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Arthur Valle Doutor em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor do Departamento de Artes da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), do Programa de Pós-graduação em Patrimônio, Cultura e Sociedade e do Mestrado Profissional em História da UFRRJ. artus.agv.av@gmail.com História em quadri- nhos e História da Arte: diálogos temá- ticos e metodo- lógicos Pi nt ur as n eg ra s. Fr an ci sc o de G oy a. 1 81 9- 18 23 , f ot og ra fia (d et al he ). ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 201910 ℘ Desde meados do século XX, a arte das Histórias em quadrinhos (HQs) e a disciplina acadêmica da História da Arte vêm estabelecendo en- tre si fecundos intercâmbios. Embora as HQs consideradas como arte em sentido pleno ainda sejam um tema de investigação pouco comum entre os historiadores1, é notório, por exemplo, o interesse desses últimos pelas apropriações da iconografia dos quadrinhos feitas por artistas da chamada pop art, como Richard Hamilton, Roy Lichtenstein e Andy Warhol. Tal inte- resse se estende a artistas contemporâneos como Rivane Neuenschwander, Sue Williams ou Takashi Murakami que “de algum modo se apropriam da linguagem das Histórias em quadrinhos como um meio para comentar sobre a cultura de massa”.2 Essa produção contemporânea ganhou visibi- lidade em exposições como Comic abstraction: image-breaking, image-making, montada no Museum of Modern Art de New York em 2007.3 Bem menos discutida em contextos acadêmicos é, porém, uma ten- dência inversa, i. e., a das apropriações feitas por quadrinistas de temas História em quadrinhos e História da Arte: diálogos temáticos e metodológicos Comics and Art History: thematic and methodological dialogues Arthur Valle 1 Ver ROEDER, Katherine. Looking high and low at Com- ic Art. American Art, v. 22, n. 1, Spring 2008, p. 2. 2 Idem, ibidem, p. 4 (tradução livre). 3 O website dessa exposição se encontra disponível em <https://www.moma.org/in- teractives/exhibitions/2007/ comic_abstraction/>. Acesso em 1 set 2018. resumo O artigo discute as relações entre a arte das Histórias em quadrinhos (HQs) e a disciplina acadêmica História da Arte, destacando os modos através dos quais os quadrinistas se apropriam de tópicos usuais na escrita da História da Arte, como a biografia dos artistas, a reconstituição de obras perdidas, as técnicas de produção artística etc. Para tanto, apresenta um panorama da produção contemporânea de HQs que dialoga com a História da Arte e se detém em um estudo de caso es- pecífico: o álbum La vision de Bacchus (2014), do quadrinista francês Jean Dytar, que narra a passagem do pintor Antonello da Messina por Veneza entre 1475 e 1476. palavras-chave: História em qua- drinhos; História da Arte; diálogos disciplinares. abstract The paper discusses the relationships between comics and Art History, highli- ghting how Comics creators appropriate usual themes in Art History writing, such as the biography of artists, the re- constitution of lost works, the techniques of artistic production, etc. To do so, the paper presents a survey of the contem- porary Comics production that dialogues with Art History, focusing on a specific case study: the book La vision de Bacchus (2014), by the French author Jean Dytar, which narrates the passage of the painter Antonello da Messina by the city of Venice between 1475 and 1476. keywords: Comics; Art History; discipli- nary dialogues. ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 2019 11 D os si ê Q u ad ri n h os & c u lt u ra v is u al : m od os d e ve r e le r h is tó ri asusuais na História da Arte. No meu entender, essa inversão do olhar por si só suscita questões dignas de debate, como por exemplo: o que existe em comum entre a linguagem das HQs e aquela usada pelos historiadores da arte? Como autores de HQs incorporaram em seu processo criativo os métodos usados na escrita da História da Arte? Que potenciais vantagens a linguagem das HQs teria diante da tarefa de narrar a História da Arte? Nas páginas que se seguem, procurarei apresentar reflexões que ofereçam respostas – ainda que parciais – a tais perguntas. No Brasil, não é propriamente uma novidade o interesse dos inves- tigadores pelos diálogos entre HQs e a disciplina da História, em sentido lato, e pela História da Arte, em sentido mais restrito. Especialmente desde a instituição dos chamados Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), em finais da década de 1990, vem se afirmando, por exemplo, o consenso de que as HQs podem funcionar eficientemente como mediadoras de conteú- dos formulados em outras áreas de conhecimento; isso levou, inclusive, à elaboração de políticas públicas que incentivam tais mediações.4 Seguindo essa tradição, diversos capítulos de livros ou artigos em anais de eventos acadêmicos exploram a relação entre HQs e a disciplina da História, espe- cialmente dentro de contextos educativos.5 Aqui, todavia, eu gostaria de ampliar a noção usual das HQs como mediadoras de conteúdos históricos para me centrar sobre a possibilida- de de as HQs funcionarem como discursos historiográficos em sentido pleno. Historiadores como o inglês Peter Burke se já dedicaram a uma empreitada semelhante. Em capítulo de seu livro Testemunha ocular, Burke defende que “certas narrativas visuais podem também ser consideradas como a própria história [...], recriando o passado por meio de imagens e interpretando-o de diferentes maneiras”.6 Embora Burke discuta exclu- sivamente a pintura de história e o filme histórico como modalidades de “narrativa visual”, acredito que as HQs poderiam – e mesmo deveriam – ser incluídas em tal reflexão. Burke afirma que certos artistas podem ser considerados como “historiadores de pleno direito”, lembrando como, por exemplo, “o interesse dos pintores na reconstrução precisa das cenas do passado foi especificamente acentuado, no Ocidente, no período compreendido en- tre a Revolução Francesa e a Primeira Guerra Mundial”.7 Artistas como o francês Jean-Louis Ernest Meissonier ou o alemão Adolph Menzel “aprenderam a partir do trabalho dos historiadores profissionais que eram encontrados em número cada vez maior nas universidades do século 19, mas fizeram também suas contribuições para a interpretação do passado”.8 Grosso modo, esse desenvolvimento da pintura histórica coincidiu com a afirmação do gênero do romance histórico tal como preconizado por escritores como o escocês Walter Scott. Cumpre notar que algumas das HQs que aqui referirei podem ser consideradas como autênticas herdeiras do romance histórico. Nas últimas décadas, os quadrinistas não se voltaram para a discipli- na da História em busca de inspiração para seus temas, como também – e com frequência – se valeram da História da Arte para os mesmos fins. O interesse dos autores de HQs pode, porém, se centrarem aspectos bastante diversos da disciplina. Nas partes que se seguem, eu gostaria de destacar alguns dos principais modos através dos quais quadrinistas se apropriaram da História da Arte. 4 Ver VERGUEIRO, Waldo- miro e RAMOS, Paulo. Os quadrinhos (oficialmente) na escola: dos PCN ao PNBE. In: VERGUEIRO, Waldomiro e RAMOS, Paulo (orgs.). Qua- drinhos na educação: da rejeição à prática. São Paulo: Contexto, 2009. 5 Ver, por exemplo, VILELA, Túlio. Os quadrinhos na aula de História. RAMA, Angela e VERGUEIRO, Waldomiro (orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2014. 6 BURKE, Peter. Testemunha ocu- lar: história e imagem. Bauru: Edusc, 2004, p. 197. 7 Idem, ibidem, p. 197 e 198. 8 Idem, ibidem, p. 198. ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 201912 Citações de obras de arte e biografias de artistas Provavelmente a forma mais comum através da qual a História da Arte é apropriada nas HQs diz respeito à maneira como os quadrinistasfazem citações visuais de obras de arte canônicas em suas próprias HQs. Luis Gasca e Acier Mensuro dedicaram um livro inteiro à discussão dessas citações – que podem ser mais ou menos literais –, enumerando as suas principais motivações. Uma destas merece ser aqui retomada, pois explicita a relação entre quadrinista e historiador que é central neste artigo: Tradicionalmente, o uso de referências do mundo da pintura [e de outras artes] se vincula ao processo de documentação do quadrinista, que a elas recorre para ambientar certas histórias, seja porque a narração transcorre em lugares e épocas do passado para os quais a única fonte gráfica referencial possível é a pintura, ou porque essas referências alcançaram a posição de imagens emblemáticas, facilmente reconhecíveis, que permitem que o leitor identifique facilmente um evento, período ou lugar específico recriado na história em quadrinhos.9 O livro de Gasca e Mensuro apresenta literalmente centenas de exemplos de citações do gênero, em uma série de capítulos que discutem os grandes períodos ou estilos em que a História da Arte é convencionalmente dividida em manuais como os de H. W. Janson ou E. H. Gombrich10: “A pré-história”, “O mundo antigo: Egito e Mesopotâmia”, “O Renascimen- to,” “O Impressionismo” etc. Vale notar que se trata da reafirmação de um cânone etnocêntrico, formado quase exclusivamente por obras de artistas europeus e estadunidenses e muito questionado hoje em dia. Como seria impossível retomar todas as citações lembradas por Gasca e Mensuro, eu prefiro lembrar das citações visuais feitas pelo brasileiro André Toral em seu álbum Holandeses, que narra a história de dois judeus-portugueses oriundos de Amsterdã, que se estabelecem em Recife na época em que boa parte do Nordeste estava sob dominação holandesa.11 Na terceira parte de Holandeses, intitulada “Recife. Entre o Gentio”, Toral insere, de maneira sutil, diversas citações de imagens seiscentistas como pinturas e gravuras de Frans Post, o quadro Os síndicos da guilda dos alfaiates (1662), de Rem- brandt van Rijn [Figura 1a], ou um dos retratos de indígenas brasileiros executados por Albert Eckhout [Figura 1b]. Toral não se limita, porém, a essas citações. Na primeira parte de seu álbum, grande destaque é dado às práticas artísticas e pedagógicas no ateliê de Rembrandt em Amsterdã, por meio de uma reconstituição de época aparentemente baseada na leitura da obra de historiadores como Svetlana Alpers.12 Desse modo, Holandeses apontam para um tópico fun- damental na disciplina da História da Arte que é muito frequentemente apropriado pelos quadrinistas: os relatos biográficos sobre artistas visuais, em especial sobre pintores. Desde os anos 1950, por exemplo, a editora mexicana Novaro incluiu biografias de artistas em sua extensa série Vidas ilustres, “uma das mais bem sucedidas e emblemáticas do projeto cultural da Editorial Novaro”.13 Dos mais de 400 números de Vidas ilustres, não poucos foram dedicados a artis- tas célebres como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Rembrandt, Francisco de Goya, Henri de Toulouse-Lautrec, Gustave Eiffel, Auguste Rodin, entre outros. Embora ponderem que os autores de Vidas ilustres “pareçam mais preocupados em incluir dados relevantes da vida do artista do que cons- 9 GASCA, Luis e MENSURO, Acier. La pintura en el cómic. Madrid: Ediciones Cátedra, 2014, p. 8 e 9 (tradução livre). 10 Gasca e Mensuro citam uma edição da conhecidíssima His- tória da arte de Gombrich publi- cada no México pela Editorial Diana em 1995. 11 Ver TORAL, André. Holan- deses. São Paulo: Veneta, 2017. 12 Na bibliografia de Holande- ses, Toral cita especificamente ALPERS, Svetlana. O projeto de Rembrandt: o ateliê e o mercado. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 13 Texto Disponível em <http:// www.kingdomcomics.org/ comics_culturales_novaro. html>. Acesso em 1 set 2018 (tradução livre). ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 2019 13 D os si ê Q u ad ri n h os & c u lt u ra v is u al : m od os d e ve r e le r h is tó ri astruir uma história sólida e atraente ou explorar as possibilidades visuais do grafismo próprio de cada um dos artistas que se evoca”14, Gasca e Mensuro não deixam de dedicar atenção aos fascículos da série sobre El Greco15 e Diego Velázquez16, inclusive reproduzindo alguns de seus quadros. Nas décadas que se seguiram à iniciativa da Editorial Novaro, surgi- ram muitas HQs tematizando a biografia de artistas [Figura 2]. Um exem- plo precoce é a biografia do pintor brasileiro Pedro Américo, de autoria de Nair da Rocha Miranda e Nico Rosso, publicada pela editora Ebal em 1960 como o fascículo 18 da série Grandes figuras em quadrinhos.17 Todavia, a quantidade e a diversidade dos títulos publicados a partir dos anos 2000 são particularmente dignas de nota. Quadrinistas consagrados tem sus- 14 GASCA, Luis e MENSURO, Acier, op. cit., p. 16 (tradução livre). 15 Idem, ibidem, p. 148 e 149. 16 Idem, ibidem, p. 170 e 171. 17 MIRANDA, Nair da Rocha e ROSSO, Nico. Grandes figuras em quadrinhos: Pedro Américo. O mago da pintura. Rio de Ja- neiro: EBAL, S/d, [1960]. Figuras 1a e 1b. Citações de pinturas de Rembrandt van Rijn e Albert Eckhout. Figura 2. Capas de biografias de artistas em HQs. ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 201914 tentado um forte interesse nesse sentido e uma lista de obras de destaque incluiria, e. g., os trabalhos de Gradimir Smudja sobre Toulouse-Lautrec18 ou Vincent Van Gogh19; de Spacca sobre Jean-Baptiste Debret20;de Clément Oubrerie e Julie Birmant sobre Pablo Picasso21; de Laurent Seksik e Fabrice Lee Hénaff sobre Modigliani22; de Milo Manara sobre Caravaggio23; de Ste- ffen Kverneland sobre Munch24, entre muitos outros. Estamos diante, mais uma vez, da reafirmação de um cânone bastante tradicional, centrado em artistas homens e europeus, como era também o da Editorial Novaro. Vale notar, porém, que vem crescendo o número de biografias quadrinizadas tematizando artistas mulheres, como demonstram o álbum da quadrinista Nathalie Ferlut sobre a pintora seiscentista Artemisia Gentilheschi25 ou o de Jean-Luc Cornette e Flore Balthazar sobre Frida Kahlo.26 Novas séries de biografias de artistas em quadrinhos também têm sido publicadas. É o caso, por exemplo, das HQs realizadas pelo alemão Willi Blöß retratando a vida de diversos artistas, como Salvador Dali, Andy Warhol ou Keith Haring.27 É também o caso de coleção “Mestres da arte em quadrinhos,” cuja publicação foi iniciada há alguns anos pela editora brasileira Nemo. Dois volumes vieram a lume até hoje, o primeiro sobre Leonardo da Vinci28 e o segundo sobre Van Gogh.29 O texto de apresenta- ção dessa coleção define a sua missão como “apresentar a obra e a vida de artistas considerados de destaque no universo da história da arte. Por meio dos quadrinhos, o público entrará em contato com os aspectos da vida e da obra determinantes para as criações de cada artista”.30 Uma iniciativa mais ambiciosa é da editora francesa Glénat que, em 2015, iniciou a publicação de Les grands peintres (Os grandes pintores), uma coleção com 30 álbuns previstos, reunindo trabalhos de quadrinistas diversos. O foco biográfico de cada álbum de Les grands peintres é rela- tivamente circunscrito, se centrando no contexto em que determinado artista realizou uma de suas obras mais emblemáticas.31 Um exemplo é o álbum de Olivier Bleys e Benjamin Bozonnet sobre Goya32, que foca o dramático final da vida do artista, quando ele realizou a sua conhecida série de Pinturas negras [Figura 3a]. Como acontece em outras biografias quadrinizadas de artistas, Bleys e Bozonnet não se limitam a (re)contar os supostos incidentes da vida de Goya, mas também citam visualmen- te diversas obras desse último [Figura 3b] e parecem se esforçar para incorporar algo do próprio estilo do pintor espanhol no grafismo e na dinâmica narrativa de seu álbum. A enumeração não exaustivafeita nos parágrafos acima leva à constatação de que as biografias quadrinizadas de artistas constituem um subgênero em expansão, que demanda estudos específicos. Cumpre notar, porém, que o diálogo entre HQs e História da Arte não se limita à citação de obras famosas e/ou ao tema da biografia dos artistas. Talvez seja precoce afirmar que atualmente existem quadrinistas atuando como historiadores de “pleno direito”, para usar a expressão de Burke; não obstante, me parece que ao menos em passagens de certos álbuns autênticas apropriações de métodos historiográficos se efetivam. Para exemplificar essa minha opinião, gostaria de deixar de lado as apreciações panorâmicas que até agora fiz para me deter sobre um estudo de caso específico. Para tanto, me centrarei sobre um álbum chamado La vision de Bacchus (A visão de Baco) do quadrinista francês Jean Dytar, que foi lançado pela editora Delcourt em 2014. A trama se centra na estadia do pintor siciliano Antonello da Messina na cidade de Veneza, entre os anos de 1475 e 1476.33 18 Ver SMUDJA, Gradimir. Le cabaret des muses.Paris: Del- court, 4 vs., 2004-2008. 19 Ver SMUDJA, Gradimir. Vin- cent et Van Gogh. Paris: Delcourt, 2 vs., 2003 e 2011. 20 Ver SPACCA. Debret em via- gem histórica e quadrinhesca ao Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 21 Ver OUBRERIE, Clément e BIRMANT, Julie. Pablo. Paris: Dargaud, 4 vs., 2012-2014. 22 Ver SEKSIK, Laurent e LE HÉNAFF, Fabrice. Modigliani: Prince de la bohème. Paris: Casterman, 2014. 23 Ver MANARA, Milo. Cara- vaggio: a morte da virgem. São Paulo: Veneta, 2015. 24 Ver KVERNELAND, Steffen. Munch. Zagreb: VBZ, 2016. 25 Ver FERLUT, Nathalie. Arte- misia. Paris: Delcourt/Mirages, 2017. 26 Ver CORNETTE, Jean-Luc; BALTHAZAR, Flore. Frida Kahlo: para que preciso de pés quando tenho asas para voar? São Paulo: Editora Nemo, 2016. 27 Ver BLÖß, Willi. Milestones of art: the collection. Vancouver/ Washington: Bluewater Pro- ductions INC, 2014. 28 Ver SPINELLI, Mirella e VILELA, Andrea. Leonardo da Vinci. São Paulo: Nemo, 2014. 29 Ver SPINELLI, Mirella. Vincent Van Gogh. São Paulo: Nemo, 2017. 30 Texto disponível em <http:// grupoautentica.com.br/nemo/ quadrinhos/vincent-van-go- gh/1469>. Acesso em 1 ago. 2017. 31 Como resume o texto de apresentação da coleção: “Les grands peintres propose de dresser en bande dessinée un portrait de ces hommes hors du commun. Ens’attardant sur um moment précis de la vie d’um peintre, elle vise à resituer avec précision le contexte historique, artistique, politique ou person- nel dans lequel il en est arrivé à peindre l’un de ses tableaux les plus emblématiques. L’objectif n’est pas de retracer une vie entière, mais bien de raconter à chaque fois une histoire per- mettant de capter au mieux la personnalité de l’artiste et de son oeuvre”. Texto disponível em <http://www.glenatbd.com/ actu/collection-grands-pein- tres-bd-glenat.htm>. Acesso em 1 set. 2018. ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 2019 15 D os si ê Q u ad ri n h os & c u lt u ra v is u al : m od os d e ve r e le r h is tó ri as Dytar procura traçar um panorama verossímil da passagem de Antonello por Veneza, descrevendo as pinturas que ele então realizou; suas negocia- ções com encomendantes; sua relação de emulação com Giovanni Bellini, outro célebre pintor da época; seus envolvimentos amorosos; etc. Todavia, para além das questões biográficas, os interesses de Dytar convergem com os de historiadores de arte em outros temas que pontuam o álbum. Aqui eu vou me centrar em dois deles: (1) a reconstituição de obras pintadas por Antonello e Bellini, bem com as suas condições de instalação originais em igrejas venezianas; (2) a descrição dos processos de pintura desses artistas. Reconstituições de obras de mestres Em La vision de Bacchus, três retábulos têm importância central na narrativa, pois é em torno da realização deles que boa parte da trama se desenrola. Um retábulo ou peça-de-altar (pala d’altare, em italiano) é uma obra de arte que representa um tema religioso e que fica suspenso em uma moldura, atrás do altar de uma igreja cristã. Os retábulos evocados por Dytar possuem grosso modo o mesmo tema iconográfico: a Virgem e o Menino Jesus, cercados por santos e santas. Pela ordem cronológica de realização – que é também a ordem em que são apresentados no álbum –, são eles: o retábulo pintado por Bellini para a Igreja de Santi Giovanni e 32 Ver BLEYS, Olivier; BOZON- NET, Benjamin. Les grands peintres: Goya. Grenoble: Glé- nat, 2015. 33 A esse respeito ver, por exem- plo, BARBERA, Gioacchino, Antonello da Messina: Sicily’s Renaissance Master. New York: The Metropolitan Mueum of Art, 2006, p. 27-29. Figura 3a. Pinturas negras. Francisco de Goya. Figura 3b. Sem título (Saturno devorando um de seus filhos), c. 1819- 1823. Francisco de Goya. Afresco montado em tela, 145 x 82.9 cm. ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 201916 Paolo, entre 1474e 1475 [Figura 4a]; a chamada Pala di San Cassiano, pintada por Antonello para a Igreja de San Cassiano, entre 1475 e 1476 [Figura 4b]; e, por fim, o retábulo pintado por Bellini para a Igreja de San Giobbe, entre 1478 e 1480 [Figura 4c]. Como acontece com todas as pinturas quatrocentistas mostradas em La vision de Bacchus, Dytar não usa reproduções fotográficas para representar esses retábulos. Antes, ele apresenta “cópias, mais ou menos detalhadas, com suas cores mais ou menos modificadas para se integrar melhor no grafismo e no tom das páginas [da HQs]”.34 No caso dos re- tábulos aqui em questão, tal processo de citação foi dificultado pelo fato de que apenas a Pala di San Giobbe, de Bellini ainda existe integralmente. Cumpre lembrar, porém, que essa obra não mais se encontra em seu local de instalação original, mas sim em exibição nas Gallerie dell’Accademia, em Veneza. Por essa razão, a proposta de reconstituição da Pala di San Giobbe feita por Dytar se esforçou, como ele mesmo afirma, por “colocá- -la de volta em seu local original, o que permite que nos demos conta do efeito ilusionista de profundidade buscado pelo pintor. De fato, a moldura em pedra – concebida pelo próprio Bellini – se prolonga naturalmente na abóbada de berço pintada”.35 Ao tratar dos outros dois retábulos, Dytar se deparou com dificulda- des ainda maiores porque eles foram em parte ou integralmente destruídos. O retábulo de Bellini para a Igreja de Santi Giovanni e Paolo desapareceu em um incêndio ocorrido em 1867; e a Pala di San Cassiano de Antonello foi dividida em várias partes no século XVII, dela restando hoje apenas os fragmentos centrais, conservados no Kunsthistorisches Museum de Viena. Para reconstituir o retábulo de Santi Giovanni e Paolo, Dytar se va- leu de uma gravura realizada a partir da obra antes de sua destruição e publicada pelo historiador da arte italiano Francesco Zanotto no primeiro volume de sua Pinacoteca veneta, datado de 1858 [Figura 5a]. Essa gravura é basicamente um esquema linear do retábulo perdido, que não obstante, segundo o historiador Augusto Gentilli “testemunha suficientemente uma composição/imaginação muito mais moderna e complexa [do que a dos Figura 4. Propostas de reconstituição dos retábulos de (a) Giovanni Bellini para a Igreja de Santi Giovanni e Paolo; (b) Antonello da Messina para a Igreja de San Cassiano; (c) Giovanni Bellini para a Igreja de San Giobbe. 34 DYTAR, Jean. La vision de Bacchus. Paris: Delcourt, 2013, p. 217 (tradução livre). 35 DYTAR, Jean. Tableaux re- constitués. Jean Dytar, 2016. Disponível em <http://www.je- andytar.com/notes-vision-bac- chus/tableaux-reconstitues/> Acesso 1 set. 2018 (tradução livre). ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 2019 17 D os si ê Q u ad ri n h os & c u lt u ra v is u al : m od os d e ve r e le r h is tó ri as contemporâneos de Bellini], com dez santos e três meninos anjos cantantes,em torno do elevado trono da Virgem com o Menino em um amplo espaço unificado”.36 Partindo da gravura de Zanotto, Dytar elaborou a sua proposta de reconstituição do retábulo. Ele relata que seu trabalho consistiu sobretudo em reconstituir as cores e em imaginar os efeitos de luz. Eu escolhi então as cores das roupas a partir das convenções em uso na pintura religiosa da época para representar tal ou qual santo. Aqui são visíveis, em torno da Virgem com o Menino, São Jerônimo, São Domingos, Santa Catarina e Santa Úrsula... Eu igualmente reintegrei o quadro na sua moldura original ainda hoje visível na Igreja de Santi Giovanni e Paolo.37 Em sua essência, a reconstituição dos dois retábulos de Bellini feita por Dytar é muita afinada com, por exemplo, as preocupações de uma his- toriadora da arte como Catarina Schmidt Arcangeli. Em um artigo dedicado à Pala di San Giobbe, Arcangeli reproduz, propostas de reintegração dos retábulos em seus contextos arquitetônicos originais bastante semelhantes às propostas de Dytar.38 As diferenças dizem respeito sobretudo a ques- tões estéticas: enquanto Arcangeli se vale exclusivamente de reproduções fotográficas, o quadrinista usa, como vimos, suas próprias interpretações gráficas dos retábulos, visando melhor integrar suas reconstituições no restante nas páginas do álbum. Na reconstituição da chamada Pala di San Cassiano, Dytar se envolveu ainda mais profundamente com uma tarefa que é usual no trabalho dos historiadores da arte “de pleno direito.” Isso porque, diferentemente do 36 GENTILI, Augusto. Giovanni Bellini. Firenze: Giunti, 1998, p. 16 (tradução livre). 37 DYTAR, Jean. Tableaux re- constitués, op. cit. 38 Ver ARCANGELI, Catarina Schmidt. La sapienza nel si- lenzio: riconsiderando la Pala di San Giobbe. Saggi e Memorie di storia dell’arte, v. 22, 1998, p. 36 e p. 43. Figura 5a. Gravura a partir do retábulo de Gio- vanni Bellini para a Igreja de Santi Giovanni e Paolo, Veneza. Obra pintada por volta de 1474-75 e destruída por um incêndio em 1867. Figura 5b. Proposta de reconstituição do retábulo de Giovanni Bellini para a Igreja de Santi Giovanni e Paolo. Veneza. ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 201918 retábulo de Bellini documentado por Zanotto, não existe nenhum testemu- nho imagético da composição completa do retábulo de Antonello. Restam apenas alguns fragmentos centrais, preservados em Viena [Figura 6], e cópias fragmentárias que permitem conhecer com certa precisão a dispo- sição das figuras em torno do grupo principal. Mas sempre houve dúvida com relação à moldura arquitetônica pintada que abrigaria os personagens, elemento da composição a respeito do qual não existe documentação visual ou escrita. Figura 6. Virgem com o menino, cercados por Santos também conhecido como a Pala di San Cassiano, 1475-76. Antonello da Messina. Figura 7a. Proposta de reconstituição do retábulo de Antonello da Messina para a Igreja de San Cassiano, Veneza. Figura 7b. Proposta de reconstituição do retábulo de An- tonello da Messina para a Igreja de San Cassiano, Veneza. ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 2019 19 D os si ê Q u ad ri n h os & c u lt u ra v is u al : m od os d e ve r e le r h is tó ri asCom base nos detalhes remanescentes, o historiador húngaro Johan- nes Wilde apresentou, em 1929,uma reconstituição gráfica da Pala di San Cassiano [Figura 7a].39 Tentando preencher as lacunas na metade superior da composição, Wilde propôs as formas da abóboda e do domo de sua reconstituição com base em um retábulo que um pintor muito inspirado por Antonello conhecido como Cima da Conegliano realizou entre 1492 e 1493 para o Duomo de sua cidade natal, localizada na região do Vêneto. A reconstituição da Pala di San Cassiano proposta por Wilde levan- tou polêmicas, especialmente no que diz respeito ao seu enquadramento arquitetônico. Um dos historiadores de arte que questionou a proposta de Wilde foi o italiano Mauro Lucco, em uma monografia recente dedicada a Antonello.40 Como resume Dytar, “se [Lucco] dava crédito à disposição das figuras [na reconstituição de Wilde], ele estimava que a decoração era muito ousada para Antonello no momento em que ele a pintou, ou seja, vinte anos antes de Cima da Conegliano, e supunha um espaço mais pró- ximo do quadro desaparecido de Bellini, ainda que mais amplo”.41 Assessorado por Lucco, Dytar se pôs então a elaborar uma nova proposta de reconstituição da Pala di San Cassiano. Como ele mesmo afir- ma: “Eu nunca imaginei que esse trabalho a partir de pinturas antigas me levaria tão longe! E foi assim que nós colaboramos para chegar a um novo resultado”.42 Dytar realizou diversos esboços a fim de estudar as supostas linhas compositivas do retábulo. Finalmente, como já dito, Dytar apresen- tou nas páginas de sua HQs uma proposta de reintegração do retábulo em sua moldura arquitetônica original [Figura 7b]. No entender do qua- drinista, apoiado por um historiador da arte, “o resultado seria, portanto, nos dias atuais, a reconstituição mais plausível desta importante pintura de Antonello. Importante na breve carreira do pintor, pois se trata de sua encomenda mais prestigiosa, mas também importante por sua influência”.43 Figurando o ato de pintar Um segundo tema que atravessa La vision de Bacchus e que tem es- treita relação com as preocupações dos historiadores da arte diz respeito à representação dos processos de pintura de Antonello e de Bellini. Vale aqui lembrar que, ao menos desde Giorgio Vasari44, as técnicas de produção e a própria materialidade das obras de arte constituem tópicos de grande interesse para aqueles que se dedicam a narrar a História da Arte. Mais recentemente, a relevância do entendimento sobre técnicas artísticas foi des- tacada nos seguintes termos pela historiadora da arquitetura Dana Arnold: As propriedades físicas das obras de arte têm uma influência importante sobre como as entendemos como objetos. Quero destacar alguns exemplos dos diferentes meios e técnicas de produção de arte para mostrar como a consciência desses fatores pode ajudar nossa compreensão da história da arte. Cada exemplo funciona como uma espécie de vinheta para mostrar como as propriedades físicas de uma obra de arte podem adicionar outra camada de significado à sua história.45 O crítico de arte Waldemar Januszczak reitera essa ideia ao afirmar que “como indicativo do desenvolvimento da arte no Ocidente, a história das técnicas pictóricas é um guia tão realista e exato como qualquer mani- festo estético ou ensaio biográfico”.46 Afinado com tais posições, Dytar se detém diversas vezes no processo de pintura dos artistas que protagonizam 39 Ver WILDE, Johannes. Die “Pala di San Cassiano” von Antonello da Messina: ein Re- konstruktionsversuch. Jahrbuch der Kunsthistorischen Sammlun- gen in Wien. Neue Folge, Son- derheft 27. Wien: A. Schroll, 1929. 40 Ver LUCCO, Mauro. Anto- nello de Messine. Paris: Hazan, 2011. 41 DYTAR, Jean. Tableaux re- constitués, op. cit. (tradução livre). 42 Idem. 43 Idem. 44 Ver BROWN, Baldwin G. (ed.). Vasari on technique; being the introduction to the three arts of design, architecture, sculpture and painting, prefixed to the Lives of the most excellent painters, sculptors and architects. New York-London: E. P. Dutton & co., J. M. Dent & co, 1907. 45 ARNOLD, Dana. Art history: a very short introduction. Kin- dle edition: Oxford University Press, 2004, loc. 1630-1633 (tradução livre). 46 JANUSZCZAK, Waldemar (dir.). Técnicas de los grandes pintores. Madrid: H. Blume Ediciones, 1981, p. 7 (tradução livre). ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 201920 La vision de Bacchus. Nesse aspecto em particular, se revela uma das singu- laridades da linguagem narrativa das HQs: por suas características, ela se apresenta como um meio bastante adequado para a descrição dos processos de criação artística, que são sempre caracterizadospela temporalidade. Dytar exibe para o leitor, por exemplo, a técnica do spolvero, usada para traçar, sobre o painel de madeira, a complexa composição do retábulo de Bellini para a Igreja de Santi Giovanni e Paolo [Figura 8]. Em uma cena do álbum, encontramos Bellini e Antonello no ateliê do primeiro, em frente ao retábulo ainda em seu estágio inicial de execução. Como explica Dytar: “O desenho da composição aparece aí em pontilhado, porque foi feito primeiramente em um cartão preparatório, que em seguida foi perfurado com pequenos orifícios. Vemos os alunos de Bellini transferindo o desenho para o painel de madeira batendo com um saco cheio de pó preto sobre o cartão, o que permite ao pó passar através dos orifícios e se fixar no painel, fazendo surgir o desenho”.47 Figura 8. No ateliê de Giovanni Bellini, seus discípulos preparam, com a técnica do spolvero, o suporte do retábulo para a Igreja de Santi Giovanni e Paolo. 47 DYTAR, Jean. Extraits com- mentés. Jean Dytar, 2016. Disponível em <http://www. jeandytar.com/la-vision-de- -bacchus/extraits-commentes/> Acesso 1 set. 2018 (tradução livre). ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 2019 21 D os si ê Q u ad ri n h os & c u lt u ra v is u al : m od os d e ve r e le r h is tó ri as Em outras passagens de La vision de Bacchus, Dytar apresenta o pro- cesso de pintura a óleo usado por Antonello. Um dos exemplos se baseia em um dos quadros mais famosos do pintor italiano, um retrato de homem pertencente hoje ao Musée du Louvre e conhecido como Il Condottiere [Figura 9a]. Em uma página dedicada à realização dessa obra [Figura 9b], vemos primeiro o exterior do ateliê de Antonello; em seguida, o pintor sentado diante do cavalete, tendo o seu filho Jacobello a seu lado, moendo, sobre uma mesa, pigmentos para preparar tintas. Segue-se uma sequência de seis imagens, cujo sentido é explicitado por Dytar: Eu utilizei a sequência de imagens para mostrar as várias etapas que levam à ela- boração de um quadro: o desenho que subjaz à imagem; as áreas de sombra e de luz, assim como a cor, gradualmente dispostas; até os acabamentos e este fundo muito escuro, que destaca o brilho radiante do rosto por contraste. A camada de branco inicial permite “clarear” as cores a partir de baixo, através de veladuras, que são finas camadas de tinta muito diluída e translúcida e que permitem que as camadas inferiores permaneçam discretamente visíveis.48 É interessante notar como a forma de apresentação do processo de pintura de Antonello se assemelha àquela usada pelo já referido Januszczak em um dos livros em que este discute as técnicas de pintura de diversos mestres. Um deles é o pintor flamengo Jan van Eyck, cuja técnica de pin- tura a óleo sobre madeira tem bastante afinidade com a de Antonello. Ao procurar demonstrar o processo de pintura empregado por van Eyck em seu famoso retrato do casal Arnolfini [Figura 10], Januszczak se vale de pro- cedimentos usuais nas HQs, como os recordatórios e uma divisão regular Figura 9a. Retrato de homem, dito Il Condottiere. 1475. Antonello da Messina. Óleo sobre madeira, 36 x 30 cm. Figura 9b. Antonello pintando em seu ateliê. 48 Idem. ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 201922 em quadros que parece sugerir, inclusive, as sarjetas quase onipresentes na diagramação dos quadrinhos.49 Essa sequência de imagens extraída do livro de Januzczak é igual- mente interessante porque me leva a pensar a relação entre HQs e História da Arte por outra perspectiva. Sendo a História da Arte uma disciplina na qual muitas vezes palavras e imagens se combinam de modo íntimo, assim como acontece nas HQs, penso que cumpriria verificarem que me- dida os modos como os historiadores da arte apresentam suas reflexões se aproximam da arte dos quadrinistas. Nesse sentido, vale recordar, por exemplo, dos ensaios compostos exclusivamente por imagens do livro ba- seado na série televisiva Ways of seeing de John Berger50 ou das conhecidas pranchas do Atlas mnemosyne, o último grande projeto do historiador de arte Aby Warburg, desenvolvido entre 1924 e 1929.51 Me parece que tanto os ensaios “em imagens” de Berger quanto as pranchas de Warburg se adéquam muito bem à definição geral, proposta por Ann Miller, das HQs como uma arte que produz “significado a partir de imagens que estão em uma relação sequencial e que coexistem umas com as outras espacialmente, 49 Ver JANUSZCZAK, Walde- mar, op. cit., p. 18. 50 Ver BERGER, John. Modos de ver. Barcelona: Editorial Gusta- vo Gili, 1974. 51 Ver WARBURG, Aby. Atlas mnemosyne. Madrid: Akal, 2010. Figura 10. Proposta de reconstituição do processo de pintura do retrato do casal Arnolfini, de Jan van Eyck. ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 2019 23 D os si ê Q u ad ri n h os & c u lt u ra v is u al : m od os d e ve r e le r h is tó ri ascom ou sem texto”.52 Seria possível, portanto, inverter o sentido das refle- xões até aqui feitas e considerar Berger ou Warburg como quadrinistas “de pleno direito”? Esta é uma das questões que deixo por enquanto em aberto, uma vez que sua resposta depende de um ulterior aprofundamento das investiga- ções. Desde já, todavia, minha convicção é a de que os variados aspectos dos diálogos entre História em Quadrinhos e História da Arte podem nos ajudar a entender melhor as estratégias de construção de sentido empre- gadas por essas duas formas de “história.” Em trabalhos futuros, pretendo desenvolver reflexões que contribuam para tal entendimento. Artigo recebido em 3 de maio de 2019. Aprovado em 20 de julho de 2019. 52 MILLER, Ann. Reading Bande Dessinée: critical approaches to French-language Comic Strip. Bristol: Intellect Books, 2007, p. 75 (tradução livre).
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