Para o artista plástico mineiro Jayme Reis, a arte é, indiscutivelmente, o mais belo e enlevante pilar do conhecimento humano. "É o antidoto para a loucura obscurantista que está tentando se instalar em todos os níveis em nosso país", pontua. Não por outro motivo, nesta pandemia, o artista mineiro - que, vale dizer, aniversaria nesta segunda-feira - não parou de produzir, mesmo com os espaços expositivos tendo sido obrigados a fechar suas portas (ano passado, uma mostra sua estava prevista para acontecer em Lisboa, mas, claro, teve que ser adiada) e estando ele abatido com o cenário devastador detectado mundo afora, com milhares de perdas humanas. "A morte se fez presente, sentou-se na cadeira ao lado", diz ele, para, em seguida, observar: "Não sei o que faria sem a arte neste momento específico tão absurdo, tão surreal".
Tendo, pois, a arte como companheira, Jayme Reis arregaçou as mangas e, com muitas ideias na cabeça, deu vida a uma nova e inspiradora série, sugestivamente batizada de "Cordel Atávico". Ao ser procurado pela reportagem do Magazine, ele lembrou que uma vaga lembrança daqueles jogos de tijolinhos de madeira da infância teve papel primordial no start do processo criativo, que, aponta, pode ser visto como "um quebra-cabeças anárquico, mas certeiro, de toda uma cosmogonia pessoal". "Trata-se de cravar essa cosmogonia em forma de carimbos para em seguida obter uma cosmogênese infinita. Uma espécie de moto perpétuo", diz.
Um texto de apresentação dá mais pistas: "Este 'moto perpétuo' nasce como um insight a uma necessidade de render uma homenagem à preciosa escrita automática. Paixão dos surrealistas. Isso reporta também à famosa frase do Conde de Lautréamont: 'O encontro fortuito sobre uma mesa de dissecção de uma máquina de costura e um guarda-chuva', outra referência também muito cara aos surrealistas. Tudo é valido, e tudo faz sentido neste cordel, não importando a ordem ou a sequência dessas carimbadas. É a expressão máxima de um certo 'livre pensar'". Assim, Jayme Reis vai criando uma infindável lista de símbolos/imagens que dialogam independentes de sua vontade. "Os encontros fortuitos fazem sempre sentido nessas cenas".
Mantendo o que salienta ser uma nítida referência à estética das revistas de literatura de cordel do nordeste brasileiro, o artista esculpe o linóleo - "ou rouba de si mesmo" - as imagens de seus desenhos ou de suas xilogravuras antigas para, depois de fotografadas, e com a ajuda do photoshop, voltarem em forma de carimbos de borracha ao mundo físico. 'E assim vai aos poucos formando o mágico caleidoscópio de devaneios. Navegantes portugueses, bruxos, reis destronados, naus antigas, galináceos, abutres, um frango d’agua, freiras libidinosas, mulher que recita poemas, violas, martelos, poemas caros ao artista, citação de Calderón de la Barca, as meninas de Velásquez, partituras musicais, a figura de Beethoveen, coisas manuscritas, carimbos burocráticos, flechas de índios, cabeças de Fênix, os princípios da revolução francesa, igrejas barrocas mineiras, voos de pássaros e etc".
Se a nova série está devidamente apresentada, resta, a Jayme Reis, falar sobre os temas que o atravessam (atravessaram) em tempos que tanto exigem dos que empunham a bandeira da arte no país - e que, claro, também reverberam neste Cordel Atávico. Confira, a seguir, trechos da entrevista.
Os espaços expositivos já estão retomando suas atividades. Pensa em uma mostra presencial?
Estou louco para expor esta série, mas não sei quando poderá ocorrer. No momento, estou em conversação com o meu galerista e curador de Lisboa para uma exposição que deveria ter acontecido em 2020. Muitos trabalhos que que foram produzidos em Portugal entre 2017 e dezembro de 2019 já estão lá, na Galeria Perve,mas aí veio a pandemia, e este pária que vos fala não mais atravessou o Atlântico. Vamos fazer a exposição ainda neste ano, talvez eu não esteja presente fisicamente. Muito provavelmente envie uma coletânea do Cordel Atávico para figurar nela.
A arte tem sido um alento nestes tempos de pandemia? Aliás, como ficou sua vida com o advento da quarentena, galerias fechadas, angústia, desalento com o país, perplexidade diante de tantas mortes etc
A morte se fez presente, sentou-se na cadeira ao lado e o país foi tomado por um bando de loucos terraplanistas, fabricantes de fake news, malfeitores empoderados. Instala-se concomitantemente a isso uma necropolitica. É muita loucura, muito obscurantismo. Não sei o que faria sem a arte neste momento específico tão absurdo, tão surreal. Essa série é fruto dessa panela de pressão, pois anteriormente eu estava envolvido com uma série de linoleogravuras (uma variante da xilogravura) em um ateliê em São João del-Rei, mas, com a necessidade da quarentena, o que fiz foi transformar este ateliê de gravuras em algo portátil, e aqui, na mesa de jantar do apartamento em Belo Horizonte, onde moro. São carimbos, e a xilogravura/linoleogravura nada mais é que um processo de reprografia a partir do imagens cravadas. Carimbos. Sou multimídia e multidisciplinar, e nunca deixei de trabalhar com arte desde os 18 anos de idade. Arte é o meu farol.
Que lições espera levar desta experiência que gostaríamos de não ter vivido?
Fica até difícil responder essa pergunta, pois acho que nunca mais serei o mesmo. O mais terrível foi enxergar a miséria humana, a baixeza de caráter e a falta de humanidade de pessoas próximas. Mas ainda bem que enxerguei isso agora. Antes tarde que nunca. Sonho com uma espécie de renascimento artístico, cultural e de humanidades. Sonho muito com isso.
Qual o papel da arte em tempos tão áridos (e não só em função da pandemia)?
Neste momento a arte serve também para nos colocar dentro da realidade mas, digamos, de uma maneira mais carinhosa e acalentosa. A arte é o antidoto para a loucura obscurantista que está tentando se instalar em todos os níveis em nosso país. Arte é conhecimento puro, é ciência pura. Terraplanistas e negacionistas jamais conseguirão produzir arte boa ou relevante. A arte acalenta neste sentido pois é beleza informada. Arte é, em minha opinião, o mais lindo e enlevante pilar do conhecimento humano.