Perfil | Kika Carvalho

Conhecer recentemente o trabalho de Kika Carvalho é mais uma das boas novas que a internet nos trouxe. O nome de Kika, porém, chegou até nós através de uma palestra de Rosana Paulino no MASP, em que a artista – citada aqui nesta entrevista como uma das maiores influências no trabalho de Kika –, fala sobre os desafios contemporâneos de artistas negras no Brasil e apresenta uma série de jovens artistas, dentre elas, Kika Carvalho.

Nascida em 1992, na cidade De Vitória- ES, onde vive, Kika Carvalho graduou-se em Artes Visuais na Universidade do Espirito Santo. Sua trajetória como artista visual começou através do grafitti, tornando-se uma referência na cena nacional a partir da criação do Coletivo DasMina (2012), e do FEME - Festival de Mulheres no Graffiti (2016). Sua pesquisa atual porém, tem como foco a construção de novas narrativas, voltando sua atenção à elementos que compõem um movimento de retorno, buscando a força presente em sua ancestralidade. Em suas palavras, seu trabalho parte de uma “busca pessoal enquanto mulher negra que reverbera em muitas vivências coletivas sobre o que é ser negro no Brasil.”

Para além de sua atuação como artista visual, através da arte-edução Kika busca retribuir de alguma forma as oportunidades que recebeu enquanto criança. Por isso, seu trabalho enquanto educadora social é um aspecto bastante marcante de sua formação e trajetória. Além de trabalhar em instituições de arte como arte-educadora, Kika criou também o Projeto Pique Pintar que, em 2019, convidou crianças e adolescentes do Morro do Quadro (Vitória-ES) a participarem na elaboração e execução de pinturas em muros e equipamentos coletivos da comunidade. Além de reforçar o protagonismo das crianças e adolescentes enquanto sujeitos ativos, o projeto visava criar também um sentimento de pertencimento.

Conhecer mais sobre seu trabalho foi muito enriquecedor para nós e esperamos que seja também para todos que lerem a entrevista.

Kika Carvalho em sua casa, em Vitória-ES, 2020.

Kika Carvalho em sua casa, em Vitória-ES, 2020.

Você pode contar um pouco sobre sua formação e trajetória? Como se deu a escolha de trabalhar como artista?
Desenho desde criança, aos 12 anos participei de uma oficina de animação dentro de um projeto que acontecia em escolas públicas, eram 150 crianças envolvidas, e acabei me destacando. Quando a animação foi receber uma de suas premiações em um festival de audiovisual em Aracaju-Sergipe me enviaram como uma das representantes. Foi a minha primeira viagem de avião, fiquei em um hotel de luxo e aprendi jogar sinuca com Cláudio Assis. Tudo isso era inimaginável para a realidade de onde venho. A partir daí passei a olhar com mais seriedade pra o “gosto” que eu tinha em desenhar e continuei. Aos 17 anos, terminando o ensino médio me inscrevi em uma oficina gratuita de graffiti na minha cidade afim de aprender a utilizar mais cores no desenho e de forma muito orgânica fui ocupando os muros da minha cidade. Em paralelo a isso, prestei vestibular pra Artes Visuais - licenciatura na UFES – Universidade Federal do Espírito Santo e passei. Desde então tenho conciliado meu fazer artístico, com trabalho em educação. 

Como é esse trabalho que você desenvolve em educação? Como é a sua rotina ao conciliar essas duas atividades? E como é um dia normal na sua semana?
Trabalhei como educadora social dentro de instituição até julho de 2019. Geralmente a minha rotina era de estar no trabalho entre 8h e 17h e fora desse horário fazia o planejamento de aula (que era raro caber no dia que deveria ser reservado a isso dentro da carga horária enquanto educador), pesquisar e produzir artisticamente, cuidar da casa, lazer e etc. Assim que pedi demissão iniciei um projeto via edital envolvendo pintura mural e arte educação por conta própria, o Projeto Pique Pintar. Esse projeto junto a outros que estivesse envolvida me ocuparam até o fim de 2019. Em 2020 consegui um espaço, meu primeiro ateliê, um lugar dedicado exclusivamente à minha produção e junto a esse processo de imersão muito novo pra mim veio a série Brasões que é atualmente a forma que mais dialogo com as crianças, sobretudo do meu território. Atualmente em um dia comum eu vou ao atelier entre 8h e 9 h e saio às vezes 18h, 19h e às vezes 22h, dependendo do ritmo e do cansaço do dia. Às vezes deixo o portão aberto que dá bem na calçada direto pra rua, que fica ao pé do morro da Piedade, próximo ao Morro da Fonte Grande também e por ali circulam pessoas que estão vendo o que estou fazendo, dialogam, inclusive as crianças que volta e meia aparecem para pegar uma pipa.

Qual sua pesquisa atual e que trabalhos você tem desenvolvido nos últimos tempos?
Venho pesquisando sobre elementos que compõem um movimento de retorno,  uma busca pessoal enquanto mulher negra que reverbera em muitas vivências coletivas do que é ser negro no Brasil. Faço esse caminho através de uma cor (azul que é muito presente no meu trabalho) ou através da minha espiritualidade mas também no meu cotidiano, da troca com as pessoas do meu entorno.

A cor azul é um dos elementos que uso no meu trabalho que tentam dar conta da busca intensa de tudo aquilo que me foi afastado por viver em um país com uma herança colonial. É uma cor que tem relação com a cidade que nasci, cresci e vivo até hoje – Vitóra-ES – que é uma ilha, cercada pelo mar.
— Kika Carvalho

Você pode falar um pouco sobre os sentidos e significados da cor azul presente em seu trabalho?
A cor azul é um dos elementos que uso no meu trabalho que tentam dar conta da busca intensa de tudo aquilo que me foi afastado por viver em um país com uma herança colonial. É uma cor que tem relação com a cidade que nasci, cresci e vivo até hoje – Vitóra-ES – que é uma ilha, cercada pelo mar. No começo do meu trabalho quando eu grafitava, a cor aparecia de forma recorrente nas minhas produções pois além de eu gostar muito do azul, trazia desde sempre o mar como referência. Na disciplina de história da arte no segundo período da faculdade, percebi que o azul aparece muito nas representações das Madonnas e os professores diziam que "a cor, o pigmento era caro, mais caro que ouro" mas não aprofundavam, então fui buscar essa informação por conta própria e identifiquei que a cor azul tem uma forte e potente história ligada ao continente africano (não só, mas também). A partir dessa nova descoberta passei a trazer ele com mais presença no meu trabalho, inclusive na pele, fazendo um contraponto com a expressão racista "tão preto que chega a ser azul", reivindicando como uma afirmação já que o azul representa tanta potência e riqueza.

Kika Carvalho, Efeito Dominó, 2018 – Instalação e performance. 60 peças de cerâmica em terracota, dimensões variadas. Foto: Luara Monteiro.

Kika Carvalho, Efeito Dominó, 2018 – Instalação e performance. 60 peças de cerâmica em terracota, dimensões variadas. Foto: Luara Monteiro.

Quais fatos, trabalhos ou experiências mais relevantes/marcantes contribuíram ou afetaram de alguma forma a sua trajetória?
Com relação aos eventos mais recentes, preciso citar a residência que fiz com a Rosana Paulino para a exposição coletiva Malungas, em 2018, junto com Castiel Vitorino e Charlene Bicalho. Conhecer a Rosana, sua rotina, seu ateliê, sua biblioteca e sua família foi uma experiência ímpar. A Rosana é uma mulher incrível e muito generosa, para além do trabalho dela, a pessoa que ela é me inspira muito.

Também o meu trabalho no CAJUN como educadora social na oficina de artes, atender crianças de 6 a 15 anos das periferias da cidade pra tratar sobre questões muito sérias e pertinentes, muitas vezes crianças em realidade de vulnerabilidade social. A minha série “Brasões” é criada pensando nessa diversidade de crianças e jovens que conheci na minha trajetória enquanto educadora.

Para quem não sabe o que é, você pode explicar mais sobre o CAJUN? 
Caminhando Juntos (CAJUN) é um serviço de convivência e fortalecimento de vínculos que integra a Proteção Social Básica do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no município de Vitória e se destina a promover a inclusão de crianças e adolescentes de 6 a 15 anos em situação de vulnerabilidade e risco social, fortalecendo vínculos familiares e comunitários por meio de desenvolvimento de capacidades e potencialidades através de atividades socioeducativas. O serviço tem 14 unidades espalhadas por Vitória, atuando nas periferias da cidade. Lá são ofertadas diversas oficinas como dança, circo, capoeira, música e artes, que era a minha função no projeto.

Trabalho de Kika Carvalho para a exposição coletiva Malungas, com curadoria de Rosana Paulino, 2018.

Trabalho de Kika Carvalho para a exposição coletiva Malungas, com curadoria de Rosana Paulino, 2018.

De volta à Brasões, como foi o desenvolvimento da série? Quais foram os desdobramentos dela?
Quando eu, Castiel Vitorino e Charlene Bicalho abrimos a exposição coletiva Malungas no Mucane (Museu Capixaba do Negro) com curadoria da Rosana Paulino, apresentei um trabalho que falava sobre a questão de violência de gênero atrelada ao racismo, falando sobre tradições no Espírito Santo. Entendo a violência de gênero como tradição no estado já que o ES está entre os primeiros em índice de feminicídio há muitos anos. Um dos meus trabalhos trazia a representação do  corpo feminino em escala natural e outro na parede oposta com 6 m aproximadamente, eram representações nuas usando meu próprio corpo como base. Por conta do meu trabalho especificamente a equipe do museu achou melhor colocar uma restrição de idade, para a partir de 14 anos. Era um momento muito doido da política, esse lance de fake news tinha começado e ninguém sabia exatamente o que estava acontecendo mas todo mundo se sentia vigiado. O Mucane é um dos poucos espaços de exposição da cidade e eu fiquei frustrada por não poder levar meus educandos para a exposição já que a idade deles era de 6 a 15 anos. Foi uma situação que me fez refletir muito sobre o meu trabalho e que tipo de conteúdo eu queria levar "para as minhas crianças", afinal, são crianças que já vivem em meio a violência em constante violação de direitos. Nesse momento eu já tinha começado uma nova série chamada "brinquedos", onde eu utilizo brinquedos e modifico ou crio cenários para criar uma narrativa, mas até então todas envolviam violência.


Brasões veio como um respiro, é um desdobramento da série brinquedos mas que fala sobre potências. Entendo que o Candomblé e consequentemente a Umbanda são espaços muitos expressivos de cultura afro e afrobrasileira, espaços de potência e resistência que não trazem "apenas" (entre muitas aspas pois não é pouca coisa) a questão da espiritualidade, o imaterial, mas também culinária, música, dança, língua, medicina natural etc. São saberes culturais e ancestrais  que foram preservados graças a essa forma de organização que tem muito de família já que ao ser iniciado você renasce e seus irmãos de santo se tornam a sua segunda família. 
É um trabalho que trouxe novos ares pra minha produção e ele esta perfeitamente alinhado com a minha vida pessoal, minha conexão com o sagrado. É também a forma que eu lido mais diretamente com as crianças apesar de não estar em uma instituição dando aula/oficina, levando até elas esses símbolos do panteão africano, inserindo eu seu cotidiano sem necessariamente direciona-las a um culto ou algo do tipo. 

Kika Carvalho Brasões, 2020 [série] tinta acrílica sobre tela 1m x 1m

Kika Carvalho
Brasões, 2020 [série]
tinta acrílica sobre tela
1m x 1m

Brasões veio como um respiro, é um desdobramento da série Brinquedos mas que fala sobre potências. É um trabalho que trouxe novos ares pra minha produção e ele esta perfeitamente alinhado com a minha vida pessoal, minha conexão com o sagrado.
— Kika Carvalho

E as pipas? Como você desenvolve esse trabalho com as crianças? 
As pipas são as materializações dos Brasões. Elas  são os Brasões de fato pois quando comecei os desenhos/pinturas todas em papel A3 eram estudos para levar até o pipeiro e criar os modelos para distribuir para as crianças. A coisa de fazer telas veio depois pois as pipas são materiais perecíveis de certa forma por serem materiais muito frágeis que não resistem muito à ação do tempo (vareta quebra, linha rompe e papel de seda desbota, etc.). Além de tentar preservar essa ação do tempo, nas pinturas consigo trabalhar com uma riqueza de detalhes e elementos, algo que na produção dos brinquedos fica inviável de produzir já que são feitas de forma tradicional, recortadas e coladas, não é impresso e a tiragem é alta. Quando comecei a ideia era fazer uma grande ação com as crianças, um festival de pipas, abrir o atelier pra produção de rabiola mas veio o corona vírus e ficou tudo em off. Para não parar o projeto totalmente às vezes deixo o ateliê aberto e elas vêm, conversam, pegam as pipas. Já tive conversas incríveis e conheci muitas pessoas nesse cotidiano de ateliê, todas ali da comunidade no entorno e essa vivência tem sido muito preciosa.

Nas imagens acima, Brasões/pipas - Objeto, 2020 – Pipa em formato artesanal, método tradicional de colagem com papel de seda – 56 x 40 cm aprox.

Quais são suas perspectivas como artista? Como se vê daqui um tempo? Tem algum projeto que deseja realizar mais a longo prazo? 
Desejo ocupar mais espaços, conhecer mais o Brasil e outros países também, levar adiante o trabalho dos “Brasões” enquanto ação pois foi interrompido por conta da pandemia. Eu sou muito do “um passo de cada vez” mas desejo poder continuar trabalhando com arte com dignidade e respeito.

Que mulheres (artistas, escritoras, familiares e figuras públicas) foram/são influências e fonte de inspiração? 
Desde os meus 17 até agora foram muitas influências, mas atualmente gostaria de destacar o trabalho de Tizta Berhanu, Lynette Yiadom-Boakye, Gleo que é uma artista muralista, Kiki Smith e claro, Rosana Paulino.

Kika Carvalho Abre caminhos, 2020 [Série Saci] Acrílica e giz pastel oleoso s/ tela 1,00 x 1,50 m

Kika Carvalho
Abre caminhos, 2020 [Série Saci]
Acrílica e giz pastel oleoso s/ tela
1,00 x 1,50 m

O que você faz para se motivar em períodos de baixa/desânimo/bloqueio criativo?
Por incrível que parece não tenho necessariamente bloqueio criativos, se eu sinto uma barreira diante de algum trabalho me volto pra outro. As vezes executo três trabalhos que são meus pontos de “fuga” quando to batendo cabeça demais em um específico, daí quando consigo concluir esse que gera o incômodo no final eu tenho 4, as vezes até umas esboços para próximos. Também sou daquelas pessoas que consomem de forma assídua vídeos de organização, limpeza de ambiente, visita de ateliê de artista. São conteúdos que me despertam desejo de me movimentar.

Quais foram os maiores desafios enfrentados na sua trajetória até agora?
Conciliar o fazer artístico com sobrevivência. Não venho de uma família cuja realidade financeira me oportunizou me dedicar somente aos estudos. Entrei na Universidade já trabalhando, sempre trabalhei muito com outras coisas que pudesse pagar meu aluguel e minhas contas básicas e se possível meu material de arte. Conseguir me formar foi um grande desafio. Fazer isso tendo que lidar com violências cotidianas é puxado, é necessário muita saúde mental e fidelidade ao que se acredita.

Como você enxerga o papel da sua atuação como mulher artista no cenário artístico atual?
Não sei se tenho exatamente um papel, mas gosto de tentar retribuir o que já recebi. Então desde o começo da minha caminhada no graffiti procurei me organizar para que os lugares que consegui ocupar pudessem abrigar mais pessoas. Fui a primeira mulher de destaque na arte urbana da minha cidade/estado. A partir desse lugar criei o coletivo, a partir do coletivo criamos o primeiro festival de mulheres no graffiti do ES (2016). Com ele vieram mulheres de várias partes do Brasil e fez crescer ainda mais uma cena que já vinha crescendo desde a formação do coletivo em 2012. Hoje o meu campo de atuação não esta restrito ao graffiti mas venho tentando retribuir de alguma forma o que a Kika criança recebeu através da arte-educação.

Hoje o meu campo de atuação não esta restrito ao graffiti mas venho tentando retribuir de alguma forma o que a Kika criança recebeu através da arte-educação.
— Kika Carvalho
Kika Carvalho Sem título, 2020 [Série Saci] Tinta acrílica sobre tela 50x40cm

Kika Carvalho
Sem título, 2020 [Série Saci]
Tinta acrílica sobre tela
50x40cm

Qual o nome do coletivo que você criou em 2012 e do festival de mulheres no grafitti? 
Coletivo DasMina (2012), co-criei com outras mulheres que animaram em tentar fazer a cena do graffiti feminino crescer. O FEME - Festival de Mulheres no Graffiti (2016) foi uma ação dos coletivo que foi possível graças a um edital, além dele também rolou o Festival de Mulheres no HIPHOP que aconteceu no final de semana de encerramento do FEME que durou uma semana.

Quais foram os impactos e desdobramentos do período de pandemia e isolamento social para você nos âmbitos profissional e emocional? 
Apesar de trabalhos que envolviam oficinas e viagens terem sido cancelados, muitas coisas boas têm acontecido para minha trajetória enquanto artista. Direcionei as energias para a produção no ateliê, onde passo a maior parte do meu tempo trabalhando sozinha, às vezes chego as 9h da manhã e só saio às 22h. Não acho exatamente normal mas é minha forma de lidar com tudo que vejo. Creio que isso me reconecta com a minha infância que, por ser uma crianças tímida, estava sempre desenhando quieta no meu canto. Acho que é uma forma de me manter em equilíbrio comigo mesma e tentar minimamente manter foco e saúde mental em um momento de tanto horror. Às vezes me pego fazendo coisas como não aumentar muito o som da música quando a igreja na frente começa o culto pois tenho receio de sofrer retaliação devido às imagens associadas ao candomblé e à umbanda no meu ateliê. Tomo esse cuidado até mesmo com as pipas que distribuo para as crianças. É bizarro ter que estar sempre pisando em ovos por conta da ignorância alheia mas meio que foi isso que vivi a vida inteira sendo uma mulher negra, bissexual e ocupando a rua. 

entrevistas, perfil, trampolimPaula Plee