O processo criativo de Joana Penna ao ilustrar Diário de Pilar

15/10/2021

A ilustradora Joana Penna tem muito em comum com Pilar - a famosa e amada personagem criada por Flávia Lins e Silva -, que ela ilustra desde 2009, quando começou a parceria entre as duas, com o livro Diário de Pilar na Grécia. Joana já morou no Sri Lanka, conheceu a África, a Grécia, a China, Macchu Picchu e, como a Pilar em sua última aventura, a Índia. Sempre levou blocos de desenho e criou diários das viagens que fez ao longo da vida, chegando a encaderná-los pessoalmente com o número certo de dias da jornada.  

A ilustradora comenta que, “quando a Flávia Lins e Silva me procurou em 2009, contando da personagem dela, a Pilar, e que pretendia reescrever os livros em forma de diário, eu me apaixonei de cara pelo projeto, porque juntava três paixões: livro infantil, diário de viagem e Grécia. Quis na hora fazer a parceria com ela e ilustrar os livros novos. E o resto é história. Passados 12 anos, estamos no oitavo livro da série [sete diários e um caderno de viagens], e espero que a rede mágica continue viajando por muito mais tempo!”.

A sétima aventura da série, Diário de Pilar na Índia, com a personagem, seu amigo Breno e o gato Samba, acabou de ser lançada pela Pequena Zahar. Como nos títulos anteriores, este tem uma diversidade de objetos, tecidos, texturas e imagens trazidos do país por Joana. “Eu sempre viajava com a mochila meio vazia, para poder trazer coisas como tecidos, esculturas, artefatos típicos. Visitei uma fábrica de echarpes de seda em Varanasi, onde as máquinas eram todas de madeira, pareciam medievais, faziam um 'tlec-tlec-tlec' ensurdecedor, e tudo cheirava a sândalo, e assisti à padronagem mais fina e delicada ser tecida na minha frente. Fotografei a echarpe laranja que eu comprei lá para o sári da Kamala, amiga que Pilar encontra na Índia, e outra para o sári da Tia Saniya (p. 146).”

Atualmente, a artista mora na Califórnia (EUA) com o marido e os dois filhos e conversou com o Blog por e-mail. Ela falou sobre suas referências e inspirações, sobre o processo de “nascimento” da imagem da Pilar, a viagem interior da personagem no último livro, como a natureza fez parte da sua infância e a ajudou a passar pela pandemia e, claro, sobre a Índia.

 

Quem é a Joana Penna? Pode contar sobre as suas influências e como começou sua carreira de ilustradora?

Eu nasci e cresci no Rio de Janeiro, no sol, na praia, na natureza e numa família que incentivava muito as artes. Meu pai me ensinava a furar a rebentação e pegávamos tatuí (para o jantar, uma vez!), e minha mãe me ensinava a tocar piano e desenhar. Minha mãe pintava a óleo, tocava piano e violão, então cresci rodeada de música, cores e cheiro de tinta a óleo. Meus pais eram arquitetos, então sempre os via desenhando. Eu sempre ganhei blocos de papel e caixas de lápis de cor, de aniversário e de Natal.

Íamos para um sítio, todo fim de semana, onde tinham cachorros, gatos, patos, galinhas, faisões, gansos, cavalos (uns pangarés alugados), estufa, horta, pomar e uma área grande de mata Atlântica - e tanta cobra, que só podíamos ir para o mato de galochas (protegiam contra picadas), e havia um cemitério de cobras no sítio. Vivíamos soltos e meu bisavô dizia: “Não precisa ter medo de nada, só de cobra!”. Tocavam um sino, para nos chamar para as refeições, porque realmente sumíamos no jardim e na mata.

No sítio não tínhamos muitos brinquedos, nem televisão (quando teve TV, era pequena, preto e branco, e não tinha quase programa infantil), então passávamos o dia fora de casa, andando de bicicleta, subindo em árvore, comendo fruta do pé, inventando o que fazer na natureza. A noite era em volta da lareira jogando jogos, cartas, desenhando e ouvindo minha mãe tocar piano. Sempre que chovia, faltava luz. A imaginação era a nossa melhor companheira, junto com os cachorros. Conto isso porque essas experiências todas fazem parte da minha formação, influenciam meus desenhos e meu imaginário até hoje. 

Diário de Pilar na Índia - Na imagem, Joana Penna aparece ao lado de Pilar

Pilar e Joana Penna

Até os 10 anos de idade, estudei numa escola onde as artes eram também muito incentivadas, e toda redação tinha que ser ilustrada. Meus amigos e eu nos juntávamos fora da escola para escrevermos livros, e me lembro de uma menina que viajava numa bolha de sabão. Ilustrar era um processo natural para todos os alunos, e meus amigos que hoje são médicos ou psicólogos desenhavam tanto quanto eu. Eu simplesmente não parei. 

Sempre achei que fosse seguir os passos dos meus pais e me tornar arquiteta, mas no segundo grau não gostava tanto de matemática (risos) e achei que arquitetura seria técnico demais. Não me senti valente o suficiente para fazer Belas Artes e acabei fazendo Design, na PUC-Rio. Não sabia muito o que esperar, mas adorei o curso, e na faculdade ainda comecei a ilustrar livros infantis, meio ao acaso.

Nessa época, a mãe de uma amiga que me via sempre desenhando trabalhava numa editora e pediu para eu levar meu portfólio. Eu não achava que tivesse nada bom ali, mas agradeço até hoje a editora achar que existia em mim algum potencial, e me deram meu primeiro livro infantil para ilustrar, ainda estudante, aos 20 anos (obrigada Regina Lemos, você foi minha fada madrinha!)

Eu sempre amei livros infantis, cresci lendo Monteiro Lobato, uma coleção linda de capa dura, que tinha sido da minha mãe, e Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Tintim, Asterix, gibis da Mônica, Mary e Eliardo França, entre outros que me lembro bem das ilustrações mas não dos títulos. Desde que ilustrei este primeiro livro, tomei gosto pela coisa, e quis continuar ilustrando. Minha tese final de faculdade foi sobre o Design do Livro Infantil, para o qual, entre outras pessoas, entrevistei Ziraldo, Ana Maria Machado, Roger Mello e Guto Lins, que era também meu orientador.

Diário de Pilar na Índia - Na imagem, os diários que Joana Penna fez de suas viagens à Índia

Página do diário de viagem de Joana para Udaipur, na Índia

Ilustrei mais alguns livros durante a faculdade e, quando me formei, resolvi estudar fora por um ano, Design e Ilustração, na EINA, em Barcelona. Nessa época eu já tinha o hábito de desenhar todos os dias. Sempre tinha papel e lápis na mochila, e foi também quando comecei a fazer diários de viagem.

Como os blocos de aquarela nas lojas nunca tinham o tamanho, formato, capa e quantidade de páginas ideais para cada destino, eu me interessei por encadernação, para poder fazer meus próprios diários. Comecei com um diário para o Marrocos, encadernado por mim com capa de couro (retalho comprado numa confecção de roupas, perto da minha casa), papel de aquarela e o número de páginas exato para o número de dias na viagem.

Diário de Joana para o Marrocos

No final desse ano fora, já planejando minha volta definitiva para o Brasil, fui mochilar pela Europa e acabei conhecendo meu marido inglês (nascido no Recife!) na Grécia, e acabei não voltando. Fui morar em Londres, e depois de um ano e meio estudando encadernação e artes, e trabalhando como babá, ele recebeu uma proposta de trabalho no Sri Lanka, na Ásia. Nos casamos e fomos juntos. Depois de quatro anos na Ásia, fomos morar nos Estados Unidos, onde estamos até hoje, há mais de 18 anos, e onde nasceram nossos dois filhos.

 

Antes de falar sobre a Pilar e a Índia, você pode contar como surgiu a imagem da personagem? Você se inspirou em alguém para ilustrá-la? 

A Pilar, como eu a desenhei, surgiu muito rápido, pelo menos na minha cabeça, no primeiro encontro que tive com a Flávia, quando ela veio a Nova York e nos encontramos para conversar sobre a série. É como quando se lê um livro sem imagens, você automaticamente imagina como são os personagens, assim que escuta deles. Minha lembrança é que, enquanto conversávamos, eu tinha lápis e papel na mão, e fui anotando o que a Flávia me contava da Pilar, rabiscando algo. Depois fomos afinando a imagem e houve ajuste, claro.

Nos dias seguintes, fiz vários esboços de estudos da personagem - roupas, cabelos, expressões diferentes no rosto, poses, andando, correndo, pulando, caindo etc - e também a logo para o nome dela, afinal, minha formação é de designer. Eu não conseguia conceber a personagem sem conceber junto a identidade visual dela, com logo, e uma linguagem gráfica. Enviei os primeiros estudos a lápis, por e-mail, para a Flávia. Ela achou que a Pilar parecia muito novinha e desenhei ela mais velha. Ficou adolescente demais, rejuvenesci ela um pouquinho. Até que finalmente gostamos.

Então houve muito bate e volta de desenhos nesse momento. Aí a Flávia pediu para acrescentar o bolso mágico. Inicialmente eu havia desenhado a Helena de tranças e Pilar de cabelo solto, e Flávia, ao ver as tranças da Helena, adorou e pediu para eu trocar. Foi uma construção a quatro mãos mesmo, nesse início. 

Diário de Pilar na Índia: Joana Penna mostra os primeiros esboços da personagem Pilar

Estudos e primeiros esboços da Pilar

Além das ilustrações, eu fiz o design do livro também. Sugeri o fundo pautado, como diário, e o livro todo colorido. Sugeri as fontes. Criei a logo da capa, já pensando na expansão da coleção (o papel pardo com a logo seria uma constante, o fundo colorido mudaríamos de acordo com o destino). O Autoretrato Explicado, constante em todos os livros, onde apresentamos a Pilar antes da história começar, foi inspirado no Asterix, que tem uma página inicial igual em todos os volumes, introduzindo o contexto da história.

Para os detalhes do visual da Pilar, me baseei muito na minha filha Sofia, então com 4 anos. Ela tinha uma jardineira jeans com o mesmo tipo de costura que a jardineira da Pilar, e usei como referência. Ela sempre usava uma legging embaixo dos vestidos, porque onde morávamos era frio, e também para poder se sentar de pernas cruzadas na escola e dar cambalhotas, sem mostrar a calcinha. A malinha da Pilar também foi baseada numa malinha igual, que ela tinha.

E até a postura do primeiro desenho da Pilar, segurando a mala, o Samba, presente na capa do primeiro livro e no Autoretrato Explicado, foi baseado na Sofia: como ela se apresentava, suas posturas e atitudes. Ela e Pilar são parecidas, não fisicamente, mas a personalidade: curiosas, extrovertidas e destemidas. Então me inspirei muito na minha filha para achar a atitude e a postura certas nos desenhos. Às vezes eu até pedia para a Sofia posar para mim! [Risos] 

Foi a Flávia quem criou a personalidade da Pilar, claro, mas a Sofia me ajudou a saber como ilustrá-la.

Diário de Pilar na Índia - A personagem Pilar sempre viaja com seu gato Samba

Pilar, sua jardinaeira com bolso mágico e o gatinho Samba

 

Eu também quis fazer uma personagem com um traço simples, que eu pudesse repetir várias vezes nos livros, e que não fosse muito difícil para as crianças desenharem - eu adorava desenhar meus personagens preferidos na infância! E alguns eram muito difíceis... E também queria que a Pilar tivesse uma roupinha sempre igual, um visual bem icônico e fácil de reconhecer, num desenho ou numa fantasia, se por acaso um dia as crianças quisessem se vestir de Pilar.

É claro que no começo a gente não sabe se o livro vai fazer sucesso ou não, e eu achava que só a minha filha e as filhas das minhas amigas se fantasiariam de Pilar. Hoje eu fico superfeliz de receber tantas fotos de leitores vestidos como ela!

 

Você conta que já visitou a Índia algumas vezes, enquanto morou no Sri Lanka. O que a levou até lá?

Meu marido Johnny era provador de chá, e o Sri Lanka é um dos maiores exportadores de chá do mundo. Ele foi transferido para lá. Na época, o país estava em guerra civil havia 18 anos, por isso havia pouco turismo, e era uma ilha tropical paradisíaca e bem intacta. O Sri Lanka é predominantemente budista, cheio de templos lindos, elefantes, monastérios, muita natureza e a cada lua cheia é feriado. Tínhamos vinte e poucos anos, recém-casados, sem filhos e aproveitamos para mochilar muito pela Ásia. Naquela época, mochilar pela Ásia era muito barato. 

Como não havia mercado editorial lá para trabalhar como ilustradora, fui diretora de artes em uma agência de publicidade, mas supria minha vontade de desenhar fazendo meus diários de viagem, que sempre carregava comigo nessas viagens.

 

Você esteve em outros lugares por onde a Pilar passou ao longo da série? Como foi a pesquisa para ilustrar os lugares onde não esteve pessoalmente?

Eu tive a oportunidade de viajar bastante nesse período depois da faculdade e antes de ter filhos. Então eu tinha ido para Grécia, Egito, China, Índia, África. Na África, fui para países diferentes dos que a Pilar foi, mas uma amiga nigeriana me ajudou muito na pesquisa, e eu tinha objetos do Quênia e da África do Sul que entraram no livro. Para Machu Picchu, fui especialmente para ilustrar o livro - uma viagem rápida, enquanto meu marido e minha família cuidavam dos meus filhos no Rio.

E para a Amazônia, o mais pertinho de casa, eu nunca fui! Na época, meus filhos eram muito pequenos, não dava para ir sem eles nem com eles. Tive que fazer toda a pesquisa para o livro igual aos estudantes durante a pandemia: sem sair de casa. E, como vocês sabem, dá para aprender muito sem sair de casa. Então usei livros, fotos, depoimentos, internet, museus, referências que a Flávia me enviou (ela já tinha ido) para a minha pesquisa do Diário de Pilar na Amazônia. Essa viagem ainda está na minha lista, quero muito ir um dia!

Mesmo para ilustrar os livros dos países que eu já havia visitado, usei muito a internet, livros e museus para a pesquisa. Para os livros da Grécia, do Egito e da China, eu visitei e fotografei muitas coisas no Museu Metropolitan, em Nova York. Para o livro da China, visitei o bairro chinês, em Nova York, durante vários fins de semana seguidos, para comprar objetos, fotografar tecidos, texturas, lojas, dragões, chás, o ano novo chinês etc. 

Eu adoro a parte da pesquisa necessária para ilustrar cada livro e aprendo muito sempre, primeiro com o texto da Flávia, e depois com a pesquisa adicional que faço para as referências de imagem. 

 

E como foi a pesquisa para ilustrar o Diário de Pilar na Índia? Os objetos, carimbos, imagens de deuses e estampas de tecido que aparecem no livro vieram dessas passagens pelo país?

Durante os quatro anos em que moramos no Sri Lanka, visitamos a Índia várias vezes. Às vezes para um fim de semana rápido (os dois países são pertinho), às vezes em férias de dez dias. A Índia é um país enorme, como o Brasil, e formado por vários antigos reinos independentes, possuindo assim 22 idiomas oficiais e mais de 100 não oficiais. Cada região tem sua cultura própria, e a arquitetura, a culinária, a paisagem varia imensamente através do país. Você pode ir várias vezes e vai sempre ver coisas diferentes.

Diário de Pilar na Índia - A ilustradora Joana Penna mostra os objetos trazidos da Índia

Pilar e objetos que Joana trouxe da Índia

Há uma região no Oeste da Índia onde os portugueses chegaram no século 16, e a dona da nossa pousada falava português e tinha o mesmo sobrenome que eu! Em outras regiões, há influência árabe, como no Taj Mahal, e os palácios parecem saídos de contos de fadas.

Nas minhas visitas à Índia, fiquei com a impressão de que há cantos onde a atmosfera ainda é medieval, no sentido positivo e romântico da palavra. As pessoas ainda fazem as coisas do mesmo jeito, há séculos - os mercados, os templos, os artesãos, alguns costumes e tradições. Diferente das culturas pré-colombianas da Mesoamérica e da América do Sul, que foram dizimadas com a colonização espanhola e hoje só temos ruínas e história, as cidades medievais indianas ainda estão vivas e borbulhando. E sua religião e cultura estão intactas. 

As cremações na beira do Rio Ganges, em Varanasi, por exemplo, devem acontecer do mesmo jeito há centenas de anos. Os templos e cerimônias hindus também parecem centenares.

A Índia é uma festa sensorial sem igual - é dos lugares mais estimulantes e impactantes que já fui na vida. Foi onde observei os maiores contrastes entre modernidade e tradição. Avanço tecnológico e simplicidade de vida. Luxo e pobreza. Sofisticação e singeleza. 

Diário de Pilar na Índia - Miniaturas que a ilustradora Joana Penna coletou na Índia e usou para se inspirar na ilustração do livro

Miniaturas indianas trazidas da Índia por Joana Penna

Eu sempre viajava com a mochila meio vazia, para poder trazer coisas como tecidos, esculturas, artefatos típicos. Visitei uma fábrica de echarpes de seda em Varanasi, onde as máquinas eram todas de madeira, pareciam medievais, faziam um “tlec-tlec-tlec” ensurdecedor, e tudo cheirava a sândalo, e assisti à padronagem mais fina e delicada ser tecida na minha frente. Fotografei a echarpe laranja que eu comprei lá para o sári da Kamala, amiga que Pilar encontra na Índia, e outra para o sári da Tia Saniya (p. 146).

Os carimbos de madeira que aparecem no livro são esculpidos à mão e usados para imprimir em tecidos de algodão, criando as estampas mais coloridas e variadas, outra técnica bem tradicional de lá. A seda bordada à mão no fundo da capa do livro é de um sári que comprei na Índia. O fundo da primeira página do livro, com a Pilar como deusa hindu, é uma colcha também toda bordada à mão e cheia de espelhinhos. Na Índia há uma tradição artesanal milenar, sofisticada e prolífica, exportada para o mundo todo. Vários dos tecidos indianos que tenho em casa foram comprados em lojas no Brasil.

Diário de Pilar na Índia - Nesta imagem do livro, Pilar se veste como deusa hindu

Pilar como deusa hindu, cujo fundo é uma colcha que Joana comprou nas suas viagens para a Índia

Enquanto leio o manuscrito da Flávia pela primeira vez, vou imaginando as cenas que quero ilustrar, mas também pensando nos objetos que tenho, que quero fotografar para colocar no livro. Minha intenção é que esses objetos ajudem a dar um ar de diário ao livro. Eu tento mantê-los em escala 1:1 sempre que possível, para parecer mesmo que estão em volta da Pilar enquanto ela escreve em seu diário (o lápis, um clip de papel, suas anotações no post-it amarelo, colares, carimbos, plumas, selos, potinhos, folhas etc). Sem eles, eu acho que ficaria com cara de um livro tradicional, uma história ilustrada, e não um diário.

 

Há uma ilustração que faz referência à gravura "A onda", do artista japonês Katsushika Hokusai. Você costuma se inspirar em outras formas de arte para ilustrar?

No momento em que li o título do capítulo “Um tsunami em mim”, imediatamente pensei nessa gravura icônica, que amo. Ao longo da vida todos nós vamos montando uma biblioteca de memórias e imagens na cabeça, de tudo o que vimos, gostamos, o que nos impactou, emocionou, influenciou. Desde pessoas, fisionomias, situações e interações a paisagens, livros da infância, arquitetura, quadros, cores, lugares. Tudo o que eu vi até hoje na vida me serve de referência, pode me inspirar e certamente influencia meu trabalho.  

Ilustração de Joana no "Diário de Pilar na Índia" que é inspirada na gravura "A onda", do artista japonês Katsushika Hokusai

Como eu amo essa gravura do Hokusai, e não conseguia imaginar outro jeito melhor de ilustrar um tsunami, resolvi incorporá-la ao desenho. Tive que recriá-la, por questões de direitos autorais, mas amei o processo de copiar de um mestre, e aprendi muito com a experiência. Do mesmo jeito, aprendi a desenhar dragão chinês copiando a ilustração de um potinho de porcelana que comprei no bairro chinês em Nova York. 

 

Diário de Pilar - Joana Penna desenhou dragões inspirados em porcelana

Ilustração de dragão chinês feito por Joana, inspirada em pote de porcelana comprado em Nova York

No Diário de Pilar na África, quando fui pesquisar referências de um engenho de açúcar em Salvador, achei na internet um quadro lindo de François-René Moreaux, do século 19 - uma paisagem do Solar do Unhão, à beira da Bahia de Todos os Santos. A casa era um antigo engenho de açúcar, onde hoje reside o Museu de Arte Moderna da Bahia. A antiga senzala hoje abriga um restaurante sofisticado. Como o quadro é do acervo do próprio museu, os contactamos para pedir permissão para o uso da imagem, e eles gentilmente cederam. Eu depois acrescentei os personagens, e a cena que queria ilustrar ao quadro.

Há outras referências ou homenagens que são mais sutis e eu sei que ninguém vai perceber, mas que eu faço por pura curtição: quando tive que compor a cena da dança das icamiabas, no Diário de Pilar na Amazônia, eu não tirava o quadro "A dança", de Henri Matisse, da cabeça. Resolvi basear a minha ilustração na obra, reproduzindo o mesmo movimento corporal das figuras e composição espacial do quadro. Mas, como a técnica, os personagens e o resultado final são tão diferentes ninguém faz essa associação.

 

Diário de Pilar - Joana Penna mostra uma cena de Pilar na Amazônia inspirada em quadro de Matisse

O quadro de Matisse que inspirou Joana e a ilustração no "Diário de Pilar na Amazônia"

No Diário de Pilar na Grécia, usei uma pintura da minha mãe como fundo, uma natureza morta da Grécia, e acrescentei a Helena e o Tirésias nas cadeiras. São homenagens e referências que eu gostaria que as crianças conhecessem, ou curtições secretas, que acho que enriquecem o livro de uma maneira ou de outra. Certamente me divertem!

 

Que técnicas você costuma usar para ilustrar? 

Eu sempre começo a esboçar a lápis, depois traço à caneta num papel bom de aquarela, com umas canetas sensacionais japonesas, a prova d'água. Depois, pinto com aquarela. Os desenhos são, então, escaneados e a ilustração é finalizada no computador, numa colagem digital. Ali eu acrescento a textura do jeans da Pilar, junto os personagens ao fundo (são desenhados separadamente), uso filtros, adiciono luzes, sombras, acrescento fotos de objetos que eu fotografo etc.

 

E quanto tempo, mais ou menos, você leva para ilustrar um diário da Pilar?

Essa pergunta é difícil! Varia muito... O do Egito foi o mais rápido, acho que demorei uns três meses, sem contar a revisão. O da China demorou muito mais, uns nove meses de trabalho, incluindo a revisão. O livro da China tinha umas 50 páginas a mais do que os anteriores, era significativmente maior. E as ilustrações em si eram mais trabalhosas também, mais elaboradas, acho que pela natureza da estética da arte e tecido chinês em si, que são superdetalhados.

A Índia demorou muito também, perdi a conta dos meses. Esse último livro tem ainda mais páginas que o da China, e a natureza dos desenhos indianos - padrões de tecidos, templos, deuses hindus - também é bem minucioso, cheio de detalhes. Foram muitos e muitos meses desenhando em tempo integral. 

 

Do que você mais gostou na Índia? Pode falar um pouco sobre como é a vida das crianças nesse país tão distante?

A minha resposta pode parecer clichê, mas eu acho que criança é criança em qualquer lugar do planeta. São sempre muito parecidas no que diz respeito ao que precisam e apreciam: amor, afeto, conexão, reconhecimento, proteção, pertencimento, muita brincadeira e qualquer oportunidade para aprender e explorar seus mundos. São os adultos que depois complicam, se estranham, se afastam e se acham “diferentes” dos outros. 

Tive que refletir bastante para responder esta pergunta, tentando me lembrar qual a minha impressão da vida dessas crianças na Índia ou no Sri Lanka (países muito próximos culturalmente) e qual seria a diferença para as crianças no Brasil, e a verdade é que eu não acho muito diferentes.

Ambos os países têm um clima ameno, e as crianças podem brincar muito ao ar livre. Ambos os países têm famílias grandes, com muitos irmãos, primos, tios, avós por perto, na criação e convívio diário. Ambos têm uma cultura alegre, calorosa, onde as pessoas chegam pertinho umas das outras, se tocam, se abraçam, se beijam, falam alto. Para as crianças, nem a língua é uma barreira.

Eu me lembro de uma ocasião na Índia em que eu estava esperando meu marido para sairmos para jantar, e fui para o lado de fora da pousada. Era fim de tarde, e havia um grupo grande de crianças brincando na rua. Me sentei num canto para ficar olhando. Logo elas me notaram e vieram conversar comigo, fazer contato, eram curiosas, sabiam que eu não era dali. Em poucos minutos eu estava rodeada, me jogaram a bola, me chamaram para a brincadeira, riam, e seguimos falando, cada um a sua língua, sem entender uma palavra da língua do outro, mas nos compreendendo muito bem.

Também me lembro de outra ocasião, no Taj Mahal, onde me sentei sozinha num banco de mármore, na entrada do monumento, para desenhá-lo. Fiquei ali compenetrada, desenhando, sem notar o que acontecia em volta. De repente, ao terminar, percebi que estava rodeada de crianças - de uma família inteira na verdade, umas vinte pessoas, mas as crianças eram as que estavam bem pertinho de mim - e estavam todos me olhando desenhar, fazendo comentários, sem a menor cerimônia, em uma língua que eu não compreendia, e sorriam. Essa cena me faz rir até hoje...

O que eu mais gostei na Índia? Acho que essa intensidade que a Índia oferece como nenhum outro lugar que eu visitei. É uma festa aos sentidos. 

 

Você medita ou faz ioga?

Eu faço ioga desde os 16 anos. Comecei a fazer para ver se me ajudava a lidar com a dor da morte da minha mãe. Na época, quase ninguém fazia ioga, era meio exótico, nenhum amigo meu fazia. Não existia em academia nenhuma. A aula que encontrei era na casa da professora, turma pequena, ambiente íntimo. Eu não sabia muito o que esperar, mas adorei, e me ajudou muito mesmo a me centrar, a lidar com minha inquietude na época. Ao longo da vida, fiz mais e menos, dependendo de onde eu morava.

No Sri Lanka voltei a fazer mais frequentemente, e hoje em dia eu faço quase diariamente, em casa, sozinha. Quando fico uma semana sem fazer, pelo motivo que for, minhas costas começam a doer, meu pescoço às vezes trava, aí recomeço rapidinho! Eu realmente tento manter o hábito de fazer diariamente.

A meditação veio depois, através da ioga, mas só comecei a meditar com mais frequência e disciplina em 2018. E, como a ioga, depois de criado o hábito, sinto falta quando fico um tempo sem fazer. Acho que meditação é um jeito de cuidar da mente, do mesmo jeito que já sabemos que temos que cuidar do corpo. É uma ótima ferramenta contra o estresse e a ansiedade, e muito boa para exercitar estarmos presentes, sintonizados com nós mesmos. Ela acalma os pensamentos e é um ótimo espaço para criarmos intenções. Internalizando estas intenções, nós naturalmente focamos e agimos mais de acordo com elas.

 

Pode contar como foi fazer esse trabalho durante a pandemia? Você também passou por uma viagem interior nesse período?

Eu acredito que o mundo todo se viu obrigado a pausar e fazer algum tipo de viagem interior durante a pandemia. Foi um exercício de introspecção e reflexão imposto à humanidade. Somando o isolamento social ao sofrimento humano, por doença e perdas que este vírus causou, todos nós tivemos que buscar artifícios para lidar com essa nova realidade, que chegou do dia para a noite, por tempo indeterminado.

Eu me lembro na primeira semana de lockdown, quando a escola dos meus filhos fechou e meu marido e eu não podíamos mais ir ao trabalho. Li numa reportagem que, até então, o tempo recorde de desenvolvimento e aprovação de uma vacina havia sido quatro anos. Ali, percebi que a quarentena iria demorar muito mais do que as duas semanas que a escola anunciou inicialmente; muito mais que dois meses, ou dois semestres.

A escola dos meus filhos, junto com a associação de pais, agiu muito rápido, e na primeira semana de quarentena pediu para pais se voluntariarem para fazer atividades extracurriculares à tarde, por vídeo, para as crianças, e eu dei algumas aulas de artes virtuais, logo no comecinho.

No desespero, resolvi fazer uns vídeos desenhando os personagens da Pilar, para tentar ajudar a distrair algumas crianças amigas, no Brasil também. Acabei descobrindo o formato das lives, e resolvi fazer lives desenhando juntos, duas vezes por semana, com dia e hora fixos. Criei assim uma rotina pra mim e para quem quisesse participar.

Desenhar durante a quarentena foi um bálsamo para mim. Vi que para muita gente também estava sendo: eu tinha crianças e adultos como companhia. Os adultos me diziam que era como fazer uma terapia.

Eu fazia ioga e meditava todos os dias também, e estipulamos um hábito novo na família: uma caminhada diária, obrigatória, na natureza (morávamos num bairro de casas, sem prédios, bem arborizado, onde era permitido andar na rua durante o lockdown). À noite, jantávamos juntos e assistíamos a um filme, todos os dias, religiosamente. A prática da ioga, as lives desenhando juntos, os passeios na natureza e o convívio mais próximo em família foram o que me salvou na pandemia. 

Foi incrível ver a natureza rapidamente dominando a paisagem onde antes dominavam as pessoas: me lembro desse momento mágico onde vimos vários veados no meio da rua principal da nossa cidade, parados, sem medo, nos encarando. Antes, eles eram sempre afoitos e corriam quando nos viam. A rua estava deserta, e eram 5 da tarde de um dia de semana, hora do rush

Foi um momento de reflexão profunda para mim, essa quase inversão dos papéis: os animais silvestres estavam soltos, seguros e soberanos, e nós, afoitos, com medo, nos escondendo dentro de casa.

A importância do contato com a natureza ficou muito evidente - nossas caminhadas eram o momento mais gostoso do dia. Eu sentia um alívio enorme ao ficar ao ar livre e recarregava as energias. A importância das artes, como alimento para a alma, também ficou muito evidente para todos. Acho que ninguém aguentaria passar por essa pandemia sem música, livros ou filmes.

Quando a Flávia terminou de escrever Diário de Pilar na Índia e me enviou o manuscrito, ainda estávamos em quarentena. Eu comecei a ilustrar o livro e foi muito bom o mergulho nas pesquisas sobre a Índia, revisitar minhas fotos, diários e memórias das viagens que fiz para lá, desenhar muito e conseguir, assim, viajar sem sair de casa. Espero que todos curtam essa viagem nova na rede mágica, tanto quanto eu curti ilustrá-la!

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