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lambes
na cidade

restos do carnaval

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Dia 09 de novembro de 2022, testei o formato de oficina para um dos desdobramentos de meu mestrado, compartilhando o mergulho no embate corpóreo das palavras de Clarice Lispector em um convite para concebermos percursos próprios em relação à leitura. A ação fez parte do Projeto de Extensão Poéticas do corpo em paisagens pandêmicas: como reavivar os afetos com a cidade.

 

Conduzi um exercício de chegada e despertar de sentidos tentando fazer vibrar a questão "Como se entra em uma obra de Clarice?", e a confecção de lambes como manifestação artística daquilo que aconteceu com cada um de nós ao ler o texto – fugindo de questões interpretativas, e abrindo espaço para atravessamentos que nos atingiram nesse instante coletivo de presença. 

O convite era para que as impressões dividias se expressassem em ações de interferência no próprio xérox do conto. Para acionarmos nosso estado de pesquisa e presença ao sairmos para colar os lambes, atentos aos entorno, às necessidades de colagem do outro, e aos próprios gestos enquanto se cola, construí um estandarte, objeto precário e relacional através do qual ritualizaríamos a exibição de nossas criações. Imaginei que, ao experimentar formas de carregar essa alegoria, seria possível inventar para si um corpo de cortejo que leva o estandarte ao mesmo tempo que sinaliza e faz parte do coletivo. 

Diana Rodrigues começou a rir enquanto eu lia em voz alta a parte do conto em que a personagem principal confessava que o papel crepom em nada se parecia com uma pétala de rosa, ao mesmo tempo em que desejava a felicidade clandestina de se vestir de Rosa por um instante durante o Carnaval. Esse tom tragicômico agravado pela risada, pode ter levado Ana Terra a lembrar de histórias que também nos embaraçavam ao rir. Como quando participou de um desfile de Carnaval de uma escola de samba do litoral santista, que foi prejudicado por uma chuva torrencial. Ao desespero, somou-se a graça dos grandes chapéus dramáticos que compunham os figurinos e que, encharcados, faziam tombar o equilíbrio dos foliões, pesando as cabeças em tentativas de recobrarem seus eixos feito um João bobo. José Teixeira interviu também em tom de piada: “eu era a beata”, aquela que com um véu cobrindo a cabeça, atravessa a rua deserta que se segue ao carnaval. À espera da quaresma, até os 22 anos, não pulou carnaval. Quando brincou de carregar o estandarte, nos contou as regras de erguê-lo religiosamente, enquanto a tensão dos braços impedia que o símbolo encostasse em seu peito. A reação de um pareceu despertar a recordação do outro. Assim como Diana percebeu a coincidência entre o momento em que li o desfecho do conto e o barulho alto da passagem de um ônibus, Ana completou que a atenção voltada aos sons do entrono conectavam as várias geografias, a Recife da infância de Clarice, as localidades das memórias subjetivas, e a do nosso encontro na Unicamp. Eu sugeri mesmo que tentassem me ouvir contar a narrativa com a mesma fragilidade que se escutam os rumores e os ecos que se estendem entre paisagens. Fiz um convite para que tentássemos escutar, juntos, os primeiros sons da leitura.

Obrigada Diana Rodrigues, José Teixeira e minha querida orientadora do mestrado Ana Terra, por estarem totalmente disponíveis, mesmo ao final de um dia cansativo.

*

Eu compartilhei com o grupo que a cada vez que eu relia o conto, mais aderia às suas palavras. Assim como a personagem principal, eu também sinto que as vozes anônimas do carnaval cantam a capacidade de prazer secreta em mim, e espero por isso à soleira da porta. A coragem de abrir a oficina é a mesma de dar o passo para além desses degraus da entrada de casa, e eu me sinto cheia de impulso – foi por isso que meu lambe eu criei para colar nos espelhos da escadaria que me levava até à faculdade de arquitetura, um elo entre o barracão das cênicas e da dança e os meus projetos em pranchas. 
O que eu não lembrei de dividir com o grupo foi que na primeira vez que li o conto, eu estava no ateliê da SP Escola de Teatro, em 2015, em uma aula de cenografia e figurino proposta pela professora Telumi Hellen em que devíamos criar um objeto de cena inspirado no conto e nas criações de Tadeusz Kantor. Com objetos à disposição, descartados e não alterados ou disfarçadas suas aparências, criamos um estandarte de galão de água, que gotejava na roupa de papel crepom da performer. Imaginamos, Aline Dayse e eu, uma performance duracional que levaria o tempo da roupa se desfazer, ou manchar o chão de cor-de-rosa. O gesto do estandarte restou em mim. Na galeria de fotos abaixo, deixei por último um desenho dessa ideia, e uma foto do objeto criado pelo grupo. 

atravessamentos

   Dois dias depois da ação, me deparei sem querer, enquanto navegava no Instagram, com uma foto que a aluna Ana Júlia Huffenbaecher da graduação da dança tinha tirado de um de nossos lambes enquanto subia a escadaria que leva até a faculdade de Arquitetura e Urbanismo - caminho possível até o bandejão. Será que enviarão fotos dos outros lambes à luz do dia?  

Foto por Ana Huff, 11 nov. 2022.

Ana Júlia Huffenbaecher.jpg

nome-popular

Convite feito em 2018 por Luísa Estanislau para ilustrar sua pesquisa sobre plantas de quintais brasileiros com nomes populares poderosos. Cartazes-amuletos para tempos incertos. Luísa Estanislau é uma pesquisadora e realizadora cultural que eu admiro muito e cujo trabalho eu faço questão de sempre acompanhar.

ilustrando #osbrasisribeirinhos

Convite para ilustrar projeto do Brasis (2016), só o meu traço seu deslocou em intenção. Os lambes foram colocados pelo grupo envolvido com o projeto, de acordo com a seguinte descrição:

Santos Ribeirinhos  

Gente de rio, certeira e doce: a bênção. Que nos abençoem as crianças das águas brasileiras que brincam de gotinhas de esperança. De saber olhar, de saber esperar. Onde a margem é casa, o centro é ribeirinho”.

#osBrasisRibeirinhos: texto por Mayra Fonseca, articulação Luísa Estanislau e Amanda Pinho, ilustração Juliana Semeghini, arte Michel Rios. Um projeto de intervenção urbana / homenagem, com a colagem de lambes nas cidades de Belém, Santarém e comunidades ribeirinhas do Tapajós e Arapiuns, durante as celebrações do Círio de Nazaré em outubro de 2016, no Pará.

eu sou frida

Projeto realizado em parceria com Aline Dayse, Érica Ribeiro e Nina Nuernberger, durante a disciplina Design da Aparência, ministrada por Adriana Vaz na SP Escola de Teatro (2015). O projeto surgiu a partir da observação de personagens que estabelecem sua própria geografia de deslocamento pelo espaço urbano, vínculos de permanências e rotas de sua memória afetiva e que, na maioria das vezes, se tornam invisíveis à nossa percepção cotidiana. 

  Qual o seu nome?

  Durante o primeiro mês que enfrentei diariamente as filas da linha amarela do metrô – me perguntando se algum dia aquele movimento se tornaria comum para mim – pude satisfatoriamente desembarcar na estação República e observar a exposição que acontecia no Museu da Diversidade Sexual: “Todos Podem Ser Frida”¹. Caso esteja se perguntando, o trajeto que faço todo dia virou meu momento comum de reflexão. Ainda não me adaptei a ponto de sentir a necessidade de correr sobre as esteiras e, por enquanto, desloco-me sobre elas sem mover um músculo, às vezes atônita, espantada com os conflitos do cotidiano.  

  Qualquer outra fosse a exposição, não impulsionaria da mesma forma meu corpo que hoje compadece de frustrações, nem colocaria meu drama pessoal no seu devido lugar. Um drama falto, falho e defeituoso. A construção do ícone “Frida Kahlo”, que eu sempre admirei, não só partiu de sua própria dor, como reinventou a percepção do próprio “sofrer”. Como fomentar meu próprio sofrimento encarando diariamente rostos em que seu reflexo ardia e me provocava? E quantos foram aqueles que participaram da exposição cientes de que incorporar os traços da artista era também uma forma de fortalecer-se. Não no sentido de abafar nossas fendas, mas de se vestir de flores ao invés de esmorecer. 

  Por volta do quinto dia acompanhando a exposição, sem nunca entrar pela porta de vidro que me separava das fotos, encontrei em um de seus reflexos, um rosto já travestido. Se eu olhasse atenta aos detalhes veria que não eram só as sobrancelhas que estavam marcadas ou o batom vermelho que tingia seus lábios. Não só aquela face estava adornada, como seu corpo inteiro estava coberto de signos. 

  Era um homem forte, que por algum motivo – e ainda não se sabe ao certo, se por escolha ou acaso – passou a vida inteira pulando de abrigo em abrigo, conhecendo pessoas que também não tinham onde dormir e aceitaram ajuda. Àquele homem dezenas de pessoas haviam dado um nome. Foram tantos rótulos que colecionou, tantas as verdades absolutas ditas sobre suas escolhas relativas, que as últimas gotas que compunham seu nome finalmente escorreram entre seus dedos. Tinha perdido o nome da mesma forma como Clarice Lispector ganhara um novo pesadelo frequente em que não mais se reconhecia e estava impedida de provar sua verdadeira identidade, ao mesmo tempo tão estrangeira e tão natural. Com o passar dos dias, já sem nome, aquele homem tornou-se capaz de desvendar todos os nomes secretos que havia por trás das obras de grandes autores. Retomando o exemplo de Clarice, era durante o momento exato da leitura que, simultaneamente, encontrava em outros nomes – personagens – aqueles avatares da escritora que denunciavam o que nela doía. Seu apetite por esses encontros tomou o lugar da própria fome. Procurava em leituras e outras expressões artísticas uma forma de incorporar fragmentos de identidades estremecidas, trêmulas como a de Clarice, mas ainda não tão ocas quanto a sua própria. 

  Não fui a primeira a escrever sobre esse homem e outros antes já supuseram que algo o convencera tão cegamente de que seu nome era aquele que lhe foi dado, que aquilo que sentia na verdade era medo de se encontrar. Hipóteses à parte, certo era que se desenvolvia um fenômeno que podia ser constatado a olho nu. Aos poucos, o que era um hábito consciente foi se tornando uma reação espontânea de seu corpo. Um corpo aberto, poroso feito uma esponja, pronto para filtrar a linguagem e absorver conformidades. Um homem que se tornara uma poética de retalhos. Retalhos de discrições autobiográficas de artistas que só ele podia reconhecer e transformar em ícones visuais que preenchiam seu corpo. Do seu peito brotavam lírios; se pintava de nuvem, árvores e coisas que não existiam, mas que talvez um dia existirão. Foi guardando descobertas dos outros e de si mesmo. Cada momento desse jogo inquieto, era ao mesmo tempo seu e alheio.  

  E tudo que eu pude deduzir sobre aquele homem não significava uma fração do que valia aquele momento refletido no vidro. Quando o último autorretrato que viu foi o de Frida Kahlo, reconheceu-se na imagem de uma mulher que costumava pintar sobre o assunto que melhor conhecia; e aquela identificação sincera transformou-se na lágrima que correu pelo seu rosto.

 

  Era a primeira vez que sua alma transbordava de nomes.

¹ O Museu da Diversidade Sexual é um equipamento da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. No período de 12 de novembro de 2014 a 28 de fevereiro de 2015, o saguão recebeu a exposição “Todos Podem Ser Frida”. Idealizada pela fotógrafa Camila Fontenele de Miranda, a artista reuniu fotos de modelos masculinos caracterizados como a artista mexicana enquanto permitia que os visitantes também se transformassem para que depois seus retratos fossem inclusos na exposição.

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