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Kelly Fernandes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O grafite e as dimensões pública, artística e política das ruas no Brasil

Pintura feita pela artista Tainá Lima, conhecida como Criola, na lateral de prédio no Elevado João Goulart, o Minhocão, no centro de São Paulo - Divulgação/Instagrafite
Pintura feita pela artista Tainá Lima, conhecida como Criola, na lateral de prédio no Elevado João Goulart, o Minhocão, no centro de São Paulo Imagem: Divulgação/Instagrafite

Colunista do UOL

04/06/2021 04h00

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A arte de rua sempre fez parte da minha vida, mas só fui reconhecê-la como arte tardiamente. A cerca de cinco quilômetros da casa onde nasci e cresci existe uma galeria de grafite a céu aberto, especificamente no bairro Vila Flávia, localizado na Zona Leste da capital paulista.

Descobri a existência da galeria já adulta, quando comecei a frequentar o Sarau Comungar, que acontecia aos sábados, uma vez ao mês, no Espaço São Mateus em Movimento. Porém, só fui me dar conta de que aqueles grafites, um a um, compunham uma galeria quando um dos artistas do Grupo OPNI, coletivo autor de muitos deles, contava sobre o projeto "Favela Graffitada".

Antes disso, aprendi na escola que a arte estava nas exposições dentro de espaços institucionais como museus ou então nas galerias privadas. Durante a vida escolar, pude visitar alguns importantes espaços de arte graças a excursões organizadas por professores e professoras que viam o poder de transformação na educação, sempre com a preocupação de mostrar que o mundo era maior do que o caminho entre casa e escola.

Os dias de excursão eram mágicos. Afinal, como algo podia ser mais perfeito do que cerca de 30 colegas em um ônibus, percorrendo vários quilômetros, rumo ao desconhecido? Assim, aprendi que a arte morava longe - em um lugar onde demorava para chegar-, não podia ser tocada e era mais acessível para turmas de crianças vestindo uniformes com brasões imponentes.

Aprendi também que essa arte era bem diferente daquela que eu via a poucos passos de casas como a minha - onde pingava água do teto quando chovia, com paredes descamadas e multicoloridas e bombril na antena da TV -, compostas por personagens com cor, cabelos e traços tão parecidos com os meus.

Dois mundos se encontram

Portanto, também aprendi muito sobre arte entre o caminho entre a casa e a escola ou circulando pelos distritos de São Paulo, como o Barro Branco, onde o Grupo Barro Bronx de arte urbana retrata a dinâmica da vida de pessoas que moram e vivem nessa região permeada por solidariedade, mas também atravessada pela violência. E, com a entrada dos murais de grafite nos museus, senti que esses dois mundos se encontraram.

Lembro dos dilemas retratados na imprensa e nas redes sociais sobre expor grafites em um museu, um espaço fechado e de acesso controlado, inversamente proporcional ao caráter público das ruas e, consequentemente, do grafite. Hoje, tantas outras obras de artistas de rua já foram expostas em espaços similares, e, a julgar pela intensa procura e dificuldade de conseguir ingresso para algumas exposições, penso que muitos conflitos já estão superados.

Por outro lado, há pouco tempo nos bairros centrais, muitos murais e artes de rua foram apagadas durante a vigência de políticas higienistas, sob o slogan de criar uma "Cidade Linda", que acabou criando uma paisagem com cores de bege, cinza e plantas mortas, desconfigurando o corredor de arte que aos poucos tomava a Avenida 23 de Maio, desenhado por diversos corpos, inclusive por alguns que passaram a ser mundialmente reconhecidos.

Política essa que foi na contramão de iniciativas em muitas cidades pelo mundo, nas quais a arte de rua faz parte de planos que têm por intenção incluir algumas ruas e bairros no roteiro cultural, turístico e político, assim como Paris, Nova York, Londres e Buenos Aires fazem há alguns anos.

Minhocão

Em São Paulo, um exemplo disso é o entorno do Elevado Presidente João Goulart, já nomeado como Costa e Silva e mais conhecido como Minhocão, infraestrutura construída exclusivamente para o transporte motorizado mas que, atualmente, em dias e horários específicos, fecha-se para carros e abre lugares para pessoas caminharem, pedalarem, lerem um livro, passearem com o cachorro ou mesmo veren os murais que aos poucos povoam as fachadas sem janelas dos prédios do entorno, também chamadas de empenas cegas.

Como regiões centrais de cidades como São Paulo são produto do choque entre pessoas de diferentes partes da cidade, do País ou do mundo, os murais são diversos, multitemáticos e coloridos. São também importantes instrumentos de ativismos, permeado de frases soltas que facilmente tornam-se pensamentos fixos na mente de quem as lê. Questões raciais, de gênero, de classe e os conflitos tão inerentes às cidades brasileiras enchem os nossos olhos, lado a lado, com homenagens à personalidades como Lélia Gonzalez, Marielle Franco, Nelson Mandela e Carlinhos Brown, ou à natureza tão escassa no mar de concreto e asfalto.

A arte de rua pode ser um convite para olhar para dentro de si ou para o mundo com outros olhos. Isso porque a todo o momento nos provoca e nos desloca de ações imediatas e automáticas do cotidiano, ao meu ver, com a intenção de nos fazer melhores, ampliando nossas possibilidades de imaginar, existir e sonhar.

Como exemplo, meu professor de espanhol compartilhou suas impressões sobre uma visita realizada recentemente à sua cidade natal, relato que provocou esse texto. Ele disse que as ruas de Santiago, capital do Chile, guardavam o teor dos gritos das manifestações que transcorreram na luta, em 2020, por uma nova Constituição para aquele país.

Como exercício, proponho que você abra os olhos e veja o que os muros e as paredes ao seu redor estão gritando.