A mística dos Lanceiros Negros

 Lanceiros Negros
“Cabeça de Lanceiro Negro”, do pintor gaúcho Vasco Machado.
 
A questão do destino dos negros após as lutas travadas nos campos de batalha foi um dos grandes motivos de polêmicas entre os líderes da Revolução Farroupilha. Uma discórdia que se instala nos próprios objetivos do movimento, pois enquanto alguns defendiam apenas uma república autônoma e livre do centralismo da corte, outros almejavam ir mais adiante e colocar em prática todo o ideário republicano, que incluía a promoção da igualdade plena entre os indivíduos, o que, no contexto do Brasil da primeira metade do século XIX significava dar fim à escravidão. A questão se tornaria ainda mais importante à medida que os combates militares eram travados nos campos gaúchos, uma vez que cada vez mais os afrodescendentes se destacavam por sua habilidade e efetividade nas atividades guerreiras.
 
Não apenas os afrodescendentes, mas também índios, mulatos e mestiços de um modo geral enxergaram na vitória do legado farroupilha a possibilidade de deixar a incômoda situação em que viviam entre os mais pobres e deserdados da então província, situação que os levaria a engajar-se de forma vigorosa nas lutas travadas pelas tropas chefiadas pelos estancieiros do Rio Grande. Nesse panorama, os afrodescendentes não tardaram a se destacar como grandes guerreiros e valentes soldados, até porque ali decidiam seu futuro, uma vez que foram recrutados com a promessa de que, triunfante a revolução, seriam conduzidos à situação de cidadãos livres. Recrutados nas estâncias e nos campos da província, a maioria ainda cativa, onde já se firmavam como trabalhadores hábeis da dura lida da atividade agropecuária e no manejo de armas, necessário para manter a paz em terras sempre vulneráveis a invasões e grilagens, os afrodescendentes gaúchos haveriam de formar um dos mais lendários destacamentos militares que participaram dos quase dez anos de conflito entre os revoltosos do Rio Grande do Sul e as tropas imperiais: os Lanceiros Negros.
 
Segundo muitos historiadores da Revolução Farroupilha, o destacamento formado por afrodescendentes alcançaria o status de vanguarda dos exércitos farrapos, colocando o nome do General Teixeira Nunes que chefiava os soldados, como uma das principais figuras da Revolução. Outro grande ícone das batalhas travadas em solos gaúcho e catarinense durante os anos de conflito, Giusseppe Garibaldi, não deixaria de fazer menção em suas memórias à valentia e coragem dos lanceiros, citando-os como parte fundamental na sua formação de combatente de tantas causas. Os lanceiros firmaram-se como hábeis cavaleiros, que montavam às vezes “a pelo”, como se dizia à época, ou seja, sem cela os outros apetrechos. As duras condições de vida nos campos e no cotidiano da escravidão dariam a eles capacidades e destrezas que seriam fundamentais nos campos de batalha. Eram disciplinados e dispostos a qualquer sacrifício, frequentemente dormindo ao relento, e revelaram grande habilidade com as lanças de mais de três metros que se tornariam sua marca registrada. Atacavam valentemente o inimigo com gritos que muitas vezes serviriam para abalar a confiança do adversário e podiam atacar tanto pelo chão quanto usando animais de montaria. Ficariam famosos durante os tempos de guerra os bicharás, ponchos de lá que, além de servirem como vestimenta contra o frio e a chuva e forro para dormir, também eram empregados pelos lanceiros como escudo, quando enrolados na mão contrária à que usava a lança.
 
Com o passar dos anos e o efeito arrasador da guerra sobre a economia e a vida dos habitantes do sul do Brasil, o conflito entraria em fase de menor atividade bélica, quando começariam a ser entabuladas as muitas tentativas de negociação de paz. É aí que a situação dos afrodescendentes que lutavam na guerra ganharia contornos de impasse. Isso porque algumas lideranças entre as tropas farroupilhas tomariam partido dos negros e firmariam pé na extinção da escravatura como ponto inegociável para os acordos entre as partes. Líderes históricos da revolução, como Bento Gonçalves e Antonio de Souza Neto, argumentavam que homens que lutaram com eles lado a lado, como verdadeiros soldados, não poderiam voltar à condição de escravos.
 
O Império, por outro lado, sequer admitia a hipótese de atender essa reivindicação dos farrapos, que anteciparia em muitas décadas a abolição da escravidão no Brasil. O trabalho cativo era ainda naquele momento entendido como fundamental para a manutenção das atividades produtivas do país. A possibilidade de libertar apenas os afrodescendentes que fizeram parte das tropas ou todos os escravos do território rio-grandense, como se chegou a aventar, também seria encarado como inviável pela corte, porque isso motivaria ações semelhantes em outras partes do país. O grande medo das elites brasileiras, de uma grande e global rebelião de escravos, parecia eminente caso os negros farrapos obtivessem a liberdade. Assim, estava criado o impasse.

Nos últimos anos antes do desfecho final o general Davi Canabarro, um dos generais farroupilhas que colocavam em segundo plano a questão abolicionista da revolução, assumiria a liderança e seria o grande interlocutor nas reuniões diplomáticas com membros do governo imperial, nas conversas para encontrar a solução do que seria possivelmente o maior entrave à assinatura de um armistício. Durante essa fase a figura de Canabarro ganharia importante relevância histórica principalmente pelo seu envolvimento com os acontecimentos na localidade de Porongos. Em 1844, apesar da suspensão de conflitos em virtude das tentativas de negociação diplomática da paz, uma batalha entraria para a história da revolução Farroupilha, pois o conflito terminaria numa gigantesca carnificina na qual a esmagadora maioria das vítimas era de combatentes negros. As tropas integradas principalmente por lanceiros e chefiada por Canabarro acabariam sendo desarmadas e tocaiadas por tropas imperiais surgidas de súbito. A batalha aconteceria também entre os muitos historiadores que se debruçaram sobre o conflito, alguns afirmando a traição às tropas por parte de Canabarro – um defensor ardoroso de que os farroupilhas abandonassem a questão da libertação dos afrodescendentes para que as negociações de paz avançassem –, enquanto outros sustentariam a tese de quem também o general tivesse sido enganado pelas tropas lideradas por Duque de Caxias.
 
Apesar de haver documentos e provas que embasam as duas teses, o fato é que, terminada a guerra, Canabarro chegaria a enfrentar um tribunal onde teve de se defender da acusação de ter desarmado parte de suas tropas – exatamente seus lanceiros –, processo que terminaria sendo arquivado poucos anos depois. O acontecimento de Porongos entraria para a história do Rio Grande do Sul como um marco da importância dos afrodescendentes não só para a revolução, como para a cultura daquela parte do Brasil. Em 2007, a Fundação Palmares se mobilizaria para imortalizar a participação dos negros nos anseios de liberdade do povo gaúcho. Na própria localidade de Porongos seria prestada a homenagem aos Lanceiros Negros e seus valentes soldados, sendo ali inaugurado um sítio arqueológico para marcar a memória dos que sucumbiram na emboscada. A data da batalha, 14 de novembro, seria incorporada à data nacional da Consciência Negra e seria assim lembrada pelos filhos do Rio Grande do Sul.
 
O destino dos Lanceiros depois de encerrada a guerra também é controverso entre os historiadores. O tratado de paz de Ponche Verde, assinado em 1845, havia determinado que os afrodescendentes capturados ainda em tropas seriam levados para a capital (guerreiros valentes passaram a não ser bem-vindos na província que afinal continuava escravocrata) e lá alforriados. Há quem levante a suspeita de que nunca tivessem obtido a liberdade na corte. Outra versão dá conta de que um grande grupo de lanceiros fugiram para as terras do general Antonio Neto no Uruguai, onde sua descendência vive até hoje. O fato é que jamais chegou a haver no Rio Grande do Sul a abolição de escravos, apesar da condenação da maior parte dos generais ao tráfico que naquele momento ainda era muito abundante. O próprio Bento Gonçalves, ao morrer em 1847, deixaria cativos como herança. Mesmo assim, através da mística dos Lanceiros Negros nos campos de batalha, os afrodescendentes gaúchos entrariam para a história do estado não apenas como mão de obra explorada, mas também pelo sangue derramado pelos ideais da liberdade.
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