Início da caça aos
golfinhos reabre polêmica no Japão
Todo 1º de setembro, na pequena cidade de Taiji, na costa meridional
da ilha japonesa de Honshu, uma nova estação de pesca começa: a
temporada de golfinhos. Vinte e seis pescadores em 13 barcos
encurralam algumas dezenas de golfinhos em uma pequena enseada e
matam os animais a golpes repetidos com longos arpões e facões. A
angra de 4,6 m² se ruboriza, como se repleta apenas de sangue.
No curso da temporada de seis meses, pescadores matam quase dois mil
golfinhos e vendem a carne para supermercados locais a cerca de US$
500 o golfinho. Os pescadores complementam sua renda capturando
cerca de cem golfinhos vivos e vendendo cada um por dezenas de
milhares de dólares para aquários no Japão, China, Coreia do Sul,
Irã e Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.
A mídia internacional não foi gentil com Taiji no passado e o
documentário "The Cove", um vencedor do Festival de Sundance que
estreou nos Estados Unidos no início deste mês, reabre antigas
feridas. O filme acompanha uma equipe internacional de fotógrafos,
mergulhadores e ativistas em sua missão de documentar a caça a
golfinhos, enfrentando a oposição de autoridades municipais,
policiais e pescadores de Taiji.
Os ativistas são liderados por Ric O'Barry, que treinou os golfinhos
da popular série de TV da década de 1960 "Flipper". Após o final do
programa em 1967, O'Barry se tornou um dos ativistas mais radicais
do mundo contra a criação de golfinhos em cativeiro. Nos últimos
anos, ele tem procurado acabar com a caça em Taiji, uma tradicional
cidade baleeira do Japão.
A denúncia já partiu de outros: a Blue Voice, uma parceria do
cineasta Hardy Jones e do ator Ted Danson, se opõe à caça em Taiji
há anos. Assim como a organização ambiental japonesa Elsa Nature
Conservancy. Em 2007, Hayden Panettiere, estrela da série "Heroes",
foi outra que protestou na enseada de Taiji.
Muitos cientistas também se opõem à caça. Desde 2005, Diana Reiss,
pesquisadora de comportamento animal do Hunter College - famosa pela
descoberta de que golfinhos conseguem se reconhecer em espelhos -
tem coletado a assinatura de centenas de cientistas ao redor do
mundo para uma petição que planeja apresentar no próximo mês à
secretária de Estado americana, Hillary Clinton.
"Essa caça é um caso extremo de crueldade animal", disse Reiss, que
recebe fundos do Comitê de Pesquisa e Exploração da National
Geographic. (A National Geographic Society controla a National
Geographic News) Reiss, os produtores de "The Cove" e outros
ativistas trabalhando em Taiji têm uma missão clara: acabar com a
caça de golfinhos. Mas a prática é um assunto complexo e focar
apenas em seu término deixa perguntas importantes sem respostas:
quão disseminada é a caça de golfinhos? Quando e por que ela
começou, e porque ela persiste? E qual efeito, se algum, a caça
provoca na saúde dos golfinhos globalmente?
Tradição local de gerações
O povo japonês caça golfinhos e seus parentes cetáceos maiores, as
baleias, há centenas, se não milhares de anos. Há 10 mil anos, o fim
da era glacial tornou o Japão um arquipélago, tornando o país cada
vez mais dependente do mar com o crescimento populacional.
"Praticamente toda criatura marinha comestível foi explorada como
alimento", disse o antropólogo e especialista da cultura pesqueira
japonesa Theodore Bestor, da Universidade Harvard. Baleias e
golfinhos estão arraigados na culinária, cultura e religião
japonesa. Os animais eram objetos de celebração, rituais e arte.
Tumbas e monumentos antigos a baleias e golfinhos podem ser
encontrados por todo o país.
Diferente da caça a baleias - que se tornou uma indústria comercial
de grande escala no século XX até a moratória internacional de 1986
-, a caça a golfinhos sempre foi uma atividade primariamente local,
disse o antropólogo da Universidade de Oslo, Arne Kalland.
Tradicionalmente, a caça a golfinhos tem sido uma prática isolada de
algumas pequenas cidades pesqueiras, onde a carne do animal é muito
apreciada.
Ironicamente, uma cidade japonesa onde o golfinho não era popular se
tornou a primeira a atrair a atenção internacional à prática de
encurralar golfinhos em uma enseada. No fim da década de 1970, os
pescadores de Iki, pequena cidade em uma ilha a oeste de Taiji,
passaram a considerar os golfinhos responsáveis pela queda dos
estoques do charuteiro-do-Japão, apesar de não haver dados que
sugiram que golfinhos tenham algum dia reduzido significantemente a
população desses populares peixes. Em abril de 1979, a revista
National Geographic publicou a imagem de uma enseada ensanguentada
de Iki, mostrando golfinhos roaz estirados na praia.
No ano seguinte, Hardy Jones visitou Iki e filmou a matança. Ele
enviou sua gravação para a CBS e, após o canal transmitir as
imagens, mais de 200 repórteres de todo o mundo apareceram para
cobrir a história. Nenhum golfinho foi caçado em Iki desde então. Em
meados dos anos 1980, a maioria das outras cidades já havia
abandonado a prática de cerco a golfinhos, disse Jones.
Algumas pararam pela escassez de golfinhos, que desapareceram com a
pesca predatória ou foram espantados, ou ambos, mas a maior parte
das cidades desistiu devido a toda a atenção negativa. Os cercos não
valiam toda a dor de cabeça. Ainda assim, Taiji se recusou a parar:
em 1980, pescadores mataram 11.017 golfinhos dessa forma.
Caça aos golfinhos pelo mundo
Nos últimos 25 anos, Taiji (com uma população de 3,6 mil) se tornou
um ponto explosivo para ativistas dos direitos dos animais. Mas a
cidade não é o único lugar onde pescadores matam golfinhos. Não é
sequer o único local com uma enseada banhada de sangue. Todos os
anos, pescadores nas Ilhas Faroe, província autônoma da Dinamarca,
também encurralam e matam centenas de golfinhos em pequenas
enseadas. Como em Taiji, a água fica escarlate.
Então por que a caça faroesa não atraiu o mesmo tipo de atenção
internacional negativa? Para começar, a caça é metade da de Taiji,
às vezes menor. Além disso, os pescadores matam baleias-piloto, que
são tecnicamente golfinhos, mas não tão facilmente reconhecíveis
quanto os seus primos roazes, que são a espécie mais comum e
conhecida. A caça também é menos comercial. A carne é dividida
igualmente entre famílias locais ao invés de ser vendida a
supermercados, e não há venda de animais para aquários.
Além disso, as ilhas Faroe respeitam a proibição da caça comercial
de baleias, apesar da Dinamarca querer que ela seja suspensa. O que
também é o caso do Japão - e a oposição declarada de Tóquio à
proibição tornou o país um alvo luminoso para ativistas
antibaleeiros e, por extensão, defensores de golfinhos.
Mesmo dentro do Japão, a pesca em Taiji é pequena se comparada ao
que ocorre no norte, onde arpoadores matam mais de 10 mil
botos-de-dall todos os anos para alimentação - cinco vezes o saldo
anual de Taiji. Mas como a caça no norte ocorre em alto mar, é
difícil fotografá-la, tendo recebido bem menos atenção do que as
enseadas sangrentas de Taiji.
A caça de golfinhos também tem lugar na subsistência de comunidades
do Caribe e do Ártico. Pescadores matam golfinhos frequentemente no
Peru - onde a pesca é ilegal -, mas dados sobre o número de animais
mortos são difíceis de se obter.
Caça das Ilhas Salomão "insustentáveis"
Nas Ilhas Salomão, golfinhos são mortos com regularidade por sua
carne e dentes, usados como enfeite. Como em Taiji, pescadores
vendem um pequeno número de golfinhos a aquários. A caça nas Ilhas
Salomão é uma das menores do mundo - menos de 100 são mortos todo
ano e cerca de uma dúzia é vendida a cativeiros -, mas representa um
problema urgente para conservacionistas, já que a população local de
golfinhos é de apenas de algumas centenas.
"É completamente insustentável", disse Taryn Kiekow, da equipe
jurídica da Natural Resources Defense Council. O antigo treinador de
"Flipper", Ric O'Barry, e o Earth Island Institute, têm feito lobby
com as autoridades das Ilhas Salomão em prol do fim da caça.
No mundo, a maior parte das populações de golfinho está segura. De
acordo com a International Union for Conservation of Nature, há
provavelmente mais de seis milhões de golfinhos no planeta. Algumas
espécies estão sob risco de extinção, mas a maioria está na casa das
centenas de milhares, se não milhões.
"Qualquer um que disser que esses animais serão extintos por causa
dessas caças não terá nenhum dado para sustentar esse argumento",
disse a cientista de mamíferos marinhos da NRDC Liz Alter. Mesmo
assim, ela alerta ser possível que a matança dos botos-de-dall no
Japão prejudique subpopulações do animal, que ultrapassa um milhão
de indivíduos no mundo todo.
"Não comam cheeseburguer"
Shigeki Takaya, diretor-assistente da Divisão de Pesca em Alto Mar
do Ministério da Agricultura, Floresta e Pesca japonês, que
supervisiona a caça a golfinhos, disse que ainda não assistiu a "The
Cove" - apenas ao trailer. Mas Takaya sabe o que os produtores do
filme querem e recomenda-lhes que desistam.
"Qual a diferença entre uma vaca, um porco e um golfinho?",
perguntou. "Não há diferença. Existe um mercado para o golfinho no
Japão. Não é um grande mercado, mas é um mercado. O golfinho é um
recurso e as pessoas precisam respeitar outras culturas. Em outros
países se comem vacas. Mas nunca dissemos aos americanos: não comam
cheeseburger. Nunca, jamais dizemos isso."
Reiss, do Hunter College, responde que a matança em Taiji precisa
acabar simplesmente por ser desumana. Golfinhos são criaturas
extremamente inteligentes que sentem dor e sofrimento, enfatiza. Ela
escutou gravações subaquáticas da caça de encurralamento de Taiji e
diz que os golfinhos emitem sofisticados avisos de aflição.
"A ciência precisa transcender as fronteiras culturais", acredita. A
Associação Mundial de Zoológicos e Aquários (WAZA), com sede na
Suíça, proibiu seus membros de adquirir golfinhos de Taiji. A
Associação de Zoológicos e Aquários do Japão integra a mundial, mas
a maioria dos aquários japoneses não faz parte da associação
nacional.
Gerald Dick, diretor da WAZA, conversou com diversos diretores de
aquários japoneses e disse que é difícil convencê-los a parar de
comprar golfinhos de Taiji quando o custo deles é tão menor do que
reproduzi-los em cativeiro. "Eles não enxergam a caça como algo
particularmente cruel", disse ele. "Eles fazem isso há anos."
Os produtores de "The Cove" argumentam que se os visitantes dos
aquários japoneses soubessem de onde eles conseguem seus golfinhos,
as pessoas deixariam de frequentá-los. A caça de enseada de Taiji
não é amplamente conhecida no Japão, dizem os cineastas, mas eles
estão buscando um distribuidor japonês para o documentário.
Contaminação de mercúrio
Como a maioria das formas de pesca, a caça a golfinhos não é
regulada por nenhuma organização internacional. A Comissão Baleeira
Internacional debate por anos se deve limitar a caça de cetáceos
pequenos como golfinhos, mas encontra um impasse. A comissão foi
criada em 1946 para controlar o mercado de óleo de baleia e depois
assumiu a responsabilidade de impedir que a caça a baleias levasse à
sua extinção. Mas as populações globais de golfinhos estão
saudáveis.
No final das contas, talvez sejam os consumidores japoneses que
acabarão com a caça de Taiji. Ativistas, cientistas e a imprensa
japonesa têm documentado altos níveis de contaminação de mercúrio
nos golfinhos do Japão. "The Cove" apresenta o biólogo marinho da
Universidade Estadual do Oregon, Scott Baker, um antigo beneficiário
da National Geographic Society que testou a carne de golfinho e
detectou em 2005 que ela tinha quase 100 vezes a quantidade de
mercúrio permitida pelas leis japonesas.
Mas o envenenamento por mercúrio não tem efeitos visíveis imediatos,
portanto, apesar do governo japonês já alertar grávidas sobre o
consumo de carne de golfinho, provavelmente vai demorar um tempo até
que as pessoas desistam completamente de um alimento tão ligado à
sua história e cultura. Até agora, o Japão - o maior caçador de
golfinhos do mundo - nada fez para mostrar que vai acabar com essa
antiga prática.