RESUMO: Este artigo em duas partes (histórico e análise, seguida da parte de interpretação dos dados obtidos por técnicas analíticas) apresenta um estudo da obra Autorretrato (1919, óleo/tela, 100 x 65 cm) de Amedeo Modigliani, pertencente ao acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). Através do cotejamento entre a documentação de procedência da obra, fontes críticas de abordagem da pintura de Modigliani, com as análises técnico-científicas físico-químicas e de imageamento, foi possível reavaliá-la na articulação entre sua materialidade e sua composição, bem como lançar nova luz sobre sua recepção pela crítica dos anos 1950, quando ela chegou ao Brasil e circulou no contexto internacional por meio de publicações e exposições, já como parte de uma coleção brasileira.
PALAVRAS-CHAVE: Amedeo ModiglianiAmedeo Modigliani,Pintura modernaPintura moderna,História técnica da arteHistória técnica da arte,Técnicas analíticasTécnicas analíticas.
ABSTRACT: This two-part article (history and analysis, followed by the interpretation of data obtained via analytical techniques) is a study of Amedeo Modigliani’s Self-Portrait (1919, oil/canvas, 100 x 65 cm2), which belongs to the Museu de Arte Contemporânea of the Universidade de São Paulo (MAC USP). By collating documentation on the work’s provenance, critical sources regarding Modigliani’s approach to painting, and technical-scientific (physicochemical and imaging) analyses, we were able to reassess it in light of the articulation between the work’s materiality and composition. We also managed to throw new light on the work’s critical reception in the 1950s, when it arrived in Brazil and received international exposure - at that time, already part of a Brazilian collection - by means of publications and exhibitions.
KEYWORDS: Amedeo Modigliani, Modern painting, Technical history of art, Analytical techniques.
MUSEUS/DOSSIÊ
Autorretrato de Amedeo Modigliani do acervo do MAC USP à luz de sua história material1
Tracing the material history of MAC USP’s Self-Portrait by Amedeo Modigliani
Recepção: 16 Setembro 2018
Aprovação: 08 Fevereiro 2019
Amedeo Modigliani (1884-1920) é daqueles artistas do primeiro modernismo muito celebrados e popularizados na história da arte moderna. Tratado dentro do ambiente da Escola de Paris, sem ter aderido a nenhum “ismo” das duas primeiras décadas do século XX, o artista nascido no seio de uma família judaica de Livorno foi antes imortalizado em Paris, para depois conquistar a Itália. Apesar de sua fama póstuma, os autores dedicados ao estudo de sua vida e obra sempre enfatizaram sua miséria, assim como seu comportamento extremado e seus hábitos boêmios, que o levaram a ser designado como um “pintor maldito” desde muito cedo.6 Sua morte prematura, o suicídio de sua última mulher, a também pintora Jeanne Hébuterne (1898-1920), grávida, contribuíram para acentuar essa designação e transformá-lo em uma espécie de anti-herói modernista - o que, talvez, tenha lhe garantido enorme celebridade, os preços exorbitantes que suas obras vêm alcançando desde sempre no mercado internacional,7 e o imperativo de ter uma obra do artista em qualquer coleção de arte moderna.
A historiografia sobre sua vida e obra tem sido marcada por dois aspectos: narrativas de sua vida pessoal, em que os testemunhos daqueles que conviveram com Modigliani cumprem um papel seminal; e uma investigação constante de autenticação de suas obras.8 Outro elemento importante nessa historiografia é a ênfase nos estudos sobre seus retratos e seus nus femininos em pintura. Embora sejam de fato recorrentes em sua produção, esses gêneros parecem ser sempre tomados no diálogo necessário com a vida privada de Modigliani: seus amigos e suas relações intempestivas com as mulheres. Tende-se, de certa forma, a falar mais do personagem Modigliani do que de suas pinturas. Afinal, o que sabemos sobre o Modigliani pintor? E, mais particularmente, o que sabemos sobre seu Autorretrato (figura 1), hoje pertencente ao acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP)?
Este artigo pretende lançar luz sobre o único autorretrato em pintura de Modigliani, a partir das análises técnico-científicas feitas entre 2017 e início de 2018, para que o MAC USP colaborasse com um novo estudo material do conjunto de sua obra, levado a cabo por ocasião da exposição “Modigliani”, na Tate Modern, em Londres.9 Além daquilo que se pode inferir com os resultados dessas análises, retomar-se-á a história de sua chegada ao Brasil. Ademais, pretende-se contribuir para uma análise de Autorretrato cotejando-o com outros retratos realizados pelo artista em seus últimos anos de vida, levando-se em consideração seu apreço por Cézanne retratista. Nesse sentido, os retratos de Leopold Zborowski, do próprio Modigliani, e Madame Cézanne em vermelho, do acervo do Museu de Arte de São Paulo (MASP), comparados ao Autorretrato de Modigliani, parecem contribuir para o entendimento que o ambiente do final dos anos 1940 e a década de 1950 tinha sobre sua obra - momento em que ele encontra abrigo em uma coleção brasileira, ao mesmo tempo em que circula em ao menos duas exposições internacionais de revisão de sua obra. Em primeiro lugar, então, será analisada sua chegada ao Brasil, para, depois, passar-se à sua análise, procurando fundamentá-la na comparação com as obras aqui propostas e sua história material e os resultados das técnicas analíticas, apresentadas ao final deste artigo.
Em junho de 1947, Yolanda Penteado escreve em seu diário de viagem à Europa: “Modigliani comprado Milão ganhei presente aniversário”.10 A referência era ao Autorretrato, de Amedeo Modigliani. A obra havia sido adquirida durante a primeira fase da campanha de compras que Francisco Matarazzo Sobrinho realizou para constituir o núcleo inicial do acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM). A ocasião veio por conta de uma exposição organizada pela Associação dos Amadores e Cultivadores das Artes Figurativas Contemporâneas de Milão (Associazione fra gli Amatori e Cultori delle Arti Figurative Contemporanee), dedicada à obra de Modigliani, e na qual seu Autorretrato foi exibido ao lado de outras 60 obras do artista.11
Depois da morte de Modigliani, seu Autorretrato foi vendido por Leopold Zborowski ao colecionador Jones Netter, em Paris, que em seguida o vendeu para a prestigiosa coleção Riccardo Gualino, em Turim.12 Investidor de enorme fortuna, tido como um self made man do mercado internacional de ações, inicialmente Gualino havia formado uma coleção de arte da tradição. Seu encontro com o crítico e historiador da arte Lionello Venturi (1885-1961) foi decisivo para transformar seu gosto e torná-lo um ávido colecionador de arte moderna.13 O Autorretrato havia sido, portanto, uma escolha de Venturi, num momento em que a crítica italiana começava a interessar-se pela obra de Modigliani.14 A dispersão da coleção de Gualino, depois de sua condenação por crimes de estelionato em 1929, fez com que a obra permanecesse em depósito em uma galeria milanesa, até ser adquirida por outro colecionador de arte moderna italiana do período: o industrial genovês Alberto della Ragione (1892-1973), que no segundo pós-guerra doou parte de suas coleções para a prefeitura de Florença.15 Antes de sua compra por della Ragione, Autorretrato teria sido oferecido para o Museu Cívico de Arte Moderna de Turim, que o rejeitou em 1937.16
Autorretrato figurava na mostra retrospectiva do artista em Milão, em 1946, como pertencente a uma coleção privada de Biella. O público italiano havia tido oportunidade apenas uma vez de ver a obra, quando Modigliani recebeu uma sala especial na XVII Bienal de Veneza, em 1930, com texto de apresentação de Lionello Venturi.17 Sua aquisição por Matarazzo e seu despacho para o Brasil em junho de 1947 contribuíram para que Autorretrato fosse paulatinamente se tornando um ilustre desconhecido. Já na coleção Matarazzo, em São Paulo, foi emprestado para duas exposições fora do país, ao longo da década de 1950, sendo novamente exibido apenas em 1991.18 Sua exibição no ambiente internacional retomou destaque com a famosa retrospectiva de Modigliani no Museu do Luxemburgo, em Paris, em 2002,19 sem que nesse intervalo de tempo (entre o final da década de 1950 e início do século XXI) tivesse sido sequer reavaliada pela historiografia da arte internacional.
No caso do Brasil, embora sempre presente nas galerias do MAC USP,20 nos anos 1950, Autorretrato foi visto entre nós quando Yolanda Penteado o emprestou para a exposição “A nova pintura francesa e seus mestres - de Manet a Picasso”, no MAM de São Paulo, em novembro de 1949, e durante a I Bienal de São Paulo, em 1951.
Pintado numa tela em formato marine 40,21 Modigliani se representa com a paleta em punho, sentado olhando para fora da tela. Somos levados a inferir que, diante de si, o artista tem seu cavalete sobre o qual repousa a tela em que pintará seu autorretrato.22 Sua figura e o plano de fundo são realizados em grandes superfícies sintéticas de cor. Há uma contraposição entre as formas ovaladas da cabeça e do tronco alongado da figura e o fundo com superfícies retangulares, que em tese comporiam uma parede do último ateliê de Modigliani, em Paris. Na reconstrução virtual de seu ateliê promovida pela exposição recente na Tate Modern, seu Autorretrato está disposto num cavalete que dá as costas para a porta de entrada do pequeno cômodo e coloca-se de frente para a parede do fundo do ateliê, onde começa o perfil das grandes janelas de vidro que tomam todo o lado esquerdo do cômodo. Uma pequena mesa redonda ao lado do cavalete sugere que talvez tenha sido ali que Modigliani apoiou um espelho para se observar enquanto se retratava. Isso se confirma pelo fato de o artista pintar sua mão direita com a paleta em punho, o que significaria que teria pintado com sua mão esquerda. Não há registro de que Modigliani fosse canhoto, portanto a hipótese de que temos uma representação especular da figura do artista é válida.
Mas é preciso reavaliar esse ponto de vista. Em primeiro lugar, mesmo que se considere que a parte esquerda do fundo, com dois retângulos em tons de azul-esverdeado, poderia corresponder à superfície das janelas, em contraste com a parede (retângulo maior em ocre, ao fundo do lado direito), estaríamos falando da parede do fundo do ateliê, e não a do lado com as grandes janelas de vidro. A posição do artista com seu cavalete e da mesinha redonda seria, então, diferente da sugerida pelo ambiente virtual. Além disso, as imagens de reflectografia no infravermelho23 revelam claramente um fino desenho compondo uma arcada na parte inferior do fundo ao lado esquerdo da composição (figura 2). Embora não tenha sido considerada pelo artista na representação final, isso aponta para duas hipóteses: é possível que Modigliani tenha iniciado ali outra composição e fez seu autorretrato por cima de algo apenas esboçado, ou não estava preocupado em representar o ambiente de seu ateliê. O fundo da composição seria, para ele, um experimento de superfícies de cor para contrapor a sua grande figura.
Esse é o caso de outros retratos feitos por Modigliani, entre 1918 e 1919. O mais evidente deles é Retrato da mulher do artista, Jeanne Hébuterne, de 1918, hoje no acervo do Norton Simon Museum, em Pasadena, Califórnia (figura 3). Também pintado em formato marine 40, e com praticamente a mesma paleta de cor de Autorretrato, é possível considerar esta versão do retrato de Jeanne Hébuterne quase como um par do de Modigliani. O artista também compõe a figura de sua mulher com formas ovaladas e curvas, sobrepondo-a a um fundo constituído de dois longos retângulos contrapostos: do lado esquerdo, o mesmo azul-esverdeado de Autorretrato e, do lado direito, um vermelho-bordô escuro, que se repete nas vestes da personagem e na cadeira na qual a figura está sentada - o mesmo vermelho do casaco que Modigliani usa para se representar.24 E se há elementos reconhecíveis de seu ateliê, como a cadeira nos dois retratos, Modigliani parece ter feito um esforço para abstraí-lo, uma vez que fecha o enquadramento em ambos, reduzindo os objetos e elementos neles representados. As figuras sobrepostas a esses fundos bastante sintéticos adquirem um aspecto escultórico e hierático. Sobretudo em Autorretrato, o efeito de volume dado pelas formas ovaladas da figura é quebrado pelo achatamento do plano de fundo, tratado com grandes superfícies de cor transparente.
Outro aspecto a analisar é como Modigliani procedeu na execução de seu autorretrato. No imageamento com reflectografia no infravermelho, aparece um desenho subjacente muito delicado que o artista fez para conceber sua cabeça e sua fisionomia (figura 4). Essas linhas também acompanham a forma de seu tronco alongado e são enfatizadas com uma fina pincelada de tinta preta que acentua os contornos em toda a figura. Mas ao compararmos as imagens de reflectografia no infravermelho realizadas dos detalhes das mãos e da paleta, observamos que esses elementos não possuem desenhos subjacentes. Modigliani tratou de modo muito diferente sua cabeça em relação ao resto de sua figura, em especial suas mãos. A mão que segura a paleta, por exemplo, é feita com o fino pincel com tinta preta (figura 5), num gesto mais solto e menos preciso do que as finas linhas que acompanham os contornos do rosto. Sobre a presença da linha em Autorretrato, Lionello Venturi observava:
[...] Guardate l’autoritratto del 1919: permangono masse e volumi tonali, ma in essi si è insinuata la linea a compiere la sua funzione di sintesi. Mi ha detto il pittore Mauroner, che condivise col Modigliani lo studio a Venezia nel 1905, che allora il suo amico si tormentava per raggiungere la linea: non che per linea intendesse alcuna fermezza di contorno, anzi egli dava a quel termine un puro valore spirituale, di sintesi, di semplificazione, di liberazione dal contingente, di passione per l’essenziale. Allora a Venezia l’arte antica e l’antica linea gli erano lettera morta. In seguito, a Parigi, le esperienze si moltiplicarono: la scultura negra, la scultura gotica francese, i primitivi italiani (e particolarmente, a quanto pare, amava i Lorenzetti), l’arte giapponese, il Greco, queste ed altre voci discordanti del passato giunsero a lui: e l’una parlava al suo ideale generoso, e l’altra al suo senso violento. Nessuna distrusse il fondamento cézanniano del suo gusto, ma tutte vi lasciarono una impronta; e per esse Modigliani trovò il rapporto tra la linea della sua immaginazione ch’era sintesi astratta, e la linea della sua visione che fu sintesi concreta.25
Nessa breve passagem sobre Autorretrato, além de indicar a presença da linha no contorno das massas da figura, Venturi propõe uma lista das possíveis referências do artista, mas que não deixaram com que ele se desvirtuasse da principal: a pintura de Paul Cézanne.
De fato, vários são os testemunhos de época que falam do interesse de Modigliani por Menino com um colete vermelho, de Cézanne (1888-90, óleo/tela, National Gallery of Art, Washington).26 A curadoria da exposição na Tate Modern identificou um conjunto de retratos de Modigliani, sobretudo de seu período no sul da França (final da I Guerra Mundial), em que o artista teria quase se exercitado em variações em torno dessa obra de Cézanne. Se considerarmos o “impacto do Midi” na pintura de Modigliani em seus retratos posteriores, seu Autorretrato tem conexões importantes com os retratos de Cézanne, em particular as várias versões de Madame Cézanne. Atente-se em especial para as três versões de Madame Cézanne com seu vestido vermelho. As duas primeiras, pertencentes hoje, respectivamente, ao Art Institute of Chicago e ao Metropolitan Museum of Art de Nova York, datam de 1888-90. A terceira, datada de 1890-94, encontra-se hoje no acervo do MASP, em São Paulo (figura 6).27 Comparada às versões anteriores, esta de fato passou por um processo de depuração da composição, em que Cézanne elimina por completo qualquer elemento reconhecível no plano de fundo e a figura de Madame Cézanne é disposta contra um fundo neutro, sem o encosto da poltrona, de forma que sua estrutura é construída por duas superfícies contrastantes de cor, isto é, seu vestido vermelho-bordô contra o fundo verde-azulado. A versão do MASP também é mais translúcida, com camadas mais finas de tinta, do que as anteriores.
Ao fazer seu autorretrato, Modigliani parece experimentar as soluções de Cézanne para esta versão de Madame Cézanne, não só do ponto de vista da contraposição entre figura e fundo, mas também porque esta é acentuada por grandes superfícies de cores contrastantes (cores quentes versus cores frias). Em relação à versão do retrato de Madame Cézanne do MASP, seria produtivo oportunamente comparar a paleta de cores com a do Autorretrato de Modigliani, já que este parece trabalhar com a mesma gama tonal de Cézanne, além de tornar suas camadas de tinta mais translúcidas na tentativa de alcançar o efeito de transparência que vemos na pintura do artista francês.
É difícil saber se Modigliani teve a oportunidade de ver esta versão específica do retrato de Madame Cézanne,28 mas a questão não seria tanto se o pintor livornês estudou este retrato específico de Cézanne, e sim como ele apreendeu o princípio ou procedimento geral de Cézanne na execução das várias versões de sua Madame Cézanne. Nesse sentido, entre o retrato hoje no acervo do Art Institute of Chicago, aquele pertencente ao acervo do Metropolitan Museum em Nova York, e a versão do MASP, Cézanne operou um processo de depuração dos elementos da composição e da paleta, que muito se assemelha às tentativas de Modigliani com seus retratos de Jeanne Hébuterne e com seu autorretrato, além de outros retratos de 1918-19. Além disso, as versões do retrato de Madame Cézanne eram muito comentadas pela crítica do período. No caso específico da versão que hoje está no Metropolitan Museum, ela participou da grande retrospectiva Cézanne no Salão do Outono de 1907, tendo sido objeto de menções e apreciações pela crítica dos anos 1910.29
Sobre as cores empregadas por Modigliani, uma das perguntas feitas durante as análises técnico-científicas foi se a paleta que o pintor segura em seu autorretrato contém os mesmos pigmentos que a composição como um todo. De fato, as análises com Fluorescência de Raios X por Dispersão de Energia (ED-XRF) e Microscopia Raman30 demonstram que sim, bem como demonstram que sua paleta é bastante econômica e comparável a outros retratos e obras realizados pelo artista.31 Isto significa que, tanto do ponto de vista da base de preparação da tela quanto dos pigmentos, Modigliani fez uso recorrente de poucos pigmentos. No caso de Autorretrato, ficou evidente também que o artista parece reutilizar o pincel para cores diferentes, uma vez que os espectros de ED-XRF mostram a presença de elementos que não são próprios de certos pigmentos, sugerindo traços remanescentes de outros pigmentos, isto é, de um pincel “sujo” ou do uso do mesmo pincel para aplicação de diferentes cores.
Ainda sobre a composição das tintas e preparação da tela, a tentativa de fazer as análises de micro-RAMAN tinha, em princípio, o objetivo de determinar se o ligante dos pigmentos era óleo ou têmpera. Não foi possível chegar a uma conclusão nesse sentido, devido à espessa camada de verniz de damar aplicada sobre a superfície da pintura (figura 7).32 No entanto, foi através da análise de micro-RAMAN de uma das amostras que foi possível identificar a presença de azul da Prússia, que não havia sido detectado nas análises de ED-XRF, mas que é um pigmento recorrente em outras obras de Modigliani.
Outro retrato de Modigliani que parece corroborar com os procedimentos adotados por ele em seu Autorretrato é o retrato de Leopold Zborowski do acervo do MASP (figura 8).33 A composição foi concebida do mesmo modo como Modigliani procedeu em relação ao seu autorretrato, e a outros retratos do período, em especial as versões em que retrata Jeanne Hébuterne.34 Por um lado, é Camesasca quem sugere que a datação de 1919 para Retrato de Leopold Zborowski seja incorreta, justamente por causa do elemento da porta, ao fundo do lado direito da composição, que se repete numa das versões do retrato de Jeanne Hébuterne.35 Por outro lado, a versão apenas do busto de Leopold Zborowski, hoje pertencente à Barnes Foundation, e datada de 1919, é muito próxima à versão do MASP, levando-se a considerar que a data da obra do MASP deva ser 1919.36 Há, portanto, uma relação estreita entre as versões do retrato de Jeanne Hébuterne, os dois retratos mencionados de Leopold Zborowski e o Autorretrato, confirmando que esse conjunto de retratos tenha sido realizado entre 1918 e 1919. A recorrência, novamente, do formato marine 40 em algumas versões do retrato de Jeanne Hébuterne, no de Leopold Zborowski do MASP, e no Autorretrato, bem como o tratamento da relação figura e fundo, e por fim a paleta do artista neles, parece indicar que eles constituem para Modigliani um mesmo problema de pintura. Nessa investigação, o artista pode ter sido levado a dialogar sobretudo com as versões do retrato de Madame Cézanne, em especial àquela que está hoje no acervo do MASP.
A comparação entre o Modigliani do MAC USP com os retratos de Leopold Zborowski e de Madame Cézanne do MASP pode ser reveladora do olhar que selecionou essas obras para esses acervos brasileiros e por qual visão da obra de Modigliani ele se orienta. No estudo inicial sobre as aquisições de Matarazzo para a criação do MAM de São Paulo, foi possível identificar, efetivamente, a atuação de dois intermediários: Pietro Maria Bardi e Margherita Sarfatti.37 Considerando-se que tenha sido adquirido durante a exposição retrospectiva em homenagem ao artista, realizada em Milão em 1946, pode-se inferir que a intermediação da compra teria sido feita ainda por Bardi, o que também confirma as relações e gosto deste crítico.
Certamente Modigliani não teria sido uma escolha de Sarfatti, ou seus intermediários, que situava a obra de Modigliani na Escola de Paris e mais distante da noção de Novecento Italiano.38 Sarfatti aproxima a obra do artista de Livorno àquela de seu conterrâneo da Escola de Paris, Chaïm Soutine.39 Mesmo assim, sua apreciação da pintura de Modigliani conclui sugerindo que as linhas do artista vêm diretamente da linha quattrocentesca: “[...] Modigliani tiene en su pintura, y particularmente en sus dibujos, tenues como un hilo de seda, hierentes como el filo de la navaja, la precisión delicada y viva de los toscanos del Quattrocento, con la misma soberana pureza”40 Ela vai, assim, na direção oposta à de Venturi, que em 1930, falava da linha de síntese do artista.41
Aproximar Modigliani da tradição italiana do Quattrocento foi uma estratégia adotada por certa crítica italiana na segunda metade da década de 1940, que teve uma reverberação em como o ambiente norte-americano recepcionou sua obra a partir da célebre exposição Twentieth Century Italian Art, organizada pelo MoMA em 1949. O mesmo James Thrall Soby que havia escrito sobre Modigliani para esse catálogo foi o curador e autor do texto do catálogo da exposição Modigliani Paintings, Drawings, Sculptures, também no MoMA entre abril e junho de 1951.42 Para ela, tanto o casal Matarazzo quanto o MASP emprestaram os Modigliani de suas respectivas coleções.43 Com uma seleção de retratos e nus em pintura, desenhos e esculturas, Soby identifica nos nus a vinculação de Modigliani com a pintura moderna francesa.44 Seus retratos, no entanto, teriam sido fruto de seu “maneirismo” e de sua raiz italiana tradicional. Assim, Soby (1951, p. 9) abre seu texto para o catálogo:
Of facts pertaining to Modigliani's career, none is more singular than that he should have been so direct an heir to the Renaissance and Mannerist painters of his native Italy. He was separated from them by generations of artists, fluent and important at first, dwindling to cautious provincialism in the century preceding his own.45
Analisando a disposição das pinturas nas fotografias de registro da exposição, e ao contrário do que Venturi havia feito na sala especial do artista em 1930, os retratos de Modigliani são efetivamente dispostos como que compondo “the gallery of an era and of a world, the last real Bohemia”, nas palavras de Soby (1951, p.10), sem nenhum destaque feito ao seu Autorretrato.46
O Brasil, no entanto, e apesar de suas aproximações ao ambiente norte-americano, colecionou apenas retratos em pintura de Modigliani. Entre 1951 e 1952, Bardi completou o conjunto de obras do artista, no MASP, com a aquisição de mais cinco retratos, de momentos diferentes da carreira de Modigliani, dentre os quais se destaca Retrato de Diego Rivera (1916, óleo/papelão, 100 x 79 cm). Este é o retrato mais claramente próximo do contexto internacional parisiense, do chamado primitivismo e das primeiras experimentações do artista em Paris. Os demais, assim como Retrato de Leopold Zborowski e Autorretrato, entram na pesquisa pictórica do artista que se procurou analisar aqui, isto é, de uma clara aproximação à retratística de Cézanne.
De qualquer forma, Autorretrato não faz propriamente referência à tradição italiana. Isso está claro nos procedimentos que o artista adotou para sua execução e também na constituição da figura e de sua emenda com a cabeça. A cabeça de Modigliani é inclinada e parece pousar sobre seu tronco, como se o artista combinasse duas formas ovaladas, como visto acima. Com seus traços finos e alongados, ela poderia perfeitamente aludir às cabeças abstratizantes e reluzentes de Brâncusi, com quem Modigliani aprendeu a esculpir.
Se uma parcela da crítica do período construiu a imagem de Modigliani como um artista que havia “atualizado” a tradição artística de seu país, há outra crítica que procurou resgatar os aspectos de sua obra que o vincularam à Escola de Paris e a Cézanne, embasando-se sobretudo nas interpretações de Venturi. É o caso da resenha que Mário Pedrosa publicou no Jornal do Brasil em 29 de maio de 1958, da exposição retrospectiva da obra de Modigliani, organizada pela Galerie Charpentier, em Paris, e na qual Autorretrato foi exibido:
Na Galeria cheia de gente, mulheres elegantes, homens de chapéu caro, burgueses ricos e pequenos, burgueses sentimentais, a ‘posteridade’, enfim, lá está para glorificar o pintor sacrificado e enriquecer ainda mais os espertos marchands que, ao jogar na bolsa de valores artísticos, compraram na baixa para vender na alta, às custas da vida mesma que ora endeusam. Diante dos mais tristes e belos retratos e bustos de Modigliani, inclusive os vários autorretratos e retratos de sua Jeanne, os snobs ricos e envelhecidos de sua geração, com os filhos exultavam. A burguesia descobria o gênio morto, com um trágico atraso.
Essas reflexões amargas nos vinham à mente, quando visitávamos a mostra. E, então, verificávamos que um novo equívoco estava surgindo ali mesmo: o que aquela gente admirava era a elegância, o maneirismo, certo que snob aparente em várias daquelas obras. O Modigliani, filho de Cézanne e dos fetiches negros, irmão mais moço de Brancusi, com a beleza incomparável de sua assimetria de desenho, com o ritmo quase soluçante de sua linha, com suas sombras delicadas e moventes que chegavam para sustentar, de leve, a pureza nervosa dos contornos, com a intransigência de sua simplificação formal, nascida nas fontes da arte moderna, isto é, em Cézanne, e nas fontes da arte eterna, isto é, nos fetiches negros, esse - poucos o viam [grifo do autor].47
Pedrosa acentua na pintura de Modigliani sua ligação com Cézanne, com Brâncusi e com a escultura africana. Seu argumento resgata o de Venturi, da sala especial da Bienal de Veneza em 1930, da “linha da síntese”, que Pedrosa chama aqui da “intransigência de sua simplificação formal”. Na matéria mesma de seu Autorretrato, Modigliani deixa entrever seu modo de trabalho com o desenho e o uso que faz de suas fontes, demonstrando assim que a crítica venturiana, retomada por Pedrosa, é aquela que olha e escrutina a pintura.
Nesse sentido, as técnicas analíticas foram fundamentais para o entendimento e a interpretação dos procedimentos de Modigliani. Elas corroboram a composição de seu Autorretrato a partir da linha desenhada a grafite, o reforço da linha em cor preta com um fino pincel, e o preenchimento com as cores a posteriori. O mesmo modo de executar a pintura, bem como a recorrência dos pigmentos utilizados e os padrões de formato de tela mais empregados pelo artista emergem em outros casos aqui analisados, bem como no projeto de pesquisa técnica das obras do artista empreendido pela Tate Modern, em 2017.
Além disso, elas foram preciosas para a comparação com o retrato de Madame Cézanne, de Paul Cézanne, do acervo do MASP. Há alguns elementos no modo de proceder de Cézanne que são muito próximos àqueles de Modigliani. Além do que foi analisado anteriormente, as finas camadas de aplicação dos pigmentos em Cézanne revelam, no plano de fundo, linhas verticais provavelmente feitas com grafite sob a pintura, que muito se assemelham ao modo como Modigliani desenha os arcos depois recobertos pelas camadas de pintura em seu Autorretrato. E embora não pareça desenhar a figura a grafite, Cézanne lança mão da cor preta aplicada com um pincel mais fino para enfatizar os contornos da figura. Um detalhe da mão direita de Madame Cézanne nos revela, por fim, um traçado mais esboçado na sua execução e duas manchas quase puras de cores - o que também parece remeter à maneira como Modigliani executa suas próprias mãos, ainda que mais atabalhoadamente do que Cézanne. Detalhes como esses, embora parcialmente visíveis a olho nu, puderam ser efetivamente comprovados e averiguados com as técnicas analíticas aqui empregadas.
A seguir, apresentam-se os resultados completos do estudo da paleta do artista e outros dados materiais identificados através das análises técnico-científicas realizadas. Nesta parte final, também há uma descrição das técnicas empregadas e que tipo de informação elas podem fornecer a respeito de uma pintura, como é o caso aqui.
Para este projeto foram realizadas metodologias de análise que envolvem técnicas de imageamento, Fluorescência de Raios X por Dispersão de Energia (ED-XRF) e Microscopia Raman na obra. Abaixo, há uma apresentação das técnicas utilizadas, com uma discussão final dos resultados levantados.
As técnicas por meio de imageamento são formas importantes de documentação, registro e estudo do patrimônio como fonte de informações fidedignas, resultando em um conjunto de dados característicos, exclusivos, e tornando-se documento da própria obra, principalmente para seu histórico de conservação e acompanhamento de eventuais intervenções de restauro.
Luz Visível - permite registrar a obra, a paleta cromática e detalhes estilísticos. O sistema utilizado consiste em uma câmera digital de alta resolução e diversas lentes, para reprodução legítima da obra, principalmente do registro das cores, utilizando uma tabela de cor (Color Checker)48 com valores RGB (Red, Green e Blue) conhecidos.
Luz Rasante - Nesta técnica, utiliza-se luz tangencial projetada na obra com o objetivo de realçar características desta, como relevos, pinceladas, asperezas de superfície, etc.
Fotografia de Fluorescência Visível com Radiação de Ultravioleta (UV) - Técnica fotográfica em que é registrada a fluorescência de determinadas substâncias gerada pela radiação UV que incide na pintura. A emissão de fluorescência de uma determinada substância se dá em função da interação da radiação UV com os materiais existentes na obra, e desse modo é possível obter informações superficiais da camada pictórica, detectando anomalias na policromia, áreas retocadas, onde é difícil distinguir entre estas e a pintura original, e possíveis materiais utilizados pelo artista. Áreas de retoques, restaurações e intervenções recentes são visíveis pelas diferentes fluorescências que se apresentam sobre tons azulados diferentes. Se os vernizes que cobrem a obra são muito antigos e espessos, haverá uma fluorescência esverdeada que é produzida quando se projetam sobre eles os raios UV.
Reflectografia no Infravermelho (IRR) - A fotografia de reflectografia no infravermelho (IR) é uma técnica não destrutiva, na qual a imagem é obtida através de uma câmera digital (Osiris), que opera na faixa espectral de 900 a 1700 nm. A imagem observada resulta da conjunção dos fenômenos de reflexão, absorção e transmissão da camada superficial, revelando detalhes e traços escondidos. A visualização dos desenhos depende de dois aspectos: contraste e transparência.
O contraste está relacionado ao material utilizado no desenho e a refletividade com relação à base de preparação. A transparência está relacionada com a camada pictórica e depende da composição dos pigmentos. Quando o meio para desenhar é à base de carbono, sua absorção do infravermelho é alta e aumenta a diferença da refletividade com a base de preparação. Nesse caso, o desenho fica bem visível, mesmo que a capa pictórica seja pouco transparente.
A Fluorescência de Raios X (FRX ou XRF - X-Ray Fluorescence) por dispersão de energia é uma técnica de análise não destrutiva, que vem sendo muito utilizada para investigar e identificar os elementos químicos presentes nos materiais dos diferentes objetos do patrimônio histórico cultural. Para as análises aqui realizadas, utilizou-se um sistema portátil constituído por um tubo de raios X, de anodo de prata e um detector de raios X, semicondutor de Si-Drift, ambos da Amptek®.
Nesta análise, um feixe de raios X é utilizado para excitar os átomos dos materiais existentes no objeto em estudo. No processo de desexcitação, raios X característicos são emitidos pelos átomos existentes e estes são coletados pelo detector e processados para gerar espectros de raios X com os elementos químicos que podem ser identificados e quantificados caso seja necessário. Durante as medidas, o equipamento é posicionado próximo ao objeto sem tocá-lo, realizando, desse modo, análises não destrutivas (figura 9).
A Microscopia Raman, que se fundamenta no espalhamento inelástico de luz, é uma técnica de caracterização molecular não invasiva e não destrutiva que, adicionalmente, não requer contato físico com o objeto analisado: a análise é feita por um feixe de radiação laser de baixa potência focalizado através da objetiva de um microscópio em áreas de interesse extremamente pequenas (tipicamente de 1 a 4 μm2). Isso faz com que seja possível também realizar análises em modo virtualmente não invasivo, ou seja, quando é necessária a coleta de amostra, mas em quantidades tão pequenas q ue não causam impacto estético ou físico no objeto em análise. Essas características da técnica fazem com que tenha posição de destaque dentre aquelas empregadas no estudo de bens culturais.
As análises foram feitas em Microscópio Raman Renishaw inVia Reflex (figura 10), usando lasers variados (532 nm, 632,8 nm e 785 nm) e detector CCD refrigerado termoeletricamente. Devido à impossibilidade de remoção da obra do ambiente do museu, foram coletados microfragmentos (de dimensões menores do que um terço de um fio de cabelo) de áreas selecionadas do quadro, empregando para isso agulhas hipodérmicas de pequeno diâmetro. Os fragmentos contendo pigmentos e corantes ficam aderidos à ponta da agulha que é colocada no estágio do Microscópio Raman (figura 10 e 11), permitindo que a análise não destrutiva seja realizada.
As medidas de imageamento realizadas com fotografias com luz visível, luz rasante, fluorescência visível com ultravioleta e reflectância no infravermelho trouxeram várias informações relativas a registro, estado de conservação e processo criativo de Autorretrato de Amedeo Modigliani. A fotografia com luz visível (figura 11) revela em detalhes a paleta de cores utilizada pelo artista, e o confronto de imagens feitas com luz visível, IRR, UV e rasante (figura 12) mostra detalhes dos traçados a lápis feitos pelo artista, bem como enfatizam os contornos das finas pinceladas de tinta preta, a camada espessa de verniz na luz UV e o pouco relevo existente nesta obra indicando uma fina camada de tinta.
A assinatura desta obra é muito semelhante à de Madame Z (1918, óleo sobre tela, 54 x 37,5 cm, Birmingham Museums Trust) e é uma assinatura com tinta mais espessa em relação à de Le Petit Paysan (1918 ca., óleo sobre tela, 100 x 64,5 cm, Tate Modern, Londres), e provavelmente o pigmento usado é à base de cálcio (ver resultado de ED-XRF). Não se observaram alterações nas diferentes técnicas de imageamento aplicadas e que são exemplificadas na figura 13.
Percebe-se que há um grande contraste entre a cabeça e as mãos pintadas pelo artista. A cabeça é muito mais detalhada, com imagens de traços de grafite no rosto - nariz, boca, orelha - em comparação com as mãos, que apresentam traços mais soltos, sem grande precisão ou detalhamento (figuras 14, 15 e 16).
Observamos também a presença de um carimbo no verso da tela (em imagem macro da figura 17). o qual, após processamento da imagem, foi identificado como uma transferência de carimbo da alfândega francesa (outros detalhes estão ilegíveis). Podemos também observar a trama do tecido do verso, da tela usada para o reentelamento feito em 1983.
As medidas de ED-XRF com o equipamento portátil de fácil manuseio foram realizadas com condições experimentais de 30 kV de tensão e 10 uA de corrente no tubo de raios X, com 100 s por ponto irradiado. Foram realizadas medidas em um total de 67 pontos com colorações diferentes (figura 18).
Espectros típicos das medidas ED-XRF podem ser vistos na figura 19 para os pontos P62 (pigmento ocre, canto superior esquerdo) e P59 (pigmento preto, olho direito). Todos os espectros medidos indicam uma grande quantidade de chumbo e quantidades menores de elementos como cálcio (Ca), ferro (Fe), bário (Ba), cromo (Cr), zinco (Zn), mercúrio (Hg) e titânio (Ti) nos pontos de restauro (identificados pela fotografia com luz UV). A sistematização dos dados foi feita através das áreas de pico dos diferentes espectros e é apresentada com gráficos de barras (figura 20). Os pontos foram divididos nas cores: marrom, verde-escuro, verde-claro, verde-azulado, amarelo-esverdeado, ocre, cinza, amarelo (carnação), vermelho, branco, cinza e preto e nos três últimos pontos (borda da tela, tachinha de metal, verso da tela).
No gráfico de barras para o elemento chumbo, percebe-se que este está distribuído sistematicamente em todos os pontos, sugerindo que este elemento está relacionado ao branco de chumbo usado para misturas e também em outros pigmentos. Infere-se assim que a base de preparação da tela teria sido, portanto, o branco de chumbo. O ponto P12 possui maior quantidade de chumbo, pois esse ponto se refere ao ponto identificado com falta de verniz. Os pontos que possuem menor quantidade de chumbo sugerem maior espessura da camada de tinta, como no caso da paleta pintada na tela, conforme os pontos P41 e P42. O ponto P65 não possui chumbo, pois confirma que a lateral (borda reforçada) não possui preparação de fundo de chumbo. O ponto P66 também não possui chumbo, pois se refere à tachinha de cobre. A menor quantidade de chumbo no verso da tela P67 está relacionada à tela de reentelamento que não possui chumbo.
O elemento mercúrio está presente nos pontos marrons (P1, P2, P3, P4, P12), no ocre (P42) e nos vermelhos da paleta (P40 e mais intenso P41); e na boca e orelha (P60 e P61), nos pontos P37 e P38 (verde-escuro da paleta). A identificação desse elemento sugere o uso do pigmento vermillion cinnabar (HgS).
O ferro é o elemento usado principalmente nos marrons (P20, P8, P21, P29, P45, P54, P31), nos ocres (P63 e P64), nos vermelhos da cadeira (P22 e P24) e no ponto preto da cadeira (P5). A sugestão é que temos um pigmento à base de ferro haematite/mars red (pigmento sintético do século 19) ou ochre/goethite (mineral). O cálcio está mais presente no ponto P52 (assinatura letra G), no ponto P53 acima da assinatura, no P11 (restauro) e no 18 (preto - sugestão de pigmento preto de osso). O elemento bário está presente nos pontos verde-escuro (P37 e P38) e nos marrons, ocres e vermelhos (P40 e P41) e nestes dois últimos vinculados ao mercúrio (talvez meio usado neste pigmento vermelho).
O elemento manganês está presente apenas nos pontos P20 e P21 que são os marrons da manga e do casaco. O elemento cromo está presente mais intensamente nos pontos P7 (marrom), P41 e 61 (vermelho) e P42 (ocre) sugerindo talvez a mistura com pigmentos à base de cromo, como o chrome yellow ou zinc yellow, e ainda o chrome red.
O elemento zinco possui maior quantidade nos pontos do canto inferior direito (P1, P2, P3, P4 e P12 - pontos marrons) e no canto superior direito (P50, P51 e P53 - pontos ocres), sugerindo pigmentos à base de zinco (zinc yellow). Deve-se observar ainda que há uma quantidade constante de zinco em todos os pontos medidos.
Finalmente, temos a identificação do elemento titânio apenas nos pontos P53 (ocre acima da assinatura na borda), P56 (carnação do rosto na mancha) e P11 (mancha escura na calça parte inferior perto da borda). Todos estes pontos foram identificados por UV e pela restauradora do MAC USP como pontos de restauro, evidenciando que o restauro foi feito com mistura à base de pigmentos de titânio (branco de titânio).49
Espectros Raman típicos dos colorantes encontrados são mostrados na figura 21. Como se trata de análise microscópica, pigmentos de diferentes colorações podem ser encontrados em amostras coletadas em áreas que não aparentavam essa diversidade, revelando a mistura de tintas ou as composições químicas específicas de cada tinta.
Vários pigmentos puderam ser identificados nas análises realizadas, como será detalhado a seguir.
Pigmentos brancos - Branco de chumbo - carbonato básico de chumbo (PbCO3)2.PbO - foi encontrado em várias amostras. Esse pigmento teve uso intenso até o século XX e era empregado também na preparação de telas, como carga em formulações de tintas e como secante em vernizes de acabamento. Branco de titânio (anatase, TiO2), branco de zinco (óxido de zinco, ZnO) e litopone (mistura de sulfato de bário e sulfeto de zinco) não foram identificados, apesar de serem bons espalhadores de luz. Como visto anteriormente, a presença de zinco detectada por ED-XRF está provavelmente relacionada ao pigmento amarelo cromato de zinco (ZnCrO4). Em alguns espectros, observa-se uma banda de baixa intensidade em 1.009 cm-1, característica de sulfato de cálcio di-hidratado (gesso), o que pode explicar a detecção de cálcio por ED-XRF.
Pigmentos pretos - No caso dos pigmentos pretos, apenas carvão (carbono amorfo) foi encontrado, como demonstram as largas bandas D (1.330 cm-1) e G (1.600 cm-1) identificadas nos espectros de pigmentos com essa coloração e também em misturas com outros pigmentos observados em áreas de coloração mais escura na tela, como marrons. O pigmento de carbono amorfo pode ser preparado de várias formas e daí advém o fato do pigmento ter vários nomes, sendo um deles o preto de ossos. Nesse caso (e também com o negro de marfim), entretanto, é sempre observada a banda característica dos grupos fosfato que existem nas hidroxiapatitas (hidroxifosfato de cálcio carbonatado) dos ossos, e isso não foi observado, razão pela qual se pode descartar que se trate desse pigmento.
Pigmentos vermelhos - Quanto aos pigmentos vermelhos, foram inequivocamente identificados os pigmentos hematita (Fe2O3), vermelhão (HgS) e cromato básico de chumbo (PbCrO4.PbO que, dependendo da preparação do pigmento, sua coloração pode ser alaranjada também). Com muita frequência, tais pigmentos são usados misturados, ou seja, foram identificadas nos espectros bandas de vermelhão junto com cromato básico de chumbo e, considerando que a análise ocorre em nível micrométrico, isso significa a mistura íntima dos componentes, provavelmente na própria fabricação das tintas. Esses vermelhos também estão presentes em áreas marrons do quadro, misturados com o pigmento preto.
Pigmentos marrons - A análise de áreas de coloração marrom especificamente revelou uma mistura de vários pigmentos, como vermelhos, amarelos e laranja em mistura com o preto. Não foi encontrado pigmento à base de manganês, mas é importante destacar que a decisão de não proceder uma coleta extensiva de pigmentos da tela visando à sua preservação, aliada à característica microscópica da técnica, ao fato dos óxidos de manganês serem maus espalhadores de luz e à sua baixa concentração na tela, como revelado por ED-XRF (manganês foi encontrado em apenas alguns pontos em com baixa concentração), pode dificultar sua observação. Já sua detecção limitada a poucos pontos e sua baixa intensidade nos espectros ED-XRF levam ao questionamento sobre a significância de sua detecção na análise elementar.
Pigmentos azuis - Dois pigmentos azuis foram identificados, sendo que com frequência suas bandas aparecem juntas no espectro (mas com intensidades diferentes). Eles são o azul ultramar (ou ultramarino) e o azul da prússia; o azul ultramar consiste em uma matriz de aluminossilicato na qual estão aprisionados íons de enxofre (S2- e S3-), os quais são os responsáveis pela coloração do pigmento. Já o azul da prússia é sintético (início do século XVIII) e corresponde a hexacianoferrato de ferro (III).
Pigmentos amarelos - Foram empregados na confecção da tela cromato de zinco e cromato de chumbo, cujos espectros apresentam diferenças nítidas. Não foram observadas bandas características de goethita.
Pigmentos verdes - No caso de pigmentos verdes, trata-se de mistura de azul e amarelo, como pode ser visto na micrografia apresentada anteriormente. Nesse caso, o amarelo é constituído por cromatos e o azul por azul ultramar ou azul da Prússia.
Pigmentos laranja - Os pigmentos laranja encontrados eram constituídos por cromato básico de chumbo puro ou misturado com cromato de chumbo e vermelhão. O espectro Raman obtido da amostra 12 mostra claramente as bandas dessas três últimas substâncias em um mesmo espectro.
A Tabela 1 apresenta e sumariza os elementos químicos e pigmentos encontrados nas amostras coletadas da pintura.
As análises técnico-científicas realizadas por metodologias físicas e químicas em objetos de arte e do patrimônio cultural são de interesse de diferentes áreas, pois contribuem para uma abordagem interdisciplinar dos objetos culturais, levando em consideração suas características físicas e o que elas têm a elucidar sobre o processo criativo de um(a) artista, e em quais condições materiais ele(a) trabalhou para realizar suas obras. Esses estudos detalhados permitem também obter informações sobre o estado de conservação e sobre as técnicas e cronologia de seu uso, já que, no caso aqui estudado, de pinturas de cavalete, essas análises permitem determinar a composição química dos materiais existentes, definindo com precisão a paleta de pigmentos utilizados, além de fornecer elementos para a identificação do período histórico da obra.
O estudo desta obra de Modigliani, além de ter contribuído para o projeto maior de pesquisa sobre as técnicas do artista, permitiu que se determinasse com clareza sua paleta de cores, sua escolha de tecidos para as telas e sua preferência por determinados formatos de tela. Com relação principalmente ao estudo das cores, constituiu-se uma tabela de pigmentos mais utilizados por Modigliani, que coloca o pesquisador diante de novas perguntas: Modigliani comprava suas tintas prontas, em lojas de materiais artísticos? Tudo indica que sim. O que isso significa para um artista como ele, que teve uma vida muito austera, quase sem recursos? Seu reúso do pincel e dos mesmos pigmentos resultaram em um conjunto de obras que têm uma forte semelhança, como se fossem quase variações em torno de um mesmo tema. Se, de um lado, é possível analisar tal fenômeno como sintoma de seu estudo das obras de Cézanne, como proposto aqui, de outro, é possível imaginar que ele tivesse experimentado com outras cores e/ou pigmentos? Essas e outras perguntas abrem novas perspectivas de análise que vão para além do procedimento do artista, mas podem apontar para redes de sociabilidade que viabilizaram sua produção artística, bem como reavaliar a pintura ou um problema de pintura não só na sua dimensão formal, mas também o quanto seus aspectos formais são impactados pelos reais meios técnicos e materiais de um artista.