Segundo uma análise dos registos públicos de informação da Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos realizada pela National Geographic, o Ozempic e o Wegovy, medicamentos que se têm tornado cada vez mais populares por ajudarem a perder peso, foram testados numa espécie de macaco considerada em vias de extinção. 
Os dois fármacos encontram-se entre os produtos mais conhecidos que utilizaram os macacos-cinomolgos — uma espécie do sudeste asiático considerada em vias de extinção pela União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) no ano passado. Essa classificação deve-se em parte ao uso do animal na investigação biomédica, escreveu o grupo de especialistas.
Conhecido pela sua cauda, com o comprimento do corpo, barriga branca e pêlo castanho ou acinzentado, o animal é o primata mais importado para os Estados Unidos da América.
Segundo um relatório publicado pela National Academies of Science, Engineering, and Medicine em Maio, os EUA importaram quase 32.000 animais só em 2022.

Mais de metade destes macacos com cerca de 60 centímetros de comprimento vieram doCamboja, dizia o relatório, enquanto outros vieram das Maurícias, do Vietname e da Indonésia.
Estes dados surgem numa altura em que a polémica cerca a indústria de exportação de macacos – e as exportações do Camboja em particular. Alegações de actos criminosos feitas pelo governo dos EUA, reveladas numa acusação aberta apresentada no ano passado, afirmam que milhares de macacos supostamente criados em laboratório foram capturados em estado selvagem e comercializados como animais criados em cativeiro.

O governo dos EUA moveu uma acção criminal contra um alto funcionário do departamento de vida selvagem do governo do Camboja
TANG CHHIN, SOTHY / AFP / GETTY IMAGES

O governo dos EUA moveu uma acção criminal contra um alto funcionário do departamento de vida selvagem do governo do Camboja, alegando que ele entregara pessoalmente macacos capturados em estado selvagem em instalações que os venderam como tendo sido criados em cativeiro e que recebeu pagamentos pela sua participação no esquema de contrabando. Alegadamente, foram reunidos milhares de macacos vindos de vários locais incluindo parques nacionais e áreas protegidas, como esta em Angkor Park.

Muitos dos macacos vindos de outras paragens também foram capturados em estado selvagem, incluindo quase 4.000 exportados das Maurícias em 2021 – e outros 2.285 em 2020 – segundo uma base de dados de comércio global mantida pela Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies de Fauna e Flora Selvagens Ameaçadas de Extinção (CITES), que regula este comércio transfronteiriço.

A indústria dos macacos encontra-se agora num ponto de inflexão devido ao aumento do escrutínio gerado pela decisão da UICN de considerar o macaco em vias de extinção e a nova legislação dos EUA, promulgada no ano passado, que pôs fim à obrigatoriedade de os novos medicamentos serem testados em animais.

Além disso, um  novo esforço de um conjunto de grupos de bem-estar animal, liderado pelo People for the Ethical Treatment of Animals (PETA), visa incluir a espécie na lei das Espécies em Vias de Extinção (Endangered Species Act) dos EUA. Caso este pedido seja atendido, a designação de espécie protegida pode complicar as tentativas de continuar a usar a espécie em testes – tal como aconteceu, em tempos, com os chimpanzés.

Em Abril, este consórcio de organizações pró-animais apresentou uma petição ao Serviço de Pescas e Vida Selvagem dos EUA, pedindo que o animal fosse considerado espécie ameaçada ou em vias de extinção, ao abrigo da legislação dos EUA.

Lisa Jones-Engel, antiga cientista especializada em primatas da Universidade de Washington e a actual consultora científica sénior da PETA, diz que o assunto é urgente. “Enquanto cientista de primatas cuja carreira foi inteiramente dedicada ao estudo da transmissão de doenças infecciosas entre seres humanos e primatas não-humanos, sei que a única escolha científica, ética e de saúde pública é acabar imediatamente com a exportação e importação de primatas não-humanos”, afirma.

Angkor Wat
SOE ZEYA TUN, REUTERS/REDUX

Esta espécie em vias de extinção, aqui fotografada a colher flores de lótus num templo junto a Angkor Wat, também é conhecida como macaco-caranguejeiro ou macaco-cinomolgo. O animal vive no Sudeste Asiático.

No entanto, o recente relatório das National Academies concluiu, entre outras coisas, que não existe um substituto viável para os testes com primatas. Declarou que as importações eram insustentáveis, mas que deveria haver um maior investimento numa criação mais doméstica dos animais.

Kenneth Ramos, presidente da comissão das National Academies, diz que a investigação com primatas continua a ser essencial, sobretudo quando é prioritário estabelecer paralelos próximos com os seres humanos. Tal deve-se ao facto de os estudos de biomedicina que exigem interacções com diversos órgãos serem mais eficazes quando realizados com modelos animais, diz.

Nos anos vindouros, acrescenta, “à medida que as metodologias continuarem a avançar, talvez seja possível reduzir e até substituir o uso [de primatas] e outros sistemas com modelos animais.”

Substituto do ser humano

Com uma fisiologia semelhante à nossa, os macacos são frequentementeusados por empresas farmacêuticas como substitutos dos seres humanos para testar efeitos secundários no sistema reprodutivo ou potenciais danos no desenvolvimento fetal, tal como sucedeu com o Ozempic, Wegovy e o Tezsipre, um popular medicamento para a asma. São também a espécie de primata mais utilizada em testes de toxicologia.

Até agora os animais têm estado “prontamente disponíveis”, sendo fácil utilizá-los e sabe-se muito sobre eles devido ao esse uso generalizado, diz John Pippin, responsável pelas áreas de ensino e investigação académica da organização sem fins lucrativos Physicians Committee for Responsible Medicine, que assinou a petição da PETA.

No entanto, esse uso generalizado nos testes de laboratório nos EUA. e noutros locais, juntamente com factores como a perda de habitat e a caça, provocaram um declínio de 40 por cento da população dos macacos no Sudeste Asiático ao longo das últimas quatro décadas, segundo a UICN.

macacos-cinomolgos fotografados em Angkor Wat, no Camboja.
TOBIAS GERBER, LAIF/REDUX

A FDA Modernization Act 2.0, uma lei promulgada nos EUA, no ano passado, pôs fim ao requisito que exigia que os novos medicamentos fossem testados em animais, incluindo macacos-cinomolgos, como estes fotografados em Angkor Wat, no Camboja.

“A indústria da investigação precisa de ser responsabilizada pelos efeitos dos seus actos no que diz respeito às populações selvagens de primatas não-humanos”, escreveu na conclusão do documento que classificou a espécie como estando em vias de extinção. 

Pippin, cujo grupo se opõe à realização de experiências com animais, diz que já chegou a hora de pararmos de fazer estudos com animais. A criação doméstica dos macacos não resolverá os problemas da investigação, pois os resultados obtidos com os animais são frequentemente diferentes dos verificados no ser humano, diz, e as amostras de tecido humano, órgãos-em-chip e células estaminais já são alternativas disponíveis.

Além disso, as conclusões de alguns dos estudos com macacos-cinomolgos realizados no passado podem ser discutíveis, pois é possível que os antecedentes genéticos dos animais sejam muito mais variados do que foi divulgado.

Acusações de alegado global tráfico de macacos

Em Novembro de 2022, o comércio internacional de macacos foi notícia porque os agentes governamentais responsáveis pela vida selvagem de um dos maiores fornecedores do mundo, o Camboja, foram acusados de traficar a espécie. Agentes governamentais norte-americanos detiveram um alto funcionário do departamento de vida selvagem cambojano, Masphal Kry, quando este se dirigia a uma conferência global de vida selvagem e apresentou acusações contra um outro funcionário do país.

O gabinete da Procuradoria Pública dos EUA do Southern District of Florida alegou que ele e o seu chefe faziam parte de um grupo internacional de tráfico de primatas, há muito estabelecido, que apresentava macacos capturados em estado selvagem como macacos criados em cativeiro. Segundo as alegações dos EUA, Kry entregou pessoalmente macacos capturados em estado selvagem em instalações que os transaccionavam como sendo criados em cativeiro e também recebeu pagamentos pela sua participação no esquema de contrabando.

O caso teve repercussões no negócio da investigação com macacos e organizações representativas de pesquisa clínica (CROs) como a Charles River Laboratories e a Inotiv reconheceram publicamente que estão a sentir a pressão exercida por esta e outras investigações relacionadas com macacos, com potenciais implicações no fornecimento de macacos no futuro.

Estas empresas fornecem e, por vezes, realizam testes com uma série de animais. A Charles River, por exemplo, controlava 16.000 primatas no ano passado, segundo a sua declaração anual de 2022 submetida à Animal Welfare Act.

As declarações públicas apresentadas à US Securities and Exchange Commission dão-nos alguns esclarecimentos: em 2022, a Charles River disse que o Camboja era o seu principal fornecedor de macacos e que o Departamento da Justiça (DoJ) e o Serviço de Pescas e Vida Selvagem (FWS) tinham iniciado uma investigação à conduta da empresa, examinando diversos envios de macacos provenientes do Camboja. Em Fevereiro de 2023, a empresa recebeu uma intimação de um grande júri a solicitar documentos relacionados com essa investigação.

Segundo a empresa, esta investigação criminal está a decorrer “em paralelo com uma investigação civil” realizada pelas mesmas agências. A empresa considera as preocupações levantadas acerca da sua conduta “sem valor” e diz que está a colaborar plenamente com as investigações governamentais.

A sua declaração apresentada à SEC diz que interrompeu voluntariamente as importações do Camboja até a empresa e a FWS “chegarem a acordo e implementarem procedimentos adicionais que apresentem garantias razoáveis” de os carregamentos recebidos do Camboja serem mesmo de macacos criados em laboratório.

De momento, ainda estão ocupados com um fornecimento de macacos vindo do Camboja cuja entrada nos EUA foi recusada, declarou um porta-voz da Charles River à National Geographic.

A FWS e o DoJ recusaram-se a comentar a nossa reportagem.

A dependência das organizações representativas de pesquisa clínica

Entretanto, a Inotiv, que afirma ser “a maior e mais confiável” fornecedora de primatas a nível mundial, declarou no ano passado que funcionários do seu “fornecedor principal” no Camboja tinham sido acusados de infringir as leis dos EUA ao conspirarem para importar ilegalmente primatas não-humanos.

Eric Kleiman, investigador do Animal Welfare Institute, sublinha que a Inotiv comprou grandes subsidiárias nos últimos anos, reforçando a sua consolidação da indústria e, na sua opinião, dificultando o rastreio de alegadas questões legais e de bem-estar animal nas organizações representativas de pesquisa clínica.

Por exemplo: a Envigo, adquirida em Novembro de 2021, fora intimada por um grande júri em Junho de 2021, no âmbito de uma investigação em curso relacionada com a “encomenda de primatas não-humanos a fornecedores estrangeiros no período de 1 de Janeiro de 2018 a 1 de Junho de 2021”, segundo as suas declarações ao SEC. A empresa diz que está a colaborar plenamente com a investigação e que continuará a fazê-lo.

Entretanto, Gary Tucker, vice-presidente de longa data da Orient — adquirida em Janeiro de 2022 – foi acusado e declarou-se culpado, em Agosto de 2021, de “apresentar uma declaração e representação materialmente falsa, fictícia e fraudulenta”, de forma consciente e intencionalmente, a agentes da FWS durante uma investigação criminal internacional de tráfico de vida selvagem. Os documentos deste caso apresentados em tribunal sugerem que ele mentiu e disse que não havia registos das inspecções por si realizadas a instalações de criação de macacos em cativeiro no Sudeste Asiático. A Inotiv comprou a empresa cerca de cinco meses mais tarde. 

Uma indústria gigante

O negócio dos macacos-cinomolgos é lucrativo: as exportações de animais vivos superaram os 1000 milhões de dólares entre 2010 e 2019. Em Agosto do ano passado, um funcionário do governo dos EUA declarou numa audiência pública que os seus vendedores diziam que os macacos ainda não nascidos estavam a ser comprados como “futuros”.

A Novo Nordisk, fabricante do Ozempic e do Wegovy, disse numa declaração à National Geographic que a empresa não depende de CROs para o fornecimento de macacos.

No entanto, os seus macacos não vinham do Camboja, dizia essa mesma declaração: “Há anos que a Novo Nordisk se assegura de que todos [os primatas não-humanos] utilizados para fins de investigação são provenientes de locais auditados e aprovados em dois países, o Vietname e as Maurícias”. A empresa recusou-se a dizer quais as CROs que utilizou.

Em resposta às perguntas pormenorizadas da National Geographic sobre os testes e fornecimento de macacos, a AstraZeneca e a Amgen — as duas farmacêuticas responsáveis pelo Tezspire — remeteram-nos para os seus comunicados online sobre as suas políticas de testes em animais. O da AstraZeneca dizia que a empresa usou animais fornecidos por CROs em mais de 55.000 estudos no ano passado.

Segundo o comunicado online da AstraZeneca, os testes em animais são uma “parte pequena, mas essencial do processo de criar novos medicamentos para os pacientes”. Num comunicado online semelhante, a Amgen declarou que pretende reduzir o uso de animais nos seus estudos sempre que possível.

Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.