ETHNOSCIENTIA – ano 07, número 02 - 2022 - [ISSN: 2448-1998]
http://dx.doi.org/10.18542/ethnoscientia.v7i2/13413
ARTIGO DE PESQUISA
EXPERIÊNCIAS DO PROJETO ECOLOGIA
DE SABERES COM POVOS E
COMUNIDADES TRADICIONAIS DO
PARANÁ
EXPERIENCES OF THE PROJECT ECOLOGIA DE SABERES COM POVOS
E COMUNIDADES TRADICIONAIS DO PARANÁ
Carina Catiana Foppa1*, Fernanda Felix1, Liz Meira Góes1
Resumo:
O Projeto Ecologia de Saberes com Povos e Comunidades Tradicionais, da
Universidade Federal do Paraná, desenvolve ações que integram ensino, pesquisa e
extensão num processo dialógico de co-construção com povos indígenas de diferentes
etnias dos territórios indígenas paranaenses e de etnias de estudantes indígenas de
outras regiões do Brasil que ingressaram nesta universidade. Conduzido por um grupo
de pesquisa e extensão transdisciplinar, desde 2018, é operacionalizado com apoio da
Pró-reitoria de Extensão, de Graduação e da Superintendência de Diversidade e
Inclusão, por meio da concessão de bolsas para estudantes e recursos financeiros. O
projeto articula o acesso, a permanência, a pesquisa-ação e o ensino básico dos povos
indígenas ao valorizar a oralidade, as língua(gen)s, cosmologias e temporalidades, num
processo de escuta profunda dos conhecimentos tradicionais marginalizados pela
Ciência Moderna. O aprender-fazendo com os povos indígenas envolveu estabelecer o
papel da universidade no registro do que compõe a educação indígena e suas
pedagogias e um trabalho de articulação das práticas linguísticas, em processos
contínuos. Tecer caminhos em direção à pluriversidade, entremeados pela
desestabilização do reducionismo da ciência moderna, seus códigos racistas e
mobilização de metodologias descolonizadoras é desafiador. Os elementos reunidos
apontam profundas lacunas e potenciais a serem enfrentados no que diz respeito à
efetivação da política afirmativa, aos sentidos do fazer pesquisa e extensão e às
dimensões curriculares, em diferentes níveis, na Universidade.
Palavras-chave: Acesso e Permanência. Pluriversidade. Socioambientalismo. Práticas
linguísticas.
1
Universidade Federal do Paraná. * ccfoppa@gmail.com
133 EXPERIÊNCIAS DO PROJETO ECOLOGIA DE SABERES COM POVOS E COMUNIDADES
TRADICIONAIS DO PARANÁ
Abstract:
The Project Ecologia de Saberes com Povos e Comunidades Tradicionais do Paraná,
from the Federal University of Paraná, integrates education, research and extension in
a dialogic process of co-construction with indigenous peoples of different ethnicities
from the Indigenous Territories of Paraná and indigenous students who enter the
university from other regions of Brazil. Conducted by a transdisciplinary research and
extension group, since 2018, it has been operationalized with the support of the Dean
of Extension, Graduation, as well as the Superintendence of Diversity and Inclusion,
through scholarships and other direct financial resources. The project articulates
access, permanence, research action and basic education for indigenous peoples by
valuing orality, languages, cosmologies and temporalities, in a process of deep
listening of traditional knowledge marginalized by Modern Science. Learning-bydoing with indigenous peoples involved establishing the role of the university in
reporting the depth of what makes up indigenous education and its pedagogies and a
work of articulating linguistic practices, in continuous processes. Weaving paths
towards a pluriversity, interspersed with the destabilization of the reductionism of
Modern Science, its racist codes and the mobilization of decolonizing methodologies
is challenging. The gathered elements point out deep gaps with regard to the
effectiveness of affirmative policies, the meanings of doing research and extension
and the curricular dimensions, at different levels, at the University.
Keywords: Access and permanence. Pluriversity. Socio Environmentalism. Linguistic
Practices.
Este artigo relata as experiências de ensino, pesquisa e extensão do Projeto Ecologia de
Saberes com Povos e Comunidades Tradicionais do Paraná, tecido a muitas mãos por um
coletivo transdisciplinar vinculado à Universidade Federal do Paraná (UFPR). Sua práxis
nos convida a inflexionar a autoria desses processos e, nesse outro caminho, assumir a
autoria coletiva que se constrói na mobilização de metodologias para descolonizar o
pensamento. A autoria deste artigo, portanto, se distingue da autoria do processo que
envolve a presença fluente e fluída de estudantes indígenas e não indígenas, estudantes
de graduação e pós-graduação e, sobretudo, de professoras e professores indígenas,
lideranças, anciões e anciãs dos territórios indígenas que nos ensinam outras formas
para pensar as experiências profundas do sentir, a construção dialógica e o significado
de territorializar a universidade.
Participar da 2a Jornada de Etnodiversidade, organizada pela Faculdade de
Etnodiversidade da Universidade Federal do Pará (UFPA), fortalece esse significado, ao
garantir espaços de escuta e troca com povos e comunidades tradicionais, bem como
tensionar os processos e produções de pesquisa, ensino e extensão oriundos do que
emerge da luta pela pluriversidade.
As (às) muitas mãos que teceram e tecem essa experiência: Liz Meira Góes, Fernanda
Felix, Camila dos Santos da Silva, Paulo Magno da Costa Santos, Flávia Rossato, Thayná
134 EXPERIÊNCIAS DO PROJETO ECOLOGIA DE SABERES COM POVOS E COMUNIDADES
TRADICIONAIS DO PARANÁ
Karine de Castro, Larissa Maciel, Caroline Ribeiro, Camila Natalia Amajunepa, Micael
Eliabe Severino, Neiva Ara Poty, Olivia Krexu Palacio, Silvio de Quadros, Isaque Faustino
Tupã, Dionísio Centurião, Gilda Faustino, Darci Karai Faustino, Catarina Jera, Sizuane
Jera, Woie Patte, Suelio Guimarães, Leonardo Geovani dos Santos, Caroline Mira de Paula
dos Reis, Nicolas Matheus Krukowski, Victor Kshesek Pizarro de Oliveira, Ariele
Sbardella, Luciana Angelo, Moises da Silva, Laercio, Marcolino, Justina, Rosane, Samuel,
Rodrigo, Scheila, Jean, Carolina dos Anjos de Borba… e tantas mais mãos, visíveis e
invisíveis.
1.
INTRODUÇÃO
Neste dia, como de costume, durante o trajeto até a aldeia, abrimos os
vidros do carro para ouvir os pássaros e sentir o ar fresco. As meninas da
biologia sempre falam das plantas e conseguem reconhecer o canto de
algumas aves. Da conversa descomprometida, sempre se emenda
alguma história da aldeia das estudantes indígenas. Tornou-se comum
ouvir o canto da Araponga. Brincamos que ela fica nos esperando.
Tagarelamos o caminho todo. Rimos, falamos sério, contamos histórias,
falamos da faculdade. Neste dia, chegamos na aldeia mais tarde e os
professores indígenas estavam no intervalo do almoço. Logo ao sair do
carro, uma estudante perguntou se estávamos ouvindo um pássaro
diferente. O professor indígena comentou que havia escutado ele pela
manhã. A estudante indígena saiu da rodinha de conversa e pareceu
estranha. Uma das biólogas continuou querendo saber o nome do
pássaro. Uns falaram que era Saci. Entramos na escola, fizemos nosso
encontro como de costume. Depois das atividades, fomos até o rio, pois
algumas estudantes ainda não conheciam e foi importante para
compreender mais sobre o território que falávamos dentro da escola. Foi
um passeio especial. Mas a estudante indígena continuava mais calada
do que de costume. No retorno do rio, o outro professor guarani falou para
a bióloga que de dia o Saci cantava e à noite ele saía a caminhar pelo
lugar. Havia um silêncio diferente no ar. No retorno, a estudante indígena
falou: “o pássaro cantava para mim” e começou a chorar. Ficamos em
silêncio. Passado um dia, a estudante indígena me mandou uma
mensagem, avisando que o ancião da comunidade dela, que a ensinou
sobre as histórias do Saci, havia falecido. Ela disse que o Saci veio até a
aldeia para dela se despedir…
Relatar a experiência do Projeto Ecologia de Saberes é falar sobre um processo inundado
de afetividades que se pretendeu ilustrar com este pequeno trecho de um dos diários de
campo. É relatar a práxis de um coletivo que se aproximou e se permitiu vivenciar uma
rota contrária àquela imposta, historicamente, pelo centro hegemônico do
conhecimento. Esse tema esteve presente em um dos primeiros encontros com uma das
lideranças indígenas de um dos territórios envolvidos com o projeto - “vocês estão
dispostas a vir aqui aprender ou vêm aqui dar curso e vão embora?”. Linda Smith (2018),
ao tratar das investigações com povos indígenas por não indígenas, comenta como
grupos de investigação com muito poder não querem que os indígenas façam muitas
perguntas, orientados por paradigmas que exploram os povos indígenas e seus saberes.
O questionamento da liderança indígena balizou o processo de co-construção,
estabelecendo um caminho de longo prazo para o fortalecimento dos laços de confiança,
135 EXPERIÊNCIAS DO PROJETO ECOLOGIA DE SABERES COM POVOS E COMUNIDADES
TRADICIONAIS DO PARANÁ
alinhado ao que nos ensina Linda Smith (2018): “compartilhar saberes é também um
compromisso de longo prazo” e precisa superar a entrega de relatórios para se “engajar
em um processo contínuo de compartilhamento de conhecimentos” (p.29). O projeto
almejou, desde sua concepção em 2018, tecer junto às lideranças de territórios ocupados
tradicionalmente no Paraná e aos estudantes indígenas de diferentes etnias da
Universidade Federal do Paraná (UFPR) o foco da aliança. A partir da produção dialógica
foram definidas duas temáticas centrais: as socioambientais e educacionais.
As temáticas socioambientais e educacionais foram estruturadas pelas contribuições do
socioambientalismo (DIEGUES, 2000; SANTILLI, 2005; FOPPA et al., 2020) e do letramento
crítico (FELIX, FERNANDES, 2021), sustentadas pela prática da interculturalidade crítica
(WALSH, 2009) e o diálogo de saberes (LEFF, 2006), num processo de aprender-fazendo
uma "extensão ao contrário", em que a universidade tanto mais aprende do que ensina
(FREIRE, 1983; SANTOS, 2011). Com essa orientação, o projeto passou a articular as
estreitas relações entre a educação básica e a universidade ao propor ações vinculadas à
educação indígena, à educação escolar indígena, ao acesso e permanência na
universidade dos povos e comunidades tradicionais, transversalizando as pautas
territoriais, socioambientais e educacionais.
A interconexão entre natureza, sociedade e culturas, pressuposto do
socioambientalismo, intermediou a vinculação com ontologias relacionais ao colocar em
evidência as lutas dos movimentos sociais e a existência de mundos relacionais onde
não se separam natureza e cultura, dos quais "os humanos são parte da terra" e nos
ensinam a reconectar com o sagrado do universo (ESCOBAR, 2016a, p.28). Como eixo
complementar, o estabelecimento de processos dialógicos que reconhecem, valorizam e
incentivam os conhecimentos tradicionais foi interpelado por desafios linguísticos
advindos de contextos plurilíngues. Nesse sentido, a língua(gem) se tornou central, uma
vez que "o conhecimento e sabedoria não podem ser separados da língua, não são meros
fenômenos "culturais" em que os povos encontram a sua "identidade", são também o
lugar em que o conhecimento está inscrito" (MIGNOLO, 2004, p. 669).
Essa inscrição, inundada pelas belas palavras dos Guarani, ayu rapta, evidenciou a
postura atenta, sensível e o cuidado de pisar nesta terra, Yvyrupa, junto aos povos
originários, aprendendo suas cosmologias, sua relação com o tekoa, seus conhecimentos
ancestrais e a generosidade e amor infinito dos Guarani com tudo aquilo que é vivo:
Da sabedoria de Nhamandu, da sua chama e da sua neblina divina,
nascem as belas palavras, ayu rapta. Ele é o dono da palavra. Ainda não
existe a Terra, nem mesmo todas as coisas que vão se produzir no mundo.
Todavia, permanece a noite primitiva. Depois de ter criado a origem das
belas palavras, Nhamandu criou a fonte do amor infinito e mborai, o canto
sagrado. A Terra ainda não existe, permanece a noite primitiva.
Nhamandu, depois de ter criado as três origens divinas - ayu porã rapta,
a origem das belas palavras, mborai, o canto divino, mborayu mirĩ, o amor
infinito, gerou aqueles com quem iria dividir estas três fontes de
sabedoria infinita (Timóteo Verá Tupã Popygua, 2017, p. 17-18).
Essas dimensões, que se auto produzem com os interlocutores, em processos de longo
prazo, nos exigem outros instrumentos de registro e cuidados constantes com o
estabelecimento de agendas de pesquisa e extensão junto daqueles que historicamente
136 EXPERIÊNCIAS DO PROJETO ECOLOGIA DE SABERES COM POVOS E COMUNIDADES
TRADICIONAIS DO PARANÁ
lutam para ultrapassar a colonização ontoepistemológica. Considerar suas
epistemologias e outras linguagens para efetivar os sentidos a todos que fazem parte do
processo, coloca em evidência a limitação daquilo que se traduz e o efetivo alcance da
rota da democratização do conhecimento e da justiça cognitiva (SANTOS, 2006).
Esses desafios também evidenciam as condições e dificuldades da efetivação do diálogo.
Cardoso de Oliveira (2006) aqui ressoa ao tratar do diálogo interétnico associado à noção
de tolerância – esta, distinta do sentimento de caridade, que inspira relações de
subalternidade – mas como respeito. A interlocução entre pessoas de culturas
absolutamente diferentes, em que a estrutura do diálogo ocorre entre campos
semânticos distintos, nos interpela a considerar, no bojo de sua efetivação, relações
dialéticas simétricas comprometidas em transcender o discurso hegemônico,
eurocêntrico, que impede a ética do discurso argumentativo, em que “nenhuma das
partes veja-se impedida de comunicar-se” (p.194).
Ao institucionalizar o projeto, ousou-se compatibilizar as diferentes temporalidades das
cosmologias indígenas e, não sem desafios, ajustar-se às exigências burocráticas da
universidade para operacionalizar sua implementação. Do ponto de vista operacional, o
Ecologia de Saberes é viabilizado por um arranjo institucional que envolve o apoio do
Setor de Educação, da Pró-Reitoria de Extensão (PROEC), do Programa Licenciar,
vinculado à Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD), e a Superintendência de Inclusão,
Políticas Afirmativas e Diversidade (SIPAD), pela disponibilização de bolsas de
graduação. Os recursos financeiros para o deslocamento e aquisição de materiais
decorrem de Editais de Fortalecimento das Atividades Extensionistas, do Programa de
Pós-graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento (PPGMade) e de fontes pessoais.
Desse arranjo, um grupo de Pesquisa e Extensão se estrutura, envolvendo estudantes
indígenas de diferentes etnias e cursos, estudantes não indígenas da graduação e pósgraduação, lideranças e sabedoras(es) dos territórios indígenas que formam uma
comunidade ontoepistêmica (GARCIA, 1999), enquanto um lugar de aprender, mediado
pelo escutar e silenciar, pelo aprender-fazendo, pela observação-registro-reflexão-ação
(WEFFORT, 1996; FREIRE, 1997) e pelo reconhecimento de histórias e experiências
profundas dos sentidos (MATURANA, 2002). Em processos formativos contínuos, que
interrelacionam pesquisa, ensino e extensão, orientamo-nos por ontoepistemologias que
emergem como dimensões fundamentais para compreender a crise socioambiental, a
destruição da sociobiodiversidade, a conjuntura de dominação e seus caminhos de
transformação (ESCOBAR, 2016a), dialogando diretamente com as perspectivas da
pesquisa-ação participativa (FALS BORDA, 1978; BRANDÃO, 1999; SMITH, 2008).
Este relato será apresentado em três “ramos" que tecem a experiência. O primeiro ramo
apresenta o Grupo de Pesquisa e Extensão, enquanto comunidade ontoepistêmica, lugar
de aprender, sentir e pensar as ações do projeto. Neste mesmo ramo, o contexto dos
territórios diretamente envolvidos com o projeto é apresentado, incluído o "território da
universidade", como lugar de reivindicação dos povos e comunidades tradicionais, suas
especificidades no contexto sul do Brasil e o que emerge da construção dialógica. O
segundo ramo parte das raízes e troncos ontoepistemológicos que sustentam as ações
de extensão em torno da educação indígena. Por fim, o terceiro ramo, ao sistematizar a
observação-registro-reflexão-ação, processualiza a trajetória compartilhada e tecida
desses anos pelo Projeto.
137 EXPERIÊNCIAS DO PROJETO ECOLOGIA DE SABERES COM POVOS E COMUNIDADES
TRADICIONAIS DO PARANÁ
2. Quem sente, pensa, aprende e tece a experiência
O grupo de pesquisa e extensão, afetuosamente denominado de “Coletiva" pelas
estudantes, é constituído por professoras e estudantes indígenas e não indígenas, de
diferentes etnias, áreas de formação, de graduação e pós-graduação, vinculadas como
bolsistas, voluntárias ou colaboradoras. Os cursos de graduação das e dos estudantes são:
Pedagogia, Ciências Biológicas, Química, Medicina, Direito, Engenharia Civil, Ciências
Sociais e Educação do Campo. Na pós-graduação, estudantes de Mestrado e Doutorado
em Meio Ambiente e Desenvolvimento (PPGMade) e de Letras (PPGLet). Essas
interlocutoras configuram o grupo transdisciplinar que medeia as propostas de pesquisaação.
A presença indígena na UFPR envolve estudantes de diferentes etnias de diferentes
regiões do Brasil, como Guarani (ñandeva, mbya), kaingang, Umutina e Kambeba. Isso
permite a composição de uma Coletiva diversa em suas perspectivas culturais, mas, ao
mesmo tempo, um desafio para criação de um espaço de interconhecimento em que o
reconhecimento das pautas coletivas dos povos indígenas seja includente a ponto de não
desconsiderar a realidade de cada etnia.
Para além da formação acadêmica, a Coletiva é formada por muitas histórias que se
entrelaçam pelas afinidades com as pautas socioambientais e educacionais e, sobretudo,
na disposição de uma atuação não disciplinar, para a construção coletiva, a
desestabilização do reducionismo das formações originais, abertura à construção
dialógica e ao protagonismo compartilhado. Reforçar o aspecto afetivo dessa construção
compartilhada é fundamental para o caminho que a Coletiva do Projeto Ecologia de
Saberes vem trilhando.
Mediar e irromper um processo de pesquisa e extensão que busca fortalecer a ponte entre
os saberes expulsos do conhecimento hegemônico constitui um desafio na rigidez
universitária. Relatar o cotidiano, a gestão e formas de mediação do processo de coconstrução do Grupo de Pesquisa e Extensão Ecologia de Saberes é ainda mais
desafiador, pois envolve processualizar mais de cem dias de campo nos territórios
indígenas, reuniões quinzenais com estudantes, supervisão e orientação de estudantes
de graduação e pós-graduação, proposição de espaços de formação complementar, em
meio a imposições burocráticas, descontinuidade de bolsas e redução de aportes
financeiros, além das exigências de produção acadêmica.
A construção coletiva se pauta no questionamento e remodelação de instrumentos (de
ensino, pesquisa e extensão) hegemônicos, pouco eficientes na escuta profunda de
histórias, lutas e vidas (MARTIN e MADROÑAL, 2016). Isso é experienciado no cotidiano
do grupo de pesquisa e extensão, com a valorização dos diferentes conhecimentos, os
repertórios de vivências e a prática permanente de autonomia e liderança compartilhada
no planejamento, execução e avaliação das ações. Com rigor epistemológico, no sentido
Freireano, e vivências afetivas, tecemos o Projeto inspirados pela persistência, a
curiosidade, a desacomodação, a humildade e a insubmissão, fundamentais para a
"prática de liberdade" (FREIRE, 1996; hooks, 2017); posto que “o educador democrático não
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TRADICIONAIS DO PARANÁ
pode negar-se o dever de, na sua prática docente, reforçar a capacidade crítica do
educando, sua curiosidade, sua insubmissão” (FREIRE, 1996, p.28).
A mobilização de afetos, a partir de um sincero reconhecimento do outro (MATURANA,
2002), mediou a fluência da participação no Projeto, com processos permanentes de
formação, de inclusão e mediação de conflitos. Nas vivências compartilhadas com os
territórios indígenas, os mbya guarani nos ensinaram sobre o nhembo’é, um lugar de
aprender. Para o contexto do projeto, esse lugar permitiu a oxigenação do vazio curricular
da universidade, como espaço formativo “extra-curricular”. Um lugar para que os
conhecimentos ancestrais sejam considerados, os afetos partilhados. Uma estudante
indígena que cursa Ciências Sociais sempre mencionava que iria trancar o curso, dada
as violências do processo de permanência, com vivências recorrentes de realizar os
trabalhos de aula sozinha, uma vez que colegas de classe a consideravam menos capaz
de realizar os trabalhos solicitados. Estudos na área de saúde coletiva têm relatado as
redes e estratégias de cuidado entre estudantes indígenas (LOPES, 2014). Em alguns
poucos casos, professores, muitas vezes de outros cursos, atuam como apoiadores desses
estudantes, já que, segundo revisão realizada pela autora, predomina a "forte convicção
por parte de professores e alunos de que lugar de "índio"2 é na aldeia, que o ensino
superior não é uma experiência que combine com a identidade indígena e, portanto, não
deveria ser acessível a eles, pelo menos não enquanto quisessem permanecer vivendo
como indígenas" (SOUZA, 2008 apud LOPES, 2014, p.22). Esse cenário se complexifica nos
cursos de medicina, já que alcançam casos cada vez mais recorrentes de depressão e
ansiedade, principalmente em mulheres (MAYER, 2017).
Um estudante indígena do Estado do Amazonas que cursa Medicina na UFPR relatou os
sentimentos que lhe causaram os preconceitos, da parte de um professor, sobre o uso do
Rapé, denominado pelos povos amazônicos como “medicina” e que para os operadores
da ciência positivo-reducionista e da biomedicina não passa de mera substância
psicotrópica. Na Universidade Federal do Paraná, por exemplo, em 2019, um dos campi
que abriga o Curso de Medicina reduziu o número de vagas de estudantes indígenas (de
quatro vagas para duas) em descompasso com os dados sobre o acesso dos povos
indígenas às universidades brasileiras, que demonstram uma preferência majoritária por
cursos da saúde, seguidos de educação, direito e ciências da terra (BERGAMASCHI et al.,
2018), posição essa, alinhada ao estrangulamento da falta de posicionamento político e
ético das instituições (PAZ, 2013).
Para as estudantes não indígenas, a participação no projeto representa, como avaliam
nos relatórios anuais, um lugar de acolhimento, afeto e possibilidades de que seus corpos
vivenciem o que reivindicam na busca de sentidos outros para seu lugar no mundo,
sendo uma vivência prática de construção transdisciplinar que não é proporcionada
diretamente pelos componentes curriculares do ensino.
Embora a descrição da Coletiva seja apresentada de forma separada, ela não está
desvinculada dos territórios indígenas e do sentido de retomada do “território da
2
Mantemos o termo "índio" entre aspas, não só por ser o termo adotado na fonte da pesquisa referenciada, possivelmente
pela conotação pejorativa que cabe ao debate aqui pretendido, mesmo ciente da limitação do termo e da reivindicação
dos povos indígenas pela denominação "indígena" em detrimento do termo "índio".
139 EXPERIÊNCIAS DO PROJETO ECOLOGIA DE SABERES COM POVOS E COMUNIDADES
TRADICIONAIS DO PARANÁ
universidade”, como território indígena, como reivindicam os movimentos estudantis
indígenas. Assim, distinguimos, mas não separamos, os territórios indígenas a seguir
apresentados no sentido de um nhembo’é. Entretanto, cabe mencionar que a ida aos
territórios indígenas, fora do território da universidade, envolve passos e procedimentos
do caminho ético-metodológico para as estudantes em formação. Os procedimentos de
campo, as dimensões éticas, o consentimento dos povos indígenas, a conciliação dos
tempos para o deslocamento até as aldeias para que outros compromissos não
interrompam a continuidade e aproximação sistemática ao que emerge da construção
dialógica, são aspectos considerados na trajetória formativa de quem passa pela Coletiva
transdisciplinar.
2.1 Os Territórios indígenas do Paraná e a retomada do Território da universidade
A presença indígena no Estado do Paraná é composta pelas etnias Kaingang, Guarani
(mbya, ava e ñandeva), Xetá, embora outras etnias transitem pelo estado, distribuídas em
41 municípios, habitando 77 aldeias e 35 Terras Indígenas. O projeto está envolvido com
três Territórios Indígenas, localizados na região metropolitana de Curitiba e Serra do Mar:
Araxa’í, Tupã Nhe'ẽ e Kakané Porã. A parceria com os territórios decorre da presença
indígena nos cursos de graduação da UFPR que demandam ações ligadas aos seus
territórios de origem, bem como de outras parcerias com pesquisadoras afins ao Projeto.
No contexto da Serra do Mar, da presença de Unidades de Conservação (BRASIL, 2000)
sobrepostas aos territórios indígenas resultam situações de conflitos e fragilidades nos
processos de retomada dos povos originários aos seus territórios ancestrais, contexto em
que demandas associadas às políticas públicas ambientais e territoriais são visualizadas
e têm sido operacionalizadas por pesquisas no eixo do socioambientalismo, como visto
em Rossato (2020), Oliveira (2022) e Sbardella (2022) que mobilizam outros aportes para
romper com a perspectiva hegemônica da conservação da natureza do interior das
Ciências Biológicas.
Nos territórios indígenas, a prática dialógica é moldada pela cosmovisão das etnias
indígenas e suas línguas, a partir de “rodas de conversa”, sempre autogestionadas e
mediadas pela comunidade. A participação da universidade ocorre por um processo de
negociação e de escuta profunda para definição de seu papel em cada etapa e a cada
demanda apresentada pela comunidade. A negociação com a comunidade evidencia
outras temporalidades, nem sempre convergentes com os tempos da burocracia da
universidade. Entretanto, ao reconhecer a necessidade de uma nova (e atrasada) forma
de atuar na pesquisa e na extensão universitária, invertendo as rotas de "aprendizes" a
que estes grupos foram submetidos historicamente, reflete-se uma parceria que
compreende, deste lugar da Universidade, o nosso papel de aprendiz (SANTOS, 2006,
2010), pelo exercício da escuta profunda e registro da oralidade como demanda principal
das comunidades.
As metodologias sensíveis à interação dos conhecimentos, conduzidos em rodas de
diálogo, valorizaram a horizontalidade entre os conhecimentos ditos científicos e os
conhecimentos tradicionais, e foram pautadas pelo diálogo intercultural, num
aprendizado colaborativo entre interlocutores da comunicação/extensão. Essas ações
140 EXPERIÊNCIAS DO PROJETO ECOLOGIA DE SABERES COM POVOS E COMUNIDADES
TRADICIONAIS DO PARANÁ
são orientadas por metodologias participativas (FALS-BORDA, 1978, BRANDÃO, 1999;
SMITH, 2008; THIOLLENT, 2011), planejadas e executadas pelo coletivo transdisciplinar. A
partir da observação-registro-reflexão-ação (WEFFORT, 1996; FREIRE, 1997), são
conduzidos encontros semanais/quinzenais, numa dinâmica de “extensão ao contrário”,
no território da universidade e nos territórios indígenas. Os encontros são autogestionados com o registro individual de cada participante, por meio de diários de campo,
e registro coletivo em memórias de reuniões. Esses instrumentos são mobilizados para
o exercício do registro permanente que compõe etapa fundamental da práxis da Coletiva.
O foco na discussão da Educação Indígena perpassa o contexto das comunidades,
embora o contexto escolar seja um elemento agregador e desencadeador das ações em
co-construção. O projeto não atua diretamente com as alunas e alunos do ensino
fundamental das escolas. Essa foi uma opção teórico-metodológica, considerando o
contexto plurilíngue e o protagonismo de professores e professoras indígenas na
condução dos processos. As demandas nos territórios indígenas são imbricadas pela
dupla pertença dos povos indígenas. São estudantes indígenas da Educação do Campo e
professoras/es da escola indígena que requerem e demandam apoio, pelas ações de
letramento, para lidar com as atividades do Tempo Comunidade e do Tempo
Universidade. A extensão universitária, assim, se faz presente no Tempo Comunidade,
articulando as outras demandas da comunidade em encontros sistemáticos.
2.1.1 Território Indígena Araxa'í
A aproximação do projeto neste território decorre da relação da pesquisadora Liz Meira
Goés, então professora na Escola Estadual Indígena Mbya Arandu e articuladora do grupo
de jovens do Tekoa. Ela apresenta a demanda de reformulação do Projeto Político
Pedagógico (PPP), assumida como uma das ações principais do projeto. No decorrer do
processo, a pesquisadora Fernanda Martins Felix, que já havia realizado mestrado junto
ao território, uniu-se ao Projeto. No Encontro com Apoiadores do Tekoa, organizado pela
Escola em 2019, foi apresentada demanda dos/das estudantes indígenas da Lecampo
(Licenciatura em Educação do Campo - Ciências da Natureza/UFPR Litoral), para o
acompanhamento dos trabalhos do Tempo Comunidade e Tempo Universidade. Na
ocasião, o projeto se disponibilizou a compartilhar essa demanda, que foi orientada pelas
práticas de letramento associadas ao processo de reformulação do PPP e pelas atividades
específicas demandadas pela Lecampo. No decorrer do processo, a realidade da educação
básica e o acesso à universidade mobilizaram também outras ações. Como a Escola
Indígena não oferta o Ensino Médio, os jovens continuam seus estudos na escola urbana
fora da aldeia. Como demonstra Gersem Baniwa (2006, p.142), “cada cinco estudantes
indígenas que chegam a concluir o Ensino Fundamental, apenas um tem a possibilidade
de cursar o Ensino Médio”. No Tekoa, no contra turno escolar, vivenciamos junto aos
jovens atividades sobre práticas de letramento e as dificuldades associadas à
permanência, o que retratou o cenário de discussão sobre a educação básica. O processo
focado nas práticas de letramento junto às professoras indígenas resultou na produção
de material didático, com autoria das professoras, em processo de finalização. Em 2019,
foram realizados 59 encontros com a comunidade. Em 2021, após a suspensão das
medidas de distanciamento da pandemia da Covid-19, a partir do segundo semestre,
foram realizados 18 encontros com estudantes da Lecampo e com os jovens do Ensino
Médio.
141 EXPERIÊNCIAS DO PROJETO ECOLOGIA DE SABERES COM POVOS E COMUNIDADES
TRADICIONAIS DO PARANÁ
2.1.2 Território Indígena Tupã Nhe'é
O Território Indígena Tupã Nhe’é é um território multiétnico, localizado na Serra do Mar,
entre os municípios de São José dos Pinhais e Morretes (PR), com a presença dos povos
Guarani e Kaingang. A articulação com o território iniciou em 2018, associado ao contexto
de sobreposição do Parque Nacional da Guaricana ao Território Indígena. Após
aproximação às lideranças foi definido o foco da parceria em torno da reformulação do
PPP da Escola Estadual Indígena Emilia Jera Poty. No período de 2019 a 2022 foram
realizados 30 encontros que permitiram vivenciar a co-construção de um caminho
metodológico para reformulação do PPP, com o registro das formas de aprender e ensinar
Guarani, definição de temas transversais, a concepção do currículo diferenciado que
parte das cosmologias indígenas e o que querem aprender do mundo dos jurua3. Na
negociação com as/os participantes, o registro do processo foi o papel principal atribuído
à Universidade, com etapas contínuas de aferição. Em 2022, ações relacionadas ao
preparatório para o Vestibular dos Povos Indígenas do Paraná também foram
demandadas pela comunidade.
2.1.3 Território Indígena Kakané Porã
A aproximação com o território indígena Kakané Porã decorreu da presença da estudante
indígena kaingang do Curso de Ciências Sociais e bolsista do projeto, Camila dos Santos
da Silva, que pertence ao território. A principal demanda desenhada pela comunidade foi
o preparatório do Vestibular Indígena, iniciado de forma piloto em 2019 e, infelizmente,
interrompido, em 2020 pela pandemia. Entretanto, ainda naquele ano, a Coletiva
desenvolveu materiais didático-pedagógicos e vídeo-aulas, conforme descrito nos Anais
da 2a Jornada de Etnodiversidade (FOPPA, et al., 2022). Em 2022, junto a 12
vestibulandos/as, vivenciamos um processo de 18 encontros preparatórios para o
Vestibular dos Povos Indígenas do Paraná, o qual permitiu avaliar o ciclo completo desde
a inscrição à realização do vestibular.
2.1.4 Território da Universidade
As ações no território da universidade foram concebidas em torno da permanência,
aproximando a extensão do ensino, no contexto da alternância do Curso de Educação do
Campo. A dimensão curricular de cursos como a Educação do Campo foi evidenciada e
compilada em registros sobre: i) as dificuldades enfrentadas pelas estudantes indígenas,
ii) as barreiras linguísticas, iii) o potencial dos conhecimentos indígenas não
considerados pelo currículo da graduação e iv) o contexto da pandemia e o suporte (ou
falta dele) para as condições de permanência dos povos indígenas.
Associados aos demais cursos de graduação de estudantes participantes do Projeto,
foram realizados encontros na modalidade de oficina ou mini-cursos nos espaços
curriculares ou extra-curriculares, como a Semana Acadêmica da Biologia, organizada
por discentes, a Semana Integrada de Pesquisa, Ensino e Extensão da UFPR (SIEPE) ou
3
Não indígenas, em Guarani.
142 EXPERIÊNCIAS DO PROJETO ECOLOGIA DE SABERES COM POVOS E COMUNIDADES
TRADICIONAIS DO PARANÁ
na Semana de Ensino, Pesquisa e Extensão do Setor de Educação (SEPE), além da
participação em eventos técnico-científicos, regionais, nacionais e internacionais.
No contexto do Setor de Ciências Biológicas foi possível avançar em alterações
curriculares mais expressivas. A disciplina de Etnoecologia Política, ainda que como
componente optativo, com carga horária de 30 horas, foi aprovada para o Curso de
Ciências Biológicas e na ocasião da sua aprovação pelo Conselho Setorial foi solicitada
sua recepção também no curso de Biomedicina. A proposta da disciplina, desenhada a
partir de ontoepistemologias das populações tradicionais, pode, no percurso da sua
oferta, fortalecer a visibilidade e pesquisas sistemáticas em torno das temáticas
mobilizadas pelo Projeto, da forma como tem-se percebido com a oferta da Disciplina
obrigatória de Educação Ambiental, no contexto das licenciaturas da UFPR (Biologia,
Química, Física, Geografia, Artes). A discussão curricular das licenciaturas traz à tona o
que tem sido problematizado por Rosa et al., (2020), no contexto do ensino de Ciências,
orientado, nas palavras das autoras, por uma lógica científica branca, eurocêntrica e
racista que nega os conhecimentos produzidos por corpos negros e indígenas. Essa
ruptura com a hegemonia da ciência moderna é de urgente incorporação no contexto de
formação das licenciaturas e está alinhada às Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 (BRASIL,
2003, 2008), também no contexto dos debates socioambientais e da educação em
ciências.
Sobretudo, o processo de aprender fazendo com povos indígenas envolve:
i.
ii.
iii.
iv.
v.
vi.
Trabalho sobre práticas de letramento para problematizar a permanência de
estudantes indígenas na graduação com dois contornos que desenham desafios
e potenciais distintos: um, com foco no contexto da pedagogia da alternância da
Educação do Campo, como um curso voltado para povos e comunidades
tradicionais; e, outro, para os contextos em que o ingresso e permanência de
estudantes indígenas se dão em cursos de ingresso universal.
Trabalho sobre práticas de letramento com jovens indígenas que cursam o Ensino
Médio em contextos escolares fora dos territórios indígenas, colocando em
evidência as dimensões curriculares das escolas e suas limitações em garantir os
direitos dos povos indígenas nesta etapa de formação.
A co-construção de caminhos metodológicos com os povos indígenas para
(re)formulação de Projetos Políticos Pedagógicos das escolas indígenas.
Elaboração de material didático-pedagógico e encontros sistemáticos com
candidatos/as para o Preparatório para o Vestibular dos Povos Indígenas nas
comunidades indígenas.
Problematização do currículo da educação básica de escolas urbanas, nas quais a
presença indígena realça ausências na formação das licenciaturas e, por isso,
alarga a discussão em torno da relação da universidade com a educação indígena
para além do acesso e permanência dos povos indígenas, atentando para o seu
papel em transversalizar esses temas nas diferentes licenciaturas.
Visibilização das dimensões socioambientais que envolvem os povos indígenas
em diferentes cursos de graduação, especialmente nos processos de demarcação
de seus territórios, sobreposição por unidades de conservação e conhecimentos,
evidenciando correlações com políticas ambientais que afetam negativamente os
seus modos de vida.
143 EXPERIÊNCIAS DO PROJETO ECOLOGIA DE SABERES COM POVOS E COMUNIDADES
TRADICIONAIS DO PARANÁ
vii. Fortalecimento do debate em torno do papel dos povos originários para a
conservação da sociobiodiversidade com a transversalização do tema em
diferentes níveis da formação, seja graduação ou pós-graduação.
viii.
Visibilização dos processos de organização e a interseccionalidade com a
juventude indígena, considerando as relações intergeracionais para a
manutenção dos modos de vida.
Esses oito pontos colocam em movimento a educação básica, o acesso e
permanência de povos indígenas na universidade e dão elasticidade ao que
envolve a educação indígena em diferentes contextos: dentro e fora da
universidade, dentro e fora das escolas indígenas, num processo de efetivamente
territorializar a universidade a partir do seu papel social.
3. A educação indígena, a educação escolar indígena e a universidade
As ações do Estado com os povos indígenas no Brasil envolveram, historicamente, um
processo pensado como uma educação para os indígenas, a partir de um modelo de
escola homogeneizadora, etnocentrista, cujas práticas envolviam a imposição da língua
portuguesa, em detrimento das línguas nativas (NASCIMENTO e URQUIZA, 2010). A partir
dessa ideia errônea de que os povos indígenas não possuem nenhum tipo de educação,
se desconsiderou os saberes ancestrais transmitidos oralmente de geração em geração,
o que também se fez presente na escola, uma instituição própria dos povos colonizadores
(BANIWA, 2006).
Na direção de problematizar a relação entre educação indígena e educação escolar
indígena, o intelectual indígena Gersen Baniwa (2006) menciona que “o território é
sempre a referência e a base de existência, e a língua é a expressão dessa relação”. Nesse
caminho de pensar os sentidos da educação (escolar) indígena, o autor resume as
principais críticas aos processos pedagógicos adotados pela escola formal que tiveram o
objetivo, durante séculos, de “integrar o índio à sociedade", sem respeito às diferenças
culturais e linguísticas, o que se desdobra diretamente no debate sobre acesso e
permanência dos povos indígenas na universidade e na configuração curricular das
cursos de licenciatura que não consideram a transversalidade dos temas em diferentes
cursos, como tratado anteriormente.
Como resultado das lutas indígenas no período da redemocratização, a Constituição
Federal de 1988 reconhece os direitos dos povos indígenas, vinculados à "sua
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre
as terras que tradicionalmente ocupam” (Artigos 231 e 232) (BRASIL, 1988). A Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional - Lei 9.394/1996 (BRASIL, 1996) demarca outra
conquista das lutas indígenas e assegura aos povos indígenas a utilização de suas
línguas maternas e processos de aprendizagem no ensino fundamental e médio (art. 32,
§ 3o e art. 35, § 3o), bem como estabelece objetivos atrelados à oferta de educação escolar
bilíngue e intercultural em programas integrados de ensino e pesquisa (art. 78).
Tais objetivos estão atrelados ao desenvolvimento de currículos e programas específicos
que incluam conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades, bem
144 EXPERIÊNCIAS DO PROJETO ECOLOGIA DE SABERES COM POVOS E COMUNIDADES
TRADICIONAIS DO PARANÁ
como que elaborem e publiquem sistematicamente material didático específico e
diferenciado (art. 79, Lei 9.394/1996). Ainda, a referida Lei preconiza que os programas
integrados ao ensino e à pesquisa para o provimento da educação intercultural dos povos
indígenas deverão ser planejados com audiência dos povos indígenas e terão como
objetivos (art. 79, § 2o): I - fortalecer as práticas socioculturais e a língua materna de cada
comunidade indígena; II - manter programas de formação de pessoal especializado,
destinado à educação escolar nas comunidades indígenas; III - desenvolver currículos e
programas específicos, neles incluindo os conteúdos culturais correspondentes às
respectivas comunidades; IV - elaborar e publicar sistematicamente material didático
específico e diferenciado (BRASIL, 1996).
Posteriormente, a publicação do Referencial Curricular Nacional para as Escolas
Indígenas (RCNEI, 1998) sistematiza diretrizes importantes ao considerar os temas
transversais como perspectiva que pode ultrapassar a fragmentação do conhecimento
moderno e a valorização das línguas indígenas.
O debate acadêmico que envolve a educação indígena e educação escolar indígena
também se posiciona em relação às demandas dos movimentos sociais sobre a
necessidade de reinventar outros currículos que possam romper com a subalternização
imposta pelo conhecimento hegemônico (ARROYO, 2015). Para Nascimento e Urquiza
(2010, p.128), a escola indígena reivindicada pelos professores possui características
próprias; para estes autores, isso aponta a necessidade de que os povos assumam suas
escolas. Para tanto, o currículo ganha uma posição central, mas que não está dissociada
de um contínuo jogo de forças para a "desconstrução das subalternidades e a
ressignificação de entre-lugares em que vozes da comunidade, dos “intelectuais da
aldeia” e do poder público articulam um processo de negociação cultural que possibilite
à escola ser um espaço para expressar valores e fortalecer a identidade étnica, bem como
dialogar com os “outros”."
No contexto de uma virada paradigmática e da independência epistêmica necessária
para conciliar a educação indígena e a educação escolar indígena, é necessário
reconhecer as diferentes lógicas envolvidas nos conhecimentos em diálogo. As lógicas
ocidentais são descolonizadas pelos indígenas e consideradas também nas suas
diferentes lógicas: as orais, dos rezadores, dos mais velhos, da espiritualidade e da cultura
e também das lógicas ocidentais (BACKES, 2018). Nessa linha de argumentação, Célia
Xakriabá discute a potência da epistemologia nativa, presente na memória e na
transmissão oral e que ressoa na “melodia escrita de seu povo”, além de considerar como
a escola interage na comunidade e como se compromete na interlocução com outras
narrativas e narradores para a produção de ciência no território (CORREA, 2018).
As conquistas dos indígenas, que perpassam pela defesa dos seus territórios, modos de
ser e fazer, das tradições orais, das suas cosmovisões, da garantia dos seus direitos,
também se articulam ao desenvolvimento de práticas curriculares articuladas com suas
demandas, a partir do reconhecimento da diferença entre os conhecimentos, num
diálogo horizontal que não hierarquiza ou desqualifica, mas sim complementa os
conhecimentos (BACKES, 2018). Segundo o autor, os indígenas têm desenvolvido
pedagogias decoloniais, apesar dos mecanismos existentes e reincidentes de opressão e
negação em que estão historicamente envolvidos, que são orientadas por alguns eixos: i)
pedagogias voltadas aos conhecimentos tradicionais e da cultura em articulação com os
145 EXPERIÊNCIAS DO PROJETO ECOLOGIA DE SABERES COM POVOS E COMUNIDADES
TRADICIONAIS DO PARANÁ
conhecimentos ocidentais; ii) existência dos conhecimentos ocidentais que são
complementares, e não hierarquizados; iii) reafirmação da cultura e identidade; iv)
consideração da pluralidade epistêmica e v) presença das bases ancestrais espirituais
dos povos indígenas como possibilidades de estabelecer relações com a natureza e de
dar sentido à vida e ao mundo.
Significa dizer que as dimensões curriculares que atualmente envolvem a educação
escolar indígena ou o contexto universitário devem ser protagonizadas pelos sujeitos, a
partir do pertencimento diverso que desempenham no interior dos diferentes espaços
em que interatuam: como professores, acadêmicos indígenas da universidade, anciãos,
conhecedores da língua e da cultura; e poderão orientar a construção de outros currículos
“de dentro para fora”, a partir de epistemes próprias, de pedagogias indígenas.
4. Práticas de letramento, acesso e permanência na universidade
A ecologia de saberes aponta, na área da linguística aplicada e da educação, para
perspectivas que ampliem os entendimentos sobre letramento, suas contingências e
legitimidades. A partir da compreensão sobre a pluralidade das práticas de letramento,
considerando suas inerentes intenções ideológicas, defendidas por Brian Street (2003,
2014), supera-se a lógica autônoma do ensino de leitura que limita as práticas plenas de
comunicação escrita e simbólica. As ações realizadas pelo coletivo do projeto buscaram
a convergência entre conhecimentos em contextos múltiplos, o que permitiu o
desenvolvimento e a legitimação de diferentes práticas.
Os contextos multilíngues, as relações entre oralidades e escritas e os entendimentos
sobre língua e educação linguística promovem situações problemáticas que têm sido
abordadas, do ponto de vista científico, a partir de entendimentos sobre o letramento
crítico (FELIX e FERNANDES, 2021; SOUZA, 2011). As práticas de letramento são
consideradas nas suas dimensões sociais, políticas, pedagógicas, cujas manifestações
transversalizam diversas instâncias de atuação do projeto. A escrita e sua centralidade
no pensamento moderno-colonial (DERRIDA, 1974) atravessam a educação escolar
indígena, assim como o acesso e permanência universitária e, em última instância,
grande parte dos contatos interculturais entre sociedades indígenas e ocidentais. Mesmo
em contextos tecnicamente favoráveis à promoção de práticas educacionais próprias e
das línguas indígenas, como sustenta a legislação brasileira, as instâncias escolares e
universitárias operam ainda por lógicas grafocêntricas e condizentes com um
pensamento linguístico imperialista (PHILLIPSON, 1996).
Uma vez que as "línguas não são algo que os seres humanos têm, mas algo que os seres
humanos são", e que a colonialidade do poder, do saber e do ser se entrelaçam (MIGNOLO,
2004, p. 669), fez-se rumo do projeto a promoção de espaços de problematização de
relações e fenômenos capazes de auxiliar na desconstrução da marginalização dos
conhecimentos tradicionais perpetrados pela ciência moderna.
Atenta-se aqui para a ampliação também dos entendimentos sobre texto, não mais
constrito à relação direta com um ou outro alfabeto. Buscou-se fundamentar os
146 EXPERIÊNCIAS DO PROJETO ECOLOGIA DE SABERES COM POVOS E COMUNIDADES
TRADICIONAIS DO PARANÁ
entendimentos sobre texto e discurso em teóricos da linguagem que extrapolam a
relação gráfica, como Mikhail Bakhtin (1992), Jacques Derrida (1974) e pesquisadores
comprometidos com o diálogo intercultural junto aos povos indígenas, como Menezes de
Souza (2004) e Linda Smith (2008). Para outras iniciativas globais, como discutido por Hill
et al. (2020) em torno da Plataforma Intergovernamental de Biodiversidade e Serviços
Ecossistêmicos (IPBES)4, as línguas indígenas e abordagens de educação são
fundamentais em se tratando da manutenção dos conhecimentos indígenas e políticas
que a incentivem devem ser priorizadas, atravessadas nas iniciativas de conservação,
desenvolvimento, direito internacional e propriedade intelectual.
Como fundamento das ações do projeto que se relacionam com as práticas de letramento,
teve-se a reflexão contínua sobre a construção do mundo através dos discursos alinhada
com a defesa de Santos (2006) sobre o fato de a língua ser um dispositivo central na
ecologia de saberes, visto que permite a expressão de certas ideias e não de outras. Dessa
forma, o projeto realizou ações voltadas para as práticas linguísticas nos territórios
indígenas e no território universidade, problematizando práticas pedagógicas e
acadêmicas com vistas a um processo de descolonização epistêmica e de socialização
do conhecimento (MIGNOLO, 2004).
O projeto vivenciou mais de 80 (oitenta) momentos nos territórios indígenas orientados
para a problematização de práticas de letramento com professores Guarani estudantes
da Educação do Campo/UFPR e a elaboração do PPP em duas escolas indígenas. Esses
dois processos se retroalimentaram, pois, ao pensar a permanência na universidade a
partir do letramento, dimensões sobre as formas de aprender e ensinar do povo Guarani
foram aportadas ao PPP da escola. Especificamente, tornaram-se materializados, através
dos encontros e das rodas de diálogo direcionados ao letramento, materiais textuais para
a reformulação dos Projetos Políticos Pedagógicos e textos coletivos e individuais com
fins pedagógicos, acadêmicos ou de registro pessoal.
4.1 Os Projetos Políticos Pedagógicos
A partir da demanda dos territórios indígenas, o projeto acompanhou o processo de
reformulação dos Projetos Políticos Pedagógicos das escolas indígenas, co-construindo
um caminho metodológico junto às/aos professoras/es indígenas e às comunidades. O
registro da oralidade, como fio central que teceu o processo de diálogo intercultural, foi
orientado para reconhecer: i) as cosmologias das etnias que orientam suas formas de
aprender e ensinar, ii) a língua(gem) como eixo central das experiências e cultura, iii) as
lutas indígenas e a defesa do território, o iv) o manejo de mundos que envolve o diálogo
de saberes no sentido de complementaridade dos conhecimentos, v) as experiências
práticas de educação indígena, ou seja, as formas próprias de ensinar e aprender dos
povos indígenas, base da educação diferenciada, vi) a valorização de bibliografias de
autoria indígena e que registram experiências de educação indígena e educação escolar
indígena como parte do processo formativo.
4
Em inglês: Intergovernmental Platform on Biodiversity and Ecosystem Services.
147 EXPERIÊNCIAS DO PROJETO ECOLOGIA DE SABERES COM POVOS E COMUNIDADES
TRADICIONAIS DO PARANÁ
No contexto dos territórios em que nos envolvemos, a presença de professores e gestores
não indígenas é recorrente, complexificando os processos de negociação em torno dos
processos formativos e da compreensão do PPP. Os direitos conquistados pelos povos
indígenas nas últimas décadas, previstos na legislação vigente no Brasil e em
normativas internacionais, subsidiam a (re)formulação do PPP como um instrumento de
garantia de direitos dos povos indígenas, sobretudo, na valorização das suas formas
próprias de aprender e ensinar, da sua língua, e na forma como concebem a escola e seus
lugares de aprender. Entretanto, traduzir conhecimentos milenares de tradição oral para
as "peles do papel", como dito por Davi Kopenawa (KOPENAWA e ALBERT, 2014), envolve
profundos momentos de compreensão destes processos. Se para nós, não indígenas,
envolve, entre tantas coisas, (re)aprender o diálogo tolerante, para os indígenas, envolve
o desafio de manusear os códigos engessados e disciplinares da construção do
conhecimento ocidental, fragmentado, vazio, e sua organização, agora na palavra escrita.
4.2 Preparatório Vestibular Indígena
A presença indígena na universidade compõe um território de luta, que é fortalecida por
e decorre das Políticas Afirmativas (BRASIL, 2012) e de processos históricos de
resistência dos povos indígenas em torno dos direitos à educação (BANIWA, 2006). O
processo de acesso e permanência desses grupos na universidade coloca em evidência
os desafios a serem enfrentados, mesmo reconhecendo os avanços da implementação
da política afirmativa. Esses desafios perpassam pela necessidade de estabelecer
estratégias que relacionem o acesso e a permanência ao contexto da educação básica, no
sentido de enfrentar os códigos colonizadores do sistema mundo moderno/colonial
(MIGNOLO, 2003) presentes no contexto universitário (SANTOS, 2010; AMARAL et al.,
2016).
O Vestibular dos Povos Indígenas do Paraná é conduzido pela Comissão Universidade
para os Índios (CUIA) e compreende vagas para as Universidades Estaduais, para
indígenas residentes no Estado, e 10 (dez) vagas suplementares anuais na Universidade
Federal do Paraná (UFPR) para indígenas de todo país. O processo de elaboração de
materiais didático-pedagógicos para o Vestibular Indígena decorreu da articulação dos
estudantes indígenas integrantes do projeto, a partir das ações junto aos territórios
indígenas do Paraná em 2019, fortalecida em 2020, mesmo diante dos desafios impostos
pela pandemia da Covid-19. Como primeira etapa, a Coletiva elaborou um questionário
semi-estruturado e digital (Formulário Google) para aproximação com as(os)
candidatas(os) com questões sobre: i) etnia, ii) território indígena, iii) língua, iv) trajetória
escolar, v) expectativas para o vestibular (facilidades e dificuldades em relação às
disciplinas escolares), vi) cursos e instituições que almejavam e vii) formas de
comunicação e acesso à internet.
A produção de materiais voltados para as áreas de Matemática, Química, Português e
Biologia foi realizada através de temas geradores (FREIRE, 1993, 1997) pensados a partir
de temáticas que teriam potencial de serem abordadas pelo Vestibular e, sobretudo, por
envolverem pautas prioritárias dos povos indígenas, como: direitos indígenas, pandemia,
queimadas. A elaboração dos materiais didáticos foi embasada em: i) levantamento de
materiais didáticos de referência e de livros de literatura de diferentes etnias indígenas
para aproximação de suas culturas; ii) materiais didáticos produzidos no contexto da
148 EXPERIÊNCIAS DO PROJETO ECOLOGIA DE SABERES COM POVOS E COMUNIDADES
TRADICIONAIS DO PARANÁ
educação diferenciada e outras experiências de preparação para o vestibular indígena;
iii) conversas com as lideranças dos territórios que fazem parte do projeto para compor
uma "chuva de ideias", importadas ao processo; iv) sistematização dos conteúdos das
áreas de conhecimento previstos no Edital do Vestibular Indígena; v) consulta às provas
do vestibular das edições anteriores (2017, 2018 e 2019).
O processo envolveu dimensões didático-pedagógicas e o manuseio das tecnologias
digitais permitindo às(aos) licenciandas(os) da UFPR vivenciarem a construção inter e
transdisciplinar, com protagonismo, criação, adaptação e recriação individual e coletiva.
Na busca por materiais ou cursos preparatórios com foco na preparação de estudantes
indígenas, foi possível reconhecer a escassez de experiências com esse objetivo. A
exemplo, foi identificado o Projeto Mobilização e Organização Comunitário do Programa
Conexões de Saberes, organizado pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Segundo
informações do site, o projeto “atende atualmente a 70 jovens do povo Xokó, localizado
em Porto da Folha (SE) e 100 jovens do povo Wassu-Cocal” (UFAL, 2014).
Após levantamento preliminar, foram estruturados planos de aula, sendo essa etapa
considerada um desafio às(aos) estudantes da Coletiva que evidenciou lacunas na
formação, tanto para a construção do documento em si, quanto em relação à articulação
entre conhecimentos tradicionais e os conhecimentos ditos científicos, já que essas
perspectivas ainda estão ausentes, ou são insuficientes, nas grades curriculares dos
cursos de Licenciatura.
5. Reflexão como experiência
A reflexão não é sobre a experiência, a reflexão é uma forma de experiência (VARELA,
1999; ESCOBAR, 2016b). Torná-la situada para ampliar nosso horizonte abarcando
tradições não ocidentais de reflexão como parte da experiência nos exige uma prática
renovada, atenta, encarnada, aberta (ESCOBAR, 2016b). A patologia das linguagens de
diálogo assertivas que orientam a lógica moderna dominante, sem afeto (NANDY, 2012),
intolerante (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2006) não desenham somente um convite, mas sim
uma responsabilidade da universidade no seu papel de buscar formas não opressivas de
relação com a sociedade, desestabilizar o pensamento dualista, a racionalidade
cartesiana, combater o racismo e, com isso, territorializar a universidade.
Os quatro de anos de vivências contínuas e sistemáticas com os territórios indígenas, em
mais de 100 momentos para fortalecer a interação dialógica, tornaram evidente a relação
entre pesquisa, extensão e ensino, demonstrando as limitações da universidade em
realizar as conexões materiais e simbólicas no manejo dos mundos. O apoio financeiro
da Pró-Reitoria de Extensão permitiu o deslocamento e a presença semanal e contínua
nos territórios indígenas, fundamentais para o processo de escuta profunda e construção
dialógica. A participação voluntária e engajada de muitas/os estudantes e a concessão
de bolsas, do mesmo modo, permitiram a continuidade dos processos, o fortalecimento
de laços com a comunidade e o aprofundamento da formação de discentes com
ressignificação de práticas que atingem outros espaços de atuação.
Com a pandemia, fatores como acesso a internet e computador, que já eram limitantes
149 EXPERIÊNCIAS DO PROJETO ECOLOGIA DE SABERES COM POVOS E COMUNIDADES
TRADICIONAIS DO PARANÁ
no contexto dos territórios indígenas, foram agravados e intensificaram as dificuldades
já existentes, uma vez que as atividades presenciais nos territórios indígenas foram
interrompidas. Ao processualizar a reflexão como experiência nesses quatro anos de
projeto, há que se considerar a interrupção de movimentos e o estabelecimento de outros,
como o deslocamento da educação presencial para uma educação remota, virtual. O
contexto da pandemia e o suporte (ou falta dele) para as condições de permanência dos
povos indígenas são questões a serem retomadas, como um componente fundamental
para a avaliação da Política Afirmativa e a definição de parâmetros adequados de seus
efeitos.
Como reflexões oriundas de certezas e dúvidas provisórias, elencamos:
i) As barreiras linguísticas.
ii) A formação das licenciaturas para construção transdisciplinar o que nos impele a
repensar os currículos para inclusão de conhecimentos tradicionais, não somente para
os cursos voltados para as populações tradicionais.
iii) Avaliação da Políticas Afirmativas com os povos indígenas, desde o número de vagas
à permanência que coloca em evidência questões curriculares dos cursos de graduação,
condições materiais de permanência e a formação docente no ensino superior.
iv) O suporte financeiro para ações contínuas e sistemáticas com os territórios indígenas,
embora presente, com descontinuidades e com calendários distintos das temporalidades
da realidade.
v) Aspectos da educação básica que influenciam no acesso dos povos indígenas na
universidade e também a sua permanência no Ensino Médio em escolas fora dos
territórios indígenas.
vi) Formação de professores e gestores escolares não indígenas e que atuam direta ou
indiretamente com os povos indígenas.
vii) Desafios da produção de materiais didáticos e questões de autoria.
viii) Vivências/processos metodológicos que intermedeiam o ensino, a pesquisa e
extensão numa perspectiva intercultural e transdisciplinar e que ensinam caminhos em
direção a uma pluriversidade, com a valorização da oralidade, das língua(gen)s, das
cosmologias e temporalidades indígenas.
O exercício transdisciplinar e o diálogo intercultural oportunizam a problematização das
relações entre a universidade e outros espaços de saberes que, tradicionalmente, têm se
dado a partir das dinâmicas marginalizantes do pensamento moderno. Enquanto
experiência institucional, o Projeto permite desaprender o privilégio, num trabalho
contra o âmago dos interesses e preconceitos da universidade, contestando sua
autoridade ao mesmo tempo em que se continua a fazer parte dela (BEVERLY, 1999).
Organizando, portanto, uma extensão ao contrário, os espaços e ações universitárias se
orientam para uma construção democrática de conhecimentos que privilegia os
interesses coletivos e os conhecimentos tradicionais através de uma transgressão
150 EXPERIÊNCIAS DO PROJETO ECOLOGIA DE SABERES COM POVOS E COMUNIDADES
TRADICIONAIS DO PARANÁ
metodológica.
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Recebido em: 13/09/2022
Aprovado em: 05/10/2022
Publicado em: 30/11/2022
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