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2019_-_Historia em Quadrinhos e Historia da Arte

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Arthur Valle
Doutor em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio 
de Janeiro (UFRJ). Professor do Departamento de Artes da Universidade Federal Rural 
do Rio de Janeiro (UFRRJ), do Programa de Pós-graduação em Patrimônio, Cultura e 
Sociedade e do Mestrado Profissional em História da UFRRJ. artus.agv.av@gmail.com
História 
em quadri-
nhos e 
História 
da Arte:
diálogos 
temá-
ticos e 
metodo-
lógicos
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Desde meados do século XX, a arte das Histórias em quadrinhos 
(HQs) e a disciplina acadêmica da História da Arte vêm estabelecendo en-
tre si fecundos intercâmbios. Embora as HQs consideradas como arte em 
sentido pleno ainda sejam um tema de investigação pouco comum entre 
os historiadores1, é notório, por exemplo, o interesse desses últimos pelas 
apropriações da iconografia dos quadrinhos feitas por artistas da chamada 
pop art, como Richard Hamilton, Roy Lichtenstein e Andy Warhol. Tal inte-
resse se estende a artistas contemporâneos como Rivane Neuenschwander, 
Sue Williams ou Takashi Murakami que “de algum modo se apropriam 
da linguagem das Histórias em quadrinhos como um meio para comentar 
sobre a cultura de massa”.2 Essa produção contemporânea ganhou visibi-
lidade em exposições como Comic abstraction: image-breaking, image-making, 
montada no Museum of Modern Art de New York em 2007.3
Bem menos discutida em contextos acadêmicos é, porém, uma ten-
dência inversa, i. e., a das apropriações feitas por quadrinistas de temas 
História em quadrinhos e História da Arte: diálogos temáticos e 
metodológicos
Comics and Art History: thematic and methodological dialogues
Arthur Valle
1 Ver ROEDER, Katherine. 
Looking high and low at Com-
ic Art. American Art, v. 22, n. 1, 
Spring 2008, p. 2.
2 Idem, ibidem, p. 4 (tradução 
livre).
3 O website dessa exposição 
se encontra disponível em 
<https://www.moma.org/in-
teractives/exhibitions/2007/
comic_abstraction/>. Acesso 
em 1 set 2018.
resumo
O artigo discute as relações entre a arte 
das Histórias em quadrinhos (HQs) 
e a disciplina acadêmica História da 
Arte, destacando os modos através dos 
quais os quadrinistas se apropriam de 
tópicos usuais na escrita da História 
da Arte, como a biografia dos artistas, 
a reconstituição de obras perdidas, 
as técnicas de produção artística etc. 
Para tanto, apresenta um panorama 
da produção contemporânea de HQs 
que dialoga com a História da Arte 
e se detém em um estudo de caso es-
pecífico: o álbum La vision de Bacchus 
(2014), do quadrinista francês Jean 
Dytar, que narra a passagem do pintor 
Antonello da Messina por Veneza entre 
1475 e 1476.
palavras-chave: História em qua-
drinhos; História da Arte; diálogos 
disciplinares.
abstract
The paper discusses the relationships 
between comics and Art History, highli-
ghting how Comics creators appropriate 
usual themes in Art History writing, 
such as the biography of artists, the re-
constitution of lost works, the techniques 
of artistic production, etc. To do so, the 
paper presents a survey of the contem-
porary Comics production that dialogues 
with Art History, focusing on a specific 
case study: the book La vision de Bacchus 
(2014), by the French author Jean Dytar, 
which narrates the passage of the painter 
Antonello da Messina by the city of Venice 
between 1475 and 1476.
keywords: Comics; Art History; discipli-
nary dialogues.
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asusuais na História da Arte. No meu entender, essa inversão do olhar por 
si só suscita questões dignas de debate, como por exemplo: o que existe 
em comum entre a linguagem das HQs e aquela usada pelos historiadores 
da arte? Como autores de HQs incorporaram em seu processo criativo os 
métodos usados na escrita da História da Arte? Que potenciais vantagens 
a linguagem das HQs teria diante da tarefa de narrar a História da Arte? 
Nas páginas que se seguem, procurarei apresentar reflexões que ofereçam 
respostas – ainda que parciais – a tais perguntas.
No Brasil, não é propriamente uma novidade o interesse dos inves-
tigadores pelos diálogos entre HQs e a disciplina da História, em sentido 
lato, e pela História da Arte, em sentido mais restrito. Especialmente desde 
a instituição dos chamados Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), em 
finais da década de 1990, vem se afirmando, por exemplo, o consenso de 
que as HQs podem funcionar eficientemente como mediadoras de conteú-
dos formulados em outras áreas de conhecimento; isso levou, inclusive, à 
elaboração de políticas públicas que incentivam tais mediações.4 Seguindo 
essa tradição, diversos capítulos de livros ou artigos em anais de eventos 
acadêmicos exploram a relação entre HQs e a disciplina da História, espe-
cialmente dentro de contextos educativos.5
Aqui, todavia, eu gostaria de ampliar a noção usual das HQs como 
mediadoras de conteúdos históricos para me centrar sobre a possibilida-
de de as HQs funcionarem como discursos historiográficos em sentido 
pleno. Historiadores como o inglês Peter Burke se já dedicaram a uma 
empreitada semelhante. Em capítulo de seu livro Testemunha ocular, Burke 
defende que “certas narrativas visuais podem também ser consideradas 
como a própria história [...], recriando o passado por meio de imagens e 
interpretando-o de diferentes maneiras”.6 Embora Burke discuta exclu-
sivamente a pintura de história e o filme histórico como modalidades de 
“narrativa visual”, acredito que as HQs poderiam – e mesmo deveriam 
– ser incluídas em tal reflexão. 
Burke afirma que certos artistas podem ser considerados como 
“historiadores de pleno direito”, lembrando como, por exemplo, “o 
interesse dos pintores na reconstrução precisa das cenas do passado foi 
especificamente acentuado, no Ocidente, no período compreendido en-
tre a Revolução Francesa e a Primeira Guerra Mundial”.7 Artistas como 
o francês Jean-Louis Ernest Meissonier ou o alemão Adolph Menzel 
“aprenderam a partir do trabalho dos historiadores profissionais que 
eram encontrados em número cada vez maior nas universidades do 
século 19, mas fizeram também suas contribuições para a interpretação 
do passado”.8 Grosso modo, esse desenvolvimento da pintura histórica 
coincidiu com a afirmação do gênero do romance histórico tal como 
preconizado por escritores como o escocês Walter Scott. Cumpre notar 
que algumas das HQs que aqui referirei podem ser consideradas como 
autênticas herdeiras do romance histórico.
Nas últimas décadas, os quadrinistas não se voltaram para a discipli-
na da História em busca de inspiração para seus temas, como também – e 
com frequência – se valeram da História da Arte para os mesmos fins. O 
interesse dos autores de HQs pode, porém, se centrarem aspectos bastante 
diversos da disciplina. Nas partes que se seguem, eu gostaria de destacar 
alguns dos principais modos através dos quais quadrinistas se apropriaram 
da História da Arte.
4 Ver VERGUEIRO, Waldo-
miro e RAMOS, Paulo. Os 
quadrinhos (oficialmente) na 
escola: dos PCN ao PNBE. In: 
VERGUEIRO, Waldomiro e 
RAMOS, Paulo (orgs.). Qua-
drinhos na educação: da rejeição 
à prática. São Paulo: Contexto, 
2009.
5 Ver, por exemplo, VILELA, 
Túlio. Os quadrinhos na aula 
de História. RAMA, Angela 
e VERGUEIRO, Waldomiro 
(orgs.). Como usar as histórias em 
quadrinhos na sala de aula. São 
Paulo: Contexto, 2014.
6 BURKE, Peter. Testemunha ocu-
lar: história e imagem. Bauru: 
Edusc, 2004, p. 197. 
7 Idem, ibidem, p. 197 e 198.
8 Idem, ibidem, p. 198.
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Citações de obras de arte e biografias de artistas
Provavelmente a forma mais comum através da qual a História da 
Arte é apropriada nas HQs diz respeito à maneira como os quadrinistasfazem citações visuais de obras de arte canônicas em suas próprias HQs. 
Luis Gasca e Acier Mensuro dedicaram um livro inteiro à discussão dessas 
citações – que podem ser mais ou menos literais –, enumerando as suas 
principais motivações. Uma destas merece ser aqui retomada, pois explicita 
a relação entre quadrinista e historiador que é central neste artigo:
Tradicionalmente, o uso de referências do mundo da pintura [e de outras artes] 
se vincula ao processo de documentação do quadrinista, que a elas recorre para 
ambientar certas histórias, seja porque a narração transcorre em lugares e épocas 
do passado para os quais a única fonte gráfica referencial possível é a pintura, ou 
porque essas referências alcançaram a posição de imagens emblemáticas, facilmente 
reconhecíveis, que permitem que o leitor identifique facilmente um evento, período 
ou lugar específico recriado na história em quadrinhos.9
O livro de Gasca e Mensuro apresenta literalmente centenas de 
exemplos de citações do gênero, em uma série de capítulos que discutem os 
grandes períodos ou estilos em que a História da Arte é convencionalmente 
dividida em manuais como os de H. W. Janson ou E. H. Gombrich10: “A 
pré-história”, “O mundo antigo: Egito e Mesopotâmia”, “O Renascimen-
to,” “O Impressionismo” etc. Vale notar que se trata da reafirmação de um 
cânone etnocêntrico, formado quase exclusivamente por obras de artistas 
europeus e estadunidenses e muito questionado hoje em dia. Como seria 
impossível retomar todas as citações lembradas por Gasca e Mensuro, eu 
prefiro lembrar das citações visuais feitas pelo brasileiro André Toral em 
seu álbum Holandeses, que narra a história de dois judeus-portugueses 
oriundos de Amsterdã, que se estabelecem em Recife na época em que boa 
parte do Nordeste estava sob dominação holandesa.11 Na terceira parte de 
Holandeses, intitulada “Recife. Entre o Gentio”, Toral insere, de maneira 
sutil, diversas citações de imagens seiscentistas como pinturas e gravuras 
de Frans Post, o quadro Os síndicos da guilda dos alfaiates (1662), de Rem-
brandt van Rijn [Figura 1a], ou um dos retratos de indígenas brasileiros 
executados por Albert Eckhout [Figura 1b].
Toral não se limita, porém, a essas citações. Na primeira parte de 
seu álbum, grande destaque é dado às práticas artísticas e pedagógicas 
no ateliê de Rembrandt em Amsterdã, por meio de uma reconstituição de 
época aparentemente baseada na leitura da obra de historiadores como 
Svetlana Alpers.12 Desse modo, Holandeses apontam para um tópico fun-
damental na disciplina da História da Arte que é muito frequentemente 
apropriado pelos quadrinistas: os relatos biográficos sobre artistas visuais, 
em especial sobre pintores. 
Desde os anos 1950, por exemplo, a editora mexicana Novaro incluiu 
biografias de artistas em sua extensa série Vidas ilustres, “uma das mais bem 
sucedidas e emblemáticas do projeto cultural da Editorial Novaro”.13 Dos 
mais de 400 números de Vidas ilustres, não poucos foram dedicados a artis-
tas célebres como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Rembrandt, Francisco 
de Goya, Henri de Toulouse-Lautrec, Gustave Eiffel, Auguste Rodin, entre 
outros. Embora ponderem que os autores de Vidas ilustres “pareçam mais 
preocupados em incluir dados relevantes da vida do artista do que cons-
9 GASCA, Luis e MENSURO, 
Acier. La pintura en el cómic. 
Madrid: Ediciones Cátedra, 
2014, p. 8 e 9 (tradução livre).
10 Gasca e Mensuro citam uma 
edição da conhecidíssima His-
tória da arte de Gombrich publi-
cada no México pela Editorial 
Diana em 1995.
11 Ver TORAL, André. Holan-
deses. São Paulo: Veneta, 2017.
12 Na bibliografia de Holande-
ses, Toral cita especificamente 
ALPERS, Svetlana. O projeto de 
Rembrandt: o ateliê e o mercado. 
São Paulo: Companhia das 
Letras, 2010.
13 Texto Disponível em <http://
www.kingdomcomics.org/
comics_culturales_novaro.
html>. Acesso em 1 set 2018 
(tradução livre).
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astruir uma história sólida e atraente ou explorar as possibilidades visuais do 
grafismo próprio de cada um dos artistas que se evoca”14, Gasca e Mensuro 
não deixam de dedicar atenção aos fascículos da série sobre El Greco15 e 
Diego Velázquez16, inclusive reproduzindo alguns de seus quadros.
Nas décadas que se seguiram à iniciativa da Editorial Novaro, surgi-
ram muitas HQs tematizando a biografia de artistas [Figura 2]. Um exem-
plo precoce é a biografia do pintor brasileiro Pedro Américo, de autoria 
de Nair da Rocha Miranda e Nico Rosso, publicada pela editora Ebal em 
1960 como o fascículo 18 da série Grandes figuras em quadrinhos.17 Todavia, 
a quantidade e a diversidade dos títulos publicados a partir dos anos 2000 
são particularmente dignas de nota. Quadrinistas consagrados tem sus-
14 GASCA, Luis e MENSURO, 
Acier, op. cit., p. 16 (tradução 
livre).
15 Idem, ibidem, p. 148 e 149.
16 Idem, ibidem, p. 170 e 171.
17 MIRANDA, Nair da Rocha e 
ROSSO, Nico. Grandes figuras 
em quadrinhos: Pedro Américo. 
O mago da pintura. Rio de Ja-
neiro: EBAL, S/d, [1960].
Figuras 1a e 1b. Citações de pinturas de Rembrandt van Rijn e Albert Eckhout. 
Figura 2. Capas de biografias de artistas em HQs.
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tentado um forte interesse nesse sentido e uma lista de obras de destaque 
incluiria, e. g., os trabalhos de Gradimir Smudja sobre Toulouse-Lautrec18 
ou Vincent Van Gogh19; de Spacca sobre Jean-Baptiste Debret20;de Clément 
Oubrerie e Julie Birmant sobre Pablo Picasso21; de Laurent Seksik e Fabrice 
Lee Hénaff sobre Modigliani22; de Milo Manara sobre Caravaggio23; de Ste-
ffen Kverneland sobre Munch24, entre muitos outros. Estamos diante, mais 
uma vez, da reafirmação de um cânone bastante tradicional, centrado em 
artistas homens e europeus, como era também o da Editorial Novaro. Vale 
notar, porém, que vem crescendo o número de biografias quadrinizadas 
tematizando artistas mulheres, como demonstram o álbum da quadrinista 
Nathalie Ferlut sobre a pintora seiscentista Artemisia Gentilheschi25 ou o 
de Jean-Luc Cornette e Flore Balthazar sobre Frida Kahlo.26
Novas séries de biografias de artistas em quadrinhos também têm 
sido publicadas. É o caso, por exemplo, das HQs realizadas pelo alemão 
Willi Blöß retratando a vida de diversos artistas, como Salvador Dali, Andy 
Warhol ou Keith Haring.27 É também o caso de coleção “Mestres da arte 
em quadrinhos,” cuja publicação foi iniciada há alguns anos pela editora 
brasileira Nemo. Dois volumes vieram a lume até hoje, o primeiro sobre 
Leonardo da Vinci28 e o segundo sobre Van Gogh.29 O texto de apresenta-
ção dessa coleção define a sua missão como “apresentar a obra e a vida de 
artistas considerados de destaque no universo da história da arte. Por meio 
dos quadrinhos, o público entrará em contato com os aspectos da vida e 
da obra determinantes para as criações de cada artista”.30
Uma iniciativa mais ambiciosa é da editora francesa Glénat que, 
em 2015, iniciou a publicação de Les grands peintres (Os grandes pintores), 
uma coleção com 30 álbuns previstos, reunindo trabalhos de quadrinistas 
diversos. O foco biográfico de cada álbum de Les grands peintres é rela-
tivamente circunscrito, se centrando no contexto em que determinado 
artista realizou uma de suas obras mais emblemáticas.31 Um exemplo é 
o álbum de Olivier Bleys e Benjamin Bozonnet sobre Goya32, que foca o 
dramático final da vida do artista, quando ele realizou a sua conhecida 
série de Pinturas negras [Figura 3a]. Como acontece em outras biografias 
quadrinizadas de artistas, Bleys e Bozonnet não se limitam a (re)contar 
os supostos incidentes da vida de Goya, mas também citam visualmen-
te diversas obras desse último [Figura 3b] e parecem se esforçar para 
incorporar algo do próprio estilo do pintor espanhol no grafismo e na 
dinâmica narrativa de seu álbum. 
A enumeração não exaustivafeita nos parágrafos acima leva à 
constatação de que as biografias quadrinizadas de artistas constituem um 
subgênero em expansão, que demanda estudos específicos. Cumpre notar, 
porém, que o diálogo entre HQs e História da Arte não se limita à citação 
de obras famosas e/ou ao tema da biografia dos artistas. Talvez seja precoce 
afirmar que atualmente existem quadrinistas atuando como historiadores 
de “pleno direito”, para usar a expressão de Burke; não obstante, me parece 
que ao menos em passagens de certos álbuns autênticas apropriações de 
métodos historiográficos se efetivam. Para exemplificar essa minha opinião, 
gostaria de deixar de lado as apreciações panorâmicas que até agora fiz 
para me deter sobre um estudo de caso específico.
Para tanto, me centrarei sobre um álbum chamado La vision de Bacchus 
(A visão de Baco) do quadrinista francês Jean Dytar, que foi lançado pela 
editora Delcourt em 2014. A trama se centra na estadia do pintor siciliano 
Antonello da Messina na cidade de Veneza, entre os anos de 1475 e 1476.33 
18 Ver SMUDJA, Gradimir. Le 
cabaret des muses.Paris: Del-
court, 4 vs., 2004-2008.
19 Ver SMUDJA, Gradimir. Vin-
cent et Van Gogh. Paris: Delcourt, 
2 vs., 2003 e 2011.
20 Ver SPACCA. Debret em via-
gem histórica e quadrinhesca ao 
Brasil. São Paulo: Companhia 
das Letras, 2006.
21 Ver OUBRERIE, Clément e 
BIRMANT, Julie. Pablo. Paris: 
Dargaud, 4 vs., 2012-2014.
22 Ver SEKSIK, Laurent e LE 
HÉNAFF, Fabrice. Modigliani: 
Prince de la bohème. Paris: 
Casterman, 2014.
23 Ver MANARA, Milo. Cara-
vaggio: a morte da virgem. São 
Paulo: Veneta, 2015.
24 Ver KVERNELAND, Steffen. 
Munch. Zagreb: VBZ, 2016.
25 Ver FERLUT, Nathalie. Arte-
misia. Paris: Delcourt/Mirages, 
2017.
26 Ver CORNETTE, Jean-Luc; 
BALTHAZAR, Flore. Frida 
Kahlo: para que preciso de pés 
quando tenho asas para voar? 
São Paulo: Editora Nemo, 2016.
27 Ver BLÖß, Willi. Milestones of 
art: the collection. Vancouver/
Washington: Bluewater Pro-
ductions INC, 2014.
28 Ver SPINELLI, Mirella e 
VILELA, Andrea. Leonardo da 
Vinci. São Paulo: Nemo, 2014.
29 Ver SPINELLI, Mirella. 
Vincent Van Gogh. São Paulo: 
Nemo, 2017.
30 Texto disponível em <http://
grupoautentica.com.br/nemo/
quadrinhos/vincent-van-go-
gh/1469>. Acesso em 1 ago. 
2017.
31 Como resume o texto de 
apresentação da coleção: “Les 
grands peintres propose de 
dresser en bande dessinée un 
portrait de ces hommes hors du 
commun. Ens’attardant sur um 
moment précis de la vie d’um 
peintre, elle vise à resituer avec 
précision le contexte historique, 
artistique, politique ou person-
nel dans lequel il en est arrivé à 
peindre l’un de ses tableaux les 
plus emblématiques. L’objectif 
n’est pas de retracer une vie 
entière, mais bien de raconter 
à chaque fois une histoire per-
mettant de capter au mieux la 
personnalité de l’artiste et de 
son oeuvre”. Texto disponível 
em <http://www.glenatbd.com/
actu/collection-grands-pein-
tres-bd-glenat.htm>. Acesso em 
1 set. 2018.
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Dytar procura traçar um panorama verossímil da passagem de Antonello 
por Veneza, descrevendo as pinturas que ele então realizou; suas negocia-
ções com encomendantes; sua relação de emulação com Giovanni Bellini, 
outro célebre pintor da época; seus envolvimentos amorosos; etc. Todavia, 
para além das questões biográficas, os interesses de Dytar convergem com 
os de historiadores de arte em outros temas que pontuam o álbum. Aqui 
eu vou me centrar em dois deles: (1) a reconstituição de obras pintadas por 
Antonello e Bellini, bem com as suas condições de instalação originais em 
igrejas venezianas; (2) a descrição dos processos de pintura desses artistas.
Reconstituições de obras de mestres
Em La vision de Bacchus, três retábulos têm importância central na 
narrativa, pois é em torno da realização deles que boa parte da trama se 
desenrola. Um retábulo ou peça-de-altar (pala d’altare, em italiano) é uma 
obra de arte que representa um tema religioso e que fica suspenso em 
uma moldura, atrás do altar de uma igreja cristã. Os retábulos evocados 
por Dytar possuem grosso modo o mesmo tema iconográfico: a Virgem e 
o Menino Jesus, cercados por santos e santas. Pela ordem cronológica de 
realização – que é também a ordem em que são apresentados no álbum 
–, são eles: o retábulo pintado por Bellini para a Igreja de Santi Giovanni e 
32 Ver BLEYS, Olivier; BOZON-
NET, Benjamin. Les grands 
peintres: Goya. Grenoble: Glé-
nat, 2015.
33 A esse respeito ver, por exem-
plo, BARBERA, Gioacchino, 
Antonello da Messina: Sicily’s 
Renaissance Master. New York: 
The Metropolitan Mueum of 
Art, 2006, p. 27-29.
Figura 3a. Pinturas negras. Francisco de Goya. Figura 3b. Sem título (Saturno devorando um de seus filhos), c. 1819-
1823. Francisco de Goya. Afresco montado em tela, 145 x 82.9 cm.
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Paolo, entre 1474e 1475 [Figura 4a]; a chamada Pala di San Cassiano, pintada 
por Antonello para a Igreja de San Cassiano, entre 1475 e 1476 [Figura 4b]; 
e, por fim, o retábulo pintado por Bellini para a Igreja de San Giobbe, entre 
1478 e 1480 [Figura 4c].
Como acontece com todas as pinturas quatrocentistas mostradas 
em La vision de Bacchus, Dytar não usa reproduções fotográficas para 
representar esses retábulos. Antes, ele apresenta “cópias, mais ou menos 
detalhadas, com suas cores mais ou menos modificadas para se integrar 
melhor no grafismo e no tom das páginas [da HQs]”.34 No caso dos re-
tábulos aqui em questão, tal processo de citação foi dificultado pelo fato 
de que apenas a Pala di San Giobbe, de Bellini ainda existe integralmente. 
Cumpre lembrar, porém, que essa obra não mais se encontra em seu local 
de instalação original, mas sim em exibição nas Gallerie dell’Accademia, 
em Veneza. Por essa razão, a proposta de reconstituição da Pala di San 
Giobbe feita por Dytar se esforçou, como ele mesmo afirma, por “colocá-
-la de volta em seu local original, o que permite que nos demos conta do 
efeito ilusionista de profundidade buscado pelo pintor. De fato, a moldura 
em pedra – concebida pelo próprio Bellini – se prolonga naturalmente na 
abóbada de berço pintada”.35
Ao tratar dos outros dois retábulos, Dytar se deparou com dificulda-
des ainda maiores porque eles foram em parte ou integralmente destruídos. 
O retábulo de Bellini para a Igreja de Santi Giovanni e Paolo desapareceu 
em um incêndio ocorrido em 1867; e a Pala di San Cassiano de Antonello 
foi dividida em várias partes no século XVII, dela restando hoje apenas os 
fragmentos centrais, conservados no Kunsthistorisches Museum de Viena.
Para reconstituir o retábulo de Santi Giovanni e Paolo, Dytar se va-
leu de uma gravura realizada a partir da obra antes de sua destruição e 
publicada pelo historiador da arte italiano Francesco Zanotto no primeiro 
volume de sua Pinacoteca veneta, datado de 1858 [Figura 5a]. Essa gravura 
é basicamente um esquema linear do retábulo perdido, que não obstante, 
segundo o historiador Augusto Gentilli “testemunha suficientemente uma 
composição/imaginação muito mais moderna e complexa [do que a dos 
Figura 4. Propostas de reconstituição dos retábulos de (a) Giovanni Bellini para a Igreja de Santi Giovanni e Paolo; (b) Antonello da Messina para a Igreja de 
San Cassiano; (c) Giovanni Bellini para a Igreja de San Giobbe. 
34 DYTAR, Jean. La vision de 
Bacchus. Paris: Delcourt, 2013, 
p. 217 (tradução livre).
35 DYTAR, Jean. Tableaux re-
constitués. Jean Dytar, 2016. 
Disponível em <http://www.je-
andytar.com/notes-vision-bac-
chus/tableaux-reconstitues/> 
Acesso 1 set. 2018 (tradução 
livre).
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contemporâneos de Bellini], com dez santos e três meninos anjos cantantes,em torno do elevado trono da Virgem com o Menino em um amplo espaço 
unificado”.36 Partindo da gravura de Zanotto, Dytar elaborou a sua proposta 
de reconstituição do retábulo. Ele relata que seu trabalho 
consistiu sobretudo em reconstituir as cores e em imaginar os efeitos de luz.
Eu escolhi então as cores das roupas a partir das convenções em uso na pintura 
religiosa da época para representar tal ou qual santo. Aqui são visíveis, em torno 
da Virgem com o Menino, São Jerônimo, São Domingos, Santa Catarina e Santa 
Úrsula...
Eu igualmente reintegrei o quadro na sua moldura original ainda hoje visível na 
Igreja de Santi Giovanni e Paolo.37
Em sua essência, a reconstituição dos dois retábulos de Bellini feita 
por Dytar é muita afinada com, por exemplo, as preocupações de uma his-
toriadora da arte como Catarina Schmidt Arcangeli. Em um artigo dedicado 
à Pala di San Giobbe, Arcangeli reproduz, propostas de reintegração dos 
retábulos em seus contextos arquitetônicos originais bastante semelhantes 
às propostas de Dytar.38 As diferenças dizem respeito sobretudo a ques-
tões estéticas: enquanto Arcangeli se vale exclusivamente de reproduções 
fotográficas, o quadrinista usa, como vimos, suas próprias interpretações 
gráficas dos retábulos, visando melhor integrar suas reconstituições no 
restante nas páginas do álbum. 
Na reconstituição da chamada Pala di San Cassiano, Dytar se envolveu 
ainda mais profundamente com uma tarefa que é usual no trabalho dos 
historiadores da arte “de pleno direito.” Isso porque, diferentemente do 
36 GENTILI, Augusto. Giovanni 
Bellini. Firenze: Giunti, 1998, p. 
16 (tradução livre).
37 DYTAR, Jean. Tableaux re-
constitués, op. cit.
38 Ver ARCANGELI, Catarina 
Schmidt. La sapienza nel si-
lenzio: riconsiderando la Pala 
di San Giobbe. Saggi e Memorie 
di storia dell’arte, v. 22, 1998, p. 
36 e p. 43.
Figura 5a. Gravura a partir do retábulo de Gio-
vanni Bellini para a Igreja de Santi Giovanni e 
Paolo, Veneza. Obra pintada por volta de 1474-75 
e destruída por um incêndio em 1867.
Figura 5b. Proposta de reconstituição do retábulo de Giovanni 
Bellini para a Igreja de Santi Giovanni e Paolo. Veneza. 
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retábulo de Bellini documentado por Zanotto, não existe nenhum testemu-
nho imagético da composição completa do retábulo de Antonello. Restam 
apenas alguns fragmentos centrais, preservados em Viena [Figura 6], e 
cópias fragmentárias que permitem conhecer com certa precisão a dispo-
sição das figuras em torno do grupo principal. Mas sempre houve dúvida 
com relação à moldura arquitetônica pintada que abrigaria os personagens, 
elemento da composição a respeito do qual não existe documentação visual 
ou escrita.
Figura 6. Virgem com o menino, cercados por Santos também conhecido como a Pala di San Cassiano, 
1475-76. Antonello da Messina.
Figura 7a. Proposta de reconstituição do 
retábulo de Antonello da Messina para a 
Igreja de San Cassiano, Veneza.
Figura 7b. Proposta de reconstituição do retábulo de An-
tonello da Messina para a Igreja de San Cassiano, Veneza.
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asCom base nos detalhes remanescentes, o historiador húngaro Johan-
nes Wilde apresentou, em 1929,uma reconstituição gráfica da Pala di San 
Cassiano [Figura 7a].39 Tentando preencher as lacunas na metade superior 
da composição, Wilde propôs as formas da abóboda e do domo de sua 
reconstituição com base em um retábulo que um pintor muito inspirado 
por Antonello conhecido como Cima da Conegliano realizou entre 1492 e 
1493 para o Duomo de sua cidade natal, localizada na região do Vêneto.
A reconstituição da Pala di San Cassiano proposta por Wilde levan-
tou polêmicas, especialmente no que diz respeito ao seu enquadramento 
arquitetônico. Um dos historiadores de arte que questionou a proposta de 
Wilde foi o italiano Mauro Lucco, em uma monografia recente dedicada 
a Antonello.40 Como resume Dytar, “se [Lucco] dava crédito à disposição 
das figuras [na reconstituição de Wilde], ele estimava que a decoração era 
muito ousada para Antonello no momento em que ele a pintou, ou seja, 
vinte anos antes de Cima da Conegliano, e supunha um espaço mais pró-
ximo do quadro desaparecido de Bellini, ainda que mais amplo”.41
Assessorado por Lucco, Dytar se pôs então a elaborar uma nova 
proposta de reconstituição da Pala di San Cassiano. Como ele mesmo afir-
ma: “Eu nunca imaginei que esse trabalho a partir de pinturas antigas me 
levaria tão longe! E foi assim que nós colaboramos para chegar a um novo 
resultado”.42 Dytar realizou diversos esboços a fim de estudar as supostas 
linhas compositivas do retábulo. Finalmente, como já dito, Dytar apresen-
tou nas páginas de sua HQs uma proposta de reintegração do retábulo 
em sua moldura arquitetônica original [Figura 7b]. No entender do qua-
drinista, apoiado por um historiador da arte, “o resultado seria, portanto, 
nos dias atuais, a reconstituição mais plausível desta importante pintura 
de Antonello. Importante na breve carreira do pintor, pois se trata de sua 
encomenda mais prestigiosa, mas também importante por sua influência”.43
Figurando o ato de pintar
Um segundo tema que atravessa La vision de Bacchus e que tem es-
treita relação com as preocupações dos historiadores da arte diz respeito 
à representação dos processos de pintura de Antonello e de Bellini. Vale 
aqui lembrar que, ao menos desde Giorgio Vasari44, as técnicas de produção 
e a própria materialidade das obras de arte constituem tópicos de grande 
interesse para aqueles que se dedicam a narrar a História da Arte. Mais 
recentemente, a relevância do entendimento sobre técnicas artísticas foi des-
tacada nos seguintes termos pela historiadora da arquitetura Dana Arnold:
As propriedades físicas das obras de arte têm uma influência importante sobre como 
as entendemos como objetos. Quero destacar alguns exemplos dos diferentes meios 
e técnicas de produção de arte para mostrar como a consciência desses fatores pode 
ajudar nossa compreensão da história da arte. Cada exemplo funciona como uma 
espécie de vinheta para mostrar como as propriedades físicas de uma obra de arte 
podem adicionar outra camada de significado à sua história.45
O crítico de arte Waldemar Januszczak reitera essa ideia ao afirmar 
que “como indicativo do desenvolvimento da arte no Ocidente, a história 
das técnicas pictóricas é um guia tão realista e exato como qualquer mani-
festo estético ou ensaio biográfico”.46 Afinado com tais posições, Dytar se 
detém diversas vezes no processo de pintura dos artistas que protagonizam 
39 Ver WILDE, Johannes. Die 
“Pala di San Cassiano” von 
Antonello da Messina: ein Re-
konstruktionsversuch. Jahrbuch 
der Kunsthistorischen Sammlun-
gen in Wien. Neue Folge, Son-
derheft 27. Wien: A. Schroll, 
1929.
40 Ver LUCCO, Mauro. Anto-
nello de Messine. Paris: Hazan, 
2011.
41 DYTAR, Jean. Tableaux re-
constitués, op. cit. (tradução 
livre).
42 Idem.
43 Idem.
44 Ver BROWN, Baldwin G. 
(ed.). Vasari on technique; being 
the introduction to the three arts 
of design, architecture, sculpture 
and painting, prefixed to the Lives 
of the most excellent painters, 
sculptors and architects. New 
York-London: E. P. Dutton & 
co., J. M. Dent & co, 1907.
45 ARNOLD, Dana. Art history: 
a very short introduction. Kin-
dle edition: Oxford University 
Press, 2004, loc. 1630-1633 
(tradução livre).
46 JANUSZCZAK, Waldemar 
(dir.). Técnicas de los grandes 
pintores. Madrid: H. Blume 
Ediciones, 1981, p. 7 (tradução 
livre).
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La vision de Bacchus. Nesse aspecto em particular, se revela uma das singu-
laridades da linguagem narrativa das HQs: por suas características, ela se 
apresenta como um meio bastante adequado para a descrição dos processos 
de criação artística, que são sempre caracterizadospela temporalidade.
Dytar exibe para o leitor, por exemplo, a técnica do spolvero, usada 
para traçar, sobre o painel de madeira, a complexa composição do retábulo 
de Bellini para a Igreja de Santi Giovanni e Paolo [Figura 8]. Em uma cena 
do álbum, encontramos Bellini e Antonello no ateliê do primeiro, em frente 
ao retábulo ainda em seu estágio inicial de execução. Como explica Dytar: 
“O desenho da composição aparece aí em pontilhado, porque foi feito 
primeiramente em um cartão preparatório, que em seguida foi perfurado 
com pequenos orifícios. Vemos os alunos de Bellini transferindo o desenho 
para o painel de madeira batendo com um saco cheio de pó preto sobre o 
cartão, o que permite ao pó passar através dos orifícios e se fixar no painel, 
fazendo surgir o desenho”.47
Figura 8. No ateliê de Giovanni Bellini, seus discípulos preparam, com a técnica do spolvero, o suporte do retábulo 
para a Igreja de Santi Giovanni e Paolo.
47 DYTAR, Jean. Extraits com-
mentés. Jean Dytar, 2016. 
Disponível em <http://www.
jeandytar.com/la-vision-de-
-bacchus/extraits-commentes/> 
Acesso 1 set. 2018 (tradução 
livre).
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Em outras passagens de La vision de Bacchus, Dytar apresenta o pro-
cesso de pintura a óleo usado por Antonello. Um dos exemplos se baseia 
em um dos quadros mais famosos do pintor italiano, um retrato de homem 
pertencente hoje ao Musée du Louvre e conhecido como Il Condottiere 
[Figura 9a]. Em uma página dedicada à realização dessa obra [Figura 9b], 
vemos primeiro o exterior do ateliê de Antonello; em seguida, o pintor 
sentado diante do cavalete, tendo o seu filho Jacobello a seu lado, moendo, 
sobre uma mesa, pigmentos para preparar tintas. Segue-se uma sequência 
de seis imagens, cujo sentido é explicitado por Dytar:
Eu utilizei a sequência de imagens para mostrar as várias etapas que levam à ela-
boração de um quadro: o desenho que subjaz à imagem; as áreas de sombra e de luz, 
assim como a cor, gradualmente dispostas; até os acabamentos e este fundo muito 
escuro, que destaca o brilho radiante do rosto por contraste.
A camada de branco inicial permite “clarear” as cores a partir de baixo, através de 
veladuras, que são finas camadas de tinta muito diluída e translúcida e que permitem 
que as camadas inferiores permaneçam discretamente visíveis.48
É interessante notar como a forma de apresentação do processo de 
pintura de Antonello se assemelha àquela usada pelo já referido Januszczak 
em um dos livros em que este discute as técnicas de pintura de diversos 
mestres. Um deles é o pintor flamengo Jan van Eyck, cuja técnica de pin-
tura a óleo sobre madeira tem bastante afinidade com a de Antonello. Ao 
procurar demonstrar o processo de pintura empregado por van Eyck em 
seu famoso retrato do casal Arnolfini [Figura 10], Januszczak se vale de pro-
cedimentos usuais nas HQs, como os recordatórios e uma divisão regular 
Figura 9a. Retrato de homem, dito Il Condottiere. 1475. Antonello da Messina. Óleo sobre 
madeira, 36 x 30 cm.
Figura 9b. Antonello pintando em seu ateliê.
48 Idem. 
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em quadros que parece sugerir, inclusive, as sarjetas quase onipresentes 
na diagramação dos quadrinhos.49
Essa sequência de imagens extraída do livro de Januzczak é igual-
mente interessante porque me leva a pensar a relação entre HQs e História 
da Arte por outra perspectiva. Sendo a História da Arte uma disciplina 
na qual muitas vezes palavras e imagens se combinam de modo íntimo, 
assim como acontece nas HQs, penso que cumpriria verificarem que me-
dida os modos como os historiadores da arte apresentam suas reflexões 
se aproximam da arte dos quadrinistas. Nesse sentido, vale recordar, por 
exemplo, dos ensaios compostos exclusivamente por imagens do livro ba-
seado na série televisiva Ways of seeing de John Berger50 ou das conhecidas 
pranchas do Atlas mnemosyne, o último grande projeto do historiador de 
arte Aby Warburg, desenvolvido entre 1924 e 1929.51 Me parece que tanto 
os ensaios “em imagens” de Berger quanto as pranchas de Warburg se 
adéquam muito bem à definição geral, proposta por Ann Miller, das HQs 
como uma arte que produz “significado a partir de imagens que estão em 
uma relação sequencial e que coexistem umas com as outras espacialmente, 
49 Ver JANUSZCZAK, Walde-
mar, op. cit., p. 18.
50 Ver BERGER, John. Modos de 
ver. Barcelona: Editorial Gusta-
vo Gili, 1974.
51 Ver WARBURG, Aby. Atlas 
mnemosyne. Madrid: Akal, 2010.
Figura 10. Proposta de reconstituição do processo de pintura do retrato do casal Arnolfini, de Jan van Eyck.
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tó
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ascom ou sem texto”.52 Seria possível, portanto, inverter o sentido das refle-
xões até aqui feitas e considerar Berger ou Warburg como quadrinistas 
“de pleno direito”?
Esta é uma das questões que deixo por enquanto em aberto, uma vez 
que sua resposta depende de um ulterior aprofundamento das investiga-
ções. Desde já, todavia, minha convicção é a de que os variados aspectos 
dos diálogos entre História em Quadrinhos e História da Arte podem nos 
ajudar a entender melhor as estratégias de construção de sentido empre-
gadas por essas duas formas de “história.” Em trabalhos futuros, pretendo 
desenvolver reflexões que contribuam para tal entendimento.
Artigo recebido em 3 de maio de 2019. Aprovado em 20 de julho de 2019.
52 MILLER, Ann. Reading Bande 
Dessinée: critical approaches to 
French-language Comic Strip. 
Bristol: Intellect Books, 2007, 
p. 75 (tradução livre).

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