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CEMITÉRIO DOS INGLESES, UM PATRIMÔNIO À BEIRA-MAR



A expressão rest in peace – descanse em paz na língua portuguesa, não poderia ser empregada de forma mais literal daquela que se pode observar no Cemitério Britânico de Salvador, popularmente conhecido como Cemitério dos Ingleses. Localizado na Ladeira da Barra, de frente à Baía de Todos os Santos, centenas de homens e mulheres foram sepultados em um imenso jardim vista-mar, dividido em dois níveis. A maioria deles, britânicos que chegaram ao Brasil após fevereiro de 1811, quando a comunidade ganhou o direito de enterrar seus mortos em uma necrópole exclusiva, em terreno concedido pela Arquidiocese de São Salvador.


Foi em 1808 que os primeiros britânicos chegaram à capital baiana, em uma esquadra que escoltava os exércitos invasores de Napoleão Bonaparte. Com a assinatura do Tratado de Comércio e Navegação, entre Portugal e a Grã Bretanha, em 1810, decidiram ficar e explorar o mercado, com vantagens competitivas garantidas pelos baixos impostos. Esse mesmo tratado dava aos britânicos o direito de construção de seus próprios cemitérios. Antes disso, somente aqueles que eram cristãos podiam ser enterrados nos interiores de igrejas católicas, registros facilmente encontrados ainda hoje quando visitamos aquelas mais antigas. Ao restante da população que aqui residia, sobrava a Península de Itapagipe, onde muitos eram enterrados feito indigentes, atitude comum para homens e mulheres que vieram em situações de escravos da África, seus descendentes, e aqueles que eram julgados criminosos. Como gozavam de benefícios da colonização européia, os ingleses estabeleceram ali um lugar para sepultar seu povo.


Foi nesse mesmo período que a Igreja Anglicana se estabeleceu no Brasil, realizando seus cultos na língua inglesa. No terreno do cemitério, ergueu-se uma pequena capela conhecida como Igreja de São Jorge. Durante algum tempo, foi o único templo não-católico romano de Salvador, provando a influência dos britânicos na capital baiana. Com o passar dos anos, estrangeiros de outras localidades ganharam algumas concessões que permitiam seus sepultamentos no cemitério britânico, muito provavelmente por conta da impossibilidade de repousarem ao lado dos católicos. No lugar, ainda é possível encontrar lápides de personalidades americanas, russas, holandesas e italianas. Também é curiosa a presença de lápides com símbolos contendo a estrela de Davi, o que significa a presença de algumas ossadas de judeus no segundo pavimento.




Em 1889, com a proclamação de uma república laica, tornou-se permitido o enterro em cemitérios públicos, como o Campo Santo. Isso deixava de lado essa segregação religiosa, mas não o preconceito. Os estrangeiros continuavam recorrendo ao Cemitério dos Ingleses. Enterrar um ente querido naquele espaço privilegiado era, sem dúvida, reafirmar uma posição de status na sociedade baiana da época.


A decadência e a ascensão Foi em 1938 que o Yacht Club da Bahia ganhou a permissão para a construção de uma rua que liga o empreendimento ao Porto da Barra. A obra atingiu o terreno inferior do cemitério, causando danos às covas que ali repousavam. Segundo consta em documentos do próprio clube,

“O que estava sendo feito era a estrada de acesso, pela prefeitura. Para os primeiros carros, quem abriu caminho foram os próprios sócios, alguns mais decididos, que depois o alargaram, passando entre o cemitério inglês e o israelita. Na ânsia do trabalho e na pressa do resultado, muitos ossos foram para o mar” (Em: Yacht Club da Bahia: 60 Anos de História)

Quando se deram conta, o Cemitério dos Ingleses estava abandonado. Uma comitiva foi criada em prol da sua administração, através da Associação da Igreja de São Jorge e Cemitério Britânico, em 1988. Nesse ponto da história, o lugar já estava tomado pelas ações de vândalos, que quebraram as lápides e impossibilitaram o registro dessas memórias, além do matagal que cobria o local, espantando seus visitantes.



Com a nova organização, formada por um conselho de britânicos, que conta com o apoio da Fundação Clemente Mariani através do Governo do Estado, foi possível recuperar o cemitério e restaurar suas covas, bem como fazer a identificação de antigos jazigos, limpeza e manutenção básica do lugar, que em 1993 foi tombado como sítio histórico pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia.


Quem passa pela sua calçada e consegue enxergar um tiquinho da vista pitoresca da baía, mal sabe a experiência que se tem ao caminhar, observando aqueles túmulos exóticos, sentindo a brisa do mar. Lá é possível encontrar a sepultura de pessoas como Edward Pellew Wilson, fundador da empresa de navegação Wison & Sons, John Ligertwood Paterson, um dos criadores do primeiro Colégio Brasileiro de Medicina Tropical e George Whitehill Chamberlain, o norte-americano responsável por criar o colégio que veio a se tornar, mais tarde, a Universidade da Mackenzie em São Paulo. A primeira mulher sepultada no cemitério foi Maria Constancia d’Araújo Freitas Ogilvie, brasileira e esposa de Thomas Ogilve, em 1837. Charles Darwin, que esteve no Brasil na expedição do HMS Beagle, registrou que dois dos seus companheiros, também tripulantes, que morreram ao aportar em Salvador, haviam sido enterrados no “lugar de sepultamento de britânicos”. Na época, não existia outra possibilidade que não fosse o Cemitério dos Ingleses, mesmo que pesquisadores não tenham encontrado os vestígios dessas ossadas.


A necrópole britânica, embora guarde memórias de um povo distante, de costumes além mar, também resiste preservando a cultura de uma velha São Salvador, nascida da mistura das nacionalidades que foram batidas no caldeirão da história.


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