Dúvidas rodeiam inteligências artificiais na arte apesar de progresso “imparável”

Uma curadora, um director de museu e um cineasta falam do impacto das IA no trabalho criativo.

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Obra de Grabriel Abrantes em que o artista explora a relação entre a pintura e a inteligência artificial da exposição "Nobody Nowhere" (Galeria Francisco Fino 2022) DR

A definição do que é arte sempre foi uma pergunta aberta, colocada ao nível do olhar de quem a vê, mas a possibilidade de criação artística por inteligências artificiais (IA) num processo visto como "imparável" coloca agora novos desafios.

Desde o final do ano passado que as palavras "Inteligência Artificial" se tornaram de uso ainda mais comum do que aquele apresentado por filmes e séries, com a popularidade alcançada pelos grandes modelos de linguagem (large language models, no inglês original) como o ChatGPT, o Bard ou outros.

Imagens criadas por IA, com solicitações humanas, têm ganhado prémios internacionais, revistas especializadas de ficção científica viram-se obrigadas a suspender a submissão de material por estarem a ser assoberbadas por contos gerados por IA, além de todas as dúvidas — é real ou é falso? — que têm suscitado imagens de figuras públicas em cenas inesperadas.

A opinião de vários especialistas no sector das artes acerca do impacto das IA no trabalho criativo vai do cauteloso ao optimista, com todos a fazerem a ressalva de que são especialistas em arte e não em tecnologia.

A entrada das IA nas artes — visuais ou escritas — data da segunda metade do século XX, com o advento da computação, como lembrou a curadora Marta Mestre, actual directora artística do Centro Internacional das Artes José de Guimarães.

"Já nessa altura se começa a falar de sistemas inteligentes de escrita, de construção de imagem. Então, numa arqueologia da história da arte, entendemos que esses desafios da máquina e do artista estão colocados. Se formos ainda mais para trás, os autómatos já eram objectos, num misto de ciência e da arte, que influenciaram os artistas séculos atrás", disse a historiadora de arte.

A presença desses sistemas na arte não é um fenómeno novo, portanto, levando Marta Mestre a nomear Silvestre Pestana ou Gabriel Abrantes entre os portugueses que recorreram a essas ferramentas na sua arte.

Também o artista Leonel Moura foi das figuras pioneiras em Portugal a trabalhar com IA. Para Moura, a IA "veio demonstrar que quem decide o que é arte ou não é arte não depende tanto do objecto ou do processo, mas do criador e da comunidade [artistas e agentes culturais] a aceitarem ou não".

O artista português está convicto de que o processo da entrada da IA "é imparável" em todas as áreas.

Marta Mestre afirmou que a questão sobre se um objecto criado por uma IA é ou não arte deve ser deixada em aberto: "Essa dialéctica deve permanecer. Ela não deve ser respondida".

O director do Museu de Serralves, Philippe Vergne, não vê com receio o futuro: "Os novos avanços tecnológicos criam sempre este medo. Um pouco como o que descrevemos quando falamos do sublime, algo que é maior do que nós e tem o potencial para nos destruir".

"Para o meu campo, a verdadeira questão é se já produziu boa arte. Estamos obcecados com informação, rodeados por tanta informação que nem sequer a conseguimos processar de forma racional, por isso talvez uma máquina possa ser mais racional do que nós", disse o francês à Lusa, nomeando os artistas Reifik Anadol e Ian Cheng como bons exemplos do que é possível fazer com as IA.

Vergne disse já ter visto obras criadas por IA que são "incrivelmente aborrecidas", mas compara esse multiplicar de trabalhos à poluição, da mesma maneira que o escritor norte-americano Ted Chiang comparou a escrita dos grandes modelos de linguagem a um ficheiro de imagem comprimido, ou seja, com perdas.

Tal como Marta Mestre se refere ao recurso a tecnologias como forma de ruptura, como pontos de partida e não de chegada, também Vergne lembra as várias maneiras como a arte se foi desafiando ao longo das décadas, desde o urinol de Marcel Duchamp à Pop Art ou até mesmo à própria fotografia enquanto meio.

O realizador Edgar Pêra compara a IA a uma ferramenta, como um martelo, ou a uma inovação, como a electricidade, e lembra que tudo decorre de "actividade humana e não das máquinas".

"As pessoas de repente acham que vai aparecer o Terminator ou o Matrix, em que as máquinas se apossam dos humanos. O que eu vejo apenas é o capital em acção. A alucinação é acharmos que as máquinas existem enquanto seres, isso é que o lado de delírio! Se vai desaparecer ou não, depende dos humanos e não das máquinas", defendeu, em declarações à agência Lusa.

Edgar Pêra atribui a responsabilidade desta tecnologia somente a quem a usa, e no caso das artes considera que os criadores podem aproveitar o que de mais interessante pode ter: "Cada vez que surge uma evolução tecnológica qualquer, abrem-se novos caminhos. O Citizen Kane [filme de Orson Wells, de 1941] não existia se não houvesse grande angular".

"Ir contra a convenção pode ser um sinal de que há algo realmente interessante, realmente novo e que ainda não estamos equipados para processar", afirmou Vergne.

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