Labrys
estudos feministas/ études féministes
agosto/dezembro 2005 -août/ décembre 2005

FRANCISCA PRAGUER FRÓES E A IGUALDADE DOS SEXOS

                                                                      Elisabeth Juliska Rago 

 

Resumo

O artigo discute algumas idéias e práticas da médica baiana Francisca Praguer Fróes (1872-1931). Os temas sobre os quais escreveu como o voto feminino, trabalho remunerado, casamento, adultério, divórcio, religião e a saúde da mulher permitem apreender formas específicas de resistência feminina, numa sociedade que mal se desvinculara de seu passado escravista, como a Bahia. As mulheres que foram capazes de enfrentar o ensino médico na virada do século XIX para o século XX, no Brasil, depararam-se com um ambiente hostil, tradicionalmente masculino, e locus privilegiado das contradições de gênero. Seus textos permitem observar que o feminismo representou um meio para empoderar as brasileiras de seu tempo.

 

A discussão que pretendo encaminhar está centrada na análise da produção de artigos, entrevistas e palestras em que Francisca Praguer Fróes (1872-1931), médica formada pela Faculdade de Medicina da Bahia, em 1893, expõe suas concepções sobre a condição da mulher na sociedade baiana no início do século XX.[1][1] Seus escritos publicados nos jornais A Tarde (Bahia), Diário da Bahia, Jornal dos  Clínicos (Rio de Janeiro) e na Revista Feminina (São Paulo) abordam temas, como a reivindicação da capacidade intelectual feminina, educação, trabalho remunerado, religião, casamento, voto feminino, saúde da mulher.

A narrativa reveste-se, muitas vezes, de radicalismo quando procura convencer as leitoras e leitores da importância da lei do divórcio, numa sociedade conservadora como a baiana do período. Questionar a indissolubilidade do casamento implicava uma atitude anticlerical e malvista no meio social baiano. 

No início do século XX, Francisca Fróes formula uma crítica ao pensamento médico dominante na Bahia, que, inspirado em determinada corrente da Medicina européia, concebia a diferença sexual como o fundamento da inferioridade da mulher. Assim sendo, a médica apreende os mecanismos de domesticação do corpo feminino presentes no saber médico hegemônico, como veremos adiante. Vale destacar que, em fins do século XIX e início do século XX, a Medicina brasileira dirigiu especial atenção à questão da família e da maternidade.O debate republicano, envolvendo a questão da educação feminina – dentro de uma perspectiva de construção da “nação brasileira educada, saudável, branca e moderna” (HOLLANDA, 1992: 68) — dividiu a opinião de educadores, médicos e juristas com relação ao tripé de filha, mãe e esposa.

Poucos foram aqueles e aquelas que ultrapassaram aquela visão parcial que aprisionava a mulher dentro de papéis normativos e a conceberam como um indivíduo. Francisca foi uma delas: lutou durante toda a sua vida pela cidadania econômica, política e social feminina. Nesse sentido, a alternativa vislumbrada por ela, e muitas outras, para transformar a posição de brasileiras educadas, seria a união de forças para reformar o Código Civil brasileiro, o que confirma a importância atribuída por ela à cidadania política. Para efeitos de análise comparativa, Françoise Thébaud, historiadora feminista, oferece uma contribuição interessante em um artigo que trata da cidadania e Estado na França: 

!Como relação estabelecida entre o Estado e os indivíduos, é aquilo através do que o Estado  reconhece seus membros e lhes concede direitos, negados aos não-cidadãos. Como relação entre os indivíduos e o Estado, ela evoca sua participação nas atividades da cidade. Comessa definição, a cidadania é, antes de mais nada, política, e nos remete à compreensão de quando — por que tão tardiamente — de como, as francesas têm acesso aos direitos políticos, direito de voto, direito de serem eleitas e de representatividade política. (THÉBAUD, s/d: 119)

Portanto, duas são as dimensões inscritas na noção de cidadania: ser reconhecido e participar, reconhecimento e participação na vida política. Assim, no entender da autora, a cidadania é, antes de tudo, política. O conceito de “cidadania social”, que indica o “acesso aos direitos sociais que garantam uma proteção aos riscos”, deve ser articulado ao conceito de cidadania política. E, por fim, às vezes, o conceito de cidadania econômica é utilizado para designar o direito ao trabalho, pois

“enquanto a cidadania econômica não for plenamente reconhecida para as mulheres, elas não poderão também ser consideradas completamente cidadãs políticas, nem tampouco usufruir todos os direitos sociais.”(THÉBAUD, 120)

Voltando às idéias da médica feminista, nos textos que deixou, criticou a organização social de gênero, elaborada pelos homens, ou seja, a “péssima organização do nosso sistema social e a defeituosíssima disposição do nosso Código Civil, intencionalmente elaborado em proveito de um só sexo”.(FRÓES, 1923: .8-9) Seus escritos acusam os “dominadores prepotentes, as ambições imensuráveis, as leis absurdas e abusivas que o homem decretou para seu gozo próprio.” (FRÓES, 1923)

Escrever e publicar representou uma questão premente para Francisca, empenhada em denunciar os resquícios de uma cultura masculina e escravista que tentava cercear o desenvolvimento da personalidade e das habilidades do sexo feminino, ou, o que hoje chamamos de gênero feminino.[2]

No início do século XX, na Bahia, o acesso de mulheres das camadas médias e da elite ao espaço público era muito restrito. Por um lado, o ideário republicano alimentado pelas idéias positivistas de Augusto Comte, como se sabe, abria algumas possibilidades em relação à educação feminina, pois, as  mulheres, enquanto educadoras dos homens, deveriam receber uma educação compatível com essa função social. O ideário positivista facilitava também o acesso de mulheres mais abastadas a alguns tipos de trabalho não-remunerados, vinculados ao assistencialismo e à filantropia,  permitindo-lhes romper, dessa maneira, o rígido círculo familiar. Por outro, o primado católico se fazia presente na vigilância das práticas sociais femininas existentes. 

Perfil biográfico

Francisca Barreto Praguer - nome de solteira - nasceu na cidade de Cachoeira, no Recôncavo baiano, em 21 de outubro em 1872. Era filha do engenheiro de minas Henrique Praguer, imigrante croata, de origem judaica e de mãe baiana, católica, Francisca Rosa Barreto raguer, que, por ser ardente defensora dos direitos da mulher, publicou artigos no Almanaque do Diário de Notícias de Salvador, amparou e animou a filha perante um mundo pouco acolhedor durante toda a sua vida acadêmica. Pensando nela, anos depois, Francisca escreveria afetivamente:

“Eu sou feminista por convicção e por herança.”(FRÓES, 1931)  

Do que se depreende da documentação consultada, a jovem desfrutou de uma educação aprimorada, tanto quanto a que foi ministrada aos seus dois irmãos, graças à precocidade, decisão e à curiosidade intelectual demonstradas desde menina.[3] Ainda que a medicina da época reforçasse os preconceitos contra a participação da mulher na vida pública, enfatizando seu papel de procriadora, Francisca não precisou sacrificar seu talento para os estudos. Enfrentou algumas tensões familiares, mas não encontrou censura no seio da família pelo fato de a medicina ser considerada, então, uma profissão masculina.

Convém lembrar que, na passagem do século XIX para o século XX, o espaço público sofre modificações pela entrada de mulheres nas profissões, sem que isto signifique ausência de restrições e de represálias, principalmente àquelas que desejassem ocupar as profissões de prestígio como a Medicina.  As portas das universidades brasileiras foram abertas às mulheres em 1879, e, nove anos depois, em 1888, coincidindo com a Abolição da escravidão africana, Francisca, com dezesseis anos de idade, corajosamente, matriculou-se na Faculdade de Medicina da Bahia, sendo a quinta médica diplomada em Salvador e a única mulher entre os formandos de 1893.

Antes dela, quatro moças haviam conquistado o diploma na mesma faculdade [4] mas, ao  que parece, não deixaram escritos. Sabe-se que, mesmo passados trinta anos, em 1921, na mesma faculdade, a estudante Nise da Silveira, que se tornaria famosa por introduzir a arte da pintura no tratamento de esquizofrênicos, ao lado de seus 158 colegas de turma, foi desafiada pelo mestre de parasitologia, Pirajá da Silva, a segurar uma cobra viva entre as mãos e ela o fez por um minuto inteiro, entregando-a, após, a um colega e ninguém mais duvidou de sua coragem, conforme nos relata sua biógrafa Elvia Bezerra.

Francisca Praguer, ainda estudante, em 1892, trabalhou como interna na Enfermaria de Partos, na Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Depois de formada, exerceu a medicina como “parteira” assistente [5] da Maternidade Climério de Oliveira, pertencente à Faculdade de Medicina da Bahia. Em 1899, casou-se com um ex-colega de faculdade, João Américo Garcez Fróes, médico e depois professor catedrático nessa mesma faculdade, com quem teve dois filhos. O casamento não ocupou o lugar de sua carreira tendo ela estabelecido uma estreita parceria com o marido. Tornou-se a primeira mulher, na Bahia, a dirigir uma clínica obstétrica.(BASTIANELLI, 2002: 25)

 Foi redatora da importante revista Gazeta Médica da Bahia, ao lado de Gonçalo Moniz, Alfredo de Andrade, Oscar Freire, Luiz Pinto de Carvalho, João Américo Garcez Fróes, onde publicou vários artigos científicos sobre parto, gravidez, doenças sexualmente transmissíveis, entre outros. Em 14 de julho de 1895, aos 23 anos de idade e dois de formada, ainda solteira, Francisca apresentou um trabalho de caráter científico  à Sociedade de Medicina e Cirurgia da Bahia, em sessão presidida pelo médico Pacheco Mendes.

Tinha por objetivo submeter à apreciação daquela Sociedade, um texto baseado em sua própria experiência clínica: “Observação de um caso de gravidez extra-uterina abdominal”,  desejando “merecer as honras de uma discussão, seja o seu resultado, para nós a satisfação intima de ter mais um ensejo de aprender e elucidar o nosso espirito e, para ella [a Sociedade...], uma exigua prova de que também procuramos contribuir na medida de nossas forças para a sua prosperidade e engrandecimento.”(PRAGUER, 1895) Seu trabalho foi publicado na Gazeta Médica da Bahia, nesse mesmo ano de 1895, marcando a estréia da autora na conceituada revista. Note-se que este foi o primeiro artigo publicado na Gazeta Médica por uma mulher.

Nos anos que se seguem, continua colaborando com artigos científicos em que trata de casos relacionados com a sua especialidade médica, ou seja, a ginecologia e a obstetrícia. Em 1903, ao mesmo tempo em que levava ao conhecimento dos leitores um estudo de caso sobre “Eclampsia no trabalho de parto”, (FRÓES, 1903) seleciona e traduz um artigo intitulado “Emancipação das Mulheres na Rússia” para ser publicado na Gazeta Médica da Bahia. O artigo sugere que as mulheres fossem aceitas em todas as Faculdades de Medicina, de preferência mistas e abertas aos dois sexos. Além de imaginação, Francisca  demonstrou estar a par das acalentadas lutas travadas na Rússia, no período em que jovens estudantes do sexo feminino forçaram a criação de cursos médicos para elas.

No início de 1860, havia uma certa atmosfera favorável à democratização naquele país, condição que motivou uma parcela de mulheres a participar da construção de uma nova nação e a rejeitar tudo aquilo que se baseasse na fé e nos costumes arraigados.(ENGEL, 1979) A hipótese que se pode levantar é que Francisca usou o artigo estrangeiro como um balão de ensaio para introduzir o debate sobre os setores femininos marginalizados do exercício das profissões tidas como masculinas, na Gazeta Médica da Bahia.

Francisca procurou, ao longo de trinta anos, forjar espaços para redefinir os códigos morais hegemônicos na Bahia e conscientizar as brasileiras para a luta pela emancipação feminina. Não é difícil imaginar as dificuldades enfrentadas pela médica no mundo masculino em que atuava. É provável que, em seu espaço social, tenha renegociado muitas vezes sua identidade de gênero como estratégia de sobrevivência num mundo hostil.

Em 1931, foi  eleita presidente da União Universitária Feminina, (Livro de Atas, 1931) ligada à Federação Bahiana pelo Progresso Feminino, uma filial da  Federação Brasileira pelo Progresso Feminino fundada no Rio de Janeiro em 1922, por Bertha Lutz, bióloga e uma das pioneiras da luta feminista no Brasil. Francisca Praguer Fróes faleceu no Rio de Janeiro, em 1931, onde se encontrava para participar do II Congresso Internacional Feminista, tendo à frente a figura de sua fundadora. A União Universitária Feminina, da Bahia, resistiu por apenas alguns meses após a morte de sua presidente. Portanto, sua passagem pela Federação foi efêmera.

Para compreendermos a importância de seu pensamento e de suas propostas inovadoras de ação, é preciso não perder de vista os limites históricos dentro dos quais viveu, meditou, escreveu e publicou.  Temos de considerar, também, que, numa sociedade senhorial e conservadora como a Bahia das primeiras décadas do século XX, a escrita do sujeito feminino não poderia estar isenta de ambigüidade, que se revela também nos textos de todas aquelas que apelaram para o aperfeiçoamento da condição humana da mulher, insistindo para que se profissionalizassem, estudassem, mas, ao mesmo tempo, incitando-as a se  acomodarem às atividades prescritas de mãe e esposa. Francisca, entre outras, utilizou o argumento da valorização da maternidade, difundido pelo Iluminismo e reforçado pelo pensamento médico desde meados do século XIX, para defender o direito à igualdade em campanhas reformadoras.  Essas ambigüidades presentes no discurso feminino, ora de “acomodação” ora de “resistência”, mostram que as mulheres adotam condutas distintas de acordo com a peculiaridade da situação que vivenciam[6].

Nísia Floresta Brasileira, considerada a primeira feminista brasileira, segundo Constância Lima Duarte, adaptou a obra de Mary Wollstonecraft – Vindication of the rights of woman (1792) para a realidade agrário-escravocrata de seu tempo, valorizando a função materna e a superioridade da mulher perante o homem e não a luta pelos direitos, que não encontraria eco naquela sociedade, naquele momento histórico. Apesar de ter anotado na capa de seu livro que se tratava de uma “tradução livre” do panfleto inglês, Nísia Floresta realizou “uma antropofagia libertária” (DUARTE, 1990: 37-41) para promover uma acomodação daquelas idéias ao cenário nacional. Como bem lembrou Ivia Alves, “As idéias de Nísia, com o tempo, tornaram-se bandeiras tematizadas pelas escritoras, de extrato burguês, que se seguiram”.(ALVES, 1999:103)

Contexto intelectual

É interessante refletir, primeiramente, sobre o contexto intelectual do período, em especial, sobre o pensamento médico dominante na Bahia para situarmos a perspectiva de Francisca no interior desse debate. Uma determinada interpretação da diferença sexual impregnou o saber médico, segundo Thomas Laqueur, desde o final do século XVIII, vindo a convergir com o pensamento social e filosófico do século XIX, no que se refere à sexualidade humana. A diferença sexual - entendida como natural e biológica – definiria as interações sociais entre homens e mulheres, sendo “responsável pelo ‘destino’ social de homens como provedores e de mulheres como esposas e mães”.(RODHEN, 2001)

Medicina, desde fins do século XVIII, vinha realizando estudos sobre os corpos das mulheres, usados como prova de que elas não eram capazes de participar das profissões ou mesmo produzir obras de maior profundidade intelectual.(SCHIEBINGER, 2001) Assim, as qualidades inatas e universais de uma suposta natureza feminina, frágil e incapaz, irracional e inconstante são evocadas, e, a partir daí, estabelecem-se direitos e deveres, inclusive os direitos do homem sobre a mulher, a sua exclusão da vida pública e do ensino superior com o respaldo da ciência. (LANDES, 1988) 

A idéia de inferioridade feminina foi compartilhada por boa parte dos médicos da Faculdade de Medicina da Bahia, influenciados pelos trabalhos de Spencer e Proudhon, autores que atribuíam uma elevada dignidade à maternidade.  A partir das primeiras décadas do século XIX, no Brasil, coincidindo com a primeira fase do desenvolvimento da Medicina, começou a ser elaborado um modelo ideal de mãe que se transformaria num paradigma cultural e político. Francisca Praguer Fróes, a despeito de outras discordâncias, incorporou esse ideal materno, como a maior parte das feministas do período, afirmando que:

“A maternidade é o magno sacrifício da mulher, o seu desdobramento incondicional para a multiplicação da espécie, a santificação do lar num soffrimento continuo e immensuravel”.(FRÓES, 1923:27)

Entretanto, ela nega especialmente a tese da inferioridade feminina em função dos seus órgãos reprodutivos, como tinha sido definida pelo discurso científico do século XIX. É preciso ressaltar que o saber médico comportava várias perspectivas, nem todas misóginas, não podendo ser visto como algo homogêneo.

Os escritos de  Francisca demonstram que ela  capta a determinação histórica da pretensa inferioridade definida nos termos masculinos, distanciando-se daquele discurso que encontrava suas bases de justificação no âmbito da natureza. Apoiando-se em Frédéric Stackelberg, anarquista e autor do livro La femme et la révolution, ela reafirma suas palavras:

“A inferioridade da mulher não é fisiológica, nem psicológica; ela é social. Sua escravidão sexual determina sua dependência econômica.”(FRÓES, 1917)

A médica baiana retira da História exemplos de mulheres dotadas de capacidade intelectual e política, como Mme. Roland, “que teve nas suas mãos durante alguns meses os destinos da França”, Mme. De Stael, Bertha de Sutner, para provar que as mulheres detêm as mesmas capacidades intelectuais e aptidão para o exercício de todas as atividades profissionais.(FRÓES, 1917) No seu entender, faltava às mulheres tão somente o suporte de uma educação mais qualificada e o pleno exercício da cidadania. Desse modo, confirma sua discordância em relação à teoria das qualidades inatas a cada um dos sexos.

A questão proposta pela médica é inovadora, pois ela ressalta os mecanismos sociais da discriminação de gênero  (ainda que não mencione a exploração econômica a que estão submetidas as mulheres), construídos em meio às relações sociais concretas, passíveis, pois, de transformação. Refletindo sobre a raiz da dominação masculina, ela observa que, apesar do predomínio sexual masculino, este haveria de “se extinguir um dia e com ele também as diferenças somáticas anteriormente consideradas como peculiares ao sexo feminino.” (FRÓES, 1923)  Em outras palavras, Francisca vincula a inferioridade física e intelectual da mulher à dominação masculina (e não ao corpo), convicta de que o domínio do sexo masculino tenderia a desaparecer um dia e, com ele,  a naturalização das qualidades femininas. 

O interesse sociológico de Francisca Praguer Fróes por essas questões pode ter sido estimulado pela leitura de autores, citados em seus trabalhos, como John Stuart Mill (The Subjection of Women, 1869), J. Novicov (A Emancipação da Mulher, s/d), Fréderic Stakelberg (La Femme et la Révolution, 1883), Han Ryner (Contre lês Dogmes, 1913), correntes contraditórias de pensamento que vão do liberalismo ao anarquismo, mas são unânimes na defesa da emancipação feminina. Londa Schiebinger observa que feministas notáveis também incluem homens, pois “feminismo define uma perspectiva, não um sexo”.  (2001, p.45)

Segundo Francisca Praguer, o feminismo normalizaria as relações entre homens e mulheres. Ela descreve-o como sendo a luta contra “certas leis iníquas, o brado enérgico e consciente pela reforma dos Códigos que nos regem, para a reabilitação dos direitos que a dignidade da mulher exige, em bem da moralidade do lar e da futura garantia da família.”(FRÓES, 1917) A médica baiana reivindica maior liberdade para a mulher naquele espaço social provinciano, que é como descreve a Bahia de seu tempo. No seu entender, era necessária uma

“atmosfera mais ampla e menos asphyxiante para [a mulher] livremente expandir a suas multiplas aptidões.” (FRÓES, 1923)

Aqui, podemos observar sua visão crítica da sociedade em que vivia, onde “reina a desorganização geral e a dissolução moral, a politicagem rasteira e sem escrúpulos...” (FRÓES,  1923:63-64) Sem meias palavras, dizia que tudo isso era obra exclusiva dos homens, os “formuladores das leis e das instituições vigentes”. Assumindo-se como feminista, Francisca vai à luta pelo reconhecimento da igualdade jurídica entre os sexos.

A problematização da situação da mulher no contexto baiano

A médica baiana deteve-se na reflexão sobre a condição da mulher no seio da família e da sociedade. A maioria dos textos jornalísticos aborda questões referentes à educação feminina, ao trabalho remunerado, à religião, ao divórcio, à saúde da mulher. A autora demonstra uma grande preocupação com os conflitos familiares, “a subserviência às agruras do mundo doméstico”, lugar onde sofreriam as maiores “humilhações”, a sujeição a maridos autoritários e infiéis, as idéias nascidas da superstição, o entorpecimento causado pela crença religiosa e que alimentava as idas e vindas das baianas à igreja, foram temas abordados nos seus escritos.

Francisca Praguer Fróes propõe a educação feminina e o trabalho remunerado como passos fundamentais para transformar a situação das brasileiras perante a família e a sociedade. As lacunas na educação e a falta de recursos materiais próprios eram responsáveis pela dependência da mulher ao pai ou marido.

No início do século XX, havia ampla concordância, na sociedade brasileira, de que a participação da mulher casada no mercado de trabalho acarretaria sérios prejuízos à família. Como sugere Joan Scott, “maternidade e domesticidade eram sinônimos de feminilidade”;(SCOTT, 1991, p.468) assim sendo, a dificuldade de aceitação social do trabalho assalariado, principalmente para as casadas, poderia estar fundamentada nessa concepção. 

Na Bahia, o trabalho remunerado era “considerado ‘feio’ e só aceitável em casos de extrema necessidade”.(ALVES, 1999 :107) Apesar disso, nunca deixou de ser exercido, na prática, por mulheres burguesas, muitas das quais não assumiam publicamente que seu trabalho era de fato necessário, para não ferir a imagem do marido provedor. Vale lembrar que, no Nordeste brasileiro, para além da atividade intelectual, todo trabalho restante era realizado pelas camadas pobres e mestiças, por ex-escravos, portanto, desvalorizado perante a sociedade.  Ainda que o trabalho além do âmbito familiar fosse considerado por muitos como uma das causas da prostituição esse raciocínio não era válido para as trabalhadoras pobres, que constituíam a força de trabalho feminino mal pago. 

Francisca assume uma posição bastante corajosa ao se firmar como médica assalariada na Maternidade Climério de Oliveira, contribuindo, desse modo, para desbravar espaços que seriam ocupados por outras mulheres depois dela. O direito ao trabalho era uma antiga reivindicação de feministas, como Jeanne Deroin, atuante na Revolução de 1848, na França. O direito ao trabalho e o direito ao voto eram dois tópicos fundamentais e interligados do feminismo de Deroin.(SCOTT, 2002: 106) Em outro contexto político e em outro tempo histórico, Francisca procurou demonstrar que as profissões liberais eram as que melhor se adaptariam à mulher por sua necessidade de compatibilizar trabalho no lar e profissão, embora muitos reformadores afirmassem que essas eram atitudes perigosas para a estabilidade do lar.

O trabalho remunerado era uma condição sine qua non para libertar a mulher de sua escravidão sexual. Francisca estava convencida de que a carreira profissional não impediria a mulher de realizar essa “obra divina”, isto é, a maternidade, argumento usado por ela para convencer suas leitoras e leitores da necessidade da educação feminina para o progresso da pátria. Ela pergunta:

“Quem melhor do que a mulher instruída (diplomada ou não) poderá resolver, com maior proveito para a família, o sério problema da educação dos filhos?” (FRÓES, 1917)

Acreditando que o trabalho da mulher a valorizaria perante a família, ela deu o exemplo não se deixando confinar na esfera do lar.  Em um artigo de 1917, Francisca escreveu:  

angariar um meio de vida capaz de lhe proporcionar uma independência relativa” para poder “affrontar o absolutismo dominante bradando bem alto e de fronte erguida: Eu reclamo meu direito, porque trabalho e contribuo também para a manutenção da família. (FRÓES, 1917)

As idéias de Francisca revelam-se avançadas para a época, pois nem mesmo os sinais de modernidade, já nos anos de 1930, apagariam os códigos hegemônicos da feminilidade ligada ao papel exclusivo de esposa e mãe. Contrariamente ao que se poderia pensar, estes estereótipos vão “reiterar a domesticidade da mulher”(ALVES, 1999 : 111) naqueles anos, o que não impediria  manifestações feministas por seus direitos. Ercília Nogueira Cobra, escritora paulista, em seu livro Virgindade Anti-higiênica: preconceitos e convenções hipócritas, de 1924, defendeu idéias consideradas radicais, por suas críticas em relação ao papel da mulher na família. Segundo ela: “O que mais horrível torna a dependência da mulher ao homem é a sua impossibilidade de trabalhar em indústrias lucrativas por falta de educação técnica”. (COBRA, 1924)     

Quanto à questão da religião, também não passou despercebida aos olhos da médica baiana, que observa seu caráter reacionário, não se conformando  aos padrões de comportamento religioso de suas conterrâneas. De acordo com sua argumentação: 

A religião é um soberano conforto, um balsamo intensivo e insinuante para os verdadeiros crentes. O lar é muita vez o tétrico palco onde se desenrolam, mais ou menos dolorosamente, as aflitivas cenas da vida intima de alguns seres: uns dispõem da ação, dominam e vencem; outros não têm o direito de reagir, submetem-se e são vencidos. É então que surge o poder religioso como um elemento reacionário, como um verdadeiro socorro ás torturadas inermes e, abatido o seu espírito fogem das amarguras tormentosas da vida para as alegrias promissoras da religião. E a mulher resignada fica sempre uma vencida. (FRÓES, 1917)   

Em verdade, Francisca não foi a única feminista baiana que, vivenciando o processo de urbanização e os movimentos de reforma social, na passagem do século XIX para o século XX, propôs mudanças na condição feminina. Muitas denúncias foram feitas por professoras, escritoras, jornalistas brasileiras, às vezes de maneira provocativa, outras mais cautelosas, desde o final do século XIX, como Josefina Álvares de Azevedo, Presciliana Duarte de Almeida entre muitas outras. Francisca Senhorinha da Motta Diniz, nascida em São João d´El Rei, manifestou-se contra os crimes perpetrados por maridos no jornal O Sexo Feminino e pleiteava ao ministério público a punição por esses crimes:

A mulher, por seu recato, pudor e caridade etc, nunca ou quase nunca acusa o marido, nem em circunstância alguma por mais desgraçada que seja, deve fazê-lo; mas a lei, ao ministério público deveria incumbir de fazê-lo em seu lugar. (BERNARDES, 1989: 148) 

Maria Lacerda de Moura, escritora libertária, nascida em 1887, na então província de Minas Gerais, tornou-se conhecida pelos ensaios em que analisa e discute a condição feminina; ela caminhou na contra-corrente de idéias que enfatizavam a posição subserviente da mulher, colocando-se ostensiva e corajosamente contra a “tirania clerical e fascista.”(LEITE, 1984:xvi)  A escritora buscou redefinir o papel da maternidade na vida das mulheres contra os preceitos da Igreja católica, uma vez que  defendia o amor plural e o direito de ter e de criar filhos fora do casamento”.(HAHNER, 2003: 320-321)

No início do século XX, algumas feministas voltaram seu olhar para a questão do divórcio.[7] [7]  Em 1917,  foi  defendido pela primeira vez, publicamente, por Francisca Praguer Fróes, tendo em vista obter a igualdade matrimonial e tornar-se uma via de libertação para aqueles que “não se podem absolutamente ligar.”(FRÓES, 1917)  De acordo com a autora: “Se o matrimônio é um sacramento perante a religião, não o é perante o direito civil que o egaliza como um contrato bilateral em que a comunhão de vida e de interesses impõe obrigações mútuas.”(FRÓES, 1931) Fica bastante claro que a médica lutava por uma sociedade livre de dominação sexual e pela constituição do casamento em outra base, ou seja, eliminando dele a dupla  moral, que gerou o avesso da prostituição.

Não desejava uma caricatura de monogamia, como a que era praticada na sociedade baiana, na qual a infidelidade masculina representaria um dos maiores óbices à felicidade no casamento, além dos danos morais e psíquicos causados às esposas. Edith Mendes da Gama e Abreu, escritora baiana, também refletiu sobre o problema da infidelidade masculina em um de seus livros, porém se omite em relação ao divórcio por razões de caráter religioso.

Foi preciso audácia para levantar a bandeira do divórcio, na ordem patriarcal, nos idos de 1917, sendo Francisca uma voz quase isolada na Bahia. É bem verdade que em outros espaços sociais, algumas mulheres atacaram violentamente o casamento monogâmico, a dependência da mulher ao homem e defenderam o divórcio.  Josefina Álvares de Azevedo, no Rio de Janeiro, assim se expressou:

O divórcio na instituição civil é uma necessidade lógica. Desde que as partes contratantes moralmente se separam a substância da união pela lei é um absurdo, e um absurdo insuportável, como uma sentença de iniqüidade sobre uma consciência resgatada de culpa. (AZEVEDO, 1890: 2)

Durante a primeira metade do século XX, professoras, escritoras e jornalistas que participavam da imprensa anarquista, como  Matilde Magrassi, Maria Lacerda de Moura, Tibi, entre outras, criticavam a ordem burguesa propondo questões sobre a formação de uma nova família condenando o casamento indissolúvel.  Em 1912,  a justificativa para a defesa do divórcio apareceu no jornal A Lanterna mostrando que o divórcio iria

“oferecer um abrigo seguro, um porto de salvação àqueles para os quais não sorria na terra a esperança de um clarão de ventura (...)” (RAGO, 1985:106)

A Revista Feminina, uma publicação mensal dirigida às mulheres, publicada entre 1914 e 1936, em São Paulo, por Virgilina Salles de Souza, e que teve entre as suas colaboradoras Júlia Lopes de Almeida, Francisca Júlia da Silva, Alzira Reis, Francisca Praguer Fróes, jamais esposou tal idéia. Como observa Sandra Lima em seu estudo sobre a revista: “O divórcio era encarado como ultrajante e prejudicial à mulher, e para reforçar essa visão colaboradoras expressavam seu repúdio a esse perigo que punha em risco sua soberania no lar”.(LIMA, 1991:195)

O feminismo defendido pela Revista Feminina “além de preservar os papéis tradicionais da mulher, mantém-se fiel à antiga concepção da Igreja da autoridade do marido e obediência da esposa”.(LIMA, 1991: 83) Nesse sentido, não houve reciprocidade entre o pensamento de Francisca Praguer Fróes, em especial sobre a indissolubilidade do vínculo matrimonial, religião, chefia da sociedade conjugal entre outras e as idéias veiculadas pela Revista Feminina. Na verdade, os temas tratados pela médica, nos artigos publicados nessa revista, versavam sobre o significado do feminismo, defesa do voto e artigos de contestação aos que repeliam o sufrágio feminino.

  Voto e feminismo 

No início do século XX, houve intensa mobilização feminista na Europa e nos Estados Unidos, com repercussões em outros países. No Brasil, dentre todas as questões que atraíram a atenção das mulheres, o voto foi o que mobilizou o maior número delas. No final do século XIX, na Constituição republicana de 1891, o voto foi considerado “o caminho da dissolução da família brasileira, pois, para a maioria dos deputados desta assembléia, era indiscutível e inapelável o papel da mulher no lar e na família, e o sufrágio feminino parecia-lhes uma ousadia anti-social”.(LEITE, 1984: 36)

Contudo, nos anos seguintes, naquele período histórico de constituição do espaço público burguês e, em conformidade com os ideais liberais que passavam a prevalecer, abriram-se brechas para a discussão da igualdade de direitos.

Projetos de lei instituindo o voto feminino foram encaminhados ao Congresso por líderes feministas, representantes do movimento organizado. Ainda que a campanha sufragista não tenha se tornado um movimento de massas no país, caracterizou-se por sua excelente organização, superior ao da maioria dos movimentos semelhantes surgidos na América Latina.(HAHNER, 2003:333) A Federação Brasileira pelo Progresso Feminino liderou o movimento tendo à frente sua fundadora, Bertha Lutz. 

Tornou-se conhecida como uma articuladora política altamente capaz, por  assumir propostas de reformas que beneficiavam a condição de vida do conjunto das mulheres brasileiras, utilizando o Estado como instrumento de intervenção social. (SHUMAHER e BRAZIL, 20902: 221)

Na Bahia, em 6 de julho de 1917, Francisca Fróes manifestou-se sobre o sufrágio feminino, portanto, um ano antes da volta de Bertha Lutz da Europa e de sua primeira iniciativa de convocar, por meio da imprensa carioca, as mulheres para se unirem em defesa de seus interesses, em 1918. No artigo de julho, declarou que o voto era um “passo agigantado para a independência [da mulher], na advocacia plena de seus direitos mutilados, um resgate justificado à tirania secular”. (FRÓES, 1917) Nesse mesmo escrito, reivindica também a elegibilidade para todas as brasileiras.

A obstetra baiana envolveu-se, durante toda a sua vida,  com os temas da liberdade, da justiça e da saúde da mulher. Em seu discurso e no exercício da medicina, o feminismo representava um meio para empoderar as brasileiras de seu tempo. Partindo da consideração de que a maternidade era um trabalho social da mulher, por conseguinte, deveria ter a sua contrapartida, isto é, a garantia de direitos sociais e políticos, inexistentes até então.

A polêmica em torno do voto feminino

Na Bahia, por suas características conservadoras, houve muita polêmica sobre o direito ao voto, embora os anseios feministas tenham contado com o apoio de alguns homens favoráveis ao sufrágio feminino. Contudo, muitas mulheres se opuseram à luta pelo voto. Embora não escapasse à Amélia Rodrigues, educadora, escritora e poetisa, a condição de inferioridade da mulher perante o homem, aceitou a “valorização masculina de qualidades humanas (...) como se se tratasse de uma distinção objetiva e natural” (LEITE, 1978:27), defendeu o papel de esposa e mãe, e procurou incentivar a participação de mulheres nas obras de cunho educativo, religioso e assistencial.” 

Atenta à movimentação a favor do voto, Amélia Rodrigues buscou afastar as baianas da influência perniciosa do feminismo, chegando a classificar quem defendesse o voto de “arruaceira” (ALMEIDA, 1986: 17), embora, em 1921, revelasse sua aceitação ao “feminismo cristão”. Gozando de reconhecimento público, como médica, Francisca Praguer Fróes procurou usar toda sua influência para convencer as baianas da importância do sufrágio feminino. Dizia: 

 Abrace a mulher o direito do voto cuja oportunidade não deve repelir; (...) e verá que nenhum desproveito lhe advirá dai, pois que não faltarão corajosas para enfrentar com moderação, mas com energia, a campanha que urge da unificação dos deveres e direitos do seu sexo. (FRÓES, 1917)

 

Na verdade, a autora do artigo tinha por objetivo preparar o caminho para outras conquistas futuras, “como um prêmio ao mérito (feminino) desprestigiado ou mal compreendido!” (FRÓES, 1917)  

Meditando sobre a oposição veemente assumida por senhoras católicas baianas em relação ao voto feminino, Francisca, defensora convicta da participação política da mulher na sociedade, expressou sua consternação em  matéria publicada no jornal A Tarde, na qual dirigiu palavras de desapontamento a algumas representantes do sexo feminino, pelo anacronismo de idéias

“mal elaboradas e mal comprehendidas, que entorpecem certa porção do sexo que se confirma frágil e incapaz, num recuar pusillanime ante um direito que ainda não alcançou e pelo qual há de clamar necessariamente amanhã!” (FRÓES, 1917)

Ela continuou trabalhando pela defesa dos direitos, unindo-se a outras feministas baianas, como Edith Mendes da Gama e Abreu, Lili Tosta, Marieta do Passo Cunha, Hermelinda Paes, entre outras, embora nem todas partilhassem dos mesmos ideais e objetivos. Quando Bertha Lutz e Carmen Portinho, sufragista e pioneira da engenharia no Brasil, reiteraram a necessidade de ampliar o alcance da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e da União Universitária Feminina a outros estados,  Francisca Fróes não teve dúvida de que era chegado o momento de unir as feministas num “movimento uníssono e coletivo [para] defender e orientar seus destinos”. 

Maria Luiza Bittencourt, nascida em 1910, na Bahia, trabalhando ao lado de Bertha Lutz no Rio de Janeiro, onde cursava Direito, viajou a Salvador e atuou para que as duas associações fossem criadas, em 19 de abril de 1931. Edith Mendes da Gama e Abreu elegeu-se presidente da FBPF e Francisca Praguer Fróes presidente da UUF, como referido anteriormente. O objetivo principal da União Universitária Feminina era o desenvolvimento da intelectualidade feminina na Bahia.

Como se sabe, o objetivo das sufragistas foi atingido por intermédio do novo código decretado em 24 de fevereiro de 1932, que concedia amplo direito de voto às mulheres. Francisca Praguer não viveu o tempo suficiente para festejar essa vitória das brasileiras, que também era sua, pois, como vimos, foi das primeiras, na Bahia, a reivindicar o voto. 

Da interação de Francisca com o mundo circundante, visto como injusto e caótico, partiram suas idéias reformadoras. O contato diário com mulheres extremamente pobres, indigentes, ex-escravas, mães solteiras desamparadas, que buscavam atendimento gratuito na maternidade da Faculdade de Medicina da Bahia é uma variável que precisa ser considerada em sua trajetória. Não se trata de colocá-la como um sujeito único no confronto com apobreza feminina (ou com o atraso brasileiro?), porém, não se pode perder de vista que o elemento histórico do abandono e do descaso em relação à saúde de mulheres das camadas populares (até hoje), raramente, fez parte do cotidiano de mulheres privilegiadas pela situação de classe, raça/etnia.

Em São Paulo, temos o exemplo da médica Maria Rennotte (1852-1942), nascida na Bélgica, que viveu mais de 60 anos no Brasil. Drª. Rennotte foi diretora da Maternidade São Paulo, desde 1895, criou uma enfermaria para atendimento de mulheres pobres e participou ativamente na criação da Cruz Vermelha, fundada em 1908, entre outras atividades dedicadas à pesquisa e à benemerência.(MOTT, 1999: 120)

Na reflexão de Francisca Praguer Fróes, o problema das doenças sexualmente transmissíveis ocupa um lugar de destaque, dado o número elevado de casos de mulheres contaminadas pelos seus parceiros, atendidas por ela na Maternidade Climério de Oliveira e em seu consultório. Ela culpa diretamente o

“pouco escrúpulo e a incúria abusiva do sexo livre para com aquela cuja castidade exige, a troco, geralmente, de fraudes esponsalícias injustificáveis”.(FRÓES, 1923: 12-13)

O efeito dessas patologias, segundo ela, era sempre desastroso no plano da saúde física, moral e psicológica da mulher. O problema deveria ser enfrentado pela intervenção do poder público. Nesse sentido, ela reivindicava a obrigatoriedade do exame pré-nupcial ao lado de processos educativos, o combate rigoroso às doenças infecciosas, proteção à mãe solteira, a quebra do segredo médico, sempre que necessário, e a intervenção de uma legislação que garantisse a moralização do casamento. Francisca priorizou a medicina preventiva acreditando que o higienismo poderia proteger a saúde da mulher, por meio do saneamento. Defendia a educação sexual nas escolas, para ambos os sexos, além de cursos de higiene e puericultura.

Para finalizar, gostaria de registrar que o interesse em trazer à tona algumas dimensões da trajetória e das idéias de Francisca Praguer Fróes deriva da minha vinculação a uma prática historiográfica preocupada em desvendar universos femininos relegados ao esquecimento. Numa época de empobrecimento cultural, de crise da sociabilidade, da “corrosão do caráter”, para usar a expressão de Richard Sennett, da perda dos valores éticos e da crise dos paradigmas, como a nossa, recorrer ao passado em busca de experiências femininas permite-nos ampliar o legado de nossa tradição cultural e fortalecer a luta e a percepção de nós mesmas.

Ao contrário do personagem Brás Cubas, do romance de Machado de Assis, que recusa a paternidade alegando que não transmitiria “a nenhuma criatura o legado de nossa miséria” (ASSIS,196:.236) penso que há experiências humanas dignas, que merecem ser transmitidas para as novas gerações. Francisca Praguer Fróes desafiou os limites da cultura de seu próprio tempo lutando até sua morte pelo acesso das brasileiras à cidadania social, política e econômica. É preciso ressaltar que mesmo sob o poder das leis e dos costumes patriarcais, algumas mulheres, enquanto sujeitos históricos, ampliaram os espaços de liberdade de ação modificando os rumos da história da mulher. [8]


REFERÊNCIAS  

 

HOLLANDA, Heloísa Buarque. “Os estudos sobre a mulher e literatura no Brasil: uma primeira avaliação”. In COSTA, Albertina de Oliveira e Bruschini, Cristina (orgs.) Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992, p. 68.

THÉBAUD, Françoise. Mulheres, cidadania e Estado na França do século XX. Tempo, Rio de Janeiro, nº 10, s/d.

FRÓES, Francisca Praguer. Prophylaxia Matrimonial. Bahia: Imprensa Official do Estado, MCMXXIII.

————. “A palavra ‘feminismo’ em sua accepção verdadeira e insophismavel”. Revista Feminina, Anno X, nº 108, maio de 1923.

————. Jornal A Tarde, Bahia, 2 de abril de 1931.

BASTIANELLI, Luciana (compilação e pesquisa). Gazeta Médica da Bahia: 1866-1934/1966-1976. Edições Contexto. Salvador, Bahia, 2002.

PRAGUER, Francisca Barreto. “Observação de um caso de gravidez extra-uterina abdominal”. Gazeta Médica da Bahia, novembro de 1895, Ano XXVII, nº 5.

FRÓES, Francisca Praguer. “Eclampsia no trabalho de parto”. Gazeta Médica da Bahia, 1903.

ENGEL, Barbara Alpern. “Women Medical Students in Russia: 1872-1882. Reformers or rebels? Journal of  Social History, vol. 12, n.3, 1979.

FBPF, Livro de Atas, 9 de abril de 1931.

DUARTE, Constância Lima. “Nos primórdios do feminismo brasileiro: direitos das mulheres e injustiça dos homens” . In: GOTLIB, Nádia Battella  (org.). A mulher na Literatura, vol. III. Imprensa da Universidade Federal de Minas Gerais, 1990.

ALVES, Ivia. “Visão do trabalho através dos textos de autoria feminina (No contexto da sociedade baiana do final do século)”.In: REIS, Lívia de Freitas,VIANNA, Lúcia Helena, PORTO,Maria Bernardete. Mulher e Literatura: trabalhos apresentados no VII Seminário Nacional. EdUFF, Niterói, RJ, 1999.

RODHEN, Fabíola. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001.

SCHIENBINGER, Londa. O feminismo mudou a ciência? Bauru, São Paulo: EDUSC, 2001.

LANDES, Joan B. Women and the public sphere. I the age of the French Revolution. Ithaca and London: Cornell University Press, 1988.

FRÓES, Francisca Praguer. Higiene e Maternidade. In: In Memoriam: Drª. Francisca Praguer Fróes, Bahia, MCMXXXII.

————. A Tarde da Bahia, 4 de janeiro de 1917.

————. Prophylaxia Matrimonial. Bahia: Imprensa Official do Estado, MCMXXIII, p.9.

————. A Tarde, Bahia: 4 de janeiro de 1917.

————. “A palavra feminismo’ em sua acepção verdadeira e insophismavel”. Revista Feminina, São Paulo, Maio de 1923.

————. “O Feminismo”. Revista Feminina, São Paulo, Maio de 1923.

SCOTT, Joan W. A mulher trabalhadora. In: DUBY, G. e PERROT, M (Dir.) História das Mulheres no Ocidente. V.4: O Século XX. Porto: Afrontamento; São Paulo: EBRADIL, 1991

ALVES, Ivia. “Visão do trabalho através dos textos de autoria feminina, op. cit.

SCOTT, Joan W. A cidadã paradoxal. As feministas francesas e os direitos do homem. Tradução: Élvio Antônio Funck. Apresentação: Miriam Pilar Grossi. Florianópolis: Mulheres, 2002.

FRÓES, Francisca Praguer. Entrevista. Op. cit.  

COBRA, Ercilia Nogueira. Virgindade anti-hygienica – preconceitos e convenções hypocritas. Edição da Autora. Data manuscrita: 1924. www.cobra.pages.nom.br/ , capturado em 21/07/2004.

FRÓES, Francisca Praguer. “Em Prol do voto feminino”. A Tarde, Bahia, 6 de julho de 1917.

BERNARDES, Maria Thereza Caiuby Crescenti. Mulheres de Ontem? Rio de Janeiro – Século XIX. São Paulo: T.A.Queiroz,1989, p. 148.

LEITE, Miriam L. Moreira. Outra face do feminismo op. cit.

HAHNER, June E. Emancipação do sexo feminino, op. cit.

FRÓES, Francisca Praguer. Jornal A Tarde, Bahia, 4 de janeiro de 1917.

——————.  Higiene e Maternidade, 1931.

AZEVEDO, Josefina de. “O divórcio”, A Família. Rio de Janeiro, 9 de outubro de 1890, p. 2.

Apud RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar. A utopia da cidade disciplinar. Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

 

LIMA, Sandra Lúcia Lopes. Espelho da Mulher: Revista Feminina (1916-1925). Tese de doutorado. Apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Departamento de História, 1991.

 

Lima, Sandra Lúcia Lopes, op. cit.

 

LEITE, Miriam Lifchtiz Moreira. Outra face do feminismo... op. cit. p. 36.

 

HAHNER, June E. Emancipação do sexo feminino. A luta pelos direitos da mulher no Brasil, 1850-1940.Tradução Eliane Tejera Lisboa. Florianópolis: Mulheres,  Santa Cruz do Sul: UNISC, 2003. .

 

SHUMAHER, Schuma e BRAZIL, Érico Vital. (orgs.) Dicionário Mulheres do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2000.

 

FRÓES, Francisca Praguer. “Em prol do voto feminino”. A Tarde da Bahia, 6 de julho de 1917.

 

LEITE, Miriam Moreira Lifchitz. Bibliografia anotada sobre a mulher brasileira. Separata da Revista Ciência e cultura, vol 30 (1) janeiro/1978.

 

ALMEIDA, Maria Amélia F. de. Feminismo na Bahia 1930-1950. Universidade Federal da Bahia. Mestrado em Ciências Sociais. Salvador, Bahia, 1986.

 

FRÓES, Francisca Praguer. Em Prol do voto feminino. A Tarde. Bahia, 6 de julho de 1917.

 

id

 

id

 

MOTT, Maria Lúcia. “De educadora a médica: trajetória de uma pioneira metodista”. In: Revista do Cogeime nº 15. Dezembro/99.

 

FRÓES, Francisca Praguer. Prophilaxia matrimonial, op cit.

 

ASSIS, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas. 2ª edição. São Paulo. Edições Melhoramentos, 1967.

 

NOTAS

[1]  Outros aspectos sobre a vida pessoal e profissional da Drª. Francisca Praguer Fróes foram tratados em: RAGO, Elisabeth Juliska. “Medicina e Feminismo no início do século XX: Francisca Praguer Fróes (Bahia: 1872-1931)”. In: R. IHGB, Rio de Janeiro, a.163, n. 415, abr./jun. 2002.

[2]  Segundo PATEMAN, “Falar em gênero, em vez de falar em sexo, indica que a condição das mulheres não está determinada pela natureza, pela biologia ou pelo sexo, mas é resultante de uma invenção social e política. Realmente, o que os homens e mulheres são, e como as relações entre eles estão estruturadas depende muito da importância política atribuída à masculinidade e à feminilidade.” PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p. 330. 

[3]  Os comentários sobre a inteligência e brilho da estudante nos chegaram pela voz de um de seus professores na Faculdade de Medicina da Bahia, Professor Anísio Circundes de Carvalho. Dra. Francisca Praguer Fróes: In Memoriam. Bahia: 1932.

[4]  Rita Lobato Velho Lopes formou-se em 1887; Amélia Pedroso Benebien, em 1889; Ephigenia Veiga, em 1890; Glafira Corina de Araújo, em 1892 e, em quinto lugar, Francisca Praguer Fróes, em 1893. 

[5]  Parteiro era o termo utilizado para denominar o médico obstetra no século XIX e início do XX.

[6]  De acordo com SAFFIOTI, “Embora a identidade de gênero feminino seja firme (CHODOROW, 1978), a mulher é um ser ambíguo por excelência, não chegando, muitas vezes, a atingir o nível da ambivalência. Desta sorte, uma mesma mulher adota condutas distintas para responder a um mesmo apelo social, podendo este comportamento representar uma acomodação ou uma resistência, de acordo com a peculiaridade da situação”.  “Violência de Gênero: o lugar da práxis na construção da subjetividade”. In: Lutas Sociais 2, NEILS – Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, 1997, p.71-72. 

[7]  Em Salvador, Bahia, Hermelinda Paes e  Maria Luiza Bittencourt, mais tarde, por volta de 1930, também defenderam o divórcio.

[8]  Gostaria de registrar um agradecimento a Maria Lúcia Mott pelos comentários e sugestões.

nota biográfica


Elisabeth Juliska Rago é professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em História pela PUCSP. Doutora em Ciências Sociais (Sociologia) pela PUCSP.
E-mail: bethrago@terra.com.br


 

Labrys
estudos feministas/ études féministes
agosto/dezembro 2005 -août/ décembre 2005