Uma relação embaraçosa

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A Juventude Hitleriana foi mais do que inspiração para a Mocidade Portuguesa. Joaquim Vieira investigou e o resultado é "Mocidade Portuguesa - Homens Para um Estado Novo"

É sabido que a "fonte de inspiração" da Mocidade Portuguesa (MP), criada em 1936, residiu nas suas congéneres alemã e italiana. Mas uma recente investigação da autoria de Joaquim Vieira, Provedor do Leitor do PÚBLICO, vem agora revelar que aquelas organizações juvenis, nomeadamente a Juventude Hitleriana (JH), foi mais do que um simples modelo inspirador - nos seus primeiros anos, a MP mimetizou a juventude nazi, com o beneplácito do Governo de Oliveira Salazar e da Alemanha de Hitler.

No livro "Mocidade Portuguesa - Homens Para um Estado Novo" (Esfera dos Livros), Joaquim Vieira recolheu a informação necessária para evidenciar as estreitas ligações entre as hieraquias das duas organizações e para sustentar a tese de que os homens fortes do Estado Novo entendiam a JH como o "modelo perfeito" para uma organização juvenil. Pelo lado alemão, e numa altura em que estava prestes a eclodir a Guerra Civil de Espanha e os nazis procuravam aliados, era vista "com simpatia" a constituição de uma formação de jovens afectos ao regime, explicou Joaquim Vieira ao ÍPSILON.

O progressivo afastamento das relações com a JH só aconteceu a partir de 1940, quando Marcello Caetano, futuro Presidente do Conselho, assumiu as funções de comissário nacional da MP e terá obedecido às directivas de Salazar, que acenou com a bandeira da neutralidade durante a II Guerra Mundial e temia a fúria dos britânicos. Ainda durante o conflito, a cúpula da MP optou por uma inflexão e enveredou por uma aproximação aos jovens franquistas, reunidos na Juventude da Falange e no Sindicato Espanhol Universitário.

Os alemães ensinam

Francisco Nobre Guedes, o primeiro comissário nacional da MP, foi o grande impulsionador das relações com a JH. Conhecido germanófilo (em 1940, foi nomeado embaixador de Portugal em Berlim), Nobre Guedes aproveitou a sua função de presidente do Comité Olímpico Português para estabelecer os primeiros contactos.

No Verão de 1936, poucos meses após a publicação do diploma de criação da MP e nos primeiros dias da Guerra Civil de Espanha, uma delegação de 30 jovens da MP visitou a Alemanha, a pretexto dos Jogos Olímpicos de Berlim. A viagem foi paga pelos alemães e serviu também para os rapazes (os filhos de Nobre Guedes, um neto do Presidente da República, Óscar Carmona, alunos do Colégio Militar, da Casa Pia e dos Pupilos do Exército) conhecerem várias cidades alemãs, sempre acompanhados por graduados da JH, e conviverem com os jovens nazis. Mas nesta fase embrionária da MP (a farda que mais tarde viria a ser obrigatória foi aprovada à pressa), interessava mais aos dirigentes portugueses adquirirem conhecimentos sobre a JH. "Este acto inaugural da MP serviu para a direcção saber como estava estruturada a Juventude Hitleriana", diz Vieira, argumentando com as declarações prestadas à imprensa por Luís Pinto Coelho, secretário-inspector da MP e futuro comissário nacional (1946 -1951), antes da partida para a Alemanha. "O programa já organizado em Berlim é, para nós, ainda desconhecido. Contamos chegar a Lisboa a 29 de Agosto. Então, poderemos falar melhor sobre a Mocidade Portuguesa." Estas palavras revelavam não apenas que o órgão máximo da MP estava disposto a importar práticas e metodologias da JH, mas também que os alemães já haviam traçado um plano organizacional para a MP, como defende Joaquim Vieira.

Os resultados desta visita fizeram-se notar logo em 1936: Nobre Guedes fez várias viagens à Alemanha para "saber como proceder em Portugal"; a MP recebeu a "oferta" de aviões de treino e planadores; a JH nomeou um "dirigente das relações entre a Juventude Alemã e a Mocidade Portuguesa"; delegações da JH participaram em paradas, provas desportivas e desfiles organizados pela congénere portuguesa (em 1942, a JH desfilou na Avenida da Liberdade, juntamente com a MP); oficiais do Exército na MP foram destacados para visitar a Alemanha e também a Itália para recolher ensinamentos; e, já durante a II Guerra Mundial, um dos primeiros comissários nacionais-adjuntos, Frederico Vilar, foi "convidado" para ir até à frente russa, com o título de "observador" (saiu de lá ferido).

Afinidades sim, decalque não

Apesar do contraste entre o cariz militarista e pagão da JH e os princípios católicos da MP, as ligações entre os dois movimentos prosseguiram a bom ritmo e mantiveram-se (com algumas oscilações) durante a guerra. Contudo, a neutralidade portuguesa perante a II Guerra Mundial impunha um novo discurso. E, mesmo depois de vários elementos da MP terem assistido, com o estatuto de convidados, ao Congresso do Partido Nazi, em Nuremberga (1938), a direcção optou por descartar a hipótese de se julgar a organização salazarista uma imitação da JH. "Os mentores da MP inspiraram-se em fórmulas de verdade eterna, em que todos se inspiram, e que não são propriedade exclusiva de ninguém", podia ler-se no "Jornal da MP", em Março de 1939. Preferiu-se, então, a palavra "afinidades", em detrimento daquela que mais se utilizava - "decalque".

A guerra e a influência da aliança luso-britânica (alguns dirigentes da MP não foram poupados a raspanetes dos representantes diplomáticos britânicos) acabaram por forçar ao distanciamento da MP relativamente à JH - a matriz para-militar foi abandonada e cultivada a vertente escutista, introduzida, a partir de 1940, pelo antigo escuteiro Marcello Caetano.

Nesta altura, a MP preferiu a companhia da juventude franquista (no livro há uma foto interessante de uma delegação da MP com ex-combatentes da Divisão Azul, o corpo de oficiais que combateu ao lado dos alemães na frente russa, numa clara quebra da neutralidade espanhola). As relações com os falangistas prolongaram-se no pós-guerra e foi a partir deste momento que, face ao resultado da guerra, o Estado Novo começou a querer expurgar da história inicial da MP as ligações com a JH.

As tentativas de apagamento dos factos mantiveram-se até ao fim da MP, em 1974. Já com Marcello Caetano na liderança do Governo, António Maria Zorro escreveu no seu livro "Chama Inquieta" (1973) que a MP não tivera quaisquer elos com a juventude nazi, aproveitando para, numa atitude revisionista, sublinhar que a visita de Hartmann Lauterbacher, número dois da JH e membro do Partido Nazi desde os anos 20, a Portugal, em 1938, tinha sido meramente protocolar. Zorro só não pôde apagar as afirmações de Lauterbacher, feitas em Lisboa: "O tempo das democracias e dos parlamentos acabou, e só os Estados autoritários têm um futuro à sua frente. As juventudes são a melhor garantia desse futuro e dum renascimento que todos preconizam. (...) O que mais me impressionou na Mocidade Portuguesa é que ela conseguiu criar, como na Juventude Alemã, um tipo de rapaz 'sui generis'."

O "rapaz 'sui generis'" não sobreviveu à guerra nem à filiação obrigatória. Porque a partir dos anos 50, a MP caiu numa fase de estagnação e, uma década depois, era apenas uma sombra débil do folgor dos primeiros anos.

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