Adeus, Monte Serrat: após 165 anos, Hospital Couto Maia deixa Cidade Baixa

Primeiros pacientes foram transferidos na manhã desta segunda-feira (9) para nova sede, em Cajazeiras

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  • Gil Santos

Publicado em 10 de julho de 2018 às 03:00

- Atualizado há um ano

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Prédio do Couto Maia em 2002 por Foto: Reprodução de Welton Araújo/CORREIO

Prédio tem 165 anos: nesta segunda-feira (9), 17 pacientes foram transferidos para nova sede (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Tão logo atracavam no porto de Salvador, os doentes de febre amarela eram encaminhados dos navios mercantes, às pressas, para o Hospício dos Bentos em Mont-Serrat, em 1852. Os mais graves seguiam para a parte mais elevada do bairro, onde eram tratados à base de plantas medicinais, chás, sabedorias indígenas em pequenos casebres de um sítio. Lá, soprava o vento forte que deveria arrastar para longe a febre.

Quando os pequenos casebres viram hospital, em 1853, o Hospício dos Bentos muda de nome e vira Hospital de Isolamento Mont-Serrat. Assim são os primeiros anos do hoje chamado Hospital Couto Maia, construído há 165 anos para receber pessoas com doenças infecciosas, como a febre amarela. A mesma função foi exercida até a última semana, quando uma nova sede para a unidade foi construída em Cajazeiras. 

Ontem, os pacientes começaram a ser transferidos para o agora Instituto Couto Maia, inaugurado na última sexta-feira (6). Os primeiros  começaram a deixar a antiga estrutura por volta das 8h. Eles foram acompanhados por duas equipes médicas e levados em ambulâncias ao novo prédio.

“Uma equipe faz a regulação no antigo hospital e o paciente é transferido através de ambulância até a nova unidade, onde já tem uma equipe médica esperando por ele. Assim que chega, ele é encaminhado para o leito. É uma operação rápida, apesar de termos que redobrar os cuidados por conta da saúde dos pacientes”, disse a diretora da unidade, Ceuci Nunes.

No total, 67 pessoas serão transferidas. Os primeiros 17 foram levadas nesta segunda-feira (9). A estimativa da direção do hospital é de que até esta quarta (11) todas estejam acomodadas na nova unidade. Já o antigo hospital será adaptado para atender apenas pacientes com doenças crônicas.

Obra faraônica O vai e vém de ambulâncias na Rua Rio São Francisco, a mais movimentada no bairro de Monte Serrat, chamava a atenção na manhã desta segunda-feira (9). Mas, quando foi construído o hospital, o lugar era quase desabitado. 

“Foi uma necessidade (por conta) do surgimento das novas doenças. O prédio atual, como conhecemos hoje, começou a ser construído em 1917. Foram cinco pavilhões construídos no Alto de Monte Serrat. Imagine, toda essa grandiosidade, naquela época... foi uma obra faraônica”, conta a historiadora e funcionária da unidade há 29 anos, Maria de Fátima Lorenzo. Ela pesquisa justamente a história do hospital.

Foram pensadas acomodações ventiladas, espaçosas, novamente pela crença no poder do ar. Já no novo endereço, os primeiros pacientes de varíola, em 1919, e de febre tifoide, em 1924, começavam a recorrer ao hospital. Enquanto isso, começa a prevalecer uma mesma opinião.

“É um lugar onde a pessoa, claro, não queria estar. Mesmo com a mudança das doenças, se ouvia o comentário: ‘Ih, tá no Couto Maia...”. O hospital, parece, se tornar uma fronteira entre vida e morte”, comenta o historiador Jaime Nascimento. Augusto de Couto Maia foi diretor da unidade até março de 1936. Com aposentadoria do médico, hospital recebeu seu nome (Foto: Reprodução de Welton Araújo/CORREIO) O médico e professor Maia começa, então, a ocupar papel central na história do hospital. Sobe ao posto em 1912, onde ficou até março de 1936, quando se aposentou por invalidez, provavelmente por conta de uma perna amputada em decorrência de diabetes. “Couto Maia se torna a figura da luta pelo conhecimento, a luta pela melhoria na unidade”, diz Maria de Fátima Lorenzo.

O infectologista Edilson Sacramento, como Maria de Fátima, acompanhou parte da história do Couto Maia. Hoje com 72 anos, ele circula entre os leitos do hospital desde a época em que ainda era estudante de Medicina pela Faculdade Bahiana de Medicina e Saúde Pública.

Decidiu, inclusive, que seria infectologista por conta da atividade no Couto Maia. “Eu ia fazer neurocirurgia. Mas, quando fui fazer o estágio em infectologia, não saí mais e tudo mudou para mim. De maneira que, mesmo formado, continuei no Couto Maia”, lembra. Viu, durante os anos, a crise de alguns surtos. O principal, em meados dos anos 1970, de Meningite Minigocócica. “Me marcou muito forte. Encheu, via dois pacientes na mesma cama, no chão”, conta.

Agora, Edilson prepara-se para uma nova etapa: a do Instituto Couto Maia, nova sede do hospital inaugurada em Cajazeiras. Os mais de 40 anos de entrada e saída permanecerão na memória. “Será melhor, uma estrutura que dialoga melhor com nossa necessidade”, acredita. O médico deixa o saudosismo de lado. 

Imponente Muitos anos depois da inauguração do prédio atual, o prédio ainda causaria espanto - e haveria quem se lembrasse dele não como um lugar tão ruim assim. Em outubro de 1962, um garoto de 12 anos mudou para o bairro de Monte Serrat. Depois de passar horas tendo que suportar os solavancos dentro do ônibus de Conceição do Jacuípe, no Centro-Norte, até Salvador, o menino finalmente chegou ao bairro em que moraria.

Hoje, o rodoviário aposentado Antônio Rosa, 69 anos, lembra com saudade daquela época. O Couto Maia já era uma referência em atendimento e um hospital movimentado. A fachada imponente do prédio impressionou o garoto do interior.

“Naquela época tinham poucas casas na região e o hospital era a principal referência por aqui, não tinha como não ver. O prédio era muito bonito e movimentado. Vinha gente de tudo quanto era lugar para fazer tratamento. O bairro cresceu e se tornou o que é graças a ele”, lembra. 

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Ganhos Apesar de a mudança afetar a relação afetiva dos moradores mais antigos com o hospital, quem tem familiares internados na unidade conta as horas para a transferência. A comerciante Maridalva Pires, 43, era só sorrisos.

Ela está acompanhando o filho, Lourivan Santos, 26, que está internado com tuberculose. O jovem deu entrada na unidade em maio e ainda não tem previsão de alta médica. A mulher contou que a família é natural de Dias D’Ávila, na RMS, e que está contente com a mudança.

“O atendimento é excelente, não tenho do que reclamar, mas o hospital tem algumas limitações, pela estrutura mesmo, sabe? Ainda não estive no novo hospital, mas vi as imagens e as médicas me contaram que ele é maior e mais equipado. Estou feliz com a mudança porque vai ajudar meu filho a se recuperar mais rápido”, diz.

A transferência de Lourivan está agendada para amanhã, e ele vai chegar inaugurando também os equipamentos. É que o jovem tem uma tomografia para fazer já na nova unidade. 

Perdas Um guardador de carros, que não quis ser identificado, afirma que, em alguns dias, a movimentação é tão grande que fica difícil estacionar. Mas, diz ele, a circulação já foi maior. Quem também observa a queda na circulação de pessoas são os comerciantes.

Os moradores mais antigos contam que até o início da década de 1970, havia poucas barracas de comércio na região. Hoje, vários estabelecimentos pequenos vivem das refeições e dos salgados vendidos, principalmente, para os acompanhantes dos pacientes do Couto Maia.

Depois que ficou desempregado, Antônio Valdo, 47, resolveu investir as economias em uma pequena lanchonete. Comprou o estabelecimento em maio, quase em frente ao hospital, e passou a servir almoço e lanches. No início, tudo deu certo.

“Só que o movimento caiu bastante nas últimas semanas. Eu servia 16 refeições por dia, hoje não conseguimos vender nem dez. Isso começou depois do início da Copa e das festas juninas. Agora, com a notícia da mudança do hospital, ficamos ainda mais preocupados. Dependemos dele para sobreviver”, diz.

Apesar dos 165 anos de história, o prédio que abrigou o Couto Maia não é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), nem pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac).

Conheça momentos importantes da história do Hospital Couto Maia:

1852 O hospital teve várias denominações. Quando ainda estava sendo estruturado, em 1852, o médico Tito Adrião Rebelho o chamou de Hospício dos Bentos em Mont-Serrat. No documento de fundação, em 1853, o presidente da província o batizou de Hospital de Mont-Serrat.

9 de abril de 1853  Criação do Hospital de Isolamento de Mont-Serrat (HIMS), atual Hospital Couto Maia,  pelo presidente da Província da Bahia João Mauricio Wanderley com o objetivo de tratar, principalmente, os marinheiros afetados pela febre amarela.

7 de julho de 1904  Peste bubônica foi reconhecida na cidade de Salvador. Foi necessário estabelecer enfermarias para acolher os contaminados. Foi nesse contexto que, em 1904, instalou-se, na Hospedaria de Imigrantes, na Baixa de Mont-Serrat, uma enfermaria de emergência para os pestilentos, sob a responsabilidade do médico Augusto de Couto Maia.

1905  Novo surto de peste bubônica. Couto Maia continua na direção da enfermaria até 1912, quando foi nomeado diretor efetivo do HIMS, função que exerceu até março de 1936, quando se aposentou, por invalidez,  devido, provavelmente, a amputação de uma perna por conta de diabetes.

1917  Epidemia de varíola torna o hospital insuficiente para comportar o grande número de doentes. Nota-se a necessidade de uma nova estrutura.

1º de janeiro de 1925  Obras dos cinco novos pavilhões de isolamento são entregues pelo governador Góes Calmon. Todos têm instalações de água, luz e esgoto, na parte alta de Mont-Serrat.

20 de março de 1936  O governo decretou que o Hospital de Isolamento de Mont-Serrat passaria a se chamar Hospital Couto Maia.

Epidemias  O hospital foi fundamental no atendimento a pacientes em epidemais: cólera (1855), peste bubônica (1904), gripe espanhola (1918), varíola (1919) e febre tifoide (1924). Mais recentemente, recebeu pacientes com doenças como chikungunya (2014) e zika (2015). Fonte: Artigo Hospital Couto Maia: Uma Memória Histórica (1853-1936), de Maria de Fátima Lorenzo

*Com supervisão das editoras Mariana Rios e Clarissa Pacheco