GÊNERO MULHERES E FEMINISMOS
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<strong>GÊNERO</strong>, <strong>MULHERES</strong> E <strong>FEMINISMOS</strong>
Universidade Federal da Bahia<br />
Reitora<br />
Dora Leal Rosa<br />
Vice-Reitor<br />
Luiz Rogério Bastos Leal<br />
NÚCLE<br />
DE ESTUDOS<br />
INTERDISCIPLINARES<br />
SOBRE A MULHER<br />
FFCH/UFBA<br />
Neim<br />
Diretora<br />
Márcia Macêdo<br />
Vice-Diretora<br />
Silvia Lúcia Ferreira<br />
Comissão Editorial<br />
Alda Britto da Motta<br />
Ana Alice Alcântara Costa<br />
Cecília M. B. Sardenberg<br />
Enilda R. do Nascimento<br />
Ivia Alves<br />
Silvia Lúcia Ferreira<br />
Coordenação Editorial Executiva<br />
Eulália Azevedo<br />
Ivia Alves<br />
Maria de Lourdes Schefler<br />
Silvia de Aquino<br />
Ângela Maria Freire de Lima e Souza<br />
Editora da Universidade Federal<br />
da Bahia<br />
Diretora<br />
Flávia Goullart Mota Garcia Rosa<br />
Conselho Editorial<br />
Angelo Szaniecki Perret Serpa<br />
Caiuby Alves da Costa<br />
Charbel Niño El Hani<br />
Cleise Furtado Mendes<br />
Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti<br />
Evelina Carvalho Sá Hoisel<br />
José Teixeira Cavalcante Filho<br />
Maria Vidal de Negreiros Camargo
Alinne Bonneti e Ângela Maria Freire de Lima e Souza (Org.)<br />
Gênero, mulheres<br />
e feminismos<br />
COLEÇÃOBahianas, 14<br />
Salvador | EDUFBA/NEIM | 2011
2011, Autores<br />
Direitos para esta edição cedidos à Edufba.<br />
Feito o Depósito Legal.<br />
Projeto gráfico, editoração eletrônica e capa<br />
Alana Gonçalves de Carvalho Martins<br />
Revisão e normalização<br />
Vanda Bastos<br />
Revisão de texto<br />
Ângela Maria Freire de Lima e Souza<br />
Ivia Alves<br />
Os conteúdos dos artigos são da inteira responsabilidade dos seus autores<br />
Sistema de Bibliotecas – UFBA<br />
Gênero, mulheres e feminismos / Alinne Bonneti e Ângela Maria Freire de<br />
Lima e Souza (org.). - Salvador : EDUFBA : NEIM, 2011.<br />
346 p. - (Coleção Bahianas ; 14)<br />
ISBN 978-85-232-0851-6<br />
1. Mulheres - Aspectos sociológicos. 2. Mulheres - Aspectos políticos.<br />
3. Feminismo. 4. Relações de gênero. 5. Representações sociais. I. Bonneti,<br />
Alinne. II. Lima e Souza, Ângela Maria Freire de.<br />
CDD - 305.42<br />
Editora filiada à<br />
Neim<br />
Rua Prof Aristides Nóvis<br />
197 - Federação<br />
40210-630 - Salvador - Bahia<br />
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edufba@ufba.br
SUMÁRIO<br />
7 apresentação<br />
Primeira parte G Pensando a teoria<br />
15 sobre gênero e ciência<br />
tensões, avanços, desafios<br />
Ângela Maria Freire de Lima e Souza<br />
29 feminismo e pós-modernidade<br />
como discutir essa relação?<br />
Márcia dos Santos Macêdo<br />
53 antropologia feminista<br />
o que é esta antropologia adjetivada?<br />
Alinne de Lima Bonetti<br />
Segunda parte G Tratando de interseccionalidades<br />
71 feminismo, gerontologia e mulheres idosas<br />
Alda Britto da Motta<br />
93 sexo, afeto e solteirice<br />
intersecções de gênero, raça e geração<br />
entre mulheres de classe média<br />
Márcia Tavares
115 resistência inventiva<br />
as mulheres fumageiras<br />
Elizabete Silva Rodrigues e Lina Maria Brandão de Aras<br />
141 a periferia, a casa e a rua<br />
limites difusos na cidade<br />
Iracema Brandão Guimarães<br />
Terceira parte G Da ação política<br />
165 feminismo verso “anti-feminismo”<br />
embates baianos<br />
Iole Macedo Vanin<br />
189 a política de cotas na américa latina<br />
as mulheres e os dilemas da democracia<br />
Ana Alice Alcantara Costa<br />
221 as cotas por sexo no legislativo na visão de<br />
parlamentares estaduais nordestinos<br />
(Mandatos 2003/2007 e 2007/2011)<br />
Sonia Wright<br />
243 movimentos feministas, aborto e laicidade<br />
o caso de Alagoinha como exemplar<br />
Carla Gisele Batista e Cecília M. B. Sardenberg<br />
261 direitos sexuais e direitos reprodutivos<br />
teoria e práxis de feministas acadêmicas<br />
Simone Andrade Teixeira e Silvia Lúcia Ferreira<br />
Quarta parte G Analisando representações<br />
293 representações de mulheres em sitcoms<br />
neoconservadorismo (Mulheres em Séries, 19)<br />
Ivia Alves<br />
319 mulheres<br />
o transe como devir<br />
Linda Rubim<br />
341 quem é quem
APRESENTAÇÃO<br />
Este número da Coleção Bahianas, a coletânea Gênero, Mulheres<br />
e Feminismos reúne textos que refletem não apenas a diversidade<br />
temática e metodológica que caracteriza os estudos<br />
feministas, como, também, as diferentes áreas de interesse das<br />
pesquisadoras que, juntas, oferecem um amplo espectro de temas<br />
que suscitam importantes discussões dentro do pensamento feminista<br />
contemporâneo. Assim, este livro traz artigos que são distribuídos<br />
em quatro grupos: o primeiro, Pensando a Teoria, traz<br />
artigos que apresentam reflexões sobre questões teóricas que permanecem<br />
norteando as discussões no meio acadêmico; o segundo,<br />
Tratando de Interseccionalidades, apresenta textos que colocam<br />
em destaque as interações de gênero com outras categorias como<br />
raça, classe e geração, no contexto da sociedade contemporânea;<br />
Da Ação Política, apresenta as conquistas e os desafios da luta feminista<br />
em diferentes arenas, como a questão das cotas no poder<br />
legislativo e a luta pela descriminalização do aborto; e, finalmente,<br />
no quarto grupo, Analisando Representações, são discutidas<br />
as representações de mulheres no cinema e na televisão e suas repercussões<br />
sociais.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 7
Compondo o bloco Pensando a Teoria, o artigo de Ângela<br />
Maria Freire de Lima e Souza “Sobre Gênero e Ciência: tensões,<br />
avanços, desafios” apresenta algumas reflexões sobre as relações<br />
conturbadas entre gênero e ciência constatando que, embora sejam<br />
inegáveis os avanços em termos estruturais e até simbólicos,<br />
ainda resta muito a fazer no campo epistemológico, vez que continuamos<br />
trabalhando com as mesmas categorias que caracterizam<br />
o viés androcêntrico próprio da Ciência Moderna. Continuando<br />
a discussão teórica, Márcia Macêdo, em seu artigo “Feminismo e<br />
Pós-modernidade: como discutir essa relação?” traz uma oportuna<br />
abordagem sobre o diálogo entre o feminismo e as chamadas<br />
teorias pós-modernas, analisando questões centrais da discussão<br />
e, ao mesmo tempo, destacando limites e possibilidades deste diálogo,<br />
segundo a autora, “sem cair em posições maniqueístas em<br />
torno, exclusivamente, dos ‘pecados’ ou das ‘virtudes’ dessa complexa<br />
relação”. Finalmente, Alinne Bonetti no seu texto intitulado<br />
“Antropologia Feminista: o que é esta antropologia adjetivada?”<br />
analisa a relação entre Antropologia e Feminismo, buscando<br />
identificar o que especifica a produção de conhecimento na intersecção<br />
entre os dois campos teóricos, quais as suas características<br />
teórico-metodológicas e, sobretudo, quais as implicações, contribuições<br />
e limites do seu caráter engajado no Brasil.<br />
Iniciando a secção Tratando de Interseccionalidades, Alda<br />
Britto da Motta, no artigo “Feminismo, Gerontologia e Mulheres<br />
Idosas”, analisa as grandes transformações na estrutura das famílias<br />
associadas a mudanças importantes no âmbito das relações<br />
de gênero, frente inclusive ao processo de longevidade crescente;<br />
neste contexto, as famílias, em suas novas configurações, vão vivenciando<br />
conflitos claros ou disfarçados e renúncias ambíguas,<br />
envolvendo as mulheres em um reforço dos papéis tradicionais<br />
de gênero. Em seguida, Márcia Tavares, em “Sexo, Afeto e Solteirice:<br />
intersecções de gênero, raça e geração entre mulheres de<br />
8<br />
Gênero, mulheres e feminismos
classe média”, destaca como as molduras de sociabilidade, sob a<br />
influência de marcadores sociais da diferença como gênero, raça<br />
e geração a que pertencem, contribuem para definir as trajetórias<br />
e escolhas no campo afetivo-sexual a partir dos relatos de duas<br />
mulheres sobre suas vivências no campo da sexualidade. Elizabete<br />
Silva Rodrigues e Lina Maria Brandão de Aras trazem, na sequência,<br />
o artigo “Resistência Inventiva: as mulheres fumageiras”,<br />
no qual analisam como se caracterizavam e se organizavam as<br />
relações sociais patriarcais no âmbito da indústria fumageira do<br />
Recôncavo Baiano; as autoras centram sua análise nas mulheres<br />
trabalhadoras, em um ambiente caracterizado pela opressão e pela<br />
exploração, à medida que lutavam pela sobrevivência, equilibrando<br />
a construção das duas identidades – mulher e trabalhadora.<br />
O artigo de Iracema Brandão Guimarães intitulado “A Periferia, a<br />
Casa e a Rua: limites difusos na cidade” encerra este bloco; nele, a<br />
autora analisa o impacto das transformações do mundo do trabalho<br />
ocorridas, a partir da década de 1980, nas relações familiares<br />
e de gênero entre as camadas urbanas de baixa renda. Para tanto,<br />
a autora se propõe a uma releitura das análises clássicas sobre o<br />
tema a partir da experiência de pesquisa entre moradores(as) das<br />
periferias de Salvador.<br />
A secção Da Ação Política é iniciada pelo artigo de Iole Vanin,<br />
“Feminismo versus ‘Anti-Feminismo’: embates baianos”, em que<br />
a autora apresenta e analisa, em uma perspectiva histórica, as lutas<br />
entre ideias consideradas “feministas”, cujos discursos, bem<br />
como práticas, já estavam presentes na Bahia no período compreendido<br />
entre as décadas iniciais do século XX, e o antifeminismo;<br />
a partir de casos históricos bem documentados, descortina-se um<br />
interessante painel sobre os primórdios dos embates entre as duas<br />
correntes na sociedade brasileira. Em seu artigo “A Política de Cotas<br />
na América Latina: as mulheres e os dilemas da democracia”,<br />
Ana Alice Alcântara Costa analisa, em uma perspectiva histórica<br />
Gênero, mulheres e feminismos 9
e política, disparidades entre o uso deste sistema em diferentes<br />
países da América Latina, a exemplo de Brasil, Costa Rica e Argentina<br />
cujos resultados são diametralmente opostos, isto é, o Brasil,<br />
país em que o sistema de cotas tem se mostrado um completo fracasso<br />
e as experiências na Argentina e Costa Rica que, ao contrário,<br />
têm propiciado uma ampliação significativa da participação<br />
feminina. Ainda dentro do tema, Sonia Wright traz o artigo “As<br />
Cotas por Sexo no Legislativo na Visão de Parlamentares Estaduais<br />
Nordestinos (mandatos 2003/2007 e 2007/2011)” com o intuito<br />
de fundamentar, através de evidências empíricas, os entraves à<br />
implementação da política de cotas e, utilizando dados da pesquisa<br />
“A Questão da Mulher na Visão Parlamentar no Nordeste do<br />
Brasil”, realizada pela Rede Mulher & Democracia (M&D), apresenta<br />
seu estudo enfocando a opinião de parlamentares estaduais<br />
nordestinas(os), nas legislaturas de 2003/2007 e 2007/2011, sobre<br />
as cotas por sexo para o Legislativo. Carla Gisele Batista e Cecília<br />
Maria Bacellar Sardenberg contribuem com o texto “Movimentos<br />
Feministas, Aborto e Laicidade: o caso de Alagoinha como exemplar”<br />
no qual buscam fazer uma reflexão inicial sobre a forma<br />
como as atuações em defesa da legalização do aborto aproximam<br />
esses movimentos do debate sobre a laicidade do Estado, a partir<br />
de observações feitas na militância junto ao movimento de mulheres<br />
e feministas, na Bahia e em Pernambuco. Encerrando este<br />
bloco, o texto de Simone Andrade Teixeira e Silvia Lúcia Ferreira,<br />
intitulado “Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos: teoria e<br />
práxis de feministas acadêmicas”, demonstra que o movimento<br />
feminista está diretamente associado às conquistas das mulheres<br />
quanto ao direito à saúde integral e que conferiu visibilidade<br />
a temas como sexualidade, orientação sexual, aborto, violência,<br />
saúde materna, contracepção e morte materna, dentre outros. As<br />
autoras afirmam, ainda, que o movimento contribuiu para que<br />
essas questões passassem a ser abordadas como integrantes dos<br />
10<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Direitos Humanos (DH) e adquirissem o status de Direitos Sexuais<br />
(DS) e de Direitos Reprodutivos (DR).<br />
Encerrando a Coletânea, o bloco Analisando Representações<br />
traz textos de Ivia Alves e Linda Rubim; a primeira, com o artigo<br />
“Representações de Mulheres em Sitcoms: neoconservadorismo<br />
(mulheres em séries, 19)”, analisa o fato de que as séries televisivas<br />
apresentam aspectos altamente conservadores ao reforçar o<br />
discurso dominante tradicional de que as mulheres que têm sucesso<br />
profissional não dão atenção à família (sequer têm possibilidade<br />
de encontrar o parceiro afetivo), reimprimindo a construção<br />
dicotômica da modernidade: ou a família ou sucesso profissional.<br />
A segunda, no artigo “Mulheres: o transe como devir”, traz de<br />
volta Glauber Rocha que, segundo a autora, é sempre novo e oportuno<br />
quando se quer pensar o Brasil. No texto, a autora propõe a<br />
análise de mulheres brasileiras a partir de duas personagens do<br />
filme Terra em Transe: Sara e Silvia, o duplo de representação feminina,<br />
parceiras e interlocutoras do poeta Paulo Martins no seu<br />
doloroso conflito entre a poesia e a política. O artigo lança um<br />
olhar retrospectivo para os anos sessenta, quando o mundo vivia<br />
os “transes” que, em boa parte, resultaram na configuração das<br />
nossas sociedades atuais.<br />
A Coletânea que ora se apresenta traz reflexões teóricas e a produção<br />
de conhecimento de pesquisadoras afinadas com as grandes<br />
questões que se impõem no pensamento feminista no Brasil. Este<br />
livro revela, de modo inequívoco, a concretização da superação da<br />
dicotomia movimento feminista e feminismo acadêmico, vez que<br />
reflete a atuação do próprio Núcleo de Estudos Interdisciplinares<br />
sobre a Mulher – NEIM/UFBA, cujas integrantes vêm construindo<br />
conhecimento tendo como referencial as demandas das mulheres<br />
nos diversos estratos da sociedade.<br />
Alinne de Lima Bonetti e Ângela Maria Freire de Lima e Souza<br />
Gênero, mulheres e feminismos 11
Primeira parte<br />
G<br />
Pensando a teoria
SOBRE <strong>GÊNERO</strong> E CIÊNCIA<br />
tensões, avanços, desafios<br />
Ângela Maria Freire de Lima e Souza<br />
Cientistas não são destacados observadores da natureza<br />
e os fatos que eles descobrem não são simplesmente<br />
inerentes ao fenômeno observado. Cientistas constroem<br />
fatos decidindo constantemente sobre o que consideram<br />
significante, que experimentos devem realizar e como<br />
vão descrever suas observações. Essas escolhas não são<br />
meramente individuais ou idiossincráticas, mas refletem<br />
a sociedade em que o cientista vive e trabalha.<br />
(HUBBARD; WALD, 1999)<br />
A reflexão acima decorre de uma longa e profícua caminhada<br />
nos campos da Filosofia e da História da Ciência realizada por<br />
homens e mulheres que questionaram a própria concepção de ciência<br />
e os modos de produção do conhecimento científico dentre<br />
os quais destacamos as pensadoras feministas cujo trabalho vem<br />
nos inspirando. Sandra Harding (2004, 2007, 2008), Evelyn Fox<br />
Keller (1991, 1996, 1998), Nancy Hartsock (2003), Donna Haraway<br />
(2003), entre outras, nos fizeram repensar nossas práticas e
objetivos, além de nos permitirem avançar no enfrentamento dos<br />
muitos obstáculos que encontramos ao longo de nossa carreira<br />
acadêmica. Como ressaltam Ruth Hubbard e Elijah Wald (1999), é<br />
fato incontestável que o meio acadêmico reflete e reproduz, dentre<br />
outros aspectos sociais, os estereótipos de gênero, especialmente<br />
no campo cognitivo, o que nos obriga a enfrentar preconceitos<br />
quanto às nossas escolhas, nossos procedimentos investigativos e,<br />
até mesmo, quanto aos resultados que divulgamos.<br />
Os termos “gênero” e “ciência” apareceram associados pela<br />
primeira vez, em 1978, em um artigo publicado por Keller (1998)<br />
no qual a autora externava a sua preocupação com o fato de que a<br />
associação entre a objetividade e o masculino e, consequentemente,<br />
entre masculino e científico, nunca fora questionada, sequer<br />
levada a sério no meio acadêmico. No Brasil, estudos associando<br />
os dois termos se avolumaram nos últimos anos, distribuindo-se<br />
em diferentes perspectivas, mas, de um modo geral, e de acordo<br />
com o que acontece em outros meios acadêmicos no mundo,<br />
enquadrando-se em três grandes abordagens, segundo a nossa<br />
percepção: (1) a estrutural, que analisa a presença, a colocação e a<br />
visibilidade das mulheres nas instituições científicas; (2) a epistemológica,<br />
que questiona os modos de produção do conhecimento<br />
a partir de uma crítica aos princípios norteadores do pensamento<br />
científico hegemônico; e (3) a análise dos discursos e das representações<br />
sobre mulheres na ciência, identificando metáforas de<br />
gênero como as que associam a mulher à Natureza e o homem à<br />
Razão, com repercussões importantes nos conteúdos de diversas<br />
disciplinas.<br />
Nesse contexto, cientistas brasileiras e latino-americanas têm<br />
produzido seus estudos, marcados substancialmente pelo pensamento<br />
de feministas de língua inglesa. Em um espectro que<br />
compreende desde um disfarçado neoempiricismo até o mais<br />
transgressor pensamento pós-moderno, as mulheres que produ-<br />
16<br />
Gênero, mulheres e feminismos
zem conhecimento na área de Gênero e Ciências no nosso continente<br />
continuam tentando representar suas muito diferentes<br />
vozes, embora tenhamos ainda que concordar com Margareth<br />
Rago (1998) que afirma que, ao menos no Brasil, não se constitui<br />
uma teoria do conhecimento de cunho feminista, vez que a questão<br />
é pouco debatida e, quando existe o debate, ele reflete apenas<br />
a tradução do que se discute no hemisfério norte.<br />
Cecília Sardenberg (2002) destaca um problema que antecede<br />
essa questão e que ainda precisa ser superado, que diz respeito<br />
ao fato de que os estudos de gênero em nosso meio são, marcadamente,<br />
estudos feministas e isto aparece para os mais conservadores<br />
como um caso de tese e antítese: como, considerando a<br />
neutralidade científica, podem cientistas se comprometer politicamente<br />
com uma tendência ou um movimento social? Assim,<br />
caracterizar uma ciência feminista seria uma impropriedade.<br />
Se, no campo dos Estudos Feministas, estamos, pelo menos<br />
no Brasil, ainda em uma luta significativa pelo reconhecimento<br />
da legitimidade no próprio ambiente de trabalho e, de forma mais<br />
aguda, nos organismos de fomento à investigação científica e tecnológica,<br />
é no campo das Ciências Naturais e, até mesmo, em alguns<br />
segmentos das Ciências Humanas que a luta parece ser mais<br />
dura. As dificuldades que enfrentamos também se refletem nas<br />
publicações especializadas em divulgação científica, o que exerce<br />
importante impacto, ainda não devidamente avaliado, nas representações<br />
sociais sobre Ciência e sobre mulheres cientistas.<br />
Um exemplo bastante ilustrativo pode ser dado por uma simples<br />
fotografia. 1 Datada de 1948, nela aparecem os grandes nomes<br />
da Genética no Brasil, por assim dizer, os “pais fundadores...”,<br />
mas, ocorre que, na fotografia, cuja legenda começa dizendo que<br />
ali estão os pesquisadores do Departamento de Biologia da USP,<br />
1 SALZANO, Francisco; KLUGER, Henrique. Antonio Rodrigo Cordeiro – o caçador de drosófilas.<br />
Ciência Hoje, v. 45, n. 269, abr. 2010, p. 66.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 17
em 1948, estão dez mulheres e dez homens e apenas os nomes<br />
deles estão cuidadosamente registrados; as mulheres ali presentes<br />
estão completamente invisibilizadas. Não sabemos seus nomes,<br />
seus trabalhos, suas lutas...<br />
Impressiona o fato de que o autor (ou autora) da legenda<br />
parece não enxergar as mulheres: vai citando os homens e suas<br />
posições na fotografia, excluindo as posições ocupadas pelas mulheres,<br />
como se ali não houvesse ninguém. A busca cuidadosa no<br />
texto das referências sobre as cientistas pesquisadoras foi inútil.<br />
As únicas mulheres que mereceram ter seus nomes citados na revista<br />
foram as esposas dos grandes cientistas que aparecem em<br />
outra foto e que parecem estar ali apenas por serem as esposas...<br />
assim, justamente nos espaços dos quais as mulheres são excluídas<br />
é que se revela a sua presença, simbolicamente, nos lugares e<br />
níveis em que foram discriminadas. Como afirma Gabriela Castellanos<br />
(1996), o gênero é mais pertinente exatamente onde parece<br />
menos relevante.<br />
O fato de uma importante revista de divulgação científica ligada<br />
à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) parecer<br />
não se dar conta da absurda falta de informação e do evidente<br />
viés preconceituoso da publicação (as mulheres seriam apenas<br />
coadjuvantes, no máximo, não merecendo ter seus nomes colocados<br />
entre os fundadores) pode nos dizer muito sobre o modo<br />
como as mulheres são vistas (ou não vistas) no meio acadêmico,<br />
ainda nos dias de hoje. Destaque-se que o que estamos criticando<br />
não ocorreu em 1948, mas em 2010.<br />
A partir dessas considerações iniciais, é interessante destacar<br />
aqui alguns aspectos epistemológicos que guardam relação com as<br />
reflexões anteriores: em primeiro lugar, apontamos para a questão<br />
sobre o sujeito do conhecimento: seria o seu sexo epistemologicamente<br />
significativo?<br />
18<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Neste sentido, Diana Maffía destaca que, para o pensamento<br />
hegemônico, no meio científico,<br />
[...] a identidade do sujeito da ciência, como o do conhecimento,<br />
é irrelevante para a prática da investigação. Por certo não possui<br />
sexo, mas tampouco gênio, inspiração, excentricidades, preferências,<br />
cegueiras, privilégios de classe, raça ou etnia. (MAFFÍA,<br />
2001, p. 332)<br />
A autora critica, então, essa visão sobre a produção do conhecimento,<br />
destacando a distância entre o projeto idealizado e reificado<br />
do pensamento científico e a construção real e cotidiana<br />
do conhecimento. Refletindo sobre essa questão, Marta González<br />
García e Eulália Sedeño (2002) afirmam:<br />
Frente a la epistemología tradicional, donde el sujeto es una<br />
abstracción con facultades universales e incontaminadas de<br />
razonamiento y sensación, desde el feminismo se defiende que<br />
el sujeto del conocimiento es un individuo histórico particular<br />
cuyo cuerpo, intereses, emociones y razón están constituidos<br />
por su contexto histórico concreto, y son especialmente relevantes<br />
para la epistemología.<br />
Nessa perspectiva e reafirmando as mulheres como sujeitos<br />
cognoscentes, perguntamos: Temos autoridade epistêmica? As<br />
mulheres, como cientistas engajadas em projetos de Ciência &<br />
Tecnologia (C&T), escolhem seus objetos de estudo ou se enquadram<br />
em projetos já existentes, capitaneados por cientistas do<br />
mainstream? Quando escolhem, são escutadas pelos seus pares e<br />
têm reconhecidas suas conclusões como cientificamente válidas?<br />
Ainda outras questões: Haveria um estilo cognitivo feminino?<br />
Produzimos conhecimento de forma diferente? Agora, estamos<br />
nos referindo a práticas científicas, desde as perguntas que escolhemos<br />
fazer, passando pelo campo epistemológico em que nos<br />
situamos, pela metodologia escolhida, as estratégias de obtenção<br />
de informações e os usos que delas fazemos.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 19
A partir do ponto de vista de uma pesquisadora feminista que<br />
atuou durante grande parte da vida acadêmica no campo da Biologia,<br />
essas perguntas se revestem de grande significado e merecem<br />
muita reflexão. Considerando a importância da Biologia na contemporaneidade<br />
e partindo da crítica feminista à Ciência Moderna<br />
como um todo, podemos afirmar que biólogos e biólogas continuam<br />
aprendendo, na escola e nos laboratórios em que realizam seus<br />
estágios, que é absolutamente necessário o distanciamento entre<br />
o sujeito e o objeto da pesquisa, que a subjetividade, que pode ser<br />
traduzida em afeição ou encantamento com o objeto, pode “mascarar”<br />
os resultados ou permitir a manipulação dos dados.<br />
Muitos estudos em Biologia são realizados em condições que<br />
apenas se aproximam das condições reais, muitas vezes isolando o<br />
objeto de suas complexas interações no contexto. Um bom exemplo<br />
é a inserção de organismos transgênicos nos ecossistemas,<br />
uma prática, no mínimo, irresponsável, uma vez que são imprevisíveis<br />
as consequências globais, em médio e longo prazos. Como<br />
afirmam Hubbard e Wald (1999, p. 19), este tipo de manipulação<br />
não permite prever como os genes se comportarão em um novo<br />
contexto e a longa história de erros de previsão ou de negligência<br />
em experimentos neste nível é sempre ignorada. É frequente<br />
o argumento de que as novas biotecnologias não são um mal em<br />
si. O argumento mais comum diz que é preciso apenas usar os recursos<br />
biotecnológicos com ética e responsabilidade, o que nos<br />
parece uma forma de não assumir responsabilidades.<br />
Essas reflexões podem ser usadas para apresentar o argumento<br />
de que, na verdade, pelo menos dentro do campo científico com o<br />
qual estamos mais familiarizadas, deslocamentos epistemológicos<br />
significativos, verdadeiramente, não ocorreram. É verdade que,<br />
ao longo do final do século passado e início deste novo milênio,<br />
novos discursos acerca do conhecimento humano sobre C&T foram<br />
por nós incorporados; por exemplo, está claro que a Ciência<br />
20<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Moderna não dá conta da explicação sobre a ordem do mundo<br />
natural ou social. Nesse contexto, as mulheres e outros grupos<br />
subordinados também perceberam a incorporação e a legitimação<br />
de alguns de seus saberes, apesar da longa história de desqualificação<br />
destes mesmos saberes, tomados antes como míticos ou<br />
primitivos.<br />
Mas, de fato, utilizando os instrumentos de análise sugeridos<br />
por Londa Schiebinger (2001) quais sejam, análise de prioridades<br />
e resultados − como são feitas as escolhas de temas de estudo e<br />
para quem são destinados os resultados de um trabalho científico;<br />
análise de arranjos institucionais − observação da ocupação das<br />
mulheres em instituições de prestígio, articulando-se a análise ao<br />
contexto social da época em estudo; decodificação da linguagem<br />
e representação iconográfica − atenção para a retórica de textos e<br />
imagens científicas; análise de definições de Ciência − o que conta<br />
como ciência e de que modo as mulheres são inseridas nessas<br />
questões −, pode-se ter uma percepção muito clara sobre a presença<br />
feminina no campo da Ciência & Tecnologia.<br />
Senão, vejamos: quanto à análise de prioridades e resultados,<br />
em que situação pode-se hoje dizer que as pesquisas no campo<br />
das novas tecnologias reprodutivas, por exemplo, refletem os interesses<br />
das mulheres? Em que medida questões que tratam diretamente<br />
do que consideramos prioridade em pesquisas na área de<br />
saúde são tratadas de acordo com o nosso ponto de vista?<br />
Questões sobre hereditariedade e reprodução, diagnóstico genético<br />
pré-natal, medicina fetal, contracepção e novas tecnologias<br />
reprodutivas conceptivas são fundamentais do ponto de vista das<br />
mulheres e, sob a perspectiva de gênero, se revestem de grande<br />
importância, uma vez que a mulher constitui o alvo preferencial<br />
de pesquisas na área, especialmente em países em desenvolvimento:<br />
sobre seus corpos é que terão efeito as novas tecnologias,<br />
sendo, assim, imperativo que elas se tornem sujeitos deste pro-<br />
Gênero, mulheres e feminismos 21
cesso, como cidadãs ou como cientistas responsáveis pela destinação<br />
dos novos saberes, atentas a questões éticas que se tornam a<br />
mais importante exigência atual no campo das Ciências da Vida.<br />
Recentemente, na Revista Science, 2 um artigo denunciou o<br />
fato de que estudos sobre novos medicamentos utilizam cobaias<br />
do sexo masculino, porque são mais baratas e não passam por ciclos<br />
hormonais, o que frequentemente leva a certas dificuldades<br />
de interpretação que interferem nos resultados das pesquisas...<br />
A consequência mais óbvia é que as novas drogas, que são testadas<br />
em mamíferos machos, depois são prescritas indiscriminadamente<br />
para homens e mulheres.<br />
Quanto à análise dos arranjos institucionais: é certo que realizamos<br />
nossos estudos no meio acadêmico e em outras instituições<br />
científicas, estando presentes, de modo marcante, em certas<br />
áreas do conhecimento, mas, praticamente ausentes em outras;<br />
somos numerosas nas Ciências Biológicas, por exemplo, mas estamos<br />
longe de ver esse grande contingente de mulheres cientistas<br />
que trabalham nas bancadas dos laboratórios devidamente representado<br />
nas instâncias de poder, no meio científico; é comum, por<br />
exemplo, mulheres pós-doutoras integrarem equipes de cientistas<br />
homens que nem estão produzindo tanto, mas têm o capital<br />
simbólico de um nome respeitado no meio.<br />
Em artigo publicado em 2008, Lourdes Bandeira discute a crítica<br />
feminista à Ciência e apresenta dados muito interessantes,<br />
citando uma pesquisa anterior. Ela destaca que havia, em 2004,<br />
41.168 homens e 36.080 mulheres engajados(as) em pesquisa, o<br />
que significa 47% de participação feminina. Entretanto, entre<br />
líderes e não-líderes, esse percentual se modifica: a liderança<br />
feminina na pesquisa representa 42% do total; entre não-líderes,<br />
a participação feminina quase se iguala à masculina, com 49%;<br />
2 WALD, Chelsea; WU, Corinna. Of mice and women: the bias in animal models. Science, v. 327,<br />
n. 5.973, p. 1571-2, 26 March 2010.<br />
22<br />
Gênero, mulheres e feminismos
e entre pesquisadores doutores, a participação das mulheres também<br />
é de 42%.<br />
Um exemplo da sub-representação feminina em questões relevantes<br />
do meio acadêmico e científico é relatado pela autora e diz<br />
respeito à proposta de Reestruturação e Expansão das Universidades<br />
Federais – Projeto Reuni. Esse projeto tinha um Grupo Assessor<br />
responsável pela elaboração da proposta composto por treze<br />
homens, notáveis cientistas e pesquisadores, a maioria oriunda da<br />
área das Ciências Exatas, com destaque para a Física, e nenhuma<br />
mulher, apesar da imensa maioria de professoras mulheres doutoras<br />
com reconhecido saber acadêmico. Já a Assessoria Técnica,<br />
de segunda ordem de importância, era composta por cinco membros<br />
dos quais três mulheres.<br />
Quanto à decodificação da linguagem e representação iconográfica,<br />
são muitas as referências sobre a permanência de preconceitos<br />
que vão desde uma suposta inadequação cognitiva das<br />
mulheres para as falaciosas objetividade e neutralidade científicas<br />
até a impossibilidade de conciliar as “sagradas” tarefas de<br />
maternar e cuidar com as demandas rigorosas do fazer científico:<br />
tudo mal disfarçado no discurso e até em brincadeiras e piadas no<br />
cotidiano.<br />
Um aspecto fundamental no meio científico e especialmente<br />
relevante na Biologia é o que Eulália Pérez Sedeño (2001) chama de<br />
“retórica da ciência”. Para a autora, essa retórica tem sido muito<br />
eficiente em convencer a todos que as características socioculturais<br />
são “naturais”, determinadas biologicamente, a ponto de<br />
definir os papéis que mulheres e homens desempenham na sociedade.<br />
Refere-se especialmente às diferenças entre os sexos, lançando<br />
mão da “cientificidade” conferida pela aplicação do, assim<br />
chamado, “método científico”, assentado sobre a pretensa racionalidade,<br />
além da objetividade e da neutralidade da ciência.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 23
Os exemplos são abundantes e se distribuem em diferentes<br />
áreas do conhecimento biológico, desde o campo da genética<br />
e evolução até a neurociência, passando pela endocrinologia<br />
e medicina. Assim, enquanto avança o conhecimento científico,<br />
estranhamente se reinventam as explicações biológicas sobre as<br />
diferenças entre mulheres e homens, conferindo valor diferenciado<br />
às características ditas masculinas e femininas, sempre hierarquizando<br />
essas diferenças com prejuízo das mulheres.<br />
Finalmente, quanto à análise das definições de Ciência, temos<br />
que nos manter atentas a um discurso cada vez mais conservador<br />
sobre a natureza da Ciência e sobre o que realmente conta como<br />
objeto de pesquisa e como procedimentos e técnicas considerados<br />
válidos, segundo o que se considera rigor científico. É preciso deixar<br />
claro que a nossa produção científica, declaradamente comprometida<br />
social e politicamente, é também “boa ciência”, sem<br />
que tenhamos que necessariamente repetir os famosos protocolos<br />
experimentais ou as fórmulas e receitas sobre métodos e técnicas<br />
consagradas que continuam a preconizar os princípios da Ciência<br />
Moderna. Essas breves considerações nos levam a uma constatação:<br />
são relevantes os desafios que temos à nossa frente.<br />
Duas questões se destacam e parecem se agigantar, à medida<br />
que avançamos na discussão da inserção de gênero no meio acadêmico.<br />
A primeira diz respeito à transversalidade de gênero nos<br />
diversos campos de conhecimento.<br />
A criação de grupos de estudos e núcleos de pesquisa sobre<br />
gênero e Ciência, embora tenha produzido muito conhecimento<br />
e agregado muitas(os) pesquisadoras(es) e estudantes, não tem<br />
se revelado eficiente na inserção de gênero como categoria de<br />
análise em estudos de diferentes áreas, como Ciências Biológicas<br />
e Educação. Como pesquisadoras feministas, enfrentamos uma<br />
dificuldade marcante de manter o diálogo acadêmico com outras<br />
áreas, mesmo quando as questões de gênero são imprescindíveis<br />
24<br />
Gênero, mulheres e feminismos
para a compreensão ampla da questão em estudo. Em artigo que<br />
analisava a presença dessa categoria de análise na área de Ensino<br />
de Ciências (LIMA E SOUZA, 2008), constatamos o fato de que os<br />
estudos veiculados em periódicos dedicados ao tema altamente<br />
conceituados e recomendados pelos pesquisadores de diferentes<br />
programas de Pós-graduação na área 3 ignoram completamente as<br />
questões de gênero e suas possíveis articulações com a prática de<br />
docentes de Ciências em sala de aula, assim como não incorporam<br />
as discussões levantadas pelos estudos feministas no campo<br />
da epistemologia.<br />
A segunda questão aponta para a discussão sobre políticas<br />
científicas e relações de gênero, tendo como foco o modo como os<br />
Estudos de Gênero são percebidos por agências de fomento à pesquisa,<br />
no contexto de um debate mais geral sobre políticas afirmativas<br />
de gênero e meritocracia no campo científico.<br />
Em estudo recente, discutimos a pertinência da criação de um<br />
comitê de assessoramento multidisciplinar específico para os estudos<br />
de gênero nos organismos de fomento à pesquisa − Capes,<br />
CNPq, FINEP, entre outros. (YANNOULAS; LIMA E SOUZA, 2010)<br />
Ainda em meio à análise dos dados da pesquisa, cuja coleta se deu<br />
durante o VIII Congresso Ibero-americano de Ciência, Tecnologia<br />
e Gênero − organizado pela Universidade Tecnológica Federal<br />
do Paraná (UTFPR), e realizado em Curitiba, em abril de 2010 −,<br />
pudemos constatar depoimentos de muitas pesquisadoras que<br />
admitem dificuldades em terem os seus projetos aprovados, atribuindo<br />
essas dificuldades a diferentes fatores: algumas alegam<br />
que as instituições não contam com avaliadores formados em gênero;<br />
também reconhecem que não existem protocolos de avaliação<br />
que incluam a perspectiva de gênero; muitas pesquisadoras<br />
entrevistadas se referem ao simples preconceito ainda vigente no<br />
3 Investigações em Ensino de Ciências (140 artigos) e Ciência & Educação (216 artigos), entre 1998<br />
e 2007, não apresentam nenhum artigo na perspectiva de gênero.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 25
meio acadêmico em relação aos estudos de gênero; sendo também<br />
considerado o fato de que, como se trata de uma área multidisciplinar<br />
e transversal, os estudos de gênero acabam ficando “sem<br />
lugar” no modelo tradicional de comitês disciplinares.<br />
Nesse sentido, as entrevistadas alegam a ausência de pesquisadores/<br />
avaliadores/pareceristas com visão multi/interdisciplinar<br />
em que a maioria dos projetos de pesquisa na área de gênero se enquadram.<br />
Apesar da pertinência dessas considerações, a discussão<br />
sobre a criação de comitês específicos para a área deve continuar<br />
porque há uma argumentação contrária baseada na transversalidade,<br />
segundo a qual a presença de avaliadores sensíveis à problemática<br />
nos comitês das diferentes áreas seria mais apropriado.<br />
Finalmente, é interessante demarcar que a grande dificuldade<br />
para as mulheres cientistas não se traduz, apenas, nos problemas<br />
aqui levantados, nem em discriminação explícita, perseguição<br />
machista, brincadeiras ou comentários de conotação sexista.<br />
O grande desafio é a própria estrutura do campo da pesquisa científica,<br />
concebido e construído para os homens, cujas atribuições<br />
são totalmente voltadas para o mundo do trabalho, enquanto nós<br />
mulheres seguimos com todos os encargos da vida familiar, apesar<br />
de estarmos situadas, como os homens, no campo da produção do<br />
conhecimento, vez que somos dotadas de todas as habilidades necessárias<br />
ao exercício da investigação científica. Seguir nesta luta<br />
constitui, verdadeiramente, o nosso maior desafio.<br />
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28<br />
Gênero, mulheres e feminismos
FEMINISMO E PÓS-MODERNIDADE<br />
como discutir essa relação?<br />
Márcia dos Santos Macêdo<br />
Dando adeus a essas ilusões [Deus, razão, verdade],<br />
o homem pós-moderno já sabe que não existe Céu nem<br />
sentido para a História, e assim se entrega ao presente<br />
e ao prazer, ao consumo e ao individualismo.<br />
(SANTOS, 1986)<br />
Este texto nasceu de uma conjugação de fatores de diferentes<br />
ordens que terminou por produzir uma forte inquietação diante<br />
da recorrente e, muitas vezes, pouco conclusiva discussão em<br />
torno da natureza da relação entre a teoria feminista e o chamado<br />
discurso pós-moderno. No processo de sua escrita, tive de lidar,<br />
em primeiro lugar, com a minha própria perplexidade diante dos<br />
sofisticados “labirintos teóricos” que fui levada a percorrer (e nos<br />
quais, muitas vezes, me perdi) através de leituras da candente discussão<br />
em torno dessa complexa relação; em segundo lugar, fui<br />
movida, ainda, pela interessada (e angustiada) recepção das(os)<br />
estudantes dos cursos de Pós-graduação (lato sensu) do Núcleo<br />
de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM) da Univer-
sidade Federal da Bahia (UFBA), às/aos quais tive o prazer de ser<br />
a responsável por apresentar algumas reflexões introdutórias em<br />
torno dessa temática.<br />
Assim, movida particularmente por esse último objetivo, espero<br />
que esta iniciativa possa contribuir, de alguma forma, para<br />
preencher uma das grandes lacunas com que me deparei ao preparar<br />
as aulas para o referido curso: encontrar um material que,<br />
em uma linguagem acessível, pudesse, simultaneamente, oferecer<br />
alguns dos pré-requisitos para o entendimento do diálogo entre o<br />
feminismo e as chamadas teorias pós-modernas, situando questões<br />
centrais da discussão e apontar alguns limites e possibilidades<br />
deste diálogo, sem cair em posições maniqueístas em torno,<br />
exclusivamente, dos “pecados” ou das “virtudes” desta complexa<br />
relação.<br />
Dessa forma, no intuito de “discutir essa relação” – como dizemos,<br />
na vida privada, quando se torna imprescindível a realização<br />
de um balanço das principais questões em torno de um relacionamento<br />
em seu momento decisivo (ou mesmo crítico) –, proponho<br />
a apresentação de alguns pontos essenciais para pensar a<br />
constituição da modernidade e da pós-modernidade, do feminismo<br />
enquanto teoria e projeto de transformação da sociedade e sua<br />
conturbada relação com a modernidade e, posteriormente, com<br />
as teorias pós-modernas. Para realizar tal intento, recorri à interlocução<br />
com as Ciências Sociais e com importantes autoras(es)<br />
do campo dos estudos de gênero e do feminismo; mas, como se<br />
trata de um texto de caráter introdutório, logicamente, este diálogo<br />
precisou se limitar a um número modesto de pensadoras(es)<br />
e obras, guiando-se pelo objetivo de dar corpo a um texto “mais<br />
enxuto” e direto, mesmo diante da necessidade de abordar questões<br />
tidas como de maior sofisticação discursiva, típicas deste tipo<br />
de reflexão.<br />
30<br />
Gênero, mulheres e feminismos
As promessas da modernidade e o feminismo<br />
Em uma primeira aproximação, segundo o Dicionário Eletrônico<br />
Houaiss (2001), o termo modernidade se refere ao “período,<br />
influenciado pelo Iluminismo, em que o homem passa a se<br />
reconhecer como um ser autônomo, autossuficiente e universal e<br />
a se mover pela crença de que, por meio da razão, pode-se atuar<br />
sobre a natureza e a sociedade”. Assim, a Modernidade pode ser<br />
situada historicamente como “estilo, costume de vida ou organização<br />
social que emergiram na Europa a partir do século XVIII e<br />
que, ulteriormente, se tornaram mais ou menos mundiais em sua<br />
influência”. (GIDDENS, 1991, p. 11) Esse autor ainda vai ressaltar<br />
que “os modos de vida” produzidos pela modernidade, tanto em<br />
sua extensão quanto em sua intenção, provocam as transformações<br />
mais profundas de toda a história da humanidade em períodos<br />
precedentes: há, inequivocamente, um desvencilhamento das<br />
tradições do passado e a adesão a novas formas de relação social,<br />
em todo o mundo e em tal nível de profundidade, que revolucionam<br />
das mais globais às “mais íntimas e pessoais características<br />
da nossa existência cotidiana” (1991, p. 14).<br />
A modernidade é marcada, portanto, por um acelerado ritmo<br />
de mudança cuja principal característica é a “interconexão”, fazendo<br />
com que “ondas de transformação social penetrem através<br />
de virtualmente toda a superfície da terra” (GIDDENS, 1991, p. 16)<br />
trazendo consigo novas instituições sociais como o sistema político<br />
do Estado-nação, a produção em larga escala – baseada na<br />
mecanização e no uso de mão de obra assalariada – voltada para<br />
o mercado e lastreada em uma profunda crença no progresso da<br />
humanidade, através do desenvolvimento das ciências e das técnicas.<br />
Dessa maneira, ao ser forjado, no século XIX, o termo modernidade<br />
vem carregado de uma conotação positiva, pois seus<br />
defensores partem do pressuposto de que existe um “progresso<br />
Gênero, mulheres e feminismos 31
possível” através da evolução acelerada pelo movimento das forças<br />
produtivas a serviço de um domínio sem precedentes dos processos<br />
naturais.<br />
Destarte, a potencialidade de desenvolvimento das instituições<br />
sociais modernas permitiu o fortalecimento de um otimismo<br />
que parecia tornar possível toda e qualquer realização humana,<br />
desde o desenvolvimento industrial até a edificação política do<br />
Estado moderno, tendo como referência filosófica os valores do<br />
Humanismo e da razão iluminista. Nesse sentido, a modernidade<br />
não apenas acredita na possibilidade de emancipação do sujeito,<br />
mas coloca como alvo a construção da igualdade através dos direitos<br />
civis, como voto, trabalho e escolarização universal, entre<br />
outros – o que será chamado, posteriormente, de “promessas da<br />
modernidade”.<br />
Com efeito, a modernidade termina por produzir um discurso<br />
universalista, assentado na defesa de um sujeito universal (humano<br />
universal) e expresso em um pensamento social evolucionista que<br />
irá dar base às “grandes narrativas” que “vêem a história humana<br />
como tendo uma direção global, governada por princípios dinâmicos<br />
gerais”. (GIDDENS, 1991, p. 14) Assim, os valores do Iluminismo<br />
– como liberdade, democracia, igualdade, direitos, entre outros –,<br />
se tornam “categorias modernas” fundantes das metateorias racionais,<br />
universalistas e humanistas que vão caracterizar este pensamento<br />
que vê o passado como superado e o futuro como predizível,<br />
dando à ciência um lugar privilegiado nesse processo.<br />
Certamente, em um primeiro momento, esse discurso da modernidade<br />
“soará como música aos ouvidos” das feministas, por<br />
apresentar uma convergência de interesses diante das promessas<br />
de construção da igualdade que implicavam, naquele momento,<br />
na coextensividade dos direitos civis às mulheres através do voto,<br />
do trabalho assalariado, do acesso à educação e a todas as garantias<br />
previstas pela “cidadania moderna”. Assim, parecia haver<br />
32<br />
Gênero, mulheres e feminismos
uma grande convergência entre as citadas “promessas da modernidade”<br />
e o “projeto de criação de uma utopia emancipatória das<br />
mulheres”, defendido pelo feminismo. Bila Sorj vai assinalar que<br />
esse encontro se tornou possível pelo fato de o próprio feminismo<br />
se constituir como um “típico movimento intelectual e social moderno”<br />
ou ainda, dito em suas próprias palavras:<br />
Visto em perspectiva, o feminismo integra um longo processo de<br />
mudanças que envolveu a emancipação dos indivíduos das formas<br />
tradicionais da vida social. A recusa do Esclarecimento em conferir<br />
à tradição um poder intelectual, moral e de normatização das<br />
relações sociais, uniu o feminismo às promessas de reconstrução<br />
social ecoadas pela modernidade. (SORJ, 1992, p. 18)<br />
Nessa direção, várias teóricas feministas vão ressaltar que, ao<br />
trazer a ideia de um sujeito universal – o cidadão, para as teorias liberais,<br />
ou o proletário, para as teorias críticas, como o marxismo –,<br />
o pensamento moderno foi extremamente útil ao feminismo por<br />
permitir a noção de “uma experiência comum das mulheres, generalizável<br />
a partir da vivência de gênero e coletivamente compartilhada<br />
através das culturas e da história”. (SORJ, 1992, p. 16)<br />
Essa ideia de “experiência comum” – posteriormente objeto de<br />
acalorados debates e questionamentos desestabilizadores das categorias<br />
teóricas e estruturas políticas do feminismo – será fundamental<br />
para a (auto)percepção das mulheres como ator coletivo/<br />
sujeito histórico, portanto, como agentes portadoras de interesses<br />
e identidades próprias.<br />
Decerto, foge aos objetivos deste texto um resgate da história<br />
do feminismo e da construção de uma teoria feminista, mas, creio<br />
ser necessário pontuar a importância do pensamento moderno<br />
ao apontar ao feminismo caminhos possíveis para a emancipação<br />
feminina, isto é: a meta política da construção da igualdade<br />
e, portanto, do enfrentamento e da superação da subordinação da<br />
mulher na sociedade patriarcal.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 33
Vale, ainda, destacar que a luta pela emancipação, ao desempenhar<br />
um papel fundante na longa jornada do pensamento feminista<br />
nesse último século – que se inicia com o debate em torno<br />
das origens da opressão, sendo aprofundada na crítica radical ao<br />
patriarcado em suas variantes, até culminar com a formulação do<br />
conceito de gênero –, simultaneamente, vai ainda visibilizar as<br />
armadilhas contidas nas “promessas da modernidade” que, embora<br />
parcialmente realizadas, efetivamente nunca incluíram as<br />
mulheres e terminaram por oferecer parte do combustível para<br />
a explosão (ou, por que não dizer, implosão?) da própria noção<br />
de igualdade e identidade coletiva entre as mulheres. (SORJ, 1992)<br />
Estão lançadas, assim, as sementes do “cisma” entre o feminismo<br />
e a modernidade e sua consequente e posterior aproximação das<br />
chamadas teorias pós-modernas.<br />
Pós-Modernidade: de que se trata?<br />
O avançar do século XX trará, paradoxalmente, realizações<br />
insuperáveis, como o avanço tecnológico, materializado na prevenção<br />
e cura de doenças, no aumento da expectativa e qualidade<br />
de vida, na difusão de novos meios de comunicação e transporte,<br />
facilitando o intercâmbio do conhecimento e também a intensificação<br />
da utilização de novas tecnologias na produção que, por<br />
sua vez, favorecerá a concentração dos recursos produtivos – que<br />
tem como principal contrapartida o agravamento das desigualdades<br />
socioeconômicas e a concentração do poder político. Daí<br />
se poder concluir que a persistência das mais diversas formas de<br />
desigualdade confirmou as evidências de que as “promessas da<br />
modernidade” ecoadas pelo Iluminismo se materializaram apenas<br />
parcialmente, pois aquele projeto, pretensamente em construção,<br />
estava, prioritariamente, submetido a uma orquestração<br />
sintonizada com a manutenção do status quo, isto é, através da<br />
34<br />
Gênero, mulheres e feminismos
perpetuação da lógica da acumulação capitalista, dos interesses<br />
das nações hegemônicas no contexto da geopolítica mundial e do<br />
sexo historicamente dominante em uma sociedade eminentemente<br />
androcêntrica.<br />
Assim, o segundo quartel do século XX vai trazer um grande<br />
desapontamento com os projetos de emancipação – inclusive<br />
com as metateorias, como o Marxismo. A Segunda Guerra Mundial<br />
trará os horrores do Nazismo com as ocupações e o extermínio de<br />
milhões de vidas produzidas pela política eugenista do holocausto<br />
e, finalmente, a utilização da bomba atômica pelos Estados Unidos<br />
contra o Japão. Depois da guerra, diz Andrea Nye:<br />
[...] as feministas partilharam com os homens um mundo irrevogavelmente<br />
mudado. [...] Não havia limite ao mal que podia<br />
ser imaginado e realizado. Com a ‘impensabilidade’ do mal absoluto<br />
veio a ‘impensabilidade’ da destruição infinita através da<br />
bomba atômica. (1995, p. 96).<br />
Nesse contexto, o desapontamento com o Comunismo – com<br />
a divulgação das execuções e do autoritarismo da experiência do<br />
“Socialismo Real” na União Soviética – também vai contribuir fortemente<br />
para o enfraquecimento da crença nos projetos de emancipação,<br />
que só se agudiza com a intensificação da “guerra fria”<br />
e com o crescimento da hegemonia imperialista norte-americana.<br />
Com efeito, em um cenário de descrença e desesperança política,<br />
concluem algumas feministas: “a única alternativa política era<br />
uma escolha entre duas opções igualmente insatisfatórias e, por<br />
fim, a aceitação de um mal ligeiramente menor...”. (NYE, 1995,<br />
p. 96) Onde achar esperança com o gradativo desaparecimento<br />
dos absolutos, das certezas? 1<br />
1 Aqui, Andrea Nye faz menção a um estado de espírito retratado com muita fidelidade<br />
por Simone de Beauvoir, na obra Por uma moral da ambigüidade, em uma edição publicada<br />
em inglês em 1948.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 35
Para Jane Flax, a cultura ocidental, com o avançar da segunda<br />
metade do século XX, vai continuar intensificando um conjunto<br />
de transformações iniciadas em períodos históricos anteriores e, a<br />
esse respeito, dirá: “esse estado de transição torna algumas formas<br />
de pensamento possíveis e necessárias e exclui outras, gerando<br />
problemas que algumas filosofias parecem reconhecer e confrontar<br />
melhor que outras”. Nesse contexto de crise, a autora considera<br />
importante a formulação de um pensamento pós-moderno,<br />
tido por ela como modos de pensar “parcialmente constituídos<br />
por crenças do Iluminismo [mas, que] ao mesmo tempo, oferecem<br />
idéias e percepções que só são possíveis em razão da falência das<br />
crenças do Iluminismo sob a pressão cumulativa de eventos históricos<br />
[...]” (1991, p. 217; 218).<br />
Assim, para reafirmar a impossibilidade do discurso da modernidade<br />
em refletir acerca das relações sociais na contemporaneidade,<br />
inclusive pelos próprios limites do seu “modo de<br />
pensar”, isto é, a inadequação dos conceitos e métodos utilizados<br />
para explicar a experiência humana, é ainda Flax que sistematiza<br />
alguns dos argumentos utilizados pelos filósofos pós-modernos,<br />
desejosos de “colocar em radical dúvida crenças ainda predominantes<br />
na cultura” (1991, p. 221) ocidental, todos provenientes do<br />
Iluminismo, tais como: 2<br />
• a existência de um sujeito (eu) estável e coerente baseado<br />
em uma racionalidade que percebe claramente a si próprio e<br />
aos fenômenos de natureza;<br />
• a visão da razão e da ciência como se estas pudessem fornecer<br />
um fundamento objetivo, seguro e universal para o<br />
conhecimento;<br />
2 Aqui, resumo livremente as palavras da autora no texto referido acima (FLAX, 1991, p. 221-3),<br />
portanto, me arvoro o direito de não utilizar aspas.<br />
36<br />
Gênero, mulheres e feminismos
• a ideia de que o conhecimento obtido através do uso da razão<br />
será sempre verdadeiro e que representará algo real e<br />
imutável (universal) sobre nossas mentes e/ou a estrutura<br />
do mundo natural;<br />
• a noção de que a razão humana tem qualidades universais<br />
e transcendentais, pois ela existe de forma não contingente,<br />
independente de experiências corporais, históricas e sociais;<br />
o conhecimento seria atemporal, nessa perspectiva;<br />
• a existência de conexões complexas entre razão, autonomia<br />
e liberdade: toda a verdade e autoridade precisam ser submetidas<br />
ao tribunal da razão (aí está a liberdade: obedecer<br />
leis);<br />
• a ideia de que a razão possui uma autoridade que faz com que<br />
os conflitos entre verdade, conhecimento e poder possam<br />
ser superados: a verdade pode servir ao poder sem distorção<br />
e o conhecimento pode ser neutro e socialmente benéfico<br />
quando fundamentado na razão universal e não em interesses<br />
particulares;<br />
• a ciência é o paradigma de todo conhecimento verdadeiro,<br />
é neutra nos métodos e conteúdos e benéfica nos seus resultados,<br />
se os cientistas seguirem as regras da razão em vez de<br />
interesses que estejam fora do discurso racional; e<br />
• a linguagem é transparente, pois é meramente o meio no<br />
qual e através do qual tal representação ocorre – portanto,<br />
há uma correspondência entre “palavra” e “coisa” (como<br />
entre uma afirmação correta da verdade e o real), o que faz<br />
com que os objetos não sejam linguisticamente (ou socialmente)<br />
construídos, pois são meramente trazidos à consciência<br />
pela nomeação e pelo uso correto da linguagem.<br />
Com efeito, as expectativas criadas pela modernidade se mostraram,<br />
no médio prazo, de difícil realização, surgindo assim<br />
Gênero, mulheres e feminismos 37
espaço para “a frustração, o relativismo e o niilismo”. Vale ainda<br />
ressaltar que, nessa perspectiva, “a pós-modernidade configurase<br />
como uma reação cultural e representa uma ampla perda de<br />
confiança no potencial universal do projeto iluminista”. (CHE-<br />
VITARESE, 2001, p. 6, grifo do autor) Os traços críticos e reativos<br />
dessa perspectiva são claramente explicitados, nas palavras desse<br />
autor:<br />
A pós-modernidade pode ser caracterizada como uma reação<br />
da cultura ao modo como se desenvolveram historicamente os<br />
ideais da modernidade, associada à perda de otimismo e confiança<br />
no potencial universal do projeto moderno. Em especial,<br />
configura-se como uma rejeição à tentativa de colonização pela<br />
ciência das demais esferas culturais, o que vem acompanhado<br />
do clamor pela liberdade e heterogeneidade, que haviam sido<br />
suprimidas pela esperança de objetividade da Razão. (CHEVI-<br />
TARESE, 2001, p. 11, grifo do autor)<br />
De um modo geral, podem ser identificadas algumas características<br />
bastante significativas e peculiares ao texto da chamada<br />
crítica pós-moderna, como: (1) a radical “oposição a todas as<br />
formas de metanarrativa (incluindo o marxismo, o freudismo e<br />
todas as modalidades de razão iluminista)”, como lembra David<br />
Harvey (1989, p. 47), (2) oposição esta que está assentada “em<br />
profundos desenvolvimentos e transformações que estão acontecendo<br />
no campo tecnológico, na produção econômica, na cultura,<br />
nas formas de sociabilidade, na vida política e na vida cotidiana”<br />
(THOMÉ, 2003), (3) o que faz necessário, neste novo cenário, a<br />
utilização de novos conceitos e categorias fundamentais para o<br />
entendimento das “atuais configurações e seus movimentos” (4)<br />
produzindo, consequentemente, uma fina sintonia com questões<br />
oriundas de “outros mundos” e “outras vozes” que há muito estavam<br />
silenciados (mulheres, negros, homossexuais, povos colonizados,<br />
etc.) e (5) levando, simultaneamente, à adoção de uma<br />
38<br />
Gênero, mulheres e feminismos
postura defensiva, de uma lógica pluralista baseada na “idéia de<br />
que todos os grupos têm o direito de falar por si mesmos com sua<br />
própria voz, e de ter aceita sua voz como autêntica e legítima”.<br />
(HARVEY, 1989, p. 47)<br />
Vale, portanto, enfatizar que o discurso pós-moderno, ao<br />
apresentar como alvo principal a crítica à ideia de uma universalidade<br />
movida pela razão e pela crença no progresso linear da<br />
humanidade, em verdades absolutas e na possibilidade de uma<br />
ordem social ideal, “irá exercer um forte fascínio junto à teoria<br />
feminista” (SORJ, 1992, p. 19) que, desencantada e desencontrada<br />
com a modernidade, passa a “repensar esta relação” em outros<br />
termos, abrindo espaço para uma nova reflexão em torno<br />
da diferença, da indeterminação e da heterogeneidade – expressões<br />
bastante caras aos novos marcos teóricos emergentes, como<br />
apontado anteriormente.<br />
A crítica Pós-Moderna no discurso feminista:<br />
como ela se apresenta?<br />
Discutir uma relação ainda em construção é uma tarefa complexa,<br />
pois se incorre no risco de realizar uma análise circunstancial,<br />
influenciada por acontecimentos conjunturais como, por<br />
exemplo, a publicação de um texto relevante, um debate inflamado<br />
ou mesmo um ato provocativo como o “escândalo” provocado<br />
pelo “falso artigo pós-moderno” do físico Alan Sokal visando, segundo<br />
o próprio autor, incitar uma discussão sobre os “absurdos”<br />
do “excessivo subjetivismo e relativismo filosófico” do pensamento<br />
pós-moderno. 3 Assim, o que dizer acerca do diálogo entre<br />
o feminismo e o discurso pós-moderno?<br />
3 Em 1996, Sokal publica o texto “Transgredindo fronteiras: rumo a uma hermenêutica<br />
transformativa da gravidade quântica” na revista norte-americana Social Text, onde adotava<br />
uma abordagem pós-modernista. Semanas depois, em outro periódico – Língua Franca –,<br />
Sokal assume que o artigo anterior se tratava de “uma experiência” para demonstrar o absurdo<br />
Gênero, mulheres e feminismos 39
De um modo geral, podemos identificar que o “grande encontro”<br />
do feminismo com o discurso pós-moderno acontece<br />
no momento em que ambos se colocam face às problematizações<br />
em torno da diferença. Entretanto, é importante deixar evidente<br />
porque falo em “encontro” e porque apresento a tematização da<br />
diferença como o principal ponto de contato entre esses dois discursos:<br />
em primeiro lugar, não vejo o feminismo como um tipo de<br />
pensamento eminentemente pós-moderno, o que daria uma ideia<br />
equivocada de que o feminismo contemporâneo possa ser visto<br />
como “produto” do pensamento pós-moderno, como lembra Valeska<br />
Wallerstein:<br />
O feminismo aparece como uma das principais vertentes disto<br />
que chamarei de pensamento da diferença, sem que por isso<br />
ele seja derivado, uma conseqüência do pós-modernismo. [...]<br />
Quero apenas levantar uma defesa do feminismo em relação a<br />
uma ‘acusação’ um tanto comum: de que o feminismo seria o<br />
filho mais importante do pós-modernismo. (2004, p. 2)<br />
Contestada essa relação de filiação – voltarei a esse ponto<br />
mais à frente, pois defendo que não há motivo para acreditar<br />
que o feminismo contemporâneo deva sua existência às teorizações<br />
pós-modernas –, faz-se ainda mais necessário o esforço de<br />
realizar uma reflexão sobre a natureza do “encontro” entre esses<br />
dois pensamentos, portanto: em segundo lugar, é preciso voltar à<br />
tematização sobre a “diferença” como um significativo ponto de<br />
contato entre ambos, já que o pensamento pós-moderno vai se<br />
constituir como um enfrentamento “do regular, constante e universal”,<br />
caracterizando-se, principalmente, pela valorização da<br />
diversidade ao invés da uniformidade. Stuart Hall vai dizer que a<br />
“modernidade tardia” realiza um “descentramento” do sujeito,<br />
grau de non sense das teorias e métodos pós-modernistas, provocando um amplo e acalorado<br />
debate acadêmico entre defensores e detratores do discurso pós-moderno (Ver a esse respeito<br />
o instigante artigo de Jorge Almeida publicado no número 36 de Teoria e debate, em 1997).<br />
40<br />
Gênero, mulheres e feminismos
fazendo com que este seja cotidianamente “confrontado por uma<br />
gama de diferentes identidades”, o que vai ser chamado por ele de<br />
“política da diferença”, como vemos a seguir:<br />
O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada<br />
e estável, está se tornando fragmentado; composto não<br />
de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias<br />
ou não-resolvidas. [...] As pessoas não identificam<br />
mais seus interesses sociais exclusivamente em termos de classe;<br />
a classe não pode servir como um dispositivo discursivo ou<br />
uma categoria mobilizadora através da qual todos os variados<br />
interesses e todas as variadas identidades das pessoas possam<br />
ser reconciliadas e representadas. [...] Uma vez que a identidade<br />
muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou<br />
representado, a identificação não é automática, mas pode ser<br />
ganhada ou perdida. Ela tornou-se politizada. Esse processo é,<br />
às vezes, descrito como constituindo uma mudança de uma política<br />
de identidade (de classe) para uma política de ‘diferença’.<br />
(2003, p. 21)<br />
Também o feminismo vai ser confrontado com a necessidade<br />
de “pensar a diferença” ao refletir sobre a impossibilidade da<br />
existência de uma experiência comum entre as mulheres – como a<br />
de opressão, por exemplo – independente de aspectos como raça,<br />
classe social, orientação sexual etc. A teoria feminista precisa lidar<br />
com o questionamento da presumida identidade do próprio “sujeito<br />
do feminismo” – “a mulher” – como lembra Judith Butler,<br />
já que este “não é mais compreendido em termos estáveis e permanentes”<br />
(2003, p. 18). A despeito da importância dessa contribuição,<br />
o pensamento questionador de Butler, ao enxergar uma<br />
necessária dimensão normatizadora por trás da categoria identitária<br />
mulher (ou mesmo “as mulheres”), vai trazer um novo problema,<br />
que discutirei mais à frente, que é o desaparecimento do<br />
sujeito do feminismo, dificultando a luta política pela emancipação<br />
(“de quem?”, questionaria esta autora).<br />
Gênero, mulheres e feminismos 41
De modo geral, é possível reconhecer que o esforço desconstrucionista<br />
das teorias pós-modernas, particularmente do pós-estruturalismo,<br />
irá permitir um diálogo fecundo com o feminismo,<br />
reforçando a crítica aos binarismos e essencialismos do ideário<br />
racional e iluminista. A esse respeito, dirá Mariano que importantes<br />
teóricas do feminismo – como Chantal Mouffe, Joan Scott<br />
e a já citada Judith Butler – vão apontar que o abandono do sujeito<br />
“transparente e racional” da modernidade irá dar lugar ao<br />
entendimento deste como “plural, heterogêneo e contingente”,<br />
permitindo, simultaneamente, uma maior compreensão do seu<br />
processo de constituição. Citando Claudia Costa (2000), explicita<br />
que se trata do “reconhecimento de que o sujeito se constrói<br />
dentro de significados e representações culturais, os quais por sua<br />
vez encontram-se marcados por relações de poder”. (MARIANO,<br />
2005, p. 486)<br />
Com efeito, ao realizar uma autocrítica à “natureza contingente,<br />
parcial, contraditória e historicamente situada de sua empreitada<br />
teórica e de seu compromisso político” (COSTA, 1998,<br />
p. 58), o feminismo aplica a si mesmo seu próprio método desconstrucionista<br />
da realidade. Jane Flax irá considerar como um<br />
feliz encontro a articulação entre o olhar das filosofias pós-modernas<br />
e o feminismo, ao permitir, segundo suas próprias palavras,<br />
um “auto-entendimento mais preciso da natureza de nossa<br />
teorização” (1991, p. 234). A autora apresenta, explicitamente,<br />
seus argumentos em defesa dessa posição:<br />
Não podemos simultaneamente afirmar (1) que a mente, o eu e<br />
o conhecimento são socialmente constituídos e o que podemos<br />
saber depende de nossos contextos e práticas sociais e (2) que a<br />
teoria feminista pode revelar a Verdade do todo de uma vez por<br />
todas. Tal verdade absoluta [...] requereria a existência de um<br />
‘ponto de Arquimedes’ fora da totalidade e além de nossa inserção<br />
nela, a partir da qual poderíamos ver (e representar) essa<br />
totalidade. (1991, p. 234-5)<br />
42<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Assim, insiste na assunção da “não-inocência” do olhar feminista,<br />
pois, na sua opinião, “qualquer posição feminista será<br />
necessariamente parcial” (1991, p. 248) e, com esta posição, vai<br />
claramente problematizar e questionar a ideia de um ponto de<br />
vista privilegiado do feminismo, entrando em rota de colisão com<br />
aquelas(es) pensadoras(es) que defendem o “privilégio epistêmico”<br />
das mulheres (no caso das relações de gênero) ou do proletariado<br />
(no caso das relações de classe), por exemplo. Vejamos, em<br />
palavras da própria autora, o que ela tem a dizer a esse respeito:<br />
Realmente, a noção de um ponto de vista feminista que seja mais<br />
verdadeiro do que os anteriores (masculinos) parece basear-se<br />
em muitas assunções problemáticas e não examinadas. Elas<br />
incluem uma crença otimista na idéia de que as pessoas agem<br />
racionalmente em seus próprios interesses e de que a realidade<br />
tem uma estrutura que a razão perfeita (uma vez aperfeiçoada)<br />
pode descobrir. Essas duas assunções, por sua vez, dependem<br />
de uma apropriação acrítica das idéias do Iluminismo [...]. Além<br />
disso, a noção de um tal ponto de vista supõe que os oprimidos<br />
não são prejudicados de modo fundamental por sua experiência<br />
social. Pelo contrário, essa posição supõe que os oprimidos têm<br />
uma relação privilegiada (e não apenas diferente) e habilidade<br />
para compreender uma realidade que está ‘lá fora’ esperando<br />
por nossa representação. Ela também pressupõe relações sociais<br />
de gênero nas quais há uma categoria de seres fundamentalmente<br />
semelhantes em virtude de seu sexo – isto é, ela supõe a<br />
diferença que os homens atribuem às mulheres. [...] Eu acredito,<br />
pelo contrário, que não há força ou realidade ‘fora’ de nossas<br />
relações sociais e atividades [...] que nos livrará de parcialidade<br />
e diferenças. (FLAX, 1991, p. 248-9)<br />
Por certo, traz profundas consequências para o processo de<br />
teorização feminista a realização dessa chamada “virada linguística”<br />
em direção a uma fina sintonia com os discursos de corte<br />
pós-moderno, como o pós-estruturalismo. Claudia Costa vai sinalizar<br />
para a instauração de uma “intensa e acentuada crise de<br />
identidade”, ao lembrar essa sintonia com o pensamento pós-<br />
Gênero, mulheres e feminismos 43
moderno, pois, “em alguns círculos acadêmicos, significou um<br />
questionamento radical das categorias analíticas tradicionais do<br />
feminismo, inclusive de alguns dos seus conceitos mais centrais<br />
(mulher, gênero, experiência) [...]” (1998, p. 76).<br />
Como veremos a seguir, há polêmicas e posturas conflitantes<br />
na discussão acerca da conveniência da relação entre feminismo<br />
e pós-modernidade que vão merecer um olhar mais aproximado,<br />
pois, como lembra Kate Soper, o olhar sobre “qualquer grande esquema<br />
de melhoramento social” do passado ou do presente deve<br />
ser cuidadosamente analisado, pois também “há algo de demasiado<br />
totalizante na resposta pós-moderna”, já que, para ela, essa<br />
“situação é muito mais complexa do que se pode pensar via a mera<br />
oposição das perspectivas” (1992, p. 177) em confronto.<br />
Para onde vai essa relação? O feminismo e seus<br />
impasses frente à pós-modernidade<br />
Até que ponto interessa às feministas o aprofundamento de<br />
sua relação com as teorias pós-modernas? Pode o discurso pósmoderno<br />
oferecer respostas teóricas e políticas satisfatórias e<br />
coerentes com a trajetória do processo de teorização feminista?<br />
No “cômputo final”, pode-se dizer que há mais ganhos ou perdas<br />
para o feminismo com a continuidade do “investimento nessa<br />
relação”?<br />
Logicamente, qualquer tentativa de responder a essas questões<br />
já denuncia um “olhar posicionado” em torno da pertinência<br />
(ou não) da contribuição do discurso pós-moderno ao estreitar<br />
relações com o feminismo e, “deixando cair minha própria máscara”,<br />
acredito haver muito mais perdas do que ganhos para o feminismo<br />
nesse processo.<br />
Inicialmente, volto ao provocativo “trote de Alan Sokal”, retomando<br />
o episódio que gerou tanta polêmica nos meios acadêmi-<br />
44<br />
Gênero, mulheres e feminismos
cos, na década de noventa. Esse pensador abriu um amplo debate<br />
em torno do significado do discurso pós-moderno e evidenciou o<br />
conservadorismo desta perspectiva, ao jogar por terra qualquer<br />
possibilidade “de um projeto universal e não-fragmentário”, posicionando-se,<br />
explicitamente, em relação à impossibilidade de<br />
qualquer vinculação com esse tipo de discurso e assumindo, portanto,<br />
sua própria vinculação política: “eu pertenço à esquerda<br />
– entendida amplamente como corrente política que condena as<br />
injustiças e as desigualdades do sistema capitalista e procura eliminá-las,<br />
ou ao menos minimizá-las”. (SOKAL apud ALMEIDA,<br />
1997, p. 71) Assim, Sokal traz para a cena do debate contemporâneo<br />
uma das grandes contradições do discurso pós-moderno,<br />
pois, ao criticar as metanarrativas, enfatizar a alteridade e estimular<br />
lutas parciais, evita a questão do poder global e, lembra<br />
Almeida,<br />
[...] ao fazer um discurso radicalmente antiteleológico, se apresenta<br />
como portador de uma teleologia do fim da história. Absorvendo<br />
o que há de fragmentário no mundo contemporâneo<br />
e negando a possibilidade de alternativas humanas globais [...],<br />
acabam somando ao status quo. (1997, p. 70)<br />
A esse respeito ainda, Antônio Flávio Pierucci (1998) faz uma<br />
instigante análise sobre o que ele chama de “as ciladas da diferença”,<br />
ao realizar uma crítica ao discurso do direito à diferença,<br />
típico do pensamento pós-moderno (e, também, do pensamento<br />
feminista). Sem negar a importância da diferença, o autor vai resgatar<br />
que, historicamente, a ênfase na diferença tem sido um traço<br />
característico de grupos mais reacionários, como, por exemplo,<br />
os grupos de direita, e aponta algumas questões: como investir<br />
demasiadamente em uma “lógica diferencialista” sem incorrer<br />
em algum modo de discriminação? Até que ponto a diferença não<br />
é uma via de gerar mais diferença? É possível a coexistência dos<br />
movimentos de afirmação da diferença com os princípios uni-<br />
Gênero, mulheres e feminismos 45
versalistas? Estaria, portanto, instalado o dilema entre “abstrato/<br />
universal” e “concreto/particular”?<br />
Diante de tantas questões, Pierucci vai lembrar que os discursos<br />
pós-modernos, ao criticarem o sujeito universal via afirmação<br />
da diferença, vão construindo “labirintos” de novas, múltiplas e<br />
inesgotáveis diferenças – “a diferença jamais é uma só, mas sempre<br />
já-plural, sempre sobrando, muitas; sem unidade, sem união<br />
alguma possível” (1998, p. 150). Portanto, ele acredita que o desafio<br />
que permanece para a superação dos dilemas da diferença é a<br />
“reconstrução do geral, sem essencializar as diferenças”. 4<br />
Onde essa discussão rebate diretamente no feminismo? O que<br />
o feminismo ganha e o que perde, diante – como diria Pierucci –<br />
dos “labirintos da ênfase na diferença” do discurso pós-moderno?<br />
Kate Soper trata essa questão com muita lucidez, ao criticar o excessivo<br />
impulso desconstrutivista do discurso pós-moderno que,<br />
ao enfatizar, exclusivamente, a lógica da diferença, inviabiliza a<br />
possibilidade da defesa de que as identidades diferentes possam ter<br />
direitos iguais às mesmas formas de reconhecimento. Assim, ela<br />
afirma: “desconstruímos o terreno sobre o qual qualquer prática<br />
política pode ser promovida – o que faz ver toda prática atual como<br />
despótica, ‘um obscuro objeto de desejo de impossível realização’<br />
[a democracia autêntica]”. (1992, p. 180-1, tradução nossa)<br />
Acredito que o principal desafio de pensar a diferença traz uma<br />
questão elementar, já apontada anteriormente: nesse contexto,<br />
quem é o sujeito do feminismo? O “impulso desconstrucionista”<br />
pós-moderno, como lembrou Soper (1992), não questionou “apenas<br />
o sujeito masculino, mas também o sujeito ‘mulher’ e com ele<br />
o sujeito do feminismo”. (MARIANO, 2005, p. 489) Toda a crítica à<br />
4 Vale ressaltar aqui que o discurso desse autor, a despeito da importância para os objetivos<br />
políticos mais amplos de emancipação humana, pode oferecer “combustível” para uma lógica<br />
de contestação de uma relevante estratégia política de emancipação feminina, como é o<br />
caso da “Política de cotas” – que assume claramente seu direito de ser uma “discriminação<br />
positiva”, até que esse tipo de estratégia atinja seu objetivo final e não mais seja necessária.<br />
46<br />
Gênero, mulheres e feminismos
noção de experiência contida na ideia de uma “opressão comum”<br />
vai implodir a possibilidade de uma “unidade” entre as mulheres,<br />
colocando em xeque, teórica e politicamente, a questão da<br />
identidade e, em última instância, o próprio processo de constituição<br />
de um possível “sujeito do feminismo”. Mariano (2005,<br />
p. 493) apresenta algumas questões instigadoras a esse respeito:<br />
“com a desconstrução do sujeito ‘mulher’, está o feminismo condenado<br />
ao fracasso de sua ação política? Para se pensar na prática<br />
política, é necessário que se conceba de antemão a existência de<br />
um sujeito?”.<br />
As respostas para essas questões são objeto de um intenso debate<br />
entre feministas dos mais variados matizes teóricos, muito<br />
bem sumarizado pela referida autora. 5 Para os objetivos deste<br />
texto, limitar-me-ei a perseguir um caminho teoricamente mais<br />
simples e pragmático, isto é: pensar nas consequências, para o feminismo<br />
e para a sua ação política, da perspectiva da elisão do seu<br />
sujeito. Defendem algumas autoras – como Judith Butler e Chantal<br />
Mouffe – que “desconstruir o sujeito, não é declarar sua morte<br />
[...], mas sua re-significação”, segundo Mariano (2005, p. 493-4),<br />
que, nessa linha de raciocínio e inspirada pela argumentação de<br />
Butler, dirá ainda que<br />
[...] em vez de teorias que concebem o sujeito de antemão, precisamos<br />
de teorias que se proponham a pensar como o sujeito é<br />
constituído e como as diferenças e hierarquias são construídas e<br />
legitimadas nessas relações de poder [...] [pois] a crítica ao essencialismo,<br />
levada às últimas conseqüências, resultou na celebração<br />
de um ‘feminismo sem mulheres’. [...] Trata-se, porém,<br />
de um equívoco supor que a desconstrução da categoria ‘mulheres’<br />
signifique a inexistência das mulheres.<br />
Nesse debate, várias questões são postas e muitas ainda permanecem<br />
sem resposta, dentre as quais uma grande interrogação:<br />
5 Ver: MARIANO, 2005, p. 483-505.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 47
é a unidade realmente necessária para uma ação politicamente<br />
consequente do feminismo, nesse contexto? A partir das reflexões<br />
de Butler, Scott e Mouffe, responderá Mariano (2005) que não, que<br />
é possível pensar em “coalizões” (Butler) ou “múltiplas formas de<br />
unidade e de ação comum como resultado da criação de pontos<br />
nodais” (Mouffe). Assim, Mariano não descarta a possibilidade da<br />
construção de processos de identificação contingentes em torno<br />
da categoria mulher, sem significar “que o componente de gênero<br />
seja determinante em relação aos outros” (SCOTT, 1990 apud<br />
MARIANO, 2005, p. 498), e afirma, ainda, que, paradoxalmente,<br />
a ausência de unidade,<br />
ao contrário de fragilizar a prática política feminista, a crítica<br />
ao essencialismo e a defesa da diferença podem contribuir para<br />
o seu revigoramento. [...] [Pois,] negar a essência da identidade<br />
não implica negar a existência de sujeitos políticos e de prática<br />
política, mas sim redefinir sua constituição. (MARIANO, 2005,<br />
p. 496-7)<br />
Vale, portanto, enfatizar que a crítica aos processos de essencialização<br />
da identidade não precisa ser lida, literalmente, como<br />
a impossibilidade absoluta de trabalhar com qualquer noção de<br />
identidade. Nessa direção, vai lembrar ainda essa autora, citando<br />
Mouffe, que<br />
[...] o aspecto da articulação é decisivo. Negar a existência de um<br />
vínculo a priori, necessário, entre as posições do sujeito, não<br />
quer dizer que não existam constantes esforços para estabelecer<br />
entre elas vínculos históricos, contingentes e variáveis. (1999,<br />
p. 33 apud MARIANO, 2005, p. 498)<br />
Essa possibilidade de diálogo na diferença não faz desaparecer<br />
os dilemas do feminismo, pois implica constantes negociações de<br />
múltiplas identidades coexistindo e se articulando em contextos<br />
específicos, o que não significa a ideia de “pluralismo extremo”<br />
criticada por Mouffe, por defender que há “limites à celebração<br />
48<br />
Gênero, mulheres e feminismos
das diferenças, uma vez que muitas delas constroem subordinação”.<br />
(MARIANO, 2005, p. 500) Assim, negociar identidades é<br />
lidar simultaneamente com igualdade e diferença, o que vai significar<br />
a manutenção dos conflitos, isto é:<br />
[...] para Mouffe e Butler, a articulação no campo político, se se<br />
pretende democrática e não essencializada, deve pressupor a<br />
existência de conflitos. [...] Há [pois] nessa concepção feminista<br />
uma noção de positividade em relação aos conflitos. Chantal<br />
Mouffe deixa essa posição mais explícita ao tratar de sua proposta<br />
de uma democracia agonística, a qual pressupõe o conflito,<br />
no lugar do consenso. (MARIANO, 2005, p. 503)<br />
À guisa de conclusão do exercício proposto neste texto sobre<br />
o “repensar dessa relação”, considero pertinente e bastante lúcida<br />
a avaliação de Linda Hutcheon (2002) – à qual me filio – sobre<br />
as reais possibilidades de encontro dos projetos feministas e pósmodernos.<br />
Ela será categórica ao afirmar que não há como esses<br />
projetos possam vir a confluir, pois há profundas diferenças entre<br />
ambos, apesar de possuírem algumas “zonas de contato”, como<br />
já apontado anteriormente. Seu argumento mais forte está assentado<br />
na ideia de que a principal (e inconciliável) diferença entre<br />
ambos é de natureza política. Isso porque, para ela, “o feminismo<br />
é uma política”, enquanto o pós-modernismo não o é, embora<br />
ele seja político, mas, para ela, ambivalente (porque duplamente<br />
envolvido, como crítico e cúmplice) em relação à realidade que<br />
deseja questionar.<br />
Para Hutcheon, o feminismo não pode prescindir de uma “noção<br />
necessária de ‘verdade’”, pois ainda não pode abrir mão completamente<br />
das metanarrativas, ainda que conteste a patriarcal:<br />
Diz a autora:<br />
Os feminismos continuarão a resistir à incorporação ao pósmodernismo,<br />
em grande parte devido à sua força revolucionária,<br />
como movimentos políticos, que lutam por mudanças<br />
Gênero, mulheres e feminismos 49
sociais reais. Eles certamente vão além de tornar a ideologia explícita<br />
e, desconstruindo-a, argumentam sobre a necessidade de<br />
sua mudança, para produzir uma transformação real [...], que<br />
só pode vir com a transformação das práticas sociais patriarcais.<br />
O pós-modernismo não teorizou este tipo de responsabilidade;<br />
não tem estratégias de resistência real que correspondam às feministas.<br />
Não pode ter. Este é o preço a pagar por essa incredulidade<br />
em relação à metanarrativa. (HUTCHEON, 2002, s.p.)<br />
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HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1989.<br />
50<br />
Gênero, mulheres e feminismos
HUTCHEON, Linda. A incredulidade a respeito das metanarrativas:<br />
articulando pós-modernismo e feminismos. Labrys − Estudos<br />
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MARIANO, Silvana Aparecida. O sujeito do feminismo e o pósestruturalismo.<br />
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Acesso em: 8 maio 2007.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 51
ANTROPOLOGIA FEMINISTA<br />
o que é esta antropologia adjetivada? 1<br />
Alinne de Lima Bonetti<br />
Ao refletir sobre a minha própria prática acadêmica, como<br />
antropóloga, pesquisadora do campo dos estudos de gênero e feminista,<br />
e também instigada pelo desejo de compreender a especificidade<br />
da contribuição antropológica para a Teoria Feminista,<br />
deparei-me com a seguinte dúvida: afinal, o que define uma Antropologia<br />
Feminista?<br />
Seria aquela cuja teoria e método se fundamentam em determinados<br />
pressupostos, tais como o reconhecimento de uma opressão<br />
específica que atingiria as mulheres? Supondo correta esta<br />
interrogação, como é possível conciliar o olhar parcial da abordagem<br />
feminista, que parte de um pressuposto universalizante,<br />
1 Este texto é uma versão do apresentado no Simpósio Temático (ST) Entre pesquisar e militar:<br />
contribuições e limites dos trânsitos entre pesquisa e militância feministas do VII Seminário<br />
Internacional Fazendo Gênero, ocorrido entre os dias 28 e 30 de agosto de 2006, na<br />
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que se encontra disponível nos Anais do referido<br />
seminário, como também compõe o Dossiê homônimo ao ST, que se encontra disponível<br />
em: . Registro o meu<br />
agradecimento à leitura atenta e às preciosas sugestões feitas a esta versão do texto por Soraya<br />
Fleischer, bem como aos comentários e ao rico debate realizado pelas(os) participantes do<br />
referido Simpósio, que foram imprescindíveis para a revisão deste texto.
com a tradição antropológica de questionamento das categorias<br />
analíticas de relativização e de valorização dos saberes locais, do<br />
ponto de vista do nativo e dos conceitos de experiência próxima<br />
(GEERTZ, 1998)? Não estariam ambas condenadas ao desaparecimento,<br />
a partir desta combinação? Como conciliar a emancipação<br />
feminista das mulheres com o questionamento tipicamente antropológico<br />
do próprio conceito de emancipação?<br />
Campo ainda instável na tradição antropológica brasileira, a<br />
ausência do adjetivo feminista – talvez subsumido pela locução de<br />
gênero – é notável frente à existência de muitas antropólogas que<br />
se identificam como feministas, o que talvez esteja relacionado<br />
com as particularidades da relação estabelecida entre academia e<br />
militância, no Brasil, em especial no campo feminista. Maria Luiza<br />
Heilborn, em um levantamento crítico sobre a Antropologia da<br />
Mulher no Brasil, identifica uma mudança no nome dos grupos de<br />
trabalho, que passou a ocorrer nas Reuniões da Associação Brasileira<br />
de Antropologia (ABA) em 1980, de Antropologia da Mulher<br />
para Representação e Gênero, em 1988, e Relações de Gênero, em<br />
1990. Segundo a autora, tal mudança, além de representar uma<br />
virada conceitual, se deve:<br />
[a um] desejo de driblar uma classificação tida como um ‘objeto<br />
menor’ dentro do campo da Antropologia. Estamos [pesquisadoras/es<br />
da área] sem dúvida inseridas/os em um conjunto<br />
maior de relações de força e legitimidade que configuram um<br />
campo intelectual. (HEILBORN, 1992, p. 95)<br />
As relações de força e legitimidade às quais se refere a antropóloga<br />
podem ser melhor compreendidas na formulação de Maria<br />
Filomena Gregori, sobre a situação de liminaridade em que se<br />
viam as antropólogas feministas face à dupla resistência de que<br />
eram alvo. Por um lado, essa resistência vinha do próprio movimento<br />
feminista, que via com desconfiança a produção acadêmica,<br />
e, por outro, da própria academia<br />
54<br />
Gênero, mulheres e feminismos
cujas concepções mais objetivistas do conhecimento sempre<br />
afirmaram o risco de que a identificação com o objeto nos<br />
transformasse em ‘pesquisadoras pela metade’, e que o papel do<br />
intelectual estaria reduzido a instrumentalizar transformações<br />
sociais e, quando muito, a organizar ou divulgar teorias nativas.<br />
(1999, p. 228)<br />
Na sua posição acerca da relação entre produção de conhecimento<br />
e militância, Heilborn não acredita que<br />
o engajamento ético-político comprometa a priori a tarefa intelectual-acadêmica.<br />
Evidentemente isto está relacionado ao grau<br />
de relativização das próprias convicções ideológicas, segundo a<br />
coerência (e validade) teórico-metodológica e, last but not least,<br />
à pertinência das questões que orientam a investigação científica.<br />
(1992, p. 97-8)<br />
Parece-me que, mesmo tentando encontrar uma saída para<br />
a Antropologia brasileira feita sob a égide do feminismo, a autora<br />
continua recaindo em critérios de validação do conhecimento<br />
ditados por uma comunidade acadêmica que transforma<br />
pesquisadoras(es) engajadas(os), em pesquisadoras(es) pela metade,<br />
conforme explicita Gregori (1999) acima. 2 Identifica-se aqui<br />
a “pouca disposição das acadêmicas feministas em assumir uma<br />
posição de confronto ou de isolamento na academia” (HEILBORN;<br />
SORJ, 1999, p. 188), não incorporando a contribuição da radicalidade<br />
crítica da teoria feminista para o enfrentamento do campo<br />
intelectual, como aconteceu nos Estados Unidos.<br />
Dessa forma, a instabilidade não se verifica na tradição antropológica<br />
anglo- saxã, vide o contraste entre, por exemplo, a Associação<br />
Americana de Antropologia (AAA), que tem uma seção de<br />
2 É curioso notar que essa equação pesquisadoras(es) engajadas(os) = pesquisadoras(es) pela<br />
metade não se aplica no caso da Etnologia indígena brasileira. O engajamento de antropólogos<br />
nas causas indígenas é histórico e notório, além de parte constituinte da Antropologia brasileira.<br />
Por que há, então, dois pesos e duas medidas? Seria mais legítimo engajar-se em uma causa em<br />
que o Outro é um diferente, como é o caso na Etnologia, do que quando esse um Outro é, por<br />
vezes, o mesmo? São perguntas sem respostas fáceis, mas convidativas para a reflexão.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 55
Antropologia Feminista − a Associação de Antropologia Feminista<br />
(AFA) − e a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), na qual<br />
não há nenhuma menção à Antropologia Feminista. 3 A efervescência<br />
autorreflexiva da Antropologia Feminista anglo-saxã e a<br />
presença velada do feminismo na Antropologia brasileira são inspiradoras<br />
para a minha análise aqui e explicam, em grande medida,<br />
a orientação dos textos que a embasam.<br />
Assim, por meio de um passeio pela literatura antropológica<br />
feminista, majoritariamente anglo-saxã, neste texto, reflito sobre<br />
a relação entre Antropologia e Feminismo. Busco compreender o<br />
que especifica essa produção de conhecimento, quais as suas características<br />
teórico-metodológicas e, sobretudo, quais as implicações,<br />
contribuições e limites do seu caráter engajado. Enfim,<br />
pretendo reunir elementos que possam servir de subsídios para<br />
incentivar o debate brasileiro.<br />
Da antropologia das mulheres à antropologia<br />
feminista: os desafios feministas<br />
Um dos mais importantes desafios à Antropologia colocados<br />
pela crítica feminista está no questionamento acerca do conhecimento<br />
que produz. O surgimento da Antropologia Feminista está<br />
marcado pela combinação entre a crítica epistemológica e a crítica<br />
sobre a forma pela qual as mulheres eram representadas nas<br />
etnografias.<br />
3 Parece-me sintomático que na coleção O que ler na Ciência Social Brasileira − 1975-1995 (1999)<br />
editada pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS),<br />
o capítulo sobre Estudos de Gênero, escrito por uma antropóloga e uma socióloga (Maria Luiza<br />
Heilborn e Bila Sorj), bem como o seu Comentário Crítico, escrito por uma antropóloga (Maria<br />
Filomena Gregori), esteja no volume referente à Sociologia e não naquele relativo à Antropologia<br />
e seja denominado com a locução “de gênero” e não com o adjetivo “feminista”. Para uma<br />
comparação entre as Associações de Antropologia estadunidense e brasileira, ver os seguintes<br />
sítios: http://sscl.berkeley.edu/~afaweb.html e http://www.abant.org.br/<br />
56<br />
Gênero, mulheres e feminismos
A primeira fase da Antropologia Feminista, surgida na década<br />
de 70, ficou conhecida como a Antropologia das Mulheres, dado<br />
o seu enfoque na busca pela visibilidade das mulheres nas produções<br />
etnográficas. 4 Voltada para a reflexão sobre a variabilidade de<br />
sentidos culturais da categoria mulher, esta primeira Antropologia<br />
Feminista questionou a universalidade e unidade da categoria<br />
sociológica mulher. Sua produção foi marcada pela constituição<br />
de um aparato teórico que buscava explicar, dentre a variabilidade<br />
do que é ser mulher, o caráter secundário que ela supostamente<br />
ocupa nas mais diferentes culturas. Se há inovação de um lado,<br />
de outro, há a permanência de um pressuposto universalista, o da<br />
subordinação feminina transcultural.<br />
A ênfase na biologização do gênero, neste contexto entendido<br />
como a “elaboração cultural do sentido e significado dos fatos naturais<br />
das diferenças biológicas entre homens e mulheres” (MOO-<br />
RE, 2000, p. 151) e na universalidade da subordinação, denuncia o<br />
persistente viés ocidental nas análises realizadas pela Antropologia<br />
das Mulheres que, equivocadamente, interpretavam diferença<br />
e assimetria como se fossem desigualdade e hierarquia. Segundo<br />
Henrietta Moore,<br />
quando os pesquisadores percebem as relações assimétricas<br />
entre homens e mulheres em outras culturas, eles supõem tais<br />
assimetrias como sendo análogas à sua própria experiência cultural<br />
das relações de gênero, na sociedade ocidental, de natureza<br />
desigual e hierárquica. (1988, p. 2)<br />
4 As duas antologias pioneiras, que foram responsáveis pelo estabelecimento da Antropologia<br />
Feminista, são Woman, culture and society, organizada por Michelle Rosaldo e Louise Lamphere,<br />
e Toward an anthropology of women, organizada por Rayna Rapp (BEHAR, 1993). Deve-se<br />
destacar que, talvez a primeira goze de maior popularidade na antropologia brasileira por contar<br />
com uma tradução para o português, o que nos remete a uma inescapável reflexão sobre a<br />
política de traduções no Brasil, que está ainda por ser feita.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 57
Não tardam as reformulações e a Antropologia Feminista<br />
passa, aos poucos, a ter uma nova cara 5 e as posições anteriores<br />
acerca dos universais da opressão/subordinação feminina e o<br />
imperativo biológico do gênero foram revistas.<br />
Michelle Rosaldo, em um texto bastante crítico (e, sobretudo<br />
autocrítico) em relação ao que considera abusos da Antropologia,<br />
põe em questão os universais de opressão feminina que afirmara<br />
anteriormente e declara que a procura obstinada pelas origens e<br />
pela confirmação da opressão transcultural tornou os pesquisadores<br />
cegos às formas pelas quais as relações de gênero se constituem:<br />
“[...] tendemos repetidamente a contrastar e insistir em<br />
diferenças presumivelmente dadas entre homens e mulheres ao<br />
invés de perguntar como essas diferenças são elas mesmas criadas<br />
por relações de gênero” (1995, p. 23) e, acrescenta, se e de que<br />
maneira, essas diferenças se constituem em desigualdades. Para<br />
Rosaldo, “gênero, em todos os grupos humanos, deve ser entendido<br />
em termos políticos e sociais com referência não a limitações<br />
biológicas, mas sim às formas locais e específicas de relações sociais<br />
e particularmente de desigualdade social” (1995, p. 22).<br />
A questão em jogo muda de uma busca pelas vítimas oprimidas<br />
de cada sociedade e pelas formas através das quais esta opressão se<br />
manifesta, para uma investigação sobre como cada sociedade organiza<br />
os seus sistemas de valores de gênero e como tais sistemas<br />
implicam ou não em estruturas de desigualdade. Busca-se chamar<br />
a atenção para o fato de que há uma organização das estruturas<br />
de gênero constituída por relações de poder que podem transformar<br />
diferenças em desigualdades, dependendo do contexto e das<br />
combinações que assumam.<br />
5 Janet Atkinson (1982) situa nesta classificação, dentre outros, os livros de: Michelle Rosaldo,<br />
Knowledge and passion: Ilongot notions of self and social life, de 1980; de Sherry Ortner e<br />
Harriet Whitehead, Sexual meanings: the cultural construction of gender and sexuality, de 1981;<br />
e o de Carol MacCormack e Marilyn Strathern, Nature, culture and gender, de 1980.<br />
58<br />
Gênero, mulheres e feminismos
É, portanto, na etnografia que a Antropologia feita sob a influência<br />
do feminismo parece estabelecer a sua especificidade no<br />
campo da Teoria Feminista. A universalidade da opressão passa a<br />
ser questionada a partir da ênfase nos processos sociais que a etnografia<br />
revela, associada a um crescente interesse na interação<br />
entre situação, contexto e sentido (ATKINSON, 1982), ou seja, a<br />
ênfase na etnografia permite revelar as complexidades das experiências<br />
culturais relativas ao gênero, as variações de sentidos<br />
a ele atribuídos, os contrastes entre convenções constitutivas<br />
de repertórios e as variadas formas como eles são vivenciados e<br />
ressignificados, enfim, as intricadas relações entre convenções e<br />
prática.<br />
Assim, as pesquisas etnográficas se voltam para a exploração<br />
dos domínios de sentido de gênero, dos contextos a que estão associados<br />
e dos usos situados. O grande potencial relativizador da<br />
pesquisa empírica antropológica, com os seus dados transculturais<br />
e o seu potencial comparativo, advindos daí para a desessencialização<br />
e desontologização de identidades de gênero, pode ser<br />
ressaltado como a grande contribuição desta segunda leva da Antropologia<br />
Feminista estadunidense e inglesa. (MOORE, 1994)<br />
Outro aspecto importante para a Antropologia Feminista relativo<br />
a essa virada etnográfica é a problematização das relações<br />
de poder inerentes à situação etnográfica. O ponto central dessa<br />
mudança parece estar na atenção ao posicionamento dos(as)<br />
pesquisadores(as) em campo e nas relações de poder envolvidas<br />
seja na definição da relação de pesquisa, na troca desigual que se<br />
estabelece entre pesquisador(a)/pesquisado(a), seja na potencial<br />
exploração do(a) pesquisado(a). (WOLF, 1996 apud PANAGAKOS,<br />
2004)<br />
Tais preocupações partem da concepção de que, na relação de<br />
pesquisa, há uma distribuição diferencial dos recursos de poder<br />
entre pesquisador(a)/pesquisados(as) que emerge da combinação<br />
Gênero, mulheres e feminismos 59
entre distintos eixos produtores de diferenças e de desigualdades,<br />
tais como idade, gênero, raça, classe e nacionalidade, que se interseccionam.<br />
Reflete-se, portanto, sobre como essas combinações<br />
produzem mais diferenças que, por sua vez, produzem desigualdades,<br />
e de que forma tais mecanismos devem aparecer na representação<br />
produzida sobre o/a Outro(a) na escrita. Em vista disso,<br />
põem-se como implicações dessas transformações metodológicas<br />
na Antropologia Feminista a busca pela manutenção de uma postura<br />
crítica sobre o trabalho de campo, o questionamento dos cânones,<br />
a transformação das noções convencionais sobre pesquisa<br />
qualitativa através da imaginação e a luta por projetos e coalizões<br />
politicamente significativos. (PANAGAKOS, 2004)<br />
Assim, o método etnográfico se revela como a marca distintiva<br />
da Antropologia Feminista dentro do campo da teoria feminista.<br />
A preocupação com as relações de poder e com as estruturas de<br />
desigualdade que marcam a Antropologia Feminista estão presentes<br />
também na postura crítica com que a etnografia é encarada. 6<br />
A antropologia feminista e o seu objeto<br />
A partir desse revisionismo crítico, podemos nos aproximar<br />
do que seria o objeto da Antropologia Feminista, elemento crucial<br />
para a delimitação das fronteiras do campo. Em artigo provocativo,<br />
Sarah Ono (2003) afirma que o desafio contemporâneo para<br />
a Antropologia Feminista é a possibilidade de se constituir prescindindo<br />
das mulheres como seu objeto. Mas qual seria, então?<br />
6 Cabe ressaltar que as preocupações acerca das relações de poder em campo, assim como<br />
sobre o potencial imperialismo teórico da Antropologia, o não reconhecimento de outras<br />
tradições antropológicas que não as euro-americanas e a autoridade do antropólogo enquanto<br />
aquele que escreve sobre outras culturas foram questões centrais da autocrítica chamada<br />
pós-moderna por que passou a disciplina, ao longo da década de 80. (CLIFFORD; MARCUS,<br />
1986; MOORE, 1996; MARCUS; FISCHER, 1986) No entanto, a crítica feminista a essa produção<br />
aponta para o silêncio em relação às mulheres e ao seu lugar secundário nas etnografias. (BELL;<br />
CAPLAN; KARIM, 1993) Assim, parece haver um interessante avanço da crítica feminista em<br />
relação à crítica pós-moderna direcionada à Antropologia.<br />
60<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Tal objeto me parece ser constituído por alguns elementos: uma<br />
noção de diferença complexificada, relações de poder e a preocupação<br />
com a produção de desigualdades.<br />
A Antropologia Feminista, ao criticar a noção de diferença<br />
cultural característica da Antropologia, introduz uma noção de<br />
diferença que passa a ser complexificada, havendo um comprometimento<br />
com complexos feixes de diferenças que se interseccionam<br />
e cujas combinatórias são variáveis, de acordo com os<br />
contextos e situações investigados. Muito embora o gênero tenha<br />
um lugar de destaque, ele não é o único produtor de diferença,<br />
devendo, portanto, ser tomado no cruzamento com outros elementos<br />
produtores de diferença tais como raça, etnia, nacionalidade,<br />
geração e classe.<br />
Como se pode perceber, o gênero parece ser a pedra de toque<br />
para a Antropologia Feminista, no entanto, a mera aparição da<br />
palavra gênero não implica, necessariamente, no adjetivo feminista.<br />
Mas há que se fazer uma ressalva a fim de explicitar o sentido<br />
que assume nesta produção. Muito embora a Antropologia<br />
Feminista implique na utilização da categoria gênero ao invés da<br />
categoria mulher, nem todo estudo sobre gênero na Antropologia<br />
é feminista. (MOORE, 1988; ONO, 2003) Gênero se complexifica:<br />
tal como passa a ser tomado pela Antropologia Feminista, ele é<br />
entendido como “um princípio pervasivo da organização social”.<br />
(STRATHERN, 1987, p. 278) No seu estado atual, a Antropologia<br />
Feminista vai além do estudo da construção social da identidade<br />
de gênero e dos papéis de gênero, feito pela Antropologia do Gênero,<br />
segundo a caracterização de Moore (1988).<br />
Nesse sentido, parece-me rentável para a Antropologia Feminista<br />
acolher o conceito de gênero tal como proposto por Marilyn<br />
Strathern, como uma “categoria de diferenciação” (1990, p. 9) que<br />
tem como referência a imagística sexual. Nas suas formulações,<br />
essa categoria de diferenciação cria categorizações cujas interre-<br />
Gênero, mulheres e feminismos 61
lações revelam possibilidades inventivas sobre relações de gênero<br />
e sobre relações sociais. Assim, perpassa e marca as mais diversas<br />
ações sociais, não se restringindo, portanto, à relação corpo<br />
biológico−sexo−gênero, antes, abarca e dota de sentido a organização<br />
da vida social. 7 Essa noção de gênero, tida como guia na<br />
consideração de alteridades complexas, leva, também, à busca<br />
pela compreensão das relações de poder nelas embutidas e dos<br />
processos de constituição de sistemas de desigualdades.<br />
Com isto, chegamos, inevitavelmente, às considerações sobre<br />
a natureza política dessa Antropologia, outro elemento fundamental<br />
para a delimitação do campo. O seu caráter político,<br />
presente na aparição recorrente da proposta de luta por projetos<br />
e coalizões politicamente significativos nos textos consultados –<br />
como a proposta de se ter um conhecimento produtivo, politicamente<br />
levantada por Deborah Gordon (1993) e Ono (2003) –,<br />
recoloca no seu horizonte teórico a noção de engajamento como<br />
uma característica que lhe é inerente.<br />
A noção de político aqui presente me parece estar associada a<br />
um questionamento e a uma busca pela compreensão de como se<br />
configuram as relações de poder e em como a ideia de diferença,<br />
tão cara à Antropologia em geral e à Antropologia Feminista, em<br />
especial, se complexifica e aparece na constituição de desigualdades.<br />
O intuito parece ser, de posse desse mapa cultural das relações<br />
de poder, o de contribuir para a sua reconfiguração. É nesse<br />
sentido que Gordon (1993) entende a Antropologia Feminista e o<br />
seu caráter engajado, inspirado pela reflexão de Peggy Sanday sobre<br />
fraternidades, estupro e masculinidade entre homens bran-<br />
7 Algumas vertentes de estudos sobre a violência contra as mulheres no Brasil se utilizam de uma<br />
noção de gênero que associa corpo biológico−sexo−gênero. Ver, por exemplo, a compilação de<br />
Maria Amélia Teles e Mônica Melo (2002) sobre o tema e Suely Almeida (1998). Ver também o<br />
levantamento crítico realizado por Maria Luiza Heilborn (1992).<br />
62<br />
Gênero, mulheres e feminismos
cos universitários estadunidenses, 8 e reflete sobre a ideia de que<br />
a produção antropológica feminista pode ser uma forma de ação<br />
social. Cabe ressaltar que Gordon reflete sobre esse tema em um<br />
contexto marcado por uma então recente Antropologia Feminista<br />
voltada para pesquisar a sua própria sociedade e preocupada<br />
em compreender questões sócio-político-culturais que atingem,<br />
particularmente, as mulheres. Assim, esse caráter engajado e, de<br />
certa forma, útil, da pesquisa antropológica feminista demarca o<br />
seu cunho político.<br />
O adjetivo feminista modificador do substantivo Antropologia,<br />
implica na “reestruturação ou subversão das estruturas de<br />
poder em algum nível”, subversão aqui associada à ideia de um<br />
desafio crítico às formas de produção de conhecimento estabelecidas,<br />
de uma possibilidade de redefinição dos caminhos a serem<br />
seguidos e da expansão dos temas a serem estudados. (ONO, 2003,<br />
p. 4) Através da sua imaginação criativa e da sua crítica, a Antropologia<br />
Feminista tem um grande potencial inovador, de extrema<br />
relevância para a expansão da disciplina.<br />
Por uma antropologia feminista brasileira<br />
Soa particularmente estranho, em uma época de rompimento<br />
de fronteiras disciplinares, querer delimitar as fronteiras de uma<br />
disciplina em um campo essencialmente interdisciplinar. Nessa<br />
intensa proliferação de referenciais e de combinações disciplinares,<br />
encontrei o estímulo para pensar qual seria a particularidade<br />
do olhar antropológico. A busca por uma maior clareza na definição,<br />
nas implicações, nas possibilidades e nos limites dessa Antropologia<br />
adjetivada se fundamenta em uma avaliação de que me<br />
8 Segundo Gordon (1993), Sanday foi levada a estudar esse tema em função de uma aluna sua que<br />
foi estuprada por um grupo de estudantes universitários. A realização da pesquisa fez com<br />
que a antropóloga pudesse conhecer essa realidade e contribuir para a criação de mecanismos<br />
de combate a essa violação nos campi estadunidenses.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 63
parece ser este um passo importante para a consolidação de um<br />
olhar, de um lugar de fala e de uma tradição.<br />
Junto a isso há, ainda, a tentativa de transpor uma certa resistência<br />
semelhante àquela que talvez esteja nas origens da ausência<br />
de uma Antropologia Feminista no rol de possibilidades de<br />
atuação e de interesse previsto pela Associação Brasileira de Antropologia.<br />
Em se transpondo tal resistência, desvela-se o feminismo<br />
fortemente presente na Antropologia brasileira, como se<br />
pode perceber na larga tradição de estudos antropológicos sobre<br />
o tema da violência contra a mulher como os de Mariza Corrêa<br />
(1983), Miriam Grossi (1988), Maria Filomena Gregori (1993),<br />
entre outras(os).<br />
Em vista disto, e em um registro mais político, tendo a concordar<br />
com a distinção, proposta por Moore (1988), entre Antropologia<br />
Feminista e Antropologia do Gênero. Sabemos que gênero<br />
e feminismo não são termos independentes, mas, também, que<br />
não têm uma relação necessária. Creio que a necessidade de afirmar<br />
o “feminista” da antropologia é uma atitude, em si, política,<br />
de positivar o engajamento político na produção de conhecimento<br />
e emprestar um caráter especificamente crítico à prática antropológica.<br />
Em muitos contextos, os usos da locução “de gênero” no lugar<br />
do adjetivo “feminista” se revela uma importante estratégia a<br />
fim de tornar este último mais palatável. No entanto, acredito que<br />
apostar em uma postura mais frontalmente política e reafirmar<br />
o adjetivo “feminista” da Antropologia que fazemos, lhe confere<br />
um comprometimento crítico para “desafiar e re-desafiar as suposições<br />
sobre os próprios lugares das pessoas no mundo [...] com<br />
seus complexos conflitos inter-gênero, inter-racial, inter-cultural<br />
e internacional num modo ética e politicamente sensível”.<br />
(MASCIA-LEES; BLACK, 2000, p. 106 apud ONO, 2003, p. 4)<br />
64<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Não joguemos o bebê fora junto com a água do banho, no<br />
entanto. Por um lado, confiramos ao gênero a sua crucialidade<br />
dentro do campo, por ser uma categoria fundamental para a Antropologia<br />
Feminista tal como a entendemos aqui e eixo importante<br />
da noção de diferença com que esta trabalha, lado a lado do<br />
escrutínio das relações de poder inerentemente incrustadas na<br />
constituição do social e dos sistemas de desigualdades. Por outro<br />
lado, esse comprometimento político não nos pode cegar para as<br />
especificidades locais, para os processos contextuais de negociação<br />
de sentidos; daí a importância da vigilância epistemológica<br />
em relação ao uso do método etnográfico para o questionamento<br />
e escrutínio dos conceitos tão caros à Antropologia.<br />
Feitas as devidas ponderações, assumamos, a partir de então,<br />
este adjetivo e este lugar dentro do campo da Antropologia e da<br />
Teoria Feminista para que, parafraseando Gregori (1999), a Antropologia<br />
mereça também ser chamada de Feminista, sem reservas.<br />
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Gênero, mulheres e feminismos 67
Segunda parte<br />
G<br />
Tratando de<br />
interseccionalidades
FEMINISMO, GERONTOLOGIA<br />
E <strong>MULHERES</strong> IDOSAS 1<br />
Alda Britto da Motta<br />
Introdução<br />
A mulher idosa é uma personagem em suspensão – ela não é<br />
posta de forma integral em quase nenhum lugar social. Inclusive<br />
na produção científica. Vejamos: O feminismo sempre a ignorou.<br />
No auge da militância política feminista e não-classista das décadas<br />
de 60 e 70, a conclamação pela sisterhood não deu vazão<br />
às diferenças de idade – éramos todas jovens, geração das filhas<br />
de nossas “atrasadas” mães. Quarenta anos depois, continuamos<br />
inadvertidamente “jovens”, somos todas ainda filhas briguentas,<br />
apenas da grande Simone, a pioneira e libertária − e que, por ironia,<br />
nunca pretendeu ter filhos – mas é a única antepassada intelectual<br />
que reconhecemos com orgulho.<br />
1 Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no XIV Encontro da REDOR, realizado em<br />
Fortaleza, Ceará, em dezembro de 2007.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 71
No percurso das elaborações teóricas que se sucederam, criada<br />
a indispensável categoria gênero, reconhecido o seu caráter<br />
relacional, a sua dimensão existencial e de análise, sua transversalidade,<br />
em contínua intersecção com outras categorias relacionais<br />
como classe, raça/etnia e – relutantemente – idade/geração,<br />
as velhas quase nunca têm sido objeto direto de consideração e<br />
pesquisa. Nem sequer de crítica, pelo seu presumido passadismo,<br />
nem quando reconhecida a heterogeneidade identitária dos grupos<br />
categoriais na vivência da pós-modernidade.<br />
A gerontologia, ao contrário, não a ignoraria. Nela constrói<br />
o mais básico de sua prática. Mas, como expressa Clary Krekula,<br />
a mulher velha é aí tratada como objeto, problema e não sujeito.<br />
E quando estudada, o tem sido, predominantemente, from a<br />
misery perspective, enfatizado o seu envelhecimento como problema.<br />
Teoricamente mais grave, “[...] nunca se inicia com a experiência<br />
das mulheres, nem da perspectiva de gênero como um<br />
processo social e princípio organizador que cria as experiências de<br />
mulheres e de homens”. (2007, p. 160, tradução nossa) 2<br />
Desencontros teóricos<br />
Uma visão realmente limitada, sem problematização da condição<br />
etária/geracional, tem sido a comum na teoria feminista,<br />
que pressupôs, na sua origem, e ainda pressupõe, em grande<br />
parte, a mulher como a mãe jovem/ esposa/trabalhadora, a que<br />
realiza(va) a famigerada dupla jornada de trabalho. Aquelas em<br />
idade produtiva... e reprodutiva. Como enfatiza, ainda, Krekula<br />
(2007), as mulheres muito jovens, as que não têm filhos e as velhas<br />
(“não trabalhadoras”) ficam invisíveis. Nessa concepção, as ido-<br />
2 No original: “[…] neither starts from women’s own experiences, nor from the perspective of<br />
gender regarded as a social process and organizing principle that creates women’s and men’s<br />
experiences.”<br />
72<br />
Gênero, mulheres e feminismos
sas não seriam mais nem produtivas nem reprodutivas... Quando,<br />
em realidade, como mulheres, continuam a reproduzir, real ou<br />
potencialmente, a força de trabalho, em seu cotidiano doméstico;<br />
além de, especialmente como velhas, atualizarem a memória<br />
social. Lembrando-se que mesmo as mais idosas atuam, em graus<br />
variados, no âmbito doméstico.<br />
Muito mais que “olhar” os netos, D. Vitalina, 82 anos, viúva,<br />
seis filhos, relata: “Faço tudo em minha casa. Há muito que não<br />
tenho uma empregada. Acho que não conseguiria mais dividir<br />
minha casa com mais ninguém”. (BRITTO DA MOTTA, 2004) E D.<br />
Eremita, 91, viúva, ainda que não morando só, revela: “Eu ainda<br />
cozinho, nessa idade que você está vendo”.<br />
Ironicamente, entretanto, aquele enfoque corresponde, em<br />
seus defeitos, ao da família em modelo único (à maneira de Talcott<br />
Parsons, na década de 50), mais ou menos restrito à forma nuclear,<br />
tão criticado pelo feminismo das décadas de 60 e 70 do século<br />
passado e em cuja referência atual já perdeu o seu lugar produtivo<br />
a mulher/mãe idosa, titular, quando muito, de um supostamente<br />
desolador ninho vazio... que, entretanto, “na roda da História”<br />
está voltando a se encher... de filhos adultos e netos, tangidos pela<br />
reestruturação produtiva e pelas atuais recomposições familiares.<br />
Só mais recentemente – e não diretamente relacionado às<br />
discussões feministas e, não raro, sequer às teorias de gênero –<br />
chega-se à percepção da existência de novas formas de família,<br />
entre elas a ampliada, multigeracional, até com duas gerações de<br />
idosos; em geral, de idosas, ensejada pela longevidade crescente<br />
e pelas novas formas de solidariedade intergeracional, mas que é<br />
tema/ enfoque/objeto de pesquisa ainda relativamente raro e, seguramente,<br />
não-prioritário para o feminismo. (BRITTO DA MOT-<br />
TA, 1998b; GOLDANI, 1999)<br />
Também as referências diretas à categoria idade, quando ocorrem,<br />
na teoria feminista são em geral incolores, analiticamente<br />
Gênero, mulheres e feminismos 73
inexpressivas, porque não pretendem elucidar situações reais, ou<br />
vividas, nem discutir teoricamente as vivências temporalmente<br />
situadas − o que se dá, aliás, de referência a todas as idades −, e<br />
apenas completa o ciclo da não-referência analítica ao âmbito das<br />
gerações, iniciada com o caso das mulheres idosas. Longe fica,<br />
esse quase descarte, das menções enfáticas e do vigor analítico<br />
com que são tratadas outras categorias identitárias como, além de<br />
gênero, raça e classe social.<br />
Como eco da ausência de percepção/discussão sobre idosos no<br />
meio científico, nos grandes levantamentos mais ou menos públicos<br />
da mídia, as idades consideradas são sobretudo medianas,<br />
avançando raramente para além dos sessenta. Perdendo, portanto,<br />
em representatividade. (Vejam-se os periódicos dossiês ou resultados<br />
de pesquisa da Folha de São Paulo e da revista Veja, por<br />
exemplo).<br />
A Gerontologia, sim, conta e reconta a existência da mulher<br />
idosa – mas, geralmente assim, no singular e genérica − não como<br />
objeto preferencial, que são os velhos, também genericamente;<br />
a mulher como personagem do real imediato, embora já saindo<br />
de cena: desgastada e sem muitos recursos próprios, vivenciando<br />
perdas, principalmente corporais e de saúde, e necessitando<br />
de cuidados. Como os homens. Neste ponto, aparentemente, sem<br />
diferenças de gênero. Mas eles são – como minoria demográfica<br />
– ainda menos conhecidos que as mulheres; embora, contraditoriamente,<br />
com lugar social definido, status melhor situado.<br />
(HEARNS, 1995)<br />
Elas são mais referidas porque maioria demográfica e, supostamente,<br />
mais desvalidas economicamente; além de repetidamente<br />
reportadas, na literatura gerontológica e geriátrica, como<br />
portadoras de mais constantes e duradouros problemas de saúde<br />
que os homens − o que, diante de sua provada aptidão para maior<br />
74<br />
Gênero, mulheres e feminismos
longevidade é um paradoxo que exige maior esclarecimento. Ao<br />
mesmo tempo − nova contradição −, só ela, mulher, apesar das<br />
“deficiências” sempre apontadas, devendo ser também cuidadora<br />
de maridos “velhos” (isto é, doentes ou, incapacitados), de filhos<br />
e netos, pois cuidar é o “destino” clássico e persistente de todas as<br />
mulheres. Imagem pública que se funde com a prevalente na vida<br />
cotidiana, expressão de um contrato social imemorial.<br />
O protótipo dessa imagem/papel de cuidadora é atualmente<br />
materializado na figura ambígua da avó, vista ao mesmo tempo,<br />
ou alternadamente, como a que vive ajudando a família e/ou,<br />
pela “idade”, “pesando” sobre a família. Reconhecida, enfim,<br />
e só muito recentemente, pela premência dos fatos a se repetirem,<br />
numerosos, em um papel de apoio diretamente “materno”,<br />
na criação ou cuidado fundamental de netos (quase) sem mães;<br />
mas, aí, pelas Ciências Sociais, não contextualizadas diretamente<br />
pelo feminismo. Realizando-se, como também analisa Goldani,<br />
“[...] uma continuada discriminação em que a mulher idosa é vista<br />
como dependente da família, quando, na verdade, ela cumpre,<br />
cada vez mais, a função de cuidadora de todos” (1999, p. 82).<br />
Em compensação, essa visão social e analiticamente rarefeita,<br />
particularista, das idosas – como também dos idosos – tem consequências<br />
profissionalmente interessantes para os especialistas<br />
da área –, alimentam o seu dia a dia de atividades e o seu sucesso<br />
ou realização profissional, pois, como expõe Remi Lenoir (1998,<br />
p. 63) o que se define como problema social “[...] varia segundo as<br />
épocas e as regiões e pode desaparecer como tal”. E enquanto não<br />
desaparece, alimenta as práticas profissionais.<br />
No que se refere ao sexo e à idade, vistos, habitualmente, como<br />
condições biológicas e:<br />
[...] critérios de classificação dos indivíduos no espaço social<br />
[...] a elaboração de tais critérios está associada ao aparecimen-<br />
Gênero, mulheres e feminismos 75
to de instituição e agentes especializados que encontram nessas<br />
definições a força motriz e o fundamento de suas atividades.<br />
(LENOIR, 1998, p. 64).<br />
Porque, afora a eventual – porque assistemática e nem sempre<br />
diretamente intencional – percepção (insight) da literatura de<br />
ficção (no Brasil, exemplos de Clarice Lispector, Lygia Fagundes<br />
Telles, Sonia Coutinho), a própria Simone de Beauvoir com a sua<br />
femme rompue e, muito recentemente, raros estudos acadêmicos<br />
sobre as velhas na produção literária, a exemplo de Susana Lima<br />
(2007), somente a pesquisa das Ciências Sociais, por se debruçar<br />
na observação metódica e analítica da realidade individual/social<br />
das pessoas, reconstrói esse ser integral, ainda que heterogêneo<br />
em seus modos de vida e suas várias e articuladas dimensões identitárias<br />
– ser do sexo feminino, em determinado momento histórico,<br />
avançada na trajetória da(s) idade(s), vivenciando, cada<br />
uma, individual e coletivamente, o resultado da vida construída<br />
entre a subjetividade e o que o contexto social lhe facultou (neste<br />
ponto, como todas as mulheres em cada uma das suas idades).<br />
Evidente que também os cientistas sociais têm proveito profissional<br />
com os seus estudos e pesquisas com essa personagem,<br />
sobretudo quando se tornam pesquisadores burocratas, mas também<br />
têm realizado tarefas realmente produtivas, nos moldes sugeridos<br />
por Lenoir:<br />
O objeto da sociologia da velhice não consiste em definir quem é<br />
e não é velho, ou em fixar a idade a partir da qual os agentes das<br />
diferentes classes sociais se tornam velhos, mas em descrever o<br />
processo através do qual os indivíduos são socialmente designados<br />
como tais. (1998, p. 71)<br />
Em compensação maior, têm a possibilidade de realizar um<br />
reconhecimento social da categoria idosa/idoso que lhes permite<br />
ir mais fundo em sua ação e, potencialmente, alcançar uma<br />
76<br />
Gênero, mulheres e feminismos
militância ética e política mais eficaz. Guita Debert expressa isto,<br />
também, com o exemplo dos recursos da Antropologia:<br />
[...] Com a idéia de estranhamento a Antropologia nos ajuda a<br />
contestar certas convenções próprias do senso comum [e, não<br />
raro, acrescentaria, até oriundas do campo científico] que organizam<br />
nossas práticas. [...] O pressuposto que organiza o discurso<br />
gerontológico é que nós vamos ficar mais velhos, vamos<br />
ficar mais doentes e vamos gastar mais. Raramente discutimos<br />
essa convenção [...]. (2005, p. 109)<br />
E, mais adiante:<br />
O que a Antropologia pode fazer é oferecer elementos para politizar<br />
certas afirmações que se pretendem neutras politicamente<br />
e que afetam os velhos e nos afetam [...] ela exige que tenhamos<br />
um cuidado maior com as previsões para o futuro e nos mostra<br />
como essas previsões acabam por organizar o nosso presente,<br />
muitas vezes de maneira nefasta para certos grupos da população.<br />
(DEBERT, 2005, p. 110)<br />
Falando-se em militância, é importante lembrar, ao mesmo<br />
tempo, ações práticas com resultados eficazes empreendidas por<br />
instituições pioneiras no trato com os idosos no Brasil, como o<br />
SESC, apesar de todo um tempo de estranhamento destas diante<br />
da pesquisa acadêmica. Como registra Márcia Gomes: “[...] a<br />
atuação das entidades autoproclamadas representantes dos idosos,<br />
especialmente o SESC e a SBGG, 3 foi de grande importância<br />
no trabalho de reconhecimento e legitimação pública do problema<br />
social da velhice” (2006, p. 14). Por outro lado, continua a expor,<br />
“a participação dos especialistas em geriatria e gerontologia<br />
foi fortemente sentida no conjunto do Plano Nacional do Idoso<br />
(PNI) (1994, regulamentado em 1996), especialmente com relação<br />
ao desenvolvimento de ações governamentais voltadas às áreas de<br />
3 SESC − Serviço Social do Comércio; SBGG −Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 77
saúde e de educação, propondo-se até a inclusão de geriatria e gerontologia<br />
como disciplinas curriculares nos cursos superiores.<br />
Mas aí se retorna ao dilema fazer x aproveitar exposto por<br />
Lenoir – criam-se as políticas e as instituições e, concomitantemente,<br />
criam-se/definem-se os seus gestores... Entretanto, reconhecemos<br />
todos, foi o próprio movimento dos idosos, nos anos 90,<br />
especialmente na luta pelos 147% da Previdência, que deu visibilidade<br />
e propiciou reconhecimento político às questões da velhice.<br />
(BRITTO DA MOTTA, 1998a; SIMÕES, 1998; 2000; AZEVEDO, 2004;<br />
GOMES, 2006) Apenas, naquele momento, as mulheres quase não<br />
estavam no movimento... Só depois iriam chegando...<br />
Mas é curioso recordar as que já estavam, como, por exemplo,<br />
as primeiras – poucas – mulheres participantes das reuniões<br />
semanais da Associação de Aposentados da Bahia, início da década<br />
de 90 do século passado, no Clube Fantoches de Euterpe, em<br />
Salvador. Eram, sobretudo, pensionistas, raras participando das<br />
discussões e iniciativas do grupo, uma única mulher na Diretoria,<br />
espécie de Secretária Feminina, como ainda era usual – espécie<br />
de casos álibi − em agremiações na época. Figura modelar, atuava<br />
à maneira de dona de casa, recebendo os que chegavam, obsequiando,<br />
providenciando água e cafezinhos... como observado<br />
pela equipe de jovens estudantes de sociologia da UFBA, na época.<br />
(PEREIRA; et al., 2002)<br />
Anos depois, “escoladas” na Associação, mas, também nos<br />
Grupos e Programas para a Terceira Idade desse movimentado fim<br />
de século (ver BRITTO DA MOTTA, 1999), vamos (re)encontrá-las<br />
bem mais ativas, numerosas e reivindicativas como participantes<br />
do Fórum Permanente em Defesa do Idoso.<br />
Criado em Salvador em 2004, objetivando articular a atuação<br />
de várias entidades envolvidas com a questão do envelhecimento,<br />
passa e ultrapassa a questão previdenciária em direção a horizonte<br />
mais amplo, o dos (vários) direitos dos idosos, estendendo-se<br />
78<br />
Gênero, mulheres e feminismos
à implementação do ainda recente Estatuto do Idoso, sua inspiração<br />
e estímulo. Pretendendo recobrir, em princípio, a abrangência<br />
de ações diferenciadas que informam as duas últimas décadas do<br />
século XX, o Fórum desemboca em uma politização do cotidiano<br />
que o Estatuto apenas inicia. O tempo dirá mais. (ver AZEVEDO,<br />
2007; 2010)<br />
Como estão as mulheres idosas<br />
Acompanhando a discussão sobre a invisibilidade e/ou a<br />
ideologização das mulheres idosas nos estudos e pesquisas tanto<br />
feministas como gerontológicas, exponho alguns resultados<br />
de pesquisas e análises na dimensão das Ciências Sociais que informam<br />
sobre sua situação atual. Algumas se referem a autores<br />
“clássicos” sobre a questão, como Myriam Lins de Barros, Guita<br />
Debert e Clarice Peixoto, outras introduzem autores de produção<br />
acadêmica recente, em recortes temáticos dos mais imediatos.<br />
O processo de envelhecimento é algo que as mulheres têm,<br />
evidentemente, em comum com os homens, porém muitas das<br />
vivências e os modos de realização deste ainda são bastante diferenciados<br />
segundo o gênero. As condições comuns a homens<br />
e mulheres, que sintetizam muito do que é a vida dos idosos no<br />
Brasil hoje, ainda se centram no fato de constituírem segmento<br />
populacional sem um lugar social e, por isso mesmo, objeto de<br />
preconceito e cerceamentos sociais que se expressam pelo fato de<br />
ainda permanecerem:<br />
• Alijados, cada vez mais prematuramente, do mercado de<br />
trabalho.<br />
• Sem papel social definido, ou em papéis ambíguos (seriam<br />
incômodos, mas também ajudam...), e sem gozarem de suficiente<br />
respeito, também na família.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 79
• Objetos de preconceito, especialmente censurados “pela<br />
idade”, e pelo que ousam ainda fazer, inclusive coibidos em<br />
sua sexualidade. Principalmente as mulheres.<br />
• Com atuação minoritária e segmentar na política formal, a<br />
participação representativa geralmente só ensejada por privilégios<br />
de classe ou manobras do familismo. Como eleitores,<br />
esquecidos nas plataformas e até, em princípio, alijados,<br />
porque dispensados da obrigação de votar (voto facultativo)<br />
aos 70 anos.<br />
• Se não legalmente, pelo menos, de fato, excluídos de procedimentos<br />
da vida econômica, já a partir dos 60 anos, como<br />
realizar compras a prazo de bens e mercadorias de mais alto<br />
custo, como casas e carros ou tomar empréstimos bancários.<br />
Exceção dos recentes e nefastos empréstimos consignados,<br />
frequentemente fraudulentos, que merecem denúncia e investigação<br />
à parte.<br />
• Como defesa psicológica, por não se reconhecerem na imagem<br />
social negativa da velhice que ainda predomina, sujeitos<br />
a uma autopercepção ilusória como não-velhos, ou velhos<br />
“diferentes” – mais saudáveis, mais dinâmicos, melhor de<br />
“cabeça” que os “outros”.<br />
Ao mesmo tempo, em um contexto social extraordinariamente<br />
dinâmico, estão sendo muitas, e rápidas, as mudanças, vivenciadas<br />
ou construídas, sobretudo pelas mulheres. Principalmente:<br />
• No âmbito da economia, no setor de produção, em contraposição<br />
à tendência de expulsão, os idosos estão começando<br />
a permanecer mais longamente ou, sobretudo, retornando,<br />
com mais frequência, depois da aposentadoria ao mercado<br />
de trabalho, em consultorias ou em atividades quase sempre<br />
de status inferior ao dos seus empregos anteriores – em<br />
variações, a depender de sua classe social e condição de gê-<br />
80<br />
Gênero, mulheres e feminismos
nero. (BRITTO DA MOTTA, 2001; PEIXOTO, 2004; SOUZA,<br />
2009)<br />
• No setor do consumo, constituindo-se em destacada fatia<br />
do mercado, principalmente, da indústria de lazer (via clubes<br />
e viagens “para a terceira idade”) e programas de atividades<br />
e ensino “para aprender a envelhecer” (BRITTO DA<br />
MOTTA, 1999), com “qualidade de vida”, como doutrina a<br />
Gerontologia.<br />
• No âmbito da sociabilidade, buscaram, principalmente as<br />
mulheres, novas formas de circulação extrafamília, o que é<br />
facilitado pelas várias modalidades desses referidos grupos<br />
“de convivência” ou programas e cursos “para a terceira<br />
idade”, oferecidos no mercado educacional e de lazer/cultural.<br />
No que, afinal, ampliam pelo menos a sociabilidade<br />
intrageracional, a família mantendo, entretanto, a centralidade<br />
afetiva e das trocas de apoios e serviços. (BRITTO DA<br />
MOTTA, 1998; 2004)<br />
• Mais que dependentes da família, firmam-se os idosos atuais,<br />
cada vez mais, como arrimos de família – ainda quando,<br />
paradoxalmente, percebendo parcos proventos e pensões –<br />
por disporem de rendimentos regulares em uma sociedade a<br />
cada hora mais marcada por uma reestruturação produtiva<br />
que leva a dificuldades de sobrevivência material e social.<br />
Quando ter uma casa, inclusive, é crucial para o possível<br />
abrigo de filhos e netos, desempregados ou descasados.<br />
(BRITTO DA MOTTA, 1998b; CAMARANO, 2003)<br />
• Estão construindo e vivenciando nova inserção na dimensão<br />
política, firmando renovada imagem de respeitabilidade<br />
pública geral, principalmente através do movimento de<br />
aposentados – desde a conhecida luta pelos 147% da Previdência.<br />
(SIMÕES, 1998; 2000; AZEVEDO, 2005)<br />
Gênero, mulheres e feminismos 81
• Terem se tornado objetos de destinação de políticas públicas,<br />
afinal. Entretanto, políticas durante longo tempo mais<br />
anunciadas do que realmente implementadas e, quando afinal<br />
executadas, o sendo quase sempre de forma pontual e<br />
com insuficiente informação à população. Ao mesmo tempo,<br />
ameaçados por uma política de seguridade social, especialmente<br />
a Previdência, que os expõe, porque crescentemente<br />
numerosos, como uma espécie de perigo público para a<br />
reprodução social, ao mesmo tempo em que os reduz, em<br />
maioria, quando aposentados, a condições de maior pobreza<br />
ou até de miserabilidade.<br />
A situação atual, de grandes mudanças em processo, vem<br />
acentuando as diferenças de comportamento e expectativas entre<br />
homens e mulheres, tanto na vivência ou projeção das situações<br />
comuns aos dois sexos, apontadas anteriormente, mas também,<br />
ou sobretudo, ensejando características diferenciais de condição<br />
ou atuação de gênero que podem ser temporárias, mas estão sendo,<br />
centralmente, das mulheres. E às vezes de forma tão marcante,<br />
esses efeitos das relações de gênero, que se sobrepõem, como<br />
venho registrando desde trabalhos anteriores, aos da própria<br />
condição de classe. Há, contudo, ainda algumas outras diferenças<br />
ou ênfases de gênero que moldam mais especificamente o novo<br />
perfil da idosa brasileira.<br />
Em primeiro lugar, a expressão demográfica. É sabido que as<br />
mulheres são mais numerosas que os homens, constituindo quase<br />
60% da população que envelhece; diferença que tende a se ampliar<br />
significativamente nas faixas etárias mais avançadas. É uma<br />
tendência mundial, peça essencial do fenômeno que se vem analisando<br />
como “feminização da velhice”. (BERQUÓ, 1996) A imagem<br />
social do idoso está realmente assumindo essa face feminina, apesar<br />
do contingente masculino presente no movimento dos aposentados<br />
ser marcante, pela determinação e repercussão das suas<br />
82<br />
Gênero, mulheres e feminismos
ações, ainda que ao mesmo tempo numericamente minoritário<br />
e de visibilidade pública intermitente. A imagem mais presente<br />
no cotidiano e fixada, inclusive, pela imprensa, vem sendo a dos<br />
alegres grupos “de terceira idade”, dedicados a uma sociabilidade<br />
programada e centrada no lazer e na cultura – que são predominantemente<br />
femininos.<br />
Esses não representam, entretanto, a totalidade do contingente<br />
de idosos que não estão nas associações de aposentados.<br />
Aliás, venho há tempos discutindo como o termo “terceira idade”,<br />
curiosamente cada vez mais aceito e difundido, certamente<br />
pelo seu conteúdo eufemístico, não recobre a totalidade de situações<br />
dos velhos, mas informa, sobretudo, acerca dos idosos<br />
“jovens”, sua porção feminina e, em grande parte, de camadas<br />
médias. (BRITTO DA MOTTA, 1996) Porque também existem os<br />
muito pobres e, em número crescente, os muito idosos, que, habitualmente<br />
não participam desses programas, mas de uma sociabilidade<br />
tradicional – a das datas familiares e religiosas e dos<br />
remanescentes antigos amigos. (BRITTO DA MOTTA, 2004) Estes<br />
só alcançam a mídia individualizadamente, como “fenômenos”,<br />
exceções, em especial quando atingem idades provectas, geralmente,<br />
centenários, sempre instados a revelar o “segredo” de sua<br />
lucidez e durabilidade. (BRITTO DA MOTTA, 2006)<br />
Mas, para ambos os segmentos de idosas, as “jovens” e as mais<br />
velhas, uma característica existente, raramente registrada – e<br />
de múltiplos significados − é a de serem mulheres sós. Mulheres<br />
que excedem, estatisticamente, os homens, ficando sem par estável,<br />
mas com o governo da própria vida. Os homens morrem<br />
mais cedo e, quando separados ou viúvos, recasam, preferencialmente<br />
com mulheres de gerações mais novas, de acordo com o<br />
conhecido padrão cultural brasileiro e latino-americano de atualização<br />
da juventude... das companheiras. Com isso, resta sempre<br />
uma significativa parcela de mulheres solteiras e, principalmen-<br />
Gênero, mulheres e feminismos 83
te, descasadas e viúvas, que terminam por assumir aquele posto<br />
tradicionalmente masculino, mas, crescentemente feminino, de<br />
chefes de família. E vivem, simplesmente, a solidão afetiva – ou,<br />
pelo menos, a condição de sós.<br />
Esse quadro de solitude, que se evidencia na própria vida cotidiana<br />
(quem não conhece muito maior número de viúvas, descasadas<br />
e solteiras idosas que homens nessas mesmas condições?)<br />
é confirmado nas pesquisas. (OLIVEIRA, 1996; BERQUÓ, 1996;<br />
BRITTO DA MOTTA, 1998)<br />
Entretanto, as pesquisas revelam também um ângulo surpreendente<br />
do sentimento dessas mulheres sem companheiros: a grande<br />
maioria declarou que, tida a oportunidade, não casaria de novo.<br />
(ver BRITTO DA MOTTA, 1999; 2004)<br />
— Casar eu não queria. Ia paquerar e deixar lá. Eu casar e botar<br />
um homem dentro de casa? Mais nunca! Eu ia passear<br />
muito, trabalhar − o sonho e a frustração da vida dela −, me<br />
vestir bem, porque é bonito uma mulher bem arrumada.<br />
(Sra. Altina, 72 anos)<br />
— Deus me livre! Não quero mais. Eu vejo o espelho dos outros.<br />
As pessoas estão viúvas e vivendo numa boa, aí casam<br />
de novo para arranjar problemas!<br />
(Sra. M. de Lourdes, 64 anos)<br />
— Eu não gostaria de casar de novo, para não ficar embaixo do<br />
pé do homem. Não me acostumo ninguém mais mandando<br />
em mim. Eu sozinha estou melhor.<br />
(Sra. M. Hermilina, 60 anos)<br />
Subentendido fica, então, que uma apreciada liberdade que<br />
quase todas proclamam (BRITTO DA MOTTA, 1998a) refere-se,<br />
no âmago, à libertação da histórica subordinação de gênero vivi-<br />
84<br />
Gênero, mulheres e feminismos
da individualmente (além de publicamente...) no interior de cada<br />
casa e casamento.<br />
Essa condição de só significa, paralelamente a uma possível<br />
e apreciável forma de afirmação pessoal, ou superação de desigualdade<br />
nas relações de gênero, ainda um indicador alternativo<br />
de probabilidade de empobrecimento. Porque enquanto a chefia<br />
masculina de domicílios figura, comumente, a existência de uma<br />
partilha de responsabilidades econômicas e/ou sociais (além das<br />
domésticas!) com outro adulto – a esposa – a chefia da família<br />
por uma mulher expressa, majoritariamente, a referida solidão<br />
geracional e afetiva – isto é, que o homem não está lá. O empobrecimento<br />
ou, pelo menos, a queda do nível econômico é a mais<br />
visível consequência. Tanto mais facilmente encontrável, quando<br />
as mulheres hoje idosas tiveram muito menos oportunidades educacionais<br />
e de participação – inclusive igualitária − no mercado de<br />
trabalho que os homens da sua geração e têm, portanto, rendimentos<br />
mais baixos ou mais escassos que eles. Por isso mesmo,<br />
as mulheres, principalmente das classes populares, têm que “se<br />
virar” em tarefas tradicionalmente femininas na produção doméstica<br />
ou/e fazer render, penosamente, o magro provento ou a<br />
pensão de viúva. Tanto mais quanto é cada vez mais comum alguma<br />
forma de dependência econômica, por parte de filhos e netos,<br />
inclusive adultos, dos pais idosos, como venho registrando.<br />
Morar sozinha pode ter, entretanto, um significado alternativo<br />
e mais satisfatório. Pode ser, mais que consequência inevitável<br />
de celibato, viuvez, descasamento indesejado ou morte dos filhos,<br />
também consequência de decisão própria, maneira de autoafirmação<br />
ou busca de tranquilidade e independência – uma característica<br />
nova das mulheres, inclusive das de mais idade.<br />
Márcia Macêdo (2008) realiza um recorte analítico intensamente<br />
atual da vivência de mulheres chefes de família, no qual,<br />
Gênero, mulheres e feminismos 85
a par das diferenciações segundo situação de classe, em sua possibilidade<br />
ou não de realização de escolhas, analisa como “novo<br />
objeto”, “aquisição histórica recente”, a mulher chefe de família<br />
de classe média. Onde cabem, e talvez com mais experiência<br />
e segurança, as mulheres idosas. Comparadas às que, em quase<br />
confidência, na pesquisa me declaravam “Agora chegou o tempo<br />
de pensar também em mim” (BRITTO DA MOTTA, 1999), quase<br />
dez anos depois, a dinâmica social lhes ensejou maior escolaridade,<br />
profissionalismo e segurança interna, para poderem falar,<br />
sempre com satisfação, em termos de “recomeçar a vida” e dar<br />
depoimentos como o de Maysa:<br />
Num certo sentido, depois que eu me separei minha situação<br />
melhorou, eu fiquei mais sem grana, porque tenho que assumir<br />
tudo sozinha, inclusive uma filha, mas eu estou tendo, como há<br />
muito tempo não tinha, minha vida de volta para mim. (Maysa,<br />
50 anos, economista). (MACÊDO, 2008, p. 222)<br />
Uma das razões fortes para o desejo de morar só das mulheres<br />
idosas com os filhos criados se refere à comum e pressionante<br />
tentativa de interferência, ou até ingerência, dos membros mais<br />
novos da família sobre a vida – atividades, saídas, uso do dinheiro,<br />
até vida sexual-afetiva – dos seus idosos, principalmente das<br />
mulheres. É também o registro de Diniz: “É curioso, também,<br />
como os familiares se acham no direito de intervir na vida das velhas,<br />
das mães, principalmente”. E relembra o desabafo revoltado<br />
da setentona Fermina de O amor no tempo do cólera, de Gabriel<br />
García Márquez: “Se nós, viúvas, temos alguma vantagem, é que<br />
já não nos resta ninguém que nos dê ordens” (1993, p. 13).<br />
Elvira Wagner (1992), em entrevista sobre pesquisa que coordenou<br />
com quase 300 idosos, em São Paulo, já revelava que 60,9%<br />
dos entrevistados (dos quais 77% eram mulheres), reconheciam<br />
que “a solidão, por vezes, é boa” e que 80% deles prefeririam<br />
morar em suas próprias casas se tivessem os meios para manter<br />
86<br />
Gênero, mulheres e feminismos
a independência. A pesquisa de Macêdo (2008) confirma isto, em<br />
dados recentes.<br />
Os meios sim, mas, também, a certeza de apoio, como recolhi<br />
em entrevistas. (BRITTO DA MOTTA, 2004) D. Eremita, por<br />
exemplo, aos 91 anos e morando com um filho casado, revela:<br />
“− Se eu tivesse saúde, eu morava sozinha. Eu ainda cozinho,<br />
nessa idade que você está vendo”. Enquanto D. Judite, apesar de<br />
mais saudável, em seus 93 anos, morando com o filho casado e as<br />
netas, não arrisca: “− Hoje não gostaria de morar sozinha, já estou<br />
muito velha para isto. Mas sempre gostei de ter minha casa;<br />
sinto muita falta disso”.<br />
Goldani (1993), além de ter sido das primeiras a assinalar, no<br />
Brasil, mudanças interessantes na estrutura e no relacionamento<br />
entre os membros da família atual, com a convivência de maior<br />
número de gerações e uma superposição de papéis na família e de<br />
situações de parentesco em cada indivíduo, identificou, por outro<br />
lado, também, um aumento crescente do número de idosos<br />
vivendo sós: de 8%, em 1980, para 10%, em 1989, desses, cerca<br />
de dois terços sendo mulheres. Os dados mais recentes divulgados<br />
pelo IBGE (Censo 2000) confirmam e acentuam isso. Assim é<br />
que os domicílios unipessoais de idosos, em 1991, representavam<br />
15,4% do total e, no Censo de 2000, 17,9%. Continuando a elevada<br />
proporção de mulheres – cerca de 67%, em 2000. Aguardemos<br />
para breve os do Censo 2010.<br />
Acompanha tudo isto, uma feição absolutamente atual e única<br />
das mulheres idosas: expressarem mais otimismo, alegria, dinamismo<br />
e forte afirmação (ou sentimento) de liberdade. Comparando,<br />
com vantagem, tanto o tempo atual da velhice com estágios<br />
anteriores de suas vidas, como a sua velhice com a das mulheres<br />
de gerações que as antecederam. Nesse sentido são os depoimentos<br />
de mulheres de classe média (BRITTO DA MOTTA, 1999):<br />
Gênero, mulheres e feminismos 87
— [...] Agora acabou aquilo da mulher de 50 anos ficar em<br />
casa fazendo crochê e tendo filhos. Pelo que eu vejo, a velhice<br />
vai ser de 100 anos.<br />
(Sra. Maria José, 65 anos)<br />
— Acho um barato! Bato a porta do apartamento, saio a hora<br />
que quero.<br />
(Sra. Fernanda, 68, viúva)<br />
— Não sei o que é solidão, porque tento ter uma vida social<br />
muito ativa. Eu posso me considerar hoje uma pessoa feliz.<br />
Não que eu não fosse feliz com meu marido. Mas a maneira<br />
que eu levo minha vida hoje é muito melhor.<br />
(Sra. Eleonora, 70 anos, viúva) 4<br />
Assim como o de mulheres das classes populares, de grupos de<br />
bairro (BRITTO DA MOTTA, 1999):<br />
— Acho que agora é o período mais feliz. Eu só queria uma<br />
pensão melhor [...].<br />
(Sra. Maria Lúcia, 64, viúva)<br />
— Na minha velhice é que estou vivendo, porque na juventude<br />
eu não conseguia quase nada, não tinha liberdade. Agora,<br />
não, sou dona do meu próprio nariz, faço o que quero e<br />
o que gosto. Ninguém me impede de fazer nada [...].<br />
(Sra. Francisca, 66, casada)<br />
Venho, há algum tempo, analisando essa percepção das mulheres,<br />
que denominei liberdade de gênero, e resumiria aqui como<br />
realmente correspondendo ao sentimento de alívio pela cessação<br />
de antigos controles e obrigações societários que pesavam sobre<br />
a mulher quando jovem, e até madura, etapas em que a sua definição<br />
social se dava, antes de tudo, como reprodutora – de novas<br />
4 Folha de São Paulo, 22 de junho, 1997.<br />
88<br />
Gênero, mulheres e feminismos
vidas pelo casamento, da domesticidade e, depois e sempre, da<br />
vida privada. (BRITTO DA MOTTA, 1998)<br />
Cumprido o ciclo básico da vida familial, aqueles controles<br />
tornados desnecessários – porque internalizados ou superados – a<br />
vida, na velhice, pode agora se tornar mais leve, mais livre, nesta<br />
sociedade pós-revolução feminista, em rápida mudança de valores<br />
e costumes. Necessário é que os vários campos, científicos e<br />
políticos, percebam isso.<br />
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Gênero, mulheres e feminismos 91
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92<br />
Gênero, mulheres e feminismos
SEXO, AFETO E SOLTEIRICE<br />
intersecções de gênero, raça e geração<br />
entre mulheres de classe média<br />
Márcia Tavares<br />
Nas próximas linhas, debruço-me sobre os relatos de duas<br />
mulheres solteiras, oriundas das classes médias soteropolitanas,<br />
uma com 35 anos e outra com 67 anos, de forma a identificar especificidades<br />
e mudanças em suas vivências sexuais. Mais precisamente,<br />
procuro realçar como as molduras de sociabilidade, sob<br />
a influência do gênero, grupo étnico e geração a que pertencem,<br />
contribuem para definir suas trajetórias e escolhas no campo afetivo-sexual.<br />
O trabalho foi dividido em três etapas: na primeira, traço um<br />
esboço da solteirice feminina a partir de comentários extraídos<br />
de livros, artigos científicos e revistas comerciais que compõem o<br />
aporte teórico deste trabalho. Na segunda etapa, faço observações<br />
sobre o percurso metodológico adotado para a realização da pesquisa<br />
empírica. Por fim, na terceira, tento desvendar a experiência<br />
íntima das mulheres investigadas, de forma a descobrir como<br />
o gênero, a classe social, o grupo étnico e a geração a que perten-
cem interferem na elaboração de suas aspirações amorosas e em<br />
suas práticas sexuais na condição de solteiras. Nas considerações<br />
finais, procuro contrastar rupturas e continuidades relativas às<br />
percepções e sentimentos, assim como os limites e possibilidades,<br />
no campo afetivo-sexual, das mulheres que nunca contraíram<br />
matrimônio.<br />
À procura de vestígios da solteirice no Brasil:<br />
o que dizem os livros e revistas<br />
No imaginário social das primeiras décadas do século XX, o<br />
não-casamento e a não formação de uma família eram considerados<br />
sintomas emblemáticos de doença ou desvio que, por<br />
conseguinte, deveriam ser tratados, pois ameaçavam o modelo<br />
normativo vigente. Particularmente no caso das mulheres, os<br />
romances naturalistas publicados no período em questão reiteravam,<br />
através das personagens femininas, o discurso médico de<br />
então segundo o qual as moças solteiras que chegavam à idade de<br />
25 anos sem se casar tinham maior propensão a desenvolver crises<br />
nervosas e se tornarem “histéricas”. (ENGEL, 1989)<br />
Da mesma forma, a opção feita por mulheres de se dedicarem<br />
a uma carreira profissional indicava um comportamento desviante,<br />
pois estas negavam suas “inclinações naturais” – o matrimônio<br />
e a maternidade – e superestimavam seu intelecto, o orgulho, a<br />
vaidade e o celibato. Daí porque eram internadas em instituições<br />
psiquiátricas como loucas, submetidas a práticas terapêuticas e à<br />
disciplina asilar, a fim de recuperarem o juízo e, finalmente, exercerem<br />
o seu papel “natural” de mãe e esposa. (CUNHA, 1989)<br />
Ao estudar revistas comerciais publicadas entre 1945 e 1964,<br />
Carla Bassanezi (1996) constata que a felicidade feminina permanecia<br />
restrita ao casamento, à formação de uma família e à<br />
dedicação ao lar, ou seja, as revistas da época defendiam como<br />
94<br />
Gênero, mulheres e feminismos
“inclinação natural” da mulher e, portanto, única fonte de realização,<br />
o matrimônio, a maternidade e os afazeres domésticos. Nos<br />
anos de 1940 e 1950, o discurso moralizante das publicações encerra<br />
um caráter pedagógico, na medida em que ensina as leitoras<br />
a seguirem o “caminho certo”, o casamento, ao qual permanece<br />
confinado o exercício da sexualidade feminina com fins eminentemente<br />
procriativos.<br />
Conforme as revistas publicadas nas décadas de 1940 e 1950,<br />
o celibato era considerado uma ameaça que pairava sobre a vida<br />
das mulheres, principalmente sobre aquelas com mais de 25 anos,<br />
idade que anunciava o declínio das chances de casamento e, consequentemente,<br />
a probabilidade de uma vida futura desprovida<br />
de sentido, cuja tristeza e solidão seriam amenizadas pelo apego a<br />
um animal de estimação, o devotamento aos sobrinhos e afilhados<br />
ou a dedicação ao trabalho. O celibato, escolhido ou forçado, isto<br />
é, o não-casamento confirmaria o fracasso feminino, pois, arranjar<br />
um marido era a maior conquista de uma mulher.<br />
Acrescenta Bassanezi (1996) que, nas décadas de 1950 e 1960,<br />
a mulher com mais de 25 anos sem um pretendente a marido era<br />
rotulada como “encalhada”, “solteirona”, “aquela que ficou para<br />
titia”, o que a tornava alvo de zombaria das pessoas, além de causar<br />
embaraço aos familiares, pois era considerada “incompleta”,<br />
ou seja, não conseguira cumprir o destino natural de esposa-mãe,<br />
o que acarretava um sentimento de culpa e de inadequação.<br />
A partir da década de 1960, um novo cenário se revela para as<br />
mulheres das classes médias urbanas impelido por fatores diversos:<br />
a crescente inserção nas universidades e no mercado de trabalho;<br />
a ampliação de seu espaço político; o surgimento de novos<br />
métodos contraceptivos que favorecem a liberação sexual e eliminam<br />
o risco de uma gravidez indesejada; e a difusão da Psicanálise,<br />
provocando questionamentos acerca dos papéis tradicionais de<br />
esposa-mãe e impulsionando a busca de autonomia e realização<br />
Gênero, mulheres e feminismos 95
pessoal, independência emocional e financeira, liberdade e igualdade<br />
na relação entre os sexos. Por fim, os movimentos emancipatórios<br />
feministas, ao defenderem direitos iguais entre os sexos,<br />
desestabilizam os padrões relacionais e os papéis sexuais, incidindo<br />
no processo de construção identitária dessas mulheres.<br />
Entretanto, as conquistas femininas não conseguem revogar<br />
os modelos tradicionais: a cultura ainda define como ideal feminino<br />
de felicidade o matrimônio e a formação de uma família. Por<br />
conseguinte, a mulher que subverte a ordem, que tem outras ambições<br />
e, por exemplo, supervaloriza a realização profissional e a<br />
independência financeira, parece fadada a permanecer solteira e a<br />
se tornar prisioneira da solidão, caso contrário, deve ocultar suas<br />
insatisfações, diminuir as expectativas relacionais, ou seja, ser menos<br />
exigente em relação aos parceiros, pois somente assim poderá<br />
ter a chance de encontrar “um homem para chamar de seu”.<br />
Até mesmo feministas como Branca Moreira Dias e Rose Marie<br />
Muraro ponderam que a mulher permanece sozinha em função de<br />
tecer expectativas irreais acerca do relacionamento amoroso e por<br />
ser exigente em relação ao parceiro elegível, pois o que não falta<br />
são homens disponíveis. Muraro acrescenta que a solidão feminina<br />
tem sido um problema, principalmente para as mulheres de<br />
classe média e alta, já que elas se recusam a casar com alguém de<br />
classe inferior e, por isso, acabam ficando sós; mas, aconselha, há<br />
solução: “Vai arrumar um homem de outra classe social que você<br />
encontra dez”. (GOLDENBERG; TOSCANO, 1992, p. 85)<br />
Tal argumento é também utilizado por revistas comerciais<br />
dirigidas ao público feminino, que procuram orientar a mulher<br />
acerca de estratégias e truques para driblar a solidão enquanto não<br />
encontra sua alma gêmea; mapeiam espaços de sociabilidade ou<br />
capitais onde há maior número de homens disponíveis, de acordo<br />
com o perfil idealizado por cada mulher, além de indicarem regras<br />
de comportamento para arranjar um namorado, sem se esquece-<br />
96<br />
Gênero, mulheres e feminismos
em de sinalizar para os riscos e armadilhas a que se expõem as<br />
mulheres acima de quarenta anos, uma vez que a diminuição das<br />
chances no mercado matrimonial acentua sua carência afetiva.<br />
Algumas reportagens chamam a atenção para o crescimento<br />
do número de mulheres que escolhem permanecer solteiras, enquanto<br />
outras destacam que estas podem ser felizes mesmo sem<br />
um par, mas esse tipo de artigo ainda é exceção. De modo geral,<br />
as revistas defendem que tanto o investimento das solteiras neoliberadas<br />
na carreira profissional como o consumo em shoppings<br />
centers não passam de um lenitivo contra a solidão, enquanto não<br />
estabelecem um relacionamento amoroso estável. (GONÇALVES,<br />
2007) Logo, mesmo priorizando a carreira, as mulheres por volta<br />
dos 30 anos, sob a influência de amigas casadas ou em vias de se<br />
casar, se sentem inquietas, ansiosas e projetam fantasias em torno<br />
do casamento, ou seja, as solteiras sem par desenvolvem uma sensação<br />
de “incômodo social”, por serem diferentes das demais mulheres<br />
do seu círculo de convivência. (ZAIDAN; CHAVES, 2003)<br />
Observa-se que, apesar das profundas transformações sociais<br />
das últimas décadas, a mulher sem parceiro ainda é concebida<br />
como problemática, incompleta e, ainda, ao que parece, o fato de<br />
conferir prioridade a um projeto profissional pode sugerir egoísmo,<br />
alguma espécie de culto narcísico ou uma compensação para<br />
a ausência de vida afetiva. Além disso, reafirma-se a pretensa vocação<br />
natural da mulher para o casamento e a maternidade, bem<br />
como a prerrogativa masculina no jogo da sedução; assim, a mulher<br />
permanece como objeto e não como sujeito do desejo, o homem<br />
ainda escolhe e ela, se quiser ser escolhida, deve ignorar suas<br />
expectativas pessoais/relacionais, ou seja, abdicar do poder de fazer<br />
suas próprias escolhas. Em compensação, ganha como prêmio<br />
“um cobertor de orelha fixo” (LIMINHA; DA MATA, 2004),<br />
mesmo que, para isso, tenha de chamar o sapo de príncipe, como<br />
recomendam os versos da canção popular.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 97
Percurso metodológico<br />
Este artigo condensa uma das discussões que desenvolvo em<br />
minha tese de doutorado, intitulada “Os novos tempos e vivências<br />
da ‘solteirice’ em compasso de gênero: ser solteira/solteiro<br />
em Aracaju e Salvador”, cuja amostra foi composta por treze<br />
homens e treze mulheres que nunca se casaram ou conviveram<br />
maritalmente com alguém, oriundos(as) das classes médias e residentes<br />
nas respectivas capitais. Aqui, detenho-me apenas nos<br />
depoimentos de duas mulheres solteiras, com idades de 35 e 67<br />
anos e que moram em Salvador. Privilegiei os relatos dessas mulheres<br />
em virtude da diferença etária/geracional, mas, também,<br />
por pertencerem a grupos étnicos distintos.<br />
Vale destacar que, diferentemente de outros sujeitos da pesquisa,<br />
essas duas mulheres não criaram obstáculos tampouco<br />
demonstraram inibição e/ou resistência em conceder seus depoimentos.<br />
Ao contrário, mostraram-se acessíveis e receptivas, apesar<br />
de não me conhecerem, uma vez que tinham sido indicadas<br />
por uma amiga em comum. A mais jovem, inclusive, ao ser informada<br />
sobre o tema da pesquisa, espontaneamente, se ofereceu<br />
para prestar seu depoimento.<br />
Para a coleta de dados, optei por ouvir suas histórias de vida,<br />
procurando interferir o mínimo possível em seus relatos, manifestando-me<br />
apenas para responder a essa ou aquela pergunta que<br />
me faziam, ora para saber se estavam correspondendo à minha<br />
expectativa, ora para esclarecer alguma dúvida ou, ainda, abordar<br />
sucintamente minha própria trajetória de vida, diante da curiosidade<br />
das informantes. Como técnica complementar, organizei um<br />
diário de campo no qual registrei as circunstâncias e peculiaridades<br />
de cada entrevista.<br />
Finalmente, cabe destacar que a leitura e a interpretação dos<br />
dados aqui contidos se encontram referendadas em artigos cien-<br />
98<br />
Gênero, mulheres e feminismos
tíficos, livros e reportagens publicadas em revistas comerciais que<br />
garimpei ao longo da elaboração da tese, cujas menções à temática<br />
me ajudaram a esboçar um mosaico da solteirice, de que me utilizo<br />
para retomar os depoimentos de Eva e Indira, nomes fictícios<br />
que adotarei, de agora em diante, para dialogar com as minhas<br />
informantes.<br />
O corpo em movimento<br />
Os indivíduos são sugestionados pelo contexto e pela temporalidade<br />
social e histórica, que produzem deslocamentos na dinâmica<br />
familiar, engendram oposições e complementaridades na<br />
trajetória das gerações cujo legado familiar pode ser reelaborado<br />
e/ou reinterpretado, de forma a compor uma simultaneidade entre<br />
os referenciais identitários que os classificam como mulheres e<br />
homens, membros das classes médias e a restrição ou pluralidade<br />
de escolhas presentes na tessitura social. Tais indicativos também<br />
sugerem que as tramas e coreografias da solteirice são diversas no<br />
tocante à experiência pessoal e à vida afetiva e sexual, mesmo entre<br />
grupos contíguos.<br />
Com efeito, as mulheres nascidas entre 1940 e 1950, 1 como é<br />
o caso de Indira (67 anos), foram educadas para cultivar o recato<br />
e a virtude; até mesmo o flerte deveria ser uma etapa inicial<br />
para alcançar o matrimônio, caso contrário indicaria ausência de<br />
pudor e inconsequência. Então, o corpo da mulher era mantido<br />
sob forte vigilância e qualquer deslize ou mal-entendido poderia<br />
comprometer irrevogavelmente a reputação da jovem casadoira,<br />
que passava a ser classificada pelo seu reverso, “garota de programa”,<br />
aquela com quem os rapazes não se casam, o que fazia com<br />
que as moças tentassem negar, sublimar seus desejos sexuais até<br />
1 Ver, por exemplo, Carla Bassanezi (1996; 2000); Marlene Fáveri (1999).<br />
Gênero, mulheres e feminismos 99
o casamento. Por isso, as moças tramavam estratégias para burlar<br />
a censura familiar e aplacar os apelos do corpo:<br />
— Vinte, vinte e muitos [...] eu sentia os desejos do meu corpo<br />
e eu não queria me casar; isso criava uma confusão dentro<br />
de mim muito grande, até que eu conheci alguns homens,<br />
eles eram argentinos [...]. Então, eu pensei que eu ia deixar<br />
de ser virgem, não ter aquela coisa de se guardar para o casamento.<br />
Aí, quando eu decidi, fui com uma amiga comprar<br />
um anticoncepcional – a amiga que pediu, porque eu tinha<br />
a impressão que ia aparecer um letreiro na minha cara. [...]<br />
Eu, praticamente, não o conhecia; a gente tinha se conhecido<br />
no Rio e eu vim embora para cá; depois, eu viajei para<br />
a Argentina para me encontrar com ele. Aí, entre a repressão<br />
toda que estava dentro e o meu hímen, que era bastante<br />
espesso, na primeira vez, não chegou a romper porque ele<br />
disse que era uma coisa muito prazenteira e eu ia ficar com<br />
uma impressão horrível. Então, quando eu vim, antes de<br />
voltar, eu fui a minha ginecologista e pedi que ela lancetasse<br />
o meu hímen para eu não sentir; expliquei a situação e<br />
foi isso que aconteceu.<br />
(Indira)<br />
Em uma época em que o casamento é considerado o destino<br />
natural da mulher, o exercício da sexualidade feminina está condicionado<br />
ao matrimônio, ou seja, as moças aprendem a reprimir<br />
sua sexualidade, a preservar a pureza e a manter a ignorância sexual,<br />
caso contrário, arriscam-se a ficar mal faladas e/ou a serem<br />
consideradas levianas, pelos futuros pretendentes, o que elimina<br />
as chances de conquistar um bom partido. Para aquelas com<br />
“vinte e muitos” anos, as oportunidades de se casar são remotas e,<br />
caso não consigam sublimar o desejo, se torna cada vez mais difícil<br />
manter a continência sexual.<br />
100<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Quando a mulher ousa desafiar a ordem moral instituída, preferindo<br />
continuar solteira e exercer uma atividade remunerada,<br />
a vigilância social e familiar sobre o corpo feminino se intensifica,<br />
pois se supõe que o clamor do sexo a transformará em ameaça<br />
para homens casados e esse controle sobre seu corpo impedirá que<br />
perca a virtude sexual e se torne uma concubina, prostituta ou<br />
mantenha relacionamentos fortuitos. 2<br />
Para Indira, portanto, a decisão de perder a virgindade veio<br />
acompanhada de culpa, de medo de ser descoberta e condenada, o<br />
que requereu o uso de estratagemas: viajar para o Rio de Janeiro, 3<br />
um centro urbano considerado mais avançado onde não corria<br />
o risco de ser flagrada ao se desviar do caminho traçado para as<br />
moças de família, conhecer homens de outra nacionalidade, pedir<br />
ajuda a uma amiga para comprar, em seu lugar, o anticoncepcional<br />
e, dessa forma, permanecer incógnita.<br />
Além disso, Indira precisou lidar com a própria censura, isto é,<br />
a repressão internalizada, o que exige medidas extremas, antecipa<br />
a ansiedade e o mal-estar físico sentidos na primeira relação sexual<br />
com o parceiro: rompe o hímen por meio de uma incisão feita<br />
pela ginecologista; desloca-se para outro País, onde os olhares<br />
censores não podem alcançá-la; e, finalmente, opta por manter<br />
distância geográfica dos homens com quem mantém relacionamentos<br />
amorosos, o que resguarda a sua imagem, isto é, camufla<br />
a existência de uma vida sexual.<br />
Esse comportamento persiste ao longo da vida adulta, uma<br />
vez que Indira rejeita o destino reservado para as mulheres de sua<br />
família – o casamento, a maternidade e a maternagem –, principalmente,<br />
porque isso implicaria em reprisar o papel submisso,<br />
a domesticidade e a resignação diante da dominação masculina<br />
2 Idem.<br />
3 Ver, por exemplo, Maria Luiza Heilborn, para quem o Rio de Janeiro, no imaginário social, é<br />
representado como um “cenário propiciador da sexualidade e da sedução” (1999, p. 99).<br />
Gênero, mulheres e feminismos 101
calcados no ideário judaico-cristão e referendados pelo grupo<br />
familiar.<br />
Eva, 35 anos, ao contrário de Indira, teve uma educação mais<br />
liberal e sua primeira experiência sexual ocorreu com um namorado,<br />
sem culpas ou medos. Afinal, sua geração é herdeira daquela<br />
que desbravou os caminhos da revolução sexual, isto é, embora a<br />
iniciação sexual seja também concebida por Eva como o primeiro<br />
momento de experimentação da sexualidade e a descoberta do<br />
corpo, sua narrativa aponta um novo padrão de comportamento<br />
no tocante à perda da virgindade. As profundas mudanças em relação<br />
à sexualidade ocorridas nas duas últimas décadas têm provocado<br />
uma espécie de inversão do tabu da virgindade, ou seja,<br />
atualmente, o fato de jovens com mais de 19 anos permanecerem<br />
virgens causa estranhamento; chega-se até a cogitar que tenham<br />
algum problema psicológico. (JABLONSKI apud DIEHL, 2002)<br />
Nesse sentido, as mulheres nascidas nos anos 1970 classificam<br />
como “tardia” 4 a primeira experiência íntima, caso aconteça<br />
após os 19 anos. Vale destacar, também, que a experimentação da<br />
sexualidade feminina deixa de estar subordinada ao casamento,<br />
assim como não se restringe à função procriativa, na medida em<br />
que passa a ser exercitada de forma recreativa, isto é, casais de namorados<br />
e/ou amigos iniciam, juntos, a aprendizagem do prazer<br />
sexual que é permeada por mais afeto e intimidade entre os pares.<br />
Mas, será que o pertencimento a diferentes faixas etárias e grupos<br />
étnicos trama enredos distintos para as vivências sexuais de Indira<br />
4 Ver, por exemplo, Maria Luiza Heilborn (2005) na Pesquisa Gravad, que constata que moças em<br />
união precoce, residentes em Porto Alegre (RS), Rio de Janeiro (RJ) e Salvador (BA), começam<br />
a vida sexual antes das solteiras e classificam como tardia a iniciação sexual das mulheres<br />
quando acontece depois dos 18 anos. Ver, também: Michel Bozon (2005) que, ao refletir sobre<br />
as novas normas às quais se encontra condicionada a experimentação da sexualidade no Brasil<br />
e na América Latina, identifica que, em nosso país, houve um decréscimo de mais de dois anos<br />
na idade considerada tardia de iniciação sexual das mulheres, de 1950 (20,5 anos) para 1975;<br />
e Mirian Goldenberg que, ao investigar as representações de gênero e discurso sobre o valor<br />
atribuído à sexualidade e ao uso do corpo entre jovens das classes médias cariocas, constata<br />
que “as próprias mulheres com mais de 20 anos que não perderam a virgindade parecem se<br />
perceber como desviantes em termos de comportamento sexual” (2005, p. 55).<br />
102<br />
Gênero, mulheres e feminismos
e Eva? Será que tanto uma como outra, na busca por independência<br />
e autonomia, consegue desfrutar o desejo e o prazer sexual,<br />
sem condicioná-lo à existência do sentimento amoroso?<br />
Declara o poeta que homens e mulheres se tornam parceiros<br />
sexuais efêmeros ou temporários, sem a obrigatoriedade do sentimento<br />
amoroso e, tal qual equilibristas em cima do muro tecem o<br />
encontro sem as amarras da romanticidade e possessividade, baseados,<br />
desta feita, na combinação entre sexo e amizade. A partir<br />
das narrativas de Indira e Eva, transformo sua afirmativa em indagação:<br />
Então, “tá combinado”: 5 é tudo somente<br />
sexo e amizade?<br />
Os versos da canção popular anunciam um pacto entre os pares<br />
que se formam descompromissadamente, apenas para aplacar<br />
a lacuna afetiva de um e de outro. Desprovidos de ilusão, ambos<br />
ensaiam o bailado erótico sob os acordes da ternura e da aventura,<br />
resguardados na certeza de se saberem sós, sem estarem sós,<br />
enquanto o amor não os surpreende. Os relatos de Indira e Eva,<br />
entretanto, revelam uma nota discordante nessa melodia e nos<br />
impelem a outras ilações.<br />
Com a maturidade, os amores e paixões de Indira se tornam<br />
raros e ela se ressente quando, aos cinquenta anos, os homens já<br />
não lançam um olhar cobiçoso, que admira, manda uma mensagem<br />
falada de que você é desejável, o que afeta sua autoestima<br />
e gera depressão, mas não esmorece o desejo, levando-a a confrontar<br />
fantasmagorias e buscar alternativas para saciar o desejo<br />
incontido:<br />
5 Refiro-me ao título da canção popular de Peninha, intitulada “Tá combinado”, gravada<br />
por Caetano Veloso. Disponível em: .<br />
Gênero, mulheres e feminismos 103
— O desejo eu resolvo com masturbação [...] não é que seja<br />
bom, mas é a solução que encontro [...] eu acho que fico<br />
com vergonha de estar com desejo e procurar alguém. Durante<br />
muito tempo, fiquei com medo de envelhecer e ser<br />
uma pessoa ridícula [...] se for por atração física, eu iria<br />
para trás, um homem mais jovem. Só que sempre penso no<br />
problema do homem mais jovem: é como que, um pouco,<br />
a mulher mais velha... não ser uma coisa honesta, ser uma<br />
coisa mais utilitária. [...] Tive uma experiência pequena<br />
com outro argentino [...] quarenta e poucos anos; ele escreveu<br />
um e-mail dizendo que se eu pagasse a passagem ele<br />
viria, sabe a primeira coisa? ‘– Ah! Eu pagar a passagem?’.<br />
Aí conversando com uma amiga minha, ela me diz assim:<br />
‘– Porque você não arrisca? Se você puder pagar, o que é<br />
que tem?’. Então, eu paguei, ele veio e, mal estava comigo,<br />
já foi procurar uma garota dez ou quinze anos mais jovem<br />
do que ele.<br />
(Indira)<br />
As meninas assimilam, durante o processo de educação socializadora,<br />
as primeiras noções sobre o que é ser mulher, desde os<br />
comportamentos – formas de falar, andar e sentar – à aprendizagem<br />
de cuidados com o corpo para se fazerem femininas e corresponderem<br />
aos padrões estéticos vigentes. Para as moças, a beleza<br />
e juventude consistem em moeda de troca que lhes assegura o ingresso<br />
no mercado matrimonial e/ou em predicados de que se valem<br />
para atrair os rapazes. – Quando eu era jovem e entrava nos<br />
lugares, os olhares masculinos se dirigiam para mim – lembra<br />
Indira.<br />
Todavia, a beleza e a juventude têm prazo de validade e, ao<br />
completar cinquenta anos, a mulher é confrontada, segundo Indira,<br />
com a mudança hormonal, que indica a proximidade da<br />
cessação de sua capacidade reprodutora e o início do processo<br />
104<br />
Gênero, mulheres e feminismos
de envelhecimento, de declínio da beleza física, o que gera um<br />
problema cultural, pois, na sociedade brasileira contemporânea,<br />
predomina uma cultura baseada na eternização da juventude. De<br />
fato, salienta Brownmiller, as cobranças sociais em torno da aparência<br />
jovem são gendradas, ou seja, “a mulher com aparência<br />
envelhecida tem menos ‘capital simbólico’ no mercado afetivo/<br />
sexual do que o homem em semelhantes circunstâncias”. (apud<br />
SARDENBERG, 2002, p. 64)<br />
Nesse sentido, afirma Indira, incomoda muito, porque a chamada<br />
meia-idade não só exclui quem deseja se casar do mercado<br />
matrimonial como também se torna um impeditivo para a vivência<br />
afetivo-sexual de mulheres como ela, que optaram por permanecer<br />
solteiras: − Aos cinquenta anos, eu notei que os homens<br />
não olham mais. A mulher deixa de ser desejável, porque não<br />
mais se enquadra nos modelos socialmente erigidos para a estética<br />
feminina e, por isso, a perspectiva do envelhecimento a assombra<br />
e o medo e a vergonha de se expor ao ridículo e à censura social<br />
tolhem a expressão do desejo.<br />
Além disso, o avanço da idade não impede que o homem conquiste<br />
parceiras mais novas, pois, em nossa sociedade, os valores<br />
patriarcais ainda determinam como prerrogativa masculina a<br />
iniciativa no jogo erótico, em que o homem escolhe as mulheres<br />
enquanto permanecem atraentes. Daí porque, para a mulher mais<br />
velha que se sente atraída por homens mais jovens, a possibilidade<br />
de um romance, mesmo efêmero, reafirma a legitimidade social<br />
atribuída ao homem e negada à mulher como sujeito do desejo.<br />
Indira, mesmo consciente da ausência de afetividade no relacionamento,<br />
não consegue proteger sua autoestima e amor próprio,<br />
ao constatar que o parceiro mais jovem não a enxerga sequer<br />
como objeto de prazer, pois é reduzida a um corpo que o amante<br />
usa e descarta quando perde a utilidade. Em outras palavras, Indira<br />
não concebe o sexo dissociado da afetividade, ou seja, o prazer<br />
Gênero, mulheres e feminismos 105
mútuo e a diversão descompromissada e casual não lhe bastam e,<br />
se já não consegue despertar a cobiça e o desejo de homens mais<br />
jovens, adota como solução para aplacar o desejo sexual a masturbação,<br />
pois as chances de encontrar um parceiro se tornam cada<br />
vez mais remotas.<br />
Para as mulheres solteiras como Eva, na faixa dos 30 anos, uma<br />
das soluções encontradas é se relacionar com homens casados, 6<br />
em determinados momentos de fragilidade, quando necessitam<br />
de uma atenção diferenciada — ...ele estava naquele momento<br />
no lugar certo...; ou seja, pode ser um homem solteiro ou casado,<br />
desde que capaz de suprir sua lacuna afetiva. Em outros termos,<br />
o interlúdio começa e termina sem conflitos ou cobranças e, Eva<br />
segue adiante: — Eu não me vi, não me vejo... não é passado, é<br />
presente... eu não me vejo uma eterna amante. Tapou um buraco<br />
na minha vida, mas acabou... enquanto não surgem outros<br />
vazios. Entretanto, esclarece:<br />
— Uma amiga disse: ‘— O problema não é subir nas paredes, é<br />
descer’, porque quando você está lá em cima você fica escolhendo<br />
tudo; eu ainda estou. [...] E quando você desce,<br />
você pega qualquer coisa, porque você está à espera [...] e<br />
eu não me vejo pegando qualquer um; aí, algumas amigas<br />
dizem que por isso eu estou só [...] mas não pinto... Não é<br />
isso [...] eu não vou beijar uma pessoa sem querer, eu não<br />
vou com uma pessoa para a cama sem querer; acabou-se o<br />
tempo, quem quer fazer, até respeito, mas não é para mim.<br />
Então, entre ficar sozinha, tomar um banho frio, ligar para<br />
as amigas, chorar e pegar um filme numa locadora e ver,<br />
colocar agora a cara nos estudos, como eu estou fazendo,<br />
eu vou fazer isso... do que ir para a cama com uma pessoa<br />
que eu não queira, do que estar com uma pessoa que não<br />
6 Ver, por exemplo, Elza Berquó (2006); Mirian Goldenberg (2006).<br />
106<br />
Gênero, mulheres e feminismos
me respeite; pelo menos esse é o meu momento. Não sei se<br />
daqui a dez anos...<br />
(Eva)<br />
Segundo Eva, acabou-se o tempo em que a representatividade<br />
e visibilidade social feminina eram alcançadas através de um<br />
homem, que lhes proporcionava segurança e respeitabilidade, ou<br />
seja, em que a mulher, resignada e submissa, tinha como senhor<br />
do seu destino o homem – pai, marido... O ingresso das mulheres<br />
nas universidades, sua crescente participação no mercado de<br />
trabalho e o investimento na profissão bem como a conquista de<br />
maior liberdade sexual têm proporcionado maior autonomia e independência<br />
feminina, no âmbito emocional e financeiro. Em outras<br />
palavras, as mulheres se tornam protagonistas de sua história<br />
e fazem suas próprias escolhas, na medida em que descortinam<br />
possibilidades plurais de autorrealização. 7<br />
Nesse sentido, a mulher independente economicamente se<br />
torna mais exigente e elabora novos padrões de elegibilidade do<br />
parceiro, que deve ser alguém com quem tenha afinidade, no<br />
tocante a visões de mundo e projetos de vida, compatibilidade<br />
intelectual e no gosto, ou seja, seu desejo é seletivo, sua escolha<br />
é personalizada e discriminante (LIPOVETSKY, 2000), pois<br />
não sai pegando qualquer um; para ela, é melhor estar só do que<br />
mal-acompanhada. Contudo, isso não significa que Eva não seja<br />
advertida e/ou censurada, inclusive por outras mulheres, por<br />
exercer o direito de escolha: sua exigência em relação ao perfil dos<br />
parceiros é considerada uma insensatez, que provoca muito mais<br />
desencontros do que encontros. Em resumo, a mulher mais jovem<br />
está sozinha porque quer, uma vez que conhece a fórmula para<br />
driblar a incompatibilidade: fazer-se mais condescendente e diminuir<br />
as expectativas relacionais.<br />
7 Ver, por exemplo, Mirian Goldenberg e Moema Toscano (1992); Goldenberg (2005).<br />
Gênero, mulheres e feminismos 107
Para Eva, que se recusa a baixar as expectativas enquanto não<br />
surge uma pessoa interessante, o desejo sexual é aplacado através<br />
da masturbação, pois você pode se proporcionar prazer; recorre,<br />
sem acanhamento, àquela listinha dos ex, com os quais elimina a<br />
disjunção entre desejo e afeto; inventa diferentes formas de sublimação:<br />
toma um banho frio, conversa com amigas, assiste a um<br />
filme, devora um pote de chocolate ou investe na expansão profissional.<br />
Pelo menos, no momento, essa é a sua posição; mas ela<br />
não deixa de se questionar, ou seja, ela não tem certeza se, daqui a<br />
dez anos, quando estiver mais velha e as chances no mercado afetivo<br />
forem remotas, não seguirá os conselhos das amigas e tentará<br />
ser menos exigente na escolha dos parceiros. Todavia, com base<br />
em sua própria experiência, acrescenta que a mulher afrodescendente<br />
ainda enfrenta outra barreira no mercado amoroso – a cor<br />
da pele. Segundo afirma:<br />
— [...] mesmo em Salvador, a preferência dos homens negros<br />
por mulheres brancas, isso é fato... e quantas mulheres negras<br />
interessantes também estão sozinhas; então, a questão<br />
racial passa, porque passa pela autoestima, porque passa<br />
pela identificação, identificar o negro ou uma negra bonita...<br />
eu tenho, assim, eu tenho amigos negros casados com<br />
negras e também respeito o negro que queira casar com a<br />
branca ou a negra que queira casar com o branco; as emoções<br />
inter-raciais, se é por opção, ótimo, mas, infelizmente,<br />
quem não se trabalha isso, vai procurar limpar, entre<br />
aspas, a pele, de status, ascensão, então, é muito mais interessante<br />
ou eu vou me autoafirmar... aí vai para a masculinidade,<br />
o homem querer se autoafirmar com uma mulher<br />
loura, então, isso também é um agravante para a mulher<br />
negra solteira, que é interessante; às vezes, já cheguei a algumas<br />
situações e disse: ‘— Poxa! Será que aquele cara me<br />
acha interessante?’.<br />
(Eva)<br />
108<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Com efeito, Nelson Silva (1987), ao investigar casamentos<br />
inter-raciais no Brasil, identifica a predominância de uniões de<br />
homens mais escuros com mulheres mais claras, fato que atribui<br />
tanto a fatores demográficos como a um padrão matripolar de<br />
aquisição de status e mobilidade social. O casamento de um negro<br />
com uma mulher branca ou de pele clara possibilita que seus<br />
filhos tenham acesso a socialização e status superiores aos seus.<br />
Os dados levantados pelo autor indicam que, quanto mais elevada<br />
for a posição social desses indivíduos, maior o percentual de endogamia.<br />
Na mesma linha de pensamento, Elza Berquó, ao estudar a<br />
desigualdade sob uma perspectiva demográfica, também aponta<br />
para um branqueamento da população, pois, ao mesmo tempo<br />
em que identifica um excedente de mulheres em relação aos homens<br />
e um número maior de homens negros do que de homens<br />
brancos, os homens negros não tendem a se unir com mulheres<br />
da mesma raça. Segundo a autora, “a tendência do clareamento se<br />
dá pelo fato dos homens procurarem mulheres mais claras” (1988,<br />
p. 79), o que coloca as mulheres negras em desvantagem no mercado<br />
amoroso e, certamente, faz com que elas se sintam inseguras<br />
quanto ao seu poder de sedução. Além disso, se associarmos a<br />
clivagem racial ao fato de serem independentes financeiramente,<br />
bem-sucedidas na profissão e de terem acima de 30 anos, tudo<br />
indica que as chances dessas mulheres se tornam ainda mais remotas,<br />
caso se recusem a relativizar os critérios de elegibilidade<br />
para a formação do par. Em suma, a mulher negra tem maior probabilidade<br />
de permanecer solteira 8 do que a mulher branca.<br />
8 Certamente, não ignoro que as emoções inter-raciais podem fluir à revelia de normas e regras,<br />
independentemente de quadros estatísticos. Ver, por exemplo, Laura Moutinho (1999); Zelinda<br />
Barros (2003). Por outro lado, Monica Weinberg e Erin Mizuta (2005) identificam, na Bahia, uma<br />
maior tendência das mulheres negras oriundas dos segmentos de baixa renda sobreviverem<br />
sem parceiros, devido à tradição matriarcal que vigora no Estado e à forte influência do<br />
candomblé. Tais argumentos apontam para a necessidade de um maior aprofundamento acerca<br />
Gênero, mulheres e feminismos 109
Arremate<br />
Constata-se que as mulheres da geração de Indira, que experimentaram,<br />
na educação socializadora, a repressão da sexualidade,<br />
conseguiram descortinar novas possibilidades do desejo, respaldadas<br />
na revolução sexual, mas, também, a partir da inserção no<br />
mercado de trabalho e na Universidade, que lhes proporcionaram<br />
maior independência emocional e financeira. Desse modo, desafiam<br />
os padrões de comportamento e normas sociais vigentes,<br />
quando se recusam a cumprir o destino reservado para as jovens<br />
de sua geração – o casamento, a maternidade e a maternagem. No<br />
entanto, o desejo e o prazer sexual são experimentados às escondidas,<br />
estratégia adotada para se resguardarem da vigilância e do<br />
controle sociofamiliar. Daí porque vivenciam amores epistolares<br />
ou sazonais, que preservam a intensidade do interlúdio sexual ao<br />
mesmo tempo em que resguardam o relacionamento afetivo da<br />
rotinização e da institucionalização a que está submetido o casamento.<br />
Vale destacar, entretanto, que a formação e continuidade<br />
do par são baseadas na mutualidade do sentimento, ou seja, elas<br />
rejeitam relacionamentos episódicos e descartáveis.<br />
Não se pode negar que entre a geração de Indira e Eva, muitas<br />
mudanças ocorreram: as conquistas femininas obtidas nas últimas<br />
décadas produziram uma revolução na educação dos afetos,<br />
os papéis sociais e sexuais de homens e mulheres se tornaram<br />
menos rígidos e uma das consequências positivas é que a mulher<br />
pode manifestar, de forma mais explícita, o seu desejo e, eventualmente,<br />
tomar a iniciativa na conquista amorosa. Entretanto, há<br />
de se observar que, apesar da liberação sexual, tanto para Indira<br />
como para Eva o erotismo está condicionado à sentimentalidade<br />
e, por isso, seu desejo é seletivo.<br />
dos impeditivos e possibilidades de uniões inter-raciais em Salvador, o que foge da proposta<br />
deste artigo.<br />
110<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Entre o antigo e o novo, essas mulheres elaboram referenciais<br />
identitários e modelos relacionais que busquem conciliar o ethos<br />
do amor romântico – a indiferenciação e a completude do par –<br />
com o ideário individualista – a conquista de projetos e espaços<br />
próprios. Dessa forma, não há sexo sem nexo, isto é, sem afetividade<br />
e, mesmo quando este acontece de forma episódica, a casualidade<br />
consiste em risco calculado através do qual a mulher exercita<br />
seu poder de atração e baliza as chances no mercado afetivo.<br />
Ao mesmo tempo, observa-se que Indira e Eva buscam se<br />
apropriar de seus corpos e desejos, que a ausência de um parceiro<br />
fixo não as impede de obter prazer sexual através da masturbação<br />
ou, se assim o desejarem, de tramarem artifícios para iludir<br />
o desejo, através da leitura de um livro, da conversa com amigas<br />
entre outras formas de prazer. Mas, se a associação entre sexo e<br />
afeto as aproxima, bem como os critérios de seletividade para vivenciarem<br />
uma relação amorosa – a compatibilidade entre o relacionamento<br />
amoroso e seus projetos de crescimento pessoal e<br />
profissional –, a distância etária que as separa é um marcador de<br />
diferença que não pode ser ignorado, principalmente no tocante<br />
à vida afetivo-sexual.<br />
De fato, a solitude parece acenar para Indira, pois, com idade<br />
acima de sessenta anos, já não atrai os olhares cobiçosos dos homens.<br />
Além do declínio físico e da perda da capacidade procriativa,<br />
o fenecimento da juventude a exclui do mercado amoroso, o<br />
que afeta sua autoestima e desencadeia momentos de depressão,<br />
principalmente agora que se aproxima da aposentadoria, quando<br />
é confrontada com a inatividade na esfera pública e privada, isto<br />
é, no trabalho, na casa e na cama. Contudo, permanecer solteira<br />
foi uma escolha consciente da qual afirma não se arrepender.<br />
Para Eva, ainda favorecida pela idade na competitividade do<br />
mercado afetivo, a ausência de um parceiro fixo não a impede de<br />
perseguir seus projetos de vida no âmbito pessoal e profissional.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 111
Por enquanto, prefere ficar só a estar mal-acompanhada, mas<br />
isso não significa que, com o avanço da idade, não possa vir a mudar<br />
de ideia e rever seu ponto de vista, ou seja, ser menos exigente<br />
e seletiva na escolha dos parceiros.<br />
Seus relatos demonstram que, embora não façam “apologia à<br />
solidão”, essas mulheres não têm conseguido conciliar suas aspirações<br />
de liberdade e de realização íntima e que, na intrincada<br />
dança a dois, a combinação entre sexo e amizade não as satisfaz.<br />
O bailado erótico, pelo menos entre as mulheres entrevistadas,<br />
não tem tecido aproximação, mas dessintonia, na medida em que<br />
o um não se faz dois, pois os passos se mostram cada vez mais dispar-atados.<br />
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114<br />
Gênero, mulheres e feminismos
RESISTÊNCIA INVENTIVA<br />
as mulheres fumageiras<br />
Elizabete Silva Rodrigues<br />
Lina Maria Brandão de Aras<br />
[...] em vez de formular o problema da alma central, creio<br />
que seria preciso procurar estudar os corpos periféricos<br />
e múltiplos, os corpos constituídos como sujeitos pelo<br />
efeito do poder. (FOUCAULT, 1979, p. 183)<br />
A resistência das mulheres fumageiras enquanto enfrentamento<br />
às ações de exploração no trabalho deve ser compreendida<br />
a partir do seu contexto histórico e, sobretudo, cultural, pois,<br />
neste caso, se trata de uma situação que vai além da questão de<br />
classe, perpassando, necessariamente, a questão de gênero e, ainda,<br />
como relações de gênero são relações de poder, faz-se necessário<br />
entender, mesmo que brevemente, como se constituíram,<br />
histórica e culturalmente, as relações de gênero no mundo ocidental<br />
influenciando aquela sociedade e, por conseguinte, a vida<br />
e a história das mulheres fumageiras do Recôncavo Baiano.
Fazer a leitura da opressão e da exploração das mulheres fumageiras<br />
e, principalmente, de suas reações, a partir de uma perspectiva<br />
feminista é uma posição considerada politicamente correta.<br />
Porém, não é tão simples: faz-se necessário perguntar: qual perspectiva<br />
feminista? O olhar feminista, o ponto de vista feminista<br />
e a interpretação feminista dos fatos não são posições isoladas,<br />
fechadas em uma disciplina ou que obedecem a um cânone. São<br />
múltiplas as perspectivas feministas e elas se utilizam das várias<br />
áreas do conhecimento para fazer a crítica feminista, ao mesmo<br />
tempo em que, as diversas áreas do conhecimento incorporam<br />
em suas análises a perspectiva feminista de gênero, incluindo, na<br />
mesma medida, a crítica feminista ao conhecimento.<br />
A História, por sua vez, tem sido uma das ciências que melhor<br />
tem empreendido esta tarefa apesar de não apresentar, ainda,<br />
uma preocupação mais direcionada para a questão das mulheres.<br />
Mas, ao lado de ciências como a Antropologia, a História tem se<br />
aproximado de outros campos do saber e, a exemplo do que fez os<br />
estudos feministas, também tem produzido uma crítica contundente<br />
ao conhecimento e seus tradicionais métodos, assim como<br />
tem se lançado por caminhos “estranhos”, ousado novos métodos<br />
quase que arqueológicos para encontrar o que foi apagado, novos<br />
objetos, novas fontes, novos olhares sobre antigos objetos, 1 questionando<br />
e invalidando as teorias supostamente neutras.<br />
A História das Mulheres, apesar das críticas que tem sofrido, 2<br />
foi um dos principais pontos de partida para romper as barreiras<br />
da invisibilidade das mulheres na história bem como sua negação<br />
enquanto sujeitos do conhecimento. É, portanto, os campos da<br />
1 A Escola dos Annales (1929), a partir de seus representantes Lucien Febvre e Marc Bloc, dentre<br />
outros pertencentes às duas principais gerações de historiadores, foi a responsável por esta<br />
mudança na escrita da História, derrubando o paradigma positivista defensor dos princípios da<br />
Ciência Moderna.<br />
2 Os/as críticos(as) da História das Mulheres acusam as elaborações em torno do tema de<br />
sexistas, restritas e parciais e alegam que partem dos mesmos pressupostos androcêntricos.<br />
116<br />
Gênero, mulheres e feminismos
história que oferecem as condições para analisar a constituição da<br />
opressão das mulheres fumageiras no contexto das relações sociais<br />
da região que, naquele espaço e naquele momento, se configuravam<br />
como patriarcais. É preciso perceber, além das origens, a<br />
continuidade do patriarcado e a sua dinâmica nas relações sociais;<br />
compreender como ele se manteve através do tempo, quais foram<br />
as formas em que ele se travestiu em determinados espaços,<br />
através dos discursos que perpassavam os valores e as instituições,<br />
para manter a dominação dos homens sobre as mulheres.<br />
Na região fumageira do Recôncavo Baiano, desde os primórdios,<br />
é possível identificar as marcas e os instrumentos que denunciam<br />
uma história de opressão das mulheres, bem como de<br />
suas lutas, organizadas ou não, contra o seu opressor. A família era<br />
o reduto de produção e reprodução da dominação das mulheres,<br />
contudo, foi nos estabelecimentos de trabalho que a dominação se<br />
expressou de forma organizada e pública, que as relações sociais<br />
patriarcais demarcaram os espaços físicos e sociais e as relações<br />
de trabalho. 3<br />
Mesmo tratando-se de mulheres que chefiavam suas famílias,<br />
tanto no que se refere ao aspecto econômico e administrativo da<br />
casa, quanto na educação e cuidado dos filhos e agregados, elas<br />
viviam sob os parâmetros de uma sociedade com características<br />
das relações sociais patriarcais, tomando como referência a definição<br />
explícita no questionamento de Drude Dahlerup:<br />
3 A família como expressão de dominação capitalista e patriarcal é citada várias vezes, em<br />
diálogo com diversas autoras, por Ana Alice Costa que afirma que a família é a “instituição que<br />
instrumentaliza e mantém a opressão da mulher em toda a história dessa sociedade, já que a<br />
família evoluiu e se adaptou de forma mais eficiente que as outras instituições aos interesses<br />
da classe dominante” (1998, p. 21). Não se trata aqui de examinar o modelo de família existente<br />
no Recôncavo canavieiro ou aquele da Casa Grande discutido por Gilberto Freire, tampouco, as<br />
relações sociais patriarcais reproduzidas naquele contexto, embora considerando que a sua<br />
influência ultrapassou tempos, espaços e classes sociais.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 117
Algunas personas dicen ‘vean a todas esas mujeres que dominan<br />
completamente a su familia? Como pueden entonces llamarla<br />
una sociedad patriarcal?’<br />
La respuesta es que como promedio en nuestra sociedad las<br />
mujeres ganan menos que los hombres, que en general las mujeres<br />
avanzan menos que los hombres y tienen puestos inferiores,<br />
que las mujeres arrastran un doble peso de trabajo, que<br />
son violadas, golpeadas, están sometidas a la violencia física<br />
de los hombres y al hostigamiento sexual en el trabajo; que las<br />
instituciones políticas, los partidos políticos y los sindicatos<br />
están dominados por hombres y por último, que las niñas y las<br />
mujeres son despreciadas por los hombres – y por ellas mismas.<br />
La auto-estima de las niñas y de las mujeres es en general<br />
más baja. Estas son algunas de nuestras razones para<br />
llamarla una sociedad patriarcal. (1987, p. 117)<br />
A compreensão do conceito de patriarcado 4 passa pela sociedade<br />
de modo geral, porém, é preciso levar em consideração as<br />
variações e as especificidades nas relações sociais entre homens e<br />
mulheres, conforme os espaços políticos, a classe e a raça em que<br />
estejam inseridos ou e que façam parte, pois, os efeitos do patriarcado<br />
sobre as mulheres têm ocorrido diferentemente para cada<br />
caso, mantendo, apenas, o traço comum da desigualdade nas relações<br />
entre homens e mulheres.<br />
Dessa forma, importa-nos entender como se caracterizavam e<br />
se organizavam as relações sociais patriarcais no âmbito da indústria<br />
fumageira do Recôncavo Baiano e como as mulheres trabalhadoras<br />
se moviam nesse ambiente minado pela opressão e pela<br />
exploração, à medida que lutavam pela sobrevivência, acumulando<br />
a construção das duas identidades – de mulher e de trabalhadora,<br />
pois é possível entender que a exploração não se dê, apenas,<br />
no âmbito da produção, nem a opressão patriarcal apenas no âmbito<br />
da reprodução, uma vez que a complexidade da realidade não<br />
4 Sobre o patriarcado ver: RIVERA, 1993, p. 40-1.<br />
118<br />
Gênero, mulheres e feminismos
comporta dicotomias reducionistas. Ana Alice Costa informa que<br />
“patriarcado e capitalismo convivem através da divisão sexual<br />
do trabalho na família e na produção social, em um processo de<br />
dependência mútua: um se adapta às necessidades do outro”, e<br />
mais, “[...] os dois são duas faces de um mesmo sistema produtivo<br />
e devem examinar-se como formas integradas” (1998, p. 36; 39).<br />
Logo, a situação daquelas e de outras trabalhadoras nos espaços<br />
de trabalho estava relacionada com a sua situação de mulher, a<br />
partir de suas funções na família ou a partir de um modelo de família,<br />
bem como nos moldes das desigualdades de gênero em que<br />
a sociedade estava estruturada. 5<br />
Em sua origem, o conceito de patriarcado era utilizado para<br />
denominar uma sociedade regida por homens, a exemplo da sociedade<br />
feudal, em que o pai era considerado o cabeça da família,<br />
com poderes sobre sua mulher, filhos, trabalhadores e serventes.<br />
(DAHLERUP, 1987, p. 112) Desde então, o conceito de patriarcado<br />
tem sido usado para denominar a subordinação das mulheres,<br />
uma vez que todas as sociedades contemporâneas se encontram<br />
sobre o domínio dos homens, principalmente no que se refere às<br />
atividades políticas e econômicas, tratando-se, pois, de um sistema<br />
de dominação classista e não natural/biológico.<br />
O patriarcado “es un sistema social de dominación que consagra<br />
la dominación de los individuos del sexo masculino sobre<br />
los de sexo femenino”, para Maria José Palmero (2004, p. 34), que<br />
faz uma análise histórica e cultural das origens do patriarcado e do<br />
5 Conforme Drude Dahlerup (1987, p. 124), o conceito marxista de exploração de classe se define<br />
pelas relações da classe trabalhadora com os meios de produção, enquanto a opressão das<br />
mulheres não deriva de um único jogo de relações sociais, mas de um complexo sistema<br />
de estruturas e relações interconectadas. Para Danièle Combes e Monique Haicault (1986,<br />
p. 25), produção e reprodução são indissociáveis, uma é condição da outra, porém, se o<br />
modo de produção transforma o próprio ser humano em uma mercadoria apenas confirma<br />
a subordinação da reprodução à produção e essa subordinação se apoia em uma outra<br />
subordinação ou submissão – a das mulheres aos homens, que repousa na divisão sexual do<br />
trabalho. Acrescenta, ainda, que essa relação corresponde à instauração do sistema patriarcal<br />
articulado com o desenvolvimento de sociedades de classes.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 119
seu aparato de legitimação alimentado pela mitologia, que atribui<br />
a masculinidade e a paternidade a um Deus, modelo consagrado<br />
aos homens, enquanto às mulheres, que em nada se identificam<br />
com esse modelo, coube-lhes, apenas, o papel de servir a Deus<br />
e a seus representantes na terra − os homens. Assim, o “mito da<br />
criação” faz de Eva a companheira e, depois, a pecadora, que precisa<br />
redimir a sua culpa com as dores do parto, mas, sempre ocupando<br />
o papel ora de maldita ora de inferior. Em seguida, vem<br />
Maria, para transformar Eva em mãe e cujo sofrimento a redime<br />
do “pecado original” ao mesmo tempo em que substitui a imagem<br />
da mulher lasciva pela imagem da madona que permite que a sua<br />
sexualidade e reprodução sejam controladas pelo homem.<br />
Prescritos aí, estão os fundamentos do patriarcado e, com ele,<br />
a gênese da opressão das mulheres. O que está dito é que os homens<br />
detêm, naturalmente, o poder e que as mulheres, por sua<br />
fraqueza, incapacidade ou rebeldia o perderam e, naturalmente,<br />
não apresentam as condições necessárias para ocupar postos de<br />
governo ou cargos que exijam o manejo do poder. Ora, Eva não<br />
conseguiu controlar a sua sexualidade, os seus impulsos diante do<br />
fruto proibido, portanto, demonstrou fraqueza e, por isso, a sua<br />
descendência precisa ser controlada e vigiada sempre, não podendo,<br />
sequer, ficar a sós com outro homem que não seja aquele que a<br />
proteja de sua própria fragilidade, o seu guardião. 6 Por outro lado,<br />
esse homem honrado e forte que, segundo Deus, precisava de uma<br />
companheira, elevou Eva à condição de Maria e esta acolheu com<br />
obediência o cargo nobre e eterno, o de mãe. O governo do lar é<br />
seu, enquanto o governo do mundo externo e de suas instituições<br />
é do homem, este que sempre foi forte diante das adversidades.<br />
Instituiu-se, assim o modelo de família: “El hombre es cabeza de<br />
6 Segundo Palmero (2004, p. 37), a repressão da sexualidade nas mulheres e o seu controle é o<br />
verdadeiro cavalo de batalha do patriarcado.<br />
120<br />
Gênero, mulheres e feminismos
familia, la mujer el cuerpo: se reproduce así el esquema de dominación<br />
ancestral”, diz Maria José Palmero (2004, p. 49).<br />
O patriarcado, então, passou a funcionar como um jogo de<br />
relações sociais entre os homens e instituiu normas gerais de valoração<br />
dos gêneros, com prejuízos, historicamente irreparáveis<br />
para as mulheres. O pai, o irmão, o marido e o filho se encontram,<br />
ainda, em posições superiores à mulher. Por um longo período<br />
de tempo, assinaram pelas mulheres, falaram por elas e, ainda,<br />
deram-lhes o nome; diante das mulheres, sentaram-se nos melhores<br />
lugares, comeram o que havia de melhor; tinham liberdade<br />
de ir e vir a qualquer hora e em qualquer lugar; puderam amar<br />
mais de uma mulher sem medo e sem vergonha; em vida, eram,<br />
sozinhos, os donos da riqueza, mesmo que esta tivesse sido produzida<br />
por toda a família, que somente vinha a ter a posse quando<br />
o “cabeça” falecia; a transmissão das riquezas e do poder, através<br />
do sistema de hereditariedade, os favoreceu com prioridade absoluta;<br />
a palavra de decisão na família foi um de seus maiores patrimônios.<br />
Enfim, os homens exerceram o poder em detrimento<br />
das mulheres.<br />
O jogo das relações sociais patriarcais sempre proibiu as mulheres<br />
de exercerem o poder e de deterem o conhecimento e, se,<br />
em dados momentos, alguma delas se atreveu a desafiá-lo foi rotulada<br />
como maldita ou ridícula, a exemplo de Eva, Pandora e outras.<br />
(PALMERO, 2004, p. 37)<br />
Assim, qualquer definição ou descrição sobre o patriarcado<br />
traz em si algo comum que é o foco no poder dos homens e na<br />
dominação destes sobre as mulheres, variando, historicamente, a<br />
forma de ação, conforme os contextos político, econômico, social<br />
e cultural. Contudo, é preciso estar atenta/atento para não perder<br />
de vista que esse poder/dominação não é o resultado de uma determinação<br />
biológica que se baseia na diferença sexual; trata-se<br />
Gênero, mulheres e feminismos 121
de uma dominação classista e que se perpetua através da família e<br />
da divisão sexual do trabalho.<br />
Assim, de todos os pares opostos instituídos pela cultura ocidental,<br />
no sentido de estabelecer uma ordem objetiva de compreensão<br />
do mundo, o masculino/feminino, a cultura/natureza<br />
e o “um/outro” ofereceram as bases para a ordem hierarquizada<br />
e simbólica do patriarcado, dificultando o seu questionamento<br />
ou mesmo outra possibilidade de nomeação, conceituação e organização<br />
do mundo e de suas instituições, inclusive a da divisão<br />
sexual do trabalho que, através da figura do caçador, instituiu<br />
culturalmente a valorização da masculinidade e das tarefas realizadas<br />
pelo homem.<br />
A história das mulheres trabalhadoras, em qualquer tempo e<br />
lugar, tem revelado quão exploradas e sujeitadas têm sido as mulheres<br />
e, também, como tem sido grande a sua luta para resistir e<br />
romper com esse sistema sociopolítico injusto, uma vez que suas<br />
vitórias têm provado que essa situação é resultado de uma construção<br />
cultural e social, que a sujeição é uma situação imposta às<br />
mulheres e não uma condição da natureza feminina que faz com<br />
que elas devam se resignar e aceitar, facilitando, portanto, a exploração.<br />
A história tem testemunhado muito mais as lutas que<br />
a passividade das mulheres, a sua capacidade de minar as forças<br />
opostas, de organizar estratégias sutis ou abertas de enfrentamento<br />
e de resistência à exploração e à dominação, até de romper<br />
com os padrões sociais e morais institucionalizados que reforçam<br />
a dominação e a opressão como lei natural. 7<br />
A luta ainda é mais complexa porque o inimigo não é declarado<br />
e não se situa fora, à parte, ou à distância de sua presa: o patriarcado<br />
é introjetado pelas pessoas de qualquer sexo, idade, credo,<br />
7 Muito embora, ao lutar contra os instrumentos patriarcais que geram a sua opressão/<br />
exploração, as mulheres tenham, por vezes, que aplicar métodos patriarcais, uma vez que se<br />
encontram inseridas em um sistema de relações patriarcais e fazem parte dele. (SHOTTER;<br />
LOGAN, 1993, p. 100)<br />
122<br />
Gênero, mulheres e feminismos
aça ou classe, sem se configurar ou se autodeclarar, abertamente,<br />
um sistema de opressão que serve aos homens em detrimento das<br />
mulheres; ao contrário, a ideologia patriarcal está expressa nas relações<br />
e nas práticas sociais, está incorporada às maneiras como as<br />
pessoas se comportam e agem cotidianamente, como se estivesse<br />
na natureza humana e das coisas em geral, conforme John Shotter<br />
e Josephine Logan (1993, p. 91-2). Seria um erro pensar que esse<br />
fenômeno ocorre separadamente e que atinge uns e outros não,<br />
pois são práticas sociais autorreproduzidas, com caráter de uma<br />
“lei natural” que ordena o mundo, inclusive os espaços.<br />
O processo histórico e ideológico da sujeição das mulheres aos<br />
homens e de sua reclusão no espaço doméstico, sendo excluída da<br />
acumulação de riquezas, foi engendrado desde os primórdios da<br />
humanidade e vem se aperfeiçoando com métodos rigorosamente<br />
sofisticados que tornam cada vez mais perversas as suas ações, escamoteadas,<br />
porém, pelo elevado grau de sua sutileza. Nesse sentido,<br />
Danièle Combes e Monique Haicault informam:<br />
Se a divisão sexual do trabalho que designa prioritariamente os<br />
homens para a produção e as mulheres para a reprodução é bem<br />
anterior ao modo de produção capitalista, é claro, no entanto,<br />
que o advento do capitalismo subverte não apenas as condições<br />
da produção de bens mas também as condições da produção dos<br />
seres humanos. (1986, p. 27)<br />
Nessa análise, é possível afirmar que, historicamente, a dominação<br />
masculina tem sido reestruturada conforme os processos<br />
de transformações políticas, sociais, culturais e, sobretudo, econômicas,<br />
passando a fazer parte da estrutura da sociedade atual.<br />
(DAHLERUP, 1987, p. 115)<br />
Sob a miragem do ideal universalista da Modernidade, que<br />
incluiria a todos e todas, o patriarcado se reconstruiu com uma<br />
Gênero, mulheres e feminismos 123
nova roupagem. 8 Enquanto os ideais ilustrados triunfaram para os<br />
homens, as mulheres foram relegadas à menoridade (PALMERO,<br />
2004, p. 47), criando a sua necessidade, segundo essa ideologia,<br />
de proteção, devendo ser mantidas no lar para o bem da família –<br />
traduza-se, para o bem dos homens – e da sociedade.<br />
Assim, foi conclamado por todos e todas, principalmente pelas<br />
feministas, que as mulheres ficaram de fora dessa nova ordem<br />
política e moral da sociedade moderna; porém, é preciso ressaltar<br />
que elas foram excluídas do que se convencionou como “direitos<br />
universais”, que incluía a sua cidadania, mas que, no projeto<br />
mais amplo da modernidade, significou a sua inclusão no plano de<br />
sustentação e garantia dos direitos e liberdades masculinas, como<br />
também no plano econômico, pois coube às mulheres todo o empreendimento<br />
doméstico e familiar sem qualquer remuneração,<br />
pois, ao contrário, este foi ideologicamente instituído como uma<br />
tarefa eminentemente feminina.<br />
As mulheres apenas ocupavam a categoria de “cidadãs de segunda<br />
classe”, pois estavam submetidas ao “pacto de sujeição”,<br />
firmado pelo matrimônio, 9 que restringia sua atuação ao espaço<br />
doméstico, onde a lei não entrava para protegê-las nem física nem<br />
moralmente, sendo consideradas como seres sem dignidade e sem<br />
cidadania. Essa divisão dos lugares e das funções entre as duas metades<br />
da humanidade instituiu severamente o discurso da ruptura<br />
entre público e privado, supervalorizando as atividades relativas<br />
ao espaço público, portanto, masculinas, e desvalorizando as ati-<br />
8 Neste momento, Rousseau sistematiza e codifica as bases do patriarcado moderno, a partir do<br />
seu projeto de educação distinto para homens e mulheres, de um lado representado por Emílio,<br />
que se ocupa de tarefas que lhe dão autonomia e autorrealização, e de outro, por Sofia, que<br />
representa o modelo da mulher burguesa, pura, dedicada ao lar e submissa.<br />
9 Além da mitologia, que traz as justificativas para a submissão das mulheres em relação aos<br />
homens, o matrimônio, historicamente representa um pacto de sujeição de cada mulher a seu<br />
marido, selado publicamente desde o direito romano e sem modificação até o início do século<br />
XIX, quando esta “no puede contratar ni obligarse con terceros sin autorización de su marido;<br />
aunque este en régimen de separación de bienes, es legalmente incapaz de dar, enajenar,<br />
hipotecar o adquirir”. (PETIT, 1994, p. 54)<br />
124<br />
Gênero, mulheres e feminismos
vidades relacionadas ao espaço privado, destinado às mulheres,<br />
excluindo-as do direito à cidadania, como afirma Palmero:<br />
[...] el corte público/privado pretendió excluir a las mujeres no<br />
solo de su papel como sujetos de la historia, sino de las atribuciones<br />
de la ciudadanía y del reconocimiento de su dignidad<br />
personal como autonomía. (2004, p. 44)<br />
O espaço doméstico não se constituiu, apenas, como um espaço<br />
privado de toda a família, mas, também, como um espaço de<br />
confinamento das mulheres, de disciplinamento de seus corpos e<br />
de sua mente, para que formassem o seu caráter modelado pelas<br />
“boas” regras de conduta e de moral, com base em um modelo<br />
pré-estabelecido de feminino. Paradoxalmente, contrariando os<br />
valores burgueses que incluem a privacidade e a individualidade,<br />
neste mesmo espaço as mulheres não dispõem de um espaço privado<br />
nem de tempo próprio e, fora dele, sofrem o massacre da<br />
vigilância da opinião pública sobre os seus atos e sobre a sua imagem.<br />
(PALMERO, 2004, p. 51-2)<br />
No espaço privado/doméstico, o patriarcado agiu com maestria.<br />
Usou de força física para aprisionar as mulheres e para<br />
torná-las dóceis, mas, também, soube, estrategicamente, usar<br />
instrumentos mais sofisticados e poderosos como, por exemplo,<br />
a educação, que não modela apenas o comportamento, como<br />
também o ser, visto que o processo de socialização das meninas<br />
começa desde a mais tenra idade e, diferindo completamente da<br />
educação dos meninos, 10 não trabalha a individualidade, mas a<br />
sua domesticação. Não se trata de uma educação formal, com base<br />
em conhecimentos universais, mas de um processo de disciplinamento<br />
específico, de caráter ideológico, no sentido de construir<br />
10 Simone de Beauvoir analisa e descreve o processo de socialização das meninas em comparação<br />
com o dos meninos, constatando o engenhoso trabalho de construção cultural do feminino,<br />
deflagrado na célebre frase que abre a sua mais importante obra O segundo sexo: “Não se nasce<br />
mulher, torna-se mulher”. (BEAUVOIR, 1980)<br />
Gênero, mulheres e feminismos 125
o ideal de esposa e dona de casa perfeita, bem como de mãe virtuosa,<br />
reunidas em uma única mulher representativa do modelo<br />
feminino necessário à sociedade burguesa. Ao mesmo tempo,<br />
moldada pela emoção, essa nova mulher continuava satisfazendo<br />
plenamente às relações sociais patriarcais, por ser afetiva, passiva<br />
e dependente, estereótipos mantidos pelo patriarcado para caracterizar<br />
a personalidade feminina. (COSTA, 1998, p. 49)<br />
As bases da sociedade moderna se assentaram sobre o novo<br />
modelo de feminino e de masculino, que separou e caracterizou os<br />
espaços de forma que o privado/doméstico é feminino e o público<br />
ou não-doméstico é masculino, 11 ao mesmo tempo em que estes<br />
espaços passaram a funcionar como instituições socializadoras e<br />
formadoras dos gêneros, separando e hierarquizando os sexos, de<br />
modo que a sociedade passou a ser organizada pelo parâmetro da<br />
divisão sexual, determinando uma ordem moral e dualista baseada<br />
no poder social entre o masculino/hegemônico e o feminino/<br />
passivo.<br />
É um paradoxo, mas é possível afirmar que é o patriarcado subsistindo<br />
na sociedade formalmente igualitária, o que representa<br />
dizer que, mesmo no bojo das lutas das feministas pela autonomia<br />
individual das mulheres e considerando os ganhos reais por elas<br />
obtidos nos períodos revolucionários da história do Ocidente, o<br />
patriarcado vem se recriando a partir das condições econômicas e<br />
políticas vigentes em cada contexto cuja ação fortalece a organização<br />
social necessária à manutenção do sistema em um processo<br />
de retroalimentação entre a ideologia patriarcal e as instâncias de<br />
poder que compõem e mantêm o sistema político, econômico e<br />
social.<br />
11 Dahlerup (1987) afirma que a esfera pública estava regida por homens e que estes não estavam<br />
ausentes da esfera da família, mas atuavam nas duas esferas, enquanto a mulher só teria uma<br />
esfera de atuação. Essa autora também faz uma discussão do que seria privado, dos vários<br />
significados que reúne este termo e da imprecisão dos limites entre as duas esferas.<br />
126<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Seja qual for a definição ou o conceito utilizado para compreender<br />
o patriarcado, seja qual for a forma e o contexto em que ele<br />
atuou ou atua, sejam quais forem as maneiras pelas quais se reestruturou<br />
para acompanhar o desenvolvimento dos sistemas político,<br />
econômico e social, o patriarcado tem a ver, diretamente,<br />
com o poder, a autoridade e o controle dos homens sobre as mulheres.<br />
(DAHLERUP, 1987, p. 119)<br />
O que é preciso observar são as nuances de sua atuação nos devidos<br />
tempo e espaço, pois, apesar de utilizar esses instrumentos<br />
ao longo da história até nossos dias, as circunstâncias mudaram,<br />
os contextos políticos, econômicos e sociais mudaram e determinaram<br />
outras posturas e há, ainda, as lutas e resistências das feministas<br />
a todo tipo de opressão, exploração e discriminação das<br />
mulheres. No contexto das sociedades capitalistas, por exemplo, o<br />
controle dos homens sobre as mulheres não é o mesmo, ele não se<br />
dá mais tão diretamente entre um homem e uma mulher, mas se<br />
encontra presente em todas as estruturas da sociedade, impregnado<br />
e introjetado nas/pelas pessoas, presente nas instituições,<br />
diluído nas ações e comportamentos coletivos. Identificando essa<br />
concepção na análise “socialista-feminista”, Dahlerup (1987) 12<br />
salienta:<br />
[...] el mercado laboral que está segregado en función del sexo;<br />
el doble peso de trabajo de las mujeres, el cual en su mayor parte<br />
no es asalariado; las mujeres como una fuerza laboral de reserva;<br />
la diferencia salarial entre los hombres y las mujeres; el efecto<br />
del proceso de socialización sobre las niñas y las mujeres; la relativa<br />
falta de poder de las mujeres de la política tradicional, etc.<br />
(DAHLERUP, 1987, p. 120-1)<br />
12 Drude Dahlerup (1984) identifica um patriarcado pessoal e um patriarcado estrutural; também<br />
identifica, nas sociedades ocidentais, vários tipos de opressão: pessoal e impessoal, visível e<br />
invisível, física/material e psicológica, legítima e ilegítima.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 127
Com base nessa análise da constituição das relações sociais patriarcais,<br />
Maria José Palmero (2004) sugere que a tarefa é refazer<br />
a história e desacreditar no relato patriarcal, que tem dificultado<br />
a incorporação das mulheres ao espaço público e, consequentemente,<br />
a ausência de modelos femininos como protagonistas nesse<br />
espaço, exceto os casos que fogem à regra. Mas, a desconstrução<br />
do patriarcado passa pela desconstrução cultural dos estereótipos<br />
de gênero e a sua análise a partir do ponto de vista feminista constitui<br />
uma denúncia e uma reflexão da situação atual das mulheres,<br />
com o objetivo de conduzi-las, cada vez mais, à quebra do “contrato<br />
sexual” e de sua sujeição, que têm dado suporte à sua dupla<br />
exploração.<br />
É preciso (re)visitar o passado, vasculhar as memórias e confrontar-se<br />
com as situações concretas em que viviam as mulheres<br />
para entender a lógica da opressão em cada contexto e em cada<br />
situação, especificamente. Da mesma forma que, para entender<br />
a exploração bem como as lutas e resistências das fumageiras no<br />
cenário fabril da indústria do fumo, se faz necessário conhecer<br />
as suas histórias, suas experiências como trabalhadoras e a estrutura<br />
organizacional em que estavam inseridas, pois, só assim,<br />
para compreender a dimensão de cada ato, de cada gesto, de cada<br />
comportamento naquele campo de forças.<br />
Organizar para imobilizar<br />
O trabalho produtivo realizado pelas mulheres fumageiras do<br />
Recôncavo Baiano se circunscreve a dois espaços distintos – a casa<br />
e a fábrica. 13 O primeiro se caracteriza como um espaço privado,<br />
13 Neste caso, a “fábrica” representa todos os estabelecimentos fabris (armazéns de fumo e<br />
fábricas de charutos e cigarrilhas) da indústria fumageira do Recôncavo baiano.<br />
128<br />
Gênero, mulheres e feminismos
de constituição da família, 14 lugar de disciplina, de produção e<br />
reprodução dos gêneros em correspondência com as demandas<br />
morais, religiosas, culturais e sociais, em seus diversos contextos,<br />
lugar adequado para a exploração e, de forma inseparável, a opressão,<br />
seja na produção ou na reprodução. Os valores produzidos e<br />
reproduzidos nesse espaço refletem, diretamente, nos ambientes<br />
e nas relações de trabalho. O segundo, a fábrica, se caracteriza<br />
como espaço externo, disciplinado e de disciplinamento, onde o<br />
controle e a vigilância dos sujeitos, no caso, as trabalhadoras, não<br />
advêm de ou servem a uma tradição, mas a um sistema de produção<br />
que tem como objetivo principal produzir em larga escala<br />
para obter lucros imediatos e cada vez maiores, o que faz extraindo<br />
do(a) trabalhador(a) todo o seu tempo e a sua força laboral.<br />
A casa e a fábrica, espaços onde se desenrolaram as atividades<br />
fumageiras de beneficiamento, preparação dos fumos e fabricação<br />
de charutos e cigarrilhas, se constituíram e se caracterizaram a<br />
partir das relações de trabalho, como também das relações sociais<br />
mais gerais entre os sujeitos envolvidos, direta e indiretamente,<br />
no cenário econômico e social da região do Recôncavo. Em casa,<br />
tanto a atividade doméstica como o trabalho com o fumo diretamente,<br />
eram realizados sob o comando das mulheres, mas, envolvia,<br />
exceto os homens, todos os membros da família, inclusive as<br />
crianças. 15<br />
Nas fábricas, patrões, gerentes, mestres, operários e operárias<br />
ocupavam a cadeia hierárquica das posições de poder e das funções<br />
para a realização do trabalho fabril, em espaços separados fisica-<br />
14 Apesar de ter predominado na literatura e no imaginário social do Recôncavo Baiano o modelo<br />
de família nuclear, na prática esse modelo se resumiu, apenas, à pequena elite econômica.<br />
Nos meios populares a família se constituía de maneira mais contingente, contudo, os valores<br />
sociais e morais também afetavam esse grupo. Em relação à noção do espaço da casa como<br />
privado, não se tratava de uma noção de lugar fechado, inacessível e sem relação com o<br />
mundo exterior, ao contrário, tratava-se, também, de um espaço de produção cuja linha que o<br />
separava da rua era muito tênue.<br />
15 A análise do trabalho das fumageiras no próprio domicílio se encontra mais à frente.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 129
mente e distintos em sua função primeira, mas que se faziam unidos<br />
pela rede de relações tecida pela população fumageira, aquela<br />
que transitava entre os espaços (re)inventando os seus modos de<br />
vida, ao mesmo tempo em que forjava todas as possibilidades de<br />
resistência à exploração e à dominação 16 impostas pelo trabalho<br />
nos seus respectivos lugares.<br />
É na estrutura organizacional dos estabelecimentos fabris da<br />
indústria fumageira que se observa uma das mais fortes evidências<br />
das estratégias ideológicas de dominação a serviço da exploração<br />
das trabalhadoras do fumo. Essa estrutura reproduzia e materializava<br />
a ideologia patriarcal desde a distribuição dos espaços, das<br />
instalações e dos objetos até a hierarquização das funções e das<br />
pessoas. E, apesar da relevância em se observar, em primeira mão,<br />
a exploração que imperava nos ambientes fabris, independentemente<br />
do sexo, foram as relações sociais patriarcais baseadas nas<br />
desigualdades de gênero que lançaram as bases e geraram as condições<br />
para que a exploração pudesse ocorrer a contento do sistema<br />
econômico, considerando que capitalismo e patriarcado se<br />
produzem e reproduzem mutuamente.<br />
Dessa forma, as mulheres, no caso as fumageiras, se encontravam<br />
duplamente em desvantagem – oprimidas e exploradas.<br />
Por mais importante que fosse a sua posição na hierarquia de poder,<br />
por mais necessária que fosse a sua função para a indústria<br />
fumageira, a mulher continuava sendo um ser inferior diante dos<br />
homens, mesmo daqueles que ocupavam funções menos importantes<br />
que a sua.<br />
16 Não se trata aqui de uma dominação no sentido geral ou global, mas de uma dominação<br />
específica das relações de trabalho no contexto da indústria fumageira do Recôncavo,<br />
considerando as questões de classe e, sobretudo as questões de gênero; como também, não<br />
se trata de uma dominação rígida de um grupo sobre o outro, uma vez que, se considera a<br />
dominação em questão como uma das múltiplas formas de dominação exercidas na sociedade,<br />
pois, segundo Foucault, ela não ocorre, apenas, de cima para baixo na escala social, mas nas<br />
“múltiplas sujeições que existem e funcionam no interior do corpo social” (1979, p. 181).<br />
130<br />
Gênero, mulheres e feminismos
A organização dos espaços fabris na região fumageira atendeu<br />
à lógica capitalista da divisão social do trabalho. No entanto, foi o<br />
caráter da suposta naturalização da divisão das tarefas entre homens<br />
e mulheres que caracterizou, em grande medida, a atividade<br />
fumageira dentro e fora das fábricas. O gênero demarcava os<br />
espaços físicos e as relações entre os/as trabalhadores(as) e entre<br />
estes/estas e os superiores hierárquicos. Mas o que explica a adoção<br />
do método “natural” de divisão sexual do trabalho na indústria<br />
do fumo do Recôncavo? Era a adoção ingênua e gratuita das<br />
formas de organização da própria sociedade, naquele momento?<br />
A incorporação da dinâmica das relações sociais patriarcais<br />
que predominava na região do Recôncavo, pelos empresários do<br />
fumo, se associava com seus interesses mais amplos. Era cômodo,<br />
ou seja, não necessitava romper com a cultura local, não criava nenhum<br />
tipo de desagrado àquela sociedade, ao contrário, a organização<br />
fabril reforçava e reproduzia os valores da cultura patriarcal<br />
que determinava lugares para homens e mulheres na hierarquia<br />
social. Outro aspecto e, talvez, o mais importante é que o modelo<br />
patriarcal servia, fielmente, ao sistema econômico vigente.<br />
A forma como os estabelecimentos fabris estavam organizados,<br />
revelava um propósito: a distribuição dos(as) trabalhadores(as)<br />
nos espaços e nas funções era, ideologicamente projetada, no sentido<br />
de manter o controle dos grupos, de poder adotar diferentes<br />
instrumentos de disciplina e, principalmente, de evitar qualquer<br />
possibilidade de articulação e de mobilização de ações políticas<br />
pelos(as) trabalhadores(as).<br />
As fábricas de charutos e cigarrilhas eram compostas por diversas<br />
repartições, variando muito pouco de uma para outra fábrica,<br />
quando se tratava do mesmo porte empresarial. As grandes fábricas<br />
se compunham de recepção, escritórios, cofre (uma pequena<br />
saleta com paredes e porta adequadas), almoxarifados, elevador de<br />
carga, conforme o porte da fábrica e a estrutura do prédio, ambula-<br />
Gênero, mulheres e feminismos 131
tório, sanitários, refeitório, oficina mecânica, depósitos, caldeiras,<br />
câmaras de fumo e de charutos, carpintaria, salões de beneficiamento<br />
de fumo, onde se concentrava grande parte do pessoal nas<br />
várias etapas do preparo do fumo, salão de anelamento, salão de<br />
encaixamento, bancas de capas e a charutaria.<br />
Salvo as áreas e repartições comuns, as demais eram divididas<br />
entre os dois sexos, ou seja, havia repartições masculinas e repartições<br />
femininas. Os homens ocupavam as áreas administrativas,<br />
a área de serviços pesados e serviços gerais. As mulheres ocupavam,<br />
apenas, as repartições de trabalho ligadas diretamente ao<br />
beneficiamento dos fumos e à confecção e embalagem dos charutos<br />
e cigarrilhas. Todas as áreas e repartições eram, estrategicamente,<br />
projetadas para atender, além das necessidades da cadeia<br />
de produção, a localização dos indivíduos conforme o gênero e a<br />
posição na escala do poder. 17 Assim, as mulheres fumageiras foram<br />
distribuídas, em suas diversas funções, no centro da fábrica<br />
– onde se localizavam os salões de beneficiamento dos fumos, de<br />
encaixamento e anelamento dos charutos – e na parte da frente,<br />
onde se localizava a charutaria. (SILVA, 2001)<br />
A seção de charutaria, um espaço predominantemente feminino,<br />
ficava sempre no salão da frente onde as bancas eram distribuídas<br />
em fileiras duplas, dispondo as mulheres sentadas em<br />
tamboretes, uma ao lado da outra em cada fileira de bancas. As<br />
bancas eram divididas, em média, em dez lugares cada uma, separadas<br />
por tábuas laterais que ofereciam a cada charuteira um<br />
espaço individualizado, onde arrumavam seus instrumentos e materiais<br />
de trabalho. Porém, como se observa na primeira fotografia<br />
a seguir, a distribuição das bancas da charutaria não favorecia a<br />
17 A divisão dos espaços na fábrica obedece ao método de racionalização da produção para<br />
garantir a produtividade em menos tempo possível, evitando gastos e comportamentos<br />
supérfluos, conforme os princípios tayloristas de organização do trabalho. Contudo, a<br />
subordinação de gênero manifestada na divisão sexual do trabalho foi uma base aliada à<br />
exploração das mulheres e, neste caso, expressamente às fumageiras.<br />
132<br />
Gênero, mulheres e feminismos
comunicação e a articulação horizontais, ou seja, da charuteira<br />
com a sua vizinha da frente, pois, ou as bancas se localizavam distantes<br />
uma da outra ou, quando juntas, eram separadas por uma<br />
coluna mais alta que o lastro da banca, uma espécie de cabeceira.<br />
Ora, se as charuteiras se sentassem uma frente à outra, sem<br />
qualquer obstáculo, isso possibilitaria não apenas a conversa entre<br />
elas, mas a possibilidade de parar o trabalho, enquanto se olhassem<br />
para estabelecer uma comunicação mais direta, o que era<br />
mais difícil ocorrer com as colegas de suas laterais. A conversa e<br />
o “olho no olho” enquanto trabalhavam, poderia ser interpretado<br />
pelos patrões, através dos mestres, como um “comportamento<br />
supérfluo” que tomaria tempo e prejudicaria a produção, bem<br />
como uma senda para as estratégias de resistências sutis.<br />
Figura 1 – Seção de charutaria de uma fábrica de charutos do Recôncavo<br />
Fonte: Arquivo Público do Estado da Bahia<br />
As fotografias revelam que os assentos eram desconfortáveis<br />
e sem recosto; a distância entre as trabalhadoras era mínima,<br />
Gênero, mulheres e feminismos 133
dificultando a locomoção e até o movimento dos braços enquanto<br />
cortavam a folha de fumo e enrolavam os charutos (Figura 1).<br />
A arrumação da charutaria ia além da economia de espaços, favorecia,<br />
também, os mecanismos de disciplina e controle usados<br />
pelos mestres de seção, dentre outras peculiaridades da organização<br />
fabril.<br />
A seção de embalagem dos charutos seguia a mesma organização<br />
e controle da charutaria. Nesses espaços ou seções de trabalho,<br />
tanto o gênero quanto o poder interferiam diretamente na<br />
realidade mais concreta das trabalhadoras fumageiras, o seu corpo,<br />
desde as vestimentas, que as aprisionavam em um corpo de<br />
mulher, até as posturas que deveriam manter durante o período<br />
de trabalho. Seus corpos estavam disciplinados para além da sexualidade;<br />
a sua distribuição no espaço fabril anunciava a ordem e<br />
a disciplina a que as fumageiras estavam submetidas; eram corpos<br />
marcados e arruinados pela história. (FOUCAULT, 1979, p. 22) Era,<br />
enfim, a presença de um “poder disciplinar” 18 específico daquele<br />
contexto, que tinha como objetivo produzir as trabalhadoras necessárias<br />
àquele tipo de indústria, tornando seus corpos força de<br />
trabalho, a partir de um sistema político de dominação de gênero<br />
e classe, pois, assim afirma Michel Foucault:<br />
A disciplina é o conjunto de técnicas pelas quais os sistemas de<br />
poder vão ter por alvo e resultados os indivíduos em sua singularidade.<br />
[...] é a vigilância permanente, classificatória, que permite<br />
distribuir os indivíduos, julgá-los, medi-los, localizá-los e,<br />
por conseguinte, utilizá-los ao máximo. (1979, p. 107)<br />
18 A análise do processo de disciplinamento das trabalhadoras fumageiras no espaço fabril ou do<br />
esquadrinhamento e da organização do espaço como mecanismo de disciplinamento, não tem<br />
como objetivo caracterizar o trabalho das fábricas de charutos como um “trabalho disciplinar”,<br />
mas identificar a disciplina como um dos principais instrumentos de controle das trabalhadoras<br />
no processo do “trabalho produtivo”, com vistas a garantir, ao máximo, a extração de sua<br />
capacidade laboral, o melhor uso do tempo e atingir o nível mais elevado de produção, uma vez<br />
que, segundo Foucault, “as técnicas de poder foram inventadas para responder às exigências<br />
da produção [...] produção em sentido amplo”. Ainda, ao destacar a função tripla do trabalho:<br />
produtiva, simbólica ou de adestramento ou disciplinar, este autor afirma que “o mais freqüente<br />
é que os três componentes coabitem” nas categorias que ocupavam. (1979, p. 223-4).<br />
134<br />
Gênero, mulheres e feminismos
A organização do espaço fabril da indústria fumageira era,<br />
portanto, um dos principais meios de disciplinamento das trabalhadoras,<br />
além do controle do tempo, que as submetia aos rigores<br />
do cumprimento da produção, considerando, ainda, a exigência<br />
da qualidade. Por outro lado, essas ações jamais se concretizariam<br />
espontaneamente ou através de meras ordens dos superiores hierárquicos<br />
das trabalhadoras: foi preciso recorrer à implementação<br />
do mais antigo instrumento de controle, a vigilância constante<br />
dos mestres, uma das “células periféricas do poder” nas fábricas.<br />
Esses, auxiliados pelos contramestres e passadores de charutos,<br />
estavam destinados ao trabalho de observar, fiscalizar e controlar<br />
todo o processo de trabalho da confecção dos charutos; de fazer as<br />
anotações e encaminhá-las aos devidos setores; e de disciplinar as<br />
trabalhadoras.<br />
Segundo Foucault, foi nas corporações de ofícios do século<br />
XVII que surgiram os personagens do mestre e contramestre, este<br />
último destinado “não só a observar se o trabalho foi feito, como<br />
pode ser feito rapidamente e com gestos melhor adaptados”, uma<br />
vez que “as técnicas de poder foram inventadas para responder<br />
às exigências da produção” no sentido amplo (1979, p. 106; 223).<br />
A necessidade dessas funções era reveladora da trama política<br />
que envolvia os sujeitos no espaço fabril, pois, frequentemente,<br />
registravam-se casos de erros propositais na produção, desobediência<br />
e reincidência em práticas proibidas pelo regulamento das<br />
fábricas, gerando um repertório de punições, desde a advertência<br />
verbal e escrita, à suspensão e, até, à demissão.<br />
Os métodos de disciplina implantados nas fábricas controlavam<br />
não apenas a produção, mas a qualidade dos produtos, desde<br />
a seleção dos tipos de fumo, o tratamento dado a cada folha do tabaco<br />
à confecção e embalagem dos charutos. Contudo, “o controle<br />
não atingia o próprio gesto”, não atingia o ritmo dos movimentos<br />
dos braços e mãos no vai-e-vem do abrir e enrolar os fumos até<br />
Gênero, mulheres e feminismos 135
obter o produto final. Para realizar a produção, as fábricas dependiam<br />
de cada charuteira, do seu talento e da habilidade de suas<br />
mãos que, com arte e ciência fazia e refazia os detalhes, buscando<br />
a perfeição, em cada segundo, para, então, surgir o charuto, como<br />
uma peça de arte, das mãos da artista, pois, enquanto confeccionavam<br />
os charutos e cigarrilhas, as mãos das charuteiras sobre a<br />
matéria-prima formavam uma simbiose a galgar a perfeição estética<br />
e o bom paladar deste produto que alimentava o gosto e a<br />
preferência dos seus adeptos.<br />
A qualidade do fumo e da mão de obra determinava o resultado<br />
final da produção, ou seja, sua qualidade e quantidade. (SILVA,<br />
2001) Preparar os fumos e confeccionar os charutos constituía o<br />
campo de saber das fumageiras que, ao estabelecer relações com<br />
outros campos de saber existentes no espaço fabril, determinavam<br />
uma prática social de poder específica. Apesar da fiscalização<br />
e da disciplina impostas pelos fabricantes que resultavam, diretamente,<br />
no controle dos corpos das fumageiras, elas detinham<br />
todo o saber da preparação dos fumos e da confecção dos charutos,<br />
acumulando, portanto, uma gama de poder e de controle,<br />
também, sobre a produção.<br />
Embora a indústria fumageira, naquele momento, já tivesse<br />
introduzido a separação entre trabalho manual e trabalho intelectual<br />
no processo de industrialização do fumo, grande parte do<br />
saber sobre as tarefas específicas de tratamento dos fumos e da<br />
fabricação de charutos e cigarrilhas ainda era dominada pelos(as)<br />
trabalhadores(as). É neste sentido que se concorda com Foucault<br />
(1979), quando ele afirma que “o saber acarreta efeitos de poder”,<br />
pois o saber das mulheres fumageiras representava uma força poderosa<br />
temida pelos empresários, o que permitia a constituição de<br />
novas relações no campo do poder no universo fabril regional.<br />
136<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Considerações finais<br />
As relações de trabalho são uma forma particular das relações<br />
sociais e, por isso, não se constituem apenas pelas questões de<br />
classe dissociadas das demais; ao contrário, é, exatamente aí que<br />
residem as questões de raça, gênero e geração e, portanto, relações<br />
perpassadas e cingidas de poder e pelo poder. As intrincadas<br />
relações tecidas pelos sujeitos no âmbito do trabalho, independentemente<br />
do tipo de atividade exercida ou da posição que cada<br />
um ocupa na hierarquia do poder, são, na maioria das vezes, tensas,<br />
conflituosas e carregadas de desconfiança. O fato de que nem<br />
sempre são vistas e interpretadas desta forma se deve à maneira<br />
como são constituídas, conforme o contexto e as situações em que<br />
cada indivíduo ou grupo se encontra inserido, nos quais as disputas,<br />
as lutas e a negociação entre o superior e o subalterno, bem<br />
como entre os subalternos, podem ocorrer tanto de forma aberta<br />
e direta, como fechada e sutil, amistosa ou não.<br />
O campo de forças se estabelece a partir de uma rede de relações<br />
e, não apenas, a partir de dois polos isolados, um positivo<br />
e outro negativo, um ativo e o outro passivo. Assim, não se pode<br />
compreender um campo de forças, em se tratando das relações<br />
dos sujeitos em seus espaços de trabalho, apenas, pelo viés do<br />
conflito aberto e das lutas organizadas; é preciso perceber todas as<br />
formas de luta que se estabelecem entre os indivíduos especificamente<br />
nesse espaço, mesmo porque não cabe mais a compreensão<br />
de que há, de um lado, aquele(a) que manda, que detém o poder e,<br />
portanto, o/a que explora e, de outro lado, aquele(a) que apenas<br />
obedece e sofre passivamente a ação daquele(a) que manda, portanto,<br />
não detém poder algum e é de todo explorado(a).<br />
É a partir dessa compreensão e desse contexto que deverá se<br />
desenvolver a análise direta da resistência inventiva das mulhe-<br />
Gênero, mulheres e feminismos 137
es fumageiras do Recôncavo Baiano, especificamente na primeira<br />
metade do século XX, considerando as relações de poder que, historicamente,<br />
entrelaçavam as ações dos sujeitos e que permeavam<br />
outras relações, como as de gênero, raça e classe.<br />
Referências<br />
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Série: Fotografia sobre a cultura fumageira. S/d cx. 2378, março 149,<br />
doc. 557.<br />
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discusión teórica sobre el Estado patriarcal. In: SASSOON, Anne (Org.).<br />
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138<br />
Gênero, mulheres e feminismos
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– Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da<br />
Bahia, Salvador, 2001. Disponível em: .<br />
Gênero, mulheres e feminismos 139
A PERIFERIA, A CASA E A RUA<br />
limites difusos na cidade<br />
Iracema Brandão Guimarães<br />
Introdução<br />
O título deste trabalho remete a um clássico das Ciências Sociais,<br />
Roberto Da Matta (1997, p. 26), ao situar a casa e a rua como<br />
instâncias sociais separadas, (assim como os espaços públicos e<br />
privado). Analiticamente, essas instâncias se apresentam como<br />
opostas e, ao mesmo tempo, complementares, uma vez que nelas<br />
a sociedade é representada por relações impessoais − o mundo da<br />
rua − enquanto o domínio das relações pessoais se refere à casa, à<br />
dimensão privada e encoberta. Interpretada como o ambiente da<br />
família, o espaço moral, o domínio privativo e íntimo, esse espaço<br />
se assemelharia a um palco, um local físico, onde os atores parecem<br />
não comparecer. Nos termos de semelhante oposição, embora<br />
situada em menor escala, Pierre Bourdieu (2009, p. 439-41)<br />
descreve a parte alta e a parte baixa da casa, na sociedade Kabyla,<br />
na qual se reproduz o que se encontra estabelecido como “dentro”
e “fora” – a parte íntima e reservada da casa como o espaço feminino<br />
e a parte destinada à recepção, jardins e áreas externas, como<br />
espaço masculino.<br />
Reportamo-nos a essas duas referências para introduzir alguns<br />
aspectos de um trabalho empírico realizado com moradores<br />
da periferia urbana, na cidade de Salvador, para os quais esses<br />
espaços assumem, atualmente, conotações, às vezes, diversas do<br />
destaque inicial. Para tanto, introduzimos algumas referencias teóricas<br />
que permitem interpretar as atuais mudanças nas relações<br />
entre o público e o privado, tanto do ponto de vista da própria<br />
esfera privada e da família como do ponto de vista das relações<br />
comunitárias, da vizinhança e das redes sociais que caracterizam<br />
esta última. Isto porque tais espaços são marcados pelas posições<br />
dos agentes sociais em razão da desestabilização do mundo do<br />
trabalho, tal como ocorreu no Brasil a partir da década de 80, trazendo<br />
problemas cruciais como o crescente desemprego juvenil e<br />
a intensificação do trabalho das mulheres, sendo este último muitas<br />
vezes interpretado como estratégia compensatória da pobreza<br />
nas camadas populares.<br />
Esses dois problemas (desemprego juvenil e trabalho feminino)<br />
que resultam das transformações do mundo do trabalho, se encontram<br />
associados às mudanças que atingem as instituições primordiais<br />
(família e comunidade). Trata-se, portanto, de um processo<br />
de desestabilização das estruturas produtivas e salariais, através da<br />
redução das legislações protetoras e dos direitos do trabalho, que<br />
atingem, principalmente, as empresas e, através desta instabilidade<br />
que advém da situação de trabalho, esta se transmite aos eixos de<br />
integração (família e comunidade) de modo a afetar os limites entre<br />
a casa (vida privada, família) e a rua (comunidade, espaço público).<br />
A apresentação desse esquema analítico, de modo bastante<br />
amplo, requer um recorte que permita revelar os aspectos mais<br />
importantes da vida de homens e mulheres situados como traba-<br />
142<br />
Gênero, mulheres e feminismos
lhadores informais e precários, residentes em bairros nos quais os<br />
difusos limites entre a casa e a rua se tornam mais evidentes. Neste<br />
texto, buscamos trazer alguma contribuição a um debate relativo<br />
ao mundo da periferia, revisando alguns argumentos de autores<br />
que nele comparecem de modo convincente e trazendo algumas<br />
situações relativas aos contextos de moradia na periferia da cidade<br />
de Salvador, Bahia, Brasil.<br />
Reciprocidade e solidariedade familiar<br />
Residir nas periferias, aqui consideradas como os espaços urbanos<br />
ocupados pelas populações de baixa renda, implica em ser<br />
submetido a intensos processos de desestabilização e deterioração<br />
das condições de vida, ao tempo em que se é duplamente desafiado:<br />
primeiramente, a reinventar continuamente os modos de<br />
mobilização de recursos (as trocas, a solidariedade, a inserção na<br />
vida comunitária) os quais se tornam cada vez mais urgentes para<br />
assegurar a sobrevivência e a reprodução das famílias nos bairros<br />
populares ou periferias e, segundo, a garantir a inserção no mercado<br />
de trabalho. Sobre isso, cabe considerar que,<br />
[...] nem todas as pessoas que não dispõem da propriedade de<br />
meios de produção se apresentam, realmente, como ofertantes<br />
no mercado de trabalho (como é o caso das crianças, dos deficientes,<br />
ou dos muito idosos). Os nichos, espaços livres, e ‘áreas<br />
de escape’ onde – inicialmente na comunidade familiar – se<br />
reproduzem os despossuídos que não são trabalhadores assalariados,<br />
fundamentam-se socialmente em normas culturais e<br />
políticas que fixam, do modo mais ou menos duradouro, quais<br />
pessoas, e em que situações de vida, não precisam ou não podem<br />
oferecer sua força de trabalho no mercado. (OFFE; HENRICHS,<br />
1989, p. 57)<br />
Essa função da comunidade familiar – de reprodução dos despossuídos<br />
e de não trabalhadores – se propaga às outras situações,<br />
Gênero, mulheres e feminismos 143
como o trabalho precário ou o desemprego aberto, nas quais se<br />
aprofundam as experiências da pobreza. Em tais casos, os recursos<br />
somados da família se tornam cruciais, como observa Mike Davis<br />
(2006, p. 175), “em todo o 3º Mundo, os choques econômicos<br />
obrigaram os indivíduos a se reagruparem em volta dos recursos<br />
somados da família, e da capacidade e engenhosidade desesperada<br />
das mulheres”. Por outro lado, Ladislaw Dowbor (2003,<br />
p. 23) também observa que “a família deixa de representar rede de<br />
apoio, implicando em maior perda para as populações pobres”.<br />
As duas observações aparentemente contrastantes chamam<br />
a atenção para um aspecto aqui considerado, ainda que de modo<br />
geral, e que se refere ao papel agregador exercido pela família –<br />
e paralelamente pela comunidade/vizinhança. Tratando-se de<br />
um fenômeno observado ao longo da história, sua modificação se<br />
manifesta na atualidade como uma perda, um ponto de inflexão<br />
das instituições integradoras, o que nos remete às transformações<br />
das próprias estruturas familiares e das relações de gênero. Cabe<br />
esclarecer que o destaque acima atribuído ao papel agregador da<br />
família, encontra expressão em diferentes níveis da vida social,<br />
o que explicaria a sua importante mediação na reprodução da<br />
força de trabalho e da própria sociedade. Nesse sentido, as transformações<br />
do mundo do trabalho afetam a esfera da família e da<br />
reprodução, a ponto de estudos anteriores demonstrarem que os<br />
sistemas de benefícios sociais que foram desenvolvidos na Europa<br />
e, posteriormente, suprimidos nas últimas décadas, em função<br />
das crises econômicas e da desestabilização do emprego e dos benefícios<br />
concedidos à classe trabalhadora, implicaram em redução<br />
dos salários, das aposentadorias e do número de pessoas cobertas<br />
por seguro social. Isso contribuiu para modificar as possibilidades<br />
de a família cumprir, com a eficiência que o fazia anteriormente,<br />
um papel de “amortecedora” nas conjunturas de crise e ajustamentos<br />
econômicos. (LAUTIER, 1992 apud MONTALI, 2004)<br />
144<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Embora a questão requeira uma análise mais profunda para<br />
caracterizar de maneira satisfatória a crise ou desmonte da “sociedade<br />
salarial” (CASTEL, 1998, p. 48), o seu contraponto reaparece,<br />
no que tange ao papel da família nos termos anteriormente<br />
citados. A esse respeito, Pedro Vera e Marcos Díaz (2009, p. 125)<br />
contribuem para tal debate, utilizando a noção de familismo para<br />
pensar um modelo de solidariedade familiar e de parentesco cuja<br />
eficácia se mantém e apresenta sólidos laços, segundo afirmam<br />
os autores. Isso é observado, de modo especial, na Europa do Sul,<br />
enquanto nos países anglo-saxões tal fenômeno não ocorre com a<br />
mesma intensidade, pelo fato de a família nuclear se tornar mais<br />
rara – por exemplo, nos EEUU, a proporção da mesma passou de<br />
cerca de 45%, em 1970, para perto de 25%, em princípios do sec.<br />
XXI (CARLING; DUNCAN, 2002 apud VERA; DÍAZ, 2009), indicando<br />
que as famílias monoparentais é que se tornam cada vez<br />
mais frequentes.<br />
Segundo a referida argumentação, continua pertinente a referência<br />
a um modelo de micro solidariedade familiar, identificado<br />
empiricamente na Espanha e na Itália (VERA; DÍAZ, 2009), o que<br />
indicaria um interesse renovado no funcionamento da dinâmica<br />
familiar e reitera a hipótese de sua função de “amortecedora” das<br />
carências do Estado. Entretanto, ressalta-se, desta vez, a contribuição<br />
das mulheres em prover cuidados não remunerados, principalmente,<br />
para as crianças, idosos e doentes, revisitando-se a<br />
temática que hoje se atualiza sob o rótulo dos “cuidados”, onde<br />
se discute que uma parte importante das atividades de bem-estar<br />
e satisfação vital dos cidadãos continuaria coberta pela família<br />
(mesmo sem a ajuda pública), embora, nem sempre se faça o<br />
devido reparo de que a exacerbação desta função faz recair sobre<br />
ela (família) um protagonismo excessivo, lançando-lhe o ônus de<br />
suas próprias necessidades − dentro da atual lógica neoliberal.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 145
A renovação de tal debate leva outros observadores a se concentrarem<br />
nas mudanças resultantes das novas formas familiares,<br />
dentre as quais se destaca a redução de tamanho da rede de parentesco<br />
que afeta, de maneira desigual, as gerações, observando-se<br />
que os atuais adultos têm acesso a uma considerável rede de familiares<br />
diretos, o que não mais ocorre com as novas gerações. Assim,<br />
a fragilização da rede familiar enquanto âmbito de exercício da solidariedade<br />
entre as gerações constitui um dos importantes pontos<br />
de reflexão sobre uma provável perda de influência da família extensa<br />
e uma crise da família moderna, fenômenos que ocorrem com<br />
maior intensidade nas sociedades complexas ou pós-industriais.<br />
Para outros, a queda da natalidade e a redução do tamanho da família<br />
não implicariam, necessariamente, na fragilização da solidariedade<br />
relacional das redes de parentesco. Ainda que se verifique uma<br />
tendência à separação convivencional entre as gerações, isto tende<br />
a ser contrabalançado pelo aumento da esperança de vida que pode<br />
ampliar as possibilidades de interação entre três gerações.<br />
Entretanto, prevalece o argumento de que a vida urbana implica<br />
em maior distância física, o que também dificulta a convivência<br />
familiar, enquanto outros observadores retrucam que isso<br />
não elimina o intercâmbio afetivo, a ajuda e os serviços entre familiares,<br />
a tal ponto que se vive hoje a emergência da “intimidade<br />
à distância”, propiciada pelas tecnologias – celular, internet – que<br />
possibilitam alguma revitalização das relações familiares. (VERA;<br />
DÍAZ, 2009, p. 126)<br />
Esses argumentos permitem indagar até que ponto, na ausência<br />
da “sociedade salarial” e dos seus benefícios e direitos adquiridos<br />
pelos trabalhadores, a solidariedade familiar continua<br />
a ser uma garantia de proteção, se considerarmos um conjunto<br />
de novas situações decorrentes do fato que a família não é mais a<br />
mesma, tanto do ponto de vista demográfico como do ponto de<br />
vista do domicílio, da casa, enquanto ambiente privado, domínio<br />
146<br />
Gênero, mulheres e feminismos
privativo e íntimo dos direitos e obrigações morais, os quais são<br />
afetados pelas mudanças das redes de parentesco e das relações de<br />
gênero, estas últimas consideradas enquanto relações de poder.<br />
O argumento anterior que se baseou na eficácia do modelo<br />
de solidariedade familiar e de parentesco, parece, no entanto,<br />
contrariar uma tese anterior de André Michel (1981) que alertava<br />
sobre “o mito do familismo”, entendendo-o como uma ideologia<br />
que nasceu do modo de vida baseado em um modelo da<br />
família conjugal composta pelo casal e filhos, correspondente à<br />
prática e ao ideal de uma classe minoritária ascendente, a burguesia,<br />
e pressupondo a existência de um marido que exerce a posição<br />
de provedor e uma esposa que realiza atividades domésticas.<br />
As ponderações desse autor conduzem à relativização desse modelo,<br />
observando-se que não é identificado da mesma forma nas<br />
demais classes sociais, nem no meio rural, onde as mulheres exercem<br />
frequentemente atividades extradomésticas e a família conjugal<br />
é menos frequente, citando-se, sobre isso, dados relativos<br />
ao Terceiro Mundo, onde uma em cada três famílias é dirigida por<br />
uma mulher desde a década de 80. (MICHEL, 1981, p. 2)<br />
Novas situações indicam que a família não é mais a mesma,<br />
o que pode ser interpretado através da distinção de um primeiro<br />
tipo familiar moderno (SINGLY, 2000) correspondente ao período<br />
inicial do século XX e perdurando até os anos 60, caracterizado<br />
pela presença de uma “lógica de grupo” centrada no amor e afeto,<br />
na qual os adultos se colocam a serviço do grupo e das crianças,<br />
geralmente baseada no trabalho masculino e na atividade doméstica<br />
da mulher; e um segundo tipo, que emerge a partir dos anos<br />
60, quando começa a predominar uma “lógica individualista e relacional”,<br />
baseada em reivindicações de autonomia e no desejo de<br />
escolher a convivência na esfera privada. Para o autor:<br />
Assim se constroem e se desfazem as famílias contemporâneas,<br />
percebidas como um novo modo de convivência entre as indivi-<br />
Gênero, mulheres e feminismos 147
dualidades masculina e feminina, cujas singularidades tendem<br />
a se sobrepor à ‘lógica de grupo’ que demarcava um modo de<br />
convivência anterior. (SINGLY, 2000, p. 15)<br />
O argumento da “lógica de grupo” parece estar, portanto, na<br />
base da solidariedade familiar (e do papel agregador) até aqui discutida<br />
e implícita no conceito de familismo apresentado por Vera<br />
e Díaz (2009). Observa-se, no entanto, que as práticas que sustentam<br />
tal lógica não estariam exclusivamente associadas à família<br />
conjugal e à existência do casamento, o que parece condizente<br />
com a realidade da vida doméstica e familiar existente na periferia<br />
das cidades. Para tanto, Robert Castel explica que à sociabilidade<br />
primária cabe o papel de integração entre os membros de um grupo,<br />
sejam familiares, amigos ou vizinhos ou, ainda, do ambiente<br />
de trabalho, onde os indivíduos vivem “em redes de interdependência<br />
sem a mediação de instituições específicas”, e considera<br />
que, nas sociedades reguladas por essa interdependência, a integração<br />
primária pode ser ameaçada dos processos de desfiliação<br />
que dissolvem os sistemas familiares e os sistemas de interdependência<br />
fundados sobre as relações comunitárias. (1998, p. 48) 1<br />
Tratando-se de situações nas quais os indivíduos vivem “em<br />
redes de interdependência”, Mercedes de la Rocha (1999) discute<br />
um modelo teórico das estratégias de intensificação da mão de<br />
obra familiar e de ajuda mútua, considerando a sua relação com<br />
contextos históricos e sociais de crises econômicas e desemprego.<br />
Para essa autora, as redes de relações nem sempre funcionariam<br />
como “colchões amortecedores da pobreza”, sugerindo, então,<br />
que se conheça com mais acuidade em quais contextos ela continua<br />
a operar na garantia da sobrevivência. O seu argumento se<br />
baseia no fato de que as redes sociais alimentam as expectativas<br />
1 Para Castel (1998), a reestruturação das redes de integração pode ocorrer mediante a utilização<br />
de recursos próprios a um grupo, família ou comunidade, quando tais relações são submetidas<br />
a processos de rupturas.<br />
148<br />
Gênero, mulheres e feminismos
dos participantes de receberem bens e serviços e de retribuí-los,<br />
fazendo com que a participação implique em custos materiais,<br />
tempo, dedicação, “estar disponível” sempre que se é requerido,<br />
o que traz dificuldades de retribuição nas situações de extrema<br />
pobreza. Questionando, igualmente, a reciprocidade como regra,<br />
Rubens Kaztman (2001) discute de que maneira o parentesco e os<br />
velhos laços de amizade podem servir como articulações no processo<br />
de migração para as cidades.<br />
Por outro lado, Amalia Eguía focaliza os mesmos fatos, como<br />
estratégias complementares de reprodução que não se limitam ao<br />
chefe da família, mas se estendem a outros membros do domicílio,<br />
como maneiras de maximizar a renda e demonstrar o papel<br />
da organização doméstica como parte do processo de reprodução<br />
familiar, divisão sexual de trabalho e participação das mulheres.<br />
Amplia-se, assim, o foco para as redes informais de ajuda mútua<br />
que se constituem em um dos meios permanentes de reprodução,<br />
com a prestação de serviços gratuitos baseados na confiança e na<br />
reciprocidade (o “cuidado”), especialmente, entre pessoas unidas<br />
por relações de parentesco, vizinhança ou amizade. Esses estudos<br />
alertam, sobretudo, para o fato de que a pobreza não é homogênea<br />
e as relações intrafamiliares com os âmbitos externos aos domicílios<br />
apontam para a existência de organizações conflitivas, cujos<br />
membros manifestam interesses divergentes ou contraditórios,<br />
onde a distribuição de direitos e obrigações depende mais das relações<br />
de poder internas – de gênero – e menos de acordos de solidariedade,<br />
parentesco, vizinhança. (EGUÍA, 2004)<br />
Reciprocidade e solidariedade na periferia<br />
de Salvador<br />
Podemos, então, considerar que a mobilização de redes sociais<br />
não é um dado nem uma regra e quando ocorre isto pode indi-<br />
Gênero, mulheres e feminismos 149
car que se trata mais de um atributo definidor das relações estabelecidas<br />
entre parentes, vizinhos ou amigos entre os quais a<br />
reciprocidade pode ser um pressuposto. As questões apresentadas<br />
anteriormente permitem abordar os dados empíricos correspondentes<br />
a duas fases de pesquisa realizadas em Salvador, em 2002,<br />
e, posteriormente, em 2010. Metodologicamente, nos baseamos<br />
no estudo das periferias urbanas, que remete, primeiramente, ao<br />
enfoque urbanístico – apontado como hegemônico sobre o tema<br />
– no qual se parte das causas e consequências do problema habitacional<br />
e dos déficits de moradia para identificar as soluções consideradas<br />
espontâneas ou informais de habitação popular, como as<br />
favelas e os loteamentos ou ocupações periféricas. (SOUZA, 2008,<br />
p. 37)<br />
Para Lícia Valladares e Lidia Medeiros, o tema das favelas vem<br />
sendo abordado desde os anos 40, tendo sido intensificado na fase<br />
que correspondeu à erradicação das favelas, ao longo das décadas<br />
de 70 e 80, através da atuação de agências públicas. Na década<br />
de 90, a intensificação de estudos foi marcada pela expansão do<br />
poder público e das Organizações Não-governamentais (ONGs),<br />
mas passou a se identificar por um distanciamento das posturas<br />
consideradas “antifavela”. (BURGOS, 1998 apud VALLADARES;<br />
MEDEIROS, 2003, p. 12) Nesse caso, desenvolve-se um enfoque<br />
social e crítico, que encontramos no uso mais generalizado do<br />
termo periferia substituindo o termo favela, em que “periferia”<br />
passa a expressar um distanciamento dos referenciais urbanísticos<br />
(marcado pela ausência do poder público), com a ressalva feita<br />
por Silva (2010) de que<br />
[...] o conceito de periferia é reduzido ao distante, embora a cidade<br />
contemporânea não tenha mais um único centro; a maioria<br />
das favelas está na periferia do ponto de vista econômico, mostrando<br />
que este conceito é cada vez mais vinculado à ordem social<br />
e ao poder, e marcado pela questão social.<br />
150<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Esse último argumento permite introduzir observações sobre<br />
a realidade dos locais de moradia da população de baixa renda na<br />
cidade de Salvador, atualmente a terceira cidade em número de<br />
habitantes do Brasil. Partimos de um conjunto formado por 116<br />
bairros definidos pelo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano<br />
(PDDU) de Salvador como Zonas Especiais de Interesse Social<br />
(ZEIS) 2 cujos critérios de identificação são a faixa de renda dos<br />
moradores e as más condições de habitabilidade, sendo que a sua<br />
delimitação permite chegar-se a uma seleção de bairros com base<br />
na localização dos mesmos nos três vetores de expansão urbana<br />
de Salvador − a Orla Marítima e o Centro; o Miolo Geográfico; e o<br />
Subúrbio Ferroviário. Utilizamos tal critério para indicar as diferenças<br />
e semelhanças quanto à origem da ocupação ou moradia,<br />
seja como ocupações populares, invasões ou favelas, e categorizadas<br />
como ZEIS (PDDU, 2004), o que oferece a possibilidade de se<br />
conhecer alguns aspectos do modo de vida da população pobre,<br />
especialmente no que se refere às famílias e vizinhanças, aos jovens<br />
e crianças que vivem nesses contextos marcados pela precarização<br />
e vulnerabilidade social.<br />
No sentido restrito, o Subúrbio Ferroviário é a área na qual se<br />
concentram os bairros mais pobres da cidade e onde há ausência<br />
de infraestrutura e serviços básicos. Desde a criação da Região<br />
Metropolitana de Salvador (RMS), em 1972, o Subúrbio Ferroviário<br />
se define “de forma decisiva como periferia da cidade, deixando<br />
para trás um passado distante, no tempo e na aparência,<br />
em que consistia em local de veraneio da classe média baiana”.<br />
(PIMENTEL, 1999, p. 35) Se é verdade que a periferia não está<br />
2 Esta categoria nomeia uma política pública desenvolvida na área habitacional, com vistas<br />
a modificar uma realidade existente até 1970, quando as ocupações e invasões não faziam<br />
parte da legislação urbanística e não faziam parte da cidade. Nos anos 80, como resultado<br />
da luta de moradores, surgiu este instrumento urbanístico, e segundo Raquel Rolnik (1998),<br />
este instrumento permite que as áreas antes marginalizadas sejam incorporadas ao conjunto<br />
da cidade por meio de uma legislação própria (que visa o atendimento das suas demandas<br />
específicas).<br />
Gênero, mulheres e feminismos 151
desarticulada do restante da cidade e se reafirma não pela exclusão<br />
mas pelo papel que exerce em um contexto mais amplo da cidade,<br />
isso se consolidou, no passado, tanto por uma expansão de caráter<br />
“periférico”, desde os anos 50, quanto pelas ocupações primárias,<br />
de nível inferior, que, em grande parte, tiveram a função pioneira<br />
de conquistar novos espaços urbanos levando, em muitos casos, à<br />
sua valorização posterior. (BRANDÃO, 1978)<br />
Além disso, a tradicional periferia também se caracteriza pelos<br />
circuitos sociais que articulam a moradia, o trabalho e o consumo.<br />
Boa parte do pessoal ocupado residente na periferia, muitas<br />
vezes, tem situação indefinida, como empregado com e sem carteira<br />
assinada, o que indica proporções mais elevadas desta situação<br />
indefinida entre os responsáveis por domicílios residentes<br />
em Alagados, S. João do Cabrito, Plataforma, Alto da Terezinha,<br />
Rio Sena, Periperi, Fazenda Coutos, Nova Constituinte, Coutos,<br />
Paripe, Boa Vista do Lobato e Capelinha. A maior concentração de<br />
mulheres como chefes de domicílios residentes no local, inseridas<br />
de forma precária no mercado de trabalho, como a prestação de<br />
serviços domésticos e outros serviços pessoais (COSTA, 2007) indica<br />
que, a maioria aufere rendimentos, às vezes, inferiores a um<br />
salário mínimo (mais de 18%) em praticamente todos os bairros<br />
desta área residencial. Além disso, aí se encontram as mais altas<br />
médias de moradores por domicílio em relação ao total da cidade,<br />
com alta carga de dependência (filhos pequenos e outros parentes)<br />
cujas casas estão situadas nas áreas mais pobres deste importante<br />
espaço urbano.<br />
Guimarães (2002) observou que nesses bairros, a maior distância<br />
física que caracteriza a vida urbana, também dificulta a<br />
convivência familiar, confirmando os argumentos citados anteriormente<br />
em relação à fragilização da rede familiar como âmbito<br />
de exercício da solidariedade. Assim, as mulheres entrevistadas<br />
residentes em Alagados, Coutos, ou Vista Alegre, argumentam:<br />
152<br />
Gênero, mulheres e feminismos
“Os parentes estão longe”; “A família mesmo é mais difícil, torna-se<br />
mais fácil contar com um estranho”; “Ter um bom amigo<br />
vale mais do que parente”; “Procuro resolver tudo com o marido e<br />
os filhos, não recorro à família, apesar de me relacionar bem com<br />
eles (os irmãos)”. Em muitos dos casos considerados, as moradoras<br />
residem nos bairros há cerca de dez anos, em média, o que<br />
geralmente implica em afastamento da família de origem, quando<br />
residente na área rural ou em bairro distante.<br />
Comunidade, vizinhança – a rua<br />
Segundo os argumentos já citados, a partir da interação entre<br />
as unidades residenciais e de vizinhança, pode-se continuar<br />
cumprindo a função de compartir funções domésticas, o que depende<br />
da circulação e da dinâmica entre os indivíduos no cotidiano<br />
dos bairros populares. Essa questão também permite retomar<br />
a relação entre espaços públicos e privados – buscando entender<br />
até que ponto estas relações cumprem aquele papel chave de mecanismo<br />
de reprodução cotidiana e de amenização da experiência<br />
da pobreza. Robert Cabanes (2006) contribui para essa reflexão,<br />
analisando as interações entre espaço público e privado e considerando<br />
as famílias mais populares como mais expostas às influências<br />
externas provenientes do espaço público. Partindo da<br />
diferenciação entre espaço privado e família, o autor atribui relativa<br />
autonomia a ambos frente ao espaço público, discutindo o<br />
espaço privado – no sentido de privacidade – a partir do grau de<br />
interação com o espaço público, da relação entre a casa e a rua<br />
através da qual é possível perceber como a comunidade deixa de<br />
ser apenas espaço de sociabilidade e de trocas, marcado pelas relações<br />
de confiança.<br />
Na percepção dos autores citados, as diferentes situações indicam<br />
tendências ao fortalecimento, enquanto outras mostram<br />
Gênero, mulheres e feminismos 153
situações de fragilização dessas dimensões societárias. Apreende-se,<br />
desse modo, a dinâmica de unidades mais amplas, como<br />
o bairro, a comunidade, o território, através da relação entre<br />
espaços públicos e privados pela qual se percebe um “acúmulo<br />
socioespacial das dificuldades” do contexto urbano, geralmente,<br />
acompanhando a desestabilização do mundo do trabalho nas<br />
grandes cidades (HIRATA; PRETECEILLE, 2002) ou a reorganização<br />
de práticas e estratégias populares, já que estas passam a<br />
ocorrer em um novo contexto que se caracteriza como um “movimento<br />
geral de precarização” e no qual se observa o quanto a<br />
vida social nos bairros de periferia está circunscrita ao improviso<br />
e à instabilidade, que parecem se tornar quase regra geral. Diante<br />
disso, importa localizar as situações que favorecem a constituição<br />
de redes de solidariedade, ou que tendem a debilitá-las, fragilizálas<br />
e a romper suas potencialidades de capital social. 3<br />
Mercedes de la Rocha (1999) analisa o caso do México, apontando<br />
elementos que provocam uma erosão dos sistemas de apoio<br />
em contextos de exclusão do emprego, explicando como ocorre<br />
a busca de soluções para o grande número de problemas que<br />
os pobres enfrentam cotidianamente através das redes sociais,<br />
da reciprocidade, da autoajuda e da ajuda mútua. Segundo o seu<br />
argumento, a participação em redes sociais implica em custos<br />
materiais, o que dificulta a retribuição nas situações de intensa<br />
pobreza e converge para um relativo isolamento social no qual a<br />
reciprocidade é ameaçada e se configura como um custo a mais<br />
para a pobreza.<br />
3 O conceito original de capital social na obra de Pierre Bourdieu é assim definido:<br />
“A rede de ligação é o produto de estratégias de investimento social, consciente ou<br />
inconscientemente orientadas em direção à institucionalização ou à reprodução de relações<br />
sociais diretamente utilizáveis, em curto ou longo termo, ou seja, em direção à transformação<br />
de relações contingentes, como as relações de vizinhança, de trabalho, ou mesmo de<br />
parentesco, em relações às vezes necessárias e eletivas, implicando em obrigações duráveis<br />
(sentimentos de reconhecimento, de respeito, de amizade), ou institucionalmente garantidas<br />
(através de direitos), (1998, p. 67).<br />
154<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Rubén Kaztman (2001) também analisa a inquietude e a insegurança<br />
de crescente parcela da população no contexto latino-americano,<br />
pela ligação precária e instável com o mercado<br />
de trabalho e pelo seu isolamento progressivo das correntes predominantes<br />
na sociedade, enfatizando as mudanças ocorridas na<br />
estrutura social que contribuem para um isolamento social dos<br />
pobres urbanos, através dos seguintes fatores: redução dos âmbitos<br />
de sociabilidade informal entre as classes quanto ao uso dos<br />
mesmos serviços e, consequentemente, redução dos problemas<br />
de domínio comum enfrentados pelas famílias na vida cotidiana.<br />
Assim, as transformações no mundo do trabalho afetam os<br />
segmentos dos pobres urbanos, não apenas pela instabilidade de<br />
emprego e queda dos níveis de remuneração (precarização), como<br />
também, pelo fato de o lugar de trabalho constituir um meio privilegiado<br />
de construção de redes de amizades e de acesso a informações<br />
e serviços, constituindo, assim, uma dimensão de capital<br />
social individual. Quanto à dimensão do capital social coletivo,<br />
esta se expressa através das interações entre trabalhadores de<br />
distintas qualificações. Nesses casos, pressupõe-se que a existência<br />
de tais subestruturas e o seu deslocamento enquanto eixos de<br />
integração na sociedade – das instituições primordiais (família e<br />
comunidade) para o mundo do trabalho –, significa que no novo<br />
contexto econômico global, mas desigual, grandes parcelas da<br />
população não logram estabelecer vínculos estáveis e protegidos<br />
com o mercado de trabalho e assim desconhecem tais processos<br />
de integração social. (KAZTMAN, 2001) Além disso, a concentração<br />
dos pobres no plano espacial (os bairros) gera uma segregação<br />
residencial, cuja origem se encontra no processo de concentração<br />
de renda e que se reflete na privação material e no baixo acesso ao<br />
consumo.<br />
Nos bairros da “Periferia de Salvador” observam-se semelhantes<br />
fatores em atuação, tais como a instabilidade, a insegurança e a<br />
Gênero, mulheres e feminismos 155
incerteza que atravessam as diferentes dimensões da vida cotidiana<br />
e restringem as perspectivas, distanciando as famílias dos processos<br />
de mobilização de recursos que antes constituíam parte do<br />
seu “habitus”. (BOURDIEU, 1989) Outro aspecto importante no<br />
contexto focalizado, é que tais problemas não são diretamente resultantes<br />
de uma desagregação ou uma crise da família − que mais<br />
parece uma instituição acuada. Tais problemas são resultantes das<br />
transformações, (fragilização, erosão) das funções ou mediações<br />
exercidas por essa instituição na sociedade, cujos impactos são<br />
mais visíveis na classe trabalhadora urbana, porque, em função<br />
dos baixos níveis de renda, se tornam mais dependentes da solidariedade<br />
e ajuda de parentes e vizinhos. Essa questão remete a<br />
um interesse renovado que as pesquisas voltadas para os processos<br />
da vida cotidiana, de mobilização de recursos, de relações de<br />
vizinhança e de confiança voltam a despertar.<br />
Esta perspectiva também se enquadra entre os estudos que<br />
repensam a problemática da reprodução e da vida cotidiana nos<br />
setores populares urbanos, entre os quais as funções ou mediações<br />
da sociabilidade e da integração são exercidas pelas famílias e<br />
pelas relações de proximidade. Os seus diferentes aspectos remetem<br />
a um conceito de reprodução social que pode ser articulado<br />
através de elementos que explicam permanências e mudanças,<br />
apontando para o uso de recursos, compreendidos como capacidades<br />
e conhecimentos dos agentes que permitem a continuidade<br />
(e integração) na sociedade. (GIDDENS, 1981, p. 3)<br />
Segundo o conjunto dos argumentos apresentados, a sociabilidade<br />
primária (familiares, amigos ou vizinhos) pode ser ameaçada,<br />
indicando uma ruptura do tecido social, o que pode levar<br />
ao desenvolvimento de processos de desfiliação e dissolução dos<br />
sistemas familiares e de interdependência, fundados sobre as relações<br />
comunitárias. (CASTEL, 1998, p. 50) Assim, a vizinhança é<br />
uma vivência comum que permeia os espaços sem delimitar, de<br />
156<br />
Gênero, mulheres e feminismos
maneira precisa e segregada, onde começa e onde terminam suas<br />
interações. Nas relações de vizinhança, o espaço público da rua<br />
pode se transformar em um ambiente “familiar” intercambiando<br />
esferas do mundo exterior. Mas a relação entre a casa e a rua,<br />
pressupõe, também, que a comunidade deixe de ser apenas espaço<br />
de sociabilidade e de trocas as quais são asseguradas pelas<br />
relações de confiança.<br />
Essas questões estão presentes na periferia de Salvador, entre<br />
os bairros residenciais onde se encontram as mais altas médias de<br />
moradores na cidade: a) domicílios com 6 a 8 moradores (22 a 27%,<br />
no Subúrbio); e b) domicílios com mais de 10 moradores (12,3%,<br />
em Fazenda Coutos, e 11,5%, em São João do Cabrito, Invasão de<br />
São João e Invasão de Boiadeiro). Esse alto número de moradores<br />
é representado pela presença de filhos cujas proporções mais elevadas<br />
são encontradas em Itacaranha/Praia Grande (44,7%) e em<br />
Rio Sena e Fazenda Coutos (49 a 50%), além de elevadas proporções<br />
de netos (entre 5 e 6%).<br />
A maioria das casas localizadas nesses bairros não apresenta<br />
a privacidade típica das classes médias e das sociedades economicamente<br />
mais igualitárias e as portas ficam menos solidamente<br />
fechadas que nos outros locais. A esfera privada não se constitui e<br />
as paredes podem ser delgadas, de tal forma que o que acontece<br />
dentro de uma casa pode ficar ao alcance dos olhos e ouvidos dos<br />
vizinhos; assim, a separação é menor entre a casa e a rua. Dentro<br />
de tal contexto, que prevalece na periferia, as redes sociais tendem<br />
a operar de modo desigual, como observou Guimarães (2002):<br />
— Conto com alguma ajuda de vizinhos, mas não espero nada<br />
em troca; A ajuda funciona mais, é com vizinho mesmo, já<br />
contei com ajuda de uma senhora, quando fiquei desabrigada.<br />
Quando mais precisei, um acidente com uma filha,<br />
contei com um vizinho.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 157
Em tais casos, o princípio da solidariedade, ou ajuda, permanece<br />
nas situações que demandam urgência e as relações de vizinhança<br />
podem ser vistas sob a forma de cordialidade, em um<br />
primeiro momento, como se pode observar no relato de moradoras<br />
do bairro de Coutos:<br />
— Todo mundo se dá, me relaciono com todos; Aqui não tenho<br />
o que dizer dos meus vizinhos.<br />
Mas, em um segundo momento, verifica-se a interferência de<br />
outros fatores:<br />
“Todo mundo se dá, mas não conto muito com vizinhos”; “Não<br />
costumo conversar com vizinhos sobre problemas pessoais”.<br />
Em circunstâncias semelhantes, moradoras do bairro do Uruguai,<br />
afirmaram:<br />
— Não gosto muito de envolvimento com vizinhos, é bom a<br />
gente cá e ele lá, aprendi com minha avó, se tiver sal, come<br />
com sal, se não tiver, come sem sal; Eu aqui não vou na casa<br />
de ninguém; agora, se precisar de ajuda eu dou, aí é diferente;<br />
Gosto dos vizinhos mas eles lá e eu cá”; Porque, eu só<br />
vivo dentro de casa, não tenho aproximação com ninguém<br />
assim da rua, tem gente aí que eu nem conheço na rua; Não<br />
conto com parente, nem vizinho, quando peço a um menino<br />
para comprar alguma coisa, tem que pagar.<br />
Conclusão<br />
Os argumentos apresentados permitem indagar até que ponto<br />
a noção de comunidade aplicada às relações de vizinhança subentende<br />
que estas continuam a cumprir o papel das trocas de<br />
serviços, da solidariedade e de amenização da experiência da<br />
pobreza. Buscamos, também, discutir como as famílias, situadas<br />
no contexto da vizinhança e nas suas formas de participação,<br />
158<br />
Gênero, mulheres e feminismos
encontram variadas soluções, informações e acessos a diferentes<br />
instituições e políticas públicas, através de articulações nos espaços<br />
de moradia.<br />
Essas questões vêm apresentando um interesse renovado através<br />
de metodologias de pesquisa que possibilitam a construção de<br />
novos parâmetros para a compreensão do papel das redes pessoais<br />
e sociais na atualidade. A esse respeito, Eduardo Marques et al.<br />
(2006) consideram que as redes sociais são centrais na sociabilidade<br />
dos indivíduos e no seu acesso aos mais diferenciados elementos<br />
materiais e imateriais. Nos debates sobre a pobreza, as redes são<br />
citadas como fatores-chaves na obtenção de empregos, na organização<br />
comunitária e política, no comportamento religioso e na sociabilidade<br />
em geral. O conhecimento das formas de estruturação<br />
das redes de indivíduos pobres permite se chegar ao entendimento<br />
de suas trajetórias, de seu cotidiano e de suas estratégias de sobrevivência,<br />
assim como chegar ao conhecimento de processos sociais<br />
que contribuem para a reprodução da pobreza em um sentido mais<br />
amplo.<br />
Na variada literatura apresentada nos trabalhos desses autores,<br />
encontramos uma proposta de diferenciação das redes a partir de<br />
padrões que constituem um dos principais traços diferenciadores da<br />
sociabilidade moderna, baseada em uma grande quantidade de vínculos<br />
secundários, bastante heterogêneos em conteúdo, fracos em<br />
intensidade e não necessariamente organizados territorialmente, ao<br />
contrário dos padrões característicos do mundo rural e das cidades<br />
pequenas. Outros autores argumentam que a vida nas grandes cidades,<br />
apoiada nas novas técnicas de comunicação e transporte, ajudam<br />
a superar as barreiras físicas da vizinhança e da comunidade.<br />
Segundo Ferrand (apud MARQUES; et al., 2006, p. 5), para os<br />
estudos sobre a pobreza urbana, entretanto, o fator espacial-geográfico-territorial<br />
continuaria a constituir um elemento chave da<br />
sociabilidade, indicando que as interações sociais ainda se cons-<br />
Gênero, mulheres e feminismos 159
tituem “porta-a-porta” – reafirmando os limites difusos entre a<br />
casa e a rua nas periferias da cidade. Esta perspectiva conduz ao<br />
estudo da composição típica das microestruturas no interior de<br />
comunidades/bairros, representando, portanto, um forte apelo<br />
para a continuidade das pesquisas baseadas nas novas concepções<br />
de redes pessoais e sociais que possam acrescentar e lançar novas<br />
luzes ao conjunto dos argumentos aqui apresentados.<br />
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162<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Terceira parte<br />
G<br />
Da ação política
FEMINISMO VERSO “ANTI-FEMINISMO”<br />
embates baianos<br />
Iole Macedo Vanin<br />
June Hahner, ao refletir sobre as profissionais liberais latinoamericanas<br />
no século XIX, afirma que a discussão acerca do acesso<br />
feminino à educação superior no Brasil “tornou-se um assunto<br />
digno de atenção em poucos e restritos círculos sociais” (1994,<br />
p. 55) e, acrescente-se, recheado de posições polêmicas entre<br />
“ideias feministas” 1 e “antifeministas”. 2 A autora em questão faz<br />
uma breve descrição desses debates a partir da segunda metade do<br />
século XIX. Na Bahia, também é possível mapear, através de diversas<br />
fontes, a existência de tal situação, principalmente, o embate<br />
“feministas” versus “antifeministas”. As ideias consideradas<br />
“feministas” bem como as práticas já se encontravam presentes<br />
entre nós muito antes dos oitocentos, mas é, no entanto, a partir<br />
do lapso de tempo compreendido entre as décadas iniciais dos<br />
1 Neste trabalho “idéias feministas” são compreendidas como os discursos, concepções do<br />
período que se referem à situação feminina e são favoráveis ao acesso das mulheres à educação<br />
superior e ao voto.<br />
2 Estamos denominando de “idéias antifeministas” os discursos que se manifestam contrários à<br />
inserção das mulheres no espaço público e às reivindicações pela cidadania feminina.
novecentos que existe um seu consistente registro. Apresentar e<br />
analisar alguns desses embates a partir dos discursos “antifeministas”<br />
é a finalidade do presente artigo.<br />
No confronto entre “feministas” e “antifeministas”, nota-se<br />
o conflito de uma ou mais representações em busca de prevalecer<br />
em detrimento de outra(s). É o jogo feito com o intuito de conseguir<br />
ou de manter poder, para ocupar posições estratégicas ou<br />
hegemônicas em relação a outras que lhes são antagônicas, procurando,<br />
assim, garantir os interesses do grupo a que estão vinculadas.<br />
Nas palavras de Roger Chartier:<br />
[...] sobre as representações supõe-nas como estando sempre<br />
colocadas num campo de concorrência e de competições cujos<br />
desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. As<br />
lutas de representações têm tanta importância como as lutas<br />
econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um<br />
grupo impõe ou tenta impor, a sua concepção do mundo social,<br />
os valores que são os seus, e o seu domínio. (CHARTIER, 1990,<br />
p. 17)<br />
É interessante notar que as representações defendidas nos<br />
dois grupos têm como suporte a função e os papéis femininos<br />
de mãe e esposa, definidos como pilares da família e da sociedade,<br />
demonstrando uma preocupação em manter coerência com<br />
a moral patriarcal vigente no período. 3 As “antifeministas”, ao<br />
contrário das “feministas”, tentavam convencer que a mulher,<br />
ao assumir funções tradicionais masculinas, a exemplo das profissões<br />
médicas e jurídicas, seria uma figura que traria ou desenvolveria<br />
características impróprias e incompatíveis com a função<br />
3 Adolfo S. Vasquez (2005, p. 37-60), ao definir Ética como a ciência que estuda a Moral,<br />
demonstra o caráter histórico e cultural desta última, entendida como um conjunto de normas<br />
e regras que regulam as relações dos indivíduos em uma dada comunidade. A partir dessa<br />
conceituação, compreendendo que ela não é a-histórica e associando-se a isto o fato de que<br />
todo grupo, comunidade ou sociedade pauta e regula as suas relações a partir de categorias<br />
fundantes como gênero, raça/etnia, geração e classe, podemos falar na existência de uma<br />
moral patriarcal, que é temporal e espacialmente situada.<br />
166<br />
Gênero, mulheres e feminismos
primeira da mulher, a maternidade, uma vez que se tornariam<br />
frias, mundanas, imorais, além de irem de encontro ao estabelecido<br />
pela natureza.<br />
Nos registros encontrados, o principal eixo da argumentação<br />
utilizada foram pressupostos científicos oriundos da Teoria da<br />
Complementaridade do Útero e Evolucionista, 4 ou seja, as teorias<br />
científicas europeias construídas e utilizadas nos séculos XVIII e<br />
XIX para justificar e legitimar a exclusão das mulheres da ciência<br />
foram importadas e reelaboradas para criticar, ou melhor, impedir<br />
e inibir, por exemplo, o acesso das mulheres baianas à formação<br />
e ao exercício de profissões liberais ligadas, sobretudo, à área<br />
biomédica.<br />
Nesse sentido, o primeiro exemplo é o artigo publicado na seção<br />
Variedades da Gazeta Médica da Bahia, de 31 de outubro de<br />
1868, “A mulher médica” que não possui assinatura de autoria, o<br />
que me leva a pensar que tenha sido uma produção da editoria da<br />
Gazeta, ou seja, a equipe responsável pela publicação do periódico<br />
compactuava com a ideia expressa de que a Medicina não era uma<br />
atividade a ser exercida por mulheres, pois a referida ciência devia<br />
ser exercida por indivíduos possuidores de “sangue frio”, não<br />
emocionais, “duros”. (SANTOS FILHO, 1991)<br />
Era impossível que seres delicados, “anjos de azas multicolores”,<br />
“Rosa, d’onde devem emanar os perfumes enebriantes do<br />
amor” (p. 71), puros, inocentes, frágeis e que “creou-se para esposa<br />
e mãe” (p. 72) – pois, “fez Deos a mulher para ser a companheira<br />
do homem, deo-lhe o logar mais santo da família, incumbio-lhe as<br />
funcções instinctivas da maternidade” (p. 71) – passassem a exercer<br />
uma atividade que iria transformá-las em seres sem pudor, sem<br />
timidez, com espírito forte; além disso, “a sociedade, moralmen-<br />
4 Sobre essas teorias e sua relação com as mulheres, recomenda-se a leitura de: Maria Teresa<br />
Citeli (2001), Fabíola Rodhen (2001, 2002, 2003), Ana Paula Martins (2004) e Londa Schiebinger<br />
(2005).<br />
Gênero, mulheres e feminismos 167
te, parece-nos que havia de lucrar pouco com estas acquisições”<br />
(p. 71). Nem mesmo a justificativa de que as mulheres precisam<br />
ter uma profissão para não terem de se prostituir faz com que haja<br />
uma mudança de opinião. (A MULHER..., 1868)<br />
Aliás, o artigo, nesse caso, sugere que as mulheres sejam direcionadas<br />
às atividades “dignas e próprias do seu sexo” (A MULHER...,<br />
1868, p. 72), pois, desta maneira, estas atividades deixariam de ser<br />
exercidas por homens que, ao fazê-lo, passavam os seus dias em salamaleks<br />
(frescuras?). Enfim, representações de gênero, em específico,<br />
características próprias da masculinidade, como em outros<br />
aspectos da sociedade baiana, foram requisitadas para justificar a<br />
quem se destinava a profissão médica: aos homens, pois estes, sendo<br />
viris, fortes, racionais, preparados para a vida mundana, estariam<br />
aptos a exercerem a função sem ônus morais negativos para a<br />
sociedade.<br />
Não se percebe todavia que haja prazer possível em uma mulher<br />
conviver com as doenças mais repugnantes, e passar os melhores<br />
dias da sua mocidade a dissecar cadáveres. Não pode haver<br />
mulher de gosto tão deploravelmante [sic] depravado! Para se<br />
tornar bom cirurgião e bom médico é preciso que o homem desde<br />
o começo da sua instrucção technica se dê com toda a vontade<br />
e perseverança aos estudos anatômicos. Na [sic] desempenho<br />
d’estes é mister vencer muita repugnância, desprezar muitos<br />
preconceitos, expor-se a muitos perigos. A mulher pela sua<br />
compleição, pelos seus hábitos, pela sua organização nunca poderia<br />
vencel-os. Se para ser bom prático é preciso tudo isso, a<br />
mulher nunca poderia ser boa médica. (A MULHER..., p. 70-1,<br />
grifo nosso)<br />
O viés de raciocínio que conduz esse artigo é o mesmo que se<br />
encontra nas discussões do deputado e médico pernambucano<br />
Malaquias, quando se manifesta contra a petição de bolsa de estudo<br />
feita por Josefa Águeda Felisbela Mercedes de Oliveira para<br />
cursar Medicina nos Estados Unidos, apresentada à Assembleia<br />
168<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Provincial de Pernambuco pelo seu genitor – o jornalista Romualdo<br />
Alves Oliveira. A verificação de que esse médico se utilizou da<br />
Teoria Fisiológica para apresentar o seu parecer se torna possível<br />
por meio da leitura do discurso que Tobias Barreto fez se contrapondo<br />
a Malaquias, pois as ideias defendidas pelo médico e deputado<br />
pernambucano ali se fazem presentes.<br />
A análise ou mesmo a menção do debate entre esses dois legisladores<br />
não é algo inédito nos trabalhos que versam sobre Ciência,<br />
Educação e Gênero no Brasil. Esse é um episódio já mencionado<br />
tanto por June Hahner (2003, p. 141), quanto por Heleieth Saffioti<br />
(1969, p. 215), Fabíola Rohden (2001, p. 85), Elisabeth Juliska<br />
Rago (2005b, p. 176-80) e Ana Paula Martins (2004, p. 217-58).<br />
As três primeiras apenas registram o acontecido e a posição de<br />
Tobias Barreto a favor do acesso das brasileiras aos cursos superiores,<br />
contrária à do médico Malaquias. Martins (2004), ao estudar<br />
a presença feminina nos discursos dos nossos intelectuais e médicos,<br />
na segunda metade do século XIX, e Rago (2005b), quando<br />
analisa os contextos em que as primeiras médicas estavam inseridas,<br />
fazem uma descrição do conteúdo do referido debate. Para<br />
sustentar a sua posição, o médico pernambucano se pautou em<br />
três pontos argumentativos os quais foram rebatidos pelo advogado<br />
Tobias Barreto no discurso que proferiu na sessão de 22 de<br />
março de 1874, na Assembleia Provincial de Pernambuco.<br />
O primeiro argumento de Malaquias, na verdade, foi constituído<br />
de uma omissão. Ele omitiu no discurso que realizou o acesso<br />
das mulheres às universidades bem como os debates que o envolveram,<br />
em países europeus e americanos. Essa omissão foi definida<br />
pelo jurista como uma tentativa de “má fé” de desqualificar<br />
a petição da qual ele era defensor; por isso, na primeira parte do<br />
seu discurso, cita casos de mulheres que se formaram na Suíça, na<br />
Alemanha e nos Estados Unidos da América.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 169
Mas, foi a forma como o jurista definiu esses países que me<br />
forneceu pistas para os prováveis motivos da omissão de Malaquias<br />
e para a lembrança de Tobias Barreto. O jurista, em 1879,<br />
classifica esses países como o “alto mundo científico” (BARRETO,<br />
1962, p. 66) e nesta fala, entende-se que o “alto mundo científico”<br />
foi uma característica atribuída às ditas nações civilizadas. Tornar<br />
o Brasil um país civilizado foi uma discussão que permeou todo o<br />
século XIX, sendo uma preocupação de intelectuais, profissionais<br />
liberais e governantes. (MARTINS, 2004)<br />
Nessa perspectiva, a omissão de Malaquias foi uma forma de<br />
evitar que o seu posicionamento fosse associado a uma possível<br />
tendência contrária às medidas e situações que levariam o Brasil<br />
a ser definido como civilizado, enquanto a lembrança de Tobias<br />
Barreto mostra que o acesso das mulheres às faculdades era uma<br />
realidade das nações civilizadas, portanto, nada mais coerente<br />
que aqui também o fosse. Em outras palavras, aceitar a petição<br />
de Romualdo Alves Oliveira e, ao mesmo tempo, defender o acesso<br />
feminino aos cursos superiores, que era, na verdade, o âmago<br />
daquele debate, que se estendeu por duas semanas, como ele<br />
bem pontuou, era demonstrar que os legisladores pernambucanos<br />
estavam em sintonia com as premissas que definiam um povo<br />
como civilizado. E foi por isso que finalizou o combate à omissão<br />
do oponente afirmando que, ao explicitá-la, estava evitando que<br />
os seus pares cometessem “um crime de lesa-civilização, de lesaciência”.<br />
(BARRETO, 1962, p. 60)<br />
Decrépita e anacrônica, no sentido de que não seria mais condizente<br />
com as discussões realizadas no “alto mundo científico”,<br />
foram os adjetivos que o advogado utilizou, a partir da citação de<br />
cientistas europeus que fundamentam a sua afirmação, para se<br />
referir à Teoria Fisiológica que constitui o segundo argumento do<br />
médico pernambucano, para quem, com base nas ideias do doutor<br />
170<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Bischoff, o que determinava a incapacidade intelectual feminina<br />
era o tamanho do cérebro.<br />
[...] Não admito essa mecânica cerebral, essa proporção entre a<br />
massa do cérebro e o grau de inteligência. Acho-a incompreensível<br />
e acho-a assim porque não vejo razão alguma de força, que<br />
a possa sustentar.<br />
O SR. MALAQUIAS: – As leis fisiológicas.<br />
O SR. TOBIAS – Quais são elas?<br />
O SR. MALAQUIAS – Quanto mais bem desenvolvido é o órgão,<br />
melhor é a função.<br />
O SR. TOBIAS – E isto já será decerto uma lei? O maior peso do<br />
cérebro é por si só uma prova de maior desenvolvimento? A fisiologia,<br />
que até hoje, como diz pessoa competente, não se tem<br />
ocupado nem com as funções do desenvolvimento, nem com o<br />
desenvolvimento das funções, bem poucas leis apresenta, que<br />
não possam sofrer contestação; e nesse número não se contam<br />
as que dizem respeito ao cérebro. (BARRETO, 1962, p. 72)<br />
E foi entre as linhas da fala de Tobias Barreto, para demonstrar<br />
o não procedimento desta lei fisiológica, que encontrei o combate<br />
a outras posições contrárias à instrução superior feminina que circulavam<br />
desde o início da segunda metade do século XIX: a de que,<br />
ao ingressar nas faculdades e/ou universidades, as mulheres perderiam<br />
as suas características naturais, aquelas apresentadas pelo<br />
artigo da Gazeta Médica da Bahia, em 1868. A esses argumentos,<br />
que persistem não só no contexto da Assembleia pernambucana,<br />
Barreto rebateu com uma única sentença: “onde existe a cultura,<br />
existe de parceria com ela a docilidade”. (BARRETO, 1962, p. 70)<br />
O emprego da palavra “docilidade” como característica feminina,<br />
que pode ser interpretada não só como ternura e carinho,<br />
invoca, para mim, a mensagem de que a instrução superior<br />
não representava perigo para as relações existentes entre ho-<br />
Gênero, mulheres e feminismos 171
mens e mulheres e, consequentemente, muito menos o abandono<br />
das funções de mãe e esposa. Ao contrário, para os partidários<br />
da emancipação intelectual, essa iria colaborar para o desenvolvimento<br />
civilizatório do país, uma vez que as responsáveis pela<br />
formação dos “homens de bem” que definiam o futuro da nação,<br />
estariam bem mais preparadas para essa nobre função. (MARTINS,<br />
2004, p. 218-37)<br />
Esse foi um argumento que continuou em vigor até meados<br />
da primeira metade do século XX, tendo sido, inclusive, utilizado<br />
pelas feministas baianas nas suas estratégias de expansão (artigos,<br />
por exemplo) do número de mulheres com nível superior na<br />
Bahia. Ao fazermos o link entre essa fala do jurista pernambucano<br />
e o contexto nacional da luta pela emancipação das mulheres,<br />
podemos pensar que ele era um seu incondicional defensor, em<br />
todos os sentidos, uma percepção que se esvai ao analisarmos de<br />
que maneira ele combate o terceiro argumento apresentado pelo<br />
deputado Malaquias.<br />
Pela transcrição da fala de Tobias Barreto, inferimos que o<br />
doutor Malaquias, ao ser questionado − o que pode ter acontecido<br />
nas sessões anteriores −, acerca da omissão do fato da emancipação<br />
feminina que acontecia em outros países, tenha afirmado<br />
que se tratavam de extravagâncias da natureza, pois, segundo as<br />
palavras do jurista: “a mulher nasceu para ter filhos [...] que ela<br />
não tem cabeça, que é fraca do juízo!... Eis aí! Eu não sei, Sr. Presidente,<br />
como o nobre deputado, antagonista do projeto, espírito<br />
emancipado, pode chegar, sob este ponto de vista”. (BARRETO,<br />
1962, p. 78)<br />
Parece que a Teoria do Útero também fez parte do embasamento<br />
científico do médico pernambucano, pois, ao afirmar que,<br />
além desses fatores, a mulher tinha sensibilidade, em vez de razão<br />
– necessária para o trabalho científico –, nota-se nas entrelinhas<br />
a ideia de que a mulher era governada pelo seu útero e a sua exis-<br />
172<br />
Gênero, mulheres e feminismos
tência pelo exercício da função deste. Contra esses argumentos,<br />
Tobias Barreto afirmou que se a mulher não era emancipada intelectualmente<br />
era porque a sua educação não o permitia e, para<br />
combater a definição de exceção que o médico atribuíra às mulheres<br />
que se emanciparam intelectualmente em outros países, ele vai<br />
fazer um verdadeiro resumo histórico, desde a Grécia Antiga até o<br />
século XVIII, sobre a participação das mulheres nas ciências.<br />
Assim, para Tobias Barreto, a emancipação da mulher era uma<br />
das questões contemporâneas mais importantes e não algo “extravagante”<br />
que, no entanto, possuía três faces: a política, a civil<br />
e a social. Às duas primeiras faces são dedicadas poucas palavras,<br />
apesar dos protestos de alguns deputados, porque era no aspecto<br />
social que estava “compreendida a emancipação cientifica e literária<br />
da mulher, emancipação que consiste em abrir ao seu espírito<br />
os mesmos caminhos que se abrem ao espírito do homem;<br />
e a este lado é que se prende o nosso assunto” (BARRETO, 1962,<br />
p. 76), palavras com as quais o jurista consegue se livrar de explicar<br />
porque não era favorável à emancipação política das mulheres:<br />
Quanto ao primeiro, a emancipação política da mulher, confesso<br />
que ainda não a julgo precisa, eu não a quero por ora. Sou<br />
relativista: atendo muito às condições de tempo e de lugar. Não<br />
havemos mister, ao mesmo no nosso estado atual, de fazer deputadas<br />
ou presidentas de província.<br />
Um Sr. Deputado – V. Exca. É oportunista.<br />
O Sr. Tobias – Pelo que toca, porém, ao ponto de vista civil, não há<br />
dúvida que se faz necessário emancipar a mulher do jugo de velhos<br />
prejuízos, legalmente consagrados. (BARRETO, 1962, p. 75)<br />
No trecho citado acima, nota-se que ele ignora o insulto de um<br />
deputado, ao mesmo tempo em que deixar entrever que não está<br />
sendo “decrépito” e nem “anacrônico”, como adjetivou o médico,<br />
e, muito menos, cometendo o “crime de lesa-civilização”,<br />
Gênero, mulheres e feminismos 173
como sugerira que os contrários ao seu pleito estavam passíveis<br />
de cometer. E ele demonstra isso ao afirmar, em poucas palavras,<br />
que, se a instrução superior feminina era uma realidade nas<br />
nações civilizadas, o mesmo não acontecia em relação aos direitos<br />
políticos: “atendo muito às condições de tempo e de lugar”.<br />
(BARRETO, 1962, p. 75) Destaco que esse foi um dos argumentos<br />
utilizados quase duas décadas depois (1890/1891) para negar às<br />
mulheres o direito de votar e serem votadas.<br />
Ao longo da sua fala, o jurista deixou evidente que não havia<br />
nenhum vínculo entre a emancipação científica e a política; ou<br />
seja, as mulheres que desejavam cursar Medicina, por exemplo,<br />
não estavam interessadas em assumir responsabilidades nos poderes<br />
legislativo e/ou executivo. Ledo engano, como mostram as<br />
táticas empreendidas por várias profissionais liberais – odontólogas,<br />
médicas e advogadas – em tentarem exercer o voto ou mesmo<br />
se candidatarem, ainda no século XIX.<br />
Ana Paula Martins (2004, p. 204), ao analisar o pensamento<br />
de Tobias Barreto em relação à mulher, afirmou que, em outros<br />
textos, o jurista pernambucano continuou contrário aos direitos<br />
políticos das mulheres, fato que a leva a classificá-lo como “conservador”;<br />
ou seja, a defesa dos direitos femininos por esse intelectual<br />
pernambucano era parcial, devendo-se a uma questão<br />
de manutenção de situação estratégica masculina em uma sociedade<br />
que era e continuou a ser patriarcal. Nessa perspectiva,<br />
possibilitar às mulheres as ferramentas para exercer melhor o seu<br />
papel de formadoras dos “homens de bem” que iriam dirigir a nação,<br />
era diferente de deixá-las assumir os cargos que permitiam<br />
a esses mesmos homens decidirem o futuro do país. É a ideia da<br />
mulher como redentora moral da sociedade que guia a discurso<br />
de Tobias Barreto, como ele bem acentuou ao concluí-lo: “Todo<br />
homem tem a sua mania; e é infeliz aquele que não a tem: a minha<br />
mania, senhores, é pensar que grande parte, se não a maior parte<br />
174<br />
Gênero, mulheres e feminismos
dos nossos males vem exatamente da falta de cultura intelectual<br />
do sexo feminino”. (BARRETO, 1962, p. 87) Certamente que, dentre<br />
as manias do jurista pernambucano, a exemplo de muitos de<br />
seus colegas, não se encontrava a de dividir o poder político que<br />
detinha.<br />
As ideias defendidas tanto por Tobias Barreto como pelo doutor<br />
Malaquias não se restringiam à sociedade pernambucana; elas<br />
permeavam toda a sociedade brasileira, como bem demonstram<br />
Rohden (2001) e Martins (2004) ao analisarem a instituição da<br />
denominada “medicina da mulher” – a ginecologia e obstetrícia<br />
– no Brasil, bem como a visão que esta tinha da mulher. Poucos<br />
anos após a polêmica ocorrida na Assembléia Provincial de Pernambuco,<br />
Hahner (2003) registra a existência de um artigo que<br />
retoma as ideias misóginas apresentadas tanto pelo médico e deputado<br />
pernambucano como pelos autores do artigo “A mulher<br />
médica”, publicado pela Gazeta Médica da Bahia em 1868. E desta<br />
vez, sei o fator motivador para tal publicação na Gazeta Acadêmica,<br />
periódico certamente produzido por discentes dos cursos<br />
da Faculdade de Medicina da Bahia: 5 foi a chegada da gaúcha Rita<br />
Lobato ao curso de Medicina, transferida da instituição carioca.<br />
No debate que se instaurou nesse periódico, o grupo contrário à<br />
presença feminina utilizava “argumentos fisiológicos como o de<br />
que o pequeno tamanho do cérebro das mulheres impedia-as de<br />
reter a ‘intrincada jóia’ das verdades médicas”; e que elas deviam<br />
dedicar-se ao mundo doméstico e à família, enquanto “o outro<br />
lado do debate [...] argumentava que algumas mulheres podiam<br />
dominar temas científicos que homens de cérebros menores não<br />
5 Apesar de localizar vários periódicos produzidos pelos acadêmicos da Faculdade de Medicina da<br />
Bahia, a exemplo de O Acadêmico, Instituto Acadêmico, A Razão, O incentivo, Norte Acadêmico,<br />
não conseguimos localizar nos arquivos baianos exemplares da Gazeta Acadêmica. A própria<br />
June Hahner (2003, p. 173) declara ter tido acesso a cópias desse periódico em arquivo<br />
particular nos Estados Unidos da América.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 175
podiam, e que as mulheres podiam e deviam estudar medicina”.<br />
(HAHNER, 2003, p. 149)<br />
A verbalização de ideias baseadas nas teorias da Complementaridade,<br />
do Útero e do Evolucionismo, na Bahia, a exemplo do<br />
que ocorreu em outras partes do Brasil, não se circunscreveu<br />
apenas à segunda metade dos oitocentos; ela se fez presente nas<br />
primeiras décadas dos novecentos revelando que “a idéia de inferioridade<br />
feminina foi compartilhada por boa parte dos médicos<br />
da Faculdade de Medicina da Bahia, influenciados pelos trabalhos<br />
de Spencer e Proudhon; autores que atribuíam uma elevada dignidade<br />
à maternidade”. (RAGO, 2005a, p. 8)<br />
Como exemplo de tal fato, trago a cena às sessões de 1º e 15 de<br />
agosto de 1937, da Sociedade de Medicina de Itabuna, onde encontrei<br />
o debate entre os médicos Diógenes Vinhaes e Moysés Hage<br />
acerca da naturalidade ou não do parto. Em defesa da obrigatoriedade<br />
do parto hospitalar 6 realizado por um obstetra ou dirigido<br />
por esse, o médico Diógenes Vinhaes centrou a sua apresentação<br />
em dois argumentos que julgava auxiliar a sua reivindicação: a não<br />
naturalidade do parto. A partir de uma visão eugenista 7 afirmava<br />
que “o parto não é função natural” e que este ia se tornando “mais<br />
difícil à medida que o progresso se faz sentir e a civilização aumenta”.<br />
(VINHAES, 1937, p. 189-90) A dor, as complicações – morte e<br />
lesões – que poderiam surgir para e nas parturientes bem como as<br />
consequências advindas do momento de nascimento (traumatismo<br />
do nascimento), que poderiam comprometer a vida futura do<br />
feto, foram os indicadores da não naturalidade do parto.<br />
6 Ele retoma uma discussão que havia feito anos antes na Sociedade de Medicina da Bahia.<br />
(VINHAES, 1937, p. 189)<br />
7 Sobre as concepções eugenistas na sociedade brasileira, sobretudo a sua influência no<br />
pensamento médico, recomenda-se a leitura de Schwarcz (1993) e Diwan (2007). A influência<br />
dessas concepções nos trabalhos produzidos pela médica e feminista Francisca P. Fróes foi<br />
objeto de estudo de capítulos específicos da tese de Rago (2005b, p. 211-354).<br />
176<br />
Gênero, mulheres e feminismos
O doutor Diógenes Vinhaes não estava discutindo a naturalidade<br />
da maternidade nem negando o papel primordial da mulher<br />
como mãe. Ele se manifestou contra o “parto natural”, que era realizado<br />
em casa e, geralmente, com a assistência de uma parteira.<br />
Estava defendendo um espaço de exercício profissional, 8 que “por<br />
ser tão cheio de empeços e tão preciso de cuidados, cotejado com<br />
as mais altas intervenções da cirurgia abdominal” não parecia lógico<br />
e “nem razoável” afirmar que o seu produto – o parto – se<br />
tratava “de uma função natural”. (VINHAES, 1937, p. 201)<br />
Após a apresentação do trabalho, estabeleceu-se uma discussão<br />
entre os presentes, que foram quase unânimes em sugerir a<br />
mudança do título − “O parto não é uma funcção natural” − de<br />
maneira a não criar impressões errôneas nos prováveis leitores.<br />
A preocupação advinda do título da comunicação feita pelo referido<br />
médico se deveu ao fato de ocasionar interpretações acerca<br />
do direito da mulher escolher ser mãe ou não, da possibilidade de<br />
a maternidade não ser mais considerada o principal objetivo da<br />
vida feminina. E foi contra o “absurdo” de “desviar as mulheres da<br />
maternidade” (HAGE, 1937) se insurgiu a fala do médico Moysés<br />
Hage. Contra as ideias pretensamente defendidas anteriormente<br />
por seu colega, na sessão de 15 de agosto de 1937, ele apresentou a<br />
comunicação “Contestação ao Trabalho do Dr. Diógenes Vinhaes:<br />
O parto não é uma função natural”, dando início ao seu discurso<br />
afirmando que o fazia “porque convicto estou de me achar ao lado<br />
da verdade”. (HAGE, 1937, p. 217) Cabe-me perguntar: que verdade<br />
era essa?<br />
Era a crença de que homens e mulheres não são iguais devido<br />
ao fato de as mulheres serem governadas pelas substâncias produzidas<br />
pelos órgãos reprodutores. Essa crença permeia todo o<br />
8 A disputa entre parteiras leigas ou formadas e os médicos remete ao final do Período Colonial e<br />
início do Imperial. Essa questão foi abordada tanto por Souza (1998), quanto por Barreto (2000),<br />
Witter (2001) e Sampaio (2001). Permanecem nos dias de hoje uma série de restrições impostas<br />
às parteiras através das associações médicas.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 177
texto, mas foi exteriorizada de forma incisiva na seguinte frase:<br />
“a mulher é profundamente differente do homem. Cada uma das<br />
cellulas do seu corpo traz a marca do seu sexo”. Por isso “nunca a<br />
mulher poderá ter as mesmas ocupações do homem, nem os mesmos<br />
poderes, nem as mesmas responsabilidades”. (HAGE, 1937,<br />
p. 225)<br />
Em outras palavras, a Medicina, o Direito e o próprio Magistério<br />
não eram ocupações a serem desenvolvidas pelo sexo feminino,<br />
que deveria se dedicar aos filhos – concebê-los e criá-los –,<br />
uma vez que “a procreação é a finalidade naturalissima da mulher”.<br />
(HAGE, 1937, p. 225) Dessa forma, “o seu papel no processo<br />
da civilização é muito mais relevante do que o do homem” (HAGE,<br />
1937, p. 225) e ela não devia abandoná-lo em prol de responsabilidades<br />
ou ocupações outras, a exemplo do exercício político e<br />
profissional. Foram esses os argumentos apresentados pelo doutor<br />
Moysés Hage para defender a naturalidade do parto – com suas<br />
dores e complicações – como uma função.<br />
Considerando-se que Diógenes Vinhaes, apesar do polêmico<br />
título do seu trabalho, em nenhum momento desvincula a mulher<br />
da maternidade, acredito que Hage tenha se valido do trabalho do<br />
seu colega para manifestar a sua posição contrária às ideias feministas<br />
– em prol dos direitos políticos e de uma educação intelectual<br />
voltada para o exercício de profissões liberais – de então. Esta<br />
suposição se origina das referências feitas no texto desse médico<br />
que afirma que o que colocava a vida das mulheres em risco não<br />
era o parto natural, a maternidade, mas uma falsa educação e a<br />
atuação de um “feminismo pedante” (p. 220), chegando a expressar<br />
o seguinte ensejo: “praza a Deus que nenhuma mulher, ‘sadia’<br />
se impressione pelos falsos conceitos dos propugnadores do feminismo”.<br />
(HAGE, 1937, p. 225)<br />
O que Hage definiu como “falsa educação” era toda educação<br />
que não se pautava nas diferenças biológicas entre os sexos,<br />
178<br />
Gênero, mulheres e feminismos
pois, segundo a sua concepção, aspectos como tamanho e peso do<br />
cérebro e função reprodutiva deveriam determinar o tipo de educação<br />
a ser ministrado ao sujeito: “Não se deve dar às moças a<br />
mesma formação intelectual, o mesmo gênero de vida, o mesmo<br />
ideal dos moços. Os educadores devem levar em consideração as<br />
differenças orgânicas e mentaes do homem e da mulher”. (HAGE,<br />
1938, p. 226) Ao contrário do texto de Diógenes Vinhaes, o de<br />
Moysés Hage não causou nenhuma celeuma, dando-me a sensação<br />
de que as ideias por ele apresentadas eram comungadas por<br />
todos os membros daquela sociedade científica.<br />
A contestação das afirmações misóginas utilizadas por Moysés<br />
Hage, já tinha sido feita por algumas feministas baianas dentre as<br />
quais se destacou Laurentina Pughas Tavares que, seis anos antes,<br />
ao participar de “A Tribuna Feminista” promovida pelo Jornal<br />
A Tarde, utilizando-se de dados científicos (quantitativos) respondeu<br />
às colocações misóginas acerca da capacidade intelectual<br />
feminina. Assim, se tivesse participado das discussões que tiveram<br />
lugar na Sociedade de Medicina de Itabuna quando o mencionado<br />
médico apresentou as suas teses, Laurentina teria dito:<br />
No dia em que os paes encararem igualmente a instrucção dos<br />
filhos e filhas deixando em todos elles se manifestar o pendor<br />
profissional, outra mentalidade se formará em torno do feminismo<br />
e alguns homens não terão tanta sem cerimônia no<br />
desrespeitar o direito das mulheres. Bischoff, sábio fisiologista<br />
allemão, anti-feminista ferrenho, affirmava a inferioridade da<br />
mulher pela sua exigüidade cerebral, porquanto achava para o<br />
cérebro do homem, um peso médio de 1350 grammas e para o da<br />
mulher 1250 grammas. Entretanto, morto Bischoff, pesaram o<br />
seu cérebro e acharam apenas 1245 grammas, 5 grammas abaixo<br />
da media por elle obtida para as mulheres. E então? (TAVARES,<br />
1931, p. 2, grifo meu).<br />
Obviamente, Laurentina procurou destruir os argumentos de<br />
seus contemporâneos acerca da inferioridade feminina. Certa-<br />
Gênero, mulheres e feminismos 179
mente, o Dr. Moyses Hage não tinha conhecimento da entrevista<br />
dada por ela seis anos antes, no jornal A Tarde e, com certeza,<br />
não sabia ou preferiu ignorar a história do cérebro do Dr. Bischoff.<br />
Assim, não é destoante mediar o diálogo fictício entre essas duas<br />
personagens, uma vez que, apesar do lapso de tempo entre suas<br />
falas, permanecia a discussão acerca das capacidades femininas e<br />
das atividades ou funções pertinentes às mulheres.<br />
Um caso que ilustra a presença das ideias “anti-feministas”<br />
na Bahia, em específico na capital baiana, foi o ocorrido pela indicação<br />
de Edith Gama e Abreu, 9 em detrimento do jornalista e<br />
escritor Eduardo Tourinho, para membro da Academia Baiana de<br />
Letras, em 9 de agosto de 1938. Esse seria mais um episódio “sereno”<br />
e lógico se um dos candidatos não fosse uma mulher, pois,<br />
a partir dessa candidatura criou-se uma celeuma que teve como<br />
um dos seus pontos altos a saída do presidente da Academia, em<br />
uma das sessões de preparação para a votação, em sinal de protesto<br />
pela quebra do estatuto da instituição que, segundo ele e o<br />
grupo ao qual pertencia, vetava a participação feminina.<br />
Constavam da ordem do dia, duas questões: a elegibilidade de<br />
candidatos do sexo feminino e a realização da eleição [...]. Um<br />
grupo de acadêmicos, porém, que ficava em minoria, manifestaram-se<br />
contra esse modo de ver sustentando que, dizendo o<br />
citado art. 5º. que ‘só podem ser membros effectivos os bahianos<br />
que tenham, em qualquer dos gêneros da literatura, publicado<br />
trabalho’, etc., as mulheres estavam assim excluídas de fazer<br />
parte da Academia. Só teriam esse direito si no artigo, em vez de<br />
‘bahianos’ simplesmente se lesse – ‘bahianos ou bahianas’, ou<br />
‘bahianos de ambos os sexos’. [...]. Mal, porém, ia sendo feita a<br />
proposta para proceder-se logo à votação, um dos membros da<br />
minoria retira-se, propositalmente afim de que desfalcando-se<br />
o ‘quorum’ indispensável, não pudesse ser ella levada a effeito.<br />
[...]. Basta o número mínimo para haver sessão, que é 7. Com<br />
9 Em “Mulheres de elite em movimento por direitos políticos: o caso de Edith Mendes da Gama e<br />
Abreu”, Cláudia Vieira (2002) faz uma análise da obra de Edith Gama e Abreu.<br />
180<br />
Gênero, mulheres e feminismos
essa attitude da totalidade dos membros da Academia que compareceram,<br />
não concordou o presidente, o dr. Braz do Amaral,<br />
que estava do lado da minoria, deixando a direcção e convidando<br />
para assumil-a o 1º Vice-presidente, dr. Gonçalo Moniz.<br />
(ACADEMIA..., 1938)<br />
Várias vozes, no entanto, se levantaram em defesa da eleição<br />
de Edith, dentre elas, Muniz Sodré, Gonçalo Moniz e Heitor Praguér<br />
Fróes que, na arena da Academia, faziam parte da corrente de<br />
J. J. Seabra que “não só era favorável a entrada de mulheres, mas,<br />
até quebrava lanças pela eleição de D. Edith da Gama e Abreu”<br />
(ELEIÇÃO..., 1938). Ao desenhar o perfil das fundadoras da Federação<br />
Baiana pelo Progresso Feminino, Almeida (1986), quando<br />
fala desse episódio da vida da líder feminista baiana, faz a seguinte<br />
análise:<br />
[...] aos 34 anos, entreva para a Academia de Letras da Bahia,<br />
quebrando a tradição nacional destas instituições de não admitir<br />
mulheres. Sua situação de classe mais uma vez reforçou as suas<br />
possibilidades e ajudou suas lutas individuais. J. J. Seabra e Dr.<br />
Praguér Fróes fizeram grande campanha e pressão para que fosse<br />
aceita. A resistência não foi pouca e alguns acadêmicos recusaram-se<br />
a freqüentar as reuniões a partir de então. (ALMEIDA,<br />
1986, p. 59-60)<br />
Por se tratar de uma instituição importante, composta por<br />
homens de prestígio, a luta extrapolou os domínios do privado<br />
para adentrar a dimensão pública onde, além de se acompanhar<br />
a “refrega”, passou-se a apoiar tanto uma corrente como a outra.<br />
Os partidários da candidatura feminina, por meio de entrevistas,<br />
defendiam o seu ponto de vista ou mesmo, de maneira anônima,<br />
as expressavam. Um exemplo é a nota que saiu no Jornal Cidade<br />
do Salvador:<br />
Poucas luctas temos visto mais desarrozoadas que a da Academia<br />
de Letras da Bahia querendo fechar as suas portas à entrada<br />
de um representante do sexo feminino no seu seio. Na verdade,<br />
Gênero, mulheres e feminismos 181
nunca vimos cousa mais absurda. Cousa que colloca a Bahia de<br />
tanta fama numa situação pouco invejável. Por que, qual a razão<br />
de se negar à sra. Gama Abreu o direito de ser immortal na Academia<br />
Bahiana? Digna por todos os títulos de receber tal honraria<br />
a candidata foi eleita e tem direito ao seu posto. Reconhecer<br />
‘sexo no espírito’ só mesmo uma visão muito vesga poderá fazer<br />
isso. Se a maioria da Academia de Letras da Bahia elegeu a sra.<br />
Gama e Abreu para fazer parte do seu cenáculo é porque os seus<br />
trabalhos, os seus dotes espirituaes estão à altura daquele tradicional<br />
templo da intelligencia bahiana. Querer desbanca-la<br />
agora pela razão mais tola, mais infantil, mais chocante possível<br />
é recuo que não fica bem para intellectuaes que se presam. A<br />
contenda bahiana chegou ao Rio e tem sido glosadissima (sic.).<br />
Todos se collocam ao lado da representante do sexo fraco, porque<br />
como disse o Sr. Afrânio Peixoto: − espírito não tem sexo!<br />
(NOTAS..., 1938)<br />
Nota-se nas entrelinhas das falas dos protagonistas da ala<br />
contrária, que a circulação da ideia acerca de os espaços intelectuais<br />
não serem destinados às mulheres – afinal, ali, o critério<br />
de participação era estabelecido por meio dos méritos alcançados<br />
pelos altos exercícios racionais, atributos não desenvolvidos<br />
pelo “fraco sexo” – se fazia presente no meio intelectual baiano da<br />
década de 1930. Essa minha interpretação é reforçada pela análise<br />
da frase que Afrânio Peixoto proferiu em uma das reuniões da<br />
Academia Baiana de Letras, na qual se discutiam os motivos para<br />
a aceitação ou não da candidatura de Edith: “Não conheço sexo<br />
do espírito”. (A MULHER..., 1938) Se traduzirmos essa afirmação<br />
como “a razão, o intelecto não tem sexo”, evidente se torna que as<br />
ideias acerca da inferioridade intelectual feminina estavam presentes<br />
naquele ambiente e que seus adeptos – apesar de não as<br />
expressarem explicitamente – não permitiriam o acesso feminino<br />
àquele espaço e, com este intuito, utilizaram-se dos mais diversos<br />
artifícios, desde o argumento baseado na manutenção da tradição<br />
182<br />
Gênero, mulheres e feminismos
dos estatutos, fruto da Academia Francesa de Letras, 10 que previa<br />
a inelegibilidade feminina, até a sabotagem da eleição por meio<br />
das suas ausências, fato que inviabilizaria as eleições por falta de<br />
quorum.<br />
A argumentação que utilizaram apareceu de forma mais elaborada<br />
e sutil no artigo “Eva e o seu domínio”, publicado pelo<br />
Jornal A Tarde, onde a preservação da tradição bem como a não<br />
alteração do “pensamento dos seus criadores” – entre eles, Machado<br />
de Assis − e nem o abandono do “modelo da Academia<br />
Franceza, à cuja cópia engendrou ele a nacional”, deveriam ser<br />
fatores a serem considerados ao se permitir a presença feminina.<br />
Interessante é que o autor desse artigo faz essas ressalvas para a<br />
Academia Nacional, pois, para ele: “Nada impede, porém, que as<br />
academias estaduais sejam mais urbanas e acessíveis as damas que<br />
não repudiam o estilo e o verso, a áspera proza e a rima suave, a<br />
forma do seu artigo de jornal e os ritmos de sua página de ficção”<br />
(EVA..., 1938)<br />
Ele, inicialmente, aparentou não querer se indispor com nenhuma<br />
das facções, pois, a exemplo das outras falas, não entra<br />
diretamente na discussão acerca das capacidades intelectuais<br />
das mulheres, dos seus papéis e espaços a partir desta. E, mesmo<br />
aceitando o fato de que a vaga foi ocupada por uma mulher, revelou<br />
– ainda que de forma camuflada, a visão androcêntrica. Na<br />
sua fala há uma hierarquia, baseada no status, entre as academias<br />
regionais e a nacional, tendo esta última, em relação às outras,<br />
mais prestígio e destaque; portanto, as mulheres poderiam ser<br />
10 Soma-se ao discurso acerca do “sexo fraco”, da inferioridade intelectual da mulher, para a não<br />
eleição de Edith Gama e Abreu o argumento de que a Academia Francesa não admitia mulheres<br />
e sendo tanto a baiana como a brasileira inspiradas naquela os seus estatutos não admitiam<br />
a participação feminina: “Duas correntes de opinião logo se formaram. Mas o que há de mais<br />
curioso é que a divergência, longe de atingir o mérito, dizia, apenas respeito ao... sexo dos<br />
candidatos. Um grupo de acadêmicos fiel à tradição seguida pela Academia Franceza e pelos<br />
40 do nosso Petit Trianon, se oppunha, terminantemente, a que a casa admittisse uma mulher”.<br />
(ELEIÇÃO..., 1938)<br />
Gênero, mulheres e feminismos 183
admitidas nas regionais, mas não na nacional. E parece ser com<br />
esse intuito que conclui o artigo conclamando: “que os rapazes se<br />
apercebam da competição e aparelhem-se para defender os últimos<br />
redutos do seu antigo domínio.” (EVA..., 1938) Ao que tudo<br />
indica, porém, os acadêmicos da nacional, não quiseram ser taxados<br />
de vesgos e retrógrados, como o foram os da baiana pela nota<br />
publicada no Jornal Cidade do Salvador, e, a partir de discussões<br />
passam, também, a aceitar a presença feminina no seu interior.<br />
A entrada de Edith para a Academia Baiana de Letras foi<br />
acompanhada pelas integrantes da Federação Bahiana pelo Progresso<br />
Feminino, não só pelo fato de ela ser a sua presidente, mas,<br />
sobretudo, porque aquele fato representava não somente uma<br />
glória individual, mas, também, uma vitória para o movimento,<br />
uma vez que, com o apoio de “bahianos illustres e eminentes que<br />
trabalharam pela causa da mulher [...] esmagaram... um velho<br />
preconceito que prohibia a candidatura feminina na Academia de<br />
Letras”. (FEDERAÇÃO..., 1938) Ou seja, na luta por direitos iguais,<br />
conseguiram alçar mais um degrau, reafirmando bem o seguinte<br />
princípio de Edith Gama e Abreu expresso em entrevista ao jornal<br />
O Imparcial:<br />
Desde os primeiros annos de reflexão que formei para mim mesma<br />
essa norma indiscutível – ‘um direito não se pede, tomase’.<br />
E se há quem nol-o recuse, também há quem nos ajude a<br />
conquistal-o. Assim, resolvi candidatar-me à Academia de Letras<br />
da Bahia. Não me era estranho o obstáculo que certo grupo<br />
antepunha ao ingresso da mulher naquelle cenáculo das lettras.<br />
(A MULHER..., 1938, grifo meu)<br />
Bem, o “obstáculo” não era fato exclusivo do contexto baiano<br />
e brasileiro e muito menos das primeiras décadas dos novecentos:<br />
ele esteve presente desde o momento em que as mulheres passaram<br />
a questionar os motivos que lhes negavam o acesso aos espaços<br />
de produção e socialização dos conhecimentos e, a exemplo do<br />
184<br />
Gênero, mulheres e feminismos
que ocorreu em outros espaços e tempos, revela uma disputa pela<br />
manutenção e acesso a um espaço estratégico que garantia e possibilitava,<br />
também, as benesses e/ou prestígios sociais, políticos e<br />
econômicos na sociedade baiana. 11<br />
Corpus documental<br />
A MULHER Médica. Gazeta Médica da Bahia, Salvador, n. 54, 31 out.<br />
1868. Variedades.<br />
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EVA e o seu domínio. Jornal A Tarde. Salvador, 14 nov. 1938.<br />
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novembro de 1938. In.______. Livro de Atas. Salvador, 1931-1948.<br />
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o parto não é uma funcção natural. In: SOCIEDADE DE MEDICINA DE<br />
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1937.<br />
NOTAS Cariocas. A Academia de Letras da Bahia: os cavallos que sabem<br />
pensar. Jornal Cidade do Salvador. Salvador, 14 set. 1938.<br />
TAVARES, Laurentina Pughas. A Tribuna Feminista – “Acho que a<br />
mulher póde concorrer com o homem em todos os misteres da vida”.<br />
A Tarde, Salvador, 17 abr. 1931. p. 2. (Entrevista).<br />
11 Sobre “grupos de prestígio” na Bahia, recomenda-se a leitura de Thales de Azevedo<br />
(1996, p. 167-80).<br />
Gênero, mulheres e feminismos 185
VINHAES, Diógenes. O parto não é uma funcção natural. In:<br />
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Gênero, mulheres e feminismos 187
A POLÍTICA DE COTAS<br />
NA AMÉRICA LATINA<br />
as mulheres e os dilemas<br />
da democracia<br />
Ana Alice Alcantara Costa<br />
Apesar de ser considerado um dos movimentos feministas<br />
mais atuantes na atualidade, as mulheres, na grande maioria dos<br />
países latino-americanos, convivem com um grande paradoxo: a<br />
intensa mobilização deste movimento e o avanço de importantes<br />
conquistas sociais não atingiram os espaços de deliberação política<br />
no âmbito estatal. Nesses países, as mulheres ainda convivem<br />
com baixos percentuais de participação política nas estruturas do<br />
poder formal.<br />
O reconhecimento dessa defasagem vem mobilizando grandes<br />
esforços, nos últimos vinte anos, por parte das organizações<br />
feministas, no sentido de superar os entraves que subsistem nas<br />
sociedades patriarcais da América Latina. Dentre esses esforços,<br />
tem merecido destaque a luta pelo estabelecimento de políticas<br />
de cotas como um mecanismo capaz de promover a ampliação da<br />
participação das mulheres nas estruturas de poder formal.
A aplicação do sistema de cotas, em vários países, nas mais<br />
diversas modalidades, tem possibilitado não só uma avaliação do<br />
instrumento de ação afirmativa em si, mas, em especial, um tratamento<br />
mais qualificado sobre as variáveis institucionais aplicadas<br />
e suas possibilidades de sucesso ou fracasso em contextos específicos.<br />
Inevitavelmente, tem existido uma preocupação maior em<br />
analisar os três contextos mais relevantes em função dos extremos<br />
que ocupam. Refiro-me às experiências do sistema de cotas<br />
aplicado no Brasil, na Costa Rica e na Argentina, com resultados<br />
diametralmente opostos, isto é, o Brasil, país em que o sistema<br />
de cotas tem se mostrado um completo fracasso e as experiências<br />
da Argentina e da Costa Rica, onde, ao contrário, tem propiciado<br />
uma ampliação significativa da participação feminina.<br />
A luta pelo voto e o déficit democrático<br />
A luta sufragista teve início na América Latina já no começo<br />
do século XIX com manifestações ocorridas em diversos países,<br />
em especial, através da imprensa feminina. Assim ocorreu no<br />
Brasil com os jornais “O Jornal das Senhoras”, em 1852, e, posteriormente,<br />
“O Sexo Feminino”, e, no México, em 1970, através<br />
do jornal “Siempre Viva”. Na Costa Rica e em Cuba, em 1890,<br />
apareceram nos principais jornais as primeiras manifestações pela<br />
igualdade e pelos direitos políticos das mulheres no contexto das<br />
reformas eleitorais realizadas nos dois países. Mas foi na Argentina,<br />
em 1862, que essa luta se manifestou de forma mais concreta<br />
quando algumas mulheres da província de San Juan tiveram acesso<br />
ao voto qualificado nas eleições municipais. Apesar disso, foi<br />
nas duas primeiras décadas do século 20 que as manifestações feministas<br />
apareceram com mais intensidade na maioria dos países<br />
latino-americanos.<br />
190<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Nesse período, merece registro a articulação desenvolvida<br />
pela National American Woman’s Suffrage Association (NAW-<br />
SA) organização norte-americana que, sob a presidência de Carrie<br />
Chapman Catt, realizou em Baltimore, em 1919, a Primeira Conferência<br />
Inter-Americana de Mulheres com a participação de diversas<br />
lideranças latino-americanas. A partir daí, em vários países<br />
da América Latina foram criadas organizações feministas com as<br />
mesmas características da NAWSA, com o objetivo de implementar<br />
e coordenar a luta sufragista nos seus respectivos países. Essa<br />
iniciativa funcionou através da estruturação de redes estabelecidas<br />
entre distintas organizações nos diferentes países e propiciou<br />
um grande impulso ao sufragismo na região. (MONTANHO, 2007,<br />
p. 22)<br />
O Equador foi o primeiro país a estabelecer o voto feminino,<br />
isso em 1929, seguido por Brasil e Uruguai, em 1932. No entanto,<br />
foi a década de 40 o período no qual um maior número de países<br />
estabeleceu uma legislação eleitoral que contemplasse o voto<br />
para as mulheres. Paraguai (1961) e Colômbia (1964) foram os países<br />
que mais demoraram em reconhecer os direitos políticos das<br />
mulheres. A conquista do voto foi acompanhada por um intenso<br />
processo de alistamento eleitoral por parte das mulheres.<br />
Na atualidade, a participação feminina na maioria dos países<br />
latino-americanos atinge percentuais significativos na composição<br />
do eleitorado, chegando inclusive, em muitos países, como<br />
Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, El Salvador, México, Panamá,<br />
Nicarágua, Uruguai e Paraguai, a se constituírem maioria absoluta<br />
(Tabela 1).<br />
Gênero, mulheres e feminismos 191
Tabela 1 − Participação da mulher na política latinoamericana, por país<br />
PAÍS<br />
Ano de<br />
Conquista<br />
do voto<br />
Participação<br />
no eleitorado<br />
Participação<br />
em gabinetes<br />
ministeriais<br />
Poder<br />
Local<br />
Argentina 1947 51% 25,0 8,5<br />
Bolívia 1952 49,9 30,0 4,6<br />
Brasil 1932 51,8 14,3 7,5<br />
Chile 1949 52,4 36,4 12,1<br />
Colômbia 1957 51,0 23,1 9,0<br />
Costa Rica 1949 50,0 37,5 9,9<br />
Cuba 1934 50,0 − 1<br />
40,6<br />
El Salvador 1939 54,1 15,4 8,0<br />
Equador 1929 50,5 32,0 6,0<br />
Guatemala 1945 45,8 25,0 2,4<br />
Honduras 1955 50,6 25,0 8,1<br />
México 1953 51,9 20,0 3,0<br />
Nicarágua 1955 54,0 31,2 10,4<br />
Panamá 1945 58,3 21,4 9,3<br />
Paraguai 1961 52,5 10,0 5.7<br />
Peru 1955 49,7 26,7 2,8<br />
Rep. Dominicana 1942 50,4 17,6 11,3<br />
Uruguai 1932 52,4 30,0 −<br />
Venezuela 1947 50,0 18,5 7,2<br />
1<br />
Um dado interessante em relação a Cuba é que nas últimas eleições para a Asamblea Nacional del<br />
Poder Popular (parlamento unicameral) as mulheres alcançaram 43,32 % dos cargos de deputados<br />
Fonte: Idea Internacional 2007a; Llanos; Sample, 2008.<br />
192<br />
Gênero, mulheres e feminismos
No entanto, apesar dessa supremacia na composição do eleitorado<br />
e do fato de que na maioria dos países as mulheres já exercem<br />
o direito de voto há mais de meio século, isso não significou<br />
que o acesso ao poder tenha sido possível para as mulheres. É suficiente<br />
uma análise dos percentuais de participação feminina nas<br />
esferas de poder, na grande maioria das democracias representativas<br />
da região, para vermos o quanto as mulheres estão longe<br />
deste direito e quanto esse acesso tem sido negado. Até os anos<br />
1990, a participação das mulheres nas instâncias representativas<br />
do poder formal era ocasional, escassa e limitada, sendo estas geralmente<br />
eleitas por sua condição de esposas, filhas e/ou irmãs de<br />
pessoas reconhecidas no âmbito da política. (VENEZIANI, 2006,<br />
p. 11) Essa, aliás, ainda é uma prática comum em muitos países da<br />
América Latina, que se estende também para os homens, como<br />
uma forma de a família ou o grupo político seguir controlando<br />
o poder; e as mulheres têm se constituído em peça fundamental<br />
nesse jogo. (COSTA, 1998)<br />
Na América Latina, até o momento, apenas cinco mulheres<br />
chegaram à presidência de seus países através do voto popular,<br />
três das quais perfeitamente integradas no modelo de ascensão<br />
como herança familiar. Assim foi na Nicarágua, com Violeta<br />
Chamorro (1990/97), viúva do jornalista Pedro Chamorro, líder<br />
da oposição não-sandinista ao ditador Anastácio Somoza; no Panamá,<br />
onde foi eleita Mireya Moscoso (1999/2004), após assumir<br />
a direção do Partido Arnulfista com a morte do seu marido Arnulfo<br />
Arias, presidente do Panamá por três vezes; e, mais recentemente,<br />
na Argentina, foi eleita Cristina Fernandez (2007/2011),<br />
advogada que, apesar de uma trajetória política própria como deputada<br />
provincial, deputada nacional e senadora, se candidatou<br />
em continuidade à gestão de seu marido, Nestor Kirchner. Foge<br />
a essa regra, Michelle Bachelet (2006/2010), eleita presidente do<br />
Chile. Médica, Ex-ministra da Saúde e Defesa, Bachelet construiu<br />
Gênero, mulheres e feminismos 193
sua liderança de forma autônoma e independente a partir de sua<br />
trajetória pessoal, profissional e partidária. E, agora, Dilma Rousseff,<br />
eleita presidente do Brasil com apoio do Lula, que foi Ministra<br />
de Minas e Energia e Ministra da Casa Civil. 1<br />
Por outro lado, mesmo fugindo aos processos eletivos, o número<br />
de mulheres ocupando a chefia dos ministérios também<br />
ainda é muito pequena. Segundo Beatriz Llanos e Kristen Sample<br />
(2008), nos últimos anos, em função do estabelecimento de ações<br />
afirmativas em alguns países, houve um incremento significativo<br />
da presença feminina na composição da chefia dos ministérios na<br />
América Latina. Em 2007, a presença feminina chegou a 24%, o<br />
que significa um grande avanço se tomamos como parâmetro o<br />
percentual de 1996 quando a presença feminina não ultrapassava<br />
a casa de 8,4.<br />
Esse crescimento se concentrou, basicamente, nos países que<br />
desenvolveram uma política de incorporação das mulheres às<br />
instâncias do executivo, a saber: Costa Rica, com 37,5%; Chile,<br />
36,4%; Equador, 32%; Nicarágua, com 31,2%; e, também, a Bolívia<br />
e o Uruguai com uma participação que se aproxima dos 30%.<br />
O contraponto são países como Venezuela (18,5%), República Dominicana<br />
(17,6%), El Salvador (15,4%), Brasil (14,3%) e Paraguai<br />
(10%) nos quais a participação feminina na chefia dos ministérios<br />
continua muito baixa. (LLANOS; SAMPLE, 2008, p. 18)<br />
Nessas estruturas, a participação feminina tende a aumentar à<br />
medida que diminui a hierarquia das esferas de decisões, ou seja,<br />
quanto mais importante o cargo, menor o número de mulheres.<br />
No que se refere às instâncias do Executivo cujo acesso se dá atra-<br />
1 Não obstante, outras mulheres já estiveram à frente dos governos centrais na América Latina<br />
através de outros processos que não o voto direto. Assim foi o caso de Isabel Perón, eleita Vicepresidente<br />
da Argentina e que com a morte do seu marido Juan Perón assumiu a Presidência da<br />
República, em 1979. Em 1979, Lidia Gueiler assume interinamente a Presidência da Colômbia por<br />
determinação do Congresso Nacional, depois do golpe de Estado que destituiu Walter Guevara<br />
Arce. Também em 1997, Roselia Arteano assume a presidência do Equador por apenas três dias.<br />
(LLANOS; SAMPLE, 2008)<br />
194<br />
Gênero, mulheres e feminismos
vés de processos eleitorais, onde não existe ainda nenhum sistema<br />
de cotas ou política de ação afirmativa a participação feminina<br />
segue irrisória e mesmo nos países onde a participação atinge dois<br />
dígitos ela é pequena, como é o caso do Chile, Republica Dominicana<br />
e Nicarágua. Os dados da Tabela 1 apresentam claramente<br />
essa situação.<br />
Por outro lado, essa baixa participação das mulheres nas estruturas<br />
do poder formal nos países latino-americanos não significa<br />
que as mulheres têm estado excluídas da ação política, da<br />
participação política em uma perspectiva mais ampla. Vários estudos<br />
têm demonstrado a intensidade e a amplitude da participação<br />
feminina, em especial, junto aos movimentos sociais.<br />
Referindo-se aos processos de democratização vivenciados<br />
em vários países latino-americanos (a exemplo de Chile, Brasil,<br />
Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia, Peru etc.), nos anos 80,<br />
no contexto de enfrentamento aos regimes militares e, posteriormente,<br />
de construção democrática, Sonia Alvarez destaca a<br />
importância da participação das mulheres no processo. Segundo<br />
essa autora (1994, p. 227) foram as mulheres que encabeçaram<br />
os protestos contra a violação dos direitos humanos, que buscaram<br />
soluções criativas para as necessidades comunitárias diante<br />
do descaso por parte do Estado. Foram elas que engrossaram as<br />
fileiras do movimento sindical e que lutaram pelo direito à terra.<br />
Foram as mulheres afro-brasileiras que ajudaram a criar um<br />
crescente movimento de consciência negra, antirracista; foram<br />
as lésbicas que se uniram aos homossexuais na luta contra a homofobia;<br />
foram as universitárias que pegaram em armas contra<br />
o regime militar ou que se integraram aos partidos de oposição.<br />
No entanto, toda essa participação feminina não se configurou em<br />
possibilidade real de acesso ao poder político.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 195
A tão almejada democracia em muitos destes países deixou de<br />
fora a maioria do eleitorado, o eleitorado feminino. A promessa<br />
da igualdade democrática não chegou de fato para as mulheres.<br />
Em todas as sociedades ditas democráticas, as mulheres tiveram<br />
de lutar arduamente, e seguem lutando, para ter acesso a direitos<br />
comuns a qualquer cidadão masculino, a exemplo de salário igual<br />
para trabalho igual, oportunidades de promoção, direito a integridade<br />
física, acesso ao trabalho, direito ao voto. Não obstante,<br />
a conquista do direito ao voto e do direito a candidatar-se aos postos<br />
de representação publica, na prática, não significou o direito<br />
de serem eleitas. (PETIT, 2007, p. 107)<br />
A impossibilidade de se elegerem, que as mulheres vêm encontrando<br />
ao longo da história, põe em cheque o compromisso<br />
democrático dessas sociedades bem como o discurso normativo<br />
da igualdade existente na maioria dos textos constitucionais onde<br />
a inclusão formal das mulheres está explicitada. Vários teóricos<br />
da democracia vêm apontando a inclusão das mulheres dentre as<br />
condições mínimas que definem o caráter democrático de uma<br />
sociedade. Exemplo nesse sentido é Roberto Dall que aponta como<br />
condições mínimas para o exercício da democracia a existência de<br />
partidos políticos e de organizações da sociedade civil com participação<br />
paritária de homens e mulheres, com programas e ideologias<br />
distintas da dominante, a aceitação de uma oposição política,<br />
o direito de qualquer indivíduo ou grupo desafiar ou substituir,<br />
através de eleições, a quem está no poder, a garantia da liberdade<br />
de expressão e de associação, a independência dos meios de comunicação<br />
e o respeito aos direitos humanos dos cidadãos e cidadãs,<br />
especialmente das minorias (1993, p. 29).<br />
Nesse mesmo caminho, segue Norberto Bobbio ao definir a<br />
“[...] democracia como via, como método, como conjunto de regras<br />
do jogo que estabelecem como devem ser tomadas as decisões<br />
coletivas e não quais decisões coletivas devem ser tomadas”<br />
196<br />
Gênero, mulheres e feminismos
(2000, p. 427). Dentre as regras por ele identificada como “pontos<br />
essenciais”, 2 merece destaque o item:<br />
todos os cidadãos que tenham alcançado a maioridade etária<br />
sem distinção de raça, religião, condição econômica, sexo, devem<br />
gozar de direitos políticos, isto é, cada um deles deve gozar<br />
do direito de expressão de sua própria opinião ou de escolher<br />
quem a expresse por ele mesmo que sejam regras estritamente<br />
do campo formal. (BOBBIO, 2000, p. 427)<br />
Em uma perspectiva crítica a essas posições, Anne Phillips<br />
(1996) diz que a democracia liberal costuma considerar que a promessa<br />
de igualdade e participação está suficientemente atendida<br />
com a normatização do sufrágio universal e com a possibilidade,<br />
igual para todas as pessoas, de se candidatar às eleições, como se<br />
as condições sociais e econômicas também não fossem determinantes<br />
nestes processos. A autora chama a atenção para o fato de<br />
que, mesmo nas sociedades modernas, são as mulheres que geralmente<br />
assumem as responsabilidades relacionadas ao trabalho<br />
doméstico não remunerado, à reprodução, ao cuidado das pessoas<br />
jovens, doentes e idosas, responsabilidades que, na prática, atuam<br />
como uma poderosa barreira impeditiva ao compromisso e à<br />
participação política das mulheres. Por outro lado, o fato de que<br />
a construção cultural da política como um assunto fundamentalmente<br />
masculino, de homens contribui para manter em desvantagens,<br />
quando não excluídas de fato, aquelas mulheres que apesar<br />
de todas as dificuldades tentam se inserir nos processos políticos.<br />
2 Para Bobbio, os outros pontos essenciais são: [...] 2) o voto de todos os cidadãos deve ter<br />
igual peso; 3) todos aqueles que gozam dos direitos políticos devem ser livres para poder<br />
votar segundo sua própria opinião formada, no máximo possível, livremente, isto é, em uma<br />
livre disputa entre grupos políticos organizados em concorrência entre si; 4) devem ser livres<br />
também no sentido de que devem ser colocados em condições de escolher entre diferentes<br />
soluções, isto é, entre partidos que tenham programas distintos e alternativos; 5) seja para as<br />
eleições, seja para as decisões coletivas, deve valer a regra da maioria numérica, no sentido<br />
de que será considerado eleito o candidato ou será considerada valida a decisão que obtiver<br />
o maior número de votos; 6) nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da<br />
minoria, particularmente o direito de se tornar por sua vez maioria em igualdade de condições”<br />
(2000, p. 427). Ver também Bobbio (1986, p. 19).<br />
Gênero, mulheres e feminismos 197
Para Almudena Hernando, além dessas questões colocadas<br />
por Anne Phillips, está o fato de que a identidade de gênero que<br />
segue sendo transmitida às mulheres faz com que elas enfrentem<br />
e vivenciem o poder de uma forma subjetiva muito distinta das<br />
vivências masculinas: “o poder implica para elas conflitos, desgastes<br />
e solidão ao que os homens, comumente, não têm que enfrentar”.<br />
Para a autora, essas dificuldades enfrentadas acontecem<br />
por conta do “[...] contexto subjetivo, identitário, inconsciente,<br />
determinado por séculos e séculos de identidade de gênero transmitida<br />
e reproduzida de acordo ao qual, às mulheres não lhes correspondiam<br />
ocupar posições de poder” (2003, p. 16).<br />
Para esse mesmo caminho se direciona Verônica Pérez que, ao<br />
fazer referência a autores como Inglehart, Norris y Welzel, destaca<br />
o papel da cultura no estabelecimento de limites ao acesso<br />
das mulheres ao poder. As atitudes tradicionais são uma das principais<br />
barreiras de acesso aos cargos de representação política,<br />
na medida em que os valores predominantes em uma sociedade<br />
determinam o tipo de direitos, recompensas e poderes, para homens<br />
e mulheres, nas distintas esferas da vida social e política.<br />
As mulheres não só sofrem as limitações impostas pela sociedade<br />
em geral, através dos papéis de gênero, mas, também limitações<br />
impostas por elas mesmas, definidas por sua condição de gênero<br />
subalterno, visto que a predominância de tais atitudes pode influir<br />
diretamente sobre a preparação e a decisão de se candidatar,<br />
assim como nos critérios utilizados pelos partidos políticos, pelos<br />
meios de comunicação e pelo próprio eleitorado ao escolher seus<br />
candidatos. (PÉREZ, 2006, p. 57)<br />
Na perspectiva de superar esses entraves na participação política<br />
das mulheres, Anne Phillips (1996) propõe, em linhas gerais,<br />
três possíveis soluções: 1) uma diferente divisão sexual do trabalho<br />
na produção e reprodução, com um reparte igualitário de toda<br />
a gama de trabalho remunerado e não remunerado existente na<br />
198<br />
Gênero, mulheres e feminismos
sociedade e que, até agora, é de responsabilidade quase exclusiva<br />
das mulheres; 2) a modificação na situação de trabalho dos políticos<br />
para que seja possível abrir possibilidades de participação para<br />
pessoas com responsabilidades parentais ativas; 3) a eliminação<br />
dos preconceitos de tipo “club masculino” próprios do eleitorado<br />
ou dos encarregados de escolher os candidatos nos partidos, algo<br />
que exige medidas de ações afirmativas para estimular a eleição de<br />
mulheres.<br />
Como aponta a própria autora, as feministas, nos últimos anos,<br />
têm envidado, sistematicamente, mais esforços na implementação<br />
do terceiro tipo de problema, o que, para ela, é uma demonstração<br />
de que não acreditam muito na possibilidade de mudar os<br />
dois primeiros. Eu diria que o que vem ocorrendo, de fato, é uma<br />
maior visibilidade nas ações direcionadas a mudanças no âmbito<br />
do Estado, como é comum ocorrer. A intervenção feminista nas<br />
diversas instâncias da vida social, no sentido de implementar mudanças<br />
no cotidiano feminino e, em especial, das famílias, tem sido<br />
a prática corrente do feminismo em mais de dois séculos de existência.<br />
A luta ideológica, a perspectiva de mudanças nos padrões<br />
culturais e a batalha incessante pela mudança na divisão sexual<br />
do trabalho e da afetividade do feminismo enquanto movimento<br />
social ou enquanto prática política tem buscado, precisamente,<br />
implementar as duas primeiras possíveis soluções indicadas pela<br />
autora; no entanto, exatamente por se travar, “essencialmente”,<br />
no âmbito privado, ela não é tão fortemente identificada e, até<br />
mesmo, pouco visibilizada. (COSTA, 2008b, p. 10)<br />
Por outro lado, não podemos esquecer a importância do papel<br />
do Estado como força política capaz de influenciar, implementar<br />
ações e políticas públicas transformadoras e, mesmo, através de<br />
medidas punitivas, mudar as práticas discriminadoras e excludentes<br />
em relação às mulheres. Nesse sentido, a implementação<br />
de ações afirmativas, a exemplo do sistema de cotas, pode ser um<br />
Gênero, mulheres e feminismos 199
dos caminhos para a construção de uma sociedade realmente democrática,<br />
garantindo uma participação paritária entre homens e<br />
mulheres.<br />
As cotas na América Latina<br />
A Argentina foi o primeiro país na América Latina a adotar<br />
um sistema de cotas, através da alteração do artigo 60º do Código<br />
Eleitoral, em 1991, a chamada “Ley de Cupos” que estabelecia a<br />
obrigatoriedade de que as listas de candidatos apresentadas pelos<br />
partidos em nível nacional garantissem um mínimo de 30% de<br />
mulheres.<br />
A lei foi fruto de todo um esforço das mulheres argentinas, em<br />
um processo iniciado ainda durante a ditadura militar com a ação<br />
das “Mães e Avós da Praça de Maio”, as primeiras a saírem em público<br />
denunciando as barbáries do regime militar e clamando pelo<br />
retorno do Estado de Direito. Paralelamente a esse movimento,<br />
desenvolveu-se um amplo movimento de mulheres ligado aos<br />
movimentos de resistência à Ditadura Militar. Em fins dos anos<br />
80, já era intensa a mobilização pela implantação de uma política<br />
de cotas protagonizada por setores do feminismo articulados com<br />
mulheres militantes dos partidos políticos.<br />
Inicialmente, a partir da experiência de países europeus, as<br />
mulheres tentaram negociar com os partidos majoritários a introdução<br />
das cotas nos programas partidários. Diante da reação<br />
negativa dos partidos, a nova estratégia foi apresentar projetos de<br />
reforma ao Código Eleitoral Nacional com o objetivo de “obrigar<br />
as organizações partidárias a incluir mais mulheres nas suas listas<br />
de candidatos aos cargos eletivos”. (MARX; BORNER; CAMINOT-<br />
TI, 2006, p. 8)<br />
Em novembro de 1989, a senadora Margarita Malharro de Torres,<br />
da União Cívica Radical (UCR), eleita pela província de Men-<br />
200<br />
Gênero, mulheres e feminismos
donza, apresentou um projeto de Reforma Eleitoral que obrigava<br />
as organizações partidárias a incluírem mulheres nas listas de<br />
candidatos a cargos legislativos. (MARX; BORNER; CAMINOTTI,<br />
2006, p. 9; MONTANHO, 2007, p. 28)<br />
Em 1990, forma-se a Rede de Feministas Políticas, integrada<br />
por quinze organizações partidárias, que, com o lema “Com<br />
poucas mulheres na política, mudam as mulheres; com muitas<br />
mulheres na política muda a política”, passou a ser a entidade organizadora<br />
de todo o processo de análise e pressão para a aprovação<br />
da Lei de Cotas. (MARX; BORNER; CAMINOTTI, 2006, p. 9)<br />
Em novembro de 1991, é sancionada a Lei n° 24.012, baseada<br />
na proposta da Senadora Malharro de Torres, e em março de 1993,<br />
foi promulgado o Decreto n° 379, que regulamentava aquela Lei,<br />
definindo mais explicitamente o mecanismo de cota feminina,<br />
ao estabelecer que “[...] a finalidade da lei é lograr a integração<br />
efetiva da mulher na atividade política, evitando sua postergação<br />
ao não se incluir candidatas femininas entre os candidatos com<br />
expectativa de serem eleitos”. (MARX; BORNER; CAMINOTTI,<br />
2006, p. 10)<br />
Em 1994, diante da constatação de que, mesmo aqueles partidos<br />
que cumpriam a lei, colocavam as mulheres nas listas em<br />
posições sem possibilidades de serem eleitas, foi realizada uma<br />
mudança na “Ley de Cupos” estabelecendo como exigência que<br />
as mulheres deveriam estar posicionadas nas listas em lugares<br />
com possibilidades reais de serem eleitas (uma mulher em cada<br />
três posições na lista) e se essa determinação não fosse cumprida,<br />
o partido não poderia inscrever sua lista e ficaria de fora do<br />
processo eleitoral. No entanto, esse requisito legal é cumprido<br />
de uma forma mínima pelos partidos, que costumam colocar as<br />
candidatas unicamente nos terceiros postos. (TOBAR; VILLAR,<br />
2006, p. 42)<br />
Gênero, mulheres e feminismos 201
Na tentativa de reverter essa prática partidária, várias contendas<br />
judiciais foram interpostas pelas mulheres no sentido de<br />
obrigar os partidos políticos a cumprirem a Lei de Cotas em sua<br />
integralidade. 3 Como consequência desses conflitos, em 2000, o<br />
então presidente De La Rua promulgou um novo decreto o Decreto<br />
Regulamentário n° 1.246 que estabelecia: 1) a cota eleitoral se<br />
aplica a todos os cargos eletivos de deputados, senadores e Constituintes<br />
Nacionais; 2) os 30% das candidaturas que devem ser<br />
destinadas às mulheres se referem à quantidade mínima; 3) a cota<br />
só é considerada cumprida quando aplicada ao número de cargos<br />
que cada organização partidária renova na eleição correspondente.<br />
(MARX; BORNER; CAMINOTTI, 2006, p. 12)<br />
Apesar dessas dificuldades na relação com os partidos, a Lei de<br />
Cotas na Argentina garantiu um impulso significativo na presença<br />
feminina no sistema representativo, passando de 5,9%, em 1991,<br />
para mais de 30%, na atualidade. Hoje, as mulheres preenchem<br />
39,6% das vagas da Câmara de Deputados. Essa experiência da<br />
Argentina tem servido de estímulo e exemplo para a implantação<br />
de políticas de cotas em outros países da América Latina.<br />
Porém, foi com a Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial<br />
sobre a Mulher: Ação para a Igualdade, o Desenvolvimento e<br />
a Paz, realizada em Beijing, na China, em 1995, que os mecanismos<br />
de ações afirmativas passaram a contar com a aceitação por<br />
parte dos governos nacionais, ao serem convocados a criar condições<br />
para o acesso efetivo das mulheres às instâncias de decisão.<br />
Na origem desse processo, foi fundamental a Convenção sobre a<br />
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher<br />
(CEDAW), das Nações Unidas, de 1979, momento em que a desi-<br />
3 Merece registro o processo movido por Maria Merciadri de Morini, afiliada da UCR, em 1994,<br />
que apresentou denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) alegando<br />
violação de direitos políticos, da igualdade perante a lei. O CIDH admitiu o caso e interveio junto<br />
ao governo do Presidente Fernando de La Rua. Em março de 2001, chegou-se a uma solução<br />
amistosa para o conflito.<br />
202<br />
Gênero, mulheres e feminismos
gualdade vivenciada pela maioria das mulheres no âmbito político<br />
passa a ser motivo de interesse e atenção por parte dos organismos<br />
internacionais.<br />
Após a Conferência de Beijing e a aprovação da Plataforma de<br />
Ação, em menos de cinco anos, dez países da América Latina impulsionaram<br />
o sistema de cotas e, apesar de a maioria ter adotado<br />
a cota de 30%, a diversidade de modalidades tem sido surpreendente<br />
(Tabela 2).<br />
Nesse contexto pós-Beijing, um dos primeiros países a estabelecerem<br />
o sistema de cotas foi a Costa Rica, que hoje se constitui<br />
em uma das experiências de maior sucesso na região. O processo<br />
de luta pela implantação da política de cotas no país começou logo<br />
após a ratificação da CEDAW, em 1984, quando, por pressão do<br />
movimento de mulheres, alguns partidos começaram a criar mecanismos<br />
internos para promover e garantir a participação efetiva<br />
das mulheres na distribuição dos cargos e listas eleitorais. Porém,<br />
apesar da ampla mobilização, somente em novembro de 1996 foi<br />
aprovada a Lei n° 7.653 que estabelece o sistema de cotas pelo qual<br />
os partidos devem assegurar 40% de participação feminina tanto<br />
na estrutura partidária como nas cédulas para as candidaturas à<br />
eleição popular. A lei explicita, também, que as mulheres devem<br />
ser candidatas a postos elegíveis e recomenda a alternância e o<br />
respeito à média histórica. (MONTANHO, 2007, p. 29)<br />
Gênero, mulheres e feminismos 203
Tabela 2 − Cotas e sistemas eleitorais na América Latina<br />
PAÍS<br />
Ano da<br />
Cota<br />
%<br />
de mulheres<br />
antes da cota<br />
%<br />
mulheres<br />
hoje<br />
Cota<br />
mínima<br />
por lei<br />
Definição<br />
de posição<br />
na lista<br />
Tipo de<br />
lista<br />
Argentina 1991<br />
Câmara: 06,0<br />
Senado: 03,0<br />
38,3<br />
38,9<br />
30 sim fechada<br />
Paraguai 1996<br />
Câmara: 03,0<br />
Senado: 11,0<br />
10,0<br />
08,9<br />
20 sim fechada<br />
México 1996<br />
Câmara: 17,0<br />
Senado: 15,0<br />
22,6<br />
17,2<br />
30 não fechada<br />
Bolívia 1997<br />
Câmara: 11,0<br />
Senado: 04,0<br />
16,9<br />
03,7<br />
30 sim fechada<br />
Brasil 1997<br />
Câmara: 6,4<br />
Senado: 6,3<br />
08,8<br />
12,3<br />
30 não aberta<br />
Costa Rica 1997 Unicameral: 14,0 36,8 40 sim fechada<br />
Rep.<br />
Dominicana<br />
1997<br />
2000<br />
Câmara: 12,0<br />
19,7<br />
03,1<br />
25<br />
33<br />
não<br />
fechada<br />
Equador 1997 Unicameral: 04,0 26,0 sim aberta<br />
Panamá 1997 Unicameral: 08,0 15,3 30 não aberta<br />
Perú 1997 Unicameral: 11,0 29,2 25 não aberta<br />
Honduras 2000 Unicameral 23,4<br />
Uruguay 2004<br />
Câmara: 11.1<br />
Senado: 09,7<br />
Venezuela 1997 Unicameral 18,6 30 Não fechada<br />
Fonte: Veneziani, 2006; Idea Internacional, 2007a; Llanos; Sample, 2008<br />
204<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Da mesma forma que a Lei de Cotas da Argentina, a legislação<br />
costarricense necessitou ser aprimorada logo depois, para incorporar<br />
mecanismos de sanção aos partidos que não cumprissem<br />
o percentual mínimo estabelecido de 40% e a exigência de posicionamento<br />
das mulheres em lugares com reais possibilidades de<br />
serem eleitas. O que se viu, também na Costa Rica, já na primeira<br />
eleição subsequente à Lei, em 1998, foi que, mesmo aqueles partidos<br />
que cumpriram as cotas estabelecidas colocaram as mulheres<br />
em posições com escassas possibilidades de serem eleitas. O resultado<br />
dessa prática é que apenas duas mulheres a mais foram eleitas<br />
em relação às eleições de 1994. (PEREZ, 2008) Em 1999, atendendo<br />
a uma demanda do Instituto Nacional das Mulheres, o Tribunal<br />
Superior estabeleceu a Resolução n° 1.863 4 que criava mecanismos<br />
de controle e garantia do cumprimento da lei. Recentemente, em<br />
2007, a política nacional orientada para a igualdade e a equidade<br />
de gênero do Governo da Costa Rica incluiu, entre os seus eixos<br />
principais, o fortalecimento da participação política das mulheres;<br />
o cuidado da família como responsabilidade social e a valorização<br />
do trabalho doméstico; e o fortalecimento da institucionalidade<br />
pública em favor da igualdade e da equidade de gênero. A meta<br />
para 2017 é a participação política paritária em todos os espaços de<br />
tomada de decisões. (MONTANHO, 2006, p. 29)<br />
Juntamente com Costa Rica e Argentina, apesar de apresentarem<br />
índices de participação inferiores, podemos também considerar<br />
como experiências exitosas os sistemas de cotas femininas<br />
4 A Resolução nº 1.863, de setembro de 1999, estabelecia que: os 40% de participação das<br />
mulheres nas listas de candidaturas para a eleição de deputados, regentes e síndicos devem<br />
ser postos elegíveis; os 40% de cota feminina devem ser respeitados em cada assembléia e<br />
não é forma global; impõe a cada partido a obrigação de incorporar a seus estatutos os ajustes<br />
necessários para garantir efetivamente a participação das mulheres nas formas e percentuais<br />
definidos; o Registro Civil não fará a inscrição das listas (nóminas) dos candidatos quando estas<br />
não atendam a estes parâmetros, tampouco serão registradas as reformas estatutárias nem<br />
as atas das assembléias, quando a partir das atas ou dos relatórios dos delegados, o Tribunal<br />
considere que a lei não foi cumprida. O Tribunal se reserva o direito de fiscalizar, através dos<br />
diferentes mecanismos legais, o efetivo cumprimento do acordado. (MONTANHO, 2006, p. 29)<br />
Gênero, mulheres e feminismos 205
adotados no Equador e no Peru. A experiência chama a atenção<br />
pelo mecanismo utilizado, que vem dando importantes resultados.<br />
Em 1997, o Equador havia estabelecido uma cota de 20%, mas<br />
sem grandes resultados. Em 2000, por uma importante mobilização<br />
das mulheres, foi modificada a “Lei de Eleições” ou “Lei de<br />
Participação Política” estabelecendo 30% e um incremento gradual<br />
de 5%, a cada eleição, até chegar à paridade (50%). Segundo<br />
o artigo 58, da Lei de Eleições:<br />
As listas de candidaturas em eleições pluripessoais deverão apresentar-se<br />
com no mínimo, trinta por cento (30%) de mulheres<br />
entre os principais e trinta por cento (30%) entre os suplentes<br />
de forma alternada e seqüencial, percentual que será incrementado<br />
em cada processo eleitoral geral, em cinco por cento (5%)<br />
adicional até chegar a igualdade na representação. Se tomará em<br />
conta a participação étnico-cultural. (PACARI, 2004, p. 3)<br />
Toda a mobilização tomou como partida, o artigo 102 da nova<br />
Constituição do Equador aprovada em junho de 1998, que estabelece:<br />
O Estado promoverá e garantirá a participação equitativa de<br />
mulheres e homens como candidatos nos processos de eleição<br />
popular, nas instancias de direção y decisão no âmbito público,<br />
na administração de justiça, nos organismos de controle e nos<br />
partidos políticos.<br />
No Peru, o Congresso da República aprovou as cotas, em outubro<br />
de 1997, com a Lei n° 26.864 estabelecendo 25% para as eleições<br />
municipais e do Congresso Nacional. O artigo 10º da Lei de<br />
Eleições Municipais estabelece que a lista de candidatos deve ser<br />
apresentada em um único documento no qual se indique a posição<br />
dos candidatos na lista, que deve estar formada por, pelo menos,<br />
25% de homens ou mulheres. Em dezembro de 2000, através da<br />
Lei n° 27.387 aumentou-se a cota mínima de homens ou mulhe-<br />
206<br />
Gênero, mulheres e feminismos
es nas listas de candidatos ao Congresso da República em 30%.<br />
(MASSOLO, 2007, p. 34)<br />
Em seu estudo sobre participação política das mulheres na<br />
América Latina, no âmbito local, Alejandra Massolo (2007, p. 34)<br />
destaca como elemento fundamental para o sucesso do sistema de<br />
cotas do Peru, apesar da modalidade de lista aberta e da fragilidade<br />
dos mecanismos de sanções, a atuação de quatro instituições:<br />
o Movimento Manuela Ramos, Associação de Comunicadores Sociais<br />
CALANDRIA, o Centro de Estudos Sociais e Publicações (CE-<br />
SIP) e o Centro de Estudos para o Desenvolvimento e a Participação<br />
(CEDEP) que desenharam um programa de promoção política da<br />
mulher, o PROMUJER, responsável por um intenso trabalho de<br />
sensibilização de mulheres para a política e de formação política<br />
para mulheres candidatas.<br />
Outras experiências que se destacam no conjunto de análise da<br />
implementação do sistema de cotas na América Latina, não tanto<br />
pelo seu sucesso, mas, exatamente, pela possibilidade de identificação<br />
dos problemas e modelos não promissores, são os processos<br />
do México, Venezuela e do Brasil, este último como o exemplo de<br />
experiência mais fracassada na região.<br />
No México, a Lei de Cotas foi também estabelecida em 1996,<br />
após um processo de mobilizações, que teve início, em 1993, com<br />
a reforma do Código Federal de Instituições e Procedimentos Eleitorais<br />
(COFIPE) que determina que os partidos devem promover<br />
maior participação das mulheres na vida política (§ III, art. 175).<br />
Apesar do caráter generalista, essa legislação produziu um impacto<br />
na eleição de 1994, quando o percentual de mulheres passou<br />
de 8,4 para 13,8%, na Câmara Federal, e de 4,6% para 13,3%, no<br />
Senado. Em 1996, o COFIPE sofreu nova alteração com a incorporação<br />
do parágrafo XXII que estabelece que “os partidos políticos<br />
nacionais considerarão nos seus estatutos que as candidaturas<br />
Gênero, mulheres e feminismos 207
a deputados e senadores não excedam 70% para um mesmo gênero”.<br />
(REYNOSO; D’ANGELO, 2004, p. 5-6)<br />
Em 2002, na tentativa de tornar a lei de cotas mais eficaz,<br />
produz-se mais uma alteração no COFIPE, acrescentando-se três<br />
alíneas no artigo 175 pelas quais, em linhas gerais, ficam estabelecidos:<br />
a alternância na composição da lista definindo que, em<br />
cada um dos três primeiros segmentos de cada lista, haverá a candidatura<br />
de um sexo distinto; que o partido ou coalizão que não<br />
cumprir o dispositivo responderá junto ao Conselho Federal do<br />
Instituto Federal Eleitoral; e a punição do partido com a anulação<br />
do registro de candidaturas, em caso de reincidência. (REYNOSO;<br />
D’ANGELO, 2004, p. 6)<br />
Apesar dessas mudanças, a legislação eleitoral, ao não definir<br />
em quais tipos de candidaturas devem incidir as cotas, deixa<br />
brecha para que os partidos burlem a lei, colocando as mulheres,<br />
geralmente, na suplência. Essa prática tem impedido resultados<br />
significativos, posicionando o México no rol dos países em que a<br />
política de cotas não tem surtido os efeitos esperados, conforme<br />
podemos ver na Tabela 2 cujos dados apresentam um percentual<br />
de 22,6% de mulheres na Câmara e 17,2% no Senado.<br />
No México, todo esse processo foi construído a partir de importantes<br />
alianças suprapartidárias de mulheres militantes com o<br />
objetivo de estimular e reivindicar mecanismos que ampliassem a<br />
participação feminina nas instâncias de decisões, dentre as quais<br />
se destacou o Grupo Plural. (MONTANHO, 2006, p. 29)<br />
A experiência da Venezuela também merece registro. Em 1997,<br />
através do artigo 144 da Lei Orgânica do Sufrágio e da Participação<br />
Política, estabeleceu-se a obrigatoriedade dos partidos políticos e<br />
de grupos de eleitores incluírem um mínimo de 30% de candidatas<br />
nas listas eleitorais. Depois de implementado, na eleição seguinte,<br />
em 1998, o Sistema de Cotas foi considerado inconstitucional<br />
pelo Conselho Nacional Eleitoral, tido como contrário ao princí-<br />
208<br />
Gênero, mulheres e feminismos
pio de igualdade estabelecido na Constituição Venezuelana. Essa<br />
decisão foi ratificada, posteriormente, pelo Tribunal Supremo de<br />
Justiça. Em 1999, a nova Constituição, a Bolivariana, estabelece,<br />
pela primeira vez, no texto principal do país, de forma explícita<br />
e direta, o princípio da igualdade de direitos entre os cidadãos,<br />
estabelecendo, de forma clara, a diferença entre a “igualdade formal”<br />
e a “igualdade real e efetiva”. 5 A nova Constituição confere<br />
também aos Poderes Públicos capacidade para adotar ações positivas,<br />
quando sejam necessárias, para garantir a igualdade Real e<br />
Efetiva. (PRINCE, 2008, p. 5)<br />
Posteriormente, em 2005, por forte pressão do movimento<br />
feminista, usando, em especial, o postulado da igualdade contido<br />
na Constituição Bolivariana, o Conselho Nacional Eleitoral aprovou<br />
uma nova resolução estabelecendo a paridade e a alternância<br />
nas listas partidárias aos cargos de eleição popular. Em função da<br />
sua fragilidade e da inexistência de um sistema mais forte de controle,<br />
essa lei tem tido pouca eficácia na ampliação da participação<br />
política das venezuelanas.<br />
O caso brasileiro<br />
Apesar de constitucionalmente terem conquistado a cidadania<br />
política, desde 1934, e de hoje representarem a maioria absoluta<br />
do eleitorado, as mulheres brasileiras não têm conseguido se<br />
5 A Constituição Bolivariana da Venezuela em seu Artículo 21, estabelece que “Todas as pessoas<br />
são iguais perante a lei, e em conseqüência: 1. Não serão permitidas discriminações baseadas<br />
na raça, sexo, crença, condição social ou aquelas que, em geral, têm como objetivo ou resultado<br />
anular ou menosprezar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade, dos direitos<br />
humanos e liberdades de toda pessoa; 2. A lei garantirá as condições legais e administrativas<br />
para que a igualdade perante a lei seja real e eficaz; adotará medidas positivas em favor de<br />
pessoas ou grupos que possam ser discriminados, marginalizados ou vulneráveis, protegerá<br />
especialmente aquelas pessoas que por qualquer uma das condições antes de especificados,<br />
se encontram em circunstancia de aparente fraqueza e punirá eventuais abusos ou maus tratos<br />
a que contra elas se cometam. Constitución Bolivariana de Venezuela. Base de Datos Políticos<br />
de las Américas. Disponível em: . Acesso em: 2 jan. 2009.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 209
constituir cidadãs de fato, exercendo ativamente a prerrogativa<br />
de votar, mas, também, de serem votadas. As mulheres representam<br />
51% do eleitorado nacional, mas não chegam a ocupar 10%<br />
dos cargos eletivos do país. Segundo dados da União Inter-Parlamentar,<br />
o Brasil tem um dos registros mais baixos, com 8,8% de<br />
mulheres. Essa posição está abaixo da média mundial e coloca o<br />
Brasil na centésima terceira posição, em um total de 135 países na<br />
classificação mundial. (BALLINGTON, 2009, p. 173)<br />
A Lei n° 9.100, de 1995, conhecida como Lei de Cotas, que estabeleceu<br />
um mínimo de 20% das candidaturas partidárias reservadas<br />
para as mulheres, aplicada nas eleições municipais de 1996,<br />
não foi suficiente para alterar o quadro de exclusão política das<br />
mulheres brasileiras. Em 1997, foi aprovada a Lei n° 9.504 que<br />
ampliou para 25% a “obrigatoriedade” de candidaturas femininas,<br />
nas eleições de 1998, e para 30%, na seguinte. Assim, hoje,<br />
a lei “garante” 30% de candidaturas femininas no total de candidatos<br />
apresentados pelos partidos para os cargos nas eleições<br />
proporcionais − vereadores(as) e deputados(as) estaduais e federais.<br />
Anteriormente, o Brasil já tinha vivenciado outras experiências<br />
de cotas políticas. Em 1991, o Partido dos Trabalhadores (PT)<br />
aprovou uma cota de, no mínimo, 30% para cada um dos sexos,<br />
para os seus cargos de direção. Em 1993, a Central Única dos Trabalhadores<br />
(CUT) adotou a mesma política estabelecendo como<br />
norma o mínimo de 30% e o máximo de 70% de candidaturas para<br />
qualquer sexo.<br />
Apesar das cotas, o aumento da participação feminina tem<br />
sido irrisória, não tendo alterado sequer o índice de “crescimento”,<br />
nos últimos anos, quando não houve decréscimo. Na Câmara<br />
Federal, a participação feminina passou de 5%, em 1994, para<br />
9%, em 2006, permanecendo o mesmo na eleição de outubro último.<br />
As senadoras passaram de 8%, em 1994, para 12,3, em 2002,<br />
apresentando o mesmo percentual em 2006 e agora, em 2010,<br />
210<br />
Gênero, mulheres e feminismos
egistrou-se um pequeno aumento para 14%. Nas Assembleias<br />
Legislativas, as mulheres representavam 10%, em 1998, em 2002,<br />
passaram para 12,4% e, em 2006, houve uma redução para 11,6%;<br />
no último ano, passaram para 12,93, também um aumento insignificante.<br />
Já nas Câmaras Municipais, onde a presença feminina,<br />
tradicionalmente, é mais significativa, o número passou de 7%,<br />
em 1996, para 11,6%, em 2002, e 12,6%, em 2006.<br />
Segundo análises trazidas por Clara Araújo, a Lei de Cotas brasileiras<br />
define o mínimo de 30%, por sexo, no total da lista, porém,<br />
ao estipular que as listas podem ter até 150% de candidaturas<br />
em relação ao número de cadeiras a serem preenchidas, as cotas<br />
são sobre o 150%, isto é, sobre a lista potencial e não sobre a efetiva.<br />
Outra questão é que o não preenchimento não implica em<br />
penalidade; não há sanção (2009, p. 107).<br />
Esses dados apontam para a fragilidade da Lei de Cotas brasileira,<br />
na medida em que não esta contempla qualquer mecanismo<br />
que garanta sua obrigatoriedade por parte dos partidos políticos,<br />
visto que não existe qualquer tipo de penalidade para aqueles que<br />
não garantam os 30% de mulheres.<br />
Durante o processo de discussão da reforma política, no Congresso<br />
Nacional, iniciado logo após a primeira eleição do Governo<br />
Lula, o movimento feminista descortinou a possibilidade de aprimorar<br />
a legislação eleitoral no sentido de criar mecanismos mais<br />
eficientes que garantissem a ampliação do número de mulheres<br />
nas estruturas formais do poder. Ao final do processo, bem poucas<br />
mudanças foram incorporadas ao relatório final da reforma.<br />
As mulheres reivindicavam que fossem destinados 30% do<br />
fundo partidário para a educação política de mulheres, mas, na<br />
negociação, estabeleceu-se apenas 20% dos recursos destinados<br />
aos partidos políticos. A questão do tempo na propaganda partidária<br />
gratuita em TV e rádio para o tema da participação política<br />
das mulheres ficou vaga, não tendo sido definido um percentual.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 211
Outras demandas, como a alternância de sexo nas listas preordenadas<br />
e o financiamento público de campanha sequer foram contemplados.<br />
Nem mesmo uma legislação mais firme que, de fato,<br />
garantisse a aplicabilidade da Lei de Cotas foi aprovada. (COSTA,<br />
2008c)<br />
Essa dificuldade enfrentada pela bancada feminina para negociar<br />
e aprovar parte das suas iniciativas reflete exatamente o<br />
significado da força política das mulheres no Congresso Nacional<br />
brasileiro, em que não chegam a representar 10% do total dos<br />
parlamentares que constituem as duas Câmaras. A ausência das<br />
mulheres nas mesas de negociações, a dificuldade de atuarem<br />
como um bloco de gênero, submersas como vivem em um mar<br />
de interesses partidários e patriarcais, torna difícil imaginá-las<br />
conseguindo conduzir processos de mudanças ou, mesmo, de<br />
reformas.<br />
Na verdade, vive-se um paradoxo entre a força política de<br />
mobilização do movimento feminista de mulheres no Brasil e sua<br />
representação, de fato, nas instâncias de deliberação e implementação<br />
de políticas. A ausência feminina das estruturas de poder no<br />
país reflete, também, em sua possibilidade de intervenção, em sua<br />
capacidade de transformação democrática, em sua dificuldade<br />
de se constituir enquanto sujeito político demandante. (COSTA,<br />
2008c) Aliás, esse é um quadro que se repete em vários países da<br />
América Latina, como já vimos aqui.<br />
As cotas como um caminho para a paridade<br />
Uma análise mais superficial dos resultados das políticas de<br />
cotas na América Latina pode levar à falsa visão de que essa experiência<br />
não tem sido capaz de alterar significativamente o grau<br />
de participação feminina nas estruturas de poder, na medida em<br />
que, exceto na Argentina e Costa Rica, os índices de presença<br />
212<br />
Gênero, mulheres e feminismos
feminina seguem irrisórios. Nos países que implantaram algum<br />
tipo de cotas para o legislativo, anteriormente, a média de participação<br />
feminina ficava em torno dos 8%; hoje, depois do estabelecimento<br />
das cotas, a média está em torno de 13%. Como podemos<br />
ver, até então, a alteração vem sendo muito pequena.<br />
Porém, sabe-se que não é suficiente estabelecer um sistema<br />
de cotas, que as leis por si só não asseguram a ampliação da participação<br />
política das mulheres, que outras variáveis interferem<br />
sobre a possibilidade das mulheres serem eleitas, fatores associados<br />
à articulação de processos históricos, matrizes culturais etc.<br />
Segundo Drude Dahlerup (2003).<br />
However, research has shown that the quota system requires<br />
that women’s organizations develop programs of capacity<br />
building for the nominated and elected women. If the quotas<br />
for women shall lead for empowerment of women, the elected<br />
of women must get for women capacity an possibilities to perform<br />
their new task, in especially strong patriarchal societies.<br />
At the same time, quotas properly implement, might contribute<br />
to a more gender balanced society.<br />
Diversos estudos têm demonstrado que o sucesso ou fracasso<br />
do sistema de cotas está diretamente relacionado às características<br />
do sistema eleitoral, à exatidão das normas que sustentam<br />
este tipo de medidas e à ativa participação da sociedade não só na<br />
implementação e acompanhamento, mas, em especial, no monitoramento<br />
destas normas, da modalidade aplicada e do conjunto<br />
de sanções disponibilizadas para sua implementação. (VENEZIA-<br />
NI, 2006, p. 25)<br />
Argentina, Bolívia, Costa Rica, República Dominicana, Paraguai<br />
e Venezuela utilizam o sistema de listas de candidatos fechadas,<br />
isto é, um número de candidatos organizados a partir de uma<br />
ordem de prioridade. O eleitor vota na lista em sua totalidade,<br />
sem possibilidade de alterar a ordem. Se a Lei de Cotas define a<br />
Gênero, mulheres e feminismos 213
posição que as mulheres devem estar nessa lista, a possibilidade<br />
de sucesso é garantida, caso contrário, como ocorre na Costa Rica,<br />
República Dominicana e Venezuela, onde a legislação em vigor<br />
não diz nada a respeito do lugar que as mulheres devem ocupar<br />
na lista, os partidos tendem a situar as mulheres no final da lista,<br />
diminuindo, assim, as possibilidades de serem eleitas.<br />
Segundo Mark Bou (2000, p. 8), para que um sistema de listas<br />
fechadas seja efetivo, as leis relativas ao sistema de cotas devem<br />
incluir a determinação da posição a ser ocupada pelas mulheres na<br />
lista (mandato de posição) e estabelecer mecanismos de controle e<br />
de obrigatoriedade. Esse é o caso de Argentina, Bolívia e Paraguai,<br />
países nos quais a lei determina que se o partido não cumprir a<br />
cota não pode fazer o registro dos seus candidatos.<br />
No México, Equador, Peru, Brasil e Panamá, a legislação não<br />
especifica a posição que as mulheres devem estar na lista, bem<br />
como não estabelece mecanismos de controle. Esse tipo de política<br />
de cotas tende a fracassar no seu objetivo de ampliar a presença<br />
feminina. Se não há uma determinação expressa para a colocação<br />
das candidaturas femininas nas listas, o objetivo da cota tende a<br />
se perder diante das direções partidárias, geralmente, em mãos<br />
masculinas.<br />
Algumas conclusões<br />
A partir da experiência do sistema de cotas na América Latina<br />
podemos tirar algumas lições que podem contribuir, de forma<br />
efetiva, para a equidade das mulheres. As primeiras dessas<br />
lições são:<br />
• para que o sistema de cotas funcione em condições de atender<br />
seus objetivos é necessário que apresente um conjunto<br />
de normas e procedimentos claros, precisos e de acesso para<br />
todas;<br />
214<br />
Gênero, mulheres e feminismos
• como forma de garantir seu cumprimento, é necessário que<br />
a política contemple uma série de mecanismos legais de punição<br />
e restrições para aqueles que não atendam às determinações<br />
da lei;<br />
• o sistema eleitoral é um mecanismo fundamental no sucesso<br />
da cota, assim, sistemas amplos, bem delimitados possibilitam<br />
a ascensão;<br />
• os sistemas proporcionais tendem a promover, de uma forma<br />
evidente, a ascensão política das mulheres, do mesmo<br />
modo que os sistemas com listas fechadas e com definição de<br />
posições para as mulheres (alternância);<br />
• o sistema de cota, por si só, não cria as condições de empoderamento<br />
das mulheres. Ele deve vir acompanhado de políticas<br />
públicas de promoção da equidade que possam criar<br />
as condições para transformações mais radicais na estrutura<br />
patriarcal da sociedade na perspectiva da ampliação da<br />
democracia.<br />
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Gênero, mulheres e feminismos 219
AS COTAS POR SEXO NO LEGISLATIVO<br />
NA VISÃO DE PARLAMENTARES<br />
ESTADUAIS NORDESTINOS<br />
(mandatos 2003/2007 e 2007/2011)<br />
Sonia Wright<br />
Por que há tão poucas mulheres nas instituições políticas<br />
formais? Quais as dificuldades que diferentes mulheres enfrentam<br />
para fazerem parte de partidos, serem candidatas, se elegerem e<br />
exercerem mandatos? Como os sistemas eleitorais e partidários<br />
podem favorecer a representação feminina? Como tem sido a experiência<br />
de cotas? Haverá uma especificidade nordestina quanto<br />
a essa questão? Quais as propostas que estão sendo discutidas para<br />
superar estes obstáculos? Para contribuir para a reflexão sobre essas<br />
questões, este estudo enfoca a opinião 1 de parlamentares estaduais<br />
nordestinas(os), nas legislaturas de 2003/2007 e 2007/2011,<br />
sobre as cotas por sexo para o Legislativo. Para fundamentar,<br />
através de evidências empíricas, os entraves à implementação da<br />
1 Para Iris Young (2000), “opiniões são princípios, valores e prioridades das pessoas que<br />
condicionam sua escolha das políticas a serem efetivadas. Representar opiniões, como<br />
interesses, geralmente implica promover determinados resultados no processo de tomada de<br />
decisão”.
política de cotas, utiliza-se dados da pesquisa “A questão da mulher<br />
na visão parlamentar no Nordeste do Brasil”, realizada pela<br />
Rede Mulher & Democracia (M&D). 2<br />
Enquanto a pesquisa M&D teve um objetivo mais panorâmico<br />
e censitário, este trabalho se propõe a verificar se o pensamento<br />
das(os) parlamentares sobre as cotas varia de acordo com o perfil<br />
ideológico do seu bloco partidário de pertencimento. Nesse<br />
sentido, optou-se por agregar os partidos, conforme classificação<br />
de Barry Ames e Vera Pereira (2003, p. 265): 3 direita − Partido<br />
da Frente Liberal/Democratas (PFL/Dem), Partido Trabalhista<br />
Brasileiro (PTB) e Partido Progressista (PP); centro − Partido do<br />
Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e Partido da Social<br />
Democracia Brasileira (PSDB); e esquerda − Partido dos Trabalhadores<br />
(PT), Partido Socialista Brasileiro (PSB) e Partido Democrático<br />
Trabalhista (PDT). 4 Procura-se, também, verificar a possível<br />
implicação do número de mandatos exercidos pela(o) representante<br />
em seu posicionamento parlamentar referente às cotas.<br />
2 Rede constituída por organizações não-governamentais (ONGs) feministas e de mulheres,<br />
movimentos de mulheres, núcleos da Academia e instâncias governamentais de políticas para<br />
as mulheres que têm por objetivo favorecer a participação e a representação feminina nos<br />
Poderes da República, tendo como área de atuação a Região Nordeste. As atuais participantes<br />
são as seguintes organizações: Bahia (BA) − Secretaria de Políticas para as Mulheres de Lauro<br />
de Freitas, Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher da Universidade Federal da Bahia<br />
(Neim/UFBA); Ceará (CE) − Instituto Negra do Ceará, Elo Feminista/CE, e Núcleo de Estudos<br />
e Pesquisas sobre Gênero, Idade e Família (NEGIF)/UFC; Maranhão (MA) − Grupo de Mulheres<br />
Negras Mãe Andresa, Grupo de Mulheres Negras Maria Firmina e Grupo de Mulheres da Ilha de<br />
São Luís; Pernambuco (PE) − Associação das Mulheres de Nazaré da Mata (Amunam); Piauí<br />
(PI) − Gênero, Mulher, Desenvolvimento e Ação para a Cidadania (Gemdac); Rio Grande do Norte<br />
(RN) − Grupo de Ação da Mulher (Gam); Sergipe (SE) − Organização Cupim. A Secretaria Executiva<br />
é exercida pelo Centro das Mulheres do Cabo (CMC), que, juntamente com a Casa da Mulher do<br />
Nordeste (CMN), Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste (MMTR/NE) e Fundação<br />
Joaquim Nabuco (Fundaj) – compõem a Coordenação Colegiada da Rede.<br />
3 Existem outras classificações, como a de Scott Mainwaring e Timothy Scully (1995), Fernando<br />
Limongi e Argelina Figueiredo (1998), Jairo Nicolau (2000), André Singer (2000), Sylvio Costa e<br />
Antonio Augusto Queiroz (2007) e dos Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar<br />
(Diap) e Instituto de Estudos Sócio-Econômicos (Inesc) (2009), todas feitas a partir da<br />
composição da Câmara Federal. A agregação de Ames e Pereira (2003) é a que mais se aproxima<br />
do quadro encontrado na pesquisa M&D, com parlamentares estaduais do Nordeste.<br />
4 Foi retirado o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), da configuração ideológica de Ames, já que<br />
esse partido, assim como outros − tanto de esquerda, quanto de centro e direita − com menos<br />
de 3% de representação na pesquisa M&D, foram agrupados em Outros.<br />
222<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Além desses aspectos (partidário e de quantidade de mandatos),<br />
busca-se a diferenciação por gênero, para se compreender se esse<br />
fator interfere no pensamento das(os) legisladoras(es) sobre as cotas.<br />
Pretende-se, assim, contribuir para o melhor conhecimento<br />
da representação política das mulheres no Nordeste com o intuito<br />
de que esse conhecimento seja útil para a ação do movimento<br />
feminista e de mulheres na Região.<br />
A sub-representação dos estudos de gênero<br />
nas ciências sociais<br />
Um dos motivos centrais que embasa o estudo é a sub-representação<br />
dos estudos de gênero nas Ciências Sociais, principalmente<br />
na Ciência Política. Essa investigação se tornou necessária<br />
em função da existência de poucos estudos realizados com parlamentares<br />
em uma perspectiva de gênero. Ainda que, desde a década<br />
de 1970, existam “estudos sobre a mulher”, ou seja, sobre<br />
a sua situação nas mais variadas esferas da vida, especificamente<br />
na área de Ciência Política, a produção de conhecimento em uma<br />
perspectiva de gênero é bem menor. Segundo Maria Luiza Heilborn<br />
e Bila Sorj (1999), somente em 1984 foi publicado um artigo<br />
de Mariza Corrêa com um balanço sobre a literatura referente a<br />
Mulher e Política na Revista Brasileira de Informação Bibliográfica<br />
em Ciências Sociais (Bib). Sonia Miguel (2000), por sua<br />
vez, faz referência ao Grupo de Trabalho (GT) “Mulher e Política”<br />
da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais<br />
(Anpocs), coordenado, em 1987, por Carmen Barroso.<br />
A título de exemplo, embora, desde seu início, GTs sobre mulher<br />
ou gênero tenham estado presentes na Anpocs (HEILBORN;<br />
SORJ, 1999), verificou-se, no Encontro Anual de 2008, que, de 41<br />
GTs, apenas um (0,2%) tinha como temática central as relações<br />
de gênero; nenhum GT enfocou, especificamente, as mulheres na<br />
Gênero, mulheres e feminismos 223
política; e nos GTs cujas temáticas são consideradas como o “núcleo<br />
duro” da política − Controles Democráticos e Instituições Políticas;<br />
Cultura, Economia e Política; Estudos Legislativos; e Teoria<br />
Política: para além da democracia liberal − não foi apresentado um<br />
trabalho sequer com o recorte de gênero. Nos GTs “Comunicação<br />
Política e Eleições” e “Elites e Instituições Políticas”, também<br />
componentes do “núcleo duro” da Ciência Política, foi apresentado<br />
apenas um trabalho por GT, em doze sessões e cinco painéis, ou<br />
seja, 5% da atividade de cada um deles.<br />
Em termos de presença nas coordenações dos GTs acima nomeados,<br />
um terço é constituído por mulheres. Portanto, embora<br />
uma cota “voluntária” de 30% de mulheres em postos de coordenação<br />
seja alcançada, ela não se reflete no quantitativo da produção<br />
acadêmica apresentada com a inclusão da perspectiva de<br />
gênero. Conclui-se que, também transversalmente, a temática de<br />
gênero está sub-representada na Ciência Política. Segundo Sonia<br />
Miguel (2000), houve a institucionalização dos estudos de gênero,<br />
mas não a sua transversalização nas especialidades das Ciências<br />
Sociais.<br />
Na Região Nordeste, destaca-se, na produção científica sobre<br />
mulheres no poder, o trabalho de Ana Alice Alcântara Costa<br />
(1998), que integra o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a<br />
Mulher (Neim), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), criado<br />
ainda na década de 1980. Tomando por base o Neim − que possui<br />
uma dentre suas três linhas de pesquisa dedicada ao tema “Gênero,<br />
Poder e Políticas Públicas” – percebe-se que os estudos sobre<br />
a inserção das mulheres na política institucional estão crescendo<br />
em organizações acadêmicas, embora ainda sejam minoritários,<br />
principalmente aqueles que abordam a esfera regional.<br />
Registre-se, ainda, que, somente em 2007, na II Conferência<br />
Nacional de Políticas para as Mulheres, a sua participação nos espaços<br />
de poder e decisão foi amplamente debatida − tanto pelo<br />
224<br />
Gênero, mulheres e feminismos
movimento de mulheres e feminista, como por órgãos governamentais<br />
−, resultando em um capítulo específico do II Plano Nacional<br />
de Políticas para as Mulheres (BRASIL, 2008), inexistente<br />
no I PNPM.<br />
Mesmo assim, em estudo recente, Marlise Matos e Danuza<br />
Marques (2010) verificaram que a quantidade de estudos sobre a<br />
participação das mulheres nos movimentos sociais, na política do<br />
cotidiano, é muito maior que nos espaços da política formal. Segundo<br />
essas autoras, de 2000 a 2008, enquanto 122 (31,7%) dissertações<br />
e teses sobre Gênero, Mulheres e Política foram sobre<br />
Participação e Ativismo, apenas 31 (8,1%) foram sobre Representação<br />
Política. Esses dados demonstram que, mesmo entre a<br />
produção científica sobre as relações de gênero, a dimensão da<br />
participação das mulheres nas esferas de poder e decisão é sub-representada.<br />
Portanto, diante da necessidade de desenvolver mais<br />
estudos sobre participação e representação das mulheres na política<br />
formal, o presente trabalho busca dar visibilidade às opiniões<br />
das(os) integrantes das assembleias legislativas nordestinas sobre<br />
as cotas por sexo para eleições parlamentares proporcionais.<br />
No enfoque metodológico adotado, as mulheres são ouvidas<br />
e são igualmente autoras da pesquisa. Ao mesmo tempo, o olhar<br />
masculino sobre as cotas por sexo no Legislativo é contemplado.<br />
Outras particularidades dos procedimentos adotados são:<br />
(i) utiliza-se a pesquisa censitária de opinião, através de entrevistas<br />
com parlamentares mulheres e homens e não apenas uma<br />
amostra da população pesquisada (deputadas(os) estaduais do<br />
Nordeste); (ii) a cobertura de toda uma Região e não apenas de<br />
um ou outro estado; (iii) a aplicação do questionário não só com<br />
parlamentares mulheres, mas também com os homens; (iv) as diferenças<br />
entre os sexos são analisadas, bem como clivagens partidárias<br />
e de quantidade de mandatos exercidos; (v) as perguntas<br />
respondidas pelas(os) representantes estaduais são relacionadas<br />
Gênero, mulheres e feminismos 225
à legislação federal sobre cotas de 1997; (vi) a coleta de dados foi<br />
realizada em alguns estados, na legislatura 2003-2007, e em outros<br />
durante a legislatura 2007-2011, abrangendo, portanto, mandatos<br />
exercidos desde 2003 até 2007, quando foi finalizada essa etapa<br />
nos últimos estados; (vii) as questões têm um caráter educativo,<br />
já que, antes de solicitar a opinião da(o) entrevistada(o) esta(e) era<br />
informada(o) sobre a legislação em debate; e (viii) a realização da<br />
pesquisa, em todas as suas fases, por organizações integrantes da<br />
Rede Mulher & Democracia.<br />
Esta pesquisa cobriu as assembleias legislativas de nove estados<br />
– Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco,<br />
Alagoas, Sergipe e Bahia. O universo total de deputadas(os)<br />
estaduais da Região Nordeste é de 341 representantes, sendo que,<br />
deste total, responderam ao questionário, na forma de entrevista<br />
presencial, 262 parlamentares, ou seja, 77%, cerca de três quartos<br />
(3/4) do total. (Tabela 1).<br />
Tabela 1 – Relação entre o universo e o número de parlamentares entrevistada(o)s,<br />
segundo os Estados − Região Nordeste − Brasil, 2003-2011<br />
ESTADOS<br />
ENTREVISTADA(O)s<br />
Universo N° %<br />
Maranhão 42 32 76<br />
Piauí 30 29 96<br />
Ceará 46 38 82<br />
Rio Grande do Norte 24 20 83<br />
Paraíba 36 26 72<br />
Pernambuco 49 36 73<br />
Alagoas 27 17 63<br />
Sergipe 24 16 66<br />
Bahia 63 48 76<br />
Total 341 262 77<br />
Fonte: Rede Mulher & Democracia (M&D)<br />
O quarto restante de parlamentares não entrevistados(as)<br />
se recusou a colaborar com a pesquisa, afirmando não ter tem-<br />
226<br />
Gênero, mulheres e feminismos
po para responder ao questionário ou discordar do trabalho das<br />
feministas, não se dispondo a colaborar com a investigação. Ou<br />
seja, o grupo de 262 deputadas e deputados entrevistadas(os) foi<br />
formado somente por aquelas(es) parlamentares interessadas(os)<br />
e disponíveis para participar pessoalmente da pesquisa. Foram<br />
estendidas a todo o conjunto deste grupo as respostas, com reservas,<br />
pois algumas respostas podem ter seguido uma estratégia<br />
retórica (ARAÚJO, 2005), ou seja, discursivamente apoiando essa<br />
demanda das mulheres, mas sem compromisso efetivo com a sua<br />
implementação. Registra-se, ainda, que os resultados da pesquisa<br />
já refletem, de certo modo, uma base mínima de reconhecimento<br />
do movimento feminista e de mulheres, que pode ter um impacto<br />
nas respostas, já que não se conhece o que pensa a(o) parlamentar<br />
que não concorda com o movimento.<br />
Tabela 2 − Universo e número de entrevistadas(os), por sexo, segundo os Estados −<br />
Região Nordeste − Brasil, 2003-2011<br />
ESTADOS<br />
UNIVERSO<br />
ENTREVISTADAS(OS)<br />
N° % N° %<br />
Fem. Masc. Fem. Masc. Fem. Masc. Fem. Masc.<br />
Maranhão 8 34 19 81 7 25 22 78<br />
Piauí1 3 28 7 93 3 26 10 90<br />
Ceará2 3 43 4 96 3 36 8 92<br />
Rio Grande do Norte 4 20 17 83 2 19 10 90<br />
Paraíba 4 32 11 89 4 22 12 88<br />
Pernambuco 8 41 16 84 8 28 22 78<br />
Alagoas 3 24 11 89 2 15 12 88<br />
Sergipe 6 18 25 75 3 13 19 81<br />
Bahia 8 55 13 87 6 40 13 87<br />
TOTAL 46 295 11 89 38 224 15 85<br />
1<br />
Foram eleitas duas deputadas estaduais, sendo que uma suplente substituiu um parlamentar de<br />
licença.<br />
2<br />
Foram eleitas, em 2006, duas deputadas estaduais: Rachel Marques, do PT, e Lívia Arruda, do<br />
PMDB. A terceira deputada, Ana Paula Cruz, do PMDB, era a primeira suplente. Com a convocação<br />
de cinco deputados para compor o secretariado do governador Cid Gomes, ela volta a assumir uma<br />
cadeira legislativa.<br />
Fonte: M&D<br />
Gênero, mulheres e feminismos 227
Analisando o número de entrevistadas(os) por sexo, na Tabela 2,<br />
percebe-se que há uma variação de 6% entre mulheres e homens<br />
parlamentares entrevistadas(os): 82% das deputadas e 76% dos<br />
deputados. Essa diferença para mais no número das entrevistadas<br />
pode significar que, pelo fato de se tratar de reivindicação a elas<br />
relacionada, sejam essas mais favoráveis a essa demanda feminina,<br />
contribuindo para um resultado mais favorável às cotas, quando<br />
olhados de forma agregada. Ressalte-se que, nos estados do Piauí,<br />
Ceará, Paraíba e Pernambuco, 100% das deputadas participaram<br />
da pesquisa.<br />
A pesquisa foi dirigida a parlamentares estaduais e versa sobre<br />
projetos de lei e leis federais, ou seja, matéria sobre a qual eles(as)<br />
não têm nenhum poder de aprovação e/ou rejeição. O resultado da<br />
entrevista, por um lado, revela o posicionamento dessas(es) parlamentares<br />
e sua proximidade com os movimentos de mulheres,<br />
apesar de eles9as) não terem poder legal para a apreciação dessas<br />
matérias. 5 Por outro lado, esse distanciamento permite que suas<br />
respostas possam ser mais independentes e favoráveis aos direitos<br />
das mulheres do que a verificada em sua atuação parlamentar.<br />
Além dos dados de identificação da(o) parlamentar, as perguntas<br />
se referiam ao conhecimento sobre a Rede Mulher & Democracia,<br />
o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres e a Plataforma e<br />
Plano de Ação da Conferência de Beijing. Outros assuntos abordados<br />
na perspectiva de gênero foram: trabalho, direitos civis, saúde<br />
sexual e reprodutiva, violência contra a mulher, poder e representação<br />
política, recursos orçamentários e atividades partidárias.<br />
Quanto à dimensão temporal, a primeira fase da pesquisa foi<br />
realizada no primeiro semestre de 2005, envolvendo quatro estados<br />
(eleição 2002), e a segunda fase, no primeiro semestre de<br />
5 Não há impedimento legal de se “estadualizar” leis federais. No entanto, em levantamento<br />
realizado pelo Cfemea (RODRIGUES; CORTÊS, 2006), não há nenhuma iniciativa legislativa de<br />
cunho estadual no sentido de criar cotas por sexo para eleições parlamentares no Legislativo.<br />
228<br />
Gênero, mulheres e feminismos
2007, envolvendo os outros cinco estados (eleição 2006), ou seja,<br />
envolvendo legislaturas diferentes. Dado esse fato, o tratamento<br />
dos dados foi realizado em duas etapas. As assembleias dos estados<br />
que integraram a segunda fase da pesquisa, cujos parlamentares<br />
foram eleitos em 2006, tiveram mais tempo e oportunidade<br />
para entrar em contato com as demandas dos movimentos feministas<br />
e de mulheres dado que a institucionalidade de gênero vem<br />
cumulativamente apresentando avanços.<br />
A pesquisa foi implementada através da articulação de várias<br />
equipes de investigação, uma para cada estado, trabalhando sob<br />
uma coordenação geral e um marco teórico e metodológico comum,<br />
buscando coletar o mesmo tipo de informação nos diversos<br />
núcleos estaduais. As equipes estaduais foram montadas pelas<br />
organizações parceiras da Rede Mulher & Democracia (M&D), as<br />
quais já desenvolvem, em seus estados, um trabalho compartilhado,<br />
desde o início da Rede.<br />
A técnica de coleta de dados utilizada foi o questionário fechado<br />
e pré-codificado. O processamento eletrônico dos dados se<br />
deu através do tratamento dos dados dos nove estados nordestinos,<br />
inicialmente através do número e percentagens das respostas<br />
a cada questão e, posteriormente, através do cruzamento de dados.<br />
Esses dados subsidiam a análise da opinião parlamentar sobre<br />
as cotas e a inclusão das mulheres nos partidos.<br />
A cota como estratégia de inclusão das mulheres<br />
na política formal<br />
Segundo Branca Moreira Alves (1980), as primeiras mulheres<br />
a serem eleitas, a partir de 1928, eram principalmente feministas<br />
vinculadas à Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF).<br />
Da década de 1950 em diante, as eleitas ou eram de famílias tradicionais<br />
na política ou profissionais vinculadas aos movimentos<br />
Gênero, mulheres e feminismos 229
sociais (TABAK, 2002). No entanto, desde os primórdios da eleição<br />
de mulheres no Brasil, observa-se uma lógica inercial do recrutamento<br />
de candidatas. Diante dessa realidade, como aumentar a<br />
representação feminina?<br />
Uma das estratégias utilizadas para atingir a equidade de gênero<br />
na política formal é a redistribuição do capital político, tanto<br />
delegado como convertido. A política de assimilação, a estratégia<br />
das regras (KARAM; LOVENDUSKY, 2005, p. 187-235), a retórica<br />
(NORRIS, 2004a, p. 190), a de oportunidades iguais (MATLAND,<br />
2004), a de ideias (PHILLIPS, 1995; MIGUEL, L. F. 2000), a maternal<br />
(MIGUEL, 2001), a de presença (PHILLIPS, 1995) e as ações<br />
afirmativas (ARAÚJO, 1992), com destaque para as cotas no Legislativo,<br />
são outras táticas que vêm sendo utilizadas para a inclusão<br />
das mulheres na política.<br />
As cotas são consideradas mecanismos temporários e simbólicos,<br />
que visam educar a sociedade para a igualdade e a inclusão de<br />
gênero (ARAÚJO; GARCIA, 2006) e são insuficientes por si só para<br />
remover barreiras estruturais à inclusão feminina. Por outro lado,<br />
são mecanismos institucionais que permitem que se chegue a um<br />
equilíbrio de gênero na política, de forma mais rápida, contribuindo<br />
para os processos do empoderamento das mulheres bem como<br />
dando legitimidade a outras demandas femininas. No entanto, seus<br />
efeitos não são imediatos, mas processuais e cumulativos.<br />
Cotas podem ainda aumentar a consciência sobre a exclusão<br />
de outros grupos e contribuir para a correção de sua sub-representação.<br />
Elas são, efetivamente, um passo inicial na conquista da<br />
paridade de gênero. (DALEHRUP, 2006) Na concepção de Maria<br />
Mary Ferreira (2004, p. 22), as cotas representam um elemento<br />
que modifica a composição dos órgãos diretivos e trazem novas<br />
ideias para o debate, além de propiciar uma nova forma de aprendizagem<br />
do exercício do poder. Luis Felipe Miguel (2003) considera<br />
que as cotas são necessárias, por conta da diferença estrutural que<br />
230<br />
Gênero, mulheres e feminismos
se traduz na desigualdade da capacidade de intervenção na esfera<br />
pública. No entanto, sem mudanças estruturais na sociedade, a<br />
inclusão das mulheres nas instituições políticas não consegue alterar<br />
as relações de gênero. (DALEHRUP, 2006)<br />
Registra-se que há diferentes sistemas de cotas: reserva de assentos<br />
nos parlamentos, iniciativas voluntárias partidárias, legislação<br />
nacional de reserva de vagas partidárias. (ARAÚJO, 2001a;<br />
MATEO-DIAZ, 2006, p. 81) No Brasil, não se adota a reserva de<br />
assentos e sim cotas voluntárias e cotas legais, presentes na legislação<br />
eleitoral. As cotas tendem a ser melhor introduzidas em<br />
sistemas proporcionais, com listas fechadas, alternância de sexo<br />
e múltiplos partidos, sendo que os novos e de esquerda são mais<br />
propícios a absorver mulheres. (HTUN, 2001; ARAÚJO, 2001b)<br />
O acesso a fundos públicos e ao tempo gratuito de propaganda<br />
eleitoral também são aspectos que criam melhores condições<br />
para resultados que se aproximem mais da paridade desejada.<br />
A Lei n° 12.034/2009, que orientou as eleições de 2010, determinou<br />
o preenchimento, e não só a reserva, de, no mínimo, 30%<br />
e, no máximo, 70% das candidaturas por sexo, nas listas apresentadas<br />
por partidos ou coligações para as eleições proporcionais.<br />
(CFEMEA, 2010) Da mesma forma, houve um avanço para<br />
as mulheres na distribuição do tempo de propaganda partidária<br />
(10%) e na destinação dos recursos do fundo partidário (5%). No<br />
entanto, essa melhora na legislação eleitoral não repercutiu como<br />
prática nos partidos, mais uma vez predominando a estratégia retórica<br />
dessas instituições que fazem o recrutamento de aspirantes<br />
ao parlamento.<br />
Essa interação com o sistema eleitoral e partidário revela alguns<br />
limites da cota, para além da fragilidade da própria lei. Outra crítica<br />
é que elas promovem uma reacomodação dentro do sistema político<br />
vigente, obscurecendo a necessidade de transformações estruturais<br />
mais profundas. (VARIKAS, 1996 apud MIGUEL, 2003)<br />
Gênero, mulheres e feminismos 231
Em nível estadual e regional, assinala-se que as assembleias<br />
legislativas têm criado, como estratégia de fortalecimento das deputadas,<br />
comissões de mulheres suprapartidárias, como a Bancada<br />
Feminina Federal. No Nordeste, elas existem na Bahia, Paraíba,<br />
Piauí e Pernambuco. 6 Em Alagoas, Maranhão, Sergipe, Ceará e Rio<br />
Grande do Norte, os órgãos legislativos estaduais tratam das questões<br />
relativas às mulheres em Comissões de Direitos Humanos e<br />
Cidadania, ou seja, as mulheres ainda não conquistaram um espaço<br />
próprio dentro destas assembleias estaduais, sendo tratadas<br />
em conjunto com indígenas, pessoas negras e idosas e crianças e<br />
adolescentes.<br />
A opinião parlamentar sobre as cotas por sexo<br />
no legislativo<br />
Neste trabalho, foram escolhidas, para a análise, as perguntas<br />
e respostas da pesquisa mencionada que, de mais perto, questionam<br />
a distribuição do poder institucional em uma perspectiva de<br />
gênero, ou seja, a manutenção das cotas por sexo para o Legislativo.<br />
Verificou-se o posicionamento parlamentar sobre a questão<br />
por blocos partidários, número de mandatos exercidos e gênero.<br />
Considerando que as(os) parlamentares são atrizes e atores diretamente<br />
envolvidas(os) na temática, buscou-se conhecer suas<br />
opiniões sobre a questão. Dado o lugar de parlamentar estadual<br />
em uma Região como o Nordeste, será que se aproximam mais<br />
de uma posição favorável ou suas posições tendem a ser contrárias<br />
às cotas? Será que seu pertencimento partidário interfere em<br />
sua opinião sobre as cotas ou ele é irrelevante para o seu concei-<br />
6 Foram visitados os sites de todas as assembleias legislativas do Nordeste para confirmar essas<br />
informações.<br />
232<br />
Gênero, mulheres e feminismos
to sobre as mesmas? Outras variáveis, como gênero 7 e número de<br />
mandatos exercidos, intervêm na opinião parlamentar nordestina<br />
quanto às cotas por sexo no Legislativo, principalmente, nos estados<br />
escolhidos? Como o debate, o estímulo e o incentivo às cotas<br />
se relacionam com a opinião parlamentar?<br />
Na pesquisa M&D, 50,8% das(os) deputadas(os), cerca da metade,<br />
se manifestaram favoravelmente às cotas no Legislativo. O<br />
percentual contrário é, portanto, bastante expressivo (42%), havendo<br />
uma pequena faixa de indecisos, de 7,2%, como se vê no<br />
Gráfico 1.<br />
Gráfico 1 – Opiniões da(o)s entrevistada(o)s sobre a manutenção das cotas por sexo no<br />
Legislativo − Região Nordeste − Brasil, 2003-2011<br />
Fonte: M&D<br />
Ao agrupar as respostas nas tendências ideológicas dos partidos,<br />
verifica-se que, no conjunto, as(os) parlamentares favoráveis<br />
às cotas se concentram nos partidos de Esquerda (17,9%) 8 e que<br />
tanto a Direita como o Centro assim como os pequenos partidos<br />
7 Embora se reconheça a relação entre o componente sexual do gênero e a raça como fazendo<br />
parte das desigualdades que estruturam nossa sociedade (SCOTT, 2005), optou-se por deixar<br />
para um trabalho posterior traçar um paralelo entre ambos, principalmente no que concerne à<br />
política de cotas.<br />
8 Como foi dito anteriormente, esta é uma tendência nacional e internacional, comprovada pela<br />
literatura especializada no tema.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 233
agregados em Outros estão divididos entre favoráveis e contrários<br />
às cotas no Legislativo, com uma pequena vantagem para as(os)<br />
parlamentares contrários. As cotas são, portanto, uma questão<br />
em disputa nos partidos dessas correntes ideológicas. Mesmo nos<br />
de esquerda, as cotas no Legislativo não são consenso, pois 5% de<br />
suas/seus representantes se opõem a essa política afirmativa nesse<br />
Poder da República. Mas há ainda as(os) que não têm opinião formada<br />
sobre o assunto, principalmente entre os partidos de direita<br />
(Tabela 3).<br />
Tabela 3 − Posicionamento sobre as cotas por sexo no legislativo, por bloco partidário −<br />
Região Nordeste − Brasil, 2003-2011<br />
COTAS POR SEXO − POSICIONAMENTO<br />
Contrária à manutenção de cotas por<br />
sexo no âmbito do Poder Legislativo<br />
Favorável à adoção de cotas por sexo no<br />
âmbito do Poder Legislativo<br />
LEGISLATIVO P/ BLOCO PARTIDÁRIO (em %)<br />
Direita Centro Esquerda Outros TOTAL<br />
14,8 14,9 5 7,3 42,0<br />
12,9 11,4 17,9 8,4 50,7<br />
Não tem opinião formada 2,7 1,6 1,9 1,1 7,3<br />
Fonte: M&D<br />
Mas observa-se que, quando o critério é o número de mandatos,<br />
é entre as(os) parlamentares em segundo mandato que se expressa<br />
a maior diferença entre favoráveis (17,2%) e contrárias(os)<br />
(11,1%) às cotas. Em relação ao primeiro e terceiro ou mais mandatos<br />
não há diferenças expressivas nas opiniões de parlamentares<br />
sobre essa política de ação afirmativa e sim uma divisão levemente<br />
favorável às cotas. No entanto, verifica-se uma pequena queda<br />
progressiva entre as(os) favoráveis na medida em que o número de<br />
mandatos aumenta, ou seja, no primeiro mandato 17,9%, 17,2%,<br />
no segundo, e 15,3%, no terceiro ou mais. Isto pode significar que<br />
o número de mandatos exercidos seja um dos fatores determinantes<br />
do posicionamento parlamentar sobre as cotas no Legislativo,<br />
234<br />
Gênero, mulheres e feminismos
ou seja, quanto mais antiga(o) a/o parlamentar no exercício dos<br />
mandatos, maior a probabilidade que ela(e) seja contrária(o) à<br />
manutenção dessa política afirmativa. E quanto mais mandatos<br />
exercidos, menor a dúvida sobre essa legislação, conforme se<br />
observa na Tabela 4.<br />
Tabela 4 − Posicionamento sobre as Cotas por Sexo no Legislativo, por número de<br />
mandatos exercidos − Região Nordeste − Brasil, 2003-2011<br />
POSICIONAMENTO<br />
Contrária/o à adoção de cotas por sexo<br />
no âmbito do Poder Legislativo<br />
Favorável à adoção de cotas por sexo<br />
no âmbito do Poder Legislativo<br />
LEGISLATIVO P/ MANDATO (em %)<br />
Primeiro Segundo Terceiro TOTAL<br />
16,4 11,1 14,5 42,0<br />
17,9 17,2 15,3 50,7<br />
Não tem opinião formada 3,1 2,7 1,5 7,3<br />
TOTAL 37,4 31,0 31,3 100,0<br />
Fonte: M&D<br />
Na Tabela 5, verifica-se que, enquanto os homens estão divididos<br />
equilibradamente entre favoráveis (49,1%) e contrários<br />
(43,7%) à manutenção de cotas no Legislativo, a proporção<br />
de mulheres favoráveis (60%) é praticamente o dobro das que<br />
são contrárias (31,5%). Representantes de ambos os sexos (7,1%<br />
homens e 7,9% mulheres) têm um alto percentual de indecisão.<br />
Observa-se que, embora haja uma maioria de deputadas favoráveis<br />
à manutenção das cotas, o número das contrárias é bastante<br />
expressivo, já que é uma política que visa favorecer as próprias<br />
mulheres. Pode-se afirmar, então, que não há consenso entre as<br />
parlamentares estaduais nordestinas sobre as cotas no Legislativo,<br />
revelando-se uma multiplicidade de pontos de vista dentro do<br />
mesmo grupo. Uma explicação possível para o relativamente alto<br />
percentual de parlamentares contrárias é que o conceito de ações<br />
afirmativas não tenha sido suficientemente discutido na socieda-<br />
Gênero, mulheres e feminismos 235
de e, especificamente, nos parlamentos estaduais do Nordeste.<br />
É provável que ainda predomine uma concepção de igualdade formal,<br />
e não substantiva − ou de resultados, como prefere Drude<br />
Dahlerup (2006, p. 9).<br />
Tabela 5 − Posicionamento sobre as cotas por sexo no Legislativo, por sexo − Região<br />
Nordeste − Brasil, 2003-2011<br />
POSICIONAMENTO (em %)<br />
SEXO<br />
Favorável<br />
Contrária<br />
Não tem<br />
opinião formada<br />
TOTAL<br />
Masculino 49,1 43,8 7,1 100<br />
Feminino 60,5 31,6 7,9 100<br />
Fonte: M&D<br />
Considerações finais<br />
Este trabalho teve como propósito responder a algumas perguntas<br />
sobre a representação feminina no Nordeste, principalmente<br />
no que tange à opinião parlamentar sobre a cota por sexo<br />
no Legislativo, levando-se em consideração diferenças por bloco<br />
partidário, número de mandatos exercidos e gênero.<br />
Tanto a cultura política, ou seja, práticas e valores predominantes<br />
que perduram através do tempo, em que as mudanças<br />
ocorrem lenta e incrementalmente, bem como a dependência da<br />
trajetória institucional, que consolida valores que se enraízam nas<br />
práticas dificultando que novos mecanismos institucionais sejam<br />
experienciados e o capital político acumulado, isto é, o processo<br />
pelo qual alguns indivíduos e grupos, mais do que outros, são<br />
aceitos como atores políticos, influenciam enormemente a opinião<br />
parlamentar estadual nordestina.<br />
As raízes históricas, culturais e institucionais da pouca presença<br />
das mulheres nas instituições políticas formais fazem com<br />
236<br />
Gênero, mulheres e feminismos
que prevaleça a inércia frente às estratégias de inclusão feminina,<br />
ou seja, para fazerem parte de partidos, serem candidatas, se elegerem<br />
e exercerem mandatos, as mulheres dispõem de um capital<br />
político menor. O status quo favorece os homens e as relações de<br />
desigualdade estrutural tendem a se reproduzir. O capital político<br />
feminino geralmente não é delegado pelo partido, mas convertido<br />
da esfera familiar, profissional e dos movimentos para o campo da<br />
disputa eleitoral.<br />
Embora o sistema eleitoral e partidário formalmente não exclua<br />
as mulheres, prevalece a arraigada cultura política que favorece<br />
a manutenção da concentração do capital político em mãos<br />
masculinas. Experiências institucionais inovadoras, como as cotas<br />
por sexo, pela fragilidade da própria legislação e a sua fraca<br />
implementação, não têm sido suficientes para modificar o quadro<br />
de desigualdade na representação política de gênero.<br />
Essa análise é confirmada pelos dados sobre a posição parlamentar<br />
estadual nordestina acerca da manutenção das cotas no<br />
Legislativo. Verificou-se que: as(os) favoráveis à sua manutenção<br />
no Legislativo se concentram nos partidos de esquerda e que a direita<br />
e o centro estão divididos sobre a matéria; por outro lado,<br />
quanto maior o número de mandatos, menor o apoio às cotas;<br />
as mulheres são, majoritariamente, a favor dessa ação afirmativa;<br />
conclui-se, ainda, que é o bloco partidário de pertencimento<br />
da(o) legislador o que mais consistentemente tem contribuído<br />
para a posição favorável ou contrária às cotas. Em outras palavras,<br />
o pertencimento partidário é altamente relevante na posição relativa<br />
às cotas, pois, além de concentrar a responsabilidade de<br />
recrutar pessoas (inclusive mulheres) para os cargos públicos, influem<br />
em seu posicionamento político. Por outro lado, o gênero<br />
acentua a opinião parlamentar, pois as mulheres foram consistente<br />
e majoritariamente favoráveis à manutenção das cotas por<br />
sexo no Legislativo.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 237
O desafio que se apresenta é o uso habilidoso de estratégias<br />
diversificadas de inclusão das mulheres na política, com destaque<br />
para as cotas por sexo no Legislativo; é formar alianças que propiciem<br />
mudanças institucionais e culturais que favoreçam a distribuição<br />
equitativa do capital político.<br />
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Gênero, mulheres e feminismos 241
MOVIMENTOS FEMINISTAS,<br />
ABORTO E LAICIDADE<br />
o caso de Alagoinha como exemplar<br />
Carla Gisele Batista<br />
Cecília M. B. Sardenberg<br />
Este texto foi escrito a partir de observações feitas na nossa<br />
militância junto ao movimento de mulheres e feministas, na Bahia<br />
e em Pernambuco. Baseia-se, também, nas atividades realizadas<br />
por Carla Gisele Batista, primeira autora deste texto, no período<br />
em que integrou a Secretaria Executiva da Articulação de Mulheres<br />
Brasileiras (AMB) e a coordenação colegiada da Articulación<br />
Feminista Marcosur (AFM) 1 , o que a aproximou dos movimentos<br />
de mulheres e feministas 2 , em várias regiões do país, bem como<br />
em outros países da América Latina.<br />
1 AMB: compõe-se de fóruns e articulações estaduais de mulheres existentes nos Estados<br />
brasileiros (Ver em: ); AFM: articula organizações, redes<br />
e militantes feministas de alguns países da América Latina (Ver em: ). Ambas se originaram dos processos preparatórios para a Conferência de Beijing (1995).<br />
2 Compreendemos os movimentos aqui como de mulheres, no seu sentido mais amplo. Dentro<br />
deles, organizações e militantes feministas atuam junto a mulheres que não se identificam<br />
como feministas. Como a defesa da legalização do aborto, a nosso ver, está mais relacionada<br />
ao feminismo, no restante do texto usaremos a denominação movimentos feministas,<br />
considerando a pluralidade de sua composição.
No trabalho, buscamos fazer uma reflexão inicial sobre a forma<br />
como as atuações em defesa da legalização do aborto aproximam<br />
esses movimentos do debate sobre a laicidade do Estado. Compartilhamos,<br />
com Leila Linhares Barsted, a perspectiva de que<br />
[...] compreender a ação do movimento de mulheres, em especial<br />
na defesa do direito ao aborto, permite não apenas observar a<br />
constituição de um sujeito e de um campo político, mas também<br />
pode constituir um exercício de avaliação sobre os limites da democracia<br />
e da laicidade do Estado no Brasil. (2009, p. 229-30)<br />
A defesa dos direitos sexuais e de acesso a outros direitos e políticas<br />
relacionados à vida sexual e reprodutiva, para além da interrupção<br />
da gravidez, também provoca essa aproximação, mas<br />
estes não serão, no entanto, aspectos abordados aqui, ainda que<br />
seja reconhecida a sua relevância para a ampliação da democracia.<br />
Inicialmente, traçamos um desenho sobre o entrecruzamento<br />
entre movimentos feministas, Estado, políticas internacionais e<br />
nacionais, igrejas, aborto e laicidade. Em um segundo momento,<br />
apresentamos, ainda que brevemente, uma experiência que<br />
retrata o que foi demonstrado nesse panorama inicial, antes de<br />
concluir relacionando outras ações que se encontram inseridas no<br />
contexto apresentado. Note-se, porém, que este artigo não abrange,<br />
na sua totalidade, as ações realizadas em defesa da legalização<br />
do aborto no Brasil, mas, apenas algumas daquelas relacionadas<br />
ao campo no qual atuamos.<br />
Movimento de mulheres, aborto e laicidade<br />
Comecemos com algumas considerações de Barbara Klugman<br />
e Debbie Budlender:<br />
Para as mulheres, o aborto sempre foi um meio de controlar suas<br />
vidas. No passado, todas as culturas contavam com uma forma<br />
de prover aborto às mulheres que, por diversas razões, não de-<br />
244<br />
Gênero, mulheres e feminismos
sejavam filhos. No entanto, nos últimos séculos, a sociedade tem<br />
tratado de limitar cada vez mais a capacidade das mulheres de<br />
controlar sua capacidade reprodutiva. Por um lado, as políticas<br />
de população têm tentado decidir por elas se devem ter mais ou<br />
menos filhos. Por outro lado, a área médica tem buscado profissionalizar<br />
a saúde reprodutiva, erosionando com isso o papel<br />
das parteiras tradicionais e das mulheres neste mesmo campo.<br />
E ainda assim, em vários países, as instituições religiosas têm<br />
procurado aplicar regulamentações mais restritivas para as circunstâncias,<br />
quando existem, em que o aborto é aceitável. (2001,<br />
p. XV, tradução das autoras)<br />
Sabe-se que, nos últimos doze anos, vários países modificaram<br />
suas leis referentes ao acesso ao aborto: África do Sul e Albânia<br />
(1996); Camboja (1997); Guiné (2000); Mali, Chade e Suíça (2002);<br />
Benin (2003); Butão, Nepal e Etiópia (2004); Suazilândia (2005);<br />
Colômbia (2006); México, Portugal e Togo (2007). As conquistas oscilam<br />
entre a legalização, a exemplo do México D. F. e de Portugal,<br />
e a aprovação de alguns permissivos, como é o caso da Colômbia,<br />
apenas para citar países mais próximos culturalmente. Também<br />
variaram os sujeitos envolvidos e as estratégias utilizadas.<br />
O fato é que, nos países em que o aborto foi legalizado, houve<br />
uma sensível redução da mortalidade e da morbidade relacionadas<br />
ao aborto ilegal e inseguro. (BERER, 2008) Exemplos concretos<br />
foram abordados, por exemplo, em estudos sobre os EUA, África<br />
do Sul e Romênia. No entanto, para os movimentos feministas,<br />
a questão do aborto não pode ser interpretada apenas como um<br />
problema de saúde pública. Se evitar que as mulheres morram é<br />
tido como um direito fundamental a ser observado, tal questão<br />
é mais frequentemente lida, para esses movimentos, como indissociável<br />
de um conjunto mais amplo de lutas pela ampliação<br />
dos direitos de cidadania. Às mulheres como cidadãs precisam ser<br />
garantidos direitos outros que não morrer. Questões como a autonomia<br />
reprodutiva e a liberdade de decisão acerca do próprio<br />
Gênero, mulheres e feminismos 245
corpo estão presentes ao longo dos anos como parte fundamental<br />
dos discursos, reivindicações e estratégias nesse campo, levando<br />
os movimentos feministas a questionarem a própria definição de<br />
contrato social vigente no mundo ocidental e cristão, a partir das<br />
ideias de democracia e de diversidade.<br />
Ainda que os movimentos feministas, em sua maioria, 3 tratem<br />
da defesa do direito ao aborto a partir de um campo laico, este é<br />
um debate que está por demais imbricado a uma problemática religiosa<br />
e não apenas no Brasil. Na verdade, outros setores da sociedade<br />
vêm se integrando cada vez mais ao debate: universidades,<br />
judiciário e saúde/medicina, por exemplo. No entanto, persiste na<br />
mídia um tratamento da questão de forma a polarizar os posicionamentos<br />
entre feministas e igrejas, dando destaque para as opiniões<br />
e os discursos conservadores. As igrejas, sob esse aspecto,<br />
ainda são apresentadas como um bloco unívoco. A diversidade de<br />
opinião existente dentro delas corre à margem do que tem sido<br />
normalmente visibilizado através dos meios de comunicação.<br />
Em todas as religiões, a Católica em particular, as opiniões<br />
abarcam um leque amplo e divergente, mesmo para aqueles temas<br />
que estão colocados como dogmas ou seguem uma orientação<br />
definida por suas lideranças atuais. Essa diversidade de opiniões,<br />
que cria conflitos e disputas entre as suas hierarquias, não costuma<br />
estar visível no debate público. No entanto, pesquisas têm demonstrado<br />
que, no que se refere aos temas ligados à sexualidade e<br />
à reprodução, a maioria dos(as) fiéis orientam as suas decisões de<br />
forma distante daquela promovida pelas definições hierárquicas.<br />
(PIOVESAN; PIMENTEL, 2002)<br />
No trabalho educativo com mulheres do meio popular, isso<br />
pode ser frequentemente observado: cada mulher lida de forma<br />
particular com a gravidez quando não planejada ou indesejada.<br />
3 Organizações feministas como a “Católicas pelo Direito de Decidir”, que atuam em diversos<br />
países, são do campo religioso.<br />
246<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Mesmo aquelas que são devotas, praticantes fervorosas de alguma<br />
religião, em um entendimento pessoal com a divindade de sua<br />
devoção, encontram formas de reconhecer, sem culpa, a melhor<br />
decisão para si. Maria José Rosado-Nunes, em estudo realizado<br />
com líderes de Comunidades Eclesiais de Base da periferia de São<br />
Paulo, afirma que essas mulheres, “mesmo reticentes em relação<br />
ao aborto, tratando-se de práticas contraceptivas distanciam-se<br />
dos argumentos devedores do ethos cristão e aproximam-se do<br />
ideário feminista, afirmando o direito à autonomia individual”<br />
(2009, p. 214). Afirma ainda que:<br />
[...] o ideário católico sobre as mulheres continua a diferir radicalmente<br />
daquele das feministas e entra em conflito com suas<br />
reivindicações, invocando fundamentalmente seus direitos, relativos<br />
a todos os âmbitos de sua vida – privada e pública. Enquanto<br />
o feminismo construiu um novo campo de legalidades,<br />
incluindo a sexualidade e a reprodução entre os direitos humanos<br />
fundamentais das pessoas, especialmente das mulheres, no<br />
campo católico, e em parte do campo protestante e evangélico,<br />
as concepções tradicionais sobre sexo e sobre o agenciamento<br />
humano na reprodução devem-se à inscrição dessas áreas da<br />
vida humana na ‘natureza’, dada por Deus e imutável. Essas<br />
concepções religiosas opõem-se à construção feminista da reprodução.<br />
(2009, p. 208)<br />
É importante não esquecer também que, no que se refere às liberdades<br />
laicas, o Estado não pode se limitar a simplesmente garantir<br />
“uma coexistência pacífica entre diferentes credos”. Como<br />
parte de assegurar a laicidade, cabe também ao Estado, para usarmos<br />
palavras de Roberto Lorea, “garantir [...] o direito de divergir<br />
da hierarquia da sua própria igreja, contemplando a diversidade<br />
existente no seio de uma mesma doutrina religiosa” (2006, p. 186).<br />
Isso é bastante relevante considerar, vez que o cenário contemporâneo<br />
não é, de modo algum, de consenso ou de apaziguamento<br />
das lutas. Muito ao contrário, à medida que os movimentos se<br />
Gênero, mulheres e feminismos 247
organizam e se transformam ampliando suas agendas e conquistas,<br />
o campo de enfrentamento também se sofistica. O aborto, assim<br />
como está na agenda dos movimentos feministas, há alguns anos<br />
tem estado, também, na pauta dos religiosos conservadores. Se<br />
setores dos movimentos feministas investiram esforços, durante a<br />
década de 90, para avançar internacionalmente nas conferências<br />
das Nações Unidas em instrumentos de negociação e influência aos<br />
governos para a implantação de políticas que implementassem os<br />
direitos sexuais e os direitos reprodutivos, governos republicanos<br />
dos EUA adotaram diversas medidas políticas e vincularam dotação<br />
orçamentária para países em desenvolvimento para proposições<br />
que debilitam esses direitos e os avanços já alcançados. 4<br />
Essa contraposição se fez de diversas formas. Basicamente,<br />
restringiu-se as possibilidades das organizações que recebem<br />
recursos internacionais para a realização de ações no campo dos<br />
direitos sexuais e direitos reprodutivos (DSDR) de oferecerem ou<br />
trabalharem em prol do oferecimento de serviços de contracepção,<br />
prevenção ao HIV/AIDS, aborto legal, de fazerem mobilizações<br />
em favor de modificações nas legislações de seus países ou,<br />
até mesmo, de oferecerem assessoria médica ou referenciarem<br />
pacientes para serviços de interrupção de gravidez. Foram feitos<br />
investimentos, também, na organização de militância contrária<br />
ao exercício dos DSDR, investimento que tem multiplicado os seus<br />
frutos à medida que as possibilidades de avanço no sentido contrário<br />
se apresentam como possíveis. A mudança para um governo<br />
de partido democrático defensor do direito ao aborto poderá<br />
significar alterações que ainda não se fizeram perceber de forma<br />
4 Concretamente, foi anunciado, no segundo dia da administração Bush, em 22 de janeiro<br />
de 2001, a chamada Regra da Mordaça Global − Global Gag Rule (GGR), a mesma que já fora<br />
anunciada, pela primeira vez, pela administração Reagan, durante a Conferência de População<br />
da ONU – Cairo, 94. Essa política tem como propósitos principais “1 − Obstaculizar o acesso<br />
da população a uma ampla gama de métodos contraceptivos, incluindo a contracepção de<br />
emergência; 2 − Se contrapor aos esforços para assegurar o acesso à população ao aborto legal<br />
e seguro”. (CHÁVEZ; COE, 2006, p. 3, tradução das autoras)<br />
248<br />
Gênero, mulheres e feminismos
marcante fora do próprio país, em função das condições criadas<br />
anteriormente para a ação conservadora.<br />
O fato é que norte-americanos consonantes com o Partido<br />
Republicano, em sintonia com a ação teológica-política do Estado<br />
do Vaticano e de igrejas evangélicas, vêm se empenhando, de<br />
forma mais estratégica, na restrição das liberdades sexuais e reprodutivas,<br />
articulando discursos do direito à vida com os discursos<br />
convencionais de abstinência sexual, da interdição do uso de<br />
qualquer método contraceptivo − em particular, da contracepção<br />
de emergência −, ou de prevenção às DST e à AIDS, de valorização<br />
da família de modelo tradicional, patriarcal, heterossexual, com<br />
estratégias geopolíticas, econômicas e orçamentárias na luta contra<br />
a legalização do aborto em diversas nações do planeta.<br />
Para os movimentos sociais da América Latina, de um modo<br />
geral, o processo de abertura democrática subsequente aos períodos<br />
ditatoriais e à instalação, ainda que não imediata, de novos<br />
governos considerados progressistas, deveria representar um momento<br />
substantivo de diálogo sobre políticas demandadas a partir<br />
deste mesmo campo, o das lutas por uma sociedade mais democrática<br />
e justa. No entanto, toda a complexidade das relações que<br />
se instituem no campo internacional influencia, em boa medida,<br />
a forma como se redefinem nacionalmente as políticas, o que não<br />
quer significar que seria diferente se este tipo de orientação não<br />
se exercesse, afinal, seja no Brasil, seja na América Latina como<br />
um todo, a oposição às ditaduras militares foi, em grande parte,<br />
apoiada e abrigada, dentro de setores da Igreja Católica.<br />
Sabe-se que a oposição ao regime autoritário, ainda que compartilhada<br />
pelas mulheres, que estiveram presentes na ação política<br />
contra a ditadura, seja por razões teológicas ou por razões<br />
políticas, continuou contemplando as questões sobre autonomia<br />
trazidas pelas mulheres como secundárias. Segundo nos aponta<br />
Leila Barsted:<br />
Gênero, mulheres e feminismos 249
[...] ao lado da luta contra a interferência histórica do Estado sobre<br />
os corpos femininos, as feministas se engajaram no processo<br />
de redemocratização do país, embora fossem olhadas com desconfiança<br />
pelos demais setores opositores do regime militar, incluindo<br />
os militantes de esquerda, que desconsideravam como<br />
políticas as questões específicas no campo da sexualidade, especialmente<br />
quando colocadas pelas feministas como questões<br />
que diziam respeito a direitos individuais, inerentes à liberdade<br />
e autonomia do indivíduo. (2009, p. 229)<br />
Essas barreiras começam lentamente a se romper, mas não<br />
sem recuos, ainda que apenas em nível de um discurso limitado<br />
ao entendimento da problemática do aborto como uma questão<br />
de saúde pública.<br />
Muitos dos líderes políticos que atualmente estão ocupando<br />
cargos governamentais ou no Legislativo e Judiciário se formaram<br />
em escolas católicas. Foi também dentro da Igreja que muitos se<br />
iniciaram nos debates políticos e na militância, durante o regime<br />
de exceção. Uma entrevista do Presidente Lula ao periódico espanhol<br />
El País, em maio de 2010, ilustra esse fato: ele conta que, no<br />
período inicial de sua atuação sindical em São Bernardo do Campo,<br />
São Paulo, nenhuma ideologia alimentava suas ações. Mas,<br />
logo em seguida, suas ações receberam apoio dos movimentos de<br />
base católica. Lula afirma que “o Partido dos Trabalhadores não<br />
teria existido sem a ajuda de milhares de padres e comunidades<br />
cristãs do Brasil”. E ressalta: “ele (o PT) deve muito ao trabalho<br />
da Igreja, à teologia da libertação, aos padres progressistas. Tudo<br />
isso contribuiu para minha formação política, a construção do PT<br />
e a minha chegada ao poder”. No entanto, Lula finaliza afirmando<br />
que “minha relação pessoal com a Igreja Católica foi e continua<br />
sendo muito forte, mas somos um país laico, tratamos todas as<br />
religiões com respeito”. 5<br />
5 “A ONU precisa mudar ou não servirá para governo global”. 9 maio 2010. Disponível em:<br />
.<br />
250<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Assistimos, não sem reações, às modificações promovidas no III<br />
Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), sob pressão da Igreja<br />
Católica. Construído a partir dos debates realizados no processo<br />
participativo da Conferência Nacional de Direitos Humanos realizada<br />
em 2009, o texto inicial do programa afirmava a necessidade do<br />
compromisso governamental de “apreciar a aprovação de projeto<br />
de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das<br />
mulheres para decidir sobre seus corpos”. 6 Em decreto de número<br />
7.177, de 12 de maio de 2010, este texto foi modificado, a partir dos<br />
questionamentos recebidos, passando a ser: “considerar o aborto<br />
como tema de saúde pública, com a garantia do acesso aos serviços<br />
de saúde”. Entre um conteúdo e outro e a forma como foi feita a<br />
substituição, muito há que se refletir sobre a distância entre a fala do<br />
Presidente Lula e o que realmente se pratica na promoção de políticas<br />
públicas observando o princípio da laicidade e da participação.<br />
No Brasil, assim como em muitos países latino-americanos,<br />
os movimentos feministas têm formulado diferentes estratégias e<br />
discursos a elas relacionados, no tocante ao objetivo de alcançar a<br />
legalização do aborto. Uma estratégia recorrente, no entanto, tem<br />
sido a articulação transnacional dos movimentos, mesmo entre<br />
movimentos situados para além do continente americano. A ação<br />
internacionalista vem se instituindo, permanentemente, como<br />
um princípio organizativo de peso semelhante ou potencializador<br />
às ações nas esferas locais e nacionais. Ao mesmo tempo, quando<br />
pautam o debate sobre o aborto, trazem, implícita ou explicitamente,<br />
a essa discussão os debates sobre democracia e sobre laicidade<br />
do Estado.<br />
Note-se que as questões relacionadas aos avanços dos direitos<br />
sexuais e reprodutivos se confrontam permanentemente com barreiras<br />
religiosas restritivas a sua ampliação e, também, com a falta<br />
6 Para acessar o PNDH3 na íntegra: .<br />
Gênero, mulheres e feminismos 251
de ousadia e coragem, por parte dos gestores públicos, no enfrentamento<br />
a essas restrições, mesmo que para isso em muitos países<br />
existam garantias constitucionais, como é o caso do Brasil. Ações<br />
governamentais nesse campo não avançam ou recuam a qualquer<br />
manifestação contrária vinda dos setores religiosos conservadores.<br />
No Brasil, mesmo para os casos em que o aborto está garantido<br />
na legislação, a implantação de serviços, iniciada a partir do final<br />
da década de 80 do século passado − mais de quarenta anos após<br />
a existência de lei que garante a possibilidade de escolha para as<br />
situações de violência sexual e risco de vida para a mulher grávida<br />
–, tem se defrontado permanentemente com a recusa de profissionais<br />
dos serviços públicos a realizarem os atendimentos, em<br />
nome do direito a uma objeção de consciência. Enfrenta, também,<br />
a ineficácia na divulgação dos serviços já existentes, em nome de<br />
um receio à procura que eles poderiam suscitar, bem como constantes<br />
tentativas de aprovação de projetos de leis, por integrantes<br />
das bancadas religiosas, que eliminariam constitucionalmente essas<br />
possibilidades que já estão garantidas na legislação vigente.<br />
E não se há de esquecer a ação das instituições e da comunidade,<br />
estimuladas e alimentadas por lideranças religiosas, no sentido<br />
de buscar dissuadir, constranger, discriminar e até criminalizar as<br />
mulheres que se proponham a recorrer a esses direitos já previstos.<br />
Soma-se a esse constrangimento a própria ilegalidade na qual<br />
se mantém o aborto, empurrando as mulheres que por ele optam<br />
como solução extrema, para a clandestinidade.<br />
Alagoinha, um caso exemplar 7<br />
Um pequeno resumo dos acontecimentos desse caso que se<br />
passou em março de 2009, no Estado de Pernambuco: em uma me-<br />
7 Um documentário detalhado sobre o caso pode ser acessado através de .<br />
252<br />
Gênero, mulheres e feminismos
nina de nove anos vinda do interior, foi identificada uma gravidez<br />
gemelar, resultante de estupro. Essa gravidez foi considerada de<br />
risco, o que incluía o caso nas duas exceções à criminalização do<br />
aborto garantidas no Código Penal brasileiro. 8 Acompanhada de<br />
sua mãe, ela chegou ao Instituto Médico Legal (IML) para exame<br />
e foi encaminhada a um hospital credenciado para o atendimento<br />
aos casos de violência sexual e aborto legal.<br />
O caso, desde o início, foi acompanhado pela mídia local. Um<br />
secretário de governo e a Arquidiocese publicamente se manifestaram<br />
contrários à realização da interrupção da gravidez. A Arquidiocese,<br />
ao mesmo tempo, atuou pressionando o hospital para<br />
a não realização dos procedimentos garantidos nessas situações.<br />
É importante lembrar que o hospital em questão tem suas estruturas<br />
de funcionamento vinculadas, ou dependentes, da Igreja<br />
Católica.<br />
O movimento de mulheres local, articulado no Fórum de Mulheres<br />
de Pernambuco (FMPE), acompanhou, desde o início, o<br />
debate e intercedeu, nesse momento, no sentido de apresentar<br />
possibilidades à mãe da garota para que ela pudesse decidir, com<br />
maior informação e garantias legais, quais os encaminhamentos<br />
possíveis a dar ao caso. Isso fez com que a mãe pedisse a sua alta<br />
do hospital que se negou ao procedimento e fosse encaminhada a<br />
outro serviço de aborto legal, contatado pelo FMPE, que se prontificou<br />
em garantir o direito à interrupção. Mãe e filhas − eram<br />
duas filhas e ambas vinham sendo violentadas pelo padrasto − receberam<br />
acompanhamento e apoio da Secretaria Estadual de Políticas<br />
para as Mulheres para reorganizarem suas vidas após esses<br />
incidentes.<br />
Esse caso foi noticiado internacionalmente, provocando, no<br />
mundo inteiro, reações contrárias e, em alguns casos, contradi-<br />
8 Risco de morte para a mãe e violência sexual.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 253
tórias além do posicionamento da Igreja representado pelo Arcebispo.<br />
Ainda que se ouvissem algumas poucas vozes em apoio ao<br />
Arcebispo e a insistência não unívoca do Vaticano em referendar<br />
sua atitude, de todas as direções, as manifestações afirmavam o<br />
direito da garota ao aborto, vendo como equívoco querer impor<br />
a uma menina de nove anos uma gravidez fruto de violência. Defenderam,<br />
assim, a equipe médica que realizou os procedimentos<br />
de interrupção. Essas manifestações se posicionavam sobre a<br />
importância de separar da religião a ação do Estado e a efetivação<br />
de políticas públicas, já que as igrejas resistem a essa separação,<br />
atuando, permanentemente, para influenciar a forma como leis e<br />
políticas se efetivam.<br />
É impossível fazer uma avaliação de tudo o que se falou e debateu<br />
a respeito. Assim, trazemos aqui apenas duas citações restritas<br />
a manifestações feitas desde o Estado de Pernambuco, onde<br />
ocorreram os fatos. Vejamos, por exemplo, trecho de um artigo<br />
publicado por um professor universitário:<br />
A partir da inserção de novos sujeitos nos processos sociais de<br />
hegemonização, como a mídia e outros membros do campo religioso<br />
− os evangélicos, os espíritas etc. – Estado e Igreja Católica<br />
têm sofrido certo rearranjo conjuntural. As derrotas simbólicas,<br />
no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal, nos debates<br />
acerca das pesquisas com células-tronco, por exemplo,<br />
demonstram a vivência de uma nova trama nas atuais relações<br />
de poder. Importantes setores das classes dominantes exprimem<br />
publicamente discordâncias à Igreja. Esta passa, de modo cada<br />
vez mais direto, a tomar o Estado − antes seu incondicional aliado<br />
− como objeto de lutas. As posturas estatais diante do aborto,<br />
das distribuições e usos de preservativos e anticoncepcionais, da<br />
união entre pessoas do mesmo sexo, isso para citar somente algumas<br />
temáticas, são disputadas a ferro e fogo pelo clero.<br />
Por certo, mais do que o pecado de uma menina de nove anos<br />
vítima de um estupro, o arcebispo de Olinda e Recife contesta<br />
uma posição estatal. Dom José Cardoso Sobrinho vem por em<br />
254<br />
Gênero, mulheres e feminismos
xeque normas consagradas pelo ordenamento jurídico pátrio.<br />
As hipóteses de aborto legal não são novas no Código Penal, pelo<br />
contrário, sua justificação consta na Exposição de Motivos da<br />
Parte Especial do Código datada de 1940. Mesmo no campo jurídico,<br />
tradicionalmente reconhecido por seu conservadorismo,<br />
o artigo 128 não causa polêmicas significativas. Dá-se, contudo,<br />
que a disputa empreendida pelo arcebispo vai muito além<br />
do aborto legal. Ela se vale do caso sob discussão como meio de<br />
reafirmar as posições da Igreja e sua relevância na arena pública,<br />
ainda que arcebispo e Igreja surjam momentaneamente como<br />
anacrônicos, ortodoxos ou dogmáticos. A eficácia simbólica de<br />
todo esse processo está, destarte, menos no aborto em questão,<br />
legal e seriamente encaminhado pela equipe do Centro Integrado<br />
de Saúde Amaury de Medeiros (CISAM) da Universidade de<br />
Pernambuco, e mais na ratificação midiática da necessidade de<br />
veiculação da fala da Igreja, inclusive sobre um assunto que no<br />
Estado não causa mais divergências. (ÉFREM FILHO, 2009)<br />
Outro professor universitário também se refere às relações<br />
entre Estado e Igreja como tema principal a ser observado no caso.<br />
Cabe aqui reproduzir suas observações:<br />
[...] o arcebispo declarou, literal, pública e explicitamente, que a<br />
equipe médica, que realizara um procedimento médico legítimo<br />
e legal, e a mãe da criança de 9 nove anos, que autorizara tal procedimento,<br />
‘estavam excomungados automaticamente’ (sic). E<br />
repetiu, diversas vezes, o termo ‘automaticamente’. Ora, algumas<br />
questões, que fogem ao domínio religioso, colocam-se inelutavelmente<br />
e interessam a toda a sociedade civil. 1º) Em suas<br />
declarações, Dom José Cardoso afirmou que a ‘lei de Deus’ (isto<br />
é, a lei da Igreja Católica Romana, citando o Código Canônico)<br />
está acima de qualquer outra ‘lei dos homens’ (isto é, no caso em<br />
tela, a lei brasileira). Acrescentou, ainda, que, quando a ‘lei de<br />
Deus’ é contrariada pela ‘lei dos homens’, esta não tem o menor<br />
valor (sic) e, em consequência, como se pode inferir, não deve<br />
ser obedecida. Quer dizer, na hipótese, a lei brasileira não passaria<br />
de ‘lixo jurídico’. Para qualquer estudante de Faculdade de<br />
Direito, tal afirmação poderia ser considerada como tipificação<br />
do que estatui o Código Penal Brasileiro, isto é, um ‘incentivo<br />
público à prática de atos ilícitos’. E a ‘omissão de socorro’, por<br />
Gênero, mulheres e feminismos 255
exemplo, não estaria tipificada como delito penal? Como, acertadamente,<br />
aliás, alegou um dos médicos agredidos? Claro! O<br />
Arcebispo não teria tido tais intenções. [...] Com todo o respeito<br />
aos fiéis católicos e de outras seitas cristãs, tanto quanto a todos<br />
os religiosos, não seria interessante refletir criticamente sobre<br />
os atos da hierarquia de suas respectivas Igrejas? Não seria o momento<br />
para uma reflexão profunda sobre os avanços do espírito<br />
republicano e do Estado laico no Brasil? (PERRUSI, 2009)<br />
Em um artigo que analisa as construções discursivas de cartas<br />
às redações e artigos publicados no mês de março de 2009,<br />
em apenas três jornais pernambucanos, 9 a jornalista Nataly Lima<br />
(2010) assinala a importância do caso para reabrir a discussão sobre<br />
Estado laico e direitos reprodutivos. Segundo essa autora, no<br />
Jornal do Comércio, foram publicados onze artigos de opinião e<br />
doze cartas à redação; no Diário de Pernambuco, foram quatro<br />
artigos e dezessete cartas; e, na Folha de Pernambuco, dois artigos<br />
e duas cartas, números considerados por ela como bastante<br />
expressivos para o período delimitado.<br />
Lima utiliza o método de análise do discurso para fazer uma<br />
leitura desse material. Não temos aqui a intenção de reproduzir<br />
a sua análise, mas apenas utilizar algumas das informações por<br />
ela sistematizadas para comprovar o afirmado anteriormente.<br />
Sobre o perfil dos(as) autores(as), 62,5% eram homens: jornalistas,<br />
sociólogos, escritores, advogados, economistas, psicólogos,<br />
professores universitários e médicos. De forma geral, as opiniões<br />
veiculadas tratavam de defender a interrupção da gravidez<br />
(64,6%) ou de criticar o procedimento (35,4%).<br />
Os argumentos favoráveis abordavam como principais argumentos<br />
para a defesa desse posicionamento: o trauma sofrido por<br />
uma criança estuprada; o risco de morte; a intromissão da igreja<br />
nas políticas públicas; a indignação com o posicionamento<br />
9 Jornal do Comércio, Diário de Pernambuco e Folha de Pernambuco.<br />
256<br />
Gênero, mulheres e feminismos
do arcebispado, presente, principalmente, nas cartas. Segundo<br />
Lima (2010), no geral, mais se repudiou a atuação da Arquidiocese<br />
“do que se reformulou o paradigma do direito ao corpo, ou mesmo<br />
se discutiu amplamente a questão de gênero”. Na verdade, fica a<br />
constatação de que a separação entre igreja e Estado transversalizou<br />
todas as discussões.<br />
No final, pode-se avaliar que, a partir da atuação de feministas<br />
e de setores sensibilizados da sociedade estão sendo abertas novas<br />
possibilidades, ainda que restritas e, muitas vezes, fragilmente<br />
instituídas, de atendimentos às mulheres junto aos serviços públicos.<br />
Entre os diversos posicionamentos públicos, as declarações<br />
do Presidente da República e do Ministro da Saúde também<br />
demonstraram, nessa situação, um distanciamento crítico em relação<br />
à interferência da igreja no caso − talvez apenas em função<br />
da reação de toda a sociedade ou talvez porque se tratava de uma<br />
menina, em um caso gritante de violência. Se fosse uma mulher<br />
adulta envolvida, seria diferente?<br />
Conclusões<br />
Neste artigo, buscamos demonstrar como a pauta do Estado<br />
laico se entrecruza e convoca permanentemente as lutas feministas<br />
pela transformação social. Os movimentos feministas, ao reivindicarem<br />
a legalização do aborto, estão também alimentando as<br />
discussões sobre a ampliação da democracia e sobre a laicização<br />
do Estado, ao mesmo tempo em que estão sendo convocados pela<br />
necessidade de instituição da laicidade e pautados a incluírem<br />
esse tema como objeto de reflexão, construção de conhecimento<br />
e ação política. Quando atuam nesse campo, estão ampliando os<br />
debates, não apenas no diálogo com outros movimentos sociais e<br />
com os partidos políticos, dentro e fora dos governos, mas com a<br />
sociedade de forma mais ampliada.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 257
A campanha “Contra os Fundamentalismos, o Fundamental<br />
é a Gente”, lançada em 2002, no II Fórum Social Mundial (FSM),<br />
buscava inicialmente um diálogo com os movimentos sociais e<br />
lideranças ali presentes. Mas o seu objetivo final era o de atingir<br />
a toda a sociedade, o que foi acontecendo à medida que ações se<br />
multiplicaram em diversos países. 10 Afirmando que todas as formas<br />
de fundamentalismos são políticas e buscam a sujeição e a exclusão<br />
do outro/diferente, utilizou um termo de autorreferência<br />
religiosa 11 para provocar também os movimentos e militantes de<br />
esquerda sobre a necessidade de ouvir, respeitar e, por que não?,<br />
incorporar as demandas trazidas por distintos setores da sociedade,<br />
já que essas questões apresentadas estão em construção a<br />
partir de um lugar diverso que esses “outros e outras” ocupam no<br />
mundo.<br />
Nos debates sobre a construção de uma “plataforma dos movimentos<br />
sociais para a reforma do sistema político no Brasil”,<br />
os movimentos feministas também provocaram a discussão sobre<br />
o Estado Laico junto aos outros sujeitos políticos presentes. 12<br />
A reação às tentativas de impedimento da distribuição da contracepção<br />
de emergência em alguns municípios do Brasil, a ação<br />
junto ao Ministério Público para a retirada de símbolos religiosos<br />
das repartições públicas − estas e outras incidências, poderiam<br />
10 No Brasil, entre outras ações, a AMB organizou no processo do Fórum Social Mundial, nacional<br />
e regionais, a série de debates: “Estado Laico e Liberdades Democráticas” que resultou em uma<br />
publicação e “Aborto na Agenda Democrática”, com diversos movimentos sociais envolvidos.<br />
Lançou também a revista “Bocas no Mundo”.<br />
11 Autodesignação dada por um grupo de cristãos protestantes conservadores norte-americanos,<br />
no início do séc. XX, que se via como contraofensiva ao modernismo. Para eles, fundamentais<br />
eram “os conteúdos da fé, verdades absolutas e intocáveis, que deveriam ficar imunes à ciência<br />
e à relativização por meio do método histórico”. (DREHER, 2002) Defendiam uma leitura literal,<br />
portanto, sem interpretações, da Bíblia. Publicaram, também, uma série de textos sob o título<br />
The Fundamentals: a testimonium to the truth (Os Fundamentais – um testemunho em favor<br />
da verdade).<br />
12 Nesse ano de 2010, diversas organizações, em um trabalho conjunto com a organização<br />
Cfemea, de Brasília, lançaram uma Plataforma Feminista voltada para as eleições. Dirigida a<br />
candidatos(as), eleitores(as) e militantes, incluía o item “Estado laico e Democracia” entre os<br />
conteúdos a serem observados por todos(as).<br />
258<br />
Gênero, mulheres e feminismos
ter sido também desenvolvidas como comprovação às premissas<br />
deste texto.<br />
Fato é que a passagem do regime monárquico para o republicano<br />
no Brasil, mesmo que neste último se instituísse a laicidade<br />
como principio organizativo do Estado, não foi acompanhada<br />
de debate e da apropriação que pudessem garantir a sua institucionalização<br />
de fato e efetiva. Na passagem de um regime para o<br />
outro, os rearranjos foram feitos pelos homens. Se, por um lado,<br />
assistimos, no presente, a algumas mudanças significativas sobre<br />
a participação das mulheres na vida pública, por outro, podemos<br />
continuar afirmando que nós, mulheres, fomos excluídas do contrato<br />
social vigente. Por certo, o momento atual nos provoca outros<br />
debates e reflexões para o aprofundamento e a compreensão<br />
de novos desafios vindos nessa direção.<br />
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Gênero, mulheres e feminismos 259
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260<br />
Gênero, mulheres e feminismos
DIREITOS SEXUAIS<br />
E DIREITOS REPRODUTIVOS<br />
teoria e práxis de feministas acadêmicas<br />
Simone Andrade Teixeira<br />
Silvia Lúcia Ferreira<br />
O movimento feminista brasileiro sempre protagonizou mobilizações<br />
reivindicatórias pelos direitos das mulheres. Podemos<br />
apontar, ao menos, dois momentos de grande articulação: o primeiro,<br />
ocorrido na primeira metade do século XX, quando as reivindicações<br />
se centravam, predominantemente, em torno dos<br />
direitos civis e cuja conquista expressiva foi o direito ao voto; e,<br />
o segundo, que, embalado pela “segunda onda” feminista da década<br />
de 1960, reivindicava, prioritariamente, a reapropriação dos<br />
corpos femininos pelas próprias mulheres.<br />
Após a conquista do direito ao voto feminino, em 1932, o movimento<br />
feminista brasileiro arrefeceu e sua reorganização só veio<br />
a ocorrer a partir da década de 1960, influenciado pela expressividade<br />
de um renovado feminismo oriundo dos Estados Unidos e da<br />
Europa, que passou a ser conhecido como “feminismo da segunda<br />
onda”. As célebres frases feministas desse período, “Nosso corpo
nos pertence” e “O pessoal é político” foram as tônicas que estimularam<br />
não apenas reflexões como, também, ações políticas,<br />
que reclamavam direitos tanto na esfera civil quanto nas esferas<br />
do exercício da sexualidade e da reprodução.<br />
Tais slogans enfatizavam que as mulheres deveriam ser donas<br />
de seus próprios corpos e livres para decidir sobre o exercício de<br />
sua sexualidade e de sua vida reprodutiva e, também, incentivavam<br />
a discussão e a consequente politização de problemas da vida<br />
privada vivenciados pelas mulheres, a exemplo dos mais variados<br />
tipos de violência, sexual, física e/ou psicológica.<br />
Toda a pauta reivindicatória feminista relacionada à violência<br />
perpetrada contra as mulheres e à reapropriação do próprio corpo<br />
se intensificou na década de 1980, quando os grupos feministas se<br />
configuraram, na esfera política, em torno de temas específicos<br />
que tratavam da saúde e da violência contra a mulher, em especial<br />
as Organizações Não Governamentais (ONGs) feministas. Ainda no<br />
início dessa década, foram fundados os primeiros núcleos de estudos<br />
sobre a mulher nas universidades brasileiras que, em muito<br />
vêm contribuindo para a conversão da pauta política feminista em<br />
políticas públicas, ao formular argumentações científicas em torno<br />
das questões referentes às mulheres.<br />
Também podemos atribuir aos movimentos, as práticas e teorias<br />
feministas das décadas de 1970-80 que conformaram na área<br />
da saúde, um novo campo científico, que passou a ser denominado<br />
como o campo da saúde da mulher. Naquela ocasião, a reivindicação<br />
principal era a integralidade da atenção em saúde, superando<br />
a ótica das políticas verticalizadas voltadas exclusivamente<br />
ao binômio mãe−filho(a). Para Maria Betânia Ávila (1993), esse<br />
campo privilegiou a discussão sobre a autodeterminação sexual<br />
e reprodutiva da mulher, questionou o poder e o saber médico,<br />
incorporou o discurso das mulheres sobre suas experiências corporais<br />
na produção do conhecimento, criticou a precária situação<br />
262<br />
Gênero, mulheres e feminismos
dos serviços de saúde e reclamou as obrigações do Estado tanto na<br />
promoção da saúde quanto no enfrentamento da violência contra<br />
as mulheres.<br />
Nesse contexto, em 1983, foi elaborado o Programa de Assistência<br />
Integral à Saúde da Mulher (PAISM), que representou<br />
uma ruptura paradigmática com os programas de saúde até então<br />
destinados às mulheres, ao exigir a posição da mulher enquanto<br />
sujeito, incorporar o direito da regulação da fertilidade como um<br />
direito social e enfatizar a dimensão educativa para que as mulheres<br />
pudessem fazer suas escolhas bem informadas e livres de<br />
coerção.<br />
Foi na reivindicação pelo direito das mulheres à saúde que a<br />
sexualidade se constituiu objeto de estudos no campo das Ciências<br />
Sociais e da Saúde. (FERREIRA, 2000) A articulação ocorrida<br />
entre o movimento feminista e o movimento sanitarista brasileiro<br />
fez incorporar a ideia da saúde sexual e reprodutiva à premissa<br />
original da saúde como um direito das cidadãs e cidadãos e dever<br />
do Estado. Assim, a saúde sexual e a saúde reprodutiva, inseridas<br />
em um ampliado conceito de saúde, passaram a ser reivindicadas<br />
pelos citados movimentos como um dever do Estado e um direito<br />
de cidadania.<br />
Em resposta às reivindicações do movimento feminista e de<br />
mulheres, a Carta Constitucional de 1988 assegurou, dentre outras<br />
coisas: igualdade, em direitos e obrigações, entre homens e<br />
mulheres; condições para que presidiárias pudessem permanecer<br />
com seus filhos durante a amamentação; licença gestação de 120<br />
dias sem prejuízo do emprego e do salário; licença paternidade;<br />
proibição de diferenças de salários, de exercício de funções e de<br />
critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil;<br />
integração das empregadas domésticas à Previdência Social;<br />
os títulos de domínio e concessão de uso de terras e demais imóveis<br />
foram conferidos à mulher ou ao homem, ou a ambos, inde-<br />
Gênero, mulheres e feminismos 263
pendentemente do estado civil; os direitos e deveres referentes à<br />
sociedade conjugal pelo homem e pela mulher; planejamento familiar<br />
de livre decisão do casal, competindo ao estado propiciar<br />
recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito,<br />
sendo vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições<br />
oficiais ou privadas.<br />
O movimento feminista empreendeu esforços pelo direito à<br />
saúde integral e conferiu visibilidade a temas como sexualidade,<br />
orientação sexual, aborto, violência, saúde materna, contracepção<br />
e morte materna, dentre outros. Contribuiu, ainda, para que<br />
essas questões passassem a ser abordadas como integrantes dos<br />
Direitos Humanos (DH) e adquirissem o status de Direitos Sexuais<br />
(DS) e de Direitos Reprodutivos (DR). Os movimentos e teorias<br />
feministas também reconheceram que a exclusão e/ou o comprometimento<br />
de acesso ao direito à saúde, sofridos pela população<br />
GLBT − Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros − constituíam<br />
uma violação de direitos humanos fundamentais e feriam os princípios<br />
de universalidade, integralidade e equidade que fundamentam<br />
a concepção filosófica do Sistema Único de Saúde (SUS).<br />
Dessa forma, o Ministério da Saúde (MS), também subsidiado<br />
pelos estudos feministas, lançou, em 2004, a Política Nacional<br />
de Atenção Integral a Saúde da Mulher (PNAISM), incorporando<br />
o enfoque de gênero em seu texto, objetivando promover o reconhecimento<br />
dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos de<br />
mulheres e homens e estabelecendo a assistência conjunta de ambos<br />
os sexos e o reconhecimento das especificidades das mulheres<br />
negras, lésbicas, profissionais do sexo e indígenas. Ademais,<br />
incluiu a importância do preparo técnico e ético das equipes que<br />
prestam e/ou prestarão cuidados à saúde desses segmentos populacionais<br />
a partir do enfoque de gênero. (BRASIL, 2004)<br />
Por reconhecer não apenas a profundidade argumentativa dos<br />
estudos feministas, mas, também, o seu potencial transforma-<br />
264<br />
Gênero, mulheres e feminismos
dor de mentalidades e de articulação, planejamento, execução e<br />
avaliação de ações políticas e de políticas públicas, a formação de<br />
novas feministas se apresenta como requisito fundamental para a<br />
continuidade de práticas e teorizações que promovam a saúde das<br />
mulheres em um contexto de reconhecimento dos direitos sexuais<br />
e dos direitos reprodutivos (DSDR).<br />
Nesse sentido, esta pesquisa objetivou verificar as formas de<br />
aproximação com o feminismo e com a temática da saúde sexual e<br />
reprodutiva, de acadêmicas feministas do campo da saúde coletiva,<br />
no sentido de identificar estratégias que possam ser utilizadas<br />
ainda hoje para estimular a aproximação de outras mulheres aos<br />
pensamentos e militâncias feministas e, ainda, desencadear um<br />
processo de formação de novas feministas comprometidas com a<br />
promoção da saúde integral das mulheres.<br />
A pesquisa realizada, que se classifica como qualitativa e exploratória,<br />
buscou identificar as formas de aproximação com o feminismo<br />
e com a temática da saúde sexual e da saúde reprodutiva<br />
com perspectiva feminista, por parte de feministas acadêmicas da<br />
área da saúde coletiva.<br />
O interesse de realizar essa investigação no campo da saúde<br />
coletiva, não se deu apenas em decorrência de ser esse o campo de<br />
exercício profissional das autoras, mas, também, sob a justificativa<br />
de que as pesquisas sobre a saúde da mulher sob a perspectiva<br />
feminista e de gênero são desenvolvidas, de forma prioritária, em<br />
vários grupos de pesquisa (GPs) brasileiros, principalmente naqueles<br />
cujas pesquisadoras atuam no campo da saúde coletiva, um<br />
dos campos mais politizados e permeáveis às reflexões socioantropológicas<br />
e de gênero que integram o vasto campo do saber em<br />
saúde.<br />
Everardo Duarte Nunes afirma que o campo da saúde coletiva<br />
[...] se fundamenta na interdisciplinaridade como possibilitadora<br />
da construção de um conhecimento ampliado da saúde, no<br />
Gênero, mulheres e feminismos 265
qual continuam presentes os desafios de trabalhar com as dimensões<br />
qualitativas e quantitativas, sincrônicas e diacrônicas,<br />
objetivas e subjetivas. Assim, não existe a possibilidade de uma<br />
única formulação teórica e metodológica quando espaço, tempo<br />
e pessoa não são simplesmente variáveis, mas constituem parte<br />
integrante de processos históricos e sociais. (2005, p. 32)<br />
Para esse estudo, foram realizadas entrevistas com base em<br />
um roteiro semiestruturado, com questões acerca das suas aproximações<br />
com o feminismo e com as temáticas “saúde sexual” e<br />
“saúde reprodutiva” com perspectivas feministas. Para a análise<br />
dos dados, optou-se pela utilização da técnica da análise de conteúdo<br />
(AC), baseada em Laurence Bardin, para quem a análise de<br />
conteúdo é “[...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações<br />
que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição<br />
do conteúdo das mensagens” (2002, p. 38).<br />
A seleção das acadêmicas feministas a serem entrevistadas se<br />
deu, inicialmente, a partir de uma busca nos grupos de pesquisa<br />
(GPs) que trabalhassem com essa temática cadastrados no Diretório<br />
dos Grupos de Pesquisa do CNPq. O principal critério adotado<br />
foi que o GP deveria conter linhas de pesquisa na área da saúde<br />
sexual e da saúde reprodutiva (SSSR) e/ou sobre direitos sexuais<br />
e direitos reprodutivos (DSDR). Para tal, foram utilizados os seguintes<br />
termos de busca: feminismo, saúde sexual e saúde reprodutiva,<br />
direitos sexuais e direitos reprodutivos, feminismo,<br />
gênero e saúde da mulher e mulher.<br />
Identificados os grupos de pesquisa, foram elencados os seguintes<br />
critérios para a escolha das pesquisadoras que melhor<br />
atenderiam aos objetivos: a) autodefinição como feminista no<br />
Currículo Lattes; b) publicações em periódicos feministas; c) publicações<br />
em periódicos não feministas, mas que revelassem comprometimento<br />
com a defesa da SSSR e dos DSDR sob perspectiva<br />
feminista, aproximação com o feminismo e temática da SR e/ou<br />
266<br />
Gênero, mulheres e feminismos
DSDR anteriores ao ano de 1994; 1 e d) atuação no campo da saúde<br />
coletiva. Enfim, esses critérios se revelaram suficientes e foram<br />
selecionadas seis acadêmicas. Em decorrência do compromisso<br />
com o anonimato, firmado através do Termo de Compromisso Livre<br />
e Esclarecido (TCLE), foram atribuídos às entrevistadas nomes<br />
de importantes feministas, tais como Christine (Pizan), Olympe<br />
(de Gouges), Michele (Ferrand), Bell (Hooks), Judith (Butler) e<br />
Anne (Fausto Sterling).<br />
Depois de gravadas e feitas as transcrições das entrevistas,<br />
verificou-se o atendimento do corpus documental aos critérios<br />
recomendados pela técnica da análise de conteúdo (AC): a) exaustividade<br />
− levantamento completo do material suscetível de ser<br />
utilizado; b) homogeneidade − referência a um mesmo tema e<br />
produzido pela mesma técnica; e c) representatividade e adequação<br />
aos objetivos desta pesquisa. Após a realização de leituras sucessivas<br />
às entrevistas em que se aplicou a técnica de sub-sínteses<br />
agrupadas a partir de leituras horizontais, verticais e diagonais, de<br />
documento a documento, e cada vez mais minuciosas, as respostas<br />
foram agrupadas por diferenciação e também por semelhanças<br />
em torno das categorias de análise.<br />
Aproximações com o feminismo<br />
As formas de aproximação das mulheres com o feminismo se<br />
revelaram variadas e aconteceram em diferentes momentos.<br />
Sobre sua aproximação com o feminismo, relata Michele:<br />
— [...] naquele momento, ainda na graduação, eu me envolvi<br />
com o feminismo, no caso, em 1975. Eu fiz parte da equi-<br />
1 Em 1994, foi realizada a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, no<br />
Cairo, que definiu os conceitos da saúde reprodutiva e dos DSDR. O critério de aproximação<br />
com o feminismo e temática da SSSR anterior ao referido ano foi adotado porque se objetivava<br />
selecionar docentes com experiência acumulada acerca dessas temáticas.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 267
pe que fez a primeira... o primeiro debate público sobre<br />
a construção do papel da mulher na sociedade brasileira,<br />
junto com Branca Moreira Alves, Jaqueline Pitangui, a Leila<br />
Linhares, a Mariska de Oliveira [...]. Eu tinha vinte anos<br />
naquela ocasião [...]. A Maria Helena Darcy de Oliveira tinha...<br />
conhecia vários livros vindos do feminismo francês.<br />
Ela me apresentou muitas coisas e eu comecei a ler e, a partir<br />
daquilo, a gente se reuniu. Ela conhecia Branca Moreira<br />
Alves e houve esta primeira reunião para a gente formar o<br />
que foi o Ano Internacional da Mulher, que foi comemorado<br />
pela ONU.<br />
O evento, de cuja comissão organizadora a entrevistada Michele<br />
afirma ter participado, denominado O papel e o Comportamento<br />
da Mulher na Realidade Brasileira, ocorreu no Rio de Janeiro, em<br />
julho de 1975, na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), e é considerado<br />
fundador do feminismo organizado no país. Segundo Céli<br />
Pinto (2003), esse evento foi planejado a partir da reunião de dois<br />
grupos feministas cariocas informais, que buscaram o patrocínio<br />
da Organização das Nações Unidas (ONU) e que eram formados por<br />
mulheres pertencentes à classe média intelectualizada, com experiência<br />
internacional e com uma rede de contatos que lhes possibilitava<br />
planejar e realizar um evento desse porte.<br />
Em entrevistas concedidas a Joana Maria Pedro (2006), Rose<br />
Marie Muraro e Maria Luíza Heilborn afirmaram que foi Mariska<br />
de Oliveira quem conseguiu recursos junto à ONU para a realização<br />
desse acontecimento a partir do qual foi constituído o Centro<br />
da Mulher Brasileira, no Rio de Janeiro, e houve a formação de<br />
outros espaços feministas no Brasil, a exemplo do Centro de Desenvolvimento<br />
da Mulher Brasileira de São Paulo, em outubro de<br />
1975, que se deu a partir do Encontro para o Diagnóstico da Mulher<br />
Paulista, patrocinado pelo Centro de Informação da ONU e<br />
pela Cúria Metropolitana. (PEDRO, 2008)<br />
268<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Embora o evento ocorrido sob os auspícios da ONU seja considerado<br />
o fundador do feminismo organizado no país, Joana Pedro<br />
(2008) destaca que a difusão do ideário feminista no Brasil é anterior<br />
à referida data. De acordo com a autora, em 1966, Rose Marie<br />
Muraro publicou o livro A mulher na construção do mundo futuro<br />
e, em 1971, intermediou a publicação do livro A mística feminina,<br />
de Betty Friedan. Em 1967, Heleieth Saffioti publicou o trabalho<br />
considerado pioneiro do feminismo acadêmico brasileiro: A mulher<br />
na sociedade de classes. Segundo Celi Pinto (2003), ainda<br />
em 1972, o Conselho Nacional da Mulher, liderado pela advogada<br />
Romy Medeiros, 2 realizou um congresso para discutir a situação<br />
da mulher do qual participaram Heleieth Saffioti, Rose Marie Muraro<br />
e Carmen da Silva. Em 1973, a Professora Zahidê Machado<br />
ministrou o curso Família e relações entre sexos, na UFBA, que já<br />
continha uma abordagem feminista.<br />
A universidade brasileira do período da ditadura serviu de suporte<br />
para intelectuais e ativistas políticos que difundiam ideais<br />
de liberdade e justiça dentre os quais o ideal de redemocratização<br />
do país, o ideário feminista e o ideário da medicina social, que<br />
consubstanciou o movimento conhecido como Reforma Sanitária.<br />
3 De acordo com Joana Pedro (2005), os estudos universitários<br />
representaram um refúgio para antigos militantes e, muitas vezes,<br />
a Universidade foi considerada como um espaço neutro entre<br />
2 Segundo Joana Maria Pedro, Romy Medeiros não pertencia ao grupo de esquerda que lutava<br />
contra a ditadura e tinha boas relações com as elites do governo. A referida autora levanta a<br />
hipótese de que em decorrência do evento não ter sido promovido por um grupo de esquerda,<br />
este não figure como um dos marcos do feminismo no Brasil. (PEDRO, 2005)<br />
3 Entre os anos 60 e 70, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) estimulou o emprego das<br />
reflexões oriundas das Ciências Sociais aplicadas à Saúde na América Latina. Esse pensamento<br />
médico social foi desenvolvido no período mais repressivo do regime militar brasileiro (final<br />
dos anos 60 e início dos 70) e a abordagem histórico-estrutural dos problemas de saúde no<br />
Brasil foi construída no interior dos departamentos de medicina preventiva. Surge daí um<br />
novo pensamento sobre a saúde que, em seu processo de articulação e desenvolvimento,<br />
conformou um novo sujeito coletivo, o movimento da reforma sanitária, que foi articulado por<br />
três vertentes: o movimento estudantil e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES); os<br />
movimentos de médicos residentes e de renovação médica; e a Academia. (ESCOREL, 1998)<br />
Gênero, mulheres e feminismos 269
a militância política e os cargos de trabalho oferecidos por órgãos<br />
do Estado.<br />
Assim, a Academia se constituiu tanto como espaço de construção<br />
de propostas políticas cientificamente respaldadas quanto<br />
como espaço de resistência, em momentos agudos de repressão<br />
política. Além disso, também passou a se configurar como um<br />
dos poucos espaços de trabalho possíveis para toda uma geração<br />
recém-formada de profissionais das Ciências Sociais, Filosofia,<br />
Ciências Humanas e Medicina Social, que não vislumbravam<br />
oportunidades de emprego em outros órgãos públicos. (ESCO-<br />
REL, 1998)<br />
Segundo Joana Pedro (2008), a origem de muitos Núcleos de<br />
Estudos sobre a Mulher, feministas e/ou de gênero está intrinsecamente<br />
ligada à história de mulheres militantes em grupos de<br />
esquerda e no feminismo, que passaram a atuar nas universidades<br />
e que, hoje, consideram ter configurado mais um espaço de militância<br />
feminista: o espaço acadêmico.<br />
Maria Luiza Heilborn e Bila Sorj, entretanto, sustentam a idéia<br />
de que o impulso para os estudos feministas no Brasil surgiu da própria<br />
Academia, diferentemente do que aconteceu nos EUA e França<br />
onde partiram das ruas para a Academia. Para essas autoras,<br />
[...] as acadêmicas, por sua maior exposição a idéias que circulam<br />
internacionalmente, estavam numa posição privilegiada<br />
para receber, elaborar e disseminar as novas questões que o feminismo<br />
colocara já no final da década de sessenta nos países capitalistas<br />
avançados. Assim, quando o movimento de mulheres<br />
no Brasil adquire visibilidade a partir de 1975, muitas das suas<br />
ativistas ou simpatizantes já estavam inseridas e trabalhavam<br />
nas universidades. (1999, p. 3)<br />
No caso específico da saúde, Sarah Escorel (1998) considera que<br />
“a academia foi a vertente que deu origem ao movimento sanitário<br />
e é sua base de consolidação, já que ela dá o suporte teórico às pro-<br />
270<br />
Gênero, mulheres e feminismos
postas transformadoras”. O movimento da reforma sanitária brasileira<br />
apontava os efeitos negativos da medicalização da sociedade<br />
e propunha programas alternativos de saúde que estimulassem o<br />
autocuidado. O movimento feminista, em comunhão com o pensamento<br />
da Reforma Sanitária, reivindicava a concepção dos corpos<br />
femininos como os loci de sujeitos e atores sociais, além da desmedicalização<br />
e da integralidade da atenção na saúde da mulher.<br />
Ainda no ano de 1975, o feminismo conseguiu espaço na reunião<br />
anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência<br />
(SBPC), em Belo Horizonte, e, a partir daí, por dez anos consecutivos,<br />
as feministas fizeram seus encontros nacionais no âmbito<br />
dessas reuniões, assumindo um perfil acadêmico e inaugurando<br />
com a pesquisa científica sobre a condição da mulher no Brasil,<br />
um tipo de atuação feminista que foi fundamental nas décadas que<br />
se seguiram.<br />
O espaço da universidade aparece como o local predominante<br />
onde se deram os contatos das entrevistadas com o feminismo,<br />
fosse como estudantes ou docentes. Sobre sua identificação com o<br />
feminismo, diz Anne:<br />
— [...] Até eu entrar na faculdade, eu nunca tinha me colocado<br />
muito isso do ponto de vista identitário [...] e tinha uma<br />
amiga que eu fiz e que é minha amiga até hoje, que ela era<br />
absolutamente feminista. Ela era nascida naquela cidade e<br />
tinha uma consciência muito aguda da discriminação. Depois,<br />
aos poucos, eu fui conhecendo detalhes, por exemplo,<br />
como ela não era mais virgem, [...] quando ela chegava<br />
no ginecologista, eles deixavam ela esperando mais tempo<br />
do que as outras pessoas; então, ela tinha uma consciência<br />
muito aguda disso...<br />
Anne relata que sua mãe foi a primeira feminista que conheceu<br />
e que sempre foi estimulada a ser independente. Entretanto, sua<br />
Gênero, mulheres e feminismos 271
identidade com o feminismo se deu a partir dessa relação de amizade,<br />
ao se sentir tocada pelo sentimento de discriminação sofrido<br />
pela amiga feminista.<br />
A universidade também foi o espaço de aproximação com o<br />
feminismo para Judith, Olympe e Bell.<br />
Judith revela que sua aproximação se deu na Academia, a partir<br />
dos estudos de gênero:<br />
— Na verdade, durante ainda o final da Graduação eu já fui<br />
me aproximando dos estudos de gênero. Quando estava<br />
no Mestrado, eu fiz um estudo essencialmente sobre mulheres;<br />
não era ainda dentro de uma matriz feminista; no<br />
Doutorado, já trabalhei diretamente com teoria feminista.<br />
Os estudos de gênero também aproximaram Olympe do feminismo,<br />
em 1988. A entrevistada, que já era docente universitária<br />
na época, revelou quando se deu sua aproximação com o feminismo:<br />
“— Quando entrei no Grupo de Pesquisas sobre a Mulher”.<br />
Na época, ela estava fazendo sua Tese de Doutorado sobre o perfil<br />
reprodutivo das mulheres segundo as classes sociais e descobriu<br />
que a classe enquanto categoria de análise não explicava alguns<br />
fenômenos que apareceram, dentre os quais o da violência contra<br />
a mulher. Foi na busca pela compreensão desses fenômenos<br />
que ficou sabendo de um curso sobre gênero, no Departamento de<br />
Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas<br />
(FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP), que seria ministrado<br />
por Eva Blay e Carmen Barroso. Ela não apenas fez o curso,<br />
como passou a integrar um núcleo de estudos feministas.<br />
Bell, que também já era docente universitária, relatou sua<br />
aproximação com o feminismo por duas vias, ambas em 1987:<br />
— Acho que tem um marco disso, que foi minha entrada no<br />
[Grupo de Pesquisas Feministas] e o encontro feminista de<br />
Garanhuns.<br />
272<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Mas, ao relatar sua aproximação com o feminismo, a ênfase da<br />
fala da entrevistada recaiu sobre sua participação no citado encontro<br />
feminista.<br />
— O que ele me sensibilizou, chocou, algumas vezes, botou<br />
um bocado de coisa de ponta cabeça. Foi a primeira vez que<br />
vi realmente se discutir isso. Se discutir seriamente. [...]<br />
Então, ali que eu pude ver, na prática, por exemplo, muitas<br />
das coisas que eu já falava sobre... por exemplo, falar<br />
de direitos sexuais e reprodutivos. Foi quando eu vi falar<br />
abertamente e discutir seriamente sobre opções sexuais,<br />
lesbianismo, ou outras formas de relacionamentos sexuais,<br />
sobre direitos reprodutivos, sobre aborto, sobre direito ao<br />
aborto, ao corpo; foi onde eu realmente me defrontei, de<br />
uma vez só, com toda essa discussão feminista. Porque o<br />
encontro era feminista. [...] Não existia aula [...], todas as<br />
coisas passavam a partir das experiências das pessoas, todas<br />
as discussões eram das experiências das pessoas, pelo<br />
menos das que eu participei. Tinha vivências, oficinas [...];<br />
foi quando, inclusive, eu participei de uma oficina, me<br />
submeti a uma oficina de autoexame ginecológico, que foi<br />
uma experiência surreal. [...] Inclusive, eu passei a adotar<br />
dali em diante, né? Fiz alguns trabalhos com mulheres de<br />
periferia, a partir dessa experiência, que eu acho que é fantástica.<br />
A práxis feminista para a reconstrução de uma nova perspectiva<br />
proporcionada pelas vivências, que tem na troca das<br />
experiências vividas seu principal alicerce, parece ter proporcionado<br />
maior mobilização da entrevistada em relação ao feminismo.<br />
A experiência vivida é trazida como a fonte que mobilizou a construção<br />
de um conhecimento que objetivava, dentre outros fins,<br />
o autoconhecimento. Seu relato sobre a mobilização e o aprendizado,<br />
ocorrido através de uma oficina feminista é um exemplo<br />
Gênero, mulheres e feminismos 273
de como uma metodologia pode adotar uma objetividade científica<br />
ressignificada e proporcionada por uma perspectiva parcial,<br />
como defendido por Donna Haraway (1995).<br />
O vanguardismo do feminismo, ao discutir sobre o corpo, a<br />
sexualidade e as orientações sexuais, foi apontado por Bell, que<br />
diz ter sido a primeira vez que viu esses temas serem tratados de<br />
forma diferenciada, um fato que é respaldado por autoras como<br />
Lucila Scavone (2004), Sílvia Lúcia Ferreira (2000) e Maria Betânia<br />
Ávila (1993), ao reconhecerem que foi a partir do movimento feminista<br />
que a sexualidade se constituiu objeto de estudos no campo<br />
das Ciências Sociais e da Saúde.<br />
Ainda refletindo sobre sua aproximação com o feminismo,<br />
Bell revelou:<br />
— [...] mas eu acho que foi o fato de que sempre trabalhei com<br />
mulheres. Porque, dentro dessa discussão feminista, como<br />
sou da área de saúde, e uma das bandeiras muito fortes do<br />
feminismo foi ligada à saúde... a questão da saúde foi uma<br />
bandeira e continua sendo, da qualidade da assistência.<br />
Uma bandeira muito forte do feminismo. Sei lá, acho que<br />
foi isso, esse foi o ponto de identificação, de identidade.<br />
De fato, ser professora universitária e pertencer à área da<br />
saúde da mulher propiciou a aproximação da entrevistada com o<br />
pensamento feminista, na década de 1980, uma década marcada<br />
por ampla mobilização de movimentos sociais dentre os quais o<br />
movimento feminista, que participou de forma intensa e propositiva<br />
na elaboração de políticas públicas para as mulheres, em<br />
especial na área da saúde da mulher. Foi nessa década que o movimento<br />
feminista conseguiu converter em políticas públicas várias<br />
reivindicações de sua agenda, dentre elas, o lançamento e a implementação<br />
do PAISM. Foi, portanto, nesse envolvente processo<br />
274<br />
Gênero, mulheres e feminismos
de ruptura paradigmática que a entrevistada Bell se envolveu com<br />
o feminismo.<br />
O processo de implementação do PAISM enquanto política<br />
oficial do Governo Federal demandou sua incorporação em disciplinas<br />
no interior dos cursos. Do mesmo modo, foi necessária<br />
a formação de profissionais na área da saúde da mulher nas universidades<br />
e a qualificação dos profissionais nos serviços públicos<br />
de saúde. Para o atendimento da ruptura paradigmática reclamada<br />
pelo Programa, cursos de capacitação foram oferecidos tanto<br />
para professores universitários quanto para os profissionais dos<br />
serviços de saúde e, de modo particular, para as enfermeiras, por<br />
desenvolverem a maior parte das ações dirigidas às mulheres que<br />
objetivavam a assimilação dos princípios do Programa, como,<br />
também, a superação das assimetrias de poder entre usuárias e<br />
serviços de saúde.<br />
No caso de Christine, a aproximação com o feminismo se deu<br />
de forma bastante diferenciada, pois, embora também fosse estudante<br />
universitária, era militante política de um partido de ideologia<br />
comunista.<br />
— Se deu na cadeia, quando eu fui torturada e torturaram a<br />
minha filha, na minha frente, para que eu falasse, e não<br />
torturaram minha filha na frente do pai dela. Não que eu<br />
quisesse que ele sofresse a mesma dor que eu sofri, mas<br />
comecei a me perguntar por que, e aí eu tive a resposta:<br />
que eu era mulher, mãe, e na compreensão patriarcal dos<br />
torturadores, e aí, machista, eles pensaram que torturar<br />
na minha frente, o simbólico da maternidade faria eu me<br />
fragilizar.<br />
Ela relata, ainda, que foi na solidão da prisão, a partir de suas<br />
próprias reflexões, que chegou à conclusão de que o machismo e<br />
a força do patriarcado alicerçavam as condutas violentas às quais<br />
Gênero, mulheres e feminismos 275
era submetida e que depois buscou a literatura feminista para<br />
tentar compreender melhor a violência à qual fora sujeitada.<br />
Vale aqui ressaltar que muito embora a Universidade seja<br />
citada como o principal espaço que favoreceu o contato com o<br />
feminismo, a matéria propulsora dessa aproximação foi o interesse<br />
das entrevistadas pela temática relacionada à sexualidade<br />
e à reprodução.<br />
Aproximações à temática saúde sexual e<br />
reprodutiva com a perspectiva feminista<br />
— Eu me lembro que a primeira vez que eu ouvi isso foi aqui<br />
na escola; uma pessoa que veio falar contra o planejamento<br />
familiar, aquele planejamento familiar... [...] E eu me lembro<br />
que eu pensava assim: ‘Meu Deus, tem alguma coisa aí<br />
que eu preciso ir atrás. Eu preciso ir atrás disso’. Com as<br />
discussões, é... quando a gente começou a ficar mais crítica<br />
em relação a isso, que a gente começou a ver que, na<br />
verdade, não era bem aquilo, né? Que era só uma forma a<br />
mais de dominação, via as mulheres e tal, a gente começou<br />
a fazer [...]. E comecei a procurar as críticas, então, que se<br />
faziam naquele momento. Uma a... todo aquele trabalho da<br />
BEMFAM... porque, quando veio para o Brasil e começou, a<br />
proposta da BEMFAM era uma proposta extremamente humanitária.<br />
Não tinha essa percepção que a gente tem hoje,<br />
e que teve logo depois de uma coisa de dominação, do IPPF<br />
e tal. Ela não veio com essa cara, ela veio com uma cara de<br />
uma coisa humanitária. [...] E eles faziam discurso do não<br />
controle de natalidade, que não era controle de natalidade,<br />
que era planejamento familiar. E aí eu comecei a fazer<br />
pesquisa nisso. Fiz várias, umas quatro, cinco. E sobre isso<br />
[...]. Enfim, foi uma aproximação que vem lá do planeja-<br />
276<br />
Gênero, mulheres e feminismos
mento familiar e se transforma na discussão dos direitos<br />
sexuais e reprodutivos [...].<br />
(Olympe)<br />
A fala de Olympe revela que seu despertar para a crítica feminista<br />
acerca da saúde sexual e reprodutiva se deu na Universidade,<br />
a partir de um pronunciamento contrário ao planejamento familiar<br />
desenvolvido pela Bemfam, principal agente da International<br />
Planned Parenthood Federation (IPPF), instituição norte-americana<br />
que, em conjunto com outras entidades não-governamentais,<br />
foi responsável pela execução da política internacional de<br />
controle populacional liderada pelos Estados Unidos para evitar<br />
uma explosão demográfica nos países pobres e em desenvolvimento.<br />
Dessa forma, o Brasil foi incluído nas estratégias globais de<br />
prevenção da tão temida “explosão demográfica” e os programas<br />
de planejamento familiar tiveram início e se desenvolveram em<br />
pleno regime militar, cujo discurso oficial era, paradoxalmente,<br />
pró-natalista. A política internacional de controle populacional se<br />
concretizou a partir da definição de metas populacionais de países-chave<br />
e por meio de pressão sobre líderes nacionais para que<br />
aceitassem as atividades de controle de fertilidade das mulheres.<br />
(VENTURA, 2006) Para o controle da natalidade, eram implantados<br />
serviços de “planejamento familiar” que, através de práticas<br />
persuasivas e coercitivas, distribuía métodos contraceptivos de<br />
alta eficácia, a exemplo da pílula, além de estimular a esterilização<br />
feminina.<br />
Foi na década de 1980 que a esterilização feminina começou<br />
a ser disseminada no Brasil e chegou a figurar como o primeiro<br />
método contraceptivo nacional, colocando o país entre aqueles<br />
com as mais altas taxas de esterilização do mundo. Essas esterilizações,<br />
ainda segundo Miriam Ventura (2006), eram realizadas<br />
Gênero, mulheres e feminismos 277
por instituições assistenciais financiadas por capital externo, de<br />
forma inadequada e ilícita, no bojo de ações dirigidas à saúde da<br />
mulher, com o propósito de controlar a natalidade nos segmentos<br />
mais pobres e de população negra.<br />
Segundo Sônia Corrêa e Rebecca Reichmann (1994), a existência<br />
dessa rede ativa de organizações não-governamentais (ONGs)<br />
de capital externo, voltadas para ações de planejamento familiar<br />
e para o desenvolvimento de estratégias de marketing de contraceptivos<br />
foi a principal responsável pela queda da fecundidade das<br />
mulheres brasileiras, nas décadas de 1970-80. Para Elza Berquó<br />
(1993), tal redução foi obtida pela elevada utilização da esterilização<br />
feminina e da pílula, usadas, respectivamente, por 44% e 41%<br />
das mulheres unidas, de 15 a 54 anos de idade, que usavam algum<br />
contraceptivo, o que fez com que as taxas passassem de 4,5 filhos<br />
por mulher, em 1980, para 3,5, em 1984, chegando a 2,5, em 1991.<br />
Para Elza Berquó e Suzana Cavenaghi, “a transição da fecundidade<br />
no Brasil teve início em meados da década de 1960. As taxas sofreram<br />
redução de 24,1%, entre 1970 e 1980, de 38,6%, na década<br />
seguinte e, a partir daí, 11,1%, entre 1991 e 2000” (2006, p. 11).<br />
É importante destacar, entretanto, que a queda abrupta da<br />
taxa de fecundidade não se deu exclusivamente em decorrência<br />
da atuação das ONGs estrangeiras, uma vez que outras variáveis<br />
também colaboraram para tal. De acordo com Margareth Arilha<br />
(1995), o desenvolvimento econômico, em especial o processo de<br />
industrialização, desencadeou a migração urbana e transformou<br />
os padrões ocupacionais das mulheres. A expansão de modernos<br />
sistemas de comunicação deu nova forma às normas culturais reprodutivas<br />
afetando os padrões reprodutivos no Brasil. Por outro<br />
lado, as políticas de crédito, incentivando novos padrões de<br />
consumo, também fizeram com que as mulheres e/ou casais repensassem<br />
o número de filhos. De acordo com Elza Berquó e Suzana<br />
Cavenaghi (2006), a tendência de declínio da fecundidade se<br />
278<br />
Gênero, mulheres e feminismos
manteve e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD),<br />
realizada em 2004, revelou que o número médio de filhos por mulher<br />
atingiu a taxa de 2,1, representando uma queda de 12,5% em<br />
relação ao último censo. 4<br />
O movimento feminista denunciou a prática ilegal da esterilização<br />
feminina ao Congresso Nacional, pressionando-o para a<br />
instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que<br />
acabou por confirmar que as mulheres se submetiam à esterilização<br />
cirúrgica, muitas vezes, inapropriadamente, por falta de outras<br />
opções contraceptivas disponíveis e reversíveis. A CPI, instituída<br />
em 1991, constatou, também, que a laqueadura era realizada,<br />
normalmente, durante o curso da cesariana, de forma inadequada<br />
e, em algumas ocasiões, sem consentimento da mulher (BRASIL,<br />
1993). As conclusões e recomendações dessa Comissão desencadearam<br />
ações legislativas no setor da saúde para a regulamentação<br />
das estratégias de planejamento familiar, inclusive, da esterilização<br />
cirúrgica.<br />
O direito ao planejamento familiar foi assegurado pela Constituição<br />
Federal Brasileira de 1988 (CF/88), entretanto, somente<br />
após oito anos foi regulamentado por meio da Lei n. 9.263, de 12<br />
de janeiro de 1996, que também estabeleceu critérios para a realização<br />
da esterilização cirúrgica voluntária. (BRASIL, 1996)<br />
Para Olympe que, desde o início da carreira universitária trabalhava<br />
com planejamento familiar, o desenvolvimento de um<br />
pensamento crítico sobre a sexualidade e a reprodução das mulheres<br />
aconteceu como uma evolução do seu trabalho, inclusive<br />
nas discussões sobre o PAISM, que trazia em sua concepção o pensamento<br />
feminista. Segundo a entrevistada:<br />
4 Berquó e Cavenaghi (2006) destacam que a educação e a renda das mulheres se mantêm<br />
em relação inversamente proporcional aos níveis de fecundidade. Entretanto, segundo Arilha<br />
(1995), no que tange à esterilização, esta também é escolhida por grande parte das mulheres<br />
com nível educacional mais elevado.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 279
— Eu participava das discussões sobre o PAISM. Por exemplo:<br />
aquelas capacitações que foram feitas para o PAISM, eu<br />
participei de todas elas. Eu fui capacitada e, depois, eu fiz<br />
muitas capacitações.<br />
Michele, que já era militante feminista desde a década de 1970,<br />
relatou que sempre se interessou pela temática da sexualidade e se<br />
decidiu pelos estudos da Antropologia da Mulher por considerar<br />
esse campo de investigação mais acolhedor aos seus questionamentos<br />
acerca das assimetrias de gênero. Ao se tornar docente,<br />
foi convidada por um colega para integrar o Instituto de Saúde<br />
Coletiva (ISC) de sua Universidade, com a seguinte argumentação:<br />
“— Você é uma feminista importante, trabalha com temas de<br />
sexualidade, muda aqui internamente [...], vem pra o Instituto<br />
de Saúde Coletiva”. Dessa forma, ela se decidiu pelo ISC e, mais<br />
tarde, passou a coordenar um grupo de pesquisas sobre saúde, gênero<br />
e sexualidade.<br />
Bell, ao refletir sobre sua aproximação com o feminismo acerca<br />
da temática da sexualidade e da reprodução, revela:<br />
— Particularmente, eu acho que foi uma formação que eu<br />
participei em Pernambuco, do SOS Corpo.<br />
De fato, em decorrência da ineficiência do Estado em relação<br />
à promoção da saúde sexual e reprodutiva das mulheres, as<br />
ONGs passaram a ocupar parte do espaço deixado pelo Estado,<br />
contribuindo como espaço de treinamento interdisciplinar para<br />
profissionais da rede pública, assim como no desenvolvimento de<br />
atividades promotoras do autoconhecimento e empoderamento<br />
das mulheres acerca de seus próprios corpos.<br />
A formação de ONGs foi uma das formas que as feministas<br />
brasileiras adotaram para a expressão de suas lutas políticas. As<br />
práticas de saúde sexual e reprodutiva desenvolvidas pelas ONGs<br />
280<br />
Gênero, mulheres e feminismos
feministas buscavam a politização das esferas da reprodução e da<br />
sexualidade que, amparadas em um novo paradigma de liberdade,<br />
tencionavam promover o autoconhecimento do corpo e a valorização<br />
da mulher como cidadã.<br />
Sobre a atuação das ONGs feministas, Sílvia Lúcia Ferreira relata<br />
que, nelas, além do atendimento diferenciado, “criou-se um<br />
espaço para a capacitação de profissionais em um verdadeiro e<br />
saudável casamento teoria e prática” e, ainda, que<br />
[...] o exercício de trabalhar com equipes multidisciplinares diferenciadas<br />
(antropólogos, sociólogos, assistentes sociais, enfermeiras,<br />
médicos) trouxe, por outro lado, a possibilidade de<br />
discussão da saúde sob ângulos teóricos diferentes e inovadores<br />
e tornou a rígida área da saúde muito mais permeável a outros<br />
campos do conhecimento. (2000, p. 98)<br />
A referida autora destaca, também, que essas ONGs se fortaleceram,<br />
influenciaram e pressionaram a Academia a assumir<br />
posturas mais avançadas e que, em 1991, foi criada a ONG Rede<br />
Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos que passou a articular<br />
os núcleos e grupos militantes da área.<br />
Assim, entre os anos de 1970 e 1990, o trabalho dessas organizações<br />
feministas associado a outros movimentos de mulheres se<br />
construiria, especialmente, baseado nas experiências das mulheres<br />
e em suas necessidades nos campos da sexualidade e da reprodução,<br />
o que inspirou a elaboração e o aprimoramento das noções<br />
dos direitos reprodutivos e dos direitos sexuais. Dessa forma, na<br />
teorização e na ação desenvolvidas pelas feministas do Brasil e<br />
do mundo, as demandas pelo livre exercício da sexualidade, pelo<br />
aborto legal e pela contracepção não coercitiva se tornaram os<br />
elementos condutores para o desenvolvimento do pensamento<br />
sobre os direitos sexuais e os direitos reprodutivos das mulheres.<br />
Judith, ao refletir sobre sua aproximação com a referida temática,<br />
relata:<br />
Gênero, mulheres e feminismos 281
— Na verdade eu fazia o Doutorado quando fiz aquele curso<br />
do NEPO, lembra? Era um curso que eles davam, de saúde<br />
sexual e direitos sexuais e reprodutivos, sempre, durante<br />
dez anos. Eu acredito que uma geração de pesquisadores<br />
passou por ali, que hoje trabalha nesta área.<br />
A fala de Judith nos apresenta a contribuição do Núcleo de Estudos<br />
de Populações (NEPO), 5 no sentido de qualificar profissionais<br />
para o exercício de suas funções no campo da sexualidade e da<br />
reprodução. Trata-se de uma iniciativa da Academia cujas docentes<br />
são feministas ou têm afinidades com o pensamento feminista<br />
e a qualificação a que Judith se referiu foi o “Programa de Estudos<br />
em Saúde Reprodutiva e Sexualidade”. A aproximação da entrevistada<br />
com a temática sob a ótica feminista se deu, portanto, por<br />
meio da militância feminista na Academia.<br />
Anne, por sua vez, destaca que o cenário da época foi muito<br />
propício à sua aproximação com a temática:<br />
— Tem toda uma coisa aí já de maior engajamento em grupos<br />
feministas no Rio e da reflexão, da leitura... [...] Com o retorno<br />
das mulheres exiladas em 1980, basicamente, que é o<br />
começo do retorno delas e é... principalmente, as que estavam<br />
vindo da França... então, foi um momento, assim, extremamente<br />
rico, que deu uma outra qualidade ao debate<br />
feminista no Rio de Janeiro, que era o lugar onde eu estava.<br />
E então, todas aquelas ideias do nosso corpo nos pertence,<br />
é... as estratégias de organização do movimento feminista<br />
que começara a mudar, o surgimento dos coletivos, da<br />
ideia de redes de estruturas não hierárquicas...<br />
5 A linha de pesquisa “Saúde Reprodutiva e Sexualidade” do NEPO/Unicamp visa a aprofundar<br />
a discussão sobre os aspectos legais, políticos, éticos e técnicos presentes nas questões da<br />
sexualidade e da reprodução. Como projetos, constam o Programa de Estudos em Saúde<br />
Reprodutiva e Sexualidade e o Programa Interinstitucional de Treinamento em Metodologia de<br />
Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Reprodução. Ambos são interdisciplinares e qualificaram<br />
profissionais para o exercício de suas funções no campo da sexualidade e da reprodução.<br />
Disponível em: .<br />
282<br />
Gênero, mulheres e feminismos
A fala de Anne rememora a efervescência política e de ideias<br />
da década de 1980, marcada por várias conquistas do movimento<br />
feminista e de mulheres em geral e que, dentro de um processo<br />
de reconstrução das instâncias da democracia, viriam a se tornar<br />
realidade. Dentre as suas reivindicações estavam a implantação,<br />
pelo Ministério da Saúde, do PAISM, a criação dos Conselhos dos<br />
Direitos da Mulher (CDM), em níveis nacional, estadual e municipal,<br />
e as Delegacias de Atendimento à Mulher vítima de violência<br />
(DEAMs). Ainda nessa década, mulheres atuaram ativamente na<br />
reorganização partidária, 6 nas eleições para os diversos níveis, na<br />
reelaboração da Constituição do país 7 e nas eleições presidenciais.<br />
Foi também nessa década que os grupos de reflexão feministas<br />
assumiram outros arranjos organizativos e instituíram os Coletivos<br />
Feministas e as ONGs que objetivavam o desenvolvimento de<br />
ações direcionadas ao resgate e/ou conquista da autonomia feminina<br />
nos campos da saúde, do corpo, da sexualidade, como também,<br />
ações de combate à violência.<br />
Segundo Karla Adrião (2008), as ONGs e as redes feministas<br />
são as formas através das quais o feminismo brasileiro vem se<br />
organizando com maior força, desenvolvendo papel importante<br />
no fomento de ações políticas e de políticas públicas que visam o<br />
6 “As eleições de 1982 haviam dividido as militantes feministas em dois grandes grupos,<br />
as peemedebistas e as petistas”. (PINTO, 2003, p. 79)<br />
7 O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) capitaneou uma ampla campanha nacional<br />
pelos direitos das mulheres na nova Constituição, com os lemas “Constituinte Para Valer tem<br />
que ter Palavra de Mulher” e “Constituinte para Valer tem que ter Direitos da Mulher”. No final<br />
de 1986, o CNDM organizou um grande encontro nacional em Brasília, no Congresso Nacional,<br />
para o qual se deslocaram centenas de mulheres de todas as regiões do país e no qual foi<br />
aprovada a “Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes”. Em março de 1987, quando da<br />
inauguração do Congresso Constituinte, essa Carta foi entregue pela Presidente do CNDM, Sra.<br />
Jaqueline Pitanguy, ao Deputado Ulisses Guimarães, Presidente do Congresso Nacional. A partir<br />
de então, teve início um grande movimento de luta pelos direitos das mulheres na Constituição,<br />
que ficou conhecido como “O Lobby do Batom”, que foi um movimento de sensibilização<br />
dos deputados e senadores para a relevância de considerar as demandas das mulheres<br />
visando à construção de uma sociedade guiada por uma Carta Magna verdadeiramente<br />
cidadã e democrática. Com a promulgação da Constituição, em outubro de 1988, as mulheres<br />
conquistaram a maioria expressiva de suas reivindicações. Disponível em: . Acesso em: 14 ago. 2009.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 283
empoderamento de mulheres. 8 Entretanto, adverte que as ONGs<br />
representam, também, uma profissionalização do movimento feminista,<br />
um fato ameaçador para a autonomia do movimento, já<br />
que muitas estratégias são também definidas por negociações de<br />
ordem global ou para atender a demandas específicas das fontes<br />
financiadoras.<br />
As Redes, por sua vez, foram criadas, na década de 1990, com o<br />
objetivo de manter conectados os mais diferenciados movimentos<br />
de mulheres e feministas, possibilitando a troca de experiências,<br />
o fortalecimento e a unificação dos movimentos de mulheres,<br />
independentemente de suas identidades e diferenças políticoideológicas.<br />
São exemplos desses esforços, a Rede Brasileira de Estudos<br />
e Pesquisas Feministas (REDEFEM), a Rede Feminista Norte<br />
e Nordeste de Estudos e Pesquisas Sobre a Mulher e Relações de<br />
Gênero (REDOR), a Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos<br />
Reprodutivos (Rede Saúde), a Articulação de Mulheres Brasileiras<br />
(AMB), a Marcha Mundial de Mulheres (MMM) e a Articulación<br />
Feminista Marcosur (AFM). 9<br />
A fala de Anne sobre o retorno das feministas exiladas está<br />
de acordo com Cynthia Sarti que relata que “a anistia permitiu<br />
a volta das exiladas e com elas um novo fôlego ao movimento, na<br />
medida em que traziam a influência de um movimento feminista<br />
8 Essa atuação é reconhecida por autoras como Pinto (2003) que destaca as ações realizadas<br />
junto à bancada feminina no Congresso Federal pela ONG CFemea. Lourdes Bandeira (2000)<br />
comenta sobre o fortalecimento de ONGs como o SOS Corpo, em Recife, e o Coletivo Feminista<br />
Sexualidade e Saúde, de São Paulo.<br />
9 A Rede Saúde foi criada em 1991, com o objetivo de articular os movimentos de mulheres e<br />
feministas para atuar em defesa da garantia dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos<br />
(ver em: http://www.redesaude.org.br). A AMB, fundada em 1994, foi organizada no sentido<br />
de unir e fortificar os movimentos de mulheres e feministas visando à Conferência de Beijing,<br />
em 1995 (Ver em: www.articulacaodemulheres.org.br). A MMM, fundada em 1995, no Canadá,<br />
é uma organização feminista internacional de luta contra a pobreza e a violência sexista, com<br />
participação de 159 países, dentre eles o Brasil (Ver em: www.sof.org.br). A AFM foi constituída<br />
em setembro de 2000, por organizações do Uruguai, Brasil, Chile, Paraguai, Argentina e Peru,<br />
em decorrência da avaliação da “IV Conferência Mundial da Mulher” (Beijing, 1995),<br />
objetivando fortalecer os espaços de articulação entre os movimentos sociais e reforçar a<br />
presença feminista nesses âmbitos e na sociedade (Ver em: http://www.mujeresdelsur-afm.<br />
org.uy/index_e.htm).<br />
284<br />
Gênero, mulheres e feminismos
atuante, sobretudo na Europa” (2001, p. 41). Tal fato é reconhecido<br />
por Renata Gonçalves (2009), ao declarar que a anistia política<br />
contribuiu de forma positiva para uma integração de agendas entre<br />
os movimentos de mulheres e feministas, politizando os debates<br />
e aumentando a incorporação do pensamento feminista nos<br />
movimentos de mulheres. Entretanto, essa integração também<br />
gerou tensões, uma vez que a pauta de reivindicações feministas<br />
trazidas pelas exiladas reclamava a liberação feminina em países<br />
democráticos, enquanto que, no Brasil, sob o regime da ditadura,<br />
as reivindicações feministas se concentravam em necessidades<br />
práticas do cotidiano, a exemplo da exigência de creches, fim da<br />
carestia, água encanada, dentre outras.<br />
Se, por um lado, o ideário feminista trazido pelas exiladas fortalecia<br />
o pensamento das feministas brasileiras, pois associavam o<br />
feminismo a um movimento libertário, que enfatizava o corpo, a<br />
sexualidade, o prazer e a ruptura com toda tutela e forma de dominação,<br />
por outro lado, incitava reações negativas não apenas<br />
dos partidos e grupos de esquerda, mas, também, de algumas feministas,<br />
que insistiam em subordinar a causa das mulheres à luta<br />
de classes, à luta do proletariado contra a burguesia.<br />
Ainda sobre a aproximação com a temática da saúde sexual e<br />
reprodutiva com perspectiva feminista, Cristine relata como se<br />
deu sua aproximação:<br />
— Desde sempre, desde quando... eu saí da cadeia, em 74, e aí<br />
eu já estava muito envolvida com essa temática. Depois, eu<br />
fui buscar ler... Eu já tinha lido rapidamente alguma coisa<br />
da Simone de Beauvoir... por incrível que pareça, ela e<br />
Alexandra Kolontai e a Emma Goldman tiveram uma influência<br />
muito grande na minha vida. As duas primeiras<br />
como militantes, Emma Goldman e a Alexandra Kolontai,<br />
e a Simone de Beauvoir como libertária. E depois eu vim<br />
Gênero, mulheres e feminismos 285
eencontrar Emma Goldman numa releitura também, nessa<br />
perspectiva da liberdade, de viver sexual...<br />
Conforme citado anteriormente, a entrevistada foi buscar a<br />
literatura feminista como forma de melhor entender as torturas<br />
que sofrera na prisão. Isso envolveu um autoesforço no sentido de<br />
articular sua formação marxista com a questão da subjetividade.<br />
Para Cíntia Sarti, “a discussão ontológica do ser mulher, inspirada<br />
pelas feministas marxistas (Alexandra Kollontai) e por Simone de<br />
Beauvoir, tornou-se imprescindível e inevitável para a elaboração<br />
do que havia sido vivido” (2001, p. 34).<br />
Conclusões<br />
As entrevistas realizadas revelaram que a aproximação com<br />
o feminismo das acadêmicas feministas se deu em diferentes circunstâncias<br />
e espaços temporais, contextualizados tanto durante<br />
o período mais duro da ditadura militar quanto no período de<br />
redemocratização do país. O espaço universitário foi o local por<br />
excelência das aproximações das entrevistadas, seja como estudantes<br />
ou como professoras, o que aponta a Universidade como<br />
importante espaço de difusão e adesão de mulheres e homens ao<br />
pensamento feminista.<br />
A principal forma de aproximação com o feminismo se deu<br />
através de contatos pessoais com feministas, fossem professoras,<br />
amigas ou colegas de universidade, um fato sugestivo de que a livre<br />
divulgação do pensamento feminista (entendida como todas<br />
e quaisquer oportunidades de expressar o pensamento feminista)<br />
se constitui como importante estratégia de agregação de pessoas<br />
ao movimento.<br />
Ao ampliarmos a concepção de militância para além da militância<br />
clássica das ruas e incorporarmos a produção da litera-<br />
286<br />
Gênero, mulheres e feminismos
tura feminista, podemos afirmar que todas as entrevistadas se<br />
aproximaram do feminismo em consequência da militância feminista<br />
através: da literatura (livros, artigos, dissertações, teses,<br />
panfletos); de palestras proferidas; da conformação dos núcleos<br />
e grupos de pesquisa sobre mulheres e gênero; de programas de<br />
treinamento oferecidos por universidades; de capacitações em<br />
ONG feministas; e de cursos de qualificação para a implantação<br />
do PAISM, que contou com a participação de feministas, e cujo<br />
processo de implementação, enquanto política pública oficial do<br />
Estado brasileiro para as mulheres, findou por se constituir como<br />
uma estratégia de divulgação do pensamento feminista por todo<br />
o país.<br />
O interesse das entrevistadas acerca da temática da sexualidade,<br />
da reprodução e da saúde integral da mulher aparece como<br />
elemento catalisador da aproximação com o ideário feminista que<br />
apresentava, e ainda apresenta novas reflexões e perspectivas<br />
teóricas que enriqueciam/enriquecem a construção de um conhecimento<br />
que queria/quer ser politizado, por extrapolarem o<br />
domínio das Ciências Biológicas e incorporarem reflexões da Sociologia,<br />
da História e da Antropologia sobre a saúde, os corpos e<br />
as sexualidades das mulheres.<br />
A partir das aproximações iniciais com o feminismo e com a<br />
temática da saúde sexual e reprodutiva sob o prisma do feminismo,<br />
as acadêmicas entrevistadas contribuíram para a consolidação<br />
do campo de estudos sobre a mulher/gênero/ feministas no<br />
país, através da fundação e/ou participação em núcleos de estudos<br />
de gênero e da mulher, fundação/participação em ONG feministas,<br />
publicações de pesquisas e inserção dos estudos sobre<br />
mulher/gênero/feministas nas universidades.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 287
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290<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Quarta parte<br />
G<br />
Analisando<br />
representações
REPRESENTAÇÕES<br />
DE <strong>MULHERES</strong> EM SITCOMS<br />
neoconservadorismo (Mulheres em Séries, 19)<br />
Ivia Alves<br />
Existe essa questão de que a TV influencia a sociedade e vice-versa.<br />
No início existiram programas, principalmente americanos, que eram<br />
produzidos com o intuito de direcionar o comportamento social. Pode até<br />
ter conseguido em algumas camadas e por algum tempo, mas a sociedade<br />
não deixou de mudar por conta disso. Tanto é que a programação<br />
mundial é facilmente classificada por décadas. Em relação às séries de<br />
televisão, mais especificamente a americana, eles levavam uma década<br />
inteira para abordar um determinado comportamento. Muito embora os<br />
temas considerados tabus sempre estivessem camuflados nas entrelinhas.<br />
A vantagem da televisão é conseguir trazer para dentro das casas das pessoas<br />
situações nas quais elas podem se identificar e (se Deus quiser) permitir que<br />
elas se questionem; é levar para dentro das casas das pessoas um mundo<br />
de informações e imagens às quais elas não teriam acesso por falta de<br />
tempo, interesse, geografia, dinheiro ou cultura. Cabe à televisão saber<br />
utilizar essa vantagem. (FURQUIM, 2005)<br />
Sinto começar este artigo com negativas, mas sem elas não<br />
chegarei ao meu alvo: não vou falar sobre a indústria cultural nem<br />
mesmo sobre a televisão e todas as suas limitações − patrocinado-
es, programação e seu discurso conservador e dominante. Meu<br />
alvo é analisar de que maneira as séries (que, para a audiência são<br />
mais uma forma de lazer) vão, gradativamente, modificando suas<br />
mensagens e a forma de ler o mundo e como a audiência, desarmada,<br />
vai internalizando tais discursos, transformando-os em<br />
modelos de forma de vida. Refiro-me às modificações corporais,<br />
comportamentais, de visão de mundo e às metas, que vêm embaladas<br />
com uma indumentária específica que controla o corpo e,<br />
talvez, a forma de pensar, induzindo à não reflexão, a não criar ou<br />
acatar outros discursos alternativos. 1<br />
Vamos centrar a atenção e a análise em um gênero que vem se<br />
popularizando cada vez mais na programação televisiva: as séries<br />
norte-americanas. As sitcoms 2 ou séries de situação são pequenas<br />
cenas encadeadas que abordam risivelmente a vida cotidiana<br />
e que são encenadas na televisão, com plateia ou sem ela. Elas se<br />
diferenciam das comédias pela inclusão do público e essa inserção,<br />
seja real ou introduzida por risadas gravadas, se deve ao seu<br />
original suporte que foi o rádio no qual elas foram veiculadas a<br />
partir de 1930, tendo sido adaptadas pela televisão, no seu início<br />
(1950), graças à popularidade que conseguiam alcançar na mídia<br />
1 O centro da minha pesquisa são as séries policiais de procedimento investigativo, mas, à medida<br />
que as representações de mulheres foram se modificando e que encontrei o seu início nas<br />
sitcoms e comédias, meu foco se deslocou para esse estudo, no intuito de voltar e perceber,<br />
claramente, as transformações das personagens femininas no gênero policial. A minha escolha<br />
pelas séries policiais procede porque, sendo a instituição constituída, originariamente, por<br />
homens, com regras e hierarquias rígidas, só tendo ocorrido a inserção de mulheres a partir<br />
de 1960, oferece maiores possibilidades de análise das relações de gênero e de poder. Por<br />
serem, em geral, classificadas como dramas, as desigualdades não se colocam da mesma<br />
maneira como são exercitadas na comédia, em que são vistas como brincadeira. Mesmo que<br />
os questionamentos apareçam de forma muito sutil entre o elenco fixo, nas séries norteamericanas<br />
investigativas, é possível detectar as várias formas de desigualdades e assimetrias.<br />
2 Sitcom é a abreviatura da expressão em inglês situation comedy (comédia de situação, numa<br />
tradução livre) e, normalmente, consiste em uma ou mais histórias onde existe humor,<br />
encenada por personagens comuns, em ambientes comuns como família, grupo de amigos,<br />
local de trabalho; são, em geral, gravadas diante de uma plateia, ao vivo e se caracterizam<br />
pelos ‘sacos de risadas’, embora isso não seja uma regra. As situation comedies surgiram no<br />
Reino Unido, na época de ouro do rádio, mas hoje são peça fundamental da programação das<br />
televisões norte-americanas. Disponível em: .<br />
Acesso em: 4 nov. 2010.<br />
294<br />
Gênero, mulheres e feminismos
original. Mas não é só isso a comédia (ou sitcom) televisiva. 3 Aqui<br />
se pode pensar em adaptar a definição de Flávio Aguiar (2003)<br />
para a “comédia de costumes” que, desde sua origem, na Grécia,<br />
“caracteriza-se pela criação de tipos e situações de época, com<br />
uma sutil sátira social” e, ainda:<br />
Proporciona uma análise dos comportamentos humanos e dos<br />
costumes num determinado contexto social, tratando freqüentemente<br />
de amores ilícitos, da violação de certas normas de<br />
conduta, ou de qualquer outro assunto, sempre subordinados a<br />
uma atmosfera cômica.<br />
A trama desenvolve-se a partir dos códigos sociais existentes, ou<br />
da sua ausência, na sociedade retratada.<br />
As principais preocupações dos personagens são a vida amorosa,<br />
o dinheiro e o desejo de ascensão social.<br />
O tom é predominantemente satírico, espirituoso e cômico, oscilando<br />
entre o diálogo vivo e cheio de ironia e uma linguagem às<br />
vezes conivente com a amoralidade dos costumes.<br />
Assim, ao mesmo tempo em que tem uma forte marca de crítica,<br />
ao explorar atitudes e comportamentos de pessoas comuns,<br />
essa crítica pode passar ao largo, para uma audiência desavisada<br />
que ri das situações com as quais se identifica, mas, também, e<br />
principalmente, das que ela identifica no Outro. Por outro lado,<br />
no contexto econômico do país, que atinge tanto a produção de<br />
programas como o seu público alvo, atualmente, vem se intensificando<br />
a profusão de comédias que tratam de temas contemporâneos<br />
e ganhando grande espaço na programação da televisão.<br />
Qualquer outro tipo de programação, exceto o formato de no-<br />
3 No Brasil, há inúmeros exemplos de sitcoms como A grande família, de Oduvaldo Vianna Filho,<br />
o Vianinha, em sua primeira edição (1972-1975); e em sua segunda edição, argumento original<br />
de Vianinha com a colaboração de diversos roteiristas, (2001−); Sai de baixo, de Luís Gustavo e<br />
Daniel Filho (1996-2002); Os normais, de Fernanda Young (2001-2003); e várias outras, todas<br />
exibidas na programação da Rede Globo de Televisão.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 295
tícias, tem perdido espaço para o riso ou para os reality shows.<br />
Tempos duros economicamente, tempos de invenções. E assim,<br />
as duas formas mais ecônomicas de programação televisiva se<br />
tornam eficientes em tempos de cortes financeiros. Refiro-me às<br />
inúmeras séries de comédias “leves” atuais, mais precisamente a<br />
Glee (jovens perdedores de uma escola) e Modern Family (a nova<br />
“organização” de famílias), ambas ganhadoras de vários Prêmios<br />
Emmy’s, bem como a No Ordinary Family ou The Big Bang Theory<br />
que apresentam novas atitudes e formas de convivência da<br />
família parental, de jovens perdedores ou de nerds, os chamados<br />
geeks.<br />
As séries cômicas, que se caracterizam por cenários fixos, vêm<br />
passando por transformações e reiterando essas novas formas de<br />
viver e conviver. 4 E é dentro dessas transformações provenientes<br />
da necessidade da audiência e, ao mesmo tempo, das grandes<br />
modificações no contexto socioeconomico-cultural, que determinadas<br />
representações de mulheres se desenvolvem, afetando<br />
em cheio aquelas que perduraram por mais de vinte anos em inúmeras<br />
séries dramáticas do final do século XX, seguindo a agenda<br />
do “feminismo da segunda onda”.<br />
E assim, chegamos ao nosso foco de atenção: a análise das representações<br />
das mulheres que, nas produções seriadas dos últimos<br />
cinco anos, podem ser lidas como uma volta ressignificada<br />
dos paradigmas das décadas de 50/60. Detectamos o apelo muito<br />
forte ao casamento como uma forma de estabilidade não só emocional<br />
como financeira, um cuidado especial quanto ao ser mãe,<br />
com todos os atributos e obrigações que o papel implica e, ainda,<br />
uma gama de profissões voltadas para “o mundo da mulher”,<br />
isto é, moda, design, revistas, profissões variadas mas que giram<br />
4 Por sinal, o humor, a comédia ou cenas de comédia vêm contaminando inclusive os dramas e,<br />
dentre esses, até as séries policiais investigativas, formato clássico que, por tratar de crimes e<br />
assassinatos, resistiu, até os anos 2000, a introduzir o caricato, o riso fácil, o tom cômico.<br />
296<br />
Gênero, mulheres e feminismos
e circulam em torno da beleza. Nos roteiros das atuais séries, são<br />
escolhidas para um maior aprofundamento as personagens que<br />
têm profissões cujo “domínio [esteja], em geral, associado ao espaço<br />
da mulher”, como coloca Hamburger (2007, p. 168), em sua<br />
análise de novelas. “O domínio da arte, da moda, da estética e da<br />
cozinha” e eu acrescentaria, ainda, profissões relacionadas com<br />
o cuidado (médicas, enfermeiras) ou que observam e analisam o<br />
comportamento humano, como antropólogas, psicólogas, escritoras...<br />
As quatro séries em que iremos nos deter, dentre as quais duas<br />
reestruturam a representação das mulheres que vivem em grandes<br />
cidades (Boston e New York, principalmente) e duas tratam da<br />
consolidação dessa nova configuração, giram em torno do considerado<br />
“mundo feminino”.<br />
Mas, comecemos a falar dessa grande transformação (em geral,<br />
tida como pós-feminista) que nós consideramos ser um backlash,<br />
como trata Susan Faludi (2001), um movimento conservador que<br />
começou subrepticiamente e agora emerge como nova forma de<br />
ver o mundo e de se articular com ele. As duas principais manifestações<br />
desse backlash se assentam na “insatisfação” das mulheres<br />
que, tendo alcançado a faixa dos trinta anos, ainda permanecem<br />
solteiras e, em consequência disto, em uma demonstração<br />
de força da família parental que, aos poucos, nessas séries, vem<br />
constrangendo ou reiterando certos comportamentos para essas<br />
mulheres.<br />
A mudança atual vai ter como parâmetro a década de noventa,<br />
em que foram produzidas sitcoms de grande sucesso como<br />
Friends (1994−2004), Seinfeld (1990−1998), Frazier (1993−2004)<br />
e Will and Grace (1998−2006), comédias marcadas por representações<br />
de mulheres solteiras, com profissões diversas e relações<br />
afetivas casuais e que tinham, como tema básico, a apologia da<br />
amizade entre os jovens, os desafios de experimentações afetivas,<br />
Gênero, mulheres e feminismos 297
os fracassos, as falhas e defeitos de cada um dos personagens e<br />
que, embora tenham sido excelentes comédias de costumes, não<br />
conseguiram sobreviver à forte “onda tradicional” que, nos últimos<br />
anos, solapou o paradigma anterior.<br />
As primeiras modificações:<br />
desestabilizando as mulheres<br />
Estudar as representações da figura feminina na mídia, por<br />
si só, não resolve os problemas da busca da igualdade entre<br />
homens e mulheres, mas os traz à tona e mostra o quanto<br />
ainda há por ser feito e conquistado. Pelo fato de a mídia<br />
ser formadora de opinião, [poderão demonstrar] o processo<br />
lento e secular de luta contra a discriminação da mulher<br />
nas sociedades. (GHILARDI-LUCENA, 2003, p. 2)<br />
As sitcoms parecem, em geral, programas para diversão, apenas.<br />
Como são seriados de meia hora (poucos ultrapassam esse<br />
tempo) que tratam, na maioria das vezes, de temas do dia-a-dia,<br />
como a relação familiar, a relação entre amigos ou o cotidiano de<br />
escritórios, são sempre bem-vindos a um público mais ávido de<br />
novidades e com pouco tempo para o lazer. 5 Também são elas que<br />
apresentam experimentações de temas, quase sempre avançando,<br />
ousando mais, com a intenção de aproximar as narrativas da<br />
rotina diária de sua audiência. Assim começam a aparecer, timidamente,<br />
entre 1996 e 1998, sitcoms que vão colocar em cheque a<br />
profissão e o casamento e a dificuldade da mulher em se equilibrar<br />
entre esses dois mundos.<br />
A primeira delas, Suddenly Susan (criada por Clyde Phllips),<br />
que foi ao ar entre 1996 e 2000, apresenta uma jovem jornalista<br />
formada que, repentinamente, desiste do casamento e da vida que<br />
5 Nos últimos anos, além de sitcoms, também começam a aparecer comédias de duração maior,<br />
de cerca de 45 minutos.<br />
298<br />
Gênero, mulheres e feminismos
iria levar para retornar a sua coluna em uma revista cujos artigos<br />
tratavam, principalmente, de suas relações pessoais (difíceis<br />
e decepcionantes), bem como da sua facilidade em lidar com os<br />
colegas. Seguindo nessa esteira de mulheres voltadas para profissões<br />
consideradas do “mundo feminino”, Just shoot me, de Steven<br />
Levitan, indicada para seis Emmy Awards e sete Globos de<br />
Ouro, que começou a ser produzida em 1997 e foi concluída em<br />
2003, acompanhava a vida e o ambiente profissional de uma revista<br />
de moda. A personagem principal era formada em Stanford<br />
e tentava dar profundidade aos seus artigos (mas, sem sucesso)<br />
em uma revista dedicada às mulheres. Envolvida em um romance,<br />
acaba no hospital com um ataque de ansiedade provocado pelo<br />
medo de assumir um compromisso afetivo. Escrita por homens,<br />
determinadas marcas das práticas sociais eram colocadas em evidência;<br />
assim, eram voltadas para o sucesso na vida profissional<br />
de mulheres que, embora estivessem quase chegando aos trinta<br />
anos, ainda não tinham uma vida amorosa estável, um pretendido<br />
que as levasse ao casamento, filhos e família. Esse olhar masculino,<br />
para o qual não há possibilidade de a mulher conseguir conciliar<br />
os dois interesses, vai minando o desempenho profissional<br />
das mulheres.<br />
Quando se trata de televisão, nada mais normal do que esse<br />
mesmo tema ser explorado em outra série que também viraria<br />
sucesso, Ally McBeal. A frágil advogada, cheia de fantasia e romance,<br />
construída por mãos masculinas, alcançou sucesso e modelou<br />
o mundo feminino para os escritórios de advocacia. Embora<br />
seu criador, David E. Kelley, seja um escritor de sucesso, levando<br />
créditos de Chicago hope, O desafio (1997), Boston Legal (2000),<br />
Life on Mars (2008), o tratamento dado à personagem principal,<br />
que ele próprio concebeu como excêntrica, virou “o modelo” de<br />
mulher, exatamente no momento em que o backlash começava<br />
a se tornar o discurso dominante. Imediatamente, a comédia foi<br />
Gênero, mulheres e feminismos 299
aprovada pelos patrocinadores das televisões abertas, conseguindo<br />
alcançar cinco temporadas.<br />
Embora fosse muito bem cuidada e tratasse de causas jurídicas<br />
que estimulavam a reflexão, seu envólucro era totalmente cômico,<br />
sendo Ally a mais diferente das mulheres até então vistas<br />
e configuradas na televisão. Na verdade, a jovem advogada de 27<br />
anos, recém-formada, tinha como detonador de sua conturbada<br />
vida futura um romance amoroso iniciado aos oito anos e interrompido,<br />
abruptamente, no segundo ano da Faculdade, quando<br />
o casal se separa para seguir especialidades diferentes. Essa decisão<br />
de mudança de Universidade tomada pelo namorado − expressa,<br />
no Episódio 1, com a fala “– Basicamente, está colocando<br />
sua carreira de advogado entre nós” − vai configurar Ally McBeal<br />
por toda a série. Caía bem a história do primeiro amor nunca esquecido<br />
(mito romântico) como base da sua dificuldade de relacionamento<br />
com outros homens, embora sempre ela estivesse à<br />
procura de um.<br />
O estresse e desequilíbrio emocional de Ally se torna maior<br />
quando ela vai trabalhar na mesma firma do ex-namorado, que se<br />
encontra estável e casado. De suas crises de insegurança, da falta<br />
de confiança em si mesma e na profissão, do que fazer da sua vida<br />
pessoal, das mudanças emocionais e de estado de espírito, de suas<br />
metas e de sua maneira de ver a vida, não só o público iria participar<br />
− suas hesitações emocionais são trazidas à luz por meio de<br />
sequências de cenas de fantasia, com sua própria narrativa em off<br />
−, mas também o seu ex-namorado, que se tornara seu melhor<br />
confidente. Egoísta, aumentando seus problemas e não ouvindo<br />
os outros, ao completar 28 anos, ela, desesperada, comenta com<br />
a esposa de seu ex-namorado: “− Tinha planos. Aos 28 anos estaria<br />
tirando licença de maternidade, mas ainda teria uma brilhante<br />
carreira. Uma incrível vida doméstica, uma incrível vida<br />
profissional”; e ainda acrescenta: “− E ao invés disso vou para a<br />
300<br />
Gênero, mulheres e feminismos
cama com um boneco inflável e represento um cliente que chupa<br />
os dedões dos pés da ex-namorada. Esse não era o meu plano”<br />
(Episódio 119). Fantasiosa e romântica, no velho estilo ressignificado<br />
dos folhetins romanescos, essa personagem “excêntrica”<br />
passou a ser o “novo” modelo de aparência e de comportamento<br />
das mulheres da entrada do Século 21.Apesar de ter recebido muitas<br />
críticas provenientes das feministas, a série, desde seu início,<br />
se transformou em sucesso, conquistando sete premiações dentre<br />
as onze distribuídas pelas várias associações norte-americanas.<br />
Durante esse sucesso, seu criador assim se expressou sobre a personagem,<br />
em reportagem da Agência Reuters:<br />
— Eu realmente não achei que estivesse escrevendo uma personagem<br />
representativa para o gênero feminino em geral.<br />
Pensei em Ally como uma personagem excêntrica e diferente.<br />
Então, foi uma boa surpresa ver que a personagem<br />
era tão parecida com tantas mulheres. 6<br />
O interessante dessa configuração é que são mulheres competentes<br />
em suas profissões. Mesmo Ally que, inicialmente, se<br />
mostrava insegura, ao longo das temporadas, se torna excelente<br />
advogada e chega-se a esperar que ela venha a conseguir algum<br />
equilíbrio emocional, o que não acontece até o final da série. Longe<br />
do trabalho, ela vacila, é decididamente desajeitada com os<br />
pretendentes, como uma mulher jovem e solteira à procura da felicidade<br />
pessoal. O sucesso dessa “atualização” na representação<br />
de mulher (desestabilizada, frágil, preocupada em encontrar sua<br />
identidade em um mundo comandado por homens) vai servir para<br />
a análise dos comportamentos de quatro mulheres, na faixa etária<br />
dos trinta anos, em Sex and the City (1996), livro de sucesso, uma<br />
6 A personagem desencadeou um debate acalorado entre as feministas, atingindo seu auge com<br />
a capa na revista Time, em 1998, onde Calista Flockhart aparecia ao lado da frase ‘O feminismo<br />
está morto?’. Disponível em: .<br />
Acesso em: 4 nov. 2010.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 301
coletânea das colunas escritas para um jornal de Nova York por<br />
Candice Bushnell, que, reescrito para a televisão por Darren Star<br />
− portanto, um olhar masculino −, e supervisionado pela autora,<br />
teve seu roteiro modificado, embora tenha guardado a ironia do<br />
texto escrito.<br />
O livro foi consumido na primeira temporada e, ao longo das<br />
quatro temporadas seguintes, a visão de mundo da jornalista, que<br />
dera ao texto um tom entre crítico e irônico, foi sendo modificada<br />
pelo olhar masculino de seu criador, tendo a postura crítica cada<br />
vez mais se deslocado para uma expressão afirmativa, tornando<br />
as quatro diferentes mulheres modelos de conduta e de aparência<br />
para as mulheres reais. Vale destacar o olhar da escritora que, em<br />
2001, na “Apresentação” da segunda edição aumentada de seu livro<br />
coloca:<br />
Mas, acima de qualquer outra pergunta, Sex and the City busca<br />
responder a uma pergunta crucial: por que ainda estamos solteiras?<br />
Ora, depois da experiência que adquiri nesse campo, posso<br />
afirmar que estamos solteiras porque queremos. (BUSHNELL,<br />
2008, p. 8)<br />
Na versão televisiva, essa afirmativa e a intenção das crônicas<br />
da autora foram sendo totalmente desfiguradas e “domesticadas”,<br />
a cada temporada, dando a impressão de que essas mulheres independentes<br />
estavam, apenas à procura de parceiros para a formação<br />
de uma família. E para confirmar que sua ideia era mais uma observação<br />
crítica do que um compêndio de conduta, na segunda edição,<br />
Bushnell informa ter acrescentado mais dois capítulos sobre o<br />
fim do relacionamento de Carrie e Mr. Big, pois ele é “um homem<br />
que não existe na vida real”, e, desmantelando toda a possibilidade<br />
de uma narrativa romantizada que os leitores pudessem ter criado,<br />
acrescenta: “[...] se os leitores ficarem atentos, irão descobrir que<br />
até o próprio Mr. Big afirma que ele é uma fantasia na imaginação<br />
de Carrie, e que não se pode amar uma fantasia”, mostrando que<br />
302<br />
Gênero, mulheres e feminismos
ela vai ter que entrar em uma nova fase, compreender a vida (sem<br />
um homem) para poder se encontrar e “quando isso acontecer,<br />
talvez consiga começar uma relação” (2008, p. 10).<br />
Assim, um livro no qual a autora, logo na “Apresentação”,<br />
desfaz o “mito do romanesco” e afirma a necessidade de a mulher<br />
se conhecer e se reconhecer, veio a redundar não só em uma série<br />
televisiva como também em dois filmes em que o acontece o happy<br />
end e nos quais as mulheres só falam sobre o possível encontro<br />
de um parceiro estável, desfigurando o livro e reiterando, ou melhor,<br />
explicitando, o que as séries anteriores haviam insinuado: a<br />
representação de uma mulher bem-sucedida no trabalho, porém<br />
malsucedida no casamento (se o tiver) ou solteira, correndo atrás<br />
do tempo perdido e do parceiro ideal. 7<br />
Enquanto Sex and the City passava no canal original, entre<br />
1998 e 2004, 8 começou a despertar o interesse de outros canais,<br />
a partir das inúmeras premiações que obteve desde 2002. Novamente,<br />
uma série que fora produzida para a análise crítica de<br />
comportamentos foi dirigida e “lida”, pela audiência e pelos canais<br />
que passaram a comprá-la e divulgá-la, como uma comédia<br />
para mulheres, chamando a atenção pelo seu tema − sexo e relações<br />
sexuais − que ainda era visto como tabu na televisão aberta.<br />
Apesar de Ally McBeal ter como tema de seus devaneios, a<br />
mesma temática − as relações casuais, as escolhas dos parceiros<br />
por mulheres bem-sucedidas na vida profissional e que tinham<br />
dinheiro para sustentar roupas, sapatos de marca e frequentar os<br />
melhores lugares de Nova York −, é com Sex and the City que a<br />
configuração se torna completa. À bem-sucedida Ally McBeal e<br />
ao estrondoso sucesso de Sex and the City, produzidas entre 1998<br />
7 Não vou, aqui, transcrever as falas dos personagens masculinos sobre a possível mulher que<br />
querem, cenas que abrem o Capítulo Um da série homônima.<br />
8 Sendo a HBO um canal fechado e exclusivo que atende a um público diferenciado, isso implica<br />
em uma crítica à sociedade e em mais reflexão e instrução.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 303
e 2004, junte-se − em parte, visto que a personagem central não<br />
compete, em aparência, com as atrizes das duas séries − a comédia<br />
romântica O Diário de Bridget Jones, de 2001 (que reitera atitudes<br />
e comportamentos de busca do “homem ideal”), filme baseado no<br />
livro de Helen Fielding e dirigido por Sharon Maguire e, em 2004,<br />
sua continuação, intitulada Bridget Jones: a idade da razão, apenas<br />
com a colaboração da autora no roteiro.Iniciada a desestabilização<br />
da mulher com essas séries, a consolidação do paradigma<br />
agregada ao desejo de formação de uma família vai ocorrer nesses<br />
filmes, que combinam atitudes e comportamentos com a indústria<br />
da beleza e da moda, já presentes em Sex and the City. Os dois<br />
filmes provenientes da série colocam o foco nessa mesma modelagem<br />
limitante para as próprias mulheres, como refere Naomi<br />
Wolf, em seu livro O mito da beleza: como as imagens de beleza<br />
são usadas contra as mulheres (1992).<br />
Assim, a configuração da mulher firme, segura e confiante em<br />
si mesma vai se deslocando para um novo modelo: mulheres que<br />
se mostram competentes como profissionais, mas que, como pessoas,<br />
são representadas, irremediavelmente frágeis, física e emocionalmente,<br />
e, acima de tudo, em busca de um parceiro ideal para<br />
completar o ciclo com o casamento e a constituição da família com<br />
filhos. É marcante a escolha das atrizes que encarnam esse novo<br />
ideal cuja aparência física denota grande fragilidade. Transformase,<br />
assim, o tipo físico escolhido para a representação dessas mulheres,<br />
preferindo-se atrizes muito magras e de aparência delicada<br />
e frágil. Dentro dessa perspectiva, consolida-se o perfil da “feminilidade”,<br />
que já fora inaugurado por Ally McBeal (1997-2002) e<br />
seguido por três das quatro mulheres de Sex and the City (1998-<br />
2004), marcando o fim da mulher realizada profissionalmente,<br />
bem definida, decidida e independente. 9<br />
9 Um dado interessante: as duas escritoras, uma inglesa e outra norte-americana, nasceram em<br />
1958 e 1959, respectivamente, correspondendo à geração próxima à “segunda onda” feminista,<br />
304<br />
Gênero, mulheres e feminismos
A consolidação: as herdeiras do backlash 10<br />
Da ‘falta de homens’ à ‘epidemia de infertilidade’,<br />
do ‘estresse feminino’ à ‘prejudicial dupla jornada de<br />
trabalho’, estas pretensas crises femininas tiveram sua<br />
origem não nas condições reais da vida das mulheres<br />
mas sim num sistema fechado que começa e termina na<br />
mídia, na cultura popular e na publicidade – um contínuo<br />
feedback que perpetua e exagera a sua própria imagem<br />
fictícia da feminilidade. (FALUDI, 2001, p. 14, grifo nosso)<br />
Talvez seja possível datar o momento em que esse discurso<br />
passou a ser dominante abafando todos os discursos alternativos<br />
sobre as representações das mulheres. Podemos, mais ou menos,<br />
encontrá-lo, na entrada do século XXI, pois, embora Susan Faludi<br />
já o tivesse detectado na mídia norte-americana nos finais dos<br />
anos 80, no Brasil, ele aparece, sutilmente, nas novelas, em meados<br />
dos anos noventa. Em 2000, a TV paga inaugura vários canais<br />
para mulheres e, dentro dessa tendência, a GNT (da Rede Globo)<br />
se converte em um canal para mulheres, deslocando-se do seu<br />
rumo inicial em que não havia separação de gênero.<br />
Mas a divulgação e a disseminação dessas representações pela<br />
mídia televisiva, através de seus diversos canais, vêm mesmo a se<br />
consolidar a partir do ano de 2002, com a veiculação, para fora da<br />
HBO, de Sex and the City – Light, epíteto acrescentado por terem<br />
sido cortadas todas as cenas de sexo explícito que havia na série<br />
original, tornando-a mais palatável e muito próxima do discurso<br />
e publicaram seus livros perto dos 38 anos. Elas demonstram a divisão entre os dois paradigmas<br />
introjetados para a vida das mulheres e seus papéis na sociedade burguesa.<br />
10 O programa Happy Hour (GNT), de 30 de agosto de 2010, tratou dessa nova representação de<br />
mulher e de como ela, perto dos trinta anos, tem urgência em se realizar profissionalmente e<br />
está em busca da estabilidade do casamento. Embora as opiniões apresentem divergências,<br />
a posição dominante segue o “modelo” Bridget Jones e Sex and the City, entre outros,<br />
considerado como a postura pós-moderna, pós-feminista que demonstra a efetiva<br />
despolitização das mulheres, que vão adotando um discurso dominante e competente<br />
ideologicamente que as traz de volta “ao lar”, “solucionando”, pois, a dupla jornada e muito<br />
longe das reivindicações feministas dos anos 70/80 no país.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 305
dominante produzido por um olhar masculino. É nesse mesmo<br />
momento e em confluência com essa tendência de que as mulheres<br />
querem mesmo é encontrar seu par ideal e constituir uma família<br />
que bate recordes de bilheteria (também impulsionado pelo<br />
Oscar) o já citado filme O diário de Bridget Jones. 11<br />
Dessa mulher real que não consegue alcançar as medidas corporais<br />
do padrão, das dificuldades de uma profissional em decidir<br />
o que será seu “parceiro ideal”, dos “mitos de realização da mulher”<br />
com relação à reprodução e ao pouco tempo que lhe resta<br />
para contemplar a ideia de que só se é mulher ao ter um filho, tanto<br />
as séries como os filmes são representantes. Desse cadinho de<br />
informações, muitas vezes diversificadas e de campos semânticos<br />
diversos, o discurso dominante consegue desenvolver uma narrativa<br />
para a mulher sobre seus próprios desejos, agregando ainda<br />
sua aparência como “marca” determinante de feminilidade, 12 − o<br />
que “coincide” com a “indústria da beleza”, como intitula Naomi<br />
Wolf: uma mulher que se desdobra no consumo de cosméticos,<br />
vestuário (vestidos, salto alto, bolsas enormes e adereços) bem<br />
como a agregação de bens de consumo, como locais de festas e<br />
rituais de diversão, alimentação e restaurantes.<br />
11 “Constrangimento. Essa é a principal sensação que se tem ao assistir ao Diário de Bridget Jones<br />
[...]. Não que o filme seja ruim, ao contrário, é muitíssimo divertido. O que constrange são as<br />
inúmeras e fenomenais gafes protagonizadas pela personagem título, vivida por Renée Zellweger,<br />
daquelas que nos fazem sentir vergonha pela outra pessoa. [...] Ela parece ter a capacidade<br />
de sempre dizer as coisas erradas nas horas mais impróprias e de agir de forma estranha nas<br />
situações mais improváveis. [...] Essa identificação com a personagem é que fez dela um dos<br />
grandes sucessos do mercado editorial inglês dos últimos tempos. Quem lê o livro ou assiste ao<br />
filme sempre encontra algum ponto em comum com a desajeitada Bridget, principalmente, por<br />
ela ser uma mulher absolutamente comum: com trinta e poucos anos ainda não se casou, bebe<br />
e fuma demais, não se dá tão bem com a mãe, faz um trabalho sem graça e sempre acha que<br />
precisa fazer dieta, mas nunca faz. [...] Num final de ano, depois de cometer mais algumas gafes<br />
memoráveis [...], Bridget decide mudar sua vida e encontrar seu grande amor. [...] Embora seja<br />
um filme sobre as mulheres e feito para elas, não há qualquer contra-indicação para os homens<br />
que, com certeza, irão se divertir da mesma forma”. (GONÇALVES, 2010)<br />
12 Não esquecer também que o homem tem seu paradigma.<br />
306<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Essa representação de mulheres vai dar ênfase à aparência<br />
e vai focar (sem crítica) a difícil relação trabalho+casamento e a<br />
dupla jornada, nas comédias que seguem, a partir de 2005, e que<br />
podem ser tomadas como uma sequência da narrativa anterior,<br />
forjadas como medida exata para a vida das mulheres que, agora,<br />
se apresentam como altas executivas no mundo público, alternando<br />
esse papel com o de mulher−esposa−mãe, cuidadora de<br />
seus filhos, com as dificuldades de ser casada e enfrentar as solicitações<br />
de seu trabalho.<br />
É provável que o contexto histórico e cultural tenha ajudado<br />
nesse retorno de posições conservadoras na sociedade de origem<br />
dessas séries, com a consolidação de uma profusão de religiões<br />
fundamentalistas, dos recursos financeiros que passam a ter as<br />
mulheres profissionais (um teto todo seu?), com a ameaça advinda<br />
da destruição das “torres gêmeas”, a promessa da felicidade como<br />
uma sensação permanente de completude, a emergência de consumo<br />
da moda tanto para homens quanto para mulheres e a própria<br />
indústria do lazer e cultural. Por outro lado, deve-se levar em<br />
conta, também, a efetiva convergência do poder e a tecnologia da<br />
mídia, através da internet e dos telefones celulares, fatores que se<br />
tornam propícios para a entrada dessa sociedade mais voltada para<br />
a performance, para a apresentação pessoal e, portanto, menos reflexiva.<br />
A configuração das mulheres de Sex and the City se impõe<br />
e dá o tom do cotidiano nas práticas sociais: conversas sobre trivialidades<br />
e superficiais modelam essas mulheres e dirigem as reais.<br />
Talvez essa “virada”, a grande transformação do corpo (exigindo<br />
esforço, sacrifícios e academia), do vestuário (roupas ajustadas<br />
ao corpo, saltos altos e bolsas grandes para o trabalho), não<br />
tenha sido tão explícita e clara para a audiência do final do século,<br />
porque as comédias mesclaram temas discutidos nos anos noventa<br />
(as novas profissões relacionadas com a indústria cultural, resquícios<br />
da agenda feminista) com uma mulher menos reflexiva,<br />
Gênero, mulheres e feminismos 307
menos politizada, mais superficial e mais subordinada à impressão<br />
que sua aparência venha a causar aos outros. 13<br />
Thompson (2002), ao falar sobre a mídia, e Susana Funck e<br />
Nara Widholzer (2005), quando atentam para o efeito e a repercussão<br />
da TV no(a) receptor(a) desarmado(a), dizem que quando o<br />
real se mistura à ficção, ou vice-versa; quando se vê a modelagem<br />
do corpo das mulheres em busca do corpo de modelos e celebridades;<br />
quando se vê a orientação dos desejos da mulher − porque<br />
eles vêm sendo dirigidos, sutilmente, por reportagens, documentários,<br />
novelas, propagandas e séries que se tornam impossíveis<br />
de deter no maior veículo de modelagem da vida contemporânea;<br />
e quando se vê a direção ideológica que pretendem imprimir<br />
às sociedades de origem e receptoras, é preciso atentar para as<br />
“mensagens” que estão embutidas nessas séries. Apesar de a televisão<br />
parecer um lazer de segunda classe, menor, sem influência<br />
alguma para a internalização e a permanência de comportamentos,<br />
nós a consideramos de muita importância para a reentrada e a<br />
permanência de determinados códigos (que tinham sido desarticulados)<br />
os quais passaram, novamente, a forjar, de tão repetidos,<br />
os desejos e comportamentos nas relações de gênero.<br />
Partimos dessa perspectiva de análise e seguimos a proposta<br />
de Susan Faludi (2001) de que, desde o final dos anos 80, começou<br />
a surgir um discurso conservador que fazia emergir as normas<br />
tradicionais com relação às mulheres e que ela denominou de<br />
backlash. A partir, mais ou menos, do ano de 2005, o tom desse<br />
discurso dominante tira, finalmente, o véu e se torna competente<br />
para abranger a ideologia de todas as classes sociais, independentemente<br />
de etnia e mesmo de geração, e que já vinha sendo tematizado<br />
pelas sitcoms. Portanto, o discurso não era novo.<br />
13 Vide vários estudos, inclusive Messa, 2005.<br />
308<br />
Gênero, mulheres e feminismos
As matrizes atuais<br />
Os motes principais, a partir daí, para as sitcoms e comédias<br />
são: a família (que reaparece, inicialmente, disfuncional, depois<br />
abrangendo, inclusive, a família parental) e a mulher de aparência<br />
marcadamente “feminilizada”.<br />
Estabilizado o modelo ou a modelagem, a volta significativa do<br />
binarismo e das polaridades características de mulheres e homens<br />
como peculiaridades naturais da Modernidade comparecem como<br />
fundamento das práticas sociais, já não mais provenientes do contexto<br />
e da cultura, que estabelecem os padrões de conduta e uma<br />
“certa aceitação” de que está tudo em seus devidos lugares, aparece<br />
encenada nas séries Cashmere Mafia – A máfia de cashmere<br />
– (2008; sete episódios; criador Kevin Wade) e Lipstick Jungle – A<br />
selva do baton – (2008/09; vinte episódios), esta baseada no livro<br />
homônimo de Bushnell – que também o produziu–, escrita para a<br />
TV por Jennie Snyder Urman e desenvolvida por DeAnn Heline e<br />
Eileen Heisler. 14<br />
Podemos verificar que essas séries, que começam a serem<br />
produzidas quase cinquenta anos após o início da segunda onda<br />
feminista, já partem do discurso dominante tradicional de que<br />
as mulheres que têm sucesso profissional não dão atenção à família<br />
(sequer têm possibilidade de encontrar o parceiro afetivo),<br />
reimprimindo a construção discursiva da modernidade: ou isto ou<br />
aquilo; ou a família ou a profissão.<br />
As duas séries foram amplamente divulgadas pelo noticiário<br />
como sequências de Sex and the City que buscam discutir os relacionamentos<br />
afetivos e os comportamentos sexuais de mulheres<br />
emancipadas e, principalmente, já casadas, com mais de trinta<br />
14 A citação de nomes como criadores, escritores e roteiristas se torna importante para a análise<br />
das condições de produção. A série sofreu na primeira temporada com a greve dos roteiristas e,<br />
na segunda, não teve audiência suficiente para continuar.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 309
anos, vivendo e trabalhando em uma metrópole como Nova York.<br />
Logo, pretenderiam aprofundar as atribulações das mulheres em<br />
cargos de alta responsabilidade e na administração de seus casamentos.<br />
Assim, apesar de serem profissionais economicamente<br />
independentes e de ocuparem postos de destaque, o discurso dominante<br />
dirige o desejo dessas mulheres para o “desejo secreto” de<br />
busca da proteção de um homem ou enfocam o tédio da relação e a<br />
busca de provas constantes de amor de seus maridos e do dia a dia<br />
amoroso como as fantasias construídas por filmes romanescos. 15<br />
Certa “memória” trazida de quando a mulher desempenhava<br />
apenas o papel de dona de casa bem como a hostilidade competitiva<br />
nas relações de gênero existentes, quando se trata de altos<br />
cargos executivos no espaço público, ampliam ainda mais as<br />
demonstrações de como essas mulheres estão “fora de lugar”. 16<br />
É exemplar como uma das primeiras cenas de Cashmere Mafia<br />
rememora “qualidades” da mulher quando coloca o casal de executivos<br />
que se envolve afetivamente, em pleno Central Park, com<br />
ele querendo pedi-la em casamento à vista de todos os transeuntes.<br />
E mais: além de a situação privada ser encenada em um ambiente<br />
público, persiste o mito da memória afetiva da mulher e do<br />
esquecimento do homem, pois, quando ele afirma que o primeiro<br />
encontro foi naquele dia, a noiva retruca: “— Você quer dizer que<br />
eu não sei o dia em que começamos a namorar? Eu sou uma mulher!”<br />
(Episódio 1).<br />
Por que essa “aptidão” designada como feminina e construída<br />
pela sociedade moderna e burguesa seria retomada para o papel da<br />
mulher? Como pode ela se inserir em uma narrativa que se propõe<br />
a trabalhar com mulheres independentes e emancipadas, sexual<br />
15 Em 2005, esse modelo de mulher aparece no policial The Closer e, em 2010, em Rizzoli & Isles.<br />
16 Essa parte do artigo foi reescrita e ampliada a partir da Comunicação apresentada no V ENECULT,<br />
2009. Disponível em: . Acesso em: 4 nov.<br />
2009.<br />
310<br />
Gênero, mulheres e feminismos
e economicamente, do século XXI? E mais: esse discurso parte da<br />
editora-chefe de uma grande rede de revistas de origem japonesa,<br />
no momento culminante de sua vida afetiva, no intervalo das estressantes<br />
atividades de edição de uma revista... É, portanto, bastante<br />
significativo esse diálogo inicial para que observemos outras<br />
pistas que vão demonstrar como a mulher “está fora do lugar” no<br />
ambiente público − e também no privado.<br />
Voltemos ao ponto da divulgação dessas séries e das configurações<br />
das executivas de Cashmere Mafia e Lipstick Jungle − produzidas<br />
em 2008: na divulgação de ambas, as notícias informam<br />
as estreitas relações com Sex and the City, porque a primeira tem<br />
o mesmo produtor e a outra se baseia em livro da mesma autora,<br />
Candace Bushnell, que, segundo o noticiário do The New York<br />
Post, mostra, agora, a vida de três das “50 mulheres mais poderosas”<br />
– e o jornalista acrescenta – “dispostas a fazer quase tudo em<br />
troca do sucesso no mundo dos negócios”.<br />
A primeira mulher destacada é Wendy Healy (Brooke Shields),<br />
uma produtora executiva da indústria do cinema, na faixa etária<br />
dos quarenta anos, casada há mais de quinze anos, que tem três<br />
filhos e um casamento instável devido à desigualdade econômica<br />
entre o casal. A segunda, a loura e sofisticada Nico Reilly (Kim<br />
Raver), é editora-chefe de uma famosa revista de moda do mesmo<br />
conglomerado, casada com um professor universitário de renome,<br />
sem filhos e, apesar dos seus 38 anos, acha sua relação tediosa<br />
e rotineira. Finalmente, a mais moça e bem mais jovem, Victory<br />
Ford (Lindsay Price), é uma designer de moda e empresária globalizada<br />
que vê sua carreira em decadência até encontrar o “homem<br />
dos sonhos de qualquer mulher”, rico e romântico. Esses bons<br />
ingredientes não ajudaram muito a série, cuja audiência decaiu,<br />
a desenvolver o cotidiano dessas mulheres, mas sem deixar de<br />
evidenciar as dificuldades no espaço afetivo e do casamento.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 311
Cashmere Mafia segue a mesma disposição, apresentando<br />
quatro personagens mulheres, 17 duas casadas, uma noiva e a outra<br />
solteira. Segundo os resumos informativos, a série tratava de quatro<br />
ambiciosas mulheres, amigas desde o tempo da escola 18 que,<br />
além de suas reuniões íntimas em almoços semanais, se encontram<br />
frequentemente em eventos sociais e culturais, e que tentam<br />
conciliar trabalho e família ou trabalho e vida afetiva estável.<br />
A greve dos roteiristas de Hollywood, no final de 2007, dificultou<br />
a continuação da série que, provavelmente, pretendia abordar<br />
problemas mais específicos, como deixa transparecer o episódio<br />
piloto que contempla, inclusive, um casal com um casamento mais<br />
próximo dos contratos atuais, e cujo plano narrativo iria desenvolver<br />
as relações amorosas e profissionais das personagens: Mia<br />
Mason − uma mulher independente e decidida que trabalha como<br />
editora de uma revista de um grande conglomerado e que abre a<br />
cena da série se tornando noiva de um colega com o qual vai ter<br />
que competir por um cargo maior; Zoe Burden − uma executiva de<br />
investimentos, que forma, junto com o seu marido, um arquiteto,<br />
o casal equilibrado e contemporâneo que negocia sobre as atividades<br />
dos dois filhos maiores de sete anos até quando ele viaja para<br />
ocupar um cargo fora do estado; Juliet Draper − chefe de operações<br />
de um importante grupo de hotelaria, casada há quinze anos,<br />
com uma filha adolescente, e que, ao contrário do casal anterior,<br />
tem conflitos no casamento tais como o adultério e a rebeldia da<br />
adolescente; e a personagem Caitlin Dowd, solteira, que apresenta<br />
grande dificuldade em relacionamentos afetivos e trabalha em uma<br />
empresa de cosméticos como executiva de marketing. Trilhando<br />
lado a lado com Lipstick Jungle, essa série se mostrou mais densa<br />
17 Nos releases sobre a série vem como legitimação o nome de Kevin Wade como o criador de Sex<br />
and the City. A mudança é mínima e segue a mesma orientação: colocar mulheres no topo da<br />
carreira, entre sua vida pública e seu mundo afetivo.<br />
18 Embora elas sejam de gerações diferentes! E como são de classe média, não há explicação para<br />
tanta diferença de idade entre elas.<br />
312<br />
Gênero, mulheres e feminismos
e com situações melhor desenvolvidas, mas, no entanto, teve baixa<br />
audiência e a greve dos roteiristas ajudou-a a sucumbir, concluindo<br />
com sete episódios apenas.<br />
Aparentemente, as duas séries, que se passavam em Nova York,<br />
em ambientes sofisticados da alta classe executiva, com cenas no<br />
ambiente do trabalho e doméstico, além das frequentes cenas em<br />
eventos culturais glamorosos, estavam dispostas a apresentar,<br />
uma década após Sex and the City, a história de mulheres casadas,<br />
com vidas e vivências diferenciadas. No entanto, ambas vão reduzir<br />
o foco e tratar apenas da instabilidade dos casamentos, além<br />
das constantes competições profissionais.<br />
Partindo da premissa de que toda mulher estaria desestabilizada<br />
emocionalmente por ter alcançado sucesso na carreira<br />
profissional em detrimento de sua vida afetiva, quase todas as<br />
protagonistas estão no topo da carreira, mas não estão contentes;<br />
pesa o lado afetivo das relações amorosas, uma ideia de ausência<br />
de vida pessoal que já vinha subentendida em várias séries anteriores,<br />
da década de noventa, mas nunca fora tão bem explicitada<br />
como então. E, assim, elas iriam investir nisso e iriam mais longe,<br />
demonstrando que, mesmo casadas, suas vidas não deixaram de<br />
ser turbulentas. Em outras palavras: o deslocamento da mulher<br />
para o espaço público irá criar problemas com suas obrigações<br />
com a família, com os filhos e o marido. E para demonstrar esse<br />
discurso conservador, as dificuldades partem de situações familiares<br />
estereotipadas ou já cristalizadas ao longo do tempo e que<br />
são destacadas como um meio de impedir o trabalho ou a carreira<br />
ascensional das mulheres. São colocadas as seguintes temáticas<br />
ou situações desestabilizadoras: 1) competição profissional entre<br />
o casal; 2) assimetria financeira entre o casal; e 3) inversão de papéis,<br />
quando alguém precisa “cuidar dos filhos”.<br />
Nas duas séries, é relevante observar que, embora as mulheres<br />
tenham assumido postos mais altos ou iguais aos homens, a ênfase<br />
Gênero, mulheres e feminismos 313
do conflito se dá na instituição do casamento, onde a assimetria<br />
dos papéis do homem e da mulher é vista de maneira tradicional,<br />
sem possibilidade de modificação ou negociação, relações de poder<br />
assimétricas que são visibilizadas, para as mulheres, tanto no<br />
âmbito profissional quanto no campo afetivo e doméstico. No âmbito<br />
público, as relações profissionais são competitivas e atravessadas<br />
pelas relações de gênero e poder e passam a ser explicitadas<br />
como uma selva entre homens e mulheres da qual elas precisam se<br />
proteger criando uma “máfia” em torno delas.<br />
Uma das cenas exemplares dessas assimetrias pode ser analisada<br />
em Lipstick Jungle: em um almoço, no qual estão presentes<br />
o diretor-geral da empresa, um executivo e Nico Reilly, a protagonista,<br />
executiva, editora da revista de moda de maior vendagem<br />
do conglomerado, ela reivindica ser alçada ao posto de diretora de<br />
criação, posto acima de sua posição atual. Sua pretensão é imediatamente<br />
desencorajada pela fala do diretor-geral, que retruca<br />
dizendo que não a vê no posto de diretora de criação porque ela<br />
é uma mulher de certa idade e que está se aproximando do “momento<br />
crítico” de sua vida, que é a decisão de iniciar uma família<br />
(isto é, ter filhos). Ela refuta, falando que não tem essa intenção e<br />
que seu colega (que está sendo preparado para o cargo) tem dois<br />
filhos, ao que o diretor responde: “— Não tem comparação. É o<br />
mesmo que giz e queijo”. E finaliza com um exemplo: “— A última<br />
mulher que eu promovi a um cargo alto teve em seguida um<br />
bebê. E perdeu a direção, a concentração. Homens e mulheres<br />
são bem diferentes. Lógico que você pode me provar o contrário”<br />
(Episódio 101).<br />
Enfim, ele não tem certeza e não vai apostar nela, um excelente<br />
discurso para evidenciar o retorno ao essencialismo em que se lançou<br />
o nosso tempo e a retomada dos parâmetros tradicionais pelo<br />
discurso dominante de ideologia patriarcal, pondo em questão as<br />
conquistas alcançadas pelas lutas das mulheres do século XX.<br />
314<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Voltamos ao convencionalismo?<br />
Além de não perceber o atual deslocamento do comportamento<br />
das mulheres de suas antigas limitações de subalternidade,<br />
o discurso das comédias atuais reforça a dualidade de construções<br />
do homem e da mulher demonstrando que a mulher sempre irá<br />
privilegiar a afetividade, o ser querida, a “realização” e o desejo<br />
de ser mãe.<br />
Cashmere Mafia e Lipstick Jungle acatam o discurso conservador,<br />
que já dominava a propaganda, ajustando essas mulheres<br />
emancipadas, no topo de suas carreiras, chefes e diretoras de negócios,<br />
ao contexto cultural do momento que se direciona para<br />
reforçar as tradicionais instituições burguesas capitalistas: o casamento,<br />
a maternidade e a permanência dos papéis sexuais que estruturam<br />
a família. Assim, essas séries “para mulheres” procuram<br />
explicitar ou mesmo justificar: 1) a desestabilização do casamento,<br />
em função de a mulher ocupar um cargo de alta responsabilidade<br />
fora do ambiente doméstico; 2) a crise na família, porque<br />
os papéis exigidos não estão sendo preenchidos a contento; 3) a<br />
instabilidade dos membros da família, no momento em que a mulher<br />
ocupa a “posição” de provedora, com a “inversão” dos papéis<br />
pré-estabelecidos; e 4) serem poucas as mulheres em postos de<br />
comando por causa da maternidade que não permite que elas fiquem<br />
concentradas nos interesses das empresas.<br />
Assim, vêm reiterando, com uma roupagem aparentemente<br />
nova, atualizada, o papel central que as mulheres ocupam na família,<br />
colocando a antiga dualidade do pensamento moderno: ou<br />
isto ou aquilo. E nem bem essa polaridade: o que parece estar posto<br />
é que o melhor lugar para a mulher é em casa.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 315
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318<br />
Gênero, mulheres e feminismos
<strong>MULHERES</strong><br />
o transe como devir<br />
Linda Rubim<br />
O transe, o fazer entrar em transe é uma transição,<br />
passagem ou devir. (Giles Deleuze)<br />
Terra em Transe, a obra prima da cinematografia glauberiana,<br />
filme qualificado como um marco da crítica aos pressupostos<br />
estéticos e políticos da produção cultural desenvolvida no período<br />
de sua realização e objeto de incontáveis estudos, foi produzido<br />
no Brasil da segunda metade dos anos 60 quando transformações<br />
acontecem, especialmente aquelas desencadeadas pelo golpe militar,<br />
desmontando toda uma circunstância e perspectiva político-cultural.<br />
Vivia-se um país onde a lógica da indústria cultural começava<br />
a apontar para um franco desenvolvimento, motivada pelas mudanças<br />
ocorridas na televisão, que chegara por aqui na década anterior,<br />
e pela expansão da propaganda e de seu mercado. Era uma<br />
nova cultura que se impunha e, com ela, a necessidade de outros<br />
centros de reflexão e formação que pudessem dar conta da nova
sociabilidade que daí surgia. Assim, observa-se o aparecimento,<br />
por exemplo, das escolas de comunicação, fato que acelerou a necessidade<br />
de tradução dos livros clássicos acerca da cultura midiática<br />
e da sociedade de consumo, como bem observa o professor<br />
Ismail Xavier (1993).<br />
Se Eldorado, o país fictício do filme, vive momentos aflitivos,<br />
estados de sofrimento, também o Brasil real estava em “transe”.<br />
Seus intelectuais e artistas purgavam os equívocos populistas que<br />
chegavam ao seu colapso, embora os projetos políticos e culturais<br />
elaborados pela intelectualidade brasileira, em sua maior parte<br />
proveniente das classes médias derrotadas pelo Golpe Militar de<br />
1964, teimosamente parecessem querer persistir, apesar das visíveis<br />
fraturas e da nova situação instalada. Assim, às portas da<br />
radicalização da ditadura, com a edição do Ato Institucional nº 5,<br />
em 1968, a intelectualidade se vê obrigada a repensar suas formulações.<br />
No caso do cinema, Terra em Transe desloca o olhar<br />
para o além campo que, anteriormente, parecera ser o cenário<br />
ideal para desfraldar a revolução, e procura rever os seus pactos.<br />
Inicia, inclusive, questionamentos quanto à inserção social dos<br />
intelectuais, de forma que se vê um Cinema Novo completamente<br />
em transe, focado em novas paisagens e novos atores sociais.<br />
(BERNARDET, 1967)<br />
No filme, emergem os palcos urbanos e seus novos protagonistas,<br />
trabalhadores da produção simbólica, dentre os quais,<br />
além do poeta Paulo Martins (Jardel Filho) no seu doloroso conflito<br />
entre a “poesia e a política”, Sara (Glauce Rocha), “a professora<br />
eficiente”, militante política, “lançada no coração do seu tempo,<br />
e Silvia (Danuza Leão), com a sua “mudez de morte”, protagonistas<br />
da representação das mulheres no filme.<br />
Este texto foca os personagens femininos de Terra em Transe<br />
buscando perceber a sua importância no contexto daquela narrativa<br />
fílmica. Elejo esse tecido múltiplo, o filme, para “deslindar”,<br />
320<br />
Gênero, mulheres e feminismos
e não, decifrar, os percursos percorridos por esses personagens,<br />
pois acredito que tais trajetórias organizam seus sentidos a partir<br />
da percepção de como se inserem na trama, de como se relacionam<br />
com os outros personagens e, ainda, da posição que ocupam<br />
no desenvolvimento da narrativa. Para realizar tal proposta, utilizo,<br />
como material de análise, além do texto fílmico, as “falas”<br />
extra-filme que Glauber Rocha elabora sobre eles e, em menor escala,<br />
mas não menos significativa, também referências de alguns<br />
estudiosos sobre essas “criaturas” fictícias. 1<br />
Observo que ouvir a voz do autor, no caso, Glauber Rocha, não<br />
significa aceitar, sem mais, que ele seja considerado como o melhor<br />
e mais avalizado intérprete de sua obra e dos seus personagens.<br />
Ao contrário disso, significa tomá-la como ponto de partida,<br />
sugerindo o estatuto problemático da autoria e, por conseguinte,<br />
os limites do autor enquanto intérprete da sua criação cultural.<br />
O vômito do transe<br />
Terra em Transe tece a política como seu principal personagem,<br />
tanto nas malhas de seu conteúdo, quanto na sua forma,<br />
inauguradora para a época e para o Cinema Novo no Brasil de então.<br />
A forma acompanha a crítica realizada mais explicitamente<br />
no plano do conteúdo, ao substituir as “bases de análises naturalistas”,<br />
por considerar que estas também tinham fracassado junto<br />
com os projetos políticos, como bem o percebe Jean-Claude Bernardet<br />
(1994).<br />
O filme se desenvolve com o uso intensivo da linguagem verbal,<br />
que ocupa praticamente todos os espaços, sem qualquer preocupação<br />
com o essencial contraponto do silêncio. Esse excesso<br />
verborrágico se consubstancia nos textos poéticos e na retórica<br />
1 Um maior aprofundamento sobre o assunto foi desenvolvido no Capítulo IV, “A fala dos<br />
intérpretes”, em: RUBIM, 1999.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 321
discursiva dos textos políticos que, em sua maior parte, são ditos<br />
por homens, habitantes hegemônicos daquele território fílmico e,<br />
não por acaso, da política no Brasil dos anos 60. Assim, no filme,<br />
elege-se a fala (o discurso verbal) como fundamental instrumento<br />
de trabalho da realização política, uma reprodução da tradicional<br />
relação dos discursos com a matriz cultural então predominante<br />
no país naquela época, – que privilegiava o caráter ornamental e<br />
“retórico” da cultura, utilizado para legitimar e por em destaque<br />
os atores sociais –, como também pelo estágio cultural brasileiro,<br />
marcadamente literário, devido à frágil presença de uma cultura<br />
audiovisual mais desenvolvida.<br />
Há de se levar em conta os circuitos culturais dominantes no<br />
Brasil da época, do início dos anos 60, quando ainda predominava<br />
uma cultura de forte viés literário marcada pela presença do texto<br />
escrito. Por contraposição a essa cultura hegemônica, os excluídos,<br />
apartados da cultura dominante, permaneciam na tradição<br />
oral. A presença de uma cultura audiovisual, traduzida na existência<br />
dos novos meios sociotecnológicos de comunicação e na<br />
produção cultural midiática, ainda era tênue, apesar da existência<br />
do cinema, já dominado pelas empresas hollywoodianas, e da televisão,<br />
chegada na década anterior, mas ainda fortemente elitista<br />
até meados dos 60.<br />
Observe-se, também, que só nos anos posteriores ao golpe<br />
militar começa a se configurar no país uma mudança cultural profunda<br />
com a emergência e a consolidação da lógica da indústria<br />
cultural sob a hegemonia da mídia televisiva. No pós-1968, a cultura<br />
audiovisual se desenvolve, redefinindo o panorama cultural<br />
brasileiro que passa a ser, simultaneamente, cada vez mais marcado,<br />
de um lado, pela repressão às atividades intelectuais e de<br />
outro pela intensificação da implantação da cultura midiatizada<br />
entre nós. (RUBIM; RUBIM, 2004)<br />
322<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Assim, em meados dos anos 60, a situação predominante era<br />
outra. A comunicação desenvolvida nas atividades políticas estava,<br />
naquele contexto, presa à ambiência dos palanques tradicionais<br />
em praças públicas onde os candidatos disputavam eleitores<br />
através dos seus “retóricos” e emocionados comícios: esta é a<br />
marca discursiva de uma política, para a qual os excluídos eram<br />
uma massa a ser manobrada e moldada. É, portanto, a alegoria<br />
desse ambiente que Glauber Rocha faz migrar para o seu terceiro<br />
longa-metragem.<br />
A fala do autor<br />
O filme se desenvolve em torno de Paulo Martins, o angustiado<br />
poeta que deseja fazer uma poesia nova, jornalista, estreante no<br />
universo da política que ele admira, mas que, também, o angustia:<br />
“— Eldorado! um inferno me matando, me envelhecendo [...]”;<br />
amesquinhado, ele vomita a sua repulsa sobre a estrutura podre e<br />
imoral da política que se faz naquele país fictício.<br />
Não é mera coincidência que esse sentimento, experimentado<br />
pelo herói de Terra em Transe, seja compartilhado pelo seu autor.<br />
Em variados momentos, Glauber Rocha expressa a sua repulsa aos<br />
temas ali tratados.<br />
[...] é um filme sobre o que existe de grotesco, horroroso e pobre<br />
na América Latina. Não é filme de personagens positivos, não<br />
é filme de heróis perfeitos, que trata do conflito da miséria, da<br />
podridão do subdesenvolvido [...] como eu detestava as coisas<br />
apresentadas por Terra em Transe, filmei com uma certa repulsão.<br />
(1981a, p. 140)<br />
Por esse campo da política “abominado” por Glauber, em<br />
Terra em Transe, circulam, também, Silvia e Sara – o duplo que<br />
nomeia e constitui o foco do nosso interesse maior no filme, neste<br />
trabalho –, os personagens femininos. A primeira, festejada e<br />
Gênero, mulheres e feminismos 323
everenciada como a “embaixatriz da beleza”, a futura “senhora<br />
Paulo Martins” circula com aparente desembaraço no mundo do<br />
transe, na sua emblemática mudez. A outra, Sara, que se autodescreve<br />
como uma mulher que foi “lançada no coração do seu<br />
tempo”, tem o respeito de todos, inclusive, na visão do então candidato<br />
Vieira, é a “professora eficiente que veio dar vida a Alecrim”.<br />
Já em 1965, em entrevista à Revista Civilização Brasileira,<br />
instado a falar sobre o lugar dos personagens femininos nos seus<br />
filmes, Glauber confessa: “Eu acho que mulher é coisa que não se<br />
entende racionalmente. Por isso eu quis dar àquela mulher, todas<br />
as contradições da alma feminina”. 2 Assim, é impossível não<br />
relacionar essa fala do cineasta com as teorias freudianas quando o<br />
criador da Psicanálise remete ao poeta a decifração da alma feminina.<br />
Essa recusa também é observada pela psicanalista Beth Fuks<br />
(1993) que diz:<br />
[...] ao remeter a problemática feminina ao campo da arte, Freud<br />
não só problematiza as suas próprias construções teóricas, até<br />
então a respeito do tema, como nos dá indicações da inviabilidade<br />
de lhe fornecer uma resposta definitiva e categórica [...] a<br />
mulher é um continente negro [...] porque ausente no imaginário<br />
e no simbólico ele terá de ser construído ininterruptamente<br />
e desmoronado imediatamente. [...] Um vazio, um sintoma,<br />
um sempre desejo do outro: o masculino que o preenche com as<br />
fantasias calcadas nas suas próprias referências.<br />
O cineasta e o pai da Psicanálise acabam por se encontrar, no<br />
que diz respeito ao entendimento do ser mulher ou à representação<br />
destas. Em 1967, por exemplo, quando instado a falar à revista<br />
Positif sobre as suas personagens, Glauber Rocha diz:<br />
[...] eu tenho muita dificuldade de trabalhar os personagens femininos.<br />
Escrevi muitos roteiros que não foram filmados. Nos<br />
2 Referindo-se a Rosa um dos seus personagens em Deus e o Diabo na Terra do Sol.<br />
324<br />
Gênero, mulheres e feminismos
quais eu tinha dificuldade de criar personagens que são comigo<br />
muito conscientes e têm uma influência moral e política [...].<br />
(1965, p. 122)<br />
A aura de mistério que circunda os personagens femininos<br />
no espaço fílmico de Glauber Rocha se traveste e se fragmenta,<br />
mas é sempre reflexo do olhar que os cria. No entanto, a opinião<br />
positiva, citada acima, acerca das personagens que representam<br />
mulheres não é generalizada. Em relação a Silvia, também uma<br />
das habitantes de Terra em Transe, o cineasta não tem qualquer<br />
condescendência. Ela não figura na sua galeria de personagens<br />
“conscientes”, com valoração positiva: é interditada e, por antecipação,<br />
como poderá ser lido na citação abaixo, tem o seu decreto<br />
de morte determinado pelo estado racional discursivo do artista:<br />
[...] não, Sílvia certamente não, [...] ela está em segundo plano,<br />
é uma espécie de musa, uma expressão de adolescência que se<br />
torna uma imagem fugitiva. Sílvia, aliás, não diz uma palavra<br />
em Terra em Transe, porque não consegui colocar uma palavra<br />
em sua boca. Escrevi diversos diálogos para ela, mas depois foram<br />
cortados porque tudo que ela dizia ficava ridículo. (ROCHA,<br />
1965, p. 83)<br />
O silêncio que conforma Silvia é visto pelo seu criador como<br />
a mais pura alienação, ausência de ser. Uma percepção compartilhada<br />
pela psicóloga Regina Andrade (1997) quando naturaliza a<br />
personagem como representação daquelas mulheres segundo ela,<br />
“sem vida, testemunhas passivas das lutas pelos ideais de poder.<br />
Cópia perfeita da época em que o filme foi realizado”. Cabe observar<br />
que a época à qual a estudiosa se refere, para além da cena<br />
cinematográfica, é o cenário social brasileiro dos anos 60, um<br />
contexto que, em geral, ainda não reconhece, de forma plena, o<br />
papel público das mulheres. Elas estavam fora da cena e desse cenário<br />
social compartilhado, instaladas no espaço privado da casa,<br />
com suas existências determinadas pelo amor a/de outrem. Suas<br />
Gênero, mulheres e feminismos 325
vidas só existiam através da garantia do emblema da “feminilidade”.<br />
(BRANDÃO, 1993, p. 115) 3<br />
No discurso glauberiano sobre Silvia, percebe-se o estabelecimento<br />
de um jogo em que afirmações e negações se permutam no<br />
tabuleiro narrativo. Isso pode ser visto na fala de Glauber, “não,<br />
Sílvia, certamente não”!, ainda que a ênfase em tal negação seja<br />
explicada pela própria negação de si: Silvia expressaria “sonhos”<br />
da adolescência do autor, portanto, não estaria enquadrada na<br />
performance das demais representações de mulher consideradas<br />
coerentes da sua vida adulta.<br />
Tal observação não tem qualquer intenção de psicanalisar o<br />
autor através da sua criação, porém, algumas associações nesse<br />
caminho são inevitáveis. Nós nos demos licença para os devaneios<br />
de forma a considerar que esse surto fugidio e sem consistência de<br />
ideias da adolescência, que Glauber faz recorrente nas suas falas<br />
sobre Silvia, soa e/ou se impõe como fantasias recalcadas na infância<br />
que retornam e são sublimadas através dessa personagem,<br />
estabelecendo uma concorrência que a autoridade de autor impede<br />
de ser: ele rasga as suas falas porque, no juízo dos seus valores,<br />
“tudo que ela dizia ficava ridículo”. Ao mesmo tempo, ele também<br />
a responsabiliza pela sua impotência como criador quando atribui<br />
à personagem, sua criação, a ausência de falas: “[...] não diz uma<br />
palavra sequer em Terra em Transe”. E, assim, a intenção de explicar<br />
Silvia, através da consciência do autor acaba por subsumir<br />
outras perspectivas de compreensão da personagem.<br />
É interessante lembrar que, em Terra em Transe, a palavra é<br />
moeda de identificação e de legitimidade para a economia e elaboração<br />
de sentidos dos personagens, mas, ainda assim, essa valoração<br />
é contraditada por Paulo Martins – o herói que, lembremos,<br />
3 Esta referência é alusiva ao comportamento do personagem Olímpia em “Contos Sinistros”<br />
de Cesarotto Hoffmann, analisado pela autora. Este personagem feminino desempenha na<br />
narrativa literária um papel similar ao de Sílvia em Terra em Transe.<br />
326<br />
Gênero, mulheres e feminismos
ealiza as ilusões do autor – quando, em determinado momento<br />
da narrativa ele murmureja: “− As palavras são inúteis”.<br />
No filme, a relação entre o autor e sua personagem está conformada<br />
por uma percepção que mantém a separação entre o<br />
mundo masculino e o feminino no âmbito do universo sociocultural<br />
fundado na oposição entre os sexos, na lei dos contrários.<br />
Como observa a pesquisadora Rosyska Darcy de Oliveira:<br />
No imaginário masculino, as mulheres são percebidas não só<br />
como diferentes, mas, sobretudo, como inferiores, ocupam, paradoxalmente,<br />
o lugar de ‘metade perigosa da sociedade’. Mais<br />
perto da natureza selvagem que da ‘paisagem humanizada’, detentoras<br />
da fertilidade da terra e da fecundidade do grupo, delas<br />
provém a ameaça suprema de que, caso rompam a relação<br />
primordial de alteridade/oposição e se recusem aos homens,<br />
estiole-se o solo e aniquile-se a espécie. (1991, p. 30)<br />
No entanto, o silêncio, a “morte” que o autor impôs a Sílvia,<br />
na tessitura do seu discurso racional, verbal, não consegue apagar<br />
o personagem. Para apoiar essa afirmação, se fazem recorrentes<br />
os estudos de Eni Orlandi quando diz que “a força corrosiva do<br />
silêncio faz significar em outros lugares o que não ‘vinga’ em um<br />
lugar determinado” (1993, p. 13). E essa perspectiva do silêncio se<br />
torna desencadeadora de tensões que emergem com vigor significativo<br />
no filme. Mas, para segurar, por enquanto, a atenção sobre<br />
Silvia na sua pobreza de fala, lançamos mão, também, de um texto<br />
de Eduardo Mascarenhas A Idade da Terra, no qual o psicanalista<br />
anota:<br />
O ato psíquico mais banal representa uma trama impensavelmente<br />
complexa. Nada é simples, nada é pobre, nada é burro e<br />
também nada é ‘puro’. Há pois que se ter respeito pelo ideologicamente<br />
considerado pobre, feio ou banal e menos respeito pelo<br />
ideologicamente considerado rico, belo e virtuoso. (1981, p. 98)<br />
Gênero, mulheres e feminismos 327
A Sílvia, nos múltiplos discursos glauberianos, contrapõe-se<br />
Sara. Ela se afirma uma mulher “lançada no coração do seu tempo”,<br />
mas, de certa forma, também é interditada pelo seu criador<br />
quando observa:<br />
Talvez, ela diga as coisas um pouco como um homem, talvez<br />
exista aqui um fenômeno de compensação porque não encontro<br />
na realidade brasileira mulheres tão conscientes. (ROCHA,<br />
1981b, p. 83)<br />
Glauber completa, tentando dar a Sara uma consistência de<br />
coerência da qual ele se apropria:<br />
Ela é lúcida, mas sempre comunista sempre fiel à linha do Partido<br />
[...] quando Sara vem com seus dois amigos comunistas ver<br />
Paulo, para conseguir mais uma vez sua adesão a Vieira, ele está<br />
consciente que uma união com Vieira não levará a nada de positivo,<br />
mas neste momento, a sua consciência política sofre uma<br />
interferência existencial: como ele ama Sara, liga-se a Vieira por<br />
causa dela. No fim Paulo é derrotado, ela o deixa; é um personagem<br />
lúcido e político; ela continua a luta; é o único caráter<br />
‘coerente’ de Terra em Transe. Eu partilho de sua opinião de<br />
que poesia e política são demais para um homem só. (ROCHA,<br />
1981b, p. 93)<br />
Desse modo, a positividade e a complexidade dessa outra representação<br />
feminina são também escamoteadas. A fala do autor<br />
nega a autoria do seu discurso já que, “talvez ela diga as coisas um<br />
pouco como homem” e neutraliza as suas ricas tensões, registros<br />
de um devir das mulheres que começa a ter solidez no mundo.<br />
Observamos que o filme foi realizado no apagar das luzes dos anos<br />
60, período em que o Brasil e grande parte da América Latina viviam<br />
sangrentas ditaduras. Em vista disso, as mulheres também<br />
estavam envolvidas por batalhas sociais gerais que as fizeram retardar<br />
as lutas pelas suas bandeiras específicas. Mulheres representadas<br />
por Sara, que se autodescreve como “lançada no coração<br />
do meu tempo”, e que mal tiveram tempo de assimilar a passa-<br />
328<br />
Gênero, mulheres e feminismos
gem de um estado mulher que tinha como percurso determinado<br />
o casamento e a maternidade, como evidencia a personagem, de<br />
forma veemente − “Eu também queria casar, ter filhos, ambições<br />
normais de uma mulher normal” −, para um momento que<br />
subverte esse caminho como destino. Assim, também nesse caso,<br />
mesmo dedicando a Sara o seu discurso mais fluente, o autor acaba<br />
por matar a personagem, ao amortecer as tensões que fazem<br />
emergir as suas diferenças.<br />
O fato dessa confessa simpatia de Glauber Rocha pela personagem<br />
Sara nos faz questionar se o modelo de “mulher consciente”<br />
idealizado por ele não seria aquele representado por Sara em Terra<br />
em Transe. Uma indagação que ganha a colaboração de outros<br />
estudiosos, a exemplo do professor Julio Lobo (1993) ao sugerir,<br />
de forma pertinente, que a militância política “aguerrida” de Sara<br />
seja o grande motivo de admiração de Glauber Rocha pela personagem,<br />
acentuando:<br />
[...] a política tinha naqueles anos uma aura toda especial. Dela<br />
partilhava a nata social que buscava os novos rumos para a sociedade<br />
brasileira, naquele momento, cheia de esperanças em<br />
suas potencialidades e em seu desenvolvimento. Constituía-se,<br />
portanto, como lugar sagrado para intelectuais e artistas desejosos<br />
de transformações. (1993, p. 53)<br />
Como se sabe, na efervescência da sua inconstância, Glauber<br />
nunca foi filiado a qualquer partido. A esse respeito, dizia:<br />
[...] nossa geração era comunista, utópica, vanguardística, populista<br />
e libertária e não poderia ser controlada pelo PC. Nossas<br />
relações eram cordiais e amistosas, mas nos sentíamos reprimidos<br />
porque logo queriam canalizar para uma prática burocrata<br />
da cultura. (ROCHA, 1981a, p. 294)<br />
No entanto, como argumenta Lobo (1993), grande parte dos<br />
jovens progressistas tinha proximidade com o Partido Comunista<br />
Brasileiro (PCB), força hegemônica da esquerda na época. (ROCHA,<br />
Gênero, mulheres e feminismos 329
1981a, p. 86) 4 Nessa perspectiva, não sem razão, Glauber Rocha<br />
mantém grande afinidade e identidade com Paulo Martins, personagem<br />
central de Terra em Transe. E assim, é possível que a<br />
crítica para alguns aspectos da política decorresse, de fato, desta<br />
alta consideração pela militância política como o caminho para a<br />
conscientização do país.<br />
É nesse lugar privilegiado que Glauber Rocha instala Sara. Não<br />
se pode esquecer que eram os anos 60 e a sociedade brasileira,<br />
mesmo em sua parcela progressista, guardava de forma acintosa<br />
as fronteiras entre os mundos público e privado. Às mulheres<br />
cabia cumprir os papéis definidos pelo segundo no qual a “esposa-mãe”<br />
era o modelo dominante enquanto os homens desenvolviam<br />
as relações mais relevantes e valorizadas, na esfera pública<br />
e, dentre estas, a política, seja no seu modelo conservador seja<br />
no progressista. Para as mulheres, esse lugar social significava,<br />
mais do que qualquer outro, um território estrangeiro e àquelas<br />
que conseguiam romper esta fronteira, no mínimo, era imposta a<br />
condição de “figura desviante” dos comportamentos sociais estabelecidos.<br />
Mas, Sara “talvez fale feito homem!”, diz o autor, confessando<br />
um estranhamento à própria criação, que representa uma mulher<br />
desviada do seu “destino”, habitando um “território” de domínio<br />
masculino. Mesmo sendo um criador genial, no seu discurso racional,<br />
Glauber Rocha não deixou de ser um homem da sua época,<br />
uma época na qual até mesmo as organizações políticas progressistas<br />
reproduziam o comportamento discriminador das relações<br />
entre os sexos vigentes na sociedade, e para as quais, como diz Ana<br />
Alice Costa, “[...] as mulheres deveriam se restringir às questões<br />
concretas da sobrevivência física, enquanto os homens viviam o<br />
4 É interessante observar esta relação identificadora entre Paulo Martins e seu autor. No livro<br />
A Revolução do Cinema Novo, Glauber escreve sobre o personagem: “Paulo Martins representa<br />
no fundo um comunista típico da América Latina. Pertence ao Partido sem pertencer, tem uma<br />
amante que é do partido. Coloca-se a serviço do partido quando este pressiona”.<br />
330<br />
Gênero, mulheres e feminismos
direito do mundo da liberdade, da ação e dos ideais” (1981, p. 82),<br />
ainda que nessas organizações, por vezes, acontecesse uma inversão<br />
em algumas funções previstas no modelo patriarcal da época.<br />
Está anotado no livro A memória das mulheres do exílio, de<br />
Albertina Costa, que “as mulheres sustentavam os homens e os<br />
homens se dedicavam aos grande trabalhos da revolução” (1998,<br />
p. 32) e esse tipo de comportamento era tão usual que acabou por<br />
levar o Partido Comunista Brasileiro a fazer uma autocrítica, em<br />
1979, quando reconheceu ter subestimado as potencialidades políticas<br />
femininas ao fazer uma divisão de trabalho por sexo dentro<br />
da organização, comportamento atribuído ao reflexo do machismo<br />
e do patriarcalismo milenar nas suas práticas. (COSTA, 1981,<br />
p. 82)<br />
A fala dos personagens femininos<br />
Na convulsão de tempo e memória, em que não é possível<br />
demarcar com nitidez as fronteiras entre as lembranças de algo<br />
realmente vivido e os desejos delirantes, entre as evocações do<br />
passado e as imagens do presente, Sara é o objeto de amor e admiração,<br />
tanto do autor quanto do dilacerado personagem Paulo<br />
Martins, dentre outros personagens. Ela é uma mulher discreta,<br />
comedida nas suas emoções, com trânsito no mundo da política e,<br />
em consequência, no universo dos homens. Sua presença e interferência<br />
nesse mundo são construídas de forma tão exemplar que<br />
lhe valeu o título de “um modelo de militante”. 5<br />
É importante observar que os personagens de Terra em Transe<br />
foram escolhidos de modo que, praticamente, vivenciassem no<br />
set as suas “realidades”, como declarou o próprio Glauber Rocha:<br />
“Glauce Rocha foi escolhida porque era comunista [...]. Danusa<br />
5 Ver o título de capítulo da dissertação de mestrado de LOBO, Julio César. Muito Romântico ou<br />
Poesia e Política no Filme Terra em Transe de Glauber Rocha (1993).<br />
Gênero, mulheres e feminismos 331
porque era a mulher mais desenvolvida da granfinagem varguista”<br />
(1981a, p. 261). Tal estratégia, a peculiar atitude de construção<br />
dos personagens neste filme também mereceu a atenção de Robert<br />
Stam, que diz:<br />
Em vez de criar personagens, Terra em Transe desenvolve figuras<br />
políticas [...] Porfírio Diaz [...] incorpora a visão latinoamericana<br />
do despotismo ibérico, enquanto sua carreira política<br />
lembra a de Carlos Lacerda [...]. Vieira por sua vez apresenta<br />
uma síntese de diversos líderes populistas. (1993, p. 41-2)<br />
A militância de Sara a faz se aproximar de Paulo Martins quando<br />
vai até a redação do jornal Aurora Livre em busca de um jornalista<br />
para ajudá-la na luta contra uma sociedade injusta que<br />
convive com crianças famintas. Esse primeiro encontro deflagra<br />
a entrada de Sara na vida de Paulo assim como é também decisivo<br />
para o ingresso do jornalista na militância política. Como já vimos,<br />
a admiração de Paulo Martins por Sara é compartilhada pelo<br />
criador dos personagens para quem ela é o único caráter coerente<br />
em Terra em Transe, o ideal de militância nunca realizado tanto<br />
por Paulo Martins quanto pelo próprio Glauber Rocha. Não é ele<br />
próprio que diz concordar com Sara de que “poesia e política são<br />
demais para um homem só”?<br />
O fato é que Glauber Rocha se identifica com Paulo Martins −<br />
ele mesmo confessa: “as ilusões de Paulo são as minhas” −, mas,<br />
por sua inconstância, vulnerabilidade e ambiguidade, o herói se<br />
torna um anti-herói, ao contrário de Sara que, durante toda a narrativa,<br />
se desenvolve de forma coerente e plena nas suas virtudes.<br />
Contudo, como a pólis não é lugar permitido às mulheres, Glauber<br />
Rocha, no seu discurso racional, resultado da cultura patriarcal<br />
vigente no seu tempo, diz não encontrar “na realidade brasileira,<br />
mulheres tão conscientes” e desconstrói o lugar de gênero da personagem:<br />
“ela fala feito homem”: então, ela não existe. É interessante<br />
ouvir sobre isso a pesquisadora Rosyska Darcy de Oliveira:<br />
332<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Longe do eterno feminino, para além da ambigüidade, resposta<br />
possível a mensagens contraditórias, a autoria do feminino é,<br />
antes de mais nada, a de uma linguagem para dizê-lo, invenção<br />
que lhe permita exprimir-se sem fechar-se nas lógicas das definições<br />
que, entretanto são incessantemente exigidas das mulheres.<br />
Porque do ponto de vista da lógica masculina, negá-la<br />
significa fatalmente afirmar o seu oposto, dito com as mesmas<br />
palavras, dentro de um mesmo quadro de referência. Inconcebível,<br />
pois, uma lógica outra, em que conte mais o aproximar-se<br />
do que ainda é indefinido do que o apropriar-se de uma identidade<br />
pré-fabricada no espelho dos homens. Aproximar-se do<br />
feminino, inventando-o a cada dia, é o movimento que farão as<br />
mulheres neste fim de século. (1991, p. 13)<br />
No percurso da construção dos personagens começam a emergir<br />
inevitáveis contradições que, inevitavelmente, tensionam os<br />
modelos estabelecidos. Se, por um lado, a consciência do homem<br />
Glauber não reconhece Sara enquanto representação de mulher, a<br />
sensibilidade do artista promove uma ação significativa ao instalar<br />
a personagem no território da política, um terreno hegemonicamente<br />
masculino, ao tempo em que liberta os seus simulacros de<br />
mulheres para expor os sentimentos contraditórios e as tensões<br />
próprias do seu momento histórico.<br />
Nas cenas dos anos 60, a personagem Sara, ao tempo em que<br />
se entristece por ter renunciado ao casamento e à maternidade,<br />
tem no filme um lugar de vanguarda na postulação dos espaços<br />
públicos e políticos, onde inscreve como pano de fundo a reivindicação<br />
da igualdade com o masculino, esse “objeto do desejo”<br />
sempre tão caro aos movimentos de mulheres. Todavia, para atualizar<br />
a trajetória de Sara, já que são passados quarenta anos desde<br />
a sua construção, pode-se recorrer ao Marcuse dos anos 70, quando<br />
profeciou:<br />
A realização dos objetivos do movimento de mulheres exige uma<br />
segunda etapa em que ele transcenderia o quadro no qual está<br />
funcionando no momento presente. Nessa etapa, para além da<br />
Gênero, mulheres e feminismos 333
igualdade, a libertação implica na consciência de uma sociedade<br />
regida por um princípio de realidade diferente, uma sociedade<br />
na qual a dicotomia atual masculino-feminino seria ultrapassada<br />
nas relações sociais e individuais. Assim, o movimento carrega<br />
consigo o projeto, não só de instituições sociais novas, mas<br />
também de uma mudança de consciência, de uma transformação<br />
das necessidades institucionais dos homens e das mulheres,<br />
liberadas das limitações da dominação e da exploração. (apud<br />
OLIVEIRA , 1991, p. 48)<br />
Silvia, o duplo de Sara, a “personagem muda” que, por essa<br />
sua condição, funcionaria na compreensão de Freud como suporte<br />
da fria máscara mortuária, nos sonhos do artista, também não<br />
se aquieta na sua mudez da morte. Essa mulher fictícia que convoca<br />
o seu criador, de modo tão declarado, a se debater com a alma<br />
feminina, no nosso entender, também vai além da imobilidade<br />
que lhe foi decretada.<br />
É uma mulher bonita, exuberante, de gestos delicados. Em alguns<br />
momentos, tem a leveza de uma fada, em outros, a elegância<br />
de uma escultura grega, aparência perfeitamente coerente com a<br />
imagem de musa que nos legou a cultura. É uma representação de<br />
mulher que transita no universo “burguês” daquele mundo em<br />
transe. No entanto, já sabemos, ela “não dá uma palavra do início<br />
ao fim do filme” e este seria o detonador das tensões que provocam<br />
o desconforto em seu criador e intérpretes.<br />
Se a comparamos com Sara, “a militante modelo”, Silvia realmente<br />
atua como o seu contraponto. Entre as duas, existem diferenças<br />
que se expressam nos modos de vestir, de comportamento,<br />
quiçá de percepção de mundo. Enquanto a primeira é vista com o<br />
rosto lavado, tenso, roupas escuras e clássicas, isenta de vaidades,<br />
sempre escrevendo ou falando, investida da militância política, Silvia<br />
usa longos vestidos finos e anda com elegância e leveza como se<br />
deslizasse na vida. Mesmo com seu ar etéreo, ela também cultiva<br />
sentimentos apaixonados e concretos, só que vinculados aos pra-<br />
334<br />
Gênero, mulheres e feminismos
zeres do sexo, da vida. O inesquecível Wilson Barros (1982) a interpreta<br />
como o oposto de Sara, “a sua cópia suja”, enquanto Ismail<br />
Xavier (1993) lhe dá o sentido da “fossa indolente” e Regina Andrade<br />
(1997) a vê como o lado “alienante e passivo” da feminilidade. 6<br />
Como se percebe, nas análises dos intérpretes dos personagens<br />
femininos glauberianos, aparece uma saturação de adjetivos<br />
dirigidos a Silvia que denotam antipatia, impaciência, intolerância<br />
e que a retêm na memória de todos sempre de modo depreciativo<br />
que, em certo sentido, convergem para a opinião de Glauber<br />
Rocha. Quando convocado a falar dessa sua criação ele sempre esteve<br />
impaciente em sua reiterada negação da personagem.<br />
É certo que a economia de elaboração de Silvia e Sara se desenvolve<br />
através de moedas completamente diversas. Mas é complicado<br />
compreender o sentido valorativo que se atribui às duas<br />
personagens quando a primeira recebe uma carga depreciativa<br />
muito forte e, como se diria popularmente, “já entra perdendo”,<br />
inclusive por alguns atributos que fazem parte da sua conformação<br />
e que, socialmente, são considerados positivos como atração, beleza,<br />
bom gosto, entre outros, que não apenas são relegados como<br />
reforçam a sua depreciação, na compreensão da maior parte dos<br />
seus intérpretes. Tomando-se como exemplo a beleza, este é um<br />
atributo para o qual existe um consenso de valor, mas que, para<br />
Silvia, não funciona, o que nos leva a questionar se os intérpretes 7<br />
de Silvia não estariam reproduzindo o banal estereótipo de que<br />
“mulher bonita é sempre burra”? Se assim for, estaria instalado<br />
mais um impasse, tão a gosto de Terra em Transe: beleza e positividade<br />
são demais para uma mulher só?<br />
Não resta dúvida que o personagem de Silvia transita de modo<br />
confortável no “lado podre”, o mundo dos vilões da trama. Os<br />
6 Palavras de Vieira quando apresenta Sara a Paulo Martins.<br />
7 Chamamos de intérpretes os pesquisadores que trataram desse tema nos seus estudos.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 335
políticos conservadores como Diaz são os que mais a acolhem e,<br />
aparentemente, ela seria um deles. No entanto, a isso se contrapõe<br />
o fato de que Paulo Martins, que também faz o mesmo percurso<br />
de Silvia, em nenhum momento ter tido abalada a sua condição<br />
de herói na trama. O mesmo acontece com Sara que, em nenhum<br />
momento, tem ameaçada a sua condição de modelo exemplar,<br />
mesmo comungando das políticas populistas de Vieira que se utiliza<br />
do aparato repressivo para liquidar o povo que reivindica sua<br />
cidadania.<br />
Tal problematização nos aponta para a suspeita da existência<br />
de um certo moralismo seja do autor, na sua fala sobre as personagens<br />
femininas, assim como dos seus intérpretes visitados por<br />
esse texto. Um moralismo que parece embotar as suas percepções<br />
em relação a várias ações da personagem, a exemplo da autonomia<br />
sobre o seu corpo, sua liberdade sexual sem qualquer insinuação<br />
de vulgaridade, em um contexto completamente adverso.<br />
Em verdade há uma grande tensão em relação a Silvia, a “personagem<br />
muda”, naquele filme totalmente conduzido pelo verbo.<br />
Na nossa compreensão, o que provoca desconforto, agressão, depreciação<br />
da personagem são ações, marcas sutis que já insinuam<br />
a independência da mulher em relação ao seu corpo e ao direito de<br />
contrariar expectativas, o silêncio, seu maior emblema, que contraria<br />
o dizer popular de que “mulher fala muito” e faz insuportável<br />
a sua permanência enquanto enigma que foge ao controle.<br />
Eni Orlandi, no seu interessante trabalho sobre os sentidos do<br />
silêncio, observa, com grande perspicácia, que:<br />
o nosso imaginário social destinou um lugar subalterno para<br />
o silêncio. Há uma ideologia da comunicação, do apagamento<br />
do silêncio, muito pronunciada nas sociedades contemporâneas.<br />
Isto se expressa pela urgência do dizer e pela multidão de<br />
linguagens a que estamos submetidos no cotidiano. Ao mesmo<br />
tempo, espera-se que se esteja produzindo signos visíveis<br />
(audíveis) o tempo todo. Ilusão de controle pelo que ‘aparece’:<br />
336<br />
Gênero, mulheres e feminismos
temos de estar emitindo sinais sonoros (dizíveis, visíveis) continuamente.<br />
(1993, p. 37)<br />
Esse trecho do estudo da professora é de extrema pertinência<br />
para uma interpretação menos passional de Silvia, particularmente<br />
inscrita no contexto de um filme como Terra em Transe.<br />
O universo do filme, como já foi dito, é saturado de falas. O verbo<br />
é sua via de comunicação hegemônica, como também o é na política,<br />
uma prática criticada pelo próprio filme. Naquele contexto,<br />
a linguagem exercita a sua soberania. Isso acontece nos diálogos<br />
entre os personagens, nos poemas que são declamados, nos discursos<br />
políticos, nas canções, nos textos que se transformam em<br />
imagens. É um mundo da retórica, das palavras. Dessa forma, o<br />
comportamento de Silvia só pode causar estranhamento, subverter<br />
aquela ordem tão prenhe de signos. Ademais, só existem duas<br />
figuras femininas de destaque no filme. Se a outra, Sara, é inteiramente<br />
integrada àquele contexto, Silvia, com o seu silêncio, a sua<br />
singular diferença, só pode ser desvio, transgressão, oposição.<br />
A dificuldade em reconhecer e aceitar a diferença é visível não<br />
só entre os intérpretes; os personagens, os que seriam seus pares<br />
no filme, recorrentemente tentam fazer dela o seu eco: “— Você<br />
entende, Silvia, porque ele nos acha irresponsáveis? [...] mas eu<br />
encontrei Deus! Silvia, você sabe o que é encontrar Deus?”. Dizeres<br />
com entonações e gestos que caracterizam um falar para si<br />
próprio. Falas que se repetem operando outros dispositivos, como<br />
por exemplo, que é o de falar por ela: “A Silvia que será a Sra.<br />
Paulo Martins!”; “[...] vai abandonar Silvia também?”. Esse expediente,<br />
em verdade, inviabiliza seu próprio discurso. É a recusa<br />
de reconhecimento do outro que não é conhecido.<br />
Eni Orlandi, ainda falando sobre o papel do silêncio, lembra<br />
da quebra de identidade produzida pela nossa relação com a linguagem.<br />
Diz a autora:<br />
Gênero, mulheres e feminismos 337
O silêncio, de seu lado, é o que pode transtornar a unicidade. Não<br />
suportando a ausência das palavras − ‘Por que você está quieto?’<br />
‘O que você está pensando?’ −, o homem exerce seu controle e<br />
sua disciplina fazendo o silêncio falar ou, ao contrário, supondo<br />
calar o sujeito. (ORLANDI, 1993, p. 36)<br />
Glauber Rocha, quando assume – “[...] não consegui colocar<br />
uma só palavra em sua boca porque tudo que ela dizia ficava ridículo”<br />
– também mostra a censura que faz a Silvia, em decorrência<br />
da resistência da personagem, da negação de ser eco. Nessa guerra<br />
entre o criador e a criatura que se nega e foge do destino de ser<br />
imagem refletida do seu “dono”, só lhe resta o castigo, a rejeição.<br />
Em verdade, o silêncio do personagem não é um silêncio com sentido<br />
de vazio, de falta, ele aporta uma série de outros significantes<br />
dos quais o mais importante é o que evoca uma relação de poder.<br />
O silêncio de Silvia é silenciamento, atitude de resistência e lhe<br />
garante assumir uma alteridade naquele mundo saturado de falas.<br />
Portanto, não é de se perceber passiva, sem mais, uma figura que<br />
se revela contraponto de um contexto hegemonicamente masculino.<br />
E que fique claro, isto acontece não só pela sua mudez de fala.<br />
Não nos interessa aqui, fazer um julgamento moral das relações<br />
de amizade da personagem, de ela estar próxima desta ou<br />
daquela facção na política. O que buscamos, são os seus estatutos<br />
de significância, em sentido positivo. Como, por exemplo, o corpo.<br />
No filme, a personagem é inteiramente constituída por ele. Ela<br />
é senhora de seu corpo e, consequentemente, ele é seu discurso.<br />
A legibilidade de Silvia se encontra na sua capacidade de manter<br />
uma lógica e um mundo marcadamente feminino à margem do<br />
território masculino contaminado pelo desencanto dos projetos<br />
políticos mal articulados.<br />
Finalizamos, inferindo que, nas cenas dos anos sessenta, as<br />
mulheres do imaginário glauberiano, principalmente aquelas que<br />
emergem dos palcos urbanos, também estão em transe. Nesse tra-<br />
338<br />
Gênero, mulheres e feminismos
alho, Sara, a militante política, “professora eficiente”, 8 mesmo<br />
nostálgica das “[...] ambições normais de uma mulher normal” 9 se<br />
coloca em posição de vanguarda na postulação dos espaços públicos<br />
e políticos, onde se inscreve como pano de fundo a reivindicação<br />
à igualdade com o masculino, esse “objeto do desejo” sempre<br />
tão caro aos movimentos sociais das mulheres. Enquanto Silvia<br />
com a sua mudez empreende um silenciamento, uma postura política<br />
de oposição aos desatinos do “verbo” no País em Transe.<br />
Referências<br />
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COELHO, Teixeira. Terra em Transe/Os Herdeiros: espaços e poderes.<br />
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BERNARDET, Jean-Claude. O Brasil em tempo de cinema.<br />
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BERNARDET, Jean-Claude. O autor no cinema. São Paulo: Brasiliense;<br />
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BRANDÃO, Ruth Silviano. Mulher ao pé da letra: a personagem<br />
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COSTA, Ana Alice. Avances e definiciones del movimiento feminista<br />
en Brasil. Dissertação (Mestrado em Sociologia) − Facultad de Ciencias<br />
Políticas y Sociales/ División de Estudios Superiores, México, 1981.<br />
8 Palavras de Vieira quando apresenta Sara a Paulo Martins.<br />
9 “[...] o que sabe você das ambições? Eu queria me casar, ter filhos como qualquer outra mulher!<br />
Eu fui lançada no coração do meu tempo, eu levantei nas praças meu primeiro cartaz, eles<br />
vieram, fizeram fogo, amigos morreram e me prenderam e me deixaram muitos dias numa<br />
cela imunda com ratos mortos e me deram choques elétricos, me seviciaram e me libertaram<br />
com as marcas e mesmo assim eu levei meu segundo, terceiro e sempre cartazes e panfletos e<br />
nunca os levei por orgulho. Era uma coisa maior, em nome da lógica dos meus sentimentos!... E<br />
se foram a casa, os filhos, o amor, as ambições normais de uma mulher normal... De que outras<br />
ambições individuais ‘posso falar que não seja a felicidade entre pessoas solidárias e felizes?’”.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 339
COSTA, Albertina de Oliveira (Org.). Memória das mulheres no exílio.<br />
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.<br />
DELEUZE, Gilles. Cinema2: Imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense,<br />
1990.<br />
FUKS, Betty Bernardi, A mulher, o feminino e a feminilidade. In:<br />
ASSOUN, Paul Lurent. Freud e a mulher. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.<br />
LOBO, Julio César. Muito romântico ou poesia e política no filme Terra<br />
em Transe. Salvador, 1993. Dissertação (Mestrado em Comunicação<br />
e Cultura Contemporâneas) − Faculdade de Comunicação, Universidade<br />
Federal da Bahia, salvador, 1993.<br />
MASCARENHAS, Eduardo. A Idade da Terra: um filme em questão.<br />
Filme Cultura, Rio de Janeiro, v. XIV, n. 38/39, p. 59-73, ago./nov. 1981.<br />
OLIVEIRA, Rosiska Darcy. O elogio da diferença. São Paulo: Brasiliense,<br />
1991.<br />
ORLANDI, Eni. As formas do silêncio no movimento dos sentidos.<br />
Campinas, Editora da UNICAMP, 1993<br />
ROCHA, Glauber. Deus e o Diabo na Terra do Sol. Rio de Janeiro:<br />
Civilização Brasileira, 1965.<br />
ROCHA, Glauber. Entrevista a Michel Ciment. In: ROCHA, Glauber.<br />
Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra; Embrafilme,<br />
1981b. p. 83.<br />
ROCHA, Glauber. Entrevista a Michel Ciment. In: ROCHA, Glauber.<br />
Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra; Embrafilme,<br />
1981b. p. 83.<br />
RUBIM, Antonio Albino Canelas; RUBIM, Lindinalva. Televisão e política<br />
cultural no Brasil. Revista USP, São Paulo, n. 61, p. 16-28, mar./abr./<br />
maio 2004.<br />
RUBIM, Lindinalva S. O. A fala do intérprete. In: ______. O feminino<br />
no cinema de Glauber Rocha: diálogo de paixões. Rio de Janeiro: UFRJ/<br />
ECO,1999. 327p. Capítulo IV.<br />
STAM, Robert. Bakhtin: Da teoria literária à cultura de massas.<br />
São Paulo: Ática, l993.<br />
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo:<br />
Brasiliense, 1993<br />
340<br />
Gênero, mulheres e feminismos
QUEM É QUEM<br />
Alda Britto da Motta<br />
Socióloga, Mestra em Ciências Sociais e Doutora em Educação.<br />
Professora dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais e<br />
em Estudos Interdisciplinares sobre Mulher, Gênero e Feminismo<br />
da UFBA. Pesquisadora do NEIM e do CNPQ.<br />
Alinne de Lima Bonetti<br />
Antropóloga e Doutora em Ciências Sociais, área de concentração<br />
Estudos de Gênero (Unicamp). Professora adjunta da Universidade<br />
Federal da Bahia, atuando no Bacharelado em Gênero e<br />
Diversidades e no Programa de Pós Graduação em Estudos Interdisciplinares<br />
sobre Mulheres, Gênero e Feminismo. Pesquisadora<br />
permanente do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a mulher<br />
– NEIM/UFBA. Contato: alinne.bonetti@gmail.com<br />
Ana Alice Alcântara da Costa<br />
Graduada em Ciências Sociais pela UFBA, Mestra e Doutora<br />
em Sociologia Política pela Universidade Nacional Autônoma do<br />
México e Pós-doutora no Instituto de Estudios de la Mujer da Universidad<br />
Autonoma de Madrid. Professora do Departamento de<br />
Ciência Política da Universidade Federal da Bahia, do PPGNEIM
e POSHIST da UFBA. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares<br />
sobre a Mulher – NEIM/UFBA. Bolsista (2006/2011)<br />
do Consórcio do Programa de Pesquisas (Research Programme<br />
Consortium − RPC) sobre o Empoderamento das Mulheres (Pathways<br />
of Women’s Empowerment), financiado pelo Department<br />
for International Development − DFID da Grã- Bretanha. Tem<br />
experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Atitude e<br />
Ideologias Políticas, atuando principalmente nos seguintes temas:<br />
gênero, cidadania, condição feminina, comportamento político,<br />
políticas publicas e feminismo.<br />
Ângela Maria Freire de Lima e Souza<br />
Bióloga e Doutora em Educação pela UFBA. Docente do Programa<br />
de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres,<br />
Gênero e Feminismos. Pesquisadora permanente do Núcleo de<br />
Estudos Interdisciplinares sobre a mulher – NEIM/UFBA. Dentre<br />
os seus temas de interesse e pesquisa estão: Gênero nas Ciências,<br />
epistemologias feministas e Gênero e Ensino de Ciências.<br />
Carla Gisele Batista<br />
Graduada em História, Mestranda no Programa de Pós-Graduação<br />
em Estudos sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da UFBA<br />
(PPG-NEIM/UFBA). Integrante de CLADEM/Brasil, foi educadora<br />
do SOS Corpo − Instituto Feminista para a Democracia e Secretária<br />
Executiva da AMB; integrou as coordenações da Articulación Feminista<br />
Mercosur, das Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto<br />
Legal e Seguro e também do Fórum de Mulheres de Pernambuco.<br />
A sua área de interesse são os estudos de gênero e feministas.<br />
Cecília Sardenberg<br />
Graduada em Antropologia Cultural na Illinois State University,<br />
Mestra e Doutora em Antropologia Social na Boston University.<br />
Professora do Departamento de Antropologia e no Programa<br />
342<br />
Gênero, mulheres e feminismos
de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres,<br />
Gênero e Feminismo − PPGNEIM da Universidade Federal da<br />
Bahia. Pesquisadora do NEIM, sendo, atualmente, coordenadora<br />
do PROCAD/CAPES com a Universidade Federal de Santa Catarina.<br />
Coordenadora Nacional do OBSERVE − Observatório de Monitoramento<br />
da Aplicação da Lei Maria da Penha. Coordenadora<br />
(2006/2011) do Grupo da América Latina do Consórcio do Programa<br />
de Pesquisas (Research Programme Consortium − RPC)<br />
sobre o Empoderamento das Mulheres (Pathways of Women’s<br />
Empowerment), financiado pelo Department for International<br />
Development − DFID da Grã-Bretanha através do Institute of Development<br />
Studies − IDS, Inglaterra, atuando principalmente nos<br />
seguintes temas: estudos feministas, estudos sobre mulheres e<br />
relações de gênero, feminismo e políticas públicas, gênero e desenvolvimento,<br />
gênero e corpo.<br />
Elizabete Silva Rodrigues<br />
Graduada em História pela Universidade do Estado da Bahia<br />
(1998), Mestre em História pela Universidade Federal da Bahia<br />
(2001) e Doutora em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres,<br />
Gênero e Feminismo – PPG/NEIM, da Universidade Federal da<br />
Bahia. Atualmente é professora titular da Secretaria de Educação<br />
do Estado da Bahia; Coordenadora do Curso e Professora da<br />
Faculdade Maria Milza – FAMAM. Professora pesquisadora I do<br />
PARFOR/UFRB. Tem experiência na área de História e Estudos de<br />
Gênero, com ênfase em História Regional do Brasil, atuando principalmente<br />
nos seguintes temas: gênero, trabalho, resistência; e<br />
História da Educação.<br />
Iole Macedo Vanin<br />
Mestra e Doutora em História. Professora da Universidade<br />
Federal da Bahia.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 343
Iracema Brandão<br />
Professora da Universidade Federal da Bahia, do Departamento<br />
de Sociologia, PPGNEIM, PPGCS. Pesquisadora do CNPQ<br />
no CRH/UFBA.<br />
Ivia Alves<br />
Professora de Letras (aposentada) da Universidade Federal da<br />
Bahia, e vinculada pelo PROPAP ao PPGLitC e ao PPGNEIM. Pesquisadora<br />
do CNPq e Pesquisadora permanente do NEIM (Núcleo<br />
de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher) da FFCH-UFBA,<br />
onde, atualmente, desenvolve pesquisa sobre o feminismo na<br />
Bahia, nas décadas1970/80 a 1990. Tem experiência na área de Letras,<br />
com ênfase em Literatura brasileira e baiana, bem como feminismo<br />
e gênero social e cultura. Trabalha as seguintes áreas de<br />
pesquisa: pesquisa de fontes primárias e estudos e recepção críticos:<br />
crítica feminista, crítica literária, mídia televisiva e representações<br />
de mulheres. Principais estudos já realizados: Herberto<br />
Salles, Vasconcelos Maia, Jorge Amado, Eugenio Gomes, Amélia<br />
Rodrigues, Arco & Flexa. Atualmente, desenvolve pesquisa sobre<br />
as representações de mulheres em narrativas serializadas de<br />
televisão (projeto Imagens e representações de Mulheres... fragmentadas).<br />
Possui, com um grupo de professoras pesquisadoras,<br />
o blog Mulheres em série e alimenta o site de Autoras baianas.<br />
Tem vários livros e artigos publicados sobre temas e autores acima<br />
citados.<br />
Lina Maria Brandão de Aras<br />
Graduada em Licenciatura e Bacharelado em História pela<br />
UFBa, Mestra em História pela Universidade Federal de Pernambuco,<br />
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo<br />
e Pós-doutora na Universidade Federal de Pernambuco. Professora<br />
do Departamento de História da UFBA, do PPGNEIM e do<br />
POSHIST/UFBA. Tem experiência na área de História, com ênfase<br />
344<br />
Gênero, mulheres e feminismos
em História do Brasil Império, atuando principalmente nos seguintes<br />
temas: Bahia, rebeldias, região, literatura e gênero.<br />
Linda Rubim<br />
Professora da Facom-UFBA (Graduação e Pós) Doutora em<br />
Comunicação em Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro<br />
(1999), com a tese: “O Feminino no Cinema de Glauber Rocha,<br />
diálogo de paixões e Pós-doutora na Universidade de Buenos<br />
Aires com a pesquisa “O Cinema Argentino e Brasileiro Recentes,<br />
mulheres em Cena”. Atualmente é Coordenadora do MIDAS, grupo<br />
que congrega pesquisas que trabalham a interseção entre Mídia,<br />
Cultura e Gênero. Investiga a produção de cinema feito por<br />
mulheres na América Latina.<br />
Márcia dos Santos Macêdo<br />
Socióloga, Doutora em Ciências Sociais (UFBA). Professora<br />
adjunta do Departamento de Ciência Política. Pesquisadora permanente<br />
do NEIM/UFBA.<br />
Márcia Tavares<br />
Assistente Social e Doutora em Ciências Sociais pela Universidade<br />
Federal da Bahia. Professora do Curso de Serviço Social<br />
da Universidade Federal da Bahia. Coordenadora de Pesquisa do<br />
Observatório pela aplicação da Lei Maria da Penha - OBSERVE.<br />
E-mail: marciatavares1@gmail.com.<br />
Silvia Lúcia Ferreira<br />
Enfermeira. Professora do Depto. de Enfermagem Comunitária,<br />
do Curso de Graduação e Permanente do Programa de Pós<br />
graduação em Enfermagem e do Programa de Pós Graduação em<br />
Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo<br />
(PPGNEIM /UFBA). Pesquisadora e fundadora do Grupo de Estudos<br />
sobre Saúde da Mulher − GEM. Pesquisadora do NEIM.<br />
Gênero, mulheres e feminismos 345
Simone Andrade Teixeira<br />
Enfermeira, Mestra em Desenvolvimento Sustentável pela<br />
Universidade de Brasília e Doutora em Estudos Interdisciplinares<br />
sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pelo PPGNEIM/UFBA. Professora<br />
da graduação em Medicina da Universidade Estadual do<br />
Sudoeste da Bahia.<br />
Sonia Wright<br />
Professora Doutora na área de Gênero, Poder e Políticas Públicas,<br />
do Bacharelado em Gênero e Diversidade, do Núcleo de<br />
Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (Neim), vinculado ao<br />
Depto. de Ciência Política da Universidade Federal da Bahia (Ufba).<br />
Participa ainda como pesquisadora associada do Consórcio Bertha<br />
Lutz que investiga a participação das mulheres no processo<br />
eleitoral de 2010.<br />
346<br />
Gênero, mulheres e feminismos
Colofão<br />
Formato<br />
Tipologia<br />
Papel<br />
Impressão<br />
Capa e Acabamento<br />
Tiragem<br />
15 x 23 cm<br />
Leitura News e leitura Sans 10/16<br />
Alcalino 75 g/m 2 (miolo)<br />
Cartão Supremo 300 g/m 2 (capa)<br />
Edufba<br />
Fast Design<br />
500