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1 Ensaios sobre a América Portuguesa 3 Ensaios sobre a América Portuguesa ORGANIZADORES: Carla Mary S. Oliveira Mozart Vergetti de Menezes Regina Célia Gonçalves PREFÁCIO DE Adriana Romeiro João Pessoa - PB 2009 4 Copyright © 2009 - Organizadores ISBN 978-85-7745-403-7 Capa, Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Carla Mary S. Oliveira Ilustração da Capa: America, desenho atribuído a Marten de Vos, c. 1600; pena e nanquim sobre papel; ø 12,5 cm. Acervo: The University of Michigan Museum of Art, Dearborn, EUA. Contato com os autores: <ppgh@cchla.ufpb.br> Impresso no Brasil - Printed in Brazil Efetuado o Depósito Legal na Biblioteca Nacional, conforme a Lei nº 10.994, de 14 de dezembro de 2004. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. A violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998) é crime estabelecido no artigo 184 do Código Penal. Dados de Catalogação na Publicação Biblioteca Central - UFPB - Universidade Federal da Paraíba E59 Ensaios sobre a América portuguesa/ Carla Mary da Silva Oliveira; Mozart Vergetti de Menezes; Regina Célia Gonçalves (organizadores). - João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 2009. ISBN 978-85-7745-403-7 206 p.: il. - inclui notas. 1. Brasil - História - Período Colonial. I. Oliveira, Carla Mary S. II. Menezes, Mozart Vergetti de. III. Gonçalves, Regina Célia. UFPB / BC CDU 981 5 SUMÁRIO Apresentação ....................................................................................................................... 7 Prefácio ................................................................................................................................. 9 Adriana Romeiro Jesuítas e missões: representações das fronteiras na Capitania do Rio Grande ..... 23 Maria Emilia Monteiro Porto Povos indígenas no período do domínio holandês: uma análise dos documentos tupis (1630-1656) ........................................................... 39 Regina Célia Gonçalves, Halisson Seabra Cardoso e João Paulo C. R. Pereira Vidal de Negreiros: um homem do Atlântico no século XVII .....................................53 Ângelo Emílio da Silva Pessoa Festa e memória da elite açucareira no século XVII: a Ação de Graças pela Restauração da Capitania de Pernambuco contra os holandeses ..................... 67 Kalina Vanderlei Silva Patrimônio, territorialidade, jurisdição e conflito na América portuguesa: Pernambuco, século XVIII .......................................................................... 81 George F. Cabral de Souza Capitães Mores das ordenanças de índios: novos interlocutores nas vilas de índios da Capitania do Rio Grande .................................................................... 97 Fátima Martins Lopes Contatos, conflitos e redução: trajetórias de povos indígenas e índios aldeados na Capitania da Paraíba durante o século XVIII ........................................... 115 Ricardo Pinto de Medeiros Celebrando a monarquia nos extremos da América portuguesa: Natal e a Colônia do Sacramento no século XVIII ........................................................ 131 Paulo César Possamai Alegoria e status na Paraíba colonial: o forro da Casa de Orações dos Terceiros no Convento de Santo Antônio ............................................................. 149 Carla Mary S. Oliveira Ilustração, população e circuitos mercantis: a Capitania da Paraíba na virada do século XVIII ........................................................... 161 Mozart Vergetti de Menezes e Yamê Galdino de Paiva 6 O comércio colonial e suas relações complementares: Santos, Bahia e Pernambuco, 1765-1822 .......................................................................... 181 Denise A. Soares de Moura A oficina dos ritos: artífices no Arsenal de Guerra de Pernambuco ....................... 197 Acácio José Lopes Catarino 7 APRESENTAÇÃO ntregamos agora ao leitor não apenas um livro: Ensaios sobre a América Portuguesa representa um projeto coletivo regional, pois reúne textos de historiadores que vêm se articulando, desde 2005, no intuito de estabelecer uma rede de pesquisa entre os grupos vinculados aos programas de pós graduação em História das Universidade Federais da Paraíba, do Rio Grande do Norte e de Pernambuco e que se dedicam ao universo de Clio delimitado pelos séculos XVI e XVIII no Novo Mundo. As dificuldades inerentes a este tipo de intercâmbio vêm sendo superadas cotidianamente, e desde o início se compreendeu que havia a necessidade de ampliar os contatos entre os profissionais e estudantes dedicados a este campo e tornar visível a produção destes grupos de pesquisa, o que se concretizou, inicialmente, através da organização do I Encontro Nordestino de História Colonial, realizado em João Pessoa, em setembro de 2006. O evento e seus resultados extrapolaram significativamente as perspectivas iniciais, contando com a participação de pesquisadores de todo o Brasil e também de Portugal e de Cabo Verde. Com o II Encontro Internacional de História Colonial, realizado em Natal em setembro de 2008, esse caráter ampliado se consolidou, e mais uma vez as expectativas superaram, em muito, o que se imaginava para o evento. Esta coletânea vem a público no momento em que nos preparamos para a realização do III Encontro Internacional de História Colonial, em Recife, em setembro de 2010. É um livro que resulta não só destes contatos, trocas e articulações acadêmicas que vimos consolidando nos últimos quatro anos, mas que também aponta para a expressiva ampliação das possibilidades para o estabelecimento de uma rede de pesquisa de alcance nacional no campo da História Colonial, com seu foco estabelecido na região que constituía as antigas Capitanias do Norte do Estado do Brasil, fato significativo no cenário da historiografia brasileira contemporânea. Além disso, o projeto de cooperação acadêmica recentemente estabelecido entre os programas de pós graduação em História da Universidade Federal da Paraíba e da Universidade Federal de Minas Gerais, com financiamento da Capes e que se estenderá até 2012, permitiu que convidássemos a professora Adriana Romeiro para participar desta publicação, abrindo-a com seu prefácio. 8 Desse modo, leitor, esperamos que os ensaios aqui apresentados se constituam não como um ponto de chegada, mas sim numa partida para voos mais altos e instigantes, tanto para os pesquisadores que os apresentam, como também para a rede de grupos de pesquisa que estamos consolidando entre Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco. Os organizadores. João Pessoa, novembro de 2009. 9 PREFÁCIO presente livro reúne um conjunto de ensaios que abordam diferentes aspectos da história das capitanias do Norte, entre os séculos XVI e XIX, proporcionando, ao mesmo tempo, um excelente panorama das principais tendências teóricas e metodológicas vigentes na atual historiografia brasileira. Sob a multiplicidade dos temas abordados – que vão desde as festas barrocas em Pernambuco, no século XVII, até as representações sobre a fronteira, na Paraíba colonial, passando pelo papel do porto de Santos no comércio entre o centro-sul e as capitanias do Norte entre fins do século XVIII e início do XIX –, é possível acompanhar os contornos da verdadeira revolução historiográfica em curso, cujos impactos e consequências ainda estão por estudar. Uma série de fatores confluiu para propiciar essa espécie de tempo forte que a historiografia brasileira vive hoje. A explosão dos objetos de estudo, seguindo a trilha inaugurada pela Escola dos Annales, teve entre nós uma repercussão extraordinária, coincidindo com a consolidação dos Programas de Pós-Graduação junto às Universidades brasileiras e a consequente multiplicação do contingente de pesquisadores, acelerando o processo de expansão dos temas de estudo, em curso desde a década de 70. As novas gerações lançaram-se com vigor ao estudo de aspectos até então desconhecidos da história colonial, subvertendo as hierarquias tradicionais sobre os gêneros, interessando-se tanto pelo domínio do imaginário e da cultura quanto pelas minúcias mais áridas do funcionamento das instituições políticas, promovendo a renovação da biografia e o retorno triunfante da história econômica, revigorada, sobretudo, nas últimas décadas. No Brasil, a explosão dos objetos não acarretou, como apontam os críticos da Escola dos Annales, a fragmentação da história, vítima da multiplicação desordenada das áreas de interesse, da especialização excessiva e da desarticulação dos tempos históricos, degenerando numa historiografia alheia à percepção do todo. Sob este aspecto, é bem singular a trajetória da historiografia brasileira: se conquistamos um olhar mais afeito ao particular e ao local, não é menos verdade que o conceito de império, inspirado na clássica obra de C. R. Boxer e na tradição da historiografia anglosaxônica, 10 ADRIANA ROMEIRO privilegiou o estudo das conexões do mundo colonial com uma entidade mais ampla. Longe da noção de um Império homogêneo e sistêmico, como se Macau e Salvador, por exemplo, pudessem constituir experiências de colonização similares, o que está em jogo é, sobretudo, a dinâmica da circulação de valores, práticas e homens numa unidade mais vasta, em que as histórias se conectam, as regiões se articulam, as experiências se acumulam. A “voga do Império”, tomando de empréstimo a expressão de Laura de Mello e Souza, oferece-nos uma espécie de imenso ponto de fuga, a partir do qual se redimensiona a nossa perspectiva histórica. Para além das possibilidades de uma história comparada, capaz de articular realidades tão distantes, como o Oriente e a América, a perspectiva do Império colocou em evidência as simetrias e assimetrias, privilegiando as relações entre o centro e a periferia, o global e o local, a conjuntura e o evento, alterando significativamente as temporalidades de nossos temas de pesquisa, na medida em que a própria experiência do local é inseparável da experiência global tecida em escala imperial. A par da dimensão imperial, os novos estudos incidem sobre o peso das mentalidades do Antigo Regime na organização das sociedades coloniais, colocando em relevo os elementos comuns entre a Europa e as conquistas ultramarinas. A percepção da existência de realidades comuns em todo o Império português, aproximando as regiões mais afastadas por meio de instituições administrativas, comerciais e políticas, não estava ausente na tradição historiográfica que se estabeleceu a partir de meados do século XX. Autores da estirpe de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre dedicaram toda uma vida ao estudo do nosso legado português, de uma perspectiva inovadora, posto que sensível aos complexos culturais que mediaram o processo de transplantação da cultura ibérica nos trópicos: valores e práticas políticas, religiosas e econômicas confluíram para a construção de uma América portuguesa – ainda que não completamente portuguesa. Um dos principais efeitos da retomada do conceito de Império diz respeito, sem dúvida, à natureza das relações entre colônia e metrópole. As interpretações tradicionais tenderam a reforçar o jogo das dicotomias, tributárias das tradições historiográficas que, ainda no século XIX, no contexto de afirmação da nação brasileira, haviam estabelecido o axioma do conflito essencial entre o centro e a periferia, separados de forma irreconciliável por interesses contraditórios. A fórmula “colônia vs. metrópole” assumiu diferentes conotações desde então, instrumentalizada no bojo de interpretações teóricas radicalmente opostas, aproximando historiadores nativistas de pensadores marxistas, orientados pelo parti pris teórico segundo o qual o conflito não só perpassava todas as esferas da PREFÁCIO 11 vida cotidiana, mas organizava a própria sociedade. A dimensão imperial subverteu o princípio do antagonismo. Uma série de estudos apontou para a lógica particular das sociedades de Antigo Regime, estruturadas em torno da economia do dom, nas quais o poder se distribuía em cadeias, desdobrando-se da figura do monarca em direção aos vassalos, fragmentando-se em complexas redes clientelares. À imagem clássica de uma monarquia absolutista, constituída por um poder centralizado que a tudo abarcava, num movimento centrípeto, sobrepôsse a imagem de uma monarquia descentralizada, permeada por múltiplos poderes que, organizados em cadeia, se estendiam até os rincões mais distantes do Império, aproximando homens, emaranhando interesses públicos e privados, imiscuindo-se nas práticas políticas e econômicas. O império do político sobre todas as esferas da existência, característica principal destas sociedades, impôs-se também sobre a economia, submetida aos privilégios, às mercês e aos dons que mediavam as relações entre os homens. Tal configuração política não só permitiu a formação de elites locais, encasteladas nos cargos, postos e instituições da administração, a exemplo das câmaras, mas também a fusão dos interesses metropolitanos aos interesses destas elites, que souberam explorar as possibilidades de enriquecimento, instrumentalizando-o para galgar posições sociais mais destacadas. As teses tradicionais sobre a opressão da metrópole sobre seus vassalos ultramarinos, ancorada no conceito de Pacto Colonial, foram rechaçadas e substituídas pela imagem de elites integradas à Metrópole e ao Império, inseridas nos valores e práticas do Antigo Regime, no interior dos quais construíram um espaço de diálogo e também de confronto. É bem verdade que, muitas vezes, os historiadores têm se mostrado mais afeitos à perspectiva da identidade entre colônia e metrópole do que às rupturas reveladoras do conflito, tendendo, de forma inadvertida, a contemplar o vasto e vário Império português sob uma ótica excessivamente idealizada, pouco compatível com a visão realista de seus administradores, que jamais se deixaram iludir pela fantasia de um Império perfeitamente centrado em Lisboa, como uma projeção fiel das formulações ali elaboradas. Se hoje é possível constatar a existência de uma identidade comum entre colônia e metrópole, sua construção não foi, porém, pacífica, implicando um processo mediado tanto pela acomodação e negociação, quanto pelo confronto e ruptura. O revival da história política nos últimos anos orientou-se pela investigação sobre as formas de exercício e reprodução do poder metropolitano – entendido na sua acepção mais ampla e não meramente política – , focalizando os mecanismos através dos quais o mundo ibérico se projetou nas conquistas ultramarinas. No emaranhado das redes que se disseminavam a partir de Portugal, circulavam - em múltiplas rotas e caminhos 12 ADRIANA ROMEIRO – mercadorias, homens, idéias e práticas, veículos privilegiados de difusão das mentalidades ibéricas, tais como a instituição das câmaras, as festas públicas, o comércio, as manifestações artísticas e as devoções católicas. Nenhum mecanismo, contudo, teve tanta importância na constituição de uma identidade comum quanto a lógica da sociedade portuguesa do Antigo Regime, fundada na economia do dom, nos privilégios e nas hierarquias. Tal configuração social estaria na origem, segundo alguns autores, não só da reprodução da sociedade do Antigo Regime nos trópicos, mas da relativa unidade do Império, todo ele sedimentado e alicerçado em torno da difusão destes valores. A guinada historiográfica dos últimos anos parece derivar de um movimento pendular: depois de uma longa tradição baseada no antagonismo irreconciliável entre colônia e metrópole, as novas tendências tendem a privilegiar as conexões e as convergências, revelando opções teóricas que são históricas também, posto que inseparáveis do presente. Talvez um dos maiores desafios que se impõem ao historiador, em nossos dias, seja perscrutar, para além de uma identidade comum e da imagem de um Império mais ou menos coeso, a dimensão dos conflitos que perpassaram o seu processo de constituição, desvelando as tensões entre a periferia e o centro, entre o local e o global, e – por que não ? – entre a colônia e a metrópole. A zona cinzenta, situada entre as projeções ideológicas e as injunções da realidade histórica, é o locus privilegiado para a compreensão da complexidade da obra de colonização em todo o Império. Ao historiador cabe indagar, por exemplo, como os poderes locais se impuseram frente à autoridade da Coroa, construindo um espaço de negociação efetiva; como os valores do Antigo Regime foram subvertidos na cultura política dos potentados; como os antagonismos entre os modelos europeus e as populações indígenas se processaram nas regiões de fronteira; indagar, enfim, sobre os processos envolvidos na constituição de uma sociedade colonial e escravista, em muito diferente das sociedades européias da Época Moderna, malgrado o peso da herança ibérica. Os ensaios que se seguem iluminam diferentes aspectos desta sociedade, propondo novas interpretações e leituras, inspiradas nas atuais tendências historiográficas, com as quais mantêm um diálogo fecundo e original. Em conjunto, todos eles ensejam um esforço de revisão da historiografia tradicional, apoiando-se numa sistemática pesquisa de fontes e em sofisticados referenciais teóricos. A problemática do comércio e seu papel como fator de articulação entre as diferentes regiões do Império, aproximando centro e periferia através de suas redes e circuitos, encontra-se aqui contemplada por dois ensaios. O primeiro, sob o título “Ilustração, população e circuitos mercantis: a Capitania da Paraíba na virada do século XVIII”, de autoria de Mozart Vergetti PREFÁCIO 13 de Menezes e Yamê Galdino de Paiva, oferece um estudo da dinâmica econômica, na capitania da Paraíba, entre os fins do século XVIII e primeiros anos do XIX, relativizando as teses tradicionais sobre o isolamento da região. Com base em mapas de importação e exportação, fruto do trabalho de capitães mores ilustrados, os autores desvelam um cenário caracterizado pelo vigor da agricultura e da pecuária, inserido nos circuitos mercantis que se estendiam até o Rio Grande do Norte, o Ceará e Pernambuco, contexto onde o porto da Paraíba ocupava um importante papel de escoamento da produção local. Dessa forma, os sertões da Paraíba conectavam-se aos principais portos das capitanias do Norte, ao contrário da tradicional imagem de atraso econômico, indicando uma economia vigorosa, com grandes potencialidades de crescimento, principalmente alavancado pela agricultura e pecuária. Em chave interpretativa semelhante, Denise A. Soares de Moura investiga, no ensaio “O comércio colonial e suas relações complementares: Santos, Bahia e Pernambuco”, os circuitos mercantis entre o centro-sul e as capitanias da Bahia e Pernambuco, no período entre 1765 e 1822, mostrando a integração dessas regiões com Portugal e os principais centros mercantis europeus, sobretudo depois da abertura dos portos em 1808. De acordo com a autora, o porto de Santos desempenhou um papel importante nas relações mercantis complementares entre o centro-sul e as capitanias do norte, sobretudo na distribuição das mercadorias européias, asiáticas e indianas para a região centro-oeste do Brasil. Na nova conjuntura política, a vila de Santos consolida-se como porto exportador e importador, sobretudo de gêneros alimentícios, essenciais ao abastecimento interno de regiões como Minas Gerais, atuando como uma praça comercial complementar à do Rio de Janeiro. É também sob a perspectiva da circulação e articulação que o gênero biográfico está aqui representado, no ensaio “Vidal de Negreiros: um homem do Atlântico no século XVII”, de Ângelo Emilio da Silva Pessoa. Ultrapassando os limites da biografia convencional, o autor, inspirado nos recentes estudos sobre a trajetória dos funcionários administrativos no universo ultramarino, elege uma personagem a um só tempo atípica e típica. Atípica pela ascensão social vertiginosa em meio a uma sociedade pautada por critérios de hierarquização social: nascido na Paraíba e, a julgar pelos relatos, em uma família bastante modesta, Vidal de Negreiros alcançou uma posição destacada como funcionário colonial, à frente do governo de regiões estratégicas no Império. Seu nome viria depois a figurar no panteão nativista da nação, alçado à condição de herói nas lutas de Restauração. Aliás, a trajetória incomum de Vidal de Negreiros se iniciou com a brilhante atuação militar contra os holandeses, feito que lhe renderia honras e mercês significativas, como a indicação para o governo do Maranhão e, depois, de 14 ADRIANA ROMEIRO Pernambuco, capitania de primeira grandeza na hierarquia das capitanias do Império. Obedecendo ao padrão típico da trajetória dos governadores ultramarinos, alcançaria o gosto de governador em Angola, onde enfrentaria a conjuntura especialmente crítica que se seguiu à ocupação do território pela Companhia das Índias Ocidentais. A África que Vidal de Negreiros encontrou estava mergulhada num ambiente de forte instabilidade, acentuada pela resistência dos chefes aliados locais em prestar lealdade à Coroa portuguesa, impondo a necessidade de restabelecer as alianças do passado. A circulação dos funcionários régios no âmbito do Império proporcionoulhes acumular um aprendizado das artes da governança, forjado em contextos muito diferentes, resultando num conjunto de saberes essencialmente empíricos sobre a colonização, referenciado no exercício cotidiano da administração. Talvez a brilhante trajetória de Vidal tenha sido eclipsada pelo herói nativista celebrado por gerações e gerações de historiadores, ficando em segundo plano a dimensão atlântica de sua carreira na administração colonial. Com os homens, circulavam também práticas culturais, disseminando as mentalidades ibéricas por todo o Império, a exemplo das festas. Tema caro aos estudiosos da cultura barroca, as festas constituem o domínio privilegiado das representações em curso na sociedade colonial, na medida em que dão a ver a ritualização teatral dos seus códigos, hierarquias e organização. No belo ensaio “Festa e memória da elite açucareira no século XVII: a Ação de Graças pela Restauração da capitania de Pernambuco contra os holandeses”, Kalina Vanderlei Silva analisa uma faceta original do vasto imaginário da Restauração: as celebrações festivas da vitória pernambucana sobre o adversário holandês. Ao calendário festivo tradicional, como as entradas de governadores, os casamentos, nascimentos e mortes da realeza portuguesa, celebradas com pompa e magnificência barrocas, a nobreza pernambucana acrescentou a encenação festiva de sua empresa histórica, através da qual fixou a representação idealizada de si mesma. Nas festas da Restauração, a autora identifica uma estratégia de afirmação do status social, que visava conferir prestígio e honra a seus protagonistas, demarcando os lugares sociais, exibindo hierarquias, estabelecendo distinções. Consolidada nas guerras da Restauração, a elite açucareira conformou as celebrações festivas do passado glorioso como via privilegiada para legitimar a posição alcançada, exibindo nelas os códigos e padrões de conduta ibéricos, identificando-se com as elites portuguesas e castelhanas. Discurso sobre o presente, nelas também se fixou a memória de sua participação heróica nas lutas contra os holandeses, representadas como a expressão da lealdade ao monarca – o topos com que legitimava as suas PREFÁCIO 15 pretensões políticas. Festa barroca mas, sobretudo, política – como bem observou Maravall – o que nela se celebrava era sobretudo a própria sociedade, estamental e hierarquizada, que ali se dava a ver. É o que revela também o ensaio “Celebrando a monarquia nos extremos da América Portuguesa: Natal e a Colônia do Sacramento no século XVIII”, no qual Paulo César Possamai propõe uma démarche arrojada: o estudo comparado entre as festas públicas realizadas, no século XVIII, em dois extremos da América – Natal e a Colônia do Sacramento, regiões muito distintas. De um lado, a pobreza de Natal, com um contingente demográfico pouco expressivo. De outro, a Colônia do Sacramento, um dos mais prósperos entrepostos comerciais do Império e, ao mesmo tempo, posto avançado de fronteira. O brilho e a pompa barrocos da corte joanina alcançavam, ainda que numa versão esmaecida, esses territórios tão distantes, onde também os grandes eventos da monarquia – como nascimentos, casamentos, exéquias fúnebres – eram celebrados com solenidade. Em Natal, por exemplo, o casamento dos príncipes do Brasil e das Astúrias com as infantas Maria Vitória de Bourbon e Maria Bárbara de Bragança, realizado em 1729, deu lugar a nove dias de comemorações: malgrado a pobreza do lugar, agravada sobremaneira pelas secas que dizimavam o gado no sertão, a pequena população local assistiu a comédias, máscaras, cavalhadas, fogos de artifício, salvas de artilharia, missa solene cantada e procissão. Tudo por obra do capitão mor de Pernambuco, que tudo fizera para festejar condignamente os casamentos dos príncipes, posto que a Câmara local parecia pouco inclinada a financiar as festas – eventos dispendiosos, que demandavam tempo e recursos – , preferindo investir nas festas locais, sobretudo as que celebravam o orago de invocação do lugar. Afinal, se as festas constituíam um poderoso instrumento de representação do poder e afirmação da elite local, as localidades mais pobres tendiam naturalmente a se concentrar nas festas locais, de caráter religioso, mais adequadas para a expressão de prestígio e status. Diferente era a situação dos funcionários régios, que viam em tais festividades uma forma de expressar a fidelidade à Coroa, abrindo caminho para a ascensão nos quadros administrativos do Reino. A Colônia do Sacramento trazia uma peculiaridade que a distinguia de Natal: numa região de fronteira, a exibição de poder e magnificência funcionava como um estratagema político, direcionado para impressionar os vizinhos, amenizando as tensões entre eles. As celebrações cívicas destinavam-se a afirmar a glória do monarca português diante dos espanhóis, e a expressar a fidelidade e a obediência de vassalos afastados do centro da monarquia. De uma perspectiva muito semelhante, também centrada na tese da circulação das concepções e práticas do Antigo Regime, Carla Mary S. 16 ADRIANA ROMEIRO Oliveira destaca a dimensão social das manifestações artísticas, explorando as possibilidades analíticas dos usos da arte numa sociedade permeada pela noção de distinção. Em “Alegoria e status na Paraíba colonial: o forro da Casa de Orações dos Terceiros no Convento de Santo Antônio”, a autora nos brinda com a beleza do forro setecentista, que ainda hoje continua a fascinar os seus visitantes. De autoria desconhecida, pintada no século XVIII, a obra se destaca por suas características barrocas, sobretudo os efeitos de trompe l’oeil e a engenhosa falsa arquitetura. Diante da qualidade excepcional do conjunto, Carla Mary propõe uma indagação instigante: como explicar a sua produção numa capitania em franca decadência econômica, relegada a uma posição subalterna, em relação às demais? Uma das contribuições mais relevantes da autora é a leitura inovadora sobre a cena representada no teto, atribuída por engano à ascensão de Santo Elias em direção aos céus. Esmiuçando os detalhes da hagiografia de São Francisco, ela o associa ao episódio, referido pelos biógrafos do poverello de Assis, da aparição do santo, montado em um carro de fogo, a alguns frades menores. O tema, tratado por Giotto – o qual, ainda no século XII, havia lançado as bases da iconografia franciscana – encontrava-se presente em outras regiões da América Portuguesa, a exemplo da Igreja dos Terceiros de São Paulo, sugerindo a possibilidade de uma matriz comum, disseminada por meio de gravuras e ilustrações. Ordem religiosa das mais prestigiosas, a Ordem Terceira de São Francisco congregava à sua volta as elites locais, que nela buscavam status e distinção social, fosse por aqueles que haviam percorrido uma trajetória de ascensão econômica, fosse por aqueles que estavam em busca dela. Reside aí, segundo Carla Mary, a explicação para o aparente paradoxo entre uma capitania marcada pela pobreza e a suntuosidade da Casa de Orações, com seu magnificente teto pintado: esse último refletia as estratégias de auto-afirmação de uma elite que, relegada a uma posição periférica no Império, buscava reforçar as hierarquias e diferenciar os lugares sociais. O processo de ordenação do espaço colonial, com a imposição do poder metropolitano sobre territórios fora do controle da Coroa, é o tema do ensaio “Jesuítas e missões: representações das fronteiras na capitania do Rio Grande”. Nele, Maria Emília Monteiro Porto explora o universo das vivências em zonas de fronteira, a partir dos relatos jesuíticos sobre as missões localizadas na capitania do Rio Grande desentranhando, da correspondência mantida com o Conselho Ultramarino, os múltiplos sentidos da noção de fronteira, que se aplicavam a um território ainda em processo de integração à ordem colonial. Da fronteira entendida como conquista, enunciada em linguagem militar, à fronteira como zona de confronto cultural, a história da capitania do Rio Grande pode ser descrita nos termos de um processo de ordenação política e cultural que visava PREFÁCIO 17 submetê-la à órbita do Império, ainda que fadada a uma posição de isolamento no contexto geopolítico da América. Zona privilegiada de contatos de toda ordem, a capitania se tornou o palco dos confrontos culturais e políticos, em que se atritavam as diretrizes estabelecidas em Lisboa, as vivências dos jesuítas e as sociedades indígenas ali estabelecidas. A questão indígena é objeto de três ensaios originais. Em “Povos indígenas no período do domínio holandês: uma análise dos documentos tupis (1630-1656)”, Regina Célia Gonçalves, Halisson Seabra Cardoso e João Paulo C. R. Pereira exploram uma documentação preciosa, de autoria de índios Potiguara, escrita em língua Tupi. Seus autores extraem deste material, praticamente desconhecido pela historiografia, a visão dos indígenas acerca das alianças estabelecidas com os europeus durante a guerra luso-brasileira (1630-1654). Descoberta nos arquivos da WIC, em Haia, pelo pesquisador pernambucano José Higino Duarte, as chamadas “cartas Tupi” foram escritas por Pedro Poty, cristão reformado, e Antônio Felipe Camarão, ambos da nação Potiguara. Outra correspondência examinada são as “Remonstrâncias”, escritas por Antônio Paraupaba, que ocupava o cargo de Regedor dos Índios do Rio Grande durante o governo holandês. Experimentados na interlocução com o outro, graças a um talento especial para a negociação, estes homens demonstram uma capacidade incomum de assimilação e compreensão das culturas européias, com as quais dialogam intensamente. Dominando os códigos e padrões dos interlocutores, os índios apresentam-se como indivíduos plenamente inseridos no universo cultural europeu, capazes de articular os próprios interesses com o discurso do outro, numa estratégia retórica eficiente. Assim, a participação na guerra lusobrasileira, por meio de alianças e coalizões, foi alvo de cuidadosa negociação, cujo âmago residia na defesa intransigente da posse da terra aos que aqui estavam bem antes do advento dos europeus. É desta perspectiva que os indígenas se posicionam na negociação dos tratados e acordos celebrados com os brancos, defendendo, de forma estratégica, os benefícios que poderiam extrair deles. Na abordagem proposta pelos autores, o que se destaca é, sobretudo, a mobilização de determinados aspectos da cultura indígena, passíveis de aproximação com as culturas européias, explicitando as zonas de contato – e também de atrito – que existiam entre elas. Neste processo dinâmico, fica evidente a intensa capacidade de apropriação dos argumentos dos aliados, de modo a reinterpretá-los à luz da própria cultura, explicitando uma série de convergências entre o universo indígena e o europeu, indispensável ao estabelecimento de um espaço de troca e diálogo cultural. Análises desta natureza lançam por terra as teses sobre o caráter passivo das culturas indígenas, descritos como meros títeres nos conflitos entre europeus, relegados a uma posição marginal e subserviente às injunções 18 ADRIANA ROMEIRO de uma conjuntura política que não conseguiam compreender. Ao contrário, o ensaio abre um novo campo de abordagem sobre a atuação política das populações indígenas, na medida em que põe em relevo os artifícios retóricos que, em vez de exprimirem a completa e passiva adesão aos valores dos europeus, sinalizavam, antes de tudo, um posicionamento político contundente, ditado por uma avaliação objetiva da conjuntura. O grande mérito de estudos como este reside na ênfase dada à noção de estratégia, entendida, grosso modo, como a instrumentalização do discurso com vistas à obtenção de vantagens, distinguindo-a claramente daquilo que concerne à adesão do universo cultural do outro. Tal distinção não é banal, sobretudo num contexto em que noções conservadoras, como sentimento de pertença ao Império ou assimilação dos valores do Antigo Regime, têm sido confundidas com a manipulação ideológica e retórica deles, esmaecendo as fronteiras entre ideologia e realidade. É também sobre a noção de estratégia que se assenta o ensaio “Contatos, conflitos e redução: trajetórias de povos indígenas e índios aldeados na Capitania da Paraíba, durante o século XVIII”, de autoria de Ricardo Pinto de Medeiros. Ao autor interessa analisar o impacto da política indígena pombalina no processo de desenraizamento espacial e cultural das identidades étnicas, bem como a construção de novas identidades entre as populações indígenas da Paraíba. A participação dessas no processo de conquista e colonização do sertão, associando-se aos conquistadores através de uma política de aliança e guerra, põe em evidência o fato de que os povos indígenas souberam valer-se das possibilidades abertas pela Coroa, para conquistar, na ordem colonial que se estabeleceu, um espaço de negociação, onde puderam barganhar posições melhores, garantindo, entre outros, a obtenção de sesmarias, vital para a sua sobrevivência étnica. Na Paraíba, um dos principais reflexos da nova política pombalina foi a transferência compulsória dos índios para vilas maiores, compostas pela união de várias aldeias, em clara oposição ao que preconizava o Diretório dos Índios. Os efeitos deste processo foram devastadores: ao contrário daquelas que se associaram aos conquistadores, buscando garantir a própria sobrevivência, muitas das populações indígenas foram violentamente desenraizadas, removidas de suas aldeias e instaladas nas vilas recém criadas. O papel estratégico e militar que ocupavam nos sertões da Paraíba sofreu uma profunda inflexão, logo depois da implantação da nova legislação pombalina, transformando-as em grupos desprovidos de identidade étnica, desarticulados na nova configuração política das vilas. Conflito, estratégia e violência são noções inseparáveis da história indígena na Paraíba do século XVIII, revelando a outra face – a face sombria e perversa – da transplantação do Antigo Regime nos trópicos. O ensaio de Fátima Martins Lopes, intitulado “Capitães mores das PREFÁCIO 19 ordenanças de índios: novos interlocutores nas vilas de índios da Capitania do Rio Grande”, retoma o mesmo cenário, situando-se no processo posterior de ordenamento político das vilas criadas a partir das aldeias indígenas. As chamadas Leis de Liberdade, promulgadas em 1755, objetivavam não só restituir a liberdade aos índios do Grão Pará e Maranhão, transformando as missões jesuíticas em vilas, mas também instalar nas câmaras as principais lideranças indígenas, sob o imperativo da inserção política das populações nativas, alçadas à condição de “verdadeiros vassalos”, aptos a ocupar os cargos administrativos locais. Tratava-se, sem dúvida, de uma sofisticada estratégia de dominação, posto que cooptava, por meio da promessa de mercês, recompensas e honrarias, as lideranças indígenas, estabelecendo divisões nas comunidades, dilacerando o potencial de resistência das chefias e infligindo a todos uma organização social profundamente hierarquizada. A concessão da patente de capitão mor às principais lideranças, em cujas mãos estava o comando das companhias de Ordenanças, inseria-se num projeto de conquista e colonização que se chocava com os critérios tradicionais, vigentes nas sociedades indígenas, de escolha das lideranças. Nas vilas, o critério que regia a indicação aos principais cargos nem sempre respeitava as chefias indígenas, sendo mais decisiva a adesão deles às imposições coloniais. Nas vilas de índios do Rio Grande, por exemplo, a escolha ficava a cargo do governador de Pernambuco, que nomeava os indivíduos que se mostrassem mais receptivos à sua autoridade, garantindo assim o controle sobre as populações indígenas por ele comandadas. Como bem observa a autora, o papel destes capitães mores não diferia muito daquele exercido pelos tradicionais mediadores entre os universos colonial e indígena, sobre os quais recaía a obrigação de cumprimento das determinações emanadas do Reino. Por meio de tais nomeações, a Coroa ensejava uma eficiente política de cooptação, colocando as populações indígenas sob a órbita do Império, ao mesmo tempo em que desarticulava suas lideranças tradicionais. Desta política fazia parte também a introdução de um processo de individualização nas relações econômicas entre os índios, uma vez que os oficiais contavam com privilégios especiais, que os diferenciavam do restante da comunidade. Neste caso, a diferenciação social deitava raízes num processo mais amplo de transformação cultural, indispensável à dominação colonial: o capitão mor – e também os oficiais das Ordenanças – projetavam-se como interlocutores entre o mundo colonial e o indígena, beneficiados pelos privilégios econômicos e políticos inerentes à posição que ocupavam, cabendo a eles um papel fundamental nas configurações culturais então em curso. Os estudos sobre as Câmaras coloniais vive, hoje, a sua Idade de Ouro, inspirados nas pioneiras observações de C. R. Boxer sobre o papel de integração que desempenharam ao longo do Império português, 20 ADRIANA ROMEIRO conformando práticas e vivências políticas nos moldes dos concelhios lusitanos. São as relações turbulentas entre as câmaras do Recife e de Olinda que o ensaio “Patrimônio, territorialidade, jurisdição e conflito na América Portuguesa: Pernambuco, século XVIII”, de George F. Cabral de Souza investiga, privilegiando os aspectos econômicos derivados da desconcertante proximidade geográfica entre ambas as instituições. A criação da câmara do Recife, como resultado de sua elevação à vila, em 1710, não aplacou os ódios que a separavam de Olinda. Situadas a menos de uma légua de distância, as duas sedes do governo municipal engalfinharamse numa disputa em torno da jurisdição e do patrimônio que lhes pertenciam. E não foram poucos os objetos de litígio, a começar pela dificuldade em se estabelecer tanto a jurisdição dos ofícios municipais, quanto o patrimônio territorial de vilas tão próximas, envolvendo a delicada questão sobre as antigas doações e seus respectivos foros. Lançando mão de uma rica documentação, o autor investiga a administração financeira das câmaras – tema pouco estudado entre nós – , às voltas, frequentemente, com minguados rendimentos, insuficientes para fazer frente às suas obrigações básicas. O quadro econômico, porém, não encerra o horizonte da análise, mas atenta, sobretudo, às implicações políticas advindas da criação da Câmara de Recife, nas quais se entrelaçavam argumentos de natureza econômica e política. Nos conflitos entre a auto-intitulada nobreza da terra e a elite mercantil, o autor identifica as culturas políticas aí em jogo, cujas concepções se materializavam nas questões relativas às formas de administração do poder local, à natureza das reivindicações de ambos os lados, aos arranjos e acordos. Se as câmaras constituíam, como uma espécie de microcosmo da sociedade colonial, uma das arenas – e não a única – de luta política em que os interesses se confrontavam, o estudo de George F. Cabral de Souza atesta as potencialidades de abordagens voltadas para a sua dinâmica econômica, e, principalmente, para as suas interações com os concelhios próximos. Por fim, Acácio José Lopes Catarino traz à cena, no ensaio “A oficina dos ritos: artífices no Arsenal de Guerra de Pernambuco”, o cotidiano nas oficinas do Arsenal de Guerra, em Pernambuco, focalizando o impacto das reformas pombalinas relativas à modernização sobre a organização do trabalho e ao perfil dos trabalhadores. A dimensão militar destas oficinas permitiu uma apropriação cívica, situando o trabalhador na defesa da nação e da soberania, tornando-o alvo de um processo de institucionalização burocrática, apoiada num discurso racionalizante, em franco contraste com as formas tradicionais então vigentes. A passagem das oficinas para a manufatura em novos moldes administrativos levou ao surgimento de novas formas de controle sobre os trabalhadores, submetidos a uma série de expedientes disciplinadores, como a cuidadosa inspeção das faltas e saídas. Delas resultou a criação de uma burocracia interposta entre as oficinas e o PREFÁCIO 21 mundo exterior, encarregada da regulamentação das atividades ali desenvolvidas, que impactou profundamente no cotidiano dos trabalhadores, rompendo os vínculos corporativos e rebaixando o estatuto dos oficiais. Todos estes ensaios põem em relevo o processo de renovação historiográfica da última década, trazendo, cada um deles, uma contribuição decisiva na atual reflexão sobre a história brasileira do século XVI ao século XIX. A circulação – uma noção tão cara aos historiadores – dos saberes históricos continua a conectar as mais diferentes regiões, no sentido tanto de aproximar esquemas teóricos e metodológicos, quanto de submetê-los à prova em campos de investigação muito particulares. É certamente este intenso diálogo historiográfico entre os quatro cantos do país que fecunda e revigora o nosso horizonte, incitando-nos a apreender as nossas conexões com as outras partes da América portuguesa, antes de nos lançarmos no Império. Excelente amostra da vigorosa historiografia que se produz hoje no Nordeste brasileiro, o presente livro atesta a vitalidade da tradição intelectual construída em torno de nomes como Gilberto Freyre, Capistrano de Abreu e Câmara Cascudo, apenas para citar alguns nomes. Ao leitor, fica o convite para uma incursão profunda pela história dessas capitanias, com especial destaque para a da Paraíba, entre os séculos XVI e XIX. Adriana Romeiro Belo Horizonte, outubro de 2009. 23 JESUÍTAS E MISSÕES: REPRESENTAÇÕES DAS FRONTEIRAS NA CAPITANIA DO RIO GRANDE Maria Emilia Monteiro Porto1 presentamos aqui um pequeno estudo sobre as fronteiras missionárias lançando sobre elas uma reflexão acerca do viver nelas, tomando como ponto de partida as representações presentes nos relatos das missões jesuíticas organizadas na Capitania do Rio Grande entre 1597 e 1750. Estes relatos, em diálogo com as consultas ao Conselho Ultramarino a partir de 1681, ampliam e orientam nossa perspectiva. Entendemos que as formas sob as quais essa vida foi representada, pode nos levar a compreender as forças de ordem material que atuam sobre a sociedade (seus índios, soldados, missionários, poucos moradores e clérigos) e sobre o Estado (a representação da política monárquica através da correspondência do Conselho Ultramarino com a Câmara de Natal). Nessas correspondências pudemos verificar a presença de uma noção bem definida de fronteira como espaço bélico e fronteira como espaço de trocas culturais: os movimentos de conquista e contra-conquista do território, as políticas monárquicas e das forças coloniais, a administração da fronteira cultural e política, a das sociedades indígenas e as tentativas de movimentos engendrados pelos diversos setores da sociedade local no intuito de superar tal condição. Sérgio Buarque de Holanda entendia que o símbolo do Brasil era o bandeirante, que abriu os caminhos e fronteiras, enquanto os jesuítas se mantinham vinculados ao controle europeu do espaço. É certo que o saber controlado pela Companhia estava relacionado à ordem de idéias européias, mas devemos considerar que o conjunto das idéias européias vivia, justamente nesta época, uma crise e que diante dela e como parte dessa crise, a Companhia de Jesus apresentou, de forma incisiva, um projeto de reforma da sociedade. Por outro lado, a descoberta de um Novo Mundo e a ação sobre ele gerou um novo impacto sobre este universo de idéias. Apesar de idéias constituídas segundo padrões de reforma europeus, era justamente no novo espaço 1 Pós-Doutora em História pelo Consejo Superior de Investigaciones Científicas da Espanha. Doutora em História pela Universidade de Salamanca. Pesquisadora dos Grupos de Pesquisa Jesuítas nas Américas (UNISINOS/ Diretório CNPq), História do Direito e das Instituições (UNIRIO/ Diretório CNPq), Filosofia na História (UFRRJ/ Diretório CNPq) e Formação dos Espaços Coloniais: economia, sociedade e cultura (PPGH-UFRN/ Diretório CNPq). Professora Associada do Departamento de História e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Pesquisa de Doutoramento realizada com apoio do CNPq. E-Mail: <mariaporto2@yahoo.com.br>. 24 MARIA EMILIA MONTEIRO PORTO americano que eles se veriam transtornados pela experiência cotidiana, com as realidades que aqui se apresentavam. Por sua vez, a missão foi uma forma de intervenção típica das fronteiras sendo, ao mesmo tempo, a forma privilegiada da Contra-Reforma agir sobre as populações2. A noção de fronteira A noção de fronteira possui longa fortuna. Como demarcação de limites territoriais tem sua formulação mais espetacular nos marcos imperialistas da Roma antiga, que só conhecia o limes. No entanto, a experiência histórica que envolveu a construção dos limes já anunciava um aspecto fundamental para a construção de fronteira como conceito: zona de transição, comércio e comunicação entre o mundo romano e o bárbaro. Vem da história da topografia a noção de fronteira viva, significando uma área sob tensão, móvel, sujeita a várias alterações, em função de guerras e conflitos armados, indicando ainda outras acepções, como a de fronteira de acumulação ou de tensão, o que nos leva a ver a identidade entre essas noções3. Da Idade Média até finais do século XV a fronteira não é um interdito zona proibida por convenções políticas ou nacionais - mas zona de delimitação militar pertencente ou subordinada a diferentes Estados territoriais soberanos. Quando essa linha é resultado de um encontro de territórios estruturados a partir de pontos de onde irradiava o poder, o seu sentido vai mudando para a idéia de uma zona: são as zonas de contenda, espaços disputados entre algumas comunidades de moradores. A fronteira vai ganhando consistência: ela é zona neutra, a justiça não vai além dos limites fronteiriços4. Com a formação dos Estados nacionais e o Renascimento, fronteira tenderá a participar do conceito de nação, pois a consolidação nacional vem com a fixação de fronteiras, de modo que durante um longo processo de formação das idéias ocidentais, a idéia de fronteira como linha divisória foi se impondo à de fronteira como zona. BOXER, Charles. A Igreja e a expansão ibérica. Lisboa: Edições 70, 1981. MULLET Michel. A Contra-Reforma. Lisboa, Gradiva, 1985. PROSPERI, Adriano. Tribunali della coscienza. Inquisitore, confessori, missionari. Turim: Einaudi, 1996. RODRÍGUEZ DE LA FLOR, Fernando. De las Batuecas a las Hurdes: fragmentos para una historia mítica de Extremadura. Mérida: ERE, 1989, p.17. 3 DICIONÁRIO Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. 4 Caso do âmbito francês, cerca de 1213, onde fronteira está definida como a vanguarda das tropas militares e, por volta de 1292, como praça fortificada que está em frente do inimigo. FEBVRE, Lucien. Frontière: le mot et la notion. In: ______. Pour un histoire à part entière. Paris: École de Hautes Études en Sciences Sociales, 1962, p. 11-24. Já a fronteira do Alentejo, no início do século XVI, não era cobiçada pela monarquia por ser área de conflito, de modo que D. Manuel (1495-1521) a propõe como presente a D. Maria, infanta de Castela. MAGALHÃES, Joaquim Romero. Fronteras y espacios: Portugal y Castilla. In: TORRES, Ana Maria C. (org.). Las relaciones entre Portugal y Castilla en la época de los descubrimientos y la expansión colonial. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1994, p. 91-101. 2 JESUÍTAS E MISSÕES 25 Com a entrada em cena do mundo americano se dará uma nova percepção da realidade que incidirá sobre o conceito. No período colonial, o limite era a linha que separava territórios sob distinta soberania e a fronteira era um espaço marginal aos centros de poder econômico, social e político, que podia estar ou não em contato com os domínios de outra potência, de modo que uma fronteira podia ser um limite ou uma zona. A ocupação da fronteira era o primeiro requisito para chegar a conhecer e tornar efetivo o limite. Aqui vemos de que maneira as duas noções – fronteira como zona de trocas e fronteira como limite subordinado à idéia de nação – conviveram de forma produtiva. Também por conta do mundo americano, não podemos perder de vista que fronteira como linha divisória é próprio das idéias ocidentais e noção desconhecida pelas sociedades nômades ou seminômades que entraram na cena do Ocidente a partir da expansão dos Estados ibéricos, Portugal e Espanha. O século XIX vai interromper essa acepção fluida, pois a idéia de fronteira como linha divisória assegurava uma territorialidade que viria a configurar a idéia de nação. José Carlos de Macedo Soares, por exemplo, concebe a fronteira como linha divisória bem de acordo com a agenda do século XIX5. O processo de colonização norte-americano adquiriu grande importância para o conceito de fronteira desencadeando questões acerca das consequências políticas e culturais da especificidade da conquista do oeste norte-americano, sobre a identidade da experiência de fronteira em todo o Novo Mundo a partir do estudo das zonas missionais e daí desencadeando o interesse pelas especificidades latino-americanas. Os americanistas se dirigiram, então, para as consequências do avanço das fronteiras metropolitanas, demonstrando a existência de fronteiras regionais fechadas, ocupadas basicamente por missões evangelizadoras ou por entidades indígenas ainda íntegras e fronteiras regionais abertas, estabelecidas a partir de novas fundações. Na atualidade, fronteira vem absorvendo uma dimensão antropológica que resgata as relações interétnicas e a multiplicidade de horizontes culturais que existem em determinados espaços. Aplicada à história política e cultural, vem lançando uma perspectiva histórica que assume o jogo das relações de poder e da dinâmica da expansão fronteiriça, tal como o faz Lucena Giraldo reconstituindo sua gênese na história da ocupação das Guianas, mostrando com isso a vitalidade do conceito6. Importantes trabalhos vêm sendo desenvolvidos no fluxo dos estudos sócioculturais. Laura de Mello e Souza7, ao estudar a “Por toda a parte a fronteira é o continente do conteúdo nacional. A fronteira completa, define e especifica o país sede de um povo organizado. A fronteira assegura o instinto de propriedade, tão natural e imperioso nos povos, como nos indivíduos. O território, quer dizer, o que se contém dentro das fronteiras, está para as nações como a casa está para as famílias”. SOARES, José Carlos de Macedo. Fronteiras do Brasil no regime colonial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1939. 6 GIRALDO, Manuel Lucena. Laboratorio tropical. Caracas: Monte Ávila/ CSIC, 1993. 7 SOUZA, Laura de Mello e. Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.) & NOVAIS, Fernando A. (coord.). História da vida privada no Brasil - Vol. 1: cotidiano e vida 5 26 MARIA EMILIA MONTEIRO PORTO formação colonial a partir da ação social dos bandeirantes em São Paulo, nos remete a uma história social das fronteiras brasileiras reconhecendo a importância dos espaços abertos e zonas distantes na história da colonização lusitana na América: “longe das igrejas e conventos...”, assim como outros trabalhos ligados à história regional que recuperam, sob uma nova ótica, uma história de espaços que continuam oferecendo questões por compreender, mas que ainda não encontraram visibilidade na historiografia nacional. Janice Theodoro tem se dedicado às distintas mestiçagens e entrecruzamentos muito próprios do mundo americano, pois aí estão os agentes sociais que operam o diálogo entre universos aparentemente incompatíveis favorecendo a sua articulação e permeabilização. Isso nos leva a considerar o conceito de fronteira em sua dimensão de espaço de trocas e negociações com o outro, especialmente com os grupos étnicos que cabia às missões controlar8. As limitações ou estímulos ao desenvolvimento de uma região obedecem ao posicionamento geopolítico que ela ocupa no contexto geral da trajetória e expansão da colonização e essa foi a tendência que criou regiões centrais e marginais no sistema colonial. A necessidade de protegê-la das sublevações indígenas, da expansão do contrabando e das interferências estrangeiras é característico da fronteira. Ali os gastos eram reduzidos, vigorava a escravidão indígena e o papel das instituições, como as missões ou as guarnições de soldados pagos estacionados nos fortes ou nas áreas de conflito, era significativo. Já nas regiões centrais originárias, a conquista decisiva foi seguida rapidamente de uma desmilitarização e de um longo período de consolidação. As formas de intervenção nas regiões de fronteira obedeciam a uma política de conquista e de redução de toda oposição. A região que resistia à dominação não apresentava a menor possibilidade de integrar-se na dinâmica ocidentalizada do sistema colonial. Isso é algo que nos remete a outra importante característica das fronteiras que é justamente sua mobilidade, ao contrário da zona-limite, cuja maior virtude é, pelo menos, garantir uma soberania política e é algo evidente tanto no processo natural de fuga das populações indígenas das zonas ocupadas, como nas transferências de populações operadas pelas forças coloniais9. 8 9 privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 42. THEODORO, Janice. O barroco como conceito. In: SCHUMM, Petra (org.). Barrocos y modernos: nuevos caminos en la investigación del Barroco Iberoamericano. Frankfurt: Vervuert; Madri: Iberoamericana, 1998. A crônica jesuítica sobre a conquista da Paraíba nos aproxima do deslocamento da fronteira em direção ao Rio Grande que se conformava, então, como espaço de concentração de forças dos índios Potiguares que fugiam progressivamente das etapas de conquistas portuguesas: “... e em toda a parte a miúdo eram salteados, ou se passariam todos além do Rio Grande, como já muitos tinham feito...”. ANÔNIMO. Summario das armadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do Rio Parahiba. Revista do Instituto Histórico e Geográphico Brasileiro, Rio de Janeiro, IHGB, n. 36, 1873, p. 63. Provavelmente escrito, em 1586, a pedido do visitador Christóvão de Gouveia S.J. pelo P. Simão Travassos S.J. JESUÍTAS E MISSÕES 27 No Rio Grande em três momentos a condição clássica de fronteira foi mantida: na expedição fracassada de João de Barros em 1534 até a conquista efetiva de 1597; entre 1633 com a ocupação holandesa e 1654 com a Restauração; e por volta de 1680 até 1720, com a importante rebelião das nações tapuias das capitanias do Norte, reuniram-se em diferentes medidas, algumas ou todas estas circunstâncias. A estabilização de sua vida política e produtiva que poderia atrair uma população civil que possibilitaria sua integração na ordem do ocidente tomou outra dinâmica por conta disso, configurando, assim, um conjunto de formas arcaicas de conquista. Nos espaços conquistados sob estas formas arcaicas vigorava a precariedade de técnicas e apenas uma mínima expressão da cultura letrada e visual do ocidente. Ali se mantiveram ausentes, por muito tempo, os recursos persuasivos que o conjunto de uma vida colonial oferece, materializados na organização de cidades e tudo o que supõe o poder de uma cultura urbana. Os marcos de descobrimento chantados nas costas brasileiras desenhavam um espaço que se desejava conquistar efetivamente, um símbolo da presença portuguesa. No Rio Grande isto se deu em 1501 com o marco de Touros, mas esse gesto ainda estava circunscrito ao processo expansionista geral português, algo ainda pós medieval e não tomado pelo fato americano. Em 1534, quando da expedição fracassada à então Capitania de João de Barros e de sua inclusão efetiva no campo de visão da cultura ocidental, começaram a se desenvolver estratégias de ocupação. A imagem básica que a Capitania apresentava, neste momento, era a de porto de corsários: uma primeira imagem da fronteira. A partir de então, embora ainda não conquistada, as forças coloniais possuíam um plano minimamente traçado sobre o local a partir da divisão em Capitanias hereditárias no mapa da colônia. A conquista do Rio Grande fazia parte de uma política cujo objetivo final era a grande região do Amazônia, espaço de interesse estatal por conta da necessidade de proteger seus limites da grande rede de comércio legal e ilegal, e também para participar dele. Por isso foi um espaço transitório, um ponto de apoio e abastecimento de forças em cada avanço da etapa da conquista. Como atesta Câmara Cascudo, se constituía: “mais em uma posição bélica, de vigilância e guarda, que a expressão regular e produtora de Capitania”. Ali se investia mais com o pessoal da guerra do que o que se produzia, que se limitava, em 1618, ao “rendimento do engenho de Cunhaú”10. Sertanistas, moradores, índios e missionários encontraram nas fronteiras um território novo e nelas foram autorizados, de acordo com o vai e vem das políticas monárquicas, da consciência moral da cultura de então e da desobediência civil, a desempenhar um papel. Muitas ações foram levadas pelos padres da Companhia nessa Capitania. No entanto, porque a circunstância da fronteira costuma ser belicosa, complexa e intensa, e porque o missionário é, por excelência, um homem de fronteiras, o contexto que destacamos para a análise 10 CASCUDO, Luis da Câmara. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: s.r., 1955, p.59. 28 MARIA EMILIA MONTEIRO PORTO é o da guerra – a guerra de conquista em 1597 e, a partir de 1680, a Guerra dos Bárbaros. A primeira imagem da fronteira – a conquista Os jesuítas entram no Rio Grande apoiados no Alvará de 1596 que permitia apenas a sua entrada no sertão e que regulava a exploração de seu trabalho entre os portugueses. No contexto dos conflitos iniciais entre indígenas e colonos a intervenção da Companhia de Jesus se materializou na tentativa de pacificação, introduzindo formas da cultura ocidental: os princípios do credo cristão através de suas formas litúrgicas e da catequese, difundidas em intervenções retóricas dentro de um espaço político de refúgio que as missões jesuíticas representaram e que, naquele momento, ainda não eram objeto das radicais disputas que ocorreriam no período seguinte. No primeiro momento da conquista, em 1597, a ação conjunta com os capitães-mores de Pernambuco e Paraíba está descrita em termos do contingente de guerreiros e armamentos, infantaria, cavalaria, índios aliados e escravos africanos, as estratégias e táticas do capitão, a trajetória da expedição, o material, o poder técnico, a súbita interrupção de assaltos, computando dados e os incorporando em uma linguagem militar. Há também o sentido hierárquico da descrição: a anterior descrição da Capitania de Pernambuco definindo o lugar que ocupa a nova conquista nesta trajetória, o socorro que enviava Felipe II a seus vassalos, o governador-geral, os capitães-mores, os soldados, os índios aliados, os escravos da Guiné e o restante da maquinaria de guerra - munições e petrechos, entre os quais, as flechas dos índios. O léxico militar se amplia com outras passagens: “o desenho do capitão era ir destruindo as Aldeias pelo sertão até chegar ao Rio Grande”, ou: “espantados com o jogar da artilharia, não teve efeito o seu desenho”. A conquista é colocada claramente como iniciativa civil e militar na qual os jesuítas são os coadjuvantes imprescindíveis. Os franciscanos enviaram dois padres experimentados, Cosme de S. Damião e Manoel da Piedade. Comandava a expedição Jerônimo de Albuquerque, mestiço, 65 anos, “grande conhecedor da psicologia nativa”, que ia pelas aldeias de índios missionados recrutando voluntários11. A participação dos padres na guerra era efetiva “...não se negando a nenhuns trabalhos, de dia e de noite, (...) que o perigo da guerra traz consigo...”. De suas aldeias desceram parte deste arsenal militar, em 1603, com o Pe. Diogo Nunes, 800 índios flecheiros para lutar contra os Aimorés na Bahia. Em outro momento tocou aos jesuítas enviar 370 arqueiros de suas missões e dois padres, Manoel Gomes e Diogo Nunes. Mas também foi negada tal cooperação, como demonstram alguns documentos que nos 11 Testemunho de Alexandre de Moura, 20 out. 1620. In: BARÃO de Studart (ed.). Documentos para a história do Brasil e especialmente a do Ceará. 4 vol. Fortaleza: s.r., 1908-1921, vol. 2, p. 194-195. MORAES. Francisco Teixeira de. Relação histórica e política dos tumultos que succederam na cidade de S.Luis do Maranhão, 1692. Revista do Instituto Histórico e Geográphico Brasileiro, Rio de Janeiro, IHGB, n. 82, 1877, p. 40. JESUÍTAS E MISSÕES 29 aproximam aos conflitos entre jesuítas e autoridades civis, como na ocasião em que se recusaram a enviar seus guerreiros Paiaiá em uma expedição causando, em seguida, relações animosas com o Governador geral. O Pe. Gaspar de Samperes era outro homem com ofícios especializados que atuou nas fileiras da Companhia e quem projetou o desenho da fortaleza, “porque sabia bem dessa arte e a exercitara, em Espanha e no Brasil, antes de entrar na Companhia, quando professava a milícia”. Somos enviados à representação dos homens de guerra, quando o clima de perplexidade que envolveu a todos após um embate nos momentos iniciais da conquista do Rio Grande se oferece como espaço para refletir sobre a moral do soldado. É a cena de um massacre: “Fêz-se grande estrago neste gentio (...) alguns soldados honrados, que neste ministério ajudavam também aos Padres, se edificavam e davam graças a Deus, dizendo: salva-se um filho de um selvagem e eu não sei o que será de mim”12. A participação na conquista era uma combinação de intervenções materiais e espirituais: “administrando os sacramentos à gente por não haver outros clérigos, servindo os enfermos, que houve muitos, e dando a traça e ordem para se fazer o forte, e às vezes trabalhando com suas pessoas, para animar a gente”13. Em geral, se aplicam metáforas militares para definir a atuação missionária da Companhia de Jesus. No entanto, a imagem militar aplicada ao corpo eclesiástico é comum desde a Igreja primitiva assim como a expressão “soldado de Cristo” ou a idéia de Cristo como um chefe militar, tendo sido poucas e discutíveis as opiniões que consideraram que as armas não se conciliavam com a moral do Evangelho. Configura-se como uma milícia especial, disposta, por princípio, a seguir diferentes destinos, mas unitariamente a serviço de Roma e do Papa. Parte do acordo inicial com os potiguares, em 1597, implicou em um deslocamento de tribos com o objetivo de assegurar os limites entre terra conquistada e produtiva e as fronteiras. O Pe. Francisco Pinto, como o intérprete da estratégia do capitão-mor, incluiu como parte do acordo, que algumas tribos fossem povoar a vila de Pernambuco entre os portugueses, tendo ido a tribo de um irmão do Camarão Grande. A carta Ânua de Luis Figueira, 1602-160314 ,que nos mostra a situação da região após seu controle inicial, nos envia a essa mesma dispersão. Entre 1602 e 1604, se tinha estabelecido uma aliança entre os potiguares e os portugueses, rompendo assim a aliança anterior entre aqueles e os franceses. Submetidos os potiguares, resolveu-se usá-los nas guerras em Ilhéus e Porto Seguro, de onde foram, em seguida, desviados para reprimir um quilombo de escravos africanos fugidos das plantações da Bahia. Não retornam para o norte e acabam por se fixar na Bahia para povoar suas terras. Carta de Pero Rodrigues, 1599. In: LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. 10 vols. Lisboa; Rio de Janeiro: s.r., 1938-1950, vol. I, pp. 515, 518, 519, 520. Daqui em diante,citado como HCJB. 13 Relação de Samperes, 1607. HCJB, vol. I, p. 557. 14 Ânua de 1602-1603, P. Luis Figueira, 1604. Archivo Romano Societatis Iesu, Roma, Fundo do Brasil, maço 8, f. 40v-41. Daqui em diante, citado como ARSI, Bras. 12 30 MARIA EMILIA MONTEIRO PORTO Como testemunho da dispersão e fragmentação do espaço indígena, o encontramos desfigurado, suas aldeias transformadas em “aldeotas”: “... que já lhes não guarda outro nome (pois além de serem pequenas, não há naquela capitania hoje mais de oito, sendo há dez anos 64)...”15. As instruções do Padre Geral Aquaviva, enviadas de Roma para o Provincial Pero Rodrigues, no Colégio de Olinda entre 1599 e 1601, nos fornecem detalhes do cotidiano e nos remetem às estratégias para a realidade dessas missões “tan distantes” e ao processo de adaptação destas instruções à realidade da fronteira16. Nelas, se exigia, entre outras coisas menos notáveis, um mínimo de quatro religiosos para iniciar a missão, estabelecia de antemão certos critérios e hierarquias para o contato direto com os índios, indicava supervisores ou temia pela integridade física e espiritual dos missionários. O Pe. Pero Rodrigues, em carta de 160017, ao oferecer ao General um quadro mais realista das missões, contesta as instruções que, ao fim são organizadas, apesar de não se adequarem à estrutura missionária ideal. A imagem das circunstâncias precárias destas missões se expressa na nostalgia contra a qual deviam proteger-se: “Não tínhamos remédio algum humano de físico ou mezinhas, bem nos lembrava dos regalos, quando adoecemos nos Colégios, dum pedaço de açúcar para beber uma pouca de água, ou uma talhada de marmelada e outras coisas que a caridade da Companhia costuma”18. A possibilidade que estava colocada para a Capitania, após este primeiro momento da conquista, seria sua integração na ordem colonial, ocupando uma posição marginal em relação à dinâmica da economia central. No entanto, a ocupação holandesa representou uma interrupção no processo, pois o Rio Grande ocupava um lugar secundário na política dos novos conquistadores. Comentam os historiadores que, no Rio Grande, os colonos se mantiveram alheios ao tema da conquista e mais dedicados a seus assuntos administrativos e disputas internas, tendo sido para a Capitania um período precário, território ocupado sem maiores inversões do que convinha para a manutenção da guerra e da produção do açúcar nos engenhos de Pernambuco, imagem certamente amparada nas denúncias dos massacres de índios e moradores ocorridos em Uruaçú e Cunhaú por parte dos “pérfidos holandeses”, já no contexto da Reconquista19. Relação de Pero de Castilho, 1614. HCJB, vol. V, p. 511. Instruções do Padre General Claudio Aquaviva para o Provincial P. Pero Rodrigues. Roma, 1597-1598, ARSI, Bras, maço 2, f. 131-132v; Algumas advertências para a Provincia do Brasil, Roma, 1601, Biblioteca Vittorino Emanuele, Roma, Fundo dos Jesuítas, maço 1255, f. 10-14. Daqui em diante, citado como Bib. Vittº Em., Gesuitici. 17 Carta do Provincial Pero Rodrigues ao Padre General Claudio Aquaviva, Baía, 20 de Setembro de 1600. ARSI, Bras., maço 3-I, f. 194-194v. 18 Carta de Pero Rodrigues, 1599. HCJB, vol. I, p. 524. 19 Conforme o panfleto de Lopo Curado Garro: Breve, verdadeira autêntica Relação das últimas tiranias e crueldades que os pérfidos Holandeses usaram com os moradores do Rio Grande, 23 out. 1645. Publicações do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, 1929. 15 16 JESUÍTAS E MISSÕES 31 Uma segunda imagem: a Guerra dos Bárbaros Por volta de 1650 a população do Rio Grande iniciava sua expansão para Oeste, alcançando outra onda povoadora que irradiava do Vale do Jaguaribe no Ceará para Leste, e desde ai se dirigia, espalhando-se, por toda uma zona interior que se detinha na Serra da Borborema20. Com o fim da ocupação holandesa, o Rio Grande se integra ao plano colonial português e, com isso, se retoma toda a movimentação de colonos, que passam a se dedicar à potencial economia agropecuária. Integrava-se na economia colonial como zona marginal em relação à economia açucareira com centros em Pernambuco e Bahia, mantendo um papel abastecedor durante os períodos de estabilidade, fornecendo gado, couro, sal, pesca e índios aplicados no trabalho servil, como guerreiros nas conquistas de outras fronteiras ou como povoadores de seus limites. A extensão das fazendas de gado – principal e rentável atividade econômica – em terras indígenas, tanto nas já formalmente concedidas como nas áreas inconquistadas do interior da região gerou uma série de conflitos entre índios por suas terras e integridade física, e colonos, por suas necessidades de grandes extensões de terra para o gado e da força de trabalho indígena. Os conflitos envolvem diversos episódios nos quais as autoridades locais e os moradores formalizavam a violência em relação aos índios. O argumento do colono era que a mão de obra indígena era indispensável para integrar a Capitania em uma ordem economicamente produtiva. Mas existia um discurso ético que se traduzia em leis que limitavam o direito de escravização e procuravam regulamentar a apropriação do trabalho. Seu recurso era, então, incentivar as guerras entre tribos para justificar uma guerra justa. Aos condutores desta guerra não convinha que houvesse índios de paz porque esses estavam protegidos pela legislação e, portanto, não podiam ser cativados. Os índios Janduí da nação dos Tapuias Cariri começavam, então, a atacar os moradores de Natal. Domingos Jorge Velho, um dos líderes dos paulistas e maior representante do que foi a eficácia das forças bandeirantes, estava dedicado, neste momento, a destruir o Quilombo dos Palmares e se desviou com suas tropas, a convite do governador geral, para socorrer o Rio Grande. O conflito havia se deslocado para terras do Piauí e Ceará seguindo o trajeto dos paulistas, retornando, nestes momentos, para os limites da Capitania do Rio Grande. A demanda de gado como alimento, meio de transporte e energia expandiu o mercado para outras regiões criando, a partir de então, as peculiaridades da sociedade do sertão. A política de controle da guerra dos Bárbaros era concentrar em algumas aldeias, os remanescentes das populações indígenas que iam sendo reduzidos em Guajiru (Estremoz), Guaraíras (Arez), Apodi (Vila do Regente, depois 20 BRUNO, Ernani da. Silva. História do Brasil geral e regional - Vol. 2: Nordeste. São Paulo: Cultrix, 1967. 32 MARIA EMILIA MONTEIRO PORTO Portalegre), Gramació (Vila Flor) e Mipibu (S. José de Mipibu). Neste contexto, os jesuítas são outra vez convocados para pacificar as fronteiras, assim como as forças especializadas do Terço dos Paulistas. Quando se estabelecem, no momento e lugar mais tenso de todo conflito, servem a um plano pragmático de controlar o espaço, evitar a dispersão dos grupos indígenas remanescentes, negociar com a natureza desolada e precária e com a moral da colônia. Esta nova aproximação compreendia duas aldeias de índios Paiacus, a de S. João Batista do Apodi e outra, às margens do rio Jaguaribe, já no Ceará, que além de terem funcionado como apoio institucional a um importante fluxo de povoamento que se dirigia para a região do Açu, integrando-os, segundo a perversa lógica do colono, nas formas e frentes de trabalho ocidentais, obedecia também à lógica missionária de afastar os aldeamentos das proximidades das guarnições de soldados no litoral. Mas a pressão escravista levou os missionários a afastarem os núcleos indígenas de catequese também dos povoamentos dos colonos, estabelecendo aldeamentos mais eficientes e estáveis, conclusão a que, aliás, já haviam chegado os missionários do tempo de Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. Organizaram duas outras missões cerca do litoral, as aldeias de Guaraíras e Guajiru que se mantinham em tensão direta com as duas outras do interior. As correspondências entre os centros administrativos da Colônia, como esta de 1699, nos vão dando conta da intensidade dos conflitos entre colonos e índios e nos recordam a precariedade da situação do Rio Grande durante a Guerra dos Bárbaros: “Das Capitanias do Norte tinham ido várias e repetidas vezes a fazer guerra aos Bárbaros do Rio Grande, 37 cabos dos de maior nome e suposição, havendo algum que levou mais de 700 homens brancos, e que todos estes não conseguiram outro feito mais que só o das consideráveis despesas que fizeram aos miseráveis povos das ditas Capitanias”21. A fronteira, como zona militar, torna-se visível a partir dos conflitos pela conquista do espaço, nos quais aparecem as estratégias utilizadas e o conjunto da política monárquica e colonial22. É notável, neste momento, que se tratava mais de defender uma posição estratégica na fronteira do que propriamente defender uma população civil organizada. Segundo o documento, e também conforme o discurso dos Oficiais da Câmara, esta população civil se reduzia “a quatro moradores que ali habitavam” enquanto o auxílio em forças militares teria sido de 200 homens. Certos dados, como a criação do Posto de Coronel de Cavalaria da Ordenança em 1686 para socorrer os colonos nas áreas de conflitos com os índios, a aparição da noção de fronteira na linguagem militar em documento de 1694, com o sentido de um espaço fortalecido por Carta de D. João de Lencastro, Governador Geral do Brasil a D. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastro, Baía, 11 nov. 1699. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1937, pp. 39, 88, 83, 72, 117, 118. 22 As referências que vem a seguir são encontradas nos seguintes documentos: Livro de Cartas e Provisões do Senado da Câmara de Natal (LCPSC), Livro de Termos de Vereação (LTV), Documentos do Arquivo Ultramarino (AHU), cobrindo o período de 1686, 1689, 1694, 1696, 1701, 1704, 1710, 1713, 1725 e 1730. 21 JESUÍTAS E MISSÕES 33 armamentos e homens de guerra cujo objetivo era conquistar uma nova frente, a requisição de índios da Aldeia de Guajiru para apoiar a abertura de duas novas frentes (ribeira do Ceará-mirim, no sítio chamado Capela, sob responsabilidade do Mestre-de-Campo Paulista, Mathias Cardoso da Silva, e outra em Utinga), são índices de uma especialização de forças na fronteira. O Governador Geral de Pernambuco e Capitanias Anexas manda, em 1701, publicar ao “som de caixas” um Bando ordenando a retirada dos soldados das missões do Rio Grande, Ceará e Jaguaribe, deixando apenas dez subordinados ao Reverendo missionário, caso se apresente necessário, ou seja, reforçando a autoridade dos missionários e, com isso, reforçando as fronteiras para a defesa contra o gentio bárbaro. Com a guerra, aumentava o número de tapuias rendidos que deveriam submeter-se à legislação indígena que regulamentava a prestação de seus serviços nas terras dos moradores e nas guerras. Em 1696, quando os Oficiais da Câmara solicitam aos Padres da Aldeia de Guaraíras que reúnam quinze índios e um encarregado que pudesse trabalhar na abertura de uma passagem na lagoa, o Padre Sebastião de Figueiredo da Companhia de Jesus nega o pedido. Responde aos Oficiais que, na aldeia, havia 88 índios de serviço, sendo 63 deles ocupados em outros serviços, conforme a Ordem do Governador Geral, que proibia que saíssem da Aldeia mais da metade dos índios, portanto os quinze índios solicitados não poderiam ser cedidos; que esperassem sua volta se ainda os necessitasse. O aspecto movediço da legislação indigenista levou a que D. Pedro II permitisse que os índios do Rio Grande fossem empregados nas guerras das fronteiras. No entanto, em 1704, a Câmara de Natal pedia que se deixassem os índios do Rio Grande para o serviço dos moradores, alegando que na capitania do Ceará havia muitos índios. Isso nos leva a observar tanto o aspecto móvel da fronteira, que ia se estendendo para a Capitania vizinha, como a expressão do desejo dos moradores de Natal de que a Capitania saísse desta circunstância. Entendemos esta atitude como um gesto de recusa da condição de fronteira, integrando a comunidade no cotidiano de uma vida social e não nas urgências introduzidas pela guerra. Seis anos depois, João V se ocupa em controlar, junto ao Governador de Pernambuco e Capitanias Anexas, a posse de terra por parte dos vigários, párocos e missionários das aldeias de índios nos sertões. Mas o Rio Grande prossegue ainda como fronteira, da qual se pode retirar os índios pacíficos e levá-los para as novas frentes coloniais, tal como se depreende da política da Coroa. A Junta das Missões, reunida a 30 de março de 1726, no Estado do Maranhão e formada pelo Governador João da Maya da Gama, pela Companhia de Jesus na figura do Visitador Geral das Missões e o Reitor do Colégio, enfrentava as séries de levantamento e ataques das nações Guanarez, Aroazes e Barbados às aldeias dos índios Caicaizes, pacificados e aldeados com o missionário Gabriel Malagrida. Diante da situação de São Luiz do Maranhão, “sem índios, nem forças, por andarem em contínua guerra (...) estan as aldeyas acabadas, sem que se possa dar muda aos precisos 34 MARIA EMILIA MONTEIRO PORTO índios”, decidem pela transferência estratégica das tribos pacificadas das regiões vizinhas, solicitando, como ordem real aos Governadores de Pernambuco e Paraíba, ao Padre superior da Serra de Ibiapaba e aos Capitães do Ceará e Rio Grande “para lhe mandarem os Índios determinados pelo dito Senhor para esta Guerra, e Conquista, para a qual não tem dado até o presente Índio algum”. A recusa à esta solicitação por parte das autoridades regionais, apesar das “... repetidas ordens de Sua Mag.... todos esses quatro anos”23 nos leva a entender que, neste momento, a dispersão das comunidades indígenas encontrava, nas missões, um lugar ordenador capaz de excluí-la do círculo vicioso das fronteiras. Esta luta pela ordenação do espaço se revela em diversos episódios expressos na documentação. Apesar de o Rio Grande ser reserva de guerreiros, os documentos de 1725/ 1726 e de 1730 descrevem um ambiente melhor controlado, no qual as aldeias eram tomadas como uma realidade na ordem missionária, ou seja, integradas em uma ordem produtiva e a uma melhor ordenação do espaço no sentido de uma busca por sair da circunstância de fronteira. Em um requerimento de 1726 o Pe. Jerônimo de Sousa, Superior da Aldeia de Guajiru, solicitava a demarcação de mais e melhores terras para a comunidade indígena que administrava em uma região chamada Cidade dos Veados, a duas léguas de Guajiru, “nas Lagoas da Cidade de Natal do Rio Grande” a D. João V, que já não tinham onde plantar, porque as terras de lavoura já estavam cansadas e cheias de formigueiros. Em 1730 o Pe. João de Melo, então o Superior da Aldeia do Guajiru, pede a D. João V a confirmação de uma doação de sesmaria na costa das salinas, no sitio dos Galos e de Guamaré “com dois sítios de pescaria e tres léguas de terra de comprido e uma de largo”, feita pelo capitão-mor Domingos de Morais Navarro (1728-1731), em 1729, em nome de Sua Magestade. A conf irmação vem a 15 de outubro de 1732, notando-se, assim, o prosseguimento desta política territorial por parte de certos setores políticos da Capitania. Essa tendência de reordenação do espaço pode ser considerada também a partir da atuação deste capitão-mor, Moraes Navarro, quando, em 1728, conduziu os trabalhos de restauração da Fortaleza e da capela24. Apesar da piedade e simpatia de D. Pedro II pela Companhia de Jesus a guerra desordenava e suspendia os direitos. Documentos de 1689 nos remetem a este ambiente que suspendia toda a ordem. Nele, os oficiais da Câmara relatam ao Bispo e Governador de Pernambuco que a guerra na região do Açu obrigava os moradores a viverem fortificados sem poderem sair para cumprir os ofícios e sacramentos religiosos, sem um padre que os atendesse e ainda sem condições de pagar pelos seus serviços. O comentário do Pe. Pero Dias, Reitor do Colégio de Olinda, de 1689, nos Termo da Junta das Missões em S. Luiz do Maranhão, 30 mar. 1726. HCJB, vol. III, p. 442443. 24 Manuscrito do Arquivo do IHGRN, Pasta 32, maço 7, folha 2. Apud GALVÃO, Helio. História da Fortaleza da Barra do Rio Grande. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1979, p. 209. 23 JESUÍTAS E MISSÕES 35 oferece uma imagem da Aldeia de Guajiru durante este processo de organização da reconquista da fronteira riograndense e nos introduz no ambiente de guerra que se desenvolvia quando as aldeias de índios catequizados passam a ser um dos alvos dos Tapuias rebelados e dos ataques dos moradores. Nos leva a considerar o ceticismo geral quanto à defesa da integridade indígena ou quanto aos recursos legais e petições como forma eficiente de intervenção: “...mas era impossível o castigo por causa da Guerra dos Bárbaros...”. Relata ainda que, apesar de todo o trabalho propriamente espiritual, os padres tiveram que usar de “instrumentos belicosos de estacadas e trincheiras (...) sempre com as armas na mão”25. Em 1713 essa situação se acentua com a dificuldade em controlar os índios aldeados e a imagem da missão do Guajiru como destino dos Tapuias dispersos26. As notícias que chegavam do sertão eram de epidemias, ataques dos Janduin e as grandes dificuldades que sofria o Padre Filipe Bourel na Missão do Apodi e seus planos de transferir a Residência. Assim, o espaço se fragmenta em outra imagem: “...e a maior parte dos nossos Paiacus fugiram e vagueiam no sertão”27. Outra visão desta época sobre a Aldeia de Guajiru se apresenta também em João Maia da Gama, Governador do Maranhão, no seu “Diário de Viagem” de 1729. Em meio às solicitações de instalações públicas, de educadores e missionários feitas pelo Vigário e Oficiais da Câmara de Natal, ele presenciou algumas manifestações religiosas e sermões dos Ofícios Divinos da Semana Santa. Sua impressão reproduz uma imagem compassiva da região: “tive uma grande consolação de que naquela pobreza se fizesse tudo com muita devoção e piedade, e com muita modéstia...”28. A carta dos oficiais da Câmara de Natal ao Conselho Ultramarino solicitando uma casa de religiosos, da Companhia ou da ordem de S. Francisco, reflete uma situação na qual os moradores desejam a integração de seus filhos na cultura letrada que as Ordens manejavam, mas esta petição recebeu parecer desfavorável do Governo de Pernambuco, mantendo a região, já entrado o século XVIII, no plano secundário em relação ao conjunto da política colonial29. Os documentos de 1731 revelam, com mais precisão, esta circunstância de fronteira da qual a Capitania começava a sair. A própria exaltação por parte dos moradores da sua precariedade, neste momento, é em si mesma Carta do Pe. Pero Dias. Olinda, 30 jul. 1689. HCJB, vol. V, p. 529. LCPSC, Recife, 24 mai. 1713, Bando do Governador Geral de Pernambuco, José Félix Machado de Mendonça, Cx. 75, Lv. 5, f. 133v-134; LCPSC, Natal, 28 jul. 1713, “papel de pazes” feitas entre os índios tapuias e o Capitão Teodósio da Rocha, Cx. 99, Lv. 6, f. 8v. 27 HCJB, vol. V, p. 545. 28 Diário da Viagem de Regresso para o Reino, de João da Maia da Gama, e de inspeção das barras dos rios do Maranhão e das Capitanias do Norte, em 1728. In: GALVÃO, História..., p. 277-285, p.282. 29 Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. João V. Lisboa, 5 jun. 1731. AHU, Doc. 153: 1731, 05 de Junho, Lisboa, rolo 02, 232. 25 26 36 MARIA EMILIA MONTEIRO PORTO reveladora de um desejo de mudança ou até de uma estratégia de atuação, quando expressam sua precariedade material, a “incógnita de seu assento”, indicando aqui já uma consciência de memória, a inutilidade que vinha apresentando para seus moradores e se queixam de que a Capitania vinha sendo a de menos merecimento na trajetória das conquistas: “A dita cidade o hé somente no nome porque nella não haverá mais de 20 moradores todos pobres, e os mais existem pellas suas fazendas que são a maior parte de currais de gados e cavallos”30. A solicitação de bens culturais de uma maneira bastante incisiva e em uma espécie de acordo mínimo quanto a certas virtudes dos missionários, mostram os Padres como um elemento para a composição do lugar. Considerações Finais Quando a Capitania se integrava na ordem econômica local por volta de 1720 e, portanto, seu mundo de possibilidades estava aberto, a atividade da Companhia é interrompida alguns decênios depois, em 1759. A maior atenção de Portugal em relação ao Brasil eram as fronteiras da Amazônia e as do Sul do território. Desse modo, as políticas estabelecidas para estas regiões acabaram por se estender ao conjunto do território, dando-nos, assim, o sentido da mobilidade das fronteiras. O Tratado de Madri marcou o fim da fase de expansão colonial para oeste da linha de Tordesilhas dividindo, em áreas de influência, o rio da Prata para Espanha e o Amazonas para Portugal. Esta expansão havia sido determinada pela exploração aurífera no interior da colônia, mas na década de 1750 ocorre justamente o auge e também o declínio da produção aurífera, quando o Brasil começava a superar Portugal em termos de economia e demografia. Daí vem, então, toda a política modernizadora, que não é apenas a do Marquês de Pombal, senão a da nova modernidade iluminista pressionando o curso da historia. A posição de isolamento para a região, determinada seja pela política dos latifundiários do gado que queriam preservar seus domínios, seja pela política monárquica portuguesa, a quem não interessava o desenvolvimento incontrolado da Colônia, ensaiava já a ordenação geopolítica do espaço que aparece com mais nitidez no século XIX. O projeto de legislação indigenista no contexto das reformas pombalinas, quando, entre 1757 e 1798, se organizou o Diretório de Índios, código legislativo que extinguiu o sistema de missões e secularizou a administração dos aldeamentos de índios e a Companhia de Jesus foi expulsa do Brasil, estimulou a secularização das aldeias e sua integração na organização formal das instituições urbanas européias: freguesias e vilas. As aldeias tornaram-se vilas e suas terras foram repartidas. Desde 1654 se havia iniciado esta tendência na administração urbana mas, em 1750, com o fim da ação missionária oficial na região e com as novas determinações que a estabilização da posse da terra ocasionava, começa, com maior determinação, a organização de novas 30 Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. João V. Lisboa, 5 jun. 1731. AHU, Doc. 153: 1731, 05 de Junho, Lisboa, rolo 02, 232. JESUÍTAS E MISSÕES 37 cidades. Tem início, então, uma política de mestiçagem entre índios e portugueses como forma de aumentar a população das fronteiras. Os índios se converteriam em súditos da Coroa, aculturados, assalariados e aptos para trabalhar ou desempenhar funções militares. Os civis assumiriam a direção das aldeias nas quais se elaborava esta política cultural racial e linguística, proibindo-se a difusão da língua-geral tupi-guarani e formando escolas para os jovens índios, e é quando, então, o moderno passa a ser o laico e civil. O governo de Pombal termina em 1776 e durante esse tempo manteve uma política dura contra índios, negros e mestiços, traduzidas em uma estabilização do espaço e da economia sem eliminar as revoltas indígenas que seguiram de forma intermitente no espaço riograndense. Em 1798, quando havia menos de 20.000 índios nas aldeias da bacia amazônica e nos interiores do Brasil, o Diretório dos Índios foi dissolvido diante das denúncias de corrupção e abusos cometidos pelos administradores e demais autoridades. Na época da abolição do Diretório, o Alvará de 23 de Novembro de 1799 concedia a posse da terra, a regulamentação interna da administração e a condição civil aos índios aldeados. Foi justamente neste período que ocorreu uma baixa demográfica na vilas e essas terras indígenas coletivas foram espoliadas pelos colonos. Carta de 1804 do capitão-mor do Rio Grande, Lopo Joaquim de Almeida Henriques, ao príncipe regente D. João, informa sobre a inexistência de Corporações Religiosas na Capitania, havendo apenas visitas irregulares de religiosos das corporações da Paraíba e Pernambuco. Enquanto uma importante dinâmica econômica, política e social se desenvolvia nas regiões do sudeste do país, desde finais meados do século XVIII, especialmente Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, a cultura e economia açucareira com centro em Pernambuco e Bahia se encerrava em seus processos internos desenvolvidos ao longo dos séculos XVI e XVII. A circunstância de fronteira experimentada pela Capitania do Rio Grande ao longo de sua história colonial não foi vivida passivamente por nenhum de seus setores – moradores, índios, oficiais. Seria nos caminhos da segunda modernidade, a modernidade Iluminista, que desautorizou o discurso do humanismo cristão, que haveria que buscar os novos problemas lançados à região. Existe uma tensão entre as culturas que se deu no contexto da história da América, mas também nas fronteiras européias, projetando uma dimensão do processo não exclusiva ao mundo americano, que nos coloca na dimensão da cultura moderna. Contemplar esta cultura transtornada que se desenvolvia nas fronteiras como fenômeno existente por direito próprio, certamente levou os missionários a prescindirem das descrições idílicas, abundantes e generosas do primeiro período e limitar-se ao que se poderia configurar como a ordem do dia: administrar os conflitos. Quando estes se tornam intensos, a descrição se desvia do discurso sobre a diferença étnica e se detém no que já é propriamente a cultura local, tornando-se então inventário e diagnóstico da realidade política. Deste modo, a compreensão, a última etapa do processo 38 MARIA EMILIA MONTEIRO PORTO de conhecimento, vai derivar no entendimento do que ocorre e deve ser feito, um momento bastante pragmático. Neste momento “a humanidade é uma”30 nas cartas jesuíticas do Rio Grande porque todos os índios com os quais contataram os padres eram compreendidos como integrados na ordem humana do mundo enquanto um dever-ser: deviam adequar-se a uma determinada ordem econômica e cultural que se vinha impondo vitoriosamente desde a conquista da fronteira em 1597, e já antes, e que aos jesuítas cabia administrar eticamente. 31 HANKE, Lewis. La Humanidad es una: estudio acerca de la querella que sobre la capacidad intelectual y religiosa de los indígenas americanos sostuvieron en 1550 Bartolomé de las Casas y Juan inés Sepúlveda. Ciudad del México: FCE, 1985 [1974]. 39 POVOS INDÍGENAS NO PERÍODO DO DOMÍNIO HOLANDÊS: UMA ANÁLISE DOS DOCUMENTOS TUPIS (1630-1656)1 Regina Célia Gonçalves2 Halisson Seabra Cardoso3 João Paulo Costa Rolim Pereira4 este ensaio apresentamos os resultados da análise de dois conjuntos de fontes de origem indígena, escritas por índios Potiguara 5 em sua língua nativa, o Tupi, que são pouco conhecidas e/ ou discutidas pela historiografia brasileira. Através delas, e a partir da argumentação sustentada em princípios religiosos e políticos, pretendemos perceber a perspectiva dos indígenas em relação às alianças estabelecidas com os europeus durante a guerra lusoholandesa (1630-1654)6. Este texto é resultado do desenvolvimento do projeto de pesquisa de mesmo título, financiado pelo PIBIC/ UFPB/ CNPq e executado entre agosto de 2007 e julho de 2009. 2 Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Professora Adjunta do Departamento de História e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. Líder dos Grupos de Pesquisas Estado e Sociedade no Nordeste Colonial (NDIHR-UFPB/ Diretório CNPq) e Saberes Históricos: 1 Ensino de História, Historiografia, História da Educação e Patrimônios (PPGH-UFPB/ Diretório CNPq). E-Mail: <reginacg@terra.com.br>. Graduando em História pela Universidade Federal da Paraíba. Exbolsista PIBIC/UFPB/ CNPq. E-Mail: <passolargo_16@hotmail.com>. 4 Graduado em História pela Universidade Federal da Paraíba. Exbolsista PIBIC/UFPB/ CNPq. E-Mail: <jpauloramones@gmail.com>. 5 Antes da conquista portuguesa da foz do Rio Paraíba, em 1585, o território Potiguara estendia-se pela faixa litorânea compreendida entre este rio e o baixo Jaguaribe, no Ceará. A partir daquela data a ocupação colonial foi, aos poucos, estendendo-se para o norte e promovendo o despovoamento indígena da área. Os remanescentes dos Potiguara vivem atualmente nos municípios da Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto, no litoral norte da Paraíba. “Variantes do nome nos documentos históricos são: Potygoar, Potyuara, Pitiguara, Pitagoar, Petigoar, entre outros. Não há acordo sobre o significado do nome, que geralmente é traduzido como ‘pescadores de camarão’ ou ‘comedores de camarão’”. MOONEN, Frans & MAIA, Luciano. Mariz. Etnohistória dos Índios Potiguara. João Pessoa: Procuradoria Geral da República - PB/ SEC-PB, 1992, p. 93. 6 Para um entendimento geral, não só das razões que levaram à ocupação das Capitanias do Norte (Pernambuco, Paraíba e Rio Grande) do Estado do Brasil pela Companhia das Índias Ocidentais, mas também da guerra travada pela disputa do território e da organização do Brasil holandês, é indispensável consultar as obras de Evaldo Cabral de Mello. Ver: MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: Guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. 3 40 R. C. GONÇALVES, H. S. CARDOSO & J. P. C. R. PEREIRA O primeiro conjunto é composto pelas chamadas “cartas Tupi”, escritas em 1645 e 1646, em meio à Guerra de Restauração, por Pedro Poty7, cristão reformado, Regedor dos Índios da Paraíba, aliado dos holandeses e Antonio Felipe Camarão8, cristão de fé católica, Capitão-mor dos Índios, súdito fiel do rei de Portugal, ambos da nação Potiguara. Esses documentos fazem parte de um conjunto de cartas que foram trocadas entre os principais líderes das tropas de índios que se encontravam em lados opostos no conflito lusoholandês9. Ainda no século XVII foram enviadas para a Holanda, aos cuidados dos administradores da Companhia das Índias Ocidentais (WIC) no intuito de que fossem traduzidas por algum dos religiosos protestantes que estiveram em missão no Brasil e que, portanto, tivessem conhecimento da língua Tupi. Por fim, coube ao pastor Johannes Eduardus fazer a tradução. Encontradas, na década de 1880, no arquivo da WIC em Haia, pelo pesquisador pernambucano José Higino Duarte, que as fez copiar, algumas dessas cartas, traduzidas do tupi para o português, foram, em 1906, publicadas pelo historiador Pedro Souto Maior, na Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (vol. XII) sob o título “Cartas Tupis dos Camarões”. Em nossa pesquisa usamos também a edição de Darcy Ribeiro e Carlos Moreira Neto10. A partir de inferências que faz com base nas Atas Diárias do Governo Holandês do Recife, Frans Schalkwijk11 afirma que, além das publicadas por Souto Maior, existiriam outras cartas (dez no total), parte delas traduzida para o holandês, nos arquivos da Holanda. A carta de Pedro Poty é uma resposta às várias correspondências enviadas por Antonio Felipe Camarão e seus subordinados. Através dela podemos concluir que Poty vinha sendo constantemente instado a deixar os holandeses e se submeter à autoridade da Coroa portuguesa. Ele, por sua vez, responde rebatendo os argumentos do Capitão-mor, desafiando-o a fazer o mesmo e Em 1625, depois da derrota na Bahia, a esquadra holandesa comandada pelo Almirante Hendrykzoon aportou na Baía da Traição (Capitania da Paraíba) onde recebeu o socorro dos Potiguara que ali viviam. A repressão portuguesa que se seguiu dizimou inúmeros índios e escravizou outros tantos. Vários fugiram para os sertões, enquanto que alguns foram levados, pelos holandeses, para a Europa onde foram educados e convertidos ao cristianismo sob a fé da igreja reformada. Dentre esses estava Pedro Poty que retornaria, em 1634, para organizar e comandar parte de seu povo na luta contra os portugueses, ao lado dos holandeses. Sobre o tema, consultar: GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e Açúcares: política e Economia na Capitania da Paraíba (1585-1630). Bauru: Edusc, 2007, p.83-85. 8 Sobre sua biografia, consultar: MELLO, José Antônio Gonsalves de. D.A ntonio Felipe Camarão: capitão mor dos índios da costa do Nordeste do Brasil. Recife: Universidade do Recife, 1940. 9 Apesar de haver outras cartas enviadas por subordinados de Antonio Felipe Camarão, tais como o Sargento-mor Diogo Camarão, para Pedro Poty e Antônio Paraupaba, nos restringimos a analisar apenas as que foram assinadas por ele. 10 RIBEIRO, D. & MOREIRA NETO, C. de A. A fundação do Brasil: testemunhos: 1500-1700. Petrópolis: Vozes, 1992. 11 SCHALKWIK, F. L. Igreja e Estado no Brasil Holandês. 3ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 249. 7 POVOS INDÍGENAS NO PERÍODO DO DOMÍNIO HOLANDÊS 41 se unir aos holandeses: Eu me envergonho da nossa família e nação ao me ver induzido por tantas cartas vossas à traição e deslealdade, isto é, a abandonar os meus legítimos chefes, de quem tenho recebido tantos benefícios (...) Não, Felippe, vós vos deixais illudir (...) Abandonai, portanto, primo Camarão, esses perversos e perigosos Portugueses e vinde juntar-vos comnosco (...) Formaremos uma força respeitável e expulsaremos esses trapaceiros e traidores. Mantenhamo-nos com os extrangeiros que nos reconhecem e tratam bem na nossa terra (...). [Sou] christão e melhor do que vós: creio só em Christo, sem macular a religião com idolatria, como fazeis com a vossa. Aprendi a religião christã e a pratico diariamente, se vós a tivésseis aprendido, não servirieis com os perfidos e perjuros portugueses (...). 12 A missiva de Camarão é uma circular enviada a todos os índios aliados dos holandeses e, nela, ao mesmo tempo em que os ameaça e acusa Pedro Poty e Antonio Paraupaba13 de heresia, insiste em oferecer uma nova oportunidade de arrependimento conclamando-os a aceitarem a autoridade da Coroa portuguesa e da igreja católica. Camarão se põe, na carta, como o verdadeiro chefe indígena Potiguara que tem por obrigação zelar pelos seus: “Não posso deixar de cumprir as promessas e deveres contrahidos com meus avós, isso é, de vos guardar assim como a todos os da nossa raça (...)”. Nesse sentido, em todo o texto mostrará grande preocupação com a “salvação” desses irmãos “insurgentes”, fosse ela física ou espiritual, tentando convencê-los a deixarem os holandeses. Acusa Pedro Poty e Antônio Paraupaba de os induzirem à “perdição”, por serem tão “hereges” quanto os holandeses. É bastante emblemática a maneira como finaliza a carta: E pensai na vossa salvação, porquanto; como verdadeiros christãos que sois, tendes não somente de cuidar da vida mas também da alma, e deveis saber que eu, vós e todos que estão convosco somos subditos de Sua M. Catholica o Rei de Portugal (...).14 É importante percebermos que essas expressões de cunho religioso usadas nas cartas vão além de uma contenda entre católicos e protestantes. Podemos considerar que, ao proferirem tais considerações acerca de suas respectivas crenças, e atacando a fé do outro, estão, implicitamente, evidenciando um posicionamento político. Essa idéia fica ainda mais patente no segundo conjunto documental por nós analisado. SOUTO MAIOR, Pedro. Cartas Tupis dos Camarões. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Recife, IAHGP, v.XII, 1912. 13 Filho de Gaspar Paraupaba que, junto com Poty e outros índios da Baía da Traição, foi levado para a Holanda em 1625 e, como ele, ocuparia papel central no comando dos Potiguara aliados dos holandeses durante a guerra no Brasil. 14 SOUTO MAIOR, Cartas Tupis... 12 42 R. C. GONÇALVES, H. S. CARDOSO & J. P. C. R. PEREIRA Este é constituído pelas “Remonstrâncias” de Antônio Paraupaba, Regedor dos Índios do Rio Grande durante o governo holandês. Trata-se de duas representações em que pedia, aos Estados Gerais15, ajuda aos indígenas aliados dos holandeses que, após a capitulação em 1654, haviam se refugiado na Serra da Ibiapaba, sertão do Ceará. Esses documentos também foram traduzidos por Souto Maior. Concentramos, no entanto, nosso estudo na versão do pesquisador holandês Lodewijk Hulsman reproduzida em artigo publicado, em 2006, na Revista de História da Universidade de São Paulo. Além de proceder à atualização da língua conforme o português corrente, o autor compara a versão de Souto Maior com o texto original que se encontra nos arquivos holandeses, identificando novos trechos que haviam sido omitidos e que são importantes para o avanço nos estudos a respeito da relação entre os Potiguara e os holandeses. As “Remonstrâncias” foram escritas logo que Paraupaba retornou aos Países Baixos, ao final do conflito luso-holandês no Brasil, em 1654. Ainda naquele ano escreveu sua primeira exposição, um curto requerimento aos Estados Gerais, em nome dos Potiguara que sempre lhes haviam sido fiéis e que assim se mantinham, embora continuassem a sofrer, mais do que antes, a perseguição dos portugueses. Dois anos mais tarde, ainda vivendo na Holanda, escreveu sua segunda exposição e, nela, ficam explícitos o seu descontentamento e a sua indignação com as autoridades pelo fato de não terem ainda atendido o seu pedido de ajuda. Por conta disso, faz uma espécie de retrospectiva das relações e alianças firmadas entre seu povo e os holandeses. Na realidade o seu intuito, ao fazer uma “renovação da memória”, é mostrar que os Potiguara foram fiéis e cumpriram suas obrigações em relação aos Estados Gerais e à Igreja Cristã Reformada, conforme haviam sempre “acordado”. Trata-se da reclamação que um parceiro faz a outro pelo descumprimento de um trato. Cobra o cumprimento, pelos holandeses, da sua obrigação de zelar pelos Potiguara enquanto estes fossem fiéis ao estado e à fé reformada: Declarando em nome de Deus que isso será feito com nenhum outro objetivo no mundo a não ser o de renovar a memória daqueles nessa presente reunião ilustre de V.as Ex.as, que ainda se lembra do que se passou, e informar àqueles que desconhecem, sobre os serviços prestados por essa nação com toda lealdade, para assim despertar nos corações de ambos uma compaixão cristã para com esta nação (...) queiram V.as Ex.as observar que tudo que essa nação miserável encontrou no serviço das V.as Ex.as e que foi agüentado e suportado por ela tão corajosamente, não foi feito por um povo sem conhecimento do Deus verdadeiro, mas por um povo que com 15 Nome pelo qual era conhecido o conselho soberano da República dos Países Baixos Unidos. HULSMAN, Lodewijk. Índios do Brasil na República dos Países Baixos: as representações de Antônio Paraupaba para os Estudos Gerais. Revista de História. São Paulo, n.154, 2006, p.39. POVOS INDÍGENAS NO PERÍODO DO DOMÍNIO HOLANDÊS 43 a aliança com V.as Ex.as também abraçou e adotou a verdadeira Religião Reformada Cristã.16 Além disso, ao longo do texto nos deparamos com várias expressões que aludem a ensinamentos bíblicos, a exemplo da “parábola dos talentos escondidos”. Paraupaba a utiliza para lembrar as autoridades neerlandesas que elas têm um dever, diante de Deus, de promover a propagação da verdadeira fé: “Como agradou a sua Majestade Divina chamar e usar as V.as Ex.as (que também foram redimidos do paganismo) para pregar a eles [os índios] o seu evangelho”17. Ou seja, argumenta que eles têm que ajudar àquele povo que se converteu ao protestantismo por sua causa, e que sem o seu auxílio, se acabará, será destruído, e toda a obra evangelizadora terá sido em vão, e Deus, enfim, haverá de os chamar para prestar contas dos “talentos” que não utilizaram. O interessante aqui é notar que Paraupaba utiliza a parábola cristã, ensinada pelos holandeses, e a reverte em uma retórica própria para cobrálos em sua própria “linguagem”. Contudo, aquilo que nos parece mais emblemático nesse documento é a análise que faz da figura de Pedro Poty que, ao tempo desta exposição, já havia sido morto pelos portugueses. Ele o usa como um exemplo de fidelidade e respeito à aliança firmada entre as duas nações, e que, sobretudo, pressupunha a fidelidade aos Estados Gerais e à fé reformada: Aquele Grande Deus de misericórdia fortaleceu aquela cana frágil (...) transformando-a em um forte pilar da fé (...) Finalmente, que estava pronto a morrer firme no seu alto juramento feito a Deus e aos Estados Gerais (...) morri como súdito fiel. E dizei aos da minha nação que os exorto a permanecerem por toda a vida fiéis a Deus e aos Estados Gerais.18 Por que é tão importante para Paraupaba, sempre que possível, reafirmar a lealdade à fé reformada? Além de ser uma espécie de “cláusula contratual”, nos parece que, ao fazê-lo, está demonstrando também um posicionamento político e militar, que precisa ser constantemente reforçado, de solidariedade àqueles com quem compartilhavam o objetivo de derrotar os portugueses. Se lermos os documentos de maneira menos cuidadosa, ou de uma forma mais literal, poderíamos concluir que Poty, Paraupaba e Camarão, incorporaram de tal maneira a cultura cristã européia, que acabaram por professar sua fé e sua lei para si. Contudo, a pesquisa nos revelou que algo na cultura Tupi abria a possibilidade de adesão à novas formas de interações, e isso, de certa maneira, possibilitou a articulação com outros povos, o que lhes permitiu, inclusive, resistirem na luta em defesa do seu território. Segundo Eduardo Viveiros de Castro, a cultura Tupi assim se coloca, pois é receptiva à presença do outro, e quanto a isso é bastante diferente da HULSMAN, Índios do Brasil..., p. 55. HULSMAN, Índios do Brasil..., p. 55. 18 HULSMAN, Índios do Brasil..., p. 59. 16 17 44 R. C. GONÇALVES, H. S. CARDOSO & J. P. C. R. PEREIRA cultura cristã para a qual o outro é uma ameaça constante e precisa ser transformado. Nesse sentido, quando aqueles líderes utilizam um discurso com elementos alheios à sua cultura, estão interagindo e dialogando com aquela a partir da sua própria. Portanto, ao lermos os documentos, temos que ser sensíveis para perceber que ali se encontra o produto de contatos culturais complexos, rearticulados através de anos de convivência – quase sempre não pacífica, muito pelo contrário, em que ambos os lados se transformam e são transformados. Os estudos realizados por inúmeros pesquisadores, dentre eles, Florestan Fernandes 19 , John Manuel Monteiro 20 e Eduardo Viveiros de Castro 21 ressaltaram que, pelo menos os Tupi, o grupo que é melhor conhecido por nós, emergem, desde os primeiros relatos dos cronistas quinhentistas, como portadores de um cultura especialmente atenta à lógica de outros povos. Viveiros de Castro no ensaio “O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem”, aprofunda a análise desta característica indígena e nos fornece a chave para o entendimento da autoconstrução de sua identidade – especialmente dos Tupi –, a partir da análise do Sermão da Sexagésima de Antonio Vieira (1655), em que o pregador se refere aos índios comparandoos à murta, que não se deixa esculpir, a não ser aparentemente e por breve tempo, nem pelo mais competente dos jardineiros. Tal como a murta, afirma um desalentado Vieira, os “brasis” se deixam evangelizar para, logo em seguida, retomarem os antigos hábitos, o seu ancestral modo de vida, esquecendo todos os ensinamentos dos soldados de Cristo22. Neste sermão, o jesuíta faz uma comparação entre a murta e o mármore, que representam, respectivamente, o indígena do Brasil e o nativo do Oriente. Essa analogia se refere à aparente “facilidade” com que os missionários catequizavam os índios, assim como o jardineiro trabalharia uma escultura de murta. Dizia Vieira: Eis aqui a diferença que há entre umas nações e outras na doutrina da fé. Há umas nações naturalmente duras, tenazes, e constantes, as quais dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados; resistem com as armas, duvidam com o entendimento, repugnam com a vontade, cerram-se, teimam, argumentam, replicam, dão grande trabalho até se renderem; mas, uma vez rendidas, uma vez que recebem a fé, ficam nelas firmes e constantes, como estátuas de mármore: não é necessário trabalhar FERNANDES, Florestan. A função social da guerra na sociedade Tupinambá. 2. ed. São Paulo: Pioneira; Edusp, 1970. 20 MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. MONTEIRO, John Manuel. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de História Indígena e do indigenismo. Tese de Livre Docência. Universidade Estadual de Campinas, 2001. 21 CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. 22 VIEIRA, António. Sermões. Organização de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2001, p. 5370. 19 POVOS INDÍGENAS NO PERÍODO DO DOMÍNIO HOLANDÊS 45 mais com elas. Há outras nações, pelo contrário – e estas são as do Brasil – que recebem tudo o que lhes ensinam com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram (...).23 Foi buscando desvendar essa dita inconstância que Viveiros de Castro levanta a tese de que os Tupi tinham uma maneira totalmente diferente do modo ocidental de se relacionar com outras culturas. Enquanto, para os ocidentais, a sociedade tem que se preservar para não perder sua identidade, pois, uma vez que um dos elementos que a constituem seja modificado, tende a acreditar que ela já não é mais a mesma e, principalmente, que não voltará a ser a mesma, para os Tupi, a lógica é inversa. Ela pressupõe a interação com o outro. A alteridade é uma constante para essa sociedade; nesse sentido são povos abertos a novas formas, assimilam e incorporam práticas e costumes do outro, mas isso não os torna menos si próprios, ao contrário, agindo assim, reafirmam a sua cultura: Nossa idéia de cultura projeta uma paisagem antropológica povoada de estátuas de mármore, não de murta (...) entendemos que toda sociedade tende a perseverar no seu próprio ser (...), mas, sobretudo, cremos que o ser de uma sociedade é seu perseverar: a memória e a tradição são o mármore identitário de que é feita a cultura. Estimamos, por fim, que, uma vez convertidas em outras que si mesmas, as sociedades que perderam sua tradição não têm volta (...) talvez, porém, para sociedades cujo (in)fundamento é a relação aos outros, não a coincidência de si mesmas, nada disso faça o menor sentido.24 Essa “inconstância” indígena no tocante à guerra também impressionava os europeus, que tinham dificuldade para compreender a facilidade com que os grupos se aliavam para guerrear e, ao mesmo tempo, desfaziam tais alianças se unindo a outros para lutarem contra os “ex-aliados”. Apesar disso, no entanto, os europeus souberam utilizar astutamente esta característica dos Tupi a seu favor ao longo da colonização. Enfim, o que julgamos importante destacar é que este período foi marcado por um intenso “processo de trocas” culturais, um verdadeiro contato entre os mundos e, a complexa comunicação dos índios com o cristianismo e as alianças militares com os europeus, são exemplos que reafirmam tal intensidade. Tais aspectos revelam, também, o vigoroso caráter “negociador” dos povos Tupi, que fica muito visível nas alianças estabelecidas com os europeus; são provas de que os índios atendiam a intenções próprias nesses diversos momentos. Eles processavam aspectos da lógica da guerra européia 23 24 VIEIRA, Sermões, p. 54. CASTRO, A inconstância..., p. 195. 46 R. C. GONÇALVES, H. S. CARDOSO & J. P. C. R. PEREIRA em razão de suas lógicas tradicionais, se mostrando hábeis interlocutores com os costumes dos conquistadores. A assimilação do que é “do outro”, das lógicas e características alheias já era comum das tradições indígenas. Os relatos mais antigos sobre eles, como já dissemos, são elucidativos a este respeito, e é possível perceber tal característica, por exemplo, nas práticas rituais antropofágicas. Isso se evidencia em relatos como o de Hans Staden25. O guerreiro ali sacrificado seria ingerido em banquete ritual partilhado pelos integrantes do grupo e as suas qualidades seriam, então, absorvidas por eles. Dessa forma, se o cativo demonstrasse covardia frente à morte iminente, revelando-se fraco e comportando-se de forma inadequada para um bom guerreiro, os comensais se sentiam “enojados”, incomodados por assimilarem uma característica negativa. Outra prática em que se faz notar a capacidade de percepção da alteridade pelos índios e seu cuidado quanto a isto eram seus tabus alimentares. Eles se privavam da ingestão de animais que demonstrassem fraqueza e lentidão, por exemplo, pois ambas eram características que não coadunavam com as de um valoroso guerreiro. O espanto do europeu diante dessa “inconstância” é, por exemplo, ainda visível dezenove anos depois do contato com os holandeses, quando o Alto Conselho do governo da WIC no Brasil se refere a seus aliados, Pedro Poty e Antônio Paraupaba, como sendo “mais perversos e selvagens na maneira de viver do que os outros brasilianos”26, ou ainda que os cronistas do século XVII – inclusive catequizadores católicos – se referindo aos índios aliados dos portugueses, não cansem de mencioná-la porque continua a dificultar o bom andamento da conversão deste gentio. Talvez o mais interessante na discussão sobre o nosso corpus documental seja o fato de que seus autores escrevem como “membros” inseridos na sociedade colonial, inclusive usando as regras de conduta da mesma para se comunicarem. Apesar disso, no entanto, é possível perceber evidências da tradição indígena que revelam um entendimento claro, por parte dessas lideranças, do que significava a estrutura social que se implantava nas terras da “América portuguesa” depois da conquista e da colonização européia. Poty expressa a visão indígena: “Vinde, pois, enquanto é tempo para o nosso lado afim de que possamos com o auxílio dos nossos amigos viver juntos neste paiz que é a nossa pátria e no seio de toda a nossa família”, ou ainda mais esclarecedor, “Mantenhamo-nos com os extrangeiros que nos reconhecem e tratam bem na nossa terra”, diz Poty falando dos holandeses27. Como já dissemos, alianças e coalizões, em diversos âmbitos das suas sociedades, já eram comuns entre os povos Tupi, que mantinham acordos intergrupais e extragrupais com o intuito, dentre outros, de servirem-se na guerra. O fato é que essas alianças não implicavam a perda de suas terras para os novos aliados e, talvez, tenha sido por isso que apoiaram os franceses STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. São Paulo: Beca, 2000. HULSMAN, Índios do Brasil..., p. 43, 27 RIBEIRO & MOREIRA NETO, A fundação..., p. 230. Destaques nossos. 25 26 POVOS INDÍGENAS NO PERÍODO DO DOMÍNIO HOLANDÊS 47 – envolvidos no negócio do pau-brasil – que chegavam sem pretensões de ocupação e domínio territorial (pelo menos em princípio) e, depois, os holandeses que, por mais que se empenhassem em uma colonização propriamente dita, tomaram o cuidado de manter políticas essenciais para a manutenção do apoio indígena, inclusive lhes “permitindo viver como índios”. Essa política talvez explique, inclusive, a manutenção dos nomes indígenas – Poty e Paraupaba – dos Potiguara aliados dos holandeses, em contraponto aos católicos conversos, inclusive no nome, Antonio Felipe e Diogo Camarão, aliados dos portugueses. O fato é que, nessa passagem de Poty, é possível perceber um dos aspectos da visão indígena em relação aos holandeses, a de que esses seriam, um aliado “estrangeiro”, externo, portanto. Um aliado que conhecia e respeitava os direitos indígenas e que estava disposto a ajudar a expulsar os portugueses e, ao mesmo tempo, viver em paz na terra. Logo, a intenção era unir-se com estes “estrangeiros” “afim de que possamos com o auxílio dos nossos amigos viver juntos neste paiz que é a nossa pátria”28. A posse da terra seria, então, dos detentores de direito, isto é, os que aqui estavam antes mesmo da chegada de qualquer caravela. Este era um argumento muito forte. Ao apontarmos o caráter negociador das sociedades nativas da América portuguesa, da vinculação do que era tradicional ao que era novo, falamos também da capacidade dessas mesmas sociedades de perceber, assimilar e reconhecer a alteridade; sociedades que elaboram a re-interpretação do novo e o enquadram, em certa medida, no que lhes é tradicional. Os casos em que os índios interagem com a cultura dos colonizadores na expectativa de obterem algo em troca são inúmeros e são relatados tanto pelos cronistas da igreja empenhados na conversão e catequização dos índios, como Vieira, quanto por pessoas vinculadas aos setores militares, às guerras, inclusive com e contra nativos, como Hans Staden. Os casos não eram poucos e, mais uma vez, Viveiros de Castro é elucidativo a este respeito. A inconstância da alma selvagem está geralmente presente em qualquer escrito que mencione os primeiros habitantes destas terras. Eles agem, procuram, ao longo do tempo, garantir sua sobrevivência e a de seu povo em um novo sistema social. É importante lembrar que esta característica não é exclusivamente indígena, nem muito menos só dos indígenas aliados aos holandeses. Outros povos também a manifestavam, inclusive os colonizadores. Exemplo disso foi a atuação da Companhia de Jesus na catequização, na América e na Ásia, ao fazer uso das tradições dos povos locais para levar adiante a sua intenção de remissão dos “bárbaros”. Na passagem da segunda exposição de Paraupaba aos Estados Gerais falando sobre a situação de Poty no cativeiro, tal aspecto fica evidente: Além disso, [os portugueses] empregaram todos os meios para que 28 RIBEIRO & MOREIRA NETO, A fundação..., p. 230. 48 R. C. GONÇALVES, H. S. CARDOSO & J. P. C. R. PEREIRA Poti [sic] induzisse os outros da sua nação, que se conservavam fiéis no serviço de V.as Ex.as, a passarem para o partido deles, prometendo dar-lhes imediatamente a patente de capitão e garantindo-lhes maiores vantagens para o futuro.29 Estes benefícios são, sem dúvida, uma das molas mestras das alianças indígenas. A guerra estava em suas veias sociais e, cerca de um século e meio antes, um novo participante direto havia entrado neste processo. As alianças e as dissidências neste mundo onde isto já era comum, não podiam ser muito diferentes neste caso específico. Na organização social dos povos nativos americanos, que Florestan Fernandes estudou especificamente quanto aos tupinambás, povos que sintetizavam os fundamentos sociais da maior parte dos povos tupis da região nordeste do Brasil, a guerra desempenhava, sem resquício de dúvida, um fator crucial. Ela atendia a lógica de uma relativa “subordinação” de aldeias, garantia alguma vantagem com relação ao mantimento e o controle de melhores nichos ecológicos, fundamentava, em parte, a estrutura dos núcleos familiares, definia a organização de trabalho, incidia sobre a educação das crianças e permeava o imaginário a partir da concepção de morte que advinha do campo de batalha. Não é à toa que, como demonstram pontos coincidentes nos relatos dos cronistas dos séculos XVI e XVII, a guerra era um fator social de extrema importância nestas sociedades. Levando em consideração toda a influência e importância da guerra em uma sociedade como essa havemos de convir que colocá-la em um novo confronto não haveria de ser, nem seria, uma das coisas mais difíceis do mundo; desde que se conhecesse a fundo parte dos processos necessários para isso. Foi o que fizeram os colonizadores europeus. A aliança com os indígenas respondia a grande parte do problema de estarem em terras estranhas, cercados por potenciais inimigos. Atendia também à necessidade de contingentes militares para a operação da conquista e do estabelecimento da colonização. Assim, os índios serviam a este fim motivados por algo que já lhes era próprio, que era característico de sua própria sociedade e uniam suas lógicas tradicionais à dos recém-chegados para tentar obter proveito de toda essa situação, ao mesmo tempo em que se defendiam. Logo, se faz necessário também analisar o outro lado deste processo, já que seu usufruto não foi benefício exclusivo dos colonizadores. A guerra aos inimigos, como já foi dito, era intrínseca à sociedade indígena. As alianças com outros grupos eram, muitas vezes, definidoras destas guerras contra seus inimigos. Essa constante de guerras e alianças fazia parte da dinâmica dos povos tupis, e é nesta dinâmica que os europeus são inseridos. Em princípio, os europeus foram inimigos ou aliados dos índios contra outros índios, depois com a presença de outros europeus, inimigos entre si, estes passaram também 29 RIBEIRO & MOREIRA NETO, A fundação..., p. 231. POVOS INDÍGENAS NO PERÍODO DO DOMÍNIO HOLANDÊS 49 a serem incorporados à mesma lógica, vistos como potenciais aliados contra outros brancos. Sendo assim, o apoio destes novos aliados que, saídos do mar, portavam artefatos nunca vistos, mas bastante úteis, acabava sendo considerado importante pelos grupos nativos. A força motriz da guerra indígena era a vingança. Não é à toa que tão repetidas vezes se remetam a esta nos documentos tupis; ela se mantém “fresca” na memória mesmo com toda a aproximação com os europeus e toda intervenção de suas culturas. Esta vingança era alimentada no decorrer das gerações e apregoada nas suas tradições pela lembrança dos antepassados, pelo embate iminente entre tribos rivais que, por sua vez, tinham uma origem comum, como nos revelam, entre outras pistas, alguns aspectos da língua tupi. A vingança se faz presente no cotidiano, é alimentada, desde a infância, pela imagem dos guerreiros de destaque das tribos, com seus nomes enormes e seus corpos marcados por tatuagens, ambos decorrentes da assimilação dos daqueles inimigos tornados reféns e, depois, sacrificados. É avivada também pelo sacrifício ritual. Não só o ato da bordoada é símbolo do desejo de vingança, mas todo o processo que envolve a troca de xingamentos, o juramento que, por sua vez, o refém faz de que também será vingado até, e principalmente, o diálogo final entre as partes diretamente envolvidas, a vítima e seu carrasco. A vingança, no entanto, não era apenas uma maneira de se eliminar as tensões entre os grupos pela morte de um parente, como entende Florestan Fernandes. Mais que isso, era a reafirmação dos laços sociais e das alianças. Ela não se encerrava na morte do cativo, antes ela era renovada, envolvento todo o grupo naquele evento: “(...) a continuidade da vindita era fundamental para uma sociedade em que sua única cerimônia coletiva tinha, em seu centro, o inimigo, e não a imagem unificadora da chefia”. Como se pode perceber, a reutilização de aspectos da tradição indígena, adicionando-se a esta, outros de culturas alheias, não era algo incomum entre eles. Um bom exemplo é a “re-interpretação”, por parte deles, da vingança relacionada ao processo ritualístico da guerra. Como já vimos, a vingança ritualística era culturalmente a força motriz das guerras entre nações indígenas, já que cumpria a função de realizar o intuito dos homens de vingarem seus antepassados; vingança que se processava por meio da captura de reféns a serem sacrificados e devorados em cerimônias e banquetes rituais. Podemos, à luz disto, enunciar o fato de que a vingança seria, então, obra dos homens, decorrente de responsabilidades adquiridas em relação aos seus antepassados. Após o contato com os europeus e, depois das constantes e inúmeras ondas evangelizadoras por parte das igrejas cristãs com intuito de conversão – em parte “aceitas” pelos indígenas –, a propagação dos aldeamentos, a 30 FAUSTO, Carlos. Fragmentos de história e cultura Tupinambá: da etnologia como instrumento crítico de conhecimento etno-histórico. In: CUNHA, Manuela C. da Cunha (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 393. 50 R. C. GONÇALVES, H. S. CARDOSO & J. P. C. R. PEREIRA educação dos índios pela igreja, as capturas com pretensões escravistas, as descidas dos tapuias, dentre outros fatores, os convertidos e as comunidades aldeadas que, então, começavam a engrossar as fileiras das tropas de batalha dos europeus, passaram a lidar de outra maneira com a vingança. Paraupaba, cristão reformado, educado nos Estados Gerais, Regente das tropas indígenas do Rio Grande, cita a bíblia e expressa esse novo sentido: O primeiro contato com V.as. Ex.as foi pago tão caro que esta nação pode dizer com razão que a sua primeira união com este Estado foi assinada e selada, de sua parte, com o sangue das suas mais valorosas jóias, através do ódio eterno e intransigente contra aqueles Portugueses sanguinários. Quais torturas, quais tormentas e quais massacres eles sofreram e suportaram desde aquele tempo até a chegada do General Waerdenborgh. Nem a língua pode falar, nem a caneta pode escrever. Só o conhece o onisciente Deus que diz: a vingança é Minha (...).31 Esta é apenas uma das muitas passagens dos documentos Tupis que se referem à vingança a partir deste ponto de vista. Agora, quem supre esta necessidade é o deus cristão. Podemos nos perguntar: o que vemos neste caso, em vez de uma “re-interpretação” não seria uma sobreposição da cultura européia em detrimento da cultura dos nativos da América portuguesa? Na verdade não. Parece-nos que o que mudou foi o agente da vingança, porém, o processo permaneceu em clara relação com o formato anterior no sentido de que ainda causava, sob uma perspectiva cultural, certa influência sobre a mente dos aborígines. Esse aspecto também fica explícito, por exemplo, nas palavras de Poty: “Os ultrajes que nos têm feito mais do que aos negros e a carnificina dos da nossa raça, executada porelles na bahia da Traição, ainda estão bem frescos na nossa memória”32. As guerras continuaram ocorrendo, porém, agora, respondendo aos desígnios divinos com forte caráter ritualístico. Nestes documentos encontramos mais do que as impressões destes indivíduos sobre o conflito ou sua conjuntura. Neles observamos uma retórica peculiar pautada em argumentos de diferentes naturezas, nos quais podemos perceber elementos culturais dos agentes envolvidos na guerra. Para nós, tal presença expressa o profundo contato, quase nunca pacífico, que os indígenas da região em que ocorreu o conflito tiveram com os portugueses ao longo de um século, desde o início da colonização na década de 1530, e com os holandeses, desde o início da guerra, em 1630. Procuramos, assim, o entrelaço dos elementos culturais dos agentes envolvidos, para perceber de que maneira a cultura do outro foi sendo incorporada e rearticulada conforme se intensificavam os contatos e, conseqüentemente, os conflitos. É possível observar no discurso elaborado por lideranças indígenas que estavam 31 32 HULSMAN, Índios do Brasil..., p. 56. Destaque nosso. RIBEIRO & MOREIRA NETO, A fundação..., p. 230. POVOS INDÍGENAS NO PERÍODO DO DOMÍNIO HOLANDÊS 51 diretamente ligadas às esferas de comando, e que, portanto, tinham o conhecimento das conjunturas interna e externa dos acontecimentos, as rearticulações simbólico-culturais que fundamentaram a política de alianças que estabeleceram com os europeus. Além de nos darem uma idéia de como aqueles agentes conheciam bem toda a conjuntura da guerra, tecendo argumentos de variada natureza para convencerem seus interlocutores, os documentos nos revelam aspectos dos mais diversos a respeito da relação entre nativos, portugueses e holandeses. Ao lermos esse material nos saltam aos olhos várias passagens em que os autores fazem uso de expressões provenientes, por exemplo, da doutrina cristã – seja católica, como a dos portugueses, ou reformada, tal qual a dos holandeses. Perceber isso é imprescindível para compreendermos o contato estabelecido entre os agentes, atentando para a dinâmica de suas relações. Considerando essa relação, analisamos o discurso cristão/ocidental presente na documentação, observando de que maneira aqueles indígenas se apropriaram de argumentos dos seus aliados, declarando a todo o momento a fé do outro para si, rearticulando-os a partir de elementos da sua própria cultura, criando um discurso próprio. Nesse sentido, questionamos o mito da passividade indígena, recorrente durante longo tempo na historiografia brasileira, mas que, infelizmente, ainda está presente na cultura histórica de grande parte da nossa sociedade. Buscamos mostrar que, ao contrário do papel de coadjuvantes atribuído aos povos indígenas por aquela historiografia, não apenas na ocasião dessa guerra, mas também em toda a formação histórico-social do Brasil, na nossa perspectiva, estes são agentes, e como tais, ativos em todo o processo. São sujeitos que operam e continuam a operar com certo grau de autonomia e capacidade de decisão, tanto que, dependendo do posicionamento tomado por eles, como podemos verificar em diversos momentos do período que estudamos, alguns episódios estariam fadados ao sucesso ou ao fracasso. Assim, os aspectos característicos da religião cristã, contidos nos documentos, ao contrário do que à primeira vista possa parecer, não significam simplesmente mais um modo de submissão indígena à cultura européia, mas, também, podem ser lidos como um artifício usado para firmarem alianças que lhe fossem úteis, tanto com os católicos portugueses quanto com os reformados batavos Desta forma, aquilo que pareceria estritamente argumento ou simples retórica religiosa, para nós, marca um posicionamento político dessas lideranças indígenas frente ao conflito que ocorre em suas terras ancestrais. 53 VIDAL DE NEGREIROS: UM HOMEM DO ATLÂNTICO NO SÉCULO XVII1 Ângelo Emílio da Silva Pessoa2 De André Vidal direi a V.M. o que não atrevi até agora, por me não apressar; e, porque tenho conhecido tantos homens, sei que há mister muito tempo para se conhecer um homem. Tem V. M. mui poucos nos seus reinos que sejam como André Vidal; eu o conhecia pouco mais que de vista e fama: é tanto para tudo o demais como para soldado: muito cristão, muito executivo, muito amigo da justiça e da razão, muito zeloso do serviço de V.M. e observador das suas reais ordens, e sobretudo muito desinteressado, e que entende mui bem todas as matérias, posto que não fale em verso, que é a falta que lhe achava certo ministro grande da corte de V.M. Pelo que tem ajudado a esta cristandade lhe tenho obrigação; mas pelo que toca ao serviço de V.M. (de que nem ainda cá me posso esquecer) digo a V.M. que está André Vidal perdido no Maranhão, e que não estivera a Índia perdida se V.M. lha entregara. Carta do Pe. Antônio Vieira ao Rei D. João IV, Pará, 6 dez. 1655.3 oi nesses termos que o grande pregador seiscentista Padre Antônio Vieira se referiu ao então Governador do Maranhão André Vidal de Negreiros, quando este se afastava do governo daquela Capitania para assumir a governança de Pernambuco naquele mesmo ano. A fama de Vidal vinha desde os tempos das lutas contra os holandeses pela restauração do nordeste açucareiro para a Coroa portuguesa. Ao longo de sua vida obteve posições de importância no âmbito do mundo colonial, e sua trajetória é, sob todos os aspectos, uma interessante caminhada de um filho de portugueses que nasceu na colônia e alcançou uma destacada posição na hierarquia do poder no âmbito do Império. Vidal nascera na Paraíba, em data ignorada, no início do século XVII; as fontes secundárias discordam quanto a datas possíveis que vão de 1602 a 16204. Sua filiação também não é das mais conhecidas, se para alguns se Este ensaio é resultado preliminar de uma pesquisa que desenvolvemos junto ao Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba. O autor agradece as sugestões de Rosa Godoy Silveira e Paulo Valadares. 2 Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Pesquisador dos Grupos de Pesquisas Estado e Sociedade no Nordeste Colonial (NDIHR-UFPB/ Diretório CNPq) e Saberes Históricos: Ensino de História, Historiografia, História da Educação e Patrimônios (PPGH-UFPB/ Diretório CNPq). Professor Adjunto do Departamento de História, Coordenador do Curso de Graduação em História e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. E-Mail: <angelopessoa@ibest.com.br>. Blog: <http://terrasdehistoria.blogspot.com/>. 3 VIEIRA, Pe. Antônio (1608-1697). Cartas do Brasil. Organização de João Adolfo Hansen. São Paulo: Hedra, 2003, p. 455-456. 4 Não há indicações precisas sobre o nascimento de Vidal, mas tudo indica que o mesmo era nascido na Paraíba, entre esses anos. Seu principal biógrafo, Luiz Pinto, indica que 1 54 ÂNGELO EMÍLIO DA SILVA PESSOA atribui ao seu pai a condição de dono de engenho, de pequeno lavrador de canas ou um bombardeiro, para uma sarcástica fonte holandesa da época seu pai era um modesto carpinteiro: “André Vidal de Negreiros apareceu em Recife, sob o pretexto transparentemente frágil de dizer adeus ao velho pai, que era um pobre carpinteiro da Paraíba, a quem estava ele tão ansioso de rever quanto eu estaria de ver o rei do Congo”5. O certo, porém, é que o jovem Vidal tornou-se, em sua carreira, um militar de renome, homem de fortuna e desempenhou importantes cargos nos governos das colônias. Nos séculos que se seguiram à sua morte, foi elevado à condição de um dos heróis do nativismo brasileiro, com direito a estátuas, nome de praças e avenidas, imagem em selos postais, entre outras6. Essa questão do nascimento é elemento importante para entender as possibilidades de ascensão de um homem naquela sociedade. Um nascimento numa determinada família conferia distinção aos seus membros e certas marcas – ou defeitos de sangue ou mecânicos, na linguagem da época – poderiam criar sérios obstáculos aos mesmos. O drama de Filipe Pais Barreto nos primeiros anos do século XVIII, impedido de integrar os quadros da Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo, em função de uma suposta ascendência cristãnova de uma de suas avós, explorada por seus inimigos, retrata bem essa questão7. De forma similar, em 1740, o Capitão Mor da Paraíba, Pedro Monteiro de Macedo, reclamava, em Carta na qual solicitava o Hábito da Ordem de Cristo, que certos padres franciscanos satirizavam os governantes locais com a difamação de judeus8. Não obstante, apesar do nascimento, os méritos ou a riqueza poderiam, em alguns casos, atenuar ou até mesmo apagar algumas marcas desfavoráveis do nascimento. O caso de João Fernandes Vieira era singular; sua origem relativamente obscura para a época, na cidade de Funchal, na Ilha da Madeira, chegou a ser alvo de comentários considerados à época da ocupação holandesa da Bahia, em 1624, sua idade era de 18 anos, o que coloca o seu nascimento por volta de 1606; também se refere ao fato de ser filho de um senhor de engenho. PINTO, Luiz. Vidal de Negreiros: afirmação e grandeza de uma raça. São Paulo: Alba, 1960, p. 28. 5 BOXER, Charles R. Os Holandeses no Brasil (1624-1654). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1961, p. 228. 6 Em 1942 seus restos mortais, junto aos de João Fernandes Vieira, foram transferidos em préstito solene para a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres dos Montes Guararapes, onde repousam na condição de heróis do nativismo brasileiro. Na ocasião o Arcebispo da Paraíba, D. Moisés Coelho, fez o elogio do herói: “Aqui ao clarão destes sepulcros, onde repousam em cinzas gloriosas os corpos de Vidal de Negreiros e João Vieira, estará o Brasil, em constantes romarias, não só para cultuar seus nomes, mas também para inspirarse nos seus exemplos de patriotismo e de fé, e ainda para afinar seus próprios sentimentos naqueles sentimentos de verdadeiro patriota e brasileiro, os quais sempre animaram o coração e a alma dos ímclitos [sic] lutadores”. In: Revista do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano, Recife, n. 38, 1943, p. 224. 7 Esse drama está estudado com argúcia em MELLO, Evaldo Cabral de. O nome o sangue: uma fraude genealógica no Pernambuco colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 8 AHU_ACL_CU_014, Cx. 11, D. 927. VIDAL DE NEGREIROS 55 desairosos, conforme um anônimo coevo: “veyo este Senhor a esta terra e Capitania de Pernambuco da Ilha da Madeira donde he natural e filho de uma mulata rameira a quem chamão a Bemfeitinha e de hum homem que lhe dão por pay, que foi ali degredado em titolo de ladrão”9. Entretanto, independente da veracidade dessa suposta origem desabonadora – há outras possibilidades nesse caso – Vieira tornou-se membro proeminente da sociedade local e homem respeitado por seus pares. O caso de Vidal de Negreiros é pouco claro e essa questão continua dependente de novas investigações. Na História da Guerra Brasílica, de Francisco de Brito Freire, o primeiro comentário sobre Vidal é o seguinte: o ajudante André Vidal de Negreiros; donde o feriram pelos peitos de um chuçasso. E donde, com esforço singular e singular fortuna, principiando a crescer nos postos por que foi subindo a mestre-decampo e aos governos do Maranhão, Pernambuco e Angola, não teve pequena parte, assim no trabalho como na glória de quanto se foi obrando na guerra e na restauração do Brasil.10 Assim, de acordo com a fonte holandesa já citada – provavelmente interessada em desqualificar Vidal – esse era homem de modestas origens; seu biógrafo e seus panegiristas já fizeram questão de aludir uma origem ligada à propriedade da terra, tal como as principais famílias da colônia; já Brito Freire, embora não faça menção às suas origens, destaca seus méritos, o que, ao final, serviu de base para apagar qualquer mancha ou defeito que, por acaso, seu passado familiar pudesse apresentar. Sobre essa questão, valem as considerações de Eduardo d’Oliveira França sobre as origens de vários homens e famílias enriquecidos no mundo colonial: O magnata colonial, em que pesem suas genealogias indígenas, não foi geralmente fidalgo de linhagem. Um senhor de engenho era um burguês com a vida afidalgada pela fortuna... Homens que sobre o trabalho escravo nos canaviais tinham erigido um edifício de poder.11 No Mundo dos Engenhos O mundo no qual Vidal de Negreiros nasceu era uma das mais recentes fronteiras da conquista portuguesa em terras americanas. Como já mencionamos, as fontes secundárias indicam datas de nascimento em 1602, 1606 e 1620 Considerando-se essas marcas cronológicas, Vidal nascera entre 17 e 35 anos após a fundação da Cidade de Filipéia de Nossa Senhora das MELLO, José Antônio Gonsalves de. João Fernandes Vieira: Mestre de Campo do Terço de Infantaria de Pernambuco. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses; Centro de Estudos de História do Atlântico, 2000, p. 23. 10 FREIRE, Francisco de Brito. Nova Lusitânia, História da Guerra Brasílica [1675]. São Paulo: Beca, 2001, p. 236-237. Grifo nosso. 11 FRANÇA, Eduardo D’Oliveira. Portugal na época da Restauração. São Paulo: Hucitec, 1997, p. 175. 9 56 ÂNGELO EMÍLIO DA SILVA PESSOA Neves, que marcara a conquista portuguesa da região e a instalação da Capitania Real da Paraíba, após longas lutas envolvendo portugueses, franceses, potiguaras e tabajaras. Essa conquista, ainda instável, demandava um esforço intenso para consolidar a presença portuguesa nessa fronteira; a penetração do litoral para áreas mais interioranas mal começara através de explorações na Serra da Copaoba e da concessão de sesmarias na várzea do Paraíba12. Os relatos de Brandônio e do Governador holandês da Paraíba Elias Herckmans, escritos na segunda e na quarta décadas do século XVII, dão notícias das penetrações realizadas, até aquele momento, no sertão da Capitania da Paraíba, que mal era conhecido e explorado. O mapa holandês de George Marcgrave, que cartografou a Paraíba na primeira metade do século XVII, dá uma representação que mostra, para o sertão, de maneira um pouco mais detalhada, o Rio Mamanguape até suas nascentes na Serra da Copaoba (Serra da Raiz), no norte da Capitania, e o resto do território não está representado, pelo pouco conhecimento que se tinha da área13. As complexas relações com os povos indígenas na região significavam um elemento central para a expansão das atividades econômicas pretendidas pelos colonos, uma vez que a Capitania Real da Paraíba representava uma expansão da economia açucareira que se desenvolvia a partir de Pernambuco. A instalação dos primeiros engenhos e fazendas implicava na necessidade de ocupar terras com condições favoráveis, de obter mão de obra abundante e a custos acessíveis, de garantir a segurança dos colonos e seu abastecimento; questões essas cruciais para o sucesso da empreitada. A escravização de índios apresentava problemas consideráveis, envolvendo não apenas indígenas e colonos (o que, não raro, levava a enfrentamentos armados de diferentes magnitudes), mas também missionários das ordens Católicas, que instalaram os primeiros aldeamentos nas cercanias da Cidade nas décadas imediatas à fundação. A relação entre essas Ordens, os colonos e as autoridades, especialmente no que tange aos jesuítas, tornou-se um ponto importante de conflitos que se estabeleceram em todo o território da colônia14. Também As complexas situações referentes à conquista e consolidação da presença portuguesa no território da Capitania Real da Paraíba podem ser vistos em PRADO, João Fernando de Almeida. A conquista da Paraíba. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964. LINS, Guilherme Gomes da Silveira d’Ávila. Páginas de História da Paraíba: revisão crítica sobre a identificação e localização dos dois primeiros engenhos de açúcar na Paraíba. João Pessoa: Empório dos Livros, 1999. GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e Açúcares: política e economia na Capitania da Paraíba (1585-1630). Bauru: EDUSC, 2007. 13 Veja-se BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas do Brasil [1618]. 3. ed. Recife: Fundaj/ Massangana, 1997. HERCKMANS, Elias. Descrição geral da Capitania da Paraíba [1639]. João Pessoa: A União, 1982. 14 Nos anos que se seguiram à fundação da Capitania da Parahyba, entre finais do século XVI e início do XVII, ordens como os jesuítas, os franciscanos, os beneditinos e os carmelitas se estabeleceram na região e desenvolveram atividades ligadas à catequese dos índios, tal como acontecera em Pernambuco anos antes. Veja-se HOORNAERT, Eduardo et al. História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo. (Primeira Época). Tomo II, vol. 1. 4 ed. Petrópolis: Paulinas; Vozes, 1992. 12 VIDAL DE NEGREIROS 57 começava por esse momento a se generalizar, estabilizar e regularizar o problemático emprego da mão-de-obra escrava africana, através da consolidação de fluxos oceânicos que envolviam portos brasileiros e africanos, muito embora esse processo demandasse situações bastante conflituosas, que se demonstraram um dos pontos nevrálgicos da expansão da colonização lusitana em território americano. Assim, o jovem Vidal deve ter vivido num mundo marcado pela incerteza e pela presença da guerra no horizonte próximo. A instalação dos engenhos, a partir do próprio Regimento do Governador Tomé de Souza (em 1549, em torno de seis a oito décadas antes do nascimento de Vidal), pressupunha a construção de torres e o seu aparelhamento com armas, em função das prementes necessidades de defesa. As incursões de índios contra colonos ou de colonos contra índios, ou ainda de corsários europeus, era um fator presente na vida cotidiana. Se analisarmos o conjunto da colônia, mesmo regiões de ocupação mais antiga e consolidada como a Bahia, São Vicente, Rio de Janeiro, ou a vizinha Capitania de Pernambuco, ainda tinham a incerteza e o temor da guerra como fatores marcantes na vida dos moradores15. Por outro lado, essa presença constante da guerra no horizonte de possibilidades, abria condições para que homens de origens modestas aspirassem uma ascensão social, em função de notórios feitos de armas que viessem a realizar. O Açúcar, a Guerra e outros conflitos Em 1630, a sociedade açucareira que se construía em Pernambuco e nas Capitanias vizinhas foi sacudida com o assalto holandês a Olinda, que se tornou o primeiro ato de um conflito de décadas pelos territórios do nordeste açucareiro. As diversas fases da ocupação holandesa, estudadas por Evaldo Cabral de Mello em seu clássico Olinda Restaurada16, resultaram numa ordem quase que permanente de conflitos e na necessidade de reconfiguração das estruturas de produção e comércio do açúcar, bem como do trato de escravos na África, para atender às novas demandas que se impunham. Ao final de 24 anos de presença batava, a restituição da região aos domínios lusitanos, através de uma prolongada guerra em que se notabilizaram indivíduos como Vidal, João Fernandes Vieira, Antônio Filipe Camarão e Henrique Dias, não significou a imediata resolução dos problemas, mas trouxe à tona toda uma série de questões que marcariam aquela sociedade ao longo dos anos seguintes. Por outro lado, a situação mesma da metrópole, restaurada da esfera de controle espanhol a partir de 1640, permaneceu periclitante nas Para as dificuldades e incertezas que acompanharam as conquistas dessas Capitanias e da instalação das suas Cidades, Vilas, engenhos e fazendas veja-se para o Rio de Janeiro. Ver: BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. 16 MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: Guerra e Açúcar no Nordeste, 1630/1654. Rio de Janeiro: Forense Universitária; São Paulo: Edusp, 1975. 15 58 ÂNGELO EMÍLIO DA SILVA PESSOA próximas décadas e não foi tarefa fácil garantir a própria independência portuguesa e a integridade de seus domínios coloniais, frente às forças européias que se digladiavam no cenário mundial. Inicialmente, a questão da reorganização da produção açucareira implicava na necessidade de fontes de financiamento para compra de escravos e reequipamento dos engenhos, mas os capitais eram escassos e a situação se agravou gradualmente com a entrada em cena, nas décadas subsequentes, do açúcar das Antilhas, que passou a fazer concorrência ao açúcar nordestino. Por outro lado, instalou-se um conflito generalizado em torno do direito de propriedade sobre terras confiscadas pelos holandeses e compradas por particulares. O retorno de antigos proprietários, anteriores à ocupação holandesa, que reivindicavam a devolução de suas antigas propriedades, resultou em batalhas jurídicas e ódios pessoais que sacudiram a vida da Capitania. Os orgulhosos donos de engenhos e escravos da região (chamados por Cabral de Mello de açucarocracia) se viam endividados com comerciantes da praça portuária de Recife e reivindicavam proteção e benesses à Coroa, uma vez que entendiam que tinham devolvido as Capitanias do Nordeste à Coroa por seu próprio esforço, à custa de seu sangue e fazendas, sendo súditos mais do que leais, que faziam jus a um tratamento todo especial. Como os governantes nomeados para a região iriam resolver esses conflitos era questão das mais delicadas. Além de tudo, a reorganização administrativa resultava na disputa sobre a amplitude de certas jurisdições, que opunham autoridades diversas, seja por motivos substantivos e negócios, seja por rivalidades e ódios pessoais que contribuíam para envenenar ainda mais o ambiente. Assim como outros chefes restauradores, Vidal recebeu, da Coroa, honrarias e o reconhecimento de seus serviços, através de sua nomeação para o governo do Maranhão, onde chegou em 1655 e permaneceu até o ano seguinte. Em terras maranhenses Vidal se defrontou com uma precária presença portuguesa na região, após a expulsão dos franceses em 1615 e uma breve ocupação holandesa entre 1641 e 1642; tal situação se agravava com um crescente conflito entre colonos locais e a Companhia de Jesus pela catequese e controle da mão-de-obra indígena. Nessa acesa questão, Vidal estava munido de um Regimento e usou seu prestígio para impor alguns limites a determinadas práticas dos colonos, de acordo com reivindicações dos Jesuítas, o que lhe valeu o reconhecimento do Pe. Antônio Vieira que, então, estava envolvido com atividades missionárias na região. Assim, determinava o item 3 do Regimento: favorecereis muito aos Religiosos e Pregadores, e a todas as outras pessoas Eclesiásticas que nele hão de tratar da conversão dos Infiéis, procurando que sejam muito respeitados dos Portugueses, e de toda a outra gente, como é devido, para que com este exemplo, se movam mais os gentios e sejam de mais frutos as pregações entre VIDAL DE NEGREIROS 59 eles.17 Fig. 1 – Retrato de Vidal de Negreiros, anônimo do século XVII. Museu do Estado de Pernambuco. Seja como for, Vidal não permaneceu tempo suficiente para se envolver de forma mais aguda no desgaste dos conflitos maranhenses e, nos anos seguintes à sua saída, essas disputas recrudesceram e os jesuítas acabaram expulsos, em 1661, por colonos descontentes. Assumiu o governo de Pernambuco em 1657, o que atestava seu prestígio estando à frente de uma das Capitanias mais importantes do Império português. Substituía a Francisco Barreto de Menezes, que exercera o governo no momento delicado da restauração, para o que obtivera poderes muito amplos e especiais. Vidal lutou para confirmar essas prerrogativas para seu governo e entrou em atritos com o mesmo Francisco Barreto que, então, acabara de assumir o Governo Geral na Bahia. Nessa contendas por jurisdição com a Bahia, além do fogo das vaidades e brios pessoais, pesava o controle de importantes postos de governo e a definição de políticas que interessavam diretamente à açucarocracia local e influíam nos negócios de produtores e comerciantes de açúcar. 17 O Regimento de Vidal de Negreiros está reproduzido em MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da formação administrativa do Brasil. Tomo II. Rio de Janeiro: IHGB; Brasília: Conselho Federal de Cultura, 1972, p. 695-714. 60 ÂNGELO EMÍLIO DA SILVA PESSOA O confronto entre Vidal e Barreto opunha, de certa forma, as aspirações de maior autonomia dos senhores de engenho pernambucanos, que aspiravam um governo mais ao seu talante, para determinarem as políticas a serem aplicadas para a recuperação econômica da região, desejavam se livrar das amarras políticas mais estreitas das autoridades da Coroa, bem como das amarras econômicas dos comerciantes portugueses instalados na praça do Recife. Restabelecer a plenitude da economia açucareira, livrar-se do peso sufocante das dívidas e obter benesses governamentais eram objetivos dos grandes proprietários e de suas famílias. Subordinar-se às autoridades baianas, além de ferir os orgulhos locais, significava perder certas prerrogativas de ação. Vidal, que representava os interesses da açucarocracia, tendo ele mesmo se tornado um importante senhor de engenhos, procurou garantir a nomeação dos principais cargos, a definição de certas questões em alçadas governamentais das Capitanias vizinhas, a execução de determinações da Coroa que estariam na esfera do Governo-geral, entre outras questões. Barreto revidou institucionalmente e essa situação de conflito de autoridade se exacerbou, usando Vidal de todo o seu prestígio para garantir essas prerrogativas18. Esse enfrentamento entre autoridades, que representavam os diferentes grupos de interesses em conflito, prolongou-se nas décadas seguintes e teve seu ápice no início do século XVIII, quando os senhores de engenho pernambucanos, especialmente organizados em torno da Câmara de Olinda, partiram para o enfrentamento armado contra os comerciantes de origem lusitana, que dominavam a Câmara da Vila do Recife, que então obtinha a sua autonomia, no episódio que ficou celebrizado como a Guerra dos Mascates. A luta pelas mãos e pés do senhor de engenho A célebre frase de Antonil, que comparava os escravos às mãos e pés dos senhores de engenho, tinha toda a razão de ser no universo do mundo colonial. Desde as últimas décadas do século XVI a escravidão se generalizou e, além da sempre controversa escravidão indígena, se estabeleceu um fluxo crescente e contínuo de escravos africanos, que abasteciam os portos da Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco com cativos para servir de mão-de-obra para as lavouras, mineração e diversas outras atividades econômicas que se estabeleciam na colônia. Essa questão capital se mostrou com toda a sua amplitude quando se deu a ocupação holandesa de Pernambuco e das Capitanias vizinhas a partir de 1630. Ciente de que, para efetivar o domínio do Brasil e a produção açucareira, era necessário garantir as fontes de abastecimento de escravos na África, a Companhia das Índias Ocidentais determinou as atividades de corso contra navios traficantes de escravos portugueses e acabou por determinar a efetiva 18 Um interessante estudo sobre esses conflitos entre Vidal e Barreto é o de ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos: aspectos da administração colonial – Pernambuco – Século XVIII. Recife: Ed. UFPE, 1997. VIDAL DE NEGREIROS 61 ocupação dos principais entrepostos escravistas africanos, e assim se deu, em 1637, com a ocupação de São Jorge da Mina, na costa da Guiné, e em 1641, de São Paulo de Luanda, em Angola. Havia uma clara consciência dos contemporâneos sobre a importância vital do tráfico escravista, como disse Puntoni, a partir de diversos documentos coevos, “perder a África era perder o Brasil”19. A recuperação das praças africanas era, assim, condição não apenas para a eventual recuperação de Pernambuco e das Capitanias vizinhas, mas também para a manutenção e exploração econômica da Bahia e do Rio de Janeiro. Tanto assim que, em 1648, Salvador Correia de Sá e Benevides, comandando forças que saíram do Rio de Janeiro, retomou as praças de Luanda, Benguela e São Tomé20. Nesse contexto, além da restauração do poder da Coroa portuguesa sobre Angola, era inegável a influência da presença de interesses de colonos do Brasil na região. Era, como denominado por Luiz Filipe de Alencastro, uma Angola brasílica que se delineava, uma espécie de controle muito direto de interesses de colonos do Brasil na região, que se colocava de certa forma à margem do controle mais direto de autoridades metropolitanas. Reconstruir as rotas de tráfico de escravos se tornou objetivo imediato dos restauradores de Angola ao âmbito da monarquia lusa. Após o Governo de Salvador de Sá (1648-1652) e seus sucessores imediatos em Angola, coube o seu governo a João Fernandes Vieira (1658-1661), que acabara de sair do Governo da Paraíba, o qual havia recebido logo após à restauração pernambucana. No governo angolano, Fernandes Vieira dedicouse a restabelecer a plenitude do tráfico de escravos e entreteve relações com as chefias locais, no sentido de explorar as guerras africanas em benefício do apresamento de escravos. Vidal se afastou do governo de Pernambuco, em 1661, para assumir o governo de Angola no ano seguinte. Em Angola, Vidal continuou a política de João Fernandes Vieira de reestruturação das complexas redes de tráfico de escravos. Desde a retomada luso-brasileira de Luanda, a situação na região se mostrava bastante instável. As ofensivas desenvolvidas nos anos subsequentes a partir do governo de Luanda visavam garantir a lealdade dos chefes aliados e submeter a ferro e fogo os inimigos. Pressão especial passou a ser exercida sobre o Rei do Congo que, apesar de ser considerado pela Monarquia portuguesa um aliado cristão, acabava por opor alguns obstáculos à expansão dos interesses escravistas, vitais para a reorganização da produção açucareira na outra margem do Atlântico. Os Reis do Congo ostentavam o título de reis cristãos e aliados dos portugueses, tendo recebido do próprio Papa, em Roma, uma Coroa que simbolizava esse reconhecimento de integrar o grêmio da Igreja Católica, mas Essa questão pela disputa do tráfico atlântico de escravos entre portugueses e holandeses pode ser vista em PUNTONI, Pedro. A mísera sorte: a escravidão africana no Brasil holandês e as guerras do tráfico no Atlântico Sul, 1621-1648. São Paulo: Hucitec, 1999. 20 BOXER, Charles R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola (1602-1686). São Paulo: Companhia Editora Nacional; Edusp, 1973. 19 62 ÂNGELO EMÍLIO DA SILVA PESSOA Vidal buscou contornar os obstáculos de ordem jurídica e religiosa para construir uma justificativa para atacar o reino do Congo. Em 1665, Vidal manobrava junto a autoridades religiosas locais para atribuir ao Rei D. Antônio I do Congo, o Mani Mulaza, o caráter de rei cismático e idólatra, criando um pretexto para um ataque justo àquele reino. Obtendo concordância de algumas dessas autoridades, as tropas de Vidal desbarataram o exército de D. Antônio I, na Batalha de Ambuíla, nesse mesmo ano, matando o Rei e determinando o fim da monarquia congolesa. A Coroa foi remetida a Pernambuco para ser depois enviada a Lisboa, mas Antônio Curado Vidal, sobrinho do Governador, responsável pela sua guarda, provavelmente deu sumiço na mesma. Depois da batalha de Ambuíla o reino do Congo foi dividido por lutas intestinas e os interesses dos mercadores de escravos foram bastante favorecidos21. O retorno e o legado de Vidal Do outro lado do Oceano as coisas se precipitavam. O governador de Pernambuco, Jerônimo de Mendonça Furtado, conhecido com Xumbregas, enfrentava forte oposição da açucarocracia local para impor certas determinações da Coroa, além de negócios que realizava à socapa, e tais divergências evoluíram para um conflito agudo. Em 1666, num hábil engodo, alguns senhores de engenho de Olinda aprisionaram o governador e o enviaram de volta a Portugal, com um vasto rol de queixas ao Rei. Os ecos da deposição do governador agravaram uma forte tensão política que se agudizou até às primeiras décadas do século seguinte22. De retorno a Pernambuco no início do ano seguinte, após o cumprimento de seu governo angolano, Vidal foi escolhido pela açucarocracia para substituir Mendonça Furtado. A Coroa prudentemente aguardou o desenlace do caso para evitar ferir suscetibilidades e agravar ainda mais o quadro. Assim, manteve Vidal temporariamente no governo (até pelo seu grande prestígio) e escolheu o novo Governador para sucedê-lo alguns meses depois. Apesar da ousadia dos senhores de engenho pernambucanos de aprisionar um governador nomeado pelo Rei e colocar outro no seu lugar, a Coroa evitou uma reação mais enérgica, até devido às circunstâncias muito particulares do momento, com a extrema delicadeza do controle luso sobre o conjunto de suas vastas possessões. Após essa segunda passagem pelo governo, Vidal já estava envelhecido e retirou-se da esfera política passando a administrar mais diretamente os seus negócios. Nos anos seguintes instalou-se em seu engenho Itambé, onde faleceu em 1680. Em seu testamento instituiu o Morgado de Nossa Senhora ALENCASTRO, Luís Filipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 22 MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates - Pernambuco 1666-1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 21 VIDAL DE NEGREIROS 63 do Desterro, em favor de seu filho Matias Vidal de Negreiros, mas a fortuna não permaneceu nas mãos da família, que se engalfinhou em acerbas disputas pelos bens e acabou por dispersá-los entre vários herdeiros. Mais de um século depois, acusações ainda eram trocadas por descendentes de Vidal sobre o destino dos bens. Em carta atribuída a Manuel Arruda da Câmara ao Padre João Ribeiro, em 1810, o cientista fazia acusações sobre os destinos dos bens de André Vidal, que seria antepassado do destinatário e que “padre Matias Vidal de Negreiros e Marquês de Cascais hão despojado dos bens do dito general furtivamente”23. A par de não ter conseguido consolidar uma posição de maior proeminência ou de poder para seus descendentes, o que fora conseguido por algumas outras famílias da colônia, esse homem notável foi elevado à condição de um dos heróis da nacionalidade, destacado por Francisco Adolfo de Varnhagen como o legítimo representante dos brasileiros na gloriosa restauração do solo nordestino ao corpo da nação. Nos termos do próprio historiador em sua História Geral do Brasil: André Vidal era homem tão superior que necessitara um Plutarco para apreciá-lo. Enquanto empreendeu, sempre com muito esforço e valor, não levara a mira no prêmio, nem talvez nesse mesmo fantasma da glória que tantas vezes nos embriaga; tudo fez pelo zelo e amor do Brasil, ou por caridade cristã.24 Segundo essa perspectiva, as lutas em torno da expulsão dos holandeses, especialmente as Batalhas dos Guararapes representavam os germes da nacionalidade que brotava no combate ao invasor estrangeiro e não-católico. Na tetrarquia de heróis que se criou posteriormente em torno da restauração, Vidal representou o elemento branco de origem brasileira, que unido a um reinol (Vieira), a um índio (Camarão) e a um negro (Dias), representariam a síntese do nativismo que se afirmaria na luta contra o invasor. Ainda, segundo Varnhagen, o papel de Vidal seria superior ao de Vieira e outros restauradores e caberia a ele o lugar de verdadeiro e inequívoco herói da nacionalidade. Erigida como uma ermida por Francisco Barreto de Menezes, por volta de 1654/1655, a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres dos Montes Guararapes, serviu para marcar a memória dos soldados que combateram nas Batalhas dos Guararapes (1648 e 1649). No século XVIII recebeu acréscimos e embelezamento. Foi tombada como Patrimônio Histórico Nacional em 193825. Em 1942 foram trasladados, para a sua Capela Mor, os restos de André Vidal de Negreiros, João Fernandes Vieira, Francisco Barreto de Menezes (os restos Carta atribuída a Manuel Arruda da Câmara, endereçada ao padre João Ribeiro. In: CÂMARA, Manuel Arruda da. Obras Reunidas c.1752-1811 (coligida e com estudo biográfico de José Antônio Gonsalves de Mello). Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1982, p. 263. 24 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil. Tomo III. 8. ed. São Paulo: Melhoramentos; Brasília: INL, 1975, p. 94. 25 Processo IPHAN 05-T-38. 23 64 ÂNGELO EMÍLIO DA SILVA PESSOA Fig. 2 - Igreja de Nossa Senhora dos Guararapes, erguida no século XVII, no atual Parque Histórico Nacional dos Guararapes, local de importante celebração dos eventos relativos à guerra contra os holandeses (Jaboatão dos Guararapes - PE). Foto: Ângelo Pessoa, 2008. de Henrique Dias e Filipe Camarão não foram encontrados), reunindo os chamados heróis restauradores. Em 1961 foi criado o Parque Histórico Nacional dos Guararapes26, pertencente ao exército. À entrada, placas indicam que o visitante está entrando no território onde se forjou o sentimento nativista, o berço da nacionalidade e do exército brasileiro. Na Igreja realizam-se, ainda hoje, romarias em homenagem a Nossa Senhora dos Guararapes. É nesse ambiente que se forjou todo um ideário heróico que tem a restauração pernambucana como marco de estabelecimento do sentimento nativista em terras brasileiras27. Além de ter sido exaltado, por parte da historiografia, à condição de herói nacional, Vidal de Negreiros também contou com uma trajetória peculiar e mais pontual para ser elevado à condição de herói local. Na esteira do que se estabeleceu a partir do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o seu congênere, Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, trabalhou para enaltecer Vidal como herói paraibano28. Diversos logradouros de João Pessoa, Processo IPHAN 523-T-54. MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 28 A historiadora Ana Beatriz R. B. Silva escreveu instigante artigo sobre a construção desse herói paraibano, especialmente a partir da obra do historiador Luiz Pinto. Ver: SILVA, Ana Beatriz Ribeiro Barros. André Vidal de Negreiros: a necessidade da construção 26 27 VIDAL DE NEGREIROS 65 Fig. 3 - Lápide da Sepultura do General André Vidal de Negreiros, onde se exalta a sua condição de herói nacional. Foto: Mirza Pellicciotta, 2008. o 15° Batalhão de Infantaria Motorizada do Exército, além de outras homenagens levam seu nome e rendem tributo à sua memória como herói. Considerando essas questões, em âmbito ainda bastante preliminar, podemos enxergar esse personagem como um verdadeiro homem do Atlântico no século XVII, que esteve ligado às vicissitudes do Império colonial português que então se reconfigurava em função do avanço de novos impérios que lutavam pela hegemonia no mundo colonial. Portugal, que estivera na dianteira da expansão marítima de fins do século XV e início do XVI, recuava frente ao surgimento de novas potências, que acabaram por impor pesadas perdas ao império lusitano. Boa parte das possessões asiáticas foram perdidas para os concorrentes e foram necessários muitos esforços para garantir a sobrevivência, mesmo de Portugal, nessa nova ordem, ou como disse com felicidade o historiador Luciano Figueiredo, o “Império estava em apuros”29. De acordo com as esperanças do Padre Vieira, a Índia não estaria perdida, caso houvesse por lá homens como Vidal de Negreiros. Não poderíamos garantir que tal acontecesse, mas podemos deduzir que começou a se forjar por ali a legenda do herói. de um herói verdadeiramente paraibano. Saeculum - Revista de História, João Pessoa, DH/PPGH-UFPB, n. 14, jan./jun. 2006, p. 159-171. 29 FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. O Império em apuros: notas para o estudo das alterações ultramarinas e das práticas políticas no Império Colonial português, séculos XVII e XVIII. In: FURTADO, Júnia Ferreira (org.). Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 197-254. 67 FESTA E MEMÓRIA DA ELITE AÇUCAREIRA NO SÉCULO XVII: A AÇÃO DE GRAÇAS PELA RESTAURAÇÃO DA CAPITANIA DE PERNAMBUCO CONTRA OS HOLANDESES Kalina Vanderlei Silva 1 o século XVII o Império Português, dentro do contexto da União Ibérica e depois dela, susteve um calendário de festas públicas que exaltavam a glória do rei e da Igreja com celebrações ritualizadas, onde a pompa estava nos objetos de cena, como altares, arcos de triunfos, mas também nos gestos das autoridades que delas participavam. Essas festas, de caráter nitidamente barroco, abundavam nas cortes ibéricas, mas também nas grandes cidades dos dois impérios, e incluíam desde entradas solenes, como as dos Filipes em Lisboa, até datas sagradas como Corpus Christi e comemorações de conquistas, como a celebração da vitória castelhana sobre Barcelona em 16522. Organizadas pelas câmaras municipais, as festas barrocas tinham, assim, a função principal de celebrar a glória da Coroa e garantir a lealdade de seus vassalos, além de marcar as hierarquias de poder das autoridades da cidade que a organizava perante os olhares dos expectadores. E, nesse contexto, a comemoração de uma vitória bélica constituía um dos momentos privilegiados para essas festas, pois permitia à cidade afirmar sua lealdade ao rei e ao mesmo tempo cantar sua própria magnificência. Nesse sentido, a festa barroca que comemorava o sucesso das armas do Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Líder do GEHSCAL Grupo de Estudos em História Sociocultural da América Latina (UPE/ Diretório CNPq). Professora Adjunta da Faculdade de Formação de Professores de Nazaré da Mata, da Universidade de Pernambuco, e Docente Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Pesquisadora financiada pela FACEPE. E-Mail: <gehscal@uol.com.br>. 2 Para as festas barrocas, ver: SILVA, Kalina Vanderlei. Cerimônias públicas de manifestação de júbilo: símbolos barrocos e os significados políticos das festas públicas nas vilas açucareiras de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. In: ______ (org.). Ensaios culturais sobre a América Açucareira. Recife: Edupe, 2008. Já para as comemorações das entradas reais em Lisboa, ver: MEGIANI, Ana Paula. O rei ausente: festa e cultura política na visita dos Filipes a Portugal (1581 e 1619). São Paulo: Alameda, 2004. Para a comemoração das armas de Castela contra Barcelona, ver: DE LA FLOR, Fernando & BLASCO, Esther. Política y fiesta en el Barroco - 1652: descripción, oración y relación de fiestas en Salamanca con motivo de la conquista de Barcelona. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1994. 1 68 KALINA VANDERLEI SILVA rei se traduzia em uma tentativa da elite urbana reafirmar seu próprio status, demarcando a hierarquia entre seus pares, demonstrando seu prestígio perante o povo e, ao mesmo tempo, sua lealdade perante a Coroa. Sem esquecer que a elite local aproveitava ainda para relembrar ao rei seus serviços prestados. Imagem paradigmática dessa funcionalidade foi a comemoração da conquista de Barcelona pela Coroa castelhana em uma festa organizada e celebrada em Salamanca em 1652, com direito a toda a pompa barroca e publicação de relação comemorativa. E se tais eventos não eram raros na Península Ibérica de então, também as câmaras municipais americanas do período procuravam se manter ao corrente dos padrões festivos europeus. Assim foi que, poucas décadas depois, Olinda seguiu muito de perto o modelo de Castela ao promover a festa de ação de graças pela Restauração da Capitania de Pernambuco contra os holandeses. Festejo que, assim como sua congênere castelhana, assumiu uma função múltipla de espaço de demarcação de prestígios locais, lealdades régias e de reafirmação de uma identidade fidalga por parte da elite açucareira. Identidade essa construída em torno da Restauração de Pernambuco e da memória desse fato. Olinda, a Elite Açucareira e a Restauração Em 1654 terminava a ocupação da Capitania de Pernambuco, e anexas, pela WIC, a Companhia das Índias Ocidentais, que desde 1630 controlava a região. A chamada guerra de Restauração, que opusera os senhores de engenho de Pernambuco e seus aliados à WIC, durara de 1648 a 1654 e deixara um saldo de destruição nos canaviais, nas cidades e nas fortunas, permitindo à Coroa portuguesa retomar o poder sobre a Capitania, inclusive de forma mais presente e intrusiva que antes de 1630, visto que nesse segundo período de governo português os donatários de Pernambuco haviam dado lugar aos governadores metropolitanos3. As muitas modificações sociais, econômicas e políticas da Capitania haviam atingido todos os grupos sociais, dos escravos que fugiram para o quilombo de Palmares, passando pelos homens livres ingressos nas inchadas fileiras do exército ou moradores da crescente povoação do Recife, até a elite de senhores de engenho que encabeçara a guerra. Esses senhores, que se denominavam restauradores, viram seu prestígio perante a Coroa atingir o ápice com os sempre lembrados serviços prestados na devolução da capitania ao império. Um prestígio que lhes garantiu a manutenção de seu poder político mesmo quando, no século XVIII, os mercadores já haviam se tornado um grupo hegemônico4. A guerra de Restauração é bastante conhecida a partir do estudo clássico de MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. São Paulo: Topbooks, 1998. 4 A situação da capitania no pós-guerra pode ser vista em SILVA, Kalina Vanderlei. ‘Nas Solidões vastas e assustadoras’: a conquista do sertão de Pernambuco pelas vilas 3 FESTA E MEMÓRIA DA ELITE AÇUCAREIRA NO SÉCULO XVII 69 Foi essa elite de senhores, auto-intitulada ‘nobreza da terra’, que projetou e realizou a festa da Restauração em celebração de seus próprios feitos heróicos, conseguindo, para tanto, o beneplácito da Coroa portuguesa. Foram eles que, no século XVII, após retornarem à jurisdição portuguesa, esmeraram-se em fazer das ruas de Olinda, e mais tarde de Igarassu, palco para as festividades barrocas do calendário régio, adotando as festas regulares e extraordinárias da Coroa portuguesa, com procissões, entradas de governadores, celebrações de casamentos e mortes da realeza, em cerimônias que desfilavam nas ruas e praças e tomavam espaços especiais nas igrejas. Nelas encontrando o perfeito cenário para o desenvolvimento de seus papéis de ‘fiéis vassalos’ da Coroa. Nessas ocasiões, os senhores de engenho, traduzidos em oficiais das câmaras, realizavam performances que afirmavam ou confirmavam seus status sociais, assegurando-lhes prestígio e honra. Em cada festa, fosse procissão pelas ruas ou celebração na Igreja da Sé, os espaços de poder eram rigidamente demarcados: nas procissões, estar mais próximo aos símbolos de autoridade religiosa ou leiga, como o pálio que guardava o Santíssimo Sacramento, informava aos espectadores a importância daquele ator. Não poucas vezes, governadores, bispos e oficiais das câmaras de Olinda e Igarassu se engajaram em disputas entre si devido a diferenças de opinião sobre onde deveria se sentar o governador quando em presença do Santíssimo Sacramento, ou onde, na procissão, deveria ser alocado o pendão que simbolizava a câmara, ou ainda onde deveria se situar o governador durante a assistência de uma cerimônia organizada pela câmara5. Exemplo dessas querelas foi a disputa entre a Câmara de Olinda e o Governador de Pernambuco, no final do século XVIII, em torno do ritual de encontro entre essas duas instâncias de poder. Nessa ocasião, a câmara escreveu ao príncipe regente, então D João, sobre o assunto: Porquanto Vossa Alteza Real pelas cartas régias que vão insertas nas certidões em anexo decidiu que este Senado, debaixo do estandarte de que jamais nunca se devia separar, não representava menos a Sua Real Pessoa do que os governadores. Porquanto sem embargo de se achar assim decidido, os governadores pretendem, açucareiras nos séculos XVII e XVIII. Recife: CEPE, 2009. E a ascensão da elite mercantil em SOUZA, George Cabral. Elite y ejercicio de poder en el Brasil Colonial: La Cámara Municipal de Recife (1710-1822). Tesis Doctoral. Facultad de Geografía y Historia de la Universidad de Salamanca. Salamenca, 2007. 5 Por exemplo, REQUERIMENTO do Bispo de Pernambuco ao Rei pedindo se remeta ao Desembargador do Paço a representação dos conflitos com o governador de Pernambuco sobre o cerimonial romano e o lugar que deve ocupar o assento do governador na Igreja. Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa- AHU_ACL_CU_015, cx. 16. 1636; PARECER incluso na carta do capitão-mor de Igarassu, Francisco Xavier Carneiro da Cunha, ao rei, D Jose I, sobre as dúvidas a respeito dos assentos nas festas e procissões daquela vila assistidas pela câmara. AHU_ACL_CU_015, Cx. 081, D. 6751. 70 KALINA VANDERLEI SILVA quando este senado se encontra com eles por ocasião das festas reais, que este senado debaixo de estandarte os vá receber aos adros das igrejas, como se este senado representasse pessoa inferior a que eles representam. E porquanto finalmente nos parece que os governadores não podem pretender semelhante obséquio, que somente lhes deveria ser feito se este senado não representasse a Real Pessoa de Vossa Alteza assim e do mesmo modo que lhes representam. Portanto suplicamos a vossa alteza real aja por bem decidir em que lugar deve esse senado receber aos governadores, e aos excelentíssimos reverendíssimos bispos em semelhantes ocasiões.6 Nessa carta, a Câmara de Olinda insistia nas mesmas reivindicações que já vinha fazendo desde o século XVII sobre seu papel como representante da Coroa. A mesma reivindicação que fez, por exemplo, em 1677, quando, depois do estabelecimento dos governadores do rei na capitania, em geral sediados no Recife, os senhores de Olinda começaram a disputar com eles a posição de representantes da Coroa, como podemos ver na ordem régia passada em julho daquele ano: Oficiais da Câmara da Capitania de Pernambuco. Eu o Príncipe vos envio muito saudar. Havendo mandado ver o que me escrevestes em carta de 10 de junho do ano passado, sobre as diferenças que tivésseis com o Vigário Geral da Matriz da Vila de Olinda acerca do lugar em que nas procissões havia de ir o pendão da Câmara, por querer que saísse adiante do pálio, fora do corpo da câmara e o que sobre isso resolveu o governador D. Pedro de Almeida, e porque convém atalhar diferenças, me pareceu dizer-vos que o governador não representa mais minha pessoa do que a representa o senado: e assim não havia de resolver que nas procissões que não fosse o pendão porque só quando eu vou nelas deixa de ir o pendão e nas mais começa do pendão o corpo do senado da câmara, e nesta forma se deve observar daqui em diante; e assim o mando advertir ao Vigário Geral, e que não inquiete meus ministros contra o estilo dos [ ] de que não registra indecência alguma.7 Essa reclamação da Câmara de Olinda é eloquente sobre sua vontade e insistência em ser reconhecida pelos altos funcionários da burocracia régia como parte integrante e importante do poder imperial, representando ela mesma o rei. Uma representação que deveria ser feita através da investidura 6 7 CARTA dos oficiais da Câmara de Olinda ao Príncipe Regente, D João, sobre as dúvidas acerca de onde deveria ir o pendão da câmara nas procissões. AHU_ACL_CU_015, Cx. 212, D. 14418. REGISTRO da carta de S. majestade escrita aos oficiais da câmara, sobre ir, ou não o pendão da câmara nas procissões. Escrita a 18 de julho de 1677. Livro de Registro de cartas, provisões e ordens régias. L. 1º. Arquivo Público Jordão Emerenciano - APEJE. FESTA E MEMÓRIA DA ELITE AÇUCAREIRA NO SÉCULO XVII 71 de símbolos, aqui o pendão da câmara. É sabido que o Antigo Regime enfatizava a representação do rei ausente nas muitas localidades do império a partir de uma série de símbolos que assumiam a papel do rei em pessoa, como os retratos reais, da mesma forma que o Santíssimo Sacramento era investido da função de representar o corpo de Deus nas cerimônias. Nesse mesmo contexto, o pendão da câmara assumia, para o Senado de Olinda, um papel vital no espetáculo festivo, representando não apenas a câmara, mas o próprio rei8. A carta de 1799, por sua vez, continuou a insistir no mesmo tema, deixando claro ainda o importante papel que a etiqueta barroca tinha nesse cenário: nas festas reais todos os gestos e espaços eram rigidamente hierarquizados, ocupados de acordo com uma escala de prestígio que deveria informar quem estava submisso a quem. Nesse sentido, se os oficiais da Câmara de Olinda fossem obrigados a ir receber o governador fora das igrejas, mesmo estando em formação oficial junto ao pendão que simbolizava a câmara, estariam se colocando em posição inferior ao governador. Contra isso, invocavam perante o rei o seu próprio papel de representantes da Coroa. Essa situação de eterna competição com os governadores pelo privilégio de simular a Coroa em solo americano tornava cada festa um momento de disputa, compreensível quando se entende que o status público da elite estava vinculado ao papel que representariam na encenação pública. As festas barrocas foram sempre, na Península Ibérica, uma vitrine para a demonstração do status e prestígio das autoridades perante o povo, a Coroa e entre elas mesmas. O mesmo ocorreu com a América açucareira, onde os senhores, assentados nas câmaras, tanto tinham o dever de organizar e promover as festas anuais e extraordinárias do calendário régio, quanto o direito de aproveitarem esse momento para ostentar seu status. Em geral, as festas camarárias eram as mesmas para todo o império, pois seguiam um calendário ditado pela Coroa, no caso das anuais, e ordens específicas, no caso das extraordinárias9. Existia, dessa forma, um modelo imperial préestabelecido, e ao passar as ordens para as festas extraordinárias, por exemplo, que deveriam comemorar as vitórias e efemérides da realeza, a Coroa já determinava como ela deveria ser feita: com luminárias e salvas de artilharia, 8 9 Para Roger Chartier as sociedades do Antigo Regime empregavam a noção de representação em dois sentidos: como manifestação de uma ausência ou como apresentação pública de algo. Os festejos camarários apontam os dois significados dessa noção, pois as festas funcionavam como espaços de representação do rei ausente, mas também como espaço de apresentação pública da hierarquia da elite açucareira. Nesse caso específico, do pendão da câmara, era o papel de representação do rei que se sobressaia. CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a História entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 2002, p. 74. Para as festas barrocas camarárias no Império Português ver: SANTIAGO, Camila Fernandes. A vila em ricas festas: celebrações promovidas pela Câmara de Vila Rica – 1711-1744. Belo Horizonte: Fumec-Face; C/Arte, 2003; CATÃO, Beatriz. O Corpo de Deus na América: a festa de Corpus Christi nas cidades da América Portuguesa, século XVIII. São Paulo: Annablume, 2005. 72 KALINA VANDERLEI SILVA como na celebração da paz com Castela, ordenada à Câmara de Olinda em 171510. Mas, em Pernambuco, a festa de Ação de Graças pela Restauração da Capitania contra os holandeses assumiu um caráter nitidamente local, elaborada e organizada pela elite açucareira, tendo por base o padrão festivo ibérico. Celebração por excelência de Olinda, seu caráter localista ilustrava a ativa manutenção do calendário festivo régio na capitania e a adaptação e transformação que a elite açucareira realizava sobre os valores ibéricos. Essa elite, no Pernambuco seiscentista, grupo social que controlava a política da capitania, batendo-se com governadores e outros representantes régios, era constituída por senhores de engenho e lavradores de cana11. Até a ascensão de uma elite mercantil sediada na vila do Recife, no século XVIII, esses senhores, que tinham Olinda como base, foram hegemônicos no cenário político e cultural da sociedade açucareira, dominando os principais núcleos urbanos de Pernambuco, como Igarassu, e mantendo relações de parentesco com os senhores das capitanias anexas. Ocupando os assentos na Câmara de Olinda, mas também em outras instituições como a Santa Casa de Misericórdia e a Irmandade do Santíssimo Sacramento, a elite açucareira não apenas exercia controle sobre a política local, mas ditava as normas cultas da sociedade, traduzindo um imaginário influenciado pela Igreja, pela Coroa e pela cultura fidalga ibérica. Em todo o império era tarefa das câmaras patrocinarem as festas públicas e dever da Irmandade do Santíssimo se encarregar de algumas das cerimônias mais importantes da vida católica dessas cidades, como a procissão do viático e a festa de Corpus Christi. Funções que a elite açucareira assumiu de forma entusiástica em Pernambuco, por lhe permitir ocupar esses espaços de poder e aparecer como responsável pelo cerimonial oficial da capitania, além de atuar como uma nobreza local12. “Juiz, Vereadores e Procurador da Cidade de Olinda. Eu El Rei vos envio muito saudar: Por estar confirmada e ratificada a paz que celebrei com El Rei de Castela, e ser esta nova de grande gosto, é justo que como tal se festeje no Reino, a mandeis publicar no 1º do presente mês de maio na [forma] que vereis na cópia inclusa, com a demonstração de luminárias, repique, e salvas de artilharia na noite do dia da publicação e nos dias seguintes, e da mesma sorte o fareis assim executar pela parte que vos toca”. REGISTRO da carta de S. Majestade para os oficiais da câmara pela qual manda se festeje a paz que se celebrou com el rei de Castela. Escrita em 15 mai. 1715. LIVRO de registro de cartas, provisões e ordens régias da Câmara de Olinda. L 1º, fl. 125. APEJE. 11 Para a definição da elite açucareira, ver: ACIOLI, Vera Lúcia. Jurisdição e conflito: aspectos da Administração Colonial. Recife: Ed. UFPE, 1997; FERLINI, Vera Lúcia. Terra, trabalho e poder: o mundo dos engenhos no Nordeste Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1988. Em Acioli encontramos também os conflitos dessa elite com os governadores de Pernambuco e Bahia. 12 O imaginário da fidalguia ibérica pode ser visto em: FRANÇA, Eduardo D’Oliveira. Portugal na época da Restauração. São Paulo: Hucitec. 1997. Sobre o viático e seus rituais, ver: CAVALCANTI, Viviane. Religiosidade e morte: instrumentos do projeto colonial português. Columbia: The University of South Carolina, 1995. A Irmandade do Santíssimo 10 FESTA E MEMÓRIA DA ELITE AÇUCAREIRA NO SÉCULO XVII 73 Que tal elite se esmerava em se manter dentro de padrões culturais aceitáveis pela nobreza reinol vemos no pedido daqueles dentre seus membros que ocupavam assentos na Santa Casa de Misericórdia em Olinda, em 1672, ao solicitarem ao rei que esta instituição gozasse dos mesmos privilégios concedidos à Santa Casa da Bahia, que, por sua vez, já gozava dos privilégios da Santa Casa de Lisboa. Diziam os irmãos de Olinda servirem com todo o zelo e que sua casa “no ornato e dispêndio lhe não excede a da Bahia”13. Afirmação com a qual esperavam demonstrar a lealdade apropriada aos valores da nobreza ibérica, como o zelo devocional e a ostentação pública. Assim como os papéis de ‘irmãos’ das Santas Casas e irmandades do Santíssimo conferiam fidalguia, a participação dos senhores nas câmaras por todo o império lhes garantia acesso permanente aos meios para a manutenção do prestígio social e de um permanente estado de ostentação de luxo, exigência para o status de ‘nobreza da terra’. Não apenas pela natureza oficial do cargo em si, mas pelas possibilidades que suas muitas cerimônias públicas e símbolos ofereciam de tornarem mais visíveis seus portadores para um público de espectadores. Os cargos camarários faziam os senhores visíveis também, e principalmente, para a Coroa, garantindo que pudessem comprovar sua lealdade e vassalagem ao celebrarem a glória real nas festas públicas, o que abria as portas para futuras solicitações de mercês. E, na segunda metade o século XVII, os senhores de Olinda empregaram todos os meios possíveis para conservar os favores da Coroa. Nesse momento ainda sustinham o poder político da capitania, mas enfrentavam a contestação dessa posição pelos governadores régios, tanto na própria capitania quanto na Bahia. Por outro lado, a ascendente elite mercantil do Recife estava para se tornar um problema bem maior, que estouraria nas primeiras décadas do século XVIII. Assim, os senhores olindenses, de seus assentos como oficiais da câmara, tentavam se manter no controle travando brigas pela sede da capitania e promovendo festas públicas para reafirmarem status de nobreza da terra e fiéis vassalos. E nesse contexto procuravam sempre recordar a restauração da capitania, fosse em seus pedidos de pensões e cargos, fosse na própria festa de ação de graças. A guerra em si abrira as portas para múltiplas possibilidades de ascensão social em Pernambuco, principalmente através de serviços militares prestados. Mesmo soldados e henriques, os milicianos pretos, conseguiram regalias a partir de solicitações com base nas justificativas desses serviços. Já Sacramento e a Santa Casa de Misericórdia enquanto instituições de elite, em ASSIS, Virgínia Almoêdo de. Pretos e brancos: a serviço de uma ideologia de dominação (Caso das Irmandades do Recife). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Pernambuco. Recife,1988; e RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Ed. UnB, 1981. 13 CONSULTA do Conselho Ultramarino ao Príncipe Regente D. Pedro sobre requerimento do provedor e irmãos da Santa Casa de Misericórdia de Olinda, pedindo a concessão de um alvará para que a dita casa goze dos privilégios e provisões concedido a Casa da Bahia. AHU_ACL_CU_015, Cx. 10, D. 946. 16 jun. 1672. 74 KALINA VANDERLEI SILVA em 1651, a Câmara de Olinda solicitara da Coroa que seus heróis, os futuros restauradores, fossem aproveitados nos principais postos de comando da capitania, no que foram atendidos quando terminou a guerra14. E todas as reivindicações pós-restauração foram feitas empregando fórmulas que relembravam à Coroa portuguesa os benefícios que os mazombos de Pernambuco lhe haviam feito: ‘às custas de nosso sangue, vida e despesas’, afirmavam os oficiais da Câmara de Olinda ainda em 165115. Os mesmos que mais tarde se apresentariam como ‘fiéis vassalos’ da Coroa16. Assim, se por um lado as últimas décadas do Seiscentos viram os senhores de Olinda entrarem em disputas políticas com os representantes da Coroa, por outro os viram também sustentar, perante a mesma, um prestígio em alta devido a seu status de restauradores da capitania, responsáveis pela devolução desta ao Império português. E aproveitaram esse prestígio para solicitar mercês e aumentar seu status pessoal e privilégios camarários. Nesse sentido, a comemoração da expulsão dos holandeses assumia uma importância vital ao recordar à Coroa os serviços prestados por seus vassalos pernambucanos. Mas tudo isso, recordar serviços prestados e manter uma imagem pública prestigiosa, passava pela construção de uma memória em que essa elite era a responsável pela conquista da capitania aos holandeses. Ou seja, uma memória que deveria ser preservada a todo custo, razão pela qual foi elaborada a festa de Restauração. A Festa, a Identidade Fidalga e a Memória da Restauração: A festa de ação de graças pela Restauração data da segunda metade do século XVII, quando começou a ser celebrada em Olinda pela câmara que, seguindo a tradição das festas régias, esperava que essa cerimônia pudesse ser, a cada ano, uma recordação dos feitos heróicos da elite açucareira. As festas barrocas que almejavam celebrar as glórias da monarquia em geral costumavam ser pródigas construtoras de memória17. E nesse aspecto a ação de graças pela Restauração se constituiu no principal fenômeno de construção ACIOLI, Jurisdição e conflito, p. 18. CÂMARA de Pernambuco e Povos das Capitanias do Norte do Brasil a D João IV. Biblioteca da Ajuda, 1654, apud MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da Restauração Pernambucana. São Paulo: Alameda, 2008, p. 92. 16 A expressão “fiéis vassalos” vem do próprio discurso da câmara de Olinda e da Coroa portuguesa, como no expresso no REGISTRO da Carta de S. Majestade para a câmara, de agradecimento pelas festas que fizeram no nascimento da Infanta. 12 out. 1699. Livro de registro de Cartas, Provisões e ordens régias da Câmara de Olinda. L. 1º, fl. 95. APEJE, onde o rei agradece as festas que em Olinda se fizeram pelo “nascimento da Sereníssima Infanta, minha muito amada e prezada filha”, afirmando que “pareceu de tão bons, fiéis e honrados vassalos, que não faltam a mostrar nela o vosso amor, por ser tanto gosto para esse reino e de todos os seus domínios”. 17 O fenômeno de fabricação de memória nas festas públicas foi estudado por LOPES, Emílio Carlos Rodrigues. Festas públicas, memória e representação: um estudo sobre as manifestações políticas na Corte do Rio de Janeiro, 1808-1822. São Paulo: EDUSP, 2004. 14 15 FESTA E MEMÓRIA DA ELITE AÇUCAREIRA NO SÉCULO XVII 75 da identidade dos restauradores em Pernambuco, juntamente com a elaboração de obras literárias como o Valeroso Lucideno, publicada em 1648 e escrita pelo frei Manuel Calado de Salvador, e o Castrioto Lusitano, de 1679, do Frei Rafael de Jesus. Ambas encomendadas pelo principal líder da restauração, João Fernandes Vieira18. Nessas obras apologéticas, assim como nos retratos e murais também feitos por encomenda tanto quanto na festa de Restauração, transparece a intencionalidade da criação de uma imagem de lealdade e heroísmo na qual investiram os restauradores pernambucanos. O frei Manuel Calado, por exemplo, não se furtou a fazer os mais altos elogios a João Fernandes Vieira em seu O Valeroso Lucideno, seguindo um modelo ibérico de panegírico que procurava ressaltar o valor heróico da nobreza. Assim, cantou o frei: A Liberdade restaurada canto, Obrada por a espada portuguesa Guiada pela luz do Pólo Santo, (terrena obra, mas celeste empresa) Canto um João, que é terror, e espanto Do belga, e quebrantou sua braveza, E de seus esquadrões em tempo breve Muitos triunfos, e vitórias teve.”19 Nas palavras de Calado a imagem de bravura cultivada por seu patrono, Vieira, e pelos restauradores de Olinda. Com essas práticas a elite açucareira apenas se situava no sistema de valores da fidalguia ibérica, ávida por construir uma imagem ideal de si através de obras encomendadas, fossem pinturas, peças, panegíricos ou mesmo festas públicas. E o caráter de encomenda que as obras artísticas barrocas possuíam marcou o ato de criar memória e identidade tanto na nobreza ibérica quanto na elite açucareira. Assim foi que, seguindo os padrões ibéricos, os senhores de Pernambuco se esmeraram em encomendar crônicas de seus feitos heróicos e retratos pintados. E muito comum ao mundo ibérico do Seiscentos e Setecentos eram os textos panegíricos dentre os quais as descrições de festas públicas eram tão populares que constituíam um gênero literário próprio, a relação. Desse gênero são exemplos a relação das festas celebradas em Salamanca pela vitória da Coroa espanhola sobre a revolta de Barcelona em 1652, e as memórias impressas das entradas solenes dos Filipes em Portugal ao longo do XVI e XVII. Da América portuguesa, por sua vez, partiram descrições de festividades públicas de intrínseco caráter barroco no século XVIII, celebradas com o recurso à arquitetura efêmera, com arcos de triunfo, decoração nas janelas, luminárias 18 19 MELLO, Rubro veio, p. 63. CALADO, Frei Manuel. O Valeroso Lucideno e o Triunfo da Liberdade. 2 vols. Recife: FUNDARPE, 1985, Vol. 1, p. 25. 76 KALINA VANDERLEI SILVA à noite e cortejos rigidamente hierarquizados nos quais tremulavam os pendões de câmaras e outros símbolos políticos e que eram acompanhados por coreografias de corporações de ofício e outros grupos populares20. Exemplo de minuciosas memórias de celebrações barrocas são o Triunfo Eucarístico, de Simão Ferreira Machado, publicado em Lisboa em 1734 e que descrevia a inauguração da Igreja de Nossa Senhora do Pilar em Vila Rica em 1733, e o Áureo Trono Episcopal, publicado em Lisboa em 1749 por Francisco Ribeiro da Silva, descrevendo a festa realizada por ocasião da investidura de dom frei Manuel da Cruz como bispo de Mariana em 174821. Pernambuco também conheceu memórias escritas de festas celebradas em seu solo, aparentemente todas datadas do século XVIII: sobre a festa de aclamação de d José I, Relação das Festas que se Fizeram em Pernambuco pela feliz aclamação do alto e poderoso rei de Portugal, d José I. 1751-1752, e sobre a festa de São Gonçalo Garcia, em 1745, a Súmula Triunfal da Nova e grande Celebridade do Glorioso e Invicto Mártir São Gonçalo Garcia, de Sotério da Silva Ribeiro, e o Discurso Histórico, Geográfico, genealógico e político e encomiástico, de Frei Jaboatão22. Todas essas obras esperavam criar uma memória a partir de uma efeméride festiva significada como marco de algum momento solene para a Coroa, fosse espanhola ou portuguesa. Por outro lado, como toda obra barroca, seu caráter de encomenda dizia muito sobre os personagens que a encomendavam: além de celebrar os feitos da monarquia, as festas e suas relações enfatizavam a importância fundamental dos encomendadores, as elites locais, na celebração em questão. As obras panegíricas patrocinadas pelos restauradores de Pernambuco, como o Valeroso Lucideno, reproduzem tanto quanto a festa de Restauração, muito dos valores barrocos que a elite açucareira procurava assimilar e demonstrar, em sua busca por nobilização: valores como heroísmo, lealdade e coragem eram idealizados pela nobreza ibérica, reproduzidos nas obras literárias espanholas e portuguesas do século XVII e assimilados pela elite O modelo ibérico de festas barrocas, assim como a descrição de suas práticas, pode ser visto em ÁVILA, Affonso. O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco - Vol. 1: uma linguagem a dos cortes, uma consciência a dos Luces. São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 144-154. 21 MACHADO, Simão Ferreira. Triunfo Eucarístico, Exemplar da Cristandade Lusitana em Pública Exaltação da Fé na solene Transladação do Diviníssimo Sacramento da Igreja da Senhora do Rosário, para um novo Templo da Senhora do Pilar em Vila Rica, etc. Lisboa Ocidental: Oficina de Música, 1734, apud ÁVILA, O Lúdico...; AUREO Trono Episcopal, Collocado nas Minas de Ouro, ou Notícia Breve da Criação do Novo Bispado marianense, da sua felicíssima posse, e pomposa entrada do seu meritíssimo primeiro Bispo,e da Jornada, que fez do Maranhão, etc. Lisboa: Oficina de Miguel Manascal da Costa, 1749, apud ÁVILA, O Lúdico... 22 Ambas as relações, assim como a da aclamação de d José, foram transcritas por José Aderaldo Castello em O Movimento Academicista Brasileiro, apud ARAÚJO, Rita de Cássia. A redenção dos pardos: a festa de São Gonçalo Garcia no Recife, em 1745. In: JANCSÓ, Istvan & KANTOR, Iris (orgs.). Festa: cultura e sociabilidade na América Portuguesa. Vol. 1. São Paulo: Edusp; Imprensa Oficial, 2001, p. 419-444. 20 FESTA E MEMÓRIA DA ELITE AÇUCAREIRA NO SÉCULO XVII 77 açucareira de Pernambuco que se queria barroca23. A festa da Restauração tentava celebrar esses valores e, ao mesmo tempo, marcar no imaginário coletivo a importância dos feitos heróicos da elite. Era realizada em Olinda todo dia 27 de janeiro, com sermão, Te Deum, missa cantada na Sé e desfile dos corpos militares. Mas aparentemente ela nunca mereceu uma relação impressa. O único de seus sermões panegíricos que se viu publicado foi o pregado por Frei Jaboatão em 1731, publicado muito mais tarde pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 186024. Essa festa era agrupada pela Câmara de Olinda, desde 1690, com as festas anuais pelas quais o tesoureiro-geral solicitava à Fazenda Real pagamento de propinas, gratificações, para os oficiais que delas haviam participado. As outras festas anuais eram as de São Sebastião e a de Corpus Christi, pelos registros de 1690, às quais se somava o Anjo Custódio em registros de 1738. O tesoureiro, ao contabilizar os gastos totais da câmara com as festas naquele ano, e que somavam a quantia de 78 mil e 280 réis, descreveu os itens festivos nos quais esse valor havia sido alocado: cera para as velas, castiçais, missa cantada e sermão, sacristão, escravos carregadores, além de outros gastos não especificados 25 . Objetos que iam compor o cenário para aqueles espetáculos festivos nas igrejas e nos cortejos, bem iluminados à luz de muitas velas e embalados pelo som de música religiosa e sermões em latim. Já então, em 1690, o tesoureiro listava a festa da Restauração como anual, o que sugere que aquele não era o primeiro ano em que era celebrada. E era celebrada sempre em Olinda, pelo menos até a década de 1740 quando a Câmara de Igarassu procurou também implantá-la. O caráter de celebração da elite açucareira era tão marcante que a festa não parece ter sido realizada no Recife apesar dessa povoação, depois de elevada à vila em 1711, tentar se adaptar ao padrão festivo da Coroa, promovendo sua cota de festas públicas. A câmara da nova vila estava ansiosa por demonstrar sua lealdade à Coroa e angariar para seus oficiais uma quantidade respeitável de prestígio. E, para isso, insistiu na realização de sua própria festa de Corpus Christi, a mais importante celebração dos impérios português e espanhol, concorrendo e Vemos esses valores em MARAVALL, José Antonio. A cultura do Barroco: análise de uma estrutura histórica. São Paulo: Imprensa Oficial; Edusp, 1997; e FRANÇA, Portugal ... Que os mesmos eram conhecidos e reproduzidos pela elite açucareira vemos na obra de um de seus expoentes máximos, Duarte de Albuquerque Coelho. COELHO, Duarte de Albuquerque. Memórias diárias da Guerra do Brasil. São Paulo: BECA, 2003. 24 MELLO, Rubro veio, p. 28. 25 REQUERIMENTO do tesoureiro-geral da câmara de Olinda, cap. Feliciano de Mello da Silva, aos oficiais dela, para que se passasse mandado de despesas das festas religiosas que o senado mandou fazer este ano. AHU_ACL_CU_015, D. 1537. Já em documento de 1738, vemos a Coroa estabelecendo a quantia de 30 mil réis para a realização das festas de São Sebastião, da Restauração e do Anjo Custódio do Reino, todas realizadas na catedral com o Santíssimo Sacramento exposto. CARTA dos oficiais da câmara de Olinda ao rei, d. João V, pedindo um aumento nas verbas concedidas ás despesas com as festas de são Sebastião, da Restauração frente ao holandês e do anjo custódio do reino. AHU_ACL_CU_015, Cx. 52, D. 4537. 23 78 KALINA VANDERLEI SILVA disputando com a de Olinda. Por outro lado, a ação de graças pela Restauração não atraiu sua atenção, celebração que era dos feitos dos senhores de engenho olindenses, enquanto em Recife dominavam os comerciantes de grosso trato26. E não apenas o Recife não organizou festa semelhante, como não prestigiou a comemoração em Olinda, como demonstra a reclamação que a câmara daquela cidade fez ao rei a respeito da ausência do governador, então sediado em Recife, e demais autoridades na ação de graças de 1725 e 1726. Em 1725, escreveu o rei ao governador de Pernambuco, então D. Manuel Rolim de Moura, reproduzindo a queixa dos oficiais da Câmara de Olinda sobre a ausência das autoridades na comemoração da “memória da gloriosa restauração da capitania” que se fazia por ordem régia todos os anos. A carta régia descreve a organização da cerimônia com missa, Santíssimo Sacramento exposto e sermão na Santa Sé, assistida pelos terços de Olinda e Recife, além dos ministros, oficiais de Justiça e Fazenda. Mas no ano em questão só se achavam presentes os oficiais da Câmara de Olinda. A essa reclamação respondeu então o governador dizendo que Sempre a assisti e os ditos ministros em a dita festa, como também todo o terço inteiro da cidade marcha para a Sé como é estilo, e não tenho notícias que o terço do Recife se achasse também em outros anos na tal celebridade, como afirmam os ditos oficiais.27 No ano seguinte os oficiais de Olinda voltaram a reclamar ao rei, solicitando que, como era costume em anos anteriores, na festa da Restauração marchassem os dois terços, o de Olinda e o de Recife, com seus mestres de campos, além do terço dos henriques com mestre de campo, e que todos recebessem pólvora para uma salva de artilharia em memória do dia. Além disso, reiteravam seu pedido de que o governador, ministros e oficiais, e todas as “pessoas da nobreza” dentro de duas léguas da cidade fossem obrigados a comparecer a festa28. 26 27 28 As querelas de jurisdição entre Olinda e Recife em torno da festa de Corpus Christi estão registradas em documentos como a CARTA dos oficiais da câmara de Olinda ao rei [d João v], sobre a pretensão da câmara de Recife de fazer a procissão do corpo de Deus no mesmo dia em que se faz em Olinda. AHU_ACL_CU_015, cx 63, D. 5386, e CARTA dos Oficiais da Câmara do Recife ao rei [D João V], sobre se realizar a procissão de Corpo de Deus no Recife devido à isenção do seu povo e clero de comparecerem à de Olinda. AHU_ ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3499. CARTA do governador da capitania de Pernambuco ao rei sobre a ordem para que todos os ministros, oficiais de justiça e fazenda, governador, senado e todos os terços de Recife e Olinda participem dos festejos da Restauração. AHU_ACL_CU_015, Cx. 31, D. 2849. Pernambuco, 18 jul. 1725. CARTA dos oficiais da câmara de Olinda ao rei, d. João V, sobre a ordem para que na festa de ação de graças de 27 de janeiro, marchem os terços e compareçam o governador, ministros e oficiais. AHU_ACL_CU_015, Cx. 32, D. 2950. FESTA E MEMÓRIA DA ELITE AÇUCAREIRA NO SÉCULO XVII 79 Essa repetida queixa deixa claro o desrespeito das elites de Recife com a celebração da nobreza olindense, que se queria fidalga. Clara também fica a insistência dessa ‘nobreza da terra’, já então em pleno processo de perda de hegemonia política sobre a capitania, na festa como marco de sua importância social e política. Uma insistência que enfatizava a memória do feito que esta celebração deveria comemorar. E, apesar dessa decadência, ou por causa dela, a elite açucareira continuou a insistir na festa da Restauração pelo menos até a década de 1740, quando a implantou também em Igarassu: Prostrados aos benignos pés de Vossa Real Majestade, que Deus guarde, como mais leais e fiéis vassalos, damos conta a Vossa Majestade, que sendo essa vila de Santos Cosme e Damião de Igarassu a mais antiga desta capitania de Pernambuco, e fazendo na cidade de Olinda no dia vinte e sete de janeiro, anualmente ação de graças a Deus Nosso Senhor por ser o dia em que se restaurou esta terra do poder do holandês, nesta vila se não faz ato algum de lembrança, e parecendo ser necessário, fazermos a mesma ação de graças no dito dia, para lembrar aos presentes o que fielmente obraram os nossos antepassados; Demos conta a Vossa majestade, que sendo servido, nos mandar ordem para a podermos fazer, com a mesma despesa, que se costuma fazer nesta vila a do Anjo Custódio, paga das sobras do Concelho.29 Era a reafirmação da memória dos feitos gloriosos dos senhores de engenho que, em 1740, enfrentavam o crescimento do Recife e sua elite comercial. Uma última tentativa de fixar na memória coletiva da capitania os feitos pelos quais a elite açucareira tanto se orgulhava e sobre os quais baseava todas as suas reivindicações de nobreza. Uma tentativa de “lembrar aos presentes o que fielmente obraram os nossos antepassados”, segundo as palavras da própria câmara. Afirmação que enfatiza a função da festa como ato de criar e cristalizar uma memória, ao mesmo tempo oficial e coletiva, em torno dos fatos em questão. Se as festas públicas do Antigo Regime deveriam instituir memória ao cristalizarem determinadas representações sobre o passado, representações essas que traziam a público uma memória selecionada, um passado que se queria recordar, tal papel foi assumido à perfeição pela festa de ação de graças pela Restauração da capitania de Pernambuco que procurava comemorar e construir uma dada memória de feitos heróicos da elite açucareira. Mas se a festa barroca tinha a função de construir memória, também tinha 29 CARTA dos oficiais da câmara de Igarassu ao rei, d. João V, pedindo ordem para fazer ação de graças pela Restauração da capitania de Pernambuco do poder dos holandeses, como se faz anualmente em Olinda, no dia 27 de janeiro. AHU_ACL_CU_015, Cx. 59, D. 5054. 80 KALINA VANDERLEI SILVA a de reafirmar privilégios, o que dependia de rígidas definições nos papéis sociais de cada personagem no cerimonial, e do estabelecimento bem definido da geografia política dos espaços de privilégio nessas festividades. E como todas as cerimônias públicas barrocas, a festa da Restauração demarcava lugares de poder, fosse na procissão, fosse na Igreja. As autoridades, como governador, ministros, mestres de campos, tinham seus lugares prédeterminados, seguidos de personagens de menor status mas cuja presença servia para validar a das grandes autoridades, como os soldados que deveriam acompanhar os mestres de campos. Os gestos eram medidos, como as salvas de artilharia e os sermões. Os símbolos do poder absoluto da Igreja e da Coroa estavam presentes, como no Santíssimo Sacramento. E em torno deles se repartiam as posições hierarquicamente predeterminadas de prestigio, equivalente ao status de cada participante. A elite açucareira de Pernambuco muito fez para ser lembrada como restauradora. Esse epíteto lhe dava privilégios perante a Coroa portuguesa para quem, a seu ver, tinha restituído uma parte importante do império. Muitos dos discursos dessa elite pós 1654, então, giraram em torno da comemoração da Restauração, tanto os discursos políticos expressos nas petições e requerimentos endereçados à Coroa, quanto o discurso artístico em obras devidamente encomendadas pelos líderes da guerra. E se a festa da Restauração era o ápice desse espírito de celebração/construção de uma memória, visto que reproduzia os bens sucedidos mecanismos de espetáculo do barroco ibérico, por outro lado ela não cresceu para além da sede da elite açucareira, nunca conseguindo convencer os opositores, a elite mercantil do Recife. Enquanto durou, todavia, foi responsável pela fixação pública da identidade da elite açucareira enquanto fidalguia, pelo menos no imaginário da própria elite açucareira. 81 PATRIMÔNIO, TERRITORIALIDADE, JURISDIÇÃO E CONFLITO NA AMÉRICA PORTUGUESA: PERNAMBUCO, SÉCULO XVIII George F. Cabral de Souza1 s origens da Câmara do Recife estiveram marcadas pelo conflito. Desde a segunda metade do século XVII as diferenças entre os senhores de engenho e os mascates deram o tom das tensões políticas em Pernambuco. Um dos seus reflexos mais visíveis foi a disputa pelo poder municipal. Ainda que a solução mais simples fosse a transferência da sede da capitania de Olinda ao Recife e a abertura dos cargos municipais aos comerciantes, a coroa optou por uma saída mais aparatosa: a criação de uma nova municipalidade aberta também aos negociantes do Recife, a maioria deles de origem portuguesa. O fato de que entre as duas sedes dos dois governos municipais não houvesse mais que uma légua de distância não foi levado em conta. Segundo as normas da coroa portuguesa para a colônia, devia-se observar uma distância de pelo menos seis léguas entre uma vila e outra. Isso garantia um espaço mínimo de três léguas entre duas sedes municipais. O imenso território e os poucos recursos, muito mais que a recomendação legal, acabaram por fazer a dispersão muito mais frequente que a concentração de sedes municipais. O fato mais usual na América Portuguesa foi a grande distância entre os centros urbanos e as instâncias administrativas, distâncias estas que constantemente provocavam ocos de poder em largas extensões territoriais2. A conflituosa coexistência de dois centros tão ativos política e economicamente representa, pois, um especial atrativo para o historiador. No momento da elevação do Recife à qualidade de vila não foram tomadas medidas para determinar os limites de jurisdição dos ofícios municipais secundários entre os dois poderes locais. Em relação ao patrimônio territorial do Recife, não ficou claro se a separação do termo de Olinda compreendia tanto a administração como a posse. Assim, no ambiente inflamado dos anos pós Guerra dos Mascates, nos quais a nobreza da terra sofreu duros golpes Doutor em História pela Universidade de Salamanca. Pesquisador do Grupo de Pesquisas O Mundo Atlântico (PPGH-UFPE/ Diretório CNPq). Professor Adjunto do Departamento de História e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. Associado efetivo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Pesquisador financiado pela FACEPE. E-Mail: <georgecabral@yahoo.com>. 2 LOBO, E. M. L. Processo administrativo ibero-americano. Rio de Janeiro: Bibliex Editora, 1962, p. 144. VIANNA, O. Instituições políticas brasileiras. Brasília: Senado Federal, 1999, p. 133 e ss. OMEGNA, N. A cidade colonial. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1961, p. 34-35. 1 82 GEORGE F. CABRAL DE SOUZA políticos, foi necessário também definir claramente toda uma série de questões de escopo político, administrativo, econômico e, inclusive, religioso, uma vez que a existência do padroado régio mesclava os temas eclesiásticos com os demais. Observemos alguns aspectos específ icos destes conflitos, concretamente no que tange às questões relacionadas com a formação do patrimônio da câmara do Recife, ao longo do século XVIII. As câmaras municipais possuíam um conjunto de despesas e receitas que deviam gerenciar para cumprir suas obrigações legais. As municipalidades desfrutavam de alguma autonomia fiscal, mas as fontes de renda costumavam ser exíguas e pouco estáveis. Os recursos para custear as despesas municipais eram arrecadados pela própria câmara, e a origem deles era local. Segundo Hespanha, as principais fontes de financiamento das câmaras eram: 1) os rendimentos de bens patrimoniais como edifícios alugados na sede da vila ou em seu termo; 2) direitos cobrados pela utilização dos bens comunais como pastos e bosques; 3) multas por descumprimento das posturas; 4) as penalidades aplicadas pelos almotacés; 5) as penas pecuniárias aplicadas pelos juízes; e, também, 6) os tributos municipais, como as portagens, as taxas cobradas sobre o valor das mercadorias que entravam ou saíam da sede da vila, e os terrádigos, um imposto cobrado sobre as transferências de terrenos por venda. No caso de necessidade, se recorria às fintas e talhas. Essas contribuições oficialmente eram voluntárias e se adequavam a cada um de acordo com o nível de propriedade3. Na realidade, eram contribuições obrigatórias para custear obras de defesa, pontes, estradas, caminhos, o envio de procuradores à corte, festas, procissões ou para colaborar no esforço de defesa mais amplo juntamente com outras municipalidades. No quesito de despesas, ainda segundo Hespanha, figuravam como principais gastos: 1) um terço da arrecadação que era repassada ao tesouro régio; 2) o pagamento de funcionários da câmara e a profissionais de interesse público (boticários, médicos, professores entre outros); 3) o salário dos juízes de fora sempre que estes não recebessem diretamente do tesouro real; 4) a assistência aos expostos, pobres e doentes; 5) gastos para as solenidades, procissões, festas, casamentos ou funerais reais; 6) envio de procuradores; 7) gastos com correios; 8) solicitações extraordinárias do Rei (pedido do Rei); e, finalmente, 9) os pequenos gastos cotidianos da câmara. Na realidade colonial, este perfil nem sempre se aplicava completamente, existindo variações consideráveis segundo as características econômicas e demográficas locais. A falta de recursos costumava ser comum e as fintas eram impostas à população com alguma frequência e nem sempre dentro do espírito de equilíbrio previsto na lei. Zenha, em seu estudo sobre as 3 VIDIGAL, L. O municipalismo em Portugal no século XVIII. Lisboa: Horizonte, 1989. p. 76-77. ZENHA, E. O município no Brasil, 1532-1700. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948, p. 125-126. HESPANHA, A. M. História das instituições: épocas medieval e moderna. Coimbra: Livraria Almedina, 1982, p. 240-241. Ordenações Filipinas, Livro I, tít. 66, par. 40. PATRIMÔNIO, TERRITORIALIDADE, JURISDIÇÃO E CONFLITO NA AMÉRICA PORTUGUESA 83 municipalidades coloniais nos século XVI e XVII, questiona como instituições economicamente tão débeis puderam impor-se social e politicamente como o fizeram as câmaras. No caso da Câmara de Olinda, condições particulares locais fizeram com que a municipalidade assumisse a administração de praticamente todo o orçamento da capitania de Pernambuco. Para compreender os problemas surgidos com o desmembramento da municipalidade recifense, sobretudo aqueles vinculados com os conflitos sobre a propriedade territorial, temos que atentar, ainda que tangencialmente, para alguns aspectos do patrimônio municipal de Olinda. O primeiro grande aporte patrimonial recebido pela edilidade olindense teve lugar no início da colonização efetiva de Pernambuco. Duarte Coelho realizou, no momento da fundação da vila, a doação de vastas extensões de terrenos através do Foral de Olinda. Entre os locais doados aparecia “o Recife dos navios com suas praias”, referência mais remota à localidade onde se ergueria o povoado ao redor do principal porto da capitania4. A Câmara de Olinda dispunha, assim, da possibilidade de tributar os ocupantes destes terrenos através da cobrança dos foros. Naquele momento, muitos destes terrenos eram nada mais que areia ou manguezais. Mas, o incremento da população e a ampliação das áreas ocupadas, modificaram o quadro. Ao longo de seus quase cinco séculos de existência, a administração municipal de Olinda continuou (e continua) a cobrar esta taxa. No século XVII, novas atribuições foram concedidas ao poder municipal olindense. A invasão da West Indische Compagnie em Pernambuco, em 1630, e os posteriores esforços para sua expulsão entre 1645 e 1654, fizeram da Câmara de Olinda o epicentro político da resistência pernambucana. Desde então, coube a ela a arrecadação e a administração dos tributos na capitania, fato que garantia sua preeminência como a “cabeça do povo de Pernambuco”. Em 1713, por exemplo, o montante total de recursos geridos pela Câmara de Olinda alcançou os 26:000$000. O grosso deste orçamento vinha da administração dos contratos de arrecadação de tributos. Este era um dos principais atrativos do poder municipal em Olinda, pois as concessões, muitas vezes dadas através de leilões fraudulentos, permitiam a formação de clientelas políticas5. Esta posição destacada se manteve até 1727, quando mudanças administrativas retiraram de Olinda suas atribuições supramunicipais em PEREIRA DA COSTA, F. A. Anais pernambucanos. 2. ed. Recife: Fundarpe, 1983. Vol. I, p. 267; Vol. II, p. 135. 5 MELLO, E. C. de. Fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 62-67. A grande quantidade de rendas administradas pela Câmara de Olinda despertava cobiça entre os funcionários metropolitanos em Pernambuco. Além disso, as irregularidades eram frequentes e as contas, no mínimo, obscuras. Daí que depois da Restauração, vários governadores e outros funcionários terem tentado limitar as atribuições fiscais da “Câmara de Pernambuco”, agravando as tensões entre os interesses locais e o poder central. 4 84 GEORGE F. CABRAL DE SOUZA matérias fiscais, passando-as à Provedoria6. Em 1710 a criação da nova vila do Recife provocou uma série de questões sobre o patrimônio. Primeiro a separação das três freguesias rurais do termo de Olinda e sua incorporação ao Recife. As freguesias eram as da Muribeca, Ipojuca e Cabo. De acordo com as normas do Antigo Regime, retirar territórios e jurisdição de uma vila ou cidade era considerado uma violação de privilégios garantidos pela coroa. Este tipo de acontecimento costumava provocar grandes disputas judiciais. Os oficiais da câmara que perdia território no processo de criação de uma nova unidade administrativa protestavam inclusive por questões práticas de repercussão imediata: a redução de importância do concelho7; o aumento das taxas per capita, pois cada vizinho tinha que suportar um valor mais alto a pagar; a mesma situação se dava quando uma finta era convocada, já que uma quantidade menor de vizinhos também significava uma carga tributária maior para cada um deles8. A gestão e o aproveitamento do patrimônio territorial municipal foram sempre uma questão delicada. Às vezes os conflitos por esse tema ultrapassavam os limites jurisdicionais do município envolvendo funcionários reais e o poder central. Bicalho chama a atenção para os constantes problemas relacionados com a distribuição de terrenos nas praias pertencentes à municipalidade do Rio de Janeiro e os conflitos que houve sobre a questão com as autoridades reais e a coroa. A Câmara do Rio de Janeiro gozava da prerrogativa de arrendar entes terrenos a interessados em construir neles. Essa era uma das principais fontes de renda para a edilidade. Era também uma excelente oportunidade de auferir ganhos privados para os oficiais municipais, seus parentes e achegados. Em 1732, o governador da capitania do Rio de Janeiro, Luis Vahia Monteiro, denunciou à coroa que as concessões de terrenos públicos nunca eram feitas de forma a atender o bem comum, senão que aos interesses dos que controlavam o poder municipal e os seus apaniguados. MELLO, E. C. de. Rubro veio: o imaginário da Restauração Pernambucana. 2. ed. São Paulo: Topbooks, 1997, p. 150-151. Veja-se ainda: AHU_ACL_CU_015, Cx. 25, D. 2307, 12 set. 1713. 7 “Cada novo concelho era uma amputação a um outro território concelhio, era uma limitação não apenas espacial, mas social da jurisdição. O que não deixava de ser recebido da pior maneira. Onde os interesses em jogo eram relativamente insignificantes a luta podia estender-se durante longos anos sem turbulências, enredando-se os papéis nos tribunais régios pela chicana dos procuradores”. MAGALHÃES, J. R. Reflexões sobre a estrutura municipal portuguesa e a sociedade colonial brasileira. Revista de história económica e social. Lisboa, v. 16, 1985, p. 18. 8 HESPANHA, A. M. Vísperas del Leviatán. Madrid: Taurus, 1989, p. 83-84; MELLO, Fronda dos mazombos, p. 228-229. Mello destaca que os vereadores de Olinda tentaram uma saída jurídica baseada na salvaguarda desse tipo de privilégios jurisdicionais para fechar a recém-instalada Câmara do Recife. Para um interessante caso de disputa patrimonial na América Hispânica ver: PÉREZ, J. M. S. Élites, poder local y régimen colonial: el Cabildo y los regidores de Santiago de Guatemala, 1700-1787. Cádiz: Universidad de Cádiz, 1999, p. 274-303. 6 PATRIMÔNIO, TERRITORIALIDADE, JURISDIÇÃO E CONFLITO NA AMÉRICA PORTUGUESA 85 Em fins dos anos 1770 uma denúncia assinada pelos moradores do Rio de Janeiro informava à coroa que os protegidos dos oficiais municipais enchiam suas arcas sub-arrendando parcelas de terrenos urbanos concedidos pela edilidade. O mecanismo era simples e lucrativo: os vereadores arrendavam terras públicas por foros baixíssimos a pessoas próximas a quem não interessava construir, e sim repassar as concessões aos que de fato buscavam espaço para novas edificações. Estes últimos se viam obrigados a pagar foros muito mais elevados aos primeiros arrendatários. Com o respaldo da municipalidade aplicavam cobranças cada vez mais altas segundo o valor da área se incrementava, novas construções eram feitas ou as já existentes eram melhoradas9. Por outro lado, além do problema das freguesias rurais anexadas à nova vila, chegou de Lisboa a ordem de que se procedesse ao inventário dos bens patrimoniais de Olinda, exatamente na época em que ocorriam os momentos críticos do enfrentamento entre nobres e mascates. O trâmite era necessário para que se comprovasse a confirmação real das doações de terrenos feitas por Duarte Coelho à Câmara de Olinda em 1537. A câmara solicitava esta confirmação porque os documentos originais se perderam durante a invasão holandesa. Em 1678 a coroa confirmou uma parte das possessões de Olinda, mas os terrenos ocupados por particulares deviam ser judicialmente reivindicados. Daí a necessidade de proceder a catalogação, o que dava uma excelente oportunidade para importunar a gente do Recife, pois muitos ocupavam terrenos de Olinda sem pagar o foro devido10. A autonomia política do Recife ficou garantida com a retomada definitiva do funcionamento da nova municipalidade sob o governo de Félix José de Machado em 18 de novembro de 1711. Ainda assim, o suporte financeiro da instituição tardaria várias décadas até se consolidar. A falta de recursos impedia o cumprimento das obrigações básicas de uma municipalidade lusitana. Uma das ocasiões mais importantes do calendário litúrgico era a procissão de Corpus Christi, e sua realização era uma das atribuições das câmaras. Além do mais, era o momento ideal para as representações simbólicas do poder no Antigo Regime. Há um longo rol de contendas entre as duas BICALHO, M. F. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 190, 210-220. Também sobre os conflitos entre a Câmara do Rio e os funcionários da coroa acerca de questões patrimoniais ver os seguintes artigos: SANCHES, M. G. O rei visita os seus súditos...: a Ouvidoria do Sul e as correições na Câmara do Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, IHGB, ano 164, n. 421, 2003, p. 130-131. IGREJAS, C. dos A. F. Centralização joanina e realidade colonial: a ação de Luís Vaía Monteiro no Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, IHGB, ano 164, n. 421, 2003,p. 175-177. 10 A provisão régia foi passada em 20 fev. 1709 atendendo a um requerimento da Câmara de Olinda. A conclusão do trâmite, levado a cabo pelo ouvidor de Pernambuco, José Inácio de Arouche, se deu em 23 set. 1710. PEREIRA DA COSTA, Anais pernambucanos, vol. V, p. 154-157. MELLO, Fronda dos mazombos, p. 232-233. 9 86 GEORGE F. CABRAL DE SOUZA câmaras sobre a realização destas solenidades11. Para o leitor atual, essencialmente laico, isso poderá parecer uma questão menor. Mas não era para aquelas pessoas. Figurar em uma procissão ou participar de uma irmandade representava, no mundo colonial iberoamericano, muito mais que um ato de fé. Eram oportunidades inigualáveis para ostentar limpeza de sangue e status, em uma sociedade tão hierarquizada e cheia de preconceitos. Participar em uma procissão significava, sobretudo, marcar uma clara clivagem frente à plebe que tinha que se contentar em ver passar o cortejo. Por outro lado, as festas promoviam a consolidação de uma identidade comum, permitindo a interiorização de valores e práticas coletivas fundamentais para a legitimação de estruturas coloniais e reinóis, ao mesmo tempo em que estreitavam os laços mentais de unidade dos dois lados do Atlântico. As ordens religiosas e as irmandades realizavam muitos destes eventos, mas eram as câmaras as que habitualmente organizavam este tipo de celebrações12. Apesar de sua importância as procissões foram suspensas em várias ocasiões por falta de recursos. A meados do século XVIII, o ouvidor da capitania enviou um informe sobre a petição de dinheiro para a realização das procissões e o pagamento das propinas que os oficiais municipais deviam receber nestas ocasiões. Neste documento, a máxima autoridade judicial em Pernambuco ponderava que “não havendo vila donde não se celebre esta grande festividade, ainda nas mais ordinárias, não é bom que se não faça nesta, que pela sua grandeza podia ser tida como uma das maiores cidades do Reino”. Houve ocasiões, como na morte de D. João V, em que os vereadores tiveram que pedir empréstimos para patrocinar as manifestações de luto ou de júbilo pela família real. Em outros momentos, arrecadou-se entre os vereadores as quantias necessárias para realizar as festas e procissões, ou para os consertos necessários na casa de câmara e cadeia. Em 1752 se queixavam de que apesar da Câmara do Recife não ter patrimônio, não recebia nenhuma ajuda da Fazenda Real para este tipo de celebrações, enquanto que outras municipalidades tinham patrimônio e recebiam recursos das arcas régias para a realização das festas13. Ver SOUZA, G. F. C. de. Elite y ejercicio de poder en el Brasil colonial: la Cámara Municipal de Recife (1710-1822). Tese de doutorado. Universidade de Salamanca, 2007. 12 BOXER, C. R. A idade de ouro do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 145. “Muitos poucos tinham entre suas fileiras a dignidade da representação e estar entre os que desfilavam significava se diferenciar da plebe”. FURTADO, J. F. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 31, 141 e 220. RAMINELLI, R. Festa. In: VAINFAS, R. (org.). Dicionário do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 233-234. 13 Consulta do Conselho Ultramarino a D. José I, 2 dez. 1754, AHU_ACL_CU_015, Cx. 77, D. 6450. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. José I, AHU_ACL_CU_015, Cx. 73, D. 6134. Certificado do escrivão da Câmara do Recife que atesta os ingressos desta câmara, 11 PATRIMÔNIO, TERRITORIALIDADE, JURISDIÇÃO E CONFLITO NA AMÉRICA PORTUGUESA 87 Os problemas causados pela falta de recursos para os gastos da câmara provocavam também efeitos mais “terrenais”. Uma das rubricas do orçamento de um município colonial estava destinada à assistência aos expostos e aos doentes. As Santas Casas de Misericórdia normalmente se encarregavam de construir as rodas de enjeitados, e muitas vezes estas instituições recebiam fundos especiais destinados à sua manutenção e ao cuidado destas crianças. Não obstante, a responsabilidade de organizar e financiar as casas de expostos e as amas-de-leite ou famílias para cuidar deles correspondia às câmaras. Em Olinda, por exemplo, a câmara destinou, em 1765, 120$000 para o pagamento das mulheres responsáveis pelos cuidados dos enjeitados. Isso representava cerca de 10% do total das despesas municipais. Por essa época este tipo de despesa ainda não aparecia nas contas do Recife, ainda que em muitas ocasiões os vereadores tenham solicitado ao Rei fundos para esse fim. Já em 1729 a câmara informava ao monarca que a falta de recursos para a manutenção de um local adequado para acolher as crianças fazia com que fossem abandonados à sua sorte pelas ruas, resultando disso “amanhecerem muitos meninos comidos dos cães e porcos”. A assistência aos enfermos também ficava comprometida pela falta de meios. Em 1722, o médico Domingos Felipe Gusmão solicitava ao governador da capitania que seu salário, pago pela edilidade recifense, “fosse de cento e cinquenta mil réis anuais, à imitação do médico da cidade de Olinda”. Os vereadores responderam ao governador que não havia dúvida da conveniência que a presença de um médico representava para a população da vila. Entretanto, afirmavam também que “é menos sem dúvida que esta câmara, por ser recentemente criada, se acha ainda sem patrimônio, nem renda alguma em que se possa fazer tal côngrua, nem nenhuma de outras coisas de que necessita, para o que se espera a Real Providência”14. Segundo os vereadores, a pobreza do Senado do Recife era tão grande em 1738 que a casa de câmara e cadeia não possuía um sino, utilizado pelas instituições municipais para indicar a realização de atos da câmara e do toque de recolher pela noite. As obras de conservação urbana também estavam comprometidas. Dada a configuração geográfica da sede da vila, as principais estruturas urbanas eram as pontes. Através delas se dava a circulação de pessoas e mercadorias entre a hinterland e o porto, assim como entre o Recife e a Ilha de Antônio Vaz. 5 mar. 1759, AHU_ACL_CU_015, Cx. 90, D. 7250. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. José I, 28 jun. 1752, AHU_ACL_CU_015, Cx. 73, D. 6134. 14 SILVA, M. B. N. da. História da família no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 208-209. FARIA, S. de C. Roda dos expostos. In: VAINFAS, Dicionário..., p. 512513. Receita e despesa da Câmara de Olinda, 1766, e Receita e despesa da Câmara do Recife, 1766, ambos em AHU_ACL_CU_015, Cx. 104, D. 8069. Carta da Câmara do Recife ao Rei D. João V sobre as rendas e despesas da câmara, 17 mai. 1729, AHU_ACL_CU_015, Cx. 41, D. 3671. Carta da Câmara do Recife ao Governador de Pernambuco, 26 mar. 1722. Registros da Câmara (LRCMR), 1733-1808, f. 109v, Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP). 88 GEORGE F. CABRAL DE SOUZA A manutenção das pontes excedia a capacidade financeira da vila e dependia, portanto, das quantias arrecadadas nas povoações de Pernambuco. Como sabemos, a administração fiscal de Pernambuco permaneceu até 1727 sob controle da Câmara de Olinda. Devido aos choques políticos entre as duas municipalidades, a transferência destes recursos sempre provocou tensões. Em 1720, o Rei determinou que fosse usada uma parte das rendas dos impostos do Dote da Rainha da Grã-Bretanha e da Paz de Holanda para custear a reforma das pontes da Boa Vista e de Afogados. No ano seguinte os vereadores do Recife denunciaram que, não obstante tivessem sido agraciados pela coroa com esta decisão, as pontes continuavam sem os devidos consertos, “pelo que já têm acontecido algumas mortes e outros desastres”, acrescentavam com evidente exagero15. Os terrenos do Foral de Olinda passaram, então, a ser objeto de cobiça por parte da Câmara do Recife. As manobras para impedir a transferência das freguesias rurais para a jurisdição do Recife não tiveram o êxito esperado. Entretanto, apesar de possuir autoridade administrativa e jurídica sobre estes territórios meridionais da capitania, a Câmara do Recife não detinha a posse e o direito de cobrar foros, inclusive nos terrenos centrais da vila. Os vereadores recifenses repetiram as súplicas para que a propriedade entrasse no patrimônio da vila. Foram feitas pelo menos oito representações entre 1718 e 175216. Em todas elas a argumentação refletia a tensão gerada pelo desmembramento do termo da cidade de Olinda. Os vereadores do Recife reconheciam que antes da criação da nova vila, a Câmara de Olinda cobrava os foros a que tinha direito, pois os territórios do que era então a povoação do Recife estavam sob jurisdição da cidade duartina. Mas, uma vez que se procedeu a separação dos territórios, lhes parecia que se anulava a subordinação à jurisdição de Olinda, ficando os habitantes do Recife isentos de pagar qualquer taxa à edilidade vizinha. Alegavam que a permanência da cobrança destes foros constituía uma invasão de jurisdição e uma desobediência à vontade régia que, dando autonomia a uma vila, lhe concedia também automaticamente a posse e o atributo de cobrar as rendas dos terrenos sob seu poder. Em uma representação feita em 1733, os vereadores Carta da Câmara do Recife a D. João V, 20 mar. 1738, LRCMR, f. 177, IAHGP. Por outro lado, “o sino da casa de câmara era um verdadeiro símbolo edilício, a par do pelourinho, que demarcava esta espécie de ‘noblesse de cloche’ ainda que o símbolo português fosse mais sonoro…”. VIDIGAL, O municipalismo..., p. 62. ACIOLI, V. L. C. Jurisdição e conflito. Recife: UFPE, 1997. p. 37-38. Carta da Câmara do Recife a D. João V, 28 abr. 1721, LRCMR, f. 103v, IAHGP. 16 MELLO, Fronda dos mazombos, p. 233 e ss. 3º volume de Cartas de Pernambuco (CP), AHU, Cód. 258, f. 184v, 21 mar. 1718. 4º volume de CP, AHU, Cód. 259, f. 192. AHU_ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3497, 20 jul. 1729. AHU_ACL_CU_015, Cx. 41, D. 3671, 15/ 9/1730. AHU_ACL_CU_015, Cx. 44, D. 4002, 20 jun. 1733. Carta da Câmara do Recife a D. João V, 20 mar. 1738, LRCMR 1733-1808, hoja 177, IAHGP. AHU_ACL_CU_015, Cx. 73, D. 6134, 28 jun. 1752. 15 PATRIMÔNIO, TERRITORIALIDADE, JURISDIÇÃO E CONFLITO NA AMÉRICA PORTUGUESA 89 do Recife lamentavam que, ainda que a vila fosse a mais importante da capitania, a situação financeira de sua câmara era das piores. A pretensão da Câmara do Recife não se concretizou. Os foros continuaram a ser cobrados por Olinda, e os documentos que se conservaram da municipalidade olindense nos permitem ver que, nas ruas principais da vila do Recife, muitos dos moradores pagavam o foro, inclusive os que ocupavam os cargos municipais. As irmandades e ordens também tinham de pagar os foros sobre algumas das propriedades incorporadas por herança ou doação dos fiéis17. A correspondência entre os dois órgãos locais e a coroa não esclarece quando o governo central negou definitivamente a solicitação recifense. A última notícia, em 1752, não é conclusiva. Por outro lado, não localizamos novos pedidos posteriores a esta data. Desde o principio da disputa, os informes das autoridades locais eram desfavoráveis ao pedido do Recife. O governador Duarte Sodré Pereira Tibão, por exemplo, que tomava sempre posições favoráveis à câmara, chegando inclusive a declarar, em carta ao Rei, que “este Senado da Câmara serve à Vossa Majestade com muito zelo e fidelidade (...) e na execução das ordens de Vossa Majestade são prontíssimos e por estas razões deve Vossa Majestade honrá-los”. Entretanto, na mesma carta declarava que não acreditava que fosse conveniente conceder a súplica dos recifenses para evitar choques com a Câmara de Olinda18. Era evidente que não seria politicamente prudente reduzir as fontes de renda da municipalidade olindense que, como sabemos, já havia perdido a administração dos contratos e tributos da capitania em 1727. Se, por um lado, a Câmara do Recife não conseguiu adquirir a potestade sobre os terrenos pertencentes a Olinda, por outro, conseguiu a posse de alguns ofícios locais. Estes também foram solicitados com frequência, aparecendo normalmente associados à petição por foros de Olinda. Outra vez, como no caso da definição da posse das terras municipais, a coroa hesitou em decidir, temendo acirrar os conflitos entre as duas municipalidades. Neste caso a situação foi consideravelmente mais complexa, pois estavam envolvidos, além dos interesses institucionais, os dos particulares que eram proprietários dos ofícios ou os de quem os arrendavam. Observemos dois casos em que houve problemas no momento de definir a jurisdição e a propriedade dos ofícios municipais secundários de Olinda por Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 29 jul. 1729, AHU_ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3497. Carta dos of iciais da Câmara do Recife a D. João V, 20 jun. 1733, AHU_ACL_CU_015, Cx. 44, D. 4002. O conjunto de documentos que registra os pagamentos e as dívidas dos foros de Olinda se encontra em vários volumes, já devidamente transcritos e catalogados disponíveis na Secretaria da Fazenda de Olinda. Os índices permitem localizar as unidades tanto pelo nome do proprietário do imóvel, como pelo terreno tributado. 18 Carta do governador de Pernambuco a D. João V, 15 set. 1730, AHU_ACL_CU_015, Cx. 41, D. 3671. 17 90 GEORGE F. CABRAL DE SOUZA ocasião da criação da vila do Recife. Os dois ofícios eram o de alcaide e o de escrivão da câmara. Esses eram remunerados de acordo com as solicitações de seus serviços através da cobrança de emolumentos aos usuários. Seus proprietários ou arrendatários adquiriam o ofício e eram compensados com estes emolumentos. Tratava-se de um arranjo muito comum na administração portuguesa, que assim conseguia garantir o adiantamento da arrecadação dos tributos sem a necessidade de aumentar o número de funcionários. Normalmente se associa esta prática ao império espanhol, mas sua presença no mundo colonial português é considerável19. Outra maneira de aceder a um cargo deste tipo era como recompensa por serviços prestados à coroa. Por serviços prestados devemos entender uma variada gama de ações, desde a participação direta ou indireta na defesa da capitania até o empréstimo a autoridades locais para acudir a gastos urgentes, quase nunca previstos nos deficitários orçamentos imperiais. No caso concreto de Olinda e Recife, no momento da separação administrativa em 1710-1711, os proprietários se encontraram numa situação pouco usual. Em primeiro lugar existia a dúvida sobre a extensão de sua autoridade no termo da nova vila. Para o escrivão, esta questão era ainda mais importante, pois, além da questão patrimonial, havia o problema político. O proprietário do oficio era Manuel de Miranda de Almeida, que exercia pessoalmente o cargo. Dada a tensão existente entre os dois “partidos” locais – mazombos e mascates – qualquer possibilidade de ingerência da Câmara de Olinda na nova Câmara do Recife, era capaz de suscitar desconfianças entre os oficiais desta última. O escrivão de uma câmara exercia uma posição fulcral. Além de ser o responsável pela produção e guarda dos documentos do Senado, era o encarregado da correspondência com a coroa e com as autoridades, fossem as locais, as da sede do governo-geral em Salvador ou as metropolitanas. A presença de um mesmo escrivão nas duas municipalidades era simplesmente impossível no contexto das relações Olinda-Recife do século XVIII. Como se isto não bastasse, o escrivão em questão havia tido sérios problemas durante a Guerra dos Mascates. Nos meses cruciais do conflito, quando governava Pernambuco Sebastião de Castro e Caldas – o governador que era o alvo de todo o ódio mazombo por seu posicionamento pró-mascates – a Câmara de Olinda tentou enviar Manuel de Miranda de Almeida a Lisboa. Ia como procurador especial e levava consigo cartas com denúncias contra a 19 A lista completa das atribuições dos alcaides e de todos os ofícios citados aquí pode ser encontrada em SALGADO, G. (org.). Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. HESPANHA, A. M. A constituição do Império português: revisão de alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, J.; BICALHO, M. F.; GOUVÊA, M. de F. (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 182 e ss. GALLO, A. La venalidad de ofícios públicos en Brasil durante el siglo XVIII. In: BELLINGERI, M. (org.). Dinámicas de Antiguo Régimen y Orden Constitucional: representación, justicia y administración en Iberoamérica, siglos XVIII-XIX. Turín: Otto Editore, 2000. p. 97-175. PATRIMÔNIO, TERRITORIALIDADE, JURISDIÇÃO E CONFLITO NA AMÉRICA PORTUGUESA 91 “tirania” do governador. O plano foi tecido em segredo, mas as más condições climáticas não permitiram a saída da frota na qual o escrivão tentava passar ao reino escondido. Descoberto o plano, e estando a frota ainda ancorada, o governador ordenou a prisão do enviado de Olinda. Já desde este momento, isto é, da primeira vereação do Recife, a que não conseguiu concluir seu mandato devido ao levantamento da nobreza em 1710, se discutia a separação do oficio de escrivão. Para a Câmara do Recife, a presença de um escrivão que ao mesmo tempo servia na Câmara de Olinda e que esteve envolvido nos planos de rebelião dos mazombos era uma ameaça. A carta da Câmara do Recife de 9 de agosto de 1715 esclarece bem o risco que representava a presença deste escrivão de Olinda em suas reuniões. Queixavam-se os vereadores que ele “fica sabendo dos segredos desta vila”. Ademais, era interessante dispor do ofício como parte do patrimônio da câmara, pois se tratava de uma fonte de ingressos. Por outro lado, interessava à Câmara de Olinda poder controlar os movimentos dos seus inimigos políticos. Hespanha destaca que, muitas vezes, o interesse nos ofícios deste tipo se dava mais pelas possibilidades políticas, pois, “nesse tipo de cultura política – que era o da Europa moderna e das suas colônias –, os documentos escritos eram decisivos para certificar matérias decisivas, desde o estatuto pessoal aos direitos e deveres patrimoniais”20. Em toda esta peleja não podemos esquecer a posição do escrivão. É difícil supor até que ponto ele se envolveu nas tensões políticas daquele momento por afeto à causa ou por pressões de seus companheiros na municipalidade olindense. Talvez pouco lhe importasse o que os vereadores do Recife escrevessem ou deixassem de escrever ao Rei. Possivelmente, o que mais o preocupava em toda a disputa era a considerável redução que seus rendimentos experimentariam se perdesse o direito de exercer o cargo no Recife. Sabemos que a praça desde meados do século XVII, havia superado em importância econômica e demográfica a cidade. Logo, era no Recife e não em Olinda – onde poucos viviam e não havia o mesmo nível de relações entre particulares e instituições no âmbito jurídico-legal – onde se necessitava dos ofícios de um funcionário deste tipo. O outro ofício em questão era de alcaide e também exemplifica bem as complicadas negociações para a formação do patrimônio da Câmara do Recife, negociações nas quais se mesclavam aspectos institucionais e interesses privados. Naquele momento o alcaide de Olinda e seu termo exercia também a posição de carcereiro. Em 1693 a propriedade do ofício fora dada, por João Salvador, à sua filha infanta Ana Lara, como dote para seu casamento. Durante algum tempo esteve arrendado e rendia à sua proprietária 50$000. Já em 1713, Ana Lara requisitou ao monarca que a jurisdição do cargo que 20 MELLO, Fronda dos mazombos, p. 243. Carta do governador de Pernambuco a D. João V, 24 jul. 1710, AHU_ACL_CU_015, Cx. 24, D. 2174. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 9 ago. 1715, AHU_ACL_CU_015, Cx. 27, D. 2458. HESPANHA, A constituição..., p. 186. 92 GEORGE F. CABRAL DE SOUZA possuía continuasse sendo a antiga, isto é, abarcando os termos das duas municipalidades. Queixava-se ao Rei que a Câmara do Recife proibira ao arrendatário do ofício exercer no termo da nova vila, o que lhe parecia um abuso, pois o ofício tinha sido dado ao seu pai pelo Rei, por serviços prestados, e esse tipo de concessão real não costumava ser revogável. Na noticia seguinte que temos sobre o ofício, este aparece sendo exercido por Sebastião Pereira da Costa, cunhado de Ana Lara. Em 1717 ele solicitou ao Rei que, se por fim fosse obrigado a renunciar à jurisdição de seu cargo em um dos dois municípios, que pudesse ao menos escolher a praça do Recife, pois ali teria mais rendas que em Olinda. Depois de informar estes aspectos, apontava os prejuízos que tinha tido o escrivão Manuel de Miranda, ao qual já nos referimos. A seu favor estava a opinião do ouvidor-geral da capitania21. Manuel de Miranda de Almeida teve que se contentar com seu posto menos lucrativo em Olinda. Mas a disputa pelo posto de carcereiro havia apenas começado. Com o passar do tempo, o crescimento do Recife fez com que o ofício de alcaide e carcereiro se tornasse mais lucrativo. A princípios da década de 1730, Recife já possuía sua prisão. Segundo os vereadores, havia sido construída com as contribuições voluntárias do povo através de uma finta. A recém-construída prisão da vila, pela sua segurança, se transformou rapidamente no local preferencial para a custódia de prisioneiros oriundos de todos os rincões da capitania de Pernambuco e de suas anexas. No Recife eram reunidos os presos que eram enviados para julgamento na Relação da Bahia bem como os que tinham recebido sentença de desterro para Angola. Deve-se considerar também que no Recife permaneciam, quase continuamente, as autoridades principais, apesar do fato de que Olinda continuava a ser a capital. O rendimento do ofício de carcereiro triplicou desde o começo do século. Seus proprietários tinham conseguido manter a unidade da jurisdição nas duas municipalidades. O posto de alcaide e carcereiro oferecia menos riscos políticos que o de escrivão naqueles momentos iniciais da municipalidade recifense. Mas, quando em 1733 morreu o titular do ofício, os vereadores do Recife viram a possibilidade de açambarcar um rendimento nada desprezível para o patrimônio municipal. Imediatamente solicitaram ao Rei que concedesse a propriedade do posto à câmara. Em 1757, a Câmara do Recife voltou a solicitar o ofício para seu patrimônio, mas, estranhamente, a representação somente passou pelo Conselho Ultramarino e foi posta “na real presença” da rainha 21 Requerimento da infanta Ana de Lara a D. João V, ant. a 29 abr. 1713, AHU_ACL_CU_015, Cx. 25, D. 2285. O costume de recompensar os vassalos por serviços prestados à Coroa era uma constante no Império Português. Inclusive nas camadas superiores da administração os pedidos dos herdeiros de governadores e vice-reis eram frequentes e muitas vezes as recompensas eram concedidas não só às esposas e filhos, mas também a netos, cunhados ou sogros. MONTEIRO, N. G. F. Trajetórias sociais e governo das conquistas: notas preliminares sobre os vice-reis e governadores-gerais do Brasil e da Índia nos séculos XVII e XVIII. In: FRAGOSO, BICALHO, GOUVÊA (orgs.), O Antigo Regime..., p. 270-274. AHU_ACL_CU_015, Cx. 28, D. 2506, 9 mar. 1717. PATRIMÔNIO, TERRITORIALIDADE, JURISDIÇÃO E CONFLITO NA AMÉRICA PORTUGUESA 93 Maria I em 1779. O governador de Pernambuco naquele momento, José César de Menezes, confirmou a vacância do citado ofício22, mas outra vez a solicitação se emaranhou nas teias burocráticas de Lisboa e até 1782, data em perdemos seu rastro, não havia ainda sido resolvida23. A Câmara do Recife conseguiu a propriedade de outros ofícios. A eles se juntou a administração de alguns contratos de arrecadação. Para isso teve também que enviar representações repetidas vezes, expressando nelas a pobreza do Senado. Vimos os problemas acerca da propriedade dos ofícios de escrivão e alcaide-carcereiro. Já em 1715 o Rei ordenou ao ouvidor de Pernambuco que informasse sobre a petição dos vereadores da concessão de uma parte da renda do contrato das carnes. Em 1729, pediu-se a propriedade do ofício de escrivão do alcaide fosse acrescentada ao patrimônio municipal. Em data anterior a 1732, os vereadores solicitaram a propriedade de três ofícios vinculados ao juiz de fora e dos órfãos de Olinda e Recife, os de requeridor, inquiridor e contador, que deveriam ser exercidos por um só oficial. Além disso, pediram a propriedade do cargo de escrivão da almotaçaria. O informe do governador Duarte Sodré Pereira Tibão foi favorável ao pedido dos vereadores do Recife com a condição de que o ofício de escrivão da almotaçaria tivesse jurisdição separada da de Olinda, opinião acatada pelo Conselho Ultramarino. No final da década de 1740, a câmara dispunha dos ingressos oriundos do contrato da verificação dos pesos e balanças, mas reclamava que este rendia muito pouco. Para compensar a pouca rentabilidade deste contrato, pediam os ofícios de juiz, escrivão e feitor da alfândega, que eram muito mais rentáveis24. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 20 jun. 1733, AHU_ACL_CU_015, Cx. 44, D. 4006. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 19 ago. 1769, AHU_ACL_CU_015, Cx. 107, D. 8315. O Recife se tornou a capital de Pernambuco somente em 1827. MELO, M. Genealogia municipal de Pernambuco. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Recife, IAHGP, v. XXXII, n. 151-154, p. 23-25. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 20 jun. 1733, AHU_ACL_CU_015, Cx. 44, D. 4006. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. José I, 25 mai.1757, Ordem Régia de 21 jul. 1779 e Carta do Governador de Pernambuco a D. Maria I, 22 mar. 1780. Todos em: AHU_ACL_CU_015, Cx. 84, D. 6977. 23 No despacho do Conselho, datado de 1º de março de 1782, na carta do Governador citada na nota anterior, se pedia informe sobre as receitas e despesas da Câmara do Recife, provavelmente para verificar a real necessidade de concessão do ofício, AHU_ACL_CU_015, Cx. 84, D. 6977. 24 Carta de D. João V ao Ouvidor de Pernambuco, 25 mai. 1715, 3º volume de CP, AHU, Cód. 258, f. 74. Salgado não define as atribuições do oficio de escrivão do alcaide, mas podemos supor que sua principal obrigação fosse registrar as incidências policiais chegadas ao conhecimento do alcaide a quem estava subordinado. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 29 jul. 1729, AHU_ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3497. Carta de D. João V ao governador de Pernambuco, 13 out. 1732, Carta do governador de Pernambuco a D. João V, 27 jun. 1734 e despacho do Conselho Ultramarino sobre pedido da Câmara do Recife, 30 abr. 1735, todos em AHU_ACL_CU_015, Cx. 47, D. 4158. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 8 jul. 1747, AHU_ACL_CU_015, Cx. 66, D. 5586. 22 94 GEORGE F. CABRAL DE SOUZA Nem sempre a solicitação era feita pelos vereadores para que se desse um oficio. Houve um caso em que se pediu que fosse extinto o ofício de cordeador e arruador25, e que o salário pago pela Fazenda Real ao seu ocupante fosse destinado à câmara 26 . Em outra ocasião, a câmara tentou vincular indevidamente os ofícios de justiça da capitania submetidos ao mando do juiz de fora. Sabemos que a câmara recebeu a concessão real da propriedade dos postos secundários vinculados ao juiz de fora em 1735. Quando João de Souza Menezes Lobo, que era juiz de fora de Olinda e Recife em 1744, assumiu também o posto de provedor dos defuntos e ausentes, os vereadores do Recife trataram de açambarcar os ofícios de avaliador e partidor27 daquela repartição. Isso provocou uma disputa entre o juiz de fora e a câmara. O ministro régio alegava que os ofícios eram independentes uns dos outros e, ao mesmo tempo, ordenou à câmara que justificasse sua pretensão de nomear para o ofício em questão. Como não havia nenhum registro de nomeações feitas pelo senado e como também não houve manifestação similar da Câmara de Olinda, a disputa acabou resolvida de forma desfavorável para a municipalidade recifense. A concessão por parte da coroa da propriedade de um cargo não significava em absoluto garantia de que os ingressos gerados pela função concedida fossem regularmente arrecadados. Também não estava garantida a não interferência de outras autoridades na nomeação. Havendo recebido a propriedade do ofício de escrivão do alcaide e da almotaçaria, a câmara viu suas atribuições violadas pelo governador Henrique Luis Pereira Freire. Os vereadores se queixaram ao ouvidor, em 1749, que o governador desacatou o privilégio real que a câmara ostentava de designar ocupante para estas funções, e estava exigindo que os arrendatários pagassem um donativo para receber provimento para a função. A obrigação de pagar essa taxa reduzia o valor dos ofícios e causava prejuízo às combalidas finanças municipais recifenses. Anos depois, os vereadores exigiam outra vez que as nomeações feitas pela câmara para os cargos de sua propriedade não dependessem da aprovação dos governadores. Por outro lado, os ocupantes dos cargos arrendados pela câmara nem sempre cumpriam suas obrigações, recusando-se a pagar o valor definido pela avaliação dos ofícios. Em 1759 a municipalidade denunciou ao Rei que o Pereira da Costa define o termo “cordear”: “determinar o alinhamento de uma rua, ou de um prédio que se vai construir, de acordo com o traçado do respectivo arruamento; cordear, dar cordeação, cujo serviço era feito pelo cordeador da municipalidade, depois engenheiro cordeador”. PEREIRA DA COSTA, F. A. Vocabulário pernambucano. 2. ed. Recife: Secretaria de Educação e Cultura do Governo de Pernambuco, 1976, p. 266. 26 Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 20 jul. 1729, AHU_ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3501. 27 Na obra organizada por Salgado, o mais completo guia dos cargos da administração colonial, não há referência a estes ofícios, mas podemos supor que se tratavam dos encarregados de avaliar os bens deixados e proceder a divisão destes bens, nos casos nos quais houvesse mais de um herdeiro. 25 PATRIMÔNIO, TERRITORIALIDADE, JURISDIÇÃO E CONFLITO NA AMÉRICA PORTUGUESA 95 ocupante dos ofícios de inquiridor, distribuidor e contador do juiz de fora insistia em pagar as rendas de seu ofício pelo valor antigo, anterior à nova avaliação feita pelo juiz28. Fracassada a pretensão de tributar os terrenos pertencentes a Olinda, a Câmara do Recife utilizou o recurso de alugar propriedades imóveis pertencentes à municipalidade. Há referências, por exemplo, ao aluguel de lojas construídas sobre a ponte do Recife a princípios dos anos 1740. A câmara foi autorizada a cobrar as rendas destas pequenas lojas, pois, antes de sua construção já existia a prática de cobrar pelas permissões para vender tecidos e miudezas na referida ponte. As antigas autorizações custavam 5$000 anuais. Com a edificação das lojas, os rendimentos poderiam alcançar até a considerável soma de um conto de réis anuais. A preocupação dos vereadores radicava na possibilidade de que este dinheiro fosse desviado de seu objetivo inicial que era o de custear a manutenção das pontes, e escapasse, portanto, ao controle da municipalidade. Por isso pediam garantias ao Rei de que não houvesse intervenções externas na gestão destes fundos, ao mesmo tempo em que se comprometiam a prestar contas anualmente da aplicação das rendas. Em 1788, a câmara inaugurou, com grande solenidade, as casinhas, os pequenos estabelecimentos do novo mercado da Praça da Polé, atual praça da Independência, uma das mais movimentadas da cidade do Recife. Na inauguração estiveram presentes inclusive as mais altas autoridades da capitania: o governador e o bispo. Para financiar a obra, a municipalidade levantou um empréstimo de pouco mais de 800$000 junto ao Hospital dos Lázaros29. Eram um total de 62 lojinhas que foram alugadas a comerciantes e quitandeiros, gerando ingressos anuais de quase um conto de réis. Doze anos depois encontramos duas quitandeiras negras tentando alugar uma destas lojinhas da Praça da Polé, “que foram edificadas (...) para aformosear a mesma Praça, para fazer-se patrimônio e rendimento para o Senado, e finalmente para o Mercado Público comodidade para os que vendem”30. O longo processo de formação do patrimônio municipal da Câmara do Carta do governador de Pernambuco, a D. João V, 3 out. 1744, carta do Juiz de Fora de Olinda e Recife ao governador de Pernambuco, 5 mar. 1746 e certificado do escrivão da Câmara do Recife, 4 mar. 1746, todos em AHU_ACL_CU_015, Cx. 62, D. 5346. Carta da Câmara de Recife ao ouvidor geral de Pernambuco, 20 abr. 1749, AHU_ACL_CU_015, Cx. 69, D. 5816. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. José I, 16 mai. 1756, AHU_ACL_CU_015, Cx. 81, D. 6738. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. José I, 21 mar. 1759, AHU_ACL_CU_015, Cx. 90, D. 7248. 29 Certificado do escrivão da Câmara do Recife, 3 out. 1744, carta de D. João V ao governador de Pernambuco, 28 jan. 1744 e carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 3 out. 1744, todos em: AHU_ACL_CU_015, Cx. 61, D. 5189. Ata de sessão, 21 set. 1788, Livro de Atas da Câmara do Recife, n. 4, f. 46, IAHGP. PEREIRA DA COSTA, Anais pernambucanos, vol. VI, p. 138. 30 Carta da Câmara do Recife ao governador de Pernambuco, 18/6/1800, LRCMR 17331808, f. 94, IAHGP. 28 96 GEORGE F. CABRAL DE SOUZA Recife reflete, em seus meandros, várias facetas da sociedade de Antigo Regime nos trópicos. Interesses privados se mesclam com questões públicas de ordenamento administrativo. Poderes locais exercidos por frações antagônicas das elites locais se atritam na defesa de seus interesses. Funcionários régios e autoridades locais se aliam e se combatem em torno a temas tão variados como a alimentação de crianças e enfermos ou a realização de procissões e festas. Percebemos assim como o estudo das municipalidades coloniais e das elites que as ocupavam pode resultar em interessantes miradas sobre a sociedade colonial ibero-americana e sua cultura política. 97 CAPITÃES MORES DAS ORDENANÇAS DE ÍNDIOS: NOVOS INTERLOCUTORES NAS VILAS DE ÍNDIOS DA CAPITANIA DO RIO GRANDE1 Fátima Martins Lopes2 o governo de D. José I as muitas Missões jesuíticas que existiam nas capitanias do Norte do Brasil foram elevadas à situação de Vilas coloniais, com Câmaras, pelourinhos e vereadores, como já havia acontecido nas capitanias do Estado do Maranhão e GrãoPará. A criação dessas Vilas foi desdobramento das chamadas “Leis de Liberdade”, especialmente a de 6 de junho de 1755, que restituía aos índios do Maranhão e Grão-Pará a liberdade, e também o Alvará de 7 de junho do mesmo ano, que aboliu o poder temporal dos missionários sobre os índios aldeados. Ambas foram estendidas ao Estado do Brasil pelo Alvará em Forma de Lei, de 8 de maio de 1758. Quando cópias do Alvará chegaram à Capitania de Pernambuco e suas anexas em fins de 1758, uma das primeiras providências do Governador General, Luiz Diogo Lobo da Silva, encarregado de criar as novas Vilas, foi convocar os Principais3 dos povos moradores nas Missões Jesuíticas do Ceará e Rio Grande do Norte que seriam elevadas a Vilas, para comparecerem ao Recife para serem informados sobre as novas leis. O Governador temia que a ordem de saída dos missionários dessas Missões causasse distúrbios e conflitos entre os índios e os novos funcionários régios que deveriam assumir o lugar dos religiosos4. Além disso, a necessidade de preparar a instalação das Vilas, conforme as imposições das novas leis, fazia o Governador procurar estabelecer bons relacionamentos com os Principais, concedendo-lhes honrarias para que as conversações pudessem surtir o efeito desejado, isto é, facilitar a execução do projeto de controle laico da população indígena, contando com eles para intermediação. O presente texto faz parte da tese Em nome da liberdade: as vilas e índios do Rio Grande do Norte sob o Diretório Pombalino no século XVIII, defendida na Universidade Federal de Pernambuco em 2005, com apoio da CAPES. 2 Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Líder do Grupo de Pesquisas Formação dos Espaços Coloniais: economia, sociedade e cultura (PPGH-UFRN/ Diretório CNPq). Professora Adjunta do Departamento de História e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-Mail: <fatimamlopes@uol.com.br>. 3 Principal é a forma encontrada na documentação consultada para o tratamento dos chefes indígenas tradicionais. 4 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ) – II-33,6,10, doc. 2, fl. 7-12, Carta do Gov. de Pernambuco ao Secretário de Estado, 13 jun. 1759. 1 98 FÁTIMA MARTINS LOPES Na chegada dos Principais convidados ao Recife, o Governador deu-lhes, e às suas mulheres, trajes de presente5, conforme a determinação do Diretório dos Índios, que era o novo regimento utilizado para a administração dos índios vilados e que incitava que se introduzisse entre eles o uso de vestimentas “decorosas e decentes”, persuadindo-os a “... que se possam vestir à proporção da qualidade de suas pessoas e das graduações dos seus postos...”6. Já não bastava mais que se vestissem para esconder a nudez, como já eram obrigados pelos missionários, mas sim que o fizessem diferentemente entre si, de acordo com os seus cargos e posições, como uma forma de identificação visual da distribuição do poder dentro do grupo, a fim de facilitar uma mudança na cultura e na identidade étnica, contribuindo para o estabelecimento da hierarquização social pretendida pela colonização. Como adverte Maria Regina Almeida, essa distinção hierárquica através das vestimentas diferenciadoras era típica do Antigo Regime e, ao ser introduzida entre os índios aldeados, será assumida pelos detentores de cargos e funções de destaque para se adequarem ao modelo do “fidalgo ibérico”, como apontado por Serge Gruzinski, ou para afirmarem a sua proeminência econômica e social, como afirmou Nathan Wachtel7. É nesse sentido que se entende a petição dos índios Oficiais da Câmara da Nova Vila de Arez, na capitania do Rio Grande, no ano de 1761. Beneficiados com pequenas porções de gado na repartição dos bens da antiga Missão, eles desejaram ter roupas distintas daquelas de tecidos grosseiros usualmente utilizadas pelos índios, e consultaram o Diretor dos Índios da nova Vila se poderiam vender algumas cabeças para comprarem roupas e poderem vestirse “adequadamente”8. Tais atitudes eram as desejadas pela Coroa, pois, na nova legislação pombalina, principalmente os Principais deveriam ser tratados como “verdadeiros vassalos”, através das distinções que lhes eram oferecidas, como as vestes, porque participariam na administração das novas Vilas, atuando como Capitães Mores ou outros cargos das Ordenanças, ou como Vereadores nas Câmaras, mesmo que dirigidos pelo Diretor dos Índios9. Ibidem. DIRETÓRIO que se deve observar nas Povoações dos Índios do Pará, e Maranhão enquanto Sua Majestade não mandar o contrário [1757]. Boletim de Pesquisa da CEDEAM, Manaus, v. 3, n. 4, jan./ dez. 1984. Parágrafo 15. Foi estendido ao Estado do Brasil pelo Alvará em forma de Lei de 17 de agosto de 1758. O Diretório foi o criado pelo Governador do Maranhão e Grão-Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, a ser usado pelos Diretores das Vilas de Índios na administração dos índios das novas Vilas. 7 ALMEIDA, Maria Regina. Metamorfoses indígenas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 159. 8 BNRJ–I-12,3,35, fl. 83-84, Carta do Gov. de Pernambuco ao Diretor da Vila de Arez, 22 ago. 1761. Diretores de Índios são os novos funcionários régios que deveriam administrar os índios nas Vilas recém-formadas. 9 Sobre o aliciamento dos Principais na colonização cf. DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 169-176. PIRES, Maria Idalina. Resistência 5 6 CAPITÃES MORES DAS ORDENANÇAS DE ÍNDIOS 99 No Diretório dos Índios, acusava-se os missionários de terem mantido os índios na “rusticidade e abatimento” através da não observância às “honrarias e os privilégios” referentes aos postos oficiais ocupados por alguns indígenas. Advertia-se que, nas novas Vilas, deveria se respeitar a “diversa graduação de pessoas a proporção dos ministérios que exercitam” e, por isso, dispunha que os índios deveriam ser tratados com as honrarias que se deviam aos cargos oficiais, “conforme as suas respectivas graduações, empregos e cabedais”, tanto pública como privativamente, extensivo a sua família. Seu objetivo foi claramente apresentado no regimento: “... para que vendo-se estimados publicamente, e particularmente, cuidem em merecer com o seu bom procedimento as distintas honras com que são tratados...”10. Entende-se que as honrarias que deveriam ser prestadas aos Principais, aos Oficiais Militares e àqueles que eram designados a cargos de administração a partir do Alvará de 7 de junho de 1755 (Vereadores, Juizes Ordinários e demais Oficiais da Justiça que comporiam as novas Câmaras) seriam uma forma de inserção desses elementos indígenas na estrutura social hierarquizada da colônia. Ao mesmo tempo, as distinções sociais impingidas dividiriam o grupo, diminuindo a força da resistência, tornando-se, nesse entendimento, uma estratégia de dominação de elementos que se sobressaiam na comunidade e que poderiam eventualmente encabeçar novas revoltas. Tal forma de dominar não era novidade, pois foi posta em prática desde o início da conquista com o estabelecimento dos Terços dos Índios e seus respectivos cargos militares, distribuídos entre os guerreiros daqueles povos que estabeleceram alianças com os conquistadores para lutarem contra outros grupos indígenas resistentes à conquista11. Vale ressaltar que essas medidas ocorriam em momentos de redefinição das relações internas dos grupos indígenas que sofriam a pressão da conquista, e não se pode descartar o poder de atração que títulos e cargos militares fariam em povos tradicionalmente guerreiros. Para Carlos de Araújo Moreira Neto, os principais “passos da dominação” da população indígena na colonização no norte do Brasil foram o descimento e a “... sistemática destruição dos modos tradicionais de organização e de controle social do grupo e de sua herança cultural”. Essa destruição se alcançaria através indígena nos sertões nordestinos na pós-conquista territorial: legislação, conflito e negociação nas vilas pombalinas. Tese de Doutorado. Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2004, p. 99-102. SAMPAIO, Patrícia. Espelhos partidos: etnia, legislação e desigualdade na colônia. Tese de Doutorado. Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2001, p. 195-196. SILVA, Isabelle Braz. Vilas de Índios no Ceará Grande: dinâmicas locais sob o Diretório Pombalino. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2002, p. 182-188. FARAGE, Nádia. Muralhas do sertão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 161. 10 DIRETÓRIO..., parágrafo 19. 11 Cf. MONTEIRO, John. Negros da terra. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 29-36; LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na colonização da Capitania do Rio Grande do Norte. Mossoró: Fundação Vingt-Un Rosado, 2003, p. 27-51. 100 FÁTIMA MARTINS LOPES do combate a seus pajés e chefias tradicionais, da eventual eliminação de seus mitos e língua, substituídos por rudimentos de valores e crenças cristãos e pela introdução da língua geral. E o elemento viabilizador deste processo, era a constante presença dos missionários e de seus prepostos indígenas, isto é, os “capitães” 12. Para ele, os chamados “capitães” eram indígenas especialmente escolhidos e “... colocados na direção de grupos e povoações indígenas por autoridades oficiais, missionários ou simples particulares, como seus delegados...”. Geralmente, em substituição dos líderes tradicionais, eram indicados aqueles mais “dóceis aos interesses do colonizador”, para servirem de contato ou “intermediários entre seus grupos e as autoridades coloniais”13. Esses Capitães, ou também chamados Capitães Mores, dirigiam as companhias de Ordenanças que foram criadas ainda nas Missões tanto para segurança das mesmas quanto para a da Coroa, principalmente contra outros grupos indígenas resistentes à colonização ou mesmo contra povos estrangeiros. Com a mesma perspectiva sobre a valorização das lideranças nativas no período colonial, como parte do projeto de conquista e colonização, Maria Regina Almeida lembra que os cargos de chefia entre os povos Tupi eram alcançados tradicionalmente pelo prestígio que o escolhido tinha entre seus pares, baseado em qualidades e méritos individuais, principalmente de liderança guerreira. Na colonização, porém, o enobrecimento através dos cargos de chefia tornou-se delegado pela Coroa ou seus funcionários, sendo “... firmado com base na própria tradição tupi, porém acrescida dos novos elementos introduzidos pelos portugueses e incorporados pelos índios ao seu próprio modo”14. Como, por exemplo, o uso das vestimentas diferenciadoras. Nas Missões, apesar de haver vários líderes, inclusive de etnias diferentes por causa dos descimentos impostos, o chamado Capitão Mor da Aldeia, principal líder do aldeamento, era geralmente o Principal do grupo dominante à época do seu estabelecimento e recebia provisão escrita pelos Governadores. Para Maria Regina Almeida, os missionários e colonizadores (...) preocupavam-se em tratar especialmente os Principais a fim de que convencessem seus seguidores às alianças, chegando a instituir uma ‘nobreza indígena’ por meio de concessão de favores, títulos, patentes militares e nomes portugueses de prestígio a algumas chefias que desempenhavam papel fundamental no MOREIRA NETO, Carlos de Araújo. Índios da Amazônia: de maioria a minoria (1750-1850). Petrópolis: Vozes, 1994, p. 47. 13 MOREIRA NETO, Índios da Amazônia..., p. 56. 14 ALMEIDA, Metamorfoses indígenas, p. 155. Sobre o papel das lideranças, ver também: DOMINGUES, Quando os índios..., p. 169. Para ela os Principais eram identificados pelos colonizadores entre os indivíduos “com prestígio social ou com atitudes de comando” que detinham “poder político e social persuasivo e pouco coercitivo”, e tornaram-se os “interlocutores por excelência no processo de negociação nos descimentos e aldeamentos”. 12 CAPITÃES MORES DAS ORDENANÇAS DE ÍNDIOS 101 processo de integração de seus subordinados ao sistema colonial.15 A mesma autora concluiu que a introdução da nova política metropolitana, detalhada no Diretório dos Índios na segunda metade do século XVIII, aprofundaria essa política de enobrecimento através da concessão de cargos oficiais nas novas Câmaras e nas Ordenanças, estabelecendo como dever dos Diretores persuadirem aos Capitães Mores de que os serviços na terra não os inabilitariam aos empregos honoríficos16. Concordando com esta idéia, Moreira Neto adverte, porém, para uma pequena diferença entre as lideranças indígenas nas Missões e nas Vilas: nestas últimas, “... a autoridade (pouco convincente e de duvidosa legitimidade) de índios e mestiços convertidos em juizes e vereadores – [eram] funções vedadas, via de regra, às lideranças tradicionais do grupo”17. Com efeito, nas Vilas de Índios do Rio Grande do Norte observou-se que os postos mais elevados das Ordenanças eram exercidos continuamente por aqueles indicados e nomeados pelo Governador de Pernambuco18 até que fossem substituídos, ou por não mais aguentarem o cargo ou por não serem mais interessantes à Coroa. Nessas indicações ou nas substituições por confronto com as determinações da Coroa, foi possível observar que as nomeações poderiam não recair sobre aqueles designados como Principais tradicionais, mas sim naqueles que eram mais favoráveis às imposições coloniais. Em 1760, na nova Vila de São José do Rio Grande, Leandro de Souza, Principal tradicional, era Capitão Mor dos Índios desde o tempo dos missionários capuchinhos, mas teve conflitos com o último missionário, Frei Aníbal de Gênova, que se queixara ao Governador de Pernambuco e tentara tirá-lo do cargo. Na época da extinção de Missão e criação da nova Vila, o Governador decidiu mantê-lo na função, mas o advertiu que cumprisse as Ordens Régias e o Diretório, que obedecesse ao Diretor e estivesse sempre “... pronto no cuidado de animar os seus índios a obedecerem-lhe e a concorrerem com inteira vontade ao adiantarem as suas lavouras e fazendo florente esta povoação”19. Observa-se que a tradicionalidade no cargo não era o que tinha feito o Principal Leandro ser mantido na função de Capitão Mor, mas sim a possibilidade de que mantivesse seus subordinados sob controle num momento de transição que poderia suscitar confrontos. Apesar das Câmaras terem o poder de indicar um nome para ocupar o Cargo de Capitão Mor, a aceitação do Governador de Pernambuco era DOMINGUES, Quando os índios..., p. 158. DOMINGUES, Quando os índios..., p. 159. 17 MOREIRA NETO, Índios da Amazônia..., p. 245. 18 A Capitania do Rio Grande era Anexa à Capitania Geral de Pernambuco desde 1701, devendo partir do Governador de Pernambuco as provisões aos cargos militares. 19 BNRJ– I-12,3,35, fl. 8-8v., Carta do Gov. de Pernambuco ao Capitão-mor dos Índios da Aldeia de Mipibu, 29 dez. 1760. 15 16 102 FÁTIMA MARTINS LOPES essencial, pois era dele a jurisdição de confirmar o indicado no cargo através de Carta Patente e também só a ele cabia o direito de tirá-lo. Isso é o que se pode perceber no episódio ocorrido na mesma Vila de São José, já em 1779, quando os Oficiais da Câmara queixaram-se ao Ouvidor Geral e Corregedor, Sebastião José Rebelo de Gouveia e Melo, sobre “os desaforos que o Capitãomor dos Índios dessa Vila obra e tem obrado” e pediam para tirá-lo da função. O Corregedor respondeu que ele não podia suspender o Capitão Mor por ser função pertinente apenas ao Governador de Pernambuco, porém, eles o podiam suspender interinamente enquanto davam parte ao Governador e o esperavam deliberar sobre a matéria20. Em outra ocasião, em março de 1784, os Oficiais da mesma Câmara de São José se queixaram do Capitão Mor dos Índios diretamente ao Governador de Pernambuco sobre o “... estado deplorável em que se acha esta Vila por causa da incapacidade do Capitão-mor dela, que continuamente anda embriagado cometendo várias desordens.” O Governador ordenou, então, que os Oficiais fizessem uma nova indicação de “... pessoas mais beneméritas... para servir com honra o dito posto de Capitão-mor, a qual me será enviada para mandar passar patente a quem me parecer mais justo e para este fim lhe mostrarão Vossas mercês esta carta”21. A indicação dos “mais beneméritos” queria dizer a indicação daqueles que, se presumia, cumprissem o que lhes fosse ordenado pelas autoridades coloniais e agissem em conformidade com os desígnios morais da metrópole. Assim, de fato, após a escolha feita pela Câmara, o Governador de Pernambuco, em 12 de dezembro, passou Carta Patente ao índio Juvenal Batista Pereira para o cargo de Capitão Mor dos índios da Vila de São José, af irmando que era “... em respeito... e em reconhecimento do bom procedimento do mesmo, no posto de Capitão-mor”22. A Carta Patente incluía também as obrigações e direitos do novo Capitão Mor: Esperar dele que nas obrigações do dito posto se haverá muito como deve a boa confiança que na sua pessoa faço. Hei por bem na conformidade das Reais Ordens de onze de abril de 1723, referendar o dito índio Juvenal Batista no posto de Capitão-mor dos Índios da Vila de São José da Capitania do Rio Grande do Norte, com o qual posto não haverá soldo algum, mas gozará de todas as honras, graças, franquias, liberdades, privilégios e isenções com que em razão dele lhes pertencerem.23 Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), Livro de Cartas e Provisões da Câmara de São José de Mipibu, fl. 139, Carta do Ouvidor Geral e Corregedor da Comarca à Câmara da Vila de São José, 7 out. 1779. 21 Idem, fl. 163v., Carta do Gov. de Pernambuco à Câmara de São José de Mipibu, 4 mar. 1784. 22 Idem, fl. 177-177v., Carta Patente do Capitão-mor do Índio Juvenal Batista Pereira, 12 dez. 1789. 23 Ibidem. 20 CAPITÃES MORES DAS ORDENANÇAS DE ÍNDIOS 103 De forma semelhante, em Vila Flor, os Oficiais da Câmara, em 1777, presididos pelo Corregedor da Comarca, indicaram o índio Francisco Xavier Machado, para o cargo de Capitão Mor das Ordenanças que estava vago porque o antecessor, Caetano Freire de Melo (também índio), renunciou por estar adoentado e idoso. O Governador de Pernambuco, José Cezar de Menezes, confirmou-o no posto por Carta Patente, enfatizando que “... com o qual [posto] não haverá soldo algum, mas gozará de todas as honras, graças, despachos, liberdades, privilégios e isenções que em razão dele lhe competem...” e advertia ao indicado que “...satisfaça inteiramente as obrigações que lhe competem, bem como deve a boa confiança que faz de sua pessoa”24. Dentre essas obrigações estavam arrolados o combate à ociosidade e à embriaguez: Será obrigado a remover dos índios seus subordinados os vícios da ociosidade e ebriedade, fazendo-os aplicar às culturas de suas lavouras, pelo que ordeno ao respectivo Diretor e Câmara por tal o reconheçam, honrem e estimem, conferindo-lhe a posse e juramento de estilo, do que se fará assento nas costas desta, e a todos os seus subordinados que lhe obedeçam e cumpram as suas ordens relativas ao Serviço Real, assim como devem e são obrigados.25 Vê-se que as obrigações do novo Capitão Mor eram aquelas mesmas impostas, desde longa data, pelos missionários aos interlocutores escolhidos para intermediar os dois mundos – o colonial e o indígena –, e em nada eram ligadas às obrigações tradicionais das lideranças indígenas. Eram, ao contrário, impostas para se cumprir as determinações legais do Reino e com elas modificar culturalmente as populações indígenas. Quando os novos indicados não cumpriam corretamente essas “obrigações” eram substituídos. Foi o que ocorreu com o Capitão Mor da Vila de Arez, quando, em 1761, o Diretor da Vila, Domingos Jacques da Costa, informara ao Governador Luiz Diogo Lobo da Silva as “desordens” que o Capitão Mor Sebastião Lopes fazia, como: “... dar rapazes e trabalhadores para circunvizinhos, sem que intervenha ajuste do Diretor, na conformidade do Diretório...” e sair da Vila sem a prévia licença do Diretor, como havia feito naquele momento ao ir a Recife falar com o Governador, levando outros índios com ele. O Governador respondeu ao Diretor que, de fato, o Capitão Mor tinha estado em Recife, que ele o havia recebido e ouvido, mas não aceitara as suas desculpas por sair sem permissão. Por isso, havia mandado prendê-lo na Fortaleza das Cinco Pontas e repreendeu a todos os demais índios que o acompanharam, mandando-os de volta ao Rio Grande26. O IHGRN, Livro de Registro da Antiga Vila Flor, fl. 150-150v., Carta Patente do Governador de Pernambuco ao posto de Capitão-mor das Ordenanças dos Índios de Vila Flor, 4 fev. 1777. 25 Ibidem. 26 BNRJ – I-12,3,35, fl. 84-84v., Carta do Gov. de Pernambuco ao Diretor da Vila de Arez, 24 ago. 1761. 24 104 FÁTIMA MARTINS LOPES Governador apontava o exemplo da prisão do Capitão Mor na frente dos seus subordinados como forma de manter os índios sob controle: Persuado-me que a vista do procedimento que viram praticar com o dito Capitão-mor e a advertência que lhes fiz, de que não deviam sair para parte alguma fora dessa Vila, sem permissão de V. M., nem intrometer-se de dar rapazes e trabalhadores... ficarão inteiramente certos para se absterem de seguir este desmancho, a que os encaminha a persuasão daquelas pessoas que solicitam com mão coberta os progressos desses estabelecimentos.27 Ainda tratando desse mesmo episódio, os Oficiais da Câmara de Arez fizeram um requerimento ao Governador em que pediam que depusesse o Capitão Mor Sebastião Lopes de seu posto, alegando: (...) as repetidas desordens que tem cometido, contra as Reais Ordens, e notório prejuízo do adiantamento dessa V ila e tranquilidade de seus moradores; mormente quando com pernicioso exemplo e renitente desobediência se opunha ao fim da civilidade dos seus habitadores para que devia concorrer como era obrigação.28 Isto é, para os Oficiais da Câmara, a substituição do Capitão Mor devia ser feita porque ele não era o agente dócil esperado. Frente a essas informações, o Governador resolveu que ele era incapaz para o cargo, mandando prendêlo em Fernando de Noronha, “... aonde existiria o tempo competente a purificar as suas culpas”29. Utilizando o exemplo e a ameaça como forma de controlar os oficiais militares índios, o Governador nomeou outro índio, Francisco Xavier da Silva, para ocupar o cargo que ficara vago na Vila de Arez, porém advertiu-o para proceder com obediência, pois, caso contrário, sofreria “... da mesma sorte que todo aquele que faltar em concorrer para a boa harmonia e em se mostrar menos ativo e obediente ao Diretor e justiças”30. Ao mesmo tempo, o Governador advertiu aos Oficiais da Câmara que a obediência era o principal requisito para a manutenção dos postos ocupados, pois também eles poderiam perder os seus próprios cargos, caso não agissem em conformidade com as necessidades e interesses da Coroa e de seus funcionários em comando: Espero que Vs. Ms. da sua parte ajudem ao dito Diretor no adiantamento dessa Vila e não consintam se dêem índios ou rapazes para os trabalhos e casas dos moradores circunvizinhos, sem a sua intervenção e ajuste, animando a conservação da escola e ensino Ibidem. BNRJ – I-12,3,35, fl. 84v-85, Carta do Governador de Pernambuco aos Oficiais da Vila de Arez, 24 ago. 1761. (grifo nosso). 29 Ibidem. 30 Ibidem. 27 28 CAPITÃES MORES DAS ORDENANÇAS DE ÍNDIOS 105 das raparigas e fazendo aumentar quanto possível a cultura e criações de gado, para o que é necessário não faltarem ao castigo daqueles que justamente o merecem, quando assim o desempenhem terão a minha vontade muito pronta para em tudo lhes dar gosto.31 Na nova configuração das Vilas de Índios, as Câmaras investiram-se a si como protetoras das leis, como se esperava de um órgão administrativo colonial, principalmente porque nelas também passaram a atuar os novos moradores brancos. Há que se considerar que, desde a formação das Câmaras nas novas Vilas de Índios do Rio Grande, os colonos lusobrasileiros começaram a participar das eleições, tanto como eleitores como eleitos, tal como os índios, daí não ser difícil entender os pedidos de substituição dos Capitães Mores das Ordenanças dos Índios que não atendessem aos interesses da Coroa. Entretanto, os índios que atuavam como Capitães Mores ou como Oficiais das Câmaras eram importantes para a colonização por exercerem a função de intermediários entre o mundo colonial e os seus subordinados, fiscalizando as próprias instituições coloniais, assim como a população vilada em geral. Assim como os camaristas lusobrasileiros, também os Párocos tentavam influir na indicação ou substituição dos Oficiais das Ordenanças, apesar de não terem mais poder para atuar no âmbito temporal, e um episódio que ocorreu na Vila de Estremoz é um bom exemplo. O Capitão Mor dos Índios, Marcelino Carneiro, queixou-se, por carta, ao Governador de Pernambuco, de que o Vigário Antônio de Souza e Magalhães lhe encarregou de cobrar as conhecenças32 que alguns moradores lhe deviam. Executando a tarefa por “obséquio” – como asseverou, pois não era sua obrigação – verificou que muitos devedores precisavam de um tempo maior para fazer o pagamento, o que foi informado ao Pároco na Igreja. Não contente com o resultado obtido, o Vigário teria xingado o Capitão Mor, “... descompondo-o de ridículo publicamente e outros nomes injuriosos”33. Provavelmente, o Vigário o chamou de “ridículo” por este não ter a autoridade que seu cargo pressupunha e não conseguir fazer com que seus subalternos fizessem o pagamento que deviam. Ao que parece, a precariedade da autoridade dos Capitães Mores era evidente aos colonos, como Henry Koster registrou mais tarde, em 1810, quando visitava as Vilas de Índios de Pernambuco e suas anexas: Os indígenas têm também seus Capitães-mores cujo título é vitalício e dá algum poder sobre os seus companheiros, mas como não há salário, o Capitão-mor é muito ridicularizado pelos brancos e, com Ibidem. (grifo nosso). Conhecença é a oferta pecuniária dada a um cura, em lugar de rendimentos regidos por dízimos. 33 BNRJ – I-12,3,35, p. 42-42v., Carta do Gov. de Pernambuco ao Vigário de Estremoz, 25 mai. 1761. 31 32 106 FÁTIMA MARTINS LOPES efeito, um oficial meio nu, com sua bengala de castão de ouro na mão, é um personagem que desperta o riso aos nervos mais rijos. 34 Frente a este tipo de atitude de menosprezo, o Capitão Mor Marcelino relatou que, movido pelos xingamentos do Pároco e “... levado por uma pouca cólera de se ver desatendido contra as Ordens de Sua Maj. F. na presença das pessoas que governa...”, revidou, chamando também o Vigário de “ridículo”. Talvez, motivado pela mesma precariedade de autoridade dos novos Párocos, comparada ao poder que os antigos missionários regulares tinham. Frente ao revide, o Pároco declarou publicamente que o Capitão Mor estava excomungado e destituído da autoridade do seu posto, e começou a formar um Sumário de Testemunhas contra ele, acusando-o também de amancebamento e outros crimes35. Ambos queixaram-se ao Governador e, em resposta ao Vigário, o Governador lembrou que as testemunhas que o Pároco arrolara eram inimigas do Capitão Mor, como, por exemplo, o Capitão Constantino Dias, de quem tivera “notícias do espírito de parcialidade que o predomina” e que já tentara ficar com o cargo do Capitão Mor. Ordenou, então, que o Pároco cancelasse o Sumário, pois não era da sua competência. Da mesma forma, cancelava a destituição do cargo de Capitão Mor, que também não lhe cabia. Além disso, declarou que, no seu entendimento, o Capitão Mor Marcelino não era homem de causar problemas, pois, num tempo que permaneceu em Recife por três meses, não tivera notícia do (...) mais leve desmancho seu, e só muito cuidado em que a sua gente vivesse em paz e observassem as Ordens Régias, pode ser essa a culpa que se lhe ache, e que aqueles que não gostam de as verem executadas por quererem indiretamente fazer renovar os antigos abusos, sejam os mesmos que lhe procurem semelhantes embaraços.36 Isto é, para o Governador de Pernambuco, o Capitão Mor Marcelino estava devidamente envolvido pela colonização, servia aos interesses da Coroa e, portanto, deveria ser mantido no cargo que ocupava, apesar dos apelos contrários do Pároco que queria exercer uma autoridade sobre os índios que lhe era impedida. Por outro lado, percebe-se também que a fidelidade encontrada no Capitão Mor Marcelino não era a mesma que o Governador observava no Capitão Constantino Dias, o pretendente ao cargo do Capitão Mor. Por isso, em carta ao Diretor de Estremoz, Antônio de Barros Passos, o Governador afirmou que, mesmo que o índio Marcelino fosse culpado, o índio Constantino “... KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Recife: Gov. do Estado de Pernambuco, 1987, p. 133. 35 BNRJ – I-12,3,35, p. 42-42v., Carta do Gov. de Pernambuco ao Vigário de Estremoz, 25 mai. 1761. 36 Ibidem. (Grifo nosso). 34 CAPITÃES MORES DAS ORDENANÇAS DE ÍNDIOS 107 nunca seria admitido a suceder-lhe nele, mormente sendo de gênio inquieto e apto a formar parcialidades”37. Observa-se, então, uma luta pelo poder entre os índios: o Capitão Mor Marcelino parecia bem acomodado ao cargo por sua aceitação do comando colonial, como queria o Governador. Já seu opositor, o Capitão Constantino, parecia querer insuflar sua gente contra as Ordens Régias, daí sua luta para tentar obter o cargo o Capitão Mor. Entende-se, portanto, porque o Governador apoiava o Capitão Mor contra o que pretendia o seu opositor. A proteção que o Governador fazia em favor do Capitão Mor Marcelino foi vista também em outras oportunidades, como, por exemplo, quando ele foi denunciado pelo Diretor de Estremoz de portar aguardente, o que era proibido pelo Diretório. O Governador alegou que o Capitão Mor seria inocente porque estaria acompanhado de 30 homens que estavam tirando casca do mangue, e que a quantidade da bebida era apenas para “... as arranhaduras que tivessem, por ser natural experimentá-las entre os mangues e taliças das praias”38. No entanto, em um episódio semelhante envolvendo outros índios, o Governador reafirmou peremptório o impedimento do uso da aguardente: Não duvido do prejuízo e distúrbios que seguem entre os índios por conta da aguardente e do conhecimento do muito que lhe é nocivo o uso deste gênero, tem Sua Maj. F. dado e insinua o Diretório os meios por que se deve embaraçar a liberdade de o venderem, que V. M. deve executar inviolavelmente.39 Em outra feita, o Governador defendeu-o também contra a acusação de que teria sonegado farinha que serviria à comitiva do Ouvidor que fora criar a Vila, dizendo que, ao contrário, o Capitão-mor fora previdente, pois “... ele as não tirou a seus donos e só lhe segurou as não vendessem enquanto se não viam se eram necessárias para a Comitiva, pagando-as pelo seu dinheiro”40. Porém, em outra ocasião, o Governador admoestara o Capitão Mor da Capitania do Rio Grande do Norte a conseguir farinha a qualquer custo, pois era para o serviço real. Portanto, conclui-se que era a capacidade dos índios indicados aos cargos oficiais em concordar com as determinações do Governador e das leis que garantia a indicação e a permanência neles, mesmo contra a vontade de outras autoridades e mesmo tendo-se que relevar os pequenos defeitos e infrações que cometiam, contanto que se conformassem aos interesses da Coroa. Se as indicações aos cargos oficiais carreavam poder e prestígio aos BNRJ – I-12,3,35, fl. 43-44, Carta do Governador de Pernambuco ao Diretor de Estremoz, 25 mai. 1761. (Grifo nosso). 38 Ibidem. 39 BNRJ – I-12,3,35, fl. 161v.-162v., Carta do Governador de Pernambuco ao Diretor de Estremoz, 22 dez. 1761. 40 Idem, fl. 43-44, Carta do Governador de Pernambuco ao Diretor de Estremoz, 25 mai. 1761. 37 108 FÁTIMA MARTINS LOPES beneficiados, a ponto de suscitar articulações para suas substituições, por outro lado, os títulos e cargos definidos pelas novas Leis de Liberdade também garantiam um diferencial nas relações econômicas entre os índios. Conforme o Diretório, os oficiais e camaristas índios não poderiam ser repartidos para os trabalhos aos colonos e não precisariam ir pessoalmente coletar os produtos silvestres – como as cascas do mangue – mas poderiam mandar outros índios em seus lugares. Assim, os Principais poderiam mandar até seis índios ao sertão; os Oficiais Militares até quatro índios; e os demais Oficiais, dois índios, pagando-lhes o devido salário pelo trabalho41. Na falta de dinheiro para o pagamento devido, os Oficiais deveriam assinar um “escrito de dívida” (promissória), para ser pago ao final dos trabalhos com os resultados obtidos42. Essas práticas pretendiam a introdução de um processo de individualização nas relações de produção entre os índios, pois os Oficiais passariam a ter privilégios no campo econômico-produtivo distintamente dos demais índios, conformando uma diferenciação social como parte de um processo de transformação cultural necessária à dominação colonial e exploração do trabalho indígena. Conforme Maria Regina Almeida, aceita-se que a (...) política de enobrecimento de parte das lideranças indígenas fazia-se com concessão de privilégios e títulos que visavam introduzir hábitos e costumes e valores do mundo mercantilista e cristão para envolver esses homens na ordem colonial, de forma a que conduzissem seus liderados à obediência e disciplina nas aldeias.43 Afinal, os postos de comando, as vestimentas, os papéis de concessão (Cartas Patentes) e os privilégios especiais eram símbolos de poder e prestígio valorizados no novo mundo em que os índios viviam e foram assumidos pelos Oficiais e Capitães Mores indicados pelo Governador. Na compreensão desses “direitos”, o mesmo Capitão Mor dos índios, Marcelino Carneiro, queixou-se que alguns de seus privilégios anteriores foram retirados pelas novas determinações do Diretório e pediu ao Governador de Pernambuco que eles fossem restaurados. Em carta datada de julho de 1759, o Capitão Mor queixava-se que fora dito aos Oficiais das Ordenanças da antiga Missão de Guajiru que: (...) daqui por diante não podiam estes, nem ainda eu, como Capitãomor desta Missão, valer-me de serviço algum dos índios deste continente sem lhes satisfazer seu diário trabalho; se impossibilita poder haver nas Missões capitães-maiores, pois impedidos estes a que os tais índios o sustentem com lhes fazerem uma costumada roça, e ainda por se ir eles pescarem e darem água necessariamente, há de o Capitão-mor e sua mulher sem distinção carregarem a DIRETÓRIO... , parágrafo 50. Idem, parágrafo 71. 43 ALMEIDA, Metamorfoses indígenas, p. 161. 41 42 CAPITÃES MORES DAS ORDENANÇAS DE ÍNDIOS 109 precisa para o seu gasto, e irem roçar para se poderem manter, com cujo contínuo trabalho forçosamente não poderão assistir mais nas povoações de suas Missões, por lhes ser necessário fazerem a tal assistência em roçados, pescarias e o mais conducente para conservação da vida, e assim espero de V. Excia. a providência necessária nesta matéria ou haver-me por escuso de meu posto por me ser impossível com este poder sustentar-me e viver com distinção que pelo dito posto se me permite, e sempre me submeterei obediente a tudo quanto me ordenar V. Excia.44 Efetivamente, segundo o Diretório, no parágrafo 63, da mesma forma que os índios não poderiam prestar serviços aos colonos sem pagamento, também não mais poderiam prestar serviços aos Principais e Oficiais sem pagamento. Isso bem lembrou o Diretor da Vila de Estremoz, Antônio de Barros Passos, ao Governador, ao pedir conselho sobre o que deveria fazer quanto à prática proibida pelo Diretório, principalmente porque o Capitão Mor Marcelino Carneiro alegava que “... ir trabalhar, carregar água e lenha” era impróprio ao seu posto e que seria melhor não ser mais Capitão Mor, “... pois o não sendo era como os mais para trabalhar para se sustentar”. O Diretor informava ainda ao Governador que, sem que ele os mandasse, os índios já haviam deixado de trabalhar de graça para o Capitão-mor45. Percebe-se que as diferenciações de privilégios tinham sido incorporadas pelo Capitão Mor Marcelino e mesmo que ele não tivesse todos os privilégios que pretendia, aqueles que ele efetivamente possuía (como o de dirigir petições diretamente ao Governador) o colocavam em situação social diferenciada na comunidade. Como foi bem observado por Patrícia Sampaio, (...) o Diretório, ao enfatizar a diferenciação social como indicador da civilização, criou um mecanismo que podia funcionar como um significativo fator de cooptação, mas que no limite, resultava na diferenciação econômica e social desses indivíduos do conjunto da população aldeada.46 Tudo isso poderia gerar conflitos entre os Capitães das Ordenanças e os seus comandados, sem que, no entanto, os afastassem de seu papel de liderança. No entanto, com a garantia de privilégios distintivos, criavam-se efetivamente novas práticas culturais que possibilitavam a consolidação da colonização. E, esse processo de individualização poderia também contribuir para uma diferenciação econômica entre os índios, que foi iniciada através da distribuição diferenciada de bens e terras a elementos escolhidos. Para o Governador de Pernambuco, Luiz Diogo Lobo da Silva, no momento Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Cód. 1822, fl. 34 v.-35, Carta do Capitão-mor dos Índios da Missão de Guajiru ao Governador de Pernambuco, 3 jul. 1759. 45 Idem, fl. 38-42, Carta do Diretor de Estremoz ao Governador de Pernambuco, 2 jul. 1759. 46 SAMPAIO, Espelhos partidos, p. 195. 44 110 FÁTIMA MARTINS LOPES mesmo da criação das primeiras Vilas entre 1759 e 1762, devia-se premiar alguns índios escolhidos com mais terras que outros, principalmente porque acreditava que, além da diferenciação social, isso os levaria ao desenvolvimento econômico da povoação e ao aumento consequente dos dízimos a serem recolhidos. Assim, determinara ao responsável pelo estabelecimento das novas vilas que “... além das [terras] que tivessem bem fabricadas e povoadas lhes desse as que lhes tocam pelo Diretório, querendo-as e sendo-lhes precisas”47. Como justificativa as suas decisões de dar a alguns índios de sua jurisdição mais terras do que estava previsto no Diretório dos Índios, o Governador alegava que incentivava a “boa disposição” dos Principais em acatar as novas leis: Da nova forma que se lhes dá, se mostram contentes e protestam em todo o tempo ser pela sua Fidelidade agradecidos, sujeitandose a esquecerem-se da língua em que até agora os entretinha e aplicarem-se com cuidado à Portuguesa e a toda instrução necessária a civilizarem-se e serem bons cultores para por estes meios se poderem habilitar a igualdade que aspiram lograr com os mais vassalos que temos a honra de o ser de S. Mag. F. em que lhes segurei que para o conseguirem se careciam de se fazerem dignos pela regularidade de seu bom procedimento.48 Porém, nesta passagem, muito mais do que incentivar a “boa disposição” dos Principais, se percebe que o Governador os ameaçava com seu poder. Assim, da mesma maneira que os índios Principais poderiam contar com o seu apreço, enquanto se f izessem “dignos pela regularidade de seu bom procedimento”, também poderiam contar com a sua oposição quando assim não agissem, como se viu nos episódios relatados anteriormente sobre a substituição nos cargos oficiais. Constata-se, portanto, que sob os acordos, negociações e privilégios dos Principais existiam as ameaças e o controle da colonização. O que demonstra que o “governo” que esses Principais tinham sobre seus pares era parcial, posto que controlado pelas ameaças das autoridades. A aceitação das novas leis, ou, pelo menos, a disposição em aceitarem-nas, era forjada pela força de coerção. Apesar de tudo, conforme Maria Regina Almeida, estas diferenças econômicas e sociais permitiam aos Oficiais das Ordenanças uma acumulação, ainda que em pequena escala, identificada pela posse de gado, terras próprias e por rendimentos anuais superiores aos demais índios49. No Rio Grande do Norte, viu-se através de algumas listagens de índios pagadores de dízimos que, efetivamente, os Capitães Mores das Ordenanças BNRJ – II-33, 6, 10, doc. 2, fl. 7-12. Carta do Governador de Pernambuco ao Secretário de Estado, 13 jun. 1759. 48 Ibidem (Grifo nosso). 49 ALMEIDA, Metamorfoses indígenas, p. 160. 47 CAPITÃES MORES DAS ORDENANÇAS DE ÍNDIOS 111 de Índios e seus oficiais tinham uma renda que ficava pouco acima da média dos demais moradores. Na maioria dos casos, eles não apareceram como os maiores pagadores de dízimos, mas também não ficaram entre os menores. De qualquer forma, a sua identificação nominal na lista já é uma boa indicação de que tinham uma posição social diferenciada nas comunidades, visto que nenhuma outra forma de distinção, prof issional ou hierárquica, foi encontrada. As listagens de índios pagadores de dízimos identificadas foram de três Vilas do Rio Grande: Estremoz, Vila Flor e São José. Foram as únicas encontradas e apenas para os anos identificados, mas possibilitam uma mostra da realidade que se percebe comum nas três Vilas. Observa-se que, na análise das listas de índios pagadores de dízimos, alguns nomes dos pagadores não se repetem em todos os anos. Talvez porque não tenham produzido o suficiente para ser avaliado para a cobrança. Talvez se deva à forma de se recolher a informação, muitas vezes anotada nos Cadernos dos Diretores e só muito mais tarde passada à Provedoria. Na série de cinco anos dos índios pagadores da Vila de Estremoz, a média dos valores pagos pelos Oficiais das Ordenanças foi de 392 réis e ficou pouco acima do que foi pago pela maioria dos índios listados: em 1783, 69,3% dos homens listados pagaram menos que $320 de dízimo; em 1784, foram 87,5%; em 1785, 50%; em 1786, 70%; e em 1787, 66,6% pagaram menos que trezentos e vinte réis de dízimo50. Ressalta-se que as funções militares das Ordenanças não eram remuneradas e que os dízimos eram calculados apenas sobre o que era produzido na terra ou obtido nos trabalhos prestados a colonos ou obtido com o trabalho de outros índios, não havendo, portanto, ligação direta entre o valor do dízimo e a hierarquia dos postos da Ordenança. Por isso, encontrouse um Sargento ou um Tenente pagando dízimo maior que um Capitão Mor. Sobre os índios pagadores de dízimo de Vila Flor, podem ser feitas as mesmas observações: inexistência de relação entre os valores pagos e a hierarquia militar e pagamento de dízimos pelos Oficiais das Ordenanças acima da média do restante da população indígena. A maioria da população (58,9%) pagou valores abaixo de 120 réis, mas os Oficiais das Ordenanças identificados pagaram valores médios de 211 réis. O que indica que também tinham uma renda superior ao da maioria da população, mesmo que em pequena escala51. Para a Vila de São José só foi encontrada a listagem de índios pagadores de dízimos do ano de 1787, que, apesar da pequena mostra, também indica situações semelhantes às já vistas nas outras Vilas: os Oficiais pagaram valores superiores aos 160 réis pagos pela maioria dos demais índios listados. 50 51 IHGRN, Cx. Dízimos Reais (1773-1826), Dízimos dos Índios da Vila de Estremoz (1783 a 1787). Idem, Dízimos cobrados dos Índios de Vila Flor (1783 a 1794). 112 FÁTIMA MARTINS LOPES Nas mesmas listas de pagadores de dízimos, encontraram-se alguns índios que se distinguiram da maioria pelo valor pago muito acima da média observada e que não faziam parte das Ordenanças e nem tinham qualquer outra forma de informação que os identificasse socialmente. Por exemplo, em Estremoz, em 1783, o índio Antônio Pinto pagou 1920 réis de dízimo. No ano seguinte, dois índios, Ângelo Mendes e Miguel Coelho, pagaram cada um 960 réis. Em 1785, Florêncio da Rocha pagou 1000 réis, e em 1792, o valor de 960 foi pago pelo índio João Soares Jr.52. Todos eram exceções, pois os valores médios pagos pela população, e mesmo pelos oficiais das Ordenanças, como se viu, estavam muito abaixo disso53. Como não se encontrou listas nominais de colonos lusobrasileiros pagadores de dízimos, não se pôde fazer uma comparação com os valores pagos pelos índios para se avaliar o nível de acumulação que alguns poderiam ter. Mas, de qualquer forma, admite-se que era uma pequena acumulação, se pensarmos na afirmação de Henry Koster que viajou por Pernambuco e suas anexas e percorreu as Vilas de Índios: “Não há exemplo de um indígena rico”54. Também não foi possível identificar a atividade que permitia um maior rendimento entre alguns índios, mas se pode afirmar que as situações econômicas diferenciadas dentro das Vilas envolviam outros índios, além dos componentes do Oficialato das Ordenanças. Por exemplo, alguns desses pagadores dos maiores valores poderiam ser aqueles que prestavam serviço à Coroa, como o caso do “criador” do gado de Arez, como se verá a seguir. Quando os missionários das Missões partiram do Rio Grande em 1759, os bens das Missões, principalmente o gado, ficaram com um responsável – o criador – para cuidar dele enquanto não se decidia como seria feita a sua distribuição. O índio Jerônimo de Andrade era o criador da Vila de Arez que deveria receber, em pagamento pelo serviço prestado, a quarta parte das cabeças nascidas durante o seu cuidado. Contudo, apesar de já ter o seu gado garantido, ele não se satisfazia e agia de forma a obter maiores cabedais: na ocasião da distribuição dos bens da Missão, em 1762, o criador pleiteou ao Diretor, que além da quarta parte que lhe era devida, deveria receber uma quantia maior pelo trabalho como depositário 55. Além dos benefícios econômicos, ele também pleiteava privilégios especiais, como quando solicitou ao Governador de Pernambuco permissão para manter Idem, Dízimos dos Índios da Vila de Estremoz (1783 a 1787). Idem, Dízimos cobrados dos Índios de Vila Flor (1783 a 1794): em Vila Flor, um único índio, Manuel de Sepúlveda, foi o detentor do título de maior pagador: em 1789, pagou $480; em 1790, $320; em 1791, $640; em 1792, $480 e em 1794, pagou $620; Idem, Dízimos dos Índios da Vila de São José (1787): na Vila de São José, em 1787, o maior valor pago foi $640. 54 KOSTER, Viagens ao Nordeste..., p. 35. 55 BNRJ – I-12,3,35, fl. 83-84, Carta do Governador de Pernambuco ao Diretor da Vila de Arez, 22 ago. 1761. 52 53 CAPITÃES MORES DAS ORDENANÇAS DE ÍNDIOS 113 o gado sem pastor e sem recolhê-los aos currais à noite56. Ou ainda, quando pleiteou que seu filho não fosse alistado para o serviço nas Ordenanças, nem prestasse serviço a terceiros fora da Vila57. Os pedidos quanto ao gado foram negados pelo Governador que ordenou ao Diretor Domingos Jacques da Costa que o criador fosse preso por dez dias na Cadeia da Vila, por ter se ausentado da Vila sem licença, “... para que tenha o castigo da liberdade e insolência com que se houve.” Quanto aos pedidos para o filho, o Governador resolveu que o jovem, “visto ter qualidade de índio,” deveria ser alistado nas Ordenanças e “... regular-lhe o serviço pela escala com aos demais soldados...”58. As respostas negativas aos seus pedidos não impede que se perceba que o criador tinha uma situação econômica diferenciada dos outros índios para poder sustentar o filho sem que fosse necessário que ele trabalhasse, como era ordenado no Diretório. Além disso, o que é ainda mais interessante é que ele desejava se beneficiar de privilégios diferenciadores e que acreditava que poderia pleiteá-los livremente. Este episódio, somado à constatação da existência de índios pagadores de dízimos bem mais elevados que a maioria, demonstra que a política colonial de diferenciação social e econômica acabou por tocar outros elementos da comunidade e não apenas o Oficialato das Ordenanças, sem prejuízo deste ter sido o alvo favorito do Diretório. Apesar de os Oficiais das Ordenanças, principalmente os Capitães Mores, não serem os únicos a se integrarem a essa política diferenciadora, eram, porém, aqueles que tinham o direito de fazer requerimentos e por isso mesmo, em muitos casos, continuavam a ser os interlocutores entre as comunidades e as autoridades coloniais. Interlocutores que, como se viu, muitas vezes utilizaram seus direitos de pleito para benef iciarem-se econômica e socialmente. Conclui-se, portanto, que ao se apropriarem dos valores europeus em benefício próprio, constituíram-se em novos interlocutores entre o mundo colonial e o indígena, podendo ter contribuído para muitas das redefinições culturais desses últimos frente à colonização. Idem, fl. 27-27v., Carta do Governador de Pernambuco aos Oficiais da Câmara da Vila de Arez, 15 abr. 1761. 57 Idem, fl. 28-29, Carta do Governador de Pernambuco ao Diretor da Vila de Arez, 16 abr. 1761. 58 Ibidem. 56 115 CONTATOS, CONFLITOS E REDUÇÃO: TRAJETÓRIAS DE POVOS INDÍGENAS E ÍNDIOS ALDEADOS NA CAPITANIA DA PARAÍBA DURANTE O SÉCULO XVIII Ricardo Pinto de Medeiros1 ste ensaio pretende, a partir da pesquisa em fontes primárias oriundas do Arquivo Histórico Ultramarino e da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, acompanhar a trajetória de alguns grupos indígenas existentes no sertão da capitania da Paraíba no século XVIII. Para tanto, analisa a política de alianças e as guerras contra os conquistadores, a participação de lideranças militares indígenas da capitania na implantação da política pombalina e suas consequências para as populações indígenas reduzidas em vilas. A história dos povos indígenas que se encontravam no século XVIII no território do que hoje é o Estado da Paraíba, e mais especificamente, nas regiões atuais do Agreste e Sertão, apresenta-se como um desafio para o pesquisador, principalmente em função das dificuldades relativas à pouca documentação, e ao fato de que praticamente tudo o que foi escrito, o foi na perspectiva e na visão dos brancos e vencedores. Além disso, existe um problema quanto aos etnônimos, e o que eles traduzem de fato, das conformações socioculturais e da identidade étnica dos povos a que se referem. Basta pensar em um povo que se encontrava espalhado por um espaço determinado, que não tinha nada a ver com a organização espacial imposta pelos colonizadores e que foi recebendo denominações diferentes, à medida que foi sendo contatado. Uma situação bastante comum é a modificação do etnônimo, que é substituído no processo de contato, pelo nome de um principal importante do grupo. É o caso dos Ariú, trazidos por Teodósio de Oliveira Ledo, no ano de 1697, ao aldeamento chamado Campina Grande, cujo principal se chamava Cavalcanti. No princípio de dezembro do ano de 97 veio a esta cidade o capitãomor das Piranhas e Piancó, Teodósio de Oliveira Ledo, (...) trouxe consigo, Senhor uma nação de tapuias chamados Ariús, que estão aldeados junto aos Cariris aonde chamam Campina Grande, e querem viver como vassalos de Vossa Majestade e reduzirem-se a 1 Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor Adjunto do Departamento de História e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco. Docente Colaborador do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. Líder do Grupo de Pesquisas Etnoarqueologia no Nordeste (PPGA-UFPE/ Diretório CNPq) e pesquisador do Grupo de Pesquisas Estado e Sociedade no Nordeste Colonial (NDIHRUFPB/ Diretório CNPq). E-Mail: <rpinto@elogica.com.br>. 116 RICARDO PINTO DE MEDEIROS nossa santa Fé Católica dos quais é principal um tapuia de muito boa traça e muito fiel segundo o que até o presente tem mostrado chamado Cavalcanti (...).2 Em 1761, em uma relação das aldeias que há no distrito do governo de Pernambuco, e capitanias anexas, de diversas nações de índios, podemos observar que a mesma aldeia da Campina Grande é agora habitada por índios da nação Cavalcanti3. Apesar das dificuldades acima mencionadas, acreditamos que alguns etnônimos como Pega, Panati, Corema, Cariri, Xucuru e Icó, que aparecem com bastante frequência na documentação do século XVIII, relativa ao sertão da Capitania da Paraíba, referem-se a situações étnicas diferenciadas e que vão se transformando ao longo do processo de contato. A opção de trabalhar com o século XVIII, deve-se ao fato de que é o momento onde se encontrou um volume maior de documentos que fazem menção a estes etnônimos, que vão desaparecendo na segunda metade do mesmo século, à medida que os índios que estabeleceram pazes e foram reduzidos em aldeias, tiveram as suas aldeias transformadas em vilas e povoados, dentro das transformações impostas pela política indígena do período pombalino. Assim, esse foi um século em que os povos indígenas do sertão da capitania que fizeram pazes e se aldearam junto aos portugueses desde o final do século anterior, vivenciaram diversas situações relativas ao contato: guerras, acordos de paz, redução, participação militar nos conflitos com outros grupos indígenas e o impacto que a política pombalina teve no processo de desenraizamento espacial e cultural das identidades étnicas existentes e a construção de novas identidades. Uma das primeiras referências aos Corema encontradas na pesquisa é do final do século XVII. Trata-se de uma carta do capitão mor dos sertões de Piranhas, Cariris e Piancó, Teodósio de Oliveira Ledo, ao Governador da Paraíba Manoel Soares de Albergaria em 6 de agosto de 1698. (...) com o favor de Deus cheguei com tudo a salvo e em paz a este Arraial do Pau Ferrado nos primeiros de abril e dali a nove dias de minha chegada me veio um aviso do meu gentio, que distante do arraial três léguas estavam em como com eles se haviam encontrado trinta ou quarenta tapuias brabos, que vinham em busca de paz e que em todo caso os socorresse pelo receio que tinham de que lhe sucedesse algum dano, o que fiz logo (...) eram de uma aldeia chamada Corema a pedir-me paz dizendo que queriam ser leais a El Rei meu Senhor; eu lhes concedi com ditame de procederem contra os nossos inimigos e com obrigação de conduzirem o seu mulherio para o arraial debaixo das armas; aceitaram o partido (...).4 Carta do Governador da Paraíba Manoel Soares de Albergaria ao Rei de Portugal D. Pedro II, de 14 mai. 1699. AHU_ACL_CU_014, Cx. 3, D. 226. 3 AHU_ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919, p. 298-304. 2 CONTATOS, CONFLITOS E REDUÇÃO 117 Em julho de 1709, em correspondência ao governador de Pernambuco, o rei comenta uma carta que havia recebido do capitão mor da Paraíba, informando que o capitão mor dos sertões daquela capitania, Teodósio de Oliveira, teria comunicado que havia, naqueles sertões, uma nação de Tapuias chamados Pega, e outra, chamada de Corema, que inquietavam os moradores. O motivo da inquietação era por se achar a nação Pega com cabo e com mais de mil e tantos arcos, de que se procedia não se povoarem aqueles sertões e se aumentarem os currais. Na mesma data, o rei escreve ao capitão mor da Paraíba ordenando mandar o capitão mor Teodósio de Oliveira, com sua gente e índios, reprimir os danos que os índios levantados tentavam fazer, e se não fosse possível, escrevesse ao governador de Pernambuco para dar o socorro necessário para empreender essa guerra5. Logo em seguida, encontramos uma consulta do conselho ultramarino de 19 de janeiro de 1711, sobre o que escreveu o capitão mor da Paraíba a respeito da devassa da guerra que os moradores das Piranhas fizeram aos tapuias, que apurou que os tapuias atacavam isoladamente para furtar e não em comum e, dessa forma, os moradores das Piranhas não poderiam ter-lhes declarado guerra6. No dia 09 de março do mesmo ano o rei escreve ao capitão mor da Paraíba, mandando castigar os índios e soldados que foram considerados culpados e ordena que, suposto o que diz o juiz Pantaleão Lobo, que os moradores da Piranhas não querem consentir que o gentio Panati torne para as terras que lhes foram assinadas naquele sítio, donde o lançaram fora com a injusta guerra que lhes deram, lhe dê posse das ditas terras7. É interessante observar como a presença e participação do elemento indígena no processo de conquista e colonização das terras situadas no sertão, na primeira metade do século XVIII, aparece na distribuição de sesmarias na capitania da Paraíba. A análise das obras de Irineu Joffily e João de Lyra Tavares8, que apresentam praticamente as mesmas doações de terras, nos permite identificar as estratégias de alguns povos da região em sua dinâmica com a sociedade colonial. Grande parte das doações de terras é feita como Carta do capitão-mor dos Sertões de Piranhas, Cariris e Piancó Teodósio de Oliveira Ledo ao Governador da Paraíba Manoel Soares de Albergaria, de 06 ago. 1698. AHU_ACL_CU_014, Cx. 3, D. 226. 5 LIVRO DE REGISTO de cartas régias, provisões e outras ordens para Pernambuco, do Conselho Ultramarino. 1698-1713. AHU_ACL_CU_CARTAS DE PERNAMBUCO, Cód. 257, f. 250-250v. 6 Consulta do Conselho Ultramarino. 19 jan. 1711. LIVRO DE REGISTO de consultas de Pernambuco, do Conselho Ultramarino. 1673-1712. AHU_ACL_CU_CONSULTAS DE PERNAMBUCO. Cód. 265, f. 238-239. 7 Carta do rei ao capitão mor da Paraíba. 9 mar. 1711. LIVRO DE REGISTO de cartas régias, provisões e outras ordens para Pernambuco, do Conselho Ultramarino. 1698-1713. AHU_ACL_CU_CARTAS DE PERNAMBUCO, Cód. 257, f. 312 e 312v. 8 C.f. JOFFILY, Irinêo. Synopsis das sesmarias da Capitania da Paraíba. Tomo I. Cidade da Parahyba do Norte: s.r., 1894. TAVARES, João de Lyra. Apontamentos para a História Territorial da Parahyba. Cidade da Parahyba do Norte: Impressa Official, 1910. 4 118 RICARDO PINTO DE MEDEIROS prêmio pela conquista e pazes com os índios, como é o caso da doação feita em 1708, ao sargento mor Antônio José da Cunha, que solicita doação de terras próximas a um riacho descoberto por ele chamado do Peixe, habitado pela nação Icó-Pequeno, com os quais dizia, o suplicante, ter estabelecido paz9. Mas, o mais interessante são as doações de terras feitas aos Cariri, Pega e Xucuru na primeira metade do século XVIII. Em 1714, Os Cariri, através do seu governador D. Pedro Valcacer, situados na missão de N.S. do Pilar do Taipu, solicitam terras no lugar chamado Bultrins, em remuneração dos seus serviços como leais vassalos no que são atendidos10. Em 1718 é a vez dos Xucuru: Os Índios Sucurus, representados por seo capitão-mor Sebastião da Silva, dizem que por ordem do meu antecessor vieram com sua aldeia para esta capitania a defender e reparar os assaltos que davão os Tapuias barbaros levantados, em que faziam grande estrago e se situaram na serra Boa Vista, no olho d’agua, aonde estavão assistindo de baixo de missão; e como para sua assistencia era mais conveniente para defensão desta capitania a dita paragem, por estar nas cabeceiras do districto della, como era entre o Curimataú e Araçagy, por onde estavão os Tapuias levantados a fazer o maior damno nesta capitania – requerião uma legoa de terra em quadro fazendo peão no Olho d’agua do meio –(...)para que podesse elle supplicante com sua aldeia viver e plantar suas lavouras para se sustentarem.Fez-se a concessão com a clausula de não poder ser alheiada a terra e ficar devoluta no caso de mudança da aldeia, uma legoa em quadro aos 4 de Agôsto de 1718.11 Finalmente, em 1738, os Pega, através do seu capitão mor, Francisco de Oliveira Ledo, solicitam doação de terras no sertão das Piranhas, para que nelas possam situar sua aldeia, no que são atendidos12. Essas doações de terras mostram que alguns povos indígenas aproveitaram as brechas oferecidas pela Coroa portuguesa e conquistaram um espaço dentro da nova ordem estabelecida, mesmo que de forma subalterna; estratégia que garantiu um pouco mais a sua sobrevivência étnica. O que se observa paralelamente a essas doações são os constantes conflitos com os índios pela posse da terra. Esses conflitos podem ser exemplificados pelo ocorrido com os Corema, entre 1733 e 1736. Por uma sentença conseguida pelos moradores do Piancó, os Corema foram transferidos para o lugar Riacho do Aguiar, tendo voltado para o seu local de origem, o que gerou insatisfação entre os moradores. Baseado no ocorrido o rei solicita ao governador da Paraíba um parecer sobre o assunto13. Cf. JOFFILLY, Synopsis..., p. 40; e TAVARES, Apontamentos..., p. 70. Cf. JOFFILLY, Synopsis..., p. 60 e TAVARES, Apontamentos..., p. 87. 11 Cf. JOFFILLY, Synopsis..., p. 74. 12 Cf. JOFFILLY, Synopsis..., p. 127-128. 9 10 CONTATOS, CONFLITOS E REDUÇÃO 119 A resposta do capitão mor ao rei de Portugal é contra a transferência e bastante ilustrativa dos conflitos existentes entre os índios e os fazendeiros do sertão. Nela informa que: É sem dúvida que os índios fazem grande dano aos gados, matando muitos para comer, porém a necessidade em que os põem os naturais os precisa a maior excesso, por que esta gente estava acostumada a viver, como eles dizem de corso andando continuamente pelos matos a buscar o mel que produzem as abelhas em grande quantidade nos troços das árvores, e debaixo da terra, frutas, todo o gênero de caça, não perdoando à imundície alguma, e para a sua vivenda necessitam de que as terras tenham a comodidade referida, o que nada acharão no Riacho do Aguiar (...) e como no sítio em que se acham de presente lhes impedem as suas caças, e ainda operem roças nas mesmas terras que lhes deu o procurador da torre como consta das suas mesmas petições, e ainda a tirar pedra para fazer igreja, forçosamente há de cometer grandes excessos, enquanto se não reduzirem a forma de viver enquanto homens, o que se deve esperar, se o missionário que de presente está se não retirar como pretende, tendo as perseguições com que lhe impedem a redução daquelas almas, (...).14 Os Panati também sofreram com a tentativa de mudança do local de sua aldeia. Em 1752, encontramos uma certidão do ouvidor-geral da Paraíba, em que relata a transferência realizada por ele dos Panati para uma terras na travessia do Pajaú. (...) vindo em correição neste sertão do Piancó, achei ao tapuia da nação Panati, quase levantado; em razão de não querer ir, para donde a Junta das Missões determinava, por terem morto quase o gado todo das fazendas deste distrito e achando-se já algumas despovoadas, e sem missionário, por este se ter retirado, com receio do dito tapuio, que andava tudo no mato, ao qual reduzindo, para que obedecesse, e se retirasse deste distrito, (...) e tendo notícia de algumas que se achavam na Travessia do Pajeú, recomendei ao coronel da cavalaria João leite Ferreira, para que por serviço de Sua Majestade fosse descobrir as ditas terras, o qual foi com varias pessoas, e os tapuias a sua custa;(...), para assistência dos ditos tapuias para donde se conduziram, ficando os moradores em sossego, concorrendo o dito coronel, com toda a atividade e diligência, para se fazer a dita condução, em que fez um grande Carta do rei ao capitão-mor da Paraíba. 14 fev. 1733. LIVRO DE REGISTO de cartas régias, provisões e outras ordens para Pernambuco, do Conselho Ultramarino. 1731-1744. AHU_ACL_CU_CARTAS DE PERNAMBUCO, Cód. 260, f. 109. 14 Carta do capitão-mor da Paraíba Pedro Monteiro de Macedo ao Rei de Portugal D. João V. 22 abr. 1736. AHU_ACL_CU_014, Cx. 10, D. 798. 13 120 RICARDO PINTO DE MEDEIROS serviço a Deus e Sua Majestade e se faz digno, o dito senhor, lhe faça toda a graça, e favor, que a sua real grandeza for servido.15 A versão dos Panati pode ser percebida na carta endereçada ao rei de Portugal, assinada por Vicente Ferreira Coelho, em cinco de maio de 1755: (...) No distrito da capitania da Paraíba estavam os índios Panatis aldeados e tiveram os moradores do sertão do Piancó principalmente o capitão-mor José Gomes de Sá poderes e astúcia de os fazerem despejar com o pretexto de que comiam e furtavamlhes os gados, e indo todos os índios com o seu missionário o padre Custódio de Oliveira para se acomodarem no sertão do Pajaú, não os consentiram, nem acharam modos e o necessário para se aldearem, e menos os quiseram no sertão das Piranhas, aonde foram, e correram os moradores com estes dizendo-lhes que fossem para a sua aldeia da Casa Forte donde haviam sido despejados por cuja razão se viram precisados a recorrer ao governador da Paraíba que os mandou para o excelentíssimo general de Pernambuco, o qual ordenou que se metessem e ficassem na sua mesma antiga aldeia, contanto que o capitão-mor dos índios fizesse prender qualquer que cometesse furto dos gados e o entregasse ao capitãomor para o remeter para Pernambuco, cuja ordem o capitão-mor índio fez publicar na Matriz do Piancó e na sua aldeia (...).16 Esse incidente provocou a ira dos moradores contra os índios, principalmente o seu capitão mor, que acaba sendo preso, torturado e assassinado. Isto teria ocorrido em 1753 e em 1755, outro índio chamado Antônio Dias, foi morto com um tiro, tendo o juiz de Piancó, mandado soltar os acusados. Diante disto, os índios dirigem-se nos seguintes termos ao rei: Nestes termos os índios da nação dos Panatis com toda humildade representam a Vossa Majestade que sendo os mais leais vassalos que nunca em tempo algum deixaram de merecer o mesmo nome, nem tomaram vinganças dos brancos nas ocasiões que lhes têm dado, se vêm hoje os mais perseguidos e desgraçados, sem proteção das justiças por serem muito pobres, que não possuem que lhes dar, assim como tem os delinquentes, e só de Vossa Majestade se valem, e pedem vingança das mortes referidas do seu capitão-mor e do outro índio, e esperam que Vossa Majestade os não desampare, e dê a providência o castigo merecido como for servido: e por não sabermos escrever pedimos a Vicente Ferreira Coelho esta por nós fizesse e se assinasse.17 Certidão do ouvidor-geral da Paraíba, José Ferreira Gil. 25 jan. 1752. AHU_ACL_CU_014, Cx. 16, D. 1321. 16 Carta de Vicente Ferreira Coelho ao Rei de Portugal D. José I. 5 mai. 1755. AHU_ACL_CU_014, Cx. 18, D. 1435. 15 CONTATOS, CONFLITOS E REDUÇÃO 121 Baseado na seguinte representação dos índios Panati o rei envia em 15 de outubro de 1755 uma carta ao ouvidor da Paraíba ordenando tirar uma devassa contra os excessos cometidos contra eles. Na mesma data, escreve outra carta ao governador da capitania da Paraíba, ordenando ter especial cuidado com estes índios para que se conservem nas suas aldeias e castigar com rigor os culpados18. É interessante ressaltar, que em função de características particulares dos povos indígenas que se encontravam no sertão da capitania da Paraíba no século XVIII: sua mobilidade, o reduzido número de índios nas aldeias, a constante falta de missionários,em comparação com as aldeias do litoral; o processo de transformação de aldeias em vilas do período pombalino, ao contrário com o que aconteceu com as aldeias maiores, principalmente as jesuíticas, resultou na transferência compulsória de uma parte destes índios para vilas maiores, criadas com a união de várias aldeias e “índios dispersos” e na manutenção de alguns povoados e aldeias de índios no sertão. A escassez de missionários nas aldeias do sertão da Paraíba é constante na primeira metade do século XVIII. Em 1715, o capitão mor da Paraíba escreve ao Rei de Portugal, informando que a nação dos Corema, Panati, Fagundes, Icós, Pegas, Canindé e Caburé, se achavam sem missionário, embora a maior parte deles já tivessem tido19. A situação parece não ter melhorado, pois em maio de 1726 o rei escreve ao bispo sobre o que havia informado o capitão mor da Paraíba de que se achavam naquela capitania diferentes aldeias de índios e nações de Tapuia sem missionários e algumas delas não os tiveram nunca, como eram os Fagundes, Cavalcanti e Corema e outras que pela falta de zelo dos que tinham essa obrigação ficaram sem missionário, como era a aldeia dos Cariri que os Padres de São Francisco haviam deixado havia três anos e a dos Xucuru em que estava um clérigo provido pelo cabido, que nela nunca assistira. Diante disto, o rei ordena dar a providência necessária em matéria tão importante. Dois anos depois, o rei escreve ao mesmo bispo, agradecendo ter provido de missionários todas as aldeias da capitania da Paraíba20. Em reunião do Conselho Ultramarino de outubro de 1735 é discutida uma carta do bispo de Pernambuco onde informava o miserável estado em que se achavam os índios da dita capitania pela falta de missionários, das côngruas que havia arbitrado a estes, e o parecer que havia dado de como as missões deveriam ser distribuídas entre as ordens religiosas. A lista compunha-se de Idem. LIVRO DE REGISTO de cartas régias, provisões e outras ordens para Pernambuco, do Conselho Ultramarino. 1744-1757. AHU_ACL_CU_CARTAS DE PERNAMBUCO, Cód. 261, f. 235-235v. 19 Carta do capitão-mor da Paraíba João da Maia da Gama ao Rei de Portugal D. João V. 11 ago. 1715. AHU_ACL_CU_014, Cx. 5, D. 349. 20 LIVRO DE REGISTO de cartas régias, provisões e outras ordens para Pernambuco, do Conselho Ultramarino. 1724-1731. AHU_ACL_CU_CARTAS DE PERNAMBUCO, Cód. 259, f. 64v e 155. 17 18 122 RICARDO PINTO DE MEDEIROS cinquenta e três aldeias, com a informação das que tinham missionário. Segundo ele, aos capuchinhos italianos seria muito conveniente se lhes entregassem as do distrito da capitania do Piancó se eles tivessem para isso religiosos de que estavam faltos21. Na reunião da Junta das Missões de Pernambuco de 17 de outubro 1739, o padre superior dos capuchinhos italianos não duvidou em tomar todas as três aldeias do Piancó: dos Panati, Corema e Icó, unindo os Panati com os Corema no sítio do Boqueirão, onde estavam os Corema, e quanto aos Icó, situados na Serra Branca, tomaria a aldeia quando esta fosse reposta no sítio do Jardim, de onde a retiraram22. A “relação das aldeias que há no distrito de Pernambuco e capitanias da Paraíba sujeitas à Junta das Missões deste bispado” publicada na Descrição de Pernambuco em 1746, nos dá uma idéia de como se encontrava a distribuição 21 22 R EGIÃO ALDEIA MISSIONÁRIO POVOS Paraíba Jacoca Beneditino Caboclos de Língua Geral Paraíba Utinga Beneditino Caboclos de Língua Geral Mamanguape Baía da Traição Carmelita da Reforma Caboclos de Língua Geral Mamanguape Preguiça Carmelita da Reforma Caboclos de Língua Geral Mamanguape Boa Vista Religioso de Sta. Teresa Canindé e Xucuru Taipu Cariris Capuchinho Tapuia Cariri Campina Grande Hábito de S. Pedro Cavalcanti Cariri Brejo Capuchinho Fagundes Piancó Pan at i Religioso de Sta. Teresa Tapuia Piancó Corema Jesuíta Tapuia Piranhas Pega s/ missionário Tapuia Rio do Peixe Icó Pequeno s/ missionário Tapuia AHU_ACL_CU_CARTAS DE PERNAMBUCO, Cód. 911, f. 125-126v. AHU PE – documentos avulsos (d a). 10 dez. 1739. CONTATOS, CONFLITOS E REDUÇÃO 123 das aldeias no sertão da capitania da Paraíba pelas ordens religiosas e os povos indígenas por elas missionados23. O conhecimento sobre a relação das populações indígenas com os atuais municípios e a transformação de aldeias em vilas e povoados na capitania da Paraíba no período pombalino é um tema que apesar de ter sido explorado pela historiografia paraibana, merece um aprofundamento ainda maior, por possibilitar uma visibilidade maior à presença e ressaltar a importância dos povos indígenas na história do Estado da Paraíba. Horácio de Almeida, na sua História da Paraíba, indica a posição de algumas aldeias, relacionando-as a municípios atuais: São oito as aldeias carirys, mencionadas nos documentos públicos: aldeia Icós Pequenos, (Souza); aldeia dos Pegas, (Pombal); aldeia da N. S. do Rosário do Curema; aldeia de S. José do Panaty, (Piancó); aldeia de S. João do Brejo de Fagundes; aldeia do Pilar; aldeia de Santa Thereza e S. Antonio da Boa Vista, das tribos Sucurús e Canindés; não falando na primeira de todas, a do Boqueirão, no rio Paraíba.24 Ainda segundo ele “A primeira vila que se criou na Paraíba foi a de Alhandra, sediada na aldeia de Aratagui, dos índios potiguaras. Sua criação data de 1758, mas só foi instalada em 1765”25. Celso Mariz, nos seu Apanhados Históricos da Paraíba apresenta as seguintes informações, no entanto não fornece uma cronologia precisa para a fundação das vilas e povoados: Souza formou-se de uma aldeia ou missão de Icós; Pombal, fundase de uma tribo de Pegas, Teodósio de Oliveira Ledo que também em 1697 traz os Arius e inicia com ele a atual cidade de Campina Grande; Manuel de Araújo instala, no Boqueirão do Piancó, os seus coremas domados, e Luís Soares, obtendo na guerra dos Tapuias a defecção dos Sucurus, vem aldeá-los no Araçagi.26 Elza Régis de Oliveira fornece a seguinte cronologia para a elevação das povoações à categoria de vilas no século XVIII: 1758- Alhandra e Pilar; 1762, São Miguel da Bahia da Traição e Monte-Mor da Preguiça, 1768 – Conde, 1772A mesma relação encontra-se com pequenas alterações na “Informação geral da Capitania de Pernambuco em 1749”, publicada nos Anais da Biblioteca Nacional. Descrição de Pernambuco com parte de sua história e legislação até o governo de D. Marcos Noronha, em 1746: e mais alguns documentos até 1758. Revista do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano, Recife, n. 11, 1904, p. 168-180; e Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, v. 28, 1906, p. 117-496. 24 ALMEIDA, Horácio de. História da Paraíba. 2. ed. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 1978, Vol. II, p.120. 25 Cf. ALMEIDA, História da Paraíba, Vol.II, p.70. 26 Cf. MARIZ, Celso. Apanhados históricos da Paraíba. 2. ed. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 1980, p. 42. 23 124 RICARDO PINTO DE MEDEIROS Pombal, 1790- Campina Grande, 1800 – Cariris Velhos, posteriormente Vila Real de São João e Jardim do Rio do Peixe, posteriormente Sousa27. Após um primeiro momento da implantação da política indigenista pombalina, que se dirigiu especificamente às aldeias administradas pelos jesuítas e que foram transformadas em vilas, a responsabilidade pela ereção das vilas e povoados foi atribuída pelo governador de Pernambuco ao juiz de fora, Miguel Carlos de Pina Castelo Branco que ficou responsável por 23 aldeias nas capitanias do Ceará, Paraíba e Pernambuco e ao ouvidor geral das Alagoas, Manuel de Gouveia Alvares, que ficou responsável por 24 aldeias da região sul da Capitania de Pernambuco28, onde estavam localizadas as missões dos franciscanos e dos capuchinhos italianos, que também foram expulsos das suas missões e os seus bens inventariados e vendidos, tendo o fruto da venda sido aplicado nas vilas e povoações criadas. Na parte do sertão da capitania da Paraíba, que coube ao juiz de fora Miguel Carlos Caldeira de Pina Castelo Branco, observou-se um processo de redução e transferência compulsórias. Em julho de 1761, o governador de Pernambuco escreve ao Secretário de Marinha e Ultramar informando que sabendo da pouca utilidade que tinham as terras das aldeias dos Pega, foi investigar e constatou que as terras eram impróprias para a agricultura, mas boas para o gado. A povoação possuía pouco mais de uma dúzia de casas de palha sem igreja. Por essa razão, resolveu unir os Pega aos de Mipibú, porém não consultou os índios sobre a mudança de lugar da sua aldeia, contrariando as normas do Diretório dos Índios. Propôs aos índios irem para o Apodi, mas eles alegaram que eram inimigos dos vizinhos de lá. A estratégia para convencer os índios para irem para Mipibú foi publicar que queria lhes passar mostra. No dia combinado os Pega compareceram com algumas espingardas e todos de arco e flecha. À medida que os índios iam se alistando seus arcos e flechas iam sendo recolhidos com o argumento que aquelas armas eram reprovadas pelo rei que só queria que os seus soldados usassem espingardas. Em seguida os colocou em marcha para a nova localidade no Mipibú. OLIVEIRA, Elza Régis de.Capitania da Paraíba. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.). Dicionário da História da Colonização Portuguesa no Brasil. Lisboa: Verbo, 1994, p. 614. 28 Ano de 1761 – Relação das aldeias a que vai o dr. ouvidor geral da comarca das Alagoas, Manuel de Gouveia Álvares, por ordem de S. Magestade Fidelíssima, dar nova forma de vilas, e lugares, reduzindo-as ao número competente, e estabelecendo-lhe o regime, e polícia que as leis, e bulas pontificiais transcrevem, e reconheceu a inata piedade do mesmo senhor, ser indispensável para se acabarem de cristianizar os seus habitantes, e florescerem como se procura, com o meio mais apto a brindar os índios silvestres que residiam no mato, despidos das luzes do Evangelho, a unirem-se as mesmas, e cessarem as irregularidades com que até agora eram dirigidas, de que se seguia o horror com que as desamparavam e se perpetuavam no paganismo e Relação das aldeias a que vai o Dr. Juiz de Fora Miguel Carlos Caldeira de Pina Castelo Branco, por ordem de S. Magestade F idelíssima, dar nova forma de vilas, e lugares, (...) , ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919, f. 322-337. 27 CONTATOS, CONFLITOS E REDUÇÃO 125 Depois os bens dos Pega foram inventariados, a serra em que viviam e o terreno de suas roças foram arrendados e os seus animais vendidos, devendo o dinheiro ser empregado na construção de novas casas para os mesmos. Informou também que os índios da nação Icozinho eram de agrado se unir aos do Apodi e que havia juntado a nação dos Caboré também naquela vila do Apodi e pretendia juntar a aldeia do Panati à do Miranda. Um mês depois, em carta escrita ao dito secretário, o referido governador informa que os Pega aldeados no Mipibu, fugiram motivados pelos seus principais, mas foram alcançados em Mamanguape e presos29. Pelo termo oriundo da junta realizada em 24 de agosto de 1761 no Palácio Episcopal da Soledade em Recife, com a presença do Bispo da diocese, do governador e do juiz de fora, ficamos sabendo que o juiz havia mudado: as nações Pegas e Icozinhos, aqueles para a aldeia de Mipibu e estes para a do Apodi, aonde tinha ajuntado e aldeado o resto que hoje existia da nação dos Caburés, e vários casais, que residiam nas serras e fazendas dos sertões do Piancó e Açu, e porque querendo erigir em vila a dita povoação do Apodi, foi informado pelo seu diretor José Gonçalves da Silva não havia terra capaz de plantas, que se repartisse a todos os moradores, e lhe constou que dentro do espaço de 12 léguas há a serra chamada dos Martins, extensa, fertilíssima, de grande negociação, e muitos habitantes, os quais, congregados com os índios do Apodi, constituirão talvez a maior vila deste governo depois da sua capital, julgava seria de grande conveniência a translação da vila para a dita serra, dando-se ao sesmeiro desta em troca todas as terras do referido lugar do Apodi, ou parte delas, (...), transferindo-se as imagens da Paróquia para a Igreja do Apodi, e as desta para uma capela que há na serra. Aonde com a finta dos fregueses da dita paróquia para a sua matriz, se constituiria a da futura vila.30 O juiz também havia ponderado que a Casa da Torre pretenderia apossarse das terras dos índios Panatis, quando estes fossem unidos à missão do Miranda, na capitania do Ceará, porque as havendo dado para a habitação dos ditos índios, julgaria que as deixando estes, lhe deveriam ser restituídas, como tinha intentado em casos semelhantes, no rio de São Francisco, mas como a dita Casa havia feito a doação das ditas terras, não a podia revogar, nem tomar a si o que uma vez deixou de ser seu. A junta resolveu a IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) códice 1.1.14 – Correspondência do Governador de Pernambuco – 1753-1770.Cartas do governador de Pernambuco a Francisco Xavier Mendonça Furtado. 15 jul. 1761, f. 277v-284v, e 9 ago. 1761, f. 284v285v. 30 Termo sobre o que há de seguir o dr. Juiz de Fora Miguel Carlos Caldeira de Pina Castelo Branco a respeito dos novos estabelecimentos e o mais que neles se contém. Recife, 24 ago. 1761. BN - I - 12,3,35, f 87-88. 29 126 RICARDO PINTO DE MEDEIROS transferência da aldeia do Apodi para a Serra dos Martins, assentando que para os trânsitos dos índios de umas aldeias para outras, se fintassem os moradores que tivessem conveniências em separar aqueles das vizinhanças das suas fazendas. Em 27 de setembro do mesmo ano, os moradores da dita serra escrevem uma petição ao governador solicitando que a transferência não seja feita, no entanto, não são inicialmente atendidos. Finalmente, após vários entendimentos, os índios da missão do Apodi foram transferidos para a Serra do Regente, onde foi criada a vila de Portalegre31. Não foi possível ainda acompanhar todas as transferências, reduções e ereção de vilas e povoados realizadas na capitania de Paraíba, tarefa que foi confiada inicialmente ao juiz de fora Miguel Carlos Caldeira de Pina Castelo Branco. No entanto, através dos autos de uma devassa sobre as vilas de índios, posterior a 1763, identificamos mais algumas transferências na capitania da Paraíba: os índios Fagundes, da Povoação do Brejo do Sertão do Cariri de Fora, foram transferidos para a Baía de São Miguel, antiga Baía da Traição, e os índios da aldeia da Campina Grande, para Monte-mor-o novo32. Segundo Fátima Lopes, na criação de Vila Flor, na Capitania do Rio Grande, também são agregadas as aldeias de Macacau, Tapissurema e Utinga, esta última da capitania da Paraíba33. O mapa geral de todas as vilas e lugares que se tem erigido de 20 de maio de 1759 até o último de agosto de 1763 das antigas aldeias do gov.de PE e suas capitanias anexas, apresenta aalgumas informações interessantes sobre a ação do Juiz de Fora na Capitania da Paraíba. Nessa Capitania foram criadas as seguintes vilas e lugares, a partir de antigos aldeamentos indígenas: Vila da Baía de São Miguel, em 28 de novembro de 1762; Vila de Montemor, em 8 de dezembro de 1762, Vila de Nossa Senhora do Pilar, em 5 de janeiro de 1763; e dois que são citados de forma incompleta, sem informar nome ou data de criação: um de língua geral a que se uniu os Panati, e outro, de Aratahuy, a que se uniu a aldeia do Ciry34. É interessante observar que nos sertões da capitania de Pernambuco e das capitanias anexas, além das aldeias existentes, havia ainda grupos indígenas que não estavam aldeados, vivendo ou tendo voltado a viver de Termo sobre o que há de seguir o dr. Juiz de Fora Miguel Carlos Caldeira de Pina Castelo Branco a respeito dos novos estabelecimentos e o mais que neles se contém. Recife, 24 ago. 1761; Petição dos moradores da serra dos Martins para que se não mude para ela a missão do Apodi e despacho nela proferido. 27 set. 1761. BN - I - 12,3,35, f 87-88 e 102-103; e LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o diretório pombalino no século XVIII. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2005, p.141-144. 32 Processo dos autos de devassa sobre as vilas de índios. [post. 10 fev. 1763] AHU_ACL_CU_015, Cx. 99, D. 7735. 33 LOPES, Em nome..., p. 159. 34 Livro Composto, principalmente de cartas, portarias e Mapas versando sobre vários assuntos, relacionados com a administração de Pernambuco e das capitanias anexas. Recife, 1760-1762. Biblioteca Nacional – Códice: I – 12,3,35. 31 CONTATOS, CONFLITOS E REDUÇÃO 127 “corso”, tendo sido fundamental no processo de implantação da ordem pombalina no sertão de Pernambuco, o trabalho inicialmente realizado pelo sargento mor Jerônimo Mendes da Paz, que contou com a participação dos índios do sertão da capitania da Paraíba. Em 23 de dezembro de 1759, o governador de Pernambuco e capitanias anexas, Luiz Lobo Diogo da Silva, expede portaria ordenando que os capitães mores dos distritos e aldeias, a quem o sargento mor Jerônimo Mendes da Paz entregaria carta sua, providenciassem relação da gente necessária acompanhada da dita portaria, e a remetessem com toda brevidade ao lugar designado, para se unirem com ele e seguirem suas ordens35. A instrução passada ao sargento mor Jerônimo Mendes da Paz pelo governador, no dia seis de janeiro do ano seguinte, fornece informações preciosas de como foi pensada a implantação das modificações do período pombalino nos sertões de Pernambuco. Segundo as informações recebidas, os índios da nação Paraquio e Pipipam haviam voltado a viver de corso, com mais vigor, por se unirem aos Mangueza, Guegue e Xocó, com os quais haviam acertado fazerem um levante contra os moradores das ribeiras do Moxotó e Buíque. O resultado foi a prisão dos índios Paraquió criminosos, sendo transferidos cento e sessenta e tanto menos culpados para a missão de Nossa Senhora das Montanhas do Ararobá. Não foi possível reduzir à paz as outras nações, que passavam de 400 arcos, tendo-se determinado, em junta, que o sargento mor, Jerônimo Mendes da Paz, fosse ao dito distrito acompanhado das milícias e índios que achasse necessário, procurando línguas capazes de expor às ditas nações que delas se pretendia a paz e sujeição à sua Majestade Fidelíssima. O projeto seria repartir estas nações nas novas vilas a serem erigidas. Na documentação encontra-se também a recomendação a respeito de que, nos distritos onde ele iria atuar, havia muitas aldeias compostas de poucos casais, e as ordens mais recentes não consentiam que tais vilas se formassem com menos de cento e cinquenta deles. Assim, há também a recomendação de que ele procurasse unir o competente número de casais, situando as aldeias em terras que facilitassem o adiantamento da agricultura36. Logo em seguida às ordens recebidas do governador de Pernambuco, o dito Sargento Mor escreve, do Ararobá, ao Capitão Mor do Piancó, Francisco de Oliveira, em fevereiro de 1760, solicitando brancos e índios para a empresa que estava iniciando: É preciso que vossa mercê dessa parte do Piancó faça por prontos até trezentos homens capazes de guerra moços os mais robustos, acostumados a entrar nos matos municiados de munições de guerra Portaria do governador general de Pernambuco e suas capitanias anexas. 23 dez. 1759. ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919, f.65-65v. 36 Instrução do governador general de Pernambuco Luiz Diogo Lobo da Silva a Jerônimo Mendes da Paz. Recife, 6 jan. 1760, ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919, f.65v-72. 35 128 RICARDO PINTO DE MEDEIROS e balas e armados das melhores armas e entre elles alguns índios dos mais fiéis e valorosos que houverem nesse distrito armados de seus arcos e flechas quando não tenham boas armas de fogo. 37 Em carta de 2 de julho de 1760, o sargento mor escreve do Alojamento das Flores da Ribeira do Pajaú, no sertão da Capitania de Pernambuco, a Frutuoso Barbosa da Cunha, capitão mor dos índios da nação Icozinho, localizada no sertão da capitania da Paraíba: E assim me parece dizer a vossa merce, e por esta ordenar-lhe que faça logo voltar todos os soldados que se retiraram e fugiram vergonhosamente da bandeira do Piancó e busque que até encontrar os Xocós, os Oguêz, ou Pipipans, ou Humans, ou Caracuis, (...) que lhes não hei de fazer mal; por que eu não venho mais que a reduzilos por bem à obediência de nosso rei, e pô-las em estado de eles gozarem das muitas felicidades que lhe quer logrem todos os seus vassalos e muito principalmente os indios a quem o nosso rei quer muito bem. Porem se eles não quiserem obedecer os prenda a todos e os traga a minha presença nesta Ribeira do Pajaú. (...) se recear que sejam muitos ajuntem-se com os Panatis, ou Pegas, ou com a gente do rio de São Francisco, ou com qualquer outra bandeira. 38 Dois dias depois, Jerônimo Mendes da Paz ordena também a Pedro Soares de Mendonça, este sargento mor dos índios da mesma nação, que com sua gente auxiliem no combate aos índios das nações Xocós, Oguês, Mangueses, Pipipans, Umans e Caracuis, desde Santa Luzia e cabeceiras do Rio Piranhas, no sertão da Capitania da Paraíba até o rio Pajau, no de Pernambuco, e recomenda que os Icós soldados não cometam mortes, nem crueldades, nem maltratem os presos, nem façam agravos aos moradores onde passarem e nem causem prejuízos nos gados e lavouras39. Três dias depois, Jerônimo Mendes da Paz passa uma ordem aos capitães dos Panatis, Cosme Dias da Silva e João Reis da Cunha, dando instruções na condução da bandeira contra os “Xocoz Oguez Pepipans Manguenzes Caracuiz, Humary40. O mesmo Jerônimo Mendes da Paz, em carta ao governador de Pernambuco escrita da Ribeira do Pajeú, em 6 de julho de 1760, narra que soube que no distrito do Piancó os índios Corema haviam se levantado. Estes Carta de Jerônimo Mendes da Paz para o capitão mor do Piancó Francisco de Oliveira Ledo. Ararobá, 19 fev. 1760, ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919, f. 100-100v. 38 Carta de Jerônimo Mendes da Paz para Frutuoso Barbosa da Cunha Capitão Mor dos índios da nação Icozinho. Alojamento das Flores da Ribeira do Pajaú, 2 jul. 1760, ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919, f. 115. 39 Cópia da ordem passada por Jerônimo Mendes da Paz a Pedro Soares de Mendonça sargento Mor dos indios da nação Icozinho da Aldeia de Santa Luzia. Alojamento das Flores. 4 jul. 1760. ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919, f. 116. 40 Cópia da ordem passada a Cosme Dias da Silva e Joam Roiz da Cunha capitães dos índios Panatis. 7 jul. 1760. AHU_ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919. 37 CONTATOS, CONFLITOS E REDUÇÃO 129 eram do missionário capuchinho italiano Frei Próspero. Informa também que foram aprendidos alguns mangueses pela bandeira do Piancó, composta pelos índios da nação Icozinhos, Panatis e Oguês. Mas todos os Icozinho e alguns Panati desertaram, só ficando dos Icozinho o cabo que era seu sargento mor41. A correspondência de Jerônimo Mendes da Paz com capitães mores índios da capitania da Paraíba demonstra, especialmente, como os povos indígenas do sertão da capitania da Paraíba tinham uma importância significativa do ponto de vista estratégico e militar, posição essa que foi perdendo força à medida que os índios perdiam as suas terras e eram transferidos para as novas vilas criadas. Esse processo teve como resultado o encobrimento e, em muitos casos, o desaparecimento de sua identidade étnica, processo que perdura até os dias atuais. Atualmente não há, nessa região que compreendia o sertão da capitania da Paraíba, nenhum grupo indígena reivindicando sua identidade étnica. 41 Carta do Sargento-mor Jerônimo Mendes da Paz ao governador e capitão geral de Pernambuco. Alojamento das Flores Ribeira do Pajaú. 6 jul. 1760. ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919, f.89-92v. 131 CELEBRANDO A MONARQUIA NOS EXTREMOS DA AMÉRICA PORTUGUESA: NATAL E A COLÔNIA DO SACRAMENTO NO SÉCULO XVIII Paulo César Possamai1 retendemos fazer uma análise comparativa entre as principais festas públicas realizadas na Colônia do Sacramento e em Natal, durante o século XVIII, que visavam à representação do poder da monarquia portuguesa na América. Tomamos como ponto de análise essas duas localidades, situadas nas extremidades sul e norte da América portuguesa a fim de melhor avaliarmos o quanto as condições específicas de cada uma interferiam na padronização das celebrações que eram ordenadas pela Coroa, na metrópole e nas suas colônias. Natal foi fundada no fim do século XVI, numa data que ainda gera polêmica, do mesmo modo que a sua condição jurídica inicial, se povoado ou cidade2. De qualquer modo, surgiu nas proximidades da fortaleza dos Reis Magos, criada para afastar os franceses do litoral e servir como ponta-de-lança para a conquista da região aos indígenas e garantir o avanço para os territórios situados a oeste e noroeste3. Por volta de 1730, Sebastião da Rocha Pitta assim descrevia a cidade de Natal: (...) de mediana grandeza, e habitação, com matriz suntuosa e boas igrejas. Está fundada meia légua distante do seu porto, capaz de todo o gênero de embarcações, em cuja entrada tem a fortaleza dos Santos Reis das mais capazes do Brasil em sítio, firmeza, regularidade e artilharia, edificada sobre uma penha de grandeza desmedida com quatro torreões. Há na cidade capitão-mor que a governa, sargento-mor e outros cabos, com bom presídio: abunda de todos os mantimentos necessários para o sustento de um povo Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Professor Adjunto do Departamento de História da Universidade Federal de Pelotas. Pesquisador dos Grupos de Pesquisa Formação dos Espaços Coloniais: economia, sociedade e cultura (PPGH-UFRN/ Diretório CNPq), América Platina: poder, idéias e relações regionais (UFPel/ Diretório CNPq) e Sociedades de Antigo Regime no Atlântico Sul (IFCH-UFRGS/ Diretório CNPq). E-Mail: <paulocpossamai@hotmail.com>. 2 MEDEIROS FILHO, Olavo de. Notas para a História do Rio Grande do Norte. João Pessoa: UNIPE, 2001, p. 54-59. 3 LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos, missionários na colonização da capitania do Rio Grande do Norte. Mossoró: Fundação Vingt-Un Rosado; Natal: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, 2003, p. 54-55. 1 132 PAULO CÉSAR POSSAMAI maior que o de que ela consta 4, pois não passa de quinhentos vizinhos. 5 No ano de 1744, o bispo de Olinda, frei Dom Frei Luís de Santa Teresa, visitou Natal. No seu relatório, de 1746, descreve-a “tão pequena, que além do título de Cidade, Igreja Paroquial e poucas casas, nada tem que represente a forma de Cidade”. Não deixou de anotar um gracejo sobre a “cidade de Natal, ou não tal (como em vista do seu tamanho, por graça se diz)...”6. A próxima descrição da cidade que temos conhecimento é datada de 1756, ano em que foi elaborada uma Relação de toda a extensão desta Capitania do Rio Grande, enviada pelo Senado da Câmara do Natal ao Ouvidor Geral Domingos Monteiro da Rocha: Em toda esta Capitania acham-se cinco freguesias. A primeira de N. Senhora da Apresentação; nesta tem uma cidade chamada Natal, que terá de povoado quatrocentas braças de comprido e de largo cinquenta, com cento e dezoito casas; no fim desta, no lugar chamado a Ribeira, há um rio de água salgada, a que chamam Rio Grande, e tem sua barra, donde há uma fortaleza da invocação dos Santos Reis, que nasce no mesmo mar, navegável, e entra pela terra a dentro quatro léguas.7 Em 1810, o inglês Henry Koster foi mais um visitante que se espantou com o reduzido tamanho de Natal, exclamando: “se lugares como esses são chamados cidades, como seriam as vilas e aldeias?” Ele mesmo deu a resposta: “muitas aldeias, no Brasil mesmo, ultrapassam esta cidade. O predicamento não lhe foi dado pelo que é, ou pelo que haja sido, mas na expectativa do que venha a ser para o futuro”. Observou que a cidade concentrava-se ao redor da praça, que era cercada de casas térreas. Ainda segundo Koster, três ruas sem calçamento desembocavam na praça. Os principais edifícios eram três igrejas, o palácio do governador, a Câmara e a prisão. Calculou a população da Natal de então entre setecentos e oitocentos habitantes8. Não conhecemos um estudo sobre o abastecimento interno da capitania até a primeira metade do século XVIII. Dessa data em diante temos a pesquisa de Thiago Alves Dias, que contradiz o cronista, pois existe farta documentação que mostra a precariedade do abastecimento da cidade de Natal. Consultar: DIAS, Thiago Alves. Carne, farinha e aguardente: o Senado da Câmara de Natal e o abastecimento alimentício interno (17501808). Monografia (Bacharelado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2007. 5 PITTA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa. São Paulo: W. M. Jackson Editores, 1958, p. 75-76. 6 O que era Natal em 1746 (Do relatório de Frei Luís de Santa Teresa à Santa Sé, em 1746). In: MEDEIROS FILHO, Olavo de. Terra natalense. Natal: Fundação José Augusto, 1991, p. 101. 7 Relação de toda a extensão desta Capitania do Rio Grande (1756). In: MEDEIROS FILHO, Terra natalense, p. 111. 4 CELEBRANDO A MONARQUIA NOS EXTREMOS DA AMÉRICA PORTUGUESA 133 Porém, ou o cronista se limitou a contar os homens brancos ou a maior parte da população se encontrava na área rural da cidade, pois um mapa da população da Capitania do Rio Grande do Norte, de 1805, registra um total de 6.693 habitantes em Natal. A população dividia-se então em 1.416 brancos, 1.082 brancas, 634 negros, 618 negras, 1.371 mulatos e 1.572 mulatas9. Devese considerar que, se por volta de 1730, Natal já teria cerca de quinhentos vizinhos, ou seja, moradores chefes de famílias, a população deveria ser ainda maior, já que os escravos não entravam nessa categoria, assim como muitos dos desclassificados da sociedade colonial que não tinham moradia fixa sendo, por isso, chamados de vagabundos10. Em todo o caso, Natal não se distinguia por sua população ou riqueza no contexto da América portuguesa, muito pelo contrário. Inexistia comércio direto entre o Rio Grande e a metrópole, pois não havia grande produção açucareira na capitania, não havia alfândega e, desde 1701, ela estava subordinada ao governo de Pernambuco. Portanto, a maior parte do comércio era feita com a Capitania Geral de Pernambuco, que se constituía no principal mercado consumidor dos produtos do Rio Grande11. A maior riqueza da região era o gado. As primeiras fazendas se instalaram no sertão no último quartel do século XVII, gerando atritos entre colonos e indígenas que desencadearam a chamada “Guerra dos Bárbaros”. Com a destruição das tribos que impediam o avanço da colonização, o século XVIII foi marcado pela expansão da pecuária, mas Natal não se tornou o centro onde se comercializavam as manadas, que seguiam pelo interior até a zona da mata das capitanias vizinhas, especialmente para Pernambuco12. O conhecimento das condições socioeconômicas da Natal setecentista, que apontamos acima, é necessário para analisarmos em que medida as autoridades locais, representadas na Câmara e a autoridade nomeada pela Coroa, o capitão-mor, se engajaram nas celebrações em honra à monarquia portuguesa. Por sua vez, a Colônia do Sacramento foi fundada à margem esquerda do Rio da Prata, em 1680, por D. Manuel Lobo, obedecendo ao plano do príncipe regente D. Pedro de expandir os domínios portugueses na América a fim de assegurar vantagens territoriais e econômicas à Coroa portuguesa. O KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2002, p. 158-159. 9 Mapa da população da Capitania do Rio Grande do Norte. AHU_ACL_CU_18, CX 9, D. 623. 10 Sobre a questão da “vizinhança” em Portugal e em suas colônias, consultar: HESPANHA, António Manuel. Porque é que foi “portuguesa” a expansão portuguesa? ou o revisionismo nos trópicos. Lisboa: s.r., s.d., p. 13. Disponível em: <http://www. hespanha.net/papers/2005_porque-foi-portuguesa-a-expansao-portuguesa.pdf>. Acesso em: 8 mar. 2008. 11 LOPES, Índios..., p. 62. 12 MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à história do Rio Grande do Norte. 3. ed. Natal: EDUFRN, 2007, p. 63-64. 8 134 PAULO CÉSAR POSSAMAI fundador planejava criar uma cidade que se chamaria Lusitânia, nas proximidades da fortaleza do Santíssimo Sacramento que estava a erguer. Porém, a isolada fortaleza de D. Manuel Lobo não pôde resistir ao ataque combinado das forças coloniais espanholas e dos exércitos indígenas das missões jesuíticas, grupos para os quais a presença portuguesa no Rio da Prata constituía uma grande ameaça. A destruição de Colônia, levada a cabo oito meses após sua fundação, levou a Coroa portuguesa a ameaçar a Espanha com uma guerra, impasse que foi resolvido com a restituição do território de Sacramento através do Tratado Provisional de 1681. A Coroa espanhola foi obrigada a ceder por meio da diplomacia o que seus vassalos na América haviam conquistado pelas armas, situação que voltaria a se repetir em 1715 e ainda em 1763, refletindo a contradição que podia haver entre os interesses na defesa dos domínios ultramarinos e a posição da metrópole na conjuntura européia13. A história da Colônia do Sacramento apresenta diversas facetas que foram diferentemente realçadas pelos historiadores. Centro de contrabandistas, mas também posto avançado da fronteira e núcleo de povoamento, Sacramento é um tema fascinante pela sua história sui generis dentro do quadro do sistema colonial da América portuguesa, onde a riqueza estava na agricultura ou nas minas e as invasões estrangeiras constituíram-se em episódios isolados e inconstantes. A Colônia do Sacramento constituía-se num dos mais rentáveis entrepostos comerciais portugueses. Além da possibilidade de trocar, com muita vantagem, produtos coloniais brasileiros e tecidos europeus por couros (da região) e prata (do Alto Peru), o comércio realizado em Colônia tinha ainda a vantagem de ser geralmente feito à vista, ao contrário do que ocorria na maior parte dos domínios portugueses, uma vez que o caráter ilícito das relações comerciais travadas entre portugueses e espanhóis na região platina impedia a criação de um eficiente sistema de crédito. Temos uma idéia do tamanho da população e do número de casas da Colônia do Sacramento através das cartas que os governadores enviaram ao rei. Em 1718, o governador Manuel Gomes Barbosa informava ao rei que viviam em Colônia e em seus arredores mais de 1.040 habitantes14. No ano seguinte, o mesmo escrevia que se erguiam no recinto interno da praça cinquenta e uma casas de pedra e barro e dezesseis ou dezessete feitas de couro, onde viviam os soldados casados pobres15. Em outubro de 1722, o governador Antônio Pedro de Vasconcelos relacionou em Sacramento e nas suas proximidades, 235 fogos, cuja população foi calculada em 630 homens, 172 mulheres, 99 meninas, 123 meninos, 45 POSSAMAI, Paulo. A vida quotidiana na Colônia do Sacramento: um bastião português em terras do futuro Uruguai. Lisboa: Livros do Brasil, 2006, p. 21-23. 14 Carta de Gomes Barbosa ao vice-rei, 12 de abril de 1718, in: Documentos Históricos, vol. LXXI, p. 31. 15 Carta de Gomes Barbosa ao rei, 9 de dezembro de 1719: AHU_ACL_CU_012, cx. 1, D. 44. 13 CELEBRANDO A MONARQUIA NOS EXTREMOS DA AMÉRICA PORTUGUESA 135 índios, 16 índias, 204 escravos e 90 escravas. O Terço de infantaria estava constituído de 267 homens, enquanto havia 129 inscritos na cavalaria e artilharia16. Em 1730, o governador indicava a existência de 329 fogos, sendo que rara a casa que não estivesse coberta de telhas e que deixasse de ter suficientes alfaias17. Em 1735, Silvestre Ferreira da Sylva, alferes que descreveu o cerco imposto pelos espanhóis entre 1735 e 1737, escrevia que o povoado era formado por 327 casas, térreas na sua maioria, distribuídas ao longo de dezoito ruas, dezesseis travessas e quatro praças. O mesmo calculou a população de Colônia em duas mil e seiscentas pessoas, entre as quais estavam incluídos os efetivos da guarnição. No interior da fortaleza, situavam-se a igreja paroquial, a casa do governador, o hospital real, a residência dos franciscanos, a casa da artilharia, os quartéis e o corpo da guarda principal18. A monarquia e sua representação no Antigo Regime Antes de analisarmos as festas realizadas nos espaços que delimitamos para nosso estudo, salientaremos a importância das celebrações públicas no contexto do barroco ibérico. Entendemos o barroco não somente como um estilo artístico, mas também como um estilo de vida. Segundo D’Oliveira França, o barroco “é a expressão da época da hegemonia ibérica na Europa, associada à reação católica procedente do Concílio de Trento. Educada pelos jesuítas. Policiada pela Inquisição. Governada por um rei absoluto, autoritário”19. Se o barroco marcou a Espanha do século XVII, foi no século XVIII que ele se instalou em sua plenitude em Portugal, com a consolidação da dinastia de Bragança e a descoberta de minas de ouro no Brasil. O modelo cortesão espanhol, “grave, austero e circunspecto, fundado naquele que, nos alvores do século XVI, Carlos V trouxera da Borgonha, destinado a realçar a essência sagrada da realeza”20, lentamente foi cedendo lugar em Lisboa ao modelo cortesão francês, desde o casamento de D. Afonso VI com Maria Francisca Isabel de Sabóia (1666), que selou a aliança entre Portugal e a França. Durante os reinados de D. Pedro II e D. João V a influência cultural francesa aumentou, não só em Portugal, mas em todas as cortes européias, que criaram suas próprias versões de Versalhes. O monarca que, por excelência, encarnou o absolutismo foi o rei Luís XIV da França. A hierarquização da sociedade francesa, representada pela etiqueta que regia a vida na corte, foi admirada e serviu de modelo para as outras monarquias européias. A estrita obediência da etiqueta, com a qual o soberano Mapa geral… AHU_ACL_CU_012, Cx. 1, D. 86. Carta de Vasconcelos ao rei. 5 abr. 1730: AHU_ACL_CU_012, Cx. 2, D. 220. 18 SYLVA, Silvestre Ferreira da. Relação do sítio da Nova Colônia do Sacramento. Facsímile da edição de 1748. Porto Alegre: Arcano 17, 1993, p. 61-71. 19 FRANÇA, Eduardo D’Oliveira. Portugal na época da Restauração. São Paulo: Hucitec, 1997, p. 50. 20 BRAGA, Paulo Drumond. D. Pedro II (1648-1706): uma biografia. Lisboa: Tribuna, 2006, p. 187. 16 17 136 PAULO CÉSAR POSSAMAI “aproveitava suas atividades mais particulares para marcar as diferenças de nível, distribuindo suas distinções, provas de favorecimento ou desagrado”21, garantia a proeminência do rei na sua corte. Porém, para manifestar o poder do monarca fora da sua capital havia dois meios: as guerras expansionistas ou a representação do poder da Coroa por meio de festas espetaculares. Luís XIV utilizou ambas as estratégias. Enquanto as monarquias rivais preferencialmente se serviam da guerra como instrumento de prestígio, D. João V buscou o mesmo através da diplomacia, desviando para os domínios ultramarinos todas as ambições de glória de seus vassalos através do serviço militar. Mas, se a política de pacifismo iniciou-se com o fim da Guerra de Sucessão Espanhola, a ambição de equiparar a monarquia portuguesa com as principais cortes católicas européias era um sonho antigo, que vinha do tempo da Restauração. Timidamente esboçada durante o reinado de D. Pedro II, no período joanino desenvolver-se-ia uma política de espetáculo que seria utilizada pela Coroa como afirmação grandiosa de soberania e instrumento de negociação22. Segundo Jaime Cortesão, foi o ouro brasileiro que deu a D. João V as condições necessárias para implementar a sua política de espetáculo, situação que explica o anacronismo de Portugal se tornar o país mais tipicamente barroco no século XVIII, quando esse estilo de arte e de vida já não era mais predominante na maior parte da Europa. Outro fator que teria contribuído para a duração da era barroca em Portugal, na análise de Cortesão, seria a constituição da sociedade portuguesa, na qual faltava uma burguesia forte, circunstância que tornava o domínio da aristocracia incontestável23. Contudo, não bastava organizar festas magníficas para a corte, pois a exaltação da monarquia deveria ser pública a fim de ser vista por todos os súditos. De fato, “a introdução do conceito cênico do barroco revela-se essencial ao exercício do poder, que se afirma perante os súditos pelo seu caráter visual”24. Segundo Santiago: “Nas comemorações dos nascimentos e casamentos de membros da Família Real, os festejos visavam construir, por meio de suposto regozijo comum, uma identidade entre a Coroa e os súditos das mais distantes paragens”25. ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 102. PIMENTEL, António Filipe. Arquitectura e poder: o real edifício de Mafra. Coimbra: Instituto de História da Arte, Universidade de Coimbra, 1992, p. 76. 23 Para Cortesão: “O barroco foi em Portugal, mais do que em nenhures, um estilo de império. Para exprimir, quer a onipotência dum regime – o absolutismo – e duma classe – a nobreza, quer a majestade do divino, o artista, na lógica do barroco, funde todos os elementos do fausto imperial. (...) E é no Brasil, que o barroco, de origem e importação portuguesa, se tornou por definição o estilo dum Estado colonizador e absolutista e, por consequência, o mais apropriado para exprimir em arte, por todos os ilusionismos duma força e grandeza sem limites, o domínio da Coroa sobre os seus vassalos”. CORTESÃO, Jaime. O tratado de Madrid. Brasília: Senado Federal, 2001, tomo 1, p. 85-86. 24 PEREIRA, Ana Cristina Duarte. Princesas e Infantas de Portugal (1640-1736). Lisboa: Colibri, 2008, p. 31. 21 22 CELEBRANDO A MONARQUIA NOS EXTREMOS DA AMÉRICA PORTUGUESA 137 Para Lopez, os festejos se relacionavam com o espaço vivido, pois se desenvolviam no palácio, onde a corte deveria mostrar sua fidelidade ao monarca, e na rua, onde arcos, luminárias e fogos de artifício serviam para congregar todos os súditos à ordem monárquica: “Havia assim uma ‘geografia da festa’. A rua era vista pelos dirigentes como espaços do povo; o Paço era o local da nobreza, e as Igrejas o lugar do clero. Os grandes festejos, como as Aclamações reais, entrelaçavam esses vários lugares, permitindo o contato entre múltiplos segmentos sociais”26. Mas, se as celebrações públicas visavam antes de tudo o enaltecimento da monarquia, também serviam para que as elites locais mostrassem seu poder e riqueza. Nas procissões, os desfiles dos juízes e oficiais da Câmara eram um modo eficiente de mostrar o poder das elites locais, que não podia prescindir do espaço urbano, onde a população se concentrava para ver a representação da sociedade hierarquizada27. D. João V, respaldado pelos quintos do ouro brasileiro, iniciou um reinado inspirado no de Luís XIV. Em 1708, uma brilhante embaixada portuguesa foi enviada a Viena para ajustar o casamento do rei com a arquiduquesa Mariana. Em 1713 e 1714, foram dadas festas memoráveis em Utrecht em comemoração aos nascimentos dos príncipes D. Pedro (em breve falecido) e D. José, o futuro herdeiro do trono. Em 1715, o embaixador português fez uma esplêndida entrada em Paris, quando foram distribuídos, à mão larga, dinheiro e objetos de valor entre os cortesãos de Luís XIV, enquanto às pessoas que acompanharam o cortejo foram distribuídas duzentas medalhas de ouro e mil de prata com a efígie do rei de Portugal. O fausto da entrada em Paris seria superado, três anos depois, quando André de Melo e Castro, elevado ao cargo de embaixador extraordinário junto à Santa Sé, fez sua entrada oficial em Roma. Foi tão rica a comitiva portuguesa que, por muitos anos, os demais países europeus deixaram de organizar entradas solenes de embaixadores na Cidade Eterna, já que nenhum se propôs a igualar a cerimônia patrocinada pelos portugueses. Outra embaixada, desta vez enviada à corte de Pequim, entre 1725 e 1728, serviu de nova ocasião para alardear a riqueza e o poder de D. João V, quando foram enviados riquíssimos presentes ao imperador da China28. Se a representação faustosa da Coroa portuguesa era importante nas cortes estrangeiras e na metrópole, também o era no império colonial, onde, “embora o rei não estivesse presente fisicamente, de certo o estava no que dizia respeito ao seu segundo corpo, político ou místico, como queiramos chamar”29. SANTIAGO, Camila Fernanda Guimarães. A vila em ricas festas: celebrações promovidas pela Câmara de Vila Rica, 1711-1744. Belo Horizonte: FACE-FUMEC, 2003, p. 41. 26 LOPEZ, Emilio Carlos Rodrigues. Festas públicas, memória e representação: um estudo sobre manifestações políticas na Corte do Rio de Janeiro, 1808-1822. São Paulo: Humanitas;FFLCH-USP, 2004, p. 30. 27 LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 53. 28 BEBIANO, Rui. D. João V, poder e espectáculo. Aveiro: Estante, 1987, p. 109-118. 25 138 PAULO CÉSAR POSSAMAI D. João V incentivou a proliferação de festejos em todos os domínios portugueses, “na medida em que enrijeceu o cerimonial, normatizando minuciosamente, de acordo com a etiqueta, a forma das celebrações. As festas se tornariam artifícios de representação e exaltação do monarca, especialmente importantes nos confins ultramarinos, devido à distância do centro do poder”30. De fato, todas as ocasiões propícias ao enaltecimento da monarquia deveriam ser convenientemente festejadas. A chegada de um bispo, a aclamação do soberano, seu casamento, seu funeral, o nascimento do futuro soberano, o aniversário do rei, da rainha, dos príncipes ou o do supremo representante do rei na colônia deveriam ser enaltecidos através de festas públicas. Mais que estimular, as autoridades obrigavam a participação da população nessas solenidades. As leis do Reino, as Ordenações Filipinas, mandavam que assim fosse até para o morador a menos de uma légua da vila ou cidade em que se fizesse uma procissão31. “Assim todo mundo já esperava, por exemplo, que o governador mandasse ‘lançar bando, com todas as caixas do presídio, publicando o efeito que aquela noite e nas duas seguintes todos os moradores ornassem suas janelas com luminárias”32. Características das festas barrocas, as luminárias e os fogos de artifício garantiam o caráter espetacular da comemoração. Segundo Maravall, “com suas luzes, essas artes correspondiam ao afã de deslocar o dia para a noite, vencendo a escuridão por meio de puro artifício humano”33. Outro elemento importante da celebração era o caráter religioso vinculado à mesma, com a realização de missa solene e procissão, pois assim “a potestade divina e a potestade civil que amparava e honrava a primeira na terra ficavam igualmente enaltecidas”34. As festas oficiais do Antigo Regime português dividiam-se em anuais ou ordinárias, ligadas ao calendário litúrgico católico (Corpus Christi, Anjo Custódio do Reino e Visitação de Nossa Senhora a Santa Izabel) e reais ou extraordinárias (nascimentos, casamentos, aclamações e exéquias da família real)35. Dentre as festas reais que marcaram o fausto do período joanino cumpre destacar os casamentos entre os príncipes do Brasil e das Astúrias com as infantas Mariana Vitória de Bourbon e Maria Bárbara de Bragança, na fronteira luso-espanhola, em 1729. Os matrimônios dos príncipes herdeiros de Portugal e da Espanha deram lugar “a um dos mais impressionantes momentos de MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O rei no espelho: a monarquia portuguesa e a colonização da América, 1640-1720. São Paulo: Hucitec; FAPESP, 2002, p. 168. 30 SANTIAGO, A vila..., p. 20. 31 Código Filipino ou Ordenação e Leis do Reino de Portugal, livro 1, título 66, parágrafo 48. 32 ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios: transgressão e transigência na sociedade urbana colonial. 2 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997, p. 131. 33 MARAVALL, José Antonio. A cultura do barroco: análise de uma estrutura histórica. São Paulo: Edusp, 1997, p. 384. 34 MARAVALL, A cultura..., p. 378. 35 SANTIAGO, A vila..., p. 41 29 CELEBRANDO A MONARQUIA NOS EXTREMOS DA AMÉRICA PORTUGUESA 139 visualização do fausto joanino, num espetáculo sem precedentes de rivalidade e emulação entre duas Cortes que coincidem no mesmo local”36. As festas da monarquia em Natal Em 10 de maio de 1729, o capitão-mor do Rio Grande, Domingos de Morais Navarro, escrevia ao rei informando que, conforme lhe fora ordenado pelo capitão-geral de Pernambuco, Duarte Sodré Pereira Tibão, festejara condignamente os casamentos dos príncipes. Antes da descrição das celebrações, Navarro começou seu relato salientando seu esforço em organizar os festejos “não obstante a esterilidade e a limitação do país e de suas posses”. As celebrações duraram nove dias sucessivos, com comédias, máscaras, cavalhadas, fogos de artifício, salvas de artilharia e missa solene cantada e procissão. Ordenou três noites de luminárias e, para dar o exemplo, Navarro mandou acender mais de oitenta luzes cada noite no frontispício da casa onde morava. Não deixou de ressaltar que as festividades causaram muita alegria aos vassalos, “por nunca terem visto outra semelhante celebridade e especialmente aos muitos índios e tapuias das aldeias desta capitania, que ficaram admirados, fazendo mais apreensão da Real Grandeza de Vossa Majestade” 37. O capitão-mor estava realmente muito empolgado com as festas que organizou, pois, arrematava dizendo que “da capitania de Pernambuco para as mais do norte [a do Rio Grande] se avantajou a todas na magnificência dos aplausos que nas outras se fizeram” 38. Porém, para iluminar a sua casa recorrera aos recursos da capitania e, como não havia legislação que garantisse essa apropriação, dizia que merecia a mesma regalia que o governo da Paraíba, que tinha o subsídio de quatro arrobas de cera para celebrar semelhantes solenidades. Caso o rei julgasse que ele não deveria ter usado os recursos da capitania para o pagamento da cera, se comprometia a devolver o valor retirado. Por sua vez, D. João V escreveu ao governador de Pernambuco solicitando seu parecer com relação ao pedido feito pelo capitão-mor do Rio Grande. Duarte Sodré respondeu que Navarro havia festejado os casamentos dos príncipes “com mais aplauso do que pedia a terra” 39, ressaltando assim o empenho do capitão-mor na realização de celebrações numa região que era conhecida pela sua pobreza. De fato, em 18 de maio de 1729, o Senado da Câmara de Natal havia pedido ao rei a suspensão dos tributos que ele mandara cobrar para financiar os casamentos dos príncipes, tendo em vista que sete anos sucessivos de seca haviam dizimado o gado do sertão40. Por isso, Duarte PIMENTEL, Arquitectura e poder, p. 78. Carta de Domingos de Morais Navarro ao rei. 10 mai. 1729. AHU_ACL_CU_018, Cx. 2, D. 136. 38 Carta de Domingos de Morais Navarro ao rei. 10 mai. 1729. AHU_ACL_CU_018, Cx. 2, D. 136. 39 Carta de Duarte Sodré Pereira Tibão ao rei. 13 mar. 1732. AHU_ACL_CU_015, Cx. 42, D. 3801. 36 37 140 PAULO CÉSAR POSSAMAI Sodré era favorável a que Navarro recebesse uma arroba e meia de cera, pois “além das referidas despesas, serviu a Vossa Majestade com bom procedimento neste lugar”41. O parecer do governador de Pernambuco foi aprovado pelo Conselho Ultramarino que, em 1732, manifestou-se favoravelmente à entrega uma arroba e meia de cera a Domingos de Morais Navarro. O problema do financiamento da iluminação pública durante os festejos era antigo. Já em julho de 1713 a Câmara de Natal pedia ao rei os mesmos subsídios que a Câmara da Paraíba recebia da Coroa para a realização de festas religiosas42. Embora a Coroa tenha formalmente regulamentado a hierarquia entre as diferentes autoridades coloniais, na prática, ela encorajava a autonomia das capitanias com o objetivo de “dissipar o aparecimento de uma mentalidade colonial separada, ou de uma estrutura colonial interna que pudesse desenvolver-se independentemente do controle metropolitano”43. A desigualdade de tratamento que a Coroa dava às diferentes capitanias era norma durante o Antigo Regime, quando as relações entre os monarcas e as cidades ou províncias eram regidas de acordo com as circunstâncias, que ditavam as mercês concedidas pelos reis, mas, como vimos acima, nem por isso os pedidos de equiparação entre as diferentes circunscrições administrativas deixavam de ser feitos. A falta de recursos para as celebrações oficiais era constante e talvez os membros do Senado da Câmara de Natal estivessem satisfeitos em responder que não havia dinheiro para as cerimônias que deveriam ser realizadas por ocasião da morte de D. José I44. O protesto contra a falta de verbas era dirigido contra a própria instituição monárquica, pois os funerais da família real tinham um importante caráter de celebração litúrgica 45. Situação semelhante aconteceu em 1786, quando o Senado da Câmara escreveu ao ouvidor geral e ao corregedor que, devido à falta de verbas, não se realizaram as celebrações ordenadas pelo corregedor em honra aos casamentos dos príncipes. Não houve o Te Deum cantado na matriz e a única homenagem prestada foi a iluminação da casa da Câmara46. Possuímos ainda alguns registros de festas religiosas que foram realizadas em Natal de acordo com ordens vindas de Lisboa. Em primeiro de maio de Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei. 18 mai. 1729. AHU_ACL_CU_018, Cx. 2, D. 140. 41 Carta de Duarte Sodré Pereira Tibão ao rei. 13 mar. 1732. AHU_ACL_CU_015, Cx. 42, D. 3801. 42 Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei. 17 jul. 1713. AHU_ACL_CU_018, Cx. 1, D. 69. 43 SCHWARTZ, Stuart. O Brasil no sistema colonial. In: BETHENCOURT, Francisco & CHAUDHURI, Kirti (orgs.). História da expansão portuguesa - vol. III: O Brasil na Balança do Império, 1697-1808. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998, p. 148. 44 Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN). Senado da Câmara de Natal, Livro de Termos de Vereação, Cx. 1, f. 226v-227, 18 jun. 1777. 45 MARTINS, Maria Cristina Bohn. Sobre festas e celebrações: as reduções do Paraguai (séculos XVII e XVIII). Passo Fundo: UPF Editora, 2006, p. 46. 40 CELEBRANDO A MONARQUIA NOS EXTREMOS DA AMÉRICA PORTUGUESA 141 1757, a Câmara informava a D. José I que registrara os decretos reais que ordenavam a realização de festas em honra a São Francisco de Borja e a Nossa Senhora47. Deve ter havido algum pedido de subsídio para financiar os gastos com os festejos, pois, em 1759, a Câmara voltou a informar o recebimento das ordens para a realização das mesmas festas, porém desta vez acrescentou: “sem fazermos despesas para as ditas solenidades e nem levarmos propina alguma”48. Era importante para os camaristas salientar o não recebimento de propinas, pois, como eles não recebiam salários, mas propinas relativas a serviços prestados, as mesmas eram cobiçadas por compensar gastos e serviços. As festas públicas podiam ser interessantes financeiramente, já que criavam oportunidades para os membros da Câmara obterem benefícios monetários, como destaca Camila Santiago, que estudou as festas patrocinadas pela Câmara de Vila Rica49. Porém, no caso de Natal, observamos que a Câmara buscava subtrair-se da responsabilidade de financiar as celebrações em honra à monarquia ou à religião, provavelmente devido às dificuldades financeiras da cidade, que impediam o ressarcimento dos gastos realizados. A documentação não mostra muito entusiasmo da Câmara em promover as celebrações, mesmo as de caráter estritamente religioso. O termo de vereação de 26 de abril de 1712 registra laconicamente: “Decidiram fazer a festa do Corpo de Deus por ser Festa Real e o senado é obrigado a fazê-la”50. Com relação às festas locais parece ter havido mais interesse. O termo de vereação de 07 de dezembro de 1767 registra que os camaristas “acordaram mais em mandar ao procurador comprar seis velas de libra para se darem à Câmara e ao governo no dia seguinte na festa da Nossa Senhora da Apresentação, orago da matriz desta cidade e de tarde acompanhar a procissão como de costume antigo”51. Se havia pouco entusiasmo em efetuar gastos que dificilmente seriam ressarcidos, era importante marcar a presença da Câmara na festa em honra à padroeira da cidade. Além disso, “ostentar velas na procissão era um elemento a mais de representação, distinguindo seus portadores e favorecendo o reconhecimento de seu status social”52. O fenômeno observado por Chartier nas cidades francesas do Antigo IHGRN. Senado da Câmara de Natal, Livro de Termos de Vereação. Cx. 2, liv. 1784-1803, f. 23. 47 Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei. 1 mai. 1757. AHU_ACL_CU_018, Cx. 7, D. 403. Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei. 1 mai. 1757. AHU_ACL_CU_018, Cx. 7, D. 404. 48 Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei. 6 fev. 1759. AHU_ACL_CU_018, Cx. 7, D. 414. 49 SANTIAGO, A vila..., p. 117. 50 IHGRN. Senado da Câmara de Natal, Livro de Termos de Vereação. Cx. 1, liv. 1709-1721, f. 59v. 51 IHGRN, Senado da Câmara de Natal, Livro de Termos de Vereação. Cx. 2, liv. 1793-1802, f. 10-10v. 46 142 PAULO CÉSAR POSSAMAI Regime, onde: “a festa urbana tornou-se assim um instrumento político que permite a afirmação da cidade perante o príncipe, a nobreza e as outras cidades”53, também se deu no Novo Mundo, especialmente nas cidades mais ricas. Santiago afirma que, em Minas Gerais, “é possível afirmar que a Câmara de Vila Rica apropriava-se das festas que promovia com fim de representação de seu poder”54. Tanto as festas ligadas à celebração da monarquia como as religiosas eram uma ocasião propícia para a representação do poder das Câmaras, que podiam até vender seus bens para patrocinar os festejos, como aconteceu em Salvador em 1641, quando os camaristas votaram a favor da venda da prataria da Câmara a fim de financiar a procissão de Santo Antônio, pois os recursos destinados a ela já haviam sido gastos nas festas pela aclamação de D. João IV55. Como vimos anteriormente, o maior empenho em celebrar a monarquia em Natal foi obra do capitão-mor do Rio Grande, Domingos de Morais Navarro, e não do Senado da Câmara. A última festa em homenagem à Coroa portuguesa em Natal que conhecemos foi registrada em 14 de outubro de 1821, quando o governador da província do Rio Grande do Norte, José Inácio Borges, escreveu ao secretário de Estado, da Marinha e do Ultramar que a notícia da chegada a salvo do rei a Lisboa fora comemorada com salvas de artilharia, três noites de luminárias e um solene Te Deum na matriz da cidade56. Outra vez observamos que a iniciativa partiu do governador e não do Senado da Câmara. Nossa análise da documentação nos leva a crer que o pouco entusiasmo da elite natalense em financiar celebrações públicas devia-se à dificuldade de ressarcimento dos gastos efetuados. A constante falta de recursos da Câmara de Natal refletia o pequeno desenvolvimento econômico da cidade, que impedia a elite local de afirmar seu poder através de celebrações memoráveis, a exemplo do que ocorria nas cidades mais ricas da América portuguesa. Por sua vez, os representantes diretos da Coroa na Capitania estavam interessados em celebrar as datas importantes da monarquia a fim de ressaltar a sua fidelidade à dinastia, para garantir deste modo sua ascensão nos quadros administrativos no Reino ou nas colônias. A elite local preferia concentrar seus poucos recursos na celebração das festas religiosas, particularmente da padroeira da cidade, ocasião em que mostrava seu poder à população, assim como sua ligação a terra em que vivia. As festas reais na Colônia do Sacramento Como praça fronteira ao império colonial espanhol, a Colônia do SANTIAGO, A vila..., p. 93 CHARTIER, Leituras e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: Unesp, 2004, p. 31. 54 SANTIAGO, A vila..., p. 71. 55 SCHWARTZ, Stuart. Cerimonies of public authority in a colonial capital. Anais de história de além-mar. Lisboa, 2004, v. 5, p. 11. 56 Carta de José Inácio Borges ao rei. 14 out. 1821. AHU_ACL_CU_018, Cx. 10, D. 655. 52 53 CELEBRANDO A MONARQUIA NOS EXTREMOS DA AMÉRICA PORTUGUESA 143 Sacramento não deixou de participar da política de glorificação da monarquia portuguesa. Para festejar o casamento do príncipe D. José com a infanta D. Mariana Vitória, o governador Antônio Pedro de Vasconcelos tomou por encargo a realização de uma grande festa, uma vez que o povoado não tinha Câmara, a quem incumbia a organização de semelhantes eventos. O governador salientou a importância da realização do festejo em Colônia, dizendo que “foi forçoso encarregar-se dele e sem atender à despesa nem à circunstância de cair em empenho, por ser aquela praça fronteira, e irem testemunhá-lo de Buenos Aires pessoas graves e de caráter, que aceitaram seu convite”. As festividades constaram de “três noites de luminárias, fogos de artifício e descargas de artilharia, festa de igreja acabando por uma solene procissão, cavalhadas, touradas e comédias, dando trinta dias sucessivos, que durou a festividade, mesa pública às pessoas de distinção e aos vizinhos hóspedes”57. Para além da função de glorificação da monarquia, a festa contribuía para a aproximação dos povos, pois tudo indica que o convite “à nobreza e [aos] militares da cidade de Buenos Aires” para celebrar os casamentos reais em Sacramento ajudou a melhorar as relações entre portugueses e espanhóis. O governador Antônio Pedro de Vasconcelos informou à Coroa que o governador de Buenos Aires lhe escrevera que “os convidados voltavam mui agradados do agasalho e cortejo que lhe fez pelo decurso de trinta dias que ali se detiveram, experimentando desde então distinta correspondência do que até ali tinham”58. As celebrações não deveriam cair no esquecimento, por isso se deu a publicação, em castelhano, da relação dos festejos. Também foi publicado o sermão a São Pedro de Alcântara, pregado em Colônia por ocasião da dedicação de uma nova capela em homenagem ao santo durante as festas em comemoração ao casamento dos príncipes59. Como ressalta Megiani, a impressão dos relatos das festas oficiais era um elemento muito importante da propaganda monárquica, pois visava transformar as imagens em memória60. Deve ser ainda ressaltado que “o sermão servia para exaltar a data religiosa ou o monarca que se homenageava, muito mais do que para evocar uma reflexão de tipo moral ou dogmática”61. A maior parte dos gastos com os festejos correu por conta do governador, orçados em cinco mil cruzados, segundo o mesmo. Vasconcelos buscou ressarcimento dessa quantia através de um pedido de aumento do seu soldo em mil cruzados anuais, retroativo ao dia da sua posse no governo da Colônia Consulta do Conselho Ultramarino. 3 jul. 1734. IHGB, Arq. 1.1.26. Consulta do Conselho Ultramarino. 19 abr. 1730. IHGB, Arq. 1.1.26, f. 67-71v. 59 ALMEIDA, Manuel Lopes de (org.). Notícias históricas de Portugal e Brasil (1715-1750). Coimbra: Coimbra Editora, 1961, p. 165. 60 MEGIANI, Ana Paula Torres. O rei ausente: festa e cultura política nas visitas dos Filipes a Portugal (1581 a 1619). São Paulo: Alameda, 2004, p. 189. 61 MARTINS, Sobre festas..., p. 53. 57 58 144 PAULO CÉSAR POSSAMAI do Sacramento. Seu pedido recebeu parecer favorável do Procurador da Fazenda do Rio de Janeiro e do Conselho Ultramarino, que ressaltou que ele procedia “com probidade, zelo e acerto” no governo da praça 62 . A preocupação em garantir que os grandes acontecimentos da corte fossem condignamente festejados na Colônia do Sacramento servia para fazer ver aos estrangeiros, principalmente aos súditos da Coroa da Espanha, o poder e a riqueza do monarca lusitano. Negligenciar as festividades seria ofuscar o brilho da Coroa portuguesa frente à espanhola, uma vez que em Buenos Aires realizavam-se festas públicas por ocasião da aclamação dos monarcas espanhóis. A preservação da memória também era uma preocupação dos espanhóis, seja pela publicação dos relatos das festas seja através da distribuição de medalhas comemorativas, como veremos a seguir. A primeira celebração pela aclamação de um novo rei em Buenos Aires ocorreu em 16 de janeiro de 1600, em homenagem a Filipe III. A pobreza da cidade não possibilitou uma comemoração faustosa. Do alto de um tablado, erguido na Praça Maior, o governador aclamou o novo soberano diante do estandarte real, enquanto os soldados davam tiros e a fortaleza fazia uma salva de canhão. O desenvolvimento da cidade proporcionou mais grandeza às celebrações que se seguiram. As mais faustosas se deram por ocasião da aclamação de Carlos III, iniciadas em 10 de novembro de 1760. O alferes real, don Jerônimo Matorras presidiu às celebrações, tendo em vista a ausência do governador, dom Pedro de Cevallos. Um cortejo iniciado por músicos, seguidos por um esquadrão de dragões, precedia a elite portenha, liderada pelo alferes, que empunhava o estandarte real. A procissão se dirigiu à Praça Maior, onde se erguiam dois estrados, um ocupado por um grupo de músicos, enquanto o outro era ocupado pelo alferes real, pelo alcalde de primeiro voto e pelo escrivão do Cabildo. Então o alferes pediu por três vezes silêncio à multidão que assistia e desfraldou o estandarte real proclamando: “España y las Yndias; España y las Yndias; España y las Yndias por el Rey Nuestro Señor Don Carlos III” 63. Seguiram-se à proclamação as salvas dos canhões da fortaleza e o repique dos sinos da catedral. Para recordar o acontecimento, D. Jerônimo Matorras distribuiu entre a população seiscentas medalhas de prata com a efígie do novo rei e as armas da cidade no verso, enquanto as pessoas de distinção receberam medalhas de ouro. A mesma cerimônia foi repetida em outras praças da cidade e nos dias seguintes os festejos prosseguiram com cerimônias religiosas, banquetes, saraus, representações teatrais, fogos de artifício e três noites de luminárias. As festas prosseguiram por vinte e um dias consecutivos, dos quais os três últimos foram destinados a saraus realizados no pátio da casa do alferes real, onde o mesmo mandou instalar um retrato equestre do novo soberano. Outra festa realizada na Colônia do Sacramento, cujo relato possuímos, 62 63 Carta de Vasconcelos ao rei. 30 dez. 1734. AHU_ACL_CU_012, Cx. 3, D. 301. TORRE REVELLO, José. Cronicas del Buenos Aires Colonial. Buenos Aires: Taurus, 2004, p. 61-71. CELEBRANDO A MONARQUIA NOS EXTREMOS DA AMÉRICA PORTUGUESA 145 deu-se em 1752 para celebrar a aclamação de D. José I. Em primeiro de fevereiro, acompanhado pelos oficiais militares, o governador Luiz Garcia de Bivar dirigiuse à igreja matriz para assistir à benção do estandarte real. O fim da cerimônia foi saudado com uma salva de artilharia. No seguimento, o meirinho, o escrivão e o porteiro saíram acompanhados de trombetas para proclamar pela praça o bando do governador que ordenava três dias de luminárias em honra ao novo monarca. Na manhã do dia 2, reuniram-se na casa do governador os funcionários reais, os oficiais militares, o clero e seis representantes da comunidade dos comerciantes. Procedido por trombetas e timbales e escoltado pela companhia de granadeiros, o grupo percorreu as principais ruas do povoado até chegar ao arco triunfal montado na praça. Ali, à vista da tropa formada, o governador subiu numa plataforma onde fez correr as cortinas de dossel, apresentando, assim, o retrato do novo rei de Portugal à população e à tropa. Aos vivas juntaram-se descargas de mosquete e salvas da artilharia da praça, da fortaleza da ilha de São Gabriel e dos navios que se encontravam no porto. O cortejo então se dirigiu para a igreja matriz, especialmente enfeitada e iluminada para a ocasião, onde se entoou um solene Te Deum, acompanhado pelos músicos que o governador contratou em Buenos Aires. Após colocar-se o estandarte real ao lado do evangelho, celebrou-se a missa, cujo fim foi saudado por nova salva de artilharia. Durante três dias, Luiz Garcia de Bivar ofereceu bailes de máscaras e jantares a mais de setenta “pessoas de distinção”, entre as quais, alguns convidados de Buenos Aires. No terreiro em frente ao portão, realizaram-se as atividades ao ar livre que incluíram a apresentação de exercícios militares realizados pela companhia dos granadeiros, cavalhadas e touradas, para as quais foram contratados toureiros espanhóis. Numa sala do trem, os convidados puderam assistir a danças, uma tragicomédia apresentada pelos estudantes, e duas comédias, uma portuguesa e uma espanhola. Todavia, os festejos não se limitaram à elite, pois o governador libertou os presos e fez repartir esmolas entre os pobres. Durante os seis dias de festa, liberou-se o uso de máscaras, mas o governador fez questão de recomendar “sossego com a ameaça do castigo”. Bivar fez questão de frisar na relação das festas que elas foram realizadas sem os recursos da Fazenda Real, mas com seus próprios meios, sendo ajudado nas despesas por seis pessoas dentre os principais moradores da Colônia do Sacramento 64 . Contribuir para as comemorações ligadas à casa real significava mostrar engajamento e fidelidade à instituição monárquica. Como ressalta Maravall, a festa na época barroca era “um instrumento, até mesmo uma arma, de caráter político”65. Em janeiro do ano seguinte, foram realizados novos festejos, por ocasião da chegada a Colônia do general Gomes Freire de Andrade, encarregado pela 64 65 RELAÇÃO das festas que fez Luiz Garcia de Bivar. Lisboa: Oficina de Pedro Ferreira, 1753. MARAVALL, A cultura do barroco, p. 382. 146 PAULO CÉSAR POSSAMAI Coroa de chefiar a comissão demarcadora portuguesa do Tratado de Madri no Sul. No dia 25, Gomes Freire se encontrou com o governador Luiz Garcia de Bivar a um quarto de légua de Colônia. O governador o esperava acompanhado de trinta dragões montados, com seus oficiais. A comitiva seguiu, então, para o povoado, encontrando-se com a infantaria, próximo à chácara do almoxarife, ainda fora dos muros da praça. Ao chegar ao portão, todos desmontaram, sendo que o general foi recebido por seis oficiais das ordenanças, que representavam os oficiais da Câmara, inexistente em Sacramento. Sob o pálio que sustentavam os oficiais, Gomes Freire ouviu o discurso do governador e recebeu do sargento-mor as chaves da praça numa bandeja de prata. O cortejo seguiu então para a igreja, sendo o pálio acompanhado pela Companhia de Granadeiros, que seguia o general em duas alas. Antes de chegar à matriz, onde foi cantado um Te Deum, Gomes Freire foi saudado pela artilharia da praça e do forte de São Gabriel com 21 tiros, o que voltou a se repetir quando o cortejo deixou a igreja. O general foi hospedado na casa do governador, onde foi brindado com uma ceia na qual compareceram mais de trinta pessoas. Os banquetes se repetiram nos dias seguintes com a participação dos oficiais e na noite do dia 26 foi realizado um sarau com mais de trinta mascarados, todos vestidos com guarnições de ouro e prata e ensaiados pelo mestre de dança André da Costa, bem conhecido em Lisboa. Na noite do dia 27, houve um concerto de cinco rebecas, sendo tocadas muitas sonatas e cantadas muitas árias italianas. No dia 19 de fevereiro chegou ao Arraial de Veras o marquês de Valdelírios, comissário espanhol para a demarcação no sul. Gomes Freire foi buscá-lo na carruagem do governador, acompanhado de alguns oficiais. A artilharia da praça saudou o marquês com 21 tiros e a infantaria com três descargas. Nos dias seguintes, renovaram-se as festas. No dia 20 houve um concerto de música; no dia seguinte, sarau com mais de cinquenta mascarados, e grande mesa de doces e no dia 25 cavalhadas durante o dia e sarau à noite66. A Colônia do Sacramento nunca contou com uma Câmara durante o domínio lusitano e as festas reais ficaram ao encargo dos governadores. Embora Natal tivesse uma Câmara, ela não parece ter se interessado tanto quanto os governadores em patrocinar as celebrações em homenagem à dinastia reinante. Em dois espaços muito diversos, um, rico pelo comércio, e outro, frequentemente em dif iculdade por causa das secas que periodicamente desorganizavam a economia local, os representantes da Coroa faziam o que podiam para festejar com brilho a casa real portuguesa. Os interesses se interligavam: para a Coroa, se tratava de assegurar a fidelidade dos vassalos à monarquia; para os governadores o empenho na organização das festas representava uma oportunidade garantir sua ascensão nos 66 GOLIN, Tau. A guerra guaranítica. Porto Alegre: UFRGS; Passo Fundo: Ediupf, 1998, p. 255-261. CELEBRANDO A MONARQUIA NOS EXTREMOS DA AMÉRICA PORTUGUESA 147 quadros administrativos; para as elites locais era um momento para mostrar seu poder e riqueza e, para o povo, que participava ou se limitava a assistir, uma ocasião de romper com monotonia do cotidiano. 149 ALEGORIA E STATUS NA PARAÍBA COLONIAL: O FORRO DA CASA DE ORAÇÕES DOS TERCEIROS NO CONVENTO DE SANTO ANTÔNIO1 Carla Mary S. Oliveira2 Casa de Oração – ou Casa de Exercícios – da Venerável Ordem Terceira da Penitência do Convento de Santo Antônio da Paraíba é uma das mais significativas capelas erguidas durante o século XVIII na velha sede da Capitania. Seu forro é mais uma, dentre as inúmeras pinturas existentes em igrejas barrocas no Brasil, das quais não se conhece a autoria e, tampouco, se encontrou, até hoje, algum documento que aponte qualquer pista a este respeito. O apuro da execução da pintura do forro, com inúmeras sacadas e balaustradas em efeito trompe l’oeil3 e vários querubins completando o conjunto, não deixa nada a desejar se a compararmos a outras obras do mesmo período existentes nos maiores centros de então, como Recife, Salvador, Vila Rica ou Mariana. Mas há uma pequena diferença: a Paraíba da segunda metade do século XVIII era uma Capitania em franca decadência Este trabalho foi apresentado, numa versão reduzida e preliminar, sob o título “O forro da Casa de Orações dos Terceiros no Convento de Santo Antônio da Paraíba: algumas questões sobre suas imagens e a vida de São Francisco de Assis”, no Simpósio Temático “Imagens de Arte: fronteiras disciplinares entre história da imagem e história da arte”, durante o XXIV Simpósio Nacional de História da ANPUH - “História e Multidisciplinaridade: Territórios e Deslocamentos”, realizado na UNISINOS, em São Leopoldo (RS), entre 15 e 20 de julho de 2007. 2 Historiadora, Doutora em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba. Professora Adjunta do Departamento de História e Docente Permanente do Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal da Paraíba. Coordenadora do projeto de cooperação acadêmica “Patrimônios - Conexões Históricas” (PROCAD-NF Capes no 2338/2008 - PPGH-UFPB/ PPGHis-UFMG). Líder do Grupo de Pesquisas Estado e Sociedade no Nordeste Colonial (NDIHR-UFPB/ Diretório CNPq) e pesquisadora dos Grupos de Pesquisa Saberes Históricos: Ensino de História, Historiografia, História da Educação e Patrimônios (PPGH-UFPB/ Diretório CNPq) e Perspectiva Pictorum (PPGHis-UFMG/ Diretório CNPq). No segundo semestre de 2009 desenvolveu Estágio Pós-Doutoral junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, com a pesquisa “O Barroco no Brasil: (des) conexões entre Minas Gerais e o litoral do Nordeste”, sob supervisão da Profa Dra. Adalgisa Arantes Campos, com bolsa financiada pela Capes. E-Mail: <cms-oliveira@uol.com.br>. Sítio eletrônico: <http://cmsoliveira.sites.uol.com.br/>. 3 Expressão francesa utilizada para designar uma pintura que contenha artifícios de perspectiva, cores e formas a fim de criar uma ilusão de realidade para o observador, como se o espaço da pintura fosse uma continuação do ambiente que a abriga. Literalmente, a expressão pode ser traduzida como “engana o olho”. 1 150 CARLA MARY S. OLIVEIRA econômica – situação que se arrastava desde o século anterior, mas que se tornou mais evidente com a anexação a Pernambuco, em dezembro de 17554. Qual seria, então, a função de uma obra artística dessa envergadura, numa Capitania periférica que enfrentava dificuldades comerciais, de produção – seus engenhos nunca mais renderam como antes da invasão pela West Indische Compagnie5, no século anterior – e administrativas? Embora não haja, necessariamente, uma ligação direta entre opulência decorativa e aumento da riqueza local, o inverso é paradoxalmente mais comum do que se imagina: ostentar riqueza, quando ela não existe, pode ser muito importante numa sociedade permeada por interesses e poderes simbólicos, tal como o era a do Brasil colonial. O Forro da Capela e a vida de São Francisco Com 268 metros quadrados, o forro da Casa de Orações é pintura com forte efeito trompe l’oeil, apresentando sacadas e colunas de um prédio imaginário que se avoluma em formas sinuosas sobre as cabeças dos fiéis. Há vários detalhes que merecem atenção nesta obra – a começar pela tez amorenada de alguns dos querubins que brincam entre as balaustradas e os quatro homens negros que, como atlantes, sustentam os arremates do forro sobre o altar e acima da entrada da sacristia – mas certamente o espectador é logo atraído para seu tema principal: numa área elíptica, ao centro, aparece uma carruagem subindo aos céus, puxada por dois cavalos e conduzida por um homem barbado, adulto, trajando um hábito franciscano, com a cabeça coberta. Por trás do condutor, chamas flamejantes dão um aspecto fantástico à cena. Até hoje perdura certa indefinição sobre que cena está ali retratada. O Cônego Florentino Barbosa – padre secular e um dos primeiros estudiosos do Barroco local – acreditava que ela seria a representação do profeta Elias sendo arrebatado aos céus6. Sua versão foi aceita localmente, e os historiadores que estudaram os franciscanos e sua arte na Paraíba sempre tangenciaram essa discussão7. É possível considerar que o ato administrativo que extinguiu o governo local e submeteu a Capitania da Paraíba à de Pernambuco, uma Resolução Real datada de 29 de dezembro de 1755, quase dois meses depois do terremoto que devastou Lisboa em 1º de novembro do mesmo ano, tenha sido apenas uma dentre inúmeras outras medidas que visavam diminuir as despesas da Coroa nas colônias, com o intuito de concentrar os gastos do Tesouro na reconstrução da capital do Império, tarefa a que o Marquês de Pombal se dedicou com extremo afinco por vários anos. Levando-se em conta que a decadência econômica da Paraíba já se arrastava desde o século anterior, e que essa decisão administrativa poderia ter sido tomada bem antes e não deve ter ocorrido apenas por interesses e acordos políticos, não é de se estranhar que o cataclismo que se abateu sobre o Reino a precipitasse. 5 Companhia das Índias Ocidentais. 6 BARBOSA, Cônego Florentino. Monumentos históricos e artísticos da Paraíba. João Pessoa: A União, 1953, p. 51. 7 Refiro-me aqui, especialmente, a Glauce Burity e Humberto Nóbrega. Ver: BURITY, Glauce Maria Navarro. A presença dos franciscanos na Paraíba através do Convento de Santo Antônio. 4 ALEGORIA E STATUS NA PARAÍBA COLONIAL 151 Fig. 1 - Anônimo; Querubim; segunda metade do século XVIII. Madeira policromada; detalhe do forro, Casa de Oração dos Terceiros; Convento de Santo Antônio da Paraíba, João Pessoa. Foto: C.M.S. Oliveira, 2001. Fig. 2 - Anônimo; Atlante Negro; segunda metade do século XVIII. Madeira policromada; detalhe do arremate do forro sobre a entrada da sacristia, Casa de Oração dos Terceiros; Convento de Santo Antônio da Paraíba, João Pessoa. Foto: C.M.S. Oliveira, 2001. Fig. 3 - Anônimo; São Francisco no carro de fogo; segunda metade do século XVIII. Madeira policromada; detalhe do forro, medalhão central, Casa de Oração dos Terceiros; Convento de Santo Antônio da Paraíba, João Pessoa. Foto: C.M.S. Oliveira, 2001. 152 CARLA MARY S. OLIVEIRA Contudo, há outra possibilidade para a interpretação desta imagem, e um dos principais motivos reside no fato de que não há qualquer ligação, na liturgia franciscana, entre Elias e a Ordem Seráfica. Ao contrário: o profeta é considerado como um dos fundadores da Ordem Carmelita, e em muitas das igrejas e capelas desta Ordem espalhadas pelo Brasil há representações de cenas de sua vida, inclusive desse arrebatamento aos céus. Possivelmente a mais conhecida dentre elas seja a do forro da Igreja de Nossa Senhora do Carmo em Sabará, pintada por Joaquim Gonçalves da Rocha entre 1812 e 1813. Fig. 4 - Joaquim Gonçalves da Rocha, Santo Elias subindo aos céus observado por São Eliseu, 1812-1813. Madeira policromada; detalhe do forro, medalhão central; nave principal da Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, Sabará, Minas Gerais8. Rio de Janeiro: Bloch, 1988. NÓBREGA, Humberto Carneiro da Cunha. Arte colonial da Paraíba. João Pessoa: UFPB, 1974. 8 Fonte da ilustração: FALCÃO, Edgard de Cerqueira. Relíquias da Terra do Ouro. São Paulo: F. Lanzara, 1946. ALEGORIA E STATUS NA PARAÍBA COLONIAL 153 Fig. 5 - Giotto da Bondone, Legenda de São Francisco, Oitava Cena: Visão do Carro de Fogo, 1297-1299. Afresco em painel de parede lateral; 270 X 230 cm; nave central da Basílica Superior de São Francisco, Assis, Itália9. Se houve equívoco quanto à identificação inicial da pintura paraibana, ele não é de explicação difícil: talvez o episódio da vida de Elias narrado no Segundo Livro dos Reis do Antigo Testamento seja dos mais conhecidos entre os cristãos em geral. Quando o Cônego Barbosa começou a estudar o Barroco na Paraíba há muito já não funcionava o convento franciscano, nem havia atividades regulares dos Terceiros na cidade. Mas qualquer Terceiro, Frade Menor ou Clarissa conhece o episódio da vida de São Francisco a que, muito provavelmente, se refere a pintura da Casa de Exercícios do Convento de Santo Antônio: sua primeira representação pictórica conhecida foi feita pouco mais de setenta anos após a morte do fundador da Ordem Seráfica, ainda no século XIII, por Giotto da Bondone, em um dos afrescos laterais da nave central da Basílica Superior de Assis, na Úmbria. Para Rosalind Brooke, a ligação de São Francisco ao sol ou a imagens de luzes e fogo, ao menos em descrições orais, iniciaram-se menos de dois anos após sua morte, ocorrida na noite de 3 de outubro de 1226, e sua expressão mais clara seria a descrição do poverello d’Assisi 10 presente no sermão proferido pelo papa Gregório IX – amigo próximo e protetor de Francisco e seus seguidores – na cerimônia oficial de canonização, ocorrida em Assis no dia 16 9 10 Fonte da ilustração: <http://www.sanfrancescoassisi.org/>. Forma carinhosa pela qual contemporâneos de São Francisco o chamavam e que, entre seus devotos, se perpetuou até nossos dias. Literalmente, pode ser traduzida como “pobrezinho de Assis”. 154 CARLA MARY S. OLIVEIRA de julho de 1228: “como a estrela da manhã entre as nuvens,/ como a lua em seu completo esplendor,/ como o sol brilhando no Templo do Altíssimo” 11. A cena do carro de fogo, por sua vez, foi detalhadamente narrada em várias das biografias do santo escritas por membros da Ordem àquela época. Tomás de Celano, frade que conviveu com Francisco, provavelmente foi incumbido pelo próprio Gregório IX de escrever uma “vida” do religioso recém canonizado, trabalho que deve ter concluído entre 1229 e 1230. Conhecido como Primeira Vida de São Francisco, o texto descreve brevemente em seu capítulo XVIII a aparição do santo, num carro de fogo, a alguns frades menores em oração, e talvez este seja o primeiro relato escrito daquela cena fantástica: Lá pela meia-noite, quando alguns frades descansavam e outros rezavam em silêncio com devoção, entrou pela pequena porta um rutilante carro de fogo, deu duas ou três voltas para cá e para lá na casa, tendo sobre ele um globo enorme, que era parecido com o sol e iluminou a noite. Os que estavam acordados se espantaram e os que estavam dormindo se assustaram, pois sentiram uma claridade não só corporal mas também interior.12 Outra das muitas descrições desta aparição está também na Vida de São Francisco13 de Juliani di Spira14, que foi escrita por volta de 1232 para uso na França, onde o frade alemão desenvolvia trabalho missionário. Entretanto, a versão mais difundida do episódio talvez seja aquela presente na Legenda Maior, escrita por São Boaventura15 após o Capítulo16 de Narbonne (1260) e BROOKE, Rosalind B. The image of St. Francis: responses to sainthood in the Thirteenth century. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 8. O texto da versão em inglês: “like the morning star among the clouds,/ like the moon at the full,/ like the sun shining on the Temple of the Most High”. 12 TOMÁS DE CELANO. Primeira vida de São Francisco de Assis. São Paulo: Província dos Capuchinhos de São Paulo, s.d. [c. 1229-1230], cap. XVIII, § 47: 3-4. Disponível em: <http://www.procasp.org.br/>. Acesso em: 21 out. 2006. 13 Considerada, em sua maior parte, como cópia resumida da obra de Celano, salvo em seus trechos finais. 14 JULIANI DI SPIRA. Vida de São Francisco. São Paulo: Província dos Capuchinhos de São Paulo, s.d. [c. 1232-1235], cap. V, § 29. Disponível em: <http://www.procasp.org.br/>. Acesso em: 21 out. 2006. 15 Nascido em 1221, em Bagnorea, nas cercanias de Viterbo, e batizado com o nome de Giovanni di Fidanza, conta-se que foi curado de grave doença, ainda criança, através da intercessão do próprio São Francisco, que ao recebê-lo nos braços teria exclamado “oh! Buona Ventura”, e a partir daí o menino passou a ser chamado por este nome. Foi teólogo, doutor da Igreja, Cardeal de Albano e Ministro Geral dos franciscanos, tendo morrido em Lyon, em 16 de julho de 1274. Foi canonizado em 14 de abril de 1482, pelo papa Sisto IV. ROBINSON, Pascal. “St. Bonaventura” (verbete). In: New Advent Catholic Encyclopedia. Vol. II. New York: Robert Appleton Company, 1907. Disponível em: <http:/ /www.newadvent.org/>. Acesso em: 15 jan. 2007. 16 Nome dado à assembléia de religiosos que decide sobre matérias relativas à província, congregação ou ordem católica de que seus membros fazem parte ou, por extensão, o local em que se reúne essa assembléia. 11 ALEGORIA E STATUS NA PARAÍBA COLONIAL 155 publicada em 1263, no Capítulo de Pisa, para uso oficial em todas as Províncias Franciscanas a partir de então: Como o varão devotado a Deus pernoitasse na oração a Deus, como costumava, num tugúrio que ficava na horta dos cônegos, ausente corporalmente dos filhos, eis que, lá pela meia-noite, enquanto alguns frades descansavam e outros continuavam rezando, um carro de fogo de admirável esplendor entrou pela porta da casa e virando de um lado para o outro por três vezes no domicílio. Sobre ele permanecia um globo luminoso, com o aspecto do sol, e fez a noite ficar clara. Os que estavam acordados ficaram estupefatos, os que dormiam foram acordados apavorados, e não sentiram menos a claridade do coração que a do corpo, pois em virtude da luz admirável, a consciência de cada um ficou despida diante dos outros. Compreenderam, todos de acordo, vendo cada um tudo que havia nos corações dos outros, que o santo pai, ausente de corpo, estava presente em espírito, transfigurado naquela imagem, irradiado pelos fulgores supernos, e inflamado pelos ardores. O carro resplandecente pela virtude sobrenatural e ao mesmo tempo de fogo, lhes estava sendo mostrado pelo Senhor para que como verdadeiros israelitas caminhassem atrás daquele que, como outro Elias, tinha sido feito para Deus carro e condutor dos varões espirituais.17 É interessante que São Boaventura compare Francisco a Elias, no entanto parece muito mais provável que a cena retratada no teto da Casa de Oração dos Terceiros da Paraíba seja a da vida de São Francisco. Não bastassem as descrições existentes em suas biografias medievais, há também outro detalhe que justifica essa identificação: o santo italiano teria aparecido desse modo a seus irmãos frades que, recolhidos à noite, rezavam contritamente num casebre nas cercanias de Assis. Não seria esse um episódio extremamente apropriado para decorar uma Casa de Exercícios franciscana e incentivar a prática da oração? Não se pode esquecer que havia, no Brasil colonial, o costume de fazer circular entre os fiéis e religiosos um sem número de breviários ilustrados e gravuras avulsas que, quase sempre reproduziam, mesmo que toscamente, pinturas sacras de mestres europeus consagrados 18. A imagem de São Francisco no carro de fogo feita por Giotto, portanto, além de retratar um fato que não devia ser novidade para os Terceiros, por estar presente nas biografias do santo, também era, provavelmente, conhecida dos irmãos e dos frades através desse tipo de reprodução. SÃO BOAVENTURA. Legenda Maior de São Francisco. São Paulo: Província dos Capuchinhos de São Paulo, s.d. [1263], cap. IV, § 4: 2-4. Disponível em: <http://www.procasp.org.br/>. Acesso em: 21 out. 2006. 18 A esse respeito, ver: LEVY, Hannah. Modelos europeus na pintura colonial. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, SPHAN, n. 8, 1944, p. 7-66. 17 156 CARLA MARY S. OLIVEIRA Exemplo disso é o forro da Igreja da Ordem Terceira da Penitência de São Francisco, em São Paulo, em que aparece a mesma cena, com um desenho mais próximo, até, daquele do afresco de Giotto, salvo pela ausência dos cavalos à frente da carruagem. Lá estão, atônitos, os frades menores que presenciaram a aparição de seu mestre no meio da noite de vigília e oração, detalhe que falta à cena de João Pessoa. Ao contrário da pintura existente na Paraíba, o forro da Igreja dos Terceiros de São Paulo tem sua execução, possível autoria e pagamentos correspondentes documentados nos livros contábeis da ordem. Sua feitura se deu por volta de 1792, e teria sido obra do mestrepintor paulista José Patrício da Silva Manso19. Fig. 6 - José Patrício da Silva Manso (atribuído), São Francisco no Carro de Fogo, c. 1792. Madeira policromada; detalhe do forro, nave central da Igreja da Ordem Terceira da Penitência de São Francisco, São Paulo, capital20. A força simbólica desta passagem da vida de São Francisco de Assis é inegável: trata-se de uma representação da transcendência do santo ainda quando estava entre seus seguidores, e mostraria que sua santidade já se firmava antes mesmo de ele deixar o mundo dos vivos, pois tal tipo de arrebatamento aos céus, em meio a labaredas ou algo semelhante, nas histórias bíblicas e na hagiografia cristã, só se dava quando o indivíduo deixava o plano dos simples mortais e ia ocupar seu lugar na morada celeste. A imagem pode ser vista como uma representação emblemática da própria visão que os Terceiros tinham sobre a Ordem dos Frades Menores, sobre seu fundador e também sobre si mesmos: se São Francisco era tão especial, ao ponto de protagonizar tal cena fantástica, seus seguidores também o seriam, ARAÚJO, Maria Lucília Viveiros. O painel do forro da capela-mor da igreja dos terceiros franciscanos. Fênix - Revista de História e Estudos Culturais, Uberlândia, NEHAC-UFU, v. 3, n. 3, jul./ set. 2006, p. 9-10. Disponível em: <http://www.revistafenix.pro.br/>. Acesso em: 16 out. 2006. 20 Fonte da ilustração: ARAÚJO, O painel.... 19 ALEGORIA E STATUS NA PARAÍBA COLONIAL 157 pois trilhavam o caminho por ele iniciado... Os Terceiros Franciscanos: alegoria e status na Paraíba colonial Até hoje não se sabe de registros documentais do surgimento dos Terceiros Franciscanos em terras paraibanas. Contudo, Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão destaca, em seu Novo Orbe Seraphico Brasilico, que havia menção, em um sumário da ordem21, a um terceiro que atuava como “syndico da caza da Paraiba” já no século XVII22, o que leva o cronista a inferir que a Ordem Terceira deve ter surgido poucos anos após a instalação dos Frades Menores na cidade. É certo que os Terceiros utilizavam, ao menos durante a primeira metade do século XVIII, outro espaço do conjunto franciscano para seus serviços, novenas, exercícios espirituais e orações: a Capela da Ordem Terceira – ou Capela Dourada, perpendicular à nave da igreja principal do convento – que os padres da mesa23 decidiram mandar erigir em setembro de 1704. Ainda segundo Jaboatão, “não consta, porem, quando se lhe desse principio, nem se dicesse a primeyra missa” 24. A Casa de Exercícios, contudo, já estava em uso – mas possivelmente ainda com sua decoração por terminar – quando Jaboatão escrevia sua crônica, em 175125, ano em que foi Guardião do convento paraibano: (...) e se lhe lançou a prymeira [pedra] no seo alicerce a vinte de Mayo de 1748, sendo comissario da ordem o Irmão Pregador Fr. Manoel das Chagas, Ministro o R. cura do Taypú Joseph de Andrade Souza, e vice-Ministro Domingos Baptista de Siqueira.26 Construída paralelamente à Igreja de Santo Antônio e comunicando-se com ela pela sacristia da Capela Dourada e por uma varanda que dá acesso à galilé27, na entrada do convento, a Casa de Exercícios é templo espaçoso, com uma nave iluminada por amplos janelões que se abrem para o poente e a Provavelmente Jaboatão se refere a uma crônica da ordem escrita por Frei Vicente do Salvador antes de sua História do Brasil, de 1627, mas hoje perdida. ILHA, Frei Manuel da. Narrativa da Custódia de Santo Antônio do Brasil (1584-1621). Edição bilíngue, traduzida do manuscrito original em latim e comentada por Fr. Ildefonso Silveira, OFM. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 144, nota 30. 22 JABOATAM, Frei Antonio de Santa Maria. Novo Orbe Seraphico Brasilico ou Chronica dos frades menores da Provincia do Brasil. Reprodução facsimilar da edição de 1888. 2 vols. Recife: Assembléia Legislativa de Pernambuco, 1980 [1761], vol. 2, parte II, p. 386. 23 Os padres da mesa atuam como conselheiros do superior - no caso dos franciscanos, do guardião - de um convento. 24 JABOATAM, Novo Orbe..., vol. 2, parte II, p. 387. 25 Terminada somente dez anos depois. 26 JABOATAM, Novo Orbe..., vol. 2, parte II, p. 387. 27 Termo com origem no francês medieval (galilée), por sua vez inspirado pelo topônimo latino Galilæa, considerada no Antigo Testamento como a região dos gentios, em oposição à Judæa, terra do povo eleito. Por extensão, passou a designar o átrio ou varanda de entrada nas igrejas, único local de onde os pagãos ainda não batizados 21 158 CARLA MARY S. OLIVEIRA paisagem do antigo Varadouro. Em seu subsolo há um carneiro – ou cripta – que servia como ossuário para os Terceiros28, a que se tem acesso por uma escada de calcário, coberta por um gradil de madeira-de-lei, logo em frente ao altar-mor – passagem que possivelmente ficava oculta por um tapete durante o uso cotidiano do templo. O delicado acabamento das sanefas sobre as janelas, bem como a refinada talha de seu altar-mor e de seus altares laterais juntam todas as características do barroco franciscano que se espalham pelo Convento e que a Ordem foi sistematizando no litoral do Nordeste brasileiro entre os séculos XVI e XVIII. Decorados com colunas salomônicas recobertas de folhagens e detalhes a ouro, os altares da Casa de Oração mostram bem o gosto requintado – ou, ao menos, a tentativa de mostrar certo requinte – por parte dos Irmãos Terceiros da Paraíba. Se em outras capitanias a Venerável Ordem Terceira da Penitência de São Francisco reunia sempre os chamados bons homens da elite local, o padrão devia se repetir na Paraíba. Por isso mesmo, o ar de requinte que os altares cedem ao ambiente da Casa de Exercícios se justifica, exatamente pela necessidade de marcar o status de seus frequentadores em relação à sociedade em que viviam. A existência de uma representação de São Francisco no carro de fogo na Paraíba, nesse sentido, pode ser entendida através de diversos prismas: talvez o mais interessante seja o de tentar compreendê-la como uma alegoria relacionada ao lugar social dos frequentadores daquele espaço. O templo normalmente não devia ficar aberto para uso cotidiano da população da cidade, salvo em ocasiões especiais, como festas do calendário litúrgico ou exéquias de algum irmão terceiro, o que era usual no caso das capelas e igrejas de irmandades das Ordens Terceiras no Brasil colonial. Assim, aquela aparição de um santo, tal qual teria acontecido no século XIII, poderia significar que os bons homens que tinham livre acesso àquela podiam assistir aos serviços religiosos, sendo de uso corrente a partir do século XVII. No Brasil colonial, muitas vezes servia de local de reunião para as irmandades, quando estas não possuíam capela ou igreja própria. Trata-se de solução arquitetônica comum nos conventos franciscanos e nas capelas rurais setecentistas do Nordeste. CORONA, Eduardo & LEMOS, Carlos A. C. Dicionário da arquitetura brasileira. São Paulo: EDART, 1972, p. 236. HOUAISS, Antônio (ed.). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Edição on line. São Paulo: Objetiva, s.d. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/>. Acesso em: 11 mar. 2007. 28 O uso do carneiro parece ter sido interrompido a partir da década de 1830. Irineu Ferreira Pinto transcreve, em seu Datas e Notas para a Historia da Parahyba, um ofício do presidente da Província ao Guardião do Convento, de 23 de dezembro de 1831, reafirmando a determinação de construir um cemitério no terreno dos franciscanos, “tão necessaria quão vantajosa obra”, que serviria a toda a população da cidade e não apenas aos Frades Menores e Irmãos Terceiros. A obra, contudo, nunca foi efetivada. PINTO, Irineu Ferreira. Datas e notas para a Historia da Parahyba. Volume II. Cidade da Parahyba do Norte: Imprensa Official, 1916, p. 119. ALEGORIA E STATUS NA PARAÍBA COLONIAL 159 igreja e faziam parte da Ordem Terceira Franciscana se colocavam no mesmo patamar dos Frades Menores que presenciaram a cena miraculosa, ou seja, por serem Terceiros Franciscanos, esses irmãos se diferenciavam do restante dos moradores da cidade, eram parte de um petit cortège que gravitava as esferas do poder local, frequentando cargos e disputando campos de influência política, utilizando-se, para isso, de um capital simbólico específico. Ora, a idéia fulcral da alegoria barroca é justamente esta: deixar claro, somente aos iniciados, uma mensagem específica, transcrita em símbolos e representações que adquirem um novo sentido, dependendo do contexto e local em que são utilizados. À guisa de conclusão... Discutir a arte barroca existente na Paraíba é, também, uma forma de tentar compreender as relações de poder que ali se construíam durante o período colonial. Especialmente no século XVIII se configura uma situação sui generis: apesar da decadência econômica e da falta de força política na relação com a metrópole, a Capitania viu surgir os mais rebuscados templos barrocos de sua história. São justamente desse período as obras de finalização do conjunto franciscano, incluindo a decoração dos tetos da igreja conventual e da capela dos Terceiros, e a reconstrução e finalização da Igreja do Carmo e da Igreja de Santa Teresa. Todas obras de acabamento esmerado e significativa importância nos ritos sociais – sagrados e profanos – dos moradores da sede da Capitania. A situação de periferia na estrutura colonial – que a Paraíba sempre ocupou, aliás – não basta para explicar os motivos de tanto fausto presente na decoração destas igrejas. Na verdade, certos tipos de representação presente nas pinturas do conjunto franciscano só podem existir, certamente, por se encontrarem na periferia: jocosas citações a papas, cardeais e bispos, como as da igreja conventual franciscana, não existiriam em centros mais nevrálgicos do Brasil colonial. Assim, a representação da cena fantástica no forro da Casa de Orações dos Terceiros ganha um outro contorno, bem mais político e hierárquico, dentro dessa sociedade de lugares sociais que se diferenciavam, às vezes, apenas no campo simbólico. Como alegoria, trata-se de uma cena que nem todos estavam aptos a compreender, tanto que com o fim das atividades da irmandade na cidade se passou a interpretá-la com outro sentido. Como alegoria, portanto, o forro da Casa de Orações no Convento de Santo Antônio da Paraíba só tinha sentido enquanto ela era frequentada pelos Terceiros. Servia como um lembrete de sua distinção. Parece-me ser esta, exatamente, a função do São Francisco no carro de fogo no forro paraibano: mostrar que os irmãos Terceiros estavam, na “hierarquia celeste”, um degrau acima dos outros simples mortais que porventura vislumbrassem aquela imagem. Trata-se, sem dúvida, de um sinal de que os irmãos faziam parte de uma casta privilegiada, num mundo em que quase sempre eram o 160 CARLA MARY S. OLIVEIRA status e o prestígio entre os pares que contavam pontos decisivos e serviam de moeda de troca para a obtenção dos disputadíssimos cargos públicos – e suas correspondentes rendas, monetárias ou simbólicas – e das raríssimas mercês da Coroa29. Sobre a formação da elite paraibana nas primeiras décadas da colonização e o jogo de poderes e interesses envolvido neste processo, que certamente se estendeu pelos séculos seguintes, ver: GONÇALVES, Regina Célia. Guerra e açúcar: a formação da elite política na Capitania da Paraíba (sécs. XVI-XVII). Portuguese Studies Review, Peterborough, Canadá, Trent University, v. 14, n. 1, 2006, p. 35-64. 29 161 ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS: A CAPITANIA DA PARAÍBA NA VIRADA DO SÉCULO XVIII1 Mozart Vergetti de Menezes2 Yamê Galdino de Paiva3 or quarenta e quatros anos esteve a Capitania da Paraíba subordinada a Pernambuco. Segundo o decreto real de anexação, datado de 29 de dezembro de 1755, D. José, após consulta ao Conselho Ultramarino, resolveu extinguir o governo da Paraíba. Se a posição favorável do Conselho sobre a anexação externava, de um lado, a falência da Provedoria da Fazenda paraibana, quanto a sua capacidade de reproduzir a administração local, por outro, antecipava as prédicas da política pombalina de centralização e racionalização do Estado português, principalmente no que diz respeito à contenção de gastos e concentração de recursos4. Durante o período da anexação, o capitão-mor, Jerônimo José de Melo e Castro, relatou exaustivamente as dificuldades de se administrar um governo subordinado. Estando à frente da Paraíba por 33 anos, com certeza o governo mais longo numa capitania, Melo e Castro escrevia reiteradamente o quão inviável era manter-se sem a autoridade de governador que deveria revestir sua função, uma vez que devia obediência ao general governador de Pernambuco, necessitando da aprovação deste para resoluções de questões administrativas e militares. Os conflitos de jurisdição incrementavam o rol de queixas do capitão-mor da Paraíba. As súplicas rogadas ao rei para que “se compadeça de quem há 29 anos geme na rigorosa Subordinação” e o transfira para um governo livre a fim de que “possa testificar a honra com que sirvo a Vossa Majestade”5 foram inúteis. Melo e Castro faleceu em 1797 na Paraíba sem ter presenciado a realização de seu principal desiderato: o fim da Este texto deriva de um projeto de iniciação científica intitulado Fernando Delgado Freire de Castilho, governador da Capitania da Paraíba: um ilustrado nos trópicos, financiado pelo PIBIC/UFPB/CNPq e executado entre agosto de 2007 e julho de 2009. 2 Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Professor Adjunto do Departamento de História e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. Pesquisador do Grupo de Pesquisas Estado e Sociedade no Nordeste Colonial (NDIHR-UFPB/ Diretório CNPq). E-Mail: <mozartvergetti@uol.com.br>. 3 Graduada em História pela Universidade Federal da Paraíba. Exbolsista PIBIC/UFPB/ CNPq. E-Mail: <yamepaiva@yahoo.com.br>. 4 MENEZES, Mozart Vergetti de. Colonialismo em Ação: fiscalismo, economia e sociedade na Capitania da Paraíba (1647-1755). Tese de Doutorado (História Econômica). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas; Universidade de São Paulo. São Paulo, 2005. 5 AHU_ACL_CU_014, Cx. 31, D. 2264 e AHU_ACL_CU_014, Cx. 30, D. 2229, respectivamente. 1 162 M. V. DE MENEZES & Y. G. DE PAIVA anexação. Desta feita, o desenlace político-administrativo separando as duas capitanias só foi anunciado pela carta de 17 de janeiro de 17996, ou seja, durante o governo de Fernando Delgado Freire de Castilho. Sendo o último capitão-mor subordinado e o primeiro da situação subsequente, Fernando Delgado é considerado um dos porta-vozes da desanexação. Designado, por carta régia de 23 de outubro de 1797, para investigar a situação da Capitania, principalmente nos aspectos fiscais e produtivos, Fernando Delgado assumiu o governo da Paraíba com uma importante missão: analisar as vantagens ou desvantagens da subordinação da Paraíba a Pernambuco. Em cumprimento às determinações metropolitanas, escreveu uma memória sobre a Capitania na qual descreveu suas características naturais, as produções desenvolvidas e comercializadas, a situação da segurança, os corpos militares, os obstáculos que retardavam seu crescimento, os prejuízos provocados pela subordinação a Pernambuco, o desprezo da autoridade e as vantagens que a Fazenda Real e os habitantes obteriam com a separação de Pernambuco7. Em diversas correspondências à Secretaria de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos, Fernando Delgado foi categórico e incisivo nos seus argumentos sobre as agruras da anexação. Reclamava da falta de regimento pelo qual pudesse se guiar, das arbitrariedades e abusos do general governador de Pernambuco, dos prejuízos do comércio e da falta de negociantes. Ressaltava também as potencialidades da Paraíba e suas possibilidades de crescimento. Pode-se inferir que as demonstrações favoráveis de Castilho sobre a capitania que administrava embasaram a decisão régia pela desanexação. Incumbido de apresentar, como dissemos, as inconveniências ou não de se manter na Paraíba um governo subordinado, Fernando Delgado, nas suas missivas, apresentara uma postura ilustrada que pode ser visualizada na maneira como conduz e constrói seu discurso8. Seus ofícios, memórias e cartas compõem preciosas informações acerca da Paraíba de fins do século XVIII. Seu olhar ilustrado, aprimorado, num sentido mais amplo, pelo movimento de profusão das ciências naturais em Portugal, captou as potencialidades da Capitania, legando à posteridade valorosas avaliações sobre o quadro natural, humano e econômico destas fainas setentrionais. No conjunto de levantamentos realizados sobre a Capitania, em atendimento à referida ordem de 23 de outubro de 1797, insere-se uma sequência de dados relativos à produção/ consumo/ exportação/ importação, número de habitantes, de casamentos, nascimentos e mortes, moléstias A carta régia que determina o fim da subordinação da Paraíba a Pernambuco encontrase em: PINTO, Irineu Ferreira. Datas e notas para a Historia da Parahyba. Volume I. Cidade da Parahyba do Norte: Imprensa Official, 1908, p. 214. 7 AHU_ACL_CU_014, CX. 34, D. 2471. 8 Fernando Delgado frequentou a Universidade de Coimbra e possuía estudos matemáticos, conferir em: AHU_ACL_CU_014, Cx. 32, D. 2372. 6 ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS 163 obituárias e ocupação dos habitantes da Paraíba. Esses dados encontram-se disponíveis para os anos de 1798 a 1805 (não há, contudo mapas para o ano de 1803), extrapolando, portanto, o governo de Fernando Delgado e abrangendo o dos seus dois sucessores, Luís da Motta Fêo e Amaro Joaquim Raposo de Albuquerque. O escopo da avaliação neste texto incide na análise dos mapas de exportação/ importação e dos números de habitantes da Capitania9. Procuramos, então, através dos mesmos, verificar as comunicações comerciais da Capitania, os produtos exportados e importados, os valores dessas transações e levantar quantitativamente sua composição demográfica. A Capitania da Paraíba, da mesma forma que o restante da colônia brasileira, sentia os efeitos das mudanças políticas vivenciadas em Portugal. Para compreender de maneira mais apropriada as manifestações ocorridas na dimensão local, faz-se necessário unir os extremos do Atlântico, uma vez que os ditames políticos metropolitanos encontravam acolhida, ou ecoavam de maneira mais sutil, nas administrações ultramarinas. É adequada, portanto, uma breve digressão a fim de observar como as mudanças ocorridas no Portugal setecentista repercutiram na formação e nas ações de Fernando Delgado. Certo isolamento cultural caracterizava Portugal até a primeira metade do século XVIII10. O diminuto país, circunscrito pelas terras de Espanha e pelas águas do Atlântico, compensava sua pequenez geográfica projetando-se no além-mar através de suas possessões, que margeavam a própria circunferência do planeta, formando uma área de poder e influência caracterizada pela descontinuidade territorial e pluralidade cultural11. Uma habilidade administrativa dotou Lisboa, centro político do mundo português e do ultramar, de faculdades que lhe permitiu gerenciar tão vasto e diversificado império. Derivada da confluência de pessoas de diversas partes do mundo e de variadas posições sociais, Lisboa, desde o século XVI, era considerada uma cidade cosmopolita, ambiente “colorido e multiétnico”12. Estranhamente, o Portugal agregador de povos de diferentes origens, especialmente da África e Ásia, distanciava-se do restante da Europa. A privilegiada abertura marítima o levou a conectar-se muito mais com os outros A documentação em tela integra o conjunto de documentos avulsos da Capitania da Paraíba existentes no Arquivo Histórico Ultramarino. 10 NOVAIS, Fernando Antônio. Aproximações: ensaios de história e historiografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 167. 11 HESPANHA, Antônio Manuel & SANTOS, Maria Catarina. Os poderes num Império oceânico. In: MATTOSO, José (dir). História de Portugal. Quarto volume: o Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, 1998. BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Mediação, pureza de sangue e oficiais mecânicos. As câmaras, as festas e a representação do Império Português. In: PAIVA, Eduardo França & ANASTÁCIA, Carla Maria Junho (orgs.). O trabalho mestiço: maneiras de pensar e viver (séculos XVI a XIX). São Paulo: Annablume; PPGHis-UFMG, 2002. 12 GRUZINSKI, Serge. 1480-1520: as origens da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 53. 9 164 M. V. DE MENEZES & Y. G. DE PAIVA continentes do que com seus “irmãos europeus”. Essa atitude promoveu o encapsulamento português com relação à cultura desenvolvida pelos países de vanguarda, ou seja, França, Inglaterra, Alemanha e Itália. Durante muito tempo, Portugal não recebeu a iluminação do ideário da Razão num fluxo contínuo. O “obscurantismo” que o acometia na esfera das ciências começou, timidamente, a dissipar-se no alvorecer do século XVIII. Contudo, teria que esperar mais alguns decênios para que esse quadro fosse revertido e Portugal pudesse compartilhar do que havia de mais sofisticado em termos de Ilustração. A Ilustração portuguesa possui uma singularidade: a da precocidade das reformas e da importação das idéias. Característica esta decorrente do fechamento de Portugal para com a cultura desenvolvida nos centros irradiadores do movimento ilustrado, bem como do seu atraso econômico. Este constituía motivo de preocupação dos homens de governo desde fins do século XVII. Visando à reversão dessa situação, buscou-se compreender as causas de tal retardamento e os meios para superá-lo. Na medida em que o ‘atraso’ era visto em relação à Europa de além-Pirineus, é claro que se entendia que, para explicá-lo, se impunha a mobilização da nova Filosofia dos países adiantados – daí o caráter de importação das idéias, de atualização. Por outro lado, as reformas eram vistas não apenas como a ‘promoção das Luzes’, mas também como uma maneira de superar o atraso, tirar a diferença (...).13 Inicialmente, a discussão sobre temas ilustrados ficou circunscrita às sociedades filosóficas e aos debates privados, assim como no restante da Europa. No caso português, os padres oratorianos tiveram atuação importante na penetração e difusão das idéias iluministas. Um outro reduto de florescimento da filosofia racionalista foi o do grupo dos “estrangeirados”, assim chamados, pejorativamente, “devido à sua obsessão por modelos estrangeiros”. Composto por homens pertencentes ao governo metropolitano e ultramarino, os estrangeirados discutiam essencialmente sobre economia e política. Um dos principais expoentes do grupo foi D. Luís da Cunha. Sua estada na Inglaterra, França e outros países como embaixador português proporcionou-lhe uma larga experiência em diplomacia. Amparado em sua vivência internacional, Luís da Cunha buscou compreender a fragilidade de Portugal no contexto europeu e do império e a sua dependência para com a Inglaterra. Ele atribuía a situação econômica de Portugal, em parte, a um estado mental da população, isenta de empreendedorismo. O excesso de religiosos, a funesta Inquisição e a perseguição aos judeus também contribuíam para a fraqueza do Estado português, segundo Da Cunha14. 13 14 NOVAIS, Aproximações, p. 168. A Congregação do Oratório ingressou em Portugal após 1640 e seus representantes foram notáveis defensores das ciências naturais, das experimentações científicas e de ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS 165 Ao báratro do fanatismo e ignorância em que a alma portuguesa, no meado do século XVIII, mergulhava, alguns privilegiados espíritos escapavam ainda. Na muralha que oprimia as inteligências havia fendas.15 D. Luís da Cunha, Alexandre de Gusmão, Sebastião José de Carvalho e Melo e posteriormente Rodrigo de Sousa Coutinho eram os indivíduos dotados de um apanágio que lhes permitia uma ampla e aguçada visão sobre a administração e o governo portugueses. Sebastião José, o ministro plenipotenciário de D. José I (1750-1777), foi um dos ávidos representantes das idéias ilustradas. Como enviado português em Viena (1744-1749) e embaixador na Inglaterra (1739-1743), o futuro Marquês de Pombal amealhou conhecimentos sobre economia, política e diplomacia que foram indispensáveis para sua compreensão acerca do descompasso entre Portugal e os centros difusores do Iluminismo. Mais especificamente, Pombal estava interessado em entender os fatores que promoviam o crescimento econômico da Inglaterra, visando, com isso, ao sobrepujamento da dependência portuguesa para com aquele país. Inspirado em teóricos clássicos, especialmente Colbert, Pombal procedeu a uma política econômica amparada no mercantilismo. Um mercantilismo bastante ibérico, tendo em vista que não atendia exclusivamente o âmago da política mercantilista, isto é, a ação do Estado na busca da manutenção de uma balança comercial favorável. “Seu objetivo era utilizar técnicas mercantilistas – companhias de comércio, regulamentação, taxação e subsídios – para facilitar a acumulação de capital por comerciantes portugueses, individualmente”16. Sebastião José buscava, com tais medidas, fomentar uma camada de comerciantes portugueses capazes de competir internacionalmente e de rivalizar com os ingleses. Portanto, o mercantilismo pombalino intentava menos aumentar o fluxo de metais preciosos para Portugal do que mantê-lo internamente. Afinal, os metais preciosos, especialmente o ouro brasileiro, que chegavam a Lisboa eram transferidos, majoritariamente, para a Inglaterra em decorrência dos tratados comerciais existentes entre os dois países, a exemplo do Tratado de Methuen (1703), o que acarretava graves prejuízos para o Estado português. Durante os 27 anos que esteve à frente da Secretaria de Estado do Reino (1750-1777), Pombal realizou mudanças substanciais, tanto em Portugal métodos pedagógicos baseados no aprendizado da ortografia e gramática portuguesas diretamente, sem a intermediação do latim. Um dos oratorianos mais atuantes em Portugal, especialmente na área pedagógica, foi Luís Antônio Vernei, autor de O verdadeiro método de estudar que lhe rendeu vários agraves com os jesuítas, principais responsáveis pelo ensino superior em Portugal. Sobre isto e sobre a geração dos estadistas estrangeirados: MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 11-16. 15 AZEVEDO, João Lúcio de. O Marquês de Pombal e a sua época. São Paulo: Alameda, 2004, p.96. 16 MAXWELL, Marquês de Pombal, p. 67. 166 M. V. DE MENEZES & Y. G. DE PAIVA quanto no restante do império. Suas ações incidiram basicamente nos campos administrativo, econômico, fiscal, político, legislativo, religioso e educacional. As reformas pombalinas ambicionavam a modernização do Estado português e a racionalização da máquina administrativa. O Estado passava a ampliar sua área de influência e a agir de maneira mais contundente nas diversas esferas da sociedade. Na educação, as ações do Marquês estavam direcionadas ao ensino de técnicas – a exemplo da difusão das partidas dobradas –, para os comerciantes, através das Aulas de Comércio e à formação de um corpo burocrático que desse prosseguimento às suas reformas. Visava, assim, numa dimensão mais ampla, à criação de uma burguesia nacional forte. Ademais, reformou a Universidade de Coimbra (1772) e incluiu nos currículos escolares disciplinas de latim, retórica, filosofia, química, etc., ou seja, campos valorizados pela Ilustração. Outrossim, ganhou destaque a medicina pelo estabelecimento de laboratórios nas universidades e pela possibilidade de dissecação de cadáveres, prática antes não permitida pela influência dos jesuítas na cultura e educação portuguesas17. Com relação às políticas voltadas para a colônia brasileira, destacam-se a criação das Companhias de Comércio do Grão Pará e Maranhão (1755) e a de Pernambuco e Paraíba (1759), o fim da discriminação dos ameríndios e o incentivo à miscigenação entre estes e os brancos, a instituição da derrama, a proibição de comércio com os comissários volantes, a expulsão dos jesuítas, a transferência da capital política de Salvador para o Rio de Janeiro, a diversificação agrícola, entre outras. Carvalho e Melo procurava, com isto, reforçar os laços comerciais entre a colônia brasileira e a metrópole portuguesa. A dependência de Portugal para com o Brasil era evidente e a crise do Sistema Colonial já se anunciava, daí a necessidade de revigorar os vínculos entre os dois lados do Atlântico. As políticas pombalinas não foram de todo desfeitas com a Viradeira, designação dada ao governo de D. Maria I por reverter o direcionamento político e econômico do Marquês. É certo que parte do corpo de funcionários foi mudada e que algumas realizações empreendidas por Pombal foram alteradas, como a extinção das referidas Companhias de Comércio. Apesar disto, muitos dos direcionamentos de Pombal foram mantidos e outros, intensificados. (...) a queda do marquês de Pombal, que ocorreu em seguida à morte de José I, sua perseguição, a libertação dos presos políticos, enfim, a “viradeira”, não passaram de fenômenos conjunturais. A equipe dirigente, de índole ilustrada, continuou basicamente a mesma, com novos acréscimos. Ainda mais: as reformas ensejando os primeiros frutos, as iniciativas foram avante, ampliando o raio de ação. O final do século, longe de um retrocesso, marca um 17 Para um panorama geral do período pombalino ver: MAXWELL, Marquês de Pombal. Para a política econômica, ver: FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina: política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo: Ática, 1982. ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS 167 avanço, aparece como um desdobramento: o ponto mais alto da Ilustração em Portugal.18 No reinado de D. Maria I (1777-1816)19, a presença fisiocrática fez-se sentir de maneira mais aguda. A atenção dada durante o governo pombalino às práticas agrícolas ficou mais circunscrita ao mundo ultramarino, o qual deveria fornecer matérias-primas para a incipiente indústria portuguesa. Na regência mariana, a agricultura ganhou um destaque especial. Incentivaram-se vários estudos sobre os recursos e as potencialidades da natureza em Portugal e nas colônias, a fim de se elaborar uma História Natural do Reino e Ultramar. Nesse sentido, a atuação da Academia Real de Ciências de Lisboa20, criada em 1779, foi fundamental. As viagens filosóficas, estimuladas pelo governo, tinham como principal finalidade o inventário do Novo Mundo. Imbuídos de uma olhar cientificista, naturalistas e viajantes deveriam diagnosticar de maneira pragmática a natureza, coletando e identificando espécies e descrevendo o povo e os ambientes. Os agentes da Coroa também participavam desse levantamento empírico de dados, através da confecção de memórias sobre as terras de sua jurisdição. “Das memórias (...), várias podem ser consideradas ‘regionais’, isto é, dizem respeito a uma província, região, capitania, ou um simples conselho”21. As memórias constituíram um importante instrumento de conhecimento do Novo Mundo, uma vez que apresentavam, em sua maioria, a geografia física e econômica de determinada área, incluindo-se aí o caráter moral do elemento humano, além de apontar os problemas e sugerir soluções. Assim, a mineração, as matérias-primas, o sal, os pigmentos, as madeiras e a agricultura foram temas sobressaltantes nesse tipo de documentação. A natureza passava a adquirir um sentido utilitário e inteligível pela razão. Como a intenção da metrópole lusa era promover o desenvolvimento econômico do reino, tornava-se imprescindível a perscrutação das virtualidades da sua principal colônia – o Brasil. No bojo das transformações sofridas por Portugal através das reformas pombalinas, do despertar de um cientificismo visualizado nas mudanças pedagógicas, do estímulo às ciências naturais, do tumultuado governo de D. Maria I e do avanço da cultura ilustrada, insere-se Fernando Delgado Freire de Castilho. Designado a assumir o governo da Capitania da Paraíba em 1797, NOVAIS, Aproximações, p. 168. A partir de 1792, em virtude dos problemas de saúde de D. Maria, seu filho D. João VI assume o trono como príncipe regente. 20 Um interessante estudo sobre a atuação e o significado das práticas ilustradas promovidas pela Academia Real das Ciências de Lisboa encontra-se em: MUNTEAL FILHO, Oswaldo. A Academia Real das Ciências de Lisboa e o Império Colonial Ultramarino (1779-1808). In: FURTADO, Júnia Ferreira (org). Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. 21 NOVAIS, Aproximações, p. 169. 18 19 168 M. V. DE MENEZES & Y. G. DE PAIVA Fernando Delgado sintetiza a nova fase da ilustração portuguesa. “Filho” das reformas pombalinas, especialmente no concernente às alterações no campo econômico, com a criação da Escola do Comércio, e às pretensões do marquês em formar funcionários com uma mentalidade e conhecimentos teóricos adequados à etapa de reestruturação do Império português que iniciava, e sendo coevo da ampliação do campo científico promovido pela Academia Real das Ciências de Lisboa, pode-se considerar Fernando Delgado como um ilustrado a serviço da Coroa. No contexto de investigação das plagas brasileiras, acima falado, Castilho recebeu ordens régias para realizar um levantamento da capitania que iria assumir. Muito mais do que um estudo direcionado a conhecer os fatores bióticos e abióticos da Capitania, as instruções dadas ao mesmo tinham um objetivo mais específico: o de averiguar a conveniência ou não da anexação da Paraíba a Pernambuco. Segundo a resolução de D. Maria I, Havendo S. Mag.e nomeado V. Mce para o governo da Paraíba, é a mesma senhora servida, que eu lhe dê as seguintes instruções, que é consequente às suas luzes, conhecimentos e zelo com que procurará distinguir-se no real serviço. Havendo-se essa capitania da Paraíba incorporado na de Pernambuco, a que está sujeita, em consequência de uma Consulta do Conselho Ultramarino, ordena S. Mag.e que V. Mce examine com a maior imparcialidade se a utilização que tira a Real Fazenda desta incorporação pela economia que se pode resultar de não manter um governo totalmente independente, e equivale aos prejuízos que pode receber seja da falta de execução das reais ordens, seja da menos ativa cobrança das dívidas reais dependente de Pernambuco, seja de se manter um conflito de jurisdição igualmente nocivo ao Real Serviço e aos interesses dos habitantes da capitania, que também podem receber algum vexame de um sistema, que os faz dependentes para o seu comércio da praça de Pernambuco. V. Mce fará subir a Real Presença não só a fiel exposição de tudo o que acabo de notar-lhe, mais ainda as reflexões que lhe sugerir o estado atual da capitania e das suas produções afim de V. Mce abrace a mais justa resolução sobre a conveniência de fazer esse governo independente ou de o conservar dependente. 22 Esta era, pois, a missão precípua de Fernando Delgado. Procedendo a um exame da situação econômica da Capitania, suas produções e comércio, dos recursos existentes, da segurança e do corpo militar, o atual capitão-mor deveria, após a exposição e análise de tais aspectos, informar à Secretaria de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos se a subordinação da Paraíba à Capitania de Pernambuco era onerosa ou não para aquela e para a Fazenda Real. Como governador, era sua obrigação “animar e promover as culturas já 22 PINTO, Datas e notas..., p. 180. ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS 169 existentes e introduzir as que possam ser novas e venham a concorrer para enriquecer esta capitania”. Não obstante, era responsável também por “promover o consumo de todos os produtos do Reino como são, vinhos, azeite, sal e todas as manufaturas”23. As luzes de Castilho extrapolavam, contudo, essa resolução específica. Além da memória escrita sobre a Capitania, que abordava os itens expostos nas instruções recebidas, ele foi autor de outras cartas, relatórios e memórias nas quais expunha as potencialidades da Capitania da Paraíba e de outros espaços24. Em suas correspondências, Fernando Delgado fala da abundância de ricas matas, de rios navegáveis, bons portos e ancoradouros, da fertilidade da terra para o desenvolvimento de diversas produções, desde o açúcar até os gêneros alimentares, das excelentes ribeiras propícias para a criação de gado, da prontidão e lealdade dos habitantes para com os interesses da Coroa, entre outros aspectos. A seu ver, o principal problema da capitania encontravase na subordinação da mesma à vizinha Pernambuco. Para ele, o fim da anexação seria o passo inicial e mais importante para melhorar o estado da Capitania, especialmente através da agricultura e comércio, considerados “os mais importantes ao aumento e riqueza desta capitania e que necessitam de uma independência absoluta de Pernambuco”25. Como resultado da supracitada ordem régia de 1797, foi confeccionada uma série de mapas sobre produção/ consumo/ exportação/ importação e população – número de habitantes, de casamentos, nascimentos e mortes, das principais moléstias obituárias e de ocupação dos habitantes – da Capitania da Paraíba entre os anos de 1798 e 1805. Antes de apresentarmos as informações relativas aos circuitos mercantis e à população da Capitania da Paraíba, no intervalo de 1798 a 1805, faz-se necessário uma reflexão sobre a situação econômica da mesma no período final da anexação. A historiografia clássica paraibana é consensual quanto à debilidade financeira e produtiva da Capitania da Paraíba. A exiguidade das rendas, a baixa lucratividade do açúcar, a escassez de mão-de-obra escrava africana, o diminuto nível de produção dos gêneros de subsistência e o fraco e quase PINTO, Datas e notas..., p. 181-182. Dentre a produção de Fernando Delgado destacam-se a memória escrita sobre a capitania (AHU_ACL_CU_014, Cx. 34, D. 2471); a descrição das técnicas e culturas da cana-de-açúcar e do algodão (PINTO, Datas e notas..., p.189-198) e as memórias sobre as matas da Paraíba e sobre a Ilha de Fernando de Noronha (AHU_ACL_CU_014, Cx. 33, D. 2436). Outrossim, durante seu governo (1798-1802), foram enviadas amostras de espécies vegetais e um relatório sobre a fauna e flora do sertão da Capitania (AHU_ACL_CU_014, Cx. 35, D. 2509) elaborado por Manuel de Arruda Câmara, incumbido também de fazer uma memória sobre as potencialidades para o fabrico de linho na Paraíba (AHU_ACL_CU_014, Cx. 36, D. 2610). Segundo Celso Mariz, Fernando Delgado era favorável à substituição das bolandeiras de descaroçar algodão, bastante rudimentares, pela invenção de Francisco de Arruda Câmara. MARIZ, Celso. Evolução econômica da Paraíba. 2 ed. João Pessoa: A União, 1978, p.15-16. 25 Narração de Fernando Delgado sobre o estado em que se acha a Capitania da Paraíba em 1799. PINTO, Datas e notas..., p. 209. 23 24 170 M. V. DE MENEZES & Y. G. DE PAIVA inexistente comércio interno são os principais fatores apontados para explicar o estado crítico no qual estava mergulhada a Paraíba. Segundo Horácio de Almeida, (...) o estado em que [Fernando Delgado] encontrou a Capitania era de estagnação geral. Fontes de rendas esgotadas. Engenhos desprovidos de safra e escravos. Aparelhamentos fabris estragados. Produtos agrícolas sem preço no mercado. Comércio inexistente. Os negociantes da praça não passavam de meros agentes do Recife e nesta qualidade oprimiam o povo.26 É certo que o período de subordinação (1755-1799) da Paraíba a Pernambuco correspondeu a uma difícil fase para a primeira. Não se pode, todavia, reduzir unicamente esse “atraso” da Capitania ao julgo políticoadministrativo no qual esteve submetida por mais de quarenta anos. Vários fatores concursaram para debilitá-la. Às dificuldades de gerenciar um governo subordinado, somam-se as discutidas consequências provocadas pela atuação da Companhia de Comércio, as secas que assolavam as produções e a população, e os próprios obstáculos impostos à reestruturação da Capitania após a expulsão definitiva dos holandeses em 1654. Não se deve esquecer ainda das iniquidades e usurpações dos administradores, práticas comuns à colônia como um todo, que prejudicavam qualquer esforço direcionado à promoção da agricultura, comércio e aumento das rendas reais. Havia também, no caso da Paraíba, o entrave colocado pelo eterno atraso do envio do dízimo27 pela Alfândega de Pernambuco para esta Capitania. Não obstante a fragilidade da Capitania da Paraíba no momento em que Fernando Delgado foi investido no cargo de capitão-mor, os mapas de produção, importação e exportação mostram as principais produções da Capitania, destinadas ao consumo interno e/ou à exportação, bem como os artigos importados pela mesma. Se os números relativos à totalidade da produção, consumo, exportação e importação apresentam verossimilhança com o estado da capitania acima exposto, significa que a Paraíba tinha ótimas possibilidades de crescimento mediante sua agricultura e comércio. Mas, parece-nos haver uma incoerência entre os dados e uma economia praticamente paralisada, como dizem os coevos e os historiadores clássicos. ALMEIDA, Horácio de. História da Paraíba – Vol. II. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 1978, p. 87. 27 Desde 1723 a arrematação do dízimo da Paraíba se dava na praça de Pernambuco, em um só contrato. Pernambuco ficava responsável por enviar vinte mil réis anuais à Paraíba, quantia, teoricamente, considerada equivalente à arrecadação desse imposto nesta capitania. As delongas no envio desta importância e mesmo a sua não remessa geravam atritos entre o governador da Paraíba e o de Pernambuco. Não raro, aquele subia à real presença a pouca atenção e mesmo o descuido do general governador de Pernambuco na execução de sua obrigação. Para mais informações, ver: MENEZES, Colonialismo..., capítulo IV. 26 ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS 171 A quantidade do que era produzido e exportado e os respectivos valores em dinheiro arrecadado evidentemente não caracterizam uma opulência. Contudo, espelha a potencialidade econômica da mesma. Os artigos importados e seu consumo interno, especialmente para a área do sertão da Capitania, corroboram para a sustentação dessa idéia: a Paraíba não parecia tão decadente quanto se coloca(va). Os mapas de exportação e importação das vilas e freguesias da Capitania da Paraíba explicitam a existência de circuitos mercantis envolvendo essas localidades e as demais Capitanias do Norte – Rio Grande do Norte, Ceará e Pernambuco. Sempre se apontou o porto do Recife como sendo a principal, e/ ou mesmo, a única via de escoamento das produções da Paraíba. Segundo esse entendimento o porto da Paraíba nunca apresentou grande atividade. Permaneceu sufocado pelo da capitania vizinha que embarcava quase a totalidade das mercadorias da Paraíba, seja do litoral ou do interior, como afirma Almeida: A estrada principal que vinha do sertão fazia ligação direta com o Recife, que absorvia tudo quanto a Paraíba produzia. Uma variante é a que tomava rumo da capital paraibana. Pela estrada principal escoavam-se os produtos do sertão. 28 Mais recentemente, a mesma acepção é encontrada em Roberto Smith, que, ao falar do perímetro da Capitania de Pernambuco, composto por Alagoas (parte integrante do seu território) e as capitanias a ela anexas, isto é, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, afirma que essa área correspondia à “região de controle mercantil e colonial exercida a partir da cidade e porto de Recife, único ponto de entrada e saída do comércio monopolizado através da Capitania com a Metrópole”29. Algumas vias de comunicação da Capitania da Paraíba com suas vizinhas foram reverenciadas por alguns autores como Caio Prado Júnior e Irineu Joffily. O primeiro, no capítulo sobre vias de comunicação e transporte de Formação do Brasil Contemporâneo, diz que o ponto central desses caminhos que interligavam o espaço que hoje compõe o atual Nordeste encontrava-se no Piauí. Daí partia três outras vias, dirigidas para leste, sudeste e sul. A linha do leste atingia parte do território da Capitania da Paraíba, mais especificamente Pombal e Patos, incrustados no sertão paraibano, mas também passando pela atual Itabaiana – localizada na área que hoje corresponde ao agreste –, onde se bifurcava em duas direções, uma que conduzia à Cidade da Paraíba, e outra que descia para Pernambuco. Em suas palavras: 28 29 ALMEIDA, História da Paraíba, p. 87. SMITH, Roberto. A presença da componente populacional indígena na demografia histórica da Capitania de Pernambuco e suas anexas na segunda metade do século XVIII. In: XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais. Anais... Ouro Preto: Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 2002, p.7. 172 M. V. DE MENEZES & Y. G. DE PAIVA A linha leste dirige-se para o Ceará, onde passa por Arneirós e Icó; daí se dirige à Paraíba, que atravessa pelo eixo do seu território, tocando em Pombal e Patos, alcançando o rio Paraíba que acompanha até o lugar onde hoje está Itabaiana. Aí se bifurca, continuando um ramo pelo mesmo rio até a capital da capitania; infletindo o outro para o sul em demanda de Pernambuco.300 Irineu Joffily também distingue alguns caminhos que intercomunicava comercialmente a Paraíba às capitanias vicinais. Reconhecendo Campina Grande como importante conduto de integração entre litoral e sertão, visto que a mesma constituía uma feira de gado, Jofilly identifica-a como o ponto de união das duas artérias do sertão, denominadas estradas do Seridó e de Espinharas. Diz o autor: A primeira [estrada do Seridó] tomava o rumo de noroeste, passando pelos lugares onde hoje estão as povoações de Pocinhos e S. Francisco e territórios adjacente à de Pedra Lavrada, onde descia a Borborema (fralda ocidental), dava no rio Seridó, e acompanhandolhe as margens penetrava na Capitania do Rio Grande do Norte até os sertões do baixo Piranhas e Apody.Transpondo os limites desta capitania, de um lado, procurava de novo o Paraíba pela ribeira de Porcos ou Patú, e de outro atingia as águas do baixo Jaguaribe, no Ceará. A estrada de Espinharas tomava a direção de oeste passando por grandes travessias; tocava na pequena ribeira de Santa Rosa, a dez léguas, e nove mais adiante na povoação dos Milagres, no rio Taperoá; e acompanhando mais ou menos as margens deste rio, tocava na lagoa do Batalhão, e descendo a Borborema seis léguas além dava nas águas do rio Piranhas ou Espinharas, que acompanhava até o lugar onde hoje é a vila de Patos. Aí dividia-se a estrada; à esquerda dirigia-se para o Piancó, tendo um desenvolvimento de cerca de 40 léguas até os confins da respectiva ribeira; à direita seguia em linha reta para a povoação das Piranhas, depois vila e cidade de Pombal; continuando para Sousa, no rio do Peixe, passaria depois mais ou menos próximo aos lugares hoje ocupados pela Vila de S. João do rio do Peixe e cidade de Cajazeiras, em seguida penetrava na capitania do Ceará, onde subdividia-se servindo a todo o vale dos Cariris Novos e sertões do Icó, Inhamúns e Crateús, por onde entrava na capitania de Piauí. Esta foi a grande artéria que ligava à capital aos sertões mais afastados da capitania, ligando igualmente estes aos de suas vizinhas, e esta comunicação tem-se mantido sem a menor 30 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 241. ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS 173 interrupção até hoje. 31 Estas estradas constituíam algumas vias pelas quais circulavam os produtos idos da e vindos para a Paraíba. Os mapas de exportação e importação indicam os portos de origem e destino dessas mercadorias. Aracati, Açú, Mossoró, Paraíba, Recife, Goiana, Itamaracá, Olinda, Lisboa e Porto compunham os pontos de embarque das produções da capitania e/ ou de recebimento dos artigos enviados da metrópole. Esta constatação rompe o monopólio exclusivo exercido pelo porto do Recife sobre as produções da Paraíba. Certamente, Recife continuava a ser o principal local de escoamento dos produtos daquela e de entrada de outros, mas deixa de ser pensado como a única via de fluxo de mercadorias, seja saída ou abastecimento. O litoral compreende as paróquias da Cidade de Nossa Senhora das Neves, do Conde, Alhandra, Taipú, Bahia de São Miguel, Mamanguape e Monte Mór. Já o sertão corresponde às paróquias de Pombal, Patos, Pilar, Sousa, Vila Nova da Rainha, Cariri Velho, Cariri de Fora (posterior Vila Real de São João do Cariri), Santo Antônio do Piancó. Sabemos da tenuidade que é dividir a Capitania da Paraíba em dois grupos tão rígidos. Contudo, essa separação permite uma profícua visualização das atividades econômicas e da distribuição da população. O critério adotado foi o da produção econômica local. Assim, as localidades cuja principal atividade estava direcionada à agroexportação açucareira foram classificadas como pertencentes ao litoral. Já àquelas voltadas para as culturas do algodão e da pecuária e seus derivados passaram para o grupo do sertão. A vila de Pilar gerou uma dificuldade. Segundo a GRÁFICO 1: EXPORTAÇÃO E IMPORTAÇÃO NA CAPITANIA DA PARAÍBA (1798-1805)32 JOFFILY, Irenêo. Notas sobre a Parahyba. 2. ed. facsimilar. Brasília: Thesaurus, 1977, p. 225-226. 32 AHU_ACL_CU_014, Cx. 33, D. 2423, AHU_ACL_CU_014, Cx. 35, D. 2510, AHU_ACL_CU_014, Cx. 36, D. 2617, AHU_ACL_CU_014, Cx. 38, D. 2711, AHU_ACL_CU_014, Cx. 39, D. 2764, AHU_ACL_CU_014, Cx. 41, D. 2890, AHU_ACL_CU_014, Cx. 41, D. 2891, AHU_ACL_CU_014, Cx. 46, D. 3273, AHU_ACL_CU_014, Cx. 46, D. 3274, AHU_ACL_CU_014, Cx. 47, D. 3318, AHU_ACL_CU_014, Cx. 47, D. 3319. 31 174 M. V. DE MENEZES & Y. G. DE PAIVA atual classificação geográfica, Pilar pertence à região geográfica da Depressão e à mesoregião da Mata Paraibana. Considerando-a no limiar dos dois grupos, optamos por colocá-la no Sertão, visto que, segundo os mapas econômicos trabalhados, os principais gêneros produzidos e exportados pela vila eram algodão e couros. As quantias resultantes dos movimentos de importação e exportação para as paróquias do litoral e do sertão da Capitania da Paraíba revelam a predominância do primeiro espaço nas rendas da Capitania.O litoral, lugar por excelência da agromanufatura açucareira, era responsável por mais de 50% do volume das importações e exportações da Capitania. Em contraposição, ao sertão é reservada a importância de até 40% dessas demandas. Não diminuindo a influência da economia litorânea para as receitas da Paraíba, queremos destacar a atuação do sertão para o aumento daquelas. Em outro estudo constatamos, já para 1732, a importância do imposto do subsídio da carne para o incremento da receita paraibana. Apesar de o fornecimento da carne ser uma atividade de abastecimento interno, chamamos a atenção para esse espaço, que a partir da primeira metade do século XVIII começa a florescer economicamente 33. Isto pode ser verificado nas ligações mantidas pelas vilas do sertão com as Capitanias de Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco e a própria Paraíba. A documentação permite evidenciar um afluxo de manufaturas e mercadorias variadas vindas pelos portos dessas capitanias. Se produtos como tecidos finos, chapéus, louças, etc., afluíam para aí, é porque havia um mercado consumidor para os mesmos. Consequentemente, as atividades econômicas sertanejas deveriam gerar condições para comercialização e consumo desses tipos de bens. Os produtos exportados pela Capitania da Paraíba consoam com a sua condição colonial. São gêneros de subsistência, couro e seus derivados, açúcar, tabaco, algodão, gado vacum e cavalar, farinha, mel, aguardente, azeite, madeira, entre outros. Quanto à importação destacavam-se tecidos de variados tipos (panos de algodão, linho e seda; cassas finas e grossas; crês; durantes; druguetes; chitas; bretanhas; holandas; baetas; riscados; lila; gangas; casimiras), vinho, pólvora, louça, vinagre, carne seca, sal, ferro, manteiga, chapéus e papel. A circulação dessas mercadorias pelas Capitanias do Norte e a renda derivada dessa movimentação comercial ratificam a idéia exposta de não total apatia da economia da Paraíba. Evidentemente, o volume das transações comerciais da capitania, quando comparado com a da totalidade do território colonial, possuía um peso pouco significativo34 No 33 34 MENEZES, Colonialismo..., p. 132. Segundo José Jobson de Arruda a Paraíba, nos anos 1796 e 1797, ocupou o sétimo lugar no comércio de importação da colônia brasileira, subindo para a sexta posição a partir de 1798, ocupada antes por Santos. Com relação à exportação, aparece na sexta posição em 1796, não constando na Balança Comercial (1796-1811) em 1797 e 1798, reaparecendo em 1799 e 1800, para voltar a sumir nos anos seguintes. Diz ainda que, “uma comparação com as demais colônias portuguesas demonstra-nos a insignificância do ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS 175 entanto, não está em questão aqui o valor da mesma para a Coroa. Cabe apenas verificar, através desses dados, que a capitania não produzia apenas para consumo interno. Atendendo ao seu próprio status de colônia, ela gerava riquezas, comprava manufaturas da metrópole e ainda contribuía para a própria reprodução do corpo de oficiais régios no além-mar, sendo responsável pela manutenção do aparato administrativo da Capitania da Paraíba. Cumpria, pois, o papel a ela designado. População da Capitania da Paraíba na virada para o século XIX Tarefa árdua é lidar com população do período colonial brasileiro. Fontes fragmentadas, esparsas, mal conservadas tornam-se cotidiano do historiador afeito pela demografia. Para o século XVIII há alguns recenseamentos realizados na área das Capitanias do Norte. Por não apresentarem um padrão homogêneo, é difícil traçar uma evolução da população a partir dos seus componentes. Quando um deles aparece em determinado ano, somem no seguinte, ressurgindo no subsequente. Se atualmente uma idéia exata da população não pode ser garantida, muito menos se deve esperar exatidão para os homens coloniais. Contudo, isto não invalida os dados por eles fornecidos. Dentre os levantamentos realizados durante o século XVIII, os que se iniciam em 1797, prolongando-se até 1830, são os que apresentam mais detalhes, sendo, por isso, os mais completos. A partir daí se “introduz aperfeiçoamentos no processo de recenseamento das populações no Brasil. O recenseamento passa a incorporar um conjunto de informações econômicomercantis e maior abrangência das informações populacionais”35. Segundo Smith, amparado na divisão (fase proto-estatística) proposta por Marcílio36, a etapa 1797-1830 se inicia com a ordem régia de D. Maria I, datada de 21 de outubro de 179737. A partir dela, o Conselho Ultramarino emite um dispositivo dirigido aos capitães-mores do Brasil expressando: Desejando Sua Majestade que a esta corte cheguem anualmente noções muito exatas, e individuais de cada uma das capitanias do Brasil, foi servida ordenar que se preparassem os mappas que acompanham esta carta, e que os remettesse a VMCE, afim de que se principie um trabalho, por meio do qual se possa chegar ao conhecimento: 1) dos habitantes que existem na Capitania; 2) das occupações dos mesmos habitantes; 3) dos casamentos annuais, movimento comercial da Paraíba. É inferior ao comércio da África e das Ilhas. Assim como Santos”. ARRUDA, José Jobson de. O Brasil no comércio colonial. São Paulo: Ática, 1980, p. 271-272. 35 SMITH, A presença..., p. 2. Neste trabalho o autor da uma idéia da população das Capitanias de Pernambuco e suas anexas com base nos recenseamentos realizados no século XVIII. 36 MARCÍLIO, Maria Luíza. Levantamentos censitários da fase proto-estatística do Brasil. Anais de História, Assis, v. II, p. 63-75 (apud SMITH, A presença..., p. 2). 37 MARCÍLIO apud SMITH, A presença..., p. 2. 176 M. V. DE MENEZES & Y. G. DE PAIVA nascimentos e mortes; 4) da importação; 5) da exportação; 6) das produções da Capitania, consumo e exportação das mesmas produções; 7) dos preços correntes dos gêneros; 8) do número dos navios que entram e saem. A estes 8 mappas se ajunta uma instrução para o modo de os formar, a qual com os referidos mappas Vmce comunicará a pessoa incumbida d’este trabalho.38 Muito provavelmente, Fernando Delgado, como capitão-mor nomeado em 1797, recebeu exatamente estas instruções, uma vez que esse conjunto de informações foi por ele recolhido nos moldes que acima se apresentam. Já nos referimos aos mapas de produção, exportação e importação. Passemos agora aos de habitantes da Capitania. A Capitania da Paraíba apresentava, nos anos 1798 a 1805 uma população entre 40 e 60 mil habitantes. Quando dividida entre litoral e sertão, os números denotam um certo equilíbrio entre os valores totais de habitantes para essa duas áreas. No entanto, ao passo que tomadas em sua dimensão territorial, verifica-se que a população do sertão encontra-se diluída num amplo espaço, enquanto que a do litoral concentra-se numa curta faixa de terra. Isto é justificado pelo fato de o litoral ser o espaço inicial de ocupação da Capitania, enquanto que as fronteiras do sertão só foram “abertas” a partir da segunda metade do século XVII. Não obstante o retardamento do povoamento dessa área, sua ocupação foi relativamente rápida ao longo do século XVIII. Se para o ano de 1798, o sertão aparece como responsável por 38% do total de habitantes da Capitania, o que nos infere a acreditar numa sub escrituração por faltar algumas freguesias, presentes nos outros anos posteriores, vemos, de maneira mais consistente, o salto nos números para o ano de 1800, com 51%; e seguintes: 1801, 43%; 1802, 48%; 1804, 56% e 1805, 54%. No atinente à composição da população livre, os resultados mostram que os mulatos eram responsáveis pelo maior montante na Capitania, chegando, em média, para os anos em tela, a cerca de: 32%, em 1798; 39% em 1799, 38% em 1800, 36% em 1801, 40% em 1802, 33% em 1804 e 38% em 1805. Contrário, portanto, ao número de brancos que representavam apenas 32%, 26%, 28%, 31%, 28%, 30% e 26% respectivamente para os mesmos anos. Quanto aos cativos, contudo, a Capitania da Paraíba apresenta um baixo percentual demográfico, verificando-se, para o período como um todo, um número nunca superior a 25%. Valor esse que, no que tange a relação entre litoral e sertão, apresenta certa proporcionalidade para os anos de 1800, 1804, 1805, como demonstra a tabela a seguir, desmistificando a idéia de que o litoral sempre esteve hegemonicamente mais servido de escravos que o interior. O que chama a atenção são os valores de negros, principalmente os pretos escravos, para a área do sertão. A historiografia paraibana tendeu a desconsiderar a última categoria nesse espaço. Apoiados em autores clássicos, 38 AHU - Mato Grosso, maço 24. In: MARCÍLIO, apud SMITH, A presença..., p. 2-3. ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS 177 TABELA 1: PRETOS E MULATOS CATIVOS NA CAPITANIA DA PARAÍBA ENTRE OS ANOS 1798 E 1805, COM A ESPECIFICAÇÃO ENTRE LITORAL E SERTÃO39 LITORAL ANO SERTÃO PRETOS CATIVOS MULATOS CATIVOS PRETOS CATIVOS MULATOS CATIVOS 1 7 98 12 % 2% 5% 2% 1 800 7% 2% 8% 1% 1 801 10 % 3% 6% 1% 1 802 8% 2% 5% 2% 1 804 7% 2% 8% 2% como José Américo de Almeida e o já citado Irineu Jôffily, reitera-se a concepção da ausência ou pouca importância do negro na economia sertaneja, especialmente na atividade da pecuária. Diz Américo de Almeida: (...) no sertão o cruzamento se operou entre índios e portugueses, quase com a exclusão do negro. As condições do meio, que não permitiam o trabalho agrícola, prescindiam da escravaria. Demais, o indígena é, de seu natural, apto ao pastoreio.40 A mesma idéia está presente em Joffily: Depois que a colonização estendeu-se à todo o território da capitania, com o desenvolvimento da cultura do algodão nas caatingas, aumentou o elemento africano, sem que contudo, ele chegasse a preponderar em parte alguma pelo número; principalmente no sertão, onde foi sempre fraco, porque para os trabalhos pastoris era muito mais apropriado o americano.41 No fim da década de 1970, Diana Galliza, em O declínio da escravidão na Paraíba (1850-1888), caminha na contramão da noção exposta pelos autores supracitados, ao reconhecer que “embora tenha sido desprezada pelos estudiosos da história da Paraíba a participação do escravo na zona criatória, sua presença foi marcante no sertão paraibano. Durante a segunda metade do século XIX, foi acentuado o número de escravos na área sertaneja”42. Desde o fim do século XVIII é possível atestar a presença do elemento negro, seja ele livre ou escravo, no sertão da Capitania da Paraíba. Para 1798, primeiro ano AHU_ACL_CU_014, Cx. 33, D. 2423, AHU_ACL_CU_014, Cx. 35, D. 2510, AHU_ACL_CU_014, Cx. 36, D. 2617, AHU_ACL_CU_014, Cx. 38, D. 2711, AHU_ACL_CU_014, Cx. 39, D. 2764, AHU_ACL_CU_014, Cx. 41, D. 2890, AHU_ACL_CU_014, Cx. 41, D. 2891, AHU_ACL_CU_014, Cx. 46, D. 3273, AHU_ACL_CU_014, Cx. 46, D. 3274, AHU_ACL_CU_014, Cx. 47, D. 3318, AHU_ACL_CU_014, Cx. 47, D. 3319. 40 ALMEIDA, José Américo de. A Paraíba e seus problemas. 3 ed. João Pessoa: A União, 1980, p. 524. 41 JOFFILY, Notas..., p. 235. 39 178 M. V. DE MENEZES & Y. G. DE PAIVA para o qual possuímos o conjunto de informações levantado por Fernando Delgado, os valores de pretos e mulatos cativos não são nem um pouco tímidos, seja para sertão ou para o litoral. Os livres, no entanto, suplantam numericamente aqueles e representam boa parcela da população total. Por fim, é importante salientar o diminuto percentual, para todos os anos, de índios quer no sertão, que não passava de 1%, ou do litoral, cuja população não ultrapassava os 7%. Todavia, apesar de a documentação não deixar claro, acreditamos que os índios computados nos mapas sejam os aldeados, daí sua pouca presença naquele espaço43. Uma hipótese para o elevado índice de mulatos parece-nos ser a de miscigenação entre brancos, negros e índios. Principalmente como resultado dos estímulos de Pombal que tinha na miscigenação do índio fator determinante para o aumento demográfico na colônia. Segundo essa conjectura, os mulatos não corresponderiam apenas à população mestiça de cor, na concepção comum que só a enxerga no tocante ao cruzamento de brancos e negros, mas a qualquer cruzamento entre os grupos anteriormente citados. Considerações Finais Os mapas de consumo, exportação e importação da Capitania da Paraíba, correspondentes aos anos de 1798 a 1805, legados por Castilho e seus dois sucessores, evidenciam ligações comerciais existentes entre a Paraíba e as capitanias vizinhas a ela, isto é, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará. A percepção desses circuitos mercantis torna-se fundamental para matizar a exclusividade exercida pelo porto do Recife quanto ao escoamento das produções e abastecimento da Paraíba. A documentação exibe outros trânsitos portuários existentes que promoviam as transações de compra e venda das mercadorias exportadas e importadas. Vale ressaltar que o desvelamento dessas outras vias de comunicação mercantil não retira a importância de Recife para o fluxo mercatório da Paraíba, mas suaviza qualquer GALLIZA, Diana Soares de. O declínio da escravidão na Paraíba (1850-1888). João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1979, p. 54. 43 Segundo Ricardo Medeiros, Pombal ordenara que se transformassem “em vilas as missões de Pernambuco e suas anexas administradas pelos jesuítas [...], que nas missões de sua jurisdição, que eram administradas pelos jesuítas, fossem criadas vigarias colativas, substituindo os missionários por clérigos regulares”. MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Política indigenista do Período Pombalino e seus reflexos nas Capitanias do Norte da América portuguesa In: OLIVEIRA, Carla Mary S. & MEDEIROS, Ricardo Pinto de (orgs.). Novos Olhares sobre as Capitanias do Norte do Estado do Brasil. João Pessoa: Editora Universitária, 2007, p.128. Além disso, Maria do Céu Medeiros diz que “como a legislação sobre o índio previa a união de aldeias, quando estas não atingiam um determinado número de casais, o Governador de Pernambuco ordenou a transferência de índios do interior para o litoral, no ano de 1780”. Daí a desproporcionalidade existente entre as aldeias do litoral e as do interior. MEDEIROS, Maria do Céu. O trabalho na Paraíba escravista (1585-1850). In: MEDEIROS, Maria do Céu & SÁ, Ariane Norma de Menezes. O trabalho na Paraíba: das origens à transição para o trabalho livre. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 1999, p.46. 42 ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS 179 inconteste monopólio dado àquela praça. Além disso, inviabiliza a idéia de esterilidade da Capitania como consequência dos quarenta e quatro anos de subordinação. Os mapas de habitantes, por sua vez, permitem estabelecer uma idéia acerca da população da capitania. Pode-se perceber, a partir deles, um não esvaziamento do sertão. Se tomados em valores absolutos, o número de habitantes do sertão, com exceção dos anos 1798 e 1799, apresentam oscilações entre 45 e 55%. Evidentemente, a densidade demográfica dessa área é mais baixa do que a do litoral, tendo-se em vista sua amplitude territorial. Muito mais do que apresentar um retrato da Capitania, a documentação pesquisada possibilita voltar o olhar para o sertão. A imagem da “civilização do couro”, legada por Capistrano de Abreu, apresenta o sertão como metonímia da pecuária e sua indústria. Assim, as boiadas, vaqueiros rústicos e índios revoltos tornam-se os símbolos desse espaço. Os mapas de exportação e importação viabilizam a percepção da movimentação da economia sertaneja. Exportava-se gado, couros miúdos, atanados, sola, algodão e tabaco em corda e importava-se, basicamente, vinho, tecidos diversos, chapéus e sal. O contato das paróquias do sertão com os portos de Aracati, Açú, Mossoró, Goiana e Recife são nítidos. Havia uma integração comercial entre os sertões das Capitanias do Norte, evidenciada pelos circuitos mercantis. Dessa maneira, o sertão nos é apresentado não como um ambiente hostil e marcado pelo marasmo, mas, em termos econômicos, bastante dinâmico, pulsante e gerador de um mercado interno através da circulação de produtos ainda muito pouco estudado. 181 O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COMPLEMENTARES: SANTOS, BAHIA E PERNAMBUCO, 1765-18221 Denise A. Soares de Moura2 ste texto tem apenas a intenção de problematizar as relações mercantis entre o centro-sul e as capitanias mais ao norte, especialmente as da Bahia e de Pernambuco, ao longo de algumas conjunturas do período 1765-1822 e sugerir que através do giro das mercadorias coloniais e européias havia a integração destas partes do território do Brasil ao conjunto da Monarquia portuguesa e aos principais centros mercantis europeus especialmente após a abertura dos portos em 1808. Essas relações mercantis serão chamadas de complementares porque os dados levantados na documentação demonstraram que, embora o maior volume das importações do segundo principal porto da costa centro-sul, Santos, proviesse do Rio de Janeiro, pólo de redistribuição das mercadorias européias, asiáticas e africanas obtidas no comércio atlântico e índico, existiu um intercâmbio com as capitanias do norte, especialmente a Bahia, que não se restringiu ao circuito mercantil do sal. Entende-se que este comércio com os dois principais pólos mercantis das capitanias do norte completava a demanda por mercadorias européias, africanas e asiáticas existente no centro-oeste-sul e que a praça do Rio de Janeiro não dava conta de atender. O caráter mais inquiridor das linhas que seguem deve-se à dificuldade do assunto, apesar da vasta produção bibliográfica existente3, tanto nacional Pesquisa parcialmente financiada pelo CNPq e pelo programa de Estágio Pós-Doutoral promovido pela UNESP/ Banco Santander, que me permitiu a permanência de dois meses e meio em Lisboa, onde me beneficiei de pesquisas realizadas na Torre do Tombo e de muitas idéias discutidas nos seminários promovidos pelo Centro de Estudos de Além Mar (CHAM) da Universidade Nova de Lisboa e pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Parte das indagações levantadas nestas linhas foram provocadas por seminários e reuniões ocorridas no núcleo Dinâmicas Econômicas e Sociais no Império português do Atlântico, da Cátedra Jaime Cortesão, da Universidade de São Paulo. Meus mais sinceros agradecimentos a Maximiliano Max Menz por ceder cópia dos mapas de importação e exportação que digitalizou para sua pesquisa sobre o Rio Grande. 2 Pós-Doutora em História pela Universidade Nova de Lisboa, Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Professora Assistente do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus de Franca. 3 Três teses norte americanas podem ser consideradas ponta de lança para as pesquisas sobre o comércio na América portuguesa e, especialmente, na Bahia. Duas foram 1 182 DENISE A. SOARES DE MOURA como estrangeira, à ausência de dados alfandegários regulares, o que obriga o investigador a permanecer no plano indagativo das fontes administrativas e à própria extensão da pesquisa que o tema exige. A opção pelo termo monarquia, ao invés de império, como amplamente debatido e usado pela historiografia4, diz respeito à forma de governo. Em todos os territórios sob domínio português, da América a Goa, o chefe de estado tem título de rei ou rainha. Império pode ter ou não governo monárquico. Em termos políticos, a coroa, o cetro e o trono português uniram partes heterogêneas, estabelecendo um elemento comum, bem definido pela manifestação dos deputados da Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação do Estado do Brasil e Domínios Ultramarinos ao juiz da alfândega do porto de Santos, ao solicitarem a confecção de mapas de importação e exportação. Falavam em nome de “Dom João por graça de Deus Príncipe Regente 4 defendidas no Texas e uma em Nova York. Em data muito próxima à defesa destas teses foi publicado no Brasil, por José Jobson de Arruda, um trabalho de fôlego, redigido em 1973, sobre o comércio colonial nas várias partes do Brasil. Um trabalho que inaugurou uma nova linha teórico-metodológica fundado no debate dos anos 80, em torno da categoria de Antigo Sistema Colonial, foi o de João Fragoso. Na historiografia portuguesa destacam-se os importantes trabalhos de Jorge Pedreira, com investigação prosopográfica que muito tem influenciado a historiografia brasileira, e de Leonor Costa. SMITH, David Grant. The mercantile class of Portugal and Brazil in the seventeenth century: a socio-economic study of the merchants of Lisbon and Bahia, 1620-1690. PhD Thesis. The University of Texas. Austin, 1975; FLORY, Rae Jean Dell. Bahian Society in the mid-colonial period the sugar planters, tobacco growers, merchants and artisans of Salvador and the Reconcavo, 1680-1725. PhD Thesis. The University of Texas. Austin, 1978; LUGAR, Catherine. The merchants community of Salvador, Bahia, 1780-1830. PhD Thesis. State University of New York. Stoney Brook, 1980. ARRUDA, José Jobson de Andrade. O Brasil no comércio colonial. São Paulo: Ática, 1980. FRAGOSO, João Luís R. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. Jorge Miguel de Melo Viana. Os homens de negócio da praça de Lisboa de Pombal ao vintismo (1755-1822). Diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social. Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1995. COSTA, Leonor Freire. Império e grupos mercantis: entre o Oriente e o Atlântico. Lisboa, Livros Horizonte, 2002. A historiografia nacional e estrangeira há tempo tem tomado emprestado e aplicado reflexivamente o conceito de Império de Charles Boxer, explicando a realidade colonial dos domínios das várias coroas européias de modo mais complexo, colocando questões novas e, no caso do Brasil, ampliando muitas daquelas pioneiramente lançadas por clássicos da historiografia, como Formação do Brasil Contemporâneo e Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial. Cf. BOXER, Charles. O Império Marítimo Português: 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002; FRAGOSO, J. L. R. (org.). O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVIXVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; BICALHO, M. F. B & FERLINI, Vera Lúcia A. (orgs.). Modos de governar: idéias e práticas políticas no Império Português. São Paulo:. Alameda, 2005; ELLIOT, J. H. Empires of the Atlantic World: Britain and Spain in America, 1492-1830. New Haven & Londres: Yale University Press, 2007; FRAGOSO, J. L. R. (org.). Nas rotas do Império: eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. Vitória: EDUFES; Lisboa: IICT, 2006. O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COMPLEMENTARES 183 de Portugal dos Algarves, daquém, dalém Mar em África de Guiné”5. Percepção que teve Caio Prado Jr. ao definir em ensaio que o que havia nesta parte do oceano, aos olhos da administração metropolitana “eram várias colônias ou províncias, até mesmo ‘países’, se dizia às vezes, que, sob o nome oficial de capitanias, se integravam no conjunto da monarquia portuguesa e a constituíam de parceria com as demais partes dela: as províncias do Reino de Portugal e as dos de Algarve, os estabelecimentos da África e do Oriente”. Acrescentando ainda que “a monarquia forma um complexo heterogêneo de reinos, estados, províncias européias e ultramarinas, capitanias e outras circunscrições sem título certo”6. Esta compreensão dos domínios como reino ou estados da monarquia portuguesa está no título das balanças ou mapas de exportação e importação: resumo dos mapas de importação e exportação dos estados da Índia, África e Brasil. Sendo o Brasil, ainda, formado por partes distintas: a “capital do Rio de Janeiro”, os Estados do Brasil (Santos e parte meridional); Bahia e Pernambuco. Monarquia mercantil porque em termos econômicos o comércio integrava estas partes heterogêneas, estabelecendo unidade na diversidade. As mercadorias circulavam de um território a outro da monarquia portuguesa, ligando direta ou indiretamente as partes. O comércio foi um norteador da expansão marítima européia desde o século XV e especialmente da sociedade portuguesa 7. Nos territórios onde inexistiam mercadorias para pronta troca, os portugueses criaram uma sociedade original, ocuparam, transplantaram instituições administrativas, implantaram um sistema produtivo, almejando atingir os “tradicionais objetivos mercantis que assinalam o início da expansão ultramarina da Europa”8. Desde o final do século XVII os domínios americanos da monarquia mercantil portuguesa tornaram-se o centro de seus interesses mercantis, em especial a parte centro-sul, devido a mineração. O esgotamento do potencial aurífero do interior do continente coincidiu com crises internas da economia portuguesa e a reação régia para criar oportunidades favoráveis. A crise da segunda metade do século XVIII forçou um novo modelo de Alfândega – almoxarifado 1722-1822. AESP. Santos, C. 00227, ordem 227, maço 1, pasta 21, doc. 1-21-3. 6 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Martins, 1942, p. 301-302. 7 PRADO JÚNIOR, Formação..., p. 16-17. 8 PRADO JÚNIOR, Formação..., p. 25. Em Fernando Novaes este sentido mercantil da colonização moderna corporificou-se no conceito de Antigo Sistema Colonial: “a colonização guardou na sua essência o sentido do empreendimento comercial donde proveio; a não existência de produtos comercializáveis levou à sua produção e disto resultou a ação colonizadora. Assim se ajustavam as novas áreas aos quadros das necessidades de crescimento da economia européia”. NOVAES, Fernando. Portugal e a crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: HUCITEC, 1979, p. 68. 5 184 DENISE A. SOARES DE MOURA colonização9, que na América portuguesa representou intensificação e diversificação produtiva e mercantil e deslocamento do foco de interesses políticos para o centro-sul. Nos domínios americanos o coração da monarquia mercantil portuguesa passou a ser a zona centro-meridional, tendo em vista a própria necessidade de assegurar o domínio luso em áreas há muito ambicionadas e disputadas pelos castelhanos, como as zonas fronteiriças do Rio Grande e Mato Grosso. Transformar o Rio de Janeiro em sede administrativa do vice-reino, em 1763 e reabilitar a autonomia administrativa de São Paulo em 1765 foram duas medidas chave para a realização de um novo modelo de colonização que visava, a partir do centro-sul, preservar a parte americana da monarquia mercantil portuguesa que mais mercadorias poderia proporcionar para a inserção competitiva da economia lusa no comércio europeu. Portos periféricos, como o de Santos, na capitania de São Paulo, foram estratégicos neste processo por proporcionarem uma via de escoamento de mercadorias européias, asiáticas e africanas na costa e no interior do continente. O comércio atlântico e índico, dado seu alto nível de investimentos e custos, concentrava-se nas mãos de uma pequena parcela de grandes negociantes10, mas a distribuição das mercadorias adquiridas nestes empreendimentos marítimos exigia um esforço de distribuição pela costa que nem sempre interessava ao grande negociante e abria um campo de oportunidades para os negociantes das praças periféricas. Desde o início do século XVIII a tendência da política metropolitana foi de estreitar as ligações entre o Rio de Janeiro e as zonas auríferas tradicionais de Minas Gerais, inclusive com propósitos tributários e para melhor enfrentar a realidade concreta do contrabando do ouro. As terras do sertão da Farinha Podre, no centro oeste mineiro, passagem para Goiás e Mato Grosso, onde em 1736 foi fundada uma povoação, o Desemboque11, ao lado esquerdo do Rio das Velhas, áreas de povoamento e exploração tardia do metal, tenderam a permanecer sob a órbita de São Paulo. A movimentação de paulistas em direção a estas áreas, indicada pela documentação, sugere a existência de uma demanda por mercadorias européias, asiáticas e africanas nesta parte interior do continente, que a integrava ao conjunto da monarquia mercantil portuguesa. A vila marítima ARRUDA, José Jobson de Andrade. Decadence or crisis in the Luso-Brazilian Empire: a new model of colonization in the Eigtheenth Century. Hispanic American Historical Review, v. 80, n. 4, 2000, p. 865-878. 10 FRAGOSO, Homens de grossa...; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Os homens de negócio do Rio de Janeiro e sua atuação nos quadros do Império português (1701-1750). In: FRAGOSO, O antigo regime... 11 DANTAS, Sandra Mara. A fabricação do urbano: civilidade, modernidade e progresso em Uberabinha - MG (1888-1929). Tese de Doutorado. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. , 2009. 9 O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COMPLEMENTARES 185 de Santos, o Caminho do Mar e a cidade de São Paulo formaram um sistema que promoveu esta integração. Embora a maior atividade mercantil da praça de Santos ocorresse com o Rio de Janeiro, havia relações com as praças do norte, especialmente com a Bahia e em segundo lugar com Pernambuco. Se o circuito não se restringia à praça carioca, certamente existia demanda notória nas zonas de povoamento e exploração aurífera tardia e autonomia dos negociantes que atuavam em Santos em relação aos do Rio de Janeiro, pois esta praça não dava conta da demanda interior da parte centro oeste do continente. Este texto explorará esta questão. A idéia central é a de que existiram relações mercantis complementares entre o centro-sul e as capitanias do norte e o porto de Santos, na parte centro-sul, desempenhou o papel de distribuidor de mercadorias européias, africanas e asiáticas no centro-oeste do território do Brasil. O nível de atividade de exportação costeira deste porto periférico foi baixo, o que sugere a existência de uma economia interior capitalizada, que não fazia giro do comércio com mercadorias, mas com valores monetários, que ainda não é possível quantificar, mas apenas inferir na documentação administrativa e alfandegária. A argumentação será construída em documentação que parte da base da monarquia, ou seja, a câmara municipal e se estende até aquela de ordem central, como a correspondência trocada entre autoridades régias coloniais e metropolitanas e os mapas de importação e exportação ou balanças de comércio da vila de Santos, Bahia e Pernambuco. O caráter integrador dos portos periféricos Ainda existem questões a serem levantadas na investigação sobre o funcionamento do comércio colonial, pois os portos que poderiam mostrar outros patamares hierárquicos do seu funcionamento despertaram pouco interesse, como as praças marítimas menores, integradas e integradoras de regiões ao conjunto da Monarquia portuguesa, indiretamente e por intermédio de outras praças, como Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco12. Tais praças formaram sub-sistemas econômicos, como o porto de Santos e a Paraíba, centros polarizadores de mercadorias coloniais e européias em suas respectivas capitanias. Qual o papel político e econômico que uma vila marítima periférica no centro-sul pode ter tido no Estado do Brasil e no conjunto da Monarquia mercantil portuguesa? Em termos econômicos e tendo em vista o sistema da exploração colonial, a função econômica destas vilas foi a de centralizar a exportação de produtos coloniais e importação de mercadorias européias, 12 Exceção ao trabalho de Maximiliano Menz. MENZ, Maximiliano M. Centro e periferias coloniais: o comércio do Rio de Janeiro com Santos e Rio Grande (1802-1818). Revista de História, São Paulo, n. 154, 2006, p. 251-266. 186 DENISE A. SOARES DE MOURA africanas e asiáticas nas principais praças mercantis que praticavam o comércio atlântico, como o Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Como parte de um território pensado como unidade administrativa desde o final do século XVII, a vila de Santos tinha articulações mercantis mais diretas com ao Rio de Janeiro, mas as demandas abertas pelo novo padrão de colonização da segunda metade do século XVIII fez com que tivesse certo nível de integração com as capitanias do norte, que funcionaram como centros complementares do comércio colonial no centro-oeste-sul do continente do Brasil. A vila de Santos não só manteve relações comerciais com Bahia e Pernambuco, como foi um pólo de atração para negociantes e homens de navegação que atuavam nestas duas praças e que movimentaram-se no território atraídos pelas novas expectativas político-econômicas apresentadas pelo centro-sul desde a transferência da sede administrativa da América portuguesa para o Rio de Janeiro13. Os produtos coloniais, europeus e do estado da Índia, os escravos d’África comercializados pela cidade marítima de Santos integravam14 partes do interior do continente, como a capitania de São Paulo, o oeste mineiro, Goiás e Mato Grosso ao Recife e Bahia e, indiretamente, através destes portos, a Lisboa, costa da África e Goa confirmando o que, em certa medida, já havia intuído Caio Prado Júnior: de que existiam outros sistemas que asseguravam o sentido original da colonização. A vila de Santos funcionou como parte de um conjunto territorial e unidade administrativa mais larga, o centro-sul, formado e articulado pela exploração aurífera. A criação da Repartição Sul15, em 1608, demonstra o redirecionamento dos interesses econômicos e da política administrativa da Coroa portuguesa para esta região desde o século XVII. 13 14 15 Esta constatação deve-se à pesquisa realizada nas Habilitações de Familiar do Santo Ofício e Ordem de Cristo, na Torre do Tombo, em Lisboa. Um banco de informações construído a partir dos Maços de População de Santos, disponível no Arquivo do Estado de São Paulo, permitiu chegar aos nomes de negociantes. De onze habilitados na Familiatura, seis estabeleceram-se primeiro no Rio de Janeiro, Bahia, Recife ou minas de Goiazes. Júnia Furtado constatou processo semelhante no circuito Minas-Gerais/Bahia. Não se tratava de movimento unidirecional, litoral-interior, mas interior-litoral, pois os viandantes de volta de Minas levavam para o porto de Salvador produtos coloniais, como couro e tabaco, empregado no comércio de escravos na África. As zonas tradicionais da extração do ouro faziam parte de um amplo circuito envolvendo Salvador, Lisboa e África. Devo fazer a mesma conexão, como o circuito Santos/ Recife combinava o interior, outros portos do sul e capitania, África e Lisboa. FURTADO, Júnia Ferreira. Teias de negócio: conexões mercantis entre as Minas do ouro e a Bahia, durante o século XVIII. In: FRAGOSO, Nas rotas..., p. 170. Divisão formada pelas capitanias de São Vicente, Espírito Santo e Rio de Janeiro, separada da Bahia e outras capitanias que constituíam o Estado do Brasil. Apud BELLOTTO, Heloisa Liberalli. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do Morgado de Mateus em São Paulo (1765-1775). 2. ed. São Paulo: Alameda, 2007, p. 22. O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COMPLEMENTARES 187 São Paulo e Bahia foram irradiadores originais do povoamento do interior do continente, onde surgiu uma constelação de núcleos urbanos. Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, os mais densos, formaram as três principais capitanias do centro-oeste, administrativamente articuladas ao Rio de Janeiro pela política da Coroa portuguesa somente nos primeiros anos do século XVIII. O povoamento do interior do território da colônia provocado pela mineração levou a monarquia portuguesa a organizar administrativamente o centro-sul em conjunto em dois momentos do século XVIII: nas quatro primeiras décadas e na segunda metade. Neste processo, a importância geopolítica da capitania de São Paulo colocou-a no foco das ações régias, com reflexos na vila de Santos. Em 1709, um ano após o conflito dos emboabas e respondendo ao esforço dos paulistas de interiorização e descoberta das minas metalíferas, foi criada a capitania de São Paulo e Minas do Ouro16, em substituição à capitania de São Vicente, cuja sede, desde 1681 estava situada na vila de São Paulo. A preocupação despertada na Coroa portuguesa por esta ação expansiva dos paulistas e a necessidade de controlar com maior rigor as zonas auríferas, com total potencial de enriquecimento da fazenda real, levaram à oficialização da autonomia de Minas Gerais em 1720 e à criação, em 1747, das capitanias de Goiás e Mato Grosso. A parte meridional do território do Brasil correspondente ao Rio Grande e a ilha de Santa Catarina foi agregada à capitania do Rio de Janeiro. Restava a São Paulo apenas o território que envolve atualmente o estado do Paraná e o processo de retalhamento territorial e das atribuições jurisdicionais desta capitania, foi definitivamente concluído com a abolição de sua autonomia político-administrativa em 174817. A valorização e o caráter estratégico de pontos da costa centrossul no processo de reordenamento administrativo desse período, pode ser evidenciado não apenas pela ampliação das prerrogativas políticas e administrativas da futura sede do vicereinado – o Rio de Janeiro – , mas pela atribuição da autoridade militar da capitania de São Paulo ao governador da praça de Santos, que por sua vez ficaria sob a jurisdição do governador do Rio de Janeiro. Mas na prática as obrigações deste governador foram mais amplas do que as meramente militares, conforme queixou-se Luis de Sá e Queiroga a Gomes Freire de Andrade18. Se a metrópole procurou restringir as ligações terrestres entre a capitania de São Paulo e as áreas tradicionais mineiras de exploração aurífera, Para uma interpretação sobre a política de concessões e mercês da Coroa portuguesa em relação aos paulistas, ver: BLAJ, Ilana. A trama das tensões: o processo de mercantilização de São Paulo colonial (1681-1721). São Paulo: Humanitas; FFLCH-USP; FAPESP, 2002. 17 QUEIROZ, Suely Robles Reis. São Paulo. Madri: Editorial Mapfre, 1992. 18 BELLOTTO, Autoridade e conflito..., p. 32. 16 188 DENISE A. SOARES DE MOURA colocando-as diretamente na órbita do Rio de Janeiro, o mesmo não ocorreu com as zonas de povoamento e exploração metalífera tardia, como o oeste de Minas, Goiás e Mato Grosso, onde foram encontrados os aluviões mais prósperos somente a partir de 1718. A centralização dos esforços tributário-administrativos metropolitanos nas áreas tradicionais, a extensão do interior do continente, território com muitas partes ainda por desbravar e difíceis caminhos por abrir e percorrer, habitado por brava gente indígena, pode ter levado a Coroa a fazer vistas grossas à ação dos paulistas na parte centro-oeste do interior, deixando-a gravitar na órbita de seus interesses. Esta hipótese em grande medida pode explicar a grande ligação que existe ainda hoje entre esta região e São Paulo. Para penetrar na parte centro-oeste do continente o caminho se dava por terra e rio. Ao norte, por Mogi, havia o caminho terrestre dos Guaiases, que levava às minas de Goiás, na direção do atual Triângulo mineiro. O caminho para o Mato Grosso era basicamente fluvial, pelo Tietê, a rota das monções, o que estimulou a formação do porto de Araritaguaba, um porto de embarque, posteriormente denominado Porto Feliz19. A integração da parte centro-oeste do continente no conjunto da Monarquia portuguesa ocorria, portanto, através destas duas rotas, a terrestre dos Guaiases ou a fluvial das monções. Primeiro o desembarque se dava no porto de Santos, com a “sua barra profunda, larga e bem abrigada pela ilha fronteira de Santo Amaro”. A vila de Santos tinha o único porto natural da costa centro-sul20. Separando o litoral do planalto havia a Serra do Mar. Sua subida, conhecida como Caminho do Mar, iniciada por Cubatão, onde havia um registro, formava com São Paulo o sistema de cidade conjugada que Caio Prado Jr. identificou ao longo de toda a Serra21. Pode-se dizer que o sistema Santos/ Caminho do Mar/ São Paulo foi o integrador do oeste de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso ao conjunto da Monarquia portuguesa e através do comércio costeiro efetivo com o Rio de Janeiro e complementar com Bahia e Pernambuco. O comércio como re-integrador dos domínios da Monarquia portuguesa A reabilitação da autonomia administrativa da capitania de São Paulo levada à cabo por D. Luis de Sousa Botelho Mourão, o Morgado de Mateus, foi parte de um esforço maior e oficial da Coroa portuguesa em assegurar os domínios do centro-oeste-sul do continente do Brasil, que não se restringiu aos aspectos militarizadores22, mas incluiu também o incentivo ao comércio e à produção. PRADO JÚNIOR, Caio. O fator geográfico na formação e desenvolvimento da cidade de São Paulo. In: Evolução política do Brasil e outros estudos. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 1972, p. 104. 20 PRADO JÚNIOR, Caio. Contribuição para a geografia urbana da cidade de São Paulo. In: Evolução política..., p. 117. 21 PRADO JÚNIOR, Contribuição..., p. 117. 22 Heloisa Liberalli Bellotto enfatiza os aspectos militares. BELLOTTO, Autoridade e conflito... 19 O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COMPLEMENTARES 189 Para a Monarquia portuguesa a segunda metade do século XVIII foi de reintegração de seus domínios na América. Na parte correspondente à capitania de São Paulo, parcela do conjunto territorial do centro-oeste-sul, onde se centralizaram os interesses político-tributários metropolitanos, foi necessária a ação conjunta das autoridades régias e homens de negócio para exteriorizar sua economia. Até então a política da Metrópole fora a de estimular a interiorização dos colonos de São Paulo, pois o projeto político da Monarquia era o de pacificar as partes do interior do Brasil e descobrir metais preciosos. Na segunda metade do XVIII, como parte de suas intenções oficiais de inserção competitiva no comércio europeu, Portugal tornara-se um dos principais re-exportadores de mercadorias européias e asiáticas, especialmente tecidos da Índia. O ajustamento do centro-oeste-sul do território do Brasil a esta nova fase da política metropolitana obrigava reorientar a economia da capitania paulista e incentivar a atividade mercantil em sua costa. É neste contexto que se entende o reposicionamento da vila de Santos, a importância política e econômica que adquiriu, a atenção que passou a receber da política régia, a atração que exerceu sobre os homens de negócios locais e de outras partes do Brasil. Este processo de exteriorização ocorreu deixando um rastro de conflitos com a tradição interiorizadora dos caçadores de metais e com as tendências dominantes, mas não exclusivas, do senado da Câmara de São Paulo, cabeça administrativa da capitania, certamente mais cioso de firmar a autoridade e autonomia recém reconquistada através da manutenção do bom governo da localidade. No fim do governo de D. Luís de Sousa Botelho Mourão, os oficiais da Câmara escreveram uma carta a D. Maria I, sugerindo que houvesse novamente permissão para desentranharem ouro. Viam com muita dificuldade a vida dos moradores que recorriam às mercancias, trazendo bebidas e fazendas com “evidente risco de suas vidas e perda de seus bens principalmente no mar o qual necessariamente se navega” 23. O governador D. Luís e os negociantes, alguns ligados ao senado da Câmara de São Paulo, outros atuantes na vila de Santos coincidiam em seus interesses de estimular o comércio externo da capitania, o que implicava em levar a produção do interior para o litoral, onde arribavam, com frequências distintas, sumacas e bergantins das várias partes da Monarquia portuguesa. O governador queria que este comércio se desse diretamente com o Reino, mas os negociantes, conforme mostrou o tempo, agiam movidos pela lógica do comércio e se concordaram em juntar-se à voz do governador foi porque naquele momento ela era a oportunidade para realizarem seus negócios. 23 Carta dos oficiais da Câmara de São Paulo à rainha [D. Maria I] expondo as dificuldades de comércio de São Paulo com as outras capitanias. AHU - São Paulo, Cx. 7, D. 13, D. 469 no catálogo, 1777. 190 DENISE A. SOARES DE MOURA A exportação dos gêneros coloniais produzidos serra acima, na capitania ou áreas limítrofes à cidade de São Paulo, como a parte sul de Minas Gerais, prejudicava o abastecimento da cidade, situada a meio caminho entre o interior e o litoral e a efetivação dos contratos públicos de venda de gêneros alimentícios, que geravam renda municipal. Conjunturas de maior demanda interna por alimentos podem ter exasperado os conflitos entre a tradição do bom governo das cidades das câmaras e o projeto atlantizador e mercantil da metrópole e dos negociantes de atuação local, pois a câmara manifestou-se indignada em certas ocasiões quanto “a falta de mantimentos que tem experimentado os povos de Pernambuco, Bahia, Angola e Benguela” que ao soar aos ouvidos de vários comerciantes, “entraram a formar negociações destes gêneros”. Com isso, começaram a “atravessar pelos portos da marinha desta capitania toda a farinha, feijão e arroz que lhes foi possível; e não satisfeitos com este monopólio, passaram a mandar várias pessoas disfarçadas para esta cidade e seu termo, onde tem atravessado para cima de 850 porcos e considerável número de alqueires de farinha, e feijão, tudo para transportarem para os diversos portos, que lhes dita a sua ambição”. Os atravessadores que andavam por Nazareth, Atibaya, Jaguary e outras partes eram acusados de atravessarem “todos quantos porcos acharam colhido e toda quanta mandioca acharam em termos de colheita”24. A defesa da câmara de São Paulo ao bom governo da cidade, procurando assegurar a política de abastecimento local, setor que também fortalecia sua autoridade e assegurava a governabilidade pode ter sido um obstáculo para a política régia de exteriorizar a economia da capitania através do comércio de sua produção de gêneros coloniais, mas a exteriorização através da importação de gêneros europeus e asiáticos não enfrentou obstáculos locais e pode ser considerada a área de interesses dos negociantes que atuavam em São Paulo e Santos. O radicamento de interesses dos negociantes paulistas no comércio de importação pode ter deixado o comércio exportador num plano secundário, dificultado ainda pelos interesses da Câmara em garantir o abastecimento local, antes de permitir que os cargueiros de alimentos descessem a serra do mar. A tradição de comércio costeiro da capitania e centralizado pelo porto de Santos pode ter sido reforçada pelos interesses do município de São Paulo em torno da conservação do comércio de abastecimento local. Ao governador e de acordo com o interesse da Coroa coube a tarefa de lutar contra este costume, como fez em 1768, condenando em ofício o costume antigo de correspondência dos negociantes da vila de Santos com o Rio de Janeiro, donde lhes vinha fazendas de Inglaterra, não comprando gêneros da terra para carregá-los para o Reino. Neste ano 4 navios haviam arribado no porto, mas foram carregar na Bahia e no Rio de Janeiro. 24 Atas da Câmara, vol. XIX, 1793, p. 368-372. O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COMPLEMENTARES 191 João Francisco de Oliveira, produtor de açúcar e correspondente de negociantes da praça de Lisboa atuante em Santos ao ser advertido pelo governador, alegou que toda a carga de um navio sob sua responsabilidade estava pronta na Bahia e que ele não tinha ordens do dono para comprar efeitos na capitania “o que sucederia se em Lisboa soubessem que neste porto e capitania há efeitos que se possa carregar (...) e para isto se conseguir era preciso que os lavradores dos efeitos e serradores de madeiras se antecipassem a fabricá-las, te-los promptos para quando chegasse qualquer navio, pois do contrário será preciso estar aqui um navio hum ano de espera de alguma carga, e isto he perdição para os donos” 25. Da Bahia e do Rio de Janeiro vinham fazendas e este deveria ser um negócio promissor para o negociante estabelecido na capitania, pois as embarcações arcavam com os custos de não carregar no porto, mas apenas descarregar. Certamente estes custos eram repassados para os preços, como acontecia com o sal, mais caro em São Paulo do que em qualquer outro ponto da costa. Nesse caso, os negociantes atuantes na vila de Santos, serra acima, em São Paulo e no interior dispunham de recursos monetários suficientes para adquirir as fazendas em valores elevados e as repassava por custo alto e o giro do comércio na região não se restringia a mercadorias, pois o a aquisição de tecidos, por exemplo, era feita apenas em dinheiro. Os poucos dados gerais de entrada e saída de sumacas no porto de Santos de fato comprovam que as entradas eram superiores às saídas. Tendo em vista que o foco deste texto é o do comércio complementar de Santos com as capitanias do norte os dados estão restritos à Bahia e Pernambuco. TABELA 1: NÚMERO DE EMBARCAÇÕES QUE ENTRARAM NO PORTO DE SANTOS PROVENIENTES DE CAPITANIAS DO NORTE ANOS BAHIA PERNAMBUCO 1 808 15 01 1 81 8 11 03 Fonte: Alfândega – almoxarifado, AESP, 1772-1822, Santos, C00227. TABELA 2: NÚMERO DE EMBARCAÇÕES QUE SAÍRAM DO PORTO DE SANTOS COM DESTINO ÀS CAPITANIAS DO NORTE ANOS BAHIA PERNAMBUCO 1 808 02 01 1 81 8 07 05 Fonte: Alfândega – almoxarifado, AESP, 1772-1822, Santos, C00227. 25 Relação das cartas de serviço do governador e capitão general da capitania de São Paulo, Morgado de Mateus. AHU - São Paulo, Cx. 5, D. 24, D. 340 no catálogo, 1768. 192 DENISE A. SOARES DE MOURA Apenas com propósito comparativo, em 1808, 29 embarcações provenientes do Rio de Janeiro entraram no porto de Santos. Estas embarcações eram de natureza variada, conforme demonstram dados de 1818. Incluíam navios, bergantins, sumacas e lanchas. Predominaram as sumacas (31), pequena embarcações de dois mastros, seguidas das lanchas (18), bergantins (7) e navios (1). As entradas no porto de Santos oriundas do Rio de Janeiro tenderam a aumentar, pois nesse ano de 1818 o total de embarcações subiu para 57. A principal praça que mantinha negócios com o porto de Santos, portanto, era o Rio de Janeiro e em termos de circuitos mercantis complementares prevalecia a Bahia, devido a proximidade entre os dois portos, mas deve-se também considerar o papel conjunto destas duas regiões – Bahia e São Paulo - no processo de ocupação das áreas tradicionais da mineração, o que pode ter promovido a formação de uma rede de conhecimentos e contatos entre negociantes atuantes nas duas áreas. Antonio da Silva Prado, negociante de animais e arrematador de contratos públicos, no início do século XIX comprava escravos também na Bahia, em Caetité26. No século XVIII o comércio de tecidos serra acima, em direção ao centro-oeste era conjunto ao comércio de escravos realizado com a Bahia. Francisco Pereira Mendes, natural da região do Minho, como a maioria dos negociantes portugueses estabelecidos no continente do Brasil, morava em São Paulo e tinha negócios em Goiás. Com dinheiro, conforme informaram todas as testemunhas do seu processo de habilitação à Ordem de Cristo, comprava fazendas do Rio Janeiro. Este negócio era firmado na vila de Santos, pois casou-se com uma filha da região. Almocreves conduziam estas fazendas para Goiás, por via terrestre, seguindo o caminho dos Goiases, pelo oeste de Minas Gerais. Em Goiás estas fazendas eram vendidas em loja, “com receita enfardadas e atacadas”. O dinheiro gerado nestas vendas era empregado na aquisição de escravos da Bahia. De fato os registros das balanças de comércio da Bahia com Santos mostram a entrada de cativos, 28 e 100 escravos novos adquiridos, respectivamente em 1814 e 1821. Pernambuco também vendeu escravos para Santos, totalizando 5 em 1816. O recurso monetário era a base desta negociação, ou seja, tratava-se de uma economia monetarizada que contava com um suporte creditício de antigos negociantes estabelecidos neste circuito, pois o início dos empreendimentos de Francisco Pereira Mendes só foi possível graças a um parente já estabelecido em Goiás, que “deu-lhe crédito e abonos para ir ao Rio de Janeiro comprar fazendas e algumas vezes escravos”27. Os dados das duas tabelas acima não permitem falar sobre a evolução dos PETRONE, Maria Teresa. O Barão de Iguape: um empresário da época da independência. São Paulo: Companhia Editora Nacional; Brasília: INL, 1976 (Col. Brasiliana, vol. 361). 27 Francisco Pereira Mendes. ANTT, Hábitos da Ordem de Cristo, Maço 4, D. 7, 1753. 26 O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COMPLEMENTARES 193 negócios no porto, pois envolvem apenas dois anos que representam conjunturas muito específicas, de transferência da corte para o Rio de Janeiro e de conflitos independentistas no norte. Ambos interferiram diretamente nos ritmos da navegação mercantil. Mas esses números possibilitam pensar sobre a existência de relações complementares ligando partes da Monarquia portuguesa e que no interior do território, a partir da vila de Santos, subindo a serra do mar e seguindo na direção centro-oeste havia uma demanda por importação de mercadorias européias e uma capacidade inferior de exportação de mercadorias coloniais. Pesquisas já demonstraram o caráter deficitário da praça de Santos28, característica inclusive das grandes praças, como indica a leitura dos dados das balanças de comércio. No caso de São Paulo, o comércio de animais e o de tecidos de luxo no oeste de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás pode ter monetarizado a economia da capitania a ponto de evitar o estrangulamento de seu principal porto. Embora deficitária, a tendência das exportações em Santos foi de crescimento. Já no final do século XVIII era informado que a praça exportava para “Lisboa e Rio de Janeiro oitenta mil arrobas de açúcar, pouco mais ou menos que se vai em cavalgaduras da vila de Itu e outras de serra acima para esta, aonde se encaixou e como também outros feitos e mantimentos e produções das ditas vilas que nesta se exportam para a Bahia, Rio de Janeiro e Rio Grande e que tudo aqui faz e maior tráfico, como vila, porto de mar mais notável e interessante a esta capitania29. Essa tendência pode ser observada ao longo dos primeiros anos do século XIX no caso do açúcar e de outros gêneros coloniais: ANOS N O DE B ARCOS EXPORTAÇÃO TOTAL EXPORTAÇÃO 1 801 2 21 ;235$1 00 1 9:1 4 1 $200 1 802 2 66:01 5$000 60:01 5$500 1 803 3 7 6:282$64 0 60:1 7 1 $4 00 1 804 4 1 94 :04 1 $1 4 0 1 4 1 :94 4 $4 80 1 805 8 27 3:930$54 0 1 96:254 $200 1 806 7 1 95:4 60$1 4 0 1 03:227 $200 1 807 10 229:020$060 86:7 32$900 DO AÇÚCAR Fonte: Holanda, S. B. op. cit., p. 419. 28 29 MENZ, Centro e periferias..., p. 251-266. Mapa da exportação dos produtos da paróquia da vila de Santos no ano de 1798. Alfândega – almoxarifado, AESP, 1772-1822, Santos, C00227, D. 1-25-2. 194 DENISE A. SOARES DE MOURA TABELA 4: CÁLCULO REALIZADO SOBRE OS DADOS DA TABELA 3 ANOS VALOR TOTAL DAS EXPORTAÇÕES DE OUTROS GÊNEROS 1 801 2:093$900 1 802 5:999$500 1 803 16:111$24 0 1 804 52:096$960 1 805 77:676$34 0 1 806 92:232$94 0 1 807 142:287$160 Da praça de Santos exportava-se couros, café, tabaco e algodão. A diminuição do volume de exportações do açúcar foi relativamente compensada pelo crescimento vertical das exportações de couro e arroz, que passaram respectivamente, entre 1801 e 1807, de 298$400 a 52:389$480 e de 79$500 a 45:618$24030. O mapa de exportação de 1798 oferece um quadro mais amplo, indicando, aguardente, goma, farinha de mandioca, madeira com tabuado, azeite de baleia, peixe seco31. Parte destas mercadorias exportadas eram produzidas na própria vila, pois em 1815 a Câmara informava que os produtos locais eram aguardente, farinha de mandioca, arroz em casca, feijão, milho e café, perfazendo um total de 12:240$000, sendo que a farinha de mandioca englobava os maiores valores, 5:698$80032. Em dados da alfândega de Santos para os anos de 1816 e 1818 nota-se uma maior diversificação das importações da Bahia e Pernambuco em Santos, especialmente com relação a gêneros produzidos em Minas Gerais, como os derivados do porco, queijos, fumo ou tabaco e doces33. Nenhum destes gêneros da indústria mineira aparecem nos mapas de exportação da Bahia e Pernambuco, o que indica que eram estritamente empregados no consumo interno da região. No caso da Bahia, ao cruzar os gêneros importados de Santos entre 1808 e 1809 com os exportados para outras partes da Monarquia percebe-se que arroz, café e tabaco seguiram para Portugal, Ilha da Madeira; tabaco para a Costa da Mina e Goa. Parte destas mercadorias exportadas certamente era HOLANDA, Sérgio Buarque. São Paulo. História Geral da Civilização Brasileira - tomo 2 vol. II. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 420. 31 Mapa comparativo das produções da paróquia da vila de Santos com a especificação do que se consumiu na mesma e dela se exportou no ano de 1798. Alfândega – almoxarifado, AESP, 1772-1822, Santos, C00227, D. 1-25-1. 32 Câmara Municipal, Ofícios, 1721-1822. Santos. AESP COO236, D. 10-7-19 33 PRADO JÚNIOR, Formação..., p. 148, p. 197-198, p. 203. 30 O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COMPLEMENTARES 195 TABELA 5: GÊNEROS EXPORTADOS PARA AS CAPITANIAS DO NORTE ANOS B AHIA PERNAMBUCO MARANHÃO 1 81 6 Tou cin h o, ar r oz, ban h a, feijão, qu eijos de min as , caixetas de mar mel ada, fu mo de s er r a acima Tou cin h o, ban h a, v el as de s ebo, pipas de azeite de peixe, car n e de por co, ar r oz, feijão, far in h a de man dioca, far in h a de tr ig o, qu eijos de min as , caixetas de mar mel ada, fu mo de s er r a acima, taboado, café - 1 81 8 Tou cin h o, ban h a, car n e de por co, fu mo de min as , feijão, far in h a de man dioca, mil h o, qu eijos de min as , caixetas de mar mel ada, azeite de peixe g r os so, cer a da ter r a, v el as de s ebo Açú car , tou cin h o, car n e de por co, ban h a, fu mo de min as , far in h a de man dioca, feijão, ar r oz, caixetas de mar mel ada, mil h o, qu eijos da ter r a, taboado, g amel as Toicin h o, ban h a, car n e de por co, fu mo de min as , ar r oz, feijão, far in h a, qu eijos da ter r a Fonte: Alfândega – almoxarifado, AESP, 1772-1822, Santos, C00227. proveniente de Santos. Pernambuco não teve, entre 1811-1815, qualquer tipo de comércio com a Ásia, ao contrário da Bahia e exportou para o Porto e Lisboa arroz, um dos produtos que também adquiria em Santos. Arroz, tabaco, café, mercadorias que faziam parte do conjunto de exportações de Santos para Bahia e Pernambuco eram resultado de um circuito mercantil controlado por este porto na costa da capitania e que envolvia Ubatuba, Ilhabela, São Sebastião, Iguape, Paranaguá e Santa Catarina. O comércio de Santos com as capitanias do norte foi complementar ao do Rio de Janeiro porque o conjunto das mercadorias importadas era bastante semelhante. Em 1798 foram importados vinhos de Lisboa, azeite, vinagres, panos de lã, baetas, chapéus, fitas, lenços, todos finos e ordinários, meias de seda, chitas finas e ordinárias, sal de contrato, vinho do porto, linhas finas, ordinárias e grossas, panos de linho fino e ordinário, baetas dos países estrangeiros, bertanhas, baetões, durantes finos e ordinários, duquetes castores e ordinários, melanias, retrós do porto, enxadas, pregos, pomadas, louça dos portos do Brasil, pano de algodão, aguardente, feijão, toicinho34. Observando os mapas de importação e exportação das duas principais praças deBahia e Pernambuco, entre os anos 1808-1809 e 1811-1815, nota-se que tecidos de luxo vinham especialmente do Recife. Essa praça não teve 34 Mapa dos preços correntes na paróquia da vila de Santos nos meses do ano de 1798. Alfândega – almoxarifado, AESP, 1772-1822, Santos, C00227, D. 1-25-4. 196 DENISE A. SOARES DE MOURA comércio com a Ásia neste intervalo, o que indica que a mercadorias vinha especialmente da Europa, Portugal e Grã Bretanha, tendo em vista que a liberdade de comércio já estava estabelecida. Da Bahia vinham vários tecidos adquiridos em Goa, mas todos ordinários. Em 1809 a pauta de importações da Bahia em Goa incluía anil, baetas, canela, chá, chalés, chitas, coromandeis, drogas, gangas, gantaz, gengibre, golas, linhas surrates, lenços, maragazes, manodiz, morins, pimentas, prócolos, pimenta, sanas, zuartes35. Entre 1814-1816-1817-1821 Santos importou da Bahia baetas, chalés de seda, sanas, gangas (tecido vulgar), zuarte (tecido de algodão ordinário) e drogas, mercadorias que este porto comprava também na Ásia36. As mercadorias de luxo também eram provenientes de Pernambuco. Tomando apenas o ano de 1816 aparecem na listagem das mercadorias importadas: chapéus finos, vestidos, guarda sol, chalés, meias, tudo em seda. Seguiam ainda gêneros de consumo alimentar europeu, como manteiga, queijos flamengos, bacalhau, vinho, azeite, vinagre. Como produto colonial destacam-se os “cocos de cumer”. Estes “cocos de cumer” eram comercializados na costa sul, especialmente em Santa Catarina. O que leva a crer que os tecidos e vestimentas de luxo adquiridas nos portos das capitanias do norte, complementado o que já vinha do Rio de Janeiro, subia a serra é a constatação, através dos registros de exportação de Santos, que estas mercadorias não eram distribuídas na costa da capitania. Para Iguape, Paranaguá, Rio de São Francisco seguiram apenas panos ou varas de panos de algodão e pacotes de fazenda. As mercadorias européias, asiáticas e escravos da costa da África adquiridos por Santos via capitanias do norte integravam, portanto, o interior da capitania e o oeste de Minas Gerais e Goiás à Monarquia portuguesa. Os portos menores da costa eram agregados ao conjunto da Monarquia portuguesa como fornecedores de mercadorias coloniais, seguidos via Santos para as principais praças atlânticas e para Goa. O comércio complementar aperfeiçoava o comércio colonial, possibilitando o acesso às mercadorias européias, viabilizando sua redistribuição em partes isoladas e distantes da costa, ampliando a margem de circulação das mercadorias coloniais e assegurando a organicidade da Monarquia portuguesa. Mapa da importação que fez Portugal e navios estrangeiros, África, Ásia e Portos do Brasil sobre a Bahia em todo o ano de 1808. 36 Mapa da Importação e Exportação do Porto de Santos nos anos de 1814, 1816, 1817, 1821. 35 197 A OFICINA DOS RITOS: ARTÍFICES NO ARSENAL DE GUERRA DE PERNAMBUCO Acácio José Lopes Catarino1 s compromissos dos agentes da Coroa nos domínios colonizados têm, por muito tempo, sido descritos nos termos de suas relações junto a grupos bem situados nas redes políticas e econômicas do Império. A outros sujeitos sociais caberiam, no mais das vezes, disposições reativas e pontuais, em especial de caráter repressivo. As investigações vêm crescentemente considerando estes poderes para bem além da imagem usual de entidades distantes, irresolutas e paquidérmicas. Entretanto, sem recair numa visão dicotômica2, é necessário problematizar a presença dos delegados da Coroa nos diversos âmbitos espaciais e institucionais nas quais se insere. A partir de uma série documental sobre o Arsenal de Guerra de Pernambuco (referenciado até os anos 1820 como o Trem de Artilharia), pretende-se aqui abrir uma pequena janela sobre como impactos fundamentais nas condições de trabalho de muitos homens livres, como os artífices, não teriam se efetivado sem o concurso dos órgãos da Coroa. O período que decorre das reformas empreendidas por Lisboa desde o Marquês de Pombal representa, para a vila do Recife e seus habitantes, o momento em que novos atores adquirem visibilidade nos registros das autoridades, seja originadas pelos delegados da Corte ou pelos representantes dos poderes locais. No caso dos primeiros, percebe-se o estabelecimento de canais diretos com a população livre urbana de modos muito diversos, que vão desde sua participação nas obras públicas até o apoio direto a associações caracteristicamente pertencentes a estes moradores, como a Irmandade de São José do Ribamar dos Quatro Sagrados Ofícios3. Nesse sentido, as necessidades de abastecimento dos corpos militares de primeira linha ou de milícias vão gerar um circuito de produção e consumo que se inicialmente limitou-se à compra de gêneros e artefatos para os quartéis Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Professor Adjunto do Departamento de História e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. Pesquisador do Grupo de Pesquisas Estado e Sociedade no Nordeste Colonial (NDIHR-UFPB/ Diretório CNPq). 2 Como exemplar entre muitas obras neste sentido, ver: MELLO E SOUZA, L. O sol e a sombra. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 3 Para maiores aprofundamentos, ver o primeiro capítulo de: CATARINO, Acácio José Lopes. A interface regional: militares e redes institucionais na construção do Brasil (1780-1830). Tese de Doutorado (História Econômica). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas; Universidade de São Paulo. São Paulo, 2002. 1 198 ACÁCIO JOSÉ LOPES CATARINO e vilas, iriam progressivamente incluir a contratação de artífices e mesmo sua conscrição. Uma relação nova e problemática institui-se então para estes soldados-especialistas, até então forjados pelos padrões da economia moral4 em suas oficinas, e que os coloca sob uma hierarquia que é não só burocratizada como também militarizada, com suas lógicas próprias. Este jogo iria se desdobrar para além da esfera dos mestres e oficiais, chegando ao estabelecimento de oficinas de aprendizes, assim afetando profundamente a reprodução de toda esta camada A atribuição de sua (possível) decadência pela concorrência das mercadorias européias após a abertura dos portos (a partir de 1808-10) tem que ser assim relativizada pela intervenção destes aparatos militares. Nos limites deste trabalho, será privilegiada a experimentação de moldes burocráticos adequados ao gerenciamento de grupos de trabalhadores nas oficinas do Arsenal de Pernambuco a partir de 1811, quando se inicia a série documental, ao final do Primeiro Reinado, após o qual se assiste a profundas revisões no papel dos militares na construção do Estado. Entretanto, para que não sejam entendidas como uma série de ações localizadas é importante retomar brevemente como os formuladores das políticas de modernização absolutista5 na cultura política luso-brasileira pretendiam refazer este setor. Com relação aos artífices, já há algum tempo estavam sob pressão da própria Corte. Marcelo Caetano demonstrou como desde 1761 decretos régios proporcionaram à Junta de Comércio assumir uma jurisdição paracorporativa, deslocando a anterior autonomia da Casa dos Vinte e Quatro e da Câmara6. D. José I pôs-se à frente das reformas dos regimentos dos mesteres de Lisboa a partir de 1771, cujas consequências seriam o aperto sobre os jornais pagos e a uniformização dos padrões produtivos. Estas intervenções caminham a par de um renovado interesse pelas manufaturas, a princípio associadas ao fornecimento da Casa do Rei e dos regimentos do exército (como os lanifícios da Covilhã, Fundão e Porto Alegre). Há movimentos entretanto num sentido mais articulado ao Império, como a obrigatoriedade de todos os teares de seda de Lisboa e seu termo a integrarem uma única corporação, o que possibilitava à Real Fábrica de Sedas do Rato concentrar a limitada e dispersa produção doméstica e das oficinas de modo a estabelecer um fluxo regular, adequado à exploração pelas companhias de comércio dos monopolizados mercados coloniais. Não demorou muito para que este circuito fosse considerado por um contemporâneo de D. Maria I “o No sentido indicado Por E. Thompson: “O meu objeto de análise era (...) a cultura política, as expectativas, as tradições e até as superstições dos trabalhadores (...); e as relações – às vezes negociações – entre a multidão e seus governantes (...)”. THOMPSON, E. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 204. 5 Nos termos do segundo capítulo, “La modernidad absolutista” de F. Guerra. GUERRA, F. Modernidad e independencias: ensayos sobre las Revoluciones Hispánicas. 2. ed. Ciudad del México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 55 e ss. 6 CAETANO, M. A Antiga Organização dos Mesteres da Cidade de Lisboa. In: LANGHANS, F. As corporações dos ofícios mecânicos. Lisboa: Imprensa Nacional, 1943, p. IX-LXXV. 4 A OFICINA DOS RITOS 199 esteio do império”. No entanto, o alvará de 5 de janeiro de 1785, que proibia manufaturas de linho, lã, seda e algodão nos domínios da América, reconhece que “a verdadeira e sólida riqueza [consiste] nos frutos e produções da terra, os quais somente se conseguem por meio de colonos e cultivadores e não de artistas e fabricantes”7. Mas seria enganoso deixar-se levar apenas pela sua implícita valoração fisiocrática, ou assumir que com a política de contenção do contrabando fossem os únicos móveis a respaldar os interesses em torno desta questão. O lugar reservado às atividades dos artífices em textos econômicos de um doutrinador paradigmático pode exemplificar outras razões por onde se buscava encaminhar este setor na virada do século XVIII para o XIX8. Tomando como ponto de partida e de chegada de sua reflexão a articulação equilibrada entre as diferentes partes do Império, Azeredo Coutinho admite sua necessidade para a autonomia do Reino frente a outras monarquias da Europa, mas adverte para os cuidados na implementação dos estabelecimentos. A todo custo deveria ser evitado o excessivo afluxo de riquezas neste setor para não desequilibrar aos demais nem encarecer em demasia a mãode-obra. O fabrico de artigos de luxo exigiria artífices qualificados, aliás mais comuns nas potências concorrentes e, portanto, não deveriam ser consentidos. Mas o mais interessante é a relação que tece entre razão de Estado e os homens livres que andavam à margem dos benefícios do progresso material do Império. Os estabelecimentos a serem fundados deviam simultaneamente promover a fixação dos pobres e ocupá-los nos serviços vitais à República, ou seja, na produção de vestuário e armas para o exército, velas e cordas para a marinha, além do couro e do papel. Deste modo, os arsenais de guerra (e de marinha) tinham uma função implícita de integrar os desocupados ao impedi-los de servir a si próprios, guiando-os em direção aos interesses maiores da nação. Na capitania de Pernambuco, este papel pode ser creditado primordialmente à Inspetoria do Trem Militar. Como o Trem encontrou a sua forçada clientela e como pode adaptá-la aos seus propósitos? Para isto é importante avaliar as dimensões externas e internas que conformaram a oficina urbana. Em primeiro lugar, o serviço de Sua Majestade requeria não apenas homens livres mas também sua fixação, sua constância, sua regularidade. Estas premissas estavam ausentes das experiências cotidianas dos artífices coloniais e, por conseguinte, sua integração trazia a necessidade de modificar, pelo menos em parte, a postura de incorporação eventual em favor de outros modos de controle, mais sofisticados que os usuais e mais adequados ao manejo de homens e coisas nas atividades artesanais. NOVAIS, F. A proibição das manufaturas no Brasil e a política econômica portuguesa no fim do século XVIII. Revista de História, São Paulo, n. 67, p. 165. 8 COUTINHO, J. de A. Ensaio sobre o comércio de Portugal e suas colônias. In: HOLANDA, S. B. de (org.). Obras econômicas de Azeredo Coutinho (1794-1808). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966, p. 55-172. 7 200 ACÁCIO JOSÉ LOPES CATARINO Seria necessário, desse modo, inserir uma cunha regeneradora nos hábitos destas camadas. Não havendo possibilidade de maiores reformulações tecnológicas ou de importação maciça de mão-de-obra qual poderia ser a saída? A resposta poderia estar na subversão da hierarquia tradicional da oficina pela sua subordinação ao controle militar direto. O que representava subverter esta hierarquia? Já não se tratava apenas de encaminhar novas ordens e diretivas gerais e esperar vê-las atendidas; significava, de um só golpe, penetrar na normatividade consuetudinária da oficina para enfraquecê-la em seu interior e reconstruí-la num outro campo do jogo de representações simbólicas do trabalho. A burocracia busca então ser o elemento coesionador ao romper com alguns dos pontos-chave destas relações tradicionais, pois ao submetê-la a uma ambiência institucionalizada emprestou-lhe um caráter como que obrigatório, dotado de uma lógica fixa, ao contrário do personalismo e da aleatoriedade que regiam a oficina na cidade colonial. De qualquer modo, é possível começar a caracterizar quais são as balizas desta mudança de perspectivas ao rever o comportamento dos personagens inseridos na oficina tradicional. Uma gravura de Debret sintetiza um dia na oficina de um sapateiro. Embora as prateleiras envidraçadas e os calçados de seda colorida demonstrem uma boa situação do mestre, também o mostra trabalhando cercado por seus escravos, desvelando uma ambiência comum a outros artífices. A punição como parte do rito cotidiano é assinalada pelo texto explicativo que acompanha a gravura, como um castigo recebido “de Fig. 1 – Jean-Baptiste Debret, A Loja do Sapateiro. Gravura publicada no Voyage Pittoresque et Historique au Brésil. A OFICINA DOS RITOS 201 acordo com a falta” – para aquele que a aplica e inclusive para quem a sofre9. Esta cena, que é registrada com certa ansiedade por outro dos escravos presentes, é observada por sua mulher através da porta que comunica a oficina aos aposentos domésticos. Esta aparente intimidade é ainda mais ressaltada por estar amamentando uma criança. Ao mesmo tempo, o interior da of icina não parece estar vedado à entrada livre de fregueses ou companheiros dos sapateiros A partir da identificação da oficina como ponto de interseção do espaço doméstico com a rua, o artesão reagia costumeiramente aos diversos estímulos destes ambientes de forma mais ou menos livre, retardando ou acelerando encomendas segundo sua conveniência, num procedimento que possivelmente causava estranheza a estrangeiros, oriundos de sociedades aonde a ética do trabalho abstrato já se vulgarizara em amplos setores. Neste enquadramento oficinal também a compulsão tinha seu lugar – como foi dito, um dos trabalhadores é punido de forma dolorosa –, mas esta hierarquização centrada na figura do mestre era contrabalançada pelo fato de que a tradição limitava seu alcance ao inscrever num mesmo horizonte cultural os integrantes da oficina. Num quadro de escassa mobilidade social e cultural-valorativa, isto acabava por gerar um encadeamento de atitudes e expectativas circulares quanto à sua inserção no local de trabalho e na vida social – neste período fortemente imbricados –, que se por um lado estabilizaram a rotina das oficinas, por outro lado as tornaram pouco adaptáveis às novas necessidades do século XIX, que no Brasil também foi um período de mutações generalizadas. O Trem impacta-se à esta iniciação pela sabedoria “comum”, tradicional. Ao controle pessoal, opõe a ordenação institucional e impessoal; ao saber implícito no fazer, explicita um discurso racionalizante e transcendental, que apela ao serviço da Pátria e do imperador. Um mantém-se pela reiteração dos atos cotidianos, outro procura reproduzir-se pelo efeito teatral ou coercivo, adaptável segundo as exigências das diferentes conjunturas. A superposição do militarismo ajudou a este tráfego: vincula-se melhor o trabalhador à defesa da nação, à manutenção da soberania. Na fala dos inspetores foi muito forte a perspectiva ordenadora universalizante: No Trem, “como Casa Real”, trabalha-se “por conta da Nação” porquanto “é a primeira obrigação do vassalo habilitar-se no exercício das armas para defender o seu soberano e sua Pátria”. Não por acaso os inspetores estavam no epicentro do poder militar da capitania, assinando seus documentos a partir do “Quartel de Pernambuco” 10. O Trem, portanto, foi um dos efetivadores desta passagem vital – necessária DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. 2 vol. São Paulo: Martins; Edusp, 1972, p. 251. 10 Respectivamente, Arsenal de Guerra (AG). AG-1, 5.6.1818, f. 242; AG-1, 29.9.1823, f. 150; AG-1, 11.3.1819, f. 277. 9 ACÁCIO JOSÉ LOPES CATARINO 202 mas não suficiente para instalar mecanismos de controle especificamente capitalistas – da inversão da equação: TRABALHO = ESPAÇO DA RUA + ESPAÇO DOMÉSTICO para a relação: TRABALHO = CONTROLE INSTITUCIONAL X NÃO-TRABALHO = CASA/RUA. Se a primeira equação tendia a equilibrar os laços que unem os estímulos da rua às exigências da casa, a segunda operou uma ruptura ao instituir uma polarização completa entre estes espaços, absolutizando a prioridade do tempo de trabalho sobre as demais atividades do artífice. Estes instrumentos de controle do trabalhador generalizaram-se a tal ponto que por vezes se torna difícil percebê-los como fatos históricos, isto é, construídos; mas para os que sofreram esta implementação, devem ter adquirido uma dimensão bem mais chocante do que poderia parecer atualmente. Como alguém já disse, os homens do século XIX não sabiam que atitude tomar frente ao trabalho; já no século XX não se sabe o que fazer fora do trabalho. Estas modificações podem ser inicialmente diferenciadas segundo suas consequências diretas ou indiretas sobre o processo de produção. As instalações do Trem dispunham-se de modo trinário, com oficinas, quartel dos educandos e armazéns. Isto dará origem a um dos maiores problemas enfrentados pelos inspetores: a dispersão por vários pontos da cidade da estrutura física do Trem. As oficinas ocupavam parte do antigo Colégio dos jesuítas (também utilizado como Palácio de despachos dos governadores desde o final do século XVIII), defronte ao cais que passou a ser chamado “do arsenal”, facilitando o recebimento de materiais de grande porte ou número por via marítimo-fluvial. O parque do Trem estava situado em uma casa no extremo norte do bairro de Santo Antônio, junto ao Palácio Velho; armazenando madeirame, reparos e carros de artilharia de posição e de campanha11. A ele estava anexo o Laboratório pirotécnico, que devido ao manejo de materiais explosivos não podia situar-se dentro do arruado12. Já o quartel dos educandos ficou próximo ao Trem, permitindo que circulassem por duas vezes a cada expediente entre as oficinas e o quartel para as refeições, aulas e dormida13. Esta configuração tornou quase impossível o acompanhamento imediato dos serviços e deixou certamente aberturas para o enraizamento de atitudes independentes nas oficinas. No mínimo trouxe dificuldades para uma coordenação ampliada das oficinas, condição básica para sua transformação Respectivamente, AG-1, 2.11.1818, f. 253 e 8.2.1819, f. 265. Apesar de que por vantagens na vigilância o inspetor procurou trazê-lo para o Convento do Carmo. AG-1, 23.2.1818, f. 240. 13 AG-2, 10.2.1824, f. 175 e 175 v. 11 12 A OFICINA DOS RITOS 203 em manufatura orgânica. Não é de admirar que o inspetor Amaro de Moura tenha proposto em 1828 o desligamento do parque (que deveria voltar ao controle do regimento de artilharia) e dos educandos, que poderiam ficar adscritos ao Liceu provincial14. Já o inspetor Michiles considerava que o problema principal do Trem não estava tanto no sistema de administração e nem mesmo na prejudicial forma de compras pela Fazenda Real, mas na falta de controle da entrada e saída dos trabalhadores; por algum tempo sua preocupação girou em torno da construção de um novo edifício, cujo plano deveria ordenar os fluxos segundo as necessidades do trabalho contínuo nas oficinas, evitando deste modo a intromissão de particulares, as ausências dos artífices e o sumiço dos produtos: sem isso, “as faltas continuam e só se podem conhecer segurando o contorno do Trem e fechando algumas oficinas”15. Parecia que ao tentar estabelecer registros contábeis e dispor as instalações físicas de modo a disciplinar o artífice, a nova ordem precisava ao mesmo tempo murar-se para resguardar-se de um ambiente hostil. A segregação se exprimiu através de diversos modos de controle destes intercâmbios. Em uma relação enviada ao presidente da província caracteristicamente dividiram-se os empregados do setor de apoio burocrático entre os que cuidavam da guarda (dos objetos), da vigilância (dos trabalhadores) e da escrituração 16. O controle diário de presença era realizado pelo fiel do almoxarife, mas a barreira que gerou mais tensões no dia-a-dia foi a efetivada pelo porteiro, encarregado não só da abertura do expediente como da inspeção no encerramento, acompanhado do oficial ajudante-de-ordens do inspetor, o que resultou em diversas prisões e rixas17. As licenças também permitiram regular as saídas mais prolongadas, intermediadas pela autoridade dos médicos do Hospital Militar ou abonadas pelo inspetor àqueles mais disciplinados, constituindo-se em mais um espaço de negociação entre as partes18. A melhor expressão pictórica desta mudança é o mapa de presença: dividido uniformemente, sequenciado de oficina em oficina pela escala hierárquica, não apresenta nomes e sim uma contabilidade que diz respeito ao tamanho do plantel empregado e às somas despendidas em pessoal e material. Esta contabilidade (que tinha sua origem também nas demandas dos demais órgãos públicos, claro) exigia e justificava a presença de uma burocracia anexa, guardiã das regulamentações e canal privilegiado das relações do Trem com o mundo exterior, do qual tentará filtrar apenas aqueles estímulos condizentes com os fins ideais da instituição. Muitas vezes os AG-2, 17.6.1828, f. 37. Deve ser lembrado que não só as armas dos milicianos foram controladas pelos inspetores, como também a ferraria da intendência. 15 AG-1, 19.11.1818, f. 255; AG-1, 2.11.1818, f. 252 v e AG-1, 28.11.1818, f. 256 v. 16 AG-1.21.10.1825, f. 113. 17 AG-1, 1.10.1821, f. 219; AG-1,14.10.1825, f. 98; AG-2, 9.9.1831, f. 163. 18 AG-1, 18.6.1824, f. 188; AG-1, 24.4.1823, f. 128; AG-1, 28.7.1820, f. 311. 14 204 ACÁCIO JOSÉ LOPES CATARINO inspetores não aceitaram ordens “bocais”, como diziam, insistindo na transmissão escrita dos requerimentos. Estas regulamentações acabam por imprimir um sentido diverso do cotidiano das oficinas, manifestado pela precoce autoconsciência destes empregados. Contrariamente ao que ocorria na área empenhada na produção, onde prevalece a improvisação (que às vezes é uma virtude no artífice), estes funcionários estavam em boa posição para barganhar vantagens. Conhecedores dos códigos do aparelho do Estado e munidos de informação a que somente eles poderiam ter acesso (como por exemplo os salários na intendência e no Erário), demonstram a tendência de homogeneização do incipiente organismo público entre os serviços-meio, introduzindo por vias transversas no Trem princípios mais sofisticados e abstratos de avaliação e valorização da força de trabalho. Embora procurando inserir suas atividades “no meio deste comum Laboratório” para melhor justificarem suas necessidades, sua especificidade como articuladores bem pode ser aquilatada pelas consequências da fuga e prisão do fiel do almoxarife durante o cerco da Junta de Goiana: fome entre os setenta e três educandos, atraso nos jornais dos artífices, descontrole dos registros de presença e perda durante semanas dos contatos com a Fazenda Real19. Através desta burocracia, portanto, se produziam novos modos de referenciação do trabalho, que repercutiram do um modo ou de outro no interior das oficinas. Procurou-se estabilizar uma mecânica disciplinar através da regulamentação das funções, de modo a uniformizar os castigos segundo a hierarquia; se, como diz Mello e Souza, a pena e o castigo são o próprio meio de conversão do desclassificado em homem livre útil, os inspetores do Trem procuraram ultrapassar a simples resolução deste ônus, tanto ao considerar que a eficácia dependia de contrapartidas – “o Estado ganha em lhes pagar bem e castigá-los melhor” – como ao buscar a reprodução em novos termos dos trabalhadores ao constituírem uma oficina de educandos20. Estes inspetores, inclusive, aliavam à sua autoridade o conhecimento do especialista na artilharia e engenharia – alguns deles chegaram a publicar escritos em Portugal e no Brasil. Na Europa, foi através de construtores – como Brunelleschi – e principalmente através dos militares – como Vauban, fundador da engenharia militar, a “matriz das engenharias” – que a racionalidade realista e funcional abriu brechas iniciais no domínio dos ofícios pelas corporações artesanais; “o soldado da engenharia é o soldado coletivo, programado”, que fornecia modelo para a organização manufatureira do trabalho21. A lógica do soldado casa-se até certo ponto com a do artífice: foram dos AG-1, 10, 16, 21 e 28.2.1821, f. 207 a 210 v; AG-1, 1 e 16.10.1821, f. 219 e 221. AG-1, 28.11.1818, f. 256; AG-1, 28.2.1821, f. 208 v. MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do ouro. Rio de Janeiro: Graal, 1982, p. 74. 21 GAMA, R. Engenho e tecnologia. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 243. 19 20 A OFICINA DOS RITOS 205 primeiros a viverem de soldo na cidade colonial, bem como sua gradação corporativa possuía elementos comuns – seus graduados se identificavam como “mestres” e “oficiais”. Mas não há dúvidas que as sobreposições hierárquicas ocorridas no Trem indicavam a predominância dos componentes militarizantes: “O Trem é um estabelecimento militar, o inspetor dele um oficial militar e sobre um e outro (exceto o caso da compatibilidade) só Vossa Excelência governa” 22. Os artífices nele “assentam praça”, as oficinas são supervisionadas por militares de alta patente e ponto capital para o provimento do mestre era sua subordinação – a existência de oficinas sem mestres pode também deverse a essas exigências. Entretanto, os limites técnicos deste controle não apenas faziam com que a coerção direta fosse utilizada alternadamente a outros meios, como se expressavam inclusive pela manutenção das anteriores subdivisões dos ofícios, posto que favoreciam a vigilância mais estrita dos mestres e diminuía os meios humanos e materiais postos a sua disposição, como o mostra a punição do mestre da ferraria – que havia destratado o coronel de artilharia encarregado das oficinas de fundidores e funileiros: Remeti-o outra vez para a cadeia e rogo a / V. Excelência que no caso em que ele insista / em não vir ao Trem, o mande carregar de ferros / e que se disser que está doente o faça curar / preso no Hospital Real Militar à sua custa. Este / homem tem a seu cargo e responsabilidade muito / ferro, aço, limas e ferramentas, e mostrando-se / ressentido por haver sido preso pelo Major Michiles / ou não querendo trabalhar no Trem por / assistir o Capitão Miranda torna-se uma cabeça de / motins. 23 Como se pode depreender, todas aquelas modificações introduzidas pela burocratização do trabalho na oficina foram na prática vivenciadas como uma desqualificação no estatuto destes trabalhadores, seja através das penalidades ou pela assimilação ao trabalho compulsório, seja pelo rompimento dos laços corporativos ou pela perda de sua relação direta com o mercado. De qualquer modo, seria a Coroa que por meio de suas vertentes militares tentou recriar a figura do artífice na urbe, concretizada através da sua instrumentalização pelos arsenais régios, seguindo os objetivos da proposta coutiniana de manufatura. 22 23 AG-1, 29.4.1819, f. 295 v. AG-1, 4.3.1819, f. 273 v. 206 Os textos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores. As opiniões neles emitidas não exprimem, necessariamente, o ponto de vista dos organizadores deste livro, da Editora Universitária ou da Universidade Federal da Paraíba. Este livro foi impresso nas oficinas gráficas da Editora Universitária, em papel Pólen 80g/m2 (miolo) e papel Supremo 240g/m2 (capa), com tiragem de 500 exemplares, em dezembro de 2009. Sua editoração utilizou os softwares Adobe PageMaker e CorelDRAW! O corpo do texto foi composto com a fonte Candara. As capitulares foram retiradas do livro Les singvlarites de la France Antartiqve, avtrement nommée Ameriqve: & de plvsievrs Terres et Isles decouuerts de nostre Temps, do Fr. André Theuet, publicado em Paris no ano de 1557 pelos herdeiros de Maurice de la Porte, com privilégio real (exemplar da Biblioteca do Congresso dos EUA, disponível no portal web Google Books).