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As inovações do discurso quadrinístico de Renato Canini
Innovations in Renato Canini’s comics discourse
Interin, vol. 21, núm. 2, pp. 122-139, 2016
Universidade Tuiuti do Paraná

Artigos Livres



Recepção: 10/06/2015

Aprovação: 17/08/2015

Resumo: O cartunista gaúcho Renato Vinicius Canini participou de movimentos e publicações de histórias em quadrinhos e humor gráfico de grande importância, tanto para o mercado editorial brasileiro, como no âmbito alternativo. Sua trajetória artística e de vida pode ser reconstituída por meio de sua obra, desde sua atuação na cooperativa de artistas que defendiam os quadrinhos brasileiros, no início dos anos 1960, passando pela renovação do personagem Zé Carioca, cujas desventuras ambientam-se nas favelas dos morros cariocas, e por tiras de conteúdo ecológico. O uso da metalinguagem nas histórias de humor que produziu para diversos títulos era característica recorrente do artista. Para recuperar a memória deste quadrinista pouco conhecido, foi realizada uma pesquisa qualitativa, documental, e a análise do conteúdo do material que Canini criou durante sua carreira.

Palavras-chave: Histórias em Quadrinhos, Humor Gráfico, Brasil, Renato Canini, Formação Discursiva.

Abstract: Gaucho cartoonist Renato Vinicius Canini participated of artistic movements and publications of comics and graphic humor of great importance, both for the Brazilian publishing market and the alternative comics scene. His artistic career and life can be traced through his work, from his activities in the cooperative of artists who supported Brazilian comics in the early 1960s, through the renewal of the character Joe Carioca, whose misadventures take place in Rio de Janeiro’s slum hills, and comic-strips with ecological content. The use of metalanguage in the humoristic stories which he produced for various titles is a recurrent characteristic of the artist. To bring back the memory of this little-known comics author, we conducted a qualitative research based on documentary research and analysis of the contents of the material he created during his career.

Keywords: Comics, Graphic Humor, Brazil, Renato Canini, Discursive Formation.

Introdução

Vida, obra, tempo histórico. Pode-se relacionar o vivido e o criado em um período, a partir dos discursos proferidos por aquele que viveu e criou. A própria obra é um discurso que possibilita compreender seu criador e o momento da criação. Nesse sentido, pode-se empreender um procedimento “arqueológico” do produto fruto da imaginação de uma pessoa, de um artífice, de um enunciador. Foucault (2007, p. 149) redimensiona o sentido da arqueologia, diferenciando-o da geologia: para ele, esse termo “designa o tema geral de uma descrição que interroga o já dito no nível de sua existência; da função enunciativa que nele se exerce, da formação discursiva a que pertence, do sistema geral de arquivo de que faz parte”. No entender do autor, a “arqueologia descreve os discursos como práticas especificadas no elemento do arquivo”.

Para compreender a trajetória do artista gaúcho Renato Vinicius Canini, este estudo empreendeu uma arqueologia, no sentido definido por Foucault, dos cartuns e histórias em quadrinhos elaborados por ele, percebendo neles os discursos contidos em seus conteúdos, à luz do momento histórico em que foram criados. Trata-se, portanto, de uma pesquisa qualitativa, de nível exploratório, que objetiva recuperar a memória de um importante quadrinista brasileiro pouco conhecido pelo público. Pretende-se revelar, pela análise do humor gráfico do artista, seu pensamento inovador e sua contribuição simbólica para o país, por meio de narrativas e desenhos.

Esse potencial simbólico inovador da produção implica mudanças, transformações e renovações na arte; no caso de Canini, nas histórias em quadrinhos e no humor gráfico que ele elaborou durante cinco décadas. Dessa forma, de acordo com Cardoso e Santos:

Embora as inovações tecnológicas sejam mais perceptíveis tanto para o público como para os pesquisadores do campo de estudos da Comunicação, essas inovações vão além do aspecto técnico. Inovações estéticas, narrativas, mercadológicas, comportamentais também são frutos dos fenômenos comunicacionais. Sem dúvida, os meios de reprodução de informação e cultura beneficiam-se do aperfeiçoamento tecnológico para ampliar seu espectro de receptores e sua influência junto ao público. Porém, o mais importante a ser considerado é o conteúdo do que se transmite às audiências, a carga simbólica presente nos atos comunicativos, especialmente os mediados pelos meios de massa. (CARDOSO; SANTOS, 2008, p. 35).

Para tanto, foi feita uma divisão de sua produção em três momentos: sua participação na CETPA – Cooperativa Editora de Trabalho de Porto Alegre, que pretendia ampliar a participação das histórias em quadrinhos nacionais em jornais e revistas; os anos em que trabalhou para a Editora Abril, produzindo principalmente histórias protagonizadas por Zé Carioca e pelo caubói Kaktus Kid; e o humor gráfico que produziu – as tiras cômicas de Dr. Fraud e do indiozinho Tibica, editadas em diversas publicações. Sempre discreto e recolhido, teve seu talento reconhecido com prêmios e homenagens prestadas pouco antes de seu falecimento, em 2013, na cidade de Pelotas, onde residiu nos últimos anos de vida.


Fig. 1
O desenhista gaúcho Renato Vinicius Canini
Fonte: imagem capturada na rede

O movimento a favor dos quadrinhos brasileiros

Nascido no interior do Rio Grande do Sul, em 1936, Renato Vinicius Canini iniciou sua carreira como cartunista no final da década de 1950, contribuindo com ilustrações para a revista infantil Cacique e charges para o jornal Correio do Povo, entre outras publicações gaúchas. Elaborou, por 10 anos, como funcionário da Secretaria da Educação e Cultura de Porto Alegre, desenhos técnicos, até se transferir para São Paulo para ilustrar a revista Bem-Te-Vi, da Igreja Metodista. No início dos anos 1960, participou do movimento para a valorização das histórias em quadrinhos nacionais e produziu histórias e tiras de humor para revistas publicadas por grandes editoras e para títulos da imprensa alternativa.

A década de 1950 caracterizou-se pelo populismo, visão política ambígua., que se posiciona a favor da parcela mais pobre e explorada do povo, embora procure preservar a sociedade como um todo, para que não haja rupturas radicais. Houve, também, o fortalecimento da ideologia nacionalista, que não se restringia ao incentivo à produção industrial local, mas também se espraiava para a cultura (arquitetura, teatro, cinema e música).

Nesse contexto, teve início o movimento para ampliar a presença de quadrinhos brasileiros nas publicações nacionais. Para os editores, o material estrangeiro, notadamente o estadunidense, distribuído pelos syndicates (empresas que vendiam tiras de quadrinhos para publicações dos Estados Unidos e de outros países), tinha um custo bem menor, uma vez que já havia dado lucro a seus produtores nos países de origem. Para evitar a aprovação de uma lei que obrigasse a publicação de quadrinhos brasileiros, os editores passaram a dar mais espaço para artistas que atuassem no Brasil.

A tentativa de ampliar a publicação de quadrinhos brasileiros continuou na década de 1960 e uma das iniciativas mais importantes nesse sentido foi realizada no Rio Grande do Sul, durante o governo de Leonel Brizola: a criação da CETPA – Cooperativa Editora de Trabalhos de Porto Alegre, que lançou revistas e tiras de quadrinhos, realizadas por vários artistas. As narrativas, de aventura (como Aba Larga, de Getúlio Delfin, ou Sepé-Tiaraju, de Flavio Colin) ou até mesmo as Histórias do Rio Grande do Sul (série desenhada por Júlio Shimamoto), foram interrompidas em 1963 em função, segundo Silva (1976, p. 115), da “falta de uma melhor estrutura editorial”. Tiras cômicas de quadrinhos tinham grande aceitação e algumas foram editadas por jornais de outros estados.

Em se tratando de quadrinhos humorísticos, destacaram-se nessa empreitada Lupinha, de Aníbal Bendati, e principalmente Zé Candango, de Renato Canini, cujo nome remetia aos construtores de Brasília, migrantes que se deslocavam de suas cidades, normalmente da região Nordeste do país, para trabalhar como operários braçais nas obras da nova capital. Além dessa referência, esse personagem representava o povo brasileiro frente ao imperialismo estadunidense – em uma sequência, o protagonista dá uma surra no Super-Cabra (alusão ao Superman, que representa, ao mesmo tempo, os quadrinhos estrangeiros e a força econômica e militar dos Estados Unidos), revestindo a tira de um caráter político, em consonância com as ideias nacionalistas e populistas da época. Outro nêmesis do personagem foi o pistoleiro Bate Mais Terçol, uma citação à estrela do seriado Bat Masterson, exibido pela TV brasileira naquela época.


Fig. 2
Zé Candango, herói nacional, enfrenta e derrota o Super-Cabra, em uma alusão ao imperialismo cultural e econômico estadunidense
Fonte: imagem capturada na rede

Do ponto de vista icônico, o personagem apresenta “cabeça chata”, cabelo crespo, usa chapéu de cangaceiro, lenço no pescoço, sandálias nos pés e leva sempre um revólver na cintura, remetendo à figura do nordestino. Seu nome, Zé Candango, é uma alusão aos milhares de migrantes da região Nordeste do país que se mudaram para o Planalto Central a fim de trabalhar na construção da nova capital, Brasília. Enfezado, não dispensa uma briga; ingênuo, assombra-se com a cidade grande (Rio de Janeiro) e com as mulheres seminuas que frequentam as praias cariocas. Esse personagem reúne as características da imagem do “popular”, principalmente as veiculadas pelas chanchadas cinematográficas. De acordo com Guazzelli Filho:

Zé Candango é a primeira incursão de Canini nos quadrinhos depois de uma experiência relativamente precoce como ilustrador na revista Cacique. E tem importante significado por revelar as influências que algumas publicações tiveram na formação de um artista que não frequentou nenhuma escola formal de desenho. O inventário dos autores que de alguma maneira contribuíram para elaborar o estilo de um jovem desenhista acaba por constituir um mapa que remete mais precisamente para a previsível (porém eficaz) imagem de um rio, pelo fluxo que estabelece ligando uma série de trabalhos que têm como resultado final o esboço de uma expressão já particularizada. No caso de Renato Canini, esse fluxo atravessa a fronteira e vai buscar na forte tradição gráfica argentina elementos que serão determinantes para definir seu traço sintético e sua narrativa dinâmica e extremamente humorada.. (GUAZZELLI FILHO, 2009, p. 101-102).

A recontextualização de Zé Carioca

No final dos anos 1960, Renato Canini foi contratado pela Editora Abril. Inicialmente, participou, ao lado de Waldyr Igayara e Izomar Camargo Guilherme, da recém-lançada revista ilustrada Recreio, que contava com a participação das escritoras de literatura infantil Ana Maria Machado e Ruth Rocha, entre outros autores.


Fig. 3
Edição da revista Recreio ilustrada por Canini
Fonte: imagem capturada na rede

Durante a década de 1970, momento mais repressivo da ditadura militar instaurada em 1964, Canini foi responsável pelas histórias protagonizadas por Zé Carioca, personagem criado por Walt Disney e sua equipe no início dos anos 1940, para o desenho animado Alô, Amigos, lançado em 1942, como parte da política de boa vizinhança promovida pelo governo dos Estados Unidos para conseguir o apoio dos países latino-americanos aos exércitos aliados contra o eixo nazifascista. Suas histórias foram criadas por quadrinistas estadunidenses. Primeiramente, no formato de meia página de quadrinhos publicada semanalmente nos suplementos dominicais dos jornais (no Brasil, esses quadrinhos foram editados no periódico O Globo Juvenil, publicação da editora de Roberto Marinho).

Nessas narrativas sequenciais, o papagaio era um habitante do morro (representando o lado miserável do país), mas tentava pertencer ao litoral, por onde circulavam pessoas ricas, que frequentavam os hotéis e restaurantes de classe. Seu desejo por ascensão social não condizia com sua ojeriza ao trabalho, o que o levava a praticar expedientes pouco ortodoxos ou honestos, o que pode levá-lo a ser rotulado como um malandro, aquele que tira vantagem da ingenuidade dos outros, mas não é um bandido. Em várias ocasiões, tenta namorar as filhas de empresários, em especial Rosinha, que se tornou a namorada oficial.

Mesmo os amigos da favela, como o corvo Nestor, são vítimas de suas artimanhas, que, na maioria dos casos, são malsucedidas. Pode-se dizer que os artistas estadunidenses que trabalhavam para Walt Disney conseguiram captar a grande dicotomia social da sociedade brasileira: dividida entre a opulência de uma minoria e a pobreza extrema da maioria (SANTOS, 2002, p. 289-290), o que leva a população excluída a enveredar para o embuste para sobreviver.

Em seguida, foram feitas algumas histórias, publicadas na revista Walt Disney’s Comics and Stories, nas quais o personagem era adjuvante do Pato Donald, colocando-o em enrascadas por não conhecer os hábitos estadunidenses. O papagaio é mostrado como um estrangeiro simplório, embora simpático, que desconhece as normas da civilização. Em outros quadrinhos, o estereótipo do brasileiro festeiro, que vive em um eterno Carnaval, torna-se a trama central: Zé Carioca anseia entrar no salão de baile da elite, mas como não possui dinheiro para comprar o ingresso, precisa enganar o porteiro. Ele consegue penetrar na festa, ganha o concurso de dança, mas não pode receber o prêmio porque é reconhecido e precisa fugir dos seguranças.

Contudo, só em 1959, o papagaio foi retomado por artistas brasileiros; inicialmente por Jorge Kato e depois por Waldyr Igayara e Izomar Camargo. Dois anos depois, ganhou título próprio, que chegava às bancas quinzenalmente, revezando a numeração com a revista Pato Donald. Nos primeiros tempos, ele vivia aventuras ao lado de outros personagens Disney, como Mickey e Tio Patinhas. A ambientação é ambígua: pressupõe-se que as narrativas se passem no Rio de Janeiro, mas podem ter lugar em Patópolis ou em diversos pontos do Brasil em “O tesouro do Capitão Gancho”, Zé Carioca e Rosinha passeiam de barco pelo Lago do Parque Ibirapuera, onde encontram Peter Pan e a fada Sininho, e, em “O tesouro de Lampião”, Zé Carioca leva Mickey e Pateta para o Nordeste e os ajuda a enfrentar João Bafo-de-Onça, que se passa por cangaceiro para cometer seus crimes.

Depois de um hiato sem histórias originais, temas da cultura e do cotidiano brasileiro voltam às tramas do papagaio malandro a partir do final dos anos 1960, realizadas por Waldyr Igayara e Izomar Camargo, com roteiros de Claudio de Souza. Exemplos podem ser encontrados em “O rei do Ié-ié-ié” e “Um festival embananado”, ambas publicadas em 1968. A primeira faz referência à música e ao movimento da Jovem Guarda; na segunda, o personagem organiza um festival de música, mas manipula o resultado. Na época, esse tipo de evento era produzido e transmitido pela televisão e auferia grande audiência, lançando movimentos artísticos como o Tropicalismo: com artistas novos, a exemplo de Caetano Veloso e Gilberto Gil, e grupos, como Os Mutantes.

Já nas histórias produzidas por Canini, iniciadas no começo dos anos 1970, muitas delas em parceria com o roteirista Ivan Saidenberg, são retomadas algumas características do personagem, presentes nas histórias criadas nos Estados Unidos, na década de 1940: ele mora novamente em um barraco localizado em um morro do Rio de Janeiro – onde mulheres esfarrapadas levam à cabeça trouxas de roupa lavada e arrastam seus filhos pelas ruas de terra – e volta a ter aversão ao trabalho, passando a aplicar pequenos golpes para ganhar dinheiro, como um malandro que se preze.

Nessas narrativas estão presentes, de forma sutil, problemas enfrentados pela população, a exemplo de ônibus lotados e falta de água, como “Quanto mais quente, pior”, publicada em 1972: em um dia muito quente, Zé Carioca precisa procurar alternativas para se refrescar, uma vez que de seu chuveiro saem apenas algumas gotas. Esse enredo contrastava com a ideia de que o Brasil era um “país que vai pra frente”, propagada nos meios de comunicação da época pelo governo militar, de acordo com Santos (2002, p. 292). Da mesma forma que o país se encontrava endividado com os bancos estrangeiros, o papagaio vive sendo perseguido pelos cobradores, que até se organizam em uma associação nacional, a Anacozeca, para tentar receber o dinheiro devido.

Zé Carioca passou a participar, nessa etapa, de eventos tradicionais da cultura brasileira, como o Carnaval, mas não mais em bailes, como nos quadrinhos estadunidenses, mas na escola de samba do bairro do subúrbio onde habita: a Vila Xurupita, que também possui um time de futebol, cujo “craque” é o próprio Zé Carioca. A festa junina e o futebol são motivos frequentes nas histórias feitas por Canini. E, em relação ao esporte preferido pelos brasileiros, o papagaio revela-se um craque, embora pertença a um time do subúrbio carioca.


Fig. 4
Zé Carioca, no seu barraco do morro e com seus primos provenientes de vários estados do Brasil
Fonte: imagem capturada na rede

Apesar das desventuras do papagaio serem ambientadas no Rio de Janeiro, ele também viaja para outras partes do Brasil. Em “Como é burro o meu cavalo!”, de 1972, vai aos pampas gaúchos. Seus parentes, todos papagaios como ele, representam diversos lugares do país, como o mineiro Zé Queijinho, o cearense Zé Jandaia e o apressado e estressado Zé Paulista, vestido sempre de terno e gravata e segurando uma maletinha. Canini usava diversos recursos gráficos e artísticos nessas histórias, como raspar o papel com o estilete para conseguir um efeito visual diferente. Além de Zé Carioca, o artista desenhou algumas histórias protagonizadas pelo indiozinho Pequeno Havita, antecipando o curumim Tibica, que criaria alguns anos depois.

Mas a empresa Disney estadunidense não gostava do estilo gráfico do artista, que destoava dos model sheets., e ele se dedicou a escrever roteiros para as histórias de Zé Carioca, atividade que exerceu até o início dos anos 1980. Atualmente, contudo, esse cartunista passou a ser reconhecido por seus fãs e colegas como um dos “mestres Disney” brasileiros, título que compartilha com alguns criadores estadunidenses e italianos de destaque desse tipo de histórias em quadrinhos.


Fig. 5
Capa da edição Mestres Disney número 5, publicada em novembro de 2005, que homenageia Canini
Fonte: imagem capturada na rede

Humor gráfico: discurso crítico e metalinguagem

Para a Editora Abril, o artista criou, ainda, histórias cômicas publicadas na revista Pancada– versão brasileira do periódico estadunidense Cracked, concorrente da MAD Magazine (na época publicada no Brasil pela Editora Vecchi). Para esse título, Canini criou a série Não tá no Gibi, que reúne cartuns metalinguísticos em que personagens dos comicsestadunidenses, como Fantasma (The Phantom) e Homem Elástico (Plastic Man), satirizam até mesmo Tio Patinhas e seus sobrinhos. Além disso, produziu as histórias de Um dia na vida do Homem do Fundo do Mar, paródia à série televisiva produzida nos Estados Unidos. O artista também foi criador das tiras do Dr. Fraud(cujo protagonista é um psicanalista pouco ortodoxo, às vezes incompetente ou aproveitador; o nome remete tanto a Freud, o idealizador da Psicanálise, como à ideia de fraude, engodo).


Fig. 6
Cartum da série Não tá no Gibi, publicada na revista Pancada, faz paródia com os personagens dos comics estadunidenses Fantasma (o herói de 400 anos) e (o jovem) Gasparzinho
Fonte: imagem capturada na rede

A Editora Abril lançou, em 1974, uma revista de quadrinhos feitos por artistas brasileiros ou residentes no país: A Crás! (onomatopeia que indica o estilhaçar de vidros), idealizada pelo editor Claudio de Souza, que se inspirou em publicações europeias, como a italiana Eureka. Esse periódico mensal, que teve apenas seis edições, trazia uma mistura de estilos gráficos e de gêneros, com quadrinhos de terror, de humor, de aventura, infantis etc. Segundo Vergueiro e Santos (2010, p. 145), “artistas de tendências mais variadas, abrangendo desde histórias no estilo clássico e tiras de aventuras norte-americanas até o experimentalismo psicodélico típico da década de 1970, passaram pelas páginas da publicação”. Entre eles, destacam-se Carlos Edgard Herrero, com Lobisomem; Ruy Perotti, criador do pobre diabo Satanésio, e Renato Canini, autor do Kactus Kid.

Presentes nas seis edições da revista Crás!, as histórias estreladas pelo caubói Kactus Kid, engendradas por Canini, são paródias de filmes e histórias em quadrinhos do gênero western. A reversão de expectativas, característica das narrativas humorísticas, está presente no próprio personagem: o herói é, na verdade, o agente funerário fracassado Zeca Funesto – um tipo careca, desdentado e feio –, que precisa colocar peruca ruiva e dentadura, além de fazer um furinho no queixo (referência ao ator norte-americano Kirk Douglas) para se transformar no herói justiceiro Kactus Kid.

Ícones e clichês do gênero western e das séries televisivas norte- americanas são objeto das piadas presentes nas histórias de Kactus Kid: o ator de cinema norte-americano John Wayne era caricaturado em uma das histórias; já o bandido Billy The Kid foi satirizado com o nome de Bíli Toquinho e confundido com um garoto. Em outra história, o herói descobre que os índios não atacam à noite porque ficam assistindo a filmes de western transmitidos pela TV. A metalinguagem é utilizada constantemente, como na história em que índios desenhados de forma realista contrastam com o estilo cartunesco de Canini, mas o protagonista tranquiliza: “Não se preocupe! Eles não são da nossa história!”. Durante o tiroteio, a arma do caubói dispara mais de quarenta tiros sem precisar ser recarregada. Kactus Kid justifica: “Arma de mocinho é assim mesmo!”. No final da aventura, para terminar a contenda, o negociador do governo dos Estados Unidos, Henry Kissinger, vestido como caubói, é lançado de paraquedas sobre o herói e seu cavalo. Essas histórias evidenciam uma das características do humor gráfico do artista, a crítica satírica aos produtos culturais importados, especialmente os quadrinhos estadunidenses, que eram disseminados em larga escala no Brasil na época.


Fig. 7
O caubói Kactus Kid combina, de forma cômica, traços de vários personagens dos quadrinhos e do cinema feitos nos Estados Unidos
Fonte: imagem capturada na rede

Ao longo da década de 1970, o governo ditatorial exerceu forte controle sobre os meios de comunicação de massa e os produtos culturais midiáticos: a censura prévia atingia livros, filmes, programas televisivos e a música; nas redações dos principais órgãos de imprensa (jornais e revistas) havia um censor que determinava o que poderia ser publicado ou não; publicações impressas alternativas corriam o risco de apreensão. Publicações alternativas, como O Pasquim . Ovelha Negra, abrigavam em suas páginas cartuns, que, em sua maioria, condenavam a repressão e expressavam o desejo por democracia no país.

Os cartunistas daquele período expressavam em seus trabalhos o anseio de liberdade e a crítica aos poderosos. Esse conteúdo também é encontrado nos cartuns elaborados por Canini. A soberba e a solenidade dos que detêm o poder são o mote utilizado por ele nos exemplos abaixo (Figuras 8 e 9). Na primeira (Figura 8), o rei se dirige ao vaso sanitário acompanhado pelo vassalo, que utiliza o papel higiênico como se fosse um tapete vermelho. Já o segundo quadrinho (Figura 9) mostra um militar, cujo uniforme está tão cheio de medalhas que precisa usar o peito do subalterno, de estatura inferior, que o segue. A placa com a palavra “Continua” indica essa sequência de condecorações no segundo personagem, igualmente orgulhoso – ambos andam com os olhos fechados para a realidade que os cerca, mas certos de sua grandeza, representada pelas comendas que carregam.


Fig. 8
Charges de Canini que satirizam o lado pomposo do poder
Fonte: imagem capturada na rede


Fig. 9
Charges de Canini que satirizam o lado pomposo do poder
Fonte: imagem capturada na rede

A Editora Abril resolveu, no final da década de 1970, produzir tiras de quadrinhos e vendê-las para jornais de vários pontos do país. Canini participou do Projeto Tiras com as histórias do indiozinho Tibica, que abordavam questões ligadas à ecologia e à degradação do meio ambiente, como o desmatamento das florestas – muito tempo antes desses assuntos se tornarem destaque na mídia e de preocupação de grupos ambientalistas. Essas histórias do curumim têm como ambiente predominante o visual desolador de florestas devastadas, em que árvores solitárias tentam sobreviver em meio a tocos de outras plantas já abatidas. O antagonista principal das narrativas é o lenhador, principal responsável por essa deterioração da natureza.


Fig. 10
O desflorestamento é denunciado nas tiras do indiozinho Tibica

Outra tira idealizada por Canini foi a já citada Dr. Fraud, editada em diversos veículos impressos, como as revistas Patota, Pancada e a versão brasileira da MAD. Normalmente, a trama humorística era desenvolvida em uma única vinheta e um dos recursos mais usados pelo artista foi a metalinguagem: o personagem principal, o psicanalista Dr. Fraud, contracena com outros personagens de quadrinhos, sejam eles nacionais (Pererê) ou, mais comumente, protagonistas dos comics estadunidenses, a exemplo de Charlie Brown, o Poderoso Thor, Brucutu ou Superman. O ambiente do consultório consiste apenas do divã e da cadeira, como é usual no estilo cartunesco minimalista de Canini. Em uma das narrativas curtas, enquanto Charlie Brown relata sua incapacidade de lidar com os problemas, o psicanalista comete suicídio, enforcando-se. Em outra história, Linus, que também é personagem da tira Peanuts, volta ao consultório em busca do cobertor que usa para encobrir e minimizar suas inseguranças, encontrando Dr. Fraud enrolado nele.


Figura 10
Tira metalinguística de Dr. Fraud, que contracena com personagens pré-históricos de histórias em quadrinhos (B.C. e Brucutu) e dos desenhos animados (Fred Flintstone) estadunidenses
Fonte: imagem capturadas na rede

Conclusões

Ao analisar a produção de quadrinhos e humor gráfico de Renato Canini pela perspectiva da arqueologia proposta por Foucault (2007), citada na introdução deste trabalho, é possível localizar e destacar três formações discursivas que se sobressaem em sua obra:

O discurso nacionalista – que se evidencia nos personagens com características brasileiras, do nordestino Zé Candango ao índio da Amazônia Tibica, passando por Zé Carioca, criado por artistas estadunidenses, mas revestido de brasilidade nas histórias feitas por Canini.

O discurso crítico – que perpassa toda a produção desse artista, desde as histórias de Zé Candango até os cartuns com conteúdo político e social.

O discurso ecológico – presente principalmente nas tiras de Tibica, que apontam para o descaso com a natureza e a força predatória que destrói a floresta, dizima os animais e massacra os povos indígenas. Este elemento simbólico é, também, uma forma de formação discursiva crítica muito à frente de seu tempo.

As imagens e as narrativas visuais-gráficas (tiras, histórias em quadrinhos longas e cartuns) são os legados desse artista, sua voz, que enuncia um discurso reflexivo sobre o país. Sua atuação consistiu, principalmente, na inovação estética, temática e reflexiva do humor gráfico nacional, da década de 1960 até o século XXI. Do ponto de vista simbólico, Renato Canini fez uso da comicidade para representar as contradições da realidade nacional; a análise de sua produção feita nesta pesquisa, portanto, revela não apenas um discurso sincronizado com sua época histórica, mas também um enunciado que utiliza expressões visuais (desenhos) e verbais, que, muitas vezes, antagoniza outros discursos, especialmente os oficiais, proferidos pelos que exercem o poder e podem, por exemplo, censurar ou destruir o meio ambiente. Não se trata, portanto, de uma forma de humor leve e sem profundidade; é uma crítica que leva o leitor ao questionamento.

REFERÊNCIAS

CARDOSO, João Batista Freitas; SANTOS, Roberto Elísio dos. Teorias da Comunicação: aportes para a compreensão da dimensão simbólica e processos inovadores. In: CAPRINO, Mônica Pegurer (Org.). Comunicação e inovação: reflexões contemporâneas. São Paulo: Paulus, 2008, p. 35-61.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

GUAZZELLI FILHO, Eloar. Canini e o anti-herói brasileiro: do Zé Candango ao Zé – realmente – carioca. 190 f. Dissertação (Mestrado em Interfaces Sociais da Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

MELO, José Marques de (Org.). Populismo e Comunicação. São Paulo: Cortez, 1981.

SANTOS, Roberto Elísio dos. Para reler os quadrinhos Disney: evolução, linguagem e análise de quadrinhos. São Paulo: Paulinas, 2002.

SILVA, Diamantino. Quadrinhos para quadrados. Porto Alegre: Bels, 1976.

VERGUEIRO, Waldomiro; SANTOS, Roberto Elísio dos. Revista Crás!: quadrinhos brasileiros e indústria editorial. Matrizes, São Paulo, v. 3, n. 2, jan./jul., p. 135-152, 2010.

WEFFORT, Francisco Corrêa. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

Notas

2 Disponível em: http://www.tioorlando.com.br/2013/10/morre-renato-canini-ilustrador-ze- carioca. Acesso em: 16/05/2015.

3A esse respeito, ver Weffort (1980, p. 159) e Melo (1981, p. 13).

4Disponível em: http://ludy-quadrinhosdisney.blogspot.com.br/2010/04/renato-canini-o- desenhista-do-ze.html>. Acesso em: 16/05/2015.

5Uma das influências na formação gráfica de Canini foi a revista de humor argentina Rico Tipo, editada de 1944 a 1972, que reunia em suas páginas trabalhos feitos por cartunistas daquele e de outros países.

6Disponível em: https://www.flickr.com/photos/revista_recreio_antiga/. Acesso em: 16/05/2015.

7Disponível em: http://blogdosesquilos.blogspot.com.br/2013/10/mais-um-mestre-disney-se-vai- renato.html. Acesso em: 16/05/2015.

8São folhas com desenhos que servem como modelos dos personagens a ser seguidas pelos desenhistas, para padronizar o estilo gráfico. São usados principalmente nos quadrinhos mainstream, comerciais, pertencentes a grandes empresas de mídia, como produtoras de desenhos animados e editoras de quadrinhos

9Disponível em: http://ludy-quadrinhosdisney.blogspot.com.br/2010/04/renato-canini-o- desenhista-do-ze.html. Acesso em: 16/05/2015.

10Disponível em: http://chocarrice.blogspot.com.br/2011/04/renato-canini-ii.html. Acesso em: 17/05/2015.

11Disponível em: https://www.lambiek.net/artists/c/canini_renato.htm. Acesso em: 17/05/2015.

13Disponível em: http://www.fredericopeter.com.br/blog/chargistas/pequena-selecao-de-charges- de-canini/. Acesso em: 19/05/2015.

14Disponível em: http://grafar.blogspot.com.br/2007_09_23_archive.html. Acesso em: 19/05/2015.

15Disponível em: http://www.universohq.com/noticias/faleceu-aos-77-anos-o-cartunista-e- quadrinhista-renato-canini/. Acesso em: 20/05/2015.



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