Nos labirintos das artes: a memória de Virgílio Maurício e a coleção Pierre Chalita

 

 

Moema Alves[*]

moemabacellar@gmail.com - UFF

  

Reunir peças em um museu, ou em uma coleção, é uma atividade realizada por pessoas e que ocorre no decorrer do tempo, com as mais diversas motivações e propósitos. Conhecer os percursos das peças de um acervo, procurar saber por onde passaram; com qual intuito foram adquiridas e reunidas; que leituras e relações tornam possíveis uma vez expostas, tais questões podem nos revelar um universo de conexões, histórias e personagens. Recuperar este histórico, muitas vezes sedutor, pode nos contar sobre a forma como, ao longo do tempo, vão se alterando o lugar e aceitação de determinadas expressões, discursos, pessoas. Ter uma obra ou uma peça em um museu é um legitimador, portanto, de um espaço conquistado na memória local ou coletiva. Mares de histórias se descortinam quando nos propomos singrar os espaços e/ou coleções de um museu.

Para exemplificar o que defendo, me valho do caso do pintor alagoano Virgílio Maurício (1892 – 1937), hoje muito pouco conhecido, mas que há algumas décadas participou ativamente do circuito de arte nacional. Valho-me, também, de uma coleção de artes visuais montada em Maceió (AL), igualmente pouco conhecida, mas extremamente rica em peças e histórias. E por meio das trajetórias que brevemente apresentarei nas próximas linhas, convido-os a embarcar em uma pequena narrativa – dentre as muitas possíveis que a vastidão de nossos acervos pode nos proporcionar. Começo pelo artista.

Virgílio Maurício da Rocha nasceu em Lagoa da Canoa, interior de Alagoas, mudando-se com sua família para Maceió ainda pequeno. Ali, seria introduzido nas artes pelo pintor alagoano Rosalvo Ribeiro, no único curso que chegou a ser aluno, já que não frequentou outras escolas. Mesmo quando foi para a França, ainda muito jovem, o fez com recursos próprios e não via pensionato artístico de qualquer natureza. Ainda muito jovem, muda-se para o Rio de Janeiro para cursar medicina, mas não deixa sua atividade artística, pelo contrário, investe nela cada vez mais em detrimento da sua carreira médica, que só retomará em meados da década de 1920. Com apenas 21anos, foi aceito no Salon de la Société des Artistes Français, em Paris, nos anos de 1913 e 1914, apresentando duas telas de nus femininos e sendo premiado com medalha de bronze na primeira ocasião. Paralelamente à sua atividade artística, dedicou-se, ainda, à crítica de arte[i] e publicou vários livros entre aqueles de crítica, de medicina, ou mesmo de registro de viagem[ii].

Virgílio foi, então, um homem de atuação multifacetada, mas, ao mesmo tempo, teve uma trajetória permeada por polêmicas e controvérsias. Ao longo de sua carreira surgiram várias denúncias de que teria comprado quadros de outros pintores e assinado com seu nome, ou de que teria reproduzido obras sem a correta menção de se tratarem de cópias, e não obras originais suas – o que caracterizaria plágio[iii]. Sua figura dividia opiniões: temos desde o Virgílio culto e refinado, até o Virgílio excêntrico, de modos afeminados (ambos os termos tratados de forma pejorativa no período). De um lado, teceu boas relações, circulava no meio intelectual, tinha proximidade com a imprensa de vários estados brasileiros, mas por outro, criou também inimizades com figuras importantes no mundo das artes, como os pintores Antônio Parreiras, Theodoro Braga e Guttmann Bicho. O circuito artístico foi ficando cada vez mais hostil a Virgílio e ao morrer, com apenas 45 anos, estava bastante afastado de toda efervescência da vida artística que conhecera antes. Com o passar dos anos, na disputa por espaço na memória e na história da arte nacional, o nome de Virgílio foi sendo pouco a pouco apagado. Inclusive, das coleções.

Passadas três décadas de sua morte, não se tem notícia de nenhuma coleção aberta ao público que contasse com uma obra de sua autoria; mesmo tendo o autor vendido telas para o governo do Pará ou de Minas Gerais, ou mesmo tendo comercializado telas a particulares nesses estados, e ainda em Maceió, Pernambuco ou São Paulo. Podemos lembrar que muitas coleções públicas foram formadas com intuito de ornamentar sedes de governos, bibliotecas, secretarias e só posteriormente foram reunidas em museus. Assim como, muitas peças adquiridas por particulares para decorar suas casas foram, por caminhos diversos, figurar nas paredes dos museus. Para além de eventuais aquisições motivadas por premiações, são esses os percursos mais comuns que acabam por colocar um artista em um acervo museal. Sabendo da circulação do artista, a ausência de Virgílio Maurício é um forte indicativo do apagamento de seu nome da memória e da história da arte nacional.

É quando, então, por uma decisão de sua família, em 1975, duas doações são feitas. A primeira, para a Pinacoteca do Estado de São Paulo, com as telas apresentadas em Paris: Après le rêve (tela premiada em 1913) e L’heure du goûter. Já a segunda doação foi para o Museu do Estado de Pernambuco (MEPE), estado em que também residiu o artista. Nessa coleção estão as telas Orientale e Aprés le bal, essa pintada em atelier aberto, em Recife, no ano de 1916, na tentativa de dissuadir os rumores sobre a sua incapacidade artística.

Na busca por mais informações sobre o trânsito de Virgílio Maurício pelo Brasil e na esperança de encontrar outras obras suas, foram realizados contatos com algumas instituições museais em Maceió, cidade onde Virgílio cresceu, fez seus estudos, expôs, doou e vendeu telas. Nas duas primeiras instituições contatadas, nenhuma tela havia dele, no entanto, na terceira, no Museu de Arte Brasileira da Fundação Pierre Chalita, de caráter privado, a notícia veio da própria presidente, Solange Chalita: havia, em seu acervo, uma tela do pintor!

Criada em 1980, a Fundação Pierre Chalita mantém um museu de arte desde 1987 contendo cerca de 2270 peças reunidas por Pierre Chalita, arquiteto, artista plástico e colecionador alagoano. A coleção compreende peças de arte sacra, mobiliário e arte decorativa dos séculos XVII, XVIII e XIX, além de rica pinacoteca que reúne pintores nacionais dos séculos XIX e XX, com especial destaque a artistas locais e à própria produção de Chalita. Sua coleção iniciou quando ainda menino, primeiro tendo lugar a filatelia e depois alguns objetos decorativos, de mobiliários e por fim, os quadros.

Filho de libaneses, Chalita, arquiteto por formação, tinha grande interesse em artes, conseguindo uma bolsa para estudar na Europa. Em seu retorno, leciona na Escola de Belas Artes da Universidade do Recife e abre seu próprio curso livre de desenho, que funcionava em sua casa, onde, paralelamente, foi formando a sua coleção. Em 1980 cria a Fundação que leva seu nome a partir da doação desse acervo, pois, além de sentir necessidade de dar amplo acesso às peças, o espaço da sua casa já não as comportava[iv]. Embora casado com a poetisa e artista alagoana Solange Bérard Lages[v], bisneta do também pintor Daniel Bérard (1846-1910) e que compartilhava de seu amor pelas artes – tanto que foi aluna de seu curso livre tornando-se também artista plástica abstracionista – a coleção era sua responsabilidade e paixão. Pierre Chalita cuidou das peças e da administração da Fundação até sua morte, em 2010, quando Solange assume a presidência.

Ali, na sala de arte nacional do século XX, sendo exposta ao lado de nomes como Vicente do Rego Monteiro, Djanira, Carlos Scliar, Alfredo Volpi, Ismael Nery, Roberto Burle Marx e artistas locais como Jorge de Lima, Fernando Lopes e o próprio casal Chalita, está exposta uma tela de Virgílio Maurício. A coleção ainda possui uma tela de Rolsavo Ribeiro, algumas telas de Daniel Bérard e uma tela de Pedro Américo, mas estas figuram em outro andar do museu, e dialogam com outras peças. Na galeria onde está, Virgílio faz parte dos pintores nacionais que atuaram exclusivamente no século XX.

 

 

Virgílio Maurício. s/d. Promenade. Óleo sobre madeira.

Acervo: Fundação Pierre Chalita

Foto: Moema Alves

 

A pintura, realizada em três painéis de madeira, retrata uma jovem mulher passeando em meio à natureza, atraindo pássaros em suas mãos e embora não saibamos a quem pertencia antes da compra por Pierre Chalita, a tela em questão foi adquirida por ele na década de 1970[vi], de um particular, em Maceió[vii]. E, uma vez que a coleção mudou de caráter, de acesso privado e restrito para acesso público, Virgílio Maurício deu mais um passo para sair de seu estado de apagamento e, nas paredes de mais esse museu, vai encontrando lugar na narrativa sobre as artes tanto em Alagoas como na arte brasileira[viii]. Este passo, na verdade, foi dado há trinta anos, com a abertura do museu ao público, mas o pouco espaço destinado à memória do artista acabou por não despertar maiores interesses sobre a tela. Ao mesmo tempo, a pouca visibilidade que as instituições culturais de Alagoas têm nacionalmente, influenciou para que essa vasta coleção não tivesse lugar mais destacado na história da arte brasileira.

Ainda que seja necessário investigar as circunstâncias de produção e circulação desta tela, a sua sobrevivência nos indica um caminho para ampliarmos o que conhecemos sobre a obra Virgílio, até então restrita aos seus nus femininos, cuja análise foi possibilitada a partir da presença de telas suas nos dois museus citados anteriormente. Retomo aqui, portanto, a importância de se conhecer não só os caminhos percorridos pelos artistas, mas também por suas peças[ix], pois nesse processo de busca por telas de Virgílio, me foi apresentado um rico acervo de arte brasileira, recolhido pela paixão de outro artista, que teve a sensibilidade de tornar público o acesso à sua coleção. Assim, Virgílio Maurício e a coleção Pierre Chalita se tornaram exemplos muito caros da necessidade constante de descentralizarmos nosso olhar para as diversas coleções existentes no país. Os acervos brasileiros guardam ainda muitas narrativas, devemos tratar de conhece-los e preservá-los.

 



* Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense. Doutoranda em História Social pela mesma universidade. Bolsista Capes.

[i] NASCIMENTO, Ana Paula. A contribuição editorial de Virgílio Maurício no Jornal Gazeta de Notícias em 1923. Anais do XXXIII Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte. Campinas: Comitê Brasileiro de História da Arte – CBHA, 2014 [2013]. p. 273. Disponível em: http://www.cbha.art.br/coloquios/2013/anais/pdfs/s2_anapaulanascimento.pdf. Acesso em agosto de 2015.

[ii]A relação dos livros que publicou é: Algumas figuras (1918); Outras figuras (1925); Da mulher: proporções – belleza – deformação – hygiene, mulher e moda – sports – a mulher, o nu e a moral (1926); O trapézio da vida (1929); e 13 mezes em Portugal (1934).

[iii] OLIVEIRA, Gabriela Rodrigues Pessoa de. Entre pinturas e escritos: aspectos da trajetória de Virgílio Maurício (1892-1937) em uma narrativa particular. 2016.[s.n.], São Paulo, 2016.

[iv] Maiores informações sobre sua formação podem ser vistas na cronologia exposta na sede da Fundação Pierre Chalita. Maceió (AL). A visita realizada ao museu se deu em setembro de 2017.

[v] Com o casamento, passa a assinar Solange Bérard Lages Chalita.

[vi] No ano de 1917, o Jornal do Recife, publica uma fotografia de Virgílio Maurício em uma das exposições que realizou em Maceió. Nessa imagem, atribuída a uma exposição ocorrida em 1912, podemos identificar a mesma imagem hoje pertencente ao acervo da Fundação Chalita. Jornal do Recife, 02 de julho de 1917, p. 03.

[vii] Informação fornecida por Solange Chalita em entrevista realizada em setembro de 2017.

[viii] Identifiquei, no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL), que há exposta uma pequena paisagem de Virgílio Maurício, no entanto, não há uma memória institucional sobre a tela.

[ix] APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas, Niterói: Eduff, 2008.

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