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Considerações Sobre Literatura e Institucionalidade | Rafael Soares Duarte ______________________________________________________________________ CONSIDERAÇÕES INSTITUCIONALIDADE SOBRE LITERATURA E Rafael Soares DUARTE1 RESUMO: O presente ensaio tem como objetivo pensar a Literatura como objeto de ensino, o que é a literatura ensinada na escola e o que pode ser ensinado por um docente de Literatura. Assim são verificadas disparidades e incongruências historicamente mantidas entre a potencialidade da Literatura como formadora da intelectualidade dos sujeitos educandos e o direcionamento unicamente historicista apresentado no Ensino Médio. São também apresentados esboços sobre direcionamentos possíveis para o ensino da Literatura. Palavras-chave: Ensino. Literatura. Ensino de Literatura. Construção da intelectualidade. 37 ABSTRACT: The purpose of this essay is to think about Literature as an object of study, what is the literature taught at school, and what can be taught to the student of literature, checking out the disparity and incongruence historically kept between the potentiality of Literature as a builder of the students intellectuality and the historicist direction presented at the regular study. Also are presented a few sketches of possible directions about the Literature teaching. Keywords: Teaching. Literature. Literature teaching. Construction of the intellectuality. A problematização aqui levantada versa sobre um dentre os vários questionamentos possíveis a respeito do que é ser professor de Literatura, a partir do lugar onde este texto é escrito, o Brasil do início do século XXI. Essa problematização pode, essencialmente, ser colocada da seguinte maneira: o que é legal na Literatura? De modo mais claro, e mais específico aos interesses do presente texto, a questão fica mais bem colocada da seguinte forma: o que é legal na Literatura ensinada? Legal, é claro, no sentido de potencialmente atraente, algo que pode suscitar o interesse e instigar a inteligência de quem se permite ser levado por um texto literário. Aquilo que é capaz de gerar a relação amorosa e fetichista de que Barthes fala (BARTHES, 1984, p.49). Interessa aqui, o que um professor de Literatura pode, deve, tentar passar aos alunos de Ensino Fundamental e Médio, que seja válido no sentido de despertar e aprofundar ______________________________________________________________________ Nova Revista Amazônica | v. 1 n. 1 | Jan./Jun. 2013 | 37-47 PPG Linguagens e Saberes da Amazônia, Bragança, Pará Considerações Sobre Literatura e Institucionalidade | Rafael Soares Duarte ______________________________________________________________________ neles o interesse por objetos estéticos criados a partir da palavra escrita. Esta é uma preocupação que deveria receber um espaço maior do que o que (não) recebe atualmente, já que é relativa à própria pertinência da Literatura como matéria de ensino. O presente texto pretende esboçar alguns passos nesta direção incrivelmente tão pouco trilhada no ensino da Literatura, fazendo neste sentido algumas observações sobre a relação Literatura, leitor e ensino. Primeiramente, podemos pensar sobre o que a história relativa à Literatura pode nos ensinar a não repetir. A história do Brasil é notória e reconhecidamente marcada pelo atraso. Este não é um tópico que cause polêmica ou precise de maiores explicações, o que permite que esta parte do texto seja sintética, mesmo diante de um assunto tão vasto. A imprensa só chegou ao Brasil em 1808. A alfabetização da população veio atrás, de improviso, vagarosa e insuficiente. A Literatura “brasileira” era portuguesa, já que não tínhamos uma Literatura nacional para contar. Mesmo quando tivemos algo a contar, os nomes portugueses mantiveram-se, para dar algum background literário ao país (LAJOLO & ZILBERMAN, 1996, p.206). No ensino, a opção feita foi pela história da Literatura. Levando-se o termo a sério, não podemos chamar exatamente de história, assemelhando-se mais a uma espécie de catálogo de “principais nomes”, “escolas”, datas, obras “mais importantes” e famigeradas “características gerais”. Talvez o fato mais frustrante para qualquer educador bem intencionado é que o mesmo “catálogo” ainda é parte principal do que se costuma chamar de “Literatura” nas escolas. Essa história pode ser, e é, de grande interesse e provavelmente não somente para os profissionais da área, mas não poderia estar mais distante do interesse de um adolescente em formação do que na forma como é colocada. O desfile de escolas literárias, dividido (dividido!) em Literatura colonial, Barroco, Arcadismo, Romantismo, Realismo, Naturalismo, Parnasianismo, Simbolismo, Pré-modernismo e Modernismo, com esparsos contatos com o texto, representa um deslocamento de foco. E esse parece ser o problema, um deslocamento de atenção, ainda filho de positivismo tão impregnado no ensino brasileiro, que faz com que nos importemos mais com a sucessão cronológica quantificável e avaliável enquanto matéria, do que com a formação de um leitor. Levando-se em conta o deficiente histórico de leitores do país, e o papel que a Literatura como matéria escolar deveria prover, esta problematização (ou provocação) feita ao chamar o ensino institucional da Literatura de “ilegal” (quer dizer, não legal ou “potencialmente maçante”), se faz suficientemente clara. Pode parecer óbvio (talvez não seja, já que não é tratado assim), mas a ______________________________________________________________________ Nova Revista Amazônica | v. 1 n. 1 | Jan./Jun. 2013 | 37-47 PPG Linguagens e Saberes da Amazônia, Bragança, Pará 38 Considerações Sobre Literatura e Institucionalidade | Rafael Soares Duarte ______________________________________________________________________ preocupação do docente de Literatura deve passar pela questão do interesse que cria um leitor, o interesse que motiva e facilita a construção do intelecto, transformando um alfabetizado em leitor. Em “O direito à Literatura”, Antonio Cândido defende a Literatura como direito básico e incompressível do ser humano, argumentando que a força da Literatura está em sua capacidade humanizadora que permite complexificar a ordenação mental de um indivíduo. Cândido distingue três faces da função da Literatura: “construção de objetos autônomos como estrutura e significado (...); forma de expressão (...); e forma de conhecimento” (CÂNDIDO, 1995, p.244) e coloca que “em geral pensamos que a Literatura atua sobre nós devido ao terceiro aspecto”. Afirmando que os três aspectos agem simultaneamente, chama a atenção para o primeiro como “senão, mais importante, com certeza crucial”. O motivo desta importância é que: “Quer percebamos claramente ou não, o caráter de coisa organizada da obra literária torna-se um fator que nos deixa mais capazes de organizar a nossa própria mente e sentimentos; e em consequência, mais capazes de organizar a visão que temos do mundo” (idem, ibidem, p.245). Assim, ao capacitar-se para “reconhecer o modelo de superação do caos posto pela ordenação textual, e a fusão inextrincável da mensagem com sua organização” (idem, ibidem, p.246), o ser humano aprimora seu intelecto: aprende a decifrar formas estéticas e capacita-se para reconhecer um objeto artístico. E, enquanto isso, o que é muito importante, se diverte bastante. Entre as matérias que compõem o quadro escolar, a Literatura diferencia-se por poder lidar diretamente com a subjetividade. Este é seu poder, de onde vem sua “possibilidade de impressionar” (idem, ibidem, p.246). Qualquer pessoa que se torne escritor, professor ou mesmo que permaneça apenas leitor (como se pudesse chamar isso de “apenas”) o será, primeiramente, porque gostou de Literatura. Somente depois de haver fruição da Literatura, é possível aprofundar o pensamento sobre sua história, tempo, espaço, foco narrativo, neologismos, brancos, rimas ou não, métricas ou não, estranhamentos, vazios, escrituras do desastre, etc. ad infinitum. Esta relação entre a fruição da Literatura e o interesse intelectual que ela desperta pode ser mais bem ilustrada através da figura do escritor. Segundo Leila Perrone-Moisés é “o leitor que se torna escritor que define o futuro das formas e dos valores. O que leva a Literatura a prosseguir sua história não são as leituras anônimas e tácitas (...) mas as leituras ativas daqueles que as prolongarão, por escrito, em novas obras” (PERRONE-MOISÉS, 2003, p.13). Assim, a leitura de textos literários traz em si o potencial transformador que cria a própria permanência da Literatura. Estas leituras de ______________________________________________________________________ Nova Revista Amazônica | v. 1 n. 1 | Jan./Jun. 2013 | 37-47 PPG Linguagens e Saberes da Amazônia, Bragança, Pará 39 Considerações Sobre Literatura e Institucionalidade | Rafael Soares Duarte ______________________________________________________________________ cunho transformador, no entanto, geralmente não surgem como parte integrante do ensino normal. No capítulo de A formação da leitura no Brasil chamado sugestivamente de Leituras clandestinas, Lajolo e Zilberman, apontam que “raras vezes as leituras que produzem prazer circulam em ambiente sancionado, como a escola” (LAJOLO & ZILBERMAN, 1996, p.219), cabendo às leituras não obrigatórias o papel de excitar a imaginação e o gosto pelas Letras. Em contraponto com a rigidez da escola, e da ininteligível Literatura escolar, futuros escritores como Graça Aranha, Raul Pompéia e Mário de Andrade encontraram seu interesse pela Literatura nas aventuras fantásticas de escritores como Dumas, Swift, H. G. Wells e Júlio Verne (idem, ibidem, p.218-233). Outros ramos da Literatura, em geral considerados menores pela academia, como a ficção científica e a literatura de terror, influenciam e mesmo inspiram de forma muito maior do que normalmente se acredita, ou se credita. Um bom exemplo pode ser encontrado quando Mário Quintana escreve um poema sobre o escritor de ficção científica Ray Bradbury em Esconderijos do tempo (QUINTANA, 1980, p.67-68). Jorge Luis Borges era outro admirador de Bradbury. No prólogo de Crônicas marcianas, escreve: “O que fez esse homem de Illinois, pergunto-me, ao fechar as páginas de seu livro, para que episódios da conquista de outro planeta povoem-me de terror e solidão” (BORGES, 2005, p.11). No pós-escrito de 1974, ao fim do mesmo prólogo, Borges cita ainda o escritor de terror H. P. Lovecraft, que influenciou fortemente sua obra, e a quem chegou a dedicar o conto There are more things (idem, 1980, p.251). Entre as formas de narrativas escritas existentes, talvez o objeto mais desconsiderado na relação entre a fruição e o ensino de Literatura seja a história em quadrinhos. Mesmo que algumas obras deste gênero já tenham conquistado importantes prêmios literários1, e tenha como primeiro crítico e entusiasta ninguém menos que J. Wolfgang Goethe (MOYA, 1993, p.7; ver também, MCCLOUD, 2005, p.17), a opinião geral ainda fica restrita aos meros clichês excludentes, que a denomina como subliteratura ou, quando muito, paraliteratura. A revista O Tico-Tico (1905), a primeira revista em quadrinhos do Brasil, é exemplar na influência direta de vários escritores, podendo ilustrar, com o perdão do trocadilho, a forte impressão que as histórias em quadrinhos causam nos leitores. Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, coloca seu apreço à revista Tico-Tico em versos do livro Boitempo, como nos poemas “Fim” e “Assinantes” (ANDRADE, 2006, p.989) e um artigo escrito para o Correio da Manhã, ______________________________________________________________________ Nova Revista Amazônica | v. 1 n. 1 | Jan./Jun. 2013 | 37-47 PPG Linguagens e Saberes da Amazônia, Bragança, Pará 40 Considerações Sobre Literatura e Institucionalidade | Rafael Soares Duarte ______________________________________________________________________ escrito para o cinquentenário de revista, onde diz que “O Tico-Tico era de fato a segunda vida dos meninos do começo do século (...) e era também misto de escola disfarçada de brincadeira” (MOYA, 1993, p.36). Érico Veríssimo expõe a relação entre os quadrinhos e o impulso literário de forma mais clara: “Meu pai tomara para mim uma assinatura da revista carioca O Tico-Tico. Estou certo que suas histórias muito contribuíram para a germinação da semente do ficcionista que dormia nos interiores do menino”2. Ainda dentro do modernismo brasileiro, a poetisa Pagú foi autora de tiras em quadrinhos (suas tiras foram publicadas no jornal “O homem do povo”, em 1931. há uma reprodução de algumas dessas tiras no primeiro e único número da revista em quadrinhos Monga, a mulher gorila, 1985, p.42). O escritor Umberto Eco, já havia feito uma abordagem sobre histórias em quadrinhos na qual, além de realizar uma análise detalhada da tira Steve Canyon, de Milton Caniff (ECO, 1976, P.129), também se confessa um grande fã de Peanuts através de um texto que beira o encomiástico (idem, ibidem, p.281), e disse posteriormente a Apocalípticos e Integrados que as obras que poderia ler continuamente eram a bíblia, Homero e Dylan Dog3 (este último uma das criações máximas dos quadrinhos italianos). Talvez uma das boas razões para o preconceito com os quadrinhos seja a falta de qualidade que permeia grande parte do seu meio, mas essa é uma atitude equivalente a desconsiderar a própria Literatura. Em sua maioria as obras literárias não possuem grandes qualidades artísticas, mas isso não as descaracteriza como Literatura nem descarta a Literatura em si como arte; como diz Compagnon, “na sua maioria, os poemas são ruins, mas são poemas” (COMPAGNON, 2001, p. 227). Estas formas literárias (em sua maioria chamada subliterárias, ou ainda paraliterárias, para usar as taxionomias indicadas pelos meios acadêmicos), obviamente possuem alto poder de atração, e pode ser dito que parte desta atração pode surgir do descompromisso destas com as formas que compõem a Literatura ensinada, mas contrariando este argumento, chama a atenção o fato de as mesmas obras marginais serem capazes de iniciar o interesse legítimo de um aluno pela Literatura não marginal da instituição escolar. Em sua formação como leitor e estudante, cada um dos leitores escritores citados anteriormente como exemplo, pôde transitar livremente de obras marginais para institucionais e vice-versa (a declaração de Eco é exemplar neste caso), sem que isso polarizasse antagonicamente sua diversão e sua intelectualidade. Faz-se necessário dizer que, se as obras que constam nos currículos escolares são em sua maioria de potencialidade atrativa idêntica, tal que permitem este livre trânsito, aquilo ______________________________________________________________________ Nova Revista Amazônica | v. 1 n. 1 | Jan./Jun. 2013 | 37-47 PPG Linguagens e Saberes da Amazônia, Bragança, Pará 41 Considerações Sobre Literatura e Institucionalidade | Rafael Soares Duarte ______________________________________________________________________ que causa a ojeriza identificada no ensino atual de Literatura deve-se principalmente ao modo como ela chega ao educando. Neste caso, não se trata de uma literatura “chata” porque é ensinada e institucional, e outra “legal” porque é marginal e descompromissada, mas de uma Literatura que parece ininteligível porque é apresentada de maneira deslocada (através de seus dados historiográficos, como exposto anteriormente, ou muito distante na questão linguística para o aluno não preparado para o tipo de linguagem da maioria das obras estudadas), e outra Literatura que chega ao leitor simplesmente como texto artístico, e por isso pode ser recebida e apreciada como objeto estético, contribuindo para sua formação intelectual. Através da Literatura institucional, entramos também nos domínios do cânone. Dentro da academia a discussão sobre o cânone é tão extensa quanto contraditória em seu trânsito entre o sacro e o profano. Entre listas prontas, nomes revogados e descobertos, clamores sobre injustiças e preconceitos e mesmo discussões sobre sua pertinência ou não, o cânone é defendido como salvaguarda da Literatura e acusado como autoritarismo. Essa discussão, tão ferrenha dentro da academia, aparece dissociada do ensino da Literatura no Ensino Fundamental e Médio, por vários fatores, estando três brevemente expostos a seguir, não necessariamente colocados em ordem de importância. O primeiro: para se compreender de maneira mais profunda o que Leila PerroneMoisés diz com “ou o cânone resiste por ser reconhecido como ativo pela cultura viva, ou ele se torna letra morta” (PERRONE-MOISES, 2003, p.201), torna-se necessário reformular o que pode ser compreendido por “cultura viva”, se uma população em geral, se apenas o meio acadêmico. Fato inegável, a discussão sobre o cânone é basicamente acadêmica. O debate, mesmo sendo extremamente válido e legítimo, está concentrado apenas em um dos lugares onde deveria ser pertinente. Deste modo, mesmo as defesas sobre as maiores marginalidades, ou sobre os escritores mais injustiçados possíveis tornam-se, é forçoso dizer, elitismo. Uma das razões para isso é que o único cânone que se conhece até o nível “médio” do ensino é aquele que consta no livro didático. O que nos leva ao próximo fator. O segundo: a literatura ensinada, ou seja, o cânone ensinado está atrasado. Indiferente à discussão sobre a pertinência ou não da terminologia “pós-modernismo”, o fato é que o ensino de Literatura estacionou no modernismo brasileiro. Sem exageros, é possível dar todo o curso do Ensino Médio de Literatura com um livro didático de vinte, e até trinta anos para qualquer escola brasileira, mesmo as mais exigentes. Sintomático ______________________________________________________________________ Nova Revista Amazônica | v. 1 n. 1 | Jan./Jun. 2013 | 37-47 PPG Linguagens e Saberes da Amazônia, Bragança, Pará 42 Considerações Sobre Literatura e Institucionalidade | Rafael Soares Duarte ______________________________________________________________________ desse fator é a ótima História Concisa da Literatura Brasileira de Alfredo Bosi continuar “atual”, com Carlos Drummond de Andrade ainda aparecendo na parte chamada “tendências contemporâneas”, e não chegando nem mesmo no já canônico (e homossexual, para confundir ainda mais a discussão sobre injustiças canônicas) e nem tão atual assim, Caio Fernando Abreu, por exemplo. Não é de forma alguma uma crítica ao livro de Bosi, apenas a constatação de que ele não é continuamente reescrito, enquanto a Literatura o é continuamente. Assim coloca-se o terceiro problema relativo ao cânone na educação: a Literatura aparece insuficientemente no ensino. As pessoas que formam a cultura viva deveriam receber a literatura em uma esfera maior do que a atual, pois, retomando Bordieu, “todo ensino deve produzir, em grande parte, a necessidade de seu próprio produto e, assim, constituir enquanto valor ou como valor dos valores a própria cultura cuja transmissão lhe cabe” (BORDIEU, 1999, p.218). O ensino da Literatura não faz isso, o que é verdade tanto pelo deslocamento de foco exposto anteriormente quanto pela quantidade de aulas de Literatura existente em um currículo escolar. Não há ensino de Literatura no Ensino Fundamental e há o mínimo no Ensino Médio. Nem mesmo ficando dentro da historiografia oficial há tempo para um estudo aprofundado. A Literatura, ao não mostrar sua importância, consequentemente a diminui. Necessário dizer que estas contradições aqui levantadas não se tratam de mais um ataque ao cânone, mas de confrontar um assunto que tantas vezes dá vazão a um escapismo excludente (de ambos os lados da contenda) com a crua e difícil realidade com a qual deveria travar maior e mais complexa relação. O que quer que o cânone venha a se tornar, a importância de seu passado é inegável “mesmo que a literatura tenha sido, em nossa tradição, uma prática de homens brancos das classes dominantes” (PERRONE-MOISÉS, op.cit., p.198). É importante, com diz Jobim, nos dirigirmos ao cânone “não para buscar respostas, mas para fazer perguntas” (JOBIM, 1996, p.66). Hoje é não apenas possível, mas recomendável questionar aquilo que já foi paradigma, e não precisamos estar, nem continuamos, no caminho homem/branco/dominante. Isso é também de suma importância, mas essa riqueza, e mesmo a confusão em torno dela, deve ser partilhada entre uma maior parcela da população, deste modo, estando em sintonia verdadeira com o ensino, ou essa discussão se torna sem sentido. Chegando ao ensino da Literatura propriamente dito, é necessário considerar toda a grande variedade de fatores que forma seu quadro geral. A forma do ensino de Literatura é historicamente pré-ordenada, vem de órgãos do governo federal, perpassa ______________________________________________________________________ Nova Revista Amazônica | v. 1 n. 1 | Jan./Jun. 2013 | 37-47 PPG Linguagens e Saberes da Amazônia, Bragança, Pará 43 Considerações Sobre Literatura e Institucionalidade | Rafael Soares Duarte ______________________________________________________________________ os governos estaduais e municipais e, ainda deve obedecer ao seu condicionamento como matéria dentro da instituição escolar. A “matéria” Literatura forma, desse modo, um todo complexo que escapa do controle do docente. Declarações como “a educação literária no Brasil visa a sujeitos dóceis e passivos cuja curiosidade instintiva é negada para que desapareça gradualmente das salas de aula” (LEAHY-DIOS, 2000, p.210) parecem insinuar que um plano maligno é continuamente formado e mantido pela mancomunação de professores de Literatura com os governos, o que é uma simplificação vazia e um insulto. Não que não existam interesses escusos em manter um desnível cultural e de formação entre classes, mas ao escrever que “a educação literária no Brasil visa” isso, coloca-se todo o esforço relativo ao ensino da Literatura, não apenas da docência, mas também da intelectualidade e crítica literária como parte interessada na manutenção desta ordem. Obviamente, um absurdo. Concluindo, torna-se necessário um paralelo crítico entre o ensino da Literatura e sua contraparte, o ensino de língua portuguesa. De forma semelhante ao ensino de língua portuguesa, que já está há alguns anos sendo repensado ao menos dentro da academia, o ensino da Literatura necessita de grandes mudanças se quiser tomar seu lugar de direito na construção da intelectualidade dos sujeitos educandos. Aceitando-se que “a Literatura, por maior que seja sua força de transgressão, transita sempre por corredores institucionais” (RAMOS, 2007, s/n), o docente deve também aceitar que seu papel, não menos paradoxal é o de mediador e catalisador da recepção deste diálogo entre a transgressão e a institucionalidade pelo discente. Não é algo simples, nem soa simples e, além disso, implica necessariamente uma tomada de partido do docente pela Literatura e, consequentemente pelo leitor ou, antes, pelo interesse na formação e capacitação de um leitor. Obviamente, existem professores que mantém essa postura no ensino não superior, mas enquanto isso depender mais da índole e força de caráter de um professor, estamos apenas no plano da transgressão, que por mais importante que seja, alcança uma esfera menor do que poderia. Assim como no ensino de Língua Portuguesa, a mudança no ensino da Literatura pode partir das reflexões já existentes dentro da academia, de seus intelectuais, críticos e futuros professores para a prática docente, se estas também forem direcionadas ao ensino fundamental e médio. Os problemas estruturais básicos do ensino da Literatura, como os míseros 45 minutos semanais de aula e a total falta de direcionamento literário no Ensino Fundamental devem começar a ser questionados por nossa intelectualidade e crítica. Essa tomada de partido daria um peso maior às problematizações já existentes, ______________________________________________________________________ Nova Revista Amazônica | v. 1 n. 1 | Jan./Jun. 2013 | 37-47 PPG Linguagens e Saberes da Amazônia, Bragança, Pará 44 Considerações Sobre Literatura e Institucionalidade | Rafael Soares Duarte ______________________________________________________________________ podendo alavancar mudanças, mesmo que estas sejam difíceis e demoradas, ainda a exemplo do ensino de Língua Portuguesa. Também deve ser observado o objetivo do ensino da Literatura, já que propostas que argumentam que “a literatura deveria perder seu status canonicista e estar mais centrada na leitura crítica de textos contemporâneos” (LEAHY-DIOS, op.cit., 217) podem direcionar-se mais acertadamente ao ensino de Língua Portuguesa, onde, aliás, estaria atrasado, pois isto já está começando a ser feito. A Literatura não é subordinada à simples temporalidade, e sua potencialidade humanizadora, para relembrar Cândido, não se esvai com seu envelhecimento. Em vez disso devemos nos esforçar enquanto docentes para que o estudante possa perceber que mesmo textos “antigos” podem ser lidos de forma sincrônica e assim orientar os rumos das próximas leituras e escritas. Já o futuro docente deve estar ciente que essa tomada de partido pode implicar conflito com a instituição, já que o programa de ensino ao qual o docente deve seguir não prevê a necessidade da capacitação de leitores através da Literatura. Novamente, o apoio de uma crítica literária pode fazer a diferença e subsidiar uma ação que saia dos padrões normais do ensino atual. Ao longo do texto foram feitos alguns esboços de propostas para o ensino da Literatura, como: a diminuição e relativização do “monopólio” historiográfico; a existência de ensino literário no ensino fundamental, o que por si resolveria uma grande quantidade de problemas; a utilização, principalmente no ensino fundamental, de outras formas literárias como, por exemplo, as histórias em quadrinhos, como subsídio para iniciar mais facilmente a construção do hábito (que vira vício) da leitura; o aumento de números de aula de Literatura; a atualização das obras dadas no Ensino Médio; e, talvez mais importante, a exposição da Literatura principalmente através dos seus textos. São apenas esboços, visto tratar-se de um assunto extenso e complexo, mas podem indicar alguns pontos de partida. Essas observações são direcionadas a uma mudança de postura frente ao ensino de Literatura que, para desenvolverem-se e se tornarem propostas reais, devem permear a formação dos docentes, e ser apoiada pela academia. Como dito anteriormente, a docência em Literatura deve procurar transformar um alfabetizado em leitor, e isso se dará mais facilmente se o ensino abarcar também a atração que a Literatura obviamente pode exercer. Ao encontrarmos os meios de ajudar o discente a encontrar o que é legal na Literatura, pode-se efetivamente ensiná-la. BIBLIOGRAFIA ______________________________________________________________________ Nova Revista Amazônica | v. 1 n. 1 | Jan./Jun. 2013 | 37-47 PPG Linguagens e Saberes da Amazônia, Bragança, Pará 45 Considerações Sobre Literatura e Institucionalidade | Rafael Soares Duarte ______________________________________________________________________ ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006. BARTHES, Roland. 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Maus, de Art Spiegelman, ganhou o prêmio Pulitzer de 1992, e é considerada uma das melhores obras já feitas sobre o Holocausto. 3 www.universohq/quadrinhos/2006/n13012006.ccfm. Acesso em 20/02/2013. 4 www.universohq/quadrinhos/review_DylanDog40.cfm. Acesso em 20/02/2013. 47 ______________________________________________________________________ Nova Revista Amazônica | v. 1 n. 1 | Jan./Jun. 2013 | 37-47 PPG Linguagens e Saberes da Amazônia, Bragança, Pará