p. 1-20, abril 2007/julho 2007. p.7. 10 11 120 A renúncia em favor dos pobres, incentivada pela Bíblia, entra em conlito com o ato de Madame Eglantine de dar prioridade aos seus animais de estimação. Parece-nos que Chaucer quis representar uma Prioresa que tem seus valores muito supericiais, já que o fato de chorar por um animal morto não torna este personagem efetivamente caridoso e piedoso. Ao retratá-la desta forma, a Prioresa parece um tanto fútil para as reais necessidades das pessoas; talvez o fato de que este personagem é tão perfeito em seus modos e vestuários, que na verdade não seja tão perfectível quanto se apresenta. Chaucer, ao caracterizar a Prioresa, coloca numa personagem ictícia práticas vigentes do momento. Ele se baseia nos registros das condutas eclesiásticas de seu tempo, onde as proibições em relação à aspectos do comportamento das religiosas que reletissem práticas mundanas eram condenados. Isso demonstra que apesar dos esforços disciplinadores da Igreja, era difícil estar alheio aos valores do mundo. Neste Conto, o domínio do que era fútil em detrimento da busca por uma vida de privações materiais e de elevação espiritual é notadamente criticado por Chaucer. Chaucer ainda mostra sua ironia ao descrever que das contas do rosário da Prioresa pendia um medalhão de ouro e a escritura Amor Vincit Omni.13 Segundo a tradução de Paulo Vizioli, este termo se mostra um pouco irônico já que a palavra amor em latim também descreve o amor carnal; para falar de amor cristão o melhor termo seria charitas; se ressaltam neste trecho duas características, a de que a prioresa não tenha sentimentos profundos sobre a vocação religiosa e assim, ela demonstra que sua comoção seja apenas supericial, e a de que ela pertence à aristocracia, pois exibe seus objetos de ouro; um sinal de que Chaucer percebia a opulência do clero e, possivelmente não concordava com esta. O prólogo do Conto da Prioresa é um poema em louvor à virgem, onde a prioresa pede permissão ao Senhor para que fale sobre as virtudes de sua mãe; ela pede a Virgem que a guie, pois ela “O amor tudo vence”, tradução de Paulo Vizioli. CHAUCER, Geofrey. Op. Cit., p. 291. 13 121 é uma “criancinha que mal pode se exprimir sozinha”.14 Neste prólogo a personagem da Prioresa já estabelece a trama de seu Conto; ela irá falar de uma mãe que mantém características virtuosas como as da Virgem e de seu ilho. Neste conto, apesar da prerrogativa ser de uma história para louvar o Cristo e a Virgem, a trama acaba culpando os judeus pelos crimes cometidos a Cristo. Outra narradora apresentada no prólogo geral,é a Mulher de Bath descrita como uma rica viúva, fabricante de tecidos. Uma mulher descrita como exuberante e independente tanto no ponto de vista pessoal como inanceiro. É sabido que para as mulheres da época, uma das maneiras de ter uma certa independência pessoal, além da vida religiosa, era na viuvez já que a mulher recuperava sua personalidade legal, tinha direito a uma parte dos bens do marido e poderia tomar decisões independentes. Além disso, Alice, a narradora, se insere no grupo de mulheres que exerciam atividades comerciais e inanceiras, tal como ilustrado nos Contos. No prólogo do Conto, temos um longo relato da mulher de Bath sobre o tipo de pessoa que foi e de seu passado. A narradora já foi casada diversas vezes na Igreja, e inicia discutindo a recomendação da época de que uma mulher não deveria casar novamente após a viuvez, mantendo-se casta para o resto da vida. Ela defende que é “melhor casar do que arder”15 e justiica seu discurso citando a Bíblia com as passagens da mulher Samaritana e o casa do Salomão. Apesar do conto já ser iniciado pela posição atípica da narradora, é necessário perceber que a personagem, em seu discurso, não promove uma contestação aberta aos padrões morais da época, admitindo que seu modo de vida foge aos ideais preconizados pelo discurso da Igreja que apontava a castidade como uma forma ideal de vida e a virgindade ligada ao modelo de Maria – a Virgem mãe. O casamento, nesta visão, teria como objetivo único a procriação. Nossa viúva reconhece esta posição, mas também airma que não se encaixa nesses padrões, mas que acha que é melhor não manter a abstinência dentro do matrimônio. O foco principal deste prólogo é o ponto de vista de Alice sobre o casamento, que o descreve como um lagelo, fruto principalmente das 14 15 Idem, p. 97. Idem, p.115. 122 artimanhas femininas, airmando que as mulheres juram e mentem com muito mais costume e facilidade. Ela relata que casar com os primeiros maridos somente por interesse, e também discorre sobre os subterfúgios utilizados por ela para enganar e manipular seus cônjuges – ela jurava ao maridos que saía a noite para espiar se eles estavam tendo encontros amorosos, mas na verdade quem os tinha era ela. Percebemos aí a crítica de Chaucer ao comportamento feminino, já que o autor constrói esta personagem com uma fala tão explícita que talvez seu objetivo fosse efetivamente chocar, expondo um comportamento que não condiz com o modelo de mulher a ser seguido na época. Ao dar continuidade ao seu relato a mulher atesta que o único de seus maridos que realmente amor foi o último. No entanto ela conta que este, sendo um estudante universitário, era letrado na antiguidade clássica e lia obras que ressaltavam o caráter pérido das mulheres, o que gerava nela um grande incômodo, e por que Janekin, o marido era contra a sua opinião de quem deve comandar no casamento é a mulher. Apesar de muito amá-lo, com sua astúcia, Alice consegue fazê-lo mudar de idéia e dar a ela o controle e as posses da casa. Da mesma forma o conto narrado pela Mulher de Bath tem como objetivo mostrar que a mulher é quem deve ter o controle e a escolha no matrimônio. Assim percebemos que as proposições da Mulher de Bath acabam por respaldar as críticas de Chaucer em relação ao comportamento feminino, tendo em vista a forma como a ela manipulava e enganava seus maridos, estimulada pela ambição e pelo prazer do adultério. É possível apreender também que por mais que um comportamento obediente e humilde fosse esperado das mulheres casadas da época, possivelmente existiram mulheres que encontrassem maneiras de resistir ao domínio masculino. Desta forma o contato com esta fonte possibilitou um trabalho de pesquisa muito interessante para a percepção do contexto da época analisada, além da representação de uma mentalidade de atores sociais da época, entendendo a existência de grupos e setores sociais que tinham opiniões, que interagiam umas com as outras e que viviam e apreendiam informações através do ambiente em que viviam. 123 Além destas narradoras, que caracterizam um tipo feminino religioso e um do mundo do trabalho, nos contos de alguns personagens, são retratados outros tipos femininos, que utilizaremos em nossa análise dividindo-os em tipos femininos de condutas reprovadas e tipos femininos de condutas exaltadas. No primeiro grupo, temos Alison no Conto do moleiro, uma esposa que engana o marido para dormir com um homem mais jovem; May, do conto do Mercador, que enjoa do excesso de atenções do marido; e a esposa do Conto do Marinheiro, que consegue enganar seu marido e o irmão dele por dinheiro. No segundo grupo, Constância do Conto do Escrivão, que consegue converter com sua fé em Cristo, um sultão árabe e seu marido pagão; Griselda, do Conto do Clérigo, que mesmo com os diversos testes que seu marido a submete, mantevese iel a ele; e Prudência, a esposa piedosa que perdoa aqueles que a violentaram no Conto de Chaucer. Com estas fontes, analisamos os tipos femininos retratados neste período para veriicarmos como Chaucer, estando inserido nas transformações e nos eventos que permeiam sua época, constrói um relato que demonstra sua visão de como a sociedade de sua época absorvia os novos tempos e as mudanças de ordem política, religiosa e social. 124 CONSIDERAçÕES SOBRE AS VIÚVAS NOS CONCÍLIOS DE TOLEDO: PRIMEIRAS REFLEXÕES Bárbara Vieira dos Santos (Graduanda PEM – UFRJ) Considerações iniciais Este artigo traz os primeiros resultados de minha pesquisa, recentemente iniciada no do Programa de Estudos Medievais da UFRJ, sob orientação da Professora Leila Rodrigues da Silva. Tal pesquisa se relaciona com o Reino Visigodo de Toledo durante séculos VI e VII, um momento em que a Igreja1 local estava se fortalecendo. Nesse contexto, daremos destaque aos concílios, que entre outras questões discutiam regras e condutas para o convívio social. Nessas atas conciliares existem algumas propostas de normatizações voltadas para as mulheres. Nesse grupo, estão às viúvas, nas quais tenho particular interesse, e pretendo focar o presente trabalho. Assim, meu objetivo neste artigo é propor uma tipologia das viúvas referenciadas nas atas conciliares, bem como reletir acerca dos tipos sugeridos. Os documentos utilizados para essa pesquisa estão contidos na obra organizada por José Vives, publicada em 1963, na qual estão compiladas as atas conciliares do reino visigótico. Para este trabalho utilizei as atas do III ao XVII concílio. Tais reuniões tinham alguns aspectos interessantes: para aqueles que viviam nessa camada da sociedade a celebração dos concílios não possuía regularidade; ela dependia do contexto político-religioso para acontecer. Sua coniguração foi progressiva e sua integridade só foi consolidada durante a segunda metade do século VII. Cabe acrescentar também que esses documentos abordavam uma temática que, como sabemos, possuem um registro muito amplo em matéria eclesiástica e civil. Foi dentro dessa variada temática que pude me deparar com um assunto intrigante para esse período da história: as viúvas do reino Nesse período a Igreja como conhecemos ainda estava em processo de formação e consolidação de sua ortodoxia 1 125 visigodo. Para elaborar a tipologia e explicá-la precisei buscar na história dos marginais2 e das mulheres3 os aspectos necessários para desenvolvê-la. Sendo assim pretendo fazer uma breve identiicação do que entendo por marginal, e discorrer concisamente acerca da história das mulheres então reletir acerca da tipologia proposta. Os Marginais O interesse pelos marginais, e por categorias sociais que antes não tinham atenção ganhou força a partir do advento da história social, durante o período entre guerras.4 As pesquisas sobre marginalidade, mais do que inovar, foram também uma demanda da nossa sociedade que durante esse período passou a ressaltar a história “vista de baixo”,5 ou seja, o estudos sobre aqueles que tinham pouco ou nenhum destaque para historiograia, pois antes dava-se importância a um viés de estudo político da história. Trazendo à luz a possibilidade de entender a história de baixo para cima, valorizando atores que antes eram ignorados e documentos que anteriormente não tinham relevância. Considerando que: A marginalidade supõe a existência de uma organização social que estabelece certas regras de participação e certas normas de comportamento cuja transgressão é considerada como um acto hostil ao interesse coletivo.6 2 Para comentar a história dos marginais, utilizei os trabalhos de Jacques Le Gof, Jean-Claude Schmitt, Hanna Zaremska e Bronislaw Geremek, os quatro autores principalmente os três primeiros concordam em sua concepção de marginal. Já o último possui uma abordagem menos voltada para Idade Média, dando uma maior contextualização geral em relação ao estudo da marginalização e exclusão. 3 Para falar sobre a história das mulheres utilizei SOIHET, Raquel. História das Mulheres. In: CARDOSO, C. F. E, VAINFAS, R.(Orgs.). Domínios da História. Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 275-296. 4 ZAREMSKA, Hanna. Marginais. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, JeanClaude (Orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2006. 2v. V.2. p. 121-136, p. 121. 5 SHARPE, Jim. A História vista de Baixo. In: BURKE, Peter.(Org.). A Escrita da História. São Paulo: UNESP, 1992. p. 39-62. 6 GEREMEK, Bronislaw. Marginalidade. In: Enciclopédia Einuadi. Lisboa: Imprensa Nacional. Casa da Moeda, 1999. V. 38, p. 185-212, p. 191. 126 Assim foi possível identiicar o que se poderia entender por marginalização e qual a condição para sua existência. Segundo o historiador Jacques Le Gof compreender os marginais, parte mais da condição que possuímos de analisar processos do que estados, pois a marginalidade não é estável, e o marginalizado pode ser levado a exclusão ou a reintegração na sociedade.7 Durante o período do medievo podemos veriicar que existiu um processo de normatização por meio de determinações clericais. Dentre os grupos com os quais a autoridade eclesiásticas se ocupavam, estão ás mulheres, que na sociedade medieval diversas vezes são passíveis de orientação de acordo com as atitudes e demanda desse grupo e das quais pretendo falar a seguir. A história das mulheres O interesse pela história das mulheres veio das novas perspectivas da historiograia no século XX, uma vez que durante muito tempo a participação dessas personagens fora posta de lado. A corrente que em primeiro lugar se preocupou com as mulheres foi a da História Cultural que buscava construir identidades coletivas dentro de um variado grupo social. Mesmo os Annales não incorporaram as mulheres rapidamente, pois somente nos anos 60 tivemos um reforço em relação a esses estudos. Com o advento do feminismo elas viraram demanda nas universidades, e assim surgiu a oportunidade do aprofundamento no assunto. No entanto, cabe ressaltarmos que, uma vez que as mulheres costumavam ser negligenciadas pela historiograia, acaba existindo um problema em relação aos vestígios, o que se tem na maioria dos casos, são reminiscências de discursos masculinos determinando o que as mulheres devem ou não fazer. Sendo assim Rachel Soihet propõe uma opção de analise das mulheres, pautada em duas perspectivas: ou como vítima, aquela que sofre violência, é abandonada, ou como “rebelde”, ou seja, aquela ativa, astuta, que infringe as proibições a im de atingir seus propósitos. LE GOFF, Jacques. Os Marginalizados no Ocidente Medieval. In:___. Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições 70, 1985. p.176-177. 7 127 Nessas determinações se encaixam as viúvas que encontrei na fonte analisada e a partir da qual criei a tipologia que demonstrarei mais a frente. Utilizei para minha análise a perspectiva de mulher “rebelde” proposta por Rachel Soihet para um dos tipos da tipologia, pois se encaixa dentro das relexões feitas junto a leitura do documento. As viúvas A preocupação com as viúvas nas atas conciliares se veriica em várias referências, como podemos observar no quadro a seguir. Menções as viúvas nos concílios de Toledo:8 Concílios de Toledo IV (633) VI (638) X (656) XIII (683) XVII (694) Cânones em que aparecem 44, 55 e 56 6 4e5 5 7 A partir do quadro, podemos veriicar quantitativamente a presença das viúvas nos concílios. Elas aparecem oito vezes em 14 concílios ao longo do século VII. Por meio dessa demonstração, pretendo propor uma tipologia a partir da leitura das atas, utilizando alguns critérios. Para tal considerei o lugar social dessas mulheres dentro da sociedade, destacando o seu campo de atuação, se político ou religioso. Além disso, levei em conta que as normatizações surgem de acordo com a demanda, principalmente dos setores políticos e religiosos. Partindo desses pressupostos pretendo abaixo mostrar a tipologia. 9 8 O meu levantamento converge com algumas questões da monograia citada seguir, porém difere no sentido em que procurei a partir da leitura das atas propor uma tipologia sobre as viúvas presente nos concílios, enquanto a autora da monograia procurou identiicar as viúvas presentes nos concílios: AMOEDO MIGUEZ, Sonia. As viúvas nos Concílios Visigóticos – Séc. VII. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS/Departamento de História, 2003. 9 Utilizei o termo “Rebelde” baseada na descrição de Rachel Soihet: rebelde é aquela ativa, astuta, infringe as proibições a im de atingir seus propósitos. 128 Tipologia Concílio e Cânone / Tipo IV- 44 IV-55 IV-56 VI- 6 X-4 X- 5 XIII-5 XVII-7 Desvalorizada Rebelde Igualdade com as virgens x x x x x x x Regras Regras religiosas políticas x x x x x x As viúvas nos concílios visigóticos Ao veriicarmos a tipologia podemos observar um padrão no qual na maioria das vezes as viúvas são vistas de modo pejorativo, como mulheres que não são dignas de coniança e que devem icar sob tutela da Igreja e assim precisariam de normatizações voltadas a elas. Lembrando aqui que a Igreja a partir de uma demanda propunha regras de conduta e a existência dessas não quer dizer que seriam necessariamente cumpridas. Partindo dessas relexões feitas acerca das viúvas, pretendo analisar os cânones a partir da tipologia e veriicar algumas questões da análise dentro da fonte. No cânone 44 do IV concílio é dito que todo bispo que se casar com uma mulher que seja viúva, leviana ou divorciada será desta separado. Porém no cânone 55 do mesmo concilio, elas são colocadas pela primeira vez em igualdade com as virgens. Inicialmente a comparação entre esses dois cânones pode causar estranheza, no entanto a diferença entre as normatizações podem ser entendidas como uma medida caracterizada para diferentes tipos de viúva dentro do contexto podendo ter sido determinados atrelados a valores morais, quando observamos que a viúva não consagrada não recebe o mesmo tratamento do que aquela que é. Ainda no IV concílio podemos observar um cânone que nos dá duas classes de viúvas presentes nesse contexto. Aquelas que são seculares e aquelas que são religiosas. Como podemos veriicar no trecho do cânone 56: 129 Viudas seclares son aquellas que pensando em casarse no han cambiado su traje seglar; religiosas, aquellas otras que habiendo abandonado ya el traje seglar, se presentaron a la presencia del obispo y de la iglesia bajo el habito religioso.10 Neste trecho supracitado, temos as deinições dos tipos de viúvas e mais adiante nesse mesmo cânone11 se prevê um castigo para aquela que, mesmo entregando-se a Deus, acaba se casando novamente. Partindo para o cânone 6 do VI concílio veriicamos que existem punições para as viúvas que optam pela vida secular à vida religiosa. Nele salienta-se que qualquer viúva ou virgem que se recuse a voltar à religião e assumir suas funções religiosas será obrigada a tal, e se alguém resolver ajudar essas desertoras, será considerado estranho para religião.12 Novamente podemos veriicar a valorização que a Igreja dava as mulheres que optavam pela vida religiosa e a condenação daquelas que não só querem viver na vida secular, como aqueles que por alguma razão queiram ajuda-las. No X concílio, existem dois cânones, um tratando das obrigações e do hábito das viúvas religiosas e outro tratando daquelas que largam o hábito. No cânone 4 é dito que os esforços do satanás para atingir aqueles cheios de fé, não são ignorados, pois muitos acabam crendo que podem se desvencilhar das leis e entre esses estão às viúvas. “Algunas viudas que, cubriéndose com diversos pretextos llegan a convencerse a si mismas que no están obligadas por las normas de los Padres, tan empapadas de piedad”.13 Por tal razão parece que, aquelas viúvas que decidirem entregar-se ao hábito religioso e quiserem atingir o santo estado de religião terão que usar um véu, vermelho ou preto para ser sempre diferenciada CONCILIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS. Ed. Jose Vives. Madrid: CSIC. Instituto Enrique Florez, 1963. p.210. 11 “Estas, si llegaren a casar-se, conforme al Apostól no quedarán sin castigo, porque habiendose ofrecido primeiramente a Dios, abandonaron después su voto de castidad.” CONCILIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS. Op. Cit., p.210. 12 Ibidem, p.238. 13 Ibidem, p.311. 10 130 dos outros não deixando dúvidas de quem é como testemunho de sua honra.14 Percebe-se aqui, que existe uma necessidade da Igreja de legitimar a pureza dessas mulheres. Fica a impressão de que uma vez tendo provado de uma relação carnal elas precisam ser protegidas de si mesmas. Ainda no 5º cânone do mesmo concílio é reforçada a aparente idéia de que as viúvas são vistas como astutas e perigosas, como podemos ver no trecho abaixo: Aunque quieran defenderse com diversos y astutos argumentos enganosos, no les valdra como excusa ninguna objeción que puedan oponer, sino que uma disciplina santa las tendrá obligadas y sometidas a los sacartísimos preceptos.15 Neste cânone é frisado também que uma vez entregue a Deus a viúva não pode abandonar a religião e se o izer será obrigada a voltar e ainda será reclusa em um monastério até seus últimos dias. Essa determinação é muito semelhante àquela presente no cânone 6 do VI concílio, anteriormente comentada. Isso mostra a preocupação da Igreja em querer manter essas mulheres na vida religiosa uma vez que conseguiram com que elas aceitassem o habito, também como forma de airmar a sua autoridade sobre elas. Os dois últimos concílios nos quais as viúvas são citadas, o XIII e o XVII, são cânones com normatizações voltadas para o âmbito político e para proteção do reino caso o rei faleça, deixando sua esposa sozinha. O cânone 5 do XIII concílio deixou clara a relação político-religiosa, pois é proposta uma regra orientando que aquele que de alguma maneira tente se relacionar com a viúva seja castigado, pois ninguém, nem o próximo rei é digno de casar-se com aquela que anteriormente era rainha. ¿Pues o qué há de hacerse cuendo mueren los reyes? O porque los reyes cristianos pasan a los goces celestiales ?por eso sus esposas han de ser entregadas a la afrenta de este mundo?” E mais adiante “Por lo tanto, a nadie 14 15 Ibidem, p.312. Ibidem, p.312. 131 le será licito casarse com la reina sobrevivente, ni mancharla com torpes contactos; no le estará permitido esto a los reyes sucesores ni a negún outro hombre.16 Nesta regra veriicamos que existe uma valorização da viúva, mas só porque nesse contexto de morte do monarca ela acaba sendo uma peça importante para decidir o futuro, daí as proibições e preocupações em relação à continuidade de sua vida secular. No ultimo concílio no qual as viúvas são mencionadas, existe inicialmente a exaltação ao rei Égica e seu exemplo positivo de propagação da fé cristã. O cânone deixa evidente que caso a rainha se encontre no estado de viuvez, ela será protegida, devido, principalmente, ao exemplo que foi o seu marido durante o reinado. A rainha não poderia perder nenhuma de suas posses, somente por vias judiciais e seus ilhos, assim como ela, seriam sempre protegidos enquanto quisessem continuar seguindo a fé cristã. Por que era importante para essa instituição criar laços com aqueles que eram possuidores de terras e contribuiriam para o equilíbrio político. Desse modo no que concerne as viúvas, pelo fato de elas poderem talvez se casar novamente era importante procurar manter essa relação. Considerações inais Podemos concluir parcialmente a partir da leitura das atas que, na verdade, essa proteção as viúvas nada mais era do que uma demanda da sociedade em relação as atitudes dessas mulheres. Excetuando o cânone em que temos regras políticas para as viúvas, praticamente em todos os outros elas são vistas como pessoas que precisam ser controladas e valeria a futuro uma análise em relação a fraqueza dessas normatizações frente a situação das viúvas. Podemos considerar também que com a morte do esposo, uma vez entregues a religião, muitas viúvas podem ser consideradas consagradas e às vezes condenadas de acordo com suas atitudes. Mesmo levando em conta o lugar social que elas ocupam, se é aristocrática, religiosa ou laica os cânones deixam a impressão de que a comunidade clerical 16 Ibidem, p.421. 132 acreditava que de certa forma elas eram vistas como ameaça. Assim, as regras para controlá-las, independente de possíveis especiicidades, pareciam necessárias para manter a autoridade eclesiástica local e o equilíbrio no campo político. 133 A IMAGEM NA IDADE MÉDIA: UM BREVE ESTUDO Bruna Cruz Baptista (Graduanda Gama Filho) As imagens medievais1 tiveram características próprias e inalidades especíicas. Estas, de acordo com Jean-Claude Schmitt, podem ser comparadas a “uma aparição, a uma epifania”2 e cumprem funções que, ainda segundo ele, seriam “funções sociais das imagens religiosas”.3 Estas se prestavam, de acordo com o papa Gregório Magno em 600, à função de lembrarem a História Sagrada, suscitar o arrependimento dos pecadores e instruir os iletrados.4 Era um meio da Igreja5 propagar a sua fé. Entretanto, não se deve simpliicar as funções das imagens. O uso de vitrais, que permitiam pouca visibilidade de algumas delas, nos leva a concluir que nem todas se prestavam àquelas funções. Para clérigos e aristocratas, construir e adornar uma igreja com vitrais e pinturas era um meio de adquirir méritos aos olhos de Deus, de expiar um pecado, ou de se penitenciar pelo apego demasiado aos bens materiais, convertendo, assim, uma parte destes para a salvação de sua alma. Schmitt airma que as funções das imagens justiicam a sua existência e importância na sociedade medieval.6 Têm elas a função Inseridas no contexto do período, chamá-las de “arte” seria um anacronismo. Portanto, vemos em diversas obras o termo “Arte medieval”, que de acordo com os historiadores da arte da atualidade não é errôneo, pois os mesmos têm a liberdade de determinar o que pode e deve (ou não) ser considerado Arte. Ainda assim, para não correr o risco de formar uma sentença anacrônica, referimo-nos aqui a elas como “imagens” sem atribuí-las nenhum conceito especíico. Cf.: SCHMITT, JeanClaude. O corpo das Imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru - São Paulo: EDUSC, 2007. p. 42-46. 2 Ibidem, p. 14. 3 Ibidem, p. 599-602. 4 Ibidem, p. 599. 5 Esclarecemos que quando falamos em “Igreja” referimo-nos ao corpo eclesiástico da instituição, composto pela cúria romana, pelos cleros secular e regular, aliados às ordens monásticas e mendicantes. 6 SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit., p. 60. 1 134 de instrução, especialmente para os iletrados,7 para que aprendam o que devem venerar e adorar, que de acordo com o papa Gregório Magno, em sua carta ao bispo iconoclasta Serenus de Marselha – que criticava o uso de imagens cristãs –, é isto o que as imagens ensinam. Elas ensinam a adorar a Deus e não a adorar a imagem.8 Schimitt esclarece que esta é uma dentre tantas outras funções a que as imagens medievais se prestavam e alerta que toda imagem tem sua razão de ser, pois “exprimem e comunicam sentidos, estão carregadas de valores simbólicos, cumprem funções religiosas, políticas ou ideológicas, prestam-se a usos pedagógicos, litúrgicos e mesmo mágicos”.9 As imagens prestavam-se a diversas funções (fossem políticas, sociais, jurídicas, religiosas)10 e usos, pois as funções devem ser abordadas a partir de práticas.11 Jérôme Baschet propõe a noção de “imagem-objeto”, pois centraliza suas perspectivas na funcionalidade da imagem medieval. Como funcionais, as imagens medievais dão sentido ao drama da história da Igreja, representando imagens da Criação e da Queda, da Paixão de Cristo etc. No século XI cresce o uso de imagens e de sua produção. Ocorrem inovações na fabricação de imagens santas, como a escultura de três lados, o largo uso do dourado, o acréscimo de painéis laterais nos retábulos etc. É um período de larga produção de imagens e liberdade para a fabricação destas,12 residindo aí a chamada “revolução das Valendo destacar que a população no período medieval era majoritariamente analfabeta. 8 Em relação à corrente referência ao papa Gregório Magno para defesa da imagem como método de instrução, cf.: BASCHET, Jérôme. “Introdução: a imagem-objeto”. In: SCHMITT, Jean-Claude et BASCHET, Jérôme. L’image. Fonctions et usages des images dans l’Occident médiéval. Paris: Le Léopard d’Or, 1996. p. 7-10. 9 SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das Imagens. Op. Cit., p. 11. 10 BASCHET, Jérôme. Introdução: a imagem-objeto. In: SCHMITT, Jean-Claude et BASCHET, Jérôme. L’image. Fonctions et usages des images dans l’Occident médiéval. Paris: Le Léopard d’Or, 1996. p. 22. 11 Idem, p. 17. 12 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. p. 491. 7 135 imagens” – de acordo com Schmitt –,13 pois neste momento percebese um acentuado desenvolvimento de imagens. Para o autor, durante o século XI no Ocidente europeu, as inovações da arte e do culto cristãos deram-se juntamente com a aparição das heresias da Idade Média Central, que denunciavam e criticavam todas as formas de mediação do homem com Deus, inclusive os cruciixos e as imagens.14 Desta forma, a contestação herética e a crítica às imagens, provocaram uma reação da Igreja favorável ao desenvolvimento imagético no âmbito religioso. Não à toa, assistimos a uma produção crescente de imagens. Soma-se a este fato, o estímulo produzido pela Igreja para que se lançasse uma base teórica ao novo culto das imagens, para conferir legitimidade à sua produção e aos seus usos.15 Para Emile Mâle o século XIII é sem dúvida o ponto culminante da imagem medieval, em que a “arte” cristã16 exprimiu com precisão o pensamento da Idade Média.17 Esta arte é uma escritura sagrada e é considerada como uma das formas de liturgia.18 O autor focaliza suas análises na imagem medieval como ferramenta do ensino religioso para os iletrados, principalmente as imagens disponíveis em catedrais, sendo estas, os livros para os ignorantes.19 As proposições de Mâle são passíveis de crítica. Baschet, em seus estudos sobre as iconograias da Idade Média, reforça que não se deve estereotipar as imagens medievais, airmando ter havido, a partir do século XI, uma extrema inventividade e liberdade nas suas produções.20 A iguração religiosa era tema predominante, naturalmente, mas suas inalidades eram diversas. SCHMITT, Jean-Claude. Apud. BASCHET, Jérôme. A civilização feudal. Op. Cit., p. 488. 14 Idem. O corpo das Imagens. Op. Cit., p. 73. 15 Ibidem, p. 73. 16 Termo usado pelo próprio autor. 17 MÂLE, Emile. L’Art religieux du XIIIe siècle en France. Paris: Librarie Armand Colin, 1969. V.I. p. 14. 18 Ibidem, p. 31-34. 19 Ibidem, V.II. p. 449. 20 BASCHET, Jérôme. L’iconographie médiévale. Paris: Gallimard, 2008. p. 251252. 13 136 As imagens também se prestaram como mediadoras entre o homem e o divino, constituindo aí sua relação com o culto aos santos. Os santos, que são homens e mulheres diferentes em relação à comunidade cristã comum, contemplados pela graça divina, constituíam, para os iéis, o sagrado acessível, fosse em vida, fosse em morte, frequentando seus túmulos, praticando seus cultos e um exemplo de vida a ser seguido.21 Para a Igreja os santos tornaram-se sustentáculos,22 num momento em que encontrava-se questionada e passando por uma crise espiritual.23 Destarte, entre os séculos XI e XIII assistimos a um crescimento do número de santos e seus cultos, o que justiica, juntamente com o crescente fortalecimento pontiical, o surgimento do processo de canonização, iniciado no século XII, mas somente institucionalizado no XIII. Simultaneamente, percebe-se um acentuado desenvolvimento de imagens, constituindo, conforme Schmitt, a “revolução das imagens”.24 Para alguns historiadores, como Jérôme Baschet, Fabio Bisogni, Soia Gajano, o crescimento do culto de santos e o largo desenvolvimento de imagens, a partir do século XII, não foi uma mera coincidência. Numa realidade em que a leitura de textos bíblicos não possibilitava a todos apreender a relação do homem com Deus, era Ibidem, p. 225-226. Inclusive a iconograia soube utilizar-se muito bem dessa ideia dos santos como sustentáculo da Igreja. Como exemplo temos a imagem do sonho de Inocêncio III em que São Francisco de Assis ampara a basílica de Latrão. Contudo, na Leyenda, de Constantino de Orvieto, e na Legenda Aurea, de Jacopo de Varazze, é a igura de Domingos de Gusmão que sustenta a basílica de Latrão, símbolo da Igreja Romana. Cf. Constantino de Orvieto. “Leyenda de Santo Domingo”. Cap. XVII. Apud GELABERT, Miguel, MILAGRO, José Maria, GARGANTA, José Maria de. Santo Domingo De Guzmán visto por sus contemporáneos. Madri: Editorial Católica, 1947. p. 406-407; JACOPO DE VARAZZE. Legenda Áurea. São Paulo: Cia. das Letras, 2003. p. 617. 23 BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1983. p. 19. 24 SCHMITT, Jean-Claude. Apud BASCHET, Jérôme. A civilização feudal. Op. Cit., p. 488. 21 22 137 necessário buscar outras formas. Segundo Vauchez, o cristão do século XII exercia sua experiência religiosa principalmente no nível dos gestos e dos ritos.25 Seu contato com o divino era através de peregrinações a lugares santos, do culto às relíquias e dos milagres, das imagens santas, prova tangível da presença de Deus entre os homens. O culto às relíquias constituiu a materialização do contato entre os mundos celeste e terrestre. Não só o corpo, mas qualquer fragmento do santo carrega um poder intrínseco, motivo pelo qual as relíquias são guardadas em altares ou lugares sagrados, ou até mesmo carregadas junto à pessoa para proteção pessoal. Os santuários, dedicados ao culto de relíquias, logo começam a ser decorados com imagens que exaltavam a grandeza do santo e a potência de seus milagres. Se ao longo do século XI, as imagens vão associando-se às relíquias, tão logo as substituem, tornando-se ponto de ancoragem do culto aos santos.26 Baschet ressalta a produção imagética relacionada ao culto dos santos entre os séculos XI e XIII, apontando como uma das principais funções das imagens servir a este culto. Bisogni aponta o quão imprescindível é a imagem para o culto aos santos, chegando a designar que um santo com poucas imagens sobre si e seus feitos pode ter o seu culto posto em dúvida. Baschet acrescenta que a partir do século XI é impensável um culto aos santos sem as imagens,27 estabelecendo uma relação triangular entre santos, imagens e milagres. Para o autor “são as imagens que ordenam e tornam possível o culto aos santos; e, cada vez mais, é às imagens dos santos, dotadas de grande potência, que se atribui a capacidade do santo em realizar milagres”.28 Vemos o mesmo sentido posto por Bisogni em seu artigo Gli inizi dell’ iconograia domenicana,29 apontando que o VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. 160-161. 26 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal. Op. Cit., p. 509. 27 Ibidem, p. 496. 25 28 Ibidem. BISOGNI, Fabio. Gli inizi dell’ iconograia domenicana. In: MENESTÓ, Enrico (Dir.). Domenico di Calaruega e la Nascita dell´ordine dei frati predicatori. CONVEGNO STORICO INTERNAZIONALE, 41., 2004, Todi,. Centro Italiano de Studi sul Basso Medioevo - Accademia Tudertina e Centro di Studi sulla Spiritualitá Medievale da Universitá degli Studi de Perugia. Atti... Spoleto: Centro italiano di Studi Sull´Alto Medioevo, 2005. 29 138 culto aos santos está inteiramente ligado ao uso de imagens e só é possibilitado por este. Segundo o autor, “A iconograia é o testemunho tangível do culto”30 tendo o santo, na imagem, a sua igura retratada e seu feitos, como milagres, que são a razão mais forte para o culto. Sem as imagens somos induzidos a pensar que há um diminuto culto acerca dos santos menos representados. Gajano ressalta o papel da iconograia na promoção da santidade, evidenciando os símbolos e as representações, que marcam as iguras retratadas,31 como os estigmas de Francisco de Assis e as auréolas que caracterizam, na imagem, a santidade. Possibilitam a ixação dos atributos dos santos, tornando-os facilmente reconhecíveis, tanto a sua igura, quanto as suas realizações e passagens da sua história. Assim, sem espanto, vemos surgir entre os séculos XI e XIV uma demanda de imagens de homens santos e seus feitos, como milagres, pregações, conversões, enim, cenas de suas vidas.32 As imagens evidenciam características e atribuições dos homens santos, tornando-as bem marcantes e reconhecíveis para as práticas cultuais. Contam histórias, retratam milagres, veiculam modelos. Desde o século XII a importância da imagem nas práticas devocionais e cultuais não cessa de crescer, atingindo seu ponto máximo de produção no século XIII. Seja esculpida ou pintada, simples ou ornada, elas dão suporte para a mediação entre o iel e o sagrado. E se no século XII a imagem assume este papel, a partir do século XIII ela difunde-se ainda mais, aparecendo nas casas de simples iéis, que relatam que a imagem contemplada fala, chora, sangra, ganha vida.33 Às imagens produzidas na Idade Média exerciam diversas funções, mas seus aspectos cultuais e devocionais devem ser sublinhados, devido àquela sociedade religiosa, em que a Igreja era instituição predominante.34 Belting realiza um estudo sobre a imagem e seu Ibidem, p. 613. GAJANO, Soia Boesch. Santidade. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude (Orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Imprensa Oicial; Bauru: Edusc, 2002. 2v., V.2. p. 449-463, p. 461. 32 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal. Op. Cit., p. 496-500. 33 Ibidem, p. 497. 34 Ibidem, p. 167-169. 30 31 139 público no período medieval, ressaltando tais aspectos, principalmente o devocional no que diz respeito às ordens mendicantes.35 As ordens mendicantes, fundamentadas pela pregação, buscaram diversas formas para promovê-la e para promoverem a si próprias. No momento do surgimento das ordens o método de instrução considerado o mais eicaz, para a Igreja, eram as imagens: “(...) Em meados do século XIII, o bispo Guilherme Durand de Mende nota em seu Rationale divinorum oiciorum que em seu tempo dá-se mais valor às imagens do que aos textos, justamente em razão de sua eicácia pedagógica”.36 Acordando com seus objetivos de pregação, conversão e instrução as Ordens Dominicana e Franciscana – especiicamente –37 utilizariam os métodos considerados pela Igreja como os mais valorizados e eicazes do século XIII, em acordo com o contexto. E este contexto apontava para as imagens. Se na Idade Média falamos de usos e funções da imago atrelada a práticas, não podemos desconsiderar as mudanças que as sociedades sofrem, e assim, as mudanças nas práticas associadas às imagens. O culto das imagens vive no século XIII um novo impulso, graças às novas ordens religiosas. Práticas novas podem ser atribuídas a elas, como as procissões públicas, os teatros religiosos e o desenvolvimento das devoções privadas.38 Soma-se a estas os usos das imagens como exemplo a ser seguido pelos iéis, que tinham como modelo a nova santidade, baseada numa vida desapegada, mendicante, ascética. As imagens também serviram para exaltar tais ordens religiosas, em especial as ordens de Francisco de Assis e de Domingos de BELTING, Hans. L’image et son public au Moyen Âge. Paris: Gérard Monfort, 1998. p. 27-28. 36 SCHMITT, Jean-Claude. Imagens. Op. Cit., p. 599. 37 Outras ordens mendicantes surgem no período entre os séculos XI e XIII, como a Ordem dos carmelitas, dos agostinianos, dos Irmãos da Santa Cruz, e a da Penitência de Jesus Cristo. Contudo, estas eram menores em número de membros e inluência, por isso a visibilidade das Ordens Franciscana e dominicana, constituindo esta última o foco da nossa pesquisa. Cf.: LITTLE, Lester. Monges e religiosos. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude (Orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Op. Cit., V.2. p. 225-241, p. 236-237. 38 SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das Imagens. Op. Cit., p. 85-86. 35 140 Gusmão. Duby elucida que as imagens eram funcionais, “serviam”.39 E, segundo o autor, serviram muito às ordens mendicantes como forma de propaganda, principalmente à Ordem Franciscana, que utilizou bem as imagens (...) Para prolongar o efeito de suas palavras, sentiram a necessidade de colocar em série, lado a lado, diante dos olhos dos que os escutavam, as cenas do drama evangélico, ou as da vida de Francisco, que se identiicara com as de Cristo a ponto de receber os estigmas.40 Duby aponta que as imagens serviram muito bem às funções e práticas religiosas. Entretanto, aborda a imagem também por outras perspectivas, revelando o desenvolvimento medieval de um gosto pelo ornamento e pelas formas artísticas de objetos, arquiteturas, paisagens etc.41 Em geral, em relação às imagens produzidas na Idade Média, o que podemos depreender é que elas exerciam diversas funções, políticas, sociais, religiosas. No entanto, seus aspectos devocionais e cultuais são destaque, muito coerente com aquela sociedade, em que a religiosidade era traço marcante. Isso porque a imago medieval tem o poder de excitar os sentimentos, de causar emoções, de promover uma meditação prolongada e incitar o desejo da contemplação, graças às representações visuais.42 DUBY, Georges e LACLOTTE, Michel. História artística da Europa: Idade Média. São Paulo, SP: Paz e Terra, 1998. p. 15. 40 Ibidem, p. 90. 41 Ibidem, p. 70-72. 42 BELTING, Hans. L’image et son public au Moyen Âge. Paris: Gérard Monfort, 1998. p. 60. 39 141 OS EIXOS DE PODER NO EPISCOPADO DE SIGÜENZA NO SÉCULO XII: UMA ANÁLISE COMPARATIVA DE SUAS ESTRATÉGIAS E TÁTICAS Bruno Gonçalves Alvaro (Docente–UFS – Doutorando PEM– PPGHC– UFRJ) Introdução Quando assumiu o governo, em 1126, após a morte de sua mãe, a rainha Urraca I, Afonso VII, não herdou somente as possessões que correspondiam, grosso modo, a Galícia, Leão e Castela. O jovem monarca, que se intitularia nas chancelarias, a partir de sua coroação em Leão, no ano de 1135, Imperator Hipaniarum ou tocius Hispaniae Imperator,1 encontrou pela frente a resistência do poder emergente de novas forças políticas e sociais, representadas por importantes famílias dessas regiões, que mantinham um complexo jogo de interesses cuja consolidação havia se iniciado já no governo de seu avô, Afonso VI. Não podemos ignorar, também, a constante pressão por conquistas de territórios, empreendida pelo seu ex-padrasto Afonso I de Aragão, que ainda lutava por impor seu controle, principalmente, sobre a região de Castela.2 1 É interessante observar que a partir dessa coroação “imperial”, a chancelaria de Alfonso VII, passa adotar Imperatore regnante in Toleto, in Legione, in Sarragozia, in Naiara, in Castella, et in Galletia, enumerando, sem ser novidade nas fórmulas documentais habituais do período, os territórios onde, em tese, o governo atuava ou, na nossa opinião, pretendia-se atuante. A partir de meados do ano seguinte, a chancelaria real troca deinitivamente a expressão regnante por imperante, tentando airmar, ainda mais, o caráter “imperial” de seu governo. Cf.: MILLARES CARLO, Augustín. La Cancillería real en León y Castilla hasta ines del reinado de Fernando III. Anuario de Historia del Derecho Español, Madrid, n. 3, p. 227306, 1926. p. 253-254. 2 Cf.: RECUERO ASTRAY, Manuel. Alfonso VII (1126-1157). Burgos: La Olmeda, 2003; REILLY, Bernard F. he Kingdom of León-Castilla under King Alfonso VII (1126-1157). Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1998 e _____. he Kingdom of León-Castilla under Queen Urraca: 1109-1126. New Jersey: Princeton University Press, 1982. Ver, também: LEMA PUEYO, José Angel. El itinerario de Alfonso I ‘El batallador’ (1104-1134). Historia, instituciones, documentos, Sevilha, n. 24, p. 333-354, 1997 e MAYORAL ROCHE, María Jesús. Alfonso I: el rey batallador. Zaragoza: Delsan, 2003. 142 Movido pela necessidade de superar tais obstáculos, herdados com a coroa, Afonso VII empenhou-se em trazer para perto de si o maior número possível de aliados. Para isso, muniu-se de estratégias diplomáticas, como a doação de senhorios em nome das crescentes aristocracias locais.3 Ele também procurou aplicar essa mesma política de doações aos bispos, que, paulatinamente, foram sendo utilizados, também, no processo de conquista territorial armada.4 Desta maneira, aos poucos, o monarca conseguiu amenizar a situação conturbada pela qual passava seu reino, cercando-se de inluentes esferas eclesiásticas e laicas. Localizada no centro de Castela, a cidade de Sigüenza5 é um interessante exemplo para estudarmos como se deram as relações entre a monarquia castelhana-leonesa e as diversas igrejas ibéricas nesse problemático contexto político. Tomando como estudo a diocese seguntina, sob o episcopado de Bernardo de Agén, bispo entre os anos de 1121 a 1151,6 pretendemos, nesta comunicação, apresentar alguns breves apontamentos a respeito das estratégias e táticas empreendidas Optamos por seguir os estudos de Joseph Morsel e adotar, também, para a Península Ibérica, a noção de aristocracia ao de nobreza. Sobre essa discussão, cf.: BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006 e MORSEL, Joseph. La aristocracia medieval: el dominio social en Occidente (Siglos V-XV). Valencia: Universidad de Valencia, 2008. 4 Cf.: AYALA MARTÍNEZ, Carlos de. Alfonso VII y la Cruzada. Participación de los obispos en la ofensiva reconquistadora. In: MARTÍNEZ SOPENA, Pascual; VAL VALDIVIESO, María Isabel del. (Coord.). Castilla y el mundo feudal: homenaje al profesor Julio Valdeón. Junta de Castilla y León/ Consejería de Cultura y Turismo: Universidad de Valladolid 2009. 3v. V. 2. p. 513-529. 5 Como será possível observar no decorrer do texto, optamos por manter a graia da diocese como no castelhano: Sigüenza. 6 Ressaltamos que o bispo em questão em nada tem haver com o conhecido Bernardo, eleito arcebispo de Toledo em 1085, também chamado de Sauvatat, Sahagún, Sédirac ou mesmo Agén. Porém, os dois foram contemporâneos e sendo sustentada, inclusive, a provável tese de que o arcebispo de Toledo empreendeu a chegada de diversos clérigos vindos da Aquitânia para a Península Ibérica e que, consequentemente, assumiram o governo de diversas dioceses, algumas recém criadas e outras restauradas, como foi o caso de Sigüenza. Sobre Bernardo de Toledo, sendo referido como “de Agén”, cf.: MONTEMAYOR, Julián. Afonso VI e Bernardo de Agén ou a consagração frustrada. In: CARDAILLAC, Louis. (Org.). Toledo, séculos XII-XIII. Muçulmanos, cristão e judeus: o saber e a tolerância. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. p. 56-64. 3 143 por Afonso VII para o controle da região, analisar como o governo episcopal de Bernardo interage com ele e quais as atitudes deste bispo frente às pressões de dioceses limítrofes a sua.7 Esta temática faz parte da nossa tese de doutorado, em curso, orientada pela Profa. Dra. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, no Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A reconquista de Sigüenza A reconquista da cidade de Sigüenza e a consequente restauração de sua diocese, ainda é um tema controverso entre os especialistas na história da região. O testemunho documental mais antigo que temos conhecimento, sobre este período, é uma doação da rainha Urraca I ao primeiro bispo seguntino após a “libertação” da cidade das mãos dos muçulmanos.8 A carta é datada de 1º de fevereiro de 1162 da Era Hispânica, ou seja, 1124, e ressalta o seguinte: In nomine sancte et individue trinitatis patris et ilii et spiritus sancti amen. Ego urra dei gratia hyspanie Regina. regis adefonsi Regineque. constantie ilia. considerans nimiam paupertatem Segontine ecclesie que impietate sarracenorum peccatis exigentibus quadrigentis annis et eo amplius destructa atque dessolata funditus extiterat, decimam partem de toto portatico et totis quintis. et de totis alquavalas de atentia et de medina celim ei et ejusdem sedis episcopo 7 A deinição de tais conceitos teóricos segue os postulados apresentador por Michel de Certeau em seu livro A Invenção do Cotidiano. Cf.: CERTEAU, Michel de. Invenção do Cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2009. V.1. 8 Tal documento abre o cartulário, escrito em princípios do século XIII, inicialmente disposto em dois volumes, no qual contém toda a documentação diplomática de Sigüenza desde sua restauração. Atualmente ele encontra-se preservado no Arquivo da Catedral de Sigüenza e em 1910 foi transcrito e publicado pelo Fr. Toribio Minguella y Arnedo como parte dos anexos documentais, em três volumes, sendo o primeiro, e parte do segundo, dedicado ao período medieval, da sua História da diocese de Sigüenza e de seus bispos. Cf. MINGUELLA Y ARNEDO, Toribio. Historia de la Diócesis de Sigüenza y sus Obispos. Madrid, 1910. V. I. (Desde los comienzos de la Diócesis hasta la ines del siglo XIII). 144 domino videlicet bernardo ejusque successoribus in perpetuum jure hereditario dono et concedo, hoc autem facio grato animo et spontanea voluntate pro remissione peccatorum meorum et remedio animarum patris e matris mee bone memorie Adefonsi regis et regine constantie [sic] (...).9 Como é possível observar, segundo o documento, a diocese de Sigüenza estava já há quatrocentos anos sob o domínio sarraceno. Interpretamos a doação da rainha, após as informações da tomada e paciicação da região, como parte de um jogo estratégico de manutenção do poder monárquico nas regiões reconquistadas, mesmo que, como no caso de Sigüenza, tal feito seja uma atitude isolada de um bispo.10 Devemos considerar o contexto no qual estavam inseridos estes eclesiásticos. No caso de Bernardo, a hipótese mais provável, é que após ser consagrado bispo de Sigüenza pelas mãos do arcebispo de Toledo, aproximadamente, em 1121, tem-se início sua tentativa de recuperação da região a ele então pertencente. No entanto, de que maneira e quando a capital da diocese foi reconquistada? Sabemos que um documento de doação, de 28 de novembro de 1123, dado por Alfonso VII à Igreja Metropolitana de Toledo, testemunha que Bernardo o acompanhou em suas campanhas 9 Em nome da santa e indivisível trindade do pai e do ilho e do espírito santo amém. Eu Urraca pela graça de Deus Rainha da Espanha, ilha do Rei Afonso e da Rainha Constanza, considerando a grande penúria da Igreja de Sigüenza a qual, pela impiedade dos pecados emergentes dos sarracenos, havia sido por muito tempo destruída e também completamente devastada durante quatrocentos anos, dôo e concedo sem dúvida a décima parte de todo o portazgo, de todos os quintos, de todas as alcavalas de Atienza e de Medinaceli ao senhor bispo Bernardo e a seus sucessores por direito hereditário perpetuo; faço isto, no entanto, de bom grado e espontânea vontade em prol da remissão dos meus pecados e como remédio das almas do meu pai e minha mãe, de boa memória, o rei Afonso e a rainha Constanza. COLECCIÓN DIPLOMÁTICA. Doc. I – 1 de fevereiro de 1124. In: MINGUELLA Y ARNEDO, Toribio. Op. Cit., p. 341. 10 Sobre a discussão entorno do conceito historiográico de Reconquista indicamos o interessante trabalho: GARCÍA FITZ, Francisco. La Reconquista. Granada: Universidad de Granada, 2010. Alertamos que estamos utilizando o termo no sentido de conquista de territórios nas mãos de muçulmanos e, em alguns, casos, outros reinos cristãos rivais ao castelhano-leonês. 145 militares entre os anos de 1122 e 1123, ocupando o cargo de capelão e, ainda, possivelmente, como membro de sua chancelaria,11 o que demonstra sua ligação com o futuro rei castelhano-leonês que já, desde pouco antes de 1118, aparecia na documentação de sua mãe reinando ao seu lado.12 A principal hipótese, para o nosso questionamento sobre como foi organizada a conquista da cidade, é apresentada por Adrián Blázquez Garbajosa em seu livro El Señorío Episcopal de Sigüenza. Para o historiador espanhol, o bispo seguntino recebeu apoio militar tanto do arcebispo de Toledo, como de milícias de Guadalajara, Atienza, Molina e Medinaceli para formar sua mesnada. Para Blázquez Garbajosa, o dinheiro empregado na operação também partiu de Toledo, já que, é bem provável, a situação inanceira do bispo eleito não possibilitasse maiores empenhos armados ou mesmo juntar um contingente expressivo de cavaleiros. Ainda segundo ele, as frentes foram centralizadas em Molina, cujo rei mouro era tributário de Afonso I de Aragão. Quanto ao fato de um bispo castelhano organizar a reconquista da sua capital diocesana a partir de uma cidade aragonesa, o autor esclarece: por una parte tales tierras por áquel entonces no pertencían, propriamente hablando, ni al reino de Castilla ni al de Aragon, situadas como estaban en una tierra de nadie (...); por otra parte hay que tener en cuenta que si la capitalidad de la diócesis – Sigüenza – puede ser considerada castellana, si embargo su principal núcleo de jurisdicción hallábase en tierras aragonesas de Calatayud, Daroca y Molina, 11 “Facta carta per manus Segontini Episcopi, Regis Capellani, domini Bernardi jusu et admonitu ejusdem regis, cujus rei et testis extitit et conirmat”. Biblioteca Nacional de Madrid. Sala de Varios. Colec. del Padre Burriel; t. I, fol. 43. apud BLÁZQUEZ GARBAJOSA, Adrián. El Señorío episcopal de Sigüenza: economía y sociedad (1123-1805). Guadalajara: Institución Provincial de Cultura Marqués de Santillana, 1988. p. 45. 12 Regnante... cum ilio suo Alfonso per totam hyspaniam. DIPLOMATÁRIO DE LA REINA URRACA DE CASTILLA Y LEÓN (1109-1126). Edición e índices de Cristina Monterde Albiac. Zaragoza: Anubar Ediciones, 1996. Trecho do documento 118. 146 ya deinitivamente reconquistadas por Alfonso el Batalhador, y cuya afectación a la mitra seguntina databa de tiempos anteriores a la invasión árabe.13 Assim, podemos inferir que Bernardo de Sigüenza recebeu apoio de todas as frentes possíveis. O que nos parece é que o bispo seguntino era bem quisto tanto por Bernardo de Toledo como pelo rei de Aragão e, ainda, pela rainha Urraca e seu ilho Afonso, o que demonstra que as relações de força entre o bispo seguntino e os eixos de poder da região eram fundamentadas em estratégias e táticas bem deinidas: aparentemente, ele executava um jogo duplo de alianças políticas. Sobre a data de reconquista da cidade, Toribio Minguella y Arnedo, junto à tradição popular, defende o ano de 1124, que coincide com o ano do primeiro documento que temos notícia, a já destacada, doação assinada por Dona Urraca. No entanto, segundo estudos de Adrián Blázquez Garbajosa, a data de 22 de janeiro de 1124 está equivocada, uma vez que a carta da rainha é datada de 01 de fevereiro desse mesmo ano. Para ele, e o apoiamos em tal hipótese, pois nos parece mais lógica, diez dias representan un período de tiempo demasiado breve para enviar a doña Urraca noticias oiciales de la reconquista y del estado lastimoso en que se encontraba la ciudad, y para que la reina decidiese las concesiones que por bien tenía hacer al reconquistador y obispo de dicha ciudad.14 Restaurada a diocese e reconquistada sua capital, tem-se início a todo um estabelecimento de cartas de doações e compras, ora vindas da chancelaria de Afonso VII, ora emitidas a mando do bispo seguntino. A seguir, analisaremos alguns trechos desses documentos, procurando estabelecer os motivos pelos quais acreditamos que esses procedimentos estão ligados a interesses da monarquia como forma de estratégia política e, ao mesmo tempo, coniguram-se como táticas, por parte do bispo de Sigüenza, frente a pressão de outras dioceses limítrofes na luta pelo controle das regiões recém dominadas. 13 14 BLÁZQUEZ GARBAJOSA, Adrián. Op. Cit., p. 46. Ibidem, p. 47. 147 Os eixos de poder no episcopado de Sigüenza: Afonso VII e suas doações O primeiro passo estratégico dado por Afonso VII, para enfrentar os perigos que rondavam seu reino, foi uma sucessiva política de doações diversas. Entre elas, os senhorios, classiicados, pelos historiadores em: eclesiásticos (pertencentes, em geral, a Igreja) e seculares (pertencentes às famílias aristocráticas ou a nobreza, na concepção de alguns especialistas).15 Tais doações funcionavam da seguinte forma: Bispos ou laicos, após conquistarem determinados territórios, em tese, em nome da coroa de Castela-Leão, receberiam da parte do rei o direito de domínio da região, por exemplo, por meio da cobrança de poztargos. Segundo Manuel Recuero Astray, Las donaciones ocupan el capítulo más importante dentro de la documentación real que nos ha llegado de la cancillería de Alfonso VII. Es un hecho que el monarca entrega constantemente bienes de su patrimonio, con objeto de favorecer a determinadas personas e instituciones. Por motivos relacionados con la misma tradición de los documentos, la mayoría de esas concesiones se hacen a favor de obispados y monasterios. (...) Alfonso VII, no sólo no es una excepción en esta política de enajenación de bienes reales, con objeto de realizar donaciones beneiciosas, sino que lo hace de forma sistemática desde los primeros momentos de su reinado. Es indudable que lo hace con el in de asegurarse la idelidad y los servicios de muchos, en un reino que recibió ya en circunstancias críticas. Pero es que, además, - aunque esas circunstancias se llegaran a superar, las donaciones reales fueron siempre el medio esencial para mantener y premiar a todos aquellos que participahan en sus empresas o le servían de alguna forma.16 Há um terceiro tipo, que seriam os senhorios reais, compostos por terras pertencentes ao rei. 16 RECUERO ASTRAY, Manuel José. Donaciones de Alfonso VII a sus ieles y servidores. En la España medieval, Madrid, n. 9, p. 897-914, 1986. p. 897-898. 15 148 Toda essa política de doações, empreendida por Afonso VII, reverbera por diversas regiões sob seu poder, efetivo ou não. Um desses lugares estratégicos, e que pedia grande parte da atenção do monarca, era Sigüenza. Para nós, isso se evidencia por dois fatores: o primeiro, mais quantitativo, graças ao numero de documentos de doação preservados no cartulário seguntino do século XIII. Em segundo lugar, como veremos, de caráter mais geográico, que corresponde às fronteiras seguntinas com outras dioceses sob inluência da coroa de Aragão. Entre os anos de 1127 e 1151 foram nove doações reais, isso sem contarmos as concessões de privilégios e uma carta de doação emitida por Dona Sancha, irmã de Afonso VII. Temos, também, algumas doações realizadas ainda no período de governo de Urraca I e as intercessões de seu ilho, já coroado, nos conlitos entre as dioceses de Sigüenza, Osma e Tarazona por limites territoriais. Um dos mais importantes documentos para a diocese nesse período é o que estabelece o senhorio episcopal seguntino, datado de 16 de setembro de 1138, no qual Afonso VII concede e outorga ao bispo Bernardo e aos seus sucessores o lugar em que está ediicada a igreja, ou seja, a catedral de Sigüenza. Em outro documento, de 14 de maio de 1140, o rei conirma o senhorio do bispo sobre as famílias que se estabeleceram próximas a catedral.17 Acreditamos que estas doações, e as anteriores, principalmente, estão intrinsecamente relacionadas ao fato de Sigüenza ser um ponto estratégico de defesa contra as forças muçulmanas e as inúmeras incursões do reino aragonês no período. Mesmo estando a coroa de Aragão, desde novembro 1137, sobre a cabeça de Raimundo Beranger IV de Barcelona, cunhado de Afonso VII, não podemos ignorar as forças centrifugas das ascendentes famílias aristocratas aragonesas e, ainda, para complicar mais, as castelhanas e leonesas que, como ressaltado, desde o período de Afonso VI e mais evidenciando no governo de Urraca I, lutavam contra o poder monárquico em algumas Cf.: COLECCIÓN DIPLOMÁTICA. Doc. XV – 16 de setembro de 1138. In: MINGUELLA Y ARNEDO, Op. Cit., p. 364-365 e COLECCIÓN DIPLOMÁTICA. Doc. XX – 14 de maio de 1140. In: MINGUELLA Y ARNEDO, Toribio. Op. Cit., p. 371-372. 17 149 regiões. Este, certamente, foi um dos grandes problemas enfrentados por Afonso VII nesse período de tentativa de estabilização de seu governo. Uma das estratégias políticas, então, foi a busca pelo apoio eclesiástico fundamentado nessas doações diversas e na instituição de senhorios episcopais. Em termos geográicos, localizada no centro da península, no extremo oriental de Guadalajara, na região central de Castela, Sigüenza, no século XII, fazia fronteira mais ao norte, com as dioceses de Segovia, Osma e Tarazona e ao sul, com o arcebispado de Toledo e a diocese de Zaragoza. Posteriormente, com o avanço das conquistas territoriais, vemos surgir no mapa Albarracín (1172) e Cuenca (1188) completando, desta forma, o quadro fronteiriço seguntino na Idade Média Central. É possível observar que, a partir do progresso reconquistador, há um fenômeno de repovoamento de diversas cidades e, consequentemente, se instauram, também, novas sedes episcopais, em alguns casos, muitas vezes de acordo com uma tradição anterior. Segundo Blázquez Garbajosa, no século XII, a Reconquista alcança uma linha imaginária que vai desde Lisboa a Tortosa, tendo como pontos chave as sedes episcopais de Lisboa, Coria, Plasencia, Toledo, Sigüenza, Cuenca e Tortosa, todas situadas ao norte do Tajo. Ao mesmo tempo, se compararmos a densidade de algumas dessas restaurações ao norte e ao sul da linha indicada pelo autor, nos daremos conta que nos séculos XII e XIII a concentração é maior ao norte – cerca de 40 dioceses – enquanto que no sul teremos, aproximadamente, umas sete. Segundo ele, esta repartición solo puede explicar teniendo en cuenta la constante preocupación de los reyes por asentar responsables en determinadas ciudades o puntos estratégicos que se encargasen de organizar y defender sus respectivos territorios. Ello implica no sólo una potestad eclesiástica, sino también una fuerza económica y una autoridad civil para poder llevar a bien la defensa de tales territorios; autoridade civil y recursos económicos que desembocarán casi siempre en donaciones reales a tales sedes de determinados 150 pueblos o ciudades en juro de heredad dando origen a los llamados señoríos episcopales.18 Como não podemos deixar de notar, esta estratégia política afonsina é proveitosa, também, para os episcopados e no caso de Sigüenza, devido sua proximidade com a política aragonesa, a postura do bispado seguntino é se relacionar com o maior número possível de eixos de poder, num peculiar jogo tático de equilíbrio. No entanto, nem tudo é tão simples para Bernardo de Agén, o volume de doações recebidas, a participação de Sigüenza nos projetos laicos e eclesiásticos do período, obrigam-no a jogar, também, com estratégias, isso é perceptível em diversos momentos. A documentação diplomática do bispado seguntino nos dá a possibilidade de selecionar diversos, do que nomeamos como, eixos de poder, que seriam, para nós, forças atuantes a favor, ou não, da política episcopal de Sigüenza. Como neste texto dispensamos um fôlego maior ao eixo representado por Afonso VII, nos centraremos, rapidamente, no acordo irmado entre o bispo de Sigüenza e o bispo de Zaragoza, no qual o primeiro cede a região de Daroca: Omnium catholicorum et eclesiasticorum virorum maximeque eorum quibus cura pastoralis in gregem sibi subditum comissa est oicium esse lite. discordia, ira. odio. ab ecclesia eliminatis. atque propulsis pacem reformare. Etiam minus peritis certum est.Unde dompnus. G. cesaraugustane ecclesie venerabilis pontifex. et domnus. B. saguntine sedis humilis antistes ecclesiarum suarum immo et successorum suorum quietem unitatem. concordiam desiderantes. sibi et posteris suis bene consulentes. super calatajub. et super daroca earumque terminis. hoc modo conveniunt. Saguntina sedis ejusque pontifex. et clerici ibidem deo devote famulantes. omni remota querimonia calatajub cum omnibus terminis suis de villa Felice usque ad arandam. de la pena de chocar usque ad farizam. et quid infra hos términos continetur. jure hereditario in perpetuum possideant. Cesaraugustana ecclesia. ejusque pastor et clerici. Darocam cum omnibus 18 BLÁZQUEZ GARBAJOSA, Adrián. Op. Cit., p. 28. 151 terminis suis: in quiete obtineant. Quod si saguntini darocam cum teminos suos. aut cesaraugustani calatajub vel ipsus prenominatos terminus. invadere. aut transcedere presumptuose temptaverint. velut alieni juris temeratores. et alterius parrochie invasores. sacrilegii rei habeantur. et quod fecerint. vel facere conati fuerint. irritum sit. hoc irmum ac stabile et inconcussum teneatur. hec conveniencia facta est in legione. in die pentecostes. domno Adefonso tocius hispanie imperatore regnante. atque tunc primam regni sui coronam gestante. ipso etiam et uxore sua domna Berengaria regina. una cum domno. R. toletano archiepiscopo. episcopis abbatibus. et utriusque ecclesie clericis. et archidiaconibus. qui ibi presentes aderant. concedentibus atque conirmantibus. ERA. MCLXXIII. Ego adefonsus tocius hyspanie imperator conirmo [sic].19 19 É obrigação de todos os católicos e homens eclesiásticos e, sobretudo, daqueles os quais a cuidado pastoral do seu rebanho é o ofício, eliminar da igreja a disputa, a discórdia, a ira, o ódio, [mas também não só] defender [e] reformar a paz [como] também é importante [viabilizar] o menos destrutivo. Assim, Don G., pontíice da venerável Igreja de Zaragoza, e Don B., da sede de Sigüenza, humilde sacerdote, que, longe disso, lamentam a perda da tranqüilidade, da união e da concórdia e que bem consultam [e], desta maneira, reúnem entre si e os seus próximos em Sigüenza e em Daroca e suas redondezas. A sede de Sigüenza e o seu pontíice e seus clérigos que, da mesma maneira, servem devotamente a Deus [e] a toda a queixa em todas suas redondezas da Vila Feliz até Aranda de la Pena, de Chocar até Farizan e qualquer lugar que esteja contido dentro desses limites, possuam para sempre, por direito hereditário, a Igreja de Zaragoza e [que] o seu pastor e clérigos mantenham na paz a [região] de Daroca e todas as suas redondezas. Aqueles que tentarem invadir ou presunçosamente atravessar a [região] de Daroca ou os seus arredores ou a Calatayud de Zaragoza ou aquelas citadas regiões do em torno, assim como os violadores do direito alheio e os invasores de outras paróquias, sejam tidos como sacrílegos e aqueles que façam, ou tentarem fazer, sejam tidos como inválidos; [que] seja tido como irme, estável e inabalável este acordo feito em Leão no dia de Pentecostes por Don Afonso, imperador que rege toda a Espanha e que, então, carrega a primeira coroa de seu reinado, por ele também e por sua esposa, a rainha Dona Berengária, unidos a Don R., arcebispo de Toledo, aos bispos, aos abades e a cada um dos clérigos da Igreja e aos arcediáconos, os quais estavam presentes neste lugar, que concordaram e conirmaram. Era 1173. Eu, Afonso, imperador de toda a Espanha, conirmo. COLECCIÓN DIPLOMÁTICA. Doc. IX – Ano de 1135. In: MINGUELLA Y ARNEDO. Op. Cit., p. 336-337. 152 Curiosamente, Daroca, havia sido dada a Sigüenza por Afonso I, Batalhador, rei de Aragão, mesmo sendo Zaragoza uma diocese restaurada por essa monarquia, em 1118. Percebemos dois pontos interessantes, primeiro o fato de Afonso VII ser o mediador do acordo entre os bispos, o que, para nós, demonstra o crescimento de sua inluência na região, principalmente, após a morte do monarca aragonês. Em segundo lugar, o teor do documento que, entre outras coisas, destaca ser sua obrigação (como monarca cristão) e dos eclesiásticos, eliminar, do seio da igreja, a disputa, a discórdia, etc. Este tom “paciicador”, acreditamos, realça a situação conlitante e já insustentável entre as duas dioceses, necessitando, deste modo, a interferência do rei castelhano-leonês. Conclusões parciais acerca das estratégias e táticas no seio do episcopado seguntino Ao analisarmos de maneira mais profunda os documentos de doações, temos observado que, comparativamente, Bernardo de Sigüenza não se limita somente a utilização de táticas para a manutenção do controle de seu episcopado senhorial, como foi, por exemplo, no caso citado com Zaragoza. Temos observado que este bispo, nas suas relações com outros eixos de poder atuantes no período, também se impõe utilizando-se de estratégias, uma vez que, como deine Michel de Certeau, essa seria o empreendimento daquele que consegue postular “um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e portanto capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma exterioridade distinta” [sic].20 Ao contrário da tática que o autor deine, em suma, como “a arte do fraco”.21 Ou seja, para nós, tem sido perceptível, ao compararmos o teor dos relatos documentais, que nem sempre o bispo em questão está na posição, utilizando aqui uma expressão certeautiana, de operar “golpe por golpe, lance por lance”22 sendo o mais “fraco” da situação. Em contra partida, quando essa relação entre estratégia e tática muda, não sem surpresas, é o outro que perde sua característica de CERTEAU, Michel de. Op. Cit., p. 45. Grifo do autor. Ibidem, p. 95. 22 Ibidem, p. 94. 20 21 153 próprio. Ele entra no vácuo do não lugar, uma vez que, como airma o autor, “o próprio é uma vitória sobre o tempo”.23 Desta maneira, em seu não lugar “a tática depende do tempo, vigiando para ‘captar no voo’ possibilidades de ganho”.24 Isso demonstra que a política impulsionada por Afonso VII tinha suas brechas e que eram bem aproveitadas pela igreja, que buscava, assim, alcançar interesses através de um constante jogo de alianças. O que podemos concluir, parcialmente, é que as relações de força calcadas em estratégias e táticas, quando se referem ao episcopado em destaque, são lutuantes e passiveis de mudanças, dependendo da ótica e da necessidade de Bernardo de Agén em fazer valer seus interesses como bispo e senhor de Sigüenza. 23 24 Ibidem, p. 46. Idem. 154 O CONCEITO DE FEUDALISMO EM PORTUGAL - UMA DISCUSSãO HISTORIOGRÁFICA Bruno Marconi da Costa (Mestrando PPGHC – UFRJ) Tendo origem nas considerações de Alexandre Herculano sobre a Idade Média portuguesa, uma das discussões mais frequentes na historiograia portuguesa do século XX foi sobre a questão do feudalismo. Poderia este conceito, discutido desde teóricos franceses do século XVIII, ser aplicado à realidade do Portugal medieval? O objetivo do presente artigo é apresentar a diversa conceitualização de feudalismo que autores lusitanos desenvolveram durante o século XX e discutir os limites de sua aplicabilidade ao caso concreto do reino. Para empreender este trabalho, selecionamos quatro nomes que consideramos os mais paradigmáticos na contenda em questão: Manuel Paulo Merêa, representante da escola da História do Direito, de grande tradição em Portugal; Armando Castro, que visa efetuar uma ciência econômica das formações sociais, de base marxista; José Mattoso, autor que lança mão das formulações teóricas de Georges Duby para o reino português; e Antônio Henrique de Oliveira Marques, que produz uma análise histórico-geográica da presença do feudalismo em Portugal. Não foi arbitrária a escolha de Manuel Paulo Merêa para representar a historiograia jurídica de Portugal: é um autor intermediário. Escrevendo nas primeiras décadas do século XX, é bastante inluenciado pelas ideias liberais de Herculano e Gama Barros, e é mestre de outro expoente na discussão sobre feudalismo, Torquato de Sousa Soares. A obra de Merêa Introdução ao Problema do Feudalismo em Portugal,1 publicada em 1912, nos oferece uma posição expressiva da perspectiva institucionalista deste grupo de historiadores, ainda que feita com o interesse de ser sintética. Para Merêa, para empreender uma construção de um “minimum exigível” do conceito de feudalismo em sua forma “pura”, devemos nos MERÊA, Manuel Paulo. Introdução ao problema do feudalismo em Portugal: origens do feudalismo e caracterização deste regimen. Coimbra: F. França Amado. 1912. 1 155 deslocar para a França do século XI e observar sua formação social. A divisão social do feudalismo francês, para Merêa, constituinte do que o autor chama de complexum feudale, tem suas bases na existência de duas populações distintas e sobrepostas: a proprietária do solo, independente, soberana e guerreira (a nobreza); e a que trabalha no solo que, de acordo com o autor, não “gosa de existência política” (os servos).2 Para o autor, nesse modelo, os homens livres existem, porém constituem uma exceção, assim como os proprietários de terra nãonobres (alodiais). A burguesia concentra-se nas cidades, “livres sob o ponto de vista civil mas politicamente subordinados”.3 A análise de Merêa do modelo social francês vislumbra, portanto, somente as relações dentro da aristocracia (vassalagem-suserania e guerras) e as relações aristocratas-servos (impostos, trabalho e dominação), tendo as outras relações sociais presentes apenas como exceções ou simples detalhes do modelo em questão. A divisão social, porém, não é o fator decisivo para a existência ou não do feudalismo em uma região, de acordo com Merêa. Baseado em Fustel de Coulanges, o autor defende que “o feudalismo não nasceu dum sistema político, tem as suas raízes no terreno da vida privada”4 (grifos do autor), procurando as origens jurídicas das instituições feudais de benefício e feudo, surgindo na tradição romana (de precario e patronato) e transformando-se na germânica (em benefício e vassalagem, respectivamente, além da imunidade e da apropriação das funções públicas para ins privados). Estes resumem, em si, “os elementos essenciaes do sistema feudal”, formadores do contrato feudal determinante dos limites ao direito de propriedade, que tem as seguintes características: a) limitações ao direito de propriedade, reveladas sobretudo na impossibilidade de alienar ou pelo menos, em várias restrições a esta faculdade. b) obrigação geral de idelidade e protecção. c) existência de certos e determinados encargos, em regra não-pecuniários e predominantemente militares.5 Ibidem, p. 6. Ibidem, p. 10. 4 Ibidem, p. 37. 5 Ibidem, p. 108-110. 2 3 156 Ao analisar as características do contrato feudal apresentadas por Merêa, observamos uma crítica às perspectivas de Alexandre Herculano e Gama Barros. Ambos consideram que a centralização precoce das monarquias ibéricas seriam contrárias à formação de um sistema feudal como o francês,6 enquanto Merêa não vê a ausência de uma segregação de poder enquanto uma característica do feudalismo. Ainda assim, a construção do conceito de feudalismo por Merêa tem por base uma análise jurídica e institucional, em consonância com os autores liberais oitocentistas. Para ele, apenas as relações entre membros da classe dominante deinem o que é feudalismo, apesar destas relações ocorrerem em um ambiente social. A perspectiva de Merêa e a escola jurídica tem sua crítica diametralmente oposta, no que tange à ideia de feudalismo, na obra dos autores marxistas. O representante desta escola que se debruçou no tema com mais vigor foi Armando Castro. Ele defende que o feudalismo é uma etapa do desenvolvimento econômico humano, encontrado em várias sociedades, sucessão lógica do escravismo e antecessor do capitalismo. Analisaremos o seu artigo A teoria Reproduzo duas citações utilizadas pelo próprio Merêa em seu texto para evidenciar a posição de seus antecessores portugueses: “A índole das instituições, ou antes, do direito público, escrito ou consuetudinário, da velha monarquia ovetenseleonesa e das que della procederam, não só foi estranha, mas até repugnante à índole do feudalismo.” HERCULANO apud MERÊA, Op. Cit., p. 132; e “Achamos, nas relações da classe nobre para com a corôa diferenças radicaes com o sistema feudal; mas, considerando nos seus domínios próprios, o homem nobre apareceu-nos numa situação que tem manifesta analogia com a dos senhores feudaes, na imunidade, no exercício dos direitos jurisdicionais, e nos encargos e serviços que lhe deviam os moradores e cultivadores das suas terras. Embora na origem esta situação fosse de todo alheia ao regimen do feudalismo, reconhecemos o inluxo delle na extensão dos direitos e prerogativas que se foram arrogando em Leão e Castella os senhorios particulares. Nestes reinos e no de Portugal a acção e reacção entre o princípio feudal, que era dominante em grande parte da Europa, e as circumstancias peculiares da peninsula, que repeliam aquelle principio, produziram um sistema politico especial, que não era o feudalismo porque lhe faltavam os caracteres essenciaes, mas que também proporcionava à aristocracia elementos vigorosos de resistência ao desenvolvimento do poder do rei nos amplissimos previlegios de que a nobresa estava revestida”. BARROS apud MERÊA, Op. Cit., p. p. 137. 6 157 econômica do feudalismo,7 retirado de uma comunicação apresentada em 1985 na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Para construir sua noção de feudalismo, Castro, parte do conceito de modo de produção. Considera-o o núcleo duro de uma ciência econômica das formações sociais autônoma, tendo, assim, uma orientação epistemológica-disciplinar.8 A partir destas proposições basilares, trata o modo de produção como a primeira escolha lógica e teórica para começar um estudo globalizante (chamado pelo autor de “antropologia global”, que ele mesmo diz não existir de maneira efetiva). Na perspectiva de Castro, as“leis econômicas axiais do feudalismo” devem partir dos seguintes pontos de análise: 1- a relação das classes com os meios de produção, tendo sua base nos domínios senhoriais (“conjunto de meios, objectos e forças de produção”9), onde os laços de dependência feudal seriam apenas uma consequência dessa lei econômica; 2- a importância das normas de coerção extra-econômicas, dando foco ao papel da violência física na relação de senhores e trabalhadores da terra (não necessariamente servos); 3- a observação do excedente no que Castro chama de renda feudal e sua exploração por parte do senhor, que tende a absorver em seus domínios toda a população potencialmente ativa; e 4- observar as transformações históricas, tanto exógenas quando endógenas ao sistema. O modelo, de acordo com Castro, é totalmente aplicável para o caso português. Em outra obra, o autor explicita sua posição no que diz respeito à polêmica sobre o feudalismo em voga em sua época: Se existem, inegavelmente, em Portugal, aspectos particulares e especíicos, sobretudo nas esferas CASTRO, Armando. A teoria econômica do feudalismo. In: CASTRO, Armando. Teoria do sistema feudal e transição para o capitalismo em Portugal. Caminho: Lisboa. 1987. p. 19-52. 8 Ibidem, p. 28-31. De fato, tal conceito de modo de produção não é o único, mesmo entre autores marxistas. Pode-se citar o exemplo de Pierre Vilar que, criticando a ideia da autonomia da economia em relação à história, atrela o conceito de modo de produção à perspectiva da história total. 9 Ibidem, p. 40. 7 158 política, social e jurídica, a verdade é que o nível das forças produtivas, os tipos de relações econômicas entre os homens, as perspectivas leis basilares, incluindo leis especíicas desta formação histórica - circunstância que é decisiva - são os mesmos. Por isso, chamemos a este sistema econômico-social Feudalismo, Sociedade feudal, Sociedade senhorial ou apliquemo-lhe outra designação qualquer, não modiicamos em nada a verdade histórica: trata-se do mesmo sistema econômico-social.10 A diferença basilar entre Merêa e Castro no que se refere à formulação do conceito de feudalismo é no próprio objeto que depositam suas análises: enquanto o primeiro deine o sistema a partir de uma perspectiva institucional, o segundo observa o contrato feudal como simples consequência das estruturas sócio-econômicas vigentes na Idade Média portuguesa. José Mattoso reconhece a contenda historiográica em sua obra A Identiicação de um País.11 Sua posição sobre a polêmica entre historiadores do direito e marxistas é incisiva: A discussão [entre historiadores jurídicos e marxistas sobre o feudalismo] estabeleceu-se num clima de autêntico diálogo de surdos. Enquanto os primeiros limitavam o ‘feudalismo’ às relações entre os membros da classe senhorial decorrentes do contrato feudal, os segundos referiam-se apenas à exploração do campesinato pela nobreza. Uns falavam das instituições a que se deverá chamar, se se quiser utilizar uma terminologia que exclua ambiguidades, ‘feudovassálicas’; outros, das relações sociais de produção e da luta de classes.12 CASTRO, Armando. Irrelevância, sob o aspecto econômico, do conhecido debate acerca de ter ou não existido em Portugal, Leão e Castela o regime feudal. In: CASTRO, Armando. A Evolução Econômica de Portugal do século XII-XV. Lisboa: Portugália. 1966. p. 50-64. 11 MATTOSO, José. Identiicação de um País - ensaio sobre as origens de Portugal (1096-1325). Estampa: Lisboa, 1985. 12 Ibidem, p. 50-51. Grifo meu. 10 159 Após reconhecer o problema teórico no qual se encontrava a historiograia portuguesa, Mattoso propõe uma solução também no âmbito teórico. O autor buscou nos apontamentos de Robert Fossier e Georges Duby sobre feudalismo a divisão do conceito para regime senhorial e regime feudal. O regime senhorial situa-se, para Mattoso, “no plano das relações sociais de produção e dizem respeito às relações entre produtores e detentores dos meios de produção”, e deinido, a partir da sua dimensão política a partir da propriedade, por parte do senhor, não só da terra, mas também “da autoridade e do poder nos domínios militar, judicial, iscal e, chamemo-lhe assim, legislativo”, ou seja, seu poder banal.13 Seria, portanto, um campo material das relações de poder medievais, envolvendo nobres e servos. O regime feudal regula as relações dos detentores do poder político e social entre si. Mattoso assim deine feudalismo: os laços reais estabelecidos entre dois homens, com serviços em princípio recíprocos, em virtude da concessão de um bem, normalmente provisória, feita por um senhor a um vassalo no im de uma série de ritos públicos [...] e um estado de espírito, formado no pequeno mundo dos guerreiros pouco a pouco tornados nobres.14 A interrelação entre os dois regimes se dá a partir de uma determinação do sistema senhorial. Nos diz Mattoso que se este não existisse, enquanto realidade produtiva do período medieval, o feudalismo não teria sentido. O regime senhorial, na região Norte de Portugal, “cria o ambiente propício à difusão de uma mentalidade feudal”. A atuação do rei encaixa-se aqui, de acordo com o autor, para a expansão do feudalismo pelo reino, mesmo em regiões que o regime senhorial não tenha propriamente se ixado. O ideal feudal pode tornar-se o tipo de organização social considerado modelar para o rei, como forma de 13 14 Ibidem, p. 51-53. Ibidem, p. 84-85. 160 estabelecer as suas relações com os membros da classe dominante. (...) O que, porém, explica esta preferência do rei é certamente a sua íntima relação com a nobreza. Justiica-se assim que seja a partir do estudo do regime senhorial que passemos ao da mentalidade feudal, mesmo quando esta se manifesta em regiões diferentes daquela onde esse regime se implantou de maneira mais típica.15 O referencial teórico de Mattoso, portanto, refere-se tanto às perspectivas sócio-econômicas valorizadas por Castro, no âmbito senhorial; quanto à mentalidade na qual funciona os mecanismos de criação das relações entre as classes dominantes, ou seja, o contrato feudal, vislumbrado por Merêa. Sobre tal divisão conceitual, Oliveira Marques explicitou uma crítica no verbete sobre feudalismo do Dicionário da História de Portugal por ele coordenado: O antigo e fundo debate sobre a existência ou não existência do feudalismo em Portugal só adquire signiicado do ponto de vista jurídico-político. Economicamente, nada distinguia a senhoria do feudo. Formas de renda, formas de distribuição e circulação econômica eram as mesmas. Socialmente, também, é pouco mais que um artifício tentar separar um sistema do outro. A condição humana, exceptuadas as relações entre o senhor e o rei, pouco variava.16 Sobre o assunto, porém, mesmo aproximando-se bastante da perspectiva de Castro, Oliveira Marques falou pouco. A melhor deinição de sua perspectiva sobre o feudalismo português encontra-se em sua obra História de Portugal,17 onde parte que o Portugal Feudal é composto por uma sobreposição de estruturas. Estas estruturas têm Ibidem, p. 88-89. Citado em SILVEIRA, Francisco Luiz Borges. Herculano e o problema do feudalismo em Portugal. Convergência Lusíada. Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. , 1977. p. 204. 17 OLIVEIRA MARQUES, A. H. História de Portugal - Das Origens ao Renascimento. Lisboa: Presença, 2010. p. 73-178. 15 16 161 constituições histórico-geográicas, que se transformam na medida em que o reino toma sua forma durante a Idade Média. O Portugal dos séculos XIII a XV apresentava muitas características próprias, consequência natural do encontro e da fusão de estruturas do Norte com estruturas do Sul. Reunia, na verdade a) elementos tipicamente feudais, comuns a toda a Europa Ocidental, resultado da evolução de categorias romanas e bárbaras (principalmente visigodas) e, mais tarde, do declínio do próprio feudalismo; b) elementos feudais deturpados, consequência das necessidades e circunstâncias da Reconquista; c) elementos moçárabes, com uma longa tradição de autodesenvolvimento e isolamento da Europa cristã; e d) elementos islâmicos típicos, comuns a todo o mundo muçulmano, o qual, pelos séculos XII e XIII, se mostrava já feudal ou rapidamente tendendo ao feudalismo.18 De fato, a diferença da perspectiva de Oliveira Marques em relação às propostas anteriores está no fato de admitir as estruturas que não eram propriamente consideradas feudais pela historiograia ibérica (como a tradição moçárabe e muçulmana) enquanto constitutivas desse Portugal Feudal. Só na comparação com as diferentes sociedades que constituíram o reino português é que podemos constituir um estudo compreensivo de fato: O Portugal feudal, como a Castela feudal, exibia assim aspectos do maior interesse, que só em comparação com os demais países europeus e com os Estados islâmicos podem ser cabalmente interpretados e compreendidos. Foi por, em geral, se recusarem a fazêla que os historiadores portugueses (com alguns dos seus colegas espanhóis) vieram a criar e a defender um Portugal artiicial, “senhorial, não-feudal”, espécie de “avis rara” de incerta origem e difícil descrição. Uma vez posta de parte a ideia de um feudalismo monolítico 18 Ibidem, p. 73-74. 162 e geograicamente delimitado, a interpretação do Estado português da Idade Média e dos começos da era moderna deixa de se apresentar como enigma, embora continuando a levantar numerosos e inevitáveis problemas.19 Oliveira Marques, portanto, desloca o eixo de análise do feudalismo. Ao não aportar-se necessariamente ao modelo francês para deinir o conceito, passa a considerá-lo um sistema maleável, transformável de acordo com a localização geográica e o estado geral do processo histórico do objeto analisado. Enim, quais as contribuições que os autores envolvidos na discussão aqui tratada podem herdar para a produção historiográica portuguesa nos dias de hoje, para além da própria função da historiograia? Paulo Merêa, continuador das perspectivas jurídicas de Alexandre Herculano e Gama Barros, ajuda-nos a observar a especiicidade do reino português, tanto no que concerne a aplicação do que considera ser central no modelo de feudalismo - o contrato feudal -, quanto elementos que não fazem parte do conceito - como, por exemplo, a dispersão do poder central em senhorios. Esta perspectiva, porém, é insuiciente por não vislumbrar de fato a realidade social e política do período medieval português, seus conlitos e relações entre categorias que não pertencem ao extrato nobiliárquico. Armando Castro, por outro lado, considera as estruturas sócioeconômicas da sociedade portuguesa. Enquadra-se, porém, em uma orientação já ultrapassada pela atual historiograia, a do determinismo econômico, oriunda da sua defesa da autonomia disciplinar da ciência econômica que pratica. Dentro do próprio marxismo podemos encontrar interpretações críticas à tal posição positivística da teoria de Marx, como nos casos de Edward hompson e Pierre Vilar. Isso não signiica que suas considerações devam ser ignoradas ou vistas como ultrapassadas: elas têm muito para contribuir. Sua análise econômica inclui elementos antes relevados, como considerar a servidão uma condição para a luta política das classes desprivilegiadas do período 19 Ibidem, p. 74-75. 163 medieval, ao contrário de negar-lhes a “existência política”, como faz Merêa. A solução de José Mattoso é, de fato, interessante. Ainda utilizando o modelo da historiograia francesa para Portugal, consegue inserí-la nas especiicidades do reino, como a precoce centralização régia e a expansão da mentalidade feudal para o sul do reino, fruto do processo de “Reconquista”. Cabe-nos perguntar, porém, se tal conceituação é realmente proveitosa. Mesmo interligados, sistema senhorial e feudal podem ser realmente vistos enquanto distintos? Pode-se observar, empiricamente, na sociedade medieval, um sistema senhorial sem uma mentalidade feudal nobiliárquica? O adjetivo “feudal” é realmente efetivo quando apropriado somente para uma descrição mental de uma classe dominante? Como considerar os dois sistemas de forma distinta em uma sociedade que não separava-os em suas práticas cotidianas? A separação dos conceitos resolve o problema inicial e cria outros. A justaposição de estruturas proposta por Oliveira Marques tem a vantagem de analisar Portugal por suas próprias características, e não na tentativa de encaixá-lo em um modelo francês de feudalismo. Apesar disso, ainda observa mais continuidades do que diferenças entre o caso franco e o lusitano, o que pode levar a queda na armadilha que o próprio havia desviado: a de ver Portugal apenas como uma continuidade “periférica” de um “centro” do mundo medieval. Possui, ainda, características similares às de Castro, no que diz respeito à irrelevância das especiicidades jurídicas de Portugal em sua constituição. Em alguns pontos, todos os autores concordam: Portugal possui especiicidades jurídicas, sejam elas determinantes do feudalismo ou apenas derivadas de características econômico-sociais. A presença da centralização régia, precoce em relação aos outros reinos europeus, é indiscutível entre os autores. O que os diferenciam é a relevância de tal processo para a caracterização de Portugal feudal, seja ela nenhuma, primordial ou enquanto forma de deturpação dos ideais feudais advindos da Reconquista. O século XX viu seu im e a discussão sobre a construção e aplicabilidade do conceito de feudalismo em Portugal continuou em 164 aberto. Tomar uma posição sobre ela não é imperativo. Depende do objeto a ser escolhido e do referencial teórico da pesquisa. O que ica, por im, é isto: o conceito de feudalismo não possui um consenso na historiograia sobre o Portugal medievo e é passível de discussão sobre suas formulações. 165 O CORPO: PERSPECTIVAS TEÓRICAS E HISTORIOGRAFIA MEDIEVALISTA Bruno Uchoa Borgongino (Mestrando PEM – PPGHC – UFRJ)1 O corpus documental da minha pesquisa de mestrado é composto por duas regras monásticas2 produzidas na Península Ibérica, no período visigodo: a Regula Leandri, escrita pelo bispo Leandro de Sevilha na década de 590, e a Regula Isidori, redigida pelo também prelado Isidoro de Sevilha entre os anos 615 e 619. Dentre outros aspectos do cotidiano num mosteiro presentes nesses textos, há considerações sobre como o monge poderia se comportar quando fosse necessário algum cuidado especíico para com a sua saúde. Pressupondo que a terapêutica3 prevista nas duas fontes estava articulada com a temática do poder sobre o corpo,4 o objetivo do meu projeto é analisar o porquê dessa relação em discursos que visavam normatizar o comportamento dos monges. Dessa maneira, o conceito de corpo é um dos que norteiam meus esforços investigativos. O que compreendo por esse referencial teórico? Como pretendo aplicálo? Neste trabalho, viso responder a essas duas questões. Tendo em vista as divergências existentes entre os especialistas, intento expor Bolsista CAPES. Paula Barata Dias demonstra que textos desse tipo contêm um código normativo pragmático apresentado numa estrutura esquemática de pequenos capítulos. Cada um desses capítulos é dedicado a um aspecto das vivências dos monges, como as orações, o trabalho, a leitura, dentre outros. Circunscrevem-se a uma comunidade ou sexo em particular, tendo, portanto, uma aplicação imediata como instrumento regulador. O estilo é seco e direto, visando facilitar a compreensão pelo destinatário. Cf.: DIAS, P. B. A regvla como gênero literário especíico da literatura monástica. Hvmanitas, Coimbra, v. 50, p. 311-335, 1998. 3 Entendo por “terapêutica” como o conjunto dos elementos necessários para a conservação ou restabelecimento da saúde física. 4 Esse tópico foi um das constatações presentes em minha monograia de conclusão de curso, acerca da relação entre enfermidade e poder sobre o corpo na Regula Isidori. Cf.: BORGONGINO, B. U. Enfermidade física e poder sobre o corpo dos monges visigodos: o caso da Regula Isidori (615-619). Rio de Janeiro, 2010. Monograia (Bacharelado em História) – Instituto de Filosoia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010. 1 2 166 meu posicionamento à luz da trajetória tanto das propostas teóricas sobre o corpo quanto das abordagens empregadas pela historiograia medievalista no tratamento do tema.5 Cabe ressaltar que a pesquisa a qual esta comunicação se vinculada é realizada no âmbito do Programa de Estudos Medievais (PEM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Friso, ainda, que está inserida no projeto coletivo coordenado pela minha orientadora, a Prof.ª Dr.ª Leila Rodrigues da Silva, acerca da produção intelectual eclesiástica e a normatização da sociedade nos reinos romanogermânicos. O corpo em plano secundário O interesse pelo corpo nas Ciências Humanas é razoavelmente recente, sobretudo nos estudos historiográicos. Desde o século XIX, ocorreram transformações das perspectivas teóricas sobre o corpo, principalmente a partir da década de 1960, quando houve uma intensiicação do debate entre os pesquisadores – conforme demonstrarei adiante. No século XIX, as pesquisas em Ciências Sociais não negligenciavam a corporeidade humana, ainda que não se detivessem verdadeiramente nela. De acordo com David Le Breton, essa “sociologia implícita do corpo”6 possuía quatro seguintes orientações teóricas: a das “incidências sociais sobre o corpo”, em que o corpo seria moldado negativamente pela interação social;7 a do “homem, ‘produto’ Considerando a impossibilidade de apresentar um panorama completo da historiograia concernente ao corpo no medievo, atenho-me às publicações que versam ou sobre a Idade Média como um todo, ou acerca da Primeira Idade Média – o recorte temporal da minha pesquisa. 6 Le Breton apresenta um modelo simpliicado da trajetória das perspectivas sociológicas acerca do corpo, dividida em três grandes momentos. A “sociologia implícita do corpo”, expressão originalmente cunhada por Berthelot, abarcaria os posicionamentos sobre a corporeidade no momento inicial das Ciências Sociais. Cf.: LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrópolis: Vozes, 2009. p.15. 7 A teoria marxiana, por exemplo, alinhava-se à essa perspectiva. Para Marx e Engels, o trabalho seria o uso do organismo para apoderar-se daquilo que na natureza seria essencial para a sua existência. No sistema capitalista, o trabalhador aligiria seu corpo por meio de um labor monótono e desgastante que não o beneiciaria em nada. Logo, o trabalho não seria, para o trabalhador, uma atividade vital, mas prejudicial e injusta, pois martiriza seu corpo e empobrece seu espírito num processo produtivo 5 167 do corpo”, na qual as diferenças sócio-culturais eram explicadas com base nas características biológicas;8 a proposição de Durkheim de que a corporeidade não seria da competência da sociologia;9 e a psicanalítica.10 Na passagem do século XIX para o XX, deu-se início ao que Le Breton denomina como “sociologia em pontilhado”, em que se considerava as propriedades do corpo como produto da interação com os outros. Na abordagem então em voga, colocava-se em evidência elementos referentes à corporeidade e inventariava-se os usos sociais do corpo, sem, entretanto, sistematizar a reunião desses dados. 11 Le no qual é alienado. Com tais argumentos, somado a vários outros, Marx e Engels reprovavam o capitalismo e reivindicavam a sua necessária superação. SOSSA, A. Cuerpo y Sociologia. Relexiones sobre el cuerpo en la teoria sociológica clásica: exploración al pensamiento de Marx, Durkheim y Weber. Revista Cultura y Religión, Chile, v. 3, n. 1, p. 173-190, 2009. p. 174-177. 8 Essa era orientação de algumas correntes criminalísticas do século XIX, como a de Cesare Lombroso. Na sua análise sobre as causas da criminalidade, Lombroso relacionava elementos biológicos, tais como a raça, o consumo de álcool ou a massa cefálica, à prática de determinados tipos de crimes. Em sua argumentação, compunha tabelas com dados estatísticos e relatava casos clínicos que “comprovavam” suas hipóteses. Dessa maneira, estava seguro de que características físicas ou o uso que se fazia do corpo tornavam a pessoa propensa a cometer delitos. Cf.: LOMBROSO, C. Crimes. Its causes and remedies. Londres: William Heinemann, 1911. 9 Sossa, em sua análise sobre o corpo na teoria sociológica clássica, apontou que, para Durkheim, o homem se transforma numa dualidade: um ser biológico e um ser social. O corpo seria um invólucro que possibilitaria distinguir um sujeito do outro e que não passaria de um elemento no qual os fatos sociais poderiam se manifestar. Como a sociologia durkheiniana tinha por objeto o fato social, o corpo perdia sua relevância como objeto de estudo. Cf.: SOSSA, A. Op. Cit., p. 177-180. 10 Lazzarini e Viana apontam que o eu freudiano era essencialmente corporal, uma vez que derivaria das sensações físicas, principalmente daquelas que se originariam na superfície do corpo. Nesse sentido, o eu seria uma projeção mental da superfície do corpo. Por outro lado, no corpo se realizaria o desejo inconsciente, constituído pela trama das relações parentais. Le Breton alega que, mesmo Freud não sendo sociólogo, pensava a corporeidade como matéria modelada, até certo ponto, pelas relações sociais e pelas inlexões da história pessoal do sujeito. Cf.: LAZZARINI, Eliana Rigotto; VIANA, Terezinha de Camargo. O corpo em psicanálise. Psicologia: teoria e pesquisa, Brasília, v. 22, n. 2, p. 241-250, 2006; LE BRETON, David. Op. Cit., p. 18. 11 Foi nesse contexto que Marcel Mauss teorizou acerca das “técnicas do corpo”, tornando-se referência à estudos posteriores sobre o corpo. Conforme argumentou, as técnicas corporais são adquiridas pelos indivíduos a partir da educação que recebe e pelo lugar que ocupa na sociedade. Daí, sua proposta era descrever essas técnicas 168 Breton destaca as contribuições da etnologia desse contexto, cujos pesquisadores eram confrontados com maneiras corporais de outras sociedades, distintas das ocidentais.12 Foi somente no inal da década de 1960 que foi constituída uma Sociologia do Corpo, em que as modalidades físicas da relação do sujeito com o meio social e cultural que o cerca eram consideradas. Conforme David Le Breton airma: “(...) uma sociologia do corpo reúne as condições de seu exercício: uma constelação de fatos sociais e culturais está organizada ao redor do signiicante corpo”.13 No âmbito da História, o corpo só se tornou objeto recorrente de pesquisa em meados da década de 1970. Segundo Mary Del Priore, até então, o corpo era: “coninado às margens, às fronteiras, às zonas de sombras, e aos cantos”.14 Antes de se tornar assunto familiar na pesquisa histórica, houve alguns poucos pesquisadores que o consideraram em suas relexões, inclusive entre os medievalistas – conforme demonstro a seguir. Marc Bloch, em seu clássico Os reis taumaturgos, comparava as trajetórias inglesa e francesa do toque real nas escrófulas para curá-las e analisava o desenvolvimento da crença na eicácia miraculosa desse gesto.15 Ernst Kantorowicz, em Os dois corpos do rei, discorria sobre a idéia, presente na teologia medieval, de um corpo natural e de um corpo político unidos na igura do rei.16 Num texto não tão difundido quanto os anteriores, o historiador da ilosoia Pierre Courcelle analisou a noção de corpo como prisão da alma, oriunda da ilosoia platônica, entre os pensadores da patrística.17 e criar esquemas classiicatórios que abarcassem o conjunto dos dados obtidos. Cf.: MAUSS, Marcel. As técnicas corporais. In: Sociologia e antropologia. São Paulo: EDUSP, 1974. 2v. V. 2. p. 209-233. 12 LE BRETON, David. Op. Cit., p. 18-23. 13 Ibidem, p. 35. 14 DEL PRIORE, M. A História do Corpo e a Nova História: uma autópsia. Revista USP, São Paulo, n. 23, p. 48-55, 1994. 15 BLOCH, M. Os reis taumaturgos. O caráter sobrenatural do poder régio, França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 16 KANTOROWICZ, E. H. he king’s two bodies. A study in medieval political theology. Princeton: Princeton University, 1997. 17 COURCELLE, P. Tradition platonicienne et traditions chrétiennes du corpsprison. Comptes-rendus des séances de l´Académie des Inscriptions et BellesLettres, Paris, v.109, n. 2, p. 341-343, 1965. 169 Portanto, houve autores que elaboraram perguntas que tangenciavam o tema do corpo sem que, entretanto, sua historicidade fosse explicitada. Isso porque a possibilidade de estudar o corpo em si mesmo como dado sócio-cultural ainda não tinha sido considerada, como já mencionei. A emergência da História do Corpo A emergência da História do Corpo se deu num contexto intelectual permeado por debates que propiciaram a elaboração de bases conceituais e teóricas que propiciaram a problematização do corpo pelos historiadores. Destaco dois aspectos dessa conjuntura que contribuíram para o surgimento desse campo de estudos: as renovações da prática historiográica proposta pela “terceira geração” dos Annales,18 sobretudo no que concerne ao diálogo entre a História e a Antropologia; e as novas perspectivas ilosóicas acerca do corpo. No que tange à “terceira geração” dos Annales, Peter Burke argumentou que diversos membros desse grupo levaram mais adiante o projeto de Febvre de estudar as mentalidades coletivas, “estendendo as fronteiras da história de forma a permitir a incorporação da infância, do sonho, do corpo e, mesmo, do odor”.19 Outro elemento apresentado por Burke é a viragem antropológica, isto é, uma mudança em direção à antropologia cultural.20 Foi por meio do contato com a etnologia que os historiadores perceberam a importância das manifestações da vida em sociedade relacionadas ao corpo.21 O século XX assistiu, ainda, a uma crítica ao dualismo corpomente cartesiano,22 em voga principalmente depois da Segunda Guerra Recorro à periodização da Escola dos Annales proposta por Peter Burke. Segundo o autor, a primeira geração compreende os historiadores que atuaram de 1920 a 1945; a segunda, do im da Segunda Guerra Mundial até por volta de 1968; e a terceira, a partir de 1968. Cf.: BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da historiograia. São Paulo: UNESP, 1997. p. 12-13. 19 Ibidem, p. 79. 20 Ibidem, p. 94. 21 Cf.: DEL PRIORE, Mary. A história do corpo e a Nova História: uma autópsia. Revista da USP, São Paulo, n. 23, p. 49-55, 1994; Idem. Dossiê: a história do corpo. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 3, p. 9-26, 1995. 22 Descartes delimitou de forma muito clara as dimensões corporal e espiritual do homem. No sexto capítulo das Meditações Metafísicas explica que o corpo é uma 18 170 Mundial. Na ilosoia fenomenologia francesa do pós-guerra, insistiuse que o corpo não podia ser reduzido a uma simples máquina, pois sempre incorpora a consciência. Nesta perspectiva, o mundo externo estaria conectado com as ações corporais ou com as possibilidades de ações corporais. Assim, ao perceber o mundo, o sujeito reletiria sobre como pode agir com o seu corpo no mundo.23 Como aponta Peter Burke, as propostas por Merleau-Ponty,24 Foucault25 e Bourdieu26 forneceram suporte ilosóico para o estudo coisa extensa, divisível e que não pensa, enquanto a alma é uma coisa que pensa, e que não é extensa e nem divisível. O corpo seria meramente uma máquina capaz de se mover mesmo sem a direção da vontade, mas somente com a disposição dos seus órgãos. Em contraposição, o conhecimento da verdade seria competência apenas do espírito. Com isso, o corpo era reduzido à condição de objeto natural e destituído de signiicação, impossibilitando a análise da relação entre o corpo com um contexto sócio-cultural. Cf.: DESCARTES, René. Meditações metafísicas. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 109-134. 23 TURNER, B. S. he body & society. Londres, housand Oaks, Nova Déli: Sage, 1999. p. 1-36; 60-82. O autor destaca que há, na abordagem fenomenológica, uma ênfase na questão ilosóica da signiicação, em detrimento do corpo como construção e experiência social. Por isso, acredita que tal perspectiva seja limitada do ponto de vista sociológico. 24 Segundo Furlan, Merleau-Ponty formulava que a vivência espaço-temporal e a dimensão simbólica do comportamento faziam parte de uma única experiência de mundo. Assim, não poderia biologizar a ação humana, como se fosse apenas mais engenhosa que a dos animais. O sentido da ação e do meio percebido seriam construídos com a ajuda da linguagem, cuja signiicação emergiria na consciência da criança por meio da intenção signiicativa vinda de outro. Cf.: FURLAN, Reinaldo. A noção de “comportamento” na Filosoia de Merleau-Ponty. Estudos de Psicologia, Campinas, v. 5, n. 2, p. 383-400, 2000. 25 Para Foucault, o corpo estaria submerso em relações de poder que o investiria, marcaria, dirigiria, supliciaria e sujeitaria. Pressupondo o poder como algo não meramente repressor, mas produtor de saber, Foucault estabelece o conceito de “tecnologia política do corpo” em Vigiar e punir, que se refere a um saber sobre o corpo que propiciaria sua submissão ao poder. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 25-27. 26 Bourdieu postulou que o corpo é objeto de investimentos tanto em sua forma perceptível quanto em suas manifestações individuais. Mesmo o que há de mais natural em aparência, como as propriedades físicas e os hábitos da pessoa, seria produto social que se perpetuaria a partir de suas condições sociais de produção. As propriedades corporais seriam apreendidas através de categorias de percepção 171 do corpo pelos historiadores.27 Esses autores não reproduziam as proposições cartesianas de que o corpo seria apenas uma máquina regida por leis naturais e cuja essência seria oposta a uma mente com a qual mantinha pouco vínculo. A despeito de suas divergências teóricas, esses três autores convergiam ao conceberem o corpo como indissociável de um sujeito que o percebe, modela e utiliza num determinado contexto. Na década de 1970, quando se tornou comum os estudos historiográicos acerca do tema, o corpo em si mesmo permaneceu num plano secundário: as pesquisas eram dedicadas à sexualidade ou à demograia histórica. Conforme avalia: O problema não era a falta de fontes documentais, mas sim, as perguntas que se colocavam às fontes. Neste momento, os historiadores preocupavam-se mais em questionar as relações entre a vigilância moral e a articulação do desejo, a infração e a repressão, os atos e a culpa.28 Foi nesse contexto que surgiram as análises que versavam sobre a sexualidade no medievo, tais como as de Foucault,29 de Salisbury,30 e de sistemas de classiicação sociaç que tenderiam a opor, numa hierarquização, as características dos dominantes e a dos dominados. Os agentes aplicariam esses esquemas sociais aos seus próprios corpos, porque as reações ou as representações suscitadas nos outros pelos corpos desses agentes seguiriam essas categoriais sociais de representação. Assim, a incorporação desses esquemas decorreria da antecipação inconsciente das chances de sucesso de interação. Cf.: BOURDIEU, Pierre. Remarques provisoires sur la perception sociale du corps. Actes de la recherche en sciences sociales, Paris, v. 14, p. 51-54, 1977. 27 BURKE, P. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 97. 28 DEL PRIORE, M. Dossiê: a História do Corpo. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 3, p. 9-26, 1995. p. 13. 29 FOUCAULT, M. O Combate da Castidade. In: ARIÈS, Philippe; BÉJIN, André (Orgs.). Sexualidades Ocidentais. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 25-38. 30 SALISBURY, J. E. he Latin doctors of the Church on sexuality. Journal of Medieval History, Oxford, n. 12, p. 279-289, 1986. 172 de Brown31 e, mais tardiamente, de Le Gof.32 A despeito dos objetivos distintos de cada um dos trabalhos, em todos estiveram presentes os temas da associação entre sexo e pecado e do combate do cristão contra os desejos da carne. Mary Del Priore alegou que foi no inal da década de 1980 que o corpo começou a interessar ao historiador como espaço constitutivo de laços sociais. Ainal, seus atos, gestos e práticas são elementos de uma cultura e retratam sistemas de valores.33 Foi nesse momento que começou o desenvolvimento de pesquisas que explorassem outros aspectos da corporalidade para além da sexualidade – o que, obviamente, não levou ao abandono dessa última.34 Nessa busca por novos temas, surgiram investigações que consideravam aspectos diversos da experiência corporal na Idade Média. O trabalho de Richard Sennett, por exemplo, narrou a história da cidade no Ocidente através da experiência corporal, dedicando várias páginas ao período medieval.35 Jean-Claude Schmitt, por sua vez, discorreu sobre a relação entre gestos e valores éticos.36 Caroline Walker Bynum publicou um livro sobre a idéia de ressurreição do corpo.37 BROWN, P. Corpo e sociedade. O homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. 32 LE GOFF, J. A recusa do prazer. In: Amor e sexualidade no Ocidente. Porto Alegre: LP&M, 1992. p. 150-163. 33 DEL PRIORE, M. Op. Cit., p. 14-15. 34 O livro editado em 1997 por Lochrie, Mc Cracken e Schultz, Constructing medieval sexuality, assim como o artigo de 2003 de Gallego Franco sobre a sexualidade nas Etimologias de Isidoro de Sevilha, demonstram que o tema da sexualidade medieval não foi abandonado com o aparecimento de novas questões concernentes ao corpo. Cf.: LOCHRIE, K.; McCRACKEN, P.; SCHULTZ, J. A. (Eds.). Constructing medieval sexuality. Minneapolis: University of Minnesota, 1997; GALLEGO FRANCO, H. La sexualidad en “Las Etimologías” de San Isidoro de Sevilla: cristianismo y mentalidad social en la Hispania visigoda. Hispania Sacra, Madrid, n. 55, p. 407-431, 2003. 35 Nesse sentido, esse autor não é um medievalista, mas um pesquisador que elaborou algumas relexões sobre a Idade Média. SENNETT, R. Carne e pedra. O corpo e a cidade na civilização Ocidental. Rio de Janeiro. São Paulo: Record, 2003. 36 SCHMITT, J. –C. A moral dos gestos. In: SANT´ANNA, D. B. de. Políticas do corpo. Elementos para uma história das práticas corporais. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. p. 141-161. 37 BYNUM, C. W. he ressurection of the body in Western Christianity, 2001336. Nova York: Columbia University, 1995. 31 173 Sobre Bynum, friso que foi que se posicionou mais explicitamente contra a ênfase excessiva da historiograia medievalista na sexualidade e no pouco desenvolvimento de outros fenômenos da corporeidade. Num artigo publicado em 1995, Why all the fuss about the body? A medievalist´s perspective, alegava que, a despeito do debate historiográico acerca do sexo no medievo, a maior preocupação teológica no período em relação ao corpo era com o sofrimento e a morte.38 Além desses estudos que abordavam o corpo em si de maneira mais direta, surgiram investigações que lidavam com elementos especíicos da corporeidade até então negligenciados pela maioria dos historiadores. Jacques Le Gof e José Rivair Macedo consideraram o riso como objeto de estudo.39 Leila Rodrigues da Silva pensou a questão da gula40 e do trabalho41 em regras monásticas de época visigoda. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, em seu artigo sobre um documento médico de Pedro Hispânico, analisou idéias e comportamentos relacionados à saúde e à doença.42 Duby, por sua vez, fez breves ponderações sobre a dor física no medievo.43 Idem. Why all the fuss about the body? A medievalist´s perspective. Critical Inquiry, Chicago, v. 22, n. 1, p. 1-33, 1995. p. 5. 39 Cf.: MACEDO, J. R. Riso, cultura e sociedade na Idade Média. Porto Alegre: Editora da Universidade. UFRGS, 2000; LE GOFF, J. O riso na Idade Média. In: BREMER, J.; ROODENBURG, H. Uma história cultural do humor. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2000. p. 65-82. 40 SILVA, L. R. da. A gula nas regras monásticas de Isidoro de Sevilha e Frutuoso de Braga. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS, 4., 2001, Belo Horizonte. Atas ... . Belo Horizonte: PUC-MG/Associação Brasileira de Estudos Medievais, 2003. p. 649-657. 41 Idem. Trabalho e corpo nas regras monásticas hispânicas do Século. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS, 5., 2003, Salvador. Atas.... Salvador: Associação Brasileira de Estudos Medievais, 2005. p. 192-198. 42 SILVA, A. C. L. F. da. Livro sobre a conservação da saúde: uma contribuição portuguesa à medicina medieval. Boletim Centro de Estudos Portugueses Jorge Sena, São Paulo, n. 15, p. 45-60, 1990. 43 DUBY, G. Relexões sobre o sofrimento físico na Idade Média. In: Idade Média, Idade dos Homens. Do amor e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 161-165. 38 174 Por volta da metade da década de 1990, com a difusão das pesquisas sobre o corpo e com a participação de historiadores renomados nesse debate, o tema da corporeidade ganhou uma projeção maior nos estudos medievais. A existência de livros voltados a um público leigo em que constavam capítulos dedicados ao assunto é um indício desse ganho de importância. No Dicionário temático do Ocidente Medieval, há um verbete escrito por Jean-Claude Schmitt sobre a relação corpo e alma.44 No manual A civilização feudal, de Jérôme Baschet, um capítulo inteiro é dedicado ao tema.45 Por im, houve a publicação de uma entrevista de Jacques Le Gof ao jornalista Nicolas Truong sobre o corpo no imaginário e no cotidiano dos homens medievais.46 A produção diversiicada dos autores citados, longe de constituírem a totalidade dos estudos hoje disponíveis sobre o corpo, representam a variedade de objetos e de perspectivas de pesquisa sobre Idade Média disponíveis atualmente no campo da História do Corpo. Assim, o corpo consiste numa categoria ampla de análise, munindo o medievalista de múltiplas possibilidades de estudos. Minha pesquisa está inserida nesse contexto historiográico, ao problematizar os meios pelos quais a saúde física é preservada ou restabelecida. A aplicação da categoria corpo Para um estudo historiográico do corpo, é necessária a atenção à sua historicidade. Por isso, recorro à maneira como David Le Breton o conceitua: o signiicante “corpo” é uma icção elaborada social e culturalmente, tanto nas suas ações sobre a cena coletiva quanto nas teorias que explicam seu funcionamento ou nas relações que mantém com o homem que encarna. Isto porque não há unanimidade nas sociedades humanas acerca de como caracterizá-lo. Assim, o corpo consiste numa linha de pesquisa, não numa realidade em si.47 SCHMITT, Jean-Claude. Corpo e Alma. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2002, 2v. V. 1. p. 250-264. 45 BASCHET, J. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. 46 LE GOFF, J.; TRUONG, N. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. 47 LE BRETON, David. Op. Cit., p. 24-26 ; 32-33. 44 175 A partir de tal referencial, é possível averiguar em minhas fontes que o termo latino “corpus”, traduzível para o português como “corpo”, refere-se a algo distinto do seu “equivalente” atual no meu idioma. Conforme avalia Sant´Anna, o corpo ocupa um lugar de destaque, sendo objeto de imensas curiosidades, de intensas explorações comerciais e de diferentes manipulações cientíicas e industriais.48 Le Breton, por sua vez, sublinha que o corpo hoje é pensado como uma matéria indiferente, ontologicamente distinto do sujeito e sobre o qual o indivíduo deve agir a im de melhorá-lo. Na contemporaneidade, o corpo é um fardo por conta da sua fragilidade, porém modiicável e aperfeiçoável.49 Por outro lado, no medievo o corpo era considerado material e mortal, em contraposição com a alma, imaterial e imortal. Essas duas esferas humanas mantinham entre si uma relação de complementaridade tal que eram indissociáveis. O corpo era o lugar das tentações e o instrumento pelo qual a alma pecaria, podendo condená-la; por outro lado, poderia assegurar para a alma a salvação por meio da ascese.50 O apoio da bibliograia especializada fornece o suporte necessário para o aprofundamento dessas especiicidades do corpo na Idade Média à luz do meu objeto de estudo, que é a terapêutica. Logo, meu projeto é tributário das relexões desenvolvidas até o presente momento, recorrendo a tais considerações para abordar um aspecto da corporeidade que ainda é pouco compreendido: a terapêutica, ou seja, os cuidados necessários para a manutenção ou restabelecimento da saúde. Considerações inais Foi somente na década de 1970 que o corpo se tornou objeto comum da relexão historiográica. Até então, eram poucos os estudos dedicados ao tema, inclusive os que discorriam sobre o período SANT´ANNA, D. B. de. As ininitas descobertas do corpo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 14, p. 25-249, 2000. 49 LE BRETON, David. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003. p. 15-26. 50 LE GOFF, Jacques. Op. Cit., p. 35-36; SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit., p. 250264. 48 176 medieval. Assim, trabalhos como os de Marc Bloch, Kantorowicz e Pierre Courcelle eram exceções, mas que, ainda assim, não explicitavam o corpo em si como algo inluenciado pelo meio social e cultural do sujeito. A emergência da História do Corpo decorreu da aproximação da Nova História com a etnologia e com a incorporação de novos objetos de pesquisa. Também foi inluenciada pelas discussões ilosóicas do pós-Segunda Guerra Mundial, em que criticou-se a perspectiva cartesiana que reduzia o corpo a uma máquina, de natureza oposta à mente que nele reside. Inicialmente, a maior parte da produção historiográica no campo foi dedicada à sexualidade, icando o corpo em si mesmo relegado a um plano secundário. No âmbito dos estudos medievais, Bynum criticou a ênfase no tema do sexo em detrimento de outros aspectos da corporeidade, tendo em vista, sobretudo, que a questão mais recorrente entre os teólogos da Idade Média concernente ao corpo era sobre a morte e o sofrimento. A difusão das pesquisas especializadas e o envolvimento de historiadores renomados no decorrer da década de 1990 izeram com que o estudo do corpo ganhasse um papel destacado entre os medievalistas. Um desdobramento da relevância atual dessas investigações é a veiculação, em livros destinados a um público leigo, de capítulos dedicados ao tema. Minha pesquisa, sobre a terapêutica em duas regras monásticas visigodas, é norteada pelo conceito de corpo, conforme as relexões do sociólogo David Le Breton. Nesse sentido, acredito que não há uma forma universal de deinir o que é o corpo, uma vez que é caracterizado de maneiras diferentes pelas variadas sociedades. O termo latino corpus, embora tendo o equivalente corpo em meu idioma, refere-se a uma realidade distinta. Cabe, em meus esforços investigativos, perceber as especiicidades do corpo no período que estudo, recorrendo, para tal, às pesquisas desenvolvidas até o momento acerca da questão. 177 OS ESTUDOS COMO ELEMENTO DE IDENTIDADE ENTRE OS FRADES DOMINICANOS NO SÉCULO XIII: OS CASOS DOS CONVERSOS E DAS MONJAS Carolina Coelho Fortes (Doutora PEM – UFRJ – Docente Gama Filho – FGV) Introdução A Ordem dos Frades Pregadores, instituída em 1216, foi concebida inicialmente como um grupo de homens que teria como missão converter os hereges e erradicar seus “erros”. O papado não se lhes opôs, mas de pronto lhes fez uma sugestão: que adotassem uma regra já aprovada. Ainal, eram muitas as casas religiosas. A Sé Romana, lutando a sua própria batalha em busca de centralização, precisava dar coesão às instâncias eclesiásticas, muitas delas arredias às suas determinações. Havia pelo menos quarenta anos, por exemplo, que o papado vinha tentando convencer os clérigos de que eles deveriam instruir-se.1 Assim, os confrades de Domingos tomam para si o conselho de Inocêncio, adotando a regra de Agostinho, mas também se alinham à política de reforma papal, submetendo-se a Cúria também no que dizia respeito à necessidade de educação. Para tanto, os pregadores se armaram de um corpo legislativo que previa, no geral, e progressivamente também nos detalhes, um sistema educacional que servia para instruir a si mesmos e aos demais clérigos. Os frades pregavam, é claro. Mas os registros deixados por eles mostram que a pregação estava em segundo plano, em termos identitários, se comparamos seus esforços empreendidos neste campo aos dedicados à construção da rede de escolas e à conversão de noviços instruídos. O Cânon 18 do III Concílio Lateranense (1179) estipula que os clérigos deveriam se instruir, o que será fortalecido e ampliado pelo cânon 11 do IV Concílio de Latrão (1215). hird Lateranan Council – 1179. Disponível em http://www. documentacatholicaomnia.eu/03d/1179-1179,_Concilium_Lateranum_III,_ Documenta_Omnia,_EN.pdf. Acesso em 09 de março de 2011; FOREVILLE, Raimunda. (Ed.). Lateranense IV. Vitória: Eset, 1973. p. 168-9. 1 178 Percebemos que a insistência nos estudos faz transparecer o anseio de dar coesão interna à Ordem, bem como de diferenciá-la em relação a outros grupos eclesiásticos, frades menores, clérigos seculares e monges. Entendendo a pregação como produto da instrução em teologia, os dominicanos não só foram os primeiros a estabelecer uma rede educacional sólida que serviria de modelo para as demais ordens, como se aliava ao papado, com o qual contava para a concessão de benefícios que possibilitavam sua ação eclesiástica.2 Essa foi a linha condutora de nossa tese de doutorado, que teve como marco cronológico inicial situa-se o contexto que compreende a missão de Diego de Osma e Domingos de Gusmão no Languedoc, por volta de 1205, quando as experiências de pregação naquela região começam a destacar os elementos que posteriormente fariam parte da Ordem dos Pregadores. Optamos por analisar o processo de construção da identidade da Ordem até o ano de 1263, em que Humberto de Romans, seu quinto mestre geral, abre mão de seu cargo, após empreender, por nove anos, uma reestruturação jurídica abrangente, inclusive, e principalmente no que se relacionava aos estudos. Nesse trabalho, em especíico, nos concentremos em dois documentos: as regras dos frades, como redigida em 1228, e a regra das monjas dominicanas, datada da década de 1250. Preocupa-nos evidenciar, nestes documentos, como e por que os frades pregadores buscaram construir sua identidade por meio dos estudos, sem ignorar que este processo foi irregular, uma vez que percebemos uma série de tensões, tanto internas quanto externas à Ordem, que, entretanto, contribuíram para moldar esta identidade. Percebemos que a intenção de identiicar o grupo de frades como um grupo de estudantes decorria, sobretudo, das instâncias de autoridade dentro da Ordem, que, ainda que mal discerníveis nas fontes, tinham seus mestres gerais como principais patrocinadores. Sabemos, no entanto, que não foram os únicos. Temos que lembrar, no entanto, que nas primeiras décadas da Ordem, e certamente depois, os frades apostaram no proselitismo de homens oriundos das universidades, PENNINGTON, Ken. Law, legislative authority and theories of government, 1150-1300. In: BURNS, James. (Ed.). Medieval Political hought, c. 35—1450. Cambridge: University Press, 1995. p. 452-453. 2 179 que rapidamente ascenderiam na hierarquia dominicana, e auxiliariam também na conformação de uma Ordem de estudantes e mestres. Pretendemos demonstrar que os dominicanos, mais do que pela pregação, deiniam-se pelo estudo, inclusive nos casos que passamos a expor, que podem ser considerados como de grupos secundários da Ordem: os conversos e as mulheres. As “Constituições” dos conversos O último capítulo das Constituições3 é dedicado aos conversos. Assim eram chamados os leigos que ingressavam na Ordem. Desde 1216, esses eram considerados nas Constituições.4 Os conversi eram frades que não haviam sido revestidos das ordens sacras nem pretendiam fazê-lo, a eles legava-se o trabalho manual. Foram considerados necessários, pois, de acordo com o testemunho de João de Espanha no processo de canonização de Domingos, durante o primeiro capítulo geral da Ordem, o fundador havia sugerido: Para que os frades se dedicassem integralmente aos estudos e à pregação, o referido frei Domingos queria que os conversos de sua Ordem, embora sendo privados dos estudos, na administração e no governo das coisas temporais fossem responsáveis pelos frades que haviam estudado.5 As Constituições, ou Liber consuetudinum, é uma série de adaptações da regra de Agostinho, feitas a partir de 1216, e que servirá como guia da vida comum dominicana. Para este trabalho, nos baseamos especialmente na versão latina do texto presente no artigo de Tugweel. TUGWELL, Simon. he Evolution of Dominican Structures of Government, III: the early development of the second distinction of the constitutions. Archivum Fratrum Praedicatorum, Roma, v. LXXI, p. 5-183, 2001. p. 12. 4 KOUDELKA, Vladimir. (Ed.). Monumenta Diplomatica S. Dominici, Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorum Histórica. Roma: Institutum Historicum FF. Praedicatorum, 1966. v. XXV. p. 73; TUGWELL, S. he evolution... Op. Cit., p. 121. 5 “Et ut fratres fortius intenderet studio et predicationibus, voluit dictus frater Dominicus, quod conversi eius ordinis illiterati preessent fratribus literatis in administratione et exhibitione rerum temporalium.” Acta canonizationis. In: LAURENT, M-H. (Ed.). Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorium Historica. Op. Cit., 1935. v. XVI. p. 144-5. 3 180 Os frades capitulares, no entanto, não aceitaram a proposta. Talvez por isso a regra dos conversos, elaborada naquele Capítulo, inspira-se na legislação cisterciense e não na premonstratense, como ocorre com várias passagens das Constituições, porque mais do que esta, estabelecia uma clara distinção entre clérigos e conversos. Isto resultou em que os conversos, ainda que fossem pares dos outros frades por força de sua idêntica proissão de fé, constituíam uma categoria à parte, com sua própria regra de vida e até mesmo com um hábito especíico.6 Não deviam portar a capa, vestimenta própria do clérigo, mas, assim como ocorria com os conversos cistercienses, ter dois escapulários, diferentes em forma e cor: um longo e grande, em forma de casula gótica, de qualquer cor que não o branco (geralmente cinza ou preto), levado sob a túnica branca na igreja e fora do convento; o outro, mais curto e estreito, cinza, que era usado no convento como um avental de trabalho, a ser usado dentro do convento. À essa marca aparente de distinção levada sobre o corpo unese uma segunda, além da própria exclusão dos votos religiosos: o impedimento do estudo. De acordo com Estevão da Espanha, o frade que se lembrou, em seu testemunho, de relatar aos legados papais a passagem sobre os conversos, Domingos teria claramente pretendido que estes se ocupassem da administração da Ordem para que os demais frades pudessem estudar e pregar. Ora, se assim disse, era porque estava claro para todos, na reunião capitular de 1220, que os conversos não pregavam nem estudavam. Podemos ler nas “regras dos frades conversos”, que constitui o último capítulo da segunda distinção: “Nenhum converso poderá se tornar cônego7 nem ter livros para estudar”.8 Tornar-se cônego e “ter livros para estudar” aparecem como aspectos relacionados. E, assim como não podem passar a um estado integral de vida religiosa, representado pela tomada dos votos, também LIPPINI, Paolo. San Domenico visto daí suoi contemporanei. Bologna: ESD, 1998. p. 130. 7 Cônegos é o termo usado nas Constituições para se referir aos clérigos. 8 “Nullus conversus iar canonicus, nec in libris causa studenti se audeat occupare.” Constitutiones antiquae, II, p. 366. 6 181 não devem: “sair do convento sozinhos, mas sempre acompanhados por um clérigo ou outro converso”. Era-lhes vetado, portanto, o livre ir e vir que marcava indistintamente a vida do frade pregador, que o possibilitava, entre outras funções, atender às escolas provinciais e gerais da Ordem. Mas o próprio impedimento de portar “livros para estudar” já era suiciente para afastá-los daquela atividade que dava à Ordem sua identidade. Não sendo clérigos, não estavam aptos, nem sequer precisavam estudar. O estudo, portanto, era visto tanto como um valor, quanto como uma forma de distinguir conversos de clérigos. Possuir livros, e neles estudar, era uma espécie de “bem simbólico” que auxiliava na organização hierárquica da Ordem, na qual os clérigos encontravamse no nível mais alto. É relevante para o nosso argumento frisar que não há qualquer menção, na regra dos conversos, ao impedimento, bem como a permissão de que estes pregassem. Com isso não pretendemos defender que o faziam,9 mas que os frades não sentiram a necessidade de explicitar a atividade da pregação naquele trecho das Constituições. Nesta curtíssima regra, composta, nas edições que temos em mãos, de oito breves parágrafos, dos quais quatro tratam dos ofícios aos quais deveriam estar presentes os conversos, um estipula suas vestimentas, um estabelece a prática do jejum e dois tratam de disposições gerais,10 encontra-se espaço para proibi-los de estudar, mas não de pregar. Esta, aos nossos olhos, é mais uma prova indistinta de que os dominicanos entendiam sua identidade, sobretudo, atrelada aos estudos. As Constituições das monjas Resta-nos, ainda, analisar um documento entendido como “Livro de costumes” produzido pela Ordem dos Frades Pregadores. Aquele que rege a vida das monjas que, desde ainda a vida de Domingos, É muito provável que os conversos não pregassem, uma vez que a atividade da pregação estava condicionada a alguns anos de estudo obrigatório, o que, como vimos, era vetado a eles. 10 Além da curta frase que transcrevemos acima, ainda há disposições sobre a aceitação de novos conversos pelos priores provinciais e a proibição de que saíssem sozinhos do convento. 9 182 unem-se à Ordem.11 Esse documento tem uma história bastante controversa. Vicaire, Tugwell e Fontette defendem que suas origens se encontram nos instituta redigidos em 1212 para as monjas de Prouille.12 Smith e Lippini13 vêem no documento o esforço dos frades em tentar moldar a vida das monjas a partir, especialmente, da uniicação de casas de religiosas romanas, missão que Honório III havia legado a Domingos.14 O texto das monjas reunidas no convento de San Sisto teria sido escrito pelo próprio fundador, que se baseara também na regra agostiniana. 15 Ele seria utilizado por Gregório IX em 1232, como base para a vida das Irmãs da Penitência de Santa Inês de Estrasburgo, que posteriormente foi suplementada por estatutos locais.16 Uma nova transformação no texto ocorreria, ao que tudo indica, em 1245, quando o papa Inocêncio IV emite uma bula ordenando que a comunidade de monjas de Montargis fosse incorporada à Ordem.17 Isso levou a Como vimos, a primeira fundação organizada por Domingos é dedicada à um grupo de mulheres convertidas do catarismo, em Prouille. Cf.: VICAIRE, MarieHumbert. Histoire de Saint Dominique. Paris: Du Cerf, 2004. p. 248. 12 Ibidem, p. 268; TUGWELL, Simon. Notes on the Life of Saint Dominic. Archivum Fratrum Predicatorum, Roma, n. 65, p. 5-169, 1995; DE FONTETTE, Michellinne Pontenay. Les religieuses à l´age classique du droit canon. Paris: Vrin, 1967. 13 SMITH, Julie Ann. Prouille, Madrid, Rome: the evolution of the earliest dominican instituta for nuns. Journal of Medieval History, Oxford, n.35, p. 340352, 2009. p. 347; LIPPINI, P. San Domenico… Op. Cit., p. 205-208. 14 As Constituições de San Sisto de Roma sobreviveram na cópia de uma bula de Gregório IX, de 1232, em outra, de Nicolau IV, de 1291. Institutiones Ordinis monialium Sancti Sixte de Urbe. RIPOLL, E.T; BRÉMOND, A. (Eds.) Bullarium Ordinis fratrum praedicatorum, Roma, 1729. v. VII. p. 410. 15 SMITH, J. A. Prouille, Madrid, Rome…. Op. Cit., p. 350-351. 16 Não se tem notícia de quem escreveu esse texto, porque e quando o fez, mas percebese que está intimamente relacionado com a primeira distinctio das Constituições dos frades pregadores. KOUDELKA, Vladimir. Le Monasterium Tempuli et la fondation dominicaine de San Sisto. Archivum Fratrum Predicatorum, Roma, n.31, p. 5 -81, 1961. 17 BRETT, Edward. Humbert and the Dominican Second Order. In: ___. Humbert of Romans. His Life and Views of hirteenth Century society. Toronto: PIMS, 1984. p. 63. 11 183 que as monjas de Montargis adotassem a regra de San Sisto que, no entanto, se mesclaria ao texto revisado em 1241 das Constituições dos frades.18 Enim, o Capítulo Geral de 1259 estabelece uma regra para as monjas, que pretende homogeneizar o tipo de vida feminina em toda a Ordem.19 É com base nesse texto que pretendemos entender a relação entre a Ordem Segunda e os estudos. Antes de nos lançarmos a esta análise, no entanto, são necessárias algumas palavras a respeito do braço feminino da Ordem dos Pregadores. Essa relação teria princípio com a conversão de “certas nobres cujos pais haviam sido forçados pela pobreza a coniar suas ilhas aos heréticos para que fossem educadas e criadas”.20 Para alojar essas mulheres, Domingos fundou o convento de Prouille em 1206, e em 1212 elas já estavam supostamente enclausuradas sob um regime monástico apoiado pelo cruzado Simon de Montfort.21 Assim nasce a primeira casa feminina sob os cuidados de Domingos, mas ainda Ao que tudo indica, essa nova regra teria sido escrita por Humberto de Romans que, alguns anos mais tarde, percebevendo a falta de coesão entre as regras seguidas pelas monjas da Ordem, requisitaria permissão ao papa Alexandre IV para redigir uma nova regra (em carta de 27 de agosto de 1257). BRETT, Edward. Op. Cit., p. 73. 19 “Iniungimus districte et in virtute obediencie quod nulle mullieres pro sororibus habeantur a fratre quocumque nisi de quibus constiterit prioribus provincialibus in quorum provinciis sunt constitute quod auctoritate alicuius magistri ordinis vel capituli generalis vel alicuius pape cure ordinis sunt comisse. Priores autem provinciales inquisicione facta super hiis diligenti in sequenti capitulo magistro referant quot et quas et in quorum conventuum terminis de huiusmodi sororibus domos habeant.” Acta, p. 98. 20 “Ad susceptionem autem quarundam feminarum nobilium, quas parentes earum ratione paupertatis erudiendas et nutriendas tradebant hereticis, quoddam instituit monasterium, situm inter Fanum Iovis et Montem Regalem, nomen loci eiusdem Prulianum, ubi usque in hodiernum diem ancille Christi grata exhibent suo creatori servitia (...).” IORDANO DE SAXôNIA. Libellus de principiis ordinis Praedicatorum, ed. H. C. Scheeben, p. 39. In: Monumenta Ordinis fratrum Praedicatorum Histórica. . Op. Cit., 1935. T. XVI. p. 39. 21 Smith defende que, nesses primeiros anos, não havia clausura entre as seguidras de Domingos. SMITH, Julie Ann. Clausura Districta: Conceiving Space and Community for Dominican Nuns in the hirteenth Century. Parergon, Australia e Nova Zelândia, v. 27, n. 2, p. 13-36, 2010. 18 184 não dos dominicanos, uma vez que a Ordem ainda não havia sido fundada. Ao contrário do que pode indicar esse fato, a relação dos frades com as mulheres que pretendiam se unir a sua forma de vida não foi pacíica. Entre os dominicanos é possível rastrear as várias proibições impostas pelos Capítulos Gerais22 à ailiação de casas femininas à Ordem. Pregavam para as mulheres,23 mas resistiam fortemente a tomá-las como irmãs. Domingos havia fundado ou trazido para a Ordem, ao todo, quatro conventos de mulheres,24 o que certamente mostra sua concordância em relação à vida religiosa feminina dentro dos preceitos estabelecidos por ele. Contudo, é claro que esses preceitos não poderiam ser aplicados às mulheres sem que houvesse uma adaptação, já que, como o próprio nome indica, a missão principal dos dominicanos é a pregação, e às mulheres é vetada tal atividade desde inícios do cristianismo (1 Tm 2, 12).25 É necessário que se leve em consideração, entretanto, que, nos primeiros anos de organização desse movimento, Domingos e seus seguidores se entendessem como um grupo de cônegos regulares.26 Ou seja, é provável que a própria missão dominicana ainda não estivesse muito clara para eles. O que explicaria a fundação dos conventos femininos por Domingos. As mulheres, então, se inseririam na vida contemplativa. No entanto, conforme a missão se desenvolvia, os contornos especíicos da Ordem iam se tornando cada vez mais Dentro do recorte temporal imposto para a pesquisa, encontramos 8 proibições de ailiação de casas femininas à Ordem ou cuidados das religiosas nas atas dos capítulos de 1228 (presente nas Constituições), 1240 (Acta, p. 17); 1242 (p. 24); 1245 (p. 32); 1247 (p. 40); 1250 (p.53); 1256 (p. 83), 1259 (p.98). 23 CASAGRANDE, Carla. A mulher sob Custódia. In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle. (Dir.). História das Mulheres - A Idade Média. Porto - São Paulo: Afrontamento - EBRADIL, 1990. p 103. 24 Prouille, fundado em 1206; São Sisto, em 1211, Madrid, em 1220 e Santa Inês de Bologna, em 1223. 25 1 Timóteo 2, 12. In: A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2001. p. 2227. 26 CANETTI, Luigi. Intorno all´”idolo delle origini”. La storia dei primi frati pedicatori. In: MELO, G. (Org.). I Frati Predicatori nel Duecento. Verona: Cierre, 1996. p. 9-51, p. 31. 22 185 claros, e o lugar das mulheres entre eles começou a se colocar como um problema. Outro empecilho à existência de um ramo feminino era a própria natureza mendicante da Ordem. Os irmãos pregadores sustentavam suas casas através da mendicância. A vida em comum era organizada de tal forma que alguns membros de cada convento eram responsáveis por buscarem recursos junto às comunidades urbanas. As mulheres não podiam deixar o campo privado do convento para esmolar.27 Como se sustentariam, então? Em outras palavras, o aspecto econômico também servia como entrave para a adoção de casas de mulheres. Percebemos que, no período do século XIII em que analisamos os Capítulos Gerais, esse era sempre o argumento mais utilizado.28 A casa de Prouille serviria, nos primeiros anos, como “ponto de apoio” para a pregação itinerante de Domingos e seus seguidores. Sem dúvida respondia à necessidade muito pragmática de dar pousio às conversas. Mas só conseguimos discernir algo que podemos chamar de Ordem Segunda com a criação do convento de Santa Inês de Bolonha, epicentro legislativo da ordem, em 1219. Ali age impositivamente a monja Diana de Andaló, pelo que podemos perceber em uma resposta a carta sua, escrita por Jordão da Saxônia: Assim, sobre este assunto, não voltes a falar com ninguém e vive na segurança de que nada mudou para vós. Com grande indiscrição procedeu quem te suscitou esta dúvida, certamente com a intenção de atemorizarte em matéria que nada há para se temer.29 O assunto ao qual Jordão se refere seria a primeira controvérsia em relação às casas femininas. O Capítulo Geral de 1228 proibiu a aceitação de novos conventos. Ao mesmo tempo, franciscanos e cistercienses usavam o argumento de que o desenvolvimento do PARISSE, M. As Freiras. In: BERLIOZ, Jacques (Org.). Monges e Religiosos na Idade Média. Lisboa: Terramar, 1994. p. 185-200, p. 196. 28 Esse argumento é citado, em especial, nos capítulos de 1240, 1242, 1250 e 1256. Nos demais, nenhum motivo é dado para os impedimentos. 29 JORDAN DE SAJONIA. DEL CURA, A. (Ed.). Cartas a Diana Andaló y a otras religiosas. Calaruega: OPE, 1984. p. 95. 27 186 apostolado das mulheres absorveria suas energias, impedindo os irmãos de professar seu próprio apostolado. A reclamação mais freqüente entre os dominicanos era a de que o cuidado com as mulheres os desviava dos estudos. Em 1229 novamente os provinciais da Lombardia tentaram barrar a entrada das freiras na Ordem, mas Jordão protegeu Santa Inês, e apenas este mosteiro, da decisão, escrevendo depois a Diana que a proibição não havia maculado seu grupo. Em uma das suas cartas a Diana, ele explica que pretendia apenas prevenir os frades alemães de trazerem para dentro da ordem conversas de vida pecadora, o que ele esperava que Diana entendesse.30 Apesar de constantemente buscar impedir a iliação de novas casas femininas, teremos, em 1259, como elemento discutido e aprovado no Capítulo Geral, o estabelecimento de uma regra que as conduzisse. Ali podemos ver o quanto, mesmo com todos os impecilhos que, ao longo de décadas, as religiosas apresentaram para os frades, estes a entendem como parte de sua Ordem. Mais importante para nosso argumento, no entanto, é que essa admissão das casas femininas conjuga-se à atribuição de uma identidade semelhante às monjas. Porque, em dois momentos da regra, explicita-se que as monjas também estudavam. Na primeira delas, lemos: Se uma monja estiver com alguma doença que não a debilite demasiado nem lhe tire o apetite, que não lhe seja concedido por conta disso dormir em colchão, nem se exima dos jejuns de costume, nem lhe seja permitido no refeitório receber alimento especial. E quanto ao estudo e ao trabalho, esteja à disposição da prioresa.31 Essa disposição é baseada no capítulo 11 da primeira distinção das Constituições dos frades. Enquanto esta se alonga em capítulos sobre os estudantes e os mestres de estudantes, estes são subtraídos da Constituição das monjas, o que não impede que amenção aos estudos surja ali, quase de forma acidental. No entanto, ali está: “quanto ao Idem, Carta 48, p. 95. Utilizamo-nos da tradução de Lippini das Constituições de San Sisto presente em BOP, VII, p. 410. Regole delle Monache de S. Sisto in Roma. In: LIPPINI, P. San Domenico… Op. Cit., p. 297. 30 31 187 estudo e ao trabalho, esteja [a monja] a disposição da prioresa.” Esta é uma indicação clara de que, embora não fosse o centro da vida monástica feminina dominicana, as mulheres dessa Ordem também estudavam. O estudo aparece ao lado do trabalho, atividade amiúde tratada na regra. As religiosas deveriam se sustentar com o produto de seu próprio trabalho, como ica implícito na seguinte disposição: Assim como o ócio é inimigo da alma, e pai e nutridor do vício, que nenhum irmão do convento ique ociosa, mas sempre que puder faça algo, porque não cai facilmente em tentação quem está ocupado em fazer uma boa obra. Deus, de fato, disse ao homem que deve procurar seu alimento com o suor de seu rosto e o apóstolo airma que quem não quer trabalhar, não comerá, e o profeta: ‘Viverás do trabalho de suas mãos e serás feliz gozando de todos os bens.’32 Desta forma, embora não se declare diretamente que as monjas devam viver do produto de seu trabalho, as passagens bíblicas citadas são mais do que o suiciente para colocar a obrigatoriedade do trabalho como um dos pontos mais salientes da vida das religiosas. A relação entre estudo e trabalho poderia nos levar a concluir que o estudo toma vulto também em sua vida cotidiana, o que é contradito pela escassez de referências a ele nas suas Constituições. A única outra menção surge no capítulo 18, sobre o trabalho: (...) Exceto nos momentos em que devem se ocupar da pregação, da leitura, da preparação do ofício do canto e do estudo das letras, todas as irmãs devem estar sempre ocupadas, de acordo com as disposições da prioresa, no trabalho manual.33 Essa passagem nos deixa ver, em poucos detalhes, o que estudavam as monjas: letras. Elas deviam ser letradas, “alfabetizadas”. É comum encontramos, ao longo do século XIII, monjas escritoras, como Regole delle Monache de S. Sisto in Roma. In: LIPPINI, P. San Domenico… Op. Cit., p. 310. 33 Ibidem, p. 310-311. 32 188 ocorre com Diana de Andaló.34 Mas nos deparamos com exemplos igualmente numerosos de monjas iletradas, como é o caso de Cecília Romana.35 Isso pode nos indicar que os estudos não assumiam a forma sistemática de organização que ocorria entre os frades, ao mesmo tempo em que podemos aventar a possibilidade de que, aquelas religiosas que acreditavam encontrar proveito com as letras, dedicavam-se ao seu estudo. O que mais nos chama a atenção, no entanto, é a necessidade sentida pelos monges, responsáveis pela redação das Constituições das monjas, em, ainda que de forma muito insipiente, inseriram no dia a dia das monjas o espaço para o estudo. Este, lembremo-nos, havia sido vetado para os conversos. O estudo, portanto, surge entre os religiosos da Ordem, aqueles que tomavam os votos sagrados, como uma forma de estar mais próximos de Deus. Para as mulheres o estudo da ilosoia sequer aparece como uma possibilidade, dada a noção generalizada de que elas não tinham capacidade de alcançar ou compreender as sutilezas e diiculdades do pensamento racional, condição para o saber teológico.36 Apesar disso, era elemento de maior necessidade conferir à Ordem dos Pregadores coesão, um traço que os discernisse das demais ordens e instâncias da hierarquia eclesiástica. Esse traço, como temos defendido, encontrou-se nos estudos. E era de tal importância para sua identidade que até mesmo às mulheres, seres considerados de segunda categoria, foi impingido. Diana de Andaló, monja da casa de Santa Inês de Bolonha, é a destinatária mais freqüente das cartas de Jordão àquela comunidade. Embora não tenha sobrevivido nenhuma de suas missivas a Jordão, ica claro em suas cartas que Diana o contactava freqüentemente por escrito. 35 Cecília, monja do convento de San Sisto, dita os milagres perpetrados por Domingos a outra monja domesmo convento, porque “ignora inteiramente a gramática”. Cf.: FORTES, Carolina. “A Escritora Ignora Inteiramente a Gramática”: Cecília Romana, seu relato e a Ordem dos Pregadores. SILVA, Andréia C. L. F. da ; SILVA, Leila R. da (Orgs.). SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS, 8., 2007, Rio de Janeiro. Atas… Rio de Janeiro: PEM, 2008. p. 37-43. 36 RANFT, Patrícia. Women in Western Intellectual Culture, 600-1500. New York: Palgrave McMillan, 2002. p. 145-147. 34 189 GENEALOGIA POLÍTICA COMO IDENTIDADE NOBILIÁRQUICA. O ESTUDO DA CRÓNICA DO CONDE D. DUARTE DE MENESES (SÉCULO XV) Daniel Augusto Arpelau Orta (NEMED/UFPR) A proposta desta comunicação foi continuar a pesquisa que procura analisar um corpo documental composto de crônicas escritas em Portugal na segunda metade do século XV, e centra-se na observação dos objetivos para tais composições, e nas estratégias empregadas para enfatizar alguns valores morais e vínculos pessoais. Conforme será apresentado, as crônicas podem ser entendidas em conjunto, como um projeto de recuperação de memória da ocupação e conquista ibérica na região africana em ordem cronológica, e vinculação genealógica dos seus protagonistas. Nelas, também, foram observadas algumas particularidades que distanciam os documentos, e talvez possam ser entendidas pelo contexto de redação e solicitação, com propósitos diversos. Em estudo sobre alguns tópicos valorativos presentes na Crónica do conde D. Pedro de Meneses, em especial a ênfase da boa condução do comando pelo conde, os argumentos da hierarquia social, e os conlitos entre grupos que demonstravam interesses distintos na permanência em Ceuta, notou-se também a inserção no relato de ações e qualidades do ilho de Pedro de Meneses, o depois conde Duarte de Meneses.1 O que foi sintomático para um estudo mais detido naquela inclusão foi o fato desta ocorrer textualmente como uma ruptura, alterando o peso descritivo dos protagonistas que ocupavam no documento. Como hipótese de trabalho, pensou-se que tal mecanismo surgia como uma necessidade de vinculação no contexto narrativo do ilho Maiores detalhes podem ser encontrados na dissertação de mestrado que analisou aquele documento, em especial o terceiro capítulo. Cf. ORTA, Daniel Augusto Arpelau. Tamtas cousas notaveis pera escrever: relações de poder e peris e ideais na Crónica do Conde D. Pedro de Meneses de Gomes Eanes de Zurara (1385-1460). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010. 1 190 com seu pai, pela condição de ilegítimo, mas com boa reputação em ações militares; consequentemente cogitou-se na importância dele aos interessados na composição do relato, que possivelmente teriam alguma relação familiar ou social. Sabendo da existência da crônica escrita para narrar os acontecimentos de Duarte de Meneses, elaborada posteriormente, optou-se por estudar os dois documentos em separado, a im de evitar a interpretação de um sobre o outro, ou ponderar apenas sobre seus dados internos, principalmente por considerá-los como produtos de dois momentos, ainda que elaborados pela mesma pessoa em espaço de tempo curto, e que a princípio atenderiam a mesma inalidade. No estudo da presença de Duarte de Meneses na crônica de seu pai, com base naquelas premissas acima descritas, e em estudos sobre crônicas do mesmo recorte espacial e temporal, chegou-se a algumas conclusões que de certa forma orientam o presente trabalho. Tanto Marcella Lopes Guimarães2 como Fátima Regina Fernandes3 observaram algumas estratégias e usos políticos que as crônicas régias tiveram na sociedade portuguesa do século XV, em especial a cristalização de valores acerca do passado do reino. Ambas as pesquisadoras detiveram atenção no papel da nobreza como aliada do rei, e que ações poderiam ser justiicativas como prerrogativas aos descendentes. Desta forma, e analisando os documentos escritos por Zurara, chegou-se a sugestão do conceito de genealogia política,4 entendido como uma estratégia discursiva, geralmente por GUIMARãES, Marcella Lopes. A Sétima Idade de Fernão Lopes: novo tempo para os príncipes de Avis? In: DORÉ, Andrea; LIMA, Luís Filipe Silvério; SILVA, Luiz Geraldo (Orgs.) Facetas do Império na História: conceitos e métodos. Brasília: Editora Hucitec, 2008. p. 199-211. 3 FERNANDES, Fátima Regina. A construção da sociedade política de Avis à luz da trajectória política de Nuno Alvares Pereira. In: JORNADAS LUSOESPANHOLAS DE ESTUDOS MEDIEVAIS, 6., 2008, Batalha/Alcobaça/ Porto de Mós. A Guerra e a sociedade na Idade Média. Porto de Mós: Almondina, 2009. v. 1. p. 421-446. 4 A primeira deinição deste conceito foi ensaiada na dissertação de mestrado mencionada na primeira nota desta comunicação, e melhor desenvolvida em artigo que engloba o estudo dos textos cronísticos em Portugal do século XV. Cf. ORTA, Daniel Augusto Arpelau. Nõ soomemte tinha elle homrra pello padre, mas per sy 2 191 aproximação linhagística, onde os acontecimentos pretéritos são selecionados de forma a vincular valores e pessoas como justiicativas de posições políticas; ou ainda, como maneira de traçar a origem de prerrogativas questionadas no contexto de redação dos documentos, isto é, recuperando pelo passado e em suporte socialmente reconhecido elementos tradicionalistas, no objetivo de garantir privilégios e airmar a aproximação de determinadas práticas. Maria Teresa Brocardo,5 pesquisadora da área de linguística histórica e responsável pela última edição publicada da crônica de Pedro de Meneses, realizou uma comparação entre as crônicas de Pedro e Duarte de Meneses, observando uma repetição de episódios narrados em ambas. A partir desta constatação, a passagem quase literal de acontecimentos de um texto para outro pode indicar a conirmação da importância de Duarte de Meneses, aproveitando-se de um relato já composto para acrescentar sua história em formato cronístico especíico ao personagem. A prática da genealogia política, portanto, necessita de uma preparação textual que permita representar os valores objetivados, num auge de atributos; no entanto, como se trata de um projeto concebido como convicção de tais qualidades, tal construção depende igualmente das condições para sua elaboração, e nisso os casos de Fernão Lopes e Gomes Eanes de Zurara se mostraram positivos, pela existência das crônicas, gradações de valores e vinculações pessoais, conforme os estudos citados demonstraram. Para esta comunicação, o conceito de genealogia política será aplicado aos pedidos de solicitação dos textos, com os respectivos interesses e vinculações de identidade nobiliárquica e régia, isto é, com os prováveis usos e a importância dos documentos consultados para a sociedade política portuguesa no século XV. Foram analisados os objetivos de Dom Afonso V e das duas irmãs de Duarte de Meneses, Dona Beatriz e Leonor de Meneses. Na Crónica do conde D. Duarte de Meneses, existem duas referências sobre a solicitação do texto. Na primeira, uma carta mesmo. Genealogia política, serviço e escrita cronística em Portugal (1430-1460). História da Historiograia, Ouro Preto, n. 7, p. 125-144, nov./dez., 2011. 5 BROCARDO, Maria Teresa. Variação nas Crónicas de Zurara. Cahiers de linguistique hispanique médiévale, Lyon, n. 22, p. 227-243, 1998. 192 anexada ao manuscrito, o rei Dom Afonso V pede notícias de Zurara, que estava na África coletando dados para o texto: “[...] estando por seu mandado em Alcacer Ceger ordenando e ajuntando os grandes seruiços que a ele e aa sua coroa real tinha feytos o valeroso e eccelente capitaõ e muyto Jlustre conde dom Duarte de meneses, pera a coronica e historya que delles lhe mandaua fazer.” 6 O monarca elogia a atividade de cronista, por preservar uma memória, e conia no que ele iria fazer. Interessante observar que no início da crônica, Zurara apresenta duas objeções para escrever o texto: que tinha muitos serviços a realizar no regimento do tombo, e que não detinha tanta erudição para tal função. Esta escusa, inclusive, era recorrente em outros textos, e foi entendida como expediente retórico a im de potencializar as qualidades dos narrados pela apresentada carência de argumentos e habilidade com as letras.7 No início da crônica, Zurara airma que o rei Afonso V estava bem interessado pelo pedido, “e isto creo eu muyto alto princepe que serya por que nom auya muytos dyas que o uirees acabar sua uida antre os mouros por defensom de uossa pessoa na serra de Benacofu [...] que poer sua uida por defender a uossa [rei] [...] Assy quis uossa alteza que tam assijnado seruiço nom passasse sem perpetua nembrança.”8 O apreço do rei com Duarte de Meneses está claro, ainda mais pela situação onde o fronteiro teria defendido o rei no confronto com os muçulmanos até sua morte.9 A aproximação temporal do fato e 6 ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica do Conde Dom Duarte de Meneses. Edição diplomática de Larry King. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1978. p. 41. Nas citações, os destaques não estão contidos na versão impressa consultada, e servem para enfatizar os pontos analisados. 7 ORTA, Daniel Augusto Arpelau. Tamtas cousas notaveis pera escrever... Op. Cit., p. 81-83. 8 ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica do Conde Dom Duarte de Meneses... Op. Cit., p. 44-45. 9 Apesar de morrer quando estavam em combate, a circunstância que ocorre a sua morte é acidental, conforme o relato: “E por que elle auya as pernas curtas e desy armado e apressado dos contrayros e desacompanhado nom pode tam legeyramente caualgar como lhe compria e teendo o pee ezquerdo no estribo cujo loro era mais comprido que as suas pernas requeryam quando quis lançar o pee dereito pera a outra parte tocou o cauallo nas ancas com a espora. o qual lançando pernadas deu outra uez com elle no chaão onde deu grande paancada da cabeça de que icou assaz ferido porem acordado.” ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica do Conde Dom Duarte de Meneses... Op. Cit., p. 354. 193 seu impacto devem ter despertado no monarca um sentimento de recompensar tal dedicação e expressão de amizade, e a exaltação de gestos exemplares seria então uma forma de memória e agradecimento. A própria experiência do combate, e a morte do conde devem ter causado no rei um impacto emocional, o que também parece coerente ao pedido e sua gratidão através das letras. Deve-se lembrar, também, da orientação do monarca cristão contra o muçulmano, expressada em ações militares e convocações de “cruzadas” na cristandade.10 Vendo um súdito aderir com bastante intensidade tal causa, a preservação em letras dos gestos pode ser entendida como conirmação de suas próprias convicções. O manuscrito ainda contém uma cópia da carta onde o rei faz Duarte de Meneses conde de Viana de Caminha, datada de 6 de julho de 1460, isto é, cerca de 4 anos antes de sua morte. Bastante sintomático o cabeçalho da carta: “[...] por mostrar ho agradeçimento de hum taõ virtuoso Rey, e os merecimentos de hum taõ singular criado, a quem elrrey (não satisfeyto com a merce e onrra que em suas coronicas mays lhe daua; nem do que aqui delle dezia e confessaua) lhe mandou fazer por o seu coronista esta em particular.”11 Pelos trechos apresentados, podem-se sugerir duas situações para a escrita daquele comentário: em 1460 mesmo, pois já estaria em curso a escrita da crônica de Pedro de Meneses, onde Duarte igura no im do livro, como já assinalado. Ou então este cabeçalho foi escrito quando do término da composição da crônica, em 1464, pois se refere a ela, mas tratar-se-ia da cópia de uma carta de 1460. Não resta dúvida que o monarca se sentia tocado pelos gestos de Duarte de Meneses, e pensara em retribuir com idelidade sua família. Parece, portanto, que o manuscrito interessaria como produto político-cultural de um ramo familiar dos Meneses, bastante especíico Sobre isso, Armindo de Sousa parece bem seguro em sua opinião dos rumos dados pelo monarca frente ao contexto tardio de convocações de cruzadas no Ocidente medieval. Cf. SOUSA, Armindo de. Realizações. In: MATTOSO, José (Dir.) História de Portugal. A monarquia feudal (1096-1480). Lisboa: Círculo de Leitores, 1993. 11 ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica do Conde Dom Duarte de Meneses... Op. Cit., p. 358. 10 194 quanto ao conde, pois além da crônica com o elogio ao protagonista, com seus exemplos a serem seguidos, e a explícita reverência do monarca, a carta conferia garantias de privilégios, jurisdições e rendas, conirmando seu papel de conluência aos interesses régios; ambos os documentos ganham maior peso simbólico por estarem em conjunto, e direcionarem o entendimento da crônica como justiicativa de ações no passado, comprovados pela carta e pelos acontecimentos históricos, além de retribuições simbólicas e materiais. No caso do pedido da Crónica do conde D. Pedro de Meneses, observa-se que a solicitação parte de Dona Leonor de Meneses, segunda ilha do capitão de Ceuta: E assy que ho bõ desejo e vomtade deste rrey dom Afomso foy a primçipall causa de se esta obra começar e acabar e desy rrequerimemto de hūa ilha daquelle comde que se chamava dona Lianor de Meneses, molher por çerto virtuosa e de grãde saber, a quall foy casada com dom Fernamdo, bisneto dell rrey dom Johão e ilho primogenito do illustre e virtuoso primçipe dom Fernamdo que foy duque de Bragamça e marques de Villa Viçosa, comde d’Arrayolos e d’Ourem e de Barçellos e de Neiva e senhor de Chaves e de Momforte. 12 Considerando 1458 como a provável data do início desta crônica, segundo Rita Costa Gomes,13 Dom Afonso V já seria rei em Portugal há quase 10 anos, mas talvez ainda não tão próximo de Duarte de Meneses; dentre as justiicativas para a concessão do título de conde estava a “defesa valente” de Alcacer Ceger em dois cercos, ou seja, atos posteriores a conquista daquela praça em 1458.14 No início do ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica do Conde Dom Pedro de Meneses. Edição e estudo de Maria Teresa Brocado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 175. 13 GOMES, Rita Costa. ZURARA. In: LANCIANI, Giulia; TAVANI, Giuseppe. (Orgs.) Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho, 1993. p. 687-690. 14 SERRãO, Joel; OLIVEIRA MARQUES, A. H. (Dir.) Nova História da Expansão Portuguesa. A expansão quatrocentista. Lisboa: Editorial Estampa, 1998. 12 195 segundo livro desta crônica, ainda, outro dado indica o transcorrer do tempo na escrita, pois “[...] segumdo as cousas que se amte e depois seguyrã, assy ē esta çidade [Ceuta] como em Allcaçer, des que o ell rrey dom Afomso ilhou aos mouros, manyfestas forã as maravilhas que fez ho senhor Deus pello seu povo cristão.”15 Ou seja, neste ponto da escrita, o relacionamento do conde Pedro com o monarca Dom Duarte já seria mais próximo, o que pode justiicar inclusive sua inserção na crônica de Pedro de Meneses, por isso a ruptura narrativa do personagem observada. Assim, no estudo e leitura da crônica do primeiro governador de Ceuta, considerou-se que tal pedido teria a função de recuperar a história de seu pai, por vontade de Leonor de Meneses, mostrando qualidades e os vinculando aos feitos do reino. Pode-se incluir como inalidade a vontade do rei em saber dos feitos de Pedro de Meneses e seus comandados, exaltando a memória dos portugueses em África, pois “por çerto o auto deste primçipe deve ser pera sempre de gramde louvor, tamto mayor quamto se comsyrar que elle amtepos o louvor dos outros a sua propia fama.”16 Zurara, através do pensamento aristotélico, airma que relatar fatos passados signiicaria partilhar daquelas ações: “e porque ho ilosafo diz que toda cousa que move outra move ē virtude do primeiro movedor, nõ icará aquelle tam exçellemte rrey apartado de todo da gloria e louvor que aquelle comde e os outros nobres cavaleiros per força de seus corpos e fortaleza de seus corações naquella cidade ganharam.”17 Desta forma, não haveria conlito de interesse entre Dom Afonso V e Dona Leonor de Meneses, ao contrário, ambos viam na crônica um espaço de propaganda de modelos, exemplos e iliações de projetos e pensamentos postos em prática.18 Os acontecimentos em África anteriores aos praticados ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica do Conde Dom Pedro de Meneses... Op. Cit., p. 534. 16 ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica do Conde Dom Pedro de Meneses... Op. Cit., p. 174. 17 Idem. 18 O rei, segundo Zurara, queria ainda traduzir a crônica para o latim, visando uma divulgação dos feitos do reino na cristandade latina. “[...] porque não soomemte se contemtou de hos fazer escrever ē nosso propio vullgar portugues, mas aymda os fez traduzir aa llymgua llatina, porque nõ soomemte os seus naturais ouvessem 15 196 por Dom Afonso V assumiam, assim, uma importância maior pela recuperação historiográica, conirmando suas premissas e vontade de guerra ao muçulmano. Não há dados para um parâmetro do relacionamento de Leonor de Meneses com seu irmão Duarte na crônica de seu pai. Parece que cada um seguiu as funções delegadas por este, não interferindo nas atribuições alheias: Duarte de Meneses “fazendo honra por si mesmo”, e Leonor de Meneses cuidando da Fazenda. A considerar, por exemplo, que quando Pedro de Meneses se ausenta de Ceuta para ir ao reino, deixando cargos para ambos, mesmo Duarte sendo muito novo para o comando da cidade, não há qualquer menção de problemas quanto a isso por parte deles, ao contrário.19 No último relato de Zurara, entretanto, o relacionamento entre os ilhos mostra-se muito distinto, principalmente sobre os objetivos políticos e pretensões destes. Apesar de não existir no documento o ano de tal situação, sabe-se que Pedro de Meneses encontrou-se com o ainda infante Duarte e o rei Dom João I, ou seja, antes de 1433. No caso do ilho Duarte, este faz o seguinte pedido ao pai: “E peçaaes a elRey que ponha em mym esta capitanya pois per rezam a nenhuum tanto nom perteece o que a elRey nom ica por conhecer E com isto nom soomente fazees mercee e bem a mym mas aa mayor parte de uossos criados e seruidores. e principalmente aaquelles que moram em esta cidade. os quaaes seram per mym agasalhados como he rezom.”20 Pedro de Meneses se mostra emocionado com a proposta, e conheçimento e saber das gramdes cavalarias daquelle comde e dos outros que com elle comcorrerão, mas que aymda fossem manyfestos a todo conheçimemto de toda a nobreza da cristamdade” (ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica do Conde Dom Pedro de Meneses... Op. Cit., p. 175-176). Tal versão seria encomendada ao Mestre Mateus de Pisano. Da crônica de Pedro de Meneses não se conhece versão latina, apenas uma adaptação do texto de Zurara sobre a conquista de Ceuta em 1415. Cf. MATEUS DE PISANO. Livro da Guerra de Ceuta escrito por Mateus de Pisano em 1460. Organização e tradução de Roberto Correa Pinto. Lisboa: Academia das Sciências de Lisboa, 1915. 19 A este respeito, consultar o terceiro capítulo, onde uma análise de seu comportamento foi feita. Cf. ORTA, Daniel Augusto Arpelau. Tamtas cousas notaveis pera escrever... Op. Cit. 20 ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica do Conde Dom Duarte de Meneses... Op. Cit., p. 66. 197 comenta que fora a posição de sua ilha Beatriz, “[...] tijnha voontade requerer pera ty [Duarte] nam tan soomente a capitanya mas o al que me tu aJudaste a guaanhar”, ou seja, a irmã de Duarte teria preferência à herança, pela condição de nascimento. Beatriz de Meneses, inclusive, se mostrou atenta a tal vontade de Duarte, chamando seu pai e pedindo que ele deixasse a cidade para seu marido, Dom Fernando de Noronha, neto dos reis Dom Fernando de Portugal e Dom Henrique de Castela.21 A outra irmã de Duarte, Dona Leonor de Meneses, a que pediu a Dom Afonso V a crônica de seu pai, entra na disputa, pois segundo o cronista: A fama dos feitos de dom Duarte. assy como começou de crecer. assy cercou os coraçoões de muytos specyalmente de sua Jrmaã dona Lyanor a qual era ilha segunda daquelle conde molher sesuda. e que o padre muyto amaua. e em cuJa maão era toda sua fazenda. Esta começou de pensar no nome que seu yrmaão cobraua. e no grande amor que lhe o padre por ello guaanhaua.22 Pedro de Meneses havia delegado a ela os cuidados da Fazenda, o que de certa forma conferia poder e controle sobre algumas pessoas. O contato com o judeu médico Josepe Zarco permitiu que colocasse em prática um plano para atrapalhar a fama de Duarte de Meneses no reino, segundo o relato de Zurara na Crónica do conde D. Duarte de Meneses: “Dona Lyanor hora fosse per conselho do Judeu ou doutro ou de ssy meesma. trabalhaua quanto podya por abater em seu yrmaão. E assy em Cepta como em Portugal per seu aazo e dalguuns idalgos que se sentyam daquella Jnirmade os feitos de dom Duarte nom recebyam aquelle uerdadeyro louuor que merecyam.”23 Apesar do tom hipotético, a imagem de intriga é atrelada ao judeu, que poderia ter aconselhado Leonor a agir de forma a prejudicar seu meio irmão. Para tanto, pediu a seu pai que enviasse em embaixada a Portugal um cavaleiro de sua casa, chamado Vasco Domingues. De acordo com o relato, este cavaleiro se encontrou com o rei e lhe teria dito: Idem, p. 67. Idem, p. 92. 23 Idem, p. 93. 21 22 198 Senhor disse aquelle caualleyro a elRey. o conde meu Senhor uos enuya per mym dizer que uos sabees bem os grandes trabalhos e perigoos em que elle ata agora foy por guardar e defender aquella uossa cidade. E que elle he Ja uelho e adoorado e que nom tem cousa em este mundo de que mayor cuidado tenha que de sua ilha dona Lyanor assy pollas muytas bondades que em ella conhece. [...] Que pede aa uossa alteza que lhe dees uossa carta ou aluara per que uos praz de dardes aquella capitanya a quem quer que casar com aquella sua ilha.24 Percebe-se como Leonor de Meneses procurou transmitir através de Vasco Domingues sua intenção, ainda mais por passar uma mensagem ao rei como se fosse a vontade de Pedro de Meneses, e como este a preferia no cargo de controle. Ultrapassaria o desejo ideal do capitão de Ceuta pela transmissão ao ilho, ou a preferência pela primogenitura de Beatriz de Meneses. O rei desconia por saber do apego do capitão ao ilho e pergunta por que “[...] nom manda o conde requerer isso pera seu ilho pois he homem e que trabalha tanto por auanteiar em sua honra”, o que é respondido que o próprio não se considerava apto ao cargo, ou seja, comandar uma cidade como Ceuta. Além disso, Vasco procura divergir das notícias que o monarca recebia sobre Duarte de Meneses: E ainda Senhor digo eu a uos. as cousas que uos ca contam nom som la tamanhas como se ca rezoam. elle he ilho do conde e nos outros somos seus criados e por cuydarmos que lhe fazemos prazer dizemos as cousas muyto mais largamente do que som. mas por dizer uerdade as suas cauallaryas nom sam tantas nem taaes per que elle per ellas seia digno de muyto louuor.25 Até poderia considerar a literalidade da fala de Vasco Domingues, mas Zurara logo em seguida julga tal atitude conforme o interesse 24 25 Idem. Idem, p. 94. 199 de Leonor: “Estas cousas dezya a assy Vaasco dominguez pensando que per ally arrecadarya pera sua Senhora todo o que ella deseiaua ca era seu amo e a criara nos braços e recebya della honra e mercee e muyta mais speraua de receber.”26 Ou seja, tratava-se mesmo de uma difamação do irmão em nome do interesse pela sucessão do comando da cidade, que parecia estender aos próximos de Leonor de Meneses, que se beneiciariam com tal coniguração. O rei acaba por negar tal pedido, considera que Duarte poderia governar, mas que não vê problemas em deixar para Dom Fernando de Noronha, por suas qualidades e por estar casado com a primogênita Beatriz de Meneses. Apesar de Duarte de Meneses pedir a capitania de Ceuta a seu pai, não há referência de que agiu a im de prejudicar ou interferir na escolha além daquele primeiro pedido; optou, à sua maneira, pela guerra e reconhecimento através do serviço, o que parecia ao contexto mais eicaz no campo do relacionamento político régio-nobiliárquico, ao menos percebido pelos gestos do monarca em análise. Aliado aos atos de confronto bélico, os elogios à Duarte, presentes nas duas crônicas, atingem o tom de memória e exemplo, e a descrição de intrigas e inveja como anti-modelo. Duarte não foi capitão de Ceuta como primeiro pediu ao pai, e é passada uma imagem de que recebeu de seu pai a formação e incentivo, convertidos em serviço à causa cristã e da monarquia; com a conquista de Alcacer Ceguer em 1458, e outros feitos sob a égide da cristandade, conquistou também respeito posterior, sendo um aspecto de valor aristocrático buscado naquela sociedade. O conlito e disputa por espaço político e reconhecimento eram constantes, tanto que muitos cavaleiros boicotavam planos de Duarte por considerar este “nom lidimo nem erdeyro”, o que o preocupava. Mesmo assim, toma partido de ações e obtém licenças que foram bem sucedidas, aumentando a inveja e ódio entre seus pares: “ca aquelles que eram tocados da maldade de enueia nom podyam aos outros ouuyr allegremente o aqueecimento daquelle feito ante buscauam camjnhos per que fezessem menos na bondade do feito ainda que aa im nom 26 Idem. 200 podyam sconder a luz com as treeuas.”27 Observando tais relatos, e considerando a importância do cargo de capitão, os interesses próprios mostram-se, também, condicionados num contexto onde o peso das decisões personalistas era alto. Em outros termos, apesar da condição de ilegítimo, e de suas irmãs Beatriz e Leonor, a demonstração de concordância e sintonia com as pessoas certas poderia, também, facultar a escolha da concessão de autoridade por conta do serviço. Tais ideias auxiliam, desta forma, analisar as crônicas portuguesas a partir de vários pontos: como pedidos de iliação identitária, retribuição de gestos e compromissos pretéritos, exemplos a serem reproduzidos e difundidos, expressão e conirmação de aproximações pessoais e arranjos sociais. A viabilidade do conceito de genealogia política pode ser pensada de duas maneiras. A primeira toma o termo como recuperação de uma história familiar, como no caso da solicitação de Leonor de Meneses para a crônica de seu pai. Ainda que aqueles acontecimentos izessem parte da história régia portuguesa, capitaneados por Pedro de Meneses, atraiam a atenção do rei Afonso V, que aprova o pedido. Neste mesmo contexto, aqueles relatos poderiam servir como instrumentos de airmação a um questionamento de tais ações, isto é, recuperar acontecimentos e justiicar através de texto aquelas posições políticas no momento da redação. Renata Cristina do Nascimento28 encontrou queixas em Cortes sobre abusos e privilégios da nobreza, que oneravam parte da sociedade portuguesa, e tais solicitações fariam sentido como resposta e legitimação daquelas práticas pelo uso do passado, da participação de famílias enobrecidas nos projetos régios e sustentação de domínios. Note que no momento de escrita os domínios portugueses e viagens ultramarinas já estavam mais estendidos de quando Portugal conquistou Ceuta, mas a ênfase por aquele recorte geográico pode ser sintomático aos interesses do rei, voltado ao conlito contra os muçulmanos. Idem, p. 97. NASCIMENTO, Renata Cristina de Sousa. Os privilégios e os abusos da nobreza em um período de transição: o reinado de D. Afonso V em Portugal (1448-1481). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2005. 27 28 201 Em ambas as explicações, as crônicas signiicam uma presentiicação do passado, a im de servir como instrumento na obtenção de reconhecimento simbólico e material. A genealogia política seria, assim, o mecanismo de evidenciar a origem dos pedidos de benefícios ao rei, vinculados pela participação na história do reino. Com as diferenças entre Leonor e Duarte de Meneses, e posições familiares, entende-se porque ela pediu o relato de seu pai; no inal do texto, entretanto, talvez suas táticas de difamação do irmão podem ter sido descobertas, e o reconhecimento de Duarte de Meneses aparece na sua inserção no relato do pai. Tal atitude da irmã, também, demonstra como poucas informações sobre ela estão presentes nas duas crônicas, ao contrário de seu irmão. O serviço e vontade de lutar contra os muçulmanos, apesar da ilegitimidade, parecem superar tal obstáculo social, despertando no rei sua admiração e respeito. Com a morte de Duarte de Meneses, observou-se que Dom Afonso V se sentiu obrigado a uma recordação das ações exemplares, do senso de idelidade ao senhor, e por isso pede a crônica. O mecanismo de solicitação se inverte, ao ponto do rei se mostrar preocupado com o rumo do ramo familiar de Duarte de Meneses. A vinculação genealógica dos aspectos políticos se assenta na quase duplicidade de acontecimentos, entrelaçados no relatado e no contexto de sua redação. 202 O REINADO DE HONÓRIO (395-417) ENTRE A INCERTEZA E A ESPERANçA Diego Schneider Martinez (Graduando NEMED – UFPR) O presente artigo tem como objetivo principal entender de que maneira um contemporâneo cristão do reinado de Honório, o presbítero hispano Orósio, entende e interpreta este reinado, que apesar de tumultuado e cheio de crises, foi bastante longo. Para tanto, decidimos que a melhor maneira para efetuar este estudo era dividi-lo em três partes, sendo que na primeira será apresentado um panorama geral do reinado a partir da construção de um contexto baseado em uma leitura crítica de nossa bibliograia,1 na segunda parte algumas informações acerca do autor e da obra a ser analisada2 para inalmente na terceira parte iniciarmos a análise propriamente dita do texto de Orósio.3 Vale, antes de iniciar, fazer uma pequena nota acerca da cronologia que nosso trabalho abarca. O reinado de Honório se estendeu de 395 até 423, porém nosso estudo chega apenas até 417, data em que o historiador cristão termina sua obra. A morte de Teodósio I, em Janeiro de 395, gerou um grave clima de incerteza acerca de sua sucessão, especialmente na porção ocidental do Império. Seu ilho e herdeiro Honório, apesar de já haver sido nomeado augusto dois anos antes, era uma criança com apenas onze anos de idade. Vale lembrar que a situação política estava longe de ser 1 Entre tantas obras que tratam deste período, destacamos as seguintes: LORING, M. I.; PEREZ, D. ; FUENTES, P. Hispania Tardorromana y Visigoda, Madrid: Sintesis, 2008; ARCE, J. Bárbaros y Romanos em Hispania, Madrid: Marcial Pons, 2005; DIAZ MARTINEZ, P.; MARTINEZ MAZA, C.; SANZ HUESMA, F. J. Hispania Tardoantigua y Visigoda, Madrid: Istmo, 2007, e BRAVO, G. Teodósio. Madrid: Esfera, 2010. Quando a relexão vier de alguma obra distinta destas, será marcado. 2 Acerca de Orósio, nossa relexão está baseada em diferentes textos de Martínez Cavero, em especial o primeiro capítulo. MARTINEZ CAVERO. El pensamiento histórico y antropológico de Orosio. Antiguedad y Cristianismo, Murcia, 19, 2002. Quando a idéia vier de algum texto diferente, estará marcado. 3 Para este trabalho, utilizamos a tradução espanhola de Orósio de Eustáquio Sanchez Salor, editada pela Gredos em Madrid, 1982. O reinado de Honório na obra de Honório se estende de (VII, 36, 1) até (VII, 43, 20), ou seja, o inal da obra. 203 estável, já que menos de um ano antes Teodósio havia sido obrigado a viajar ao ocidente, trazendo seu exército de campanha do oriente, para enfrentar um usurpador que tinha conseguido importantes apoios nos meios aristocráticos senatoriais, e apesar de sua vitória sua morte tão próxima aos acontecimentos poderia inspirar uma nova tentativa de usurpação. Seria um imperador tão jovem capaz de manter a unidade? Este clima de incerteza pode ser claramente percebido na oração fúnebre a Teodósio (De Obitu heodosii) proferida por Ambrósio de Milão conforme demonstrou David Natal Villazala.4 Obviamente, o jovem imperador necessitaria de ajuda. Para tanto, o poderoso magister militum Estilicão proclamou-se tutor do príncipe, airmando que Teodósio o havia nomeado em seu leito de morte. A verdade é que não deve mesmo ter acontecido nenhum grande questionamento à legitimidade de Estilicão como tutor de Honório, e se nota que personagens muito destacados o apoiaram, como no caso do próprio Ambrósio,5 já que a situação favorecia o apoio a um homem forte que fosse capaz de manter a unidade em detrimento a disputas internas que fragilizariam a posição do governo imperial. Mas apesar das tentativas de Ambrósio em construir uma teoria política que legitimasse o poder do ilho de Teodósio e da esperança depositada em Estilicão na manutenção da unidade, percebemos que o governo de Honório é marcado por inúmeras crises, que apenas demonstram que todas as preocupações com relação à sucessão de Teodósio I eram, no mínimo, válidas. A primeira destas crises foi a rebelião de Gildón, governador da África, logo após saber da morte de Teodósio. Segundo nos narra Orósio, o motivo de esta rebelião foi exatamente a falta de esperança de que o jovem Honório fosse capaz de manter-se no comando do Império por muito tempo pelo fato de ser ainda uma criança.6 Tal rebelião foi reprimida sem grandes problemas, mas evidencia o clima de incerteza que pairava sobre o ocidente do Império. NATAL VILLAZALA, D. Sed non totus recessit .Legitimidad, Incertidumbre y cambio político en el De Obitu heodosii. Gerión, Madrid, 28, n. 1, 309-329, 2010. 5 NATAL VILLAZALA, D. Op. Cit., p. 312. 6 Oros. VII, 36, 3. 4 204 A ambição de Estilicão, evidenciada por sua pretensão em estender seu poder à parte oriental do Império, logo gerou mais problemas. Em 401 Alarico, um dos principais chefes godos, após alguns problemas no oriente se trasladou a Itália buscando pressionar o Imperador do ocidente a ceder-lhe um alto cargo militar, aproveitando-se da disputa por inluências na região do Ilírico, fronteira entre as zonas controladas por Honório e Arcádio – imperador do oriente. Esta movimentação obrigou a Estilicão a trazer tropas de outras regiões do Império para enfrentar a Alarico, vencendo-o, mas não de maneira deinitiva. A presença deste contingente godo nas proximidades da Itália, por mais que temporariamente apaziguado, acabaria por tornar-se um problema crescente nos anos seguintes. Em 405, outro chefe bárbaro chamado Radagaiso também atravessou os Alpes e saqueou parte da Itália. Estilicão se viu, novamente, obrigado a trazer tropas de outras regiões do Império para enfrentar este inimigo, que acabou sendo vencido com certa facilidade. Apesar disso, esta invasão acabou desencadeando uma série de outras crises e problemas no Império, como veremos a seguir. Em meados de 406, se iniciaram na Britânia uma série de revoltas que culminaram em três usurpações em um curto período de tempo. Marco, provavelmente comes Britaniarum7 neste momento, foi o primeiro dos usurpadores, porém não contamos mais nenhuma informação a seu respeito. Cabe lembrar que seu nome não é sequer citado por Orósio. Por volta de Outubro, foi substituído por Graciano, um civil, que ao também não corresponder às expectativas dos soldados acabou substituído por Constantino, um inteligente oicial de origem britânica. Este terceiro personagem teve mais sorte que seus dois predecessores, conseguindo estender seu poder à Gália e Hispania, reinando como um usurpador até 411. Javier Sanz Huesma airma que a principal motivação destas usurpações foi a falta de pagamento aos soldados aquartelados na Britânia graças aos problemas vividos pelo Império do ocidente tão próximos ao seu centro administrativo, a Itália. 7 SANZ HUESMA, J. Usurpaciones em Britania. Gerión, Madrid, 23, n. 1, 2005. Este artigo traz uma análise bastante interessante acerca das motivações e objetivos das rebeliões acontecidas entre 406 e 407 na Britânia. Todo o parágrafo que trata destas usurpações é baseado neste artigo. 205 Nos últimos dias do ano de 406, o limes do Reno foi rompido por grupos de suevos, vândalos e alanos, que entraram nos territórios imperiais. Segundo Maria Sonsoles Guerras, o enfraquecimento da defesa que permitiu o rompimento do limes foi uma conseqüência direta da retirada de tropas para a defesa da Itália, levada a cabo por Estilicão.8 Este fator acabou levando a perda do controle da Gália por parte do governo de Ravena graças ao descontentamento da população local com relação a falta de proteção e à alternativa de apoio oferecida por Constantino III com políticas muito mais eicientes para a defesa da região. Após estes reveses, a igura de Estilicão acabou enfraquecida perante a corte de Honório. Uma tentativa de pactuar com Alarico para que este lutasse em nome de Roma contra o usurpador estabelecido na Gália e os outros povos que se instalavam na região acabou aumentando os sentimentos antigermânicos da corte. Além disso, após a notícia da morte de Arcádio no oriente, Estilicão se preparou para uma viagem a Constantinopla para assegurar seus interesses de estender sua inluência a parte oriental do Império. Estes acontecimentos aumentaram ainda mais o descontentamento na corte e Estilicão foi acusado de vender cargos militares, utilizar o exército em proveito particular e de tentar impor seu ilho como imperador. Piorando ainda mais sua situação, seus principais aliados godos, encabeçados por Saro – rival de Alarico – também se revoltaram com a perspectiva de que o rei visigodo acabaria recebendo melhores condições na campanha que organizava. Estilicão ordenou então que se fechassem as portas das cidades onde estavam as mulheres e ilhos dos soldados bárbaros recrutados no exército romano, conseguindo assim reféns para tentar chegar a uma negociação. Porém, antes de que isso fosse possível, Honório ordenou a prisão de Estilicão, aconselhado pelo magister oiciorum Olimpio, que se tornaria o homem forte do imperador. Estilicão acabou executado em agosto de 408. A grande maioria dos partidários do general acabou tendo sorte similar. O novo governo de fato, encabeçado por Olímpio, assumiu uma postura claramente antigermânica. Os soldados romanos aquartelados na Itália massacraram as mulheres e ilhos dos soldados germânicos 8 GUERRAS, M. S. Os Povos Bárbaros. São Paulo: Ática, 1987. p. 46. 206 que haviam apoiado a Estilicão e no momento eram reféns em uma ação de adesão ao novo regime. Além disso, o magister oiciorum se recusou a continuar as negociações com Alarico. O principal resultado desta política foi o reforço dos contingentes do rei visigodo com uma grande quantidade de soldados germanos que desertaram do exército romano. Insatisfeito com esta situação política, Alarico invadiu novamente a Itália com o objetivo de obrigar o imperador a negociar. Após dois anos de pressão, tentativas de negociação e três cercos à Roma, inalmente em Agosto de 410, a Cidade Eterna – que havia permanecido invicta por vários séculos – foi saqueada pelos soldados visigodos. Este acontecimento terá um impacto bastante profundo no imaginário do momento. Neste meio tempo, a situação na Gália não era das melhores. O usurpador Constantino III acabou tendo problemas com Geroncio, seu principal general, e ele acabou por nomear a Máximo, um hispano que era seu cliente, como imperador em Hispania, gerando uma usurpação dentro da usurpação. Pouco antes do início efetivo de um enfrentamento entre os dois usurpadores, Geroncio pactuou com alguns dos grupos de bárbaros que haviam rompido o limes renano alguns anos antes e os convidou para que entrassem em Hispania para aumentar seu contingente de soldados, entre Setembro e Outubro de 409. Nesta disputa entre usurpadores, quem acabou sendo favorecido foi Constancio – magister militum de Honório e novo homem forte de Ravena depois do curto período de hegemonia de Olímpio – que preparou um ataque à Arles, capital de Constantino III enquanto as tropas de Geroncio a sitiavam. O resultado desta campanha foi a fuga de Geroncio, que acabou suicidando-se após uma rebelião de seus soldados e a deposição de Máximo, enquanto a aristocracia de Arles se rendeu a Constancio e entregou Constantino III sem batalha. Apesar da vitória da causa de Honório, a Gália e a Hispania acabaram sendo ocupadas de maneira deinitiva por contingentes bárbaros que izeram a balança do poder se modiicar irreversivelmente contra o poder dos imperadores romanos. Após todas estas crises, ainda podemos citar outras duas tentativas de usurpação, uma acontecida na Gália, levada a cabo por Jovino apoiado por alguns dos grupos bárbaros ali estabelecidos e alguns dos antigos partidários de Constantino III e Heracliano em África, que bloqueou as remessas de grãos africanos que abasteciam a 207 Itália. Ambas foram resolvidas com relativa facilidade se levamos em consideração todas as complicações, porém são signiicativas – junto com todas as outras – do período de instabilidade vivido pelo Império Romano do Ocidente durante o reinado de Honório. Mas apesar de tudo isso, Honório logrou manter-se no poder durante vinte e oito anos (395-423), marca que pouquíssimos imperadores atingiram antes dele, e nenhum depois.9 Parece-nos muito signiicativo o fato de Honório, em um período tão turbulento, tenha conseguido manter-se no poder por tanto tempo. Apesar de tudo isso, a visão construída por Orósio acerca do período do reinado de Honório é bastante positiva. Parece-nos intrigante que um personagem que viveu toda esta turbulência, sentiu em sua pele todos os efeitos destas crises e inclusive viu com seus próprios olhos sua terra sendo invadida e saqueada por povos vindos de fora, valore de maneira positiva este momento e, além disso, ainda tenha esperança acerca de um futuro melhor sob o comando do mesmo imperador que sofreu com todas estas crises. Antes de partir para a análise do texto propriamente dito, aportaremos alguns dados biográicos acerca de Orósio que podem auxiliar na interpretação da obra historiográica do presbítero hispano. Orósio nasceu seguramente na província da Galaecia, no noroeste da Península Ibérica, por volta do ano de 383. Não se sabe exatamente em que localidade desta província exatamente, sendo que as duas hipóteses mais prováveis são a cidade de Brigantia (A Coruña - Espanha) ou Bracara Augusta (Braga – Portugal), mas sem dúvidas era um membro da igreja de Bracara. Podemos airmar quanto à origem de Orósio que ele pertencia a uma família cristã de elevado status social, talvez uma família de altos funcionários. Ele teria gozado de uma ampla formação na cultura tradicional romana, aprendida na escola, além de uma sólida formação cristã. Agostinho de Hipona caracteriza seu gênio da Seguindo a lista de imperadores apresentada por Gonzalo Bravo em BRAVO, G. Hispania y el Império. Madrid: Sintesis, 2001. Apenas Augusto, que reinou 41 anos e Constantino I que reinou 31 anos atingiram marcas superiores. Além destes, somente superaram os vinte anos de governo Tibério (23 anos), Adriano (21 anos), Antonino Pio (23 anos) e Dioclesiano (21 anos), sendo que todos eles marcam períodos considerados de estabilidade. 9 208 seguinte maneira: “despierto de ingenio, pronto de palabra, entusiasta en su celo, deseando ser un instrumento útil em la casa del Señor”.10 Sabemos que Orósio esteve envolvido durante toda sua carreira eclesiástica no combate à heresias que ameaçavam a unidade do cristianismo, em especial o priscilianismo que estava presente de maneira bastante sólida em sua terra natal. Por volta do ano de 414 o presbítero hispano viajou à África para consultar Agostinho de Hipona sobre as controvérsias teológicas de sua terra e pedir ajuda para resolver tais problemas. Orósio é acolhido de maneira calorosa pelo Bispo de Hipona e após algum tempo de convivência, é enviado à Belém em uma importante missão, reatar as relações de Agostinho e Jerônimo de Belém contra um inimigo comum, Pelágio. Além disso, Jerônimo poderia ajudar ao presbítero hispano na construção de sua argumentação contra os priscilianistas especialmente em questões relacionadas à origem da alma, assunto sobre o qual Agostinho preferia não pronunciar-se. Após esta viagem, no ano de 416, Orósio retornou a Hipona e provavelmente neste momento iniciou a escrita de sua principal obra, a História Contra os Pagãos (Historiae adversus paganos). Provavelmente já vinha compilando as informações que se tornariam a base de sua História desde sua primeira estada na cidade africana, complementando as informações durante sua viagem ao oriente, a pedido de Agostinho. O título desta obra, História Contra os Pagãos, é muito signiicativo para entendermos seus objetivos. Sua escrita está relacionada com a polêmica entre pagãos e cristãos que voltou a ser bastante forte após o saque de Roma por Alarico em 410. Grosso modo, os pagãos culpavam os cristãos pela ruína do Império graças ao abandono dos cultos tradicionais da cidade enquanto os cristãos se defendiam airmando que as crises pelas quais passavam o Império eram uma punição divina contra aqueles que ainda não aceitavam a “verdadeira” religião, ou seja, o cristianismo. Agostinho estava profundamente engajado nesta polêmica, lembrando que neste momento escrevia sua “Cidade de Deus” (De Civitate Dei) com este objetivo, e uma obra 10 Agostinho, Ep. 166, 2. Citação retirada de MARTINEZ CAVERO. Op. Cit. 209 historiográica contra os pagãos que desse apoio a sua argumentação poderia ser bastante útil. Neste sentido, o principal tema tratado por Orósio é a felicidade ou a infelicidade dos tempos antigos, entendidos pelo presbítero hispano como aqueles que se passaram antes da vinda de Cristo, e os tempos cristãos (tempora christiana)11 sendo que seu principal objetivo é demonstrar aos pagãos que os tempos cristãos são mais felizes que os tempos antigos.12 A partir destas informações, agora podemos iniciar a análise propriamente dita do texto de Orósio buscando as relações entre o contexto de sua produção e as idéias apresentadas pelo presbítero hispano. Logo no princípio do trecho relativo ao governo de Honório, Orósio já apresenta aquela que é, para ele, a principal característica do Imperador: sua fé. Enquanto nenhuma outra criança que havia assumido a púrpura chegou à idade adulta com facilidade, Honório o conseguiu graças à tutela de Cristo, resultado da grande fé do jovem imperador e também de seu pai.13 A fé é uma característica e um instrumento que será ao longo do texto tratado como fundamental por Orósio. Os partidários do Imperador também são agraciados pela fé. Mascazel logrou vencer a seu irmão Gildón sem batalha graças a sua fé, na qual coniou por ter conhecido os feitos de Teodósio,14 que levou à intervenção de Ambrósio de Milão – que havia morrido poucos dias antes e teria aparecido como santo em um sonho de Mascazel – mostrando o caminho da vitória.15 Já a igura de Estilicão na obra de Orósio tem uma sorte bem diferente. Tal personagem é representado sempre como ambicioso e acusado desde sua primeira aparição de querer substituir o imperador MARTINEZ CAVERO, P.. Aproximacion al concepto de tiempo en Orósio. Antigüedad y Cristianismo, Murcia, n.12, p. 255-260, 1995. p. 256. 12 MARTINEZ CAVERO, P.. Signos y Prodigios. Continuidad y Inlexión en el piensamento de Orósio. Antiguiedad y Cristianismo, Murcia, n. 14, p. 83-96, 1997. p. 84. 13 Oros. VII, 36, 3. 14 Ibidem, 36, 5. 15 Ibidem, 36, 7. 11 210 legítimo por seu ilho Euquério. Notável é que sua pretensão de fazer isto no oriente não é citada, assim como em nenhum momento sua ambição é dita em termos de aumentar sua área de inluência ao oriente. Além disso, é considerado culpado de todos os males sofridos pelo Império na mão dos bárbaros,16 pois além de ajudá-los, os teria utilizado conscientemente para desgastar e aterrorizar o estado.17 Com relação à religião, nada se fala sobre Estilicão propriamente dito, porém cita que seu ilho já tramava perseguições aos cristãos para assim que assumisse o poder. Assim como Honório é considerado um homem de fé por conta da herança de seu pai, Euquério seria um idólatra graças a seu pai, e logo não seria digno de nenhum apreço por parte de Orósio. Durante a invasão de Radagaiso, inimigo pagão,18 tudo parecia perdido. Porém, graças a fé do imperador Honório se apresenta a misericórdia divina19 e antigos inimigos se tornaram aliados contra a ameaça,20 mas Orósio assinala que Deus não deixa dúvida de que a vitória se consegue somente por sua intervenção, já que novamente, e apesar dos reforços, o inimigo é derrotado sem batalha.21 Esta misericórdia divina, apesar de abarcar todas as pessoas de Roma, na verdade se dirige apenas àqueles que acreditam em Deus, pois ela é temporária, já que a punição contra os idólatras viria em seguida com Alarico. Inimigo, mas cristão.22 Finalmente, quando as armações de Estilicão foram descobertas pelo exército, ocorreu uma rebelião contra o general, considerada justa pelo presbítero hispano por estar de acordo com os interesses do Imperador e tanto Estilicão, quanto seu ilho e alguns dos seus poucos seguidores foram punidos. Assim se podiam considerar livres, tanto o próprio Imperador quanto as comunidades cristãs, deste personagem tão odiado por Orósio.23 Ibidem, 37,1. Ibidem, 38, 2-3. 18 Ibidem, 37, 5. 19 Ibidem, 37, 11. 20 Ibidem, 37, 12. 21 Ibidem, 37, 14. 22 Ibidem, 37, 17. 23 Ibidem, 38, 5-6. 16 17 211 Apesar da fé do Imperador, a cidade de Roma ainda merecia uma punição por tantas blasfêmias.24 Sendo assim, o rei visigodo Alarico sitia e saqueia a Cidade Eterna. O capítulo 39 do sétimo livro da História Contra os Pagãos é a narração de acontecimentos relativos a este acontecimento. O que se desprende desta descrição são duas coisas principais. A primeira é que o castigo é merecido, e a segunda que o saque não foi tão duro quanto poderia ter sido, graças ao cristianismo de Alarico.25 As usurpações na Britânia são consideradas ilegais desde o principio da descrição de Orósio.26 Orósio sente grande pesar quando narra o fato de que o ilho de Constantino III foi obrigado a deixar a Igreja para tornar-se César de seu pai, soltando neste momento uma expressão de dor.27 Orósio também condena a aliança deste personagem com os bárbaros28 e os saques perpetuados por estes na Hispania.29 Apesar disso, Orósio ameniza a situação airmando que os hispanos já passaram por situações semelhantes outras vezes, ou seja, não se tratava de uma novidade gravíssima.30 Além disso, Orósio airma novamente que se trata de uma justa punição, sendo este fato reconhecido por aqueles que temem ao Deus cristão e que aqueles que não conhecem a religião não seriam capazes de agüentar tal punição, por considerá-la injusta.31 E apesar da punição justa, a misericórdia para com aqueles que têm fé é expressa, já que todos que quisessem fugir poderiam contar com os próprios bárbaros que aligiam a terra como defensores.32 Mesmo em meio à ruína do Império, Orósio encontra argumentos positivos. Em troca da ruína, muitos bárbaros descobrem a religião cristã e se convertem, enchendo desta maneira as Igrejas.33 Ibidem, 38, 7. Ibidem, 39, 1-18. 26 Ibidem, 40, 4. 27 Ibidem, 40, 7. 28 Ibidem, 40, 7. 29 Ibidem, 40, 8-10. 30 Ibidem, 41, 2. 31 Ibidem, 41, 3. 32 Ibidem, 41, 4. 33 Ibidem, 41, 8. 24 25 212 O presbítero hispano vê de maneira bastante positiva a ascensão de Constancio, airmando que a volta do comando do exército às mãos de um romano, depois de vários anos sob comando de bárbaros (Estilicão, por exemplo) é de grande utilidade para o estado romano.34 Através deste general, Honório é capaz de derrotar a todas as crises encontradas em seu reinado, principalmente as usurpações de Constantino III,35 de Geroncio e Máximo,36 de Jovino37 e Heracliano.38 O legítimo imperador mereceu derrotar todos seus inimigos com justiça, graças a sua extraordinária fé e sorte.39 Neste sentido, podemos airmar que a visão positiva que Orósio faz do reinado de Honório está apoiada em dois principais pilares. O primeiro é o fato de que em todos os revezes, derrotas ou crises a responsabilidade nunca é do Imperador propriamente dito. A culpa sempre recai em um personagem considerado indigno de seu posto ou então é entendida como uma punição divina, sempre justa, contra os pecadores que vivem dentro dos limites do Império. Já todas as vitórias, são atribuídas à fé de Honório e de seus seguidores, numa nítida noção de é a própria vontade divina que mantém o Imperador em seu posto. Disso, podemos concluir que para Orósio a principal virtude que um Imperador deve ter é a fé. Além disso, a ica clara a preferência por romanos aos bárbaros na oposição que se pode fazer entre as imagens de Estilicão e Constancio, e em uma escala maior, a preferência aos cristãos invés dos pagãos, mesmo que os cristãos sejam bárbaros e os pagãos romanos, como se pode notar na narração dos feitos de Alarico. Ainda podemos relacionar a visão positiva do reinado de Honório com o objetivo geral da obra, que seria como vimos acima, demonstrar como os tempos cristãos são mais vivos que os tempos pagãos. Orósio airma que uma das provas desta felicidade é o fato de encontrarmos nos tempos cristãos inumeráveis vitórias com pouco Ibidem, 42, 1-2. Ibidem, 42, 3. 36 Ibidem, 42, 4-5. 37 Ibidem, 42, 6. 38 Ibidem, 42, 11-14. 39 Ibidem, 42, 15-16. 34 35 213 derramamento de sangue, nenhuma luta e quase sem mortes.40 Se prestarmos atenção à isto, percebemos que grande parte das vitórias atribuídas a Honório narradas por Orósio se encaixa nesta descrição. Neste sentido, a própria visão positiva acerca do reinado de Honório é um dos principais argumentos do historiador cristão para provar sua principal tese. 40 Ibidem, 43, 16-17. 214 SOCIABILIDADE E “ECONOMIA MORAL” NA VITA SECUNDA DE TÓMAS DE CELANO (1244 – 1247) Douglas de Freitas Almeida Martins (Graduando UFMT) I A categoria “nova história cultural” entrou no léxico comum dos historiadores há mais de uma dezena de décadas, quando Lynn Hunt publicou, com o titulo a Nova História Cultural, uma obra que reunia oito ensaios de diferentes modelos e exemplos de um novo modo de se fazer história. Esta nova prática historiográica, nas palavras de Chartier propõe “um modo inédito de compreender as relações entre as formas simbólicas e o mundo social”.1 A nova história cultural, seguindo a tradição da terceira geração dos Annales, ou seja, a historiograia pós 1960 estabelece um dialogo muito próximo com outras áreas do conhecimento, de um lado os antropólogos; e de outros, os críticos literários, para assim fazer mais estudos de caso do que de teorização global. É neste contexto de revisão das abordagens historiográicas, que dois historiadores iram se destacar: hompson e Ginzburg. Diferentemente da idéia de Hunt, que trata os dois como marcos dessa nova vertente, julgo que este olhar é extremamente reducionista. Isso é ainda mais válido para hompson, um historiador que estuda como as lutas de classes se desenvolveu ao longo da história. O próprio Ginzburg, como ele mesmo já escreveu tantas vezes, supunha que seu trabalho revisava as bases da “história social”, não das “mentalidades”. Dessa forma, localizo os dois não como parte da “virada para a História Cultural, mas como marcos de uma drástica reavaliação dos paradigmas intelectuais vigentes na historiograia em meados do século XX. Irei me deter na análise da obra do historiador inglês. Ele CHARTIER, Roger. História e Linguagens: texto, imagem, oralidade e representações. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. p. 126. 1 215 deve ser entendido dentro de um movimento de revisão da tradição marxista. hompson pertence a uma linguagem historiográica tipicamente anglo-saxa que nada tem a ver com a “escola francesa” […]. A “escola” de hompson é [...] uma corrente que combina Social History britanica e o marxismo. Historiador preocupado com as massas e a identidade da classe trabalhadora no contexto da industrialização.2 A obra de hompson procura se afastar da “tese tradicional” da história social britânica, segundo a qual as classes não constituem valores e identidades próprias. No clássico texto, Economia Moral, ele rompe com a visão economicista, e por que não dizer política que reduz o campo de análise do historiador transborda o problema para o campo da sociedade e da cultura, adentrando assim no universo dos motins e da complexa relação existente entre salários e trabalhos no inal do século XVIII. Deste modo muito além de um espasmo social, em que a comunidade rapidamente se mobiliza para reagir a um problema imediato, os motins eram motivados também por uma “estrutura” mais ampla que domava os espíritos daquela sociedade levando a algum tipo de tomada de consciência de grupo menos aleatória e descompromissada. É desta idéia que hompson irá atribuir o conceito de economia moral. É neste ponto que queria chegar. É precisamente o conceito de economia moral que utilizarei nesta comunicação. Em sua análise da sociedade pré-capitalista na Inglaterra do século XVIII, ele airma que é impossível separar a moral da economia. Ela se confunde com o cotidiano, com o dia a dia de homens e mulheres. Não existira uma divisão clara e bem delimitada de prática que hoje entendemos como economia e aquilo que praticavam baseados em costumes e tradições mais antigas. Os mercados deviam ser controlados; não se podia vender antes de horas determinadas, quando soava um sino; os pobres deviam ter a oportunidade de comprar VAINFAS, Ronaldo. Micro história: os protagonistas anônimos da História. Rio de Janeiro: Campus, 2007. p. 223. 2 216 primeiro os grãos, a farinha ina ou a farinha grossa, em pequenas porções, com pesos e medidas devidamente supervisionados. Numa determinada hora, quando suas necessidades estivessem atendidas, soava um segundo sino, e os comerciantes mais abastados (devidamente licenciados) podiam então fazer suas compras.3 Haveria desse modo, práticas morais que incidem diretamente na organização material daquela sociedade. Na sociedade medieval do século XIII também. As duas estruturas sociais são anteriores ao advento do capitalismo.4 Aquilo que antes estava relacionado a uma concepção de tempo ligado ao ritmo da natureza, se modiica signiicativamente (no caso estudado por hompson). O capitalismo como sistema econômico apresenta outra visão de mundo. Estas novas práticas levavam a superação do convencionalmente estabelecido, acarretando um aumento excessivo dos preços e consequentemente a formação de motins. As transformações trazidas pelo advento do capitalismo acabam por tencionar as estruturas tradicionais daquelas sociedades. Os homens e mulheres estavam imbuídos da crença de que estavam defendendo direitos ou costumes tradicionais. “O motim da fome [...] era uma forma altamente complexa de ação popular direta, disciplinada e com objetivos claros”.5 É importante destacar o quão traumática foi o processo de separação de valores da economia no conjunto das ações coletivas. Ao incorporar em seu dia-dia o fato de que tudo que envolvia a reprodução material da vida passaria a ter agora uma lógica especiica, autônoma e distinta das demais questões da existência social o que impunha rupturas à sua visão tradicional de mundo, cujo maior fundamento era integrar todas as experiências coletivas em uma única e imensa matriz de sentidos e valores. Ou seja, o capitalismo “inventa a economia como tal”, algo que não existia antes, é ele quem que traça esta separação na sociabilidade. THOMPSON, E.P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. 4 Por um sistema capitalista entendo o processo de industrialização que o mundo conhece a partir do século XVIII. Assim, desconsidero experiências anteriores como o mercantilismo e a chamada expansão comercial decorrente das Grandes Navegações dos séculos XV e XVI. 5 THOMPSON, E.P. Op. Cit, p. 152. 3 217 Assumo um conceito de moral muito próximo daquele gestado pelo ilosofo A. S. Vazquez: A moral consiste na regulamentação das relações entres os homens, para contribuir assim no sentido de manter e garantir uma determinada ordem social. A segunda vita, escrita por Tómas de Celano apresenta referencias éticos singulares, e também registra novos mecanismos de regulação social sob uma “economia moral”. hompson é um teórico da luta de classes. A nova história cultural ao incorporá-lo em seu campo conceitual, graças aos seus trabalhos que valoriza a resistência social e a luta de classes em conexão com as tradições, os ritos e o cotidiano das classes populares em um contexto histórico de transformação (o advento da industrialização e o rompimento de estruturas tradicionais), distorce suas teorias e pressupostos. É inadequado classiicá-lo a partir de expressões como “uma versão marxista da história cultural”. O culturalismo reduz toda a complexidade e singularidade da vida humana a uma dimensão que determina todas as outras. hompson incorpora elementos que vão além da metáfora tradicional base x superestrutura, ampliando as possibilidades de abordagens dos processos históricos. Mas, a partir disso, classiicá-lo como um historiador cultural é caminhar em um chão sem qualquer segurança. A descrição que acabo de fazer sobre sua obra permite fazer uma airmação: toda dimensão humana é permeada de traços culturais. Isso, porém não signiicam reduzir todas elas a uma causa cultural. É possível, em economia, falar sobre valores e prática. Mas, ela é muito mais ampla. Toda experiência humana é permeada de signiicações, e a cultura é uma dimensão que expressa o mundo. II Procuro analisar a segunda vita à luz desses conceitos. Ela foi escrita pelo franciscano Tomás de Celano, a pedido do ministro- geral Crescenci de Jesi, para completar a Vita prima com novos elementos reclamados pelos frades que conheceram São Francisco. Entre estes frades havia três especialmente que tinham conhecido bem Francisco: 218 Frei Ruino, Frei Ângelo e Frei Leão. A obra foi escrita no ano de 1244, 16 anos após a Vita prima, em um contexto de expansão da Ordem dos Frades Menores, em um século marcado pelo assentamento de novas estruturas sociais e de um novo equilíbrio, especialmente citadino das práticas de sociabilidade. Para tanto, me utilizarei de alguns exemplos que ilustram a minha proposta. O primeiro se encontra no capítulo XV do segundo livro, com o título: Convidou seu médico para almoçar em uma ocasião em que os frades não tinham nada. Quantas coisas receberam do Senhor de uma hora para a outra. Providencia de Deus para com os seus. O título é sugestivo. Celano narra: Quando São Francisco morava em um eremitério perto de Rieti, visitava-o um médico, todos os dias para cuidar dos seus olhos. Certo dia, disse o santo aos frades: “Convidai o médico e daí-lhe um bom almoço” [...], os frades correram e puseram na mesa toda a provisão de sua despensa, isto é, um pouco de pão e não muito vinho. Para comerem um pouco melhor, serviu-lhes a cozinha um pouco de legumes. Nesse meio tempo, a mesa do Senhor teve pena da mesa dos servos. Bateram a porta e logo atenderam. Era uma mulher que lhes deu uma cesta cheia de um belo pão, de peixes e de pasteis de camarão, e com mel e uvas por cima. Exultou a mesa dos pobres quando viu isso e, deixando seus alimentos pobres para o dia seguinte, comeram naquele dia os mais preciosos. 6 A presença inicial de alguns poucos alimentos que se encontram em uma dispensa, implica em uma lógica de organização material, com vistas à acumular e a racionar. É neste momento, que bate na porta uma mulher com uma cesta cheia de um belo pão, de peixes e de pasteis de camarão, e com mel e uva por cima. Abençoados pela providencia de Deus, serviram-se do melhor naquele dia. Ora, o simples almoço que inicialmente contava com alguns pães, e vinhos 6 VIDA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS. Rio de Janeiro: Vozes, 1982. p. 124. 219 (símbolos eucarísticos, que evocam a memória da ressurreição de Cristo), passa a contar com a presença de pasteis de camarão, uva e mel (com claro peril aristocrático), constituindo-se uma cena um tanto quanto ambígua, onde aqueles que pregavam o apego a pobreza não vem nenhum problema em se fartarem. Isso nos sugere que enquanto a fonte de tal abundancia for sacralizada (ela foi enviada por Deus) não haveria nenhuma incompatibilidade com os ideais pregados por Francisco. A noção de sagrado se desloca, sendo visto a partir de outros referenciais. É possível identiicar outras passagens semelhantes, como na descrição de São Francisco, no capítulo XV do primeiro livro, onde nos é contada que em uma situação de fome de uns dos frades foi preparado uma mesa cheia de iguarias rudes, onde havia água no lugar do tradicional vinho: Certa noite, um dos frades começou a gritar durante o descanso dos outros: “Estou morrendo, irmãos, estou morrendo de fome!” O valoroso pastor levantou-se imediatamente a acudir sua ovelhinha doente com o devido remédio. Mandou preparar a mesa, embora cheia de iguarias rudes, onde havia água no lugar do vinho, como era freqüente. Ele mesmo começou a comer e por caridade, para que o frade não icasse envergonhado, convidou também os outros irmãos. Depois de terem tomado o alimento no temor do Senhor, para que nada icasse faltando nas obrigações da caridade, contoulhes o pai uma parábola sobre as virtudes da discrição. Disse que sempre se deve oferecer o sacrifício a Deus temperado com sal, e admoestou atentamente que cada um deve considerar suas próprias forças quando pensa em prestar obséquio a Deus.7 A passagem nos mostra o santo comendo e, por caridade, para que o frade não icasse envergonhado convidou também os outros irmãos. Ao terminar a refeição, contou-lhes uma parábola no qual valorizava cortesia, a caridade e a unidade, qualidades morais apreciadas e que regulavam uma farta abundancia. 7 Ibidem, p. 112. 220 O capítulo XIV dos segundo livro traz uma passagem no qual o pai dos pobres comenta a um de seus companheiros, o seu desejo de ter uma túnica nova: Nesse mesmo lugar, vestindo uma túnica velha, o pai dos pobres disse uma vez a um de seus companheiros, a quem constituíra seu guardião: “Gostaria, irmão, se fosse possível, que me arranjasses fazenda para fazer uma túnica”. Ouvindo isso, o frade icou pensando em como poderia adquirir esse pano tão necessário e tão humildemente pedido. No dia seguinte, bem cedo, saiu a porta para ir a cidade arranjar o pano. Mas havia um homem sentado junto à porta, querendo falar com ele. Disse-lhe: “Por amor de Deus, recebe esta fazenda para fazer seis túnicas, guarda uma para ti e distribui as outras como te aprouver, pela salvação de minha alma”. O frade voltou muito alegre para junto de Frei Francisco e contou como tinha recebido esse presente do céu. O pai disse: “recebe as túnicas, porque esse homem foi enviado para satisfazer dessa forma a minha necessidade. Demos graças Aquele que parece só precisa cuidar de nos”.8 Frei Francisco ao recebê-la agradece por aquele homem que foi enviado por Deus, para cuidar de seu pedido. Esta é uma informação interessante: O mal caminha lado a lado com o luxo, e São Francisco nos alerta sobre o perigo da ostentação quando não havia a necessidade e quando era contraria a vida que se professou. Atesta a grandiosidade da pobreza frente à pequenez de uma vida longe do verdadeiro ideal. Segundo ele aqueles que se afastam da pobreza serão corrigidos pela necessidade. Aquele que professava exemplos contra o uso de roupas a mais ou de qualidade mais ina, não vê nenhuma impossibilidade de receber tal presente, uma vez que ele foi enviado por Cristo. Assim, mais uma vez a idéia de sacralização da riqueza regula a ordenação material. Em outro exemplo, extraído do capítulo XXVI, São Francisco citando a uma passagem do Evangelho: “As raposas têm tocas e os pássaros do céu têm ninhos, mas o Filho de Deus não tem onde 8 Ibidem, p. 124. 221 repousar a cabeça” ensina aos seus a fazerem casinhas pobres, de madeiras e não de pedra, no estilo dos mais rudes. Como Georges Duby já nos mostrou no texto O grande progresso, casas de pedra são símbolos de uma riqueza que começa a tornar-se mais clara na virada do ano Mil. A riqueza em sua forma mais direta, em situações em que a pobreza é cada vez mais visível e convive no cotidiano com homens e mulheres, é algo condenável. Exemplo parecido também é possível encontrar em seus ensinamentos contra o dinheiro. Assim, na cidade e no campo, a pobreza está associada à absoluta necessidade de trabalho cotidiano. Se este vem a faltar, ativa-se a engrenagem da indigência, a não ser que a caridade e a justiça intervenham. Caridade e justiça tinham objetos de sombras. 9 Francisco é conhecido pelos ensinamentos aos seus discípulos no combate ao dinheiro. Embora, desprezasse profundamente tudo que era do mundo, detestava o dinheiro acima de todas as coisas, fazendo pouco dele desde a sua conversão. As passagens da segunda vita nos mostram um São Francisco que prega aos frades castigos e duras repressões aqueles que o tocam ou pretendem guardá-lo. A passagem que me detenho para a análise está presente no capítulo XXXVIII, intitulado O dinheiro transformado em cobra. Celano assim escreve, comparando o dinheiro a uma cobra venenosa: Passando o homem de Deus com um companheiro pela Apúlia, perto de Bári, encontrou no caminho uma bolsa grande, cheia de moedas [...]. O companheiro chamou a atenção do santo e insistiu com ele para recolher a bolsa e dar o dinheiro aos pobres [...]. O santo se recusou absolutamente e disse que aquilo era manha do diabo [...]. Mas o frade não sossegou, iludido pela sua falsa piedade [...]. Então o santo concordou em voltar, não para cumprir a vontade do frade, mas para esclarecer aquele insensato o mistério divino. Chamou um rapaz que estava sentado em cima de um poço à MOLLAT, Michel. Os Pobres na Idade Média. Rio de Janeiro: Campus, 1989. p. 69. 9 222 beira da estrada [...]. O santo [...] afastou-se à distancia de uma pedrada e começou a rezar. Quando voltou, mandou o frade pegar a bolsa que, por efeito de sua oração, continha uma cobra no lugar do dinheiro. 10 Assim como na passagem sobre as habitações, aqui a riqueza em sua forma mais visível é algo condenado. Em uma sociedade que a cada dia passa a conviver com uma economia monetária cada vez mais sensível aos olhos, ela tende também a ser uma causa para as desigualdades entre os homens, e, portanto, algo a ser abominado. III Analisar o ideal de pobreza de São Francisco nos ajudará a compreender melhor a dinâmica social no norte da península itálica, e também os olhares lançados em cima dos pobres: qual era o limiar da tolerância da pobreza? Quais eram os olhares e atitudes dos outros grupos sociais para com os pobres? Sua vida e sua obra transformaram profundamente não apenas o conceito de santidade e de devoção, mas também a atitude da Igreja e dos leigos frente aos pobres na virada do século XII para o século XIII. A pobreza foi permanente ao longo de toda a Idade Média. Jamais pensou-se em suprimi-la. “Assim como a caridade era exortada a jamais perecer, de acordo com o apostolo Paulo, admitiuse, ouvindo Cristo, que sempre haverá pobres”.11 A diversiicação nas línguas vulgares da expressão latina “pobreza”, como se pode notar nas línguas francesa, portuguesa e espanhola, principalmente a partir dos séculos XIII e XIV, como bem nota Bronislaw Geremek em seu estudo acerca da representação da pobreza na literatura, nos mostra que ela é uma presença cada vez mais constante no seio da sociedade medieval e afetava a percepção de elites variadas, não apenas do poder eclesiástico. No entanto, o que se altera, em alguns contextos, é o olhar que se lança sobre ela. Francisco nasce em um século marcado, sobretudo pela explosão de espiritualidades diversas decorrentes de súbitas mudanças nas 10 11 VIDA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS. Op. Cit., p. 138. MOLLAT, Michel. Op. Cit, p. 1. 223 estruturas sociais. Essas diferentes espiritualidades são tentativas por parte de determinados grupos de darem sentido ao mundo a sua volta, a um mundo do qual não se reconhecia mais. Os eremitas são um exemplo disso. Muitas das vezes abandonando a vida em comunidade, passam a viverem isolados, usualmente por penitencia ou religiosidade, mas rapidamente atraem mais e mais pobres. A rápida expansão das Ordens Mendicantes, das quais as Dominicanas e Franciscanas são as mais destacadas, também são deste contexto. Eles alteraram o conceito de pobreza. Cristo foi pobre, nunca teve um bem material e ainda incitaram outros a seguirem seus exemplos. A pobreza é uma virtude, não funcionalidade. São Domingos e São Francisco, os fundadores das respectivas ordens têm em seus gestos uma tradição de caridade quase que milenar. A originalidade de suas ações está naquilo que o século XX denomina “sinais dos tempos”. Em um período cada vez mais dominado por uma economia de troca e de rápida circulação de dinheiro, as cidades tornam-se palcos de atuação de uma pobreza cada vez mais visível. É aqui que atuam esses mendicantes. Buscando cada vez mais o contato com os pobres, abandonando suas posses e passando a viver entre eles, São Francisco e São Domingos lançam novos olhares para a pobreza. E mais, sobre todos aqueles que são privados permanente ou temporariamente dos meios que necessitam para sobreviver. Essa nova ordem, que terá um papel signiicativo na elaboração do IV Concílio de Latrão, terá voz também com os grandes soberanos e na elaboração de histórias que serviriam de exemplo para toda a sociedade. A “revolução da caridade”, inaugurada no século XII, expandiuse plenamente. A natureza das obras de misericórdia não se altera, porém é possível notar uma multiplicação de ordens e fundações que lentamente adquirem certa estabilidade e uma organização mais sólida de modo que permitam atuar com mais força na sociedade. Se antes da virada do século os mosteiros detêm a primazia nas obras de misericórdia, agora essas ações se encontram espalhadas pela sociedade. O lorescimento de instituições coletivas de caráter laico e eclesiástico é um relexo desse processo. A historiograia tradicionalmente aproxima a Ordem Franciscana aos ideais e o apego a pobreza. Qualquer vinculação com a riqueza se 224 dá por meio de exemplos e ensinamentos que combatiam a ostentação e o luxo. São Francisco, por exemplo, tratou de se esquecer de tudo que remetia a sua vida anterior a conversão. Os historiadores ao observarem estes traços de comportamento, classiicam a experiência franciscana como algo que não pode coexistir no mesmo plano, e, portanto a opõem, como se fossem dois lados de uma moeda: riqueza e pobreza. O que pretendo demonstrar é que os dois não são excludentes. Podem sim, coexistir conjuntamente. Este é um movimento que muito se aproxima ao balançar de um pendulo. Ele se alterna em dois modelos de comportamento: uma rejeição sistemática a riqueza em sua forma mais explicita (moradia, dinheiro) e também uma certa tolerância a ela, desde que sua fonte esteja sacralizada e seja utilizada para ins moralmente aceitos. Esta aproximação de conceitos tão distintos não é uma impossibilidade. Ao contraio. São necessários para entender as possibilidades de leitura, que em minha opinião são muito maiores, do mundo do qual estes homens faziam parte. Uma ampliação dos sentidos de aspectos da vida social. Estes aspectos passariam a ser encarados e lidos de uma forma muito mais ampla, e não mais de forma restrita. Nesta comunicação procurei discutir os modelos de referenciais éticos singulares presentes na Segunda vita. O texto registra novos mecanismos de regulação social na forma de uma “economia moral” (que integrava e fundamentava as experiências coletivas em uma única e imensa matriz de sentidos e valores), produtos do novo contexto do século XIII. Discutir algumas de suas características nos permite entender melhor as normas de comportamento social apresentados, permitindo redeinir ações e atitudes já consagradas: [...] como fundamento de uma visão consistente tradicional das normas e obrigações sociais, das funções econômicas peculiares a vários grupos na comunidade, as quais, consideradas em conjunto, podemos dizer que constituem a economia moral dos pobres. Os desrespeitos a esses pressupostos morais, tanto quanto a privação real, era o motivo habitual para a ação direta. 12 12 THOMPSON, E.P. Op. Cit, p. 152. 225 A DIPLOMACIA NA CONSTRUçãO DA CAMPANHA DE CEUTA Douglas Mota Xavier de Lima (Mestrando Scriptorium – PPGH – UFF) Feito que marcou a gênese dos descobrimentos, a conquista de Ceuta por Portugal no ano de 1415 tornou-se um ato legitimador da Dinastia de Avis. Ao observar o acontecimento com meio milênio de distância, historiadores comumente referiram-se ao fato como o primeiro momento da expansão européia e como sinal dos tempos modernos. Frente a tais acúmulos historiográicos, este artigo incidirá sobre um aspecto especíico da investida portuguesa, as relações diplomáticas envolvidas no processo da construção da campanha militar. Utilizar-se-á, principalmente, da Crônica da Tomada de Ceuta, escrita por Zurara, e dos documentos publicados na Monumenta Henricina, a im de acompanhar as repercussões e as movimentações diplomáticas da preparação militar. Todos os preparativos e ações que serão apresentados se inserem na airmação e consolidação avisina, assim, busca-se perceber no período entre 1411 e 1415, elementos que contribuíram para a propaganda dinástica e que, conseqüentemente favoreceram a legitimação da Dinastia de Avis. * A elaboração da estratégia de ofensiva contra a praça africana de Ceuta foi cuidadosamente planejada, em grande parte pelos receios de D. João I em relação a investida.1 Esse ataque teve como grandes diferenciais a cautela e o segredo na construção da campanha militar. Discutido entre o conselho régio e ampliado para um pequeno círculo de pessoas, a decisão de atacar Ceuta ainda abarcou movimentações de dissimulação e espionagem, e estas colocaram em ação a diplomacia ZURARA Gomes Eanes de. Crônica da Tomada de Ceuta. Idem, Cap. IX-XXII, p.57-99. Ao longo de treze capítulos Zurara descreve o processo de exposição e convencimento do rei de que o ataque a Ceuta era serviço de Deus, e tinha o apoio da rainha e do condestável. 1 226 portuguesa do período. Estas características da empresa de 1415 se sobressaem no contraste com o ataque a Tânger em 1437, quando não foram tomadas tantas precauções e o segredo foi inexistente. Recupera-se como uma das primeiras expressões desta ‘face diplomática’ da empresa de Ceuta a embaixada enviada à Sicília. Missão dissimulada revestiu-se de honras para esconder os objetivos de espionagem que a constituía. Assim descreve Zurara a preparação da comitiva: mandou [D. João I] logo correger e aparelhar duas galés, as melhores que estavam em suas taracenas, as quais foram assim corregidas de todas as cousas como se houvessem de andar de armada. E isto era porque além da nobreza com que lhe convinha de os enviar, segundo seus embaixadores, queria que fossem de tal guisa apercebidos que não pudessem receber algum dano de alguns mouros se os achassem. E mandou ainda el-Rei fazer mui nobres librés de seu moto e divisa para todos aqueles que nas ditas galés haviam de ir. E isso mesmo apendoar e atoldoar todas aquelas galés e des começo até im de panos de suas cores. A qual cousa nunca ainda até aquele tempo fora vista em nenhuns navios semelhantes.2 Por mais que seja possível relativizar as airmações do cronista, tem-se presente nessa descrição o cuidado régio em estruturar uma embaixada faustosa. Esse revestimento de grandiosidade que cobriu a missão foi capaz de impressionar os presentes na cidade de Lisboa quando as galés aportaram e, de acordo com Zurara, diziam os estrangeiros ao ver o desembarque dos embaixadores: “este Rei de Portugal assim como é grande em todos seus feitos, assim faz, grandiosamente, todas suas cousas”.3 Nota-se que os elementos faustosos que envolveram tal missão alcançaram quatro objetivos em níveis diferentes. Um primeiro, pragmático, que conseguiu desviar as atenções da comitiva para a negociação do casamento, ocultando o 2 3 Ibidem, Cap. XVI, p. 80. Ibidem, Cap. XVII, p.83. 227 interesse em Ceuta; um segundo, circunscrito a própria dinâmica da embaixada, que reforçou a distinção da missão tanto na partida quanto na estadia na Sicília e no retorno à Portugal; um terceiro, amplo e indireto, que agregou honra àquele que promoveu a embaixada, ou seja, o rei D. João I; e, por im, um quarto nível, mais sutil, dinâmico e marcado pela luidez, que envolveu as repercussões várias que esta comitiva régia gerou.4 Percebe-se que os dois últimos níveis estabelecidos articulam-se com a propaganda régia, isto é, apresentam-se como instrumentos de reforço da imagem do rei, do reino e da dinastia que o dirigia. No entanto, ao focar a embaixada como utensílio das relações externas, nota-se, no último nível citado, a expansibilidade do circuito de informações do período. Sendo Lisboa uma cidade inserida nas redes comerciais da Cristandade, era freqüentada por mercadores de diferentes regiões, os quais também atuavam como coletores e divulgadores de notícias com importância diplomática, contribuindo, assim, para a ampliação do “horizonte de informação” dos poderes aos quais se relacionassem.5 A utilização de rumores e de informações advindas de mercadores fez-se presente também em outros momentos desta ‘face diplomática’ da empresa de Ceuta, como por exemplo, na embaixada à Holanda. Esta, de acordo com Zurara, se tratava de uma expedição com o intuito de encobrir os preparativos para o ataque a Ceuta, utilizandose, como pretexto, da existência de roubos praticados pelos naturais do ducado da Holanda contra os portugueses.6 A estratégia de D. João estruturava-se no envio de Fernão Fogaça, vedor do infante D. Duarte, Zurara chega a mencionar as indagações da população de Lisboa sobre qual seria a inalidade da embaixada. Idem. 5 PÉQUIGNOT, Stéphane. Au nom du Roi. Pratique diplomatique et pouvoir durant le règne de Jacques II d’Aragon (1291-1327). Madrid: Casa de Velazquez, 2009, p.97-119. Nas páginas citadas, o autor desenvolve uma análise acerca do recolhimento de informações externas pela coroa de Aragão, reforçando a variedade de fontes disponíveis para o poder régio. 6 ZURARA Gomes Eanes de. Idem, Capítulo XXVIII, p.112-113. “porque certo era que os naturais daquele ducado faziam mui grandes roubos no mar em os navios destes reinos” p.113. 4 228 como embaixador, para que, uma vez recebido pelo duque, expusesse as críticas régias aos naturais do ducado e expressasse o desaio estabelecido pelo rei português – caso o duque não izesse cessar as represálias praticadas pelos seus súditos contra os navios portugueses, D. João ver-se-ia obrigado a declarar-lhe guerra. Contudo, essa etapa ‘oicial’ da embaixada deveria ser precedida pelo contato secreto com o duque, e neste momento os verdadeiros objetivos que fundamentavam a missão deveriam ser expostos. A descrição cronística sobre esta viagem de Fernão Fogaça dáse em dois capítulos da Crônica da Tomada de Ceuta (XXVIII e XXIX), todavia muitos são os aspectos desse texto passíveis de problematização, principalmente, pela falta de fontes coetâneas. Robert van Answaarden publicou, em 1980, um relevante artigo sobre o assunto, no qual ampliou as questões relativas à embaixada ao duque da Holanda.7 Primeiramente, retiica o autor, a designação de “duque de Holanda” não está correta, visto que à época a alcunha usual era “duque Guilherme da Baviera, conde da Holanda, da Zelândia, e do Hainaut”.8 Mas, a principal airmação de Answaaden neste artigo incide sobre a data da missão. De acordo com o autor, a datação de 1414 está equivocada, pois a embaixada ocorreu em 1411. Fundamentando-se na análise de documentos holandeses e portugueses, assim o historiador deine a questão: Acreditamos que a ausência absoluta de referências ao caso nos livros, do referido período, de ambos os departamentos da administração condal exclui, de todo em todo, a possibilidade de Fernão Fogaça ter feito aquela missão no ano de 1414. Admitindo a possibilidade de omissões, consideramos negligenciável a coincidência de duas omissões simultâneas referentes a um mesmo acontecimento tanto pelo escriturário da tesouraria como pelo escrivão da chancelaria.9 ANSWAARDEN, Robert van. Dois arautos e um harpista. As missões diplomáticas de D. João I à Holanda. História, Niterói, n. 26/27, p.44-59, dez.1980/jan.1981. 8 Ibidem, p.48. 9 Ibidem, p.55, 58. 7 229 Seguindo as indicações de Answaarden, a embaixada portuguesa ao ‘conde da Holanda’ teve um duplo objetivo: camular os preparativos para Ceuta, e solucionar o problema das represálias recíprocas entre os portugueses e os súditos de Guilherme VI.10 A nova cronologia desta missão diplomática a insere antes da embaixada à Sicília, e coloca em 1410-1411 o início do preparo para a expedição na África.11 Discordando dessa última proposta do autor e ciente das diiculdades de precisão e contextualização, prefere-se aceitar a missão diplomática à Holanda (1411) como mecanismo para encobertar o começo das iniciativas em prol de uma nova investida bélica – fosse ela direcionada para Granada ou para Ceuta. Independente da inalidade, Portugal movimentou-se ativamente no intuito de estruturar suas forças militares, e essa preparação gerou tanto as iniciativas para camular a inalidade da nova investida bélica, como criou alvoroço nos demais reinos que se achavam possíveis alvos. O capítulo XXI da Crônica da Tomada de Ceuta menciona os temores em Castela, visto que neste reino não se acreditava que “tamanho ajuntamento de gentes” fosse para atacar a Holanda.12 De acordo com Zurara, as informações acerca da frota vinham de genoveses que estavam em Lisboa e informavam aos parceiros que tinham negócios em Sevilha.13 Nesse contexto de temor, Castela decidiu enviar a Portugal uma embaixada com propostas de paz – ratiicação do Tratado de 1411 –, a qual visava garantir a segurança Ibidem, p.58. Answaarden fundamenta sua airmação acerca dos preparativos para Ceuta iniciarem-se em 1410 em um documento de 23 de novembro de 1410 (o referido documento encontra-se publicado em: Descobrimentos Portugueses – documentos para a sua história. Suplemento ao v.I (1057-1460). Publicados e prefaciados por João Martins da Silva Marques. Lisboa: Edição do Instituto para a Alta Cultura, 1944. p.456. Neste deine-se a isenção da metade da sisa e dízima, concedida a quaisquer pessoas que de fora trouxessem armas para Portugal. Acredita-se que ter essa única fonte como base para a airmação deixa a hipótese frágil, visto que o estímulo à entrada de armas no reino poderia favorecer tanto a manutenção da guerra contra Castela – que só em 1411 conheceria a trégua –, como estruturar um possível ataque à Granada, que parece ser o principal objetivo de D. João entre 1412-1413. 12 ZURARA Gomes Eanes de. Idem, Capítulo XXXI, p.121. 13 Ibidem, p.122-123. Ainda nesse capítulo o cronista escreve que havia quatro anos que o rei português gastava despendia dinheiro com armamentos. 10 11 230 castelhana e, principalmente, sondar as verdadeiras intenções de D. João I.14 A presente missão deu-se, segundo Dias Dinis, entre 15 de Junho de 1412 e 10 de Janeiro de 1415,15 tendo alcançado que o rei de Portugal reairmasse a paz com os castelhanos.16 O reino de Aragão também não icou isento de apreensões. D. Fernando, em 28 de Novembro de 1414, enviou a Portugal mossem Suero de Nava e o doutor em leis Dalman de Sant Dionis, seus conselheiros, para obterem informações sobre a inalidade dos preparativos militares organizados por D. João.17 Todavia, de acordo com uma carta datada de Dezembro do mesmo ano, percebe-se que o rei aragonês não se restringiu aos mecanismos ‘oiciais’ para alcançar subsídios acerca da armada. Nesta missiva, enviada a D. Fernando por João Mercader, bailio geral de Valencia, este airma ter obtido o saber sobre a inalidade da investida portuguesa.18 Em documento de 2 de Janeiro de 1415, têm-se ainda notícias de que os valencianos se achavam em plenos preparativos de defesa contra possíveis ataques de Portugal,19 o que demonstra que o alvoroço presente na Corte, Ibidem, p.124. DIAS DINIS, Antonio Joaquim. Monumenta Henricina Coimbra: Gráica Atlântida, 1965. 14v., V. 2. p.104. 16 ZURARA Gomes Eanes de. Idem, Cap. XXXII, p.125-127. 17 No volume II da Monumenta Henricina, encontram-se publicados cinco documentos acerca desta embaixada – um memorial, três cartas credenciais, e o capítulo da crônica de Zurara –, a qual se dirigia à D. João I, à rainha D. Filipa, e ao condestável Nuno Álvares (Monumenta Henricina, docs.41-44, 46, p.106-111,112116). De acordo com Dias Dinis, D. Fernando receava pelo menos três possíveis destinos da armada portuguesa: libertação do conde de Urgel; conquista do reino de Valencia; conquista do reino da Sicília: DIAS DINIS, Antonio Joaquim. Op. Cit., V. II. p.106-107. Caso a embaixada castelhana tenha ocorrido antes de Novembro de 1414, é possível inferir que a apreensão em Aragão tenha sido ampliada, visto que Castela recebera a conirmação de não ser o alvo do ataque português. Na Crônica da Tomada de Ceuta, a embaixada aragonesa é descrita no capítulo XXXIII sem nenhuma menção à datas, contudo, Zurara airma que os enviados do rei D. Fernando partiram à Portugal após receber as notícias do retorno da embaixada castelhana (“Mas então icou a ele [D. Fernando] outro muito maior cuidado, porque considerou em si, que, pois el-Rei de todo segurava o Reino de Castela, irmando as pazes por juramento como dito é, que poderia ser que seria a verdadeira tenção de irem contra ele ou contra algum lugar de seu senhorio”, p.128). 18 DIAS DINIS, Antonio Joaquim. Op. Cit., V. II. doc.45, p.111. É interessante notar, que o bailio diz ter conseguido tais informações através de mercadores que estavam em Valencia e vinham de Portugal. 19 Ibidem, doc. 48, p.120-121. 14 15 231 também se encontrava em diferentes regiões de Aragão. Todos esses elementos colocam-se, assim, em oposição à descrição de Zurara acerca do retorno da embaixada aragonesa. De acordo com o cronista, disse D. João I aos embaixadores: Meu ajuntamento não é contra ele, nem contra cousa que a ele pertença. Cá saiba ele que, com melhor vontade o ajudaria a ganhar outro reino, em que ele tivesse alguma justa parte de direito, que de lhe dar fadiga sobre aquele que ele tem ganhado. (...) Mais eles [os embaixadores] foram muito contentes de el-Rei e muito mais o foi el-Rei Dom Fernando.20 Em inícios de 1415, a rainha D. Filipa, em resposta à embaixada aragonesa de Novembro, enviou uma carta a D. Fernando na tentativa de acalmá-lo, e nesta garante-lhe que nenhuma coisa seria feita contra o reino de Aragão.21 Contudo, as palavras da rainha não conseguiram cessar a apreensão aragonesa. Nesse contexto, mais uma vez D. Fernando reairmou o ‘protocolo’ diplomático ao expressar, em carta enviada a D. João I, toda a ainidade e amizade existente entre os reinos,22 sem deixar, por outro lado, de manter-se na busca de novas informações acerca da armada de Portugal.23 ZURARA Gomes Eanes de. Idem, Cap. XXXIII, p.130. DIAS DINIS, Antonio Joaquim. Op. Cit., V. II. doc.49, p.121-122. 9 de Janeiro de 1415. 22 Ibidem, doc.55, p.130-131. 22 de Março de 1415. “Muy alto e muy poderoso princep, nuestro muy caro e muy amado thio don Johan, (...) somos stados certiicados del buen stamjento e sanjdat de vuestra persona e de toda vuestra rreyal casa, assi mjsmo como los hauedes recebidos e acullidos muy plazientment, la qual cosa e assim ismo de la buena respuesta que los hauedes [aos embaixadores aragoneses] dado vos agradescemos muyto. E assi irmament lo sperauamos e lo creyemos, attendido el gran deudo de parentio e amistat que son entre vuestra casa rreyal e La nuestra.” (Grifos meus) Nota-se nesses trechos que o vínculo de parentesco que ligava D. Fernando aos reis portugueses foi acionado como elemento de louvar da igura de D. João, e como base garantidora das relações de paz existente entre as casas reais. 23 Ibidem, doc. 52, p.124-125. De acordo com este documento, de 12 de Fevereiro de 1415, airma que a Sicília encontrava-se em preparativos de defesa por julgar que Portugal a atacaria. Do mesmo mês data ainda outra carta, enviada ao rei D. Fernando, oferecendo informações sobre a armada (Ibidem, doc.53, p.126-127). 20 21 232 Nesta conjuntura tensa o rei de Aragão utilizou-se ainda de um instrumento peculiar das relações externas, a espionagem. Rui Dias da Veja, servidor da casa real aragonesa, recebeu instruções, em inícios de Abril, para informar com detalhes os componentes envolvidos na armada portuguesa,24 e, no dia 23 do mesmo mês, expediu um relatório com os resultados da espionagem.25 Documento extenso e minucioso, o relato de Rui Dias diz que o mesmo começou sua tarefa assim que recebeu a carta de D. Fernando, e chegando a Portugal tratou de buscar informações. Apresentou-se a D. João I, encontrou-se com o escrivão da puridade, com os infantes avisinos, e criou motivos para permanecer em terras portuguesas por alguns dias. Prossegue com a descrição das ações dos infantes e de alguns nobres na organização da armada, destacando a existência de mais de 24 mil homens de armas arregimentados. Expõe os estrangeiros presentes nas tropas portuguesas, chegando mesmo a detalhar a quantidade de homens de armas por cada embarcação que estava sendo preparada. Rui Dias menciona que D. João aguardava pela chegada do conde de Arundel, esposo de D. Beatriz, o qual traria mais contingentes militares para incorporar à armada portuguesa. O espião airma ainda que muitos diziam ser a Holanda o alvo do ataque português, outros que o destino seria Jerusalém, a Frísia, o reino de Fez, Granada, até mesmo que armada visava ajudar a Inglaterra na luta contra a França e negociar um casamento inglês para D. Isabel. Muitos ainda foram os elementos detalhados e os possíveis ins da armada apresentados, no entanto, mesmo com tantos detalhes, em 18 de Maio, D. Fernando enviou novas instruções ao espião solicitando informações sobre o que se passava em Portugal.26 Por sua vez, em 28 de Julho, Rui Dias respondeu com a indicação de que a investida dar-se-ia contra Gibraltar ou Ceuta, destino que estaria incerto até mesmo para o rei português.27 Ainda nesse contexto, uma carta do arcebispo de Santiago, datada de 6 de agosto, expõe relevantes aspectos relativos a circulação de informações no período. Na carta, o clérigo airma ter recebido Ibidem, doc.56, p.131. Ibidem, doc.57, p.132-146. 26 Ibidem, doc.58, p.146-147. 27 Ibidem, doc.71, p.166-168. 24 25 233 novidades sobre os preparativos em Portugal, as quais seriam repassadas a D. Fernando.28 Todavia, o problema marcado através dessa missiva era que a informação que ela levava tinha sido expedida em 24 de Julho,29 ou seja, demorara mais de dez dias para chegar ao arcebispo e ainda demoraria mais alguns dias para chegar ao rei de Aragão, ávido por informes. Recupera-se ainda, que nesta carta de Julho, airmava-se, categoricamente, que o destino da armada portuguesa era o Marrocos, notícia que porventura muito agradaria D. Fernando. Por im, cita-se outra missão enviada a Portugal no intuito de adquirir informações sobre o destino de tantos preparativos, a embaixada de Granada. Descrita no capítulo XXXIV da Crônica da Tomada de Ceuta, a missão é circunscrita por Zurara como tendo ocorrido após as embaixadas de Castela e Aragão.30 Teve três intervenções em terras portuguesas: primeiramente contatou o rei D. João I; sem conseguir respostas satisfatórias, procurou persuadir a rainha D. Filipa; e, inalmente, como alternativa derradeira, tentou convencer D. Duarte a não apoiar nenhuma iniciativa contra Granada.31 Observa-se nessa dinâmica diplomática que as missões incidiam sobre o rei e o conselho régio, mas não se limitavam a estes, atuando também junto às rainhas, aos infantes, e a outros poderosos do reino – elementos presentes ainda na embaixada aragonesa, por exemplo, no contato com a rainha e o condestável Nuno Álvares.32 * A partir deste conjunto documental, percebe-se a intensidade diplomática vivida pelo reino português nos anos que antecederam a conquista de Ceuta. Ao passo que os preparativos para o ataque iam sendo empreendidos sem que a inalidade fosse apresentada, o temor Ibidem, doc.74, p.170-171. Ibidem, doc.68, p.164. Para a questão da data de recebimento da carta pelo arcebispo de Santiago, ver: DIAS DINIS, Antonio Joaquim. Op. Cit., V. II, p.171, nota 1. 30 ZURARA Gomes Eanes de. Idem, Cap. XXXIV, p.132. 31 Ibidem, p.133-135. 32 Cf.: nota 17. 28 29 234 de ser o alvo aligia diferentes reinos e cidades,33 especialmente, os vizinhos ibéricos. Tal contexto de alição foi capaz de estimular práticas diplomáticas diversas: a espionagem empreendida por D. Fernando de Aragão, a ratiicação da paz pelos embaixadores castelhanos, a entrega e a oferta de presentes, a captação de informações por mercadores e outros informantes, entre outros elementos que se afastam dos contatos ‘protocolares’ da diplomacia – o envio de embaixada, a apresentação das cartas de crença dos enviados, a recepção, a exposição dos objetivos da missão, o aguardo pela resposta, e o retorno. Todavia, para além desta riqueza de meandros diplomáticos desenvolvidos pelos possíveis alvos, os preparativos para o ataque a Ceuta também serviram de subsídio propagandístico para a Dinastia de Avis. Na medida em que embarcações e armas eram buscadas em outras praças comerciais da Cristandade, a movimentação bélica portuguesa gerava rumores que circularam, provavelmente, nas principais rotas comerciais de então, fazendo assim que a nova investida militar agregasse honra ao grande senhor que era rei de Portugal e, conseqüentemente, ao próprio reino. Portanto, a perspicaz estratégia de D. João I conseguiu, de acordo com as fontes analisadas, camular o destino da armada portuguesa e ainda favorecer a imagem do reino e da dinastia. Ascendendo de forma conturbada em meio às Cortes de Coimbra (1385), sob um ilho ilegítimo do rei D. Pedro I, e enfrentando o penoso conlito com Castela até 1411, a nova dinastia portuguesa em 1415 alcançava um novo status político na península ibérica e na Cristandade, airmando desta maneira a legitimidade tão questionada. Cita-se também que a cidade de Veneza, segundo Joaquim Veríssimo Serrão, também permaneceu receosa durante os preparativos da armada portuguesa por achar-se um possível alvo. SERRãO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. Volume II. Formação do Estado Moderno (1415-1495). Lisboa: Verbo, 1978. p.21. 33 235 TRANSIçãO E HIERARQUIZAçãO NO MUNDO GERMÂNICO Eduardo Cardoso Dalon (Graduando – Translatio Studii – UFF)1 Em minha pesquisa das sociedades germânicas desde os primórdios de seus contatos com o mundo romano deparei-me com fontes que, analisadas diacronicamente, me dão um quadro de intensas e profundas transformações internas ocorridas num relativamente curto espaço de tempo. Da análise do Commentarii de Bello Gallico,2 de Júlio César (meados do século I a.C.) e da Germania,3 de Tácito (ins do século I d.C.) decorre um quadro de transformação estrutural que, a rigor, conigura um processo de transição histórica daquelas comunidades tribais. César escreve num período (meados do primeiro século antes de Cristo) de expansão de Roma em direção à Gália, e em meio ao “calor dos acontecimentos”. Em seus comentários, exalta o estilo de vida romano comparando-o sempre com os dos “bárbaros”, desconhecedores do Latim e da res publica, legitimando dessa forma a conquista que então se efetivava. Ao fazê-lo, ele nos permite ter uma visão de como era a estruturação interna daquelas diversas sociedades que habitavam a Gália até a sua fronteira com a Germânia. Nos territórios além Reno e Danúbio, podemos observar de maneira bastante clara que a organização dos vários grupos humanos era estruturalmente diferente da romana. Tanto no âmbito cultural quanto no político-econômico. Apresentando divindades menos complexas e formas linguísticas que se diferenciavam Bolsista CNPq. JÚLIO CÉSAR. Comentário sobre a Guerra Gálica (De Bello Gallico). Tradução de Francisco Sotero dos Reis. Brasil: Edição eBooks 2001. Disponível em http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/cesarPL.html 3 CORNÉLIO TÁCITO. Germânia. Tradução de João Penteado Erskine Stevenson. Edições e publicações Brasil editora. Disponível em http://www. ebooksbrasil.org/eLibris/germania.html 1 2 236 consideravelmente das de Roma, com uma economia muito menos monetarizada, com propriedade comunal das terras e sem um Estado centralizado que articulasse as diversas tribos que compunham as regiões externas ao limes que viria a ser estabelecido por Augusto. Cerca de cento e cinqüenta anos passados, contudo, quando me defronto com os escritos de Tácito observo o curso de mudanças bem marcantes. Esse historiador romano (que escreveu em ins do século I depois de Cristo) relata a existência de comunidades bem mais hierarquizadas num contexto em que a “fronteira” do Império havia se estabilizado na linha do Reno. Destaca-se o surgimento de formas mais rígidas do controle do poder4 e do acesso à terra, além de uma divisão social do trabalho que conferia maior ou menor prestígio às “funções”. Ou seja, a distinção social passou a pautar-se por outros fatores além do gênero ou da faixa etária. Manifestamse, ainda, formas de organização interna muito mais complexas, agora possuindo “linhagens” e hierarquias de controle determinadas, ausentes nas referências devidas a César. Como ica evidenciado no quadro abaixo (bastante simpliicado), os processos de mudanças foram muito intensos e acelerados. Exatamente aqui reside a grande questão do trabalho que aqui se apresenta: entender de que maneira se deu esse processo de transição e de que maneira pode-se apreendê-lo. 4 Usado daqui em diante com o sentido de comando. 237 Sistematização das transformações sociais nas fontes – César e Tácito: Sistematização das análises diacrônicas Redistribuição regular de terras Divisão social do trabalho Tendência ao igualitarismo Concentração de riqueza Bens de luxo – diferenciadores sociais Formação de séquito de guerreiros Divindades Comércio 5 6 7 8 9 1 0 Júlio César Tácito X504 Ø X506 Ø Ø Ø Ø X505 Ø X507 X508 X509 Menos complexas, ligadas à natureza510 Mais complexas, apresentando semelhanças com as romanas511 Pouco realizado512 Quanto mais perto do limes mais é executado e monetarizado513 1 1 1 2 1 3 1 4 Hierarquização para os antropólogos Para Maurice Godelier, a hierarquização social se dá por duas vias complementares. Uma primeira estaria vinculada à concentração desigual de riqueza (gado ou terras, por exemplo), nas mãos de poucos JÚLIO CÉSAR. Op. Cit., Liv IV, Cap I. CORNÉLIO TÁCITO. Op. Cit., Cap. VII & Cap. XI. 7 JÚLIO CÉSAR. Op. Cit., Liv.VI Cap. XXII. 8 CORNÉLIO TÁCITO. Op. Cit., Cap. XXVI. 9 Ibidem, Cap. V e Cap. XV. 10 Ibidem, Cap. XIII e Cap. XIV. 11 JÚLIO CÉSAR. Op. Cit., Liv. VI, Cap.XXI. 12 CORNÉLIO TÁCITO. Op. Cit., Cap. IX. 13 JÚLIO CÉSAR. Op. Cit., Liv. IV Cap. XII. 14 CORNÉLIO TÁCITO. Op. Cit., Cap. V. 5 6 238 indivíduos do clã ou da tribo,15 estando a segunda ligada à geração regular de excedentes.16 A concentração aqui referida pode, inclusive, vir a ocorrer em sociedades que tendiam ao igualitarismo, uma vez que o desenvolvimento demográico e ecológico dos grupos humanos pode favorecer a acumulação de excedentes por uma pequena fração do todo social.17 Fração essa que promove, com os excedentes, uma redistribuição,18 uma das únicas formas de obtenção de prestígio nas sociedades menos complexas. Além disso, esses excedentes tornam-se comercializáveis, permitindo à “elite tribal” adquirir bens de prestígio inacessíveis à maioria dos indivíduos por serem raros ou vindos de regiões longínquas. Servem, assim, como diferenciadores sociais que cumprem um papel de legitimação do poder.19 O autor destaca, ainda, o papel desempenhado pela ruptura nas relações de parentesco nesse contexto de surgimento de estruturas mais amplas e concentradas.20 Citando Godelier: “O problema da passagem às sociedades de classes e ao Estado reconduz-se, portanto, ao de saber em que condições as relações de parentesco deixam de desempenhar o papel dominante, de uniicar todas as funções da vida social?”.21 Em outras palavras, a criação laços sociais que excedem os que a família pode administrar são, para ele, essenciais para a constituição de formas mais complexas de organização. Num outro momento, usando o exemplo dos Incas, concorda com Engels22 ao falar do papel da guerra e da conquista para a formação de estruturas sociais mais complexas. Cito: “(...) a guerra e as conquistas GODELIER, Maurice. he mental and the material. Londres: Verso, 1986. Idem. Horizontes da Antropologia. Lisboa: Edições 70, 1973. 17 Idem. 18 Troca de bens que quando não correspondidos geram uma relação de dependência. 19 GODELIER, Maurice. Horizontes da Antropologia. Op. Cit. 20 Idem. he mental and the material. Op. Cit. 21 Idem. Horizontes da Antropologia. Op. Cit., p. 194. 22 ENGELS, Friedrich. A Origem da família da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987. 15 16 239 elevam certas comunidades vitoriosas acima das outras, sendo que a sua dominação necessita de estruturas políticas e econômicas novas, estaduais”.23 Ou seja, a defesa, o ataque e principalmente a conquista geram a necessidade de estruturas estatais que permitam a administração de outros povos subjugados. Já Jonathan Friedman considera que os excedentes desempenham um papel de destaque para a hierarquização das sociedades. Contudo, para ele não é meramente a produção de excedentes o fator fundamental, e sim a maior capacidade de extração desses por uma pequena aristocracia privilegiada.24 Seja essa extorsão de um tipo especíico de pessoa ou de grandes populações. Dessa forma, para o autor, a burocracia surge da necessidade de uma classe/Estado de gerir a reprodução da sociedade e de taxá-la, criando funções especíicas para cada grupo social, reforçando o seu próprio status e assumindo a função de gestora.25 Segundo Friedman, a legitimidade está mais no plano das ideias, com a associação dos chefes ao homem/deus fundador da tribo e também pela monopolização do acesso ao sagrado. Já para Morton Fried, a gênese da sociedade hierarquizada está ligada à generosidade e a redistribuição (não retribuídas) como formas de obter prestígio social e obrigações de outros para com as elites tribais. A visão que ele tem da hierarquização é a de que se trata do processo através do qual se limita legalmente o acesso ao poder e de status a maioria dos membros da comunidade. A riqueza se caracteriza pelo que se distribui e não pelo que se acumula. O chefe é um príncipe entre os homens, um generoso, e é disso que deriva sua posição.26 Segundo o referido autor, nas sociedades que tendem ao igualitarismo, as diferenças seriam principalmente (totalmente?) pautadas pela idade e/ou pelo sexo. Para ele, a estratiicação social GODELIER, Maurice. Horizontes da Antropologia. Op. Cit., p. 165. FRIEDMAN, Jonathan. Tribes States and Transformation in System, structure and contradiction in the evolution of “Asiatic” social formations. Copenhagen: National Museum of Copenhagen, 1979. 25 Ibidem. 26 FRIED, Morton. A evolução da sociedade política. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. 23 24 240 ocorre quando as distinções passam a ser baseadas pelo fator econômico, ou seja, com o controle diferenciado dos meios de produção (terra, água, ferramentas, matéria prima etc.).27 Como consequência dessa restrição no acesso aos meios de produção decorre uma concentração da riqueza. Dessa forma, a quantidade de pessoas capazes de exercer a generosidades (redistribuição) diminui. Como já dito, generosidade é uma das poucas formas se obter de prestígio nas sociedades menos complexas, este passa a ser proporcionalmente concentrado.28 Fried também ressalta o papel desempenhado, neste processo, pelo contato entre sociedades complexas e “simples”.29 Usando o exemplo dos aborígenes australianos, ele explica que o contato com os ocidentais desestruturou internamente as tribos locais que viviam mais ou menos de forma autônoma. Essa desestruturação permitiu que os vários grupos desconexos incorporassem elementos externos, aglutinando-se e formando entidades maiores. O principal fruto desse processo seria a formação de estruturas “estatais” que permitissem controlar o conjunto social ampliado, uma vez que os laços de parentesco, que tradicionalmente regulavam as relações interpessoais, icaram enfraquecidos ou deixaram de existir, formando uma identidade grupal em torno do chefe.30 Marshall Sahlins, por outro lado, enxerga a cheia31 (hierarquização com um chefe no topo da hierarquia) como uma tentativa de articulação social que supere o parentesco propriamente dito. Tratase da tentativa de estabelecer uma superestrutura política, e nessa base uma maior integração econômica, cerimonial, ideológica e de outros aspectos da cultura.32 Para o autor, essa superestrutura se consolida no bojo das alianças defensivas e ofensivas no contexto das pilhagens que favorecem uniões 27 Idem. Idem. 29 Esse simples não possui qualquer carga de preconceito e negatividade, uso aqui só para me referir a uma sociedade que não possui hierarquização. 30 FRIED, Morton. Op. Cit. 31 Termo usado pelo próprio autor – em SAHLINS, Marshall. Sociedades Tribais. Rio de Janeiro: Zahar, 1974 – ao tratar das sociedades hierarquizadas. 32 SAHLINS, Marshall. Op. Cit. 28 241 e laços entre os homens e as tribos,33 em concordância também com Engels.34 Portanto, seguindo nessa linha ele diz que as chefaturas se consolidam por pressão externa. Sahlins ainda ressalta que é necessário para a fundamentação da hierarquia a presença de bens de luxo. Porém, sua mera presença não cria qualquer vínculo entre os indivíduos. Para que haja lealdade é necessário que os bens de prestígio sejam acompanhados de redistribuição.35 Sendo assim, a circulação de bens, subindo na escala hierárquica, é a base da economia política tribal. Ou seja, um presente não retribuído na íntegra compele à lealdade. Ele ainda vê a chefatura como um meio importante de aumentar a produção, pois o chefe força a tribo a produzir excedentes para que ele possa redistribui-los. Garantindo o bem estar da tribo e aumentando o seu prestígio e seu status, dando aos membros do seu grupo e aos que integram o seu séquito presentes e banquetes. Os que o seguem estão, inclusive, mais interessados em promessas de glória do que em qualquer ligação de parentesco que possa existir entre eles e o chefe no seio de um grupo mais verticalizado.36 Dessa forma, a distribuição de presentes seria fundamental para a carreira política dos chefes. Citando Sahlins: “Eles [os chefes,] transformavam o desequilíbrio econômico em desigualdade política”.37 O presente não correspondido cria um desequilíbrio nas relações sociais; aquele que não retribui encontra-se em débito. Citando novamente: “A assistência do chefe ao seu povo é sua ligação com ele”.38 “Assim, a generosidade cria a liderança, criando liderados”.39 Comentários acerca do debate Tendo em vista essas ideias expostas por alguns antropólogos, é possível notar que eles apresentam percepções similares. Contudo, 33 Idem. ENGELS, Friedrich. Op. Cit. 35 SAHLINS, Marshall. Op. Cit. 36 Idem. 37 Ibidem, p. 138. 38 Ibidem, p. 136. 39 Ibidem, p. 138 34 242 como em qualquer ramo das Ciências Humanas, discordam entre si em diversos pontos, aos quais gostaria de me ater. Para Godelier, Friedman e Fried é necessário ao processo de hierarquização uma geração de excedentes. Ainda que somente esses não sejam o suiciente para efetiva-lo. Ou seja, para esses autores, haveria, por qualquer motivo, o surgimento de excedentes40 que, sendo expropriados do conjunto por um pequeno grupo, acabaria por gerar uma “nobreza”. “Nobreza” essa que se especializa em funções que traduzem prestígio e que a excluem do processo produtivo direto, passando a viver de expropriação do resto do grupo. Parece-me ser esta a perspectiva que mais faz sentindo, o que me leva a discordar de Sahlins, que pensa o contrário, airmando que um(ns) membro(s) do todo se afasta(m) da produção e assume(m) funções de comando e impõe(m) que o resto do grupo produza mais para satisfazer às suas necessidades. O que para mim é extremamente incoerente, porque a formação de hierarquias é algo inscrito na longa duração, não se realizando através de “vontades particulares” e sim a partir de construções promovidas ao longo de gerações. Na minha visão os câmbios sociais se processam a partir das tensões no interior da sociedade e dos atritos que se desenvolvem entre grupos sociais, que se agrupam em torno de interesses especíicos. A perspectiva de Friedman a respeito da constituição hierárquica parece completar bem a apresentada por Godelier. Pois esse último explica como se legitima o poder nas sociedades que caminham para diferenciações mais agudas, através da redistribuição. Entretanto, não basta ter prestígio para que se venha a constituir um Estado; é necessária a capacidade de atuar diretamente na administração dos recursos produzidos e de expropriá-los. Ambos os autores defendem, ainda, ideias conjugáveis no que tange à legitimidade do poder. Godelier vincula esta função legitimadora a uma base material, relacionada às condições de acesso diferenciado aos meios de produção. Por outro lado, Friedman dá grande ênfase A título de exemplo, para Fried, isso começa a ocorrer com a “Revolução Neolítica”, quando inovações técnicas teriam permitido a produção acima da necessidade de subsistência. Já para o caso dos germanos, creio que os excedentes seriam oriundos das pilhagens. 40 243 às construções ideológicas que justiicam a ordem social existente, como a ligação do chefe a um ancestral importante (real ou mítico) corroborando sua posição de comando. Penso que ambas as visões devem complementar-se, sendo um equívoco separar a materialidade do ideológico. Lembremo-nos sempre: a realidade social é complexa e ignorar qualquer fator dessa intrincada equação costuma implicar em um empobrecimento do real. A distensão dos laços familiares tradicionais no interior de sociedades que conheciam parcos níveis de diferenciação é apontada por Fried e Godelier como um fator importante para o advento de estruturas estratiicadas. Estes autores, no entanto, focam em aspectos distintos para ver o “enfraquecimento” do parentesco. O primeiro frisa que o contato entre sociedades com Estado e sociedades “igualitárias” favorece esse processo, pois há uma desagregação das várias pequenas unidades que são compelidas a unirem-se para fazer frente à outra sociedade mais complexa. O segundo, apesar de não dizê-lo explicitamente, relaciona essa ruptura à própria concentração de riqueza e à redistribuição desigual, uma vez que a criação de dependências extra-parentais enfraquece a estruturação do relacionamento pautado na família. Nesse ponto estou, de novo, em desacordo com Sahlins, e pelo mesmo motivo: ele vê a consequência como causa! O autor airma que a cheia, por ser uma tentativa de articulação do conjunto, acaba por enfraquecer os laços de parentesco, como uma imposição de cima para baixo, deixando de explicar as razões primárias do surgimento da própria chefatura. A questão do conlito parece também bastante fundamental para entender a gênese das estruturas estatais. Mais uma vez, a conjugação das perspectivas dos autores parece-me muito proveitosa. Sahlins nos diz que a criação de alianças entre os homens e entre as tribos para exercer a pilhagem facilita a aproximação. No entanto, após essa, quando uma tribo se impõe sobre a outra, incorporando-a, a ótica de Godelier encaixa-se perfeitamente: para regular as relações entre dois grupos bastante diferentes sem nenhum laço de sangue é preciso da existência de um Estado. Ou seja, o conlito primeiro aproxima os homens e depois os organiza em estruturas hierárquicas, independentes de laços tradicionais. 244 A respeito de um elemento de crucial importância para a constituição das hierarquias, Fried, Godelier e Sahlins estão de acordo quanto a um aspecto, a redistribuição. Trocar presentes cria um laço de solidariedade entre os homens, sejam parentes ou não. Se o presente não for correspondido, além dessa solidariedade cria-se uma dependência do recebedor em relação ao doador. Surge então uma dicotomia, na qual os polos diferenciam-se pela riqueza e principalmente pelo status. A presença e redistribuição dos bens de luxo é ainda destacada por Sahlins e Godelier, pois esses permitem a diferenciação social e a possibilidade de trocas (e consequentemente de alianças) em um nível horizontal entre os chefes de diferentes tribos. Temos aqui, potencialmente, outro fator que favorece a formação de unidades maiores, graças à subordinação de um chefe a outro pelo quê convencionou-se na antropologia chamar de potlatch.41 Sendo mais claro, concessão de um presente a outro, que possivelmente jamais será capaz de retribuir, cria um laço no qual o recebedor ica obrigado com o doador. O que permite a formação de unidades maiores graças a essa relação de dependência. O caso germânico Esta apresentação e posterior debate tiveram como objetivo enxergar a forma como alguns estudiosos entendem a transição às formações estatais e como suas proposições podem apoiar-me em minha pesquisa de Iniciação Cientiica. Uma vez que há um intervalo de um século e meio entre minhas fontes escritas, tento preencher as lacunas do processo através da arqueologia disponível (em especial aquela oriunda das chamadas “Tumbas Principescas”). As teorias antropológicas viabilizam a análise dos testemunhos, permitindo racionalizá-los, conferindo lógica e sentido às suas relações e expressões. Voltando agora aos documentos podemos ver a aplicabilidade das teorias expostas anteriormente ao meu estudo de caso, o dos germanos entre o primeiro e segundo século da nossa era. Para esclarecimentos acerca desse conceito GODELIER, Maurice. O Enigma do Dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 15. 41 245 Em Tácito encontramos a referência aos excedentes oriundos da pilhagem que, como dito, para Godelier, Friedman e Fried são essenciais para construção de hierarquias. Cito: “A muniicência é paga pela guerra e pela pilhagem”.42 Contudo, esta muniicência paga com o butim seria impensável à época de César: Airma-se possuírem cem cantões, de cada um dos quais tiram mil homens todos os anos para fazer guerra aos vizinhos. Os demais permanecem nos cantões, e se sustentam a si e aquel’outros. Estes no seguinte ano pegam em armas pelo seu turno, permanecendo aquel’outros nos cantões. Assim nem se interrompe o trabalho da agricultura, nem o da milícia.43 Ou seja, não era uma parte do grupo, um séquito, que se beneiciava das pilhagens e sim todo a comunidade, através desse “rodízio”, permitindo a todos possibilidades semelhantes de acumulação. Notamos, inclusive, corroborando a opinião dos autores citados, uma diferenciação de prestígio entre as “funções” exercitadas pelos indivíduos na sociedade. Havendo uma desvalorização da agricultura em relação à atividade guerreira: “acreditam, além disso, ser preguiça inépcia (inércia) adquirir pelo suor o que se poderia obter pelo sangue”.44 Ainda seguindo esse raciocínio percebemos o aparecimento de sacerdotes,45 inexistentes cento e cinquenta anos antes, segundo os relatos de César.46 Com a especialização do chefe e de seu séquito na atividade guerreira, esses se afastam do processo produtivo, e a extração dos excedentes que passam a operar inscreve-se na lógica da troca de presentes, caracterizada por Godelier.47 Citando Tácito: “É costume das cidades fornecer espontânea e separadamente aos chefes certa CORNÉLIO TÁCITO. Op. Cit., Cap. XIV. JÚLIO CÉSAR. Op. Cit., Liv. IV Cap. I. 44 Idem. 45 CORNÉLIO TÁCITO. Op. Cit., Cap. X. 46 JÚLIO CÉSAR. Op. Cit., Liv. VI Cap. XXI. 47 GODELIER, Maurice. 2001. Op. Cit. 42 43 246 quantidade de rebanho ou de cereais, aceitos como uma honra, que, além disso, vêm em auxilio de suas necessidades”.48 O que ainda nos ajuda a ver como se formavam os laços de dependência entre os chefes e os grupos vinculados aos territórios sobre os quais exerciam controle. Ainda se pode considerar outro elemento, destacado por Godelier e Fried, como expressões da formação de hierarquias e do surgimento do estado, isto é, a distensão dos vínculos de parentesco. Segundo Tácito, “(...) os chefes lutam pela vitória, os companheiros pelo chefe”.49 Ou seja, os “companheiros” seguem o chefe pela glória e bens que esse pode lhes trazer e não por qualquer laço de sague que possa existir. Assim, observamos que o surgimento de hierarquias sociais e o advento dos estados germânicos, consubstanciados no contexto da penetração destes povos nas fronteiras do Império Romano ocidental, representou a culminância de um longo processo de transformações estruturais que pôs em xeque a reprodução de comunidades tribais originalmente marcadas por níveis acentuados de igualitarismo interno. Tal tendência, contudo, teve por característica fundamental – como pretendemos demonstrar na sequência desta pesquisa – a rearticulação de muitos dos elementos tradicionais que estruturaram tais comunidades ao longo de séculos de sua existência nas negras lorestas da Germânia. 48 49 CORNÉLIO TÁCITO. Op. Cit., Capítulo XV. Ibidem, Cap. XIV. 247 ANÁLISE DA ESTRUTURA DA FONTE CRONÍSTICA E REGISTROS CHANCELARES NA MONARQUIA FRANCESA ENTRE 1180 E 1230 Eduardo Luiz de Medeiros (Doutorando NEMED – PPGHIS – UFPR) O período histórico compreendido pelos séculos XII e XIII revela através da historiograia relativa aos mais diversos temas,1 no território compreendido pelo continente europeu e, de maneira mais especíica a região geográica sob o domínio da monarquia francesa, uma mudança no pensamento e nas estruturas políticas e religiosas que não são encontradas nos séculos precedentes, de maneira especial, os séculos X e XI. Embora tais mudanças não sejam estanques ou restritas a uma cronologia temporal, na medida em que acompanhar as mudanças nas estruturas da sociedade é uma tarefa complexa e não linear, os séculos precedentes gestam as mudanças que ocorrem nos séculos seguintes. Estas mudanças ocorreram sob os mais diversos âmbitos da sociedade deste Ocidente Medieval, sejam no campo religioso, político ou econômico. Nossa pesquisa apresenta um recorte que busca analisar o reinado do monarca francês Filipe Augusto que governou o reino da Francia entre 1180 e 1223, através de um olhar mais signiicativo sobre as relações régio-nobiliárquicas e suas conseqüências nos resultados políticos acumulados durante o governo do rei francês. Para tanto, as relações entre os poderes nobiliárquicos e o poder régio devem ser compreendidos através dos recursos disponíveis para esta análise. Entre as diversas estruturas de fonte que podem ser utilizadas em uma pesquisa a respeito destas relações, optou-se por duas estruturas especíicas e que tem amplo respaldo da historiograia nacional e internacional, qual sejam, a Crônica Régia e as Cartas de Chancelaria Régia. A intenção primária para utilização das fontes citadas é a comparação entre os escritos de ambas para veriicar as Entre eles podemos citar Brenda Bolton, Nachmam Falbel, Jesus Mestre Campi, Monique Zerner, Emilio Mitre e Cristina Granda, Aquile Luchaire. 1 248 similaridades e distinções encontradas nos escritos relacionados ao Rei francês Filipe Augusto em cada uma das fontes. Para dar início a esta discussão, é importante salientar que o percentual da documentação tardo-antiga e medieval remanescente ao período contemporâneo é muito pequeno. Por exemplo, Michael Clanchy2 sugere que, na Inglaterra para os séculos XII e XIII a relação entre o número de documentos régios e senhoriais remanescentes e o número dos que tenham sido efetivamente escritos, é de cerca de um para 100, ou seja, apenas 1% da documentação régia e chancelar sobreviveram até o presente momento. Embora não tenhamos acesso a um estudo como este no âmbito francês, é possível extrair um dos princípios que devem reger o estudo do pesquisador de períodos mais recuados na diacronia. Este princípio mostra que não é possível extrair a totalidade dos aspectos da sociedade analisada, apenas fragmentos deste contexto podem ser apreendidos pelo historiador. Por esta razão, limitar o objeto tanto temporal quanto espacialmente, é de importância primaz, de maneira especial aos períodos mais recuados. A respeito das crônicas medievais, a primeira estrutura de fonte analisada, é importante ressaltar que elas se caracterizam como relatos históricos elaborados segundo a intenção do cronista e do comitente ou requerente da obra. O objetivo primário da obra é o de transmitir à posteridade uma memória selecionada de fatos que se passaram. Porém, esta transmissão dos acontecimentos é, na verdade uma seleção especial de ações memoráveis e daquilo que seria digno de ser lembrado como grandes feitos, bons exemplos, atos de príncipes e santos. Por serem produções literárias de gênero narrativo devem ser associadas à literatura existente na época, como as canções de gesta, os romances de cavalaria, sermões, espelhos de príncipes e poemas épicos, guardando as devidas diferenças e objetivos de cada uma destas estruturas. Sobre o discurso cronístico, segundo as considerações de Marina Sartori Martins,3 a investigação desta narrativa deve levar CLANCHY, Michael. From Memory to Written Record: England 1066-1307. Oxford: Blackwell, 1993. p. 55-59. 3 MARTINS, Marina Sartori. Nuno Álvares Pereira e a Apologia da Cavalaria na Crônica do Condestável. Revista Vernáculo, Revista Eletrônica, Curitiba, n. 21, p. 237-242, 2008. 2 249 a um entendimento de uma construção social e política, dotada de intenções e estratégias, ou seja, uma expressão do imaginário da época. O fortalecimento do projeto teórico de legitimação régio que encontra um eco crescente ao longo do século XII nestes territórios mostra que, embora exista um desalinhamento entre o projeto e a práxis política e jurídica, a teoria não condiciona a prática, porém a inluencia de maneira a mostrar uma tendência. A preocupação com o engrandecimento das iguras heróicas é perene ao longo de toda a História, porém na Baixa Idade Média percebe-se que esta preocupação foi crescente, graças ao uso corrente da compilação, a partir da síntese dos valores antigos e daqueles estabelecidos no presente através das experiências dos compiladores. A partir do século XIII o contato com as referências antigas, em especial do imaginário romano tornou-se mais intenso, em razão da participação de senhores laicos na produção escrita e do crescente aceite dos livros no âmbito das cortes. A disseminação de universidades e o crescimento das cidades, com o desenvolvimento de corporações de ofícios laicas podem ter contribuído para este vislumbre ao laicismo clássico encontrado nos relatos cronísticos. Mesmo assim, o ideário cristão permanece impregnado em todas as esferas desta sociedade, guardada as limitações do conceito de fronteira, entendido como nos apresenta Fátima Regina Fernandes4 em sua deinição de fronteiras móveis que se alternavam de acordo com o contexto ao qual esta nobreza estava associada, muito mais relacionada aos vínculos regionais do que a um poder central instituído. A região do Languedoc no sul da França, por exemplo, apresentava uma forte resistência à corte de Paris e estava mais vinculada ao reino de Aragão, através de laços culturais, lingüísticos e vassálicos. A importância das ordens cavalheirescas e seus romances laicos também estarão inseridos nas crônicas régias e senhoriais. O elemento cristão permanecerá fundamental neste estilo literário, e este amálgama entre uma tradição heróica pagã associada ao lexo cristão será percebido nos relatos deste estilo literário. Esta valorização da igura do herói medieval está diretamente ligada à moral cavalheiresca que se FERNANDES, F. R. A nobreza, o rei e a fronteira no medievo peninsular. En la España Medieval, Madrid, v. 28, p. 155-176, 2005. 4 250 conigurou e se expandiu nas cortes medievais, conforme a análise de Leopold Genicot.5 Com efeito, a relevância das ações de um homem que inluencie não só sua geração, mas as posteriores é justamente a igura heroicizada que encontramos nas crônicas, bem como o caráter dado à igura real. O rei e seu ofício de governar trabalham constantemente para que se mantenha uma boa relação com o povo, na qual o indivíduo sobreponha o coletivo. Para esta manutenção do poder é preciso encontrar uma série de fatores que favoreçam esta permanência, entre eles é possível citar o caráter sacro do monarca, sua coniguração cavalheiresca, a dependência dos cortesãos tanto para a subsistência quanto para a manutenção de sua posição social. Para José Luis Bermejo Cabrero, o mundo político, neste contexto da Baixa Idade Média, apresentava a idéia de relexão histórica como um modo de formação política através de um duplo plano de conduta, no âmbito pessoal e coletivo.6 Desta forma, torna-se primordial a funcionalidade de certas imagens e mitos na construção da memória histórica visto que esta memória não é entendida como o passado transcorrido, mas sim naquele que é constantemente reinventado de acordo com o contexto do presente. Esta análise da tipologia das fontes pode ser percebida nos relatos dos reis ibéricos dos séculos XIII e XIV, através de estudos como o apresentado por Simone Ferreira Gomes de Almeida7 que apresenta uma análise deste contexto e a imagem heróica apresentada por seus cronistas, mostrando o aperfeiçoamento da supremacia régia enquanto indivíduos. A honra e a valentia em primeira instância coniguraram o ideal do cavaleiro medieval, além disto, este cavaleiro era portador de uma beleza física idealizada, tanto na estatura quanto nos detalhes GENICOT, Léopold. Europa en el siglo XIII. Barcelona: Labor, 1970. CABRERO, José Luis Bermejo. Orígenes del Oicio de Cronista Real. Hispania – Revista Española de Historia, Madrid, n. 145, p. 395-409, 1980. p. 366. 7 ALMEIDA, Simone Ferreira. Os Heróis nas Crônicas Medievais Ibéricas. In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA, 19., 2008, São Paulo. Poder, Violência e Exclusão. Anais... São Paulo: Anpuh/SP, 2008. 5 6 251 dos cabelos, do porte e da beleza facial do retratado pelo cronista.8 Todos estes elementos devem ser levados em conta pelo pesquisador das crônicas quando da análise destas fontes. Segundo Fátima Regina Fernandes,9 as fontes cronísticas apresentaram-se como modelos de uma ideologia legitimatória no sentido de serem utilizados tanto pela monarquia quanto pela nobreza enquanto meios para legitimação ideológica. A análise do reinado de Filipe Augusto corrobora para a hipótese de que monarquia e nobreza apresentam-se como agentes concorrentes e complementares deste poder. Enquanto no âmbito individual tanto este rei como sua corte, buscavam legitimar-se através destas Crônicas, coletivamente, uma imagem de unidade e estabilidade política era construída, que envolvia o âmbito cultural paralelo ao universo político. O exemplo analisado na proposta desta comunicação é a Gesta Philippi Augusti escrita pelo Cronista Francês Rigord e por Gulherme o Bretão. Um dos principais documentos escritos a respeito do rei Filipe II de França, A Crônica de Filipe Augusto é um documento bastante interessante em diversos pontos. Em primeiro lugar, por ter sido escrito a “quatro mãos” O primeiro autor, chamado de Rigord, viveu entre 1150 e 1209, foi um cronista francês, provavelmente nasceu próximo a Alais no Languedoc e se tornou um físico. Esta função em pleno século XII atribuía a Rigord o papel de médico, fato este que ica bastante notório ao longo da crônica ao mostrar seu conhecimento de ilósofos clássicos como Sócrates e Platão por exemplo. Após um período exercendo esta função, Rigord se torna um monge no mosteiro de Argenteuil e então de Saint-Denis e descreve a si mesmo como o “Regis Francorum chronographus”. Ele escreve a Gesta Philippi Augusti, onde inicia sua narrativa na coroação de Filipe em 1179 até o ano de 1206. Seu trabalho é bastante reconhecido, tendo em vista que foi concluído por Gilherme o Bretão. Um fato Para maiores informações a respeito da igura do líder da Cruzada Albigense durante o reinado de Filipe Augusto retratado pelo monge cistercience e cronista Pierre dês Vaux de Cernay, cf.: MEDEIROS, Eduardo Luiz. Simon de Montfort e a igura do Vassalo Perfeito na obra Histoire Albigeoise de Pierre dês Vaux de Cernay. Trabalho Monográico UFPR, Curitiba, 2006. 9 FERNANDES, F. R. Op. Cit. 8 252 interessante na narrativa de Rigord está na distinção clara da maneira como o rei é retratado na primeira parte da Crônica, onde o discurso do autor é bastante concernente ao rei através dos seus escritos. A segunda parte apresenta algumas críticas ao monarca Filipe. Citamos abaixo alguns trechos laudatórios ao monarca constantes na primeira parte dos escritos de Rigord, O rei amou a equidade como sua própria mãe e fez todos os esforços para assegurar que a clemência prevalecerá através de mais justiça, e ele nunca permitiu que a verdade fosse maculada.10 O Príncipe possui um zelo ardente vindo da parte de Deus para defender as Igrejas e o clero.11 É o chamado que Deus lhe deu porque foi dado por Deus, como rei, para a construção de igrejas e cuidados de clérigos e de todo o povo de Deus.12 Este discurso favorável descrevendo o campeão dos cristãos muda drasticamente a partir do ano de 1196. Através da análise historiográica do reinado de Filipe Augusto, constata-se que este é o mesmo ano do casamento considerado pelo papa Inocêncio III como adultério entre o rei com a princesa Agnes de Merania da Dalmatia, enquanto ainda estava casado com a princesa Ingeborg da Dinamarca. Não se sabe ao certo qual a razão para a repulsa de Filipe com sua esposa que icou coninada a um convento e solicitada a nulidade do matrimonio ao papa Celestino III, o qual foi negado em favor da princesa dinamarquesa. Tamanha foi à indisposição que a decisão do rei gerou que o papa Inocêncio III colocou a França sob interdito entre 1199 e 1200 até que o rei reassume a princesa e legitima a rainha francesa ao seu posto. RIGORD, Gesta Philippi Augusti. In: Oeuvres de Rigord et de Guillaume le Breton. Ed. H. -F. Delaborde. Paris:Société de l’Histoire de France,1882. 11 Ibidem, p. 98. 12 Ibidem, p. 102. 10 253 Esta atitude de Filipe vai modiicar a maneira como Rigord o descreverá o monarca na última parte de seu relato como é possível perceber nos seguintes trechos: Eles (os clérigos que se reuniram em Paris em 7 de maio de 1196 para decidir sobre a dissolução do casamento de Ingeborg) são cães mudos que fedem a casca o medo de sua pele.13 Para coroar todo o mal, (O Rei mantém prisioneira) Ingeborg a infeliz permanece sob tudo isso.14 A Crônica foi, segundo os editores franceses, composta por três manuscritos escritos Rigord. O primeiro, concluído antes de 1196, foi precedido pelo prólogo. O segundo manuscrito continuou até cerca do ano 1200, foi acompanhada por uma carta dedicada ao príncipe Luis, mostrando para quem a crônica fora escrita. O terceiro manuscrito, versão esta que chegou até o presente momento, foi à versão que inclui o período pós 1196 chegando até 1206. A conclusão da Crônica foi escrita por Guilherme o Bretão (11651225) cronista francês, que pelo que nos indica o nome provavelmente nasceu na Bretanha, foi educado em Nantes e na Universidade de Paris, depois de tornar uma espécie de capelão do rei Filipe Augusto, que o nomeou como preceptor de seu ilho, Pierre Charlot. Guilherme supostamente esteve presente na famosa Batalha de Bouvines. Ele elaborou também as Philippides traduzido para o francês como Poema Heróico de Filipe Augusto. O texto é um clássico e épico poema em XII livros e composto em três redações, dando interessantes detalhes sobre Filipe Augusto e de seu tempo, incluindo algumas informações a respeito de estratégias militares. Além disso, estes escritos mostram o exímio domínio de Guilherme no Latim. Na sua forma inal, a Gesta é a conclusão ao trabalho de Rigord que escreveu a respeito da vida de Filipe entre 1179 e 1206. A continuação original de Guilherme, o Bretão aborda de 1207 até a morte do monarca em 1223. Neste trabalho, o autor, fala de maneira 13 14 Ibidem, p. 145. Ibidem, p. 162. 254 bastante laudatória do rei, mas seus escritos são valiosos na medida em que ele foi testemunha ocular de diversos fatos por ele narrados. Ele também escreveu o poema Karlotis, dedicado a Charlot, que foi perdido. O segundo grupo de fontes é composto por fontes chancelares do governo de Filipe Augusto, mais especiicamente a compilação dos Atos de Filipe Augusto, intitulada Recueil des Actes de Philippe Auguste roi de France Tome I e II, organizada do Élie Bergie, e o Tome III dirigida por Charles Saraman. A obra completa é composta por seis Tomos, sendo que os quatros primeiros trazem toda a documentação oicial durante o reinado do monarca, o Tomo V traz complementos, inserções e correções do publicado nos Tomos anteriores, e o Sexto Tomo traz cartas e documentos atribuídos a Filipe Augusto, em caráter pessoal. A introdução da obra relata que o mesmo é o resultado quase dois séculos de trabalho dos especialistas em paleograia da Biblioteca Nacional onde os manuscritos foram transcritos para o latim. A obra do início do século XX é baseada na obra de Léopold Deslile, que baseou sua pesquisa no confronto entre duas fontes manuscritas, uma sob a guarda da Biblioteca do Vaticano, intitulada Le Registium veterius (Bibliotèque du Vatican, Oltoboni 2796; registre A de Léopold Deslile) e a cópia da documentação transcrita do Século XIV (Archives nationales, JJ 8, registre B de Léopold Deslile).15 Ao longo da obra, estão dispostos a localização física dos originais nas duas fontes manuscritas e catalogadas para acesso e pesquisa posterior que se faça necessário. Esta fonte aborda diversas facetas do reinado de Filipe, com especial ênfase em editos administrativos e econômicos como, por exemplo, a liberação das normas e leis para o funcionamento de uma cidade e as quantias liberadas pelo poder régio para aliados. Esta tipologia de fonte é muito importante para os estudos em história política, na medida em que, segundo Judite Antonieta Gonçalves Freitas: BERGER, Élie, (Org.). Recueil des Actes de Philippe Auguste roi de France Tome I. Paris: Imprimiere Nationale, 1916. Introdução I – XL. 15 255 A Chancelaria é a sede do governo, constituindo-se como o principal órgão da administração central, tanto em recursos humanos como em meios especializados na produção, organização e guarda dos documentos régios. A natureza da atividade desenvolvida por este órgão central condiciona seu funcionamento, o comportamento dos agentes que nele trabalham o processo e resolução das petições chegadas à Corte, matéria do âmbito da atividade dos oiciais afeitos ao despacho e escrita de diplomas pela Chancelaria régia.16 Neste sentido, é possível dizer que a chancelaria desempenha uma função administrativa fundamental porque nela se relete a atividade de boa parte dos serviços da monarquia, dos séculos XII, XIII e, sobretudo sobre o século XIV. Exerce também uma função política, porque evidencia as estratégias políticas do governo régio. A classiicação dos atos registrados nos livros de Chancelaria permite uma análise dos atributos dos ofícios régios, mas também perceber quais são os domínios privilegiados do governo, ou seja, quais são suas características mais fortes, como por exemplo, na economia, política, favorecimento de determinados grupos. A documentação chancelar régia é uma das principais fontes para o estudo da política do príncipe, de acordo com a análise e trabalhos de Armando Luís de Carvalho Homem,17 Judite Antonieta Gonçalves de Freitas e Fátima Regina Fernandes. Armando Luís de Carvalho Homem, através da análise de documentação chancelar no contexto português no período próximo ao proposto para nossa análise, consegue distinguir cerca de 20 tipos especíicos de documentação diplomática e o dividiu em quatro categorias distintas, das quais selecionamos algumas delas para reprodução. A primeira categoria, intitulada Graça abrange as benesses atribuídas aos nobres, dentre elas legitimações, doações de bens e FREITAS, Judite Antonieta Gonçalves de. Chancelarias régias Quatrocentistas portuguesas: produção manuscrita e aproximação político-diplomática. Revista de Ciências Humanas e Sociais, Porto, n. 6, p. 136-150, 2009. 17 HOMEM, Armando Luis de Carvalho. O Desembargo Régio (1320-1433). Porto: INIC/CHUP, 1990. p. 163-172. 16 256 direitos, privilégios em geral e cartas de tabelionato. O segundo grupo, a Justiça na coniguração de Homem, abrange o Perdão, Sentenças Diversas e Cartas de Segurança. O terceiro grupo nomeado pelo autor como Fazenda inclui os aforamentos, a inalidade e o provimento de ofícios. O quarto e último grupo, o da Administração Geral, contêm cartas de contrato, cartas de isco, resposta a capítulos das cortes e defesa e regulamentações de encargos militares. Apenas a análise primária de tantos temas distintos permeando a mesma documentação, retrata o desaio do manuseio destes extratos chancelares que deve ser levado em consideração através da seleção e recorte diacrônico que auxiliem ao pesquisador obter as informações necessárias. No caso da monarquia francesa no período de Filipe Augusto, inserida como o ambiente de fundo para esta comunicação, sugerimos uma análise das duas estruturas documentais para veriicar os elementos aglutinadores e de tensão entre o poder régio e os diferentes poderes nobiliárquicos que possuíam diferentes níveis de proximidade com a corte de Paris. O objetivo no confronto das duas fontes, a crônica e os registros diplomáticos, poderá auxiliar num panorama de análise que esteja fora do contexto da historiograia francesa. Até o presente momento, a documentação mostra que uma das maiores realizações de Filipe Augusto, foi a de elaborar um projeto para a gestação de uma mentalidade para o então nascente Reino da França. Nos reinados anteriores é possível perceber a inexistência de um senso de pertencimento na região do Languedoc, que estava muito mais associada à realidade de Aragão que à de Paris, por exemplo. Outro fator importante a ser investigado está associado ao conceito desenvolvido por Fátima Regina Fernandes de nobreza móvel, que se desloca conforme a necessidade e os interesses estabelecidos, o que diiculta até a delimitação de Reino e França nos séculos XII e XIII. Este período de centralização do poder na igura do monarca, que se contrapõe ao contexto de desfragmentarão do poder do período anterior, muito embora este processo não seja aceito sem as resistências ferrenhas por parte desta nobreza que antes detinha a maior parcela de poder diante de uma realeza muitas vezes apenas decorativa. Esta tensão está bastante presente em diferentes contextos 257 da vida cotidiana, seja ela concreta ou imaginária e este confronto mostra uma tendência régia centralizadora encaminhada por alguns setores nobiliárquicos. Através de um levantamento bibliográico é possível perceber que esta produção historiográica francófona, ao longo do século XX, trouxe uma nova onda de publicações e reedições de textos clássicos retratando monarcas de proeminência como o próprio Filipe Augusto, onde é retratado em textos recentes como o responsável pela formação do Estado Monárquico na Europa.18 Notam-se movimentos semelhantes nos períodos de pós-guerra que a França viveu após os eventos que devastaram não apenas territórios, mas também o orgulho nacionalista da primeira metade do século XX. Esta análise bibliográica pode nos mostrar que, embora a Ciência Histórica esteja cada vez mais aprimorada em sua busca por fontes alternativas de pesquisa, algumas estratégias medievais como a de recorrer a um passado heróico em momentos em que o presente não é o mais promissor, parecem ser ainda hoje, utilizadas em determinados contextos. FLORI, Jean. Philippe Auguste: La Nassaince de l’Etat monarquique, 11651223. Paris: Tallandier 2009. 18 258 E A AURORA ALCANÇOU SAHRAZAD: REFLEXÕES SOBRE A MÍMESIS NA OBRA “AS MIL E UMA NOITES” Elaine Cristina Senko (Mestranda NEMED – PPGHIS – UFPR)1 A questão envolvendo os critérios e procedimentos da representação, em sua relação de proximidade ou afastamento para com a verdade, é reconhecidamente um objeto de relexão já em tempos antigos. Platão (428-348 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) se utilizaram do termo “Mímesis” no sentido de identiicar uma prática de imitação do real. No entanto, a opinião que ambos mantêm a respeito dela é divergente: enquanto Platão a detrata, Aristóteles releva sua importância, apontando que mímesis revela um sentido de criação que, ao buscar “o que poderia ser”, segue os preceitos da verossimilhança, ou seja, das características que envolvem a realidade que busca imitar em sua representação. Assim, o tema da mímesis possui problemática e, por isso, continua incentivando a produção de trabalhos acadêmicos a respeito, os quais debatem o tema e demonstram perspectivas diversas. Marco fundamental nesse campo de estudos, a obra Mímesis, do ilólogo e crítico literário Erich Auerbach (1892-1957),2 tornou-se uma referência indispensável para todos aqueles interessados no assunto, tendo em vista o amplo leque de análises do autor sobre diversas obras clássicas da literatura ocidental, da antiguidade à contemporaneidade. De fato, partindo de uma análise sobre o relato homérico e o bíblico, o autor traça uma linha de desenvolvimento própria da escrita ocidental, cujas formas de representação da realidade foram se transformando ao longo dos tempos, em função de cada contexto especíico. Como historiadora, proponho alimentar a discussão de Auerbach atuando naquilo que considerei o “silêncio” deixado por Mestranda pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Paraná (linha Cultura e Poder) e membro do Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Sob orientação da Professora Doutora Marcella Lopes Guimarães. 2 AUERBACH, Erich. Mímesis: a representação da realidade na Literatura Ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2009. 1 259 ele: a Literatura Oriental. Assim, trarei uma relexão e análise da mímesis numa importante obra dessa tradição, As Mil e Uma Noites, buscando vislumbrar as características de representação da realidade na literatura islâmica medieval. Seguimos a metodologia de Auerbach, a qual pressupõe a comparação entre diferentes tipos de escritos, mas atuamos dentro de uma concepção historiográica, avaliando a importância de tal obra em seu respectivo contexto. Conta-se, ó rei venturoso... A obra aqui trabalhada, As Mil e Uma Noites, é considerada uma recolha e ordenamento de diversos contos da tradição oral muçulmana (e além dela, persa, indiana e egípcia), a qual se intensiicou em pleno século XIV, sob o governo mameluco no Egito. No entanto, uma primeira tentativa de “organização” escrita de tais contos já se veriica desde pelo menos a época de Harun Al-Rashid (766-809), uma ação realizada por meio de sua Casa da Sabedoria, em Bagdá. Como veriicamos na obra, mais especiicamente no ramo sírio, há várias referências e perspectivas acerca do califado abássida, sucessor do governo omíada a partir de 750, assim como um realce da imagem, através da mímesis, de Al-Rashid. Este parecia compreender a importância “propagandística” de tal escrito, pois, numa época em que a ascensão da família barkamida (de origem persa) ao poder o preocupava, a obra acaba potencializando argumentos de crítica em relação aos personagens barkamidas. Por sua vez, o miolo central do livro foi escrito na segunda metade do século XIII, após a invasão de Bagdá pelos mongóis. No entanto, apenas no século XIV da esfera política e cultural mameluca que a obra foi recolhida com os traços que hoje conhecemos.3 Mas o que levou a política mameluca a se interessar e fazer a recolha de todas as partes desse livro apenas no século XIV? Sob o governo de Al-Nasir Muhammad (1293-1341), a primeira metade do século XIV conheceu um período de relativa estabilidade social e política. Porém, tal situação viria a mudar bruscamente: logo após a morte de Al-Nasir, o governo dos mamelucos passou por uma Ainda no século XVIII foram incorporadas outras estórias em As Mil e Uma Noites quando da primeira tradução ocidental por Antoine Galland. 3 260 grave instabilidade política e uma série de guerras civis. De fato, o corpo do exército mameluco, de origem circasiana, foi o principal responsável por iniciar um embate militar contra o sultão Cha’ban, sucessor de Al-Nasir, derrotando-o e colocando em seu lugar o sultão circasiano Malik Al-Daher Barquq (governante de 1382-1399, com interrupções). O governo de Barquq concentrou notável força política em sua época, superando de modo estratégico as diiculdades de ordem social que o período de guerra civil legou.4 Pois bem, foi entre tais circunstâncias que o governo de Barquq patrocinou a recolha e sistematização da tradição oral muçulmana (persa, indiana, árabe e egípcia) que, ao inal, viria a compor uma versão extensa e duradoura da obra As Mil e Uma Noites. Conforme ressalta Mamede Mustafa Jarouche: A elaboração do Livro das mil e uma noites na época do Estado mameluco, forma mais antiga que chegou inteira aos dias de hoje, é também resultado de um processo de fusão de gêneros. Além das hurafat [fábulas] e dos asmar [histórias para se contar à noite] propriamente ditos, motivados na estrutura peculiar antes descrita, que encena o ato narrativo de histórias noturnas no período noturno mesmo, o texto adapta narrativas do gênero histórico [...] e de outro gênero, o faraj ba’da assidda, “libertação depois da diiculdade”, cujas características são resumidas pelo nome. [...] As narrativas da elaboração mameluca do Livro das mil e uma noites pertencem ao gênero da hurafa, fábula, mas operam uma modiicação em seu funcionamento tradicional. Encenam a circunstância de sua produção e enunciação na periferia de um império poderoso, cujo iminente colapso é alegorizado por adultério das rainhas e o subseqüente extermínio das mulheres do reino por ordem do rei ensandecido.5 Os mamelucos somente iniciariam a perda do controle político de seus territórios posteriormente, devido ao avanço dos turcos otomanos e dos ataques liderados por Tamerlão. 5 JAROUCHE, Mamede Mustafa. Uma poética em ruínas. Livro das mil e uma noites: ramo sírio/Anônimo. Tradução do árabe para a língua portuguesa por Mamede Mustafa Jarouche. 3 ed. São Paulo: Globo, 2006. V. I. p.24-25. Meu grifo. 4 261 Nesse sentido, aliando diversos gêneros tradicionais e, conseqüentemente, formas de representação da realidade próprias da época, a obra As Mil e Uma Noites resulta em narrativas que apresentam tramas que se libertam de suas amarras e o leitor pode suspirar aliviado ou ter seu momento de catarse, mas ainda assim, algumas delas possuem um encaminhamento moralizante. Os personagens universalmente conhecidos nela presentes são: Sahriyar (o sultão, governador inicialmente da Índia e da Indochina, traído por sua mulher e que depois se vê tragado pelos contos de Sahrazad), Sahzaman (o irmão do referido sultão e governador de Samarcanda), Sahrazad (a narradora e esposa de Sahriyar, que o envolve por meio dos contos para não ser morta) e Dinarzad (irmã de Sahrazad e a cúmplice na luta por sua sobrevivência). Pois bem, o conto tem seu inicio com os irmãos descobrindo as traições de suas esposas, fato que leva Sahriyar a matar todas as mulheres que desposa, tão logo as toma, após a primeira noite. Mas com Sahrazad seria diferente, pois ela, ilha do vizir do reino, desejando parar a seqüência de mortes das damas do sultanato, pede para se casar com o sultão Sahriyar. Assim, para Sahrazad se manter viva, pensa em uma perspicaz estratégia: inicia uma narrativa, um conto sobre determinado personagem, que desperta a curiosidade de Sahriyar a respeito. A questão é que o desfecho de tal conto, ao qual se entremeiam outros, é sempre prolongado, ao mesmo tempo em que se prolonga a vida de Sahrazad. A narrativa, ao leitor, revela-se de grande tensão, pois Sahrazad deseja sua sobrevivência ao mesmo tempo em que luta por uma causa maior (o efeito da moral de melhorar as ações do sultão enraivecido e tornálo um homem melhor). Assim, Sahrazad envolve Sahriyar não por sua beleza física, mas por sua sabedoria, característica que bem lhe representa.6 Portanto, compreendemos que a proposta narrativa de As Mil e Uma Noites tem por objetivo enredar o leitor, tornando-o, da mesma forma que Sahriyar, sujeito ao desenrolar dos acontecimentos. A grande novidade é o fato de que os eventos relatados não se desenvolvem Lembremos aqui de uma atitude também perspicaz de Penélope que tece a manta de seu sogro, Laertes, até a volta de seu esposo Odisseu. Assim, por meio desse enredar, Penélope consegue se afastar da vontade dos outros homens que a queriam desposar e por isso mantém sua honra (de forma angustiante próxima da experiência de Sahrazad). HOMERO. Odisséia. Tradução direta do grego, introdução e notas por Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 2006. 6 262 sempre no mesmo plano, ou seja, são contos que se desenrolam dentro de outros contos. Podemos lembrar, a título de exemplo, que Giovanni Boccaccio (1313-1375) também se utilizará de um método de escrita parecido em seu Decamerão.7 Assim, iniciamos agora nossa análise sobre a mímesis, a forma de representação e imitação da realidade, na obra As Mil e Uma Noites, para tal seguindo como referencias teóricometodológicos os pressupostos de Erich Auerbach, em sua obra já citada, e de Paul Ricoeur, o qual veriica a existência de três níveis para se pensar, em termos de um trabalho historiográico, a mímeses: a idéia sobre o que se escrever; o ato de escrever e a interpretação do leitor sobre a narrativa, bem como isso o afeta em sua Vida.8 Com muito gosto e honra! Veriicamos que, desde a noite de número trinta e três, a igura do califa de Bagdá Harun Al-Rashid aparece como um dos personagens principais dos diversos contos, tornando-se constante sua presença ao longo de toda a obra. Sua inclusão é, como anteriormente apontamos, uma provável ingerência de sua parte, motivado por estratégias políticas em seu tempo. De todo modo, dada a recorrência desse personagem, o tomamos aqui por objeto para nossa análise. Assim, voltamos nossos 7 BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Nova Cultural, 1996. 8 Para uma interessante síntese do tema, cf.: BARROS, José D’ Assunção. Paul Ricoeur e a Narrativa Histórica. História, imagem e narrativas, Rio de Janeiro, n.12, p.1-26, abril/2011. José D’Assunção Barros ainda nos convida a compreender a proposta de Paul Ricoeur: “A inteligibilidade histórica, certamente necessária tal como haviam proposto os historiadores ligados aos Annales, não poderia, sustentará Ricoeur, excluir o vivido. O conhecimento histórico poderia apresentar um caráter lógico e estético, mas, ao mesmo tempo, na interação dialética entre o vivido e o lógico estaria o fundamento de uma História satisfatória e útil à vida. Privilegiar o Vivido contra o Lógico, ou vice-versa, conduziria em ambos os casos a formas insatisfatórias de História insatisfatória. Devolvida à própria Vida, da qual saíra, a História não poderia se airmar como atividade puramente intelectual – tal como proporá Paul Veyne em suas relexões sobre a ‘História Conceitual’ (1974) – e deveria buscar ‘ensinar a viver’. Percebe-se aqui que Ricoeur recupera, em uma de suas instâncias possíveis, uma função que já não vinha mais sendo enfatizada pela historiograia do século XX: a ‘História Mestra da Vida’ – embora não uma mestra para os grandes estadistas e políticos, e sim para o próprio ser humano que vivencia cotidianamente o desaio de viver”. BARROS, José D’ Assunção. Op. Cit., p.4. 263 olhos para a noite de número setenta, momento em que Sahrazad desenvolve um conto acerca da trajetória de “andanças” pela cidade do califa Harun Al-Rashid e de seu vizir, Ja’far, os quais ocultavam suas identidades utilizando-se de roupas típicas aos homens da região. O objetivo do califa era tomar conhecimento do que ocorria na cidade de Bagdá e, no momento imediatamente anterior à noite que iremos aqui apresentar, ele se depara com a notícia de uma terrível morte, uma mulher que fora assassinada e jogada em uma caixa ao rio. Vejamos, assim, a narrativa da noite e a seqüência da narrativa: Na noite seguinte Sahrazad disse: Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, ao ver e se certiicar de que a jovem retalhada em dezenove pedaços, o califa [Harun AlRashid] se lamentou, icou triste e suas lágrimas rolaram. Então, furioso, encarou Ja’far e disse: ‘Seu vizir cachorro! Quer dizer então que em minha cidade as pessoas são assassinadas e atiradas ao rio, para depois constarem do meu débito no Dia do Juízo Final? Juro por Deus que tomarei a vingança desta jovem contra seu assassino, e o matarei do modo mais cruel. Mas se você não investigar e encontrar o assassino, eu irei enforcálo e enforcar mais quarenta homens de sua família’. E, violentamente encolerizado, o califa deu berros assustadores contra Ja’far, que se retirou de sua presença dizendo: ‘Dê-me um prazo de três dias, ó comandante dos crentes’. O califa respondeu: ‘Concedido’, e Ja’far desceu à cidade, triste e irritado, sem saber o que fazer e pensando: ‘Como é que eu vou descobrir o assassino daquela jovem para entregá-lo? Se eu forçar algum preso a confessar, tal pessoa constará do meu débito no Dia do Juízo Final. Agora iquei desanimado! Não há poderio nem força senão em Deus supremo e poderoso’. Ele deixou-se icar em casa no primeiro, no segundo e também no terceiro dia, quando, à tarde, um emissário do califa veio chamá-lo. Ja’far então foi até o califa, que lhe perguntou: ‘Onde está o assassino da jovem?’. Ja’far respondeu: ‘E por acaso, ó comandante dos crentes, eu sou algum perito em assassinatos?’. O califa, encolerizado, gritou com ele, e ordenou que fosse enforcado diante do palácio, e também que um 264 arauto divulgasse por todos os cantos de Bagdá: ‘Quem quiser assistir ao enforcamento do vizir Ja’far, e de mais quarenta barmécidas de sua família, basta que se dirija para diante do palácio, de onde poderá assistir a tudo’. O administrador-geral e alguns secretários chegaram trazendo Ja’far e os demais barmécidas; izeram-nos parar diante do cadafalso e esperaram que o lenço fosse estendido da janela do palácio – pois era este o sinal que autorizava o enforcamento -, enquanto todos choravam por eles. A situação estava nesse pé quando, súbito, um rapaz – de roupas limpas, rosto resplandecente como a lua, olhos negros, testa lorescente, faces avermelhadas, barba escura, no rosto uma pinta que parecia esfera de âmbar – veio irrompendo em meio à multidão até se postar na frente de Ja’far, cuja mão beijou, e disse: ‘Que os bons serviços que o senhor presta não sejam castigados com esse horrível crime. Venha, ó senhor dos vizires, abrigo dos necessitados e maioral dos comandantes, e me enforque pelo assassinato daquela mulher; sofra eu a vingança, pois sou o assassino!’. Ao ouvir as palavras e o discurso pronunciado pelo jovem, Ja’far icou contente por se ver livre, e triste pelo moço. Ainda conversava com ele quando, súbito, um velho bem entrado em anos veio irrompendo em meio à multidão até se postar diante de Ja’far e dizer: ‘Ó vizir, ó grave senhor, não acredite no que diz o jovem, pois a jovem não foi assassinada senão por mim! Castigue-me pelo crime, caso contrário eu exigirei que você preste contas diante de Deus supremo!’. O rapaz disse: ‘Ó vizir, quem a matou fui eu’, e o velho replicou: ‘Meu ilho, eu já envelheci e estou farto do mundo; você é ainda muito jovem, e quero salvar sua vida sacriicando a minha: o assassino da moça não é outro senão eu próprio! Enforque-me logo, pois não devo viver depois disso’. Ao ver essa discussão, Ja’far icou espantado e conduziu o velho e o rapaz até o califa. Depois de beijar o solo sete vezes, o vizir disse: ‘Ó comandante dos crentes, encontramos quem matou a jovem: este jovem e este velho, cada qual alegando ser o assassino. Eis aqui os dois diante do senhor’. Disse o narrador: o califa encarou os dois e perguntou: ‘Qual de vocês matou a 265 jovem e a atirou ao rio?’. O jovem respondeu: ‘Fui eu que a matei’, e o velho replicou: ‘O assassino não é outro senão eu próprio’; o jovem insistiu: ‘Fui eu, e ninguém mais, quem a matou’. O califa ordenou a Ja’far: ‘Desça e enforque os dois’. Ja’far observou: ‘Mas comandante dos crentes, se somente um foi o assassino, o enforcamento do outro consistirá numa injustiça!’. O rapaz disse: ‘Juro, por aquele que ergueu os céus, que eu a matei, coloquei-a num cesto de palma, cobri-a com um manto feminino, enrolei-a num pedaço de tapete, costurei o cesto com ios de lã vermelha e atirei-a ao rio há quatro dias. Pelo amor de Deus, pelo Dia do Juízo Final, não me deixe viver depois disso; castigue-me por sua morte’. Assombrado com aquela história, o califa perguntou ao rapaz: ‘Qual foi seu motivo para assassiná-la injustamente? E qual o motivo de você ter vindo entregar-se espontaneamente?’. O rapaz respondeu: ‘Ó comandante dos crentes, eu e ela temos uma história que, se for gravada no interior da retina, constituirá uma lição para quem relete’. O califa ordenou: ‘Contenos os eventos de sua história com ela’, e o rapaz disse: ‘Ouço e obedeço a Deus e ao comandante dos crentes’. E então o rapaz... E a aurora alcançou Sahrazad, que parou de falar.9 De fato, cada conto da obra, a exemplo desse, constitui-se numa narrativa breve, mas repleta de acontecimentos e personagens, com descrições acerca dos sentimentos e desejos de cada um. Conseqüentemente, ocorre uma aproximação do leitor à narrativa, o qual se vê “envolvido” no clima daquele momento, criando expectativas em relação ao desenrolar e desfecho dos fatos. A utilização do discurso direto corrobora nisso, já que torna possível ao leitor entrar em contato direto com o pensamento dos personagens envolvidos na trama, a qual se quer cheia circunstâncias previstas e não previstas. Ora, como não se sentir angustiado diante, primeiro, da terrível morte da mulher e, depois, pela iminente morte de Ja’far, responsabilizado por tal situação? Claro, a arrogância e liberdade de Ja’far para com o califa corrobora na decisão de seu enforcamento, ou seja, não é uma 9 LIVRO DAS MIL E UMA NOITES. Op. Cit., p.206-208. 266 atitude simplesmente arbitrária de Harun Al-Rashid, por mais que este pareça agir de modo impulsivo na narrativa.10 Mas o auge da intriga encontra-se na seguinte passagem, quando Ja’far estava prestes a ser enforcado: “A situação estava nesse pé quando, súbito, um rapaz – de roupas limpas, rosto resplandecente como a lua, olhos negros, testa lorescente, faces avermelhadas, barba escura, no rosto uma pinta que parecia esfera de âmbar – veio irrompendo em meio à multidão até se postar na frente de Ja’far, cuja mão beijou [...]”. A descrição física do rapaz, o qual viria a salvar Já’far de sua morte, imerge o leitor naquele momento de inquietação, ao mesmo tempo em que o direciona para as novas circunstâncias da narrativa, ou seja, novas expectativas que surgiriam no horizonte no conto. Logo, diante de nossas considerações, entrevemos que a mímeses nesse momento especíico da obra pressupõe relacionar personagens históricos, como Harun Al-Rashid e Ja’far, para com momentos especíicos do cotidiano de suas ações, mas dentro de situações que não temos certeza se aconteceram ou não de tal forma. No entanto, a partir do momento que a narrativa expressa coerência na relação das idéias, dos comportamentos, das atitudes e dos acontecimentos daquele instante, mesmo com todos os imprevistos acontecendo, toda a situação tornar-se-ia possível aos olhos do leitor, pois encontraríamos presente uma perspectiva de verossimilhança.11 Percebemos que Harun Al-Rashid parece desconiado e reticente perante seu vizir barkamida (barmécida). Lembremos que a transformação do relato oral para o escrito dessas passagens que constam Harun Al-Rashid foram feitas no próprio tempo do califa e recolhidas novamente no século XIV. Lembremos da Isnad: uma corrente da tradição, ou seja, ação de repassar oralmente a história/estória sem sofrer muitas alterações. 11 Nesse sentido entendemos por “verossimilhança” a qualidade inerente a uma narrativa no que se refere à construção lógica dos fatos, idéias e argumentos que nela se apresentam; em virtude disso, tal narrativa ganharia um maior teor de plausibilidade, ou seja, seria uma provável verdade. Aristóteles em sua obra Arte Poética deine aspectos sobre a escrita de fábulas: “1. Das fábulas, umas são simples, outras complexas, pois evidentemente são assim as ações, de que as fábulas são a imitação; 2. Chamo ação simples aquela cujo desenvolvimento, como deinimos, permanece uno e contínuo e na qual a mudança não resulta nem de peripécia, nem de reconhecimento; 3. e ação complexa aquela onde a mudança de fortuna resulta de reconhecimento ou de peripécia ou de ambos os meios; 4. Estes meios devem estar ligados à própria tessitura da fábula, de maneira que pareçam resultar, necessária ou verossimilmente, dos fatos anteriores, pois é grande a diferença entre acontecimentos sobrevindos por causa de tais outros, ou simplesmente depois de tais outros”. ARISTÓTELES. Arte Poética. In: Arte Retórica e Arte Poética. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Difusão Européia, 1959. p. 289. 10 267 nessa narrativa, ao atingir a consciência do leitor, cumpre sua função moralizante, já que todos os personagens envolvidos na trama são movidos e direcionados para suas ações em função do temor frente ao Deus supremo, naquele que seria o dia do Juízo Final. Este “elo” de pensamento religioso, que caracteriza a presença da religião muçulmana, aproxima o leitor dos personagens ali construídos pela narrativa, atribuindo inteligibilidade ao conto. Pois bem, ainda que hoje possamos pensar que a obra As Mil e Uma Noites seja exclusivamente uma narrativa de cunho literário, ou seja, a entendendo como uma manifestação da criatividade e imaginação do homem (em seus referenciais de mundo) na época em que foi composta, surpreende, em nossa opinião, a proximidade desta narrativa em relação a outros gêneros, procedimentos de escrita e representações da realidade pertencentes ao seu tempo. Tomemos para ins de comparação o trabalho historiográico de Al-Maçudi (871-956), Os Prados de Ouro e as Minas de Pedras Preciosas, o qual também apresenta a vida e os feitos de Harun Al-Rashid. Vejamos detalhadamente no trecho abaixo a perspectiva de representação do autor acerca do referido califa, no momento em que este se encontrava em meio à guerra contra o imperador bizantino Nicéforos I Focas: Harun Al-Rashid, chamou Abu Ishak al-Fizari, e lhe perguntou sobre uma mesma questão que tinha feito a Mokhalled. Abu Ishak respondeu: ‘Ó emir dos crentes, esta fortaleza foi construída pelos bizantinos por conta de rotas estratégicas e para a defesa de incursões. É escassamente povoada, mas se você izer a conquista, ela não irá prever um despojo grande a ser compartilhado entre todos os muçulmanos, e se você resistir a conquistá-la, esta falha irá afetar o seu plano de campanha. A coisa mais sábia a se fazer é, penso eu, que o emir dos crentes deveria ir atacar uma das grandes cidades do império bizantino; e levar todo o seu exército para participar do espólio e da conquista, e isso será sua desculpa’. Mas foi a primeira medida de invadir a fortaleza que prevaleceu. Rashid sitiou a fortaleza bizantina e levou o cerco em torno da cidade por dezessete dias. No entanto, as perdas se izeram sentir no exército muçulmano, além da diminuição dos 268 alimentos e de forragem, isso tudo inspirou a grande preocupação de Harun Al-Rashid. Então é chamado novamente Abu Ishak e Rashid pergunta para ele: ‘O que vamos fazer agora?’. Ishak responde: ‘Príncipe dos crentes, eu primeiro era contra sitiar a fortaleza e já expliquei o motivo, pois era a favor de levar a guerra para outra região bizantina. Mas hoje não é mais possível abandonar a fortaleza depois de ter investido contra ela. Nosso retiro seria aviltante para a sua autoridade real, lhe iria enfraquecer o prestígio, e da religião, e outras cidades teriam coragem de se fechar antes de nós enquanto resistirmos. Agora, Príncipe, o emir dos crentes militares, todos permanecem sob as paredes deste lugar até que Deus lhe abrirá as portas aos muçulmanos. Em seguida, dê a ordem para reunir pilhas de pedras, para cortar as árvores e construir uma cidade na frente dessa de Heraclea, até Deus nos conceder a vitória.12 No presente relato nos deparamos com uma perspectiva, por sua vez, centrada em eventos político-militares, nos quais Harun AlRashid esteve envolvido. No entanto, a narrativa e representação dos acontecimentos ocorre de modo muito similar àquela que encontramos em As Mil e Uma Noites, principalmente no que se refere ao diálogo entre o discurso direto e indireto ao longo do texto. De fato, no momento em que Abu Ishak toma a palavra, o leitor se aproxima das circunstâncias ali apresentadas, tornando-se partícipe das expectativas e decisões daquele instante. O desenrolar dos acontecimentos também se dá de forma gradual, lenta, fato que contribui para imergir o leitor no clima dos eventos. Por im, encontramos a construção de uma narrativa que visa um claro sentido moral, tendo em vista que Harun Al-Rashid peca ao não compreender a essência dos argumentos de Abu Ishak, o qual defendia a calma e a prudência na hora de decidir as ações. No mesmo sentido, tal como em As Mil e Uma Noites, encaminha-se a resignação do homem à vontade de Deus, esta sim capaz de conferir a vitória para Harun Al-Rashid. MAçOUDI. Livre des prairies d’or et des mines de pierres précieuses. (Os prados de ouro e as minas de pedras preciosas). Paris: Société Asiatique, 1863. T. II. p.341-342. Minha tradução. 12 269 Dessa forma, não deixa de ser interessante o fato de que ambas as narrativas aqui apresentadas, cada uma em seu tema de abordagem, se utilizem praticamente de um mesmo procedimento de imitação da realidade. A verossimilhança, portanto, encontra-se nos dois relatos, tornando-os, a despeito dos gêneros diferentes, muito próximos. E a aurora alcançou Sahrazad... Considerações Finais De nosso estudo, compreendemos a existência de uma mímeses, ou seja, forma de representação da realidade, característica ao ambiente muçulmano, a qual se demonstra em diferentes gêneros da escrita. Esse fato aponta a relação de proximidade entre, por exemplo, uma obra da literatura, como As Mil e Uma Noites, e da historiograia, a exemplo da composta por Al-Maçudi. Tais fronteiras de gêneros, tênues nesse período, serão mais bem demarcadas apenas no século XIV, época em que o historiador tunisino Ibn Khaldun (1332-1406) propõe a separação deinitiva entre história e fábula, talvez inluenciado, nesse sentido, pela recolha e difusão, por parte do governo mameluco, dos contos presentes em As Mil e Uma Noites numa época em que a comunidade islâmica transfere sua herança política para o fortalecimento das ações culturais. Vemos, dessa forma, como era presente o estilo de escrita do século IX ainda aceitável no XIV, o qual possuía um claro sentido universal, talvez e provavelmente resquício do pensamento aristotélico13 que se difundiu através da translatio studiorum. Segundo Aristóteles: “ 1.Pelo que atrás ica dito, é evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade. 2. O historiador e o poeta não se distinguem um do outro, pelo fato de o primeiro escrever em prosa e o segundo em verso (pois, se a obra de Heródoto houvesse sido composta em verso, nem por isso deixaria de ser obra de história, igurando ou não o metro nela). Diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido”. ARISTÓTELES. Op. Cit., p. 286. 13 270 AS RELAçÕES ENTRE OS REINOS IBÉRICOS NA NARRATIVA DOS FEITOS DE D. JAUME I DE ARAGãO (1208-1276) Érica Margas Cima (Graduanda UFPR) Este trabalho visou perceber no Livro dos Feitos do rei D. Jaume I, primeira das quatro grandes crônicas medievais da Catalunha, em tradução recém publicada para o português (2010), por Luciano José Vianna1 e Ricardo da Costa,2 as relações de política externa, com os reinos peninsulares, cristãos e mulçumanos, ao longo dos 63 anos de reinado de Jaume I(1208-1276). Trabalhamos com a análise da memória de Jaume, para essa análise utilizaremos o conceito de memória extraído da enciclopédia Einaudi, sendo um elemento que intervém na cronologia dos acontecimentos, e opera releituras desses, ora os engrandecendo-os, ora desprezandoos, ou ainda ignorando-os em esquecimento proposital. “...no domínio literário, a oralidade continua ao lado da escrita e a memória é um dos elementos constitutivos da literatura medieval”.3 A memória sendo um instrumento mutável nos permite analisar dentro do Livro dos Feitos a relação da oralidade de Jaume frente à Aluno do curso de Doutorado Cultures em contacte a La mediterránia do Departament de Ciéncies de l’antiguitat e de l’Edat Mitjana da Universitat Autònoma de Barcelona (UAB), Espanha. Bolsista (BCC) da Agéncia de Gestió d’ Ajuts Universitaris i de Recerca (AGAUR) 2008-2010. Membro da Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM) e do Instituto Brasileiro de Filosoia e Ciência Raimundo Lúlio (IBFCRL) 2 Professor Associado I da Universidade Federal do Espirito Santo. Acadêmico Correspondente n. 90 da Reial Academia Bones Lletres de Barcelona, Espanha. Membro da Society for the study of the crusades and the latin east, da Associação Brasileira de Estudos Medievais, da Sociedade Brasileira de Filosoia Medieval, do Instituto Brasileiro de Filosoia e Ciência Raimundo Lúlio e do Programa de Pós graduação em Filosoia da UFES. 3 ROMANO. R. (Org.). Enciclopédia Einaudi. Labirinto-memória. Lisboa: Einaudi, 1979. v. 8. p. 28. 1 271 construção de sua memória, suas seleções, os sentimentos que o levaram a querer narrar tais feitos, e como ele constrói essa memória que é um elemento central no cristianismo medieval. Cavaleiro e defensor do cristianismo, Jaime nos tráz em sua Crônica elementos que para ele eram organizadores do mundo de então. Através da crônica podemos observar como Jaume se tornou Jaume I, todos seus feitos parecem ir ao encontro do projeto divino de Deus e de santa Maria, o que legitima o relato, pois Jaume em sua crônica tem sempre a certeza da vitória, essa vitória ocorre desde a infância de Jaume, sendo criado por Simon de Montfort, pois estava jurado a se casar com a ilha deste. Inocêncio III havia prometido à mãe de Jaume que cuidaria do menino, ajuda-o a fugir do castelo de Simon de Montfort e o coloca para ser educado pelos templários. Aos 12 anos é coroado rei de Aragão reino que herdará de seu pai Pedro o Católico, no entanto o reino estava fraco, pois, segundo Jaume, seu pai deixava-se levar muito pelas mulheres e devido a isso não deixou um reino fortiicado. “Nosso pai, o rei Dom Pedro, foi o rei mais liberal que houve em Espanha, o mais cortês e o mais afável, pois dava tanto que sua rendas cada vez valiam menos”.4 A conquista de Maiorca, Valência e a batalha travada contra os sarracenos de Múrcia rendem várias páginas dessa crônica, que engrandece o monarca e o exime de erros que, com o auxílio da bibliograia, percebemos que não foram poucos, pois mesmo ele sendo um homem de fé, foi um homem e um rei medieval real. Os feitos para Jaume não são apenas as batalhas que vencera logo no inicio de sua narrativa. Ele conta o quão grande foi o feito de seu nascimento, concebido na única noite que seus pais se encontraram conjugalmente, e como recebeu o nome do apóstolo devido a uma promessa de sua mãe Dona Maria. Jaume por toda a crônica tem uma grande devoção por ela. “...ela é amada (Dona Maria) por todos os homens do mundo que conheceram seu comportamento. E Nosso Senhor a amou tanto e lhe deu tantas graças que ela é aclamada ‘rainha santa’ por aqueles que estão em Roma, e ‘santa’ por todo o mundo”.5 VIANNA, José Luciano; COSTA, Ricardo. Livro dos Feitos/ Jaume I de Aragão. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosoia e Ciência Raimundo Lúlio, 2010. p. 31. 5 Ibidem, p.32. 4 272 As três principais conquistas que Jaume narra como seus Feitos dentre realizações pessoais, como a participação no Concílio de Avgnion, para a batalha Ultramar são as já citadas Maiorca, Valência e Múrcia. O primeiro feito rende muitas páginas da crônica, conquistar o Reino de Maiorca que ele denominava “O Reino sobre as águas”, parecia que seria para o monarca a maior prova de que Deus estava ao seu lado, a batalha foi sangrenta sem muitos acordos juntamente com a conquista de Maiorca Jaume conquista Minorca. A conquista de Valência vem sem batalhas, a diplomacia na crônica de Jaume parece-nos que é algo importante para o sucesso que o monarca nos relata em sua narrativa. Acordos parecem ser preferidos ao rei que nos mostra em sua crônica o desgaste e o quanto é caro ter provisões para manter batalhas. A derrota dos sarracenos em Múrcia foi para Jaume a sua maior legitimação frente ao seu inimigo e genro Afonso X, sua ilha Violante rainha de Castela, pede ajuda ao pai que termine com a invasão moura em Castela ou seus netos icaram deserdados, Jaume ajuda Afonso X, e a partir desse acontecimento a relação dos monarcas muda na narrativa. Além da legitimação do poder Jaume em sua crônica age como um cavaleiro cristão, defendendo a Espanha contra os iniéis. Castela sendo um reino vizinho, de maior tamanho territorial (quase o dobro de Aragão) e com uma “economia” mais estabilizada, se torna normais desavenças frente aos dois reis, e a partir das denominações que cada rei recebeu podemos perceber o quão diferenciado eram as formas de governo de ambos, Afonso X, O Sábio, e Jaume I, O Conquistador. Para analisar a fonte utilizamos José Luis Villacañas Barlanga, espanhol, que analisa a vida de Jaume I em uma extensa biograia sobre O Conquistador. Uma obra densa em que o autor nos traz uma visão ilosóica da vida do monarca nos permitindo o conhecimento da trajetória de Jaume juntamente com os fatos que ele não descreve na crônica nos deixando sem a compreensão de acontecimentos, como a separação de sua primeira mulher. Jaume apenas descreve que foi anulado por consegüinidade e na obra de Villacañas, percebemos que foi mais do que isso, o monarca foi abandonado. Essas visões que a biograia nos proporciona nos auxiliam na análise da fonte como uma 273 construção e uma seleção dos feitos para Jaume. Villacañas também nos traz uma análise da época em que o monarca reinou e nos esclarece logo no começo de sua obra as relações entre Pedro O Católico, pai de Jaume, e Simon de Montfort para quem Jaume foi entregue para ser educado, essas informações nos ajudam a trabalhar com a crônica de uma forma crítica. Outros autores podem ser citados: Marcella Lopes Guimarães que fez um artigo para o Congresso Internacional sobre Matéria Cavalheiresca, o qual trabalha com os aspectos cavalheirescos de Jaume dentro da crônica; Jacques Le Gof e Jean-Claude Schmitt, que trazem no “Dicionário Temático do Ocidente Medieval” um verbete sobre memória, que nos ajudou a compreender a construção da mesma na crônica, utilizamos outro verbete também chamado de memória da Enciclopédia ENAUDI que nos ajudou na compreensão de memória quanto seleção e também muitas vezes criativa, Fernando García de Cortázar e José Manuel González Vesga, que nos trazem o contexto da Espanha Medieval deu-nos uma visão mais ampla do que acontecia ao redor de Aragão. Outros autores ainda colaboraram e muito para análise da fonte, André Giménez Soler, espanhol, nos trouxe uma visão crítica de Jaume dando um contraste com a imagem que encontramos o rei em sua crônica, Fátima Regina Fernandes com seus textos referentes à teoria política medieval, e a construção do conceito de unidade. André Vauchez, espanhol, que nos ajudou na compreensão da espiritualidade no ocidente medieval, característica muito presente em toda a crônica. As relações de Jaume I com os outros reinos ibéricos foram minuciosamente isoladas e inseridas em uma tabela que originou gráicos6 com os quais podemos ter uma visão mais ampla das relações de Aragão com outros reinos. Juntamente na análise do gráico podemos destacar com quais reinos sua relação foi mais estreita e se a religião inluenciou ou não na sua conduta cavalheiresca. A criação da tabela se deu por uma leitura detalhada da fonte e pelo levantamento de dados que acreditamos ser importantes para a conclusão desse projeto. Constam na tabela: com quem Jaume se encontra (ou não), o capítulo em que o encontro ocorre e o desfecho (se originou uma Neste trabalho somente os dados serão reportados visto que houve incompatibilidade de formatos para sua transposição. 6 274 batalha ou um acordo). Nesta tabela também estão inseridos feitos que são grandiosos para Jaume, como sua convocação para o Concílio de Lyon, no entanto esse tipo de informação não entra no gráico pois não se trata de uma relação com outro reino como visamos tratar nesse projeto. A tabela completa possui 76 quadros, sendo que 3 não consideramos por que trata-se de Jaume no Concílio de Lion em 1274, mas decidimos inserir na tabela, pois, foi um grande feito para o rei. “Eu vim aqui (Concílio de Lion) por duas coisas que vós me chamastes; a terceira é minha. A primeira e que mandaste me chamar para dar conselho, a segunda, a ajuda. (...) A terceira é minha: incitarei os outros que não têm a intenção de Servir Nosso Senhor, e dir-lhes-ei e farei tanto, que, por isso, se animarão”.7 Dos 73 quadros válidos 43 são sobre as relações de Jaume com os reinos mulçumanos, e 30 são em relação ao reinado de Jaume com os reinos cristãos, desses 30, 22 são referentes ao reino de Castela, mostrando a estreita relação entre o monarca e seu genro Afonso X. Tanto entre os reinos mulçumanos quanto os cristãos as batalhas foram minoria frente aos acordos. Entre Aragão e Castela ocorreu apenas 01 batalha, referente ao início da crônica que Jaume I luta ao lado do Rei Dom Sancho de Navarra tornando-se seu herdeiro, na ajuda contra o rei de Castela. Excerto da tabela que construímos com a análise do “Livro dos Feitos”. Encontros com os outros cristãos, ou não. Encontro com a corte de bispos em Aragão e um frade franciscano de Navarra. Juramento em Saragoça, Alágon Encontro com Sarracenos que invadiram Vilena de Manuel de Castela 7 Capítulos Solução de encontro ou conlito. 389 O frade teve um sonho que o senhor avisa que Jaume é o defensor da Espanha frente aos sarracenos. 395 Acusavam Jaume de não cumprir o forro de Aragão. 410 Acordo, Vilena volta a Dom Manoel Ibidem, p. 457. 275 Gráicos obtidos através da análise da tabela: Gráico referente às relações de Jaume I com os reinos mulçumanos: Total: 43 Batalhas: 11 Acordos: 15 Sem Acordo: 11 Rendição: 0 Gráico referente às relações de Jaume I com os reinos cristãos: Total: 30 Acordos: 24 Sem acordo: 5 Rendição: 0 Batalhas: 1 Gráico referente às relações de Jaume com Castela: Total: 22 Acordo: 18 Batalha: 01 Sem acordo: 03 Rendição: 0 Através da análise dos gráicos que construímos podemos destacar que Jaume I se apresenta em sua crônica como um rei aberto a acordos tanto com cristãos quanto com mulçumanos, sua relação com os cristãos é notória analisando os gráicos. Percebe-se uma maior abertura para acordos quando se trata dos cristãos, pois mais da metade são encontros ou acordos e, dentre os cinco desacordos, apenas 01 originou batalha. Podemos nos direcionar a Villacañas nessa análise, na biograia de Jaume ele nos deixa ciente que o monarca queria nos passar uma imagem, de seu caráter cavaleiro e cristão, mas acima de tudo de rei, árbitro, portanto. “Jaume habla a uma contemporaneidad absoluta y cree em la eternidade de su época de manera tan irme como conia em La eternidad de su descendência”.8 Os encontros entre os reinos cristãos muitas vezes se originaram por vontade do monarca quando este decidia realizar um novo feito e precisava de suprimentos para conseguir o feito, isso constou na BERLANGA VILLACAÑAS, Luis José. Biograia de Jaume I. S.l.: Huertas, 2004. p. 22. 8 276 tabela gerando acordo ou não. Em nenhum momento da crônica, uma negação de um reinado frente a um pedido de Jaume gerou uma batalha, o monarca se mostrava decepcionado, pois muitas vezes essas expedições eram para lutar contra o iniel, tão somente. “- O que vós ganhareis se, nas Igrejas onde Nosso Senhor e Sua Mãe são adorados e por má ventura fossem perdidas, fosse adorado Maomé”.9 A grande quantidade de quadros contidos na tabela entre o Reino de Aragão e de Castela nos mostra que Jaume se preocupou em mostrar o estreito laço político entre os reinos e com isso a importância de seu reino ao lado do vizinho, maior em extensão e mais poderoso. Las relacionnes que busco Jaume com Castilla fueron las de um sincero equilíbrio basado em La conciensia realista de la dura realidad Del poder, el respeto recíproco, La igualdad de potestas, La franqueza em La defensa de sus intereses y puntos de vista y la continua presencia de uma profunda solidariedad hispana.10 Além da solidariedade hispânica frente à religião, Jaume ao ajudar seu genro legitima seu poder frente ao outro reinado, também colabora para que não aja mais fragmentação no poder hispânico, lembremos que a Idade Média é composta por políticas fragmentadas e que a união é um desejo mútuo de reis, pois se manter no poder sem ter aliados era praticamente impossível. Jaume é um rei que não se preocupa em mostrar na crônica que foi traído ou mesmo desrespeitado, ao contrário, ele faz questão de demonstrar isso juntamente com o quanto estão errados em desrespeitá-lo, pois ele sendo um rei tão bom quanto o demonstra, sabia valorizar muito a um súdito e que devido a tal desonra que lhe causaram estes não teriam mais o direito de sua admiração ou gratidão. Momento em que Jaume reclama pois a corte em Barcelona decide não colaborar, com o auxílio para a Batalha em Múrcia contra os sarracenos.VIANNA, José Luciano. Costa, Ricardo. Op. Cit., p. 367. 10 BERLANGA VILLACAÑAS, Luis José. Op. Cit., p. 17. 9 277 As diiculdades em se governar também estão presentes na crônica, Jaume precisa ir atrás de provisões para a sua hoste, precisa de empréstimos para que possa continuar um feito, e por vezes mostra-se preocupado com o que sua hoste tem de comer, é um rei que mostra as diiculdades que um monarca medieval passava ao entrar em uma batalha, diiculdades essas que legitimam ainda mais sua fé, pois toda essa diiculdade é enfrentada pela certeza no projeto divino. Antes que passássemos por Alventosa, deram-nos dezessete mil besantes pelos cem mouros que nós levávamos, ma, se oss tivéssemos retido por mis um mês nós teríamos trinta mil. Porém, tivemos que entregálos por tão pouco, pois os mercadores nos apressavam sobre o que lhes havíamos pedido emprestado para a hoste.11 Os sentimentos que Jaume coloca em sua crônica sempre são envoltos de muita sabedoria, o monarca sabe como castigar e como agradar a quem merece, devemos nos lembrar que a traição é total para o rei, pois quem o trai também trai a Deus. Todos os seus atos são voltados para a sua fé, ele nunca deixa de comparecer à primeira missa do dia antes de uma conquista ou de um encontro. Analisando os gráicos notamos que o numero de acordos entre as relações de Jaume sempre foram a maioria em todos eles, podemos destacar aqui a política do bem comum que o rei deveria seguir, Jaume demonstra isso em sua crônica. Referente aos mulçumanos os acordos não aconteceram na maioria das vezes por que uma religião não queria ceder o direito de rezar em um determinado local, os dois queriam a mesma mesquita ou igreja para transformar no seu templo de oração. Os gráicos referentes aos cristãos e que podemos observar a grande maioria se destina a Castela de 30/22, as batalhas foram quase inexistentes, isso mostra que a religião inluencia muito no julgo do nosso rei que tenta em sua crônica se mostrar um rei aberto as mesmas. Notemos que os dois pontos em sua crônica legitimam o poder para Jaume fora a vontade divina, são os encontros com os mulçumanos 11 VIANNA, José Luciano; COSTA, Ricardo. Op. Cit., p. 241. 278 que por várias vezes ele sai vitorioso mesmo sem a batalha, pois o acordo também é uma vitória e bem mais barata, e como notamos na crônica as batalhas necessitavam de grandes investimentos. E suas relações com Castela, que também são maioria em sua crônica. Podemos perceber o quanto o reino de Castela era importante para Jaume, ele não se isenta em nos contar em sua crônica que Afonso X tornou-se mais próximo dele após ele o ter ajudado na conquista de Múrcia, conquista essa que para monarca conseguiu mostrar seu poderio frente ao reino vizinho, pois a sua ajuda foi solicitada. Maiorca para o rei foi a sua maior conquista e vitória para o cristianismo, pois o reino sobre as águas virou cristão, mas Múrcia foi uma conquista mais que pessoal e importante para que Jaume pudesse crescer como rei e ser respeitado por seu vizinho maior e mais poderoso. A terceira “razão para ajudar o rei de Castela, esse discurso Jaume fez durante a corte” (que é a mais forte de todas, pois pertence ao censo natural) é que se o rei de Castela perder sua terra, nós icaríamos mal aqui, em nossa terra, pois mais vale que defendamos a sua que a nossa.12 A legitimação do poder de Jaume juntamente com a vitória do cristianismo sobre os mouros izeram com que o rei não escutasse o concílio que ele chamou para tentar provisões para o feito de Múrcia, o concílio não estava de acordo e não queriam dar provisões ao rei para defender um inimigo, Jaume não os acolheu e decidiu que ajudaria Afonso X, lembrando que foi um pedido de sua ilha esposa do rei de Castela. Analisando a crônica podemos concluir que Castela foi uma grande aliada para Jaume legitimar seu poder, sua fé e honrar o nome de O Conquistador, seu caráter cavaleiro cristão, e bom rei pensando no bem comum de uma comunidade maior que seu reino, a cristandade. A uniicação da Espanha frente a algo maior, algo que movia o monarca e o fazia crer que poderia conquistar o que estivesse ao seu alcance. 12 Ibidem, p. 366. 279 As memórias de Jaume em sua crônica são compostas por uma verdade que ele trás como inquestionável, a verdade de que ele faz parte de um projeto divino, e isso se mostra quando frente a algo tão importante quanto sua fé, ele “perdoa” o seu inimigo e o ajuda. E ali, em Valência, no ano de 1276, na sexta calendas de agosto, o nobre Dom Jaume, pela graça de Deus rei de Aragão, de Maiorca e de Valência, conde de Barcelona e de Urgel e senhor de Montpelier, passou deste século. Cuius anima per misericordiam Dei sine ine requiescat in pace. Amen.13 O Livro dos Feitos por ser uma fonte recém traduzida e pouco trabalhada no Brasil tornou-se uma ótima opção para a criação desse projeto, minha orientadora14 sabendo da grandiosidade de conhecimento que essa fonte poderia nos proporcionar frente a um rei medieval e cavaleiro me deu a opção de criar esse projeto. Nosso projeto em seu inicio possuía uma abordagem mais ampla tinha como intenção estudar as relações de Jaume I com os reinos ibéricos em geral na sua crônica, isso muito contribuiu também devido à denominação de Jaume O Conquistador, um conquistador deve ter uma relação no mínimo interessante com seus inimigos ou vizinhos, no entanto o que mais deveria ser interessante é saber como um conquistador gostaria de ser lembrando através de sua narrativa e a partir de suas conquistas. Desde o início do projeto a idéia era marcar bem que a crônica é uma seleção das memórias que Jaume gostaria de passar sobre sua vida, em todo o nosso trabalho tivemos em mente que a crônica é uma Ibidem, p. 480. Marcella Lopes Guimarães possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1995), mestrado em Letras (Letras Vernáculas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1999) e doutorado em História pela Universidade Federal do Paraná (2004). Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal do Paraná. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Medieval, atuando principalmente nos seguintes temas: história medieval, história cultural, literatura portuguesa e crítica literária. Para a realização de trabalho me orientou com bolsa de iniciação cientíica CNPq Julho 2010/2011 13 14 280 criação, mas nem por isso é uma mentira para Jaume como percebemos muitas das coisas realmente aconteceram, e segundo a enciclopédia EINAUDI em seu verbete memória, muitas das coisas para quem a narra realmente aconteceram nem que seja em seus pensamentos e tivemos que levar isso em conta. Fazendo essa análise na crônica enquanto construíamos a tabela que contém dados comparativos com os outros reinos e não apenas Castela que depois decidimos nos restringir percebeu-se que esse reino para Jaume tinha um algo a mais e podemos observar através do gráico que uma grande parte da crônica que se refere aos reinos cristãos invariavelmente o Reino de Castela aparece. Para tentarmos mostrar o quanto Castela é importante na Crônica e também para conseguirmos fazer um trabalho adequado frente à grandiosidade que são as memórias de Jaume frente ao reino vizinho de seu genro e inimigo, decidimos nos ater a Castela. O trabalho foi realizado com uma grande satisfação ainda mais quando ao terminarmos a tabela e os gráicos percebemos que izemos uma ótima escolha no tema, em todo o momento que o comparamos com Castela em sua crônica Jaume consegue legitimar seu poder. Seu inimigo tornou-se na Crônica um aliado, o aliado que ele precisava para mostrar o quanto era grandioso e o quando realmente Deus estava ao seu lado quando o tornou um rei. “Ele esteve ali (Afonso X) sete dias conosco, e nesses sete dias lhe demos sete conselhos do que fazer em seus assuntos”.15 15 VIANNA, José Luciano; COSTA, Ricardo. Op. Cit., p. 440. 281 OS BISPOS-SANTOS DE GREGÓRIO DE TOURS Fabíola Simão Dias Da Costa (Graduanda UFF) Na vasta obra legada por Gregório de Tours, Vita Patrum1 ocupa uma posição de destaque devido as suas peculiaridades. Diferentemente das outras obras hagiográicas de Gregório,Vita Patrum não se refere aos milagres realizados por um santo- como ele fez ao escrever a Vida de São Martinho- assim como também não é a coletânea de diversos milagres realizados por uma diversidade de santos. A singularidade de Vita Patrum, uma obra hagiográica que reúne a história de vida de vinte santos, está no fato dela trazer até nós um pouco da vida do próprio Gregório e de sua família (o bispo Nicetius de Lyons, por exemplo era seu avô). Gregório, ordenado bispo de Tours em aproximadamente 573 (sucedendo Eufronius que era primo de sua mãe) cuja data de nascimento gira em torno dos anos de 538 ou 539 na cidade de Auvergene, mais do que um hagiógrafo espetacular pode também ser considerado um importante historiador. Suas obras como o Decem Libri Historiarum mais conhecida como História dos Francos nos fornece um importante registro da história da Gália ao fazer um retrato do seu cenário tanto político quanto religioso. Vita Patrum apesar de ser uma hagiograia não se encontra eximida de um caráter histórico uma vez que retrata bem o contexto da Gália do século VI mostrando, através da vida dos santos, os conlitos políticos que eclodiram na região assim como também constitui um importante relato sobre as pessoas que constituíam a Igreja gaulesa do período dando sempre destaque as relações sociais que permeavam a vida religiosa da Gália. Em Vita Patrum, Gregório busca enfatizar a virtude de seus santos e para tal não hesita em destacar as adversidades e perseguições que eles tiveram de enfrentar e a forma como eles virtuosamente conseguiram GREGORY OF TOURS: Life of the fathers. Tradução e introdução de Edward James. Liverpool: Liverpool University Press, 1989. 1 282 superá-las- aliás é interessante destacar aqui que o próprio Gregório teve de enfrentar problemas políticos com o rei Chilperico que havia sucedido o rei Sigilberto. O milagre dentro desta obra é visto como a conseqüência de uma vida virtuosa e que agradava imensamente a Deus. Uma outra característica importante desta hagiograia é o destaque que ela dá aos bispos-santos, que correspondem a seis das vinte vidas narradas, e que deixam entrever dados da vida do próprio Gregório que, assim como seus bispos, pertencia a uma família aristocrata e com uma importante tradição eclesiástica – tais fatos são evidenciados no livro que narra a vida de Nicetius seu avô materno e bispo de Lyon onde Gregório cita alguns acontecimentos referentes aos momentos de convivência que teve com ele durante a sua infância. Os seis bispos-santos biografados por Gregório- Illidius, Quintianus, Gallus de Clermont, Gregório de Langres, Nicetius de Lyon e Nicetius de Treveri- apresentam muitos traços em comum. Ao descrever a origem destes homens santos, Gregório deixa bem evidente que todos os seis possuem uma raiz nobre que é complementada pela virtude religiosa Tal fato constitui um retrato típico da relação que existia entre a aristocracia galo-romana e a Igreja, onde grande parte dos bispos, pelo menos na Era Merovíngia, eram aristocratas. Além da origem nobre, os bispos-santos de Gregório apresentam como um outro ponto em comum a educação. O autor faz questão de destacar este ponto. Todos os bispos narrados receberam a instrução nas letras -o latim-,ainda na infância, por um clérigo. A preocupação de Gregório em enfatizar este ponto talvez possa ser um relexo da questão levantada por Gurevich2 que defende que conhecer ou não o latim era utilizado para dividir as pessoas em litteratus- aqueles que sabiam o latim- e illiterati ou idiotae- aqueles que somente conheciam a sua língua grosseira obtida sem nenhum esforço durante a infância. Gregório também ressalta o círculo de relações nos quais os bispos estavam envolvidos. Todos possuíam algum nível de entrosamento com a corte e com o próprio rei- isto é bem explicitado na vida de Gallus, bispo de Clermont, que segundo Gregório, era mais amado pelo rei do que o próprio ilho do monarca. GUREVICH, Aron. Medieval popular culture: problems of belief and perception. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. p. 1. 2 283 Ao focar estas três características pode-se deduzir que o bispo ideal na concepção de Gregório era aquele que possuía um bom nascimento, bons contatos e uma boa educação. Além destas características, o bispo modelo tinha que ser um defensor dos pobres e da fé. Vale destacar aqui, que no período, defender a fé poderia ter dois signiicados: defendê-la contra o erro do arianismo- na vida dos bispos não é mencionado nenhum caso deste tipo- ou contra as práticas pagãs, esta última forma de defesa da fé é retratada na vida de Nicetius de Treveri. Quando o santo fazia uma viagem de navio e, em meio a uma tempestade, parecendo que o barco iria afundar, alguns pagãos começaram a evocar seus deuses clamando por uma ajuda, mas sem obter resposta. Após serem admoestados por Nicetius sobre a verdadeira fé no único Deus verdadeiro, a tempestade se acalmou e todos foram salvos. Mas, como já foi mencionado, os bispos de Gregório além de serem bispos idéias eram também santos. Santos porque levavam uma vida na mais perfeita virtude e porque constituíam um elo entre a sua comunidade e o criador. Tal ligação era evidenciada sobretudo pelos milagres por ele realizados. Os milagres possuíam um enorme apelo social e o santo, como Gurevich3 destaca um intercessor necessário entre os homens e um Deus distante e abstrato, vai ganhando uma função na sociedade cada vez mais importante . Esta predominância marca uma nova fase da história do cristianismo, onde ocorre um deslocamento do modelo de cristão do mártir para o santo. Se o poder do santo está no seu papel de mediador entre a comunidade e a divindade, o milagre seria de uma certa forma a materialização deste elo, por isso ele deve ser mostrado, pois esta potência necessitava de uma platéia. Ao narrar os milagres realizados por seus bispos-santos, Gregório de Tours deixa bem evidente, mesmo sem mencionar que o modelo que ele adota como referência é o próprio Cristo. Seus bispos-santos realizavam os mesmos milagres operados pelo Salvador- fazem cegos ver, paralíticos e coxos andarem, surdos ouvirem- e também expulsam demônios. As analogias com o Jesus não se restringem ao tipo de 3 Ibidem, p.54. 284 milagre realizado, mas se estendem também a forma como estes milagres são realizados, pois as curas e os exorcismos foram feitos através do toque ou da imposição das mãos dos bispos-santos. É importante destacar também que as pessoas recorriam a estes santosvivos ou mortos- porque, como Gurevich4 salienta, eles possuíam uma autoridade – dada por Deus – sobre as pessoas, os demônios, animais e coisas inanimadas. Além desta reconhecida autoridade, as pessoas também buscavam os favores destes santos, como Andre Vauchez5 sublinha, objetivando mais a liberação de um mal físico do que a salvação de sua alma, fato que ica claro na vida dos bispos, onde todos os milagres realizados se relacionam a curas e exorcismos não sendo relatado nenhum pedido de salvação da alma. Após a morte a forma como os bispos-santos realizam seus milagres ocorre através do contato com as suas relíquias e a com as respectivas tumbas. As relíquias- uma certa garantia de se obteria o favor dos santo- eram vistas pela Igreja sob uma certa ambigüidade pois, como Gurevich6 airma, ao mesmo tempo que alguns clérigos desaprovavam a veneração considerando-a uma forma de idolatria, a Igreja acabava por incentivá-la uma vez que as utilizava em sua própria ideologia e prática material. Porém, tal ambigüidade não aparece em nenhum momento na obra de Gregório que enfatiza o tempo todo os milagres operados por meio do contato com as relíquias, como foi o caso de Nicetius bispo de Lyon, onde pessoas foram curadas ao beberem a poeira do túmulo do santo misturada com água e até mesmo ao entrarem ao contato com a sua cama. Na questão dos milagres ocorridos através do contato com a tumba- presente nas seis vidas onde milagres ocorriam quando as pessoas oravam no local onde o santo jazia ou apenas tocavam a sua cripta- é importante levar em consideração que Gregório dá tanta ênfase a estes milagres porque ele teria conseguido sacralizar o mundus.7O espaço como sagrado Ibidem, p.44. VAUCHEZ, André. Milagre. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Imprensa Oicial, 2002. 2v., V. 2, p. 197-212. 6 GUREVICH, Aron. Op. Cit., p.43. 7 BROWN, Peter. A ascensão do cristianismo no Ocidente. Lisboa: Presença, 1999. p. 127-128. 4 5 285 foi introduzido no mundo dos cristãos que antes não tinham a visão da sacralidade espacial- como acontecia no paganismo- uma vez que sagrada era a comunidade reunida e não o lugar. Ao admitir os milagres feitos no local onde os santos estavam enterrados, Gregório está admitindo que este lugar é um local sagrado. Além da cura das doenças, um outro milagre realizado por todos os bispos-santos foi o exorcismo. Em sua luta contra o Diabo o homem medieval nunca estava sozinho e para enfrentá-lo ele poderia contar além das poderosas armas representada pela hóstia, pelas relíquias, pela cruz e até mesmo por amuletos, com os favores dos santos. Um caso bem emblemático do poder do santo para expulsar o mal está descrito na vida de Illidius que teria, ainda em vida, exorcisado a ilha do Imperador de Trier ao colocar os dedos dentro da boca da moça enquanto fazia uma oração. Os milagres operados pelos bispos-santos de Gregório poderiam favorecer tanto a um único indivíduo quanto a toda uma comunidade. Estes‘milagres coletivos’ ocuparam um lugar de destaque na hagiograia de Gregório que dá uma enorme ênfase a imagem do santo como intercessor entre a sua comunidade e Deus, esta área seria, como Gurevich menciona, a região primária de inluência do santo. Entre os diversos milagres coletivos retratados em Vita Patrum, o caso de Gallus merece destaque. O bispo-santo foi capaz de aplacar, com o poder de sua oração, terremotos e incêndios. Além dos milagres coletivos, a obra de Gregório também narra um caso do que Gurevich8 chamaria de “milagre social”, ou seja, quando o santo socorria um ou uns indivíduos menos favorecidos socialmente. Este tipo de milagre apareceu somente na hagiograia na parte referente a vida de Nicetius bispo de Lyon que teria feito uma aparição a presos de sete cidades diferentes tornando-os homens livres. Porém é importante destacar que, mesmo dizendo que eles foram libertos pois o juiz não poderia fazer mais nada contra eles, Gregório não busca estabelecer uma oposição entre o santo e a autoridade secular, antes ele quer demonstrar a grande virtude do santo manifestada pelo seu amor e misericórdia ilimitados. 8 Ibidem, p.56. 286 Gregório também narra em sua obra, além dos milagres, a prática de profecias . Esta vai aparecendo ao longo da obra, mas recebe um enorme destaque na narrativa referente a vida de Nicetius de Treveri. Como Peter Brown9 destaca, o santo roubou o lugar do oráculo e dos adivinhadores na sociedade, porém as profecias feitas pelos santoscomo ilustra a obra de Gregório de Tours- se dá através de revelações angélicas e sonhos e não por meio da possessão como ocorria com os antigos oráculos e adivinhos permitindo assim que o santo mantivesse a sua identidade. Ao escrever Vita Patrum, Gregório de Tours permite se entreveja um modelo de bispo que excede o bispo ideal esperado pelo rei, pelos clérigos e pela sociedade para ser um bispo que, acima de tudo, conseguiu agradar a Deus com as suas virtudes excepcionais. O santo de Gregório não é desprovido de emoções e reações humanas- como Gurevich10 menciona- mas, o que o diferencia das demais pessoas- e que Gregório menciona várias vezes, é a sua força sobre humana- que permite que nele exista uma fusão da santidade. Os milagres por eles operados constituem um sinal de sua eleição. Além disso Gregório, ao descrever bispos como santos, fez com que estes clérigos pudessem entrar no mundo dos mais populares heróis da Idade Média, que era o que o santo representava para a sociedade, e assim ser parte integrante do cotidiano de todo e qualquer homem medieval independente de sua posição social. Gregório ao escrever sobre os bispos-santos legou para a posteridade o relato do homens os quais ele iria se juntar após a sua morte quando ele deixa de ser apenas bispo para ser um bisposanto cuja festa litúrgica se comemora no dia 17 de novembro. BROWN, Peter. he Rise and Function of the Holy Man in Late Antiquity. he Journal of Roman Studies, Cambridge, v. 61, p 80-101, 1971. p.93. Disponível em http://www.jstor.org/stable/300008. Acesso em 06 de junho de 2011. 10 GUREVICH, Aron. Op. Cit., 46-47. 9 287 SACERDOTIS PROFANUS: A CRÍTICA AO CLERO EM DECAMERÃO, DE GIOVANNI BOCCACCIO Flávia Vianna do Nascimento (Graduanda UFF) A literatura italiana de ins da Idade Média é caracterizada por uma série de obras que rompem com a estética medieval. Dentre elas, podemos citar a Divina Comédia, de Dante Alighieri; os sonetos de Petrarca e o Decamerão, de Giovanni Boccaccio. A última obra citada será meu objeto de análise neste artigo. A história de Decamerão1 gira em torno de um grupo de dez pessoas, sete mulheres e três homens, fugindo da peste em Florença.2 Após chegarem ao local, cuja proprietária é uma das senhoras da brigata,3 decidem passar uma parte do dia dedicando-se a contar histórias. Estas histórias, narradas pelos membros da brigata, formam um conjunto de cem novelas, divididas em grupos de dez, totalizando dez jornadas ou dias,4 Para cada jornada, existe uma pessoa da brigata responsável por sentenciar sobre qual tema girará as novelas contadas pelos membros.5 Algumas das jornadas giram em torno de uma temática especíica, como por exemplo, a Quarta A edição da obra a qual usei para efetuar a pesquisa é a seguinte: BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. São Paulo: Abril Cultural, 1981. 2 Boccaccio, no início da Primeira Jornada, antes de apresentar os personagens, descreve a epidemia de peste que assolou Florença em 1348. 3 Uso aqui o termo brigata como sinônimo para descrever o grupo de dez pessoas que vai ao campo fugindo da peste. Tal termo é também usado por Ana Carolina Lima para designar o grupo. Cf.: ALMEIDA, Ana Carolina Lima. O feminino e o riso no Decamerão. Ciências Humanas e Sociologia em Revista. Seropédica, RJ, EDUR, v. 31, n. 2, p. 5-50, jul-dez, 2009. 4 O termo dia também pode aparecer nas traduções da obra ou nos estudos sobre ela. 5 Com exceção da Primeira Jornada, cada responsável pelo dia seguinte é escolhido ao im do dia anterior. O “rei” ou “rainha” não é só responsável por coordenar o relato das novelas, mas também pelas atividades diárias executadas pelos serviçais no refúgio. 1 288 Jornada, na qual devem novelar sobre casos amorosos cujo inal foi trágico. No total, oito jornadas apresentam uma temática deinida previamente e, somente duas apresentam temática livre.6 Contudo, apesar da liberdade, há uma espécie de elo entre as histórias; ou seja, a história seguinte é contada a partir de um detalhe da história anterior, o qual saltou aos olhos do narrador. Para exempliicar, basta olharmos a Primeira Jornada. Da história do homem que engana o padre confessor, o narrador seguinte conta a história do judeu que se converte ao cristianismo, após uma viagem a Roma. O elo condutor é o tema da bondade divina, como podemos observar no trecho abaixo: − Demonstrou Pânilo, em sua narrativa, a bondade divina, pela circunstância de que ele não se importa com os nossos pecados, sempre que estes advenham de dados básicos que não possamos deslindar. Em minha novela, eu pretendo demonstrar o quanto aquela mesma benevolência, suportando os defeitos dos que deveriam dar vero testemunho dela, com obras e palavras, ainda assim dá de si mesma prova de infalível verdade; e isto se dá a im de que continuemos a acreditar naquilo que temos fé, e o façamos com redobrada irmeza de ânimo.7 Mesmo apresentando um tema condutor, cada novela possui um enfoque diferente para o que foi proposto pelo “rei” ou “rainha” do dia. Na Sétima Jornada, cujo tema central é as trapaças envolvendo esposas e maridos, algumas comentarão sobre o adultério; enquanto outras terão como mote o ciúme do esposo, sendo este o motivo para a esposa enganar o marido. Então, ao analisar a fonte, pude constatar a existência de algumas novelas nas quais ica aparente uma crítica de Boccaccio ao clero. A análise minuciosa destas novelas é o ponto central deste artigo. Porém, do conjunto de dezessete que tem a censura às atividades do clero como mote principal, escolherei apenas duas. Um detalhe importante a acrescentar na caracterização da obra é a estrutura de narração. Considero, tal como Ana Carolina Lima 6 7 As jornadas que apresentam temática livre são a Primeira e a Nona. BOCCACCIO, Giovanni. Op. Cit. 289 no artigo sobre a mulher e o riso em Decamerão, a existência de dois tipos de narração dentro da obra.8 O primeiro tipo é o próprio autor, responsável por contar a história. O segundo tipo é composto pelos membros da brigata, responsáveis por narrar a novela para o grupo. Dentro destes tipos de narração, podemos caracterizar a presença de dois planos de narração que dialogam entre si: o plano oral e o plano escrito. O plano oral de narração seria composto pelo ato de contar a história ao grupo. Esse ato exige algumas técnicas para que se possa entender o sentido da mensagem; é o que Paul Zumthor, em A letra e a voz, caracteriza como performance.9 O plano escrito, composto pelo conjunto das novelas e comentários feitos por Boccaccio é o que, de certa maneira, conirma a história contada. Assim, este diálogo entre os dois planos mostra o quanto de oralidade ainda é presente na obra e que o texto escrito torna concreto o que a voz contou. Portanto, posso airmar que Boccaccio usa duas formas de contar a história em Decamerão: a voz dele e a voz do outro. Ambas carregam o que o autor pensa sobre a sociedade de seu tempo. Boccaccio dedica o livro às mulheres, mas não a todas as mulheres, mais sim àquelas pertencentes à aristocracia. Então, a obra seria, como dito pelo autor no Proêmio, um alerta às mulheres contra os malefícios do amor desmedido e um conselho para elas dominarem suas paixões. Ele usa o recurso do exemplum10 para expor as idéias propostas na obra. Antes de contextualizarmos o autor e a obra, convém delimitar um conceito fundamental para a análise da obra: literatura. Se tomarmos a palavra no sentido “original”, literatura designava a capacidade de ler e ser lido; ou seja, possuía relação direta com o ato de ler e escrever. Tanto que, no século XIV, o termo literato deinia quem era apto na leitura e na escrita.11 O conceito moderno de literatura como algo ligado ALMEIDA, Ana Carolina Lima. Op. Cit. ZUMTHOR. Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 10 Exemplum era um gênero literário medieval em prosa, cuja principal característica era mostrar uma atitude ou ação considerada aceitável. Para maiores informações Cf.: ZINK, Michel. Literatura. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: Imprensa Oicial do Estado, 2002. 2v. V.2. p. 79-94. 11 Ibidem, p. 79. 8 9 290 especiicamente à um campo autônomo e desconectado das chamadas “belas letras” – e que também vê o escritor como uma entidade criadora dotada de gênio – só é possível em meados do século XIX.12 Assim, para o senso comum, a literatura seria um campo especíico das artes, que trabalha com a criação e a icção. Não tomarei aqui a literatura como um conceito abstrato e puro, mais como algo concatenado à realidade que a cerca. Desta maneira, o escritor não seria um gênio criador com capacidades metafísicas especiais para produzir uma obra prima. É necessário desconstruir a idéia de obra prima; pois, segundo Terry Eagleton, ela também é uma construção social e implica numa série de escolhas fundamentais para caracterizá-la.13 Portanto, a obra prima e a relevância de algumas outras obras num cânone literário são objetos construídos por determinados grupos, os quais desejam deinir alguns conceitos e idéias presentes nestas obras; ou seja, uma estética da criação e do gosto.14 Acrescento aqui que a chamada “literatura medieval” possuía objetivos e características bem diferentes da literatura moderna e contemporânea. Destaco aqui a presença da oralidade dentro dos textos literários medievais. Portanto, não considero Boccaccio como um gênio criador, mas como alguém que produziu um texto diretamente ligado às experiências de seu tempo. Sendo assim, a obra possui um contexto de produção especíico, que me permitirá entender as motivações das críticas ao clero em Decamerão. Primeiramente, a Península Itálica durante o século XIV era um conjunto de pequenos reinos, possessões eclesiásticas e cidades. O fator mais importante para entender o Trecento é a emergência da comuna. O período no qual Boccaccio escreve sua obra é caracterizado pelas disputas dentro da cidade de Florença e pelo início do poderio da nascente burguesia mercantil. No entanto, esta burguesia não é algo “surgido do nada”, mas uma parcela da aristocracia que adotou a vida nas cidades e usou o comércio como forma de obter rendas.15 FACINA, Adriana. Literatura & Sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: Uma Introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 14 FACINA, Adriana. Op. Cit. 15 Cf.: GILLI, Patrick. Cidades e sociedades urbanas na Itália medieval. (séculos XII-XIV). Campinas: Unicamp, 2011 e TENENTI, Alberto. Florença na época dos Médici. São Paulo: Perspectiva, 1973. 12 13 291 Dentro da obra podemos observar como característica deste grupo o lugar social dos narradores, as locações das histórias e a quem elas são direcionadas. Como dito anteriormente, elas mostram uma caracterização e uma ligação com a mulher da aristocracia, já que boa parte dos discursos laicos e eclesiásticos refere-se, em especial, às mulheres desta classe. Considero também importante um breve comentário sobre o contexto intelectual e religioso do período. Durante o século XIV, a Itália era palco de disputas políticas entre o Papado e o Sacro Império. Estas disputas também resultavam em conlitos dentro da cidade. A primeira metade do século XIV também é caracterizada por uma emergência da espiritualidade laica; basta ver que os franciscanos já constituíam uma ordem dentro da cristandade, em busca de um retorno às bases do cristianismo primitivo e uma resposta à opulência do clero de Roma. Aponto aqui esta opulência e um caráter mais político do Papado como efeitos diretos da chamada Reforma Gregoriana do século XIII. Basta lembrar também que a Reforma Gregoriana coloca o celibato como obrigatório aos membros do clero.16 Porém, não é o que vemos nas novelas cujos personagens ou a temática é ligada ao clero; nelas Boccaccio destaca a licenciosidade e a hipocrisia de padres, bispos e freiras. Quase todas as novelas que possuem algum elemento ligado ao clero como personagem apresentam uma crítica às suas atitudes. Exceções são a 1ª novela da Primeira Jornada e a 2ª novela da Décima Jornada. A primeira tem como tema central a bondade e a piedade cristã, enquanto a segunda procura enfatizar as virtudes humanas e a recompensa pela ajuda ao outro. Para análise neste artigo, escolhi a 2ª novela da Primeira Jornada e a 4ª novela da Oitava Jornada. A segunda novela da Primeira Jornada conta a história de um famoso comerciante chamado Gianotto di Civigni. Este comerciante Cf.: ARNOLDI, Girolamo. Igreja e Papado. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: Imprensa Oicial do Estado, 2002. 2v. V.1, p. 567-590; BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média – século XII. Lisboa: Edições 70, 1983 e SCHMITT, Jean-Claude. Clérigos e Leigos. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Op. Cit. 16 292 era grande amigo de um judeu riquíssimo de nome Abraão. Gianotto tentava converter o amigo ao cristianismo, mas Abraão se recusava, pois era bem instruído na Lei de Moisés. Porém, um dia, Abraão decide ir à Roma para entender as maneiras e costumes dos religiosos. Então, Gianotto entra em desespero: Ao ouvir isto, Gianotto icou tremendamente penalizado. E a si mesmo disse: “Perdi todo o meu trabalho, que tão bem empregado me parecia; imaginava que este judeu já estivesse convertido. Se for a Roma – se visitar a corte de lá – e se vier a conhecer a vida celerada e imunda dos sacerdotes, não apenas não se converterá, de judeu em cristão, como se pode dizer com certeza que, se já fosse cristão batizado, indubitavelmente voltaria a ser judeu!”17 Tenta convencê-lo da desnecessária viagem, mas o amigo estava decidido a fazer a viagem. Abraão vai a Roma e, chegando lá, surpreende-se com as atitudes do clero. Permanecendo em Roma, sem contar a ninguém a razão que ali o levara, tratou, com cautela, de observar os modos do papa, dos cardeais e dos outros sacerdotes, assim como de todos os cortesãos. Adicionando o que observou, pessoalmente, como homem conhecedor dos homens que ele era, àquilo de que alguém o pôs ao colocado, o judeu chegou à conclusão de que, desde o mais altamente colocado até ao mais humilde, todos, em geral, em Roma, cometiam, desonestissimamente, o pecado da luxúria; pecavam não apenas por luxúria natural, como ainda por atos de sodomia; e tudo ocorria sem nenhum freio representado pelo remorso ou pela vergonha. Grande era o poder das meretrizes e dos efeminados, para impetrar fosse o que fosse que se revestisse de importância. Além do mais, notou, publicamente, que todos eram universalmente gulosos, bebedores, beberrões – e mais cuidavam do próprio 17 BOCCACCIO, Giovanni. Op. Cit., p.35. 293 ventre, como animais irracionais, dados à luxúria, do que qualquer outra coisa. Aprofundando a sua observação, descobriu que todos eram avarentos e sequiosos por dinheiro. Vendiam o sangue humano e, sobretudo, o sangue cristão; faziam comércio das coisas divinas, fossem elas quais fossem, ainda que pertencessem aos sacrifícios e benefícios; vendiam e compravam dinheiro, para conseguir mais lucro. Em Roma, existiam muito mais lojas de fazendas e de outras coisas do que em Paris. À simonia mais evidente tinham os romanos dado o nome de procuradoria; à gula davam o nome de subsistência. Como se Deus, ainda colocando-se de parte o signiicado das palavras, desconhecesse mesmo a intenção dos malvados espíritos, e pudesse ser iludido, à maneira dos humanos, pelo disfarce vulgar do nome que se dava às coisas.18 Tais atitudes desagradaram ao judeu, homem sóbrio e modesto. Como já vira de tudo, volta a Paris. Alguns dias depois após a volta, Gianotto pergunta ao amigo as impressões dele sobre Roma. E Abraão responde: − Parece-me que é coisa má que Deus dê ventura a todos quantos eles são! Airmo-lhe tal coisa, porque, se foi me dado examinar bem os fatos, não me pareceu ver, ali, qualquer santidade, nem qualquer devoção, nem qualquer obra pia, nem qualquer exemplo de vida decente, em pessoa de clérigo. Apenas vi luxúria, avareza e gula, e outras idênticas a estas, e até piores, se é que coisas piores podem haver, cometidas por alguém. Tive a impressão de ver tanta gente vivendo inteiramente contente, que passei a ver naquilo antes uma oicina de operações do diabo do que um templo dos atos de Deus. Pelo o que foi me dado considerar, com extrema solicitude, inteligência e arte, pareceu-me que o seu pastor e, conseqüentemente, todos os demais, fazem todos os esforços para reduzir a nada, e mesmo até para apagar do mundo a religião de Cristo, em lugar 18 Ibidem, p. 36. 294 de ser, como o deveriam, os seus sustentáculos e suas bases. Contudo, pelo que noto, prazerosamente, não virá para tal religião o futuro que lês afanosamente tentam dar-lhe; essa religião, ao invés disso, crescerá; vai expandir-se; vai tornar-se sempre mais luminosa e mais brilhante. Assim sendo, pareceu-me compreender que é o Espírito santo, merecidamente, o seu sustentáculo, e a sua base, como é conveniente a uma religião mais certa e mais santa do que nenhuma outra. Por estas razões, eu, que me mostrava severo e duro diante dos argumentos que você me apontava, e que não estava propenso a tornar-me cristão, agora com franqueza, lhe airmo que não deixaria, por nada deste mundo, de tornar-me cristão. Vamos, portanto, à igreja; e ali, mande que me seja dado o batismo, conforme a tradição de sua santa crença.19 Assim, Abraão converte-se ao cristianismo e é batizado com o nome de João, vivendo como um homem bondoso e de santa fé. Nesta novela, Boccaccio mostra o quanto as atividades do clero estavam em desacordo com o que pregava a religião. Porém, ele nos deseja mostrar que não é a opulência do clero que torna o cristianismo poderoso, mas a fé de seus praticantes. Portanto, Boccaccio critica o clero, mas não os praticantes da religião. Outra interpretação possível é que, além de criticar a postura do clero, Boccaccio critica também os judeus, pois já praticariam as coisas descritas pelo autor mesmo sem seguirem o catolicismo romano. Assim, para o autor, a conversão de Abraão seria uma maneira de manter as atitudes antigas, ainda que a religião fosse outra. A quarta novela da Oitava Jornada conta a história de um preboste20 e clérigo que se apaixona por uma viúva. Porém a viúva recusa o preboste, mas este continua a convencê-la a entregar-se a ele. Um belo dia, a viúva aceita os galanteios do preboste. A notícia o agrada e ela o convida a ir a sua casa. Só que a viúva, após consultar os irmãos, elaborou um plano para enganar o preboste. Instruiu que ele deveria fazer silêncio quando chegar à casa dela e entrar no quarto, 19 20 Ibidem, p. 36-37. Preboste é um antigo cargo militar, responsável por ministrar justiça. 295 que por sinal, era muito escuro. A viúva possuía uma criada, a qual Boccaccio descreve da seguinte forma: Tinha esta viúva uma criada que, contudo, não era muito jovem; tinha o rosto mais feito e mais contrafeito que se poderia supor; o nariz era como que esmagado e enorme; a boca, torta, com lábios, muito grossos e dentes mal alinhados, atém de grandes; era vesga e jamais estava sem qualquer doença nos olhos; além disso, a cor de sua pele era esverdinhada e amarela, parecendo que ela não passara o verão em Fiesole, mas sim em Sinigaglia: e, para completar tudo isto, mancava e era aleijada do lado direito. Chamava-se esta criada de Ciuta. Como tinha um rosto muito semelhante a um focinho de cachorro, os homens tinham-na apelidado de Ciutazza. Ainda que fosse mal feita de corpo, não deixava, nem por isso, de ter o seu bocado de malícia.21 Prometendo uma camisola à Ciutazza, ela pede à criada que entre em silêncio no quarto e se deite com um homem. A criada prontamente aceita a proposta da viúva, dizendo que dormiria até com seis homens se fosse necessário. O preboste vai á casa da viúva e acontece o seguinte: Ao chegar a noite, o senhor preboste veio, como combinara. E os dois jovens irmãos da viúva, igualmente, como tinham acertado com ela, permaneceram no respectivo quarto, e fazendo barulho, para que fosse notado que estavam ali. Desse modo, o preboste, pé ante pé, no escuro, dirigiu-se para o dormitório da viúva, onde entrou e encaminhou-se, como fora por ela instruído, de pronto para a cama. Do outro lado da cama, encontrava-se Ciutazza, que recebera de sua patroa todas as instruções sobre o que deveria fazer. O senhor preboste, pensando que tinha ao seu lado a mulher amada, abraçou a Ciutazza, pondo-se a beijá-la, sem proferir palavra; e Ciutazza fez o mesmo, quanto a ele. Depois, o preboste passou a gozar o prazer com ela, apossando-se dos bens tão longamente desejados.22 21 22 BOCCACCIO, Giovanni. Op. Cit., p. 411. Ibidem, p. 411. 296 Percebendo o rumo que as coisas tomaram, a viúva manda que os irmãos executem o resto do plano. Eles saem e acabam encontrandose com o bispo. O bispo comenta com os rapazes que desejava ir à casa deles e assim é feito. Todos tomam o caminho da casa da viúva; chegando lá, passam a beber vinho e conversar. Algum tempo depois, um dos jovens diz que tinha algo a mostrar ao bispo que prontamente aceita. A seguinte situação acontece: Para atingir logo o seu im, o preboste cavalgara um tanto apressadamente; e, antes que os dois irmãos, seguidos pelo bispo, surgissem no quarto, ele já percorrera mais de 3 milhas; por isso, muito esgotadozinho, procurava, naquele instante, descansar um pouco, sempre mantendo em seus braços, apesar do calor, a sua Ciutazza. Quando o rapaz entrou no quarto, com a tocha na mão, acompanhado do bispo e do irmão, ele mostrou ao bsipo o preboste, que estava ainda com Ciutazza nos braços. O senhor preboste levou um grnade susto; viu a tocha acesa; viu os homens ali reunidos; sentiu-se muito envergonhado; e, temendo que alguma coisa de pior lhe acontecesse, eniou a cabeça sob os lençóis.23 O bispo censura duramente o preboste; este percebe que metera a viúva em um grande engano. É obrigado pelo bispo a vestir-se e a pagar uma penitência pelo pecado depois. O bispo desejou saber os detalhes do plano, o que foi prontamente atendido, elogiando depois as atitudes da viúva e dos irmãos dela. O preboste torna-se motivo de escárnio para os moleques, a viúva vê-se livre das investidas do preboste e Ciutazza ganha a camisola. Além disso, o preboste é motivo de piada dentre as crianças da cidade. Nesta novela, Boccaccio enfatiza duas coisas: a atitude do preboste, a qual vai de encontro às regras do celibato e a atitude da viúva, que usa da esperteza para repelir o preboste. Assim, temos duas temáticas que se concatenam nesta novela: a crítica à hipocrisia do 23 Ibidem, p. 411-412. 297 clero e o elogio à virtude da viúva. Durante toda a obra, Boccaccio destaca atitudes de grupos que não resistem a suas paixões, dentre os quais estão as mulheres e os religiosos. Porém, aqui ele usa a virtude de um grupo (representado pela viúva) para criticar as atitudes de outro (representado pelo preboste). Para ressaltar a crítica ás atitudes do clero, o autor faz uso do riso e do grotesco. O uso da estética do grotesco é característico das obras de cunho moral de ins da Idade Média. Neste caso, o elemento do grotesco disposto a mostrar o ridículo da situação do preboste é Ciutazza. O fato de ser encontrado praticando atos libidinosos com a criada serve mais ainda para evidenciar a crítica ás atividades do clérigo. E a censura a elas, mostra o quanto Boccaccio procura enfatizar na obra a situação moral da Igreja.24 Concluo então o artigo comentando que o objetivo das críticas feitas á Igreja por Boccaccio não é a doutrina, mas as atitudes dos religiosos. Considero as estas novelas um pequeno extrato das críticas ao clero feitas durante os séculos inais da Idade Média. Elas também mostram uma nova forma de postura ideológica por alguns setores da população, as quais, mais tarde, resultariam no Renascimento e na Reforma Protestante. 24 ALMEIDA, Ana Carolina Lima. Op. Cit. 298 PROJEçÕES HISTÓRICAS, LITERÁRIAS E MÍTICAS DO EPISÓDIO DE INÊS DE CASTRO: DO MEDIEVO À CONTEMPORANEIDADE Francisco de Souza Gonçalves (Mestre UERJ) Bárbara Cecília Kreischer (Graduanda Universidade Católica de Petrópolis) Contexto histórico: fatores extradiegéticos Ao presente estudo cabe ressaltar brevemente os fatos políticos ocorridos a partir de 1300, que serão de grande importância à compreensão do episódio de D. Inês de Castro. D.Constança, da nobreza castelhana, casa-se com o infante D.Pedro I, ilho de D.Afonso IV e D.Beatriz. Em sua corte de damas incluía-se D.Inês de Castro, idalga galega pertencente à uma família inluente em Castela. Após o casamento, Pedro e Inês envolvem-se em um romance. Então D.Afonso IV, expulsa D.Inês de Castro do território português. Apesar disso, D. Inês e D. Pedro nunca deixaram de se corresponder, mantendo assim o romance proibido. Porém, D. Constança teve complicações de parto ao dar à luz D. Fernando. A infanta morre, precocemente, e D. Pedro, manda trazer de volta a Coimbra D. Inês de Castro. Instalaram-se, assim, no palácio que a rainha D. Isabel, esposa de D. Dinis, construíra para seus descendentes e esposas legítimas. Tal fato seria interpretado por D. Afonso como uma afronta grave. Da união com D. Inês de Castro nasceram três ilhos,1 que representavam para o avô monarca uma ameaça de ascensão ao trono português ou até mesmo a perda do reino para Castela. Neste período, entre 1351 e 1353, Castela encontrava-se num momento parecido 1 Flhos de Pedro e Inês eram D.João, D.Dinis e D. Beatriz. 299 com que D. Afonso IV vivenciara alguns anos antes, com os ilhos de D. Leonor de Guzmán com D. Afonso XI2 lutavam contra D. Pedro de Castela, ilho de D. Maria, pelo trono de Castela. O infante castelhano contava com apoio dos Castro e dos Albuquerque, que ao contrário de D. Afonso IV, apoiaram D. Dinis e D. Pedro em outras ocasiões. Uma revolta dos Castro contra a coroa castelhana faz com que o desenrolar dos fatos inalize o drama. O irmão de Inês de Castro, João Afonso Albuquerque sugere que D. Pedro reclame a coroa castelhana para si.3 O infante estava disposto a acatar a “sugestão”, mas D. Afonso IV proibiu D. Pedro de se envolver na guerra civil castelhana. Perante tais fatos e aconselhado por três idalgos, Pero Coelho, Alvoro Gonçalves e Diego Lopez Pacheco, D. Afonso IV ordena a morte de D. Inês de Castro em 7 de janeiro de 1355, ocasião em que D.Pedro estava ausente, pois esses acreditavam que a dama castelhana exercia inluência sobre o infante. Segundo Saraiva: “(...)D. Afonso decidiu a morte de D. Inês de Castro, que foi degolada em 7 de janeiro de 1355, nos paços de Santa Clara, em Coimbra, numa ocasião em que o infante estava ausente”.4 Após o assassinato da dama, D. Pedro revolta-se contra o pai. O conlito terminou com um tratado de paz. Mas logo que assumiu o trono português, D. Pedro fez com que o rei de Castela lhe entregasse dois dos três conselheiros do rei Afonso IV e executou-os de forma cruel, dando, assim, a Inês de Castro o título de Rainha. Este fato resultará em projeções literárias e míticas, cultivando assim, na cultura lusitana, uma expressiva comoção. Os fatos históricos, aqui, brevemente mencionados, izeram nascer um mito em Portugal, o de D. Inês de Castro. José Hermano Saraiva airma: Estes factos- o desvairio amoroso do infante, o conlito com o rei, a imolação de Inês à razão política, a Filhos bastardos, da união ilegítima de D.Afonso XI com D.Leonor de Guzmán. D.Pedro possuía grau de parentesco castelhano. Segundo José Hermano Saraiva: “(...) João Afonso de Albuquerque mandou a Portugal um irmão de Inês de Castro propor ao infante D.Pedro que reclamasse para si a coroa de Castela, visto ser neto do rei Sancho IV (a mãe de D. Pedro, rainha Beatriz, era ilha de D.Sancho IV)”. 4 SARAIVA, José Hermano. História Concisa de Portugal. Lisboa: EuropaAmérica, 1981. p.90. 2 3 300 solidariedade de uma grande parte da nobreza, a guerra civil, a ferocidade da vingança, a pompa da trasladação, a própria grandeza e valor artístico dos túmulos- izeram nascer uma lenda de origem provavelmente erudita, mas que não tardou a passar às camadas populares. Nessa lenda incluíam-se pormenores(...) como da coroação do beija-mão do cadáver.5 A seguir, serão abordados os aspectos literários das projeções de Inês de Castro, objeto central do presente estudo. Inês de Castro e a literatura: de Lopes a Helder A Crônica de Dom Pedro, Fernão Lopes A Crônica de D. Pedro é a primeira descrição histórica da existência de D. Inês de Castro e da vingança de sua morte. Fernão Lopes descreve a morte crua com que o monarca se vingara dos assassinos de Inês. D. Pedro rompe o juramento feito a seu pai ainda em vida. Após a morte de D. Afonso, o então monarca troca alguns presos políticos com Castela: (...)ouverom as gentes por mui gram mall huu muito d’avorrecer escambo que este ano antre os reis de Purtugall e de Castella foi feito: em tanto que, posto que escripto achemos d’el-rrei de Purtugall que a toda gente era manteedor de verdade, nossa teençom he nom o louvar mais, pois contra o seu juramento foi consentido em tam fea cousa como esta.6 Em outro trecho da mesma crônica, Fernão Lopes relata o amor devoto e apaixonado de D. Pedro pela dama, de forma que nem o tempo pôde apagar isso de sua memória. O autor chega a comparar este amor ao sentimento dos grandes protagonistas de histórias da mitologia grega, indício da construção, identiicação e personiicação da igura inesiana com os moldes heróicos e mitológicos: Ibidem, p.89. LOPES, Fernão. Crônica de D. Pedro. Disponível em: http://www.triplov.org/ historia/fernao_lopes/ cronica_dom_pedro/ treslado.htm Acesso em 16 de abril de 2011. 5 6 301 Por que semelhante amor, qual el-rrei Dom Pedro ouve a Dona Enes, raramente he achado em alguuma pessoa, porem disserom os antiigos que nenhuum he tam verdadeiramente achado, como aquel cuja morte nom tira da memoria o gramde espaço do tempo. E se alguum disser que muitos forom ja que tanto e mais que el amarom, assi como Adriana e Dido (...) Este verdadeiro amor ouve el-rrei Dom Pedro a Dona Enes como se della enamorou, seemdo casado e aimda Ifamte (...).7 Fernão Lopes, aqui, dá sua contribuição ao que, posteriormente, o mito de Inês de Castro seria em Portugal: o amor apaixonado do rei pela dama galega, podendo ser comparado às narrativas do “amor impossível”, como Tristão e Isolda.8 O sentimento do rei era público: D. Pedro então manda fazer a sepultura luxuosa no Mosteiro da Alcobaça para D. Inês de Castro, que é coroada como rainha e em seu túmulo a coroa também está representada: Portanto, pode-se airmar que os atos de D. Pedro representam contribuição essencial à consagração de D. Inês de Castro como mito. A descrição da cerimônia remete ao leitor a imagem do ocorrido como um ato cheio de admiração do povo à rainha morta, vitimizada através da injustiça e crueza de seu assassinato. Fernão Lopes, talvez sem se dar conta, iniciou o processo de mitiicação da igura de Inês de Castro. Alguns autores posteriormente darão voz à dama galega em suas obras, mas a Crônica de D. Pedro é sem dúvida, o documento que inicia o processo mítico- literário acerca do episódio de Inês de Castro. A Literatura de mesmo tema, ao longo do tempo, utilizará o que Fernão Lopes traz em seus documentos tão ricos. Nos próximos autores, esses dados se repetirão, mas principalmente sob o signo da criação literária artística. 7 Idem. O amor impossível de Tristão e Isolda inspirou obras literárias na Idade Média, baseadas numa lenda celta. Após os desencontros amorosos, Tristão, enfermo, morre por não poder ver a amada, e Isolda, ao saber da morte do amado, segura-o já morto nos braços e também morre. 8 302 O Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende O Cancioneiro Geral, de 1516, é uma compilação de mil poesias distribuídas entre 286 autores reunidas por Garcia de Resende. São referentes ao ciclo da Poesia Palaciana, momento em que a música e a poesia começavam a traçar rumos distintos e separados. Os autores eram inluenciados pelas criações castelhanas, que tinham por objetivo o entretenimento da corte, denotando o reinamento recente das mesmas. Há também a presença de trovas, improvisos e criações de zombar. A obra em si não é tão rica em matéria de poesia como criação literária, mas sim, “na narrativa de casos, de acontecimentos veriicados na Europa de seu tempo”.9 Garcia de Resende é o primeiro autor que trata de D.Inês de Castro literariamente.10 É o primeiro a dar-lhe voz no discurso com a poesia Trovas à morte de Inês de Castro, com 22 estrofes, cada uma com 10 versos cada, de rima variada. Inicia a poesia anunciando do que trata e se dirige às mulheres. Na segunda estrofe D. Inês se pronuncia, assim como nas demais estrofes, na 1ª pessoa do singular: Qual será o coração Tão cru e sem piedade Que não lhe cause paixão Ua tam grã crueldade E morte sem razão? Triste de mim e inocente, Que por ter muito fervente Lealdade, fé, amor Ao príncipe meu senhor, Me mataram cruamente!11 É necessário mencionar que, nesse trecho, a imagem de Inês de Castro adquire a característica de vítima, de infeliz, pois o amor a seu senhor a leva à morte. Ao longo do poema, sua voz narra o sofrimento SPINA, Segismundo. Presença da Literatura Portuguesa - Era Medieval. São Paulo. Rio de Janeiro: Difusão europeia do livro, s/a. 10 Visto que o texto de Fernão Lopes se ailia à Historiograia e à Literatura concomitantemente. 11 RESENDE apud SPINA, Segismundo. Épocas Medievais, 1ª e 2ª Época Clássica. Rio de Janeiro - São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1961. p.144. 9 303 que sentiu e as razões que a izeram morrer. Sem dúvida, a primeira aparição de Inês de Castro na Literatura Portuguesa é importante no sentido de lhe conceder “o direito a palavra” projetada em Resende, numa mistura de drama, ansiedade e revolta. Os Lusíadas: O episódio de Inês de Castro, de Luiz Vaz de Camões Os Lusíadas é a obra prima de Luis Vaz de Camões. É a epopeia das grandes conquistas do povo português, que se lança ao mar no período das Grandes Navegações. Na obra, Camões exalta e relata a História de Portugal de forma poética, como nas narrativas clássicas. O episódio de Inês de Castro na epopeia traz, a princípio, de um lado o rei D. Afonso IV e de outro, D. Inês. O papel do rei e do conselho é a tentativa de legitimar o assassinato da dama como uma questão de Estado, pelo bem da coletividade; o de Inês é a de vítima de eros (paixão), do amor adúltero, que infeliz, se deixou levar pelo sentimento: Tais contra Inês os brutos matadores, No colo de alabrastro, que sustinha As obras com que Amor matou de amores Aquele que despois a fez Rainha, As espadas banhando , e as brancas lores, Que ela dos olhos seus regada tinha, Se encarniçavam, férvidos e irosos, No futuro castigo não cuidosos.12 A epopeia camoniana corresponde aos padrões do Renascimento, do ideal de homem racional, aquele que não é movido pelos sentimentos e desejos; é o homem sem excessos. O amor de Inês iria “contra” esse ideal Renascentista (“mísera e mesquinha”). Segundo Lilian Jacoto: Por sua vez,I nês, embora descrita nos moldes renascentistas da mulher espiritual, (é bela e delicada 12 CAMÕES, Luis Vaz de. Os Lusíadas. São Paulo: Abril, 1979. p.140. 304 no cenário bucólico das ervinhas do Mondego, e de seu corpo destacam-se apenas os formosos olhos, janelas d’alma), será marcada pela possessão de Eros, que faz dela mísera e mesquinha, fragilizada(...)Aceitar a posição de amante(...)nisso consiste o erro que Inês pagará com a vida.13 A abordagem camoniana sobre o acontecido a Inês de Castro é única. O poeta também dá voz à dama, como em Garcia de Resende. Seria esse também um indício de que o caso de Inês de Castro já estava em processo de mitiicação no imaginário popular. A Castro, de Antonio Ferreira A peça de Antonio Ferreira A Castro, intitulada, originalmente como Tragédia mui sentida de Dona Inês de Castro, está inserida em Poemas Lusitanos. Foi escrita em meados de 1550 e publicada por Manuel de Lira em 1587, na 1ª época clássica. É a única peça do Classicismo Português que incorporou um fato histórico, já famoso e tratado em outras obras literárias. Obedece aos moldes da tragédia clássica Aristotélica. A proposta de Ferreira ao episódio de Inês de Castro é o objeto central da tragédia. O erro de Inês, segundo sabe-se, e na peça esse erro será a peça fundamental da tragédia, é o fato da dama relacionarse com o infante ainda casado, numa paixão avassaladora. Mesmo após o falecimento de D. Constança, ambos continuam a viver como marido e mulher, mas sem a bênção do matrimônio, por oposição do próprio D. Pedro. Ora, esse também será o erro que fará com que Inês pague com a vida. Como nos heróis clássicos, Inês não é uma irresponsável. Ela enfrenta o rei D.Afonso IV, e com lucidez e defende os ilhos. Esta é a mãe dos teus netos.Estes são Filhos daquele ilho que tanto amas. JACOTO, Lilian. A paixão de Pedro e Inês: o clássico e o surreal. In: MEGIANI, Ana Paula Torres; SAMPAIO, Jorge Pereira de. Inês de Castro: a época e a memória. São Paulo: Alameda, 2008. p. 171-184, p.178. 13 305 Esta é aquela coitada mulher fraca, Contra quem vens armado de crueza14 E ao inal, o infante diz que fará de Inês rainha, e como conirmando a construção do mausoléu de Inês e Pedro, no Mosteiro da Alcobaça, diz que icará junto dela: “descansar com tua [alma] pera sempre”. Este é o momento em que o infante reairma seu amor e paixão pela dama galega, que seria rainha mesmo depois de morta, pois em seu romance, não havia interesses políticos; era, antes, “puro amor” que sentiam um pelo outro, de forma sincera: A última fala do príncipe é a consagração deinitiva de Inês como heroína trágica, mártir do Amor, (...)símbolo de um destino inglório que alcançou a imortalidade.15 É, ainda, relevante mencionar que na tragédia de Ferreira, Pedro e Inês não contracenam juntos. Nos cinco atos, os diálogos são realizados entre Inês e a ama, entre Pedro e o mensageiro, entre o rei e os conselheiros, entre Inês e o rei. Quando Inês é assassinada, no ápice da tragédia (catarse), o infante não estava lá para defendê-la. Seria esta uma tentativa do autor de reairmar o eterno desencontro entre os amantes. Antonio Ferreira deixou um importante exemplo de cultura humanística, dentro dos moldes aristotélicos clássicos, o episódio de Inês de Castro. Nesse período, o fato já havia traçado um importante percurso à condição de mito. A Literatura expressa o que a cultura e sociedade portuguesa já possuíam no imaginário coletivo. Teorema, Herberto Helder Bem mais à frente da época clássica, o presente estudo traz outro exemplo acerca do episódio de Inês de Castro. Publicado em 1963, no livro “Os passos em volta”, com características do Surrealismo manifestado na Literatura do mesmo autor, o conto Teorema de Herberto Helder traz uma visão bem diferente acerca do tema. FERREIRA apud AMORA, Antonio Soares; MOISÉS, Massaud; SPINA, Segismundo. A Castro- Ato IV. (fragmento). In: Presença da Literatura Portuguesa. Rio de Janeiro - São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1961. p.28. 15 TOLEDO, Maria Emilia Miranda de. In. MEGIANI, Ana Paula Torres; SAMPAIO, Jorge Pereira de. Inês de Castro: a época e a memória. São Paulo: Alameda, 2008. p. 117-138, p. 136. 14 306 (...)Mas o estranhamento que mais aturde o leitor é a relação desse foco com o tempo da narração: tudo se passa no presente da enunciação,(...)como se recuássemos ao século XIV e estivéssemos na praça, confundidos com os transeuntes que pararam para assistir ao suplício do algoz.16 O conto tem como narrador Pero Coelho, um dos assassinos da dama. Ele conta como sua execução é ordenada e defende-se do crime; até então, as abordagens inesianas traziam sua inocência, beleza e a crueza, e tristeza do infante; na maioria das vezes “retiram” o peso da culpa de D. Afonso e assim, esta recai sobre os idalgos conselheiros. Helder, numa “ousadia modernista”, dá voz a um dos arquitetos do assassinato de Inês, Pero Coelho, que argumenta sobre tal fato; a narrativa passa ao leitor a imagem da execução de Coelho, em primeira pessoa do singular. A ira e frieza de D. Pedro são descritas, bem como as razões que o levaram a praticar tal fato. O narrador chama D. Pedro pelo título que é conhecido até os dias de hoje, o Cruel. Ele, o tempo todo assume a posição, aqui física, de alteza, pois está no alto da sacada à assistir a execução. Coelho está de joelhos, submisso à condenação que lhe foi imposta: El-Rei D.Pedro, está à janela(...) Gosto desse rei louco, inocente e brutal. Puseram-me de joelhos, com as mãos amarradas atrás das costas, mas endireito a cabeça, viro o pescoço para o lado esquerdo, e vejo o rosto violento e melancólico de meu pobre Senhor.17 Outro caráter interessante da narrativa é que Helder insere elementos anacrônicos, próprios da estética Surrealista: (...) Sobre a praça onde sobressai a estátua municipal do Marquês de Sá da Bandeira.(...) Distingo no résdo-chão o letreiro da Barbearia Vidigal e o barbeiro de bigode louro que veio à porta assistir ao meu suplício. Distingo também a janela manuelina (...)O cláxon de 16 17 JACOTO, Lilian. Op. Cit., p.178. HELDER, Herberto. Os Passos em volta. Rio de Janeiro: Azougue, 2010. p. 83. 307 um automóvel expande-se liricamente no ar.18 É importante mencionar que o D.Pedro reinou no século XIV; o Marquês de Sá da Bandeira é uma igura histórica do século XIX; a arquitetura manuelina desenvolveu-se no reinado de D.Manuel I, no século XV e o automóvel surge com a revolução industrial, no século XIX. Helder apresenta ao leitor a ideia de que o mito se repete, através da imaginação coletiva, como uma constante. O episódio de Inês de Castro já estava consagrado como mito no século XX, quando Helder compõe seu conto. Com ironia, o narrador prossegue sua descrição. Ao contrário do que se tem por conhecido, que a morte de Inês era uma “Razão de Estado”, Coelho airma que isso não tinha importância. Ele deveria salvar o infante da obsessão pela dama: (...)Fui condenado por assassínio de sua amante favorita, D.Inês.Alguém quis defender-me, alegando que eu era um patriota. Que desejava salvar o reino da inluência castelhana.Tolice. Não me interessa o reino. Matei-a para salvar o amor do rei. D.Pedro sabe-o (...).19 O autor descaracteriza a imagem casta e heróica de Inês de Castro, incrimina o rei pelas barbáries e assume ser culpado do assassinato. Assim, Helder encerra o conto com outra ousadia: a amante, o rei insano e o assassino que não merecem a misericórdia divina. Considerações Finais Salienta-se que o presente estudo conigura uma abordagem breve da igura inesiana e das suas relações com a literatura: uma abordagem mais detalhada da questão das projeções míticas da Dama Galega é faceta de nossa pesquisa que ainda se encontra em fase de pesquisa e aprofundamento. Entretanto, até o momento, pode-se airmar que as projeções mitológicas no imaginário português acerca de Pedro e Inês são de grande dimensão. Conforme anteriormente 18 19 Ibidem, p.84, 85 e 86. Ibidem, p.83. 308 referido, a Literatura desempenhou grande papel no que concerne à consagração do episódio de Inês de Castro. O fato histórico, expresso através da arte literária, é um indício de que a cultura, tanto popular quanto “palaciana”, traçava, por si só, caminhos que oscilavam entre a verdade e as criações imaginárias coletivas. Em outras palavras, o mito de Inês de Castro adquiriu dimensões muito maiores que a de fato histórico: comoveu o povo português por ser uma tragédia real, sob a temática do desencontro amoroso. Na verdade, o que se conhece de Inês de Castro é através de Pedro; não há registros históricos sobre ela, exceto em Fernão Lopes, como da amante do infante. Sobre seu caráter, beleza, bondade ou de qualquer outra condição humana, sabe-se hoje pouco, ou praticamente nada: (...)Vale notar que as diferenças entre narrativas diziam respeito a Pedro, não a Inês. Para os cronistas, Inês era inocente, além de belíssima. Qualidades que teriam inclusive comovido o rei-pai, Afonso IV, ao vêla com seus netos pedindo clemência (...) Essa mistura de amor, saudade e culpa e fê-lo[D.Pedro] cometer exageros no caso do combate ao pai (...).20 A arte Literária, assim como as demais, desfruta de liberdade criadora; ela expressou e criou “versões” sobre Inês de Castro ao grau mais elevado da imaginação coletiva. Nas obras supracitadas, podemse notar indícios da consagração de Inês de Castro ao mito. LIMA, Luis Filipe Silvério. Amor, saudade e crueza: Pedro e Inês na historiograia seiscentista. In: MEGIANI, Ana Paula Torres; SAMPAIO, Jorge Pereira de. Inês de Castro: a época e a memória. São Paulo: Alameda, 2008. p. 147-170, p.152. 20 309 AS IGREJAS PRÓPRIAS NO DISCURSO ECLESIÁSTICO: UM ESTUDO COMPARADO DAS ATAS CONCILIARES VISIGÓTICAS Guilherme Marinho Nunes (Graduando PEM – UFRJ)1 Introdução O presente trabalho tem como principal objetivo expor a problemática levantada por mim no pré-projeto de mestrado apresentado para o corrente processo seletivo do Programa de Pós-Graduação de História Comparada da UFRJ. Portanto, não se pretende neste artigo a elucidação de uma questão de forma absolutamente conclusiva, pelo contrário, espero demonstrar aqui considerações sobre uma pesquisa em andamento, chamando atenção para algumas das hipóteses que procurarei veriicar, nas próximas etapas dos meus estudos. Apresentação do Objeto e da Problemática O foco de minha análise é o reino visigodo de Toledo (569-711), momento em que tradicionalmente se reconhece uma estruturação política deste grupo na maior porção da Península Ibérica.2 A sociedade visigótica, especialmente as altas camadas, era regida por uma organização econômica e política de caráter tipicamente proto-feudal.3 As relações estabelecidas entre senhores tinham uma importância central na consolidação do poder de um nobre. Cabe ressaltar que estas redes de interdependência estavam Bolsista PIBIC-UFRJ. Para compreender um pouco mais sobre este processo de uniicação territorial, cf.: COLLINS, Roger. La España Visigoda. 409-711. Barcelona: Crítica, 2005. p. 8-28. 3 O sistema proto-feudal, conceito defendido por Luís A. García Moreno, indica que grandes propriedades fundiárias, pertencentes a um reduzido grupo de nobres, possuíam um papel econômico e político fundamental. GARCÍA MORENO, Luís A. Historia de España Visigoda. Madrid: Catedra, 1989. p. 250-254. 1 2 310 assentadas principalmente no âmbito regional e se limitavam às camadas superiores desta sociedade. Baseando-se principalmente nesta complexa teia de relações interpessoais, o rei Leovigildo deu início a um processo de centralização do reino visigodo, em 569, formando alianças com diversos setores da nobreza.4 O monarca instituiu-se como ponto focal de negociações políticas na camada nobiliárquica reforçando seu poder enquanto se posicionava como representante desta elite. Porém, isto não signiicou o começo de um cenário de estabilidade, já que o poder real, ao longo de todo esse período, oscila entre momentos de preponderância e de subjugação aos interesses das altas camadas fundiárias. Isto se deve à própria estrutura daquela sociedade, na qual a relação pessoal predomina sobre os preceitos júridico-políticos.5 Dando continuidade, e de certa forma superando, este projeto de uniicação, buscou-se o estreitamento das relações entre a monarquia, as elites hispanoromanas e os setores eclesiásticos. Como parte deste processo, ocorreu no ano de 589, durante o III Concílio de Toledo, a conversão do rei Recaredo ao cristianismo niceno.6 Cabe ressaltar que os membros do episcopado eram, em sua maioria, senhores de terra pertencentes às camadas nobiliárquicas e, portanto, estavam inseridos nas relações sociais de interdependência que se formavam regionalmente. A aliança entre o poder real e o clero ocupou um lugar de destaque na centralização dos visigodos sob a égide de uma monarquia, pois, neste período os bispos assumiam invariavelmente o papel de legisladores e mediadores entre diversos setores da sociedade, ORLANDIS ROVIRA, José. Hispania y Zaragoza en la Antiguedad Tardía. Saragoça: s/ed. 1984. p. 186. 5 Em seu livro Antonio Manuel Hespanha demonstra que as instituições políticas, jurídicas ou legislativas típicas deste período, e.g. a monarquia, não podem ser observadas com um olhar contemporâneo. O aspecto personalista das relações sociais está presente nestas instituições e é parte integrante delas. HESPANHA, António Manuel. História das instituições: Épocas medieval e moderna. Coimbra: Almedina, 1982. p. 42. 6 ORTIZ DE GUINEA, Lina Fernandez. Participación episcopal de la articulación de la vida politica Hispano-Visigoda. Studia Histórica. Historia Antigua, Salamanca, v. XII, p. 159-167, 1994. 4 311 estabelecendo-se como iguras centrais na localidade em que atuavam.7 Deste modo, reforçou-se paulatinamente a diiculdade em delimitar o campo de atuação dos poderes exclusivamente religiosos ou seculares, devido à força política que a espiritualidade cristã adquiriu, bem como a inluência episcopal nas questões mundanas.8 Percebemos, a partir deste momento, que os concílios adquirem grande importância sobre o ponto de vista secular e legislativo.9 Os sínodos toledanos, em particular, alcançam um novo status, pois contam com a presença do rei, do episcopado de várias regiões e de nobres laicos. Por isso, atribuiu-se a eles um caráter geral,10 ou seja, suas resoluções deveriam, idealmente, repercutir todo o reino. Neste sentido, ica claro um incipiente processo de institucionalização e organização dos clérigos, na medida em que o cristianismo se torna um discurso fundamental para a legitimação do poder régio e como fator de coesão identitária desta sociedade. Sob este aspecto, Leila Rodrigues da Silva nos chama atenção para a importância da estruturação da autoridade episcopal em dois níveis: o primeiro, “interno”, refere-se ao esforço de adotar um caráter normatizador e regulador das ações do clero nas mais diversas instâncias, reforçando a natureza hierárquica e o poder das altas camadas eclesiásticas. O segundo nível, “externo”, alude ao uso de textos das “Sagradas Escrituras” e à menção da presença do monarca nos concílios de Braga.11 Desta forma vemos uma associação entre os 7 BASTOS, Mário Jorge da Motta. Igreja, religião e sociedade senhorial na Península Ibérica (séculos IV/VIII). In: SILVA, A. C. L. F. da; L. R. da. (Orgs.). SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS, 4., 2001, Rio de Janeiro. Atas ... Rio de Janeiro: Programa de Estudos Medievais, 2001. p. 122-128. 8 NAVARRO CORDERO, Catherine. El Giro Recarediano y sus implicaciones políticas: el catolicismo corno signo de identidad del Reino Visigodo de Toledo. Ilu. Revista de Ciencia de las Religiones, Madrid, n. 5, p. 97-118, 2000. 9 Idem. 10 THOMPSON, E. A. La Iglesia. Los Godos en España. Madrid: Alianza. 2007. p. 313. 11 Apesar da autora focar suas análises sobre o Reino Suevo, devido às semelhanças entre os processos de estruturação da autoridade eclesiástica de ambos os reinos, consideraremos suas conclusões não somente válidas, como de extrema utilidade para a compreensão da institucionalização desta autoridade: SILVA, Leila Rodrigues da. Limites da atuação e prerrogativas episcopais nas atas conciliares bracarenses. In: BASTOS, Mário Jorge da Motta; FORTES, Carolina Coelho; SILVA, Leila Rodrigues da. (Orgs.). ENCONTRO REGIONAL DA ABREM, 1., 2006, Rio de Janeiro. Atas... Rio de Janeiro: 2007. p. 208-215. 312 bispos bracarenses, uma tradição cristã já instituída e o reconhecimento régio das medidas aprovadas nas atas. Logo, os concílios, neste período, possuem um caráter legislativo, além de teológico.12 Em meio a este cenário de formação de uma relativa unidade, baseada na aliança entre a monarquia, a nobreza laica e o clero, vemos lorescer uma prática, que já existia desde os tempos do Baixo Império, mas que se encontrava neste período em um momento de crescimento: a ediicação de igrejas próprias. Para deinir o conceito de igrejas próprias cito Magdalena Rodríguez Gil: (...)Essa denominação identiica às igrejas (incluindo monastérios) construídas e dotadas por proprietários, sobretudo laicos, em terras de sua propriedade. Exerciam sobre elas um conjunto de direitos patrimoniais, pessoais e reais(...). Esses direitos procediam da fundação e dotação de templos nesse solo(...). Por esta causa, o dono podia perceber certos direitos, tanto na nomeação do clérigo, como na arrecadação de todo ou parte do rendimento da igreja, dízimos, estipêndios, doações, etc. (...)Utilizadas [também] como via de consolidação da propriedade fundiária que se desejava proteger frente à pressão régia, expropriatória ou devolutoria(sic).13 Estes templos, em sua maioria construídos por laicos, destoavam do fortalecimento institucional e hierárquico pelo qual o clero passava, pois ao erigirem locais de culto, os nobres geravam obstáculos para Diversos autores discorreram sobre esta questão, destacarei aqueles por quais me pautei na composição deste trabalho. Edward Arthur hompson apresenta isto em um capítulo dedicado à Igreja em seu livro. Cf.: THOMPSON, E. A. Op. Cit., p. 317-318. Gonzalez Martínez Diez possui dois trabalhos nos quais apresenta também a importância da participação laica nos concílios: MARTINEZ DIEZ, Gonzalo. Los concílios de Toledo. Anales Toledanos, Toledo, n. 3, p. 119-138, 1971, e ___. Cánones patrimoniales del Concilio de Toledo del 589. In: Concilio III de Toledo: XIV Centenario (589-1989). Toledo: Diputación Provincial, 1991. p. 565-567. 13 RODRÍGUEZ GIL, Magdalena. Consideraciones sobre una antigua polémica: las Iglesias propias. Cuadernos de historia del derecho, Madrid, n. 6, p. 247-272, 1999. Tradução minha. 12 313 este processo. Além disto, as igrejas próprias enfraqueciam a igura dos bispos, esvaziando seu poder local. Podemos notar, então, um claro conlito entre os setores pertencentes ao episcopado e aos laicos. Contudo, como já mencionei anteriormente, estes bispos estavam atrelados às relações sociais que se encontravam no âmago das camadas senhoriais, pelo motivo de serem membros delas. A legitimidade de sua autoridade advinha, em grande parte, de sua posição dentro destas redes de interdependências que estavam presentes nas esferas regionais. Eles necessitavam do apoio de setores da nobreza laica para alcançarem uma titulação. Percebemos, então, uma aparente incompatibilidade entre um projeto de institucionalização do clero no nível multiregional e o processo de consolidação de uma alta camada episcopal no nível local. Portanto, cabe questionarmos: em que medida o discurso eclesiático das atas conciliares toledanas, que idealmente abrangem a todo o reino, encontra respaldo nos concílios provincianos no que concerne as igrejas próprias? Pretendo, em minha pesquisa, estabelecer uma comparação entre estes dois tipos de concílios. Desta forma, espero poder observar as similaridades e diferenças entre este discurso no âmbito geral e nas localidades especíicas, tendo em mente o aspecto hegemonicamente regional que as relações proto-feudais possuem. O marco temporal inicial é o III Concílio de Toledo – momento em que se percebe mais claramente uma união entre a monarquia e a instituição eclesiástica – até o último sínodo, de que se tem acesso, ocorrido no reino visigodo, o XVII Concílio de Toledo de 694. Apresentação do Corpus Documental Minha principal fonte primária são as atas conciliares do reino visigodo a partir do Concílio de Toledo III (589) até o Concílio de Toledo XVII (694), o último que se encontra preservado até os dias de hoje. As atas conciliares são o produto destes sínodos, os pontos debatidos são apresentados em cânones que possuem certos eixos temáticos. A conirmação do concílio se dava por meio da assinatura dos principais presentes, onde expunham também sua titulação e posição no clero ou poder secular. 314 Mário Jorge da Motta Bastos defendeu, em sua tese doutoral, o aspecto abrangente dos concílios: “Dentre as fontes primárias elaboradas no âmbito da sociedade hispano-visigoda, e preservadas, nenhuma manifesta com mais vigor a articulação daqueles ‘vários níveis’ do que as atas conciliares”.14 De fato, nesta fonte percebemos um desdobramento de diversas das tensões sociais existentes neste período.15 Como já foi lembrado anteriormente, com a conversão de Recaredo o cristianismo niceno tornou-se a ideologia hegemônica da sociedade visigótica. Com isto, os concílios passam a desempenhar um papel central na vida política do reino. Ou seja, estes sínodos são uma das formas de expressão de um sistema simbólico que possui fortes inluências políticas neste período. Porém, devemos perceber que estas fontes estão diretamente relacionadas à organização interna do clero, bem como à resolução de questões seculares e teológicas. O caráter institucional do clero era reforçado apresentando-se como uma estrutura fundamental para a legitimação das camadas nobiliárquicas e do poder monárquico. Observando este corpus documental, percebemos a distinção entre dois tipos principais de concílios:16 os toledanos, que são idealmente direcionados a toda extensão do reino visigodo, e; os provinciais, que possuem seu raio de ação circunscrito a uma região BASTOS, Mário Jorge da Motta. Religião e hegemonia aristocrática na Península Ibérica (séculos IV – VIII). Tese apresentada à Área de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosoia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor. USP, 2002. p. 84. 15 No entanto, é óbvio que não devemos deixar de lado ou muito menos diminuir a importância de hagiograias, epigraias, regras monásticas, achados arqueológicos, iconograias etc. Como o próprio autor chama atenção: BASTOS, Mário Jorge da Motta. Op. Cit. 16 Edward Arthur hompson aponta que “teoricamente a regra geral era que se celebrasse um concílio geral quando houvesse que discutir um artigo de fé ou quando se houvesse levantado uma questão que afetava a toda Igreja Espanhola. Para os demais, deveria celebrar-se um sínodo provincial em cada província uma vez ao ano.” THOMPSON, E. A. Op. Cit., p. 316. 14 315 administrativa especíica.17 Notamos, então, a existência de sínodos que são presididos e convocados pelo monarca e que são orientados para a resolução de questões que abrangem todo o reino, possuindo, desta forma, um discurso subjacente que pretende reforçar a unidade territorial do reino visigodo sendo, portanto, considerados gerais no sentido de sua abrangência territorial. Percebemos também, atas que se limitam a debater pendências que surgem na dinâmica social regional, que, na maioria das vezes, não contam com a presença do rei, nem do episcopado de outras sedes, tendo assim, um caráter local. Vale ressaltar que muitos senhores laicos participavam destes concílios, inclusive, em alguns deles estes nobres possuíam o direito de assinar a ata, conirmando sua presença e apoio às resoluções apresentadas. Isto reforça a noção de que estas assembléias não tinham peril meramente teológico. Referencial Bibliográico Ao tratarmos das igrejas próprias percebemos duas principais correntes historiográicas em debate. A primeira está mais associada a uma História das Instituições em seu sentido mais tradicional, seus principais representantes são José Ramón Bidagor e José Orlandis.18 Apesar de produzirem em períodos diferentes, Ramón Bidagor O historiador e arqueólogo Luis Fontes apresenta em um de seus trabalhos como as regiões administrativas no reino visigodo possuem forte associação com uma herança romana e também com as sedes episcopais. FONTES, Luis. O Período Suévico e Visigótico e o Papel da Igreja na Organização do Território. In: PEREIRA, Paulo (Coord.). Minho – Traços de Identidade. Braga: Universidade do Minho, 2009. p. 272-295. 18 Apesar de neste texto ter escolhido Orlandis para demonstrar aspectos da historiograia espanhola contemporânea mais tradicional no tocante ao tema, existem outros autores que apresentam visões similares e que podem servir como exemplo. Podemos citar: FERNANDEZ ALONSO, Justo. La cura pastoral en la España romanovisigoda. Roma: Iglesia Nacional Española, 1955. p. 215-223; GARCIA VILLOSLADA, Ricardo. Historia de la Iglesia en España. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1979. p. 595-610. Há também um trabalho recente: TESTÓN TURIEL, Juan Antonio. El monacato en la diocésis de Astorga en los periodos antiguo e medieval: La Tebaida Berciana. León: Universidad de León, 2008. p. 154-159. 17 316 publicou suas principais teorias em 1933 enquanto Orlandis escreve suas principais obras entre as décadas de 1960 e 1980, ambos autores defendem a natureza institucional da Igreja e seus membros no reino visigodo. Portanto, podemos observar que eles apresentam as igrejas próprias como um desvio de conduta perpetrado por alguns indivíduos laicos, visando o lucro pessoal. José Orlandis aponta também a possibilidade de que, com a evangelização dos campos, os trabalhadores rurais demonstraram a necessidade da construção de igrejas para exercerem sua fé.19 Os nobres construtores de templos seriam, então, “oportunistas” que exploravam verdadeiros cristãos. A segunda corrente historiográica está associada a uma visão mais contemporânea de História, mais preocupada em problematizar as fontes, buscando, por meio do questionamento, analisar as relações e tensões presentes na sociedade visigótica. Os principais estudiosos do tema vinculados a essa vertente são Susan Wood, Manuel Torres López, Renan Frighetto e Mário Jorge da Motta Bastos. Percebemos nestes quatro autores, diferentemente do que ocorre com Ramón Bidagor e Orlandis, menos um aspecto de convergência ou concordância e mais um debate de idéias que se complementam. A autora apresenta em seu livro20 a teoria de que esta prática era mais comum entre os povos germânicos previamente à desagregação do Império Romano do Ocidente e que, com o ingresso desses germanos no território imperial, as igrejas próprias cresceram em número.21 Wood reconhece a existência de uma relação de patrimonialidade entre romanos e templos inseridos em suas propriedades, porém, aponta a importância que a germanização das leis canônicas teve para ORLANDIS ROVIRA, José. Historia del Reino Visigodo Español. Madrid: Rialp, 1988. p. 314-315. 20 WOOD, Susan. he proprietary church in the Medieval West. Nova York: Oxford University, 2006. 21 Percebemos, então, uma proximidade entre as idéias de Susan Wood e do autor alemão, Ulrich Stutz. considerado um dos primeiros estudiosos sobre as igrejas próprias. Devido a isto decidi iniciar este ponto por suas teorias, apesar de outros autores apresentarem trabalhos menos recentes. Mais informações sobre as teorias de Stutz em: 250-253. 19 317 facilitar o processo de construções de locais de culto por parte de senhores laicos. Manuel Torres López possui um ponto de vista um pouco diferente.22 Ele aponta que, muito mais do que uma característica fundamentalmente germânica, as igrejas próprias são frutos de um processo de adaptação do direito romano-canônico com as relações pessoais e leis consuetudinárias mais comuns entre os povos germânicos. Percebemos aí uma proximidade às idéias mais contemporâneas que temos sobre a formação da Europa Medieval, baseada na interligação e interpenetração de três tradições culturais: o germanismo, o romanismo e o cristianismo.23 Porém, cabe ressaltar que esse autor tem como enfoque principal de suas pesquisas os aspectos jurídicos da prática em questão e as transformações legais pelas quais a Península Ibérica está passando neste período.24 Renan Frighetto nos traz duas hipóteses sobre a intervenção secular na vida religiosa,25 mais especiicamente na monástica, feita sob o pretexto de direito senhorial sobre suas propriedades. A primeira está associada a um tom ideológico, “(...) a airmação da condição cristã por parte de um grande proprietário seria condição sine qua non de sua aproximação aos elementos da alta nobreza(...)”.26 A segunda possui um cunho diretamente econômico,“assim destinavamse a estas fundações monásticas uma quantidade considerável de oferendas e dádivas que a transformavam em autênticos pólos de atração da economia regional”.27 Neste último ponto devemos chamar TORRES LÓPEZ, Manuel. El origen del sistema de “iglesias propias”. Anuario de historia del derecho español, Madrid, n. 5, p. 83-217, 1928. 23 SONSOLES GUERRA, Maria. Romanismo, germanismo e cristianismo nos séculos V-VI. Rio de Janeiro: IFCS, 1992. p. 3. 24 Sob este aspecto, percebemos uma consonância entre os escritos de Magdalena Rodríguez Gil e Manuel Torres López. RODRÍGUEZ GIL, Magdalena. Op. Cit., p. 247-272. 25 FRIGHETTO, Renan. Sociedade e Cultura no NO. Peninsular Ibérico em inais do século VII, segundo o De Genere Monachorum de Valério do Bierzo. Gallaecia, Santiago de Compostela, v. 18, p. 363-373, 1999. 26 Idem. 27 Idem. 22 318 a atenção de que a ediicação de mosteiros garantia aos nobres uma forma de expandir seus direitos de proprietários sobre bens imóveis previamente régios, assim como obter regalias referentes a taxação e iscalidade do poder secular. Frighetto, em seus textos, nos traz um novo elemento a considerarmos, o cristianismo não somente como uma religião, mas, também, como uma ideologia com importantes inluências sobre as relações sociais. Por im, cabe lembrar as relexões realizadas por Mário Jorge da Motta Bastos, que apesar de não possuir nenhuma obra dedicada exclusivamente às igrejas próprias, debate, em algumas ocasiões, questões que se relacionam a este tema.28 Partindo disto, podemos notar uma proximidade entre as idéias deste autor e de Frighetto. Bastos airma que a construção de templos por parte de senhores remete-se à“(...) articulação, em seu entorno, das atividades econômicas, das dependências pessoais e da própria dinâmica religiosa”29 percebemos aí a diferença essencial entre estes pesquisadores sobre tal questão. Enquanto Frighetto centraliza o debate no binômio clérigos/leigos, Bastos apresenta uma teoria mais condizente com o reconhecimento de um sistema no tocante às igrejas próprias. Ou seja, ele defende a existência de uma rede relacional, entre senhores laicos e senhores eclesiásticos, mais pautada no pertencimento de ambos à camada nobiliárquica do que ser ou não um homem do clero. Neste sentido, os principais referenciais bibliográicos para minha pesquisa são as proposições de Torres López, Frighetto e Bastos. Ou seja, considero que as igrejas próprias não são atípicas na sociedade visigótica, pelo contrário, elas estão em consonância com um cenário mais amplo de formação da Europa Medieval e seus componentes característicos, germanismo, romanismo e cristianismo. Além disto, há que ressaltar, como izeram Frighetto e Bastos, o aspecto ideológico e econômico que essa prática possui no período. Podemos citar como exemplos: BASTOS, Mário Jorge da Motta. Op. Cit., e BASTOS, Mário Jorge da Motta. Santidade e relações de dom(inação) na Alta Idade Média Ibérica (séculos VI/VII). In: COLÓQUIO LER, ESCREVER E NARRAR NA IDADE MÉDIA, 2009, Rio de Janeiro. Disponível em www.pem. ifcs.ufrj.br/Santos.pdf. Acesso em 18 de março de 2011. 29 BASTOS, Mário Jorge da Motta. Op. Cit. 28 319 Quadro Teórico-Metodológico O cristianismo é um dos pilares que visa legitimar, e reciprocamente ser legitimado pela dominação política senhorial que permeava esta sociedade, funcionando como parte fundamental de um sistema simbólico. Segundo Pierre Bourdieu os sistemas simbólicos podem ser considerados instrumentos de construção da realidade, pois são os meios pelos quais o mundo é compreendido. É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os ‘sistemas simbólicos’ cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre a outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a ‘domesticação dos dominados.30 Podemos notar que a religião se tornou um instrumento de airmação das camadas nobres da sociedade visigótica,31 garantindo aos bispos, abades e outros pertencentes ao alto clero o papel de produtores de um arcabouço de símbolos que possuíam, além do aspecto espiritual, forte conotação política. Cabe ressaltarmos, no entanto, que a religião é um referencial simbólico que tem como requisito a presença de produtores e consumidores.32 Ou seja, a verdadeira crença e reprodução de seus valores por parte de iéis em todos os setores da sociedade é um aspecto fundamental deste cenário. Associada à conversão de Recaredo, a fé cristã era um fator de coesão social e de identidade. As práticas e condutas que destoavam BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p. 11. 31 FILHO, Ruy de O. Andrade. Mito e monarquia na Hispânia visigótica católica. Temas Medievales, Buenos Aires, v. 13, n. 1, p. 9-27, jan./dez. 2005. 32 BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 27-78. 30 320 da norma, portanto, eram consideradas como algo possivelmente perigoso à ordem estabelecida, pois representava uma divergência ao referencial simbólico no qual a sociedade está estruturada.33 Simultaneamente, vemos ocorrer uma institucionalização da religião, que adotará um caráter normatizador frente ao resto da sociedade devido ao seu status de principal produtora ideológica. Encontramos aí uma área de conlito entre os setores clericais e laicos da camada nobiliárquica. Neste sentido devemos atentar que a ideologia, sistema simbólico instituído e legitimado, é duplamente determinado,34 pois enquanto atendem aos interesses de uma classe em geral, são pautados visando, também, interesses especíicos daqueles que a sistematizaram, neste caso o episcopado. Vemos, devido a isto, o fortalecimento do setor eclesiástico no âmbito secular do poder. Optei por utilizar como metodologia a análise documental, intimamente relacionada com a categórica/temática, proposta por Laurence Bardin em Análise do conteúdo. “O propósito a atingir é armazenamento sob uma forma variável e a facilitação do acesso ao observador, de tal forma que este obtenha o máximo de informação (aspecto quantitativo) com o máximo de pertinência (aspecto qualitativo)”.35 Pretendo, desta forma, buscar nos cânones categorias de análise para facilitar a percepção de aspectos relacionados às “igrejas próprias”. Avaliarei ainda as similaridades temáticas presentes nos vários concílios e a quantidade de vezes que o tema das igrejas próprias se apresentam nas fontes. Utilizarei, em um segundo momento, estes cânones especíicos seguindo o método comparativo apresentado por Jürgen Kocka.36 Analisando consonâncias e discrepâncias do discurso episcopal geral 33 NAVARRO CORDERO, Catherine. Op. Cit., p. 98. 34 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Op. Cit., p. 13. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011. p. 5152. 36 KOCKA, Jürgen. Comparison and beyond. History and heory, Middletown, n. 42, p. 39-44, feb. 2003. 35 321 e regional no que se refere às igrejas próprias e à relação entre o clero e o poder secular. Considerações Finais Durante as últimas décadas do século VI o reino visigodo passava por um momento de estruturação administrativa. A monarquia, a nobreza e a elite episcopal se encontravam em um processo de estreitamento das relações entre si e airmação da hierarquia social, entre outras formas, por meio da institucionalização do clero. Porém, este incipiente processo de organização se fundamentava nas relações pessoais que se formavam nesta alta camada e, por tal fato, estava assentado nas redes de interdependência, estabelecidas em nível regional, e submetido às tensões existentes nas localidades especíicas. Portanto, percebemos uma incongruência entre um projeto que se pretende multiregional e abrangente, mas que está submetido ao sistema econômico e político que se constitui em perímetros territoriais delimitados. As igrejas próprias, construídas e dotadas em sua maioria por laicos, são um objeto de estudo que chama particular atenção a esta questão. Neste sentido, elegi como corpus documental primário para analisar este problema as atas conciliares, concebendo que estas são alguns dos maiores exemplos de um projeto de institucionalização por parte do clero e também dos obstáculos a este. Focarei meus esforços na análise dos cânones e, principalmente, na comparação entre os sínodos gerais e os provincianos, tentando demonstrar similaridades e diferenças entre o discurso eclesiástico que é direcionado a todo o reino e o que se propõe à resolução de tensões locais. O referencial teórico de minha pesquisa está alinhado às idéias de Pierre Bourdieu, especialmente aos conceitos de sistema simbólico, que está adequado ao modo como observo a ascensão do cristianismo como ideologia predominante, e; ideologia duplamente determinada, o qual atende a uma compreensão do discurso eclesiástico, por um lado como legitimador da instituição monárquica e das camadas nobiliares, e por outro como forma do clero se airmar como produtor ideológico fundamental à estruturação da sociedade. Cabe ressaltar 322 que ao utilizar os escritos de Bourdieu, tenho em vista as propostas do próprio autor, usando estas conceitualizações na medida em que se encaixam no processo prático de pesquisa sem se descolarem de seu peril teórico. Por isto, baseio-me metodologicamente na análise de conteúdo de Laurence Bardin e na investigação comparativa de Jürgen Kocka, tentando estabelecer uma base prática à minha inquirição. Como dito inicialmente, este texto não possui um aspecto conclusivo em si, pretendi mostrar neste trabalho os resultados parciais de uma pesquisa em andamento. Mas, para inalizar, apresento aqui algumas das hipóteses que pretendo veriicar: como já foi demonstrado anteriormente, o poder dos bispos estava associado à sua posição nas relações sociais presentes no âmbito regional, porém, devemos nos questionar de que forma o discurso eclesiástico se coloca frente a isto. Neste sentido, acredito que a inserção do episcopado nas redes de interdependência eram fortemente apoiadas nos concílios, mas somente enquanto estas alianças políticas entre clérigos e laicos não desmantelavam a soberania da instituição eclesiástica. Para que isto fosse possível, tornava-se necessário impedir que os bispos subtraíssem bens das igrejas e diicultar a ascenção de nobres leigos a altos cargos do clero, além de diminuir a inluência do poder secular sobre o religioso. Podemos observar então, então, uma tentativa de impossibilitar a autoridade senhorial sobre a institucionalidade do episcopado, na medida em que as atas conciliares apresentam medidas restritivas à construção de templos por nobres. No entanto, podemos observar em diversos casos um apoio à doadores e ediicadores de locais de culto e manutenção de seus direitos patrimoniais como proprietários destas estruturas. Devemos chamar atenção também para o usufruto de bens da igreja por parte de bispos, que são utilizados para fortalecer suas propriedades ou como forma de estabelecer laços com outros nobres, tanto leigos como clérigos. Por im, devemos perceber que a reairmação do episcopado como produtor ideológico é um processo de contínua construção do discurso institucional eclesiástico que busca sua legitimação no referencial simbólico já estabelecido. Desta forma, espero poder 323 veriicar, por meio da comparação entre os concílios gerais e provinciais, em que medida o discurso eclesiástico de ambos se aproximam ou se distanciam, nestes dois conjuntos documentais, no que se refere às igrejas próprias. 324 REIS, IMPERADORES E GRANDES SENHORES: O IMAGINÁRIO CONSTRUÍDO POR AFONSO X NA SEGUNDA PARTIDA Gustavo Parizotto Moraes (Graduando UFPR) Afonso X (1221-1284) é o ilho mais velho de Fernando III e Beatriz da Suábia, de seu pai herdou o reinado de Leão e Castela e de sua mãe o vínculo sanguíneo com o imperador Frederico I da Germânia. Os dois reinos recebidos representavam grande parte da Península Ibérica e foram fruto do esforço de Fernando III na campanha de reconquista contra os mouros da qual Afonso X também participou ainda como infante. Assim como grande parte dos reinos medievais na Europa, o governo afonsino foi permeado por disputas externas (contra o avanço dos povos islamizados do noroeste africano) e internas (contra líderes regionais, revoltas e até mesmo disputas familiares).1 Afonso X recebeu o epíteto sábio pela vasta produção cultural durante os 32 anos em que esteve no posto de monarca. Além do corpo legislativo das Siete Partidas, incentivou a realização de obras históricas, cientíicas, poéticas, lingüísticas e outras.2 Tais escritos caracterizavam muitas vezes a retomada de uma tradição grecoárabica possibilitada por grupos de pensadores como a Escola de Tradutores de Toledo. Mesmo tendo reunido em sua volta um grande número de estudiosos, em muitas oportunidades ele próprio ditava o conteúdo das obras e participava do arranjo de imagens, textos etc. Isso pode ser explicado pela sua formação educacional e contato com iguras intelectuais. Independentemente do ineditismo, seu interesse pelo saber também resultou da inluência muçulmana na Península SOUZA JUNIOR, Almir Marques. As Duas Faces da Realeza na Castela do século XIII: Os Reinados de Fernando III e Afonso X. Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal Fluminense, Departamento de História. Niterói, 2009. p.124. 2 Exemplos são: As Cantigas de Santa Maria, As Tábuas Afonsinas, O Livro dos Jogos, A Primeira Crônica Geral de Espanha etc. 1 325 Ibérica e ainda pelo dever do rei em tirar seu povo da ignorância.3 Ademais, algumas de suas idéias podem ter origem na corte de Luís IX conforme descreve Bonifacio Palacios Martin: La inluencia del grupo de san Luis en España se demuestra, en premier lugar, por la relación directa de algunos de sus miembros con monarcas españoles, por la abundancia de manuscritos que de sus obras se conservan en España, y por el probable inlujo del grupo en la obra de Alfonso el Sabio.4 Suas aventuras em direção ao norte da África, sua pretensão ao trono de Imperador do Sacro Império e seu desejo de ver seu neto, Afonso de Lacerda, como sucessor foram esforços infrutíferos.5 Conseqüentemente perdeu prestígio junto ao seu corpo político e gastou enormes quantias de dinheiro em campanhas desastrosas. Fica clara a diferença entre pai e ilho: diferentemente de Fernando III, conhecido pelos esforços militares para a formação da Coroa de Leão e Castela, Afonso X não repetiu as façanhas bélicas de seu antecessor. Entretanto, não se pode caracterizar o reinado afonsino como um fracasso político.6 O rei utilizou de outras ferramentas para a manutenção de seu poder, as produções culturais realizadas em seu governo não podem ser isoladas de um esforço régio para a legitimação. Se militarmente não deu continuidade ao sucesso de seu pai, Afonso X investiu em outras formas de airmação política dentre as quais a construção de códigos jurídicos será objeto de análise. Neste sentido pode-se considerar que a estratégia afonsina obteve resultados por KLEINE, Marina. El rey que es formosura de Espanna: imagens do poder real na obra de Afonso X, o sábio (1221-1284) Porto Alegre, 2005. Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosoia e Ciências Humanas. Porto Alegre, 2005. p. 218-219. 4 MARTÍN, Bonifacio Palacios. El mundo de las ideas políticas en los tratados doctrinales españoles: los “espejos de príncipes” (1250-1350). Europa em Los Umbrales de La Crisis: 1250-1350. Pamplona: Gobierno de Navarra, 1995. p. 471. 5 BRANCAFORTE, Benito. Prosa histórica. Madrid: Catedra, 1990. p.12. 6 KLEINE, Marina. Op. Cit., p.34. 3 326 várias razões. Primeiramente por seu reinado ter durado 32 anos e por ter sido reconhecido como o Rei Sábio. Em um segundo momento, a importância dos trabalhos de Afonso X pode ser conirmada por sua longevidade: as obras jurídicas, por exemplo, tornaram-se base para a elaboração de outros códigos posteriores na Península Ibérica, na América Latina e até mesmo nos Estados Unidos.7 Las Siete Partidas Del Rey Don Alfonso el Sabio8 (1256-1265) foi uma das grandes compilações legislativas medievais. Esse conjunto é formado por sete livros e representa o esforço do rei castelhano em reunir sob uma única jurisdição as regiões que controlava: A necessidade de administrar o território foi um problema legado pelo predecessor do sábio rei. Após as conquistas de Fernando terem chegado ao im, o estado castelhano se encontrou na difícil situação de ter que administrar um território signiicativamente maior e que já contava com leis e instituições próprias, sem no entanto contar com um instrumento administrativo efetivamente sólido o bastante para comportar os novos limites territoriais.9 Redigida em castelhano arcaico, o projeto buscava uma padronização do direito através da retomada de preceitos clássicos em detrimento da heterogeneidade de práticas baseadas em costumes. Em outra obra jurídica de seu governo, o Fuero Real, Afonso X justiica suas atitudes tendo em vista essa perigosa dissonância de práticas dentro do reino de Castela. As partidas fazem parte do renascimento jurídico do século XIII e agregam elementos estritamente legislativos STONE, Marylin. Desde las Siete Partidas a los códigos civiles norteamericanos. In: VILLEGAS, Juan. (Org.). CONGRESO DE LA ASOCIACIÓN INTERNACIONAL DE HISPANISTAS, 11., 1992, Irvine. Actas…. Madrid: Asociación Internacional de Hispanistas, 1994. 5v. V. 3, p. 25-33. 8 A fonte pode ser consultada na biblioteca digital Pixelegis do site da Universidad de Sevilla: www.us.es 9 SOUZA JUNIOR, Almir Marques. Op. Cit., p. 18. 7 327 com preceitos ilosóicos resgatados pelas já citadas escolas de tradutores que concentravam cristãos, judeus e muçulmanos. Há até mesmo aspectos que permitem classiicar o texto como um espelho de príncipes, especialmente aqueles presentes na Segunda Partida.10 A primeira partida aborda principalmente o direito canônico. A segunda trata do poder temporal de reis, imperadores e senhores. A terceira explica a composição da justiça e como ela deveria ser administrada no reino. A quarta visa instituições do direito de família, casamento etc. A quinta se aproxima de um código de contratos na vida privada como a compra e venda, troca etc. A sexta expõe o direito sucessório, tema de grande relevância nos últimos anos de Afonso X. A última partida reúne temas como o direito penal e o processo penal. A Segunda Partida parece propiciar elementos mais concretos se quisermos analisar como a obra jurídica de Afonso X foi construída e como o Sábio a utiliza para sua legitimação. É nela que serão elencados os atributos de um rei medieval, suas competências, limitações, obrigações etc. Entender como o sábio vislumbrava um monarca é também entender como ele próprio procurava airmarse. O imaginário, a idealização de um peril de governante, estará presente no segundo conjunto legislativo e, mais especiicamente, nos títulos II ao XI. Há um pequeno prólogo que serve como introdução à obra: explica quais assuntos serão tratados e conirma qual a temática geral do segundo tomo. Sobre os títulos preteridos: grande parte se dirige ao comportamento do povo (como uma cartilha) em relação às terras, aos oiciais etc. Na parte inal do código, são tratados temas como: guerras, cavaleiros, prisioneiros, táticas de combate e outros assuntos relacionados. Título II – Qual debe el Rey ser en conoscer, et amar et temer a Dios: o segundo título começa estabelecendo qual a relação do rei com Deus. Há grande atenção para o conhecimento verdadeiro para que BIZZARRI, Hugo O.; RUCQUOI, Adeline. Los Espejos de Príncipes en Castilla: entre Oriente y Occidente. Cuadernos de Historia de España, Buenos Aires, v.79, n. 1, p. 7-30, 2005. Disponível em http://www.scielo.org.ar/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0325-11952005000100001&lng=es&nrm=isso. Acesso em 14 de novembro de 2011. 10 328 a função real seja exercida de forma eicaz: manutenção das terras do reino, aplicação correta da justiça etc. Conhecer Deus também signiica amá-lo e temê-lo, a razão neste sentido é comemorada como instrumento para este im. Além disso, é a partir de Deus que o homem conhece seus iguais e a si mesmo, aprende ainda a respeitar a ordem estabelecida. Já neste título são apresentados conceitos como a piedade e a moderação que irão permear todas as leis posteriores. Os reis com seu posto devem cultivar Deus pois os grandes desejos divinos são exercidos através das ações de governantes. Por im, há a recomendação de honrar igrejas, proteger o povo, guardar os mandamentos e fazer o bem. O vínculo estabelecido entre poderes espirituais e temporais é imenso. Título III – Qual debe el Rey seer en si mesmo, et primeramente en sus pensamientos: pensamento, neste título, é considerado o ato de análise das coisas passadas, presente e futuras. Coração e mente do rei devem estar livres de cobiças e vícios: a honra em excesso se torna desonra. É retomada a idéia de moderação, guardar a honra é mais válido do que buscar aumentá-la de forma caótica. O mesmo acontece com a riqueza que se transforma em pecado no momento em que o rei acaba se tornando refém dela. Constantemente a legislação busca argumentação em sábios e santos, a riqueza para eles seria a raiz de todos os males. Este título pode ser entendido como um alerta contra os vícios: o rei deve ter autocontrole para que não seja consumido por eles já que estão presentes em todos os homens. Sobre este título, Adeline Rucquoi e Hugo O. Bizzarri escrevem: Si para los deberes del rey hacia Dios, Salomón y David eran las autoridades mencionadas, son los “sabios antiguos” los que aconsejan al rey en cuanto a sus pensamientos: que no busque los honores y el poder para sí mismo, y tampoco las grandes riquezas o los vicios.11 Título IV – Qual debe seer el Rey en sus palabras: o quarto título aborda o discurso real e como as palavras devem ser proferidas com irmeza. Deve-se falar com razão e sempre de forma com que as 11 BIZZARRI, Hugo O.; RUCQUOI, Adeline. Op. Cit. 329 promessas sejam cumpridas. Ainda é preciso observar o equilíbrio já que um rei não pode falar demasiadamente mas também não pode deixar que falem por ele. Outras recomendações: não mentir, falar com polidez, se fazer compreender, evitar vaidade (os feitos devem ser a prova de seu governo), não falar mal de outras pessoas etc. Há grande responsabilidade nas palavras do rei pois nelas o povo acredita e espera sejam verdadeiras. Muito falar, completa a lei, envelhece a palavra real no sentido em que a torna frágil. Título V – Qual debe el Rey seer en sus obras: as ações do rei também merecem atenção, dentro deste título existem leis que, por exemplo, regulam a forma de comer e beber. Novamente o autogoverno é considerado essencial: deve-se comer para viver e não o contrário, o vinho também é visto com desconiança pois torna a mente do rei suscetível aos vícios. Com relação à linhagem, a legislação prega o distanciamento de mulheres vis e a recomendação para que sejam evitados ilhos fora do casamento. Comportamentos viciosos atentam contra o corpo e contra a alma, conseqüentemente atentam contra Deus. A postura do rei também deve ser equilibrada, seus passos não devem ser rápidos demais e nem muito lentos. Muito importante ressaltar que a própria lei fala do governante como espelho para o povo. As roupas devem ser escolhidas sabiamente para que haja diferenciação entre súditos e o Rei. São elencadas também virtudes exigidas de um governante (dentre costumes e maneiras): fé, esperança e caridade para conquistar o amor de Deus; prudência, moderação, fortaleza de coração e justiça para o convívio no mundo terreno.12 Deve o rei evitar: o rancor, a ira e o ódio. Apesar de presente em todos os homens, tais vícios devem ser controlados pelo rei já que ele é um servidor do povo e suas ações negativas podem gerar outros males. Talvez neste título esteja presente o grande trunfo de Afonso X, airma que o rei deve ainda ser sábio e letrado para não deve depender dos outros para agir. O saber vem de Deus, exercer o conhecimento é agraciá-lo e é também atributo que nos separa das bestas. Conhecer os 12 KLEINE, Marina. Op. Cit., p. 119 330 homens (suas linhagens, costumes e feitos) também é imprescindível para o governante que pode assim tratá-los de forma adequada. As armas e a cavalaria são também atributos de domínio do rei, seja por necessidade como para servir de exemplo para o povo. A caça ajuda na saúde real e ainda oportuniza ensinamentos especíicos como táticas de batalha. Finalmente, jogos de tabuleiro e instrumentos musicais tornam a vida do rei proveitosa e mais alegre. Título VI – Qual debe el Rey seer a su muger et ella a el: Este tópico trata da futura esposa do rei, deve ser ela: bela, possuir bons costumes, possuir riquezas e ainda pertencer a uma família honrada. Dos quatro atributos, bons costumes e uma linhagem importante são aqueles mais valorizados. A lei ainda estabelece o respeito e o amor do rei pela rainha. Título VII – Qual debe seer el Rey a sus ijos et ellos a el: os ilhos do rei merecem título especíico. As obrigações do rei com seus descendentes são estabelecidas, deve educá-los da melhor forma possível. Grande parte das recomendações dirigidas ao rei (como o controle da bebida) também são feitos aos seus ilhos. O cuidado é extenso pois só assim será garantida a continuidade da linhagem real no poder. Título VIII – Qual debe el Rey seer a los otros sus parientes, et ellos a el: Em um pequeno título são apresentados os deveres do rei com seus familiares de forma geral. O parentesco deve estabelecer um laço de amor entre as pessoas, comportamento natural advindo de Deus. Assim, aquele de alguma forma ameaçar essa unidade deve ser afastado do convívio familiar. Título IX – Qual debe el Rey ser a sus oiciales, et a los de su casa et de su corte, et ellos a el: em sua casa o rei ainda contará com o auxílio de oiciais. Portanto se faz necessária a regulação dessa atividade: como serão escolhidos, como se comportarão etc. O governante deve saber quem são seus empregados para que a coniança seja mútua, não deve escolher os muitos ricos e nem os muito pobres. Ainda é importante o cargo de clérigo pessoal do rei, ele irá auxiliá-lo em questões espirituais: é responsável pela mediação com Deus. Outros vários cargos são explicados e fazem parte da sociedade política castelhana 331 do período: chanceleres, conselheiros, ricoshomes, notários, escribas, soldados, médicos, encarregados da alimentação do rei, camareiros, escudeiros, aqueles responsáveis pelas compras de produtos para o governante, guardiões, posaderos, militares, administradores, juízes, adelantados, comissários, mensageiros, merinos mayores, capitães de embarcações, tesoureiros etc. Todas essas funções são regidas por um juramento feito ao rei. Na parte inal do título o espaço físico da corte e do palácio são delimitados. Título X – Qual debe el Rey seer comunalmente a todos los de su señorio: retomando algumas idéias anteriores, a lei busca deinir o que é povo e como o rei deve se relacionar com seus súditos. Amá-los e honrá-los deve ser o objetivo real que pode ser alcançado através de ações benéicas e da misericórdia. Deve dar a cada um aquilo que merece sempre respeitando o reino simbolizado pela idéia de corpo uniicado.13 O sucesso de um governante está intimamente ligado à felicidade do povo que governa e assim deve sempre tomá-lo como im de suas ações. Título XI – Qual debe el Rey seer a su tierra: o mesmo amor dirigido ao povo também deve ser assumido em relação às terras. Deve o rei trabalhar para torná-la melhor para o povo através de obras, por exemplo com muralhas e torres. A partir da breve exposição de alguns aspectos dos títulos sobre o rei na Segunda Partida, é possível vislumbrar algumas características da legislação afonsina: início de títulos geralmente delimitando conceitos (como o povo, por exemplo), fragmentação em várias leis (possivelmente para facilitar a consulta posterior ou a referência quando necessário), utilização de argumentos diversos (como passagens bíblicas e idéias aristotélica) e a existência de algumas lacunas e contradições por sua extensão. Concordando com o epíteto atribuído ao monarca castelhano, a legislação afonsina é um esforço de legitimação através da palavra. Já referido anteriormente, Souza Júnior esclarece bem essa idéia ao dividir seu trabalho em capítulos opondo Fernando III e Afonso X: ALMEIDA, Cybele Crossetti. Considerações sobre o uso político do conceito de justiça na obra legislativa de Afonso X. Anos 90, Porto Alegre, v.16, p.13 - 36, 2002. 13 332 o que o primeiro conquistou pelas armas, o segundo tentará através da argumentação. Essa diferença é chamada pelo autor como uma “mudança de paradigma para a realeza”,14 pensamento coerente já que o contexto do reinado dos dois governantes é diverso. Fátima Regina Fernandes contribui: No Ocidente Medieval as unidades políticas mais fortes são os reinos e muitos dos intelectuais que aí vivem estão envolvidos na elaboração de teorias legitimadoras da supremacia régia frente às suas sociedades políticas e a outros poderes paralelos que aí também co-existem.15 Assim é possível compreender o esforço de nosso personagem para realizar tamanha obra jurídica, resposta que achou cabível às exigências de airmação. É necessário lembrar que o século XII é caracterizado pela crescente proissionalização do discurso político, a discussão sobre o poder ganha cada vez mais formalidades e técnicas advindas do surgimento das universidades e de sua linguagem especíica. Jacques Le Gof lembra o “gosto dos príncipes e dos soberanos pela teoria política, até mesmo por um governo cientíico, quer dizer, inspirado em princípios escolásticos”.16 Talvez Afonso X tenha sido inspirado ou inluenciado por tais idéias, resolveu assim modiicar o peril do governante e a forma de legitimação do mesmo: o rei sábio ao invés do guerreiro, o discurso ao invés das conquistas. Recorremos novamente à Fernandes, ela esclarece a recepção cultural de idéias francesas na Península Ibérica: Afonso X de Castela faz uso destas idéias predominantes na Corte de seu primo francês, acrescentando um tom mais jurídico ao peril régio e dissolvendo a dimensão evangélica do rei presentes nas obras do Grupo de SOUZA JUNIOR, Almir M. Op. Cit., p. 113. FERNANDES, Fátima R. Teorias políticas medievais e a construção do conceito de unidade. História. Franca, v. 28, n. 2, p. 43-55, 2009. p. 46. 16 LE GOFF, J. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Estampa, 1980. p. 191. 14 15 333 São Luís. As Partidas e os vários tratados doutrinais afonsinos acentuam a inalidade monárquica na garantia da paz e estabilidade e na busca do bem comum.17 Cercar-se, portanto, de funcionários qualiicados18 era imprescindível para o sucesso de sua campanha: foi com sua equipe de juristas que construiu as Siete Partidas e nelas também julgou necessário dedicar um título especíico àqueles que auxiliariam o rei em seu governo (título IX). Munido de um grupo letrado, Afonso X conseguiu estabelecer o peril do rei castelhano medieval. É neste ponto que surge a questão principal do trabalho: como o sábio imaginou o monarca ideal. Esse objetivo também aproxima as Siete Partidas dos chamados espelhos de príncipes: uma espécie de manual no qual o autor procura ensinarlhes como devem se comportar para serem bons príncipes. Para os autores desses escritos, a principal arma da qual dispõe um governante para conservar seus domínios é o respeito às leis e de Deus e o cultivo das virtudes cristãs ensinadas pela Igreja e reconhecidas como verdadeiras por todos os que escreveram sobre a matéria.19 Finalmente chegamos ao peril imaginado por Afonso X: um rei imbuído de virtudes cristãs sem ignorar seu caráter terreno. Deve ter fé, esperança, caridade, prudência, fortaleza de coração, justiça e, sobretudo, moderação. A moderação está presente em praticamente todos os títulos estudados e encontra fundamento em um dos sábios mais citados pelas partidas: Aristóteles.20 A idéia de se evitar os excessos, de moderar-se, relete uma recepção da justa medida clássica FERNANDES, Fátima R. Op. Cit., p. 49. SOUZA JUNIOR, Almir M. Op. Cit., p. 116. 19 BIGNOTTO, Newton. Nicolau Maquiavel (1469-1527) e a nova relexão política. In: MAINKA, Peter Johann. (Org.). A caminho do mundo moderno: concepções clássicas da Filosoia Política no século XVI e o seu contexto histórico. Maringá: EDUEM, 2007. p. 53. 20 Conforme o pensador expõe no livro II parte 6 da Ética a Nicômaco. 17 18 334 retomada através das traduções anteriormente explicadas. Além disso, ainda há a preocupação do governante com o povo, outra característica, portanto, é a busca do bem comum21 e para isso há a necessidade de conhecer os homens e seus costumes. Por im, armas, cavalaria, táticas de guerra, caça, jogos diversos, música e, inevitavelmente, as letras são áreas das quais o rei deve se aproximar. O rei sábio é aquele preparado para governar, aquele que sabe o que fazer em cada situação especíica pois estudou para se tornar governante.22 Aqui apenas foram analisados alguns títulos da Segunda Partida, ainda há uma vasta obra realizada durante o período de reinado de Afonso X. De qualquer maneira, os resultados obtidos através da leitura da fonte histórica se aproximaram da historiograia referente ao monarca. Muitos dos conceitos, idéias e hipóteses dos historiadores encontraram eco na legislação castelhana. Vale dizer: as Siete Partidas incorporam o Renascimento Jurídico do século XII, podem ser classiicadas como uma espécie de espelhos de príncipe, caracterizam ainda um instrumento de legitimação na disputa entre governantes e também entre poderes temporais e espirituais, permitem conirmar a mudança de paradigma para a realeza dentre outras conclusões. Resta exaltar a obra afonsina e entender o esforço para a sua produção, os seus objetivos, a retomada de idéias e vários outros pontos que podem ser discutidos. O que pode parecer uma simples legislação acaba revelando muitos outros aspectos que nos permitem compreender o momento vivido por Afonso X nos reinos de Leão e Castela. É uma nova história política que nos permite abraçar a sociedade através de documentos oiciais. 21 22 Conceito discutido por Aristóteles no livro I parte 2 da Ética a Nicômaco. SOUZA JUNIOR, Almir M. Op. Cit., p. 121. 335 COMO SE CONSTRÓI UM SANTO? OBSERVAçÕES A PARTIR DO INQUÉRITO DE 1321 PARA A CANONIZAçãO DE TOMÁS DE AQUINO1 Igor Salomão Teixeira (Doutor UFRGS) Introdução Para canonizar Tomás de Aquino em 18 de julho de 1323, o papa João XXII autorizou a abertura de um inquérito. O processo teve início em julho de 1319 e foi encerrado naquele mesmo ano.2 Porém, dois anos depois, insatisfeito, o mesmo pontíice ordenou que fosse realizado uma segunda inquisição para a veriicação principalmente dos milagres atribuídos ao frade pregador, doutor em teologia, morto em 1274. Este inquérito, realizado entre 10 e 27 de novembro de 1321, consiste no objeto de análise da presente proposta. Na ocasião foram interrogadas 112 pessoas, como indicado na tabela: Este trabalho apresenta parte das relexões que realizamos na tese: TEIXEIRA, I. S. Hagiograia e Processo de Canonização: a construção do tempo da santidade de Tomás de Aquino (1274-1323). 15/09/2011. 187f. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2011. Pesquisa inanciada pela CAPES entre 2008-2011. 2 O Inquérito de 1319 foi alvo de nossas relexões em duas ocasiões: TEIXEIRA, I. S. A pesquisa em história medieval: relatos hagiográicos e processos de canonização. Aedos, Porto Alegre, n. 1, p. 71-94, 2009. Disponível em http:// seer.ufrgs.br/aedos/article/view/9832/5648. Acesso em novembro de 2011. Cf.: Idem. Hagiograia e canonização: a santidade de Tomás de Aquino e o reconhecimento papal (1318-1323). In: ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA – ANPUH/RS, 9., 2008, Porto Alegre. Vestígios do Passado: a história e suas fontes. Anais... Porto Alegre: ANPUH, 2008. Disponível em http:// eeh2008.anpuh-rs.org.br/resources/content/anais/1212328288_ARQUIVO_ HagiograiaeCanonizacaoANPUHRS2008.pdf. Acesso em novembro de 2011. 1 336 TABELA 1: INTERROGADOS NO INQUÉRITO DE 1321 CARGO/ FUNÇÃO ORIGEM/ORDEM 13/11/1321 13/11/1321 13/11/1321 Converso Leigo Leiga Fossa-Noca (C) Sonino Sonino 13/11/1321 13/11/1321 13/11/1321 Sonino Sonino Piperno/Fossa-Nova (C) DEPOENTE DATA Petrus Boccasicus (1) Nicolaus Zappus Manuel Petrus Andreæ Leonardus Stephania (1) Bartholomæus Leonardi Leonis Petrus Schimanæ Marcus hebaldi Iacobus Bartolomæi 10/11/1321 10/11/1321 10/11/1321 11/11/1321 11/11/1321 11/11/1321 11/11/1321 11/11/1321 11/11/1321 12/11/1321 Iohannes Varalus 12/11/1321 Amatus Bruni (2) Floria Nicolai Romana (2) Nicolaus Sicæ Bartholomæus heobaldi Nicolaus Infancelli Raymundi (3) Valdebrunus Frociæ Bartholomæus Bonihominis Saracena Infancelli Raymundi (3) Infancellus Raymundi (3) Valdebrunus Leonis Iacobus Nicolai 12/11/1321 12/11/1321 12/11/1321 12/11/1321 12/11/1321 13/11/1321 Piperno Converso Piperno/Fossa-Nova (C) Converso Piperno/Fossa-Nova (C) Monge Piperno/Fossa-Nova (C) Leigo Piperno Leiga Piperno Leigo (criança) Piperno Leigo (criança) Piperno Converso Piperno/Fossa-Nova (C) Presbítero da Diocese de Terracina/Sonino Igreja de Santo Ângelo Clérigo da Igreja Sonino de São Pedro Leigo Sonino Leiga Sonino Leiga Sonino Clérigo Sonino Leigo Sonino Leigo Sonino Nicolaus de Frusinone Iohannes de Terracena 13/11/1321 13/11/1321 Iacobus Nicolaus de Frusinone Leonardus Sacurelle Iohannes Cossa Sophia Leonardi (4) Iulianessa (4) Crescentius Novellus Nicolaus Barolus Iulianessa Iacobi Petrus Nicolai Bartholomaeus Mezettus Petrus Carolus Gemma dicta Ronilgione (13) Mabilia Leonardus Nicolaus de Aprutio (5) Formosa (5) Bartholomæus Petri Bennicasse (6) Bona (6) Leonardus Palumbus 14/11/1321 14/11/1321 14/11/1321 14/11/1321 14/11/1321 14/11/1321 14/11/1321 14/11/1321 14/11/1321 14/11/1321 14/11/1321 16/11/1321 16/11/1321 16/11/1321 16/11/1321 16/11/1321 16/11/1321 16/11/1321 Leigo Leigo Presbítero e Monge Monge Presbítero e Monge Magister Monge Converso Leigo Leiga Leiga Leigo Leigo Leiga Leigo Leigo Leigo Leiga Leiga Leigo (criança) Leigo Leiga Leigo 16/11/1321 16/11/1321 Leiga Notario 337 Fossa-Nova (C) Terracena/Fossa-Nova (C) Piperno/Fossa-Nova (C) Fossa-Nova (C) Fossa-Nova (C) Piperno Sonino Sonino Sonino Sonino Sonino Sonino Sonino Terracina Terracina Terracina Terracina Terracina Terracina Sermineti/Terracina Sermineti/Terracina Sermineti/Terracina Petrus Craparius (7) Marotta (7) Petrus (7) Iohannes Rubeus Maria Egidi Iohannes Rubeus Bellicia Serena Rosa (8) Iacobus de Balena (8) Nicolaus de Balena (8) Nicolaus Quinque Selli Guido Gemma Gregorii Petrucius (11) Matthæus de Noria (9) Bellitia (9) Maria Simeonis (10) Iohannes Garini (10) Petrus Letus Gemma Petri Zappi Schimana Yldibrandini Nicolaus Grassone (15) Petrus Cresenti Nicolaus Piccardi Nicolaus Taurellus Iacobus Cafassus Petrus (10) Iohannes Limatæ Gemma (11) Leonardus de Iulgiano 16/11/1321 16/11/1321 16/11/1321 16/11/1321 16/11/1321 16/11/1321 16/11/1321 16/11/1321 16/11/1321 16/11/1321 17/11/1321 17/11/1321 17/11/1321 17/11/1321 18/11/1321 18/11/1321 18/11/1321 18/11/1321 18/11/1321 18/11/1321 18/11/1321 18/11/1321 19/11/1321 19/11/1321 19/11/1321 19/11/1321 19/11/1321 19/11/1321 19/11/1321 19/11/1321 Leigo Leiga Leigo Magister/Físico Leiga Magister/Físico Leiga Leiga Notário Leigo (criança) Converso Leigo Leiga Leigo Leigo Leiga Leiga Leigo Notário Leiga Leiga Leigo Converso Leigo Leigo Leigo Leigo Leigo Leiga Medico e cirurgião Leiga Leiga Leiga Leiga Leiga Leiga Leigo Sermineti/Terracina Sermineti/Terracina Sermineti/Terracina Sermineti/Terracina Sermineti/Terracina Sermineti/Terracina Sermineti/Terracina Terracina Terracina Terracina Frusinone/Fossa-Nova (C) Piperno? Piperno Piperno Piperno Piperno Piperno Piperno Piperno Piperno Piperno Sermineti/Terracina Piperno/Fossa-Nova (C) Terracina Terracina Terracina Piperno Sonino Piperno Piperno Iohanna Christina Petrucia Pistella Maria Barrola Romica (12) Maria de Monte (12) Lea Pennazola (12) Nicolaus de Monte Sancti Iohannis Ceccus Ronilgione (13) Nicolaus Petrus Cinus 19/11/1321 19/11/1321 19/11/1321 19/11/1321 19/11/1321 19/11/1321 20/11/1321 20/11/1321 20/11/1321 20/11/1321 Terracina Piperno Piperno 20/11/1321 20/11/1321 21/11/1321 21/11/1321 21/11/1321 21/11/1321 21/11/1321 23/11/1321 23/11/1321 Leigo Magister Magister cirurgicus Leiga Leiga Leigo Leigo Oblatus Leiga Leiga Leiga Leiga Gemma Rubea (14) Adelasia (14) Nicolaus Bruni (2) Nicolaus Petri Nicolai Petrus Amati Mabilia (15) heodora Manicone Blanditia Nicolai Agnes Philippi (16) Nicolaus Bartholomæi (17) Nicolucius Ainnati Petrus Gualgani (19) Petrus Valla Petrus Ectari (20) 23/11/1321 23/11/1321 23/11/1321 23/11/1321 24/11/1321 Leigo Leigo Leigo Leigo Leigo 338 Piperno Piperno Piperno Piperno Piperno Piperno Piperno Piperno Piperno Sonino Piperno Piperno/Fossa-Nova (C) Sermineti/Terracina Sonino Terracina São Lourenço de Valle/ Ferentinati Piperno Piperno Piperno Piperno Piperno Gemma Corruina (16) 24/11/1321 Leiga Petrus (18) Marcus 24/11/1321 25/11/1321 Czituara (17) Gemma (17) Barbatus Odolina (18) Bellitia (19) Andreas Francisci Leonardus Iacobi Gayta (20) Maria Pepe (20) 25/11/1321 25/11/1321 25/11/1321 25/11/1321 25/11/1321 25/11/1321 25/11/1321 27/11/1321 27/11/1321 Notário (?) Magister e clérigo da Igreja Santa Lúcia Leiga Leiga Leigo Leiga Leiga Leigo Leigo Leiga Leiga São Lourenço de Valle/ Ferentinati Piperno Piperno Piperno Piperno Piperno Piperno Piperno Piperno Piperno Piperno Piperno FONTES VITAE S. THOMAE AQUINATIS. Revue homiste, 1931. vol.1. Processus IV-V, p. 409-510. O Processo de canonização como fonte para a história social A partir desses nomes, datas, locais de origem e cargos e/ou funções temos acesso a um universo muito além da santidade. Ou melhor, podemos questionar como e quem constrói um santo? Essa pergunta redireciona o olhar sobre a santidade: do cultural para o social. Isto porque partimos da idéia que a santidade é um fenômeno social construído coletivamente e que o processo de canonização é uma porta de entrada imprescindível para analisar disputas de poder, grupos de interesse e possíveis razões para o reconhecimento oicial da santidade. É nesta perspectiva que a obra coletiva organizada por Gábor Klaniczay em 2004, Procès de canonisation au Moyen Âge: aspects juridiques et religieux, e a tese de Didier Lett, publicada em 2008 sob o título Un procès de canonisation au Moyen Âge,3 indicam novos caminhos para a análise da construção da santidade. Seguindo as orientações metodológicas desses autores e a partir do conceito de tempo da santidade4 – resultado da nossa tese de doutorado – 3 KLANICZAY, G. (Dir.). Procès de canonization au moyen âge: aspects juridiques et religieux. Roma: École Française de Rome, 2004; LETT, D. Un procès de canonisation au Moyen Âge. Essai d’histoire sociale: Nicolas de Tolentino, 1325. Paris: PUF, 2008. 4 « Sendo assim, tempo da santidade é o tempo transcorrido entre a canonização e a morte expresso em uma tabela de temporalidade que ica melhor evidenciada quando entendida de forma comparada.” TEIXEIRA, I. S. Hagiograia e Processo de Canonização… Op. Cit., p. 18. Entendemos essa construção, portanto, de forma retroativa, que começa no im, ou seja, no processo de canonização/reconhecimento 339 identiicamos, para o caso da canonização de Tomás de Aquino – os seguintes grupos (considerando também o inquérito de 1319): a Ordem dos Pregadores; a Ordem Cisterciense; Nobres e leigos da região de Nápoles e a cúria pontifícia de Avignon, especiicamente, o papa João XXII. Defendemos, ao inal, que o principal interessado para a canonização daquele teólogo foi o papa na medida em que em seu pontiicado predominou o debate sobre a pobreza radical de Cristo. O contexto da canonização, 1323, foi também o momento de preparação e publicação da bula Cumm inter nonnullos. Nesta bula estão condenadas as teses consideradas radicais sobre a questão. Tomás de Aquino teria sido, então, um recurso teológico (ainal, expressou na Suma Teológica que, além de ser a forma de vida mais elevada, o episcopado necessitava possuir bens para cuidar do rebanho de Cristo). Recurso teológico polêmico. Ainal, é sabido também que o próprio Tomás de Aquino fora alvo de críticas tanto em vida quanto após a morte, como o caso das condenações de 1277. Portanto, para utilizá-lo como auctoritas, digamos assim, o papa necessitava transformá-lo como tal. A isso chamamos de canonização teológica de Tomás, que ocorreu seis meses antes da publicação daquela bula. Retomando a Tabela 1 podemos fazer vários recortes: gênero, geográico, etário e famílias. Os números que indicamos entre parênteses, como nos casos de Petrus Craparius (7), Marotta (7) e Petrus (7) revelam que os inquisidores estabeleceram a investigação a partir da convocação de testemunhas no interior das próprias famílias. Para tal, temos, portanto, um total de 20 famílias diferentes, somando cerca de 50 pessoas com laços de parentescos (normalmente pai, mãe e ilho, com algumas excessões para tias e irmãos). É importante ressaltar, também, que temos basicamente testemunhas das mesmas regiões de 1319. Porém, o tempo transcorrido no primeiro inquérito (julho a agosto de 1319) e o tempo do segundo (novembro de 1321) revela também certa agilidade no último caso, considerando que foram interrogadas 80 pessoas a mais, mesmo considerando as duas testemunhas interrogadas duas oicial da santidade e termina na morte do santo, para quando, principalmente no caso de Tomás de Aquino, também tornou-se necessária a construção da santidade. Consideramos, então a seguinte operação matemática: 1323 – 1274 = 49 anos. Este é o tempo da santidade de Tomás de Aquino. É importante ressaltar que a expressão não signiica que o culto a este santo ocorreu somente neste período. Ao contrário, trata-se do período de gestação do culto. 340 vezes: Nicolaus de Frusinone e Iohannes Rubeus. Revela, ainda, o aparecimento de mulheres e a predominância de leigos e a ausência de frades dominicanos. No inquérito, também é signiicativa a ausência de perguntas sobre a fama da vida de Tomás o que implica em considerar que o alvo de 1321 foram os milagres. Todo este aparato foi necessário na medida em que, como indica a leitura da carta expedida em junho daquele ano, o papa João XXII, aconselhado por homens “idôneos”, ainda não considerava satisfatório o resultado obtido em 1319. Sendo assim, recomendou que fossem coletados e diligentemente registrados relatos de milagres atribuídos a Tomás.5 É importante destacar o seguinte trecho desta carta: Sane dudum ex parte carissime in Christo ilie nostre Marie, regine Sicilie, illustris relicte clare memorie Caroli secundi regis Sicilie, et dillectorum iliorum nobilium virorum Philippi principis Tarentini et Iohannis comitis Gravinensis, ac aliorum plurium comitum et baronum regni Sicilie, communitatis quoque ac universitatis magistrorum et scolarium studii Neapolitani nobis et fratribus nostris per eorum litteras extitit intimatum quod recolende memorie frater homas de Aquino, ordinis Predicatorum, sacre theologie doctor, dum vixit, sancte vite loruit, meritis, conversatione resplenduit ac multis et magnis tam ante quam post ipsius obitum milaculis coruscaviti, quare pro parte isporum fuit nobis humiliter supplicatum ut de ipsius vita et miraculis faceremus inquiri et si inveniremus premissa veritate fulciri, ipsum sanctorum cathalogo adscribentes faceremus eumdem per universas ecclesias honore congruo solemniter venerari.6 5 A carta é o terceiro item da compilação publicada como Liber de Inquisitione Super Miraculis Fratris home de Aquino. FONTES VITAE S. THOMAE AQUINATIS… Op. Cit., p. 412-415. Texto estabelecido a partir BN. Ms Lat. 3113 (59 folios, segunda metade do século XIV). 6 Ibidem, p. 413 Tradução com auxílio de Cassiano Malacarne: “Certamente, em outro tempo, da parte da caríssima em Cristo, nossa ilha Maria, rainha da Sicília, viúva do ilustre Carlos II de brilhante memória, rei da Sicília, e dos amados ilhos nobres varões Felipe, príncipe de Tarento e de João, conde de Gravina, e dos outros diversos condes e barões do reino da Sicília, do mesmo modo das comunidades e das universidades dos mestres e dos universitários do Estudo de Nápoles, a 341 Embora o pontíice inalize com a suposição que legitima o inquérito (“premissa veritate”), o trecho começa com a expressão “sane dudum” e relaciona esta certeza aos nomes da casa real da Sicília, à universidade de Nápoles e “aliorum plurium comitum et baronum regni Sicilie”. O que temos aqui, no nosso entender, é a insistência papal na santidade de Tomás e a necessidade formal de passar pelo crivo do processo inquisitorial. Porém, os nobres supracitados, por si só, eram importantes atestados da verdade. Pequenas orientações metodológicas Nesta breve apresentação da riqueza de um inquérito de canonização podemos identiicar também alguns caminhos que revelam os potenciais e os limites desse tipo de documentação. As famílias, locais e cargos podem nos levar às redes de sociabilidades, por exemplo. Porém, analisá-las só seria possível a partir do método prosopográico. Até o momento, no entanto, o estado das investigações sobre a região em questão não permite a aplicação desse método pela ausência de arquivos e documentação, principalmente provocada pela destruição dos arquivos da região de Nápoles pelos nazistas na década de 1940.7 nós e a nossos irmãos através das cartas deles mostrou-se relatado o que deve ser recordado da memória do irmão Tomás de Aquino da Ordem dos Pregadores, doutor da Sagrada Teologia, que enquanto viveu prosperou em vida santa com méritos, resplandeceu em sua conduta e brilhou com muitos e grandes milagres, tanto antes quanto depois de sua morte, pelo que foi humildemente suplicado a nós em favor da parte dos mesmos para que nós izéssemos ser inquirido sobre a vida e milagres dele e, se descobríssemos ser suportada a premissa da verdade, izéssemos que o inscrevessem no catálogo dos santos, e ele ser venerado solenemente com conveniente honra por todas as igrejas”. 7 Principalmente se seguirmos as orientações metodológicas a partir de autores como: LEVI, G. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; BULST, N. Sobre o objeto e o método da prosopograia. Politeia: história & sociedade, Vitória da Conquista, v.5, n.1, p. 47-67, 2005. Disponível em http://periodicos.uesb.br/index.php/politeia/ article/viewFile/190/211. Acesso em maio de 2011. Além deste, ALMEIDA, C. C. de. Topograia e Estratiicação social: representações e mecanismos de poder na cidade medieval. Anos 90, Porto Alegre, n.14, p. 294-311, 2000. Disponível em http://seer. ufrgs.br/anos90/article/download/6806/4104. Acesso em maio de 2011. No caso especíico de um ensaio de prosopograia a partir de processos de canonização: LETT, Didier. Un procès de canonisation au Moyen Âge… Op. Cit. 342 Ainda assim, é possível estudar relações políticas e de poder. Para tal é imprescindível considerar que um inquérito para canonização não é uma peça isolada ou um quebra-cabeça de uma peça só. É imperativo considerar o conjunto da documentação produzida em torno da mesma causa. E, mais, uma análise comparada de processos de canonização contemporâneos, por exemplo de um mesmo pontiicado, podem instrumentalizar na elaboração de perguntas sobre “que santo se interessava construir/erigir em cada momento da história da igreja na Idade Média?”. Por isso que acreditamos também no tempo da santidade como uma ferramenta propícia. Considerações inais Apresentamos uma parte muito restrita de todo o conjunto documental que analisamos durante nosso doutoramento. Porém, nestas poucas páginas incluímos os nortes teóricos e metodológicos os quais procuramos aplicar na pesquisa: a consideração do processo de canonização como uma peça jurídica, a santidade como um fenômeno construído coletivamente e o potencial dos inquéritos para colocar em evidência possíveis grupos de interesse envolvidos em uma causa de reconhecimento oicial da santidade. Consideramos que um inquérito, como o de 1321, pode revelar algumas partes dessa estrutura mais ampla, mas não responde a todas as questões. 343 CONSIDERAçÕES SOBRE O PERFIL DE SANTIDADE NAS VIDAS DOS PADRES DE MÉRIDA: O CASO DO ABADE NANCTO Ingrid Brito Alves da Assunção (Graduanda PEM - UFRJ) Integrante do Programa de Estudos Medievais da UFRJ e orientada pela professora Leila Rodrigues da Silva, esta apresentação se associa ao desenvolvimento do meu trabalho monográico de conclusão de curso e tem como objetivo identiicar e analisar o peril hagiográico do abade Nancto, personagem principal do terceiro capítulo da Vitas Sanctorum Patrum Emeretensium.1 Para tal, reletiremos acerca dos seguintes temas: corpo, luxúria e continência no início da Idade Média. As Vitas Sanctorum Patrum Emeretensium O documento com o qual trabalharemos são as vidas dos santos padres Emeritenses, que se inserem em um pequeno conjunto de obras literárias produzidas na Península Ibérica, mais especiicamente na Hispania visigoda do século VII. Esse gênero é denominado hagiograia, palavra vinda do grego hagios – santo e graia – escrita, e foi utilizado para designar um conjunto de diversos tipos de registros escritos sobre santos, como as paixões, calendários, martirólogos, vidas e legendários, entre outros. A principal característica dessa documentação é apresentar-se como relato verdadeiro dos feitos prodigiosos de algum homem ilustre membro da Igreja2 que serviu como modelo de conduta cristã no período medieval. A confecção dos textos hagiográicos era feita por homens pertencentes à hierarquia eclesiástica os quais tinham como objetivo produzir uma obra ediicante e com conteúdo moralizante A partir desse momento referenciaremo-nos a nossa fonte pela a abreviação de suas inicias, a sigla VSPE. 2 Utilizamos o termo Igreja, porém ressaltamos que nesse momento ainda não há uma consolidação institucional da mesma, apenas de um corpo eclesiástico organizado entorno dos episcopados. 1 344 para os iéis e as comunidades destinatárias e, desse modo, promover a expansão dos ideais cristãos.3 Dentro desse conjunto hagiográico descrito anteriormente, existem as vidas de santos ou Vitae que surgiram na África e Itália no inal do século IV e começo do V e, posteriormente, na Gália e Hispania, que formaram um bloco importante para a difusão do culto dos santos. Ao contar a trajetória de um ou mais viri sancti, a vida provocava em seus leitores vontade de emulação das virtudes apresentadas, expandindo assim, como as outras hagiograias, os preceitos cristãos a serem reproduzidos na sociedade.“La ejemplaridad que ofrecen los protagonistas de las Vitae es impresionante, son arquetipos de bondad, caridad, sabiduría”.4 Escrita no século VII, muito provavelmente em 633, por um autor anônimo, a VSPE é considerada uma das mais singulares hagiograias desse período por retratar uma quantidade signiicativa de dados históricos e informações sobre as estruturas da cidade hispano-visigótica Emerita Augusta, atualmente conhecida como Mérida, localizada no sudoeste espanhol. Esse texto é constituído por uma coleção de cinco vidas de santos, com conteúdos quase totalmente independentes, que narra os feitos prodigiosos e miraculosos dos homens santos daquela região na sexta centúria. Ao nos depararmos com o documento, podemos observar que esse está subdividido em dois: as primeiras três vidas correspondem aos vir sanctus de procedência monástica – menino Augustus, monge Caulianense e abade Nancto. Logo em seguida o hagiógrafo discorre, nos últimos dois capítulos de sua obra, sobre os homens santos da esfera eclesiástica na qual iguram os principais bispos emeritenses da época Paulo, Fidel e Masona. Como já mencionado anteriormente para este trabalho nos interessa abordar a terceira vida da VSPE que foi intitulada Começa a morte de um certo abade Nancto. Nessa vida é narrada a vinda de um monge da África, que após viver algum tempo na capital da Lusitânia ingressa na basílica de santa Eulália, a padroeira da cidade de Mérida. VELÁZQUEZ, Isabel. Hagiograia y culto a los santos em la Hispania visigoda: Aproximación a sus manifestaciones literarias. Mérida: Museo Nacional de Arte Romano, Associación de Amigos del Museo. Fundación de Estudios Romanos, 2005. p.33-40. 4 Ibidem, p. 61. 3 345 O hagiógrafo nos relata que o monge não desejava ser visto por mulheres e insistidamente faz esse pedido para não cair em tentação. Mesmo assim, uma viúva persiste em vê-lo e auxiliada por um diácono atinge seu objetivo. Ao se dar conta do ocorrido, Nancto se aborrece e decide ir para um lugar longe e viver solitário com um pequeno grupo de irmãos. A fama que adquire por suas virtudes se expande a ponto de chegar ao conhecimento do rei visigodo em exercício naquele momento, Leovigildo. O relato nos informa que, apesar de ariano,5 o rei pede ao abade que reze por ele em seu retiro e em troca lhe dá uma possessão de isco real para começar sua vida retirada junto a seus companheiros. Passado um pequeno período de tempo os camponeses que já residiam nesse local e que passam a depender de Nancto, ao comprovarem que esse vive miseravelmente, negando-se a trabalhar e decidem matá-lo. Ao saber da morte de Nancto, Leovigildo os prende e diz que serão castigados por Deus, o que de fato sucede segundo o hagiógrafo, morrendo, assim, todos que mataram o abade. A partir do relato hagiográico explicitado anteriormente, atentaremos especialmente nesse trabalho para o fato de Nancto não querer ser visto por mulheres e nesse sentido consideraremos em que medida essa preocupação está associada às noções de corpo, continência e luxúria que predominavam na sociedade daquele período. Corpo, luxúria e continência na Vida do abade Nancto Para começarmos a pensar na inluência que a noção de corpo teve nessa vida, transcrevemos um trecho da fonte “Mas, como se conta, por todos os meios evitava o olhar das mulheres como a picada de uma serpente, não por depreciar o sexo, mas porque temia cair em pecado, pela visão da imagem da tentação”.6 A tentação a qual o hagiógrafo se O arianismo se caracterizou por ser uma doutrina cristã sobre Deus, criada por Ário, um padre proveniente ra região da Alexandria, que no quarto século defendia a inferioridade da posição de Jesus Cristo como uma das divindades integrantes da trindade e que não possuía a mesma importância divina que Deus. Cf. MAGALHãES, Julio Cesar. In: FUNARI, Pedro Paul. (Org.). As religiões que o mundo esqueceu. São Paulo: Contexto, 2009. p. 88-101. 6 VIDAS DE LOS SANTOS PADRES DE MÉRIDA. Introducción, traducción y notas de Isabel Velázquez. Madrid: Trotta, 2008. p. 66 (tradução nossa). 5 346 refere aqui é a carnal e segundo Jean-Claude Schimtt é por meio desta instância, a carne, que a alma se corrompe e conseqüentemente ela transforma o corpo em seu instrumento para pecar.7 Sabemos que ao longo da História, o corpo, sofreu diversas mudanças como airma Jacques Le Gof e Nicholas Truong no livro Uma história do corpo na Idade Média,8 pois sua percepção foi alterada de acordo com as sociedades nas quais ele se fez presente. De acordo com Paul Veyne em La famille et l’amour sous le haut Empire romain devemos recuar ao século II para entendermos melhor a base sobre a qual a concepção de corpo foi formulada na Idade Média. O autor destaca que desde o reinado do imperador romano Marco Aurélio (180-200) já era possível perceber uma preocupação do homem no controle sobre si, manifestado pela ascese e luta contra as depravações. Portanto os alicerces do que viria a ser postulado mais à frente no período medieval tiveram início com o paganismo. Veyne chega a airmar que os cristãos não foram inovadores sobre a repressão corporal “Essa mudança - que não pode ser forçada demais - é pré-cristã e não lhe deve nada: o cristianismo adotou a moralidade sexual, assim como a língua latina: ele não inventou nada”.9 A impossibilidade de conceber corpo e alma separados um do outro está diretamente relacionada com doutrina cristã na qual “cada homem se compõe tanto de um corpo, material, criado e mortal, quanto de uma alma, imaterial, criada e imortal”.10 Caracterizado pelo binômio corpo/alma, pensar no primeiro elemento no período medieval é reletir sobre a relação existente entre esses conceitos que alternam adoração e desprezo. O momento de reviravolta acerca do pensamento sobre o corpo deu-se com a transformação do pecado original em pecado sexual. SCHMITT, Jean-Claude. Corpo e Alma. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionário Temático Medieval. São Paulo/Bauru: Imprensa Oicial do Estado/EDUSC, 2002. 2v. V.1. p. 253-268, p. 256. 8 LE GOFF, J.; TRUONG, N. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 10. 9 VEYNE, Paul. La famille et l’amour sous lê haut Empire romain. Annales E.S.C, Paris, n. 33, p. 3-23, 1978. p. 37 (tradução nossa). 10 SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit., p. 255. 7 347 Originalmente referido ao orgulho e curiosidade, o pecado original passa de “vontade de saber” para a derrocada do homem na terra. Le Gof e Troung apontam que isso só foi possível devido a “um sistema medieval dominado pelo pensamento simbólico”11 que ao interpretar as passagens bíblicas preferiu adotar uma explanação simplista e controladora, pois considerava mais “palpável” ao entendimento humano e aos seus próprios interesses. Inserido nesse novo contexto de renúncia do corpo viabilizado pelo cristianismo, a depreciação corporal e sexual tomam forma com o discurso de seus ideólogos, dentre eles, Jerônimo e Agostinho, em especial com sua obra Conissões. Não cabe aqui analisar as obras desses intelectuais, porém devemos apontar o quanto as mesmas inluenciaram a conduta sexual e moral da vida social de clérigos e leigos na Idade Média. Para além dos Padres da Igreja citados acima que escrevem no âmbito da teoria, considerando que grande parte dos clérigos até o inal do século IV eram casados ou viviam em concubinato,12 o outro segmento a se destacar como fundamental para entendermos o peril de santidade de Nancto são os monges ascetas. Inluenciados pelos Padres do Deserto, o modelo ascético originário do Oriente – Síria e Egito – foi introduzido no cristianismo pelos Padres da Igreja, devemos salientar o papel de João Cassiano e sua obra Instituições nesse contexto, e ganhou espaço com a instauração do monaquismo no Ocidente. Vindo da África, apesar de não sabermos a localidade exata, Nancto deve ter sido inluenciado de alguma forma pelos preceitos monásticos anteriores a sua própria existência que datam do século IV e V. Vale ressaltar que no início do movimento ascético as questões da restrição sexual, não eram enfatizadas como a principal característica do movimento. As principais preocupações dos ascetas nesse momento se destacavam em relação à libertação do mundo e, por conseguinte daquilo que os caracterizavam demasiadamente humanos, sendo a renúncia sexual uma entre as proposições do movimento.13 LE GOFF, J.; TRUONG, N. Op. Cit., p. 49. BROWN, Peter. Corpo e Sociedade. O homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. p. 385. 13 Ibidem, p. 205-206. 11 12 348 Entretanto, com o passar do tempo, podemos perceber que a preocupação com a continência tornava-se a proposta central dos monges ascetas, e com isso a abstenção ao sexo se faz cada vez mais presente. Essa mudança de temática está diretamente relacionada com a modiicação do pensamento eremítico, devido às transformações ocorridas entre o século IV e V, que trazem a tona às histórias vividas acerca da sedução sexual e da heróica evitação do sexo fazendo com que as mulheres passem a ser apresentadas como fonte de tentação perpétua,14 percebemos então que exemplo semelhante acontece no caso da Vita do abade Nancto. O corpo, então, instrumento do pecado cada vez mais ganha destaque nesse período e o estado de constante vigilância do homem sobre si, que seria um estado continente, é bastante valorizado. Esse novo modelo de conduta atribuído à expansão dos ideais ascéticos na sociedade ocidental será incorporado pela Igreja sob a forma de controle social e ideológico, não só dos clérigos, mas também dos laicos no qual “ele ofereceu inalmente uma sociedade exemplar que realizava sob sua forma ideal o novo modelo sexual: o estado monacal”.15 Esse será de fato o legado que esses eremitas vão deixar para os futuros monges, inclusive Nancto, que se encontra em outro modelo de monacato, o cenóbio, na hispania-visigoda. Dessa maneira, a saída encontrada por Nancto para manter o ideal monástico era prática da continência, também aqui nosso objeto de análise na formação do peril de santidade de Nancto. De acordo com o Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs continentes são os que “lutam contra a sensualidade. A castidade é posse tranqüila, a continência é puro labor”,16 e esse parece-nos o caso do abade Nancto, pois sua insistência em não ser visto por nenhuma igura do sexo feminino demonstra a luta interna na qual o monge vivia e o quanto sua conduta dependia dessa prescrição. Atentemos para outro trecho da fonte “Assim que, sem sabê-lo, o olhar feminino tocou-lhe, caiu no chão com um grande grito, como se Ibidem, p. 185. LE GOFF, Jacques. A recusa do Prazer. In: DUBY, Georges. (Org.) Amor e Sexualidade no Ocidente. Porto Alegre: L&PM, 1992. p. 150-162, p. 151. 16 PRICOCO, S. Continentes. In: BERNARDINO, Ângelo. Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 338. 14 15 349 uma grande pedra tivesse batido nele com força”.17 Dentre os pecados que os monges deveriam enfrentar, iguram entre os mais temíveis a gula e a lúxuria, como aponta Pilosu “a relação entre gula e luxúria, a nível de pecados e de penitências reside, deinitivamente, no seu caráter comum de pecados carnais que sujam a alma, expondo-a Queda”.18 De acordo com o relato, Nancto acreditava que sua renúncia aos prazeres carnais teria êxito e por isso não cairia em tentação, conseqüentemente mantendo-se longe do pecado da luxúria seu estado de continência não seria abalado. Para pensarmos como o combate ao referido pecado era realizado, podemos lançar mão das contribuições de um dos maiores intelectuais do Ocidente medieval, Isidoro de Sevilha. Esse bispo hispano-visigodo, que foi contemporâneo a Nancto, em sua obra intitulada Sentencias destaca uma seção para discorrer sobre a luxúria “A luxúria está à procura mais do que parece. Porque, assim como um homem sábio disse: “O primeiro eixo de prostituição são os olhos, a segunda das palavras””.19 Esse pensamento sobre a importância dos sentidos é recorrente e destacamos as formas ideais para que o pecado da luxúria pudesse ser cometido: “São três as coisas que atiçam o fogo da luxúria: a devassidão, o ócio e a concupiscência dos sentidos”,20 ou seja, desejo carnal desenfreado provocado principalmente nesse caso ato de ver. O caso de Nancto se insere na última forma, pois o próprio opta pela privação total de contato visual com o sexo feminino como uma garantia para manter seu estado continente, mesmo que esse fosse testado regularmente por sua atuação na Basílica de Santa Eulália. Considerações inais As VSPE, assim como outras hagiograias, em geral tiveram um importante papel na propagação da religião cristã no Ocidente VIDAS DE LOS SANTOS... Op. Cit., p. 67. PILOSU, Mario. A mulher, a luxúria e a Igreja na Idade Média. Lisboa: Estampa, 1995. p. 58. 19 ISIDORO DE SEVILLA. Los tres libros de las “Sentencias”. Introducciones, versión y notas de Julio Campos Ruiz e Ismael Roca Melia. Madrid: BAC, 1971. p. 50-51. 20 PILOSU, Mario. Op. Cit., p. 50. 17 18 350 medieval. A reprodução de tais escritos, geralmente imbuídos de caráter doutrinal, provocava nas pessoas vontade de emular os santos e suas virtudes estreitando o contato com a Igreja. Podemos perceber que a Vita do abade Nancto difunde um modelo de conduta cristã vinculado ao exemplo de valorização e estima que a vida retirada e simples proporciona. Contudo, ao privilegiarmos as relexões sobre corpo, luxúria e continência no período veriicamos que o controle do corpo, em especial dos sentidos, tinha como objetivo manter Nancto afastado do pecado, demonstrando a luta interna que o abade vivenciava. Dessa forma, sua renúncia aos prazeres carnais só era possível tendo a continência como seu principal instrumento na construção da santidade. 351 A IGREJA NO OCIDENTE SOB A PERPECTIVA DE ERASMO DE ROTTERDAM NO SECULO XVI Isabel Adelorada Ciappina (Graduanda UFG)1 O século XVI foi um período de muitas mudanças na Igreja, processo iniciado nos séculos XI, XII e XIII, com o surgimento de alguns movimentos que queriam reformar a Igreja. Mas a Cristandade encontrava-se enfraquecida neste período, devido às constantes revoltas de religiosos contra os abusos cometidos dentro da Igreja, fazendo com que o cristianismo icasse dividido ainda mais, naquela época. Além disso, a população daquele período sofria bastante inluencia de religiosos que manipulavam as regras a ser seguidas, sendo que as pessoas tinham que pagar penitencia por qualquer motivo e a Igreja ainda vendia indulgencia aos ieis. Por isso, ocorriam vários conlitos e o povo tinha medo do desconhecido, acabando por pedir proteção da Igreja, fazendo com que ela se enriquecesse ainda mais, como Delumeau menciona: Os cristãos, assustados com o medo da morte e do inferno, procuram abrigar-se sob o grande manto da Virgem e tentam segurar-se contra a danação à força de indulgências compradas. A penitência toma, assim, um carácter venal e as indulgências são oferecidas como prêmios de uma tômbola. 2 Só que com o Renascimento as pessoas passaram a ter mais conhecimento, fazendo com que o cristianismo se tornasse mais acessível à devoção popular, pois começava a ser transmitido os fundamentos da teologia para o povo através do catecismo. Então Isabel Adelorada Ciappina graduanda com Licenciatura e Bacharelado em Historia pela Universidade Federal de Goiás no Campus Catalão. Bolsita PIBIC, sob orientação da Professora Doutora Teresinha Maria Duarte. 2 DELUMEAU, Jean. O Renascimento como reforma da Igreja. In: ___. A civilização do renascimento. Lisboa: Estampa, 1994. 2v., V. 1. p. 121-147. p. 126. 1 352 começou a haver uma valorização da razão que icou bem expressa durante o Renascimento. Mas naquele momento, os estudiosos valorizavam o retorno à cultura da antiguidade. Embora esse retorno não pudesses ser seguido ielmente, sendo o movimento controlado pelo catolicismo que não aceitava muitas mudanças na forma de pensar do ser humano. Assim constata-se que nesse movimento surgiu uma serie de inovações sociais, culturais e na ciência; o que gerou uma maior abertura intelectual ocasionando uma nova visão de mundo na população, como nos conta Amorim: Foi um momento de (...) uma nova mentalidade, mais dinâmica e rica de sentidos, que pudessem atender as necessidades daquele contexto. Mesmo assim, muitos dos pensamentos e da arte do período se airmavam no confronto com a visão medieval. E a Igreja tratava de se defender dos avanços desta nova racionalidade. Às vezes, essa defesa era intransigente e sem piedade. 3 Dessa forma, a Igreja publicou o Index, em 1546 de acordo com Delumeou,4 com a lista dos livros que foram proibidos, por ela, e que não poderiam ser publicados e divulgados para a população. Com isso vários livros de Humanistas são proibidos, pois o Humanismo foi um movimento intelectual do Renascimento, sendo à base do pensamento daquele período. Teve diiculdade de se integrar dentro da Igreja, correndo risco, a todo o momento, de serem perseguidos, pois tinham uma originalidade de pensamento que nem sempre era aceita pela Igreja, por causa de suas idéias inovadoras que trazia em meio às grandes descobertas cientiicas e valorização cultural. Ainda segundo Dubois5 esse movimento “é a descoberta do homem como sujeito, não mais como essência ou objeto. Nem rival de Deus, nem simples ‘mosca entre as mãos de deuses cruéis’. O homem nada mais que humano, porem cada vez mais humano – esse o objetivo do humanismo.” AMORIM, Elias Feitosa de. Renascimento: A celebração do Homem. Desvendando a historia, São Paulo, v. 2, nº 8, 40-45, s/d, p. 7. 4 DELUMEAU, Jean. Op. Cit., p. 130. 5 DUBOIS, Claude Gilbert. O imaginário da renascença. Brasília: Universidade de Brasília, 1995. p. 198. 3 353 Portanto, o Humanismo pode ser considerado um movimento que previa a valorização do ser humano como um ser pensante e não mais como objeto das vontades de Deus. Assim, os humanistas queriam discutir temas religiosos com a intenção de renovar a Igreja, já que o século XVI foi uma época em que houve tentativas de serem explicadas todas as indagações e preocupações do ser humano, como diz Delumeau:6 “As criticas formuladas contra as ordens religiosas, evidentemente muito divulgadas na época do Renascimento, mas por vezes estereotipadas e convencionais, também tem de ser sujeitas a uma análise.” Por isso, Erasmo de Rotterdam é considerado um dos humanistas de maior nome durante o século XVI, devido sua formação de padre e por ter estudado teologia. Viveu junto com humanistas ingleses e teve grande inluência junto a clérigos, estadistas e universitários ao longo de sua vida. Em 1509 com a sua saúde já frágil escreve em apenas sete dias o livro “Elogio da Loucura” que o tornou reconhecido como um dos mais importantes autores do Renascimento. Mas em todas as suas obras, Erasmo procurou, como nos conta Martins,7 “destacar as obras literárias antigas da mentalidade pagã em que estavam imersas, extrair delas o modelo das virtudes naturais humanas e inseri-lo na atmosfera da revelação cristã na qual, segundo ele, aquele modelo conheceria plena expansão.” Além disso, algumas obras suas retratam o seu próprio pensamento. Assim, Erasmo resolveu escrever o livro Elogio da Loucura, porque a loucura para ele é a maneira pela qual a sociedade vive submetida ao poder da Igreja e que aceita ver a sua razão ser reprimida. Porém, por ser humanista e teólogo, Erasmo previa segundo Martins8 que não haveria mais outra pessoa que escreveria como ele, através de sátiras criticando a Igreja de forma imparcial se falar abertamente, apenas nas entrelinhas. Então corre o risco a todo o momento de ser perseguido e suas obras proibidas pela Igreja. A esse respeito Souza9 nos fala que DELUMEAU, Jean. Op. Cit., p. 135. MARTINS, Alex. Apêndice. In: ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da Loucura. Trad. Alex Martins. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 117-125, p. 117. 8 Idem, p. 124. 9 SOUZA, José Fernando Rodrigues de. A loucura na renascença: analise comparativa das obras de Erasmo e Bruegel, na perspectiva e Foucault. 2005. Disponível em http://www.perspectivasonline.com.br/revista/2007vol1n1/ volume%201(1)%20artigo2.pdf . Acesso em 20 de maio de 2011. 6 7 354 Erasmo condenava a intemperança e a extravagância; fugia das certezas “temerárias” para a dúvida prudente; buscava descrever as regras para viver piamente no mundo, para reconhecer os perigos da alma e afastá-los mediante a renovação da vivência religiosa alcançada por intermédio da imitação de Cristo. Com isso, apesar de Erasmo ter escrito sátiras sobre a Igreja Católica, ele não deixou de seguir a religião como nos conta Souza:10 “Apesar da forte tendência para o racionalismo, Erasmo continuou exteriormente ortodoxo. Nunca perdeu a afeição por Cristo, pela Bíblia e pelas cerimônias simbólicas com as quais a Igreja alimentava a piedade.” Então, Erasmo se refere à loucura como uma coisa que a Igreja acusa de impura e ruim para o ser humano, ainda mais por se referir à forma diferente que os humanistas vêem a religião, como Basso11 menciona: A loucura elogia a si mesma, se desnuda como verdade, e é de tão absoluto saber que encanta o leitor ao abordar os deuses e os homens falando do Amor próprio, da Lisonja, do Esquecimento, da Preguiça, da Volúpia, da Irrelexão e da Languidez. Dessa forma, escarnece os homens por suas misérias. Contudo Martins12 diz que, para Erasmo, era preciso mexer primeiramente com as idéias dos inteligentes que na época era o clero, pois eram os únicos que detinham e dominavam o conhecimento para depois mexer com as idéias da sociedade, a qual escutava e respeitava. 10 Idem. BASSO, Marilsa; Comentário sobre “Elogio da Loucura”; s/d. Disponível em http://www.ebp.org.br/encontro2010/pdf/Coment%C3%A1rio%20-%20 Elogio%20da%20Loucura%20-%20Marilsa%20Basso.pdf . Acesso em 20 de maio de 2011. 12 MARTINS, Alex. Op. Cit., p. 125. 11 355 BREVES CONSIDERAçÕES SOBRE A MARGINALIDADE NO REINO VISIGODO A PARTIR DAS ATAS CONCILIARES TOLEDANAS Izabela Morgado da Silva (Graduanda PEM – UFRJ) Considerações introdutórias Graduanda em História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, vinculada ao Programa de Estudos Medievais, orientada pela professora Leila Rodrigues da Silva. Este trabalho, o primeiro em que registro minhas relexões sobre o tema, tem como proposta realizar uma breve e introdutória análise dos concílios visigóticos, especiicamente os concílios toledanos, no que diz respeito ao discurso da Igreja em relação às minorias, trazendo a atenção para dois tipos de marginalizados: o herege e o sodomita. Este tema também servirá de base para o meu projeto de monograia que se encontra em estágio inicial. Os concílios toledanos Como corpus documental foram usadas as atas conciliares toledanas que reúnem dezoito sínodos, realizados entre os anos de 397 e 702, dentro do reino visigodo. Os concílios visigóticos podem ser descritos como reuniões realizadas por clérigos, que apesar de terem como foco assuntos relacionados mais diretamente a instituição eclesiástica e a problemas institucionais, também abarcavam os mais variados aspectos da vida cotidiana, como matrimônios, relações comerciais e datas comemorativas; o que nos dá oportunidade de conhecer melhor o contexto social por meio dos cânones presentes nas atas destes eventos. Dos dezoito concílios toledanos que se tem conhecimento, serão analisados de maneira geral, três atas conciliares. O III Concílio de Toledo, realizado no ano de 589, torna-se um importante referencial para estudarmos o caso dos hereges, pois nele se realiza a conversão do rei Recaredo, e portanto, a conversão do reino visigodo ao cristianismo 356 niceno, abandonando o arianismo e gerando certa estabilidade política por meio de alianças com as elites cristãs ortodoxas presentes na Península Ibérica. O IV Concílio de Toledo também será analisado em relação a este aspecto já que também aborda o persistente caso do arianismo e conirma a crença adotada no concílio anterior. O XVI Concílio de Toledo, realizado em 693, foi tomado como referência para abordarmos o caso dos sodomitas, já que nele encontramos um interessante cânone que possui justamente esse grupo como assunto a ser tratado pela Igreja. As deinições de marginalidade Os estudos destinados à análise da marginalidade têm crescido nas últimas décadas e nos proporcionam uma nova possibilidade de abordagem a um assunto ignorado outrora. Distinta da historiograia do século XIX que buscava analisar principalmente uma história política, o século XX mostrou-se sensível a outra perspectiva: a história social, abarcando diferentes componentes da sociedade, até os excluídos desta. Trabalhos nesse aspecto começaram a ser desenvolvidos nos Estados Unidos e posteriormente tiveram como ponto crucial a Escola dos Annales estimulando o desenvolvimento de novos campos dentro da História. Como mostra do aumento do interesse nesse tema, especialmente no que concerne ao período da Idade Média, alguns nomes se destacam como Jean-Claude Schmitt, Bronislaw Geremek e Jacques Le Gof. Tentar-se-á brevemente expor as principais contribuições dos autores citados anteriormente, com destaque para Jacques Le Gof, cuja relexão nos auxiliou particularmente. Analisaremos como as categorias elaboradas pelo autor acerca do tema nos ajudam num exame dos marginalizados e como estas podem colaborar na análise das atas dos concílios de Toledo, favorecendo a observação de como estes dois grupos, os hereges e os sodomitas, eram tratados ou percebidos pela Igreja. Um dos primeiros questionamentos que podem surgir ao se abordar as minorias está na viabilidade de estudar os marginais durante um período em que possuímos uma reduzida documentação, e que dentre estas, raras são as que algum excluído possua certa voz. Essa diiculdade, entretanto, não é absoluta. É possível, por exemplo, por meio de discursos centrais que se mostram oicias ou muitas vezes 357 predominantes, buscar sinais das relações entre a sociedade e os dela excluídos. Ainda que não tenham um próprio espaço dentro do discurso daqueles que detinham poder, podemos observar como estes últimos falavam dos marginalizados, ou seja, conseguimos tratar dos assuntos periféricos partindo de um discurso central. Podemos observar como as atas conciliares que apresentavam o discurso eclesiástico e que eram produzidas pelo grupo detentor de poder podem nos dar pistas de como os marginais eram considerados, ajudando-nos a preencher grandes lacunas que até então se mostravam esquecidas pela história tradicional. Como destaca Jean-Claude Schmitt: “é uma contribuição essencial da história da marginalidade ter não somente preenchido as margens da história, como ter possibilitado também uma releitura da história do centro”.1 A conceitualização sobre a marginalidade se mostra ampla, incluindo os mais diferentes tipos. Bronislaw Geremek um dos historiadores que mais contribuíram no desenvolvimento desse conceito, revela-nos que marginalizados estão presentes em diferentes locais e temporalidades já que a condição de sua existência supõe um fator: o estabelecimento de regras dentro da organização social. Como mostra o próprio autor: “Todo o ultraje aos tabus e aos interditos da sociedade, por um lado, e a recusa de se submeter às coerções da ordem social, por outro, produziram marginais”.2 Geremek também ressalta que são as instituições dentro de uma sociedade que geram os chamados marginalizados, já que são estas que estabelecem o que deve ou não ser norma. Elas agem baseandose em aspectos jurídicos e legislativos fazendo com que alguns sejam considerados marginalizados e outros não. No período que estamos trabalhando uma das instituições que mais se destacaram nesse ponto foi a Igreja. Durante a Alta Idade Média, tal instituição buscava estabelecer-se irmemente. Nesse sentido, ao se preocupar com o estabelecimento da ortodoxia, procurou neutralizar ou sufocar aqueles que seguiam uma visão distinta da sua se mostrava uma ação relevante. SCHMITT, Jean-Claude. A história dos marginais. In: LE GOFF, Jacques (Org.). A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 261-289, p. 285. 2 GEREMEK, Bronislaw. Marginalidade. In: Enciclopédia Einuadi. Lisboa: Imprensa Nacional. Casa da Moeda, 1999. V. 38, p. 185-212, p. 191. 1 358 O historiador Jacques Le Gof a propósito do tema destacou a atitude ambígua que se tem em relação aos marginalizados ao longo de todo o período medieval. Ainda que se tenha o interesse de mantê-los à distância, estes não podem estar longe o bastante a ponto da sociedade não exercer certo controle ou inluência sobre eles. O pesquisador também ressalta a importância de estudarmos os processos de marginalização que seriam essenciais para a deinição do conceito em si. As etiquetas; os sinais; os gestos; os rituais e cerimônias seriam os quatro componentes que marcariam tais processos. As etiquetas podem ser descritas como as atribuições ou nomeações que são impostas aos marginalizados. Os sinais seriam as marcas que estes levariam consigo em sua vestimenta ou corpo, podendo ser obrigados ou não a carregá-los. Os gestos, como o próprio nome já revela, abarcariam aspectos como modo de portar-se ou de realizar saudações. Por im, as etiquetas e cerimônias envolveriam determinadas práticas que seriam impostas aos marginalizados como as exposições e execuções ou também certos atos que marcariam sua readmissão à sociedade, como ocorria com os hereges que aceitavam a ortodoxia cristã.3 Categorias da marginalidade Antes de tratar das categorias estabelecidas para a marginalidade devemos recordar que nenhuma classiicação possui a capacidade de abordar todos os casos e que alguns marginalizados podem encontrarse em mais de uma categoria. No entanto, o estabelecimento de tipologias sobre o conceito, sem dúvida, auxilia-nos no estudo sobre o tema.4 3 LE GOFF, Jacques. Os marginalizados no Ocidente Medieval. In: ___. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições 70, 1985. p. 181-183. 4 Geremek também realizou uma interessante deinição acerca da marginalidade, estabelecendo categorias distintas pautadas em quatro tipos de abordagem: a econômica, a social, a espacial e a cultural, das quais podemos ressaltar duas ao analisarmos o caso do herege e do sodomita que seriam a social e a cultural. A social envolveria a ausência na participação dos deveres e privilégios de uma comunidade; já a cultural se basearia na contrariedade a conduta e comportamento às normas daquela sociedade. Essas duas abordagens geralmente possuem vínculos diretos segundo o autor, podendo um indivíduo ser um marginal tanto social quanto cultural. Cf: GEREMEK, Bronislaw. Marginalidade. Op. Cit., p. 190. 359 Jacques Le Gof indica seis bases ideológicas nas quais se pautava a sociedade medieval pra estabelecer os marginalizados: a religião; a doença e o corpo; a identidade; a rejeição do contrário a natureza; a estabilidade física e social; e inalmente o trabalho.5 Dentre os seis tipos, interessam-nos especiicamente dois. A heresia, identiicada com o campo religioso e os sodomitas, inseridos no conjunto rotulado de anti-natural. No que se refere à tipologia dos marginalizados,6 o historiador realiza uma classiicação dividida em quatro modelos: os excluídos ou destinados à exclusão, como por exemplo, os hereges; os desprezados, onde se encontrariam os doentes, os pobres e as mulheres; os marginalizados propriamente ditos como os loucos e pedintes; e os chamados marginalizados imaginários, dentre os quais estariam os monstros. Hereges Não há como tratar da heresia sem abordar o que causa sua exclusão: a defesa da ortodoxia. Durante os séculos iniciais da Idade Média percebemos um esforço da Igreja no que se refere ao estabelecimento de suas crenças, como a Trindade e a canonicidade de certos livros no Novo Testamento. Obviamente nenhum desses movimentos foi recebido sem questionamentos, que eram combatidos por aqueles que defendiam a visão ortodoxa. Aqueles que não concordavam com tal visão logo eram considerados hereges. Desde a Antiguidade Tardia, formularam-se vários textos sobre os hereges, escritos por iguras de grande importância no período como Santo Agostinho e Isidoro de Sevilha.7 Um dos casos mais presentes nas atas dos concílios toledanos de heresia é o arianismo. O arianismo, nome procedente daquele que fundou essa vertente, Arius, bispo de Alexandria, defendia uma visão LE GOFF, Jacques. Op. Cit., p. 178-180. Ibidem, p. 178. 7 Como exemplos, podemos destacar: De haeresibus, de Santo Agostinho; e Etimologias, de Isidoro de Sevilha. 5 6 360 cristológica distinta da católica,8 contrariando aspectos do que seria considerado a base da ortodoxia: a Trindade. Segundo o arianismo, Jesus estaria numa posição inferior a Deus e, portanto, ambos não seriam consubstanciais. O III Concílio de Toledo, realizado em 589, combate fortemente o arianismo por claras razões, já que é neste concílio que presenciamos a conversão do rei visigodo Recaredo ao cristianismo niceno, abandonando assim a crença ariana. Logo vemos diversas críticas sobre esta visão cristológica distinta, desqualiicando a heresia a im de fortalecer a visão ortodoxa, o que pode ser percebido na seguinte passagem do III Concílio de Toledo: Cuando los católicos sostenían y defendían la constante verdad de su fe, y los herejes apoyaban con animosidad más pertinaz su propia peridia, yo [Recaredo] también, según lo veis por los resultados, encendido por el fervor de la fe, he sido impulsado por el Señor para que, depuesta la obstinación de la infedelidad y apartado el furor de la discordia, condujera a este pueblo que servía al error, bajo el falso nombre de religión , al conocimiento de la fe y al seno de la Iglesia católica.9 Como podemos ver no cânone anterior os hereges são chamados de iniéis e o arianismo é descrito como um erro, uma falsidade. A oposição entre cristianismo niceno, considerado como a verdade, e arianismo, citado como mentira, pode ser encontrada em diversos cânones ao longo do III e IV Concílios de Toledo. Como exemplo, podemos citar a seguinte passagem: Con el conocimiento de la verdad, sepan rechazar acertadamente el error de la perniciosa herejía y conservar por la caridad el camino de la verdade fe, abrazando con deseo cada día más ardiente la comunión de la Iglesia católica.10 Neste trabalho, o uso do termo “católico” está relacionado ao signiicado da palavra em si, ou seja, ao sentido de universal, estando relacionado com as sedes episcopais do reino visigodo que buscavam construir uma ortodoxia. 9 CONCILIOS VISIGOTICOS E HISPANO-ROMANOS. Ed. Jose Vives. Barcelona-Madrid: CSIC, Instituto Enrique Flórez, 1963, p. 110. 10 Ibidem, p. 111. 8 361 Além da desqualiicação, outros instrumentos foram usados contra aqueles que seguiam a heresia. Visto que na sociedade medieval a religiosidade caminhava ao lado da vida social e por certas vezes, confundiam-se, aqueles identiicados como hereges além de serem considerados anátemas (excomungados e amaldiçoados pela Igreja) eram excluídos da participação nas mais diversas atividades sociais, como podemos observar no seguinte cânone: “Todo aquel que todavia desee retener la fe y la comunión arriana, la misma que hemos conservado hasta ahora, y no la condena de todo corazón sea anatema”.11 Além da condenação em termos jurídicos, os hereges também se viam dentro da condenação religiosa: “Si algunos de ellos no quisieren creer en esta recta y santa confesión, experimenten la ira de Dios con el anatema eterno, y sea su perdición gozo para los ieles y ejemplo para los inieles”.12 Eles seriam, portanto, produtos da ira divina e já tinham seu inal deinido, o inferno. Sua condenação e a sua exclusão dentro da vida social gerariam um exemplo vigoroso para os demais cristãos, estimulados a seguir assim a ortodoxia cristã. Sodomitas A classiicação de Le Gof sobre os marginais com base em algumas das chamadas obsessões da sociedade medieval nos leva a colocar os sodomitas dentro da categoria de marginais que agem contra a natureza, já que usariam os seus corpos contra o objetivo estabelecido por Deus.13 Sobre esta categoria encontramos dois registros muito interessantes no XVI Concílio de Toledo: Igualmente, entre otros crímenes, debéis decretar el exterminio de aquel crímen obsceno que es la homosexualidad, cuyas prácticas horrendas ensucian Ibidem, p. 118. Ibidem, p. 112. 13 O termo “sodomia” utilizado ao longo da Idade Média pode referir-se às mais distintas práticas, podendo descrever as relações anais masculinas, a masturbação e a bestialidade. Cf.: RICHARDS, Jefrey. Sexo, desvio e danação. As minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. p. 139. 11 12 362 la gracia de una vida honesta y provocan la ira del supremo vengador que está en los cielos.14 […] para extirpar la costumbre de esta práctica vergonzosa […] sancionamos que todos los que aparecieren ejecutores de una acción tan criminal, y todos aquellos que se hallaren mezclados en estas torpezas y obrando contra naturaleza, hombres con hombres cometieren esta torpeza, si algunos de ellos fuere obispo, presbítero o diácono desposeído del grado del propio honor será condenado a destierro perpétuo; pero si otras personas de cualquier orden o grado, se les hallare complicadas en crímenes tan afrentosos, sufrirán, no obstante, el rigor de aquella ley que se promulgó en contra de los tales y separados de la asamblea de los cristianos, corregidos además con cien azotes, y vergonzosamente rasurados, serán condenados al destierro perpetuo; de tal modo que a no ser que una digna satisfacción penitencial les permitiere recibir al in de su vida el cuerpo y la sangre de Cristo, o los restituyere a la sociedad de los cristianos, tanto aquellos que deshonraron el culto debido a la religión, como aquellos otros hombres de cualquier grado, como dijimos, sepan que ni al in de su vida, conforme a lo establecido en los cánones, serán consolados con la recepción de la comunión, ni agregados a la comunidad cristiana.15 Num período que a castidade cristã era o comportamento em pauta e as relações sexuais apenas tinham o objetivo da reprodução e o sexo se torna o próprio pecado original, a conduta dos sodomitas se mostrava totalmente contrária ao padrão estabelecido pela Igreja, demonstrando uma atitude caracterizada pela luxúria. Encontramos uma crítica a este comportamento desde as epístolas de Paulo em que 14 15 CONCILIOS VISIGOTICOS E HISPANO-ROMANOS. Op. Cit., p. 487. Ibidem, p. 500. 363 o apóstolo prega que os sodomitas não herdariam o reino de Deus.16 Pensamentos como estes foram reforçados por Santo Agostinho que destacava a sodomia como uma atitude reprovável e que deveria ser combatida.17 Como o corpo durante a Idade Média era considerado como intimamente relacionado a alma, todo aquele que se entregasse à chamada concupiscência da carne, ou seja, gozasse dos prazeres terrestres, comprometia sua alma, tornando-a pecadora. O corpo, portanto, deveria ser disciplinado, pois somente pela via ascética a salvação da alma poderia ser conseguida.18 Aqueles que sucumbiam aos prazeres sexuais demonstrariam claramente que não possuíam controle sobre suas vontades, provando a natureza decaída do ser humano.19 Assim, a atitude dos sodomitas evidenciaria um maior apego ao corpo, ao invés da alma e da ascese espiritual e por isso mereciam uma condenação tão rígida: aqueles que realizassem práticas sodomíticas, eram vistos como provocadores da ira divina, como considerado no cânone anterior, não poderiam nem mesmo receber a comunhão antes da morte e seriam expulsos da comunidade cristã. Considerações inais O estudo dos marginais dentro da sociedade medieval tem como base o desenvolvimento da normatização da Igreja no campo religioso, moral, social e econômico. Como destaca Le Gof, a Igreja “Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus.” 1 Coríntios 6:10. 17 “Por isso, todos os pecados contra a natureza, como o foram os dos sodomitas, hão de ser detestados e castigados sempre e em toda a parte, pois, mesmo que todos os cometessem, não seriam menos réus de crime diante da lei divina, que não fez os homens para usar tão torpemente de si; de fato viola-se a união que deve existir com Deus quando a natureza, da qual ele é autor, se mancha com a depravação das paixões.” (Conissões, III, c. VIII). 18 SCHMITT, Jean-Claude. Corpo e alma. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2006. 2v. V.1. p. 253-267. 19 BROWN, Peter. Corpo e Sociedade. O homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. p. 333-335. 16 364 na Idade Média tem como um dos seus pressupostos a ideia de uma comunidade sagrada que compreenderia tanto clérigos como leigos, portanto, aqueles que não agissem em conformidade ao padrão de pureza, fé e conduta dentro desta comunidade poderia cair no juízo de suspeição ou rejeição.20 Estudamos um período em que esta instituição busca exercer inluência diretamente na sociedade. Ao analisarmos o seu discurso, presente em documentos como as atas conciliares, temos a oportunidade de observar a sua tentativa de estabelecer padrões de comportamento, a partir da visão que esta tinha em relação aos considerados marginalizados. Ainda que não possamos garantir que seu discurso afetasse toda a sociedade, poderemos examinar a visão desta instituição sobre esse grupo. 20 LE GOFF, Jacques. Op. Cit., p. 177. 365 AS CONDENAçÕES AO PRISCILIANISMO NAS ATAS DO I CONCÍLIO DE TOLEDO Jaqueline de Calazans (Doutoranda PEM – PPGHC – UFRJ) A comunicação agora apresentada compõe parte de nossa pesquisa de doutorado desenvolvida junto ao Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ e vinculada ao projeto que trata das relações de poder nos reinos germânicos, dirigido pela Profª Drª Leila Rodrigues da Silva e desenvolvido no âmbito do Programa de Estudos Medievais. O I Concílio de Toledo foi celebrado na província Cartaginense na cidade de Toledo no ano de 400. A historiograia acerca do movimento priscilianista caracteriza este concílio como um sínodo de conteúdo marcadamente antipriscilianista. Diferentemente de Zaragoza I (380), concílio no qual não são feitas referências diretas ao movimento, neste, realizado após a morte de Prisciliano em 385, encontra-se presente uma série de deliberações condenatórias aos seguidores de Prisciliano. Dessa forma, sua análise permitir-nos-á inferir os problemas enfrentados pela ortodoxia após o julgamento de Prisciliano.1 Por meio do conjunto de conceitos propostos por Pierre Bourdieu, como os de campo2 e capital simbólico, analisaremos as atas do referido sínodo, buscando compreender a dinâmica estabelecida no campo religioso naquele período, no qual se intensiicaram as disputas entre os agentes do referido campo. Dessa 1 A morte de Prisciliano aconteceu após um julgamento civil na cidade de Tréveris, sob o comando do então imperador Máximo. Mesmo tendo apelado para que o julgamento fosse transferido para a região da Hispania, Prisciliano foi julgado e condenado à morte por malefício e bruxaria em 385-86. Prisciliano juntamente com alguns de seus seguidores, entre estes uma mulher de nome Eucrocia, foram decapitados, e outros perderam suas sedes e foram exilados do Império. 2 O campo se apresenta para Bourdieu como um espaço estruturado do mundo social, cujas propriedades dependem muitas vezes da posição de seus ocupantes neste espaço. É no interior do campo que Bourdieu analisa a luta constante entre o novo ocupante que tenta forçar o direito de entrada e o dominante que tenta defender o monopólio adquirido, excluindo desse modo, a concorrência. BOURDIEU, P. Algumas propriedades do campo. In: ___. Questões de Sociologia, Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. p. 89-94. 366 forma, sua análise possibilitar-nos-á inferir os caminhos tomados pela ortodoxia após o julgamento de Tréveris. Com o auxílio desta base conceitual, buscaremos traçar uma visão de aspectos da construção do campo religioso do período analisado, procurando veriicar em que medida a caracterização de alguns bispos como heréticos e a condenação às práticas priscilianistas tinha como objetivo a reorganização do campo religioso, frente ao desgaste causado pelo julgamento de Prisciliano e que em última instância ia ao encontro dos interesses da esfera política representada aqui pela busca por unidade do Império Romano. 3 Assim, considerando-se que é no século IV que o cristianismo passa de religião ilícita a religião oicial do Império, é também neste momento que as ações da Igreja e do Império que visavam a consolidação dos interesses da coletividade em torno sacrosancta ecclesiae catholica acabaram por deinir a heresia como um crime contra a ordem romana.4 Sendo o I concílio de Toledo o primeiro realizado após a morte de Prisciliano, este acontece em um momento de desestabilização da hierarquia eclesiástica na Galiza, e assim do campo religioso naquele contexto espaço-temporal. Esta desorganização deu-se em decorrência da queda do imperador Máximo, este responsável pela execução de Prisciliano e pelo estabelecimento de uma série de medidas contra supostos priscilianistas dentro da Península Ibérica.5 Segundo o historiador Silvan Sanchez, o fato do corpo de Prisciliano ter sido levado para o noroeste peninsular pelo bispo Simpósio de Astorga teria sido uma das razões para o recrudescimento do priscilianismo naquela região.6 Assim, ainda segundo Sanchez, os dezenove bispos 3 A referência ao campo político justiica-se por meio de uma série de medidas de combate às heterodoxias presentes na legislação Teodosiana. ESCRIBANO Pano, Maria V. Herejía y Poder en el s. IV. In: CANDAU, José Maria, GASGÓ, Fernando e RAMÍREZ DE VERGER, Antonio (Eds.). Conversión de Roma. Madrid: Ediciones Clásicas, 1990. p. 31. 4 ESCRIBANO Pano, Maria V. Op. Cit., p. 154. 5 Em consonância com o propósito de eliminação das dissidências religiosas, tanto o imperador Máximo, como depois Teodosio estipularam uma serie de penas aos acusados de heresia que iam de multas ao conisco de bens e até mesmo o exílio. ESCRIBANO PANO, M. V. Alteridad Religiosa y Maniqueismo en el Siglo IV D.C. Studia Historica. Historia Antigua, Salamanca, v. 8, p. 29-48, 1990. p. 36. 6 SANCHEZ, Sylvain Jean-Gabriel. Priscillien un chrétien non conformiste. Doctrine et pratique du Priscillianisme du IVe au VIIe siècle. Paris: Beauchesne, 2009. p. 105. 367 presentes ao concílio tinham por objetivo restaurar a disciplina na região, contudo, evitando medidas duras como as tomada por Máximo em 385.7 Logo no início das atas, após a nomeação dos bispos presentes tem-se a referência a textos heréticos que teriam sido escritos por priscilianistas. A condenação a quaisquer escritos produzidos no âmbito do movimento está reiterada em pelo menos dois trechos das atas de Toledo I. O primeiro aparece na abertura das atas na qual encontramos a seguinte airmativa relativa aos bispos: Patruino, Marcelo, Afrodisio, Alaciano, Jocundo, Severo, Leonas, Leporio, Hilário, Olimpio, Sereno, Floro, Orticio, Asturio, Lampio, Eustoquio, Aureliano, Lampadio e Exuperancio de Galicia. (…) que son los mismos que en otras actas promulgaron la sentencia contra los seguidores de Prisciliano y los folletos heréticos compuestos por éste.8 (grifo nosso) Não está explícita na referida documentação quais seriam os textos aos quais bispo Patruino está se referindo. Poderiam ser os Tratados priscilianistas9 ou ainda outros de autoria de Dictino. A respeito deste, existe menção a seus escritos no inal das atas, parte destinada às proissões de fé dos bispos contra o movimento priscilianista. Ao abjurar ao movimento, segundo as atas Dictino diz: A sentença de morte promulgada contra Prisciliano juntamente com outros seguidores em um tribunal de caráter civil, teve como consequência uma série de protestos por parte de alguns membros da hierarquia da Igreja, como Martin de Tours e Ambrósio de Milão. Cabe destacar que o descontentamento não signiicava a crença por parte destes na inocência de Prisciliano, mas sim uma defesa da prerrogativa de agentes do campo religioso no julgamento de clérigos, já que o condenado era então bispo da cidade de Ávila. Mais sobre esta controvérsia, ver ESCRIBANO PANO, M. V. Op. Cit., p.39. 8 CONCILIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS. Ed. José Vives. Madrid: CSIC. Instituto Enrique Florez, 1963. p. 19. A partir deste ponto estaremos utilizando a abreviatura CT para as referências ao cânones do Concílio de Toledo I. 9 Estes escritos compõem-se de dez tratados e encontram-se reunidos na obra de SEGURA RAMOS, Bartolomè (trad. y notas). Prisciliano: tratados y cânones Biblioteca de Visionários: Heterodoxos y Marginados. Madrid: Nacional, 1975. SEGURA RAMOS, Bartolomè. Op. Cit. 7 368 “Yo no solo pido vuestra corrección, sino que arguyo y condeno todas las osadías de mis escritos”.10 Ao reletirmos acerca da importância da produção intelectual dentro daquele contexto, lançamos mão de um outro conceito elaborado por Bourdieu, o de capital simbólico.11 Dentro da composição do campo religioso daquele período, a disputa pela detenção de bens simbólicos é primordial aos grupos em disputa, no sentido da acumulação de capital simbólico, o que explicava a desqualiicação de obras que não tivessem sido produzidas ou selecionadas pelo grupo dominante. Assim a partir do século IV, os priscilianistas perdem grande parte de seu prestígio entre a elite mais culta. Em prosseguimento de nossa análise do documento, um outro aspecto, este relacionado ao âmbito disciplinar, icou evidenciado. Os problemas causados pela nomeação feitas por bispos priscilianistas no noroeste da península: Porque cada uno de nosotros hemos empezado a obrar de distinta manera en otras iglesias, y de aquí se han originado escándalos que casi rayan en verdaderos cismas, si os agrada a todos vosotros decretemos lo que ha de hacerse por todos los obispos al ordenar a los clérigos.12 Carmen Cardelle Hartmann aponta para o papel do episcopado para difusão do priscilianismo, já que a ação do bispo Simpósio de Astorga ao trazer os restos mortais de Prisciliano para o noroeste CONCILIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS. Op. Cit., CT, p 28. A obra mais famosa de Dictino icou conhecida como Libra, escrito no qual o autor defenderia a mentira como estratégia para fugir da perseguição contra os priscilianistas. PIAY AUGUSTO, Diego. Acercamiento Prosopográico al priscilianismo. Espacio y tiempo en la percepción de la Antiguidad Tardia. Antiguidad crist., Murcia, v. XXIII, 2006. p. 601-625. 11 O capital simbólico segundo Bourdieu, consiste na distinção que um agente detém ao acumular prestígio, reputação ou fama dentro de um determinado campo de produção de bens simbólicos. BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Lisboa: DIFEL/Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1989. p. 15 e 144. 12 CONCILIOS VISIGOTICOS E HISPANO-ROMANOS. Op. Cit., CT, p. 19. 10 369 peninsular teria marcado o início de um fervor mais popular em torno de Prisciliano em uma região desprovida até então de mártires e de relíquias. Ainda segundo a autora, Simpósio teria ordenado Dictino como bispo de sede vacante mesmo contra as orientações de ambrosio de Milão. 13 Desta forma, as atas de Toledo I nos deixam vestígios da desestruturação do campo religioso, e a intenção da ortodoxia de por im ao movimento, tentando conseguir a abjuração dos bispos ao priscilianismo. Em relação, especiicamente, aos cânones disciplinares, alguns de seus artigos apresentam as mesmas preocupações do I concílio de Zaragoza realizado em 380,14 como o VI cânone que determina: VI. Que la joven religiosa no tenga familiaridad con los varones. También se estableció que la joven consagrada a Dios no tenga familiaridad con varón religioso, ni con cualquier otro seglar, sobre todo si no es pariente suyo, ni asista sola a convites a no ser que se hallen presentes ancianos o personas honradas, o viudas y mujeres honestas, y donde cualquier religioso pueda asistir honestamente al convite en presencia de muchos. Y respecto de los lectores, mandamos que no deben ser admitidas en las casas de éstos, ni aun de visita, a no ser que sea hermana suya consanguínea o uterina. 15 Em Toledo I aparece reiterada a interdição às mulheres de conviverem com homens que não sejam seus parentes, e ainda que estas participem de encontros aos quais não possam estar presentes religiosos. Esta proibição pretende ratiicar a intençãoda ortodoxia eclesiástica em delimitar o espaço das mulheres, diferentemente CARDELLE DE HARTMANN, Carmen. El priscilianismo tras Prisciliano ¿un movimento galaico? Habis, Sevilha, 29, p.269- 290, 1998. p. 272- 275. 14 Embora autores como Jimenez Duque sustente que os artigos tinham o objetivo de determinar obrigações celibatárias. JIMENEZ DUQUE, Baldomero. La Espiritualidad Romano - Visigoda y Muzárabe. Madrid: Universidad Pontiicia de Salamanca, Fundación Universitária Española, 1977. p. 32. 15 CONCILIOS VISIGOTICOS E HISPANO-ROMANOS. Op. Cit., CT, IV, p. 21. 13 370 do status que estas gozavam no priscilianismo.16 Buscavam assim, uma estruturação do campo religioso mais favorável à hierarquia eclesiástica, que criasse fronteiras mais claras entre clérigos e leigos, e ainda evitassem a incorporação de mulheres ao movimento como havia ocorrido ao tempo da viagem de Prisciliano à Roma. Após a promulgação dos cânones gerais do concílio, encontramos “os artigos de fé contra todas as heresias, em especial contra os priscilianistas que foram redigidos pelos bispos Cartaginenses, Tarraconenses, Lusitanos e Béticos e enviados com o preceito do papa romano Leão, a Balconio bispo da Galiza”, da qual transcrevemos: Creemos en un solo Dios verdadero, Padre, Hijo y Espíritu Santo. Hacedor de todas las cosas visibles e invisibles, por quien fueron creadas todas las cosas en el cielo y en la tierra; este solo Dios y esta sola Trinidad so de sustancia divina, (…) esta trinidad es distinta en las personas y es una sola sustancia unida por la virtud e indivisible (…) Hijo de Dios, nacido Dios del padre antes de todo o principio, santiicó el seno de la Virgen Maria, y se hizo de Ella verdadero hombre, engendrado sin semen viril, reuniéndose las dos naturaleza, esto es : la Divina y la carnal en una sola naturaleza (…).17 O fragmento destacado do símbolo de fé relaciona-se à acusação feita aos priscilianistas de difundir a crença de que Jesus Cristo não poderia ter nascido como carne. O problema acerca da Trindade e da natureza de Cristo não é uma questão especíica do século IV. Segundo Ramos-Lisson, desde o Concílio de Elvira que a ortodoxia buscava “salvar a unicidade de Deus”, contra heresias como o arianismo, entre outras.18 A acusação feita aos priscilianistas de difundirem ensinamentos que Jesus Cristo era inascível, leva-nos a concluir que estas questões permaneciam como foco de disputas naquele momento. Autores como Blázquez e Barbero Aguilera apontam para o fato de que o priscilianismo foi um movimento do qual homens e mulheres participavam de forma ativa fugindo assim do controle da hierarquia eclesiástica. BARBERO DE AGUILERA, Abilio. La Sociedad Visigoda y su Entorno Historico. Madrid: Siglo XXI, 1992. p. 88. e BLÁZQUEZ MARTINEZ, J.M. Op. Cit., p. 72-73. 17 CONCILIOS VISIGOTICOS E HISPANO-ROMANOS. Op. Cit., CT, p. 25-26. 18 RAMOS-LISSON, Domingo. Op. Cit., p. 91. 16 371 Ainda cabe destacar que esta acusação buscava aproximar ainda mais os priscilianistas do maniqueísmo, heresia concebida como crime contra o Império desde o século IV. Dessa forma se sobrepunham as acusações de maniqueísmo e malefício ao movimento, o que induziria a uma tomada de posição mais irme por parte do Império em relação ao movimento em um contexto em que a unidade do Império dependia da unicidade do cristianismo.19 Acerca da questão trinitária e cristológica versam nove dos dezoito cânones antipriscilianistas. Podemos veriicar a partir do destaque dado ao tema, a fragilidade de uma concepção acerca da natureza de Cristo que fosse homogênea e consensual no início do século IV. Destarte, podemos sublinhar a importância da relação dialética entre ortodoxia e heterodoxia, para a construção do discurso eclesiástico que, por meio da tradição conciliar, veio a formar o conjunto de dogmas e doutrinas que denominamos como ortodoxia. A partir do artigo XV encontramos deliberações que nos possibilitam apreender novos aspectos acerca do movimento priscilianista. O cânone XV sentencia: “Si alguno juzga que debe creerse en la astrología o en las matemáticas, sea anatema”.20 A relação estabelecida neste cânone entre as práticas associadas à astrologia remete-nos a acusação imputada a Prisciliano de conhecimentos relacionados à astrologia e a magia. Ruy de Oliveira Andrade Filho chama a atenção para o fato de que para sobrepor-se ao complexo mitológico greco-romano, cultos orientais, superstições, etc, o cristianismo encaminhava a idéia das práticas pagãs como um conjunto sob o patronato do mal. No momento analisado, o discurso eclesiástico busca aproximar quase sempre de forma íntima a idolatria, a magia e a heresia. Daí a apresentação de Prisciliano como um conhecedor e praticante de magia.21 Como anteriormente mencionado, esta aproximação entre elementos pagãos e o priscilianismo foi um dos fatores que contribuíram para a difusão do movimento entre as ESCRIBANO PANO, M. V. Op. Cit.,p. 38. CONCILIOS VISIGOTICOS E HISPANO-ROMANOS. Op. Cit., CT, XV, p. 28. 21 ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Ensaio sobre a religiosidade popular na Hispania do século IV: O concílio de Elvira. Américas, Santa Fé, n.2, p. 30-58, 1995. p. 52. 19 20 372 camadas mais populares da Galiza, região esta, na qual as tradições pagãs ainda eram bem vivas.22 Podemos ainda compreender esta acusação de práticas relacionadas à magia imputada a Prisciliano dentro de um esforço da hierarquia eclesiástica de controle e monopólio da manipulação do elemento mágico.23 A construção do cânone bíblico é outro elemento presente nas atas de Toledo I. O décimo segundo artigo destinado ao combate do priscilianismo condena todos que creditarem autoridade e venerarem escrituras fora as reconhecidas pela Igreja. A leitura dos textos considerados apócrifos pelos priscilianistas foi um dos pontos recorrentes nas acusações feitas ao movimento. No Tratado Libro sobre la fé y los apócrifos, atribuído a Prisciliano ou a um priscilianista, o autor ocupa-se fundamentalmente de defender a leitura e o estudo dos livros apócrifos, evitando o uso deste termo. O autor questiona os critérios de seleção do cânone, chamando a atenção que a ixação de um número de livros como canônicos resultaria da iniciativa humana. Neste tratado, o autor não discute a autoridade do cânone, mas a reprovação de que foram objeto o restante dos textos que acreditava também serem de “inspiração divina”.24 Para Raymond Van Dam, essa defesa não deve ser encarada como necessariamente um desaio à hierarquia eclesiástica, já que a ênfase dada à literatura não canônica caminha ao lado de ensinamentos muito próximos da ortodoxia.25 A incorporação de tradições pagãs pelo movimento priscilianista no noroeste da Galiza é aspecto bem desenvolvido na análise de CABRERA, Juliana. Op. Cit., p. 118-128. 23 Para Pierre Bourdieu, “a oposição entre os detentores do monopólio do sagrado e os leigos, deinidos como profanos, no duplo sentido de ignorantes da religião e de estranhos ao sagrado e ao corpo de administradores do sagrado, constitui a base do princípio da oposição entre sagrado e profano e, paralelamente, entre a manipulação legítima (religião) e a manipulação profana e profanadora (magia ou feitiçaria). Uma vez que a religião, e em geral todo o sistema simbólico, está predisposta a cumprir uma função de associação e de dissociação, ou melhor, de distinção, um sistema de práticas e crenças está fadado a surgir como magia ou como feitiçaria, no sentido de religião inferior”. BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1999. p. 43. 24 SEGURA RAMOS, Bartolomè. Op. Cit., p. 67. 25 VAN DAM, Raymond. Leadership and community in Late Antique Gaul. Berkeley, Los Angeles, Oxford: University of California, 1992. p. 91; LESORT, André. Bibliothèque de l’école des chartes, Paris, v. 71, n. 1, p. 332 – 334, 1910. 22 373 Os dois próximos cânones destacados revelam-nos uma outra questão posta à hierarquia eclesiástica expressa pelo rigor ascético atribuído aos priscilianistas. Estes dizem: XVI. Si alguno dijere o creyere que los matrimonios de los hombres que se reputan lícitos según la ley divina, son execrables, sea anatema. XVII. Si alguno dijere o creyere que debe uno abstenerse de las carnes aves o de los animales que nos han sido dados para alimento, no por mortiicar el cuerpo, sino por execrables, sea anatema.26 Nestes artigos vemos caracterizado o ascetismo rigoroso de Prisciliano e de seus seguidores. Podemos perceber que o ascetismo pregado pelos priscilianistas, expresso no vegetarianismo, na condenação ao matrimônio e à procriação,27 constrangia grande parte do episcopado peninsular. O historiador Henry Chadwick revela que na região da Hispania alguns bispos e outros membros do clero não guardavam as regras da castidade estabelecidas no Concílio de Elvira,28 e havia ainda, entre os sacerdotes ordenados, alguns que se dedicavam a atividades seculares como o comércio.29 Para Escribano Pano, este ascetismo conduzia os priscilianistas ao mais alto grau de ascendência sobre o populus, na medida que apresentando-se como ascetas, eram reconhecidos na forma mais seleta e elitista do cristianismo.30 O último trecho destacado das atas de Toledo I é o destinado às condenações e sentenças dadas aos bispos acusados de seguirem CONCILIOS VISIGOTICOS E HISPANO-ROMANOS. Op. Cit., CT, XVI e XVII, p. 28. 27 CHADWICK, Henry. Op. Cit., p. 20. 28 Apesar do Concílio de Elvira não estabelecer a dissolução dos casamentos já existentes, exige severamente que os clérigos que estivessem casados vivessem castamente com suas esposas. Impondo assim, a abstinência sexual como um dos ideais ascéticos ao quais todos os clérigos deveriam almejar. Para uma análise acerca das questões mais relevantes acerca do Concílio de Elvira e os problemas relacionados à sua datação ver: ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Op. Cit. 29 CHADWICK, Henry. Op. Cit., p. 20. 30 ESCRIBANO PANO, M. V. Op. Cit.,p. 38. 26 374 os ensinamentos de Prisciliano. Embora apareçam nas determinações uma intenção conciliatória expressa no perdão dado aos bispos que abjuraram à heresia,31 não podemos negligenciar os impactos dos dispositivos presentes naquele momento que puniam todos os que fossem considerados como heréticos. Logo após o julgamento de Trevéris, uma série de determinações do então imperador Máximo exigia a deposição, a perda da sede episcopal, de propriedades familiares e até mesmo a pena capital aos seguidores de Prisciliano. Mesmo com a queda de Máximo, outras legislações imperiais como a de Teodosio reairmaram a maior parte destas punições, o que poderia explicar a abjuração e a proissão de fé dos bispos Paterno de Braga, Comasio, Sinfosio, Dictino, Isonio e Vegetino.32 Contudo, as disputas dentro do episcopado presente no I concílio de Toledo não terminam com as proissões de fé, na medida que as atas nos brindam ainda com a persistência de grupos dissidentes representados na igura do bispo Herenas de quem se diz: Herenas preirió más bien seguir a sus clérigos, los cuales espontáneamente, sin ser preguntados, habían aclamado a Prisciliano como católico y santo mártir, u el mismo dijo que había sido católico hasta el inal y que había padecido la persecución de parte de los obispos (…).33 Conclusão As atas do I Concílio de Toledo nos forneceram indícios importantes acerca das disputas internas ao campo religioso no início do século IV. A partir de sua análise podemos traçar algumas CABRERA, Juliana. Op. Cit., 112-113. BUENACASA PEREZ, C. La igura del obispo y la formación del patrimonio de las comunidades cristianas según la legislación imperial del reinado de Teodosio I (379-395). Studia Ephemeridis Augustinianum, Roma, n. 58, p. 121-139, 1997. p. 127-128. 33 CONCILIOS VISIGOTICOS E HISPANO-ROMANOS. Op. Cit., CT, p. 31. 31 32 375 considerações. A convocação do sínodo toledano tinha por motivação principal a regulamentação disciplinar resultante da desorganização da hierarquia eclesiástica no noroeste da Península Ibérica no início do século IV. A condenação à morte de Prisciliano e de alguns de seus seguidores não resultara no im do movimento, mas causara uma desestruturação do campo religioso. Veriicamos que embora as acusações contra os priscilianistas permanecessem próximas às estabelecidas no Concílio de Zaragoza de 380, o tom mais apaziguador das atas de Toledo I remete-nos a uma condenação implícita da atitude do imperador Maximo em sobrepor um tribunal civil frente ao foro da própria Igreja. Alguns elementos em questão em Toledo reiteram concílios anteriores como a proibição da convivência de mulheres com homens sem um parentesco direto. A discussão acerca da natureza de Cristo é reairmada em alguns dos cânones antipriscilianistas. Contudo, novas preocupações se apresentaram nas atas analisadas, como a difusão de escritos produzidos no âmbito do movimento e a defesa do cânone selecionado pela hierarquia eclesiástica com a conseqüente desqualiicação dos textos considerados pela Igreja como apócrifos. Ainda podemos destacar a relação estabelecida entre o priscilianismo, a magia e o maniqueísmo, o que facilitou a aproximação do movimento com outras práticas e heterodoxias consideradas como crime contra o Império. Veriicamos a força do discurso repressor do Império Romano, que resultou em série de abjurações ao movimento priscilianista e dos escritos produzidos por eles. Contudo, percebemos que a chegada dos restos mortais de Priscilano à Galiza havia promovido um fervor em torno de um culto a sua igura como santo e mártir caracterizado nas palavras do bispo Herenas ao negar-se abjurar aos ideais do movimento. Dessa forma, concluímos que o priscilianismo contava ainda com o apoio da parte da hierarquia do noroeste peninsular naquele período. 376 PAISAGEM ALTERADA: INTERVENçãO URBANA EM SEVILHA NO SÉCULO XIII – ORDENS MONÁSTICAS Jéssica Furtado de Sousa Leite (Graduanda – Translatio Studii – UFF)1 O presente trabalho tem por objetivo mapear e analisar as diferentes formas de ocupação das ordens monásticas em Sevilha logo após sua conquista em meados do século XIII. Abrangendo, portanto, principalmente, o reinado de Alfonso X. Para tal buscamos apreender as interferências feitas no plano morfológico da cidade e identiicar de que maneira tais ordens eram espacialmente organizadas. A cidade foi totalmente desocupada quando conquistada, em 1248, e a forma como a monarquia vai remodelar esse espaço urbano nos diz muito sobre como ela vai se relacionar com os diversos grupos sociais vigentes. Parte desta relação pode ser percebida através das diversas prerrogativas concedidas em diplomas ou privilégios reais, que abrangiam desde isenções iscais até doações de propriedades urbanas e rurais, dotando, assim, as ordens monásticas mais próximas à coroa de imunidades e de um patrimônio imobiliário que lhes garantia poder econômico e político dentro da cidade e em seu alfoz. Sevilha é uma cidade atípica, muito grande para os padrões medievais, se colocou como um desaio em relação ao repovoamento. Havia cerca de 30 mil habitantes logo antes de ser conquistada por Fernando III e alguns autores estimam 80 mil em períodos anteriores. Os cristãos não dispunham de contingente populacional suiciente para dar conta de todo esse espaço, tanto que os muçulmanos são expulsos da cidade, mas num primeiro momento permanecem na área rural, ao redor de Sevilha devido ao número insuiciente de cristãos para ocupá-la. Além disso, nem todas as pessoas que recebem propriedades em Sevilha se mudam efetivamente para lá. O 1º repartimento só é completado em 1253. A partir destes dados e de outras doações, Julio González estimou o contingente de repovoadores em 24 mil pessoas, cifra esta que é considerada desproporcional por Manuel González Jimenez que propõe algo em torno de 15 mil novos habitantes. Consideramos que a cifra deve ter-se aproximado 1 Bolsista CNPq. 377 da segunda proposta, pois Julio González realiza seu cálculo tendo por base famílias bastante numerosas (o que não pode ser veriicado) e não leva em consideração que várias destas famílias não chegam a se deslocar para Sevilha (o que nos é indicado pela necessidade de posteriores repartimentos em função do absenteísmo). Todos esses fatores facilitaram a instalação de inúmeros mosteiros na cidade de Sevilha.2 A relação entre as ordens monásticas e as cidades não se caracterizam com um padrão pré-estabelecido, e sim, a partir de circunstâncias especíicas. Esta relação é matizada de acordo com as estruturas sociais vigentes, com o foro estabelecido para a cidade,3 com a relação entre o rei e cidade, e no caso de Sevilha, pela necessidade de repovoar um território que supera em muito a quantidade populacional disponível. Para José Miura Andrades, a relação entre rei e ordens monásticas mendicantes inicia-se com a criação, no século XIII, da idéia do monarca como rei cristianíssimo e se estende por vários âmbitos. Mas, nos parece que essa proximidade se devia à ainidade entre Fernando III e seu confessor, frade dominicano, já que entendemos que a relação entre rei e as ordens mendicantes se consolida, fundamentalmente, a partir do reinado de Sancho IV e sua mulher, María de Molina.4 Há que se considerar que foi no século XIII que as ordens mendicantes tiveram seu maior desenvolvimento e, se acompanharmos o ritmo das fundações religiosas, em comparação com os séculos e a Reconquista, veremos que os monarcas ibéricos tendem a privilegiar as vertentes em voga. Assim, a região entre o Douro e o Tejo conquistada VEREZA, Renata. Mosaico Palimpsesto; transformações na morfologia urbana em Castela sec. XI ao XII, 2007, Tese de Doutorado, UFRJ. 3 Para perceber a importância dos diferentes foros outorgados às cidades castelhanas, ver MOGOLLÓN CANO-CORTÉS. Pilar. Religiosidad y ciudad. Las modiicacions urbanísticas en el Cáceres medieval intramuros y las órdenes religiosas. Norba-Arte, Extremadura, v. XVI, p. 35-55, 1996. Onde a autora discorre sobre a proibição foral de estabelecimento de ordens monásticas no interior da cidade de Cáceres. 4 Cf.: VELAYOS, Salustiano Moreta. Notas sobre el franciscanismo y el dominicanismo de Sancho IV y Maria de Molina. Iglesia Duarte José Ignacio de et al. (Coord.). SEMANA DE ESTUDIOS MEDIEVALES, 6., 1995, Nájera Actas... Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 1996. p. 171-184. 2 378 no século XI é predominantemente de fundações cluniasenses, a região desde a meseta central até a Andaluzia, conquistada no século XII, é cisterciense, e esta última, conquistada no século XIII, é mendicante.5 “A diferencia de las catedrales, el monasterio no es un instrumento de reforma de las relaciones sociales”6 no entanto, reairmam determinada ordem social vigente, além de ter se consolidado como um importante ator social no que tange à economia devido ao grande prestígio religioso e uma administração eicaz de seus recursos. Recursos estes, majoritariamente, doados por reis e nobres ao longo da Idade Média. A instalação de mosteiros em Castela constituiu-se como parte importante de todo o processo de Reconquista, dentre outros motivos, por ter ser um instrumento repovoador7 muito eicaz. No repartimento de Sevilha há 14 mosteiros8 de diversos lugares do reino – tais como Toledo, Burgos, Silos, Barcelona, Madrid etc. – que recebem terras no entorno na cidade, isto é, nas áreas fora das muralhas, mas ainda pertencentes à Sevilha. Não se tratam de propriedades como casas, solares, fornos – propriedades de “tipo urbano” – e sim arançadas e jugadas de terras, vinhas, olivares e igueirais. Este é o mapa atual da província de Sevilha, onde mapeei todos os mosteiros presentes tanto repartimento da cidade quanto nos diplomas reais concedidos ao seu alfoz. Embora tenhamos como objeto as ordens monásticas do interior da cidade de Sevilha propriamente dita, entendemos o campo, no caso o alfoz, como parte importante e complementar da cidade e não uma oposição a ela.9 ANDRADES, José Miura. Frailes, monjas y conventos. Las órdenes mendicantes y la sociedad sevillana bajo medieval. Sevilla: Diputación Provincial de Sevilla, 1998. p. 62. 6 DUBY, Georges. Los tres órdenes o lo imaginario del feudalismo. Barcelona: Taurus, 1983. p. 255. 7 PALENZUELA, Vicente Angel Alvarez. Expansión de las órdenes monásticas en la España durante la Edad Media. In: IGLESIA DUARTE, J. I. (Coord.). SEMANA DE ESTUDIOS MEDIEVALES, 3., 1992, Nájera. Actas… Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 1993. p. 161-178. 8 GONZÁLEZ GONZÁLEZ, Julio. Repartimiento de Sevilla. Madrid: s.n., 1951. 2v., V. II. p. 32, 40, 42, 43, 44, 45. 9 MACKAY, Angus. Ciudad y campo en la Europa Medieval. Studia historica. Historia Medieval, Salamanca, n. 2, p. 27-54, 1984. 5 379 Dentre estes monastérios, quatro também recebem propriedades no interior da cidade – Las Huelgas de Burgos, Santo Domingo de Silos, Iranzo e San Clemente – e por isso falaremos deles mais detalhadamente quando analisarmos o mapa do interior da cidade de Sevilha. Com relação às lógicas atribuídas às doações reais, há a necessidade de apontar algumas diferenças regionais de organização social e espacial que fundamentavam esta sociedade e inluenciavam diretamente no processo. Primeiramente, uma característica do repovoamento andaluz é conceder uma mesma vila para diversos senhores a im de que não haja grandes concentrações de terras na mão de um único senhor em detrimento do poder real.10 Por isso, em Sevilha, por exemplo, em uma mesma vila diversos mosteiros vão receber propriedades, evitando assim, que um único mosteiro muito poderoso institua um grande senhorio. Por este motivo, a maioria das propriedades das ordens eclesiásticas de Sevilha está concentrada em áreas bem especíicas, Espartinas e Aznalfarache e possuem um tamanho relativamente pequeno – com exceção de San Clemente. O mesmo não acontece no norte da Península Ibérica, onde temos casos de alguns conventos mendicantes que se transformaram em poderosos proprietários feudais com domínios consideráveis.11 Portanto, as doações qualitativas e quantitativamente estão diretamente relacionadas com as relações sociais estabelecidas entre a monarquia, as cidades e as ordens. A importância econômica das áreas cultivadas onde foram doadas as terras também deve ser levada em conta na análise deste mapa. A maior parte destas propriedades não está em rotas comerciais relevantes, nem estão em áreas extremamente férteis, com exceção de San Clemente. O mosteiro de San Clemente se constitui como exceção nos padrões da instalação dos monastérios na cidade, tanto no que tange ao tamanho, quanto à sua importância – fora ou dentro da cidade. San Clemente é o único monastério que conhecemos que possui 400 O que não impede que ao longo do século XIII e XIV se instalem na região poderosas famílias com consideráveis senhorios. 11 BORGE, Ignacio Álvarez. Ordenes mendicantes y estructuras feudales de poder en Castilla la vieja (siglos XIII y XIV). Revista de Historia Econômica, Cambridge, v. XVII, n. 3, p. 543—578, 1999. 10 380 arançadas de terras em Sevilha o equivalente a mais ou menos 1468km e sua propriedade se localiza em Almensilla, próximo de Aljarafe, uma região considerada, até hoje, uma das melhores da Espanha para o cultivo de oliveiras. Isto indica que a monarquia possui forte relação com o mosteiro de San Clemente e isso ica ainda mais visível se compararmos as doações e os privilégios feitos às demais ordens, não somente no alfoz, mas também no intramuros sevilhano. Dentro da cidade, até o momento, conseguimos localizar cinco diferentes mosteiros: San Clemente, Las Huelgas de Burgos, Iranzo, San Pablo e Santa Clara. Os dois primeiros cistercienses, o terceiro de procedência desconhecida, e os dois últimos mendicantes, dominicano e franciscano, respectivamente. Além do monastério de Santo Domingo de Silos na porta de Carmona que também era cisterciense. 381 Neste mapa12 eu dividi as propriedades compradas das doações régias e de particulares porque, a forma como esses monastérios se instalou na cidade, nos mostra um pouco das relações que permeiam os diversos grupos sociais. As cidades, quando conquistadas pelos cristãos, normalmente mantinham seu traçado urbano nos primeiros anos de repovoamento. As mudanças eram muito mais no âmbito das mentalidades do que propriamente morfológicas, como é o caso da mesquita que se transforma em catedral sem mudar a sua morfologia. No caso de Sevilha não foi diferente, inclusive a distribuição populacional seguiu lógicas bem parecidas.13 O estabelecimento das ordens monásticas na cidade altera o espaço urbano. No mundo muçulmano não havia nenhum tipo de propriedade que se assemelhasse com um mosteiro ou convento, portanto havia a necessidade de transformar pequenas casas e solares em propriedades únicas que suprisse suas necessidades. Tal mudança alterava o traçado urbano e possibilitava uma nova apreensão espacial.14 A criação de um mosteiro muda o luxo de pessoas de determinado espaço, bem como a forma de se relacionar com ele. Quando o espaço é morfologicamente alterado – fechando ruas, abrindo outras, mudando o tráico de pessoas, valorizando áreas que antes eram pouco importantes e vice-versa – altera tanto as relações sociais quanto a relação homem - espaço. A instalação das ordens na cidade parece também ter como um dos objetivos principais repovoar o território, já que San Clemente, Santa Clara, Iranzo, San Pablo vão se estabelecer em regiões pouco povoadas e com áreas agrícolas cultivavéis, que é o caso das paróquias de S. Lorenzo, S, Vicente, Magdalena e S. Miguel. Já o mosteiro de Las Huelgas de Burgos se constitiu na cidade na paróquia de S. Nicolás, parte da região onde havia grandes concentrações de nobres.15 Tal VEREZA, Renata. Op. Cit. VEREZA, Renata. Da madina à cidade. Texto cedido pela autora. 14 TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar. A perspectiva da Experiência. São Paulo: DIFEL, 1983. 15 GONZÁLEZ, Julio. Libro del Repartimiento. Estudio y edición. Madrid, 1951. V.II; GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel y Borrero Fernández, M. y Montes, Isabel. Sevilla en tiempos de Alfonso X, El Sabio. Sevilla: Ayuntamiento de Sevilla, 1987. p. 16-19. 12 13 382 mosteiro era cisterciense, feminino, muito tradicional, importante em Castela e a irmã do rei, Dona Berenguela estava entre seus membros mais ilustres, por isso é viável pensar que estava nesta colação para servir de abrigo a viúvas, ilhas e irmãs de uma elite sevilhana. Os conventos de San Pablo e Santa Clara são únicos que possuem propriedades somente na cidade, o que faz sentido dentro do caráter urbano característico das ordens mendicantes. No reinado de Alfonso X, em território sevilhano somente é possível atestar a presença de três monastérios mendicantes – sendo dois franciscanos e um dominicano – e, dentre estes, apenas o dos predicadores recebe doação real. A referencia existente sobre mosteiro de Santa Clara, comumente associado à monarquia afonsina, indica tão-somente compra propriedades em Sevilha e sobre convento de San Francisco não foi encontrado até o presente momento indicação de como se instalou na cidade e nem de onde estava localizado no século XIII, temos apenas o documento em que Dona María doa aos freis descalços a quantia de cinco maravédis em agosto de 1277. Portanto, a luz da documentação encontrada é possível matizar e ponderar esta ligação entre Alfonso X e mendicantes em Sevilha. Em contrapartida, vemos um claro apoio ao mosteiro cisterciense de San Clemente. Vimos que foi o mosteiro que mais recebeu terras no alfoz da cidade na região mais importante. O mapa do interior da cidade mostra que apenas San Clemente recebe doações de particulares, o que demonstra, também, prestígio do monastério frente à comunidade. De acordo com a autora Mercedes Borrero Fernandez16 há um documento datado de 1255, em que Alfonso X conirma uma doação feita por Fernando III em 1249 à Ordem Militar de San Juan de Jerusalém de umas casas e solares situados perto da porta de Bib Arragel em que um dos vizinhos citados é o referido mosteiro: “ad aediicandum Monasterium in honore Sancti Clementi, et etiem cum calle regali...”.17 Tal documento, hoje, está perdido, no entanto se encontrava BORRERO FERNANDEZ, Mercedes. El Real Monasterio de San Clemente. Un Monasterio cisterciense en la Sevilla Medieval. Sevilha: Comisaria de la ciudad de Sevilla para 1992 Ayuntamiento de Sevilla. 1991. p. 36. 17 Idem. 16 383 nos arquivos da Ordem de San Juan no século XVIII, e a autora acredita não haver motivos para suspeitar de tais airmações. Contudo, parece estranho a forma como ela constroi seu texto e sua argumentação em cima de um documento no qual ela não conhece. Com efeito, o lugar citado – porta de Bib Arragel – é o local onde se localiza o mosteiro até os dias de hoje, porém com o documento perdido é difícil airmar que de fato o mosteiro seja de fundação fernandina, já que não há menção do mesmo no repartimento da cidade. Sabemos que o mosteiro é fundado por Don Remondo a partir de um documento que diz: Vino don Remondo, arçobispo de la noble cibdat de Seuilla, e díxinos de commo él iziera en esta çibdat el monesterio de Sant Clemeynt, a seruiçio de nuestro sennos Dios e de la Virgen Santa María su madre, e por el alma del rey don Fernando nuestr padre, e en remissión de nuestros pecados...18 Don Remondo é arcebispo de Sevilha entre 1259 – 1286, porém é responsável pela arquidiocese de Sevilha desde sua conquista. Don Felipe, irmão de Alfonso X, foi o arcebispo eleito de Sevilha por seu pai Fernando III, mas nunca chegou a se consagrar como bispo, com isso, o então bispo de Segovia, Don Remondo, regeu a Igreja de Sevilha desde o início. Podendo assim, ter fundado o monastério de San Clemente em 1249 à mando de Fernando III como propõe a autora. Trata-se de uma hipótese possível, porém não há um documento que de fato comprove tal airmação. Por este motivo, não podemos precisar a data de sua fundação. O primeiro documento que airma o mosteiro de San Clemente como comunidade religiosa tem datação de 1284 e logo depois de dotar mosteiro de inúmeras propriedades e isenções, Alfonso X o coloca sob sua proteção: “...pidíonos merced, porque este monesterio fuesse más onrado e más guardado e más defendido con todas sus cosas, quel recibiéssemos en nuestra guarda e en nuestro defendimiento.” Para explicar o que aconteceu desde sua fundação até o ano de 1284 com o monastério de San Clemente, a autora Borrero 18 Ibidem, p. 171. 384 Fernandéz defende a ideia de que o mosteiro de San Clemente de Córdoba com o passar dos anos se integrou ao mosteiro sevilhano, transferindo de lugar sua abadessa, monjas e propriedades. A autora baseia sua airmação no privilégio rodado19 que engloba também os bens já recebidos anteriormente pelo mosteiro de Córdoba, além de em ambos os momentos – nas doações feitas ao longo do reinado de Alfonso para o mosteiro de San Clemente de Córdoba e o no privilégio rodado – aparecer como abadessa Dona Gontrueda Ruiz de León. O motivo para a mudança, segundo a autora, foi a guerra civil entre Alfonso X e seu ilho Sancho IV pela sucessão ao trono. Córdoba era uma cidade que apoiava Sancho, enquanto o mosteiro era a favor de Alfonso, sendo Sevilha era uma das maiores aliadas do rei, a abadessa e suas monjas migraram levando consigo o direito as propriedade já adquiridas. Embora pareçam estranho as datações dos acontecimentos,20 as relações entre o mosteiro e a monarquia perpassam puramente o caráter religioso e o apoio do monastério ao rei em um momento crucial de seu reinado pode ter tido como recompensa tais propriedades e privilégios. Fato que não era incomum para Alfonso X que, ao longo da guerra civil, beneiciou Sevilha pelo apoio e lealdade prestados a ele.21 Apesar da nebulosidade referente à sua fundação, o mosteiro de San Clemente de Sevilha acumula inúmeros bens demonstrando um imenso poder territorial. Partindo de um levantamento prévio temos: Em Sevilha: - 400 aranzadas de olivar en Almensilla, en el Aljarafe. - 5 yugadas de tierra de cereal. BORRERO FERNANDEZ, Mercedez y otros. Sevilla, Ciudad e Privilégios. Escritura y Poder a través del privilegio rodado. Sevilha: Ayuntamiento de Sevilla. 1995. Documento 41. p. 313. 20 A guerra civil começou em 1282 e o mosteiro de Córdoba só aparece sendo encorporado ao de Sevilha em 1284, quando a guerra já estava praticamente vencida por Alfonso X. 21 DIPLOMATÁRIO ANDALUZ DE ALFONSO X. Ed. de Manual González Jimenez. Sevilla: Caja de Huelva y Sevilla, 1991, documento n. 515. 19 385 - 18 aranzadas de viña en la zona del río Guadaira. - una parcela de viña en Sevilla, en la puerta de Córdoba. - unas atahonas en la collación de San Román. Em Córdoba: - cortijo en Almodóvar. - tierras para siete yuntas de bueyes. - un par de casas. - 9 yugadas de tierra de cereal. - 2 casas en la collación de San Salvador. - unas viñas en Córdoba.22 A organização e administração dos mosteiros de Cister e das dioceses locais muitas vezes se confundiam – como foi o caso de San Clemente e a arquidiocese de Sevilha – por isso se estabeleciam numerosos pleitos para delimitar o grau da autoridade episcopal local no monastério. O que vai ocorrer com o monastério de San Clemente de Sevilha a partir do século XIV, onde o papa Bonifácio VIII emite um documento que ordena a defesa do monastério, bem como a não intromissão em assuntos de competência jurisdicional. Isso devido a intromissão de alguns prelados na vida do mosteiro. A partir da ideia de interelação entre a diocese sevilhana, claramente favorável a Alfonso X – inclusive no conlito com Sancho – e o monastério de San Clemente, podemos, então, estabelecer uma estreita relação política entre o rei e o dito mosteiro. No entanto, neste estágio de investigação, o mesmo não pôde ser veriicado com relação às ordens mendicantes na cidade de Sevilha devido à sua recente constituição enquanto ordem monástica e, por isso, se mostra insipiente em termos de consolidação política em território sevilhano. Por se tratar de uma sociedade em que sua lógica fundamental é constituída por laços pessoais23 a maneira como o rei se relaciona com a cidade de Sevilha e com seus mosteiros indica diferentes BORRERO FERNANDEZ, Mercedes. El Real Monasterio de San Clemente. Op. Cit., p. 86. 23 Embora tenha havido um esforço por parte do Alfonso X, a partir do Fuero Real e das Sete Partidas de regulamentar as diversas formas de relações pessoais a partir de uma lógica jurídica e impessoal, tratou-se menos de prática do que de teoria, tendo em vista que as Sete Partidas só foi implementada no século XIV. 22 386 formas de articulação e manutenção de alianças políticas e poder de negociação frente aos principais agentes locais – aristocracia e clero. O que corrobora a idéia de que a presença e a importância das ordens monásticas sobre passa as questões meramente ideológicas e espirituais, sendo necessária sua adaptação na estrutura social dominante. 387 A CURA DO CORPO NOS MILAGRES DE SANTO DOMINGO DE SILOS Juliana Ribeiro Bomim (Mestranda PEM – PPGHC – UFRJ) O corpo tem sido objeto de estudo de diversos historiadores, biólogos, arqueólogos, antropólogos, etc. Neste sentido, há aqueles que se ocupam da história política e percebem a sociedade organizada como partes do corpo. Desta forma, a igreja seria a cabeça; o rei, o coração; os súditos, os membros. Outros estudiosos percebem o corpo pelo viés biológico, atrelando-o a uma evolução física do homem no decorrer dos tempos. Já os arqueólogos buscam corpos como material de estudo, elencando suas possíveis datações, descrições, etc. Os antropólogos inserem os corpos na sociedade em que vivem relacionando-o com os aspectos culturais os quais residem. Cabe ressaltar que temos vários estudos sobre partes do corpo ou ações ligadas a ele, assim como: mãos, sexualidade, alimentação, doenças, moda, o corpo feminino, corpo masculino, etc.1 Nosso estudo tem como pressuposto que o corpo é cultural, ou seja, apesar da sua materialidade biológica, entendemos que sua apreensão e representação estão inseridas no campo da cultura e se relaciona com os mais diversos campos da atividade humana, como destaca Roy Porter. Assim, o corpo do homem precisa ser analisado e inserido na história. Desta forma, O que percebemos é que a discussão a respeito do corpo sempre existiu por meio da busca de cura de doenças, das regras do comportamento moral ou de ligação com o sagrado. Em nossa pesquisa buscamos “enxergar o corpo como ele tem sido vivenciado e expresso no interior de sistemas culturais particulares, tanto privados quanto públicos, por eles mesmos alterados através dos tempos”.2 Nesta comunicação iremos apresentar o resultado parcial de nossa pesquisa em andamento “Corpo e pecado em perspectiva comparada: 1 BURGUIÉRE, A. Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993. p. 176-180. 2 PORTER, Roy. História do Corpo. In: BURKE, Peter (Org.). A Escrita da História. Novas Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. p. 291-326 p. 295. 388 um olhar sobre a hagiograia Vita Dominici Siliensis de Grimaldo e os Concílios da Península Ibérica do Século XI”. Sob essa perspectiva, neste trabalho buscamos analisar como foram apresentados os milagres de cura do corpo descritos por Grimaldo na hagiograia em que redigiu. Qual a causa que ele atribui às doenças? Como eram realizadas as curas? O corpo era visto como causa ou como vítima das enfermidades? Segundo autores como Pilar Jimenez,3 Jean-Claude Schmitt4 e José Carlos Rodrigues,5 para o homem medieval o corpo e a alma e/ ou o espírito estavam interligados, e por muitas vezes, indissociáveis. Portanto, para curar uma doença, era preciso buscar no médico das almas, seja ele o padre, o monge ou bispo, para interceder e buscar a puriicação do corpo através da conissão, penitência, jejuns, peregrinação, etc. Os pecados e a sua conseqüente remissão exerceram grande importância na Igreja Castelhana medieval, pois por meio das suas normalizações, a Igreja detinha o poder de intermediar os poderes materiais e espirituais, buscando assim controlar a vida destino do homem medieval. Para a nossa pesquisa tomamos o conceito de pecado de Santo Agostinho,6 que o deine como “uma palavra, uma ação ou um desejo contrário a lei divina”. No entanto, cabe ressaltar que o que se acredita serem as “normalizações divinas” são elaboradas no seio do corpo eclesiástico, ou seja, nos Concílios. Durante a Idade Média, o corpo era visto como um invólucro que abrigava a alma e a vida era um meio de ascender espiritualmente, por meio do cumprimento das regras do cristianismo. Portanto, para o homem medieval, no caso de enfermidade, era preciso atentar para os CABANES JIMENEZ, Pilar. Algunas notas sobre la enfermedad y la muerte en la Edad Media. Espéculo. Revista de Estudios Literarios, n. 31, 2005. Disponível em www.ucm.es/info/especulo/numero31/enfmedie.html. Acesso em 11 de dezembro de 2011. 4 SCHMITT, Jean-Claude. Corpo e alma. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Imprensa Oicial de São Paulo/Edusc, 2002. 2v. V. 1. p. 254-265. 5 RODRIGUES, José Carlos. O Corpo na História. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999. 6 CASAGRANDE, Carla; VECCHIO, Silvana. Pecado. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit., V. 2. p. 337-351. 3 389 conselhos da Igreja, que considerava o pecado como a maior origem das doenças. 7 Nesta oportunidade, procuramos partir do estudo de um texto hagiográico,8 ou seja, texto que trata de aspectos da vida e do culto de alguém considerado santo, com objetivos religiosos. As hagiograias, neste contexto, tinham um papel fundamental, pois através dos exemplos dos santos, buscava-se instruir a sociedade, divulgando as atitudes e comportamentos cristãos desejáveis e, portanto, podemos encontrar nestes textos diversas referências diretas e indiretas ao corpo. A Vita Dominici Siliensis9 foi redigida no centro-norte da Península Ibérica e tinha como objetivo divulgar o modelo de vida cristão, bem como promover o mosteiro em que o santo protagonizado, Domingo de Silos, atuou como abade reformador no século XI. A Vita Dominici Siliensis foi redigida logo depois do falecimento do venerável a pedido do abade Fortúnio. Acredita-se que o objetivo da composição da hagiograia residisse na promoção do culto ao santo e para tanto era necessário instituir-lhe um culto público.10 Seu autor, Grimaldo, era um monge oriundo da Gália que viveu no mosteiro de Silos e foi contemporâneo e discípulo de Domingo, apesar de provavelmente ser muito mais novo. De toda forma, Grimaldo disse ter testemunhado muitos dos fatos narrados e teve contato direto com outros monges que conviveram com o Domingo. Sua obra foi composta em latim, por volta de 1088-91, e tinha como principal público os próprios monges do mosteiro. Segundo o editor crítico da obra, Vitalino Valcárcel, Grimaldo era provavelmente CABANES JIMENEZ, Pilar. Op. Cit. FRAZãO DA SILVA, Andréia Cristina Lopes. Hagiograia, história e poder: as Vidas de Santo de Gonzalo de Berceo. Anuário Brasileño de Estudios Hispanicos, Brasília, n. 7, p. 77-91, 1997. p. 80-81. 9 GRIMALDO. Vita Dominici Siliensis. Tradução, estudo e edição crítica por Vitalino Valcárcel. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 1982. p. 98. 10 VIVANCOS, Miguel C. EL ofício Litúrgico de Santo Domingo de Silos. In: SANTIDRIÁN, Saturnino López (Dir.). CONGRESO INTERNACIONAL SOBRE LA ABADIA DE SANTO DOMINGO DE SILOS, Burgos: Universidad de Burgos, 2003. 4 v. V. 1, Espiritualidad, p. 81-88. 7 8 390 francês, oriundo da região de Toul, em Lorraine, e, portanto, poderia ter formação de Cluny. Esta hagiograia encontra-se, na forma atual, dividida em três livros; o primeiro relata a biograia do santo e os milagres realizados em vida, os outros dois tratam-se de milagres póstumos. Em nosso estudo, utilizamos a edição em texto bilíngüe, latim-espanhol, que foi organizada por Vitalino Valcárcel, em 1982. Este baseia sua ediçãocrítica em quatro testemunhos: S, R, V e P. Os manuscritos S e R foram feitos na Idade Média. Os outros dois são edições paleográicointerpretativas. Tal hagiograia foi composta em três fases: a primeira no inal do século XI, que consistem em prólogo, livro um e livro dois até o capítulo 39; a segunda, entre os anos 1100 e 1125, que utiliza a cópia do primeiro e acrescenta a partir do capítulo 40 do livro dois até o capítulo seis do livro três, e outra de ins do século XII, que utiliza a cópia de todo o escrito anterior e adiciona materiais a partir do capítulo sete do livro três até o inal.11 Estamos utilizando apenas o núcleo inicial, uma vez que somente a primeira fase foi escrita por Grimaldo. Domingo nasceu por volta do ano 1000, e, segundo a sua hagiograia, desde sua infância se destacava por um comportamento destinado à santidade. A Vita realça que ele procedeu corretamente durante toda a sua vida, mantendo-se casto, dedicado à vida religiosa, ocupando funções de “condutor do rebanho” cristão. Tornou-se presbítero ainda jovem, fugiu ao deserto, e no retorno ingressou no mosteiro de San Millán de la Cogolla, aonde chegou a ser prior. Viveu ligado ao mosteiro emilianense até que o rei García de Nájera exigiu que lhe entregasse os cálices sagrados e o que mais de valioso houvesse no convento. Domingo o enfrentou, airmando que o corpo poderia ser morto, mas sobre a alma o rei não tinha poder. O venerável buscou o exílio por suspeitar que o rei navarro fosse o perseguir. O rei Fernando I de Castela, quando se inteirou do ocorrido, mandou-o chamar e lhe coniou o Monastério de Silos, que fora construído em honra a São Sebastião e se achava em estado de total PÉREZ-EMBID WAMBA, Javier. Hagiología y sociedade en La España Medieval: Castilla y León (siglos XI-XIII). Huelva: Universidad de Huelva, 2002. 11 391 abandono. Domingo, ainda segundo a hagiograia, conseguiu reerguer o mosteiro. Morreu em 20 de dezembro do ano 1073, anunciada por ele mesmo, dias antes, conforme retrata a Vita. No primeiro livro da hagiograia encontram-se os milagres realizados enquanto Domingo vivia. Dos dezessete milagres, somente oito são de cura. Já no segundo livro são relatados aqueles que foram alcançados após a morte do santo, num total de 39 milagres, dos quais 36 são de cura. É interessante notar que o santo é reconhecido por livrar os cativos da prisão no contexto da chamada Reconquista, no entanto, estes milagres são apenas 2 no primeiro livro e 3 no segundo. Observamos que dos 44 milagres de cura realizados, 12 são de cegos, 9 de endemoniados, 6 de coxos, 3 de paralisia, 3 de mudez, 3 de febres. Os casos de possessão estão igurando esta lista porque o autor da hagiograia intitula esses milagres como cura, e ressaltamos que tais casos são relatados como males que fazem com que as pessoas não tenham o menor controle sobre os seus próprios corpos, muitas vezes apresentando algum tipo de patologia causada pelo próprio demônio. Todos esses milagres envolvem a intervenção do venerável, é claro. Enquanto Domingo vivia, os procedimentos de cura envolviam: chegar até o santo, estimular a sua piedade, para que ele izesse suas orações e/ou ministrasse a eucaristia. Aqueles que ocorrem após a sua morte são realizados mediante a peregrinação ao sepulcro. A oração é recomendada a todos os casos, mas existem outros procedimentos muito recorrentes, tais como: jejum, missa, donativo, vigílias, conissão, eucaristia e intervenção dos monges. É interessante ressalvar que todos os casos de cura de endemoniados foram relatados no segundo livro, ou seja, após a morte de Domingo. Nestes, apenas em um único caso não é declarada a necessidade de intervenção dos monges para ajudar no processo de exorcismo. Chamou-nos a atenção também que em nenhum destes é possível identiicar uma causa/origem da dita possessão, nem espiritual, nem material. Há nove casos em que o autor deixa claro que o motivo da enfermidade são os pecados. Grande parte destes estão relacionados ao desprezo da missa, da guarda do domingo ou qualquer outra 392 atividade litúrgica. Desta maneira, as doenças são descritas como castigo divino por não terem cumprido os compromissos espirituais, sendo elas: paralisia, mão/braços contraídos, nascimento de criança com dedos grudados na palma da mão, surdez, diiculdade motora, etc. Nesses casos, as curas se processam com as orações, como dissemos anteriormente, mas também com missa, conissão e vigílias. Ainda há aqueles que denominamos como possibilidade de pecado, ou seja, o autor informa que não tem certeza se a causa da doença foi algum pecado cometido ou um “ataque de enfermidade”. São cinco casos apresentados na hagiograia, entre eles de cegos, coxos e paralíticos. Todos eles foram curados pelos mesmos procedimentos citados para os pecadores. Gostaríamos de ressaltar a advertência que o autor da hagiograia faz ao leitor no capítulo dez do livro um, em que relata um milagre realizado enquanto o venerável ainda era vivo. Neste milagre o homem era cego e padecia de uma secreção em seus olhos. Foi ao mosteiro e com a ajuda dos monges prostrou-se aos pés de Santo Domingo. Este, surpreso, chamou aos monges para que se colocassem em oração junto com ele pela cura do enfermo. Depois da eucaristia, o cego icou curado e saiu dali com a advertência para que se preocupasse em servir mais a Deus, afastando-se de toda a iniqüidade e que corrigisse sua vida e seus costumes para que não lhe ocorresse algo pior. É interessante a ressalva que o autor faz ao leitor no inal da narrativa, enfatizando que toda a saúde, tanto do corpo como do espírito, é concedida por Deus. Airma que um homem integral é composto de corpo e alma, e que, portanto, não se pode levar em consideração a saúde do homem sem a conjunção da natureza exterior e interior. Assim, o Senhor revelou haver curado totalmente aquele homem, pois na verdade o curou da enfermidade corporal e liberando-o de toda a sua culpa espiritual, iluminou sua mente para evitar o mal e buscar o bem. (...) Domingo cumpriu em todos os seus atos (os preceitos do Senhor), pois a todos que curou a enfermidade corporal, a todos puriicou de toda 393 a maldade espiritual. Assim, pois, cura do homem integral o que livra ao homem interior de toda mancha de vício (pecado) concedida e ao homem exterior de todo o chicote da enfermidade.12 Destacamos esta passagem em especial, pois corrobora com as ideias de Jean-Claude Schmitt,13 que sublinha que hagiógrafos e confessores no medievo entendiam que o corpo expressava os “movimentos da alma”,14 e, portanto, os corpos santos eram a própria representação das virtudes e de sua capacidade de curar doenças e operar milagres. As doenças seriam consequências dos pecados ou da ação demoníaca, ou seja, mais do que a cura do corpo, o homem medieval estava preocupado com a salvação de sua alma. No décimo quinto capítulo, Grimaldo relata um milagre feito em favor de um ladrão que já tinha sido advertido pelo venerável para que levasse uma vida reta. Ele não obedeceu e icou gravemente enfermo. Segundo a hagiograia, Domingo airmou que era castigo divino a doença que o acometia, e que não adiantava rogar por sua saúde corporal. Desta forma, antes seria necessário confessar todos os seus pecados, para que tivesse a salvação no juízo inal. Ao realizar o sugerido e participar da eucaristia, o ladrão morreu. O autor observa Tradução nossa.Versão do editor crítico Vitalino Valcárcel: “Así pues, el Señor reveló haber curado de modo total aquel hombre, pues, efecto, lo curó de la enfermedad corporal y liberándolo de toda culpa espiritual, iluminó su mente para evitar el mal y buscar el bien. (...) Dominfo, cumplió en todos sus actos, pues a todos los que curó de enfermedad corporal, a todos los puriicó de toda maldad espiritual. Así pues, sana al hombre todo entero el que libra al hombre interior de toda mancha de vicio y al hombre exterior Del azote de toda enfermedad.” Versão latina de Grimaldo, reconstruída por Valcárcel: “Totum ergo hominem Dominus se sanasse innotuit, etenim eum ET ab inirmitate carnali sanauit ET ab omni spirituali culpa absoluens, mentem eius ad deuitanda mala ET exeqüenda bona illustrauit. (...) Quod in omni suo facto compleuit uir Domini, Domenicus, omnes enim quos ab inirmatate carnali in carne sanauit, omnes ab omni spirituali malignitate in mente mundauit . Igtur totum hominem sanat qui interiorem hominem ab omni uiciorum, sorde et exteriorem ab omni inirmitatum labe laust.” 13 SCHMITT, Jean-Claude. Corpo e alma. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. (Orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Imprensa Oicial de São Paulo/Edusc, 2002. 2v. V. 1. p. 254-265. 14 Idem, p. 259. 12 394 que às vezes os santos castigavam com a morte temporal para livrar os enfermos da morte eterna. Lembramos aqui mais uma vez a ligação entre o corpo e alma, ou seja, o padecimento de um para a salvação do outro. Para inalizar, destacamos que na obra analisada a causa das enfermidades pode ser oriunda da ira de Deus contra um pecado cometido pelo cristão; determinado pela possessão demoníaca, ou procedente da própria matéria. Independente da causa, o autor deixa claro que a medicina não é capaz de curar grande parte das enfermidades, e, por isso, seria somente recorrendo ao espiritual que a saúde seria restabelecida deinitivamente. Assim, retomamos a nosso pressuposto teórico de que o corpo é uma construção cultural, e citando José Carlos Rodrigues, em sua obra O corpo na História, destacamos que “O corpo medieval não era mero revelador da alma: era o lugar simbólico em que se constituía a própria condição humana”.15 RODRIGUES, José Carlos. O Corpo na História. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999 p. 56. 15 395 OS CONFLITOS COM A HIERARQUIA MONÁSTICA E AS AUTORIDADES ECLESIÁSTICAS NAS OBRAS DE VALÉRIO DO BIERZO (SÉC. VII) Juliana Salgado Rafaeli (Graduanda PEM – UFRJ)1 Introdução Essa pesquisa, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Leila Rodrigues da Silva, preocupa-se com as relações de poder existentes entre o monge Valério do Bierzo e as autoridades eclesiásticas a quem estava submetido no reino visigodo do século VII. Os indícios de tal relacionamento podem ser identiicados nos tratados escritos pelo monge que apresentam uma preocupação com os problemas morais,2 além do elogio à vida monástica e a narrativa dos conlitos entre o autor e seus superiores. Essas referências são pontuadas nas obras pela associação dos representantes do mal3 aos personagens que se opõe de alguma forma ao autor. Os concílios hispânicos da segunda metade do século VII podem ser considerados como a orientação “oicial” daquele momento,4 o Bolsista de Iniciação Cientíica CNPq-UFRJ. DIAZ Y DIAZ, M. C. Valerio Del Bierzo. Su persona. Su obra. León: Centro de Estudios e Investigación San Isidoro, 2006. p. 78. e AMARAL, Ronaldo. Os Padres do Deserto na Galiza: Apropriação e usos da Literatura Monástica Oriental na Autobiograia de Valério do Bierzo. Implicações no Imaginário sobre o mal. Revista Medievalista online, Lisboa, v. 3, n. 3, p. 1-15, 2007. p. 5. 3 Optamos pela expressão “representantes do mal” para fazer referência ao grupo de termos utilizados por Valério do Bierzo em sua obra que estejam relacionados ao “diabo” e ao “demônio”, também veriicado por antonomásia no vocábulo “inimigo” e “anjo caído”. 4 É nos concílios que a alta hierarquia eclesiástica encontrava os meios para “propor, deliberar, discutir e legislar sobre os grandes problemas de ordem doutrinal, moral e disciplinar que diziam respeito à Cristandade”. Politicamente revelavam o poder da Igreja, ainda em formação, e os meios de que dispunha para organizar e dirigir a sociedade cristã. Eram um canal de expressão de poder de bispos e prelados. Cf: MACEDO, José Rivair. Concílios Ecumênicos Medievais. In: Demétrio MAGNOLI. (Org.). História da Paz. São Paulo: Contexto, 2006. p. 21-44, p. 2223. 1 2 396 acesso aos debates de cunho moral, político e dogmático que estavam em voga no reino visigodo podem ser observados, em sua substância, pela análise dessas atas conciliares, nos cânones de temática similar às abordadas na obra valeriana. Dessa forma, parte dessas atas, em especial as referentes aos IV, VII e VIII Concílios de Toledo, será a documentação que complementará meu corpus documental por meio da comparação de seus conteúdos. Buscamos os cânones dos concílios destacados que tratem dos assuntos abordados por Valério nas suas obras, que tenham relação com os conlitos do autor com as autoridades eclesiásticas e a hierarquia monástica, temas que, em suma, giram em torno do eremitismo, das práticas ascéticas, das igrejas privadas e da ordenação de monges por leigos. As obras De vana seculi sapientia, De genere monachorum e as três principais narrativas auto hagiográicas,5 Ordo querimonie prefati discriminis, Replicatio sermonorum a prima conversione e Quod de superioribus querimoniis residuum sequitur, foram selecionadas dentro desse recorte do corpus literário valeriano, por apresentarem, de diferentes formas, as críticas de cunho moral e da vida monástica praticada na região berciana e os conlitos com a elite episcopal, principalmente nos dois últimos itens citados. Acreditamos, que pelo fato da De vana seculi sapientia ter sido um dos primeiros escritos valerianos, a crítica às autoridades, assim como os relatos dos seus conlitos, ainda não estava presente de forma consistente em sua produção. A partir dessas obras temos acesso ao que seria um modelo perfeito de vida monástica, demonstrado nos textos auto hagiográicos,6 e o que seria o “pior tipo” de monge e prática religiosa, Optamos aqui pelo conceito de “auto hagiograia” e dela faremos uso durante a pesquisa para designar as narrativas valerianas, no lugar da comumente usada “autobiograia”, por concordarmos com J. Hillgarth, em Historiography in visigothic spain, obra na qual ele airma que a ixação de Valério com o combate eterno com o demônio e a certeza que ele tinha da sua própria santidade fez dos seus escritos uma auto hagiograia. Cf.: HILLGARTH, J. Historiography in Visigothic Spain. La Storiograia Altomedievale. Settimare di Studi del Centro Italiano di studi sull’Alto Medioevo, 17., 1969, Spoleto. Spoleto: CISAM, 1970. p. 261-311, p. 308. 6 FRIGHETTO, Renan. O modelo de vir sanctus segundo o pensamento de Valério do Bierzo. Helmantica, Salamanca, v. XLVIII, n. 145-146, p.59-79, Janeiro/ Agosto, 1997. 5 397 presentes na obra De genere monachorum.7 Esses dois extremos nos aproximam das concepções de Valério de vida religiosa e das críticas que ele fazia aos problemas sócio-monacais da região.8 A partir da sua obra auto hagiográica também é possível ter clareza que sua postura desagradava parte das autoridades eclesiásticas.9 Algumas ações diretas desses homens são demonstradas nesses relatos. Em suma, interessa à nossa pesquisa as relações entre Valério do Bierzo e a hierarquia eclesiástica, que estejam associadas aos conlitos narrados, a im de estabelecer qual papel Valério pleiteava naquela localidade e quais foram os obstáculos que se apresentaram a esse objetivo. Dessa forma, pretendemos, no primeiro momento, identiicar e analisar as referências aos conlitos de poder entre o autor e as autoridades eclesiásticas e destacar e analisar os cânones dos concílios visigóticos que estejam associados aos temas e práticas religiosas problematizadas por Valério do Bierzo em sua obra. No segundo momento, compararemos os elementos que foram analisados anteriormente de forma separada, a im de perceber as aproximações e distanciamentos do discurso valeriano em relação à orientação “oicial” dos cânones conciliares Sobre as obras valerianas e os concílios hispânicos A documentação utilizada para essa proposta de pesquisa é composta por cinco tratados do monge Valério do Bierzo. Duas delas, De vana Seculi Sapientia e De genere monachorum, fazem parte do grupo de obras de cunho ascético-moral e dogmático valeriano. A primeira revela uma ampla cultura teológica, litúrgica e hagiograia de Valério e foi endereçada ao abade do mosteiro do momento de produção. Demonstra sua obsessão pelos problemas morais da cristandade e com a salvação humana,10 trata-se de um texto de FRIGHETTO, Renan. Sociedade e cultura no NO. Península Ibérica em inais do século VII, segundo o De Genere Monachorum de Valério do Bierzo. Gallaecia, Santiago de Compostela, n.18, p.363, 1999. 8 FRIGHETTO, Renan. Panorama Económico-Social Del NO. De La Península Ibérica En Época Visigoda. La Obra de Valério Del Bierzo. 1996 (Tese de Doutorado). p. 26. 9 DIAZ Y DIAZ, M. C., Op. Cit., p. 114. 10 DIAZ Y DIAZ, M. C., Op. Cit., p. 78. 7 398 teologia básica, que apresenta como objetivo indicar o caminho da meditação e do estudo aos monges e jovens ascetas. Nessa obra Valério faz uma revisão da história do cristianismo primitivo, conduzindo ao seu objetivo de ressaltar a vida em isolamento. O segundo tratado, intitulado De Genere Monachorum, apresenta críticas a determinadas práticas monásticas que levam Valério a classiicar um sétimo tipo de monge, o pior de todos os monges,11 com base na classiicação em seis12 de Isidoro de Sevilha. As críticas desse tratado giram em torno dos mosteiros familiares, ou privados, que eram formados na região, e não eram regidos por superiores indicados pela elite eclesiástica.13 Nos tratados auto hagiográicos, Ordo queriamonie prefati discriminis, Replicatio sermonum a prima conversione e Quod de superioribus querimoniis residuum sequitur, Valério apresenta o discurso que se aproxima de uma hagiograia: fala da sua vida anterior à conversão, a entrada na vida cenobítica “tocado pelo desejo da graça divina”, 14 a saída deste para a sua jornada eremítica e a sua chegada, vinte anos depois no mosteiro em que passaria a vida anacorética. Narra as ações de eclesiásticos e leigos contra ele durante toda a sua trajetória, a constante tentação do demônio.15 Nos relatos, esses representantes do mal costumam surgir caracterizados por aparições fantásticas, espectros de animais ou, por anjos, jovens monges ou belas mulheres.16 Os concílios, que compreendem a documentação complementar, por meio de suas atas, a ser comparada, são os IV, VII e VIII Concílios de Toledo, assinalados como de extensão nacionais pela TESTÓN TURIEL, Juan Antonio. El monacato en la diocésis de Astorga en los periodos antiguo e medieval: La Tebaida Berciana. León: Universidad de Leon, 2008. p. 242. 12 Ele leva em consideração a tipologia desenvolvida por Isidoro de Sevilha na obra Dos Ofícios Eclesiásticos, que deine em seis tipos as práticas monásticas, sendo elas três boas e três ruins. De acordo com a deinição isidoriana em De Libris et Oiciis Ecclesiasticis, seriam chamados bons monges os cenobitas, os eremitas e os anacoretas, e os ruins eram os falsos anacoretas, os circunceliões e os sarabaítas. Cf: VIÑAYO GONZÁLEZ, Antonio, Op. Cit., p. 132-140. 13 DIAZ Y DIAZ, M. C., Op. Cit., p. 113. 14 Ibidem, p. 249. 15 Ibidem, p. 281. 16 AMARAL, Ronaldo, Op. Cit., p. 12. 11 399 abrangência de suas decisões, tinham como objetivo o fortalecimento, a consolidação e a normatização da cristandade. Podemos dizer sobre os cânones selecionados, que eles tratam de decisões sobre a conduta monástica em vários âmbitos, incluindo o que dizia respeito aos mosteiros privados e sua organização, o tipo de controle sobre os chamados “monges vagos” ou eremitas e a tentativa de controle da conduta irregular de bispos. Dessa forma, interessa ao nosso trabalho as relações entre Valério do Bierzo e a hierarquia eclesiástica, que estejam associadas aos conlitos narrados, a im de estabelecer qual papel Valério pleiteava naquela localidade e quais foram os obstáculos que se apresentaram a esse objetivo. A vida, obra e os conlitos com as hierarquias monásticas e a autoridades eclesiásticas A respeito de tais discussões foram publicadas pesquisas sobre a vida do monge Valério do Bierzo, sua trajetória monástica, seu modelo de vir sanctus e a classiicação que delimita um pior tipo de monge, sua religiosidade, ascese, como eram estabelecidas as relações entre esse monge e as autoridades eclesiásticas da sua região a quem ele estava submetido, entre outros assuntos presentes nos tratados de sua autoria. Francisco José Udaondo Puerto, na apresentação da revista Helmantica dedicada ao décimo terceiro centenário de morte do monge, estabelece algumas orientações sobre a vida de Valério. Educado previamente nas artes clássicas, em sua juventude ingressou em uma comunidade monástica17 como era costume em sua época, mais tarde abandonou essa convivência para o isolamento inspirado nos ascetas do deserto oriental,18 começando seu trabalho de evangelização Nesse momento de sua vida Valério se identiicava como um monge cenobita, que na deinição de Isidoro de Sevilha, antecessor e inluenciador de Valério do Bierzo, são aqueles homens que, abrindo mão de todas as suas posses, passam a viver em comunidades monásticas. Cf.: ISIDORO DE SEVILLA. De los Oicios Eclesiásticos. Trad. Antonio Viñayo González. León: Isidoriana, 2007. p.132-133. 18 A classiicação de eremita, também feita por Isidoro de Sevilha, o descreve como um dos bons tipos de monges, aqueles que se afastam do mundo, provando os desertos. Cf.: ISIDORO DE SEVILLA. Op. Cit., p. 133. 17 400 nos povoados vizinhos, nos quais atuou como referência religiosa.19 Durante sua missão eremítica airmou ter sofrido diversas tentações de seu inimigo, o diabo. Após muitos anos nesse isolamento, chegou ao mosteiro ruianense20 São Pedro dos Montes, 21 onde inalmente escreveu suas obras.22 Manuel C. Díaz y Díaz23 aponta dois dos conlitos narrados pelo monge em sua auto hagiograia com o bispo Isidoro de Astorga. Este convida Valério para ir como seu assessor no XI Concílio de Toledo, que reage de forma duríssima negando o pedido, visto por ele como uma tentativa de atrapalhar sua vida ascética. Outro conlito presente nas obras são os narrados no mosteiro ruianense, como anacoreta, ao ocupar a cela que fora de Frutuoso de Braga,24 Valério negava-se à vida em comunidade, o que teria deixado os outros monges inconformados, sua situação nesse mosteiro só se mostra melhor com a nomeação do abade Donadeo, para quem passa a endereçar muitas de suas obras e serve de estímulo ao desenvolvimento dos seus escritos.25 UDAONDO PUERTO, Francisco José. Presentacion. Helmantica, Salamanca, v. XLVIII, n. 145-146, p.7-17, 1997. p. 8. 20 Nesse terceiro momento de sua vida, Valério passa a ser identiicado como um monge anacoreta, aqueles que aperfeiçoados na vida monástic, se recolhem em celas, separados do contato humano, passando o resto da vida em contemplação a Deus. Cf.: ISIDORO DE SEVILLA. Op. Cit., p. 133. 21 Udaondo Puerto airma que sua produção literária foi conservada em diversos mosteiros e sua propagação pode ser explicada pelo interesse em torno do seu modo de vida. As obras de Valério teriam voltado a circular quando Benito de Aniano, monge beneditino que viveu entre 750 e 821, incluiu em sua Concordia regularum a obra Dicta sancti Valerii de genere monachorum, no início do século IX. Já nas primeiras décadas do século XX o interesse pelo monge cresceu e com ele surgiram diversos trabalhos acadêmicos sobre Valério do Bierzo e sua produção literária. 22 UDAONDO PUERTO, Francisco José. Op. Cit., p. 8-11. 23 Diaz y Diaz airma que o pouco que se sabe sobre Valério é através do que ele próprio escreveu. Sobre as datas relativas à sua vida apenas é possível chegar a números aproximados, que icam na segunda metade do século VII, era membro de uma família modestamente abastada e de origem hispano-romana ao norte da capital Astorga. Mesmo não possuindo uma posição de importância na hierarquia eclesiástica, Valério estava inserido na tentativa de normatização da cristandade daquele momento. 24 Frutuoso de Braga foi um monge-bispo a quem Valério admirava e reconhecidamente procurava seguir o modelo de vida monástica, chegando a proclamar-se seu sucessor. 25 DIAZ Y DIAZ, M. C., Op. Cit., p. 36-39 19 401 Sobre o caráter hagiográico das narrativas, Izabel Velázquez26 diz que a auto hagiograia valeriana soa contraditória em sua proposta e demonstra um desassossego do monge. Ela irma que a contradição está no fato de que uma autobiograia tenha sido escrita sob a forma de uma vida hagiográica, na qual se pretende seguir uma estrutura característica de algumas uitae. 27 O desassossego ica aparente na falta de organização cronológica ou tipológica da obra, em que o conteúdo narrado relete uma existência atormentada não pelos martírios e demônios, mas no que a autora acredita se tratar de um desequilíbrio interior do próprio protagonista e suas diiculdades em se relacionar com outras pessoas. Tais impressões permitiriam duvidar do caráter hagiográico do trabalho, embora Velázquez aponte a determinação como gênero hagiográico pela intencionalidade do monge ao escrever essa obra.28 De acordo com Renan Frighetto, no corpus valeriano a vida eremítica é elogiada e pensada com características dos Padres do Deserto, que não eram empreendidos nos reinos hispano-visigodos pelas peculiaridades do modelo que não se aplicavam a região: o vir sanctus mais acorde à opinião das autoridades eclesiásticas e monásticas era um modelo paralelo e autóctone. O vir sanctus tentava formar uma imagem que substituísse os heróis e antigos deuses cultuados pelos pagãos, apresentando um modelo de santidade mais condizente com cristianismo. Na prática, Valério adaptou o modelo dos Padres do Deserto, associando o isolamento eremítico à rotina de orações e jejuns de monges cenobitas e permitindo sincretismos que garantissem a atração da população camponesa ainda não convertida, VELÁZQUEZ, Isabel. Hagiografía y culto a los santos en la Hispania visigoda: aproximación a suas manifestaciones literarias. Mérida: Muso Nacional Romano, Asociación de Amigos del Museo. Fundación de Estudios Romanos, 2005. (Cuadernos Emeritenses, 32). p. 227-233. 27 Um começo, uma conversão e outros elementos, como viagens do santo, retiros, a busca pela solidão, as multidões que cercam que são atraídas em busca de orientação e também uma dependência literária e estilística de outras fontes hagiográicas, contrastada com a narração em primeira pessoa e estruturalmente a falta de um im, com a morte do santo, seu culto e os milagres post mortem. 28 VELÁZQUEZ, Isabel. Op. Cit., p. 230. 26 402 tendo a montanha como local ideal para o vir sanctus.29 Tanto o sincretismo empregado por Valério, quanto o elogio ao eremitismo, provocaram conlitos com as autoridades religiosas, que mostravamse contrárias a essa prática monástica e tentavam mantê-las sob controle.30 Sobre o confronto com Isidoro de Astorga e os monges do mosteiro ruianense, Frighetto acredita que respondiam às tentativas das autoridades religiosas de impor ao monge a disciplina eclesiástica e monástica reconhecida pelos concílios, em uma tentativa de diminuir sua inluencia religiosa entre as populações locais e desqualiicá-lo como vir sanctus. A resistência de Valério acaba por fortalecer a imagem que ele procura passar de si mesmo. A luta do monge cristalizava a sua intenção de instruir as classes rurais e a propagação de um modelo educativo monástico.31 Ainda sobre os conlitos com as autoridades Pablo C. Diaz, no seu artigo Valerio del Bierzo y la autoridad eclesiástica,32 diz estar interessado no âmbito do comportamento como homem religioso e das relações com as hierarquias e autoridades eclesiásticas as quais estava submetido. O problema em analisar tais elementos é que só se tem notícia por meio do próprio relato de Valério, principalmente nos três textos de caráter auto hagiográico, no qual o monge consideravase objeto de sistemática perseguição, do diabo, dos monges, do seu bispo ou até de seculares. O autor considera que a indubitável projeção social de Valério ajuda a explicar o enfrentamento com as autoridades eclesiásticas e com os monges cenobitas de seu entorno, relacionadas à sua condição de missionário e homem santo, denominações que ele mesmo se atribui. Como evangelizador Valério cria oratórios que se tornam centros de culto e irradiação de doutrinas em zonas que estavam distantes da cristianização completa. FRIGHETTO, Renan. O modelo de vir sanctus segundo o pensamento de Valério do Bierzo. Helmantica, Salamanca, v. XLVIII, n. 145-146, p.59-79, 1997. p. 78. 30 Tais ideias podem ser observadas também nas atas conciliares do período, como no VII Concílio de Toledo, de 646. 31 Ibidem, p. 65-75. 32 DIAZ, Pablo C. Valerio del Bierzo e la autoridade eclesiástica. Helmantica, Salamanca, v. XLVIII, n. 145-146, p.19-35, Janeiro/Agosto, 1997. 29 403 Sobre a ocasião do convite do bispo Isidoro de Astorga, Pablo C. Diaz destaca que as informações dadas por Valério em sua autobiograia coincidem provavelmente com o fato de que no XII Concílio de Toledo, o primeiro após o III Concilio de Braga que Isidoro assina as atas, não há bispo representante desta sede, o que provavelmente está relacionado com a morte de Isidoro, como é narrada na auto hagiograia. O autor aponta também que Valério em muitos momentos comportou-se como um monge fugitivo ao sair do mosteiro de Compludo sem autorização, enquadrando-se no que já aparecia condenado no IV Concílio de Toledo, em 633. Aportes teóricos e metodológicos Esse estudo possui como base teórica os conceitos desenvolvidos pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu concernente à “Gênese e estrutura do campo religioso”.33 Assim, interessa-nos conceber o campo religioso como uma organização singular, associada às relações dialéticas entre os seus integrantes. A população é dividida hierarquicamente, dentro da lógica de produção dos bens de salvação, capital simbólico característico do campo religioso, em três categorias fundamentais: produtores legítimos, consumidores e produtores não-legítimos. Os membros do primeiro grupo seriam os clérigos, no segundo teríamos os leigos, que pelo seu afastamento constante do primeiro grupo e sua posição dentro da divisão de trabalho religioso, acabam por legitimar esses clérigos. O terceiro grupo, os produtores não-legítimos, são concorrentes e contestadores do primeiro grupo, seriam eles os heréticos, os supersticiosos e os pagãos que teriam como objetivo rearticular a ordem estabelecida a seu favor. Com base nessa compreensão da construção do campo simbólico religioso, podemos, por um lado, considerar que há uma tentativa da elite episcopal, produtora legítima de bens religiosos e detentora da ordem estabelecida, de posicionar Valério do Bierzo, um monge que defendia perspectivas muitas vezes opostas às defendidas pelas BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. In: ___. Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 27-78. 33 404 autoridades eclesiásticas, no terceiro grupo da hierarquia. Em outras palavras, esse monge seria um produtor não-legítimo de bens simbólicos. Por outro lado, podemos observar uma tentativa de Valério, a se ver levado para essa posição não-legítima de produção, de buscar legitimidade por meio das suas obras. Tal postura pode ser observada nos textos de cunho auto hagiográicos, nos quais descreve características da sua vida religiosa que correspondem ao que ele próprio considera o peril do verdadeiro vir sanctus. Os consumidores desses bens simbólicos aparecem nas obras valerianas seguindo-o, buscando a orientação do monge e recebendo milagres. Ao escrever sua auto hagiograia, seu objetivo principal parecia ser colocar-se como o vir sanctus da sua região. Também é importante para nossa pesquisa conceitos como o de “santo”, uma vez que é dessa igura que Valério do Bierzo procura reproduzir as características em busca de legitimação e elaboração do seu próprio modelo de santidade. De acordo com Vauchez,34 os santos procuraram em vida aproximar-se da imagem de Cristo, levavam aos iéis orientações, serviam de modelo de conduta, intermediavam as relações entre o céu e a terra, e lutavam contra a ira e inveja do demônio. Seu papel era restituir a coniança da população e oferecer perspectivas de salvação. Os santos são iguras que se repetem em seu quadro geográico e temporal, sendo assim, para Vauchez, existe um padrão na construção dos relatos a respeito da vida desses homens, em determinados tempos e locais, com o objetivo de elevá-los à santidade. Por método adotamos a comparação, conforme proposto por Jürgen Kocka,35 que defende a delimitação de unidades de comparação independentes que são interligadas pelas perguntas feitas sobre suas similaridades e diferenças a respeito dos objetos escolhidos. Assim, na etapa seguinte, devemos analisar as informações dessas unidades de comparação, entendendo similitudes e diferenças dentro de cada contexto, sem negligenciar as inter-relações entre os casos destacados. VAUCHEZ, André. O Santo. In: LE GOFF, Jacques. (Dir.). O Homem Medieval. Lisboa: Presença, 1989. p. 211-230. 35 KOCKA, Jürgen. Comparison and beyond. History and heory, Middletown, v. 42, n.1, p. 39-44, 2003. 34 405 Optamos também pelo método de tratamento do discurso36 proposto por Laurence Bardin, no qual divide em três etapas a análise do conteúdo, 37 sendo elas: 1) a pré análise - correspondente à formulação dos objetivos, escolha da documentação e das “unidades de registro” temática, aqui identiicamos aquelas associadas aos conlitos entre Valério e as autoridades eclesiásticas, em que a frequência de aparição desses “núcleos de sentido” pode signiicar algo relativo aos objetivos analíticos que fundamentam a interpretação inal38 -, 2) a exploração do material - quando efetivamente se aplica o que foi especiicado na primeira etapa – e 3) o tratamento dos resultados - a inferência e a interpretação. O recurso ao método proposto por Kocka, situado no âmbito da História Comparada, possibilitará uma melhor compreensão das singularidades dos documentos analisados, assim como numa percepção mais aprimorada das similitudes e inter-relações entre ambos.39 Entendemos que a metodologia comparada pode nos permitir reinar a compreensão não apenas sobre os dois grupos documentais em si, ou os seus contextos de produção em particular, como também sobre as suas possíveis relações e conexões. Dessa forma iremos analisar cada obra individualmente, conforme a proposta de Bardin e compará-las em seus resultados, como apresentado por Kocka. Conclusões Trata-se de uma proposta de pesquisa, a qual pretendo dar continuidade, que teve seu início na experiência da Iniciação Cientíica e se estende até hoje. Por se tratar de uma sistematização voltada à elaboração de um pré-projeto de mestrado, as conclusões apontáveis são ainda temporárias, pensadas em relação à pesquisa anterior. Ao entendemos que todo documento é produto de um discurso, e por discurso compreendemos qualquer construção humana coerente, dinâmica e organizada, constituindo práticas, relações sociais, instituições e representações da sociedade concordamos com Andréia Frazão, Cf: SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. Relexões metodológicas sobre a análise do discurso em perspectiva histórica: paternidade, maternidade, santidade e gênero. Cronos: Revista de História, Pedro Leopoldo, n. 6, p. 194-223, 2002. p. 196. 37 BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. p. 95. 38 Ibidem, p. 105. 39 KOCKA, Jurgen, Op. Cit., p. 40. 36 406 Com base no já mencionado campo religioso, podemos, por um lado, considerar que há uma tentativa da elite episcopal, produtora legítima de bens religiosos e detentora da ordem estabelecida, de posicionar Valério do Bierzo, um monge que pregava ideias muitas vezes opostas às defendidas pelas autoridades eclesiásticas, no terceiro grupo desse campo, os produtores não-legítimos. Em outras palavras, esse monge seria um produtor não legítimo de bens simbólicos. Por outro lado, podemos observar uma tentativa de Valério, a se ver levado para essa posição na produção de bens simbólicos, de buscar legitimidade por meio das suas obras, nas quais descreve características da sua vida religiosa que correspondem ao que ele próprio considera o peril do verdadeiro vir sanctus. Os consumidores desses bens simbólicos, a cristandade, aparecem nas obras valerianas seguindo-o, buscando a orientação do monge e recebendo milagres. Ao escrever sua auto hagiograia, seu objetivo principal parecia ser colocar-se como esse vir sanctus da sua região. Dessa forma, o grupo consumidor de bens simbólicos legitimaria a posição que Valério almeja disputa do campo, por vê-lo como uma liderança espiritual local,40 logo esse produtor legítimo de bens de salvação, e até justiicaria a manutenção das obras ao longo do tempo. Sobre o papel assumido por Valério, cabe lembrar as palavras de Bourdieu: “A autoridade propriamente religiosa e a força temporal que as diferentes instâncias religiosas podem mobilizar em sua luta pela legitimidade religiosa dependem diretamente do peso dos leigos por elas mobilizados na estrutura da relação das forças entre as classes”. Cf.: BOURDIEU, Pierre. Op. Cit., p. 70. 40 407 O JUDEU ERRANTE, O JUDEU ERRADO - DO ANTISEMITISMO NA BAIXA IDADE MÉDIA – ÓDIO E INTOLERÂNCIA CONTRA OS JUDEUS NA ALEMANHA DURANTE A PESTE NEGRA Leonardo dos Santos (Mestrando Projekt Mittelalter – TEMPO – PPGHC – UFRJ)1 Apresentação Ao longo dos ævos, diversas foram as causas da animadversão contra os judeus em terras européias. A partir do século IX, a Europa presencia as últimas invasões bárbaras. Os Vikings, os Magiares e os Mongóis, cada um em seu devido tempo, ixam-se em zonas determinadas do continente europeu. Tal calmaria traz à Europa Ocidental uma maior organização social, econômica e política. Esta calma relete-se também no aumento populacional, que, por sua vez, provoca enormes mudanças no plano social. Já no século XII, a situação das comunidades judaicas tornara-se mais estável e mais favorável ao seu desenvolvimento. Grande parte dos judeus organizara-se nos centros urbanos, trazendo características fortemente cosmopolitas e exercendo ofícios que lhes garantiriam boa prosperidade dentro dos centros urbanos em que se ixaram. Neste cadinho sócio-cultural, o convívio entre cristãos e gentios passou a esferas cada vez mais delicadas e as diferenças culturais e religiosas tornaram-se patentes, desaiando, assim, a homogeneidade social que se pretendia. Por im, outras causas como a usura e a facilidade de crescimento econômico das comunidades judaicas também foram responsáveis pelo surgimento, por parte dos estamentos sociais menos abastados, de uma animosidade contra tais comunidades, que muita vez Lingüísta especializado em Medievística Germanística e Mestrando do Programa de Pós Graduação em História Comparada da UFRJ, Bolsista pela FAPERJ e Pesquisador do Projekt Mittealter. 1 408 culminou nos pogrons, ou seja no ataque maciço às comunidades judaicas, resultando em assassinatos, saques dos bens e destruição de suas casas. Relatos de Perseguições aos Judeus Esta pedra é uma lembrança2 para que uma geração vindoura possa saber que aqui debaixo jaz escondido um agradável amigo, um ilho admirado perfeito no saber, um ávido leitor das Escrituras um estudante da Mishnah e da Guemará. Ele aprendeu com seu pai o que seu pai aprendeu com seus professores: As Leis de Deus e seus desígnios. Embora tivesse apenas quinze anos de idade, era como se tivesse oitenta em conhecimento. O mais abençoado de todos os ilhos: Que Asher possa descansar no paraíso O ilho de Joseph ben Turiel - que Deus o ampare, Ele morreu da Praga, no mês de Tammuz, no ano de 1093 Mas, poucos dias antes de sua morte ele fez sua morada;4 Contudo, na noite passada, as alegres vozes da noiva e do noivo tornaram-se vozes de prantos. E deixou seu pai triste e a chorar. Possa o Deus dos Céus O receber em seus braços e que possa mandar outro ilho para trazer de volta sua alma.5 Epitáio de Asher ben Turiel, encontrado no cemitério judaico de Estrasburgo. Junho ou Julho de 1349. 4 Aparentemente ele havia acabado de casar-se. 5 Tradução nossa. 2 3 409 O texto acima foi retirado de um epitáio encontrado no cemitério judaico de Estrasburgo e relata brevemente detalhes de um personagem que a história imortalizou por acaso. Não tivesse sido vitimado pela Peste Negra, talvez nunca chegasse a nosso conhecimento, contudo seu túmulo serve não só como prova da ação devastadora da Peste Negra, que em um simples piscar de olhos ceifava a vida de jovens, velhos, homens, mulheres, crianças, judeus, cristãos e muçulmanos, sem se importar com a posição social do indivíduo, se era abastado ou se deixava muitos credores, mas está a nos mostrar, da mesma forma, o sofrimento dos que permaneciam vivos. Quando observamos eventos históricos e nos deparamos apenas com as estatísticas das milhares de vidas ceifadas neste episódio, perdemos parcialmente a noção de que aquele indivíduo não era apenas um número, mas um ente ligado por elos de afeto a muitos outros, era ilho, irmão, esposo, pai, portanto, um elemento complexo dentro de uma totalidade que nem de longe poderia ser considerada sem a sua inerente complexidade. Assim inicia Ibn Verga o vigésimo sexto relato de seu A Vara de Judá: No ano 5160 da Criação6 houve uma forte e devastadora epidemia nos arredores da Germânia, Alamânia, da Provença e nas proximidades da terra dos Catalães, como nunca antes fora narrada em livros de História, nem nunca nada igual fora ouvido, exceto por aquela epidemia em Roma e cercanias, onde se acreditou que todos viriam a morrer. Mas uma Peste assim nessas proporções nunca se ouvira antes. Até o ano de 1400, a Europa fora atacada por ondas sucessivas de uma praga pandêmica, suspeitadamente de origem bubônica e pneumônica, contudo algumas pesquisas recentes apontam para outras origens. Tal praga foi a responsável pelo maior morticínio registrado até então na história, maior que qualquer outra epidemia ou guerra conhecidas até aquele momento. A prática historiográica corrente faz-nos crer que Idade Média e Violência são termos que, com uma certa recorrência, encontram-se 6 c. 1399 e.c 410 pari passu. Contudo o termo ‘violência’ com toda a carga semântica que conhecemos é bem mais recente. ‘Violência’ na Idade Média, contudo, referia-se somente ao ato de se violar alguém, uma donzela, por exemplo. Conceitos de crime e criminalidade também eram desconhecidos, a Lei como conhecemos também não existia, funcionando rudimentarmente através de dispositivos decretados pela nobreza e pelo clero, tangenciando, em geral, assuntos ligados aos atos de lesa majestade ou de heresia, respectivamente. Posteriormente, o conceito de violência surge jungido como uma característica inerente à nobreza, que deveria utilizar-se da violência para assim mostrar a força e conseqüentemente grandeza, remontando, por conseguinte, às suas origens guerreiras. Desta forma, se a violência é um privilégio da nobreza, o comportamento violento se dividia por outras camadas sociais, o que se comprova pela quantidade de registros de homicídios bem pronunciada. Aliado a esse conceito, vemos que, para o clero, que inluía sobre o pensamento da massa popular, o conceito de usura era considerado um ato violento e acima de tudo, pecado; para a populaça, era considerado uma espécie de roubo, que, no entanto, não era previsto pelos dispositivos legais como violência, pois pode ser também desculpável em nome do princípio de assistência mútua, conforme previsto no código do direito canônico. Portanto, vemos que a lexibilidade medieval em termos de punição às ações réprobas era bastante signiicativa, de forma que tanto o roubo quanto o homicídio gozavam de uma relativa, senão presumida, imunidade. Imersa nesse contexto e para que possamos depreender melhor os resultados advindos da soma desses elementos, acrescentandolhes ainda as cerceaduras impostas aos que estavam submetidos pelos dispositivos da fé aos desígnios do braço clerical, encontramos a igura do judeu livre para a prática da usura, proibida aos cristãos. De acordo com o pensamento da época, a usura era considerada intolerável, todavia, o assassínio era perdoável para o cristão, contanto que tangenciasse as questões ligadas à honra. De posse dessa clava, os cristãos, incomodados com a situação em que se encontravam, coagidos pela nobreza e clero, que lhes cerceavam a liberdade e lhes impunham regras severas e aproveitando-se das 411 brechas convenientes que as mesmas regras apresentavam, canalizam, então, suas insatisfações para o elemento antagônico de suas comunidades, àqueles que não compartilhavam das suas identidades com a terra, identidades que formariam muito posteriormente o sentimento de nacionalismo.7 A tolerância, que se pode detectar, é, portanto, fruto do pensamento agostiniano em relação aos judeus, que deveriam ser preservados à guisa de testemunhas das Eras. Contudo, mesmo que a primeira geração de frades tenha pregado o amor incondicional, como visto nos ensinamentos de Francisco de Assis e de Domingos de Gusmão, as gerações que os sucederam se endureceram quando em contato com o ambiente urbano, recrudescendo, assim, os sentimentos nutridos àqueles que não lhes estavam submetidos. Responsáveis, então, pela cessação de todos os direitos que até então gozavam as comunidades judaicas, aqueles eclesiásticos promoveram também fortes perseguições, através da propagação das boatarias, culminando, desta forma, com a expulsão das comunidades em diversos pontos da Europa. Os primeiros boatos tangiam aos libelos de sangue, ou à crença de que os judeus confeccionavam o pão ázimo da Pessach com sangue de crianças cristãs, passando por atos de sacrilégios que esses cometeriam contra o sacramento da hóstia, até a crença de que a praga que estava a assolar a Europa era uma Pestis Manufacta por judeus, que queriam se vingar das perseguições, então, sofridas. 1. Solomon Ibn Verga e A Vara De Judá Eis que agora fala Solomon, o ilho de Ibn Verga, cuja memória é abençoada: no inal do livro, o qual o famoso Sábio Dom Yehudah Ibn Verga, cuja memória é abençoada, compilara, encontrei narrados algumas tribulações e sofrimentos, os quais foram passados por alguns israelitas no estrangeiro. Eu os transcrevi, para que os Israelitas iquem atentos e reconheçam e AZEVEDO, J. Lúcio de. História dos Cristãos-Novos Portugueses. Lisboa: Clássica, 1989. 7 412 se voltem em preces ao Senhor da Piedade, para que Ele expie seus pecados através do que eles sofreram e que seus sofrimentos possam cessar. Eu dei a esse livro o nome de “Shevet Yehudah”,8 porque estes puderam sentir o máximo poder que decorre daquele que se senta sobre o Trono.9 Pois também assim dissera o Profeta: Jerusalém afundou e Judá caiu.10 Da vida do autor de Shevet Yehudah sabe-se muito pouco e mesmo esse pouco só se sabe pelo que está contido em sua própria obra. Ele teria sido natural de Málaga e saíra da Espanha na grande expulsão de 1492, posteriormente viajando por várias comunidades espanholas na tentativa de arrecadar dinheiro para o resgate dos que foram aprisionados em sua cidade natal. Seus próprios registros marcam sua passagem por Lisboa, Portugal, onde teria se ixado por algum tempo e vivido lá como um Marrano, ou seja, um judeu de origem espanhola, convertido à força à fé cristã. Durante este período em que lá esteve, fora testemunha ocular do massacre ocorrido em 19 de Abril de 1506. Tal massacre ocorrera por um somatório de fatores, entre eles a Peste Negra e a desconiança dos cristãos-velhos sobre os cristãos novos, quando, incitados por dois frades, Frei João Mocho e Frei Bernardo, provocaram a morte de quatro mil marranos, de acordo com o historiador português Jorge Martins. Outras testemunhas deixaram o registro deste evento. Damião Goes,11 historiador e humanista português registra na página 141, Capítulo CII, de sua Chronica do Felicissimo Rey D. Emanuel da Gloriosa Memória: No mosteiro de São Domingos da dita cidade estava uma capela a que chamava de Jesus, e nela um cruciixo, em que foi então visto um sinal, a que davam cor de N.T. A Vara de Judá. N.T. Ou: pois estes foram os primeiros a receberem seus ensinamentos e foram completas testemunhas do peso do Ramo Divino. 10 N.T. Isaías 3, 8: “Pois Jerusalém tropeçou, e Judá caiu; porque a sua língua e as suas obras são contra o Senhor, para afrontarem a sua gloriosa presença”. 11 GOES, Damião de. Chronica do Serenissimo Rei D. Manoel. Lisboa: Impressor do Santo Ofício Miguel Manescal da Costa, 1749. 8 9 413 milagre, com quanto os que na igreja se acharam julgavam ser o contrário dos quais um cristão-novo disse que lhe parecia uma candeia acesa que estava posta no lado da imagem de Jesus, o que ouvindo alguns homens baixos o tiraram pelos cabelos de arrasto para fora da igreja, e o mataram, e queimaram logo o corpo no Rossio. Ao qual alvoroço acudiu muito povo, a quem um frade fez uma pregação convocando-os contra os cristãos-novos, após o que saíram dois frades do mosteiro, com um cruciixo nas mãos bradando, heresia, heresia, (...) tirando-os delas de arrasto pelas ruas, com seus ilhos, mulheres, e ilhas, os lançavam de mistura vivos e mortos nas fogueiras, sem nenhuma piedade, e era tamanha a crueza que até nos meninos, e nas crianças que estavam no berço a executavam, tomando-os pelas pernas fendendo-os em pedaços, e esborrachando-os de arremesso nas paredes. Outra testemunha ocular do massacre fora Garcia de Rezende,12 que assim deixa sua visão registrada em seu Miscellania & Variedades de Histórias, costumes, casos & cousas que em seu tempo aconteceram, escrito na década de 1550: Vi qẽ em Lixboa se alçaram Pouo baixo & villãos Contra os nouos Christãos Mais de quatro mil matarã Dos qẽ ouuerão nas mãos. Hũos delles viuos queimarã Mininos espedaçarão Fizerão grandes cruezas Grandes roubos & vilezas Em todos quantos acharão. Estando só ha cidade Por morrerem muito nella Se fez esta crueldade 12 REZENDE, Garcia de. Miscellania & Variedades de Histórias, costumes, casos & cousas que em seu tempo aconteceram. Coimbra: França Amado, 1917. 414 Mas el rey mandou sobrella Cõ muy grande breuidade Muitos forão justiçados Quantos acharão culpados homẽ baixos & bragantes & dous frades observãtes vimos por isso queimados. El rey teue tanto a mal Ha cidade tal fazer Qẽ o titulo natural De noble & sempre leal Lhe tirou & fez perder. Muytos homens castigou & oficios tirou depois que Lixboa vio tudo lhe restituyo & o titulo lhe tornou. O próprio Solomon Ibn Verga13 fornece mais alguns detalhes do evento: Depois disto, levantaram-se todos os clérigos, portando cruzes, encaminharam-se para a rua da cidade e bradaram: quem matar um Judeu, doravante terá seus pecados perdoados por cem anos! Então, ergueu-se grande parte do povo com espadas na mão, mataram, em três dias, três mil pessoas, arrastaram-nas para a praça e as queimaram. Muitas mulheres grávidas eram arremessadas das janelas e feridas com espetos de forma que o os frutos da carne14 fossem parar longe. E outras abominações que aqui também não quero relatar. Após o incidente, Solomon fugiu primeiramente para a Itália e depois para Edirne, antiga Adrianópolis na Trácia, hoje Turquia e lá teria começado a compilar o material para o Shevet Yehudah. Contudo, IBN VERGA, Solomon. Shevet Yehudah. Adrianópolis, /s.ed./, 1554. Idem, 1655; WIENER, Meir. Liber Schevet Jehuda auctore Salomone Aben Verga, ex hebraico in germanicum sermonem vertit, praefationem, notas atque indices nec non additamentam adjecit. Hannover: Carl Rümpler, 1856. 14 N.T: fetos. 13 415 vem-se atribuindo a obra quase que exclusivamente a Solomon Ibn Verga, embora se saiba que há na obra as mãos de muitos.15 Então, ocorreu, em parte das terras cristãs, que surgisse uma acusação de que os Judeus haviam envenenado os arroios e assim deram origem à epidemia. Depois disso, reuniram-se todos, foram até o rei, suplicaram a ele e lhes contaram tudo o que ocorrera. Imediatamente perguntou-lhes o rei “Algum judeu morreu da epidemia?” e eles responderam “Nem sequer um. Conforme airmáramos acima, a Peste Negra dizimava indistintamente, não conhecendo status social ou credo. Assim sendo, os judeus eram vitimados pela peste na mesma proporção que os cristãos, apesar disso, um boato surgira em terras alemães, airmando que um complô de Judeus era o responsável pelo alastramento da doença e que estes, então, visavam destruir os cristãos por envenenamento. Os registros marcam a primeira eclosão de violência contra os judeus sob esse pretexto no Norte da Espanha, em Barcelona, Cervera e Tarrega durante os meses de Junho e Julho do ano de 1348, contudo, as origens do boato a respeito do complô sobre a contaminação e sua conexão com a Peste Negra originaram-se na Suíça, no outono do mesmo ano, apesar da promulgação em documento oicial, por Clemente VI, em julho daquele ano, em que airmava serem falsos tais rumores. Então observou o rei “Mas se eles envenenaram os arroios, onde eles beberiam água?”. Logo responderam “Eles bebem água de poço”. Ainda o rei “Nos outros países, onde não há água de poço, o que eles bebem? Eu replico isto somente por aquilo que dizeis, posto que, na verdade, é impossível que a epidemia tenha se originado dessa forma, pois quanto veneno eles deveriam colocar nos arroios para que este não desaparecesse em tamanha quantidade d’água! Além do mais, as águas se esvaem rapidamente e outras vêm e nestas já não mais STOBBE, Johann Ernst Otto. Juden in Deutschland während des Mittelalters in politischer, sozialer und rechtlicher Beziehung. Braunschweig: Schwetschte und Sohn, 1886. 15 416 haverá veneno. Outrossim, quem morre envenenado não desenvolve tumores, e além do que, ide e bebei água de poço e vede se não contraireis a peste. Fontes históricas16 airmam que, por volta do ano de 1348 circulava a opinião de que os líderes judaicos da metrópole judaica de Toledo teriam dado início a uma conspiração e que o Rabino Chefe, chamado Peyret, da Sinagoga de Chambéry em Savóia, onde mantinha a sede do seu poder, teria sido o chefe desse complô que visava destruir os cristãos, começando por Veneza e arredores. Diziam que era de Chambéry que ele mandava seus emissários envenenadores rumo às cidades de França, Suíça e Itália. Uma vez feita a acusação e lançada por várias outras localidades, espalhara-se com incrível rapidez de aldeia a aldeia e relatos oiciais foram enviados pelos grandes de várias cidades, contendo supostas conissões de judeus que tinham sido detidos sob acusação e submetidos à tortura. Muitos judeus viviam às margens do lago de Genebra, sob a autoridade do conde de Sávoia, Amadeus VI, até que no mesmo ano foram aprisionados e submetidos à tortura para que confessassem e, sob tortura, eles confessariam qualquer coisa que lhes fosse atribuída. Assim sendo, esses judeus, terminaram por incriminar a vários outros. Suas conissões foram enviadas a toda a parte, à Suíça, depois para a região da Renânia Superior, chegando até a Alemanha e como resultado, milhares de judeus, em cerca de centenas de cidades e vilarejos, foram abatidos e queimados. No momento em que aquelas gentes tomaram conhecimento da opinião do Rei, deduziram, ao verem um Judeu que escarnecera deles dizer “De que servem agora vossas acusações?”, que deveriam agir em conjunto e buscar testemunhas que de boa vontade pudessem relatar sobre como viram os judeus jogarem algo nos arroios no meio da noite, sem saber o que seria, e que também teriam dito palavras mágicas incompreensíveis no rio. GENZ, Georg. Shevet Yehudah: Tribus Judae Salomonis il. Virgae. Complectens Varias Calamitates, Martyria, Dispersiones, Accusationes, Ejectiones, aliasque Res Judaeorum Ab everso Hierosolymorum Templo ad haec ferè tempora usque ... De Hebraeo in Latinum versa à Georgio Gentio. Amsterdão: Wetstenius, 1680. 16 417 Os relatos explicavam que quando a aldeia de Chillon fora devastada pela praga, vários judeus da cidade foram aprisionados e então torturados, um deles, um tal de Balavignus, viria a confessar a respeito de uma elaborada conspiração que fora preparada por grupos judaicos de uma aldeia no sul da França, entre eles um Rabino chamado Peyret de Chambéry, Jakob à Paskate de Toledo e um outro chamado Agimet. Na conissão, airmavam que a poção destruidora continha ingredientes como corações de cristãos, aranhas, sapos, lagartixas, carne humana e hóstias consagradas e distribuiu o pó feito através desta cocção para ser depositado nos vários poços onde os cristãos costumavam abastecer-se de água. Conclusão Os documentos e relatos, até aqui apresentados, visaram depreender as formas pelas quais se manifestou o sentimento de intolerância étnica nas diversas regiões da Europa durante o episódio da Peste Negra. Tendo como base as narrativas encontradas no Shevet Yehudah do cronista Ibn Verga, mais especiicamente aquela de número vinte e seis, que tangencia especiicamente aos processos de conversão forçada e à atuação da nobreza, seja para impedir ou controlar as perseguições, seja para, mesmo, em alguns casos, dar azos a mais perseguições, foi então possível criar um paralelo entre outras narrativas contemporâneas que, ou as atesta, ou traz mais informações no tocante a esses episódios. Alguns dos relatos aqui incluídos, sendo digno de menção o Epitáio de Asher ben Turiel, demonstram de forma elucidativa não só os padecimentos, dos quais as comunidades judaicas foram vitimadas, motivados pelas acusações circulantes de que teriam criado o agente propagador da Peste Negra, mas também corroborando para negar a versão proposta outrora, que os mostra sendo vitimados pela própria Peste e absolvendo-os do papel de impulsionadores da Praga. 418 SOBRE A GLÓRIA DOS MÁRTIRES E DOS CONFESSORES: OS USOS SOCIAIS DA LITERATURA NO PERÍODO MEROVÍNGIO Letícia Sousa Campos da Silva (Graduada UFF) Introdução Nos anos 50, alguns especialistas europeus de diferentes áreas do saber, tais como Chaïm Perelman e Stephen Toulmin, procuraram, por meio de diversos estudos, resgatar o papel da retórica como forma legítima de produção de trabalho no pensamento ocidental.1 Desde então, uma série de pesquisas a respeito de questões como as associações entre a linguagem e a persuasão têm sido desenvolvida de modo que hoje parece ser posição unânime entre os estudiosos a concepção de que todos os textos, independentemente do gênero, argumentam sobre alguma coisa.2 Tal posição é ratiicada por Adilson Citelli que airma que “o elemento persuasivo está colado ao discurso como a pele ao corpo”.3 Procurando superar a conotação negativa da palavra, o autor explica que persuadir “não é apenas sinônimo de enganar, mas também o resultado de certa organização do discurso que o constitui como verdadeiro para o receptor”.4 Não obstante, acredita-se haver maneiras especíicas de organização dos mecanismos persuasivos de acordo com os gêneros textuais.5 Utilizando-se de tais premissas, o trabalho aqui apresentado Cf.: CUNHA, Tito Cardoso e. A Nova Retórica de Perelman. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1998. Disponível em http://www.bocc.ubi.pt/pag/ cunha-tito-Nova-Retorica-Perelman.pdf . Acesso em 14 de dezembro de 2011. 2 KOCH, I. Argumentação e Linguagem. São Paulo: Cortez, 1993. p. 21– 22. 3 CITELLI, A. Linguagem e Persuasão. São Paulo: Princípios, 1994. p. 6. 4 Ibidem, p. 14. 5 SILVA, G. N . A Argumentação Presente em Diferentes Gêneros Textuais. Revista Anagrama, v. 02, p. 01-15, 2008. Disponível em http://www.usp.br/ anagrama/Novais_Argumentacao.pdf . Acesso em 14 de dezembro de 2011. 1 419 pretende uma análise de duas hagiograias – a saber, De Gloria Martyrum e De Gloria Confessorum – produzidas por Gregório de Tours, um bispo católico de uma das sés metropolitanas da Gália merovíngia no século VI. Por meio de um exame comparativo das obras, procura-se observar de que modo estes escritos cooperam para a manutenção da coniguração religiosa da sociedade. Culto aos santos e produção literária Havia em algum lugar do território de Troyes, sobre uma tumba, um pequeno oratório no qual somente um lector servia. O mártir enterrado era conhecido de todos: ele se chamava Pátroclo e diversos milagres desempenhados no local mostravam que ele era um amigo de Deus. Contudo, os homens da região mostravam pouco respeito pelo santo porque nenhum relato de seu sofrimento estava à mão, uma vez que era “costume de homens incultos venerar mais cuidadosamente aqueles santos de Deus cujas lutas eles pudessem ler”.6 Então, um homem chegou de uma longa jornada e apresentou ao clérigo um pequeno livro com o relato da luta do mártir. Depois de lê-lo rapidamente, o lector passou uma noite inteira copiando o livro. Assim que o homem partiu, o clérigo foi correndo mostrar sua cópia ao bispo, pensando que, ao agir deste modo, conseguiria adquirir sua boa vontade. Todavia, acreditando ser uma falsiicação, o bispo não reconheceu o livro e censurou o clérigo. Entretanto, para que o poder do mártir não fosse ocultado, certo tempo depois, um exército marchou para a Itália e, quando voltou, trouxe um relato do sofrimento de Pátroclo bastante similar àquele que tinha sido escrito pelo clérigo. O bispo então icou chateado com sua atitude inicial e, daí em diante, as pessoas começaram a dar mais honra ao mártir: depois de construírem uma igreja sobre sua tumba, elas piedosamente passaram a celebrar seu festival todos os anos. Este episódio é um dos casos narrados por Gregório de Tours. Neste relato, como em muitos outros, parece não haver preocupação alguma com a especiicação das personagens envolvidas tanto quanto De Gloria Martyrum 63: “ Mos namque erat hominum rusticorum, ut sanctos Dei, quorum agones relgunt, attentius venerentur”. 6 420 com a periodização dos eventos, o que promove uma valorização do acontecimento em si. Então, infere-se que a principal informação veiculada a esse episódio é o fato de que a existência de um registro escrito devia ser um elemento central para que homens incultos praticassem a devoção a um santo. A palavra utilizada no texto latino para caracterizar os homens em questão é o adjetivo rusticus, vocábulo polissêmico recorrente nos textos do bispo. No latim – e isso chegou até o português –, em seu sentido original, rusticus designava as pessoas, os objetos e os lugares relativos à área rural. De modo progressivo, provavelmente devido à dicotomia estabelecida entre o campo e a cidade e, consequentemente, à tentativa de se valorizar o padrão citadino, o vocábulo foi adquirindo o signiicado de incivil, inculto, grosseiro, ignorante. Depois, outra evolução linguística ocorreu, de maneira a imputar à palavra um cunho religioso, e passou a ser considerado comum identiicar a palavra com o comportamento de um pagão. Entretanto, Peter Brown argumenta que o bispo de Tours atribuiu-lhe um signiica próprio, referente à prática religiosa cristã, o que será aqui discutido mais adiante. Tratando-se de homens campestres, ignorantes ou pagãos, acredita-se que, bem como a maior parte da população, em sua maioria, estas pessoas não deveriam possuir a capacidade de ler. Por isso, era comum haver nas igrejas e nos oratórios clérigos cuja função era a leitura dos textos – como é o caso do clérigo desse relato, uma vez que ele é descrito como um lector. Se eram, pois, analfabetas por que razão elas atribuíam aos escritos sobre os santos tal importância? Neste sentido, Pedro Paulo dos Santos explica que “mesmo reconhecendo que a sociedade (proto) medieval é analfabeta, a Igreja, com suas mediações (homilias, afrescos, catequese e lectio) supera esta barreira e isto porque, estes iéis sabem que o ensinado, pregado ou pintado provinha da ‘autoridade’ do escrito, da comunicação do livro (…)”.7 Para entender tais relações é necessário lembrar que, desde seu início, a emergência do cristianismo esteve ligada à questão do livro. E isso se deu não somente em virtude de sua vinculação inicial ao universo grecoSANTOS, P. P. A recepção do ‘livro cristão’ no mundo tardoantigo: as estratégias estéticas na ‘comunicação’ do novo império cristão? NEArco, Rio de Janeiro, ano II, n. I, p. 1-14, 2009. p. 7. 7 421 romano, em que a escrita tinha um papel fundamental, mas porque os cristãos, ao colocarem-se sob o estandarte da Cruz, assumiram as Escrituras Sagradas, passando a reconhecer a superioridade da escrita num duplo sentido: como a segurança contra o esquecimento e como a memória de lei”.8 No entanto, a despeito do papel essencial da Bíblia, não demorou muito para que houvesse o desenvolvimento de uma literatura de caráter auxiliar ao texto bíblico. Arnaldo Momigliano, pesquisador que se ocupou do estudo da historiograia na Antiguidade, percebeu uma revolução literária no século IV. Segundo Momigliano, após a batalha travada por Constantino em 312, conscientes de que tinham vencido, os cristãos começaram a explorar o milagre ocorrido, anunciando sua vitória ao mundo. Desse modo, multiplicou-se a produção de obras com o intuito de se vingar dos perseguidores da Igreja. “Quizá no es causal que ni Lactancio ni Eusebio hubieran sufrido mucho personalmente durante la persecución de Diocleciano. Como Tácito en relación con Diocleciano, aquéllos se hicieron los portavoces del resentimiento de una mayoría que había sobrevivido al terror más que al tormento físico”. 9 Neste contexto, surgem no século subsequente novos gêneros literários, tais como a História Eclesiástica proposta por Eusébio de Cesareia e as Vitas, elaboradas inicialmente por Atanásio de Alexandria. Contudo, apesar da aparente inovação, pode-se identiicar como antecedentes desta literatura de caráter cristão, as cronologias contendo numerosas listas de bispos e os suplícios e atas de martírios produzidas nos séculos II e III. Além disso, outra continuidade percebida é a utilização das normas de composição romana. André Miatello observa que “não há como ignorar que as Vidas de santos foram compostas segundo os modelos retóricos da biograia do mundo antigo (pagão e judaico) […] porque os autores LOBRICHON, G. Bíblia. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J.C. (Orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002. 2v. V.1. p. 105-118, p. 105. 9 MOMIGLIANO, A. Historiografía pagana y Cristiana en el siglo IV. In: ____ (Org.). El conlicto entre el paganismo y el cristianismo en el siglo IV. Madrid: Alianza, 1989. p. 96. 8 422 cristãos preferiram traduzir sua fé usando os artifícios discursivos do mundo antigo”.10 Em meio a tais permanências, a ruptura que parece ter havido no século IV é a inserção da perspectiva da redenção nas concepções literárias romanas. Embora muitas análises identiiquem este traço geral presentes nas narrativas de tipo hagiográico,11 há sempre algumas vozes dissonantes. De acordo com Ian Wood, por exemplo, a hagiograia não é um gênero, mas uma multiplicidade, visto que há diferenças de função, de audiência e de forma entre os textos.12 Neste sentido, Alain Dierkens consegue identiicar ao menos quatro fontes hagiográicas distintas: miracula, virtutes, translationes e vitae. Ainda que não seja muito fácil estabelecer as particularidades de cada uma, ele observa que, enquanto os dois primeiros tipos versam principalmente sobre os milagres realizados post-mortem, os relatos presentes nas vitae ocupam-se dos milagres desempenhados in vita. Já as translationes tratam dos milagres decorrentes da multiplicação ou da movimentação das relíquias dos santos.13 Mesmo que se admita tamanha diversidade formal, quando se fala em hagiograia aqui, entende-se do mesmo modo como o faz Michel de Certeau: um discurso especíico que estaria ao mesmo tempo lado a lado e na extremidade da historiograia.14 Em outras palavras, o objetivo da hagiograia não seria a história em si – embora MIATELLO, A. Hagiograia. Disponível em http://www.fsch.unlpt/investedtl/ verbete/H/hagiograia.html. Acesso em 14 de dezembro de 2011. 11 A palavra hagiograia é recente. Ela começou a ser utilizada com o sentido pelo qual se emprega hoje – a biograia, os feitos ou qualquer elemento relacionado ao culto de um indivíduo considerado santo – desde o século XVIII quando o grupo dos bollandistas iniciou o estudo sistemático e crítico sobre as fontes relativas aos santos. 12 WOOD, Ian. he use and abuse of Latin hagiography in the Early Medieval West. In: ____; CHRYSOS, E. (Orgs.). East and West: modes of communication. Kölon: Brill, 1999. p. 93. 13 DIERKENS, Alain. Rélexions sur le miracle au haut Moyen Age. Actes des congrès de la Société des historiens médiévistes de l’enseignement supérieur public, Paris, v. 25, n. 25, p. 9-30, 1994. p. 17 – 19. 14 CERTEAU, M. Uma variante: a ediicação hagiográica. In: ___. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982. p. 267. 10 423 isto não signiique contradizer a verdade – mas o aperfeiçoamento dos crentes. Desse modo, os fatos históricos icam subordinados ao propósito da ediicação referindo-se, como apontou Certeau, “não essencialmente ‘àquilo que se passou’, como faz a história, mas ‘àquilo que é exemplar’”.15 Entretanto, o narrador não altera nem deforma os fatos, mas estabelece em sua narração nexos lógicos entre eles para que sua audiência extraia deles o ensinamento adequado.16 Contudo, apesar de se partir destas generalizações, não se pode minimizar a importância das condições sociais especíicas de produção de seus autores. Por isso, é preciso procurar investigar o tipo de escrita característico de Gregório de Tours para veriicar se ele integra tais observações. A Gália de Gregório de Tours Georgius Florentius Gregorius nasceu provavelmente na Civitas Arvenorum, atual Clermont-Ferrand, entre 538 e 540. Desde criança, ele teve a seu redor familiares que lhe serviram de exemplos de serviço tanto aos poderes temporais como aos espirituais. Seus pais eram legítimos representantes da nobreza senatorial galo-romana: seus bisavós, seu avô paterno e seu pai foram senadores. Por outro lado, tamanha era a relação de sua família com a instituição católica que treze dos dezoito bispos de Tours que o antecederam eram parentes seus do lado materno. Porque Clermont e Tours estiveram profundamente marcadas, respectivamente, pelos cultos de São Juliano e de São Martinho, Gregório cresceu no meio de pessoas que estabeleceram relações especíicas com esses santos. Diante de tal panorama, não causou grande admiração observar que a geração de Gregório continuou estas tradições familiares. Em 573, com apenas 34 anos de idade, ele foi elevado ao episcopado, posição que ocupou até a sua morte, cerca de 20 anos depois. É muito provável que o mesmo pudesse ter ocorrido com seu irmão Pedro se ele não tivesse sido assassinado quando ainda era um diácono MARTÍN, J. Verdad histórica y verdad hagiográica en la Vita Desiderii de Sisebuto. Habis, Sevilha, n.29, p. 291-301, 1998, Passim. 16 Ibidem, Passim. 15 424 em Langres.17 Já Justina, a ilha de sua irmã, tornou-se prioresa no convento de Poitiers. Não obstante a tendência em considerá-lo como alguém que nasceu para o episcopado devido a sua linhagem, as circunstâncias que levaram à morte de seu irmão bem como alguns problemas que o próprio Gregório teve com algumas pessoas que se opuseram à sua consagração,18 dizem muito a respeito não somente das disputas em torno do controle sobre a religião como também da luidez das estruturas religiosas deste período. Ocupando a posição de bispo metropolitano do território de Tours, um local relativamente famoso por ter sido, nos idos do século IV, o local de bispado de São Martinho, Gregório deve ter utilizado de seu púlpito para construir uma opinião pública favorável sobre si mesmo. Entretanto, não chegou até nós nem sequer indícios de possíveis hábitos de transcrição de seus sermões. Felizmente, o bispo de Tours nos deixou uma boa produção literária. Em seu tempo de vida, ele escreveu livros de história e relatos de milagres e de vidas dos santos. Enquanto servia como diácono de seu parente Tétrico de Langres, Pedro parece ter adquirido uma boa reputação entre as pessoas. Quando este bispo foi acometido por uma doença, Munderico foi designado sob a aprovação do rei Chilperico para temporariamente servir como arcipreste. Quando da morte de Tétrico, o arcipreste deveria ter tomado posse como o novo bispo, mas no contexto de algumas rivalidades entre os reis francos Munderico foi capturado como prisioneiro e mandando para o exílio. Diante do cargo vacante, Pedro propôs como substituto o nome de Silvestre, homem pertencente a sua família. Contudo, também este não pôde assumir o cargo uma vez que morreu antes de sua consagração, aparentemente devido a um ataque epilético. O ilho de Silvestre então se vinculou à Lampádio, antigo diácono de Tétrico demitido por má administração dos fundos dos pobres – demissão esta que contou com o apoio de Pedro –, e, juntos, eles passaram a acusar Pedro do assassinato de Silvestre. Em uma audiência em Lyon, o acusado, jurando inocência, foi absolvido. Todavia, dois anos mais tarde, instigado por Lampádio, o ilho de Silvestre esfaqueou o irmão de Gregório até a morte. Cf.: Decem Libri Historiarum V:5. 18 Logo no início do bispado, Gregório enfrentou alguns problemas com o conde Leudaste e com dois clérigos associados a ele coincidentemente conhecidos sob o mesmo nome de Riculfo. Enquanto o primeiro, um subdiácono, foi responsável por acusar Gregório de difamações diversas, entre elas um insulto feito à rainha Fredegunda, o segundo, um padre, além de também insultar o bispo, cuspiu nele e tentou agarrá-lo. Cf: Decem Libri Historiarum V:49. 17 425 Uma comparação entre os escritos sobre mártires e confessores Dentre os oito livros de hagiograia de autoria de Gregório de Tours, embora entre todos possamos estabelecer algumas conexões internas, a associação entre as obras De Gloria Martyrum (GM) e De Gloria Confessorum (GC). Primeiramente porque é bastante provável que eles tenham sido, respectivamente, o primeiro e o último livro de milagres escritos pelo bispo, mas também devido ao fato de que em GM há 106 relatos sobre os milagres atribuídos aos mártires, enquanto em GC há 107 histórias relacionadas aos confessores, isto é, aqueles que não foram mártires. O surgimento da noção de confessor está relacionado ao im das perseguições aos cristãos e, consequentemente, à redução dos casos de martírio, representando, assim, uma nova maneira de se entender a santidade no Medievo.19 O livro sobre mártires começa com a narração de episódios relativos ao mártir por excelência: Jesus. Não há somente eventos baseados no Novo Testamento como também casos com as relíquias da paixão, como, por exemplo, os milagres da Santa Cruz no convento de Poitiers, que é o capítulo mais longo do livro.20 Percebe-se desde logo a lógica de apresentar os acontecimentos passados alternadamente aos eventos contemporâneos ocorridos por meio das tumbas ou relíquias dos mártires. Fala-se dos apóstolos e de outros personagens próximos a Jesus, como João Batista, Maria e Paulo, e, somente depois disso, passa-se aos mártires do Ocidente. É de se admirar o fato de que somente no 33º relato Gregório inclua histórias sobre o diácono Estêvão, que é considerado o primeiro mártir para muitos cristãos, ainda que este relato seja relativamente mais extenso que muitos outros. Em relação aos mártires ocidentais, os primeiros mencionados são aqueles da Península Itálica, o que ocorre, segundo Van Dam, porque algumas das primeiras comunidades cristãs desenvolveram-se naquele território, além do fato de Gregório ainda pensar em Roma como a principal cidade do mundo.21 É a partir da metade do livro que Cf.: IMPELLIZIERI SILVA, Miriam Lourdes. A Santidade Episcopal no Final da Antiguidade. Revista Eletrônica Cadernos de História. São Lourenço, v. IX, ano 5, n. 1, p. 158-173, 2010. 20 GM 5. 21 VAN DAM, R. Introduction. In: GREGORY OF TOURS. Glory of the 19 426 os mártires gauleses ganham destaque. Próximo ao inal, parece haver uma digressão e volta-se a falar sobre os mártires de outros territórios como a Espanha e o Norte da África. Apesar da aparente falta de coerência, o último relato, ao enfatizar o poder do sinal da cruz até mesmo na expulsão de uma mosca saliente, dialoga profundamente com os milagres da Santa Cruz do início do livro. A diversiicação espacial é bem menor em GC. Embora mantenha seu costume de misturar histórias antigas e recentes, parece haver, neste caso, a tentativa de instauração de um padrão espacial. No prefácio de GC, o último livro de histórias de milagres, o bispo informa que o iniciará com o relato de um milagre desempenhado pelos santos anjos relacionado às Escrituras, uma vez que começou o primeiro livro – GM – com os milagres do Senhor.22 Em seguida, encenam-se histórias com dois bispos que foram importantes para o desenvolvimento da igreja gaulesa no século IV: Hilário de Poitires e Eusébio de Vercelli. Depois disso, ica evidente o agrupamento dos eventos em blocos de acordo com a lógica geográica, sobretudo os dois locais mais relevantes para Gregório: Tours, sua sé episcopal (GC 4 – 25) e Clermont, seu território natal (29 – 36). Todavia, diferentemente do livro sobre os mártires em que muitos eventos tinham como pano de fundo o Oriente, GC é quase que restritamente limitado à Gália. Há apenas uma personagem oriental (GC 26) e os casos sobre pessoas ou locais fora da região tinham alguma conexão com a Gália, tais como os milagres de São Martinho em seu mosteiro na Espanha (GC 12 – 14) e o relato sobre Paulino de Nola (GC 108), um aristocrata gaulês que se tornou bispo na Itália. Sobre este último, é interessante notar o paralelo com a história do mártir Félix de Nola (GM 103), também um dos últimos casos narrados no livro sobre mártires. O último relato de GC também dialoga com o primeiro: enquanto em GC 1 acontece a multiplicação de uma bebida porque o iel pediu a Deus e foi atendido, em GC 110, um falsiicador que diluía seu vinho para lucrar mais acaba sendo punido. Outra diferença importante concerne ao meio de realização de milagre. Cerca de metade dos milagres narrados pelo bispo de Tours Confessors. Liverpool: Liverpool University Press, 1988. p. 6. 22 GC prefácio. 427 no livro sobre os confessores ocorre por meio das tumbas dos santos, enquanto em GM a maioria dos milagres – aproximadamente 60% – acontece através de outros tipos de relíquias dos santos. A explicação mais provável para essa diferença é o fato de que o culto de muitos desses confessores ainda era muito recente quando Gregório escreveu os livros e, deste modo, as pessoas ainda não os tinham assimilado o suiciente a ponto de buscarem seus restos mortais. A despeito destas peculiaridades, há alguns traços que parecem ser constantes entre as obras. Em ambos os casos, observa-se que a cura é o tipo de milagre mais realizado. Há peregrinações frequentes em direção aos santos de Deus para dar ins a diversos males de saúde. Isso não apenas reproduz certo modelo evangélico baseado nos feitos de Jesus, como também evidencia que, independentemente do grau da doença – desde casos mais corriqueiros de febres e inlamações generalizadas até questões mais complicadas como a praga da virilha –, a provisão diária dos santos em curar é notável. Além disso, a maior parte dos milagres é executada de modo imediato. Essa prontidão dos santos pode demonstrar sua proximidade dos iéis, como uma companhia invisível, tal como o diz Peter Brown.23 Há ainda o fato de que a maioria dos milagres acontece com pessoas comuns, isto é, pessoas descritas como nem pobres nem ricas. Embora seja notável observar como alguns casos apresentam os nomes dos beneiciados, independentemente de sua posição social, a regra geral parece ser sintetizar as personagens descritas apenas segundo as fórmulas “um homem do território A”, “uma mulher deiciente”, “uma garota pobre”. Seja em se tratando da apresentação dos infortúnios daqueles que desrespeitaram os santos quanto dos benefícios adquiridos por aqueles que procuraram seu auxílio, obedeceram aos seus comandos e celebraram seus festivais. Assim, o bispo parece ter selecionado episódios que levassem os ouvintes a se identiicarem com aquelas situações. BROWN, P. he cult of saints. Its rise and function in Latin Christianity. Chicago: he University of Chicago Press, 1981. p. 50- 68. 23 428 Era necessário que as pessoas se identiicassem porque o bispo de Tours alega escrever para a instrução dos crentes.24 Van Dam argumenta que já que o martírio envolvia uma luta na qual as pessoas competiam como atletas de Cristo, a mensagem de GM é que as pessoas comuns não precisariam morrer para demonstrar seu comprometimento, mas viver virtuosamente.25 Ao ler sobre os confessores, elas poderiam aprender a perseguir a si mesmas para tornarem-se mártires atuais.26 Ao ouvir a leitura de qualquer daquelas obras, elas deviam tomar atitudes para seguir o comportamento cristão. A temática da conduta cristã católica é um dos principais assuntos destas obras. Pode-se perceber que as fronteiras parecem bastante rígidas com os outros grupos religiosos tais como os arianos, sejam eles godos, burgúndios, hunos ou suevos, e, principalmente com os judeus. Nos episódios em que iguram, eles são quase sempre humilhados diante da manifestação sobrenatural, sendo a morte súbita é o mais habitual (GC 12; GC 13; GC 47; GC 95; GM 3; GM 9; GM 12; GM 21). Todavia, a grande linha divisória para Gregório de Tours parece ser aquela entre os praticantes da reverentia e da rusticitas, o binômio mais frequente de oposição em seus textos. Consoante Peter Brown, reverentia is a key word to Gregory’s religious world. It meant, as far as I can see, the focusing of belief onto precise, if invisible, objects, in such a way to lay the participant under speciic obligations, to commit him to deinitive rhythms in his life, to lead him to react to emergency in a speciic way, and to cause him to be aware of his actions and the actions of others as being divided between good and bad fortune in direct relation to his good and bad relations with the speciic, if invisible, object. Reverentia would vary over a wide spectrum. his spectrum could be seen as so many difering forms of etiquette towards the supernatural that gave structure to life, to experience and to remembered happenings. Its natural antithesis was rusticitas, which is best translated as ‘boorishness’, GC 20. VAN DAM, R. Op. Cit., p.13. 26 Ibidem, p. 11. 24 25 429 ‘slipshodness’ – the failure, or the positive refusal, to give life structure in terms of relations with speciic supernatural landmarks.27 Assim, presume-se que, para o bispo de Tours, um cristão é alguém que procura ser reverente diante do sobrenatural. Em determinada ocasião, ele até mesmo airmou que “esperava que todos os cristãos católicos demonstrassem a mesma devoção profunda pelos santos”.28 Para isso, parece ser fundamental prestar culto aos santos e às suas relíquias, o elemento-chave desta prática. Ser reverente é prestar culto aos santos, respeitando suas sepulturas, isto é, mantê-las em estado de conservação sem nunca violá-las; suas relíquias, não movê-las do lugar sem a autorização dos responsáveis; e seus festivais, parar todo e qualquer serviço e dirigir-se ao local para celebrá-lo juntamente com todo o povo. Ser reverente é não cometer perjúrio, nem cobiçar as possessões alheias, nem descumprir o contrato social de asilo nas igrejas, nem procurar investigar os segredos do poder divino. Em suma, a chave para a aceitação na comunidade religiosa parece ser a prática da reverência ao sagrado. Isso porque “existe grande valor no nome do cristão se você realizar nos feitos aquilo que você confessa na fé. Porque o apóstolo diz: ‘A fé sem obra é morta nela mesma’ [Tiago 2:17, 20]”.29 A questão aqui é observar que Gregório, desempenhando o papel de bispo, era a pessoa responsável pelo cuidado com os elementos referentes ao culto em sua comunidade, uma vez que, segundo demonstra Peter Brown, os bispos eram os patronos visíveis de patronos invisíveis.30 Consoante este autor, já que havia homens cujo status pessoal dependia de uma relação especial com os patronos invisíveis da sociedade, era necessário incutir nas pessoas a reverência BROWN, P. Relics and Social Status in the Age of Gregory of Tours. Society and the Holy in Late Antiquity. Berkeley: University of California, 1982. p. 230. 28 BROWN, P. A Ascensão do Cristianismo no Ocidente. Lisboa: Presença, 1999. p.123. 29 GM 40: “Magna est enim dignitas nominis christiani, si illa, quae coniteris ide , opere prosequaris. Nam, sicut ait aopstolus: ‘Fides sine operibus mortua est in semetipsa’”. 30 BROWN, P. A Ascensão do Cristianismo no Ocidente. Op. Cit., p. 125. 27 430 devida aos santos.31 “he reverentia which was accorded to saints in the sixth century (…) involved speciic rhythms of life and a conscious and relatively novel determination on the part of articulate Christian leaders to put two and two together in one particular way and no other”.32 Uma vez que a reverência desponta como uma questão de suma importância para Gregório, as diferenças entre os peris sociais distintos dos santos – o mártir e o confessor – não parecem ser evidenciadas em prol deste discurso uniicador das posturas cristãs. 31 32 Ibidem, p. 241. Ibidem, p. 234- 235. 431 A TRAJETÓRIA DOS HAGIÓGRAFOS TOMÁS DE CELANO E GONZALO DE BERCEO E OS SABERES MÉDICOS NO SÉCULO XIII Lívia Carine Falcão de Souza (Graduanda PEM – UFRJ) Introdução A História da Medicina, da Saúde e das Doenças, somente nas útimas décadas se tornou alvo da atenção dos historiadores, sobretudo, em virtude do movimento francês conhecido como Escola dos Annales que propunha novos objetos e novas abordagens dentro do campo da História.1 Deste modo, as doenças adquiriram contornos históricos, conigurando-se como construções sociais e culturais, que vão além do fenômeno biológico, bem como o estudo das práticas médicas ganhou novos horizontes, ao sair do âmbito unicamente do discurso médico-cientíico. Este trabalho constitui-se o primeiro passo de um projeto de pesquisa em andamento vinculado ao projeto coletivo Hagiograia e História: um estudo comparativo sobre o fenômeno da santidade (séculos XI-XIII), coordenado pela Professora Drª. Andréia Frazão da Silva, no âmbito do Programa de Estudos Medievais (PEM/UFRJ), que tem como uma de suas iniciativas formar um núcleo de pesquisa sobre a hagiograia ocidental mediterrânica na Idade Média Central. Assim, com a intenção de estudar a História da Medicina, da Saúde e das Doenças na Idade Média, percebemos as hagiograias como fontes que tratam de forma indireta essas temáticas, mas que, no entanto, oferecem dados relevantes sobre discursos, crenças, práticas e costumes de uma sociedade formada por iguras múltiplas que percebem a origem das doenças e a forma de saná-las a partir de concepções diferentes. Para este trabalho, tomamos como ponto de partida três obras hagiogáfricas de dois autores medievais contemporâneos, a BURKE, P. A Escola dos Annales. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. p. 7. 1 432 saber: Tomás de Celano, com a Primeira Vida de São Francisco de Assis (1228/1229) e a Legenda de Santa Clara de Assis (1255), e, Gonzalo de Berceo, com a Vida de São Domingo de Silos (composta provavelmente por volta do ano de 1240). A partir da leitura destas obras, percebemos que há um tratamento diferenciado às doenças por parte dos hagiógrafos. Enquanto Gonzalo de Berceo explora a capacidade e o discurso moralizante das doenças relacionando-as à prática do pecado, além de oferecer alguns conselhos dietéticos e higiênicos, Tomás de Celano não utiliza este recurso nas obras analisadas, explicitando e descrevendo somente os sintomas dos enfermos que aparecem nos milagres de cura. Partindo desta observação, perguntamos-nos que tipos de conhecimentos médicos estes dois personagens tiveram contato, por ventura, em suas trajetórias de vida que pudessem ter inluenciado seus escritos. Logo, o objetivo deste trabalho é apresentar brevemente suas histórias de vida, com informações principalmente sobre as origens geográicas e formação intelectual e eclesiástica de cada um e os saberes médicos que circulavam no século XIII, a im de propor algumas respostas iniciais a nossa pergunta. Gonzalo de Berceo Gonzalo nasceu no povoado de Berceo, localizado na região centronorte da Península Ibérica, mais precisamente no Reino de Castela. À época, esta era uma região caracterizada por uma forte troca cultural, pois estava situada no caminho de diversas peregrinações, inclusive a famosa rota francesa do Caminho de Santiago de Compostela. Além disso, era uma região que recebia intesa oferta de doações, decorrentes das peregrinações, apesar de no século de vivência de Berceo as ofertas já não se encontrarem tão abundantes.2 Sua data de nascimento é incerta. Os estudiosos concluem que seu nascimento deve ser datado por volta de 1195 ou um pouco antes e ele teria morrido por volta de 1264.3 Viveu, então, a maior parte de sua vida no século XIII, chegando aos setenta anos de idade, 2 SILVA, A. C. L. F. Relexões sobre a hagiograia ibérica medieval – um estudo comparado do Líber Sancti Jacobi e das vidas de santos de Gonzalo de Berceo. Niterói/RJ: EdUFF, 2008. p.50-52. 3 DUTTON, B. La fecha de nascimiento de Gonzalo de Berceo. Berceo, Logroño, Instituto de Estudios Riojanos, n.94-95,1978. p. 266. 433 explicados pela sua vivência junto à comunidade eclesiástica. Gonzalo foi um homem culto e existem indícios de que poderia ter sido nobre, pois em alguns documentos, recebe o título de Don.4 Gonzalo de Berceo é também conhecido como o primeiro escritor de nome conhecido que compôs em castelhano, transformando prosas latinas em poemas em língua romance, alterando e ampliando os conteúdos das obras originais, mostrando seus conhecimentos bíblicos e doutrinais.5 Ao todo compôs doze obras, todas de cunho religioso. São elas, quatro hagiograias: Vida de San Millán de la Cogolla, Vida de Santo Domingo de Silos, Vida de Santa Oria e Martírio de São Lorenzo; três obras marianas: Milagros de Nuestra Señora, Loores de Nuestra Señora, El Duelo de la virgen el Día de la Pasión de su Hijo; dois textos doutrinais: Del Sacriicio de la Misa e Los signos del juicio inal; além de três hinos, dedicados a Jesus, ao Espírito Santo e à Virgem. Sobre sua formação intelectual, temos as informações que ele residiu e recebeu educação no mosteiro beneditino de San Millán de la Cogolla, localizado a um quilômetro e meio do povoado de Berceo. Neste mosteiro funcionavam uma escola, um scriptorium, uma biblioteca e, segundo Díaz Pérez, um hospital.6 Podemos inferir que boa parte da literatura que Gonzalo teve acesso era proveniente desta biblioteca. Apesar do tempo que viveu neste mosteiro, não veio a se tornar monge e incorporou-se como secular ao corpo eclesiástico. Em 1237 torna-se preste, subordinado a um pároco, com funções comuns aos clérigos, como pregrar, catequizar, celebrar a eucaristia, etc. Os pesquisadores que se dedicam a estudar sua vida apontam para a possibilidade de Gonzalo ter completado seus estudos na Universidade de Palência durante os anos de 1222 e 1237, um período em que desaparece das fontes e que poderia ser explicado por um SILVA, A. C. L. F. Hagiograia e Poder nas Sociedades Ibéricas Medievais. Humanas, Curitiba, UFPR, n. 10, 2001. p.144. 5 Cf.: RUÍZ DOMINGUEZ, J. A. El mundo espiritual de Gonzalo de Berceo. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos. 1999. 6 DÍAZ PÉREZ, A. Prática y enseñaza de la medicina en los siglos XII al XIV. In: IGLESIA DUARTE, J. I. (Coord.). SEMANA DE ESTUDIOS MEDIEVALES, 8. , 1997, Nájera. Actas... Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 1998. p. 401405. 4 434 afastamento para os estudos.7 É muito provavel que tenha estudado em Palência, já que utilizava as mesmas técnicas de composição de poemas desenvolvidas nesta escola 8 e partilhava de idéias semelhantes a de outros universitários. A vida de Gonzalo de Berceo encontra-se bem estudada, o que já não se veriica com Tomás de Celano, como veremos adiante. Tomás de Celano As referências a Tomás são escassas. Sabemos que nasceu na cidade de Celano, na região de Abruzos, que à época pertencia ao Reino da Sicília, um reino marcado pela encruzilhada de culturas como a latina, bizantina, muçulmana, normanda, germânica e pelos conlitos entre o papado e o império.9 Teria nascido por volta de 1190 e morrido por volta de 1265, o que confere a Tomás de Celano quase a mesma data de vida de Gonzalo de Berceo. Não se conhece as origens sócio-econômicas, nem como ou onde Celano obteve sua formação intelectual. Alguns estudiosos apontam que teria estudado na escola de Bolonha ou na própria cúria pontifícia, já que era próximo do Cardeal Hugolino, protetor dos franciscanos e, posteriormente, papa sob o nome de Gregório IX. De todo modo, possuía grande conhecimento de latim e retórica, além de autores patrísticos, como Agostinho e Jerônimo, saberes mais vinculados ao ambiente monástico do que às nascentes escolas urbanas, como Bolonha, e da própria chancelaria papal. Logo, é possível, segundo Andréia Frazão da Silva, que Tomás tenha estudado em algum centro monástico, provavelmente localizado no próprio Reino da Sicília.10 DUTTON, B. Gonzalo de Berceo: unos datos biográicos. In: PIERCE, F., JONES, G. A. (Eds). Congreso de Hispanistas, 1. Actas… Oxford: Dolphin Book, 1964. p. 12. 8 Os trabalhos de Berceo apresentam semelhanças com as obras de Mester de Clerecía, cuja técnica, segundo alguns autores, está ligada à Universidade de Palência e não era transmitida por textos, logo, o único modo de aprendê-las seria como mebro da Universidade. 9 SILVA, A.C. L. F. da. A hagiograia como monumento, visão e memória. In: Ciclo de Debates em História Antiga. Monumento, Visão e Memória, 14., 2004, Rio de Janeiro. Anais Eletrônicos. Rio de Janeiro: LHIA, 2007. p. 3. 10 Ibidem, p. 4. 7 435 Tomás de Celano se incorporou a Ordem Franciscana em 1215 e se tornou missionário em 1221, na região atualmente conhecida como Alemanha, tendo, posteriormente, ocupado o cargo de ministro regional da ordem franciscana naquela área. Escreveu alguns textos litúrgicos e hinos sacros, sendo que seus trabalhos mais conhecidos são a Primeira e Segunda Vida de São Francisco de Assis, o Tratado de Milagres e a Legenda de Santa Clara de Assis. Os saberes médicos no século XIII Durante a Idade Média, veriicamos a existência de um convívio de diversos sistemas e saberes médicos que identiicavam a origem das doenças e a forma de saná-las a partir de concepções diferentes.11 Nos primeiros cinco séculos da época medieval, os monges foram os principais responsáveis pela prática da medicina, bem como pela conservação e transmissão dos poucos saberes médicos clássicos preservados.12 No entanto, ainda que algumas noções da medicina Clássica tenham sido preservadas, ao serem integradas por estas comunidades cristãs, receberam releituras a partir da proposta religiosa e moralizante. A doença era concebida, então, pela idéia do pecado ou como resultado de uma possessão demoníaca, que exigia, além dos cuidados médicos, orações, arrependimento e intervenções sobrenaturais.13 Este quadro começa a sofrer lentas modiicações, principalmente, a partir do século XI. É nesse momento que se inicia o processo de incorporação de novos saberes médicos no Ocidente, por meio de traduções, apreensões e comentários de novos textos clássicos CABANES JIMÉNEZ, P. Algunas notas sobre la enfermedad y la muerte en la Edad Media. In: Especulo, Revista de Estudios Literários. Universidade Complutense, n. 31, 2005. Disponivel em: http://www.ucm.es/info/especulo/ numero31/enfmedie.html Acesso em 15 de dezembro de 2011. 12 SILVA, M. F. A literatura médica medieval: uma abordagem fonológica. Revista de Letras, Fortaleza, v.19, n.1/2, p.64-67, 1997. Disponível em http://www. revistadeletras.ufc.br/rl19Art09.pdf. Acesso em 15 de dezembro de 2011. 13 SILVA, A. C. L. F. Hagiograia e História da Saúde. In: Jornada Cientíica do CMS waldyr Franco, 3, 2002, Rio de Janeiro. Atas da 3º e 4º Jornadas Cientíicas do CMS Waldyr Franco. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro Secretaria Municipal de Saúde - CMS Waldyr Franco, 2000. Disponível em www. ifcs.ufrj.br/~frazao/waldyr1.htm. Acesso em 15 de dezembro de 2011. 11 436 ou de obras originais. Destaca-se, neste processo, as produções e contribuições dos mulçumanos e judeus. A ciência árabe e judaica, fundamentadas tanto na experiência, como nos textos clássicos, trouxe para a Europa o conhecimento de outras produções de autores clássicos como Hipócrates e Galeno, além de obras produzidas no seio dessas sociedades como as de Avicena e Maimônides, por exemplo. A partir do século XI, então, veriica-se a tecniicação do saber médico e as Escolas urbanas e as Universidades cumprirão um grande papel no aprofundamento do conhecimento destas novas obras, tantas as clássicas, como as da produção médica árabe e judaica. Para além desses saberes mais institucionalizados, não podemos ignorar o senso comum que, através da tradição, perpetuava variadas ideias, por vezes conlitantes, sobre a enfermidade e o modo de obter a cura, baseados, sobretudo, na experiência e nas crenças populares. Portanto, é a partir desses “territórios” de saber que propomos um exercício de relexão sobre os possíveis contatos que nossos autores, Gonzalo de Berceo e Tomás de Celano, obtiveram ao longo de suas trajetórias de vida com os diversos conhecimentos médicos que encontramos na Idade Média. Considerações inais Tomando as informações sobre as vidas de nossos personagens não se pode ainda responder com contundência que tipo de conhecimentos médicos a que cada um teve acesso. Contudo, podemos levantar algumas possibilidades. Primeiramente, é importante perceber que Gonzalo e Tomás partilhavam de tradições e ideais comuns como eclesiásticos, portanto, é difícil duvidar que ambos não soubessem ou, até mesmo, dividissem a opinião religiosa acerca das doenças e da forma de curá-las. Além disso, como integrantes do clero secular, tinham contato direto com seus iéis. Logo, podemos pensar que os dois conheciam as noções do senso comum sobre o assunto. Tomás de Celano, por exemplo, escreve boa parte da Vida Primeira de São Francisco a partir do que ouviu daqueles que conviveram contato com o santo. Pensando em suas formações intelectuais, levantamos outras conclusões. No caso de Tomás de Celano, temos mais diiculdades em levantar possíveis respostas, já que pouco se sabe sobre sua vida, 437 a não ser que era letrado e rico. Mas para Gonzalo de Berceo podese vislumbrar mais caminhos de resposta. Gonzalo residiu e estudou em um monastério que possuía escola, scriptorium e uma biblioteca. Como salientado anteriormente, os monastérios, durante os primeiros séculos da Idade Média, foram os principais centros de cópia e armazenamento dos textos clássicos, inclusive dos que tratavam de medicina. Não podemos averiguar se este autor acessou ou não estes textos, mas ao menos podemos airmar que viveu e estudou em uma localidade na qual esse conhecimento circulava. É possível que em conversas, debates ou em aula, o tema da doença e da saúde estivesse presente. Acrescenta-se a isto, o fato de no mosteiro de San Millán de la Cogolla funcionar um hospital. Gonzalo também, possivelmente, frequentou a Universidade. No caso, teria cursado a cadeira de Artes, e na Universidade em questão, de Palência, não havia um curso de Medicina. Todavia, dentro do campo das especulações, podemos pensar que partilhava de idéias comuns de clérigos universitários e é capaz de ter tido contato, ou mesmo conversas, com outros estudantes, até mesmo de outras instituições, que conheciam a carreira médica ou eram médicos. A partir da leitura dos trabalhos destes hagiógrafos (CEL1, LSC e VSD), veriicamos, então, um tratamento difereciado no que tange às doenças apresentadas nos milagres de seus santos e procuramos reletir sobre quais conhecimentos de medicina poderiam ter. As conclusões apresentadas aqui são fruto de uma aproximação muito inicial do tema e das fontes e somente com uma análise mais aprofundada das obras que podemos inferir algo mais acertivo. Ainda assim, demonstramos que mesmo que a intenção de Gonzalo de Berceo e Tomás de Celano não era a de compor tratados sobre a saúde, ou sobre as formas de tratamento das enfermidades, existe a possibilidade de usar esses documentos como fontes de dados que auxiliem na investigação sobre estas temáticas. Ambos os autores não eram médicos, mas partilhavam de posturas sobre a saúde e a doença apregoadas pela Igreja e, por meio do contato com os iéis, conheciam as práticas e conhecimentos do povo. Desta forma, as informações sobre as doenças e suas formas de tratamento, presentes nas hagiograias podem ser exploradas pelo historiador contemporâneo. 438 O SãO LUÍS MILITAR DE JOINVILLE Luiza Zelesco (Mestranda PPGH – UFF)1 Este trabalho busca analisar brevemente a construção da imagem de São Luís por seu amigo e biógrafo Jean de Joinville, senescal de Champagne. Considerando-se as múltiplas representações deste rei apresentadas, de maneira mais ou menos explícita, pelos seus diversos biógrafos, pretendo apontar aqui as particularidades da Histoire de Saint Louis,2 levando-se em conta que esta, e somente ela, foi escrita por um cavaleiro laico. O lugar de produção de uma obra é de importância inequívoca quando estudamos escritos literários por meio de um enfoque histórico. Por mais que se queira chegar ao conteúdo objetivo narrado na fonte em questão, o máximo que conseguimos fazer, na quase totalidade das vezes, é chegar ao seu lugar de produção. E isto, cabe ressaltar, não é pouca coisa. Analisando a Histoire de Saint Louis, o que melhor posso alcançar é a igura de Joinville, sua forma de pensar, sua concepção do mundo, e sua visão do santo rei Luís. Chegamos, sim, a São Luís, porém por meio do olhar parcial de Joinville. E o que nos importa descobrir é exatamente que parcialidade é esta, para onde ela aponta, e o porquê deste seu direcionamento. Assim, esta aparente limitação à análise termina por nos abrir outros caminhos, abrangendo, no caso, importantes questões referentes a disputas por poder, discursos ideológicos, e elaboração de representações régias à época contemporânea a Luís IX e imediatamente posterior a ele. E como se pode caracterizar esta época e este rei? Como é a França de São Luis? Trata-se, em primeiro lugar, de uma França que, durante o período de mais de quatro décadas que durou o seu reinado, procura concluir o processo de desenho e consolidação de seus contornos. É Bolsista CNPq. JOINVILLE, Jean de. Histoire de Saint Louis. Texto original, acompanhado de tradução para o francês moderno, por WAILLY, Natalis de. Paris: Librairie de Firmin Didot Frères, Fils et Cie, 1874. 1 2 439 também nesta época que o termo Francia deixa de signiicar apenas a Île-de-France e seus arredores, e passa a denotar a totalidade de seu território, com contornos bastante próximos aos que hoje conhecemos. Para que tais processos pudessem ter lugar, entretanto, foi preciso que o rei Luís, desde a mais jovem idade, deles se ocupasse com eiciência. Nas palavras de Jacques Le Gof, Os primeiros anos do reinado de São Luís, apresentados em geral de modo incompleto como anos de diiculdades e de riscos – que sem dúvida foram –, foram também para o jovem rei anos de progressos decisivos do poder real e de seu prestígio pessoal. Graças a sua presença nos teatros de operações militares e nas assembléias dos grandes, graças, entenda-se, à hábil e enérgica política de sua mãe e de seus conselheiros, Luís apareceu como um guerreiro e um soberano.3 O início do reinado de São Luís foi, de fato, marcado por conturbações em função da morte precoce de seu pai, Luís VIII, quando contava apenas 12 anos. Teve início, assim, um período de regência – por sua própria natureza, uma espécie de governo particularmente suscetível a disputas sucessórias e tentativas de usurpação do poder – durante o qual Luís IX reinou sob a tutela de sua mãe, Branca de Castela. Já nesta época teve de enfrentar uma revolta de barões com pretensões ao trono, liderados por seu tio bastardo Filipe o Eriçado. Nesta fase inicial de seu governo, o jovem Luís, preocupado em defender e paciicar os domínios reais, também logra ter êxito em um feito praticamente inédito: com a conclusão da cruzada aos albigenses no Sul da França, em 1229, e a obtenção da paz com o turbulento conde de Toulouse, Raimond VI, consegue a penetração real no Sul e o aumento de seus territórios, acrescidos do Albigense setentrional. É importante ressaltar que foi apenas a partir do curto reinado de Luís VIII, pai do nosso São Luís, que a monarquia francesa começa a intervir com mais vigor nesta região do Languedoc, até então rebelde e isolada. O Languedoc oriental, neste contexto, será particularmente relevante à luz de um empreendimento que marcou fortemente o 3 LE GOFF, Jacques. São Luís. Rio de Janeiro: Record, 2002. p.102. 440 reinado – e a vida – de São Luís: as cruzadas. Esta região recémdomada fará parte, doravante, da rota luisina para ir à cruzada e dela voltar. Em 1234, através do casamento com a jovem Margarida de Provença, o rei Luís aprofunda os laços de seu domínio sobre esta região. Outra frente de batalha importante em seu reinado foi aquela constituída pela realeza inglesa, que não cessara, durante a infância e a juventude do rei Luís, de ser o grande adversário da monarquia francesa. Unindo-se a barões e nobres descontentes dentro do próprio reino de França, como o conde de Bretanha, Henrique III da Inglaterra procura reaver suas possessões no continente, perdidas sob Filipe Augusto. A guerra, que durará de 1242 a 1243, será a responsável pela aquisição do prestígio militar de São Luís, tão fortemente exaltado, anos mais tarde, por Joinville. Impõe-se, assim, a imagem do rei guerreiro, do rei cavaleiro, do rei comandante de guerra e, como cabe bem a um rei sagrado, do rei vencedor. Em 1244, em função de uma grave doença do rei, vemos processarse um fato que doravante haveria de marcar todo o reinado e a vida de São Luís. Prostrado pela disenteria e beirando a morte, o santo rei, em um supremo esforço, pede que se lhe dê a cruz, isto é, faz o voto de cruzar-se e partir rumo à libertação da Terra Santa, caso consiga salvar-se da doença. Quatro anos depois, recuperada a saúde e feitos os preparativos, Luís IX parte na direção do Oriente, onde haveria de permanecer até 1254. Em 1250, em função de uma série de estratégias infelizes, é feito prisioneiro pelos mouros. Será liberto em cerca de um mês, graças à agilidade da rainha Margarida em reunir a soma necessária para seu resgate. Contrariamente ao habitual entre os reis cruzados, que buscavam retornar à pátria o quanto antes, São Luís decide, então, permanecer mais tempo distante de casa, só retornando ao receber a notícia do falecimento da mãe. Derrotas, a perda do irmão Roberto d’Artois, a prisão nas mãos dos iniéis e, por im, a morte do rei na cruzada de Túnis, em 1270, parecem, à primeira vista, uma contribuição bem infeliz das cruzadas para a memória do rei. Contudo, em um mundo medieval em que os ideais cruzados continuam, mesmo entre aqueles que não crêem 441 mais, a suscitar uma admiração profunda, a imagem de São Luís sai exaltada destas campanhas catastróicas. Suas reações, sábias e cristãs, diante dos infortúnios serão louvadas por Joinville e, nesta perspectiva, a cruzada de Túnis será, em sua fulgurante e mortal brevidade, uma forma de coroamento. Para o governo do reino de França, a volta de São Luís da sétima cruzada de 1248 trará algumas mudanças signiicativas. Os testemunhos são unânimes em reconhecer uma profunda mudança na conduta do santo rei, que passa da simplicidade anterior a uma verdadeira austeridade, tanto no vestir quanto na forma de se portar. Acima de tudo, entretanto, São Luís fez dessa austeridade o princípio de sua política, que corresponderia daí em diante a um programa de penitência e puriicação, de ordem moral, religiosa, e também administrativa, nas dimensões do reino e de seus súditos. Fica mais evidente o direcionamento da ação de Luís IX no sentido de reforçar o poder monárquico, não só consolidando seu território, como antes apresentado, mas também governando-o de forma mais centralizada, buscando uma racionalidade administrativa e uma clareza na legislação, cada vez mais freqüentemente posta por escrito. Em 1230 havia promulgado a primeira ordenação de que se tem conhecimento que fosse válida para todo o reino, e não somente para o domínio real. Em 1254, o próprio ano de seu retorno da cruzada, inicia sem demora uma reforma do reino, com a promulgação da “grande ordenação”, um conjunto de textos assim denominado por causa da amplitude e da importância das reformas que edita. A obra é tão imponente que passou a ser conhecida como “estatuto geral” ou “estatutos de São Luís”.4 Trata-se de uma série de textos editados ao longo daquele ano que visavam, sobretudo, uma moralização da administração real, bem como a inclusão do sul occitano, ainda preso aos costumes locais e pouco afeito a mudanças legislativas, no corpo de leis régias. O fortalecimento do poder monárquico foi um dos grandes feitos do reinado de Luís IX e, ainda que seu amigo biógrafo não mencione isto explicitamente, vemos que ele louva conseqüências deste fato, como os 4 Ibidem, p.197. 442 longos períodos de prosperidade e paz no reino e, sobretudo, a noção de um rei forte, que possui controle de suas terras e não é contestado em seu reino. Retornemos a Joinville. Através da leitura de seu texto, percebemos que, no interior do campo de signiicado referente ao rei de França, Joinville disputa um espaço simbólico para apresentar e impor sua representação do rei.5 Trazendo fatos e argumentações – dos quais o principal é, talvez, o argumento de autoridade do próprio Joinville, que o conheceu de perto – o senescal procura convencer seus leitores de que o rei Luís foi, de fato, da forma como ele é apresentado na Histoire. O sociólogo Pierre Bourdieu defende que esta busca por impor uma representação de algo está radicada em ações objetivas. Ainda que nem toda estratégia, nesse sentido, seja perfeitamente consciente, existe, sim, um certo nível de ação voluntária, impedindo que atribuamos tudo às “estruturas sociais” ou a uma outra arbitrariedade qualquer, localizada fora do sujeito. Pode-se dizer, portanto, que se trata de um discurso ideológico, isto é, de toda uma fala elaborada no sentido de inclinar a crença do leitor – ou do ouvinte – desta narrativa biográica às concepções nela contidas, com o objetivo inal de uma atuação concreta, política, sobre a realidade. Passemos, pois ao que nos mostra o senhor de Joinville acerca de seu real amigo. Examinemos aquilo que ele nos revela apenas nas entrelinhas de seu discurso, tudo o que ele não quis deixar explícito, mas que, ainda assim, permanece em sua obra, dirige e ordena a mesma, evidenciando seu aspecto ideológico. Estas “segundas intenções” do autor, podemos entrevê-las desde o momento em que ele se decide a escrever sua obra. Pois já não abundavam os escritos sobre o rei Luís? Já não haviam inúmeros clérigos relatado os seus atos e louvado as suas virtudes? O próprio processo de canonização, concluído em 1297, gerou uma ininidade deles, dada sua necessidade de testemunhos. Por quê, então, Joinville se põe a escrever mais uma biograia do santo rei? Diz-nos Jacques Le Gof que o senescal de Champagne desejava, acima de tudo, publicar 5 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. 443 e, assim, garantir a memória de sua amizade com São Luís.6 Trata-se, não por acaso, do primeiro texto a ser escrito, em francês, na primeira pessoa. Uma primeira pessoa que, muitas vezes posta no plural, identiica estes dois grandes amigos, une suas ações e – assim o quer Joinville – suas vidas em uma só. Joinville, porém, exalta o rei mais que tudo, até mesmo em detrimento de si próprio. O “santo rei”, como ele o chama, é sempre sábio, sempre virtuoso e, sobretudo, sempre temente a Deus; ao passo que o jovem Joinville é muitas vezes retratado como aprendiz ingênuo diante do rei, recebendo seus ensinamentos. A primeira parte de seu livro se dedica, nesta linha, a demonstrar como São Luís se portou “em toda a sua vida segundo Deus e segundo a Igreja”. Dos elementos que compõem esta parte, diz-nos Joinville que “estas outras coisas aí, eu as iz escrever também em honra deste verdadeiro santo, porque pelas coisas ditas acima se pode ver claramente que jamais houve homem laico de nosso tempo que tenha vivido tão santamente durante todo o seu tempo, desde o início de seu reinado até o inal de sua vida”.7 Vemos, assim, o esforço de Joinville por ressaltar a santidade de seu rei, aproximando sua Histoire de uma obra hagiográica. Mais que isso, reprova não contarem são Luís dentre os mártires, “pelas grandes penas que ele sofreu na peregrinação da cruz (...) e sobretudo porque ele imitou Nosso Senhor na questão da cruz. Pois se Deus morreu em cruz, assim o fez também ele, pois era cruzado quando morreu em Túnis”.8 Forte e ousada esta comparação direta com o Deus Filho. Nem por isso parece excessiva aos olhos de Joinville, que quereria ver seu amigo rei exaltado ao máximo na liturgia da Igreja. Este caráter sacro da realeza não é, bem entendido, pura criação ou desejo de Joinville. Trata-se de uma matriz de pensamento há muito presente no reino de França, reforçada por diversos elementos, materiais ou não, ao longo dos séculos, por diversos ideólogos do poder real. O primeiro desses elementos do sagrado é a justiça. Joinville descreve algumas cenas em que o rei Luís, assentando-se em LE GOFF, Jacques. Op. Cit., p.439, 440. JOINVILLE, Jean de. Op. Cit., p. 5. 8 Ibidem, p. 5. 6 7 444 seus jardins, permite que aqueles que possuam alguma reivindicação avancem e desfrutem de sua sábia justiça. Numa destas ocasiões, aproxima-se um nobre que, poucos momentos antes, havia oferecido ricos presentes ao rei. Luís IX ouve e atende suas reivindicações. Mais tarde, é inquirido por Joinville sobre se o havia atendido tão prontamente apenas por causa dos presentes. Caindo em si, o rei reconhece sua falta e proíbe que os responsáveis pela deliberação e execução da justiça, incluindo ele próprio, aceitem presentes ou favores de qualquer sorte. Este episódio é marcante não só por evidenciar o esforço de São Luís em promover a aplicação mais justa possível de suas leis e deliberações, mas também por evidenciar as falhas do rei neste processo. Joinville, o único que tem plena consciência de estar apresentando um laico, não se incomoda em deixar aparecer os defeitos do rei. Para ele, estas marcas de humanidade não interferem na santidade de seu rei – até porque, no momento em que escreve, a canonização já foi outorgada, e não há mais dúvidas acerca de sua santidade. A justiça é, portanto, praticada exemplarmente por Luís IX. Ele não é, contudo, justiceiro só na França, mas também no além-mar. Joinville menciona, aqui e ali, algumas “condenações ou julgamentos” pronunciados em Cesaréia, na Palestina, “enquanto o rei lá esteve estacionado”.9 Tal fato reforça, de certa forma, a visão da justiça como função do sagrado, pois demonstra uma extrapolação da mesma para além dos limites do reino. Mais do que um rei justo para com seu povo, São Luís é “um justo”, no sentido bíblico do termo, para todos aqueles a quem ele puder beneiciar com a sua justiça. Esta justiça transcende as fronteiras porque não é uma justiça política, mas uma justiça moral, sacralizada, que pode e deve ser exercida por toda parte, em nome de Deus. Com a justiça, vem a segunda grande função real do sagrado exercida por São Luís e destacada por Joinville: a paz. Ambas estão associadas no juramento da sagração por ele prestado: a justiça deve restabelecer a paz e a paz deve inspirar a justiça. E, também no que se refere à paz, São Luís será conhecido por promovê-la tanto no 9 Ibidem, p. 248. 445 interior de seu reino, quanto para além de suas fronteiras. Seu renome de paciicador, além de lhe valer a comparação com Salomão, o “rei pacíico”, também o alçou ao posto de árbitro da Cristandade, quando o imperador Frederico II propõe a arbitragem do rei de França para intermediar seu conlito com o papa Inocêncio IV. O resultado disto tudo é, para o reino de França, o benefício excepcional de um longo período de paz. Não nos esqueçamos, entretanto, de que Joinville é um cavaleiro laico. Pretende, sim, alçar seu real amigo às mais altas glórias humanas e celestes. Isto, porém, não impede que o lugar de produção da Histoire de Saint Louis transpareça por entre suas páginas. Ela foi escrita por um laico, que pensa como um laico e que vê seu rei como um laico – ainda que santiicado. Neste sentido, é interessante notar, ainda a respeito do aspecto paciicador de São Luís, um importante episódio que nos permite entrever este lugar de produção de Joinville: quando o rei Luís, após muitas negociações com Henrique III da Inglaterra consegue trazê-lo à França para acordar a paz entre os dois reinos em litígio, o faz contra a vontade das “gentes de seu Conselho”, que não julgavam sensato abandonar ao rei inglês as terras da Gasconha e partes da Aquitânia, em troca da sua simples renúncia ao controle das terras que já haviam sido perdidas sob o reinado de João Sem Terra. Joinville nos mostra a argumentação principal de São Luís, muito prática e política: “se eu lhe dou [as terras], as emprego muito bem, pois que ele [Henrique III] não era meu homem e, através disso, entra em minha homenagem”.10 A paz é estabelecida com a ratiicação destas decisões no tratado de 1259. E Joinville nos permite ver um São Luís para quem as concessões em nome da paz deixam de ser apenas um ato piedoso, para adquirir também um caráter de habilidade política. Luís cumpre seu dever real, não só no plano da política, conforme acabamos de apresentar, mas também no plano militar. E ainda que a imagem que tenha querido legar à posteridade é a de que combate sem alegria, pode-se adivinhar por trás disso no mínimo uma certa exaltação viril, própria de qualquer guerreiro feudal. 10 Ibidem, p 39. 446 A função real guerreira, ele a assume em todas as dimensões no mais alto nível que a guerra atingiu no século XIII. Preparou cuidadosamente a logística material de suas expedições, sobretudo das cruzadas; levou para o Egito um importante arsenal de máquinas de guerra; teve o cuidado, onde havia guerra ou risco de guerra, de manter, restaurar ou construir castelos-fortes e fortiicações. Na própria França, buscando a paz, preparava a guerra. Mateus Paris conta em duas oportunidades como, ainda em 1257, São Luís conduziu uma campanha de fortiicações defensivas na Normandia. E, por im, numa época em que a maioridade, via de regra, gravitava ao redor dos vinte anos, São Luís foi armado cavaleiro ainda aos doze, em dezembro de 1229, e mais tarde, como um bom rei cavaleiro, mandou celebrar com grande solenidade a admissão na cavalaria dos jovens da família real. Determinar o objetivo maior de Joinville ao escrever sua biograia de São Luís é uma questão que permanece encoberta por múltiplas possibilidades. Deixar publicamente registrado o legado da sua amizade com o rei, como aventa Jacques Le Gof? Tornar inequívoca sua santidade, oferecendo-o como exemplo de vida cristã a ser seguido, tal qual izeram os mendicantes seus contemporâneos? Evidenciar um lado mais humano deste rei santo que também se envolve na política terrena, também participa ativamente das batalhas, lado a lado com seus cavaleiros? Não podemos, creio eu, airmar com certeza. O que se pode, sim, perceber sem medo de engano, é a inequívoca presença, nos escritos do senescal, de uma matriz de pensamento laica. Não por acaso, evidenciada neste mesmo século XIII em que se airma, em diversos âmbitos, a promoção dos leigos. E Joinville é, sem dúvida, um leigo excepcional em muitos níveis: primeiro leigo a redigir uma vida de santo, é também o primeiro, escrevendo em francês, a falar de si próprio na primeira pessoa. Com toda a carga de subjetividade que isto implica, acaba por nos mostrar um São Luís mais humano, talvez mais verdadeiro, que, em conjunto com todo um movimento que se processa pelo século XIII afora, faz descer sobre a Terra os valores celestes, mostrando que a vida terrena vale a pena ser vivida e que a salvação começa aqui, no mundo, no gozo comedido desta vida secular. 447 CONSIDERAçÕES SOBRE A VIOLÊNCIA NA PENÍNSULA ITÁLICA NO SÉCULO XII Marcelo Fernandes de Paula (Mestrando PEM – PPGHC – UFRJ)1 A Península Itálica do século XII foi um cenário conturbado. O crescimento econômico fomentou conquistas territoriais por parte de cidades, visando ampliar suas redes comerciais. As cidades também foram palcos de movimentos comunais, que procuravam maior autonomia perante o Sacro Império ou o Papado. Estas duas últimas instâncias políticas, por sua vez, competiam pelo reconhecimento como autoridades sobre regiões, com prerrogativas como a nomeação de bispos, dentre outras questões. Alguns grupos rejeitavam por vezes uma suposta primazia romana, não raro sendo condenados como hereges. Essa comunicação visa reletir sobre a violência nesse contexto, apresentando conclusões parciais de nossa pesquisa de Mestrado, desenvolvida junto ao PPGHC e o PEM, sob a orientação da profa. Dra. Andréia Frazão. Neste sentido, neste artigo, apresentamos uma visão panorâmica das questões políticas que marcaram a Península Itálica no século XII, tomando por base discussões historiográicas e documentos do período. É importante destacarmos que por violência entendemos “o uso agressivo da força física de indivíduos ou grupos contra outros”, conforme deiniu Gilberto Velho. Ele airma ainda que ela não se restringe apenas ao uso da força física, e que “a ameaça ou possibilidade de usá-la constitui dimensão fundamental de sua natureza”. Ele a associa a idéia de poder, na “possibilidade de imposição de vontade, desejo ou projeto de um ator sobre o outro”.2 Mestrando pelo PPGHC/UFRJ, vinculado ao Programa de Estudos Medievais (PEM/UFRJ), Tutor de História UAB/CEDERJ/UNIRIO. E-mail: mfpmarcelo@ig.com.br 2 VELHO, Gilberto. Violência, Reciprocidade e Desigualdade: Uma Perspectiva Antropológica. In: VELHO, Gilberto e ALVITO, Marcos. Cidadania e Violência. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996, p.10-23. p. 10. 1 448 Os primeiros anos do século XII O século XII foi um período de crescimento demográico e comercial na Europa, e nesse contexto as cidades italianas se sobressaem. Nenhuma outra região da Cristandade nesse período conheceu um processo de urbanização tão intenso como o da Península Itálica. Esses crescimentos tiveram um ritmo ainda maior a partir de meados do século, o que fomentou alguns conlitos de interesse entre cidades e regiões. Vejamos um exemplo desse tipo de disputas. Na Toscana, região central da Península, o crescimento urbano e comercial fez com que cidades, como Lucca e Pisa, procurassem estender o seu domínio em direção à costa, e como Siena, sobre as colinas ricas em metais aos arredores de Maremma. Próximo a essas cidades, o bispo de Volterra procurava obter o reconhecimento da autonomia para a sua cidade perante o Império. Tal tentativa de autonomia fez Ruggero, que estava à frente do espiscopado local nos primeiros anos desse século, rebelarse militarmente. Nos anos seguintes, o bispado teve divergências armadas com o arcebispado de sua região, Pisa. Posteriormente, o bispo local envolveu-se nos conlitos de Maremma, sendo feito prisioneiro pelos sieneses em 1129. Já em meados do século, segundo Rosanna Rossi, estava consolidada uma tradição volterrana de bispos oriundos da nobre família dos Pannochieschi, que se voltaram, sobretudo, para o âmbito militar, dispondo sempre de muitos homens armados. Esse tipo de cenário é palco para casos como o de Galgano de Guidotti, cavaleiro da cidade de Chiusdino e vassalo do bispo de Volterra, cuja conversão ao eremitismo em 1180 e morte no ano seguinte geraram um culto regional, fomentado pelo próprio bispo.3 Quando olhamos para o Papado, identiicamos controvérsias com relação ao reconhecimento do pontíice, que por vezes também foram resolvidas com o uso da força. O primeiro papa desse período foi Pascoal II, que havia sido recém-empossado. Apenas um ano antes do início do século, em 1100, Pascoal chegou a Roma após uma viagem ROSSI, Rosanna. Vita di San Galgano e origini di Montesiepi. Siena: Cantagalli, 2001, p.11-14. O culto a Galgano foi tema de nossa pesquisa durante a graduação em História, concluída em 2009 junto a UFRJ, cuja monograia tem por título Ele foi lembrado como um santo cavaleiro ou um santo eremita? A veneração a Galgano segundo o seu processo de canonização. 3 449 e fez uso de tropas normandas para prender Teodorico, cardeal e bispo de Albano, que se intitulou papa com a ajuda de seus opositores eclesiásticos, aproveitando da ausência do pontíice da cidade. O século XII e o conlito entre dois pretensos poderes universais: o Sacro Império Romano Germânico e a Igreja O século XI presenciou mudanças em uma tradicional e, às vezes, relativa colaboração entre o Império e a Igreja, estabelecida desde Carlos Magno e Luís o Piedoso. O décimo primeiro século foi um tempo no qual alguns eclesiásticos de destaque passaram a defender uma série de reformas no âmbito da Igreja, principalmente no tocante a sua relação com o laicato e ao fortalecimento da igura do papa. Destacamos a normativa do papa Nicolau II em 1059, pela qual a eleição papal deveria ser prerrogativa dos cardeais, tentando limitar assim as inluências do imperador e da nobreza da cidade de Roma nas escolhas de quem deveria ocupar o trono de São Pedro.4 Seu sucessor, Gregório VII, saiu vitorioso de grande parte da oposição que recebeu por parte do Império, aprofundando o ideal reformador da política de independência da Igreja diante dos poderes laicos e de moralização do clero, de modo que teve seu nome associado a esse movimento pelos historiadores de nosso tempo.5 Assim, o século XII nasce com essa herança conlituosa da centúria anterior. A tentativa Muitas vezes o imperador servia de árbitro na escolha dos novos papas. A inluência dos poderes leigos ica evidente, por exemplo, com o privilegium othonis, de 962, pelo qual o papa deveria jurar idelidade ao imperador, submetendo, assim, os eclesiásticos ao poder secular. Cf.: CARDINI, Franco. A Itália entre os séculos XI e XIII. In: MONGELLI, L. M. (Coord.). Mudanças e Rumos: o Ocidente Medieval (Séculos XI-XIII). Cotia: Íbis, 1997. p. 83-108, p. 88. Outro ponto claro de inluência, muito combatido pelos reformadores, era a prática da simonia, venda de cargos eclesiásticos. 5 A reforma seria uma série de medidas visando à organização e institucionalização da Igreja, como a criação de normas para a escolha dos papas e para o reconhecimento de pessoas como santas, etc. O tema já foi bastante trabalhado pela historiograia, por isso citamos aqui apenas alguns trabalhos. O recente artigo SILVA, Andréia e RUST, Leandro. A Reforma Gregoriana: trajetórias historiográicas de um conceito. História da Historiograia, Ouro Preto, n.03, p.135-152, setembro de 2009; O clássico livro BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1983, e nos manuais de História Medieval em língua portuguesa recomendamos o capítulo FRANCO JÚNIOR, Hilário. As estruturas eclesiásticas. In:_____. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. São Paulo, Brasiliense, 2006. p.67-82. 4 450 de solução mais famosa foi concebida pelo canonista Ivo de Chartres e liderada pelo imperador Henrique V e o papa Calisto II, que, em 1122, na Concordata de Worms, estabeleceu que os bispos receberiam a autoridade espiritual por parte do papa, e a temporal por parte do imperador. Este, por sua vez, poderia estar presente na ocasião da eleição dos bispos das dioceses que estavam em territórios imperiais, comprometendo-se, todavia, a não intervir na escolha do novo clérigo que estaria à frente do bispado. O mesmo Calisto II aproveitou esse momento de maior tranqüilidade para convocar um Concílio Ecumênico,6 o primeiro de três que seriam feitos nesse século. Realizado no ano seguinte (1123) no Palácio de São João de Latrão, em Roma, o Lateranense I teve algumas normativas que envolviam a violência, como, por exemplo, coibindo que cruzados desistissem de lutar, seja nos empreendimentos militares em Jerusalém, seja nos conlitos bélicos da Península Ibérica que receberam a alcunha de “Guerras de Reconquista”. Destacamos, porém, dos dezessete cânones, dois que tratam especiicamente de questões de violência em solo italiano. O décimo primeiro proíbe o roubo de porticanos que viessem a falecer. Porticanos eram iéis que icaram conhecidos assim por permanecerem nos pórticos que levavam à basílica de Santa Maria e ao castelo de Santo Ângelo, em Roma. O cânone fala que esse tipo de roubo era um hábito na cidade. O décimo sétimo proíbe que a cidade de Beneveto, que havia sido recentemente incorporada ao Patrimônio de São Pedro, fosse invadida ou tomada por meio das armas.7 A história nos mostra que o acordo de Worms, todavia, não foi efetivo por longo tempo, e as discórdias entre Império e Papado logo reiniciaram. Citaremos um exemplo: três anos depois da Concordata, em 1125, Lotário II torna-se candidato a imperador, mas sem ser reconhecido por muitos. Em 1130, por ocasião de uma conturbada eleição pontifícia, alguns eclesiásticos elegeram Inocêncio II, enquanto outros apoiaram Anacleto II. Este último viria a ter o apoio da cidade É preciso destacar que o reconhecimento desta reunião como Concílio Ecumênico foi posterior. 7 Sobre os Concílios de Latrão mencionados nesse artigo, cf.: FOREVILLE, Raimunda. Lateranense I, II y III. Vitoria-España: ESET, 1972. 6 451 de Roma e da maior parte das cidades italianas. Os conlitos tiveram uma reviravolta em 1133, ocasião na qual Lotário invadiu Roma com suas tropas e colocou Inocêncio II no trono de São Pedro. Este, em retribuição, realizou a cerimônia de coroação de Lotário II, legitimando sua condição de imperador. Todavia, quando as tropas germânicas se retiraram, Inocêncio II precisou refugiar-se em Pisa para salvar a própria vida. Esse conlito especíico só foi paciicado cinco anos depois, em 1138, com a morte de Anacleto II. No tocante aos conlitos entre Igreja e Império no século XII, a historiograia costuma destacar dois personagens: Frederico I, mais conhecido por Frederico Barbarruiva, e Alexandre III. Frederico I assumiu o trono em 1155, tendo uma considerável estabilidade política na região da atual Alemanha, que seria a base do seu poder. Assim, pôde voltar sua atenção para a Península Itálica. Recebeu o endosso pontifício à sua coroa no mesmo ano por Adriano IV em Roma. Em 1159, por ocasião da eleição do novo sumo pontíice, a maioria dos cardeais apoiou Alexandre III, defensor dos ideais da Reforma Gregoriana, em especial da teocracia papal, tendo por base o direito canônico. Frederico, por sua vez, reconheceu como papa Vitor IV, segundo alguns historiadores seu amigo. Vitor tinha o apoio de alguns cardeais que compartilhavam das idéias que destacavam o papel do imperador na organização da sociedade, idéias estas pautadas no direito romano, retomado cada vez mais no século em questão.8 Vitor IV, que nessa ocasião da eleição tomou o Palácio de Latrão a força com a ajuda de seus partidários e forçou o seu rival a abandonar Roma, foi apenas o primeiro de quatro antipapas que tiveram o suporte imperial de Frederico para fazer frente a Alexandre III nos anos que Vale lembrar que é no XII que é organizada a Universidade de Bolonha, que seria campo fecundo de juristas versados no direito romano. O próprio imperador Frederico no início do seu reinado recorreu ao serviço de quatro deles para a redação da Constitutio de regalibus, pela qual ele defendeu privilégios que os movimentos comunais teriam lhe usurpado. Cf.: GILLI, Patrick. Cidades e sociedades urbanas na Itália medieval: séculos XII-XIV. Campinas: EDUNICAMP; Belo Horizonte: EDUFMG, 2011. p.30-31. Um ponto interessante é que o mesmo Alexandre III, defensor da teocracia papal, era professor de direito na mesma Universidade de Bolonha, autor de obras de destaque no meio. Cf. BARRIO, M. e outros. Diccionario de los papas y concílios. Barcelona: Ariel, 2005. p.192-197. 8 452 viriam a seguir.9 Alexandre III teve um longo pontiicado, e por conta da oposição imperial, em grande parte do período ele esteve fora da cidade de Roma. Obviamente, a presença constante de tropas germânicas em solo peninsular não afetava somente o Papado, mas a população de maneira geral. Em alguns casos, muito diretamente. Vejamos por exemplo o Processo de Canonização de Galgano de Guidotti, o cavaleiro que abraçou o eremitismo que citamos anteriormente. Tal documento foi composto em 1185, sob a ordem do Papa Lúcio III. Ele possui 21 testemunhos de pessoas relatando passagens da vida do venerável e supostos milagres que ele teria feito. Destes, cinco apresentam situações de violência. O sétimo e o décimo sétimo testemunhos nos interessam especialmente. Trata-se de dois homens que alegavam terem sido presos por teutônicos, e teriam sido libertos pela intercessão divina do santo, entre o inal de 1181 e meados de 1185, período no qual o venerável já havia falecido.10 Ao sul da Península, permanecia o reino normando da Sicília, formado no século anterior, vassalo com consentimento pontifício, por reconhecer o Papado como suserano. Era mais um obstáculo para o poder imperial. Optamos por voltar-nos, todavia, para o centro e norte peninsular, regiões nas quais essas duas instituições com pretensões universais tiveram que lidar especialmente com as comunas. As comunas e as lutas por autonomia das cidades As cidades italianas, destacadamente os grandes centros urbanos, tinham interesses cada vez mais próprios nesse ambiente O pontiicado de Alexandre III foi de 1159 a 1181. Enfrentou a oposição dos antipapas Vitor IV (1159-1164), Pascoal III (1164-1168), Calisto III (1168-1178) e Inocêncio III (1179-1180). Cf.: FRÖLICH, Roland. Curso básico de História da Igreja. São Paulo: Paulus, 1987. p.88 e BARRIO, M. Op. Cit. 10 Consideramos que o uso do termo “teutônicos” seria uma referência a soldados do império, uma vez que a Ordem dos Cavaleiros Teutônicos foi fundada anos mais tarde. O Processo de canonização de Galgano está disponível em MOIRAGHI, Mario. L’enigma di San Galgano: la spada nella roccia tra storia e mito. Milano: Ancora, 2005. p. 203-218. Nesse contexto, o culto a Galgano torna-se um dos principais da região da Toscana. Cf.: CARDINI, Franco. Idem e GAGLIARDI, I. Il culto di san Galgano a Siena tra Medievo ed Età Moderna. In: BENVENUTI, A. La spada nella roccia: San Galgano e l’ epopea eremitica di Montesiepi. Siena: Mandragora, 2004. p. 83-102. 9 453 de crescimento populacional e econômico. Uma autonomia frente aos seus senhorios era algo desejado por muitos cidadãos das elites citadinas. Vindo ao encontro desse interesse, os conlitos entre Igreja e Império em muitos casos criaram vazios de poder, abrindo mais espaço para que as cidades procurassem autonomia.11 A instituição por excelência organizada por esses cidadãos para conquistar tal autonomia e administrar a cidade foi às comunas. Primeiramente, voltemo-nos para os atritos entre as comunas e o Império, tomando como ponto de toque o caso do já citado Frederico Barbarruiva. Frederico Barbarruiva fez seis viagens a Península Itálica ao longo de seu reinado.12 Na primeira delas, em 1154, antes mesmo de sua coroação, procurou restabelecer direitos imperiais nos centros urbanos, que as comunas tinham reivindicado para si. Esses direitos incluíam, por exemplo, o uso de moinhos, pedágios, mercados e o pagamento do fodrum.13 Algumas cidades se organizaram então em uma liga para fazer frente ao Império, tendo como liderança Milão. A liga conseguiu vitórias militares, destruindo cidades que permaneceram iéis a Frederico. Na sua segunda viagem a Península, em 1158, Barbarruiva submeteu os milaneses, impondo-lhes uma obrigação de alto custo inanceiro e simbólico: construir um palácio imperial dentro de seus muros. Crema, cidade aliada de Milão, foi destruída, e os rebeldes tiveram que arcar com a reconstrução das cidades de Lodi e Como. Além de lidar com as rebeliões das cidades do vale do rio Pó, ao longo do XII o Império enfrentou, por exemplo, insurgências de cidades da região da Toscana.14 Inimizades comuns promoveram alianças nesse período. Entre 1164 e 1167 foi formada uma nova liga interurbana, supostamente sob a liderança de Verona, contendo cidades como Veneza. Esses aliados receberam o apoio de nada menos que Alexandre III, colocando, assim, lado a lado inimigos do Império. A liga então inanciou a construção de uma nova cidade no norte da Península, a qual foi dada o nome de CARDINI, Franco. Op. Cit., p. 86-87. GILLI, Patrick. Op. Cit., p.27-28. 13 Imposto que as cidades deveriam pagar para inanciar o imperador e seus oiciais quando eles estivessem em viagem na Península. 14 GILLI, Patrick. Op. Cit., 30-31 e CARDINI, Franco. Op. Cit., p. 92. 11 12 454 Alexandria. O Papa, por sua vez, ameaçou promover uma interdição dos ofícios religiosos em cidades que porventura abandonassem a liga. Em 1176, o imperador Frederico viu sua autoridade e poderio sofrerem uma violenta queda em Legnano, quando suas tropas foram derrotadas pelas comunas insurgentes, que conquistam ampla autonomia para as suas cidades, submetidas ao Império cada vez mais apenas em uma esfera simbólica. Por mais que na maioria dos casos a Igreja tenha apoiado as comunas, visando diminuir o poder imperial na Península, ela, todavia, não icou imune ao movimento comunal. A de Roma, por exemplo, em meados do século chegou a trazer de volta para a cidade, em 1145, Arnaldo de Bréscia, antigo abade agostiniano que fazia duras críticas ao acúmulo de riquezas do clero, que para ele estava excessivamente voltado para o mundo, afastando-se de Deus. Arnaldo estava condenado como herege desde 1139, e tinha adversários inluentes no meio eclesiástico, como Bernardo de Claraval. As divergências entre os poderes eclesiástico e comunal nesse ano tiveram, por exemplo, um episódio no qual os normandos sitiaram o Capitólio a mando do Papa Lúcio II, que no evento tomou uma pedrada na cabeça, permanecendo inconsciente até a sua morte, dias depois.15 Não poderíamos deixar de lembrar que os diferentes grupos dentro das cidades, e conseqüentemente as próprias comunas, não eram totalmente coesos, sem disputas de poder internas. Esses ambientes também eram palco de conlitos entre pessoas e grupos, com interesses e idéias distintas, ainda que eles normalmente tivessem em comum a vontade de conquistar maior autonomia frente aos seus senhorios. Assim, eram, por vezes, cenário de lutas armadas, como foi nas revoltas em Florença, em 1177, conforme registrado por Giovanni Villani em sua Croniche Fiorentine: (...) Nesse mesmo ano começaram em Florença dissenções e grandes lutas entre os cidadãos, as piores que jamais se haviam dado nessa cidade; e isto devido à demasiada prosperidade e sossego, juntamente com MONTANELLI, Indro e GERVASO, Roberto. Arnaldo de Brescia. In:___. Itália: os séculos decisivos. São Paulo: IBRASA, 1968. p.128-133. 15 455 orgulho e ingratidão; porquanto a casa dos Uberti que eram os mais poderosos e os maiores cidadãos de Florença, com seus aliados, tanto nobres como populares, começaram a guerra contra os cônsules (que eram os senhores e os governantes da comunidade durante um dado período e de acordo com certas regras), por inveja do governo que não era de seu gosto; e a guerra tornou-se tão feroz e pouco natural que quase todos os dias, ou dia sim dia não, os cidadãos combatiam uns contra os outros em diversas partes da cidade, de bairro a bairro, conforme o lugar de onde eram as facções e de como haviam fortiicado as suas torres, em grande número na cidade, com 100 a 120 cúbicos de altura. E nesta época, devido à dita guerra, muitas torres foram fortiicadas de novo pelas comunidades dos bairros, a partir dos fundos comuns da vizinhança. Eram chamadas “torres das companhias” e sobre elas estavam instalados engenhos para atirar de umas para as outras, encontrando-se a cidade barricada em muitos lugares. Essa praga durou mais de dois anos, morrendo muitos devido a ela e caindo para a cidade grandes riscos e danos; mas essa guerra entre os cidadãos tornou-se tão usual ecostumeira que um dia podiam combater e no dia seguinte comiam e bebiam juntos, contando uns aos outros histórias do seu próprio valor e proezas dessas batalhas (...).16 Rumo ao im do século: enfraquecimento imperial, fortalecimento papal Passemos então para o im do século. A derrota em Legnano, que mencionamos anteriormente, teve um alto custo para a igura do imperador. Somado aos desgastes da sua autoridade, devido a anos de enfrentamento com o papa Alexandre III, em 1187, Frederico era um idoso de aproximadamente 72 anos ao dirigir-se para Jerusalém na Terceira Cruzada, para tentar retomar a Cidade Santa do poderio muçulmano. As Cruzadas sempre chamavam atenção e atiçavam Cf.: PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria. História da Idade Média: textos e testemunhas. São Paulo: UNESP, 2000. p.163-164. 16 456 a cobiça dos que desejavam poder e prestigio. Mas no lugar de restabelecer seu poderio anterior, o empreendimento cruzadístico rendeu a Barbarruiva a morte, três anos depois. Seu sucessor, Henrique VI, não foi tão antagônico ao Papado. Nesse inal de século percebemos, por outro lado, um fortalecimento da hierarquia eclesiástica, em especial do Papado. Em 1179, Alexandre III pôde convocar o III Concílio realizado em Latrão. Dos 27 cânones, em seis há normativas com a temática da violência. Se, por um lado, temos repetições de ordenanças sobre o laicato em geral, como, por exemplo, as restrições impostas pela Paz e da Trégua de Deus, por outro, vemos uma Cúria Papal que já é capaz de atuar contra grupos mais especíicos, marginalizando-os. Nesse sentido, no segundo cânone encontramos a condenação por heresia de Otavio, Guido e João de Strumi,17 bem com dos seus seguidores. No vigésimo quarto cânone são condenados os que comercializavam armas, ferro e madeira com os muçulmanos, que poderiam usar esses materiais contra a Cristandade, citando mais especiicamente os casos de pirataria sarracena. Isso é signiicativo, em especial, ao lembramos do crescimento comercial e do protagonismo das cidades italianas nessa atividade. No cânone vinte e seis ica proibido que judeus e muçulmanos tenham escravos cristãos, prevendo inclusive punição para os cristãos que aceitassem essa situação. No vigésimo sétimo temos condenação para uma ampla gama de grupos, como os patarinos, considerados heréticos. As condenações usualmente implicavam em coniscos de bens, proibição de ser recebidos por outros cristãos em suas casas ou de comercializar com eles. O sucessor de Alexandre, Lúcio III, intensiicou as condenações aos grupos considerados heréticos, como, por exemplo, com a decretal Ad abolendam e o Concílio de Verona, ambos de 1184. Essa mudança de postura do Papado em inais do XII, com uma maior quantidade de normativas marginalizando grupos especíicos, fez com que o historiador Robert Moore defendesse a tese de que nesse contexto a Cristandade se converteu em uma sociedade repressiva.18 Antipapas que tinham se oposto a Alexandre III. É certo que tal tese não é consenso, pois alguns enfatizam as perseguições, por exemplo, contra judeus em períodos anteriores. O termo “conversão” é do próprio Moore. Cf.: MOORE, Robert. La formación de una sociedad represora. Barcelona: Crítica, 1989. 17 18 457 Conclusão Concluímos que falar de violência no século XII na Península Itálica é necessariamente falar em embates políticos entre o papado, o Império e as comunas. Se nos dois séculos imediatamente anteriores vemos uma cooperação entre Império e Igreja, como foi com Carlos Magno, o movimento reformador iniciado em meados do século XI fez com que as relações entre essas duas instituições fossem marcadas por disputas de autoridade. No XII, a Concordata de Worms não paciicou a questão, como ica evidente nos embates entre Frederico Barbarruiva e Alexandre III. Essas disputas, muitas vezes, geraram conlitos armados. O embate entre papas e imperadores também teve impacto no movimento comunal, ora criando os citados vazios de poder, ora apoiando diretamente os movimentos, como no caso da aliança entre Alexandre III e a chamada liga veronesa. Tais questões também promoveram guerras, como a da já citada liga contra o Império, encerrada com a vitória das comunas em Legnano, e manifestações de violência mais pontuais, cotidianas, como os casos citados dos iéis presos por tropas imperiais, que foram, segundo seus testemunhos, libertos pela ação de Galgano de Guidotti. Desta forma, no inal do século XII o Império encontrava-se enfraquecido, perdendo autoridade sobre cidades economicamente prósperas. O Império também recuou em sua postura de enfrentamento direto ao Papado. As comunas, por sua vez, tanto como instituição concreta como ideal, ganharam prestígio. Os citadinos viram que a desejada autonomia, mesmo que com altos custos, podia ser conquistada pelo movimento comunal, que seria capaz de organizar e gerenciar as cidades de fato. O século XII foi também cenário do fortalecimento e organização do Papado e da Igreja, algo que com certeza não foi feito sem oposição e não ocorreu de modo contínuo e imune a retrocessos, mas em nosso ver, parece inegável. Lançando um olhar para os Concílios de Latrão, é possível observar que no primeiro, realizado na primeira metade do século, as normativas sobre a violência voltam-se, sobretudo, para 458 as relações com poderes laicos, como o roubo a iéis e a tentativa de garantir a segurança da cidade de Beneveto, patrimônio papal. Já em Latrão III, realizado próximo ao im do século, o Papado já se sente seguro o bastante para normatizar contra grupos considerados heréticos, judeus, muçulmanos e mesmo condenar algumas relações comerciais. A vitória papal ica evidente com o apagar das luzes do referido século, quando, em 1198, Lotário de Segni assumiu o trono de São Pedro com o nome Inocêncio III, papa que para alguns representou o ápice do poder da monarquia papal na Idade Média, capaz de convocar anos mais tarde o maior Concílio medieval, o IV de Latrão. Isso não quer dizer que no século XIII não tenham ocorrido novos conlitos entre as principais instâncias políticas da Península Itálica aqui destacadas – o papado, o império e as comunas -, mas esse seria tema pra outro artigo. 459 SEXUALIDADE E MATRIMôNIO: UM OLHAR SOB AS PERSPECTIVAS RELIGIOSAS DE MARTINHO LUTERO Marciele Cavalcante da Silva (Graduanda UFG)* O presente trabalho está em andamento e vinculado ao projeto de Iniciação Cientíica, visa esclarece as questões sobre a Sexualidade e Matrimônio em perspectivas Religiosas do Reformador Protestante Martinho Lutero, tendo como fonte de pesquisa escritos de Lutero1 e bibliograias pertinentes ao assunto. Nascido 10 de novembro de 1483, em Eisleben, Alemanha, Martinho Lutero era de uma família de camponeses; era ilho de Hans Luther e Margarethe Lindemann e teve uma educação sereva. Segundo Cristiane Araújo,2 aos 13 anos, seu pai o mandou estudar latim em uma escola franciscana em Magdeburgo, achando, entretanto, que na casa dos parentes da mãe teria uma vida melhor, o mandou estudar na escola de São Jorge em Eisenach. Ainda, segundo Cristiane Ribeiro em 1501, seu pai o enviou a Universidade de Erfurt onde havia uma faculdade de direito. Para que Lutero se tornasse celebre, e se formasse em direito. Mas contrariando ao pai, Lutero preferiu seguir a Deus. Segundo Jeam Delumeau,3 em uma viagem de volta a casa, Lutero foi supreendido por uma tempestade e fez um voto à Sant’Ana, que se o ajudasse a sair dali, se tornaria um religioso. Martinho Lutero entrou para os eremitas de Santo Agostinho de Erfut, foi um professor universitário e conhecido como pai do protestantismo. Sua morte foi em Eisleben, a 18 de fevereiro de 1546. Lutero viveu em um momento muito conturbado: várias LUTERO. Martinho. Sexualidade, Matrimônio, Bigamia, Divorcio, Prostituição. MARTINHO LUTERO, Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal, Concórdia Editora, 1995. V. 5. p.149-292. 2 ARAÚJO, Cristiane Ribeiro de Mello. O pensamento econômico de Martinho Lutero. Revista Âncora, São Paulo, v.1, p. 43-61, 2006, p. 46. 3 DELUMEAU, J. e MELCHIOR-BONET, S. Lutero. De religiões e de homens. Trad. Nadyr de Salles Penteado. São Paulo: Loyola. 2000. p. 225-232. DELUMEAU, Jean. Nascimento e airmação da Reforma. Trad. João Pedro Mendes. São Paulo: Pioneira. 1989. 1 460 transformações, e várias concepções estavam surgindo, devido ao renascimento: a valorização humana com os humanistas, que segundo Adriani Rodrigues4 forneceu combustível para o avanço da reforma, as guerras, pestes, as incertezas e principalmente questionamento da salvação e a imoralidade das atitudes papais. Segundo Martin N. Dreher, essas incertezas que se tinha no mundo moderno perpassa sobre a igura de Deus até a imagem de Cristo, e nisso a população se angustiava á procura de respostas para seus questionamentos.5 Ao falar em Lutero a primeira coisa em que pensamos é a questão das indugências, mas Lutero foi além dessa questão, as indugências não foram o ponto de rompimento de Lutero com a Igreja, mas talvez tenha sido o auge do descontentamento dele. Lutero não queria romper com a igreja, somente queria combater algumas obras católicas, o que tambem é evidenciado por Peter Mainka6 em uma entrevista à revista IHU on-line “Ele lutou, principalmente, pela sua convicção religiosa e não contra a Igreja Católica”. Lutero buscava uma religião que suprisse os questionamentos e dúvidas das pessoas, como fala Adriani Rodrigues7, “Eles8 buscavam intencionalmente uma religião que fosse útil e relevante para seus dias”. Diante das grandes transformações vivenciadas pelas pessoas nos século XVI, isso as inluenciou na maneira de vida, tanto econômico, quanto político e religioso. Sendo assim, entendemos que em Sexualidade, Matrimônio, Bigamia, Divórcio e Prostituição, Lutero se preocupou com o casamento e a sexualidade, com a vida conjugal e familiar e escreveu sobre estas realidades, baseando seus estudos na bíblia e principalmente nos escritos de S. Paulo. RODRIGUES. Adriani. Fé x razão Em busca de fundamentos para re-signiicação religiosa. Krygma, São Paulo, Ano 4, v. 2, p.3-16, 2008. Disponível em www.unasp. edu.br/kerygma. p. 05. 5 Cf.: DREHER. Martin. Lutero Reformador da teologia. Revista UHU Online, São Leopoldo, n. 280. 2008. p. 6. 6 MAINKA. Peter. A ousadia de Lutero: enfrentar a Igreja Católica. Revista UHU Online. Op. Cit., p. 13. Entrevistas feitas em novembro de 2008 por Graziela Wolfart, para Revista do Instituto Humanista Unisinos 7 RODRIGUES. Adriani. Op. Cit., p. 15. 8 A palavra Eles se encontra no plural pois refere-se a Martinho Lutero e Erasmo de Roterdã. 4 461 A sexualidade tem se tornado um tema de grande relevância, tornando-se cada vez mais discutível e não se deinindo somente pela prática sexual, mas todo o contexto que envolve os desejos e vontade humana do convívio sexual. A religião Cristã é tida por muitos como repreensora à qualquer tipo de prática sexual, associando tais práticas ao pecado, torna de certa forma uma opressora a vida a dois. Segundo Wendell Veloso, “A intolerância religiosa é uma das áreas cujo estudo das questões sexuais pode contribuir de maneira bastante profícua, uma vez que as concepções cristãs sobre a sexualidade terminam por nos revelar suas ideias acerca do humano”,9 o mesmo fala Antônio Maspoli sobre as representações do corpo “Neste sentido, repercute, também sobre o corpo, as contribuições das representações sociais construídas a partir das crenças e ideias religiosas”.10 Como religioso, a visão de Lutero acerca da sexualidade se dava a partir de uma perspectiva religiosa, a partir de estudos feitos na bíblia e principalmente nos escritos do Apóstolo Paulo. O celibato foi, sem dúvida nenhuma, uma das críticas mais contundentes que Lutero tinha para com os preceitos da Igreja católica. A primeira manifestação de Lutero, em relação ao celibato sarcedotal, foi em 1519, criticando-o celibato sarcedotal, quando, em 1520 puplicou o escrito “A nobreza Cristã de Nação Alemã”,11 Segundo Martin N. Dreher “Nele, Lutero airma que o papa não tem direito de proibir o matrimônio á sarcedotes e a conventuais”.12 Martinho Lutero mesmo fazendo os votos de castidade, quando entrou no convento de Enfurt, não deixou de se envolver com as 9 VELOSO. Wendell. O regramento sexual no pensamento agostiniano: alguns apontamentos. URFFJ, Empresa Universidade, s/d. 10 MASPOLI Antônio. As representações sociais do corpo e da sexualidade no pensamento da reforma do seculo XVI. Revista Ancora, São Paulo, v. 1, p. 1-24, 2008. p. 1. 11 “A nobreza Cristã de Nação Alemã” escrito por Martinho Lutero,em 1520, que, em contrapartida com a Igreja Católica, criticava a situação da mulher na sociedade, e a perseguição sofridas por ela com o consetimento da Igreja, defendendo a iguladade dos seres perante Deus. Os escritos de Martinho Lutero que l nos serviremos nesta pesquisa encontra-se em LUTERO, Martinho. Sexualidade, Matrimônio, Bigamia, Divorcio, Prostituição. In: MARTINHO LUTERO. Op. Cit., p.149292. 12 DREHER. Martin. Sexualidade: Matrimônio-Bigamia Divórcio- ProstituiçãoIntrodução ao Assunto. In: MARTINHO LUTERO. Op. Cit., p.152. 462 questões do matrimônio, matrimônio esse que era visto como estado inferior ao estado sarcedotal, segundo o Martin N. Dreher, o sarcetode tinha a função de ser o mediador da salvação e dava-se maior valor a sua condição de vida “virginal” em virtude do celibato.13 No tratado “Do cativeiro Babilonico da Igreja” ainda em 1520, Lutero airma que o matrimônio não é um sacramento mas ordenação divina, ele ainda airma que só há três tipos de impedimento para a acontecimento do casamento: o desconhecimento do matrimônio anterior, o voto de castidade e a incapacidade de manter relações sexuais. No caso dos votos de castidades, é pontuado pelo reformador que tem que ser algo que vai além da vontade pessoal, mas também da capacidade de se manter santiicado, ou sobretudo um dom vindo de Deus, Lutero assim como o apóstolo Paulo não creem na capacidade humana em se manter casto, e ainda aconselha que aquele que não recebe de Deus a condição e a capacidade de viver puro e casto, devese casar, para Martinho Lutero,14 “portanto, é a seguinte: quem não percebe em si essa coisa boa, mas percebe a inclinação para fornicação, a esse se ordena que se case” porque segundo Martir Dreher o celibato obrigatorio é desumano e leva ao pecado, pois o celibatário pode recorrer a outra praticas para satisfazer o prazer sexual, como a prática da fornicação e da masturbação, ou até mesmo manter atos sexuais com pessoas ou animais.15 Disso se conclui em segundo lugar que ninguém pode fazer voto de castidade nem deve cumprir tal voto; muito antes, deve rompê-lo quando nota e percebe que não possui aquela coisa boa e não se sente inclinado á castidade.16 13 Idem. LUTERO. Martinho. O sétimo Capítulo da Epítola de S. Paulo aos Coríntios. In: MARTINHO LUTERO. Op. Cit., p.190. 15 Cf.: DREHER. Martin. O Sétimo Capítulo de S. Paulo aos Corintios Explicado por Martinho Lutero-Introdução. In. MARTINHO LUTERO. Op. Cit., p.184185. 16 LUTERO. Martinho. Sexualidade, Matrimônio, Bigamia, Divorcio, Prostituição In: MARTINHO LUTERO. Op. Cit., p.190. 14 463 O reformador chama de hipócrita aquele que pro mundo parece viver em uma vida santiicada, mas que diante de Deus vive em uma vida corrupta em atos sexuais ilicitos. Lutero aconselha que as pessoas se casem, pois {...} a fornicação não destroi somente a alma, mas também corpo, bens, honra e relações familiares, pois contasta que essa vida lascivia e indiciplinada não é apenas um grande escândalo, mas também desonesta e que custa mais do que uma vida matrimonial...17 O Reformador ainda pontua sobre esta questão, lembrando que muitos julgam a castidade como um sofrimento doloroso que agrada a Deus, sendo que há diferença do sofrimento isico, pois o sofrimento causado pelo voto de castidade é um sofrimento que pode se tornar pecaminoso, e a única maneira de fugir deste sofrimento, é o casamento. Lutero mostra que o casamento é um estado visto com bons olhos por Deus, a virgindade também tem seus atributos “Em primeiro lugar diz que a virngidade não é ordenada por Deus tão pouco o estado matrimonial. Isso signiica que está na livre decisão de cada um”.18 A virgidade é algo muito precioso, mais devido a esse estado tido como nobre, ninguém perante este estado poderá se julgar melhor do que qualquer outro estado. Lutero ainda fala acerca dos bordéis públicos, sendo contra os mesmos, mais uma vez ele ressalta que a melhor maneira de se livrar da prostituição, é o casamento, e que estar em tais atos ilícitos vai contra os preceitos de Deus “Isso signiica blasfemar e envergonhar o nome de Deus...”19 e assim fala Paulo ao efésios “a fornicação sequer deve ser mecionada entre os cristões”. Há várias concepções acerca do matrimônio, para muitos pode ser sinal de negócios, amor ou até mesmo pela honra, ou simplesmente a donzela virar uma mulher. Para Schapochnik.20 “Em grande parte, o Ibidem, p.179. Ibidem, p. 222. 19 Ibidem, p. 288. 20 SCHAPOCHNIK, Nelson. Cartões postais de família e ícones da intimidade. São de Paulo: Cia das Letras, 1999. (Col. História da vida privada no Brasil) v. 3. p.475. 17 18 464 casamento está mais ligado à passagem da moça donzela á esposa e anjo tutelar de nova linhagem”.21 O matrimonio é visto por Lutero como obra de Deus, uma vontade do Senhor, e como está na bíblia [Gn. 1.28] “crescei e multiplicai-vos”,22 ou seja, homem e mulher deve se unir para que haja vida, e daquele a quem foi imposto o celibato, Lutero (1995. p. 162) diz “E mesmo que se queira impedi-lo isso se revela impossível, e toma seu curso através de fornicação, adultério e masturbação, pois se trata de algo da natureza e não da livre vontade”.23 Pois São Paulo disse á I Coríntios “É melhor casar-se do que viver abrasado”. Dentro do matrimônio homem e mulher deve ajudar um ao outro, eles devem ser companheiros, segundo Martin N. Dreher “A palavra de Deus cria o amor mútuo que envolve todo o ser humano e capacita a homem e mulher a serem conjuntamente responsáveis”.24 O homem e mulher só podem, ou não se casar, de acordo com a vontade de Deus, e não por ordenação do Papa, ou mesmo qualquer outra autoridade. Em relação ao divórcio, Lutero pontua três razões para que ele possa acontece: primeiro o homem ou a mulher for incapazes25 para o matrimônio, seja por uma questão física ou por natureza, a segunda é devido ao adultério, e que a parte inocente pode casar de novo “... Cristo admite o divórcio de homem e mulher por causa do adultério e que a parte inocente pode casar de novo”.26 Em provérbios 18.22 Salomão diz “Quem mantém uma mulher adúltera é louco”,27 ou seja, o homem SCHAPOCHNIK, Nelson. Op. Cit., p. 423-512. Gênesis primeiro livro da Bíblia. 23 LUTERO. Martinho. Vida Matrimonial. In: MARTINHO LUTERO. Op. Cit., p.162. 24 DREHER. Martin. Sexualidade: Matrimônio-Bigamia Divórcio- ProstituiçãoIntrodução ao Assunto. In: MARTINHO LUTERO. Op. Cit., p.155. 25 Ser incapaz aqui seja por natureza ou física, segundo Lutero seria, por exemplo: proibição de bispos; épocas proibidas; problemas de audição e visão. Cf.: MARTINHO LUTERO. Op. Cit., p. 170. 26 LUTERO. Martinho. Sexualidade, Matrimônio, Bigamia, Divorcio, Prostituição. In: MARTINHO LUTERO. Op. Cit., p. 170. 27 BÍBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no Brasil. 2 ed. Barueri – SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999. 21 22 465 e mulher pode se separa caso uma das partes esteja adulterando. O terceiro e último é caso quando um não mantém relações sexuais com o outro, não lhe prestando o dever conjugal, mais nesse caso o divórcio só teve acontecer quando a parte inocente chame a atenção da outra pelo menos três vezes, e levar a situação a público. O mesmo diz São Paulo ao I coríntio (7.4) “A mulher não é dona do seu próprio corpo, e sim o marido, da mesma forma é o homem, não tem direito ao seu próprio corpo, e sim a mulher”.28 Para se ter um casamento bom, é preciso reconhecer e crer que foi o próprio Deus que uniu ambos e que os ordenou para que tenha ilhos, é fazer as coisas segundo a vontade de Deus e não segundo a carne. Segundo São Paulo á carta de I Coríntios “Os casados sofrerão tribulações carnais”, ou seja, vão passar por diiculdades terrenas, e se o casamento não estiver alicerçado em Deus, se não tiver segundo a vontade dele, não irá resistir a qualquer “tempestade”. “Vimos, porém que tudo isso encerra em si muita virtude nobre e verdadeiro prazer quando se dá atenção à palavra de Deus e à sua vontade, reconhecendo assim sua verdadeira natureza”.29 Perante Deus não existe um estado de vida melhor que o outro, freira ou qualquer outro tipo de religioso ou sarcedote não é mais importante para Deus, do que um homem ou uma mulher casada. Deus criou a mulher para estar ao lado do homem. Uma das maiores contribuições do reformador pretestante Martinho Lutero foi, sem dúvida, a valorização do ser, homem e mulher, mas principalmente a mulher, enquanto a relação ao matrimônio, Lutero vive em uma época que a mulher é vista enquanto ser inferior ao homem, um ser associado ao dêmonio e ao pecado. Nesse contexto o casamento não é um estado almejado, pois as praticas sexuais são condenadas como algo pecaminoso. A partir de seus escritos, ela passou a ser mais valorizada dentro do seio familiar. A mulher nesses escritos é vista como uma vida nobre e preciosa, pois ela que gera uma vida, vida essa, que vem de Deus, por isso não 28 Idem. LUTERO. Martinho. Sexualidade, Matrimônio, Bigamia, Divorcio, Prostituição. In: MARTINHO LUTERO. Op. Cit., p. 179. 29 466 é inferior ao homem, ambos são iguais perante a Deus. E ainda Lutero ressalta que não há na terra autoridade maior do que o pai e a mãe, e isso mexe muito com a valorização do casamento, isso o torna mais relevante e mais importante. Os escritos de Lutero trazem novas formas de se olhar o matrimônio, matrimônio esse que era desvalorizado e pecaminoso, pois o estado sarcedotal era visto como o estado conforme a vontade divina, uma vida sem pecado. Entretanto, a partir Sexualidade, Matrimônio, Bigamia, Divórcio e Prostituição, que o matrimônio passou a ser visto como um estado segundo a votande Deus, não sendo inferior a nem um outro estado, mesmo ao dos celibatários. Lutero ainda aconselha que aquele que não tem dom para a castidade, é melhor que se case. Sendo assim, Lutero abrange, além da questão religiosa, a família e a cultura, desenvolvendo novos conceitos acerca da vida conjugal e da vida celibatária, trazendo em seus escritos um novo olhar sobre a figura da mulher, enquanto um ser na sociedade, deixando a visão sobre a imagem feminina construída no medievo, a de um ser ligado ao pecado e ao diabo.30 Bem como uma valorização do estado de matrimônio, que antes era visto como estado inferior ao dos que guardavam o celibato. Ele fez um panorama do matrimônio, escrevendo o que entendia ser a vontade de Deus em relação ao mesmo, além de orientar em que momentos o matrimônio poderia se realizar ou não, e que regras estaria nos entremeios desse cerimonial, tornando seus escritos, de certa maneira, um manual para a realização do casamento. Além de valorizar a figura paterna e a materna dentro do seio familiar. Para Lutero nem um estado tem mais valor que outro, perante Deus, e que a castidade só deve ser mantida, caso o individuo tenha e ganhe de Deus a capacidade de se mantér casto, não cabendo a nenhuma autoridade a o direito de impô-la. O presente trabalho pretende aprofundar a questão da igura da mulher, em relação aos escritos de Martinho Lutero, e fazer uma análise sobre a mulher na sociedade, tentando entender se estes escritos mudaram ou transformou em algum aspecto a igura da mulher na sociedade da época. 30 467 REFLEXÕES SOBRE OS CONFLITOS ENTRE O PAPADO, O IMPÉRIO E AS COMUNAS NA PENÍNSULA ITÁLICA NO SÉCULO XIII Maria Valdiza Rogério da Silva (Doutoranda PEM – PPGHC – UFRJ)1 Este trabalho apresenta algumas relexões relacionadas à minha pesquisa de doutorado, vinculada ao projeto coletivo A produção normativa no século XIII e os discursos sobre os corpos e sobre a diferença sexual: relexões sobre a península ibérica e itálica, coordenado por minha orientadora, a Profa. Dra. Andréia Frazão da Silva, e em desenvolvimento junto ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada – PPGHC e ao Programa de Estudos Medievais – PEM, ambos da UFRJ. O título de nossa pesquisa é As relações de gênero e a construção das condições masculina e feminina nas fontes jurídicas do século XIII, na cidade de Perúgia. Nosso objetivo é analisar e comparar como textos normativos peruginos deinem os papéis sociais de homens e mulheres. Ressaltamos que estamos em fase inicial da pesquisa. Nesta comunicação, vamos traçar algumas relexões acerca dos conlitos entre o Papado, o Império e as Comunas na Península Itálica, no século XIII. O Papado e o Império No ano de 1122 foi realizada a Concordata de Worms. Esse tratado, assinado pelo papa Calixto III e pelo imperador Henrique V, airmava que a investidura espiritual dos bispos pertencia ao papa, porém, os bispos deveriam assegurar sua lealdade ao imperador, ao assumir o poder do território de uma diocese. Tal questão parecia ter sido solucionada, mas icou apenas adormecida. Assim, os conlitos entre o Império e o Papado não terminaram no século XII, eles também se estenderam ao longo do século XIII. Doutoranda em História pelo Programa de História Comparada e colaboradora do Programa de Estudos Medievais, ambos da UFRJ. Professora do Ensino Fundamental e Médio da rede pública e privada do Estado do Rio de Janeiro. 1 468 Esses conlitos foram marcados pelo estabelecimento dos princípios ideológicos do Papado e do Império, ou seja, a questão da hierocracia papal e imperial, que explicitaremos mais detalhadamente no decorrer do texto;e, também, pela disputa entre esses dois poderes pelo controle das regiões da Península Itálica. Segundo a historiograia, foi durante os pontiicados de Inocêncio III (1198-1216) e Inocêncio IV (1243-1254) que a posição hierocrática propagou-se. A ideologia hierocrática, também chamada de teocrática, consistiu na airmação de um poder universal nas questões políticas da cristandade, reivindicado ora pelo Papado, ora pelo Império.2 O que os papas defendiam era uma potestas indirecta ratione pecati (poder indireto devido ao pecado). Inocêncio III reivindicava, por ser o vigário não só de Pedro, mas também de Cristo, que não caberia ao pontíice romano a cheia de toda a Igreja, mas o direito de, em caso de pecado, intervir no poder temporal depondo reis e imperadores.3 Para Inocêncio IV, ser vicarius Christi e caput (vigário de Cristo e cabeça) da Igreja não se referia somente a uma autoridade de caráter carismático; esta qualidade introduzia a uma ordem propriamente jurídica, a dos poderes legados no passado por Cristo e seus sucessores, cujos papas eram os herdeiros legítimos – a potestas plena. Este poder, de caráter essencialmente espiritual na origem, tornou-se um verdadeiro poder político. Tal temática era particularmente ilustrada pela simbologia dos dois gládios.4 Era o papa quem detinha os dois: o espiritual e o temporal; o imperador apenas usava o gládio temporal CONGAR, Y. Histoire des dogmes: l’Église de Saint Augustin à l’époque moderne. Paris: Cerf, 1970; PACAUT, M. La tehéocratie l’Èglise et le pouvoir au Moyen Âge. Paris: Desclée, 1989; QUILLET, J. Les clefs du pouvoir au Moyen Âge. Tours: Flammarion, 1972; TÔRRES, Moisés Romanazzi. O Império na Idade Média Latina. Revista de História (UFES), Vitória, v. 11, p. 337-348, jul/dez 2000. 3 PACAUT, M. Op. Cit., p. 115. 4 A palavra gládio é de origem latina, gladius. O gládio era uma espada curta de dois gumes com cabo robusto, trabalhado em madeira ou osso que se portava em bainha geralmente decorada. Como armamento de guerra surgiu na hispânia, sendo uma espada celta aperfeiçoada. Era usada como instrumento perfurante no combate corpo-a-corpo nas guerras da Idade Média. 2 469 sob a delegação do pontíice. A ideia central era que todo o poder vem do Alto para as mãos dos papas e se estes delegam ao imperador a utilização do poder político é para que ele, em sua própria pessoa, não se sirva deste poder, mas governe em função da Igreja. Assim o poder civil poderia ser fundado somente no poder religioso. Tal era a expressão inal da doutrina pontifícia da plenitude de seu poder.5 A coroação de Frederico II, que teve o apoio da Igreja, demonstrou a questão enfatizada acima. Em troca desse apoio, o novo imperador teve que renunciar ao poder imperial de eleger bispos e abades alemães, estabelecido pelo acordo de Worms, em 1122. Em 1216, prometeu ao pontíice Inocêncio III deixar ao ilho, Henrique, a coroa do reino da Sicília. Com a morte de Inocêncio III, Frederico II viu-se liberado da promessa e seguiu novos planos. Em 1220, conferiu ao seu ilho Henrique o título de rei dos romanos. Ao papa Honório III prometeu um desempenho mais ativo nas Cruzadas. No inal do ano de 1220, convocou a Dieta de Cápua durante a qual ordenou que fossem destruídos todos os castelos que tinham sido construídos sem a permissão imperial e quis reexaminar todo privilégio obtido pelas comunas depois da morte do último soberano normando.6 O avanço do Papado sobre os assuntos políticos não passou despercebido durante o governo do Imperador Frederico II (12201250). Segundo a ideologia hierocrática fredericiana, o imperador era a lex animata in terris (a lei viva sobre a terra), não a fonte do direito; mas seu guardião, seu defensor e executor. Ele era, a esse título, a encarnação mesma da lei divina. Por outro, ele era o herdeiro direto de César e Augusto. Estas diversas autoridades o permitiam, não somente subtrair o Estado à dominação da Igreja, mas reformar a própria Igreja, reconduzir seus ministros ao estado original de pobreza e de submissão à autoridade política, conforme o ensinamento paulino.7 Desta forma, as invasões do Regnum Italicum durante os séculos XII e XIII, propiciadas pelos imperadores Frederico I e Frederico 5 QUILLET, J. Op. Cit., p. 64-65. CARDINI, Franco. A Itália entre os séculos XI e XIII. In: MONGELLI, L. M. (Coord.). Mudanças e Rumos: o Ocidente Medieval (Séculos XI-XIII). Cotia: Íbis, 1997. p. 85-106. 7 QUILLET, J. Op. Cit., p. 56. 6 470 II, objetivavam dar ao Império um controle efetivo sobre as ricas e poderosas cidades do centro-norte da península e subjugar o Papado, porque o desenvolvimento do poder pontifício no centro da Itália era um dos obstáculos à constituição de um Império Romano, que deveria se estender das províncias germânicas do norte ao sul da Sicília. Assim, os imperadores pretendiam construir um poder sólido sobre os territórios colocados sobre sua suserania direta.8 Dentre os conlitos entre Império e Papado, destacou-se, também, a oposição ideológica entre os guelfos e os gibelinos, durante a segunda metade do século XIII. A palavra guelfo deriva da dinastia saxã dos Welf, assim nomeada porque muitos dos seus membros tinham esse nome. Esse vocábulo foi deinido como a pars Ecclesiae, ou seja, os partidários da Igreja. Já a denominação gibelino tem como fonte o nome do castelo dos Hohenstaufen (Staufen), Waiblingen. Eles foram ligados ao pars Imperii, os partidários do Império. Assim, guelfos tornou-se sinônimo de aliados do Papado em oposição a Staufen. É relevante salientar que, antes da evolução lexical exposta, o cenário político da Península Itálica já se separava em partidários do Papado ou do Império. Somente no inal do século XII e boa parte do XIII, tanto os guelfos como os gibelinos passaram a usar mais os nomes dos chefes de família que estavam na liderança de cada lado.9 O Império e as Comunas Com a morte do Imperador Henrique VI e a minoridade do herdeiro ao trono, Frederico, acirrou-se a oposição entre os os guelfos e os gibelinos pela disputa do trono do Sacro Império Romano. Filipe da Suábia pertencia a casa dos Staufen, portanto, era gibelino; já Otão IV era da casa dos Guelfos. Durante estes reinados, Filipe da Suábia (1198-1208) e depois Otão IV da Germânia (1209-1215), as comunas da Península Itálica aproveitaram-se do estado de fraqueza do Império para tornar-se mais independentes. 8 TÔRRES, Moisés Romanazzi. Op. Cit., p. 337-348. GILLI, Patrick. Cidades e sociedades urbanas na Itália medieval: séculos XII-XIV. Campinas: EDUNICAMP; Belo Horizonte: EDUFMG, 2011, p. 37. 9 471 Antes de prosseguirmos com o texto, é relevante explicitar o processo de formação das comunas. Para entender esse processo, deve-se ter em conta o crescimento da população urbana e da vida econômica a partir da segunda metade do século X, na Europa e, especialmente, na Itália: um desenvolvimento atestado pela formação de aldeias fora dos muros da cidade; a ampliação das muralhas; a construção de novas e amplas catedrais e a abertura de vias navegáveis. Foi um desenvolvimento não só devido às contingências favoráveis, mas também às iniciativas particulares e coletivas, que foram alimentadas por aqueles que compartilhavam a coniança em si e na sua força e estimulavam a vontade política de uma minoria ativa e combativa, que conhecia os problemas e as necessidades locais e porque tinha uma longa participação na administração da cidade.10 Dentro desse processo de desenvolvimento das cidades, destacase, também, a migração dos proprietários de terras, dos vassalos e dos homens de armas, ou seja, a militia,11 do campo para a cidade, durante os séculos X e XI. Essa migração resultou na inclusão política destes grupos nos núcleos urbanos. Os senhores rurais queriam um ponto de apoio na cidade, pois eram mais fortes no campo, onde tinham benefícios, controlavam os centros de poder. Assim, procuravam na cidade um novo e mais amplo campo de ação para suas ambições, para suas vontades de poder e enriquecimento no âmbito secular e no eclesiástico.12 10 FASOLI, Gina & BOCCHI, Francesca. La città medievale italiana. In: http:// www.rm.unina.it/didattica/strumenti/fasoli_bocchi/indice.htm. Acesso em: 10/12/2011. 11 No im do século XII, a classe dos milites não possui uma deinição jurídica e ainda menos uma integração exclusivamente feudal: qualquer um que tivesse os meios para se armar de um ou mais cavalos e para pagar os equipamentos adequados, e que tivesse tempo para se dedicar a exercícios militares poderia integrar as ileiras da militia urbana; não havia nenhuma necessidade de possuir concessões de feudo. Qualquer que tenha sido sua origem e sua hierarquia interna, os milites tinham uma função que os distinguia do resto da população, mesmo quando participavam de atividades nas quais entravam em contato, ou mesmo em parceria, com os não cavaleiros: essa função era a guerra. ofensiva ou defensiva, a guerra servia de marcador distintivo da classe cavaleira. In: GILLI, Patrick. Op. Cit., p.102-103. 12 FASOLI, Gina. Città e feudalità.In: Structures féodales et féodalisme dans l’Occident méditerranéen (Xe-XIIIe siècles). Bilan et perspectives de recherches. Colloque de Rome, 1., Roma, 1978. Actes ... Rome: École Française de Rome, 1980. p. 365-385. (Publications de l’École française de Rome, 44). 472 A formação da primeira comuna aparece como “uma medida de emergência, para se tornar estável, em contrapartida a uma carência ou uma fraqueza momentânea ou duradoura de poder, até agora legítimo, do conde laico ou do bispo”.13 No movimento que levou à formação das comunas, os vassalos dos senhores eclesiásticos e laicos, provavelmente levaram particulares exigências de seus grupos perante tais senhores, fosse ele o bispo ou um conde. Com a subida de Frederico II ao trono (1220-1250), os conlitos com a Península Itálica reapareceram. O papado, inconformado com o poder imperial restaurado, passou a apoiar, a partir de 1230, as comunas a im de lembrar ao imperador as conquistas do Tratado de Constância, assinado em 1183. Nele, as cidades italianas reconheciam a soberania, a “regalia” (impostos, cunhagem de moeda, impostos punitivos contra cidades, escolha e expulsão dos ocupantes de cargos administrativos) e a suserania do imperador sobre elas, em troca de fazerem seus próprios estatutos e de aplicar a justiça. A partir deste momento, o poder legislativo e o judiciário passaram a ser de incumbência das cidades. Esse tratato facilitou a escrita dos estatutos. O objetivo dessas redações era disciplinar o funcionamento jurídico não somente citadino, mas também contadino, ou seja, a intenção era disciplinar as práticas jurídicas ou judiciárias, tanto na cidade como no campo. Entretanto, no ano de 1237, o imperador se opôs às comunas do vale do rio Pó, pois estas haviam recusado a submeter-se ao poder imperial. Em 1239, o imperador criou divisões administrativas novas, os chamados vicariatos. Os vicariatos apresentavam-se sob duas formas: o Vicariato imperial (em terrae emperii) e o apostólico (em terrae ecclesiae). Através da concessão do vicariato, o senhor era constituído vigário geral pelo imperador ou pelo papa, passando a exercer, sobre o conjunto das cidades e terras para as quais já possuía a balia, os poderes englobados que antes eram exercidos em separado pelas autoridades comunais. Assim, toda a Itália centro-setentrional entrava em um regime centralizado. Cada vicariato era subdividido em capitanias, imitando 13 Ibidem. 473 os giudicati sicilianos. Este termo designa uma circunscrição administrativa e política da Sardenha. Os juízes que se encontravam à frente da cada giudicato eram verdadeiros soberanos, eleitos por uma assembleia de nobres de cada um deles.14 Nas comunas, os podestades, representantes do imperador, eram a partir daquele momento designados por ele. Essa nova rede territorial atingia violentamente a tradição comunal, ao criar nas cidades uma dependência institucional e regional que limitava sua autonomia judiciária e militar. Vindo, geralmente, da nobreza e formado em direito, o podestà ou podestade era um funcionário itinerante, icando no cargo por seis meses a um ano. Era um administrador executivo e, sobretudo, a cabeça do corpo judicial. Contudo, não era um governante, mas um executor, que buscava ser imparcial e iador das decisões tomadas pelos conselhos. Na verdade, era nos conselhos que estava o poder efetivo da comuna.15 Ele, porém, tinha poderes policiais e podia desempenhar o cargo de chefe militar do município. Cabia a ele convocar os conselhos e colocar em movimento a vida legislativa e deliberativa. O cargo de podestade, inicialmente, foi ocupado por um cidadão de prestígio, depois por um forasteiro que, exatamente por ser estranho às populações locais, acreditava-se que poderia administrar melhor o poder. Com o podestade estrangeiro, a unidade da organização comunal se cinde em duas: uma atividade administrativa e inanceira coniada aos locais e sob a responsabilidade dos conselheiros e uma atividade jurídica coniada a pessoas que seguiam o podestade: juízes e notários. O regime podestadal não acalmou as rivalidades, os conlitos e as disputas de poder internas entre os diferentes grupos das comunas e cada vez mais crescia a importância da sociedade das artes – corporações de ofícios – e da sociedade das armas, que reclamavam a participação no governo urbano. Com a morter de Frederico II e a sucessiva derrota dos Staufen na disputa pelo controle das comunas, a instituição do podestade 14 GILLI, Op. Cit., p. 38. GILLI, Op. Cit., p. 73; WALEY, Daniel. Las ciudades-republica italianas. Madri: Guadarrama, 1969. p. 69. 15 474 tornou-se cada vez mais frágil. A autoridade do popolo nos conselhos cresceu paulatinamente.O popolo era formado pelos artesões mais ricos e proissionais ilustrados, como os notários. Ele se opunha aos magnates,16 que eram os detentores do poder urbano. O Popolo constituia uma corporação dentro das cidades e tinha dois objetivos diferentes: um geral, que era equilibrar o peso social dos poderosos, e o outro, mais especíico, que era conseguir um papel constituicional de destaque para os popoloni17 dentro da cidade.18 Com o aumento da preponderância do popolo na segunda metade do século XIII, os podestades vão perdendo o poder e surge a necessidade de um representante, nas comunas, na qualidade de “povo”. Assim, foi instituida a igura do capitão do povo, com magistradura e conselhos próprios. A primeira ocorrência dessa instituição foi em Florença, no ano de 1250. Como o podestade, o capitão do povo era um oicial estrangeiro, nomeado chefe “constitucional” do popolo. Possuia prioritariamente atribuições militares, às quais se juntavam as funções de apelação das sentenças do podestade e do tribunal para as causas criminais. Na prática, a função essencial do capitão do povo era a defesa dos popoloni diante da violência dos grandes e poderosos. À medida que o popolo conquistava cada vez mais a gestão dos assuntos da cidade, e até mesmo os controlva totalmente, outros tipos de poder eram experimentados, o que anunciava o im da autonomia comunal. Um desses poderes era o do senhorio.O desenvolvimento dos senhorios pessoais sobre uma ou diversas cidades começou no mesmo tempo do declínio do Império na Itália, mas foi com o im dos Staufen que o senhorio ganha repercussão. Os primeiros sucessos senhoriais, nos quais uma família se mantém no poder durante diversas gerações, começou com a família dos Monteletro, em Urbino, no ano de 1237, depois muitas outras senhorias se espalharam pelas cidades.19 16 Era constituída pela camada mercantil e a bancária. Eram muito ricos, mas não possuíam título nobiliárquico. 17 A palavra italiana popolano, quer dizer pessoa do povo, popular. Sua forma plural é popoloni, portanto, populares. 18 WALEY, Op. Cit., p. 183. 19 GILLI, Op. Cit., p. 91-93. 475 Os senhorios continuavam forrmalmente respeitando as instituições comunais, mas os seus conselhos foram privados de toda a capacidade de decisão. Assim, o novo regime tornou-se a âncora da política citadina, ao reduzir os órgãos representativos do popolo. O Papado e as Comunas A relação do Papado com as comunas, também, foi muito conturbada. Em um primeiro momento, o papado tornou-se aliado das comunas em suas reivindicações por autonomia, já que isto permitiu enfraquecer as pretensões hegemônicas do Império na península itálica. Por outro, no que concerne às terras sob o domínio da Igreja, a relação desta com as comunas não foi tão amistosa. No pontiicado de Inocêncio III (1198-1216), ele conseguiu impor a sua presença no interior nas igrejas locais, nomeando clérigos da sua coniança como canônicos nos capítulos das catedrais -era na maior parte sub-diáconos da Igreja Romana- ou por meio da implementação de um real controle sobre o episcopado por meio de visitatores e provisores Lombardos. Para promover a eleição de bispos, enviou delegados para iscalizar os procedimentos eleitorais, ou em alguns casos, nomeá-los diretamente, para alcançar uma melhor coordenação entre as autoridades e igrejas locais, a im de garantir a aplicação das diretrizes formuladas pelo próprio papa, em colaboração com os cardeais. Para frear às aspirações de autonomia das comunas, supostamente ieis e dependentes de papa, a Igreja passou a nomear podestades ou oiciais eclesiásticos. Eles vinham de famílias originárias de cidades de nascimento dos papas. Quando era nomeado um oicial urbano estrangeiro, ou seja, um podestá, sua administração era marcada por completa vigilância. Segundo o papa Gregório IX, em 1233, a administração das terras da igreja deveria ser, preferencialmente, entregue a homens coniáveis, já que os reitores extranei defendiam mais seus próprios interesses do que os interesses do Estado pontiical.20 Neste contexto, a autoridade papal destacou-se pelo seu papel na promoção da atividade política nos órgãos comunais, favorecendo 20 Ibidem, p. 42. 476 a exclusão no âmbito cidatino da tradicional autoridade episcopal e concentrando seu próprio controle sobre a administração do bispo da res Ecclesiae (da Igreja). Com os instrumentos de controle que dispunha e com o apoio da normativa canônica, o Papado ameaçou com penas espirituais e até mesmo com o isolamento político as comunas desobedientes. Citaremos como exemplo a acusação que o papa fez aos habitantes da cidade de Novara. “O papa acusa os habitantes de quererem subjugar sua Igreja de Novara, sujeitando-a a um tributo, de se mostrarem ingratos com sua mãe, a Igreja de Novara, a ponto de impor o exílio aos seu próprio bispo”.21 O papa demonstrou que se os habitantes da cidade não voltarem a ter uma boa relação com a Igreja, eles não serão somente excomungados, mas todo o território contadino sofrerá a punição. Po outro lado, nos pontiicados de Inocêncio IV (1243-1254) e Bonifácio VIII (1294-1303), algumas cidades, através de arranjos e mediante a uma compensação inanceira, foram autorizadas a eleger seus podestades. Desta forma, esses acordos foram uma solução vantajosa que o Papado encontrou, já que não podia se opor às tradições comunais tão fortemente enraizadas. Com a extinção dos Staufen e a derrota militar dos gibelinos, o Papado passou a intervir nas comunas italianas, delegando emissários para se inserirem no jogo político local e inverter na dominação política das cidades hostis. Os embaixadores pontiicias eram encarregados de contatar os responsáveis guelfos exilados ou mantidos em silêncio para executarem os legados. Tal projeto era político, territorial, pois visava a controlar as cidades que se localizavam fora das terras da Igreja, e também marcadamente de luta contra a heresia. Em 1266, foi criada, nas cidades de Cremona e Placência onde as rivalidades facciosas ainda eram latentes, uma sociedade da paz e de fé, cujo objetivo era estabelecer a ordem política baseada no governo espiritual, ou seja, fazendo dessas cidades senhorio da Igreja romana. Estas cidades viveram sob um regime guelfo integral em que as autoridades eclesiásticas, priores dominicanos e franciscanos, tinham 21 Ibidem, p. 49. 477 função de vigilância de aprovação das decisões tomadas. Nenhuma sociedade nova poderia ser formada sem a autorização deles. A legação durou cartoze anos e algumas comunas foram conquistadas pela força, como Parma, Reggio, Módena e Bolonha.22 Na primeira metade do século XIV, o Papado conscientizouse dos seu limites em relação ao novo regime de senhorio dentro das comunas, já explicitado anteriomente, e concedeu ou vendeu os vicariatos apostólicos para os senhorios das cidades. Assim, , no meio do século XIV, nem o Império, nem o Papado tinham condições de frear a dinâmica dos senhorios urbanos em que se dividiu a Península Itálica. Considerações inais Concluímos que, o Império e o Papado constituíram, durante o século XIII, dois projetos universalistas que visava a airmação da autoridade nas questões políticas da cristandade como, também, controlar as regiões da Península Itálica, ou seja, as Comunas. Tais questões eram reivindicadas tanto pelo Império como pelo Papado. Tanto o Império quanto o Papado tiveram aliados na luta contra o movimento comunal. Do lado do Império, sobressaiu-se os gibelinos e do lado do Papado, os guelfos. As comunas, mesmo reconhecendo formalmente a autoridade imperial ou papal, administravam a justiça, elegiam as magistraturas, arrecadavam os impostos, cunhavam moedas e proviam as exigências de defesa e de guerra com plena autonomia. Mas os conlitos entre Igreja e Império, em muitos casos, criaram vazios de poder, abrindo mais espaço para que as cidades procurassem autonomia. Assim, pouco depois da metade do século XII, várias cidades italianas adotaram o sistema baseado nos podestades. Esta fase estende-se até meados do século XIII. Porém, com a morte do Imperador Frederico II e a derrota militar dos gibelinos, o sistema dos podestades icou enfraquecido, aparecendo neste cenário a igura do capitão do povo. Concomitante ao capitão do povo, novos poderes começaram a surgir, como os senhorios. 22 GILLI, Op. Cit., p. 51-55. 478 Sem a presença dos Staufen, o poder do Papado sobre as comunas foi crescendo. Contudo, a Igreja não conseguiu manter por muito tempo o seu domínio sobre as cidades, pois um novo regime estava se fortalecendo, o regime do senhorio e diminuia cada vez mais a autonomia das comunas. Assim, os conlitos não teminaram no século XIII, eles perduraram até a metade do século XIV, mesmo o Papado residindo em Avignon. 479 D. PEDRO I DE PORTUGAL: VARIAçÕES E CONTRADIçÕES DA MASCULINIDADE RÉGIA NAS CRôNICAS DE FERNãO LOPES (SÉCULO XV) Mariana Bonat Trevisan (Mestranda Scriptorium – UFF) Nosso objetivo nesta exposição é trabalhar um tema ainda pouco estudado pela historiograia medieval brasileira, mas que vem tendo um profícuo desenvolvimento entre medievalistas anglo-saxões, tais como Ruth Karras1 e Clare Lees:2 a construção das masculinidades no medievo. Tal problema será abordado a partir do caso do rei D. Pedro I (1357-1367) nas crônicas régias de Fernão Lopes (1380-1460), cronista mor da dinastia de Avis em Portugal na primeira metade do século XV. Não podemos negar a ampla difusão dos estudos de história das mulheres na Idade Média a partir dos trabalhos pioneiros de Georges Duby3 e o grande papel que o segundo volume da coletânea História das Mulheres no Ocidente4 exerceu na historiograia sobre o medievo. Porém, é preciso voltar a atenção também para o masculino, pois, tal como observou Karras, assim como nos preocupamos em elucidar como são deinidos papéis e normas sociais para as mulheres, devemos perceber também como são construídos papéis e normas para os homens.5 Tal como em: KARRAS, Ruth M. From Boys to Men. Formations of Masculinity in Late Medieval Europe. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 2003. 2 Um exemplo é a coletânea que organizou: LEES, Clare A. Medieval Masculinities: Regarding Men in the Middle Ages. Minneapolis (MN): University of Minnesota Press, 1994. 3 Tais como a trilogia Damas do Século XII: DUBY, Georges. Eva e os padres. São Paulo: Companhia das Letras, 2001: ___. Damas do século XII - a lembrança das ancestrais. São Paulo: Companhia das Letras, 1997; ___.Heloísa, Isolda e outras damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 4 DUBY, Georges; PERROT, Michelle. (Orgs.). História das mulheres no Ocidente. A Idade Média. Porto: Afrontamento, 1990. 2v. V .2. 5 KARRAS, Ruth. Op. Cit., p. 1. 1 480 A categoria “gênero”, que surge ainda na década de 1970, vem ampliar perspectivas e fornecer alternativas aos impasses a que os estudos sobre mulheres haviam chegado.6 Joan Scott, a renomada historiadora de gênero, ao discutir suas deinições postulou que o gênero é um aspecto geral da organização social que estabelece signiicados para as diferenças sexuais, os quais são constituídos através de diferentes tipos de lutas pelo poder. Desta forma, interessa aos estudos de gênero questionar como hierarquias são construídas e legitimadas em diferentes âmbitos sociais.7 Conforme enunciou Tatiane Reis, os menos interessados em gênero tendem a reduzilo ao “estudo de mulheres”, desconsiderando o masculino (em uma visão naturalizada da categoria homem, que não considera sua historicidade). Deste modo, é preciso lembrar que masculino e feminino são categorias relacionais e que, portanto, os homens também devem ser objeto de estudo.8 Trataremos aqui da construção de uma forma de masculinidade especíica na Idade Média: a masculinidade régia. Para isto, julgamos pertinente a deinição de Robert Connell de que a masculinidade é uma coniguração de prática em torno da posição dos homens na estrutura das relações de gênero.9 O autor acrescenta que é preferível falarmos em “masculinidades”, já que diferentes tipos se constituem em um mesmo contexto social, incluindo as relações entre os próprios homens.10 Consoante Connell, existe um conjunto narrativo convencional sobre o qual se coniguram, em diferentes contextos Cf.: PSITELLI, Adriana. Relexões em torno do gênero e feminismo. In: COSTA, Cláudia de Lima; SCHMIDT, Simone Pereira (Orgs.). Poéticas e políticas feministas. Florianópolis: Editora Mulheres, 2004. p. 43-66. p. 45; SOIHET, Rachel; COSTA, Suely Gomes. Interdisciplinaridade: história das mulheres e estudos de gênero. In: RONCARATI, Cláudia; SOARES, Vera Lúcia. (Orgs.). Gragoatá. Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras/UFF, Niterói, n. 25, p. 29-49, 2008- 2009. p. 43. 7 SCOTT, Joan W. Prefácio à “Gender and Politics of History”. Cadernos Pagu, Campinas, v. 3, p 11-27, 1994. p. 12, 13, 20. 8 REIS, Tatiane S. C. Reinvenções dos Sexos: Gênero, masculinidades e medievo. Brathair, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 68-74, 2008. p. 70. 9 CONNELL, Robert W. Políticas da masculinidade. Educação e Realidade, Porto Alegre, n. 20, v. 2, p. 185-206, 1995. p. 188. 10 Ibidem, p. 190. 6 481 sociais, “masculinidades hegemônicas”, em torno das quais outras despontam. Deste modo, podemos propor que a masculinidade régia se constrói a partir de um modelo narrativo hegemônico no Ocidente, pautado essencialmente pelos princípios cristãos, políticos e os valores da nobreza laica. Lembrando que o rei é o exemplo maior de pessoa para o reino e os súditos, sendo, conseqüentemente, o modelo maior de masculinidade laica. Ao analisarmos a construção da masculinidade régia, levaremos em conta cruzamentos entre política e gênero, ressaltando a complexidade que envolve a igura monárquica a partir da noção do duplo corpo do rei. Kantorowicz demonstrou como o monarca é apresentado com um duplo corpo: o corpo humano mortal; e o corpo místico, designador do conjunto do reino, representado junto à metáfora organicista, no qual o rei constitui a cabeça e os súditos os membros.11 Deste modo, devemos compreender que o monarca, enquanto pessoa (nobre laico cristão) estará sempre marcado pela condição régia, permeado por uma aura sagrada e imbuído de seus papéis político-dinásticos. Conforme Guenée, as virtudes morais do rei são consideradas essenciais ao bom cumprimento do seu “ofício”, o qual exige uma série de outras qualidades governativas. Segundo Nieto Soria, na Baixa Idade Média o monarca se apresenta como uma igura ética antes que política, devendo adaptar suas realizações governamentais aos ideais morais. É assim que neste período a virtude se converte num nos eixos fundamentais da legitimação do poder real. A responsabilidade de seu ofício demanda que o rei exercite o controle de seus vícios mais do que ninguém, enquanto regedor dos destinos de todo o reino.12 Observamos que o universo das relações de gênero que se estabelece no quadro da realeza de Portugal nos séculos XIV e XV se conigura a partir de casamentos régios, geração de herdeiros, casos extraconjugais e ilhos bastardos. Tal quadro denota, como apontou Armindo de Sousa, que apesar de todos os tratados moralistas e a preocupação teórica pela sã moral, a sociedade se aigurava permissiva. Neste sentido, além da relevância diplomática dos enlaces matrimoniais KANTOROWICZ, Ernst. Os dois corpos do rei: Um estudo de teologia política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 12 NIETO SORIA, José Manuel. Fundamentos Ideológicos del Poder Real en Castilla (siglos XIII-XVI). Madrid: Eudema, 1988. p. 84, 85. 11 482 da realeza, é importante realçar o signiicado que se atribuía à dimensão sexual dos reis, rainhas, príncipes e princesas -corpos a serviço de suas dinastias.13 Tais relações são fundamentais para uma mudança essencial que ocorrerá no reino ao inal de Trezentos: o im da dinastia de Borgonha e a instauração de Avis. Nota-se que a dinastia fundada pelo bastardo do rei D. Pedro I - D. João I (13851433), Mestre de Avis – empenhar-se-á na construção simbólica de uma aura messiânica e marcada pela moralidade comportamental de seus membros, a começar pela exemplaridade da relação conjugal do casal régio D. João I e D. Filipa de Lencastre. Neste sentido, podemos compreender a política de airmação da dinastia de Avis como o discurso do Paço, tal como deiniu Vânia Fróes, incluindo cerimônias públicas, teatro, crônicas e uma prosa didáticomoral dos monarcas avisinos.14 Quanto ao instrumento cronístico, observamos que sua produção se dá a partir de meados do século XV, quando D. Duarte (1433-1438), herdeiro de D. João I, incumbe desta tarefa o escrivão e notário geral Fernão Lopes (1380-1459). Este tem seguramente três crônicas de sua autoria: a Crónica de D. Pedro I, a Crónica de D. Fernando e a Crónica de D. João I. A narrativa constituída pela crônica régia tornara-se comum no Baixo medievo15 e foi utilizada pela dinastia avisina com o propósito de impor uma versão oicial dos turbulentos acontecimentos que levaram à fundação da Casa Real de Avis no inal do século XIV. O rei D. Pedro I governou Portugal de 1357 a 1367. Quando ainda infante, foi casado com a infanta castelhana Constança SOUZA, Armindo de. 1325-1480. In: MATTOSO, José (Coord.). História de Portugal. A monarquia feudal. Lisboa: Estampa, 1993. v. 2. p. 431. 14 FRÓES, Vânia Leite. Teatro como Missão e espaço de encontro de culturas. Estudo comparativo entre o teatro português e brasileiro do século XV. Congresso Internacional de História – Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas. Igreja, Sociedade e Missionação. Actas... Universidade Católica Portuguesa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Fundação Evangelização e Culturas. Braga, 1993. V. III. p.183-202. 15 Cf.: GUENÉE, Bernard. História. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, JeanClaude. (Orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru/SP: EDUSC, 2002. 2 v. V.1, p.523-536; LE GOFF, Jacques. Rei. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit. 13 483 Manuel, a qual morreu no parto do herdeiro D. Fernando, que seria o último monarca da dinastia de Borgonha. Consoante Ruth Karras, a identidade de gênero se conigura em grande parte pelo modo como o mundo exterior vê ou representa um determinado indivíduo. Constantemente em processo, a identidade se expressa de diferentes modos e de acordo com diferentes conjuntos de circunstâncias.16 Neste sentido, o rei D. Pedro I terá sua memória construída a partir de um processo bastante posterior ao seu reinado, que conigurará uma identidade régia marcada, acima de tudo, por uma igura excêntrica e contraditória. Sua principal característica será a justiça, virtude essencial do ofício régio. Contudo, será uma justiça bastante singular e muitas vezes desproporcionada.17 Em muitas ocasiões o monarca cai em excesso, encarnado o ideal do rei justiceiro impiedoso contra os mais diversos delitos dos súditos (um exemplo seria quando mandou castrar um escudeiro que havia dormido com uma mulher casada).18 Por im, também se mostrava um rei legislador, promulgando leis como a contra os homens casados que viviam com barregãs.19 Deste modo, justiça e o cuidado com o comportamento moral dos súditos são atributos centrais da identidade régia de D. Pedro I. Mas para além de seu caráter governativo de rex, o monarca Pedro tem sua memória e identidade marcadas por um ponto fundamental: o amor que durante toda a vida devotou à aia Inês de Castro. O justiceiro D. Pedro, além de ter sido um grande apreciador da caça (lembrando que a caça, como atentou Le Gof, era um dos principais meios de o rei airmar sua imagem e privilégios),20 teria sofrido de gaguez. Característica que, segundo Luís de Sousa Rebelo, poderia KARRAS, Ruth Mazo. Op. Cit., p. 4. “Entre o castigo dispensado pelo rei e o delito cometido há, por vezes, uma desproporção, que constitui uma verdadeira transgressão da linha que divide a justiça da crueldade.” REBELO, Luís de Sousa. A concepção do poder em Fernão Lopes. s/l: Livros Horizonte, 1983. p. 33. 18 LOPES, Fernão. Crónica de D. Pedro I. Segundo o Códice n. 352 do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Introdução de Damião Peres. Porto: Livraria Civilização, 1965. p. 39. 19 Cf.: Ibidem, p. 23-25. 20 LE GOFF, Jacques. São Luís. Biograia. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 612. 16 17 484 não ser só uma anotação anódina, mas a alegação de um desequilíbrio psíquico do monarca, que teria sido agravado pela morte de Inês de Castro e comprovado pelas “justiças” que executaria em nome da amada.21 No relato lopeano, o rei teria se enamorado pela dama Inês, aia de sua esposa, sendo ainda infante e casado22 (o que difere, por exemplo, da narração do cronista castelhano Ayala, o qual airma que o envolvimento amoroso se dera após a morte de Constança Manuel).23 Portanto, percebemos aqui uma primeira contradição: o rei que tanto controlava a moralidade dos súditos caíra em adultério. Após a morte de sua mulher, D. Pedro I passa a viver em concubinato com Inês, gerando três ilhos. Porém, uma possível preocupação do monarca Afonso IV quanto à legitimação desta prole (que poderia gerar disputas com o herdeiro legítimo Fernando), além uma perigosa ligação entre o infante Pedro e os irmãos da Castro (pois estes o incitavam a tomar a coroa de Castela, que passava por uma crise dinástica), teriam feito o rei português mandar assassinar a amante de seu ilho em 1355. Atitude que gera a ira do infante e uma guerra civil. Tal episódio é condenado na Crónica de D. João I, quando do discurso do jurista João das Regras na eleição do Mestre de Avis nas Cortes de Coimbra, rebaixando a igura do infante Pedro como um desobediente ilho que não respeitava a autoridade do pai, anojando Afonso IV ao tomar por amante uma bastarda de um nobre castelhano.24 Além do conlito que o amor por Inês gerara entre rei e infante, pai e ilho, causando prejuízos a todo o reino, outro episódio iria manchar a imagem de D. Pedro, agora já durante seu reinado: a crua vingança contra os assassinos de Inês. Segundo Fernão Lopes, o monarca REBELO, Luís de Sousa. Op. Cit., p. 124. LOPES, Fernão. Op. Cit., Cap. XLIV, p. 200. 23 LOPEZ DE AYALA, Pero. Crónica Del Rey Don Pedro. In: ROSELL, D. Cayteano. (Org.). Crónicas de los reyes de Castilla, desde Alfonso el Sábio hasta los catolicos Don Fernando y Doña Isabel. Madrid: Real Academia Española, 1953. T. I. Cap. XIV, p. 506. 24 LOPES, Fernão. Crónica de D. João I. Segundo o Códice n. 352 do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Introdução de Humberto Baquero Moreno. Prefácio de António Sérgio. Porto: Livraria Civilização, 1991.v.1. Cap. CLXXXVI, p. 404. 21 22 485 persegue os conselheiros de Afonso IV que tiveram parte na morte da Castro, realizando um escambo de prisioneiros com o rei de Castela em uma iniciativa que leva o cronista a não mais louvar o rei D. Pedro: “pois contra seu juramento foi comsentidor em tam fea cousa como esta”.25 Deste modo, ao querer se vingar pela amada, o rei acaba por ir contra a justiça que tanto prezava, realizando um cruel assassinato dos conselheiros ao mandar tirar o coração de um pelo peito e o de outro pelas costas.26 Através do exemplo da guerra contra o pai e da vingança contra os assassinos de Inês, Fernão Lopes procura destacar como o sentimento amoroso em desmedida do monarca poderia deturpar a função régia e gerar malefícios para o reino, ao invés do bem comum. Em diversos momentos, o cronista airma a identidade de Pedro I como um homem que amava uma mulher além da razão. Os homens em geral, e principalmente os reis (responsáveis pelo governo de todos os outros membros do reino), deveriam se governar pela racionalidade, ao passo que a passionalidade é um atributo característico do feminino.27 Na concepção de Fernão Lopes, o sentimento amoroso é um “sentimento feminino”, que quando presente nos homens muitas vezes traz desonra (tal concepção é explicitamente citada no caso de Afonso Vasquez, que “movido entom per coraçom femenino, a que as molheres chamam amavioso”,28 ou seja, pelo amor em excesso à sua mulher, faz a vontade desta e comete o erro de entregar o castelo que devia guardar). O excesso amoroso de D. Pedro I também é revelado através de outros dois eventos capitais: a Declaração de Cantanhede (em 1360), na qual o rei airma quatro anos após a morte de Inês de Castro que teria se casado em segredo com ela e que, portanto, sua relação e seus ilhos eram legítimos; e a construção de suntuosos túmulos em Alcobaça, onde seriam enterrados os corpos dos dois amantes frente a LOPES, Fernão. Crónica de D. Pedro I. Op. Cit., Cap. XXX, p. 141. Ibidem, Cap. XXXI, p. 149. 27 Diversos teóricos medievais, tais como Gil de Roma, partem de Aristóteles para aludir à concepção de que o homem deve amar com parcimônia, sem se deixar arrastar pelo sentimento, enquanto a mulher será sempre descontrolada em seus sentimentos. Cf.: VECCHIO, Silvana. A boa esposa. In: DUBY, Georges. & PERROT, Michelle. Op. Cit., p. 150-153. 28 LOPES, Fernão. Crónica de D. João I. Op. Cit., p. 330, 331. 25 26 486 frente, buscando assim airmar a legitimidade conjugal do casal. Tais temas serão fundamentais para os propósitos legitimadores da Casa de Avis, à qual Fernão Lopes prestava seus serviços. No relato de Cantanhede, Lopes procura deslegitimar a declaração do rei, airmando que o monarca não lembrava ao certo a data do matrimônio e um dia tão importante como este teria icado na memória de qualquer homem em perfeito juízo (coloca, portanto, dúvidas quanto à sanidade do rei).29 Já a questão dos túmulos de Alcobaça é o tema do último capítulo da crônica, marcando a impressão inal acerca do rei Pedro I como um monarca que amou verdadeiramente uma mulher: “Por que semelhante amor, qual el Rei Dom Pedro ouve a Dona Enes, raramente he achado em alguuma pessoa [...]”.30 No entanto, a partir da escrita lopeana, este amor passa à posteridade como ilegítimo, fora da esfera do matrimônio. Mas essa ilegitimidade e a ênfase na passionalidade do monarca têm um propósito político contundente: possibilitar uma versão que garanta a legitimidade da dinastia de Avis e da eleição de D. João I como monarca. Ao deslegitimar o casamento de Pedro I e Inês de Castro, Fernão Lopes retira a possibilidade de João e Dinis, ilhos do casal, serem os legítimos sucessores do irmão D. Fernando (que morrera sem deixar um varão legítimo, colocando o problema da crise dinástica). Deste modo, os descendentes de Inês são colocados em pé de igualdade com D. João, Mestre de Avis, o qual era apenas um bastardo tido por D. Pedro após a morte da Castro. Portanto, podemos compreender como gênero e política tecem complexas relações a partir do instrumento cronístico de airmação da dinastia de Avis, marcando a masculinidade do monarca D. Pedro I e sua memória ao longo de séculos. “Nom quiserom comsemtir os antiigos, que nenhuum razoado homem, seemdo em sua saúde e emteiro siso, se podesse delle tanto assenhorar o esqueeçimento, que toda cousa notável passada, sempre della nom ouvesse renembramça, allegando aquel claro lume da illosophia de Aristotilles em huum breve trautado que disto compôs”. In: LOPES, Fernão. Crónica de D. Pedro I. Op. Cit., p. 136, 137. 30 Ibidem, Cap. XLIV, p. 199. 29 487 A ORTODOXIA CRISTã E O “OUTRO” NAS ATAS DOS CONCÍLIOS BRACARENSES E NOS ESCRITOS DE MARTINHO DE BRAGA: CONSIDERAçÕES SOBRE UM PROJETO DE MESTRADO Nathalia Agostinho Xavier (Graduanda PEM - UFRJ) Introdução: objeto e problemática No seguinte trabalho, destacaremos em linhas gerais o nosso projeto de mestrado. Com interesse nos escritos eclesiásticos do reino suevo no século VI, observamos, em especial, aspectos da diferenciação entre a religião e a superstição ou a heresia, sendo estas últimas categorias utilizadas para deinir e englobar tudo que não fosse incorporado pela Igreja. Apontamos referências que nos levaram a perceber uma busca pela homogeneização dos dogmas e dos ritos, na incipiente construção de um discurso ortodoxo que, articulado por meio da comunicação entre sedes episcopais, elaborava uma distinção entre o “certo” e o “errado”, regulando a fé. Ou seja, a trajetória de construção de uma ortodoxia poderia promover tanto a inclusão quanto a exclusão de determinadas concepções e crenças, sistemáticas ou não, que eram abreviadas a uma classiicação restritiva. Tais considerações foram inferidas pela leitura de quatro fontes, com as quais será realizado um trabalho de comparação da produção eclesiástica no contexto destacado, centrando-se, principalmente, na igura de Martinho de Braga, abade-bispo de Dume e depois metropolita. Analisaremos dois documentos escritos por ele, sendo o primeiro uma carta de título De Trina Mersione,1 e o segundo o sermão De Correctione Rusticorum.2 Considerando a proximidade MARTINHO DE BRAGA. De Trina Mersione. In: MARTIN DE BRAGA. Obras Completas. Ursicino Dominguez del Val. Madrid: Fundación Universitaria Española, 1990. p. 167-169. 2 MARTINHO DE BRAGA. Instrução pastoral sobre superstições populares. De Correctione Rusticorum. Edição, tradução, introdução e comentários de Aires A. Nascimento, com a colaboração de Maria João V. Branco. Lisboa: Cosmos, 1997. 1 488 destes últimos, respectivamente, com os I e II Concílios de Braga,3 comparamo-los com a produção clerical realizada coletivamente no reino suevo, ressalvando as demandas de seus elaboradores, bem como tendo em vista seus diferentes destinatários.4 No que tange à problemática, preocupamo-nos em demonstrar a possível simbiose entre a ortodoxia pretendida e a formação de uma heterodoxia, como numa relação de identidade/alteridade. De acordo com esta proposição, uma não poderia existir sem a outra, e ambas seriam categorias lexíveis, relacionadas ao lugar de fala dos agentes e dependentes dos contextos especíicos em que estão postas. Investigamos em que medida a deinição e aceitação da doutrina nicena dependeu diretamente da oposição de crenças e interpretações que fossem consideradas errôneas, por meio de juízos de valor. Objetivamos questionar as motivações deste discurso, analisando a associação entre a formação de normas, dogmas e liturgias com um projeto de normatização social e religiosa,5 pertinente a uma organização da instituição eclesial local e seu fortalecimento pela associação com a autoridade monárquica. O cuidado necessário para trabalhar com fontes que destaquem e comentem os costumes “gentis” ou “heréticos” justiica-se com a constatação de que estes eram descritos por uma percepção parcial e depreciativa, relativa a uma concepção ideológica especíica, bem como a empenhos de ordem política. A nosso ver, a legitimação de condutas e valores a partir da exclusão de outros, que fossem apregoados como “errôneos”, reforçava o prestígio da hierarquia eclesial que, associada às autoridades civis, criava uma rede de poderes que se manifestava, principalmente, nas atas conciliares. Em suma, os âmbitos laico e Matinho esteve presente na primeira reunião como bispo de Dume, e presidiu a segunda como metropolita de Braga. Cf.: CONCILIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS. Ed. Jose Vives. Madrid: CSIC. Instituto Enrique Florez, 1963. p. 65-106. 4 A partir daqui nos referiremos ao De Correctione Rusticorum por DCR, à De Trina Mersione por DTM, e às atas por ICB e IICB. 5 Sobre este pressuposto, ver: SILVA, Leila Rodrigues. A normatização da sociedade peninsular ibérica nas atas conciliares e regras monásticas: as concepções relacionadas ao corpo (561-636) – um projeto em desenvolvimento. In: JORNADA DE PESQUISADORES DO CFCH, 6., 2004, Rio de Janeiro. Atas ... Rio de Janeiro: CFCH, 2004. 3 489 clerical partilhavam interesses de estabilização e fortalecimento da Igreja6 e da monarquia, ensejados por meio da cristianização das populações do regnum. Assim sendo, voltamo-nos a um contexto no qual notamos a presença de uma preocupação não apenas com a expansão da fé cristã, mas também com o entendimento desta por aqueles que já tivessem sido batizados.7 Atentamos, cabe ressaltar, para o fato de que nossa dissertação não pretenderá deinir as crenças chamadas supersticiosas ou heréticas, mas sim analisar a sua rejeição. Por esta via, importa-nos observar as implicações de um discurso que, exposto sem réplicas, resumia sob termos generalizantes uma realidade a qual poderia apresentar grande variedade de aspectos e características.8 Notamos, principalmente, como a proscrição e a classiicação negativa do “outro”, logravam gerar uma hierarquização desta sociedade, por conseguinte, fortalecendo a Igreja e legitimando-a como instituição normativa. Considerando desta maneira os intuitos de homogeneização da fé no reino e observando as relações de poder das elites clericais e/ou aristocráticas, percebemos que sua participação no processo de institucionalização da Igreja, também era relativa à monarquia, na medida em que esta também se conigurava como instituição instável em busca de legitimidade. Com efeito, ambas O termo “Igreja” apresenta-se aqui para ilustrar uma instituição que ainda se encontra em processo de organização nos reinos germânicos, não devendo ser entendida como única ou homogênea, a despeito do discurso episcopal “universalista”. 7 Portanto, utilizamos o termo cristianização em detrimento de uma ideia de conversão. Em especial, se consideramos que os destinatários da pregação de Martinho de Braga no DCR eram cristãos batizados e, portanto, convertidos a partir do ritual, mas não necessariamente cristianizados no que tange à absorção de certas noções, principalmente se atentarmos para a presença de batismos infantis como percebemos em sua escrita. 8 Tal perspectiva é pertinente a leituras que inluenciaram esta pesquisa, dentre elas destacamos a da autora hispânica Sanz Serrano. Dentre outros, ver: SANZ SERRANO, Rosa Maria. Hacia un nuevo planteamiento del conlito paganismocristianismo en la Península Ibérica. Revista de ciencias de las religiones, Madrid, n. 0, p. 237-248, 1995; ___. Los paganismos peninsulares. Gerión, Madrid, v. 21, n. 7, p. 39-96, 2003 (Ejemplar dedicado a: Paganos, adivinos y magos: análisis del cambio religioso en la Hispania Tardoantigua), e ___. Sive pagani sive gentiles: El contexto sociocultural del paganismo hispano en la Tardoantigüedad. Gerion, Madrid, v. 21, n. 7, p. 9-38, 2003. 6 490 apoiavam-se mutuamente, pela conluência das motivações e dos interesses lidos nas atas conciliares, mesmo que a partir daquilo não era explicitamente dito e, entretanto, era perceptível pela análise do contexto e pela comparação das fontes, a partir de nossos pressupostos teóricos. Relexões de cunho teórico Tendo em vista nossa perspectiva acerca de uma construção da ortodoxia em detrimento de uma heterodoxia, igualmente construída e de forma simultânea, cabe ressaltar os parâmetros pelos quais entendemos esta relação de identidade/alteridade. Tal como o expõe Tomaz Tadeu da Silva,9 entendemos que a diferença, ou alteridade, não é produto da identidade, mas sim parte do processo de formação de uma. Neste caso, elas são “mutuamente determinadas” e expressamse por meio da linguagem e das representações. Da mesma maneira, concordamos com o autor ao considerarmos que o ato de deinir e classiicar o “diferente” ou o “outro” está associado a uma forma de disputa e/ou legitimação de poder ao buscar a inclusão/exclusão como forma de hierarquização social. Por esta via, sublinhamos o nosso interesse em compreender como as relações de poder entre as elites episcopais e aristocráticas estão inseridas nos discursos de cunho ideológico presentes nos documentos eclesiásticos. Consideramo-los por este prisma, uma vez que estavam vinculados às demandas de grupos especíicos os quais possuem uma proeminência social e econômica e, para tanto, destacamos a noção de ideologia ressaltada por John B. hompson.10 Na obra Studies in heory of Ideology, o sociólogo defende o uso de uma concepção crítica acerca do conceito, que busque menos descrevê-lo como “sistema de crenças/ pensamentos” ou “práticas simbólicas”, do que atentar para sua associação com as relações de dominação nas sociedades observadas. SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.). Identidade e Diferença. A Perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. 10 THOMPSON, John B. Studies in the heory of Ideology. Los Angeles: University of California Press, 1984. 9 491 Para o autor, estudar ideologia é estudar os meios nos quais esta oferece signiicações que atuam a favor da manutenção de uma ordem social,11 pensando nas formas de linguagem que expressam tais signiicações. De acordo com hompson, os métodos de análise do discurso estão intrinsecamente relacionados com a interpretação da ideologia, preocupando-se com a observação de seus conteúdos para um melhor entendimento dos elementos de legitimação do poder.12 O discurso seria, a seu ver, um conceito que auxilia no estudo da relação entre linguagem e ideologia e, em geral, sua análise deveria ressalvar os casos e instâncias de expressão ou comunicação, preocupando-se com as “unidades lingüísticas” e debatendo as relações entre as ações lingüísticas ou não-lingüísticas, dando ênfase mais às questões sociais e aos signiicados do que à forma.13 Desta maneira, pautamo-nos no vínculo entre os aspectos políticos, religiosos e ideológicos, objetivando destacar a inserção das elites num projeto de normatização e controle social que produzia valores a serem propagados como universais, opondo-se às ideias e concepções concorrentes e legitimando a inluência destes grupos frente à sociedade. Tal projeto é pertinente à conversão ao cristianismo niceno pelo monarca e pela nobreza que o acompanhava, denotando um estreito diálogo entre as autoridades civis e eclesiásticas, exposto principalmente nas atas conciliares. Deste modo, a formulação de uma ortodoxia transforma uma identidade em a identidade, e reforça as relações de dominação, uma vez que garante a poucos o poder de deinir, classiicar e excluir o “outro” por meio de parâmetros próprios, forjando uma hierarquização social.14 “(...) porque não podemos estudar ideologia sem estudar as relações de dominação e os meios nos quais estas relações são sustentadas por expressões signiicativas.” (Tradução nossa). THOMPSON, John B. Op. Cit., p. 10-11. 12 No entanto, cabe ressaltar que os estímulos de tais agentes não constituem de maneira alguma um todo homogêneo e inlexível no qual não caberiam contradições, pois as associações entre eles se dão de forma demasiadamente complexa. Entretanto, reconhecemos, a despeito desta airmativa, uma zona de intercessão ou compartilhamento de seus valores e interesses. Cf.: SILVA, Leila Rodrigues. Op. Cit. 13 THOMPSON, John B. Op. Cit., p. 8-9. 14 SILVA, Tomaz Tadeu da. Op. Cit. 11 492 Apresentação das fontes: breves comentários e descrições 1 - O De Correctione Rusticorum e a De Trina Mersione Em nosso trabalho, comentaremos e compararemos dois momentos da produção eclesiástica, centrados na igura de Martinho de Braga. Nosso corpus é composto pela carta DTM e o sermão DCR, assim como, das atas dos I e II Concílios de Braga, as quais utilizaremos com a inalidade de melhor demonstrar as nuances do processo de organização e fortalecimento da Igreja sueva. Na carta enviada a Bonifácio,15 provavelmente entre 556 e 561,16 apresenta-se a questão da fórmula do rito batismal. Em resposta, Martinho de Braga remonta à prática da única imersão, comum nos reinos da Península Ibérica,17 criticando-a. Trata-se de argumentos de cunho teológico, utilizados pelo bispo para defender a tripla imersão, nos quais pretende a conformação com os símbolos doutrinários estabelecidos e aceitos em Roma, concedendo-lhe uma autoridade apostólica, e pretendendo estabelecer uma só liturgia para o batismo a partir desta. Tais incongruências entre ritos e proposições foram possíveis por conta da busca por uma diferenciação entre a perspectiva nicena e o arianismo. Na carta, Martinho de Braga explica que a imersão única no ritual batismal era usada como forma de distinção entre o cristianismo niceno e o arianismo, por querer representar a consubstancialidade divina entre as três hipóstases. Discorda deste uso, airmando que assim, aproximar-se-ia da heresia sabeliana, uma vez que a única imersão poderia signiicar a presença de apenas uma hipóstase, ou seja, concordar que os três nomes – Pai, Filho e Espírito Santo – denominavam a mesma coisa, confundindo as pessoas da Trindade. Tendo em vista a perspectiva teológica de sua escrita e Que bispo ele seria e de que sede é uma pergunta não resolvida pela historiograia. Dentre outros, ver: FERREIRO, A. Martin of Braga, De trina mersione and the See of Rome. Periodicum Semestre Instituti Patristici “Augustinianum”, Roma, v. 1, p. 193-207, 2000. p. 194; SOUSA, Pio B. Alves de. Pensamento de S. Martinho de Dume. In: VILLAR, José R. (Ed.). Communio et sacramentum. En el cumpleaños del Prof. Dr. Pedro Rodríguez. Pamplona: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Navarra, 2003, p. 367-375, p. 369. 16 FERREIRO, Alberto. Op. Cit., p. 196. 17 A questão aparece novamente, no século seguinte, no sexto cânone do IV Concílio de Toledo. CONCILIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS. Op. Cit., p. 191-193. 15 493 sua inserção no contexto de formulação ortodoxa, entrevisto nos debates e na troca de informações entre sedes episcopais, ressaltamos a pertinência desta fonte aos nossos pressupostos. Por outro lado, o sermão DCR, enviado ao bispo Polêmio de Astorga, remonta aos esforços pastorais de controle das práticas e dos valores das populações rurais, visando, portanto, a sua inserção nestes preceitos ortodoxos. Destinando-se, principalmente, a um público de cristãos batizados, a admoestação repleta de descrições especíicas de ritos supersticiosos, parece constituir um “modelo” ou exemplo de ação pastoral que garantisse a supressão destas expressões religiosas e servisse de instrumento aos clérigos que a elas estivessem próximos, minimizando suas possíveis insuiciências.18 Stephen McKenna, um dos pioneiros na produção sobre o tema, procura no DCR não apenas vestígios da “sobrevivência” das superstições, mas também indícios das práticas realizadas pelas populações locais.19 Para tanto, opõe-se a uma produção historiográica que ressaltaria a semelhança entre os sermões de Cesário de Arles, bispo contemporâneo das Gálias, com os escritos de Martinho de Braga,20 citando particularidades da argumentação do último e a divergência entre ambos no que se refere ao tratamento dos “rústicos”. Com efeito, retomamos este debate para levantar a possível presença de topoi literários na obra do metropolita Todavia, tal hipótese não se constitui como obstáculo aos nossos objetivos de análise, uma vez que ao contrário do autor destacado, não buscamos elaborar uma tipologia destas crenças e ritos por intermédio de tais exposições, porém observar as motivações dos clérigos ao rejeitá-las sob termos generalizantes. Neste sentido, concordamos com o que ressalta José Francisco Meirinhos ao dizer: Lê-se insuiciência, cabe ressaltar, não apenas como uma ausência de sucessos na ação pastoral, mas também no que tange os possíveis “desvios” ou sincretismos que pudessem permear as crenças destes clérigos. Ou seja, a obra cristianizadora de Martinho de Braga não se restringia aos laicos, voltando-se também para os comportamentos internos ao corpo eclesiástico. 19 MCKENNA, Stephen. Paganism and Pagan survivals in Spain up to the fall of the Visigothic Kingdom. Washington: he Catholic University of America, 1938. 20 Cita, em especial, os autores Boudriot e Boese. Cf.: MCKENNA, Stephen. Op. Cit., p. 88-107. 18 494 O sermão não é um exercício descritivo de práticas populares, mas usa o impulso destas para estabelecer, com a esperada adesão de seu auditório, um modo de sobreposição, transferência e substituição em que a fé cristã vai ocupar o espaço da crença nas superstições que, segundo Martinho, o rústico deve abandonar.21 Enumerando uma série de transgressões,22 o bispo de Braga utiliza um discurso retórico que demarca o caráter contratual do batismo, uma vez que a perpetuação dos símbolos e ritos supersticiosos ocasionaria a quebra de um pacto com Deus e, conseqüentemente, uma aproximação com o Diabo e seus demônios, os quais ludibriavam os homens ignorantes que os aceitavam e cultuavam. Recorre, assim, à desnaturação, como sublinhada por Le Gof,23 com o intuito de legitimar seus próprios argumentos pela alteração da signiicação da fé alheia, apontada como equívoca. Em síntese, nesta fonte evidenciamos uma tentativa de controle das práticas religiosas e da vivência da fé no cotidiano das populações rurais, destinando-se, principalmente, a um público de cristãos batizados. Para estes, Martinho descreve no décimo terceiro capítulo o propósito evangelizador da vinda de Jesus, cujo objetivo seria relembrar ao homem a existência de um único Criador. No advento da ressurreição, Cristo teria aconselhado aos discípulos para que pregassem e ensinassem àqueles que foram batizados a se afastar das “obras malignas”. Desta forma, a noção doutrinária parece assumir papel secundário, só ocorrendo no momento seguinte ao que marca o rito de iniciação. Portanto, aos clérigos seria designada a tarefa pastoral de deinir com clareza o que pertencia ao cristianismo, e o que era errôneo, para aqueles já convertidos. MEIRINHOS, J. F. Martinho de Braga e a compreensão da natureza na alta Idade Média (séc. VI): símbolos da fé contra a idolatria dos rústicos. In: A.A.V.V.. Estudos em homenagem ao Professor Doutor José Marques. Porto: Editora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006. 4v., V.2. p. 395-414. p. 401. 22 No sermão estas seriam: o assassinato, o roubo, o perjúrio, a fornicação, a embriaguez e o adultério. 23 LE GOFF, Jacques. Cultura clerical e tradições folclóricas na civilização merovíngia. In: LABROUSSE, Ernest et al. Níveis de cultura e grupos sociais. Lisboa: Edições Cosmo, 1974. p. 25-41. 21 495 2 - As atas conciliares bracarenses Os concílios bracarenses realizaram-se, respectivamente, nos anos de 561 e 572. O primeiro, presidido por Lucrécio no decorrer do reinado de Ariamiro, tratou de questões relativas à hierarquia eclesiástica, à uniformização dos ritos e à rejeição da heresia priscilinista que se manifestou fortemente na região da Galiza, relacionando sua inserção no corpus documental aos nossos interesses pela rejeição da referida doutrina. O segundo, presidido por Martinho de Braga, foi assinado por doze bispos e tratou, entre outros, de pontos relativos à hierarquia eclesiástica, o batismo e as superstições. Inclusive, possui cânones voltados, especiicamente, para bispos e presbíteros, proibindo-os de “fazer encantamentos ou ligaduras”,24 “celebrar a missa sobre a tumba dos mortos” ou “levar alimentos para as tumbas dos defuntos”, nem oferecer “sacrifícios em honra aos mortos”.25 Por meio destas normas observamos que a cristianização era promovida segundo os valores morais e religiosos da elite clerical do reino, correspondendo a uma tentativa de organização externa e interna à Igreja. Considerações inais Para concluir o que aqui foi exposto, é pertinente elaborar uma síntese dos nossos propósitos no que tange a continuidade desta pesquisa. Em particular, pretendemos demonstrar nuances do processo de formulação ortodoxa por meio da análise comparativa entre as atas dos concílios bracarenses, o DCR e a DTM. Ressaltamos a relação dos documentos com a incipiente instituição eclesiástica e destacamos a diversidade dos destinatários destas fontes. Enfatizamos tal diferença entre públicos, uma vez que os documentos produzidos no reino suevo foram tanto formulados para e com membros do corpo episcopal, quanto também para clérigos menos bem posicionados na hierarquia eclesiástica e, indiretamente, para os “rústicos”, como observamos no sermão. CONCILIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS. Op. Cit., p. 100101. 25 Ibidem, p. 102. 24 496 Todavia, isto não signiica que tais mensagens não estivessem associadas ao que identiicamos como uma maneira de controle social e religioso, que variava menos em suas motivações que em sua forma ou gênero de narrativa. Cabe relembrar que também temos como objetivo analisar os interesses da elite clerical na formulação de uma ortodoxia, tendo em vista as questões de ordem político-ideológica, a partir das relações de poder entre os agentes envolvidos. Neste sentido, o reconhecimento e a rejeição de crenças e valores no reino suevo estariam relacionados à construção de um discurso ortodoxo por este oferecer um recurso de categorização e hierarquização da sociedade que garantisse a legitimidade da Igreja frente a ela. 497 BALANçO BIBLIOGRÁFICO ACERCA DO DISCURSO ECLESIÁSTICO SOBRE A PESTE DE JUSTINIANO Nathália Cardoso Rachid de Lacerda (Graduanda PEM – UFRJ) Introdução Quando recortamos um objeto para o desenvolvimento de uma pesquisa em História, duas questões opostas se apresentam para os pesquisadores: o grande número de trabalhos sobre dada temática e, nesse sentido, seu suposto esgotamento enquanto estudo passível de novas abordagens e novos esclarecimentos, ou, por outro lado, a carência de um debate historiográico aprofundado, que auxilie e dê suporte à pesquisa. Tanto um caso quanto o outro se constituem como desaios, mas não impossibilitam ou diminuem a importância e os possíveis horizontes do trabalho a ser realizado. Nosso objetivo aqui é procurar transpor uma dessas barreiras – nesse caso as lacunas da historiograia1 acerca da pandemia de peste que acometeu a África, a Ásia e a Europa entre os séculos VI e VIII –2 e, a partir de três elementos que consideramos norteadores do discurso eclesiástico acerca da peste, o pecado, o castigo divino e a penitência, investigar alguns documentos e sintetizar o tratamento historiográico dado à pandemia que icou conhecida como Peste de Justiniano.3 Lançaremos mão também dos verbetes de dicionários sobre a Idade Média, muito esclarecedores para a deinição e o entendimento de algumas noções importantes. Tendo em vista a já iniciada pesquisa para o desenvolvimento da monograia de im de curso, inserida em Existe pouquíssimo material sobre o tema desenvolvido ou traduzido para o português. 2 LITTLE, Lester K. Plague and the end of Antiquity. he Pandemic of 541750. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. 3 Justiniano comandou o Império Romano do Oriente entre 527 e 565 d.C, data de sua morte. 1 498 um projeto da FAPERJ,4 focaremos no reino visigodo toledano, num conjunto de sermões conhecido como “ciclo de peste”, presente no Homiliário de Toledo. Esclarecimentos preliminares A peste que aligiu parte do mundo do século VI ao VIII icou conhecida como Peste de Justiniano por ter atingido, com muita repercussão, o Império Romano do Oriente sob seu governo. É considerada a primeira pandemia do tipo registrada documentalmente na História,5 sendo o historiador oicial contratado pelo imperador, Procópio de Cesárea, um dos primeiros a descrevê-la. Tendo eclodido no Egito, atingiu Constantinopla em 5406 e, provavelmente transportada nos navios comerciantes provenientes da África cartaginesa, alcançou a Europa ocidental pelo Mediterrâneo ainda em meados do século VI.7 Segundo Jose Orlandis, por mais graves que fossem os lagelos da sociedade medieval, nenhum se comparava à peste, que, antes mesmo de se fazer presente, abalava profundamente os ânimos.8 Causada por um bacilo que contamina a pulga do rato, a transmissão da peste bubônica se dá a partir da mordida do inseto. O restrito conhecimento médico da época e a tradição de elucidar os eventos a partir de elementos religiosos, no entanto, abordou a doença de uma maneira particular. A ideia de que ela era um castigo enviado por Deus, justo, pois o homem é pecador e seu Pai precisa ensinarTal projeto intitula-se “O processo de organização eclesiástica e a normatização da sociedade nos reinos suevo e visigodo: perspectivas analítica e comparativa” e é dirigido pela professora Leila Rodrigues da Silva. 5 LITTLE, Lester K. Op. Cit., p. 4. 6 Ibidem, p. 8 7 Entre os documentos latinos que falam da peste destacamos Gregório de Tours em sua História dos Francos e a Crônica de Saragoça, de autor anônimo, bem como um conjunto de quatro sermões presentes no Homiliário de Toledo, os quais nos aprofundaremos melhor neste artigo. 8 ORLANDIS, J. La Peste. In: ___. La Vida en España en tiempo de los godos. Madrid: Rialp, 1991. p. 160-170. 4 499 lhe, era a explicação corrente para manifestações de peste desde a Antiguidade.9 É sintomático, portanto, que praticamente não existam referências a tratamentos a partir de medicamentos ou medidas sanitárias. O corpo eclesiástico elaborou um discurso que explicava e trazia algum tipo de cura para a peste, só possível pela penitência, arrependimento e oração. Pecado, penitência e castigo divino O pecado original, como primeira manifestação de desobediência a Deus, é a gênese de todas as mazelas da humanidade. Todo homem, quando nasce, o contrai, e precisa se penitenciar para garantir a salvação pós-morte. Os pecados são concebidos pelo corpo eclesiástico como uma ruptura com a divindade que traz conseqüências não apenas para o iel, mas também para as relações interpessoais.10 Há, a partir dessa noção, uma busca pelo perdão e pela redenção, o que só é possível por meio do arrependimento e da penitência: o pecador deve confessar detalhadamente suas culpas para que orações, mortiicações do corpo e excomunhão temporária sejam, eventualmente, indicadas pelo bispo.11 Assim, ele poderá se retratar com Deus, consigo mesmo e com a comunidade cristã na qual está inserido. A Igreja, nessa via penitencial que é a existência terrena, é a intermediária entre o Homem e Deus, sendo elemento necessário para garantir, por meio de práticas rituais, que se alcance o Paraíso. Nesse contexto, o terceiro conceito norteador do discurso eclesiástico acerca da peste sobre o qual nos debruçamos é o castigo divino. Ele é deinido pela Patrística a partir dos exemplos das Escrituras e situa-se no binômio erro-castigo. A noção de uma punição merecida, primeiramente apreendida por meio das Escrituras, posteriormente pela formulação intelectual dos chamados “Pais da Igreja”, apóia-se A Antiguidade já relacionava a peste ao castigo divino, mas com pormenores distintos da tradição cristã. GONZALBEZ CRAVIOTO, Enrique. Pestes y pestilencias en la Antigüedad. Historia 16, Madrid, n. 324, p. 38-49, 2003. 10 BURGUIERE, A. Pecado. In: ___. Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993. p. 176-180. 11 DI BERARDINO, Ângelo (Org.). Penitência. In: Dicionário Patrístico e de Antiguidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 1133-1136. 9 500 na concepção de que uma falta humana necessariamente terá uma resposta divina. Essa referência é comumente corroborada pelo clero durante toda a Idade Média. Expostas essas questões, podemos avançar para uma análise do tratamento mais ou menos global dispensado às manifestações de peste ocorridas entre o século VI e o VIII. Na leitura de documentos de tipo e origens variadas, é possível perceber que a produção eclesiástica, massiva maioria dos escritos desse período, é bastante homogênea no que concerne à peste, suas causas e seu tratamento, considerando que há uma preocupação com a manutenção do bem simbólico da salvação,12 bem como com a legitimidade da instituição frente às populações cristãs e a serem cristianizadas. As referências à peste Como dissemos, além dos sermões que sublinhamos e abordaremos no próximo tópico, alguns outros documentos são de fundamental importância para o estudo de nossa temática. As fontes existentes estão, principalmente, em siríaco, árabe, grego e latim13 e, para uma parte delas, possuímos traduções para o inglês, o espanhol ou o francês. Buscaremos abordar aqui três fontes recortadas com o seguinte parâmetro: utilizar diferentes tipos de documentos, uma obra de narrativa histórica, uma crônica e atas conciliares, de distintos autores e origens espaciais. A primeira fonte que analisaremos é a História das Guerras, de Procópio de Cesaréia. Apesar de ser um discurso advindo de um leigo, acreditamos ser uma referência imprescindível por ser muito rica e uma das primeiras a abordar o tema. Procópio foi contratado pelo imperador Justiniano para escrever a história oicial de seu governo, tendo escrito também uma História Secreta, com pormenores extraoiciais. Nesta obra de temas variados, encontramos um trecho que narra uma manifestação de peste. Segundo o autor, ela teria aparecido 12 BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. In: ___. Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 27-78. 13 LITTLE, Lester K. Op. Cit., p. 7. 501 primeiramente no Egito, em 540, próximo ao delta do Nilo, e dali contaminado a Palestina e atingido a cidade de Constantinopla em 542. A doença é descrita como desconhecida e enviada por Deus. Possivelmente, embora não em todos os casos, antecedida por presságios como visões e sonhos sobre um ser sobrenatural humanóide que transmitia o mal,14 os sintomas descritos por Procópio parecem comprovar que essa peste é especiicamente a bubônica.15 Uma das observações mais instigantes do historiador do império refere-se ao trabalho dos médicos e enfermeiros dispostos a tratar os pacientes. Ele airma que estes, devido a seu enorme esforço de caridade, não eram considerados sob o risco de contrair a peste, mesmo estando em constante contato com os enfermos. Com o tempo notou-se que, como sabemos hoje, essa variação especíica da doença (diferente da pulmonar) não é transmissível homem a homem, mas sim pela picada da pulga do rato, contaminada pelo bacilo yersinia pestis. O segundo documento é uma crônica de um bispo da Galiza sueva, do século V, chamado Idácio. Em sua Chronica, ele fornece uma grande quantidade de informações que ilustram a conjuntura de parte deste século. Podemos observar que, nas passagens em que a pestilência é citada, ela está diretamente relacionada ao que o autor descreve como “prodígios”, acontecimentos raros como um cometa ou um tremor de terra que são interpretados pela escatologia cristã como sinais enviados por Deus. Idácio associa a entrada brutal dos germanos no Império Romano do Ocidente com a peste e a fome; ele destaca, numa alusão bíblica, “as quatro pragas”:16 o ferro, a fome, a peste e as bestas. Esse documento pode ser tomado como exemplo da generalização do termo peste, comum desde a Antiguidade. Qualquer epidemia poderia ser assim deinida, residindo aí uma das diiculdades do mapeamento da pandemia de 540-750. RETIEF, François P. e CILLIERS, L. he epidemic of Justinian (AD 442): a prelude to the Middle Ages. Acta heologica, Bloemfontein, n. 7, p. 115-127, 2005. 15 A vítima era acometida por febre seguida de inchaços (bubões) principalmente nas virilhas, axilas e pescoço. Delírios, insônia e vômito com sangue também são descritos como um prelúdio da morte. 16 IDÁCIO. Crônica. Ed. José Cardoso. Braga: Universidade do Minho, 1982. p. 13. 14 502 Os dois últimos documentos são cânones de duas atas conciliares, do XVI e do XVII Concílios de Toledo que, confrontados com os sermões do Homiliário de Toledo, permitem-nos evidenciar eclosões da epidemia na Hispânia visigoda. Cito um trecho do XVI sínodo, presidido por Égica, reunido em 693: Y porque sobreviniendo la devastación de la peste inguinal, los obispos sufragâneos de la sede Narbonense, no han podido en modo alguno acudir a este santo sínodo, mandamos mansedumbre, que todos los obispos de dicha província se reunan en la mencionada ciudad de Narbona com su metropolitano, y leyendo todos los capítulos de este Concílio com vigilante atención, añadas sus irmas por ele orden debido. No XVII concílio, reunido no ano seguinte, dentre outros motivos, para intensiicar a campanha já iniciada contra os judeus, Narbona é novamente alvo da preocupação do rei Égica. As medidas pensadas contra os judeus excluíam os habitantes da província da Gália, já tão devastada por crimes, invasões externas e pela “peste inguinal”. Além dessas duas evidências, a Crônica Mozárabe de 754 também registra a destruição pela peste sob o reinado de Égica. Ao que tudo indica, as manifestações na Península Ibérica foram correntes entre o século VI e o início do VIII. O ciclo “de peste” Esse conjunto reúne, como já mencionado anteriormente, quatro sermões de caráter conjuntural, sendo, segundo Tovar Paz, de procedência hispânica. Os três primeiros sermões do “ciclo” tratam da iminência de uma peste e o último de sua aparição concreta. Cada um, excetuando o quarto, é encerrado com uma conirmatione, que retoma os motivos centrais do discurso. O primeiro sermão, que abre o conjunto, noticia a aproximação de uma enfermidade contagiosa enviada como castigo pelos pecados cometidos e exorta os iéis a fazerem penitência para aplacar a fúria de Deus. Existe nele uma forte preocupação com as medidas a serem tomadas frente ao risco de eclosão da peste; o pregador incentiva os cristãos a abdicarem da 503 apatia e procurarem alívio no sofrimento, abandonando a alegria e o gozo. Mis muy amados hermanos, ved cómo nos ha atemorizado una amarga noticia que nos habla de una peste que asola los conines de nuestra tierra, que nos insinúa una próxima muerte cruenta. Se acerca aquella peste bubónica que, hace tiempo, se nos anunció por nuestros pecados. Ya devasta nuestra tierra y se aproxima con pasos rápidos lo que hervía lejos de nuestras fronteras. Está aquí lo que hace tiempo escuchamos, ya casi nos afecta (…). Salid, os lo ruego, salid del sueño corporal y disponeos a aplacar la furia de la condena divina. Huya el sueño de los ojos, la debilidad de las almas. Retroceda la alegría, huya el gozo. Que sólo el sufrimiento ocupe vuestros corazones, porque ved como nos increpa el furor de la ira divina, porque ya la siniestra muerte pisa nuestros umbrales. O segundo sermão também se refere à aproximação da peste e airma que apenas a verdadeira conversão e a coniança na ajuda e clemência divina podem evitar que ela se manifeste. O autor utiliza uma referência de Agostinho17 para demonstrar que, havendo um real arrependimento demonstrado através da penitência e da conissão, Deus removeria o castigo. Neste sermão percebemos um intenso tom de esperança: pela utilização de uma referência patrística, recurso comum do discurso eclesiástico, está presente a fé no perdão divino. Mis muy amados hermanos, puesto que, con el ejemplo de la destrucción de la ciudad, habéis tenido conocimiento de cómo un pueblo que cree en Dios fue salvado y escapó al cumplimiento de la ruina que les amenazaba, asumid también vosotros un cariño semejante por la confesión, y sufrid ante Dios el dolor In sermone de excidio urbis. A narrativa consiste em um relato de uma cidade sob o risco da fúria divina devido aos pecados cometidos. Segundo Agostinho, graças ao enorme esforço de penitência dos citadinos, Deus remove o castigo. TOVAR PAZ, Francisco Javier. El ciclo “De Peste” de las “Homiliae Toletanae”: Contexto y tradicción. Anuario de estudios ilológicos, Extremadura, v. 16, p. 373-390, 1993. 17 504 más amargo y todos, a coro, con un solo corazón y una sola voz, pedid del Señor perdón. O terceiro sermão retoma em grande parte o que os outros dois explanam, mas neste, junto à penitência e à coniança no divino, há um discurso que estimula os homens a não temerem a morte, pois ela nada mais é que a oportunidade de ir ao encontro de Deus e sua vontade realizada. O discursante aconselha os cristãos no sentido de não blasfemarem nesse momento difícil. Por mais que a morte pela peste não seja desejada, a escatologia cristã deste período não a reveste negativamente. Nesse contexto, o discurso de aproximação com a divindade, mesmo que por meio da morte, garante algum conforto para as almas. Por tanto, si lo que parece lejos, si lo que no deseamos sucede, nadie murmure por eso, nadie se abata, nadie se desespere, ni, en su desesperación, pronuncie lo que no es justo: “¿Qué penitencia nos ha ayudado?, ¿por qué no estamos escapando a la epidemia?” Lejos, lejos de la boca de un cristiano esta blasfemia. En cuantas cosas sucedan en nuestra vida, esté siempre en nuestros labios la alabanza a Dios. Hágase su voluntad sobre nosotros y en nosotros. Pues si recibimos de la mano del Señor los bienes, ¿por qué no vamos a soportar los males? Es nuestro padre. ¿Acaso nos debe amar con halagos y no nos debe advertir con sus represiones? ¿Acaso un padre sólo promete la vida y no imparte enseñanza? O quarto sermão é consideravelmente mais breve que os outros três e possui uma mensagem próxima ao primeiro: situa na penitência e na oração a oportunidade de redenção, pois a epidemia já se faz presente, e exorta os iéis a sofrerem o castigo merecido entre lágrimas. A aceitação do destino quando a peste atinge localidades do reino visigodo, porém, não supõe um abandono da penitência, da oração, do pranto, ou da caridade cristã. Ya comenzamos a soportar el aguijón de nuestra muerte por la epidemia de peste bubónica. ¿Acaso no vamos a poder llorar con amargura? Gimamos, hermanos, con 505 ele in de conjurar el peligro de una mancha tan cruel y superemos con nuestro lamento continuado el daño de esta dolorosa herida. Pasad los días en el dolor y pasad las noches entre llantos. Ocupad las horas de luz con lágrimas permanentes, superad con penitencia el daño de esta epidemia. Dado que hemos pecado tanto, suframos en la misma medida. O “ciclo de peste” e a historiograia Existem algumas discrepâncias historiográicas em relação à peste na Hispânia da Primeira Idade Média, principalmente no que se refere à datação18 e a pormenores da composição do Homiliário de Toledo. Concentraremo-nos aqui em confrontar três autores que analisam os quatro sermões do Homiliae Toletanae,19 sendo eles Francisco Javier Tovar Paz, que providenciou uma tradução crítica para o espanhol,20 Michael Kulikowski, que anexou a tradução feita por Anna Langenwalter,21 do Centre for Medieval Studies da Universidade de Toronto, ao seu artigo intitulado Plague in Spanish Late Antiquity22 e Jose Orlandis, que traduziu e comentou alguns trechos do que chama de homilias visigóticas “de Clade”,23 que estamos identiicando como ciclo “de peste”, seguindo o termo utilizado por Tovar Paz. Até o momento, apenas esses três autores analisaram de maneira um pouco mais aprofundada a documentação em questão. Tovar Paz e Kulikowski lançam mão da obra de Orlandis, a mais antiga, mas o segundo não faz referência ao primeiro, cujo estudo acerca do tema é anterior. Kulikowski sublinha o quão subexplorados Nesse sentido, a arqueologia vem sendo uma ferramenta bastante útil. Também conhecido como Homiliarium Toletanum. 20 TOVAR PAZ, Francisco Javier. Op. Cit. 21 Tanto a tradução para o espanhol, quanto a para o inglês foram feitas a partir de GRÉGOIRE, R. Les Homéliaires du Moyen Âge: inventaire et analyse dês manuscrits. Roma: s.n., 1966. p. 214-223. Os dois autores traduziram os mesmos trechos da fonte. 22 LITTLE, Lester K. Op. Cit., p. 160-170. 23 Buscar referencia. No original em latim lemos sermones de clade. 18 19 506 são esses sermões,24 bem como o é o Homiliário como um todo e a Peste de Justiniano de maneira mais geral.25 No que diz respeito aos três elementos fortemente presentes nos sermões - a peste, o pecado e o castigo divino – a historiograia é unânime: o discurso eclesiástico os relaciona de maneira direta. No que concerne às pequenas diferenças entre os três autores em questão, apenas Orlandis levanta a hipótese de que esses sermões seriam úteis para vislumbrarmos o estado de ânimo da população e nos aproximarmos da vida cotidiana da Hispânia desse período. Ele utiliza diversos exemplos de documentações mais ou menos contemporâneas às homilias visigóticas de “clade” para airmar um contexto bastante geral de peste, presumindo que esses sermões ressoaram em muitas igrejas nos séculos visigodos, tendo sido, inclusive, propositadamente concebidos para preparar a população para o possível lagelo, já noticiado em outras localidades e conhecido na Península Ibérica. Kulikowski corrobora com essa idéia, airmando que os sermões sobre a peste foram incluídos no homiliário porque se esperava, em meio à conjuntura, que viessem a ser necessários. Orlandis também é o único dentre os três aqui destacados que airma que a peste, junto com outros fatores, foi um dos grandes motivos da desintegração da sociedade espanhola do período, tendo sido extremamente fatal em ins do século VII em comparação ao VI. Kulikowski, por sua vez, ressalta as diiculdades de tais airmativas devido ao pequeno corpo de evidências que possuímos. Nosso acesso ao assunto se dá apenas por meio de textos provenientes da elite eclesiástica, ou seja, são de caráter unilateral. Além disso, segundo ele, mesmo lançando mão da arqueologia,26 que nos traz cada vez mais possibilidades, ainda é consideravelmente complexo apreender o impacto das manifestações de peste na vida prática dos habitantes da península. LITTLE, Lester K. Op. Cit., p.155. LE GOFF, J; BIRABEN, J-N. La peste dans de Haut Moyen Âge. Annales, Économies, Sociétés, Civilisations. Paris, v. 24, n. 6, p. 1484-1510, 1969. 26 Kulikowski também é o único a abordar a arqueologia como promissora para os estudos acerca das manifestações de peste na Primeira Idade Média, o que não é abordado por Tovar Paz ou Orlandis. 24 25 507 No que diz respeito à organização de parte do homiliário ou até de sua totalidade, Tovar Paz é o único que levanta duas hipóteses de autoria: Julian de Toledo e Ildefonso de Toledo, mas não entra em pormenores acerca dessa atribuição. Ele procura também deinir para qual surto especiicamente o “ciclo” teria sido composto, enquanto Kulikowski e Orlandis parecem acreditar que o conjunto foi pensado devido a diversas manifestações, devendo ser utilizado sempre que preciso. Considerações inais Percebemos que a conjuntura de peste é utilizada, muitas vezes, para reforçar as instituições cristãs, não dissimuladamente, mas como resposta às questões daquele contexto histórico. O processo de consolidação da instituição eclesiástica pode ser compreendido a partir da importância da caridade e da presença dos iéis na igreja, se confessando, assistindo a missa e orando em conjunto. A Igreja, por meio de um apoio social e espiritual oferecido aos homens, acaba por reforçar sua legitimidade frente à sociedade, garantindo uma inluência permanente no cotidiano desses homens. Notamos então, a partir da leitura de diversas fontes do período e pela análise historiográica, essa constante preocupação do corpo eclesiástico com trazer e manter o homem na Igreja, sublinhando a importância da congregação dos iéis para evitar o desastre. Os quatro fragmentos destacados dos sermões do “ciclo de peste”, presentes no Homiliário de Toledo, devem ser pensados inseridos em um modelo de discurso eclesiástico em relação à peste. A origem, as causas e o tratamento para essa enfermidade, bem como diversas outras que assolaram a Idade Média, situam-se no plano religioso: um castigo divino enviado aos homens devido à sua conduta pecaminosa só poderia ser evitado ou amenizado por meio da penitência. A singularidade da peste bubônica, no entanto, parece estar está no assombroso terror que ela causava aos homens, devastando os territórios por onde passava. 508 A MORALIZAçãO SEXUAL DE CLÉRIGOS EM CASTELA MEDIEVAL: REFLEXÕES A PARTIR DE UMA CANTIGA DE SANTA MARIA Nathália Silva Fontes (Graduanda PEM – UFRJ) Neste artigo tenho como objetivo apresentar um ponto especíico da minha pesquisa monográica, que está vinculada ao projeto coletivo Hagiograia e História: um estudo comparativo da santidade, do qual faço parte como bolsista de Iniciação Cientíica com apoio inanceiro da FAPERJ, desde fevereiro de 2011, sob o eixo de pesquisa dos Discursos de Gênero. Tal projeto coletivo, bem como a pesquisa individual aqui apresentada, estão sob coordenação e orientação da Professora Doutora Andréia C. L. Frazão da Silva, e ambos estão vinculados ao Programa de Estudos Medievais da UFRJ. Em primeiro lugar, é preciso deinir o termo hagiograia, o qual, segundo a professora orientadora desta pesquisa, consiste num texto cuja “temática central é a biograia, os feitos ou qualquer elemento relacionado ao culto de uma pessoa considerada santa”.1 Em outras palavras, um texto que contém a vida, as realizações e as características do culto de um venerado, ou seja, pessoa que foi cultuada em determinado momento ou região, é considerado uma hagiograia. Logo, as Cantigas de Santa Maria estão inseridas nesta deinição, pois o tema central deste conjunto de poemas são os milagres e o culto mariológico. No eixo de pesquisa dos Discursos de Gênero, ao qual se insere este trabalho, são investigados os discursos difundidos pelos hagiógrafos que explicavam as diferenças sexuais e normatizavam os comportamentos de homens e mulheres. Neste estudo, é aplicada a categoria gênero como desenvolvida por Joan Scott, na qual “gênero signiica o saber a respeito das diferenças sexuais”, e este saber segue SILVA, Andréia C. L. Frazão da. Hagiograia. Disponível em http://www.ifcs. ufrj.br/~frazao/hagiograia.htm . Acesso em 09 de maio de 2011. 1 509 o conceito de Michel Foucault, e signiica a “compreensão produzida pelas culturas e sociedades sobre as relações humanas, no caso, relações entre homens e mulheres”.2 O documento que será analisado é um dos poemas que compõem as Cantigas de Santa Maria, compilação de 420 canções em galegoportuguês, língua singular da lírica ibérica naquele momento, reunidos no início da década de sessenta do século XIII, com ilustrações e notações musicais.3 O coordenador e também autor de algumas cantigas foi Alfonso X, o sábio, que reinou sobre Castela entre 1252 e 1284.4 Há quatro códices preservados com manuscritos desta obra, todos ainda do século XIII: o Códice de Toledo (To ou Tol), que contém a primeira redação da obra, com 100 cantigas, e estava primitivamente na Biblioteca do Cabido de Toledo, mas hoje é guardado na Biblioteca Nacional, em Madrid; Códice j.b.2 (E), o qual possui a redação mais vasta, com 402 cantigas e está na biblioteca de El Escorial; o Códice T.j.1(T), com originalmente 200 cantigas, mas somente 195 em bom estado, também guardado no Escorial e o Códice F, que icou incompleto com a morte de Alfonso X em 1284, contendo 104 cantigas e conservado na Biblioteca Nazionale em Florença.5 Além de cantigas-prólogo e textos de encerramento, as cantigas são diferenciadas em loores, distribuídas de dez em dez, e os miragres, em número maior e de caráter narrativo, categoria na qual está inserida a cantiga aqui analisada.6 SCOTT, Joan Wallach. Prefácio a Gender and politics of history. Cadernos Pagu, Campinas, n. 3, p. 11-27, 1994. Disponível em http://www.pagu.unicamp.br/sites/ www.pagu.unicamp.br/iles/pagu03.02.pdf Acesso em 10 de setembro de 2011. 3 PIZZORUSSO, Valeria Bertolucci. Cantigas de Santa Maria. In: LANCIANI, Giulia e TAVANI, Giuseppe. (Orgs.). Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa. Lisboa: Caminho. 1993. p. 142-147. 4 SILVA, Andréia C. L. Frazão da (Coord.). Hagiograia e História: banco de dados das hagiograias ibéricas (séculos XI ao XIII). Rio de Janeiro: Pem, 2009. 4v. V.1, p. 26. Disponível em http://www.ifcs.ufrj.br/~frazao/hh1.pdf . Acesso em 10 de outubro de 2011. 5 METTMANN, Walter (Ed.). Cantigas de Santa Maria. Coimbra: Universidade de Coimbra. 1959. 4v. V.1. p. 7. 6 PIZZORUSSO, Valeria Bertolucci. Op. Cit., p. 143. 2 510 Para esta apresentação foi selecionada a Cantiga CLI, Sempre’ a Virgem, transmitida no Códice E (j.b.2) do Escorial,7 e cuja temática principal é a narrativa sobre um clérigo, que embora louvasse a Santa Maria, praticava o pecado da luxúria. Será aplicada a análise da narrativa nesta composição para interpretar as enunciações, com ênfase no levantamento de dados referentes à sexualidade e ao gênero. Logo no início da Cantiga citada, o clérigo deita-se com sua barraganha, mas ao observar, pelas frestas do local em que estava, a igreja de santa Maria, deixa a mulher. No entanto ele retorna, e, ao ser indagado por ela, explica que não consegue manter relações sexuais devido à visão das luzes da igreja, como lemos no seguinte trecho: “«Porque da Virgen beita [bendita], Santa Maria, a ssa eigreja catara [olhara]; mas serra,» diss’ el, «as estras [aberturas] con portas e con esteiras, que a eigreja non possa veer nen sol end’ as beiras.»”.8 A barraganha, então, fecha as issuras do local. Quando ambos tentam deitar-se novamente, um vento forte desfaz o trabalho da mulher e foi-lhes possível ver a igreja e suas luzes. Com esta visão, o clérigo se arrepende de seus pecados e ingressa na vida monástica. Já como monge, ele sofre uma falsa acusação de furto, da qual é liberto por intermédio de Maria.9 Sobre o clérigo, personagem central desta narrativa, é destacada a sua idelidade à Santa Maria, ao honrar sua igreja e guardar suas festas, no entanto, ele comete luxúria ao manter relações amorosas com várias mulheres, como apresenta a cantiga: “e casadas e solteyras, nen virges non queria leixar, nen monjas nen freiras”.10 Um clérigo por deinição é alguém que recebeu uma Ordem Sagrada, que pode ser uma ordem maior (na qual estão inseridos subdiáconos, diáconos, padres e bispos) ou menor (funções como de exorcista, acólito, leitor, porteiro, salmista e chantre).11 Embora a cantiga omita maiores 7 No códice T (T.j.1 do Escorial) há ilustrações correspondentes à cantiga CLI, mas esta cantiga não está presente, devido a uma lacuna neste códice em conseqüência da falta de folhas. METTMANN, Walter (Ed.). Op. Cit., p. 19. 8 METTMANN, Walter (Ed.). Op. Cit., V. 2. p. 138-139. 9 Idem. 10 Idem. 11 SCHMITT, Jean-Claude. Clérigos e leigos. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2002. 2v. V.1. p.237-251. 511 detalhes, é possível supor que este agente não pertencia a nenhuma Ordem Religiosa, portanto não izera votos de castidade, e também que se tratava de uma orientação moral aos integrantes da ecclesia de forma geral, tendo em vista que a regra do celibato era incentivada aos bispos e padres desde os primeiros séculos, e imposta pelo menos às Ordens maiores durante este período.12 Outra personagem importante é a barraganha, que mostra um tipo de parceria sexual comum no século XIII. A barragania consistia numa relação entre solteiros, de caráter estável, mas sem as formalidades do matrimônio.13 A barraganha desta narrativa tem como ação principal impedir que as luzes da igreja atrapalhem novamente seu encontro, pois as mesmas parecem afetar a consciência e a virilidade do clérigo. Por im, é preciso destacar a ação da Santa Maria neste enredo, que é lembrada em alguns momentos como a mãe de Cristo e de Deus, e sempre cuida de seus devotos, mesmo quando eles estão em pecado. Desta maneira, a Virgem é responsável pela mudança na vida do clérigo, que escolhe a reclusão do mosteiro, e a Santa continua a livrá-lo do mal quando é injustamente suspeito de furto. Embora discussões sobre o comportamento sexual, como a proibição do casamento aos clérigos, estarem presentes em concílios desde o século IV, como o de Elvira (300 – 306) e Nicéia (325),14 a imposição rigorosa da regra de celibato ocorreu a partir do século XI com a chamada reforma gregoriana,15 o que foi reairmado no IV Concílio de Latrão (1215). As regras deste concílio repercutiram na Península Ibérica na primeira metade do século XIII, aumentando 12 Idem. SÁNCHEZ HERRERO, José. Amantes, barraganas, compañeras, concubinas clericales. Clío&Crímen: Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango, Durango, n. 5, 2008, p.106. Disponível em http://www.durango-udala. net/portalDurango/RecursosWeb/DOCUMENTOS/1/0_520_1.pdf . Acesso em 10 de setembro de 2011. 14 MIGUEL, Nicasio Salvador. Soltería devota y sexo en la Literatura Medieval (Los Clérigos). Disponível em http://dialnet.unirioja.es/servlet/ichero_ articulo?codigo=595382&orden=0 . Acesso em 10 de outubro de 2011. 15 SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit. 13 512 as preocupações com os casos de barragania clerical. Assim, concílios locais como o de Valladolid (1228), conirmam estas disposições e impõem aos clérigos pecadores a suspensão do ofício e benefício e às mulheres seria vetada a sepultura eclesiástica e a herança dos bens do clérigo, algo proibido também aos ilhos desta união ilegítima, que também seriam impedidos de seguir carreira eclesiástica.16 Determinações semelhantes reapareceram em outros concílios locais ainda no século XIII, como o concílio de Lérida (1229) e o de Leão (1267).17 A barragania era tolerada e regulamentada por leis, como as Siete Partidas, compiladas também por Alfonso X, mas tal prática era vedada aos clérigos: “... todo ome que non fuesse embargado de Orden,18 o de casamiento, puede auer barragana, sin miedo de pena temporal”.19 Desta forma, estas leis corroboravam com as resoluções da Igreja, consideravam as relações de clérigos com barraganhas pecado de luxúria e mantinham a suspensão de ofício e benefício determinada pelos concílios, além de recomendar aos paroquianos não receber sacramentos ou ouvir as Horas de clérigos envolvidos com mulheres, as quais também tinham punição prescrita nas Partidas: “la muger que desta manera biuiere con el Clerigo, deue ser encerrada en un Monesterio, que faga y penitencia por toda su vida”.20 GUZMÁN, Ana Arranz. Celibato eclesiástico, barraganas y contestación social en la Castilla bajomedieval. Espacio, tiempo y forma. Serie III, Historia medieval, Madrid, n. 21, p. 13-39, 2008. Disponível em http://dialnet.unirioja.es/servlet/art iculo?codigo=2982406&orden=250766&info=link . Acesso em 13 de outubro de 2011. 17 MIGUEL, Nicasio Salvador. Op. Cit. 18 Na edição das Partidas utilizada, há uma nota que sugere tratar-se das Ordens sagradas em geral. Tendo em vista que em outras leis há referencia explícita contra a nicolaísmo, entendo aqui que os clérigos estão inclusos nos limites da barragania expostos neste trecho. 19 ALFONSO X, Rey de Castilla. Las siete partidas... Partida IV, título XIV, lei II. Edición de José Berní y Catalá. Valencia: Imprenta de Benito Monfort, 1767. Disponível em http://saavedrafajardo.um.es/WEB/HTML/iniciop.html?Open . Acesso em 10 de novembro de 2011. 20 Ibidem, Partida I, título IV, lei XLIII. 16 513 Outro aspecto da sociedade do medievo relevante para a interpretação desta cantiga é a associação, de forma indireta, da Virgem com a própria Igreja no texto. O corpo de Maria, que gerou Cristo sem a mácula do pecado, foi apresentado por Ambrósio de Milão e por clérigos depois dele como a imagem da pureza da Igreja, que deve ser defendida das torpezas do mundo. “E do mesmo modo que Maria dá à luz o corpo de Jesus virginalmente, a Igreja é a mãe que reproduz o corpo social pela virtude do Espírito”.21 Tais determinações podem ser observadas em alguns momentos da narrativa, na importância das honras do clérigo à igreja da Virgem, na visão da mesma igreja para conscientização do pecado e, no segundo momento da cantiga, quando o clérigo escolhe a Santa e a vida monástica em detrimento da barraganha, acatando as resoluções da Igreja e as leis régias. Neste sentido, pensando a partir da categoria gênero, a interferência da Virgem no momento da falsa acusação de furto mostra uma compensação pela escolha efetuada, pois a Santa Maria, diferente das mulheres comuns, tem o poder de proteger e livrar do mal os seus devotos, e desta forma o clérigo airma a distinção de seu estatuto rejeitando a sexualidade.22 Como este texto foi produzido pela monarquia castelhana, é possível deduzir que o poder régio apoiava a Igreja na imposição do celibato aos clérigos, resolução esta que determinava diferenciação e certa dominação, pois tal regra estabelecia uma moral rígida e um controle sobre o comportamento dos clérigos. O que podemos apreender desta Cantiga, a partir de uma análise pautada nos discursos de gênero, é a apresentação de uma disputa entre dois tipos de amor, o carnal da relação ilegítima com a barraganha, que deixa o clérigo em situação de pecado, e o amor espiritual de Maria, que eleva o clérigo a uma nova experiência religiosa – o monacato – e posteriormente o salva de uma acusação mentirosa. É possível observar como estas duas iguras femininas são diferenciadas devido às suas relações com a sexualidade: a barraganha é vista de maneira negativa na Cantiga, pois induz ao pecado. Em contrapartida BASCHET, Jérôme. A Igreja, corpo espiritual. In:___. A Civilização Feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. p. 420-423. 22 Idem. 21 514 a Virgem Maria atua como redentora, pois devido a sua intervenção o clérigo acaba por disciplinar-se segundo a moral corrente, apesar de seus pecados de luxúria. É possível perceber também como a Cantiga aqui exposta foi utilizada como um instrumento de moralização das práticas sexuais, corroborando com as reairmações de celibato aos sacerdotes pela Igreja. Tal norma também permitia aumentar a distinção entre clérigos – cujo dever seria abandonar os laços da carne e cuidar da reprodução espiritual da sociedade – e laicos – destinados ao matrimônio e a reprodução corporal.23 Além disso, é preciso reletir sobre o fato do rei Alfonso X colaborar com as intenções da Igreja Oicial e usar as Cantigas de Santa Maria como instrumento de difusão de tais determinações. É necessário lembrar que no século XIII as monarquias de base territorial estavam em fase de organização no Ocidente, logo, o reinado de Alfonso X estava situado num momento de consolidação das monarquias medievais, bem como de desenvolvimento de teorias políticas legitimadoras de tais formas de governo.24 No caso especíico das relações entre Castela e a Igreja, é estabelecido no século XIII as origens da formação de um espaço laico, possuidor de sua própria legitimidade. No entanto, este processo em Castela não desencadeou conlitos, pois não se pretendia excluir a presença eclesiástica no exercício da política, mas apropriar-se dela, para dar ao poder real determinada legitimidade particular, que evitava dependências excessivas do poder eclesiástico, procurando potencializar os mecanismos de controle sobre o clero.25 Logo, a moralização do comportamento sexual dos clérigos também BASCHET, Jérôme. A imposição de um modelo clerical do casamento. In: _____. Op. Cit., p. 448-451. 24 SILVA, Andréia C. L. Frazão da. Hagiograia e Poder nas sociedades ibéricas medievais. Biblioteca Gonzalo de Berceo, 2001. Disponível em http://www. vallenajerilla.com/berceo/frasaodasilva/hagiografiaypodersociedadesibericas. htm#_ftn20 . Acesso em 02 de outubro de 2011. 23 25 NIETO SORIA, José Manuel. El poder real como representación en la monarquía castellano-leonesa del siglo XIII. Res publica, Madrid, n. 17, p. 81-104, 2007. Disponível em http://revistas.um.es/respublica/article/ view/60641/58421 . Acesso em 10 de setembro de 2011. 515 era interessante ao poder régio como parte de um mecanismo de controle dos membros da Igreja. Neste sentido, tendo em vista as relações de gênero como uma forma primária das representações de poder, a Santa Maria, associada à Igreja e a monarquia, torna-se a igura redentora do clérigo pecador, numa inversão simbólica das relações vigentes na época entre masculino e feminino. Finalmente, espero com este artigo mostrar como a análise da narrativa, no âmbito da categoria gênero, pode ser utilizada na interpretação de documentos, especialmente quando os mesmos tratam de temas considerados íntimos ou cotidianos no contexto contemporâneo, como a sexualidade, a im de perceber uma dimensão distinta destes mesmos temas em outra conjuntura espacial e temporal. 516 MERCADORES, PASTORES, TIMONEIROS: CONSIDERAçÕES SOBRE O PODER ECLESIOEPISCOPAL NA ADMOESTAçãO DE CESÁRIO DE ARLES (502-542) Paulo Duarte Silva (Doutorando PEM – PPGHC – UFRJ)1 “com toda humildade e reverência vos presumo oferecer, como capazes e eicientes mercadores de Cristo, pérolas do Senhor” (Cesário de Arles, sermão 1.1) “Muitos nomes são aplicados aos bispos adequadamente: somos chamados pastores, timoneiros...” (Cesário de Arles, sermão 1.19) Considerações iniciais Nas últimas décadas, medievalistas e pesquisadores da Antiguidade Tardia tem se dedicado a investigar o processo de ampliação das atribuições cívicas, doutrinais e litúrgicas dos bispos em suas respectivas comunidades cristãs, ocorrido entre os séculos III e VIII.2 Ao partirmos desta premissa, vinculamo-nos assim a um campo de estudo consolidado, dos quais o Programa de Estudos Medievais (PEM-UFRJ) vem a ser um dos principais representantes no país.3 Pesquisador do Programa de Estudos Medievais (PEM-UFRJ), doutorando PPGHC/UFRJ, bolsista FAPERJ. Este artigo remete a duas apresentações prévias nas quais investigamos a caracterização do ofício episcopal nos escritos de Cesário, especialmente a partir do sermão 230 e de atas de concílios presididos pelo bispo. 2 VAN EGEN, John. he Christian Middle Ages as an Historiographical Problem. American Historical Review, Blomington, v. 91, n. 3, p. 519-52, 1986. p. 5324; RAPP, Claudia. Holy Bishops in Late Antiquity: he Nature of Christian Leadership in an age of transition. Berkeley, Los Angeles, Cambridge: University of California, 2005. p. 6-16. 3 Entretanto, nossa pesquisa de doutorado aborda um dos aspectos menos explorados neste âmbito, a saber, o processo de organização do calendário litúrgico dos quais então se encarregaram os bispos. Vinculada à Nova História Política tal como 1 517 Conforme dito, nestas linhas examinamos o sermão 1 atribuído ao corpus de Cesário.4 Intitulado como Admoestação de um humilde pecador dirigida a todos os santos e clérigos ou como Admoestação do bispo São Cesário, esse sermão foi atribuído ao bispo arlesiano por Malnory (1894) e veio a iniciar a série de sermões da edição de Germain Morin para a obra completa cesariana. Composto de 21 capítulos, o texto exorta os clérigos e, sobretudo, os bispos à pregação, além de deinir as principais características do ofício episcopal, delineando a origem de seu poder e delimitando os limites de sua atuação. Devemos atentar para duas de suas peculiaridades: em primeiro lugar, quando confrontado com o restante dos sermões que lhe são atribuídos, este destoa por ser muito mais extenso; além disso, aventaapresentada por Aline Coutrot e à História da Igreja, em especíico. COUTROT, Aline. Religião e Política. In: RÉMOND, René. (Org.). Por uma História Política. Rio de Janeiro: UFRJ-FGV, 1996. p. 331-63, p. 331-6; VAN EGEN, John. Op. Cit., p. 522; MITRE FERNANDÉZ, Emilio. Historia Eclesiástica e Historia de la Iglesia. In: MARTÍNEZ SAN PEDRO, Maria D.; SEGURA DEL PINO, María D. (Orgs.). La Iglesia en el mundo medieval y moderno. Almería: Instituto de Estudios Almerienses, 2004, p. 13-28. Nossa pesquisa ainda toma de empréstimo os conceitos da teoria sociológica de Pierre Bourdieu, notadamente as noções de habitus, campo e poder simbólico, às quais se soma a noção de calendário de Jacques Le Gof. LE GOFF, Jacques. Calendário. In: ___. História e Memória. Campinas: Unicamp, 1996. p. 485-533. Nossa relexão se fundamenta na comparação entre os sermões pascais e natalinos produzidos pelos bispos Leão de Roma (440-461) e Cesário de Arles (502-542). Para os textos de Pierre Bourdieu, cf.: BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983; ___. Razões Práticas sobre a Teoria da Ação. Campinas, SP: Papirus, 1997; ___. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2003; ___. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Berthand, 2005; ___, EAGLETON, T. A doxa e a vida cotidiana: uma entrevista. In: ZIZEK, Slavoj. (Org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contrapontos, 1996. p. 265-77. 4 Quanto à Cesário, sabe-se de sua origem aristocrática e de sua estadia no mosteiro de Lérins, destacado centro intelectual e ascético do sul da Gália. Após ser eleito como bispo de Arles – destacada sede da região – teve de se defrontar com clérigos locais ressentidos com sua ascensão e com os interesses de outras dioceses, questões agravadas pela sucessão de forças germânicas hegemônicas na região entre 508 e 536. Além de sua notória atuação predical, seu episcopado é diretamente relacionado à presidência de concílios na Provença, antiga Gallia Narbonensis romana – nos quais se decidiam questões disciplinares, teológicas e, sobretudo, litúrgicas – e à construção de um mosteiro feminino em Arles. 518 se a possibilidade de se tratar de uma epístola e não propriamente de um sermão.5 A nosso ver, as proximidades entre este texto e o sermão 2306 nos levam a considerá-los como documentos similares: além disso, a relativa luidez do gênero sermônico e sua proximidade, entre outros, do gênero epistolar7 nos obriga a considerar o sermão 1 no âmbito do projeto pastoral e predical de Cesário. Com frequência associado a um evento litúrgico, o sermão é dirigido à audiência por um intérprete da palavra divina – isto é, por uma autoridade religiosa –, exortando tópicos ligados à fé ou moral de alguma relevância aos ouvintes, partindo com frequência dos textos bíblicos. Interessa-nos destacar, a seguir, os seguintes aspectos: a) a deinição do poder episcopal e os meios de coerção para a atuação dos bispos; b) o destaque dado à pregação e as leituras divinas no sermão.8 MUELLER, Mary M. (Ed.). Caesarius of Arles: Sermons: fathers of the Church. Washington: Catholic University of America, 1964. v. 31. p. 3, nota 1. Utilizaremos a tradução em inglês do sermão de Cesário feita por Mary Mueller, combinada à edição bilíngue de Marie-José Delage. DELAGE, Marie-José. (Ed.). Césaire d´Arles: Sermons au people, tome I (Sermons 1-20). Paris: Du Cerf, 1971. (Sources Chrétiennes, v. 175). p. 218-77. Com frequência associado a um evento litúrgico, o sermão é dirigido à audiência por um intérprete da palavra divina – isto é, por uma autoridade religiosa –, exortando tópicos ligados à fé ou moral de alguma relevância aos ouvintes, partindo com frequência dos textos bíblicos. Certos de que devemos ponderar sobre a lacuna existente entre o desempenho oral e gestual na performance da pregação e a produção escrita materializada no sermão, deinimos os sermões ou homílias como “dimensão textual de um discurso catequético ou admoestatório constituído a partir de um tema ou tópico não necessariamente sustentado pelas sagradas escrituras” MUESSIG, Carolyn. Sermon, Preacher and society in the middle ages. Journal of Medieval History, Oxford, v. 28, p. 73-91, 2002. p. 77 (tradução nossa). 6 Intitulado Da consagração do bispo. 7 KIENZLE, Beverly M. he Typology of the medieval Sermon and its development in the Middle Ages: Report on Work in progress. In: HAMESSE, J., HERMAND, X. De L´Homelie au Sermon: Histoire de la Predicación Médiévale. Louvain: Université Catholique de Louvain, 1993. p. 83-102. p. 86. 8 Por conveniência, oferecemos a nossa tradução dos trechos incluídos no artigo. Além disso, a partir de agora mencionaremos os sermões pela sigla s., os concílios pela sigla c. 5 519 Clérigos e bispos Um dos aspectos mais marcantes da prédica de Cesário reside na ênfase com que o autor destaca a atuação clerical e, em especíico, o ofício episcopal. Nas primeiras linhas, ao explanar com protocolar humildade que não pretende falar como um “mestre a ensinar aos seus pupilos” (s. 1.2), o bispo arlesiano destaca que sua admoestação oferece pérolas do Senhor aos clérigos – sendo estes, como vimos, “capazes e eicientes mercadores de Cristo” (s. 1.1). A associação entre o bem de salvação sob o cuidado dos clérigos e o investimento monetário – neste caso, remetendo ao investimento espiritual – encontra-se também no s. 230.6, que associa o “talento” especíico dos bispos à manipulação das “moedas espirituais do Senhor”.9 Gestores de um bem de salvação a ser investido na comunidade de iéis, os bispos são descritos ainda como “pastores”10 e “timoneiros”. Airma Cesário que: Se somos verdadeiramente pastores, devemos prover pastagem espiritual ao rebanho do Senhor [cf. s.1.11]. Se somos timoneiros, com a ajuda de Deus devemos conduzir a nave da Igreja em meio às ondas desta vida, (...), de modo que sem erros possamos adentrar no porto do paraíso, (...) após todas as ondas e tempestades. (s. 1.19). Recuperando o sentido mais remoto do termo episcopos em grego – qual seja, de supervisor e provedor –,11 Cesário airma que a “posição superior” (s. 1.19) dos bispos lhes cobra maiores responsabilidades: uma vez que foram “apontados pelo Senhor” (s. 1.19, cf. s. 1.6; s. 230.2,3,5) os prelados devem conduzir a nave da Igreja sem tribulações. Em uma alusão às parábolas do talento e das minas descritas respectivamente em Mt. 25: 14-30 e Lc. 19: 11-27. Para os textos bíblicos usamos: GORGULHO, Gilberto da S., STORNIOLO, Ivo, ANDERSON, Ana F. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2006. 10 Remetendo a Ez. 34:1-31. 11 RAPP, Claudia. Op. Cit., p. 25-27. 9 520 a menos que os timoneiros da Igreja com toda vigilância ensinem, atemorizem, algumas vezes censurem, eventualmente punam levemente, por vezes ameacem o dia do julgamento com severidade, e então mostrem como manter o caminho da vida eterna, deve-se temer que recebam julgamento onde poderiam ter um remédio (s. 1.19). A condição excepcional dos bispos é asseverada em outros trechos da prédica. Cesário airma que os bispos são as “luzes do mundo”, cuja iluminação pela doutrina afasta da escuridão dos erros e do abismo do pecado (s. 1.16).12 O bispo arlesiano também associa aos bispos uma peculiar origem etimológica para a expressão grega agios (“sagrado”) que signiicaria literalmente “não da terra” (s. 1.19):13 “Portanto, se formos mais solícitos por coisas celestiais do que por coisas terrenas, este termo não nos será inadequadamente aplicado” (s. 1.19). No trecho que menciona a cerimônia de consagração dos bispos (s. 1.11, cf. s. 230.5) o prelado arlesiano nos informa que duas leituras testamentárias eram realizadas: uma delas, associada ao Velho Testamento (Ez. 3:17), airma ser o bispo um observador de almas;14 a outra, associada ao Novo Testamento ( Jo. 21:17), menciona a determinação de Cristo para que Pedro apascentasse Seu rebanho.15 Em outro artigo relacionamos a noção de que à “escuridão dos erros” doutrinais – e, por isso, heréticos – se contrapõe a doutrina (luz, alimento, leite, mel, sal, vento espirituais). SILVA, Paulo. As heresias nos sermões de Cesário de Arles: pregação e airmação episcopal no século V. Plêthos: Revista Revista Discente de Estudos Sobre a Antiguidade e o Medievo. Niteroi, v.1, p. 101-24, 2011. Disponível em http://www.historia.uf.br/revistaplethos/arquivos/numero1/paulo.pdf. Acesso em 26 de outubro de 2011. 13 Para Mueller, Cesário possivelmente seguia Orígenes em sua etimologia, que veio a ser seguida posteriormente por Tomás de Aquino. MUELLER, Mary. Op. Cit., p. 21, nota 59. 14 O termo usado em latim, speculatorem, remete ao observador que ‘olha do alto’, preferencialmente de uma torre. 15 Segundo Ferreiro, para legitimar a proeminência de Roma sobre as demais dioceses Cesário se utiliza em outros sermões do trecho descrito em At, 5:1-11 que trata do encontro entre Pedro, Saira e Ananias (s. 40.4, 125.1, 214.2). Além disso, em outros toma os apóstolos em geral como modelos aos bispos (s. 20.1, 96.5), airmando existir uma sucessão entre patriarcas, profetas, apóstolos e bispos (s. 7.2, 151.2, 214.1, 215.4, 216.1). FERREIRO, Alberto. Petrine Primacy and Episcopal Authority in Caesarius of Arles. Studia Patristica, Berlim, v. 43, p. 368-72, 2006. p. 370-2. 12 521 O poder simbólico episcopal invocado pelo sermão também se reforça, portanto, pela vinculação à sede apostólica romana. A vinculação à diocese de Roma é atestada pela menção ao trecho da epístola de Pseudo-Clemente que insiste na ideia – presente em toda a prédica – de que os bispos devem dedicar-se menos aos assuntos mundanos e mais aos espirituais, especialmente às leituras divinas e à pregação, como veremos (s. 1.18). A iliação entre a primazia petrina, a autoridade de Roma e os bispos prossegue no trecho seguinte. Airma Cesário Ainda que esse termo [sagrado] se aplique adequadamente a todos os cristãos, de acordo com o que o abençoado Pedro diz: ‘Mas vós sois uma raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa’ [1 Pe 2:9], esse termo parece particularmente adequado a todos os clérigos (s. 1.18). Sabe-se que a Cesário buscou a vinculação à diocese de Roma, rompendo com uma longa trajetória de desavenças entre os bispos de Arles – e seus aliados no sul da Gália – e os prelados itálicos, transcorrido desde as primeiras décadas do século V.16 O período no qual Arles e arredores estiveram sujeitos ao domínio ostrogodo (508-536) corresponde aproximação de Cesário tanto da monarquia sob liderança de Teodorico quanto dos sucessivos bispos de Roma. Aproveitando-se de iliações aristocráticas que se estendiam até a cidade itálica e do fato de que ambas as cidades eram controladas pelo mesmo grupo germânico, Cesário pode se beneiciar de concessões e privilégios cedidos pelos prelados romanos, tais como a honraria do pallium e do titulo de vicário para toda a Gália, que fortaleceram o capital simbólico mobilizado pelo bispo arlesiano – que, no mais, ganhou apoio em suas disputas territoriais e disciplinares com outras dioceses do sul da Gália, especialmente Vienne.17 MATHISEN, Ralph. Ecclesiastical faccionalism and religious controversy in ifth-century Gaul. Washington: Catholic University of America, 1989. 17 KLINGSHIRN, William. Caesarius of Arles: the making of a Christian community in late antique Gaul. Cambridge: Cambridge University, 2004. Op. Cit., p. 111-46; FERREIRO, Alberto. Op. Cit., p. 368-9, 372. Devemos lembrar, porém, da reciprocidade da relação: assim, Roma conquistava inluente aliado em seu projeto de airmação nas igrejas latinas, sobretudo na década de 520: sob a liderança de Cesário, os concílios de Orange e Vaison – ambos de 529 – determinaram, 16 522 Desta forma, o poder episcopal arlesiano se aiança em estreita relação com a sede romana, dita apostólica. Tal associação resulta de movimentos que se desenrolam no próprio episcopado de Cesário.18 O sermão descreve os bispos como guardiães do campo e, em especial, das cidades (s. 1.4), o que justiicaria sua posição superior de observadores da Igreja: “como se no topo da cidadela da Igreja, (...) devem ser solícitos pela cidade e pelos campos de Deus, isto é, por toda a Igreja” (s. 1.4). Neste sentido, a prédica estabelece uma série de correlações entre a atuação episcopal e os clérigos paroquiais – ambos “cultivadores espirituais” (s. 1.4) –, mencionando a pregação como atividade que fertiliza os vinhedos espirituais (s. 1.4, 1.8), que irriga os campos (s. 1.4, 1.15) e que garantiria o sal da terra (s. 1.20). Ao mesmo tempo em que reairma a primazia episcopal nos assuntos eclesiásticos, o trecho indica a preocupação com o ambiente rural, o qual atraiu particular atenção de Cesário,19 conforme observaremos a seguir. Vale lembrar que Cesário reforça critérios de seleção para o arregimento eclesiástico (s. 1.14), valendo-se de preceitos defendidos em cânones de concílios por ele presididos: que nenhum clérigo deve ser ordenado até que sua conversão tenha transcorrido em pelo menos um ano (cf. concílio de Arles, c. 2);20 o impedimento da ordenação daqueles que se casam pela segunda vez, que são penitentes ou estão casados respectivamente, a condenação do semi-pelagianismo e a menção honrosa ao papa ao inal de cada missa. Além disso, os s. 1 e 230, ao se dirigem também aos bispos, enquadram-nos a aceitar a primazia romana. 18 SILVA, Paulo. Ciclo pascal e normatização litúrgica no século VI: análise comparativa dos casos de Arles e Braga. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009. p. 75-80. 19 O esforço excepcional de Cesário na garantia de meios à atividade pastoral e predical no campo foi premido pelo receio de outros bispos em perder o monopólio da exposição de sermões e homílias. Lembramos ainda que, além de expressar a iliação litúrgica com a diocese de Roma, dois cânones do concílio de Vaison (529) previam a garantia da educação de jovens lectores paroquiais (c. 1) e, em especial, o direito de pregação aos párocos rurais (c. 2), medida de caráter excepcional e que encontrou forte resistência. KLINGSHIRN, W. Op. Cit., p. 143-5. 20 Todas as citações aos concílios foram retiradas de: GAUDEMET, Jean, BASDEVANT, Brigitte (Ed.). Les Canons des Conciles Mérovigiens (VI – VII siécles). Paris: Du Cerf, 1989. 523 com uma mulher que casa pela segunda vez (cf. concílio de Arles, c. 3); ainda, que “de acordo com o costume salutar às [igrejas] sagradas de Roma, do Oriente e da África” (s. 1.14), ninguém deve ser ordenado diácono ou padre antes dos trinta anos e, que, em complemento, o “concílio de Agde” (s. 1.14) determinou que os diáconos não sejam ordenados com menos de vinte e cinco anos (cf. concílio de Agde, c. 16 e 17; concílio de Arles, c. 1). Leituras divinas e pregação Tal como frisara Alberto Ferreiro,21 Cesário insistiu na importância das leituras divinas para o exercício clerical e, sobretudo, episcopal. Associada diretamente à pregação, a leitura de livros testamentários e patrísticos garantiria tanto uma formação mais adequada aos clérigos e leigos como os afastaria de atividades consideradas erradas. Desta forma, o autor insiste na leitura divina durante banquetes – mesmo aqueles promovidos pelos bispos – (s. 1.2, 9, 17), uma vez que desta forma se garantiria tanto a alimentação carnal quanto a espiritual (s. 1.19), mesmo que os textos considerados sagrados tivessem que ser lidos em público, prática associada às “igrejas orientais” e, por isso, considerada legítima (s. 1.15, cf. 1.12, 20).22 De fato, para garantir a difusão dos textos ditos sagrados entre seus clérigos subordinados23 e bispos de sua sede, o bispo garantia um scriptorium em funcionamento na cidade de Arles. Tal se atesta pelo s. 2, no qual o autor insiste na inexperiência dos jovens copistas e na necessidade de os clérigos se manterem atualizando frequentemente o volume, particularmente destinado às “paróquias”. FERREIRO, Alberto. Frequenter legere: he Propagation of Literacy, Education and Divine Wisdom in Caesarius of Arles. Journal of Ecclesiastical History, Cambridge, v. 43, p. 5-25, 1992. 22 Tanto mais por garantir que aquele bispo ou mesmo diácono que não se sinta capaz de dominar as técnicas retóricas possa evangelizar (s. 1. 12, 13, 15, 20). “Portanto, todos os meus clérigos do Senhor devem pregar ao povo na linguagem simples, comum que todos podem se deter” (s. 1. 20). 23 E, quiçá, entre os bispos de outras províncias eclesiásticas, favorecendo-se da carta de recomendação exigida por Cesário aos bispos que quisessem dirigir suas reclamações ao bispo de Roma, privilégio concedido pelos prelados romanos a Cesário e condizente com sua condição de vigário. MUELLER, Mary. Op. Cit., p. xiii. 21 524 Cesário airma ainda que, além de textos testamentários e evangélicos, outros autores patrísticos são considerados úteis às leituras, como “São Hilário [de Arles], Santo Ambrósio [de Milão] e Santo Agostinho” (s. 1. 15). Às menções ao precedente bispo de Arles – fundador do mosteiro de Lérins e importante referência intelectual no sul da Gália – e a Agostinho se contrapõe a citação de Ambrósio, destacado bispo de uma diocese com a qual a sede romana mantinha tensas relações. Assim, podemos considerar que o bispo arlesiano estimulava diretamente as leituras, considerando-as indispensáveis ao ofício clerical e mormente episcopal, além de manter em funcionamento a atividades de copia e divulgação de textos considerados uteis a tal propósito. A preocupação com a divulgação de sermões de sua autoria, bem como de textos patrísticos e testamentários, responderia diretamente a uma dupla preocupação: por um lado, prover os párocos com material adequado à pregação; por outro, controlar diretamente o que poderia ser lido pelos clérigos rurais e demais bispos sob seus cuidados. Desta forma, institucionalizar-se-ia a atuação ‘carismática’ dos clérigos24 e, ao mesmo tempo, se fortaleceria a posição de Cesário como produtor do bem de salvação especíico do campo religioso. Nesse contexto, breviário, o livro de sermões (...), desempenham, ao mesmo tempo, o papel de um receituário e de um resguardo, estando portanto destinados a assegurar a economia de improvisação e a impedi-la.25 Estando, portanto, premida pelo uso de textos considerados adequados, a pregação é, a um só tempo, institucionalizada e exaltada como um bem sob encargo clerical. A princípio, o autor descreve a pregação como um fardo (s. 1.3, cf. 230.5) enfatizado com gravidade por Cesário, cuja falta pode condenar os clérigos e bispos. A preocupação Mesmo porque a pregação rural deve ser feita “em respeito às leis canônicas e regulações” (s. 1.5). 25 BOURDIEU, Pierre. ___. A Economia das Trocas Simbólicas... Op. Cit., p. 69. 24 525 com a atividade predical condiz com a atenção conferida por Cesário à pregação, como assinalamos. Associando à pregação às iguras de Isaías e de Paulo (s. 1.3-4), o bispo arlesiano airma que a pregação corresponde à doação de esmolas espirituais (s. 1.8, 12-14), tanto mais importantes que as esmolas materiais porque estas últimas podem ser dadas por qualquer um, mesmo um não cristão: É especialmente adequado aos clérigos dar esmolas à alma, isto é, o alimento da doutrina. Um clérigo, em função da alimentação da instrução, pode ser capaz de dar menos comida ou não ter mesmo nada a dar, [pois] um leigo, um pagão, por vezes mesmo um judeu ou outra pessoa poderá fazê-lo; mas caso o clérigo falhe em dar a doutrina, o leigo não ousará fazê-lo, mesmo que a possua (s. 1.8). Como dissemos, Cesário parece-nos particularmente atento à pregação rural. Além de estar diretamente ligada à supracitada distribuição de materiais de leitura aos clérigos paroquiais (cf. s. 2), a prédica indica ainda quais seriam as práticas condenadas em tais comunidades rurais, especialmente aquelas associadas ao paganismo: falso-testemunho, inveja, ódio, bebedeiras, entoar de canções e jogos nocivos à “castidade e virtude” (s. 1.12), entre outros. Então, todas essas verdades (...) não apenas os bispos do Senhor nas cidades mas também presbíteros e diáconos paroquiais podem e devem com frequência pregar. No mais, quem é incapaz de dizer que ninguém deve prestar votos a uma árvore, observar presságios, conjurar encantadores, ou consultar mágicos e visionários? Ninguém deve seguir o costume sacrílego dos pagãos de consultar em que dia se deve partir em jornada ou dela retornar, pois temo que não apenas os leigos mas, o que é pior, mesmo alguns religiosos sucumbem diante desta prática sacrílega (s. 1.12).26 Na sequência do trecho o autor critica ainda a aceitação de propinas, as práticas abortivas e contraceptivas, o uso de ilactérias, de sinais diabólicos e de encantamentos (cf. s. 13). 26 526 Após alongar-se nas práticas consideradas condenáveis, o autor apresenta aquelas que trazem salvação às almas dos iéis paroquiais: “Quem é tão simples que não pode dizer [aos leigos]: Vinde à igreja cedo, trazei as oferendas a serem consagradas ao altar, visitai os doentes, recebei estranhos, lavai os pés das visitas, visitai os prisioneiros?” (s. 1.12, cf. s. 198.3, 199.3; Mt. 25: 31-46).27 Tal como no s. 230.6 destinado aos bispos, Cesário indica que a instrução e a educação dirigida aos iéis não deveria se resumir à missa e demais ofícios litúrgicos, aos domingos ou às festas cristãs: preguemos a palavra de Deus o quanto pudermos, (...). Não apenas na igreja, mas mesmo (...) em um banquete devemos reler os textos sagrados; em conversas, reuniões, viajando, onde quer que estejamos, apressemo-nos a rejeitar a fofoca inútil e as piadas mordazes e a falar a palavra de Deus aos corações dos ieis (s. 1.10). Ao defender que a educação dos ieis e clérigos não se resume ao espaço litúrgico ou ao momento festivo, Cesário assevera o transbordamento do habitus cristão quanto aos espaços ditos adequados. Muitos especialistas consideraram a prédica do bispo de Arles como intrusiva e mesmo violenta, rompedora dos limites neutros entre o secular e o sagrado característicos do período tardoantigo, sobretudo quando dirigia-se aos campesinos.28 A nosso ver, o trecho destacado acima expressa a expectativa que o habitus projetado pelos clérigos tem de se airmar junto aos ieis consumidores. Assim, não basta frisar a importância da pregação, do papel das leituras como indispensáveis ao ofício eclesiástico e bispal. A instrução, além de reprimir dadas práticas e licitar outras, transpassa os limites das basílicas e paróquias a medida que a igura Em seguida Cesário frisa a castidade, a sobriedade, o amainar do ódio e a doação de dízimos e esmolas como outras práticas salvíicas. Tais práticas são, em seu conjunto, ainda mais frisadas no período quaresmal, conforme indica a prédica no próprio trecho. 28 MARKUS, Robert. O im do cristianismo antigo. São Paulo: Paulus, 1997. p. 198-210. 27 527 episcopal se airma, e carrega consigo a história da igreja e de seu bem institucionalizado. Conclusão Tomado como alvo de nossa investigação, o extenso s. 1 revela preocupações prementes no projeto pastoral delineado no episcopado de Cesário, tais como a caracterização do ofício eclesiástico e episcopal, suas atribuições e privilégios na condução da comunidade cristã (cf. s. 230) e, por im, as restrições impostas ao seu arregimento. Frisa-se, nesse caso, a associação entre as dioceses de Arles e de Roma. Outro ponto enfatizado pela prédica é a prática das leituras divinas, a ser conduzida mesmo fora das basílicas e mesmo por clérigos de menor expressão, tais como os presbíteros e diáconos. A atividade da leitura de textos testamentários e patrísticos é considerada essencial para a instrução tanto dos iéis quanto, em especial, para o preparo dos clérigos: de fato, o bispo arlesiano admite mesmo que as leituras sejam feitas em voz alta. Além disso, para prover os bispos e clérigos inferiores – e mesmo de outras dioceses – com material adequado à instrução, Cesário organiza um scriptorium em Arles (s. 2). Diretamente relacionada às leituras, a atividade predical é ressaltada especialmente junto às populações rurais (cf. s. 13), assunto polêmico e que, por isso, foi alvo do esforço conciliar de Cesário, vide as atas do concílio de Vaison. Tal empenho na permissão do direito à pregação aos clérigos paroquiais remete diretamente à organização, edição e divulgação de sermões e, ao mesmo tempo, fortalecem a posição simbólica de Cesário no campo religioso, na condição de pregador popular. 528 GUERRA EM CASTELA NO SÉCULO XII: REFLEXÕES SOBRE O IDEAL MILITAR CASTELHANO A PARTIR DE UMA ANÁLISE DO POEMA DE MIO CID Rafael Costa Prata (Graduando UFS – Vivarium – UFMT) Considerações iniciais Este trabalho de comunicação surge com o intuito de apresentar as primeiras hipóteses acerca da natureza da guerra praticada na Península Ibérica, tomando como referencial o reino de Castela no século XII. Para tal, utilizaremos como documento de análise, o épico castelhano de nome Poema de Mio Cid,1 datado de 1207, ou seja, princípio do século XIII. Por acreditar que podemos extrair dos versos que compõem a obra, aspectos relevantes sobre as relações sociais e militares envolvendo cristãos e muçulmanos como também importantes caracterizações do fazer a guerra executada pelas cortes castelhanas durante o processo de Reconquista,2 decidimos situar nossos estudos no século anterior a composição do poema. Como ressaltado, por estar inserida nos anos iniciais do século XIII, acreditamos que a obra esteja mais vinculada ao contexto histórico ibérico do período que antecede sua data de composição, quando houve a profusão das investidas militares nos territórios fora do controle político da monarquia de Castela. Portanto, compreendemos o PMC como uma obra paradigmática ao século XII, se nos revelando como um possível relexo do empenho de conquista territorial A partir deste ponto utilizaremos a sigla PMC quando nos referirmos à obra. Ressaltamos também que apesar de alguns personagens do poema serem historicamente documentados, não sendo somente representações literárias, escreveremos seus nomes em itálico quando nos referirmos a eles estritamente no documento analisado. 2 Sobre a discussão historiográica a respeito do conceito de Reconquista indicamos: GARCÍA FITZ, Francisco. La Reconquista. Granada: Universidad de Granada, 2010. 1 529 projetado pela dinastia castelhana em solo ibérico, principalmente a partir da segunda metade desse século. Entretanto, tais relexões, longe de se apresentarem como respostas conclusivas, se inserem em um quadro mais amplo de uma pesquisa que iniciamos no decorrer do primeiro semestre de 2011, sob orientação do Prof. Msc. Bruno Gonçalves Alvaro, visando a redação de nossa monograia de conclusão no curso de História na Universidade Federal de Sergipe. Tomando como pressuposto o conceito de estratégia, empregado pelo medievalista espanhol Francisco García Fitz em diversas de suas obras sobre a prática da guerra no Medievo, defenderemos como hipótese de pesquisa que os personagens são construídos no poema como parte de um arquétipo militar almejado pelas cortes castelhanas, no qual valores como cooperação, bravura guerreira e idelidade absoluta a causa empreendida eram aspirados como parte integrante do discurso ideológico engendrado a partir do século XII, sobretudo pela dinastia castelhana-leonesa. Na verdade, quando optamos por estudar o enunciado Guerra, nos encontramos diante de um pequeno entrave metodológico, devido a ocasional diiculdade nossa à época de adoção de um quadro teórico que se adequasse perfeitamente aos propósitos iniciais de nossa pesquisa. Isto ocorreu porque, apesar da guerra se constituir como um fenômeno político-militar extensamente estudado desde a Antiguidade Clássica até os conlitos de ordem mais contemporânea, esta se apresenta, no que tange a sua caracterização no Medievo, como uma área ainda carente de estudos, causada, em grande parte, por certo juízo de valor depreciativo incidente sobre o Belicismo Medieval – da mesma maneira que sofre a Idade Média como um todo –, há muito arraigado pela historiograia tradicional. Pode-se até conjecturar que há atualmente dois tipos de historiadores empenhados no estudo do fenômeno: os mais voltados ao estudo das relações sociais e militares entre os atores históricos na Idade Média e os de vertente militar, estes últimos mais direcionados a uma analise mais técnica do fenômeno bélico em si, desde a aparelhagem, as técnicas de combate, etc., que por sinal, abarcam quase a totalidade dos estudos que encontramos. 530 Deste modo, não é de se surpreender que tenhamos optado pela abordagem teórica oferecida pelo medievalista Francisco García Fítz, o qual, apesar de afeito muitas vezes a caracterização técnica e puramente militar, não negligencia o estudo das relações sociais e militares como parte deste processo, unindo, assim, consideravelmente as duas perspectivas apontadas. O Poema de Mio Cid: A construção de arquétipos desejados e de outros desprezados no século XII ibérico Segundo Martínez Rico, para o renomado ilólogo Ramón Menéndez Pidal, encontramos no PMC quase uma hagiograia militar portadora do “sumo ejemplo de cooperación nacional”,3 a qual personiicaria a essência espanhola no decorrer de toda a sua trajetória histórica. Menéndez Pidal acudia a estas questões, é claro, no contexto histórico em que vivia, cuja historiograia e ilologia espanhola eram extremamente vinculadas à escola Alemã do século XIX, impregnada de uma ideologia romântica vinculada ao surgimento da Alemanha como nação moderna. No entanto, como destaca Antonio Ubieto Arteta, em seu conjunto, os alemães partiram da idéia de que a Prússia havia sido a criadora da nova nação. Este modelo foi adotado também na Espanha, criando o chamado “mito de Castela” como representante da nação espanhola, no qual Ramón Menéndez Pidal, entre outros historiadores e ilólogos da época, se empenharia em construir em torno da igura de Rodrigo Díaz de Vivar – a partir do PMC – um símbolo de identidade e uniicação nacional muito além das barreiras impostas pelo tempo.4 Essência espanhola (castelhana, leonesa, aragonesa, etc.) ou não, o que sabemos é que o PMC é uma obra literária dotada de aspectos históricos. No entanto, não nos cabe aqui discutir sobre a sua natureza, tendo em vista a grande quantidade de trabalhos existentes sobre o Rodrigo Díaz de Vivar histórico do século XI e o literário do século XIII. Cf.: MARTÍNEZ RICO, Eduardo. El Cid: El héroe literário a través de los siglos. Cuadernos de Filología hispánica, Madrid, v. 24, p. 337-245, 2006. p. 240. 4 Cf.: UBIETO ARTETA, Antonio apud PÉREZ GARCÍA, Pablo. El Cid: Entre la realidad y el mito. Argutorio, Astorga, jun., p. 40-41, 1999. 3 531 Contudo, o que nos interessa em nossa pesquisa não é a diferenciação entre estes aspectos históricos e literários do documento, mas, sim, através de uma analise dos versos presentes no poema, compreender como esta obra do século XIII5 apresenta uma série de atributos modeladores vistos como virtudes fundamentais para nobreza castelhana durante o processo de Reconquista perpetrado já durante o século XII. Igualmente, outros arquétipos podem ser observados no poema, objetivamente aqueles que não atendem de maneira alguma ao tipo ideal de militar pensado pela nobreza castelhana e representados na obra pelo clérigo-poeta. Em primeiro lugar, procuraremos analisar como se efetuam estas construções de arquétipos requeridos e de outros desprezados, tomando como referencial o seguinte conceito de estratégia, que enumera uma série de virtudes vistas como padrão para uma caracterização ideal de liderança militar seja qual for à época em questão: Ordenación previa de todos los elementos disponibles, ya fueron éstos morales – capacidade de liderazgo del jefe, virtudes militares del colectivo, identiicación de los individuos con los ines perseguidos –, físicos – magnitud de las fuerzas militares, composición del armamento... –, geográicos – conocimiento del terreno y su utilización como factor militar – o económicos – inanciación, abastecimiento, logística.6 Sob o aspecto moral, Per Abbat construiu no PMC a representação de um El Cid residente no topo das hierarquias sóciomilitares possíveis entre aqueles que prontamente o seguiram durante a ordem de desterro. Adjetivações, substantivações e/ou epítetos épicos presentes no decorrer de todo o poema, o apresentam como “aquele que cingiu a espada em boa hora” ou “aquele que nasceu em 5 Sua composição teria sido feita por um clérigo-poeta de nome Per Abbat em Burgos, região de Castela. 6 CLAUSEWITZ, Carl von. De la Guerra. Barcelona: Labor, 1976. p. 121-122 e 201-268 apud GARCÍA FITZ, Francisco. ¿Hubo estrategia en la Edad Media? A propósito de las relaciones castellano-musulmanas durante la segunda mitad del siglo XIII. História. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, série II, v.15, n. 2, p. 837-854, 1998. p. 843. 532 boa hora”.7 Estes termos são parte da construção do Campeador como um chefe militar respeitado por todo seu séquito, de liderança e de futuro glorioso indiscutíveis, caso contrário, não teria sido seguido por um pequeno, mais iel, grupo de cavaleiros que, segundo o poema, lhe coniavam a vida e uma possível morte em seu complicado posicionamento social como desterrado. El Cid, além de ser representado no documento como um grande líder de valor indubitável, também é, para o autor do poema, um homem justo, honesto e generoso na medida em que suas atitudes como comandante militar sempre são pautadas no compromisso com seus seguidores. Assim, logo no principio de seu desterro, ele procurou deixar claro para seus seguidores a diiculdade econômica em que se encontrava quando desprovido de condições materiais para patrocinar com segurança e probidade uma atividade guerreira. A “honestidade” incidente ao Cid faz emergir, como conseqüência, atitudes semelhantes por parte de seus cavaleiros, no que tange a idelidade irrestrita que depositavam em sua igura. Por conseguinte, a caracterização dos personagens sociais que ocupam posições hierárquicas inferiores a ele no poema, é construída conferindolhes um qualiicativo comum a todos: a idelidade e o respeito absoluto as suas ordens. As decisões encabeçadas por ele são sempre respeitadas e atendidas por seus comandados como sendo de bem comum a todos. Não é a toa que em uma importante passagem do documento, o personagem Álvar Fáñez, descrito como o leal braço direito do Cid, é enviado ao encontro do soberano castelhano Afonso VI para travar diálogos na esperança de remediar os castigos sociais impostos ao protagonista da obra. Para isso, segundo o texto, ele tem Segundo Colin Smith, são artifícios literários utilizados no decorrer do PMC para, além de realçar o estilo épico que engendra a gesta, também enaltecer a igura do herói em destaque. Desta maneira, aparecem, no decorrer de toda obra, não somente epítetos como “que en buen hora nasco” ou “que en buen hora çinxo espada”, mas, também, outros epítetos que referendam tanto o Cid como o de formosa barba, aquele que conquistou Valência, etc. Também aparecem para adjetivar outras importantes personagens da obra. Desta maneira, os epítetos assumem um papel importante de deinição das hierarquias, das posições sociais de cada personagem. Cf.: ANôNIMO. Poema de Mio Cid. Ed. de Colin Smith. Madrid: Cátedra, 2001. p. 68. 7 533 de cavalgar por mais de um mês por terras estranhas, porém, é sempre representado como alguém que atende as ordens de “bom grado”,8 portando constantemente um sorriso de satisfação. Esta dupla e complementar caracterização – ordem do Cid Campeador e devido cumprimento por seus seguidores – nos dá a possibilidade de inferir sobre o respeito à disciplina e a organização militar que o homem castelhano medieval depositava em torno de seus lideres. O PMC, como obra histórico-litarária, se revela então como um eicaz instrumento de análise dessas estruturas. Desta maneira, já nessa primeira observação, podemos romper com um estereotipo arraigado pela antiga historiograia militar da primeira metade do século XX, a qual creditava aos homens do Medievo pouca habilidade organizacional – para não dizer nenhuma – e difícil capacidade de enquadramento hierárquico, disciplinar.9 O quadro que encontramos nesta obra do século XIII é deinitivamente outro. El Cid é sempre representado como um grande líder militar, de alta visibilidade estratégica, hábil na planiicação de suas batalhas e na organização de seu exército. O PMC também rompe com outro enunciado depreciativo sobre o fazer a guerra do homem medieval ibérico, a qual defendia que “aquellos dirigentes militares se comportaban como guerreros, pero no como comandantes”.10 Entretanto, ainda que um protagonismo militar incida direta e decisivamente sob El Cid , não podemos negligenciar algo que permeia Cf.: ANôNIMO. Op. Cit. (diversos versos do poema). Este preconceito existente sobre o tipo de Guerra praticada no Medievo e sobre a atuação de seus dirigentes militares é também bastante discutido por García Fítz no artigo que utilizamos como auxílio para nossas análises. Segundo ele, o mesmo estereotipo que a Idade Média sofreu por parte dos iluministas, como uma “longa noite de mil anos” teria se perpetuado nas demais estruturas da vida medieval, não fugindo desta premissa a Guerra. Liddel Hart airma que “en el Ocidente europeo, el espiritu bélico de la caballeria feudal se mostro durante toda la Edad Media rebelde a toda teoria del arte de la guerra, aunque la obscuridad de su estúpido desarollo se ilumine a veces con algunos fulgores brillantes.” In: LIDDEL HART apud GARCÍA FITZ, Francisco. Op. Cit., p.840. (Grifo nosso). 10 Visão também defendida por: OMAN apud GARCIA FITZ, Francisco. Op. Cit., p.841. 8 9 534 toda a obra, que é justamente o forte sentido de cooperação militar entre os atores sociais descritos na gesta. Este fator é imprescindível para compreender a própria caracterização do Campeador como um grande comandante. Sempre resoluto e sábio em suas decisões, possui uma visão planejada e atenta aos acontecimentos, mas, ainda assim, se encontra aberto e sempre atento às opiniões e conselhos de seus subordinados, o que evidencia a construção idealizada de um líder militar que, no seu âmbito cooperativista, respeita à experiência e competência bélica de todo o seu séquito, como um traço modelar a ser seguido naquele século XII e princípios do XIII. Durante as batalhas campais descritas no poema, as narrativas sobre o encaminhamento dos combates são sempre apresentadas tomando como partida decisões deliberadas em conjunto. Logo, o espectro de um possível individualismo nas ações guerreiras e a noção de orgulho e busca por uma hazana individual11 se dissipam de imediato quando percebemos sempre a igura do Cid atendendo a sugestões de sujeitos posicionados em uma hierarquia social inferior a sua. Por exemplo, é à astucia de Martín Antolinez, o apelidado “leal burgalês”, que ele recorre para concretizar a farsa das arcas de areia que são levadas aos judeus Raquel e Vidas.12 Certamente, a grande passagem literária que referenda este sentido cooperativo e voluntarioso que impregna as ações do Campeador e de todo o seu grupo de cavaleiros, aparece quando da alusão ao personagem clerical, Don Jheronimo, um bispo guerreiro que aparece com destaque no poema, justamente, nos enfrentamentos mais decisivos, frente aos almorávidas comandado pelo Rei Búcar de Marrocos.13 Cabe-nos perceber como este eclesiástico, extremamente dado às armas, se insere também no séquito cidiano e em muitas ocasiões, grande parte delas de teor bastante simbólico, pede ao Campeador que Segundo Oman, os dirigentes medievais “Llevados por un particular sentido del valor, del honor, de la proeza o de la hazana personal, habrian ignorado las mínimas nociones de prudência, oportunidad, inteligência y planiicacion.” Cf.: Idem. 12 Cf.: ANôNIMO. Op. Cit. Estrofes de 5 a 11. p. 147-152. 13 Cf.: Ibidem. Estrofe 78 e em diversas outras passagens. p. 192. 11 535 lhe conceda o direito de dar a primeira “braçada”,14 o que prontamente é concedido. Este fato, além de anunciar a peculiar presença no quadro histórico medieval dos “bispos guerreiros” no fazer a guerra na Península Ibérica,15 também, mais uma vez, nos evidencia o forte teor corporativo que permeia todos os atos e estratégias de combate descritas no PMC. Curiosamente, esta passagem em que Don Jheronimo pede ao Cid o primeiro golpe do combate, demonstra, para nós, a particularidade das relações sociais empreendidas entre a Igreja Ibérica e a empreitada bélica, o que de fato era mal vista pela Igreja de Roma, daí suas medidas posteriores com o Lataranense IV. Como salientado por Bruno Alvaro, Don Jheronimo é uma representação histórico-literária, criada para atender um possível ideal de clérigo em consonância com a realidade bélica da Península Ibérica entre os séculos XII e XIII.16 Ao participar das campanhas militares do Cid, Don Jheronimo, segundo O primeiro golpe do combate, honraria extrema entre cavaleiros no Medievo. Nas palavras do bispo: A vos, Çid don Rodrigo - ¡en buena ora çinxieste espada! -/ pido vos un don e seam presentado:/ las feridas primeras que las aya yo otorgadas. Ibidem. Estrofe 94. p. 207. 15 A peculiaridade da participação de eclesiásticos, na sua maioria bispos, em combates e/ou assuntos militares tem sido estudada pelo Prof. Msc. Bruno Gonçalves Alvaro em sua tese de doutorado, na qual, dentre outros objetivos, procura analisar no âmbito da diocese de Siguenza, no século XII, as relações entre o episcopado senhorial do bispo seguntino Bernardo e o projeto político de Afonso VII. Esta particularidade ibérica é tão forte, que, oito anos após a provável composição do PMC, em 1215, o IV Concílio de Latrão, presidido pelo papa Inocêncio III, em alguns dos seus cânones veda a participação de clérigos em atividades fora do oicio religioso, em especial, a participação em sentenças de morte e atividades com derramamento de sangue. Segundo a pesquisadora Frazão da Silva, “o IV Concílio de Latrão apresenta em seus 70 cânones a síntese do projeto papal de Reforma Eclesiástica que repousava nos seguintes pontos: organização e centralização de toda a hierarquia eclesiástica ao pontíice romano, a luta contra a intervenção laica na Igreja, a moralização do clero e a catolicalização da sociedade.” Cf.: SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. O IV Concílio de Latrão: heresia, disciplina e exclusão. In: SILVA, A. C. L. F. da; SILVA, L. R. da (Orgs.). SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS, 3., 1995, Rio de Janeiro. Anais.... Rio de Janeiro: UFRJ/SR5, 1995. p. 95 – 99. p. 99. 16 Cf.: ALVARO, Bruno Gonçalves. A Construção das Masculinidades em Castela no Século XIII: Um Estudo Comparativo do Poema de Mio Cid e da Vida de Santo Domingo de Silos. Rio de Janeiro, 2008. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Instituto de Filosoia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. 14 536 o poema, obtém o dizimo de sua paróquia, através do que lhe era cabido como parte do soldo de guerra. Sendo assim, para nós, esta caracterização, de certa maneira, materializa singularmente as tênues relações entre a particular Igreja Ibérica e o fazer a guerra da crescente aristocracia castelhana. Ao considerarmos o PMC como um instrumento de difusão ideológica, fonte privilegiada de um ideário da época, exempliicação de condutas e valores desejados durante o período em que foi produzido, é possível então perceber que o sentido de cooperação e idelidade irrestrita a causa guerreira poderia estar na raiz das atividades bélicas dos dirigentes militares de Castela. E o que é mais interessante, ao se construir de forma idealizada a imagem do Cid e seu séquito, esse jogo realidade/representação, como airma Chartier, era dada a ser construída, pensada, como um anseio comum às cortes naquele momento, dentro deste ideal ardoroso de conquista territorial, onde a “união” dos soberanos e nobrezas de corte – e a eliminação das inúmeras intrigas e disfunções internas que atrapalhavam o projeto político-militar castelhano desde os tempos de Fernando I – passa a ser vista e principalmente construída como algo necessário.17 Em contrapartida, outros personagens descritos no PMC se somam a narrativa como arquétipos não desejados dentro do que poderíamos chamar de um certo tipo de Ideologia de Reconquista. É o caso da construção dos chamados Infantes de Carrión. A caracterização de ambos, que é feita de forma conjunta, como se fossem faces da mesma moeda, como sujeitos extremamente vis, covardes e traidores, atende assim ao arquétipo modelar do que era visto como desprezível pelas cortes de Castela.18 Segundo Adeline Rucquoi, o século XII e XIII já engendra um momento em que a dinastia castelhana suplantava lentamente a antiga dinastia leonesa, e acima de tudo, dentro do projeto de Reconquista. Como “símbolo” desse processo, “a vitória de Las Navas de Tolosa, em 1212, foi o fruto de uma estreita colaboração entre os diversos príncipes da península conduzidos, uma última vez, pelo rei de Castela”. Este fato, segundo ela, de enorme importância dentro da história dos conlitos entre os reinos cristãos e os muçulmanos na Península Ibérica, é capaz de nos mostrar como “os príncipes ibéricos eram ainda capazes de se aliar para levarem a um bom termo uma operação de reconquista” In: RUCQUOI, Adeline. História Medieval da Península Ibérica. Lisboa: Estampa, 1995. p. 171-174. 18 Curiosamente, se buscarmos as raízes profundas da caracterização dos Infantes, poderemos compreender melhor os motivos de tal arquétipo desprezível construído. Segundo Colin Smith, esta construção se deu porque “o poema se muestra hostil a los nobles leoneses, no tanto por su origen nacional como por la inluencia que 17 537 Da mesma forma, o rei catalão Ramon Berenguer é descrito no poema como um líder pouco voltado à arte da guerra, reletindo assim de forma latente o possível pensamento das cortes de Castela sobre a histórica diiculdade em se construir relações sociais e militares com os dirigentes bascos. As origens desta representação caricata deste monarca devem ser relacionadas frente ao contexto histórico do século XII, quando as cortes de Castela tentavam diminuir de toda maneira possível, toda uma gama de disfunções entre as cortes cristãs, para assim encaminhar de forma mais satisfatória possível o projeto de Reconquista. Historicamente, o reino Basco sempre esteve mais ligado ao mundo “além Pirineus” do que propriamente com o contexto ibérico, de forma que o rei catalão Ramon Berenguer III de Barcelona, no decorrer do século XII, procurou o apoio da Igreja de Roma para fortalecer seu poderio frente aos demais reinos cristãos que cresciam e, ainda, obter mais amparo na luta contra os Almorávidas que se aproximavam de sua região. Desta maneira, quando a ameaça Almorávida se aproximou da Catalunha: El conde negoció con Pisa una operación de limpieza en las Baleares destinada a acabar con la piratería musulmana allí radicada, y el papa Pascual II le concedió el status de cruzada. La intervención tuvo lugar entre 1114 y 1116, y una vez concluida Ramón Berenguer III volvió a atraerse la atención del Papa hacia nuevos proyectos cruzados que tenían por objeto consolidar la presencia cristiana en la línea del Ebro: a cambio de la correspondiente protección pontiicia, el conde se comprometia a pagar un censo anual a la Sede tenian en la corte, y porque – al menos en la literatura – producian vástagos tan repulsivos como los jovenes infantes, que hablan siempre de la nobleza de su sangre, pero que estan moralmente enfermos.” Igualmente a descrição dos Infantes se explicaria porque seu sangue era de ascendência leonesa e ligava-os ao clã dos Castro, inimigos de Castela, desde que seu proeminente líder Pedro Fernandes de Castro, teria traído a coroa castelhana, ao participar junto aos almôadas da Batalla de Los Alarcos em 1195, daí então que “el poeta coloca por tanto a los infantes de Carrión en el papel de malos y traidores, logrando su escarnho.” SMITH, Colin. Introducción. In: ANôNIMO. Op. Cit., p. 17-124. p. 80-81. 538 Apostólica, que si no llegó a comportar un vasallaje formal, desde luego le faltaría muy poco.19 Esse comportamento “vassálico” frente a Roma era mal visto pelas cortes castelhanas, pois, durante o século XII, a coroa de Castela procurou sempre afastar a inluência intervencionista do papado do projeto de Reconquista por ela encabeçado, num processo que Ayala denomina como hispanização da cruzada, a qual levaria as cortes de Castela a tentarem arregimentar uma Cruzada sem papa, onde o soberano castelhano nunca perderia o protagonismo da Reconquista frente às investidas da Igreja Romana, sem, contudo, necessitar romper com a mesma.20 O jogo das relações sócio-militares empreendidas historicamente na Península Ibérica sempre se demonstrou de maneira peculiar, na medida que, a composição geográica e social era bem diferenciada do restante do Ocidente Medieval, uma vez que os cristão ibéricos conviviam mais intensamente, desde o século VIII, com judeus e muçulmanos numa linha tênue, onde a relação de barganha fundamentada pelo regime das párias, alicerçada pelos soberanos cristãos do Norte, ainda tinha relevo no século XII. Não obstante, no PMC, um personagem muçulmano assume um papel importantíssimo: o mouro Abengalbon. Ele é caracterizado como um valente mouro, sempre iel ao Cid, construindo assim para os muçulmanos ibéricos uma representação peculiar de vivência com os cristãos. Conforme Colin Smith, o clérigo-poeta não exagera nas descrições de tais relações sociais. Personagens como Avengalbon são descritos como iéis mouros aliados do Cid, contudo, outros AYALA MARTÍNEZ, Carlos de. Reconquista, Cruzada y ordenes militares. In: ___. Las Cinco Villas aragonesas en la Europa de los siglos XII y XII. Madrid: Instituícion Fernando Católico - Universidad Autônoma de Madrid, 2007. p. 2338. p. 30. 20 Segundo Martinez “A los reyes españoles se les planteaba un importante reto político ideológico: o bien mantener su tradicional perspectiva reconquistadora en la que habían fundamentado la legitimación de su propio ejercicio del poder, y hacerlo en competencia desigual con la noción de reconquista pontiicia que les privaba de protagonismo político, o bien asumir esta última perspectiva con la audaz pretensión de hispanizarla desactivando en ella la carga competitiva de avasallador poder pontifício que inevitablemente llevaba consigo y convirtiéndola en un renovado y poderoso fundamento legitimador”. Ibidem, p. 28. 19 539 como os almorávidas Búcar e Ben Yusuf são descritos como inimigos, talvez o outro muçulmano, mais fundamentalista e rígido, possíveis representações do perigo Almôada cujo enfrentamento direto trouxe grandes derrotas como na Batalha de los Alarcos em 1195. Na verdade, o discurso ideológico do PMC, apresenta como o arquétipo mais indesejado a ser expelido do convívio social: as más ações e as intrigas de corte que prejudicavam todo aquele processo de “uniicação” dos reinos em prol da Reconquista. Justamente por este cerne central que envolve todo o poema, é que a caracterização militar dos Infantes de Carrión e do Conde Garcia Ordoñez é construída como indesejáveis para a época. O próprio Garcia Ordoñez é sempre apresentado fomentando intrigas na Corte de Afonso VI do que propriamente imbuído de sua caracterização militar de alferes daquele soberano. São constantemente a inveja e a intriga que o impele a conjurar contra El Cid, sendo apresentado até o último verso do poema, como o único e mais perigoso inimigo do Campeador, não através das armas, mas, sim, por meio da sua aproximação e poder de persuasão frente ao soberano castelhano.21 Conclusão Por meio desta breve relexão sobre as construções arquetípicas, realizadas pelo clérigo-poeta Per Abbat no PMC, acreditamos ser possível postular que estas se encaixam no conceito de estratégia apontada, principalmente, no que tange o ideal militar castelhano que dela decorre, onde os princípios de cooperação e idelidade irrestrita a causa são fundamentais durante o século XII, como fundamento moral do projeto de Reconquista. Da mesma maneira, através deste documento, também pudemos observar arquétipos não desejados que, paradoxalmente, são elementos da própria nobreza de corte. Conforme Colin Smith “Se aprecia em el poema um cierto sentimiento de lucha entre el ambicioso infanzon, el Cid, ayudado por sus vassalos, y los nobles de mayor alcurnia, a los que se denomina condes y ricoshombres. El poeta nos hace compreender que aunque al Cid le falta categoria social, posee,no obstante,el vigor y las qualidades morales, mientras que la alta nobleza puede tener classe, pero esta gastada y es mala y estúpida”. SMITH, Colin. Op. Cit., p.80. 21 540 A LITURGIA DOS RITOS DE COROAçãO E AS RELAçÕES ENTRE OS PODERES ESPIRITUAL E TEMPORAL (SÉCULOS XIII-XIV) Rafael de Mesquita Diehl (Mestrando NEMED – UFPR) O estudo dos símbolos, ritos e cerimoniais é importante para a compreensão de várias realidades de uma sociedade em um determinado contexto histórico. Por meio desses, podemos ter uma melhor compreensão de como alguns aspectos eram entendidos e interpretados pelos grupos da sociedade e do contexto analisados. Embora Jacques Le Gof considere insuiciente uma interpretação simbólica para entender os rituais de vassalagem do Ocidente medieval,1 acreditamos que o mesmo não se passa com os ritos de coroação no mesmo contexto. E isto se deve a dois motivos: a Liturgia da Igreja de rito latino foi marcada desde o século VIII até o século XV pela forte inluência do alegorismo que conferia simbologia aos diversos aspectos do ritual litúrgico, mesmo os mais acidentais; vários autores eclesiásticos comentaram os ritos de coroação, interpretando e atribuindo signiicado a sua simbologia. Sendo assim, nosso objetivo neste estudo é analisar de que forma os ritos litúrgicos de coroação nos séculos XIII e XIV expressavam em sua simbologia a proeminência do poder espiritual sobre o temporal e de que forma os ditos ritos foram utilizados como argumento pelos defensores da Teocracia Papal. Nosso objeto de estudo foca-se no Ocidente cristão nos séculos XIII e XIV. Trata-se de um período de conlito entre as pretensões universalistas do Papado e do Sacro Império Romano, bem como pelo crescente fortalecimento do poder dos demais Reinos da Cristandade latina. Se no início do século XIII a atuação de Inocêncio III tinha conduzido o Papado a um fortalecimento de seu poder político no seio da Cristandade, por outro lado, a partir de 1250, com o LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa: Estampa, 1980. p. 349. 1 541 interregno imperial ocasionado pela morte de Frederico II, o Império perde grande parte de sua inluência no cenário político do Ocidente, ao passo que os reinos, especialmente devido aos estudos do Direito começam a fortalecer-se, airmando-se cada vez mais o princípio de que rex imperator est in regno suo.2 Contudo, isso não signiica que os conlitos entre os poderes espiritual e temporal tivessem se encerrado neste momento. O fortalecimento do poder régio aumentara a tendência de um controle maior por parte dos reis sobre os cleros de seus respectivos reinos. Signiicativo nesse sentido foi o conlito de Felipe IV, rei da França, com o Papa Bonifácio VIII, que, tempos após o falecimento do dito Pontíice (1303), resultou na transferência da Sé Apostólica de Roma para Avignon, provisoriamente sob Clemente V (1305-1314) e institucionalmente sob João XXII (1316-1334).3 Tal fato acirrou as ligações do Papado com a monarquia francesa, bem como com as políticas franco-angevinas no norte da Itália, o que acabou por reiterar o conlito dos Papas com o Império, após o im do interregno (1313), com a volta da atuação política imperial sobre o norte da Itália com Henrique VII e Luis IV. Ao mesmo tempo em que essas disputas políticas ocorrem no âmbito prático, o conlito também ocorria no âmbito teórico, em debates, disputationes, tratados e espelhos de príncipes. No campo simbólico não foi diferente. Os símbolos e ritos ligados à realeza foram utilizados como forma de realçar a preponderância do poder espiritual ou temporal, conforme a situação. Os aspectos simbólicos e alegóricos tinham bastante importância nas mentalidades da Cristandade latina. Deteremo-nos no aspecto que interessa ao nosso objeto de estudo, ou seja, a Liturgia da Igreja.4 Desde a Alta Idade Média, a Liturgia dos ritos latinos estava fortemente marcado pelo chamado “Alegorismo” ou FERNANDES, Fátima Regina. O Conceito de Império no Pensamento Político Tardo-Medieval. In: LIMA, Luís Filipe Silvério; SILVA, Luiz Geraldo (Orgs.). Facetas do Império na História: Conceitos e Métodos. São Paulo: Hucitec, 2008. p. 185-198, p. 186. 3 KNOWLES, David; OBOLESNKY, Dimitri. Nova História da Igreja. A Idade Média (660-1500). Petrópolis: Vozes, 1974. v. 2. p. 435-442. 4 Por liturgia aqui queremos nos referir ao conjunto de celebrações que constituem o culto público e oicial da Igreja. 2 542 “misticismo” litúrgico. O liturgista Mario Righetti deine o alegorismo como “una interpretación simbólica o alegórica, extraña a la institución, que se da arbitrariamente a un objeto o a un rito en orden a la ediicación de los ieles”.5 O alegorismo litúrgico buscava interpretar de forma alegórica os diversos aspectos do ritual litúrgico, mesmo aqueles que não tivessem sido instituídos originalmente com algum signiicado simbólico. Segundo Righetti: La búsqueda de estos signiicados místicos, no muy raros en las obras de los Santos Padres, fué objeto de un estudio sistemático por la mayor parte de los liturgistas medievales, que lo extremaron muchas veces de modo inverosímil, atribuyendo a las cosas aun más insigniicantes um simbolismo que a nosotros modernos nos parece absurdo y extravagante, pero que era algo muy natural a los hombres del Medievo, los cuales em cualquier cosa entreveían un pensamiento divino y para quienes la ciencia consistía no tanto en el estudio de las cosas por si mismas cuanto en la penetración de las enseñanzas que para nosotros había puesto Dios em ellas.6 O alegorismo, nascido na Alta Idade Média7 continuará inluenciado a liturgia especialmente até o século XV, embora algumas teses alegoristas tenham sido condenadas pela Igreja ao passo de que outras incorporaram a própria Liturgia aprovada pela Igreja, como as admoestações na entrega das insígnias episcopais na ordenação do Bispo ou as orações prescritas para a paramentação dos sacerdotes.8 Os ritos litúrgicos de coroação serão igualmente afetados pelo alegorismo. RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia. Madrid: Biblioteca de Auctores Cristianos, 1955. V.1. p. 56. 6 Ibidem, p. 56. 7 Para maiores informações sobre o surgimento do alegorismo litúrgico, cf.: JUNGMANN, Josef Andreas. Missarum Solemnia: origens, história, liturgia e teologia da Missa Romana. São Paulo: Paulus, 2009. p. 102-108. 8 RIGHETTI, Mario. Op. Cit., V. I. p. 58. 5 543 Os primeiros ritos de coroação aparecem em Bizâncio no século V. Inicialmente a cerimônia era realizada no Palácio Imperial do Hipódromo de Constaninopla, na qual o Patriarca impunha a coroa sobre a cabeça do Imperador enquanto recitava uma fórmula intercessória. Após o século VII, a cerimônia passou a ser celebrada na Basílica de Santa Soia e o rito recebeu incrementos.9 Já no Ocidente, a partir principalmente do século VII encontramos o rito de unção régia entre os reinos celtas e anglo-saxões bem como na Hispania visigoda. A partir dos século VIII a unção passa a ser usada também entre os francos. O primeiro rito a unir coroação e unção régias encontra-se no Pontiical10 de Egberto de York (732-766), tendo sido utilizado durante toda a Idade Média para a coroação dos reis da Inglaterra.11 A unção remetia-se à tradição vetereotestamentária, na qual os reis hebreus eram ungidos pelos profetas e sacerdotes. No Ocidente, a unção se converterá no elemento mais importante e signiicativo da cerimônia litúrgica de coroação.12 A primeira cerimônia de coroação no Ocidente dá-se com a imposição do diadema imperial sobre Carlos Magno pelas mãos do papa Leão III no ano 800, na Basílica de São Pedro em Roma. Entretanto, durante o período carolíngio, o rito de coroação imperial ainda não contava com a unção e parece que havia uma nítida separação e diferença entre a cerimônia de unção régia franca e da coroação imperial. Este rito simples de coroação imperial carolíngia conserva-se em um Pontiical Milanês do século IX, mas é a partir do século X, com a ligação do Papado com a dinastia dos otônidas que o rito de coroação e unção imperial começa a desenvolver-se e essa versão incrementada é inserida no Pontiical romano-germânico do século X.13 O Pontiical da Cúria Romana do século XII já continha um desenvolvido rito de coroação imperial, inspirado no rito de Ibidem, V. II. p. 1037-1038. Chama-se “Pontiical” (Pontiicalis ou Ordinis líber) o livro que contém os ritos litúrgicos a serem celebrados por um Pontíice, isto é, um Bispo. Para tanto, vide RIGHETTI, Mario. Op. Cit., V. I. p. 314-319. 11 Ibidem, V. II. p.1038-1040. 12 Ibidem, p. 1038. 13 Ibidem, p. 1040. 9 10 544 consagração do Papa. Nele o Imperador prestava juramento de idelidade à Igreja e depois era introduzido na Basílica Vaticana pelo cardeal-bispo suburbicário de Albano, sendo depois ungido com o óleo dos catecúmenos no braço direito e nas costas pelo cardeal-bispo de Óstia. Depois desse momento, recebia a espada (que devia, após recebê-la, brandi-la no ar), o cetro e o orbe dourado do Papa que, tendo entregado as insígnias, lhe empunha a coroa sobre a cabeça recitando uma fórmula intercessória pelo monarca.14 Este Pontiical foi reformado pelo papa Inocêncio III em inícios do século XIII,15 sendo que no rito de coroação imperial em questão também houve algumas modiicações. Algumas destas mudanças são: a imposição de uma mitra sobre a cabeça do imperador antes da imposição da coroa, e a inserção de uma celebração pelo papa de uma Missa pontiical pro Imperatore após a coroação na qual o Imperador oiciava modo subdiaconi.16 O Pontiical de Guillaume Durand (Bispo de Mende, falecido em 1285), da segunda metade do século XIII, que, embora inspirado no Pontiical da Cúria Papal, destinava-se mais ao uso dos bispos diocesanos,17 continha um Rito para a Coroação dos Reis, com algumas modiicações. Prescrevia-se a celebração da cerimônia por parte do Arcebispo Metropolitano: o juramento de idelidade do rei e a unção se davam antes da Missa pontiical; após o canto do Gradual e antes da leitura do Evangelho da missa, o Arcebispo metropolitano entrega as insígnias reais e impõe a coroa sobre a cabeça do rei e em seguida entroniza-o em um trono real preparado ao lado do Altar ao passo que se canta um Te Deum solene e assim prossegue-se a celebração da Missa pontiical que o rei continua a assistir de seu trono. Este rito foi a base para os ritos de coroação dos demais reinos da Cristandade latina, embora houvesse variações locais,18 o que era comum a toda a Liturgia Romana antes da reforma de Pio V no século XVI. Ibidem, p. 1041. Ibidem, V. I. p. 316. 16 Ibidem, V. II. p. 1041-1042. 17 Ibidem, V. I. p. 316-317. 18 Ibidem, V. II. p. 1042. 14 15 545 Passemos, pois, às considerações sobre o uso desses ritos como argumento no embate teórico entre os poderes espiritual e temporal nos séculos XIII e XIV. Conforme aponta Luciano Daniel de Souza: A coroação, unção e sagração de reis pelo papa não eram gestos meramente religiosos. Se os primeiros papas agiram pensando apenas em conferir um caráter sagrado à função real, papas posteriores utilizavam este ritual como um argumento para airmarem que era o poder espiritual que conferia legitimidade ao poder temporal.19 Os defensores da Plenitudo Potestatis Papae buscavam no rito de coroação e unção imperial e real uma forma de explicitar a submissão do poder temporal ao poder espiritual. O primeiro aspecto desse argumento era a sacralidade que o rito conferia ao poder imperial/ régio. A unção era considerada um sacramental e conferia ao monarca ungido um caráter semelhante ao das ordens menores,20 de forma que, como foi mencionado anteriormente, o rei ou imperador ungido podia servir nas missas como subdiácono. Se isso a princípio poderia dar margem às pretensões de alguns monarcas como rex sacerdos, em última análise acabava por vincular de forma mais nítida o rei ou imperador à obediência ao Papa, ao passo de que este se encontrava inserido de certa forma na hierarquia clerical. Já mencionamos que na Baixa Idade Média os elementos da unção e coroação haviam sido inseridos em um mesmo rito na qual a unção assumia um papel preponderante. Ela se inspirava na narrativa do Antigo Testamento, na qual os reis de Israel eram ungidos pelos profetas ou sacerdotes dos hebreus (a primeira unção é a do rei David pelo profeta Samuel SOUZA, Luciano Daniel de. Autoridade e Poder: os limites do poder temporal e espiritual no século XIV, segundo o pensamento de Guilherme de Ockham. Dissertação de Mestrado em História apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP. Assis, 2007. p. 70. 20 As chamadas “Ordens menores” (subdiaconato, acolitato, leitorato, etc) eram consideradas por diversos autores eclesiásticos do Medievo como parte integrante do Sacramento da Ordem, ao lado das “Ordens maiores” (episcopado, presbiterado e diaconato). Desta forma, para grande parte do meio eclesiástico medieval os que recebiam as ordens menores eram considerados como clérigos, membros da hierarquia da Igreja. 19 546 narrada em I Samuel 10, 1).21 No Antigo Testamento a unção representava a eleição por parte de Deus do monarca para reger seu povo, mas os autores eclesiásticos deram uma nova interpretação a este gesto simbólico. Para os eclesiásticos medievais, a unção conferia ao monarca as graças e dons divinos necessários para reger e governar o povo cristão rumo à Bem-aventurança. Na simbologia da coroa e das insígnias é onde, contudo, o alegorismo aparece de forma mais latente. A fórmula de imposição da coroa imperial do Pontiical romano do século XII recordava a coroa eterna, imperecível da bem-aventurança em uma clara alusão da sobreposição do im sobrenatural ao im temporal: Accipie signum gloriae in nomine Patris et Filii et Spiritu Sancti ut, spreto antiquo hoste spretisque contagiis vitiorum omnium, sic iudicium et iustitiam diligas et ita misericorditer vivas, ut ab ipso Domino Iesu Christo, in consortio sanctorum, aeterni regni coronam percipias.22 Com relação às insígnias, a simbologia da espada é bastante signiicativa. A espada simboliza o exercício do poder pelo príncipe secular (Romanos 13, 4) e entrou deinitivamente para a teoria política medieval na medida em que as duas espadas de São Pedro Apóstolo (Lucas 22, 36-38) passaram a simbolizar, a partir de São Bernardo de Claraval, os poderes espiritual e temporal. Assim, o fato de o imperador receber a espada do papa e o rei recebê-la do Arcebispo primaz simbolizava o fato de que o monarca recebia seu poder da Igreja devendo usá-lo à serviço da Igreja. É, portanto, na simbologia da unção, da coroa e da espada que o rito de Coroação exprime as relações entre os poderes espiritual e temporal. Vejamos agora como essa relação foi colocada pelos defensores da proeminência do poder espiritual. Uma das primeiras menções ao rito de coroação como argumento em favor da sujeição do poder temporal ao espiritual encontra-se em Hugo de São Victor no tratado De sacramentis idei christianae. 21 22 SOUZA, Luciano Daniel de. Op. Cit., p. 70. RIGHETTI, Mario. Op. Cit., V. II. p. 1041. 547 Baseando-se no dito do Apóstolo Paulo de que o inferior é abençoado pelo superior, Hugo sustenta que o fato de os reis e imperadores receberem a bênção dos pontíices na sua coroação é um sinal de que o poder secular estava abaixo do poder espiritual.23 As decretais papais referem-se ao fato de o Imperador receber as insígnias do Papa,24 o que o colocaria em sujeição ao dito Pontíice. Signiicativo nesse sentido é a decretal Aeger cui lenia, de Inocêncio IV, na qual o Sumo Pontíice escreve ao Imperador Frederico II recordando o rito da sua coroação por Inocêncio III: Portanto, se o poder desta espada material está incorporado na Igreja e se tal poder está potencialmente incluído no seu interior, ele torna-se ativo quando é transferido ao príncipe. Com efeito, aquele rito pelo qual o Sumo Pontíice apresenta a espada embainhada a César, que por ele, Pontíice, vai ser coroado, demonstra-o claramente, pois o Imperador, após a receber, a retira da bainha e, brandindo-a, comprova que recebeu da Igreja o direito de usá-la [...].25 Com relação à unção, Inocêncio III expõe na Decretal De sacra unctione que a diferença do modo com os pontíices e os reis são ungidos revela a diferença de dignidade e proeminência entre os dois poderes: os pontíices eram ungidos na cabeça, mostrando que deveriam estar acima dos demais na Igreja, ao passo de que os reis eram ungidos nos braços e ombros, para mostrar que deveriam agir obedecendo a Igreja e em favor da Igreja.26 SOUZA, José Antônio de C. R. de. O Reino de Deus e o Reino dos Homens: as relações entre os poderes espiritual e temporal na Baixa Idade Média (da Reforma Gregoriana a João Quidort). Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 91. 24 A decretal Venerabilem de Inocêncio III expunha que o rei eleito pelos Príncipes do Império só recebia o título imperial após ser ungido e coroado pelo Romano Pontíice. Cf.: SOUZA, José Antônio de C. R. de. O Reino de Deus e o Reino dos Homens. Op. Cit., p. 131. 25 SOUZA, José Antônio de C. R. de. Op. Cit., p. 145. 26 “Unde in veteri testamento non solum ungebatur sacerdos, sed etiam rex et Propheta, sicut in libro Regum Dominus praecepit Heliae: “Vade et revertere in 23 548 Além dessa relação de sujeição mediante a recepção das insígnias e da unção, no caso especíico do Sacro Império Romano os argumentos hauridos do rito de coroação também sustentam a tese da translatio imperii, exposta por Inocêncio III na decretal Venerabilem, pela qual se dizia que o Sumo Pontíice havia transferido o Império Romano dos gregos (bizantinos) para os germânicos com a coroação imperial de Carlos Magno pelo papa Leão III no Natal do ano 800.27 A translatio imperii dava uma vinculação maior do Imperador com a Sé Apostólica, na medida em que o colocava numa posição de destaque dentre os demais reinos como minister defensor et advocatus Ecclesiae. No século XIV, tais argumentos continuaram a ser utilizados pelos defensores da Plenitudo Potestatis. Um dos principais defensores dessa tese na primeira metade do século XIV foi o canonista galego Álvaro Pelayo, franciscano, que em 1333 foi nomeado bispo de Silves, no Algarve.28 Frei Álvaro envolveu-se no conlito entre o imperador domum tuam per desertum in Damascum, quumque perveneris illuc, unges Hazael regem super Syriam, et Iehu ilium Namsi unges regem super Israel. Elisaeum autem ilium Saphat, qui est de Abel-Meula, unges Prophetam pro te.” Sed ubi Iesus Nazarenus, quem unxit Deus Spiritu sancto, sicut in Actibus Apostolorum legitur, unctus est oleo pietatis prae consortibus suis, qui secundum Apostolum est caput ecclesiae, quae est corpus ipsius, principis unctio a capite [scilicet] ad brachium est translata, ut princeps extunc non ungatur in capite, sed in brachio, sive in humero, vel in armo, in quibus principatus congrue designatur, iuxta illud, quod legitur: “Factus est principatus super humerum eius, etc.” Ad quod etiam signiicandum Samuel fecit poni armum ante Saul, cui dederat locum in capite ante eos, qui fuerunt invitati. In capite vero pontiicis sacramentalis est delibutio conservata, quia personam capitis in pontiicali oicio repraesentat. Refert autem inter pontiicis et principis unctionem, quia caput pontiicis chrismate consecratur, brachium vero principis oleo delinitur, ut ostendatur, quanta sit diferentia inter auctoritatem pontiicis et principis potestatem.” INOCÊNCIO III, Papa. Decretal De sacra unctione, cap. I, § 5. In: GREGORII IX Decretalium Compilatio. Disponível em http://www.intratext.com/IXT/LAT0833/_P5N.HTM. Acesso em 15 de novembro de 2011 (grifos nossos). 27 “[...] considerando que receberam este direito e poder [de eleger o Imperador] da Sé Apostólica, que transferiu o Império Romano dos gregos para os germanos na pessoa do magníico Carlos.” Citado em: SOUZA, José Antônio de C. R. de. O Reino de Deus e o Reino dos Homens. Op. Cit., p. 131. 28 SOUZA, José Antônio de C. R. de. As Relações de Poder na Idade Média Tardia: Marsílio de Pádua, Álvaro Pais e Guilherme de Ockham. Porto Alegre: EST Edições, 2010. p. 73-94. 549 Luis IV e o papa João XXII, tomando partido do Sumo Pontíice e, mais tarde, quando exercia o múnus episcopal em Silves, entrou em confronto com o rei Afonso IV de Portugal devido a sua política de controle e tributação do clero português, bem como pela guerra movida pelo monarca de Portugal contra o rei de Castela. Álvaro Pelayo utiliza-se dos argumentos hauridos dos ritos de coroação para defender a proeminência do poder espiritual sobre o temporal em dois de seus tratados: o De statu et planctu Ecclesiae, que, embora tenha sido revisto e ampliado em outras ocasiões posteriores pelo próprio autor, foi em sua maior parte escrito durante o conlito entre João XXII e Luis IV; e o Speculum Regum, dirigido ao rei Afonso XI de Castela, escrito quando Frei Álvaro já estava a frente da diocese de Silves, por volta de 1341-1344. No De statu et planctu Ecclesiae, Álvaro detêm-se de forma mais especíica nas relações entre o Papado e o Império. No Artigo XL do I Livro, o canonista galego repete o argumento do papa Inocêncio IV na decretal Aeger cui lenia segundo o qual a recepção da espada embainhada das mãos do Papa e o fato de o Imperador brandila no ar somente depois de recebê-la do Pontíice signiicava que o Imperador só tinha direito de exercer o poder imperial somente após recebê-lo da Sé Apostólica.29 Já no artigo XLIII, copiando trechos da Determinatio compendiosa de jurisdictione Romani Imperii do canonista dominicano Ptolomeu de Luca que citam Inocêncio IV, Álvaro expõe o fato de o imperador ter um vínculo especial de sujeição ao papa pelo fato de, diferentemente dos demais reinos, onde a sucessão se dá de forma hereditária, o imperador só receber o título e a dignidade imperial após ser coroado e ungido pelo Romano Pontíice em conirmação à eleição feita pelos príncipes do Império, sob concessão da Santa Sé.30 “[...]Também Inocêncio IV escreve que, quando o imperador Frederico recebeu a coroa das mãos do sumo pontíice, recebeu ao mesmo tempo a espada metida na bainha, mas que o imperador [...] a desembainhou e vibrou, par indicar que o seu ministério procedia do papa e que o ofício da execução vinha após a coroação.” Citado em SOUZA, José Antônio de C. R. de. As Relações de Poder na Idade Média Tardia. Op. Cit., p. 237. 30 SOUZA, José Antônio de C. R. de. As Relações de Poder na Idade Média Tardia. Op. Cit., p. 245. 29 550 Álvaro Pelayo volta a tratar do rito de coroação no Speculum Regum, mas desta vez tratando do que neste aspecto diz respeito aos reis de forma mais geral e dirigindo-se de forma especial ao rei de Castela.31 Trata novamente da questão da transferência da coroa e do gládio como símbolo da transferência de poder do prelado para o rei: Item é de notar que o rei recebeu a coroa das mãos da Igreja, como o imperador, para ser o defensor da fé e da Igreja, e o conservador de seus direitos. Donde se vê que ele está para o papa, como a mão para a cabeça, no defender e no servir [...]. Por isso, qualquer rei recebe o gládio, das mãos de um bispo de seu reino, que lho dá em nome da Igreja, entendendo-se que com o gládio recebe o cuidado e o governo de todo o reino, assim como o imperador, o cuidado e o governo de seu império.32 Além da simbologia da transferência na entrega das insígnias reais, Álvaro dá uma dimensão teológica e prática para a unção, considerando-a portadora da Graça especial sem a qual um rei cristão não conseguiria reinar com sabedoria sobre um povo cristão: O Senhor quis também instituir e destituir, por meio da dignidade sacerdotal, as dignidades temporais, [...]. E os pontíices ungem e abençoam os reis católicos, invocando sobre eles a graça do Espírito Santo, para mostrarem que, sem um dom especial do Espírito Santo, que unge os iéis com unção interior, não são os reis capazes de reger o povo do Santo Deus [...]. E nesta unção recebe o rei, do Espírito Santo, a prudência de governar, que é a recta razão das coisas agíveis.33 “Rei egrégio, que dignamente reinas, este ofício de te ungir, coroar e dar o gládio, em teu reino, justa, digna, e primordialmente compete ao Arcebispo de Compostela, vigário do Apóstolo Santiago, principal protector do teu reino.” PAIS, Álvaro. O Espelho dos Reis (Speculum regum). Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1955. V. I. p. 139. 32 PAIS, Álvaro. Op. Cit., V. I. p. 137. 33 Ibidem, p. 41-43. 31 551 É de notar a insistência de Álvaro Pelayo no rito de coroação em uma obra dirigida a um monarca ibérico, haja vista que (exceto o reino aragonês), não era costume nos reinos ibéricos a coroação e unção régia mediante um rito litúrgico durante os séculos XIII e XIV. Mesmo tendo sido ungido durante o ritual litúrgico, Afonso XI impôs a coroa sobre sua própria cabeça ao invés de recebê-las das mãos do prelado conforme prescreviam as rubricas.34 Segundo Armênia Maria de Souza, os reis ibéricos não sentiam necessidade de legitimarse mediante uma investidura litúrgica haja vista que buscavam legitimidade no passado visigodo e na função de milites Christi, que defendiam a Cristandade contra os muçulmanos.35 É possível que Frei Álvaro salientasse o aspecto da unção e coroação por ver nestes um sinal da sacralização do poder régio, o que evidenciaria sua tese de que o poder temporal era ao seu modo espiritual na medida em que visava reger os súditos de forma que eles pudessem ter boas condições de alcançarem a bem-aventurança.36 Vemos, portanto, que a Liturgia de coroação imperial e régia, desenvolvida a partir do Pontiical da Cúria Romana do século XII, reformado por Inocêncio III, foi fortemente inluenciada pela Teocracia Papal de forma, que as rubricas, as fórmulas e as orações buscavam evidenciar a proeminência do poder eclesiástico sobre o poder secular. Em alguns casos, o rito foi levemente modiicado para realçar o poder régio, como em Aragão ou França, embora na maioria dos casos acabasse por salientar a submissão do rei à Igreja. Os ditos argumentos hauridos dos ritos de coroação em favor da Plenitudo Potestatis papal foram rejeitados pelos seus adversários do século XIV. Autores como Marsílio de Pádua e Frei Gulherme de Ockham sustentarão o caráter acidental e cerimonial do rito de coroação em SOUZA, Armênia Maria de. Os pecados dos reis: a proposta de um modelo de conduta para os monarcas ibéricos no Estado e Pranto da Igreja e no Espelho dos Reis do franciscano galego D. Álvaro Pais (1270-1350). Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília. Brasília, 2008. p. 56. 35 Ibidem, p. 61. 36 PAIS, Álvaro. Op. Cit., V. I. p. 110; 210. 34 552 detrimento da aclamação, eleição e consenso dos príncipes.37 Contudo, isto não quer dizer que o alegorismo litúrgico tenha desaparecido de todo nem que a sacralização da igura régia tenha deixado de ser considerada, embora em aspectos diferentes, tanto que o rito de coroação dos reis foi mantido na reforma do Pontiical Romano por Leão XIII no século XIX. SOUZA, José Antônio de C. R. de. As Relações de Poder na Idade Média Tardia. Op. Cit., p. 214; SOUZA, Luciano Daniel de. Op. Cit., p. 71. 37 553 A JUSTIçA SEGUNDO OS PRÍNCIPES: CONCEPçÕES POLÍTICAS NA REALEZA MEDIEVAL PORTUGUESA NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XV Rafaella Caroline Azevedo Ferreira de Sousa (Mestranda PPGH – UFF) Há produção de obras voltadas à educação de príncipes desde a Antigüidade Clássica,1 como os livros de Cícero, Aristóteles e Sêneca. Estes expunham um ideal de governante, de bom governo e como tornar o príncipe um modelo para sua comunidade. Da mesma forma, em Portugal na Idade Média houve produções de livros desse gênero, como o Speculum Regum do frei Álvaro Pais, escrito entre 1341 e 1344. Aqui nos interessam, contudo, as obras escritas pelos príncipes de Avis na primeira metade do século XV, o Leal Conselheiro e o Livro da Virtuosa Benfeitoria, escritos, respectivamente, por D. Duarte e pelo infante D. Pedro. Nosso trabalho se insere cronologicamente, portanto, no período entre o reinado de D. Fernando, último rei da dinastia de Borgonha, cujo reinado se iniciou em 1367, e a Batalha de Alfarrobeira em que morreu o infante D. Pedro em 1449. Segundo Oliveira Marques,2 a crise geral do século XIV atingiu seu ponto mais drástico durante o reinado de D. Fernando. Contribuíram para a crise as várias guerras contra Castela, deinidas, também por Oliveira Marques, como “aventuras guerreiras”3 em que o rei se envolveu por pressão de uma nobreza jovem e de enriquecimento recente. Ao falecer sem deixar herdeiros homens, abriu caminho para uma possível anexação de Portugal a Castela, já que sua ilha D. Beatriz era casada com D. João I de Castela. Ao inal daquela que icou conhecida como Revolução de Avis, o SOARES, Nair. O príncipe ideal no século XVI e a obra de D. Jerônimo Osório. Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Cientíica, 1994. 2 MARQUES, A. H. de Oliveira. Nova História de Portugal: Portugal na crise dos séculos XIV e XV. Lisboa: Presença, 1986. p. 662. 3 Ibidem, p. 511. 1 554 Mestre de Avis, D. João, ilho bastardo do rei D. Pedro I, foi eleito rei de Portugal nas Cortes de Coimbra em 1385, dando origem à nova dinastia. Aqui nos interessa observar a participação da nobreza neste processo, pois, é enfatizado o apoio dado ao então Mestre de Avis pela nobreza secundogênita, enquanto a nobreza titular apoiou as pretensões castelhanas, mas Humberto Baquero Moreno airma que é falsa a idéia de que a velha nobreza apoiou exclusivamente a causa de D. Beatriz, mulher de João I de Castela. Muitos nobres da velha estirpe apostam desde a primeira hora na candidatura do Mestre de Avis, a par de outros, talvez a maioria, que seguem o partido legitimista da ilha do rei D. Fernando.4 Ainda assim, podemos airmar que há uma mudança na nobreza do reino, não só na grande nobreza, pois até a pequena nobreza algarvia5 é agraciada com mercês pelo rei D. João I por seu apoio. Como é atestado pela historiograia, essa dita “nova” nobreza agia exatamente como a nobreza na dinastia anterior ao demandar constantemente mercês ao novo rei que, embora tenha usado terras coniscadas para agraciar seus seguidores, ainda assim prejudicou gravemente o erário régio. D. João I criou novas casas nobiliárquicas, incluindo seus ilhos, D. Pedro, D. Henrique e D. Fernando, que se tornaram grandes senhores, mas também se viu frente a outros grandes senhores, notadamente Nuno Álvares Pereira, condestável do reino, que, por mercê régia, tornara-se conde de Ourém, conde de Barcelos, conde de Arraiolos e conde de Neiva. Isto é, um nobre com poderio capaz de rivalizar com o do rei. Os conlitos com a nobreza não tardaram a aparecer. Como aponta Baquero Moreno,6 nas Cortes ocorridas em Coimbra entre o MORENO, Humberto. A situação política em Portugal nos ins da Idade Média. In: ENCONTRO SOBRE HISTÓRIA DOMINICANA, 3. Actas... Porto, 1991. v. IV. p. 39. 5 Idem. A nobreza do Algarve nos ins da Idade Média. Revista da Universidade de Coimbra, Coimbra, v. XXXV, p. 367-378, 1989. 6 Idem. Contestação e oposição da nobreza portuguesa ao poder político nos inais da Idade Média. Revista da Faculdade Letras, Porto, v. 4, p.103-118, 1987. 4 555 inal de 1397 e o início de 1398, o rei sofre forte reação da nobreza por conta do não pagamento de rendas e conisco de terras. No que tange ao tema em foco neste trabalho, a justiça, Oliveira Marques airma que “característica dos séculos de Trezentos e Quatrocentos foram as restrições crescentes à jurisdição dos senhores nas suas terras”.7 Entretanto, a diiculdade de circulação pelo território diicultava a difusão das ordens emanadas do centro e o rei também não se movimentava por grande parte do reino. Ademais, a hierarquia administrativa contava com um número reduzido de funcionários para atender a questões de justiça, como os juízes e corregedores, e a iscalidade, com os almoxarifes e rendeiros.8 Dessa forma, não nos parece fortuito que D. Duarte e o infante D. Pedro tenham dedicado seus livros aos homens da corte. Assim diz D. Duarte no Leal Conselheiro: E tal trautado me parece que principalmente deve perteencer pera homẽes da corte que algũa cousa saibham de semelhante sciencia, e desejem viver virtuosamente, porque aos outros bem penso que nom lhes praza de o leer nem ouvir.9 Neste ponto, é válida uma breve descrição das obras com as quais trabalhamos. O Leal Conselheiro, segundo a datação estabelecida por Joseph Piel,10 foi compilado em 1438, nos últimos meses de vida do rei D. Duarte, a pedido da rainha. É composto de 103 capítulos. O Livro da Virtuosa Benfeitoria, tratado do Infante D. Pedro escrito com o Frei João Verba, é composto pela “Dedicatória”, a “tavoa” e os cento e cinco capítulos divididos em seis livros, em que os autores tratam do benefício, como dá-lo, como pedi-lo, como agradecê-lo. A MARQUES, Op. Cit., p. 283. MORENO, Humberto. O poder real e as autarquias locais no trânsito da Idade Média para a Idade Moderna. In: ___. Os municípios portugueses nos séculos XIII a XVI – Estudos de História. Lisboa: Presença, 1986. p. 76-92. 9 DOM DUARTE. Leal Conselheiro. Edição crítica, introdução e notas de Maria Helena Lopes de Castro. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998. p. 11. 10 PIEL, Joseph. Prefácio. In: DOM DUARTE. Leal Conselheiro. Lisboa: Livraria Bertrand, 1942. p. V-XXI. 7 8 556 “Dedicatória” é feita a D. Duarte, ainda infante, e serve como marco para a datação do início da obra, pois D. Pedro nela se refere às Cortes de Santarém realizadas em 1418. Quanto à data de conclusão, Adelino Calado11 defende o ano de 1429, mas existem várias hipóteses. Na pesquisa de mestrado que desenvolvemos no Programa de Pós-graduação em História da UFF sob orientação do Prof. Dr. Edmar Checon de Freitas analisamos a perspectiva destes autores no que tange às virtudes consideradas por eles necessárias a um bom rei. Algo comum a ambos os autores é a visão das virtudes em conjunto. Não é possível ter uma sem ter a outra. Ainda que os autores façam essa interligação, trataremos única e brevemente neste trabalho da principal virtude régia: a justiça. Primeiramente, é importante saber que todo o poder do rei vem de Deus. O rei é o representante de Deus na Terra. Como explicita claramente D. Duarte na seguinte passagem: “o que nos convem de fazer se bem usarmos do cárrego que, per o Senhor Deos, nos é dado”.12 Referência constante em ambas as obras, logo na primeira linha de seu tratado D. Pedro airma: “Deus que he geeral começo e im”.13 Como airmamos, as obras se destinam aos nobres, ainda que sirvam para qualquer pessoa que busque viver virtuosamente, pois “aynda que principalmente o liuvro aos príncipes sai aderençado, a outros muytos daa geral doutrina”,14 como airma D. Pedro na dedicatória. E por que aos príncipes? Na divisão da sociedade em estados proposta por D. Duarte, os nobres são os “defensores” e “a estes defensores som dados grandes liberdades e privilégios por a grande necessidade a que per eles toda a comunidade som algũas vezes no CALADO, Adelino Almeida de. Introdução. In: DOM PEDRO; VERBA, Frei João. Livro da Vertuosa Benfeytoria. Edição crítica, introdução e notas de Adelino de Almeida Calado. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1994. p. XXIVXXXVIII. 12 DOM DUARTE. Op. Cit., p. 29. 13 DOM PEDRO. O Livro da Virtuosa Benfeitoria. In: Obras dos Príncipes de Avis. Introdução e revisão de Manuel Lopes de Almeida. Porto: Lello & Irmão Editores, 1981. p. 525-763. 14 Ibidem, p. 530. 11 557 tempo do grande mester acorridos”.15 Isto é, os nobres recebem privilégios por desempenharem uma função especíica na sociedade. Por outro lado, é importante observar que, analisemos estes livros como formas de ambos os príncipes se colocarem frente aos nobres num contexto de disputa pelo poder em Portugal na Idade Média, o rei precisa dos nobres, não pode prescindir de seu apoio em terra ou nas empresas ultramarinas. Por isso, ambos os autores, e mais explicitamente D. Duarte airma que “nosso stado é de regedores e defensores”,16 ligando-se à nobreza, ainda que ao longo da obra tente determinar prerrogativas régias. Da mesma forma, D. Pedro dá três razões para que seu tratado seja destinado aos príncipes: os nobres são mais dispostos a usar aquilo que aprenderam lendo o livro, para que eles aprendam que não devem esconder seu dinheiro, mas sim usa-lo em fazer o bem e mercês para ganhar a lealdade de seus súditos e, principalmente, quem mais uerdadeiramente possue o nome dalguũ oiçio mais lhe he compridoyro de saber husar delle (...) pois o nosso senhor Ihesu christo chamou aos prinçipes em no seu euangelho segundo diz sam luca aos doze capitullos, benefeci que quer dizer fazedores do bem, mostrassse claramente que esta obra a elles he muyto compridoyra, por nom seer o nome alongado da uerdade da sua signiicaçom e por gaançarem de sua concordança mereçimento os que em desuayrando sofreram sem duuida tormento penoso.17 Assim, a função dos príncipes é dar e fazer o bem. D. Pedro em sua obra estrutura um modelo de sociedade perfeita baseada no benefício, um bem feito a outrem por vontade própria,18 criada por Deus, aquele que somente dá benefícios, e em cujo topo está o rei, aquele que deve ser o maior benfeitor, pois “os senhores som mais chegados a deos DOM DUARTE. Op. Cit., p. 25. Ibidem, p. 29. 17 DOM PEDRO. Op. Cit., p. 536. 18 Ibidem, p. 542. 15 16 558 que os outros homeẽs”19 e “muyto mais deuem os prinçipes partir o que teem, fazendo a todos merçees segundo que deuem que por esto lhe outorgou deos o regimento”.20 Dessa forma, “todos os prinçipes deuemos squyvar scarçesa, trabalhando de seer semelhantes a deos do quall diz o apostollo santiago no primeyro capitullo da sua epistolla, que elle da auondosamente a todos”.21 E um dos benefícios que o rei deve outorgar à comunidade é, nos dizeres do infante, a “dereytura”, ou seja, a justiça, que ele divide em três partes. A primeira he conuenhauel proporçom antre o prinçipe e o seu senhorio. (...) E maginando o prinçipe o que he uerdade .s. que he natural tetor de seu poboo, nom usara de crueldade com aquelles que pera sua defensoom lhe derom a spada. Mas sentindo a door da comunydade auera compaixom dos menbros que o soportam. Porque aquella he uerdadeyra dereytura que aos pequenos he guardada que nom podem contradizer.22 A comunidade, ou o corpo, na analogia23 recorrentemente feita na Idade Média, suporta a cabeça, o rei, que deve defender esta comunidade, pois ela lhe deu este ofício. Segue D. Pedro, airmando que a segunda parte “he aproueytar aos que uiuem bem em o corpo comuũ, fazendo aiuda pera o melhorar em aquello que podem. E destes deue o prinçipe teer special cuydado e manteer cada huũ em o stado que deue auer”.24 O autor atenta para aqueles que fazem bem visando ganhar mercês régias e ascender socialmente, o que o rei não pode permitir, pois deve manter cada um em seu estado, isto é, manter a desigualdade na sociedade desigual e dar mercês àqueles que de fato merecem. E, por im, a terceira parte, que Ibidem, p. 578. Idem. 21 Ibidem, p. 578-579. 22 Ibidem, p. 616. 23 LE GOFF, J. TRUONG, N. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. 24 DOM PEDRO. Op. Cit., p. 616. 19 20 559 da dereytura he castigar os maaos, (...) mas temperando os regedores sua sanha iulgem tam soomente aquello que for proueytoso ao corpo moral. E os príncipes que fazem direyto segundo a ley, trabalhemsse de seer a ela semelhantes, que per ódio, nem per amor nunca se muda.25 Neste ponto, ressaltamos a importância dada por D. Pedro às leis e sua imutabilidade. O infante defende, portanto, um rei irme, que defende o seu reino, mantendo a ordem e pautando suas decisões nas leis escritas e conhecidas de todos, não se deixando levar por emoções. D. Duarte também enfatiza a necessidade de que o rei conheça bem as leis, airmando que “deve ainda de seer entendido e sabedor, que saibha lex, e custumes, e reglas de dereita razom as quais lhes sejam principios e fundamentos de que proceda em seus feitos”.26 Este monarca icou conhecido por sua preocupação com o ato de legislar, pois, desde o período de sua associação ao trono pelo rei D. João I a partir de 1412, fez vinte e seis ordenações nesse período, versando sobre as mais diversas áreas da governação: justiça, administração, questão militar, funcionalismo régio, e, inclusive, sobre o comportamento sexual de membros do clero. Além de ter sido iniciada em seu reinado a compilação das Ordenações Afonsinas. Em relação à nobreza, D. Duarte continua a sofrer pressões dos grandes senhores. O costume instaurado por D. João I de retomar terras da coroa dadas aos nobres, a que nos referimos anteriormente, se torna lei escrita por D. Duarte em 1434, a Lei Mental, seguindo uma tendência dentro do Direito, em que “já no século XIV, mas mais ainda no XV e, sobretudo, no XVI, veriica-se um grande esforço de passagem dos costumes a escrito, aproximando-os tendencialmente das leis”.27 A lei parte do princípio de que os bens da coroa são inalienáveis, por isso o rei pode interferir na sucessão desses bens, condicionando-a a três aspectos: indivisibilidade, primogenitura e Ibidem, p. 616-617. DOM DUARTE. Op. Cit., p. 209. 27 DUARTE, Luís Miguel. Justiça e criminalidade no Portugal medievo (14591481). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. p. 140. 25 26 560 masculinidade. Indivisibilidade, porque os bens pertencem à família, não podendo ser pulverizados entre os herdeiros. Primogenitura, reservando o direito à sucessão ao ilho mais velho. Masculinidade, excluindo as mulheres do recebimento dos bens, a não ser que o rei abra exceções.28 Ao tratar então da justiça em sua obra, D. Duarte, além de passagens em outros capítulos, lhe dedica especiicamente o capítulo LX intitulado “Das virtudes que se requerem a ũu boo julgador”. Logo no título podemos perceber a tônica do pensamento do monarca em relação às virtudes: elas estão sempre interligadas, formando um conjunto que todo homem deve buscar alcançar, ou seja, o monarca conforma um modelo de homem virtuoso, cujo exemplo máximo deve ser o rei. Como airma logo no prólogo, “E a Nosso Senhor Deos em grande mercee terria, se, de minha vida, feitos e dictos, muitos ilhassem proveitosa ensinança e nunca o contrairo”.29 Assim, para o monarca, para ter a virtude da justiça, é necessário haver “dereitura geeral da voontade em todalas cousas”,30 “grande e boo entender”,31 prudência, temperança, “que persevere em bem obrar”,32 fortaleza, enim, todas as virtudes de que trata em sua obra e que também evite todos os pecados. Nos dizeres do rei, som necessárias a ũu boo julgador haver todas estas virtudes em boa soiciencia, porque falecendo muito em algũa, posto que as outras razoadamente haja, convem que nunca dê boa execuçom nos mais dos feitos.33 Por im, com o seguinte trecho podemos sintetizar a relexão deste rei sobre esta virtude: CAETANO, Marcello. História do Direito Português (1140-1495). Lisboa: Verbo, 1985. p. 514. 29 DOM DUARTE. Op. Cit., p. 8. 30 Ibidem, p. 243. 31 Ibidem, p. 243. 32 Ibidem, p. 243. 28 33 Ibidem, p. 244. 561 E pera reger a voontade havemos justiça que nos manda em toda cousa obrar o que justo e dereito for, ainda que al mais desejemos ou por elo mal, trabalho ou perda duvidemos receber. E, per esta justiça, devemos a Nosso Senhor Deos honra e obediência, aos prouximos amor e concórdia, a nós castigo e disciplina.34 Observamos nesta breve análise, portanto, que, num contexto de disputas entre poderes concorrentes em Portugal na primeira metade do século XV, D. Duarte e D. Pedro, membros da realeza, produziram obras de cunho moralístico e civilizador, voltadas exatamente para os homens da corte, em que desenvolveram, respectivamente, um modelo de homem virtuoso e um modelo de sociedade perfeita, sendo que, em ambos, a cabeça, o exemplo máximo era o rei. 34 Ibidem, p. 201. 562 O GRANDE DESVAIRO – A VISãO CAMONIANA SOBRE O EPISÓDIO DE INÊS DE CASTRO Raquel Hofmann Monteiro (Graduanda Gama Filho) Introdução No épico Os Lusíadas, Luís Vaz de Camões se propõe a realizar uma narrativa da História de Portugal, dos primórdios até a época das Grandes Navegações. O poeta utiliza a viagem de Vasco da Gama como io condutor de sua obra, trata de episódios que julga relevantes para a formação nacional de Portugal, momentos que, em grande maioria, são relatos de guerras ou então carregam algum grau de belicosidade.1 Na segunda estrofe, o poeta nos fala que cantará por toda a parte os feitos daqueles que, através de empreitadas valorosas se libertaram da Lei da Morte. Segundo António José Barreiros, a Lei da Morte seria o esquecimento da história de nossas vidas.2 Conforme o tempo passa depois de nossa morte, nossas memórias de vida vão sendo esquecidas por nossos descendentes e pelos descendentes destes. Entretanto, segundo Camões, há aqueles que se imortalizam através de suas trajetórias de vida, libertam-se do esquecimento, escapam da – dita inexorável – Lei da Morte mantendo-se na memória coletiva social. Percebendo esta tendência da narrativa camoniana, chegamos à nossa fonte histórica, ao ponto o qual nosso trabalho toca: a história do assassinato de Inês de Castro, amante castelhana – e possível esposa – do Infante Pedro de Portugal, ilho do rei Afonso IV, compreendida no Canto III do épico, nas estrofes 118 a 137. Ao longo Esta tendência se percebe já nas três estrofes introdutórias do épico: Camões nos diz que se dedicará a cantar as memórias “daqueles Reis” que expandiram “a Fé” e “o Império” e os feitos das “armas e barões” que navegaram “por mares nunca de antes navegados” e ediicaram “Novo Reino” entre gente remota. Cf.: CAMÕES, Luis Vaz de. Os Lusíadas. Porto Alegre: LP&M, 2009, p. 17-18. 2 BARREIROS, Antônio José. História da Literatura Portuguesa. Braga: Pax, 1973. p. 508. 1 563 de nosso trabalho percorreremos o trajeto de Luís de Camões sobre o episódio inesiano e considerando que o trecho sobre o assassinato de Inês de Castro não é uma narrativa de combate aos mouros, conquista de território ou de expansão dos domínios portugueses em terras distantes, é intrigante que Luís de Camões aja de forma avessa à tendência vigente na maioria de seu trabalho e em meio a narrativas bélicas, nos conte um drama romântico. Podemos perceber através das propostas que o poeta nos apresenta no começo de suas estrofes que Camões baseou sua narrativa em eventos históricos que considerava terem participação, direta ou indireta, no processo de estabelecimento do Império Português. O que nos leva a analisar a inclusão do episódio inesiano n’Os Lusíadas, é a crença que, ainda que seguindo uma linha narrativa diferente da maioria dos outros momentos que iguram no poema, Luís de Camões a tenha feito por este fato ter interferido de alguma forma no processo de formação nacional lusitano. Nosso propósito neste trabalho é analisar quais os motivos políticos levaram Camões a incluir um romance em seu épico ufanista. Através de qual a razão política Camões crê que Inês de Castro escapara à Lei da Morte? Fortuna e Virtù, Camões e Maquiavel Estavas, linda Inês, posta em sossego, De teus anos colhendo doce fruto, Naquele engano da alma ledo e cego, Que a Fortuna não deixa durar muito Nos saudosos campos do Mondego, De teus formosos olhos nunca enxutos, Aos montes ensinando e às ervinhas O nome que no peito escrito tinhas.3 Fortuna é uma divindade antiga de origem romana cujo nome virou sinônimo das energias que personiicava e regia: a sorte, boa ou ruim, dos seres humanos. 4 Para os antigos, Fortuna escrevia e reescrevia o destino de acordo com os caprichos do acaso. Luís de CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 110. CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus – Mitologia Ocidental. São Paulo: Palas Athena, 2004. p. 255-264. 3 4 564 Camões tivera origens idalgas, frequentara a Corte de Portugal no reinado de D. João III e a Universidade de Coimbra em meados do século XVI.5 O poeta era estudioso de temas que vão de astronomia à mitologia, passando por geograia, política, cultura clássica, poesia culta e popular e esta vasta gama de conhecimentos se faz muito clara ao longo d’Os Lusíadas, como por exemplo, na estrofe citada acima. Ao usar este termo em sua obra, Camões tira a responsabilidade dos eventos das mãos desta ou daquela pessoa – assim como faria Fernão Lopes ao supor que uma loucura acometera os envolvidos ao tratar o tema como um “grande desvairo”6 e ao desvairo entregar sua responsabilidade – e coloca-a nas mãos incertas do imprevisível. À época da concepção d’Os Lusíadas, Portugal era uma potência comercial e naval, pioneira nas Navegações. Seria no mínimo ingênuo acreditar que as expressões intelectuais e artísticas icariam isoladas de todos os novos furores do Portugal Moderno.7 O momento na Europa era prolíico: as inluências clássicas eram tremendas, a comunicação intelectual era intensa, e as novidades chegavam a todo instante nos portos europeus, uma inspiração que vinha de além-mar. Não seria estranho, portanto, que Camões tenha entrado em contato com a obra política de Nicolau Maquiavel. No início do século XVI, o lorentino transforma a divindade da Fortuna em conceito em sua obra O Príncipe: aplica-a em seu tratado político como fator determinante para os rumos de administração BARREIROS, Antônio José. Op. Cit., p. 463. LOPES, Fernão. Chronica del Rey D. Pedro I deste nome, e dos reys de Portugal o oitavo cognominado o Justiceiro na forma em que a escereveo Fernão Lopes. Copiada ielmente do seu original antigo pelo Padre Jozé Pereira Bayam. Lisboa Occidental: Na Oic. de Manoel Fernandes Costa, 1735. Disponível em http:// purl.pt/422. Acesso em 10 de novembro de 2011. 7 “A transição para a modernidade, em Portugal, coincidiu com o surgimento do humanismo na Península Ibérica. Para isso foram importantes as tradicionais relações comerciais com as cidades italianas e as relações políticas com a Igreja. Já existiam, desde o século XV, preceptores italianos de nobres portugueses. Além disso, a presença de estudantes vindos de Portugal nas Universidades de Bolonha, Salamanca. Pádua, Paris, Siena, Louvain e Oxford contribuiu para colocar o país nos circuitos intelectuais que começavam a respirar o ar da modernidade renascentista.” Cf.: WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C. M. Formação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p. 36. 5 6 565 de um Estado. Maquiavel também põe sua Fortuna em oposição e complementação a outra persona-conceito, a Virtù. A Fortuna maquiaveliana rege apenas metade da sorte dos homens, sendo a outra metade levada ao sabor do livre arbítrio humano, levando a sucessões ininitas de acaso cotidiano. Para Maquiavel, Virtù seria o mérito da habilidade de utilizar o livre-arbítrio em sua vida de forma que melhor lhe aprouvesse e no que melhor resultasse – o que no tratado de Maquiavel se aplica aos atos deliberados dos governantes que visariam o bem maior para si no que dizia respeito a seus domínios e seus súditos.8 Ou seja, para Maquiavel,9 nas artes de domínio de um Estado a Fortuna (o acaso, as circunstâncias, o livre-arbítrio de outrem) e a Virtù (o mérito das decisões tomadas sob o livre-arbítrio individual) opunham-se e ao mesmo tempo caminhavam paralelas. O governante de um Estado deve estar ciente sempre de que está inevitavelmente atado à Fortuna, mas deve fazer seu máximo para exercer sua Virtù e não deixar-se arrebatar pelo acaso e assim, perder seus domínios.10 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Porto Alegre: LP&M, 2010. p. 53-56. “Maquiavel concordava que esse termo se referia à qualidade necessária ao governante para vencer as incertezas da Fortuna ou da sorte, e buscar desse modo resultados como a honra, glória e fama. (...) Maquiavel repeliu a convicção dominante de que o meio mais seguro de realizar esses ins (honra, glória e fama) consistia sempre em agir de modo convencionalmente virtuoso. (...) Pelo contrário, ele havia insistido no valor da fraude e da mentira (...) deixa de haver qualquer conexão necessária entre os conceitos de Virtù e virtude. Virtù icaria simplesmente identiicada a quaisquer qualidades que, na prática, fossem necessárias para salvar a vida e preservar a liberdade da pátria.” Cf.: ARNAUT, Cezar; BERNARDO, Leandro F. Virtù e Fortuna no pensamento político de Maquiavel. Acta Scientiarum, Maringá, v. 24, n.1, 2002. p.100. Disponível em http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ ActaSciHumanSocSci/article/viewFile/2414/1695 Acesso em 09 de novembro de 2011. 10 Maquiavel nos diz em O Príncipe sobre as razões pelas quais os príncipes da Península Itálica perderam seus poderes e assim nos dá um claríssimo exemplo do que são sua Fortuna e sua Virtù:“Portanto, estes nossos príncipes, que por tantos anos regeram seus Estados , não devem imputar à sorte (Fortuna), mas à sua própria letargia, o fato de mais tarde os haverem perdido. Não havendo nunca em tempos calmosos cogitado que tais ventos poderiam mudar (o que é um vício comum a todos os homens, não importar-se com a tempestade no perdurar na bonança), em 8 9 566 O trabalho de Camões toca o de Maquiavel no concernente aos valores e conceitos por ambos trabalhados – no nosso caso, a Fortuna (e indiretamente, a Virtù). Pode-se dizer que a Fortuna de Maquiavel é equivalente à deusa romana de Camões no sentido que se refere a uma força além do controle dos participantes de determinado evento, que seria contrabalanceado pelo mérito das escolhas feitas por cada um. Por outro lado, é preciso que tenhamos sensibilidade de observação para distinguir que na obra camoniana estar além do controle do personagem não signiica necessariamente ser algo sobre-humano – este é, relembrando, um recurso lírico para abordagem de momentos que acontecem a todos os seres humanos. Uma vez que cada decisão tomada inluencia outras decisões vindas dos demais personagens da ‘cena’, cujas escolhas estão além da possibilidade de controle completo do primeiro ator social. Estas decisões são, para o envolvido, uma espécie de fortuna; ainal, o livre arbítrio acaba no exato momento em que um passo é dado em determinada direção e as reações são desencadeadas nos demais. Desta maneira, podemos dizer que o que é Virtú para alguns é Fortuna para outros. Sendo assim, quando Camões nos narra que o rei Afonso IV de Portugal, orientado por seus conselheiros, ordena que Inês de Castro seja executada, o monarca não estaria tomando uma atitude indiscriminada de encomendar a morte de uma amante inconveniente de seu ilho. A opção do rei de tirar “Inês do mundo”11 é uma decisão de Virtù, um ato político relacionado ao seu direito soberano de vida e morte sobre seus súditos quando assim julgar por bem do Estado, por bem do reino e por bem da sua dinastia. Camões utilizou-se da alegoria da Fortuna para ilustrar o que Inês jamais esperaria em sua hora derradeira, muito embora o poeta soubesse que naquele ato de sobrevindo a adversidade eles pensaram em fugir e não em defender-se, aguardando que o povo, farto da insolência dos vitoriosos, reclamassem enim a sua volta. Na falta de outros, esse pode ser um bom expediente, mas é bem inconsistente o plano de preterir-se outras soluções em favor desta; ainal, jamais desejarias um tombo baseando-te na certeza de encontrares alguém que te reerguesse. Isso, ou de fato não ocorre, ou, se ocorre não te traz qualquer segurança, pois esta é uma defesa covarde, alheia do teu controle. Somente são boas, são seguras, aquelas defesas dependentes de ti mesmo e do teu valor (Virtù).” Cf.: MAQUIAVEL, Nicolau. Op. Cit., p. 118119. 11 CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 111. 567 assassinato não existisse acaso, apenas um governante fazendo uso de seu poder, de sua Virtù. O Canto de Inês Geralmente, os leitores d’Os Lusíadas, ao chegar nesta etapa do épico camoniano, se deparam neste momento com uma dúvida bastante pertinente sobre a relevância da inclusão da história de amor de Pedro e Inês: “já que Camões se propôs a falar de episódios considerados à época relevantes para a formação do reino de Portugal, qual a razão então de ter narrado as desventuras amorosas de um rei enquanto este nem rei era ainda?”. Para solucionarmos esta questão, observemos atentamente a maneira como Vasco da Gama introduz o assunto do episódio inesiano ao Rei de Melinde: Passada esta tão próspera vitória, Tornado Afonso à Lusitana Terra, A se lograr da paz com tanta glória Quanta soube ganhar na dura guerra, O caso triste e digno da memória, Que do sepulcro os homens desenterra Aconteceu da mísera e mesquinha Que depois de ser morta foi Rainha.12 Camões inclui o episódio inesiano logo após narrar a vitória ibérico-cristã sobre os mouros na Batalha do Salado, um marco na história da Península: na ocasião, os reinos de Portugal e Castela iniciaram uma trégua na guerra que travavam para combater a invasão. Conquistada em 1340 às margens do Rio Salado, esta vitória que Camões menciona na estrofe 118 do Canto III representou o termo das tentativas de avanços dos mouros no território ibérico e um importante passo para a expulsão dos árabes da Península Ibérica.13 A inserção do episódio inesiano após este momento da Batalha do Salado indica que, segundo a proposta de Luís de Camões no início de seu épico, o envolvimento dos dois amantes teve inluência na Ibidem, p. 109. SERRãO, Joaquim Verissimo. História de Portugal. Estado, Pátria e Nação (1080 – 1415). Lisboa: Verbo, 1979. v. I. p. 268. 12 13 568 História da formação do Reino de Portugal. O poeta nos narra os episódios inesianos imersos em lírica e liberdades poéticas, mas ao analisar as entrelinhas, ao afastar os brilhos do romance, é possível enxergar os problemas políticos causados pela paixão de Pedro e Inês e as providências tomadas não por implicância paterna ou moral real exacerbada de Afonso IV mas para que problemas tais não pudessem tomar proporções ainda maiores e mergulhar a nação recémestabelecida no caos, no risco de fragmentação e na dependência. O poeta observa sutil o desenrolar da questão enquanto questiona-se sobre as motivações do Rei Afonso IV: Tirar Inês ao mundo determina, Por lhe tirar o ilho que tem preso, Crendo com sangue só da morte indigna Matar do irme amor o fogo aceso. Que furor consentiu que a espada ina, Que pôde sustentar o grande peso Do furor Mauro, fosse alevantada Contra uma fraca dama delicada?14 Segundo a interpretação de Camões, um “furor” levou Afonso IV a ordenar a morte de Inês de Castro, mas qual seria este furor? Quais os motivos que levaram o rei a, de acordo com o poeta, levantar contra Inês a mesma espada que ergueu contra os mouros? Seria uma única “dama delicada” tão perigosa quanto as hordas mouriscas que marcharam sobre o território da Península? D. Afonso IV temia que, após sua morte e de terem caído por terra todas as suas autoridades sobre quem o ilho se casaria ou não, Pedro assumiria compromisso com Inês e tornaria legítimos os ilhos que com ela tivera, estabelecendo assim uma perigosa aliança com a nobreza de Castela: Como airmei, destacam-se duas razões políticas para a morte de Inês. O risco da perda da independência portuguesa, pela inluência que os irmãos da dama exerciam junto a D. Pedro e a disputa de poder entre D. Afonso IV e D. Pedro.15 14 15 CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 111. SALES, Mariana. Vínculos políticos luso-castelhanos no século XIV. In: 569 Os motivos políticos mais profundos são omitidos pelo poeta, mas a delicadeza da situação de Afonso é exposta quando Camões deixa claro que o então viúvo Pedro não desejava casar outra vez.16 Os casamentos faziam parte de uma política de paz e alianças entre os reinos, a recusa de Pedro às sugestões de Afonso IV para que o Infante se casasse com outra mulher depois de Constança, representava um problema político para o reino de Portugal. A historiograia, desde Fernão Lopes, nos diz que o Infante Pedro recusou-se, inclusive, a casar-se com a própria Inês de Castro.17Ainda tratando o tema com sutileza, Camões expõe – o que é algo não muito comum em sua obra – que o povo também se opunha ao escândalo inesiano. A desaprovação de uma possível “opinião pública” ao que acontecia na Corte, entretanto é possível, levando-se em consideração as tendências literárias de Camões e o público ao qual sua obra era destinado,18 que o “pertinaz povo”19 que aparece na narrativa não seja a grande massa popular, e sim as camadas mais altas que seriam diretamente afetadas pelo relacionamento e possível matrimônio de Pedro e Inês. Ao nos debruçarmos sobre variada bibliograia para a realização desta pesquisa, encontramos em vários textos de temáticas diferentes um conceito intrigante e frequentemente associado à questão inesiana: Razão de Estado. Presente em estudos que falam desde sobre o assassinato de Inês em si até o tema periférico das relações políticodiplomáticas entre os reinos ibéricos ao longo do século XIV. Para começarmos a compreender o conceito de Razão de Estado e seu papel na questão inesiana é preciso que recorramos primeiramente a uma obra considerada fundamental no estudo dos conceitos políticos, o Dicionário de Política.20 De acordo com o dicionário, o MEGIANI, Ana Paula Torres; SAMPAIO, Jorge Pereira de. (Orgs.). Inês de Castro: a época e a memória. São Paulo. Alameda: 2008. p. 13-30, p. 23. 16 CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p.110. 17 SERRãO, Joaquim Veríssimo. Op. Cit., p. 277. 18 Luís de Camões ofereceu sua obra para D. Sebastião I, rei de Portugal entre 1557 e 1578. Ver: TUTIKIAN, Jane. Apresentação. In: CAMÕES, Luiz Vaz de. Op. Cit., p.11. 19 Ibidem, p. 112. 20 BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. 570 conceito de Razão de Estado é muito abrangente e pode ser aplicado a diversos tipos de sociedades em diferentes e variados estágios de complexidade política, cultural, econômica e social. Numa deinição bastante elucidativa da mesma obra: (...) a Razão de Estado é a exigência de segurança do Estado, que impõe aos governantes determinados modos de atuar. A doutrina respectiva pode ser formulada, em seu núcleo essencial, quer como uma norma perseritiva de caráter técnico (como: “se queres alcançar esta meta, emprega estes meios”), quer como uma teoria empírica, que comprova e explica a conduta efetiva dos homens de Estado em determinadas condições. Este comportamento é sobretudo veriicável no contexto das relações interestatais e da inluência que elas exercem na vida dos Estados, mas também pode-se constatar,conquanto em termos quantitativa e qualitativamente diferentes, na vida interna do Estado, no tocante aos aspectos em que ela não é condicionada pelas relações interestatais.21 Através desta breve explicação podemos começar a compreender o papel do conceito de Razão de Estado no episódio inesiano. O conceito está ligado à necessidade que o governante e seus auxiliares diretos tem de agir na direção da segurança de seus territórios – sejam estes reinos, impérios, principados, entre outros. Mas por que tantos autores tratam o romance de Inês de Castro com o Infante Pedro como um problema de Razão de Estado? Por que esta era uma questão que o rei de Portugal deveria resolver para o bem-estar de seu reino? Talvez Manuela Mendonça, em artigo escrito para o Colóquio Inês de Castro, possa fazer coro às nossas inquirições: Cabe agora perguntar o porquê do assassínio de D. Inês. Genericamente tem-se alegado razões de Estado, ou interesses senhoriais. Mas, a ser assim, importa tornar consistente a hipótese, pois que as relações extra-conjugais eram tidas, na época, como normais; 21 Ibidem, p.1066. 571 de facto, poucos são os monarcas que não têm ilhos bastardos, o que não supõe o assassinato das respectivas mães. De resto, pela mesma época, basta lembrar o próprio escândalo que teria sido a vida de Afonso XI ao apresentar publicamente a amante, Leonor de Gusmão, relegando para plano desconhecido a rainha de direito, Maria de Portugal. E certo é que tal atitude foi de molde a criar problemas entre as duas coroas, mas não ditou a morte da régia amante. Depois, mesmo o próprio Pedro, o Cruel, que havia de preferir Maria de Padilha aos vários casamentos que efectuou. E, no entanto, nenhuma das amantes foi assassinada. Por que Inês de Castro?22 Como observamos anteriormente, o problema que Afonso IV tinha nas mãos era mais que uma simples relação extraconjugal do ilho com uma cortesã; não era apenas uma questão da existência de ilhos bastardos para os quais seria dividida uma herança. O romance de Pedro e Inês delineava-se mais e mais ao longo do tempo como um problema político, uma questão que ameaçava o trono e a independência do país. Ao acatar os conselhos de seus homens de coniança e condenar a castelhana à morte, Afonso IV não buscara tratar um problema de escândalo moral – ainal de contas, Inês e Pedro, à ocasião do assassinato dela, estavam romanticamente envolvidos há cerca de quinze anos e viviam em situação amásia há quase uma década – e sim resolver uma questão de Razão de Estado. “O caso triste e digno de memória, que do sepulcro os homens desenterra”.23 Foi dessa maneira que Camões nos apresentou o drama inesiano, erguendo as almas dos túmulos para que ouvissem a trama assombrosa que ele nos contaria, engendrada não pela mente criativa de um lírico, mas pelas urgências violentas da governança de um Estado tão novo quanto era Portugal naquele 7 de Janeiro de 1355. MENDONçA, Manuela. O tempo de Inês de Castro. In: SOUSA, Maria Leonor Machado de. (Org.) COLÓQUIO INÊS DE CASTRO. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 2005. p. 24. 23 CAMÕES, Luiz Vaz de. Op Cit., p. 109. 22 572 Inês, Pedro e Afonso não poderiam contar jamais com o surto24 deste drama histórico. Nem que duzentos anos depois, igurariam de modo atípico no cânone de maior expressão da língua portuguesa. O caso para eles era inito. Já era tarde, Inês já lhes era morta. E entretanto, cá estão os três, mais de seiscentos e cinquenta anos depois, fazendo-nos a reletir sobre o processo incomum e quase paradoxal que, através de um assassinato de valores políticos, de prerrogativas de Estado os levou a escapar a Lei da Morte. Para conhecer os motivos que levaram Luís de Camões a escrever o episódio de Inês de Castro, foi preciso a sutileza de perceber o contexto camoniano dentro da narrativa sobre a castelhana: as alegorias, as metáforas, as comparações, a habilidade narrativa de um gênio literário que, à primeira leitura d’Os Lusíadas, nos parece equivocado ao trovar sobre a história de amor entre um príncipe e sua amante, ao narrar um drama de família, uma tragédia sem par mas que, aparentemente, não pertence ao raciocínio camoniano. Estranhar foi o primeiro passo para nos aprofundar nessa questão política tão densa que Luís de Camões nos expõe de maneira vivaz e nada óbvia. Apenas a História seria capaz de responder às questões que Camões nos incutiu quando nos apresentou Inês. Através da História é que pudemos levantar o véu do lírico e nos abater com a perplexidade de ver o que estava tão próximo de nossos olhos e que por um lirismo tão reinado, por pouco não nos escapa. E de Luís de Camões tiramos a grande lição que não esqueceremos jamais: quase sempre, quando nós historiadores temos a nossa frente o incomum e não tememos sua exploração, a estrada vai além do que se vê. Oliveira Marques refere-se à repercurssão do episódio inesiano na cultura popular e na História como “um surto de um drama histórico que se aguentaria no cartaz por mais de cinco séculos.” Ver: MARQUES, A. H. de Oliveira. História de Portugal. Lisboa: Edições Ágora, 1972. p. 178. 24 573 UMA VIRTUDE NA CONSTRUçãO DA SANTIDADE: A CARIDADE NA VITA SANCTI AEMILIANI E NA VITA FRUCTUOSI Rodrigo Ballesteiro Pereira Tomaz (Mestrando PEM – PPGHC – UFRJ) Introdução Em nossos quatro anos de pesquisa vinculados ao Programa de Estudos Medievais – PEM – da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ –, sob a orientação da professora Leila Rodrigues da Silva, desenvolvemos nosso trabalho acerca da investigação sobre a igura do homem santo medieval. Mais precisamente, analisamos as vidas de Emiliano e Frutuoso de Braga, ambas redigidas no interior do reino visigodo de Toledo na segunda metade do século VII, procurando entender como os produtores de tais documentos construíram a imagem de santidade das personagens que retratavam. Especiicamente, interessa-nos a utilização feita por Bráulio de Saragoça, responsável pela Vita Sancti Aemiliani,1 e do autor anônimo2 e desconhecido da Vita Fructuosi,3 das virtudes cristãs que elencamos como categorias de análise. Para esta comunicação, trabalharemos com a presença da caridade nas hagiograias já mencionadas. Isidoro de Sevilha, bispo Doravante VSA. Diversos autores já trataram sobre a efetiva autoria desta obra. Por muito tempo acreditou-se que Valério do Bierzo, eclesiástico do reino visigodo de ins do século VII, a havia escrito pois, além desta obra constar na compilação hagiográica que aquele escritor produziu, é clara a devoção valeriana para com a pessoa de Frutuoso de Braga. Trabalhamos com a perspectiva de que o responsável por este documento foi um monge que, se não viveu próximo a Frutuoso, fez ao menos parte de alguma comunidade criada por ele, e a produção de sua vita teria como principal motivação a exaltação da vida monástica nos moldes frutuosianos. Para um conhecimento maior desta discussão, cf.: VALERIO. Vida de S. Frutuoso. Arcebispo de Braga. Tradução do latim de José de Cardoso. Braga: Oicina S. José, 1996; DIAZ Y DIAZ, M. C. La vida de San Fructuoso de Braga. Estudio y edición crítica. Braga: Câmara Municipal, 1974. p. 17-20; e FRIGHETTO, Renan. Valério do Bierzo – Autobiograia. La Coruña: Toxosoutos, 2006. p.11-12. 3 Doravante VF. 1 2 574 e metropolitano da Bética entre os anos de 599 e 636, reconhecido e profícuo autor da religião cristã em seu tempo, considera tal virtude característica das mais importantes para o cristão.4 Dentro das Etimologias, de signiicativa relevância no confronto de materiais que produziu, buscaremos a deinição do termo por compreendermos que o reconhecimento deste escritor5 teria inluenciado diretamente ambos os redatores das vidas que estudamos. É importante demarcar que, apesar de terem sido escritas por autores contemporâneos entre si e que compartilharam de um mesmo ambiente sócio-cultural, cada uma das vidas aqui analisadas possui marcas oriundas de seu local de produção. Tais diferenças demarcam especialmente os distintos contextos de cada documento, apresentando o que cada um tem de especíico em relação à sua produção. Apesar destas características próprias, consideramos que os escritos isidorianos podem nos fornecer elementos da tradição literária à qual os dois hagiógrafos encontramse ligadas, de uma maneira ou de outra. Por im, levantaremos em dois momentos isolados trechos em cada vida nos quais reconhecemos a realização de um ato de caridade por parte dos santos em questão. A partir daí, seguindo a proposta de comparação de Jürgen Kocka,6 cruzaremos tais resultados, na busca de similitudes e discrepâncias. A Caridade como virtude cristã Em sua pesquisa de doutoramento Marcus Silva da Cruz analisou a transformação de certo grupo de virtudes romanas em atributos cristãos por parte de Jerônimo, como elemento do processo de conversão de membros das classes senatoriais romanas no século IV.7 Partindo desta investigação, trabalhamos com a perspectiva que Tal questão será melhor tratada mais adiante. Em particular para grande parte do começo do período medieval, para o qual Isidoro serve de importante referência. Para mais, cf. DIAS Y DIAS, M. C. Isidoro en la Edad Media Hispana. In: Isidoriana. Estudios sobre San Isidoro de Sevilla en el XIV Centenario de su Nacimiento. León: Centro de Estudos “San Isidoro”, 1961. p. 345-387. 6 KOCKA, J. Comparison and beyond. History and heory, Middletown, n. 42, p.39-44, fev. 2003. 7 CRUZ, Marcus Silva da. Da virtus romana à virtude cristã: um estudo acerca da conversão da aristocracia de Roma no IV século a partir das Epistolas de 4 5 575 percebe na construção do discurso e ortodoxia cristãos um verdadeiro trabalho dialético de absorção e reapropriação de elementos da cultura greco-romana, cuja incorporação parecia salutar aos construtores de tais discursos ou, no sentido contrário, de repúdio a questões por demais conlitantes com a organização em progresso.8 Etimologicamente, “a virtude designa a superioridade própria ao homem (vir), que o faz despresar a dor e a morte. (...). Ela implica força, vigor, poder. Em um senso mais geral virtude signiica perfeição, valor, prosperidade, felicidade, glória”.9 No mundo greco-romano, designava os valores necessários aos grandes homens, ao romano elevado, o qual deveria demonstrar a todo momento a posse de tais características. Para Isidoro, “el nombre varón (vir) se explica porque en él hay mayor fuerza (vis) que en la mujer; de aquí deriva también el nombre de ‘virtud’”.10 Faziam parte, portanto, do âmbito público da socialização. Quando da conversão do conceito e dos princípios que representava por parte dos grandes Padres do cristianismo em formação, a virtude é transformada, passando para o “interior da vida moral, que deve conduzir as relações do homem com Deus e com seus semelhantes. (...) ela é uma disposição da alma”.11 Ganha assim um caráter sobrenatural, devendo “levar a Deus, o bem supremo cristão. Jerônimo. 1997. 313f. Tese (Doutorado em História Social). Programa de PósGraduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1997. 8 Veja-se por exemplo o trabalho já clássico LE GOFF, Jacques. Cultura clerical e tradições folclóricas na civilização merovíngia. In: ____. Para um Novo Conceito de Idade Média. Lisboa: Estampa, 1980. p. 207-219. Jean-Claude Schmitt atesta, por sua vez, o incômodo causado por práticas religiosas consideradas “pagãs” pelo discurso cristão, que se pretende tornar hegemônico, a partir dos escritos deixados por membros da alta hierarquia eclesiástica. Cf.: SCHMITT, Jean-Claude. História das Superstições. Lisboa: Fórum, 1991. p. 27-45. 9 MICHEL, A. Vertu. In: VACANT, A., MANGENOT, E. e AMANNE, E. (Dir.). Dictionnaire de héologie Catholique. Paris: Librarie Letozey et Ané, 1950. V. XV. p. 2739-2799. p. 2739. Tradução nossa. 10 ISIDORO DE SEVILLA. Etimologias. Edición bilinguë preparada por Jose Oroz Reta y Manuel-A. Marcos Casquero. Introducción general por Manuel C. Diaz y Diaz. Madrid: BAC, 1982. V.2. XI, 17, p. 43. 11 MICHEL, A. Op. Cit., p. 2743. Tradução nossa. 576 Elas devem portanto vir de Deus”,12 e não mais do homem, a im de conduzi-lo à divindade e não mais servir a seu orgulho. Nas Etimologias, Isidoro procura organizar todo o conhecimento produzido até seu momento – guiando-se por duas grandes matrizes, a greco-romana e a judaico-cristã – transformando-o em algo que considera útil aos iéis. Segundo Fontaine, podemos perceber como essa estruturação ganha forma a partir da expressão etymologia est origo. Formada respectivamente por um vocábulo grego e um latino, unidos pelo verbo est, “ser”, a busca pelas origens é, mais do que apenas a preocupação do hispalense na ocasião da produção das Etimologias, mas de todo seu labor intelectual. A procura de uma restauração do conhecimento dos antigos, muito mais do que uma simples atualização daquele passado, teria para o hispalense um sentido maior de transformação, ou mesmo de uma “reforma” para melhor. Recuperar os antigos não era simplesmente adaptá-los ao cristianismo, mas sim modiicar, ao menos em parte, o próprio pensamento cristão vigente, transformando-o a partir dos valores positivos que os “pagãos” já conheciam.13 Segundo Isidoro, caridad es vocablo griego que se interpreta en latín con “amor”, lo cual entraña una doble vertiente: el amor a Dios y el amor al prójimo. De él nos dice el Apóstol: “El amor es la plenitud de la ley” (Rom 13,10). La caridad supera en importancia las otras dos [fé e esperança], porque el que ama, al mismo tiempo cree y espera. En cambio, quien no ama, por muchas obras buenas que efectúe, se esfuerza en vano. Todo tipo de amor carnal no es amor verdadero, sino que suele llamarse con más propiedad “amorío”. El caliicativo de “amor” sólo cabe aplicado cuando se reiere a cosas transcendentes.14 Aqui, podemos ver parte daquela construção da virtude como Ibidem, p. 2747. Tradução nossa. FONTAINE, Jacques. Isidoro de Sevilla. Génesis y originalidad de la cultura hispánica en tiempos de los visigodos. Madrid: Encuentro, 2002. p. 197-207. 14 ISIDORO DE SEVILLA. Op. Cit., V.1, VII, 6-7, p. 689. 12 13 577 elemento sobrenatural e que deve partir do interior do cristão. Só é verdadeiramente “amor” aquele sentimento que é direcionado a Deus e ao próximo, tendo-se em vista não a preocupação com o plano terrestre e material, e sim o transcendental. Note-se que a Caridade em sua essência não está necessariamente atrelada a uma idéia de auxílio material. Mais importante que a oferta de bens é o intuito por detrás deste ato. Neste sentido, as ações caridosas ocupam importante papel na construção de uma igura santa, já que, ao auxiliar aqueles que o buscam é que o vir sanctus se torna, em primeiro lugar alguém amado e adorado e, em segundo lugar, um exemplum para todo cristão. Emiliano como referência social na Vita Sancti Aemiliani Segundo estudiosos,15 Bráulio era membro de uma ilustre família eclesiástica, na qual contavam seu pai Gregorio, possivelmente bispo de Osma, Juan, seu irmão mais velho e antecessor na sede de Saragoça, além de Fronimiano, reconhecido pelo próprio Braúlio como abade, e mais duas irmãs, uma delas abadessa. Já mais velho, teria partido para a cidade de Sevilha, lá submetendo-se à educação daquele que viria a se tornar uma das maiores autoridades da intelectualidade cristã hispânica e referência para todo o pensamento medieval, Isidoro de Sevilha.16 Notadamente os trabalhos de CASTELLANOS, Santiago. Poder social, aristocracias y hombre santo em la Hispania Visigoda. La Vita Aemiliani de Braulio de Zaragoza. Logroño: Universidad de La Rioja, 1998. p. 31-32; VAZQUEZ DE PARGA, Luis. Vita S. Emiliani: edición crítica. Madrid: CSIC, 1943. p. V-XII; BARLOW, Claude W. Iberian Fathers Braulio of Saragossa – Fructuosus of Braga. Washington, D.C.: he Catholic University of America Press, 1969. 2v. p. 3-4; LYNCH, C.H., GALINDO, P. San Braulio Obispo de Zaragoza (631 – 651): Su Vida y Sus Obras. Madrid: Instituto Enrique Flores, 1950. p. 3-22. 16 O registro desse relacionamento está atestado, entre outras formas, na tarefa atribuída a Bráulio por Isidoro de que organizasse as Etimologias, bem como nas oito cartas trocadas por ambos. cf.: RAINHA, Rodrigo dos Santos. A Educação no Reino Visigodo – as relações de poder e o epistolário do bispo Bráulio de Saragoça (631-651). Rio de Janeiro: H.P. Comunicação Associados, 2007. p. 6115 578 Por volta de 620, teria ido para Saragoça, tornado-se diácono de seu irmão Juan e, posteriormente à morte deste, bispo daquela cidade em 631, até o ano 651, época de seu próprio falecimento.17 É no período de seu bispado que teria então redigido a VSA, inicialmente a pedido de seu irmão mais velho, como o próprio autor nos informa na carta que antecede a maioria das versões da hagiograia. Emiliano, personagem principal da VSA, teria vivido perto de cem anos, entre 473 e 574, sendo a data de sua morte muito próxima da atribuída à confecção de sua vida. Habitara a região do alto Ebro, onde foi erigida uma comunidade monacal no suposto local de seu antigo oratório, hoje mosteiro de San Millán de la Cogolla.18 Iniciando sua vida religiosa como discípulo de um monge chamado Félix, Emiliano passa a viver isolado na loresta próximo à região de Vergegium. Sob o jugo das intempéries, acaba por atrair a atenção da população local, a qual, segundo o relato de Bráulio, vê no eremita a imagem de um verdadeiro santo. A capacidade de atrair crescentes multidões para seu entorno, mesmo que esta não fosse sua intenção, não passou despercebida por Didimio, o bispo da região, o qual logo tratou de delegar a Emiliano o cargo de presbítero de uma igreja local. Relutantemente o santo aceita, sendo rapidamente retirado da posição por entrar em conlito com outros membros da congregação. Exila-se então novamente, supostamente indo para a região na qual passou seus últimos dias e onde foi erigido um oratório em sua homenagem.19 A vertente caridosa de Emiliano é apresentada por Bráulio em momentos distintos e, em sua maioria, dá-se na forma do 64. Bráulio é ainda o responsável por sistematizar a listagem das obras escritas por Isidoro na obra conhecida como Renotatio Isidori a Braulione Caseraugustano episcopo edita, segundo BARLOW, Claude W. Op. Cit., p. 8-10. 17 VAZQUEZ DE PARGA, Luis. Op. Cit., p. VII. 18 CASTELLANOS, Santiago. Op. Cit., 21. 19 Podemos perceber na forma adotada para narrar a vida de Emiliano uma série de topoi literários característicos da escrita hagiográica. O início na vida religiosa a partir dos ensinamentos de um mestre, a busca pelo isolamento em locais ermos e a inserção na hierarquia eclesiástica, bem como a capacidade de atrair para si grandes contingentes populacionais são elementos típicos e necessários para a estruturação de uma obra hagiográica do período. 579 assistencialismo. De um total de trinta e um capítulos que compõem a vita, podemos contabilizar cinco momentos nos quais se apresenta a caridade emiliana. Na primeira vez, o homem santo é um presbítero na igreja de Vergegio e está sob a autoridade do bispo Didimio. Nesse período, segundo nos conta Bráulio, entre sus ocupaciones eclesiásticas propúsose ante todo valerosa y diestramente desterrar cuanto antes le fuera posible la avaricia de la casa del Señor; y por eso los bienes eclesiásticos, la sustancia de Cristo, distribuíalos entre los pobres, que son las entrañas de Jesucristo, haciendo así a la Iglesia de Cristo opulenta, no en riquezas materiales, sino en virtudes; no en rentas, sino en religión; no en intereses, sino en cristianos; pues sabía que ante Dios no sería juzgado por la pérdida de los bienes temporales, sino por la pérdida de las almas.20 A segunda ocorrência se deu quando da aparição de uma “multitud de pobres pidiéndole la limosna con que acostumbraba a socorrerles” perante o homem santo. Sem ter o que pudesse distribuir, “o porque realmente carecía, o porque en aquel momento no tenía a mano nada que darles, iel siempre a su natural compasión, cortándose las mangas de su túnica, se las ofreció generosamente junto con la capa que usaba”.21 Em outros dois momentos, também preocupado em oferecer o máximo que pudesse aos necessitados que lhe faziam visita, consegue com que uma quantidade pequena de vinho sacie a sede de uma grande multidão pois, como nos diz Bráulio, “los que buscan al Señor no carecerán de nada, cuentan que con un sextario de vino sació abundantemente a una gran muchedumbre de personas”.22 Na outra ocasião, faz surgir carros cheios de comida justamente quando outra BRAULIO. Vida y milagros de San Millán. Tradução: Toribio Minguella. Disponível em http://www.vallenajerilla.com/berceo/braulio/braulio.htm . Acesso em 28 de junho de 2009. 21 Ibidem, p. 20. 22 Ibidem, p. 21. 20 580 grande quantidade de pessoas que buscavam estar em sua presença, já reconhecida sua santidade. E depois de certa diiculdade em abrigar a todos os seus visitantes, unos huéspedes a que se detuvieran ya que por caridad tomasen alimento. (...) puso ante los huéspedes lo que necesitaban, y mandó reservar lo demás para los que después viniesen. Pues de tal modo conciliaba su generosidad y su previsión, que a niguna hora del día pudiera faltar la mesa para alimentar a los huéspedes.23 Assim, podemos perceber que, por mais que a fama daquele santo já conhecesse alguma consolidação a ponto de atrair grandes contingentes de pessoas à sua presença, há uma preocupação por parte do bispo de Saragoça de apresentar seu vir sanctus como alguém que atue em consonância com as expectativas que dele se tem. Em momento posterior o amor pelo próximo que Emiliano apresenta nutrir revela-se mais propriamente a partir de uma atitude exemplar e educacional. O caso foi que o homem santo recebera, em dado momento, um animal para que pudesse utilizar como meio de transporte para sua ida regular à igreja e uma dupla de ladrões, ao chegar ao local onde habitava, “hallando fuera al animal en que solía ir a la iglesia, lo robaron furtivamente. Pero no disfrutaron mucho de su robo, pues al poco tiempo volvieron, perdida la luz de los ojos, pidiendo perdón al Santo y devolviendo el animal”. O santo repreendeu-se por manter tal posse, vendeu a besta e distribuiu seu preço entre os pobres, sem no entanto recuperar a visão perdida daqueles que tentaram roubá-lo, obrando en esto, a mi juicio [de Bráulio], con prudencia, porque, de no seguir ciegos, tal vez hubieran seguido cometiendo semejantes delitos, y si en adelante quisieran hacer algo parecido, les denunciase al punto la señal con que quedaban marcados, y la fama con que habían manchado sus nombres.24 23 24 Ibidem, p. 22. Ibidem, p. 24. 581 Assim, ao não curar os mal-feitores mesmo após seu aparente arrependimento, Emiliano estaria demonstrando também seu amor por aqueles homens, pois dar-lhes-ia a possibilidade de pagar em vida pelos erros cometidos, ao invés de ter de quitar sua conta no Além. Frutuoso, o fundador de mosteiros Diferentemente do caso da VSA, não há uma autoria reivindicada e claramente identiicada para a VF. Esta hagiograia centra-se na igura de Frutuoso, personagem histórica que viveu entre os anos de 610 e 665, tendo sido consagrado bispo de Dume e depois de Braga em 656. É tido como ilho de um duque do exército visigodo e, portanto, oriundo de família aristocrática goda.25 Tendo como possível data de nascimento o período entre os anos de 600 e 610, sua hagiograia nos conta que desde novo já se preocupava com a vida monástica e, especiicamente, com a fundação de mosteiros.26 Ficando órfão cedo, resolve se dedicar aos estudos religiosos, sob a tutela de Conâncio de Palência, entre seus 15 e 25 anos. Terminada sua educação, parte em busca de uma vida em moldes monásticos, inicialmente na modalidade anacoreta, até fundar seu primeiro mosteiro em Compludo, por volta de 640.27 Além das informações contidas em sua vita, conhecemos seu labor a partir da Regula Communis que teria redigido para servir de regulamentação para suas fundações monásticas. Sua ascensão ao episcopado de Dume e, posteriormente, à sede de Braga, nos é apontado principalmente pelas atas do Concílio X de Toledo de 656, as quais assina como o autoridade episcopal dumiense e na qual é elevado a metropolitano da Galiza.28 O amor que o vir sanctus em questão possui por Deus e pelo próximo é demonstrado principalmente pelas doações que faz especialmente aos mosteiros que funda. Do total de vinte capítulos DÍAZ Y DÍAZ, M. C. Notas para una cronologia de Fructuoso de Braga. Bracara Augusta, Braga, v.21, p. 215-223, 1968. p. 216. 26 DIAZ Y DIAZ, M. C. La vida de San Fructuoso… Op. Cit., 2, p. 83. 27 DÍAZ Y DÍAZ, M. C. Notas … Op. Cit., p. 218. 28 Ibidem, p. 223. 25 582 nos quais está organizada a VF, encontramos cinco momentos nos quais Frutuoso é apresentado como caridoso. Vindo de uma família nobre e tendo perdido seus pais ainda jovem, utiliza-se de sua herança para prover com a riqueza material necessária seus cenóbios, como, por exemplo o de Compludo que, “sin reservarse nada para si según los preceptos divinos, ofrendando allí hasta el último céntimo de su propiedad, lo doto abundantísimamente”.29 Exerceu sua caridade também, segundo seu hagiógrafo, distribuindo entre as igrejas, seus libertos e os pobres todo o capital de seu patrimônio.30 E mesmo quando é alçado à posição de bispo da sede metropolitana de Braga, “no abandonó su antiguo género de vida, sino que manteniéndose en el mismo hábito y en el mismo rigor de penitencia que solía, gasto el restante tiempo de su vida en la distribución de limosnas”.31 Em outros momentos, a caridade frutuosiana é retratada por seu hagiógrafo a partir de um auxílio mais físico-espiritual, na busca por ajudar aqueles que tentaram lhe fazer algum mal: em uma de suas viagens, se distancia do grupo que o seguia e, por conta das condições das roupas “vulgares” que utilizava, foi confundido com um escravo fugido por um aldeão. O “rústico”, como é denominado na vita, passou então a cobri-lo “con toda clase de expresiones ofensivas”, sem dar ouvidos ao homem santo, que tentava explicar quem realmente era. Este chega mesmo a ser golpeado “por encitación de lo diablo en lo que era”, até o momento no qual, fazendo o sinal da cruz, Frutuoso consegue conter seu agressor e o demônio que o possuía “derribó al palurdo a tierra y lo hizo retorcerse boca abajo ante los pies del santo varón y lo golpeó y maltrató hasta que, causándole graves heridas, lo dejó medio muerto envuelto en su propia sangre”.32 O vir sanctus, por sua vez, “al momento hizo oración y lo restituyó sin ninguna diicultad a su anterior salud”.33 DIAZ Y DIAZ, M. C. La vida de San Fructuoso. Op. Cit., 3, p. 85. Ibidem, 8, p. 93. 31 Ibidem, 18, p. 113. 32 Ibidem, 11, p. 99;101. 33 Ibidem, 11, p. 101. 29 30 583 Em outra situação, o mal é feito não diretamente ao santo, mas a uma corsa que a ele se havia apegado depois de por ele ter sido salva de caçadores.34 Certo dia, quando Frutuoso estava fora do mosteiro, un joven lleno de espíritu de maldad, o por mejor decir abrasado del fuego de la envidia, […] mato al animalejo a dentelladas de perros. (…) Pero [Frutuoso], por voluntad de Dios, no dejó la severa venganza de la divina majestad de tomarse al instante castigo inmediato: cogido al punto el joven de grave ataque de calenturas comenzó a suplicar del santo por medio de mensajeros que hiciese por él oración al Señor, para que no terminara lamentablemente su vida castigado por la ira divina en proporción a su pésima temeridad. El santo entonces fue a verlo, e imploró la misericordia del Señor, y puso su mano sobre él, con lo que al instante no sólo devolvió al enfermo su anterior salud corporal sino que al tiempo curó con su sagrada oración las enfermedades de su alma.35 As duas hagiograias em comparação Podemos perceber inicialmente um verdadeiro topos literário característico do gênero hagiográico: o santo, para ser santo, tem por “obrigação” o auxílio àqueles iéis que vão em sua busca. Daí já se percebe a importante participação da caridade na construção da personalidade e forma de atuação de cada vir sanctus, principalmente com base no princípio recuperado por Isidoro da superioridade desta virtude em relação a outras. Proporcionalmente, a incidência de relatos de ambos os santos demonstrando sua caridade é equiparada. A todo momento é possível visualizar também que este ímpeto em ajudar o próximo, segundo as palavras dos hagiógrafos, parte sempre de uma preocupação quase paternal, na qual o amor pelo próximo é sempre presente. Pois, em última instância, todo cristão tem Deus em 34 35 Ibidem, 10, p. 95. Ibidem, 10, p. 97. 584 seu interior, pois é Sua criação, e, portanto, amar o próximo é também amar a Divindade. Assim, percebemos em ambas as vidas de santo duas vertentes principais de demonstrar e exercer a caridade, uma a partir da doação/ fornecimento de bens materiais, outra de educação moral-religiosa. O primeiro caso não é estritamente a única possibilidade, apesar de ter importante peso nestes documentos. Pois é a partir da doação de esmolas, alimentos, roupas e bens suicientes para constituir o patrimônio de mosteiros que Emiliano e Frutuoso são reconhecidos como personagens centrais da coesão social e, em última instância, protetores das comunidades que os cercam. Quando servem de exemplo moral, principalmente aqueles que lhes fazem algum mal, também demonstram seu amor pelo outro, a partir do momento no qual, mesmo tendo sofrido um malefício, preocupam-se em ajudar aquele ou aqueles que lhes prejudicaram. O caso de Emiliano com os ladrões é bastante representativo neste sentido, a partir do momento no qual o santo prefere não efetuar a cura dos malfeitores. Nesta passagem, Bráulio intercede ao defender a atitude do vir sanctus, compreendendo-a justamente como uma preocupação educacional e com o intuito de promover a salvação das almas dos ladinos. Assim, tal ato, que poderia ser inicialmente considerado como repleto de um sentimento vingativo, torna-se algo advindo do amor emilianense por aqueles desvirtuados, e a tentativa de guiá-los na direção correta, uma atitude de caridade. Frutuoso por sua vez intercede diretamente nos dois casos de ataques que sofre por parte de pessoas comuns, restituindo-lhes a saúde sem muita demora. É interessante perceber no entanto as diferenças entre os dois casos e sua forma de atuação: enquanto no primeiro o agressor do santo estava possuído pelo demônio, o jovem que mata a corsa guiava seus atos por si mesmo, ainda que contaminado por um espírito de maldade e inveja. Não é de se estranhar, portanto, que cada um tenha recebido um tratamento diferente por parte de Frutuoso: enquanto o endemoniado foi prontamente curado das feridas causadas pelo espírito que o possuía, o invejoso padeceu de uma forte febre, tendo que assumir uma postura humilde e suplicar ao santo para que o salvasse. Nesta construção podemos ver como a 585 igura frutuosiana é superior a de seu atacante justamente por não deixar que este sofresse, intercedendo por sua recuperação, apesar de atrasar sua ajuda ao rapaz, com o intuito pedagógico de fazê-lo perceber seus erros e deles arrepender-se. Considerações inais No intuito de tentarmos perceber como se dá o uso de virtudes cristãs na construção das iguras santas em duas hagiograias hispanovisigodas do século VII, percebemos uma importância relevante da caridade e sua demonstração por parte dos homens santos retratados. Partindo de uma conceituação baseada em trabalho de importantíssima relevância para a Europa medieval ocidental, as Etimologias de Isidoro de Sevilha, buscaremos uma conceituação da virtude para a época. Compreendendo que, sendo a redação de tal obra relativamente contemporânea à produção de ambas as hagiograias, entendemos que seus autores teriam sido diretamente inluenciados pelos estudos isidorianos, cada um a sua medida. Assim, entender como a caridade é conceituada nas Etimologias auxilia-nos em perceber como Bráulio e o anônimo redator da VF compreendiam aquela virtude e, mais importante, como a apresentam em suas obras a partir das atitudes tomadas por seus santos. Em uma análise comparada entre os dois documentos, podemos perceber que, apesar da existência de elementos comuns entre os dois relatos, que constituem um topos literário característico a este tipo de escrito, as diferenças latentes em ocorrências especíicas demonstram as especiicidades de cada contexto de produção e, também, das diferentes tradições orais pré-existentes à redação de cada hagiograia e que servem de base para seus redatores. 586 A RELAçãO MESTRE-DISCIPULAR NA PRIMEIRA IDADE MÉDIA: REFLETINDO SOBRE AS INFLUÊNCIAS DE CÍCERO E AGOSTINHO Rodrigo dos Santos Rainha (Docente Estácio de Sá – Doutorando PEM – PPGHC – UFRJ) Introdução Este trabalho integra nossas relexões para a tese de doutorado atualmente em curso. Nosso tema versa sobre a relação entre a educação e o poder na primeira metade do século VII no reino visigodo. Nessa pesquisa, tenho me preocupado especialmente com a relação entre mestre e discípulo, a qual aparece de maneira recorrente na documentação episcopal do período. Esse discurso, no entanto, tem uma presença anterior e uma lógica que está longe de ser uma inovação visigótica. Sua força pode ser pensada em um diálogo com o processo de valorização das relações pessoais, sinalizado pela historiograia hispânica. Como fundamento, distancia-se do horizonte da centralidade política, mas acaba por enfraquecer laços de caráter institucional e favorecer as dimensões pessoais em meio à sociedade. Na construção do discurso, é reforçada a noção de uma intelectualidade local baseada no conhecimento de escritos romanos e cristãos antigos, que constituem uma dinastia episcopal marcada pela relação mestrediscípulo. Neste ponto, começa o problema que trazemos para esta comunicação: as explicações de que o bispado visigótico reproduz os conhecimentos baseados em tradições grecorromanas e patrísticas são apresentadas normalmente de maneira muito automática. Pensa-se ora na releitura direta, ora em uma tradição estabelecida no seio do episcopado, mas sem a devida profundidade sobre a distância desses escritos e suas formulações visigóticas. Vejamos o nosso caso: airmar que a relação mestre-discipular não é algo novo esteve envolta nas escolas da Grécia Clássica, nas 587 escolas helenísticas e romanas. Que a patrística a apresenta como um de seus fundamentos desde Paulo e que as relações são organizadas por Agostinho, não explica sua presença no reino visigodo no século VII, tampouco seu papel dentro da sociedade visigótica. Esta comunicação, então, tem por objetivo reletir sobre o papel da relação mestre e discípulo, localizando-a e tentando compreender seus fundamentos. Para estabelecer esse trajeto, focaremos nosso olhar em dois porta-vozes autorizados destes conjuntos,1 respectivamente Cícero e Agostinho. Entretanto, um problema continua latente, como inalizá-lo? História Comparada Para resolver esse hiato, busquei nas relexões da História Comparada uma proposta que me tirasse das discussões automatizadas e me oferecesse a chance de notar como poderia compreender sem ser traído pela problemática noção de tradição. José Assunção de Barros,2 ao construir seu ensaio sobre os caminhos que a História Comparada tem oferecido ao historiador, salienta os cuidados que devemos ter ao comparar objetos distantes, geográica ou temporalmente, mas, ao mesmo tempo, notar como pode ser esclarecedor. O autor fala da comparação estabelecida por Robert Darnton em três sociedades completamente diferentes, que apresentam a mesma busca: censura. O autor comprova em sua pesquisa que a leitura e o entendimento de uma ajuda na percepção É muito importante sublinhar que os dois importantes autores serão citados a título de referência. Há o intuito de destacar a presença dos estudos chamados clássicos e patrísticos na compreensão do papel do mestre e da legitimação do discípulo a partir da importância do primeiro. Foram escolhidos seguindo a nossa principal referência teórica, Pierre Bourdieu, em especial em sua apresentação sobre portavoz autorizado. Segundo o sociólogo, porta-voz autorizado tem o sentido daquele que tem força simbólica, aquele que tem a possibilidade de ser fazer escutar. Tem em torno de si, normalmente, a representação do discurso legitimado pelo campo. Cf.: A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2003. 2 Barros, José D’Assunção. História Comparada - um novo modo de ver e fazer história. Revista de História Comparada, Rio de Janeiro, v.1, n.1, p. 1-30, Junho 2007. 1 588 e na capacidade do entendimento da outra, sem, em nenhum dos momentos, abrir mão do contexto social no qual se debruçou. Ainda sobre a História Comparada, Haupt e Kocka3 sinalizam que um dos grandes méritos que essa modalidade de pesquisa oferece é o necessário diálogo entre a sincronia e a diacronia, sem buscar uma história geral, sintética, mas, sim, indicando os múltiplos sentidos estabelecidos na compreensão do objeto. Nesse aspecto, a observação da relação mestre-discípulo precisa necessariamente demonstrar que ela terá diferenças adaptadas a seu contexto de produção, mas nem por isso deixam de ser importante elemento para construção da ideia de processo histórico. Por im, mas ainda pensando sobre a construção desse diálogo, vamos às proposições explicitadas por Carlo Ginzburg. O autor se apresenta como tributário do modelo comparativo de Marc Bloch, sem, no entanto, mergulhar em suas concepções antropológicas; faz isso, porém, em conteúdo mais direcionado à história. Quer dizer, “adaptar o método comparativo a uma análise historiográica”, sem questionar que pela comparação vai-se alcançar a origem, a pureza da proposta, mas, sim, suas ressigniicações. Ginzburg, no livro “Mito, emblemas e sinais”,4 exempliica esse elemento com clareza, uma vez que marca que a narração mítica – entendamos por mito narrações que buscam expressar algo que está além das relações humanas – apresenta importantes formas de organização social, ainda que repetidas de outras formulações, do momento em que foi produzida. Esse mito ganha sentido como uma metáfora explicativa de um conjunto de concepções. Na proposta estabelecida por Ginzburg podemos entender que ao invés de buscar a origem do mito, trata-se da representação deste na narrativa mitológica, sinalizando como as releituras míticas devem ser historicizadas. HAUPT, H-G; KOCKA, J. Comparative History: Methods, Aims, Problems. In: COHEN, D.; O´CONNOR, M. Comparison and History. Nova York: Routledge, 2004. p. 23 - 40. 4 GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: ___. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 3 589 Nossa leitura é que, em certa medida, a proposição mestrediscipular ganha ares míticos na sua reprodução, embora muito práticos na releitura presente no reino visigodo. Quando airmamos o papel da relação mestre-discípulo nesse reino, não estamos buscando uma proposição nova, um incremento especíico da intelectualidade local, mas, sim, seus rearranjos a partir da relação fundamental da inluência romano-patrística. A comparação se dá pelos conjuntos idealizados, relidos, readaptados, com valores que vão e vem, e nos permitem compreender seu fundamento social. Por conta disso, visitamos Cícero e Agostinho, autores em que observamos um consenso sobre a sua reprodução e releitura. Porém, por mais que tratem das mesmas questão e temática, esta certamente será diversa em sua construção. Inluenciados por essa visão, tentamos delinear uma base para a relexão, pensando em três perguntas para explicar o sentido assumido no reino visigodo: 1. Qual é o papel do mestre e do discípulo? 2. Qual a representação da relação mestre-discipular? 3. Qual o papel dessa relação na sociedade? Vejamos o nosso caso: airmamos que a relação mestre-discipular não é algo novo, ou seja, que esteve presente nas escolas romanas, que foi readaptada pela patrística, a com destaque por Agostinho. O que valorizamos, entretanto, é que esta construção da mesma forma que foi buscada, foi sempre adaptada ao seu contexto de produção, atendendo necessidades diversas. Para explicar este processo elegemos dois representantes signiicativos da Humanitas e da Ecclesia e trataremos de dialogar com suas construções sobre a relação mestre discípulo, Cícero e Agostinho. Cícero A opção por Cícero é referendada pela tradição historiográica presente nos estudos de Educação medieval que saliental a sua lietura e reprodução no período em que estudamos. Autor de obras importantes e consideradas como um importante organizador do conceito de Humanitas em Roma.5 PEREIRA, M. H. R. Estudos de História da Cultura Clássica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1970. p. 319 - 420. 5 590 Observaremos neste ponto principalmente a historiograia, mas também de forma mais especíica a obra De Oratore.6 A escolha deste texto especíico se dá por ser uma obra escrita por Cícero em um momento em que estava voltado para a educação do seu ilho, e por conta disso buscava assumir o posicionamento de recuperar elementos gregos, mas ao mesmo tempo direcioná-los à necessidade do pragmatismo romano. Tal texto é constantemente abordado quando a proposição é a observação da educação em Cícero.7 Marco Túlio Cícero foi senador e um dos autores de maior reconhecimento dentro do mundo romano. Proveniente de família que pertencia à elite militar romana recebeu toda a linha educacional a qual o cidadão romano era direcionado. Sua formação fora ainda complementada em linhas ilosóicas, retóricas e gramaticais até seus vinte anos. O momento histórico de sua produção situa-se no século I a.C., período em que a República já dava claros sinais de fragilidade diante das dinastias militares. O senado, do qual Cícero passa a fazer parte a partir dos seus trinta anos, enfrentava momentos críticos, como as tensões do século anterior entre Mário e Sila; e as disputas com os irmãos Graco. Uma de suas obras mais importantes, De Legibus, deixa claro o olhar de Cícero em relação à sociedade que ele vivia:8 ser romano é antes de tudo respeitar as leis - do governo e as naturais, que se misturam em seu im. Entre as suas proposições sobre as leis naturais, Cícero defende que era necessário existir uma elite de homens mais capacitados, pois estes conduzem com correção os governos, permitindo o alcance de suas glórias, e esse era o motivo das vitórias romanas. Em meio a este contexto, Cícero escreve sobre como formar um orador, dedicado e enviado ao seu irmão. O material é dividido em CICERO, Marcus Tullius. De Oratore. Tradução de E. W, Sutton. Londres: Harvard University, 1967. 7 PEREIRA, M. H. R. Op. Cit., p.116 - 148. 8 BRITO, Otávio T. de. Introdução. In: CÍCERO. Das Leis. São Paulo: Cultrix, 1967. p.8-30. 6 591 três livros e traz detalhadamente a função do orador, os modelos de oratório, o ofício do mestre, os limites de sua ação, enim, constroi uma peça que busca determinar não só os fundamentos teóricos e ilosóicos para aquela existência, mas o direcionamento prático da educação. Tal orientação deveria ser passado com cuidado, já que existiam responsabilidades necessárias para que não fosse rompida a Ordem. A educação deveria ser direcionada, devendo retórica e dialética ser a garantia dos futuros líderes da República. Neste sentido a relação mestre discípulo, que fora experimentada por Cícero, que passou pelos ensinamentos de Fedro, Filón e Craso, estava diretamente associada à ordem social. Daí a preocupação em deinir como formar o Orador ideal. No capítulo IV do “De Oratore”, primeiro é sublinhado as diiculdades do mestre em exercer seu ofício, considerando a diversidade dos alunos e a necessidade que as aptidões fossem exacerbadas. Chama-nos atenção o cuidado do autor em ressaltar que existe a necessidade do mestre escolher seus alunos, não ter membros demais, e principalmente veriicar se aquele discente tem potencial para ser um bom orador. Na passagem notamos a noção de que o compromisso do mestre é com a formação correta, com a formação do bom orador. O compromisso e a responsabilidade máxima nesta construção dependem da natureza, da aptidão do jovem, pois o trabalho do bom mestre será sempre bem feito, mas o resultado pode ser ruim pela má escolha do discípulo. O fundamento mestre-discipular é uma questão recorrente em todo livro I da obra da formação do orador, são destacados a preocupação com o tipo de aula que o mestre deve ministrar, a necessidade do mestre ser um exemplo, e principalmente a relevância de se trabalhar a eloqüência. Um aluno que não tem a capacidade de alcançar o ponto necessário não deverá ser instruído, pois, por melhor que seja o mestre, sua ação é limitada pela natureza. O mestre é, de certo modo, a garantia do sucesso de Roma,9 uma vez que é ele quem garante que sejam repetidas as medidas dos ancestrais no sentido de oferecer a continuidade do Roma. 9 CICERO, Marcus Tullius. Op. Cit., Liv. I, cap. IX. 592 Chama atenção ainda que apesar do objetivo especíico construído em torno da Oratória, o mestre apresenta algumas funções que nos aproximam da oratória eclesiástica, como por exemplo no livro 1, capítulo 15, Cícero destaca que um dos grandes desaios do mestre é passar ao seu discípulo a necessidade da moderação e do auto-controle, da contenção dos vícios ou das paixões. A sabedoria do mestre só é plena quando ele consegue passar o conhecimento da natureza, que é a maior de todas as mestras, como destaca o Livro I, capítulo 25, a natureza é o verdadeiro mestre, “se sou sábio é por que sigo a natureza como a um deus, me submeto a ela, que é o melhor guia.” E completa que isto é um processo que somente a madurez oportuna pode oferecer, mas o homem precisa estar preparado para recebê-la. Associado ainda a leituras que sublinham a necessidade da tradição, a valorização da tradição familiar, do valor da experiência e principalmente o exercício da imitação, a reprodução por exercícios do correto devir, Cícero constrói o mestre como o instrutor, mas que é limitado ao que recebe como aluno. Sua construção mestre discipular aparece como um elemento natural, um caminho que é determinado pela própria ordem, que demonstra que o modelo do romano, deve ser o romano, e isto garante a sua Glória. Agostinho Entendemos que comparar as proposições de Cícero com Agostinho, a grande referencia medieval, nos dará neste momento do trabalho fundamentos para entender melhor o funcionamento desta proposta. Agostinho é repetido e reproduzido fazendo parte de qualquer processo de leitura sobre a organização e fortalecimento da Igreja católica. A comparação nos permitirá compreender como se constituiu a formulação educacional e o seu processo mestrediscipular. Como sua base construída como algo caro tornou-se um elemento mítico e fundamental. Agostinho é um dos mais importantes bispos da cristandade Ocidental, sendo organizador de proposições eclesiásticas que foram reconhecidas e reproduzidas ao longo da Idade Média. Para entender sua produção precisamos conhecer o contexto da passagem dos séculos IV - V no entorno do Império Romano do Ocidente. Naquele momento podemos observar um quadro de fragilidade 593 política que permitiu a emergência de poderes locais. Vive-se um Império que discursa por unidade e se organiza de forma cada vez mais fragmentada. Nas importantes áreas do Mediterrâneo africano, Agostinho é um bispo atuante neste quadro. Voltando ao interesse em comparar as proposições mestrediscipulares em Agostinho com o exposto por Cícero, adotaremos um dos seus documentos mais associados a construção de uma proposta direcionada a educação a obra “De Magister”.10 Este material é um diálogo ilosóico entre Agostinho e Adeodato. Escrito provavelmente em 389, pouco tempo após ter sido batizado por Ambrósio.11 Agostinho de Hipona tem um estilo diferente de Cícero. O papel do mestre, ainda que mantenha sua igura de condutor, a função de exemplo ganha uma estrutura retórica diferente, menos elouquente, mais contemplativa. O exercício principal da obra é o mestre se preocupando em demonstrar ao seu discípulo o sentido das palavras, sua importância e seu papel no verdadeiro conhecimento. Notamos que o mestre tem a função de conduzir. Primeiro são tratados os conhecimentos clássicos sobre a gramática e a retórica; em seguida questões relacionadas ao signo, ao bem falar, e os capítulos inais são indicados que de fato o Mestre, não é o que ensina mas sim Cristo. O título de dois capítulos chamam atenção neste princípio: “La palabra no puede manifestar lo que nosotros tenemos en el espíritu” (...) “Cristo es la verdad que nos enseña interiormente”.12 O mestre agostiniano é um condutor, é aquele que ensina o caminho para que a Verdade possa se estabelecer, para que a religião possa ganha força, ganhar sentido na para o discipulo.13 A leitura das principais ideias agostinianas presentes no “De Magister” foram retiradas da obra: AGOSTINHO. “De Magister.” In: Obras de San Agustin. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1947. p. 539-599. 11 MANUEL MARTINEZ, P. Del Maestro. In: Obras de San Agustín III. Madrid: Católica, 1963. p. 527. 12 AGOSTINHO. Op. Cit., p. 579. 13 OLIVEIRA, T. Agostinho e a Educação Cristã: um Olhar da História da Educação. Notandum, Porto, n. 17, 2008. 10 594 O mestre agostiniano é, sem dúvida, mais afetuoso nas suas considerções, deixando claramente sinalizado que é uma prática incorporada no habitus eclesiásticos. Além de aumentar imensamente sua responsabilidade, uma vez que não é uma estrutura que cessa, como na formação do Orador de Cícero, o mestre o acompanha, é sua referência. Este modelo ica ainda mais claro quando o texto fala da existência de um só mestre: Deus, na representação de Jesus Cristo, os demais são discípulos que ao assumiram uma posição de mestre, devem ser sempre tributários a obra divina, e ter o conhecimento que seu trabalho pouco signiica se a Verdade não surgir. Cristo enseña dentro; fuera el hombre advierte com palabras ?Acaso pretenden los maestreos que se conozcan y retengan sus pensamientes, y no las disciplinas que piensan enseñar quando hablan? Porque? Quién hay tan neciamente curioso que envie a su hijo a la escuela para que apensa qué piensa el maestro? Mas uma vez que los maestros han explicado la disciplinas que profesan enseñar, lãs leiyes de la virtud y de la sabiduría, entonces los discípulos considran consigo mismos si han dicho cosas verdaderas, examinando según sus fuerzas aquella verdad interior. Entonces es cuando aprenden; y cuando han reconocido interiormente la verdad de la leccíon. Sem dúvida topoi literários importantes são manifestados nesta construção, no enntanto nos permite observar a sua recorrência. A questão aqui ica muito claramente delineada: a relação mestrediscipular só tem sentido, só alcança forma se a Verdade (Deus) for alcançada. O mestre agostiniano não precisa ser culto, ser um acumulador de conhecimentos, pois sem a legitimidade oferecida pela divindade o caminho alcançado será sempre falho. O discípulo não é analisado pelo seu potencial em si, precisa ser preparado, direcionado, mas necessariamente convencido a trilhar o caminho. Sua relação, e o documento como um todo revela esta 595 questão, busca estabelecer uma interlocução, uma doçura, tal qual Cícero, mas não para o aluno buscar mais, mas para que a verdade possa se manifestar. Agostinho vê no sentido da relação mestre-discipular o nascedouro da própria comunidade eclesiástica, a oportunidade de fazer emergir a verdade que existe, pois estes são os verdadeiros condutores. O Mestre, único e verdadeiro é Cristo, o que em meio às tensões sociais garante a organização eclesiástica o papel do seu justo representante: a Igreja. Quando nos detemos na relação mestre-discípular no reino visigótico, tendemos a repetir uma expressão recorrente: esta construção baseia-se em modelos clássicos e patrísticos na sua formulação. Construindo uma pequena síntese das discussões há pouco exploradas notamos que existem aspectos muito diversos sobre quem é o mestre, qual seu papel em Cícero e Agostinho. Por um lado observamos que Cícero ressalta o papel do mestre na condução do discípulo, com a natureza sendo o modelo a ser seguido. Os bens, ou a condução que o mestre tem a oferecer não são para todos, mas para aqueles que possuem previamente o dom oferecido pela natureza. O mestre não cria, ele próprio é fruto da natureza, deve, assim reconhecer que esta natureza o direciona também para vícios e paixões, a qual ele deve evitar e alertar aos seus discípulos, e o sentido máximo de sua sabedoria é saber aceitar com “doçura” as características naturais. O mestre em Agostinho é antes de tudo dinivizado, está na igura de Cristo. Os que atuam como tais neste mundo devem ser entendidos como intermediários. Constroi a ideia de um conjunto que é capaz de direcionar o alcance do verdadeiro conhecimento. Defente ainda que o conhecimento é uma forma de preparação para alcançar o conhecimento verdadeiro, mas nada adianta este conhecimento se não estiver direcionado ao mestre que a Igreja representa. O discípulo tem papel de agente em sua proposta, pois de nada adianta um mestre bem preparado, que tenha erudição, pois sem o discípulo se direcionar a Cristo, nada será alcançado. Mas uma semelhança chama atenção: como de alguma forma a associação mestre-discipular é construída de modo a fazer uma 596 analogia ao fortalecimento do grupo, a preocupação com uma estrutura que relaciona de maneira direta grupos de porta-vozes e a próxima geração de atores sociais é visto como uma forma nítida de construir o espaço social. Para um fechamento desta questão, devemos lembrar que Cícero é o maior nome do ensino de retórica, sendo referência desde Agostinho até Bráulio de Saragoça, logo lido e reconhecido em suas proposições. A retórica ciceroniana está na capacidade de construção dos discursos, sempre elaborados de maneira positiva e com o objetivo máximo de convencimento: deve existir uma introdução ao tema, com as indicações preliminares sobre o assunto e análise do mesmo, depois seguir com uma série de argumentos ou provas da posição do autor sobre o assunto.14 Esta retórica e seu desenvolvimento marcam os escritos da Idade Média, como notamos, por exemplo, em Agostinho, nos escritos isidorianos e em diversas cartas de Bráulio de Saragoça. Sendo assim as proximidades encontradas não são acidentais, mas sim fundamentais para a compreensão de que a relação mestre-discipular é uma escolha consciente de uma proposição com fundamentos reconhecíveis, e sua adaptação ao contexto visigótico. Considerações Finais Quando nos detemos à relação mestre-discipular no reino visigótico, tendemos a repetir uma fórmula recorrente: essa construção baseia-se em modelos clássicos e patrísticos na sua formulação. Após nossa análise, no entanto, notamos que existem aspectos muito diferentes nas proposições clássicas, com um Cícero ressaltando o papel do mestre na condução do discípulo, com a natureza sendo o modelo a ser seguido pelo mestre, o que, de certa forma, cria uma seleção aos discípulos. Não é, sem dúvida nenhuma, a construção que nos deparamos nos escritos visigóticos – não de maneira plena. Agostinho airma a igura do mestre como um intermediário, aquele que ajuda ao verdadeiro mestre a se manifestar. Defende o Há um elemento complementar a este modelo que é a necessidade da aplicação da eloqüência apregoada por Agostinho. 14 597 conhecimento como forma de preparação para atender ao ensinamento verdadeiro. O discípulo tem papel de agente em sua proposta, pois de nada adianta um mestre bem preparado, com toda a erudição, se o discípulo não se direcionar a Cristo, porque nada será alcançado. Entretanto, as semelhanças chamam atenção: como a associação mestre-discipular é construída de forma a fazer uma analogia ao fortalecimento do grupo, a preocupação com uma estrutura que relaciona de maneira direta grupos de porta-vozes e a próxima geração de atores sociais é visto como uma forma nítida de construir o espaço social. 598 A CONQUISTA DE MAIORCA E A VALORIZAçãO POSITIVA DO MOURO NO LIVRO DOS FEITOS DE JAIME I DE ARAGãO (SÉCULO XIII) Rodrigo Prates de Andrade (Graduando MERIDIANUM – UFSC)1 No período que denominamos de “Reconquista”, entre os séculos VIII e XV, a Península Ibérica fora palco de diversos confrontos entre cristãos e muçulmanos. Segundo Jaime I de Aragão, em um período de guerras, os cristãos só lutariam contra os mouros por dois motivos: “[…] ou para convertê-los, ou para destruí-los, para que devolvessem aquele reino à fé de Nosso Senhor”.2 Na segunda metade do século XIII, este rei, também chamado O Conquistador, descrevia assim os motivos para conquistar Maiorca. No entanto, podemos perceber na obra de Jaime que o mouro nem sempre é representado como o iniel a ser combatido, em certos momentos estes são valorizados positivamente. O objetivo desta pesquisa é investigar estas diferentes representações do mouro no Livro dos Feitos, procurando entender como estes discursos coexistem na crônica de Jaime I. Para tanto, optamos por analisar os capítulos do Livro dos Feitos referentes a narrativa da Conquista de Maiorca, por se tratar do primeiro grande feito de armas de Jaime, e ser o primeiro contato bélico entre ele e os muçulmanos. Jaime I, rei de Aragão e conde de Barcelona, nasceu em 1208, ilho de Pedro II de Aragão e Maria de Montpellier. Jaime tornouse conhecido por suas inúmeras vitórias contra os muçulmanos, conquistando os territórios de Maiorca, Burriana, Valência, Játiva, Biar, Múrcia, entre outros, ganhando o título de O Conquistador. Em sua autobiograia, o Livro dos Feitos, Jaime narra suas diversas conquistas e suas batalhas contra os mouros. Nela percebemos outras representações do mouro, que vão além da imagem do iniel. Nesta 1 Graduando em História da Universidade Federal de Santa Catarina. Vinculado ao Núcleo Interdisciplinar de Estudos Medievais (MERIDIANUM) – UFSC. Bolsista PIBIC/CNPq. 2 JAUME I DE ARAGAO. Livro dos Feitos. Tradução de Luciano José Vianna e Ricardo da Costa. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosoia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llull), 2010. p. 103. 599 crônica ele também é o cavaleiro sarraceno que não se rende e que multiplica sua força para lutar por sua terra; ele é o mouro vassalo que presta um juramento ao seu senhor beijando o Alcorão. Deste modo, percebemos que as relações entre cristãos e muçulmanos não podem ser entendidas como um “choque de civilizações”. Nas Cantigas de Santa Maria, escritas por Afonso X de Castela, genro de Jaime I, encontram-se passagens em que os mouros receberiam a proteção da própria Virgem Maria.3 De maneira semelhante, os muçulmanos não viam o cristão somente como seu “inimigo”. Como aponta Gallego, em algumas fontes árabes dos séculos X e XI, percebe-se uma valorização das características cavaleirescas do cristão.4 Neste contexto, analisamos como Jaime I, em um momento de expansão de seu reinado, e em constantes lutas contra os mouros, os representava. A narrativa da Conquista de Maiorca Como aponta o historiador Bernard Guenée, ao analisar uma obra histórica durante o período medieval, devemos levar em conta o seu autor, a cultura em que este está inserido e o público para quem ele escreveu.5 A historiograia catalã medieval anterior ao século XIII caracterizou-se como uma genealogia de reis, príncipes e condes. No entanto, é a partir da obra de Jaime I, o Livro dos Feitos, que a preocupação com a posteridade e com os grandes feitos surge na Península Ibérica.6 3 SILVEIRA, Aline D. Política e convivência entre cristãos e muçulmanos nas Cantigas de Santa Maria. In: PEREIRA, Nilton M.; ALMEIDA, Cybele C. de; TEIXEIRA, Igor S.. (Orgs.). Relexões sobre o Medievo. São Leopoldo: OIKOS, 2009. p. 39-59. 4 GALLEGO, Cristina Granda. Otra imagen del guerrero Cristiano (su valoración positiva en testimonios del Islam). En La España Medieval, Madrid, n. 8, p. 471480, 1986. 5 GUENÉE, Bernard. História. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2005. 2v. V.2. p. 523-536. 6 CINGOLANI, Stefano Maria. De historia privada a historia pública y de La airmación al discurso: uma relexión em torno a La historiografía medieval catalana (985-1288). Talia Dixit: revista interdisciplinar de retórica e historiografía, Cáceres – Servicio de Publicaciones de la Univerisdad de Extremadura, ano 3, n.º 3, p. 5167, 2008. p. 53. 600 Jaime era um rei guerreiro, que desde sua infância fora educado na arte da cavalaria. Como tal, sabia que era um cavaleiro de Cristo, que deveria converter ou destruir aqueles que se opunham ao seu Senhor.7 No entanto, o que seria esta cruzada ibérica, denominada Reconquista? Os primeiros empreendimentos bélicos dos cristãos contra os muçulmanos, entre os séculos VIII e XI, caracterizaramse mais como pilhagens e saques do que uma guerra com um viés reconquistador.8 Somente entre os séculos X e XI, em textos de origem cristã, percebe-se um sentimento de perda da origem visigoda pela invasão muçulmana do século VIII. Este visigotismo além de estabelecer um elo entre os antigos reis visigodos e as lideranças cristãs, inluenciou a criação e a expansão das monarquias ibéricas.9 Deste modo, a Reconquista deve ser entendida como uma construção ideológica legitimadora de um expansionismo ibérico. Portanto, é perceptível que desde sua infância, tanto pelo contexto da Reconquista, quanto por sua educação, Jaime teve contato com esta mentalidade cruzadística, que iria se fortalecer em seu primeiro feito de armas, a Conquista de Maiorca. A historiograia recente aponta como principais motivos para o empreendimento da Conquista de Maiorca: 1) A ideia de que através da Conquista, Jaime estaria realizando a vontade divina, e que isto o legitimaria perante a sua nobreza;10 2) A pirataria na região de Maiorca que acabava por afetar os mercadores de Barcelona, e a decadência do Império Almôada.11 Percebemos que estas duas VIANNA, Luciano J. A cavalaria medieval e a formação inicial de Jaime I como rei cavaleiro no Llibre dels Fets (c. 1252-1274). Mirabilia, Vitória, v. 8, p. 182-204, 2008. p. 196. 8 COSTA, Ricardo da. A Guerra na Idade Média. Rio de Janeiro: Paratodos, 1998. p. 78. 9 NOGUEIRA, C. R. F. A Reconquista ibérica: a construção de uma ideologia. Historia, Instituciones, Documentos, Sevilha, v. 28, p. 277-295, 2001. p. 280. 10 VIANNA, Luciano J. Pelos céus e pela terra: A Conquista de Maiorca (1229) como legitimidade do rei Jaime I, o Conquistador (1208-1276). 2009. Dissertação (Mestrado) – Programa Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas. Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, 2009. p. 108. 11 BENNÀSSER, 2008 apud VIANNA, Luciano J. Pelos céus e pela terra: A Conquista de Maiorca (1229) como legitimidade do rei Jaime I, o Conquistador (1208-1276). 2009. Op. Cit., p. 56. 7 601 hipóteses não se contradizem, pelo contrário, como veremos adiante tanto as motivações religiosas quanto as econômicas são importantes para compreender a Conquista de Maiorca, e sua posterior narrativa. Entretanto, por que anos após a Conquista, Jaime relembraria seu feito? Nas primeiras páginas de sua obra Jaime nos dá uma importante pista para compreender os motivos de sua confecção e o público para qual fora dirigido: E para que os homens conhecessem e soubessem como passamos esta vida mortal e o que nós izemos com a ajuda do Senhor Poderoso, que é a verdadeira Trindade, deixamos este livro como memória para aqueles que desejam ouvir as graças que Nosso Senhor nos fez e para dar exemplo a todos os outros homens do mundo para que façam o que nós izemos: colocar sua fé nesse Senhor que é tão poderoso.12 Se levarmos em conta esta airmação de Jaime, e que a circulação da obra se dava dentro de uma nobreza, perceberemos que o Livro dos Feitos se encaixa em uma tradição “especular”. Este tipo de escrita surgiria entre os cristãos por volta do século XIII, e teria como função aconselhar o príncipe a como estruturar seu reino, como agir com seu povo e seus inimigos.13 Conforme Vianna a narrativa da Conquista de Maiorca teve o papel de legitimar Jaime perante sua nobreza, sua linhagem, e perante a Cristandade, constituindo-se como um “modelo” de rei cristão, pois este feito “nunca um rei da Espanha pôde concluir”.14 E é neste momento que Jaime narra o primeiro de seus confrontos contra seu inimigo – o iniel. Como vimos anteriormente, Jaime I deixava clara suas intenções em seu discurso ao airmar que ou converteria ou destruiria os iniéis. Inclusive, durante o cerco a cidade de Maiorca, ao derrotar uma investida sarracena, ordena que cortem a cabeça de seu líder Fátila, e a JAUME I DE ARAGAO. Op. Cit., p. 26. SILVEIRA, Aline D. Relação corpo, natureza e organização sociopolítica no medievo. In: NODARI, E.; GERHARDT, M.; MORETTO, S. (Orgs.). SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA AMBIENTAL E MIGRAçÕES. Anais... Florianópolis: UFSC/CFH/Programa de Pós-Graduação em História, 2010. p. 1289-1302. p. 1297. 14 JAUME I DE ARAGAO, Op. Cit., p. 162. 12 13 602 arremessem dentro de uma das vilas de Maiorca.15 Após a Conquista, a maior parte dos mouros que resistiu ao exército cristão foi morta, e acredita-se que algo em torno de 15.000 mouros foram escravizados ou tornaram-se servos.16 Daqueles que permaneceram na ilha, alguns se converteram ao cristianismo, entretanto, houve casos de mouros que mantiveram sua religião. No entanto, na narrativa de Jaime são representados outros tipos de mouros, reconhecendo nestes valores positivos, como veremos adiante. Ao tomarmos a Reconquista como uma construção ideológica legitimadora da expansão cristã, perceberemos que a construção de um inimigo, no caso o iniel, insere-se nesta lógica. Em uma crônica asturiana do século IX, o sarraceno é tido como aquele que tomou a Espanha dos reis visigodos, e os descendentes destes, os monarcas ibéricos, lutam dia e noite para tomar aquilo que é seu por direito.17 O Cavaleiro Em seu primeiro confronto contra os mouros, Jaime cavalga com três de seus cavaleiros e encontra um cavaleiro sarraceno a pé. Por estar em vantagem diz para o sarraceno render-se, e este apenas “virou-se com sua lança em riste e não quis falar.” Como resposta a esta atitude, Jaime airma a importância dos cavalos em um combate, a ponto de airmar que “vale mais um cavalo que vinte sarracenos”. Os cavaleiros estavam prontos para derrubar o sarraceno,“quando veio Dom Pedro de Lobera, e deixamos o sarraceno fugir. Porém, quando o sarraceno o viu chegar, investiu com sua lança de tal maneira no peito do cavalo que o atravessou aproximadamente meia braça e o derrubou”. Prontamente Jaime e seus cavaleiros foram até o sarraceno: “[...] nós fomos até ele, mas ele não quis se render até que morreu, pois quando alguém lhe dizia: - Renda-se, ele respondia, - Le (que quer dizer “não”)”.18 Ibidem, p. 125-126. ABULAFIA, David. A Mediterranean emporium: the Catalan kingdom of Majorca. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. p. 57-58. 17 NOGUEIRA, C. R. F. Op. Cit., p. 282. 18 JAUME I DE ARAGAO. Op. Cit., p. 110-111. 15 16 603 O que percebemos com esta passagem? Jaime com mais três cavaleiros montados, vê um sarraceno a pé derrubar um de seus nobres, e que mesmo em desvantagem, não se rende a ele. A coragem constituía parte importante da ética cavaleiresca medieval, o próprio rei destaca este valor ao narrar um acordo entre os membros da hoste, Assim, no quarto dia, antes que se izesse a invasão da cidade, foi acordado entre nós, os nobres e os bispos, que izéssemos um Conselho Geral, e que naquele Conselho todos jurássemos sobre os santos Evangelhos e sobre a cruz de Deus que, quando entrássemos em Maiorca e a invadíssemos, nenhum rico-homem, nem cavaleiro, nem homem a pé voltasse atrás, pois já teria sido movido a entrar na cidade, e que ninguém se detivesse enquanto não recebesse um golpe mortal; e que se houvesse recebido um golpe mortal e tivesse por perto algum parente ou algum homem da hoste, que este o deixasse em alguma parte ou em algum lugar para que descansasse, mas todos fossem adiante e entrassem na vila pela força, sem girar a cabeça nem o corpo para trás; e quem izesse de outra maneira, que fosse considerado traidor, da mesma forma que aqueles que matam seu senhor.19 Aquele que se rendesse nesta batalha seria considerado um traidor de seu senhor. O ilósofo Lúlio ressalta isto ao airmar que: [...]malvado cavaleiro que teme mais fortemente a força do corpo, quando foge da batalha e desampara seu senhor, que a maldade e a fraqueza de sua coragem, não usa do ofício de cavaleiro nem é servidor nem obediente à honrada Ordem de Cavalaria [...].20 A coragem nas batalhas não era um valor que pertencesse somente aos cristãos. Em um discurso de guerra árabe do século Ibidem, p. 138-139. LLULL, Ramon. O Livro da Ordem de Cavalaria. Tradução de Ricardo da Costa. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosoia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llull), 2010. p. 35. 19 20 604 VII, encontramos valores que deveriam reger as atitudes daqueles guerreiros: Sedes justos [...] sedes valentes, morrei antes de render-vos, sedes piedosos; não mateis nem velhos nem mulheres nem crianças. Não destruais árvores frutíferas, cereais ou gado. Mantende vossa palavra, mesmo aos vossos inimigos. Não molesteis as pessoas religiosas, que vivem retiradas do mundo, mas compeli o resto do mundo a se tornar muçulmano ou nos pagar tributo. Se eles recusarem estes termos, matai-os. 21 Como o cristão, o cavaleiro muçulmano deveria ser corajoso, e aquele que largasse suas armas e se rendesse deveria ser considerado um traidor.22 Coincidência? Acreditamos que não. A Península Ibérica é conhecida como um local de convivência e conlito entre as três culturas religiosas monoteístas: cristianismo, judaísmo e islamismo. Palco não só de confrontos bélicos, ela também presenciou inúmeras trocas culturais. Entretanto, Burke salienta que, o “que os historiadores hoje vêem como herança comum possa ter sido percebido tanto por cristãos quanto por muçulmanos como sendo realmente ‘deles’”.23 Estes corajosos mouros também deveriam ter um líder altamente valoroso. Após Jaime enviar uma mensagem para o rei de Maiorca, airmando que os cristãos tomariam a vila, os sarracenos temeram. O rei prontamente reuniu seu Conselho e disse: Barões, bem sabeis que essa terra foi conquistada por Miramamolim há mais de cem anos, e ele quis que eu fosse senhor de vós, e a conquistou, apesar dos cristãos, que nunca tiveram o atrevimento de atacar essa terra até agora. Aqui temos nossas mulheres, nossos ilhos e nossos parentes. E agora dizem que devemos deixar a terra, de tal maneira que sejamos seus cativos. E ainda dizem mais, além do cativeiro: que protegerão nossas MUIR, 1891 apud COSTA, Ricardo. Op. Cit., p. 76. GALLEGO, Cristina Granda. Op. Cit., p. 472-473. 23 BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006. p. 80. 21 22 605 mulheres e, se não dermos nada, depois que estiverem seu poder forçá-las-ão a fazer qualquer coisa. E eu, que estou aqui entre vós, que tanto sofri contra a nossa lei, preferiria ter perdido a cabeça, e agora desejo saber de vós o que pensais a esse respeito, e me digais qual é vosso juízo. Todo o povo gritou a uma só vez, e disse que mais valia desejar morrer que sofrer tamanha afronta como essa. E respondeu o rei: - Então, como os vejo em tão boa vontade, pensemos em uma maneira de nos defendermos, de tal forma que um homem valha por dois. Depois disso, eles partiram e retornaram ao muro. A partir de então, um sarraceno valia mais que dois.24 Há dois pontos importantes para se destacar neste relato: 1) É o primeiro momento em que Jaime dá voz a um sarraceno na Crônica; 2) A legitimação da resistência sarracena. Percebemos que Jaime, ao narrar o feito do rei maiorquino reconhece-o como um grande líder, que instiga seus homens a lutar por sua terra e sua família, a ponto de que cada guerreiro valesse por dois. O rei também é corajoso, pois apesar da vila ter sido tomada pelos cristãos, “o último sarraceno que partiu daquele lugar [a vila] foi o rei de Maiorca”.25 Apesar da consideração de Burke, percebemos que ambas as culturas possuíam uma noção de suas proximidades. Um cronista muçulmano chamado Ibn Qutayba, relata que apesar de serem luxuriosos, os espanhóis são corajosos guerreiros.26 Gallego airma que este mesmo processo de valorização vai acontecer tardiamente entre os cristãos, somente no século XV.27 Entretanto, percebemos que Jaime, ao narrar os feitos do cavaleiro sarraceno e do rei de Maiorca, tendo como ponto uniicador uma ética cavaleiresca cristã, imputa valores positivos neste “outro”. Valores estes, que segundo o próprio rei, já não se encontravam na maioria de seus vassalos cristãos. JAUME I DE ARAGAO. Op. Cit., p. 136-137. Ibidem, p. 144. 26 GALLEGO, Cristina Granda. Op. Cit., p. 473-474. 27 Ibidem, p. 480. 24 25 606 O Vassalo Logo após a investida de Fátila,28 o sarraceno Dom Aabet decide apoiar Jaime na Conquista, Ele[Dom Aabet] chegou com seu presente, e nos ofereceu cerca de vinte bestas carregadas de cevada, cabritos, galinhas e uvas. As uvas que ele nos trouxe eram de tal qualidade que mesmo estando nos sacos não se partiram nem se estragaram. Em seguida, nós dividimos aquele presente que ele nos ofereceu com os nobres da hoste. Isso fez aquele anjo que Deus nos enviou, e quando digo anjo reiro-me ao sarraceno, pois nos fez tanto bem que o tomamos por um anjo, já que se parecia com um. 29 Esta talvez seja uma das passagens mais interessantes da Conquista, pois, no momento em que Aabet cruza as muralhas de Maiorca para apoiar Jaime, ele deixa de ser o iniel, e passa ser um anjo, reforçando a hoste cristã. Segundo Jaime, a atitude do sarraceno fez com que vários senhores da ilha passassem para ao seu lado, pois ele era um senhor coniável. Do mesmo modo Jaime via naquele sarraceno o modelo de um vassalo, Isso aconteceu de tal modo que, em quinze dias, todas as partidas de Maiorca que estavam na cidade, até mesmo aquelas que estão voltadas para Minorca, icaram a nosso serviço – e nos serviram obedientemente. Nós coniamos nele, porque nele encontramos toda a verdade.30 Jaime tivera diversos problemas com seus vassalos, desde seu nascimento muitos deles tentaram usurpar o trono de Aragão, como no caso da sublevação da nobreza aragonesa em 1226.31 Em Dom Ver página 3. JAUME I DE ARAGAO. Op. Cit., p. 126-127. 30 Ibidem, p. 127. 31 VIANNA, Luciano J. Op. Cit., p. 41. 28 29 607 Aabet, que mesmo sendo um sarraceno, Jaime percebia o exemplo de um bom vassalo. No inal da Conquista, em uma das resistências sarracenas, dois nobres da hoste enviaram uma mensagem para que estes se rendessem, no entanto, “os sarracenos responderam, também por carta, que nunca se renderiam a eles, a não ser ao rei que conquistou a terra”.32 Em outra resistência, os mouros ao perceberem que não poderiam defender-se por muito tempo iniciaram um pleito, no qual, diziam que a ilha era muito pobre, que nela não havia lugar no qual pudessem semear nem para a décima parte da gente que ali havia, mas que nos teriam como seu senhor, e o que eles tivessem dividiriam conosco, pois era racional que um senhor tivesse isso dos seus homens. Além disso, nos entregariam a cada ano três mil quarteirões de trigo, cem vacas e quinhentos animais, entre cabras e ovelhas; e que nós izéssemos uma carta dizendo que os protegeríamos e os defenderíamos como nossos homens e vassalos, e que faríamos isso a nós e aos nossos por todos os tempos.33 Além disso, os mensageiros de Jaime acrescentaram que o rei teria “a potestade de Cidadela e daquele monte no qual está o maior castelo da ilha, além de dar-nos a potestade de todas as outras forças que ali havia”. E para selar este pacto “todos os maiores e melhores homens da ilha” juraram sobre o Alcorão. Considerações Finais A comunidade mudéjar em Maiorca praticamente desaparecera,34 entretanto, em alguns momentos do Livro dos Feitos percebemos uma JAUME I DE ARAGAO. Op. Cit., p. 170. Ibidem, p. 174-175. 34 MONTALVO, José H. Los mudéjares en Aragón y Cataluña en el reinado de Jaime I. In: SARASA, Esteban. (Org.). La sociedad en Aragón y Cataluña en el reinado de Jaime I (1213-1276). Saragoça: Institución Fernando el Católico, 2009. p. 157-199. p. 169. 32 33 608 valorização positiva do mouro. Como um rei pode valorizar uma população e ao mesmo tempo escravizá-la? Jaime liderara um período expansionista da Coroa Catalano-Aragonesa, onde confrontara estes mouros em diversos momentos. Sua guerra contra estes “iniéis” era legítima, pois, lutava para recuperar algo que lhe pertencia – a terra de seus antepassados, os reis visigodos. Para legitimar sua guerra, Jaime possuía um inimigo, que deveria ser expulso daquela terra, ou convertido para que merecesse estar nela. Entretanto, nem todo o sarraceno era seu inimigo. Muitos deles não resistiram a Conquista e aliaram-se ao rei cristão. Como no caso do maiorquino Dom Aabet, que é representado como um anjo, um enviado de Deus para lutar ao lado da hoste cristã. E quando os mouros para sacramentarem um pacto entre eles e Jaime, o fazem na presença do Alcorão – e não da Bíblia. Portanto, percebemos que na tentativa de consolidar a monarquia catalano-aragonesa, Jaime procurou não só legitimar sua conquista através da construção de um inimigo – o iniel –, mas também, através de valores presentes nas duas culturas, legitimar a integração dos mouros – o vassalo ideal. Como airma Montalvo os mouros “en Aragón y Cataluña fueron vistos como eicaces trabajadores, como unos vasallos muy rentables [...]”.35 Portanto, considerando o caráter “especular” de sua obra, e que esta visava um público especíico – uma nobreza que o confrontara inúmeras vezes – podemos inferir que, ao valorizar positivamente o mouro, Jaime poderia usar esta imagem – de valorosos cavaleiros e bons vassalos – como um contraponto a sua nobreza “rebelde”. 35 Ibidem, p. 192. 609 CONSTRUINDO SÃO FRANCISCO NO DISCURSO DA PREGAçãO NA LEGENDA ÁUREA Rômulo Santiago de Melo (Graduando UFG)1 Neste trabalho vamos apresentar uma análise da importância dada aos santos, nos sermões das ordens mendicantes no século XIII. Foi necessário especiicar um santo, São Francisco, que para nós, ajudou a estabelecer um discurso na pregação do século o qual estava inserido. É no século XIII que surge à coletânea hagiográica, Legenda Áurea, melhor, um conjunto de textos, os quais utilizam os exempla, como um elemento de persuasão para combater as indiferenças religiosas e as heresias. Nosso trabalho tem como objetivo, portanto, comparar alguns trechos da obra de Tomás de Celano com alguns trechos da obra do Jacopo de Varazze, sobre São Francisco, para mostrar que os sentidos das palavras “João”, “Francisco” e “Escravo” partem da realidade do século XIII ou da apropriação da mesma realidade, elaborando assim uma nova linguagem. Objetivamos mostrar que o sermão transforma a realidade e a realidade o sermão, ligando brevemente o período em que foi escrita a obra e a análise, procurando descobrir como o hagiógrafo da Legenda Áurea construiu São Francisco, o qual as palavras com as suas impregnações sociais e ideológicas ajudaram a justiicar todo um discurso, pois as palavras são lexíveis e em cima delas podem criar novos sentidos. Parti-se- á no decorrer do texto com o seguinte conceito de Discurso: não como língua, nem texto, nem a fala, mas que necessita de elementos lingüísticos para ter uma existência material. E que as palavras quando são pronunciadas contém aspectos sociais e ideológicos impregnados.2 São Francisco de Assis nasceu em 1182, era ilho de uma rica família de comerciantes, os quais criaram no luxo e na vaidade. Rômulo Santiago de Melo graduando Licenciatura e Bacharelado em Historia pela Universidade Federal de Goiás no Campus Catalão. Bolsista PIBIC, sob orientação da Professora Doutora Teresinha Maria Duarte. 2 FERNANDES, Cleudemar Alves. Analise do discurso: relexões introdutórias. São Carlos: Claraluz, 2007. 1 610 Fundou a ordem das Damas Pobres e a sua vida chegou ao im, no dia 03 de outubro de 1226, na primeira capela que ele havia restaurado, em São Damião. Assim muitos tinham estima, simpatia e alegria pelas pregações, pelo modo de vida abraçada por São Francisco. Transmitindo uma espiritualidade, então, izeram dele um dos santos mais populares. Foi canonizado no começo do século XIII, cuja vida já tinha sido escrita por vários hagiógrafos de sua Ordem, como Frei Tomás de Celano, que entrou na Ordem em 1215 encarregado de escrever as primeiras biograias; São Boaventura, que não chegou a conhecer o santo, mas teve oportunidade de falar com muitos que o conheceram e o frei Leão, companheiro e secretário de São Francisco nos momentos mais importantes. O dominicano Jacopo de Varazze partindo de outro foco apropriou da biograia de São Francisco para compor sua compilação de exemplos na coletânea hagiográica, Legenda Áurea.3 A preocupação de Varazze diante da elaboração dessa obra tenha sido fornecer aos confrades, material para enriquecer e clarear o conteúdo dos sermões transmitidos, facilitando-os de maneira acessível para os leigos. Franco Junior4 deixa claro que o principal elemento da Legenda Áurea de sua estrutura era o “exemplum”. Estes “exemplum” eram os próprios santos, portanto a elaboração de uma escrita que contenha uma lógica, e ao mesmo tempo, palavras que fortalecem a vida do santo, são necessárias para manter uma memória acerca do próprio santo, a qual enriquece a memória cristã. Le Gof 5 nos mostra: A cristianização da memória e da mnemotécnica, repartição da memória coletiva entre o desenvolvimento da memória dos mortos, principalmente dos santos, papel da memória no ensino, articula o oral e o escrito, Essa obra escrita originalmente em latim no século XIII, teve sua primeira edição brasileira e em língua portuguesa, em 2003, por Hilário Franco Júnior e publicada pela Cia. das Letras. 4 JUNIOR, Hilário Franco. Apresentação; São Francisco. In: Legenda Áurea: vidas de santos. São Paulo: Companhia das letras, 2003. 5 LE GOFF, Jacques. Memória. In: ___. Historia e Memória. São Paulo: Unicamp, 2003. 3 611 aparecimento enim de tratados de memória (artes memoriae), tais são os traços mais característicos das memórias na Idade Média.6 A cristianização da memória é algo notável na Legenda Áurea, pois é graças à narração da vida dos santos, que as informações divulgadas por meio da pregação, criando uma função social em cima da obra e do homem do medievo. Essa função social acontece devido à linguagem, pois ela própria é produto da sociedade e mais, vamos perceber que a sociedade é produto da linguagem também. Coelho7 diz: “linguagem, faculdade de simbolização e procedimento comunicativo, com o qual os homens dizem o mundo e se dizem uns aos outros, permitindo um intercâmbio social mais profundo das experiências anteriores e interiorizadas, coletivas ou individuais”. É no meio desse intercâmbio social que a cristianização da memória medieval vai utilizar a linguagem para atingir as experiências individuais e coletivas dos homens e mulheres do século XIII. Portanto, a cristianização para chegar à sua intenção necessitou da memória ou da mnemotécnica, que é simplesmente uma técnica de memorização de informações através da criação de idéias paralelas, ajudando as pessoas a ixar neste caso do cristianismo, as doutrinas, as crenças, as quais necessitam da escrita e da oralidade para atingir o objetivo: “difusão do cristianismo como religião e como ideologia”.8 Cada santo ou santa, dignos desse nome em vida, tentaram se conigurar com o ilho de Deus, e isso não poderia acabar, pois o próprio Vauchez9 airma: “As vidas de santos e as coletâneas de milagres visam adaptar os servidores de Deus a modelos que correspondem a categorias reconhecidas da perfeição cristã.” Essa perfeição cristã foi conservada e a Legenda Áurea ajudou nessa conservação, pois através do arrolar das palavras “João”, “Francisco” e “Escravo”, elas tem peso no despenhar num aqui discurso aqui especiicado em São Francisco. LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente medieval. São Paulo: EDUSC, 2005. p. 443. 7 COELHO, Braz José. Linguagem: conceitos básicos. Goiânia: Trilhas Urbanas, 2006. p. 19. 8 LE GOFF, Jacques. Memória. Op. Cit. 9 VAUCHEZ, André. O Santo. In: LE GOFF, J. (Dir.). O homem medieval. Lisboa: Presença, 1989. p. 211-230. 6 612 A vida de São Francisco pode ser conservada ou manipulada para um determinado im teológico, doutrinário ou pastoral. Assim, no caso de São Francisco, essa conservação ou manipulação por meio da palavra na Legenda Áurea, perpassa pelas vozes que permeiam o autor da obra. Assim, feitas estas considerações, a linguagem que Francisco já trazia dos primeiros hagiógrafos são elaboradas por cada narração de outros hagiógrafos, isso deve ser observado. A construção de um santo pela linguagem deve levar em consideração a época, o grupo ou movimento que esta em contato com o enunciado, neste caso, o santo e os objetivos do sujeito falando (refere-se a um sujeito inserido em uma conjuntura sócio-históricaideológica cuja voz é constituída de vozes sociais). É nessa construção da linguagem que o discurso vai sendo construído. O discurso estabelecido pela Legenda Áurea tem a noção de sentido produzida pelos sujeitos que neste caso perpassa pelo sujeito Jacopo de Vorazze, mas que carrega as vozes dos Pregadores e da Sociedade. Cabe então nos inteirarmos no que Souza10 ao colocar que Jacopo de Varazze esta inserido numa missão que têm sua especiicidade num carisma Congregacional: Envolvido com a missão dominicana, Jacopo de Varazze estava comprometido com uma mensagem mais exigente quanto à formação do clero divulgador e à unidade dos fundamentos da fé comum. Apesar disso, enquanto o papado tenta — numa empreitada que começara no século anterior — disciplinar a devoção dos iéis, retirando dos bispos o controle dos processos de canonização e propondo peris de santidade cada vez menos dependentes do magismo dos gestos milagrosos, e cada vez mais ligados à excelência teológica e à atuação a favor da ortodoxia, Jacopo de Varazze insiste na santidade martirológica e milagrosa como base de SOUZA, Neri de Almeida. Palavra de púlpito e erudição no século XIII. A legenda Aurea de Jacopo de Varazze. Revista brasileira de História, São Paulo, v. 22, n. 43, 2002. Disponível em www.scielo.br . Acesso em 12 de novembro de 2011. 10 613 sua pastoral. Desta especiicidade deriva um quadro que explica de forma importante toda a atuação de Jacopo deVarazze que ilustra o procedimento prático de parte signiicativa do clero disciplinador, sobretudo dominicano, nos séculos de reforma espiritual e depuração doutrinária da Igreja, de combate às heresias e de avanço da evangelização.11 A “ideologia do sujeito em questão” é muito importante para entendermos a contextualização do discurso, pois essa ideologia carrega idéias dos séculos passados, as conservando (tradicionalismo), mas também acontece em cima dessas idéias passadas uma elaboração de idéias novas, surgindo assim, uma nova ideologia. A ideologia toma força quando está inserida em um determinado grupo, portanto cabe notar que a Legenda Áurea não foi escrita por um franciscano, mas por outro religioso de outro carisma, dominicano, por isso que o peril reproduzido pelos santos na Legenda Áurea certamente é harmonizado com os ideais mendicantes de erudição e pobreza do carisma de Jacopo de Varazze. A história de São Francisco ligada pelas palavras chaves: família, conversão, fundador, morte, conserva-se a mesma narração, mas segundo Fernandes12 “as palavras têm aspectos sociais ideológicos, podemos perceber isso quando elas são pronunciadas”. Partindo dessa airmação a estrutura utilizada para realizar a cristianização da memória e da mnemotécnica não é a mesma no decorrer dos séculos, pois as palavras que elaboram essa estrutura não transmitem o mesmo sentido. As palavras pronunciadas e escritas na construção de São Francisco na Legenda Áurea (séc. XIII) não conserva as mesmas palavras, e quando com conserva, tem sentidos diferentes em relação a outra narração de São Francisco, inserida no século XIX, pois o contexto histórico inluencia as palavras e elas inluenciam o contexto. Os aspectos sociais ideológicos que as palavras trazem no discurso da Legenda Áurea, tentam passar a seguinte mensagem “Francisco (leigo) é santo e oferece a busca de forças além do mundo natural” a qual corresponde expectativas do seu tempo. 11 12 SOUZA, Neri de Almeida. Op. Cit., p. 38. FERNANDES, Cleudemar Alves. Op. Cit. 614 Assim, o discurso da Legenda Áurea é produzido pelo “sujeito falando”, tanto pela escrita quanto pela oralidade, esse sujeito falando convive com a economia, o histórico e o ideológico do seu tempo. O discurso contextualizado pode ser esclarecido segundo CHARAUDEAU13 et al “(...) não existe discurso que não seja contextualizado: não se pode, de fato, atribuir um sentido a um enunciado fora do contexto.” É perceptível que o discurso estabelecido em cima de São Francisco ajuda a deinir o contexto com a possibilidade de modiicá-lo durante o sermão e como o contexto inluencia o discurso. A Legenda Áurea no seu discurso não promove, somente, o santo, mas uma das concepções de Deus e das suas representações. Quem tem inluência de ajudar a estabelecer as representações e concepções são as palavras, as quais são estabelecidas pelas concepções e representações já formadas também. A vida de São Francisco é apropriada por diversos discursos, portanto esses discursos são elaborados por meio de um primeiro discurso documentado, pois ele ajuda a fundamentar outros discursos. Tomás de Celano14 ao escrever a vida I estabelece este discurso bibliográico, melhor,. Assim, ao escrever na sua obra: “Verão ou outono (junho-dezembro): nasce em Assis. Batizado com o nome de Giovanni di Pietro (pai) di Bernardone (avô). Mudado para Francisco”, estabeleceu naquele século um discurso de que Francisco havia mudado de nome, mas sem aprofundar nos motivos dessa mudança. Esse discurso foi apropriado na Legenda Áurea: Francisco foi primeiramente chamado de João, mas depois mudou de nome e passou a ser conhecido como Francisco. Essa mudança de nome parece ter se devido a muitas causas. Primeira causa lembra um milagre, o ter recebido de Deus o conhecimento da língua francesa, daí sua legenda airma que sempre que estava pleno de ardor do Espírito Santo punha para fora suas emoções em francês. Segunda causa, divulgar seu ministério, CHARADEAU, Patrick. Dicionário de analise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004. 14 CELANO, Tomás. São Francisco de Assis. Petrópolis: Vozes, 1983. 13 615 daí sua legenda airmar que foi como resultado da sabedoria divina que ele foi chamado assim, a im de que por esse nome singular, inabitual, sua crença fosse conhecida mais rapidamente em todo universo.15 O relato de São Francisco na mudança de nome de “João” para “Francisco” traz um sentido mais elaborado em relação ao relato de Tomás de Celano. Dessa forma, a mudança de nome de São Francisco na Legenda Áurea está ligada a varias causas, enquanto, no relato de Celano é mais um aspecto histórico. Nota se por outro lado que a palavra “João” é uma linguagem estabelecida na Legenda Áurea não com a mesma relevância em relação a palavra “Francisco”, pois o autor a utiliza-a o primeiro nome para contrapor, isso ajuda no processo de memorização das idéias cristãs. O sentido das palavras não tem uma única via, não são engessados. Os sentidos das palavras não são ixos, não são imanentes, conforme, geralmente, atestam os dicionários. Os sentidos são produzidos face aos lugares ocupados pelos sujeitos em interlocução. Assim uma mesma palavra pode ter diferentes sentidos em conformidade com o lugar socioideológico daqueles que a empregam.16 Esse lugar socioideológico dentro de um processo de mudança de nome abordado pelo dominicano Jacopo de Varazze mostra a sua intenção, formação para os confrades e a dimensão espiritual dos leigos, pois ele fala de um espaço, neste caso, religioso e ainda carregou o carisma de sua congregação. É fundamental perceber como o “nome” é importante no discurso bíblico. A mudança de nome de São Francisco na Legenda Áurea tem que levar em consideração que Jacopo de Vorazze, além de ser uma pessoa da Idade Média, que vivia imersa numa tradição cristã, era também um teólogo e, como tal, conhecedor da Bíblia, sem dizer VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea: vidas de santos. Tradução, introdução e notas de Hilário Franco Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 836. 16 FERNANDES, Cleudemar Alves. Op. Cit. 15 616 que devia ser conhecedor do discurso hagiográico, portanto, o seu discurso na construção de um relato da vida de São Francisco é um discurso contextualizado. Assim, trocar de nome na tradição cristã é ser chamado para uma missão especiica e ter uma relação mais próxima com Deus. “Primeira causa lembra um milagre, o ter recebido de Deus o conhecimento da língua francesa, daí sua legenda irma que sempre que estava pleno de ardor do Espírito Santo punha para fora suas emoções em francês”.17 Não podemos esquecer que esse trabalho com as palavras, por de traz se tem a idéia de levar antes de tudo uma doutrina, não importa as pessoas que vão recebê-la ou transmiti-la. Por isso, que “João” ao passar para “Francisco” carrega o “ter recebido de Deus o conhecimento da língua francesa” mostrando uma concepção de Deus, o que toma sempre a iniciativa. Esse processo de doutrinação perpassa por uma das impregnações ideológicas que a Legenda Áurea transmite correspondendo a outra impregnação social, a necessidade de sentido que os homens e as mulheres medievais têm para relacionar com Deus. Assim outra palavra que podemos analisar dentro do discurso construído em cima de São Francisco na legenda Áurea, “escravo”, a qual é colocada na terceira causa que justiicou a mudança de nome de São Francisco ( João para Francisco), essa palavra escravo tem um sentido neste contexto de mostrar as pessoas presas ao mal materializado pelas palavras “demônio e pecado”. É importante inteirar da obra: “Terceira causa, indicar os resultados que devia obter, quer dizer, dar a conhecer que ele e seus ilhos deviam tornar francos e livres muitos escravos do pecado e do demônio”.18 Na Legenda Áurea, o autor, possivelmente devido a posse da biograia de São Francisco, escreveu: “Em uma visão o escravo de Deus viu acima dele um seraim cruciicado que lhe exprimiu as marcas de sua cruciicação de maneira tão evidente que parecia ele próprio o cruciicado”.19 A mesma palavra “escravo” no Francisco da Legenda Áurea nos JUNIOR, Hilário Franco. Op. Cit. 18 Idem. 19 Idem. 17 617 mostra dois sentidos diferentes, “Escravo do demônio e do pecado” contrapondo com a palavra“escravo de Deus”, o mal e o bem fazem parte de algo que iz referencia anteriormente, da técnica de memorização de informações através da criação de idéias paralelas, ajudando as pessoas a ixar neste caso do cristianismo, as doutrinas, as crenças, as quais necessitam da escrita e da oralidade para atingir o objetivo do dominicano. Diante do que foi colocado, podemos perceber uma das pedagogias da Legenda Áurea e também a cristianização, na versão de Jacopo de Varazze, qual baseia, senão no mistério divino, mas primeiramente na insistência em uma representação do mundo onde é feita a distinção entre os universos do bem e do mal. Com o objetivo de descobrir como o hagiógrafo da Legenda Áurea construiu São Francisco. As palavras “João”, “Francisco” e “escravo” com as suas impregnações sociais e ideológicas ajudaram a justiicar um discurso com base na Legenda Áurea, que tem elementos de contraposição, os quais estão presentes nos tipos de santidade na obra. O discurso de São Francisco nos mostra o porquê do facilitar a linguagem para os leigos e o Souza20 ontribui complementando: a hagiograia também atuava na “refolclorização” através do “substrato folclórico” do próprio texto erudito, mostrando ainidades incontornáveis entre a cultura de leigos e clérigos. O discurso e a santidade estão juntos, ambas num processo de construção e P. Delooz21 nos mostra que a santidade é a “percepção e o reconhecimento do caráter excepcional de um homem ou uma mulher – quer dizer, a santidade como existe para os outros e através dos outros. Assim, embora tal conclusão, ainda esta em aberto para aprofundar a pesquisa. 20 21 SOUZA, Neri de Almeida. Op. Cit. DELOOZ, Pierre. Sociologie et canonisations. Liege: Faculte de Droit, 1969. 618 DEUSES E DESTINOS: A REPRESENTAçãO MITOLÓGICO-LITERÁRIA DO DESTINO EM ÉDIPO REI E NA VÖLSUNGA SAGA Tiago Quintana (Graduando – UFRJ – Veiga de Almeida)1 Introdução A literatura nórdica medieval e a tragédia grega são manifestações culturais signiicativas de seus respectivos contextos históricos e sociais. Em ambos os gêneros literaturários estão representados alguns dos mais proeminentes signos culturais compartilhados pelos mundos helênico e germânico, como o trágico, o herói épico e a inexorabilidade do Destino. Estes mundos tão distantes entre si no tempo e no espaço, aparentemente tão diferentes um do outro, demonstram na verdade maiores semelhanças do que se costuma imaginar quando analisados mais profundamente. A partir de uma breve contextualização sócio-cultural e históricoliterária da tragédia grega e das sagas islandesas, e com base nos postulados estruturalistas de Roland Barthes, Eleazar Meletinsky e Northrop Frye, este trabalho propõe-se a trazer à luz convergências e divergências na representação mitológica e literária do Destino nas culturas literárias grega e nórdica, especiicamente nas histórias de dois personagens, Édipo (protagonista da tragédia Édipo rei, de Sófocles) e Siegmund (protagonista de parte da Völsunga saga, de autoria desconhecida). Sobre a tragédia grega A tragédia como gênero dramático surgiu na Grécia Antiga a partir dos ditirambos (cantos religiosos em honra ao deus Dioniso, Autor, dentre outros trabalhos, do livro Orgulho e tragédia em A saga de Kormak (à venda em http://www.agbook.com.br/book/53544--Orgulho_e_Tragedia_ em_A_saga_de_Kormak) e da tradução A saga de Hedin e Hogni. Disponível em http://revistaliter.dominiotemporario.com/doc/A_saga_de_Hedin_e_Hogni_ Tiago_Quintana.pdf . 1 619 espécie de versão mais primitiva do drama satírico).2 Seu apogeu ocorreu na cidade de Atenas, no século V a.C.,3 e com o declínio do poderio sócio-político ateniense, vê-se também o gênero da tragédia em processo de decadência no mundo grego e em épocas posteriores. Jacqueline de Romilly liga o nascimento e a evolução da tragédia – inclusive sua decadência – diretamente ao clima intelectual e moral da cidade de Atenas ao longo de seu período de expansão política, de sua vitória em Salamina sobre os persas até sua derrota no Peloponeso nas mãos de Esparta. Quando Atenas era poderosa e culturalmente fervilhante, a tragédia nasceu e desenvolveu-se até alcançar seu auge; quando Atenas caiu, a tragédia perdeu sua importância artística.4 Estruturalmente, a tragédia grega é uma história que provoca a piedade e o terror no público a im de que possam purgar-se dessas emoções (chama-se a esse processo cátarsis). Esses sentimentos são provocados quando o herói trágico sofre uma mudança ou reversão em sua fortuna (metábasis), passando da felicidade para o infortúnio não por causa de uma perversidade de caráter ou semelhante falha moral, mas sim por cometer um erro (hamartía) de grandes proporções, muitas vezes movido pelo orgulho excessivo (hýbris).5 Ao longo dos séculos surgiu a idéia de que uma tragédia deve forçosamente terminar com a destruição de seu protagonista. Ocorre que para o trágico se concretizar, é obrigatória a presença da situação trágica (o erro, a queda, o apelo às emoções), mas não a do aniquilamento inescapável do protagonista (o que Lesky chama de “conlito trágico cerrado”), embora ele também possa existir.6 ARISTÓTELES. Arte poética. In: A poética clássica / Aristóteles, Horácio, Longino. São Paulo: Cultrix, 2005. p. 23; BRANDãO, Junito de Souza. Teatro grego: origem e evolução. Rio de Janeiro: Tarifa Aduaneira do Brasil, 1980. p. 63; LESKY, Albin. A tragédia grega. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 61-66. 3 ROMILLY, Jacqueline de. A tragédia grega. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. p. 8-9, 13-14. 4 ROMILLY, Jacqueline de. Op. Cit., p. 8-11. 5 ARISTÓTELES. Arte poética. In: A poética clássica / Aristóteles, Horácio, Longino. São Paulo: Cultrix, 2005. p. 24, 31-35. 6 LESKY, Albin. Op. Cit., p. 35-39, 55. 2 620 Sobre as sagas nórdicas As sagas nórdicas, apesar de escritas em prosa, foram escritas baseadas em histórias orais e poemas originários da Escandinávia; no entanto, há divergências sobre elas serem apenas um registro escrito (e, portanto, iel em maior ou menor escala) dessas histórias, ou serem criações de antiquários que se basearam mais em suas imaginações do que em uma tradição oral.7 As primeiras sagas falavam de reis noruegueses e santos e foram registradas por escrito na Islândia no séc. XII, embora os manuscritos mais antigos ainda disponíveis sejam do séc. XIII.8 As sagas são classiicadas de acordo com sua temática. Algumas dessas classes são as sagas de reis, ou konungasögur, que narram a vida e os feitos de reis nórdicos, particularmente reis noruegueses; as sagas de famílias, ou Íslendingasögur, que narram eventos centrados ao redor de famílias e indivíduos notáveis do passado (em relação aos autores das sagas) islandês; e as sagas heróicas, ou fornaldarsögur, que narram histórias lendárias repletas de elementos fantásticos e até mesmo mitológicos.9 A tragédia de Édipo A história de Édipo começa quando ele passa a suspeitar que, na verdade, não é realmente o ilho de Pólibo e Mérope, o rei e a rainha de Corinto. Ele então vai até o oráculo de Delfos perguntar quem são seus verdadeiros pais; como resposta, ele descobre apenas que estava fadado a matar seu pai e casar com sua mãe. O príncipe ica tão perturbado ao ouvir isso que foge, determinado a nunca mais voltar a Corinto, e acaba por chegar à cidade de Tebas. 7 CLOVER, Carol J. & LINDOW, John (Ed.). Old Norse-Icelandic literature: a critical guide. Toronto: University of Toronto Press, 2005. p. 239-240. 8 BOULHOSA, Patricia Pires. Sagas islandesas como fonte da história da Escandinávia medieval. Signum, São Paulo, n. 7, p. 13-39, 2005. p. 18-19. 9 SAWYER, Peter (Ed.). he Oxford illustrated History of the Vikings. Nova York: Oxford University Press, 1997. p. 226-227. 621 A entrada para Tebas era guardada pela Esinge,10 que lançava a todos que queriam entrar na cidade um enigma;11 aqueles que falhavam em dar a resposta correta eram devorados pela criatura. Édipo responde corretamente à pergunta,12 e a Esinge se mata. Em agradecimento por tê-los libertado do monstro, os cidadãos de Tebas o coroam rei, e ele casa-se com Jocasta, a recém-enviuvada rainha de Tebas. Doze anos depois, uma praga assola a cidade de Tebas, e seu povo implora a Édipo que novamente os salve. Todavia, o rei já havia antecipado-se ao pedido e enviara Creonte, irmão de Jocasta, ao oráculo de Delfos para descobrir como debelar a praga. Creonte retorna, dizendo que tudo seria resolvido quando o assassino de Laio fosse descoberto e punido. Édipo jura que o assassino será exilado da cidade como punição. Édipo então ordena que Tirésias, o profeta cego, seja trazido à sua presença e revele quem é o assassino. Tirésias hesita, mas, após Édipo acusá-lo de ele próprio ser o criminoso, Tirésias revela que foi Édipo, na verdade, quem matou Laio. Édipo, indignado, acusa Tirésias de ter inventado isso para que ele fosse exilado e Creonte pudesse assumir o trono. Édipo discute em público com Creonte, mas Jocasta tenta acalmálo dizendo que mesmo oráculos podem errar. Ela então fala sobre a profecia, na qual se airmava que seu ilho mataria o pai e casaria com a mãe; para evitar que a profecia se cumprisse, o ilho fora abandonado nas montanhas. Como prova que a profecia não se cumprira, Laio fora morto por assaltantes anos atrás, em uma encruzilhada de três estradas. Édipo, perturbado, diz que talvez ele realmente tenha matado Laio. Doze anos atrás, quando voltava do oráculo de Delfos, ele encontrou um homem no caminho para Tebas, em uma encruzilhada Uma fera mitológica. Tinha corpo de leão, asas de águia e cabeça de mulher. Cf.: ROMAN, Luke e ROMAN, Monica. Encyclopedia of Greek and Roman mythology. Nova York: Facts On File, 2010. p. 445. 11 “Que animal caminha com quatro pernas pela manhã, duas ao meio-dia e três à tarde e quanto mais pernas tem, mais fraco é?” 12 “O homem, pois ele engatinha quando é pequeno, anda com as duas pernas quando é adulto e usa um cajado na velhice.” 10 622 de três estradas. Ambos discutiram para decidir quem tinha o direito de atravessar o caminho primeiro, e Édipo, em uma reação de legítima defesa, o matou. Para descobrir a verdade, ele ordena que o último criado sobrevivente de Laio seja trazido à sua presença – se Laio realmente fora morto por mais de um atacante, Édipo não poderia ser seu assassino. Neste momento, vem um mensageiro de Corinto para anunciar a morte de Pólibo, o que signiica que agora Édipo é o rei de Corinto. Mas Édipo, ainda com medo da profecia cumprir-se, diz que não voltará enquanto sua mãe ainda estiver viva. O mensageiro tenta tranqüilizálo e revela que ele não é realmente ilho de Pólibo e Mérope, mas sim que fora entregue a eles quando criança. Na conversa que se segue entre Édipo, Jocasta e o mensageiro, Jocasta apercebe-se da verdade, corre para seu quarto e suicida-se. Édipo, após conversar também com o criado de Laio, dá-se conta de que a profecia, no inal das contas, realizara-se: ele havia matado seu pai e casado com a própria mãe. Ele fura os próprios olhos com os colchetes de ouro que prendiam o vestido de Jocasta e perde toda a sua riqueza e poder, deixando Creonte como rei.13 A saga dos Völsungs A Völsunga saga relata a origem e o im da família Völsung, uma família de chefes guerreiros e heróis descendentes do próprio deus Odin. É considerada uma saga heróica, uma fornaldarsögur. A saga dos Völsungs começa com a história de Sigi, ilho de Odin, que se torna um fora-da-lei por assassinar o escravo de outro homem, e termina com a morte de Hamdir, Sörli e Erp, ilhos de Gudrun, ao vingar a morte de sua irmã, Svanhild. No entanto, nosso objetivo aqui é fazer um estudo comparativo apenas entre a narrativa de Édipo e a história de Sigmund, primogênito de Völsung e pai de Sigurd, matador do dragão Fafnir e o mais famoso dos Völsungs. Resumo feito com base no mito de Édipo (BURN, Lucilla. Mitos gregos. São Paulo: Editora Moraes, 1992. p. 66-73) e na peça Édipo rei, de Sófocles. SÓFOCLES. Édipo rei. In: A trilogia tebana: Édipo rei, Édipo em Colono, Antígona. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. p. 17-100. A história da peça começa quando Édipo já é rei de Tebas e a praga já assola a cidade. 13 623 A história de Sigmund começa quando seu pai oferece sua irmã gêmea, Signy, em casamento a Siggeir, rei dos getas. Eles celebram o casamento no salão de Völsung, no centro do qual há um grande carvalho chamado Branstock. Durante a festa, um andarilho – na verdade, Odin disfarçado – irrompe no salão e crava a espada Gram em Branstock, dizendo: “Quem retirar esta espada da árvore a terá como um presente meu e verá que espada melhor que esta jamais teve em mãos”.14 Tendo dito isso, o andarilho então abandona o recinto. Todos os convivas tentam retirar a espada do carvalho, mas apenas Sigmund consegue. Siggeir então oferece uma grande quantidade de ouro, mas Sigmund recusa: “Tu poderias ter retirado a espada, assim como eu, se fosse teu destino portá-la; mas agora, visto que foi em minhas mãos que ela primeiro recaiu, jamais a terás, mesmo que ofereças todo o ouro que tiveres”.15 Siggeir ica ofendido com essa resposta e começa a tramar vingança. Meses depois, Sigger convida Völsung e seus ilhos a irem até o reino dos getas para uma festa, mas o rei geta os embosca, mata Völsung e captura os ilhos do rei. Estes são aprisionados na loresta, onde todas as noites a mãe de Siggeir, transformada em uma enorme loba, os mata um por um. Com a ajuda de Signy e uma de suas criadas, Sigmund consegue fugir e matar a loba, e passa a viver escondido na loresta. Signy envia os ilhos que teve com Siggeir para serem treinados por Sigmund, pois espera que eles o ajudem a vingar a morte de Völsung e seus irmãos, mas quando falham no treinamento, ela insiste para que o irmão os mate, o que ele faz. Signy percebe que seus ilhos “Whoso draweth this sword from this stock, shall have the same as a gift from me, and shall ind in good sooth that never bare he better sword in hand than is this.” THE STORY OF THE VOLSUNGS. 1888. Edição eletrônica da tradução em inglês no site he Online Medieval and Classic Library (OMACL) Disponível em http://omacl.org/Volsunga/ . Acesso em 12 de dezembro de 2011. 15 “hou mightest have taken the sword no less than I from there whereas it stood, if it had been thy lot to bear it; but now, since it has irst of all fallen into my hand, never shalt thou have it, though thou biddest therefor all the gold thou hast.” THE STORY OF THE VOLSUNGS. Op. Cit. 14 624 com Siggeir não serão fortes o bastante para vingar o rei Völsung, então procura a ajuda de uma feiticeira, assume uma nova aparência e vai até Sigmund, com quem se deita e concebe Sinjötli. Sinjötli é enviado para treinar com Sigmund por um longo tempo e mostra-se à altura da linhagem de Völsung. Quando ambos estão prontos, Sigmund e Sinjötli tentam atacar Siggeir enquanto este dorme, mas são descobertos, e embora lutem com grande bravura, são capturados. Signy os ajuda a fugir, e eles então ateiam fogo ao salão de Siggeir, matando o rei, seus homens e Signy, que se deixa queimar junto com Siggeir. Muitos anos mais tarde, Sigmund, agora rei de Hunaland, casase com a princesa Hjördis, ilha do rei Eylimi. O rei Lyngi, um dos pretendentes de Hjördis, reúne um vasto exército e ataca Sigmund e Eylimi. Durante a batalha, o Völsung vê-se face a face com um homem que é, na verdade, o deus Odin, novamente disfarçado. Com um golpe de sua lança, Odin quebra a espada de Sigmund, e com isso a sorte se volta contra ele e seu sogro. Seus exércitos são derrotados, e o próprio Sigmund é ferido mortalmente. Após o término da luta, com as forças de Sigmund e Eylimi desbaratadas e este último morto, Hjördis vaga pelo campo de batalha e encontra seu marido moribundo. Quando ela pergunta se a recuperação ainda é possível, ele responde: Muitos ainda sobrevivem mesmo após a esperança ter quase se extinguido, mas a boa sorte me abandonou. Não me permitirei ser curado, e tampouco é a vontade de Odin que eu possa alguma vez sacar uma arma novamente, já que esta espada, minha e dele, está quebrada. Lutei apenas enquanto foi a vontade do deus.16 Sigmund então revela que Hjördis está grávida e que caberá ao ilho deles vingar sua morte e a de Eylimi: “Outro homem está “Many a man lives after hope has grown little; but my good-hap has departed from me, nor will I sufer myself to be healed, nor wills Odin that I should ever draw sword again, since this my sword and his is broken; lo now, I have waged war while it was his will.” THE STORY OF THE VOLSUNGS. Op., Cit. 16 625 destinado a isso. Atenta! Carregas em teu ventre um fruto varão. Cuida bem dele, e ele será o mais nobre e famoso de nossas linhagens(...)”17 E com isso, morre.18 A representação mitológico-literária do destino em Édipo Rei e na Völsunga Saga Tanto a cultura grega quanto a nórdica antropomorizavam o Destino – isto é, concebiam uma força abstrata como uma entidade humanizada (embora não humana). Para os gregos, o Destino personiica-se na forma de Cloto, Láquesis e Átropos, as Moiras, que tecem, medem e cortam o io da vida humana;19 para os nórdicos, na forma das Nornas, Urd, Verdandi e Skuld, que também têm a função de iar a vida dos homens – passado, presente e futuro.20 Em ambas as culturas o Destino, fosse ele personiicado como as Moiras ou como as Nornas, estava acima de todos, até mesmo dos deuses: na mitologia nórdica, os deuses estavam predestinados a morrer em um confronto inal contra os gigantes e outros monstros (o Ragnarök, o crepúsculo dos deuses);21 na Ilíada, Zeus procura um jeito de salvar seu ilho Sárpedon, que está destinado a morrer pelas mãos de Pátroclo, mas é alertado de que fazê-lo iria contra a ordem natural das coisas – isto é, contra a vontade do Destino – e desiste.22 Além dessa personiicação direta do Destino, algumas divindades gregas e nórdicas podiam ser consideradas porta-vozes – ou mesmo agentes – do Destino. Os deuses gregos Zeus e Apolo podiam ver o “hat is fated for another man; behold now, thou art great with a man-child; nourish him well; and with good heed, and the child shall be the noblest and most famed of all our kin(...)” THE STORY OF THE VOLSUNGS. Op. Cit.. 18 Resumo feito com base na tradução para o inglês da saga por Eirikr Magnusson e William Morris. THE STORY OF THE VOLSUNGS. Op. Cit., 19 ROMAN, Luke e ROMAN, Monica. Op. Cit., p. 171-172. 20 LINDOW, John. Norse Mythology. Nova York: Oxford University Press, 2001. p. 243-245. 21 Ibidem, p. 254-258. 22 ROMAN, Luke e ROMAN, Monica. Op. Cit., p. 172. 17 626 futuro,23 e Apolo podia revelar o futuro aos mortais através do oráculo de Delfos;24 já o deus nórdico Odin não apenas também era dotado do dom da profecia, mas podia mesmo decidir o destino dos guerreiros através de suas serviçais, as valquírias.25 Tanto em Édipo rei quanto na Völsunga saga, o Destino é uma igura fundamental para o desenrolar da trama. Em Édipo rei, é graças à profecia do oráculo de Delfos, de que o ilho matará o pai e casará com a mãe, que Laio e Jocasta abandonam o recém-nascido Édipo – garantindo, assim, que quando chegar à idade adulta ele não os reconhecerá e terá a oportunidade de matar um e casar com a outra. E é a revelação do profeta Tirésias, de que Édipo é o assassino de Laio, que provoca a discussão que faz Jocasta revelar a profecia que ouvira há tantos anos, o que leva diretamente à compreensão de Édipo quanto aos seus atos e, com isso, à sua queda. Da mesma maneira, quando Odin crava a espada Gram no carvalho Branstock, na Völsunga saga, isso leva diretamente à rixa entre Sigmund e Siggeir e aos primeiros feitos heróicos de Sigmund; ao retirar a espada do carvalho, Sigmund está, na verdade, aceitando seu destino de herói. E quando, anos mais tarde, é chegada a hora de Sigmund cair e abrir espaço para um novo herói, Sigurd, é o próprio Odin quem faz Gram – e portanto, o destino de Sigmund – em pedaços, garantindo com isso a morte do herói. Portanto, vê-se que nas duas histórias o Destino tem uma atuação, seja direta ou indireta, provocando por sua vez as ações por parte dos personagens que levam à resolução dos enredos. Por outro lado, é interessante notar que as atitudes dos dois protagonistas perante a inluência do Destino são completamente diferentes entre si, realçando a semelhança de temas entre as histórias. Laio, Jocasta e Édipo lutam contra o destino, e por isso são reduzidos à infelicidade como resultado direto de suas tentativas.26 Já Sigmund, por meio Ibidem, p. 73, 172. Ibidem, p. 74-75. 25 ESOPINHO. Dicionário da mitologia nórdica. São Paulo: Enigmística Moderna, 1903. p. 84, 119. 26 Laio e Jocasta abandonam o ilho recém-nascido para morrer, e Édipo desaia os conhecimentos sobrenaturais do profeta Tirésias. Como explicado anteriormente, essas ações levam diretamente à consumação da tragédia. 23 24 627 de suas ações e diálogos, demonstra aceitar seu destino,27 e como resultado é feliz, pois embora em um primeiro momento perca seu pai e irmãos e anos mais tarde morra, ele conquista glória primeiro como um herói, depois como um rei, e morre com a certeza de que não apenas sua descendência está assegurada, mas que seu ilho será um herói ainda maior que ele próprio – e para um guerreiro nórdico adorador de Odin, isso é a felicidade. “Tu poderias ter retirado a espada, assim como eu, se fosse teu destino portála(...)”; “Não me permitirei ser curado, e tampouco é a vontade de Odin que eu possa alguma vez sacar uma arma novamente(..) Lutei apenas enquanto foi a vontade do deus”; “Outro homem está destinado a isso. (...) Cuida bem dele, e ele será o mais nobre e famoso de nossas linhagens(...)” THE STORY OF THE VOLSUNGS. Op. Cit. 27 628 OS MILAGRES DE MONGES NA OBRA VITAE PATRUM DE GREGÓRIO DE TOURS Vanessa Gonçalves Bittencourt de Souza (Graduanda – UFF)1 Por meio da obra Liber Vitae Patrum,2 o bispo Gregório de Tours nos apresenta vinte trajetórias marcadas por um tipo de conduta cristã que converte abades, bispos, reclusos e uma freira em exemplos extraordinários para o rebanho de Deus. Ao caracterizálos como “extraordinários”, procuro fazer referência ao fato de estarem profundamente conectados com um mundo que acreditava na manifestação do sobrenatural em seu cotidiano, sendo um bom exemplo disso a crença em milagres. O objetivo dessa comunicação é justamente analisar o lugar e o impacto do milagre na obra Vitae Patrum, centrando a investigação nas catorze hagiograias que contemplam as trajetórias de monges. Nascido na Gália na primeira metade do século sexto e descendendo de uma família senatorial em que uma tradição eclesiástica se fez presente, Gregório alcança em 573 a posição de bispo em Tours. Segundo Peter Brown,3 entre as principais preocupações de seu episcopado é possível citar o avanço de manifestações religiosas cristãs alternativas, ou seja, não reconhecidas pelos homens da Igreja. Nesse sentido, Vitae Patrum é produzida como uma tentativa de se garantir que as iguras recomendadas pela Igreja se tornassem os alvos das atenções de quem estava sujeito a se distrair com falsos profetas e pregadores errantes. O recurso às vidas de santos se constituiu como um dos mais interessantes caminhos encontrados por pregadores medievais para alcançar a consciência popular, uma vez que ajudaram a difundir o Bolsista PIBIC/CNPq. JAMES, Edward. Gregory of Tours: Life of the Fathers. Liverpool: Liverpool University Press, 1985. 3 BROWN, Peter. A Ascensão do Cristianismo no Ocidente. Lisboa: Presença, 1999. 1 2 629 exemplo adequado de vida cristã. Como aponta Aaron Gurevich,4 Gregório soube reconhecer a função didática das vidas dos santos. Em Vitae Patrum está claro o desejo de incentivar os ouvintes a seguir o exemplo de seus monges e bispos. Assim como seus protagonistas teriam se voltado a seus predecessores para seguir o modelo de vida desejado por Deus, Gregório esperava que seus ouvintes buscassem o que é agradável a Deus com base nos estudos das vidas de santos. André Vauchez5 nos indica que a Bíblia foi tomada como uma das referências principais por autores de vidas de santos e de relatos de milagres. Nas vidas de monges em Vitae Patrum, Gregório de Tours recorre em especial aos livros de Mateus (para as vidas de Lupicinus e Romanus, Abraão, Caluppa, Martius, Senoch, Ursus e Leobartius, Monegundis), Marcos (vida de Abraão), Gênesis (vidas de Abraão, Ursus e Leobartius), I Reis (vida de Abraão), Lucas (vida de Portianus), I Samuel (vida de Portianus), Exôdo (vida de Patroclus), Salmos (vidas de Portianus, Friardus, Aemilianus e Brachio), Isaías (vida de Aemilianus e Brachio), Eclesiastes (vidas de Senoch e Leobardus), I Coríntios (vidas de Martius e Senoch), II Coríntios (vida de Patroclus), João (vidas de Martius, Venantius, Ursus e Leobardus), Deuteronômio (vida de Monegundis), Efésios (vida de Leobardus, Ursus e Leobartius), Romanos (vida de Lupicinus), II Tessalonicenses (vida de Ursus e Leobartius). Portanto, ao iniciar a narrativa de cada uma das vidas, Gregório geralmente combinava citações bíblicas a uma recomendação moral, como o bom uso das riquezas exempliicado na vida dos abades Romanus e Lupicinus; a necessidade de se perdoar as transgressões alheias, evidente na vida de São Martius e a crítica à arrogância presente na vida de Senoch. Na vida de Portianus, o escravo que se tornou abade, Gregório defende ainda que Deus recompensa aos que servem a sua fé e que só a graça divina faz o pequeno se tornar grande. GUREVICH, Aron. Medieval Popular Culture: Problems of Belief and Perception. Trans. by János M. Bak & Paul A. Hollingsworth. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. 5 VAUCHEZ, André. Milagre. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2002. 2v. V.2. p. 197-212. 4 630 Mas qual poderia ser o tipo de exemplo que Gregório buscava para seus ouvintes? Basicamente atendia ao peril ideal aquele que desde a infância se mostrasse inclinado ao serviço de Deus e que era capaz de reunir as principais virtudes cristãs. Restringindo-me ao campo dos monges, a renúncia ao luxo e às riquezas e o investimento nas obras de caridade, na abstinência, na penitência e nas orações se traduzem como características padrões desse modo de vida.6 Gregório precisava de exemplos como o do abade Abraham e do eremita Aemilianus, que teriam deixado a vida mundana de riquezas para se tornarem novos homens, formados por Deus na santidade. Homens que fundaram muitos monastérios, como Lupicinus e Ursus. E o caso único de uma mulher, Monegundis, que tivera uma vida de casada e ilhas antes de se voltar a uma vida dedicada ao trabalho para Deus. A humildade, a devoção aos preceitos divinos, a castidade e o esforço de mortiicação do corpo também eram qualidades importantes. Esse último ponto inclusive é destaque em trajetórias como a de Portianus, que se dedicava ao jejum a ponto de se perceber sem saliva durante o verão. Sua estratégia era mastigar sal quando estava com calor, mas sem que Deus permitisse que sentisse sede. Um segundo Lupicinus procurava diversas formas de aligir seu corpo. Enquanto cantava ao Senhor, usava pedras e espinhos e por isso se encontrava incrivelmente machucado ao im da vida. O nível de disciplinamento do corpo alcançado por esses monges é essencial para que sua conduta passe a ser encarada como um modelo de vida cristã a ser buscado. É interessante destacar que em Vitae Patrum Gregório não parece manifestar preferências pessoais nem pelo grupo de abades e eremitas, nem pelos bispos santos, ainda que esses últimos façam parte de sua parentela. Mas é impossível negar que a narrativa de Gregório estabeleça diferenças no que se refere às condições em que estão inseridos e às pressões a que estão submetidos os santos dos dois grupos. Seus bispos ligam-se a uma importante e tradicional família, enquanto seus monges vinham de origens distintas, incluindo BLAZQUEZ, J. M. El monacato de los siglos IV, V y VI como contracultura civil y religiosa. In: HIDALGO DE LA VEGA, Maria José (Dir.). La Historia en el contexto de las ciencias humanas y sociales. Homenaje a Marcelo Vigil Pascual. Salamanca: Universidad de Salamanca, 1989. p. 97-121. 6 631 estratos sociais mais baixos da sociedade. Os bispos poderiam sofrer pressões e oposições políticas, mas aparecem muitas vezes como iguras inabaláveis diante dos problemas e adversários que enfrentam. Os monges, por sua vez, são apresentados como iguras mais frágeis, uma vez que Gregório consegue expor, ainda que delicadamente, determinadas fraquezas desse grupo, sejam elas rejeições sociais ou a possibilidade de sucumbir temporariamente às oscilações emocionais, como vaidade, orgulho, inseguranças, dúvidas e hesitações. O que não deve nos surpreender é o fato de tais fraquezas também serem compatíveis com as fraquezas dos ouvintes das vidas de santos. Os monges santos de Gregório se enquadravam num padrão que incluía ainda a obediência ao bispo. Os abades e eremitas citados na obra estabeleceram boas relações com as autoridades eclesiásticas. Um monge que conquistasse admiração por seus feitos era capaz de atrair e mobilizar multidões, convertendo-se muitas vezes numa espécie de liderança religiosa, que em certos casos concorreria com a autoridade do bispo. Nesse contexto, tornou-se urgente controlar as impulsões ascéticas, sobretudo quando se tratava de monges e eremitas carismáticos.7 Os monges da obra aqui analisada justamente escapam desse quadro, uma vez que procuravam ser discretos e em nenhum momento são encarados como ameaça ao bispado, diferenciando-se dos falsos profetas que preocupavam Gregório. Mas os monges da obra de Gregório contam ainda com mais um item importante em seu peril: a capacidade de fazer milagres concedida por Deus. Gregório não duvidava dos poderes dos falsos profetas, mas atribuía seus feitos extraordinários às maquinações do demônio. Os monges santos, ao contrário, recebiam seus dons incríveis apenas de Deus e apenas para executar os serviços que Ele desejava. Vauchez8 nos mostra que a justiicação fundamental do milagre está no fato de que para Deus nada é impossível. Ele está disposto a dotar seus homens santos do poder de realizar o extraordinário em benefício de seu povo. LITTLE, Lester K. Monges e religiosos. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit., p. 227. 8 VAUCHEZ, André , Op. Cit., p. 198. 7 632 Em Vitae Patrum é conferido um destaque especial aos principais milagres dos santos listados. Há milagres de cura, lutas contra demônios, visões e formas especiais encontradas pelo santo para se fazer presente, como o tremor que atinge o trono do rei Chilperico quando Lupicinus se aproxima de seus portões. Eles podiam fazer uso de orações, sinal da cruz, saliva, óleos sagrados ou do simples toque de suas mãos em grandes feitos que atraíssem a veneração de considerável número de seguidores, ainda que muito dos santos tenham buscado a solidão, como os reclusos Friardus e Calluppa. Mas como Gregório mesmo alerta, o Senhor gloriica seus santos e os faz conhecidos. Na categoria de visões, Venantius merece destaque. O abade foi o único capaz de ver, em uma determinada missa na basílica de São Martinho, um homem misterioso abençoando o sacrifício do altar. Em outras ocasiões, o abade teve uma visão do Paraíso e ouviu vozes saindo de um túmulo santo. Ele contou aos seus irmãos e, segundo Gregório, nenhum deles duvidou de que estavam diante de um homem escolhido por Deus para revelar os segredos celestiais. O reconhecimento e a aprovação de testemunhas tornam-se evidentes e fundamentais. Lupicinus também parecia ter acesso privilegiado a Deus, que havia revelado a ele um tesouro oculto no deserto para que pudesse sustentar sua comunidade. E quando os monges viam-se tentados a abandonar seus caminhos de santidade e renúncia, Deus os impedia. Quando um demônio tentou convencer Patroclus a voltar à vida mundana, um anjo do Senhor ofereceu-lhe uma coluna de onde poderia ver os crimes do mundo. Aterrorizado diante das visões, Patroclus pediu a Deus que não o deixasse retornar a essa vida. Nesse ponto, é importante frisar que a todo o momento Gregório lembra que sem a ajuda de Deus, os santos não poderiam vencer as tentações e realizar milagres. Visões não eram os únicos feitos a impressionar os ieis. Senoch e Ursus foram capazes de desaiar o que hoje conhecemos como leis da física, o primeiro orando para que uma caixa de relíquias diminuísse de tamanho para se encaixar no local apropriado de veneração e o segundo fazendo com que um moinho de um inimigo bárbaro simplesmente desaparecesse. Abraham, “como um novo Elias” na opinião de Gregório, apelou a Deus e conseguiu que o jarro de vinho da festa 633 de sua Igreja não se esvaziasse antes que todos estivessem satisfeitos. A imitação dos grandes feitos bíblicos pelos santos está presente não apenas na obra de Gregório, mas também em outras hagiograias medievais. Isso porque os hagiógrafos costumavam atribuir aos seus santos milagres idênticos aos dos profetas dos Evangelhos.9 E havia ainda quem pudesse agir sobre as leis da natureza, como o recluso Friardus, que transformava galhos secos em bonitas árvores, levando Gregório a crer que se um santo pode levantar uma árvore morta, também poderia levantar os homens da morte. Gregório relata ainda incríveis lutas entre monges e demônios. Conforme aponta Peter Brown, desde os séculos quarto e quinto os monges recebiam a fama de “lutadores” contra o demônio.10 Romanus e Lupicinus enfrentaram demônios que lhes jogavam pedras enquanto dedicavam-se às orações. Venantius expulsava bravamente os demônios que invadiam sua cela. E Caluppa fez o mesmo, afastando de sua cela (localizada no fundo de uma rocha) duas serpentes que tentavam intimidá-lo. Portinanus um dia acordou com sua cela em chamas, mas sua oração e sinal da cruz derrotaram o ataque do demônio. A expulsão de demônios de corpos dos ieis também era uma missão assumida pelos santos. Um grande número de possuídos recorria à cela de Patroclus e de outros monges em busca de salvação por imposição das mãos. Essa categoria de milagre também encontra referência nos textos bíblicos.11 Nenhum feito atraía mais atenção do que o milagre da cura. Requisitados por cegos, paralíticos, feridos e loucos, os monges santos pediam a Deus pelo restabelecimento da saúde física e mental dos atormentados. A oração de Venantius curava febres, assim como a de Leobardus curava a cegueira. Senoch livrava vítimas do veneno de serpentes invocando Cristo em conjunto com o sinal da cruz. O toque do santo também poderia ser suiciente para promover a cura. O caso mais impressionante talvez seja o de Romanus, que se Ibidem, p. 199. BROWN, Peter. O im do mundo clássico de Marco Aurélio a Maomé. Lisboa: Verbo, 1972. p. 107. 11 VAUCHEZ, André., Op. Cit., p. 199. 9 10 634 hospedou numa casa de leprosos, estando ele “cheio do amor de Deus” e sem medo de contaminação, conforme registra Gregório. Romanus entoou salmos e tocou cada um dos leprosos, curando-os enquanto dormiam. É possível perceber que esses santos seguem o modelo de curas milagrosas de Jesus, em especial no que diz respeito à categoria de milagres por meio do toque das mãos.12 Em outros casos, o santo poderia fazer uso de substâncias especiais para curar os que imploravam por seu socorro. A saliva do santo parecia ter um poder extraordinário. Leobardus usou sua saliva para curar pústulas, assim como a freira Monegundis recorreu a sua para curar uma menina coberta por feridas e um homem cego desde o nascimento. Para socorrer um menino que sofria de dores estomacais, Gregório relata que Monegundis misturou sua saliva e folhas verdes, fez o sinal da cruz e esfregou a substância na direção do estômago do doente, que se viu curado uma hora depois. Outra substância que aparece como decisiva para o milagre da cura é o óleo sagrado. Gregório não informa quais ingredientes ou qual seria o modo de preparo de cada um desses óleos, mas indica que se tornaram famosos. Martius curava febres com uma infusão de óleo sagrado, enquanto Senoch utilizou um óleo para curar a ferida de um homem. Mesmo após a morte do santo, essas substâncias continuaram a atrair doentes. Diante disso, Monegundis abençoou óleo e sal para que suas companheiras freiras continuassem a curar quem procurasse por ela após sua morte. Segundo Gregório, seus óleos curavam quem sofria de febre, mudez ou problemas físicos de diversas ordens. Um óleo igualmente abençoado por Patroclus antes de sua morte também foi capaz de curar duas jovens possuídas por demônios. Nesse sentido, é importante lembrar que os penitenciais proibiam poções e óleos, que costumavam ser os artifícios principais dos falsos profetas, em conjunto com uma diversidade de amuletos e ritos também utilizados de forma divergente das práticas cristãs defendidas pelo clero. Mas, ao que parece, a glória ou a condenação pelo uso das substâncias dependia mais de seu portador do que do tipo de substância, uma vez que na obra de Gregório não há nenhum indício de condenação a tais práticas quando realizadas por esses monges tidos como santos. 12 Idem. 635 Imediatamente após a morte do santo, seu túmulo se tornava também um instrumento de cura. Gregório lista milagres que teriam acontecido em túmulos como o de Abraham, próximo do qual pessoas dormiam para obter a cura para febres; de Romanus, alvo de cegos, surdos e paralíticos e de Venantius, curando possuídos pelo demônio. Um caso marcante ocorreu na missa pela morte de Senoch, quando um homem que sofria de paralisia foi curado após beijar o tecido que cobria o túmulo do santo. O mundo de Gregório e de seus ouvintes crê irmemente no sobrenatural. Os demônios podem tomar posse de crianças, adultos e idosos; doenças são manifestações de forças malignas e as forças da natureza parecem ter um poder incalculável, seja para o bem, seja para o mal. O santo aparece como alguém que responderá às necessidades de manifestações sobrenaturais que fazem parte do conjunto de crenças desse mundo. Ele tem autoridade sobre demônios e sobre as forças da natureza, além de poder curar todo tipo de enfermidade. O sobrenatural passa a ser identiicado como milagre. Dessa forma, o sobrenatural pode estar sob controle do clero, que se esforça por determinar o que é miracula e o que é maleicium, ainda que tal distinção, conforme aponta Gurevich,13 muitas vezes não estivesse clara nem mesmo para os membros do corpo eclesiástico. O que se sabe é que o santo é o ser digno de trabalhar com milagres em vida e após a morte. Assim, é possível encontrar pistas para se compreender o lugar do milagre numa obra destinada a um público que não apenas crê no extraordinário, mas que acredita também em sua importância para o funcionamento do mundo. Vauchez14 aposta no esforço eclesiástico na substituição do miraculoso pagão pelo miraculoso cristão, de forma que a nova concepção estivesse no mesmo nível de realismo e eicácia da concepção que devia ser combatida. O milagre faz sentido para os ouvintes de Gregório e, na medida em que redime ou torna aceitável o sobrenatural dentro de determinadas regras, permite uma aproximação maior entre as necessidades espirituais dos ouvintes cristãos e os anseios da Igreja. 13 14 GUREVICH, Aron. Op. Cit. VAUCHEZ, André., Op. Cit., p. 201. 636 Esta comunicação se apresenta como uma face ainda inicial do projeto de Iniciação Cientíica PIBIC/CNPq/UFF “Profetas, Curandeiros e Videntes na Gália de Gregório de Tours”, sob orientação do Prof. Dr. Edmar Checon de Freitas. Ela traduz algumas das expectativas deste início de pesquisa, sendo a principal delas a tentativa de compreender a formação da identidade religiosa na Gália, buscando manifestações populares que nos ajudem a perceber a complexidade desse processo, uma vez que se insere nas fronteiras entre o que é aceitável e o que é inaceitável na vida e conduta de um cristão medieval. 637 O ARREPENDIMENTO NAS VITAS SANCTORUM PATRUM EMERETENSIUM: O EXEMPLO DO MONGE BÊBADO Vanessa Gonçalves Paiva (Graduanda PEM – UFRJ) Introdução Fruto das relexões desenvolvidas ao longo das atividades do Programa de Estudos Medievais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a presente comunicação, realizada sob a orientação da Professora Leila Rodrigues da Silva, destina-se a apresentar algumas questões relacionadas à vida do monge caulianense, a qual integra o conjunto hagiográico “Vidas dos Santos Padres de Mérida”.1 Tal escrito, de autoria anônima, tem sua redação datada em meados do século VII, no contexto do reino visigodo de Toledo.2 Michel de Certeau, enfatizando o caráter ediicante do gênero literário hagiográico, identiica, no mesmo, “uma estrutura própria que se refere não essencialmente ‘àquilo que passou’, mas ‘àquilo que é exemplar’”.3 Nesse sentido, deparamo-nos com o protagonista de uma das vidas das VSPE, o monge caulianense,4 o qual apresenta, de acordo com os preceitos para a vida monástica, difundidos no reino Para maior comodidade, passaremos a nos referir ao escrito em questão por meio da abreviação de seu título em latim: VSPE (Vitas sanctorum patrum Emeretensium). Para uma apreciação integral da fonte, cf.: VELÁZQUEZ, Isabel. Vida de los santos padres de Mérida. Madrid: Trotta, 2008. 2 Estima-se que a obra tenha sido redigida certo tempo depois da morte do Rei Witerico (610) e, mais especiicamente, durante o bispado de Esteban de Mérida (633-638). Cf.: VELÁZQUEZ, Isabel. Op. Cit. 3 CERTEAU, Michel de. Uma variante: a ediicação hagio-gráica. In: A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982. p. 266-278. 4 Na edição das VSPE de Isabel Velázquez, a vida apresenta-se com o título “Comienza la muerte de um monje caulianense (el monje presa de la gula)”. Pensa-se tratar do monastério de Cauliana (no latim, entre variadas leituras dos manuscritos, encontra-se Cauliniana). Cf.: VELÁZQUEZ, Isabel. Op. Cit. 1 638 visigodo no período em questão,5 um comportamento reprovável e pecaminoso, entregando-se à gula e à embriaguez. Além disso, no conjunto hagiográico em questão, tal personagem representa um claro desvio ao modelo de virtude e retidão,6 bem como à noção de luta e resistência contra as tentações do Diabo. De fato, segundo Baschet, As tentações dos santos, tormentos terríveis, também são a homenagem do Diabo à virtude deles e a prova necessária para conirmá-la. Em todos os relatos hagiográicos, o Diabo é o oponente que valoriza o triunfo do santo herói sobre ele. Para os vivos, esses relatos servem de exemplo e mostram como se livrar dos assaltos do Diabo.7 Dessa forma, qual seria o sentido da representação de um monge pecador em uma obra hagiográica, se, conforme veremos, este parece afastar-se de todos os ensinamentos e regras do ideário monástico visigodo? Que modelo de santidade, e que tipo de exemplo, pretendese promover e difundir com a vida do monge glutão? Pensamos, pois, que se trata da representação de um modelo de arrependimento: conforme veriicaremos mais adiante, uma vez Para um vislumbre dos ideais monásticos difundidos no reino visigodo nos séculos VI e VII, utilizaremos, como fonte de apoio, as obras: Sententiarum libri (II e III), do bispo e escritor visigodo Isidoro de Sevilha, cf.: ISIDORO DE SEVILLA. El libro 2° y 3° de las sentencias. Introducción y traducción por D. Juan Oteo Uruñuela, presbítero. Sevilla: Apostolado Mariano, 1991; e De institutione uirginum et contemptu mundi, do bispo Leandro de Sevilla, conhecida como Regula Leandri, cf.: VELÁZQUEZ ARENAS, J. (Ed.). Leandro de Sevilla: De la instrucción de las virgenes y del desprecio del mundo. Madrid: Fundación Universitaria Española,1979. 6 Esta comunicação apresenta alguns aspectos pontuais de um trabalho monográico, ainda em desenvolvimento, para a conclusão do curso de graduação em História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Apresentaremos, pois, uma comparação da vida do monge caulianense com o conjunto das demais vidas das VSPE, no sentido de demonstrar que estas últimas podem ser enquadradas em um modelo de santidade claramente relacionado à virtude, à devoção, à pureza e ao desprezo pelo pecado. No presente artigo, entretanto, limitar-nos-emos a relatar brevemente informações gerais acerca das demais vidas dos padres emeritenses. 7 BASCHET, Jérôme. Diabo. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionário Temático Medieval. São Paulo/Bauru: Imprensa Oicial do Estado/EDUSC, 2002. 2v. V.1. p.319-331. 5 639 demonstrada a condição pecadora, e sendo a mesma levada às últimas conseqüências, retrata-se um processo de conissão, compunção e penitência, o qual culmina no perdão e no milagre,8 ambos determinantes para a demonstração da autoridade, da misericórdia e da graça divinas. Eis o que almejamos demonstrar no referido artigo. Para tanto, adotaremos como método a análise do conteúdo das VSPE, a título de fonte principal; como fontes de apoio, temos as já referenciadas obras de Isidoro de Sevilha e de Leandro de Sevilha – respectivamente, Sententiarum libri e Regula Leandri, nas quais se apresentam alguns dos mais importantes preceitos das culturas eclesiástica e monástica visigodas, não só no que diz respeito ao comportamento esperado para os monges, mas também no sentido das perspectivas acerca do corpo, da alimentação, do pecado e do perdão, noções com as quais trabalharemos nesta comunicação. Esperamos, desta forma, fundamentar as possíveis explicações para a hipótese do arrependimento ora apresentada. As Vidas dos Santos Padres de Mérida: os valores histórico e literário As VSPE, conforme já foi dito, são um relato anônimo. Este se compõe de cinco opúsculos nos quais é possível vislumbrar a vida da cidade de Mérida no inal do século VI. Neste sentido, a obra é valorizada pela rica e detalhada ambientação da cidade, a qual se comprova por outras fontes e pelos achados arqueológicos na região. Além disso, abordam-se eventos históricos bastante conhecidos, razões pelas quais se atribui a este conjunto hagiográico um importante caráter historicista.9 O milagre do monge caulianense é a preservação de seu cadáver, encontrado de maneira incorrupta passados mais de quinze anos de sua morte. Sobre milagre, cf., entre outros: VAUCHEZ, André. Milagre. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Op.Cit., V. 2, p. 197-212; DELL’ELICINE, Eleonora. «Signum vel res»? La ponderación del milagro en la sociedad visigoda (589-711). Bulletin du centre d’études médiévales d’Auxerre, Auxerre, n.2, 2008. Disponível em http:// cem.revues.org/index9862.html 9 Isabel Velázquez atenta para o caráter primeiro da obra, a saber, literário; assim, mostra-se cautelosa com relação à grande valorização das VSPE no que se refere ao seu valor histórico, uma vez que tal valoração tem, por vezes, conduzido as 8 640 No primeiro opúsculo (Comienza la muerte del muchacho de nombre Augusto), damos a conhecer o jovem e puro Augusto, o qual serve no Monastério de Santa Eulália.10 Acometido por uma enfermidade, revela suas visões de um banquete celeste com o Salvador. É, ainda, nesta primeira vida, que encontramos algumas informações acerca do autor da obra, o qual se insere no relato como um dos ouvintes de Augusto; neste sentido, somos levados a crer que se trata de um diácono do mosteiro de Santa Eulália.11 Na seqüência, temos a vida do monge caulianense (Comienza la muerte de un monje caulianense), elemento central desta comunicação, e da qual trataremos com mais profundidade na próxima seção. Por ora, devemos informar que são identiicados certos problemas de ordem cronológica e estrutural, os quais revelam incoerências em relação ao relato posterior, o do abade Nancto.12 Em seguida, temos a vida do abade Nancto (Comienza la muerte de un tal abad Nancto); ingressando na basílica de Santa Eulália, deseja não ser visto por mulheres, a im de não cair em pecado. Tendo sua restrição desrespeitada pelo diácono Redempto, retira-se para uma região isolada. Reputado por suas virtudes, recebe uma possessão de domínio iscal do príncipe Leovigildo, sendo assassinado por seus investigações acerca da cidade de Mérida, e dado como certos elementos puramente internos a esta hagiograia. Cf.: VELÁZQUEZ, Isabel. Op. Cit., p.28. Sobre Mérida, cf., entre outros, DÍAZ, Pablo C. Mérida tardoantica: l’apoteosi di una città cristiana. Reti Medievali Rivista, Firenze, v. XI, p. 67-79, 2010; SÁNCHEZ, Dionisio Pérez. Algunas consideraciones sobre el ceremonial y el poder político en la Mérida visigoda. Studia Historia. Historia Antigua, Salamanca, 20, p.245-266, 2002. 10 Santa Eulália é a mártir padroeira da cidade de Mérida. Seu papel de intercessora e protetora perpassa, de certa forma, toda a obra, o que parece indicar uma forte devoção pela mesma na região àquele período. Cf.: HOMET, Raquel. Signiicaciones de los martírios de Eulalia de Mérida. Aragón en la Edad Media, Zaragoza, n. 1415, p. 759-775, 1999; PITA, Xosé-Louis Armada. El culto a Santa Eulália y la cristianización de Gallaecia: algunos testimonios arqueológicos. Habis, Sevilha, n. 34, p. 365-388, 2003. 11 Uma segunda redação parece ter sido realizada por volta de 670, por um diácono de nome Paulo. Cf.: VELÁZQUEZ, Isabel. Op. Cit., p. 11-13. 12 Ibidem, p. 11-15. 641 novos servos, os quais experimentam a ira divina. Embora tal relato seja rico em elementos históricos e, principalmente, em elementos literários próprios do gênero hagiográico, não é nosso objetivo tratálos neste trabalho, e, portanto, passaremos ao relato seguinte. No quarto opúsculo, temos o primeiro dos dois relatos nos quais se apresentam os personagens de maior importância social. Na realidade, são representantes de um modelo de santidade bastante difundido nas hagiograias ocidentais, para além do mártir e do eremita cultuados pela tradição oriental: os homens sábios, de grande erudição, detentores de cargos eclesiásticos de grande porte, como abades, monges e, sobretudo, bispos, os quais participam de forma ativa e fundamental nas sociedades, conciliando a atuação social com a vida de oração e contemplação.13 Assim, temos o relato de título Comienza la muerte y los milagros de los santos obispos emeritenses, em que se apresentam importantes episódios da vida dos bispos Paulo e Fidel, tio e sobrinho, os quais foram bispos de Mérida e tiveram grande repercussão na região em seu período. No relato seguinte, por sua vez, de título Comienza la vida y virtudes del santo obispo Masona, temos alguns aspectos da vida de Masona, o mais importante bispo emeritense, o qual protagonizou importantes eventos da história visigoda. Esta é a vida na qual se observam com mais clareza os elementos críveis os quais conirmam o valor histórico da obra.14 Por im, pode-se pensar nas VSPE como uma expressão da airmação do protagonismo da cidade de Mérida (a qual, inclusive, havia sido sede do reinado antes da predominância de Toledo), para além do objetivo maior destas: a ediicação da sociedade por meio da vida santa de seus personagens. Não surpreende, pois, que sejam abordados somente certos aspectos das vidas dos personagens, tais Cf.: VELÁZQUEZ, Isabel. Op. Cit., p. 25-28; BROWN, Peter. he Saint as Exemplar in Late Antiquity. Representations, Berkeley, n. 2, p. 1-25, 1983; BERROCAL CAPARROS, Maria del Carmen. El culto a los santos en el se. hispano en epoca visigoda: aproximación a un problema metodológico. Antigüedad y cristianismo: Monografías históricas sobre la Antigüedad tardía, Murcia, n. 2, p. 365-368, 1985. 14 Sobre o reino visigodo nos séculos VI e VII, cf.: GARCIA MORENO, L. História de España Visigoda. Madrid: Catedra, 1989. 13 642 como atos prodigiosos ou, no caso dos bispos, aqueles referentes às funções episcopais; a morte dos mesmos, inclusive, parece indicar a importância central da noção de salvação pelo im da vida terrena. Comienza la muerte de um monje caulianense: Pecado, Gula e Arrependimento Iniciaremos a parte central desta comunicação apresentando um trecho da fonte no qual o pecado do monge caulianense é identiicado; seu comportamento é contrastado com o irreparável proceder do abade Renovato (segundo a fonte, futuro bispo de Mérida): (…) estimulaba a la patria celestial a todos los monjes que vivían allí mediante la buena conversación y los ejemplos de su santo comportamiento; (…) mientras toda la congregación perseveraba en alabanzas a Dios y vivía siguiendo las reglas en el temor del Señor, un monje que no estaba conforme con las santísimas costumbres de éstos, inclinándose desmesuradamente a la gula y la embriaguez, se entregó a su propia perdición. Luego, derivando hacia la ruina absoluta, empezó a robar todo lo que podía encontrar.15 O santo abade tenta, em vão, corrigir seu comportamento com palavras carinhosas e repreensões verbais. Em seguida, procede a punições mais severas: como ni así se alejaba del seductor placer de la gula ni de la tentación del hurto y la rapiña, mandó que lo lagelaran, lo debilitaran con ayunos y lo encerraran en un cubículo. Pero él persistía en sus antiguos pecados no sólo porque no se apartaba de la maldad, sino porque, envileciéndose cada día, se apresuraba cada vez más a entregarse al antro del tartáreo averno.16 Antes de mais nada, devemos pensar em como o comportamento do monge caulianense se insere nos preceitos para a vida monástica 15 16 VELÁZQUEZ, Isabel. Op. Cit., p. 59. Ibidem, p. 59-60. 643 nos moldes ocidentais do período medieval. Existia, pois, um determinado padrão de comportado que era exigido dos monges, no sentido da missão que estes deveriam empreender, a saber, levar a graça divina aos homens não consagrados. Para tanto, era necessário puriicar a alma pela privação de toda e qualquer forma de prazer físico, em conformidade com a concepção segundo a qual o corpo e a alma formavam uma unidade; sendo assim, as ações sobre um afetavam o outro. Isto implicava necessariamente práticas como a privação de alimentos, a recusa ao ato sexual e mesmo a períodos prolongados de descanso.17 Existia, pois, uma expectativa de perfeição para os monges.18 No que se refere à alimentação, a gula era fortemente condenada, de modo que o alimento deveria servir para atender tão somente às necessidades corporais básicas, a im que o monge pudesse realizar suas atividades cotidianas. Neste sentido, lembramos as concepções acerca da gula formuladas por Isidoro de Sevilha e Leandro de Sevilha: tudo indica que ambos compartilham de uma tradição do pensamento oriental difundida por Cassiano, segundo a qual a gula constituía um dos “oito espíritos do mal”,19 a saber: orgulho, vanglória, preguiça, acídia, avareza, SILVA, Leila Rodrigues da. A gula nas regras monásticas de Isidoro de Sevilha e Frutuoso de Braga. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS, 4., 2001, Belo Horizonte. Anais.... Belo Horizonte: PUC Minas, 2003. p. 651. Para as concepções acerca do corpo e da alma, cf., entre outros: BASCHET, Jérôme. Alma y cuerpo en el occidente medieval: una dualidad dinámica, entre pluralidad y dualismo. In: BASCHET, Jérôme, PITARCH, Pedro, RUZ, Mario H.. Encuentros de almas y cuerpos, entre Europa medieval y mundo mesoamericano. Chiapas: Universidad Autónoma de Chiapas, Dirección de Investigación y Posgrado, 1999. p. 41-83; PORTER, Roy. História do corpo. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História: Novas Perspecticas. São Paulo: UNESP, 1992. p.291-326. 18 SILVA, L. R. Op. Cit., p.651. 19 Para as concepções acerca do corpo, do pecado e da alimentação nas regras monásticas visigodas, cf., entre outros: MELLS, Antoni Riera. Las restricciones alimenticias como recurso expiatorio en algunas reglas monásticas de los siglos VI y VII. Aragón en la Edad Media,Saragoça, n. 14-15, v. 2, p. 1303-1316, 1999; SILVA, Leila Rodrigues da. O paradigma de monge nos De ecclesiasticis oiciis e Regula Isidori. In: LIMA, Enilce; BEZERRA, Ítalo; MOREIRA, Márcio (Org.). SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 25. 2009, Fortaleza. Anais... Fortaleza: ANPUH, 17 644 cólera, luxúria e gula. Estes dois últimos pecados estabeleceriam uma conexão segundo a qual o ventre saciado estimularia os demais desejos da carne,20 e, portanto, a ingestão excessiva de alimentos deveria ser evitada a im de se manter a castidade, bem como certos alimentos tinham seu consumo sob condenação, como a carne e o vinho. Além das concepções especíicas relacionadas ao corpo para o período do reino visigodo, podemos, também, considerar as restrições alimentares das regras monásticas, conforme airma Castillo Maldonado21, como um esforço no sentido de se demarcar o pertencimento a uma elite espiritual na sociedade visigoda, sobretudo se considerarmos a cultura alimentar laica na península ibérica dos séculos VI e VII, a saber, claramente de fartura e de excesso.22 Portanto, o comportamento do monge parece ser contrário às regras monásticas estabelecidas pelas mais importantes autoridades intelectuais e eclesiásticas do reino visigodo. Como pudemos observar pela análise da fonte, longe de evitar o consumo excessivo de alimentos, ou de tentar resistir à tentação de seu vício,23 o monge caulianense 2009; SILVA, Leila Rodrigues da. A normatização da sociedade peninsular ibérica nas atas conciliares e regras monásticas: as concepções relacionadas ao corpo (561-636) – Um projeto em desenvolvimento. In: ALMEIDA, Suely Souza de; CUNHA, Luiz Antonio (Orgs.). JORNADA DE PESQUISADORES DO CFCH, 6, 2004, Rio de Janeiro. Atas ... Rio de Janeiro: CFCH, 2004. Para as concepções acerca da gula e do pecado em Leandro de Sevilha, cf.: CASTILLO MALDONADO, Pedro M. Gastrimargia y Abstinentia Gulosa en la Normativa Monastica Hispano Visigótica (I). Florentia Iliberritana, Granada, n.13, p. 3352, 2002. Para as concepções de pecado de Cassiano, cf.: FOUCAULT, Michel. O combate da castidade. In: ARIÈS, P. BÉJIN, A. (Orgs.). Sexualidades Ocidentais. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 25-38. 20 CASTILLO MALDONADO, Pedro M. Op. Cit., p.42-43; FOUCAULT. Op. Cit., p.26-27. 21 CASTILLO MALDONADO, Pedro M. Op. Cit., p.44-45. 22 Para a cultura alimentar na sociedade da Alta Idade Média, cf. MONTANARI, Massimo. Alimentação. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionário Temático Medieval. São Paulo/Bauru: Imprensa Oicial do Estado/ EDUSC, 2002. 2v. V.1. p. 35-46, p.37-38. 23 Embora vício e pecado não sejam sinônimos, pensamos que, no caso do monge glutão, ambos coincidem e, portanto, utilizamos os dois termos indiscriminadamente neste artigo. 645 entrega-se plenamente aos desejos de seu estômago, e persiste em tal prática mesmo quando severamente castigado, sendo representado, inclusive, como dotado de uma natureza vil, diante de seu amor ao pecado. Nesse sentido, observemos a atitude do abade diante do fracasso de sua punição: Y como viera que (…) ni reprendido de tantas maneras ni golpeado tantas veces había querido reformarse, tocado por el dolor en lo más profundo de su corazón, le dejó marchar según los deseos de su corazón y mandó a los que estaban al frente de las despensas del monasterio que (…) nadie le impidiera comer o beber hasta el vómito los mejores o más dulces alimentos que encontrara en las despensas.24 Observamos, neste trecho da fonte, que, apesar de reprovar veementemente o comportamento do monge, o abade Renovato, após castigá-lo conforme as regras monásticas e sem sucesso, deixa que o glutão proceda como bem desejar. Que sentido, pois, poderia haver nessa permissividade tão contrária ao modelo de conduta esperado para o movimento monástico? Devemos ter em mente que se trata de uma obra hagiográica e, nesse sentido, considerar os elementos literários que a compõem. Um deles é justamente a representação de situações limítrofes, a im de se valorizar os acontecimentos relatados. Desta forma, é essencial que o monge continue no caminho do mal, percorrendo das formas mais terríveis e indignas sua trajetória rumo ao “tartáreo averno”. Além disso, para que o resgate de sua alma, a ser realizado pelo Deus Misericordioso, seja ainda mais espetacular, é necessário que o monge caulianense complete a sua ruína: (…) entraba, según se cuenta, a escondidas en las despensas del riquísimo monasterio; (…) devoraba y bebía desordenadamente la comida y bebida dulce o agradable que había encontrado hasta que, con la cabeza trastornada, apenas podía dar un paso. (…) Luego, demasiado cargado ya de comida y saciado por 24 VELÁZQUEZ, Isabel. Op. Cit., p. 60. 646 el embotamiento de la bebida, se tendía boca abajo y, colocándose junto a lo que había robado, a pesar de que ya no sentía placer y eructaba a causa de su vientre demasiado pesado, sin embargo todavía deseaba comer y beber más.25 Podemos perceber, dessa forma, que o comportamento do monge é típico de um processo de compulsão alimentar. De fato, considerando que se trata de um relato hagiográico o qual visa demonstrar os males da gula, esta deveria ser necessariamente representada de maneira doentia. Não seria adequado apresentar o monge simplesmente comendo e bebendo com prazer até a saciedade: era essencial enfatizar a indignidade de seu comportamento e a humilhação perpetrada pela sua atitude, além de demarcar o caráter da dependência, uma vez que a vontade de beber e comer se apodera totalmente do monge, fazendo até mesmo com que roube as provisões da despensa. Vimos, pois, todas as nuanças por meio das quais se pode perceber que a atitude do monge é de um nítido afastamento com relação aos demais protagonistas das VSPE, bem como dos relatos hagiográicos comumente difundidos pela cultura cristã ocidental. Longe de ser reto, puro e virtuoso, o monge glutão possui traços do exagero, da fraqueza, da desmesura e da voracidade, características inimagináveis em um monge tal qual o idealizado pelos doutores da igreja visigoda. Retomamos, pois, a questão apresentada no início deste artigo: porque retratar um monge ímpio e pecador em uma hagiograia? Vejamos, nesse sentido, o trecho no qual as crianças da escola do monastério lagram o monge em mais um episódio de bebedeira: Le gritaron estas palabras: “Enmiéndate, desgraciado, enmiéndate de una vez. Relexiona sobre el terrible juicio de Dios. Ten en cuenta la temible sentencia de su tremendo tribunal. Ten en cuenta la vengadora severidad, espantosa y horrible de su fallo. (…) cambia a mejores tus costumbres y, al menos un día antes de tu muerte, rectiica tu vida.26 25 26 Ibidem, p. 60. Ibidem, p. 61. 647 Em seguida, o monge glutão é tomado de um grande remorso por seus atos: Abrumado por una enorme vergüenza enrojeció y al punto se arrepintió y, llorando con gran lamento, dijo (…): “Señor Jesucristo, salvador de las almas, (…) te suplico que me corrijas y alejes de mi semblante este ignominioso oprobio o mejor, si te place, sácame de esta vida miserable para que no escuche más reproches por mi aspecto”.27 E eis que Deus vem em seu socorro: La divina piedad no tardó en escucharlo; (…) aborreciendo todos los placeres carnales, con el corazón encendido deseó al instante el remedio de la penitencia, es decir, deseó con anhelo el sacramento del cuerpo y la sangre del Señor. (…)Y durante tres días con sus largas noches éste satisizo su culpa con lágrimas y una confesión admirable.28 Assim, pouco antes de sua morte, o monge tem a serena certeza de sua salvação. Esta é plenamente conirmada pelo milagre que se segue, quando da abertura de seu sepulcro mais de quinze anos depois. Trata-se um claro sinal do perdão divino: Al punto se desprendió de allí un olor a néctar. Él mismo fue hallado de cuerpo entero e incorrupto, (…) ni la vestimenta ni sus cabellos parecían en modo alguno corrompidos por ningún sitio.29 Observamos, pois, a ação de Deus no sentido de retirar o monge da ruína do pecado: em sua ininita misericórdia, o “Excelso” insta as crianças a chamá-lo ao arrependimento. Tocado, assim, pela graça divina, o monge sofre uma transformação em sua alma, que faz com que chore copiosamente e sofra pelo horror dos atos cometidos, confessando-os com humildade e rogando o perdão a Deus. É Ibidem, p. 61. Ibidem, p. 61. 29 Ibidem, p. 62. 27 28 648 importante perceber, neste sentido, que, ao implorar pela misericórdia divina, o monge se submete a sua autoridade, renegando, desta forma, o Diabo, reconhecendo o poder maior de “Jesucristo” e aceitando, de bom grado, a enfermidade e a morte, necessárias à compensação do mal.30 Mas devemos ir além: para que se reairme nossa hipótese, é necessário pensar no sentido do arrependimento do monge. Não se trata de uma contrição qualquer, mas de uma forma de arrependimento espetacular, de uma transformação sublime, profunda e completa empreendida na alma do monge e, portanto, exemplar. E para que este arrependimento fosse intenso, era necessário que o pecado também fosse intenso e destruidor. Reairmamos, assim, nossa hipótese de que o relato do monge glutão apresenta um modelo de santidade relacionado ao arrependimento perfeito, de forma a enfatizar a condenação da entrega aos desejos da carne, a necessidade do arrependimento, da conissão dos pecados e da penitência para a salvação e, sobretudo, para demonstrar o poder, a graça e a misericórdia divinas, as quais não encontram limites, por mais terrível que seja a índole do pecador. Finalizando nossa comunicação, transcreveremos um trecho das Sentencias de Isidoro de Sevilha, no qual este fala da queda dos santos: Las caídas y la penitencia de los santos se narran por esta inalidad: para que infundan a los hombres la conianza de la salvación, a in de que nadie, después de la caída, desconfíe del perdón, si practica la penitencia, cuando ve que también la recuperación de los santos tuvo lugar después de la caída.31 Portanto, utilizando o pensamento de um dos mais importantes intelectuais da igreja visigoda, corroboramos nossa airmação de que o Isabel Velázquez chega a airmar que o caso do monge glutão representa o modelo de salvação pelo arrependimento e de compensação pelo mal realizado, mas não chega a se aprofundar na questão, e tampouco distingue o monge caulianense do conjunto das VSPE ou das demais hagiograias do período. Cf.: VELÁZQUEZ, Isabel. Op. Cit., p. 27. 31 ISIDORO DE SEVILLA, Op. Cit. Liv. II, Cap. XI, VI, p.17. 30 649 relato hagiográico do monge bêbado e glutão apresenta um modelo de convocação ao arrependimento e de exaltação da misericórdia divina, modelo o qual, na realidade, se insere sem signiicativas contradições no pensamento religioso e no ideário monástico visigodos dos séculos VI e VII. 650 www.pem.historia.ufrj.br