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Parte I - Espaços institucionais no Brasil império Capítulo 2 – A faculdade de medicina do Rio de Janeiro no século XIX: a organização institucional e os modelos de ensino Luiz Otávio Ferreira Maria Rachel Fróes da Fonseca Flávio Coelho Edler SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros FERREIRA, L. O., FONSECA, M. R. F., and EDLER, F. C. A faculdade de medicina do Rio de Janeiro no século XIX: a organização institucional e os modelos de ensino. In: DANTES, M. A. M., ed. Espaços da Ciência no Brasil: 1800-1930 [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001, pp. 57-80. História e saúde collection. ISBN: 978-65-5708-157-0. https://doi.org/10.7476/9786557081570.0004. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0. Capítulo 2 r- âói .4 11 111 PP V AS VF.'.‘-zTF:S TALARES ATUAIS IV / ve /840, — DIRETOR II PROFESSOR CATE:ORATE e) 111 — PROFESSOR SUBSTITUTO AS PRIMITIVAS iV — PROFESSOR VESTES TALARES elmo, V — ~TOE' F31 MEDI( SN.4 Vestes talares dos professores da Faculdade de Medicina Imagem retirada do livro de Fernando Magalhães, O Centenário da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro: 1832-1932. Rio de Janeiro: Tip. Barthel, 1932. 2 A Faculdade de medicina do Rio de janeiro no século xIx: a organização institucional e os modelos de ensino Luiz Otávio Ferreira, Maria Rachel Fróes da Fonseca & Flávio Coelho Edler Introdução Nossa discussão será sobre o processo de constituição das instituições voltadas à formação médica. A atenção estará voltada para a gênese do atual modelo de ensino médico. As narrativas históricas convencionais interpretam o desenvolvimento das instituições médicas como um processo evolutivo linear, não problemático, como algo natural na paisagem social. Acreditamos, entretanto, que devemos destacar justamente os momentos de rebeldia contra os padrões herdados e rotinizados do ensino médico. O ensino médico, tal como o conhecemos hoje, é uma invenção do século XIX. As características mais marcantes do processo de ensino, isto é, do conjunto de etapas sucessivas pelas quais passa o estudante ao transformar-se em médico, foram estruturadas a partir de dois movimentos científicos que revolucionaram, naquele período, a medicina moderna. Inicialmente, com a medicalização do hospital, em um capítulo conhecido como o nascimento da clínica; posteriormente, com a constituição de uma nova medicina de laboratório, em que os fenômenos da vida foram reduzidos ao plano dos fenômenos físico-químicos e submetidos a leis mecanicistas, passando a depender da experimentação animal e da anatomia patológica macro e microscópica. O primeiro momento de inflexão nos rumos do saber médico ocorreu logo após a Revolução Fracesa, com a institucionalização, na Faculdade de Medicina de Paris, do modelo sensualista e morfológico defendido por Fourcroy (1755-1809). Tal modelo transformou o leito do paciente em 59 Espaços da Ciência no Brasil fonte principal de informações sobre os fenômenos patológicos. Baseandose na semiologia clínica e na anatomia patológica, a clínica hospitalar baniu as diversas nosologias do século XVIII explicitamente baseadas nas classificações dos naturalistas. Esse fato levou à generalização das práticas de exploração, como a percussão e a auscultação mediata, com referência sistemática dos sintomas aos dados da anatomia patológica. Até este momento de ruptura com os fundamentos do saber médico legado, o ensino médico baseava-se em informações provenientes de qualquer época anterior. A segunda ruptura foi feita, em parte, por oposição aos exageros sensualistas expressos pelo lema de Fourcroy — Peu tire, beaucoup voir et beaucoup faire. Magendie (1783-1855) e Claude Bernard (1813-1878), dentre outros, propuseram uma reorientação das pesquisas biomédicas, tendo por base a construção de modelos analítico-causais. Tratava-se, então, de conseguir uma explicação teórica da doença solidamente cimentada, recorrendo-se de modo sistemático aos saberes físicos, químicos e biológicos. A investigação de laboratório, penetrando progressivamente na medicina hospitalar, passou a ser a principal fonte de conhecimentos médicos. O hospital mudaria seu perfil e sua função nesse período. Com o desenvolvimento da fisiologia e da bacteriologia, associadas às técnicas de anti-sepsia (1867) e da anestesia — éter (1847) e clorofórmio (1848) — o hospital deixou de ser visto como um lugar para onde se era levado antes da morte. Associando-se à imagem de um local em que os enfermos podiam curar-se, ele mudou o tipo de clientela, pois tornou-se um espaço apropriado para cirurgias e centro de saúde, atraindo as camadas sociais superiores. A tendência à especialização, como forma da divisão técnica da prática médica, tendeu a reforçar-se pelo aparecimento de formas de trabalho referentes a parcelas cada vez menores, embora não menos significativas, da totalidade do processo de diagnóstico e terapêutica. A diferenciação e complementaridade das especialidades clínicas emergentes, relacionadas a novos objetos — certas patologias, áreas limitadas do organismo humano e faixas etárias específicas — estiveram estreitamente relacionadas à mudança das condições institucionais sob as quais se exerciam a formação e a prática médicas. Este processo, aqui apresentado de maneira esquemática, não constituiu uma evolução linear. Pelo contrário, deu forma a modelos institucionais incongruentes, sendo ainda marcado por uma profunda crise — à qual nos referiremos adiante — que afetou as bases da profissão 60 A Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro no Século XIX médica. A universalização dos currículos dos cursos médicos - um resultado recente, somente alcançado na virada para o século atual, - a proliferação das revistas médicas especializadas, bem como os congressos médicos internacionais - o primeiro realizou-se em Paris, em 1867 - são sinais que revelam uma estratégia bem-sucedida. A medicina acadêmica ocidental foi capaz de restabelecer politicamente as bases simbólicas de sua legitimidade profissional em um panorama cultural crescentemente secularizado e marcado por ampla oferta de modelos curativos alternativos. É preciso salientar que a institucionalização destas inovações teóricas e práticas foi amplamente condicionada pela estrutura social na qual se inseriram. O estabelecimento da validade científica e da eficácia prática do saber médico, revolucionado em suas bases epistêmicas, não foi apenas uma questão puramente intelectual. Dissensos, consensos e ampla negociação política entre médicos e outras categorias de curadores, hoje desaparecidas, marcaram aquele processo pelo qual foi sendo erigido o prestígio do médico, como detentor de um saber especializado, e a sólida crença no poder preventivo e curativo da medicina contemporânea. Na Grã-Bretanha, por exemplo, a batalha entre os aphotecaries e surgeorts contra os phisicians foi sendo vencida com os sucessivos passos do Medical Act de 1858, constituindo o General Council e o Medical Register o corpo examinador comum, em 1884, até o definitivo Medical Act de 1886. Na França, os sucessivos intentos de abolir a categoria dos officiers de santé (médicos de segunda classe) formaram um processo similar, cuja solução só seria alcançada em 1892 com a promulgação da lei que reformou, enfim, a profissão médica. Nos Estados Unidos, a forte tradição liberal antepôs uma barreira às pretensões corporativas, encaminhadas por membros da categoria, visando a estabelecer a unificação do monopólio do exercício profissional por meio de um rígido controle dos estabelecimentos de ensino. Somente na primeira década deste século, com a criação do Council on Medical Education, alcançou-se o controle sobre as formas de credenciamento das instituições de ensino. Assim, o processo de constituição de um monopólio oficial sobre o mercado de serviços médicos, legitimado pelo reconhecimento público de sua exclusiva competência, encontrou ampla variação histórica, dependendo dos contextos socioculturais específicos. 61 Espaços da Ciência no Brasil O desenvolvimento das formas institucionais voltadas para a expansão do uso do conhecimento técnico-científico gerado pela medicina, durante o século XIX, foi bastante problemático. Não era fácil sustentar os privilégios profissionais em um contexto marcado por um baixo consenso, entre os próprios médicos, sobre a legitimidade do corpo de conhecimentos herdados. Lembremos que em um curto espaço de tempo ocorreram duas tentativas de refundar as bases legítimas do processo de produção do saber médico. O aspecto mais peculiar dessa crise epistêmica refere-se ao fato de que, a partir de meados do século, ao mesmo tempo em que diminuíam os dissensos sobre a relevância das disciplinas médicas experimentais, aumentava o fosso que separava os conhecimentos sobre os processos fisiopatológicos daqueles relativos à terapêutica. A medicina era tragicamente impotente para realizar seu projeto. Como observou Canguillem (1977:53), "ela não conseguiu passar além de um discurso vazio que incidia sobre práticas (terapêuticas e profiláticas) que muitas vezes se assemelhavam à magia". Apenas no último quartel do século XIX, período dominado pelas conquistas da microbiologia, é que as ações curativas e preventivas da medicina começaram a realizar os sonhos almejados pelos médicos desde o princípio do século. Criação das escolas médicas 110 Rio de janeiro Até 1808, quando foram criadas as primeiras escolas médicas no Brasil, o sistema educacional compreendia unicamente os colégios e os seminários sob a direção dos jesuítas. Com a expulsão dos jesuítas, em 1759, transcorreu um período de vazio educacional, interrompido somente na passagem do século XVIII para o século XIX, quando se processou uma verdadeira renovação do ambiente cultural, inserida nos parâmetros da Reforma Pombalina. Esboçou-se urna dinamização do mundo cultural, expressa pela fundação de associações e sociedades científicas e literárias, bem como pelo interesse por literaturas modernas, notadamente os estudos das ciências. Com a vinda da Família Real para o Brasil, tornando-o centro administrativo do Império, implementaram-se importantes medidas administrativas, econômicas e culturais de impacto sobre o desenvolvimento da medicina no país. Neste contexto transformador, a cidade do Rio de Janeiro será o palco de várias iniciativas culturais e científicas; como a Imprensa Régia, a Biblioteca Nacional, os primeiros periódicos e as instituições de ensino superior. 62 A Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro no Século XIX Norteava a criação dos primeiros estabelecimentos de ensino superior a necessidade de formar quadros profissionais para os serviços públicos imperativos. Em 1808, foram criados os primeiros estabelecimentos de ensino médico-cirúrgico nas cidades de Salvador e do Rio de Janeiro, "em benefício da conservação e saúde dos povos, a fim de que houvesse hábeis e peritos professores que, unindo a ciência médica aos conhecimentos práticos de cirurgia, pudessem ser úteis aos moradores do Brasil."' Lycurgo de Castro Santos Filho considera2 a nomeação do cirurgião Joaquim da Rocha Mazarém para a cadeira de anatomia (2/4/1808) corno o marco da criação da Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro, que funcionou inicialmente nas dependências do Hospital Militar.3 A proposta curricular, que inicialmente abrangia somente os conhecimentos de cirurgia e de anatomia, ampliou-se, abarcando as disciplinas de anatomia e fisiologia, terapêutica cirúrgica e particular, medicina cirúrgica e obstétrica, medicina, química e elementos de matéria médica e de farmácia. Embora inexistam subsídios documentais ilustrativos da estrutura inicial dos cursos realizados no município da Corte, Santos Filho (1991) acredita que estes adotassem as mesmas diretrizes de seus congêneres bahianos (Moacir, 1938). Dessa forma, para ingressar era exigido o conhecimento da língua francesa e o pagamento de uma taxa de matrícula. As lições eram teóricas e práticas, compreendendo estas últimas apenas demonstrações realizadas nas enfermarias franqueadas para este fim. O curso cirúrgico era de quatro anos, ao final dos quais o aluno estava habilitado a prestar exame e a atuar em algumas questões de saúde. Até essa época, o exercício da medicina era facultado somente a físicos e cirurgiões portadores de um atestado de habilitação e licenciados pelo cirurgião-mor do Reino, conforme preconizava o regulamento de 23 de maio de 1800. Sua atuação estava restrita à realização de sangrias, aplicação de ventosas, cura de feridas e de fraturas, sendo-lhes vetada a administração de remédios internos, privilégio dos médicos formados em Coimbra. A criação das escolas de medicina representava o fim de muitas das restrições impostas pela metrópole, possibilitando a formação de médicos no país e transferindo para as mãos destes o exercício da medicina. Na busca de um maior desenvolvimento dos estudos médicos oferecidos pela Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica, determinou-se, em 1810, que três de seus estudantes deveriam aperfeiçoar os conhecimentos cirúrgicos em instituições européias, especialmente em Edimburgo. 63 Espaços da Ciência no Brasil Em 1812, foi criado também o cargo de diretor dos Estudos Médicos e Cirúrgicos da Corte e do Brasil, para o qual foi nomeado o médico da Real Câmara, Manuel Luiz Alvares de Carvalho. É de sua autoria o projeto de reforma do ensino médico, conhecido como Projeto Bom Será, 4 que transformava as escolas do Rio de Janeiro e da Bahia em academias médicocirúrgicas (1813) e propunha a adoção de normas próprias para o seu funcionamento, tendo em vista o fato de que as escolas ainda eram regidas pelos estatutos da Universidade de Coimbra. Nesta nova concepção as exigências para o ingresso incluíam também o conhecimento da língua inglesa, e o curso ampliava-se para cinco anos, distribuídos da seguinte forma: • Plano - anatomia geral, química farmacêutica e noções de farmácia; • 2° ano - anatomia (repetição) e fisiologia; • 3° ano - higiene, etiologia, patologia, terapêutica; • 4° ano - instrução cirúrgica e operações, arte obstétrica (teoria e prática); • 5° ano - medicina, arte obstétrica (repetição). A conclusão destes cursos conferia, ao aluno, uma carta de 'aprovado' ou de 'formado' em cirurgia. A primeira era concedida àqueles que apenas finalizassem os cursos, e a de formado aos que, além disso, freqüentassem novamente as disciplinas do 4° e 52 anos. O 'cirurgião aprovado' poderia atuar somente no campo da cirurgia, compreendendo a realização de sangrias, a aplicação de ventosas, a cura de fraturas, contusões e feridas. O 'cirurgião formado' estaria habilitado a realizar curas de cirurgia e também de medicina, incluindo o direito de tratar todas as enfermidades nos locais onde não existissem médicos licenciados pelas faculdades européias. A partir de então, as próprias academias concediam os diplomas, o que causou protestos por parte dos cirurgiões portugueses, antigos detentores deste privilégio. Entretanto, a expedição de licenças para práticos ainda permanecia como uma atribuição exclusiva do físico-mor e do cirurgião-mor. Em um contexto tão conturbado, o controle sobre as formas de credenciamento para o exercício da medicina era visto como peça fundamental na batalha pelo monopólio sobre a clientela e a conseqüente exclusão institucional de outras categorias de curadores - a que se imputavam práticas de charlatanismo. As reformas do ensino médico refletiam, assim, passo a passo, as tentativas de fixar as bases comuns necessárias ao pleno exercício daquela atividade profissional. 64 A Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro no Século XIX Novos estatutos5 para a Academia Médico-Cirúrgica foram elaborados em 1820, sob a direção de José Maria Bomtempo, determinando, entre seus artigos, que o diretor deveria fornecer anualmente, à Secretaria de Estado competente, informações sobre a situação administrativa e intelectual da academia. A adoção de um sistema uniforme de doutrina científica era determinação imperativa para a condução dos cursos. Para o ingresso exigia-se a idade de 14 anos, o conhecimento de línguas (português e francês) e de lógica. A estrutura curricular, embora ainda em cinco anos, compunha-se dc forma diversa da dos anos anteriores: • 1. ano - anatomia; • 2° ano - fisiologia, patologia; • 3° ano - matéria médica, higiene geral e particular, terapêutica geral; • 4° ano - instituições cirúrgicas e medicina operatória; • 5° ano - medicina clínica, nosografia médica. Ao longo de sua formação, os alunos deveriam freqüentar, ainda, aulas de química e de botânica. O Decreto Imperial de 18266 estabeleceu, de forma mais ampla, a autonomia das academias médico-ciúrgicas, permitindo que estas efetivamente concedessem os dois tipos de diploma, o de cirurgião aprovado e o de cirurgião formado, rompendo assim com o processo de subordinação ao poder do físico-mor e de Coimbra. Entretanto, outras questões relativas ao ensino médico, como a conformação das disciplinas, permaneceram ainda sujeitas às determinações do Governo Imperial.' As deficiências do ensino médico eram, periodicamente, objeto de projetos de reformas e de polêmicos debates parlamentares. Com o impacto da independência política, importava a realização de mudanças que adequassem aquelas instituições ao novo contexto. As academias mostravam-se anacrônicas e deficientes, ainda favorecendo os diplomados em Coimbra. Em 1830, a Câmara dos deputados solicitou à Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro" a elaboração de um novo plano para as escolas médicas brasileiras, do qual derivou a Lci de 3 de outubro de 1832,9 que transformou as então academias (do Rio de Janeiro e da Bahia) em faculdades de medicina. Desde então, formaram-se ali, médicos, farmacêuticos e parteiras. O modelo de ensino seguia o figurino das instituições francesas de ensino superior. 65 Espaços da Ciência no Brasil Sob este novo regime, o diretor da faculdade seria "nomeado trienalmente pelo Governo sobre lista tríplice, proposta pelas faculdades dentre os seus membros".'° O curso médico-cirúrgico passava a ser de seis anos, havendo, paralelamente, um curso de farmácia (três anos) e um de obstetrícia (dois anos), ao final dos quais eram conferidos, respectivamente, os títulos de doutor em medicina, de farmacêutico e de parteira. Era também atribuição das faculdades de medicina a verificação dos títulos de médicos, cirurgiões, boticários e parteiras obtidos em escolas estrangeiras. As congregações poderiam realizar seus próprios regulamentos, propor reformas e eleger os diretores. Novas exigências nos exames preparatórios foram estabelecidas, determinando-se, para o ingresso, a idade de 16 anos completos, um maior conhecimento de línguas (latim e inglês ou francês), de filosofia racional e moral, de aritmética e de geometria e a apresentação de um atestado de bons costumes. O currículo era assim constituído: • 1° ano — física médica, botânica médica e princípios elementares de zoologia; • 2° ano — química médica e princípios elementares de mineralogia, anatomia geral e descritiva; • 3° ano — anatomia, fisiologia; • 4° ano — patologia externa, patologia interna, farmácia, matéria médica, terapêutica e arte de formular; • 5° ano — anatomia topográfica, medicina operatória e aparelhos, partos, moléstias de mulheres pejadas e paridas e de meninos recém-nascidos; • 6° ano — higiene e história da medicina, medicina legal. Nesta nova estrutura curricular, acrescentraram-se as cadeiras de clínica externa e de anatomia patológica para os alunos do segundo ao sexto ano, e as de clínica interna e de anatomia patológica aos do quinto e sexto anos. Ainda na década de 30, o Governo determinou novos regulamentos para as faculdades médicas, fundamentalmente para disciplinar a vida acadêmica, compreendendo tanto a aplicação dos alunos, quanto seu comportamento moral. As reivindicações quanto à carência de recursos próprios para o ensino (gabinetes, laboratórios, aparelhos etc.) eram constantes, suscitando a promulgação de inúmeros avisos ministeriais para a dotação de recursos e proposição de novos projetos de reforma. A distinção que existia entre as atribuições dos médicos e as dos cirurgiões foi extinta somente em 1848, quando passou a ser facultado, 66 A Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro no Século XIX tanto aos cirurgiões aprovados quanto aos cirurgiões formados, o exercício de qualquer ramo da medicina. A Reforma Bom Retiro (1854), levada a termo pelo Ministro do Império, Luís Pedreira de Couto Ferraz (Visconde de Bom Retiro), representou um importante esforço na organização do ensino médico no país, que até então encontrava-se sob a interinidade dos regulamentos de 1832. Apresentaram-se novos estatutos, reformulou-se a administração e ampliou-se o quadro docente com a criação da classe de opositores. A direção das faculdades de medicina era atribuição do diretor e da congregação de lentes, então criada. Os cursos de medicina, de farmácia e de obstetrícia foram mantidos, ampliando-se, porém, o número de disciplinas para 18, com inclusão de anatomia geral e patológica, patologia geral, química orgânica e farmácia. Era grande a preocupação com a questão disciplinar, determinando-se a aplicação de penas. O ensino prático, entretanto, ainda se encontrava incipiente, havendo apenas um pequeno gabinete para as demonstrações práticas, uma sala para dissecações e um ou dois microscópios. Muitos contemporâneos, como o Dr. Antonio José Alvares, eram críticos mordazes desta reforma, ao afirmarem que esta "prometeu-nos estudos práticos e deu-nos professores teóricos; em vez de instrumentos e aparelhos deu-nos ordem para marcarmos as faltas dos estudantes com vírgulas e pontos" (Campos, 1941:68). Apesar das deficiências e das críticas, a Reforma Bom Retiro foi o parâmetro norteador do ensino médico até 1879. Em 1878, o Ministro do Império, Leôncio de Carvalho, objetivando reorganizar o ensino médico, nomeou urna comissão, formada pelos Drs. Vicente Cândido Figueira de Sabóia, Domingos José Freire Junior e Cláudio Velho da Motta Maia, para a proposição de um plano de reforma para as faculdades de medicina. Este projeto serviu de base para o decreto de 19 de abril de 1879, que determinava amplas modificações para a melhoria do ensino, a começar pelo aumento do número de disciplinas (26), de laboratórios (14) e de preparadores e auxiliares. Visando a um melhor aproveitamento dos cursos, propunha a supressão das sabatinas e determinava a obrigatoriedade das provas práticas. Sustentavase, pela primeira vez, a possibilidade da diplomação de mulheres. Propunha a liberdade de freqüência e a prática de cursos livres sobre os diversos ramos da medicina, o que gerou grandes controvérsias. Surgiram várias polêmicas e diferentes interpretações a respeito destas propostas, por meio de avisos e decretos, retardando a adoção dos dispositivos da reforma. 67 Espaços da Ciência no Brasil Foi somente na gestão do Conselheiro Sabóia, período áureo da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (Magalhães, 1932), que as propostas do decreto de 1879 começaram a ser implantadas. O ensino prático, enfaticamente pontuado neste decreto, representava "um meio seguro de obtermos a verdadeira ciência, tenhamos confiança de que agora subiremos a escada dos melhoramentos" (Gaivão, 1882:8). As orientações teóricas do ensino médico Quais eram efetivamente as orientações teóricas transmitidas pelas instituições de ensino médico brasileiras na primeira metade do século XIX? Sem dúvida, a medicina francesa foi a principal referência científica do ensino médico brasileiro no século XIX, principalmente até a reforma acadêmico-administrativa das faculdades de medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, ocorrida entre 1879 e 1884." A medicina francesa era, então, radicalmente transformada pelo que Michel Foucault (1980) denominou de o "nascimento da clínica", marco epistemológico do surgimento da medicina moderna. A medicina clínica definiu o novo modus operandi, que se caracteriza por três princípios basilares: 1) reconhecer no indivíduo determinada doença mediante a observação e descrição minuciosa dos sintomas; 2) distinguir no cadáver uma patologia específica mediante a observação das alterações dos tecidos; 3) combater a doença com as terapêuticas que tenham demonstrado evidente eficácia. Nizza da Silva (1978) ocupou-se em descrever as orientações teóricas vigentes no ensino médico-cirúrgico no Rio de Janeiro no começo do século XIX. Destaca, de início, os compêndios de medicina prática, publicados em 1815 no Rio de Janeiro, de autoria do médico José Maria Bomtempo, professor de medicina prática, matéria médica e farmácia na academia médico-cirúrgica. Essas obras são, na verdade, um resumo simplificado do sistema nosográfico de Philippe Pinel, expoente da medicina clínica parisiense e autor da Nosographie Philosophique (1798). Pinel definiu a medicina como a "ciência dos sintomas", cabendo ao médico, portanto, identificar e classificar uma determinada doença a partir de determinados sinais. Todo o esforço da medicina pinelliana está dirigido para a criação e o aperfeiçoamento de métodos de diagnósticos cada vez mais eficazes. Ao contrário do cirurgião, o médico cuida exclusivamente das enfermidades 'internas', daí a dificuldade de sua prática. Isto porque a 68 A Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro no Século XIX doença está, de certa maneira, oculta no corpo do indivíduo e só é legível por meio de certos indícios. O médico, junto ao leito do enfermo, tem de observar e recolher esses sintomas, mas então dois problemas teóricos surgem: quais os sinais pertinentes para a configuração da doença e que relações esses sinais mantêm entre si, que sistemas formam. Ao estudante de medicina, no início do século passado, ensinava-se, fundamentalmente, a identificar a doença e a classificá-la segundo seus sinais evidentes. Ele não deveria em nenhum momento cogitar sobre suas causas internas. É certo que havia por parte dos médicos uma preocupação com as causas das doenças, mas tratava-se sempre de causas externas: clima, alimentação e estilo de vida. Nizza da Silva também observa que os médicos, além de dominarem o sistema classificatório das doenças, precisavam ter o domínio da "arte de formular", ou seja, o modo de prescrever os remédios necessários para a cura das doenças. Para o ensino da "arte de formular", era utilizado o Novo Ensaio sobre a Arte de Formular, de Alibert, para quem a correta prática exigia que o médico, ao prescrever a medicação, observasse, além dos sintomas morbosos, a 'história' do doente, seu sexo, idade, temperamento e costumes. Advertia sobre o excessivo número de remédios, muitos deles produzidos segundo as 'obscuras' fórmulas de alquimia. Em uma época em que a química fazia revolucionárias descobertas, a "arte de formular" deveria obedecer a determinadas regras objetivas. Alibert enumera 24 regras que recomendam desde a total abstenção do uso de remédios até o estudo das reações individuais ao mesmo remédio (Silva, 1978). A transformação, em 1832, das academias médico-cirúrgicas do Rio de Janeiro e da Bahia em faculdades de medicina tornou mais amplo o espectro da influência da medicina clínica francesa. A relação de livros, elaborada em 1834 pela comissão formada pelos professores Manuel de Valladão Pimentel, Francisco Júlio Xavier e José Martins da Cruz Jobim para constituir o acervo da recém-criada Biblioteca da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, é demonstrativa das orientações teóricas instituídas no novo curso médico. Dividida segundo as cadeiras ensinadas na faculdade, a relação confirma a diversificação da orientação teórica do ensino médico. A identificação dos autores citados permite constatar que a relação de livros contemplava as diferentes orientações teóricas (ou sistemas médicos como eram conhecidos) da medicina francesa da época. Então aí representados a 69 Espaços da Ciência no Brasil nosologia (Pinel), a anatomoclínica (Corvisart, Bayle, Montfalcon, Bradier, Portal), o ecletismo médico (Andral, Louis), além de Broussais que construiu uma doutrina própria. A única e significativa exceção, por não pertencer ao universo da medicina francesa, é Brown, médico inglês que ficou conhecido no final do século XVIII por sua teoria da excitabilidade orgânica, muito difundida na Itália, Áustria e Alemanha (Canguilhem, 1977). A diversidade de teorias médicas inseridas no universo da medicina clínica resultava em um profundo dissenso entre os médicos a respeito do conceito de doença. O estado da polêmica pode ser avaliado em um artigo publicado em 1836 na Revista Médica Fluminense, publicação vinculada à Academia Imperial de Medicina.''- Traduzido do original publicado no periódico francês Journal Hebdomadaire de Medicine, o artigo faz urna severa crítica das doutrinas médicas antigas e modernas, concluindo que todas elas foram incapazes de construir um conceito de doença consistente. Não obstante a diversidade de doutrinas médicas, é possível urna classificação geral das orientações do pensamento médico no século XIX. Segundo Laín Entralgo (1950), as diversas teorias médicas podem ser reduzidas a três distintas mentalidades: a anatomoclínica, a fisiopatológica e a etiológica. A anatomoclínica associava o quadro sintomático à lesão orgânica, considerava a doença como uma alteração da "forma orgânica" e enfatizava a pesquisa dos signos físicos capazes de revelar a existência e a índole da lesão fundamental. A fisiopatologia considerava a doença uma alteração do processo energético e material sustentador da vida orgânica e valorizava a interpretação dos sintomas em oposição à descrição dos signos físicos. A etiologia definia a enfermidade como urna "conseqüência" determinada pela índole dos agentes específicos que a produzem. Os agentes etiológicos poderiam ser desde substâncias tóxicas presentes no meio ambiente até organismos vivos patogênicos. Devido à influência quase exclusiva da medicina francesa, o pensamento médico brasileiro da primeira metade do século XIX reproduziu aqui as polêmicas e as controvérsias científicas que polarizavam o campo médico parisiense. Esse foi o caso da disputa entre o brousseísmo e o ecletismo médico," as duas doutrinas que tiveram maior repercussão no campo médico do Rio de Janeiro, conforme demonstrou Lorelai Kury (1990), ao analisar a produção e as polêmicas científicas da medicina brasileira nas décadas de 30 e 40. 70 A Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro no Século XIX François Broussais, criador da "medicina fisiológica", foi o mais influente e radical médico francês dos anos 20. Criticou simultaneamente a nosologia, a anatomoclínica e o ecletismo. Foi até certo ponto um continuador de Bichat, no que diz respeito às lesões nos tecidos e órgãos, embora considerasse que elas apenas traduzissem um desarranjo de funções. No entanto, ele pretendeu revolucionar toda a medicina. Procurou organizar um sistema médico fisiológico, baseado em proposições simples que valeriam para toda e qualquer enfermidade. Na realidade, não existiriam doenças, e sim "irritações" locais cuja propagação se daria pelas "simpatias" existentes entre os órgãos. As irritações poderiam ser ocasionadas por estímulos internos ou externos (clima, alimentação, "moral"), que sensibilizariam em excesso o organismo. As irritações seriam locais e se desenvolveriam no sentido de uma "inflamação" geral. Segundo Broussais, a maioria das doenças seria manifestação da inflamação do aparelho digestivo, as gastroenterites. O que notabilizou Broussais foi o seu método terapêutico. Ao contrário de Pinel, que confiava no poder de cura da natureza, Broussais pregava a necessidade de intensas intervenções, baseadas no método "antiflogístico", que consistia nas sangrias, na aplicação de sanguessugas e na prescrição de dietas debilitantes. O ecletismo médico foi o mais amplo e heterogêneo movimento médico francês das décadas de 30 e 40 do século XIX. Suas causas estavam no crescente ceticismo dos médicos quanto à possibilidade de cura diante das elevadas taxas de mortalidade dos pacientes tratados nos hospitais e no descrédito dos grandes sistemas médicos, principalmente o brousseísmo. Foram ecléticos os médicos Pierre Charles Louis, Gabriel Andral e Armand Trousseau, referências constantes e obrigatórias na produção médico-científica brasileira do século XIX. Os ecléticos tinham em comum a rejeição pelos sistemas médicos dogmáticos c a valorização da experiência, entendida como o acúmulo de casos observados, e mesmo de necropsias feitas. As estatísticas são, para o eclético, o fundamento de sua atividade médica; são a única certeza de um cientista que só admitia como método a observação e era contrário à formulação de hipóteses. O discurso científico da medicina ensinada na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro entre 1830 e 1860 ganha significado histórico justamente por estar circunscrito ao debate entre o brousseísmo e o 71 Espaços da Ciência no Brasil ecletismo. É somente no final da década de 70 que novos temas relacionados ao advento da medicina experimental começam a repercutir significativamente no ambiente intelectual daquela instituição, determinando mudanças no padrão de ensino vigente. Conclusões Se o processo de institucionalização da medicina acadêmica no Brasil pode ser definido em boa medida como a adaptação às condições nacionais dos modelos fornecidos pelo figurino europeu, as reformas pregadas pelos médicos da Corte, a partir da década de 70, devem também ser interpretadas como um reflexo do amplo movimento que revolucionou as bases teóricas e institucionais da produção do saber médico do Velho Mundo. Agiram, paralelamente, outros elementos, particulares à história nacional. Assim, as reformas realizadas na última década do Império, responsáveis pela introdução da liberdade de ensino e do ensino prático das disciplinas médicas, que mudaram o padrão do ensino na Faculdade de Medicina e possibilitaram a emergência de outros centros de ensino e pesquisa baseados num mesmo modelo de medicina, dependeram da capacidade de sua liderança em combinar o ideal universalista da medicina experimental a um programa médico voltado para o estudo de nosologias e terapêuticas nacionais. Durante a segunda metade do século XIX, a fisiologia, a patologia c a medicina interna alcançaram pleno desenvolvimento disciplinar, sendo gradativamente assimiladas à prática da medicina acadêmica, contribuindo para a especialização da clínica em diversos ramos conexos. A crítica aos diversos sistemas médicos especulativos e ao ecletismo, já mencionados, foi acompanhada de um programa levado a cabo pelos diversos expoentes das novas doutrinas deterministas, que pretendiam estudar os fenômenos vitais à luz dos pressupostos e métodos da física e da química, assumindo como idéias básicas a noção de processo — redução das funções orgânicas a processos materiais — e a de lei científica (Piller°, 1973). Até esse momento de revolução nos fundamentos científicos e práticos, que Entralgo (1973) batizou de "medicina científico-natural", e Ackerknecht (1986), de "medicina de laboratório", os médicos aproveitavam-se das informações provenientes de qualquer época anterior para inseri-las, tanto no plano de sua formação doutrinária, como no da clínica. Os currículos das academias médico-cirúrgicas brasileiras, até 1832, são o testemunho 72 A Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro no Século XIX dessa época em que a simples repetição das matérias constantes no quarto ano conferia ao estudante a posse de um diploma de cirurgião formado, o que o habilitava ao exercício da medicina, negado ao cirurgião simples. Em oposição aos saberes que permaneciam gerais — não especializados — as novas lideranças médicas, que se afirmarão na década de 70 do século XIX, vão convencer a opinião pública ilustrada, em especial os dirigentes políticos, sobre a necessidade de um programa de investigação voltado para um número restrito de fenômenos, que somente o especialista pode desenvolver. Este programa elaborado pelos reformistas a partir das possibilidades surgidas com o manancial técnico e teórico das disciplinas médicas experimentais não foi mera reprodução do saber médico europeu. A legitimação do saber técnico-profissional resultou na construção de uma imagem pragmática da ciência, "a deusa do útil e do necessário", no dizer de um lente de botânica e zoologia, foi crucial para que os reformistas do ensino médico encontrassem apoio para a sua causa. O discurso dos reformistas insistia na estreita dependência entre o progresso nacional e a aplicação inteligente e apropriada que se dá, em qualquer ato da vida coletiva ou particular, às regras e preceitos indicados nos diversos ramos das ciências criadas e desenvolvidas pelos médicos. (...) O FISIOLOGISTA ajuda o mineiro estudando a hematose. Os PATOLOGISTAS estudam as causas das doenças (...) prescrevendo as regras que devem ser seguidas para que as epidemias não encontrem pasto em suas devastações. O médico TOXICOLOGISTA resolve os problemas criminais (...). (Brasil, 1882) Enquanto algumas especialidades médicas encontravam justificativa na formação de quadros para o aparelho de Estado, outras disciplinas eram legitimadas em função de sua aplicação a questões sanitárias estratégicas para o desenvolvimento nacional. A valorização da singularidade da manifestação dos fenômenos mórbidos nacionais criava corno que um virtual monopólio de pesquisas aberto aos médicos brasileiros. O termo 'medicina tropical' não possuía o sentido pejorativo que lhe seria atribuído pouco mais tarde. Pelo contrário, designava todo um vasto terreno a ser desbravado pelos pesquisadores brasileiros. Em que consistiria a novidade do programa proposto pelos médicos reformistas no último terço do século XIX? Em primeiro lugar, vincula-se explicitamente à tradição aberta pelas disciplinas que cabiam no rótulo de medicina experimental. Em segundo lugar, possuíam novos conteúdos, refletindo os avanços da especialização médica e da conseqüente ampliação 73 Espaços da Ciência no Brasil das áreas temáticas de investigação disciplinar, tanto no domínio do diagnóstico, como da terapêutica — ambos relacionados a novos objetos como patologias específicas, áreas limitadas do organismo humano, faixas etárias específicas etc. Por fim, em oposição às concepções prevalecentes até meados do século, as faculdades de medicina são tidas, agora, como o local natural para o desenvolvimento científico, e não apenas as sociedades médico-científicas. A luta pela criação de novas cadeiras de clínicas especiais, associada à reivindicação do ensino prático para todas as outras disciplinas do curso médico, decorre do novo consenso quanto à necessidade de se reunir em uma instituição as atividades de ensino e pesquisa. A valorização do status profissional pressupunha a defesa da autonomia didático-pedagógica. Esta destinava-se a preservar a esfera da formação médica da lógica clientelista que caracterizava as relações entre o governo e os cidadãos. Vistas do plano imediatamente político, as reformas de ensino médico no limiar da última década do Império decorreram como o resultado mais próximo das ações corporativas iniciadas na década de 70, visando a persuadir os poucos personagens que participavam do jogo político sobre sua relevância. A drástica redução do campo de conflitos que pairava a respeito dos fundamentos práticos e teóricos da medicina possibilitou maior eficácia na ação corporativa em torno de urna agenda de reformas nas instituições médicas em que a pedra de toque era a questão da formação profissional compatível com o padrão europeu contemporâneo. As críticas ao sistema centralizador do ensino médico, idealizado na década de 40 pelas elites imperiais e amparado no figurino francês, tiveram um enorme reforço a partir do "Relatório sobre a organização das mais importantes faculdades de medicina da Europa", redigido por 5abóia e publicado em 1873. Esta foi a segunda viagem científica feita por um lente da faculdade comissionado pelo Governo Imperial. A primeira, realizada por Domingos Marinho de Azevedo Americano (1813-1851), em 1843, resultara em uma memória que serviria de base aos projetos que redundaram nos estatutos de 1854. Nesse período, isto é, nos trinta anos que separam o primeiro do segundo relatório oficial sobre o ensino médico na Europa, ocorreram profundas transformações na estrutura do ensino superior dos países — França, Alemanha e Inglaterra — analisados por Azevedo Americano. As novas demandas no campo das pesquisas médicas pressionavam em favor 74 A Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro no Século XIX de mudanças no espaço institucional de formação profissional. Este novo quadro veio a alterar a importância e o prestígio dos principais centros difusores do saber médico. A França, por exemplo, que se tornara o cenário principal da patologia e da medicina interna durante a época dc predomínio anatomoclínico passou, junto com a Inglaterra, para o segundo plano, enquanto a Alemanha passava à vanguarda do desenvolvimento científico, com as palavras de ordem "ensino prático" e "ensino livre", que serviriam para alavancar a Reforma Sabóia (1880-1889). A gestão desenvolvida por Vicente Sabóia mudou profundamente as condições materiais de ensino, criando novas instalações e ampliando as antigas. Muitos cursos livres foram oferecidos nos onze laboratórios criados. Desdobraram-se as cadeiras de clinica médica e clínica cirúrgica. Destacouse a anatomia patológica da fisiologia patológica e criaram-se novas clínicas: obstétrica, psiquiátrica, oftalmológica e dermato-sifiligráfica. O impacto causado aos contemporâneos pela remodelação da Faculdade de Medicina pode ser avaliado pela repercussão que teve na imprensa da Corte e nos debates na Câmara dos Deputados e no Senado. O próprio imperador foi um dos primeiros a assistir a um curso livre oferecido pelo médico francês Joseph Auguste A Fort, que clinicava na Corte. Seria um equívoco, entretanto, imputar todo o mérito da reforma ao diretor da Faculdade de Medicina. O impulso reformista, encabeçado por Sabóia, tinha corno lastro não só o periodismo médico, profundamente atuante desde a década de 1870, corno também as famosas conferências populares da Glória, movimento em que se engajaram, no segundo semestre de 1880, várias lideranças médicas da capital do Império, visando a denunciar a ineficácia das instituições médicas oficiais. A reforma do ensino médico, que comprometia a formação e a própria legitimidade profissional era entendida como condição sino qua non ao combate do exercício ilegal da medicina e à implantação de uma legislação sanitária eficaz. Movimento de caráter corporativo que confluiu para fortalecer o ideário liberal e republicano que ajudou a minar as instituições da monarquia. Notas Carta Régia de 5 de novembro dc 1808 (apue( Lobo, v. 1, 1964:13). 2 Ver Santos Filho, 1991:45. Denominações e sedes da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro: Escola Anatômica, 75 Espaços da Ciência no Brasil Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro (1808) - local: Hospital Real Militar; Academia Médico-Cirúrgica (1813) - local: Hospital da Santa Casa de Misericórdia; Faculdade de Medicina (1832) - local: Hospital Militar (extinto); Faculdade de Medicina (1844) local: Hospital Militar e prédio na Praia de Santa Luzia; Faculdade de Medicina (1847) - local: prédio na Rua dos Bourbons e no Hospital Militar: Faculdade de Medicina (1856) - local: Recolhimento das Órfãs (propriedade da Santa Casa de Misericórdia); Faculdade de Medicina (1918) - local: sede própria na Praia da Saudade (Avenida Pasteur). 4 Plano de Estudos de Cirurgia (apud Lobo, v. 1, 1964:21-22). Estatutos que Sua Majestade Manda que se Observem Interinamente na Academia Médico-Cirúrgica, dez. 1820 (Lobo, v. 1, 1964:23-28). 6 7 8 9 Lei de 9 de Setembro de 1826 (Lobo, v. 1, 1964:29-30). Um decreto imperial, de 1822, assinado pelo Príncipe Regente e pelo Secretário do Estado dos Negócios do Reino e Estrangeiros, promulgou a separação das cadeiras de fisiologia e de anatomia. A Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, criada em 28/05/1829, visava ao desenvolvimento das ciências médicas e sua aplicação em benefício da saúde pública. Fundadores: José Francisco Xavier Sigaud, Joaquim Cândido Soares de Meireles, José Martins da Cruz Jobim, Luis Vicente De Simoni e João Maurício Faivre. Ver Lobo, v. 1, 1964:79-85. 10 Lei de 3 de outubro de 1832. In: Lobo, v. 1, 1964:80. 11 Sobre as reformas do ensino médico no século XIX, ver Edler, 1992. 12 O artigo intitulado "Da moléstia em geral, segundo as diferentes doutrinas médicas" foi publicado sem indicação do nome do autor. Ver, Revista Médica Fluminense, 1836:399428 e 435-446. 13 Sobre a disputa brousseismo versus ecletismo, ver Braustein, 1986. Referências bibliográficas ACKERKNECHT, E. 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João VI, diretor dos Estudos de Medicina e Cirurgia da Corte e Estado do Brasil (1812), físico-mor do Reino, professor substituto de cirurgia na Academia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro (1817). • José Maria Bomtempo (Lisboa, 1774 — Rio dc Janeiro, 1843) Formado em medicina pela Universidade de Coimbra (1798), físico-mor dc Angola (1799-1807), juiz comissário do Proto-Medicato (1808), delegado do físico-mor do Reino, lente de química, elementos de matéria médica e farmácia da Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro (1809), jubilado (1820). Autor de Plano ou Regulamento Interino, para os exercícios da Academia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro, feito e dirigido à Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, por ofício de 14 de agosto de 1820 (Rio de Janeiro, 1825). • José Francisco Xavier Sigaud (Marselha/França, 1796 — Rio de Janeiro, 1856) Doutor em medicina pela Faculdade de Strasburgo, fundador da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (1829), médico da Imperial Câmara (1840), diretor do Instituto dos Meninos Cegos (1855). Autor de "Du climat et cies maladies du Brésil ou statistiquc medicale de cet =pire" (Paris, 1844). • Joaquim Cândido Soares de Meireles (Vila de Sabará/Minas Gerais, 1797 — Rio de Janeiro, 1868) Formado pela Academia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro (1822), cirurgiãomor do Regimento de Cavalaria de Linha de Ouro Preto, Minas Gerais (1823), doutor em medicina e cirurgia pela Faculdade de Medicina de Paris (1827), médico da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro (1829), fundador da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (1829), lente de anatomia e de fisiologia das paixões na Academia Imperial de Belas-Artes, médico da Imperial Câmara (1840), cirurgião-mor da Armada Nacional e Imperial (1849). Autor de "Observações sobre o projeto do Dr. Deputado Uno Coutinho acerca das Escolas de Medicina" (Rio de Janeiro, 1828). Dados biográficos dos principais professores e médicos citados, segundo a ordem de apresentação no texto. 78 A Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro no Século XIX • José Martins da Cruz Jobim (Rio Pardo/Rio Grande do Sul, 1802 - Rio de Janeiro, 1878) Doutor pela Faculdade de Medicina dc Paris (1828), lente de medicina legal (1833), diretor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1842-1872), jubilado (1854). Autor de "Passatempo escolástico no qual procura-se dar em dois discursos uma idéia exata do que deve ser o verdadeiro médico, trata-se de uni caso julgado de ferimentos mortais e reflete-se a legislação relativa ao exercício da medicina e da farmácia" (Rio de Janeiro, 1847). • Luís Vicente De Simoni (Novi/Itália, 1792 - Rio de Janeiro, 1881) Doutor em medicina pela Universidade de Gênova, médico e diretor-médico da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro (1817), fundador da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (1829). Autor de "Relatório sobre duas memórias do Dr. João Maurício Faivre: uma acerca das águas termais de Caldas Novas, na Província de Goiás c a outra acerca da morféia" (Rio dc Janeiro, 1845). • João Maurício Faivre ( França, 1795 1858) Médico, fundador da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (1829). Autor de "Analyse des eaux thermalcs de Caldas Novas - comarca de Santa Cruz, provincie de Goyaz" (Rio de Janeiro, 1844). • Vicente Cândido Figueira de Sabóia (Ceará, 1835 - Rio de Janeiro, 1909) Doutor em medicina pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1858), opositor de ciências cirúrgicas (1859), lente catedrático de clínica cirúrgica (1871), médico da Imperial Câmara (1887), diretor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1881-1889). Autor de "Traité theorique ct pratique de la science ct dc l'art des acouchements" (Paris, 1873). • Domingos José Freire Júnior (Rio dc Janeiro, 1842 - Rio de Janeiro, 1809) Doutor cm medicina pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1866), opositor de ciências acessórias (1871), lente de química orgânica (1874), jubilado (1895). Autor de "Doctrine microbiennc dc la fièvre jaune et ses inoculations préventives" (Rio de Janeiro, 1885). • Cláudio Velho da Motta Maia (Rio de Janeiro, 1845 - Rio de Janeiro, 1897) Doutor em medicina pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1866), opositor de ciências cirúrgicas (1871), lente de anatomia topográfica, medicina operatória e aparelhos (1880), médico da Imperial Câmara (1880), professor de anatomia e fisiologia das paixões na Academia de Belas Artes (1887), jubilado (1891). Autor de "Breves apontamentos para o estudo do ensino médico em Paris" (Paris, 1876). • Manuel de Valladão Pimentel (Macacu/Rio de Janeiro, 1802 - Ilha de Paquetá/ Rio dc Janeiro, 1882) Formado pela Academia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro, lente de clínica interna (1833), diretor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (18391842), médico da Imperial Câmara (1849), jubilado (1866). Autor da tese "A origem, natureza e desenvolvimento dos tubérculos pulmonares" (Rio de Janeiro, 1833). 79 Espaços da Ciência no Brasil • Francisco Júlio Xavier (Rio de Janeiro, 1809 — Rio de Janeiro, 1856) Formado pela Academia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro (1827), doutor pela Faculdade de Paris (1831), lente de partos (1833), jubilado (1850). Autor de "Regras gerais ou meios simplices de se tratarem algumas moléstias agudas complicadas, e mais freqüentes a bordo dos navios em que não houverem facultativos" (Rio de Janeiro, 1834). • Domingos Marinho de Azevedo Americano (Minas Gerais, 1813 — Minas Gerais, 1851) Doutor em medicina pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1838), substituto da seção cirúrgica (1839), lente catedrático de partos (1851). Autor de "Memória sobre o estado atual das instituições médicas em França, na Prússia e na Grã-Bretanha" (Rio de Janeiro, 1844). 80