ANAIS DO II ENCONTRO CINEMAGEM:
CINEMA, VÍDEO, BRASIL
ORGANIZAÇÃO
EDUARDO TULIO BAGGIO
ROSANE KAMINSKI
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PARANÁ – UNESPAR
Reitora
Salete Machado Sirino
Pró-Reitora de Extensão e Cultura
Rosimeiri Darc Cardoso
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação
Carlos Alexandre Molena Fernandes
Diretora de Cultura
Marcia Cristiane Dall'Oglio de Moraes
Diretor de Extensão
Sérgio Carrazedo Dantas
Diretora do Campus de Curitiba II – Faculdade de Artes do Paraná
Noemi Nascimento Ansay
Diretora do Centro de Artes
Rosemeri Rocha
Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Cinema e Artes do Vídeo
Beatriz Avila Vasconcelos
Informações catalográficas
II Encontro Cinemagem: Cinema, Vídeo, Brasil / Organizado por Eduardo Tulio Baggio e
Rosane Kaminski. (Unespar: Curitiba, PR).
Anais do II Encontro Cinemagem: Cinema, Vídeo, Brasil. Curitiba, Unespar, 2022.
360 p.
Vários autores
Inclui referências
II Encontro Cinemagem: Cinema, Vídeo, Brasil
Unespar – Campus de Curitiba II/FAP – Sede do Boqueirão
Curitiba, 21 a 23 de junho de 2022
Coordenação
Eduardo Tulio Baggio (Unespar)
Rosane Kaminski (Unespar/UFPR)
Comissão organizadora
Eduardo Tulio Baggio (Unespar)
Rosane Kaminski (Unespar/UFPR)
Grupo de Pesquisa Cinecriare (Unespar/CNPq)
Grupo de Pesquisa Eikos (Unespar/CNPq)
Grupo de Pesquisa GPACS (Unespar/CNPq)
Grupo de Pesquisa Navis (Unespar/CNPq)
Equipe técnica
Bruno Ribeiro (discente Unespar)
Lidia Gloria (discente Unespar)
Rafael Alessandro Viana (discente Unespar)
Equipe de monitores
Amanda Larissa Saldanha (discente UFPR)
Amanda Neves (discente UFPR)
Ana Carolina Moraes (discente UFPR)
Baruch Blumberg (discente Unespar)
Bruno Ribeiro (discente Unespar)
Cameni Silveira (discente Unespar)
Claudia Gonçalves de Brito (discente UFPR)
Francisco Silveira (discente Unespar)
Gabriel Borges (discente Unespar)
Iriene Borges (discente Unespar)
Lidia Glória (discente Unespar)
Maria Giovana Boregio (discente UFPR)
Mariana Pusch (discente UFPR)
Mia Marzy (Camila Faustino) (discente Unespar)
Noah Mancini (discente Unespar)
Rafael Alessandro Viana (discente Unespar)
Teodoro Andrade (discente Unespar)
Comissão científica
Alexandre Busko Valim (UFSC)
Ana Flávia Lesnovski (Unespar)
Andréa C. Scansani (UFSC)
Andréa França (PUC-RJ)
Artur Freitas (Unespar)
Beatriz Vasconcelos (Unespar)
Bruno Leites (UFRGS)
Carolina Amaral de Aguiar (UEL)
Claudia Priori (Unespar)
Cristiane Wosniak (Unespar / UFPR)
Débora Opolski (UFPR / Unespar)
Eduardo Morettin (ECA-USP)
Eduardo Tulio Baggio (Unespar)
Fábio Augusto Steyer (UEPG)
Fábio Poletto (Unespar)
Fábio Uchôa (UAM)
Fernando Seliprandy (Unicamp)
Hadija Chalupe da Silva (ESPM/UFF)
Ignacio Del Valle Dávila (Unila)
Jamer Guterres de Mello (PPGCOM-UAM)
Juslaine de Fátima Abreu Nogueira (Unespar)
Lúcia Monteiro (UFF)
Luis Carlos Sereza (pesquisador do NAVIS)
Marcelo Carvalho (PPGCOM/UTP)
Margarida Maria Adamatti (PPGIS-UFSCar)
Maria Cristina Mendes (Unespar / UEPG)
Mariana Villaça (Unifesp)
Mauro Baptista Vedia (Unespar)
Nelson Silva Junior (UEPG)
Patricia de Oliveira Iuva (UFSC)
Paulo Roberto Ferreira de Camargo (PUCPR)
Pedro Faissol (Unespar)
Pedro Plaza Pinto (UFPR / Unespar)
Rafael Tassi Teixeira (Unespar)
Regiane Ribeiro (UFPR)
Rosane Kaminski (UFPR / Unespar)
Rubens Machado Jr. (CTR/ECA-USP)
Sandra Fischer (UTP / Unespar)
Sávio Luis Stoco (UFPA/FAV/PPGArtes)
Solange Stecz (Unespar)
Thalita Cruz Bastos (Unisuam)
Valquíria Michela John (UFPR)
Editoração e diagramação dos Anais
Arthur Aroha e Ana Luisa Kaminski
Apoio
Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Estado do
Paraná
Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da UNESPAR
Evento realizado com recursos da Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento
Científico e Tecnológico do Estado do Paraná / Chamada Pública 11/2019 – Programa
de Apoio Institucional para Realização de Eventos – Edital 006/2022 – PROEC/Unespar.
SUMÁRIO
A EQUIDADE DE GÊNERO NA PRODUÇÃO AUDIOVISUAL PARANAENSE
(CUNICO, Karla Adriana Nascimento) ................................................................................................... 7
A METAFICÇÃO NO FILME PERFUME DE GARDÊNIA (1992)
(MANCINI, Noah)................................................................................................................................. 19
ANIMAÇÃO “NO-FI” BRASILEIRA: CINEMA DE CONTRAÇÃO E INVENÇÃO
(FAUSTINI DOS SANTOS, Rodrigo) ....................................................................................................... 30
AUTORIA E O CINEMA DE MULHERES
(COSTA, Ana Pellegrini) ....................................................................................................................... 42
BEBENDO DE OSWALD: NOSFERATO NO BRASIL (1971) E O VAMPIRO DA
CINEMATECA (1977) MOSTRAM OS DENTES AOS COLONIZADORES
(MOREIRA, Samir Gid Rolim de Moura) .............................................................................................. 56
BREVE ESTUDO DA TRANSCRIAÇÃO DA DANÇA PARA VIDEODANÇA A PARTIR DO
PROCESSO CRIATIVO DE “PROJETO VIOLÊNCIA”
(DURÃES, Daniele Sena) ...................................................................................................................... 69
CINE-DELEUZE: INTRODUÇÃO A UM CINEMA NÃO-FASCISTA
(NUNES, Alvaro Luiz) ........................................................................................................................... 82
CINEMA CONTEMPORÂNEO DE ALAGOAS E AS TRANSFORMAÇÕES URBANAS DA
REGIÃO ESTUARINA DE MACEIÓ
(MONTEIRO VIRGINIO, Roseane) ........................................................................................................ 95
CINEMA E TELEVISÃO: IMAGENS MIDIÁTICAS E REPRESENTAÇÃO DO REAL. A
VIDA DEPOIS DO TOMBO: DOCUMENTÁRIO OU STORYTELLING?
(PIRES, Aline; ANDACHT, Fernando) ................................................................................................. 106
O CONCEITO DE CINEMA VERTICAL DE MAYA DEREN ATRAVESSADO EM
SEU FILME MESHES OF THE AFTERNOON (1943)
(FERRO, Fernanda Ianoski) ................................................................................................................ 115
CÓPIA FULEIRA: O PROCESSO CRIATIVO COM O USO DE REFERÊNCIAS
AUDIOVISUAIS NA DECUPAGEM DE PLANOS DO FILME DUBLÊ DE NAMORADO
(PEREIRA, Christopher Faust) ............................................................................................................ 126
DEIXA-ME SER EU: A AUTORREPRESENTAÇÃO E A INTERPELAÇÃO EM FORMA
DE DOCUMENTÁRIO
(PEREIRA, Ana Catarina; SOARES, Ana Isabel; CUCINOTTA, Caterina) .............................................. 142
DIÁLOGOS ENTRE HISTÓRIA, CINEMA E FICÇÃO: A REPRESENTAÇÃO DOS
DILEMAS SOCIAIS EM O GRANDE MOMENTO (ROBERTO SANTOS, 1958)
(FRANQUETO, Vinícius José) ............................................................................................................. 152
DOCUMENTÁRIO NOTTURNO: UM OLHAR PARA O TERRITÓRIO QUE HABITA
(TROMBINE, Julia) ............................................................................................................................. 167
“E EVA ERA PECADORA”: PERCEPÇÕES DO IMAGINÁRIO DA DÉCADA DE
1970 NO FILME CARRIE, A ESTRANHA (EUA-1976)
(SILVEIRA, Francisco) ......................................................................................................................... 181
E SÃO APENAS IMAGENS: O EXPERIMENTAL EM “MEMÓRIAS DE UM
ESTRANGULADOR DE LOIRAS”
(FRANCO, Frederico) ......................................................................................................................... 195
ESTUDOS ATUACIONAIS
(FERREIRA, Ricardo Di Carlo) ............................................................................................................. 210
GRAVAR, SER GRAVADO – PROCESSOS DE CRIAÇÃO E O GESTO DE APONTAR
A CÂMERA PARA MIM E PARA OS MEUS
(FERREIRA PREVITALI, Wagner; FACHEL DE MEDEIROS, Rosângela) ................................................ 224
INTERAÇÕES AUDIOVISUAIS COM A CENA REMOTA NO CONTEXTO
PANDÊMICO: EXPERIÊNCIAS E REFLEXÕES
(BARONE, Luciana) ............................................................................................................................ 237
O FASCÍNIO DAS MINÚCIAS E AS MIGALHAS DE VIDA: NOTAS SOBRE A
FORMAÇÃO DO ESTILO CINEMATOGRÁFICO DE DAVID NEVES
(PHILIPPINI Ferreira Borges da Silva, Gabriel) ................................................................................... 249
O PIONEIRISMO DE ROSÂNGELA MALDONADO: UMA ANÁLISE DE “A
MULHER QUE PÕE A POMBA NO AR” (1978)
(SILVA, Maria Luiza Correa da) .......................................................................................................... 262
O ROTEIRO COMO PROTÓTIPO: PRIMEIROS TRAÇOS DE UMA REDE DE
CRIAÇÃO
(CAZARRÉ, Júlia) ................................................................................................................................ 272
POSICIONANDO HIDETAKA MIYAZAKI E A DIREÇÃO DE GAMES NA TEORIA
DE CINEASTAS
(SEGUNDO, Waldir) ........................................................................................................................... 286
O PROCESSO DE COCRIAÇÃO DE FORMAS AUDIOVISUAIS MEDIADO POR
SOFTWARE DE PROGRAMAÇÃO VISUAL
(LOBO, Mathias) ................................................................................................................................ 297
REPRESENTAÇÃO E VIOLÊNCIA NO NEW FRENCH EXTREMITY: DISCUSSÕES
SOBRE O FEMININO NA ONDA FRANCESA DE HORROR EXTREMO
(LACHOWSKI, Victor Finkler; CASTRO, Murilo de) ............................................................................ 310
SOB O JUGO DO SOL: CINESTESIA E SINESTESIA EM O ESTRANGEIRO DE
LUCHINO VISCONTI
(SEVERO, Luis Fernando) ................................................................................................................... 324
TRAJETÓRIAS NA NEW NEW WAVE JAPONESA: A DESPEDIDA EM MOGARI
NO MORI (NAOMI KAWASE) E KISHIBE NO TABI (KIYOSHI KUROSAWA)
(CHOMA, Juliana) .............................................................................................................................. 335
TRÊS ADAPTAÇÕES DE CINDERELA E A EVOLUÇÃO NO TRATAMENTO DE
GÊNERO NO CINEMA
(SILVA, Iriene B.) ................................................................................................................................ 347
29
PERFUME DE GARDÊNIA. Direção e roteiro: Guilherme de Almeida Prado.
Produção: Anne French. Brasil: Raiz Produções Cinematográficas; Embrafilme. 1992.
REIS, Lucas. Tudo é cinema. Coluna crítica do Cine Players. Postado em 04 de
dezembro de 2020. Disponível em: https://www.cineplayers.com/criticas/perfume-degardenia. Acesso em: dez. 2022.
SOARES, Bernardo Luiz A. A metaficção como subversão a imposições políticas em
Táxi Teerã, de Jafar Panahi. Revista Livre de Cinema, UFPB, v. 5, n. 3, set./dez.
2018.
STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 2000.
SCHNEIDER, Adérito. A Dama do Cine Shangai, um noir brasileiro. Revista Nós,
Cultura, Estética e Linguagens, UEG, v. 3, n. 3, 2018.
VERNET, Marc. Cinema e narração. In: AUMONT, Jacques; et al. A estética do filme.
Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 2016.
30
ANIMAÇÃO “NO-FI” BRASILEIRA: CINEMA DE CONTRAÇÃO E INVENÇÃO
FAUSTINI DOS SANTOS, Rodrigo 1
Resumo: Recentes exposições de galeria, como Filme Experimental Abstrato: Anos
70/80 (2018), da Galeria Superfície e Expoprojeção 1973-2013 (2013) do SESC,
apontam para uma prática de animação experimental pouco conhecida na arte
brasileira das décadas de 1970 e 1980, cuja poética vai na contramão da criação de
fluidez de movimento e forma, buscando por resultados minimalistas ao abraçar o
amadorismo e incorporar apenas as operações mais básicas que atribuímos aos
filmes de animação. Utilizando principalmente o Super-8, esses trabalhos expandem
a animação pelo hibridismo com as artes visuais, mas também operam uma redução
de meios num espírito faça-você-mesmo típico do cinema brasileiro setentista: em um
filme de Raymundo Collares, um efeito de animação é obtido acoplando um tubo de
papel alumínio na ponta da lente da câmera Super-8, usando-o para distorcer imagens
e ativando plasticidades da imagem em movimento. Já Rubens Gerchman, em
“Triunfo Hermético”, conta com a espontaneidade do clima para dar movimento
aleatório às esculturas de palavras. Ao observar como alguns desses filmes vão além
(ou mesmo aquém) do lo-fi, levando a animação a um grau zero onde o desejo de
trabalhar com imagens ou formas abstratas se sobrepõe a qualquer técnica ou
habilidade ligadas à “maestria” do formato, pretendo discutir uma estética “no-fi” que
emerge do gosto por animações toscas, mas inventivas, no qual uma “fidelidade” ao
meio é substituída por uma experiência lúdica – engajamento frouxo, mas gerativo.
Palavras-chave: filme de artista; animação brasileira; cinema experimental.
Recentes exposições de galeria, como Filme Experimental Abstrato: Anos
70/80 (2018) da Galeria Superfície, e Expoprojeção 1973-2013 (2013) do SESC,
apontam para uma prática de animação experimental pouco conhecida manifesta na
arte brasileira das décadas de 1970 e 1980, cuja poética caracteriza-se por ir na
contramão da criação de fluidez de movimento e forma, perseguindo resultados
minimalistas ao abraçar o amadorismo e incorporar apenas as operações mais
básicas que atribuímos aos filmes de animação. Ao observar como alguns desses
filmes vão além (ou mesmo aquém) do lo-fi (a “baixa fidelidade” técnica), levando a
animação a um grau zero onde observa-se que o desejo de trabalhar com imagens
1
Mestre e doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na Universidade de São Paulo (USP) e
bolsista FAPESP. Contato: rfaustinimpa@usp.br.
31
ou formas abstratas (e formatos então novos para o circuito artístico, como o Super8) se sobrepõe a qualquer aprimoramento técnico ou habilidade ligados à “maestria”
do meio, empreende-se aqui a possibilidade de nomear o posicionamento poético
particular que se deixa entrever por essas práticas. Qualificarei, assim, o que
proponho pensar como uma estética “no-fi” 2 (ou seja, sem fidelidade ao suporte
técnico) explorada no filme experimental brasileiro, que emerge do gosto por
animações toscas, mas inventivas, no qual o rigor técnico e articulação bem ajustada
ao meio são substituídos por uma experiência lúdica de invenção – engajamento
frouxo, mas gerativo.
Ao invés de partir de um projeto específico de investigação ou de acesso direto
a um acervo pré-determinado, as ideias aqui apresentadas derivam principalmente de
uma experiência de espectador interessado, decorrendo do contato gradual com a
produção em Super-8 brasileira dos anos 1970 e 1980 resgatada em curadorias de
festivais e exposições recentes, além daquela apresentada em cursos temáticos – dos
quais, além das exposições já citadas, podem ser destacados o festival Dobra de
cinema experimental e a mostra Cine Brasil Experimental (CCSP), assim como uma
retrospectiva sobre Ivan Cardoso (organizada em 2016 pelo cineclube Sessões do
Udigrudi da Unicamp, do qual fiz parte) e cursos e palestras na Universidade de São
Paulo, ministrados por Roberto Moreira Cruz, Patrícia Mourão de Andrade e Rubens
Machado Jr. Ao longo desse contato gradual e qualitativo com a filmografia, tornou-se
possível detectar características distintivas presentes em várias das obras a partir do
campo de estudo da animação, a respeito do qual há menos material escrito em
relação a esses filmes, embora tal produção, como pretende-se argumentar, não só
possui afinidades como também fomenta relevante contribuição. O interesse
perseguido em relação a essas obras almeja refletir, portanto, sobre seus
desenvolvimentos poéticos e experiência estética peculiar, buscando uma via
complementar à abordagem de análise já estabelecida nas publicações existentes
sobre superoitismo e filmes de artista no Brasil, usualmente voltadas à discussão
sobre o espírito de produção da época (pautando a marginalidade, o desbunde, a
curtição e o iconoclasmo), para identificar assim outras características programáticas
2
A opção pela grafia “no-fi” ao invés de “não-fi” é optada aqui para ressoar com a apropriação
antropofágica dos meios de comunicação na época, ligada a empresas estrangeiras como a Kodak (no
caso do Super-8 e da projeção em slides) e a Sony (no caso do vídeo). Muitas obras, inclusive, foram
realizadas por artistas fora do país e/ou em exílio, mantendo títulos na língua inglesa.
32
que se manifestam nesses trabalhos – decorrentes, por exemplo, do constante
recurso a técnicas rústicas e criativas de animação, tal como efeitos óticos “caseiros”
(não laboratoriais) e ativação “cinética” de objetos.
Uma das sequências mais icônicas (e disparadora das reflexões aqui
perseguidas), nesse sentido, encontra-se em um dos trechos de Nosferato no Brasil
(1970, Super-8), de Ivan Cardoso, no qual algo como uma ação performática junto de
pintura em movimento ocorre, quando o filme enquadra uma mão que usa uma
navalha para rasgar um disco preto pintado sobre uma superfície – corte do qual jorra
uma tinta bem vermelha que passa a escorrer sobre o título do filme (também posto
em cena). Esse tipo de mistura entre um gesto material e um efeito gráfico abstrato,
ambos presentes em cena, se repete em outro filme de Ivan Cardoso, no curta H.O.
(1979, finalizado em 35mm), no qual vemos mãos segurando filtros vazados que
intervém nos registros documentais que compõem o filme, como por exemplo entre a
câmera e o retratado, Helio Oiticica, num trecho em que escutamos um poema de
Haroldo de Campos, Parafernália para Oiticica, criando efeitos óticos como que de
improviso para o poema concreto. Nota-se que o filme inclui, também, trechos de
garatujas pintadas e riscadas diretamente na película, processos também explorados
pelos artistas brasileiros Hassis, Rubens F. Luchetti e Bassano Vacarini, Clóvis
Dariano e Frederico Marcos, todos perseguindo modos mais intuitivos do que bem
articulados, em oposição aos experimentos sofisticados e antológicos de Norman
MacLaren.
Se de início essas gambiarras poderiam ser consideradas um “invencionismo”
particular da obra do Ivan Cardoso – que sempre dialogou com a visualidade trash –,
foi possível expandir tal repertório a partir do acesso a alguns filmes da Expoprojeção,
mostra icônica paulista de 1973 que foi reconstituída pelo SESC em 2013. Nesses
filmes, muitos produzidos por artistas que começavam a investigar a imagem em
movimento a partir do Super-8, não só outro jogo visual com a animação (e desfazer)
de uma superfície aparece – em Elements (1972, Super-8) de Iole de Freitas, na qual
um tecido, que em dado momento cobre o quadro do filme, é perfurado e rasgado por
uma faca (e não vemos quem a manipula, aumentando a sensação de autonomia do
objeto) – como outra gambiarra animada também surge nos filmes de Raymundo
Collares (AMARAL, 1973), em que o artista basicamente filma algumas cenas urbanas
segurando uma superfície refletiva em frente às lentes da câmera, buscando por
distorções de seu interesse. Nesses filmes, segundo o artista, desenvolvem-se por
33
um lado uma “técnica/uso de um canudo ótico que decompõe a imagem; e [por] outro,
a intenção/ análise-decomposição da paisagem urbana” (idem, p. 74), permitindo
assim a animação “ao vivo” de efeitos óticos na imagem de um jeito precário, mas
criativo, em diálogo direto com o trabalho de composição do artista em suas pinturas.
Já nos Super-8 de Paulo Bruscky, feitos na década seguinte (não inclusos, assim, na
Expoprojeção), é possível encontrar um recurso parecido: em Reflections I (1983,
Super-8) no qual o artista filma a cidade segurando uma lente suplementar em frente
da sua câmera (aparentemente um cinzeiro de vidro), e imagens são sobrepostas e
variadas numa colagem em tempo real, processo que o artista denomina de “imagens
em mutação” (BRUSCKY, 1999).
Embora entre os filmes exibidos na Expoprojeção houvesse ao menos uma
animação mais tradicional com desenhos simples – um filme do Jorge Izar com
desenhos e uso de tabletop – notamos que essas experiências de Ivan Cardoso,
Collares e Bruscky (junto de outras aos poucos acessadas pela pesquisa), já se
assemelham por conta dessas intervenções básicas nos processos de filmagem, que
vão gerando colagens e efeitos pictóricos rudimentares com abstrações que se
desenrolam junto dos próprios registros. Considerando tais ressonâncias, e buscando
ultrapassar as poéticas individuais de cada artista para refletir acerca de uma poética
comum decorrente da média desses gestos, torna-se interessante nomear esse tipo
de procedimento, de forma a qualificar esse modo criativo disperso por entre as obras.
Ou seja, de um modo que englobe como, de maneira pouco tradicional e com recursos
bem crus, tais artistas alcançam uma forma, pode-se dizer, “concreta” de cinema
abstrato, passível de se aproximar de uma ideia mais expandida de animação. Ou,
melhor ainda, uma forma de animação audiovisual “contraída” ao invés de expandida,
considerando essa afirmação da técnica “tosca” que perpassa esses trabalhos,
sustentados pela incorporação de trucagem por filtros ópticos e pela manipulação
imediata de objetos, sem necessariamente passar pelo desenho e o quadro-a-quadro,
mas ainda assim retendo a ativação cinética e pictórica de superfícies, texturas e
objetos, relacionando-se, portanto, com operações próprias de um cinema abstrato de
artistas que dialogam com a animação (como exemplos externos, poderiam levantarse aqui os filmes de Francis Lee, Dwinell Grant, Mary Ellen Bute, Marie Menken e
Robert Breer).
Como proposto, uma forma de denominar essas trucagens rústicas ou
protoanimações vem através de uma brincadeira com a ideia de lo-fi, ou a “baixa
34
fidelidade técnica”, que em linha com essas obras pode ser levada mais ao extremo
para chegar no “no-fi”: resultados sem “fidelidade” estrita com a técnica de animação
mas, ainda assim, mimetizando seus efeitos de metamorfose de imagem e ativação
cinética de figuras e objetos, para então caracterizar esse aspecto livre e intuitivo de
intervir nas filmagens, que opera pela invenção e pela gambiarra bem características
do Super-8 – especialmente em sua apropriação pelos artistas brasileiros das
décadas de 1970 e 1980. O central aqui, portanto, seria o gesto em direção à
abstração e à metamorfose de imagens, sem necessariamente passar pelas técnicas
formais da animação, ímpeto que se realiza pela ativação cinética, metamórfica e
pictórica de superfícies, texturas, figuras e objetos (e, mais raramente, desenhos ou
grafismos), privilegiando o acaso e a manipulação direta ou pela ênfase nos truques
de fotografia e soluções técnicas simples. Vale lembrar aqui, inclusive, das afinidades
que existem entre as formas de animação do pré-cinema e os efeitos de trucagem
(por exemplo, na lanterna mágica), que reverberam nas diversas “gambiarras” óticas
e técnicas exploradas no campo da animação experimental.
Curiosamente, na mesma época dessas experiências audiovisuais, sabemos
que na animação independente norte-americana é possível encontrar a postulação do
conceito de “animação concreta”, proposto pelo animador George Griffin, no qual era
estimulado o abandono de narrativa e de personagens em favor de experimentação
com técnicas cruas, a apresentação e manipulação direta dos materiais e
apropriações/intervenções no espaço urbano e caseiro. Griffin também favorecia os
processos artesanais e a contingência física do trabalho criativo intuitivo, em oposição
ao mecanismo industrial do “desenho animado”, onde a criatividade no uso de
engenhocas e técnicas manuais orientavam-se a “transformar o abstrato no literal,
brincando com processos da percepção” (BUCHAN, 2015, p. 387) através da
“manipulação do material em si, e não pela imposição de uma técnica [padronizada
de animação] de antemão” (FURNISS, 2009, p. 194). Mas, enquanto a proposta lo-fi
de “anti-cartoons” de Griffin é mais autorreflexiva e dialética, devendo bastante à
animação tradicional que está negando, observa-se que, no caso dos filmes
brasileiros aqui convocados, ainda que um ímpeto anti-comunicação de massa
pudesse ser identificado, corria em paralelo o entusiasmo com a descoberta e
exploração dos novos suportes para a arte (por exemplo, a bitola Super-8 e os
projetores de slide), tal como identificado por Aracy Amaral à época da organização
da Expoprojeção 1973. Logo, são tais recursos recorrentes aos gestos positivamente
35
precários – nas palavras de Amaral, provenientes de um “descompromisso tácito” e
“despreocupação seletiva” visando a imperfeição como “sinal de vida”, “incorporação
do imprevisto enriquecedor” (AMARAL, 1973, p. 2) – e que se aproximam do cinema
abstrato e da animação experimental, oscilando entre uma visualidade concreta (crua)
e a abstrata (pictórica), que convidam a uma reflexão acerca de sua especificidade
poética.
Ao dispor do conceito de “no-fi” e infidelidade ao meio para qualificar esses
filmes experimentais brasileiros, também têm-se em mente como estes devem mais
às elaborações das artes visuais e da poesia da época do que propriamente ao
cinema, considerando como a arte brasileira passava (à época dos anos 1970) por
um período de exploração multimeios, de se apropriar e fazer intervenção semiótica
nos meios de comunicação e novas tecnologias de mídia – mas ainda mantendo uma
retórica de experimentação onde entravam o Super-8 e o slideshow, por exemplo, e
quando falava-se em contracomunicação (cf. PIGNATARI, 2004) e contraestilo (cf.
PINO, 1971), não-narratividade (cf. CANONGIA, 1981), não-objetos entre outras
asserções criativas de negatividade (cf. MARTINS, 2013) – valia ali mais a invenção,
ou, como no trocadilho de Paulo Bruscky, a “inversão” poética (cf. BRUSCKY, 1999).
Nos trabalhos em slideshow, que eram chamados de “audiovisuais” por envolverem
reprodução de som em paralelo, a ideia de precariedade técnica e falsa animação fica
ainda mais evidente, com o time-lapse e o dissolve programado sendo recursos
constantes, como menciona Aracy Amaral (CRUZ, 2013). E, muitas vezes, mesmo o
grafismo aparecia atrelado à apropriação de materiais cotidianos, como nas placas
urbanas registradas em Luxolixo de Regina Vater, ou da apropriação de materiais não
ortodoxos, como nos desenhos de cocaína, feitos em cima de capas de LPs e fotos
de celebridades, que Helio Oiticica projetava nas Cosmococas.
Observar a ressonância dessas abordagens, identificadas aqui como “no-fi”
enquanto instrumento de estudo, torna-se uma forma profícua para investigar essas
produções, visto que a disseminação dessas “protoanimações” nos filmes de artistas
na época demonstra-se ampla (em anotações pessoais, foi possível listar cerca de 40
artistas brasileiros com filmes que articulariam algo nesse sentido), com o gesto
gráfico e pictórico, a trucagem bruta e a manipulação ao vivo ganhando coerência
como características de linguagem. A esse repertório, também demonstrou-se
relevante acrescentar o trabalho com o significante linguístico, a escrita e a tipografia,
visto que eram tendências da época que refletiam-se sobre os trabalhos em filme.
36
Para exemplificar de maneira sintética essa abordagem perseguida pelos artistas,
pode-se tomar como exemplo dois brevíssimos filmes da década de 1970 (hoje
disponíveis online): Mamãe eu fiz um Super-8 nas calças 3 de Carlos Zílio (1974,
Super-8) e“POESIA eVENTO (1975, Super-8) de Gabriel Borba 4. No primeiro, o filme
discorre a partir do enquadramento de um bloco de cartolinas contendo o título e os
créditos do filme, escritos, e instruções de registro (como “zoom”), reveladas por uma
mão que, ritmicamente, puxa folha por folha, “animando” assim o bloco de textos. Já
no filme de Borba (que também possuía versão em slides), o título do filme se
apresenta numa cartolina única, enquanto letras de recorte no suporte se descolam,
aos poucos, e são agitadas pelo “evento” contingente da leve brisa que passa pelo
espaço aberto sob o qual foram instaladas. Novamente sem recorrer à animação
tradicional, o “invencionismo” das obras dota de ritmo, dinâmica e movimento seus
elementos tipicamente “inânimes”.
Enquanto no filme de Zílio temos a presença da mão como portadora e
provedora de intencionalidade e movimento, com a técnica “no-fi” estendendo-se até
ao som do filme, quando o artista credita John Cage de brincadeira (pois o filme
efetivamente não tem som), no filme de Borba a animação das palavras é também em
tempo real, mas advinda das próprias condições ambientais onde o artista instalou os
recortes, numa abertura ao aleatório ainda mais demarcada. Um outro exemplo nesse
mesmo sentido é o filme Triunfo Hermético de Rubens Gerchman (atualmente no
acervo de filmes de artista do Itaú Cultural5), em que o artista faz instalações de
esculturas de palavras em ambientes naturais, deixando-as serem transformadas e
movidas sozinhas pelo mar, pelo vento e pelo fogo, com sua câmera registrando esses
efeitos “autônomos”.
Esse recurso ao tipográfico e aos jogos de palavras também sugere como
esses filmes experimentais – vindos de um país com pouca tradição em cinema
experimental – herdam muitas das elaborações desenvolvidas em outro meio de maior
investimento do vanguardismo brasileiro, a literatura experimental da época, que
promovia um diálogo entre a poesia, a arte conceitual e as artes visuais,
principalmente através do movimento Poema/Processo. E aqui a ideia de “animação
3
Disponível em: https://carloszilio.com/filme/#primary-menu. Acesso em: 05 ago. 2022.
Disponível
em:
http://www.gabrielborba.gborba.nom.br/pt-br/exposicao&obra=poesiaevento_394#mostraObra. Acesso em: 05 ago. 2022.
5 Disponível em: https://www.itaucultural.org.br/sites/filmes-e-videos-virtual/. Acesso em: 05 ago. 2022.
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no-fi” vem auxiliar-nos justamente a pensar essa transição da poesia para o poema
audiovisual. Isso porque em exposições recentes da Galeria Superfície, de São Paulo,
houve justamente o resgate de como expoentes do Poema/Processo, tais quais Álvaro
e Neide Sá, Flávio Diniz e Frederico Marcos chegaram a realizar filmes abstratos e
que dialogam diretamente com a animação – ainda mais nessa chave “no-fi” – por
envolverem trucagens simples, raspagem de película e ativação de objetos, texturas
e superfícies, onde os eventos são registrados pela câmera ao invés de animados
tradicionalmente.
Nesse contexto, há uma publicação recente sobre o Poema/Processo
(NÓBREGA, 2017) que reproduz um texto de 1973 de Frederico Marcos dedicado à
sua proposta de cinema abstrato, onde o artista demonstra como os resultados crus
desses filmes tinham mais a ver com uma elaboração própria do que se fossem
apenas resultados de alguma incapacidade técnica qualquer. Demonstrando ter
estudado a fundo o filme experimental, Marcos chega a citar os projetos de animação
de Viking Eggling e Hans Richter nos anos 1920, que eram como storyboards feitos
em rolos de papel para imaginar sequências, afirmando essas experiências como
antecedentes do poema/processo, no sentido de que o grupo abria mão da palavra
em favor da composição gráfica e que almejava também incorporar a impressão visual
de movimento.
De fato, em uma das coletâneas do Poema/Processo organizada por Wlademir
Dias-Pino na década de 1970, já havia o anúncio da proposta de “poemas de
animação”, composições gráficas na página que buscavam ativar o movimento na
mente do leitor – gesto que também pode ser tido como uma invenção “no-fi”, uma
subversão técnica minimalista, que convoca a animação sem a necessidade de
tecnicamente efetivá-la. Sabemos também que um dos fundadores do movimento,
Moacy Cirne, no livro “Uma vanguarda semiológica” (1975), já destacava que
sucessores natos do Poema/Processo seriam as experimentações em Super-8 , como
por exemplo no trabalho de Paulo Bruscky: “os caminhos do experimental só podem
passar pela leitura produtiva, do slide ao Super-8, do cartaz ao quadrinho, da palavra
ao poema (ecologia comunicacional)”, coloca. O apreço e afeto desses artistas pelo
novo meio também pode ser notado em uma das experiências em um fotograma de
1976 de Neide Sá, em que a artista compõe uma imagem utilizando-se de cinco
cartuchos da bitola (cf. MARGUTTI, 2014).
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Voltando ao texto de Frederico Marcos, é nele que é possível efetivamente
encontrar tanto um gesto em direção à animação abstrata quanto uma rejeição
específica das técnicas de animação tradicionais: o foco criativo, como ele descreve,
estaria na invenção e modulação de imagens abstratas em frente à câmera, com o
artista passando a registrar “todos os efeitos obtidos e suas variações através da
função normal da câmera de filmar, sem necessidade das técnicas de animação
quadro a quadro” (NÓBREGA, 2017, p. 205). Desse modo, os filmes resultariam então
em colagens ou entrelaçamentos de eventos abstratos organizados pelo artista em
interação direta com seus materiais, o que dá conta da estrutura mais frouxa dos
filmes de Marcos, que intitula todos de “Experiência” – e nota-se aqui, novamente, a
afinidade dessas propostas com o “anti-cartoon” de George Griffin. Para além do
movimento Poema/Processo, tal cruzamento ou entremeio da poesia visual com a
história da animação também pode ser observado, por exemplo, no trabalho Desenho
cinemático (1981) de Regina Vater 6, composto de grafismos repetidos e variados
sobre um rolo de papel, estilo pergaminho, seguindo os experimentos pioneiros
mencionados de Eggeling e Richter em mais uma forma, ao mesmo tempo precária e
criativa, de convocar o cinético ao desenho, à poesia e à pintura.
Por fim, uma vez tomando como válida essa especulação de que, a partir dos
anos 1970, constitui-se informalmente no Brasil uma linha de experimentação
audiovisual que demonstra afinidades com a animação mas não se engaja
diretamente com suas técnicas, uma possibilidade produtiva que se abre é a de,
pensando nos filmes já levantados até aqui e com base nessa formulação do Frederico
Marcos, poder-se delinear uma contribuição original dessa vertente de produção tanto
para os estudos de animação quanto para o cinema experimental brasileiro – e que,
na presente comunicação, pode ser brevemente indicada como relacionada à
temporalidade específica que se desencadeia nesses filmes. Um jeito de delinear esse
aspecto seria partindo de uma proposta interessante dentro dos estudos da animação,
na qual o pesquisador Siegfried Zielinski convoca metáforas da mitologia grega para
analisar o animus da animação, sua “espiritualização [do inanimado] via tecnologia”
(ZIELINSKI, 2019, p. 306) – ou seja, o “sopro de vida” implícito na nomenclatura dessa
forma artística. Segundo Zielinski (In: BUCHAN, 2013), nesse plano metafísico,
“animação” envolveria a passagem do tempo cíclico e imutável da máquina, que o
6
Disponível em: https://acervo.mac.usp.br/acervo/index.php/Detail/objects/23245. Acesso em: 05 ago.
2022.
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autor relaciona ao deus grego Aion, para o tempo da vida, ou seja, de Kronos
(cronológico) que é aquele com o qual nos identificamos – fenômeno que, desde os
primórdios culturais (como no teatro de marionetes), dependeria da elegância e
perspicácia da técnica de animação implementada. Já através do “no-fi”, nessas
quase-animações brasileiras, que dispensam qualquer ideia de elegância e maestria,
podemos falar então da passagem para outro tempo nesse plano conceitual: o tempo
de Kairós, aquele que é fruto do momento, do acaso e do oportuno, e que se expressa
nessas buscas por eventos pictóricos e também na abertura da abstração para o
efêmero e o acidental, na contingência fortuita entre o concreto e o precário, como
buscou-se apontar até aqui.
E, como Zielinski também recupera, nas beiradas da vitalidade do animus – a
concessão de vigor que move a animação - se esconde sua face oposta, o fantasma
da morte e da estase. Nesse sentido a ideia de animação novamente se demonstra
fecunda para pensar a produção de filmes de artista em Super-8 e slidetape
(“audiovisuais”) a partir da década de 1970, tomando uma chave crítica nos trabalhos
em slide e em vários foto-filmes da época, como os de Luiz Alphonsus e de Antônio
Manuel, visto que neles o movimento, o sopro que anima o filme, é revertido para o
congelamento total da imagem, o rigor mortis. Um retorno ao inanimado utilizado como
uma metáfora política para os períodos de maior repressão da ditadura, como por
exemplo no foto-filme Semi ótica (1975, 35mm) de Antônio Manuel, o qual faz recurso
de imagens de criminosos encontradas em jornais (como num inventário de
marginalidade) e encerra com o grafismo de uma caveira que ocupa a tela; enquanto
que Natureza (1973), audiovisual (slidetape) de Luiz Alphonsus, encena uma desova
de um corpo executado através de fotografias avermelhadas, drenadas do movimento
associado à ação fílmica. Já em X (1974, Super-8), de Anna Maria Maiolino, são os
objetos e elementos (uma tesoura, um véu preto como de viúva, um líquido vermelho
como sangue) que são dotados de movimento, observados por um olho que
estremece, abre, fecha e lacrimeja, filmado em isolamento do resto do corpo
(ganhando autonomia e animus próprio), até que um grafismo em X encerre o filme.
Enquanto isso, em outros filmes, principalmente dos superoitistas que
chegaram a buscar uma aproximação maior com o desenho animado e a animação
de bonecos, também é possível ver outro aspecto expresso pela ideia de “no-fi”, que
seria o de inacabamento e imediatismo, elemento que também acaba por ser
incorporado na forma dos filmes, produtos de precariedade de meios, junto da
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urgência sufocada de se expressar no período de repressão política no país. Aqui um
dos exemplos mais criativos seria um filme das irmãs Wagner, Pudim de Morango
(1979, 35mm), que usa o jornal como suporte de desenhos, algo que também aparece
nas animações (quadro a quadro, mas minimalistas) de Lula Gonzaga que, em seu
Vendo/Ouvindo (1972, Super-8), reaproveitou restos de acetato da publicidade para
fazer pequenos loops animados (LEITE, 2015). Desses gestos pequenos – teríamos
ainda Chico Liberato que, em seus primeiros experimentos, usava as próprias mãos
e dedos enquanto personagens animados7 –, um jeito particular de fazer interagir as
artes visuais, a poesia e o cinema foi se modelando, como buscou-se argumentar aqui
pela proposição da ideia de “animação no-fi”, que incide sobre uma ampla produção
ainda a ser explorada (e mesmo resgatada) em termos de historiografia e crítica.
Referências:
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1973.
BRUSCKY, P.; TEJO, C. Arte e multimeios. Recife: Zolu, 2010.
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CANONGIA, L. Quase cinema. Rio de Janeiro: Funarte, 1981.
CIRNE, M. Vanguarda: um projeto semiológico. Rio de Janeiro: Vozes, 1975.
COCHIARALE, F.; PARENTE, A. Filmes de artista: Brasil, 1965-80. Rio de Janeiro:
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CRUZ, R. M. Expoprojeção 1973-2013. São Paulo: Sesc, 2013.
DIAS-PINO, W. Processo: linguagem e comunicação. Rio de Janeiro: Editora Vozes,
1971.
FERREIRA, G. (org.). Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de
Janeiro: Funarte, 2006.
FERREIRA, J. Cinema de invenção. São Paulo, Max Limonad, 1986.
7
Disponível em: https://www.chicoliberato.com.br/a-obra/arte-em-animacao/. Acesso em: 05 ago.
2022.
41
FURNISS, M. Animation: Art and Industry. Barnet: John Libbey Publishing, 2009.
GALERIA SUPERFÍCIE. Filme experimental abstrato, anos 60/70. São Paulo:
Galeria Superfície, 2018. Catálogo de exposição.
LEITE, S. Maldita Animação Brasileira. Belo Horizonte: Favela é isso aí, 2015.
MARGUTTI, M. Do Poema Visual ao Objeto-Poema: A trajetória de Neide Sá. Rio
de Janeiro: Lacre, 2014.
MARTINS, S. B. Constructing an Avant-Garde: Art in Brazil, 1949-1979. Cambridge:
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brasileira
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Rio
de
Janeiro:
NÓBREGA, G (org.). Poema/Processo: uma vanguarda semiológica. São Paulo:
Galeria Superfície/Martins Fontes, 2017.
PIGNATARI, D. Contracomunicação. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004.