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III
MARIA JULIA PASCALI
EM PROL DE CRAVAR JÚBILO
NOS CORAÇÕES DORMENTES:
CONSTRUÇÃO PTICA DE UMA PERCEPÇÃO
Tese apresentada ao Instituto de Artes,
da Universidade Estadual de Campinas,
para obtenção do Título de Doutora em Artes.
Área de concentração: Artes e Mediação
Orientador: Prof. Dr. Marcio Aurelio Pires de Almeida.
CAMPINAS
2008
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IV
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP
Título em ingles: In favor of crave jubilance at the numb hearts: poetical construction of a
perception.”
Palavras-chave em inglês (Keywords): Integrated and Participatory Arts; Performance, Life
and Arts; East-West; State of Presence; Theater and Knowledge; Rites of Passage.
Titulação: Doutor em Artes.
Banca examinadora:
Prof. Dr. Marcio Aurelio Pires de Almeida.
Profª. Drª. Suzi Sperber.
Prof. Dr. Rinaldo Sergio Vieria Arruda.
Profª. Drª. Verônica Fabrini.
Prof. Dr. Antonio Januzeli.
Data da defesa: 16-12-2008
Programa de Pós-Graduação: Artes.
Pascali, Maria Julia.
P261e Em prol de cravar júbilo nos corações dormentes: construção
poética de uma percepção. / Maria Julia Pascali. Campinas, SP: [s.n.],
2008.
Orientador: Prof. Dr. Marcio Aurelio Pires de Almeida.
Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Artes.
1. Artes Integradas e Participativas. 2.
Performance. 3. Vida e Arte. 4. Oriente-Ocidente. 5. Estado de Presença. 6.
Teatro e Conhecimento. 7. Ritos de Passagem. I. Almeida, Marcio Aurelio
Pires de. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III.
Título.
(em/ia)
V
VII
Dedico este trabalho aos povos e culturas
deste planeta , às forças do Céu e da Terra,
representadas pelo meu pai, Paulo Pascali,
e minha mãe, Maria Apparecida Pascali,
e às 10.000 coisas do Universo, representadas
pelos meus irmãos (Paulo e Domingos),
sobrinho (Rubens), família, amigos e
companheiros de todos os reinos,
e a todas as crianças que avisto com um sorriso.
IX
AGRADECIMENTOS
À Profa. Dra. Ingrid Koudela pelo incentivo para que este trabalho fosse concebido;
À Profa. Dra. Sara Lopes pelo irrestrito apoio durante todo o curso;
Aos mestres Klauss Vianna, Fauzi Arap, Manoel de Barros e Noburo Yoshida pela
condução sensível e constante;
A todos os companheiros de teatro, dança, música, literatura, artes plásticas
e outras artes, com os quais compartilhei vários ritos e cresci;
Aos meus colegas e alunos da UFG, pela compreensão e participação neste discreto
passo a caminho da paz;
Aos amigos Lisbeth Oliveira, Gregor Kux e Sol de Luna Kux pela incomensurável
solidariedade e apoio;
À querida amiga e diretora Juçara Morais, pela íntima e espiritual conexão;
Às nações indígenas, especialmente à Nhambiquara, pelo acolhimento e revelações;
À Comunidade Yuba, pela oportunidade de compartilhar a integração u-terra
como recomendam os ensinamentos orientais;
A Kazuo Ohno, pela confiança e desafio que me apresentou;
A todos os queridos amigos da família pirenopolina, especialmente
os Oliveira Lobo, adultos e crianças, pela presença plena e alegria;
À minha melhor amiga, Lalá, por ser minha melhor amiga;
À Dra. Maria de Fátima Rimoli, pelo apoio constante e generoso;
À Eulina de Souza, pela organização e digitalização de arquivos;
Ao Prof. Dr. Marcio Aurelio Pires de Almeida, alma iluminada,
mago do saber teatral, amigo, diretor e orientador sábio e solidário;
A todas as pessoas que contribuíram para realização deste percurso;
meu agradecimento.
XI
“Mãe”, perguntei-lhe certa vez, “ quem é você, afinal?”
“Quem?”, retrucou ela. O que é isso: ‘quem’? Existe apenas uma única
existência, e cada animal, cada planta, mas também cada corpo do
mundo, cada sol e cada planeta são apenas uma revelação dessa única
existência. Quantos ‘quem’ existiriam então? O mesmo eu que fala por
minha boca, fala pela sua e pela de todos os seres vivos. A única
diferença consiste em que nem todos os seres conhecem o próprio eu
inteiramente, portanto também não podem revelar-lhe todas as
características. Todavia, quem o conhece com perfeição pode revelar
todas as características que possivelmente existam no mundo , pois todos
são, afinal, diferentes aspectos da única existência que constituem o
único eu. A forma exterior que você diante de si e que pensa ser ‘eu’ é
apenas um instrumento de revelação que, a partir do eu, sempre revela
aquele aspecto que for necessário no momento. Portanto, não faça
pergunta tão tola como ‘quem’ sou eu.”
Elisabeth Haich
XIII
RESUMO
Este trabalho apresenta o testemunho de uma trajetória de vida, cujas experiências,
pesquisas, participações e proposições no campo das Artes, especialmente o
Teatro, ganharam novo olhar e conduta a partir do contato com a cultura indígena e
as artes e filosofia orientais.
A pesquisa foi iniciada a partir de inquietações no campo de identidade, militância e
consciência. A metodologia se configurou no próprio caminho e foi guiada pelas
mestras intuição e comunhão, musas do ser enquanto ator. Os caminhos trilhados
foram apresentando, desde a infância até os primeiros espetáculos, tendências a
mesclar arte e vida. Até que, com a imersão nos universos indígena e oriental,
redirecionou-se olhar e conduta da pesquisadora, partindo da espetacularização
para as proposições e artes integradas e participativas, contemplando como eixo
primordial de prática e proposta a busca pelo estado de presença e a generosidade
enquanto emanação.
O texto, à maneira de testemunho apresenta, além da reflexão, o cotejamento com
teóricos, poemas, registros de época e histórias, ilustrados com fotos e desenhos.
O percurso de confecção desta tese realizou a descoberta de um novo plano: o
processamento e organização desta experiência como um grande rito de passagem,
como uma vivência a ser oferecida como conhecimento, apontando para o Teatro
enquanto forma de conhecimento.
A viagem foi patrocinada pela intensa necessidade de ampliar níveis de
conhecimento e consciência, pela profunda vontade de servir com maior lucidez à
espécie humana, rumo ao instante pleno, à vivência da presença a ponto do olvido
dos termos passado e futuro.
Palavras-chave: Artes Integradas e Participativas; Performance; Vida e Arte; Oriente-
Ocidente; Estado de Presença; Teatro e Conhecimento; Ritos de Passagem.
XV
ABSTRACT
In favor of crave jubilance at the numb hearts: poetical construction of a perception
This paper presents the testimony of a trajectory of life, whose experiences,
research, equity and propositions in the field of arts, especially theater, gained new
look and conduct from contact with the indigenous culture and oriental arts and
philosophy.
The research was initiated from concerns in the field of identity, militancy and
consciousness. The methodology is set in their own way and was guided by the
masters intuition and communion, the Muses of been as an actor. The walked paths
were presented, from childhood until the first shows, the trend to merge art and life.
Until that, with the immersion in the indigenous and east worlds, the look and conduct
of the researcher had been redirected, coming from the theatricalization to the
propositions and integrated and participatory arts, including as primary axis of
practice and proposal to search by state of presence and generosity while
emanation.
The text, in the manner of testimony, presents, beyond the thought, the comparison
with theory, poems, records of time and stories, illustrated with photos and drawings.
The journey of making this thesis realized the discovery of a new plan: the
processing and organization of this experience as a major rite of passage, as
experiences being offered as knowledge, while pointing to the Theatre as form of
knowledge. The trip was sponsored by the intense need to expand levels of
knowledge and awareness, the deep desire to act with greater clarity among the
human species, toward the full moment and the living presence, until to oblivion
terms like past and future.
Key words: Performance, Life and Art, East-West; Theatre and Knowledge; Rites of
Passage; State of Presence; Integrated and Participatory Arts.
XVII
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 5
DESENVOLVIMENTO
1. Hito 9
2. Futa 19
3. Mii 23
4. Yo 27
5. Itsu 31
6. Muyu 35
7. Nana 45
8. Ya 53
9. Kokono 71
10. Tari 85
11. Momo 89
12. Chi 95
CONCLUSÃO 103
REFERÊNCIAS 115
Bibliografia 117
1
Figura 1 – Desenho de criança Nhambiquara
Fonte: Colhido pela pesquisadora Ana Maria R. F. M. da Costa
3
Haina Haina Hai
Haina Haina hai
Haina Haina hai
Haina Haina Hai
Haina Haina Hai
Haina Haina Hai
Haina Haina Hai
Ha Hai Hai
(repete indeterminadas vezes)
Canto Indígena Nhambiquara
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Hito Futa Mii Yo Itsu Muyu Nana Ya Kokono Tari
(repete 3 vezes)
100 1.000 10.000
Momo Chi Yorozu
Canto da Ordem do Céu
(Tradição Japonesa)
5
INTRODUÇÃO
O canto indígena nhambiquara, sem nenhuma palavra que evoque o
raciocínio, nos reporta ao deus imediato, ao céu vindo diretamente para a terra,
num círculo de canto e dança que dura, ininterruptamente, desde o poente até o
nascente. Homens, mulheres, crianças, se unem em roda para saudar o Universo,
criando um sulco na terra, sob seus pés, e imantando, com suas vozes a vibrar, toda
a área em torno da aldeia. Os participantes se elevam à vibração do céu e os corpos
se tornam tão sutis que parecem flutuar.
O canto da Ordem do Céu abre e fecha rituais religiosos e artísticos
japoneses, expressa a seqüência em que se deu a criação, invocando a força do
plano terreno para se dirigir ao céu. Preciso, de curta duração, intenso, faz com que
o canto dos números ordene a energia interior dos participantes conforme a ordem
celeste. Palavras e números revelam o desejo humano de, através de um som da
terra, se elevar ao céu.
Desde jovem inflamada por estas duas vertentes, fui mergulhando no
mundo procurando apascentar minhas inquietações terrenas pela abertura de
campos de consciência, me expressando através da Arte, especialmente o Teatro.
Passando pela dança, pela formação clássica em piano, recebendo a
força do cinema e da militância política, o território do Teatro foi o escolhido para que
o ser expressivo que em mim pulsava se defrontasse com maravilhamentos,
desafios e saltos de consciência.
Este trabalho, em forma de testemunho e reflexão, pretende registrar o
percurso de vida relacionado à arte e criação e a configuração de uma nova
abordagem de atuação e concepção originadas pelo mergulho nas culturas indígena
e oriental.
6
Perceberemos a tendência performática e de pesquisa da cultura
brasileira se manifestando desde as primeiras experiências de trabalho junto aos
grupos Teatro União e Olho Vivo e Os Farsantes. A experiência junto ao teatro
popular, reunindo arte e militância (Teatro União e Olho Vivo TUOV) se mostrou
como escola da integração das artes e das classes. O trabalho junto ao teatro de
grupo (Os Farsantes) aprofundou a ousadia da criação coletiva e o questionamento
da nossa história.
A partir da montagem de O Exercício, novos campos de consciência foram
ativados e a busca por preencher uma sensação de lacuna interna quanto à
presença da brasilidade, me levou a partir para uma pesquisa em direção do ser
brasileiro; pedindo licença aos deuses negros fui conhecer a via indígena.
O despertar para a busca do encontro profundo com as raízes brasileiras,
nas visitas a aldeias indígenas, em especial a Nhambiquara, se deu em
concomitância com minha chegada aos ensinamentos e práticas orientais. Estudos
práticos e teóricos, artes e treinamentos como Tai Chi, Ba Guá, Lian Gong, Teatro
e Butô me levaram a visitar países, mestres, ensinamentos e comunidades na e
da Ásia.
Deste novo olhar e postura surgem novas expressões, ações e
proposições cujo eixo guia está centrado, agora, no cultivo do estado de presença,
com concentração e síntese, e na interação de todos os reinos humano, animal,
vegetal, mineral e estelar. A irmandade sem limites se estabelece rompendo a
barreira palco/platéia, artista/espectador, criador/criatura. As proposições que
convidam todos a se expressarem, em conjunto, abrindo o leque de linguagens,
ganha o caráter de interação e improviso, gerando produtos de vários timbres.
Assim, do teatro enquanto espetáculo, passamos para o teatro enquanto
conhecimento, dando base a projetos artísticos que congregam linguagens,
participação e criação coletiva, expandindo espaço e tempo a ponto de esmaecê-los
e convidando todos os corações a compartilhar uma fatia de expressão do Universo.
Todo o caminho pode ser observado, segundo a luz da antropologia, como
um permanente rito de passagem, em seu estado de transição, onde a busca por
7
outras culturas e outras possibilidades de ser, revelaram à pesquisadora as chaves
de sua metodologia: sensibilização, intuição e vivência da premissa eu sou um
outro você”.
Para que este percurso ganhe luz contamos com a elucidação de
estudiosos - teóricos e práticos - dos campos do teatro e da antropologia. E para que
a vida continue a pulsar registrei alguns poemas e relatos em prol de cravar bilo
nos corações dormentes.
9
DESENVOLVIMENTO
1. Hito
Invocando, com respiração profunda e movimento espontâneo, o trânsito
orgânico dos dois reinos – Céu e Terra – canto:
Começar,
começar,
começar.
Fechar os olhos e mergulhar
Na sensação do sino
Na sensação do sol
Na sensação do céu.
Mergulhar,
mergulhar,
mergulhar
na imensidão,
na imensidão
do escuro,
na imensidão do vazio,
na imensidão do eu,
do não eu
Na imensidão da possibilidade de todos os eus
Migrar.
Migrar até o sol se pôr.
Migrar, migrar até a folha que cai.
Migrar.
Migrar até o telhado que se derruba.
10
Migrar, migrar até o brilho da lua.
Migrar, migrar, migrar até o cerne da árvore.
Migrar até as raízes profundas
Migrar as águas de baixo
Migrar aos galhos forjados a seca e fogo,
Mig rar,
mig r arr,
até o eme do mmi
Até o ge do gra
Até o g, g, g, migrar
Miiiigrarr.
Migrar se,
migrar até o coração do
Migrar-se
Migrar até o coração do
Migrar-se
Migrar
até o som do coração
do tu.
Assim
Eu convido a todos:
Fechemos os olhos neste momento.
...
Quando fechamos os olhos encontramos um mundo infinito de
possibilidades
Encontramos o tempo sem tempo
Encontramos o espaço sem espaço.
Quando fecho os olhos eu os convido a ouvirem as pessoas a passar
... (pessoas passando) ...
11
Quando fecho os olhos eu os convido a imaginarem as plantas, as
árvores e toda a mata que me rodeia.
...
Quando fecho os olhos eu os convido a penetrarem no verde do fim da
tarde, das folhas emaranhadas, dos cipós a caírem, dos galhos a se cruzarem, das
flores a se manifestarem, em folhas múltiplas, mínimas, coerentemente dispostas
nos galhos.
...
Quando vocês fecham os olhos eu os convido a encontrarem o centro-
oeste,
o planalto central,
com o horizonte infinito à sua frente,
com o céu e as águas a caírem.
...
Quando fecho os olhos
eu os convido a encontrarem todos os elementos, todos os líquidos, todas
as terras, todos os ares, os fogos, os metais.
...
Quando fecho os olhos
eu os convido a migrarem para si próprios,
a migrarem para a infinita possibilidade de estarem imersos num grande
universo
sem limites,
sem limites visuais,
sem limites sonoros,
palatares,
tácteis.
...
12
Em mim tudo vive : Abaeque é Tupi, Batucajé que é Bantu, Quisé
1
que
é português.
É em busca dessa plenitude,
de vivê-la e compartilhá-la,
que aqui me debruço,
hoje, no Centro-Oeste, dia 26 de fevereiro de 2007.
E os convido
a se irmanarem
ao paraíso na terra,
ao bem estar de cada célula,
à integridade e à integração de cada partícula,
ao respeito a cada pequeno espaço
minimamente,
quanticamente disposto e sensível.
Eu os convido a desfrutarem o que se irmana em cada um de s ao
universo,
O que nos torna natureza,
o que nos torna ser,
o que nos permite estar,
como está a árvore,
como está a terra,
como está a nuvem,
1
Parte da letra da canção “A Lenda do Abaeté”, de Dorival Caymmi, in Caymmi (2001):
De manhã cedo O pescador
Se uma lavadeira Deixa que seu filhinho
Vai lavar roupa no Abaeté Tome jangada
Vai se benzendo Faça o que quisé
Porque diz que ouve Mas pancada se o seu filhinho brinca
Ouve a zoada Perto da Lagoa do Abaeté
Do batucajé Do Abaeté
13
como está o pássaro,
como estou eu agora,
convido você a estar também,
agora.
Estar,
vibrar,
pulsar,
permitir o fluxo e a comunicação cósmica.
Cósmica, cósmica, cósmica.
Minha migração, minha instância está nesse termo cósmico
Estar cosmicamente integrada ao Cosmos
Estar cosmicamente trabalhando
Estar cosmicamente compartilhando
Estar cosmicamente conversando
Estar cosmicamente
Testemunhando.
Testemunho o sol
Há meio século.
Testemunho o sol de meio século.
Testemunho sou de meio século.
Testemunho
neste século
a criação
como se deu
neste ser
inquieto,
cheia de fogo, cheia de vida, de movimento,
pra lá, prá cá, pra lá, prá cá,
trepando, caindo, subindo, virando,
agarrando,
14
admirando,
rindo, rindo e chorando junto, rindo e chorando junto,
se jogando, se jogando, se jogando,
mergulhando no universo, mergulhando no mundo
até quebrar o dente,
até tocar o útero,
até se ferir profundo,
e mergulhando, mergulhando, mergulhando,
mergulhando no mundo literalmente,
um mergulho sem nenhuma defesa, sem nenhum obstáculo.
E por ser tão impulsivo e natural, com ousadia.
Este pequenino ser, desde cedo,
se expressa artisticamente
dançando, dançando, dançando,
dançando, dançando, dançando.
Depois ...
começou a descobrir a música
...
e ao mesmo tempo a repressão.
...
A música e a repressão, a música e a repressão, a música e a repressão.
Isso é muito dolorido,
muito dolorido:
música e repressão.
...
A criação e a armadura social
e a inquietação humana,
...
e o maravilhamento,
15
o maravilhamento terrível.
Desde cedo fugindo da escola, do ginásio
pra conhecer a manifestação do mundo,
o cinema e os movimentos estudantis.
Desde o final da década de 60
o ser militante começa a descobrir alguma coisa.
Aos 13 anos me tornei militante sem saber muito bem do quê.
A partir daí minha vida, não mais ligada só a mim e a minha família,
estava imersa ao mundo.
Exposta fui no alto da montanha
entregue à experiência pela espécie.
Me formei”, fechei o piano. Incorporei, literalmente, a musicalidade. E
comecei, no mesmo mês, a fazer teatro. E estudei com Miriam Muniz. O primeiro
curso de Teatro que fiz foi com a grande mestra de teatro de São Paulo. Mergulhei
pelo caminho iniciático, de cara, sem saber que estava fazendo isso. E essa mulher
me levou a grandes descobertas: como mergulhar dentro de sua própria alma, como
realmente esquecer-se, rasgar-se, expor-se e colocar-se em sacrifício para a arte.
Fui introduzida num mundo que, percebi, realmente ia ser maravilhoso. Poderia abrir
o meu corpo como queria e sair dessa coisinha pequena que aquela abordagem
retrógrada do piano me exigia, ficar sentada com o dedinho assim, com movimentos
pequenininhos. Aí eu podia ABRIR, FALAR, VIVER, SENTIR, ME EXPOR,
CANTAR...
Me expressar
Me encontrar
Me experimentar...
16
Durante todos os anos que transcorreram desde então, fui ouvindo,
criando e interpretando histórias ( no mais amplo sentido destes termos), procurando
compartilhar com todos ao meu redor, buscando transpor qualquer barreira que
entravasse a comunicação primeira entre duas ou mais pessoas, entre o reino
humano e os outros reinos ( animal, mineral, vegetal, estelar, cósmico). Com esta
constante atenção, passei também a me dedicar e a transpor a fronteira entre o
imaginar, o ser e o fazer. Mergulhei em muitos mundos, personagens e culturas,
percorrendo ininterruptamente verdadeiros ritos de passagem, vivenciando morte e
renascimento, num oscilar constante entre estrutura social e communitas (adiante
esclareceremos melhor este termo), entre cultura e humanidade, tornando meu ser
um tubo de ensaio das possibilidades expressivas da espécie humana, em estado
de presença, imersa na liminaridade, buscando ampliar campos de consciências e
romper as fronteiras. Sob a influência do jazz fui construindo e mergulhando em
temas para improvisar sobre eles, atravessando o limite entre o conhecido e o
desconhecido, sentindo o prazer de errar, de arriscar-se, até perder-se no
maravilhamento, onde corpo, ritmo e som se transformam num sentido, além do
ser.
Através de viagens de pesquisa, treinamentos pessoais, performances,
espetáculos participativos, cursos e intervenções criativas, de cunho interdisciplinar,
popular, coletivo e participativo, fui abordando obras que contemplam a criação
individual e coletiva, e que acolhem o erro e o improviso como formas de
manifestação espontânea e reveladora da profunda e verdadeira natureza de cada
ser, borrando os limites entre ficção e realidade, entre eu e não-eu, entre o eu e o tu,
entre mente e não-mente, entre To be e Not To Be, vivendo in-between, always in-
between.
Para que este caminho fosse adotado e vivenciado com intensa,
expansiva e cotidiana prática, duas experiências foram fundamentais:
1. a convivência com grupos indígenas brasileiros, entre 1985 e 1990,
especialmente os parentes Nhambiquara; e,
17
2. o mergulho no universo oriental, a partir de livros, mestre, treinamentos
e visitas de estudo e prática na China e no Japão (desde 1985).
A abertura de consciência que a convivência entre indígenas
proporcionou, reforçando o sentido performático dos trabalhos que realizo,
promoveu um salto da visão da representação para a de proposição, do Teatro em
sentido restrito, de evento, para o Teatro enquanto campo de conhecimento,
aplicado às artes integradas e participativas, experimentando a expressão múltipla
das nossas potencialidades, interações e incontáveis visões de mundo.
Como fato da sincronicidade e traço ocidental típico, ao circular pela
rodoviária de Brasília comprei um livro (Suzuki, s/d), e, na aldeia Nhambiquara, eu
passei a estudar o Zen-budismo. E vi, maravilhada, o esclarecimento empírico da
vida preconizada pelos orientais vivida em cada minuto pelos aldeados, o mesmo
estado de presença cultivado pelo budistas, taoístas ou tibetanos.
Os estudos, referências e as práticas orientais (iniciando pelas chinesas e
japonesas, chegando às tibetanas) permeiam minha vida e proposições artísticas
desde 1985, também. A estética e as práticas corporais e artísticas, vivenciadas por
longos períodos, como Tai Chi, Ba Guá, Lian Gong, Butô, Teatro Nô, Meditação Zen,
Taoísta e Tibetana, Seitai-Ho, Do-Ho, dentre outras, conferiram às minhas
pesquisas, cursos, performances e proposições, a aplicação de disciplina e métodos
que, através do cultivo e potencialização do campo energético, promovem o estado
de presença que considero fonte e fim, de onde tudo parte e para onde tudo
converge, na experiência performática da arte vinculada à vida.
A fascinação que a abordagem oriental exerce sobre mim é reforçada pela
maneira mítica e presencial de ser apreendida entre os povos indígenas, e me
expus genuinamente, a estas duas musas, nestes 25 anos. Estas duas maravilhosas
lições de viver indicam que o estar em presença no aqui-agora é o único caminho
para a criação e expressão, e mais, a única maneira de ser solidária e saudável, de
driblar a mente e suas pré-ocupações, de enfrentar as adversidades da vida com
desapego e criatividade, de se fortalecer internamente e ser fiel à natureza
profunda, de estar em harmonia com a Sincronicidade.
19
2. Futa
Observando este momento histórico, a civilização urbana e globalizada do
século XXI, percebo que uma velocidade interior, um fluxo contínuo e autônomo
dos pensamentos, dando-nos a ilusão de que com a mente podemos controlar tudo
e todos os acontecimentos, gerando relações e processos conflitantes, opressivos,
autoritários, identificados com o eu e o mundo. O tempo dos processos e vivências
criativos é desrespeitado em prol de se estabelecerem prazos externos e produtos
finais, frutos da organização mental. E esta mente ilusória, cheia de auto-
importância, autorias, propriedades, privilégios se identifica com o ego , ou seja,
além de fornecer a base e o poder para realizarmos aquilo que pensamos, nos faz
abraçar muitas responsabilidades e metas, chegando à megalomania, com
individualismo e estrelato exagerados, forçando um “desenvolvimento” coletivo
segundo padrões unificados, pouco respeitosos à visão integrada e às
particularidades de ritmos e processos.
O viver aqui-agora, prática absolutamente aceita, desenvolvida e buscada
pelos atores, nos propõe uma dedicação tão integral ao que se está fazendo, que
cada experiência permite ultrapassar o sentido rasteiro de tempo e espaço, não
sendo mensurável por duração, páginas, ou qualquer medida quantitativa, nem
mesmo por um encadeamento ditado pela lógica ocidental. Dez anos podem ser
ultrapassados em segundos, se observarmos alguns saltos qualitativos no processo
criativo de algumas obras e ações artísticas, individuais ou coletivas. Quando
mergulhados numa dimensão elevada do tempo/espaço, nossa percepção e atos
perdem autoria e propriedade, o senso de individualidade se mescla no de
coletividade, e nos colocamos como observadores, permitindo um diálogo com a
linha condutora da Sincronicidade.
Sincronicidade é o título de um livro de poucas ginas de Carl Gustav
Jung (1988), que tenta trazer para o ocidente este conceito básico que permeia vida
e cultura chinesas, milenarmente. Sincronicidade diz respeito a uma rede que liga
20
tudo e todos, incluindo todo o universo, em todos os tempos e espaços, visíveis e
invisíveis e que compreende que nenhuma ação (no mais amplo espectro deste
termo) está isolada e o acaso é o sinal para que os humanos a percebam,
compreendam e respeitem.
Os mestres, praticantes e artistas orientais permeados por este conceito
buscam desenvolver um estado de harmonia interior para que suas ações e
expressões reflitam uma escuta e comunicação profundas, tanto interna quanto
cosmicamente.
Para que esta atitude abranja nossas ações, fui desenvolvendo e
difundindo treinamentos, práticas e cursos, e, especialmente, abrindo-me para vários
diálogos e frutos que contemplam alguns quesitos:
a. cultivo do estado de presença, concentração e foco (Estar no
passado ou no futuro, ainda que segundos antes ou depois, é estar na ilusão,
portanto, dividido. Meditar na ação.);
b. observação da premissa: Eu sou um outro você.” (Somente a
extrema solidariedade nos permite sair de um ponto de vista e entrar num
outro. Ignorando autorias, propriedades, pessoalidades, podemos perceber
nossa voz no outro e vice-versa, e penetrar com verdade na premissa da
cultura maia.);
c. todos são artistas ( A criação é a mola mestra do viver.);
d. aquecimento corporal, vocal e energético com vistas a
desidentificação com o ego (Desmanchando as tensões, invocando o som
original e criando um estado de expansão, mergulha-se num relaxamento
propício à recepção e aceitação do todo, num encontro com a verdade,
tornando-se testemunha do próprio corpo, referências e pensamentos.) ;
e. cultivo da não-mente (A mente mente . “Não-mente significa
estar presente no presente.” Prashanto (1991)
2
.);
2
Os textos entre parênteses trazem referências a ensinamentos zen-budistas e taoístas,
numa ntese que também podeser apreciada com mais detalhes no livro O Dragão com
Asas de Borboleta e Outras Estórias Zen-Taoístas de Swami Deva Prashanto. Escolhi este
21
f. escuta e respeito à diferença ( O auto-conhecimento e auto-aceitação
promove a compreensão e o aprendizado da alteridade.);
g. visão integrada (A integração é a chave do estar no mundo.);
h. linguagem múltipla ( A fragmentação desaparece quando estamos
imersos no campo da Sincronicidade.);
i. desenvolvimento do eu-observador (Pode-se permanecer no seu
próprio centro, sem divisão, e observar sua manifestação no mundo e
acompanhar sua expressão, sem apego, julgamento ou controle.);
j. tempo é arte ( Os processos naturais tem seu ritmo próprio; vivenciá-
los, como errantes, nos faz estar no caminho.);
k. via positiva, via da ( Caminhar sem culpa, arrependimento ou
crítica).
Estes quesitos foram sendo levantados e cultivados ao longo destes anos
tanto pessoalmente quanto dirigidos a outros praticantes e artistas através de
workshops, cursos, direções e proposições diversas.
No oriente, a tartaruga é símbolo de longevidade e representa também o
cosmos. A parte arredondada do casco corresponde ao Céu e a de baixo (mais
reta) se refere ao planeta Terra, onde todos os seres, em todos os tempos, vivem
suas experiências. Sinto-me como uma tartaruga, diversa, esférica e simultânea,
onde as portinhas (segmentos do casco), quando abertas, podem experimentar, ao
se exporem, expressões múltiplas, envolvidas pelo u e pela Terra. E pode haver
uma combinação de abertura de portinhas: a das histórias e poemas podem se abrir
com a dos sons, cantos e músicas, pode ainda se juntar a dos desenhos, os vídeos
podem ser combinados aos testemunhos e relatos (ficcionais ou documentais), etc.
E, na maioria das vezes, estas portinhas se abrem com outras pessoas,
participantes, colaboradores, amantes do compartilhar com profundidade, harmonia,
alegria e criatividade pela Paz .
autor, mais do que as fontes originais, por ter percebido nele, brasileiro, como eu, uma
busca semelhante à minha.
23
3.Mii
Desde as mais tenras experiências no campo do Teatro Popular (1974/
1979) e Teatro de Grupo (1979/1984) até as mais recentes de teatro-dança, dança-
poesia, educação/saúde/arte, instalações percursos interativos, roteiros, vídeos,
performances, desenhos, etc., notamos uma tendência à atitude poética e
performática, onde vida e arte se identificam, onde ação artística e social se casam.
Entre os grupos indígenas eu percebi que teatro pode ser mais do que
nós, no mundo ocidental, temos delineado como forma.
Na primeira vez que cheguei à aldeia Nhambiquara, em 1985, me
perguntaram: “O que você faz na cidade?” O que eu poderia dizer? Eu rapidamente
respondi: Conto histórias pro meu povo.” Como você pode explicar para alguém
que nunca esteve numa cidade, ou mesmo numa casa quadrada, compartimentada,
o que é um palco?.
Observando como eles vivem, como eles educam, como eles “atuam”,
notei que suas vidas estão completamente conectadas, todo o tempo, a todas as
pessoas, a todos os fenômenos e aos ritmos da natureza. Eles não param para ir à
escola. Eles não param para contar histórias. Eles fazem tudo ao mesmo tempo e,
muitas vezes, todos juntos. Por exemplo, se sentem cansaço, dizem: “Tudo bem,
vamos descansar um pouco agora.” E deitam no chão. Olhem! A chuva vem vindo!
Oba! A chuva está chegando!” Tiram a roupa, se deliciam e brincam com a chuva.
Os bios indígenas, quando estão a contar uma história, lançam o de
todos os recursos à disposição, no momento: uma pedrinha para riscar a areia, uma
posição agachada com os lábios em forma de bico e um assovio trinado para imitar
uma ave, uma corrida ou mesmo um tapa para ilustrar uma luta.
Eu aprendi com eles, e lanço mão de recursos expressivos pessoais
(canto, dança, desenho, etc.) e de nova tecnologia que estão ao meu dispor: MP4
para gravar depoimentos, diálogos, canções e histórias, vídeos e fotos para
documentar ou sugerir novos mundos (ficcionais), feitos também coletivamente,
CDs, CD-ROM, DVD, para difundir criações...
24
Depois destes 25 anos, tenho refletido sobre este dupla influência (oriental
e indígena) em meu trabalho, tanto nas performances e como nos outros trabalhos
que realizo. Houve uma grande transformação.
Podemos observar o mesmo impacto na vida e expressão do indigenista,
documentarista e fundador do Vídeo nas Aldeias, Vicent Carelli (2008):
Quando, aos dezesseis anos, aterrizei pela primeira vez na
aldeia Xikrin, no sul do Pará, descobri que o mundo era muito
mais diverso e fascinante do que eu tinha suspeitado até aquele
momento. A partir do instante em que avistei, ao longo da pista,
aquelas silhuetas escuras de jenipapo e em seguida senti
aquele cheiro de resina perfumada e de urucum, passei a ter
uma nova percepção da humanidade. A fotografia se tornou
para mim uma necessidade de compartilhar esse novo mundo
que eu descobria. Aos vinte anos eu morava na aldeia
Xikrin, e meu envolvimento com os índios passou a ser total. Eu
simplesmente queria ser índio, mas os índios queriam um amigo
que lhes desse as chaves de compreensão do que se passava
ao redor deles, os ajudasse a se defender das doenças que
maltratavam a aldeia. Quanto maior era o meu envolvimento,
menos tempo me sobrava para fotografar.Eu aprendi desde
então que arte e militância dificilmente andam juntas. Aqueles
povos com os quais eu mais convivi e trabalhei foram aqueles
que eu menos fotografei. Naquela época acontecia na região a
guerrilha do Araguaia.
Eu era uma atriz, que dançava e cantava, um pouco diferente, por estar
sempre ligada às questões sociais, de meio ambiente, da cultura brasileira e contra a
opressão. Mas ainda uma atriz, sobre o palco, mesmo que com uma pitada de
improvisação, ainda uma atriz no palco. O público lá e a peça aqui.
Depois disto, comecei a mudar. Primeiro, como solo-performer, passei a
fazer meus próprios roteiros, menos fechados, mais ligados à poesia e à música, ao
modo do jazz. Houve uma profunda influência da maneira como o jazz é criado, com
uma pequena estrutura, aberta, um roteiro poético sobre o qual todos improvisam.
No texto Rites of Communitas podemos encontrar um depoimento de
muita luz apresentado por Edith Turner (2008)
3
:
3
Tradução da autora: Um bom exemplo de communitas foi descrito por Matt Bierce
(comunicão pessoal, abril de 2001), se referindo a jam sessions nos termos de Victor
25
A prime example of communitas has been described by Matt
Bierce (personal communication, April 2001), who cites jam
sessions in Victor Turner’s terms: liminality and communitas. He
says of his jamming group:
“We have been writing songs together for six years now and our
cooperative powers have grown immensely. We are intimately
aware of each other and our abilities, tendencies, favoritisms,
styles, moods, and emotions. This intimacy allows us a form of
jamming or improvisation that I think is a rare and cultivated
closeness bordering on telepathic intuition. Above all else, we
are friends. In the context of a jam, we communicate in a way
that superceded speech and cognitive logic, in a language of
suggestions, weavings, liminal stances, pattern formations and
dissolutions, patience, intensity and calm, and private
exploration. You have to give yourself totally, without
reservations. It’s not enough that you believe this or that is going
to happen. By beholding behind the closed eyes of your co-
musicians and in sensing the nerve impulses and the
movements of the muscles in their bodies, you will attain a
security in relation to what is going to happen. We are also
working together to keep the song whole or coherent. This often
happens as one new pattern is woven into the mix, that others
Turner: liminaridade e communitas. Ele fala assim do seu grupo de música:
“Nós temos escrito música, juntos, por 6 anos agora, e nosso poder cooperativo tem
crescido imensamente. Nós somos intimamente conscientes de cada um e de nossas
capacidades, tenncias, favoritismos, estilos, humores, e emoções. Esta intimidade nos
permite uma forma de criar ou improvisar que eu penso ser de uma cultivada e rara
proximidade, fronteiriça à intuição telepática. Acima de tudo, somos amigos. No contexto de
uma jam session, nos comunicamos de uma forma que substitui o discurso e a gica
cognitiva, numa linguagem de sugeses, tramas, insncias liminares, formação e
dissolão de padrões, paciência, intensidade e calma, e pesquisa pessoal. Você tem que
se dar em totalidade, sem reservas. Não é suficiente que você creia nisso ou que isto vai
acontecer. Através do contemplar por trás dos olhos fechados dos seus co-compositores e
sentindo os impulsos nervosos e os movimentos dos músculos nos seus corpos, você
atinge uma segurança em relação ao que irá acontecer. Nós estamos, também, buscando
juntos manter a canção coesa ou coerente. Isto frequentemente acontece enquanto um
novo padrão está sendo desenvolvido no mix, e os outros, compreendendo sua inerente
beleza, vão encontrando caminhos para integrar o que estão fazendo a esta nova estrutura.
Dedilhados e floreios são adicionados pelos outros instrumentos até que a nova estrutura
esteja implicitamente aceita. Uma vez que esta nova estrutura é encontrada e tecida, a
improvisão realmente pode começar. A mente consciente é colocada atrás, como um
alimentador, e à inconsciente é dado mais controle. A pessoa tem que se tornar uma
criança.
E ele acrescenta: Quase se transforma num transe, uma experiência religiosa.”
26
pick up on its inherent beauty, and find ways to integrate what
they are doing into this new structure. Strummings and pluckings
are added on by other instruments until a new structure is
implicitly agreed to. Once this new structure is found and woven
in, the improvisation really can commence. The conscious mind
is put on the back burner and the unconscious is given more
control. One has to become like a child.”
And he adds, “It almost becomes like a trance, a religious
experience.”
Inspirada neste veio, comecei a convidar pessoas a interagirem comigo,
para atuar, criar e participar de instalações, para se juntarem a proposições que
congregam muitas linguagens e expressões: dança, canto, desenhos, confecção e
uso de instrumentos musicais, criação de objetos, percursos e filmes/vídeos/cenários
interativos. Estava transformando tudo.
(...) O espectador deixa de sê-lo; é estimulado a abandonar a
posição distanciada e passiva em relação à obra de arte, torna-
se parceiro ativo do artista, sendo que esse propõe e aquele
dispõe. A obra se abre para a ação do sujeito, abandona o
repouso inerente à escultura tradicional e adquire uma quase
vitalidade ao incorporar a mutação como dado ontológico.
(Milliet, 1992)
E compreendi que isto pode acontecer dada a herança do Teatro, que
foi muito profunda em minha formação. Esta herança se transformou num Campo de
Conhecimento que eu estava aplicando a outros tipos de encontros, eventos,
sempre convidando pessoas para fazermos alguma coisa juntas, sempre em
processo.
Prometo ao firmamento
Uma promessa pagã
De me tornar um ser atento
De ir atrás do meu clã.
4
4
Escrito pela autora em 27/12/88 na Fazenda Guanabara/Lote 30/ Formoso/S.J. do
Barreiro/RJ, em viagem de misturar-se ao Brasil.
27
4. Yo
Todos nós temos um certo guia invisível, situado, num onírico e intuitivo
mundo, cujas presença e orientação constantes constituem nosso próprio
paradigma, nossas balizas, dando-nos a certeza da propriedade (no sentido de to
do the right thing) de nossas vidas e rumos. Podemos traduzir como o sonho de
vida, a meta ou destino, ou simplesmente: constituir lar e família, construir uma obra
ou empresa, provar uma teoria, ajudar aos semelhantes, estar de acordo com Deus
ou com os companheiros. Comparando frequentemente nossa vida com estas
balizas, percebemos se ela está a nos levar aos sonhados rumos, desviando-nos ou
aprofundando-nos nas experiências. E atuamos, e apreciamos, ora tranquilamente
ora com mais ansiedade, o transcorrer dos fatos no tempo.
Num campo mais amplo de estado e atenção, podemos desenvolver um
senso de observação e uma capacidade de abertura para acolher alguns sinais da
Sincronicidade e nos dispormos mais e mais a vibrar e a viver neste lugar de
acolhimento incomensurável, inesgotável, de admiração pelos impulsos do mundo,
acreditando que estes caminhos têm um sentido que multiplica e contamina toda a
espécie (mesmo que ainda não tenhamos possibilidade de auferir racionalmente
este final feliz que a intuição nos aponta). Podemos abordar uma força
geometricamente progressiva quando a criação se expressa coletivamente,
incorporando maneira e estados alterados de consciência. A liberação total acontece
e a mente acompanha tudo, consciente, através de um eu-observador que pode
Cantar e Contar, viver e observar, se expressar e sistematizar, se deixar levar e
apreciar com consciência.
Não se separam arte e vida. A primeira etapa é viver a vida com a arte e
viver a arte com vida, formando uma estrutura de ser e observar a si e ao mundo,
fortalecendo a integração e o espírito. Depois podemos observar as outras etapas
onde várias coisas acontecem simultaneamente.
28
Pois no campo que estou a desvendar, debruçada numa atitude
consciente de pesquisa 25 anos, temos um pequeno enigma. Por ter sido
apresentada desde muito tenra idade ao viés da percepção artística e relação
criativa com a vida, minha meta, meu sonho de vida é o mergulho num campo
desconhecido, impalpável e invisível: o ato em si de sair de um território pessoal
conhecido e mergulhar no vazio de novas experiências e referências, encontrar o
caos e de lá voltar com uma perspectiva outra, de outrem, sendo outrem, “In
Lake’ch , “Eu sou um outro você” (Beuttenmüller, 2008).
A princípio este mergulho foi inconsciente, vivenciado através de
experiências que mesclaram arte e vida. Seguindo adiante, respeitando os sinais do
guia interior, fui cotejar a cultura indígena e a filosofia e treinamentos orientais.
Assim ao conhecer a mim mesma, imersa no ancestral universo indígena, ampliei
minha consciência enquanto mulher, brasileira, descendente de índios, observando
em mim a mudança de hábitos de horário e alimentação, a ligação com a terra, os
animais, os fenômenos naturais, o tempo geológico e criação constante, a
integração com o universo. Paralelo a este encontro fui desenvolvendo vários
treinamentos que possibilitaram o conhecimento e cultivo da energia interior, a
consciência corporal aliada à disciplina e mergulho em camadas cada vez mais sutis
de escuta e expressão.
Algumas referências se tornaram significativas neste trajeto:
a. A terra, os precipícios, as árvores, os animais, o tempo
geológico (experiência nas aldeias);
b. A Amazônia, as águas, as árvores, os animais, a escuta
(experiência com as comunidades ribeirinhas no Pará);
c. Presença/ Ausência (treinamentos do e no Oriente);
d. A Criação Coletiva sob a guidança da Sincronicidade ( trabalhos
desenvolvidos com comunidades de Goiás e da Itália).
Em estado de presença, bastante semelhante ao que nos proporciona a
prática do Tai Chi, percebemos :
29
1. fruto da criação: a manifestação do e no mundo ganha visão
holística, esférica e simultânea;
2. fruto da intuição: a percepção se amplia, o “eu” se transforma
em “nós”, com sentido cósmico, desaparecem as fronteiras entre o “eu” e o
mundo manifesto que toma dimensão multifacetada, profunda e inclui
diferentes perspectivas;
3. fruto da expressão: os registros no plano do sensível vão além
da forma linear, ganham características bi e tridimensionais, acolhendo
diferentes energias, linguagens e sotaques e convidando à participação e co-
criação.
A partir daí, workshops, pesquisas e trabalhos receberam o nome de
Sincronicidade e Expressão, e tiveram acento nas questões de presença, escuta e
construção coletiva. Presença neste caso é compreendida como integridade,
inteireza entre intenção e verdade de ação (verdade cênica), onde a compreensão
cede lugar à aceitação e contemplação, amenizando o julgamento e o espírito
crítico, permitindo a passagem isenta de uma expressão ingênua e solidária. Pode-
se expressar e contemplar os movimentos que seu próprio corpo, quase estranho,
está a percorrer.
Estou criando a cada instante
todas as possibilidades de vida que estão a fluir através deste meu ser.
Despistando todos os ees que não querem sair.
Abrigando todas as loucuras
todos os sonhos
todos os amores
que perpassam minhas entranhas canais sinais sensoriais.
Esta força que me engendra,
erguendo os poros,
alçando músculos,
perfilando ossos,
30
calcando ferrenhamente olhares, pegares
cavoucando almas, acercares,
desbastando pedras, vesículas, fígados, intestinos
em prol de cravar júbilo nos corações dormentes...
Arranco com todas as garras da crença, da fé,
num esotérico e maia ritual,
os sacrifícios que cada um de nós oferta à Vida Cósmica,
ao sangue vibrante da renovação permanente,
ao Chulel, sagrado fluído de energia cárnico.
aos raios das multidireções do Universo,
permitindo-me percorrer infinitas linhas de manifestação.
Como sacerdotisa,
nua me exponho a vocês,
ofertando-me inteira, integra(l)mente,
à transpiração e à ação,
multiplicando meu ser em facetas inusitadas, simultâneas,
rompendo os critérios de tempo e espaço.
Eia! Avante! Cabeça Voadora! Decapitada já estás,
a Canoa da Vida eterna é o teu templo, tua casa, teu transporte.
Livre estás para as investigações sublimes das entranhas da
humanidade.
Pronta estás para o caminho maior da Alma.
Vive teu ser não-ser num agora permanente,
torna cada alma, cada instante, cada lugar,
dignos da pulsação vívida do Ser Criador,
Pai Primeiro, Deusa Mãe, Serpente da Visão.
31
5.Itsu
Depois de dialogar por meses com textos de Érika Fischer-Lichte, Jersy
Grotowski, Victor Turner, Arnold Van Gennep e John Dawsey, dentre outros que
ainda citarei, sob a batuta de Marcio Aurélio Pires de Almeida, fui descortinando
uma certa linha de pesquisa e percepção que insistia em estar escondida,
mergulhada num recanto inconsciente. Sabia, mais por intuição e do que por
esclarecidos estudos, que unidade nesta fragmentação. E, mesmo observando,
lendo e apreciando meus trabalhos, performances, vídeos e proposições, com
afinco, a noção de fragmentação se sobrepunha à de unidade.
Percebi certo dia uma luz: todos estes estudiosos trazem esclarecimentos
a respeito dos processos que tenho vivido e da maneira como me ofereço para a
criação na vida e na arte, por isso me encantam tanto suas proposições. Me percebo
como foco e/ou objeto dos estudos destes teóricos e práticos, ou seja, eles falam e
analisam experiências, posturas, estados e exercícios, propostas e práticas que eu
tenho buscado e vivenciado. Eles adotam o ponto de vista do observador, ou
praticante exterior ao processo de criação e consciência do ator.
Esclarecendo um pouco mais: quando um pesquisador/diretor - Jersy
Grotowski, por exemplo - fala de suas propostas e métodos e da arte como veículo
de verticalidade, ele o faz observando e indicando o caminho ao/s ator/es; quando
uma teórica Érika Fischer-Lichte - mostra como os limites entre ficção e realidade
têm sido borrados em recentes performances na Europa levando a platéia a uma
experiência liminar estabelecendo um novo conceito de experiência estética, ela o
faz do ponto de vista da platéia; Victor Turner apresenta o equilíbrio entre
communitas e estrutura e Arnold Van Gennep distingue três fases na dinâmica dos
ritos de passagem, ambos a partir da observação de fenômenos performáticos e
manifestações em sociedades tribais; e, finalmente, John Dawsey apresenta “Um
‘final feliz’ (“podemos ter experiências de communitas no teatro.”) aplicando as 3
32
fases do rito de passagem propostas por Arnold Van Gennep na poética análise dos
trabalhos de Victor Turner.
Notemos que há uma perspectiva, um ponto de vista exterior à experiência
estudada, cada um à sua maneira. O que traz tanta familiaridade é perceber a mim,
às minhas vivências e pesquisas como objeto de estudo ou alvo de proposição de
cada um destes mestres.
Com Érika Fischer-Lichte pude perceber onde realidade e ficção rompiam
as fronteiras da minha própria experiência como pesquisadora, performer e
propositora. Na busca profunda e constante pelo estado de presença ( apontado por
Jersy Grotowski) podemos identificar os treinamentos e os ensinamentos orientais
conduzindo minhas ações, workshops, performances e proposições. Vivendo num
trânsito permanente entre estrutura e communitas (Victor Turner), visitando diversas
culturas, ritos e mitos, passei a compreender a vida e a criação percorrendo
ininterruptos ritos de passagem (Arnold Von Gennep). E, como John Dawsey,
penetrei num final feliz onde o Teatro enquanto campo de conhecimento me guiou a
contribuir como autora, propositora e facilitadora de experiências integradas,
coletivas e participativas, com literatura (prosa e poesia), solo-performances, dança,
teatro, vídeo/cinema, fotos, desenhos, instalações, percursos interativos, CD-Rom,
etc.
Em diálogo com estes autores vou apresentando minhas experiências,
insights, criações, textos e reflexões numa espécie de subtexto, (Subtexto para o
ator é tudo aquilo que está além da fala num texto teatral e que preenche de vida e
verdade a personagem e a teia de espetáculo.), numa conversa poética e íntima,
trazendo à superfície sensações pessoais, anotações cotidianas e registros,
histórias, poemas, pequenos maravilhamentos ou desabafos, desenhos, sons,
imagens em foto e vídeos, por onde poderemos apreciar o ser artístico se revelando
em duas direções: a interior, num mergulho a chegar ao silêncio, rompendo a
barreira do ego; e a de expansão externa, rompendo a barreira da comunicação
humana, indo em direção do reino animal, vegetal, mineral, cósmico, até o
33
congraçamento com as estrelas, dando passagem à construção poética de uma
percepção.
Na verdade, todo o processo se quer como uma grande celebração, num
ininterrupto rito de passagem, de eterno presente, bem ao sabor dos universos
culturais indígena e oriental, contemplado com a rapidez do tempo intuitivo e a
comunicação inter/intra planetária, apontando o trânsito como sinal dos tempos.
35
6.Muyu
Desde 1973, quando pela primeira vez pensei em algum estudo de pós-
graduação, ainda estudante de História na Universidade de São Paulo, eu queria
escrever um trabalho que fosse compreendido por qualquer pessoa, que superasse
a separação entre os seres humanos, as diferenças social e regional. Acreditava que
o linguajar muito especializado de determinado assunto, afastava as pessoas,
restringindo a difusão e o compartilhar do conhecimento.
1973 também foi o ano em que me entreguei para o teatro e todas as
linguagens que por ele passam (música, canto, dança, cenário, figurino, maquiagem,
produção, divulgação, pesquisa e dramaturgia, preparação corporal e vocal, direção
de cena, interpretação, interação palco-platéia e reflexão), praticando com a
premissa “Teatro como meio e não como fim” defendida pelo Grupo de Teatro
Popular União e Olho Vivo - TUOV, ao qual estive ligada até 1979. Assim vinculou-
se, desde minha iniciação como pensadora e artista, o engajamento político à
atuação como criadora, a necessidade de ser uma artista consciente, cujas
proposições visassem interagir com seu tempo e sua gente.
O povo me chama eu vou
No peito levando o lenço da esperança
Espera Maria confia, prepara os cabelos
Veste a blusa de cambraia e espera, Maria confia.
Entre amigos voltarei
Adeus Maria confia
Adeus Maria confia
Adeus, adeus, adeus.
Estarás à minha espera e se eu não voltar
36
Olha-me no sol, no verde das matas, nas águas dos rios
Olha-me no riso das crianças
No amor dos amigos
Encontra-me no sol
Se eu não voltar então olha na rua
Na prata da lua me encontra no sol
Na prata da lua me encontra no sol.
5
Figura 2 - João Negão e Neriney Moreira interpretando os personagens
Cidadão Samba e Napoleão Bonaparte na peça Rei Momo.
Fonte: foto de Vitor Bortolucci Junior, 1976.
5
Poema de César Vieira com música de Carlos Castilho para o espetáculo “Rei Momo”, de
César Vieira, montado pelo TUOV.
37
No primeiro dia em que entrei no TUOV, gostei do grupo e conheci o meu
grande amor! No mesmo dia! Tudo ao mesmo tempo. E , eu fiz tudo, eu aprendi
tudo.
Vida e teatro, já não havia separação;
entre teatro e ação social, não havia separação;
entre canto, música, interpretação, preparação corporal,
figurino, maquiagem, cenário, luz, não havia separação;
entre produzir e fazer não havia separação;
entre público e privado,
entre platéia e palco não havia separação.
Desde o inicio, fui formada numa arte integradora, tanto das linguagens
artísticas quanto das relações do teatro, no sentido da produção e no sentido da
platéia. Minha formação performática foi se acentuando (ainda sem nenhuma
consciência), do ponto de vista artístico. Naquele momento, eu defendia “O teatro
como meio e não como fim”, e se olharmos direitinho, ainda agora faço isso. Ou
seja, por mais que naquele tempo houvesse um discurso militante, politicamente
engajado, social, e que era restrito, hoje, percebo que, de outro ponto de vista,
também faço isso. Pra mim, o teatro é o caminho de emancipação do ser humano,
não da classe trabalhadora, como dizíamos naquele tempo, mas é o discurso de
emancipação que ainda permanece. O discurso de engajamento em prol do planeta
ainda permanece, o discurso e a ação também. E ação através da arte. E, pra mim,
também, entre arte e militância não houve separação porque passei a ser um ser
político, que militava pela anistia, dentre outras causas. Cantávamos para os presos
políticos dentro do presídio Barro Branco.
Passemos a palavra para César Vieira (1980), criador e dramaturgo do
grupo TUOV, registrada pelo suplemento Folhetim:
Existe em São Paulo uma série de grupos que, das mais
variadas formas, tentam ir ao encontro de um novo público,
38
composto em sua maioria de subempregados, de habitantes da
periferia e também de operários. São grupos de teatro, a maior
parte não profissionais, que fazem espetáculos perto da
residência e do local de trabalho desse novo público, desse
público virgem de teatro. Virgem porque o trabalho dentro de um
sindicato, ou dentro de uma fábrica, é mais ou menos proibitivo
ainda no Brasil de hoje.
(...)
O sistema que está mantém intactos todos os seus
instrumentos legais para coibir que o povo tenha uma vida
digna, que é o mínimo que se exige, e um acesso à cultura.
Todas as leis da ditadura Lei de Imprensa, Lei Antigreve, Lei
de Censura, Consolidação das Leis de Trabalho continuam
existindo como uma espada na cabeça de qualquer tentativa
mais positiva de organização.
O teatro não está separado dessa realidade geral. Portanto,
falar de minha experiência, da experiência do União e Olho Vivo,
eu não sei se seria o caso, porque é uma experiência não
apenas de um grupo, mas uma experiência de dezenas de
outros grupos profissionais, cooperativados, semiprofissionais,
grupos em que os seus integrantes têm outras profissões e
encontraram no teatro uma arma, uma forma de transformação
social. São grupos mistos de elementos estudantis, elementos
burgueses e elementos populares. Existem principalmente,
muitos grupos oriundos das Comunidades de Base da periferia e
alguns dentro de sindicatos.
(...)
...um teatro de colaboração com as comunidades existentes.
Quer dizer, é um teatro que vai colaborar com as Comunidades
de Base, sejam grupos de periferia, sindicatos, Sociedades
Amigos de Bairros ou outro tipo de organização que exista junto
ao povo. E colabora não através do espetáculo, mas também
do debate que se estabelece a partir do espetáculo, discutindo-
se assuntos da comunidade local e, até, problemas mais
nacionais de falta de liberdade, de falta de justiça social.
Esse é um teatro incipiente, que a gente pode dizer que existe
hoje, pelo menos em São Paulo e em algumas cidades do
Brasil. São vários grupos que têm, todos, uma característica
comum, de buscarem na prática a sua teoria e a forma de dar
continuidade ao trabalho, baseando-se, até, em trabalhos de
outros grupos da América Latina, que hoje o mais existem
porque foram mortos, expulsos, exilados e torturados pelas
ditaduras de Argentina, Chile, Uruguai, onde existiram.
Esse nosso teatro de colaboração, enquanto o teatro
profissional, cobrando 500 cruzeiros ou 400 cruzeiros o
39
ingresso, com raríssimas exceções tem público, a maior parte
desses espetáculos de bairro – o meu grupo, por exemplo tem
feito apresentações para 700, 800 pessoas. Esta é a nossa
média de público.
Uma outra coisa importante: este era um trabalho voluntário. Fomos
treinados para sermos voluntários. A arte, a militância e a entrega à sociedade
sempre andaram juntas pra mim. (Mais uma vez trazendo um cunho performático.)
Nesse grupo, trabalhei de 74 a79, e coincidiu com uma mudança no país. A
mudança no país e a mudança na minha vida pessoal aconteceram juntas. O país
passou a ter mais liberdade e uma liberdade um pouco maior para a formação de
partidos. Os partidos clandestinos começaram a ser um pouco menos clandestinos.
Ainda eram clandestinos, mas não tão perigosamente. Comecei a militar em um
destes partidos, com o nome falso de Joana, e isso começou a criar certa
contradição com o grupo de teatro, que não queria que seus membros se
engajassem em qualquer partido pra que não se vinculasse a ideologia do grupo à
de algum partido. Eu estava num movimento engajado, e não tinha tempo de
perguntar se devia ou não, era assim: tinha que ir, tinha que ir, tinha que ir...
E, também, fiquei viúva em 78, desse mesmo homem que conheci em 74
quando entrei no TUOV, o Vitão, Vitor Bortolucci Junior, violonista e compositor.
Ele morreu e tive um choque! Aos 22 anos! Foi um choque brutal na minha
vida. Eu estava com ele na noite anterior e já na madrugada ele havia morrido num
acidente... e estava longe... precisei encontrar forças pra contar pros pais dele e ...
Eu me lembro exatamente o que se passou neste momento: eu construí
dentro de mim uma placa retangular de espessura de dois centímetros, do tamanho
do meu tronco. Era uma placa de metal dentro de mim! Eu a construí! ... para que
pudesse caminhar na vida. Construí essa placa na minha caminhada no enterro. E,
isso, também, alterou demais a minha vida, porque morriam com ele os poemas.
Ele era compositor, músico, poeta. Ele compunha pra mim... cantávamos juntos...
era o compositor do grupo... nós trabalhávamos juntos, tanto voluntária quanto
profissionalmente. Eu jornalista, ele past-up, diagramador, na mesma redação.
Estávamos juntos de manhã, de tarde, de noite e ... muito apaixonados, envolvidos
40
com tudo o que fazíamos. Parecia até uma situação ideal, sem conflitos. Talvez não
tenha havido tempo para conflitos. Este fato alterou muito a minha relação com o
mundo do casamento, dos homens: “Como eu nunca mais estaria com alguém
como ele, vivendo aquele amor, então, eu poderia ter vários amores, não ia ter
nenhum problema porque ninguém iria substituí-lo.” Este foi o mecanismo de defesa
que se criou em mim.
E ao mesmo tempo, saí do grupo por não agüentar mais encarnar o papel
de viúva. A cada espetáculo, eu cantava como viúva. E, independente de gostar ou
não, esse papel trouxe um sentido performático ao meu trabalho. Ou seja, eu
cantava a minha viuvez e cantava as sicas que ele havia criado e mais outras,
especialmente esta, composta em homenagem a um sambista da Escola de Samba
Vai Vai que havia morrido:
Silêncio
O sambista está dormindo
Ele foi mas foi sorrindo
A notícia chegou quando anoiteceu
Escola, eu peço silêncio de um minuto
O Bexiga está de luto
O apito de Patonágua
6
emudeceu
Partiu sem placa de bronze, sem nome na história
Sambista de rua morre sem glória
Depois de tanta alegria que nos deu, e nos deu
E assim, é assim,
O fato repete de novo
Sambista de rua, artista do povo
E é mais um que foi sem dizer
6
Considerado o maior apitador da Vai-Vai, quando esta ainda era um Coro Carnavalesco.
(cf. Consulta no dia 28 de outubro de 2008 no site
www.barrocazonasul.com.br/bateriahistoria.htm )
41
Adeus
Silêncio, silêncio, silêncio...
(E ... o fato repetiu-se de novo ... Eu fiquei viúva uma segunda vez.
Outra história ...)
Enfim, aqui está um pouco da forja que me levou a uma série de
pesquisas daí em diante.
Todo artista, criador, performer, pesquisador, é visionário. Não é uma
questão de desejo, nem de privilégio: é da natureza de sua sensibilização para com
o mundo. E, ser visionário implica em ver, algumas vezes, o que não se quer ou
gostaria de ver. Como vivemos no mundo da pessoa, do ego, para aceitar as visões
como manifestações amplas e apropriadas, nossa trajetória precisa esquecer os
adjetivos, os elogios, os fracassos, os sucessos. Só é preciso ir; e isso requer fé.
Num depoimento feito em 23 de março de 2007 perante os alunos de
teatro da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás
abordando a questão do artista engajado com a pesquisa e a causa social, durante a
década de 70 e no terceiro milênio, comentei:
“Desde a época em que entrei no grupo de TUOV, em 1974, eu estava
trabalhando com teatro e pesquisa. Primeiro por estar cursando História na
Universidade de São Paulo e, segundo, por ter entrado num grupo que estava
tratando da História do Brasil de uma maneira que o era vista nos livros das
escolas, ou seja, tratando do ponto de vista do oprimido. A questão da vida, da
pesquisa, da história e do teatro estavam mescladas. Estava estudando a história do
país e me misturando à história do país como militante de esquerda, me colocando
do lado do oprimido, contestando a política em que estávamos vivendo.
Entrei num grupo de teatro que também estava tentando fazer com que,
através da história mostrada pelo ponto de vista do povo (palavra que usávamos, à
época), fosse distribuída para o próprio povo, ou seja, íamos nos grupos de teatro,
42
nos bairros da periferia, junto a associações de periferia, íamos nos lugares mais
distantes de São Paulo, onde estavam as pessoas que não tinham acesso ao que,
naquele tempo, chamávamos de teatro burguês.
Participei de estudos sobre a história do Brasil, desde o Império. Fizemos
um pesquisa sobre a greve dos funcionários da Fábrica de Cimento Perus, de 1960,
e, a partir dela foi criado um espetáculo que se chamou Bumba meu Queixada.
Queixadas o porcos do mato que, em conjunto, afastam o inimigo. E essa foi a
atitude desses operários dentro da brica de cimento: em conjunto conseguiram as
suas reivindicações. E essa história foi contada dentro da estrutura do Bumba-Meu-
Boi. Vejam: a pesquisa dentro do TUOV sempre tinha dois vieses: fatos da História
que eram contados através de manifestações populares.
No caso do Rei Momo, primeira peça da qual participei no TUOV, havia o
carnaval e as escolas de samba. Através das escolas de samba e dos enredos
contavam-se trechos polêmicos da História do Brasil. E, na peça Bumba Meu
Queixada, através das manifestações do Bumba-Meu-Boi se contava a história da
greve da Perus. Participei, também, ainda como membro desse grupo, como
assistente de direção e preparadora de ator do Grupo de Teatro do Sindicato dos
Bancários (TESB) com a montagem do Evangelho Segundo Zebedeu, também
escrito por César Vieira, o dramaturgo do TUOV.
No espetáculo do TESB, contava-se, através do circo, uma história do
Nordeste de cunho religioso, a Revolta de Canudos: um grupo de pessoas que,
seguindo Antonio Conselheiro, contesta a política nacional.
Nesse período (1978) fui a Cuba, Bolívia e Panamá, ainda no fim da minha
estada no TUOV, para o Festival Internacional de la Juventud Comunista. Fomos
clandestinamente, porque era proibido aos brasileiros irem a Cuba. Passamos,
então, da Bolívia para o Panamá. Fizemos seminários e espetáculos em todos os
lugares pelos quais passávamos.
No Panamá ganhamos passaporte cubano, deixamos o nosso, brasileiro,
sem carimbo, e fomos pra Cuba. Isso nos colocou numa referência ligada à América
Latina e à África, dada a nossa intensa convivência com os companheiros das
43
delegações de vários países africanos e latino-americanos. Depois do Festival, nos
apresentamos, ainda, por 15 dias num pequenino teatro de Havana, El Sótano.
Apresentamos um espetáculo chamado Unidad y Ojo Atento com
músicas brasileiras e pequenas cenas de vários espetáculos. Era uma revista: além
das cenas, cantávamos e dançávamos. E eu, dentro deste grupo, sempre fiz de
tudo: cantei, dancei, toquei, representei, pesquisei, escrevi, divulguei.
Estou sempre ligada a essas duas realidades: como me coloco dentro do
universo, como me manifesto melhorando a história da qual faço parte e como, em
cada lugar em que estou, a cultura na qual estou mergulhada pode apresentar este
tema.
Agora mesmo, estou desenvolvendo um trabalho em São Paulo.
Conversei com pessoas com as quais trabalho pela Paz, na cidade de Pirenópolis, e
fizemos o envio de uma Bandeira do Espírito Santo, confeccionada, a cada instante
e milímetro, pela Paz, por Lunildes Oliveira Abreu, artesã inspirada; mais pequenos
corações que trazem os símbolos da pomba e do boi, que o as duas vertentes do
ser humano, corpo e espírito, feitos pela Marta Eniza de Oliveira Lobo, artesã que
faz tudo imantado pela Paz.
As irmãs de caridade bairro do Bonfim (de Pirenópolis), que trabalham
com mulheres e jovens, dentro de um projeto pela inclusão e pela Paz, fazem alguns
móbiles de chita, também com esse objetivo. Estes objetos todos já chegaram a São
Paulo. Muito emocionada, recebi a mensagem das pessoas que os receberam.
Uma das pessoas sentiu essa força e me escreveu muito grata por ter se
lembrado que, na casa onde nasceu, a Bandeira do Divino Espírito Santo é que
trazia Paz. Percebi, então, que a minha militância, hoje, no mundo é pela Paz, pela
Cultura da Paz, pela formação solidária, pela inclusão, pelo Novo Paradigma.
45
7. Nana
Quando saí do União e Olho Vivo, fui para o grupo Os Farsantes, em fins
de 1978, participar da montagem da peça “Tietê, Tietê”, de Alcides Nogueira Pinto.
MANIFESTO DOS FARSANTES
Somos o que nunca fomos: um grupo, um coletivo de trabalho, um espaço
novo em nossas vidas. Estamos em busca da compreensão de tudo, enganados que
fomos, esquecidos que fomos, repudiados que fomos. Quando nascemos era 64,
era 69, era o vazio de 70 que sobreveio ao cheio de 68. Nascemos da farsa de
nosso tempo.
Tupi or not Tupi. a antropofagia nos une. Pela corruptela, pelo dístico
contra a sizudez, contra o realismo, alegria é a prova dos nove: a farsa nos une.
Socialmente, Economicamente, Filosoficamente. Está fundado o Desvairismo, e este
manifesto, apesar de interessantíssimo, inútil.
Queremos do modernismo a seiva para encontrar o sentido da
modernidade; TIETÊ, TIETÊ! Corso coruscante de águas fétidas e poluídas a singrar
os proletários recantos de uma paulicéia desvairada. Bandeira Rediviva a percorrer
os destinos deste grande sertão: veredas que dão todas no Xingu, impaludismo,
esquistossomose, malária, sarampo, uma doença infantil, como o esquerdismo, que
mata. A prata, a sandália da mulata, o luar de prata nas matas do Araguaia, simples
pedras verdes, não as esmeraldas verdadeiras. Porque o diamante verdadeiro
faz fazer de Nova York algo assim como Paris, eu sou primeiro, eu sou mais leve, eu
sou mais eu e você também tem que saber se inventar: não mais pra segurar
explode coração.
Somos pelo princípio de prazer, pelo princípio de fazer, pedreiros que
sabem que da conjugação de esforços nascerá a construção. Não a faraônica
46
pirâmide fascista e autoritária, mas a casa suficiente para abrigar a vida, dois metros
de verde e alguma água límpida: luxo e alguns brilhos que também ninguém é de
ferro. Farsantes – anti-manifesto. A alegria é a prova dos nove.
Pelo ato poético, pelo ato polético. Pelo ato político. Tico-Tico no fu= a
ideologia alemã.
Figura 3 - Cópia do Manifesto de criação do grupo Os Farsantes
Fonte: Arquivo da Autora, 1978.
A História quando se repete é como uma farsa, como falsa, como sarça
ardente onde possível é contemplar o deus iluminado e conhecê-lo. A epifania do
47
Teatro. A falsa fluidez que fixa o instante. O faz de conta mágico que permite a
poesia. Desse jogo perigoso só o farsante conhece as regras porque assume o jogo.
O Instinto Caraíba.
A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós
a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. A idade
de ouro, anunciada pela América. A idade de ouro.
No matriarcado de Pindorama, não queremos que toda rotina se
mantenha, não obstante o que aconteceu: 22+32=54+10=64.
Toda a história bandeirante é a história comercial do Brasil.
ass.: OS FARSANTES
Os Farsantes era, dentro da minha perspectiva na época, um grupo de
teatro burguês - um teatro burguês diferente. Não nos unimos com o intuito de
ganhar dinheiro: tínhamos o intuito de sobreviver. Formávamos um grupo que
pensava junto, e contávamos com um diretor e um autor. O autor era o Alcides
Nogueira Pinto. Ele fez três espetáculos pro nosso grupo. E o diretor: Márcio Aurélio
Pires de Almeida. E nós criamos um grupo eclético: pessoas que vinham do teatro
popular, como eu, algumas com formação acadêmica, como o próprio diretor,
pessoas que vinham do teatro do interior do estado, outras, ainda, do teatro
engajado, que tinham uma formação popular e militante. Fizemos um grupo que
questionava a História do Brasil do ponto de vista cultural e com alegria.
No espetáculo Tietê, Tietê”, apresentávamos dois pontos de vista: o da
História da Revolução de 32, envolvendo os tenentes, uma revolução que foi uma
farsa para São Paulo, e o da Semana de Arte Moderna de 22. Tínhamos um olhar
crítico pra História do Brasil e falávamos, também, de Mário de Andrade
(interpretado por Edélcio Mostaço), Oswald de Andrade (Elias Andreato) e Pagu
Galvão (Edith Siqueira in memoriam), todos patrocinados por dona Olívia Guedes
Penteado (personagem interpretado por mim), a patronesse, dona dos cafezais. A
Semana de Arte de 22 foi possível porque ela era financiada pelo dinheiro do
cafezal paulistano. Nosso olhar crítico era, também, um olhar brincalhão. O
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espetáculo trazia os personagens Macunaíma (Marcelo Almada), Emília (Maria
Cecília Garcia), Narizinho (Juçara Morais) e Pedrinho (João Carlos Couto)
aprisionando seus autores e pedindo liberdade. Havia ainda um Anjinho (Ciça
Camargo), que do alto, observava tudo e fazia comentários satíricos com a platéia.
Nosso espetáculo trazia a convivência de criador e criatura e a revolta das criaturas.
Estávamos tendo uma atitude performática, pois nos colocávamos na rua,
expandindo nosso trabalho para as vias públicas, recriando as cenas em bares,
restaurantes, etc. Apresentávamos o espetáculo no teatro e saíamos para fazer a
divulgação. Andávamos pela cidade vestidos com figurinos e personagens, cantando
e interagindo. Vivíamos aquilo como nossa própria vida.
Figura 4 - Juçara Morais, João Carlos Couto e Maria Cecília Garcia
como Narizinho, Pedrinho e Emília na peça “Tietê, Tietê.
Fonte: Yolanda Huzac, 1979.
E (revelo agora um nosso segredo) estávamos realmente dispostos a
encontrar e transgredir nossos próprios limites como atores, agindo como
performers. Não sei qual efeito isto surtia sobre a platéia, sei que fazíamos uma
peça dentro da peça. Me explico; ao mesmo tempo que atuávamos e percorríamos o
49
desenrolar das cenas da peça, criávamos um estímulo íntimo e alheio ao
espetáculo, desafiando nosso desdobramento, nossa capacidade de concentração e
ao mesmo tempo uma improvisação e imaginação sutis, levando-nos a uma alta
cumplicidade. Às vezes, inventávamos uma criança, que, invisível, passava de mão
em o entre os atores, no transcorrer do espetáculo e diante da platéia. Outras
preparávamos alguma surpresa para um determinado momento da peça e
aguardávamos as reações: sal na xícara de chá, uma bexiga com água num
cantinho qualquer do palco...
Realizamos, ainda, seminários paralelos. Convidamos os intelectuais da
época para falar sobre a Revolução de 32 e a Semana de Arte de 22. Criamos um
programa em formato de jornal nos colocando a favor ou contra, nos posicionando
em relação à História; e nos percebíamos como uma referência dentro de um
momento importante de São Paulo e do Brasil: o momento dos teatros de grupo,
como O Pessoal do Vitor e o Grupo Mambembe, de São Paulo, e o Asdrúbal Trouxe
o Trombone, do Rio, dentre outros.
Compreendendo um pouco mais este movimento, percebemos que a
busca prevaleceu sobre o processo de morte e confusão. Mergulhada na vida em si,
na experiência, no presente, o desisti. No espaço do morrer, não temos
consciência do que está confuso, o que prevalece é a busca e o direito de
experimentar. Mesmo inconscientemente havia propósito para esta imersão
performática na vida. Nosso trabalho se misturava à festa e ao êxtase, nos ensaios,
espetáculos e ações de divulgação. A morte não foi em vão, o período de confusão
não foi em vão, a busca não foi em vão. A situação vai se repetir a todo momento,
morte e renascimento a vida nos leva a um processo de preparação para a
próxima etapa. Eu estava exposta à experiência de vida. O que uma atriz busca, na
vida, é se expor, estar disponível e quanto mais em contato com os limiares e liames
da Sincronicidade, maior a possibilidade de sua expressão estar respondendo ao
seu tempo.
Com Os Farsantes fizemos ainda “O Filho do Carcará”, com dramaturgia
de Alcides Nogueira Pinto e direção de Marcio Aurélio, uma revista com música ao
50
vivo, em 1980, que também tratava da História recente: o que aconteceu com as
pessoas que estiveram envolvidas nas guerrilhas ou na militância. Uns foram
exilados, outros se tornaram Hare Krishna, outros se tornaram delatores. Fizemos
uma pesquisa sobre tudo isso para estarmos atuando dentro da perspectiva em que
nos colocávamos. Não estávamos observando à distância os acontecimentos.
Para a criação da personagem deste espetáculo, a Dama, posso registrar
um marco em minha compreensão da profundidade do processo de atuação e
criação, um mergulho num campo sutil de altíssima vibração. Num momento chave
para a caracterização dos personagens, nosso diretor Marcio Aurélio, nos convidou
a subir ao palco, com data marcada, para uma entrevista entre o diretor e
personagem. Fui para a platéia do teatro Faap, junto de todo o elenco, observando
as entrevistas dos outros atores/personagens. Todos tinham uma construção
coerente, fundada em pesquisas históricas e de campo. Todos claros e bem
construídos, respondiam perguntas sobre história pessoal, relações, opiniões, etc.
Enquanto assistia, percebia um vazio profundo se aproximando de mim, e eu dando
passagem a este sentimento. Me percebia racionalmente incapaz de responder às
perguntas que fossem feitas sobre a história pessoal da Dama, mulher que tinha um
encontro efêmero e íntegro com o Poeta num bar. No momento em que Marcio
chamou meu nome para subir ao palco um grande salto de consciência e lugar de
estar me acometeu. Ao levantar senti um peso corporal que não me era familiar, um
olhar profundo e sarcástico, e, consciente e ao mesmo tempo alheia, me deixei levar
ao palco, num caminhar sensual, arrastado, que conseguia englobar todo o espaço
do teatro e a todos ao meu redor. Ao subir no primeiro degrau em direção ao palco a
compreensão veio completa. O estado racional não estava na personagem, ela era
uma mulher densa, sentimento puro, que vivia o presente, sem nome (Dama), capaz
de se entregar por inteiro ao momento presente e ao outrem, permitindo a si mesma
expressar uma grandiosidade de ser anônimo. Penetrei no arquétipo Dama e estava
dada a personagem que não poderia responder às perguntas de maneira racional. O
preparo para este personagem se deu num campo desconhecido, de fé, de crença,
de confiança de que algo havia a ser captado, e que estava dado a mim este papel,
51
por algum motivo maior. E sua criação se completou com a imersão na música que a
inebriava, composta por José Baptista Dal Farra Martins.
Em seguida, de 1981 a 1984, participei de Lua de Cetim”, também de
Alcides Nogueira Pinto e direção de Marcio Aurélio, outro espetáculo ligado à
recente História do Brasil. Mostrava duas possíveis trajetórias de militantes de
esquerda, retratadas nas década de 60, 70 e 80. Como viviam um estudante
militante e sua companheira, como se dava o exílio e a opção pela militância no
interior de São Paulo e como ficava a família dele nestes três momentos. Para o
exilado que saía, quando voltava, o que acontecia? E o que acontecia com as
pessoas que ficavam no Brasil? Este especulo trazia uma visão bastante humana
e cotidiana do que acontecia com uma família, com as pessoas que eram
filhas/filhos ou pais daquela época.
Neste espetáculo realidade e ficção se misturavam de uma maneira
mais explícita: eu fazia a personagem que havia militado na esquerda na década de
60, o que coincidia com a minha própria história, conservadas diferenças de data.
53
8. Ya
Creio que pertinente está introduzirmos os comentários de Érika Fischer-
Lichte (2008) sobre como os limites entre ficção e realidade tem sido borrados em
recentes performances na Europa levando a platéia a uma experiência liminar ,
estabelecendo um novo conceito de experiência estética.
This other order, which I will call the order of presence, follows
completely different principles. The actor’s body is perceived in
its phenomenality, as his particular being-in-the-world. This
meaning induces a number of associations, memories,
imaginations, which, in most cases, are not directly connected to
the perceived element. When this order of perception stabilizes,
the process of perception and the generation of meaning
becomes absolutely unpredictable and even chaotic. It is
impossible to foresee what meanings will be brought forth by
association and to predict what meaning will direct perception to
which theatrical element. Stability of order, in this case, means
the highest degree of unpredictability. The process of perception
turns out to be an entirely emergent process, over which the
perceiving subject has no control.
7
Notemos que sua análise contempla o ponto de vista da platéia.
Esta experiência é possível para a platéia por estar sendo vivenciada
também no palco, pelos brincantes. Ou seja, para que o público possa penetrar
nalguma experiência, esta mesma experiência deve ter sido pesquisada pelos
7
Tradução da autora: “ Esta outra ordem, a qual chamo a ordem de presença, segue
princípios completamente diferentes. O corpo do ator é percebido em sua fenomenalidade,
com seu ser/estar-no-mundo particular. Este significado induz a um mero de associões,
memórias, imaginações, as quais, na maioria dos casos, não estão diretamente conectadas
ao elemento percebido. Quando se estabiliza esta ordem de percepção, o processo de
percepção e geração de significado se torna absolutamente imprevisível e até caótico. É
impossível prever quais significados serão trazidos à tona por associação e predizer que
significado irá conduzir a percepção para qual elemento teatral. Estabilidade da ordem,
neste caso, significa o mais alto grau de imprevisibilidade. O processo de percepção acaba
sendo um processo inteiramente emergente, sobre o qual o sujeito receptivo o público -
não tem controle.”
54
atores. Na China, em 1987, rios mestres e praticantes de Tai Chi, visitavam os
hospitais e casas de repouso, praticando esta arte que harmoniza céu e terra
através de movimentos circulares e suaves, diante de pessoas acamadas, com o
propósito de transmitir esta mesma harmonização aos pacientes. Ou seja, assistir à
prática do Tai Chi beneficia tanto praticantes quanto assistentes. Da mesma
maneira podemos observar os comentários sobre o estado da platéia diante de
atores que vivem in-between.
Participei de um espetáculo chamado O Exercício”, em 1984: uma
reflexão sobre o exercício do ator. Esse espetáculo foi escrito por Lewis John Carlino
para o Actor’s Studio, para dois atores: um homem e uma mulher ( interpretados por
Carlos Palma e eu). Começamos os ensaios num rumo performático, pois os nomes
dos atores/personagens eram os nossos próprios nomes. Nós tínhamos convidado
como diretor, Klaus Viana, com o qual eu estava treinando havia três anos e que
havia dirigido Marília Pêra e Gracindo Junior neste mesmo espetáculo. Klauss não
estava muito bem de saúde. A direção ficou com a Miriam Muniz, que (lembram?)
foi a primeira pessoa que me introduziu ao teatro. Foi um trabalho muito profundo.
Três resultados interessantes, vale a pena comentar:
Primeiro: alguns terapeutas indicavam a seus pacientes: “Você precisa
assistir esse espetáculo nesta semana.”, por ser o espetáculo recomendado para
determinada fase do tratamento psicoterapêutico. Era incrível! As pessoas se
identificavam muito conosco: “Nossa! Julia! Eu sou igualzinha a você!” ou “Palma!
Realmente! Como é difícil ser assim! Porque a peça trata de como se misturam
realidade e ficção.
Segundo: Todos os grupos, todos os casais que fizeram esse espetáculo
tiveram dificuldades de relacionamento. s também tivemos, e as outras duplas
que fizeram (Glauce Rocha e Rubens de Falco, Iara Pietricovsky e João Antonio, de
Brasília e Marília Pera e Gracindo Junior) também tiveram problemas. Isso significa
que, em algum momento, o casal o consegue distinguir entre ficção e realidade,
palco e vida real, ator e personagem. A tensão/tesão chega a um ponto perigoso, e
55
se faz necessário parar o espetáculo, dar uma pausa. Interrompem-se as
apresentações; ninguém se por 10 dias, mais ou menos, e, daí, tudo volta ao
normal.
Terceiro: Esse espetáculo foi muito importante na minha vida; foi dele que
surgiu toda a minha pesquisa, daí em diante: Sincronicidade e Expressão.
Numa semana de intervalo em que mudávamos de um teatro pra outro, fui
pra uma praia, sozinha, com uma barraca. Como estava acostumada a estar em
cena das 9 às 10:30, todos os dias, neste mesmo horário, quando estava diante do
mar, me vinha uma lacuna. Então, escrevia, escrevia, escrevia até no escuro, pá,
pá, pá, escrevia, escrevia, escrevia, escrevia e depois, no dia seguinte, lia. Lá,
percebi que precisava conhecer o meu país. Minha responsabilidade como atriz era
muito grande e entendi a identificação e a penetração que exercíamos com aquele
espetáculo sobre a platéia. Conhecer o meu país significava conhecer a mim
mesma, uma pessoa descendente de italianos, índios e negros. Eu conhecia mais
a vertente italiana porque é a do homem e é a que dominou em minha casa. Minha
mãe, apesar de descendente de negros e índios, aprendeu a fazer macarrão, e
comia banana com farinha sozinha. Comecei a perceber que tinha uma parte de
mim mesma e do meu país que eu não estava vivenciando plenamente, nem
respeitando ou reverenciando. Planejei que acabada a temporada, no final de
dezembro (estávamos em outubro), eu ia partir para uma pesquisa que me levasse a
conhecer o coração do meu país. E assim foi.
Dia 2 de fevereiro de 1985, eu estava na praia da Bahia, saldando
Iemanjá. E fui, pela primeira vez, mergulhar na história negra da comunidade, da
minha referência. Fui pedir licença para entrar no mundo indígena. Interessante é
que fui pedir licença ao mundo negro. Tem ainda algum mistério nesta ligação que
me traz profundidade e mais integridade. É agradável a referência negra do canto,
da dança e das saudações. Me sinto completa.
Saí da Bahia, fui pra Brasília diretamente pra FUNAI, de mochila nas
costas, a pé, pedir licença ao governo brasileiro pra entrar numa tribo indígena. Eu
queria ir para a tribo dos Enauenê-Nauê - grupo que vivia bastante preservado do
56
contato com a sociedade envolvente, segundo notícias do amigo antropólogo
Rinaldo Arruda, que havia estado com eles havia pouco tempo. Acabei indo para
outra, a dos Nhambiquara que fica no sul de Rondônia e norte de Mato Grosso.
Assim, comecei a minha vida dentro de uma aldeia indígena, a partir da
abertura pelo portal da cultura negra. Segundo Fischer-Lichte (2008):
Perceptive multistability, which takes effect in the shift from one
order to another, is responsible for the fact that none of the two
orders becomes permanently stabilized. The dynamics of the
perceptive process take another turn with each shift. They lose
their randomness and become goal-oriented, or stop being goal-
oriented and instead become unbridled, chaotic. Each shift
results in the perception of something else namely of those
elements that can be incorporated into the newly stabilizing order
and that contribute to its stabilization.
8
O mergulho na experiência indígena paralelo ao contato com o zen-
budismo surgiu do desenvolvimento de uma consciência corporal, com treinamentos
intensos sob a guia do mestre Klaus Vianna. O contato com seu método trouxe à
tona facetas inusitadas do meu ser. O campo da consciência corporal não está
separado do estado da Consciência concebida enquanto Mente Superior. Assim a
cada novo ampliar da percepção de articulações, cadeias musculares, órgãos,
tecidos internos, através do movimento ( visível e invisível exteriormente) o método
de Klaus Vianna nos fazia abordar novos estados de ser, apontando para
potencialidades nunca dantes navegadas. A mente do eu/ego, restrita, cheia de
julgamentos e pré-conceitos, condicionada a uma maneira fechada e limitante de ver
e experimentar a vida ligada à criação, vinha sendo desbaratada alguns anos
8
Tradução da autora: “A multiestabilidade perceptiva, que entra em vigor na mudança de
uma ordem para outra, é responsável pelo fato de nenhuma das duas ordens se tornar
permanentemente estabilizada. As dinâmicas do processo perceptivo pegam uma outra
direção com cada mudança. Elas perdem seu sentido de acaso e se tornam direcionadas,
ou param de ser direcionadas e, ao contrário, se tornam descontroladas (sem bridão),
caóticas. Cada mudança resulta na percepção de algo mais a saber sobre aqueles
elementos que podem ser incorporados à nova ordem estabilizada e que contribuem para
sua estabilizão.
57
através do contato com maneiras novas de caminhar ( literal e metaforicamente, ou
seja, com os pés e com os guias interiores), de perceber as tensões (e os medos e
prisões que as provocaram) e desmanchá-las, e de se relacionar consigo, com os
outros e com o mundo, penetrando até o âmago do momento presente, fazendo o ar
chegar desde o calcanhar até as raízes dos cabelos, a cada inspiração, e permitindo
a expressão autêntica e espontânea a cada expiração. Ou seja, caminha-se em
direção da vida plena, com a meta da presença, mutante e constante, ao sabor da
sabedoria chinesa expressa no Livro das Mutações ( Stein, 1977).
She who follows
Learns to lead.
Continuing flow.
9
No caso da peça O Exercício tomei consciência do efeito de nosso
trabalho sobre a platéia, borradas foram as fronteiras entre ficção e realidade, tanto
no palco quanto na platéia. Tínhamos colocado nossos próprios nomes como um
jogo, sem muita noção do que este ato poderia provocar. a minha saída para as
aldeias e o mergulho no zen-budismo tinha uma proposta clara de ampliar e lapidar
meu ser interior, na busca de uma atitude mais consciente e conseqüente perante a
platéia. Fischer-Lichte (2008) comenta:
So what happens at the moment of the shift; that is to say, when
the existing order of perception is disturbed, but the other is not
yet established, the moment of passage from the order of
presence to the order of representation or vice versa? A state of
instability comes into being. It transfers the perceiving subject
between two orders, into a state of in-betweenness. The
perceiving subject thus finds him- or herself at a threshold –the
threshold which forms and marks the passage from one order to
the other. The anthropologist Victor Turner has called this being-
at-the-threshold liminality. Hence we can conclude that the shift
9
Tradução da autora:Ela que segue
Aprende a conduzir.
Fluxo continuo.
58
transfers the perceiving subject into a liminal state.
10
Este estado reivindicado para a platéia permeia o perfomer,
permanentemente:
1. ao preparar-se para o trabalho, colocando-se em estado expandido de
escuta e expressão, corpo, voz e energia são treinados e aquecidos;
2. ao criar, sob a guia da direção, de um roteiro, texto ou proposição,
através de improvisações e ensaios;
3. e, ao se expor no momento da performance ou proposição.
Nestes três momentos do trabalho percebemos um transitar de ordens, do
passivo ao expressivo, do receptivo ao proponente, do observador ao condutor. O
treinamento se percebe efetivo quando o ponto interior de observação se equilibra
num lugar sem-lugar, num observar-se sem saber-se, num expressar-se e
contemplar, num alheamento combinado à extrema consciência.
Quando se parte para uma pesquisa que visa ampliar campos de
consciência, exatamente por estarmos adentrando algo que o conhecíamos, o
que vem a seguir também está no campo do desconhecido. Ao entrar numa aldeia o
único método que eu conhecia de pesquisa era o de tornar-me. Formada dentro do
teatro a me transformar em muitas possibilidades e personagens, adentrei o mundo
indígena, percebendo os caminhos de ser índia em mim.
Num dos relatórios de visita à aldeia, de 1986, escrevi: Viajamos, de
madrugada, eu e Padre Arlindo e Mané Irantxe e quando estava amanhecendo
chegamos à aldeia Minki. Encontro com Ângela. Aldeia com Gripe. Histórias e
10
Tradução da Autora: Então o que acontece no momento da mudança, quando a ordem
existente de percepção é perturbada, e outra ordem ainda não está estabelecida, no
momento de passagem da ordem de presença para a ordem de representão ou vice-
versa? Um estado de instabilidade atinge o ser. Este estado transfere o sujeito receptivo
entre duas ordens, para um estado de in-betweenness, estar entre. O receptor, então,
descobre a si mesmo num patamar o patamar que forma e marca a passagem de uma
para outra ordem. O antropólogo Victor Turner chamou este estar-no-patamar de
liminaridade. Portanto, nos podemos concluir que a mudança transfere o
espectador/receptor/ o sujeito receptivo para um estado liminar.”
59
Histórias. O Padre se foi. Conversar, acostumar-me aos novos hábitos. Estes índios
quase não têm contato com a civilização”. Tiro a blusa e me pareço mais com eles.
Daí o dia-a-dia: cortar cana, buscar lenha, moer cana, tomar “xixa”, comer abóbora,
falar no rádio.
Estava no rio com as mulheres, lavávamos roupa. Vi um enfeite novo entre
as plantas da mata: uma menina índia, com a mesma presença de uma flor. É esta
presença que quero pesquisar e desenvolver: a menina índia tem seu corpo e sua
mente totalmente integrados à natureza, por isso se parece a uma flor. Existe,
‘apenasmente’. Não há nenhuma ansiedade ou expectativa ou indagação ou conflito.
Sua curiosidade para comigo se resolve apenas olhando, e pronto! Assim, também,
para tomar o remédio: ninguém estica o pescoço e o queixo para fazer qualquer
coisa. Simplesmente faz, a vontade parece não estar no ‘ego’. Há um equilíbrio
muito grande entre eles e o ‘cosmos’. Tanto que vi uma mulher alimentando uma
ararinha em sua própria boca.”
Quando entramos em uma aldeia o primeiro passaporte está na emanação
do seu ser. Me explico melhor, a medida da sua aceitação pela comunidade está na
sua própria intenção para com ela. Assim, o olhar, a alma, os desejos secretos, a
disposição de comunhão, este campo invisível e grandemente perceptível,
exercitado no teatro, é o canal de comunicação que grassa entre os grupos
indígenas. Minha disposição em aprender, respeitar e introjetar o máximo possível
aquela cultura deve ter ficado clara desde o primeiro momento para os
Nhambiquara, pois assim que fui designada para uma família ganhei pai, mãe e ir
e um montão de parentes. As crianças também me adotaram e com elas aprendi as
primeiras palavras em língua nhambiquara e as noções sicas de sobrevivência na
mata.
When, in the course of a performance, perception repeatedly
shifts and the spectator is situated between the two orders, the
difference between the two orders increasingly looses its
relevance, and instead the attention of the perceiving subject
focuses on the rupture of stability, the state of instability, the
60
passage. The more often such a shift occurs, the more the
spectator becomes a wanderer between two worlds, between
two orders of perception, becoming increasingly aware that he
cannot control this passage. (Fischer-Lichte, 2008)
11
Vejamos uma carta:
“ São Paulo, 8 de Janeiro de 1985
Caro Vicente Cañas
12
”Estou tomando a iniciativa de lhe escrever por indicação de um amigo, o
antropólogo Rinaldo Arruda, que já esteve em visita curta aos Salumãs.
O motivo desta minha carta é pedir uma orientação de como, e se, eu poderia
fazer uma visita à tribo dos Salumãs durante o mês de fevereiro.
Sou atriz profissional há onze anos e trabalho na pesquisa teatral e da
interpretação buscando aprofundar os sentimentos e a expressão da alma
humana, esta maravilha.
Neste ano que passou, 1984, realizei o trabalho de maior peso da minha vida
profissional. Fiz uma peça chamada “O Exercício
13
, que exige dos dois atores
11
Tradução da autora: Quando, no transcorrer de uma performance, a percepção
repetidamente muda e o espectador é situado entre duas ordens, a diferença entre estas
duas ordens crescentemente perde sua relevância, e a atenção do sujeito receptivo se foca
na ruptura da estabilidade, no estado de instabilidade, na passagem. Quanto mais freqüente
esta mudaa ocorre, mais o espectador se torna um navegante entre dois mundos, entre
duas ordens de percepção, tornando-se mais e mais consciente que ele o pode controlar
esta passagem.”
12
Vicente Cas é um missionário que vivia entre os indíos Enaue-Nauê (ou Salumã).
Durante o período, em 1986, de minha convivência com ele, entre os Enauenê e num
Encontro Indigenista, me disse estar sofrendo ameaças de morte por parte dos
‘terratenientesvizinhos, dado seu engajamento na defesa das questões indígenas. De fato,
ele foi assassinado no ano seguinte e ainda no ano de 2006 este caso estava ‘correndo’ na
justiça.
13
O Exercício”, de Lewis John Carlino, espetáculo dirigido por Miriam Muniz (in
memoriam), com interpretão de Carlos Palma e Julia Pascale, encenado em 1984, no
Teatro Studio São Pedro, no Teatro Eugênio Kusnet e em algumas cidades do interior de
São Paulo.
61
que a interpretam não uma profunda observação da interpretação em si
mesma, como um despojamento muito grande dos próprios preconceitos.
Aprendi bastante nesta temporada de nove meses de espetáculo. Dentre as
inquietações que se me colocaram no decorrer do trabalho, uma delas me
levou à seguinte observação e busca: a autenticidade é um atributo
fundamental para ser uma atriz conseqüente, que transmita esperança de
vida.
Nestes últimos meses, o Teatro me fez experimentar muitas sensações e eu
permiti que elas me conduzissem em cena. Estar duas horas vivendo uma
personagem, sem interrupção, possibilita ao seu inconsciente se liberar mais
e se sua alma estiver aberta pode-se captar mensagens até então nunca
recebidas.
Assim, em certas cenas, eu me flagrava vivendo e forjando experiências
fascinantes que na vida real eu nem saberia como fazer. Esta “capacidade”
me fez pesquisar um pouco mais o meu passado, por isso essa minha
vontade de conhecer o meu lado negro e especialmente o indígena.
(Minha mãe é neta de índia, mas ela foi cada vez mais assimilando os hábitos
do parceiro de casamento, no seu caso, os italianos.)
Acredito que devo voltar ao palco e ao meu público com uma nova
expectativa e esperança de vida. Minha reflexão neste momento de vida,
deve ser feita junto aos elementos mais naturais, puros e primitivos, deixando
que o meu ser se invada dos fluidos elementares, instintivos, energéticos e
místicos.
Nesse momento, gostaria de estar aí com vocês, na aldeia Salumã, buscando
a pureza e a autenticidade das expressões, me aproximando um pouco mais
da Natureza, em todas as suas manifestações.
Sinto que esta minha estada tem um sentido existencial. É a minha arte, a
minha “missão”, que me leva a te pedir, Vicente, que me oriente.
62
Figura 5 - Vicente Cañas, no rio Juruena, a caminho da aldeia.
Fonte: Julia Pascali, 1986.
Gostaria que vome escrevesse dando sua opinião e todas as diretrizes que
você julgar necessárias. Enfim, você é o próximo ator a entrar em cena, pelo
menos neste simples ato de comunicação entre duas pessoas. Me receba
abertamente e, por favor, desculpe-me, desde já, por não te apresentar
nenhuma “tese”, estou seguindo um apelo que é afetado pelas
transformações da lua guia.
Um abraço fraternal e carinhoso,
Julia Pascale”
Encontrar as possibilidades indígenas em meu ser era ir contra o que o
urbano havia me ensinado. O questionamento de toda a minha vida passada era
63
inevitável. O contato com a natureza, com a cultura indígena, a vida simples e
comunitária, com os ritmos e o tempo natural, os animais, precipícios e rituais me
mostraram possibilidades mais ecológicas, humanistas e naturais de estar e
conviver. Se observarmos meu desenvolvimento, desde criança, conhecendo e
treinando diferentes linguagens artísticas, integradamente (dança e música, cinema,
teatro nesta ordem cronológica), abordando desde cedo a criação com uma
consciência corporal, podemos perceber uma inner linguagem se descortinando,
criando um ponto de vista do performer capaz de observar e agir no mundo a partir
da instabilidade, da crise, da liminaridade, do estar entre, in-between. o há
propositadamente uma mistura entre vida e arte, ou mesmo uma escolha de viver
neste estado; como artista o debruçar sobre o mundo traz esta marca.
Assim, se entrar na aldeia foi um passo ousado, brusco até, sair da aldeia
foi um passo difícil. Ao ultrapassar os limites, aceitando a convivência com os
insetos, a temporária escassez de víveres, ausência de espelhos, consumo e
comunicação urbana (telefone e televisão) e familiar, fui mergulhando num mundo
com outras referências, de extrema comunhão com rios, montanhas, precipícios,
papagaios, macacos e coatis, canto, danças e festas, pajés e caciques, respirar,
viver, conviver, contemplar e descansar, plantar, colher e caçar. O contato com a
vida natural me revelou mais a presença da intuição e aguçou minha percepção:
auditiva, visual, palatar e táctil. Conviver com índios me fez perceber sons mais
afinados, um canto de pássaro ao longe, o vibrar do solo, os diferentes verdes,
inclusive com seus nomes diversos, o sabor dos alimentos sem sal e condimentos, o
compartilhar constante, e a natureza integrada e integralizante da vida. não me
era possível ignorar os valores fundamentais da humanidade que não passam pela
falsidade, pela massificação, pelo autoritarismo e desrespeito à diferença. A vida
tomou seu ritmo e a velocidade urbana me fez compreendê-la como opressiva,
impondo processos não naturais, ignorando ritos e mitos, diferenças, acaso e
sincronicidade.
64
Escrevi:
“Será 20/02/85?
Outro tempo, outra gente. Sempre que me pergunto ‘O que vim fazer
aqui?’ surge algo surpreendentemente revelador.
Evelina respeita muito, muito o marido, por isso ainda o mudou de
nome.
Tudo da terra, na terra e para a terra: é mandioca, abóbora ou pequi; é
assar o biju, dormir e sentar no chão, ou gatinhar pela terra quando velha.
São gente muito diferente de mim, o dúvida, mas primitivos? Porque
vivem sem chefes, porque não têm medo de nada, porque conhecem a natureza
como nós ao nosso espelho, porque vivem pelados ou com uma muda de roupa,
sem calcinha ou cueca, porque têm a pele mais resistente, como casco mesmo,
porque riem, contam ou dormem à hora que querem?
Duas mulheres voltam da roça: uma delas é Massi que me recebeu
como à irmã mais querida, de mãos dadas, nariz com nariz, sem nenhum espanto,
tudo harmonioso; a outra me carregou durante o ensaio da festa, foi com ela que eu
dei os meus primeiros passos Nhambiquara, na música e na dança.
O paizão Lídio voltou do rio, pegou sua flecha e continua o trabalho que
vem dois dias: lixar, afiar, arrumar, confeccionar. Com ele tive a primeira emoção
muito forte: vi um índio nu, enfeitado, de costas, à beira do rio. Quase gritei pela
revelação. É lindo demais.
Agora ando descalça, alguma parte do dia, não uso calcinha
quatro dias, desodorante um mês, pasta de dente, quatro dias, sabonete eu usei
ontem, porque achei na beira do rio anteontem e guardei.
Minha primeira gafe: trocar de roupa; segunda, fazer xixi no lugar errado;
terceira, perguntar a idade.
Mas acho que não é muito, porque como de tudo sem nenhum
problema, mesmo que a cuia tenha sido usada pelo cachorro; não dei nenhuma
bandeira quando vi a velhinha cascuda, pelada, andando de quatro e banhada de
areia.
65
Figura 6 - Velha índia Nhambiquara diante de sua maloca.
Fonte: Julia Pascali, 1985.
Quanta sabedoria: ela tem uma casca mesmo, no joelho, no cotovelo; e no
resto do corpo um pouco mais fina. É como se, aproximando-se da morte, ela se
encaminhasse para a terra. Suas os são como patas, os cabelos sujos de terra,
assim como todo o resto do corpo, nas costas, um pouco acima do bumbum, um
casco grosso e, quando engatinha, os bichinhos rondam por ali, mas parecem que
não entram, não. Ela conversou comigo, mas eu não entendi nada.”
E mais:
66
“15. Setembro de 1986
Os índios Nhambiquara têm o nariz muito largo e bem achatado com
narinas bem grandes e espalhadas para os lados. Vivem sempre em contato com a
terra e as cinzas. Sua pele vive untada nesta cor acinzentada, preta ou marrom.
Vivem nus, na maioria, e pegando sempre uns nos outros.
São crianças que servem de encosto para outras crianças, ou homens que
servem de encosto para outros homens; mulheres limpando o nariz da irmã; mãe
acariciando o pintinho da criança pequena que mama em seu peito; mãe ensinando
a criancinha pequena a pegar no pinto da criança maior; criança brincando de pegar
no pinto do homem que está dançando; criança dormindo com a mão no pinto do pai
ou na teta da mãe; pum fedido em comunhão; xiriri
14
pra cá, xiriri pra lá; Jacutinga,
quase cego, pelado deitado no chão da casa do Chefe de Posto a me “observar”;
mão no saco e no nariz pra cheirar; mão na sujeira e no nariz também.
Não posso negar que me incomodo em presenciar tudo isso. Por observar
como se fosse um desvio meu. Mas não. O que há, e muito forte, é o preconceito
pregado nas minhas entranhas. Sinto que no fundo ainda não os aceito totalmente.
Parece que pela primeira vez eu os admito como “primitivos”; e até agora eu os
achei superiores. E eles realmente o são: podem viver tudo isso, todos os sentidos,
sem nenhuma barreira e eu não. E nós, não.
O cristianismo deformou nossos corpos e valores!
Complexos, pecados, vergonhas de séculos nos atrofiaram, nos tensionaram. Será
que conseguirei me livrar disso tudo? Será que estas técnicas” serão realmente
apreendidas e aparecerão no palco?
Minha liberdade! Depois de tanto lutar para aparecer, ela tem que se
esconder para não atrair olhares, ações e pensamentos doentios e deformados.”
He may try repeatedly to adjust his perception anew to the
order of presence or representation. However, very soon, he will
notice that the shift happens to him regardless of his intentions
and that he is thrust into a state between the two orders without
14
Xiriri, na fala Nhambiquara, quer dizer encontro sexual.
67
wanting it or being able to prevent it. At that moment, he
experiences his own perception as emergent, out of reach of his
will and control, evading his charge, but still consciously
performed. (Fischer-Lichte, 2008)
15
Voltando da aldeia me senti estrangeira, outsider.
Eu estava dançando com a natureza! Cheguei em São Paulo e fiquei
absolutamente deslocada. era deslocada e ainda fiquei muito mais, muito mais
porque o gostava de nada que fazia. Achava tudo muito estereotipado, muito
pouco profundo, muito pouco condizente com a realidade que vivia atualmente,
muito centrado no ego: todo mundo querendo mostrar que sabia, que podia e que
era erudito ou cada um brigando com o outro para aparecer em cena. Fui ficando
chocada com esse faceta do cenário teatral brasileiro e procurando cada vez mais a
possibilidade do retorno à arte teatral fundamental. O teatro como a expressão do
ser humano inteiro. E me achegava a Artaud e suas pesquisas.
Como havia convivido com os índios, percebia o que era isso. Sabia o que
era isso. Sabia que não tinha nenhum desejo profundo de “agora vamos apresentar
a fórmula correta”. Em determinado momento se dava uma conformação cósmica.
Acho que o indivíduo íntegro e com todas as suas antenas ligadas pode, em
determinado momento, se transformar num transmissor de qualquer mensagem,
qualquer expressão que está ali para ser transmitida. E acredito muito nisso!!
Diferente do observador crítico e do diretor, que estão do lado de fora da
vivência interior, o performer (em diversas situações, cantor, musicista, dançarino,
ator, escritor, câmera-criador) desenvolve proposições que visam compartilhar sua
própria experiência com a audiência, por vezes, transformando-a em co-criadores.
A dupla percepção do caráter fragmentário e de misteriosa unidade é
15
Tradução da Autora: Ele pode tentar repetidamente ajustar sua percepção novamente
para a ordem de presea ou representação. No entanto, logo, percebeque a mudança
acontece para ele apesar de sua atenção e que ele é impelido a um estado entre as duas
ordens mesmo sem querer ou poder evitar. No momento, ele experimenta sua própria
percepção como emergente, fora do alcance de sua vontade ou controle, escapando de sua
guarda, mas ainda conscientemente vivenciada”.
68
vivenciada tanto pelo performer como pela audiência/co-criadores, onde sentido e
pensamento se submetem a um guia intenso da intuição.
Em muitas performances contemporâneas podemos perceber uma
proposição de contato com a maneira de se relacionar com a vida, semelhante ao
velho índio: presença, presença, presença.
Um Canto Nambikwara
Meus olhos se deslocaram
se fixaram no umbigo
olham pra dentro pro-fundo
pras entranhas femininas
se comunicam com a Terra
encontram amigas e irmãs
paridas por este ventre
em forma de comoção.
Neste tempo geológico
minha garganta se abre
vomita um novo sentido
de morte, de vida, prazer.
A língua fica de fora
estirada
esticada
quase toca a vagina
lambendo o novo momento
que as mãos querem agarrar.
Agarram mesmo, esse urro
que salta roncando e grave.
O bicho de mim se aproxima
69
e os céus eu toco daqui.
Os movimentos são firmes
mais grosso o sangue que pulsa
mais duro de se sentir
é pleno no seu viver
se adensa, se plasma à Terra
pra daquidaí juntar-se ao pó.
Ouço flautas que amplificam
o respirar da espécie,
às vezes se mostram raivosas,
esbravejantes até,
outros sons já se elevando
da criança e da mulher.
Alguns passos são tão espalmados
que do solo não se afastam
se arrastam masculamente
deixando um rastro marcado
a arrancar do centro da Terra
a gravidade do ser.
Já as mulheres vão leve
aos pulinhos lamentando
espalhando suas mãos
pelo Universo afora
a arrebanhar mil fluídos
do ar que preenche o ser.
As crianças aprendizes
70
ensaiam passos com risos
e mostram pra todos os Deuses
seus pais
suas mães
indo daqui prali.
16
16
Poema escrito pela autora após participar de uma festa Nhambiquara em 1986.
71
9. Kokono
Jersy Grotowski em seu último texto, escrito em 4 de Julho de 1998 e
publicado, a seu pedido, postumamente, diz: Action is not a performance. It does
not belong to the domain of art as presentation. It is an opus created in the field of
art as vehicle. It is conceived to structure, in a material linked to performing arts, the
work on oneself of the doers.”
17
A partir de 1984, percebi que gostaria de fazer com que todos sentissem
essa intensidade na qual vivo imersa, a comunicação com esta vertical linha que me
leva à consciência, que me liga à consciência cósmica e quando compartilho com
uma mais ou mais pessoas, quando nos esquecemos de nós mesmos e nos
percebemos como um campo imenso, impalpável e ao mesmo tempo tão presente
em prol de cravar júbilo nos corações dormentes.
Fui introduzida ao Tai Chi pelo Mestre Liu, e por Maria Lúcia Lee
18
. Minha
formação neste campo sempre esteve ligada à compreensão do I Ching e do
Taoísmo
19
. A prática do Tai Chi se inicia com uma concentração interior, reunindo
Céu e Terra dentro de nós, seres humanos. Cada trigrama do I Ching representa
Céu, Homem e Terra, sendo que o Homem é que faz a união dos dois outros
elementos. Pela respiração circulam Céu e Terra. Quando o ar entra, entra o Céu e
17
Tradução da autora:Ação não é uma performance. Não pertence ao donio da arte
como a/representação. É uma obra criada no campo da arte como veículo. É concebida
para estruturar, num material ligado às artes performáticas, o trabalho sobre si mesmo dos
fazedores - autores de uma ação.”
18
Mestre Liu Chi Ming (1907-2000) nasceu na China. Veio para o Brasil e introduziu a
prática do Tai Chi na década de 70. Maria Lúcia Lee, sua discípula e tradutora, continuou a
difusão da sabedoria chinesa através da Via-5 Cultura, instituto criado em 1994, com a
finalidade de implantar no Brasil os métodos de exercícios da Medicina Tradicional Chinesa.
19
O I Ching O Livro das Mutações”, texto clássico chinês surgido mais de 3.000 anos,
contém os mbolos fundamentais da cultura chinesa, em todos os seus aspectos, da arte
popular à filosofia mística. O taoísmo é uma filosofia que estuda, através desses símbolos,
os ciclos e as leis naturais manifestados no nascimento, desenvolvimento e morte das 10 mil
coisas do Unvierso.
72
quando o ar sai, entra a Terra. Faz-se também uma condução interna da atenção.
Percebendo os pés bem apoiados na Terra e cabeça tocando o Céu, o corpo deve ir
se alinhando numa certa seqüência:
1. sentir os pensamentos soltos (não tentar parar os pensamentos
e nem se ater a um pensamento, somente observá-los) e o semblante limpo,
livre de preocupações;
2. perceber o rosto se desvencilhando de suas expressões
(limpando a máscara);
3. abdicar das palavras e do desejo de falar, construindo um
sorriso interior;
4. sentir-se acolhido e amado pelo Universo esquecendo-se das
angústias, libertando peito, ombro e braços;
5. liberar-se das expectativas e relaxar o plexo solar;
6. esquecer os desejos e soltar o ventre;
7. deixar todas os incômodos, expectativas, frustrações e
preocupações escorregarem pelas pernas, saindo pelos pés achegarem à
Terra;
8. sentir um vazio, um espaço amplo e plástico que vai além do
ego e se comunica com o Cosmos, o Tão, o Vazio inicial ( Wu em chinês);
9. perceber dois centros dentro deste vazio – o Yin ( uns três
dedos abaixo do umbigo, no centro do corpo) e o Yang ( no centro da cabeça,
na altura das sobrancelhas);
10. fazer a atenção do centro Yang descer, pelo centro do corpo, e
o centro Yin subir, para que os dois se encontrem na altura do umbigo,
“Dessa união surge o Tai Chi” ( palavras de Lúcia Lee na fita de preparação
para a prática do Tai Chi) – Energia (Chi) em Movimento (Tai);
11. com esta atenção interior faz-se toda a sequência de
movimentos ( de vários estilos);
12. ao final, volta-se para a posição ereta e reequilibra-se Céu e
Terra dentro do ser humano.
73
When I speak of art as vehicle, I refer to verticality. Verticality -
we can see this phenomenon in categories of energy: heavy but
organic energies (linked to the forces of life, to instincts, to
sensuality) and other energies, more subtle. The question of
verticality means to pass from a so-called coarse level - in a
certain sense one could say an ‚”everyday level” - to a level of
energy more subtle or even toward the higher connection. I
simply indicate the passage, the direction. There, there is
another passage as well: if one approaches the higher
connection - that means, if we are speaking in terms of energy, if
one approaches the much more subtle energy - then there is
also the question of descending, while at the same time bringing
this subtle something into the more common reality, which is
linked to the density of the body. Thomas Richards analyzed his
perception, his individual experience of this kind of process, and
he characterized it as inner action. (Grotowski, 1998)
20
Para os Tibetanos da linha Dzogchen (conforme ensinamentos
apreendidos num retiro do qual participei, em São Paulo, com o mestre tibetano
Chögyal Namkhai Norbu Rimpoche, em 2006) o que se quer, é que nós vivamos, a
maior parte do tempo, em estado de ligação com a nossa verdadeira natureza. E a
nossa verdadeira natureza aparece quando estamos em estado de presença, e
não distraídos. s, em geral, vivemos distraídos. Quando se entra em estado de
presença, se faz a conexão com o Cosmos.
20
Tradução da autora: “Quando eu falo da arte como veículo, eu me refiro à verticalidade.
Verticalidade nós podemos observar este fenômeno em categorias de energia: energia
pesada mas orgânica (ligada às forças da vida, aos instintos, à sensualidade) e outras
energias, mais sutis. A questão da verticalidade significa passar do assim chamado nível
grosseiro num certo sentido pode-se dizer um nível cotidiano” para um nível de energia
mais sutil ou mesmo em direção a uma conexão mais alta. Eu simplesmente indico a
passagem, a direção. Lá, tem uma outra passagem também: se algm aborda a conexão
mais alta isto significa, se nós estamos falando em termos de energia, se alguém aborda
uma energia muito mais sutil - então existe também a questão de descer enquanto traz, ao
mesmo tempo, este algo sutil para uma realidade mais comum, que esta ligada à densidade
do corpo. Thomas Richards analisou sua percepção, sua experiência individual deste tipo
de processo, e ele a caracterizou como ão interior.”
74
Eles chamam de estado de presença ou quarta dimensão, estado de
contemplação, meditação ativa, pré-expressivo, estado não-dual, estado de
concentração, estado de Mente, a verdade absoluta (que é o conhecimento do
estado da sua própria natureza, diferente do estado de mente iludida e confusa com
a qual agimos no dia-a-dia).
O estado não-dual (este me parece ser o mais apropriado sentido do
termo) é o estado onde não dúvida. São três os quesitos fundamentais para se
estar em contemplação, segundo os mesmos ensinamentos:
1º: através das experiências do corpo, voz e mente, que não podem se
separar. (Não se pode deixar a mente sozinha.)
2º: o permanecer na dúvida. a performance no seu sentido mais
latente.)
3º: continuar no estado. no nível do pensamento que se inicia um fluxo.
Ele faz você se perceber, ele inicia e termina a meditação, ele é o estado de
intenção.)
Se s vivemos distraídos, o que podemos fazer para sair desse estado?
A partir do próprio pensamento dirigimos o foco para a intenção e mergulhamos em
determinada prática que nos coloca no estado não-dual. A partir da consciência é
que tentamos nos manter nesse estado.
E a performance é o ato de presentificar essa sensação, esse estado. “A
performance completa uma experiência.” (Dawsey, 2005). Presentifica e educa, para
que você saiba retornar a este estado. E possibilita que esta experiência seja feita
em grupo, atitude eticamente necessária ao Universo.
Assim, a vida “civilizada”, suas práticas corporais, condicionam o ser
humano. Como descondicionar? Através de outras práticas corporais, com as quais
podemos ir limpando, liberando o ser humano dessa vivência limitante em sociedade
e cultura.
Existem vários planos de consciência e temos condições de nos
conectarmos com esses vários planos de consciência. Conforme o nível de auto-
75
conhecimento, desenvolvimento e abertura podemos nos libertar das amarras
limitantes da visão materialista do mundo.
Tempo e espaço: esses são os eixos que comandam a
existência humana. Referências ao tempo e ao espaço
encontram-se registradas em todas as manifestações humanas:
seja na religião ou na arte; seja no dia a dia e nas
comunicações. E nesse sentido podemos dizer que é
experimentando soluções para os enigmas do tempo e do
espaço que o homem produz ciência, filosofia e história; além de
todo aparato indispensável à sua sobrevivência. (Borges e
Gondim , 2003)
Os padrões teatrais podem apresentar um percurso civilizatório, com
circuitos marcados no tempo e espaço - performances, cujas matrizes se encontram
numa constelação cosmológica em marcha. Quer dizer, uma performance, seja um
espetáculo, seja um ritual, são as impressões de um padrão cósmico, impressões
poéticas, onde se tem uma apreensão, uma percepção, uma idéia de significantes.
Aí, percebe-se o saber mais amplo. É um conhecimento com o corpo, com a
vivência, onde a idéia é uma parte também, o pensamento constitui uma pequena
parte. O estado de presença incorpora o pensamento como mais uma das maneiras
de abordar o Universo, a realidade. Todos os outros sentidos e a consciência
permitem ir além e aceitar algo que o pensamento não consegue aceitar sozinho. E
isto se dá através do contato e respeito à intuição.
Seguindo esta guia, a intuição, e encontrar o Sutra da Sabedoria e do
Coração da escola Zen-Budista Soto
21
, que nos convida a ir além dos sentidos,
21
O Bodhisattva Avalokitesvara praticava profundamente o Prajna Paramita (a sabedoria) e
viu claramente o vazio de todos os cinco agregados, e assim libertou-se de todos os
sofrimentos. Ó Shariputra, forma não se diferencia de vazio, vazio o se diferencia de
forma. Forma é exatamente vazio, vazio é exatamente forma. O mesmo é para sentidos,
percepção, impulsos e consciência. Ó Shariputra, todos os dharmas o marcados pelo
vazio,o aparecem e nem desaparecem, não são impuros e nem puros, sem perdas e
nem ganhos. Portanto no vazio o há formas, nem sensações, percepções, impulsos e
conscncia; não há olhos, ouvidos, nariz,ngua, corpo e mente; não há cor, som, cheiro,
sabor, tato, objeto do pensamento; sem o mundo da visão, sem o mundo da consciência,
sem ignorância e o fim da ignorância; sem velhice, sem morte e sem o fim da velhice e da
morte; sem sofrimento, sem causa do sofrimento, sem a sua extinção e sem objetivo; sem
76
imediatamente, passei a fazer este exercício: não olhos, não ouvidos, não
paladar, não tato, não pensamento, não ser. Procurei mergulhar numa
sensação de vazio, estado ideal para a transformação e comunicação com qualquer
ser e nova situação.
Comecei a perceber que em mim, também, arte e pesquisa não se
separam. Assim minha vida, a vitalidade, as coisas que faço, o lugar onde moro, as
pessoas com as quais vivo, isso tudo está ligado ao meu relacionamento com a
criação. E isso faz arte e pesquisa estarem ligadas. Se percebo que algo não
funciona bem em mim, interpreto isso como um convite do Cosmos a mais uma
etapa de mergulho na consciência. Cada mergulho como intérprete, como criadora,
é um salto, um salto de consciência. E esses saltos de consciência são necessários
para a vida.
Segundo Swami Deva Prashanto (1990, 95)
22
:
O mapa da consciência humana é o seguinte:
Vo está no nível da chamada consciência comum. Ele
representa apenas 10% da totalidade.
Neste nível temos dois caminhos até a consciência cósmica
(consciência total).
Mergulhando em direção às trevas temos, por ordem:
- o inconsciente, que engloba suas memórias desta e de outras
vidas passadas;
- o inconsciente coletivo, que inclui memórias comuns à toda
humanidade, de outros animais e plantas, ou seja, de toda
matéria animada;
- o inconsciente cósmico, pertencente à fase da matéria
inanimada: minerais, moléculas, átomos, elétrons, ondas
conhecimento e sem ganhos; sem nada obter o Bodhisattva em paz praticava o Prajna
Paramita. Sem obstáculos na mente; sem obstáculos o medo desaparece. Para além do
pensamento em ilusão, este é o nirvana. Todos os Budas do passado, presente e futuro
vivem o Prajna Paramita. Portanto obtém a completa e perfeita Iluminação. Portanto
conheçam o Prajna Paramita, o grande mantra da transcendência, o grande mantra da
iluminação, o mantra sem limites, o supremo mantra, podendo remover todo o sofrimento,
este é a verdade, sem falsidades. Então recitem o mantra Prajna Paramita, recitem o mantra
que diz: vá, vá, vá além, vá além do além, Prajna Paramita. (Traduzido e divulgado pela
Comunidade Budista Soto Zenchu da América do Sul).
22
Vide nota 1.
77
magnéticas, etc.
Daí você mergulha no SER.
Este é o caminho através da insconciência, trevoso. Passa-se
pela “negra noite da alma”. Este mergulho deve ser iniciado
quando se tem a prática na técnica da observação sem
julgamentos. Caso contrario você poderá perder-se nas trevas
do inconsciente ou identificar-se com o que encontrar no
caminho, Em ambos os casos o risco é grande.
A observação sem julgamentos funciona como uma lanterna. É
a luz da sua consciência que a meditação vai fortalecendo.
(...)
Partindo do nível da consciência comum pode-se alçar o,
através dos seguintes níveis , por ordem crescente:
- a superconsciência, quando você contata o SER;
- a superconsciência coletiva;
- a superconsciência smica, onde a total dissolução no
vazio.
Este é o caminho da luz, alegria e celebração. Voparte como
uma flecha, direto ao centro.
O SER não é este você, com o qual a sua
identificação. É a própria existência oculta pelo você (ego). Ela
sempre esteve aí, assim como está em todas as partes. No ser
humano ela pode ser contatada num espaço interior, pode ser
recebida conscientemente.
Diante de situação limite o estado de presença se faz presente. O
timoneiro que procura observar o rumo, o bombordo e o estibordo está também
atento à passagem de cada onda, de cada marola. Pilotar um veleiro é preciso,
equilibrando-se, equilibrando o barco, a visão periférica se une à sensação do
movimento das águas que se manifesta à vista, ao tato (direção do vento) e à
percepção sensória do movimento das águas. Pode-se fazer um paralelo com o
papel do ator no teatro: presente em si próprio a cada instante, atento ao entorno
(cenário, texto, parceiros, público, etc.) e ao rumo.
Na busca pelo estado de presença o artista se coloca em constante
migração. Estamos abordando o conceito de migração num veio poético, aberto de
seu sentido, encarando como representante de uma vontade maior , mais geral,
mesmo que realizada, aparentemente, ao nível de um indivíduo, in-corporando a
migração da imaginação para a realidade (insight obra), a migração entre saberes
78
(ocidental/indígena, indígena/oriental, oriental/ocidental), a migração para o próximo
(São Paulo/Goiás, Belém/Ilha do Combu, Goiânia/Pirenópolis), a migração para o
outro (universidade/comunidades) e a inner migração.
Guiado por imaginação e intuição, o artista coloca seu ser em movimento,
condensando camadas sutis de vibração e consciência em obras e atos expressivos.
Contemporaneamente, a arte se apresenta como forma de conhecimento
e campo de experimentação para uma humanidade mais criativa e solidária onde o
diverso e o uno são facetas indissociáveis de uma ampla dimensão de vida.
Se migrar é conhecer o outro em você conforme nos ensinam os Maias (In
Lake’ch Eu sou um outro você) fui ao encontro do negro e do índio para compor
mais conscientemente o ser brasileiro que está latente em todos nós, brasileiros.
..não somos o branco (ainda que o ideal europeu predomine em
nossa formação de povo colonizado), nem o negro (embora
grande parte de nossa herança cultural advenha da escravidão
africana), nem o índio (conquanto muitas das feições e tradições
brasileiras não deixem dúvida quanto à origem indígena).
Somos o resultado de uma história complexa, mediante a qual
esses três elementos provocaram choques e interrelações
culturais encontrando-se e desencontrando-se de muitas
maneiras. (Borges e Gondim, 2003)
Percebendo que historicamente havia um vazio em minha noção de
identidade, percebendo que grande parte do que sentia e vivenciava no mundo
estava abafado por uma cultura dominante, me reconheci enquanto brasileira,
contemplando traços culturais e maneiras de abordar e expressar o mundo que iam
além da valorizada cultura ítalo-européia a que havia sido torneada. Percebi que
estava agindo de uma maneira que não me pertencia, mas que vinha sendo
introjetada, como na situação típica de dominação. “Desta forma, estudar o índio
não é apenas procurar conhecer o outro, o ‘diferente’, mas implica conduzir as
indagações e reflexões sobre a própria sociedade em que vivemos.” (Borges e
Gondim, 2003)
79
Cedo, minha consciência por justiça, igualdade e liberdade me levaram a ir
ao encontro do diferente, a outra classe social, a bairros de periferia, a associações
populares, a cárceres e favelas. Cruzei o país como num ritual de passagem, fruto
de um insight e da necessidade de responder à busca do estado de presença e
responsabilidade social para com a arte de interpretar. Fui procurar incluir outras
identidades que o poder instituído e seus mecanismos de reprodução faziam
questão de ignorar e abafar. Segundo Borges e Gondim (2003): “É aqui que
encontramos a justificativa histórica e ideológica de nossa relação excludente com
os povos indígenas, bem como de nossa cordial interdição a aceitá-los enquanto
esse outro que nos lembra que não somos europeus.”
Assim, num ato inaugural de minha nova história, o encontro com o
diferente significava uma busca profunda do que havia de comum. Sem
compreender a língua, distante do mundo conhecido, me encontrei diante da
espécie humana e da possibilidade de comunicação profunda, não com seus
parentes humanos, mas com as profundezas da terra, a imensidão do céus e
precipícios e a ingenuidade dos animais. Entrei num campo de estranhamento para
me perceber mais existente. Tudo era diferente e tudo me dizia mais de mim, me
acrescia em termos da consciência de minha origem enquanto espécie, numa
comunicação elementar e básica.
Assim como o mais ardoroso falar de um para o outro não
constitui uma conversação (isto é mostrado claramente naquele
esporte estranho, denominado com justiça de discussão, de
fragmentação, praticado por pessoas razoavelmente dotadas de
intelecto), assim, por sua vez, uma conversação não necessita
de som algum, nem sequer de um gesto. A linguagem pode
renunciar a toda mediação de sentidos e ainda assim é
linguagem. (Buber,1982)
17 Setembro de 1986. Escrevo.
80
“Ontem esqueci de comentar sobre a minha dança e o pé do índio Arenka,
filho de Jacutinga, meu namorado daqui.
Nós ficamos olhando um livro de índios enquanto fora chovia e alguns se
banhavam.
Ficamos bem pertinho vendo página por página do livro e, de repente, o
seu pezinho tocou o meu e ficou repousando ali. Senti que o tônus dele é diferente
do meu. Me recordei da minha primeira estada numa aldeia. Todo o meu corpo se
relembrou do estado alerta/relaxado do índio.
É como um torpor, mas não preguiçoso, e sim aberto e receptivo.
Corre uma energia pelo corpo todo e toda onda pega você e você a pega.
É um mole-molengo energético. sei! Não medo, não expectativa, não
futuro, não há eu.
Dançando, consigo este estado, mas ainda não relaxo totalmente no dia-
a-dia. E o pequenito Nhambiquara me ensinou a viver um pouco mais
sadiamente
sabiamente.
Sinto claramente um estender da força da minha mão quando estou
dançando. É como se eu captasse uma onda, uma massa de energia, e a moldasse,
segundo um acordo mútuo, no qual eu interfiro menos.
Ao terminar é difícil desligar-me desta energia, ou melhor, é lento.
Mas é tão plena!
Parece que realmente estou desenvolvendo uma espécie de Butô.
With verticality the point is not to renounce part of our nature -
all should retain its natural place: the body, the heart, the head,
something that is “under our feet” and something that is “over the
head”. All like a vertical line, and this verticality should be held
taut between organicity and the awareness. Awareness means
the consciousness which is not linked to language (the machine
for thinking), but to Presence. (Grotowski, 1998)
23
23
Tradução da autora:Com verticalidade, o ponto é não renunciar a alguma parte de nossa
natureza tudo deve conservar seu lugar natural: o corpo, o coração, a cabeça, algo que
está “sob os nossos pés” e algo que está “sobre nossa cabeça”. Tudo como uma linha
81
Buscando esse estado de presença e comunhão cósmica, a Amor (no
feminino), fui até as aldeias e ao conhecimento do oriente. Fui buscar na migração
dos saberes, uma migração dos planos de densidade energética, da imaginação
para a realidade, da representação para a exposição, da matéria densa para os
planos sutis, e encontrei o diverso no uno, a comunhão total, a proposição.
Potencializando o sentido de auto-conhecimento e de imersão no mundo,
a arte é o caminhar contemporâneo de experimentação da humanidade criando
oportunidades e eventos, mostrando a necessidade de se estender a via, o veio
criativo e solidário para que cada minuto e ação no tempo/espaço do planeta ganhe
o status de registro da dimensão cósmica, de hólon onde a imaginação tem poder
de transformação e o ego, seu serviçal, auxilia-a na execução, na ação.
Em 20 de setembro de 1982 escrevi:
“Eu me liberto de 8 a 80
1º PASSO
Sem guardar nada, sem se prender, por nada, nada mesmo. Rasgar as
máscaras do anus até a cabeça (qualquer que seja ela). Ir desmanchando,
decompondo o ser, até a sua essência (Qual será ela?) Sair das amarras do “social”,
do “padronizado”. Se tornar você, seja como ele for, aberto, rasgado, partido,
pequeno, lindo, rouco.
O grito é um passo, o corpo inteiro dentro dele, com ele, o os sons,
mas os “gestos”, sem qualquer censura, puro... isso mesmo.... PURO. Cruel neste
momento, mas verdadeiro, sem cuidado nenhum.
vertical, e esta verticalidade deve ser mantida alinhada entre a organicidade e o estado
desperto. Estado desperto significa consciência que não está ligada à linguagem ( a
máquina de pensar), mas à Presença.”
82
Como seria a “julia” se dispondo de suas capas? Como será realmente
que ela expressa sua alegria, sua raiva, sua dor, seu coração, seu útero? Ela vai do
8 ao 80 sim, mas com que cuidado isso acontece hoje, não é? Então vamos
começar do 8 (ou 80), com todas as máscaras, todos os padrões deste
“Homem/Mulher” e ao começar a destruição deste 8 (ou 80) vai-se chegando ao 80
(ou 8), como se tirássemos fibra por fibra, bem devagarinho, para percebermos
como elas são, e como se integraram” à Julia, agora sim o ser”, único, com a sua
exclusiva expressão, sincera, feia ou bonita, não importa, mas PURA. Aparece a
Julia.
Eu quero todas as expressões
Do medo à luxúria,
da contemplação à ação total.
Sempre instintivo,
calmo ou violento,
brusco ou singelo,
do 8 ao 80.
A conquista de mim mesma. Esta a minha meta desde 1982.
De um simples giro de cabeça, consciente, completamente consciente,
despertei para a presença.
E nunca mais parei.
E pouco a pouco fui rasgando esta embalagem meio amassada,
hermeticamente fechada por uma capa aluminizada. Aos pedaços, pequenos, ía
arrancando as doloridas e surpreendentes máscaras. E descobria sempre disformes
e intermináveis compartimentos, com temperos fétidos, antigos, incolores.
E conforme descobria, revirando pelo avesso, a tal embalagem, ía me
nutrindo do conteúdo podre de mim mesma e consequentemente me amortecendo
mais.
Então comecei pelo corpo: minha luz, minha prisão.
83
Este pedaço tão visível, palpável, carnífero, tão cheio de si, foi se
desvendando à minha alma, aura, espírito.
Neste tempo ainda a embalagem conservava sua original forma e o
alumínio era tirado devagarinho. Mas com força, muita força. Parece que assim
eu ía atingir a profundidade tão almejada.
Era com uma picareta que eu abria a minha consciência corporal. E as
práticas me colocavam atônita, tanto pela força como pela descoberta que advinha
daí.
Andar era mais que um ato naturalmente inato. Era a tecelagem da
sabedoria das ligações nervosas, musculares, emotivas, articulatórias e mentais. A
vida era o conhecimento táctil, a sensação interna destas ligações. Mover um artelho
sem acionar o resto do corpo me exigia a presença de todo o corpo e não seu
esquecimento.
O relaxar não era morrer, amortecer, e sim vibrar harmônica e vitalmente
todas as terminações nervosas, controlando-os em repouso, com a precisa tensão
cheia de ar.
Espaços Dar espaços ENCHER-SE DE ESPAÇOS.
pleno, bonito, feliz e perigoso, muito perigoso.
Como sondar uma janela do lado de fora, atrair-se pelo que se sem
atentar direito que do outro lado está seu algoz.
Sim, você se torna seu próprio algoz, incansável, muito exigente! Que te
pede a constante, a princípio prazerosa, mas depois, sorrateiramente demente
consciência.
E norteada por esta demência você passa a se tornar feroz, arrancando
mais e mais os pedaços da embalagem. Abrindo-se, visceralmente, intestinicamente,
querendo atingir a raiz do que não se vê, do que não se apalpa, mas que sente e
que profundamente prenha de sentido.”
85
10. Tari
E muitos foram os treinamentos que busquei para cultivar este estado de
presença. Primeiro para mim mesma e aos poucos aplicando a workshops e aulas.
Observando e aplicando metodologicamente as recentes descobertas,
acabei percebendo que os treinos de longa duração não combinam com o perfil do
performer, do brincante brasileiro, ou talvez, arrisco a afirmar, latino americano, dado
minha experiência no México, entre atores indígenas. Assim, inspirada num
exercício que os chineses usam para aliviar a dor de cabeça, o Li Shou, desenvolvi
um treino bastante simples que leva o brincante a perceber um alinhamento da
energia interior às forças do céu e da terra, propiciando uma abordagem da
expressão criativa sem autoria, abrindo ao compartilhar e escuta da Sincronicidade e
do coletivo.
LI SHOU
1. Com os pés paralelos e o corpo ereto voltado para o leste ( ao
nascer do sol) ou para o oeste ( no fim da tarde), esfregar as palmas das
mãos até que elas deslizem sem muito atrito e fiquem quentes.
2. Massagear o rosto, 17 vezes, com movimentos de cima para
baixo, da testa para o queixo, com os olhos fechados, limpando todas as
tensões, expectativas, angústias e outras interferências mentais e
emocionais. Relaxe bem todo o rosto.
3. Conforme os braços vão se abaixando e se colocando ao longo do
corpo, com as palmas viradas para trás e com os olhos ainda fechados,
86
sinta a energia do baixo ventre, das pernas e dos pés conectando-se à
terra. Solte as tensões para baixo.
4. Pense que o sol está nascendo e faça a luz penetrar suavemente
conforme for abrindo os olhos. Mantenha-os em repouso num ponto fixo à
sua frente, num ângulo de 60°.
5. Descubra um sorriso interior. Sinta o céu tocando a sua cabeça e
a terra firme sob os seus pés. E o ser humano, você, unindo céu e terra.
Mergulhe na serenidade. E - importante - com este sentimento inicie os
próximos movimentos.
6. Com as palmas das os viradas para trás, sinta uma atração na
ponta dos dedos e dirija os braços para trás sem forçar nem tencionar,
seguindo esta atração. Ao mesmo tempo, volte sua atenção para as
pontas dos dedos dos pés. Inicie agora um balanço de braços: atração
dos dedos, movimento para trás - soltar, movimento para frente.
Obs.- Procure o deixar os braços subirem além do umbigo, na
frente, ou além da altura máxima das nádegas, atrás. descobrindo um
relaxamento progressivo a cada vez que os braços forem para a frente.
Mantenha os olhos fixos num ponto (de preferência sobre o verde de uma
planta), o sorriso interior e continue com sua atenção voltada para a ponta
dos dedos dos pés. Observe que o balançar se origine atrás, quando você
relaxa os dedos, sem esforço. Utilize somente a força suficiente para
mover os braços.
7. Contar mentalmente o número de movimentos. Inicie com 150,
depois de 3 dias passe para 200, e progressivamente aumentando o
número até chegar em 1.000 ou 1.500 balanços. Descubra seu ritmo
próprio e permita as variações originadas das diferentes energias de um
novo dia. Descubra, passo a passo, a liberação mental e a captação de
novos, amplos, leves e plenos espaços energéticos.
8. Assim que chegar ao número de balanços desejado, solte os
braços e deixe-os ir parando naturalmente. Não interrompa bruscamente
87
o movimento. Quando eles estiverem quase parados, perceba os
estímulos naturais que presentes nas mãos e siga-os com movimentos
quase involuntários. Pouco a pouco, vá movimentando os olhos e o corpo,
estendendo a energia que está nas mãos para todas as partes internas e
externas do corpo.
9. Experimente um improviso. Descubra suas potencialidades.
Explore movimentos, emissões sonoras, expressões e sinta-se um
agente, sem interferência - um ator, aquele que age. Deixe o agir brotar
do não-agir. Deixe o desconhecido se manifestar. Permita-se o
espontâneo.
10. Ao terminar recolha suas mãos sobre o ventre, na altura do
umbigo, com a esquerda sobre a direita e feche os olhos. Observe a
respiração voltando ao natural. Mergulhe novamente no estado inicial, na
Serenidade, no Vazio. Inspire os sentimentos de calma e tranqüilidade,
percebendo a união Céu, Terra, Humanidade.
Alternativas: a. Os passos 1. e 2. podem ser feitos na posição
sentada.
b. Se não houver possibilidade de se fazer o improviso,
passe do nº 8 para o nº 10.
c. Quando feito em grupo, recomenda-se formar uma
círculo e, aos poucos, harmonizar o ritmo do balanço de braços individual
ao do grupo.
Este treinamento foi inicialmente aplicado à “Efêmera”, proposição de
1988, junto ao espaço cenográfico de J.C. Serroni e do Centro de Pesquisas
Teatrais - CPT (dirigido por Antunes Filho), apresentado na Bienal de São Paulo.
Este trabalho foi inspirado em Lygia Clark e no Zen-budismo, juntando-me a nove
atores. Fizemos um treinamento de um s, aumentando progressivamente, sem
falhar um dia, o número de balanços de braços de 150 a 1.500. O objetivo era
alcançar um estado de limpidez mental e abertura de expressão, semelhante ao
sentido de folha em branco usado pelos desenhistas chineses e japoneses, que nos
88
possibilitasse a isenção de uma escultura. E imersos, em grupo, neste estado
convidamos o público a adentrar o cenário e, muito sutilmente, fomos nos
transformando nas expressões e gestualidade deste mesmo público, ao sabor de um
espelho móvel. Um mesmo ator combinava expressão de uma pessoa e gesto de
outra. Aos poucos, a platéia percebia o jogo e “brincava” conosco, como com
bonecos com certa autonomia, construindo coletivamente intervenções expressivas
no cenário. Para nos fazerem expressá-lo, o público precisava também se
expressar. E como o reflexo o era perfeito ou exclusivo todos entravam num
bloco, ao sabor dos carnavalescos, de expressão cênica mutante e espontânea.
Em solo-performances ou intervenções cênicas, desde então, ( abruptas e
curtas cenas, criadas de improviso, incluindo dança, teatro, música e/ou poesia,
realizadas em ocasiões comunitárias e/ou artísticas a que era convidada) fui
aprimorando este treinamento, sempre precedido de aquecimento corporal e vocal e
seguido de improviso iniciado a partir das mãos. Algumas vezes, mesmo que num
espaço aberto ou de arena, a platéia foi convidada a experimentar este treinamento,
sugerido de maneira bastante simplificada, com o intuito de introduzi-la num campo
de consciência mais sutil, menos fechado, e com a curiosidade de saber se esta
atitude, somada à energia proposta pela performance, poderia levar a platéia a, ao
invés de aplaudir, permanecer em silêncio coletivo, ao final da apresentação , à
maneira de uma meditação.
Este silêncio, por mim tanto almejado, cultivado e reverenciado, foi a
atitude que a platéia manifestou ao final da maioria das apresentações de
Transpiração”, (solo-performance que contou com a co-criação e direção de Juçara
de Morais e preparação corporal de Beto Martins, cuja estréia se deu em 1986, na
Arena do Centro Cultural Vergueiro em São Paulo) e deCorre pela Jugular” ( solo-
performance de 1987, baseada nos oito trigramas do I Ching, que contou com a
irrestrita colaboração e consultoria de Maira Lúcia Lee e treinamento de Ba Guá por
Liu Chi Ming
24
).
24
Juçara Morais é atriz, diretora e professora de Teatro; e Beto Martins é dançarino, ator,
terapeuta e preparador corporal. Dr. Liu Chih Ming, filho do mestre taoísta Liu Pai Lin, é
médico acupunturista e mestre de espada chinesa.
89
11. Momo
“Therefore to cross the threshold is to unite oneself with a new world.”
(Gennep, 1960)
25
Percebe-se que desde 1984 tenho vivenciando um grande rito de
passagem.
A vivência entre as comunidades indígenas, a natureza em bruta-flor e os
ensinamentos orientais foi me introduzindo num mundo de percepção e filtro para
outra qualidade de presença. Quando, pela primeira vez me sentei no chão cru para
ralar mandioca junto às mulheres da aldeia, mergulhei no feminino-mater, na terra
enquanto elemento. Meu ser foi iniciado à uma vibração ancestral, que vindo
diretamente do centro da terra, com sua temperatura fria, plasticidade e fertilidade
penetrava meu corpo pelo centro gerador, tomando todos os nervos , órgãos,
músculos, ossos, criando um novo estado de consciência. Sentada diretamente na
terra, mergulhada em pelo nas águas naturais, dormindo ao relento, colhendo frutos,
sementes, raízes e plantas, preparando, rusticamente, na fogueira os alimentos,
compartilhando a vida com animais silvestres, precipícios, tormentas, poeira e barro,
fui alimentada por uma nova possibilidade de ser que exalava plenitude, liberdade e
ulterioridade.
Ao se deparar com o Espírito da Terra, Fausto se abre para novos
caminhos.
Que efeito diferente este signo está provocando em mim!
Tu, Espírito da Terra, estás mais próximo;
Já sinto minhas forças aumentando;
Já enrubesço como pelo vinho novo.
Sinto coragem de lançar-me ao mundo,
E carregar toda sua dor e sua sorte
De lutar contra a tempestade,
De não temer os rangidos do naufrágio.
25
Tradução da autora: Cruzar um limiar é unir a si mesmo com o novo mundo.”
90
(...)
Sobe um vapor! Raios vermelhos faíscam
Em volta da minha cabeça. Do alto da abóbada
Sopra um calafrio
E me toca.
Eu sinto, flutuas ao meu redor,
Espírito que invoquei!
(...)
Para novos sentimentos,
Todos os meus sentidos se agitam!
Sinto todo o meu coração entregue a ti! (Goethe, 2001)
Esta nova consciência, em mim, se revelava em novas atitudes, dando
primazia ao sentido coletivo e ao refinamento de percepção, no que tange aos sutis
cantos dos pássaros e ruídos à distância, odores de diferentes frutos, flores e
animais, cores do céu para conhecimento do tempo e do clima, da mata e sua
diversificação de verdes, com o paladar encontrando os alimentos em sua forma
mais simples e o tato resistindo a novas texturas e temperaturas. Dentro desta nova
interação entre ambiente e meu ser nota-se um aprofundamento na percepção e
respeito aos sinais-guias da intuição.
“Quando andamos assim no campo, na mata ou no cerrado, nosso ser
precisa estar bem alerta para se proteger dos perigos e dos medos. É sim, o
podemos estar com medo, mas atentos, o que é muito diferente. Quando estamos
alertas, em comunicação com todo o universo, com todos os instintos, dando
importância a todos os seres que nos rodeiam, plantas, rios, nuvens, animais,
ventos, recebemos informações preciosas e necessárias para a nossa
sobrevivência. Nossa intuição fica bastante aguçada e nos protege do perigo. Mas
se você se distrai com pensamentos à-toa, com medo, ansiedade ou dispersão,
pronto vem um tropeção. E prestar atenção aos pequenos tropeções é
fundamental: um tropeção aqui evita um tombão mais à frente. Assim, se você por
acaso tropeçar andando no mato, fica atento... É tempo de deixar de lado as
caraminholas da sua cabeça e prestar atenção no verde da mata, no espinho do
mato, na pedra do caminho.
91
É, foi o que aconteceu comigo. Eu comecei a me preocupar com a fome .
‘Como é que eu vou me virar para achar comida no meião do mato?’ Fiquei ansiosa,
pum... tropecei. Machuquei um tiquinho o tornozelo, mas o alerta serviu. Continuei a
caminhada mais calma, respirando fundo, desviando dos buracos, dos espinhos e
das pedras ... atenta aos avisos da proximidade do perigo, uma cobra ou até uma
onça, quem sabe?
Figura 7 - Julia e Papai-Grande preparando o alimento.
Fonte: Julia Pascali, 1987.
É assim, pessoal, a gente sente o aviso do perigo. Parece que a Irmã-
Grande Natureza está do nosso lado, (quando a gente deixa é claro!)... Às vezes,
você se desvia pro lado direito, caminha apertadinho num trilheiro, nem sabe
porque... pode contar que teve a mão da Irmã-Grande por aí, tentando proteger
você do perigoso bote de surucucu que se armava do lado esquerdo do caminho.
92
Então, continuando a nossa empreitada rumo a casa de Papai-Grande e
Julia, depois de algumas horas de caminhada, meus guias foram diminuindo o ritmo
dos passos. Fomos chegando numa pequena maloca, uma casinha redonda bem
baixinha, feita de paus finos e coberta com folhas de palmeira seca. Era a casa de
Papai-Grande e Julia, nomes que eles usam para nos enganar, porque o nome
deles mesmo é um segredo que só a gente Nhambiquara pode saber.
A gente Nhambiquara, mora no Norte do Mato Grosso, bem pertinho
da Bolívia, no Vale do Rio Guaporé, na Bacia do Rio Juruena e na Serra do Norte,
separados por grupos pequenos. As aldeias, durante o período da seca, ficam
vazias. É que eles mudam muito de lugar, são semi-nômades, procurando insetos,
frutos e caça para se alimentar.
Os dois jovens entraram na frente, eu fiquei aguardando e confesso para
vocês: eu não tive medo, medo nenhum.
Minha confiança no carinho de Julia era tanta....
Ainda hoje carrego no braço cinco pulseiras pretas feitas de alguma
palmeira que só as velhas índias Nhambiquara conhecem. Certo dia na aldeia
Mamaindê, fui até a casa de Julia para me despedir, e antes mesmo de eu entrar em
sua casa ela me abraçou forte e nós começamos a dançar e a rir muito, muito. A
chuva veio e nós continuamos a dançar, a pular, a rir e a nos molhar, passeando em
frente das poucas casas da aldeia. No final deste curto e harmonioso encontro ela
colocou as pulseiras em meu braço.
Pouquinho tempo esperei, a menina saiu da maloca e veio me chamar.
Abaixei a cabeça e entrei. Julia, nua e colorida do marrom da terra e cinza de restos
da fogueira, despenteada, sentada sobre os calcanhares, sorria aberto para mim.
Me abaixei também ao seu lado. Papai-Grande dormia deitado no chão de terra,
hábito característico dos Nhambiquara. Julia pega uma ENORME BATATA DOCE
93
ROSA ASSADA, cheirosa, cheirosa e me oferece. Desta vez eu estive no centro do
mundo. Agradeci não a ela mas a todas as energias do Universo que atenderam
ao meu pedido ( durante a caminhada, lembram?).
Fiquei muito feliz com esta comunicação misteriosa que se estabeleceu
entre ela e eu. Ou foi obra dos deuses ou realmente nós, digo, todos os seres
humanos, animais, vegetais e minerais, estamos ligados a uma rede universal de
energias, e nos nossos momentos mais harmoniosos e integrados percebemos
estes sinais. Falando a verdade, é nisso que eu acredito.”
26
Na iniciação, o candidato torna-se consciente em cada plano da
criação. ... Durante a iniciação, a consciência do iniciado torna-
se um todo, uma consciência que é oniconsciente. O círculo que
começou com a sua tomada de consciência na matéria, no
corpo, o momento em que se separou da unidade, está
encerrado. O candidato se une conscientemente à sua metade
completar que sempre esteve presente antes como uma porção
inconsciente de sua alma, como uma imagem negativa, um ser
estranho que, devido ao seu poder de atração, se manifestou
como desejos, necessidades urgentes e inquietação em seu
corpo. A consciência retorna à unidade, e não mais metade
complementar, pois esta também se tornou consciente.
Chamamos a essa união de ‘casamento místico’. (Haich,1995)
26
Extraído de texto inédito da autora intitulado Índio é muito sabido.
95
12. Chi
Muitos anos antes, em muitas situações, eu percebi a intensidade de
alguns saltos de consciência, como mergulhos espirituais, mergulhos num
supraconsciente. Isto se dá num campo de cruzamento, num movimento que me faz
vencer o medo. Percebo que, nestes anos todos, os momentos de grande
crescimento, de grande aprofundamento, de percepção intensa, de um mergulho
numa consciência cósmica, coletiva, além da minha pessoa, se deu quando eu
cruzei o limiar de medo. No romper com este medo busquei romper padrões
antigos, retrógrados, fixos da minha pessoa. A cada vez que eu rompi, vencendo o
medo, agindo em determinada direção, penetrei num ser diferente do eu que eu era
um instante antes.
Observando à distância, percebo que em 84 planejei iniciar um grande rito
de passagem. Desde a peça O Exercício” procurei me lapidar para uma atuação
mais consciente e conseqüente. hoje eu tenho consciência de que os momentos
de transformação foram ritos de passagem. Este grande rito, iniciado em 84, parece
encontrar uma noção de conclusão com este ato de fixar esta experiência neste
material, como um registro/reflexão, a modo de testemunho, que busca incorporar
conhecimentos que vêm através da intuição, da sensibilidade, da sensorialidade, de
um campo de consciência amplificado, e de respeito a culturas cujas sabedorias
ainda são transmitidas por canais de conhecimento como o silêncio, a dança, o
canto, as visões e vivências junto à natureza, ao universo e à tradição oral e gestual.
Todos os meus movimentos no campo da criação, seja em dança, em
música, em cinema, em teatro, em desenho, em instalações, em vídeos, fotos e
proposições, estão ligados com a transformação de consciência, com a
transformação, em vida, de um ser em outro ser, de um ser em direção ao outro ser,
de um ser em direção a outros seres, outros grupos, comunidades, culturas. Cito
alguns:
96
1. direção de trabalhos coletivos em teatro ( A Empregada) e
vídeo (Muquém) com o Grupo Coisas Nossas, de Pirenópolis
(GO-Brasil), envolvendo artistas populares de até 88 anos,
cujos temas, diálogos de natureza aberta, cenários, figurinos
e adereços foram criados espontânea e coletivamente por
eles próprios ( de 1997 a 2004);
2. intervenções (que chamei de antropológicas) com vídeo (Un
Piccolo Pezzo di Radice), performance e instalação
interativas (La Stella Sei Tu) junto ao povo de Topolò, cidade
no norte da Itália (de 1997 a 2000), onde acontece,
anualmente, um encontro de artistas de vários paises; e na
japonesa Comunidade Yuba ( interior de São Paulo), desde
1986 (O Amor em Todos os Rostos, Hooka, dentre outras);
3. vídeos ( às vezes, com edições coletivas) que documentam a
criação de artistas populares, mestres japoneses, guardiões
da cultura, alunos, companheiros, e pessoas cujas
expressões se configuram como verdadeiras lições de estado
de presença, contendo performances, depoimentos e
participações espontâneas;
27
4. difusão de textos, poemas, pequenas peças, histórias
coletadas entre crianças ribeirinhas e populações indígenas,
de criação individual e coletiva, através de apresentações e
publicações no periódico virtual www.viapolitica.com.br ;
5. coordenação de workshops e vivências performáticas entre
estudantes, professores e artistas brasileiros (Pará, Mato
Grosso, Paraíba, Brasília, São Paulo e Goiás) e de outros
27
Vide os seguintes endereços: http://br.youtube.com/watch?v=Rv_i4azCPtc
http://www.cameraweb.unicamp.br/julia_pascali/hana_no_hana.ram
http://www.cameraweb.unicamp.br/julia_pascali/cafe_com_pao.ram
97
países ( Panamá, Bolívia , cuba, xico, Itália, Japão, China,
Estados Unidos, Israel, Coréia e Inglaterra), e atuação teórica
e vivencial nos encontros da International Federation for
Theatre Research (IFTR), desde 1995; e
6. performances e intervenções cênicas várias, incluindo
desenho, dança, canto, teatro, música, de caráter aberto e
participativo, em meio à natureza ou em grandes cidades,
como a do dia 26 de dezembro de 2008, numa passagem de
pedestres sob a Rua da Consolação, em São Paulo,
Eurínome, que reuniu cantores, compositor, vídeo-maker,
atores, músicos, artistas plásticos e morador de rua, com o
intuito de invocar o sentido de purificação para o planeta,
num dia de clima de eleição.
Sempre busquei encontrar um outro você em mim, ou um outro eu em
você, ou ainda um outro eu em mim.
Você sabe muito bem que quando alguém tem talento inato para
música, escultura ou outras artes, isso não significa que seja um
artista. Essa pessoa precisa desenvolver os talentos. Isso se
consegue pela prática. Exercitar-se constantemente! Talento
sem esforço e esforço sem talento não são arte. Você tem um
talento que es desprezando: a capacidade de revelar o
espírito. Pratique, pratique, pratique ... e se tornará uma artista
na nobre arte, que é a forma de arte mais elevada que existe a
arte destituída de arte! (Haich, 1995)
Fui rompendo padrões que eu mesma vivenciava. E estes rompimentos,
estes mergulhos no desconhecido e no deslumbramento, se deram por ritos de
passagem e foram construindo este ser que busca permanentemente mais
consciência e presença.
O deslumbramento para com o universo e a vida é infinito. Creio que
quanto mais nós vivemos no tempo presente, mais estamos construindo e
98
contribuindo, sendo felizes e íntegros, fazendo a conexão entre o céu e a terra,
respirando e inspirando céu e terra.
Em 1908, Arnold Van Gennep observou os cruzamentos de fronteira
sendo propriamente vividos como ritos de passagem, e formulou um convite: “I
believe, however, that my demonstration is adequate, and I invite the reader to check
it by applying the conceptual scheme of The Rites of Passage to data in his own
realm of study.
E, continuando:
I have tried to assemble here all the ceremonial patterns which
accompany a passage from one situation to another or from one
cosmic or social world to another. Because of the importance of
these transitions, I think it legitimate to single out rites of
passage as a special category, which under further analysis may
be subdivides into rites of separation, transition rites, and rites of
incorporation. (Gennep, 1960)
28
Percebi que estes tantos períodos de morte e renascimento, de entrada e
saída em campos extras de consciência foram se dando em continuidade, como um
grande rito de passagem formado pela entrada e saída em vários e infinitos ritos de
passagem. Com esta permanente entrada e saída em outro estado, o estado de
transição se estabeleceu.
Para viver no campo indígena, por exemplo, tive que abdicar de uma
série de valores e hábitos, perceber-me dentro como se eu fosse uma índia. E
sou uma índia, até hoje, do jeito que me é dado ser. Este foi um rito de passagem.
eu vivi em estado de communitas, ou seja, eu era um ser integrado àqueles
28
Tradução da autora: "Acredito, no entanto, que a minha manifestação é adequada, e eu
convido o leitor a verificá-la através da aplicação do esquema conceitual de “Ritos de
Passagem” aos dados de sua própria área de estudo." (…)"... Tentei reunir aqui todos os
padrões cerimoniais que acompanham a passagem de uma situação para outra ou de um
mundo cósmico ou social para outro. Devido à importância destas transições, penso ser
legítimo delimitar ritos de passagem como um categoria especial, a qual, sob o olhar de
uma alise mais detalhada pode ser subdividida em ritos de separão, ritos de transição,
e ritos de incorporação."
99
outros seres. Dali eu tive que fazer um outro rito de passagem para voltar para o
lugar aonde eu estava, mas eu não era mais aquela.
Segundo Victor Turner (1974):
... com o incremento da especialização da sociedade e da
cultura, com a progressiva complexidade na divisão social do
trabalho, aquilo que era na sociedade tribal principalmente um
conjunto de qualidades transitórias “entre” estados definidos da
cultura e da sociedade, transformou-se num estado
institucionalizado. ... a transição tornou-se, neste caso, numa
condição permanente.
Podemos então perceber uma seqüência: o ritual negro, o ritual indígena,
o ritual do poder, em Brasília, o ritual oriental, o ritual amazônida e toda a expressão
com obras e manifestações que vinham desde a dança com animais, a dança com
grupos indígenas, a dança com os precipícios, a dança com as chuvas, a dança com
as águas, a dança com as árvores, o aprendizado com a natureza e a cultura
visitada, os textos, fotos, gravações em áudio e vídeo que surgiram, o respeito aos
sonhos e novos roteiros e proposições, o respeito à sincronicidade e à percepção
mais ampla, me levando então a novos rituais.
Consideremos, sob a luz de Arnold Van Gennep, que estes 24 anos foram
um grande rito de passagem; na verdade, um rito de iniciação à constante transição,
que nos remete ao Fausto de Goethe, na dramaturgia clássica; e que o estado de
transição está composto por vários outros ritos de passagem. Dos ritos de
passagem indígena e oriental passamos ao das proposições; partindo do registro
individual (texto, desenho, depoimento para câmera) até a arte mais coletiva,
participativa, com vistas à ação pela paz, com instalações, vídeos coletivos, mandala
coletiva, espetáculos com criação de dramaturgia coletiva, trazendo a premissa
básica de que todos nós podemos mergulhar em nossa verdadeira essência, que é
efêmera, a partir de uma preparação para o estado de presença e mutacão.
E se alguma metodologia neste caminho, podemos dizer que a chave,
o caminho, é tornar-se um outro você ou uma outra possibilidade do seu próprio eu
através da intuição.
100
Os profetas e os artistas tendem a ser pessoas liminares ou
marginais, “fronteiriços” que se esforçam com veemente
sinceridade por libertar-se dos clichês ligados às incumbências
da posição social e à representação de papéis, e entrar em
relações vitais com os outros homens, de fato ou na imaginação.
Em suas produções podemos vislumbrar por momentos e
extraordinário potencial evolutivo do gênero humano, ainda não
exteriorizado e fixado na estrutura. (Turner, 1974).
Tenho compreendido agora que existiram dois caminhos para que eu
penetrasse nesse estado de presença que eu acredito ser fundamental para todos
os estados pré-expressivos, para todos os instantes de criação, na verdade, para
todos os instantes de relação com o mundo. Segundo Vitor Turner, nós vivemos
numa entrada e saída no mundo da comunnitas, onde estamos todos numa situação
de igualdade, onde as diferenças sociais desaparecem. Durante nossa vida,
penetramos e saímos desse mundo da comunnitas. Penetramos, encontramos um
novo significado para nossa pessoa e o mundo ao redor, voltamos ao mundo social;
saímos num rito de passagem e reentramos nesse mundo social num novo rito de
retorno que é um início, ao mesmo tempo; e transformamo-nos dentro desse estado.
Victor Turner (1974) traz esses termos estrutura e communitas como dois
campos de possibilidade de vida dentro das relações na sociedade. O da estrutura
é onde a maior parte do tempo nós vivemos e onde a maior parte das relações se
dá, organizadas por instituições, classes sociais, posições, ações, relacionamentos,
ou seja, dentro de um campo formal. E onde são criados os valores que nos guiam,
e, também, os julgamentos, que nos diferenciam, nos apartam. E outro, a
communitas, onde nos vemos como iguais ou deslocados deste eu, onde podemos
nos perceber enquanto espécie.
Os ritos de passagem fazem a nossa entrada e saída nesse mundo da
communitas onde se dão experiências da humanidade enquanto espécie, onde nos
tornamos seres andróginos, com uma licença de vestimenta e atitude. Nós vivemos
num estado de transição quando entramos nesse mundo de iniciados. Neste lugar
101
as pessoas pulsam num sentido de igualdade; as diferenças desaparecem e as
licenças de expressão são mais amplas. Nesse lugar, quase o tempo inteiro,
procuro me manter.
Precisamos sair, ou dar saltos de saída, dessa estrutura para nos
reconhecermos enquanto espécie, invocando nossos padrões menos classificados,
carimbados, massificados. É nesse campo que temos um contato mais direto com o
sentido espiritual e religioso dos guias superiores e invisíveis e do campo da
sincronicidade.
Em Sincronicidade”, Carl Gustav Jung (1988) mostra como nós, seres
humanos, plantas, estrelas, vento, ações no tempo e no espaço, em todos os
tempos, em todos os espaços, em todos os planos, estamos em conexão: uma
rede. Esta é uma percepção chinesa do universo: estamos todos conectados e
mesmo que não saibamos ou que nunca venhamos a conhecer, qualquer uma das
nossas ações reflete em algum ponto do universo em algum tempo. Pode ser que
uma estrela, em dado momento, reaja a essa pequena ação de estar tocando um
irmão.
Finally, the series of human transitions has, among some
peoples, been linked to the celestial passages, the revolutions of
the planets, and the phases of the moon. It is indeed a cosmic
conception that relates the stages of human existence to those
of plant and animal life and, by a sort of pre-scientific divination,
joins them to the great rhythms of the universe. (Gennep,
1960)
29
Existe uma rede da sincronicidade com a qual estamos em contato.
Acredito que quanto mais tempo vivemos em estado de presença, conectados com o
29
Tradução da autora: "Por último, a série de transições humanas tem, entre alguns
povos, sido ligada às passagens celestiais, às revoluções dos planetas, e às fases da lua. É,
de fato, uma concepção cósmica que relaciona os estágios da existência humana aos da
vida vegetal e animal e, por uma espécie de adivinhação pré-científica, juntá-los aos
grandes ritmos do universo.
102
céu, a terra, os nossos irmãos e os nossos antepassados, estamos respondendo e
nos manifestando em acordo com esta trama harmônica.
103
CONCLUO
Os percursos que me foram apresentados neste ininterrupto rito de
passagem, se expressam em experiências e manifestações, espetáculos e
proposições que se agrupam sob uma pesquisa: “Sincronicidade e Expressão”. Ao
mesmo tempo que traz sentido à criação artística, traz também um aporte
pedagógico, de transmissão destes conhecimentos e revelações da intuição e
culturas abordadas. Na verdade, cada um dos espetáculos, performances,
workshops, obras e proposições, cada um dos contatos com pessoas, artistas,
brincantes que compartilharam este processo, foi um convite à entrada em rituais de
passagem.
Destes tantos movimentos percebi algumas pequenas lições como
importantes: a escuta, por exemplo. Escutar o vento, criar espaço para escutar,
permitir-se parar, ouvir, olhar, penetrar-se do azul, penetrar-se dos sons, fazer a
mente parar.
Outro conceito e prática que percebo fundamental para nossos velozes
tempos é o da não-mente. É tão necessário perceber o quanto temos pensado,
todos nós, e em demasia. Pensamos e fazemos desse pensamento conduta e
verdade, nos iludimos, acreditando que esta fantasia criada pela mente é real,
importante e imutável. Buscamos controlar, controlar e controlar mais, a ação que
vem na sequência de um pensamento, de uma idéia, para que ela seja o mais fiel
possível à nossa imaginação. E isso nos torna autoritários. A mente, o nosso
raciocínio, o nosso pensamento, é importante na medida em que ele contribui para
nortear uma experiência mais holística, mais integradora, mais respeitosa de outros
canais de conhecimento e abordagem da realidade e do mundo. É preciso ser dito a
nós todos que a mente mente, que a mente nos engana; precisamos estar atentos
104
para não justificar as nossas ações rígidas baseadas em algumas premissas que a
mente não consegue abdicar.
Na maior parte do tempo quando pensamos que “escutamos”, na verdade,
estamos esperando um espaço para exteriorizar o nosso próprio pensamento.
Não estamos nos abrindo para novas idéias e percepções, novos diálogos. Será que
estamos percebendo realmente quando a outra pessoa está falando? Há, realmente,
espaço aberto e flexível, dentro de cada um de nós, com e no qual pode haver
uma combinação e um surgimento de um fruto a dois ou coletivo? Se vamos a
qualquer encontro com idéias rígidas, fechadas, acreditando que o nossas as
idéias, temos pouca flexibilidade para desfrutar desta maravilha que é perceber uma
construção coletiva.
O exercício de eu sou um outro você é fundamental para que os projetos
solidários resultem numa ação criativa, diferenciada, de respeito ao ser humano,
incluindo todas as pessoas que participam de dado processo, em todas as posições.
Já é tempo de entrarmos na experiência de communitas, a experiência da espécie,
a experiência da irmandade, da igualdade e do respeito e integração das diferentes
manifestações, diferentes ritmos. Segundo Victor Turner (1974) : ...a communitas
tem uma qualidade existencial, abrange a totalidade do homem, em sua relação com
outros homens inteiros.”
Martin Buber (1982) esclarece ainda:
A comunidade consiste em uma multidão de pessoas que não
estão mais lado a lado (e, acrescente-se, acima e abaixo), mas
umas com as outras. E esta multidão, embora se movimente na
direção de um objetivo, experimenta no entanto por toda parte
uma virada para os outros, o enfrentamento dinâmico com os
outros, uma fluência do Eu para o Tu. A comunidade existe onde
a comunidade acontece.
Quero acrescentar o caráter holístico, de comunhão com os reinos animal,
vegetal e estelar; e atemporal, onde passado presente e futuro se encontram no
aqui-agora. Estas duas características indicam a existência num estado mítico, onde
105
compartilhar o estado de presença comunitariamente gera uma força criativa
que cresce geométrica e quanticamente.
Notemos uma prática a qual fui introduzida quando tentei visitar os
Rikbaktsa. Tinha conhecido alguns índios Rikbaktsa num encontro indígena e eles
me convidaram para ir a aldeia. Meses depois, fui para a cidade mais próxima,
Fontanilhas, um pequeno povoado às margens do rio Juruena. Ali os índios
passavam todos os dias, vinham de canoa ou voadeira, para se abastecerem de
alguns mantimentos, ou buscar pessoas que iam visitar a aldeia como eu. Cheguei,
mandei mensagem que estava por e um dos índios foi me encontrar. Ele disse
que eu esperasse até ele conversar com as outras pessoas da aldeia para ver se eu
poderia entrar.
Aguardei. Os dias se passavam e eu via, todas as horas, os índios
passarem de barco pra cima e pra baixo. A cidade estava no meio da comunicação
entre duas aldeias Rikbaktsa em pontos diferentes do rio Juruena. E ali eu fui
ficando, a cada dia vinha alguém e falava: “Ah, ainda não tivemos a resposta. Ainda
não.” E eu percebia que ainda não havia um acordo para que eu pudesse entrar. Ao
mesmo tempo coincidiu com um período de doença na aldeia e eles precisavam dos
técnicos de saúde, os quais eram buscados na mesma margem em que eu me
encontrava.
Aí eu fui ficando, fui ficando, fui ficando, até que um dia um dos índios veio
e me falou: “Nós o conseguimos, até agora, um acordo dentro da aldeia para sua
entrada. Então nós vamos aguardar um tempinho, talvez uns dois, três, seis meses
por essas pessoas. Nós não encontramos todos os índios e também não
conseguimos que os que estavam juntos concordassem. Então nós vamos aguardar
mais um tempo até que a gente conversando. Daqui uns 2, 3 meses, ou auns
4, 5 meses você nos procura, talvez eu tenha uma resposta.” E me retirei, a
princípio, achando que a experiência tivesse sido frustrada, pois eu não havia
entrado na aldeia. Aos poucos, fui refletindo sobre todos os ensinamentos que eu
recebi a partir do contato com esse grupo e escrevi ( dia 7 de Setembro de 1986):
106
“À Nação Rikbaktsa
Aos companheiros Nicolau, Isidoro, Rafael, Roque, Albano
A todos vocês, meus irmãos,
Todos estes dias que fiquei aqui em Fontanilhas me permitiram
estar um pouco mais perto de vocês, povo amigo.
Todos estes dias brinquei, cantei, nadei, banhei no Rio Juruena
e o meu coração foi ficando mais cheio de alegria.
Neste mesmo Rio Juruena vi passar todos os dias canoas e
voadeiras carregando gente pro Barranco Vermelho, para Beira, pra
Aldeia Nova.
Alguns Canoeiros me conhecem e acenam quando passam
pelo Rio e me vêem. Outras vezes, converso com alguém aqui no hotel
mesmo, ou no portinho.
Eu sempre fiquei do lado de do Rio Juruena, mas todos os
dias, como nesta hora, o meu coração e o meu pensamento voam pra
outra margem do Rio. Eles vão se encontrar com vocês, irmãos
Rikbaktsa.
O meu sentimento vai para os meus olhos que encontram as
águas correntes do Rio Juruena. Nestas águas o meu sentimento vai
balançando e tocando devagarinho cada gente que encontra no caminho.
Gosto bastante de todos vocês e espero poder mostrar a minha
dança e o meu teatro. Assim farei meu agradecimento por poder conviver
com a nação Rikbaktsa, com as forças de toda a sua gente, junto com
todas as plantas, o sol, o céu, a terra, as chuvas e os animais.
Quando der o começo do mês de outubro eu vou tentar me
comunicar com vocês pelo rádio para saber se posso vir aqui passar
alguns dias com a sua gente.
107
Neste tempo que eu ficar com vocês eu quero aprender
bastante. Para mim, toda a vida, tudo o que acontece no mundo, é um
ensino. E o ensino do índio é muito mais valioso que o ensino do branco.
O coração do branco está muito duro, cheio de pensamentos ruins, quase
não enxerga mais a vida. dinheiro e ambição. Este ensino não
presta pra quem quer aprender a trazer a paz para todos os homens.
Eu aprendi também coisas boas que, se vocês quiserem, eu
posso ensinar. A gente pode trocar: vocês ficam sendo meus professores
e eu posso dançar, fazer teatro e também, cantar, e ser professora até.
Enquanto eu estiver do lado de cá do Juruena eu poderei ajudar
vocês também. Eu vou para Brasília no dia 26 de Setembro, se vocês
precisarem de alguma coisa deixem recado com o Fernandes, que eu
pego.
Até breve, amigos.
Serei sempre uma amiga para todo o povo Rikbaktsa, não se
esqueçam.
Aprender a viver das águas do Rio Juruena
Aprender a nadar nas águas do Rio Juruena
Aprender a ler à margem das águas do Rio Juruena
Aprender a beber das águas do Rio Juruena
Aprender a chorar ao som das águas do Rio Juruena
Aprender a cuidar dos peixes das águas do Rio Juruena
Aprender a contemplar os índios nas águas do Rio Juruena.
Aprender a fugir das cobras das águas do Rio Juruena
Aprender a voar nos barcos que passam nas águas do Rio
Juruena
Aprender a sorrir das aves que pulam nas águas do Rio
Juruena
Aprender a acordar nas manhãs das águas do Rio Juruena
Aprender a entoar um canto para as águas do Rio Juruena
108
Aprender a se purificar nas águas do Rio Juruena
Aprender a amar os raios que caem nas águas do Rio Juruena.”
E uma das coisas mais importantes que eu aprendi foi: o tempo para que
uma solução realmente responda a todos não é dado por fora de uma situação, mas
sim internamente. Na verdade, o que é realmente democrático, é quando todos
podem ser ouvidos, todos podem ser respeitados, e uma solução diferente de uma
ou outra exclusivas e possessivas possibilidades, possa surgir para responder a
estas todas pessoas e situações, num tempo próprio e interno a essa comunidade.
A partir dessa percepção, desenvolvi uma vivência, um jogo simples, que
pode mesmo ser transformado no próprio em espetáculo: Mandala Coletiva “Eu sou
um outro você” . Através dela podemos perceber, a cada movimento o envolvimento
do grupo, de todas as pessoas, com seus valores, energias, possibilidades
expressivas se manifestando, construindo uma língua própria, revelando a nós que
quando abertos, em estado de presença e coletivamente, respondemos à espécie
de uma maneira rica, nova, profunda, geometricamente potente com emanação
muito vibrante, de grande alcance e de grande plenitude onde o sentido de
communitas é invocado a cada instante.
O caminho da arte, do teatro em especial, comporta a totalidade da vida e
sua expressão, no seu exercício e conhecimento. O teatro se transforma em campo
de conhecimento, em matéria e ciência que responde com propriedade à
contemporaneidade. Através de seus atributos a espécie humana pode se perceber
criando e vivendo em comunidade e no presente, compartilhando com criatividade e
saúde o construir solidário da vida e cultura sobre a terra.
Segundo Dawsey (2005):
O indivíduo carrega a responsabilidade de dar sentido ao seu
universo. Os gêneros expressivos foram desmembrados e
perderam poder no mundo contemporâneo. Foram colocados às
margens dos processos sociais centrais. As noções de drama
social e liminaridade ( e suas fontes de poder) são importantes
109
ara se buscar um desfecho ’feliz’. Este vem com uma discussão
sobre a experiência de communitas suscitada pelo teatro!
Quando encaramos o tempo como arte, mergulhamos no estado de
presença, respeitando os processos criativos e a expressão individual é
harmonizada à coletiva.
Percebemos que, na verdade, é a partir da vivência plena do processo
que todas as pessoas podem estar aprendendo a escutar e a respeitar a si próprias
e a se perceberem capazes de intervir no mundo. Com respeito e auto-estima a
identidade vai sendo construída. O foco de nossa atenção deve ser processo; o
produto é resultado de um processo vivido em sua plenitude. Continuando com
Dawsey (2005):
...e sob os efeitos de choque que acompanham o curto-circuito
desses sinais numa situação de liminaridade, pessoas podem
ver-se frente a frente. Sem mediações. Voltam a sentir-se como
havendo sido feitas do mesmo barro do qual o universo social e
simbólico, como se movido pela ação de alguma oleira oculta,
recria-se.
Para ele, os termos passagem e performance poeticamente se
aproximam: sendo que passagem traz a idéia de se aventurar, de correr riscos,
evocando os ritos de passagem; e performance evoca a idéia de completar, realizar
inteiramente, de mergulho no momento da expressão.
Em minha essência e propósito se misturam os conceitos de ficção,
realidade, apresentação, representação, proposição, arte e vida, performer, ser e
brincante. O estado que se tornou natural é o estado de passagem, um estado que
não pode ser auferido pelos padrões de tempo e espaço, por uma cronologia
contínua ou lógica cartesiana, ou qualquer medida quantitativa.
Este estado, ao mesmo tempo, amplo e receptivo, faz a integração de
linguagens artísticas, de pessoas, de planos, de tempos, de culturas, e de
possibilidades de expressão, por contemplar o estar inteiro a cada momento.
Quando um índio conta uma história na aldeia, ele estava vivo, ele não
está num palco e nem preocupado com a platéia. Está vivendo aquele momento,
110
contando a História e usando todos os recursos ao seu dispor, permeando vida
cotidiana e estado mítico.
Digo que um brincante vive mais tempo fora do tempo cronológico,
juntando vida e arte, porque ele busca na maior parte do tempo estar em estado de
presença.
E a energia que emana para a audiência e os co-participantes é a da
generosidade. A arte adquire a sua mais refinada expressão, quando o brincante
tem o cuidado de se lapidar enquanto pessoa, de escolher, eticamente, emanar para
o mundo energias que sejam de solidariedade, criatividade e construção,
oferecendo-se ao universo numa infinidade de possibilidades de ser (no sentido de
essere) humano.
No ato de expressão, se sentimos profundo em nosso ser a máxima Maia
"Eu sou um outro você", entramos naturalmente no campo da generosidade. Neste
lugar a solidão também ganha um sentido de unidade com a fonte onde o todo é
tudo: sua verdade explode o caráter material do interlocutor e gera parceiros num
campo de fé, com os que compartilham esta verdade. Assim, a expressão de uma
verdade, ultrapassa o controle e a autoria, entrando no campo dos arquétipos,
alimentando a espécie com novos valores e referências.
Como tudo num todo se urde,
Um no outro age e vive!
Como sobem e descem as forças celestes
E se estendem os cântaros dourados!
Oscilando, o aroma divino
O céu penetra a Terra,
Para em tudo harmônico soar o todo! (Goethe, 2001)
Os arquétipos são alimentados e perpetuados por s, nossos valores,
atitudes e experiências. Para que o planeta passe a vibrar num plano de maior
liberdade e consciência podemos interferir no plano dos nossos modelos (alterando
nossos hábitos radicalmente) com novas relações, novas reações, novas atitudes e
proposições.
O tempo da intuição ( quase incomensurável de tão veloz) tem sido
111
incorporado à comunicação planetária. Estamos prestes a viver o eterno presente,
tempo do rito de passagem, do mito.
Concluindo, sem a pretensão de generalizar ou dar fórmulas, este
trabalho buscou ofertar uma reflexão-testemunho, abordando um outro jeito de
percepção sobre o rito que se processou em mim - ser brincante - como
conhecimento, como sabedoria, como experiência.
O trabalho em si desta tese realizou a descoberta de um novo plano: o
processamento e organização desta experiência como um grande rito de passagem,
como uma vivência a ser oferecida como conhecimento.
Parceiros, esta viagem foi patrocinada pela intensa necessidade de
ampliar níveis de conhecimento e consciência, pela profunda necessidade de servir
com maior lucidez à espécie humana, expondo-me à experiência na linha de frente
rumo ao instante pleno, à vivência da presença que perdure cada vez mais e mais a
ponto do olvido dos termos passado e futuro.
Em meu DNA repousa a memória de um ancestral vulcão. Expressá-la hei.
113
Figura 8 – Desenho de criança Nhambiquara
Fonte: Colhido pela pesquisadora Ana Maria Ribeiro F. M. Costa
YOROZU
(10.000)
115
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