26.08.2015 Views

SEMI

Download do livro em PDF - CHAIA - Universidade de Évora

Download do livro em PDF - CHAIA - Universidade de Évora

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>SEMI</strong><br />

NÁRIOS DE<br />

ESTUDOS<br />

DE ARTE:<br />

ESTADOS<br />

DA FORMA


Seminários de Estudos de Arte: Estados da Forma I<br />

Edições Eu é que sei<br />

Centro de História da Arte e Investigação Artística<br />

Universidade de Évora<br />

Palácio do Vimioso<br />

Largo do Marquês de Marialva, 8<br />

7002-554 Évora<br />

tel: 00 351 266702743<br />

fax: 00 351 266744677<br />

e-mail: chaia@uevora.pt<br />

www.chaia.uevora.pt<br />

Coordenação:<br />

Sandra Leandro<br />

Autoria dos artigos:<br />

Ana Luísa Barão, Clara Menéres, Diogo Félix, Duarte Belo,<br />

Elisabeth Évora Nunes, Emília Tavares, Filipe Rocha da Silva, Jorge Croce Rivera,<br />

Paulo Simões Rodrigues, Pedro Portugal, Sandra Leandro.<br />

Os textos são da responsabilidade dos respectivos autores.<br />

Capa e paginação:<br />

Nuno Neves<br />

Impressão e acabamento:<br />

Tipografia Peres<br />

ISBN:<br />

978-989-95584-3-4<br />

Depósito Legal:<br />

266630/07


Índice<br />

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7<br />

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9<br />

Sandra Leandro, Universidade de Évora, Universidade Nova de Lisboa<br />

Teoria e Crítica de Arte em Portugal no final do século XIX... . . .13<br />

Emília Tavares, Museu do Chiado<br />

Fotografia e Vanguardas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47<br />

Duarte Belo, Fotógrafo e Arquitecto<br />

A Representação da Paisagem pela Fotografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59<br />

Jorge Croce Rivera, Universidade de Évora<br />

Diaporéticas contemporâneas: a enigmática do sentir. . . . . . . . . . . . 67<br />

Filipe Rocha da Silva, Universidade de Évora<br />

Porquê criar imagens visuais? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75


Pedro Portugal, Universidade de Évora<br />

Like Perseus artists have to behead Medusa and petrify the audience<br />

with it.<br />

Como Perseus os artistas têem que decapitar Medusa e petrificar a<br />

audiência. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91<br />

Ana Luísa Barão, Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto<br />

Teoria e Crítica de arte em Portugal na primeira metade do século<br />

XIX. Uma Exposição. Uma Análise. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103<br />

Diogo Félix, Artista Plástico e Professor<br />

S/título. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123<br />

Elisabeth Évora Nunes, Universidade Nova de Lisboa<br />

Caminhos do Urbanismo em Portugal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127<br />

Paulo Simões Rodrigues, Departamento e Centro de História da Arte da Universidade de Évora<br />

Urbanismo, Arquitectura e Monumentos Nacionais na Évora Oitocentista:<br />

Balanço Historiográfico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141<br />

Clara Menéres, Universidade de Évora<br />

A escultura e as novas tecnologias. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163


Apresentação<br />

Este volume compila um conjunto de conferências proferidas no âmbito do Seminário<br />

de Estudos de Arte de 2002-2003, disciplina destinada aos finalistas do Curso<br />

de Artes Visuais da Universidade de Évora. O programa desta cadeira prevê o convite<br />

a personalidades do mundo das artes, artistas, teóricos, críticos que possam dar<br />

uma abertura, uma leitura múltipla sobre o universo dos estudos de arte, indo desde<br />

a prática artística e a sua problemática à reflexão sobre os conteúdos, ao enquadramento<br />

histórico, à análise crítica e reflexão estética.<br />

Nas doze comunicações aqui apresentadas encontramos autores com formações<br />

diversas e a desejável variedade de temas. Podemos acompanhar o pensamento de<br />

artistas que falam sobre a sua obra a criadores que analisam o meio profissional ou<br />

a realidade sócio-política e estética em que evoluem. Encontramos também artigos<br />

de estudiosos que se debruçam sobre a crítica de arte, a fotografia, a arquitectura e o<br />

urbanismo. Neste conjunto de textos também se sente a maneira como cada autor<br />

se expressa, indo da transcrição de uma comunicação oral, com toda a espontaneidade<br />

da linguagem, até à escrita mais elaborada concebida para a leitura.<br />

Esta publicação é a primeira de uma série que pretende dar a conhecer o que<br />

de melhor se realiza no ensino artístico desta Universidade, no plano da reflexão<br />

teórica. Pareceu-nos que seria este o modo adequado de divulgar as comunicações,<br />

dando-as a conhecer a um público mais alargado, a todos os que se interessam pelo<br />

conhecimento da arte.<br />

7


Temos ainda que agradecer à Mestre Sandra Leandro o trabalho de programação<br />

das conferências, os convites criteriosos às diversas personalidades intervenientes e<br />

a organização da publicação. Foi devido às suas qualidades científicas, método e<br />

persistência que esta publicação se tornou possível.<br />

Clara Menéres<br />

Lisboa, 25-9-07<br />

8


Introdução<br />

Ainda está vivo o minuto que / impede que morra sem raízes / cada minuto de hoje.<br />

Fiama Hasse Pais Brandão<br />

Estados da Forma é o subtítulo dos Seminários de Estudos de Arte que se realizam<br />

desde o ano lectivo de 2002-2003, prevendo-se a sexta edição no ano de<br />

2007-2008. Devo este subtítulo à Metafísica: ao contrário do par potência-acto,<br />

que permite entender especialmente a mudança, a relação matéria-forma faz-nos<br />

compreender como as coisas estão compostas. Tendo esta actividade uma forte preocupação<br />

pedagógica, procurando o dinamismo e a articulação de saberes, tentando<br />

mostrar o amplo horizonte das pesquisas em Arte, pareceu-me importante contemplar<br />

também a noção de forma que se apresenta como uma constante.<br />

Os Seminários têm como objectivo principal facultar o contacto com diversos<br />

intervenientes do mundo da Arte, oferecendo a possibilidade de debater os temas<br />

que se expõem. Privilegiou-se, desde o primeiro momento, a pluralidade de perspectivas<br />

e convidaram-se conferencistas não só da Universidade de Évora, mas também<br />

de outras instituições académicas, ou autores cujo trabalho é relevante. Sendo<br />

uma disciplina destinada aos alunos da Licenciatura de Artes Visuais da via artística,<br />

pensei que seria proveitoso se se alargasse a outro público, assumindo-se como um<br />

serviço cívico de acesso livre promovendo a necessária ligação da Universidade à<br />

sociedade. Procurando constituir-se como um instrumento de formação, os programas<br />

dos Seminários pretendem abarcar o máximo de temáticas proporcionando<br />

9


quer a reflexão sobre conteúdos que os alunos e o restante público aderem com<br />

facilidade, quer incluindo temas que não serão, talvez, de interesse imediato, mas<br />

que se planeiam, exactamente, para alargar o horizonte do conhecimento.<br />

Foi também nosso objectivo, desde o início, que se publicassem os textos resultantes<br />

das conferências que apresentaram, em alguns casos, linhas de investigação e/ou<br />

criação singular, ou colectiva, inéditas. É grato ter ouvido muitas vezes ao longo<br />

destes anos: «é a primeira vez que estou a apresentar o meu trabalho» e é estimulante<br />

poder publicar esses contributos.<br />

Desde a concepção do programa, até à participação dos conferencistas, esta tem sido<br />

uma iniciativa que vive exclusivamente da boa vontade dos intervenientes. Por isso,<br />

quero destacar e agradecer a colaboração imensamente generosa de todos os conferencistas,<br />

quer dos meus colegas da Universidade de Évora, quer, em particular,<br />

daqueles que aqui se deslocaram sem qualquer retribuição monetária partilhando<br />

o seu saber. A elaboração dos cartazes, ao longo destes anos, não teria sido possível<br />

sem a preciosa ajuda da Mafalda Matias e do Duarte Belo. A ambos quero deixar o<br />

meu agradecimento mais expressivo.<br />

Grande parte das sessões foram transcritas pela ex-aluna Rita Vargas Matias, que<br />

cumpriu de forma exemplar a sua função, e a partir delas os autores redefiniram<br />

o seu texto. As comunicações muito flexíveis e plurais na forma e no conteúdo,<br />

possibilitaram, em alguns casos, o debate ao longo da exposição não sendo, por isso,<br />

passíveis de uma transcrição mecânica. Na maioria dos casos conservou-se a vivacidade<br />

da exposição oral, por vezes, em detrimento de uma forma mais burilada, não<br />

se perdendo, no entanto, o carácter do Seminário.<br />

Os textos que agora se apresentam pertencem aos Seminários organizados no ano<br />

lectivo de 2002-2003 e seguem a ordem do programa. O primeiro artigo, de minha<br />

autoria, versa as linhas fundamentais da Teoria e da Crítica de Arte em Portugal no<br />

final do século XIX, numa reflexão a partir de fontes escritas e do desenho humorístico.<br />

O segundo artigo de Emília Tavares, Técnica Superior do Museu do Chiado<br />

e Investigadora especialmente no domínio da Fotografia, aborda os discursos fotográficos<br />

do Construtivismo, Dadaísmo, Vorticismo e Surrealismo, problematizando<br />

de forma muito interessante os contributos de Man Ray, Christian Schad, László<br />

10


Moholy-Nagy, El Lissitsky, Alexander Rodtchenko, entre outros. Duarte Belo, Fotógrafo<br />

e Arquitecto, apresentou no Seminário um vasto conjunto de fotografias<br />

que tinha realizado em Portugal nos últimos dez anos. O seu texto é um breve reflexo<br />

desse momento em que afirmou que tenta compreender «que fascínio exerce<br />

a terra e, provavelmente, sempre exerceu, sobre quem a olha, sobre o viajante, ou<br />

sobre quem, em tempos muito recuados, aí terá chegado na procura de um local<br />

para habitar». O artigo do Investigador e Professor desta Universidade Jorge Croce<br />

Rivera, começa por explicar como o pensamento se constitui através de dificuldades.<br />

Interrogando o enigma do sentir na comoção estética, analisa duas obras<br />

do Museu Nacional de Arte Antiga, entre elas o conhecido Ecce Homo, do século<br />

XV, e aplica a noção de jogo proposta pelo antropólogo René Callois ao domínio<br />

artístico da Apresentação e da Representação. Filipe Rocha da Silva, Pintor e também<br />

Professor desta Universidade, abordou várias questões em torno da criação de<br />

imagens, terminando com a tradução livre do testamento de Maria Helena Vieira<br />

da Silva. Pedro Portugal, que na altura assinava Pedro Porttugal, igualmente Pintor<br />

e Professor da Universidade de Évora, iniciou assim a sua invulgar palestra: «A<br />

minha experiência (prefiro falar de litania) académica de 12 meses é caracterizada<br />

pela assunção» e prossegue explicando-a. Lamentamos não publicar a excelente<br />

conferência do Professor da Universidade Católica do Porto, José António Falcão,<br />

intitulada «Visões do invisível. A salvaguarda e a valorização dos bens culturais da<br />

Diocese de Beja». Ana Luísa Barão, Professora da Faculdade de Belas Artes do Porto,<br />

considerou a Teoria e Crítica de Arte em Portugal na primeira metade do século<br />

XIX. Dividindo o estudo em duas partes, na primeira deteve-se, em particular,<br />

sobre dois textos: O ensaio sobre a crítica de Alexander Pope, e Reflexões sobre a<br />

arte crítico-pictórica de Michael Angelo Prunetti. Na segunda abordou a recepção<br />

crítica da Exposição da Academia de Belas Artes de Lisboa de 1843. Diogo Félix,<br />

Pintor e Professor, mostrou na sua conferência um conjunto de reproduções do<br />

seu trabalho, entre as quais algumas peças de duas séries: árvores e casa. No texto<br />

revela parte do seu processo criativo até chegar ao que ambiciona como estética<br />

do silêncio. O artigo da Arquitecta e na época Professora da Universidade Nova de<br />

Lisboa, Elisabeth Évora Nunes, percorre os caminhos do Urbanismo em Portugal<br />

incidindo no caso de Évora. Partindo da sua ampla experiência pessoal, sublinha<br />

que para se entender o desenho do território é necessário compreender vários<br />

legados, desde a herança romana até às novas políticas de ordenamento. Paulo Simões<br />

Rodrigues, Investigador e Professor da Universidade de Évora, apresentou<br />

11


uma comunicação intitulada «Urbanismo: Arquitectura e monumentos Nacionais<br />

na Évora Oitocentista: balanço historiográfico». Neste excelente trabalho, podemos<br />

encontrar muita e bem estruturada informação desde a contextualização do tema<br />

«expandir, circular, higienizar e tipificar foram os princípios que determinaram o<br />

paradigma da cidade do século XIX» até ao «restauro arquitectónico como agente<br />

dinamizador da renovação urbana». Compete ainda destacar o último artigo da Escultora<br />

e Professora da Universidade de Évora, Clara Menéres. Tomou como base<br />

da conferência a sua Prova de Agregação expondo o tema «A escultura e as novas<br />

tecnologias» tratando «de um modo rápido e sucinto, a linha condutora que, ao longo<br />

do séc. XX despertou e equacionou a cultura científica e tecnológica subjacente<br />

à arte contemporânea». Menciona vários percursos, entre os quais, o de Marcel<br />

Duchamp, Gyõrgy Kepes, Schõffer, Vassilakis Takis, Joseph Beuys. Neste momento<br />

final, cabe indicar a origem dos Seminários. Deve-se justamente à Professora Clara<br />

Menéres, a ideia inicial dos mesmos tendo-os organizado entre 2000-2002. Foi a<br />

seu convite e participando neles que tomei pela primeira vez contacto profissional<br />

com a Universidade de Évora e coube-me dar continuidade à sua ideia.<br />

Acreditando na Universidade como lugar de criatividade, rigor e produção de saber,<br />

o princípio que me norteia ao programar esta actividade está contido na máxima:<br />

«o saber só se multiplica se se divide».<br />

Sandra Leandro<br />

12


Sandra Leandro<br />

Universidade de Évora; Universidade Nova de Lisboa. sleandro@megamail.pt.<br />

Conferência proferida em 5 de Março de 2003.<br />

Teoria e Crítica de Arte em Portugal no final do<br />

século XIX…<br />

”Não há arte entre nós, não ha pintores, não há quadros, não ha talentos”, diz-se quando<br />

se falla da pintura, e em todos os jornaes fervilham noticias chamando eminentes e illustres a<br />

todos os sugeitos que, a troco de algumas libras, pintam retratos sem talento e sem semelhança.<br />

(…) Um adjectivo arrasta outro, este é distincto, aquelle há-de ser illustre, aquell’outro<br />

eminente, e aquell’outro primeiro. E a sinceridade vae assim atraz dos adjectivos, ficando<br />

esphacelada em cada um d’elles, e chegando ao fim transformada em hypocrisia. (…) Quando<br />

d’aqui a séculos se quizer estudar a historia de hoje encontrar-se hão reputações de gigantes<br />

e obras de anões.<br />

Gilberto, Diario da manhã, 12 de Abril de 1877, [1].<br />

Vimos ao fechar da porta, o que não é para admirar, porque há muitos que não foram lá<br />

quando estava aberta; a exposição? Sim. Os liliputianos; as ratas sábias; o palácio encantado;<br />

a mulher turpila, ou a gorda, e a gigante a barbuda. Isso sim; custa dinheiro, mas diverte.<br />

Pinturas nem de graça. Depois, não se entende nada daquilo. Isto de ver quadros é preciso<br />

entender; é como receitar mézinhas, falar da política, perscrutar nos astros… E nos olhos. Não<br />

se sabe o que vêem, e daí uma interrogação constante: “o que é isto, o que é aquilo, o que é<br />

aqueloutro?” Uma cegueira completa; uma fadiga; uma maçada. Não se vai lá. À exposição. É<br />

o mais simples, o melhor, o mais tranquilo. O estar aberta ou o não estar é o mesmo. E antes<br />

13


fechada, por que nos não perguntam por ela.<br />

Xylographo, O Occidente, nº 309, 21 de Julho de 1887, p.163.<br />

Devo prevenir caridosamente os 1:500 Zacharias d’Aça que Lisboa, hoje possue, que estas<br />

comparações faço-as, não para fazer critica, mas para tornar mais comprehensivel esta chronica<br />

do publico que me lê, e que por emquanto está pouco iniciado ás coisas d’arte. Eu tenho este<br />

defeito - gostar que todos me entendam, e nunca escrever uma linha, nem para privilegiados,<br />

nem para os mandarins da critica. É talvez por isso que os mandarins da minha terra me<br />

detestam. Paciencia!.<br />

Mariano Pina, A Illustração, nº10, 2 de Maio de 1890, p.146.<br />

As epígrafes que coloco à vossa consideração neste seminário são fortemente irónicas,<br />

no entanto, não queria deixar de sublinhar que, no final do século XIX, existia<br />

espaço de folha para diferentes sensibilidades opinativas. Não está tudo determinado<br />

pelo “génio do século XIX”, ou pela falta dele, mas não deve surpreender que<br />

surjam constantes e semelhanças com o nosso tempo…<br />

A Crítica de Arte é um género literário específico, que exige uma escrita e análise<br />

velozes. O seu exercício em Portugal foi, para alguns dos seus protagonistas um<br />

momento pré-político, para outros, uma actividade paralela, um segundo, ou terceiro,<br />

emprego. Através de uma análise aos principais periódicos e obras da época 1<br />

tentámos detectar quais os principais temas da Teoria e da Crítica de Arte nas três<br />

últimas décadas do século XIX. Destacaram-se as temáticas da procura da identidade<br />

nacional na arte, o ensino artístico, a complexa questão do Realismo, o Naturalismo,<br />

e o vasto campo da crítica aos principais eventos.<br />

I. A década de 70: O mistério da estrada Realista<br />

Gostaria de frisar o papel que o traço humorístico teve e tem como força de expressão<br />

crítica, através da imagem. Em primeiro lugar apresento-vos uma caricatura<br />

1 Refiram-se, entre outros periódicos: A Arte, Artes e Letras, Diario de Noticias, Diario da manhã, As Farpas, O Occidente.<br />

Dos volumes destaque-se Thesouros d’Arte e A Arte Nacional, de Luciano Cordeiro e Observações sobre o actual<br />

estado do ensino das artes em Portugal do marquês de Sousa Holstein, Folhas d’Arte de Monteiro Ramalho, O Culto da<br />

Arte em Portugal de Ramalho Ortigão, Arte e Artistas Portugueses de Ribeiro Artur. Optamos por manter a grafia da<br />

época.<br />

14


Fig. 1 - O Antonio Maria, 3 de Janeiro de 1880, p.7.<br />

15


que não se relaciona com o mundo artístico, mas com a «Acção da Critica sobre a<br />

evolução social». Rafael Bordalo Pinheiro fez, neste desenho, o balanço dos anos 70,<br />

através da figura indestrutível, resiliente, de Fontes Pereira de Melo, o mesmo que<br />

dá nome ao jornal O Antonio Maria 2 (fig. 1).<br />

Nos anos 70 do século XIX a Crítica e a História da Arte concederam uma atenção<br />

particular à verificação da existência de uma escola nacional de pintura, questão<br />

que se articula com um tema recorrente da cultura portuguesa: uma procura<br />

quase constante da identidade do país. Esta questão constitui uma das temáticas<br />

que transitaram do período anterior para este, servindo de problemática de fundo.<br />

Reconhecendo-se o importante papel que os estrangeiros tiveram no panorama<br />

artístico nacional ao longo dos séculos, ao qual acrescia o espírito nacionalista que<br />

se vivia na Europa do século XIX, era, de facto, necessária uma reflexão acerca das<br />

raízes e da identidade das Artes em Portugal.<br />

O primeiro artigo da revista Artes e Letras é revelador dessa preocupação. Redigido<br />

pelo marquês de Sousa Holstein (1838-1878), vice-inspector da Academia de Belas-Artes<br />

de Lisboa, teve justamente por tema «Grão Vasco e a Historia da Arte em<br />

Portugal». Numa perspectiva lúcida, Sousa Holstein observou que era justamente<br />

a escassez de estudos que promoviam a vulgar opinião de que «a pintura nunca<br />

existiu em Portugal com uma vida robusta, independente e nacional». Faltandolhe<br />

«tempo e forças» não se abalançava a tão gigantesca tarefa, tentando facultar,<br />

neste artigo, as conclusões que alguns estudiosos formularam sobre aquela matéria.<br />

Exaltando a necessidade de rigor e condenando a inexacta informação lendária,<br />

Sousa Holstein aprovava e expunha uma metodologia necessária aos historiadores<br />

de arte (a mesma que tinha sido seguida por aqueles que admirava): «critica severa,<br />

um rigoroso methodo de investigações pacientes e longos estudos nos archivos, a<br />

comparação attenta dos monumentos da pintura que sobreviveram aos estragos do<br />

tempo e dos pseudo restauradores» 3 .<br />

No número 2 da revista Artes e Letras, afirmou a existência de uma escola de Pintura<br />

nacional entre os finais dos séculos XV e XVI, tendo no início inspiração<br />

flamenga. Chamou, então, a essa escola: «eschola portugueza». Partindo da tradução<br />

que a Sociedade Promotora de Belas-Artes efectuou, em 1868, do estudo de<br />

2 António, surge sem acentuação conservando a grafia da época.<br />

3 Artes e Letras, Janeiro de 1872, p.2.<br />

16


C. Robinson, elaborou um conjunto de questões. A influência italiana foi ponderada,<br />

mas considerada posterior à de Grão Vasco e não auferindo o mesmo estatuto.<br />

A via flamenga foi igualmente observada relacionando-a com a vinda de Van Eyck<br />

na comitiva enviada por Filipe da Borgonha, tendo essa estada ocorrido entre 1428<br />

e 1430.<br />

Segundo Sousa Holstein, foi o carácter dual das produções artísticas portuguesas<br />

do século XVI, entre o flamengo e o italiano, aquilo que conferiu, uma identidade<br />

específica à arte portuguesa. Assim, foi recorrendo a referências de “escolas estrangeiras”<br />

que definiu a “escola nacional”.<br />

Durante a década de setenta, Luciano Cordeiro (1844-1900), dedicou-se à Crítica<br />

e à História da Arte e seria no futuro, presidente da Sociedade de Geografia. Em<br />

1875 publicou Thesouros d’Arte no qual elaborou uma crítica severa, e em algumas<br />

passagens violenta, acerca do panorama das Artes em Portugal, notando o «estado<br />

d’anemia artistica do paiz». Desiludido, afirmava que a Arte estava longe de ser considerada<br />

uma dimensão importante da vida na sociedade portuguesa. 4<br />

Na sua análise, chamava a atenção para a deficiente ou quase inexistente educação<br />

artística e convém que reparemos nos défices específicos que Luciano Cordeiro<br />

apontou: «não temos vislumbres de educação artistica; - que Lisboa, uma das cidades<br />

mais formosas pela Naturesa, é a capital mais reles pela Arte; - que não temos<br />

Museus, que não temos Escholas, que não temos Monumentos - e eu não fallo dos<br />

monumentos de ostentação e de moda, mas dos monumentos que representam<br />

uma certa vitalidade historica, o espirito e a tradição do collectivismo nacional,<br />

um sentimento esthetico, qualquer, sem o qual um homem é um idiota e o povo<br />

uma manada de bacoros» 5 . Para Luciano Cordeiro a fragilidade do espírito nacional<br />

constituía uma das causas do impasse que a Arte em Portugal vivia 6 . De facto, o<br />

apelo da História e a fixação num passado glorioso, idealizado, tornava-se cada vez<br />

mais forte…<br />

Tratava-se, assim, de um dever patriótico: «Uma nação sem Arte seria facto tão<br />

absurdo como um homem sem sentimento; uma nação na qual o sentimento esthetico<br />

se dissolve, adormece ou perde, é como o homem em quem a sensibilidade<br />

4 Cf. Luciano Cordeiro, Thesouros d’Arte, p.VI.<br />

5 Idem, pp.VII-VIII.<br />

6 Cf. Idem, p.XI.<br />

17


se deprava, se interrompe ou se extingue» 7 … Defendia a História e a tradição, mas<br />

reagia duramente contra o historicismo excessivo e mal entendido 8 . Acusava igualmente<br />

a falta de seriedade na reflexão teórica: «Andam nos ares (...) uns rumores<br />

desentoados de cosmopolitismo metaphysico, declamatorio, romantico, romanesco<br />

até, que quer passar por philosophia séria, positiva, actual sem se dar ao incommodo<br />

de aprender philosophia» 9 …<br />

Cabe também salientar um impressivo conjunto de questões que Luciano Cordeiro<br />

formulou, sendo extraordinariamente reveladoras do panorama artístico nacional:<br />

«Onde está a nossa arte? E eu perguntarei: porque vos impondes o artificio? Porque<br />

fechaes a porta á nossa historia? Porque pondes um dique ao sentimento e á<br />

tradição nacional? Porque vos isolaes do povo; porque voltaes systematicamente as<br />

costas ao vosso paiz?». Luciano Cordeiro demonstrava o seu horror à cópia perguntando:<br />

«Porque vos constrangeis e mascaraes, por que vos pondes a copiar, mal,<br />

porque nem a copiar bem queremos aprender, a copiar o que vos mesmos chamaes<br />

decadencia artistica?».<br />

Frisando a importância dos modelos franceses, revelava o panorama da arte em<br />

Portugal: «Temos uma arte: é franceza, ou antes uma arte francelha, que ou veste<br />

umas gallas convencionaes e fidalgas, e se diz academica, e se julga fadada para guiar<br />

o mundo, immobilisando-o, ou então veste... ou então não veste cousa alguma, não<br />

se contenta com ser sans-cullote, é obscena, e se proclama Messias regenerador da<br />

moral, da justiça e da verdade na esthetica, fazendo retrogradar esta até ao senso<br />

artistico de certas tribus selvagens» 10 . Para Luciano Cordeiro a necessidade de um<br />

conhecimento profundo da História Pátria surgia como uma exigência iniludível.<br />

Luciano Cordeiro não deixou de rotular como absurda a hipótese de uma incapacidade<br />

nacional relativamente à criação artística que, de resto, os factos desmentiriam.<br />

Em 1870, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão começaram a escrever, em parceria,<br />

o folhetim O Mistério da Estrada de Sintra. Continuaram a colaboração n’As Farpas<br />

considerando, com insistência, o estado incaracterístico, frágil e quase inexistente de<br />

7 Luciano Cordeiro, Da Arte Nacional, p.5.<br />

8 Cf. Idem, p.9.<br />

9 Ibidem.<br />

10 Idem, p.19-10.<br />

18


uma elaboração mental da cultura portuguesa. A partir de 1872, Ramalho Ortigão<br />

continuaria a solo.<br />

De facto, duas vias paradoxais cruzaram o discurso que As Farpas consagraram. Se<br />

por um lado pretendiam romper com os cânones anteriores, nomeadamente, ao<br />

fazerem pressão para que se instituísse o Realismo, que, como referimos, é um dos<br />

temas principais da Crítica de Arte da década de setenta, por outro a necessidade<br />

de reencontrar o país conduziu Ramalho, e não Eça, a recorrer a um eco que o<br />

período anterior tentou consagrar - a autenticidade das tradições populares como<br />

forma de aceder à genuína “alma portuguesa”.<br />

Em 1871, Eça de Queirós, na quarta Conferência Democrática do Casino intitulada<br />

«a nova literatura ou o realismo como nova expressão da arte» pretendeu<br />

transmitir a mensagem positivista de Proudhon: a necessidade do empenho social<br />

da arte. Precisando melhor a definição de Realismo definia-o como «a negação da<br />

arte pela arte, (…) a proscripção do convencional, do falso, do oco, do emphatico,<br />

do lacrimoso, do piegas», e esclarecia: «O romantismo era a apotheose do sentimento,<br />

o realismo deve ser a anatomia do caracter» 11 .<br />

Se, de facto, o Positivismo se estava a difundir, como o desejavam Eça e Ramalho, o<br />

lastro do Idealismo romântico captado pelo entendimento dos Artistas portugueses<br />

fazia-se ainda sentir de forma poderosa e no final do ano de 1875, Ramalho Ortigão<br />

escrevia n’As farpas um texto paradoxal mas revelador: «O romantismo está<br />

já hoje muito longe de nós» para mais adiante concluir «Que ainda o não digam<br />

os parlamentos, que ainda o não digam nem os theatros, nem os quadros, nem os<br />

livros, que importa, se no-lo diz a cada um de nós o nosso coração?» 12 Ramalho<br />

tentava iludir as fundas- raízes-fundas do Romantismo uma vez que desejava o estabelecimento<br />

de uma nova ordem nas Ciências e nas Artes em Portugal. Contudo,<br />

tal ocorria justamente pela razão inversa da apontada - o Romantismo tinha-se<br />

alojado com um carácter menos transitório do que esperavam aqueles que intuíam<br />

o espírito da modernidade.<br />

De facto, ao observarmos a Pintura dos Artistas aos quais se atribuía o epíteto de<br />

Realista, notamos como a linguagem pictórica não era segura na aplicação dos processos<br />

desta tendência estética. A generalidade da crítica apresentava Alfredo Andra-<br />

11 Diario Popular, 15 de Junho de 1871, p.2.<br />

12 As Farpas, Dezembro de 1875, p.28.<br />

19


de como o primeiro dos Pintores realistas portugueses. Alguns Críticos e Cronistas<br />

de Arte ao atribuírem essa designação, não queriam destoar de um determinado<br />

espírito do tempo que se vivia em Portugal, e que se queria novo, revolucionário<br />

e diferente do anterior. A essa diferença correspondia a designação de Realismo,<br />

ainda que o termo fosse vazio ou impróprio para a correspondência pictórica que<br />

assinalava.<br />

Coloca-se, assim, uma questão pertinente: será que a meio da década de setenta se<br />

viviam tempos tão distintos do panorama artístico da década anterior? No início<br />

de setenta asseverava-se n’As Farpas, a propósito dos literatos realistas, que a tinta<br />

que usavam para escrever era «diluida em verdade». Mas que verdade era essa que<br />

“o Realista” Alfredo de Andrade mostrava em cores? Se nessas crónicas se garantia<br />

que o Realismo «ensina a conhecer a personalidade interna, pelas exterioridades do<br />

corpo» que corpo senão o da natureza, este autor deu a conhecer? E que equívocos<br />

não geraria esta designação se ela é em si mesmo complexa e dupla…<br />

Se a doçura do pitoresco não estivesse presente nesta década, os Artistas que viviam<br />

em apuros económicos, veriam acrescidas as suas dificuldades num mercado de arte<br />

pequeno, como o existente em setenta, e composto, na sua generalidade, por um<br />

público de formação incipiente. Por isso, quando n’As Farpas se refere: «Nós não<br />

somos os meigos lisongeadores do mundo em que vivemos: o nosso processo não é<br />

positivamente o do pintor Latour, debaixo dos cujos amaveis pasteis se idealisavam<br />

as feições de todas as mulheres da Regencia, que elle retratou. Nós não procuramos<br />

o ideal, procuramos apenas o verdadeiro. Não é tão difficil de achar, mas custa<br />

um pouco mais a expôr. Ora as verdades são como as cabeças de marcella: Se não<br />

amargam não prestam» 13 parecem esquecer-se do contexto social em que viviam,<br />

procurando promover um modelo que a sociedade, como um todo, ainda não era<br />

capaz de integrar, particularmente no campo das Belas-Artes.<br />

Se o tema do Realismo daria por si só para um sem número de seminários, temos<br />

que prosseguir falando da crítica aos principais eventos. E quais foram eles no anos<br />

70? As exposições escolares das Academias de Belas-Artes de Lisboa e do Porto e,<br />

principalmente, as exposições da Sociedade Promotora de Belas-Artes em Portugal.<br />

Quanto às exposições escolares da Academia de Lisboa podemos referir a dura<br />

observação de Luciano Cordeiro: «Um meu amigo, rapaz de talento e de estudo,<br />

13 As Farpas, Fevereiro de 1872, pp.34-35.<br />

20


que tem viajado muito, incriminava-me uma vez por fazer a critica das nossas<br />

Exposições, annuaes. “É fazer a critica d’um nabo”, dizia-me elle. Mais nabiça, menos<br />

nabiça, eis a que se vão reduzindo as nossas Exposições. A culpa é dos nossos<br />

artistas? Não, não, não. Que hão de elles fazer, coitados!» e acrescentava «Elles, que<br />

não teem futuro, que chegam a não ter garantido o presente, e que não tiveram…<br />

passado» 14 … De facto, tudo leva a crer que as exposições da Academia de Lisboa<br />

não eram nesta época alvo de grande atenção. Se compararmos com a crítica a outros<br />

eventos, o número de artigos sobre estes certames é bastante inferior.<br />

O panorama no Porto parece ser um pouco diferente. Vale a pena destacar a acção<br />

empenhada do conde de Samodães à frente dessa Academia bem como as introduções<br />

que escreveu para os catálogos onde elaborou críticas pertinentes sobre<br />

actuação do Governo. Não foi um texto seu que escolhi analisar neste seminário,<br />

mas sim o artigo de Augusto Ramos, Crítico da revista Mosaico. Escrito em Janeiro<br />

de 1875, tendo por alvo a exposição trienal da Academia de Belas-Artes do Porto<br />

de 1874, Augusto Ramos apenas considerou neste evento duas obras notáveis: o<br />

Desterrado de Soares dos Reis e uma paisagem a óleo de Artur Loureiro. Quanto ao<br />

Desterrado confessava a impotência das palavras: «Não sabemos elogiar obras d’este<br />

merecimento. Vêem-se, admiram-se, estudam-se, analysam-se, e depois de consoladoramente<br />

dizermos: vimos, tornamos a admirar e não nos cansamos nunca, porque<br />

sentimos sempre agradaveis impressões» 15 …<br />

Apesar da Academia do Porto não possuir, à data, a cadeira de Pintura de Paisagem,<br />

Artur Loureiro foi apreciado pela determinação em escolher aquele género sendo<br />

considerado um Pintor realista: «É realista (…) Não busca além da verdade outros<br />

encantos. Para uns será isto defeito; no entanto elle segue com o seu olhar d’aguia<br />

os instinctos que inspiram os mestres da moderna arte. Tem a coragem, o animo e<br />

o talento de todos os apostolos d’uma idêa nova, a luz dos seus exemplos illuminará<br />

os desalentados, o progresso dos seus trabalhos incitará os que os desejam seguir, e<br />

a arte com o seu alento surgira do torpor em que se acha» 16 .<br />

Quanto às mais abundantes críticas sobre as exposições da Sociedade Promotora de<br />

Belas Artes publicou-se na revista Artes e Letras, um artigo da autoria de um Crítico<br />

14 Luciano Cordeiro, Thesouros d’Arte, p.XI.<br />

15 Mosaico, p.70.<br />

16 Ibidem.<br />

21


com longa carreira: José Maria de Andrade Ferreira, (1823-1875). Foi amanuense<br />

da Repartição da Fazenda do distrito de Lisboa e administrador do Concelho de<br />

Oeiras. Colaborou em vários periódicos: Panorama, o Archivo Pittoresco. Quanto à<br />

exposição considerou-a simultaneamente como «um certamen de todos os ramos<br />

das artes do desenho, e um mercado» 17 .<br />

A sua análise inicialmente optimista era coincidente com os objectivos da Sociedade<br />

Promotora. Passando à crítica, começou por salientar que esta exposição era<br />

incipiente, monótona e pouco significativa se comparada com outras que a Promotora<br />

tinha levado a efeito. Notava a predominância do retrato, o que o desagradava<br />

profundamente devido à sua má execução. Comentava aquele género como uma<br />

«humilhação», um «recurso extremo do pincel intelligente» que não valeria a pena<br />

se não se aproximasse dos «rasgos assombrosos dos Ticianos, dos Holbeins e Van-<br />

Dycks, e mais proximamente pelo talento elegante de Thomaz Lawrence, Madrazo<br />

e Grant» 18 . A pintura de género e a natureza morta «super abunda[vam]» o que era<br />

para Andrade Ferreira «symptoma sempre evidente de decadencia» 19 , claro indício<br />

de pouca imaginação.<br />

Outro comentário extraordinariamente revelador foi aquele que elaborou em torno<br />

de Manuel de Macedo: «O sr. Macedo é, talvez, o nosso artista que possue mais<br />

conhecimentos theoricos. Poucos, como elle, fallam tão bem a linguagem de atelier<br />

e entram mais facilmente na parte technologica da arte» 20 . E prosseguia: «o distincto<br />

artista, que com tanto resultado tem estudado a eschola franceza, abraçou com<br />

encarecimento os principios da proclamada eschola realista, cuja interpretação anda<br />

hoje tão desvairada, dando occasião a resultados onde os preceitos bem entendidos<br />

da arte e as regras eternas do bello tem tudo a condemnar. Felizmente, o sr. Macedo<br />

não tem saido de um justo equilibrio, e as suas tendencias para o realismo da actualidade<br />

unicamente se denunciam por uma certa sequidão de tinta, que a observação<br />

da natureza, nos seus aspectos mais risonhos e fulgurantes, como os offerece o nosso<br />

paiz, corrigirá pouco a pouco, alegrando a phantasia do pintor» 21 . Era pois esse<br />

17 Artes e Letras, Maio de 1872, p.70.<br />

18 Ibidem.<br />

19 Ibidem.<br />

20 Ibidem.<br />

21 Ibidem.<br />

22


«justo equilibrio» que marcava a indecisão artística da época. Vivendo a maioria dos<br />

Artistas numa situação económica precária, e não tendo sólidos princípios estéticos,<br />

não sabiam para que lado pender, formulando modelos de compromisso que lhes<br />

permitissem servir gostos de valor simétrico, que na crítica tendiam a definir-se<br />

mais do que na pintura. Dadas as circunstâncias, os modelos de compromisso tinham<br />

a dura razão da sobrevivência…<br />

No número de Abril de 1872 d’As Farpas, Eça e Ramalho elaboraram um comentário<br />

em tons muito diferentes dos que vimos anteriormente. Iniciavam essa crítica<br />

jocosa à mesma exposição da Sociedade Promotora de Belas-Artes, avisando que<br />

ali não era «a entrada do Parthenon nem das estancias do Vaticano nem da galeria<br />

do Louvre». Servindo-se da magnífica capacidade narrativa que tinham, descreviam<br />

com verve o exterior do edifício que continha as supostas obras de arte. Esta crítica<br />

de traços caricaturais que escreveram, tem fortes analogias com o tipo de desenho<br />

humorístico que vemos na fig.2, apesar de datar dos anos 80. De resto, as reportagens<br />

cómicas seriam abundantes no comentário às exposições. Eça e Ramalho<br />

também atacaram os quadros com um agudo, e por vezes cruel, sentido de humor.<br />

Podemos ler quanto ao quadro nº6: «Cabeça de carneiro com agriões -paizagem de<br />

restaurant à la carte».<br />

Manuel de Macedo foi apreciado de forma menos zombeteira, sendo duramente<br />

zurzido pelas paisagens expostas, especialmente porque estavam convencidos que<br />

podia chegar mais longe, conferindo à arte um papel de crítica social: «É difficil ver<br />

tratar um publico com uma familiaridade mais desdenhosa. Manuel de Macedo não<br />

lhe dá a honra de lhe apresentar uma idéa, mostra-lhe ao de leve alguns effeitos de<br />

luz: as suas pequeninas telas são esboços feitos a cantarolar e a fumar, para aguçar<br />

o pincel e firmar a mão. Macedo expoz o seu talento - do avesso. Desenhista de<br />

figura, expõe paisagens a oleo: artista critico e philosopho, observador e romancista<br />

a lapis - mostra-nos luares nublados e côres quentes do pôr do sol: artista que<br />

estuda a cidade e os seus costumes, diz-nos aspectos das aldeias, dos caminhos, ou<br />

das margens dos rios: tendo a psycologia, quer-nos dar a entender que só tem a<br />

côr; sabendo a alma, quer-nos fazer convencer, que só conhece a paisagem». Eça<br />

e Ramalho referiam que não desdenhavam a paisagem mas que só a pintura que<br />

fosse um estudo sobre a psicologia humana faria pensar, e esse era, sem dúvida, um<br />

dos objectivos da Arte.<br />

Quanto à X Exposição da Sociedade Promotora, António Enes (1848-1901), figura<br />

do diluído Partido Histórico, dramaturgo, fundador e redactor principal do jornal<br />

23


Fig. 2 - O Antonio Maria, 13 de Maio de 1880, p.162.<br />

24


O Dia, elaborou uma interessante apreciação crítica. Entendia que a Sociedade<br />

Promotora de Belas-Artes não podia «congratular-se pelos progressos artisticos do<br />

paiz» 22 , embora não a declarasse «inutil» e «nociva», pois face à escassez de recursos,<br />

era considerável a sua actividade. Interpretando os objectivos a que esta instituição<br />

se tinha proposto concluía que eram ambiciosos: «Incitar o publico indifferente a<br />

prestar á arte a homenagem da curiosidade, embora superficial, e do obolo, embora<br />

regateado, é serviço relevante e espinhosa tarefa que n’esta terra, onde o luxo raramente<br />

tem gosto e a riqueza só procura commodos»…<br />

Questionando-se acerca das causas da decadência que esta exposição manifestava,<br />

concluía que era a ignorância a responsável pela situação: «É a ignorancia dos<br />

artistas, ignorancia não dos processos, que quero suppôr que se aprendem e ensinam<br />

primorosamente, mas de quanto é indispensavel para a concepção da idéa.<br />

Examinem-se com boa critica os trabalhos dos pintores nacionaes: o que se nota?<br />

Que sabem em regra manejar o pincel, pôr as tintas, harmonisar as côres, traçar as<br />

perspectivas, reproduzir as fórmas, distribuir a luz e as sombras, mas não conseguem<br />

exprimir com os elementos da linguagem plastica uma concepção intellectual» 23 .<br />

Enes tocava, assim, na corda sensível da Arte em Portugal: a falta de reflexão e de<br />

conhecimento teórico que sustentasse a produção artística, desejando ele a coincidência<br />

entre os processos.<br />

Uma das chaves para o entendimento dessa ignorância, segundo António Enes,<br />

era o abandono da Pintura de História que considerava como «a pintura por excellencia»<br />

e notava as consequências desta fuga: «Como se foge da historia, arcano<br />

imperscrutavel para a arte portugueza, foge-se egualmente de toda a composição em<br />

que é forçosa a interferencia de um elemento ideal, e procuram-se com exclusivismo<br />

os generos infimos, para que sejam só os sentidos a guiar, á vista do manequim<br />

ou do panorama, a mão exercitada». Por isso notava o predomínio do bodegone e da<br />

paisagem, tendendo esta «a descambar na photographia colorida». Desolado, constatava:<br />

«todos estes phenomenos significam inanidade intellectual, e resultam do tão<br />

espalhado preconceito de que a vocação só por si faz o artista, de que as faculdades<br />

estheticas não carecem do auxilio das outras faculdades, e de que se póde egualar<br />

Kaulback ou Landseer sem saber lêr»…<br />

22 Artes e Letras, Fevereiro de 1874, p.29.<br />

23 Idem, p.30.<br />

25


Indignava-se porque a própria Academia consagrava a ignorância teórica escudando-se<br />

no potencial da vocação: «A academia tem dado caracter official a este<br />

preconceito, dispensando os seus alumnos dos mais modestos conhecimentos. Os<br />

livros são para os litteratos, diz-se, e até hoje não chegou a comprehender-se que<br />

para o estudo da pintura historica é rasoavel preparatorio o estudo da historia.<br />

O que aprendem os paizagistas de mineralogia ou de botanica? os animalistas de<br />

zoologia? Nada, e se não vão alem de copiar servilmente, é talvez por mêdo de<br />

plantar á beira mar arvores que só frondejam nas cristas das serras, ou de fazer florir<br />

a amendoeira em agosto. Ha tal, que tendo cursado as aulas da academia, se acerta<br />

ouvir fallar em esthetica ou archeologia, vae perguntar ao Moraes o sentido d’estas<br />

palavras esdruxulas» 24 …<br />

Notava a existência de pinturas «que eram como janellas abertas para o campo, mas<br />

por essas janellas não se avistava o espirito do artista. Via-se o objecto, mas não o sujeito.<br />

Não figurava lá quem pudesse dizer como Rembrandt: quando deixo de pensar<br />

deixo de pintar. A arte rastejava pelo processo, e este apoucamento sentia-o bem<br />

quem passava da exposição dos pintores para a sala da esculptura, e contemplava<br />

D. Sebastião pensando na conquista de Africa» de Simões de Almeida. Contudo, observava:<br />

«Mas para converter esse adolescente no rei D. Sebastião meditando na<br />

conquista de Africa empregou recursos intellectuaes e um cabedal scientifico, que<br />

nas escolas se não ministra aos nossos artistas, porque exprimiu com o cinzel a<br />

compehensão acertadissima de um caracter e quasi de uma época inteira da historia<br />

patria, o que não é empreza para ignaros deshabituados de pensar». E concluía:<br />

«Eis-aqui como eu entendo a arte, eis como a arte plastica póde ser uma linguagem<br />

e a mais conceituosa de todas. A estatura de D. Sebastião decompõe-se, cada linha<br />

é uma idéa, e o conjuncto é uma historia ou um poema. O sr. Simões de Almeida<br />

permitiu á minha esthetica exemplificar-se e mostrar aos artistas como a sua aspiração<br />

não é um impossivel».<br />

Quanto à Teoria da Arte entendida como uma formulação que pretende orientar a<br />

prática ideológica e técnica do Artista e as suas concepções acerca da Arte, não era<br />

um tema particularmente versado na década de 70 em Portugal. As considerações<br />

que surgiram encontram-se em textos de géneros vários. Registe-se a importante<br />

diferença em relação à época anterior, nomeadamente até à primeira metade do<br />

século XIX. Nesse período houve uma extensa produção teórica, embora os textos<br />

24 Ibidem.<br />

26


mais significativos fossem traduções, a crítica, por seu turno não, por várias razões,<br />

tão frequente.<br />

Pudemos constatar que os textos de teor eminentemente especulativo são de origem<br />

espanhola, como por exemplo os da revista La academia. Essa revista consagrava-se<br />

à publicação de estudos artísticos, arqueológicos e literários espanhóis e<br />

portugueses, numa iniciativa decorrente da vontade de propagar o iberismo. Vários<br />

autores portugueses escreveram para La Academia e através da sua leitura soubemos<br />

que Luciano Cordeiro trocava correspondência com o Crítico de Arte espanhol<br />

Francisco Maria Tubino.<br />

Ramalho Ortigão destacava-se no panorama da crítica pela clareza das suas ideias,<br />

convicções e critérios, empregando-os de forma coerente. Considerava a crítica<br />

uma actividade nobilíssima e complexa, que exigia uma elevada erudição e uma<br />

apurada sensibilidade e perspicácia. Para estudarmos as suas concepções teóricas,<br />

estéticas e críticas devemos compreender como empregou o conceito Estética. Não<br />

o apreendeu como um complexo sistemático-filosófico, nem como uma teoria<br />

da contemplação, nem desenvolveu uma estética metafísica. A sua perspectiva era<br />

outra: uma teoria da arte nascida da prática crítica 25 . Traduzindo as suas apreciações<br />

em juízos de gosto, Ramalho Ortigão seguiu o pressuposto kantiano enunciado<br />

na Crítica da Faculdade de Julgar (1790): «não existe uma ciência do Belo mas a sua<br />

crítica, e por isso passa para primeiro plano o sentimento do sujeito» 26 . Porém, no<br />

que dizia respeito ao sistema de pensamento, o autor d’As Farpas era herdeiro de<br />

um espírito idealista, apesar de repudiar tal herança.<br />

Uma das características mais marcadas do conceito de Arte durante o século XIX<br />

e nas primeiras décadas do seguinte, relacionava-se com a permanência da ideia<br />

de Belo Absoluto. No entanto, alguns autores iam proferindo uma opinião contrária<br />

a esta premissa, manifestando a sua convicção na relatividade da noção de<br />

Belo. Ramalho Ortigão estava entre aqueles que reagiam contra a noção de Belo<br />

Absoluto, manifestando influências de um historicismo positivista. Consagrando a<br />

Teoria do Meio, Ramalho defendia que o Belo não era uno e eterno mas histórico,<br />

relacionando-se, portanto, com o tempo e com o espaço. A maioria, porém,<br />

definia a Arte como a revelação de um Ideal. Esta consideração, eivada de espírito<br />

25 Maria João Oliveira, O Pensamento Estético de Ramalho Ortigão, p.11.<br />

26 Argan, G.C. & Fagiolo, Guia de História da Arte, p.90.<br />

27


omântico, vigorou com persistência, ainda que fosse a natureza o padrão pelo qual<br />

a Arte se regia.<br />

II. A década de 80: o triunfo do Naturalismo<br />

e a procura da «terra incógnita»<br />

Avançando no tempo os principais temas da crítica nos anos 80 foram o Naturalismo,<br />

as manifestações artísticas dos centenários, o ensino artístico, e evidentemente<br />

os principais eventos, somando-se às exposições das Academias e da Promotora<br />

as exposições do Grupo do Leão em Lisboa, as Exposições d’arte, no Porto, e a<br />

importante Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental Portuguesa e Espanhola,<br />

entre outras.<br />

Na década de 70 observámos como existia uma intercepção dos conceitos de Realismo<br />

e Naturalismo, conceitos vacilantes e fluidos tanto no domínio da crítica,<br />

como nos parcos textos de teor especulativo. Ora se estes termos foram provenientes<br />

da literatura, sobretudo francesa, sendo nela usados como sinónimos, nas<br />

simplificações mais imediatas, não entendemos que o uso indistinto de um ou de<br />

outro termo, na década anterior, seja um escolho somente português. De facto,<br />

tanto no estrangeiro como em Portugal, muitos daqueles que se dedicavam à crítica<br />

das Belas-Artes vinham do mundo das letras, aplicando directamente os conceitos<br />

que efectivamente faziam parte da mesma conjuntura cultural.<br />

A verdade é que o conceito de Naturalismo, era o mais adequado para a Pintura<br />

que os Artistas portugueses realizavam e na década de 80, verificou-se que a adjectivação<br />

de «pintura realista» foi praticamente substituída. De facto, a distinção entre<br />

um termo e outro nunca foi clara e esse equívoco devia-se não só à sua complexidade,<br />

como à inconsistente solidez na definição e reflexão acerca dos conceitos,<br />

tanto no discurso Crítico, como na própria produção artística. Uma dessas hesitações<br />

manifesta-se num texto de Eça ao elaborar um prefácio “burlesco” para o livro<br />

Azulejos, do conde de Arnoso. Assim, ao definir-se a si próprio, emprega de modo<br />

significativo as duas qualificações - «um renegado do idealismo, um servente da<br />

rude verdade, um desses iligíveis, de gostos suínos que foçam gulosamente no lixo<br />

social, que se chamam “naturalistas” e que têm a alcunha de “realistas”?».<br />

Tal como fizera antes, ao escrever sobre o Realismo, quando especifica o termo<br />

Naturalismo opõem-no ao movimento romântico, usando para isso o substantivo<br />

“realidade” e não a palavra “verdade”, apanágio do movimento realista - «o natu-<br />

28


Fig. 3 - O Antonio Maria, 14 de Outubro de 1880, p.333.<br />

29


alismo consiste apenas em pintar a tua rua como ela é na sua realidade e não como<br />

tu a poderias idear na tua imaginação - seria honrar o teu livro suspeitá-lo de naturalismo!<br />

Obra naturalista significaria então, para a nossa bondosa Lisboa - obra observada<br />

e não sonhada; obra modelada sobre as formas da Natureza, não recortada<br />

sobre moldes de papel; obra pousada nas eternas bases da vida, e não nesse monturo<br />

mole, feito de sentimentalismo bolorento» 27 .<br />

Fig. 4 - O Antonio Maria, 14 de Outubro de 1880, p.335.<br />

27 Eça de Queirós, Notas Contemporâneas, p.101.<br />

30


Passando a observar a crítica aos eventos ocorridos notemos o que foi escrito sobre a<br />

XIV exposição da Academia do Porto ocorrida em 1884. M.[anuel?] R.[odrigues?]<br />

(c.1847-1899) que se dedicou sobretudo à actividade jornalística e escreveu o conhecido<br />

romance A rosa do adro, afirmava, que a Academia Portuense era o melhor<br />

estabelecimento de ensino artístico do país, tanto na frequência de alunos como<br />

no aproveitamento. De facto, podia esgrimir vários nomes sonantes: Silva Porto,<br />

Marques de Oliveira, Soares dos Reis, Artur Loureiro, entre outros.<br />

Em 1880, a exposição da Sociedade Promotora de Belas-Artes recebeu um novo<br />

fôlego, mercê da apresentação dos trabalhos de Carolus Duran, Silva Porto e Marques<br />

de Oliveira. Com este certame, julgou-se na revista O Occidente, que a arte<br />

nacional deixaria de ser considerada um mito. A opinião de Rangel de Lima (1839-<br />

1909) sobre este evento é muito significativa, sobretudo porque este Crítico escrevia<br />

para vários órgãos: A Arte, O Diario de Noticias e o Diario da Manhã. Já na década<br />

anterior o nome de Rangel de Lima era um dos mais importantes. Sócio fundador<br />

da Sociedade Promotora das Belas-Artes em Portugal, dramaturgo, funcionário do<br />

Ministério da Marinha, desenvolvia uma intensa actividade jornalística. Rangel de<br />

Lima chegou a qualificar Silva Porto como impressionista, mas também como realista,<br />

o que revela uma certa incongruência na utilização da terminologia analítica.<br />

Apesar de ter distinguido as diferentes apreciações, notemos que após ter comparado<br />

Silva Porto a Júlio Dinis, no Diario de Noticias, no Diario da Manhã aproximá-loia<br />

de Eça de Queirós... Referindo Céfalo e Procris de Marques de Oliveira lamentava<br />

a fraca representatividade de Pintura de História, o que é, de resto, uma das linhas<br />

de força que transitaram do período anterior.<br />

Rangel de Lima apontava a deficiente cultura artística do público. De facto, eramlhe<br />

oferecidos poucos instrumentos de educação do gosto: no ensino faltava um<br />

cuidado atento às disciplinas relacionadas com as artes, e eram praticamente inexistentes,<br />

ou obsoletos, os museus e as exposições. Este certame iluminou o panorama<br />

e o público acorria, com entusiasmo, à exposição. Satisfeito com a mudança, Rangel<br />

de Lima comparava o “cenário” com o que tinha acontecido há oito anos atrás,<br />

quando predominavam os referentes mitológicos. Distinguia a renovação que Carolus<br />

Duran tinha introduzido no retrato, revelando igualmente o seu desprezo pela<br />

fotografia. Columbano foi desde logo registado como uma individualidade ímpar,<br />

mas censurava-lhe a reduzida dimensão dos quadros e o tratamento displicente da<br />

31


tela 28 . Importa sublinhar que Ramalho Ortigão também conferiu grande importância<br />

a este evento, manifestando-o com a sua peculiar vivacidade.<br />

Monteiro Ramalho (1862-1949), Crítico de Arte, amigo do Grupo do Leão, irmão<br />

do Pintor António Ramalho, dedicou-se intensamente à actividade jornalística tendo<br />

escrito para O Occidente, o Diario de Noticias, O Primeiro de Janeiro, Revista Moderna,<br />

entre outros. Considerou que a XIII exposição da Promotora, revelava uma<br />

profunda decadência augurando-lhe a morte. A sensação desta mostra foi a recusa<br />

emendada de Soirée chez lui/Concerto de Amadores de Columbano.<br />

A crítica de Xylographo à XIV exposição da Sociedade Promotora, uma das vozes<br />

mais interessantes d’Occidente, caracterizou vários hábitos “culturais” da época.<br />

Indignava-se que os Artistas estudando Pintura de História terminassem a fazer<br />

retratos uma vez que a primeira não era adquirida 29 . Pensamos que sob este pseudónimo<br />

se esconde a figura de Caetano Alberto (1843-?), xilógrafo de profissão e um<br />

dos fundadores da revista ilustrada O Occidente. De resto, a crítica sob pseudónimo<br />

foi frequente durante o final do século XIX. Ontem, como hoje, ser Crítico de<br />

Arte, não era cómodo. Eram figuras geralmente contestadas e assinar sob pseudónimo<br />

poderia trazer várias vantagens: uma certa protecção, a multiplicação quer<br />

da opinião, quer da ideia de que existia um maior dinamismo nesta área. Ramalho<br />

Ortigão usou o pseudónimo de João Ribaixo, e de Simplício Feijão; Guilherme de<br />

Azevedo, João Rialto; Rangel de Lima o de Rapin; Manuel de Macedo o de Pin-sel<br />

e de Spectador; Fialho de Almeida, Valentim Demonio, entre muitos outros.<br />

Monteiro Ramalho, um dos Críticos mais importantes e também dos mais jovens,<br />

ao considerar as exposições do Grupo do Leão atribuiu a Silva Porto o lugar cimeiro,<br />

opinião coincidente com a de Ramalho Ortigão. Sobretudo na segunda<br />

exposição do Grupo, notou uma favorável mudança no público. Ramalho Ortigão,<br />

perspicaz e rápido na análise, observou, na terceira mostra que os discípulos avançavam<br />

enquanto os mestres estagnavam o que era desde logo um sintoma inquietante.<br />

Ao comentar essa mostra, Monteiro Ramalho frisou os conteúdos panteístas<br />

da obra de Silva Porto, tecendo uma análise técnica um pouco mais profunda se a<br />

compararmos com as que tinha escrito anteriormente.<br />

28 Cf. A Arte, Abril de 1880, p.63.<br />

29 Cf. O Occidente, nº309, 21 de Julho de 1887, pp.163-166.<br />

32


Fig. 5 - Pontos nos ii, 20 de Dezembro de 1888, p.824.<br />

33


Abel Acácio (1856-1917), militar de profissão a quem muitas vezes fugia a pena<br />

para matizes poéticos, também elaborou uma crítica sobre o terceiro certame, observando,<br />

ao invés de Ramalho Ortigão, vários progressos sendo a pedra de toque<br />

o facto de a figura ser cada vez mais representada.<br />

Artur Lobo d’Ávila (1855-?) formado com o Curso Superior de Letras, desenvolvia<br />

ampla actividade jornalística no Commercio de Portugal, no Novidades, no Diario de<br />

Noticias, entre outros. Num interessantíssimo artigo pôs em questão algumas opiniões<br />

de Abel Acácio. Caracterizou com notável acuidade uma das faces da crítica de<br />

arte em Portugal: «Cá não ha meios termos. Ou o artista é eximio, e se alguem o diz<br />

uma vez, começa um côro de louvores que acaba por o estragar, ou se não produz<br />

o que julgam obras-primas, dá-se-lhe a matar» 30 …<br />

Também João Sincero, ou seja, Emídio Brito Monteiro (1860-1909) bibliotecário<br />

do Grémio Artístico até 1896, com vasta actividade jornalística, emitiu opinião<br />

idêntica. Segundo registo do Pintor Luciano Freire, João Sincero tinha uma ambição:<br />

destronar Ramalho Ortigão, por isso, confessava para quem o quisesse ouvir:<br />

«-Hei-de destronar esse parlapatão!» comentário mimetizado, de forma trocista,<br />

pelo pintor António Ramalho.<br />

J. Augusto Vieira, na Revista de Estudos Livres, apontou a falência da quinta exposição<br />

do Grupo, notando a falta de ideias, mal daninho que já António Enes tinha<br />

diagnosticado na década anterior. Abel Acácio elaborou um artigo em parâmetros<br />

diversos recorrendo a um discurso dialogado sobre a sexta exposição. Constatava a<br />

formação de uma escola de pintura portuguesa, mas desconcertantemente acabava<br />

por referir que num país de entranha burocrática a arte tinha morrido…<br />

Manuel da Silva Gaio, bacharel em Direito, que escrevia para o Diario da Manhã e<br />

para o Novidades, tal como a maioria dos articulistas conferiu o lugar de topo a Silva<br />

Porto, todavia, escrevendo sobre o sétimo certame traçou-lhe também algumas<br />

críticas.<br />

Zacharias d’Aça (1836-1908) decano da crítica, oficial da Direcção Geral da Instrução<br />

Pública, bibliotecário da Academia de Belas-Artes de Lisboa tendo escrito<br />

no Panorama tal como José Maria de Andrade Ferreira, n’O Occidente, na Revista<br />

Contemporanea, na Gazeta de Portugal, entre outros, acusava alguns condicionalismos<br />

emocionais na actividade crítica: «Entrar nas salas d’uma exposição de bellas artes<br />

disposto a usar largamente dos direitos da critica e a lavrar sentenças absolutas e<br />

30 Diario da Manhã, nº3238, 30 de Janeiro de 1884, [p.1].<br />

34


desapiedadas, em nome dos altos ideaes da Grecia antiga ou da França moderna,<br />

encontrar alli os artistas tristonhos, desanimados, silenciosos como trappistas, e<br />

ouvir-lhes dizer com voz soturna e dolente: “Ainda não se vendeu nada! (…) - é<br />

triste, e modifica as disposições do nosso espirito, por mais severo que elle seja» 31 .<br />

As comunidades emocionais que se estabeleceram entre Artistas e Críticos fizeram<br />

destes últimos muitas vezes mais cúmplices do que produtores de juízos de valor<br />

com uma certa independência. A última exposição do Grupo do Leão, até mesmo<br />

a Monteiro Ramalho pareceu parcamente abastecida, escrevendo sobre a perda de<br />

fôlego e de novidade daqueles certames…<br />

Quanto ao sentido da procura de identidade nacional, a década de 80 foi decisiva<br />

na reelaboração da história e dos mitos do país. Assim, as festas originadas pelas comemorações<br />

dos centenários, rituais de actualização da História, foram momentos<br />

propícios para que se reanimasse o “orgulho nacional” e a identidade colectiva e<br />

para que se relessem factos e individualidades. Para que tais eventos se realizassem,<br />

foi necessário o estabelecimento de um programa artístico mais, ou menos, elaborado<br />

consoante o interesse que a figura despertava na sociedade. A esse facto não<br />

era alheio o efeito político que a personalidade comemorada poderia suscitar, procurando<br />

os diferentes grupos ideológicos colher alguns dividendos.<br />

A década abre com a comemoração do tricentenário camoniano. Seria difícil encontrar<br />

na história nacional uma figura que satisfizesse mais plenamente as múltiplas<br />

sensibilidades políticas que existiam ou despontavam. Camões “herói elástico”<br />

serviu, como serve ainda, para muscular a “personalidade portuguesa”. Deste modo<br />

não causa estranheza que “toda a nação” se avaliasse e se reequacionasse em torno<br />

do grande épico. Tanta agitação não passou despercebida a Rafael Bordalo Pinheiro<br />

que lhe dedicou páginas divertidíssimas n’O Antonio Maria, quer observando criticamente,<br />

quer sob um registo mais descritivo.<br />

Mentor e entusiasta das comemorações camonianas, Ramalho Ortigão explicou o<br />

pensamento que lhe estava subjacente: dada a calamidade em que se encontrava a<br />

sociedade portuguesa, alguns “beneméritos” decidiram promover o Centenário de<br />

Camões como «prova do espelho posto á boca do moribundo para o fim de verificar se elle<br />

ainda respira ou não».<br />

Em 1884, Gervásio Lobato (1850-1895), dramaturgo e redactor da «Chronica Occidental»,<br />

o editorial d’O Occidente, responsabilizou veementemente aqueles festejos<br />

31 Gazeta de Portugal, nº49, 29 de Dezembro de 1887, [p.3].<br />

35


Fig. 6 - O Antonio Maria, 10 de Junho de 1880, p.191.<br />

36


pela promoção da iniciativa privada, desencadeado uma torrente de outros eventos<br />

que agitavam várias vertentes do panorama nacional. Prosseguia enunciando algumas<br />

exposições que tinha despoletado: sendo a mais recente a exposição distrital<br />

de Coimbra; no ano anterior a de Aveiro; e «No Porto, uma forte e bem dirigida<br />

associação em que se aggruparam todas as boas vontades, e todas as illustrações, a<br />

Sociedade de instrucção, tem realisado sucessivamente, em curto espaço de tempo,<br />

uma serie de exposições notaveis e de incontestada e incontestavel utilidade publica».<br />

Notava também que a iniciativa privada tinha sido benfazeja para as Belas-<br />

Artes, dando os seus frutos através do Grupo do Leão, grémio independente de<br />

projectos oficiais.<br />

Quanto à Teoria da Arte, apesar do aumento da escrita sobre a vida artística em<br />

geral, verificámos que se escreveram menos artigos directamente relacionados com<br />

esta reflexão do que na década anterior. A quase ausência de publicação de textos<br />

em língua castelhana, que nos anos 70 concederam um decisivo apport, é outra significativa<br />

diferença. Por entre considerações de vária ordem surgiam pinceladas de<br />

Teoria. Mariano Pina, por exemplo, era capaz de emitir acesos elogios à Arte: «só a<br />

arte nos consola, nos dá saúde e nos dá força e nos dá coragem, só a Arte faz com<br />

que possamos passar horas e horas em conversa muda e mysteriosa com o nosso<br />

espirito, com o nosso coração e com a nossa alma…Como eu te venero, ó Arte!» 32<br />

III. A década de 90: prolongamentos e «trágicas<br />

fantasias» nos tempos nephelibathas<br />

Os anos 90 começaram de forma pouco auspiciosa: «Que lugubre e sinistro começo<br />

d’anno tem sido o d’este anno de 1890, que ha vinte dias começou o seu<br />

reinado!» - lamentava Gervásio Lobato na «Chronica Occidental». De resto, foi no<br />

dia do suicídio (uma epidemia da época) do seu amigo Júlio César Machado, que<br />

explodiu a aterradora notícia do Ultimato.<br />

A morte de Silva Porto, em 1893, causou um profundo abalo no equilíbrio do panorama<br />

artístico, mas os periódicos foram mais prolixos na cobertura do suicídio de<br />

Soares dos Reis na década anterior. O Antonio Maria registou isso mesmo, lamentando<br />

que o falecimento do Pintor tivesse sido encarado pela imprensa como facto<br />

secundário, asseverando que a par de Antero, Lupi, Camilo Castelo Branco e Soares<br />

32 A Illustração, nº12, 20 de Junho de 1886, p.178.<br />

37


dos Reis, o seu nome se perpetuaria, enquanto se apagariam os senhores da fama<br />

actual. Rosa Araújo, empenhadíssimo presidente da Câmara de Lisboa, morreria<br />

também nesse ano praticamente no anonimato…<br />

Nos anos 90 os temas da crítica mantiveram-se idênticos. Todavia, por entre o Naturalismo<br />

que se glosava, iam aparecendo ensaios simbolistas que muitas vezes eram<br />

pejorativamente apodados de nefelibatas. Despontou também um importante tema<br />

para a história e para a crítica de arte: a longa e labiríntica questão dos painéis de<br />

S. Vicente.<br />

Em 1890, Mariano Pina (1860-1899), director d’A Illustração, revista editada em<br />

Paris, notava com agrado que Portugal já tinha Artistas, regozijando-se com a excelente<br />

representação portuguesa no Salon. Segundo a sua perspectiva, Columbano,<br />

Pintor incompreendido em Lisboa, deveria viver entre os seus pares espanhóis ou<br />

holandeses. A par deste último, destacava Teixeira Lopes, com trabalhos com a verve<br />

de Caim e de a Viúva. Aproveitava para advertir João Arroio, breve ministro da Instrução:<br />

«Não toque por emquanto nas Bellas-Artes, emquanto os nossos artistas se<br />

não decidirem a estudar maduramente a questão: - situação do artista em Portugal;<br />

necessidade da intervenção do Estado, para reunir todos os exforços que andam ao<br />

desamparo; necessidade do Estado auxiliar as exposições annuaes em Lisboa; necessidade<br />

d’uma reforma dos programmas e do methodo d’ensino; necessidade de<br />

separar o actual museu em dois - arte ornamental, e arte propriamente dita; - etc.,<br />

etc., e ainda mais etc…» Terminava animando os Artistas a agremiarem-se, como,<br />

de facto, sucedeu.<br />

Ribeiro Artur (1851-1910) militar de profissão atento e sistemático observador das<br />

exposições do Grémio e Fialho de Almeida (1857-1911), para além de Ramalho<br />

Ortigão, são duas figuras fundamentais da crítica deste período. Fialho de Almeida<br />

ambicionava que a Arte em Portugal, fosse além do Naturalismo que a década<br />

anterior tinha celebrado. João Sincero é assim a figura que se lhe opõe, totalmente<br />

preso aos clássicos avatares do Naturalismo e absolutamente anti-fantasista. Ao<br />

comentar a terceira exposição do Grémio Artístico, Ribeiro Artur questionava se a<br />

Arte em Portugal tinha melhorado, concluindo que não se assistia a um progresso<br />

assinalável. Existia, no entanto, trabalho e boa vontade combatendo a indiferença<br />

pública e a incompetência oficial. Considerava o Grémio Artístico como uma<br />

incompreendida associação benemérita recebendo golpes da crítica muitas vezes<br />

injustamente. Quanto às exposições notava que tinham produzido algum efeito no<br />

«espirito publico». Seria vantajoso que os melhores Artistas trabalhassem no sentido<br />

38


da arte pura, desprendidos «de todo o interesse profano, obedecendo á inspiração<br />

que synthetisasse todas as vivas forças do eu que em si guardam» 33 .<br />

Sonhava-se com o aparecimento de um génio, eivado ainda de uma aura romântica<br />

muito a propósito desse fin de siècle. Columbano era para alguns essa sombra iluminada,<br />

mas a eleição não era consensual. Para além das repetições naturalistas, mais<br />

ou menos interessantes, ensaiava-se um outro tipo de Pintura. Se o impressionismo<br />

nunca se enraizou em Portugal, apesar de algumas obras terem sido erradamente<br />

integradas nessa tendência, consideramos que, nesta década, ao falar-se de Artistas<br />

nephelibatas, ou de nephelibatices se estaria a experimentar a linguagem simbolista<br />

que entrou, mais uma vez, pela via da literatura.<br />

Bulhão Pato descreveu em 1896 o tipo social do simbolista ou nefelibata: «Grenha<br />

pomposa, colarinhos folhudos, redingote até aos pés, de grande roda, cara de<br />

cabeça de vitela rapada, à porta do açouge». Para os Críticos, ou Articulistas de<br />

arte portugueses, “filiados” no Naturalismo, esta palavra «nefelibata» serviu, até à<br />

exaustão, para desacreditar ou pontuar negativamente os Artistas. Se recuarmos até<br />

aos anos 70, e observarmos a pintura de Joaquim Vitorino Ribeiro Um mártir, se<br />

observarmos n’O Antonio Maria 34 uma obra de António Augusto Gonçalves com<br />

óbvias afinidades com a pintura citada, notamos que não é inédita essa incursão pela<br />

linguagem simbolista, pré-rafaelita. Existem assim, algumas tendências, ou lampejos<br />

simbolistas, em geral não compreendidas, pouco visíveis devido ao mau acolhimento<br />

que a crítica lhes dispensou. Certamente várias experiências não saíram dos<br />

ateliers, visualizadas somente numa esfera privada.<br />

Ao comentar a participação de Columbano, Veloso Salgado, Sousa Pinto, José de<br />

Brito, Albertina Falker, Teixeira Lopes e Tomás Costa no Salon parisiense de 1891,<br />

Jaime Batalha Reis confere-nos uma série de pistas para o entendimento da Arte,<br />

da Teoria, da Crítica e dos Artistas. Começou por explicar «de que pontos de vista»<br />

olhava para as obras de arte - «Tanto para o observador como para o artista, a obra<br />

d’arte é uma realisação do que o espirito sente» 35 . Ramalho Ortigão, ao iniciar a crítica<br />

sobre a primeira exposição do Grémio, e temendo parecer pedante, frisava que<br />

para esclarecer os seus comentários tinha que distinguir «documento estético» de<br />

33 Ribeiro Artur, Arte e Artistas Contemporaneos, pp.305-306.<br />

34 Vide O Antonio Maria, 6 de Março de 1884, p.75.<br />

35 Revista de Portugal, 1892, vol.IV, p.142.<br />

39


«documento histórico» 36 . Recorrendo ao vocabulário gastronómico cravava as suas<br />

farpas no público: «A estética da multidão é sempre uma estética de mesa redonda,<br />

com o menu imposto pelo mestre da cozinha: os desenjoativos de rigor, o pudim<br />

sabido, e a competente fruta incomestível das sobremesas à discrição. No banquete<br />

da arte o público gosta de ter tudo pautado pela sua rotina gastronómica» 37 . E mais<br />

adiante acrescentaria: «Todo o progresso de arte está estreitamente e solidàriamente<br />

ligado à cultura do gosto público. (…) Para ter artistas que prestem é preciso ter<br />

público que os solicite» 38 … Assim vem a propósito lembrar o divertido «Menu<br />

Ornamental» apesar de ser um desenho da década anterior, que consagrou uma<br />

“verdadeira” nouvelle cuisine: desde o «Potage au Musée des Beaux Arts», passando<br />

pelos «Asperges Celtiques» e terminando, por exemplo no sorvete de pêssego de<br />

luz eléctrica.<br />

Para Jaime Batalha Reis a obra de arte era produto de outra assimilação: «resultado da<br />

commoção do artista creador, - d’aquelle que pôde realisar em symbolos, elle mesmo,<br />

o seu espirito, - e deve considerar-se como objecto de commoção para todos os que a<br />

observam, para todos os que encontram n’ella, creados por outrem, symbolos dos<br />

proprios sentimentos» 39 . Notemos a insistência no termo “símbolo”, certamente<br />

utilizada com profunda intenção. Para Batalha Reis a comoção estética não era<br />

provocada em exclusivo pela obra de arte, mas sim por todos os seres ou fenómenos<br />

«que podem tornar-se symbolos, exteriorisações, corporisações, representações<br />

adequadas, não da intelligencia mas do sentimento, não da parte completamente<br />

pensavel mas da intimamente sensivel, não da parte inteiramente determinavel mas da<br />

essencialmente vaga e indefinida do espirito humano».<br />

Ao avaliar na Revista Illustrada a primeira exposição do Grémio, Ramalho Ortigão<br />

remeteu o epíteto de Crítico de Arte para Fialho de Almeida e para Joaquim de Vasconcelos.<br />

Considerava-se a si mesmo como um «artista da crítica (…) um comunicador<br />

de impressões pessoais, um viandante que passa, através do seu tempo, contando<br />

coisas que viu e dizendo os sentimentos que algumas dessas coisas lhe inspiram» 40 .<br />

36 Cf. Ramalho Ortigão, Arte Portuguesa, vol.III, p.149.<br />

37 Idem, p.169.<br />

38 Idem, p.175.<br />

39 Revista de Portugal, 1892, vol.IV, p.143.<br />

40 Ramalho Ortigão, Arte Portuguesa, vol.III, p.163.<br />

40


Fig. 7 - O Antonio Maria, 16 de Fevereiro de 1882, p.52-53.<br />

Considerava que a panóplia de interesses, que era seu apanágio, o incapacitava para<br />

a especialização necessária no domínio artístico, embora os estudos de arte fossem<br />

aqueles que mais o demoravam.<br />

Em 1898 quando Ribeiro Artur publicou a segunda série de Arte e Artistas Contemporâneos,<br />

compilando diversos textos críticos, escreveu-se na primeira página d’O<br />

Seculo um artigo elogioso. O articulista aproveitava para definir o que deveria ser<br />

um Crítico elogiando o autor pelo entendimento do que era a «verdadeira missão<br />

da critica». Assim, Ribeiro Artur não procurava desempenhar, como a maioria, «o<br />

papel do pedagogo, de ferula em punho, ensinando ao artista como se criam obras<br />

d’arte» limitando-se apenas a «commentar essas obras, fazendo sentir cortezmente<br />

ao artista os pontos em que a sua inspiração ou a sua observação o atraiçoaram, e<br />

procurando, sobretudo, fazer sentir ao publico o que n’essas obras possa haver de<br />

bello. O critico commenta a obra do artista, como o artista commenta a obra de<br />

Deus. No fundo a missão é a mesma e deriva da mesma necessidade: - a expansão<br />

41


das faculdades esthesicas do individuo - das faculdades de sentir e de admirar - que<br />

são as mais bellas faculdades da alma humana. Comprehender e sentir o caracter de<br />

belleza d’uma obra de arte, penetrar-se d’elle, pol-o em evidencia, fazer partilhar<br />

á grande massa do publico esse sentimento, eis ahi a util, a nobre, a generosa tarefa<br />

da critica».<br />

Ribeiro Artur «em vez de invectivar os artistas portuguezes, como é costume, por<br />

não produzirem obras de larga envergadura e de extraordinaria importancia, fundando-se<br />

no principio verdadeiro Taine - que a arte é um producto do meio, e no<br />

não menos real principio de Semper - que o valor das obras d’arte n’um paiz é<br />

egual ao dos Mecenas que os compram, Ribeiro Arthur lamenta que a nossa burguezia<br />

gaste tanto nas bijouterias de chic banal que vem do estrangeiro, em logar de<br />

empregar annualmente algum d’esse dinheiro na compra de obras d’arte, protegendo<br />

assim os nossos artistas, e lamenta ainda mais a difficuldade de conseguir que os<br />

nossos homens publicos, por indifferença e incapacidade, atendam devidamente a<br />

este assumpto de tão alta importancia» 41 .<br />

Ramalho Ortigão escreveu O Culto da Arte em Portugal, em 1896. No nº1 da revista<br />

Branco e Negro, uma semana antes da obra ser posta nos escaparates, publicou-se um<br />

excerto assaz significativo: «Em resultado de não termos uma historia geral da arte<br />

portugueza, devidamente systematisada e integralmente documentada em cada um<br />

dos seus capitulos, vemos grassar, não só entre o vulgo mas entre pessoas de saber,<br />

incumbidas de guiar e de reger a opinião, o erro criminoso, profundamente desmoralisante,<br />

de que somos um povo inesthetico, incapaz de concepções artisticas<br />

originaes».<br />

Nesta obra, Ramalho frisava que tinha sido no século XIX que mais se tinha estudado<br />

a Arte Antiga. Mais adiante definiria os Críticos como «fiscaes da arte em<br />

nome do publico» e justificando a acção da crítica centrada nesta obra em questões<br />

patrimoniais e arquitectónicas, escreveria: «Um barbarismo architectonico está tanto<br />

ao alcance de um escriptor como um barbarismo grammatical está ao alcance de<br />

um architecto». Ramalho admirava profundamente John Ruskin, homem de acção<br />

- «glorioso campeão da esthetica e da arte» - que não se tinha emparedado «como<br />

a maioria dos criticos, na torre eburnea dos extases poeticos e das contemplações<br />

especulativas», trazendo-o à liça ao fazer a defesa e apologia das artes tradicionais e<br />

domésticas.<br />

41 O Seculo, nº 5762, 26 de Janeiro de 1898, p.1.<br />

42


N’O Culto da Arte em Portugal, Ramalho fez também sobressair a necessidade de se<br />

realizarem estudos sobre as artes decorativas e um inventário que colhesse os elementos<br />

necessários para a História da Arte. Embora esse inventário não registasse<br />

somente os monumentos, Ramalho frisou que a história das suas construções se<br />

identificava com a história da sociedade que os concebeu.<br />

Estranhando o Simbolismo, concluía depositando a sua esperança no “povo”: «Em<br />

toda a historiographia contemporanea se nota uma glacial frieza de critica, uma<br />

anemica pallidez de expressão, um geral entono de apagada tristeza, em que bem<br />

se demonstra que não circula o sangue vermelho da raça, nem se retrata do vivo o<br />

genio do nosso povo, meigo, docil, de apparencia branda, mas ainda hoje eminentemente<br />

sociavel». Quase no fim do seu estudo frisava: «É pelo culto da arte, invocado<br />

n’estas paginas, que a religião da nacionalidade se exteriorisa e se exerce».<br />

Para a História da Pintura e da Crítica o facto que se destacou, no final da década<br />

de 90, foi o concurso de Pintura de História do qual saiu vencedor Veloso Salgado<br />

com o celebrado Vasco da Gama na presença do Samorim. A este certame concorreu,<br />

uma vez mais sem êxito, o Pintor Ernesto Ferreira Condeixa, sendo as obras expostas<br />

no salão da biblioteca da Sociedade de Geografia. Ribeiro Artur, entre outros,<br />

não se cansou de exaltar a obra de Salgado considerando-a lapidarmente como «a<br />

melhor coisa que nos ficará do Centenario da Índia».<br />

Num tempo em que Portugal progressivamente se ia ensimesmando, e em que o<br />

nacionalismo era pregado em quase todas as áreas do saber, Joaquim de Vasconcelos<br />

fez a descoberta científica, em 1895, (apesar de já se conhecer a sua existência desde<br />

os anos 80) de quatro painéis do políptico de S. Vicente. Este achado confrontava os<br />

portugueses com um retrato colectivo de uma época que se admirava. Abria-se, a<br />

vários níveis, um dos temas de debate de maior, ou menor, fortuna, mas certamente<br />

um dos mais longos e interessantes da Historiografia e da Crítica de Arte em Portugal.<br />

A partir dali o país encontrou um auto-retrato poderoso e mítico mas em vão<br />

se pretendeu espelhar naqueles painéis. Se eles remetiam para um período áureo<br />

de Navegações e Descobertas a realidade era bem diferente do mito com mais tormentas<br />

do que boas esperanças. Como podemos ver na caricatura d’A parodia, em<br />

1901, o vapor Santo André afundava-se com as peças da representação portuguesa<br />

na Exposição Internacional de Paris de 1900…<br />

Março de 2003<br />

43


Fig. 8 - A parodia, 13 de Fevereiro de 1901, p.55.<br />

44


Emília Tavares<br />

Museu do Chiado. Conferência proferida no dia 12 de Março de 2003<br />

Fotografia e Vanguardas.<br />

As vanguardas de início do século XX, fundamentalmente o Dadaísmo, Vorticismo,<br />

Surrealismo e Construtivismo, desenvolveram novos discursos fotográficos baseados<br />

na abstracção das formas, recuperando alguns dos processos técnicos primordiais<br />

da história do desenvolvimento da Fotografia.<br />

A dinâmica interdisciplinar e experimental da arte durante as primeiras duas décadas<br />

do século XX, sobretudo na Europa, colocou a fotografia no centro dos fundamentos<br />

teóricos de alguns destes movimentos artísticos. A transferência do domínio<br />

artístico real/figurativo para as questões abstractas de tempo e espaço, redefinidas<br />

segundo novos modelos perceptivos em ruptura com a perspectiva tridimensional<br />

euclidiana, encontrou consonância com dinâmicas extra-artísticas, como foram as<br />

inovações tecnológicas e científicas de início do século XX.<br />

No entanto, as formulações em redor da fotografia enquanto modelo abstraccional<br />

foram sempre entendidas numa relação de mudança da cultura visual, de modo<br />

mais político e antropológico, do que propriamente numa perspectiva integrada no<br />

discurso plástico da abstracção. Se percorrermos algumas das ideias fundamentais<br />

da época, encontramos desenvolvimentos teóricos acerca da fotografia abstracta<br />

que versam muito mais a sua dinâmica tecnológica e/ou científica e o papel que as<br />

mesmas podiam ter na redefinição de uma nova relação do indivíduo com a cultura<br />

industrial, bem como o seu contributo em termos de assimilação perceptiva para<br />

um novo modo de entender o mundo e as suas relações transversais de sociabilidade<br />

47


e participação política.<br />

A fotografia foi entendida, neste período, como um mecanismo transgressor e revolucionário,<br />

uma vez que as suas capacidades técnicas o colocavam como o interlocutor<br />

estratégico de uma Nova Visão. As dinâmicas de aceitação artística do<br />

objecto fotográfico foram sempre, durante o final do século XIX, inseridas numa<br />

relação da fotografia com o figurativo, e nas diversas e nem sempre lúcidas questões<br />

acerca da fotografia como concorrente imbatível na representação do real. O que<br />

explica certamente o desenvolvimento da representação fotográfica pictorialista de<br />

plasticidade desse mesmo real, a que o movimento Photo-Secessionist liderado por<br />

Alfred Stieglitz (1864-1946) deu fundamento.<br />

A intensa experimentação e derisão dos modelos representacionais vigentes a que<br />

as vanguardas se dedicaram tiveram, no domínio da fotografia, um médium que<br />

permitiu explorar de forma inédita dois aspectos essenciais: a expansão das relações<br />

euclidianas do objecto com o espaço e a importância da luz como elemento tecnológico<br />

de expressão estética.<br />

Nesta vertente, a fotografia inflecte o domínio figurativo e de relação com o real<br />

a que se tinha dedicado, para retornar à prática pura do trabalho de laboratório,<br />

tomando como tema fulcral as propriedades da luz e da imagem latente na sua<br />

interacção com os objectos, numa técnica assente na fotografia sem câmara, apenas<br />

no manuseamento da luz e da superfície sensível. Em termos específicos, assiste-se<br />

a uma profusão de trabalhos assentes numa arqueologia fotográfica que remonta aos<br />

primórdios da sua invenção, e cuja essência técnica mais não é do que a reinvenção<br />

dos desenhos fotogénicos de William Henry Fox Talbot (1800-1877), sob a designação<br />

modernista de fotogramas.<br />

Independentemente da própria guerrilha de autoria a que os fotogramas foram<br />

sujeitos, entre surrealistas e construtivistas, o que se torna mais significativo é a assimilação<br />

com intuitos estéticos opostos de uma mesma linguagem fotográfica, com<br />

resultados formais idênticos.<br />

Man Ray (1890-1976) é o artista que ficará historicamente ligado à reinvenção do<br />

fotograma, associando o seu nome à técnica – rayograma-. Contudo, a exponencialidade<br />

da experimentação da luz no papel fotográfico não pode, nem deve, ser vista<br />

como uma produção autoral. A amplitude e dinâmica, tanto do Dadaísmo como do<br />

48


Surrealismo, movimentos nos quais os rayogramas foram integrados como linguagem<br />

de ruptura com o então “visto”, foram o sustentáculo de uma mediatização da<br />

técnica e do seu autor privilegiado, mas não foram sua prerrogativa nem histórica,<br />

nem cronologicamente.<br />

Os trabalhos de Christian Schad (1894-1982) ao submeter objectos diversos à acção<br />

sensibilizadora da luz natural, foram pela primeira vez editados por Tristan<br />

Tzara (1896-1963) no número 7 da revista dadaísta Dadaphone, em Março de 1920,<br />

sendo o próprio Tzara quem designou os trabalhos de schadografias, adoptando o<br />

carácter lúdico e derisório das abstracções de luz, assim obtidas, à intensa actividade<br />

teórica e editorial do Dadaísmo inicial.<br />

Um ano após a sua chegada a Paris, em 1922, Man Ray publica os seus primeiros<br />

rayogramas na obra Les Champs Magnétiques, editada e com prefácio do próprio<br />

Tzara que poetizou e interpretou as obras aleatórias de luz e química numa perspectiva<br />

onírica e de desconstrução de qualquer linguagem articulada. O carácter<br />

inédito e não catalogável dos rayogramas condiziam perfeitamente com a estética<br />

de desagregação de toda e qualquer premissa estética consolidada, a que o Dadaísmo<br />

se dedicou tão intensamente.<br />

Segundo Tzara, “O fotógrafo inventou um novo método, ele apresenta no espaço<br />

uma imagem que o excede, e o ar, com os seus punhos cerrados e uma inteligência<br />

superior, apodera-a e mantém-na perto do seu coração. (…) A luz varia conforme<br />

o espanto da pupila perante o frio do papel, conforme o peso da luz e o choque<br />

que ela provoca, atordoamento da pupila sobre o frio do papel, segundo o peso e o<br />

choque que ela produz.” 1<br />

Contudo, o interesse fotográfico de Man Ray inicia-se por uma abordagem mais<br />

figurativa, a que não terá sido alheia a influência de Alfred Stieglitz e todo o movimento<br />

teórico e crítico que juntou em redor da famosa galeria 291, acolhendo<br />

a vanguarda artística europeia através de Picasso ou Duchamp. Exemplos dessa<br />

abordagem de um neo-figurativismo que explora a capacidade da fotografia de<br />

surrealizar o real, está presente na fotografia O enigma de Isidore Ducasse (1920) que<br />

homenageia a poesia fantástica do Conde de Lautréamont (1846-1870) e anuncia<br />

o seu legado como uma das referências históricas da literatura surrealista, tendo sido<br />

capa, em 1924, do número um da revista La Revolution Surrealiste, dirigida por An-<br />

1 Tristan Tzara, prefácio de Les Champs Magnétiques, 1922, compilado in Photography in the Modern Era- European<br />

Documents and Critical Writings 1913-1940, New York, Moma/Aperture, 1989, p.4<br />

49


dré Breton (1896-1966). Partindo de um ready-made, Man Ray utiliza a fotografia<br />

como o processo intensificador de uma distância objectual que se interliga com o<br />

significado do onirismo, enquanto distância do consciente e do mundo real.<br />

Na mesma perspectiva figurativa encontra-se Violon d’Ingres (1924), muito embora<br />

esta fotografia represente outra forma de entendimento estético surrealista, nomeadamente,<br />

quanto à apropriação dos modelos clássicos da arte ocidental, neste caso,<br />

o quadro La Baigneuse (1808) de Dominique Ingres (1780-1867), e à representação<br />

do erotismo como uma das temáticas essenciais da linguagem surrealista e da sua<br />

fusão com a psicanálise freudiana.<br />

A exploração abstracta e figurativa dos temas e processos fotográficos colocam<br />

Man Ray como um dos autores com uma linguagem mais prolífera, no domínio<br />

da vanguarda fotográfica. Ao desenvolver trabalhos em que a luz desempenha um<br />

papel predominante como modeladora de espaços e tempos, ou em que a capacidade<br />

polissémica da fotografia é utilizada de forma consciente para expandir os<br />

campos de significação dos objectos fotográficos, Man Ray contribuiu para um<br />

novo entendimento da estética fotográfica e do seu relacionamento visual com as<br />

outras tipologias artísticas.<br />

Em 1985, ao dissertar sobre sua longa actividade fotográfica, o artista considerava<br />

que o “Surrealismo tinha sido a única força que fez sair da câmara escura as<br />

verdadeiras formas luminosas e imprevisíveis”. A fotografia, pelo seu carácter de<br />

instantaneidade, aleatoriedade e magia, tinha todas as condicionantes e requisitos<br />

para expressar da melhor forma o automatismo psíquico, que constituía um dos<br />

fundamentos essenciais do manifesto surrealista.<br />

Os limites da reprodução do visível a que a fotografia parecia estar vinculada, foram<br />

expandidos, estabelecendo um entendimento metafísico do espaço. Deste modo, e<br />

segundo Man Ray, a fotografia podia ser utilizada como uma maravilhosa exploradora<br />

de todos os aspectos que a nossa retina nunca regista. A par do Cinema e da<br />

Pintura, a Fotografia seria o sustentáculo moral do mundo moderno, um dos vértices<br />

de um triângulo que seria o paradigma do mundo moderno, quer em termos<br />

de expressão plástica, quer como percepção do próprio mundo.<br />

A derivação subjectiva do objecto fotográfico, cuja colagem à representação da<br />

realidade, logo, a incapacidade de extrapolar um mimetismo desse mesmo real,<br />

que contivesse força expressiva, tinha sido um dos principais óbices à sua aceitação<br />

como linguagem artística, teve um terreno ideal no pensamento surrealista para se<br />

desenvolver, com textos e práticas apologéticas dos seus intervenientes. Salvador<br />

50


Dali (1904-1989) foi um dos artistas que, referindo-se à fotografia, no contexto<br />

da prática surrealista, referiu que ela era “o veículo mais seguro de toda a poesia e<br />

o processo mais ágil para entender as mais delicadas osmoses entre a realidade e a<br />

surrealidade. Nada provou mais que o termo do Surrealismo, do que a fotografia.” 2<br />

Contudo, as propriedades abstractas do fotograma tiveram uma teorização bem diferente<br />

no contexto do Construtivismo. Ao poder aleatório, a circunstância onírica<br />

e a prática do automatismo psíquico, os Construtivistas contrapuseram as capacidades<br />

da luz como modeladoras de novas dimensões espaciais, e o seu contributo para<br />

uma percepção diferente do mundo, em que a dimensão social, política e económica<br />

revelavam-se tão importantes como a dimensão plástica.<br />

László Moholy-Nagy (1895-1946), um dos artistas mais influentes do movimento<br />

construtivista e da Bauhaus, foi também um dos teóricos mais consolidados na análise<br />

das relações da fotografia com os novos modelos tecnológicos de entendimento<br />

e percepção do espaço e do tempo. O seu interesse e estudo sobre as exponencialidades<br />

do fotograma, como elemento privilegiado na fundamentação de uma nova<br />

visão espácio-temporal, estabelecem um primado estético, científico e social sobre<br />

uma técnica fotográfica, que assim se estabeleceu como a essência de um vanguardismo<br />

estético de influência e contornos sócio-políticos e culturais. Segundo a sua<br />

análise, “as imagens realizadas sem câmara (fotogramas) são também diagramas de<br />

luz directa que registam as acções da luz durante determinado período de tempo,<br />

isto é, o movimento da luz no espaço. (…) O fotograma produz pela primeira vez<br />

espaço sem uma estrutura espacial existente, unicamente mediante a articulação<br />

sobre o plano.” 3<br />

Moholy-Nagy antevia, em 1923, que a luz seria o meio de expressão por excelência<br />

do século XX, e a fotografia, ao lidar por natureza intrínseca com o “desenho da<br />

luz” sobre a matéria, detinha todas as potencialidades para romper com os arquétipos<br />

dos sistemas visuais até então utilizados e conhecidos.<br />

2 “Le Témoignage photographique” originalmente publicado in La gaceta literária, nº 6, Fevereiro 1929, compilado<br />

in Photography in the Modern Era- European Documents and Critical Writings 1913-1940, New York, Moma/Aperture,<br />

1989, p.35<br />

3 “O espaço-tempo e o fotógrafo”, originalmente publicado in American Annual of Photography, vol. LVII, nº 152,<br />

1943, compilado in Poéticas del Espacio, Steve Yates (ed.), Barcelona, Gustavo Gili, 2002, p. 212.<br />

51


A Fotografia constituía um dos instrumentos basilares de uma linguagem tecnológica,<br />

cuja acção sobre a percepção dos objectos representava o culminar de uma<br />

evolução no domínio da articulação dos espaços, e cujos contornos se tinham começado<br />

a definir na Revolução Industrial. A Fotografia, inseria uma nova dimensão<br />

de tempo e de espaço, ao permitir estabelecer relações daquelas duas premissas<br />

sobre um plano estático, o fotograma, em particular, ao permitir a transparência de<br />

opacidades, expandia as possibilidades da visão normal, antevendo movimento no<br />

âmago das estruturas visuais tradicionais.<br />

O fotógrafo como o portador de uma nova visão de relevância social, não para o<br />

âmbito restrito das elites, mas para toda uma cultura de massas, constituía a linha<br />

dorsal de toda a teoria e prática de Moholy-Nagy. Curioso é que o artista alargue<br />

a estrutura de sobreposições, transparências e articulações espacio-temporais que<br />

a fotografia e o cinema permitiam, ao conceito de sonho (ideia fundamental da<br />

aplicabilidade da fotografia no pensamento surrealista).<br />

Da mesma forma, a fotomontagem, através da unificação de conteúdos originais<br />

díspares, criava objectos que estabeleciam uma nova relação espacio-temporal, ultrapassando<br />

os limites formais de cada uma das unidades, para se transformarem<br />

num outro objecto, com novas relações significantes e perceptivas. O Construtivismo<br />

advogava uma ideologia visual cujo papel, de reeducação da forma de olhar<br />

das massas, poderia ser decisivo para modelar comportamentos sociais e políticos.<br />

A fotografia ao possibilitar, pelas suas capacidades técnicas, dar a ver materialidades,<br />

contrastes, transparências, estruturas, servia para mostrar a realidade e o mundo de todos<br />

e dos mais variados ângulos (El Lissitsky 1890-1941).<br />

A importância do tecnológico e a sua indissociabilidade da percepção da velocidade<br />

serão temáticas presentes desde a fotografia futurista dos irmãos Braglagia (Anton<br />

Giuliu e Arturo) até às preocupações de uma arte engagé dos construtivistas russos.<br />

O modo como estes últimos analisaram e trabalharam a velocidade e os aspectos do<br />

desenvolvimento tecnológico, vão conferir maior dinamismo a técnicas fotográficas<br />

como a fotomontagem ou os fotogramas, uma vez que o aspecto pedagógico e<br />

catalizador de uma operação de mudança das mentalidades, bem como do artista<br />

como um operador social e político, deslocam a arte do domínio do sonho (surrealismo)<br />

ou do nihilismo criativo (dadaísmo), para a acção concreta da realidade.<br />

O cruzamento de todas as artes é bem patente nos trabalhos de El Lissitsky, cuja<br />

actividade e interesse percorreu a fotografia, a arquitectura e o design.<br />

Nesta fotomontagem, em particular, Record de 1926, observamos a releitura de<br />

52


Fig. 1 - El Lissitsky, Record, 1926.<br />

uma fotografia do arquitecto Erich Mendelsohn (1887-1953) Broadway à noite, retirada<br />

do livro deste último Amerika, dedicado à arquitectura norte-americana.<br />

No prefácio a uma edição alemã do livro, Lissitsky referia que o mais impressionante<br />

de toda a obra era a ausência de pessoas como escala a toda a arquitectura,<br />

não admira portanto que a inclusão da escala humana numa fotografia original<br />

de Mendelsohn, e o modo como a fotomontagem lhe serviu para induzir a uma<br />

releitura do papel da arquitectura, enquanto modeladora não só de espaços mas de<br />

relações humanas.<br />

53


Fig. 2 - Erich Mendelsohn, Broadway à noite.<br />

Na sua fotomontagem, Lissitsky enfatiza essa relação do homem com o espaço circundante,<br />

e com o modo como a modernidade, pela característica da sua evolução<br />

tecnológica, induzia a leituras e percepções de velocidade. Na fotografia original<br />

de Mendelsohn, Broadway à noite, o papel da luz era fulcral como elemento transformador<br />

dos objectos observados, em que a profusão de néon diluía as marcas arquitectónicas<br />

produzindo, segundo palavras do próprio um ambiente de estranheza.<br />

A fotomontagem de Lissitsky dilui ainda mais essa percepção de linhas e volumes,<br />

susbtituindo-a por uma figuração, também ela alterada, pela inserção de linhas ho-<br />

54


izontais e pelo arrastamento do corredor em pleno salto. A percepção operante<br />

de toda a imagem passa a ser então a velocidade, intensificada pela sobreposição de<br />

planos e oposição de linhas contrárias.<br />

Mas se a velocidade constituía a referência do modelo visual vanguardista, a quebra<br />

dos ângulos de visão tradicionais secundava-lhe em importância. Alexander Rodtchenko<br />

(1891-1956), foi o artista russo que por excelência entendeu a câmara<br />

fotográfica como o instrumento fracturante dos ângulos de visão comuns. Para<br />

Rodtchenko, a fotografia permitia que todas as coisas fossem vistas de múltiplos<br />

ângulos possíveis, através da recusa do plano do olhar ou do meio-corpo, já que este<br />

se inseria num conceito classicista e renascentista de visão, a que o Construtivismo<br />

se opunha. O objecto devia ser fotografado de diversos pontos e em várias posições,<br />

“não façam fotopinturas, façam fotomomentos de valor documental, de modo a<br />

acostumar as pessoas a verem de novos pontos de vista, é essencial tirar fotografias<br />

todos os dias, e de temas familiares, a partir de inesperados pontos de vista e posições<br />

(…) E os mais interessantes pontos de vista, hoje em dia, são aqueles vistos de<br />

cima para baixo, de baixo para cima e as suas diagonais.” 4<br />

A fotografia Escadas de incêndio (1925), revela de forma sintética o ideário visual de<br />

Rodtchenko, em que estava em jogo não o que se fotografava mas como se fotografava.<br />

A ideia de uma revolução visual como garante e plataforma mental para<br />

uma revolução social e política é, porventura, um dos traços mais significativos do<br />

seu trabalho e da importância com que a fotografia passa a ser utilizada nos círculos<br />

artísticos da vanguarda russa. Para o Construtivismo, a fotografia e a máquina fotográfica,<br />

através da subversão das suas próprias capacidades técnicas, permitia romper<br />

com as lições de perspectiva clássicas, o fotógrafo era o operador da mudança duma<br />

história visual cujos fundamentos já não eram meramente estéticos, antes tinham-se<br />

instituído como uma parte integrante da revolução social e política. Não admira,<br />

portanto, que Manifestação (1932) tivesse este tratamento visual inusitado, independentemente<br />

do domínio da fotografia, neste caso, mais aproximado ao objectivismo<br />

da foto-reportagem, a revolução do modo de olhar do fotógrafo devia ser sempre<br />

imperante, era essa irreverência do olhar que constituía a essência da mensagem<br />

fotográfica construtivista, não o significado do tema.<br />

4 Alexander Rodtchenko “Puti sovremennoi fotografi” (os caminhos da fotografia moderna) originalmente publicado<br />

in Novi lef, nº 9 (1928), compilado in Photography in the Modern Era- European Documents and Critical Writings<br />

1913-1940, New York, Moma/Aperture, 1989, p.261<br />

55


Fig. 2 - Alexander Rodtchenko, Manifestação, 1932.<br />

56


Presente em qualquer destas abordagens fotográficas da vanguarda artística está<br />

uma redefinição generalizada de algumas das áreas de conhecimento, associadas ou<br />

complementares das artes visuais. Na filosofia, a teoria da simultaneidade de Henri<br />

Bergson (1859-1941) ou a fenomenologia de Edmund Husserl (1849-1938), a psicanálise<br />

de Freud (1856-1939), ou as novas linguagens musicais atonais do dodecafonismo<br />

serial de Arnold Schonberg (1874-1951), bem como a literatura cíclica de<br />

James Joyce, (1882-1941), marcam a modernidade destas disciplinas e introduzem<br />

um conceito de interdisciplinaridade que será fundamental para a evolução e compreensão<br />

de qualquer uma delas.<br />

Tal como temos vindo a referir, a nova relação espacio-temporal que subjaz a muitas<br />

das experimentações fotográficas levadas a cabo desde o Surrealismo ao Construtivismo,<br />

tem implícita o suplantar da perspectiva euclidiana e a sua dicotomia<br />

com as noções de velocidade. Nesta matéria, um dos contributos fundamentais terá<br />

sido o da Matemática e a apropriação do espaço e tempo por esta disciplina contra<br />

a corrente paradoxal, inventando espaços, o abstracto, o dimensional, o neural, etc.<br />

Rudolf Carnap (1891-1970) recusa no início do século XX a teoria kantiana da<br />

geometria como algo à priori e sintético, dividindo-a em geometria matemática<br />

e física e introduzindo desse modo o conceito de empirismo na matemática. O<br />

espaço tornava-se desse modo uma “coisa mental”, e a geometria perdia a inalterabilidade<br />

e conceito de absoluto para se tornar uma pluralidade de geometrias, um<br />

padrão.<br />

Conforme vimos, as experiências da luz sem câmara fotográfica ou as fotomontagens,<br />

foram determinantes das novas reflexões científicas e artísticas acerca da<br />

percepção do espaço e da sua interacção com as diversas vertentes do mundo moderno.<br />

A vanguarda fotográfica confunde-se com a fotografia das vanguardas, o<br />

espelhamento é talvez a característica essencial para entender que o resultado da<br />

acção directa da luz sobre uma superfície sensível, como no caso do fotograma, ou<br />

a associação aleatória de imagens para a construção de um alter significado, como<br />

no caso da fotomontagem, não se esgotam na sua finalidade formal e estética; a<br />

fotografia pela singularidade das suas capacidades técnicas foi a um mesmo tempo<br />

ponto de partida e objecto confluente de algumas das essenciais questões da arte<br />

moderna e pós-moderna.<br />

A singularidade da sua especificidade enquanto matéria sensível e tecnológica, deram<br />

à fotografia todos os argumentos para desempenhar o papel fundamental no<br />

derrube dos limites formais entre as tipologias artísticas, enquanto captavam o es-<br />

57


sencial de uma sociedade moderna baseada em novas relações de espaço e tempo.<br />

58


Duarte Belo<br />

Fotógrafo e Arquitecto. Conferência proferida em 19 de Março de 2003<br />

A Representação da Paisagem pela Fotografia.<br />

não te disse ainda como me encontrei à beira dos mares<br />

sem a sensação de susto e o temor do lugar infinito.<br />

Vasco Gato<br />

Um homem propõe-se a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço<br />

com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, da baías, de naves, de ilhas, de peixes, de<br />

quartos, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer descobre que<br />

esse paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto.<br />

Jorge Luis Borges<br />

59


Fig. 1 - Santuário Rupestre de Panoias. Constantim. Vila Real. 1996.<br />

O conjunto de fotografias apresentado foi integralmente feito em Portugal ao longo<br />

de cerca dos últimos dez anos. Dos aspectos mais relevantes de uma recolha<br />

contemporânea da paisagem gostaria de destacar, por um lado, o objectivo documental,<br />

com o fim da fixação de uma memória colectiva, uma visão neutra da<br />

paisagem em múltiplos aspectos da sua aparência visível, por outro, e indissociável<br />

do carácter documental, uma visão interpretativa dessa mesma realidade (partamos,<br />

pois, do princípio que não há um olhar estritamente objectivo, conforme nos demonstra<br />

a própria história da Fotografia de que a paisagem foi, desde os pioneiros,<br />

um dos temas fundamentais). É sobre estes dois aspectos que procuro elaborar a<br />

sistematização de uma recolha, cada vez mais aprofundada, sobre múltiplos aspectos<br />

da paisagem portuguesa contemporânea.<br />

Sem dúvida de que não nos podemos afastar de um olhar dos nossos dias sobre o<br />

mundo que nos rodeia. Assim, se por um lado o lugar natural pode representar um<br />

dos extremos da minha pesquisa, por outro, o mundo urbano e as transformações<br />

recentes do território em toda a complexidade, constituem o extremo oposto. Por<br />

lugar natural quero significar aquele em que é praticamente nula a intervenção<br />

humana (o que em território português dada a densidade populacional, a geogra-<br />

60


Fig. 2 - Campos agricolas. Rebordãos. Bragança. 1996.<br />

fia e a história, são difíceis de encontrar troços de paisagem que não tenham sido<br />

objecto de transformação). O que mais me seduz neste território, na ausência da<br />

presença humana, é o tentar perceber que fascínio exerce a terra e, provavelmente,<br />

sempre exerceu, sobre quem a olha, sobre o viajante, ou sobre quem, em tempos<br />

muito recuados, aí terá chegado na procura de um local para habitar. Há um olhar<br />

significante, descodificador, depois o enunciar de um desejo de transformação de<br />

um habitat num espaço habitado. Os mais antigos espaços arqueológicos revelam<br />

já esse desejo que, com o passar dos milénios, dos séculos, se vai tornando mais<br />

evidente. Do Paleolítico chegam-nos os vestígios de acampamentos, a ocupação<br />

de grutas, marcas escassas devido à reduzida capacidade de transformação do habitat.<br />

As gravuras e o Vale do Côa representam já a relação, do carácter de certa<br />

forma mágico, da paisagem com a necessidade da sobrevivência pela caça. Com o<br />

Neolítico surgem, no território hoje Portugal, numerosas construções de carácter<br />

funerário e o enunciar de uma arquitectura. Desde esse período que a fixação de<br />

populações é um dado adquirido. Nas idades dos metais encontramos uma ideia<br />

elementar de aldeia, de aglomerado urbano. São passos de evolução dados no sentido<br />

da organização da sociedade que, mais tarde, viria a dar início à ideia de Estado<br />

61


Fig. 3 - Pedra da Ursa. Colares. Sintra. 2002.<br />

Nação, tal como hoje a concebemos e, com ela, a necessidade de ocupar/colonizar,<br />

de uma forma perene, todo o espaço de um país que urge defender. Essa necessidade<br />

de defesa surge de uma forma muito marcada no tempo medieval através de<br />

sucessivas linhas defensivas ao longo do território. Com o Renascimento começam<br />

a surgir projectos de grande escala, com um desígnio forte de geometrização do<br />

espaço, de intervenção, de que os jardins, por exemplo, já em tempos posteriores,<br />

são a nova imagem do desejo de um território, de um novo planeta dos homens.<br />

Com o passar do tempo, com a Revolução Industrial, surgem vias de comunicação,<br />

o caminho de ferro e as estradas, antes não pensadas. A velocidade de deslocação de<br />

62


Fig. 4 - Ponte Vasco da Gama. Lisboa. 2001.<br />

pessoas e mercadorias, de civilização, transforma de forma indelével a nossa própria<br />

relação com a Terra. As cidades, o último dos lugares humanos, é o reflexo de uma<br />

extraordinária capacidade de domínio do território que, por sua vez, revelam uma<br />

progressiva complexificação da estrutura social.<br />

Esta é uma viagem breve por alguns desses lugares, pela procura do registo fotográfico<br />

como fixação de um espaço/tempo determinado e uma leitura histórica<br />

do lugar habitado, numa tentativa de compreensão da evolução do conceito de<br />

ocupação do espaço ao longo do tempo. O espaço contemporâneo, poderá aqui ter<br />

uma relevância especial. É na arquitectura contemporânea e nas grandes obras de<br />

63


Fig. 5 - Santuário de Nossa Senhora da Rocha. Porches. Lagoa. 1996.<br />

engenharia que encontramos essa progressiva consciência de uma transformação<br />

qualificadora do espaço, onde, cada vez mais, está presente o desenho de territórios<br />

de futuro. No entanto, não podemos deixar de constatar que a transformação<br />

qualificadora da paisagem, seja ela urbana ou rural, é claramente ultrapassada pela<br />

celeridade de uma ocupação desenfreada e descontrolada dos espaços contíguos às<br />

áreas consolidadas, ou históricas, grandes cidades ou em locais de desenvolvimento<br />

recente.<br />

Os aspectos técnicos são também muito importantes no trabalho de campo, na<br />

recolha fotográfica propriamente dita. A escolha da câmara, do formato da película,<br />

analógico ou digital, das lentes, uso ou não de tripé, todas as opções têm de ser tomadas<br />

em função da especificidade e objectivo do trabalho que vamos desenvolver.<br />

O aspecto chave neste conjunto de opções é sempre a escolha de um equipamento<br />

que nos permita fazer exactamente aquilo que pretendemos e que não nos impossibilite<br />

nenhuma tomada de vista. Além dos aspectos referidos, há outro que não<br />

posso deixar de apontar, que se prende com a natureza específica do meu trabalho.<br />

Quando exponho, edito fotografias procuro sempre um conjunto que seja coerente<br />

entre si. Que as fotografias não sejam meras imagens soltas de uma determinada<br />

64


ealidade, mas um conjunto significante e aberto a diversas leituras, de acordo com<br />

o receptor. É neste trabalho de selecção e escolha de fotografias que se tece um<br />

discurso, uma narrativa, que se conta uma história que se pretende que provoque<br />

no leitor uma sensibilização para as questões do território, da paisagem, da cidade,<br />

enfim, do espaço que nos rodeia. A gestão que fazemos do espaço, quer seja um<br />

espaço individual - a nossa casa - quer seja a rua, o bairro, a cidade ou o país em<br />

que vivemos, terá que ambicionar à transformação da sociedade para uma situação<br />

de maior igualdade, de maior justiça e, consequentemente, de liberdade. O espaço,<br />

o progressivo entendimento dos lugares, ajudará certamente ao projecto de uma<br />

arquitectura e desenho urbamo, mais qualificados, uma paisagem nova, um espaço<br />

equilibrado e humanizado. A Fotografia, pela sua capacidade de fixação do mundo<br />

visível, pode dar um contributo inestimável a essa nova realidade.<br />

65


Jorge Croce Rivera<br />

Universidade de Évora. Conferência proferida em 26 de Março de 2003.<br />

Diaporéticas contemporâneas: a enigmática do sentir.<br />

Como ponto de partida deste seminário 1 , falar-vos-ei do modo como o pensamento<br />

vive. Pensar constitui-se essencialmente por dificuldades, que se colocam irredutíveis<br />

ao pensar e constantemente se renovam; o pensamento emerge deste pensar,<br />

através de obstáculos, como um modo de ser que dizemos diaporemático, termo<br />

que remete para diaporia, do grego antigo, que significa atravessar dificuldades.<br />

Este ponto de partida liga-se imediatamente a um segundo momento: se nos alçarmos<br />

a uma escala histórica mais ampla que a da evocação da época em que<br />

vivemos, diríamos que o pensamento europeu, o pensamento ocidental, entrou na<br />

esfera do múltiplo. Tal predomínio do múltiplo manifesta-se na multiplicidade de<br />

escalas, de saberes, de perspectivas. Por caminhos que aqui não podemos evocar, o<br />

pensamento e a vivência ocidentais deixaram de ter referenciais unívocos – axiológicos,<br />

políticos, sociais, intelectuais ou espirituais –, passarem a tomar como óbvia a<br />

multiplicidade de sistemas de valor. Essa irredutibilidade do múltiplo, decorrente de<br />

um processo complexo em que o nihilismo, o laicismo e as consequências culturais<br />

e civilizacionais das guerras mundiais, em particular a globalização dos sistemas de<br />

produção e consumo, se implicitaram, foi sentida e consciencializada de múltiplos<br />

modos, sem que se tenha ainda alcançado uma nova inteligibilidade que consiga<br />

1 Ainda que não corresponda plenamente a uma transcrição da sessão, procura o texto manter o carácter oral do<br />

seminário, obviando a erudição e as referências bibliográficas.<br />

67


eduzir a sua estranha complexidade.<br />

A multiplicidade é, na consciência dos artistas, dos críticos ou do público em geral,<br />

algo que aparece como apaziguador, pois que se crê obviarem-se desse modo as determinações<br />

dogmáticas ou tradicionais, mas simultaneamente a multiplicidade de<br />

caminhos é acompanhada por uma intensa vivência do transitivo, do efémero que<br />

suscita angústia, ou mesmo uma paralisia, intelectual ou espiritual, pois a insistência<br />

do múltiplo subsume os sistemas referenciais na regência do efémero, sem que o valor<br />

do singular fique salvaguardado. A possibilidade de lidar com o mundo de forma<br />

não dogmática, delidamente irreferencial, isto é, sem uma referência única, é assim<br />

simultânea do domínio do efémero, ou numa expressão mais aguda, da ausência de<br />

consistência de ser, da consciência de que os seres são simulacros.<br />

Nesta sessão procurarei compreender como o pensar, que não pode obviar o problema<br />

do múltiplo, pode afrontar o sentido inquietante e perturbante que o múltiplo<br />

traz, sem cair nem em fundamentalismos nem na absolutização dos processos<br />

de efemerização, que se mostram em si muito perversos.<br />

Segui intencionalmente um caminho anacrónico, apresentando-vos um conjunto<br />

de peças reconhecidas como obras maiores da arte portuguesa do século XV e XVI<br />

e que estão expostas no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa. O primeiro<br />

quadro, denominado «Ecce Homo», revela uma imagem poderosíssima, que representa<br />

a figura de Cristo já coroado de espinhos, com um manto ensanguentado que<br />

lhe cobre o rosto e a maior parte do corpo. As mãos estão atadas por uma corda<br />

que lhe cai do pescoço.<br />

O quadro procura figurar o momento em que Jesus foi apresentado a Pilatos,<br />

acompanhado por um grupo de sacerdotes hebreus, que o acusam duma grave<br />

falta do ponto de vista da ortodoxia judaica: assumir-se como Messias. Apresentado<br />

ao governador romano, Pilatos, Jesus trava com este um breve mas intenso diálogo<br />

que parece convencer o governador da sua inocência. Pilatos tenta libertá-lo, pois<br />

apercebe-se que o conflito é de natureza religiosa, não de ordem criminal, pelo que<br />

ele não tem competência para o resolver. Os diferentes evangelistas referem que a<br />

população, que estava a assistir a este julgamento não deixou que Cristo fosse libertado<br />

naquela Páscoa, escolhendo para ser libertado Barrabás, um ladrão.<br />

Pressionado pelos sacerdotes judeus, Pilatos, diz São João, mantém a prisão e a<br />

condenação; os soldados romanos açoitam Jesus e, numa caricatura grotesca de coroação<br />

real, colocam-lhe uma coroa de espinhos, cobrem-no com um manto, e, no<br />

intento de o humilhar, mostram-no ao público. É nessa altura que Pilatos diz: “Eis<br />

68


aqui o homem”, «Ecce Homo», frase que dá o título ao quadro.<br />

Observando a pintura, vemos que o centro do resplendor por detrás da cabeça<br />

corresponde ao centro da cabeça, mas o nosso olhar não encontra o olhar de Jesus,<br />

pois o rosto está tapado pelo manto - que não é um manto púrpura – que lhe cobre<br />

também o tronco desnudo. Jesus não oferece resistência, aceita a situação. Não<br />

sabemos se chora, apenas podemos pressentir as suas emoções através da comissura<br />

dos lábios, tensos mas não crispados. A velação do olhar densifica a representação<br />

obrigando o espectador a uma indagação do velado, transformando um acontecimento<br />

histórico, num momento hermenêutico.<br />

Atentemos à pintura: os espinhos que rompem o manto irrealisticamente: como o<br />

manto foi colocado por cima dos espinhos, estes apenas poderiam romper a parte<br />

superior do pano, que ficaria suspenso nos espigões que estão voltados para baixo.<br />

Este irrealismo é um pequeno detalhe, mas que nos obriga a pensar a obra de arte,<br />

não como fonte de fascinação ou autoridade, mas como instância de interrogação.<br />

Esta atenção leva-nos a outro aspecto: o resplendor por detrás da cabeça, a representação<br />

de um corpo glorioso que só plenamente surgirá depois da Crucificação,<br />

acontecimentos que no plano da economia da Paixão ainda não ocorreu. Importa<br />

aqui atender que deste acontecimento temos dois tipos de relatos: o dos Evangelhos<br />

ditos «Sinópticos», que são os Evangelhos daqueles que presenciaram os acontecimentos<br />

da Paixão - São Lucas, São Mateus e São Marcos - e o de São João, que não<br />

presenciou directamente os acontecimentos, mas os interpreta em função de uma<br />

intencionalidade, vendo em Jesus o Logos, o princípio que dá ordem e harmonia<br />

à totalidade. Ele é o Alfa e o Ómega. São João faz desse modo uma interpretação<br />

simbólica de Jesus que, para Marcos, Mateus e Lucas, não é clara. Marcos, Mateus e<br />

Lucas, escrevem o final do homem carismático, da figura excepcional, do homem<br />

perturbador, mas é um homem, um chefe político: um homem que nos deixa sem<br />

palavras, mas é um homem. Em São João, isto já não acontece: é o Logos, o princípio<br />

que assiste à Criação e é uno com o Pai, que incarna e que é crucificado.<br />

Se a concatenação dos momentos deste episódio da Paixão, se a disposição temporal,<br />

do açoitamento à Ressurreição é muito dilatada, há no «Ecce Homo» a contracção<br />

de uma complexidade de momentos na expressão de uma única presença, posta<br />

em enigma figura, na qual convergem os acontecimentos, do passado e do futuro,<br />

acontecimentos que do ponto de vista estritamente histórico são sequenciais, não<br />

convergentes.<br />

E isto é muito interessante, porquê? No conjunto das peças do Museu de Arte<br />

69


Antiga, há um outro quadro, também da Escola Portuguesa, mas mais recente, intitulado<br />

«Cristo atado à coluna», que revela o que aquele manto nos oculta, mas sem<br />

exaurir o enigma da sua presença. A figuração remete para a passagem evangélica<br />

em que se diz que Pilatos manda Cristo, já preso, ao palácio do rei Herodes. Circunstancialmente<br />

presentes em Jerusalém os dois governadores da Judeia romana,<br />

mas sendo Jesus da Nazaré, pertenceria à jurisdição de Herodes. Pilatos está claramente<br />

a pensar não tomar uma decisão injusta e pede que seja Herodes a decidir.<br />

Herodes, que já tinha sido responsável pela decapitação do São João Baptista, recebe<br />

Cristo no palácio, reveste-o com um manto e manda-o açoitar.<br />

O quadro não procura descrever esta situação, não vemos Jesus revestido de púrpura,<br />

antes um prisioneiro escassamente vestido, posto sobre um chão de ladrilhos,<br />

tendo por trás um rico brocado e colunas de mármore púrpura. Não nos detendo<br />

aqui na riqueza do simbolismo dos ladrilhos e na complexidade do espaço interior,<br />

atentemos antes ao acontecimento que o quadro relata. Se consideramos, por um<br />

lado, a disposição dos braços, Jesus assume aqui a postura que só ocorrerá posteriormente,<br />

na crucificação. Ele volta os olhos para o céu – é impressionante como estão<br />

revirados – e nós lemos a mesma intenção que encontramos quando na cruz clama:<br />

“Pai, porque me abandonaste”, numa interrogação expectante que se antecipa neste<br />

momento de açoitamento e humilhação pública.<br />

Uma apreensão mais detida nesta figuração revela-nos algumas surpresas: se repararem<br />

nas mãos de Jesus, elas acabaram de se levantar, abrindo-se expressivamente<br />

numa atitude de expectação. Trata-se de um gesto intensamente poderoso, pois<br />

que foi capaz de enrolar os panejamentos, levantando-os no ar. Que significa, não<br />

apenas tal gesto, mas o efeito que ele provocou? Ao erguer Jesus as mãos, é como<br />

se toda a matéria – o ar, a terra, o fogo, o sangue – fossem arrastadas naquele momento.<br />

Quando Jesus os transfigura, dirigindo o olhar para o céu, é a matéria em<br />

turbilhão que ascende, numa preparação da Ressurreição. O seu palácio não é o<br />

palácio ilusório de Herodes, nesse local ele está coberto com alguma coisa que o<br />

quer ridicularizar, o manto de púrpura, mas ele liberta-se dos véus, olha o céu, antecipa<br />

o que vai acontecer, segundo as narrativas do Evangelho e faz com que o ar<br />

e a matéria toda se modifiquem. Nesse momento, a corda, a mesma que aprisionava<br />

as suas mãos em «Ecce Homo», cai-lhe aos pés.<br />

Ao invés do «Ecce Homo», não é a velação do olhar a instância em que se decide<br />

da obra, mas tal instância mostra-se na patenteação da transformação da matéria.<br />

O «Ecce Homo» e o «Cristo atado à coluna» figuram assim o mesmo momento: o<br />

70


primeiro dando o ambiente crucial, obscuro, deste confronto do poder dos homens<br />

e do poder de Deus, confronto cujo o âmago decisivo se dá na singularidade dos<br />

indivíduos, e o segundo, luminoso mas não menos enigmático, revela a transfiguração<br />

do real que a decisão de Jesus possibilita.<br />

Ao articularmos os dois quadros, não procuramos reforçar uma concepção, crença<br />

ou convicção religiosa, mas interessam-nos ver como os dois quadros se encontram<br />

e mutuamente se esclarecem, o que é velado num se torna manifesto noutro – vemos<br />

no olhar do «Cristo» o que o manto esconde em «Ecce homo», concentra-se<br />

no resplendor de um, em extática circunscrição, o que noutro é dinâmica mas subtil<br />

transformação.<br />

Todavia, não é a correlação destes quadros, a sua “intertextualidade” o que mais me<br />

importa pensar, mas que neles a compreensão do que tomamos por óbvio, - o ser<br />

corpóreo, a subjectividade, os modos de representação e as tensões constitutivas<br />

do real se mostrem enigmáticos e, ao mesmo tempo, se tornam evidentes, enigmaticamente<br />

evidentes, mostrando nas tensões a calma, no estático o dinâmico, no<br />

obscuro o luminoso, no corpo ou no anímico, uma presença enigmática que nem é<br />

propriamente imanente, nem transcendente. Dando expressão sensível às instâncias<br />

decisivas, estes quadros obrigam-nos a interrogar o que é a experiência, isto é, como<br />

no sentir, no domínio do sensível, ao mesmo tempo que se diferenciam, articulamse<br />

e mutuamente os modos como a Presença – dou este nome àquela presença<br />

enigmática – é vivida por nós.<br />

Mas quais são os modos de Presença e como pensar a sua articulação, sem cair<br />

numa ilusória unicidade, numa expressão unívoca do antropocentrismo? A questão<br />

ultrapassa o limite estreito das perspectivação estética, pois na situação contemporânea,<br />

– e nesta impossibilidade do unívoco foi fundamental o contributo da arte<br />

–, não nos é possível aludir a uma experiência unívoca do corpóreo, nem a uma<br />

alma ou possibilidades anímicas reconhecíveis por todos; alargou-se e diversificouse<br />

o horizonte de referências culturais e mesmo o óbvio, as alusões que constituem<br />

funcionalmente a comunidade sempre efémera de sentido, vive entre o fascínio<br />

da idolatração e a necessidade de constante substituição, naquilo que se diz como<br />

domínio do mediático.<br />

As obras de arte indicam-nos todavia que esta Presença se experiencia num jogo,<br />

no qual importa a obra, não só como objecto, valioso ou banal, mas cujos conteúdos<br />

que se inscrevem num renovado processo de interpretação; importam os modos<br />

e as dinâmicas de conhecimento, não só para a sua representação ou recriação por<br />

71


um espectador, mas também para a sua referenciação, a sua figuração simbólica na<br />

ordem das referências partilhadas, no que denominamos de cultura.<br />

As obras de arte também nos indicam que, sem excluir o canónico, a Presença solicita<br />

a liberdade, a disponibilidade para a descoberta, e ao mesmo tempo, as obras<br />

não apenas exprimem as tensões do real – como os dois quadros que comentámos<br />

bem ilustram –, mas se situam como obras sempre em risco de desaparecimento,<br />

deterioração, falsificação, esquecimento.<br />

Assim, as obras de arte deixam-nos perceber que na Presença se joga a Apresentação<br />

e a Representação: pela primeira, toda a expressividade que suporta a obra, que<br />

ela contem ou suscita; pela segunda, todos os processos de significação. Imediatamente<br />

percebemos que nenhuma se sustem por si, mas ambas se requerem: não há<br />

Apresentação sem Representação, nem Representação sem Apresentação. Antes, no<br />

entanto, de desenvolver as suas relações, atenderemos ao jogo em si.<br />

O tema do jogo é antigo, no pensamento ocidental, desde Heraclito, no seu fragmento:<br />

“o cosmos é como um jogo de pião que uma criança brinca” (Diels-Kranz<br />

53). O mundo como um jogo, no qual a necessidade e o aleatório, o lúdico e o<br />

regulado se entretecem, é um tema retomado contemporaneamente por Nietzsche,<br />

Heidegger, Eugen Fink e Kostas Axelos; por outro lado, a par desta consideração<br />

metafísica do jogo, ocorre uma sua revalorização pela história das ideias, pela compreensão<br />

da importância civilizacional que o jogo tem, importância tornada evidente<br />

sobretudo desde Homo Ludens, de Huizinga. Todavia, ainda que todos estes<br />

autores nos interessem, é a abordagem antropológica do jogo proposta por René<br />

Caillois, numa pequena obra denominada Le Jeu et les hommes, que nos parece mais<br />

sugestiva para a compreensão do jogo da Presença.<br />

Nesta obra, Caillois distingue quatro tipos de jogos: os jogos de acaso, em que<br />

domina o álea, o aleatório, como a roleta; os jogos de mimicry, de mimésis, em que<br />

domina a imitação, como o teatro; os jogos de competição, em que domina o agón,<br />

como os combates ou as competições de equipas; finalmente, os jogos de vertigem,<br />

de ilinx, como certos desportos ditos radicais, nos quais é essencial a dimensão<br />

vertiginosa. A experiência concreta de cada específico jogo e de sua efectiva realização<br />

não implica necessariamente apenas um deste tipos, mas uma sua particular<br />

combinação, simples ou complexa. A maior parte dos jogos supõem momentos de<br />

vários destes tipos: por exemplo, numa partida de bridge, que é certamente um jogo<br />

de competição, encontramos álea na distribuição das cartas, mimésis no bluff e na<br />

estratégia com o parceiro, ilinx na tensão provocada pelo nervosismo acumulado<br />

72


ao longo do jogo. Numa partida de futebol, concorrem no resultado competitivo a<br />

actualização da preparação táctica, a gestão do esforço, o aproveitamento de oportunidades.<br />

Se retomarmos o problema da experiência artística, esta tipologia permite pensar<br />

de um modo mais articulado os diversos aspectos que constituem a vida das obras<br />

de arte, de pintura, por exemplo. Facilmente reconhecemos a dimensão mimética<br />

da arte, sejam os conteúdos “realistas” ou “abstractos”, mas também a potência icónica<br />

que pode revestir as peças de arte; depois, – podemos referir aqui Pollock, o<br />

modo como pintava, atirando os jactos de tinta sobre a tela – a criação implica uma<br />

dimensão aleatória, seja por uma inspiração repentina ou uma pura combinatória;<br />

na importância das “vanguardas”, como expressão de um choque, de um combate<br />

contra o gosto estabelecido, reconhecemos o agónico, mas deve-lo-emos também<br />

estender às rivalidades ente autores e escolas e à própria história de cada criador.<br />

Mais subtil a presença vertiginosa: reconhecemo-la na vontade de domínio técnico,<br />

de aperfeiçoamento e exploração de possibilidades que tomam o criador. Também<br />

aqui, é necessário perceber a combinação dos tipos, a prevalência de algum num<br />

momento, mas a irredutível conjunção de todos.<br />

Cremos, todavia, que os tipos de jogo reconhecidos por Caillois têm um interesse<br />

que excede a compreensão das obras de arte em si, pois nos permitem compreender<br />

na Presença os modos de relação entre a Representação e a Apresentação e por<br />

eles tentar apreender como no múltiplo se constituem e jogam a corporeidade e o<br />

anímico, a figuração e as tensões.<br />

Começaremos por um primeiro modo, aquele que nos permite pensar o corpóreo.<br />

Devemos atentar que pelo corpóreo procuramos pensar, em primeiro lugar,<br />

a corporeidade humana, mas em sentido autêntico, todas as presenças expressivas,<br />

sejam pedras, animais, paisagens, objectos técnicos, são corpos; neles a Apresentação<br />

sustem a Representação e a forma estática, circunscrita, é o grau mínimo da<br />

Apresentação que o uso, as experiências e as práticas possibilita outras formas de<br />

conhecimento e significação. Há uma densidade nos corpos que os tornam verdadeiramente<br />

enigmáticos, dotados de uma presencialidade erroneamente silenciosa.<br />

Importará pois reconhecer que a experiência do corpóreo não é algo de determinado,<br />

de fechado, mas um conjunto de possibilidades que na experiência dinâmica<br />

e, ao limite, na vertigem, ilinx, são suscitadas e reconhecidas. Enquanto o modo<br />

da Representação enuncia, quer os processos cognoscitivos, quer o conhecido e<br />

significado, em sentido lato, a Apresentação é modo de presença mais subtil, menos<br />

73


óbvio inerente à constituição do nosso corpo, modo que possibilita o uso das nossas<br />

faculdades de conhecimento: termos estes sentidos decorre de alguma coisa que<br />

nos é anterior.<br />

No segundo modo, é a Representação que sustem a Apresentação: sem tal modalidade,<br />

não seria possível compreender o anímico, ou numa correspondência com as<br />

artes, o cinema, e fazemo-lo corresponder ao que, na tipologia dos jogos, Caillois<br />

se denomina de álea. Reparemos na roleta: sem a repartição do círculo em fracções<br />

numeradas vermelhas e pretas, não teria a circulação aleatória da esfera significação<br />

algum: é o modo como antecipadamente representamos a realidade que permite<br />

reconhecer expressão e valor à pausa final da esfera numa determinada fracção.<br />

74


Filipe Rocha da Silva<br />

Universidade de Évora. Conferência proferida em 2 de Abril de 2003 1 .<br />

Porquê criar imagens visuais?<br />

“Porquê criar imagens visuais?” A razão pela qual sugeri este título à Dra. Sandra<br />

Leandro, é muitas vezes, a sensação que tenho que descuramos o óbvio e nos concentrarmos<br />

no acessório. É uma situação perfeitamente natural a pessoa estar quatro<br />

anos num curso de Artes Visuais, basicamente sem saber porque é que lá está... Eu<br />

próprio não sei porque é que escolhi esta profissão, ou porque não escolhi outra.<br />

Muitas vezes são os frutos do acaso, de acidentes, ou outras coisas...<br />

É perfeitamente natural não se saber porque é que se cria imagens visuais, o que não<br />

é natural é a pessoa não pensar nisso, dá-lo como algo adquirido e não se interrogar.<br />

As imagens que são criadas correm o risco, ao não se interrogar sobre o essencial,<br />

de ter a ver com o acessório, acabam por ser imagens superficiais, mais ou menos<br />

tecnicamente apuradas, e forçosamente, caem na banalidade e no cinzentismo.<br />

Por isso é importante pensarmos porque criamos imagens visuais.<br />

Vou reportar-me mais à pintura propriamente dita do que às outras especialidades<br />

artísticas porque estou mais próximo dos pintores, a minha actividade é toda ela<br />

ligada à pintura, sou bastante especializado, não sou um multimediata como alguns<br />

1 no âmbito da disciplina de Seminários de Estudos de Arte da Licenciatura em a Artes Plásticas da Universidade<br />

de Évora. Revisto para publicação com base em preciosas notas da aluna Rita Matias, tentando no entanto<br />

continuar fiel ao tom do discurso directo e ao conteúdo daquilo que foi improvisado “ao vivo“. Peço por isso<br />

antecipadamente desculpa por ofensas de vária ordem ou imprecisões que o texto contenha. Novamente revisto<br />

em Fevereiro de 2005.<br />

75


colegas meus e portanto, realmente acabo por não pensar muito sobre as outras formas<br />

de arte, fotografia, ou escultura... Não tenho necessidade disso, vivo feliz com<br />

a minha pintura, portanto nunca me apeteceu fazer outras coisas.<br />

Vou falar de pintura, mas é evidente que muitas coisas podem ser generalizadas às<br />

outras actividades, é uma questão da pessoa depois tentar pensar que, quando digo<br />

um pintor, que também pode ser um escultor, um cineasta, ou uma pessoa de outras<br />

áreas artísticas.<br />

Descobri uma frase de Merleau-Ponty, da Fenomenologia da Percepção, que diz o<br />

seguinte: «Como se houvesse na actividade do pintor, uma urgência que ultrapassa<br />

qualquer outra urgência, ali está ele, forte ou fraco na vida, mas soberano, sem<br />

contestação na sua ruminação do mundo, sem outra técnica que a que os olhos e<br />

as mãos se dão, à força de ver, à força de pintar, teimando a extrair deste mundo<br />

onde ressoam os escândalos e a glória da história, telas que não acrescentarão nada<br />

à cólera e às esperanças dos homens e de que ninguém fala».<br />

Como podem verificar, há aqui vários aspectos nesta frase, é uma frase interessante,<br />

com variadíssimas ideias que se entrecruzam. Por um lado, a urgência que o pintor<br />

sente, por outro lado a questão da vida exterior que vais decorrendo, em que há a<br />

tal história de que o Merleau-Ponty também fala, com a suas glórias e os seus escândalos<br />

e por outro lado, o pintor que teimosamente pinta. A teimosia parece-me<br />

importante, quase todos os artistas que eu já conheci são grandes teimosos, e isso é<br />

o encanto deles e às vezes também a chateza.<br />

Eles vão, portanto, «teimando em extrair deste mundo, telas que não acrescentarão<br />

nada às esperanças dos homens e de que ninguém fala». Isto relaciona-se com<br />

aquela iniciativa que está em curso, o Museu do Esquecimento 2 , reunindo obras<br />

« de que ninguém fala» e que parece ser um bocado pessimista. Todos os pintores,<br />

quando pintam, sobretudo no início, estão a pensar que vão ser vedetas, verdadeiros<br />

Picassos, que vão viver famosos e milionários. Esta expressão «de que ninguém fala»,<br />

pode parecer estranha quando relacionada com uma obra nossa. Nenhum artista,<br />

propriamente se convence de que ninguém vai falar dele. Portanto, pode parecer<br />

que o que eu disse até aqui está tudo bem, mas que aqui a coisa descamba! Mas,<br />

a realidade é que quando a pessoa realmente está a construir aquelas obras está a<br />

construi-las na maior solidão e anonimato, embora depois elas até possam ficar<br />

2 “Museu do Esquecimento” foi uma exposição dos alunos de Artes Visuais da Universidade de Évora na Sociedade<br />

Nacional de Belas Artes em Lisboa, em Setembro de 2003.<br />

76


famosas. Há uma grande hipótese e realmente a pessoa tem de a aceitar, e daí a<br />

teimosia, de que aquelas obras mergulhem no mais completo esquecimento.<br />

Existe outra versão, sobre a motivação dos pintores e dos artistas para fazerem obras<br />

visuais, que está num livrinho que eu vigorosamente recomendo, ainda por cima<br />

está em Serralves neste momento a exposição, que é o livro fantástico de entrevistas<br />

do Francis Bacon a um senhor que também já morreu, que é o David Sylvester.<br />

Aliás, há uma versão em vídeo também, que passou recentemente na televisão. Mas<br />

a versão escrita é melhor.<br />

As entrevistas são muito boas. Foi talvez a primeira entrevista em que apareceu um<br />

pintor a falar da técnica, das coisas práticas, o dia-a-dia do atelier, a tinta estar muito<br />

líquida e escorrer, portanto, isso ser considerado uma coisa suficientemente digna<br />

para ser falado. Muitas vezes os pintores quando falavam, diziam: «sim, a grandeza<br />

da Arte...», «a Arte que fala sobre a humanidade...», mais uns lugares comuns, e nós<br />

perdoávamos porque pintavam bem. O Bacon fala sobre coisas concretas, daí a fama<br />

que estas entrevistas atingiram. Aliás, quase todos os pintores que têm sucesso hoje<br />

em dia, são pintores que têm um discurso verbal interessante, que têm qualquer<br />

coisa de especial, de particular que os projecta para o mundo, ou que completa as<br />

imagens visuais que eles fizeram.<br />

Só para dar exemplo de Portugueses, há a Paula Rego. Toda a gente conhece aquelas<br />

extensas entrevistas dela, mais psicanalíticas, digamos assim, sobre o que é que<br />

representam aqueles cãezinhos, as meninas, as mulheres e os homens. A Vieira da<br />

Silva também era uma pintora com um discurso muitíssimo forte. Mas o Bacon,<br />

realmente foi talvez o primeiro pintor que se destacou por ter um discurso completamente<br />

diferente. Ainda por cima com um humor britânico-irlandês muito<br />

sarcástico.<br />

O Sylvester está-lhe a perguntar porque é que ele não destrói as obras depois de as<br />

fazer, porque é que os pintores preferem que as obras continuem a existir, quando<br />

acabam de as fazer. Já não dão gozo nenhum, já acabou e pronto - caiem no esquecimento...<br />

Bacon responde: «Bem, há duas razões para não as destruir, uma é que,<br />

a não ser que a pessoa seja rica, quer viver daquilo que a absorve e que tenta fazer.<br />

A segunda razão é que não se sabe quais são as relações, embora elas sejam sempre<br />

estúpidas, entre aquilo que a pessoa faz e a ideia da imortalidade. Apesar de tudo ser<br />

um artista é uma forma de vaidade, e essa vaidade pode ser realçada com essa ideia<br />

racionalmente fútil da imortalidade. Seria também pretensioso sugerir que aquilo<br />

que estamos a fazer irá aumentar o conteúdo da vida. Mas evidentemente, sabemos,<br />

77


que a nossa própria vida foi enriquecida pela existência de grandes obras de Arte.<br />

Uma das muito poucas maneiras em que a vida foi realmente enriquecida, foi pelas<br />

grandes coisas que umas poucas pessoas nos deixaram. Bem, finalmente a Arte é<br />

uma ocupação fútil».<br />

Como vocês podem ver, as motivações para criar imagens visuais, podem ser muitas.<br />

Neste discurso contraditório do Bacon, elas são variadas. Estas são frases verbais<br />

e com certeza que vos acontece também começar uma frase a defender uma coisa<br />

e a vossa própria lógica conduzir a uma concepção diferente, portanto mudar de<br />

opinião a meio da frase. Ele começa por dizer uma coisa e muda várias vezes de<br />

opinião. O que acontece é que, primeiro, fala na questão da vaidade, na questão da<br />

afirmação do Ego; segundo fala da imortalidade, portanto do desejo de nos libertarmos<br />

da Morte; e terceiro, deixa uma hipótese de a pessoa, apesar de tudo, estar<br />

a melhorar a Vida. No sentido em que, falando autobiograficamente, a sua própria<br />

vida ter sido melhorada pelo facto de existirem Obras de Arte. Quarto, acaba por<br />

concluir que afinal a arte é fútil...<br />

O Francisco de Holanda é o único artista português realmente internacional. Foi<br />

um homem que viveu no século XVI e que esteve em contacto com aquilo que<br />

naquele momento se passava de mais excitante, no mundo da Arte. Conheceu<br />

Miguel Ângelo pessoalmente, esteve com ele em Roma e foi um homem com<br />

uma vida cheia. Depois, quando chegou a Portugal, fez uns desenhos interessantes,<br />

não tem grandes pinturas que se conheça, mas sobretudo escreveu um livro que se<br />

chama A Pintura Antiga, um livro fundamental, em certos aspectos avançado para a<br />

época, mesmo em termos internacionais.<br />

Ele fala então sobre pintura. Tenho uma certa dificuldade em escolher um parágrafo,<br />

porque são todos bastante fortes... Vou tentar escolher só aqui um que diz o<br />

seguinte: «A santa pintura é contemplação activa, é terra e chão em que o arado do<br />

trabalho, com penas, grifos ou pincéis, dão frutos mui deleitosos e louvados. É mar<br />

de engenhos e dos engenhosos. É pego, e rio e fonte. É céu de todos os artifícios<br />

e boas artes, e é o novo mundo do homem e sua própria obra, assim como o novo<br />

mundo é próprio de Deus, derivado um do outro. É uma candeia, uma luz que<br />

inesperadamente brilha num lugar escuro, mostrando obras que antes não eram<br />

conhecidas».<br />

Vocês vêm aqui um discurso completamente diferente do de Bacon: enquanto<br />

Bacon começava por dizer que, na realidade, o pintor não é nada mais do que<br />

um vaidoso que se assume, digamos, um vaidoso desavergonhado, o Francisco de<br />

78


Holanda, falava do pintor basicamente como um Deus e aliás começa o livro dele<br />

por dizer que Deus era um pintor, porque criava. Há uma divinização das artes, até<br />

como uma forma de fugir àquela “apagada e vil tristeza” em que os artistas viviam<br />

antes desta época, em que o pintor era um trabalhador manual como qualquer pedreiro<br />

ou pessoa que tivesse uma profissão desse género. Holanda está a tentar elevar<br />

a ideia do pintor acima do seu triste destino.<br />

A pintura, basicamente, é aquilo que vos estive a contar. As razões pelas quais a<br />

pessoa cria imagens visuais são extremamente variadas, difíceis de discernir, mas,<br />

o que acho importante é pensar sobre o assunto: Porque é que eu, ser pensante,<br />

crio imagens visuais, em vez de me dedicar, por exemplo, a plantar nabos? Plantar<br />

nabos deve até ser um óptimo trabalho, uma óptima profissão, e se calhar até é mais<br />

rentável do que fazer pintura, embora não tenha a certeza de que esteja adaptada<br />

aqui ao Alentejo.<br />

Este é o primeiro assunto de reflexão, sobre o qual gostaria que vocês pensassem.<br />

O segundo tema, também relacionado com a natureza da pintura, é o seguinte:<br />

Primeiro vimos porquê criar imagens visuais, mas o que é uma imagem visual?<br />

Vou-me socorrer de Wassily Kandinsky. Vocês já devem ter encontrado o Kandinsky,<br />

aliás há uma pequena bibliografia que tenho aqui num papel, que poderei<br />

distribuir pelas pessoas interessadas. Kandinsky foi um artista russo, que apareceu<br />

antes da revolução soviética e depois a acompanhou com grande entusiasmo, mas a<br />

certa altura já não teve paciência para a sociedade russa que se tinha criado e voltou<br />

para a Alemanha, esteve na Bauhaus, a grande escola que surgiu nessa época, e desenvolveu<br />

trabalho muito interessante como pintor e também como teórico.<br />

Escreveu vários textos de intervenção e, sobre quadros e sobre a obra de Arte em<br />

geral: «Um quadro deve ter um coração próprio, um sistema nervoso, ossos e circulação.<br />

Nos seus movimentos deve parecer-se como uma pessoa, deve ter o tempo<br />

dos seus movimentos. Aquele que o olha, deverá encontrar-se diante de um ser que<br />

lhe faça companhia, que lhe conte histórias, que lhe dê certezas».<br />

Kandinsky, associa a obra de arte a uma pessoa. A obra de arte é um ser orgânico,<br />

uma coisa que tem movimento e portanto devemos tentar, quando construímos<br />

uma obra de arte, fazer como se estivéssemos a tratar de um filho, temos que pensar<br />

no bem da obra de arte, aquela obra de arte em especial. O que é que ela será, o<br />

que é que irá ela fazer?<br />

«A obra de arte mais bela, é aquela na qual a forma exterior corresponde inteiramente<br />

ao conteúdo interior. Que é, por assim dizer, um diálogo eternamente<br />

79


irrealizável. Portanto, na sua essência, a forma de uma obra de arte é determinada<br />

de acordo com a necessidade interior, com a necessidade eterna». Kandinsky tinha<br />

profundamente esta ideia. Ele era um espiritualista e via a obra de arte como uma<br />

espécie de cebola, com uma camada interior, inatingível e não perceptível, perceptível<br />

era a casca. Mas tinha que haver uma relação entre a casca e a parte de dentro<br />

de tal maneira forte que, olhando para a casca, tivéssemos a intuição ou a percepção<br />

do interior. E portanto a obra de arte, a tal imagem visual, é mesmo isso, é uma<br />

cebola, como vocês podem ter percebido por aquilo que eu disse. Cebolas, estou<br />

convencido, já se criarão por aqui com mais facilidade do que os nabos...<br />

Há uma relação sempre interessante entre as obras de arte e as palavras. Estamos<br />

a falar sobre imagens visuais. Pode-se pôr em questão a futilidade deste exercício.<br />

Estamos aqui também a ver imagens visuais mas nem sequer estamos a falar delas 3 ,<br />

mas estamos a falar sobre imagem visual em geral. Será grave? Valerá a pena falar<br />

sobre imagens visuais? Isto terá alguma importância, alguma relevância para todos<br />

nós os criadores de imagens? Ou para o público que as vê?<br />

Sobre isto, há um depoimento da Maria Helena Vieira da Silva, uma mulher muito<br />

interessante, que disse o seguinte ao George Chabonnier, em 1960: «As grandes<br />

teorias da arte são muito bonitas, mas, eu sigo-as sim, mas, enfim, não quero pô-las<br />

em prática, gostava era de pôr em prática a mim mesma». Vieira da Silva tinha uma<br />

ideologia, que advinha dos existencialistas franceses. O diálogo e a busca dela, eram<br />

no sentido de se encontrar a si mesma, criando imagens. Em relação às grandes teorias,<br />

ela achava que realmente a pessoa devia estar atenta, devia saber o que é que<br />

se estava a passar... mas, atenção, o ideal era não as seguir.<br />

Sobre esta relação das imagens com as palavras, noutros autores, há uma citação<br />

também interessante, de Dubuffet, inserida num Manifesto que ele escreveu em<br />

1951, com o título “Posições anti-culturais”. Dubuffet defendia um tipo de arte,<br />

um pouco ao contrário da arte que instituições tipo Universidade de Évora praticam.<br />

Ele admirava profundamente a arte espontânea, portanto a arte dos loucos,<br />

a arte das crianças, das pessoas que nunca aprenderam a fazer arte. E achava que a<br />

pessoa nestes sítios académicos, perde em parte a sua naturalidade e espontaneidade.<br />

Defendia uma arte chamada “arte bruta”, fez uma série de manifestos sobre isto,<br />

claro que exagerando um bocadinho, porque ele próprio também tinha estudado<br />

na escola de artes, mas enfim, era uma posição radical, que defendia com veemên-<br />

3 Esta conferência era acompanhada pela projecção aleatória de diapositivos representando pinturas.<br />

80


cia.<br />

Sobre a questão palavra -imagem, ele dizia: «Disse e repito, uma vez mais, que a meu<br />

ver a pintura é uma linguagem muito mais rica que a das palavras. É totalmente<br />

inútil procurar para a arte outras razões de ser. A pintura é uma linguagem muito<br />

mais imediata do que a das palavras escritas e ao mesmo tempo, mais carregada de<br />

significado. Opera por meio de sinais que não são abstractos e incorpóreos como<br />

as palavras. Os sinais da pintura estão muito mais próximos dos próprios objectos.<br />

Além disso, a pintura manipula matérias, que são elas próprias, substâncias vivas. É<br />

por isso que ela permite ir muito mais longe do que as palavras, no acesso às coisas<br />

e na sua interpretação. A pintura também pode perfeitamente, o que é notável,<br />

evocar mais ou menos as coisas, quero dizer, com mais ou menos presença, a todos<br />

os níveis, oscilando entre o ser e o não ser. Finalmente a pintura pode evocar coisas<br />

não isoladas, mas ligadas a tudo o que as rodeia. Um grande número de coisas<br />

simultaneamente». Nesta pequena citação, está a mostrar aquilo para que serve a<br />

pintura, digamos, as imagens visuais, quais são realmente as virtualidades que têm e<br />

que as palavras não terão.<br />

É pena não estar aqui uma pessoa ligada à literatura, ou que explicasse o que é que<br />

a literatura pode fazer, e que a pintura ou as imagens não podem fazer. O que me<br />

parece é que realmente, tudo isto tem que ver com a chamada Semiótica ou Semiologia,<br />

que é o estudo dos sinais, o estudo, digamos, de cada um dos diferentes<br />

sinais que nós utilizamos para comunicar. E a maneira como cada sinal é recebido,<br />

de maneira diferente, pelo chamado receptor.<br />

Socorrendo-me mais uma vez das entrevistas com Francis Bacon, a certa altura, Sylvester<br />

perguntava-lhe se ele queria contar histórias nas suas pinturas. E Francis Bacon<br />

respondia-lhe da seguinte maneira: «Eu não posso evitar contar histórias, mas,<br />

quero contar histórias sem que as pessoa se apercebam disso». Era um pensamento<br />

paralelo ao do Paul Valéry, que dizia que gostava de dar a sensação sem a chatice do<br />

invólucro dessa sensação, do seu veículo.<br />

Ele queria transmitir a sensação dura, através de imagens do tipo subliminar, que a<br />

pessoa vê mas são rápidas demais para ter a consciência de que as viu. Até é proibido<br />

na publicidade passar este tipo de imagens, porque o público não se consegue defender,<br />

entram no cérebro directamente, sem passarem no consciente. Mas na arte é<br />

possível, e Bacon dizia que gostava de contar histórias desta forma. Porque quando<br />

a história é consciente, a chatice aparece, o aborrecimento surge. Ele achava que, em<br />

termos de pintura ou em termos de arte, o que era chato era ter-se a consciência<br />

81


de contar histórias, e tentava fortemente evitar isto.<br />

Vieira da Silva, à Anne Philippe, outra pessoa que a entrevistou frequentemente,<br />

dizia também, ainda relacionado com aquela a ideia da cebola: «num guache há<br />

dois quadros, que funcionam juntos, o que está no cavalete, e o que está na nossa<br />

cabeça». Toda a gente já sentiu, com certeza, quando está a pintar esta, digamos,<br />

esquizofrenia dos dois quadros, o quadro que está no cavalete e o outro quadro que<br />

está na cabeça. Normalmente os principiantes dizem sempre assim: «-Oh Professor,<br />

mas não é isto que eu queria fazer, não é isto que eu tinha em mente». Eu respondo<br />

sempre a mesma coisa: «-Eh pá! Não se preocupe. Tem que olhar para o cavalete e<br />

ver o que é que lá está. Esqueça o que tem na cabeça».<br />

Vieira da Silva, mesmo sem ter alunos, reconhecia também esta realidade e depois<br />

dizia o seguinte: «E ás vezes, o que eu tinha na cabeça, não ia ao encontro do outro,<br />

(o outro, o que estava no cavalete), mas gostava desse outro e então deixava-o<br />

fazer-se tal como aparecia no cavalete. Também poderia acontecer que não estivesse<br />

satisfeita, e então continuava a perseguir aquele que tinha imaginado». Portanto, ela<br />

ia sempre fazendo uma série de opções, e uma série de sacrifícios, entre o cavalete<br />

e a cabeça. São duas entidades diferentes, e face ao qual, geralmente o pintor,<br />

ou o criador, tem de estar sempre, a balançar, como dizem os franceses, mon coeur<br />

balance. Ou seja, o artista tem de estar sempre atento à cabeça, mas também àquilo<br />

que aparece no cavalete, porque a certa altura, o que aparece no cavalete, pode ser<br />

inclusivamente muito melhor do que aquilo que tinha na sua própria cabeça.<br />

Ora bem, ainda sobre esta coisa sobre as palavras, eu tenho de vender aqui um<br />

bocadinho o meu peixe. Estou a fazer uma Tese de Doutoramento para esta Universidade,<br />

estudando o século XVI, comparado com o século XX. Há uma parte<br />

dessa Tese em que eu justamente estive a estudar a relação entre as palavras e os<br />

textos, por isso também o estudo do Holanda e as imagens que os pintores daquela<br />

altura vão criando.<br />

Ao estudar o século XVI, por exemplo, a pessoa encontra informações muito variadas.<br />

Há pessoas que dizem que os textos anteciparam as imagens correspondentes,<br />

para aí em sessenta anos. Primeiro aparecem textos especialmente inteligentes e<br />

iluminados e passado sessenta anos, os pintores começam a fazer imagens que correspondem<br />

a esse textos. Depois há outros que dizem justamente o contrário: que<br />

os pintores estão a fazer coisas fantásticas há já uma data de tempo e que passados<br />

sessenta anos, começam a aparecer os textos.<br />

Isto pode ser importante porque a pessoa interroga-se: Então e hoje? Hoje em dia,<br />

82


no século XXI, o que é que está a acontecer? São os tipos que escrevem que estão<br />

na vanguarda e estão a dizer-nos o que é que devemos pintar? Ou a descrever as<br />

imagens que devemos criar? Ou somos nós que estamos a mostrar a imagem, e<br />

depois os tipos lentamente lá vão escrevendo, e daqui a cinquenta anos já devem ter<br />

percebido o que nós fizemos hoje?<br />

A história serve justamente para isso, porque, ao ver o que é que então se passava,<br />

consegue-se perceber mais ou menos o que é que se está a passar hoje. Porque o<br />

que se passa é sempre mais ou menos a mesma coisa, apesar de tudo mudar.<br />

Estive a ler atentamente o que é que se passava no século XVI, mas não cheguei a<br />

nenhuma conclusão em especial porque realmente, com já disse, cada autor diz as<br />

coisas mais variadas sobre este assunto. De qualquer das maneiras, a sensação que eu<br />

tenho, é que hoje predomina a ideia real ou inventada de que os teóricos é que realmente<br />

estão à frente. Ou seja, o que se escreve é considerado mais avançado, mais<br />

genial, mais elaborado e realmente depois, os artistas visuais cumprem o programa<br />

que está já mais ou menos estabelecido pelos, digamos, críticos de arte.<br />

Há nomeadamente um caso que foi muito importante nos anos cinquenta, nos<br />

Estados Unidos, o do crítico de arte que se chamava Clement Greenberg, sobre o<br />

qual se diz que “fez”, toda uma geração dos expressionistas abstractos, “Pollocks”,<br />

e não sei que mais... Consta que o diálogo era ao nível do «não, não é isto!» ou «é<br />

aquilo que tu tens de fazer!» Não utilizando estas palavras, mas sim a linguagem<br />

altamente elaborada que os críticos de arte utilizam. O Pollock: “Ai é? Ah porreiro,<br />

e tal...”. E então começou a fazer o que o outro dizia, aquilo correu bem e toda a<br />

gente começou a dar-lhe palmadas nas costas e a dizer que era o melhor do mundo.<br />

O Jackson Pollock no entanto decidiu regressar à figuração. Bom, pouco tempo<br />

depois, suicidou-se. Era alcoólico e morreu num desastre de automóvel, há probabilidades<br />

de o desastre de automóvel fosse um suicídio. Mas de qualquer maneira,<br />

durante algum tempo, diz-se que uma relação, digamos, entre o programador e o<br />

programado funcionou perfeitamente, portanto a obra visual surgia como uma<br />

espécie de ilustração de um programa teórico.<br />

Nos finais do século XVI, também existiu um momento muito importante, que<br />

foi chamado o Movimento da Contra-Reforma, como vocês sabem. Resumindo, a<br />

certa altura houve a Reforma. A Igreja Católica lá encaixou aquela coisa de alguns<br />

cristãos já não quererem saber do Papa para nada e daí a própria Santa Sé ter reagido<br />

e criado então uma espécie de militância religiosa que passava muito pelas imagens.<br />

Era preciso, que os católicos se distinguissem dos protestantes e uma das coisas<br />

83


que os distinguia era os católicos dizerem: «As imagens são uma coisa necessária». E<br />

os protestantes: «As imagens são um bocado impuras, nós preferimos, digamos, uma<br />

certa sobriedade, uma certa pureza, um certo vazio para as pessoas meditarem». E os<br />

católicos: «Não, não, é preciso é mobilização visual! Muitas cores, já!»<br />

Nessa época, a Igreja Romana criava quase equipas de dois fulanos, para cada grande<br />

projecto de pintura, que eram portanto o ideólogo religioso, teólogos que trabalhavam<br />

com o pintor (o Cardeal Borromeo com Vasari, por exemplo) e garantiam<br />

a correcção ideológica e religiosa, daquilo que ele estava a fazer.<br />

Se o pintor, por exemplo devia pôr a pessoa nua da cintura para cima, ou só com<br />

um pano e um mamilo de fora... era uma questão que, depois era discutida, se era<br />

mais ou menos correcto em termos religiosos...<br />

Há um caso conhecido de toda a gente, que é o caso do “Julgamento Final” de<br />

Miguel Ângelo, em que foram colocados cache-sexe. Foi até um pintor decente, o<br />

Daniel Volterra, que foi encarregado de ir lá, posteriormente, já depois da morte do<br />

Mestre, colocar as parras no sítio em que estavam os sexos, porque tinha deixado<br />

de ser correcto, do ponto de vista religioso, apresentar a genitalia assim patente, à<br />

vista. O que uns anos antes seria considerado perfeitamente correcto e não antireligioso.<br />

Tudo isto para provar que há uma relação permanente entre as palavras de uns e as<br />

imagens dos artistas. E depois, há outra coisa que é importante, que são os mecenas,<br />

a história do mecenato é uma parte da história da arte que tem estado a ser ultimamente<br />

muito desenvolvida. Quem é que vocês acham que paga a arte hoje em<br />

dia? O que é que as pessoas que pagam pensam sobre os textos, as palavras que se<br />

escrevem sobre as imagens? Ou dão apenas importância às imagens?<br />

O texto acompanha sempre e é relevante para a obra que está ligada a instituições.<br />

Há sempre uma espécie de acordo entre o mecenato cultural e o texto. O texto é<br />

um acto de poder, digamos que não há arte de sucesso sem texto, não há arte socialmente<br />

influente sem um prolongamento escrito e daí o que eu disse há bocadinho,<br />

normalmente os artistas de sucesso são grandes comunicadores também, ou seja,<br />

conseguem pôr as pessoas a perceberem a sua obra, de uma maneira gira e que é<br />

original, usando também a palavra.<br />

Estão a ver as entrevistas da Paula Rego? Aquilo tem piada, a pessoa não adormece<br />

a ouvir. Mas, na realidade são importantes para a compreensão da obra, porque ela<br />

fala, por exemplo de si, de uma maneira que até quebra a intimidade, digamos assim,<br />

expõe-se quando fala das suas obras, fala da infância, conta como é que estava lá<br />

84


com as criadas, na cozinha. E nunca mais deixamos de olhar para aquelas pinturas<br />

sem pensar na infância da Paula, nem na nossa.<br />

Agora, por exemplo, se apareces num sítio qualquer e metem-te um microfone à<br />

frente e perguntam-te: «-Qual é a tua história? O que é que tens para contar?» E tu<br />

dizes: «-Eu sou um artista, pinto muitos quadros e faço desenhos...» Ainda não acabaste<br />

a frase e já eles estão a dar o microfone a outra pessoa. Mas se tu disseres, por<br />

exemplo: «Eu fui violado quando tinha três anos e por isso é que eu faço os quadros<br />

desta maneira...» O público quer saber mais: «-Ah! Tão verdadeiro, tão interessante!<br />

Conte-lá, como é que foi. Como é que isso transparece nas obras?» Ou seja, tem<br />

que se prometer matéria mastigável, utilizável pela media.<br />

Também a Vieira da Silva fornecia esta matéria, embora de uma forma completamente<br />

diferente, porque a Vieira da Silva é anterior à Paula Rego, portanto, é uma<br />

pessoa que falava de uma maneira mais ligada a uma certa imaginação, à subjectividade<br />

mas dentro de uma certa pureza, quer dizer, ali não havia muito Freud. Na<br />

Paula Rego já há mais Freud, ouvi dizer que ela até diz que deve muito ao seu<br />

psiquiatra, e eu acredito, devido ao psiquiatra a ter ensinado a lidar com a sua informação<br />

genética e adquirida, de maneira a conseguir enfrentar e transformar aquilo<br />

tudo em conceitos visuais. Em ambos os casos, são mulheres, que têm realmente um<br />

discurso muito especial e elaborado sobre si mesmas.<br />

É evidentes que existem outros pintores muito conhecidos em Portugal, por exemplo,<br />

o Júlio Pomar, que nunca disseram nada com interesse sobre si mesmos. Este<br />

tem escrito alguns livros, umas coisas meio poéticas, mas as pessoas que gostam das<br />

pinturas, gostam delas em si mesmas, não é porque realmente ele tenha acrescentado<br />

um discurso fantástico. Talvez por isso não tenha feito uma carreira internacional<br />

como as precedentes.<br />

Hoje tudo é possível! O que dizia o Andy Warhol é que não existe publicidade negativa<br />

hoje em dia, toda a publicidade é positiva. Se houver pessoas a dizerem mal<br />

de uma determinada obra estão de qualquer maneira a pensar nela, isso é melhor<br />

do que os grandes inimigos da obra de arte, a ignorância e o esquecimento. Mais<br />

uma vez encontramos o Museu do Esquecimento. Tudo o que seja enterrar a obra,<br />

no sentido de a espezinhar, dizer mal dela ou achar aquilo horrível, já é magnífico!<br />

Grande parte dos movimentos que hoje toda a gente admira, o Surrealismo, o Impressionismo,<br />

começaram por ser objecto de escândalo e reprovação social, inclusivamente<br />

por parte da maioria dos tais tipos que escreviam, na época.<br />

Wassily Kandinsky também escreveu uns textos sobre os críticos, mas os críticos em<br />

85


jornais não queriam ter nada a ver com ele. Havia um pequeno grupo de vanguardistas<br />

que estava a fazer coisas que eram contestadas pela maioria da sociedade, que<br />

achava tudo aquilo horroroso. Simplesmente essa minoria, também escrevia, porque<br />

sentia que era necessário, no domínio das palavras, estabelecer uma espécie de luta<br />

contra a maioria dos que escreviam. É sempre necessário estabelecer luta no domínio<br />

das palavras também. Não basta criar imagens fantásticas, é precisa a presença<br />

das palavras para se afirmarem os movimentos artísticos.<br />

Ultrapassámos, penso eu, este aspecto das palavras, da teoria e da prática, para ver<br />

o artista apenas enquanto ser humano. No fundo, quase todos os artistas, todos os<br />

criadores de imagens, são seres humanos como nós, são pessoas com dois pés, com<br />

uma vida pessoal, alguns com uma conta bancária, com um automóvel, ou sem<br />

automóvel, telemóvel. Há um livro muito interessante, não sei se está traduzido em<br />

português, que é A Portrait of the Artist as a Young Man, de James Joyce, que mostra<br />

de que maneira é que um rapazinho normal vai para um colégio, daqueles colégios<br />

anglo-saxónicos, internos, fardados e se começa, digamos assim, a distinguir dos<br />

outros e a certa altura ele tem realmente qualquer coisa que não encaixa, e pelo seu<br />

trabalho se torna um artista e mais tarde, neste caso, um escritor.<br />

É interessante este lado humano e pessoal do artista. Eu já falei há um bocadinho<br />

daquela história do quadro no cavalete e do quadro na cabeça, que faz parte do<br />

dia-a-dia do criador de imagens visuais. Há uma citação da Vieira da Silva, onde ela<br />

dizia o seguinte: «Eu era muito desajeitada, mas muito teimosa ao mesmo tempo».<br />

Há esta característica da teimosia, de que já falei também, e que eu geralmente<br />

encontro em todos os bons alunos que tenho, tipos de uma teimosia insuportável.<br />

É realmente uma característica dos artistas, ser uma espécie de egomaníaco, uma<br />

pessoa que vive virada para si mesmo, que insiste, insiste e insiste, de uma maneira<br />

absurda, que não tem lógica nenhuma. Se a pessoa perguntar: «-Eh pá, mas você, o<br />

que é que está aí a fazer? Há cinco horas debruçada sobre uma porcaria qualquer,<br />

em cima do plinto, ou do cavalete?» - e realmente, lógica e sensatamente, a pessoa<br />

não deveria estar ali, deveria ter ido para casa, ou apanhar ar, comer um bife, ou<br />

qualquer outra coisa desse género.<br />

Outro aspecto importante é este lado desajeitado, do artista. Ele nem sempre é “um<br />

jeitoso”, uma coisa que nos esforçamos por dar a conhecer nos cursos artísticos.<br />

Muitas vezes as pessoas não percebem, pensam: «-Você está a dizer isto porque acha<br />

que tudo se pode ensinar, dá muita importância ao ensino e pouca importância<br />

àquela coisa do inato, do “ nasceu artista”!» Mas há aí uma confusão: eu acho que<br />

86


as pessoas nascem artistas mas acho que nem todas as pessoas, têm tendência para<br />

continuar, porque não são teimosas o suficiente. A predestinação dos artistas não é<br />

o jeito, ou a habilidade manual. Os meus colegas do liceu que faziam aquelas caricaturas<br />

para toda a turma, são hoje gestores de empresas, são padeiros, trabalham em<br />

bombas de gasolina... Não tinham aquela espécie de teimosia, aquela necessidade<br />

da arte que o Kandinsky também falava, aquela necessidade de criar o tal mundo à<br />

parte. É curioso que Vieira da Silva cite este aspecto de ser desajeitada. Vemos uma<br />

Vieira da Silva e achamos que seria uma artista hábil, do ponto de vista físico-motor.<br />

Uma exposição muito interessante que esteve patente no Museu Vieira da Silva, há<br />

pouco tempo, reunia uma série de desenhos anatómicos, quando ela convenceu um<br />

amigo médico a ir para a sala de autópsias com os estudantes de medicina, fazer desenhos.<br />

Realmente tinha desenhos que surpreendiam não tanto pela personalidade<br />

artística, mas também por uma precisão científica. Mais ou menos desajeitada que<br />

fosse, obrigava-se no entanto a estar ali no meio daquele mau cheiro das autópsias,<br />

a copiar as vísceras que se espalhavam sobre as mesas.<br />

Penso que isto é realmente uma lição importante, para se perceber quem são os<br />

criadores de imagens visuais, portanto, não os tipos jeitosos, hábeis, que têm umas<br />

mãos mais compridas do que as outras pessoas. Tenho verificado que, em termos<br />

estatísticos, se este assunto interessasse os Institutos de Sondagens, chegaríamos à<br />

conclusão que todos os artistas são teimosos.<br />

Outra frase da Vieira da Silva, mostrando o que os artistas andam a pensar, dizia o<br />

seguinte: «Sabe, eu tenho cores de Verão, e cores de Inverno, quando faz calor, gosto<br />

de pintar com o azul, verde e branco. O branco, posso utilizá-lo durante todo o<br />

ano, e quando está frio, gosto de utilizar o vermelho». A pessoa pode achar esta frase<br />

muito depreciativa para um artista: afinal o artista fala desta forma da cor, que deveria<br />

ser uma coisa grandiosa, fantástica, metafísica, que transmite tudo, a emoção, a<br />

vida. E afinal, a Vieira da Silva, utilizava a cor, de Verão e de Inverno, com ao pessoa<br />

utiliza as colecções de Moda. Era Verão, pintava com azuis, e portanto estava calor e<br />

preferia cores frias. No Inverno, vermelhos, para ficar mais quentinha.<br />

A vida é feita de pequenas coisas, de pequenas coincidências e dependências e<br />

portanto ela utilizava a cor como quem realmente muda de camisola, conforme o<br />

clima. Estas pequenas confissões, são interessantes para nós percebermos que realmente<br />

os artistas, todos os criadores de imagens visuais, são pessoas exactamente<br />

como as outras e com uma motivação às vezes primária, que tem a ver com as estações<br />

do ano. O que é que é adaptar-se à estação do ano? É a capacidade humana<br />

87


de sobrevivência: está frio, a pessoa tem que sobreviver apesar do frio. Sobrevive<br />

comendo e sobrevive pintando. O criador artístico é apenas uma pessoa que sobrevive<br />

pintando, em todos os aspectos, não é só para ir buscar dinheiro ao fim do mês,<br />

é por comer e viver física e espiritualmente das cores que utiliza.<br />

Kandinsky, escreve o seguinte acerca do processo de evolução do artista: há três<br />

fases principais em qualquer artista, inclusivamente em alguns dos presentes poderá<br />

acontecer a mesma coisa: Na primeira fase é o chamado de período do diletantismo,<br />

será a fase em que a maioria de vocês está, com a incerteza, as emoções e na sua<br />

maioria as dolorosas e incompreensíveis aspirações. Depois, ele define um segundo<br />

período, o deixar a escola, «durante a qual, estas emoções geralmente tomavam uma<br />

forma mais definida e para mim mais nítida; eu tentava exprimi-las por meio de<br />

todos os tipos de formas exteriores, formas emprestadas pela natureza, objectos».<br />

Portanto, é uma forma ainda objectual, em que ele ia buscar coisas ao mundo exterior.<br />

A terceira fase, «o período da aplicação consciente dos materiais da pintura<br />

(...) o reconhecimento do supérfluo que as formas reais representavam para mim,<br />

e desenvolvimento da dolorosamente lenta capacidade de mobilizar a partir do<br />

meu interior, não apenas o conteúdo, mas também a forma adequada». Aqui temos<br />

que dar o devido desconto, Kandinsky estava na fase da libertação do objectivo, de<br />

abstracção portanto, e por isso deixou de ir buscar coisas ao mundo exterior. O<br />

caminho dele foi este, não significa que seja o de todos os artistas, não é obrigatório<br />

caminhar da figuração para a abstracção. No entanto podemos falar, em geral, de<br />

uma terceira fase, a da precisão, da realização plástica: a forma está certa, o conteúdo<br />

está certo, e a pessoa portanto, acerta plenamente no alvo.<br />

Para finalizar, vou ler uma pequena poesia, que é o testamento da Maria Helena<br />

Vieira da Silva. É um poema, eu chamo-lhe um poema, mas enfim, é um texto, que<br />

foi publicado no dia da morte dela, em Portugal. Ela morreu em 1993 e o texto<br />

apareceu em vários jornais, mandado publicar pela Fundação Vieira da Silva. Esta<br />

Fundação tem um pequeno Museu, em Lisboa, que vocês já devem ter visitado ali<br />

no Jardim das Amoreiras. A Vieira da Silva nos últimos tempos, reaproximou-se um<br />

bocadinho de Portugal, só um bocadinho, não muito; ela tinha-se zangado com<br />

Portugal, porque o nosso país a certa altura não atribuíu a nacionalidade portuguesa<br />

ao seu marido, que era húngaro e que ela adorava: Arpad Szenes. Regressou<br />

a Portugal num período mau, quando foi corrida de França pela Guerra, mas ela<br />

então não era Vieira da Silva, não era ninguém, não era conhecida; quando chegou<br />

a Portugal e queria nacionalizar o marido húngaro, o Estado Português perguntou-<br />

88


lhe: “Quem és tu para nacionalizar um húngaro português? Desaparece daqui com<br />

o húngaro!”<br />

De maneira que, ela foi para o Brasil. Viveu lá realmente, um período complicadíssimo,<br />

sem dinheiro, quase ninguém a conhecia, não teve sucesso nenhum. Nunca<br />

esqueceu esta maldade que Portugal lhe fez. Entretanto voltou para Paris e a carreira<br />

começou, digamos, a melhorar. O Estado Português começou a pensar: afinal<br />

a Vieira da Silva é fantástica. Um português que tem sucesso lá fora, é o máximo!<br />

Qualquer português que vá lá fora e que tenha, mesmo que seja só uma dosezinha<br />

de sucesso, chega cá, e é logo um exagero... E então o Estado Português, quis nacionalizar<br />

o húngaro e ela já não quis. E esteve zangada com Portugal muito tempo.<br />

Houve um processo de sedução lenta, e criou-se essa pequena Fundação já na última<br />

década da vida dela, mas ela nunca deu grande coisa à Fundação.<br />

O poema terá sido encontrado entre os papeis da Vieira da Silva depois de ela morrer,<br />

e foi publicado na Monografia que a Editora Skira editou sobre ela. Estava em<br />

cima da mesa... Até faz sentido, para um testamento. No entanto faz-me confusão<br />

que, sendo tão belo, ela tenha resistido a divulgá-lo em vida. Sei lá, podia vir a senhora<br />

da limpeza e deitá-lo fora... Tanto quanto sei, até poderia ser um documento<br />

falso, se não fosse tão bom. Sobre o século XVI, toda a gente sabe montes de coisas,<br />

mas sobre artistas contemporâneos ninguém sabe nada, há montes de lacunas, há<br />

coisas que historicamente ninguém conhece.<br />

E então ela diz o seguinte: «Eu lego aos meus amigos, um azul cerúleo para voar<br />

alto, um azul cobalto para a felicidade, um azul ultramarino para estimular o espírito,<br />

um vermelhão para fazer circular o sangue alegremente, um verde musgo<br />

para acalmar os nervos, o amarelo de ouro, riqueza, um violeta de cobalto para ser<br />

sonhador, laca de garrance que faz escutar um violoncelo, um amarelo primário,<br />

ficção-científica, brilho e destaque, um amarelo ocre para aceitar a terra, um verde<br />

veronês pela memória da Primavera, um índigo, para poder acordar o espírito da<br />

trovoada, um laranja para exercer a vista longínqua de um limoeiro, um amarelo<br />

limão pela graça, um branco puro, pureza, um terra de siena natural, a transmutação<br />

do ouro, o negro sumptuoso para ver Ticiano, uma terra de siena natural para<br />

melhor aceitar a melancolia negra, um terra siena queimada para o sentimento de<br />

durabilidade».<br />

E portanto aqui está. Foi traduzido por mim a partir do francês; peço desculpa pelas<br />

menos boas soluções. A tradução que está na Monografia também não é muito boa.<br />

Foi o que a Vieira da Silva legou, ou terá legado, aos seus amigos, que somos todos<br />

89


nós.<br />

A ligação à matéria é uma característica muito importante nos criadores de imagens.<br />

Nós realmente somos pessoas para quem a matéria é extremamente importante.<br />

A matéria pode ser película, podem ser às vezes coisas muito etéreas, outras<br />

vezes são muito tácteis, terras, coisas físicas, mas parece-me que isto é que talvez seja<br />

a característica do criador de imagens, a ligação evidente aos olhos mas também a<br />

tudo o que é físico, que existe, palpável, ao alcance dos órgãos dos sentidos.<br />

90


Pedro Portugal<br />

Universidade de Évora.<br />

Like Perseus artists have to behead Medusa and<br />

petrify the audience with it.<br />

Como Perseus os artistas devem decapitar Medusa<br />

e petrificar a audiência.<br />

Alocução realizada por Pedro Portugal em 090403 no auditório nº… no Colégio<br />

do Espírito Santo, Universidade de Évora no âmbito dos Seminário de Estudos de<br />

Arte organizados pela Professora Sandra Leandro para o Departamento de Artes<br />

Visuais.<br />

Bibliografia de recurso:<br />

Operating Manual for Spaceship Earth, R.B. Fuller<br />

Pursuit of Truth, W.V. Quine<br />

Human Immortality, W. James<br />

Understanding Understanding, H. von Foerster<br />

91


A minha experiência (prefiro falar de litania) académica de 12 meses é caracterizada<br />

pela assunção: os alunos são mais do que extensões dos professores na cadeia da cidadania.<br />

Ou seja, uma aproximação do segundo grau da tese veiculada pela anedota<br />

do Curso de Domador de Dragões: Um cidadão faz um Curso Superior Universitário<br />

de Domador de Dragões, Mestrado em Domador de Dragões, Doutoramento<br />

em Domador de Dragões, uma vasta Investigação e Pesquisa Internacional sobre<br />

a Real Existência de Dragões que o levam inexoravelmente à conclusão de que<br />

os dragões não existem. Até aqui sempre pago pelos pais (e pelo contribuinte), é<br />

revelada a preocupação pelo futuro profissional do filho, mas - detonador do riso<br />

na anedota - este informa que lhe foi atribuída a Cátedra de Domador de Dragões<br />

na mesma Universidade.<br />

Perdoem a inocência. A democracia dos gregos pressupunha a existência de escravos<br />

não era? Para o TV-cidadão da civilização-ocidental-profunda usar um Mercedes<br />

para deslocações no espaço-tempo é como ter vidros nas janelas no séc. XI,<br />

ou como ter frigorifico nas unidades de habitação pessoais (UHP) em Portugal<br />

durante o reinado de Aníbal (O Cavaco) durante os anos 80 do séc. XX.<br />

O filosofo e o poeta de mãos DADAS e de gatas (yo Fátima) são os vendilhões especializados<br />

do templo (apertem O Cinto Sinbad-Afrodite-Chanel-FMI).<br />

Pop Culture is Pub-Culture (ou Ad-Culture). Perseus é um vendedor - sem lhe<br />

retirar a qualidade de “ O maior artista de todos os templos” - e também o primeiro<br />

político earth-artist. Country’s become’s art pieces. Um país é uma obra de arte<br />

colectiva. Dealing with gods is performing great works of art.<br />

Vou informar-vos de algumas conversas que tenho tido com alunos/cidadãos da<br />

Universidade de Évora, Portugal.<br />

92


Perplexidade 1:<br />

Conversa com o aluno/cidadão João Leitão.<br />

Este elemento/aluno quer fazer uma galeria (de jeito)<br />

Enviou-me este mail:<br />

> From: “João Leitão” <br />

> Organization: Lycos Mail (http://www.mail.lycos.com:80)<br />

> Reply-To: johnsakura@lycos.com<br />

> Date: Sat, 29 Mar 2003 13:51:10 -0800<br />

> To: “Pedro Portugal” <br />

litany<br />

> Subject: boas de évora<br />

><br />

> pois olhe professor, como lhe disse no dia em que o encontrei lá nos leões, eu<br />

> na segunda feira nao me posso lá deslocar o que torna o nosso encontro muito<br />

> difícil. de qualquer maneira tambem reparei que o professor não mostrou<br />

> qualquer tipo de interesse ou mesmo em me dar umas dicas em como começar<br />

uma<br />

> boa galeria de arte. como lhe disse tenho o espaço. em évora não há uma<br />

> galeria de jeito. não há arte de qualidade em évora tirado uma ou outra<br />

> exposição no museu e na fundação luis de molina. faz falta boa arte em évora.<br />

> o meu espaço é pequeno mas é assim: tem uma porta para o centro da cidade,<br />

> praça do giraldo. deve ter para aí uns 30m2 mais ou menos. tem ainda uma sala<br />

> superior que serve de escritório e zona de acervo e arrecadação de telas.<br />

> ~como posso começar uma galeria? e com que ela fique com bom nome?<br />

> xau<br />

> obrigado<br />

> joão leitão<br />

> www.joaoleitaofoto.com<br />

><br />

><br />

> _____________________________________________________________<br />

> Get 25MB, POP3, Spam Filtering with LYCOS MAIL PLUS for $19.95/year.<br />

> http://login.mail.lycos.com/brandPage.shtml?pageId=plus&ref=lmtplus<br />

93


RESPOSTA:<br />

joão<br />

devias dar atenção ao projecto do Museu do Esquecimento que vai ser a exposição<br />

dos alunos do curso na SNBA em Lisboa em Set. 03<br />

questões emocionais não respondo<br />

questões técnicas respondo:<br />

Programa (data):<br />

- Como começar uma boa galeria de arte?<br />

- Em Évora não há uma galeria de arte de JEITO<br />

- Não há arte de qualidade em Évora<br />

- Faz falta boa arte em Évora (?)<br />

- O meu espaço é pequeno - porta para o centro da cidade (sala<br />

superior para escritório/acervo)<br />

- como começar uma galeria<br />

- e que ELA fique com bom nome<br />

tens que ser mais rápido a aprender<br />

o teu design tem que ser mais simples e menos<br />

abertura da galeria Junho de 2003<br />

JOHN LECTON GALLERY - Post-contemporary art<br />

Objecto: A contemporary art gallery committed to eradicate the current necroturistic<br />

standard of art valuation<br />

opening 100603<br />

Évora, Rua...<br />

1a exposição:<br />

EVORA - NEIN DANKA (símbolo igual ao “Nuclear Não Obrigado” mas com<br />

o recorte [skyline] da cidade de Évora)<br />

94


- Contribuições de vários artistas para a visão de um holocausto sobre Évora (pinturas<br />

com Évora a ser bombardeada, o mesmo género mas em pós-Nuc-Dark-<br />

Surrealista em desenhos a caneta Bic azul, ou em género conceptual com mapas<br />

militares e muito photoshop desconstrutivista, ou Évora 2069 - um postal com<br />

Évora no futuro com imensos arranha-céus e aviões, “video-art”: coro alentejano<br />

fardado e em formação diz as palavras dos soldados portugueses no ultramar na<br />

mensagem de Natal “Um beijo para a minha mãe, o meu pai, a minha namorada,<br />

um bom Natal. Adeus e Até ao Meu Regresso!, etc)<br />

- apresentar corporate da galeria numa semana<br />

Prof. Pedro Porttugal<br />

Perplexidade 2 e 3:<br />

Os alunos perguntam: Ó professor, como é que o professor fez? (como é que eu fiz<br />

para ser artista) e: Ó professor dê-nos ideias…<br />

Penso (mas duvido) que os artistas (executantes de Arte) se encontram num palco<br />

em que deixaram de ser heróis. Sem vantagens nem utilidade. São como voluntários-miniaturas<br />

cuja função é observar e reagir ordenadamente aos estímulos veiculados<br />

pela grande irmandade da arte internacional. O público nunca esteve tão<br />

próximo de ser também ele próprio um artista. O Povo-Arte.<br />

As referências não têm significado, as intenções não são evidência e a verdade é indeterminada.<br />

Chamar-lhe-emos Indiferencialismo. Uma boa palavra para substituir<br />

aquilo que se chama arte contemporânea: Arte Indiferencialista, ou seja, Tanto Faz,<br />

Mesmo.<br />

Como Perseus os artistas devem que decapitar Medusa e petrificar a audiência.<br />

Como o artista não tem um espelho escudo tem que fazer bluff - mas audiência<br />

também não petrifica.<br />

A arte é a cabeça de um bicho-de-sete-cabeças.<br />

95


Vivemos na pós-educação, na pós-autoria, no pós digital media, no pós-ready made,<br />

na pós-natureza, no pós-omnium, próximo da des-estetização do artístico, Dada já<br />

não dá…<br />

A arte contemporânea clássica pergunta eternamente “Como?” em vez de “O<br />

quê?”.<br />

Esta obrigação exige uma epistemologia (gosto da palavra epistemologia) de<br />

“Como é arte?!” em vez de “O que é a arte?”, ou seja, a pergunta para identificação<br />

de classes e diferenciação da esquerda, que pergunta Socialmente “Porque será<br />

arte?” e da direita que sabe-sabe o que é a arte (os extremistas estão no infantil “A<br />

arte é minha”).<br />

As observações sobre arte implicam um observador. As observações não são absolutas<br />

mas relativas ao ponto de vista do observador sem considerar o significado<br />

(segredo de artista):<br />

“É giro.”<br />

“É querido”<br />

“Gramo”<br />

“Gosto das cores” (cromofobia e cromogenia)<br />

“É espectacular!” (esta exclamação é considerada pirosa e já ninguém diz (observa)<br />

“Isso eu também fazia!” - é permitido o “Como é que ele fez?” e ambiciosamente<br />

“Como é que eu faria”)<br />

Assim, as observações vão afectar o observado até obliterar a esperança do observador<br />

conseguir alguma vez “perceber alguma coisa d’arte”.<br />

Art is a many-brain problem - A Arte é um problema poli-cerebral. (Foerster)<br />

O governo da arte no mundo será forçado em breve a uma revisão das noções da<br />

arte per se. Esta primeira revolução iniciará o conceito “finis-arte” ou Indiferencialismo.<br />

A arte cujo objectivo é uma descrição do mundo em que não há arte, em<br />

que o relógio mole (Dali) que mede o tempo-arte, só possa ser usado por artistas,<br />

em que o observador seja explicado à arte, em que a arte que possa ser uma prenda<br />

que uma mulher goste de receber.<br />

O artista poderá finalmente fazer como o poeta: por-se de gatas e ladrar a sua arte.<br />

Os artistas não são cães da arte. Os cães não fazem arte. Não, Não, Não…<br />

96


Num curioso encontro promovido pelo ex-primeiro-ministro António Guterres<br />

no CCB em 2001, foram reunidos cerca de “30 jovens de todos os quadrantes” para<br />

dar uma opinião especializada do rumo a dar a Portugal…<br />

Fiquei chocado com as contribuições de 27 dos meus colegas pelo cretinismo,<br />

obtusidade e estupidez. Acredito que eles também ficaram comigo. Esse texto aqui<br />

transcrito seria uma espécie de oráculo para um chefe sobre o estado artístico (civilizacional)<br />

da sua nação:<br />

- Falo na qualidade de artista<br />

Não quero parecer esfíngico mas vou oferecer um enigma:<br />

A arte oficial de Estado em Portugal é preta.<br />

A arquitectura oficial de Estado em Portugal é branca.<br />

A cultura artística em Portugal é a preto e branco.<br />

Não se deve senatorializar a arte e a arquitectura.<br />

Os artistas não são soldados que lutam nas fronteiras do conhecimento e do vísivel<br />

prefigurando na sua arte uma espécie de futuro colectivo global.<br />

A arte é uma função pública mas os artistas não devem ser funcionários públicos.<br />

Agora temos des-profissionalização, deveres sacerdotais, obrigações e sujeito absoluto<br />

descentrado.<br />

É difícil para os artistas competir com o capitalismo publicitário em impacto visual,<br />

ubiquidade e efeito.<br />

Apagou-se o conceito romântico do artista criador de beleza.<br />

A informação que recebemos é um superfluxo em supersessão instantaneamente<br />

produzida, transformada e descartada num processo ad infinitum de complexificação<br />

e polimorfia.<br />

O político homeopata substituiu o político-cirurgião e em muitos casos aparece o<br />

político curandeiro.<br />

97


Reafirma-se o particular, o vernacular, os materiais nacionais.<br />

Falta a presença das Grandes Histórias do ocidente na vida cultural:<br />

- a civilização em expansão<br />

- o ensombramento da história pelo Logos<br />

- um projecto de Iluminismo<br />

- a crença no progresso<br />

- a crença na Razão e na Ciência<br />

- modernização—desenvolvimento—salvação—redenção<br />

Compreender uma cultura é compreender um povo e isso pressupõe um entendimento<br />

imaginativo.<br />

Toda a população deve tomar parte activa nas actividades culturais mas não todos<br />

nas mesmas actividades nem ao mesmo nível. (T.S. Eliot)<br />

A cultura não é uma mera soma de diversas actividades.<br />

É uma maneira de viver.<br />

Portugal precisa de uma política cultural de acabamentos.<br />

Pequenas coisas que faltam: Passeios, sinalética, jardins, limpeza, interiores de pastelarias<br />

(casas-de-banho).<br />

Os jovens artistas também já foram velhos.<br />

Bem,<br />

Não tem fim a quantidade de disparates que se consegue dizer sobre arte. Também<br />

é impossível limitar o quasi direito constitucional de um cidadão querer fazer arte<br />

ou ser artista.<br />

98


Termino pedindo a um membro da assistência que venha até esta mesa e que leia<br />

comigo uma entrevista que foi escrita como conversa entre um artista e uma galerista:<br />

Entrevista:<br />

Artista-Galerista<br />

A: Acha que a arte faz-bem?<br />

G: A arte faz bem em geral. A arte é uma esfera epistemológica mole em que todos<br />

podemos entrar. A minha missão parece ser a facilitação do acesso a esse outro<br />

estado.<br />

A: Como se vê como galerista?<br />

G: Um arte dealer tem que querer o bem das pessoas. Por uma razão que não percebo<br />

as pessoas acham que precisam de arte para viver. Eu preciso de arte para viver.<br />

Muitas pessoas precisam de muita arte. Precisamos de mais artistas e de mais arte.<br />

A: Não Percebus.<br />

G: Como Hephaestus, o filho maldito de Zeus, o handicap do artista é, como dizia<br />

D. H. Lawrence, “a deusa cadela da Glória”. O galerista tem que ter galerismo dentro<br />

de si. O galerista, ou a pessoa que encarna o papel de galerista, já é ela própria<br />

uma obra de arte. Nesse aspecto os artistas ganharam aos oficiais da arte. Mas não<br />

ganharam a possibilidade de manipulação da história. A transitoriedade da arte ainda<br />

é território nosso porra.<br />

A: Então a arte é uma farsa e os artistas farsantes…<br />

G: Não iria tão longe. O que é verdade é que o avanço dos artistas em matéria de<br />

inovação e descoberta de recursos imateriais (as ideias) está ao nivel da alta tecnologia.<br />

A: Humm…<br />

99


G: Não??! É que o problema, se é que existem soluções, é que as pessoas estão perante<br />

uma nova forma de vanguarda artística que ainda não pode ser compreendida<br />

porque ainda não há standards de aferição. A percepção das pessoas para avaliar isso<br />

não é suficientemente elástica.<br />

As manifestações de arte são iterativos do pensamento, são uma delicada 2a natureza,<br />

ou seja, a própria natureza da arte.<br />

A: A grande descoberta do nosso colega M. Duchamp em 1917 foi que tudo podia<br />

ser arte. J. Beuys inventou que afinal todos nós éramos artistas. A soma ainda não<br />

descoberta é que a arte está em toda a parte.<br />

G: Um artista é uma pessoa que pensa que é artista. Um galerista é uma pessoa que<br />

pensa que é galerista.<br />

O que eu acho é que alguma arte hoje é feita por extraterrestres. São anjos bons<br />

azul-indigo que estão dentro de algumas pessoas às vezes chamadas - ARTISTAS.<br />

Tenho a certeza disso. Alguns deles em contacto com GAIA transformam-se e ficam<br />

maus e depois fazem uma arte muito má e feia e sem cor.<br />

É por isso que devemos desconfiar da arte que é a preto e branco ou que o é conceptualmente.<br />

A: A arte não tem futuro, só tem história.<br />

G: A arte tem que se aproximar das pessoas e por isso os artistas têm que se tornar<br />

mais pessoas.<br />

A: A arte não é informação mas um veículo de potencial informação.<br />

G: Sim, sim. A Arte Ou a Vida. Como num assalto. Cor, forma, sensibilidade e beleza;<br />

são o sincretismo quimérico dos 4 pilares da meta-harmonia artística.<br />

A: Buuaaa…<br />

G: A arte hoje quer-se a cores. Encanto e encantamento. A arte tem que ser uma<br />

prenda que uma mulher goste de receber.<br />

100


A: A arte também faz bem à pele, já agora…<br />

G: Faz bem a tudo. Hoje as galerias de arte de vanguarda são ambientes de paz e reconciliação<br />

completa com o mundo através da arte. A galeria-hospital morreu…<br />

A: A arte nunca esteve tão doente. Nunca houve tanta arte. Não há uma civilização<br />

saudável com uma arte doente… Nada disso. Depois do mapeamento do código<br />

genético e do próximo mapeamento das emoções como negócio o upgrade<br />

neuropituitário para estimulação artificial de capacidades e virtuose artística estará<br />

disponível para todos em casas da especialidade…<br />

101


102


Ana Luísa Barão<br />

Assistente da Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto.<br />

albarao@fba.up.pt. Conferência proferida no dia 30 de Abril de 2003.<br />

Teoria e Crítica de Arte em Portugal na primeira<br />

metade do século XIX.<br />

Uma Exposição. Uma Análise.<br />

Introdução<br />

O principal objectivo deste trabalho é a análise do conceito de crítica de arte durante<br />

a primeira metade do século XIX em Portugal.<br />

Depois de consultados os catálogos referentes às exposições realizadas pelas Academias<br />

de Belas Artes (Lisboa e Porto) e pela Sociedade Promotora de Belas Artes,<br />

escolhemos a exposição de 1843, por ter sido a primeira a obter ampla atenção dos<br />

periódicos. O estudo deste acontecimento permite ter uma maior consciência da<br />

dimensão da opinião crítica e como esta então se processava.<br />

Em termos metodológicos, e dentro da lógica da pesquisa tornou-se indispensável<br />

investigar as ideias existentes sobre arte e crítica então dominantes. A quase inexistência<br />

de documentos concernentes a este assunto limitou a nossa actuação aos<br />

dois únicos textos em circulação, e que resultam ambos de traduções: O Ensaio sobre<br />

a Crítica de Alexander Pope, traduzido em 1810, e as Reflexões sobre a Arte Crítico-<br />

Pictórica inserida nas Regras da Arte da Pintura de Prunetti, traduzidas em 1815. Dos<br />

textos catalogados, estes são os únicos que abordam de um modo exaustivo as regras<br />

para aperfeiçoar a arte da crítica; por outro, com uma feição mais sinóptica, foi proposto<br />

103


por Prunetti um método crítico baseado na boa ou má execução das regras da arte<br />

da pintura expostas na primeira parte do mesmo tratado. Embora o primeiro se<br />

refira à poesia e apenas o segundo à arte da pintura é importante não esquecer que<br />

durante este período eram fortes os laços teóricos que uniam ambas as artes.<br />

A especificidade revelada pela exposição de 1843 no seio da Academia de Belas<br />

Artes de Lisboa ocupou parte desta investigação. A inauguração e a relação do<br />

evento com o público e os conteúdos estéticos e historiográficos do discurso do<br />

então director da Academia de Lisboa – Francisco de Sousa Loureiro, são alvo de<br />

uma breve análise.<br />

Importa frisar que até meados do século XIX, nenhum acontecimento artístico reteve<br />

a atenção da imprensa periódica como a exposição de 1843. Quinze dias antes<br />

da inauguração a 22 de Dezembro, a Revista Universal Lisbonense ofereceu aos seus<br />

leitores uma antevisão da exposição escrita por Rebelo da Silva, e seis dias depois<br />

uma análise de Silva Túlio. Ainda durante o mês de Dezembro, Almeida Garrett escreveu<br />

no Jornal das Belas Artes aquele que é considerado pela historiografia artística<br />

portuguesa o mais importante artigo sobre a Exposição de 1843. Finalmente, entre<br />

Janeiro e Julho de 1844, O Panorama publicou dez extensos artigos sobre esta exposição,<br />

assinados por Ribeiro de Sá. O conjunto destes artigos é significativo dum<br />

interesse nascente pelo desenvolvimento das artes nacionais e foi, sem dúvida, fruto<br />

da implantação no seio das Academias de Lisboa e Porto do conceito de exposição<br />

pública - o salão.<br />

Ainda que não se possa cingir a Crítica de Arte apenas às manifestações ocorridas<br />

nos periódicos e revistas foi, no entanto, a este sector que se dedicou grande parte<br />

deste estudo. Os periódicos foram então o principal veículo de divulgação de opiniões<br />

críticas especializadas. Neste período assumiram essencial preponderância O<br />

Panorama (1837-1868), a Revista Universal Lisbonense (1841-1853) e o Jornal das Belas<br />

Artes (1843-1844/1848). Estes periódicos constituíram então o mais mediático<br />

reflexo do fenómeno desta exposição pública.<br />

Em termos estruturais, a crítica de arte passa a consistir, numa primeira fase, na<br />

emissão de juízos baseados em preceitos, cuja origem deriva do leque doutrinário<br />

classicista Numa segunda fase, exercitam-se as primeiras tentativas de expressão<br />

subjectiva de opiniões, ainda não verificáveis em autores nacionais, mas cujas primeiras<br />

manifestações podemos encontrar nas afirmações de um crítico estrangeiro<br />

que escreveu sobre a arte portuguesa. É o caso único, durante esses anos de Les<br />

Arts en Portugal (1846-1847) do Conde Athanasius Raczynski. As Cartas do di-<br />

104


plomata prussiano constituem um sinal irrevogável da incoerência de método dos<br />

investigadores nacionais e o ponto de partida para futuras e instruídas alterações<br />

metodológicas, críticas e ideológicas no panorama da história e da crítica de arte<br />

em Portugal.<br />

I Parte: Uma Ideia ideal de Crítica. Dois ensaios<br />

teóricos<br />

Os textos teóricos e as traduções realizadas neste período pelos escritores portugueses<br />

traduzem, por um lado, um interesse pela cultura estética, por outro, equacionam<br />

a actualização da educação artística face aos acontecimentos estéticos europeus.<br />

A grande maioria das obras foi traduzida particularmente, circulando num grupo<br />

limitado de pintores e amadores. Depois de 1815, data em que foi publicada a tradução<br />

das Regras da Arte da Pintura de Prunetti realizada por José da Cunha Taborda,<br />

e acrescida pelo tradutor de uma Memória dos mais famosos Pintores Portugueses, data<br />

também, da tradução d’ As Honras da Pintura de Bellori, com prefácio de 1810 de<br />

Cyrillo Wolkmar Machado, não foi muito significativo o número de traduções realizado<br />

no domínio artístico. E a partir dos finais dos anos 30 a maioria da literatura<br />

artística publicada passou a ser constituída por manuais que vieram complementar<br />

o ensino, então já professado na Academia das Belas-Artes.<br />

No campo judicativo, e até à década de quarenta do século XIX, as manifestações<br />

da crítica de arte fizeram-se, no entanto, sentir nos poucos tratados de arte ou biografias<br />

artísticas. A partir de então, as exposições de arte especializadas, inicialmente<br />

realizadas sob os auspícios da Academia das Belas-Artes de Lisboa e da Academia<br />

Portuense de Belas-Artes, e a partir de 1862, da Sociedade Promotora de Belas-Artes,<br />

permitiram o desenvolvimento deste género, sobretudo através dos periódicos<br />

que a elas dedicaram, por vezes, vastas crónicas de carácter crítico.<br />

A tradução do Ensaio sobre a Crítica de Pope e a tradução das Reflexões sobre a Arte<br />

Critico-Pictórica de Prunetti podem ser consideradas as primeiras obras dedicadas<br />

ao género da Crítica publicadas em Portugal, apresentando duas concepções estéticas<br />

com origens geográficas diferentes, mas que acabam por convergir naquilo que<br />

caracteriza a complexidade deste período – a intenção de conceder um carácter<br />

dogmático à crítica.<br />

O Ensaio de Pope, escrito em 1711, foi traduzido pelo conde de Aguiar com a<br />

intenção de facultar os preceitos necessários aos que desejassem «julgar com acerto<br />

105


das composições poéticas». No entanto, podemos estabelecer uma relação entre os<br />

caracteres definidores da concepção de crítica exposta nesta obra, e os aplicados<br />

pela crítica pictórica. As relações que unem teoria literária e teoria da pintura e,<br />

consequentemente teoria crítica, são sumamente conhecidos e a comprová-lo o<br />

facto da maioria dos escritores e comentadores que se dedicaram ao género da<br />

crítica artística provirem, durante este período, do campo literário.<br />

A defesa do génio, do gosto e do sentimento são temas sublinhados pelo ensaio de<br />

Pope. A afirmação de que a arte da poesia ou da pintura são ambas uma questão de<br />

sentimento e que consequentemente este sentimento, o génio, o gosto e uma imaginação<br />

viva podem julgar a arte, põe em questão a própria importância das regras<br />

e preceitos defendidos por outros autores.<br />

Escrito e publicado pela primeira vez em 1780, as Regras da Arte da Pintura de<br />

Prunetti nascem num contexto bastante diverso do inglês. Em Portugal, o tratado<br />

de Prunetti seria traduzido por José da Cunha Taborda. Depois de ter estudado<br />

na Academia Romana, Taborda foi Professor da Aula de Pintura do Castelo em<br />

1796, e director da Aula de Gravura da Tipografia do Arco do Cego em 1801.<br />

Este percurso dava-lhe consciência das dificuldades dos alunos portugueses, especialmente<br />

a flagrante ausência de bases teóricas. Até à publicação desta tradução<br />

tinham sido muito poucas as obras editadas ou traduzidas que oferecessem regras<br />

segundo a doutrina clássica, considerada então indispensável ao exercício das belas<br />

artes. O segundo artigo do Ensaio de Prunetti é dedicado às Reflexões sobre a Arte<br />

Crítico-Pictórica. Contrariando a importância concedida ao sentimento, ao génio e<br />

ao gosto como medidas judicativas defendidas por Pope, Prunetti considera que<br />

«[…]as regras, e os princípios de uma Arte são os meios, pelos quais se pode julgar<br />

da bondade das suas produções». É ao amador de arte que dirige as suas reflexões<br />

para que este possa com critério «descobrir os defeitos de um quadro; bem como<br />

as diversas maneiras, e estilos dos Artistas; e diferenciar as cópias dos seus originais».<br />

No entanto, não lhe concede a liberdade subjectiva necessária ao julgamento da<br />

obra de arte. As primeiras advertências referem-se às Belezas e defeitos que devem ser<br />

alvo de atenção. A análise não se regia «pela tenção, qualquer que ela [fosse]», mas pelas<br />

normas e princípios da arte estabelecidas no primeiro artigo do Ensaio. A «justeza»<br />

do método implicava, primeiro, «ver repetidas vezes as melhores pinturas», só depois<br />

seria possível avaliar os «graus de bondade» de um quadro, que poderiam ser de três<br />

tipos: «O medíocre, o bom e o excelente». Para chegar à avaliação do grau de merecimento<br />

tornava-se conveniente «considerar a sua espécie, e depois as diferentes<br />

106


partes que compõem a Pintura». À noção de espécie do quadro está subjacente a<br />

teoria da hierarquia dos géneros proclamada pela Academia Francesa, que suponha<br />

a pintura de história «preferível a um país, a uma marinha, a uma bambochata, etc».<br />

O mérito da obra passava pela nobreza do argumento representado. Aconselhava<br />

depois, o amador a indagar a origem do prazer ou desgosto, considerando «para isso<br />

[…] indispensável examinar em que parte da Pintura, e em que grau principalmente<br />

o Artista se saiu bem, ou mal; assim como se o bom, ou o mau, se o deleite, ou<br />

displicência procede mais do assunto, que do pincel». Deste modo, deveria observar<br />

com ordem e método, o assunto, o todo das massas e o colorido em geral. Só depois devia<br />

observar a «Composição e todas as qualidades necessárias para um belo composto».<br />

Finalmente, passaria «ao exame particular do Colorido, Claro-escuro, e Desenho,<br />

os quais deverão formar as nossas considerações pela norma das Regras da Arte».<br />

Depois da análise das diferentes partes da pintura, Prunetti centrava a sua atenção<br />

na Invenção e se esta era acompanhada da adequada Expressão, sempre segundo as<br />

normas e preceitos da arte propostos e reunidos na primeira parte do seu ensaio.<br />

II Parte: As Exposições da Academia de Belas<br />

Artes. O Salão e o Público<br />

A realização de Exposições trienais constituiu, desde a fundação das Academias de<br />

Belas Artes de Lisboa e Porto, um dos aspectos fundamentais para o desenvolvimento<br />

da relação triangular que a partir da década de 40 do século XIX desenvolverá<br />

uma estrutura que ainda hoje sobrevive: a relação entre as exposições de arte,<br />

a crítica e a imprensa periódica.<br />

Deste modo, podemos afirmar que os salões criaram um novo conceito - o de<br />

público. Este pode agora fruir livremente, apreciando e valorando as obras expostas,<br />

tendo acesso ao que antes era apanágio de elites. O salão constituiu a primeira<br />

forma de democratização da recepção de obras de arte. À semelhança do modelo<br />

francês do Salon, criado cerca de cem anos antes, o interesse suscitado pelas exposições<br />

portuguesas levou à publicação de notícias que podemos considerar os primeiros<br />

ensaios da crítica de arte, esboçados sobre a forma de folhetins, crónicas ou<br />

relatos meramente jornalísticos. Para os humoristas, o Salão foi algumas vezes fonte<br />

de inspiração, mas teremos de esperar até 1863 para encontrarmos na imprensa periódica<br />

a primeira crítica ilustrada à concepção museológica do discurso expositivo<br />

presente na exposição da Sociedade Promotora de Belas Artes.<br />

107


É com as exposições públicas que a crítica conquista um cunho distintivo que jamais<br />

perderá: propõe-se como um apreço pessoal, fundamentado inicialmente num<br />

enorme leque de critérios institucionalizados, que valoriza as obras e as confronta.<br />

É uma escrita expressiva, fortemente adjectivada, que informa sobre os conteúdos<br />

da obra mas numa de um modo exaustivo. Nascia, deste modo, um novo género<br />

literário directamente ligado à actividade artística, que supunha a existência de uma<br />

indústria periódica – só no ano da fundação da Academia de Belas Arte de Lisboa<br />

surgiram cerca de 66 periódicos – e consequentemente de leitores entre os quais<br />

se pudesse difundir.<br />

A Inauguração do Salão de 1843.<br />

«Abriram-se hoje, [22 de Dezembro de 1843] ao público as portas do templo das belas artes.<br />

Por terceira vez, veio a Rainha, distribuir por suas próprias mãos, aos alunos desta esperançosa<br />

Academia, os prémios que lhes haviam sido adjudicados. À volta do meio-dia, entraram na<br />

Sala, nobremente adereçada para receber esta solene sessão SS. MM. a Rainha e El-rei, os<br />

Srs. Ministros de Estado, acompanhados do Sr. Conselheiro Director, do corpo Académico, e<br />

dos alunos. A sala estava cheia de convidados de todas as hierarquias; e de ambos os lados, havia<br />

uma galeria superior vistosamente guarnecida de senhoras. […]. Terminada a sessão, SS.<br />

MM. foram visitar todas as aulas onde estavam expostas as novas obras, do que se mostraram<br />

extremamente satisfeitos. E El-rei, como grande entendedor que é, interrogou os respectivos<br />

professores, fazendo observações muito a ponto e judiciosas. Perto de três horas se detiveram<br />

SS. MM. na Academia, saindo visivelmente gostosos e lisonjeados, e todo o seu séquito,<br />

ficando o estabelecimento patente por estes dias. Foi na verdade a abertura da exposição da<br />

Academia de Belas Artes de Lisboa, de 1843, uma solenidade nacional e majestosa».<br />

Este excerto da notícia publicada na Revista Universal Lisbonense por Silva Túlio é<br />

demonstrativo da importância social da Exposição da Academia de Belas Artes na<br />

sociedade portuguesa.<br />

Segundo os estatutos da Academia cabia à Conferência Geral «graduar o merecimento<br />

dos concorrentes aos Prémios, examinando com a maior diligência tudo quanto<br />

possa servir para que o seu juízo seja severamente justo». Dois galardões, uma medalha<br />

de ouro e outra de prata, foram atribuídos aos alunos que mais se destacaram<br />

em Pintura, Arquitectura e Escultura. Os discípulos que se propuseram ao prémio<br />

de Pintura tiveram como programa de concurso, aprovado pela Academia, o tema<br />

da Criação do Homem. Os de Escultura, a realização de uma Estátua de Camões. Na<br />

108


Aula de Arquitectura sabe-se apenas que João Pedro Monteiro recebeu a medalha<br />

de ouro pela invenção de um projecto de edifício para uma Academia de Belas Artes;<br />

as honras de accessit, num projecto semelhante foi dada a Valentim José Correia,<br />

enquanto António Pedro Cardoso Cárceres recebeu a medalha de prata pela cópia<br />

do plano do Real Palácio da Ajuda. Relativamente ao tema exigido aos alunos da Aula<br />

de Pintura Histórica não podemos deixar de mencionar a acesa crítica que lhe<br />

foi dirigida por Andrade Corvo nas páginas do Jornal das Belas Artes. Corvo refere<br />

então que «O artista [tinha] uma função moral a cumprir mas também obrigações<br />

estéticas a preencher». E foram estas obrigações, que segundo o comentador do Jornal<br />

das Belas Artes os artistas portugueses, ainda, não tinham entendido e para o provar<br />

dá o exemplo de um dos assuntos tratados pelos jovens artistas apresentado na exposição<br />

de 1843 – «A Criação do Homem», dizendo:<br />

«Para empreender um assunto desta natureza, talvez um dos mais difíceis que um artista<br />

possa conceber, são indispensáveis certas considerações, sem as quais o quadro não pode satisfazer<br />

de modo algum ao seu pensamento. A Criação do Homem, como a mais perfeita<br />

das criações teve lugar [...] quando na natureza todos os objectos se tinham aproximado de<br />

um belo inicial [...]. Nesse primeiro período a natureza era sublime e não bela [...] mas<br />

a passagem da natureza sublime à natureza bela não foi rápida [...] no fim [...] devia de<br />

haver grandes contrastes. E eram esses contrastes que se deviam fazer sentir num quadro que<br />

representa a cena principal do grande drama da criação. [...] o homem [...] vinha iluminado<br />

por uma luz divina, e não devia de certo assemelhar-se aquelas tristes e frias e desanimadas<br />

Academias que o representavam nesses quadros; Academias aliás perfeitas de forma, mas<br />

forma sem espírito, sem pensamento. [...] dizemos com mais razão do Deus criador, que não<br />

podia nunca ser simbolizado por aquela imagem que aparece entre as nuvens, e que não está<br />

nem sequer à altura de um Júpiter Olímpico. [...] Por este exemplo [...] se pode ver quanto<br />

os conhecimentos estéticos e o sentimento da arte são indispensáveis aos artistas, e quanto eles<br />

são desconhecidos entre nós».<br />

As obras foram descritas num folheto publicado pela imprensa e a exposição teve a<br />

duração de dois meses. O folheto, de que se fala, constitui a origem do que viriam<br />

a ser os actuais catálogos de exposição. No entanto, aqueles eram apenas meras listas<br />

de nomes ordenados de acordo com as Aulas leccionadas na Academia e a hierarquia<br />

académica.<br />

109


O Discurso de Francisco de Sousa Loureiro e a<br />

História da Arte Portuguesa<br />

Da sessão inaugural fazia também parte o discurso elaborado pelo Director da<br />

Academia, na época, Francisco Sousa Loureiro. Estruturado em três momentos<br />

começa por fazer referência aos discursos proferidos em 1837 e 1840, referentes à<br />

primeira e segunda exposição realizadas pela Academia de Belas Artes de Lisboa.<br />

Sousa Loureiro faz coincidir o momento em que «já se [distinguiam] os primeiros<br />

vestígios da Arte, puramente Portuguesa» com o início da monarquia portuguesa;<br />

no segundo discurso, sublinhara a influência das mulheres célebres, quem sempre,<br />

na sua opinião, «animara e promovera a cultura, o esplendor, o progresso das Artes<br />

e das Letras». A divisão cronológica adoptada por Loureiro para a caracterização<br />

da pintura nacional é a mesma que adoptou Garrett em 1821 no Ensaio sobre a<br />

história da pintura. A história da arte de Loureiro foi dividida em quatro períodos.<br />

O primeiro com início no reinado de D. Afonso Henriques e terminando com D.<br />

Fernando I. D. João I dá início ao segundo período, terminando este com o filho de<br />

D. Manuel I, D. João III. Seguiu-se «a opressão espanhola, e … esqueceu[-se] tudo!<br />

Ao desgosto e sujeição dos Portugueses seguiu-se naturalmente aquele mau gosto, e<br />

aquele sem sabor, que é próprio dos oprimidos». O quarto período tem início com<br />

D. João V e termina com D. Maria I. A questão que se colocada neste seu discurso,<br />

e que permitiu a Loureiro apresentar uma série de afirmações e tirar algumas conclusões,<br />

centra-se na nacionalidade, escola e atribuição de obras de Grão Vasco, e se<br />

não seria essa «escola de pintura lusitana, [...] coerente com a escola de arquitectura»<br />

a que fizera referência no período primeiro e no segundo?». A primeira parte do<br />

discurso é pois dedicada à Identidade de Grão Vasco, enquanto a segunda se ocupou<br />

do estado das artes em Portugal e na análise do seu estado e progresso nos países do<br />

norte, nomeadamente na Alemanha.<br />

Os Periódicos e a Crítica de Arte<br />

Rebelo da Silva e Silva Túlio na Revista<br />

Universal Lisbonense<br />

Rebelo da Silva inicia o seu artigo congratulando-se com o renascimento das artes<br />

em Portugal. Afirmava ainda, que a «Academia das Belas Artes [criara] um presente<br />

[...]» graças ao «talento, e à consciência dos seus ilustres professores [que] venceram<br />

110


as dificuldades, que cercavam ainda no berço uma instituição nova, sem grandes<br />

meios próprios, nascida no centro de um reino pobre e dilacerado».<br />

No seio dessa controvérsia, se por um lado estava a identidade do povo, por outro, e<br />

mais acentuadamente, encontramos a questão da valia nacional ligada intimamente<br />

às noções de progresso, e consequentemente de decadência. Na realidade, Portugal<br />

chegara a meados do século XIX com uma economia primária, sem conhecimento<br />

científico-tecnológico (excepção fora o período pombalino, talvez o único momento<br />

em que a disparidade temporal entre Portugal e a Europa foi menos notória)<br />

e sem vias de comunicação. Assumindo-se como uma crença generalizadamente<br />

intuída, o tema decadentista, tornou-se constante de toda a nossa ideologia liberal.<br />

Já em 1843 Alexandre Herculano perguntara «Quem somos nós hoje?» para logo<br />

responder: «Uma nação que tende a regenerar-se; diremos mais: que se regenera.<br />

Regenera-se porque se repreende a si própria; porque se resolve no lodaçal onde<br />

dormia tranquila; porque se irrita da sua decadência, e já não sorri sem vergonha<br />

ao insultar os estranhos; porque principia e vai esquecendo as viagens senhoriais<br />

de fidalga». Regressando ao artigo, Rebelo da Silva refere depois alguns artistas e<br />

as obras que iriam estar presentes na exposição, destacando na escultura Assis Rodrigues<br />

que apresentaria o Génio da Nação portuguesa coroando a Camões e em menor<br />

dimensão um outro do mesmo assunto mas modelado em barro, ambos: «[...]<br />

prende[m] a atenção, cativa[m] os olhos pelo estilo gracioso e leve, pela perfeição<br />

do cinzel [...]. Todavia, realçando ambos em nossa humilde opinião entendemos,<br />

que o esboceto modulado em barro, excede em graça, em mimo o primeiro»; o<br />

«baixo-relevo representando o Juramento de Viriato sobre o cadáver da filha de tomar<br />

vingança da traição de Pretor Galba» de Araújo Cerqueira foi «perfeitamente entendido<br />

e muito adequado às situações»; o «baixo-relevo de D. Bernardo Coutinho<br />

prendendo el-rei de Lamo na sua corte no ano de 1589», de «curioso estudo, e boa<br />

execução» do escultor J. P. de Aragão. Em arquitectura, salienta a Casa de Campo de<br />

José da Costa Sequeira «no gosto gótico moderno» e o Palácio Real de Manuel Joaquim<br />

de Sousa. Em pintura, distingue o Mestre António Manuel da Fonseca e o seu<br />

Eneias fugindo de Tróia com seu pai dizendo que «seria vaidade [sua] tentar descrever<br />

as belezas, a concepção poética, o vivíssimo colorido, e sobre tudo a expressão do<br />

rosto de cada uma das personagens. Era já visto o assunto, mas o Sr. Fonseca deulhe<br />

novidade»; Caetano Ayres de Andrade que «escolheu um dos mais interessantes<br />

trechos da história da restauração de 1640 [...]» vencendo «uma dificuldade combinando<br />

a luz de três diversos pontos, com harmonia e suave colorido»; o Pôr-do-sol<br />

111


de André Monteiro e o Nascer do Sol de José Francisco cuja «graça, verdade, e certa<br />

ingenuidade do pincel, lhe prestam um mimo, uma beleza própria e original».<br />

O texto de Silva Túlio, de menor importância do ponto de vista crítico, limita-se<br />

a fazer a enumeração das obras presentes na mesma exposição e a referenciar os<br />

alunos premiados «pela invenção, copia e execução das obras que fizeram».<br />

O Jornal das Belas Artes. Almeida Garrett e a<br />

Exposição de 1843<br />

Almeida Garrett dedicou à exposição da Academia das Belas Artes um longo artigo,<br />

seguindo na análise crítica das obras, a mesma ordem que apresentava o «folheto<br />

distribuído na ocasião» em que decorreu a exposição. Começou pelos «três<br />

lindos esbocetos», a «Morte de Santa Teresa», a «Assunção de Nossa Senhora» e<br />

a «Ascensão de Cristo», pertencentes ao professor de desenho histórico Joaquim<br />

Rafael, refere depois os quatro retratos apresentados por Roquemont «admiráveis<br />

de semelhança, sobressaíam pela correcção do desenho, vigor do colorido, e franqueza<br />

do pincel». Os retratos do «Barão de Sarmento» e do «Marquês de Viana»<br />

que «verdadeiramente pareciam falar» denotando contudo «alguma dureza, e pouca<br />

transparência de tinta». Nos quadros de género apresentados pelo mesmo pintor,<br />

estranho à academia, Garrett distinguia os que abordavam costumes portugueses:<br />

«O Pároco da Aldeia pedindo o folar» pelo «belo efeito de óptica, um colorido<br />

vigoroso, e grande partido de claro-escuro», e «A Volta da Ronda da freguesia» pelo<br />

«grande mérito» que apresentava. Referindo-se ao primeiro destes dois quadros,<br />

Garrett afirma que Roquemont se fizera artista português: «artista português legítimo<br />

como oxalá que sempre sejam todos os nossos naturais». Deste modo sublinha<br />

as intenções programáticas do Jornal das Belas Artes, que pretendia promover e<br />

divulgar o que acreditava não existir em Portugal – um culto nacional das artes entre o<br />

povo. Este culto foi Garrett encontrar num estrangeiro acolhido pela Academia de<br />

Belas Artes. Para a pintura de história o grande nome era o do professor A. M. da<br />

Fonseca que apresentara «Eneias Salvando o pai a Anquises». Garrett não esconde<br />

o prazer que sentiu ao observar este quadro: «Fonseca [...] ousou competir com<br />

Virgílio, a eterna desesperação dos românticos, o Heitor – digo pouco – o Paládio<br />

da Ilion clássica, onde não entrará o fraudulento cavalo de seus inimigos em quanto<br />

ele existir, porque não há nem haverá Aquiles na moderna escola que possam e<br />

valham contra ele». A composição era «bela na harmonia e composição das linhas»,<br />

112


o «desenho [...] correcto» e o colorido «transparente e brilhante», as cabeças de<br />

Eneias e Crueza «cheias de expressão e gentileza». O fundo «pintado habilmente»<br />

fora sacrificado para dar realce às figuras – «Tudo esta acabado com uma perfeição<br />

que desafia e não teme o exame mais escrupuloso». Garrett congratula Fonseca e<br />

a Academia pela apresentação da «obra mais clássica e mais acabada que desde a<br />

morte de Sequeira ainda saiu da paleta portuguesa». Do mesmo pintor «A Morte<br />

de Afonso de Albuquerque», «admirável» pela composição, bem como pelo partido<br />

tirado da luz e «transparência das tintas». No seu auto-retrato, Fonseca revelava-se<br />

pelo «engenho», «execução [...] bela», «modelado» e pela «força de colorido e a<br />

sua já proverbial transparência de tinta». Segue-se o «Pôr-do-sol» e as «Ribeiras de<br />

Trancoso» do pintor de paisagem A. Monteiro, notáveis pelo seu «bonito colorido»<br />

e imperfeitos pela não «mais exacta na perspectiva aérea». Na secção da aula de<br />

desenho de arquitectura civil, destaca o «Palácio da Justiça» de João Pires da Fonte<br />

«obra de grandiosa traça no estilo romano» e a «Casa de Campo» de Costa Sequeira<br />

cujo «estilo que dizem misto, talvez mais exactamente, [é] Bárbaro». Não considera<br />

a Casa de Campo um modelo de bom gosto, apesar dos «rasgos de imaginação,<br />

elegância e magnificência» que o caracterizam. As opiniões de Garrett são muito<br />

menos entusiastas do que as que seriam expressa por Ribeiro de Sá no artigo d´O<br />

Panorama, como veremos. Garrett defende a ideia de que a arquitectura deveria<br />

conservar e reivindicar um carácter próprio e originalmente nacional, mas não<br />

explicita qual. Interessantes eram igualmente os projectos de «Teatro Nacional»<br />

apresentado por Manuel Joaquim de Sousa e o «Monumento a D. Pedro» apresentado<br />

por Lucas José dos Santos Pereira. Entre as obras dos alunos distinguidos e<br />

premiados encontravam-se João Pedro Monteiro, que recebera a medalha de ouro;<br />

Valentim José Corrêa condecorado com a ordem de accessit pelo projecto de uma<br />

Academia das Belas Artes; António Pedro Cardoso Cáceres com a medalha de prata<br />

pelas cópias «da melhor execução». Dadas as obras apresentadas pelos alunos da aula<br />

de gravura histórica e na de paisagem, Garrett não expressava qualquer esperança<br />

quanto ao seu futuro, quer pela falta de alunos, quer pela qualidade das obras apresentadas,<br />

onde apenas se destacavam as gravuras de Benjamin Conte, professor desta<br />

aula, que «anunciam a boa escola» para um «género que tanto desejamos ver mais<br />

cultivado». Quanto à aula e laboratório de escultura, Garrett criticava ferozmente<br />

as estátuas colocadas no Passeio Público e a geração que as produzira, depositando<br />

grandes esperanças na nova que se encontrava exposta na Academia. Referindo-se<br />

ao baixo-relevo de Cerqueira – «Juramento de Viriato» dizendo que «o pensamento<br />

113


[era] inquestionavelmente o mesmo do quadro de igual assunto do nosso insigne<br />

pintor Vieira Portuense, mais ampla a cena, maior o número de figuras, e mais variadas<br />

estas», mas Cerqueira devia ser aplaudido pois soube desenvolver o mesmo<br />

pensamento com habilidade. Quanto ao grupo de barro «Camões coroado pelo<br />

Génio da nação» de Assis Rodrigues, critica as vestes de Camões, mas considera-o<br />

«uma das melhores obras que se preparam para o cinzel dos seus artistas».<br />

O Panorama e Ribeiro de Sá - Exposição de 1843<br />

Os dez extensos artigos dedicados à exposição da Academia das Belas Artes de 1843<br />

subscritos por José Sebastião Ribeiro de Sá são uma excepção quanto à qualidade<br />

e reflexão dos seus conteúdos. Todos os artigos demonstram grande conhecimento<br />

dos factos artísticos e sobretudo uma tentativa salutar de compreensão da produção<br />

artística contemporânea.<br />

O primeiro artigo dedicado à exposição de 1843, mais do que uma relação jornalística<br />

sobre a exposição, revela-se uma análise da situação das belas artes em<br />

Portugal, França e Inglaterra neste período. Referindo-se à nova escola francesa de<br />

Vernet, Ingres, Decamps, Delacroix e Pradier exalta o «vigor do seu pensamento e a<br />

perfeita execução» das suas obras. Ao mencionar estes exemplos, refere que Portugal<br />

«não podia nem devia ficar indiferente a todo este grande movimento intelectual».<br />

O ano de 1836 é considerado por Ribeiro de Sá capital para o desenvolvimento<br />

das belas artes em Portugal, pela fundação da Academia das Belas Artes, cuja prova<br />

mais directa constituía a exposição em análise. No entanto, não deixa de apontar<br />

os inconvenientes do local escolhido para funcionamento da mesma Academia – o<br />

Convento de S. Francisco. No segundo artigo a Arquitectura é considerada a primeira<br />

das artes, a arte das grandes nações, dos grandes reis e dos grandes séculos,<br />

a arte que fala mais alto que a poesia, e tão alto como a história. Faz referências às<br />

obrigações do arquitecto em estudar as relações que o edifício estabelece com a<br />

sociedade contemporânea e as que estabelecerá no futuro. Nesse futuro Ribeiro de<br />

Sá vê, com esperança, o renascimento de uma nova era para a arquitectura. E para<br />

que esta não «morra», propõe: a adopção de «tipos antigos», ou a formação de um<br />

«tipo ecléctico», ou ainda, a criação de um estilo totalmente novo. Refere que todos<br />

estes três recursos se manifestaram na exposição, no entanto, constata a impossibilidade<br />

da escolha do primeiro já que a forma não pode ser independente do pensamento.<br />

Quanto à adopção do estilo gótico, expressão que considera incorrecta, sem<br />

se justificar, mas que usa para que possa ser compreendido pela generalidade dos<br />

114


leitores, lamenta que não tenha estado presente na exposição, mas não o censura<br />

porque «os motivos que mais concorreram para que este estilo, todo sentimento<br />

e mistério, não aparecesse representado na exposição, talvez sejam os mesmos que<br />

tornam impossível a formação de um tipo novo», e justifica que «o estilo gótico<br />

também não pode já ser seguido como regra geral, nem talvez nunca o deverá ser;<br />

o pensamento donde nasceu só pode e deve ter uma forma – e esta forma – é o<br />

templo». Concluindo que nenhum dos «tipos antigos» poderia ser adoptado só<br />

restava examinar o último recurso – «a formação de um estilo ecléctico», exemplo<br />

já seguido na Alemanha onde «esta questão se debate com todo o profundo estudo<br />

de que essa nação pensadora é capaz: mas com toda a variedade que a opinião<br />

pode suscitar», e onde surgem, no centro da civilização moderna, monumentos de<br />

inspiração bizantina ao mesmo tempo que monumentos da antiga Grécia. Exemplo<br />

da compreensão deste novo eclectismo é o projecto para uma Casa de Campo<br />

apresentada por José da Costa Sequeira. No terceiro artigo dedicado à exposição,<br />

Ribeiro de Sá prende-se com a protecção que se deveria consagrar aos artistas<br />

nacionais caídos na «indiferença». Revelando extrema modernidade, pretende que<br />

se diga dos arquitectos o mesmo que disse M. Schmit dos pintores e escultores no<br />

relatório que apresentou na exposição de 1843: «Au lieu de classer les peintre et<br />

sculpture d´après leur capacité manuelle, il faut les estimer en raison de la pensée<br />

qu´ils expriment». Seguindo o preceito de Pope, de observar o todo e não apenas<br />

os pequenos defeitos que uma obra possa apresentar, tendo por base a impressão<br />

sentimental que esse todo possa exercer sobre o observador, que Ribeiro de Sá faz<br />

a análise desta exposição, ou pelo menos procura fazê-lo, expressando, da seguinte<br />

maneira, o tipo de crítica que exercerá: «Deste nosso procedimento se não deve<br />

concluir que nesta simples apreciação que fazemos não só das produções arquitectónicas,<br />

mas de toda a exposição, haja indulgência ou favor: o que não há nem pode<br />

haver de modo algum, é desejo de transformar alguma inevitável falta, que porventura<br />

possa existir, em defeito indesculpável – é deste modo que desejamos que o<br />

nosso escrito seja julgado.» Também não é da forma como Bédolloerre fez a análise<br />

das produções arquitectónicas enviadas para Roma pelos pensionistas franceses. Bédolloerre,<br />

dividindo a arquitectura em duas partes, um raciocínio outra imaginação,<br />

considerou que «la science a tué l´art». Pelo contrário, Ribeiro de Sá considera que<br />

na exposição portuguesa «ciência e arte reuniram-se [...] e não se guerrearam». É<br />

neste sentido que considera a imprensa, quando se encontra à altura da sua missão e<br />

quando não é reflexo de «paixões más e de pretensões ridículas», um excelente júri<br />

115


que sempre premeia o merecimento. Esta afirmação constitui a primeira defesa por<br />

escrito de um novo género literário – a crítica de arte – que neste mesmo artigo de<br />

Ribeiro de Sá assume pela primeira vez o carácter de crónica em folhetim.<br />

No artigo seguinte, considera as belas artes como um dos poucos elementos que<br />

constituem a civilização dos povos, e sendo o seu reflexo, considera de fundamental<br />

importância a consciencialização do estado em que elas se encontram, pois só desta<br />

forma é possível ter uma ideia do país que as produziu. A forma de melhor obter<br />

essa consciencialização, são as exposições, que servem segundo as suas próprias<br />

palavras para:<br />

«mostrar se a arte é estudada com proveito, e se revela um grande progresso intelectual, ou se<br />

estacionaria manifesta sintomas de um movimento retrógrado, ou finalmente se a sua decadência<br />

denuncia o desamor ao estudo e à meditação: por consequência quando se fala de uma<br />

destas exposições é possível, e muitas vezes indispensável, o examinar qual é o valor com que<br />

esta manifestação da intelectualidade entra no grande calculo de que deve resultar a formula<br />

do futuro, que muitas vezes é mais um problema que um mistério: e reconhecer qual é a força<br />

com que se exerce o pensamento de um povo, e até que ponto chegaram os resultados do seu<br />

raciocínio; uma exposição considerada deste modo examina mais o pensamento do que a forma,<br />

depende mais da razão do que dos sentidos […] tenta descobrir a série de factos de que<br />

esse pensamento depende, e recorrendo à história encontra as verdadeiras origens do progresso<br />

ou decadência da arte, e examinando rapidamente o estado da época em que essa exposição<br />

tem lugar, faz uma justa apreciação das produções artísticas relativas às circunstancias que<br />

impedem ou auxiliam o desenvolvimento da inteligência, de modo que a opinião que a crítica<br />

deve formar de qualquer objecto de arte é sempre relativa; hoje, e mormente em Portugal não<br />

pode ser absoluta».<br />

A evolução da arte é analisada, sem novidade já que segue a ideologia da época, em<br />

termos de progresso e decadência, tendo por bitola o panorama histórico em que<br />

se desenvolve. Interessante é o conceito da relatividade da crítica, especialmente<br />

em Portugal, noção compreensível apenas se tivermos presente a sua concepção de<br />

progresso em arte, a qual pressupõe a emissão de juízos críticos consoante o período<br />

e estética vigente, ideia que justifica:<br />

«Em geral há uma opinião, quanto a nós sem fundamento, a qual considera as belas-artes<br />

como uma forma de pensamento perdida entre as ruínas do império romano, achada pelo génio<br />

116


da idade media, e morta no século XVIII: seria talvez este o lugar próprio de examinar os três<br />

pontos em que a questão se divide […] há um progresso nas belas-artes se as considerarmos<br />

em relação ao aspecto social deste século; e que este progresso no futuro será muito mais rápido<br />

e evidente. Da adopção da opinião exposta resulta que o belo ideal deixaria de ser uma das<br />

mais sublimes faculdades da alma, e que se não manifestaria por nenhum modo: o raciocínio<br />

é quase desnecessário para reconhecer o absurdo desta conclusão.»<br />

A origem da degeneração das belas artes em Portugal, não podia deixar de estar,<br />

para Ribeiro de Sá, nas grandes transformações sociais de implicação política e<br />

beligerante que durante as primeiras duas décadas do século impediram que os<br />

portugueses se: «entregassem à contemplação do belo, e às inspirações do sublime».<br />

Mas, para Ribeiro de Sá, a década de 40 era de renascimento, principalmente para a<br />

escultura e escrevia que «quem quiser julgar o que hoje é a escultura em Portugal<br />

e o que pode ser, dirija-se à Academia das Belas-Artes, e não procure em lugar público<br />

[esta] arte», porque o único lugar público onde a escultura poderia ser vista<br />

com agrado seria nos cemitérios, o que não acontecia. Crítica semelhante fora já<br />

expressa por Garrett que ferozmente criticara as estátuas colocadas no passeio público.<br />

No penúltimo artigo que consagra à exposição de 1843, dedica-se à análise<br />

dos conceitos de «forma», «execução» e de «pensamento». Considera uma heresia<br />

da arte querer imputar tudo à forma escrevendo que não podia ser «artista senão<br />

o homem de pensamento, que sente antecipadamente a sensação que as suas obras<br />

hão-de produzir no público»<br />

No último artigo, Ribeiro de Sá faz um balanço concluindo que, as obras apresentadas<br />

nesta exposição, dada a «vocação dos portugueses para as belas artes», mormente<br />

na escultura, foram positivas e que o único obstáculo para a continuação<br />

deste processo positivo continuava a ser a falta de apoio da parte do governo, que<br />

tinha a obrigação de desempenhar o papel que um verdadeiro mecenas, pois sem<br />

esse auxílio «a arte acabaria por morrer entre nós».<br />

A Crítica e os Artistas<br />

Existiam fortes relações profissionais e de amizade entre as personalidades que proferiram<br />

comentários sobre a exposição de 1843. Almeida Garrett que escreveu no<br />

Jornal das Belas Artes era o Presidente deste periódico. António Manuel da Fonseca,<br />

Vice-presidente do mesmo jornal seria alvo dos maiores elogios não só da parte de<br />

Garrett, mas também de outros literatos como Silva Túlio, Rebelo da Silva e Men-<br />

117


des Leal – secretário e colaboradores respectivamente do mesmo periódico. Aliás<br />

um ano depois, Mendes Leal dedicaria a Manuel da Fonseca um romance intitulado<br />

Um sonho na vida que narra a vivência de um jovem pintor cujo sonho era estudar<br />

em Itália com os grandes mestres, para que pudesse regressar famoso a Portugal,<br />

com o objectivo de poder proporcionar a Maria, sua amada, uma vida de felicidade<br />

e conforto. Auguste Roquemont, introdutor da pintura de género no panorama artístico<br />

nacional, e por isso mesmo alvo das atenções de alguns destes comentadores,<br />

nomeadamente de Garrett, era também colaborador no Jornal das Belas Artes, e<br />

fora-o também de Raczynski, como veremos. Além destas relações, outra sociedade<br />

albergava os interesses comuns de alguns destes literatos – a Sociedade Escolástico-<br />

Filomática. Rebelo da Silva e Ribeiro de Sá eram filiados nesta Sociedade que teve<br />

por principais preocupações o estudo da «influência da civilização na história; a<br />

reacção romântica e os efeitos da literatura no ocidente da Europa».<br />

A arte portuguesa e a crítica de arte estrangeira -<br />

O conde Athanasius Raczynski<br />

A pedido da Sociedade Artística e Científica de Berlim o Conde Athanasius Raczynski,<br />

diplomata prussiano em Portugal, preparou um extenso estudo sobre a<br />

situação das belas artes e dos monumentos portugueses. As cartas foram a forma<br />

escolhida para relatar o progresso dos trabalhos, depois reunidos em volume - Les<br />

Arts en Portugal. As 29 epístolas que o compõem possuem um conteúdo variadíssimo<br />

que vai desde a recolha de documentos relacionados com a história da arte<br />

portuguesa, à reunião de vários fragmentos do Diálogo sobre a pintura de Francisco<br />

de Holanda passando pela descrição das viagens feitas pelo conde com o intuito de<br />

visitar os principais monumentos nacionais, ou ainda os seus estudos sobre Grão<br />

Vasco que constituíram uma verdadeira revelação, contribuindo para a resolução da<br />

polémica que durante este período interessou artistas, historiadores e críticos. Aos<br />

méritos tradicionalmente atribuídos a Raczynski não podemos deixar de acrescentar<br />

os dos importantes colaboradores que lhe permitiram desenvolver o seu trabalho.<br />

Na Carta X, Raczynski recorda-os, com reconhecimento. Além de Alexandre<br />

Herculano, menciona o Visconde de Juromenha que redigiu para seu uso as Notices<br />

sur quelques artistes portugais, peintres, architects, sculpteurs, etc., refere igualmente o auxílio<br />

prestado por Vasco Pinto Balsemão, conservador da Biblioteca de Lisboa. Foi o<br />

bibliotecário quem organizou a lista de obras atribuídas a Grão Vasco que podemos<br />

118


ver descrita na Carta VII. Raczynski refere ainda Francisco Assis Rodrigues, Auguste<br />

Roquemont, entre outros.<br />

Um dos assuntos que mais interessou Raczynski foi a polémica em que estava envolto<br />

Grão Vasco. Investigou e recolheu toda a documentação possível, examinando<br />

muitas das colecções de quadros, e apoiando-se numa crítica severa, «mas justa,<br />

porque imparcial e fundada». Em Maio de 1846 um autor anónimo nas páginas<br />

da Revista Universal Lisbonense sublinhava o facto de Raczynski testemunhar com<br />

«apêndices comprovativos» todas as suas informações. O mesmo autor considerava<br />

tal «método de autenticar qualquer proposição [...] muito alemã. [...] Não<br />

conhecemos nenhum meio de certificar um enunciado de facto, senão juntar-lhe<br />

as peças todas do processo. Aquém do Reno não é isto moda, mas acima das modas<br />

está a razão, que exige provas em vez de imagens e brilho quando se trata de<br />

matérias positivas». Quanto à opinião professada por Raczynski em relação aos<br />

excessivos «elogios animadores dos nossos críticos aqueles, que se dedicam às belasartes».<br />

Julgava-os desmesurados e que em vez de produzirem o aperfeiçoamento, só<br />

podiam produzir ilusões, só mais tarde e sem remédio destruídas pelo desengano. O<br />

autor concluía o seu artigo apreciando o modo de fazer crítica de Raczynski deste<br />

modo: «A muitos parecerá talvez errado este modo de julgamento; a nós, porém<br />

que estimamos em muito a crítica, quando justa, embora seja severa, parece-nos<br />

muito acertado; porque cremos firmemente que esses elogios só tendem a produzir<br />

mediocridades, coisa que repugna com belas-artes».<br />

Embora tenha provocado animosidade entre os investigadores nacionais, as apreciações<br />

artísticas de Raczynski introduzem uma ruptura metodológica e crítica nacional.<br />

Raczynski afirma, longe do dogmatismo classicista reinantes, a subjectividade<br />

do seu gosto dizendo: «Je rends compte des mes impressions; mais je suis loin de<br />

garantir la justesse de mes jugements». A actividade historiográfica de Raczynski,<br />

assente em rigorosas bases de erudição, pautou-se pela aplicação de uma dedução<br />

argumentativa à resolução de algumas dúvidas existentes em relação à história da<br />

arte portuguesa. O seu rigor tinha por base apenas os limites das notícias disponíveis.<br />

Mas todo este esforço não sortiria qualquer efeito…. Pelo menos por enquanto.<br />

Critérios Estéticos de Avaliação -<br />

Dogmatismo Crítico<br />

A principal função da crítica é exercer juízos de valorização estética. E é às normas<br />

da arte, que durante este período, esta crítica foi buscar o seu fundamento.<br />

119


Depois de termos analisado na primeira parte deste estudo os dois ensaios dedicados<br />

à intenção e morfologia crítica, e após o estudo das reacções dos comentadores<br />

da exposição de 1843, podemos sem dúvida alguma, estabelecer uma relação entre<br />

uma teoria e uma prática desta disciplina. Se os dois primeiros ensaios sugerem<br />

orientações sobre as qualidades próprias de um verdadeiro crítico, sobre as regras<br />

para aperfeiçoar a Arte da Crítica, sobre a moral e a conduta do crítico e fornecem,<br />

ao mesmo tempo, o método que permite avaliar a qualidade de uma pintura, constatamos<br />

que as reacções críticas dos comentadores já referenciados revelam a influência<br />

directa dessa dogmatologia crítica. A natureza e a verosimilhança da representação,<br />

a verdade e uma legibilidade da obra baseadas na compreensão do assunto figurado,<br />

tornam o mimetismo, o primeiro critério na base de qualquer emissão de valor. Até<br />

a imaginação devia estar circunscrita aos limites da verosimilhança, escreveu Prunetti.<br />

O conceito de Imitação é fundamental em toda a teoria das artes (poesia, eloquência,<br />

drama, pintura, escultura, arquitectura e pintura) da Antiguidade Clássica<br />

ao Romantismo. Com este termo procurou-se definir o próprio comportamento<br />

do Homem e do artista perante os modos de representação. Em termos práticos,<br />

quando se menciona o conceito de imitação, este refere-se sempre à imitação da<br />

natureza, de um modelo ou de uma ideia. Em Platão, a imitação é vista enquanto<br />

reprodução ou cópia da verità, que apenas reside em protótipos imutáveis, isto é,<br />

na ideia. Aristóteles, recorrendo ao princípio sofista de que a imitação é inata ao<br />

Homem, não limita a imitação ao agir humano, mas estende-a aos caracteres e às<br />

paixões. Na Poética distingue entre vero e verisimile. O primeiro conceito diz respeito<br />

aos acontecimentos, à história, a factos; o segundo, ao que pode acontecer segundo<br />

as leis da verosimilhança (unidade de tempo, lugar e acção). Durante o classicismo,<br />

Bellori, citando Castelvetro, condenava a imitação icástica (as coisas tal qual<br />

existem) que é própria dos pintores que fazem retratos sem adicionar beleza, nem<br />

corrigir as «deformidades naturais». O conceito de Verdade em Pintura ou Verdade<br />

da arte é complementar dos conceitos de vero e verisimile. Vero é o real que se opõe<br />

ao que é falso, fingido e que se distingue do conceito aristotélico de verisimile que<br />

pressupõe autonomia da atitude poética ou da obra de arte figurativa em relação ao<br />

acontecimento real, ao facto ou à história. A distinção entre Vero e Verisimile comporta<br />

uma profunda modificação da teoria da mimesis. Assim a ideia de que a figura<br />

do pintor é considerada excelente quanto mais se aproxima da verdade da natureza<br />

é contradita pela oposta opinião de outros escritores de arte que reconhecem a<br />

perfeição artística da ideia de belo superior à natureza, que os grandes mestres<br />

120


elegem de vários modelos. O Ideal da Arte foi o conceito que predominou junto<br />

dos teóricos e escritores de arte do século XVIII ao início do XIX e consistia na<br />

escolha e união das coisas belas retiradas da natureza, onde essas imagens surgiam<br />

dispersas e incoerentes. Trata-se, por outras palavras, de uma investigação racional<br />

do belo ideal pelo artista. Em 1787, Mengs entendia por belo ideal, aquilo que se<br />

vê só com a imaginação e não com os olhos, e onde o ideal da pintura consiste na<br />

escolha das coisas belas da natureza depuradas de todas e quaisquer imperfeições.<br />

Os pintores que se limitam somente ao ideal, não farão mais dos que esquissos nem<br />

poderão terminar nada porque lhes falta a mecânica necessária à conclusão. Esta<br />

sistematização encerra um conceito ideal de beleza que permanece como critério<br />

básico de valorização, tão universal durante o século XIX português que se encontra<br />

consagrado nos próprios estatutos da Academia de Belas Artes de Lisboa.<br />

Voltando à exposição de 1843, podemos afirmar que a objectividade e clareza dos<br />

critérios de Pope e Prunetti foram claramente absorvidas pelos comentadores desta<br />

exposição, senão directa, indirectamente. Ribeiro de Sá cita Pope num dos seus<br />

artigos. E sabe-se que Prunetti foi uma das principais fontes de Garrett.<br />

Para além da teoria da arte como imitação da natureza, o uso de critérios fixos e<br />

indubitáveis, eminentemente técnicos, transformam a competência técnica, uma<br />

demonstração do saber fazer, na segunda norma dos critérios de avaliação judicativa.<br />

Locuções como «boa execução», «vivíssimo» ou «suave colorido» [R. da Silva];<br />

«correcção do desenho», «vigor do colorido», «franqueza do pincel», «dureza e pouca<br />

transparência», «acabado com perfeição» ou um «fundo habilmente pintado» [A.<br />

Garrett] são alguns dos muitos exemplos que podemos enunciar.<br />

A avaliação destes comentadores parte do estabelecimento, para a pintura, de antagonismo<br />

entre virtudes e defeitos existentes nas três principais divisões da pintura:<br />

invenção/expressão, desenho e colorido. É sobre estes aspectos que incidem a<br />

maioria das valorizações. Talvez o exemplo máximo, já citado, seja o que Ribeiro<br />

de Sá nos dá acerca do Santo Agostinho de Sequeira existente na Academia de Belas<br />

Artes: «[…] o melhor quadro na opinião de muitos, de quantos possuímos deste artista<br />

que em grau superior junta três dos melhores elementos que podem constituir<br />

o grande pintor – expressão, colorido e correcção de desenho».<br />

Só a partir de meados do século XIX se começa a verificar uma recusa das valorizações<br />

estéticas dogmáticas, ganhando cada vez mais importância um discurso<br />

interpretativo realizado à luz de uma axiologia de âmbito pessoal.<br />

Mas será apenas nos finais da década de cinquenta que podemos ler nas páginas de<br />

121


dois notáveis periódicos – Jornal de Belas Artes e Revista Contemporânea de Portugal<br />

e do Brasil – a constatação dessa necessidade. Em 1857, o visconde de Juromenha<br />

escrevendo sobre a situação da literatura artística nacional e referindo-se à importantíssima<br />

empresa levada a cabo por Raczynski, para a qual contribuíra cedendo<br />

apontamentos ao conde prussiano, e ainda aos «nobres esforços de Taborda e<br />

Cyrillo» no campo da história da arte, afirmava que a crítica de arte deveria ser<br />

«cortês, justa e desapaixonada». Dois anos depois, José Maria de Andrade Ferreira,<br />

referindo-se à crítica em Portugal traça um interessante panorama sobre o que<br />

considera ser a «crítica venal», a «crítica de camarilha ou de predilecção» e a «verdadeira<br />

crítica».<br />

122


Diogo Félix<br />

Artista Plástico e Professor. Conferência proferida no dia 7 de Maio de 2003.<br />

S/ título.<br />

Antes de falar sobre o meu trabalho como artista plástico, julgo ser importante<br />

referir que a minha principal actividade é exercida como professor, pois além de<br />

ser naturalmente a minha forma de vida (são poucos os que conseguem viver da<br />

arte), é também um trabalho em que se desenvolvem projectos com os alunos, cujo<br />

resultado pode vir a ser compensador.<br />

O título proposto para este seminário fornece simultaneamente dois sentidos. Um<br />

deles reflecte a abrangência temática que esta conversa pode vir a comportar, assim<br />

como a dificuldade inerente à atribuição de um título a uma coisa, a classificação<br />

à priori, o que me leva ao segundo sentido que quero referir, ou seja, a utilização<br />

do “s/ título” nas minhas obras. E isto porquê?! Porque considero que, ao conferir<br />

um título a um trabalho, ao nomear através da palavra o que já é, em si, o Nomear,<br />

direcciona o observador. E ao direccionar o observador estou a conduzi-lo a uma<br />

reinterpretação específica, o que não é, de modo algum, o meu objectivo.<br />

A finalidade do “s/ título” é exactamente libertar o sujeito da palavra, porque, se à<br />

palavra corresponde necessariamente a sua ideia, então irei aprisionar o sujeito ao<br />

sentido da palavra; e eu quero-o liberto de qualquer condicionamento, para que a<br />

própria obra se revele àquele em todas as suas possibilidades.<br />

É a linguagem da obra que me interessa. Expresso-me com e através dela. E é a<br />

leitura da obra em si, com a variável indivíduo em potência, que a faz plena de<br />

sentidos. Nomeio na própria obra, pois nomear é criar.<br />

123


(Projecção de slides relativos a diversas obras).<br />

As obras que vos trago foram concebidas utilizando diversas técnicas e materiais.<br />

Na maioria dos meus trabalhos parto do papel como suporte para desenvolver a<br />

obra na tela. É um processo talvez não muito usual, o de não pintar directamente<br />

sobre a tela. Começo a criar através do papel; despoleto reacções através do uso de<br />

materiais de algum modo “incompatíveis”, como óleos, acrílicos, tintas industriais,<br />

vernizes sintéticos e diluentes; deixo-os agir e reagir, actuando entre si e no papel,<br />

até aquele instante em que determino que “é”, e paro o processo de acção e<br />

deterioração do acaso controlado. Procedo depois à colagem, na sua totalidade ou<br />

fragmentada - em módulos, como um puzzle – e componho.<br />

Com as sobreposições de papeis, vou criando uma outra dimensão, que não é possível<br />

apenas com a tela e as tintas, já que, durante o processo de colagem e reacções<br />

aos diferentes materiais, são criadas texturas, rugosidades, reentrâncias e saliências…,<br />

que têm um objectivo e das quais tiro partido.<br />

Intervenho também desenhando, normalmente elementos pictóricos de forte carga<br />

simbólica.<br />

E de novo um composto químico de materiais com características e reacções diferentes,<br />

até que as marcas deixadas sejam as pretendidas.<br />

Noutros trabalhos utilizo escorrências de tinta, como motivos para uma escrita<br />

aparentemente espontânea. Sobreponho camadas e direcciono os percursos que a<br />

tinta irá traçar, para que, no final, a ideia de texto subjaza.<br />

Também trabalho directamente sobre a tela, mas sempre através de processos que<br />

impliquem uma acção aparentemente acidental, como um acaso; como o acaso que<br />

rege as leis do universo.<br />

Agrada-me bastante este fenómeno, pois, por um lado, ele proporciona-me um<br />

ponto de partida – manchas, marcas inscritas na tela ou no papel que são a origem,<br />

que me inspiram sentidos e uma continuidade.<br />

Por outro lado, confere à obra uma ideia de acção da Natureza. É como se o processo<br />

fosse natural. A obra nasce do espontâneo, como é espontânea a Natureza. E<br />

isso tem a ver com a concepção da obra de arte como algo que emerge. A obra<br />

surge, emerge dos fundos da inspiração do ser e depois, sim, depois há o processo<br />

de racionalização.<br />

O resultado de todo este processo com diferentes tempos e durações, reflecte, também<br />

ele, o tempo, o passar do tempo pelas coisas. A tela ganha cicatrizes, sulcos<br />

como rugas, fendas. Poeiras, vapores e fluidos como que envolvem o espaço e os<br />

124


elementos. Como antes ou depois do tempo, como na Origem ou no Devir.<br />

Como podem observar, entre a técnica (a parte física do meu trabalho) e os critérios<br />

de ordem estética e ética subjacente à concepção destas minhas obras, existe, creio,<br />

uma grande coerência. Todos confluem no mesmo sentido – a ideia de tempo, o<br />

tempo cósmico, dos ritmos do Universo, mas que é também o tempo histórico e<br />

cultural, o tempo da dimensão humana, o tempo da memória.<br />

Há um material com que também gosto muito de trabalhar e que, para mim, sintetiza<br />

um pouco essa ideia, pois considero que existe nele uma ligação estreita com o<br />

tempo, tempo-natureza e tempo-memória – a cera. E por que motivo?! Pelas suas<br />

características físicas, nomeadamente a de rápida secagem ao nível técnico, o que<br />

nos impõe um tempo de acção; e pela sua forma e essência que nos proporcionam<br />

a criação duma camada (de tempo), uma camada que se sobrepõe à anterior, sucessivamente,<br />

como que apagando e diluindo parte do que existia.<br />

Tudo isto se interrelaciona com os sinais pictóricos que depois habitam a obra.<br />

Nestes trabalhos a figura matriz / motriz é a casa, que funciona como primeiro e<br />

último elemento. Existe para lhes dar o sentido inicial, mas também para ir além<br />

dele.<br />

É o corpo, o espaço, o lugar que despoleta impressões e sensações contidas no todo<br />

da obra.<br />

Este lugar resumido às linhas mestras que definem o seu corpo e que se abre ao<br />

espaço, simultaneamente alude à sua origem e sugere a ruína.<br />

Para além de qualquer valor semântico que o elemento casa pode conter, hoje e ao<br />

longo dos tempos, interessam-me, nesta casa, diversos aspectos.<br />

É o que na obra irá assumir o humano, neste caso a civilização – o que simboliza o<br />

espaço cultural e histórico.<br />

Também a acção do tempo sobre a casa a torna ruína e aí, encontro, mais uma vez,<br />

a dicotomia tempo do antes, tempo do depois / tempo–natureza, tempo-memória.<br />

A ruína é uma coisa ambígua. É sujeita ao processo do tempo e da natureza que a<br />

invade. Contaminada pela cultura e pela história, é arte que voltou a ser natureza. É<br />

um processo de gestação e destruição de formas.<br />

Aqui, de novo, a ideia de memória, a imagem do objecto ausente, e que corresponde<br />

a um arquétipo, remete-nos para uma utopia das origens, para aquela ideia de<br />

uma certa nostalgia das origens e do paraíso perdido.<br />

É isso, mais do que o sentido da ruína como alegoria da morte. Gosto de explorar<br />

o conceito vida – morte, mas interessa-me alcançar algo para além dele.<br />

125


Tudo isto são ideias que me são inerentes e que pretendo expressar no meu trabalho.<br />

E todo o processo, por mais complexo que possa vir a ser, é efectuado tendo<br />

em mente a redução dos elementos linguísticos. Agrada-me que o resultado final<br />

transmita a imagem do que é essencial – a essência das coisas, do que é palpável e<br />

do que não é. Reduzir a linguagem ao essencial, depurar a linguagem, para alcançar<br />

uma desejada estética do silêncio.<br />

126


Elisabeth Évora Nunes<br />

Universidade Nova de Lisboa. Conferência proferida no dia 14 de Maio de 2003.<br />

Caminhos do Urbanismo em Portugal.<br />

Em primeiro lugar quero agradecer o convite à Sandra Leandro, porque, quando<br />

alguém nos convida, há qualquer coisa de gratuito. É bonita a amizade que, no fundo<br />

se estabelece, entre Alunos e Professores, ao longo de várias décadas: é que nós já<br />

nos conhecemos, assim, há alguns tempos! Em segundo lugar, porque é sempre uma<br />

ocasião de reflectirmos sobre o que é isto de viver e como é que eu profissionalmente<br />

me tenho encaminhado. Por acaso, (que coincidência!), eu tenho o apelido<br />

de Évora, da parte materna, e trabalhei, em especial de 1973 a 1979, intensamente<br />

com esta zona, estando integrada na Direcção Geral de Urbanização, depois de<br />

transitar dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Agora estou a trabalhar no Ministério<br />

do Trabalho e Segurança Social, portanto, estou a faltar ao meu serviço, para<br />

ter o gosto de voltar a Évora e estar convosco!<br />

Ora, a coisa mais importante nas Artes é o objecto de Arte em si mesmo. Não é<br />

propriamente a representação, é ele, tudo mais são representações. Como fazemos<br />

parte de um sistema coloquial, ia só lembrar-vos de dois legados que existem neste<br />

cantinho da Europa chamado Portugal, e ainda por cima aqui no Alentejo, temolos<br />

de uma maneira intensa. Um é o legado romano. Costumava dizer-se, quando<br />

alguém falava com um pastor alentejano, que se estava falando com um patrício<br />

romano, pela maneira como ele tratava de igual para igual, fosse quem fosse. Eu<br />

acho que é um legado cultural intensíssimo! Mas o grande legado romano, foinos<br />

dado por três vias: pela língua que falamos; pelo direito escrito que tem uma<br />

127


hierarquia. Quando eu vos mostro esta imagem, o que é que vocês lêem? Não é<br />

para ler as letras, é a imagem, a mancha. Isto o que é? É um Diário de República. Ora<br />

um Diário da República, é aquilo que quotidianamente, nos vem do legado romano,<br />

ou seja, exactamente uma hierarquia no ordenamento jurídico, ou seja, no Direito,<br />

e na interpretação do Direito que se chama jurisprudência. No índice do Diário<br />

da República, vocês têm uma hierarquização entre as leis e os avisos, quer dizer, lei,<br />

decreto-lei, decreto regulamentar, etc. Isso é um legado romano, que ainda hoje<br />

permanece, em contraste com o direito Visigótico, que é oralizado, que é o direito<br />

consuetudinário, ou seja, dos costumes. E nós temos uma urdidura, portanto,<br />

vivemos de duas realidades jurídicas, um direito escrito, do legado romano, e um<br />

direito consuetudinário, que nos vem dos usos e costumes e simultaneamente da<br />

jurisprudência, que é a interpretação de uma coisa escrita, ou a interpretação local.<br />

Daí as diferenças das culturas locais e regionais.<br />

O terceiro aspecto deste legado romano, é uma coisa que nos permite vir de Lisboa<br />

a Évora, numa hora e pouco, ou seja, são as vias de comunicação. Hoje as vias de<br />

comunicação, não são só as vias que nos permitem deslocar: pedonais, rodoviárias,<br />

mas são as diferentes vias de comunicação, desde uma voz agradável, ou desagradável,<br />

passando pelos meios audiovisuais. Como nós hoje temos uma proliferação,<br />

para não dizer nalguns casos, uma poluição de meios audiovisuais, vocês não se<br />

libertam “do áudio” que é a minha voz, nem “dos visuais”, que é eu estar aqui. Portanto,<br />

a coisa mais importante para um aluno de Artes Visuais, é tudo o que é apelo<br />

dos sentidos, são as nossas janelinhas de comunicação ao exterior. A audibilidade,<br />

é o único sentido que não se fecha, e reparem, há uma diferença enorme, aqui na<br />

Península Ibérica, entre a realidade portuguesa e a realidade espanhola. Em Espanha<br />

quando alguém precisa de perguntar uma indicação qualquer, diz: «-Oiga», ou seja,<br />

oiça. Nós aqui, em Portugal, dizemos, «- Olhe, por favor, é capaz de me dizer»...<br />

A primeira coisa que nós dizemos é «olhe», ao passo que em Espanha é «oiça» …<br />

Não sei se vocês reparam que os olhos podem-se fechar, e nós só vemos aquilo que<br />

quereremos, mas os ouvidos, normalmente, nunca se fecham. Mesmo a dormir, nós<br />

temos a audibilidade a funcionar, às escuras não vemos, mas às escuras ouvimos.<br />

Isto é extraordinariamente importante para um aluno de Artes Visuais em relação à<br />

realidade e à representação da realidade.<br />

Isto tem a ver com o tema «Caminhos do urbanismo», porque o que é isto do lugar<br />

romano? O que é uma urbe? Porque nós temos esse legado romano e temos uma<br />

coisa muito importante que é a maiêutica, ou seja, a arte de dar à luz, de fazer des-<br />

128


vendar. Como o Platão referia, maiêutica, é o processo de dar à luz, ou seja, tornar<br />

consciente uma coisa que estava subentendida. Portanto, nós temos uma simbiose<br />

cultural, do legado grego, em que nesse aglomerado de pessoas havia uma dimensão<br />

social, uma possibilidade de em conjunto darem à luz conceptualizações, ideias,<br />

permutas. Chamava-se polis e era um espaço onde a maiêutica se podia exercitar,<br />

ou seja, o pôr em comum da potencialidade ao acto. O legado romano, é aquilo<br />

que está estabelecido de alguma maneira, e daí a Urbe, que é uma estrutura para<br />

organizar essa aplicação jurídica, do aparelho de Estado no território.<br />

Nós temos aqui um problema muito importante, que é a noção de escala. Todos nós<br />

temos a nossa escala própria, devemos descobri-la na tal linha da maiêutica. Isto é<br />

extremamente importante para o urbanismo. Porque o urbanismo é exactamente<br />

a aplicabilidade jurídica num território para o bem comum e para o serviço de<br />

uma comunidade, e dessa comunidade relacionada com a outra comunidade. Este<br />

conceito aplicado no território deu a divisão administrativa: desde as províncias<br />

romanas, aos distritos romanos, aos concelhos. O sentido de concelho, é a territorialidade,<br />

e o que é que está a gerir um concelho? Uma Câmara Municipal. Não é<br />

por acaso que nós dizemos, a edilidade. Quem era o Edil na hierarquia das funções<br />

romanas? Edilidade, ou municipalidade, quer dizer, que quem manda é tal. Com<br />

certeza já se deram conta, dos chamados Planos Directores Municipais: um diploma<br />

administrativo saído em decreto-lei, que refere a capacidade de desenvolvimento<br />

daquele concelho, e como se compatibiliza com os outros concelhos à volta, com a<br />

região onde está integrada. Não só na linha do desenvolvimento conceptual, económico,<br />

social, cultural, mas baseado, por exemplo, nas riquezas naturais. E o que<br />

é que vocês encontram num Plano Director Municipal? Um regulamento que é<br />

de direito escrito; encontram a representação do território em desenho, através de<br />

um mapa de síntese onde se desenharam os perímetros urbanos, ou seja, até aqui<br />

é urbano, a partir daqui é periurbano e depois é rural. Simultaneamente diz que<br />

esse espaço, entre perímetros urbanos, tem esta ou aquela qualidade, ou seja, é um<br />

terreno bom para a agricultura, que se designa como RAN, que significa Reserva<br />

Agrícola Nacional. Os terrenos de boa qualidade para a agricultura, não devem ser<br />

ocupados para outra função. As terras mais ricas que vocês têm aqui no Alentejo<br />

são os barros à volta de Beja. Nunca deveria ser autorizado fazerem construções<br />

nessas terras. Em qualquer território, nós temos equilíbrios de ecossistemas. Neste<br />

ano em que estamos a celebrar o Ano Internacional da Água, é fundamental termos<br />

a noção equilibrada do seu uso. Temos águas superiores e águas inferiores, desde o<br />

129


Génesis que isso vem referido. As águas superiores são as que estão nas nuvens, que<br />

depois se convertem em chuva, com determinadas condições de arrefecimento. As<br />

águas do território, são os rios, mas temos também os lençóis freáticos, as águas de<br />

profundidade que nós não vemos. Porque é que um poço é eficaz neste sítio, e não<br />

naquele? Se apanhou o lençol freático com um determinado nível de inclinação,<br />

das camadas geomorfológicas, pois as águas tendem para o equilíbrio. Isso vem<br />

mapificado na REN, ou seja, na Reserva Ecológica Nacional. Portanto, nós temos,<br />

num diploma administrativo, que vem em Diário de República, o regulamento, a<br />

planta de síntese do desenvolvimento da zona que integra a RAN e os assentamentos<br />

urbanos, ou seja, o sítio onde vive a população em aglomerados. Neste momento,<br />

nós temos trezentos e tantos concelhos em Portugal Continental e todos eles<br />

têm os chamados, PDM’s. Os Planos Directores Municipais foram uma imposição<br />

da Europa, sobre o planeamento, foi uma pressão económica, em relação à realidade<br />

potencial. Estes planos têm um horizonte temporal de dez anos, ao fim de dez<br />

anos, no máximo, têm de ser revistos. Neles há todo um processo de participação,<br />

quer da população, quer de quem é decisor político, a autarquia. A base é a matriz<br />

romana dos concelhos, que ainda continua a ser um alicerce territorial. Estou a<br />

falar disto, porque, na urbe, o tal sítio onde se localizam as pessoas nas suas relações<br />

sociais, existe a cidade dos vivos, e a cidade dos mortos. Como é que se chama a<br />

cidade dos mortos? Necrópole. Temos testemunhos, desde a pré-história, de como<br />

é que os vivos contactam com o outro estado: o estado de decomposição da matéria<br />

orgânica, com conceptualização de eternidade, ou não eternidade. O sentido<br />

de procriação, vem exactamente do desejo de eternidade dos vivos, de tudo o que<br />

é ser vivo, portanto, temos também de governar a relação entre as necrópoles e as<br />

urbes. Não é por acaso que na tradição mediterrânica, normalmente, a necrópole<br />

é fora do aglomerado.<br />

Neste momento, temos muitos planos a serem revistos. No dia 22, vou estar num<br />

workshop relacionado com a revisão do PDM de Lisboa. Vocês aqui em Évora, na<br />

medida em que estão a fazer o curso há quatro anos, já viram algumas transformações<br />

nesta cidade: as ruas que passaram a pedonais, entre outras coisas. Portanto, um<br />

organismo vivo, como uma cidade, como um país, tem um ritmo, mas é um ritmo<br />

diferente do da nossa vida. Isto tem a ver com o governo do Cronos, o que é o<br />

Cronos? Uma figura mitológica, que personifica a noção de tempo. No urbanismo<br />

há a confluência do tempo e do espaço, vivido pelas comunidades, expresso de<br />

acordo com os valores culturais que são implementados por um sentido adminis-<br />

130


trativo, como é que isso é corporizado pelo poder político, pelo poder económico,<br />

pelo poder administrativo, pelo poder local, pela vivência e o direito de cidadania,<br />

pela expressão de opiniões.<br />

Neste momento, vocês vão receber duas fotocópias, uma é a cronologia de reinados<br />

da monarquia portuguesa, que pertence exactamente às necrópoles, e outra<br />

coisa é a cronologia dos presidentes da república portuguesa, que a maior parte<br />

deles já pertencem também à necrópole, excepto o Jorge Sampaio, Mário Soares<br />

e Ramalho Eanes. Também se vai distribuir um mapa. Cada época histórica usou<br />

para com os seus mortos, vários sistemas, ou o sistema de cremação, ou o sistema de<br />

inumação, deixando que organicamente se desenvolva o ritmo ecológico, o tal sistema<br />

do ecossistema a que nós pertencemos, ou ao contrário, acelerar a compressão<br />

rápida para tudo se transformar em gás. Mas o tal desejo de ficar, deu origem aos<br />

monumentos, que é qualquer coisa que se relaciona com a memória, por isso têm as<br />

sepulturas. Vocês sabem, que no século XIX passou a ser proibido o enterramento<br />

nas igrejas, que são um espaço sagrado, um espaço de ligação entre o natural e o<br />

sobrenatural. Houve uma série de conflitos por causa dessa proibição e isso tem a<br />

ver com o urbanismo, porque é a regência do tempo e do espaço dos vivos e dos<br />

mortos.<br />

Vocês são de artes e convém informar-vos que saiu este livro chamado O Panteão<br />

Régio e o que é um panteão? Vocês sabem o que é o Pantocrator? Na representação<br />

da figura de Cristo, que é simultaneamente homem e Deus, portanto, participa<br />

das duas naturezas, quando é representado como Pantocrator, significa aquele que<br />

tem autoridade. Panteão é o sítio onde permanece essa relação de continuidade.<br />

O panteão régio, não se chama necrópole dos reis, mas é no fundo uma necrópole<br />

específica. E vocês conhecem os túmulos mais bonitos de todos, que são exactamente<br />

os de dois que se amaram muito, os túmulos de D. Pedro e de D. Inês. Este<br />

livro é de alguém que também foi meu aluno, o Doutor José Custódio Vieira da<br />

Silva, de quem também a Sandra Leandro foi aluna, portanto, são três gerações, é<br />

uma espécie da avozinha, filho e netinha, e vocês são bisnetos, é exactamente essa<br />

relação de continuidade que eu vos falei do Cronos, do tempo. E porque é que eu<br />

chamei a atenção para isto? Para chamar a atenção dos testamentos, que é a última<br />

coisa de testemunho que se quer deixar para outra geração, em relação à vontade<br />

expressa de cada um. O que é que isto tem a ver com os PDM’s? No fundo, o plano<br />

de desenvolvimento tenta passar para a nova geração, a sua memória, o mais bonito<br />

e o melhor que é possível. Eu fiz um trabalhinho que não acabei, que foi pegar nes-<br />

131


te livro, e fazer o que era o planeamento a partir dos testemunhos que aqui vêem<br />

e das datas de nascimento e de morte, o local onde eles fizeram os testamentos e<br />

o que foi conseguido ou não conseguido. Estava previsto serem sepultados em tal<br />

sítio, mas foram-no noutro. Vocês já ouviram falar de uma galilé? Na igreja de São<br />

Francisco de Évora podem ver uma galilé. Estas sepulturas régias estavam previstas<br />

para a galilé de Alcobaça até D. Dinis, e porquê Alcobaça? Alcobaça foi um couto de<br />

homiziados, portanto, uma terra que foi doada àqueles que cometeram crimes públicos<br />

ficando ao abrigo da justiça régia. Trabalham ali, e estavam fixos àquela terra.<br />

Nasceram catorze núcleos naquele couto de quarenta e quatro mil hectares de área<br />

e porquê naquela zona? Porque ali se tinham instalado os monges cistercienses que<br />

traziam a renovação do ideal do ora et labora [reza e trabalha] dos Beneditinos. São<br />

Bento e Santa Escolástica foram muito importantes para a construção da Europa<br />

e no século X houve uma reformulação, primeiro a reformulação clunicense, e<br />

depois a reformulação cisterciense. Em Alcobaça os cistercienses fixaram-se num<br />

terreno rico em água, e em minérios de ferro, para quê? Para poderem fazer as alfaias<br />

agrícolas, para poderem trabalhar a terra, porque a riqueza de base era a terra.<br />

E depois fazem toda uma arquitectura lindíssima no ordenamento da água. Há<br />

um Professor desta Universidade, o Professor Virgolino Jorge, que tem estudado,<br />

exactamente, a arquitectura da água nos conventos cistercienses. Vocês conhecem<br />

os Professores da casa, e o que cada um produz em cada área de conhecimento,<br />

porque a tal capacidade de dar à luz, é dar à luz com as luzes que temos. E se temos<br />

focos diferentes, de cores diferentes, podemos aproveitar esses focos todos no nosso<br />

desenvolvimento. Tal como um concelho está relacionado com outro concelho, por<br />

isso é que há os chamados planos das áreas territoriais!<br />

O que é um plano de área territorial? É aquele que organiza os diversos concelhos,<br />

com as confluências que esses concelhos têm. Vocês já ouviram falar da área metropolitana<br />

de Lisboa. O que é essa coisa de metropolitana? Metrópole, metropolis,<br />

portanto, várias polis agregadas com afinidades entre si. Independentemente da tal<br />

unidade concelhia dos PDM’s, há os planos das áreas metropolitanas que são um<br />

pouco anteriores. No planeamento, tudo é a tal urdidura da relação, não só entre<br />

eles, como entre os diversos níveis de decisão, económica, política, o sentido de desenvolvimento<br />

cultural, etc. Desde 1985, foi criada a chamada recuperação urbana,<br />

que deu origem a estas classificações internacionais de património mundial. Ou<br />

seja, uma coisa tão original e tão lúdica, que pode ser valorada, já não numa escala<br />

local, mas em relação à comunidade e Évora está classificada como património<br />

132


mundial, como sabem.<br />

O ordenamento, é a maneira de pensar as correlações que há entre esses territórios.<br />

Vocês, podem beneficiar dos programas Erasmus, de se formarem não só numa<br />

Universidade portuguesa, mas usufruírem dos graus que podem ser dados num<br />

estabelecimento estrangeiro, o que é uma mais-valia. Ora, também há redes de<br />

cidades geminadas, há redes de desenvolvimento e de aplicação e há convenções<br />

internacionais às quais aderimos. Entre parêntesis, o dia 18 de Abril é o dia dos<br />

monumentos e sítios, e este ano é dedicado a duas vertentes: uma é a vertente da<br />

água, como vimos, outra é a vertente da deficiência, dos deficientes. Deficientes em<br />

relação àquilo que é considerado normalidade e o que é ser normal? Eu não sei<br />

muito bem o que é, todos nós somos um caso especial!<br />

Porque é que se chama ordenamento? A diferença entre urbanismo e ordenamento,<br />

é que o urbanismo visa localmente a corporização do sentido, do direito administrativo<br />

daquele território; o ordenamento é aquele que entra em conta com<br />

a interligação, a tal urdidura sobre o terreno. Quando os PDM’s estavam a ser<br />

desenvolvidos no terreno, eram experiências muito ricas, interdisciplinares, entre<br />

os representantes dos diversos ministérios, entre as forças locais, entre as Juntas de<br />

Freguesia. Eram feitos por uma equipa técnica que tinha uma encomenda de uma<br />

Câmara, mas, durante a realização era um processo de raciocínio e de pensamento,<br />

de opções em relação aos desenvolvimentos da agricultura, da economia, da escolaridade,<br />

até se elaborar uma síntese que era posta a discussão pública. Recolhiam-se<br />

os diversos pareceres das forças vivas locais e depois discutia-se na Assembleia Municipal.<br />

A Assembleia Municipal é quem aprovava o plano, o Governo só rectificava.<br />

Há diferenças no tratamento do território: numa zona em que a agricultura é muito<br />

importante, o peso do Ministério da Agricultura era muito maior do que numa<br />

zona em que o comércio é a actividade principal.<br />

Nós, na Universidade Nova, realizámos um Seminário sobre “Pensar o ordenamento<br />

do território”, que só sete anos depois, um número simbólico, conseguimos<br />

publicar. Eu também tenho para vos distribuir as fotocópias da capa, primeiro que<br />

tudo para reconhecerem. O Seminário funcionou em sessões semanais durante um<br />

mês e tal, e fez-se, no fim, uma sessão de encerramento com mesa redonda. Nela<br />

tivemos um dos melhores urbanistas portugueses, que foi meu Professor, na Escola<br />

de Belas-Artes, e depois também foi no Curso de Planeamento Regional e Urbano.<br />

É um alentejano de Vila Viçosa: o Nuno Portas, o nome diz-vos alguma coisa?<br />

Tem um irmão que é agrónomo, que é o Carlos Portas, Professor de Agronomia.<br />

133


O Nuno Portas foi das pessoas que mais problematizou o Urbanismo e teve muita<br />

responsabilidade como Secretário de Estado no pós-25 de Abril.<br />

E agora conto uma coisa que sucedeu aqui mesmo com Évora, quando se deu o 25<br />

de Abril. Havia um plano muito antigo de um arquitecto chamado E. de Groër, que<br />

era russo, mas radicado em França. Ele e o filho, o Etiénne e o Nikita, vieram para<br />

Portugal a convite da governação portuguesa, para estudarem as principais cidades<br />

portuguesas. Em Évora tivemos essa conceptualização primeira, desses arquitectos<br />

que trabalharam na década de quarenta em Portugal.<br />

Ora, existem três tipos de conceptualizações de cidades: a cidade pragmática, ou<br />

seja, regulada com uma estrutura baseada nas tais urbes e polis que vinham da Antiguidade,<br />

no sistema hipodâmico, ou no sistema radial, etc. Temos a cidade jardim,<br />

na linha inglesa, em que o campo pode entrar em diálogo com a cidade e a vantagem<br />

desses modelos para as grandes urbes, aliviando o desenvolvimento industrial.<br />

E por fim a chamada cidade radiosa, radiosa no sentido de cidade feliz. Estes são,<br />

essencialmente, os três tipos de cidade que se desenvolvem de 1934 a 1954. Vocês,<br />

têm isto muito bem estudado pela arquitecta, Margarida Sousa Lobo, num trabalho<br />

intitulado “Planos de urbanização na época de Duarte Pacheco”.<br />

Durante alguns anos Duarte Pacheco foi simultaneamente Ministro das Obras Públicas<br />

e presidente da Câmara Municipal de Lisboa, no tempo de Salazar. Portanto,<br />

pôde aplicar a Lisboa, alguns princípios do que foi o conceito de desenvolvimento<br />

urbano. Estão muito bem estudados e vocês têm cerca de trezentos planos que foram<br />

realizados exactamente nesses vinte anos de 34 a 54. São concretamente 265<br />

planos, de que se conhecem a autoria.<br />

Desde 1865, que são criados os chamados Planos Gerais de Melhoramentos, numa<br />

legislação escrita. Em 1865 dá-se a organização dos ministérios presididos pelo duque<br />

de Loulé, englobando as diversas tendências dominantes na altura, que era dos<br />

históricos e dos regeneradores, duas tendências muito intensas. Fez-se então uma<br />

reforma fiscal, em 1867, e não esqueçam que o dinheiro está sempre relacionado<br />

com política e com o desenvolvimento. Sempre que nós vemos planos, há com<br />

certeza, diplomas administrativos e decisões políticas que vão justificar os planos,<br />

e ao mesmo tempo, os planos também vão produzir um dinamismo diferente na<br />

apropriação desse terreno e desse território.<br />

A primeira legislação é de 1865, é quando o urbanismo, como disciplina autónoma<br />

surge em Portugal, com iniciação e criação dos Planos Gerais de Melhoramentos<br />

que vão vigorar, e todos eles têm uma intenção política, até 1934. Melhoramentos<br />

134


em relação às condições de higiene, aos esgotos, às instalações de água, etc. Vocês sabem<br />

que em 1964, havia algumas aldeias e vilas que ainda não tinham rede pública<br />

de água, não havia sequer ainda conceito de equipamento, havia os melhoramentos<br />

e havia equipamento. Na própria Direcção Geral, nós tínhamos a Direcção dos<br />

Melhoramento Urbanos.<br />

Depois a conceptualização a seguir, foi a de embelezamento, e não é por acaso que<br />

na cidade de Coimbra, se destruiu toda a Alta, porque eram considerados edifícios<br />

insalubres e então fizeram, com um pensamento político um bocadinho impositivo,<br />

as cidades universitárias, os estádios, as casas dos cantoneiros e as escolas primárias.<br />

Mesmo nas empresas públicas, como eram os Correios, os Serviços, houve uma<br />

normalização dos equipamentos.<br />

Temos balizas cronológicas muito interessantes: em 1944, surge uma regulamentação<br />

sobre os planos, ou seja, há uma disposição das ruas, dos edifícios, dos jardins,<br />

dos parques, há uma relação entre a volumetria das construções, há simultaneamente<br />

uma modelística sobre o visual do edifício, o prédio de rendimento. Refiro-me<br />

aos chamados modelos fixos e às relações de volumetria das construções, há uma<br />

diferença entre o plano de imagem e o plano de gestão. O plano de imagem típico<br />

destas duas décadas, de 34 a 54, é marcado pelos chamados planos de Duarte Pacheco,<br />

de uma coerência que se manifestou nas Obras Públicas. Não é por acaso que o<br />

governo gosta sempre de construir qualquer coisa de ostentação e marca pessoal. O<br />

Centro Cultural de Belém foi feito a correr para a primeira presidência de Portugal<br />

na Comunidade Europeia. Do projecto inicial só estão construídos três módulos, o<br />

centro de congressos, o centro de espectáculos, e enfim, faltam dois módulos que<br />

eram a parte da instalação hoteleira, e a parte comercial. Isto é a propósito de um<br />

plano imagem dos edifícios ostentatórios, espelho de um poder político e de um<br />

exercício de poder.<br />

Depois de 1974, voltamos a ter um proliferar do que é o poder local, com a tradição<br />

que nós tínhamos da autonomia das municipalidades durante todo o período do<br />

Liberalismo. Mas voltemos a Évora. Quando houve a tentativa de industrialização<br />

de Portugal, no início das décadas de sessenta, setenta, sabem onde é que estava<br />

previsto um parque industrial aqui para Évora? Na zona Norte, e o que é que acontecia?<br />

Havia uma série de quintas aqui à volta, que tinham os seus trabalhadores<br />

rurais. Entretanto, tinha havido uma ascensão social, os filhos já tinham construído<br />

mais habitações. Quando o E. de Groër trabalhou aqui nas décadas de quarenta,<br />

cinquenta, já encontrou dezassete bairros clandestinos nessa ocasião. Clandestinas,<br />

135


isto é, eram antigas quintas que afinal já não eram quintas, mas que os trabalhadores<br />

que lá viviam continuavam a ocupar. O plano traçado foi um plano imagem, um<br />

plano estático, não tinha dinamismo no que iria ser o ordenamento do território.<br />

Houve uma certa desarticulação, entre o que estava previsto e o que existia. A grande<br />

diferença, de antes e depois do 25 de Abril, é a estaticidade das instituições ou o<br />

dinamismo delas, ou a tentativa de dinamismo, mesmo que seja por um crescimento<br />

um bocado perturbado, quando se dão as rupturas. Ora o que sucede, é que passaram<br />

a existir os chamados planos de gestão.<br />

A história de Évora, passou-me toda pelas mãos, e além das mãos, eu tenho aqui<br />

um testemunho, porque não havia computadores. Vocês sabem que o distrito tem<br />

catorze concelhos, (diga-se de passagem, que tudo isto ia para o lixo). Quando saí<br />

da Direcção Geral, consegui que não deitassem fora… A seguir ao plano do E. de<br />

Groër, temos um plano extraordinário do arquitecto Conceição Silva, que propôs<br />

um plano de urbanização, de toda a urbe, integrando os tais bairros clandestinos,<br />

que nasceram nas tais herdades e entretanto, havia uma expectativa de fixação de<br />

população na tal área onde estava prevista a zona industrial.<br />

Portanto, nós temos a área territorial de cada um dos catorze concelhos que constituem<br />

o distrito: Alandroal, Arraiolos, Borba, Estremoz, Évora, Montemor-o-Novo,<br />

Mora, Mourão, Portel, Redondo, Reguengos de Monsaraz, Vendas Novas, Viana do<br />

Alentejo e Vila Viçosa. Isto são os diversos concelhos que constituem o distrito, ora<br />

o que é que nós aqui temos? Temos, uma classificação geral, chamada, código geográfico<br />

nacional, numérico, o nome do concelho, a área que cada concelho tem, o<br />

número de freguesias, e a população presente em 1970, não só do concelho, como<br />

da sede da freguesia, porque a sede da freguesia, é como que o coração, o pulsar<br />

da comunidade. Cada processo tem, o PDM, os planos de urbanização, o nome de<br />

cada uma das pessoas que trabalharam no plano. Todo um esquema: a função dos<br />

diversos organismos que tinham de opinar sobre os planos de urbanização, os pareceres<br />

técnicos do Conselho Superior das Obras Públicas, que era o órgão máximo<br />

do Ministério das Obras Públicas, que aprovava ou não o plano. Era de acordo com<br />

essa aprovação, que eram subsidiados parcial, ou totalmente, os equipamentos, por<br />

exemplo, a rede de electricidade. A Junta Autónoma de Estradas era autónoma, mas<br />

tinha que se integrar nos outros planos.<br />

Depois de desenvolvido o plano geral de urbanização, é necessário fazer os planos<br />

parciais. Em Évora quando se deu o 25 de Abril, estava em Tribunal Administrativo,<br />

o gabinete do arquitecto Conceição Silva, que na altura tinha feito o plano. Tinha<br />

136


ecebido pareceres negativos, porque para integrar os terrenos à volta, Conceição<br />

Silva criou uma espécie de outra muralha com edifícios de onze andares, ou sete<br />

andares, o que não estava de acordo com o equilíbrio da cidade de Évora. Ele queria<br />

aplicar o conceito desenvolvimentista de arranha-céus, foi por isso que não foi<br />

aceite. Normalmente, quando se assinava o contracto do plano geral, as Câmaras<br />

permitiam que se assinassem os planos parciais, ou os planos de pormenor. A grande<br />

diferença entre o chamado plano de pormenor e o de loteamento, é que o primeiro<br />

é encomendado pela Câmara, o segundo é encomendado por um particular, e esse<br />

particular tem de pagar a possibilidade de mudar a função de terreno rural, para<br />

urbano. Ou seja, pagar as infra-estruturas, o que são as infra-estruturas? São a rede<br />

viária, os esgotos, a água, a electricidade. Ora, muitos desses bairros clandestinos<br />

eram quintas que viviam o seu ancestral equilíbrio ecológico com os poços, com as<br />

noras, etc. Mas quando começou a viver muita gente ali, passaram a não ter condições<br />

de habitabilidade e o plano teoricamente iria fazer isso.<br />

Évora possui ainda os edifícios classificados. O monumento como peça única tem<br />

à volta a área de protecção. Évora tem uma muralha, quer expressa, quer integrada<br />

nalguns edifícios. Entre dois eixos, que é a estrada que vai para Lisboa, e a estrada<br />

que vai para Arraiolos, foi desenvolvido, na própria Direcção Geral, o chamado<br />

plano de estrutura. Ou seja, a zona chamada da Quinta da Malagueira, que não é só<br />

aquele plano do arquitecto Siza Vieira, foi feito na Direcção Geral de Urbanização,<br />

que passou a chamar-se de Planeamento Urbanístico. Um plano de estrutura, que<br />

referia as pré-existências: cinco bairros clandestinos, um colégio de religiosas, as<br />

Doroteias, uma quinta lindíssima que era a da Malagueira, e portanto, era uma zona<br />

que tinha um dinamismo próprio. Para desenvencilhar o problema o Secretário de<br />

Estado pós-25 de Abril, o arquitecto Nuno Portas, que conhecia muito bem a zona,<br />

fez um despacho, dizendo: «-faça-se». Eu trabalhei nesse plano juntamente com o<br />

arquitecto Campos Matos, e fez-se o plano a Oeste de Évora, para desembaraçar<br />

uma situação. Nós na Direcção Geral, tínhamos uma ideia de equilíbrio, que é o<br />

que vai dar origem depois à chamada recuperação urbana. Cria-se aqui um plano a<br />

Oeste de Évora, é dado à Câmara, para ela poder geri-lo rapidamente. Nessa altura,<br />

como o arquitecto Álvaro Siza estava sem trabalho, tinha estado lá fora e ganhando<br />

uma série de prémios, encomendaram-lhe a Malagueira, que não está toda feita, e<br />

que, foi muito mal recebida na altura. Já agora chamo a atenção porque há uma tese<br />

muito interessante, defendida em Coimbra pelo arquitecto Bandeirinha, que é o<br />

levantamento dessas experiências pós 25 de Abril, sobre o dinamismo de cada sítio,<br />

137


não dos tais planos imagem, dos planos de gestão, do “paquiderme” como processo<br />

burocrático a funcionar, mas das “lagartixazinhas” que funcionavam, ou seja, da<br />

rapidez com que era possível dar resposta às necessidades da vida.<br />

Entretanto, é encomendado a outro gabinete do arquitecto Bruno Soares, um novo<br />

plano de urbanização, dada a especificidade de Évora. É preciso não esquecer que<br />

na Europa houve o chamado renascimento das cidades. Nós entramos num plano<br />

de recuperação urbana, que cria os Gabinetes Técnicos Locais, para as Câmaras.<br />

E sobre os centros históricos, os primeiros que foram criados, ao abrigo de duas<br />

portarias foram o da Mouraria e o de Alfama em Lisboa, e por analogia, é criado<br />

para o país todo, na Secretaria de Estado, nessa altura de Habitação e Urbanismo,<br />

o programa de recuperação urbana, a que cada Câmara se candidatava. Em Évora<br />

houve um Gabinete Técnico Local a trabalhar na zona antiga. Independente do<br />

tal plano que estava a ser feito e do plano de pormenor e da participação local, é<br />

quando se faz todo o plano de recuperação e nesta altura viu-se que dentro das<br />

muralhas Évora tinha uma qualidade enorme. Tinha que se disciplinar o trânsito,<br />

tinha que se hierarquizar as funções, tinha que se dar condições de habitabilidade.<br />

Simultaneamente foi criado aqui na Universidade o curso de Arquitectura Paisagista,<br />

que foi dando conta da qualidade urbanística das quintinhas pequeninas que têm<br />

os jardins, de frescos, de limoeiros, etc. A arquitecta Aurora Carapinha, que pertence<br />

ao primeiro curso criado aqui, de que o arquitecto paisagista Gonçalo Ribeiro<br />

Telles foi o fundador, estudou isso. Foi possível coordenar esse sentido da qualidade<br />

do edificado, com a qualidade do natural integrado. Tivemos um trabalho muito<br />

interessante na Direcção Geral: um plano de estudos em que Évora foi dividida a<br />

Norte e a Sul. Dois colegas meus, o Campos Matos e o Cabeça Padrão, fizeram<br />

o levantamento da qualidade urbana dos edifícios de acompanhamento, não já na<br />

linha dos monumentos. E eu que estava numa secção de gestão urbanística, o tal<br />

plano de gestão, coordenando os interesses dos particulares com os interesses individuais,<br />

trabalhando, não aqui, localmente, mas no órgão central. A Évora que vocês<br />

vêem, é uma Évora dinâmica em transformação, em processo, que é o tal processo<br />

mental, muito mais do que a tal imagem, ou a planta, ou só a gestão, gestão corrente.<br />

Portanto, o planeamento é isso tudo, começou, como digo em 1865 pelos tais<br />

melhoramentos, e o que é melhorar? O que é o critério de melhoria? E o que é<br />

o critério de qualidade de vida? Qual é o sentido de qualidade que cada um tem?<br />

Eu agora vou-me calar e vou-vos perguntar! Não estou a fazer a história do urbanismo,<br />

tentei dar-vos o dinamismo do que é fundamental nos tais caminhos que<br />

138


se traçam e no entrecruzamento. Há uma coisa que é muito importante: tal como<br />

no ambiente se faz uma educação ambiental, desde a pré-primária, e por aí fora,<br />

também era relevante que entre nós se criasse uma consciência de planeamento<br />

urbano desde a infância. O que é um plano? O plano é uma utopia congregando<br />

as vontades para ser adaptado à realidade minuto a minuto, “fazendo agulha” na<br />

interpretação de um fazer não estático. É a tal diferença entre a jurisdição e a regra:<br />

o que está regulamentado e como é que isso se aplica. Portanto, o planeamento é<br />

um processo interactivo de actuação. Penso que estarão com mais dúvidas do que<br />

certezas, e eu agora calo-me um bocadinho e pergunto, se querem fazer perguntas.<br />

Que perguntas têm a fazer? Qual é a relação entre um espaço interno e um espaço<br />

externo numa cidade? O que é que é público, e o que é privado? O que é o sentido<br />

que cada comunidade tem da privacidade? Vocês vêem que as casas no Alentejo, ou<br />

aliás, no mundo árabe, são voltadas para dentro, o pátio interior tem muita importância,<br />

com o seu ajardinamento. Cada cidade tem os seus sons, o seu perfume. Não<br />

sei se vocês tiveram oportunidade de perceber que, este ano, a Engenharia fazia<br />

anos como o ramo de conhecimento. Fez-se uma grande exposição, na Cordoaria,<br />

em Lisboa, uma mostra espantosa sobre a evolução da engenharia em Portugal. Foi<br />

organizada através de pivots, por exemplo, o primeiro pivot, era à volta do Ezequiel,<br />

um engenheiro formado no Porto, que pela primeira vez preconizou para a zona<br />

da Invicta um plano de área territorial.<br />

O exercício que eu vos proponho é a descoberta da visualidade de uma cidade. O<br />

que é a estrutura em relação às periferias e aos campos? Ainda hoje fiquei felicíssima<br />

porque está lindíssimo o arranjo do posto de turismo: mantiveram o edifício<br />

como era, e colocaram os equipamentos, mas desligados, é uma integração por<br />

contraste equilibrado com a escala do próprio edifício. Convido-vos a todos que<br />

estão cá, a passarem pelo posto de turismo, e fazerem uma análise, do que está feito,<br />

como é que num espaço de fruição, de informação, é dada a relação entre um interior<br />

existente e o exterior.<br />

Reparem também que a Quinta da Malagueira, aquele núcleo com características<br />

diferentes, gerou um processo de viver, de relação diferente com o bairro do Fundo<br />

de Fomento de Habitação, os edifícios altos que ainda lá estão.<br />

Ora o que me pediram foi o caminho do urbanismo em Portugal, e eu acho que<br />

fiz ao contrário, comecei por uma realidade que vocês tinham, apoiando-me nela<br />

e na tal maiêusis, na tal capacidade de tornar consciente o que era inconsciente, da<br />

nossa auto-formação, em relação ao legado romano e grego que nós recebemos,<br />

139


implantado nesta localidade, nestes séculos com regimentos políticos diferentes e<br />

com dinamismos diferentes. As Artes têm sempre qualquer coisa de futurologia,<br />

estão à frente na linha da sensibilidade, na linha daquilo que ainda há bocado vocês<br />

contaram, do que aconteceu com as gerberas do vosso colega, com a leitura, ou<br />

não leitura da realidade que ele tentou comunicar 1 . E isto que eu vos estou a falar,<br />

integra-se no quotidiano, é o homem a dizer: «- Vou gerir o meu dia».<br />

Queria que vocês fixassem os diferentes períodos: o primeiro de 1865 a 1934, com<br />

os melhoramentos urbanos; o segundo de 1934 a 1944, em que há uma regulamentação<br />

em que o plano já deixa de ser posto à consideração pública, está mais<br />

relacionado com as decisões políticas; dá-se a ruptura de 1974, fazem-se experiências<br />

diferentes, integra-se o que era considerado clandestino, renova-se, valoriza-se,<br />

dinamiza-se e usufrui-se.<br />

Estando a falar-vos destes dinamismos estou a falar-vos de memória, que é um dos<br />

sentidos internos. Nós falamos muito dos sentidos externos, mas fala-se pouco dos<br />

sentidos internos. «- É uma das coisas que eu costumo falar, aos meus alunos do<br />

primeiro ano em Comunicação Visual» [Intervenção de Sandra Leandro]. Ora, um<br />

dos sentidos internos é exactamente a memória. A memória para termos referências,<br />

para podermos criar, porque ninguém cria do nada, é necessário ter uma base<br />

material, instrumental, etc. A primeira coisa é, qual é o meu critério de valores e de<br />

vida, e como é que eu o corporizo ao longo dos meus vinte, vinte e cinco, trinta.<br />

Como é que a maiêusis continua a actuar, como é que eu continuo a dar-me à luz<br />

a mim própria. Como é que eu integro a minha vida profissional, a minha vida<br />

familiar, a minha vida relacional, de amizade, a minha vida afectiva, portanto, todas<br />

essas facetas das vidas de todos nós. Para ser feliz, para me sentir realizada, não como<br />

isolada, mas integrada numa comunidade a que pertenço, a comunidade fundamental<br />

é a família, depois temos o grupo de amigos, o grupo da família alargada, as amizades<br />

que se fazem na universidade, os Professores que se foram conhecendo…<br />

1 Referia-se a uma exposição que o, então aluno, Roberto Lopes organizou em Évora e que gerou alguma polémica.<br />

140


Paulo Simões Rodrigues<br />

Departamento e Centro de História da Arte da Universidade de Évora.<br />

Conferência proferida no dia 21 de Maio de 2003.<br />

Urbanismo, Arquitectura e Monumentos Nacionais<br />

na Évora Oitocentista: Balanço Historiográfico<br />

1.Introdução<br />

O que vos proponho apresentar hoje, no âmbito dos Seminários de Estudos de<br />

Arte, corresponde, na prática, a uma introdução genérica do tema da minha tese de<br />

doutoramento, dedicada ao estudo da cidade de Évora no século XIX 1 , sob o ponto<br />

de vista da arquitectura, do urbanismo e da preservação do património construído.<br />

Verbalizado assim, o tema não traz novidades significativas em relação aos estudos<br />

existentes sobre a Évora Oitocentista. Talvez somente no aprofundamento de problemáticas<br />

já parcelarmente abordadas e na intenção de realizar uma síntese da história<br />

da arquitectura eborense em articulação com a do respectivo desenvolvimento<br />

urbano, à semelhança do que foi feito para outras cidades do país (Lisboa e Porto<br />

são os exemplos mais conhecidos) ou mesmo para Évora nos séculos precedentes.<br />

Podemos atestá-lo em diversos trabalhos, desde os estritamente académicos às pu-<br />

1 Embora as balizas cronológicas recuem e avancem um pouco mais, com início ainda no século XVIII, no pós<br />

terramoto de 1755, e fim de 1919, ano da criação do Grupo Pró-Évora, movimento de cidadãos que reagiu contra<br />

o estado de abandono e degradação a que tinha chegado o património eborense e que assinala um novo entendimento<br />

da capacidade da população intervir na gestão urbana, nomeadamente no que respeita à conservação dos<br />

sinais materiais da História.<br />

141


licações de divulgação e vocacionadas para um público diversificado, que trataram<br />

quer da evolução da configuração urbana, quer das gramáticas arquitectónicas que<br />

povoaram a cidade ao longo do tempo, como os de Maria Angela Beirante (Évora<br />

na Idade Média), Ana Maria de Mira Borges (Évora: da reconquista ao século XVI),<br />

José Custódio Vieira da Silva (O tardo-Gótico em Portugal: a arquitectura no Alentejo e<br />

Paços Medievais Portugueses, caracterização e evolução da habitação nobre dos séculos XII a<br />

XVI), Maria de Deus Bentes Manso (Évora, capital de Portugal. 1531-1537) e Maria<br />

Domingas Simplício (O espaço urbano de Évora: contributo para melhor conhecimento do<br />

sector intra-muros e Evolução e morfologia do espaço urbano de Évora). É ainda de referir,<br />

embora de cariz mais abrangente, os muitos textos de Túlio Espanca dedicados ao<br />

património artístico eborense, de diferentes épocas, mas com dominante incidência<br />

no período moderno, quase todos publicados na revista municipal A Cidade<br />

de Évora ou integrados no volume sobre o distrito de Évora, da sua autoria, do<br />

Inventário Artístico de Portugal, publicado pela Academia Nacional de Belas Artes. De<br />

citar também o catálogo Riscos de um Século. Memórias da Evolução Urbana de Évora,<br />

concernente à exposição homónima dedicada às mutações urbanísticas acontecidas<br />

no século XX, patente no Palácio de D. Manuel de Novembro de 2000 a Abril de<br />

2001, coordenada por Cármen Almeida e José Maria Pinto Barbosa e realizada pela<br />

ocasião do colóquio “O Século XX em Évora”, organizado pela Câmara Municipal<br />

e pelo Departamento de História da Universidade de Évora.<br />

Apesar do catálogo Riscos de um Século recuar até à década de Sessenta dos anos<br />

de Mil e Oitocentos, são poucos os ensaios de História da Arte ou de áreas científicas<br />

afins que tomaram a Évora contemporânea como tema, mesmo que indirectamente.<br />

Dos existentes, salientamos Giuseppe Cinatti (1808-1878). Percurso e Obra<br />

de Joana Esteves da Cunha Leal, em que são enunciadas e analisadas as intervenções<br />

deste arquitecto italiano na cidade de Évora, a comunicação “A modernização da<br />

cidade. Évora no século XIX”, proferida por Hélder Adegar Fonseca e Rui Carreteiro<br />

no “Encontro da Associação Portuguesa de História Económica e Social”,<br />

o contributo dos artigos de Miguel Carolino sobre o cemitério de Nossa Senhora<br />

dos Remédios (“A Arquitectura Tumular em Évora- 1840-1910” e “A cidade dos<br />

mortos- um espelho da sociedade dos vivos. Estratégias de afirmação social no cemitério<br />

de Nossa Senhora dos Remédios de Évora”) e o de Maria da Conceição<br />

Marques Freire (Rossios do significado urbano: um caso de estudo. O Rossio de Évora).<br />

A maioria dos autores a debruçarem-se sobre a Évora Oitocentista pertencem, de<br />

resto, às áreas da História Política, Económica e Social. Neste campo, parece-nos<br />

142


de maior relevância os trabalhos de Hélder Adegar Fonseca (O Alentejo no Século<br />

XIX. Economia e Atitudes Económicas), Ana Maria Cardoso Matos (Ciência, tecnologia e<br />

desenvolvimento industrial no Portugal oitocentista. O caso dos lanifícios do Alentejo), Maria<br />

Teresa Rios Fonseca (Absolutismo e Municipalismo em Évora, 1750-1810), Maria<br />

Ana Bernardo (Sociabilidade e práticas de distinção em Évora na segunda metade do século<br />

XIX), Fernando Gameiro (Ensino e Educação no Alentejo Oitocentista, 1850-1910)<br />

e Alice Mendonça (Crises de Mortalidade no Concelho de Évora, 1850-1900). Todos<br />

estes estudos ajudam-nos a compreender o enquadramento sócio-cultural, político<br />

e económico das transformações operadas na malha e na imagem da cidade, em<br />

particular no que respeita à organização das elites e às relações que estabeleceram<br />

com as instituições locais, principalmente com o poder municipal, instrumento estruturador<br />

da organização urbana. Mas também até que grau as novidades técnicas<br />

trazidas pela industrialização e suas consequências económicas tiveram capacidade<br />

de determinar, ou não, uma nova maneira de viver, olhar e conceber a cidade. Finalmente,<br />

a vertente demográfica, essencial enquanto factor de desenvolvimento<br />

ou atrofiamento do espaço urbano.<br />

Outro dos eixos fundamentais do nosso projecto de trabalho é o patrimonial. Ou<br />

melhor, a atitude (de preservação estrita, de compromisso ou de indiferença) veiculada<br />

pelos agentes da modernização do espaço e dos espaços da cidade para com<br />

o já construído. Dedicado à temática da conservação monumental, concernente ao<br />

universo estrito da cidade de Évora, destacamos a dissertação de mestrado de Maria<br />

da Conceição Lopes Aleixo Fernandes, intitulada Os “restauros” e a memória da cidade<br />

de Évora (1836-1896). Depois, no enquadramento ainda mais específico do restauro<br />

do templo romano, temos o artigo de António Carlos Silva, “A «Restauração» do<br />

Templo Romano de Évora” e outro da nossa autoria, “Giuseppe Cinatti e o restauro<br />

do Templo Romano de Évora”.<br />

Uma última chamada de atenção para os textos contemporâneos do nosso objecto<br />

de estudo, da autoria de Augusto Filipe Simões, António Francisco Barata e Gabriel<br />

Pereira, entre outros, que embora possam ser encarados actualmente com algum<br />

cepticismo no que respeita às metodologias usadas e à leitura crítica da informação<br />

apresentada, continuam a ser um repositório precioso de fontes para os investigadores.<br />

Perante este panorama bibliográfico, qual poderá ser então a validade científica da<br />

perspectiva do nosso trabalho sobre um assunto abordado com alguma regularidade,<br />

pelo menos parcialmente? Acontece que, como tivemos ocasião de notar pelo<br />

143


conjunto da fortuna crítica enunciada, nenhum dos textos inventariados desenvolve<br />

de forma sistemática a análise da evolução urbanística e arquitectónica da cidade<br />

de Évora no século XIX como um fenómeno que pode ser interpretado do ponto<br />

de vista da História da Arte. Por outro lado, também se pretende articular as transformações<br />

introduzidas na morfologia da cidade com as atitudes contemporâneas<br />

para com o património edificado e entendê-las não como processos sucedâneos e<br />

incompatíveis - o monumento que teve de ser demolido para que novo edifício<br />

pudesse ser levantado, ou a adulteração estrutural da velha construção de modo a<br />

permitir a sua adaptação a outras funções, ou o novo equipamento que foi preterido<br />

a favor da conservação de uma construção mais antiga -, mas como um fenómeno<br />

global, entendendo que a cidade é um organismo constituído por diversificadas<br />

sedimentações, cuja renovação implicou, implica e implicará sempre a anulação,<br />

a manutenção e a recuperação de manifestações de diferentes níveis temporais,<br />

embora dispostos em novos enquadramentos. Procuraremos, assim, caracterizar o<br />

desenvolvimento de tal processo dentro dos limites cronológicos estabelecidos.<br />

2.Contextualização<br />

Expandir, circular, higienizar e tipificar foram os princípios que determinaram o<br />

paradigma da cidade do século XIX, seja nas teorias e nos discursos acerca do espaço<br />

citadino, seja nos projectos concebidos e elaborados, seja nas transformações<br />

efectivamente operadas na morfologia dos centros urbanos. Princípios cuja origem<br />

remonta ao século XVIII, mais especificamente aos ideais que pretenderam aplicar<br />

o espírito racionalista das Luzes ao traçado das povoações, em prol do seu melhoramento.<br />

De facto, o dealbar dos anos de 1700 foi fértil em planos de construção<br />

que procuraram prever, senão mesmo condicionar, o sentido do crescimento das<br />

cidades, delimitando-o e ordenando-o de modo a definir uma espacialidade que<br />

se adequasse às melhorias que a filosofia iluminista desejava ver introduzidas nas<br />

sociedades europeias ou fomentasse a formação de sistemas sociais mais justos. Utopias<br />

que representam a reacção dos intelectuais iluministas às crises então vividas e<br />

que muitas vezes incluíam ou pressupunham o delineamento de estruturas urbanas<br />

capazes de as acolher. O enunciado urbano formalizado pelos arquitectos e os teóricos<br />

iluministas impunha a ultrapassagem dos limites históricos das antigas cidades<br />

europeias - o que implicava o derrube de velhas muralhas, ultrapassada que estava<br />

a sua função defensiva -, a criação de redes públicas de água e de estruturas de saneamento<br />

básico, a construção de cemitérios e hospitais públicos, o calcetamento<br />

144


e a macadamização de vias, a abertura de novas ruas e praças, ou a ampliação das já<br />

existentes. Modelo que definiu um conceito de cidade de tal modo inovador que,<br />

à época da sua formulação, raramente ultrapassou a categoria de reflexão projectual<br />

ou teórica, podendo-se encontrar na Lisboa pombalina uma das suas poucas<br />

concretizações. De resto, a sua pertinência verificar-se-á sobretudo quando serve<br />

de referência às soluções encontradas e propostas para adaptar os grandes centros<br />

urbanos da Europa ao crescimento populacional provocado pelo processo da industrialização.<br />

O estabelecimento das unidades industriais arrastou consigo a migração de trabalhadores<br />

que, por sua vez, vêm impulsionar o nascimento de novos e importantes<br />

núcleos urbanos ou aumentar, muitas vezes drasticamente, a densidade demográfica<br />

das cidades já existentes - Paris e Londres duplicam os seus habitantes entre os anos<br />

finais de 1700 e 1850. Foi de tal modo expressivo o crescimento destas populações<br />

que as respectivas povoações e cidades manifestaram graves problemas relacionados<br />

com a circulação, a habitação e a higiene pública, os quais fizeram urgir renovações<br />

na rede viária, suscitaram o aparecimento de novos bairros e obrigaram à implementação<br />

de sistemas de saneamento urbano. Infra-estruturas cuja concretização<br />

exigia uma cidade mais regular, tanto na planimetria dos espaços como na altura<br />

dos edifícios, condicionalismo que obrigava à planificação de novas superfícies edificadas<br />

em núcleos antigos ou a intervenções nas malhas históricas que visaram redefinir<br />

as disposições originais de ruas e praças. Isto significa que será com a prática<br />

da resolução destas dificuldades objectivas que o urbanismo moderno dará, entre<br />

1830 e 1850, os seus primeiros passos.<br />

Foi em Paris que se concebeu e aplicou pela primeira vez um plano regulador.<br />

Obedecendo à vontade de Napoleão III, o Barão Georges-Eugéne Haussmann,<br />

perfeito do Sena entre 1853 e 1869, vai elaborar e sobrepor ao corpo da velha Paris<br />

uma rede de ruas amplas e rectilíneas. A finalidade do programa de Haussmann era<br />

criar um sistema coerente e eficaz de circulação através da ligação dos principais<br />

centros da vida quotidiana citadina às estações de caminho de ferro, o mais veloz<br />

e eficiente meio de transportar os franceses para ou da sua capital. A sua concretização<br />

implicou a construção de novas tipologias arquitectónicas e equipamentos:<br />

edifícios públicos (escolas, hospitais, prisões, serviços administrativos, bibliotecas e<br />

mercados), parques públicos (o Bois de Boulogne e o Bois de Vincennes) e casas<br />

populares para as classes mais desfavorecidas, que, desta maneira, se viram afastadas<br />

para os subúrbios da capital. Renovada pelo plano Haussmann, Paris torna-se no<br />

145


paradigma do urbanismo moderno que muitas das cidades europeias irão adoptar<br />

como modelo. Madrid, Bruxelas, Turim, Barcelona e Estocolmo são alguns dos<br />

centros urbanos europeus que empreenderam campanhas de melhoramentos inspiradas<br />

no modelo parisiense, embora em nenhum deles as alterações tenham sido<br />

tão extensas e profundas como na capital francesa.<br />

Haussmann, aquando da sua empreitada parisiense, foi acusado de ter vandalizado<br />

muito do património edificado da capital francesa. Acusação que o Prefeito sempre<br />

recusou, pois considerava que tinha não só preservado os monumentos mais significativos,<br />

como ainda lhes deu um enquadramento urbano mais aberto que permitiu<br />

destacá-los do tecido dos edifícios da cidade. De facto, enquanto a velha Paris era<br />

derrubada, o arquitecto Eugénne Viollet-le-Duc fazia a catedral de Notre-Dame<br />

regressar a um pretenso esplendor da medieval, intervenção que se enquadrava,<br />

muito coerentemente, numa linha cultural que ainda ignorava o conceito de património<br />

urbano 2 e valorizava o monumento isolado enquanto testemunha solitária<br />

do passado.<br />

Há que ter em conta, contudo, as ampliações programadas de outras cidades europeias,<br />

como Barcelona (Ildefonso Cerda, 1859), Viena (Ludwig Förster, 1859),<br />

Florença (Giuseppe Poggi, 1864) e Estocolmo (Lindhagen, 1866), que preservaram<br />

o essencial dos respectivos cascos históricos graças ao rasgar de circuitos anelares<br />

ao redor dos núcleos pré-existentes, à maneira do Ring de Viena, que, assumindo<br />

uma dupla função, os isolavam das zonas recém construídas e, simultaneamente,<br />

permitiam a articulação com os novos sistemas viários. A fluidez da circulação entre<br />

o centro mais antigo e as novas áreas urbanas acabou por levar ao sacrifício das<br />

muralhas destas cidades, todas entretanto desaparecidas.<br />

3.A Situação Portuguesa<br />

Em Portugal, mais que a industrialização, ainda incipiente e de lento desenvolvimento,<br />

foi a conjuntura política que suscitou transformações nos tecidos das principais<br />

cidades. Com a vitória definitiva do liberalismo em 1834, o jovem poder e<br />

as respectivas instituições não só necessitaram de novas tipologias arquitectónicas<br />

2 Ter-se-á de esperar pela publicação de Der Städte-Bau nach seinen Künstlerischen Grundsätzen (A Urbanização<br />

nos seus Princípios Estéticos) do arquitecto vienense Camillo Sitte, em 1889, para que também as estruturas e as<br />

configurações urbanas, e não apenas as edificações mais grandiosas e comemorativas, fossem consideradas elementos<br />

constituintes da memória das cidades, logo imprescindíveis como referências seminais nos processos de renovação<br />

urbana.<br />

146


como também promoveram uma outra ideia de cidade, modernizada por inovadores<br />

equipamentos e infra-estruturas. Mas porque as mudanças então implementadas<br />

necessitaram duma legitimação concedida pela História, o liberalismo não se pautou<br />

apenas pela defesa da modernização. Pelo contrário, desenvolveu, em simultâneo,<br />

todo um culto do passado e da memória nacional cujas manifestações procuraram<br />

justificar pela História as opções tomadas no presente, apresentando-as como<br />

mais uma etapa de um longo processo histórico ou o retomar de uma coerência<br />

político-social que o pretérito mais recente tinha momentaneamente interrompido.<br />

Neste processo de sacralização da História, a conservação dos vestígios materiais<br />

do passado, em particular dos monumentos, era uma condição fundamental, já que<br />

preservá-los era actualizá-los, assim como actualizar todo o seu contexto histórico.<br />

Embora possamos ver uma aparente contradição na coexistência desta vontade de<br />

modernizar com este “historicismo”, não podemos também de deixar de entendêla<br />

como uma idealização que tentou conciliar o progresso material das sociedades,<br />

e da cidade em particular, com o respeito e a conservação da sua memória histórica.<br />

Conciliação que a realidade encarregar-se-á de demonstrar ser impossível, ou pelo<br />

menos extremamente improvável. E nem foi preciso esperar muito para o perceber.<br />

Logo a partir de 1834, ano da extinção das ordens religiosas (30 de Maio), a que se<br />

seguiu a alienação, nacionalização e venda dos seus bens (15 de Abril de 1835), a<br />

falta de recursos vai obrigar o Estado a vender, a demolir e a refuncionalizar muitos<br />

conventos e igrejas, visto não existirem meios financeiros suficientes para construir<br />

de raiz as tipologias necessárias à nova organização política 3 . Acrescente-se ainda que<br />

a modernização das principais cidades do país - com o rasgar de algumas praças, o<br />

arranjo de outras, o alargamento de ruas, a construção de jardins públicos, mercados<br />

e a instalação do saneamento básico, bem como a melhoria da circulação - obrigou,<br />

em urbes com uma grande densidade de pré-existências arquitectónicas como<br />

eram as nossas, à demolição de muitas construções antigas. O prolongamento desta<br />

situação pelo século em diante fez levantar muitos protestos da parte de escritores,<br />

arqueólogos e artistas, entre outros, dos quais Almeida Garrett, em relação à situação<br />

de Santarém nas Viagens na Minha Terra (1846), Alexandre Herculano (1838 e 1839)<br />

3 Em 1860, as propriedades dos conventos das congregações femininas - igrejas, cabidos, misericórdias, confrarias,<br />

seminários - foram colocadas no mercado e convertidas em títulos da dívida pública. Outro ciclo desamortizador<br />

iniciar-se-á cinco anos mais tarde, com o Estado a tomar posse das propriedades das juntas das paróquias e dos bens<br />

pertencentes às irmandades, confrarias, aos recolhimentos, aos hospitais e às misericórdias. A 28 de Agosto de 1869, a<br />

desamortização estendeu-se aos passais dos padres, aos baldios e aos bens dos estabelecimentos de ensino religiosos.<br />

147


e Ramalho Ortigão (1896) são os exemplos mais conhecidos e aqueles que balizam<br />

o século. Neles encontramos uma recusa do progresso irresponsável, que ignora o<br />

passado e a tradição, e a defesa de um compromisso entre o desenvolvimento material<br />

das populações e a conservação dos bens patrimoniais do passado. Alexandre<br />

Herculano chega a enunciar as vantagens económicas que podiam advir dos monumentos<br />

históricos, na medida em que eram o motivo pelo qual os estrangeiros<br />

visitavam Portugal, que, por sua vez, através do pagamento das hospedagens e da<br />

aquisição de bens (comida, guias de viagem, recordações, etc.) faziam entrar divisas<br />

no país e fomentavam o desenvolvimento económico das localidades. Na década de<br />

Oitenta, a própria Comissão dos Monumentos Nacionais referiu a feição lucrativa<br />

que os edifícios históricos podiam ter por meio da sua exploração turística.<br />

4.Estudo de Caso: Évora (1834-1919)<br />

Ao longo do século foi-se afirmando a convicção que cidades como Évora, Viana<br />

do Castelo, Braga, Guimarães, Coimbra, Tomar, Santarém ou Beja só interessavam<br />

aos «viajantes pela sua antiga arte» e que não valiam pelo que davam «de novo».<br />

Destacava-se Évora reincidindo no argumento que não eram «as suas novas avenidas,<br />

nem as suas praças, nem o seu lindo theatro, nem o seu bello Passeio Publico»<br />

que atraíam e detinham os visitantes na cidade alentejana, mas sim os «seus velhos<br />

mosteiros, as suas antigas egrejas, os nomes das suas primitivas ruas, estreitas e sinuosas,<br />

(…)» [ORTIGÃO, pp. 90-92]. Testemunhos materiais da história de uma<br />

cidade que remontava à Antiguidade romana e cuja importância social e política<br />

tinha sido paralela à da capital, sobretudo a partir dos séculos XIV e XV, quando<br />

passou a acolher a corte que, por ser itinerante, aqui se deteve em prolongadas<br />

estadas. Ao tornar-se residência de monarcas (de D. Afonso V a D. João III), Évora<br />

recebe a maioria das suas mais nobres edificações (paço real, reconstrução da igreja<br />

de São Francisco, igreja da Graça, colégio e igreja do Espírito Santo, igreja de Santo<br />

Antão, convento do Carmo, etc.), é sede de cortes (1390, 1391, 1408, 1436, 1442,<br />

1448, 1460-61, 1468, 1475, 1481 e 1490) e palco de acontecimentos tão relevantes<br />

como a execução do duque de Bragança em 1483, por ordem de D. João II,<br />

e o casamento do príncipe D. Afonso com D. Isabel, filha dos Reis Católicos, em<br />

1490. A sua população cresce até aos 11 252 habitantes em 1527, tornando-se, em<br />

termos demográficos, no terceiro centro urbano do país, e é elevada a arcebispado<br />

em 1540, dignidade que compartilha apenas com Lisboa e Braga. A conjuntura favorável<br />

inverte-se no século XVIII, com a centralização da máquina administrativa<br />

148


do Estado na capital. Consequentemente, verifica-se uma quebra demográfica, com<br />

os eborenses a não ultrapassarem os 11 643 indivíduos em 1801, valor que fazia<br />

com que Évora descesse para a sétima posição na escala demográfica das cidades<br />

portuguesas. Estagnação que se manteve até ao século XX, de tal modo que temos<br />

o registo de apenas 14 068 habitantes para 1911, contabilizando-se em todo o país<br />

nove urbes mais populosas que a alentejana. O efeito mais directo desta situação foi<br />

a paralisia do perímetro urbano de Évora, confinado ao limite das muralhas tardomedievais<br />

até ao século XIX, conforme a planta da cidade que o capitão Manuel<br />

Joaquim Matos elaborou, por encomenda da edilidade, em 1882 [ALMEIDA, p.<br />

60]. Outra planta, esta do ano de 1913, constata o atrás enunciado mostrando que<br />

à data poucas eram as estruturas localizadas extra-muros [ALMEIDA, p. 61]. São<br />

visíveis o cemitério público (1842), localizado na cerca do convento de Nossa<br />

Senhora dos Remédios, e a Praça de Touros, próxima do Baluarte do Príncipe. A<br />

unidade industrial da Companhia de Iluminação a Gás (1889) e um equipamento<br />

hoteleiro hoje desaparecido, ambos no Rossio de São Brás, o Asilo Barahona (1904)<br />

e a Fábrica de Moagem dos Leões não estão assinalados na cartografia de 1913, mas<br />

também pertencem ao grupo dos primeiros edifícios erigidos fora do perímetro<br />

amuralhado. A sua situação extrínseca ao centro da cidade justificava-se pela necessidade<br />

de uma maior amplitude espacial ou por razões de saúde pública, como<br />

aconteceu com o cemitério de Nossa Senhora dos Remédios. Os primeiros bairros<br />

levantados para lá da cerca eborense são tardios, dos anos de 1920 e 1930, gerados<br />

por loteamentos ao longo das avenidas Barahona e dos Combatentes, no Rossio<br />

Oriental e no Rossio Ocidental, respectivamente.<br />

A estagnação de Évora acabou por resultar, inadvertidamente, na preservação não<br />

só dos seus principais monumentos, mas de todo o conjunto edificado da cidade,<br />

que pouco se altera desde as décadas douradas de 1400 e 1500. Nem mesmo o<br />

terramoto de 1755 e as invasões francesas (1807-1811), que sacrificaram bastante<br />

os eborenses, deixaram marcas muito profundas na sua arquitectura. Constituiu-se<br />

assim um património que será ironicamente o meio pelo qual se tentará compensar<br />

a decadência da urbe, pois permitirá que Évora comece a ser valorizada pela sua<br />

importância enquanto documento privilegiado da história e da arte nacionais. O<br />

facto de ser quase o único núcleo urbano da banda sul do Tejo a merecer a atenção<br />

e o elogio da maioria dos estrangeiros que nos visitaram desde o século XVIII e<br />

escreveram sobre a história e a arte do nosso país (James Murphy, conde Athanasius<br />

Raczynski, Albrecht Haupt) fez com que se tomasse consciência que era pelo<br />

149


seu «air antiqúe et pittoresque» [RACZYNSKI, p. 360], e não pela via política ou<br />

económica, que Évora podia ganhar alguma notoriedade nacional. A afirmação de<br />

Ramalho Ortigão por nós já citada confirma-o, assim como os epítetos que outros<br />

autores lhe foram consagrando, «necrópole-museu de grande povo» [ALMEIDA,<br />

F., p. 26], e as iniciativas em sua defesa que se foram sucedendo: a circular dedicada<br />

à Arqueologia religiosa publicada por D. Augusto Eduardo Nunes, arcebispo de<br />

Évora, em 1896; o movimento formado no seio da Associação dos Arqueólogos<br />

Portugueses em 1916; e o Grupo Pró-Évora, fundado pelos próprios eborenses em<br />

1919. Nasce aqui a imagem idealizada de Évora como cidade-museu, que ainda não<br />

implica, nem implicará até à segunda metade do século XX, uma noção antecipada<br />

de património urbano (de que a forma da malha urbana configura, por si própria,<br />

um facto artístico). A expressão “cidade-museu” sintetiza, isso sim, a ideia de conjunto<br />

de monumentos isolados, de aglomeração rara e excepcional de objectos<br />

arquitectónicos singulares, integrados no seu contexto urbano original.<br />

Essa mesma estagnação acabou, contudo, por pesar sobre a elite local, constituída<br />

tanto por antigas como pelas mais recentes fortunas, que nos anos finais da década<br />

de 1850, com a pacificação política trazida pela Regeneração e o consequente<br />

aumento do investimento capitalista, sente o seu estatuto consolidado e começa<br />

a investir no seu conforto e na modernização de um modo de vida que passa simultaneamente<br />

pelas respectivas residências e pela localidade onde os seus nomes<br />

ou os das suas famílias continuam ou passam a ser uma referência social. Cultiva-se<br />

um quotidiano burguês desenvolvendo novos hábitos e circuitos de sociabilidade,<br />

recreação e cultivo do espírito, práticas que irão exigir tipologias arquitectónicas e<br />

equipamentos adequados. Identificamos aqui o desejo de um certo cosmopolitismo<br />

que tomava como referência distante e mistificada a Paris renovada pelo barão de<br />

Haussmann. Embora fosse incomparável com a situação eborense, a remodelação de<br />

Paris estabeleceu, como vimos, um modelo de progresso, vivência e administração<br />

municipal que obrigava à modernização do espaço urbano, de maneira a torná-lo<br />

salubre, organizado e regularizado, e cuja concretização nas cidades portuguesas foi<br />

incentivada pela política de obras públicas do Fontismo. A sua aplicação em Évora,<br />

contudo, não tendo a cidade alentejana ultrapassado os seus muros, só era passível de<br />

ser conseguida substituindo a sedimentação de arquitecturas antigas, o que gerava<br />

um claro conflito com o valor histórico que todos reconheciam como a sua maior<br />

valência. Lembramos que nas cidades europeias em que os centros mais antigos foram<br />

poupados às consequências das transformações urbanas, Barcelona e Florença,<br />

150


tal aconteceu porque o seu crescimento obedeceu a um plano de expansão, o que<br />

não aconteceu em Évora, que permaneceu fechada, embora se tenha rasgado uma<br />

estrada de circunvalação em redor das muralhas e das zonas adjacentes (os antigos<br />

fossos). A partir daqui, a história da cidade de Évora, durante o que resta do século<br />

XIX, caracterizou-se pela tentativa de encontrar um compromisso entre esta vontade<br />

de renovação e a conservação das edificações que lhe consignavam a classificação<br />

de cidade-museu. A procura deste compromisso foi talvez a mais importante<br />

utopia do urbanismo Oitocentista e Évora procurou atingi-la gerindo e articulando<br />

uma complexa prática municipal, não chega a ser uma política, de demolições, refuncionalizações,<br />

adaptações, protecções e expectativas de crescimento.<br />

4.1 As Demolições<br />

Estabeleceu-se uma hierarquia informal para as arquitecturas do passado, em que<br />

os critérios subjacentes à escolha daquelas que deviam ser demolidas, remodeladas<br />

ou conservadas assentaram na associação da qualidade artística com o simbolismo<br />

atribuído à época a que pertenciam: à Antiguidade, à Idade Média, ou à Idade<br />

Moderna. A solução acaba por se concentrar na demolição das construções consideradas<br />

não significativas do ponto de vista do conceito vigente de monumento e<br />

de uma imagem idealizada de Évora, as dos séculos XVII e XVIII e aquelas cujas<br />

estruturas originais tivessem sido irremediavelmente adulteradas ou cujo estado de<br />

conservação pusesse em causa a estética e a funcionalidade citadinas. A Idade Média<br />

era a mais favorecida pela hiperbolização que a cultura Oitocentista fazia da época<br />

da fundação e da consolidação da nacionalidade através do estilo gótico e do seu<br />

apogeu com o manuelino.<br />

Embora os mais importantes conventos e mosteiros eborenses fossem de fundação<br />

medieval ou tardo-medieval, a maioria tinha chegado ao século XIX muito<br />

transformados por intervenções Seiscentistas e Setecentistas, logo sem permitirem<br />

as analogias com o passado fundador, tão caras à cultura nacionalista do tempo. A<br />

crise financeira que atingiu as ordens religiosas no século XVIII e a sua definitiva<br />

abolição em 1834 agravou a degradação material de muito dos seus edifícios, como<br />

fica patente por fotografias da época [ALMEIDA, pp. 26 e 27], das quais destacamos<br />

as do convento de São Francisco [Monumentos, pp. 88, 89, 91 e 94], de que também<br />

existe uma pintura a óleo de Dores Castro (Ruínas dos Paços Reais e Convento<br />

de São Francisco, 1862), em que se torna evidente que o estado ruinoso a que<br />

tinha chegado punha em causa, claramente, a visão idealizada da Évora “capital<br />

151


do Reino” e impedia a sua normalização segundo os princípios do urbanismo<br />

moderno. São pois simplesmente demolidos, total ou parcialmente, para permitir<br />

novas construções ou a renovação da malha urbana rasgando e ampliando artérias.<br />

O convento de São Domingos foi-o em 1836 para dar lugar à praça D. Pedro IV,<br />

actual Joaquim António Aguiar, onde se levantará, no topo oeste, o Teatro Garcia de<br />

Resende (1881-1892), de traça neoclássica riscada pelo engenheiro de obras públicas<br />

Adriano da Silva Monteiro, com a colaboração, nas decorações e nos cenários,<br />

de artistas de relevância nacional, a saber António Ramalho, João Vaz (pintores) e<br />

Luigi Manini (arquitecto, pintor e cenógrafo italiano).<br />

Das que se seguiram, destacamos as demolições de algumas das portas da muralha<br />

(Alconchel, Rampa, Rossio), dos conventos de Santa Catarina (1900) e do Paraíso<br />

(1902), da igreja do convento de Santa Mónica (1900), do edifício da Câmara Municipal<br />

e da cadeia pública adjacente (1906), na praça do Giraldo, substituído pela<br />

agência do Banco de Portugal, de traça eclética desenhada pelo arquitecto Adães<br />

Bermudes. Derribamentos que obedeceram sempre aos critérios da renovação arquitectónica<br />

e do descongestionamento da malha urbana. O do convento de Santa<br />

Catarina, que se planeava substituir por um largo arborizado, foi assim justificado<br />

na Memória Descritiva da intervenção: «porque demolido, o espaço por elle ocupado<br />

se transformará n’um largo aprazível e desafogado, desapparecendo as escuras<br />

e sombrias ruas que o circulam (…)» [ALMEIDA, p. 26].<br />

4.2 As Reintegrações<br />

Outra prática comum consistiu, ao proceder-se aos desmantelamentos, na salvaguarda<br />

e na reintegração em outras edificações dos elementos arquitectónicos tidos<br />

como esteticamente mais valiosos. Foi o que se fez com dois portais renascentistas<br />

do convento de São Domingos nas entradas do Cemitério de Nossa Senhora dos<br />

Remédios e do Seminário da cidade (antiga Universidade), com um portal e uma<br />

gárgula do convento do Espinheiro na Casa Barahona Fernandes, o primeiro integrado<br />

no acesso ao jardim e o segundo na fonte do pátio interior que lhe serve de<br />

átrio, e com as arcadas manuelinas retiradas do palácio do Vimioso quando da sua<br />

remodelação e que Giuseppe Cinatti inseriu nas ruínas que inventou para o Jardim<br />

Público da cidade.<br />

4.3 As Adaptações<br />

A maioria dos edifícios retirados às extintas ordens religiosas, porém, não desapa-<br />

152


eceu nesta voragem demolidora, mas acabou adaptado a novas funcionalidades,<br />

normalmente de cariz público, por incapacidade do erário municipal em financiar<br />

edificado de raiz para albergar os serviços e as instituições do jovem Estado liberal.<br />

Solução que não ficou limitada às primeiras décadas da monarquia constitucional<br />

(1834-1860) e se prolonga até ao século XX. Verificou-se então a transformação<br />

do colégio de S. Paulo em cadeia estadual (1836) e da igreja de S. Pedro em escola<br />

distrital (1841), a ocupação do convento e do forte da Santo António da Piedade<br />

pelo primeiro e provisório cemitério público (1834) e do corpo do edifício da<br />

Universidade pelo liceu nacional (1841) - o seu antigo hospital foi aproveitado<br />

para cadeia comarcã -, a instalação da Guarda Fiscal (1886) e da Casa Pia (1889)<br />

no mosteiro de S. José ou da Esperança, do Grupo da Artilharia da Montanha no<br />

convento do Salvador (1906) e do quartel da Infantaria 11 no convento de Santa<br />

Clara (1911). Em 1881, os paços do concelho passaram da praça do Giraldo para<br />

o antigo palácio dos condes de Sortelha, na praça de Sertório, que recebe ligeiras<br />

obras de beneficiação e adaptação – foi-lhe acrescentado um grande tabuleiro empedrado<br />

central que a embelezava e regularizava a circulação de pessoas e viaturas.<br />

Só em 1907 se empreendeu uma reforma mais aprofundada, segundo projecto do<br />

arquitecto Alfredo Costa Campos, que consistiu no encerramento do pátio central<br />

por meio da inclusão de um corpo central como fachada, com portal neo-manuelino,<br />

e da sua cobertura por uma ampla clarabóia em ferro e vidro. O pátio é assim<br />

transformado em átrio, a partir do qual se passou a aceder aos andares superiores<br />

através de uma escadaria também em ferro. A aplicação destas estruturas metálicas<br />

levantou alguns problemas técnicos, o que obrigou à intervenção do engenheiro<br />

Adriano da Silva Monteiro.<br />

Embora estas refuncionalizações tenham suscitado as mais diversas alterações construtivas<br />

nos imóveis visados, acabou por ser também a razão pela qual aqueles resistiram<br />

aos efeitos da passagem do tempo. Veja-se o que aconteceu com aconteceu na<br />

igreja da Graça, que, fechada ao culto e sem nova utilização, apenas o convento foi<br />

transformado em quartel, sofreu o desabamento da abóbada da nave em 1884.<br />

5.O Restauro Arquitectónico como Agente<br />

Dinamizador da Renovação Urbana: o Templo<br />

Romano e a Igreja de S. Francisco<br />

O número de edificações que usufruiu de medidas activas de conservação ou de<br />

153


campanhas de restauro e que mantiveram a função original ou receberam o estatuto<br />

de monumento nacional foi, de facto, limitado, muito provavelmente por<br />

motivo das já conhecidas dificuldades financeiras. Desse restrito grupo, como dissemos,<br />

fizeram parte os monumentos em que a qualidade estética se associava a um<br />

simbolismo histórico de dimensão nacional. Valores que foram reforçados pelo seu<br />

reenquadramento no espaço circundante, o que nos permite dizer que as operações<br />

de restauro mais relevantes se estenderam do monumento à sua envolvente urbana.<br />

As intervenções efectuadas no templo romano (vulgarmente designado de Diana)<br />

e na igreja de S. Francisco são os dois exemplos mais paradigmáticos do que acabámos<br />

de afirmar.<br />

5.1 O Templo<br />

A servir como açougue desde o século XV, que António José de Ávila, na qualidade<br />

de governador civil de Évora, mandou encerrar em 1836, o templo romano tinha<br />

chegado ao século XIX com os espaços intercolunares preenchidos com paredes de<br />

alvenaria, sobre as quais tinham sido levantados muros ameados e um campanário,<br />

acrescentos que lhe davam a aparência de uma torre. Uma série de construções<br />

anexas ligavam-no ao palácio setecentista onde estivera sedeada a Inquisição. Entre<br />

1844 e 1846, a pretexto de instalar no templo uma gliptoteca e da necessidade de<br />

realizar escavações arqueológicas no seu perímetro, Joaquim da Cunha Rivara, o<br />

então responsável pela Biblioteca Pública de Évora, conseguiu da câmara o derribamento<br />

dessas construções que o anexavam ao palácio da Inquisição. Operação<br />

que isolou o templo no centro de uma praça e permitiu assim a recuperação da sua<br />

disposição primitiva na malha urbana e, por inerência dessa centralidade, o seu estatuto<br />

de monumento romano ímpar no território português. Nos anos sequentes,<br />

de 1855 a 1863, a câmara municipal procurará melhorar o enquadramento urbano<br />

do monumento romano articulando-o com outro edifício emblemáticos da cidade,<br />

a Sé, através da arborização do percurso que os ligava e do calcetamento do adro<br />

da catedral. No outro extremo do largo do templo, sobre a muralha, fará rasgar uma<br />

praça arborizada, o Passeio de Diana, que obrigou ao nivelamento da área com as<br />

ruas mais próximas e ao desmantelamento de umas casas pertencentes ao duque de<br />

Cadaval. Esta proliferação de árvores, agentes purificadores da atmosfera, também<br />

visava a salubridade da zona.<br />

Foi necessário esperar pelo ano de 1870 para que a edilidade chefiada por Manuel<br />

Viana se decidisse pelo restauro definitivo do templo. Tal aconteceu depois da publi-<br />

154


cação de um relatório a alertar para o mau estado de conservação do monumento,<br />

em 1869, da autoria de Augusto Filipe Simões, director da Biblioteca Pública. Mau<br />

estado que tinha obrigado à transferência da colecção de monumentos epigráficos<br />

reunida por Frei Manuel do Cenáculo, ali depositada, para a Galeria das Damas. A<br />

operação decorreu até 1871, foi dirigida pelo arquitecto italiano Giuseppe Cinatti<br />

e consistiu, não sem algum debate, na libertação do templo dos acrescentos estruturais<br />

não romanos e na sua recriação como ruína, composta por podium, colunas<br />

coríntias e entablamento .<br />

5.2 S. Francisco<br />

Em relação à igreja, ao convento e paço de S. Francisco, a demolição de todo o conjunto<br />

que ligava o corpo do templo com o chamado palácio de D. Manuel ou Galeria<br />

das Damas (ou Trem) não decorreu directamente do encerramento do espaço<br />

conventual em 1834 – a igreja foi-o dois anos mais tarde e assim permaneceu até<br />

1840. A única repercussão imediata dessa medida foi a instalação, a título provisório,<br />

do Tribunal Judicial no antigo refeitório manuelino. As circunstâncias alterar-seão<br />

somente a partir de 1863, com a inauguração, nesse ano, do caminho-de-ferro,<br />

que gerará expectativas de crescimento da cidade em direcção à estação ferroviária,<br />

pelo Rossio de S. Brás. Ter-se-á pensado que o comboio, o mais actual e rápido<br />

meio de transporte, por meio do qual passariam a chegar pessoas e bens à cidade, à<br />

semelhança do que vinha acontecendo noutras cidades do país e da Europa, atrairia<br />

comércio, serviços e população às suas proximidades e, consequentemente, a expansão<br />

urbana. Não tardou a surgir a primeira proposta de urbanização do Rossio de<br />

S. Brás, com a finalidade de o embelezar e optimizar, de modo a que a condução<br />

de passageiros e produtos da gare para o centro de Évora fosse menos incómodo<br />

e dispendioso. E embora a sua concretização se tenha traduzido apenas na tímida<br />

avenida da Estação (futura avenida Barahona), que não era mais que uma estrada,<br />

aberta na década de Setenta, o caminho-de-ferro veio trazer um dinamismo verdadeiramente<br />

revolucionário à área do convento de S. Francisco. De tal modo que<br />

se chegou a colocar a hipótese de mudar o nome de “Porta do Rossio” para “Porta<br />

do Progresso”, alteração que não chegou a ser efectivada, mas que corresponde às<br />

condições de reconversão que se iam estabelecendo naquela zona.<br />

Este processo iniciou-se a partir de 1864, quando o governo concedeu à edilidade,<br />

por decreto de 25 de Julho, a posse dos restos do paço de D. Manuel e do convento<br />

de S. Francisco, com a respectiva cerca e terrenos anexos. Como contrapartida, o<br />

155


executivo central impunha à câmara a obrigatoriedade de proceder, nos três anos<br />

seguintes, ao restauro da Galeria das Damas, devendo também dotá-la de uma nova<br />

função que não prejudicasse a sua integridade física, e à instalação de um tribunal<br />

judicial, de uma aula nocturna de instrução primária e de todos os serviços<br />

camarários considerados necessários no corpo conventual. Determinava também<br />

a abertura de uma praça que desafogasse e embelezasse a fachada da igreja de S.<br />

Francisco, com a qual se pretendeu abrir e logo melhorar, ampliando, a visibilidade<br />

da sua implantação na cidade. Ao fazê-lo, os eborenses rematavam a atenção que<br />

lhe tinham concedido em anos anteriores, de 1860 a 1862, quando a restauraram,<br />

em duas fases, por iniciativa de uma comissão de notáveis locais e sob a direcção do<br />

arquitecto inglês John Bouvie Jr. O cumprimento da determinação de desafrontamento<br />

do templo implicou, porém, a demolição da templete ou torre que rematava<br />

o Aqueduto da Água da Prata frente à galilé do templo[ALMEIDA, p. 30], acção<br />

que provocou uma forte polémica de ressonância internacional, com um artigo de<br />

protesto publicado no jornal inglês Athenoeum. A operação de desmantelamento do<br />

fecho do aqueduto acabou por atingir os cunhais e os dois arcos laterais da galilé,<br />

que foram pronta e gratuitamente reconstruídos por Cinatti. Como vemos, a hierarquização<br />

dos monumentos a que nos referimos atrás distinguiu, inclusivamente,<br />

dois bens com a mesma natureza patrimonial, mas com valores simbólicos distintos:<br />

o aqueduto e a igreja de S. Francisco, favorecendo esta última provavelmente porque<br />

evocava com maior grandiosidade a fase de apogeu da cidade.<br />

A vaga demolidora acabou por se estender, em 1869, à estrutura conventual, em<br />

particular aos corpos que ligavam o templo aos do Trem, que incluíam o claustro<br />

quinhentista das Gerais do Noviciado, com a finalidade de ganhar espaço para o<br />

levantamento de um mercado municipal. O mercado de D. Manuel, era esta a denominação<br />

prevista, devia substituir aquele que se realizava na praça do Giraldo e<br />

que tinha sido extinto em 1863, veiculando o arranjo daquela artéria no ano de<br />

1867: calcetamento a preto e branco do tabuleiro central, colocação de doze bancos<br />

e de candeeiros a petróleo para a iluminação pública.<br />

O novo equipamento que era o mercado público vinha juntar-se aos restantes<br />

melhoramentos que se estavam implementando nas proximidades, entre os quais<br />

se destacava o jardim público. A construção deste grande jardim aproveitou toda a<br />

área definida pelo baluarte do Príncipe e engrandecia o antigo Jardim das Amoreiras,<br />

que remontava a 1837. Nesse ano, numa iniciativa que conciliava a dimensão<br />

pragmática com a estética, o município tomou posse dos fossos dos baluartes de<br />

156


S. Francisco, desde a porta do Rossio à do Raimundo e da Piedade à rampa dos<br />

Castelos, e aí plantou amoreiras, em conformidade com ordens da rainha D. Maria<br />

II, que desejava promover o desenvolvimento desta indústria nacional. Em 1838,<br />

o jardim das Amoreiras foi criado no baluarte junto à “Porta do Rossio”. Vinte e<br />

cinco anos mais tarde, dá-se início à sua ampliação e reconversão em equipamento<br />

urbano de embelezamento, higiene e sociabilidade, filiado nos parques e passeios<br />

públicos que iam proliferando nas cidades do país (com destaque para Lisboa) e do<br />

resto da Europa, mas tendo especialmente os de Paris como modelo distante.<br />

A autoria do jardim público pertenceu, mais uma vez, ao italiano Giuseppe Cinatti.<br />

O seu projecto inovava no aproveitamento que fazia das estruturas antigas e<br />

monumentos aí existentes, como o torreão da muralha que se tornou na base das<br />

ruínas fingidas criadas por Cinatti e a Galeria das Damas que ficou integrada no<br />

interior do jardim. Ainda em conformidade com o decreto de 1864, a Galeria das<br />

Damas foi adaptada a museu de produtos naturais e industriais (Exposição Distrital<br />

Permanente), embora tenha funcionado sobretudo como Teatro Eborense, onde<br />

decorreram as primeiras sessões cinematográficas em Évora. Esta adaptação, decorrida<br />

de 1884 a 1887, ficou a cargo de Adriano da Silva Monteiro e consistiu no<br />

levantamento da cota do edifício para mais um nível por meio de uma estrutura<br />

em ferro fundido, com amplos janelões de arco abatido, de vãos preenchidos com<br />

grelhas de metal recortado e vidro 4 .<br />

Fronteira a uma das entradas laterais do jardim público, no outro extremo do baluarte<br />

do Príncipe, por de trás do convento de S. Francisco, no lugar de uma antiga<br />

casa dos séculos XV e XVI, foi levantada outra das obras com que Cinatti marcou<br />

a Évora Oitocentista, o palacete José Maria Perdigão ou, como foi designado após<br />

a morte deste abastado lavrador, palácio Barahona (apelido de Francisco Barahona<br />

Fragoso, o responsável pela conclusão da construção enquanto segundo marido de<br />

Inácia Angélica Fernandes, viúva de José Maria Perdigão). De resto, terá sido para<br />

levantar este palacete que o arquitecto italiano chegou a Évora em 1858. Desenhado<br />

segundo o revivalismo dos valores classicizantes da arquitectura renascentista italiana,<br />

com decorações interiores pintadas por António Carneiro, o palácio Barahona<br />

veio antecipar e depois sublinhar a relevância que o eixo sul da cidade adquiriu<br />

4 Na madrugada de 8 de Março de 1916, deflagrou um violento incêndio que destruiu a totalidade das estruturas<br />

metálicas erigidas por Adriano Monteiro. O palácio de D. Manuel permaneceu em ruínas até 1943, ano em que a Direcção<br />

Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais deu início à sua reconstrução tal como hoje se nos apresenta.<br />

157


com a chegada do caminho-de-ferro. Tanto que a 30 de Julho de 1863, José Maria<br />

Ramalho conseguiu, do município, o aforamento do recanto do Rossio de S. Brás<br />

mais próximo do seu palacete, a fim de saná-lo da marginalidade que aparentemente<br />

o frequentava, comprometendo-se, como compensação, a ajardiná-lo.<br />

Assim se terá polarizado uma nova centralidade para Évora que se pretendeu aglutinadora<br />

das diferentes dimensões de uma cidade, a do lazer e da higiene pública<br />

(jardim), a comercial (mercado), a religiosa e monumental (igreja de S. Francisco)<br />

e a residencial (palacete), da qual se chegou a planear a ampliação através de um<br />

projecto de urbanização do Rossio de S. Brás, com um novo bairro (denominado<br />

bairro Cenáculo) idealizado pelo vereador municipal Carlos Serra, apresentado e<br />

aprovado na câmara em 1909. Também houve a intenção de provê-la de um serviço<br />

administrativo com um projecto de construção de um tribunal na extremidade do<br />

convento de S. Francisco [ALMEIDA, p. 31], frente ao jardim público, em 1874.<br />

O novo tribunal, da autoria de Caetano Câmara Manuel, primeiro engenheiro da<br />

Repartição de Obras Públicas do Distrito de Évora, viria substituir a antiga sala de<br />

audiências instalada, nos anos Trinta, no convento. A substituição não aconteceu,<br />

o projecto de Caetano Manuel não saiu do papel, e a justiça permaneceu sediada<br />

na sala de S. Francisco, Cinatti te-le-á renovado, até que desapareceu devido ao<br />

desmantelamento do que restava da estrutura conventual em 1894. Esta tinha sido<br />

autorizada pela Câmara em 1892, que pôs à venda, para demolição, o que restava do<br />

convento ainda na sua posse, mas com a condição do possível comprador levantar<br />

contrafortes em alvenaria ou cantaria e erigir edificações contíguas à igreja que<br />

sustentassem os seus muros e albergassem os serviços da paróquia. Impunha ainda a<br />

abertura de uma rua com a largura mínima de 20 metros, compreendendo passeios<br />

laterais. A aquisição foi feita por Francisco Barahona Fragoso, que deu seguimento<br />

à demolição prevista, a qual abrangeu, para além da sala do tribunal, o claustro do<br />

século XV e a sala da Rainha. Procedeu-se simultaneamente a novo restauro da<br />

igreja, tinham surgido fendas na fachada, patrocinado também por Francisco Barahona<br />

Fragoso.<br />

6.Conclusão<br />

Este último destaque concedido a S. Francisco, ao cuidado posto na sua preservação<br />

quando tudo em redor se altera intencionalmente, sublinha mais uma vez e sintetiza<br />

a relação que os eborenses foram estabelecendo com a sua cidade no século XIX,<br />

equilibrada fragilmente entre a preservação do valor histórico que reconheceram<br />

158


como fundamental para a sua identidade, mas também para a sua sobrevivência<br />

pela atracção e interesse que despertava em forasteiros nacionais e estrangeiros, e a<br />

modernização que desejavam para o seu quotidiano. Fica contudo a questão se esta<br />

modernidade vandalizadora, como a classificaram muitos autores da época, não foi<br />

antes um compromisso que garantiu a sobrevivência da cidade enquanto espaço<br />

vivo e, essencialmente, vivido.<br />

Bibliografia<br />

ALMEIDA, Cármen e BARBOSA, José Maria Pinto; Riscos de um Século. Memórias da Evolução<br />

Urbana de Évora, Évora, Câmara Municipal de Évora, 2001 (catálogo da exposição).<br />

ALMEIDA, Fialho d’; Estâncias de Arte e Saudade, Lisboa, Livraria Clássica, 1924.<br />

BEIRANTE, Maria Ângela; Évora na Idade Média, dissertação de doutoramento em História<br />

Medieval, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1988.<br />

BERNARDO, Maria Ana; “A modernização das infraestruturas de saneamento na cidade de<br />

Évora: as vicissitudes do processo”, in A Cidade de Évora, n.º 5, 2001, pp. 259-290.<br />

BERNARDO, Maria Ana; Sociabilidade e Distinção em Évora no século XIX. O Círculo Eborense,<br />

Lisboa, Edições Cosmos, 2001.<br />

BORGES, Ana Maria de Mira; Évora: da reconquista ao século XVI. Alguns aspectos de desenvolvimento<br />

urbano e arquitectura, dissertação de aptidão pedagógica e capacidade científica em História da Arte<br />

Medieval, Universidade de Évora, 1988.<br />

CAROLINO, Miguel; “A Arquitectura Tumular em Évora- 1840-1910”, Além-Tejo, Évora, n.º 6,<br />

Dezembro de 1996, pp. 28-31.<br />

CAROLINO, Miguel; “A cidade dos mortos- um espelho da sociedade dos vivos. Estratégias de<br />

afirmação social no cemitério de Nossa Senhora dos Remédios de Évora”, in Actas do 2º Encontro<br />

de História Regional e Local do Distrito de Portalegre, Lisboa, Associação dos Professores de História,<br />

1996, pp. 217-284.<br />

ESPANCA, Túlio; Évora, Lisboa, Editorial Presença, 1996.<br />

FERNANDES, Maria da Conceição Lopes Aleixo; Os “restauros” e a memória da cidade de Évora<br />

(1836-1896), desenvolvida no âmbito do mestrado em Recuperação do Património Arquitectónico<br />

e Paisagístico, em 1998.<br />

FONSECA, Helder Adegar; O Alentejo no Século XIX. Economia e Atitudes Económicas, Lisboa,<br />

Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1996.<br />

159


FONSECA, Maria Teresa Rios; Absolutismo e Municipalismo em Évora, 1750-1810, tese de doutoramento<br />

em História, Universidade Nova de Lisboa, 2000.<br />

FREIRE, Maria da Conceição Marques; Rossios do significado urbano: um caso de estudo. O Rossio<br />

de Évora, dissertação de mestrado em Recuperação do Património Arquitectónico e Paisagístico,<br />

Universidade de Évora, 1999.<br />

GAMEIRO, Fernando Luís; Entre a Escola e a Lavoura. O Ensino e a Educação no Alentejo, 1850-<br />

1910, Lisboa, Instituto de Inovação Educacional, 1998.<br />

HERCULANO, Alexandre; “Mais um brado a favor dos Monumentos I e II”, in O Panorama, nº.<br />

60 e nº. 70, 25 de Agosto e 1 de Setembro de 1838.<br />

HERCULANO, Alexandre; “Os Monumentos I e II”, in O Panorama, nº. 93 e nº. 94, 9 e 16 de<br />

Fevereiro de 1839.<br />

Inventário Artístico de Portugal – Concelho de Évora, vol. VII, Lisboa, Academia Nacional de Belas<br />

Artes, 1966.<br />

LEAL, Joana Esteves da Cunha; Giuseppe Cinatti (1808-1878). Percurso e Obra, dissertação de<br />

mestrado em História da Arte, Universidade Nova de Lisboa, 1996, 2 volumes.<br />

MANSO, Maria de Deus Bento; Évora, capital de Portugal. 1531-1537, dissertação de mestrado em<br />

História Moderna, Universidade de Lisboa, 1990.<br />

MATOS, Ana Cardoso; “Aspectos técnicos e empresariais do abastecimento de gás e electricidade<br />

à cidade de Évora (1890-1933)”, in A Cidade de Évora, n.º 5, 2001, pp. 291-320.<br />

MATOS, Ana Maria Cardoso; Ciência, tecnologia e desenvolvimento industrial no Portugal oitocentista.<br />

O caso dos lanifícios do Alentejo, tese de doutoramento em História, Universidade de Évora, 1997.<br />

MENDONÇA, Alice; Crises de Mortalidade no Concelho de Évora, 1850-1900, Lisboa, Edições<br />

Cosmos, 2000.<br />

MURPHY, James; Voyage en Portugal, Paris, Chez Denné Jeune, 1797.<br />

ORTIGÃO, O Culto da Arte em Portugal, Lisboa, Livraria Bertrand, 1896.<br />

PEREIRA, João; “A afirmação do ferro na arquitectura pública em Évora (1888-1912)”, in A<br />

Cidade de Évora, n.º 5, 2001, pp. 427-452.<br />

RODRIGUES, Paulo Simões; “Évora, Urbanismo e Arquitectura: os projectos para o Bairro<br />

Cenáculo”, in A Cidade de Évora, n.º 5, 2001, pp. 75-88.<br />

RODRIGUES, Paulo Simões; “Giuseppe Cinatti e o restauro do Templo Romano de Évora”, in<br />

160


A Cidade de Évora, n.º 4, 2000.<br />

RODRIGUES, Paulo Simões; Património, Identidade e História. O valor e o significado dos Monumentos<br />

Nacionais no Portugal de Oitocentos, dissertação de Mestrado em História da Arte, Lisboa,<br />

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1998, 2 volumes.<br />

SILVA, António Carlos; “A «Restauração» do Templo Romano de Évora”, in A Cidade de Évora,<br />

n.º 1, 1994-95.<br />

SILVA, José Custódio Vieira da; Paços Medievais Portugueses, caracterização e evolução da habitação<br />

nobre dos séculos XII a XVII, dissertação de doutoramento em História da Arte Medieval, Universidade<br />

Nova de Lisboa, 1993.<br />

SILVA, José Custódio Vieira da; O tardo-Gótico em Portugal: a arquitectura no Alentejo, Lisboa, Livros<br />

Horizonte, 1989.<br />

SIMPLÍCIO, Maria Domingas; Evolução e morfologia do espaço urbano de Évora, tese de doutoramento,<br />

Universidade de Évora, 1997.<br />

SIMPLÍCIO, Maria Domingas; O espaço urbano de Évora: contributo para melhor conhecimento do sector<br />

intra-muros, dissertação de aptidão pedagógica e capacidade científica, Universidade de Évora,<br />

1987.<br />

161


162


Clara Menéres<br />

Universidade de Évora. Conferência proferida no dia 4 de Junho de 2003.<br />

A escultura e as novas tecnologias.<br />

Na evanescente vida contemporânea vemos cada vez mais a realidade ser substituída<br />

pela sua imagem, fenómeno que se estende à própria escultura. Grande parte do<br />

conhecimento que temos dela é por fotografia, reproduzida em vários suportes.<br />

Uma coisa é projectarmos imagens de um objecto tridimensional, outra é construílo<br />

e resolvê-lo sob o ponto de vista formal, estrutural e técnico. Uma questão é o<br />

aspecto visual da forma no espaço, outra é o domínio dos inúmeros conhecimentos<br />

necessários para a obtenção de um resultado controlado na execução de uma<br />

escultura.<br />

A escultura e a arquitectura têm em comum o facto de ambas serem artes da tridimensionalidade<br />

que se desenvolvem no espaço. A escultura diferencia-se da arquitectura<br />

não possuindo a sua função utilitária e de habitabilidade, reservando para si,<br />

apenas, a função simbólica.<br />

Nos primórdios da humanidade, a escultura e a arquitectura estavam mais próximas,<br />

partilhando de maneira mais integrada estas duas funções. Hoje, a ligação entre as<br />

duas artes é mais episódica, embora se possam estabelecer curiosas influências mútuas,<br />

ao nível dos materiais e das tecnologias. A propósito, vale a pena recordar o<br />

Museu Guggenheim de Bilbau, projectado por Frank Gehry, revestido com chapas<br />

de titânio, cujas formas escultóricas foram programadas a computador.<br />

A escultura contemporânea e, sobretudo, a arte pública utiliza muitos materiais<br />

de fabrico industrial, adaptando-se aos modernos desenvolvimentos tecnológicos.<br />

163


Vemos nas nossas praças esculturas de grandes dimensões em betão armado, em<br />

aço cortene, peças com materiais de síntese ou vidro. Escultores com vocação mais<br />

tecnológica têm participado deste esforço de modernização, pesquisando e integrando<br />

na sua arte as novas técnicas que, por vezes, são comuns a outros sistemas<br />

construtivos como a engenharia, a arquitectura e o design.<br />

O século XX foi um século de grandes transformações, cuja evolução se reflectiu<br />

no campo estético por sucessivas rupturas provocadas pela introdução de novos<br />

conceitos e expressões artísticas. Sendo difícil resumir um tão extenso período de<br />

experiências e movimentos estéticos, proponho-me apenas desenhar no tempo e<br />

na história, de um modo rápido e sucinto, a linha condutora que, ao longo do século<br />

passado despertou e equacionou a cultura científica e tecnológica subjacente à<br />

arte contemporânea. Procurarei definir algumas linhas evolutivas, associando artistas<br />

que desenvolveram uma experimentação artística que inclui novos materiais e novos<br />

conceitos de espaço e de tempo.<br />

1 - A escultura e as rupturas estéticas do séc. XX<br />

Começo por apresentar um quadro sinóptico dos principais acontecimentos relativos<br />

às novas tecnologias na arte do séc. XX. O início do século foi fértil em rupturas<br />

estéticas das quais abordarei, apenas, o Futurismo e o Construtivismo, seguidos de<br />

referências à Bauhaus e à New Bauhaus, fundada no final dos anos 30, nos Estados<br />

Unidos. Nesta primeira fase não estou a incluir nem o Cubismo nem o Surrealismo,<br />

entre outros movimentos, por me parecerem pertencer a outra filiação.<br />

Em seguida, abordarei a arte cinética que tem dois momentos: um, inicial, que<br />

acompanha as primeiras experiências e está presente nos movimentos tecnológicos<br />

da primeira metade do século. Um segundo tempo, no pós-guerra, durante o qual<br />

esta expressão se desenvolveu adquirindo novas características que foram exploradas<br />

por um grande número de artistas.<br />

Depois, vem o cinema e a fotografia, linguagens visuais que, tendo surgido no século<br />

XIX, progrediram de modo fulgurante ao longo do século seguinte, influenciando<br />

profundamente as artes plásticas. Desde o início foram consideradas como artes<br />

autónomas mas, pela sua preponderância na cultura de massas, acabaram por fecundar<br />

a produção das outras artes mais tradicionais, dando origem a formas artísticas<br />

híbridas. Neste caso não estamos perante uma ruptura mas uma miscigenação.<br />

No entanto, o facto decisivo do pós-guerra foi a revolução cultural introduzida<br />

pelos novos media, sobretudo pela televisão e depois pela Internet, a última aquisi-<br />

164


ção tecnológica que pôs o mundo em rede, revolucionando todos os processos de<br />

comunicação e informação.<br />

As artes visuais acompanharam esta mutação, desenvolvendo novas linguagens, cada<br />

vez mais acessíveis aos produtores artísticos através da disseminação da informática<br />

e dos computadores pessoais. Foi nas últimas décadas do séc. XX que assistimos ao<br />

aparecimento dos meios digitais aplicados às artes: os produtos multimédia, vídeo<br />

arte, instalação vídeo e arte por Internet.<br />

Nesta apresentação destaco dois criadores, homens determinantes para a sua época,<br />

por terem sido mestres do pensamento artístico. Refiro-me a Marcel Duchamp e<br />

Joseph Beuys, duas personalidades que introduziram novos conceitos e atitudes,<br />

influenciando a evolução da arte nas décadas seguintes. Embora não sendo especialistas<br />

em nenhuma tecnologia, criaram o campo estético indispensável ao desenvolvimento<br />

das novas expressões.<br />

2 - Futurismo<br />

A percepção da importância do movimento e da velocidade, que Virilio considera<br />

como um dos problemas maiores da contemporaneidade, especulando sobre<br />

o conceito de tempo-real e de simultaneidade, foi intuído no início do séc. XX<br />

pelos artistas do Movimento Futurista que consideravam “a noção de velocidade<br />

como valor plástico” e cujas ideias estão condensadas no Manifesto de Marinetti e<br />

nas esculturas de Boccioni que afirmava que “o abrir e fechar de uma válvula cria<br />

um ritmo tão belo, mas infinitamente mais novo que o de uma pálpebra animal”.<br />

Boccioni, escultor, pintor e escritor, propôs os conceitos de “visão simultânea” e<br />

de “linhas de força” para a definição da trajectória de um objecto em movimento<br />

no espaço.<br />

O Futurismo tem expressão no nosso país através de Almada Negreiros e Santa-<br />

Rita Pintor que foi influenciado pelos futuristas italianos. Julgo que devo também<br />

recordar o pintor Amadeu de Sousa “Cardoso por ser um artista português que, na<br />

primeira metade do séc. XX, integrou a vanguarda internacional, cujas obras mais<br />

importantes pertencem aos movimentos cubista e abstraccionista.<br />

3 – Construtivismo<br />

No norte da Europa, artistas russos procuravam respostas para os desafios que o<br />

progresso tecnológico apresentava no início do séc. XX. Num contexto social de<br />

grande ebulição, Vladimir Tatlin realizou, várias obras de escultura que são de um<br />

165


modernismo surpreendente. Os seus estudos para o Monumento à Terceira Internacional<br />

são, provavelmente, a sua obra mais conhecida e divulgada. Trata-se de um<br />

projecto de escultura monumental e rotativo, com diferentes velocidades em cada<br />

nível. Este monumento nunca chegou a ser executado.<br />

A escultura Complex Corner Relief em aço, alumínio e zinco, apesar de ser uma obra<br />

anterior, datada de 1915, manifesta uma grande inovação no tratamento das formas,<br />

empregando materiais industriais e apresentando uma solução inesperada para<br />

apoio da peça, que se fixa nas paredes, numa óbvia recusa do plinto e dos suportes<br />

clássicos da escultura.<br />

Embora Tatlin reivindicasse para a sua arte o termo de “produtivismo”, a verdade<br />

é que estava muito mais próximo das pesquisas e propostas de Gabo e Pevsner do<br />

que se poderia pensar, tendo em conta a disputa gerada entre eles. A “cultura dos<br />

materiais”, como dizia o próprio Tatlin, apoiando-se nas suas propriedades estruturais,<br />

assim como a procura geometrizada e espacial das composições, faz com que<br />

os consideremos integrados no mesmo movimento.<br />

O Construtivismo, para além de introduzir um novo conceito relativo aos materiais<br />

e à integração estética das tecnologias, caracteriza-se pela estruturação de objectos<br />

baseados numa geometria de leitura clara e imediata, com intersecções de planos a<br />

que Gabo chamou “estereometria”, como põe exemplo a Cabeça em ferro de 1916.<br />

Este autor desenvolveu a investigação científica necessária à produção de esculturas<br />

com a transparência e a claridade de modelos matemáticos. A integração do movimento<br />

na escultura era um dos aspectos mais importantes do Construtivismo.<br />

O termo “arte cinética” foi proposto pela primeira vez no Manifesto Realista, em<br />

1920, por Gabo e Pevsner.<br />

4 - Marcel Duchamp<br />

Marcel Duchamp é uma personalidade de extrema importância na evolução das<br />

artes visuais ao longo do século XX. O seu pensamento inovador começa a manifestar-se<br />

muito cedo, na primeira década do século tendo realizado o seu primeiro<br />

ready-made, Roda de bicicleta, em 1913. Duchamp era por si só um introdutor de<br />

rupturas. Embora associado ao Dadaísmo, a sua personalidade ultrapassou qualquer<br />

movimento, tendo tido uma importância que só foi inteiramente reconhecida e<br />

assimilada a partir da década de 60. No fim da segunda guerra, Duchamp deslocouse<br />

para os Estados Unidos onde passou a viver, influenciando várias gerações de<br />

artistas. Os seus conceitos estiveram na base do movimento Fluxos, que se definiu<br />

166


como Neo-Dada e cujos artistas se propuseram fazer anti-arte.<br />

Para Duchamp, “a arte era mais um meio alargado de transmissão de ideias e emoções<br />

do que um fim em si mesma”. Duchamp é também considerado como um<br />

precursor da arte conceptual, que surge nos anos 70, pela sua “exigência ética de<br />

devolução da arte ao espaço intelectual das ideias”.<br />

Pode-se dizer que devemos a Mareei Duchamp o ampliar do campo da criação e<br />

a emergência de uma liberdade que tornou possível, àqueles que se lhe seguiram,<br />

expressarem qualquer conceito por todos os meios disponíveis.<br />

5 –Bauhaus<br />

A Bauhaus teve uma importância enorme no ensino da arte, influenciando muitas<br />

escolas durante grande parte do século XX, primeiro na Europa e depois nos<br />

Estados Unidos. Foi fundada em 1919 por Walter Gropius, logo a seguir ao fim<br />

da primeira guerra mundial, que permaneceu como director até 1928. Esta escola<br />

teve várias fases estéticas e de ensino que corresponderam à sua instalação em três<br />

cidades da Alemanha.<br />

A Bauhaus alemã terminou em Abril de 1933, em Berlim, por pressão de dirigentes<br />

nazis, quando era director o arquitecto Mies van der Rohe.<br />

Para além da importância desta escola e dos conceitos modernistas que gerou – os<br />

quais ainda estão patentes no design e na produção industrial contemporâneos<br />

– o que me interessa sublinhar é a função formadora dos artistas que veicularam<br />

a influência construtivista, característica do período de Dessau, e cujo professor<br />

mais relevante foi László Moholy-Nagy. Este artista, juntamente com El Lissitzky,<br />

prolongou na Alemanha e depois nos Estados Unidos, os princípios estéticos do<br />

movimento construtivista.<br />

Vemo-lo introduzir materiais modernos como o aço inox, o vidro e o plexiglass,<br />

abastecer-se na indústria local e ensinar os estudantes a usarem máquinas industriais<br />

para a execução dos seus trabalhos. Ele próprio fez muitas experiências combinando<br />

vários materiais entre si e com diversas fontes de luz. Construiu peças de<br />

escultura cinética com efeitos de projecção lumínica, movidas por motores como é<br />

o caso da Lichtmachine, de 1930 e mais tarde, Space Modulator de 1940.<br />

A sua influência estendeu-se a muitos alunos, entre eles, Max Bill, com uma extensa<br />

e importante obra de escultura. Este artista procurou conjugar a intuição artística<br />

com o conhecimento científico, dando formas concretas ao pensamento abstracto<br />

e considerando a geometria como o fundamento de todas as formas. A título de<br />

167


exemplo, citamos a peça Superfície contínua em espiral, em latão dourado, executada<br />

em 1973-74 que pretende representar um movimento contínuo e eterno, um perpetuum<br />

mobile.<br />

6 - New Bauhaus<br />

Com o encerramento da Bauhaus na Alemanha, Moholy-Nagy deslocou-se para<br />

Londres onde viveu e trabalhou até 1937, ano em que foi convidado pela Association<br />

of Arts and Design para criar uma New Bauhaus em Chicago, cargo que<br />

Moholy-Nagy aceitou. Entretanto, Walter Gropius, antigo director da Bauhaus,<br />

ensinava em Harvard. György Kepes, também de origem húngara, amigo e excolaborador<br />

de Moholy-Nagy é por este convidado a ensinar na New Bauhaus e<br />

depois na School of Design de Chicago. Posteriormente, ensinou no Massachusetts<br />

Institut of Technology a partir de 1946, onde criou em 1967 um Centro de Investigação<br />

internacionalmente conhecido, o Center for Advanced Visual Studies, onde<br />

tive a oportunidade de ser Research Fellow, na época em que era director o seu<br />

discípulo, Otto Piene.<br />

Estamos perante artistas europeus que fugiram ao regime nazi e que foram acolhidos<br />

nos Estados Unidos, onde continuaram a sua investigação. Aqui vemos traçada<br />

a principal linhagem de artistas que entenderam a aquisição tecnológica como um<br />

elemento integrante da cultura ocidental e da sua prática artística. Não é por acaso<br />

que György Kepes, depois de passar pelas escolas de Design de Chicago, funda o<br />

CAVS na mais importante universidade científica e tecnológica da América, no<br />

MIT, em Cambridge. Kepes procura cruzar os saberes artísticos e científicos que<br />

darão origem a uma nova consciência estética e ao uso de mais e melhores meios<br />

de fazer arte. Desta ideia de Kepes surgiu no MIT um outro centro de investigação,<br />

igualmente famoso: o Media Lab, actualmente dirigido por Negroponte. Aí se<br />

criou o sistema de controle aéreo de mísseis conhecido por “guerra das estrelas”,<br />

inventou-se o conceito e desenvolveu-se a tecnologia da realidade virtual, da inteligência<br />

artificial e as expressões mais sofisticadas da holografia, orientada por Steve<br />

Benton, cientista que é actualmente Director do CAVS.<br />

7 - Arte cinética e energética<br />

Como já dissemos, a expressão “arte cinética” é referida pela primeira vez pelos<br />

construtivistas, embora seja do domínio comum que a escultura em movimento<br />

está associada ao nome de Calder. A problemática do movimento foi dominante na<br />

168


obra deste autor, ao ponto de dividir os seus trabalhos em dois grupos: os stabiles e os<br />

mobiles. Quem inventou o nome para as esculturas móveis de Calder foi Duchamp<br />

em 1932, artista que também utilizou o movimento nas Placas Rotativas, discos com<br />

espirais desenhadas para estudo dos efeitos visuais produzidos pela rotação.<br />

Apesar das experiências precursoras de alguns artistas que cedo se aperceberam da<br />

potencialidade da arte cinética mas, só no pós-guerra, nos anos 50, é que uma nova<br />

geração começou a usar o movimento, não como elemento lúdico acrescido à escultura<br />

– tomando-a mais versátil e espectacular – mas como projecto estético ao<br />

qual a forma e os materiais eram sujeitos. As esculturas começaram por ser movidas<br />

por dispositivos mecânicos e mais tarde por elementos electrónicos.<br />

De entre o número de artistas que exploraram esta nova estética como por exemplo<br />

Tinguely e Agam ou Pol Bury eu gostaria de destacar Schöffer e Takis, por me<br />

parecerem os mais interessantes neste contexto.<br />

As esculturas cinéticas de Nicolas Schöffer começaram por ser desenvolvimentos<br />

das propostas do Construtivismo. Gradualmente este escultor evoluiu para peças<br />

cada vez mais complexas, quase sempre integrando efeitos luminosos, fazendo uma<br />

investigação autónoma e muito interessante. Muitas das suas criações eram estruturas<br />

metálicas de grande dimensão destinadas ao ar livre. Nomeadamente com a série<br />

Chronos, de 1974, as suas esculturas mecânicas, adquiriram efeitos multimédia, que<br />

só veríamos aparecer mais tarde em peças com programação electrónica.<br />

A obra mais importante do seu percurso foi a Cybernétic Light Tour, Torre Luminosa<br />

e Cibernética projectada para La Défense e depois para Nova Iorque, não tendo<br />

chegado a ser construída. Esta segunda proposta, que foi apresentada ao Mayor de<br />

Nova Iorque por Denise Renée em 1986, constava de uma estrutura em aço inox<br />

com de 370 m de altura, espelhos de aço inox polido, fontes luminosas e raios laser.<br />

Após o 11 de Setembro, este projecto foi de novo proposto pelo governo francês<br />

para o espaço que fora ocupado pelas torres gémeas.<br />

Vassilakis Takis foi o pioneiro da Escultura Energética (Energy Art), tendo também<br />

produzido arte cinética. Fez experiências com electromagnetismo, construindo<br />

obras nas quais a energia e a força de atracção eram o elemento dominante, integrando<br />

também o som produzido pela tensão. A estes trabalhos realizados com<br />

atracção magnética, Takis chamou telemagnetismo. As suas obras mais conhecidas<br />

foram as séries de Sinais, realizadas nos anos 50 e 60, composições de peças vibratórias,<br />

que foram consideradas o primeiro exemplo de combinação de escultura<br />

com música.<br />

169


Em Portugal, não houve muitas experiências neste campo, embora gostasse de lembrar<br />

as peças mecânicas de René Bertholo, a máquina de Bragança que esteve exposta<br />

na Alternativa Zero e os trabalhos posteriores de Carlos Barreira.<br />

8 - Fotografia e Cinema<br />

A fotografia começou por ser uma invenção tecnológica que se revelou uma descoberta<br />

fundamental para o registo de imagens. Este facto gerou um novo paradigma<br />

no campo das linguagens visuais influenciando as artes plásticas ao longo de<br />

todo o séc. XX até aos nossos dias.<br />

Como nova linguagem da visualidade, entrou imediatamente em conflito com o<br />

paradigma precedente que pertencia à pintura e artes afins. Nos seus primórdios,<br />

a fotografia foi influenciada pela estética pictórica mas, rapidamente, os fotógrafos<br />

começaram a desenvolver experiências que inverteram o sentido da influência entre<br />

estas duas expressões e determinaram o destino das artes plásticas.<br />

Estou a pensar em Eadweard Muybridge e Marey, engenheiros que, em finais do<br />

séc. XIX, fizeram estudos de movimento registados fotograficamente. Estas imagens<br />

que decompunham e analisavam o movimento – o galope do cavalo, a locomoção<br />

humana, a corrida do atleta, etc. – estiveram na origem do trabalho de vários artistas<br />

futuristas, dadaístas e cubistas. Um bom exemplo desta influência é a pintura de<br />

Marcel Duchamp, Nu descendo uma escada nº2, de 1912, onde o artista utiliza uma<br />

visão analítica do movimento que foi adquirida através da máquina fotográfica.<br />

É no início do séc. XX que este meio de comunicação visual adquire autonomia e<br />

estatuto artístico através da obra de alguns artistas. Refiro-me, nomeadamente, ao<br />

pintor dadaísta e surrealista Man Ray que se notabilizou pela inovação e pesquisa<br />

neste novo meio de expressão. No entanto, a fotografia como obra de arte levou<br />

algum tempo a afirmar-se. O primeiro museu com uma colecção de fotografia foi<br />

o Modern Art de Nova Iorque, nos anos 20. De modo geral, só no pós-guerra é que<br />

a fotografia começou a ser apreciada, adquirida e coleccionada.<br />

Hoje, a fotografia e o cinema são parte do nosso pensamento visual, como diria<br />

Arnheim. São meios de percepção que mudaram radicalmente a nossa realidade<br />

visual, modificando o modo como seleccionamos e organizamos os nossos arquivos<br />

de memória.<br />

Bergson, que conhecia Marey, afirmou que “o mecanismo do nosso conhecimento<br />

habitual é de natureza cinematográfica”. Nós temos consciência de que as linguagens<br />

do cinema e da fotografia vieram alterar os conceitos formais de enquadra-<br />

170


mento e composição. O artista plástico passou a ver o mundo como se o seu aparelho<br />

visual fosse a objectiva de uma máquina fotográfica ou de filmar. A narrativa<br />

cinematográfica também introduziu códigos de leitura e interpretação visual que<br />

invadiram a vida quotidiana.<br />

É interessante verificar como passámos a integrar com naturalidade as imagens<br />

verdes que nos chegaram da CNN, durante a primeira guerra do Golfo, e de como<br />

já nos habituámos às imagens fluidificadas transmitidas por videofone, durante a<br />

última guerra do Iraque.<br />

No campo do cinema, a participação mais importante dos artistas plásticos foi dentro<br />

do movimento Fluxos, com uma série de filmes minimalistas, de que citarei, entre<br />

os mais importantes, Zen for Film de Nam June Paik e Disappearing Music for Face<br />

de Peter More com Yoko Ono. Paralelamente, outros artistas como Rauchenberg<br />

e Andy Warhol também realizaram filmes. No entanto, a manipulação das imagens<br />

em movimento pelos artistas plásticos, só começou de facto com o advento do<br />

vídeo que introduziu uma tecnologia cinematográfica muito mais simples e económica.<br />

O primeiro vídeo de artista que vi em Portugal foi realizado por Ângelo de<br />

Sousa nos anos 70, filmando o percurso de um caminhante no campo.<br />

9 - Joseph Beuys e as novas propostas estéticas<br />

Beuys é uma personalidade carismática, um artista único e irrepetível que revolucionou<br />

a arte do pós-guerra, tal como Duchamp rompeu os paradigmas artísticos<br />

do início do século. Duchamp e Beuys são os dois grandes desconstrutores da arte<br />

tradicional, pondo em causa a arte ilusionista, como a define Rosalind Krauss, tendo<br />

ambos reivindicado para a arte a sua função de instrumento do conhecimento<br />

que constantemente se questiona.<br />

Como diz Eddy Devolder “para Beuys, a arte não é de modo algum uma ilustração<br />

ou a materialização de uma teoria; é uma metáfora no sentido poético e próprio<br />

do termo: um veículo, um meio de transporte público, um elemento dinâmico<br />

cujo objectivo é reunir e concentrar as diferentes energias que constituem o mundo<br />

orgânico.” Para surpresa de muitos, relacionava a arte com outros domínios do<br />

conhecimento e até com o xamanismo. Beuys trouxe para a arte atitudes, comportamentos<br />

e materiais que nunca tinham feito parte deste universo. Trabalhou e<br />

concebeu peças com gordura, feltro, sangue, terra, mel e mesmo animais mortos.<br />

Beuys desenvolveu a sua actividade sobretudo nas décadas de 60 e 70 trabalhando<br />

até à sua morte em 1986. Desenvolveu várias formas de expressão artística<br />

171


que fazem parte da linguagem contemporânea como a instalação e a performance.<br />

Quanto à escultura objectual, produziu mais de 600 múltiplos que para ele eram<br />

“veículos de informação”, ou seja, instrumentos vitais para a disseminação das suas<br />

ideias.<br />

O ensino também foi um dos meios usados por Beuys para intervir na sociedade.<br />

O seu método de ensino era pouco vulgar e assentava no princípio de que “toda a<br />

gente é artista”, o que lhe valeu ser despedido da Academia de<br />

Arte de Düsseldorf em 1972.<br />

Claudia Swager diz que “Beuys, como muitos de nós na sociedade moderna, procurou<br />

o equilíbrio entre polaridades opostas. Na sua obra entrecruzou disciplinas,<br />

colocando-se entre o passado e o futuro, entre a mitologia e a história, a natureza<br />

e a tecnologia. Usou o banal e o esotérico, o simples e o complexo, o racional e o<br />

caótico. Beuys tentou unir arte e vida, processo e produto, político e poético, pagão<br />

e religioso, material e espiritual.”<br />

O seu trabalho convidava os espectadores a agirem activamente na formação dos<br />

seus pensamentos e do ambiente que habitavam. “Pensar é esculpir”, dizia ele. Beuys<br />

acreditava no poder criativo e acreditava que as soluções para os problemas do<br />

mundo viriam da arte e da imaginação. Insistia que devíamos usar as nossas ideias<br />

e intuição (o potencial criativo de cada um) para construirmos uma vida melhor,<br />

tanto no plano individual como comunitário.<br />

10 - Light art, new media e artes digitais<br />

Na actual época de transformações e rupturas fundamentais, é sensato olharmos<br />

com demora o fenómeno de clivagem introduzido pela tecnologia para melhor<br />

compreendermos os movimentos culturais do nosso tempo. Trata-se de uma mutação<br />

que não afecta só o campo da economia, da política e das comunicações, interfere<br />

também de modo decisivo no universo da arte, dos seus meios de produção<br />

e divulgação.<br />

Em primeiro lugar, é necessário compreender que a tecnologia não é uma actividade<br />

humana independente da cultura. É uma produção simbólica, ligada ao desejo<br />

de progresso, que tem informado o pensamento ocidental desde há séculos. É uma<br />

ideologia que teve como consequência o extraordinário desenvolvimento tecnológico<br />

do séc. XX, apesar de o motor do progresso não serem as boas intenções, mas<br />

as necessidades militares criadas pelas duas guerras mundiais e pela guerra-fria. Não<br />

nos esqueçamos que a Internet nasceu de um projecto do Pentágono, invenção que<br />

172


alterou todo o sistema de comunicação humano, tornando-o multidireccional e<br />

interactivo numa escala global, facto inédito na história da humanidade.<br />

Se a Internet parece oferecer a todos uma informação democratizada e o livre<br />

acesso ao conhecimento, a realidade dos factos mostra-nos que, a globalização esconde<br />

um novo modelo de dominação exercido pelos países ricos e desenvolvidos<br />

do planeta sobre as sociedades mais pobres e tradicionais, impondo-lhes modelos<br />

de cultura totalmente alheios. De qualquer modo, estamos perante um movimento<br />

irreversível para o qual nos devemos preparar, reflectindo e agindo, como recomendava<br />

Beuys.<br />

Nas sociedades europeias, como a nossa, a globalização também se faz sentir de<br />

modo decisivo, alterando a cultura, o relacionamento entre as pessoas e a produção<br />

artística. Não é por acaso que as mais recentes Documentas de Kassel, na Alemanha,<br />

tiveram por temas a acção política – na penúltima – e o multiculturalismo – na<br />

última.<br />

A globalização subverteu os valores que nos enquadravam de um modo para o<br />

qual ainda não estamos preparados. Não houve uma inversão de polaridades mas<br />

um upgrade, a implantação de uma meta-realidade, provocando uma desorientação,<br />

como diria Virilio, que obriga à instauração de um novo sistema de coordenadas. As<br />

teorias do caos, a geometria das catástrofes, a filosofia da desconstrução, as estéticas<br />

da desaparição e do acidente, são as primeiras tentativas para o estabelecimento de<br />

um novo mapa do real.<br />

A escultura desmaterializou-se. Não foi por que a madeira, o ferro ou a pedra tivessem<br />

deixado de existir, mas porque o acto artístico mudou de escala e de universo,<br />

passou do real para o hiper-real ou virtual. O seu conhecimento e divulgação passam<br />

por imagens que circulam nas auto-estradas da informação.<br />

De facto, estamos a viver uma mudança de paradigma que pode ser expresso num<br />

pequeno diagrama onde se vê a dupla transformação.<br />

Matéria g Energia<br />

Espaço g Tempo<br />

A passagem do mais simples ao mais complexo, das três às quatro dimensões. Hoje<br />

podemos dizer que vivemos na dimensão espácio-temporal definida como um continuum<br />

por Einstein. Nesta nova visão do mundo, tudo se constrói e desconstrói no<br />

tempo, tudo é movimento. O espaço e o volume são o resultado da percepção dos<br />

nossos sentidos, que são limitados e incapazes de apreender a verdadeira natureza da<br />

matéria que, de facto, é uma complexa organização energética.<br />

173


No que diz respeito à arte, pode-se dizer que hoje, trabalha-se mais com as energias<br />

que com os materiais tradicionais. E de entre todas as formas de energia a mais subtil<br />

e desmaterializada é a luz, de que são exemplo duas obras percursoras: Window<br />

or Wall Sign, néon.1967 de Bruce Nauman e TVGarden, mixed media, 1974-78, de<br />

Nam June Paik.<br />

Esta tomada de consciência fez aparecer, a partir dos anos 50, um conjunto de<br />

manifestações artísticas que se designam, genericamente, por lightart. Não se trata<br />

da utilização da luz para produzir imagens, como já vimos, mas do emprego das<br />

próprias fontes luminosas como matéria artística em si. Um dos artistas mais importantes<br />

neste tipo de arte é Dan Flavin que trabalhou o espaço transformado pela<br />

luz, utilizando essencialmente lâmpadas fluorescentes.<br />

Nam June Paik dedicou-se a uma arte que integrava o elemento mecânico e robotizado,<br />

usando os aparelhos de televisão como elementos para a construção de um<br />

novo imaginário em composições irónicas e desconcertantes.<br />

A holografia é uma outra tecnologia da luz que tem vindo a fazer progressos consideráveis<br />

nas últimas décadas, interessando muitos artistas. As imagens holográficas<br />

são projecções tridimensionais construídas no espaço por raios laser luminosos.<br />

Esta e outras tecnologias de ponta só poderão ser desenvolvidas em programas que<br />

envolvam várias instituições e que potencializem a utilização e a rentabilidade de<br />

equipamentos dispendiosos. No plano do ensino, este é mais um dos desafios que<br />

exige reformas de fundo que só podem ser concretizadas pela interdisciplinaridade,<br />

pela mobilidade de professores e de alunos, pela abertura institucional a outros sectores<br />

da sociedade e a novas soluções.<br />

Passando das artes da luz às do tempo, verificamos que na actualidade, as manifestações<br />

artísticas que atingem milhões de pessoas em todo o mundo, são os<br />

espectáculos musicais, quase sempre multimédia, assistidos ao vivo por multidões<br />

e difundidos por televisão. As artes performativas e as linguagens do tempo, dominam<br />

o nosso universo cultural e invadem as artes do espaço com a emergência de<br />

eventos, happenings, performances, vídeo-instalações e vídeos, entre outras expressões<br />

contemporâneas.<br />

Todas estas linguagens são suportadas por sistemas informáticos, em particular as<br />

artes digitais da imagem, o vídeo e a fotografia, e toda a arte cibernética e computorizada,<br />

expressões que se tornaram acessíveis a partir da década de 80 com a<br />

disseminação dos PC’s. Como executantes internacionalmente reconhecidos destas<br />

formas de arte, posso citar Joan Jonas, Bill Viola, Eija-Liisa Ahtila, Mattew Barney<br />

174


e Alan Sekula entre muitos outros artistas também interessantes. No campo da<br />

realidade virtual e da interactividade destaca-se o australiano Jeffrey Shaw, que foi<br />

director do Center for Art and Media do ZKM de Karlsrhue.<br />

No nosso país, grande parte destas aquisições tecnológicas só passou a ser utilizada<br />

pelos artistas, a partir dos anos 90. De qualquer modo, a rapidez com que estas<br />

tecnologias informáticas foram absorvidas é surpreendente. Novas gerações de criadores<br />

começaram a fazer um tipo de arte que integra os aspectos tecnológicos com<br />

uma perspectiva experimental e crítica. Desta nova geração poderei nomear, a título<br />

de exemplo, Alexandre Estrela, Rui Toscano, João Onofre, Filipa César, colectivo<br />

Virose, Rui Valério e António Caramelo, entre outros.<br />

Em Kassel, na 11ª Documenta, último evento desta série que, como os precedentes,<br />

foi determinante na avaliação das novas tendências da produção artística internacional,<br />

pude verificar a predominância deste tipo de arte experimental, tendo havido<br />

muito pouco espaço para as expressões tradicionais da pintura ou da escultura.<br />

Abril de 2006<br />

175

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!