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HQ Formigueiro mistura temas de Níquel Náusea com Hora de Aventura

Obra de Michael DeForge é um sombrio cruzamento dos mundos animal e humano

atualizado

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Se há um quadrinista brasileiro que eu admiro profundamente, seu nome é Fernando Gonsales, autor do famigerado Níquel Náusea. Lembro-me perfeitamente de, nos bons anos 1990, recortar dos jornais as tirinhas favoritas daquele mundo gozado, cheio de animaizinhos emulando comportamentos humanos. Sempre fui fã de zoologia (e de quadrinhos) e aquilo trazia o melhor de duas paixões. A tira começou em 1985 e segue até hoje.

Níquel Náusea trazia o equilíbrio perfeito entre o que cabia à vida animal e que competia à pessoas. Uma aranha podia ser uma cerzideira. Uma centopeia tinha problemas para ir ao sapateiro. Os ratos se descabelavam para cuidar de uma ninhada de 50 bebês. No limbo disso tudo, o mundo dos animais se encontrava com o nosso.

FERNANDO GONSALES/FOLHA DE SÃO PAULO

Ainda considero o velho Níquel uma síntese perfeita da sagacidade e do despojamento típicos do quadrinho brasileiro. Suas tiras são simples e criativas, com ideias redondas e punch lines perfeitas. Falo primeiro desse autor porque vi nele uma semelhança (ainda que no meio de diferenças determinantes) com o recente lançamento da Editora Mino: Formigueiro, do canadense Michael DeForge.

 

Aqui, também as peculiaridades e excentricidades do mundo animal são usadas para articular um tipo de amálgama com o comportamento humano. Os resultados, porém, são sombrios. O autor busca misturar referências das comic strips da era de ouro (como Upside Downs ou Krazy Kat) com a linguagem contemporânea dos webcomics, tornando o conteúdo sardônico, e, por vezes, perverso ou profano.

DeForge nasceu em 1987. Pertence, portanto, à geração Y, na qual um discurso de ironia passa a, progressivamente, ser substituído por um de cinismo (sem querer julgar). A autoconsciência sobre duas ou três camadas do que se está dizendo, além de uma franca opção por parodiar e patinar em cima de citações a todo momento, é uma tônica dos chamados millennials.

 

Sua ideia é basicamente a mesma de Fernando Gonsales. Porém, ao invés de dotar seus bichinhos com certa graciosidade e até alguma ingenuidade, ele aplicou-lhes esse discurso ferino pós-moderno. O resultado é ótimo… e perturbador! Em Formigueiro, o estranho e o familiar convivem de maneira indissociável, o que gera desconforto no leitor do início ao fim.

As formigas vivem numa ordem matriarcal (onde só a rainha – dentre as fêmeas – tem privilégios) na qual os machos precisam ficar inseminando a regente a todo instante. É estranho, porém vem da biologia natural das formigas. O que embola tudo é esses insetos se comportando, dentro desse contexto, como se estivessem numa sociedade humana. Os efeitos variam: há o sexo controlado por feromônios, canibalismo, incômodas relações parentais, etc.

 

DeForge trabalha também como designer da série Hora de Aventura. Já virou até um clichê ficar dizendo que Formigueiro lembra esse desenho, só que “on acid”. Apesar das semelhanças no design dos personagens, o quadrinho tem uma vinculação social e um propósito artístico bem mais complexos (lógico: é para adultos). Há momentos nos quais sentimentos básicos humanos (na morte de um parente ou no nascimento de um filho, por exemplo) se tornam escusos.

A maioria das páginas (muitas foram pensadas originalmente para divulgação online) é dividida em nove quadros multicoloridos, emulando tiras, e, por mais que muitas situações se resolvam rapidamente, aos poucos vamos seguindo o destino do formigueiro e de seus personagens principais.

Por sinal, são eles: um casal de formigas gays em crise, um pai sociopata com um filho que ganha o dom da profecia, um policial mentecapto e uma fêmea infértil sem saber seu papel na sociedade.

Formigueiro é um quadrinho inteligente e cheio de recursos. Seu apelo visual é esdrúxulo e bem sequenciado. No meio das piadas aparentemente inofensivas, pululam na nossa consciência reflexões sobre repressão e controle, genocídio e guerra. É como se Fernando Gonsales tivesse sido internado num hospital psiquiátrico e tivesse de, autoritariamente, ser obrigado a continuar produzindo tiras diárias. Psicopatia millennial no mais alto nível.

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