As controvérsias de Marco Polo, 700 anos após sua morte
19 de março de 2024Tente se colocar no lugar de um jovem de 17 anos que jamais saiu de sua cidade. Seu pai e seu tio, dois mercadores que estiveram ausentes toda a sua vida, voltam para casa antes de partir em sua próxima viagem. Mas desta vez você vai junto.
A jornada cobre 24 mil quilômetros e dura 24 anos. Você verá coisas que jamais poderia imaginar e será catapultado aos escalões mais altos de um poderoso império. Ao fim, se tornará um dos viajantes mais famosos da história ocidental.
Aquilo que poderia ser o roteiro de um filme de Hollywood é nada menos do que a biografia de Marco Polo.
Nascido em Veneza, em 1254, Marco Polo viajou entre 1271 e 1295 pela Rota da Seda, uma via comercial medieval que conectava a Europa à Ásia, passando 17 anos na China e se tornando uma figura conhecida no florescente Império Mongol sob a liderança de Kublai Khan.
Após retornar à Itália, Marco Polo colaborou com o escritor Rustichello da Pisa para relatar as crônicas de sua viagem. O livro resultante desses relatos, Il Milione (O milhão) – As viagens de Marco Polo no Brasil –, se tornou um bestseller da era medieval. A obra foi traduzida para numerosos idiomas e lida por todos os que sabiam ler, de príncipes a sacerdotes. Diz-se que o navegador Cristóvão Colombo carregava sempre uma cópia consigo.
Relato que chocou a Europa
Marco Polo estava longe de ser o primeiro viajante europeu à China medieval, muito menos o primeiro a documentar a viagem. Segundo Hyunhee Park, professora de história na Universidade de Nova York, viajantes muçulmanos documentavam suas viagens por terra e mar à região já nos séculos 9 e 10.
Mas, em uma época em que a Europa era fechada e voltada para si própria, Marco Polo se tornou o primeiro europeu a trazer informações sobre a China para a consciência popular. Seus relatos, no entanto, não atingiram as expectativas dos europeus.
Ele descreveu o Império Mongol como uma civilização grandiosa, com cidades gigantescas. "Muitos europeus ficaram chocados: Ele foi até acusado de ser mentiroso", comenta Park.
As descrições de Marco Polo fugiam das convenções usadas por outros ocidentais que traziam relatos sobre terras não europeias, explica Margaret Kim, professora de idiomas estrangeiros e literatura da Universidade Nacional Tsing Hua, em Taiwan.
"Antes e depois de Marco Polo, escritores viajantes europeus, ao descrever lugares e povos estrangeiros, queriam ensinar lições de moral e doutrinas religiosas. Está implícito no que escreviam. Polo não tinha esse senso de doutrinação religiosa. Suas descrições, a princípio, parecem interessadas em paisagens e costumes de partes diferentes do mundo. Ele era um homem bastante secular."
O "olhar imperial"
A visão de Marco Polo o diferencia dos futuros relatos de outros viajantes europeus, que eram amplamente movidos pelo desejo de conquista e pela perspectiva de uma suposta superioridade civilizacional.
"Polo se impressionava com a fortuna e poder dos soberanos mongóis numa época em que o Oriente era famoso por suas riquezas e prosperidade em comparação com a Europa medieval. Dessa forma, sua atitude era bem diferente dos exploradores europeus e militantes colonialistas que vieram mais tarde.", afirma Zhang Longxi, professor da Academia Yenching da Universidade de Pequim. Ele observa que futuros relatos sobre a China descreveriam a região como retrógrada ou estagnada, muito distante da grandiosidade europeia.
Na China, Marco Polo se tornou uma figura respeitada na corte de Kublai Khan. Embora sua posição na corte seja tema de debate, há um amplo consenso de que ele era um servidor público proeminente, com responsabilidades diplomáticas. Assim sendo, via o Império Mongol não como um estrangeiro, mas como alguém de dentro.
"Ele deixou Veneza como adolescente e viveu a maior parte dos anos formativos de sua vida na Ásia. Foi lá que desenvolveu seu modo de pensar a respeito do mundo, que não pode ser caracterizado como puramente ocidental", explica Kim.
"No entanto, ele tinha o que eu chamaria de um 'olhar imperial': ele via o mundo dividido entre os povos mais ou menos civilizados. Por isso, no mundo de Marco Polo, ou se era bastante civilizado, parcialmente civilizado, ou selvagem." Para ele, diz Kim, o grande centro da civilização não era aquele que os europeus esperavam, mas sim, o Império Mongol de Kublai Khan.
Relatos controversos
Como fonte de informação histórica, Marco Polo também teve sua parcela de controvérsias, muitas delas surgidas das complexidades em torno da criação de seu livro.
Não há um manuscrito definitivo, ao contrário, existem em torno de 140 versões diferentes. O papel do coautor Rustichello da Pisa na produção do livro e sua possível influência sobre o conteúdo geram uma camada de incerteza, analisada de maneiras diferentes pelos historiadores.
Kim considera o explorador como autor do livro, responsável por seu conteúdo e estilo, e acredita que Rustichello tenha supervisionado a elaboração das cópias e sua divulgação.
Para Zhang, por outro lado, Marco Polo teria sido a fonte das informações, com Rustichello formatando o conteúdo do livro. "Rustichello, autor de romances, chegou a reescrever as histórias de Marco, provavelmente acrescentando cores e detalhes que eram atraentes para os leitores medievais."
Em comparação com outros diários de viagens literários do período, contudo, As viagens de Marco Polo demonstram definitivamente alguma restrição no emprego de traços imaginários frisa o professor de Pequim.
A omissão de informações esperadas a respeito da China e uma suposta falta de fontes que pudessem corroborar os relatos levaram alguns historiadores, como a renomada sinóloga Frances Wood, a questionar a autenticidade das observações de Marco Polo.
Contudo, muitos historiadores até hoje tendem a concordar que as observações de Marco Polo são tão originais e específicas, que não teriam como ter sido inventadas ou baseadas em relatos de segunda mão. Isso, apesar de Polo e Rustichello terem deixado claro no prólogo de seu livro que haviam incluído observações de terceiros em seu diário de viagem.
Acadêmicos como Park também registram evidências corroboradas nas observações de Polo, inclusive em documentos de fontes chinesas e islâmicas, como os escritos de Batutta, o célebre explorador norte-africano do século 14.
Uma visão para os dias atuais
Marco Polo morreu em sua cidade natal, em 9 de janeiro de 1324. Passados 700 anos, ele continua extremamente popular, mesmo entre os não acadêmicos: uma popular brincadeira de piscina nos Estados Unidos, uma marca de roupas de alto padrão, incontáveis agências de viagens e vários outros negócios utilizam seu nome. Sua relevância, no entanto, vai além do seu poder de marca.
Para Kim, Marco Polo mostrou que "o mundo contém coisas além da maneira como o imaginamos, que podem inquietar e incomodar, mas a que podemos nos adaptar. Assim, o 'olhar imperial' não é propriedade de nenhuma cultura ou civilização e, certamente, também não é propriedade única do Ocidente."
Na visão de Zhang, sua história incentiva a lembrar, em tempos de forte tensão entre grande parte do Ocidente com a China, que as relações culturais não antagônicas são possíveis.
"Marco Polo oferece um modelo alternativo de encontros entre o Oriente e o Ocidente e inter-relações que são extremamente valiosas para nós, no mundo de hoje. É um modelo de compreensão mútua e cooperação, ao invés de rivalidade e conflito."