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ANAIS DO II ENCONTRO CINEMAGEM: CINEMA, VÍDEO, BRASIL ORGANIZAÇÃO EDUARDO TULIO BAGGIO ROSANE KAMINSKI UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PARANÁ – UNESPAR Reitora Salete Machado Sirino Pró-Reitora de Extensão e Cultura Rosimeiri Darc Cardoso Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Carlos Alexandre Molena Fernandes Diretora de Cultura Marcia Cristiane Dall'Oglio de Moraes Diretor de Extensão Sérgio Carrazedo Dantas Diretora do Campus de Curitiba II – Faculdade de Artes do Paraná Noemi Nascimento Ansay Diretora do Centro de Artes Rosemeri Rocha Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Cinema e Artes do Vídeo Beatriz Avila Vasconcelos Informações catalográficas II Encontro Cinemagem: Cinema, Vídeo, Brasil / Organizado por Eduardo Tulio Baggio e Rosane Kaminski. (Unespar: Curitiba, PR). Anais do II Encontro Cinemagem: Cinema, Vídeo, Brasil. Curitiba, Unespar, 2022. 360 p. Vários autores Inclui referências II Encontro Cinemagem: Cinema, Vídeo, Brasil Unespar – Campus de Curitiba II/FAP – Sede do Boqueirão Curitiba, 21 a 23 de junho de 2022 Coordenação Eduardo Tulio Baggio (Unespar) Rosane Kaminski (Unespar/UFPR) Comissão organizadora Eduardo Tulio Baggio (Unespar) Rosane Kaminski (Unespar/UFPR) Grupo de Pesquisa Cinecriare (Unespar/CNPq) Grupo de Pesquisa Eikos (Unespar/CNPq) Grupo de Pesquisa GPACS (Unespar/CNPq) Grupo de Pesquisa Navis (Unespar/CNPq) Equipe técnica Bruno Ribeiro (discente Unespar) Lidia Gloria (discente Unespar) Rafael Alessandro Viana (discente Unespar) Equipe de monitores Amanda Larissa Saldanha (discente UFPR) Amanda Neves (discente UFPR) Ana Carolina Moraes (discente UFPR) Baruch Blumberg (discente Unespar) Bruno Ribeiro (discente Unespar) Cameni Silveira (discente Unespar) Claudia Gonçalves de Brito (discente UFPR) Francisco Silveira (discente Unespar) Gabriel Borges (discente Unespar) Iriene Borges (discente Unespar) Lidia Glória (discente Unespar) Maria Giovana Boregio (discente UFPR) Mariana Pusch (discente UFPR) Mia Marzy (Camila Faustino) (discente Unespar) Noah Mancini (discente Unespar) Rafael Alessandro Viana (discente Unespar) Teodoro Andrade (discente Unespar) Comissão científica Alexandre Busko Valim (UFSC) Ana Flávia Lesnovski (Unespar) Andréa C. Scansani (UFSC) Andréa França (PUC-RJ) Artur Freitas (Unespar) Beatriz Vasconcelos (Unespar) Bruno Leites (UFRGS) Carolina Amaral de Aguiar (UEL) Claudia Priori (Unespar) Cristiane Wosniak (Unespar / UFPR) Débora Opolski (UFPR / Unespar) Eduardo Morettin (ECA-USP) Eduardo Tulio Baggio (Unespar) Fábio Augusto Steyer (UEPG) Fábio Poletto (Unespar) Fábio Uchôa (UAM) Fernando Seliprandy (Unicamp) Hadija Chalupe da Silva (ESPM/UFF) Ignacio Del Valle Dávila (Unila) Jamer Guterres de Mello (PPGCOM-UAM) Juslaine de Fátima Abreu Nogueira (Unespar) Lúcia Monteiro (UFF) Luis Carlos Sereza (pesquisador do NAVIS) Marcelo Carvalho (PPGCOM/UTP) Margarida Maria Adamatti (PPGIS-UFSCar) Maria Cristina Mendes (Unespar / UEPG) Mariana Villaça (Unifesp) Mauro Baptista Vedia (Unespar) Nelson Silva Junior (UEPG) Patricia de Oliveira Iuva (UFSC) Paulo Roberto Ferreira de Camargo (PUCPR) Pedro Faissol (Unespar) Pedro Plaza Pinto (UFPR / Unespar) Rafael Tassi Teixeira (Unespar) Regiane Ribeiro (UFPR) Rosane Kaminski (UFPR / Unespar) Rubens Machado Jr. (CTR/ECA-USP) Sandra Fischer (UTP / Unespar) Sávio Luis Stoco (UFPA/FAV/PPGArtes) Solange Stecz (Unespar) Thalita Cruz Bastos (Unisuam) Valquíria Michela John (UFPR) Editoração e diagramação dos Anais Arthur Aroha e Ana Luisa Kaminski Apoio Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Estado do Paraná Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da UNESPAR Evento realizado com recursos da Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Estado do Paraná / Chamada Pública 11/2019 – Programa de Apoio Institucional para Realização de Eventos – Edital 006/2022 – PROEC/Unespar. SUMÁRIO A EQUIDADE DE GÊNERO NA PRODUÇÃO AUDIOVISUAL PARANAENSE (CUNICO, Karla Adriana Nascimento) ................................................................................................... 7 A METAFICÇÃO NO FILME PERFUME DE GARDÊNIA (1992) (MANCINI, Noah)................................................................................................................................. 19 ANIMAÇÃO “NO-FI” BRASILEIRA: CINEMA DE CONTRAÇÃO E INVENÇÃO (FAUSTINI DOS SANTOS, Rodrigo) ....................................................................................................... 30 AUTORIA E O CINEMA DE MULHERES (COSTA, Ana Pellegrini) ....................................................................................................................... 42 BEBENDO DE OSWALD: NOSFERATO NO BRASIL (1971) E O VAMPIRO DA CINEMATECA (1977) MOSTRAM OS DENTES AOS COLONIZADORES (MOREIRA, Samir Gid Rolim de Moura) .............................................................................................. 56 BREVE ESTUDO DA TRANSCRIAÇÃO DA DANÇA PARA VIDEODANÇA A PARTIR DO PROCESSO CRIATIVO DE “PROJETO VIOLÊNCIA” (DURÃES, Daniele Sena) ...................................................................................................................... 69 CINE-DELEUZE: INTRODUÇÃO A UM CINEMA NÃO-FASCISTA (NUNES, Alvaro Luiz) ........................................................................................................................... 82 CINEMA CONTEMPORÂNEO DE ALAGOAS E AS TRANSFORMAÇÕES URBANAS DA REGIÃO ESTUARINA DE MACEIÓ (MONTEIRO VIRGINIO, Roseane) ........................................................................................................ 95 CINEMA E TELEVISÃO: IMAGENS MIDIÁTICAS E REPRESENTAÇÃO DO REAL. A VIDA DEPOIS DO TOMBO: DOCUMENTÁRIO OU STORYTELLING? (PIRES, Aline; ANDACHT, Fernando) ................................................................................................. 106 O CONCEITO DE CINEMA VERTICAL DE MAYA DEREN ATRAVESSADO EM SEU FILME MESHES OF THE AFTERNOON (1943) (FERRO, Fernanda Ianoski) ................................................................................................................ 115 CÓPIA FULEIRA: O PROCESSO CRIATIVO COM O USO DE REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS NA DECUPAGEM DE PLANOS DO FILME DUBLÊ DE NAMORADO (PEREIRA, Christopher Faust) ............................................................................................................ 126 DEIXA-ME SER EU: A AUTORREPRESENTAÇÃO E A INTERPELAÇÃO EM FORMA DE DOCUMENTÁRIO (PEREIRA, Ana Catarina; SOARES, Ana Isabel; CUCINOTTA, Caterina) .............................................. 142 DIÁLOGOS ENTRE HISTÓRIA, CINEMA E FICÇÃO: A REPRESENTAÇÃO DOS DILEMAS SOCIAIS EM O GRANDE MOMENTO (ROBERTO SANTOS, 1958) (FRANQUETO, Vinícius José) ............................................................................................................. 152 DOCUMENTÁRIO NOTTURNO: UM OLHAR PARA O TERRITÓRIO QUE HABITA (TROMBINE, Julia) ............................................................................................................................. 167 “E EVA ERA PECADORA”: PERCEPÇÕES DO IMAGINÁRIO DA DÉCADA DE 1970 NO FILME CARRIE, A ESTRANHA (EUA-1976) (SILVEIRA, Francisco) ......................................................................................................................... 181 E SÃO APENAS IMAGENS: O EXPERIMENTAL EM “MEMÓRIAS DE UM ESTRANGULADOR DE LOIRAS” (FRANCO, Frederico) ......................................................................................................................... 195 ESTUDOS ATUACIONAIS (FERREIRA, Ricardo Di Carlo) ............................................................................................................. 210 GRAVAR, SER GRAVADO – PROCESSOS DE CRIAÇÃO E O GESTO DE APONTAR A CÂMERA PARA MIM E PARA OS MEUS (FERREIRA PREVITALI, Wagner; FACHEL DE MEDEIROS, Rosângela) ................................................ 224 INTERAÇÕES AUDIOVISUAIS COM A CENA REMOTA NO CONTEXTO PANDÊMICO: EXPERIÊNCIAS E REFLEXÕES (BARONE, Luciana) ............................................................................................................................ 237 O FASCÍNIO DAS MINÚCIAS E AS MIGALHAS DE VIDA: NOTAS SOBRE A FORMAÇÃO DO ESTILO CINEMATOGRÁFICO DE DAVID NEVES (PHILIPPINI Ferreira Borges da Silva, Gabriel) ................................................................................... 249 O PIONEIRISMO DE ROSÂNGELA MALDONADO: UMA ANÁLISE DE “A MULHER QUE PÕE A POMBA NO AR” (1978) (SILVA, Maria Luiza Correa da) .......................................................................................................... 262 O ROTEIRO COMO PROTÓTIPO: PRIMEIROS TRAÇOS DE UMA REDE DE CRIAÇÃO (CAZARRÉ, Júlia) ................................................................................................................................ 272 POSICIONANDO HIDETAKA MIYAZAKI E A DIREÇÃO DE GAMES NA TEORIA DE CINEASTAS (SEGUNDO, Waldir) ........................................................................................................................... 286 O PROCESSO DE COCRIAÇÃO DE FORMAS AUDIOVISUAIS MEDIADO POR SOFTWARE DE PROGRAMAÇÃO VISUAL (LOBO, Mathias) ................................................................................................................................ 297 REPRESENTAÇÃO E VIOLÊNCIA NO NEW FRENCH EXTREMITY: DISCUSSÕES SOBRE O FEMININO NA ONDA FRANCESA DE HORROR EXTREMO (LACHOWSKI, Victor Finkler; CASTRO, Murilo de) ............................................................................ 310 SOB O JUGO DO SOL: CINESTESIA E SINESTESIA EM O ESTRANGEIRO DE LUCHINO VISCONTI (SEVERO, Luis Fernando) ................................................................................................................... 324 TRAJETÓRIAS NA NEW NEW WAVE JAPONESA: A DESPEDIDA EM MOGARI NO MORI (NAOMI KAWASE) E KISHIBE NO TABI (KIYOSHI KUROSAWA) (CHOMA, Juliana) .............................................................................................................................. 335 TRÊS ADAPTAÇÕES DE CINDERELA E A EVOLUÇÃO NO TRATAMENTO DE GÊNERO NO CINEMA (SILVA, Iriene B.) ................................................................................................................................ 347 29 PERFUME DE GARDÊNIA. Direção e roteiro: Guilherme de Almeida Prado. Produção: Anne French. Brasil: Raiz Produções Cinematográficas; Embrafilme. 1992. REIS, Lucas. Tudo é cinema. Coluna crítica do Cine Players. Postado em 04 de dezembro de 2020. Disponível em: https://www.cineplayers.com/criticas/perfume-degardenia. Acesso em: dez. 2022. SOARES, Bernardo Luiz A. A metaficção como subversão a imposições políticas em Táxi Teerã, de Jafar Panahi. Revista Livre de Cinema, UFPB, v. 5, n. 3, set./dez. 2018. STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 2000. SCHNEIDER, Adérito. A Dama do Cine Shangai, um noir brasileiro. Revista Nós, Cultura, Estética e Linguagens, UEG, v. 3, n. 3, 2018. VERNET, Marc. Cinema e narração. In: AUMONT, Jacques; et al. A estética do filme. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 2016. 30 ANIMAÇÃO “NO-FI” BRASILEIRA: CINEMA DE CONTRAÇÃO E INVENÇÃO FAUSTINI DOS SANTOS, Rodrigo 1 Resumo: Recentes exposições de galeria, como Filme Experimental Abstrato: Anos 70/80 (2018), da Galeria Superfície e Expoprojeção 1973-2013 (2013) do SESC, apontam para uma prática de animação experimental pouco conhecida na arte brasileira das décadas de 1970 e 1980, cuja poética vai na contramão da criação de fluidez de movimento e forma, buscando por resultados minimalistas ao abraçar o amadorismo e incorporar apenas as operações mais básicas que atribuímos aos filmes de animação. Utilizando principalmente o Super-8, esses trabalhos expandem a animação pelo hibridismo com as artes visuais, mas também operam uma redução de meios num espírito faça-você-mesmo típico do cinema brasileiro setentista: em um filme de Raymundo Collares, um efeito de animação é obtido acoplando um tubo de papel alumínio na ponta da lente da câmera Super-8, usando-o para distorcer imagens e ativando plasticidades da imagem em movimento. Já Rubens Gerchman, em “Triunfo Hermético”, conta com a espontaneidade do clima para dar movimento aleatório às esculturas de palavras. Ao observar como alguns desses filmes vão além (ou mesmo aquém) do lo-fi, levando a animação a um grau zero onde o desejo de trabalhar com imagens ou formas abstratas se sobrepõe a qualquer técnica ou habilidade ligadas à “maestria” do formato, pretendo discutir uma estética “no-fi” que emerge do gosto por animações toscas, mas inventivas, no qual uma “fidelidade” ao meio é substituída por uma experiência lúdica – engajamento frouxo, mas gerativo. Palavras-chave: filme de artista; animação brasileira; cinema experimental. Recentes exposições de galeria, como Filme Experimental Abstrato: Anos 70/80 (2018) da Galeria Superfície, e Expoprojeção 1973-2013 (2013) do SESC, apontam para uma prática de animação experimental pouco conhecida manifesta na arte brasileira das décadas de 1970 e 1980, cuja poética caracteriza-se por ir na contramão da criação de fluidez de movimento e forma, perseguindo resultados minimalistas ao abraçar o amadorismo e incorporar apenas as operações mais básicas que atribuímos aos filmes de animação. Ao observar como alguns desses filmes vão além (ou mesmo aquém) do lo-fi (a “baixa fidelidade” técnica), levando a animação a um grau zero onde observa-se que o desejo de trabalhar com imagens 1 Mestre e doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na Universidade de São Paulo (USP) e bolsista FAPESP. Contato: rfaustinimpa@usp.br. 31 ou formas abstratas (e formatos então novos para o circuito artístico, como o Super8) se sobrepõe a qualquer aprimoramento técnico ou habilidade ligados à “maestria” do meio, empreende-se aqui a possibilidade de nomear o posicionamento poético particular que se deixa entrever por essas práticas. Qualificarei, assim, o que proponho pensar como uma estética “no-fi” 2 (ou seja, sem fidelidade ao suporte técnico) explorada no filme experimental brasileiro, que emerge do gosto por animações toscas, mas inventivas, no qual o rigor técnico e articulação bem ajustada ao meio são substituídos por uma experiência lúdica de invenção – engajamento frouxo, mas gerativo. Ao invés de partir de um projeto específico de investigação ou de acesso direto a um acervo pré-determinado, as ideias aqui apresentadas derivam principalmente de uma experiência de espectador interessado, decorrendo do contato gradual com a produção em Super-8 brasileira dos anos 1970 e 1980 resgatada em curadorias de festivais e exposições recentes, além daquela apresentada em cursos temáticos – dos quais, além das exposições já citadas, podem ser destacados o festival Dobra de cinema experimental e a mostra Cine Brasil Experimental (CCSP), assim como uma retrospectiva sobre Ivan Cardoso (organizada em 2016 pelo cineclube Sessões do Udigrudi da Unicamp, do qual fiz parte) e cursos e palestras na Universidade de São Paulo, ministrados por Roberto Moreira Cruz, Patrícia Mourão de Andrade e Rubens Machado Jr. Ao longo desse contato gradual e qualitativo com a filmografia, tornou-se possível detectar características distintivas presentes em várias das obras a partir do campo de estudo da animação, a respeito do qual há menos material escrito em relação a esses filmes, embora tal produção, como pretende-se argumentar, não só possui afinidades como também fomenta relevante contribuição. O interesse perseguido em relação a essas obras almeja refletir, portanto, sobre seus desenvolvimentos poéticos e experiência estética peculiar, buscando uma via complementar à abordagem de análise já estabelecida nas publicações existentes sobre superoitismo e filmes de artista no Brasil, usualmente voltadas à discussão sobre o espírito de produção da época (pautando a marginalidade, o desbunde, a curtição e o iconoclasmo), para identificar assim outras características programáticas 2 A opção pela grafia “no-fi” ao invés de “não-fi” é optada aqui para ressoar com a apropriação antropofágica dos meios de comunicação na época, ligada a empresas estrangeiras como a Kodak (no caso do Super-8 e da projeção em slides) e a Sony (no caso do vídeo). Muitas obras, inclusive, foram realizadas por artistas fora do país e/ou em exílio, mantendo títulos na língua inglesa. 32 que se manifestam nesses trabalhos – decorrentes, por exemplo, do constante recurso a técnicas rústicas e criativas de animação, tal como efeitos óticos “caseiros” (não laboratoriais) e ativação “cinética” de objetos. Uma das sequências mais icônicas (e disparadora das reflexões aqui perseguidas), nesse sentido, encontra-se em um dos trechos de Nosferato no Brasil (1970, Super-8), de Ivan Cardoso, no qual algo como uma ação performática junto de pintura em movimento ocorre, quando o filme enquadra uma mão que usa uma navalha para rasgar um disco preto pintado sobre uma superfície – corte do qual jorra uma tinta bem vermelha que passa a escorrer sobre o título do filme (também posto em cena). Esse tipo de mistura entre um gesto material e um efeito gráfico abstrato, ambos presentes em cena, se repete em outro filme de Ivan Cardoso, no curta H.O. (1979, finalizado em 35mm), no qual vemos mãos segurando filtros vazados que intervém nos registros documentais que compõem o filme, como por exemplo entre a câmera e o retratado, Helio Oiticica, num trecho em que escutamos um poema de Haroldo de Campos, Parafernália para Oiticica, criando efeitos óticos como que de improviso para o poema concreto. Nota-se que o filme inclui, também, trechos de garatujas pintadas e riscadas diretamente na película, processos também explorados pelos artistas brasileiros Hassis, Rubens F. Luchetti e Bassano Vacarini, Clóvis Dariano e Frederico Marcos, todos perseguindo modos mais intuitivos do que bem articulados, em oposição aos experimentos sofisticados e antológicos de Norman MacLaren. Se de início essas gambiarras poderiam ser consideradas um “invencionismo” particular da obra do Ivan Cardoso – que sempre dialogou com a visualidade trash –, foi possível expandir tal repertório a partir do acesso a alguns filmes da Expoprojeção, mostra icônica paulista de 1973 que foi reconstituída pelo SESC em 2013. Nesses filmes, muitos produzidos por artistas que começavam a investigar a imagem em movimento a partir do Super-8, não só outro jogo visual com a animação (e desfazer) de uma superfície aparece – em Elements (1972, Super-8) de Iole de Freitas, na qual um tecido, que em dado momento cobre o quadro do filme, é perfurado e rasgado por uma faca (e não vemos quem a manipula, aumentando a sensação de autonomia do objeto) – como outra gambiarra animada também surge nos filmes de Raymundo Collares (AMARAL, 1973), em que o artista basicamente filma algumas cenas urbanas segurando uma superfície refletiva em frente às lentes da câmera, buscando por distorções de seu interesse. Nesses filmes, segundo o artista, desenvolvem-se por 33 um lado uma “técnica/uso de um canudo ótico que decompõe a imagem; e [por] outro, a intenção/ análise-decomposição da paisagem urbana” (idem, p. 74), permitindo assim a animação “ao vivo” de efeitos óticos na imagem de um jeito precário, mas criativo, em diálogo direto com o trabalho de composição do artista em suas pinturas. Já nos Super-8 de Paulo Bruscky, feitos na década seguinte (não inclusos, assim, na Expoprojeção), é possível encontrar um recurso parecido: em Reflections I (1983, Super-8) no qual o artista filma a cidade segurando uma lente suplementar em frente da sua câmera (aparentemente um cinzeiro de vidro), e imagens são sobrepostas e variadas numa colagem em tempo real, processo que o artista denomina de “imagens em mutação” (BRUSCKY, 1999). Embora entre os filmes exibidos na Expoprojeção houvesse ao menos uma animação mais tradicional com desenhos simples – um filme do Jorge Izar com desenhos e uso de tabletop – notamos que essas experiências de Ivan Cardoso, Collares e Bruscky (junto de outras aos poucos acessadas pela pesquisa), já se assemelham por conta dessas intervenções básicas nos processos de filmagem, que vão gerando colagens e efeitos pictóricos rudimentares com abstrações que se desenrolam junto dos próprios registros. Considerando tais ressonâncias, e buscando ultrapassar as poéticas individuais de cada artista para refletir acerca de uma poética comum decorrente da média desses gestos, torna-se interessante nomear esse tipo de procedimento, de forma a qualificar esse modo criativo disperso por entre as obras. Ou seja, de um modo que englobe como, de maneira pouco tradicional e com recursos bem crus, tais artistas alcançam uma forma, pode-se dizer, “concreta” de cinema abstrato, passível de se aproximar de uma ideia mais expandida de animação. Ou, melhor ainda, uma forma de animação audiovisual “contraída” ao invés de expandida, considerando essa afirmação da técnica “tosca” que perpassa esses trabalhos, sustentados pela incorporação de trucagem por filtros ópticos e pela manipulação imediata de objetos, sem necessariamente passar pelo desenho e o quadro-a-quadro, mas ainda assim retendo a ativação cinética e pictórica de superfícies, texturas e objetos, relacionando-se, portanto, com operações próprias de um cinema abstrato de artistas que dialogam com a animação (como exemplos externos, poderiam levantarse aqui os filmes de Francis Lee, Dwinell Grant, Mary Ellen Bute, Marie Menken e Robert Breer). Como proposto, uma forma de denominar essas trucagens rústicas ou protoanimações vem através de uma brincadeira com a ideia de lo-fi, ou a “baixa 34 fidelidade técnica”, que em linha com essas obras pode ser levada mais ao extremo para chegar no “no-fi”: resultados sem “fidelidade” estrita com a técnica de animação mas, ainda assim, mimetizando seus efeitos de metamorfose de imagem e ativação cinética de figuras e objetos, para então caracterizar esse aspecto livre e intuitivo de intervir nas filmagens, que opera pela invenção e pela gambiarra bem características do Super-8 – especialmente em sua apropriação pelos artistas brasileiros das décadas de 1970 e 1980. O central aqui, portanto, seria o gesto em direção à abstração e à metamorfose de imagens, sem necessariamente passar pelas técnicas formais da animação, ímpeto que se realiza pela ativação cinética, metamórfica e pictórica de superfícies, texturas, figuras e objetos (e, mais raramente, desenhos ou grafismos), privilegiando o acaso e a manipulação direta ou pela ênfase nos truques de fotografia e soluções técnicas simples. Vale lembrar aqui, inclusive, das afinidades que existem entre as formas de animação do pré-cinema e os efeitos de trucagem (por exemplo, na lanterna mágica), que reverberam nas diversas “gambiarras” óticas e técnicas exploradas no campo da animação experimental. Curiosamente, na mesma época dessas experiências audiovisuais, sabemos que na animação independente norte-americana é possível encontrar a postulação do conceito de “animação concreta”, proposto pelo animador George Griffin, no qual era estimulado o abandono de narrativa e de personagens em favor de experimentação com técnicas cruas, a apresentação e manipulação direta dos materiais e apropriações/intervenções no espaço urbano e caseiro. Griffin também favorecia os processos artesanais e a contingência física do trabalho criativo intuitivo, em oposição ao mecanismo industrial do “desenho animado”, onde a criatividade no uso de engenhocas e técnicas manuais orientavam-se a “transformar o abstrato no literal, brincando com processos da percepção” (BUCHAN, 2015, p. 387) através da “manipulação do material em si, e não pela imposição de uma técnica [padronizada de animação] de antemão” (FURNISS, 2009, p. 194). Mas, enquanto a proposta lo-fi de “anti-cartoons” de Griffin é mais autorreflexiva e dialética, devendo bastante à animação tradicional que está negando, observa-se que, no caso dos filmes brasileiros aqui convocados, ainda que um ímpeto anti-comunicação de massa pudesse ser identificado, corria em paralelo o entusiasmo com a descoberta e exploração dos novos suportes para a arte (por exemplo, a bitola Super-8 e os projetores de slide), tal como identificado por Aracy Amaral à época da organização da Expoprojeção 1973. Logo, são tais recursos recorrentes aos gestos positivamente 35 precários – nas palavras de Amaral, provenientes de um “descompromisso tácito” e “despreocupação seletiva” visando a imperfeição como “sinal de vida”, “incorporação do imprevisto enriquecedor” (AMARAL, 1973, p. 2) – e que se aproximam do cinema abstrato e da animação experimental, oscilando entre uma visualidade concreta (crua) e a abstrata (pictórica), que convidam a uma reflexão acerca de sua especificidade poética. Ao dispor do conceito de “no-fi” e infidelidade ao meio para qualificar esses filmes experimentais brasileiros, também têm-se em mente como estes devem mais às elaborações das artes visuais e da poesia da época do que propriamente ao cinema, considerando como a arte brasileira passava (à época dos anos 1970) por um período de exploração multimeios, de se apropriar e fazer intervenção semiótica nos meios de comunicação e novas tecnologias de mídia – mas ainda mantendo uma retórica de experimentação onde entravam o Super-8 e o slideshow, por exemplo, e quando falava-se em contracomunicação (cf. PIGNATARI, 2004) e contraestilo (cf. PINO, 1971), não-narratividade (cf. CANONGIA, 1981), não-objetos entre outras asserções criativas de negatividade (cf. MARTINS, 2013) – valia ali mais a invenção, ou, como no trocadilho de Paulo Bruscky, a “inversão” poética (cf. BRUSCKY, 1999). Nos trabalhos em slideshow, que eram chamados de “audiovisuais” por envolverem reprodução de som em paralelo, a ideia de precariedade técnica e falsa animação fica ainda mais evidente, com o time-lapse e o dissolve programado sendo recursos constantes, como menciona Aracy Amaral (CRUZ, 2013). E, muitas vezes, mesmo o grafismo aparecia atrelado à apropriação de materiais cotidianos, como nas placas urbanas registradas em Luxolixo de Regina Vater, ou da apropriação de materiais não ortodoxos, como nos desenhos de cocaína, feitos em cima de capas de LPs e fotos de celebridades, que Helio Oiticica projetava nas Cosmococas. Observar a ressonância dessas abordagens, identificadas aqui como “no-fi” enquanto instrumento de estudo, torna-se uma forma profícua para investigar essas produções, visto que a disseminação dessas “protoanimações” nos filmes de artistas na época demonstra-se ampla (em anotações pessoais, foi possível listar cerca de 40 artistas brasileiros com filmes que articulariam algo nesse sentido), com o gesto gráfico e pictórico, a trucagem bruta e a manipulação ao vivo ganhando coerência como características de linguagem. A esse repertório, também demonstrou-se relevante acrescentar o trabalho com o significante linguístico, a escrita e a tipografia, visto que eram tendências da época que refletiam-se sobre os trabalhos em filme. 36 Para exemplificar de maneira sintética essa abordagem perseguida pelos artistas, pode-se tomar como exemplo dois brevíssimos filmes da década de 1970 (hoje disponíveis online): Mamãe eu fiz um Super-8 nas calças 3 de Carlos Zílio (1974, Super-8) e“POESIA eVENTO (1975, Super-8) de Gabriel Borba 4. No primeiro, o filme discorre a partir do enquadramento de um bloco de cartolinas contendo o título e os créditos do filme, escritos, e instruções de registro (como “zoom”), reveladas por uma mão que, ritmicamente, puxa folha por folha, “animando” assim o bloco de textos. Já no filme de Borba (que também possuía versão em slides), o título do filme se apresenta numa cartolina única, enquanto letras de recorte no suporte se descolam, aos poucos, e são agitadas pelo “evento” contingente da leve brisa que passa pelo espaço aberto sob o qual foram instaladas. Novamente sem recorrer à animação tradicional, o “invencionismo” das obras dota de ritmo, dinâmica e movimento seus elementos tipicamente “inânimes”. Enquanto no filme de Zílio temos a presença da mão como portadora e provedora de intencionalidade e movimento, com a técnica “no-fi” estendendo-se até ao som do filme, quando o artista credita John Cage de brincadeira (pois o filme efetivamente não tem som), no filme de Borba a animação das palavras é também em tempo real, mas advinda das próprias condições ambientais onde o artista instalou os recortes, numa abertura ao aleatório ainda mais demarcada. Um outro exemplo nesse mesmo sentido é o filme Triunfo Hermético de Rubens Gerchman (atualmente no acervo de filmes de artista do Itaú Cultural5), em que o artista faz instalações de esculturas de palavras em ambientes naturais, deixando-as serem transformadas e movidas sozinhas pelo mar, pelo vento e pelo fogo, com sua câmera registrando esses efeitos “autônomos”. Esse recurso ao tipográfico e aos jogos de palavras também sugere como esses filmes experimentais – vindos de um país com pouca tradição em cinema experimental – herdam muitas das elaborações desenvolvidas em outro meio de maior investimento do vanguardismo brasileiro, a literatura experimental da época, que promovia um diálogo entre a poesia, a arte conceitual e as artes visuais, principalmente através do movimento Poema/Processo. E aqui a ideia de “animação 3 Disponível em: https://carloszilio.com/filme/#primary-menu. Acesso em: 05 ago. 2022. Disponível em: http://www.gabrielborba.gborba.nom.br/pt-br/exposicao&obra=poesiaevento_394#mostraObra. Acesso em: 05 ago. 2022. 5 Disponível em: https://www.itaucultural.org.br/sites/filmes-e-videos-virtual/. Acesso em: 05 ago. 2022. 4 37 no-fi” vem auxiliar-nos justamente a pensar essa transição da poesia para o poema audiovisual. Isso porque em exposições recentes da Galeria Superfície, de São Paulo, houve justamente o resgate de como expoentes do Poema/Processo, tais quais Álvaro e Neide Sá, Flávio Diniz e Frederico Marcos chegaram a realizar filmes abstratos e que dialogam diretamente com a animação – ainda mais nessa chave “no-fi” – por envolverem trucagens simples, raspagem de película e ativação de objetos, texturas e superfícies, onde os eventos são registrados pela câmera ao invés de animados tradicionalmente. Nesse contexto, há uma publicação recente sobre o Poema/Processo (NÓBREGA, 2017) que reproduz um texto de 1973 de Frederico Marcos dedicado à sua proposta de cinema abstrato, onde o artista demonstra como os resultados crus desses filmes tinham mais a ver com uma elaboração própria do que se fossem apenas resultados de alguma incapacidade técnica qualquer. Demonstrando ter estudado a fundo o filme experimental, Marcos chega a citar os projetos de animação de Viking Eggling e Hans Richter nos anos 1920, que eram como storyboards feitos em rolos de papel para imaginar sequências, afirmando essas experiências como antecedentes do poema/processo, no sentido de que o grupo abria mão da palavra em favor da composição gráfica e que almejava também incorporar a impressão visual de movimento. De fato, em uma das coletâneas do Poema/Processo organizada por Wlademir Dias-Pino na década de 1970, já havia o anúncio da proposta de “poemas de animação”, composições gráficas na página que buscavam ativar o movimento na mente do leitor – gesto que também pode ser tido como uma invenção “no-fi”, uma subversão técnica minimalista, que convoca a animação sem a necessidade de tecnicamente efetivá-la. Sabemos também que um dos fundadores do movimento, Moacy Cirne, no livro “Uma vanguarda semiológica” (1975), já destacava que sucessores natos do Poema/Processo seriam as experimentações em Super-8 , como por exemplo no trabalho de Paulo Bruscky: “os caminhos do experimental só podem passar pela leitura produtiva, do slide ao Super-8, do cartaz ao quadrinho, da palavra ao poema (ecologia comunicacional)”, coloca. O apreço e afeto desses artistas pelo novo meio também pode ser notado em uma das experiências em um fotograma de 1976 de Neide Sá, em que a artista compõe uma imagem utilizando-se de cinco cartuchos da bitola (cf. MARGUTTI, 2014). 38 Voltando ao texto de Frederico Marcos, é nele que é possível efetivamente encontrar tanto um gesto em direção à animação abstrata quanto uma rejeição específica das técnicas de animação tradicionais: o foco criativo, como ele descreve, estaria na invenção e modulação de imagens abstratas em frente à câmera, com o artista passando a registrar “todos os efeitos obtidos e suas variações através da função normal da câmera de filmar, sem necessidade das técnicas de animação quadro a quadro” (NÓBREGA, 2017, p. 205). Desse modo, os filmes resultariam então em colagens ou entrelaçamentos de eventos abstratos organizados pelo artista em interação direta com seus materiais, o que dá conta da estrutura mais frouxa dos filmes de Marcos, que intitula todos de “Experiência” – e nota-se aqui, novamente, a afinidade dessas propostas com o “anti-cartoon” de George Griffin. Para além do movimento Poema/Processo, tal cruzamento ou entremeio da poesia visual com a história da animação também pode ser observado, por exemplo, no trabalho Desenho cinemático (1981) de Regina Vater 6, composto de grafismos repetidos e variados sobre um rolo de papel, estilo pergaminho, seguindo os experimentos pioneiros mencionados de Eggeling e Richter em mais uma forma, ao mesmo tempo precária e criativa, de convocar o cinético ao desenho, à poesia e à pintura. Por fim, uma vez tomando como válida essa especulação de que, a partir dos anos 1970, constitui-se informalmente no Brasil uma linha de experimentação audiovisual que demonstra afinidades com a animação mas não se engaja diretamente com suas técnicas, uma possibilidade produtiva que se abre é a de, pensando nos filmes já levantados até aqui e com base nessa formulação do Frederico Marcos, poder-se delinear uma contribuição original dessa vertente de produção tanto para os estudos de animação quanto para o cinema experimental brasileiro – e que, na presente comunicação, pode ser brevemente indicada como relacionada à temporalidade específica que se desencadeia nesses filmes. Um jeito de delinear esse aspecto seria partindo de uma proposta interessante dentro dos estudos da animação, na qual o pesquisador Siegfried Zielinski convoca metáforas da mitologia grega para analisar o animus da animação, sua “espiritualização [do inanimado] via tecnologia” (ZIELINSKI, 2019, p. 306) – ou seja, o “sopro de vida” implícito na nomenclatura dessa forma artística. Segundo Zielinski (In: BUCHAN, 2013), nesse plano metafísico, “animação” envolveria a passagem do tempo cíclico e imutável da máquina, que o 6 Disponível em: https://acervo.mac.usp.br/acervo/index.php/Detail/objects/23245. Acesso em: 05 ago. 2022. 39 autor relaciona ao deus grego Aion, para o tempo da vida, ou seja, de Kronos (cronológico) que é aquele com o qual nos identificamos – fenômeno que, desde os primórdios culturais (como no teatro de marionetes), dependeria da elegância e perspicácia da técnica de animação implementada. Já através do “no-fi”, nessas quase-animações brasileiras, que dispensam qualquer ideia de elegância e maestria, podemos falar então da passagem para outro tempo nesse plano conceitual: o tempo de Kairós, aquele que é fruto do momento, do acaso e do oportuno, e que se expressa nessas buscas por eventos pictóricos e também na abertura da abstração para o efêmero e o acidental, na contingência fortuita entre o concreto e o precário, como buscou-se apontar até aqui. E, como Zielinski também recupera, nas beiradas da vitalidade do animus – a concessão de vigor que move a animação - se esconde sua face oposta, o fantasma da morte e da estase. Nesse sentido a ideia de animação novamente se demonstra fecunda para pensar a produção de filmes de artista em Super-8 e slidetape (“audiovisuais”) a partir da década de 1970, tomando uma chave crítica nos trabalhos em slide e em vários foto-filmes da época, como os de Luiz Alphonsus e de Antônio Manuel, visto que neles o movimento, o sopro que anima o filme, é revertido para o congelamento total da imagem, o rigor mortis. Um retorno ao inanimado utilizado como uma metáfora política para os períodos de maior repressão da ditadura, como por exemplo no foto-filme Semi ótica (1975, 35mm) de Antônio Manuel, o qual faz recurso de imagens de criminosos encontradas em jornais (como num inventário de marginalidade) e encerra com o grafismo de uma caveira que ocupa a tela; enquanto que Natureza (1973), audiovisual (slidetape) de Luiz Alphonsus, encena uma desova de um corpo executado através de fotografias avermelhadas, drenadas do movimento associado à ação fílmica. Já em X (1974, Super-8), de Anna Maria Maiolino, são os objetos e elementos (uma tesoura, um véu preto como de viúva, um líquido vermelho como sangue) que são dotados de movimento, observados por um olho que estremece, abre, fecha e lacrimeja, filmado em isolamento do resto do corpo (ganhando autonomia e animus próprio), até que um grafismo em X encerre o filme. Enquanto isso, em outros filmes, principalmente dos superoitistas que chegaram a buscar uma aproximação maior com o desenho animado e a animação de bonecos, também é possível ver outro aspecto expresso pela ideia de “no-fi”, que seria o de inacabamento e imediatismo, elemento que também acaba por ser incorporado na forma dos filmes, produtos de precariedade de meios, junto da 40 urgência sufocada de se expressar no período de repressão política no país. Aqui um dos exemplos mais criativos seria um filme das irmãs Wagner, Pudim de Morango (1979, 35mm), que usa o jornal como suporte de desenhos, algo que também aparece nas animações (quadro a quadro, mas minimalistas) de Lula Gonzaga que, em seu Vendo/Ouvindo (1972, Super-8), reaproveitou restos de acetato da publicidade para fazer pequenos loops animados (LEITE, 2015). Desses gestos pequenos – teríamos ainda Chico Liberato que, em seus primeiros experimentos, usava as próprias mãos e dedos enquanto personagens animados7 –, um jeito particular de fazer interagir as artes visuais, a poesia e o cinema foi se modelando, como buscou-se argumentar aqui pela proposição da ideia de “animação no-fi”, que incide sobre uma ampla produção ainda a ser explorada (e mesmo resgatada) em termos de historiografia e crítica. Referências: AMARAL, A (org.). EXPOPROJEÇÃO73. São Paulo: Centro de Artes Novo Mundo, 1973. BRUSCKY, P.; TEJO, C. Arte e multimeios. Recife: Zolu, 2010. BUCHAN, S. (ed.). 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