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<strong>SEMI</strong><br />
NÁRIOS DE<br />
ESTUDOS<br />
DE ARTE:<br />
ESTADOS<br />
DA FORMA
Seminários de Estudos de Arte: Estados da Forma I<br />
Edições Eu é que sei<br />
Centro de História da Arte e Investigação Artística<br />
Universidade de Évora<br />
Palácio do Vimioso<br />
Largo do Marquês de Marialva, 8<br />
7002-554 Évora<br />
tel: 00 351 266702743<br />
fax: 00 351 266744677<br />
e-mail: chaia@uevora.pt<br />
www.chaia.uevora.pt<br />
Coordenação:<br />
Sandra Leandro<br />
Autoria dos artigos:<br />
Ana Luísa Barão, Clara Menéres, Diogo Félix, Duarte Belo,<br />
Elisabeth Évora Nunes, Emília Tavares, Filipe Rocha da Silva, Jorge Croce Rivera,<br />
Paulo Simões Rodrigues, Pedro Portugal, Sandra Leandro.<br />
Os textos são da responsabilidade dos respectivos autores.<br />
Capa e paginação:<br />
Nuno Neves<br />
Impressão e acabamento:<br />
Tipografia Peres<br />
ISBN:<br />
978-989-95584-3-4<br />
Depósito Legal:<br />
266630/07
Índice<br />
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7<br />
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9<br />
Sandra Leandro, Universidade de Évora, Universidade Nova de Lisboa<br />
Teoria e Crítica de Arte em Portugal no final do século XIX... . . .13<br />
Emília Tavares, Museu do Chiado<br />
Fotografia e Vanguardas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47<br />
Duarte Belo, Fotógrafo e Arquitecto<br />
A Representação da Paisagem pela Fotografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59<br />
Jorge Croce Rivera, Universidade de Évora<br />
Diaporéticas contemporâneas: a enigmática do sentir. . . . . . . . . . . . 67<br />
Filipe Rocha da Silva, Universidade de Évora<br />
Porquê criar imagens visuais? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
Pedro Portugal, Universidade de Évora<br />
Like Perseus artists have to behead Medusa and petrify the audience<br />
with it.<br />
Como Perseus os artistas têem que decapitar Medusa e petrificar a<br />
audiência. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91<br />
Ana Luísa Barão, Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto<br />
Teoria e Crítica de arte em Portugal na primeira metade do século<br />
XIX. Uma Exposição. Uma Análise. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103<br />
Diogo Félix, Artista Plástico e Professor<br />
S/título. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123<br />
Elisabeth Évora Nunes, Universidade Nova de Lisboa<br />
Caminhos do Urbanismo em Portugal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127<br />
Paulo Simões Rodrigues, Departamento e Centro de História da Arte da Universidade de Évora<br />
Urbanismo, Arquitectura e Monumentos Nacionais na Évora Oitocentista:<br />
Balanço Historiográfico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141<br />
Clara Menéres, Universidade de Évora<br />
A escultura e as novas tecnologias. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
Apresentação<br />
Este volume compila um conjunto de conferências proferidas no âmbito do Seminário<br />
de Estudos de Arte de 2002-2003, disciplina destinada aos finalistas do Curso<br />
de Artes Visuais da Universidade de Évora. O programa desta cadeira prevê o convite<br />
a personalidades do mundo das artes, artistas, teóricos, críticos que possam dar<br />
uma abertura, uma leitura múltipla sobre o universo dos estudos de arte, indo desde<br />
a prática artística e a sua problemática à reflexão sobre os conteúdos, ao enquadramento<br />
histórico, à análise crítica e reflexão estética.<br />
Nas doze comunicações aqui apresentadas encontramos autores com formações<br />
diversas e a desejável variedade de temas. Podemos acompanhar o pensamento de<br />
artistas que falam sobre a sua obra a criadores que analisam o meio profissional ou<br />
a realidade sócio-política e estética em que evoluem. Encontramos também artigos<br />
de estudiosos que se debruçam sobre a crítica de arte, a fotografia, a arquitectura e o<br />
urbanismo. Neste conjunto de textos também se sente a maneira como cada autor<br />
se expressa, indo da transcrição de uma comunicação oral, com toda a espontaneidade<br />
da linguagem, até à escrita mais elaborada concebida para a leitura.<br />
Esta publicação é a primeira de uma série que pretende dar a conhecer o que<br />
de melhor se realiza no ensino artístico desta Universidade, no plano da reflexão<br />
teórica. Pareceu-nos que seria este o modo adequado de divulgar as comunicações,<br />
dando-as a conhecer a um público mais alargado, a todos os que se interessam pelo<br />
conhecimento da arte.<br />
7
Temos ainda que agradecer à Mestre Sandra Leandro o trabalho de programação<br />
das conferências, os convites criteriosos às diversas personalidades intervenientes e<br />
a organização da publicação. Foi devido às suas qualidades científicas, método e<br />
persistência que esta publicação se tornou possível.<br />
Clara Menéres<br />
Lisboa, 25-9-07<br />
8
Introdução<br />
Ainda está vivo o minuto que / impede que morra sem raízes / cada minuto de hoje.<br />
Fiama Hasse Pais Brandão<br />
Estados da Forma é o subtítulo dos Seminários de Estudos de Arte que se realizam<br />
desde o ano lectivo de 2002-2003, prevendo-se a sexta edição no ano de<br />
2007-2008. Devo este subtítulo à Metafísica: ao contrário do par potência-acto,<br />
que permite entender especialmente a mudança, a relação matéria-forma faz-nos<br />
compreender como as coisas estão compostas. Tendo esta actividade uma forte preocupação<br />
pedagógica, procurando o dinamismo e a articulação de saberes, tentando<br />
mostrar o amplo horizonte das pesquisas em Arte, pareceu-me importante contemplar<br />
também a noção de forma que se apresenta como uma constante.<br />
Os Seminários têm como objectivo principal facultar o contacto com diversos<br />
intervenientes do mundo da Arte, oferecendo a possibilidade de debater os temas<br />
que se expõem. Privilegiou-se, desde o primeiro momento, a pluralidade de perspectivas<br />
e convidaram-se conferencistas não só da Universidade de Évora, mas também<br />
de outras instituições académicas, ou autores cujo trabalho é relevante. Sendo<br />
uma disciplina destinada aos alunos da Licenciatura de Artes Visuais da via artística,<br />
pensei que seria proveitoso se se alargasse a outro público, assumindo-se como um<br />
serviço cívico de acesso livre promovendo a necessária ligação da Universidade à<br />
sociedade. Procurando constituir-se como um instrumento de formação, os programas<br />
dos Seminários pretendem abarcar o máximo de temáticas proporcionando<br />
9
quer a reflexão sobre conteúdos que os alunos e o restante público aderem com<br />
facilidade, quer incluindo temas que não serão, talvez, de interesse imediato, mas<br />
que se planeiam, exactamente, para alargar o horizonte do conhecimento.<br />
Foi também nosso objectivo, desde o início, que se publicassem os textos resultantes<br />
das conferências que apresentaram, em alguns casos, linhas de investigação e/ou<br />
criação singular, ou colectiva, inéditas. É grato ter ouvido muitas vezes ao longo<br />
destes anos: «é a primeira vez que estou a apresentar o meu trabalho» e é estimulante<br />
poder publicar esses contributos.<br />
Desde a concepção do programa, até à participação dos conferencistas, esta tem sido<br />
uma iniciativa que vive exclusivamente da boa vontade dos intervenientes. Por isso,<br />
quero destacar e agradecer a colaboração imensamente generosa de todos os conferencistas,<br />
quer dos meus colegas da Universidade de Évora, quer, em particular,<br />
daqueles que aqui se deslocaram sem qualquer retribuição monetária partilhando<br />
o seu saber. A elaboração dos cartazes, ao longo destes anos, não teria sido possível<br />
sem a preciosa ajuda da Mafalda Matias e do Duarte Belo. A ambos quero deixar o<br />
meu agradecimento mais expressivo.<br />
Grande parte das sessões foram transcritas pela ex-aluna Rita Vargas Matias, que<br />
cumpriu de forma exemplar a sua função, e a partir delas os autores redefiniram<br />
o seu texto. As comunicações muito flexíveis e plurais na forma e no conteúdo,<br />
possibilitaram, em alguns casos, o debate ao longo da exposição não sendo, por isso,<br />
passíveis de uma transcrição mecânica. Na maioria dos casos conservou-se a vivacidade<br />
da exposição oral, por vezes, em detrimento de uma forma mais burilada, não<br />
se perdendo, no entanto, o carácter do Seminário.<br />
Os textos que agora se apresentam pertencem aos Seminários organizados no ano<br />
lectivo de 2002-2003 e seguem a ordem do programa. O primeiro artigo, de minha<br />
autoria, versa as linhas fundamentais da Teoria e da Crítica de Arte em Portugal no<br />
final do século XIX, numa reflexão a partir de fontes escritas e do desenho humorístico.<br />
O segundo artigo de Emília Tavares, Técnica Superior do Museu do Chiado<br />
e Investigadora especialmente no domínio da Fotografia, aborda os discursos fotográficos<br />
do Construtivismo, Dadaísmo, Vorticismo e Surrealismo, problematizando<br />
de forma muito interessante os contributos de Man Ray, Christian Schad, László<br />
10
Moholy-Nagy, El Lissitsky, Alexander Rodtchenko, entre outros. Duarte Belo, Fotógrafo<br />
e Arquitecto, apresentou no Seminário um vasto conjunto de fotografias<br />
que tinha realizado em Portugal nos últimos dez anos. O seu texto é um breve reflexo<br />
desse momento em que afirmou que tenta compreender «que fascínio exerce<br />
a terra e, provavelmente, sempre exerceu, sobre quem a olha, sobre o viajante, ou<br />
sobre quem, em tempos muito recuados, aí terá chegado na procura de um local<br />
para habitar». O artigo do Investigador e Professor desta Universidade Jorge Croce<br />
Rivera, começa por explicar como o pensamento se constitui através de dificuldades.<br />
Interrogando o enigma do sentir na comoção estética, analisa duas obras<br />
do Museu Nacional de Arte Antiga, entre elas o conhecido Ecce Homo, do século<br />
XV, e aplica a noção de jogo proposta pelo antropólogo René Callois ao domínio<br />
artístico da Apresentação e da Representação. Filipe Rocha da Silva, Pintor e também<br />
Professor desta Universidade, abordou várias questões em torno da criação de<br />
imagens, terminando com a tradução livre do testamento de Maria Helena Vieira<br />
da Silva. Pedro Portugal, que na altura assinava Pedro Porttugal, igualmente Pintor<br />
e Professor da Universidade de Évora, iniciou assim a sua invulgar palestra: «A<br />
minha experiência (prefiro falar de litania) académica de 12 meses é caracterizada<br />
pela assunção» e prossegue explicando-a. Lamentamos não publicar a excelente<br />
conferência do Professor da Universidade Católica do Porto, José António Falcão,<br />
intitulada «Visões do invisível. A salvaguarda e a valorização dos bens culturais da<br />
Diocese de Beja». Ana Luísa Barão, Professora da Faculdade de Belas Artes do Porto,<br />
considerou a Teoria e Crítica de Arte em Portugal na primeira metade do século<br />
XIX. Dividindo o estudo em duas partes, na primeira deteve-se, em particular,<br />
sobre dois textos: O ensaio sobre a crítica de Alexander Pope, e Reflexões sobre a<br />
arte crítico-pictórica de Michael Angelo Prunetti. Na segunda abordou a recepção<br />
crítica da Exposição da Academia de Belas Artes de Lisboa de 1843. Diogo Félix,<br />
Pintor e Professor, mostrou na sua conferência um conjunto de reproduções do<br />
seu trabalho, entre as quais algumas peças de duas séries: árvores e casa. No texto<br />
revela parte do seu processo criativo até chegar ao que ambiciona como estética<br />
do silêncio. O artigo da Arquitecta e na época Professora da Universidade Nova de<br />
Lisboa, Elisabeth Évora Nunes, percorre os caminhos do Urbanismo em Portugal<br />
incidindo no caso de Évora. Partindo da sua ampla experiência pessoal, sublinha<br />
que para se entender o desenho do território é necessário compreender vários<br />
legados, desde a herança romana até às novas políticas de ordenamento. Paulo Simões<br />
Rodrigues, Investigador e Professor da Universidade de Évora, apresentou<br />
11
uma comunicação intitulada «Urbanismo: Arquitectura e monumentos Nacionais<br />
na Évora Oitocentista: balanço historiográfico». Neste excelente trabalho, podemos<br />
encontrar muita e bem estruturada informação desde a contextualização do tema<br />
«expandir, circular, higienizar e tipificar foram os princípios que determinaram o<br />
paradigma da cidade do século XIX» até ao «restauro arquitectónico como agente<br />
dinamizador da renovação urbana». Compete ainda destacar o último artigo da Escultora<br />
e Professora da Universidade de Évora, Clara Menéres. Tomou como base<br />
da conferência a sua Prova de Agregação expondo o tema «A escultura e as novas<br />
tecnologias» tratando «de um modo rápido e sucinto, a linha condutora que, ao longo<br />
do séc. XX despertou e equacionou a cultura científica e tecnológica subjacente<br />
à arte contemporânea». Menciona vários percursos, entre os quais, o de Marcel<br />
Duchamp, Gyõrgy Kepes, Schõffer, Vassilakis Takis, Joseph Beuys. Neste momento<br />
final, cabe indicar a origem dos Seminários. Deve-se justamente à Professora Clara<br />
Menéres, a ideia inicial dos mesmos tendo-os organizado entre 2000-2002. Foi a<br />
seu convite e participando neles que tomei pela primeira vez contacto profissional<br />
com a Universidade de Évora e coube-me dar continuidade à sua ideia.<br />
Acreditando na Universidade como lugar de criatividade, rigor e produção de saber,<br />
o princípio que me norteia ao programar esta actividade está contido na máxima:<br />
«o saber só se multiplica se se divide».<br />
Sandra Leandro<br />
12
Sandra Leandro<br />
Universidade de Évora; Universidade Nova de Lisboa. sleandro@megamail.pt.<br />
Conferência proferida em 5 de Março de 2003.<br />
Teoria e Crítica de Arte em Portugal no final do<br />
século XIX…<br />
”Não há arte entre nós, não ha pintores, não há quadros, não ha talentos”, diz-se quando<br />
se falla da pintura, e em todos os jornaes fervilham noticias chamando eminentes e illustres a<br />
todos os sugeitos que, a troco de algumas libras, pintam retratos sem talento e sem semelhança.<br />
(…) Um adjectivo arrasta outro, este é distincto, aquelle há-de ser illustre, aquell’outro<br />
eminente, e aquell’outro primeiro. E a sinceridade vae assim atraz dos adjectivos, ficando<br />
esphacelada em cada um d’elles, e chegando ao fim transformada em hypocrisia. (…) Quando<br />
d’aqui a séculos se quizer estudar a historia de hoje encontrar-se hão reputações de gigantes<br />
e obras de anões.<br />
Gilberto, Diario da manhã, 12 de Abril de 1877, [1].<br />
Vimos ao fechar da porta, o que não é para admirar, porque há muitos que não foram lá<br />
quando estava aberta; a exposição? Sim. Os liliputianos; as ratas sábias; o palácio encantado;<br />
a mulher turpila, ou a gorda, e a gigante a barbuda. Isso sim; custa dinheiro, mas diverte.<br />
Pinturas nem de graça. Depois, não se entende nada daquilo. Isto de ver quadros é preciso<br />
entender; é como receitar mézinhas, falar da política, perscrutar nos astros… E nos olhos. Não<br />
se sabe o que vêem, e daí uma interrogação constante: “o que é isto, o que é aquilo, o que é<br />
aqueloutro?” Uma cegueira completa; uma fadiga; uma maçada. Não se vai lá. À exposição. É<br />
o mais simples, o melhor, o mais tranquilo. O estar aberta ou o não estar é o mesmo. E antes<br />
13
fechada, por que nos não perguntam por ela.<br />
Xylographo, O Occidente, nº 309, 21 de Julho de 1887, p.163.<br />
Devo prevenir caridosamente os 1:500 Zacharias d’Aça que Lisboa, hoje possue, que estas<br />
comparações faço-as, não para fazer critica, mas para tornar mais comprehensivel esta chronica<br />
do publico que me lê, e que por emquanto está pouco iniciado ás coisas d’arte. Eu tenho este<br />
defeito - gostar que todos me entendam, e nunca escrever uma linha, nem para privilegiados,<br />
nem para os mandarins da critica. É talvez por isso que os mandarins da minha terra me<br />
detestam. Paciencia!.<br />
Mariano Pina, A Illustração, nº10, 2 de Maio de 1890, p.146.<br />
As epígrafes que coloco à vossa consideração neste seminário são fortemente irónicas,<br />
no entanto, não queria deixar de sublinhar que, no final do século XIX, existia<br />
espaço de folha para diferentes sensibilidades opinativas. Não está tudo determinado<br />
pelo “génio do século XIX”, ou pela falta dele, mas não deve surpreender que<br />
surjam constantes e semelhanças com o nosso tempo…<br />
A Crítica de Arte é um género literário específico, que exige uma escrita e análise<br />
velozes. O seu exercício em Portugal foi, para alguns dos seus protagonistas um<br />
momento pré-político, para outros, uma actividade paralela, um segundo, ou terceiro,<br />
emprego. Através de uma análise aos principais periódicos e obras da época 1<br />
tentámos detectar quais os principais temas da Teoria e da Crítica de Arte nas três<br />
últimas décadas do século XIX. Destacaram-se as temáticas da procura da identidade<br />
nacional na arte, o ensino artístico, a complexa questão do Realismo, o Naturalismo,<br />
e o vasto campo da crítica aos principais eventos.<br />
I. A década de 70: O mistério da estrada Realista<br />
Gostaria de frisar o papel que o traço humorístico teve e tem como força de expressão<br />
crítica, através da imagem. Em primeiro lugar apresento-vos uma caricatura<br />
1 Refiram-se, entre outros periódicos: A Arte, Artes e Letras, Diario de Noticias, Diario da manhã, As Farpas, O Occidente.<br />
Dos volumes destaque-se Thesouros d’Arte e A Arte Nacional, de Luciano Cordeiro e Observações sobre o actual<br />
estado do ensino das artes em Portugal do marquês de Sousa Holstein, Folhas d’Arte de Monteiro Ramalho, O Culto da<br />
Arte em Portugal de Ramalho Ortigão, Arte e Artistas Portugueses de Ribeiro Artur. Optamos por manter a grafia da<br />
época.<br />
14
Fig. 1 - O Antonio Maria, 3 de Janeiro de 1880, p.7.<br />
15
que não se relaciona com o mundo artístico, mas com a «Acção da Critica sobre a<br />
evolução social». Rafael Bordalo Pinheiro fez, neste desenho, o balanço dos anos 70,<br />
através da figura indestrutível, resiliente, de Fontes Pereira de Melo, o mesmo que<br />
dá nome ao jornal O Antonio Maria 2 (fig. 1).<br />
Nos anos 70 do século XIX a Crítica e a História da Arte concederam uma atenção<br />
particular à verificação da existência de uma escola nacional de pintura, questão<br />
que se articula com um tema recorrente da cultura portuguesa: uma procura<br />
quase constante da identidade do país. Esta questão constitui uma das temáticas<br />
que transitaram do período anterior para este, servindo de problemática de fundo.<br />
Reconhecendo-se o importante papel que os estrangeiros tiveram no panorama<br />
artístico nacional ao longo dos séculos, ao qual acrescia o espírito nacionalista que<br />
se vivia na Europa do século XIX, era, de facto, necessária uma reflexão acerca das<br />
raízes e da identidade das Artes em Portugal.<br />
O primeiro artigo da revista Artes e Letras é revelador dessa preocupação. Redigido<br />
pelo marquês de Sousa Holstein (1838-1878), vice-inspector da Academia de Belas-Artes<br />
de Lisboa, teve justamente por tema «Grão Vasco e a Historia da Arte em<br />
Portugal». Numa perspectiva lúcida, Sousa Holstein observou que era justamente<br />
a escassez de estudos que promoviam a vulgar opinião de que «a pintura nunca<br />
existiu em Portugal com uma vida robusta, independente e nacional». Faltandolhe<br />
«tempo e forças» não se abalançava a tão gigantesca tarefa, tentando facultar,<br />
neste artigo, as conclusões que alguns estudiosos formularam sobre aquela matéria.<br />
Exaltando a necessidade de rigor e condenando a inexacta informação lendária,<br />
Sousa Holstein aprovava e expunha uma metodologia necessária aos historiadores<br />
de arte (a mesma que tinha sido seguida por aqueles que admirava): «critica severa,<br />
um rigoroso methodo de investigações pacientes e longos estudos nos archivos, a<br />
comparação attenta dos monumentos da pintura que sobreviveram aos estragos do<br />
tempo e dos pseudo restauradores» 3 .<br />
No número 2 da revista Artes e Letras, afirmou a existência de uma escola de Pintura<br />
nacional entre os finais dos séculos XV e XVI, tendo no início inspiração<br />
flamenga. Chamou, então, a essa escola: «eschola portugueza». Partindo da tradução<br />
que a Sociedade Promotora de Belas-Artes efectuou, em 1868, do estudo de<br />
2 António, surge sem acentuação conservando a grafia da época.<br />
3 Artes e Letras, Janeiro de 1872, p.2.<br />
16
C. Robinson, elaborou um conjunto de questões. A influência italiana foi ponderada,<br />
mas considerada posterior à de Grão Vasco e não auferindo o mesmo estatuto.<br />
A via flamenga foi igualmente observada relacionando-a com a vinda de Van Eyck<br />
na comitiva enviada por Filipe da Borgonha, tendo essa estada ocorrido entre 1428<br />
e 1430.<br />
Segundo Sousa Holstein, foi o carácter dual das produções artísticas portuguesas<br />
do século XVI, entre o flamengo e o italiano, aquilo que conferiu, uma identidade<br />
específica à arte portuguesa. Assim, foi recorrendo a referências de “escolas estrangeiras”<br />
que definiu a “escola nacional”.<br />
Durante a década de setenta, Luciano Cordeiro (1844-1900), dedicou-se à Crítica<br />
e à História da Arte e seria no futuro, presidente da Sociedade de Geografia. Em<br />
1875 publicou Thesouros d’Arte no qual elaborou uma crítica severa, e em algumas<br />
passagens violenta, acerca do panorama das Artes em Portugal, notando o «estado<br />
d’anemia artistica do paiz». Desiludido, afirmava que a Arte estava longe de ser considerada<br />
uma dimensão importante da vida na sociedade portuguesa. 4<br />
Na sua análise, chamava a atenção para a deficiente ou quase inexistente educação<br />
artística e convém que reparemos nos défices específicos que Luciano Cordeiro<br />
apontou: «não temos vislumbres de educação artistica; - que Lisboa, uma das cidades<br />
mais formosas pela Naturesa, é a capital mais reles pela Arte; - que não temos<br />
Museus, que não temos Escholas, que não temos Monumentos - e eu não fallo dos<br />
monumentos de ostentação e de moda, mas dos monumentos que representam<br />
uma certa vitalidade historica, o espirito e a tradição do collectivismo nacional,<br />
um sentimento esthetico, qualquer, sem o qual um homem é um idiota e o povo<br />
uma manada de bacoros» 5 . Para Luciano Cordeiro a fragilidade do espírito nacional<br />
constituía uma das causas do impasse que a Arte em Portugal vivia 6 . De facto, o<br />
apelo da História e a fixação num passado glorioso, idealizado, tornava-se cada vez<br />
mais forte…<br />
Tratava-se, assim, de um dever patriótico: «Uma nação sem Arte seria facto tão<br />
absurdo como um homem sem sentimento; uma nação na qual o sentimento esthetico<br />
se dissolve, adormece ou perde, é como o homem em quem a sensibilidade<br />
4 Cf. Luciano Cordeiro, Thesouros d’Arte, p.VI.<br />
5 Idem, pp.VII-VIII.<br />
6 Cf. Idem, p.XI.<br />
17
se deprava, se interrompe ou se extingue» 7 … Defendia a História e a tradição, mas<br />
reagia duramente contra o historicismo excessivo e mal entendido 8 . Acusava igualmente<br />
a falta de seriedade na reflexão teórica: «Andam nos ares (...) uns rumores<br />
desentoados de cosmopolitismo metaphysico, declamatorio, romantico, romanesco<br />
até, que quer passar por philosophia séria, positiva, actual sem se dar ao incommodo<br />
de aprender philosophia» 9 …<br />
Cabe também salientar um impressivo conjunto de questões que Luciano Cordeiro<br />
formulou, sendo extraordinariamente reveladoras do panorama artístico nacional:<br />
«Onde está a nossa arte? E eu perguntarei: porque vos impondes o artificio? Porque<br />
fechaes a porta á nossa historia? Porque pondes um dique ao sentimento e á<br />
tradição nacional? Porque vos isolaes do povo; porque voltaes systematicamente as<br />
costas ao vosso paiz?». Luciano Cordeiro demonstrava o seu horror à cópia perguntando:<br />
«Porque vos constrangeis e mascaraes, por que vos pondes a copiar, mal,<br />
porque nem a copiar bem queremos aprender, a copiar o que vos mesmos chamaes<br />
decadencia artistica?».<br />
Frisando a importância dos modelos franceses, revelava o panorama da arte em<br />
Portugal: «Temos uma arte: é franceza, ou antes uma arte francelha, que ou veste<br />
umas gallas convencionaes e fidalgas, e se diz academica, e se julga fadada para guiar<br />
o mundo, immobilisando-o, ou então veste... ou então não veste cousa alguma, não<br />
se contenta com ser sans-cullote, é obscena, e se proclama Messias regenerador da<br />
moral, da justiça e da verdade na esthetica, fazendo retrogradar esta até ao senso<br />
artistico de certas tribus selvagens» 10 . Para Luciano Cordeiro a necessidade de um<br />
conhecimento profundo da História Pátria surgia como uma exigência iniludível.<br />
Luciano Cordeiro não deixou de rotular como absurda a hipótese de uma incapacidade<br />
nacional relativamente à criação artística que, de resto, os factos desmentiriam.<br />
Em 1870, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão começaram a escrever, em parceria,<br />
o folhetim O Mistério da Estrada de Sintra. Continuaram a colaboração n’As Farpas<br />
considerando, com insistência, o estado incaracterístico, frágil e quase inexistente de<br />
7 Luciano Cordeiro, Da Arte Nacional, p.5.<br />
8 Cf. Idem, p.9.<br />
9 Ibidem.<br />
10 Idem, p.19-10.<br />
18
uma elaboração mental da cultura portuguesa. A partir de 1872, Ramalho Ortigão<br />
continuaria a solo.<br />
De facto, duas vias paradoxais cruzaram o discurso que As Farpas consagraram. Se<br />
por um lado pretendiam romper com os cânones anteriores, nomeadamente, ao<br />
fazerem pressão para que se instituísse o Realismo, que, como referimos, é um dos<br />
temas principais da Crítica de Arte da década de setenta, por outro a necessidade<br />
de reencontrar o país conduziu Ramalho, e não Eça, a recorrer a um eco que o<br />
período anterior tentou consagrar - a autenticidade das tradições populares como<br />
forma de aceder à genuína “alma portuguesa”.<br />
Em 1871, Eça de Queirós, na quarta Conferência Democrática do Casino intitulada<br />
«a nova literatura ou o realismo como nova expressão da arte» pretendeu<br />
transmitir a mensagem positivista de Proudhon: a necessidade do empenho social<br />
da arte. Precisando melhor a definição de Realismo definia-o como «a negação da<br />
arte pela arte, (…) a proscripção do convencional, do falso, do oco, do emphatico,<br />
do lacrimoso, do piegas», e esclarecia: «O romantismo era a apotheose do sentimento,<br />
o realismo deve ser a anatomia do caracter» 11 .<br />
Se, de facto, o Positivismo se estava a difundir, como o desejavam Eça e Ramalho, o<br />
lastro do Idealismo romântico captado pelo entendimento dos Artistas portugueses<br />
fazia-se ainda sentir de forma poderosa e no final do ano de 1875, Ramalho Ortigão<br />
escrevia n’As farpas um texto paradoxal mas revelador: «O romantismo está<br />
já hoje muito longe de nós» para mais adiante concluir «Que ainda o não digam<br />
os parlamentos, que ainda o não digam nem os theatros, nem os quadros, nem os<br />
livros, que importa, se no-lo diz a cada um de nós o nosso coração?» 12 Ramalho<br />
tentava iludir as fundas- raízes-fundas do Romantismo uma vez que desejava o estabelecimento<br />
de uma nova ordem nas Ciências e nas Artes em Portugal. Contudo,<br />
tal ocorria justamente pela razão inversa da apontada - o Romantismo tinha-se<br />
alojado com um carácter menos transitório do que esperavam aqueles que intuíam<br />
o espírito da modernidade.<br />
De facto, ao observarmos a Pintura dos Artistas aos quais se atribuía o epíteto de<br />
Realista, notamos como a linguagem pictórica não era segura na aplicação dos processos<br />
desta tendência estética. A generalidade da crítica apresentava Alfredo Andra-<br />
11 Diario Popular, 15 de Junho de 1871, p.2.<br />
12 As Farpas, Dezembro de 1875, p.28.<br />
19
de como o primeiro dos Pintores realistas portugueses. Alguns Críticos e Cronistas<br />
de Arte ao atribuírem essa designação, não queriam destoar de um determinado<br />
espírito do tempo que se vivia em Portugal, e que se queria novo, revolucionário<br />
e diferente do anterior. A essa diferença correspondia a designação de Realismo,<br />
ainda que o termo fosse vazio ou impróprio para a correspondência pictórica que<br />
assinalava.<br />
Coloca-se, assim, uma questão pertinente: será que a meio da década de setenta se<br />
viviam tempos tão distintos do panorama artístico da década anterior? No início<br />
de setenta asseverava-se n’As Farpas, a propósito dos literatos realistas, que a tinta<br />
que usavam para escrever era «diluida em verdade». Mas que verdade era essa que<br />
“o Realista” Alfredo de Andrade mostrava em cores? Se nessas crónicas se garantia<br />
que o Realismo «ensina a conhecer a personalidade interna, pelas exterioridades do<br />
corpo» que corpo senão o da natureza, este autor deu a conhecer? E que equívocos<br />
não geraria esta designação se ela é em si mesmo complexa e dupla…<br />
Se a doçura do pitoresco não estivesse presente nesta década, os Artistas que viviam<br />
em apuros económicos, veriam acrescidas as suas dificuldades num mercado de arte<br />
pequeno, como o existente em setenta, e composto, na sua generalidade, por um<br />
público de formação incipiente. Por isso, quando n’As Farpas se refere: «Nós não<br />
somos os meigos lisongeadores do mundo em que vivemos: o nosso processo não é<br />
positivamente o do pintor Latour, debaixo dos cujos amaveis pasteis se idealisavam<br />
as feições de todas as mulheres da Regencia, que elle retratou. Nós não procuramos<br />
o ideal, procuramos apenas o verdadeiro. Não é tão difficil de achar, mas custa<br />
um pouco mais a expôr. Ora as verdades são como as cabeças de marcella: Se não<br />
amargam não prestam» 13 parecem esquecer-se do contexto social em que viviam,<br />
procurando promover um modelo que a sociedade, como um todo, ainda não era<br />
capaz de integrar, particularmente no campo das Belas-Artes.<br />
Se o tema do Realismo daria por si só para um sem número de seminários, temos<br />
que prosseguir falando da crítica aos principais eventos. E quais foram eles no anos<br />
70? As exposições escolares das Academias de Belas-Artes de Lisboa e do Porto e,<br />
principalmente, as exposições da Sociedade Promotora de Belas-Artes em Portugal.<br />
Quanto às exposições escolares da Academia de Lisboa podemos referir a dura<br />
observação de Luciano Cordeiro: «Um meu amigo, rapaz de talento e de estudo,<br />
13 As Farpas, Fevereiro de 1872, pp.34-35.<br />
20
que tem viajado muito, incriminava-me uma vez por fazer a critica das nossas<br />
Exposições, annuaes. “É fazer a critica d’um nabo”, dizia-me elle. Mais nabiça, menos<br />
nabiça, eis a que se vão reduzindo as nossas Exposições. A culpa é dos nossos<br />
artistas? Não, não, não. Que hão de elles fazer, coitados!» e acrescentava «Elles, que<br />
não teem futuro, que chegam a não ter garantido o presente, e que não tiveram…<br />
passado» 14 … De facto, tudo leva a crer que as exposições da Academia de Lisboa<br />
não eram nesta época alvo de grande atenção. Se compararmos com a crítica a outros<br />
eventos, o número de artigos sobre estes certames é bastante inferior.<br />
O panorama no Porto parece ser um pouco diferente. Vale a pena destacar a acção<br />
empenhada do conde de Samodães à frente dessa Academia bem como as introduções<br />
que escreveu para os catálogos onde elaborou críticas pertinentes sobre<br />
actuação do Governo. Não foi um texto seu que escolhi analisar neste seminário,<br />
mas sim o artigo de Augusto Ramos, Crítico da revista Mosaico. Escrito em Janeiro<br />
de 1875, tendo por alvo a exposição trienal da Academia de Belas-Artes do Porto<br />
de 1874, Augusto Ramos apenas considerou neste evento duas obras notáveis: o<br />
Desterrado de Soares dos Reis e uma paisagem a óleo de Artur Loureiro. Quanto ao<br />
Desterrado confessava a impotência das palavras: «Não sabemos elogiar obras d’este<br />
merecimento. Vêem-se, admiram-se, estudam-se, analysam-se, e depois de consoladoramente<br />
dizermos: vimos, tornamos a admirar e não nos cansamos nunca, porque<br />
sentimos sempre agradaveis impressões» 15 …<br />
Apesar da Academia do Porto não possuir, à data, a cadeira de Pintura de Paisagem,<br />
Artur Loureiro foi apreciado pela determinação em escolher aquele género sendo<br />
considerado um Pintor realista: «É realista (…) Não busca além da verdade outros<br />
encantos. Para uns será isto defeito; no entanto elle segue com o seu olhar d’aguia<br />
os instinctos que inspiram os mestres da moderna arte. Tem a coragem, o animo e<br />
o talento de todos os apostolos d’uma idêa nova, a luz dos seus exemplos illuminará<br />
os desalentados, o progresso dos seus trabalhos incitará os que os desejam seguir, e<br />
a arte com o seu alento surgira do torpor em que se acha» 16 .<br />
Quanto às mais abundantes críticas sobre as exposições da Sociedade Promotora de<br />
Belas Artes publicou-se na revista Artes e Letras, um artigo da autoria de um Crítico<br />
14 Luciano Cordeiro, Thesouros d’Arte, p.XI.<br />
15 Mosaico, p.70.<br />
16 Ibidem.<br />
21
com longa carreira: José Maria de Andrade Ferreira, (1823-1875). Foi amanuense<br />
da Repartição da Fazenda do distrito de Lisboa e administrador do Concelho de<br />
Oeiras. Colaborou em vários periódicos: Panorama, o Archivo Pittoresco. Quanto à<br />
exposição considerou-a simultaneamente como «um certamen de todos os ramos<br />
das artes do desenho, e um mercado» 17 .<br />
A sua análise inicialmente optimista era coincidente com os objectivos da Sociedade<br />
Promotora. Passando à crítica, começou por salientar que esta exposição era<br />
incipiente, monótona e pouco significativa se comparada com outras que a Promotora<br />
tinha levado a efeito. Notava a predominância do retrato, o que o desagradava<br />
profundamente devido à sua má execução. Comentava aquele género como uma<br />
«humilhação», um «recurso extremo do pincel intelligente» que não valeria a pena<br />
se não se aproximasse dos «rasgos assombrosos dos Ticianos, dos Holbeins e Van-<br />
Dycks, e mais proximamente pelo talento elegante de Thomaz Lawrence, Madrazo<br />
e Grant» 18 . A pintura de género e a natureza morta «super abunda[vam]» o que era<br />
para Andrade Ferreira «symptoma sempre evidente de decadencia» 19 , claro indício<br />
de pouca imaginação.<br />
Outro comentário extraordinariamente revelador foi aquele que elaborou em torno<br />
de Manuel de Macedo: «O sr. Macedo é, talvez, o nosso artista que possue mais<br />
conhecimentos theoricos. Poucos, como elle, fallam tão bem a linguagem de atelier<br />
e entram mais facilmente na parte technologica da arte» 20 . E prosseguia: «o distincto<br />
artista, que com tanto resultado tem estudado a eschola franceza, abraçou com<br />
encarecimento os principios da proclamada eschola realista, cuja interpretação anda<br />
hoje tão desvairada, dando occasião a resultados onde os preceitos bem entendidos<br />
da arte e as regras eternas do bello tem tudo a condemnar. Felizmente, o sr. Macedo<br />
não tem saido de um justo equilibrio, e as suas tendencias para o realismo da actualidade<br />
unicamente se denunciam por uma certa sequidão de tinta, que a observação<br />
da natureza, nos seus aspectos mais risonhos e fulgurantes, como os offerece o nosso<br />
paiz, corrigirá pouco a pouco, alegrando a phantasia do pintor» 21 . Era pois esse<br />
17 Artes e Letras, Maio de 1872, p.70.<br />
18 Ibidem.<br />
19 Ibidem.<br />
20 Ibidem.<br />
21 Ibidem.<br />
22
«justo equilibrio» que marcava a indecisão artística da época. Vivendo a maioria dos<br />
Artistas numa situação económica precária, e não tendo sólidos princípios estéticos,<br />
não sabiam para que lado pender, formulando modelos de compromisso que lhes<br />
permitissem servir gostos de valor simétrico, que na crítica tendiam a definir-se<br />
mais do que na pintura. Dadas as circunstâncias, os modelos de compromisso tinham<br />
a dura razão da sobrevivência…<br />
No número de Abril de 1872 d’As Farpas, Eça e Ramalho elaboraram um comentário<br />
em tons muito diferentes dos que vimos anteriormente. Iniciavam essa crítica<br />
jocosa à mesma exposição da Sociedade Promotora de Belas-Artes, avisando que<br />
ali não era «a entrada do Parthenon nem das estancias do Vaticano nem da galeria<br />
do Louvre». Servindo-se da magnífica capacidade narrativa que tinham, descreviam<br />
com verve o exterior do edifício que continha as supostas obras de arte. Esta crítica<br />
de traços caricaturais que escreveram, tem fortes analogias com o tipo de desenho<br />
humorístico que vemos na fig.2, apesar de datar dos anos 80. De resto, as reportagens<br />
cómicas seriam abundantes no comentário às exposições. Eça e Ramalho<br />
também atacaram os quadros com um agudo, e por vezes cruel, sentido de humor.<br />
Podemos ler quanto ao quadro nº6: «Cabeça de carneiro com agriões -paizagem de<br />
restaurant à la carte».<br />
Manuel de Macedo foi apreciado de forma menos zombeteira, sendo duramente<br />
zurzido pelas paisagens expostas, especialmente porque estavam convencidos que<br />
podia chegar mais longe, conferindo à arte um papel de crítica social: «É difficil ver<br />
tratar um publico com uma familiaridade mais desdenhosa. Manuel de Macedo não<br />
lhe dá a honra de lhe apresentar uma idéa, mostra-lhe ao de leve alguns effeitos de<br />
luz: as suas pequeninas telas são esboços feitos a cantarolar e a fumar, para aguçar<br />
o pincel e firmar a mão. Macedo expoz o seu talento - do avesso. Desenhista de<br />
figura, expõe paisagens a oleo: artista critico e philosopho, observador e romancista<br />
a lapis - mostra-nos luares nublados e côres quentes do pôr do sol: artista que<br />
estuda a cidade e os seus costumes, diz-nos aspectos das aldeias, dos caminhos, ou<br />
das margens dos rios: tendo a psycologia, quer-nos dar a entender que só tem a<br />
côr; sabendo a alma, quer-nos fazer convencer, que só conhece a paisagem». Eça<br />
e Ramalho referiam que não desdenhavam a paisagem mas que só a pintura que<br />
fosse um estudo sobre a psicologia humana faria pensar, e esse era, sem dúvida, um<br />
dos objectivos da Arte.<br />
Quanto à X Exposição da Sociedade Promotora, António Enes (1848-1901), figura<br />
do diluído Partido Histórico, dramaturgo, fundador e redactor principal do jornal<br />
23
Fig. 2 - O Antonio Maria, 13 de Maio de 1880, p.162.<br />
24
O Dia, elaborou uma interessante apreciação crítica. Entendia que a Sociedade<br />
Promotora de Belas-Artes não podia «congratular-se pelos progressos artisticos do<br />
paiz» 22 , embora não a declarasse «inutil» e «nociva», pois face à escassez de recursos,<br />
era considerável a sua actividade. Interpretando os objectivos a que esta instituição<br />
se tinha proposto concluía que eram ambiciosos: «Incitar o publico indifferente a<br />
prestar á arte a homenagem da curiosidade, embora superficial, e do obolo, embora<br />
regateado, é serviço relevante e espinhosa tarefa que n’esta terra, onde o luxo raramente<br />
tem gosto e a riqueza só procura commodos»…<br />
Questionando-se acerca das causas da decadência que esta exposição manifestava,<br />
concluía que era a ignorância a responsável pela situação: «É a ignorancia dos<br />
artistas, ignorancia não dos processos, que quero suppôr que se aprendem e ensinam<br />
primorosamente, mas de quanto é indispensavel para a concepção da idéa.<br />
Examinem-se com boa critica os trabalhos dos pintores nacionaes: o que se nota?<br />
Que sabem em regra manejar o pincel, pôr as tintas, harmonisar as côres, traçar as<br />
perspectivas, reproduzir as fórmas, distribuir a luz e as sombras, mas não conseguem<br />
exprimir com os elementos da linguagem plastica uma concepção intellectual» 23 .<br />
Enes tocava, assim, na corda sensível da Arte em Portugal: a falta de reflexão e de<br />
conhecimento teórico que sustentasse a produção artística, desejando ele a coincidência<br />
entre os processos.<br />
Uma das chaves para o entendimento dessa ignorância, segundo António Enes,<br />
era o abandono da Pintura de História que considerava como «a pintura por excellencia»<br />
e notava as consequências desta fuga: «Como se foge da historia, arcano<br />
imperscrutavel para a arte portugueza, foge-se egualmente de toda a composição em<br />
que é forçosa a interferencia de um elemento ideal, e procuram-se com exclusivismo<br />
os generos infimos, para que sejam só os sentidos a guiar, á vista do manequim<br />
ou do panorama, a mão exercitada». Por isso notava o predomínio do bodegone e da<br />
paisagem, tendendo esta «a descambar na photographia colorida». Desolado, constatava:<br />
«todos estes phenomenos significam inanidade intellectual, e resultam do tão<br />
espalhado preconceito de que a vocação só por si faz o artista, de que as faculdades<br />
estheticas não carecem do auxilio das outras faculdades, e de que se póde egualar<br />
Kaulback ou Landseer sem saber lêr»…<br />
22 Artes e Letras, Fevereiro de 1874, p.29.<br />
23 Idem, p.30.<br />
25
Indignava-se porque a própria Academia consagrava a ignorância teórica escudando-se<br />
no potencial da vocação: «A academia tem dado caracter official a este<br />
preconceito, dispensando os seus alumnos dos mais modestos conhecimentos. Os<br />
livros são para os litteratos, diz-se, e até hoje não chegou a comprehender-se que<br />
para o estudo da pintura historica é rasoavel preparatorio o estudo da historia.<br />
O que aprendem os paizagistas de mineralogia ou de botanica? os animalistas de<br />
zoologia? Nada, e se não vão alem de copiar servilmente, é talvez por mêdo de<br />
plantar á beira mar arvores que só frondejam nas cristas das serras, ou de fazer florir<br />
a amendoeira em agosto. Ha tal, que tendo cursado as aulas da academia, se acerta<br />
ouvir fallar em esthetica ou archeologia, vae perguntar ao Moraes o sentido d’estas<br />
palavras esdruxulas» 24 …<br />
Notava a existência de pinturas «que eram como janellas abertas para o campo, mas<br />
por essas janellas não se avistava o espirito do artista. Via-se o objecto, mas não o sujeito.<br />
Não figurava lá quem pudesse dizer como Rembrandt: quando deixo de pensar<br />
deixo de pintar. A arte rastejava pelo processo, e este apoucamento sentia-o bem<br />
quem passava da exposição dos pintores para a sala da esculptura, e contemplava<br />
D. Sebastião pensando na conquista de Africa» de Simões de Almeida. Contudo, observava:<br />
«Mas para converter esse adolescente no rei D. Sebastião meditando na<br />
conquista de Africa empregou recursos intellectuaes e um cabedal scientifico, que<br />
nas escolas se não ministra aos nossos artistas, porque exprimiu com o cinzel a<br />
compehensão acertadissima de um caracter e quasi de uma época inteira da historia<br />
patria, o que não é empreza para ignaros deshabituados de pensar». E concluía:<br />
«Eis-aqui como eu entendo a arte, eis como a arte plastica póde ser uma linguagem<br />
e a mais conceituosa de todas. A estatura de D. Sebastião decompõe-se, cada linha<br />
é uma idéa, e o conjuncto é uma historia ou um poema. O sr. Simões de Almeida<br />
permitiu á minha esthetica exemplificar-se e mostrar aos artistas como a sua aspiração<br />
não é um impossivel».<br />
Quanto à Teoria da Arte entendida como uma formulação que pretende orientar a<br />
prática ideológica e técnica do Artista e as suas concepções acerca da Arte, não era<br />
um tema particularmente versado na década de 70 em Portugal. As considerações<br />
que surgiram encontram-se em textos de géneros vários. Registe-se a importante<br />
diferença em relação à época anterior, nomeadamente até à primeira metade do<br />
século XIX. Nesse período houve uma extensa produção teórica, embora os textos<br />
24 Ibidem.<br />
26
mais significativos fossem traduções, a crítica, por seu turno não, por várias razões,<br />
tão frequente.<br />
Pudemos constatar que os textos de teor eminentemente especulativo são de origem<br />
espanhola, como por exemplo os da revista La academia. Essa revista consagrava-se<br />
à publicação de estudos artísticos, arqueológicos e literários espanhóis e<br />
portugueses, numa iniciativa decorrente da vontade de propagar o iberismo. Vários<br />
autores portugueses escreveram para La Academia e através da sua leitura soubemos<br />
que Luciano Cordeiro trocava correspondência com o Crítico de Arte espanhol<br />
Francisco Maria Tubino.<br />
Ramalho Ortigão destacava-se no panorama da crítica pela clareza das suas ideias,<br />
convicções e critérios, empregando-os de forma coerente. Considerava a crítica<br />
uma actividade nobilíssima e complexa, que exigia uma elevada erudição e uma<br />
apurada sensibilidade e perspicácia. Para estudarmos as suas concepções teóricas,<br />
estéticas e críticas devemos compreender como empregou o conceito Estética. Não<br />
o apreendeu como um complexo sistemático-filosófico, nem como uma teoria<br />
da contemplação, nem desenvolveu uma estética metafísica. A sua perspectiva era<br />
outra: uma teoria da arte nascida da prática crítica 25 . Traduzindo as suas apreciações<br />
em juízos de gosto, Ramalho Ortigão seguiu o pressuposto kantiano enunciado<br />
na Crítica da Faculdade de Julgar (1790): «não existe uma ciência do Belo mas a sua<br />
crítica, e por isso passa para primeiro plano o sentimento do sujeito» 26 . Porém, no<br />
que dizia respeito ao sistema de pensamento, o autor d’As Farpas era herdeiro de<br />
um espírito idealista, apesar de repudiar tal herança.<br />
Uma das características mais marcadas do conceito de Arte durante o século XIX<br />
e nas primeiras décadas do seguinte, relacionava-se com a permanência da ideia<br />
de Belo Absoluto. No entanto, alguns autores iam proferindo uma opinião contrária<br />
a esta premissa, manifestando a sua convicção na relatividade da noção de<br />
Belo. Ramalho Ortigão estava entre aqueles que reagiam contra a noção de Belo<br />
Absoluto, manifestando influências de um historicismo positivista. Consagrando a<br />
Teoria do Meio, Ramalho defendia que o Belo não era uno e eterno mas histórico,<br />
relacionando-se, portanto, com o tempo e com o espaço. A maioria, porém,<br />
definia a Arte como a revelação de um Ideal. Esta consideração, eivada de espírito<br />
25 Maria João Oliveira, O Pensamento Estético de Ramalho Ortigão, p.11.<br />
26 Argan, G.C. & Fagiolo, Guia de História da Arte, p.90.<br />
27
omântico, vigorou com persistência, ainda que fosse a natureza o padrão pelo qual<br />
a Arte se regia.<br />
II. A década de 80: o triunfo do Naturalismo<br />
e a procura da «terra incógnita»<br />
Avançando no tempo os principais temas da crítica nos anos 80 foram o Naturalismo,<br />
as manifestações artísticas dos centenários, o ensino artístico, e evidentemente<br />
os principais eventos, somando-se às exposições das Academias e da Promotora<br />
as exposições do Grupo do Leão em Lisboa, as Exposições d’arte, no Porto, e a<br />
importante Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental Portuguesa e Espanhola,<br />
entre outras.<br />
Na década de 70 observámos como existia uma intercepção dos conceitos de Realismo<br />
e Naturalismo, conceitos vacilantes e fluidos tanto no domínio da crítica,<br />
como nos parcos textos de teor especulativo. Ora se estes termos foram provenientes<br />
da literatura, sobretudo francesa, sendo nela usados como sinónimos, nas<br />
simplificações mais imediatas, não entendemos que o uso indistinto de um ou de<br />
outro termo, na década anterior, seja um escolho somente português. De facto,<br />
tanto no estrangeiro como em Portugal, muitos daqueles que se dedicavam à crítica<br />
das Belas-Artes vinham do mundo das letras, aplicando directamente os conceitos<br />
que efectivamente faziam parte da mesma conjuntura cultural.<br />
A verdade é que o conceito de Naturalismo, era o mais adequado para a Pintura<br />
que os Artistas portugueses realizavam e na década de 80, verificou-se que a adjectivação<br />
de «pintura realista» foi praticamente substituída. De facto, a distinção entre<br />
um termo e outro nunca foi clara e esse equívoco devia-se não só à sua complexidade,<br />
como à inconsistente solidez na definição e reflexão acerca dos conceitos,<br />
tanto no discurso Crítico, como na própria produção artística. Uma dessas hesitações<br />
manifesta-se num texto de Eça ao elaborar um prefácio “burlesco” para o livro<br />
Azulejos, do conde de Arnoso. Assim, ao definir-se a si próprio, emprega de modo<br />
significativo as duas qualificações - «um renegado do idealismo, um servente da<br />
rude verdade, um desses iligíveis, de gostos suínos que foçam gulosamente no lixo<br />
social, que se chamam “naturalistas” e que têm a alcunha de “realistas”?».<br />
Tal como fizera antes, ao escrever sobre o Realismo, quando especifica o termo<br />
Naturalismo opõem-no ao movimento romântico, usando para isso o substantivo<br />
“realidade” e não a palavra “verdade”, apanágio do movimento realista - «o natu-<br />
28
Fig. 3 - O Antonio Maria, 14 de Outubro de 1880, p.333.<br />
29
alismo consiste apenas em pintar a tua rua como ela é na sua realidade e não como<br />
tu a poderias idear na tua imaginação - seria honrar o teu livro suspeitá-lo de naturalismo!<br />
Obra naturalista significaria então, para a nossa bondosa Lisboa - obra observada<br />
e não sonhada; obra modelada sobre as formas da Natureza, não recortada<br />
sobre moldes de papel; obra pousada nas eternas bases da vida, e não nesse monturo<br />
mole, feito de sentimentalismo bolorento» 27 .<br />
Fig. 4 - O Antonio Maria, 14 de Outubro de 1880, p.335.<br />
27 Eça de Queirós, Notas Contemporâneas, p.101.<br />
30
Passando a observar a crítica aos eventos ocorridos notemos o que foi escrito sobre a<br />
XIV exposição da Academia do Porto ocorrida em 1884. M.[anuel?] R.[odrigues?]<br />
(c.1847-1899) que se dedicou sobretudo à actividade jornalística e escreveu o conhecido<br />
romance A rosa do adro, afirmava, que a Academia Portuense era o melhor<br />
estabelecimento de ensino artístico do país, tanto na frequência de alunos como<br />
no aproveitamento. De facto, podia esgrimir vários nomes sonantes: Silva Porto,<br />
Marques de Oliveira, Soares dos Reis, Artur Loureiro, entre outros.<br />
Em 1880, a exposição da Sociedade Promotora de Belas-Artes recebeu um novo<br />
fôlego, mercê da apresentação dos trabalhos de Carolus Duran, Silva Porto e Marques<br />
de Oliveira. Com este certame, julgou-se na revista O Occidente, que a arte<br />
nacional deixaria de ser considerada um mito. A opinião de Rangel de Lima (1839-<br />
1909) sobre este evento é muito significativa, sobretudo porque este Crítico escrevia<br />
para vários órgãos: A Arte, O Diario de Noticias e o Diario da Manhã. Já na década<br />
anterior o nome de Rangel de Lima era um dos mais importantes. Sócio fundador<br />
da Sociedade Promotora das Belas-Artes em Portugal, dramaturgo, funcionário do<br />
Ministério da Marinha, desenvolvia uma intensa actividade jornalística. Rangel de<br />
Lima chegou a qualificar Silva Porto como impressionista, mas também como realista,<br />
o que revela uma certa incongruência na utilização da terminologia analítica.<br />
Apesar de ter distinguido as diferentes apreciações, notemos que após ter comparado<br />
Silva Porto a Júlio Dinis, no Diario de Noticias, no Diario da Manhã aproximá-loia<br />
de Eça de Queirós... Referindo Céfalo e Procris de Marques de Oliveira lamentava<br />
a fraca representatividade de Pintura de História, o que é, de resto, uma das linhas<br />
de força que transitaram do período anterior.<br />
Rangel de Lima apontava a deficiente cultura artística do público. De facto, eramlhe<br />
oferecidos poucos instrumentos de educação do gosto: no ensino faltava um<br />
cuidado atento às disciplinas relacionadas com as artes, e eram praticamente inexistentes,<br />
ou obsoletos, os museus e as exposições. Este certame iluminou o panorama<br />
e o público acorria, com entusiasmo, à exposição. Satisfeito com a mudança, Rangel<br />
de Lima comparava o “cenário” com o que tinha acontecido há oito anos atrás,<br />
quando predominavam os referentes mitológicos. Distinguia a renovação que Carolus<br />
Duran tinha introduzido no retrato, revelando igualmente o seu desprezo pela<br />
fotografia. Columbano foi desde logo registado como uma individualidade ímpar,<br />
mas censurava-lhe a reduzida dimensão dos quadros e o tratamento displicente da<br />
31
tela 28 . Importa sublinhar que Ramalho Ortigão também conferiu grande importância<br />
a este evento, manifestando-o com a sua peculiar vivacidade.<br />
Monteiro Ramalho (1862-1949), Crítico de Arte, amigo do Grupo do Leão, irmão<br />
do Pintor António Ramalho, dedicou-se intensamente à actividade jornalística tendo<br />
escrito para O Occidente, o Diario de Noticias, O Primeiro de Janeiro, Revista Moderna,<br />
entre outros. Considerou que a XIII exposição da Promotora, revelava uma<br />
profunda decadência augurando-lhe a morte. A sensação desta mostra foi a recusa<br />
emendada de Soirée chez lui/Concerto de Amadores de Columbano.<br />
A crítica de Xylographo à XIV exposição da Sociedade Promotora, uma das vozes<br />
mais interessantes d’Occidente, caracterizou vários hábitos “culturais” da época.<br />
Indignava-se que os Artistas estudando Pintura de História terminassem a fazer<br />
retratos uma vez que a primeira não era adquirida 29 . Pensamos que sob este pseudónimo<br />
se esconde a figura de Caetano Alberto (1843-?), xilógrafo de profissão e um<br />
dos fundadores da revista ilustrada O Occidente. De resto, a crítica sob pseudónimo<br />
foi frequente durante o final do século XIX. Ontem, como hoje, ser Crítico de<br />
Arte, não era cómodo. Eram figuras geralmente contestadas e assinar sob pseudónimo<br />
poderia trazer várias vantagens: uma certa protecção, a multiplicação quer<br />
da opinião, quer da ideia de que existia um maior dinamismo nesta área. Ramalho<br />
Ortigão usou o pseudónimo de João Ribaixo, e de Simplício Feijão; Guilherme de<br />
Azevedo, João Rialto; Rangel de Lima o de Rapin; Manuel de Macedo o de Pin-sel<br />
e de Spectador; Fialho de Almeida, Valentim Demonio, entre muitos outros.<br />
Monteiro Ramalho, um dos Críticos mais importantes e também dos mais jovens,<br />
ao considerar as exposições do Grupo do Leão atribuiu a Silva Porto o lugar cimeiro,<br />
opinião coincidente com a de Ramalho Ortigão. Sobretudo na segunda<br />
exposição do Grupo, notou uma favorável mudança no público. Ramalho Ortigão,<br />
perspicaz e rápido na análise, observou, na terceira mostra que os discípulos avançavam<br />
enquanto os mestres estagnavam o que era desde logo um sintoma inquietante.<br />
Ao comentar essa mostra, Monteiro Ramalho frisou os conteúdos panteístas<br />
da obra de Silva Porto, tecendo uma análise técnica um pouco mais profunda se a<br />
compararmos com as que tinha escrito anteriormente.<br />
28 Cf. A Arte, Abril de 1880, p.63.<br />
29 Cf. O Occidente, nº309, 21 de Julho de 1887, pp.163-166.<br />
32
Fig. 5 - Pontos nos ii, 20 de Dezembro de 1888, p.824.<br />
33
Abel Acácio (1856-1917), militar de profissão a quem muitas vezes fugia a pena<br />
para matizes poéticos, também elaborou uma crítica sobre o terceiro certame, observando,<br />
ao invés de Ramalho Ortigão, vários progressos sendo a pedra de toque<br />
o facto de a figura ser cada vez mais representada.<br />
Artur Lobo d’Ávila (1855-?) formado com o Curso Superior de Letras, desenvolvia<br />
ampla actividade jornalística no Commercio de Portugal, no Novidades, no Diario de<br />
Noticias, entre outros. Num interessantíssimo artigo pôs em questão algumas opiniões<br />
de Abel Acácio. Caracterizou com notável acuidade uma das faces da crítica de<br />
arte em Portugal: «Cá não ha meios termos. Ou o artista é eximio, e se alguem o diz<br />
uma vez, começa um côro de louvores que acaba por o estragar, ou se não produz<br />
o que julgam obras-primas, dá-se-lhe a matar» 30 …<br />
Também João Sincero, ou seja, Emídio Brito Monteiro (1860-1909) bibliotecário<br />
do Grémio Artístico até 1896, com vasta actividade jornalística, emitiu opinião<br />
idêntica. Segundo registo do Pintor Luciano Freire, João Sincero tinha uma ambição:<br />
destronar Ramalho Ortigão, por isso, confessava para quem o quisesse ouvir:<br />
«-Hei-de destronar esse parlapatão!» comentário mimetizado, de forma trocista,<br />
pelo pintor António Ramalho.<br />
J. Augusto Vieira, na Revista de Estudos Livres, apontou a falência da quinta exposição<br />
do Grupo, notando a falta de ideias, mal daninho que já António Enes tinha<br />
diagnosticado na década anterior. Abel Acácio elaborou um artigo em parâmetros<br />
diversos recorrendo a um discurso dialogado sobre a sexta exposição. Constatava a<br />
formação de uma escola de pintura portuguesa, mas desconcertantemente acabava<br />
por referir que num país de entranha burocrática a arte tinha morrido…<br />
Manuel da Silva Gaio, bacharel em Direito, que escrevia para o Diario da Manhã e<br />
para o Novidades, tal como a maioria dos articulistas conferiu o lugar de topo a Silva<br />
Porto, todavia, escrevendo sobre o sétimo certame traçou-lhe também algumas<br />
críticas.<br />
Zacharias d’Aça (1836-1908) decano da crítica, oficial da Direcção Geral da Instrução<br />
Pública, bibliotecário da Academia de Belas-Artes de Lisboa tendo escrito<br />
no Panorama tal como José Maria de Andrade Ferreira, n’O Occidente, na Revista<br />
Contemporanea, na Gazeta de Portugal, entre outros, acusava alguns condicionalismos<br />
emocionais na actividade crítica: «Entrar nas salas d’uma exposição de bellas artes<br />
disposto a usar largamente dos direitos da critica e a lavrar sentenças absolutas e<br />
30 Diario da Manhã, nº3238, 30 de Janeiro de 1884, [p.1].<br />
34
desapiedadas, em nome dos altos ideaes da Grecia antiga ou da França moderna,<br />
encontrar alli os artistas tristonhos, desanimados, silenciosos como trappistas, e<br />
ouvir-lhes dizer com voz soturna e dolente: “Ainda não se vendeu nada! (…) - é<br />
triste, e modifica as disposições do nosso espirito, por mais severo que elle seja» 31 .<br />
As comunidades emocionais que se estabeleceram entre Artistas e Críticos fizeram<br />
destes últimos muitas vezes mais cúmplices do que produtores de juízos de valor<br />
com uma certa independência. A última exposição do Grupo do Leão, até mesmo<br />
a Monteiro Ramalho pareceu parcamente abastecida, escrevendo sobre a perda de<br />
fôlego e de novidade daqueles certames…<br />
Quanto ao sentido da procura de identidade nacional, a década de 80 foi decisiva<br />
na reelaboração da história e dos mitos do país. Assim, as festas originadas pelas comemorações<br />
dos centenários, rituais de actualização da História, foram momentos<br />
propícios para que se reanimasse o “orgulho nacional” e a identidade colectiva e<br />
para que se relessem factos e individualidades. Para que tais eventos se realizassem,<br />
foi necessário o estabelecimento de um programa artístico mais, ou menos, elaborado<br />
consoante o interesse que a figura despertava na sociedade. A esse facto não<br />
era alheio o efeito político que a personalidade comemorada poderia suscitar, procurando<br />
os diferentes grupos ideológicos colher alguns dividendos.<br />
A década abre com a comemoração do tricentenário camoniano. Seria difícil encontrar<br />
na história nacional uma figura que satisfizesse mais plenamente as múltiplas<br />
sensibilidades políticas que existiam ou despontavam. Camões “herói elástico”<br />
serviu, como serve ainda, para muscular a “personalidade portuguesa”. Deste modo<br />
não causa estranheza que “toda a nação” se avaliasse e se reequacionasse em torno<br />
do grande épico. Tanta agitação não passou despercebida a Rafael Bordalo Pinheiro<br />
que lhe dedicou páginas divertidíssimas n’O Antonio Maria, quer observando criticamente,<br />
quer sob um registo mais descritivo.<br />
Mentor e entusiasta das comemorações camonianas, Ramalho Ortigão explicou o<br />
pensamento que lhe estava subjacente: dada a calamidade em que se encontrava a<br />
sociedade portuguesa, alguns “beneméritos” decidiram promover o Centenário de<br />
Camões como «prova do espelho posto á boca do moribundo para o fim de verificar se elle<br />
ainda respira ou não».<br />
Em 1884, Gervásio Lobato (1850-1895), dramaturgo e redactor da «Chronica Occidental»,<br />
o editorial d’O Occidente, responsabilizou veementemente aqueles festejos<br />
31 Gazeta de Portugal, nº49, 29 de Dezembro de 1887, [p.3].<br />
35
Fig. 6 - O Antonio Maria, 10 de Junho de 1880, p.191.<br />
36
pela promoção da iniciativa privada, desencadeado uma torrente de outros eventos<br />
que agitavam várias vertentes do panorama nacional. Prosseguia enunciando algumas<br />
exposições que tinha despoletado: sendo a mais recente a exposição distrital<br />
de Coimbra; no ano anterior a de Aveiro; e «No Porto, uma forte e bem dirigida<br />
associação em que se aggruparam todas as boas vontades, e todas as illustrações, a<br />
Sociedade de instrucção, tem realisado sucessivamente, em curto espaço de tempo,<br />
uma serie de exposições notaveis e de incontestada e incontestavel utilidade publica».<br />
Notava também que a iniciativa privada tinha sido benfazeja para as Belas-<br />
Artes, dando os seus frutos através do Grupo do Leão, grémio independente de<br />
projectos oficiais.<br />
Quanto à Teoria da Arte, apesar do aumento da escrita sobre a vida artística em<br />
geral, verificámos que se escreveram menos artigos directamente relacionados com<br />
esta reflexão do que na década anterior. A quase ausência de publicação de textos<br />
em língua castelhana, que nos anos 70 concederam um decisivo apport, é outra significativa<br />
diferença. Por entre considerações de vária ordem surgiam pinceladas de<br />
Teoria. Mariano Pina, por exemplo, era capaz de emitir acesos elogios à Arte: «só a<br />
arte nos consola, nos dá saúde e nos dá força e nos dá coragem, só a Arte faz com<br />
que possamos passar horas e horas em conversa muda e mysteriosa com o nosso<br />
espirito, com o nosso coração e com a nossa alma…Como eu te venero, ó Arte!» 32<br />
III. A década de 90: prolongamentos e «trágicas<br />
fantasias» nos tempos nephelibathas<br />
Os anos 90 começaram de forma pouco auspiciosa: «Que lugubre e sinistro começo<br />
d’anno tem sido o d’este anno de 1890, que ha vinte dias começou o seu<br />
reinado!» - lamentava Gervásio Lobato na «Chronica Occidental». De resto, foi no<br />
dia do suicídio (uma epidemia da época) do seu amigo Júlio César Machado, que<br />
explodiu a aterradora notícia do Ultimato.<br />
A morte de Silva Porto, em 1893, causou um profundo abalo no equilíbrio do panorama<br />
artístico, mas os periódicos foram mais prolixos na cobertura do suicídio de<br />
Soares dos Reis na década anterior. O Antonio Maria registou isso mesmo, lamentando<br />
que o falecimento do Pintor tivesse sido encarado pela imprensa como facto<br />
secundário, asseverando que a par de Antero, Lupi, Camilo Castelo Branco e Soares<br />
32 A Illustração, nº12, 20 de Junho de 1886, p.178.<br />
37
dos Reis, o seu nome se perpetuaria, enquanto se apagariam os senhores da fama<br />
actual. Rosa Araújo, empenhadíssimo presidente da Câmara de Lisboa, morreria<br />
também nesse ano praticamente no anonimato…<br />
Nos anos 90 os temas da crítica mantiveram-se idênticos. Todavia, por entre o Naturalismo<br />
que se glosava, iam aparecendo ensaios simbolistas que muitas vezes eram<br />
pejorativamente apodados de nefelibatas. Despontou também um importante tema<br />
para a história e para a crítica de arte: a longa e labiríntica questão dos painéis de<br />
S. Vicente.<br />
Em 1890, Mariano Pina (1860-1899), director d’A Illustração, revista editada em<br />
Paris, notava com agrado que Portugal já tinha Artistas, regozijando-se com a excelente<br />
representação portuguesa no Salon. Segundo a sua perspectiva, Columbano,<br />
Pintor incompreendido em Lisboa, deveria viver entre os seus pares espanhóis ou<br />
holandeses. A par deste último, destacava Teixeira Lopes, com trabalhos com a verve<br />
de Caim e de a Viúva. Aproveitava para advertir João Arroio, breve ministro da Instrução:<br />
«Não toque por emquanto nas Bellas-Artes, emquanto os nossos artistas se<br />
não decidirem a estudar maduramente a questão: - situação do artista em Portugal;<br />
necessidade da intervenção do Estado, para reunir todos os exforços que andam ao<br />
desamparo; necessidade do Estado auxiliar as exposições annuaes em Lisboa; necessidade<br />
d’uma reforma dos programmas e do methodo d’ensino; necessidade de<br />
separar o actual museu em dois - arte ornamental, e arte propriamente dita; - etc.,<br />
etc., e ainda mais etc…» Terminava animando os Artistas a agremiarem-se, como,<br />
de facto, sucedeu.<br />
Ribeiro Artur (1851-1910) militar de profissão atento e sistemático observador das<br />
exposições do Grémio e Fialho de Almeida (1857-1911), para além de Ramalho<br />
Ortigão, são duas figuras fundamentais da crítica deste período. Fialho de Almeida<br />
ambicionava que a Arte em Portugal, fosse além do Naturalismo que a década<br />
anterior tinha celebrado. João Sincero é assim a figura que se lhe opõe, totalmente<br />
preso aos clássicos avatares do Naturalismo e absolutamente anti-fantasista. Ao<br />
comentar a terceira exposição do Grémio Artístico, Ribeiro Artur questionava se a<br />
Arte em Portugal tinha melhorado, concluindo que não se assistia a um progresso<br />
assinalável. Existia, no entanto, trabalho e boa vontade combatendo a indiferença<br />
pública e a incompetência oficial. Considerava o Grémio Artístico como uma<br />
incompreendida associação benemérita recebendo golpes da crítica muitas vezes<br />
injustamente. Quanto às exposições notava que tinham produzido algum efeito no<br />
«espirito publico». Seria vantajoso que os melhores Artistas trabalhassem no sentido<br />
38
da arte pura, desprendidos «de todo o interesse profano, obedecendo á inspiração<br />
que synthetisasse todas as vivas forças do eu que em si guardam» 33 .<br />
Sonhava-se com o aparecimento de um génio, eivado ainda de uma aura romântica<br />
muito a propósito desse fin de siècle. Columbano era para alguns essa sombra iluminada,<br />
mas a eleição não era consensual. Para além das repetições naturalistas, mais<br />
ou menos interessantes, ensaiava-se um outro tipo de Pintura. Se o impressionismo<br />
nunca se enraizou em Portugal, apesar de algumas obras terem sido erradamente<br />
integradas nessa tendência, consideramos que, nesta década, ao falar-se de Artistas<br />
nephelibatas, ou de nephelibatices se estaria a experimentar a linguagem simbolista<br />
que entrou, mais uma vez, pela via da literatura.<br />
Bulhão Pato descreveu em 1896 o tipo social do simbolista ou nefelibata: «Grenha<br />
pomposa, colarinhos folhudos, redingote até aos pés, de grande roda, cara de<br />
cabeça de vitela rapada, à porta do açouge». Para os Críticos, ou Articulistas de<br />
arte portugueses, “filiados” no Naturalismo, esta palavra «nefelibata» serviu, até à<br />
exaustão, para desacreditar ou pontuar negativamente os Artistas. Se recuarmos até<br />
aos anos 70, e observarmos a pintura de Joaquim Vitorino Ribeiro Um mártir, se<br />
observarmos n’O Antonio Maria 34 uma obra de António Augusto Gonçalves com<br />
óbvias afinidades com a pintura citada, notamos que não é inédita essa incursão pela<br />
linguagem simbolista, pré-rafaelita. Existem assim, algumas tendências, ou lampejos<br />
simbolistas, em geral não compreendidas, pouco visíveis devido ao mau acolhimento<br />
que a crítica lhes dispensou. Certamente várias experiências não saíram dos<br />
ateliers, visualizadas somente numa esfera privada.<br />
Ao comentar a participação de Columbano, Veloso Salgado, Sousa Pinto, José de<br />
Brito, Albertina Falker, Teixeira Lopes e Tomás Costa no Salon parisiense de 1891,<br />
Jaime Batalha Reis confere-nos uma série de pistas para o entendimento da Arte,<br />
da Teoria, da Crítica e dos Artistas. Começou por explicar «de que pontos de vista»<br />
olhava para as obras de arte - «Tanto para o observador como para o artista, a obra<br />
d’arte é uma realisação do que o espirito sente» 35 . Ramalho Ortigão, ao iniciar a crítica<br />
sobre a primeira exposição do Grémio, e temendo parecer pedante, frisava que<br />
para esclarecer os seus comentários tinha que distinguir «documento estético» de<br />
33 Ribeiro Artur, Arte e Artistas Contemporaneos, pp.305-306.<br />
34 Vide O Antonio Maria, 6 de Março de 1884, p.75.<br />
35 Revista de Portugal, 1892, vol.IV, p.142.<br />
39
«documento histórico» 36 . Recorrendo ao vocabulário gastronómico cravava as suas<br />
farpas no público: «A estética da multidão é sempre uma estética de mesa redonda,<br />
com o menu imposto pelo mestre da cozinha: os desenjoativos de rigor, o pudim<br />
sabido, e a competente fruta incomestível das sobremesas à discrição. No banquete<br />
da arte o público gosta de ter tudo pautado pela sua rotina gastronómica» 37 . E mais<br />
adiante acrescentaria: «Todo o progresso de arte está estreitamente e solidàriamente<br />
ligado à cultura do gosto público. (…) Para ter artistas que prestem é preciso ter<br />
público que os solicite» 38 … Assim vem a propósito lembrar o divertido «Menu<br />
Ornamental» apesar de ser um desenho da década anterior, que consagrou uma<br />
“verdadeira” nouvelle cuisine: desde o «Potage au Musée des Beaux Arts», passando<br />
pelos «Asperges Celtiques» e terminando, por exemplo no sorvete de pêssego de<br />
luz eléctrica.<br />
Para Jaime Batalha Reis a obra de arte era produto de outra assimilação: «resultado da<br />
commoção do artista creador, - d’aquelle que pôde realisar em symbolos, elle mesmo,<br />
o seu espirito, - e deve considerar-se como objecto de commoção para todos os que a<br />
observam, para todos os que encontram n’ella, creados por outrem, symbolos dos<br />
proprios sentimentos» 39 . Notemos a insistência no termo “símbolo”, certamente<br />
utilizada com profunda intenção. Para Batalha Reis a comoção estética não era<br />
provocada em exclusivo pela obra de arte, mas sim por todos os seres ou fenómenos<br />
«que podem tornar-se symbolos, exteriorisações, corporisações, representações<br />
adequadas, não da intelligencia mas do sentimento, não da parte completamente<br />
pensavel mas da intimamente sensivel, não da parte inteiramente determinavel mas da<br />
essencialmente vaga e indefinida do espirito humano».<br />
Ao avaliar na Revista Illustrada a primeira exposição do Grémio, Ramalho Ortigão<br />
remeteu o epíteto de Crítico de Arte para Fialho de Almeida e para Joaquim de Vasconcelos.<br />
Considerava-se a si mesmo como um «artista da crítica (…) um comunicador<br />
de impressões pessoais, um viandante que passa, através do seu tempo, contando<br />
coisas que viu e dizendo os sentimentos que algumas dessas coisas lhe inspiram» 40 .<br />
36 Cf. Ramalho Ortigão, Arte Portuguesa, vol.III, p.149.<br />
37 Idem, p.169.<br />
38 Idem, p.175.<br />
39 Revista de Portugal, 1892, vol.IV, p.143.<br />
40 Ramalho Ortigão, Arte Portuguesa, vol.III, p.163.<br />
40
Fig. 7 - O Antonio Maria, 16 de Fevereiro de 1882, p.52-53.<br />
Considerava que a panóplia de interesses, que era seu apanágio, o incapacitava para<br />
a especialização necessária no domínio artístico, embora os estudos de arte fossem<br />
aqueles que mais o demoravam.<br />
Em 1898 quando Ribeiro Artur publicou a segunda série de Arte e Artistas Contemporâneos,<br />
compilando diversos textos críticos, escreveu-se na primeira página d’O<br />
Seculo um artigo elogioso. O articulista aproveitava para definir o que deveria ser<br />
um Crítico elogiando o autor pelo entendimento do que era a «verdadeira missão<br />
da critica». Assim, Ribeiro Artur não procurava desempenhar, como a maioria, «o<br />
papel do pedagogo, de ferula em punho, ensinando ao artista como se criam obras<br />
d’arte» limitando-se apenas a «commentar essas obras, fazendo sentir cortezmente<br />
ao artista os pontos em que a sua inspiração ou a sua observação o atraiçoaram, e<br />
procurando, sobretudo, fazer sentir ao publico o que n’essas obras possa haver de<br />
bello. O critico commenta a obra do artista, como o artista commenta a obra de<br />
Deus. No fundo a missão é a mesma e deriva da mesma necessidade: - a expansão<br />
41
das faculdades esthesicas do individuo - das faculdades de sentir e de admirar - que<br />
são as mais bellas faculdades da alma humana. Comprehender e sentir o caracter de<br />
belleza d’uma obra de arte, penetrar-se d’elle, pol-o em evidencia, fazer partilhar<br />
á grande massa do publico esse sentimento, eis ahi a util, a nobre, a generosa tarefa<br />
da critica».<br />
Ribeiro Artur «em vez de invectivar os artistas portuguezes, como é costume, por<br />
não produzirem obras de larga envergadura e de extraordinaria importancia, fundando-se<br />
no principio verdadeiro Taine - que a arte é um producto do meio, e no<br />
não menos real principio de Semper - que o valor das obras d’arte n’um paiz é<br />
egual ao dos Mecenas que os compram, Ribeiro Arthur lamenta que a nossa burguezia<br />
gaste tanto nas bijouterias de chic banal que vem do estrangeiro, em logar de<br />
empregar annualmente algum d’esse dinheiro na compra de obras d’arte, protegendo<br />
assim os nossos artistas, e lamenta ainda mais a difficuldade de conseguir que os<br />
nossos homens publicos, por indifferença e incapacidade, atendam devidamente a<br />
este assumpto de tão alta importancia» 41 .<br />
Ramalho Ortigão escreveu O Culto da Arte em Portugal, em 1896. No nº1 da revista<br />
Branco e Negro, uma semana antes da obra ser posta nos escaparates, publicou-se um<br />
excerto assaz significativo: «Em resultado de não termos uma historia geral da arte<br />
portugueza, devidamente systematisada e integralmente documentada em cada um<br />
dos seus capitulos, vemos grassar, não só entre o vulgo mas entre pessoas de saber,<br />
incumbidas de guiar e de reger a opinião, o erro criminoso, profundamente desmoralisante,<br />
de que somos um povo inesthetico, incapaz de concepções artisticas<br />
originaes».<br />
Nesta obra, Ramalho frisava que tinha sido no século XIX que mais se tinha estudado<br />
a Arte Antiga. Mais adiante definiria os Críticos como «fiscaes da arte em<br />
nome do publico» e justificando a acção da crítica centrada nesta obra em questões<br />
patrimoniais e arquitectónicas, escreveria: «Um barbarismo architectonico está tanto<br />
ao alcance de um escriptor como um barbarismo grammatical está ao alcance de<br />
um architecto». Ramalho admirava profundamente John Ruskin, homem de acção<br />
- «glorioso campeão da esthetica e da arte» - que não se tinha emparedado «como<br />
a maioria dos criticos, na torre eburnea dos extases poeticos e das contemplações<br />
especulativas», trazendo-o à liça ao fazer a defesa e apologia das artes tradicionais e<br />
domésticas.<br />
41 O Seculo, nº 5762, 26 de Janeiro de 1898, p.1.<br />
42
N’O Culto da Arte em Portugal, Ramalho fez também sobressair a necessidade de se<br />
realizarem estudos sobre as artes decorativas e um inventário que colhesse os elementos<br />
necessários para a História da Arte. Embora esse inventário não registasse<br />
somente os monumentos, Ramalho frisou que a história das suas construções se<br />
identificava com a história da sociedade que os concebeu.<br />
Estranhando o Simbolismo, concluía depositando a sua esperança no “povo”: «Em<br />
toda a historiographia contemporanea se nota uma glacial frieza de critica, uma<br />
anemica pallidez de expressão, um geral entono de apagada tristeza, em que bem<br />
se demonstra que não circula o sangue vermelho da raça, nem se retrata do vivo o<br />
genio do nosso povo, meigo, docil, de apparencia branda, mas ainda hoje eminentemente<br />
sociavel». Quase no fim do seu estudo frisava: «É pelo culto da arte, invocado<br />
n’estas paginas, que a religião da nacionalidade se exteriorisa e se exerce».<br />
Para a História da Pintura e da Crítica o facto que se destacou, no final da década<br />
de 90, foi o concurso de Pintura de História do qual saiu vencedor Veloso Salgado<br />
com o celebrado Vasco da Gama na presença do Samorim. A este certame concorreu,<br />
uma vez mais sem êxito, o Pintor Ernesto Ferreira Condeixa, sendo as obras expostas<br />
no salão da biblioteca da Sociedade de Geografia. Ribeiro Artur, entre outros,<br />
não se cansou de exaltar a obra de Salgado considerando-a lapidarmente como «a<br />
melhor coisa que nos ficará do Centenario da Índia».<br />
Num tempo em que Portugal progressivamente se ia ensimesmando, e em que o<br />
nacionalismo era pregado em quase todas as áreas do saber, Joaquim de Vasconcelos<br />
fez a descoberta científica, em 1895, (apesar de já se conhecer a sua existência desde<br />
os anos 80) de quatro painéis do políptico de S. Vicente. Este achado confrontava os<br />
portugueses com um retrato colectivo de uma época que se admirava. Abria-se, a<br />
vários níveis, um dos temas de debate de maior, ou menor, fortuna, mas certamente<br />
um dos mais longos e interessantes da Historiografia e da Crítica de Arte em Portugal.<br />
A partir dali o país encontrou um auto-retrato poderoso e mítico mas em vão<br />
se pretendeu espelhar naqueles painéis. Se eles remetiam para um período áureo<br />
de Navegações e Descobertas a realidade era bem diferente do mito com mais tormentas<br />
do que boas esperanças. Como podemos ver na caricatura d’A parodia, em<br />
1901, o vapor Santo André afundava-se com as peças da representação portuguesa<br />
na Exposição Internacional de Paris de 1900…<br />
Março de 2003<br />
43
Fig. 8 - A parodia, 13 de Fevereiro de 1901, p.55.<br />
44
Emília Tavares<br />
Museu do Chiado. Conferência proferida no dia 12 de Março de 2003<br />
Fotografia e Vanguardas.<br />
As vanguardas de início do século XX, fundamentalmente o Dadaísmo, Vorticismo,<br />
Surrealismo e Construtivismo, desenvolveram novos discursos fotográficos baseados<br />
na abstracção das formas, recuperando alguns dos processos técnicos primordiais<br />
da história do desenvolvimento da Fotografia.<br />
A dinâmica interdisciplinar e experimental da arte durante as primeiras duas décadas<br />
do século XX, sobretudo na Europa, colocou a fotografia no centro dos fundamentos<br />
teóricos de alguns destes movimentos artísticos. A transferência do domínio<br />
artístico real/figurativo para as questões abstractas de tempo e espaço, redefinidas<br />
segundo novos modelos perceptivos em ruptura com a perspectiva tridimensional<br />
euclidiana, encontrou consonância com dinâmicas extra-artísticas, como foram as<br />
inovações tecnológicas e científicas de início do século XX.<br />
No entanto, as formulações em redor da fotografia enquanto modelo abstraccional<br />
foram sempre entendidas numa relação de mudança da cultura visual, de modo<br />
mais político e antropológico, do que propriamente numa perspectiva integrada no<br />
discurso plástico da abstracção. Se percorrermos algumas das ideias fundamentais<br />
da época, encontramos desenvolvimentos teóricos acerca da fotografia abstracta<br />
que versam muito mais a sua dinâmica tecnológica e/ou científica e o papel que as<br />
mesmas podiam ter na redefinição de uma nova relação do indivíduo com a cultura<br />
industrial, bem como o seu contributo em termos de assimilação perceptiva para<br />
um novo modo de entender o mundo e as suas relações transversais de sociabilidade<br />
47
e participação política.<br />
A fotografia foi entendida, neste período, como um mecanismo transgressor e revolucionário,<br />
uma vez que as suas capacidades técnicas o colocavam como o interlocutor<br />
estratégico de uma Nova Visão. As dinâmicas de aceitação artística do<br />
objecto fotográfico foram sempre, durante o final do século XIX, inseridas numa<br />
relação da fotografia com o figurativo, e nas diversas e nem sempre lúcidas questões<br />
acerca da fotografia como concorrente imbatível na representação do real. O que<br />
explica certamente o desenvolvimento da representação fotográfica pictorialista de<br />
plasticidade desse mesmo real, a que o movimento Photo-Secessionist liderado por<br />
Alfred Stieglitz (1864-1946) deu fundamento.<br />
A intensa experimentação e derisão dos modelos representacionais vigentes a que<br />
as vanguardas se dedicaram tiveram, no domínio da fotografia, um médium que<br />
permitiu explorar de forma inédita dois aspectos essenciais: a expansão das relações<br />
euclidianas do objecto com o espaço e a importância da luz como elemento tecnológico<br />
de expressão estética.<br />
Nesta vertente, a fotografia inflecte o domínio figurativo e de relação com o real<br />
a que se tinha dedicado, para retornar à prática pura do trabalho de laboratório,<br />
tomando como tema fulcral as propriedades da luz e da imagem latente na sua<br />
interacção com os objectos, numa técnica assente na fotografia sem câmara, apenas<br />
no manuseamento da luz e da superfície sensível. Em termos específicos, assiste-se<br />
a uma profusão de trabalhos assentes numa arqueologia fotográfica que remonta aos<br />
primórdios da sua invenção, e cuja essência técnica mais não é do que a reinvenção<br />
dos desenhos fotogénicos de William Henry Fox Talbot (1800-1877), sob a designação<br />
modernista de fotogramas.<br />
Independentemente da própria guerrilha de autoria a que os fotogramas foram<br />
sujeitos, entre surrealistas e construtivistas, o que se torna mais significativo é a assimilação<br />
com intuitos estéticos opostos de uma mesma linguagem fotográfica, com<br />
resultados formais idênticos.<br />
Man Ray (1890-1976) é o artista que ficará historicamente ligado à reinvenção do<br />
fotograma, associando o seu nome à técnica – rayograma-. Contudo, a exponencialidade<br />
da experimentação da luz no papel fotográfico não pode, nem deve, ser vista<br />
como uma produção autoral. A amplitude e dinâmica, tanto do Dadaísmo como do<br />
48
Surrealismo, movimentos nos quais os rayogramas foram integrados como linguagem<br />
de ruptura com o então “visto”, foram o sustentáculo de uma mediatização da<br />
técnica e do seu autor privilegiado, mas não foram sua prerrogativa nem histórica,<br />
nem cronologicamente.<br />
Os trabalhos de Christian Schad (1894-1982) ao submeter objectos diversos à acção<br />
sensibilizadora da luz natural, foram pela primeira vez editados por Tristan<br />
Tzara (1896-1963) no número 7 da revista dadaísta Dadaphone, em Março de 1920,<br />
sendo o próprio Tzara quem designou os trabalhos de schadografias, adoptando o<br />
carácter lúdico e derisório das abstracções de luz, assim obtidas, à intensa actividade<br />
teórica e editorial do Dadaísmo inicial.<br />
Um ano após a sua chegada a Paris, em 1922, Man Ray publica os seus primeiros<br />
rayogramas na obra Les Champs Magnétiques, editada e com prefácio do próprio<br />
Tzara que poetizou e interpretou as obras aleatórias de luz e química numa perspectiva<br />
onírica e de desconstrução de qualquer linguagem articulada. O carácter<br />
inédito e não catalogável dos rayogramas condiziam perfeitamente com a estética<br />
de desagregação de toda e qualquer premissa estética consolidada, a que o Dadaísmo<br />
se dedicou tão intensamente.<br />
Segundo Tzara, “O fotógrafo inventou um novo método, ele apresenta no espaço<br />
uma imagem que o excede, e o ar, com os seus punhos cerrados e uma inteligência<br />
superior, apodera-a e mantém-na perto do seu coração. (…) A luz varia conforme<br />
o espanto da pupila perante o frio do papel, conforme o peso da luz e o choque<br />
que ela provoca, atordoamento da pupila sobre o frio do papel, segundo o peso e o<br />
choque que ela produz.” 1<br />
Contudo, o interesse fotográfico de Man Ray inicia-se por uma abordagem mais<br />
figurativa, a que não terá sido alheia a influência de Alfred Stieglitz e todo o movimento<br />
teórico e crítico que juntou em redor da famosa galeria 291, acolhendo<br />
a vanguarda artística europeia através de Picasso ou Duchamp. Exemplos dessa<br />
abordagem de um neo-figurativismo que explora a capacidade da fotografia de<br />
surrealizar o real, está presente na fotografia O enigma de Isidore Ducasse (1920) que<br />
homenageia a poesia fantástica do Conde de Lautréamont (1846-1870) e anuncia<br />
o seu legado como uma das referências históricas da literatura surrealista, tendo sido<br />
capa, em 1924, do número um da revista La Revolution Surrealiste, dirigida por An-<br />
1 Tristan Tzara, prefácio de Les Champs Magnétiques, 1922, compilado in Photography in the Modern Era- European<br />
Documents and Critical Writings 1913-1940, New York, Moma/Aperture, 1989, p.4<br />
49
dré Breton (1896-1966). Partindo de um ready-made, Man Ray utiliza a fotografia<br />
como o processo intensificador de uma distância objectual que se interliga com o<br />
significado do onirismo, enquanto distância do consciente e do mundo real.<br />
Na mesma perspectiva figurativa encontra-se Violon d’Ingres (1924), muito embora<br />
esta fotografia represente outra forma de entendimento estético surrealista, nomeadamente,<br />
quanto à apropriação dos modelos clássicos da arte ocidental, neste caso,<br />
o quadro La Baigneuse (1808) de Dominique Ingres (1780-1867), e à representação<br />
do erotismo como uma das temáticas essenciais da linguagem surrealista e da sua<br />
fusão com a psicanálise freudiana.<br />
A exploração abstracta e figurativa dos temas e processos fotográficos colocam<br />
Man Ray como um dos autores com uma linguagem mais prolífera, no domínio<br />
da vanguarda fotográfica. Ao desenvolver trabalhos em que a luz desempenha um<br />
papel predominante como modeladora de espaços e tempos, ou em que a capacidade<br />
polissémica da fotografia é utilizada de forma consciente para expandir os<br />
campos de significação dos objectos fotográficos, Man Ray contribuiu para um<br />
novo entendimento da estética fotográfica e do seu relacionamento visual com as<br />
outras tipologias artísticas.<br />
Em 1985, ao dissertar sobre sua longa actividade fotográfica, o artista considerava<br />
que o “Surrealismo tinha sido a única força que fez sair da câmara escura as<br />
verdadeiras formas luminosas e imprevisíveis”. A fotografia, pelo seu carácter de<br />
instantaneidade, aleatoriedade e magia, tinha todas as condicionantes e requisitos<br />
para expressar da melhor forma o automatismo psíquico, que constituía um dos<br />
fundamentos essenciais do manifesto surrealista.<br />
Os limites da reprodução do visível a que a fotografia parecia estar vinculada, foram<br />
expandidos, estabelecendo um entendimento metafísico do espaço. Deste modo, e<br />
segundo Man Ray, a fotografia podia ser utilizada como uma maravilhosa exploradora<br />
de todos os aspectos que a nossa retina nunca regista. A par do Cinema e da<br />
Pintura, a Fotografia seria o sustentáculo moral do mundo moderno, um dos vértices<br />
de um triângulo que seria o paradigma do mundo moderno, quer em termos<br />
de expressão plástica, quer como percepção do próprio mundo.<br />
A derivação subjectiva do objecto fotográfico, cuja colagem à representação da<br />
realidade, logo, a incapacidade de extrapolar um mimetismo desse mesmo real,<br />
que contivesse força expressiva, tinha sido um dos principais óbices à sua aceitação<br />
como linguagem artística, teve um terreno ideal no pensamento surrealista para se<br />
desenvolver, com textos e práticas apologéticas dos seus intervenientes. Salvador<br />
50
Dali (1904-1989) foi um dos artistas que, referindo-se à fotografia, no contexto<br />
da prática surrealista, referiu que ela era “o veículo mais seguro de toda a poesia e<br />
o processo mais ágil para entender as mais delicadas osmoses entre a realidade e a<br />
surrealidade. Nada provou mais que o termo do Surrealismo, do que a fotografia.” 2<br />
Contudo, as propriedades abstractas do fotograma tiveram uma teorização bem diferente<br />
no contexto do Construtivismo. Ao poder aleatório, a circunstância onírica<br />
e a prática do automatismo psíquico, os Construtivistas contrapuseram as capacidades<br />
da luz como modeladoras de novas dimensões espaciais, e o seu contributo para<br />
uma percepção diferente do mundo, em que a dimensão social, política e económica<br />
revelavam-se tão importantes como a dimensão plástica.<br />
László Moholy-Nagy (1895-1946), um dos artistas mais influentes do movimento<br />
construtivista e da Bauhaus, foi também um dos teóricos mais consolidados na análise<br />
das relações da fotografia com os novos modelos tecnológicos de entendimento<br />
e percepção do espaço e do tempo. O seu interesse e estudo sobre as exponencialidades<br />
do fotograma, como elemento privilegiado na fundamentação de uma nova<br />
visão espácio-temporal, estabelecem um primado estético, científico e social sobre<br />
uma técnica fotográfica, que assim se estabeleceu como a essência de um vanguardismo<br />
estético de influência e contornos sócio-políticos e culturais. Segundo a sua<br />
análise, “as imagens realizadas sem câmara (fotogramas) são também diagramas de<br />
luz directa que registam as acções da luz durante determinado período de tempo,<br />
isto é, o movimento da luz no espaço. (…) O fotograma produz pela primeira vez<br />
espaço sem uma estrutura espacial existente, unicamente mediante a articulação<br />
sobre o plano.” 3<br />
Moholy-Nagy antevia, em 1923, que a luz seria o meio de expressão por excelência<br />
do século XX, e a fotografia, ao lidar por natureza intrínseca com o “desenho da<br />
luz” sobre a matéria, detinha todas as potencialidades para romper com os arquétipos<br />
dos sistemas visuais até então utilizados e conhecidos.<br />
2 “Le Témoignage photographique” originalmente publicado in La gaceta literária, nº 6, Fevereiro 1929, compilado<br />
in Photography in the Modern Era- European Documents and Critical Writings 1913-1940, New York, Moma/Aperture,<br />
1989, p.35<br />
3 “O espaço-tempo e o fotógrafo”, originalmente publicado in American Annual of Photography, vol. LVII, nº 152,<br />
1943, compilado in Poéticas del Espacio, Steve Yates (ed.), Barcelona, Gustavo Gili, 2002, p. 212.<br />
51
A Fotografia constituía um dos instrumentos basilares de uma linguagem tecnológica,<br />
cuja acção sobre a percepção dos objectos representava o culminar de uma<br />
evolução no domínio da articulação dos espaços, e cujos contornos se tinham começado<br />
a definir na Revolução Industrial. A Fotografia, inseria uma nova dimensão<br />
de tempo e de espaço, ao permitir estabelecer relações daquelas duas premissas<br />
sobre um plano estático, o fotograma, em particular, ao permitir a transparência de<br />
opacidades, expandia as possibilidades da visão normal, antevendo movimento no<br />
âmago das estruturas visuais tradicionais.<br />
O fotógrafo como o portador de uma nova visão de relevância social, não para o<br />
âmbito restrito das elites, mas para toda uma cultura de massas, constituía a linha<br />
dorsal de toda a teoria e prática de Moholy-Nagy. Curioso é que o artista alargue<br />
a estrutura de sobreposições, transparências e articulações espacio-temporais que<br />
a fotografia e o cinema permitiam, ao conceito de sonho (ideia fundamental da<br />
aplicabilidade da fotografia no pensamento surrealista).<br />
Da mesma forma, a fotomontagem, através da unificação de conteúdos originais<br />
díspares, criava objectos que estabeleciam uma nova relação espacio-temporal, ultrapassando<br />
os limites formais de cada uma das unidades, para se transformarem<br />
num outro objecto, com novas relações significantes e perceptivas. O Construtivismo<br />
advogava uma ideologia visual cujo papel, de reeducação da forma de olhar<br />
das massas, poderia ser decisivo para modelar comportamentos sociais e políticos.<br />
A fotografia ao possibilitar, pelas suas capacidades técnicas, dar a ver materialidades,<br />
contrastes, transparências, estruturas, servia para mostrar a realidade e o mundo de todos<br />
e dos mais variados ângulos (El Lissitsky 1890-1941).<br />
A importância do tecnológico e a sua indissociabilidade da percepção da velocidade<br />
serão temáticas presentes desde a fotografia futurista dos irmãos Braglagia (Anton<br />
Giuliu e Arturo) até às preocupações de uma arte engagé dos construtivistas russos.<br />
O modo como estes últimos analisaram e trabalharam a velocidade e os aspectos do<br />
desenvolvimento tecnológico, vão conferir maior dinamismo a técnicas fotográficas<br />
como a fotomontagem ou os fotogramas, uma vez que o aspecto pedagógico e<br />
catalizador de uma operação de mudança das mentalidades, bem como do artista<br />
como um operador social e político, deslocam a arte do domínio do sonho (surrealismo)<br />
ou do nihilismo criativo (dadaísmo), para a acção concreta da realidade.<br />
O cruzamento de todas as artes é bem patente nos trabalhos de El Lissitsky, cuja<br />
actividade e interesse percorreu a fotografia, a arquitectura e o design.<br />
Nesta fotomontagem, em particular, Record de 1926, observamos a releitura de<br />
52
Fig. 1 - El Lissitsky, Record, 1926.<br />
uma fotografia do arquitecto Erich Mendelsohn (1887-1953) Broadway à noite, retirada<br />
do livro deste último Amerika, dedicado à arquitectura norte-americana.<br />
No prefácio a uma edição alemã do livro, Lissitsky referia que o mais impressionante<br />
de toda a obra era a ausência de pessoas como escala a toda a arquitectura,<br />
não admira portanto que a inclusão da escala humana numa fotografia original<br />
de Mendelsohn, e o modo como a fotomontagem lhe serviu para induzir a uma<br />
releitura do papel da arquitectura, enquanto modeladora não só de espaços mas de<br />
relações humanas.<br />
53
Fig. 2 - Erich Mendelsohn, Broadway à noite.<br />
Na sua fotomontagem, Lissitsky enfatiza essa relação do homem com o espaço circundante,<br />
e com o modo como a modernidade, pela característica da sua evolução<br />
tecnológica, induzia a leituras e percepções de velocidade. Na fotografia original<br />
de Mendelsohn, Broadway à noite, o papel da luz era fulcral como elemento transformador<br />
dos objectos observados, em que a profusão de néon diluía as marcas arquitectónicas<br />
produzindo, segundo palavras do próprio um ambiente de estranheza.<br />
A fotomontagem de Lissitsky dilui ainda mais essa percepção de linhas e volumes,<br />
susbtituindo-a por uma figuração, também ela alterada, pela inserção de linhas ho-<br />
54
izontais e pelo arrastamento do corredor em pleno salto. A percepção operante<br />
de toda a imagem passa a ser então a velocidade, intensificada pela sobreposição de<br />
planos e oposição de linhas contrárias.<br />
Mas se a velocidade constituía a referência do modelo visual vanguardista, a quebra<br />
dos ângulos de visão tradicionais secundava-lhe em importância. Alexander Rodtchenko<br />
(1891-1956), foi o artista russo que por excelência entendeu a câmara<br />
fotográfica como o instrumento fracturante dos ângulos de visão comuns. Para<br />
Rodtchenko, a fotografia permitia que todas as coisas fossem vistas de múltiplos<br />
ângulos possíveis, através da recusa do plano do olhar ou do meio-corpo, já que este<br />
se inseria num conceito classicista e renascentista de visão, a que o Construtivismo<br />
se opunha. O objecto devia ser fotografado de diversos pontos e em várias posições,<br />
“não façam fotopinturas, façam fotomomentos de valor documental, de modo a<br />
acostumar as pessoas a verem de novos pontos de vista, é essencial tirar fotografias<br />
todos os dias, e de temas familiares, a partir de inesperados pontos de vista e posições<br />
(…) E os mais interessantes pontos de vista, hoje em dia, são aqueles vistos de<br />
cima para baixo, de baixo para cima e as suas diagonais.” 4<br />
A fotografia Escadas de incêndio (1925), revela de forma sintética o ideário visual de<br />
Rodtchenko, em que estava em jogo não o que se fotografava mas como se fotografava.<br />
A ideia de uma revolução visual como garante e plataforma mental para<br />
uma revolução social e política é, porventura, um dos traços mais significativos do<br />
seu trabalho e da importância com que a fotografia passa a ser utilizada nos círculos<br />
artísticos da vanguarda russa. Para o Construtivismo, a fotografia e a máquina fotográfica,<br />
através da subversão das suas próprias capacidades técnicas, permitia romper<br />
com as lições de perspectiva clássicas, o fotógrafo era o operador da mudança duma<br />
história visual cujos fundamentos já não eram meramente estéticos, antes tinham-se<br />
instituído como uma parte integrante da revolução social e política. Não admira,<br />
portanto, que Manifestação (1932) tivesse este tratamento visual inusitado, independentemente<br />
do domínio da fotografia, neste caso, mais aproximado ao objectivismo<br />
da foto-reportagem, a revolução do modo de olhar do fotógrafo devia ser sempre<br />
imperante, era essa irreverência do olhar que constituía a essência da mensagem<br />
fotográfica construtivista, não o significado do tema.<br />
4 Alexander Rodtchenko “Puti sovremennoi fotografi” (os caminhos da fotografia moderna) originalmente publicado<br />
in Novi lef, nº 9 (1928), compilado in Photography in the Modern Era- European Documents and Critical Writings<br />
1913-1940, New York, Moma/Aperture, 1989, p.261<br />
55
Fig. 2 - Alexander Rodtchenko, Manifestação, 1932.<br />
56
Presente em qualquer destas abordagens fotográficas da vanguarda artística está<br />
uma redefinição generalizada de algumas das áreas de conhecimento, associadas ou<br />
complementares das artes visuais. Na filosofia, a teoria da simultaneidade de Henri<br />
Bergson (1859-1941) ou a fenomenologia de Edmund Husserl (1849-1938), a psicanálise<br />
de Freud (1856-1939), ou as novas linguagens musicais atonais do dodecafonismo<br />
serial de Arnold Schonberg (1874-1951), bem como a literatura cíclica de<br />
James Joyce, (1882-1941), marcam a modernidade destas disciplinas e introduzem<br />
um conceito de interdisciplinaridade que será fundamental para a evolução e compreensão<br />
de qualquer uma delas.<br />
Tal como temos vindo a referir, a nova relação espacio-temporal que subjaz a muitas<br />
das experimentações fotográficas levadas a cabo desde o Surrealismo ao Construtivismo,<br />
tem implícita o suplantar da perspectiva euclidiana e a sua dicotomia<br />
com as noções de velocidade. Nesta matéria, um dos contributos fundamentais terá<br />
sido o da Matemática e a apropriação do espaço e tempo por esta disciplina contra<br />
a corrente paradoxal, inventando espaços, o abstracto, o dimensional, o neural, etc.<br />
Rudolf Carnap (1891-1970) recusa no início do século XX a teoria kantiana da<br />
geometria como algo à priori e sintético, dividindo-a em geometria matemática<br />
e física e introduzindo desse modo o conceito de empirismo na matemática. O<br />
espaço tornava-se desse modo uma “coisa mental”, e a geometria perdia a inalterabilidade<br />
e conceito de absoluto para se tornar uma pluralidade de geometrias, um<br />
padrão.<br />
Conforme vimos, as experiências da luz sem câmara fotográfica ou as fotomontagens,<br />
foram determinantes das novas reflexões científicas e artísticas acerca da<br />
percepção do espaço e da sua interacção com as diversas vertentes do mundo moderno.<br />
A vanguarda fotográfica confunde-se com a fotografia das vanguardas, o<br />
espelhamento é talvez a característica essencial para entender que o resultado da<br />
acção directa da luz sobre uma superfície sensível, como no caso do fotograma, ou<br />
a associação aleatória de imagens para a construção de um alter significado, como<br />
no caso da fotomontagem, não se esgotam na sua finalidade formal e estética; a<br />
fotografia pela singularidade das suas capacidades técnicas foi a um mesmo tempo<br />
ponto de partida e objecto confluente de algumas das essenciais questões da arte<br />
moderna e pós-moderna.<br />
A singularidade da sua especificidade enquanto matéria sensível e tecnológica, deram<br />
à fotografia todos os argumentos para desempenhar o papel fundamental no<br />
derrube dos limites formais entre as tipologias artísticas, enquanto captavam o es-<br />
57
sencial de uma sociedade moderna baseada em novas relações de espaço e tempo.<br />
58
Duarte Belo<br />
Fotógrafo e Arquitecto. Conferência proferida em 19 de Março de 2003<br />
A Representação da Paisagem pela Fotografia.<br />
não te disse ainda como me encontrei à beira dos mares<br />
sem a sensação de susto e o temor do lugar infinito.<br />
Vasco Gato<br />
Um homem propõe-se a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço<br />
com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, da baías, de naves, de ilhas, de peixes, de<br />
quartos, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer descobre que<br />
esse paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto.<br />
Jorge Luis Borges<br />
59
Fig. 1 - Santuário Rupestre de Panoias. Constantim. Vila Real. 1996.<br />
O conjunto de fotografias apresentado foi integralmente feito em Portugal ao longo<br />
de cerca dos últimos dez anos. Dos aspectos mais relevantes de uma recolha<br />
contemporânea da paisagem gostaria de destacar, por um lado, o objectivo documental,<br />
com o fim da fixação de uma memória colectiva, uma visão neutra da<br />
paisagem em múltiplos aspectos da sua aparência visível, por outro, e indissociável<br />
do carácter documental, uma visão interpretativa dessa mesma realidade (partamos,<br />
pois, do princípio que não há um olhar estritamente objectivo, conforme nos demonstra<br />
a própria história da Fotografia de que a paisagem foi, desde os pioneiros,<br />
um dos temas fundamentais). É sobre estes dois aspectos que procuro elaborar a<br />
sistematização de uma recolha, cada vez mais aprofundada, sobre múltiplos aspectos<br />
da paisagem portuguesa contemporânea.<br />
Sem dúvida de que não nos podemos afastar de um olhar dos nossos dias sobre o<br />
mundo que nos rodeia. Assim, se por um lado o lugar natural pode representar um<br />
dos extremos da minha pesquisa, por outro, o mundo urbano e as transformações<br />
recentes do território em toda a complexidade, constituem o extremo oposto. Por<br />
lugar natural quero significar aquele em que é praticamente nula a intervenção<br />
humana (o que em território português dada a densidade populacional, a geogra-<br />
60
Fig. 2 - Campos agricolas. Rebordãos. Bragança. 1996.<br />
fia e a história, são difíceis de encontrar troços de paisagem que não tenham sido<br />
objecto de transformação). O que mais me seduz neste território, na ausência da<br />
presença humana, é o tentar perceber que fascínio exerce a terra e, provavelmente,<br />
sempre exerceu, sobre quem a olha, sobre o viajante, ou sobre quem, em tempos<br />
muito recuados, aí terá chegado na procura de um local para habitar. Há um olhar<br />
significante, descodificador, depois o enunciar de um desejo de transformação de<br />
um habitat num espaço habitado. Os mais antigos espaços arqueológicos revelam<br />
já esse desejo que, com o passar dos milénios, dos séculos, se vai tornando mais<br />
evidente. Do Paleolítico chegam-nos os vestígios de acampamentos, a ocupação<br />
de grutas, marcas escassas devido à reduzida capacidade de transformação do habitat.<br />
As gravuras e o Vale do Côa representam já a relação, do carácter de certa<br />
forma mágico, da paisagem com a necessidade da sobrevivência pela caça. Com o<br />
Neolítico surgem, no território hoje Portugal, numerosas construções de carácter<br />
funerário e o enunciar de uma arquitectura. Desde esse período que a fixação de<br />
populações é um dado adquirido. Nas idades dos metais encontramos uma ideia<br />
elementar de aldeia, de aglomerado urbano. São passos de evolução dados no sentido<br />
da organização da sociedade que, mais tarde, viria a dar início à ideia de Estado<br />
61
Fig. 3 - Pedra da Ursa. Colares. Sintra. 2002.<br />
Nação, tal como hoje a concebemos e, com ela, a necessidade de ocupar/colonizar,<br />
de uma forma perene, todo o espaço de um país que urge defender. Essa necessidade<br />
de defesa surge de uma forma muito marcada no tempo medieval através de<br />
sucessivas linhas defensivas ao longo do território. Com o Renascimento começam<br />
a surgir projectos de grande escala, com um desígnio forte de geometrização do<br />
espaço, de intervenção, de que os jardins, por exemplo, já em tempos posteriores,<br />
são a nova imagem do desejo de um território, de um novo planeta dos homens.<br />
Com o passar do tempo, com a Revolução Industrial, surgem vias de comunicação,<br />
o caminho de ferro e as estradas, antes não pensadas. A velocidade de deslocação de<br />
62
Fig. 4 - Ponte Vasco da Gama. Lisboa. 2001.<br />
pessoas e mercadorias, de civilização, transforma de forma indelével a nossa própria<br />
relação com a Terra. As cidades, o último dos lugares humanos, é o reflexo de uma<br />
extraordinária capacidade de domínio do território que, por sua vez, revelam uma<br />
progressiva complexificação da estrutura social.<br />
Esta é uma viagem breve por alguns desses lugares, pela procura do registo fotográfico<br />
como fixação de um espaço/tempo determinado e uma leitura histórica<br />
do lugar habitado, numa tentativa de compreensão da evolução do conceito de<br />
ocupação do espaço ao longo do tempo. O espaço contemporâneo, poderá aqui ter<br />
uma relevância especial. É na arquitectura contemporânea e nas grandes obras de<br />
63
Fig. 5 - Santuário de Nossa Senhora da Rocha. Porches. Lagoa. 1996.<br />
engenharia que encontramos essa progressiva consciência de uma transformação<br />
qualificadora do espaço, onde, cada vez mais, está presente o desenho de territórios<br />
de futuro. No entanto, não podemos deixar de constatar que a transformação<br />
qualificadora da paisagem, seja ela urbana ou rural, é claramente ultrapassada pela<br />
celeridade de uma ocupação desenfreada e descontrolada dos espaços contíguos às<br />
áreas consolidadas, ou históricas, grandes cidades ou em locais de desenvolvimento<br />
recente.<br />
Os aspectos técnicos são também muito importantes no trabalho de campo, na<br />
recolha fotográfica propriamente dita. A escolha da câmara, do formato da película,<br />
analógico ou digital, das lentes, uso ou não de tripé, todas as opções têm de ser tomadas<br />
em função da especificidade e objectivo do trabalho que vamos desenvolver.<br />
O aspecto chave neste conjunto de opções é sempre a escolha de um equipamento<br />
que nos permita fazer exactamente aquilo que pretendemos e que não nos impossibilite<br />
nenhuma tomada de vista. Além dos aspectos referidos, há outro que não<br />
posso deixar de apontar, que se prende com a natureza específica do meu trabalho.<br />
Quando exponho, edito fotografias procuro sempre um conjunto que seja coerente<br />
entre si. Que as fotografias não sejam meras imagens soltas de uma determinada<br />
64
ealidade, mas um conjunto significante e aberto a diversas leituras, de acordo com<br />
o receptor. É neste trabalho de selecção e escolha de fotografias que se tece um<br />
discurso, uma narrativa, que se conta uma história que se pretende que provoque<br />
no leitor uma sensibilização para as questões do território, da paisagem, da cidade,<br />
enfim, do espaço que nos rodeia. A gestão que fazemos do espaço, quer seja um<br />
espaço individual - a nossa casa - quer seja a rua, o bairro, a cidade ou o país em<br />
que vivemos, terá que ambicionar à transformação da sociedade para uma situação<br />
de maior igualdade, de maior justiça e, consequentemente, de liberdade. O espaço,<br />
o progressivo entendimento dos lugares, ajudará certamente ao projecto de uma<br />
arquitectura e desenho urbamo, mais qualificados, uma paisagem nova, um espaço<br />
equilibrado e humanizado. A Fotografia, pela sua capacidade de fixação do mundo<br />
visível, pode dar um contributo inestimável a essa nova realidade.<br />
65
Jorge Croce Rivera<br />
Universidade de Évora. Conferência proferida em 26 de Março de 2003.<br />
Diaporéticas contemporâneas: a enigmática do sentir.<br />
Como ponto de partida deste seminário 1 , falar-vos-ei do modo como o pensamento<br />
vive. Pensar constitui-se essencialmente por dificuldades, que se colocam irredutíveis<br />
ao pensar e constantemente se renovam; o pensamento emerge deste pensar,<br />
através de obstáculos, como um modo de ser que dizemos diaporemático, termo<br />
que remete para diaporia, do grego antigo, que significa atravessar dificuldades.<br />
Este ponto de partida liga-se imediatamente a um segundo momento: se nos alçarmos<br />
a uma escala histórica mais ampla que a da evocação da época em que<br />
vivemos, diríamos que o pensamento europeu, o pensamento ocidental, entrou na<br />
esfera do múltiplo. Tal predomínio do múltiplo manifesta-se na multiplicidade de<br />
escalas, de saberes, de perspectivas. Por caminhos que aqui não podemos evocar, o<br />
pensamento e a vivência ocidentais deixaram de ter referenciais unívocos – axiológicos,<br />
políticos, sociais, intelectuais ou espirituais –, passarem a tomar como óbvia a<br />
multiplicidade de sistemas de valor. Essa irredutibilidade do múltiplo, decorrente de<br />
um processo complexo em que o nihilismo, o laicismo e as consequências culturais<br />
e civilizacionais das guerras mundiais, em particular a globalização dos sistemas de<br />
produção e consumo, se implicitaram, foi sentida e consciencializada de múltiplos<br />
modos, sem que se tenha ainda alcançado uma nova inteligibilidade que consiga<br />
1 Ainda que não corresponda plenamente a uma transcrição da sessão, procura o texto manter o carácter oral do<br />
seminário, obviando a erudição e as referências bibliográficas.<br />
67
eduzir a sua estranha complexidade.<br />
A multiplicidade é, na consciência dos artistas, dos críticos ou do público em geral,<br />
algo que aparece como apaziguador, pois que se crê obviarem-se desse modo as determinações<br />
dogmáticas ou tradicionais, mas simultaneamente a multiplicidade de<br />
caminhos é acompanhada por uma intensa vivência do transitivo, do efémero que<br />
suscita angústia, ou mesmo uma paralisia, intelectual ou espiritual, pois a insistência<br />
do múltiplo subsume os sistemas referenciais na regência do efémero, sem que o valor<br />
do singular fique salvaguardado. A possibilidade de lidar com o mundo de forma<br />
não dogmática, delidamente irreferencial, isto é, sem uma referência única, é assim<br />
simultânea do domínio do efémero, ou numa expressão mais aguda, da ausência de<br />
consistência de ser, da consciência de que os seres são simulacros.<br />
Nesta sessão procurarei compreender como o pensar, que não pode obviar o problema<br />
do múltiplo, pode afrontar o sentido inquietante e perturbante que o múltiplo<br />
traz, sem cair nem em fundamentalismos nem na absolutização dos processos<br />
de efemerização, que se mostram em si muito perversos.<br />
Segui intencionalmente um caminho anacrónico, apresentando-vos um conjunto<br />
de peças reconhecidas como obras maiores da arte portuguesa do século XV e XVI<br />
e que estão expostas no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa. O primeiro<br />
quadro, denominado «Ecce Homo», revela uma imagem poderosíssima, que representa<br />
a figura de Cristo já coroado de espinhos, com um manto ensanguentado que<br />
lhe cobre o rosto e a maior parte do corpo. As mãos estão atadas por uma corda<br />
que lhe cai do pescoço.<br />
O quadro procura figurar o momento em que Jesus foi apresentado a Pilatos,<br />
acompanhado por um grupo de sacerdotes hebreus, que o acusam duma grave<br />
falta do ponto de vista da ortodoxia judaica: assumir-se como Messias. Apresentado<br />
ao governador romano, Pilatos, Jesus trava com este um breve mas intenso diálogo<br />
que parece convencer o governador da sua inocência. Pilatos tenta libertá-lo, pois<br />
apercebe-se que o conflito é de natureza religiosa, não de ordem criminal, pelo que<br />
ele não tem competência para o resolver. Os diferentes evangelistas referem que a<br />
população, que estava a assistir a este julgamento não deixou que Cristo fosse libertado<br />
naquela Páscoa, escolhendo para ser libertado Barrabás, um ladrão.<br />
Pressionado pelos sacerdotes judeus, Pilatos, diz São João, mantém a prisão e a<br />
condenação; os soldados romanos açoitam Jesus e, numa caricatura grotesca de coroação<br />
real, colocam-lhe uma coroa de espinhos, cobrem-no com um manto, e, no<br />
intento de o humilhar, mostram-no ao público. É nessa altura que Pilatos diz: “Eis<br />
68
aqui o homem”, «Ecce Homo», frase que dá o título ao quadro.<br />
Observando a pintura, vemos que o centro do resplendor por detrás da cabeça<br />
corresponde ao centro da cabeça, mas o nosso olhar não encontra o olhar de Jesus,<br />
pois o rosto está tapado pelo manto - que não é um manto púrpura – que lhe cobre<br />
também o tronco desnudo. Jesus não oferece resistência, aceita a situação. Não<br />
sabemos se chora, apenas podemos pressentir as suas emoções através da comissura<br />
dos lábios, tensos mas não crispados. A velação do olhar densifica a representação<br />
obrigando o espectador a uma indagação do velado, transformando um acontecimento<br />
histórico, num momento hermenêutico.<br />
Atentemos à pintura: os espinhos que rompem o manto irrealisticamente: como o<br />
manto foi colocado por cima dos espinhos, estes apenas poderiam romper a parte<br />
superior do pano, que ficaria suspenso nos espigões que estão voltados para baixo.<br />
Este irrealismo é um pequeno detalhe, mas que nos obriga a pensar a obra de arte,<br />
não como fonte de fascinação ou autoridade, mas como instância de interrogação.<br />
Esta atenção leva-nos a outro aspecto: o resplendor por detrás da cabeça, a representação<br />
de um corpo glorioso que só plenamente surgirá depois da Crucificação,<br />
acontecimentos que no plano da economia da Paixão ainda não ocorreu. Importa<br />
aqui atender que deste acontecimento temos dois tipos de relatos: o dos Evangelhos<br />
ditos «Sinópticos», que são os Evangelhos daqueles que presenciaram os acontecimentos<br />
da Paixão - São Lucas, São Mateus e São Marcos - e o de São João, que não<br />
presenciou directamente os acontecimentos, mas os interpreta em função de uma<br />
intencionalidade, vendo em Jesus o Logos, o princípio que dá ordem e harmonia<br />
à totalidade. Ele é o Alfa e o Ómega. São João faz desse modo uma interpretação<br />
simbólica de Jesus que, para Marcos, Mateus e Lucas, não é clara. Marcos, Mateus e<br />
Lucas, escrevem o final do homem carismático, da figura excepcional, do homem<br />
perturbador, mas é um homem, um chefe político: um homem que nos deixa sem<br />
palavras, mas é um homem. Em São João, isto já não acontece: é o Logos, o princípio<br />
que assiste à Criação e é uno com o Pai, que incarna e que é crucificado.<br />
Se a concatenação dos momentos deste episódio da Paixão, se a disposição temporal,<br />
do açoitamento à Ressurreição é muito dilatada, há no «Ecce Homo» a contracção<br />
de uma complexidade de momentos na expressão de uma única presença, posta<br />
em enigma figura, na qual convergem os acontecimentos, do passado e do futuro,<br />
acontecimentos que do ponto de vista estritamente histórico são sequenciais, não<br />
convergentes.<br />
E isto é muito interessante, porquê? No conjunto das peças do Museu de Arte<br />
69
Antiga, há um outro quadro, também da Escola Portuguesa, mas mais recente, intitulado<br />
«Cristo atado à coluna», que revela o que aquele manto nos oculta, mas sem<br />
exaurir o enigma da sua presença. A figuração remete para a passagem evangélica<br />
em que se diz que Pilatos manda Cristo, já preso, ao palácio do rei Herodes. Circunstancialmente<br />
presentes em Jerusalém os dois governadores da Judeia romana,<br />
mas sendo Jesus da Nazaré, pertenceria à jurisdição de Herodes. Pilatos está claramente<br />
a pensar não tomar uma decisão injusta e pede que seja Herodes a decidir.<br />
Herodes, que já tinha sido responsável pela decapitação do São João Baptista, recebe<br />
Cristo no palácio, reveste-o com um manto e manda-o açoitar.<br />
O quadro não procura descrever esta situação, não vemos Jesus revestido de púrpura,<br />
antes um prisioneiro escassamente vestido, posto sobre um chão de ladrilhos,<br />
tendo por trás um rico brocado e colunas de mármore púrpura. Não nos detendo<br />
aqui na riqueza do simbolismo dos ladrilhos e na complexidade do espaço interior,<br />
atentemos antes ao acontecimento que o quadro relata. Se consideramos, por um<br />
lado, a disposição dos braços, Jesus assume aqui a postura que só ocorrerá posteriormente,<br />
na crucificação. Ele volta os olhos para o céu – é impressionante como estão<br />
revirados – e nós lemos a mesma intenção que encontramos quando na cruz clama:<br />
“Pai, porque me abandonaste”, numa interrogação expectante que se antecipa neste<br />
momento de açoitamento e humilhação pública.<br />
Uma apreensão mais detida nesta figuração revela-nos algumas surpresas: se repararem<br />
nas mãos de Jesus, elas acabaram de se levantar, abrindo-se expressivamente<br />
numa atitude de expectação. Trata-se de um gesto intensamente poderoso, pois<br />
que foi capaz de enrolar os panejamentos, levantando-os no ar. Que significa, não<br />
apenas tal gesto, mas o efeito que ele provocou? Ao erguer Jesus as mãos, é como<br />
se toda a matéria – o ar, a terra, o fogo, o sangue – fossem arrastadas naquele momento.<br />
Quando Jesus os transfigura, dirigindo o olhar para o céu, é a matéria em<br />
turbilhão que ascende, numa preparação da Ressurreição. O seu palácio não é o<br />
palácio ilusório de Herodes, nesse local ele está coberto com alguma coisa que o<br />
quer ridicularizar, o manto de púrpura, mas ele liberta-se dos véus, olha o céu, antecipa<br />
o que vai acontecer, segundo as narrativas do Evangelho e faz com que o ar<br />
e a matéria toda se modifiquem. Nesse momento, a corda, a mesma que aprisionava<br />
as suas mãos em «Ecce Homo», cai-lhe aos pés.<br />
Ao invés do «Ecce Homo», não é a velação do olhar a instância em que se decide<br />
da obra, mas tal instância mostra-se na patenteação da transformação da matéria.<br />
O «Ecce Homo» e o «Cristo atado à coluna» figuram assim o mesmo momento: o<br />
70
primeiro dando o ambiente crucial, obscuro, deste confronto do poder dos homens<br />
e do poder de Deus, confronto cujo o âmago decisivo se dá na singularidade dos<br />
indivíduos, e o segundo, luminoso mas não menos enigmático, revela a transfiguração<br />
do real que a decisão de Jesus possibilita.<br />
Ao articularmos os dois quadros, não procuramos reforçar uma concepção, crença<br />
ou convicção religiosa, mas interessam-nos ver como os dois quadros se encontram<br />
e mutuamente se esclarecem, o que é velado num se torna manifesto noutro – vemos<br />
no olhar do «Cristo» o que o manto esconde em «Ecce homo», concentra-se<br />
no resplendor de um, em extática circunscrição, o que noutro é dinâmica mas subtil<br />
transformação.<br />
Todavia, não é a correlação destes quadros, a sua “intertextualidade” o que mais me<br />
importa pensar, mas que neles a compreensão do que tomamos por óbvio, - o ser<br />
corpóreo, a subjectividade, os modos de representação e as tensões constitutivas<br />
do real se mostrem enigmáticos e, ao mesmo tempo, se tornam evidentes, enigmaticamente<br />
evidentes, mostrando nas tensões a calma, no estático o dinâmico, no<br />
obscuro o luminoso, no corpo ou no anímico, uma presença enigmática que nem é<br />
propriamente imanente, nem transcendente. Dando expressão sensível às instâncias<br />
decisivas, estes quadros obrigam-nos a interrogar o que é a experiência, isto é, como<br />
no sentir, no domínio do sensível, ao mesmo tempo que se diferenciam, articulamse<br />
e mutuamente os modos como a Presença – dou este nome àquela presença<br />
enigmática – é vivida por nós.<br />
Mas quais são os modos de Presença e como pensar a sua articulação, sem cair<br />
numa ilusória unicidade, numa expressão unívoca do antropocentrismo? A questão<br />
ultrapassa o limite estreito das perspectivação estética, pois na situação contemporânea,<br />
– e nesta impossibilidade do unívoco foi fundamental o contributo da arte<br />
–, não nos é possível aludir a uma experiência unívoca do corpóreo, nem a uma<br />
alma ou possibilidades anímicas reconhecíveis por todos; alargou-se e diversificouse<br />
o horizonte de referências culturais e mesmo o óbvio, as alusões que constituem<br />
funcionalmente a comunidade sempre efémera de sentido, vive entre o fascínio<br />
da idolatração e a necessidade de constante substituição, naquilo que se diz como<br />
domínio do mediático.<br />
As obras de arte indicam-nos todavia que esta Presença se experiencia num jogo,<br />
no qual importa a obra, não só como objecto, valioso ou banal, mas cujos conteúdos<br />
que se inscrevem num renovado processo de interpretação; importam os modos<br />
e as dinâmicas de conhecimento, não só para a sua representação ou recriação por<br />
71
um espectador, mas também para a sua referenciação, a sua figuração simbólica na<br />
ordem das referências partilhadas, no que denominamos de cultura.<br />
As obras de arte também nos indicam que, sem excluir o canónico, a Presença solicita<br />
a liberdade, a disponibilidade para a descoberta, e ao mesmo tempo, as obras<br />
não apenas exprimem as tensões do real – como os dois quadros que comentámos<br />
bem ilustram –, mas se situam como obras sempre em risco de desaparecimento,<br />
deterioração, falsificação, esquecimento.<br />
Assim, as obras de arte deixam-nos perceber que na Presença se joga a Apresentação<br />
e a Representação: pela primeira, toda a expressividade que suporta a obra, que<br />
ela contem ou suscita; pela segunda, todos os processos de significação. Imediatamente<br />
percebemos que nenhuma se sustem por si, mas ambas se requerem: não há<br />
Apresentação sem Representação, nem Representação sem Apresentação. Antes, no<br />
entanto, de desenvolver as suas relações, atenderemos ao jogo em si.<br />
O tema do jogo é antigo, no pensamento ocidental, desde Heraclito, no seu fragmento:<br />
“o cosmos é como um jogo de pião que uma criança brinca” (Diels-Kranz<br />
53). O mundo como um jogo, no qual a necessidade e o aleatório, o lúdico e o<br />
regulado se entretecem, é um tema retomado contemporaneamente por Nietzsche,<br />
Heidegger, Eugen Fink e Kostas Axelos; por outro lado, a par desta consideração<br />
metafísica do jogo, ocorre uma sua revalorização pela história das ideias, pela compreensão<br />
da importância civilizacional que o jogo tem, importância tornada evidente<br />
sobretudo desde Homo Ludens, de Huizinga. Todavia, ainda que todos estes<br />
autores nos interessem, é a abordagem antropológica do jogo proposta por René<br />
Caillois, numa pequena obra denominada Le Jeu et les hommes, que nos parece mais<br />
sugestiva para a compreensão do jogo da Presença.<br />
Nesta obra, Caillois distingue quatro tipos de jogos: os jogos de acaso, em que<br />
domina o álea, o aleatório, como a roleta; os jogos de mimicry, de mimésis, em que<br />
domina a imitação, como o teatro; os jogos de competição, em que domina o agón,<br />
como os combates ou as competições de equipas; finalmente, os jogos de vertigem,<br />
de ilinx, como certos desportos ditos radicais, nos quais é essencial a dimensão<br />
vertiginosa. A experiência concreta de cada específico jogo e de sua efectiva realização<br />
não implica necessariamente apenas um deste tipos, mas uma sua particular<br />
combinação, simples ou complexa. A maior parte dos jogos supõem momentos de<br />
vários destes tipos: por exemplo, numa partida de bridge, que é certamente um jogo<br />
de competição, encontramos álea na distribuição das cartas, mimésis no bluff e na<br />
estratégia com o parceiro, ilinx na tensão provocada pelo nervosismo acumulado<br />
72
ao longo do jogo. Numa partida de futebol, concorrem no resultado competitivo a<br />
actualização da preparação táctica, a gestão do esforço, o aproveitamento de oportunidades.<br />
Se retomarmos o problema da experiência artística, esta tipologia permite pensar<br />
de um modo mais articulado os diversos aspectos que constituem a vida das obras<br />
de arte, de pintura, por exemplo. Facilmente reconhecemos a dimensão mimética<br />
da arte, sejam os conteúdos “realistas” ou “abstractos”, mas também a potência icónica<br />
que pode revestir as peças de arte; depois, – podemos referir aqui Pollock, o<br />
modo como pintava, atirando os jactos de tinta sobre a tela – a criação implica uma<br />
dimensão aleatória, seja por uma inspiração repentina ou uma pura combinatória;<br />
na importância das “vanguardas”, como expressão de um choque, de um combate<br />
contra o gosto estabelecido, reconhecemos o agónico, mas deve-lo-emos também<br />
estender às rivalidades ente autores e escolas e à própria história de cada criador.<br />
Mais subtil a presença vertiginosa: reconhecemo-la na vontade de domínio técnico,<br />
de aperfeiçoamento e exploração de possibilidades que tomam o criador. Também<br />
aqui, é necessário perceber a combinação dos tipos, a prevalência de algum num<br />
momento, mas a irredutível conjunção de todos.<br />
Cremos, todavia, que os tipos de jogo reconhecidos por Caillois têm um interesse<br />
que excede a compreensão das obras de arte em si, pois nos permitem compreender<br />
na Presença os modos de relação entre a Representação e a Apresentação e por<br />
eles tentar apreender como no múltiplo se constituem e jogam a corporeidade e o<br />
anímico, a figuração e as tensões.<br />
Começaremos por um primeiro modo, aquele que nos permite pensar o corpóreo.<br />
Devemos atentar que pelo corpóreo procuramos pensar, em primeiro lugar,<br />
a corporeidade humana, mas em sentido autêntico, todas as presenças expressivas,<br />
sejam pedras, animais, paisagens, objectos técnicos, são corpos; neles a Apresentação<br />
sustem a Representação e a forma estática, circunscrita, é o grau mínimo da<br />
Apresentação que o uso, as experiências e as práticas possibilita outras formas de<br />
conhecimento e significação. Há uma densidade nos corpos que os tornam verdadeiramente<br />
enigmáticos, dotados de uma presencialidade erroneamente silenciosa.<br />
Importará pois reconhecer que a experiência do corpóreo não é algo de determinado,<br />
de fechado, mas um conjunto de possibilidades que na experiência dinâmica<br />
e, ao limite, na vertigem, ilinx, são suscitadas e reconhecidas. Enquanto o modo<br />
da Representação enuncia, quer os processos cognoscitivos, quer o conhecido e<br />
significado, em sentido lato, a Apresentação é modo de presença mais subtil, menos<br />
73
óbvio inerente à constituição do nosso corpo, modo que possibilita o uso das nossas<br />
faculdades de conhecimento: termos estes sentidos decorre de alguma coisa que<br />
nos é anterior.<br />
No segundo modo, é a Representação que sustem a Apresentação: sem tal modalidade,<br />
não seria possível compreender o anímico, ou numa correspondência com as<br />
artes, o cinema, e fazemo-lo corresponder ao que, na tipologia dos jogos, Caillois<br />
se denomina de álea. Reparemos na roleta: sem a repartição do círculo em fracções<br />
numeradas vermelhas e pretas, não teria a circulação aleatória da esfera significação<br />
algum: é o modo como antecipadamente representamos a realidade que permite<br />
reconhecer expressão e valor à pausa final da esfera numa determinada fracção.<br />
74
Filipe Rocha da Silva<br />
Universidade de Évora. Conferência proferida em 2 de Abril de 2003 1 .<br />
Porquê criar imagens visuais?<br />
“Porquê criar imagens visuais?” A razão pela qual sugeri este título à Dra. Sandra<br />
Leandro, é muitas vezes, a sensação que tenho que descuramos o óbvio e nos concentrarmos<br />
no acessório. É uma situação perfeitamente natural a pessoa estar quatro<br />
anos num curso de Artes Visuais, basicamente sem saber porque é que lá está... Eu<br />
próprio não sei porque é que escolhi esta profissão, ou porque não escolhi outra.<br />
Muitas vezes são os frutos do acaso, de acidentes, ou outras coisas...<br />
É perfeitamente natural não se saber porque é que se cria imagens visuais, o que não<br />
é natural é a pessoa não pensar nisso, dá-lo como algo adquirido e não se interrogar.<br />
As imagens que são criadas correm o risco, ao não se interrogar sobre o essencial,<br />
de ter a ver com o acessório, acabam por ser imagens superficiais, mais ou menos<br />
tecnicamente apuradas, e forçosamente, caem na banalidade e no cinzentismo.<br />
Por isso é importante pensarmos porque criamos imagens visuais.<br />
Vou reportar-me mais à pintura propriamente dita do que às outras especialidades<br />
artísticas porque estou mais próximo dos pintores, a minha actividade é toda ela<br />
ligada à pintura, sou bastante especializado, não sou um multimediata como alguns<br />
1 no âmbito da disciplina de Seminários de Estudos de Arte da Licenciatura em a Artes Plásticas da Universidade<br />
de Évora. Revisto para publicação com base em preciosas notas da aluna Rita Matias, tentando no entanto<br />
continuar fiel ao tom do discurso directo e ao conteúdo daquilo que foi improvisado “ao vivo“. Peço por isso<br />
antecipadamente desculpa por ofensas de vária ordem ou imprecisões que o texto contenha. Novamente revisto<br />
em Fevereiro de 2005.<br />
75
colegas meus e portanto, realmente acabo por não pensar muito sobre as outras formas<br />
de arte, fotografia, ou escultura... Não tenho necessidade disso, vivo feliz com<br />
a minha pintura, portanto nunca me apeteceu fazer outras coisas.<br />
Vou falar de pintura, mas é evidente que muitas coisas podem ser generalizadas às<br />
outras actividades, é uma questão da pessoa depois tentar pensar que, quando digo<br />
um pintor, que também pode ser um escultor, um cineasta, ou uma pessoa de outras<br />
áreas artísticas.<br />
Descobri uma frase de Merleau-Ponty, da Fenomenologia da Percepção, que diz o<br />
seguinte: «Como se houvesse na actividade do pintor, uma urgência que ultrapassa<br />
qualquer outra urgência, ali está ele, forte ou fraco na vida, mas soberano, sem<br />
contestação na sua ruminação do mundo, sem outra técnica que a que os olhos e<br />
as mãos se dão, à força de ver, à força de pintar, teimando a extrair deste mundo<br />
onde ressoam os escândalos e a glória da história, telas que não acrescentarão nada<br />
à cólera e às esperanças dos homens e de que ninguém fala».<br />
Como podem verificar, há aqui vários aspectos nesta frase, é uma frase interessante,<br />
com variadíssimas ideias que se entrecruzam. Por um lado, a urgência que o pintor<br />
sente, por outro lado a questão da vida exterior que vais decorrendo, em que há a<br />
tal história de que o Merleau-Ponty também fala, com a suas glórias e os seus escândalos<br />
e por outro lado, o pintor que teimosamente pinta. A teimosia parece-me<br />
importante, quase todos os artistas que eu já conheci são grandes teimosos, e isso é<br />
o encanto deles e às vezes também a chateza.<br />
Eles vão, portanto, «teimando em extrair deste mundo, telas que não acrescentarão<br />
nada às esperanças dos homens e de que ninguém fala». Isto relaciona-se com<br />
aquela iniciativa que está em curso, o Museu do Esquecimento 2 , reunindo obras<br />
« de que ninguém fala» e que parece ser um bocado pessimista. Todos os pintores,<br />
quando pintam, sobretudo no início, estão a pensar que vão ser vedetas, verdadeiros<br />
Picassos, que vão viver famosos e milionários. Esta expressão «de que ninguém fala»,<br />
pode parecer estranha quando relacionada com uma obra nossa. Nenhum artista,<br />
propriamente se convence de que ninguém vai falar dele. Portanto, pode parecer<br />
que o que eu disse até aqui está tudo bem, mas que aqui a coisa descamba! Mas,<br />
a realidade é que quando a pessoa realmente está a construir aquelas obras está a<br />
construi-las na maior solidão e anonimato, embora depois elas até possam ficar<br />
2 “Museu do Esquecimento” foi uma exposição dos alunos de Artes Visuais da Universidade de Évora na Sociedade<br />
Nacional de Belas Artes em Lisboa, em Setembro de 2003.<br />
76
famosas. Há uma grande hipótese e realmente a pessoa tem de a aceitar, e daí a<br />
teimosia, de que aquelas obras mergulhem no mais completo esquecimento.<br />
Existe outra versão, sobre a motivação dos pintores e dos artistas para fazerem obras<br />
visuais, que está num livrinho que eu vigorosamente recomendo, ainda por cima<br />
está em Serralves neste momento a exposição, que é o livro fantástico de entrevistas<br />
do Francis Bacon a um senhor que também já morreu, que é o David Sylvester.<br />
Aliás, há uma versão em vídeo também, que passou recentemente na televisão. Mas<br />
a versão escrita é melhor.<br />
As entrevistas são muito boas. Foi talvez a primeira entrevista em que apareceu um<br />
pintor a falar da técnica, das coisas práticas, o dia-a-dia do atelier, a tinta estar muito<br />
líquida e escorrer, portanto, isso ser considerado uma coisa suficientemente digna<br />
para ser falado. Muitas vezes os pintores quando falavam, diziam: «sim, a grandeza<br />
da Arte...», «a Arte que fala sobre a humanidade...», mais uns lugares comuns, e nós<br />
perdoávamos porque pintavam bem. O Bacon fala sobre coisas concretas, daí a fama<br />
que estas entrevistas atingiram. Aliás, quase todos os pintores que têm sucesso hoje<br />
em dia, são pintores que têm um discurso verbal interessante, que têm qualquer<br />
coisa de especial, de particular que os projecta para o mundo, ou que completa as<br />
imagens visuais que eles fizeram.<br />
Só para dar exemplo de Portugueses, há a Paula Rego. Toda a gente conhece aquelas<br />
extensas entrevistas dela, mais psicanalíticas, digamos assim, sobre o que é que<br />
representam aqueles cãezinhos, as meninas, as mulheres e os homens. A Vieira da<br />
Silva também era uma pintora com um discurso muitíssimo forte. Mas o Bacon,<br />
realmente foi talvez o primeiro pintor que se destacou por ter um discurso completamente<br />
diferente. Ainda por cima com um humor britânico-irlandês muito<br />
sarcástico.<br />
O Sylvester está-lhe a perguntar porque é que ele não destrói as obras depois de as<br />
fazer, porque é que os pintores preferem que as obras continuem a existir, quando<br />
acabam de as fazer. Já não dão gozo nenhum, já acabou e pronto - caiem no esquecimento...<br />
Bacon responde: «Bem, há duas razões para não as destruir, uma é que,<br />
a não ser que a pessoa seja rica, quer viver daquilo que a absorve e que tenta fazer.<br />
A segunda razão é que não se sabe quais são as relações, embora elas sejam sempre<br />
estúpidas, entre aquilo que a pessoa faz e a ideia da imortalidade. Apesar de tudo ser<br />
um artista é uma forma de vaidade, e essa vaidade pode ser realçada com essa ideia<br />
racionalmente fútil da imortalidade. Seria também pretensioso sugerir que aquilo<br />
que estamos a fazer irá aumentar o conteúdo da vida. Mas evidentemente, sabemos,<br />
77
que a nossa própria vida foi enriquecida pela existência de grandes obras de Arte.<br />
Uma das muito poucas maneiras em que a vida foi realmente enriquecida, foi pelas<br />
grandes coisas que umas poucas pessoas nos deixaram. Bem, finalmente a Arte é<br />
uma ocupação fútil».<br />
Como vocês podem ver, as motivações para criar imagens visuais, podem ser muitas.<br />
Neste discurso contraditório do Bacon, elas são variadas. Estas são frases verbais<br />
e com certeza que vos acontece também começar uma frase a defender uma coisa<br />
e a vossa própria lógica conduzir a uma concepção diferente, portanto mudar de<br />
opinião a meio da frase. Ele começa por dizer uma coisa e muda várias vezes de<br />
opinião. O que acontece é que, primeiro, fala na questão da vaidade, na questão da<br />
afirmação do Ego; segundo fala da imortalidade, portanto do desejo de nos libertarmos<br />
da Morte; e terceiro, deixa uma hipótese de a pessoa, apesar de tudo, estar<br />
a melhorar a Vida. No sentido em que, falando autobiograficamente, a sua própria<br />
vida ter sido melhorada pelo facto de existirem Obras de Arte. Quarto, acaba por<br />
concluir que afinal a arte é fútil...<br />
O Francisco de Holanda é o único artista português realmente internacional. Foi<br />
um homem que viveu no século XVI e que esteve em contacto com aquilo que<br />
naquele momento se passava de mais excitante, no mundo da Arte. Conheceu<br />
Miguel Ângelo pessoalmente, esteve com ele em Roma e foi um homem com<br />
uma vida cheia. Depois, quando chegou a Portugal, fez uns desenhos interessantes,<br />
não tem grandes pinturas que se conheça, mas sobretudo escreveu um livro que se<br />
chama A Pintura Antiga, um livro fundamental, em certos aspectos avançado para a<br />
época, mesmo em termos internacionais.<br />
Ele fala então sobre pintura. Tenho uma certa dificuldade em escolher um parágrafo,<br />
porque são todos bastante fortes... Vou tentar escolher só aqui um que diz o<br />
seguinte: «A santa pintura é contemplação activa, é terra e chão em que o arado do<br />
trabalho, com penas, grifos ou pincéis, dão frutos mui deleitosos e louvados. É mar<br />
de engenhos e dos engenhosos. É pego, e rio e fonte. É céu de todos os artifícios<br />
e boas artes, e é o novo mundo do homem e sua própria obra, assim como o novo<br />
mundo é próprio de Deus, derivado um do outro. É uma candeia, uma luz que<br />
inesperadamente brilha num lugar escuro, mostrando obras que antes não eram<br />
conhecidas».<br />
Vocês vêm aqui um discurso completamente diferente do de Bacon: enquanto<br />
Bacon começava por dizer que, na realidade, o pintor não é nada mais do que<br />
um vaidoso que se assume, digamos, um vaidoso desavergonhado, o Francisco de<br />
78
Holanda, falava do pintor basicamente como um Deus e aliás começa o livro dele<br />
por dizer que Deus era um pintor, porque criava. Há uma divinização das artes, até<br />
como uma forma de fugir àquela “apagada e vil tristeza” em que os artistas viviam<br />
antes desta época, em que o pintor era um trabalhador manual como qualquer pedreiro<br />
ou pessoa que tivesse uma profissão desse género. Holanda está a tentar elevar<br />
a ideia do pintor acima do seu triste destino.<br />
A pintura, basicamente, é aquilo que vos estive a contar. As razões pelas quais a<br />
pessoa cria imagens visuais são extremamente variadas, difíceis de discernir, mas,<br />
o que acho importante é pensar sobre o assunto: Porque é que eu, ser pensante,<br />
crio imagens visuais, em vez de me dedicar, por exemplo, a plantar nabos? Plantar<br />
nabos deve até ser um óptimo trabalho, uma óptima profissão, e se calhar até é mais<br />
rentável do que fazer pintura, embora não tenha a certeza de que esteja adaptada<br />
aqui ao Alentejo.<br />
Este é o primeiro assunto de reflexão, sobre o qual gostaria que vocês pensassem.<br />
O segundo tema, também relacionado com a natureza da pintura, é o seguinte:<br />
Primeiro vimos porquê criar imagens visuais, mas o que é uma imagem visual?<br />
Vou-me socorrer de Wassily Kandinsky. Vocês já devem ter encontrado o Kandinsky,<br />
aliás há uma pequena bibliografia que tenho aqui num papel, que poderei<br />
distribuir pelas pessoas interessadas. Kandinsky foi um artista russo, que apareceu<br />
antes da revolução soviética e depois a acompanhou com grande entusiasmo, mas a<br />
certa altura já não teve paciência para a sociedade russa que se tinha criado e voltou<br />
para a Alemanha, esteve na Bauhaus, a grande escola que surgiu nessa época, e desenvolveu<br />
trabalho muito interessante como pintor e também como teórico.<br />
Escreveu vários textos de intervenção e, sobre quadros e sobre a obra de Arte em<br />
geral: «Um quadro deve ter um coração próprio, um sistema nervoso, ossos e circulação.<br />
Nos seus movimentos deve parecer-se como uma pessoa, deve ter o tempo<br />
dos seus movimentos. Aquele que o olha, deverá encontrar-se diante de um ser que<br />
lhe faça companhia, que lhe conte histórias, que lhe dê certezas».<br />
Kandinsky, associa a obra de arte a uma pessoa. A obra de arte é um ser orgânico,<br />
uma coisa que tem movimento e portanto devemos tentar, quando construímos<br />
uma obra de arte, fazer como se estivéssemos a tratar de um filho, temos que pensar<br />
no bem da obra de arte, aquela obra de arte em especial. O que é que ela será, o<br />
que é que irá ela fazer?<br />
«A obra de arte mais bela, é aquela na qual a forma exterior corresponde inteiramente<br />
ao conteúdo interior. Que é, por assim dizer, um diálogo eternamente<br />
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irrealizável. Portanto, na sua essência, a forma de uma obra de arte é determinada<br />
de acordo com a necessidade interior, com a necessidade eterna». Kandinsky tinha<br />
profundamente esta ideia. Ele era um espiritualista e via a obra de arte como uma<br />
espécie de cebola, com uma camada interior, inatingível e não perceptível, perceptível<br />
era a casca. Mas tinha que haver uma relação entre a casca e a parte de dentro<br />
de tal maneira forte que, olhando para a casca, tivéssemos a intuição ou a percepção<br />
do interior. E portanto a obra de arte, a tal imagem visual, é mesmo isso, é uma<br />
cebola, como vocês podem ter percebido por aquilo que eu disse. Cebolas, estou<br />
convencido, já se criarão por aqui com mais facilidade do que os nabos...<br />
Há uma relação sempre interessante entre as obras de arte e as palavras. Estamos<br />
a falar sobre imagens visuais. Pode-se pôr em questão a futilidade deste exercício.<br />
Estamos aqui também a ver imagens visuais mas nem sequer estamos a falar delas 3 ,<br />
mas estamos a falar sobre imagem visual em geral. Será grave? Valerá a pena falar<br />
sobre imagens visuais? Isto terá alguma importância, alguma relevância para todos<br />
nós os criadores de imagens? Ou para o público que as vê?<br />
Sobre isto, há um depoimento da Maria Helena Vieira da Silva, uma mulher muito<br />
interessante, que disse o seguinte ao George Chabonnier, em 1960: «As grandes<br />
teorias da arte são muito bonitas, mas, eu sigo-as sim, mas, enfim, não quero pô-las<br />
em prática, gostava era de pôr em prática a mim mesma». Vieira da Silva tinha uma<br />
ideologia, que advinha dos existencialistas franceses. O diálogo e a busca dela, eram<br />
no sentido de se encontrar a si mesma, criando imagens. Em relação às grandes teorias,<br />
ela achava que realmente a pessoa devia estar atenta, devia saber o que é que<br />
se estava a passar... mas, atenção, o ideal era não as seguir.<br />
Sobre esta relação das imagens com as palavras, noutros autores, há uma citação<br />
também interessante, de Dubuffet, inserida num Manifesto que ele escreveu em<br />
1951, com o título “Posições anti-culturais”. Dubuffet defendia um tipo de arte,<br />
um pouco ao contrário da arte que instituições tipo Universidade de Évora praticam.<br />
Ele admirava profundamente a arte espontânea, portanto a arte dos loucos,<br />
a arte das crianças, das pessoas que nunca aprenderam a fazer arte. E achava que a<br />
pessoa nestes sítios académicos, perde em parte a sua naturalidade e espontaneidade.<br />
Defendia uma arte chamada “arte bruta”, fez uma série de manifestos sobre isto,<br />
claro que exagerando um bocadinho, porque ele próprio também tinha estudado<br />
na escola de artes, mas enfim, era uma posição radical, que defendia com veemên-<br />
3 Esta conferência era acompanhada pela projecção aleatória de diapositivos representando pinturas.<br />
80
cia.<br />
Sobre a questão palavra -imagem, ele dizia: «Disse e repito, uma vez mais, que a meu<br />
ver a pintura é uma linguagem muito mais rica que a das palavras. É totalmente<br />
inútil procurar para a arte outras razões de ser. A pintura é uma linguagem muito<br />
mais imediata do que a das palavras escritas e ao mesmo tempo, mais carregada de<br />
significado. Opera por meio de sinais que não são abstractos e incorpóreos como<br />
as palavras. Os sinais da pintura estão muito mais próximos dos próprios objectos.<br />
Além disso, a pintura manipula matérias, que são elas próprias, substâncias vivas. É<br />
por isso que ela permite ir muito mais longe do que as palavras, no acesso às coisas<br />
e na sua interpretação. A pintura também pode perfeitamente, o que é notável,<br />
evocar mais ou menos as coisas, quero dizer, com mais ou menos presença, a todos<br />
os níveis, oscilando entre o ser e o não ser. Finalmente a pintura pode evocar coisas<br />
não isoladas, mas ligadas a tudo o que as rodeia. Um grande número de coisas<br />
simultaneamente». Nesta pequena citação, está a mostrar aquilo para que serve a<br />
pintura, digamos, as imagens visuais, quais são realmente as virtualidades que têm e<br />
que as palavras não terão.<br />
É pena não estar aqui uma pessoa ligada à literatura, ou que explicasse o que é que<br />
a literatura pode fazer, e que a pintura ou as imagens não podem fazer. O que me<br />
parece é que realmente, tudo isto tem que ver com a chamada Semiótica ou Semiologia,<br />
que é o estudo dos sinais, o estudo, digamos, de cada um dos diferentes<br />
sinais que nós utilizamos para comunicar. E a maneira como cada sinal é recebido,<br />
de maneira diferente, pelo chamado receptor.<br />
Socorrendo-me mais uma vez das entrevistas com Francis Bacon, a certa altura, Sylvester<br />
perguntava-lhe se ele queria contar histórias nas suas pinturas. E Francis Bacon<br />
respondia-lhe da seguinte maneira: «Eu não posso evitar contar histórias, mas,<br />
quero contar histórias sem que as pessoa se apercebam disso». Era um pensamento<br />
paralelo ao do Paul Valéry, que dizia que gostava de dar a sensação sem a chatice do<br />
invólucro dessa sensação, do seu veículo.<br />
Ele queria transmitir a sensação dura, através de imagens do tipo subliminar, que a<br />
pessoa vê mas são rápidas demais para ter a consciência de que as viu. Até é proibido<br />
na publicidade passar este tipo de imagens, porque o público não se consegue defender,<br />
entram no cérebro directamente, sem passarem no consciente. Mas na arte é<br />
possível, e Bacon dizia que gostava de contar histórias desta forma. Porque quando<br />
a história é consciente, a chatice aparece, o aborrecimento surge. Ele achava que, em<br />
termos de pintura ou em termos de arte, o que era chato era ter-se a consciência<br />
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de contar histórias, e tentava fortemente evitar isto.<br />
Vieira da Silva, à Anne Philippe, outra pessoa que a entrevistou frequentemente,<br />
dizia também, ainda relacionado com aquela a ideia da cebola: «num guache há<br />
dois quadros, que funcionam juntos, o que está no cavalete, e o que está na nossa<br />
cabeça». Toda a gente já sentiu, com certeza, quando está a pintar esta, digamos,<br />
esquizofrenia dos dois quadros, o quadro que está no cavalete e o outro quadro que<br />
está na cabeça. Normalmente os principiantes dizem sempre assim: «-Oh Professor,<br />
mas não é isto que eu queria fazer, não é isto que eu tinha em mente». Eu respondo<br />
sempre a mesma coisa: «-Eh pá! Não se preocupe. Tem que olhar para o cavalete e<br />
ver o que é que lá está. Esqueça o que tem na cabeça».<br />
Vieira da Silva, mesmo sem ter alunos, reconhecia também esta realidade e depois<br />
dizia o seguinte: «E ás vezes, o que eu tinha na cabeça, não ia ao encontro do outro,<br />
(o outro, o que estava no cavalete), mas gostava desse outro e então deixava-o<br />
fazer-se tal como aparecia no cavalete. Também poderia acontecer que não estivesse<br />
satisfeita, e então continuava a perseguir aquele que tinha imaginado». Portanto, ela<br />
ia sempre fazendo uma série de opções, e uma série de sacrifícios, entre o cavalete<br />
e a cabeça. São duas entidades diferentes, e face ao qual, geralmente o pintor,<br />
ou o criador, tem de estar sempre, a balançar, como dizem os franceses, mon coeur<br />
balance. Ou seja, o artista tem de estar sempre atento à cabeça, mas também àquilo<br />
que aparece no cavalete, porque a certa altura, o que aparece no cavalete, pode ser<br />
inclusivamente muito melhor do que aquilo que tinha na sua própria cabeça.<br />
Ora bem, ainda sobre esta coisa sobre as palavras, eu tenho de vender aqui um<br />
bocadinho o meu peixe. Estou a fazer uma Tese de Doutoramento para esta Universidade,<br />
estudando o século XVI, comparado com o século XX. Há uma parte<br />
dessa Tese em que eu justamente estive a estudar a relação entre as palavras e os<br />
textos, por isso também o estudo do Holanda e as imagens que os pintores daquela<br />
altura vão criando.<br />
Ao estudar o século XVI, por exemplo, a pessoa encontra informações muito variadas.<br />
Há pessoas que dizem que os textos anteciparam as imagens correspondentes,<br />
para aí em sessenta anos. Primeiro aparecem textos especialmente inteligentes e<br />
iluminados e passado sessenta anos, os pintores começam a fazer imagens que correspondem<br />
a esse textos. Depois há outros que dizem justamente o contrário: que<br />
os pintores estão a fazer coisas fantásticas há já uma data de tempo e que passados<br />
sessenta anos, começam a aparecer os textos.<br />
Isto pode ser importante porque a pessoa interroga-se: Então e hoje? Hoje em dia,<br />
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no século XXI, o que é que está a acontecer? São os tipos que escrevem que estão<br />
na vanguarda e estão a dizer-nos o que é que devemos pintar? Ou a descrever as<br />
imagens que devemos criar? Ou somos nós que estamos a mostrar a imagem, e<br />
depois os tipos lentamente lá vão escrevendo, e daqui a cinquenta anos já devem ter<br />
percebido o que nós fizemos hoje?<br />
A história serve justamente para isso, porque, ao ver o que é que então se passava,<br />
consegue-se perceber mais ou menos o que é que se está a passar hoje. Porque o<br />
que se passa é sempre mais ou menos a mesma coisa, apesar de tudo mudar.<br />
Estive a ler atentamente o que é que se passava no século XVI, mas não cheguei a<br />
nenhuma conclusão em especial porque realmente, com já disse, cada autor diz as<br />
coisas mais variadas sobre este assunto. De qualquer das maneiras, a sensação que eu<br />
tenho, é que hoje predomina a ideia real ou inventada de que os teóricos é que realmente<br />
estão à frente. Ou seja, o que se escreve é considerado mais avançado, mais<br />
genial, mais elaborado e realmente depois, os artistas visuais cumprem o programa<br />
que está já mais ou menos estabelecido pelos, digamos, críticos de arte.<br />
Há nomeadamente um caso que foi muito importante nos anos cinquenta, nos<br />
Estados Unidos, o do crítico de arte que se chamava Clement Greenberg, sobre o<br />
qual se diz que “fez”, toda uma geração dos expressionistas abstractos, “Pollocks”,<br />
e não sei que mais... Consta que o diálogo era ao nível do «não, não é isto!» ou «é<br />
aquilo que tu tens de fazer!» Não utilizando estas palavras, mas sim a linguagem<br />
altamente elaborada que os críticos de arte utilizam. O Pollock: “Ai é? Ah porreiro,<br />
e tal...”. E então começou a fazer o que o outro dizia, aquilo correu bem e toda a<br />
gente começou a dar-lhe palmadas nas costas e a dizer que era o melhor do mundo.<br />
O Jackson Pollock no entanto decidiu regressar à figuração. Bom, pouco tempo<br />
depois, suicidou-se. Era alcoólico e morreu num desastre de automóvel, há probabilidades<br />
de o desastre de automóvel fosse um suicídio. Mas de qualquer maneira,<br />
durante algum tempo, diz-se que uma relação, digamos, entre o programador e o<br />
programado funcionou perfeitamente, portanto a obra visual surgia como uma<br />
espécie de ilustração de um programa teórico.<br />
Nos finais do século XVI, também existiu um momento muito importante, que<br />
foi chamado o Movimento da Contra-Reforma, como vocês sabem. Resumindo, a<br />
certa altura houve a Reforma. A Igreja Católica lá encaixou aquela coisa de alguns<br />
cristãos já não quererem saber do Papa para nada e daí a própria Santa Sé ter reagido<br />
e criado então uma espécie de militância religiosa que passava muito pelas imagens.<br />
Era preciso, que os católicos se distinguissem dos protestantes e uma das coisas<br />
83
que os distinguia era os católicos dizerem: «As imagens são uma coisa necessária». E<br />
os protestantes: «As imagens são um bocado impuras, nós preferimos, digamos, uma<br />
certa sobriedade, uma certa pureza, um certo vazio para as pessoas meditarem». E os<br />
católicos: «Não, não, é preciso é mobilização visual! Muitas cores, já!»<br />
Nessa época, a Igreja Romana criava quase equipas de dois fulanos, para cada grande<br />
projecto de pintura, que eram portanto o ideólogo religioso, teólogos que trabalhavam<br />
com o pintor (o Cardeal Borromeo com Vasari, por exemplo) e garantiam<br />
a correcção ideológica e religiosa, daquilo que ele estava a fazer.<br />
Se o pintor, por exemplo devia pôr a pessoa nua da cintura para cima, ou só com<br />
um pano e um mamilo de fora... era uma questão que, depois era discutida, se era<br />
mais ou menos correcto em termos religiosos...<br />
Há um caso conhecido de toda a gente, que é o caso do “Julgamento Final” de<br />
Miguel Ângelo, em que foram colocados cache-sexe. Foi até um pintor decente, o<br />
Daniel Volterra, que foi encarregado de ir lá, posteriormente, já depois da morte do<br />
Mestre, colocar as parras no sítio em que estavam os sexos, porque tinha deixado<br />
de ser correcto, do ponto de vista religioso, apresentar a genitalia assim patente, à<br />
vista. O que uns anos antes seria considerado perfeitamente correcto e não antireligioso.<br />
Tudo isto para provar que há uma relação permanente entre as palavras de uns e as<br />
imagens dos artistas. E depois, há outra coisa que é importante, que são os mecenas,<br />
a história do mecenato é uma parte da história da arte que tem estado a ser ultimamente<br />
muito desenvolvida. Quem é que vocês acham que paga a arte hoje em<br />
dia? O que é que as pessoas que pagam pensam sobre os textos, as palavras que se<br />
escrevem sobre as imagens? Ou dão apenas importância às imagens?<br />
O texto acompanha sempre e é relevante para a obra que está ligada a instituições.<br />
Há sempre uma espécie de acordo entre o mecenato cultural e o texto. O texto é<br />
um acto de poder, digamos que não há arte de sucesso sem texto, não há arte socialmente<br />
influente sem um prolongamento escrito e daí o que eu disse há bocadinho,<br />
normalmente os artistas de sucesso são grandes comunicadores também, ou seja,<br />
conseguem pôr as pessoas a perceberem a sua obra, de uma maneira gira e que é<br />
original, usando também a palavra.<br />
Estão a ver as entrevistas da Paula Rego? Aquilo tem piada, a pessoa não adormece<br />
a ouvir. Mas, na realidade são importantes para a compreensão da obra, porque ela<br />
fala, por exemplo de si, de uma maneira que até quebra a intimidade, digamos assim,<br />
expõe-se quando fala das suas obras, fala da infância, conta como é que estava lá<br />
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com as criadas, na cozinha. E nunca mais deixamos de olhar para aquelas pinturas<br />
sem pensar na infância da Paula, nem na nossa.<br />
Agora, por exemplo, se apareces num sítio qualquer e metem-te um microfone à<br />
frente e perguntam-te: «-Qual é a tua história? O que é que tens para contar?» E tu<br />
dizes: «-Eu sou um artista, pinto muitos quadros e faço desenhos...» Ainda não acabaste<br />
a frase e já eles estão a dar o microfone a outra pessoa. Mas se tu disseres, por<br />
exemplo: «Eu fui violado quando tinha três anos e por isso é que eu faço os quadros<br />
desta maneira...» O público quer saber mais: «-Ah! Tão verdadeiro, tão interessante!<br />
Conte-lá, como é que foi. Como é que isso transparece nas obras?» Ou seja, tem<br />
que se prometer matéria mastigável, utilizável pela media.<br />
Também a Vieira da Silva fornecia esta matéria, embora de uma forma completamente<br />
diferente, porque a Vieira da Silva é anterior à Paula Rego, portanto, é uma<br />
pessoa que falava de uma maneira mais ligada a uma certa imaginação, à subjectividade<br />
mas dentro de uma certa pureza, quer dizer, ali não havia muito Freud. Na<br />
Paula Rego já há mais Freud, ouvi dizer que ela até diz que deve muito ao seu<br />
psiquiatra, e eu acredito, devido ao psiquiatra a ter ensinado a lidar com a sua informação<br />
genética e adquirida, de maneira a conseguir enfrentar e transformar aquilo<br />
tudo em conceitos visuais. Em ambos os casos, são mulheres, que têm realmente um<br />
discurso muito especial e elaborado sobre si mesmas.<br />
É evidentes que existem outros pintores muito conhecidos em Portugal, por exemplo,<br />
o Júlio Pomar, que nunca disseram nada com interesse sobre si mesmos. Este<br />
tem escrito alguns livros, umas coisas meio poéticas, mas as pessoas que gostam das<br />
pinturas, gostam delas em si mesmas, não é porque realmente ele tenha acrescentado<br />
um discurso fantástico. Talvez por isso não tenha feito uma carreira internacional<br />
como as precedentes.<br />
Hoje tudo é possível! O que dizia o Andy Warhol é que não existe publicidade negativa<br />
hoje em dia, toda a publicidade é positiva. Se houver pessoas a dizerem mal<br />
de uma determinada obra estão de qualquer maneira a pensar nela, isso é melhor<br />
do que os grandes inimigos da obra de arte, a ignorância e o esquecimento. Mais<br />
uma vez encontramos o Museu do Esquecimento. Tudo o que seja enterrar a obra,<br />
no sentido de a espezinhar, dizer mal dela ou achar aquilo horrível, já é magnífico!<br />
Grande parte dos movimentos que hoje toda a gente admira, o Surrealismo, o Impressionismo,<br />
começaram por ser objecto de escândalo e reprovação social, inclusivamente<br />
por parte da maioria dos tais tipos que escreviam, na época.<br />
Wassily Kandinsky também escreveu uns textos sobre os críticos, mas os críticos em<br />
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jornais não queriam ter nada a ver com ele. Havia um pequeno grupo de vanguardistas<br />
que estava a fazer coisas que eram contestadas pela maioria da sociedade, que<br />
achava tudo aquilo horroroso. Simplesmente essa minoria, também escrevia, porque<br />
sentia que era necessário, no domínio das palavras, estabelecer uma espécie de luta<br />
contra a maioria dos que escreviam. É sempre necessário estabelecer luta no domínio<br />
das palavras também. Não basta criar imagens fantásticas, é precisa a presença<br />
das palavras para se afirmarem os movimentos artísticos.<br />
Ultrapassámos, penso eu, este aspecto das palavras, da teoria e da prática, para ver<br />
o artista apenas enquanto ser humano. No fundo, quase todos os artistas, todos os<br />
criadores de imagens, são seres humanos como nós, são pessoas com dois pés, com<br />
uma vida pessoal, alguns com uma conta bancária, com um automóvel, ou sem<br />
automóvel, telemóvel. Há um livro muito interessante, não sei se está traduzido em<br />
português, que é A Portrait of the Artist as a Young Man, de James Joyce, que mostra<br />
de que maneira é que um rapazinho normal vai para um colégio, daqueles colégios<br />
anglo-saxónicos, internos, fardados e se começa, digamos assim, a distinguir dos<br />
outros e a certa altura ele tem realmente qualquer coisa que não encaixa, e pelo seu<br />
trabalho se torna um artista e mais tarde, neste caso, um escritor.<br />
É interessante este lado humano e pessoal do artista. Eu já falei há um bocadinho<br />
daquela história do quadro no cavalete e do quadro na cabeça, que faz parte do<br />
dia-a-dia do criador de imagens visuais. Há uma citação da Vieira da Silva, onde ela<br />
dizia o seguinte: «Eu era muito desajeitada, mas muito teimosa ao mesmo tempo».<br />
Há esta característica da teimosia, de que já falei também, e que eu geralmente<br />
encontro em todos os bons alunos que tenho, tipos de uma teimosia insuportável.<br />
É realmente uma característica dos artistas, ser uma espécie de egomaníaco, uma<br />
pessoa que vive virada para si mesmo, que insiste, insiste e insiste, de uma maneira<br />
absurda, que não tem lógica nenhuma. Se a pessoa perguntar: «-Eh pá, mas você, o<br />
que é que está aí a fazer? Há cinco horas debruçada sobre uma porcaria qualquer,<br />
em cima do plinto, ou do cavalete?» - e realmente, lógica e sensatamente, a pessoa<br />
não deveria estar ali, deveria ter ido para casa, ou apanhar ar, comer um bife, ou<br />
qualquer outra coisa desse género.<br />
Outro aspecto importante é este lado desajeitado, do artista. Ele nem sempre é “um<br />
jeitoso”, uma coisa que nos esforçamos por dar a conhecer nos cursos artísticos.<br />
Muitas vezes as pessoas não percebem, pensam: «-Você está a dizer isto porque acha<br />
que tudo se pode ensinar, dá muita importância ao ensino e pouca importância<br />
àquela coisa do inato, do “ nasceu artista”!» Mas há aí uma confusão: eu acho que<br />
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as pessoas nascem artistas mas acho que nem todas as pessoas, têm tendência para<br />
continuar, porque não são teimosas o suficiente. A predestinação dos artistas não é<br />
o jeito, ou a habilidade manual. Os meus colegas do liceu que faziam aquelas caricaturas<br />
para toda a turma, são hoje gestores de empresas, são padeiros, trabalham em<br />
bombas de gasolina... Não tinham aquela espécie de teimosia, aquela necessidade<br />
da arte que o Kandinsky também falava, aquela necessidade de criar o tal mundo à<br />
parte. É curioso que Vieira da Silva cite este aspecto de ser desajeitada. Vemos uma<br />
Vieira da Silva e achamos que seria uma artista hábil, do ponto de vista físico-motor.<br />
Uma exposição muito interessante que esteve patente no Museu Vieira da Silva, há<br />
pouco tempo, reunia uma série de desenhos anatómicos, quando ela convenceu um<br />
amigo médico a ir para a sala de autópsias com os estudantes de medicina, fazer desenhos.<br />
Realmente tinha desenhos que surpreendiam não tanto pela personalidade<br />
artística, mas também por uma precisão científica. Mais ou menos desajeitada que<br />
fosse, obrigava-se no entanto a estar ali no meio daquele mau cheiro das autópsias,<br />
a copiar as vísceras que se espalhavam sobre as mesas.<br />
Penso que isto é realmente uma lição importante, para se perceber quem são os<br />
criadores de imagens visuais, portanto, não os tipos jeitosos, hábeis, que têm umas<br />
mãos mais compridas do que as outras pessoas. Tenho verificado que, em termos<br />
estatísticos, se este assunto interessasse os Institutos de Sondagens, chegaríamos à<br />
conclusão que todos os artistas são teimosos.<br />
Outra frase da Vieira da Silva, mostrando o que os artistas andam a pensar, dizia o<br />
seguinte: «Sabe, eu tenho cores de Verão, e cores de Inverno, quando faz calor, gosto<br />
de pintar com o azul, verde e branco. O branco, posso utilizá-lo durante todo o<br />
ano, e quando está frio, gosto de utilizar o vermelho». A pessoa pode achar esta frase<br />
muito depreciativa para um artista: afinal o artista fala desta forma da cor, que deveria<br />
ser uma coisa grandiosa, fantástica, metafísica, que transmite tudo, a emoção, a<br />
vida. E afinal, a Vieira da Silva, utilizava a cor, de Verão e de Inverno, com ao pessoa<br />
utiliza as colecções de Moda. Era Verão, pintava com azuis, e portanto estava calor e<br />
preferia cores frias. No Inverno, vermelhos, para ficar mais quentinha.<br />
A vida é feita de pequenas coisas, de pequenas coincidências e dependências e<br />
portanto ela utilizava a cor como quem realmente muda de camisola, conforme o<br />
clima. Estas pequenas confissões, são interessantes para nós percebermos que realmente<br />
os artistas, todos os criadores de imagens visuais, são pessoas exactamente<br />
como as outras e com uma motivação às vezes primária, que tem a ver com as estações<br />
do ano. O que é que é adaptar-se à estação do ano? É a capacidade humana<br />
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de sobrevivência: está frio, a pessoa tem que sobreviver apesar do frio. Sobrevive<br />
comendo e sobrevive pintando. O criador artístico é apenas uma pessoa que sobrevive<br />
pintando, em todos os aspectos, não é só para ir buscar dinheiro ao fim do mês,<br />
é por comer e viver física e espiritualmente das cores que utiliza.<br />
Kandinsky, escreve o seguinte acerca do processo de evolução do artista: há três<br />
fases principais em qualquer artista, inclusivamente em alguns dos presentes poderá<br />
acontecer a mesma coisa: Na primeira fase é o chamado de período do diletantismo,<br />
será a fase em que a maioria de vocês está, com a incerteza, as emoções e na sua<br />
maioria as dolorosas e incompreensíveis aspirações. Depois, ele define um segundo<br />
período, o deixar a escola, «durante a qual, estas emoções geralmente tomavam uma<br />
forma mais definida e para mim mais nítida; eu tentava exprimi-las por meio de<br />
todos os tipos de formas exteriores, formas emprestadas pela natureza, objectos».<br />
Portanto, é uma forma ainda objectual, em que ele ia buscar coisas ao mundo exterior.<br />
A terceira fase, «o período da aplicação consciente dos materiais da pintura<br />
(...) o reconhecimento do supérfluo que as formas reais representavam para mim,<br />
e desenvolvimento da dolorosamente lenta capacidade de mobilizar a partir do<br />
meu interior, não apenas o conteúdo, mas também a forma adequada». Aqui temos<br />
que dar o devido desconto, Kandinsky estava na fase da libertação do objectivo, de<br />
abstracção portanto, e por isso deixou de ir buscar coisas ao mundo exterior. O<br />
caminho dele foi este, não significa que seja o de todos os artistas, não é obrigatório<br />
caminhar da figuração para a abstracção. No entanto podemos falar, em geral, de<br />
uma terceira fase, a da precisão, da realização plástica: a forma está certa, o conteúdo<br />
está certo, e a pessoa portanto, acerta plenamente no alvo.<br />
Para finalizar, vou ler uma pequena poesia, que é o testamento da Maria Helena<br />
Vieira da Silva. É um poema, eu chamo-lhe um poema, mas enfim, é um texto, que<br />
foi publicado no dia da morte dela, em Portugal. Ela morreu em 1993 e o texto<br />
apareceu em vários jornais, mandado publicar pela Fundação Vieira da Silva. Esta<br />
Fundação tem um pequeno Museu, em Lisboa, que vocês já devem ter visitado ali<br />
no Jardim das Amoreiras. A Vieira da Silva nos últimos tempos, reaproximou-se um<br />
bocadinho de Portugal, só um bocadinho, não muito; ela tinha-se zangado com<br />
Portugal, porque o nosso país a certa altura não atribuíu a nacionalidade portuguesa<br />
ao seu marido, que era húngaro e que ela adorava: Arpad Szenes. Regressou<br />
a Portugal num período mau, quando foi corrida de França pela Guerra, mas ela<br />
então não era Vieira da Silva, não era ninguém, não era conhecida; quando chegou<br />
a Portugal e queria nacionalizar o marido húngaro, o Estado Português perguntou-<br />
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lhe: “Quem és tu para nacionalizar um húngaro português? Desaparece daqui com<br />
o húngaro!”<br />
De maneira que, ela foi para o Brasil. Viveu lá realmente, um período complicadíssimo,<br />
sem dinheiro, quase ninguém a conhecia, não teve sucesso nenhum. Nunca<br />
esqueceu esta maldade que Portugal lhe fez. Entretanto voltou para Paris e a carreira<br />
começou, digamos, a melhorar. O Estado Português começou a pensar: afinal<br />
a Vieira da Silva é fantástica. Um português que tem sucesso lá fora, é o máximo!<br />
Qualquer português que vá lá fora e que tenha, mesmo que seja só uma dosezinha<br />
de sucesso, chega cá, e é logo um exagero... E então o Estado Português, quis nacionalizar<br />
o húngaro e ela já não quis. E esteve zangada com Portugal muito tempo.<br />
Houve um processo de sedução lenta, e criou-se essa pequena Fundação já na última<br />
década da vida dela, mas ela nunca deu grande coisa à Fundação.<br />
O poema terá sido encontrado entre os papeis da Vieira da Silva depois de ela morrer,<br />
e foi publicado na Monografia que a Editora Skira editou sobre ela. Estava em<br />
cima da mesa... Até faz sentido, para um testamento. No entanto faz-me confusão<br />
que, sendo tão belo, ela tenha resistido a divulgá-lo em vida. Sei lá, podia vir a senhora<br />
da limpeza e deitá-lo fora... Tanto quanto sei, até poderia ser um documento<br />
falso, se não fosse tão bom. Sobre o século XVI, toda a gente sabe montes de coisas,<br />
mas sobre artistas contemporâneos ninguém sabe nada, há montes de lacunas, há<br />
coisas que historicamente ninguém conhece.<br />
E então ela diz o seguinte: «Eu lego aos meus amigos, um azul cerúleo para voar<br />
alto, um azul cobalto para a felicidade, um azul ultramarino para estimular o espírito,<br />
um vermelhão para fazer circular o sangue alegremente, um verde musgo<br />
para acalmar os nervos, o amarelo de ouro, riqueza, um violeta de cobalto para ser<br />
sonhador, laca de garrance que faz escutar um violoncelo, um amarelo primário,<br />
ficção-científica, brilho e destaque, um amarelo ocre para aceitar a terra, um verde<br />
veronês pela memória da Primavera, um índigo, para poder acordar o espírito da<br />
trovoada, um laranja para exercer a vista longínqua de um limoeiro, um amarelo<br />
limão pela graça, um branco puro, pureza, um terra de siena natural, a transmutação<br />
do ouro, o negro sumptuoso para ver Ticiano, uma terra de siena natural para<br />
melhor aceitar a melancolia negra, um terra siena queimada para o sentimento de<br />
durabilidade».<br />
E portanto aqui está. Foi traduzido por mim a partir do francês; peço desculpa pelas<br />
menos boas soluções. A tradução que está na Monografia também não é muito boa.<br />
Foi o que a Vieira da Silva legou, ou terá legado, aos seus amigos, que somos todos<br />
89
nós.<br />
A ligação à matéria é uma característica muito importante nos criadores de imagens.<br />
Nós realmente somos pessoas para quem a matéria é extremamente importante.<br />
A matéria pode ser película, podem ser às vezes coisas muito etéreas, outras<br />
vezes são muito tácteis, terras, coisas físicas, mas parece-me que isto é que talvez seja<br />
a característica do criador de imagens, a ligação evidente aos olhos mas também a<br />
tudo o que é físico, que existe, palpável, ao alcance dos órgãos dos sentidos.<br />
90
Pedro Portugal<br />
Universidade de Évora.<br />
Like Perseus artists have to behead Medusa and<br />
petrify the audience with it.<br />
Como Perseus os artistas devem decapitar Medusa<br />
e petrificar a audiência.<br />
Alocução realizada por Pedro Portugal em 090403 no auditório nº… no Colégio<br />
do Espírito Santo, Universidade de Évora no âmbito dos Seminário de Estudos de<br />
Arte organizados pela Professora Sandra Leandro para o Departamento de Artes<br />
Visuais.<br />
Bibliografia de recurso:<br />
Operating Manual for Spaceship Earth, R.B. Fuller<br />
Pursuit of Truth, W.V. Quine<br />
Human Immortality, W. James<br />
Understanding Understanding, H. von Foerster<br />
91
A minha experiência (prefiro falar de litania) académica de 12 meses é caracterizada<br />
pela assunção: os alunos são mais do que extensões dos professores na cadeia da cidadania.<br />
Ou seja, uma aproximação do segundo grau da tese veiculada pela anedota<br />
do Curso de Domador de Dragões: Um cidadão faz um Curso Superior Universitário<br />
de Domador de Dragões, Mestrado em Domador de Dragões, Doutoramento<br />
em Domador de Dragões, uma vasta Investigação e Pesquisa Internacional sobre<br />
a Real Existência de Dragões que o levam inexoravelmente à conclusão de que<br />
os dragões não existem. Até aqui sempre pago pelos pais (e pelo contribuinte), é<br />
revelada a preocupação pelo futuro profissional do filho, mas - detonador do riso<br />
na anedota - este informa que lhe foi atribuída a Cátedra de Domador de Dragões<br />
na mesma Universidade.<br />
Perdoem a inocência. A democracia dos gregos pressupunha a existência de escravos<br />
não era? Para o TV-cidadão da civilização-ocidental-profunda usar um Mercedes<br />
para deslocações no espaço-tempo é como ter vidros nas janelas no séc. XI,<br />
ou como ter frigorifico nas unidades de habitação pessoais (UHP) em Portugal<br />
durante o reinado de Aníbal (O Cavaco) durante os anos 80 do séc. XX.<br />
O filosofo e o poeta de mãos DADAS e de gatas (yo Fátima) são os vendilhões especializados<br />
do templo (apertem O Cinto Sinbad-Afrodite-Chanel-FMI).<br />
Pop Culture is Pub-Culture (ou Ad-Culture). Perseus é um vendedor - sem lhe<br />
retirar a qualidade de “ O maior artista de todos os templos” - e também o primeiro<br />
político earth-artist. Country’s become’s art pieces. Um país é uma obra de arte<br />
colectiva. Dealing with gods is performing great works of art.<br />
Vou informar-vos de algumas conversas que tenho tido com alunos/cidadãos da<br />
Universidade de Évora, Portugal.<br />
92
Perplexidade 1:<br />
Conversa com o aluno/cidadão João Leitão.<br />
Este elemento/aluno quer fazer uma galeria (de jeito)<br />
Enviou-me este mail:<br />
> From: “João Leitão” <br />
> Organization: Lycos Mail (http://www.mail.lycos.com:80)<br />
> Reply-To: johnsakura@lycos.com<br />
> Date: Sat, 29 Mar 2003 13:51:10 -0800<br />
> To: “Pedro Portugal” <br />
litany<br />
> Subject: boas de évora<br />
><br />
> pois olhe professor, como lhe disse no dia em que o encontrei lá nos leões, eu<br />
> na segunda feira nao me posso lá deslocar o que torna o nosso encontro muito<br />
> difícil. de qualquer maneira tambem reparei que o professor não mostrou<br />
> qualquer tipo de interesse ou mesmo em me dar umas dicas em como começar<br />
uma<br />
> boa galeria de arte. como lhe disse tenho o espaço. em évora não há uma<br />
> galeria de jeito. não há arte de qualidade em évora tirado uma ou outra<br />
> exposição no museu e na fundação luis de molina. faz falta boa arte em évora.<br />
> o meu espaço é pequeno mas é assim: tem uma porta para o centro da cidade,<br />
> praça do giraldo. deve ter para aí uns 30m2 mais ou menos. tem ainda uma sala<br />
> superior que serve de escritório e zona de acervo e arrecadação de telas.<br />
> ~como posso começar uma galeria? e com que ela fique com bom nome?<br />
> xau<br />
> obrigado<br />
> joão leitão<br />
> www.joaoleitaofoto.com<br />
><br />
><br />
> _____________________________________________________________<br />
> Get 25MB, POP3, Spam Filtering with LYCOS MAIL PLUS for $19.95/year.<br />
> http://login.mail.lycos.com/brandPage.shtml?pageId=plus&ref=lmtplus<br />
93
RESPOSTA:<br />
joão<br />
devias dar atenção ao projecto do Museu do Esquecimento que vai ser a exposição<br />
dos alunos do curso na SNBA em Lisboa em Set. 03<br />
questões emocionais não respondo<br />
questões técnicas respondo:<br />
Programa (data):<br />
- Como começar uma boa galeria de arte?<br />
- Em Évora não há uma galeria de arte de JEITO<br />
- Não há arte de qualidade em Évora<br />
- Faz falta boa arte em Évora (?)<br />
- O meu espaço é pequeno - porta para o centro da cidade (sala<br />
superior para escritório/acervo)<br />
- como começar uma galeria<br />
- e que ELA fique com bom nome<br />
tens que ser mais rápido a aprender<br />
o teu design tem que ser mais simples e menos<br />
abertura da galeria Junho de 2003<br />
JOHN LECTON GALLERY - Post-contemporary art<br />
Objecto: A contemporary art gallery committed to eradicate the current necroturistic<br />
standard of art valuation<br />
opening 100603<br />
Évora, Rua...<br />
1a exposição:<br />
EVORA - NEIN DANKA (símbolo igual ao “Nuclear Não Obrigado” mas com<br />
o recorte [skyline] da cidade de Évora)<br />
94
- Contribuições de vários artistas para a visão de um holocausto sobre Évora (pinturas<br />
com Évora a ser bombardeada, o mesmo género mas em pós-Nuc-Dark-<br />
Surrealista em desenhos a caneta Bic azul, ou em género conceptual com mapas<br />
militares e muito photoshop desconstrutivista, ou Évora 2069 - um postal com<br />
Évora no futuro com imensos arranha-céus e aviões, “video-art”: coro alentejano<br />
fardado e em formação diz as palavras dos soldados portugueses no ultramar na<br />
mensagem de Natal “Um beijo para a minha mãe, o meu pai, a minha namorada,<br />
um bom Natal. Adeus e Até ao Meu Regresso!, etc)<br />
- apresentar corporate da galeria numa semana<br />
Prof. Pedro Porttugal<br />
Perplexidade 2 e 3:<br />
Os alunos perguntam: Ó professor, como é que o professor fez? (como é que eu fiz<br />
para ser artista) e: Ó professor dê-nos ideias…<br />
Penso (mas duvido) que os artistas (executantes de Arte) se encontram num palco<br />
em que deixaram de ser heróis. Sem vantagens nem utilidade. São como voluntários-miniaturas<br />
cuja função é observar e reagir ordenadamente aos estímulos veiculados<br />
pela grande irmandade da arte internacional. O público nunca esteve tão<br />
próximo de ser também ele próprio um artista. O Povo-Arte.<br />
As referências não têm significado, as intenções não são evidência e a verdade é indeterminada.<br />
Chamar-lhe-emos Indiferencialismo. Uma boa palavra para substituir<br />
aquilo que se chama arte contemporânea: Arte Indiferencialista, ou seja, Tanto Faz,<br />
Mesmo.<br />
Como Perseus os artistas devem que decapitar Medusa e petrificar a audiência.<br />
Como o artista não tem um espelho escudo tem que fazer bluff - mas audiência<br />
também não petrifica.<br />
A arte é a cabeça de um bicho-de-sete-cabeças.<br />
95
Vivemos na pós-educação, na pós-autoria, no pós digital media, no pós-ready made,<br />
na pós-natureza, no pós-omnium, próximo da des-estetização do artístico, Dada já<br />
não dá…<br />
A arte contemporânea clássica pergunta eternamente “Como?” em vez de “O<br />
quê?”.<br />
Esta obrigação exige uma epistemologia (gosto da palavra epistemologia) de<br />
“Como é arte?!” em vez de “O que é a arte?”, ou seja, a pergunta para identificação<br />
de classes e diferenciação da esquerda, que pergunta Socialmente “Porque será<br />
arte?” e da direita que sabe-sabe o que é a arte (os extremistas estão no infantil “A<br />
arte é minha”).<br />
As observações sobre arte implicam um observador. As observações não são absolutas<br />
mas relativas ao ponto de vista do observador sem considerar o significado<br />
(segredo de artista):<br />
“É giro.”<br />
“É querido”<br />
“Gramo”<br />
“Gosto das cores” (cromofobia e cromogenia)<br />
“É espectacular!” (esta exclamação é considerada pirosa e já ninguém diz (observa)<br />
“Isso eu também fazia!” - é permitido o “Como é que ele fez?” e ambiciosamente<br />
“Como é que eu faria”)<br />
Assim, as observações vão afectar o observado até obliterar a esperança do observador<br />
conseguir alguma vez “perceber alguma coisa d’arte”.<br />
Art is a many-brain problem - A Arte é um problema poli-cerebral. (Foerster)<br />
O governo da arte no mundo será forçado em breve a uma revisão das noções da<br />
arte per se. Esta primeira revolução iniciará o conceito “finis-arte” ou Indiferencialismo.<br />
A arte cujo objectivo é uma descrição do mundo em que não há arte, em<br />
que o relógio mole (Dali) que mede o tempo-arte, só possa ser usado por artistas,<br />
em que o observador seja explicado à arte, em que a arte que possa ser uma prenda<br />
que uma mulher goste de receber.<br />
O artista poderá finalmente fazer como o poeta: por-se de gatas e ladrar a sua arte.<br />
Os artistas não são cães da arte. Os cães não fazem arte. Não, Não, Não…<br />
96
Num curioso encontro promovido pelo ex-primeiro-ministro António Guterres<br />
no CCB em 2001, foram reunidos cerca de “30 jovens de todos os quadrantes” para<br />
dar uma opinião especializada do rumo a dar a Portugal…<br />
Fiquei chocado com as contribuições de 27 dos meus colegas pelo cretinismo,<br />
obtusidade e estupidez. Acredito que eles também ficaram comigo. Esse texto aqui<br />
transcrito seria uma espécie de oráculo para um chefe sobre o estado artístico (civilizacional)<br />
da sua nação:<br />
- Falo na qualidade de artista<br />
Não quero parecer esfíngico mas vou oferecer um enigma:<br />
A arte oficial de Estado em Portugal é preta.<br />
A arquitectura oficial de Estado em Portugal é branca.<br />
A cultura artística em Portugal é a preto e branco.<br />
Não se deve senatorializar a arte e a arquitectura.<br />
Os artistas não são soldados que lutam nas fronteiras do conhecimento e do vísivel<br />
prefigurando na sua arte uma espécie de futuro colectivo global.<br />
A arte é uma função pública mas os artistas não devem ser funcionários públicos.<br />
Agora temos des-profissionalização, deveres sacerdotais, obrigações e sujeito absoluto<br />
descentrado.<br />
É difícil para os artistas competir com o capitalismo publicitário em impacto visual,<br />
ubiquidade e efeito.<br />
Apagou-se o conceito romântico do artista criador de beleza.<br />
A informação que recebemos é um superfluxo em supersessão instantaneamente<br />
produzida, transformada e descartada num processo ad infinitum de complexificação<br />
e polimorfia.<br />
O político homeopata substituiu o político-cirurgião e em muitos casos aparece o<br />
político curandeiro.<br />
97
Reafirma-se o particular, o vernacular, os materiais nacionais.<br />
Falta a presença das Grandes Histórias do ocidente na vida cultural:<br />
- a civilização em expansão<br />
- o ensombramento da história pelo Logos<br />
- um projecto de Iluminismo<br />
- a crença no progresso<br />
- a crença na Razão e na Ciência<br />
- modernização—desenvolvimento—salvação—redenção<br />
Compreender uma cultura é compreender um povo e isso pressupõe um entendimento<br />
imaginativo.<br />
Toda a população deve tomar parte activa nas actividades culturais mas não todos<br />
nas mesmas actividades nem ao mesmo nível. (T.S. Eliot)<br />
A cultura não é uma mera soma de diversas actividades.<br />
É uma maneira de viver.<br />
Portugal precisa de uma política cultural de acabamentos.<br />
Pequenas coisas que faltam: Passeios, sinalética, jardins, limpeza, interiores de pastelarias<br />
(casas-de-banho).<br />
Os jovens artistas também já foram velhos.<br />
Bem,<br />
Não tem fim a quantidade de disparates que se consegue dizer sobre arte. Também<br />
é impossível limitar o quasi direito constitucional de um cidadão querer fazer arte<br />
ou ser artista.<br />
98
Termino pedindo a um membro da assistência que venha até esta mesa e que leia<br />
comigo uma entrevista que foi escrita como conversa entre um artista e uma galerista:<br />
Entrevista:<br />
Artista-Galerista<br />
A: Acha que a arte faz-bem?<br />
G: A arte faz bem em geral. A arte é uma esfera epistemológica mole em que todos<br />
podemos entrar. A minha missão parece ser a facilitação do acesso a esse outro<br />
estado.<br />
A: Como se vê como galerista?<br />
G: Um arte dealer tem que querer o bem das pessoas. Por uma razão que não percebo<br />
as pessoas acham que precisam de arte para viver. Eu preciso de arte para viver.<br />
Muitas pessoas precisam de muita arte. Precisamos de mais artistas e de mais arte.<br />
A: Não Percebus.<br />
G: Como Hephaestus, o filho maldito de Zeus, o handicap do artista é, como dizia<br />
D. H. Lawrence, “a deusa cadela da Glória”. O galerista tem que ter galerismo dentro<br />
de si. O galerista, ou a pessoa que encarna o papel de galerista, já é ela própria<br />
uma obra de arte. Nesse aspecto os artistas ganharam aos oficiais da arte. Mas não<br />
ganharam a possibilidade de manipulação da história. A transitoriedade da arte ainda<br />
é território nosso porra.<br />
A: Então a arte é uma farsa e os artistas farsantes…<br />
G: Não iria tão longe. O que é verdade é que o avanço dos artistas em matéria de<br />
inovação e descoberta de recursos imateriais (as ideias) está ao nivel da alta tecnologia.<br />
A: Humm…<br />
99
G: Não??! É que o problema, se é que existem soluções, é que as pessoas estão perante<br />
uma nova forma de vanguarda artística que ainda não pode ser compreendida<br />
porque ainda não há standards de aferição. A percepção das pessoas para avaliar isso<br />
não é suficientemente elástica.<br />
As manifestações de arte são iterativos do pensamento, são uma delicada 2a natureza,<br />
ou seja, a própria natureza da arte.<br />
A: A grande descoberta do nosso colega M. Duchamp em 1917 foi que tudo podia<br />
ser arte. J. Beuys inventou que afinal todos nós éramos artistas. A soma ainda não<br />
descoberta é que a arte está em toda a parte.<br />
G: Um artista é uma pessoa que pensa que é artista. Um galerista é uma pessoa que<br />
pensa que é galerista.<br />
O que eu acho é que alguma arte hoje é feita por extraterrestres. São anjos bons<br />
azul-indigo que estão dentro de algumas pessoas às vezes chamadas - ARTISTAS.<br />
Tenho a certeza disso. Alguns deles em contacto com GAIA transformam-se e ficam<br />
maus e depois fazem uma arte muito má e feia e sem cor.<br />
É por isso que devemos desconfiar da arte que é a preto e branco ou que o é conceptualmente.<br />
A: A arte não tem futuro, só tem história.<br />
G: A arte tem que se aproximar das pessoas e por isso os artistas têm que se tornar<br />
mais pessoas.<br />
A: A arte não é informação mas um veículo de potencial informação.<br />
G: Sim, sim. A Arte Ou a Vida. Como num assalto. Cor, forma, sensibilidade e beleza;<br />
são o sincretismo quimérico dos 4 pilares da meta-harmonia artística.<br />
A: Buuaaa…<br />
G: A arte hoje quer-se a cores. Encanto e encantamento. A arte tem que ser uma<br />
prenda que uma mulher goste de receber.<br />
100
A: A arte também faz bem à pele, já agora…<br />
G: Faz bem a tudo. Hoje as galerias de arte de vanguarda são ambientes de paz e reconciliação<br />
completa com o mundo através da arte. A galeria-hospital morreu…<br />
A: A arte nunca esteve tão doente. Nunca houve tanta arte. Não há uma civilização<br />
saudável com uma arte doente… Nada disso. Depois do mapeamento do código<br />
genético e do próximo mapeamento das emoções como negócio o upgrade<br />
neuropituitário para estimulação artificial de capacidades e virtuose artística estará<br />
disponível para todos em casas da especialidade…<br />
101
102
Ana Luísa Barão<br />
Assistente da Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto.<br />
albarao@fba.up.pt. Conferência proferida no dia 30 de Abril de 2003.<br />
Teoria e Crítica de Arte em Portugal na primeira<br />
metade do século XIX.<br />
Uma Exposição. Uma Análise.<br />
Introdução<br />
O principal objectivo deste trabalho é a análise do conceito de crítica de arte durante<br />
a primeira metade do século XIX em Portugal.<br />
Depois de consultados os catálogos referentes às exposições realizadas pelas Academias<br />
de Belas Artes (Lisboa e Porto) e pela Sociedade Promotora de Belas Artes,<br />
escolhemos a exposição de 1843, por ter sido a primeira a obter ampla atenção dos<br />
periódicos. O estudo deste acontecimento permite ter uma maior consciência da<br />
dimensão da opinião crítica e como esta então se processava.<br />
Em termos metodológicos, e dentro da lógica da pesquisa tornou-se indispensável<br />
investigar as ideias existentes sobre arte e crítica então dominantes. A quase inexistência<br />
de documentos concernentes a este assunto limitou a nossa actuação aos<br />
dois únicos textos em circulação, e que resultam ambos de traduções: O Ensaio sobre<br />
a Crítica de Alexander Pope, traduzido em 1810, e as Reflexões sobre a Arte Crítico-<br />
Pictórica inserida nas Regras da Arte da Pintura de Prunetti, traduzidas em 1815. Dos<br />
textos catalogados, estes são os únicos que abordam de um modo exaustivo as regras<br />
para aperfeiçoar a arte da crítica; por outro, com uma feição mais sinóptica, foi proposto<br />
103
por Prunetti um método crítico baseado na boa ou má execução das regras da arte<br />
da pintura expostas na primeira parte do mesmo tratado. Embora o primeiro se<br />
refira à poesia e apenas o segundo à arte da pintura é importante não esquecer que<br />
durante este período eram fortes os laços teóricos que uniam ambas as artes.<br />
A especificidade revelada pela exposição de 1843 no seio da Academia de Belas<br />
Artes de Lisboa ocupou parte desta investigação. A inauguração e a relação do<br />
evento com o público e os conteúdos estéticos e historiográficos do discurso do<br />
então director da Academia de Lisboa – Francisco de Sousa Loureiro, são alvo de<br />
uma breve análise.<br />
Importa frisar que até meados do século XIX, nenhum acontecimento artístico reteve<br />
a atenção da imprensa periódica como a exposição de 1843. Quinze dias antes<br />
da inauguração a 22 de Dezembro, a Revista Universal Lisbonense ofereceu aos seus<br />
leitores uma antevisão da exposição escrita por Rebelo da Silva, e seis dias depois<br />
uma análise de Silva Túlio. Ainda durante o mês de Dezembro, Almeida Garrett escreveu<br />
no Jornal das Belas Artes aquele que é considerado pela historiografia artística<br />
portuguesa o mais importante artigo sobre a Exposição de 1843. Finalmente, entre<br />
Janeiro e Julho de 1844, O Panorama publicou dez extensos artigos sobre esta exposição,<br />
assinados por Ribeiro de Sá. O conjunto destes artigos é significativo dum<br />
interesse nascente pelo desenvolvimento das artes nacionais e foi, sem dúvida, fruto<br />
da implantação no seio das Academias de Lisboa e Porto do conceito de exposição<br />
pública - o salão.<br />
Ainda que não se possa cingir a Crítica de Arte apenas às manifestações ocorridas<br />
nos periódicos e revistas foi, no entanto, a este sector que se dedicou grande parte<br />
deste estudo. Os periódicos foram então o principal veículo de divulgação de opiniões<br />
críticas especializadas. Neste período assumiram essencial preponderância O<br />
Panorama (1837-1868), a Revista Universal Lisbonense (1841-1853) e o Jornal das Belas<br />
Artes (1843-1844/1848). Estes periódicos constituíram então o mais mediático<br />
reflexo do fenómeno desta exposição pública.<br />
Em termos estruturais, a crítica de arte passa a consistir, numa primeira fase, na<br />
emissão de juízos baseados em preceitos, cuja origem deriva do leque doutrinário<br />
classicista Numa segunda fase, exercitam-se as primeiras tentativas de expressão<br />
subjectiva de opiniões, ainda não verificáveis em autores nacionais, mas cujas primeiras<br />
manifestações podemos encontrar nas afirmações de um crítico estrangeiro<br />
que escreveu sobre a arte portuguesa. É o caso único, durante esses anos de Les<br />
Arts en Portugal (1846-1847) do Conde Athanasius Raczynski. As Cartas do di-<br />
104
plomata prussiano constituem um sinal irrevogável da incoerência de método dos<br />
investigadores nacionais e o ponto de partida para futuras e instruídas alterações<br />
metodológicas, críticas e ideológicas no panorama da história e da crítica de arte<br />
em Portugal.<br />
I Parte: Uma Ideia ideal de Crítica. Dois ensaios<br />
teóricos<br />
Os textos teóricos e as traduções realizadas neste período pelos escritores portugueses<br />
traduzem, por um lado, um interesse pela cultura estética, por outro, equacionam<br />
a actualização da educação artística face aos acontecimentos estéticos europeus.<br />
A grande maioria das obras foi traduzida particularmente, circulando num grupo<br />
limitado de pintores e amadores. Depois de 1815, data em que foi publicada a tradução<br />
das Regras da Arte da Pintura de Prunetti realizada por José da Cunha Taborda,<br />
e acrescida pelo tradutor de uma Memória dos mais famosos Pintores Portugueses, data<br />
também, da tradução d’ As Honras da Pintura de Bellori, com prefácio de 1810 de<br />
Cyrillo Wolkmar Machado, não foi muito significativo o número de traduções realizado<br />
no domínio artístico. E a partir dos finais dos anos 30 a maioria da literatura<br />
artística publicada passou a ser constituída por manuais que vieram complementar<br />
o ensino, então já professado na Academia das Belas-Artes.<br />
No campo judicativo, e até à década de quarenta do século XIX, as manifestações<br />
da crítica de arte fizeram-se, no entanto, sentir nos poucos tratados de arte ou biografias<br />
artísticas. A partir de então, as exposições de arte especializadas, inicialmente<br />
realizadas sob os auspícios da Academia das Belas-Artes de Lisboa e da Academia<br />
Portuense de Belas-Artes, e a partir de 1862, da Sociedade Promotora de Belas-Artes,<br />
permitiram o desenvolvimento deste género, sobretudo através dos periódicos<br />
que a elas dedicaram, por vezes, vastas crónicas de carácter crítico.<br />
A tradução do Ensaio sobre a Crítica de Pope e a tradução das Reflexões sobre a Arte<br />
Critico-Pictórica de Prunetti podem ser consideradas as primeiras obras dedicadas<br />
ao género da Crítica publicadas em Portugal, apresentando duas concepções estéticas<br />
com origens geográficas diferentes, mas que acabam por convergir naquilo que<br />
caracteriza a complexidade deste período – a intenção de conceder um carácter<br />
dogmático à crítica.<br />
O Ensaio de Pope, escrito em 1711, foi traduzido pelo conde de Aguiar com a<br />
intenção de facultar os preceitos necessários aos que desejassem «julgar com acerto<br />
105
das composições poéticas». No entanto, podemos estabelecer uma relação entre os<br />
caracteres definidores da concepção de crítica exposta nesta obra, e os aplicados<br />
pela crítica pictórica. As relações que unem teoria literária e teoria da pintura e,<br />
consequentemente teoria crítica, são sumamente conhecidos e a comprová-lo o<br />
facto da maioria dos escritores e comentadores que se dedicaram ao género da<br />
crítica artística provirem, durante este período, do campo literário.<br />
A defesa do génio, do gosto e do sentimento são temas sublinhados pelo ensaio de<br />
Pope. A afirmação de que a arte da poesia ou da pintura são ambas uma questão de<br />
sentimento e que consequentemente este sentimento, o génio, o gosto e uma imaginação<br />
viva podem julgar a arte, põe em questão a própria importância das regras<br />
e preceitos defendidos por outros autores.<br />
Escrito e publicado pela primeira vez em 1780, as Regras da Arte da Pintura de<br />
Prunetti nascem num contexto bastante diverso do inglês. Em Portugal, o tratado<br />
de Prunetti seria traduzido por José da Cunha Taborda. Depois de ter estudado<br />
na Academia Romana, Taborda foi Professor da Aula de Pintura do Castelo em<br />
1796, e director da Aula de Gravura da Tipografia do Arco do Cego em 1801.<br />
Este percurso dava-lhe consciência das dificuldades dos alunos portugueses, especialmente<br />
a flagrante ausência de bases teóricas. Até à publicação desta tradução<br />
tinham sido muito poucas as obras editadas ou traduzidas que oferecessem regras<br />
segundo a doutrina clássica, considerada então indispensável ao exercício das belas<br />
artes. O segundo artigo do Ensaio de Prunetti é dedicado às Reflexões sobre a Arte<br />
Crítico-Pictórica. Contrariando a importância concedida ao sentimento, ao génio e<br />
ao gosto como medidas judicativas defendidas por Pope, Prunetti considera que<br />
«[…]as regras, e os princípios de uma Arte são os meios, pelos quais se pode julgar<br />
da bondade das suas produções». É ao amador de arte que dirige as suas reflexões<br />
para que este possa com critério «descobrir os defeitos de um quadro; bem como<br />
as diversas maneiras, e estilos dos Artistas; e diferenciar as cópias dos seus originais».<br />
No entanto, não lhe concede a liberdade subjectiva necessária ao julgamento da<br />
obra de arte. As primeiras advertências referem-se às Belezas e defeitos que devem ser<br />
alvo de atenção. A análise não se regia «pela tenção, qualquer que ela [fosse]», mas pelas<br />
normas e princípios da arte estabelecidas no primeiro artigo do Ensaio. A «justeza»<br />
do método implicava, primeiro, «ver repetidas vezes as melhores pinturas», só depois<br />
seria possível avaliar os «graus de bondade» de um quadro, que poderiam ser de três<br />
tipos: «O medíocre, o bom e o excelente». Para chegar à avaliação do grau de merecimento<br />
tornava-se conveniente «considerar a sua espécie, e depois as diferentes<br />
106
partes que compõem a Pintura». À noção de espécie do quadro está subjacente a<br />
teoria da hierarquia dos géneros proclamada pela Academia Francesa, que suponha<br />
a pintura de história «preferível a um país, a uma marinha, a uma bambochata, etc».<br />
O mérito da obra passava pela nobreza do argumento representado. Aconselhava<br />
depois, o amador a indagar a origem do prazer ou desgosto, considerando «para isso<br />
[…] indispensável examinar em que parte da Pintura, e em que grau principalmente<br />
o Artista se saiu bem, ou mal; assim como se o bom, ou o mau, se o deleite, ou<br />
displicência procede mais do assunto, que do pincel». Deste modo, deveria observar<br />
com ordem e método, o assunto, o todo das massas e o colorido em geral. Só depois devia<br />
observar a «Composição e todas as qualidades necessárias para um belo composto».<br />
Finalmente, passaria «ao exame particular do Colorido, Claro-escuro, e Desenho,<br />
os quais deverão formar as nossas considerações pela norma das Regras da Arte».<br />
Depois da análise das diferentes partes da pintura, Prunetti centrava a sua atenção<br />
na Invenção e se esta era acompanhada da adequada Expressão, sempre segundo as<br />
normas e preceitos da arte propostos e reunidos na primeira parte do seu ensaio.<br />
II Parte: As Exposições da Academia de Belas<br />
Artes. O Salão e o Público<br />
A realização de Exposições trienais constituiu, desde a fundação das Academias de<br />
Belas Artes de Lisboa e Porto, um dos aspectos fundamentais para o desenvolvimento<br />
da relação triangular que a partir da década de 40 do século XIX desenvolverá<br />
uma estrutura que ainda hoje sobrevive: a relação entre as exposições de arte,<br />
a crítica e a imprensa periódica.<br />
Deste modo, podemos afirmar que os salões criaram um novo conceito - o de<br />
público. Este pode agora fruir livremente, apreciando e valorando as obras expostas,<br />
tendo acesso ao que antes era apanágio de elites. O salão constituiu a primeira<br />
forma de democratização da recepção de obras de arte. À semelhança do modelo<br />
francês do Salon, criado cerca de cem anos antes, o interesse suscitado pelas exposições<br />
portuguesas levou à publicação de notícias que podemos considerar os primeiros<br />
ensaios da crítica de arte, esboçados sobre a forma de folhetins, crónicas ou<br />
relatos meramente jornalísticos. Para os humoristas, o Salão foi algumas vezes fonte<br />
de inspiração, mas teremos de esperar até 1863 para encontrarmos na imprensa periódica<br />
a primeira crítica ilustrada à concepção museológica do discurso expositivo<br />
presente na exposição da Sociedade Promotora de Belas Artes.<br />
107
É com as exposições públicas que a crítica conquista um cunho distintivo que jamais<br />
perderá: propõe-se como um apreço pessoal, fundamentado inicialmente num<br />
enorme leque de critérios institucionalizados, que valoriza as obras e as confronta.<br />
É uma escrita expressiva, fortemente adjectivada, que informa sobre os conteúdos<br />
da obra mas numa de um modo exaustivo. Nascia, deste modo, um novo género<br />
literário directamente ligado à actividade artística, que supunha a existência de uma<br />
indústria periódica – só no ano da fundação da Academia de Belas Arte de Lisboa<br />
surgiram cerca de 66 periódicos – e consequentemente de leitores entre os quais<br />
se pudesse difundir.<br />
A Inauguração do Salão de 1843.<br />
«Abriram-se hoje, [22 de Dezembro de 1843] ao público as portas do templo das belas artes.<br />
Por terceira vez, veio a Rainha, distribuir por suas próprias mãos, aos alunos desta esperançosa<br />
Academia, os prémios que lhes haviam sido adjudicados. À volta do meio-dia, entraram na<br />
Sala, nobremente adereçada para receber esta solene sessão SS. MM. a Rainha e El-rei, os<br />
Srs. Ministros de Estado, acompanhados do Sr. Conselheiro Director, do corpo Académico, e<br />
dos alunos. A sala estava cheia de convidados de todas as hierarquias; e de ambos os lados, havia<br />
uma galeria superior vistosamente guarnecida de senhoras. […]. Terminada a sessão, SS.<br />
MM. foram visitar todas as aulas onde estavam expostas as novas obras, do que se mostraram<br />
extremamente satisfeitos. E El-rei, como grande entendedor que é, interrogou os respectivos<br />
professores, fazendo observações muito a ponto e judiciosas. Perto de três horas se detiveram<br />
SS. MM. na Academia, saindo visivelmente gostosos e lisonjeados, e todo o seu séquito,<br />
ficando o estabelecimento patente por estes dias. Foi na verdade a abertura da exposição da<br />
Academia de Belas Artes de Lisboa, de 1843, uma solenidade nacional e majestosa».<br />
Este excerto da notícia publicada na Revista Universal Lisbonense por Silva Túlio é<br />
demonstrativo da importância social da Exposição da Academia de Belas Artes na<br />
sociedade portuguesa.<br />
Segundo os estatutos da Academia cabia à Conferência Geral «graduar o merecimento<br />
dos concorrentes aos Prémios, examinando com a maior diligência tudo quanto<br />
possa servir para que o seu juízo seja severamente justo». Dois galardões, uma medalha<br />
de ouro e outra de prata, foram atribuídos aos alunos que mais se destacaram<br />
em Pintura, Arquitectura e Escultura. Os discípulos que se propuseram ao prémio<br />
de Pintura tiveram como programa de concurso, aprovado pela Academia, o tema<br />
da Criação do Homem. Os de Escultura, a realização de uma Estátua de Camões. Na<br />
108
Aula de Arquitectura sabe-se apenas que João Pedro Monteiro recebeu a medalha<br />
de ouro pela invenção de um projecto de edifício para uma Academia de Belas Artes;<br />
as honras de accessit, num projecto semelhante foi dada a Valentim José Correia,<br />
enquanto António Pedro Cardoso Cárceres recebeu a medalha de prata pela cópia<br />
do plano do Real Palácio da Ajuda. Relativamente ao tema exigido aos alunos da Aula<br />
de Pintura Histórica não podemos deixar de mencionar a acesa crítica que lhe<br />
foi dirigida por Andrade Corvo nas páginas do Jornal das Belas Artes. Corvo refere<br />
então que «O artista [tinha] uma função moral a cumprir mas também obrigações<br />
estéticas a preencher». E foram estas obrigações, que segundo o comentador do Jornal<br />
das Belas Artes os artistas portugueses, ainda, não tinham entendido e para o provar<br />
dá o exemplo de um dos assuntos tratados pelos jovens artistas apresentado na exposição<br />
de 1843 – «A Criação do Homem», dizendo:<br />
«Para empreender um assunto desta natureza, talvez um dos mais difíceis que um artista<br />
possa conceber, são indispensáveis certas considerações, sem as quais o quadro não pode satisfazer<br />
de modo algum ao seu pensamento. A Criação do Homem, como a mais perfeita<br />
das criações teve lugar [...] quando na natureza todos os objectos se tinham aproximado de<br />
um belo inicial [...]. Nesse primeiro período a natureza era sublime e não bela [...] mas<br />
a passagem da natureza sublime à natureza bela não foi rápida [...] no fim [...] devia de<br />
haver grandes contrastes. E eram esses contrastes que se deviam fazer sentir num quadro que<br />
representa a cena principal do grande drama da criação. [...] o homem [...] vinha iluminado<br />
por uma luz divina, e não devia de certo assemelhar-se aquelas tristes e frias e desanimadas<br />
Academias que o representavam nesses quadros; Academias aliás perfeitas de forma, mas<br />
forma sem espírito, sem pensamento. [...] dizemos com mais razão do Deus criador, que não<br />
podia nunca ser simbolizado por aquela imagem que aparece entre as nuvens, e que não está<br />
nem sequer à altura de um Júpiter Olímpico. [...] Por este exemplo [...] se pode ver quanto<br />
os conhecimentos estéticos e o sentimento da arte são indispensáveis aos artistas, e quanto eles<br />
são desconhecidos entre nós».<br />
As obras foram descritas num folheto publicado pela imprensa e a exposição teve a<br />
duração de dois meses. O folheto, de que se fala, constitui a origem do que viriam<br />
a ser os actuais catálogos de exposição. No entanto, aqueles eram apenas meras listas<br />
de nomes ordenados de acordo com as Aulas leccionadas na Academia e a hierarquia<br />
académica.<br />
109
O Discurso de Francisco de Sousa Loureiro e a<br />
História da Arte Portuguesa<br />
Da sessão inaugural fazia também parte o discurso elaborado pelo Director da<br />
Academia, na época, Francisco Sousa Loureiro. Estruturado em três momentos<br />
começa por fazer referência aos discursos proferidos em 1837 e 1840, referentes à<br />
primeira e segunda exposição realizadas pela Academia de Belas Artes de Lisboa.<br />
Sousa Loureiro faz coincidir o momento em que «já se [distinguiam] os primeiros<br />
vestígios da Arte, puramente Portuguesa» com o início da monarquia portuguesa;<br />
no segundo discurso, sublinhara a influência das mulheres célebres, quem sempre,<br />
na sua opinião, «animara e promovera a cultura, o esplendor, o progresso das Artes<br />
e das Letras». A divisão cronológica adoptada por Loureiro para a caracterização<br />
da pintura nacional é a mesma que adoptou Garrett em 1821 no Ensaio sobre a<br />
história da pintura. A história da arte de Loureiro foi dividida em quatro períodos.<br />
O primeiro com início no reinado de D. Afonso Henriques e terminando com D.<br />
Fernando I. D. João I dá início ao segundo período, terminando este com o filho de<br />
D. Manuel I, D. João III. Seguiu-se «a opressão espanhola, e … esqueceu[-se] tudo!<br />
Ao desgosto e sujeição dos Portugueses seguiu-se naturalmente aquele mau gosto, e<br />
aquele sem sabor, que é próprio dos oprimidos». O quarto período tem início com<br />
D. João V e termina com D. Maria I. A questão que se colocada neste seu discurso,<br />
e que permitiu a Loureiro apresentar uma série de afirmações e tirar algumas conclusões,<br />
centra-se na nacionalidade, escola e atribuição de obras de Grão Vasco, e se<br />
não seria essa «escola de pintura lusitana, [...] coerente com a escola de arquitectura»<br />
a que fizera referência no período primeiro e no segundo?». A primeira parte do<br />
discurso é pois dedicada à Identidade de Grão Vasco, enquanto a segunda se ocupou<br />
do estado das artes em Portugal e na análise do seu estado e progresso nos países do<br />
norte, nomeadamente na Alemanha.<br />
Os Periódicos e a Crítica de Arte<br />
Rebelo da Silva e Silva Túlio na Revista<br />
Universal Lisbonense<br />
Rebelo da Silva inicia o seu artigo congratulando-se com o renascimento das artes<br />
em Portugal. Afirmava ainda, que a «Academia das Belas Artes [criara] um presente<br />
[...]» graças ao «talento, e à consciência dos seus ilustres professores [que] venceram<br />
110
as dificuldades, que cercavam ainda no berço uma instituição nova, sem grandes<br />
meios próprios, nascida no centro de um reino pobre e dilacerado».<br />
No seio dessa controvérsia, se por um lado estava a identidade do povo, por outro, e<br />
mais acentuadamente, encontramos a questão da valia nacional ligada intimamente<br />
às noções de progresso, e consequentemente de decadência. Na realidade, Portugal<br />
chegara a meados do século XIX com uma economia primária, sem conhecimento<br />
científico-tecnológico (excepção fora o período pombalino, talvez o único momento<br />
em que a disparidade temporal entre Portugal e a Europa foi menos notória)<br />
e sem vias de comunicação. Assumindo-se como uma crença generalizadamente<br />
intuída, o tema decadentista, tornou-se constante de toda a nossa ideologia liberal.<br />
Já em 1843 Alexandre Herculano perguntara «Quem somos nós hoje?» para logo<br />
responder: «Uma nação que tende a regenerar-se; diremos mais: que se regenera.<br />
Regenera-se porque se repreende a si própria; porque se resolve no lodaçal onde<br />
dormia tranquila; porque se irrita da sua decadência, e já não sorri sem vergonha<br />
ao insultar os estranhos; porque principia e vai esquecendo as viagens senhoriais<br />
de fidalga». Regressando ao artigo, Rebelo da Silva refere depois alguns artistas e<br />
as obras que iriam estar presentes na exposição, destacando na escultura Assis Rodrigues<br />
que apresentaria o Génio da Nação portuguesa coroando a Camões e em menor<br />
dimensão um outro do mesmo assunto mas modelado em barro, ambos: «[...]<br />
prende[m] a atenção, cativa[m] os olhos pelo estilo gracioso e leve, pela perfeição<br />
do cinzel [...]. Todavia, realçando ambos em nossa humilde opinião entendemos,<br />
que o esboceto modulado em barro, excede em graça, em mimo o primeiro»; o<br />
«baixo-relevo representando o Juramento de Viriato sobre o cadáver da filha de tomar<br />
vingança da traição de Pretor Galba» de Araújo Cerqueira foi «perfeitamente entendido<br />
e muito adequado às situações»; o «baixo-relevo de D. Bernardo Coutinho<br />
prendendo el-rei de Lamo na sua corte no ano de 1589», de «curioso estudo, e boa<br />
execução» do escultor J. P. de Aragão. Em arquitectura, salienta a Casa de Campo de<br />
José da Costa Sequeira «no gosto gótico moderno» e o Palácio Real de Manuel Joaquim<br />
de Sousa. Em pintura, distingue o Mestre António Manuel da Fonseca e o seu<br />
Eneias fugindo de Tróia com seu pai dizendo que «seria vaidade [sua] tentar descrever<br />
as belezas, a concepção poética, o vivíssimo colorido, e sobre tudo a expressão do<br />
rosto de cada uma das personagens. Era já visto o assunto, mas o Sr. Fonseca deulhe<br />
novidade»; Caetano Ayres de Andrade que «escolheu um dos mais interessantes<br />
trechos da história da restauração de 1640 [...]» vencendo «uma dificuldade combinando<br />
a luz de três diversos pontos, com harmonia e suave colorido»; o Pôr-do-sol<br />
111
de André Monteiro e o Nascer do Sol de José Francisco cuja «graça, verdade, e certa<br />
ingenuidade do pincel, lhe prestam um mimo, uma beleza própria e original».<br />
O texto de Silva Túlio, de menor importância do ponto de vista crítico, limita-se<br />
a fazer a enumeração das obras presentes na mesma exposição e a referenciar os<br />
alunos premiados «pela invenção, copia e execução das obras que fizeram».<br />
O Jornal das Belas Artes. Almeida Garrett e a<br />
Exposição de 1843<br />
Almeida Garrett dedicou à exposição da Academia das Belas Artes um longo artigo,<br />
seguindo na análise crítica das obras, a mesma ordem que apresentava o «folheto<br />
distribuído na ocasião» em que decorreu a exposição. Começou pelos «três<br />
lindos esbocetos», a «Morte de Santa Teresa», a «Assunção de Nossa Senhora» e<br />
a «Ascensão de Cristo», pertencentes ao professor de desenho histórico Joaquim<br />
Rafael, refere depois os quatro retratos apresentados por Roquemont «admiráveis<br />
de semelhança, sobressaíam pela correcção do desenho, vigor do colorido, e franqueza<br />
do pincel». Os retratos do «Barão de Sarmento» e do «Marquês de Viana»<br />
que «verdadeiramente pareciam falar» denotando contudo «alguma dureza, e pouca<br />
transparência de tinta». Nos quadros de género apresentados pelo mesmo pintor,<br />
estranho à academia, Garrett distinguia os que abordavam costumes portugueses:<br />
«O Pároco da Aldeia pedindo o folar» pelo «belo efeito de óptica, um colorido<br />
vigoroso, e grande partido de claro-escuro», e «A Volta da Ronda da freguesia» pelo<br />
«grande mérito» que apresentava. Referindo-se ao primeiro destes dois quadros,<br />
Garrett afirma que Roquemont se fizera artista português: «artista português legítimo<br />
como oxalá que sempre sejam todos os nossos naturais». Deste modo sublinha<br />
as intenções programáticas do Jornal das Belas Artes, que pretendia promover e<br />
divulgar o que acreditava não existir em Portugal – um culto nacional das artes entre o<br />
povo. Este culto foi Garrett encontrar num estrangeiro acolhido pela Academia de<br />
Belas Artes. Para a pintura de história o grande nome era o do professor A. M. da<br />
Fonseca que apresentara «Eneias Salvando o pai a Anquises». Garrett não esconde<br />
o prazer que sentiu ao observar este quadro: «Fonseca [...] ousou competir com<br />
Virgílio, a eterna desesperação dos românticos, o Heitor – digo pouco – o Paládio<br />
da Ilion clássica, onde não entrará o fraudulento cavalo de seus inimigos em quanto<br />
ele existir, porque não há nem haverá Aquiles na moderna escola que possam e<br />
valham contra ele». A composição era «bela na harmonia e composição das linhas»,<br />
112
o «desenho [...] correcto» e o colorido «transparente e brilhante», as cabeças de<br />
Eneias e Crueza «cheias de expressão e gentileza». O fundo «pintado habilmente»<br />
fora sacrificado para dar realce às figuras – «Tudo esta acabado com uma perfeição<br />
que desafia e não teme o exame mais escrupuloso». Garrett congratula Fonseca e<br />
a Academia pela apresentação da «obra mais clássica e mais acabada que desde a<br />
morte de Sequeira ainda saiu da paleta portuguesa». Do mesmo pintor «A Morte<br />
de Afonso de Albuquerque», «admirável» pela composição, bem como pelo partido<br />
tirado da luz e «transparência das tintas». No seu auto-retrato, Fonseca revelava-se<br />
pelo «engenho», «execução [...] bela», «modelado» e pela «força de colorido e a<br />
sua já proverbial transparência de tinta». Segue-se o «Pôr-do-sol» e as «Ribeiras de<br />
Trancoso» do pintor de paisagem A. Monteiro, notáveis pelo seu «bonito colorido»<br />
e imperfeitos pela não «mais exacta na perspectiva aérea». Na secção da aula de<br />
desenho de arquitectura civil, destaca o «Palácio da Justiça» de João Pires da Fonte<br />
«obra de grandiosa traça no estilo romano» e a «Casa de Campo» de Costa Sequeira<br />
cujo «estilo que dizem misto, talvez mais exactamente, [é] Bárbaro». Não considera<br />
a Casa de Campo um modelo de bom gosto, apesar dos «rasgos de imaginação,<br />
elegância e magnificência» que o caracterizam. As opiniões de Garrett são muito<br />
menos entusiastas do que as que seriam expressa por Ribeiro de Sá no artigo d´O<br />
Panorama, como veremos. Garrett defende a ideia de que a arquitectura deveria<br />
conservar e reivindicar um carácter próprio e originalmente nacional, mas não<br />
explicita qual. Interessantes eram igualmente os projectos de «Teatro Nacional»<br />
apresentado por Manuel Joaquim de Sousa e o «Monumento a D. Pedro» apresentado<br />
por Lucas José dos Santos Pereira. Entre as obras dos alunos distinguidos e<br />
premiados encontravam-se João Pedro Monteiro, que recebera a medalha de ouro;<br />
Valentim José Corrêa condecorado com a ordem de accessit pelo projecto de uma<br />
Academia das Belas Artes; António Pedro Cardoso Cáceres com a medalha de prata<br />
pelas cópias «da melhor execução». Dadas as obras apresentadas pelos alunos da aula<br />
de gravura histórica e na de paisagem, Garrett não expressava qualquer esperança<br />
quanto ao seu futuro, quer pela falta de alunos, quer pela qualidade das obras apresentadas,<br />
onde apenas se destacavam as gravuras de Benjamin Conte, professor desta<br />
aula, que «anunciam a boa escola» para um «género que tanto desejamos ver mais<br />
cultivado». Quanto à aula e laboratório de escultura, Garrett criticava ferozmente<br />
as estátuas colocadas no Passeio Público e a geração que as produzira, depositando<br />
grandes esperanças na nova que se encontrava exposta na Academia. Referindo-se<br />
ao baixo-relevo de Cerqueira – «Juramento de Viriato» dizendo que «o pensamento<br />
113
[era] inquestionavelmente o mesmo do quadro de igual assunto do nosso insigne<br />
pintor Vieira Portuense, mais ampla a cena, maior o número de figuras, e mais variadas<br />
estas», mas Cerqueira devia ser aplaudido pois soube desenvolver o mesmo<br />
pensamento com habilidade. Quanto ao grupo de barro «Camões coroado pelo<br />
Génio da nação» de Assis Rodrigues, critica as vestes de Camões, mas considera-o<br />
«uma das melhores obras que se preparam para o cinzel dos seus artistas».<br />
O Panorama e Ribeiro de Sá - Exposição de 1843<br />
Os dez extensos artigos dedicados à exposição da Academia das Belas Artes de 1843<br />
subscritos por José Sebastião Ribeiro de Sá são uma excepção quanto à qualidade<br />
e reflexão dos seus conteúdos. Todos os artigos demonstram grande conhecimento<br />
dos factos artísticos e sobretudo uma tentativa salutar de compreensão da produção<br />
artística contemporânea.<br />
O primeiro artigo dedicado à exposição de 1843, mais do que uma relação jornalística<br />
sobre a exposição, revela-se uma análise da situação das belas artes em<br />
Portugal, França e Inglaterra neste período. Referindo-se à nova escola francesa de<br />
Vernet, Ingres, Decamps, Delacroix e Pradier exalta o «vigor do seu pensamento e a<br />
perfeita execução» das suas obras. Ao mencionar estes exemplos, refere que Portugal<br />
«não podia nem devia ficar indiferente a todo este grande movimento intelectual».<br />
O ano de 1836 é considerado por Ribeiro de Sá capital para o desenvolvimento<br />
das belas artes em Portugal, pela fundação da Academia das Belas Artes, cuja prova<br />
mais directa constituía a exposição em análise. No entanto, não deixa de apontar<br />
os inconvenientes do local escolhido para funcionamento da mesma Academia – o<br />
Convento de S. Francisco. No segundo artigo a Arquitectura é considerada a primeira<br />
das artes, a arte das grandes nações, dos grandes reis e dos grandes séculos,<br />
a arte que fala mais alto que a poesia, e tão alto como a história. Faz referências às<br />
obrigações do arquitecto em estudar as relações que o edifício estabelece com a<br />
sociedade contemporânea e as que estabelecerá no futuro. Nesse futuro Ribeiro de<br />
Sá vê, com esperança, o renascimento de uma nova era para a arquitectura. E para<br />
que esta não «morra», propõe: a adopção de «tipos antigos», ou a formação de um<br />
«tipo ecléctico», ou ainda, a criação de um estilo totalmente novo. Refere que todos<br />
estes três recursos se manifestaram na exposição, no entanto, constata a impossibilidade<br />
da escolha do primeiro já que a forma não pode ser independente do pensamento.<br />
Quanto à adopção do estilo gótico, expressão que considera incorrecta, sem<br />
se justificar, mas que usa para que possa ser compreendido pela generalidade dos<br />
114
leitores, lamenta que não tenha estado presente na exposição, mas não o censura<br />
porque «os motivos que mais concorreram para que este estilo, todo sentimento<br />
e mistério, não aparecesse representado na exposição, talvez sejam os mesmos que<br />
tornam impossível a formação de um tipo novo», e justifica que «o estilo gótico<br />
também não pode já ser seguido como regra geral, nem talvez nunca o deverá ser;<br />
o pensamento donde nasceu só pode e deve ter uma forma – e esta forma – é o<br />
templo». Concluindo que nenhum dos «tipos antigos» poderia ser adoptado só<br />
restava examinar o último recurso – «a formação de um estilo ecléctico», exemplo<br />
já seguido na Alemanha onde «esta questão se debate com todo o profundo estudo<br />
de que essa nação pensadora é capaz: mas com toda a variedade que a opinião<br />
pode suscitar», e onde surgem, no centro da civilização moderna, monumentos de<br />
inspiração bizantina ao mesmo tempo que monumentos da antiga Grécia. Exemplo<br />
da compreensão deste novo eclectismo é o projecto para uma Casa de Campo<br />
apresentada por José da Costa Sequeira. No terceiro artigo dedicado à exposição,<br />
Ribeiro de Sá prende-se com a protecção que se deveria consagrar aos artistas<br />
nacionais caídos na «indiferença». Revelando extrema modernidade, pretende que<br />
se diga dos arquitectos o mesmo que disse M. Schmit dos pintores e escultores no<br />
relatório que apresentou na exposição de 1843: «Au lieu de classer les peintre et<br />
sculpture d´après leur capacité manuelle, il faut les estimer en raison de la pensée<br />
qu´ils expriment». Seguindo o preceito de Pope, de observar o todo e não apenas<br />
os pequenos defeitos que uma obra possa apresentar, tendo por base a impressão<br />
sentimental que esse todo possa exercer sobre o observador, que Ribeiro de Sá faz<br />
a análise desta exposição, ou pelo menos procura fazê-lo, expressando, da seguinte<br />
maneira, o tipo de crítica que exercerá: «Deste nosso procedimento se não deve<br />
concluir que nesta simples apreciação que fazemos não só das produções arquitectónicas,<br />
mas de toda a exposição, haja indulgência ou favor: o que não há nem pode<br />
haver de modo algum, é desejo de transformar alguma inevitável falta, que porventura<br />
possa existir, em defeito indesculpável – é deste modo que desejamos que o<br />
nosso escrito seja julgado.» Também não é da forma como Bédolloerre fez a análise<br />
das produções arquitectónicas enviadas para Roma pelos pensionistas franceses. Bédolloerre,<br />
dividindo a arquitectura em duas partes, um raciocínio outra imaginação,<br />
considerou que «la science a tué l´art». Pelo contrário, Ribeiro de Sá considera que<br />
na exposição portuguesa «ciência e arte reuniram-se [...] e não se guerrearam». É<br />
neste sentido que considera a imprensa, quando se encontra à altura da sua missão e<br />
quando não é reflexo de «paixões más e de pretensões ridículas», um excelente júri<br />
115
que sempre premeia o merecimento. Esta afirmação constitui a primeira defesa por<br />
escrito de um novo género literário – a crítica de arte – que neste mesmo artigo de<br />
Ribeiro de Sá assume pela primeira vez o carácter de crónica em folhetim.<br />
No artigo seguinte, considera as belas artes como um dos poucos elementos que<br />
constituem a civilização dos povos, e sendo o seu reflexo, considera de fundamental<br />
importância a consciencialização do estado em que elas se encontram, pois só desta<br />
forma é possível ter uma ideia do país que as produziu. A forma de melhor obter<br />
essa consciencialização, são as exposições, que servem segundo as suas próprias<br />
palavras para:<br />
«mostrar se a arte é estudada com proveito, e se revela um grande progresso intelectual, ou se<br />
estacionaria manifesta sintomas de um movimento retrógrado, ou finalmente se a sua decadência<br />
denuncia o desamor ao estudo e à meditação: por consequência quando se fala de uma<br />
destas exposições é possível, e muitas vezes indispensável, o examinar qual é o valor com que<br />
esta manifestação da intelectualidade entra no grande calculo de que deve resultar a formula<br />
do futuro, que muitas vezes é mais um problema que um mistério: e reconhecer qual é a força<br />
com que se exerce o pensamento de um povo, e até que ponto chegaram os resultados do seu<br />
raciocínio; uma exposição considerada deste modo examina mais o pensamento do que a forma,<br />
depende mais da razão do que dos sentidos […] tenta descobrir a série de factos de que<br />
esse pensamento depende, e recorrendo à história encontra as verdadeiras origens do progresso<br />
ou decadência da arte, e examinando rapidamente o estado da época em que essa exposição<br />
tem lugar, faz uma justa apreciação das produções artísticas relativas às circunstancias que<br />
impedem ou auxiliam o desenvolvimento da inteligência, de modo que a opinião que a crítica<br />
deve formar de qualquer objecto de arte é sempre relativa; hoje, e mormente em Portugal não<br />
pode ser absoluta».<br />
A evolução da arte é analisada, sem novidade já que segue a ideologia da época, em<br />
termos de progresso e decadência, tendo por bitola o panorama histórico em que<br />
se desenvolve. Interessante é o conceito da relatividade da crítica, especialmente<br />
em Portugal, noção compreensível apenas se tivermos presente a sua concepção de<br />
progresso em arte, a qual pressupõe a emissão de juízos críticos consoante o período<br />
e estética vigente, ideia que justifica:<br />
«Em geral há uma opinião, quanto a nós sem fundamento, a qual considera as belas-artes<br />
como uma forma de pensamento perdida entre as ruínas do império romano, achada pelo génio<br />
116
da idade media, e morta no século XVIII: seria talvez este o lugar próprio de examinar os três<br />
pontos em que a questão se divide […] há um progresso nas belas-artes se as considerarmos<br />
em relação ao aspecto social deste século; e que este progresso no futuro será muito mais rápido<br />
e evidente. Da adopção da opinião exposta resulta que o belo ideal deixaria de ser uma das<br />
mais sublimes faculdades da alma, e que se não manifestaria por nenhum modo: o raciocínio<br />
é quase desnecessário para reconhecer o absurdo desta conclusão.»<br />
A origem da degeneração das belas artes em Portugal, não podia deixar de estar,<br />
para Ribeiro de Sá, nas grandes transformações sociais de implicação política e<br />
beligerante que durante as primeiras duas décadas do século impediram que os<br />
portugueses se: «entregassem à contemplação do belo, e às inspirações do sublime».<br />
Mas, para Ribeiro de Sá, a década de 40 era de renascimento, principalmente para a<br />
escultura e escrevia que «quem quiser julgar o que hoje é a escultura em Portugal<br />
e o que pode ser, dirija-se à Academia das Belas-Artes, e não procure em lugar público<br />
[esta] arte», porque o único lugar público onde a escultura poderia ser vista<br />
com agrado seria nos cemitérios, o que não acontecia. Crítica semelhante fora já<br />
expressa por Garrett que ferozmente criticara as estátuas colocadas no passeio público.<br />
No penúltimo artigo que consagra à exposição de 1843, dedica-se à análise<br />
dos conceitos de «forma», «execução» e de «pensamento». Considera uma heresia<br />
da arte querer imputar tudo à forma escrevendo que não podia ser «artista senão<br />
o homem de pensamento, que sente antecipadamente a sensação que as suas obras<br />
hão-de produzir no público»<br />
No último artigo, Ribeiro de Sá faz um balanço concluindo que, as obras apresentadas<br />
nesta exposição, dada a «vocação dos portugueses para as belas artes», mormente<br />
na escultura, foram positivas e que o único obstáculo para a continuação<br />
deste processo positivo continuava a ser a falta de apoio da parte do governo, que<br />
tinha a obrigação de desempenhar o papel que um verdadeiro mecenas, pois sem<br />
esse auxílio «a arte acabaria por morrer entre nós».<br />
A Crítica e os Artistas<br />
Existiam fortes relações profissionais e de amizade entre as personalidades que proferiram<br />
comentários sobre a exposição de 1843. Almeida Garrett que escreveu no<br />
Jornal das Belas Artes era o Presidente deste periódico. António Manuel da Fonseca,<br />
Vice-presidente do mesmo jornal seria alvo dos maiores elogios não só da parte de<br />
Garrett, mas também de outros literatos como Silva Túlio, Rebelo da Silva e Men-<br />
117
des Leal – secretário e colaboradores respectivamente do mesmo periódico. Aliás<br />
um ano depois, Mendes Leal dedicaria a Manuel da Fonseca um romance intitulado<br />
Um sonho na vida que narra a vivência de um jovem pintor cujo sonho era estudar<br />
em Itália com os grandes mestres, para que pudesse regressar famoso a Portugal,<br />
com o objectivo de poder proporcionar a Maria, sua amada, uma vida de felicidade<br />
e conforto. Auguste Roquemont, introdutor da pintura de género no panorama artístico<br />
nacional, e por isso mesmo alvo das atenções de alguns destes comentadores,<br />
nomeadamente de Garrett, era também colaborador no Jornal das Belas Artes, e<br />
fora-o também de Raczynski, como veremos. Além destas relações, outra sociedade<br />
albergava os interesses comuns de alguns destes literatos – a Sociedade Escolástico-<br />
Filomática. Rebelo da Silva e Ribeiro de Sá eram filiados nesta Sociedade que teve<br />
por principais preocupações o estudo da «influência da civilização na história; a<br />
reacção romântica e os efeitos da literatura no ocidente da Europa».<br />
A arte portuguesa e a crítica de arte estrangeira -<br />
O conde Athanasius Raczynski<br />
A pedido da Sociedade Artística e Científica de Berlim o Conde Athanasius Raczynski,<br />
diplomata prussiano em Portugal, preparou um extenso estudo sobre a<br />
situação das belas artes e dos monumentos portugueses. As cartas foram a forma<br />
escolhida para relatar o progresso dos trabalhos, depois reunidos em volume - Les<br />
Arts en Portugal. As 29 epístolas que o compõem possuem um conteúdo variadíssimo<br />
que vai desde a recolha de documentos relacionados com a história da arte<br />
portuguesa, à reunião de vários fragmentos do Diálogo sobre a pintura de Francisco<br />
de Holanda passando pela descrição das viagens feitas pelo conde com o intuito de<br />
visitar os principais monumentos nacionais, ou ainda os seus estudos sobre Grão<br />
Vasco que constituíram uma verdadeira revelação, contribuindo para a resolução da<br />
polémica que durante este período interessou artistas, historiadores e críticos. Aos<br />
méritos tradicionalmente atribuídos a Raczynski não podemos deixar de acrescentar<br />
os dos importantes colaboradores que lhe permitiram desenvolver o seu trabalho.<br />
Na Carta X, Raczynski recorda-os, com reconhecimento. Além de Alexandre<br />
Herculano, menciona o Visconde de Juromenha que redigiu para seu uso as Notices<br />
sur quelques artistes portugais, peintres, architects, sculpteurs, etc., refere igualmente o auxílio<br />
prestado por Vasco Pinto Balsemão, conservador da Biblioteca de Lisboa. Foi o<br />
bibliotecário quem organizou a lista de obras atribuídas a Grão Vasco que podemos<br />
118
ver descrita na Carta VII. Raczynski refere ainda Francisco Assis Rodrigues, Auguste<br />
Roquemont, entre outros.<br />
Um dos assuntos que mais interessou Raczynski foi a polémica em que estava envolto<br />
Grão Vasco. Investigou e recolheu toda a documentação possível, examinando<br />
muitas das colecções de quadros, e apoiando-se numa crítica severa, «mas justa,<br />
porque imparcial e fundada». Em Maio de 1846 um autor anónimo nas páginas<br />
da Revista Universal Lisbonense sublinhava o facto de Raczynski testemunhar com<br />
«apêndices comprovativos» todas as suas informações. O mesmo autor considerava<br />
tal «método de autenticar qualquer proposição [...] muito alemã. [...] Não<br />
conhecemos nenhum meio de certificar um enunciado de facto, senão juntar-lhe<br />
as peças todas do processo. Aquém do Reno não é isto moda, mas acima das modas<br />
está a razão, que exige provas em vez de imagens e brilho quando se trata de<br />
matérias positivas». Quanto à opinião professada por Raczynski em relação aos<br />
excessivos «elogios animadores dos nossos críticos aqueles, que se dedicam às belasartes».<br />
Julgava-os desmesurados e que em vez de produzirem o aperfeiçoamento, só<br />
podiam produzir ilusões, só mais tarde e sem remédio destruídas pelo desengano. O<br />
autor concluía o seu artigo apreciando o modo de fazer crítica de Raczynski deste<br />
modo: «A muitos parecerá talvez errado este modo de julgamento; a nós, porém<br />
que estimamos em muito a crítica, quando justa, embora seja severa, parece-nos<br />
muito acertado; porque cremos firmemente que esses elogios só tendem a produzir<br />
mediocridades, coisa que repugna com belas-artes».<br />
Embora tenha provocado animosidade entre os investigadores nacionais, as apreciações<br />
artísticas de Raczynski introduzem uma ruptura metodológica e crítica nacional.<br />
Raczynski afirma, longe do dogmatismo classicista reinantes, a subjectividade<br />
do seu gosto dizendo: «Je rends compte des mes impressions; mais je suis loin de<br />
garantir la justesse de mes jugements». A actividade historiográfica de Raczynski,<br />
assente em rigorosas bases de erudição, pautou-se pela aplicação de uma dedução<br />
argumentativa à resolução de algumas dúvidas existentes em relação à história da<br />
arte portuguesa. O seu rigor tinha por base apenas os limites das notícias disponíveis.<br />
Mas todo este esforço não sortiria qualquer efeito…. Pelo menos por enquanto.<br />
Critérios Estéticos de Avaliação -<br />
Dogmatismo Crítico<br />
A principal função da crítica é exercer juízos de valorização estética. E é às normas<br />
da arte, que durante este período, esta crítica foi buscar o seu fundamento.<br />
119
Depois de termos analisado na primeira parte deste estudo os dois ensaios dedicados<br />
à intenção e morfologia crítica, e após o estudo das reacções dos comentadores<br />
da exposição de 1843, podemos sem dúvida alguma, estabelecer uma relação entre<br />
uma teoria e uma prática desta disciplina. Se os dois primeiros ensaios sugerem<br />
orientações sobre as qualidades próprias de um verdadeiro crítico, sobre as regras<br />
para aperfeiçoar a Arte da Crítica, sobre a moral e a conduta do crítico e fornecem,<br />
ao mesmo tempo, o método que permite avaliar a qualidade de uma pintura, constatamos<br />
que as reacções críticas dos comentadores já referenciados revelam a influência<br />
directa dessa dogmatologia crítica. A natureza e a verosimilhança da representação,<br />
a verdade e uma legibilidade da obra baseadas na compreensão do assunto figurado,<br />
tornam o mimetismo, o primeiro critério na base de qualquer emissão de valor. Até<br />
a imaginação devia estar circunscrita aos limites da verosimilhança, escreveu Prunetti.<br />
O conceito de Imitação é fundamental em toda a teoria das artes (poesia, eloquência,<br />
drama, pintura, escultura, arquitectura e pintura) da Antiguidade Clássica<br />
ao Romantismo. Com este termo procurou-se definir o próprio comportamento<br />
do Homem e do artista perante os modos de representação. Em termos práticos,<br />
quando se menciona o conceito de imitação, este refere-se sempre à imitação da<br />
natureza, de um modelo ou de uma ideia. Em Platão, a imitação é vista enquanto<br />
reprodução ou cópia da verità, que apenas reside em protótipos imutáveis, isto é,<br />
na ideia. Aristóteles, recorrendo ao princípio sofista de que a imitação é inata ao<br />
Homem, não limita a imitação ao agir humano, mas estende-a aos caracteres e às<br />
paixões. Na Poética distingue entre vero e verisimile. O primeiro conceito diz respeito<br />
aos acontecimentos, à história, a factos; o segundo, ao que pode acontecer segundo<br />
as leis da verosimilhança (unidade de tempo, lugar e acção). Durante o classicismo,<br />
Bellori, citando Castelvetro, condenava a imitação icástica (as coisas tal qual<br />
existem) que é própria dos pintores que fazem retratos sem adicionar beleza, nem<br />
corrigir as «deformidades naturais». O conceito de Verdade em Pintura ou Verdade<br />
da arte é complementar dos conceitos de vero e verisimile. Vero é o real que se opõe<br />
ao que é falso, fingido e que se distingue do conceito aristotélico de verisimile que<br />
pressupõe autonomia da atitude poética ou da obra de arte figurativa em relação ao<br />
acontecimento real, ao facto ou à história. A distinção entre Vero e Verisimile comporta<br />
uma profunda modificação da teoria da mimesis. Assim a ideia de que a figura<br />
do pintor é considerada excelente quanto mais se aproxima da verdade da natureza<br />
é contradita pela oposta opinião de outros escritores de arte que reconhecem a<br />
perfeição artística da ideia de belo superior à natureza, que os grandes mestres<br />
120
elegem de vários modelos. O Ideal da Arte foi o conceito que predominou junto<br />
dos teóricos e escritores de arte do século XVIII ao início do XIX e consistia na<br />
escolha e união das coisas belas retiradas da natureza, onde essas imagens surgiam<br />
dispersas e incoerentes. Trata-se, por outras palavras, de uma investigação racional<br />
do belo ideal pelo artista. Em 1787, Mengs entendia por belo ideal, aquilo que se<br />
vê só com a imaginação e não com os olhos, e onde o ideal da pintura consiste na<br />
escolha das coisas belas da natureza depuradas de todas e quaisquer imperfeições.<br />
Os pintores que se limitam somente ao ideal, não farão mais dos que esquissos nem<br />
poderão terminar nada porque lhes falta a mecânica necessária à conclusão. Esta<br />
sistematização encerra um conceito ideal de beleza que permanece como critério<br />
básico de valorização, tão universal durante o século XIX português que se encontra<br />
consagrado nos próprios estatutos da Academia de Belas Artes de Lisboa.<br />
Voltando à exposição de 1843, podemos afirmar que a objectividade e clareza dos<br />
critérios de Pope e Prunetti foram claramente absorvidas pelos comentadores desta<br />
exposição, senão directa, indirectamente. Ribeiro de Sá cita Pope num dos seus<br />
artigos. E sabe-se que Prunetti foi uma das principais fontes de Garrett.<br />
Para além da teoria da arte como imitação da natureza, o uso de critérios fixos e<br />
indubitáveis, eminentemente técnicos, transformam a competência técnica, uma<br />
demonstração do saber fazer, na segunda norma dos critérios de avaliação judicativa.<br />
Locuções como «boa execução», «vivíssimo» ou «suave colorido» [R. da Silva];<br />
«correcção do desenho», «vigor do colorido», «franqueza do pincel», «dureza e pouca<br />
transparência», «acabado com perfeição» ou um «fundo habilmente pintado» [A.<br />
Garrett] são alguns dos muitos exemplos que podemos enunciar.<br />
A avaliação destes comentadores parte do estabelecimento, para a pintura, de antagonismo<br />
entre virtudes e defeitos existentes nas três principais divisões da pintura:<br />
invenção/expressão, desenho e colorido. É sobre estes aspectos que incidem a<br />
maioria das valorizações. Talvez o exemplo máximo, já citado, seja o que Ribeiro<br />
de Sá nos dá acerca do Santo Agostinho de Sequeira existente na Academia de Belas<br />
Artes: «[…] o melhor quadro na opinião de muitos, de quantos possuímos deste artista<br />
que em grau superior junta três dos melhores elementos que podem constituir<br />
o grande pintor – expressão, colorido e correcção de desenho».<br />
Só a partir de meados do século XIX se começa a verificar uma recusa das valorizações<br />
estéticas dogmáticas, ganhando cada vez mais importância um discurso<br />
interpretativo realizado à luz de uma axiologia de âmbito pessoal.<br />
Mas será apenas nos finais da década de cinquenta que podemos ler nas páginas de<br />
121
dois notáveis periódicos – Jornal de Belas Artes e Revista Contemporânea de Portugal<br />
e do Brasil – a constatação dessa necessidade. Em 1857, o visconde de Juromenha<br />
escrevendo sobre a situação da literatura artística nacional e referindo-se à importantíssima<br />
empresa levada a cabo por Raczynski, para a qual contribuíra cedendo<br />
apontamentos ao conde prussiano, e ainda aos «nobres esforços de Taborda e<br />
Cyrillo» no campo da história da arte, afirmava que a crítica de arte deveria ser<br />
«cortês, justa e desapaixonada». Dois anos depois, José Maria de Andrade Ferreira,<br />
referindo-se à crítica em Portugal traça um interessante panorama sobre o que<br />
considera ser a «crítica venal», a «crítica de camarilha ou de predilecção» e a «verdadeira<br />
crítica».<br />
122
Diogo Félix<br />
Artista Plástico e Professor. Conferência proferida no dia 7 de Maio de 2003.<br />
S/ título.<br />
Antes de falar sobre o meu trabalho como artista plástico, julgo ser importante<br />
referir que a minha principal actividade é exercida como professor, pois além de<br />
ser naturalmente a minha forma de vida (são poucos os que conseguem viver da<br />
arte), é também um trabalho em que se desenvolvem projectos com os alunos, cujo<br />
resultado pode vir a ser compensador.<br />
O título proposto para este seminário fornece simultaneamente dois sentidos. Um<br />
deles reflecte a abrangência temática que esta conversa pode vir a comportar, assim<br />
como a dificuldade inerente à atribuição de um título a uma coisa, a classificação<br />
à priori, o que me leva ao segundo sentido que quero referir, ou seja, a utilização<br />
do “s/ título” nas minhas obras. E isto porquê?! Porque considero que, ao conferir<br />
um título a um trabalho, ao nomear através da palavra o que já é, em si, o Nomear,<br />
direcciona o observador. E ao direccionar o observador estou a conduzi-lo a uma<br />
reinterpretação específica, o que não é, de modo algum, o meu objectivo.<br />
A finalidade do “s/ título” é exactamente libertar o sujeito da palavra, porque, se à<br />
palavra corresponde necessariamente a sua ideia, então irei aprisionar o sujeito ao<br />
sentido da palavra; e eu quero-o liberto de qualquer condicionamento, para que a<br />
própria obra se revele àquele em todas as suas possibilidades.<br />
É a linguagem da obra que me interessa. Expresso-me com e através dela. E é a<br />
leitura da obra em si, com a variável indivíduo em potência, que a faz plena de<br />
sentidos. Nomeio na própria obra, pois nomear é criar.<br />
123
(Projecção de slides relativos a diversas obras).<br />
As obras que vos trago foram concebidas utilizando diversas técnicas e materiais.<br />
Na maioria dos meus trabalhos parto do papel como suporte para desenvolver a<br />
obra na tela. É um processo talvez não muito usual, o de não pintar directamente<br />
sobre a tela. Começo a criar através do papel; despoleto reacções através do uso de<br />
materiais de algum modo “incompatíveis”, como óleos, acrílicos, tintas industriais,<br />
vernizes sintéticos e diluentes; deixo-os agir e reagir, actuando entre si e no papel,<br />
até aquele instante em que determino que “é”, e paro o processo de acção e<br />
deterioração do acaso controlado. Procedo depois à colagem, na sua totalidade ou<br />
fragmentada - em módulos, como um puzzle – e componho.<br />
Com as sobreposições de papeis, vou criando uma outra dimensão, que não é possível<br />
apenas com a tela e as tintas, já que, durante o processo de colagem e reacções<br />
aos diferentes materiais, são criadas texturas, rugosidades, reentrâncias e saliências…,<br />
que têm um objectivo e das quais tiro partido.<br />
Intervenho também desenhando, normalmente elementos pictóricos de forte carga<br />
simbólica.<br />
E de novo um composto químico de materiais com características e reacções diferentes,<br />
até que as marcas deixadas sejam as pretendidas.<br />
Noutros trabalhos utilizo escorrências de tinta, como motivos para uma escrita<br />
aparentemente espontânea. Sobreponho camadas e direcciono os percursos que a<br />
tinta irá traçar, para que, no final, a ideia de texto subjaza.<br />
Também trabalho directamente sobre a tela, mas sempre através de processos que<br />
impliquem uma acção aparentemente acidental, como um acaso; como o acaso que<br />
rege as leis do universo.<br />
Agrada-me bastante este fenómeno, pois, por um lado, ele proporciona-me um<br />
ponto de partida – manchas, marcas inscritas na tela ou no papel que são a origem,<br />
que me inspiram sentidos e uma continuidade.<br />
Por outro lado, confere à obra uma ideia de acção da Natureza. É como se o processo<br />
fosse natural. A obra nasce do espontâneo, como é espontânea a Natureza. E<br />
isso tem a ver com a concepção da obra de arte como algo que emerge. A obra<br />
surge, emerge dos fundos da inspiração do ser e depois, sim, depois há o processo<br />
de racionalização.<br />
O resultado de todo este processo com diferentes tempos e durações, reflecte, também<br />
ele, o tempo, o passar do tempo pelas coisas. A tela ganha cicatrizes, sulcos<br />
como rugas, fendas. Poeiras, vapores e fluidos como que envolvem o espaço e os<br />
124
elementos. Como antes ou depois do tempo, como na Origem ou no Devir.<br />
Como podem observar, entre a técnica (a parte física do meu trabalho) e os critérios<br />
de ordem estética e ética subjacente à concepção destas minhas obras, existe, creio,<br />
uma grande coerência. Todos confluem no mesmo sentido – a ideia de tempo, o<br />
tempo cósmico, dos ritmos do Universo, mas que é também o tempo histórico e<br />
cultural, o tempo da dimensão humana, o tempo da memória.<br />
Há um material com que também gosto muito de trabalhar e que, para mim, sintetiza<br />
um pouco essa ideia, pois considero que existe nele uma ligação estreita com o<br />
tempo, tempo-natureza e tempo-memória – a cera. E por que motivo?! Pelas suas<br />
características físicas, nomeadamente a de rápida secagem ao nível técnico, o que<br />
nos impõe um tempo de acção; e pela sua forma e essência que nos proporcionam<br />
a criação duma camada (de tempo), uma camada que se sobrepõe à anterior, sucessivamente,<br />
como que apagando e diluindo parte do que existia.<br />
Tudo isto se interrelaciona com os sinais pictóricos que depois habitam a obra.<br />
Nestes trabalhos a figura matriz / motriz é a casa, que funciona como primeiro e<br />
último elemento. Existe para lhes dar o sentido inicial, mas também para ir além<br />
dele.<br />
É o corpo, o espaço, o lugar que despoleta impressões e sensações contidas no todo<br />
da obra.<br />
Este lugar resumido às linhas mestras que definem o seu corpo e que se abre ao<br />
espaço, simultaneamente alude à sua origem e sugere a ruína.<br />
Para além de qualquer valor semântico que o elemento casa pode conter, hoje e ao<br />
longo dos tempos, interessam-me, nesta casa, diversos aspectos.<br />
É o que na obra irá assumir o humano, neste caso a civilização – o que simboliza o<br />
espaço cultural e histórico.<br />
Também a acção do tempo sobre a casa a torna ruína e aí, encontro, mais uma vez,<br />
a dicotomia tempo do antes, tempo do depois / tempo–natureza, tempo-memória.<br />
A ruína é uma coisa ambígua. É sujeita ao processo do tempo e da natureza que a<br />
invade. Contaminada pela cultura e pela história, é arte que voltou a ser natureza. É<br />
um processo de gestação e destruição de formas.<br />
Aqui, de novo, a ideia de memória, a imagem do objecto ausente, e que corresponde<br />
a um arquétipo, remete-nos para uma utopia das origens, para aquela ideia de<br />
uma certa nostalgia das origens e do paraíso perdido.<br />
É isso, mais do que o sentido da ruína como alegoria da morte. Gosto de explorar<br />
o conceito vida – morte, mas interessa-me alcançar algo para além dele.<br />
125
Tudo isto são ideias que me são inerentes e que pretendo expressar no meu trabalho.<br />
E todo o processo, por mais complexo que possa vir a ser, é efectuado tendo<br />
em mente a redução dos elementos linguísticos. Agrada-me que o resultado final<br />
transmita a imagem do que é essencial – a essência das coisas, do que é palpável e<br />
do que não é. Reduzir a linguagem ao essencial, depurar a linguagem, para alcançar<br />
uma desejada estética do silêncio.<br />
126
Elisabeth Évora Nunes<br />
Universidade Nova de Lisboa. Conferência proferida no dia 14 de Maio de 2003.<br />
Caminhos do Urbanismo em Portugal.<br />
Em primeiro lugar quero agradecer o convite à Sandra Leandro, porque, quando<br />
alguém nos convida, há qualquer coisa de gratuito. É bonita a amizade que, no fundo<br />
se estabelece, entre Alunos e Professores, ao longo de várias décadas: é que nós já<br />
nos conhecemos, assim, há alguns tempos! Em segundo lugar, porque é sempre uma<br />
ocasião de reflectirmos sobre o que é isto de viver e como é que eu profissionalmente<br />
me tenho encaminhado. Por acaso, (que coincidência!), eu tenho o apelido<br />
de Évora, da parte materna, e trabalhei, em especial de 1973 a 1979, intensamente<br />
com esta zona, estando integrada na Direcção Geral de Urbanização, depois de<br />
transitar dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Agora estou a trabalhar no Ministério<br />
do Trabalho e Segurança Social, portanto, estou a faltar ao meu serviço, para<br />
ter o gosto de voltar a Évora e estar convosco!<br />
Ora, a coisa mais importante nas Artes é o objecto de Arte em si mesmo. Não é<br />
propriamente a representação, é ele, tudo mais são representações. Como fazemos<br />
parte de um sistema coloquial, ia só lembrar-vos de dois legados que existem neste<br />
cantinho da Europa chamado Portugal, e ainda por cima aqui no Alentejo, temolos<br />
de uma maneira intensa. Um é o legado romano. Costumava dizer-se, quando<br />
alguém falava com um pastor alentejano, que se estava falando com um patrício<br />
romano, pela maneira como ele tratava de igual para igual, fosse quem fosse. Eu<br />
acho que é um legado cultural intensíssimo! Mas o grande legado romano, foinos<br />
dado por três vias: pela língua que falamos; pelo direito escrito que tem uma<br />
127
hierarquia. Quando eu vos mostro esta imagem, o que é que vocês lêem? Não é<br />
para ler as letras, é a imagem, a mancha. Isto o que é? É um Diário de República. Ora<br />
um Diário da República, é aquilo que quotidianamente, nos vem do legado romano,<br />
ou seja, exactamente uma hierarquia no ordenamento jurídico, ou seja, no Direito,<br />
e na interpretação do Direito que se chama jurisprudência. No índice do Diário<br />
da República, vocês têm uma hierarquização entre as leis e os avisos, quer dizer, lei,<br />
decreto-lei, decreto regulamentar, etc. Isso é um legado romano, que ainda hoje<br />
permanece, em contraste com o direito Visigótico, que é oralizado, que é o direito<br />
consuetudinário, ou seja, dos costumes. E nós temos uma urdidura, portanto,<br />
vivemos de duas realidades jurídicas, um direito escrito, do legado romano, e um<br />
direito consuetudinário, que nos vem dos usos e costumes e simultaneamente da<br />
jurisprudência, que é a interpretação de uma coisa escrita, ou a interpretação local.<br />
Daí as diferenças das culturas locais e regionais.<br />
O terceiro aspecto deste legado romano, é uma coisa que nos permite vir de Lisboa<br />
a Évora, numa hora e pouco, ou seja, são as vias de comunicação. Hoje as vias de<br />
comunicação, não são só as vias que nos permitem deslocar: pedonais, rodoviárias,<br />
mas são as diferentes vias de comunicação, desde uma voz agradável, ou desagradável,<br />
passando pelos meios audiovisuais. Como nós hoje temos uma proliferação,<br />
para não dizer nalguns casos, uma poluição de meios audiovisuais, vocês não se<br />
libertam “do áudio” que é a minha voz, nem “dos visuais”, que é eu estar aqui. Portanto,<br />
a coisa mais importante para um aluno de Artes Visuais, é tudo o que é apelo<br />
dos sentidos, são as nossas janelinhas de comunicação ao exterior. A audibilidade,<br />
é o único sentido que não se fecha, e reparem, há uma diferença enorme, aqui na<br />
Península Ibérica, entre a realidade portuguesa e a realidade espanhola. Em Espanha<br />
quando alguém precisa de perguntar uma indicação qualquer, diz: «-Oiga», ou seja,<br />
oiça. Nós aqui, em Portugal, dizemos, «- Olhe, por favor, é capaz de me dizer»...<br />
A primeira coisa que nós dizemos é «olhe», ao passo que em Espanha é «oiça» …<br />
Não sei se vocês reparam que os olhos podem-se fechar, e nós só vemos aquilo que<br />
quereremos, mas os ouvidos, normalmente, nunca se fecham. Mesmo a dormir, nós<br />
temos a audibilidade a funcionar, às escuras não vemos, mas às escuras ouvimos.<br />
Isto é extraordinariamente importante para um aluno de Artes Visuais em relação à<br />
realidade e à representação da realidade.<br />
Isto tem a ver com o tema «Caminhos do urbanismo», porque o que é isto do lugar<br />
romano? O que é uma urbe? Porque nós temos esse legado romano e temos uma<br />
coisa muito importante que é a maiêutica, ou seja, a arte de dar à luz, de fazer des-<br />
128
vendar. Como o Platão referia, maiêutica, é o processo de dar à luz, ou seja, tornar<br />
consciente uma coisa que estava subentendida. Portanto, nós temos uma simbiose<br />
cultural, do legado grego, em que nesse aglomerado de pessoas havia uma dimensão<br />
social, uma possibilidade de em conjunto darem à luz conceptualizações, ideias,<br />
permutas. Chamava-se polis e era um espaço onde a maiêutica se podia exercitar,<br />
ou seja, o pôr em comum da potencialidade ao acto. O legado romano, é aquilo<br />
que está estabelecido de alguma maneira, e daí a Urbe, que é uma estrutura para<br />
organizar essa aplicação jurídica, do aparelho de Estado no território.<br />
Nós temos aqui um problema muito importante, que é a noção de escala. Todos nós<br />
temos a nossa escala própria, devemos descobri-la na tal linha da maiêutica. Isto é<br />
extremamente importante para o urbanismo. Porque o urbanismo é exactamente<br />
a aplicabilidade jurídica num território para o bem comum e para o serviço de<br />
uma comunidade, e dessa comunidade relacionada com a outra comunidade. Este<br />
conceito aplicado no território deu a divisão administrativa: desde as províncias<br />
romanas, aos distritos romanos, aos concelhos. O sentido de concelho, é a territorialidade,<br />
e o que é que está a gerir um concelho? Uma Câmara Municipal. Não é<br />
por acaso que nós dizemos, a edilidade. Quem era o Edil na hierarquia das funções<br />
romanas? Edilidade, ou municipalidade, quer dizer, que quem manda é tal. Com<br />
certeza já se deram conta, dos chamados Planos Directores Municipais: um diploma<br />
administrativo saído em decreto-lei, que refere a capacidade de desenvolvimento<br />
daquele concelho, e como se compatibiliza com os outros concelhos à volta, com a<br />
região onde está integrada. Não só na linha do desenvolvimento conceptual, económico,<br />
social, cultural, mas baseado, por exemplo, nas riquezas naturais. E o que<br />
é que vocês encontram num Plano Director Municipal? Um regulamento que é<br />
de direito escrito; encontram a representação do território em desenho, através de<br />
um mapa de síntese onde se desenharam os perímetros urbanos, ou seja, até aqui<br />
é urbano, a partir daqui é periurbano e depois é rural. Simultaneamente diz que<br />
esse espaço, entre perímetros urbanos, tem esta ou aquela qualidade, ou seja, é um<br />
terreno bom para a agricultura, que se designa como RAN, que significa Reserva<br />
Agrícola Nacional. Os terrenos de boa qualidade para a agricultura, não devem ser<br />
ocupados para outra função. As terras mais ricas que vocês têm aqui no Alentejo<br />
são os barros à volta de Beja. Nunca deveria ser autorizado fazerem construções<br />
nessas terras. Em qualquer território, nós temos equilíbrios de ecossistemas. Neste<br />
ano em que estamos a celebrar o Ano Internacional da Água, é fundamental termos<br />
a noção equilibrada do seu uso. Temos águas superiores e águas inferiores, desde o<br />
129
Génesis que isso vem referido. As águas superiores são as que estão nas nuvens, que<br />
depois se convertem em chuva, com determinadas condições de arrefecimento. As<br />
águas do território, são os rios, mas temos também os lençóis freáticos, as águas de<br />
profundidade que nós não vemos. Porque é que um poço é eficaz neste sítio, e não<br />
naquele? Se apanhou o lençol freático com um determinado nível de inclinação,<br />
das camadas geomorfológicas, pois as águas tendem para o equilíbrio. Isso vem<br />
mapificado na REN, ou seja, na Reserva Ecológica Nacional. Portanto, nós temos,<br />
num diploma administrativo, que vem em Diário de República, o regulamento, a<br />
planta de síntese do desenvolvimento da zona que integra a RAN e os assentamentos<br />
urbanos, ou seja, o sítio onde vive a população em aglomerados. Neste momento,<br />
nós temos trezentos e tantos concelhos em Portugal Continental e todos eles<br />
têm os chamados, PDM’s. Os Planos Directores Municipais foram uma imposição<br />
da Europa, sobre o planeamento, foi uma pressão económica, em relação à realidade<br />
potencial. Estes planos têm um horizonte temporal de dez anos, ao fim de dez<br />
anos, no máximo, têm de ser revistos. Neles há todo um processo de participação,<br />
quer da população, quer de quem é decisor político, a autarquia. A base é a matriz<br />
romana dos concelhos, que ainda continua a ser um alicerce territorial. Estou a<br />
falar disto, porque, na urbe, o tal sítio onde se localizam as pessoas nas suas relações<br />
sociais, existe a cidade dos vivos, e a cidade dos mortos. Como é que se chama a<br />
cidade dos mortos? Necrópole. Temos testemunhos, desde a pré-história, de como<br />
é que os vivos contactam com o outro estado: o estado de decomposição da matéria<br />
orgânica, com conceptualização de eternidade, ou não eternidade. O sentido<br />
de procriação, vem exactamente do desejo de eternidade dos vivos, de tudo o que<br />
é ser vivo, portanto, temos também de governar a relação entre as necrópoles e as<br />
urbes. Não é por acaso que na tradição mediterrânica, normalmente, a necrópole<br />
é fora do aglomerado.<br />
Neste momento, temos muitos planos a serem revistos. No dia 22, vou estar num<br />
workshop relacionado com a revisão do PDM de Lisboa. Vocês aqui em Évora, na<br />
medida em que estão a fazer o curso há quatro anos, já viram algumas transformações<br />
nesta cidade: as ruas que passaram a pedonais, entre outras coisas. Portanto, um<br />
organismo vivo, como uma cidade, como um país, tem um ritmo, mas é um ritmo<br />
diferente do da nossa vida. Isto tem a ver com o governo do Cronos, o que é o<br />
Cronos? Uma figura mitológica, que personifica a noção de tempo. No urbanismo<br />
há a confluência do tempo e do espaço, vivido pelas comunidades, expresso de<br />
acordo com os valores culturais que são implementados por um sentido adminis-<br />
130
trativo, como é que isso é corporizado pelo poder político, pelo poder económico,<br />
pelo poder administrativo, pelo poder local, pela vivência e o direito de cidadania,<br />
pela expressão de opiniões.<br />
Neste momento, vocês vão receber duas fotocópias, uma é a cronologia de reinados<br />
da monarquia portuguesa, que pertence exactamente às necrópoles, e outra<br />
coisa é a cronologia dos presidentes da república portuguesa, que a maior parte<br />
deles já pertencem também à necrópole, excepto o Jorge Sampaio, Mário Soares<br />
e Ramalho Eanes. Também se vai distribuir um mapa. Cada época histórica usou<br />
para com os seus mortos, vários sistemas, ou o sistema de cremação, ou o sistema de<br />
inumação, deixando que organicamente se desenvolva o ritmo ecológico, o tal sistema<br />
do ecossistema a que nós pertencemos, ou ao contrário, acelerar a compressão<br />
rápida para tudo se transformar em gás. Mas o tal desejo de ficar, deu origem aos<br />
monumentos, que é qualquer coisa que se relaciona com a memória, por isso têm as<br />
sepulturas. Vocês sabem, que no século XIX passou a ser proibido o enterramento<br />
nas igrejas, que são um espaço sagrado, um espaço de ligação entre o natural e o<br />
sobrenatural. Houve uma série de conflitos por causa dessa proibição e isso tem a<br />
ver com o urbanismo, porque é a regência do tempo e do espaço dos vivos e dos<br />
mortos.<br />
Vocês são de artes e convém informar-vos que saiu este livro chamado O Panteão<br />
Régio e o que é um panteão? Vocês sabem o que é o Pantocrator? Na representação<br />
da figura de Cristo, que é simultaneamente homem e Deus, portanto, participa<br />
das duas naturezas, quando é representado como Pantocrator, significa aquele que<br />
tem autoridade. Panteão é o sítio onde permanece essa relação de continuidade.<br />
O panteão régio, não se chama necrópole dos reis, mas é no fundo uma necrópole<br />
específica. E vocês conhecem os túmulos mais bonitos de todos, que são exactamente<br />
os de dois que se amaram muito, os túmulos de D. Pedro e de D. Inês. Este<br />
livro é de alguém que também foi meu aluno, o Doutor José Custódio Vieira da<br />
Silva, de quem também a Sandra Leandro foi aluna, portanto, são três gerações, é<br />
uma espécie da avozinha, filho e netinha, e vocês são bisnetos, é exactamente essa<br />
relação de continuidade que eu vos falei do Cronos, do tempo. E porque é que eu<br />
chamei a atenção para isto? Para chamar a atenção dos testamentos, que é a última<br />
coisa de testemunho que se quer deixar para outra geração, em relação à vontade<br />
expressa de cada um. O que é que isto tem a ver com os PDM’s? No fundo, o plano<br />
de desenvolvimento tenta passar para a nova geração, a sua memória, o mais bonito<br />
e o melhor que é possível. Eu fiz um trabalhinho que não acabei, que foi pegar nes-<br />
131
te livro, e fazer o que era o planeamento a partir dos testemunhos que aqui vêem<br />
e das datas de nascimento e de morte, o local onde eles fizeram os testamentos e<br />
o que foi conseguido ou não conseguido. Estava previsto serem sepultados em tal<br />
sítio, mas foram-no noutro. Vocês já ouviram falar de uma galilé? Na igreja de São<br />
Francisco de Évora podem ver uma galilé. Estas sepulturas régias estavam previstas<br />
para a galilé de Alcobaça até D. Dinis, e porquê Alcobaça? Alcobaça foi um couto de<br />
homiziados, portanto, uma terra que foi doada àqueles que cometeram crimes públicos<br />
ficando ao abrigo da justiça régia. Trabalham ali, e estavam fixos àquela terra.<br />
Nasceram catorze núcleos naquele couto de quarenta e quatro mil hectares de área<br />
e porquê naquela zona? Porque ali se tinham instalado os monges cistercienses que<br />
traziam a renovação do ideal do ora et labora [reza e trabalha] dos Beneditinos. São<br />
Bento e Santa Escolástica foram muito importantes para a construção da Europa<br />
e no século X houve uma reformulação, primeiro a reformulação clunicense, e<br />
depois a reformulação cisterciense. Em Alcobaça os cistercienses fixaram-se num<br />
terreno rico em água, e em minérios de ferro, para quê? Para poderem fazer as alfaias<br />
agrícolas, para poderem trabalhar a terra, porque a riqueza de base era a terra.<br />
E depois fazem toda uma arquitectura lindíssima no ordenamento da água. Há<br />
um Professor desta Universidade, o Professor Virgolino Jorge, que tem estudado,<br />
exactamente, a arquitectura da água nos conventos cistercienses. Vocês conhecem<br />
os Professores da casa, e o que cada um produz em cada área de conhecimento,<br />
porque a tal capacidade de dar à luz, é dar à luz com as luzes que temos. E se temos<br />
focos diferentes, de cores diferentes, podemos aproveitar esses focos todos no nosso<br />
desenvolvimento. Tal como um concelho está relacionado com outro concelho, por<br />
isso é que há os chamados planos das áreas territoriais!<br />
O que é um plano de área territorial? É aquele que organiza os diversos concelhos,<br />
com as confluências que esses concelhos têm. Vocês já ouviram falar da área metropolitana<br />
de Lisboa. O que é essa coisa de metropolitana? Metrópole, metropolis,<br />
portanto, várias polis agregadas com afinidades entre si. Independentemente da tal<br />
unidade concelhia dos PDM’s, há os planos das áreas metropolitanas que são um<br />
pouco anteriores. No planeamento, tudo é a tal urdidura da relação, não só entre<br />
eles, como entre os diversos níveis de decisão, económica, política, o sentido de desenvolvimento<br />
cultural, etc. Desde 1985, foi criada a chamada recuperação urbana,<br />
que deu origem a estas classificações internacionais de património mundial. Ou<br />
seja, uma coisa tão original e tão lúdica, que pode ser valorada, já não numa escala<br />
local, mas em relação à comunidade e Évora está classificada como património<br />
132
mundial, como sabem.<br />
O ordenamento, é a maneira de pensar as correlações que há entre esses territórios.<br />
Vocês, podem beneficiar dos programas Erasmus, de se formarem não só numa<br />
Universidade portuguesa, mas usufruírem dos graus que podem ser dados num<br />
estabelecimento estrangeiro, o que é uma mais-valia. Ora, também há redes de<br />
cidades geminadas, há redes de desenvolvimento e de aplicação e há convenções<br />
internacionais às quais aderimos. Entre parêntesis, o dia 18 de Abril é o dia dos<br />
monumentos e sítios, e este ano é dedicado a duas vertentes: uma é a vertente da<br />
água, como vimos, outra é a vertente da deficiência, dos deficientes. Deficientes em<br />
relação àquilo que é considerado normalidade e o que é ser normal? Eu não sei<br />
muito bem o que é, todos nós somos um caso especial!<br />
Porque é que se chama ordenamento? A diferença entre urbanismo e ordenamento,<br />
é que o urbanismo visa localmente a corporização do sentido, do direito administrativo<br />
daquele território; o ordenamento é aquele que entra em conta com<br />
a interligação, a tal urdidura sobre o terreno. Quando os PDM’s estavam a ser<br />
desenvolvidos no terreno, eram experiências muito ricas, interdisciplinares, entre<br />
os representantes dos diversos ministérios, entre as forças locais, entre as Juntas de<br />
Freguesia. Eram feitos por uma equipa técnica que tinha uma encomenda de uma<br />
Câmara, mas, durante a realização era um processo de raciocínio e de pensamento,<br />
de opções em relação aos desenvolvimentos da agricultura, da economia, da escolaridade,<br />
até se elaborar uma síntese que era posta a discussão pública. Recolhiam-se<br />
os diversos pareceres das forças vivas locais e depois discutia-se na Assembleia Municipal.<br />
A Assembleia Municipal é quem aprovava o plano, o Governo só rectificava.<br />
Há diferenças no tratamento do território: numa zona em que a agricultura é muito<br />
importante, o peso do Ministério da Agricultura era muito maior do que numa<br />
zona em que o comércio é a actividade principal.<br />
Nós, na Universidade Nova, realizámos um Seminário sobre “Pensar o ordenamento<br />
do território”, que só sete anos depois, um número simbólico, conseguimos<br />
publicar. Eu também tenho para vos distribuir as fotocópias da capa, primeiro que<br />
tudo para reconhecerem. O Seminário funcionou em sessões semanais durante um<br />
mês e tal, e fez-se, no fim, uma sessão de encerramento com mesa redonda. Nela<br />
tivemos um dos melhores urbanistas portugueses, que foi meu Professor, na Escola<br />
de Belas-Artes, e depois também foi no Curso de Planeamento Regional e Urbano.<br />
É um alentejano de Vila Viçosa: o Nuno Portas, o nome diz-vos alguma coisa?<br />
Tem um irmão que é agrónomo, que é o Carlos Portas, Professor de Agronomia.<br />
133
O Nuno Portas foi das pessoas que mais problematizou o Urbanismo e teve muita<br />
responsabilidade como Secretário de Estado no pós-25 de Abril.<br />
E agora conto uma coisa que sucedeu aqui mesmo com Évora, quando se deu o 25<br />
de Abril. Havia um plano muito antigo de um arquitecto chamado E. de Groër, que<br />
era russo, mas radicado em França. Ele e o filho, o Etiénne e o Nikita, vieram para<br />
Portugal a convite da governação portuguesa, para estudarem as principais cidades<br />
portuguesas. Em Évora tivemos essa conceptualização primeira, desses arquitectos<br />
que trabalharam na década de quarenta em Portugal.<br />
Ora, existem três tipos de conceptualizações de cidades: a cidade pragmática, ou<br />
seja, regulada com uma estrutura baseada nas tais urbes e polis que vinham da Antiguidade,<br />
no sistema hipodâmico, ou no sistema radial, etc. Temos a cidade jardim,<br />
na linha inglesa, em que o campo pode entrar em diálogo com a cidade e a vantagem<br />
desses modelos para as grandes urbes, aliviando o desenvolvimento industrial.<br />
E por fim a chamada cidade radiosa, radiosa no sentido de cidade feliz. Estes são,<br />
essencialmente, os três tipos de cidade que se desenvolvem de 1934 a 1954. Vocês,<br />
têm isto muito bem estudado pela arquitecta, Margarida Sousa Lobo, num trabalho<br />
intitulado “Planos de urbanização na época de Duarte Pacheco”.<br />
Durante alguns anos Duarte Pacheco foi simultaneamente Ministro das Obras Públicas<br />
e presidente da Câmara Municipal de Lisboa, no tempo de Salazar. Portanto,<br />
pôde aplicar a Lisboa, alguns princípios do que foi o conceito de desenvolvimento<br />
urbano. Estão muito bem estudados e vocês têm cerca de trezentos planos que foram<br />
realizados exactamente nesses vinte anos de 34 a 54. São concretamente 265<br />
planos, de que se conhecem a autoria.<br />
Desde 1865, que são criados os chamados Planos Gerais de Melhoramentos, numa<br />
legislação escrita. Em 1865 dá-se a organização dos ministérios presididos pelo duque<br />
de Loulé, englobando as diversas tendências dominantes na altura, que era dos<br />
históricos e dos regeneradores, duas tendências muito intensas. Fez-se então uma<br />
reforma fiscal, em 1867, e não esqueçam que o dinheiro está sempre relacionado<br />
com política e com o desenvolvimento. Sempre que nós vemos planos, há com<br />
certeza, diplomas administrativos e decisões políticas que vão justificar os planos,<br />
e ao mesmo tempo, os planos também vão produzir um dinamismo diferente na<br />
apropriação desse terreno e desse território.<br />
A primeira legislação é de 1865, é quando o urbanismo, como disciplina autónoma<br />
surge em Portugal, com iniciação e criação dos Planos Gerais de Melhoramentos<br />
que vão vigorar, e todos eles têm uma intenção política, até 1934. Melhoramentos<br />
134
em relação às condições de higiene, aos esgotos, às instalações de água, etc. Vocês sabem<br />
que em 1964, havia algumas aldeias e vilas que ainda não tinham rede pública<br />
de água, não havia sequer ainda conceito de equipamento, havia os melhoramentos<br />
e havia equipamento. Na própria Direcção Geral, nós tínhamos a Direcção dos<br />
Melhoramento Urbanos.<br />
Depois a conceptualização a seguir, foi a de embelezamento, e não é por acaso que<br />
na cidade de Coimbra, se destruiu toda a Alta, porque eram considerados edifícios<br />
insalubres e então fizeram, com um pensamento político um bocadinho impositivo,<br />
as cidades universitárias, os estádios, as casas dos cantoneiros e as escolas primárias.<br />
Mesmo nas empresas públicas, como eram os Correios, os Serviços, houve uma<br />
normalização dos equipamentos.<br />
Temos balizas cronológicas muito interessantes: em 1944, surge uma regulamentação<br />
sobre os planos, ou seja, há uma disposição das ruas, dos edifícios, dos jardins,<br />
dos parques, há uma relação entre a volumetria das construções, há simultaneamente<br />
uma modelística sobre o visual do edifício, o prédio de rendimento. Refiro-me<br />
aos chamados modelos fixos e às relações de volumetria das construções, há uma<br />
diferença entre o plano de imagem e o plano de gestão. O plano de imagem típico<br />
destas duas décadas, de 34 a 54, é marcado pelos chamados planos de Duarte Pacheco,<br />
de uma coerência que se manifestou nas Obras Públicas. Não é por acaso que o<br />
governo gosta sempre de construir qualquer coisa de ostentação e marca pessoal. O<br />
Centro Cultural de Belém foi feito a correr para a primeira presidência de Portugal<br />
na Comunidade Europeia. Do projecto inicial só estão construídos três módulos, o<br />
centro de congressos, o centro de espectáculos, e enfim, faltam dois módulos que<br />
eram a parte da instalação hoteleira, e a parte comercial. Isto é a propósito de um<br />
plano imagem dos edifícios ostentatórios, espelho de um poder político e de um<br />
exercício de poder.<br />
Depois de 1974, voltamos a ter um proliferar do que é o poder local, com a tradição<br />
que nós tínhamos da autonomia das municipalidades durante todo o período do<br />
Liberalismo. Mas voltemos a Évora. Quando houve a tentativa de industrialização<br />
de Portugal, no início das décadas de sessenta, setenta, sabem onde é que estava<br />
previsto um parque industrial aqui para Évora? Na zona Norte, e o que é que acontecia?<br />
Havia uma série de quintas aqui à volta, que tinham os seus trabalhadores<br />
rurais. Entretanto, tinha havido uma ascensão social, os filhos já tinham construído<br />
mais habitações. Quando o E. de Groër trabalhou aqui nas décadas de quarenta,<br />
cinquenta, já encontrou dezassete bairros clandestinos nessa ocasião. Clandestinas,<br />
135
isto é, eram antigas quintas que afinal já não eram quintas, mas que os trabalhadores<br />
que lá viviam continuavam a ocupar. O plano traçado foi um plano imagem, um<br />
plano estático, não tinha dinamismo no que iria ser o ordenamento do território.<br />
Houve uma certa desarticulação, entre o que estava previsto e o que existia. A grande<br />
diferença, de antes e depois do 25 de Abril, é a estaticidade das instituições ou o<br />
dinamismo delas, ou a tentativa de dinamismo, mesmo que seja por um crescimento<br />
um bocado perturbado, quando se dão as rupturas. Ora o que sucede, é que passaram<br />
a existir os chamados planos de gestão.<br />
A história de Évora, passou-me toda pelas mãos, e além das mãos, eu tenho aqui<br />
um testemunho, porque não havia computadores. Vocês sabem que o distrito tem<br />
catorze concelhos, (diga-se de passagem, que tudo isto ia para o lixo). Quando saí<br />
da Direcção Geral, consegui que não deitassem fora… A seguir ao plano do E. de<br />
Groër, temos um plano extraordinário do arquitecto Conceição Silva, que propôs<br />
um plano de urbanização, de toda a urbe, integrando os tais bairros clandestinos,<br />
que nasceram nas tais herdades e entretanto, havia uma expectativa de fixação de<br />
população na tal área onde estava prevista a zona industrial.<br />
Portanto, nós temos a área territorial de cada um dos catorze concelhos que constituem<br />
o distrito: Alandroal, Arraiolos, Borba, Estremoz, Évora, Montemor-o-Novo,<br />
Mora, Mourão, Portel, Redondo, Reguengos de Monsaraz, Vendas Novas, Viana do<br />
Alentejo e Vila Viçosa. Isto são os diversos concelhos que constituem o distrito, ora<br />
o que é que nós aqui temos? Temos, uma classificação geral, chamada, código geográfico<br />
nacional, numérico, o nome do concelho, a área que cada concelho tem, o<br />
número de freguesias, e a população presente em 1970, não só do concelho, como<br />
da sede da freguesia, porque a sede da freguesia, é como que o coração, o pulsar<br />
da comunidade. Cada processo tem, o PDM, os planos de urbanização, o nome de<br />
cada uma das pessoas que trabalharam no plano. Todo um esquema: a função dos<br />
diversos organismos que tinham de opinar sobre os planos de urbanização, os pareceres<br />
técnicos do Conselho Superior das Obras Públicas, que era o órgão máximo<br />
do Ministério das Obras Públicas, que aprovava ou não o plano. Era de acordo com<br />
essa aprovação, que eram subsidiados parcial, ou totalmente, os equipamentos, por<br />
exemplo, a rede de electricidade. A Junta Autónoma de Estradas era autónoma, mas<br />
tinha que se integrar nos outros planos.<br />
Depois de desenvolvido o plano geral de urbanização, é necessário fazer os planos<br />
parciais. Em Évora quando se deu o 25 de Abril, estava em Tribunal Administrativo,<br />
o gabinete do arquitecto Conceição Silva, que na altura tinha feito o plano. Tinha<br />
136
ecebido pareceres negativos, porque para integrar os terrenos à volta, Conceição<br />
Silva criou uma espécie de outra muralha com edifícios de onze andares, ou sete<br />
andares, o que não estava de acordo com o equilíbrio da cidade de Évora. Ele queria<br />
aplicar o conceito desenvolvimentista de arranha-céus, foi por isso que não foi<br />
aceite. Normalmente, quando se assinava o contracto do plano geral, as Câmaras<br />
permitiam que se assinassem os planos parciais, ou os planos de pormenor. A grande<br />
diferença entre o chamado plano de pormenor e o de loteamento, é que o primeiro<br />
é encomendado pela Câmara, o segundo é encomendado por um particular, e esse<br />
particular tem de pagar a possibilidade de mudar a função de terreno rural, para<br />
urbano. Ou seja, pagar as infra-estruturas, o que são as infra-estruturas? São a rede<br />
viária, os esgotos, a água, a electricidade. Ora, muitos desses bairros clandestinos<br />
eram quintas que viviam o seu ancestral equilíbrio ecológico com os poços, com as<br />
noras, etc. Mas quando começou a viver muita gente ali, passaram a não ter condições<br />
de habitabilidade e o plano teoricamente iria fazer isso.<br />
Évora possui ainda os edifícios classificados. O monumento como peça única tem<br />
à volta a área de protecção. Évora tem uma muralha, quer expressa, quer integrada<br />
nalguns edifícios. Entre dois eixos, que é a estrada que vai para Lisboa, e a estrada<br />
que vai para Arraiolos, foi desenvolvido, na própria Direcção Geral, o chamado<br />
plano de estrutura. Ou seja, a zona chamada da Quinta da Malagueira, que não é só<br />
aquele plano do arquitecto Siza Vieira, foi feito na Direcção Geral de Urbanização,<br />
que passou a chamar-se de Planeamento Urbanístico. Um plano de estrutura, que<br />
referia as pré-existências: cinco bairros clandestinos, um colégio de religiosas, as<br />
Doroteias, uma quinta lindíssima que era a da Malagueira, e portanto, era uma zona<br />
que tinha um dinamismo próprio. Para desenvencilhar o problema o Secretário de<br />
Estado pós-25 de Abril, o arquitecto Nuno Portas, que conhecia muito bem a zona,<br />
fez um despacho, dizendo: «-faça-se». Eu trabalhei nesse plano juntamente com o<br />
arquitecto Campos Matos, e fez-se o plano a Oeste de Évora, para desembaraçar<br />
uma situação. Nós na Direcção Geral, tínhamos uma ideia de equilíbrio, que é o<br />
que vai dar origem depois à chamada recuperação urbana. Cria-se aqui um plano a<br />
Oeste de Évora, é dado à Câmara, para ela poder geri-lo rapidamente. Nessa altura,<br />
como o arquitecto Álvaro Siza estava sem trabalho, tinha estado lá fora e ganhando<br />
uma série de prémios, encomendaram-lhe a Malagueira, que não está toda feita, e<br />
que, foi muito mal recebida na altura. Já agora chamo a atenção porque há uma tese<br />
muito interessante, defendida em Coimbra pelo arquitecto Bandeirinha, que é o<br />
levantamento dessas experiências pós 25 de Abril, sobre o dinamismo de cada sítio,<br />
137
não dos tais planos imagem, dos planos de gestão, do “paquiderme” como processo<br />
burocrático a funcionar, mas das “lagartixazinhas” que funcionavam, ou seja, da<br />
rapidez com que era possível dar resposta às necessidades da vida.<br />
Entretanto, é encomendado a outro gabinete do arquitecto Bruno Soares, um novo<br />
plano de urbanização, dada a especificidade de Évora. É preciso não esquecer que<br />
na Europa houve o chamado renascimento das cidades. Nós entramos num plano<br />
de recuperação urbana, que cria os Gabinetes Técnicos Locais, para as Câmaras.<br />
E sobre os centros históricos, os primeiros que foram criados, ao abrigo de duas<br />
portarias foram o da Mouraria e o de Alfama em Lisboa, e por analogia, é criado<br />
para o país todo, na Secretaria de Estado, nessa altura de Habitação e Urbanismo,<br />
o programa de recuperação urbana, a que cada Câmara se candidatava. Em Évora<br />
houve um Gabinete Técnico Local a trabalhar na zona antiga. Independente do<br />
tal plano que estava a ser feito e do plano de pormenor e da participação local, é<br />
quando se faz todo o plano de recuperação e nesta altura viu-se que dentro das<br />
muralhas Évora tinha uma qualidade enorme. Tinha que se disciplinar o trânsito,<br />
tinha que se hierarquizar as funções, tinha que se dar condições de habitabilidade.<br />
Simultaneamente foi criado aqui na Universidade o curso de Arquitectura Paisagista,<br />
que foi dando conta da qualidade urbanística das quintinhas pequeninas que têm<br />
os jardins, de frescos, de limoeiros, etc. A arquitecta Aurora Carapinha, que pertence<br />
ao primeiro curso criado aqui, de que o arquitecto paisagista Gonçalo Ribeiro<br />
Telles foi o fundador, estudou isso. Foi possível coordenar esse sentido da qualidade<br />
do edificado, com a qualidade do natural integrado. Tivemos um trabalho muito<br />
interessante na Direcção Geral: um plano de estudos em que Évora foi dividida a<br />
Norte e a Sul. Dois colegas meus, o Campos Matos e o Cabeça Padrão, fizeram<br />
o levantamento da qualidade urbana dos edifícios de acompanhamento, não já na<br />
linha dos monumentos. E eu que estava numa secção de gestão urbanística, o tal<br />
plano de gestão, coordenando os interesses dos particulares com os interesses individuais,<br />
trabalhando, não aqui, localmente, mas no órgão central. A Évora que vocês<br />
vêem, é uma Évora dinâmica em transformação, em processo, que é o tal processo<br />
mental, muito mais do que a tal imagem, ou a planta, ou só a gestão, gestão corrente.<br />
Portanto, o planeamento é isso tudo, começou, como digo em 1865 pelos tais<br />
melhoramentos, e o que é melhorar? O que é o critério de melhoria? E o que é<br />
o critério de qualidade de vida? Qual é o sentido de qualidade que cada um tem?<br />
Eu agora vou-me calar e vou-vos perguntar! Não estou a fazer a história do urbanismo,<br />
tentei dar-vos o dinamismo do que é fundamental nos tais caminhos que<br />
138
se traçam e no entrecruzamento. Há uma coisa que é muito importante: tal como<br />
no ambiente se faz uma educação ambiental, desde a pré-primária, e por aí fora,<br />
também era relevante que entre nós se criasse uma consciência de planeamento<br />
urbano desde a infância. O que é um plano? O plano é uma utopia congregando<br />
as vontades para ser adaptado à realidade minuto a minuto, “fazendo agulha” na<br />
interpretação de um fazer não estático. É a tal diferença entre a jurisdição e a regra:<br />
o que está regulamentado e como é que isso se aplica. Portanto, o planeamento é<br />
um processo interactivo de actuação. Penso que estarão com mais dúvidas do que<br />
certezas, e eu agora calo-me um bocadinho e pergunto, se querem fazer perguntas.<br />
Que perguntas têm a fazer? Qual é a relação entre um espaço interno e um espaço<br />
externo numa cidade? O que é que é público, e o que é privado? O que é o sentido<br />
que cada comunidade tem da privacidade? Vocês vêem que as casas no Alentejo, ou<br />
aliás, no mundo árabe, são voltadas para dentro, o pátio interior tem muita importância,<br />
com o seu ajardinamento. Cada cidade tem os seus sons, o seu perfume. Não<br />
sei se vocês tiveram oportunidade de perceber que, este ano, a Engenharia fazia<br />
anos como o ramo de conhecimento. Fez-se uma grande exposição, na Cordoaria,<br />
em Lisboa, uma mostra espantosa sobre a evolução da engenharia em Portugal. Foi<br />
organizada através de pivots, por exemplo, o primeiro pivot, era à volta do Ezequiel,<br />
um engenheiro formado no Porto, que pela primeira vez preconizou para a zona<br />
da Invicta um plano de área territorial.<br />
O exercício que eu vos proponho é a descoberta da visualidade de uma cidade. O<br />
que é a estrutura em relação às periferias e aos campos? Ainda hoje fiquei felicíssima<br />
porque está lindíssimo o arranjo do posto de turismo: mantiveram o edifício<br />
como era, e colocaram os equipamentos, mas desligados, é uma integração por<br />
contraste equilibrado com a escala do próprio edifício. Convido-vos a todos que<br />
estão cá, a passarem pelo posto de turismo, e fazerem uma análise, do que está feito,<br />
como é que num espaço de fruição, de informação, é dada a relação entre um interior<br />
existente e o exterior.<br />
Reparem também que a Quinta da Malagueira, aquele núcleo com características<br />
diferentes, gerou um processo de viver, de relação diferente com o bairro do Fundo<br />
de Fomento de Habitação, os edifícios altos que ainda lá estão.<br />
Ora o que me pediram foi o caminho do urbanismo em Portugal, e eu acho que<br />
fiz ao contrário, comecei por uma realidade que vocês tinham, apoiando-me nela<br />
e na tal maiêusis, na tal capacidade de tornar consciente o que era inconsciente, da<br />
nossa auto-formação, em relação ao legado romano e grego que nós recebemos,<br />
139
implantado nesta localidade, nestes séculos com regimentos políticos diferentes e<br />
com dinamismos diferentes. As Artes têm sempre qualquer coisa de futurologia,<br />
estão à frente na linha da sensibilidade, na linha daquilo que ainda há bocado vocês<br />
contaram, do que aconteceu com as gerberas do vosso colega, com a leitura, ou<br />
não leitura da realidade que ele tentou comunicar 1 . E isto que eu vos estou a falar,<br />
integra-se no quotidiano, é o homem a dizer: «- Vou gerir o meu dia».<br />
Queria que vocês fixassem os diferentes períodos: o primeiro de 1865 a 1934, com<br />
os melhoramentos urbanos; o segundo de 1934 a 1944, em que há uma regulamentação<br />
em que o plano já deixa de ser posto à consideração pública, está mais<br />
relacionado com as decisões políticas; dá-se a ruptura de 1974, fazem-se experiências<br />
diferentes, integra-se o que era considerado clandestino, renova-se, valoriza-se,<br />
dinamiza-se e usufrui-se.<br />
Estando a falar-vos destes dinamismos estou a falar-vos de memória, que é um dos<br />
sentidos internos. Nós falamos muito dos sentidos externos, mas fala-se pouco dos<br />
sentidos internos. «- É uma das coisas que eu costumo falar, aos meus alunos do<br />
primeiro ano em Comunicação Visual» [Intervenção de Sandra Leandro]. Ora, um<br />
dos sentidos internos é exactamente a memória. A memória para termos referências,<br />
para podermos criar, porque ninguém cria do nada, é necessário ter uma base<br />
material, instrumental, etc. A primeira coisa é, qual é o meu critério de valores e de<br />
vida, e como é que eu o corporizo ao longo dos meus vinte, vinte e cinco, trinta.<br />
Como é que a maiêusis continua a actuar, como é que eu continuo a dar-me à luz<br />
a mim própria. Como é que eu integro a minha vida profissional, a minha vida<br />
familiar, a minha vida relacional, de amizade, a minha vida afectiva, portanto, todas<br />
essas facetas das vidas de todos nós. Para ser feliz, para me sentir realizada, não como<br />
isolada, mas integrada numa comunidade a que pertenço, a comunidade fundamental<br />
é a família, depois temos o grupo de amigos, o grupo da família alargada, as amizades<br />
que se fazem na universidade, os Professores que se foram conhecendo…<br />
1 Referia-se a uma exposição que o, então aluno, Roberto Lopes organizou em Évora e que gerou alguma polémica.<br />
140
Paulo Simões Rodrigues<br />
Departamento e Centro de História da Arte da Universidade de Évora.<br />
Conferência proferida no dia 21 de Maio de 2003.<br />
Urbanismo, Arquitectura e Monumentos Nacionais<br />
na Évora Oitocentista: Balanço Historiográfico<br />
1.Introdução<br />
O que vos proponho apresentar hoje, no âmbito dos Seminários de Estudos de<br />
Arte, corresponde, na prática, a uma introdução genérica do tema da minha tese de<br />
doutoramento, dedicada ao estudo da cidade de Évora no século XIX 1 , sob o ponto<br />
de vista da arquitectura, do urbanismo e da preservação do património construído.<br />
Verbalizado assim, o tema não traz novidades significativas em relação aos estudos<br />
existentes sobre a Évora Oitocentista. Talvez somente no aprofundamento de problemáticas<br />
já parcelarmente abordadas e na intenção de realizar uma síntese da história<br />
da arquitectura eborense em articulação com a do respectivo desenvolvimento<br />
urbano, à semelhança do que foi feito para outras cidades do país (Lisboa e Porto<br />
são os exemplos mais conhecidos) ou mesmo para Évora nos séculos precedentes.<br />
Podemos atestá-lo em diversos trabalhos, desde os estritamente académicos às pu-<br />
1 Embora as balizas cronológicas recuem e avancem um pouco mais, com início ainda no século XVIII, no pós<br />
terramoto de 1755, e fim de 1919, ano da criação do Grupo Pró-Évora, movimento de cidadãos que reagiu contra<br />
o estado de abandono e degradação a que tinha chegado o património eborense e que assinala um novo entendimento<br />
da capacidade da população intervir na gestão urbana, nomeadamente no que respeita à conservação dos<br />
sinais materiais da História.<br />
141
licações de divulgação e vocacionadas para um público diversificado, que trataram<br />
quer da evolução da configuração urbana, quer das gramáticas arquitectónicas que<br />
povoaram a cidade ao longo do tempo, como os de Maria Angela Beirante (Évora<br />
na Idade Média), Ana Maria de Mira Borges (Évora: da reconquista ao século XVI),<br />
José Custódio Vieira da Silva (O tardo-Gótico em Portugal: a arquitectura no Alentejo e<br />
Paços Medievais Portugueses, caracterização e evolução da habitação nobre dos séculos XII a<br />
XVI), Maria de Deus Bentes Manso (Évora, capital de Portugal. 1531-1537) e Maria<br />
Domingas Simplício (O espaço urbano de Évora: contributo para melhor conhecimento do<br />
sector intra-muros e Evolução e morfologia do espaço urbano de Évora). É ainda de referir,<br />
embora de cariz mais abrangente, os muitos textos de Túlio Espanca dedicados ao<br />
património artístico eborense, de diferentes épocas, mas com dominante incidência<br />
no período moderno, quase todos publicados na revista municipal A Cidade<br />
de Évora ou integrados no volume sobre o distrito de Évora, da sua autoria, do<br />
Inventário Artístico de Portugal, publicado pela Academia Nacional de Belas Artes. De<br />
citar também o catálogo Riscos de um Século. Memórias da Evolução Urbana de Évora,<br />
concernente à exposição homónima dedicada às mutações urbanísticas acontecidas<br />
no século XX, patente no Palácio de D. Manuel de Novembro de 2000 a Abril de<br />
2001, coordenada por Cármen Almeida e José Maria Pinto Barbosa e realizada pela<br />
ocasião do colóquio “O Século XX em Évora”, organizado pela Câmara Municipal<br />
e pelo Departamento de História da Universidade de Évora.<br />
Apesar do catálogo Riscos de um Século recuar até à década de Sessenta dos anos<br />
de Mil e Oitocentos, são poucos os ensaios de História da Arte ou de áreas científicas<br />
afins que tomaram a Évora contemporânea como tema, mesmo que indirectamente.<br />
Dos existentes, salientamos Giuseppe Cinatti (1808-1878). Percurso e Obra<br />
de Joana Esteves da Cunha Leal, em que são enunciadas e analisadas as intervenções<br />
deste arquitecto italiano na cidade de Évora, a comunicação “A modernização da<br />
cidade. Évora no século XIX”, proferida por Hélder Adegar Fonseca e Rui Carreteiro<br />
no “Encontro da Associação Portuguesa de História Económica e Social”,<br />
o contributo dos artigos de Miguel Carolino sobre o cemitério de Nossa Senhora<br />
dos Remédios (“A Arquitectura Tumular em Évora- 1840-1910” e “A cidade dos<br />
mortos- um espelho da sociedade dos vivos. Estratégias de afirmação social no cemitério<br />
de Nossa Senhora dos Remédios de Évora”) e o de Maria da Conceição<br />
Marques Freire (Rossios do significado urbano: um caso de estudo. O Rossio de Évora).<br />
A maioria dos autores a debruçarem-se sobre a Évora Oitocentista pertencem, de<br />
resto, às áreas da História Política, Económica e Social. Neste campo, parece-nos<br />
142
de maior relevância os trabalhos de Hélder Adegar Fonseca (O Alentejo no Século<br />
XIX. Economia e Atitudes Económicas), Ana Maria Cardoso Matos (Ciência, tecnologia e<br />
desenvolvimento industrial no Portugal oitocentista. O caso dos lanifícios do Alentejo), Maria<br />
Teresa Rios Fonseca (Absolutismo e Municipalismo em Évora, 1750-1810), Maria<br />
Ana Bernardo (Sociabilidade e práticas de distinção em Évora na segunda metade do século<br />
XIX), Fernando Gameiro (Ensino e Educação no Alentejo Oitocentista, 1850-1910)<br />
e Alice Mendonça (Crises de Mortalidade no Concelho de Évora, 1850-1900). Todos<br />
estes estudos ajudam-nos a compreender o enquadramento sócio-cultural, político<br />
e económico das transformações operadas na malha e na imagem da cidade, em<br />
particular no que respeita à organização das elites e às relações que estabeleceram<br />
com as instituições locais, principalmente com o poder municipal, instrumento estruturador<br />
da organização urbana. Mas também até que grau as novidades técnicas<br />
trazidas pela industrialização e suas consequências económicas tiveram capacidade<br />
de determinar, ou não, uma nova maneira de viver, olhar e conceber a cidade. Finalmente,<br />
a vertente demográfica, essencial enquanto factor de desenvolvimento<br />
ou atrofiamento do espaço urbano.<br />
Outro dos eixos fundamentais do nosso projecto de trabalho é o patrimonial. Ou<br />
melhor, a atitude (de preservação estrita, de compromisso ou de indiferença) veiculada<br />
pelos agentes da modernização do espaço e dos espaços da cidade para com<br />
o já construído. Dedicado à temática da conservação monumental, concernente ao<br />
universo estrito da cidade de Évora, destacamos a dissertação de mestrado de Maria<br />
da Conceição Lopes Aleixo Fernandes, intitulada Os “restauros” e a memória da cidade<br />
de Évora (1836-1896). Depois, no enquadramento ainda mais específico do restauro<br />
do templo romano, temos o artigo de António Carlos Silva, “A «Restauração» do<br />
Templo Romano de Évora” e outro da nossa autoria, “Giuseppe Cinatti e o restauro<br />
do Templo Romano de Évora”.<br />
Uma última chamada de atenção para os textos contemporâneos do nosso objecto<br />
de estudo, da autoria de Augusto Filipe Simões, António Francisco Barata e Gabriel<br />
Pereira, entre outros, que embora possam ser encarados actualmente com algum<br />
cepticismo no que respeita às metodologias usadas e à leitura crítica da informação<br />
apresentada, continuam a ser um repositório precioso de fontes para os investigadores.<br />
Perante este panorama bibliográfico, qual poderá ser então a validade científica da<br />
perspectiva do nosso trabalho sobre um assunto abordado com alguma regularidade,<br />
pelo menos parcialmente? Acontece que, como tivemos ocasião de notar pelo<br />
143
conjunto da fortuna crítica enunciada, nenhum dos textos inventariados desenvolve<br />
de forma sistemática a análise da evolução urbanística e arquitectónica da cidade<br />
de Évora no século XIX como um fenómeno que pode ser interpretado do ponto<br />
de vista da História da Arte. Por outro lado, também se pretende articular as transformações<br />
introduzidas na morfologia da cidade com as atitudes contemporâneas<br />
para com o património edificado e entendê-las não como processos sucedâneos e<br />
incompatíveis - o monumento que teve de ser demolido para que novo edifício<br />
pudesse ser levantado, ou a adulteração estrutural da velha construção de modo a<br />
permitir a sua adaptação a outras funções, ou o novo equipamento que foi preterido<br />
a favor da conservação de uma construção mais antiga -, mas como um fenómeno<br />
global, entendendo que a cidade é um organismo constituído por diversificadas<br />
sedimentações, cuja renovação implicou, implica e implicará sempre a anulação,<br />
a manutenção e a recuperação de manifestações de diferentes níveis temporais,<br />
embora dispostos em novos enquadramentos. Procuraremos, assim, caracterizar o<br />
desenvolvimento de tal processo dentro dos limites cronológicos estabelecidos.<br />
2.Contextualização<br />
Expandir, circular, higienizar e tipificar foram os princípios que determinaram o<br />
paradigma da cidade do século XIX, seja nas teorias e nos discursos acerca do espaço<br />
citadino, seja nos projectos concebidos e elaborados, seja nas transformações<br />
efectivamente operadas na morfologia dos centros urbanos. Princípios cuja origem<br />
remonta ao século XVIII, mais especificamente aos ideais que pretenderam aplicar<br />
o espírito racionalista das Luzes ao traçado das povoações, em prol do seu melhoramento.<br />
De facto, o dealbar dos anos de 1700 foi fértil em planos de construção<br />
que procuraram prever, senão mesmo condicionar, o sentido do crescimento das<br />
cidades, delimitando-o e ordenando-o de modo a definir uma espacialidade que<br />
se adequasse às melhorias que a filosofia iluminista desejava ver introduzidas nas<br />
sociedades europeias ou fomentasse a formação de sistemas sociais mais justos. Utopias<br />
que representam a reacção dos intelectuais iluministas às crises então vividas e<br />
que muitas vezes incluíam ou pressupunham o delineamento de estruturas urbanas<br />
capazes de as acolher. O enunciado urbano formalizado pelos arquitectos e os teóricos<br />
iluministas impunha a ultrapassagem dos limites históricos das antigas cidades<br />
europeias - o que implicava o derrube de velhas muralhas, ultrapassada que estava<br />
a sua função defensiva -, a criação de redes públicas de água e de estruturas de saneamento<br />
básico, a construção de cemitérios e hospitais públicos, o calcetamento<br />
144
e a macadamização de vias, a abertura de novas ruas e praças, ou a ampliação das já<br />
existentes. Modelo que definiu um conceito de cidade de tal modo inovador que,<br />
à época da sua formulação, raramente ultrapassou a categoria de reflexão projectual<br />
ou teórica, podendo-se encontrar na Lisboa pombalina uma das suas poucas<br />
concretizações. De resto, a sua pertinência verificar-se-á sobretudo quando serve<br />
de referência às soluções encontradas e propostas para adaptar os grandes centros<br />
urbanos da Europa ao crescimento populacional provocado pelo processo da industrialização.<br />
O estabelecimento das unidades industriais arrastou consigo a migração de trabalhadores<br />
que, por sua vez, vêm impulsionar o nascimento de novos e importantes<br />
núcleos urbanos ou aumentar, muitas vezes drasticamente, a densidade demográfica<br />
das cidades já existentes - Paris e Londres duplicam os seus habitantes entre os anos<br />
finais de 1700 e 1850. Foi de tal modo expressivo o crescimento destas populações<br />
que as respectivas povoações e cidades manifestaram graves problemas relacionados<br />
com a circulação, a habitação e a higiene pública, os quais fizeram urgir renovações<br />
na rede viária, suscitaram o aparecimento de novos bairros e obrigaram à implementação<br />
de sistemas de saneamento urbano. Infra-estruturas cuja concretização<br />
exigia uma cidade mais regular, tanto na planimetria dos espaços como na altura<br />
dos edifícios, condicionalismo que obrigava à planificação de novas superfícies edificadas<br />
em núcleos antigos ou a intervenções nas malhas históricas que visaram redefinir<br />
as disposições originais de ruas e praças. Isto significa que será com a prática<br />
da resolução destas dificuldades objectivas que o urbanismo moderno dará, entre<br />
1830 e 1850, os seus primeiros passos.<br />
Foi em Paris que se concebeu e aplicou pela primeira vez um plano regulador.<br />
Obedecendo à vontade de Napoleão III, o Barão Georges-Eugéne Haussmann,<br />
perfeito do Sena entre 1853 e 1869, vai elaborar e sobrepor ao corpo da velha Paris<br />
uma rede de ruas amplas e rectilíneas. A finalidade do programa de Haussmann era<br />
criar um sistema coerente e eficaz de circulação através da ligação dos principais<br />
centros da vida quotidiana citadina às estações de caminho de ferro, o mais veloz<br />
e eficiente meio de transportar os franceses para ou da sua capital. A sua concretização<br />
implicou a construção de novas tipologias arquitectónicas e equipamentos:<br />
edifícios públicos (escolas, hospitais, prisões, serviços administrativos, bibliotecas e<br />
mercados), parques públicos (o Bois de Boulogne e o Bois de Vincennes) e casas<br />
populares para as classes mais desfavorecidas, que, desta maneira, se viram afastadas<br />
para os subúrbios da capital. Renovada pelo plano Haussmann, Paris torna-se no<br />
145
paradigma do urbanismo moderno que muitas das cidades europeias irão adoptar<br />
como modelo. Madrid, Bruxelas, Turim, Barcelona e Estocolmo são alguns dos<br />
centros urbanos europeus que empreenderam campanhas de melhoramentos inspiradas<br />
no modelo parisiense, embora em nenhum deles as alterações tenham sido<br />
tão extensas e profundas como na capital francesa.<br />
Haussmann, aquando da sua empreitada parisiense, foi acusado de ter vandalizado<br />
muito do património edificado da capital francesa. Acusação que o Prefeito sempre<br />
recusou, pois considerava que tinha não só preservado os monumentos mais significativos,<br />
como ainda lhes deu um enquadramento urbano mais aberto que permitiu<br />
destacá-los do tecido dos edifícios da cidade. De facto, enquanto a velha Paris era<br />
derrubada, o arquitecto Eugénne Viollet-le-Duc fazia a catedral de Notre-Dame<br />
regressar a um pretenso esplendor da medieval, intervenção que se enquadrava,<br />
muito coerentemente, numa linha cultural que ainda ignorava o conceito de património<br />
urbano 2 e valorizava o monumento isolado enquanto testemunha solitária<br />
do passado.<br />
Há que ter em conta, contudo, as ampliações programadas de outras cidades europeias,<br />
como Barcelona (Ildefonso Cerda, 1859), Viena (Ludwig Förster, 1859),<br />
Florença (Giuseppe Poggi, 1864) e Estocolmo (Lindhagen, 1866), que preservaram<br />
o essencial dos respectivos cascos históricos graças ao rasgar de circuitos anelares<br />
ao redor dos núcleos pré-existentes, à maneira do Ring de Viena, que, assumindo<br />
uma dupla função, os isolavam das zonas recém construídas e, simultaneamente,<br />
permitiam a articulação com os novos sistemas viários. A fluidez da circulação entre<br />
o centro mais antigo e as novas áreas urbanas acabou por levar ao sacrifício das<br />
muralhas destas cidades, todas entretanto desaparecidas.<br />
3.A Situação Portuguesa<br />
Em Portugal, mais que a industrialização, ainda incipiente e de lento desenvolvimento,<br />
foi a conjuntura política que suscitou transformações nos tecidos das principais<br />
cidades. Com a vitória definitiva do liberalismo em 1834, o jovem poder e<br />
as respectivas instituições não só necessitaram de novas tipologias arquitectónicas<br />
2 Ter-se-á de esperar pela publicação de Der Städte-Bau nach seinen Künstlerischen Grundsätzen (A Urbanização<br />
nos seus Princípios Estéticos) do arquitecto vienense Camillo Sitte, em 1889, para que também as estruturas e as<br />
configurações urbanas, e não apenas as edificações mais grandiosas e comemorativas, fossem consideradas elementos<br />
constituintes da memória das cidades, logo imprescindíveis como referências seminais nos processos de renovação<br />
urbana.<br />
146
como também promoveram uma outra ideia de cidade, modernizada por inovadores<br />
equipamentos e infra-estruturas. Mas porque as mudanças então implementadas<br />
necessitaram duma legitimação concedida pela História, o liberalismo não se pautou<br />
apenas pela defesa da modernização. Pelo contrário, desenvolveu, em simultâneo,<br />
todo um culto do passado e da memória nacional cujas manifestações procuraram<br />
justificar pela História as opções tomadas no presente, apresentando-as como<br />
mais uma etapa de um longo processo histórico ou o retomar de uma coerência<br />
político-social que o pretérito mais recente tinha momentaneamente interrompido.<br />
Neste processo de sacralização da História, a conservação dos vestígios materiais<br />
do passado, em particular dos monumentos, era uma condição fundamental, já que<br />
preservá-los era actualizá-los, assim como actualizar todo o seu contexto histórico.<br />
Embora possamos ver uma aparente contradição na coexistência desta vontade de<br />
modernizar com este “historicismo”, não podemos também de deixar de entendêla<br />
como uma idealização que tentou conciliar o progresso material das sociedades,<br />
e da cidade em particular, com o respeito e a conservação da sua memória histórica.<br />
Conciliação que a realidade encarregar-se-á de demonstrar ser impossível, ou pelo<br />
menos extremamente improvável. E nem foi preciso esperar muito para o perceber.<br />
Logo a partir de 1834, ano da extinção das ordens religiosas (30 de Maio), a que se<br />
seguiu a alienação, nacionalização e venda dos seus bens (15 de Abril de 1835), a<br />
falta de recursos vai obrigar o Estado a vender, a demolir e a refuncionalizar muitos<br />
conventos e igrejas, visto não existirem meios financeiros suficientes para construir<br />
de raiz as tipologias necessárias à nova organização política 3 . Acrescente-se ainda que<br />
a modernização das principais cidades do país - com o rasgar de algumas praças, o<br />
arranjo de outras, o alargamento de ruas, a construção de jardins públicos, mercados<br />
e a instalação do saneamento básico, bem como a melhoria da circulação - obrigou,<br />
em urbes com uma grande densidade de pré-existências arquitectónicas como<br />
eram as nossas, à demolição de muitas construções antigas. O prolongamento desta<br />
situação pelo século em diante fez levantar muitos protestos da parte de escritores,<br />
arqueólogos e artistas, entre outros, dos quais Almeida Garrett, em relação à situação<br />
de Santarém nas Viagens na Minha Terra (1846), Alexandre Herculano (1838 e 1839)<br />
3 Em 1860, as propriedades dos conventos das congregações femininas - igrejas, cabidos, misericórdias, confrarias,<br />
seminários - foram colocadas no mercado e convertidas em títulos da dívida pública. Outro ciclo desamortizador<br />
iniciar-se-á cinco anos mais tarde, com o Estado a tomar posse das propriedades das juntas das paróquias e dos bens<br />
pertencentes às irmandades, confrarias, aos recolhimentos, aos hospitais e às misericórdias. A 28 de Agosto de 1869, a<br />
desamortização estendeu-se aos passais dos padres, aos baldios e aos bens dos estabelecimentos de ensino religiosos.<br />
147
e Ramalho Ortigão (1896) são os exemplos mais conhecidos e aqueles que balizam<br />
o século. Neles encontramos uma recusa do progresso irresponsável, que ignora o<br />
passado e a tradição, e a defesa de um compromisso entre o desenvolvimento material<br />
das populações e a conservação dos bens patrimoniais do passado. Alexandre<br />
Herculano chega a enunciar as vantagens económicas que podiam advir dos monumentos<br />
históricos, na medida em que eram o motivo pelo qual os estrangeiros<br />
visitavam Portugal, que, por sua vez, através do pagamento das hospedagens e da<br />
aquisição de bens (comida, guias de viagem, recordações, etc.) faziam entrar divisas<br />
no país e fomentavam o desenvolvimento económico das localidades. Na década de<br />
Oitenta, a própria Comissão dos Monumentos Nacionais referiu a feição lucrativa<br />
que os edifícios históricos podiam ter por meio da sua exploração turística.<br />
4.Estudo de Caso: Évora (1834-1919)<br />
Ao longo do século foi-se afirmando a convicção que cidades como Évora, Viana<br />
do Castelo, Braga, Guimarães, Coimbra, Tomar, Santarém ou Beja só interessavam<br />
aos «viajantes pela sua antiga arte» e que não valiam pelo que davam «de novo».<br />
Destacava-se Évora reincidindo no argumento que não eram «as suas novas avenidas,<br />
nem as suas praças, nem o seu lindo theatro, nem o seu bello Passeio Publico»<br />
que atraíam e detinham os visitantes na cidade alentejana, mas sim os «seus velhos<br />
mosteiros, as suas antigas egrejas, os nomes das suas primitivas ruas, estreitas e sinuosas,<br />
(…)» [ORTIGÃO, pp. 90-92]. Testemunhos materiais da história de uma<br />
cidade que remontava à Antiguidade romana e cuja importância social e política<br />
tinha sido paralela à da capital, sobretudo a partir dos séculos XIV e XV, quando<br />
passou a acolher a corte que, por ser itinerante, aqui se deteve em prolongadas<br />
estadas. Ao tornar-se residência de monarcas (de D. Afonso V a D. João III), Évora<br />
recebe a maioria das suas mais nobres edificações (paço real, reconstrução da igreja<br />
de São Francisco, igreja da Graça, colégio e igreja do Espírito Santo, igreja de Santo<br />
Antão, convento do Carmo, etc.), é sede de cortes (1390, 1391, 1408, 1436, 1442,<br />
1448, 1460-61, 1468, 1475, 1481 e 1490) e palco de acontecimentos tão relevantes<br />
como a execução do duque de Bragança em 1483, por ordem de D. João II,<br />
e o casamento do príncipe D. Afonso com D. Isabel, filha dos Reis Católicos, em<br />
1490. A sua população cresce até aos 11 252 habitantes em 1527, tornando-se, em<br />
termos demográficos, no terceiro centro urbano do país, e é elevada a arcebispado<br />
em 1540, dignidade que compartilha apenas com Lisboa e Braga. A conjuntura favorável<br />
inverte-se no século XVIII, com a centralização da máquina administrativa<br />
148
do Estado na capital. Consequentemente, verifica-se uma quebra demográfica, com<br />
os eborenses a não ultrapassarem os 11 643 indivíduos em 1801, valor que fazia<br />
com que Évora descesse para a sétima posição na escala demográfica das cidades<br />
portuguesas. Estagnação que se manteve até ao século XX, de tal modo que temos<br />
o registo de apenas 14 068 habitantes para 1911, contabilizando-se em todo o país<br />
nove urbes mais populosas que a alentejana. O efeito mais directo desta situação foi<br />
a paralisia do perímetro urbano de Évora, confinado ao limite das muralhas tardomedievais<br />
até ao século XIX, conforme a planta da cidade que o capitão Manuel<br />
Joaquim Matos elaborou, por encomenda da edilidade, em 1882 [ALMEIDA, p.<br />
60]. Outra planta, esta do ano de 1913, constata o atrás enunciado mostrando que<br />
à data poucas eram as estruturas localizadas extra-muros [ALMEIDA, p. 61]. São<br />
visíveis o cemitério público (1842), localizado na cerca do convento de Nossa<br />
Senhora dos Remédios, e a Praça de Touros, próxima do Baluarte do Príncipe. A<br />
unidade industrial da Companhia de Iluminação a Gás (1889) e um equipamento<br />
hoteleiro hoje desaparecido, ambos no Rossio de São Brás, o Asilo Barahona (1904)<br />
e a Fábrica de Moagem dos Leões não estão assinalados na cartografia de 1913, mas<br />
também pertencem ao grupo dos primeiros edifícios erigidos fora do perímetro<br />
amuralhado. A sua situação extrínseca ao centro da cidade justificava-se pela necessidade<br />
de uma maior amplitude espacial ou por razões de saúde pública, como<br />
aconteceu com o cemitério de Nossa Senhora dos Remédios. Os primeiros bairros<br />
levantados para lá da cerca eborense são tardios, dos anos de 1920 e 1930, gerados<br />
por loteamentos ao longo das avenidas Barahona e dos Combatentes, no Rossio<br />
Oriental e no Rossio Ocidental, respectivamente.<br />
A estagnação de Évora acabou por resultar, inadvertidamente, na preservação não<br />
só dos seus principais monumentos, mas de todo o conjunto edificado da cidade,<br />
que pouco se altera desde as décadas douradas de 1400 e 1500. Nem mesmo o<br />
terramoto de 1755 e as invasões francesas (1807-1811), que sacrificaram bastante<br />
os eborenses, deixaram marcas muito profundas na sua arquitectura. Constituiu-se<br />
assim um património que será ironicamente o meio pelo qual se tentará compensar<br />
a decadência da urbe, pois permitirá que Évora comece a ser valorizada pela sua<br />
importância enquanto documento privilegiado da história e da arte nacionais. O<br />
facto de ser quase o único núcleo urbano da banda sul do Tejo a merecer a atenção<br />
e o elogio da maioria dos estrangeiros que nos visitaram desde o século XVIII e<br />
escreveram sobre a história e a arte do nosso país (James Murphy, conde Athanasius<br />
Raczynski, Albrecht Haupt) fez com que se tomasse consciência que era pelo<br />
149
seu «air antiqúe et pittoresque» [RACZYNSKI, p. 360], e não pela via política ou<br />
económica, que Évora podia ganhar alguma notoriedade nacional. A afirmação de<br />
Ramalho Ortigão por nós já citada confirma-o, assim como os epítetos que outros<br />
autores lhe foram consagrando, «necrópole-museu de grande povo» [ALMEIDA,<br />
F., p. 26], e as iniciativas em sua defesa que se foram sucedendo: a circular dedicada<br />
à Arqueologia religiosa publicada por D. Augusto Eduardo Nunes, arcebispo de<br />
Évora, em 1896; o movimento formado no seio da Associação dos Arqueólogos<br />
Portugueses em 1916; e o Grupo Pró-Évora, fundado pelos próprios eborenses em<br />
1919. Nasce aqui a imagem idealizada de Évora como cidade-museu, que ainda não<br />
implica, nem implicará até à segunda metade do século XX, uma noção antecipada<br />
de património urbano (de que a forma da malha urbana configura, por si própria,<br />
um facto artístico). A expressão “cidade-museu” sintetiza, isso sim, a ideia de conjunto<br />
de monumentos isolados, de aglomeração rara e excepcional de objectos<br />
arquitectónicos singulares, integrados no seu contexto urbano original.<br />
Essa mesma estagnação acabou, contudo, por pesar sobre a elite local, constituída<br />
tanto por antigas como pelas mais recentes fortunas, que nos anos finais da década<br />
de 1850, com a pacificação política trazida pela Regeneração e o consequente<br />
aumento do investimento capitalista, sente o seu estatuto consolidado e começa<br />
a investir no seu conforto e na modernização de um modo de vida que passa simultaneamente<br />
pelas respectivas residências e pela localidade onde os seus nomes<br />
ou os das suas famílias continuam ou passam a ser uma referência social. Cultiva-se<br />
um quotidiano burguês desenvolvendo novos hábitos e circuitos de sociabilidade,<br />
recreação e cultivo do espírito, práticas que irão exigir tipologias arquitectónicas e<br />
equipamentos adequados. Identificamos aqui o desejo de um certo cosmopolitismo<br />
que tomava como referência distante e mistificada a Paris renovada pelo barão de<br />
Haussmann. Embora fosse incomparável com a situação eborense, a remodelação de<br />
Paris estabeleceu, como vimos, um modelo de progresso, vivência e administração<br />
municipal que obrigava à modernização do espaço urbano, de maneira a torná-lo<br />
salubre, organizado e regularizado, e cuja concretização nas cidades portuguesas foi<br />
incentivada pela política de obras públicas do Fontismo. A sua aplicação em Évora,<br />
contudo, não tendo a cidade alentejana ultrapassado os seus muros, só era passível de<br />
ser conseguida substituindo a sedimentação de arquitecturas antigas, o que gerava<br />
um claro conflito com o valor histórico que todos reconheciam como a sua maior<br />
valência. Lembramos que nas cidades europeias em que os centros mais antigos foram<br />
poupados às consequências das transformações urbanas, Barcelona e Florença,<br />
150
tal aconteceu porque o seu crescimento obedeceu a um plano de expansão, o que<br />
não aconteceu em Évora, que permaneceu fechada, embora se tenha rasgado uma<br />
estrada de circunvalação em redor das muralhas e das zonas adjacentes (os antigos<br />
fossos). A partir daqui, a história da cidade de Évora, durante o que resta do século<br />
XIX, caracterizou-se pela tentativa de encontrar um compromisso entre esta vontade<br />
de renovação e a conservação das edificações que lhe consignavam a classificação<br />
de cidade-museu. A procura deste compromisso foi talvez a mais importante<br />
utopia do urbanismo Oitocentista e Évora procurou atingi-la gerindo e articulando<br />
uma complexa prática municipal, não chega a ser uma política, de demolições, refuncionalizações,<br />
adaptações, protecções e expectativas de crescimento.<br />
4.1 As Demolições<br />
Estabeleceu-se uma hierarquia informal para as arquitecturas do passado, em que<br />
os critérios subjacentes à escolha daquelas que deviam ser demolidas, remodeladas<br />
ou conservadas assentaram na associação da qualidade artística com o simbolismo<br />
atribuído à época a que pertenciam: à Antiguidade, à Idade Média, ou à Idade<br />
Moderna. A solução acaba por se concentrar na demolição das construções consideradas<br />
não significativas do ponto de vista do conceito vigente de monumento e<br />
de uma imagem idealizada de Évora, as dos séculos XVII e XVIII e aquelas cujas<br />
estruturas originais tivessem sido irremediavelmente adulteradas ou cujo estado de<br />
conservação pusesse em causa a estética e a funcionalidade citadinas. A Idade Média<br />
era a mais favorecida pela hiperbolização que a cultura Oitocentista fazia da época<br />
da fundação e da consolidação da nacionalidade através do estilo gótico e do seu<br />
apogeu com o manuelino.<br />
Embora os mais importantes conventos e mosteiros eborenses fossem de fundação<br />
medieval ou tardo-medieval, a maioria tinha chegado ao século XIX muito<br />
transformados por intervenções Seiscentistas e Setecentistas, logo sem permitirem<br />
as analogias com o passado fundador, tão caras à cultura nacionalista do tempo. A<br />
crise financeira que atingiu as ordens religiosas no século XVIII e a sua definitiva<br />
abolição em 1834 agravou a degradação material de muito dos seus edifícios, como<br />
fica patente por fotografias da época [ALMEIDA, pp. 26 e 27], das quais destacamos<br />
as do convento de São Francisco [Monumentos, pp. 88, 89, 91 e 94], de que também<br />
existe uma pintura a óleo de Dores Castro (Ruínas dos Paços Reais e Convento<br />
de São Francisco, 1862), em que se torna evidente que o estado ruinoso a que<br />
tinha chegado punha em causa, claramente, a visão idealizada da Évora “capital<br />
151
do Reino” e impedia a sua normalização segundo os princípios do urbanismo<br />
moderno. São pois simplesmente demolidos, total ou parcialmente, para permitir<br />
novas construções ou a renovação da malha urbana rasgando e ampliando artérias.<br />
O convento de São Domingos foi-o em 1836 para dar lugar à praça D. Pedro IV,<br />
actual Joaquim António Aguiar, onde se levantará, no topo oeste, o Teatro Garcia de<br />
Resende (1881-1892), de traça neoclássica riscada pelo engenheiro de obras públicas<br />
Adriano da Silva Monteiro, com a colaboração, nas decorações e nos cenários,<br />
de artistas de relevância nacional, a saber António Ramalho, João Vaz (pintores) e<br />
Luigi Manini (arquitecto, pintor e cenógrafo italiano).<br />
Das que se seguiram, destacamos as demolições de algumas das portas da muralha<br />
(Alconchel, Rampa, Rossio), dos conventos de Santa Catarina (1900) e do Paraíso<br />
(1902), da igreja do convento de Santa Mónica (1900), do edifício da Câmara Municipal<br />
e da cadeia pública adjacente (1906), na praça do Giraldo, substituído pela<br />
agência do Banco de Portugal, de traça eclética desenhada pelo arquitecto Adães<br />
Bermudes. Derribamentos que obedeceram sempre aos critérios da renovação arquitectónica<br />
e do descongestionamento da malha urbana. O do convento de Santa<br />
Catarina, que se planeava substituir por um largo arborizado, foi assim justificado<br />
na Memória Descritiva da intervenção: «porque demolido, o espaço por elle ocupado<br />
se transformará n’um largo aprazível e desafogado, desapparecendo as escuras<br />
e sombrias ruas que o circulam (…)» [ALMEIDA, p. 26].<br />
4.2 As Reintegrações<br />
Outra prática comum consistiu, ao proceder-se aos desmantelamentos, na salvaguarda<br />
e na reintegração em outras edificações dos elementos arquitectónicos tidos<br />
como esteticamente mais valiosos. Foi o que se fez com dois portais renascentistas<br />
do convento de São Domingos nas entradas do Cemitério de Nossa Senhora dos<br />
Remédios e do Seminário da cidade (antiga Universidade), com um portal e uma<br />
gárgula do convento do Espinheiro na Casa Barahona Fernandes, o primeiro integrado<br />
no acesso ao jardim e o segundo na fonte do pátio interior que lhe serve de<br />
átrio, e com as arcadas manuelinas retiradas do palácio do Vimioso quando da sua<br />
remodelação e que Giuseppe Cinatti inseriu nas ruínas que inventou para o Jardim<br />
Público da cidade.<br />
4.3 As Adaptações<br />
A maioria dos edifícios retirados às extintas ordens religiosas, porém, não desapa-<br />
152
eceu nesta voragem demolidora, mas acabou adaptado a novas funcionalidades,<br />
normalmente de cariz público, por incapacidade do erário municipal em financiar<br />
edificado de raiz para albergar os serviços e as instituições do jovem Estado liberal.<br />
Solução que não ficou limitada às primeiras décadas da monarquia constitucional<br />
(1834-1860) e se prolonga até ao século XX. Verificou-se então a transformação<br />
do colégio de S. Paulo em cadeia estadual (1836) e da igreja de S. Pedro em escola<br />
distrital (1841), a ocupação do convento e do forte da Santo António da Piedade<br />
pelo primeiro e provisório cemitério público (1834) e do corpo do edifício da<br />
Universidade pelo liceu nacional (1841) - o seu antigo hospital foi aproveitado<br />
para cadeia comarcã -, a instalação da Guarda Fiscal (1886) e da Casa Pia (1889)<br />
no mosteiro de S. José ou da Esperança, do Grupo da Artilharia da Montanha no<br />
convento do Salvador (1906) e do quartel da Infantaria 11 no convento de Santa<br />
Clara (1911). Em 1881, os paços do concelho passaram da praça do Giraldo para<br />
o antigo palácio dos condes de Sortelha, na praça de Sertório, que recebe ligeiras<br />
obras de beneficiação e adaptação – foi-lhe acrescentado um grande tabuleiro empedrado<br />
central que a embelezava e regularizava a circulação de pessoas e viaturas.<br />
Só em 1907 se empreendeu uma reforma mais aprofundada, segundo projecto do<br />
arquitecto Alfredo Costa Campos, que consistiu no encerramento do pátio central<br />
por meio da inclusão de um corpo central como fachada, com portal neo-manuelino,<br />
e da sua cobertura por uma ampla clarabóia em ferro e vidro. O pátio é assim<br />
transformado em átrio, a partir do qual se passou a aceder aos andares superiores<br />
através de uma escadaria também em ferro. A aplicação destas estruturas metálicas<br />
levantou alguns problemas técnicos, o que obrigou à intervenção do engenheiro<br />
Adriano da Silva Monteiro.<br />
Embora estas refuncionalizações tenham suscitado as mais diversas alterações construtivas<br />
nos imóveis visados, acabou por ser também a razão pela qual aqueles resistiram<br />
aos efeitos da passagem do tempo. Veja-se o que aconteceu com aconteceu na<br />
igreja da Graça, que, fechada ao culto e sem nova utilização, apenas o convento foi<br />
transformado em quartel, sofreu o desabamento da abóbada da nave em 1884.<br />
5.O Restauro Arquitectónico como Agente<br />
Dinamizador da Renovação Urbana: o Templo<br />
Romano e a Igreja de S. Francisco<br />
O número de edificações que usufruiu de medidas activas de conservação ou de<br />
153
campanhas de restauro e que mantiveram a função original ou receberam o estatuto<br />
de monumento nacional foi, de facto, limitado, muito provavelmente por<br />
motivo das já conhecidas dificuldades financeiras. Desse restrito grupo, como dissemos,<br />
fizeram parte os monumentos em que a qualidade estética se associava a um<br />
simbolismo histórico de dimensão nacional. Valores que foram reforçados pelo seu<br />
reenquadramento no espaço circundante, o que nos permite dizer que as operações<br />
de restauro mais relevantes se estenderam do monumento à sua envolvente urbana.<br />
As intervenções efectuadas no templo romano (vulgarmente designado de Diana)<br />
e na igreja de S. Francisco são os dois exemplos mais paradigmáticos do que acabámos<br />
de afirmar.<br />
5.1 O Templo<br />
A servir como açougue desde o século XV, que António José de Ávila, na qualidade<br />
de governador civil de Évora, mandou encerrar em 1836, o templo romano tinha<br />
chegado ao século XIX com os espaços intercolunares preenchidos com paredes de<br />
alvenaria, sobre as quais tinham sido levantados muros ameados e um campanário,<br />
acrescentos que lhe davam a aparência de uma torre. Uma série de construções<br />
anexas ligavam-no ao palácio setecentista onde estivera sedeada a Inquisição. Entre<br />
1844 e 1846, a pretexto de instalar no templo uma gliptoteca e da necessidade de<br />
realizar escavações arqueológicas no seu perímetro, Joaquim da Cunha Rivara, o<br />
então responsável pela Biblioteca Pública de Évora, conseguiu da câmara o derribamento<br />
dessas construções que o anexavam ao palácio da Inquisição. Operação<br />
que isolou o templo no centro de uma praça e permitiu assim a recuperação da sua<br />
disposição primitiva na malha urbana e, por inerência dessa centralidade, o seu estatuto<br />
de monumento romano ímpar no território português. Nos anos sequentes,<br />
de 1855 a 1863, a câmara municipal procurará melhorar o enquadramento urbano<br />
do monumento romano articulando-o com outro edifício emblemáticos da cidade,<br />
a Sé, através da arborização do percurso que os ligava e do calcetamento do adro<br />
da catedral. No outro extremo do largo do templo, sobre a muralha, fará rasgar uma<br />
praça arborizada, o Passeio de Diana, que obrigou ao nivelamento da área com as<br />
ruas mais próximas e ao desmantelamento de umas casas pertencentes ao duque de<br />
Cadaval. Esta proliferação de árvores, agentes purificadores da atmosfera, também<br />
visava a salubridade da zona.<br />
Foi necessário esperar pelo ano de 1870 para que a edilidade chefiada por Manuel<br />
Viana se decidisse pelo restauro definitivo do templo. Tal aconteceu depois da publi-<br />
154
cação de um relatório a alertar para o mau estado de conservação do monumento,<br />
em 1869, da autoria de Augusto Filipe Simões, director da Biblioteca Pública. Mau<br />
estado que tinha obrigado à transferência da colecção de monumentos epigráficos<br />
reunida por Frei Manuel do Cenáculo, ali depositada, para a Galeria das Damas. A<br />
operação decorreu até 1871, foi dirigida pelo arquitecto italiano Giuseppe Cinatti<br />
e consistiu, não sem algum debate, na libertação do templo dos acrescentos estruturais<br />
não romanos e na sua recriação como ruína, composta por podium, colunas<br />
coríntias e entablamento .<br />
5.2 S. Francisco<br />
Em relação à igreja, ao convento e paço de S. Francisco, a demolição de todo o conjunto<br />
que ligava o corpo do templo com o chamado palácio de D. Manuel ou Galeria<br />
das Damas (ou Trem) não decorreu directamente do encerramento do espaço<br />
conventual em 1834 – a igreja foi-o dois anos mais tarde e assim permaneceu até<br />
1840. A única repercussão imediata dessa medida foi a instalação, a título provisório,<br />
do Tribunal Judicial no antigo refeitório manuelino. As circunstâncias alterar-seão<br />
somente a partir de 1863, com a inauguração, nesse ano, do caminho-de-ferro,<br />
que gerará expectativas de crescimento da cidade em direcção à estação ferroviária,<br />
pelo Rossio de S. Brás. Ter-se-á pensado que o comboio, o mais actual e rápido<br />
meio de transporte, por meio do qual passariam a chegar pessoas e bens à cidade, à<br />
semelhança do que vinha acontecendo noutras cidades do país e da Europa, atrairia<br />
comércio, serviços e população às suas proximidades e, consequentemente, a expansão<br />
urbana. Não tardou a surgir a primeira proposta de urbanização do Rossio de<br />
S. Brás, com a finalidade de o embelezar e optimizar, de modo a que a condução<br />
de passageiros e produtos da gare para o centro de Évora fosse menos incómodo<br />
e dispendioso. E embora a sua concretização se tenha traduzido apenas na tímida<br />
avenida da Estação (futura avenida Barahona), que não era mais que uma estrada,<br />
aberta na década de Setenta, o caminho-de-ferro veio trazer um dinamismo verdadeiramente<br />
revolucionário à área do convento de S. Francisco. De tal modo que<br />
se chegou a colocar a hipótese de mudar o nome de “Porta do Rossio” para “Porta<br />
do Progresso”, alteração que não chegou a ser efectivada, mas que corresponde às<br />
condições de reconversão que se iam estabelecendo naquela zona.<br />
Este processo iniciou-se a partir de 1864, quando o governo concedeu à edilidade,<br />
por decreto de 25 de Julho, a posse dos restos do paço de D. Manuel e do convento<br />
de S. Francisco, com a respectiva cerca e terrenos anexos. Como contrapartida, o<br />
155
executivo central impunha à câmara a obrigatoriedade de proceder, nos três anos<br />
seguintes, ao restauro da Galeria das Damas, devendo também dotá-la de uma nova<br />
função que não prejudicasse a sua integridade física, e à instalação de um tribunal<br />
judicial, de uma aula nocturna de instrução primária e de todos os serviços<br />
camarários considerados necessários no corpo conventual. Determinava também<br />
a abertura de uma praça que desafogasse e embelezasse a fachada da igreja de S.<br />
Francisco, com a qual se pretendeu abrir e logo melhorar, ampliando, a visibilidade<br />
da sua implantação na cidade. Ao fazê-lo, os eborenses rematavam a atenção que<br />
lhe tinham concedido em anos anteriores, de 1860 a 1862, quando a restauraram,<br />
em duas fases, por iniciativa de uma comissão de notáveis locais e sob a direcção do<br />
arquitecto inglês John Bouvie Jr. O cumprimento da determinação de desafrontamento<br />
do templo implicou, porém, a demolição da templete ou torre que rematava<br />
o Aqueduto da Água da Prata frente à galilé do templo[ALMEIDA, p. 30], acção<br />
que provocou uma forte polémica de ressonância internacional, com um artigo de<br />
protesto publicado no jornal inglês Athenoeum. A operação de desmantelamento do<br />
fecho do aqueduto acabou por atingir os cunhais e os dois arcos laterais da galilé,<br />
que foram pronta e gratuitamente reconstruídos por Cinatti. Como vemos, a hierarquização<br />
dos monumentos a que nos referimos atrás distinguiu, inclusivamente,<br />
dois bens com a mesma natureza patrimonial, mas com valores simbólicos distintos:<br />
o aqueduto e a igreja de S. Francisco, favorecendo esta última provavelmente porque<br />
evocava com maior grandiosidade a fase de apogeu da cidade.<br />
A vaga demolidora acabou por se estender, em 1869, à estrutura conventual, em<br />
particular aos corpos que ligavam o templo aos do Trem, que incluíam o claustro<br />
quinhentista das Gerais do Noviciado, com a finalidade de ganhar espaço para o<br />
levantamento de um mercado municipal. O mercado de D. Manuel, era esta a denominação<br />
prevista, devia substituir aquele que se realizava na praça do Giraldo e<br />
que tinha sido extinto em 1863, veiculando o arranjo daquela artéria no ano de<br />
1867: calcetamento a preto e branco do tabuleiro central, colocação de doze bancos<br />
e de candeeiros a petróleo para a iluminação pública.<br />
O novo equipamento que era o mercado público vinha juntar-se aos restantes<br />
melhoramentos que se estavam implementando nas proximidades, entre os quais<br />
se destacava o jardim público. A construção deste grande jardim aproveitou toda a<br />
área definida pelo baluarte do Príncipe e engrandecia o antigo Jardim das Amoreiras,<br />
que remontava a 1837. Nesse ano, numa iniciativa que conciliava a dimensão<br />
pragmática com a estética, o município tomou posse dos fossos dos baluartes de<br />
156
S. Francisco, desde a porta do Rossio à do Raimundo e da Piedade à rampa dos<br />
Castelos, e aí plantou amoreiras, em conformidade com ordens da rainha D. Maria<br />
II, que desejava promover o desenvolvimento desta indústria nacional. Em 1838,<br />
o jardim das Amoreiras foi criado no baluarte junto à “Porta do Rossio”. Vinte e<br />
cinco anos mais tarde, dá-se início à sua ampliação e reconversão em equipamento<br />
urbano de embelezamento, higiene e sociabilidade, filiado nos parques e passeios<br />
públicos que iam proliferando nas cidades do país (com destaque para Lisboa) e do<br />
resto da Europa, mas tendo especialmente os de Paris como modelo distante.<br />
A autoria do jardim público pertenceu, mais uma vez, ao italiano Giuseppe Cinatti.<br />
O seu projecto inovava no aproveitamento que fazia das estruturas antigas e<br />
monumentos aí existentes, como o torreão da muralha que se tornou na base das<br />
ruínas fingidas criadas por Cinatti e a Galeria das Damas que ficou integrada no<br />
interior do jardim. Ainda em conformidade com o decreto de 1864, a Galeria das<br />
Damas foi adaptada a museu de produtos naturais e industriais (Exposição Distrital<br />
Permanente), embora tenha funcionado sobretudo como Teatro Eborense, onde<br />
decorreram as primeiras sessões cinematográficas em Évora. Esta adaptação, decorrida<br />
de 1884 a 1887, ficou a cargo de Adriano da Silva Monteiro e consistiu no<br />
levantamento da cota do edifício para mais um nível por meio de uma estrutura<br />
em ferro fundido, com amplos janelões de arco abatido, de vãos preenchidos com<br />
grelhas de metal recortado e vidro 4 .<br />
Fronteira a uma das entradas laterais do jardim público, no outro extremo do baluarte<br />
do Príncipe, por de trás do convento de S. Francisco, no lugar de uma antiga<br />
casa dos séculos XV e XVI, foi levantada outra das obras com que Cinatti marcou<br />
a Évora Oitocentista, o palacete José Maria Perdigão ou, como foi designado após<br />
a morte deste abastado lavrador, palácio Barahona (apelido de Francisco Barahona<br />
Fragoso, o responsável pela conclusão da construção enquanto segundo marido de<br />
Inácia Angélica Fernandes, viúva de José Maria Perdigão). De resto, terá sido para<br />
levantar este palacete que o arquitecto italiano chegou a Évora em 1858. Desenhado<br />
segundo o revivalismo dos valores classicizantes da arquitectura renascentista italiana,<br />
com decorações interiores pintadas por António Carneiro, o palácio Barahona<br />
veio antecipar e depois sublinhar a relevância que o eixo sul da cidade adquiriu<br />
4 Na madrugada de 8 de Março de 1916, deflagrou um violento incêndio que destruiu a totalidade das estruturas<br />
metálicas erigidas por Adriano Monteiro. O palácio de D. Manuel permaneceu em ruínas até 1943, ano em que a Direcção<br />
Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais deu início à sua reconstrução tal como hoje se nos apresenta.<br />
157
com a chegada do caminho-de-ferro. Tanto que a 30 de Julho de 1863, José Maria<br />
Ramalho conseguiu, do município, o aforamento do recanto do Rossio de S. Brás<br />
mais próximo do seu palacete, a fim de saná-lo da marginalidade que aparentemente<br />
o frequentava, comprometendo-se, como compensação, a ajardiná-lo.<br />
Assim se terá polarizado uma nova centralidade para Évora que se pretendeu aglutinadora<br />
das diferentes dimensões de uma cidade, a do lazer e da higiene pública<br />
(jardim), a comercial (mercado), a religiosa e monumental (igreja de S. Francisco)<br />
e a residencial (palacete), da qual se chegou a planear a ampliação através de um<br />
projecto de urbanização do Rossio de S. Brás, com um novo bairro (denominado<br />
bairro Cenáculo) idealizado pelo vereador municipal Carlos Serra, apresentado e<br />
aprovado na câmara em 1909. Também houve a intenção de provê-la de um serviço<br />
administrativo com um projecto de construção de um tribunal na extremidade do<br />
convento de S. Francisco [ALMEIDA, p. 31], frente ao jardim público, em 1874.<br />
O novo tribunal, da autoria de Caetano Câmara Manuel, primeiro engenheiro da<br />
Repartição de Obras Públicas do Distrito de Évora, viria substituir a antiga sala de<br />
audiências instalada, nos anos Trinta, no convento. A substituição não aconteceu,<br />
o projecto de Caetano Manuel não saiu do papel, e a justiça permaneceu sediada<br />
na sala de S. Francisco, Cinatti te-le-á renovado, até que desapareceu devido ao<br />
desmantelamento do que restava da estrutura conventual em 1894. Esta tinha sido<br />
autorizada pela Câmara em 1892, que pôs à venda, para demolição, o que restava do<br />
convento ainda na sua posse, mas com a condição do possível comprador levantar<br />
contrafortes em alvenaria ou cantaria e erigir edificações contíguas à igreja que<br />
sustentassem os seus muros e albergassem os serviços da paróquia. Impunha ainda a<br />
abertura de uma rua com a largura mínima de 20 metros, compreendendo passeios<br />
laterais. A aquisição foi feita por Francisco Barahona Fragoso, que deu seguimento<br />
à demolição prevista, a qual abrangeu, para além da sala do tribunal, o claustro do<br />
século XV e a sala da Rainha. Procedeu-se simultaneamente a novo restauro da<br />
igreja, tinham surgido fendas na fachada, patrocinado também por Francisco Barahona<br />
Fragoso.<br />
6.Conclusão<br />
Este último destaque concedido a S. Francisco, ao cuidado posto na sua preservação<br />
quando tudo em redor se altera intencionalmente, sublinha mais uma vez e sintetiza<br />
a relação que os eborenses foram estabelecendo com a sua cidade no século XIX,<br />
equilibrada fragilmente entre a preservação do valor histórico que reconheceram<br />
158
como fundamental para a sua identidade, mas também para a sua sobrevivência<br />
pela atracção e interesse que despertava em forasteiros nacionais e estrangeiros, e a<br />
modernização que desejavam para o seu quotidiano. Fica contudo a questão se esta<br />
modernidade vandalizadora, como a classificaram muitos autores da época, não foi<br />
antes um compromisso que garantiu a sobrevivência da cidade enquanto espaço<br />
vivo e, essencialmente, vivido.<br />
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Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1998, 2 volumes.<br />
SILVA, António Carlos; “A «Restauração» do Templo Romano de Évora”, in A Cidade de Évora,<br />
n.º 1, 1994-95.<br />
SILVA, José Custódio Vieira da; Paços Medievais Portugueses, caracterização e evolução da habitação<br />
nobre dos séculos XII a XVII, dissertação de doutoramento em História da Arte Medieval, Universidade<br />
Nova de Lisboa, 1993.<br />
SILVA, José Custódio Vieira da; O tardo-Gótico em Portugal: a arquitectura no Alentejo, Lisboa, Livros<br />
Horizonte, 1989.<br />
SIMPLÍCIO, Maria Domingas; Evolução e morfologia do espaço urbano de Évora, tese de doutoramento,<br />
Universidade de Évora, 1997.<br />
SIMPLÍCIO, Maria Domingas; O espaço urbano de Évora: contributo para melhor conhecimento do sector<br />
intra-muros, dissertação de aptidão pedagógica e capacidade científica, Universidade de Évora,<br />
1987.<br />
161
162
Clara Menéres<br />
Universidade de Évora. Conferência proferida no dia 4 de Junho de 2003.<br />
A escultura e as novas tecnologias.<br />
Na evanescente vida contemporânea vemos cada vez mais a realidade ser substituída<br />
pela sua imagem, fenómeno que se estende à própria escultura. Grande parte do<br />
conhecimento que temos dela é por fotografia, reproduzida em vários suportes.<br />
Uma coisa é projectarmos imagens de um objecto tridimensional, outra é construílo<br />
e resolvê-lo sob o ponto de vista formal, estrutural e técnico. Uma questão é o<br />
aspecto visual da forma no espaço, outra é o domínio dos inúmeros conhecimentos<br />
necessários para a obtenção de um resultado controlado na execução de uma<br />
escultura.<br />
A escultura e a arquitectura têm em comum o facto de ambas serem artes da tridimensionalidade<br />
que se desenvolvem no espaço. A escultura diferencia-se da arquitectura<br />
não possuindo a sua função utilitária e de habitabilidade, reservando para si,<br />
apenas, a função simbólica.<br />
Nos primórdios da humanidade, a escultura e a arquitectura estavam mais próximas,<br />
partilhando de maneira mais integrada estas duas funções. Hoje, a ligação entre as<br />
duas artes é mais episódica, embora se possam estabelecer curiosas influências mútuas,<br />
ao nível dos materiais e das tecnologias. A propósito, vale a pena recordar o<br />
Museu Guggenheim de Bilbau, projectado por Frank Gehry, revestido com chapas<br />
de titânio, cujas formas escultóricas foram programadas a computador.<br />
A escultura contemporânea e, sobretudo, a arte pública utiliza muitos materiais<br />
de fabrico industrial, adaptando-se aos modernos desenvolvimentos tecnológicos.<br />
163
Vemos nas nossas praças esculturas de grandes dimensões em betão armado, em<br />
aço cortene, peças com materiais de síntese ou vidro. Escultores com vocação mais<br />
tecnológica têm participado deste esforço de modernização, pesquisando e integrando<br />
na sua arte as novas técnicas que, por vezes, são comuns a outros sistemas<br />
construtivos como a engenharia, a arquitectura e o design.<br />
O século XX foi um século de grandes transformações, cuja evolução se reflectiu<br />
no campo estético por sucessivas rupturas provocadas pela introdução de novos<br />
conceitos e expressões artísticas. Sendo difícil resumir um tão extenso período de<br />
experiências e movimentos estéticos, proponho-me apenas desenhar no tempo e<br />
na história, de um modo rápido e sucinto, a linha condutora que, ao longo do século<br />
passado despertou e equacionou a cultura científica e tecnológica subjacente à<br />
arte contemporânea. Procurarei definir algumas linhas evolutivas, associando artistas<br />
que desenvolveram uma experimentação artística que inclui novos materiais e novos<br />
conceitos de espaço e de tempo.<br />
1 - A escultura e as rupturas estéticas do séc. XX<br />
Começo por apresentar um quadro sinóptico dos principais acontecimentos relativos<br />
às novas tecnologias na arte do séc. XX. O início do século foi fértil em rupturas<br />
estéticas das quais abordarei, apenas, o Futurismo e o Construtivismo, seguidos de<br />
referências à Bauhaus e à New Bauhaus, fundada no final dos anos 30, nos Estados<br />
Unidos. Nesta primeira fase não estou a incluir nem o Cubismo nem o Surrealismo,<br />
entre outros movimentos, por me parecerem pertencer a outra filiação.<br />
Em seguida, abordarei a arte cinética que tem dois momentos: um, inicial, que<br />
acompanha as primeiras experiências e está presente nos movimentos tecnológicos<br />
da primeira metade do século. Um segundo tempo, no pós-guerra, durante o qual<br />
esta expressão se desenvolveu adquirindo novas características que foram exploradas<br />
por um grande número de artistas.<br />
Depois, vem o cinema e a fotografia, linguagens visuais que, tendo surgido no século<br />
XIX, progrediram de modo fulgurante ao longo do século seguinte, influenciando<br />
profundamente as artes plásticas. Desde o início foram consideradas como artes<br />
autónomas mas, pela sua preponderância na cultura de massas, acabaram por fecundar<br />
a produção das outras artes mais tradicionais, dando origem a formas artísticas<br />
híbridas. Neste caso não estamos perante uma ruptura mas uma miscigenação.<br />
No entanto, o facto decisivo do pós-guerra foi a revolução cultural introduzida<br />
pelos novos media, sobretudo pela televisão e depois pela Internet, a última aquisi-<br />
164
ção tecnológica que pôs o mundo em rede, revolucionando todos os processos de<br />
comunicação e informação.<br />
As artes visuais acompanharam esta mutação, desenvolvendo novas linguagens, cada<br />
vez mais acessíveis aos produtores artísticos através da disseminação da informática<br />
e dos computadores pessoais. Foi nas últimas décadas do séc. XX que assistimos ao<br />
aparecimento dos meios digitais aplicados às artes: os produtos multimédia, vídeo<br />
arte, instalação vídeo e arte por Internet.<br />
Nesta apresentação destaco dois criadores, homens determinantes para a sua época,<br />
por terem sido mestres do pensamento artístico. Refiro-me a Marcel Duchamp e<br />
Joseph Beuys, duas personalidades que introduziram novos conceitos e atitudes,<br />
influenciando a evolução da arte nas décadas seguintes. Embora não sendo especialistas<br />
em nenhuma tecnologia, criaram o campo estético indispensável ao desenvolvimento<br />
das novas expressões.<br />
2 - Futurismo<br />
A percepção da importância do movimento e da velocidade, que Virilio considera<br />
como um dos problemas maiores da contemporaneidade, especulando sobre<br />
o conceito de tempo-real e de simultaneidade, foi intuído no início do séc. XX<br />
pelos artistas do Movimento Futurista que consideravam “a noção de velocidade<br />
como valor plástico” e cujas ideias estão condensadas no Manifesto de Marinetti e<br />
nas esculturas de Boccioni que afirmava que “o abrir e fechar de uma válvula cria<br />
um ritmo tão belo, mas infinitamente mais novo que o de uma pálpebra animal”.<br />
Boccioni, escultor, pintor e escritor, propôs os conceitos de “visão simultânea” e<br />
de “linhas de força” para a definição da trajectória de um objecto em movimento<br />
no espaço.<br />
O Futurismo tem expressão no nosso país através de Almada Negreiros e Santa-<br />
Rita Pintor que foi influenciado pelos futuristas italianos. Julgo que devo também<br />
recordar o pintor Amadeu de Sousa “Cardoso por ser um artista português que, na<br />
primeira metade do séc. XX, integrou a vanguarda internacional, cujas obras mais<br />
importantes pertencem aos movimentos cubista e abstraccionista.<br />
3 – Construtivismo<br />
No norte da Europa, artistas russos procuravam respostas para os desafios que o<br />
progresso tecnológico apresentava no início do séc. XX. Num contexto social de<br />
grande ebulição, Vladimir Tatlin realizou, várias obras de escultura que são de um<br />
165
modernismo surpreendente. Os seus estudos para o Monumento à Terceira Internacional<br />
são, provavelmente, a sua obra mais conhecida e divulgada. Trata-se de um<br />
projecto de escultura monumental e rotativo, com diferentes velocidades em cada<br />
nível. Este monumento nunca chegou a ser executado.<br />
A escultura Complex Corner Relief em aço, alumínio e zinco, apesar de ser uma obra<br />
anterior, datada de 1915, manifesta uma grande inovação no tratamento das formas,<br />
empregando materiais industriais e apresentando uma solução inesperada para<br />
apoio da peça, que se fixa nas paredes, numa óbvia recusa do plinto e dos suportes<br />
clássicos da escultura.<br />
Embora Tatlin reivindicasse para a sua arte o termo de “produtivismo”, a verdade<br />
é que estava muito mais próximo das pesquisas e propostas de Gabo e Pevsner do<br />
que se poderia pensar, tendo em conta a disputa gerada entre eles. A “cultura dos<br />
materiais”, como dizia o próprio Tatlin, apoiando-se nas suas propriedades estruturais,<br />
assim como a procura geometrizada e espacial das composições, faz com que<br />
os consideremos integrados no mesmo movimento.<br />
O Construtivismo, para além de introduzir um novo conceito relativo aos materiais<br />
e à integração estética das tecnologias, caracteriza-se pela estruturação de objectos<br />
baseados numa geometria de leitura clara e imediata, com intersecções de planos a<br />
que Gabo chamou “estereometria”, como põe exemplo a Cabeça em ferro de 1916.<br />
Este autor desenvolveu a investigação científica necessária à produção de esculturas<br />
com a transparência e a claridade de modelos matemáticos. A integração do movimento<br />
na escultura era um dos aspectos mais importantes do Construtivismo.<br />
O termo “arte cinética” foi proposto pela primeira vez no Manifesto Realista, em<br />
1920, por Gabo e Pevsner.<br />
4 - Marcel Duchamp<br />
Marcel Duchamp é uma personalidade de extrema importância na evolução das<br />
artes visuais ao longo do século XX. O seu pensamento inovador começa a manifestar-se<br />
muito cedo, na primeira década do século tendo realizado o seu primeiro<br />
ready-made, Roda de bicicleta, em 1913. Duchamp era por si só um introdutor de<br />
rupturas. Embora associado ao Dadaísmo, a sua personalidade ultrapassou qualquer<br />
movimento, tendo tido uma importância que só foi inteiramente reconhecida e<br />
assimilada a partir da década de 60. No fim da segunda guerra, Duchamp deslocouse<br />
para os Estados Unidos onde passou a viver, influenciando várias gerações de<br />
artistas. Os seus conceitos estiveram na base do movimento Fluxos, que se definiu<br />
166
como Neo-Dada e cujos artistas se propuseram fazer anti-arte.<br />
Para Duchamp, “a arte era mais um meio alargado de transmissão de ideias e emoções<br />
do que um fim em si mesma”. Duchamp é também considerado como um<br />
precursor da arte conceptual, que surge nos anos 70, pela sua “exigência ética de<br />
devolução da arte ao espaço intelectual das ideias”.<br />
Pode-se dizer que devemos a Mareei Duchamp o ampliar do campo da criação e<br />
a emergência de uma liberdade que tornou possível, àqueles que se lhe seguiram,<br />
expressarem qualquer conceito por todos os meios disponíveis.<br />
5 –Bauhaus<br />
A Bauhaus teve uma importância enorme no ensino da arte, influenciando muitas<br />
escolas durante grande parte do século XX, primeiro na Europa e depois nos<br />
Estados Unidos. Foi fundada em 1919 por Walter Gropius, logo a seguir ao fim<br />
da primeira guerra mundial, que permaneceu como director até 1928. Esta escola<br />
teve várias fases estéticas e de ensino que corresponderam à sua instalação em três<br />
cidades da Alemanha.<br />
A Bauhaus alemã terminou em Abril de 1933, em Berlim, por pressão de dirigentes<br />
nazis, quando era director o arquitecto Mies van der Rohe.<br />
Para além da importância desta escola e dos conceitos modernistas que gerou – os<br />
quais ainda estão patentes no design e na produção industrial contemporâneos<br />
– o que me interessa sublinhar é a função formadora dos artistas que veicularam<br />
a influência construtivista, característica do período de Dessau, e cujo professor<br />
mais relevante foi László Moholy-Nagy. Este artista, juntamente com El Lissitzky,<br />
prolongou na Alemanha e depois nos Estados Unidos, os princípios estéticos do<br />
movimento construtivista.<br />
Vemo-lo introduzir materiais modernos como o aço inox, o vidro e o plexiglass,<br />
abastecer-se na indústria local e ensinar os estudantes a usarem máquinas industriais<br />
para a execução dos seus trabalhos. Ele próprio fez muitas experiências combinando<br />
vários materiais entre si e com diversas fontes de luz. Construiu peças de<br />
escultura cinética com efeitos de projecção lumínica, movidas por motores como é<br />
o caso da Lichtmachine, de 1930 e mais tarde, Space Modulator de 1940.<br />
A sua influência estendeu-se a muitos alunos, entre eles, Max Bill, com uma extensa<br />
e importante obra de escultura. Este artista procurou conjugar a intuição artística<br />
com o conhecimento científico, dando formas concretas ao pensamento abstracto<br />
e considerando a geometria como o fundamento de todas as formas. A título de<br />
167
exemplo, citamos a peça Superfície contínua em espiral, em latão dourado, executada<br />
em 1973-74 que pretende representar um movimento contínuo e eterno, um perpetuum<br />
mobile.<br />
6 - New Bauhaus<br />
Com o encerramento da Bauhaus na Alemanha, Moholy-Nagy deslocou-se para<br />
Londres onde viveu e trabalhou até 1937, ano em que foi convidado pela Association<br />
of Arts and Design para criar uma New Bauhaus em Chicago, cargo que<br />
Moholy-Nagy aceitou. Entretanto, Walter Gropius, antigo director da Bauhaus,<br />
ensinava em Harvard. György Kepes, também de origem húngara, amigo e excolaborador<br />
de Moholy-Nagy é por este convidado a ensinar na New Bauhaus e<br />
depois na School of Design de Chicago. Posteriormente, ensinou no Massachusetts<br />
Institut of Technology a partir de 1946, onde criou em 1967 um Centro de Investigação<br />
internacionalmente conhecido, o Center for Advanced Visual Studies, onde<br />
tive a oportunidade de ser Research Fellow, na época em que era director o seu<br />
discípulo, Otto Piene.<br />
Estamos perante artistas europeus que fugiram ao regime nazi e que foram acolhidos<br />
nos Estados Unidos, onde continuaram a sua investigação. Aqui vemos traçada<br />
a principal linhagem de artistas que entenderam a aquisição tecnológica como um<br />
elemento integrante da cultura ocidental e da sua prática artística. Não é por acaso<br />
que György Kepes, depois de passar pelas escolas de Design de Chicago, funda o<br />
CAVS na mais importante universidade científica e tecnológica da América, no<br />
MIT, em Cambridge. Kepes procura cruzar os saberes artísticos e científicos que<br />
darão origem a uma nova consciência estética e ao uso de mais e melhores meios<br />
de fazer arte. Desta ideia de Kepes surgiu no MIT um outro centro de investigação,<br />
igualmente famoso: o Media Lab, actualmente dirigido por Negroponte. Aí se<br />
criou o sistema de controle aéreo de mísseis conhecido por “guerra das estrelas”,<br />
inventou-se o conceito e desenvolveu-se a tecnologia da realidade virtual, da inteligência<br />
artificial e as expressões mais sofisticadas da holografia, orientada por Steve<br />
Benton, cientista que é actualmente Director do CAVS.<br />
7 - Arte cinética e energética<br />
Como já dissemos, a expressão “arte cinética” é referida pela primeira vez pelos<br />
construtivistas, embora seja do domínio comum que a escultura em movimento<br />
está associada ao nome de Calder. A problemática do movimento foi dominante na<br />
168
obra deste autor, ao ponto de dividir os seus trabalhos em dois grupos: os stabiles e os<br />
mobiles. Quem inventou o nome para as esculturas móveis de Calder foi Duchamp<br />
em 1932, artista que também utilizou o movimento nas Placas Rotativas, discos com<br />
espirais desenhadas para estudo dos efeitos visuais produzidos pela rotação.<br />
Apesar das experiências precursoras de alguns artistas que cedo se aperceberam da<br />
potencialidade da arte cinética mas, só no pós-guerra, nos anos 50, é que uma nova<br />
geração começou a usar o movimento, não como elemento lúdico acrescido à escultura<br />
– tomando-a mais versátil e espectacular – mas como projecto estético ao<br />
qual a forma e os materiais eram sujeitos. As esculturas começaram por ser movidas<br />
por dispositivos mecânicos e mais tarde por elementos electrónicos.<br />
De entre o número de artistas que exploraram esta nova estética como por exemplo<br />
Tinguely e Agam ou Pol Bury eu gostaria de destacar Schöffer e Takis, por me<br />
parecerem os mais interessantes neste contexto.<br />
As esculturas cinéticas de Nicolas Schöffer começaram por ser desenvolvimentos<br />
das propostas do Construtivismo. Gradualmente este escultor evoluiu para peças<br />
cada vez mais complexas, quase sempre integrando efeitos luminosos, fazendo uma<br />
investigação autónoma e muito interessante. Muitas das suas criações eram estruturas<br />
metálicas de grande dimensão destinadas ao ar livre. Nomeadamente com a série<br />
Chronos, de 1974, as suas esculturas mecânicas, adquiriram efeitos multimédia, que<br />
só veríamos aparecer mais tarde em peças com programação electrónica.<br />
A obra mais importante do seu percurso foi a Cybernétic Light Tour, Torre Luminosa<br />
e Cibernética projectada para La Défense e depois para Nova Iorque, não tendo<br />
chegado a ser construída. Esta segunda proposta, que foi apresentada ao Mayor de<br />
Nova Iorque por Denise Renée em 1986, constava de uma estrutura em aço inox<br />
com de 370 m de altura, espelhos de aço inox polido, fontes luminosas e raios laser.<br />
Após o 11 de Setembro, este projecto foi de novo proposto pelo governo francês<br />
para o espaço que fora ocupado pelas torres gémeas.<br />
Vassilakis Takis foi o pioneiro da Escultura Energética (Energy Art), tendo também<br />
produzido arte cinética. Fez experiências com electromagnetismo, construindo<br />
obras nas quais a energia e a força de atracção eram o elemento dominante, integrando<br />
também o som produzido pela tensão. A estes trabalhos realizados com<br />
atracção magnética, Takis chamou telemagnetismo. As suas obras mais conhecidas<br />
foram as séries de Sinais, realizadas nos anos 50 e 60, composições de peças vibratórias,<br />
que foram consideradas o primeiro exemplo de combinação de escultura<br />
com música.<br />
169
Em Portugal, não houve muitas experiências neste campo, embora gostasse de lembrar<br />
as peças mecânicas de René Bertholo, a máquina de Bragança que esteve exposta<br />
na Alternativa Zero e os trabalhos posteriores de Carlos Barreira.<br />
8 - Fotografia e Cinema<br />
A fotografia começou por ser uma invenção tecnológica que se revelou uma descoberta<br />
fundamental para o registo de imagens. Este facto gerou um novo paradigma<br />
no campo das linguagens visuais influenciando as artes plásticas ao longo de<br />
todo o séc. XX até aos nossos dias.<br />
Como nova linguagem da visualidade, entrou imediatamente em conflito com o<br />
paradigma precedente que pertencia à pintura e artes afins. Nos seus primórdios,<br />
a fotografia foi influenciada pela estética pictórica mas, rapidamente, os fotógrafos<br />
começaram a desenvolver experiências que inverteram o sentido da influência entre<br />
estas duas expressões e determinaram o destino das artes plásticas.<br />
Estou a pensar em Eadweard Muybridge e Marey, engenheiros que, em finais do<br />
séc. XIX, fizeram estudos de movimento registados fotograficamente. Estas imagens<br />
que decompunham e analisavam o movimento – o galope do cavalo, a locomoção<br />
humana, a corrida do atleta, etc. – estiveram na origem do trabalho de vários artistas<br />
futuristas, dadaístas e cubistas. Um bom exemplo desta influência é a pintura de<br />
Marcel Duchamp, Nu descendo uma escada nº2, de 1912, onde o artista utiliza uma<br />
visão analítica do movimento que foi adquirida através da máquina fotográfica.<br />
É no início do séc. XX que este meio de comunicação visual adquire autonomia e<br />
estatuto artístico através da obra de alguns artistas. Refiro-me, nomeadamente, ao<br />
pintor dadaísta e surrealista Man Ray que se notabilizou pela inovação e pesquisa<br />
neste novo meio de expressão. No entanto, a fotografia como obra de arte levou<br />
algum tempo a afirmar-se. O primeiro museu com uma colecção de fotografia foi<br />
o Modern Art de Nova Iorque, nos anos 20. De modo geral, só no pós-guerra é que<br />
a fotografia começou a ser apreciada, adquirida e coleccionada.<br />
Hoje, a fotografia e o cinema são parte do nosso pensamento visual, como diria<br />
Arnheim. São meios de percepção que mudaram radicalmente a nossa realidade<br />
visual, modificando o modo como seleccionamos e organizamos os nossos arquivos<br />
de memória.<br />
Bergson, que conhecia Marey, afirmou que “o mecanismo do nosso conhecimento<br />
habitual é de natureza cinematográfica”. Nós temos consciência de que as linguagens<br />
do cinema e da fotografia vieram alterar os conceitos formais de enquadra-<br />
170
mento e composição. O artista plástico passou a ver o mundo como se o seu aparelho<br />
visual fosse a objectiva de uma máquina fotográfica ou de filmar. A narrativa<br />
cinematográfica também introduziu códigos de leitura e interpretação visual que<br />
invadiram a vida quotidiana.<br />
É interessante verificar como passámos a integrar com naturalidade as imagens<br />
verdes que nos chegaram da CNN, durante a primeira guerra do Golfo, e de como<br />
já nos habituámos às imagens fluidificadas transmitidas por videofone, durante a<br />
última guerra do Iraque.<br />
No campo do cinema, a participação mais importante dos artistas plásticos foi dentro<br />
do movimento Fluxos, com uma série de filmes minimalistas, de que citarei, entre<br />
os mais importantes, Zen for Film de Nam June Paik e Disappearing Music for Face<br />
de Peter More com Yoko Ono. Paralelamente, outros artistas como Rauchenberg<br />
e Andy Warhol também realizaram filmes. No entanto, a manipulação das imagens<br />
em movimento pelos artistas plásticos, só começou de facto com o advento do<br />
vídeo que introduziu uma tecnologia cinematográfica muito mais simples e económica.<br />
O primeiro vídeo de artista que vi em Portugal foi realizado por Ângelo de<br />
Sousa nos anos 70, filmando o percurso de um caminhante no campo.<br />
9 - Joseph Beuys e as novas propostas estéticas<br />
Beuys é uma personalidade carismática, um artista único e irrepetível que revolucionou<br />
a arte do pós-guerra, tal como Duchamp rompeu os paradigmas artísticos<br />
do início do século. Duchamp e Beuys são os dois grandes desconstrutores da arte<br />
tradicional, pondo em causa a arte ilusionista, como a define Rosalind Krauss, tendo<br />
ambos reivindicado para a arte a sua função de instrumento do conhecimento<br />
que constantemente se questiona.<br />
Como diz Eddy Devolder “para Beuys, a arte não é de modo algum uma ilustração<br />
ou a materialização de uma teoria; é uma metáfora no sentido poético e próprio<br />
do termo: um veículo, um meio de transporte público, um elemento dinâmico<br />
cujo objectivo é reunir e concentrar as diferentes energias que constituem o mundo<br />
orgânico.” Para surpresa de muitos, relacionava a arte com outros domínios do<br />
conhecimento e até com o xamanismo. Beuys trouxe para a arte atitudes, comportamentos<br />
e materiais que nunca tinham feito parte deste universo. Trabalhou e<br />
concebeu peças com gordura, feltro, sangue, terra, mel e mesmo animais mortos.<br />
Beuys desenvolveu a sua actividade sobretudo nas décadas de 60 e 70 trabalhando<br />
até à sua morte em 1986. Desenvolveu várias formas de expressão artística<br />
171
que fazem parte da linguagem contemporânea como a instalação e a performance.<br />
Quanto à escultura objectual, produziu mais de 600 múltiplos que para ele eram<br />
“veículos de informação”, ou seja, instrumentos vitais para a disseminação das suas<br />
ideias.<br />
O ensino também foi um dos meios usados por Beuys para intervir na sociedade.<br />
O seu método de ensino era pouco vulgar e assentava no princípio de que “toda a<br />
gente é artista”, o que lhe valeu ser despedido da Academia de<br />
Arte de Düsseldorf em 1972.<br />
Claudia Swager diz que “Beuys, como muitos de nós na sociedade moderna, procurou<br />
o equilíbrio entre polaridades opostas. Na sua obra entrecruzou disciplinas,<br />
colocando-se entre o passado e o futuro, entre a mitologia e a história, a natureza<br />
e a tecnologia. Usou o banal e o esotérico, o simples e o complexo, o racional e o<br />
caótico. Beuys tentou unir arte e vida, processo e produto, político e poético, pagão<br />
e religioso, material e espiritual.”<br />
O seu trabalho convidava os espectadores a agirem activamente na formação dos<br />
seus pensamentos e do ambiente que habitavam. “Pensar é esculpir”, dizia ele. Beuys<br />
acreditava no poder criativo e acreditava que as soluções para os problemas do<br />
mundo viriam da arte e da imaginação. Insistia que devíamos usar as nossas ideias<br />
e intuição (o potencial criativo de cada um) para construirmos uma vida melhor,<br />
tanto no plano individual como comunitário.<br />
10 - Light art, new media e artes digitais<br />
Na actual época de transformações e rupturas fundamentais, é sensato olharmos<br />
com demora o fenómeno de clivagem introduzido pela tecnologia para melhor<br />
compreendermos os movimentos culturais do nosso tempo. Trata-se de uma mutação<br />
que não afecta só o campo da economia, da política e das comunicações, interfere<br />
também de modo decisivo no universo da arte, dos seus meios de produção<br />
e divulgação.<br />
Em primeiro lugar, é necessário compreender que a tecnologia não é uma actividade<br />
humana independente da cultura. É uma produção simbólica, ligada ao desejo<br />
de progresso, que tem informado o pensamento ocidental desde há séculos. É uma<br />
ideologia que teve como consequência o extraordinário desenvolvimento tecnológico<br />
do séc. XX, apesar de o motor do progresso não serem as boas intenções, mas<br />
as necessidades militares criadas pelas duas guerras mundiais e pela guerra-fria. Não<br />
nos esqueçamos que a Internet nasceu de um projecto do Pentágono, invenção que<br />
172
alterou todo o sistema de comunicação humano, tornando-o multidireccional e<br />
interactivo numa escala global, facto inédito na história da humanidade.<br />
Se a Internet parece oferecer a todos uma informação democratizada e o livre<br />
acesso ao conhecimento, a realidade dos factos mostra-nos que, a globalização esconde<br />
um novo modelo de dominação exercido pelos países ricos e desenvolvidos<br />
do planeta sobre as sociedades mais pobres e tradicionais, impondo-lhes modelos<br />
de cultura totalmente alheios. De qualquer modo, estamos perante um movimento<br />
irreversível para o qual nos devemos preparar, reflectindo e agindo, como recomendava<br />
Beuys.<br />
Nas sociedades europeias, como a nossa, a globalização também se faz sentir de<br />
modo decisivo, alterando a cultura, o relacionamento entre as pessoas e a produção<br />
artística. Não é por acaso que as mais recentes Documentas de Kassel, na Alemanha,<br />
tiveram por temas a acção política – na penúltima – e o multiculturalismo – na<br />
última.<br />
A globalização subverteu os valores que nos enquadravam de um modo para o<br />
qual ainda não estamos preparados. Não houve uma inversão de polaridades mas<br />
um upgrade, a implantação de uma meta-realidade, provocando uma desorientação,<br />
como diria Virilio, que obriga à instauração de um novo sistema de coordenadas. As<br />
teorias do caos, a geometria das catástrofes, a filosofia da desconstrução, as estéticas<br />
da desaparição e do acidente, são as primeiras tentativas para o estabelecimento de<br />
um novo mapa do real.<br />
A escultura desmaterializou-se. Não foi por que a madeira, o ferro ou a pedra tivessem<br />
deixado de existir, mas porque o acto artístico mudou de escala e de universo,<br />
passou do real para o hiper-real ou virtual. O seu conhecimento e divulgação passam<br />
por imagens que circulam nas auto-estradas da informação.<br />
De facto, estamos a viver uma mudança de paradigma que pode ser expresso num<br />
pequeno diagrama onde se vê a dupla transformação.<br />
Matéria g Energia<br />
Espaço g Tempo<br />
A passagem do mais simples ao mais complexo, das três às quatro dimensões. Hoje<br />
podemos dizer que vivemos na dimensão espácio-temporal definida como um continuum<br />
por Einstein. Nesta nova visão do mundo, tudo se constrói e desconstrói no<br />
tempo, tudo é movimento. O espaço e o volume são o resultado da percepção dos<br />
nossos sentidos, que são limitados e incapazes de apreender a verdadeira natureza da<br />
matéria que, de facto, é uma complexa organização energética.<br />
173
No que diz respeito à arte, pode-se dizer que hoje, trabalha-se mais com as energias<br />
que com os materiais tradicionais. E de entre todas as formas de energia a mais subtil<br />
e desmaterializada é a luz, de que são exemplo duas obras percursoras: Window<br />
or Wall Sign, néon.1967 de Bruce Nauman e TVGarden, mixed media, 1974-78, de<br />
Nam June Paik.<br />
Esta tomada de consciência fez aparecer, a partir dos anos 50, um conjunto de<br />
manifestações artísticas que se designam, genericamente, por lightart. Não se trata<br />
da utilização da luz para produzir imagens, como já vimos, mas do emprego das<br />
próprias fontes luminosas como matéria artística em si. Um dos artistas mais importantes<br />
neste tipo de arte é Dan Flavin que trabalhou o espaço transformado pela<br />
luz, utilizando essencialmente lâmpadas fluorescentes.<br />
Nam June Paik dedicou-se a uma arte que integrava o elemento mecânico e robotizado,<br />
usando os aparelhos de televisão como elementos para a construção de um<br />
novo imaginário em composições irónicas e desconcertantes.<br />
A holografia é uma outra tecnologia da luz que tem vindo a fazer progressos consideráveis<br />
nas últimas décadas, interessando muitos artistas. As imagens holográficas<br />
são projecções tridimensionais construídas no espaço por raios laser luminosos.<br />
Esta e outras tecnologias de ponta só poderão ser desenvolvidas em programas que<br />
envolvam várias instituições e que potencializem a utilização e a rentabilidade de<br />
equipamentos dispendiosos. No plano do ensino, este é mais um dos desafios que<br />
exige reformas de fundo que só podem ser concretizadas pela interdisciplinaridade,<br />
pela mobilidade de professores e de alunos, pela abertura institucional a outros sectores<br />
da sociedade e a novas soluções.<br />
Passando das artes da luz às do tempo, verificamos que na actualidade, as manifestações<br />
artísticas que atingem milhões de pessoas em todo o mundo, são os<br />
espectáculos musicais, quase sempre multimédia, assistidos ao vivo por multidões<br />
e difundidos por televisão. As artes performativas e as linguagens do tempo, dominam<br />
o nosso universo cultural e invadem as artes do espaço com a emergência de<br />
eventos, happenings, performances, vídeo-instalações e vídeos, entre outras expressões<br />
contemporâneas.<br />
Todas estas linguagens são suportadas por sistemas informáticos, em particular as<br />
artes digitais da imagem, o vídeo e a fotografia, e toda a arte cibernética e computorizada,<br />
expressões que se tornaram acessíveis a partir da década de 80 com a<br />
disseminação dos PC’s. Como executantes internacionalmente reconhecidos destas<br />
formas de arte, posso citar Joan Jonas, Bill Viola, Eija-Liisa Ahtila, Mattew Barney<br />
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e Alan Sekula entre muitos outros artistas também interessantes. No campo da<br />
realidade virtual e da interactividade destaca-se o australiano Jeffrey Shaw, que foi<br />
director do Center for Art and Media do ZKM de Karlsrhue.<br />
No nosso país, grande parte destas aquisições tecnológicas só passou a ser utilizada<br />
pelos artistas, a partir dos anos 90. De qualquer modo, a rapidez com que estas<br />
tecnologias informáticas foram absorvidas é surpreendente. Novas gerações de criadores<br />
começaram a fazer um tipo de arte que integra os aspectos tecnológicos com<br />
uma perspectiva experimental e crítica. Desta nova geração poderei nomear, a título<br />
de exemplo, Alexandre Estrela, Rui Toscano, João Onofre, Filipa César, colectivo<br />
Virose, Rui Valério e António Caramelo, entre outros.<br />
Em Kassel, na 11ª Documenta, último evento desta série que, como os precedentes,<br />
foi determinante na avaliação das novas tendências da produção artística internacional,<br />
pude verificar a predominância deste tipo de arte experimental, tendo havido<br />
muito pouco espaço para as expressões tradicionais da pintura ou da escultura.<br />
Abril de 2006<br />
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