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GÊNERO MULHERES E FEMINISMOS

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<strong>GÊNERO</strong>, <strong>MULHERES</strong> E <strong>FEMINISMOS</strong>


Universidade Federal da Bahia<br />

Reitora<br />

Dora Leal Rosa<br />

Vice-Reitor<br />

Luiz Rogério Bastos Leal<br />

NÚCLE<br />

DE ESTUDOS<br />

INTERDISCIPLINARES<br />

SOBRE A MULHER<br />

FFCH/UFBA<br />

Neim<br />

Diretora<br />

Márcia Macêdo<br />

Vice-Diretora<br />

Silvia Lúcia Ferreira<br />

Comissão Editorial<br />

Alda Britto da Motta<br />

Ana Alice Alcântara Costa<br />

Cecília M. B. Sardenberg<br />

Enilda R. do Nascimento<br />

Ivia Alves<br />

Silvia Lúcia Ferreira<br />

Coordenação Editorial Executiva<br />

Eulália Azevedo<br />

Ivia Alves<br />

Maria de Lourdes Schefler<br />

Silvia de Aquino<br />

Ângela Maria Freire de Lima e Souza<br />

Editora da Universidade Federal<br />

da Bahia<br />

Diretora<br />

Flávia Goullart Mota Garcia Rosa<br />

Conselho Editorial<br />

Angelo Szaniecki Perret Serpa<br />

Caiuby Alves da Costa<br />

Charbel Niño El Hani<br />

Cleise Furtado Mendes<br />

Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti<br />

Evelina Carvalho Sá Hoisel<br />

José Teixeira Cavalcante Filho<br />

Maria Vidal de Negreiros Camargo


Alinne Bonneti e Ângela Maria Freire de Lima e Souza (Org.)<br />

Gênero, mulheres<br />

e feminismos<br />

COLEÇÃOBahianas, 14<br />

Salvador | EDUFBA/NEIM | 2011


2011, Autores<br />

Direitos para esta edição cedidos à Edufba.<br />

Feito o Depósito Legal.<br />

Projeto gráfico, editoração eletrônica e capa<br />

Alana Gonçalves de Carvalho Martins<br />

Revisão e normalização<br />

Vanda Bastos<br />

Revisão de texto<br />

Ângela Maria Freire de Lima e Souza<br />

Ivia Alves<br />

Os conteúdos dos artigos são da inteira responsabilidade dos seus autores<br />

Sistema de Bibliotecas – UFBA<br />

Gênero, mulheres e feminismos / Alinne Bonneti e Ângela Maria Freire de<br />

Lima e Souza (org.). - Salvador : EDUFBA : NEIM, 2011.<br />

346 p. - (Coleção Bahianas ; 14)<br />

ISBN 978-85-232-0851-6<br />

1. Mulheres - Aspectos sociológicos. 2. Mulheres - Aspectos políticos.<br />

3. Feminismo. 4. Relações de gênero. 5. Representações sociais. I. Bonneti,<br />

Alinne. II. Lima e Souza, Ângela Maria Freire de.<br />

CDD - 305.42<br />

Editora filiada à<br />

Neim<br />

Rua Prof Aristides Nóvis<br />

197 - Federação<br />

40210-630 - Salvador - Bahia<br />

Tel.: +55 71 3247-2800<br />

www.neim.ufba.br<br />

Editora da UFBA<br />

Rua Barão de Jeremoabo<br />

s/n - Campus de Ondina<br />

40170-115 - Salvador - Bahia<br />

Tel.: +55 71 3283-6164<br />

Fax: +55 71 3283-6160<br />

www.edufba.ufba.br<br />

edufba@ufba.br


SUMÁRIO<br />

7 apresentação<br />

Primeira parte G Pensando a teoria<br />

15 sobre gênero e ciência<br />

tensões, avanços, desafios<br />

Ângela Maria Freire de Lima e Souza<br />

29 feminismo e pós-modernidade<br />

como discutir essa relação?<br />

Márcia dos Santos Macêdo<br />

53 antropologia feminista<br />

o que é esta antropologia adjetivada?<br />

Alinne de Lima Bonetti<br />

Segunda parte G Tratando de interseccionalidades<br />

71 feminismo, gerontologia e mulheres idosas<br />

Alda Britto da Motta<br />

93 sexo, afeto e solteirice<br />

intersecções de gênero, raça e geração<br />

entre mulheres de classe média<br />

Márcia Tavares


115 resistência inventiva<br />

as mulheres fumageiras<br />

Elizabete Silva Rodrigues e Lina Maria Brandão de Aras<br />

141 a periferia, a casa e a rua<br />

limites difusos na cidade<br />

Iracema Brandão Guimarães<br />

Terceira parte G Da ação política<br />

165 feminismo verso “anti-feminismo”<br />

embates baianos<br />

Iole Macedo Vanin<br />

189 a política de cotas na américa latina<br />

as mulheres e os dilemas da democracia<br />

Ana Alice Alcantara Costa<br />

221 as cotas por sexo no legislativo na visão de<br />

parlamentares estaduais nordestinos<br />

(Mandatos 2003/2007 e 2007/2011)<br />

Sonia Wright<br />

243 movimentos feministas, aborto e laicidade<br />

o caso de Alagoinha como exemplar<br />

Carla Gisele Batista e Cecília M. B. Sardenberg<br />

261 direitos sexuais e direitos reprodutivos<br />

teoria e práxis de feministas acadêmicas<br />

Simone Andrade Teixeira e Silvia Lúcia Ferreira<br />

Quarta parte G Analisando representações<br />

293 representações de mulheres em sitcoms<br />

neoconservadorismo (Mulheres em Séries, 19)<br />

Ivia Alves<br />

319 mulheres<br />

o transe como devir<br />

Linda Rubim<br />

341 quem é quem


APRESENTAÇÃO<br />

Este número da Coleção Bahianas, a coletânea Gênero, Mulheres<br />

e Feminismos reúne textos que refletem não apenas a diversidade<br />

temática e metodológica que caracteriza os estudos<br />

feministas, como, também, as diferentes áreas de interesse das<br />

pesquisadoras que, juntas, oferecem um amplo espectro de temas<br />

que suscitam importantes discussões dentro do pensamento feminista<br />

contemporâneo. Assim, este livro traz artigos que são distribuídos<br />

em quatro grupos: o primeiro, Pensando a Teoria, traz<br />

artigos que apresentam reflexões sobre questões teóricas que permanecem<br />

norteando as discussões no meio acadêmico; o segundo,<br />

Tratando de Interseccionalidades, apresenta textos que colocam<br />

em destaque as interações de gênero com outras categorias como<br />

raça, classe e geração, no contexto da sociedade contemporânea;<br />

Da Ação Política, apresenta as conquistas e os desafios da luta feminista<br />

em diferentes arenas, como a questão das cotas no poder<br />

legislativo e a luta pela descriminalização do aborto; e, finalmente,<br />

no quarto grupo, Analisando Representações, são discutidas<br />

as representações de mulheres no cinema e na televisão e suas repercussões<br />

sociais.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 7


Compondo o bloco Pensando a Teoria, o artigo de Ângela<br />

Maria Freire de Lima e Souza “Sobre Gênero e Ciência: tensões,<br />

avanços, desafios” apresenta algumas reflexões sobre as relações<br />

conturbadas entre gênero e ciência constatando que, embora sejam<br />

inegáveis os avanços em termos estruturais e até simbólicos,<br />

ainda resta muito a fazer no campo epistemológico, vez que continuamos<br />

trabalhando com as mesmas categorias que caracterizam<br />

o viés androcêntrico próprio da Ciência Moderna. Continuando<br />

a discussão teórica, Márcia Macêdo, em seu artigo “Feminismo e<br />

Pós-modernidade: como discutir essa relação?” traz uma oportuna<br />

abordagem sobre o diálogo entre o feminismo e as chamadas<br />

teorias pós-modernas, analisando questões centrais da discussão<br />

e, ao mesmo tempo, destacando limites e possibilidades deste diálogo,<br />

segundo a autora, “sem cair em posições maniqueístas em<br />

torno, exclusivamente, dos ‘pecados’ ou das ‘virtudes’ dessa complexa<br />

relação”. Finalmente, Alinne Bonetti no seu texto intitulado<br />

“Antropologia Feminista: o que é esta antropologia adjetivada?”<br />

analisa a relação entre Antropologia e Feminismo, buscando<br />

identificar o que especifica a produção de conhecimento na intersecção<br />

entre os dois campos teóricos, quais as suas características<br />

teórico-metodológicas e, sobretudo, quais as implicações, contribuições<br />

e limites do seu caráter engajado no Brasil.<br />

Iniciando a secção Tratando de Interseccionalidades, Alda<br />

Britto da Motta, no artigo “Feminismo, Gerontologia e Mulheres<br />

Idosas”, analisa as grandes transformações na estrutura das famílias<br />

associadas a mudanças importantes no âmbito das relações<br />

de gênero, frente inclusive ao processo de longevidade crescente;<br />

neste contexto, as famílias, em suas novas configurações, vão vivenciando<br />

conflitos claros ou disfarçados e renúncias ambíguas,<br />

envolvendo as mulheres em um reforço dos papéis tradicionais<br />

de gênero. Em seguida, Márcia Tavares, em “Sexo, Afeto e Solteirice:<br />

intersecções de gênero, raça e geração entre mulheres de<br />

8<br />

Gênero, mulheres e feminismos


classe média”, destaca como as molduras de sociabilidade, sob a<br />

influência de marcadores sociais da diferença como gênero, raça<br />

e geração a que pertencem, contribuem para definir as trajetórias<br />

e escolhas no campo afetivo-sexual a partir dos relatos de duas<br />

mulheres sobre suas vivências no campo da sexualidade. Elizabete<br />

Silva Rodrigues e Lina Maria Brandão de Aras trazem, na sequência,<br />

o artigo “Resistência Inventiva: as mulheres fumageiras”,<br />

no qual analisam como se caracterizavam e se organizavam as<br />

relações sociais patriarcais no âmbito da indústria fumageira do<br />

Recôncavo Baiano; as autoras centram sua análise nas mulheres<br />

trabalhadoras, em um ambiente caracterizado pela opressão e pela<br />

exploração, à medida que lutavam pela sobrevivência, equilibrando<br />

a construção das duas identidades – mulher e trabalhadora.<br />

O artigo de Iracema Brandão Guimarães intitulado “A Periferia, a<br />

Casa e a Rua: limites difusos na cidade” encerra este bloco; nele, a<br />

autora analisa o impacto das transformações do mundo do trabalho<br />

ocorridas, a partir da década de 1980, nas relações familiares<br />

e de gênero entre as camadas urbanas de baixa renda. Para tanto,<br />

a autora se propõe a uma releitura das análises clássicas sobre o<br />

tema a partir da experiência de pesquisa entre moradores(as) das<br />

periferias de Salvador.<br />

A secção Da Ação Política é iniciada pelo artigo de Iole Vanin,<br />

“Feminismo versus ‘Anti-Feminismo’: embates baianos”, em que<br />

a autora apresenta e analisa, em uma perspectiva histórica, as lutas<br />

entre ideias consideradas “feministas”, cujos discursos, bem<br />

como práticas, já estavam presentes na Bahia no período compreendido<br />

entre as décadas iniciais do século XX, e o antifeminismo;<br />

a partir de casos históricos bem documentados, descortina-se um<br />

interessante painel sobre os primórdios dos embates entre as duas<br />

correntes na sociedade brasileira. Em seu artigo “A Política de Cotas<br />

na América Latina: as mulheres e os dilemas da democracia”,<br />

Ana Alice Alcântara Costa analisa, em uma perspectiva histórica<br />

Gênero, mulheres e feminismos 9


e política, disparidades entre o uso deste sistema em diferentes<br />

países da América Latina, a exemplo de Brasil, Costa Rica e Argentina<br />

cujos resultados são diametralmente opostos, isto é, o Brasil,<br />

país em que o sistema de cotas tem se mostrado um completo fracasso<br />

e as experiências na Argentina e Costa Rica que, ao contrário,<br />

têm propiciado uma ampliação significativa da participação<br />

feminina. Ainda dentro do tema, Sonia Wright traz o artigo “As<br />

Cotas por Sexo no Legislativo na Visão de Parlamentares Estaduais<br />

Nordestinos (mandatos 2003/2007 e 2007/2011)” com o intuito<br />

de fundamentar, através de evidências empíricas, os entraves à<br />

implementação da política de cotas e, utilizando dados da pesquisa<br />

“A Questão da Mulher na Visão Parlamentar no Nordeste do<br />

Brasil”, realizada pela Rede Mulher & Democracia (M&D), apresenta<br />

seu estudo enfocando a opinião de parlamentares estaduais<br />

nordestinas(os), nas legislaturas de 2003/2007 e 2007/2011, sobre<br />

as cotas por sexo para o Legislativo. Carla Gisele Batista e Cecília<br />

Maria Bacellar Sardenberg contribuem com o texto “Movimentos<br />

Feministas, Aborto e Laicidade: o caso de Alagoinha como exemplar”<br />

no qual buscam fazer uma reflexão inicial sobre a forma<br />

como as atuações em defesa da legalização do aborto aproximam<br />

esses movimentos do debate sobre a laicidade do Estado, a partir<br />

de observações feitas na militância junto ao movimento de mulheres<br />

e feministas, na Bahia e em Pernambuco. Encerrando este<br />

bloco, o texto de Simone Andrade Teixeira e Silvia Lúcia Ferreira,<br />

intitulado “Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos: teoria e<br />

práxis de feministas acadêmicas”, demonstra que o movimento<br />

feminista está diretamente associado às conquistas das mulheres<br />

quanto ao direito à saúde integral e que conferiu visibilidade<br />

a temas como sexualidade, orientação sexual, aborto, violência,<br />

saúde materna, contracepção e morte materna, dentre outros. As<br />

autoras afirmam, ainda, que o movimento contribuiu para que<br />

essas questões passassem a ser abordadas como integrantes dos<br />

10<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Direitos Humanos (DH) e adquirissem o status de Direitos Sexuais<br />

(DS) e de Direitos Reprodutivos (DR).<br />

Encerrando a Coletânea, o bloco Analisando Representações<br />

traz textos de Ivia Alves e Linda Rubim; a primeira, com o artigo<br />

“Representações de Mulheres em Sitcoms: neoconservadorismo<br />

(mulheres em séries, 19)”, analisa o fato de que as séries televisivas<br />

apresentam aspectos altamente conservadores ao reforçar o<br />

discurso dominante tradicional de que as mulheres que têm sucesso<br />

profissional não dão atenção à família (sequer têm possibilidade<br />

de encontrar o parceiro afetivo), reimprimindo a construção<br />

dicotômica da modernidade: ou a família ou sucesso profissional.<br />

A segunda, no artigo “Mulheres: o transe como devir”, traz de<br />

volta Glauber Rocha que, segundo a autora, é sempre novo e oportuno<br />

quando se quer pensar o Brasil. No texto, a autora propõe a<br />

análise de mulheres brasileiras a partir de duas personagens do<br />

filme Terra em Transe: Sara e Silvia, o duplo de representação feminina,<br />

parceiras e interlocutoras do poeta Paulo Martins no seu<br />

doloroso conflito entre a poesia e a política. O artigo lança um<br />

olhar retrospectivo para os anos sessenta, quando o mundo vivia<br />

os “transes” que, em boa parte, resultaram na configuração das<br />

nossas sociedades atuais.<br />

A Coletânea que ora se apresenta traz reflexões teóricas e a produção<br />

de conhecimento de pesquisadoras afinadas com as grandes<br />

questões que se impõem no pensamento feminista no Brasil. Este<br />

livro revela, de modo inequívoco, a concretização da superação da<br />

dicotomia movimento feminista e feminismo acadêmico, vez que<br />

reflete a atuação do próprio Núcleo de Estudos Interdisciplinares<br />

sobre a Mulher – NEIM/UFBA, cujas integrantes vêm construindo<br />

conhecimento tendo como referencial as demandas das mulheres<br />

nos diversos estratos da sociedade.<br />

Alinne de Lima Bonetti e Ângela Maria Freire de Lima e Souza<br />

Gênero, mulheres e feminismos 11


Primeira parte<br />

G<br />

Pensando a teoria


SOBRE <strong>GÊNERO</strong> E CIÊNCIA<br />

tensões, avanços, desafios<br />

Ângela Maria Freire de Lima e Souza<br />

Cientistas não são destacados observadores da natureza<br />

e os fatos que eles descobrem não são simplesmente<br />

inerentes ao fenômeno observado. Cientistas constroem<br />

fatos decidindo constantemente sobre o que consideram<br />

significante, que experimentos devem realizar e como<br />

vão descrever suas observações. Essas escolhas não são<br />

meramente individuais ou idiossincráticas, mas refletem<br />

a sociedade em que o cientista vive e trabalha.<br />

(HUBBARD; WALD, 1999)<br />

A reflexão acima decorre de uma longa e profícua caminhada<br />

nos campos da Filosofia e da História da Ciência realizada por<br />

homens e mulheres que questionaram a própria concepção de ciência<br />

e os modos de produção do conhecimento científico dentre<br />

os quais destacamos as pensadoras feministas cujo trabalho vem<br />

nos inspirando. Sandra Harding (2004, 2007, 2008), Evelyn Fox<br />

Keller (1991, 1996, 1998), Nancy Hartsock (2003), Donna Haraway<br />

(2003), entre outras, nos fizeram repensar nossas práticas e


objetivos, além de nos permitirem avançar no enfrentamento dos<br />

muitos obstáculos que encontramos ao longo de nossa carreira<br />

acadêmica. Como ressaltam Ruth Hubbard e Elijah Wald (1999), é<br />

fato incontestável que o meio acadêmico reflete e reproduz, dentre<br />

outros aspectos sociais, os estereótipos de gênero, especialmente<br />

no campo cognitivo, o que nos obriga a enfrentar preconceitos<br />

quanto às nossas escolhas, nossos procedimentos investigativos e,<br />

até mesmo, quanto aos resultados que divulgamos.<br />

Os termos “gênero” e “ciência” apareceram associados pela<br />

primeira vez, em 1978, em um artigo publicado por Keller (1998)<br />

no qual a autora externava a sua preocupação com o fato de que a<br />

associação entre a objetividade e o masculino e, consequentemente,<br />

entre masculino e científico, nunca fora questionada, sequer<br />

levada a sério no meio acadêmico. No Brasil, estudos associando<br />

os dois termos se avolumaram nos últimos anos, distribuindo-se<br />

em diferentes perspectivas, mas, de um modo geral, e de acordo<br />

com o que acontece em outros meios acadêmicos no mundo,<br />

enquadrando-se em três grandes abordagens, segundo a nossa<br />

percepção: (1) a estrutural, que analisa a presença, a colocação e a<br />

visibilidade das mulheres nas instituições científicas; (2) a epistemológica,<br />

que questiona os modos de produção do conhecimento<br />

a partir de uma crítica aos princípios norteadores do pensamento<br />

científico hegemônico; e (3) a análise dos discursos e das representações<br />

sobre mulheres na ciência, identificando metáforas de<br />

gênero como as que associam a mulher à Natureza e o homem à<br />

Razão, com repercussões importantes nos conteúdos de diversas<br />

disciplinas.<br />

Nesse contexto, cientistas brasileiras e latino-americanas têm<br />

produzido seus estudos, marcados substancialmente pelo pensamento<br />

de feministas de língua inglesa. Em um espectro que<br />

compreende desde um disfarçado neoempiricismo até o mais<br />

transgressor pensamento pós-moderno, as mulheres que produ-<br />

16<br />

Gênero, mulheres e feminismos


zem conhecimento na área de Gênero e Ciências no nosso continente<br />

continuam tentando representar suas muito diferentes<br />

vozes, embora tenhamos ainda que concordar com Margareth<br />

Rago (1998) que afirma que, ao menos no Brasil, não se constitui<br />

uma teoria do conhecimento de cunho feminista, vez que a questão<br />

é pouco debatida e, quando existe o debate, ele reflete apenas<br />

a tradução do que se discute no hemisfério norte.<br />

Cecília Sardenberg (2002) destaca um problema que antecede<br />

essa questão e que ainda precisa ser superado, que diz respeito<br />

ao fato de que os estudos de gênero em nosso meio são, marcadamente,<br />

estudos feministas e isto aparece para os mais conservadores<br />

como um caso de tese e antítese: como, considerando a<br />

neutralidade científica, podem cientistas se comprometer politicamente<br />

com uma tendência ou um movimento social? Assim,<br />

caracterizar uma ciência feminista seria uma impropriedade.<br />

Se, no campo dos Estudos Feministas, estamos, pelo menos<br />

no Brasil, ainda em uma luta significativa pelo reconhecimento<br />

da legitimidade no próprio ambiente de trabalho e, de forma mais<br />

aguda, nos organismos de fomento à investigação científica e tecnológica,<br />

é no campo das Ciências Naturais e, até mesmo, em alguns<br />

segmentos das Ciências Humanas que a luta parece ser mais<br />

dura. As dificuldades que enfrentamos também se refletem nas<br />

publicações especializadas em divulgação científica, o que exerce<br />

importante impacto, ainda não devidamente avaliado, nas representações<br />

sociais sobre Ciência e sobre mulheres cientistas.<br />

Um exemplo bastante ilustrativo pode ser dado por uma simples<br />

fotografia. 1 Datada de 1948, nela aparecem os grandes nomes<br />

da Genética no Brasil, por assim dizer, os “pais fundadores...”,<br />

mas, ocorre que, na fotografia, cuja legenda começa dizendo que<br />

ali estão os pesquisadores do Departamento de Biologia da USP,<br />

1 SALZANO, Francisco; KLUGER, Henrique. Antonio Rodrigo Cordeiro – o caçador de drosófilas.<br />

Ciência Hoje, v. 45, n. 269, abr. 2010, p. 66.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 17


em 1948, estão dez mulheres e dez homens e apenas os nomes<br />

deles estão cuidadosamente registrados; as mulheres ali presentes<br />

estão completamente invisibilizadas. Não sabemos seus nomes,<br />

seus trabalhos, suas lutas...<br />

Impressiona o fato de que o autor (ou autora) da legenda<br />

parece não enxergar as mulheres: vai citando os homens e suas<br />

posições na fotografia, excluindo as posições ocupadas pelas mulheres,<br />

como se ali não houvesse ninguém. A busca cuidadosa no<br />

texto das referências sobre as cientistas pesquisadoras foi inútil.<br />

As únicas mulheres que mereceram ter seus nomes citados na revista<br />

foram as esposas dos grandes cientistas que aparecem em<br />

outra foto e que parecem estar ali apenas por serem as esposas...<br />

assim, justamente nos espaços dos quais as mulheres são excluídas<br />

é que se revela a sua presença, simbolicamente, nos lugares e<br />

níveis em que foram discriminadas. Como afirma Gabriela Castellanos<br />

(1996), o gênero é mais pertinente exatamente onde parece<br />

menos relevante.<br />

O fato de uma importante revista de divulgação científica ligada<br />

à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) parecer<br />

não se dar conta da absurda falta de informação e do evidente<br />

viés preconceituoso da publicação (as mulheres seriam apenas<br />

coadjuvantes, no máximo, não merecendo ter seus nomes colocados<br />

entre os fundadores) pode nos dizer muito sobre o modo<br />

como as mulheres são vistas (ou não vistas) no meio acadêmico,<br />

ainda nos dias de hoje. Destaque-se que o que estamos criticando<br />

não ocorreu em 1948, mas em 2010.<br />

A partir dessas considerações iniciais, é interessante destacar<br />

aqui alguns aspectos epistemológicos que guardam relação com as<br />

reflexões anteriores: em primeiro lugar, apontamos para a questão<br />

sobre o sujeito do conhecimento: seria o seu sexo epistemologicamente<br />

significativo?<br />

18<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Neste sentido, Diana Maffía destaca que, para o pensamento<br />

hegemônico, no meio científico,<br />

[...] a identidade do sujeito da ciência, como o do conhecimento,<br />

é irrelevante para a prática da investigação. Por certo não possui<br />

sexo, mas tampouco gênio, inspiração, excentricidades, preferências,<br />

cegueiras, privilégios de classe, raça ou etnia. (MAFFÍA,<br />

2001, p. 332)<br />

A autora critica, então, essa visão sobre a produção do conhecimento,<br />

destacando a distância entre o projeto idealizado e reificado<br />

do pensamento científico e a construção real e cotidiana<br />

do conhecimento. Refletindo sobre essa questão, Marta González<br />

García e Eulália Sedeño (2002) afirmam:<br />

Frente a la epistemología tradicional, donde el sujeto es una<br />

abstracción con facultades universales e incontaminadas de<br />

razonamiento y sensación, desde el feminismo se defiende que<br />

el sujeto del conocimiento es un individuo histórico particular<br />

cuyo cuerpo, intereses, emociones y razón están constituidos<br />

por su contexto histórico concreto, y son especialmente relevantes<br />

para la epistemología.<br />

Nessa perspectiva e reafirmando as mulheres como sujeitos<br />

cognoscentes, perguntamos: Temos autoridade epistêmica? As<br />

mulheres, como cientistas engajadas em projetos de Ciência &<br />

Tecnologia (C&T), escolhem seus objetos de estudo ou se enquadram<br />

em projetos já existentes, capitaneados por cientistas do<br />

mainstream? Quando escolhem, são escutadas pelos seus pares e<br />

têm reconhecidas suas conclusões como cientificamente válidas?<br />

Ainda outras questões: Haveria um estilo cognitivo feminino?<br />

Produzimos conhecimento de forma diferente? Agora, estamos<br />

nos referindo a práticas científicas, desde as perguntas que escolhemos<br />

fazer, passando pelo campo epistemológico em que nos<br />

situamos, pela metodologia escolhida, as estratégias de obtenção<br />

de informações e os usos que delas fazemos.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 19


A partir do ponto de vista de uma pesquisadora feminista que<br />

atuou durante grande parte da vida acadêmica no campo da Biologia,<br />

essas perguntas se revestem de grande significado e merecem<br />

muita reflexão. Considerando a importância da Biologia na contemporaneidade<br />

e partindo da crítica feminista à Ciência Moderna<br />

como um todo, podemos afirmar que biólogos e biólogas continuam<br />

aprendendo, na escola e nos laboratórios em que realizam seus<br />

estágios, que é absolutamente necessário o distanciamento entre<br />

o sujeito e o objeto da pesquisa, que a subjetividade, que pode ser<br />

traduzida em afeição ou encantamento com o objeto, pode “mascarar”<br />

os resultados ou permitir a manipulação dos dados.<br />

Muitos estudos em Biologia são realizados em condições que<br />

apenas se aproximam das condições reais, muitas vezes isolando o<br />

objeto de suas complexas interações no contexto. Um bom exemplo<br />

é a inserção de organismos transgênicos nos ecossistemas,<br />

uma prática, no mínimo, irresponsável, uma vez que são imprevisíveis<br />

as consequências globais, em médio e longo prazos. Como<br />

afirmam Hubbard e Wald (1999, p. 19), este tipo de manipulação<br />

não permite prever como os genes se comportarão em um novo<br />

contexto e a longa história de erros de previsão ou de negligência<br />

em experimentos neste nível é sempre ignorada. É frequente<br />

o argumento de que as novas biotecnologias não são um mal em<br />

si. O argumento mais comum diz que é preciso apenas usar os recursos<br />

biotecnológicos com ética e responsabilidade, o que nos<br />

parece uma forma de não assumir responsabilidades.<br />

Essas reflexões podem ser usadas para apresentar o argumento<br />

de que, na verdade, pelo menos dentro do campo científico com o<br />

qual estamos mais familiarizadas, deslocamentos epistemológicos<br />

significativos, verdadeiramente, não ocorreram. É verdade que,<br />

ao longo do final do século passado e início deste novo milênio,<br />

novos discursos acerca do conhecimento humano sobre C&T foram<br />

por nós incorporados; por exemplo, está claro que a Ciência<br />

20<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Moderna não dá conta da explicação sobre a ordem do mundo<br />

natural ou social. Nesse contexto, as mulheres e outros grupos<br />

subordinados também perceberam a incorporação e a legitimação<br />

de alguns de seus saberes, apesar da longa história de desqualificação<br />

destes mesmos saberes, tomados antes como míticos ou<br />

primitivos.<br />

Mas, de fato, utilizando os instrumentos de análise sugeridos<br />

por Londa Schiebinger (2001) quais sejam, análise de prioridades<br />

e resultados − como são feitas as escolhas de temas de estudo e<br />

para quem são destinados os resultados de um trabalho científico;<br />

análise de arranjos institucionais − observação da ocupação das<br />

mulheres em instituições de prestígio, articulando-se a análise ao<br />

contexto social da época em estudo; decodificação da linguagem<br />

e representação iconográfica − atenção para a retórica de textos e<br />

imagens científicas; análise de definições de Ciência − o que conta<br />

como ciência e de que modo as mulheres são inseridas nessas<br />

questões −, pode-se ter uma percepção muito clara sobre a presença<br />

feminina no campo da Ciência & Tecnologia.<br />

Senão, vejamos: quanto à análise de prioridades e resultados,<br />

em que situação pode-se hoje dizer que as pesquisas no campo<br />

das novas tecnologias reprodutivas, por exemplo, refletem os interesses<br />

das mulheres? Em que medida questões que tratam diretamente<br />

do que consideramos prioridade em pesquisas na área de<br />

saúde são tratadas de acordo com o nosso ponto de vista?<br />

Questões sobre hereditariedade e reprodução, diagnóstico genético<br />

pré-natal, medicina fetal, contracepção e novas tecnologias<br />

reprodutivas conceptivas são fundamentais do ponto de vista das<br />

mulheres e, sob a perspectiva de gênero, se revestem de grande<br />

importância, uma vez que a mulher constitui o alvo preferencial<br />

de pesquisas na área, especialmente em países em desenvolvimento:<br />

sobre seus corpos é que terão efeito as novas tecnologias,<br />

sendo, assim, imperativo que elas se tornem sujeitos deste pro-<br />

Gênero, mulheres e feminismos 21


cesso, como cidadãs ou como cientistas responsáveis pela destinação<br />

dos novos saberes, atentas a questões éticas que se tornam a<br />

mais importante exigência atual no campo das Ciências da Vida.<br />

Recentemente, na Revista Science, 2 um artigo denunciou o<br />

fato de que estudos sobre novos medicamentos utilizam cobaias<br />

do sexo masculino, porque são mais baratas e não passam por ciclos<br />

hormonais, o que frequentemente leva a certas dificuldades<br />

de interpretação que interferem nos resultados das pesquisas...<br />

A consequência mais óbvia é que as novas drogas, que são testadas<br />

em mamíferos machos, depois são prescritas indiscriminadamente<br />

para homens e mulheres.<br />

Quanto à análise dos arranjos institucionais: é certo que realizamos<br />

nossos estudos no meio acadêmico e em outras instituições<br />

científicas, estando presentes, de modo marcante, em certas<br />

áreas do conhecimento, mas, praticamente ausentes em outras;<br />

somos numerosas nas Ciências Biológicas, por exemplo, mas estamos<br />

longe de ver esse grande contingente de mulheres cientistas<br />

que trabalham nas bancadas dos laboratórios devidamente representado<br />

nas instâncias de poder, no meio científico; é comum, por<br />

exemplo, mulheres pós-doutoras integrarem equipes de cientistas<br />

homens que nem estão produzindo tanto, mas têm o capital<br />

simbólico de um nome respeitado no meio.<br />

Em artigo publicado em 2008, Lourdes Bandeira discute a crítica<br />

feminista à Ciência e apresenta dados muito interessantes,<br />

citando uma pesquisa anterior. Ela destaca que havia, em 2004,<br />

41.168 homens e 36.080 mulheres engajados(as) em pesquisa, o<br />

que significa 47% de participação feminina. Entretanto, entre<br />

líderes e não-líderes, esse percentual se modifica: a liderança<br />

feminina na pesquisa representa 42% do total; entre não-líderes,<br />

a participação feminina quase se iguala à masculina, com 49%;<br />

2 WALD, Chelsea; WU, Corinna. Of mice and women: the bias in animal models. Science, v. 327,<br />

n. 5.973, p. 1571-2, 26 March 2010.<br />

22<br />

Gênero, mulheres e feminismos


e entre pesquisadores doutores, a participação das mulheres também<br />

é de 42%.<br />

Um exemplo da sub-representação feminina em questões relevantes<br />

do meio acadêmico e científico é relatado pela autora e diz<br />

respeito à proposta de Reestruturação e Expansão das Universidades<br />

Federais – Projeto Reuni. Esse projeto tinha um Grupo Assessor<br />

responsável pela elaboração da proposta composto por treze<br />

homens, notáveis cientistas e pesquisadores, a maioria oriunda da<br />

área das Ciências Exatas, com destaque para a Física, e nenhuma<br />

mulher, apesar da imensa maioria de professoras mulheres doutoras<br />

com reconhecido saber acadêmico. Já a Assessoria Técnica,<br />

de segunda ordem de importância, era composta por cinco membros<br />

dos quais três mulheres.<br />

Quanto à decodificação da linguagem e representação iconográfica,<br />

são muitas as referências sobre a permanência de preconceitos<br />

que vão desde uma suposta inadequação cognitiva das<br />

mulheres para as falaciosas objetividade e neutralidade científicas<br />

até a impossibilidade de conciliar as “sagradas” tarefas de<br />

maternar e cuidar com as demandas rigorosas do fazer científico:<br />

tudo mal disfarçado no discurso e até em brincadeiras e piadas no<br />

cotidiano.<br />

Um aspecto fundamental no meio científico e especialmente<br />

relevante na Biologia é o que Eulália Pérez Sedeño (2001) chama de<br />

“retórica da ciência”. Para a autora, essa retórica tem sido muito<br />

eficiente em convencer a todos que as características socioculturais<br />

são “naturais”, determinadas biologicamente, a ponto de<br />

definir os papéis que mulheres e homens desempenham na sociedade.<br />

Refere-se especialmente às diferenças entre os sexos, lançando<br />

mão da “cientificidade” conferida pela aplicação do, assim<br />

chamado, “método científico”, assentado sobre a pretensa racionalidade,<br />

além da objetividade e da neutralidade da ciência.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 23


Os exemplos são abundantes e se distribuem em diferentes<br />

áreas do conhecimento biológico, desde o campo da genética<br />

e evolução até a neurociência, passando pela endocrinologia<br />

e medicina. Assim, enquanto avança o conhecimento científico,<br />

estranhamente se reinventam as explicações biológicas sobre as<br />

diferenças entre mulheres e homens, conferindo valor diferenciado<br />

às características ditas masculinas e femininas, sempre hierarquizando<br />

essas diferenças com prejuízo das mulheres.<br />

Finalmente, quanto à análise das definições de Ciência, temos<br />

que nos manter atentas a um discurso cada vez mais conservador<br />

sobre a natureza da Ciência e sobre o que realmente conta como<br />

objeto de pesquisa e como procedimentos e técnicas considerados<br />

válidos, segundo o que se considera rigor científico. É preciso deixar<br />

claro que a nossa produção científica, declaradamente comprometida<br />

social e politicamente, é também “boa ciência”, sem<br />

que tenhamos que necessariamente repetir os famosos protocolos<br />

experimentais ou as fórmulas e receitas sobre métodos e técnicas<br />

consagradas que continuam a preconizar os princípios da Ciência<br />

Moderna. Essas breves considerações nos levam a uma constatação:<br />

são relevantes os desafios que temos à nossa frente.<br />

Duas questões se destacam e parecem se agigantar, à medida<br />

que avançamos na discussão da inserção de gênero no meio acadêmico.<br />

A primeira diz respeito à transversalidade de gênero nos<br />

diversos campos de conhecimento.<br />

A criação de grupos de estudos e núcleos de pesquisa sobre<br />

gênero e Ciência, embora tenha produzido muito conhecimento<br />

e agregado muitas(os) pesquisadoras(es) e estudantes, não tem<br />

se revelado eficiente na inserção de gênero como categoria de<br />

análise em estudos de diferentes áreas, como Ciências Biológicas<br />

e Educação. Como pesquisadoras feministas, enfrentamos uma<br />

dificuldade marcante de manter o diálogo acadêmico com outras<br />

áreas, mesmo quando as questões de gênero são imprescindíveis<br />

24<br />

Gênero, mulheres e feminismos


para a compreensão ampla da questão em estudo. Em artigo que<br />

analisava a presença dessa categoria de análise na área de Ensino<br />

de Ciências (LIMA E SOUZA, 2008), constatamos o fato de que os<br />

estudos veiculados em periódicos dedicados ao tema altamente<br />

conceituados e recomendados pelos pesquisadores de diferentes<br />

programas de Pós-graduação na área 3 ignoram completamente as<br />

questões de gênero e suas possíveis articulações com a prática de<br />

docentes de Ciências em sala de aula, assim como não incorporam<br />

as discussões levantadas pelos estudos feministas no campo<br />

da epistemologia.<br />

A segunda questão aponta para a discussão sobre políticas<br />

científicas e relações de gênero, tendo como foco o modo como os<br />

Estudos de Gênero são percebidos por agências de fomento à pesquisa,<br />

no contexto de um debate mais geral sobre políticas afirmativas<br />

de gênero e meritocracia no campo científico.<br />

Em estudo recente, discutimos a pertinência da criação de um<br />

comitê de assessoramento multidisciplinar específico para os estudos<br />

de gênero nos organismos de fomento à pesquisa − Capes,<br />

CNPq, FINEP, entre outros. (YANNOULAS; LIMA E SOUZA, 2010)<br />

Ainda em meio à análise dos dados da pesquisa, cuja coleta se deu<br />

durante o VIII Congresso Ibero-americano de Ciência, Tecnologia<br />

e Gênero − organizado pela Universidade Tecnológica Federal<br />

do Paraná (UTFPR), e realizado em Curitiba, em abril de 2010 −,<br />

pudemos constatar depoimentos de muitas pesquisadoras que<br />

admitem dificuldades em terem os seus projetos aprovados, atribuindo<br />

essas dificuldades a diferentes fatores: algumas alegam<br />

que as instituições não contam com avaliadores formados em gênero;<br />

também reconhecem que não existem protocolos de avaliação<br />

que incluam a perspectiva de gênero; muitas pesquisadoras<br />

entrevistadas se referem ao simples preconceito ainda vigente no<br />

3 Investigações em Ensino de Ciências (140 artigos) e Ciência & Educação (216 artigos), entre 1998<br />

e 2007, não apresentam nenhum artigo na perspectiva de gênero.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 25


meio acadêmico em relação aos estudos de gênero; sendo também<br />

considerado o fato de que, como se trata de uma área multidisciplinar<br />

e transversal, os estudos de gênero acabam ficando “sem<br />

lugar” no modelo tradicional de comitês disciplinares.<br />

Nesse sentido, as entrevistadas alegam a ausência de pesquisadores/<br />

avaliadores/pareceristas com visão multi/interdisciplinar<br />

em que a maioria dos projetos de pesquisa na área de gênero se enquadram.<br />

Apesar da pertinência dessas considerações, a discussão<br />

sobre a criação de comitês específicos para a área deve continuar<br />

porque há uma argumentação contrária baseada na transversalidade,<br />

segundo a qual a presença de avaliadores sensíveis à problemática<br />

nos comitês das diferentes áreas seria mais apropriado.<br />

Finalmente, é interessante demarcar que a grande dificuldade<br />

para as mulheres cientistas não se traduz, apenas, nos problemas<br />

aqui levantados, nem em discriminação explícita, perseguição<br />

machista, brincadeiras ou comentários de conotação sexista.<br />

O grande desafio é a própria estrutura do campo da pesquisa científica,<br />

concebido e construído para os homens, cujas atribuições<br />

são totalmente voltadas para o mundo do trabalho, enquanto nós<br />

mulheres seguimos com todos os encargos da vida familiar, apesar<br />

de estarmos situadas, como os homens, no campo da produção do<br />

conhecimento, vez que somos dotadas de todas as habilidades necessárias<br />

ao exercício da investigação científica. Seguir nesta luta<br />

constitui, verdadeiramente, o nosso maior desafio.<br />

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28<br />

Gênero, mulheres e feminismos


FEMINISMO E PÓS-MODERNIDADE<br />

como discutir essa relação?<br />

Márcia dos Santos Macêdo<br />

Dando adeus a essas ilusões [Deus, razão, verdade],<br />

o homem pós-moderno já sabe que não existe Céu nem<br />

sentido para a História, e assim se entrega ao presente<br />

e ao prazer, ao consumo e ao individualismo.<br />

(SANTOS, 1986)<br />

Este texto nasceu de uma conjugação de fatores de diferentes<br />

ordens que terminou por produzir uma forte inquietação diante<br />

da recorrente e, muitas vezes, pouco conclusiva discussão em<br />

torno da natureza da relação entre a teoria feminista e o chamado<br />

discurso pós-moderno. No processo de sua escrita, tive de lidar,<br />

em primeiro lugar, com a minha própria perplexidade diante dos<br />

sofisticados “labirintos teóricos” que fui levada a percorrer (e nos<br />

quais, muitas vezes, me perdi) através de leituras da candente discussão<br />

em torno dessa complexa relação; em segundo lugar, fui<br />

movida, ainda, pela interessada (e angustiada) recepção das(os)<br />

estudantes dos cursos de Pós-graduação (lato sensu) do Núcleo<br />

de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM) da Univer-


sidade Federal da Bahia (UFBA), às/aos quais tive o prazer de ser<br />

a responsável por apresentar algumas reflexões introdutórias em<br />

torno dessa temática.<br />

Assim, movida particularmente por esse último objetivo, espero<br />

que esta iniciativa possa contribuir, de alguma forma, para<br />

preencher uma das grandes lacunas com que me deparei ao preparar<br />

as aulas para o referido curso: encontrar um material que,<br />

em uma linguagem acessível, pudesse, simultaneamente, oferecer<br />

alguns dos pré-requisitos para o entendimento do diálogo entre o<br />

feminismo e as chamadas teorias pós-modernas, situando questões<br />

centrais da discussão e apontar alguns limites e possibilidades<br />

deste diálogo, sem cair em posições maniqueístas em torno,<br />

exclusivamente, dos “pecados” ou das “virtudes” desta complexa<br />

relação.<br />

Dessa forma, no intuito de “discutir essa relação” – como dizemos,<br />

na vida privada, quando se torna imprescindível a realização<br />

de um balanço das principais questões em torno de um relacionamento<br />

em seu momento decisivo (ou mesmo crítico) –, proponho<br />

a apresentação de alguns pontos essenciais para pensar a<br />

constituição da modernidade e da pós-modernidade, do feminismo<br />

enquanto teoria e projeto de transformação da sociedade e sua<br />

conturbada relação com a modernidade e, posteriormente, com<br />

as teorias pós-modernas. Para realizar tal intento, recorri à interlocução<br />

com as Ciências Sociais e com importantes autoras(es)<br />

do campo dos estudos de gênero e do feminismo; mas, como se<br />

trata de um texto de caráter introdutório, logicamente, este diálogo<br />

precisou se limitar a um número modesto de pensadoras(es)<br />

e obras, guiando-se pelo objetivo de dar corpo a um texto “mais<br />

enxuto” e direto, mesmo diante da necessidade de abordar questões<br />

tidas como de maior sofisticação discursiva, típicas deste tipo<br />

de reflexão.<br />

30<br />

Gênero, mulheres e feminismos


As promessas da modernidade e o feminismo<br />

Em uma primeira aproximação, segundo o Dicionário Eletrônico<br />

Houaiss (2001), o termo modernidade se refere ao “período,<br />

influenciado pelo Iluminismo, em que o homem passa a se<br />

reconhecer como um ser autônomo, autossuficiente e universal e<br />

a se mover pela crença de que, por meio da razão, pode-se atuar<br />

sobre a natureza e a sociedade”. Assim, a Modernidade pode ser<br />

situada historicamente como “estilo, costume de vida ou organização<br />

social que emergiram na Europa a partir do século XVIII e<br />

que, ulteriormente, se tornaram mais ou menos mundiais em sua<br />

influência”. (GIDDENS, 1991, p. 11) Esse autor ainda vai ressaltar<br />

que “os modos de vida” produzidos pela modernidade, tanto em<br />

sua extensão quanto em sua intenção, provocam as transformações<br />

mais profundas de toda a história da humanidade em períodos<br />

precedentes: há, inequivocamente, um desvencilhamento das<br />

tradições do passado e a adesão a novas formas de relação social,<br />

em todo o mundo e em tal nível de profundidade, que revolucionam<br />

das mais globais às “mais íntimas e pessoais características<br />

da nossa existência cotidiana” (1991, p. 14).<br />

A modernidade é marcada, portanto, por um acelerado ritmo<br />

de mudança cuja principal característica é a “interconexão”, fazendo<br />

com que “ondas de transformação social penetrem através<br />

de virtualmente toda a superfície da terra” (GIDDENS, 1991, p. 16)<br />

trazendo consigo novas instituições sociais como o sistema político<br />

do Estado-nação, a produção em larga escala – baseada na<br />

mecanização e no uso de mão de obra assalariada – voltada para<br />

o mercado e lastreada em uma profunda crença no progresso da<br />

humanidade, através do desenvolvimento das ciências e das técnicas.<br />

Dessa maneira, ao ser forjado, no século XIX, o termo modernidade<br />

vem carregado de uma conotação positiva, pois seus<br />

defensores partem do pressuposto de que existe um “progresso<br />

Gênero, mulheres e feminismos 31


possível” através da evolução acelerada pelo movimento das forças<br />

produtivas a serviço de um domínio sem precedentes dos processos<br />

naturais.<br />

Destarte, a potencialidade de desenvolvimento das instituições<br />

sociais modernas permitiu o fortalecimento de um otimismo<br />

que parecia tornar possível toda e qualquer realização humana,<br />

desde o desenvolvimento industrial até a edificação política do<br />

Estado moderno, tendo como referência filosófica os valores do<br />

Humanismo e da razão iluminista. Nesse sentido, a modernidade<br />

não apenas acredita na possibilidade de emancipação do sujeito,<br />

mas coloca como alvo a construção da igualdade através dos direitos<br />

civis, como voto, trabalho e escolarização universal, entre<br />

outros – o que será chamado, posteriormente, de “promessas da<br />

modernidade”.<br />

Com efeito, a modernidade termina por produzir um discurso<br />

universalista, assentado na defesa de um sujeito universal (humano<br />

universal) e expresso em um pensamento social evolucionista que<br />

irá dar base às “grandes narrativas” que “vêem a história humana<br />

como tendo uma direção global, governada por princípios dinâmicos<br />

gerais”. (GIDDENS, 1991, p. 14) Assim, os valores do Iluminismo<br />

– como liberdade, democracia, igualdade, direitos, entre outros –,<br />

se tornam “categorias modernas” fundantes das metateorias racionais,<br />

universalistas e humanistas que vão caracterizar este pensamento<br />

que vê o passado como superado e o futuro como predizível,<br />

dando à ciência um lugar privilegiado nesse processo.<br />

Certamente, em um primeiro momento, esse discurso da modernidade<br />

“soará como música aos ouvidos” das feministas, por<br />

apresentar uma convergência de interesses diante das promessas<br />

de construção da igualdade que implicavam, naquele momento,<br />

na coextensividade dos direitos civis às mulheres através do voto,<br />

do trabalho assalariado, do acesso à educação e a todas as garantias<br />

previstas pela “cidadania moderna”. Assim, parecia haver<br />

32<br />

Gênero, mulheres e feminismos


uma grande convergência entre as citadas “promessas da modernidade”<br />

e o “projeto de criação de uma utopia emancipatória das<br />

mulheres”, defendido pelo feminismo. Bila Sorj vai assinalar que<br />

esse encontro se tornou possível pelo fato de o próprio feminismo<br />

se constituir como um “típico movimento intelectual e social moderno”<br />

ou ainda, dito em suas próprias palavras:<br />

Visto em perspectiva, o feminismo integra um longo processo de<br />

mudanças que envolveu a emancipação dos indivíduos das formas<br />

tradicionais da vida social. A recusa do Esclarecimento em conferir<br />

à tradição um poder intelectual, moral e de normatização das<br />

relações sociais, uniu o feminismo às promessas de reconstrução<br />

social ecoadas pela modernidade. (SORJ, 1992, p. 18)<br />

Nessa direção, várias teóricas feministas vão ressaltar que, ao<br />

trazer a ideia de um sujeito universal – o cidadão, para as teorias liberais,<br />

ou o proletário, para as teorias críticas, como o marxismo –,<br />

o pensamento moderno foi extremamente útil ao feminismo por<br />

permitir a noção de “uma experiência comum das mulheres, generalizável<br />

a partir da vivência de gênero e coletivamente compartilhada<br />

através das culturas e da história”. (SORJ, 1992, p. 16)<br />

Essa ideia de “experiência comum” – posteriormente objeto de<br />

acalorados debates e questionamentos desestabilizadores das categorias<br />

teóricas e estruturas políticas do feminismo – será fundamental<br />

para a (auto)percepção das mulheres como ator coletivo/<br />

sujeito histórico, portanto, como agentes portadoras de interesses<br />

e identidades próprias.<br />

Decerto, foge aos objetivos deste texto um resgate da história<br />

do feminismo e da construção de uma teoria feminista, mas, creio<br />

ser necessário pontuar a importância do pensamento moderno<br />

ao apontar ao feminismo caminhos possíveis para a emancipação<br />

feminina, isto é: a meta política da construção da igualdade<br />

e, portanto, do enfrentamento e da superação da subordinação da<br />

mulher na sociedade patriarcal.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 33


Vale, ainda, destacar que a luta pela emancipação, ao desempenhar<br />

um papel fundante na longa jornada do pensamento feminista<br />

nesse último século – que se inicia com o debate em torno<br />

das origens da opressão, sendo aprofundada na crítica radical ao<br />

patriarcado em suas variantes, até culminar com a formulação do<br />

conceito de gênero –, simultaneamente, vai ainda visibilizar as<br />

armadilhas contidas nas “promessas da modernidade” que, embora<br />

parcialmente realizadas, efetivamente nunca incluíram as<br />

mulheres e terminaram por oferecer parte do combustível para<br />

a explosão (ou, por que não dizer, implosão?) da própria noção<br />

de igualdade e identidade coletiva entre as mulheres. (SORJ, 1992)<br />

Estão lançadas, assim, as sementes do “cisma” entre o feminismo<br />

e a modernidade e sua consequente e posterior aproximação das<br />

chamadas teorias pós-modernas.<br />

Pós-Modernidade: de que se trata?<br />

O avançar do século XX trará, paradoxalmente, realizações<br />

insuperáveis, como o avanço tecnológico, materializado na prevenção<br />

e cura de doenças, no aumento da expectativa e qualidade<br />

de vida, na difusão de novos meios de comunicação e transporte,<br />

facilitando o intercâmbio do conhecimento e também a intensificação<br />

da utilização de novas tecnologias na produção que, por<br />

sua vez, favorecerá a concentração dos recursos produtivos – que<br />

tem como principal contrapartida o agravamento das desigualdades<br />

socioeconômicas e a concentração do poder político. Daí<br />

se poder concluir que a persistência das mais diversas formas de<br />

desigualdade confirmou as evidências de que as “promessas da<br />

modernidade” ecoadas pelo Iluminismo se materializaram apenas<br />

parcialmente, pois aquele projeto, pretensamente em construção,<br />

estava, prioritariamente, submetido a uma orquestração<br />

sintonizada com a manutenção do status quo, isto é, através da<br />

34<br />

Gênero, mulheres e feminismos


perpetuação da lógica da acumulação capitalista, dos interesses<br />

das nações hegemônicas no contexto da geopolítica mundial e do<br />

sexo historicamente dominante em uma sociedade eminentemente<br />

androcêntrica.<br />

Assim, o segundo quartel do século XX vai trazer um grande<br />

desapontamento com os projetos de emancipação – inclusive<br />

com as metateorias, como o Marxismo. A Segunda Guerra Mundial<br />

trará os horrores do Nazismo com as ocupações e o extermínio de<br />

milhões de vidas produzidas pela política eugenista do holocausto<br />

e, finalmente, a utilização da bomba atômica pelos Estados Unidos<br />

contra o Japão. Depois da guerra, diz Andrea Nye:<br />

[...] as feministas partilharam com os homens um mundo irrevogavelmente<br />

mudado. [...] Não havia limite ao mal que podia<br />

ser imaginado e realizado. Com a ‘impensabilidade’ do mal absoluto<br />

veio a ‘impensabilidade’ da destruição infinita através da<br />

bomba atômica. (1995, p. 96).<br />

Nesse contexto, o desapontamento com o Comunismo – com<br />

a divulgação das execuções e do autoritarismo da experiência do<br />

“Socialismo Real” na União Soviética – também vai contribuir fortemente<br />

para o enfraquecimento da crença nos projetos de emancipação,<br />

que só se agudiza com a intensificação da “guerra fria”<br />

e com o crescimento da hegemonia imperialista norte-americana.<br />

Com efeito, em um cenário de descrença e desesperança política,<br />

concluem algumas feministas: “a única alternativa política era<br />

uma escolha entre duas opções igualmente insatisfatórias e, por<br />

fim, a aceitação de um mal ligeiramente menor...”. (NYE, 1995,<br />

p. 96) Onde achar esperança com o gradativo desaparecimento<br />

dos absolutos, das certezas? 1<br />

1 Aqui, Andrea Nye faz menção a um estado de espírito retratado com muita fidelidade<br />

por Simone de Beauvoir, na obra Por uma moral da ambigüidade, em uma edição publicada<br />

em inglês em 1948.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 35


Para Jane Flax, a cultura ocidental, com o avançar da segunda<br />

metade do século XX, vai continuar intensificando um conjunto<br />

de transformações iniciadas em períodos históricos anteriores e, a<br />

esse respeito, dirá: “esse estado de transição torna algumas formas<br />

de pensamento possíveis e necessárias e exclui outras, gerando<br />

problemas que algumas filosofias parecem reconhecer e confrontar<br />

melhor que outras”. Nesse contexto de crise, a autora considera<br />

importante a formulação de um pensamento pós-moderno,<br />

tido por ela como modos de pensar “parcialmente constituídos<br />

por crenças do Iluminismo [mas, que] ao mesmo tempo, oferecem<br />

idéias e percepções que só são possíveis em razão da falência das<br />

crenças do Iluminismo sob a pressão cumulativa de eventos históricos<br />

[...]” (1991, p. 217; 218).<br />

Assim, para reafirmar a impossibilidade do discurso da modernidade<br />

em refletir acerca das relações sociais na contemporaneidade,<br />

inclusive pelos próprios limites do seu “modo de<br />

pensar”, isto é, a inadequação dos conceitos e métodos utilizados<br />

para explicar a experiência humana, é ainda Flax que sistematiza<br />

alguns dos argumentos utilizados pelos filósofos pós-modernos,<br />

desejosos de “colocar em radical dúvida crenças ainda predominantes<br />

na cultura” (1991, p. 221) ocidental, todos provenientes do<br />

Iluminismo, tais como: 2<br />

• a existência de um sujeito (eu) estável e coerente baseado<br />

em uma racionalidade que percebe claramente a si próprio e<br />

aos fenômenos de natureza;<br />

• a visão da razão e da ciência como se estas pudessem fornecer<br />

um fundamento objetivo, seguro e universal para o<br />

conhecimento;<br />

2 Aqui, resumo livremente as palavras da autora no texto referido acima (FLAX, 1991, p. 221-3),<br />

portanto, me arvoro o direito de não utilizar aspas.<br />

36<br />

Gênero, mulheres e feminismos


• a ideia de que o conhecimento obtido através do uso da razão<br />

será sempre verdadeiro e que representará algo real e<br />

imutável (universal) sobre nossas mentes e/ou a estrutura<br />

do mundo natural;<br />

• a noção de que a razão humana tem qualidades universais<br />

e transcendentais, pois ela existe de forma não contingente,<br />

independente de experiências corporais, históricas e sociais;<br />

o conhecimento seria atemporal, nessa perspectiva;<br />

• a existência de conexões complexas entre razão, autonomia<br />

e liberdade: toda a verdade e autoridade precisam ser submetidas<br />

ao tribunal da razão (aí está a liberdade: obedecer<br />

leis);<br />

• a ideia de que a razão possui uma autoridade que faz com que<br />

os conflitos entre verdade, conhecimento e poder possam<br />

ser superados: a verdade pode servir ao poder sem distorção<br />

e o conhecimento pode ser neutro e socialmente benéfico<br />

quando fundamentado na razão universal e não em interesses<br />

particulares;<br />

• a ciência é o paradigma de todo conhecimento verdadeiro,<br />

é neutra nos métodos e conteúdos e benéfica nos seus resultados,<br />

se os cientistas seguirem as regras da razão em vez de<br />

interesses que estejam fora do discurso racional; e<br />

• a linguagem é transparente, pois é meramente o meio no<br />

qual e através do qual tal representação ocorre – portanto,<br />

há uma correspondência entre “palavra” e “coisa” (como<br />

entre uma afirmação correta da verdade e o real), o que faz<br />

com que os objetos não sejam linguisticamente (ou socialmente)<br />

construídos, pois são meramente trazidos à consciência<br />

pela nomeação e pelo uso correto da linguagem.<br />

Com efeito, as expectativas criadas pela modernidade se mostraram,<br />

no médio prazo, de difícil realização, surgindo assim<br />

Gênero, mulheres e feminismos 37


espaço para “a frustração, o relativismo e o niilismo”. Vale ainda<br />

ressaltar que, nessa perspectiva, “a pós-modernidade configurase<br />

como uma reação cultural e representa uma ampla perda de<br />

confiança no potencial universal do projeto iluminista”. (CHE-<br />

VITARESE, 2001, p. 6, grifo do autor) Os traços críticos e reativos<br />

dessa perspectiva são claramente explicitados, nas palavras desse<br />

autor:<br />

A pós-modernidade pode ser caracterizada como uma reação<br />

da cultura ao modo como se desenvolveram historicamente os<br />

ideais da modernidade, associada à perda de otimismo e confiança<br />

no potencial universal do projeto moderno. Em especial,<br />

configura-se como uma rejeição à tentativa de colonização pela<br />

ciência das demais esferas culturais, o que vem acompanhado<br />

do clamor pela liberdade e heterogeneidade, que haviam sido<br />

suprimidas pela esperança de objetividade da Razão. (CHEVI-<br />

TARESE, 2001, p. 11, grifo do autor)<br />

De um modo geral, podem ser identificadas algumas características<br />

bastante significativas e peculiares ao texto da chamada<br />

crítica pós-moderna, como: (1) a radical “oposição a todas as<br />

formas de metanarrativa (incluindo o marxismo, o freudismo e<br />

todas as modalidades de razão iluminista)”, como lembra David<br />

Harvey (1989, p. 47), (2) oposição esta que está assentada “em<br />

profundos desenvolvimentos e transformações que estão acontecendo<br />

no campo tecnológico, na produção econômica, na cultura,<br />

nas formas de sociabilidade, na vida política e na vida cotidiana”<br />

(THOMÉ, 2003), (3) o que faz necessário, neste novo cenário, a<br />

utilização de novos conceitos e categorias fundamentais para o<br />

entendimento das “atuais configurações e seus movimentos” (4)<br />

produzindo, consequentemente, uma fina sintonia com questões<br />

oriundas de “outros mundos” e “outras vozes” que há muito estavam<br />

silenciados (mulheres, negros, homossexuais, povos colonizados,<br />

etc.) e (5) levando, simultaneamente, à adoção de uma<br />

38<br />

Gênero, mulheres e feminismos


postura defensiva, de uma lógica pluralista baseada na “idéia de<br />

que todos os grupos têm o direito de falar por si mesmos com sua<br />

própria voz, e de ter aceita sua voz como autêntica e legítima”.<br />

(HARVEY, 1989, p. 47)<br />

Vale, portanto, enfatizar que o discurso pós-moderno, ao<br />

apresentar como alvo principal a crítica à ideia de uma universalidade<br />

movida pela razão e pela crença no progresso linear da<br />

humanidade, em verdades absolutas e na possibilidade de uma<br />

ordem social ideal, “irá exercer um forte fascínio junto à teoria<br />

feminista” (SORJ, 1992, p. 19) que, desencantada e desencontrada<br />

com a modernidade, passa a “repensar esta relação” em outros<br />

termos, abrindo espaço para uma nova reflexão em torno<br />

da diferença, da indeterminação e da heterogeneidade – expressões<br />

bastante caras aos novos marcos teóricos emergentes, como<br />

apontado anteriormente.<br />

A crítica Pós-Moderna no discurso feminista:<br />

como ela se apresenta?<br />

Discutir uma relação ainda em construção é uma tarefa complexa,<br />

pois se incorre no risco de realizar uma análise circunstancial,<br />

influenciada por acontecimentos conjunturais como, por<br />

exemplo, a publicação de um texto relevante, um debate inflamado<br />

ou mesmo um ato provocativo como o “escândalo” provocado<br />

pelo “falso artigo pós-moderno” do físico Alan Sokal visando, segundo<br />

o próprio autor, incitar uma discussão sobre os “absurdos”<br />

do “excessivo subjetivismo e relativismo filosófico” do pensamento<br />

pós-moderno. 3 Assim, o que dizer acerca do diálogo entre<br />

o feminismo e o discurso pós-moderno?<br />

3 Em 1996, Sokal publica o texto “Transgredindo fronteiras: rumo a uma hermenêutica<br />

transformativa da gravidade quântica” na revista norte-americana Social Text, onde adotava<br />

uma abordagem pós-modernista. Semanas depois, em outro periódico – Língua Franca –,<br />

Sokal assume que o artigo anterior se tratava de “uma experiência” para demonstrar o absurdo<br />

Gênero, mulheres e feminismos 39


De um modo geral, podemos identificar que o “grande encontro”<br />

do feminismo com o discurso pós-moderno acontece<br />

no momento em que ambos se colocam face às problematizações<br />

em torno da diferença. Entretanto, é importante deixar evidente<br />

porque falo em “encontro” e porque apresento a tematização da<br />

diferença como o principal ponto de contato entre esses dois discursos:<br />

em primeiro lugar, não vejo o feminismo como um tipo de<br />

pensamento eminentemente pós-moderno, o que daria uma ideia<br />

equivocada de que o feminismo contemporâneo possa ser visto<br />

como “produto” do pensamento pós-moderno, como lembra Valeska<br />

Wallerstein:<br />

O feminismo aparece como uma das principais vertentes disto<br />

que chamarei de pensamento da diferença, sem que por isso<br />

ele seja derivado, uma conseqüência do pós-modernismo. [...]<br />

Quero apenas levantar uma defesa do feminismo em relação a<br />

uma ‘acusação’ um tanto comum: de que o feminismo seria o<br />

filho mais importante do pós-modernismo. (2004, p. 2)<br />

Contestada essa relação de filiação – voltarei a esse ponto<br />

mais à frente, pois defendo que não há motivo para acreditar<br />

que o feminismo contemporâneo deva sua existência às teorizações<br />

pós-modernas –, faz-se ainda mais necessário o esforço de<br />

realizar uma reflexão sobre a natureza do “encontro” entre esses<br />

dois pensamentos, portanto: em segundo lugar, é preciso voltar à<br />

tematização sobre a “diferença” como um significativo ponto de<br />

contato entre ambos, já que o pensamento pós-moderno vai se<br />

constituir como um enfrentamento “do regular, constante e universal”,<br />

caracterizando-se, principalmente, pela valorização da<br />

diversidade ao invés da uniformidade. Stuart Hall vai dizer que a<br />

“modernidade tardia” realiza um “descentramento” do sujeito,<br />

grau de non sense das teorias e métodos pós-modernistas, provocando um amplo e acalorado<br />

debate acadêmico entre defensores e detratores do discurso pós-moderno (Ver a esse respeito<br />

o instigante artigo de Jorge Almeida publicado no número 36 de Teoria e debate, em 1997).<br />

40<br />

Gênero, mulheres e feminismos


fazendo com que este seja cotidianamente “confrontado por uma<br />

gama de diferentes identidades”, o que vai ser chamado por ele de<br />

“política da diferença”, como vemos a seguir:<br />

O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada<br />

e estável, está se tornando fragmentado; composto não<br />

de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias<br />

ou não-resolvidas. [...] As pessoas não identificam<br />

mais seus interesses sociais exclusivamente em termos de classe;<br />

a classe não pode servir como um dispositivo discursivo ou<br />

uma categoria mobilizadora através da qual todos os variados<br />

interesses e todas as variadas identidades das pessoas possam<br />

ser reconciliadas e representadas. [...] Uma vez que a identidade<br />

muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou<br />

representado, a identificação não é automática, mas pode ser<br />

ganhada ou perdida. Ela tornou-se politizada. Esse processo é,<br />

às vezes, descrito como constituindo uma mudança de uma política<br />

de identidade (de classe) para uma política de ‘diferença’.<br />

(2003, p. 21)<br />

Também o feminismo vai ser confrontado com a necessidade<br />

de “pensar a diferença” ao refletir sobre a impossibilidade da<br />

existência de uma experiência comum entre as mulheres – como a<br />

de opressão, por exemplo – independente de aspectos como raça,<br />

classe social, orientação sexual etc. A teoria feminista precisa lidar<br />

com o questionamento da presumida identidade do próprio “sujeito<br />

do feminismo” – “a mulher” – como lembra Judith Butler,<br />

já que este “não é mais compreendido em termos estáveis e permanentes”<br />

(2003, p. 18). A despeito da importância dessa contribuição,<br />

o pensamento questionador de Butler, ao enxergar uma<br />

necessária dimensão normatizadora por trás da categoria identitária<br />

mulher (ou mesmo “as mulheres”), vai trazer um novo problema,<br />

que discutirei mais à frente, que é o desaparecimento do<br />

sujeito do feminismo, dificultando a luta política pela emancipação<br />

(“de quem?”, questionaria esta autora).<br />

Gênero, mulheres e feminismos 41


De modo geral, é possível reconhecer que o esforço desconstrucionista<br />

das teorias pós-modernas, particularmente do pós-estruturalismo,<br />

irá permitir um diálogo fecundo com o feminismo,<br />

reforçando a crítica aos binarismos e essencialismos do ideário<br />

racional e iluminista. A esse respeito, dirá Mariano que importantes<br />

teóricas do feminismo – como Chantal Mouffe, Joan Scott<br />

e a já citada Judith Butler – vão apontar que o abandono do sujeito<br />

“transparente e racional” da modernidade irá dar lugar ao<br />

entendimento deste como “plural, heterogêneo e contingente”,<br />

permitindo, simultaneamente, uma maior compreensão do seu<br />

processo de constituição. Citando Claudia Costa (2000), explicita<br />

que se trata do “reconhecimento de que o sujeito se constrói<br />

dentro de significados e representações culturais, os quais por sua<br />

vez encontram-se marcados por relações de poder”. (MARIANO,<br />

2005, p. 486)<br />

Com efeito, ao realizar uma autocrítica à “natureza contingente,<br />

parcial, contraditória e historicamente situada de sua empreitada<br />

teórica e de seu compromisso político” (COSTA, 1998,<br />

p. 58), o feminismo aplica a si mesmo seu próprio método desconstrucionista<br />

da realidade. Jane Flax irá considerar como um<br />

feliz encontro a articulação entre o olhar das filosofias pós-modernas<br />

e o feminismo, ao permitir, segundo suas próprias palavras,<br />

um “auto-entendimento mais preciso da natureza de nossa<br />

teorização” (1991, p. 234). A autora apresenta, explicitamente,<br />

seus argumentos em defesa dessa posição:<br />

Não podemos simultaneamente afirmar (1) que a mente, o eu e<br />

o conhecimento são socialmente constituídos e o que podemos<br />

saber depende de nossos contextos e práticas sociais e (2) que a<br />

teoria feminista pode revelar a Verdade do todo de uma vez por<br />

todas. Tal verdade absoluta [...] requereria a existência de um<br />

‘ponto de Arquimedes’ fora da totalidade e além de nossa inserção<br />

nela, a partir da qual poderíamos ver (e representar) essa<br />

totalidade. (1991, p. 234-5)<br />

42<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Assim, insiste na assunção da “não-inocência” do olhar feminista,<br />

pois, na sua opinião, “qualquer posição feminista será<br />

necessariamente parcial” (1991, p. 248) e, com esta posição, vai<br />

claramente problematizar e questionar a ideia de um ponto de<br />

vista privilegiado do feminismo, entrando em rota de colisão com<br />

aquelas(es) pensadoras(es) que defendem o “privilégio epistêmico”<br />

das mulheres (no caso das relações de gênero) ou do proletariado<br />

(no caso das relações de classe), por exemplo. Vejamos, em<br />

palavras da própria autora, o que ela tem a dizer a esse respeito:<br />

Realmente, a noção de um ponto de vista feminista que seja mais<br />

verdadeiro do que os anteriores (masculinos) parece basear-se<br />

em muitas assunções problemáticas e não examinadas. Elas<br />

incluem uma crença otimista na idéia de que as pessoas agem<br />

racionalmente em seus próprios interesses e de que a realidade<br />

tem uma estrutura que a razão perfeita (uma vez aperfeiçoada)<br />

pode descobrir. Essas duas assunções, por sua vez, dependem<br />

de uma apropriação acrítica das idéias do Iluminismo [...]. Além<br />

disso, a noção de um tal ponto de vista supõe que os oprimidos<br />

não são prejudicados de modo fundamental por sua experiência<br />

social. Pelo contrário, essa posição supõe que os oprimidos têm<br />

uma relação privilegiada (e não apenas diferente) e habilidade<br />

para compreender uma realidade que está ‘lá fora’ esperando<br />

por nossa representação. Ela também pressupõe relações sociais<br />

de gênero nas quais há uma categoria de seres fundamentalmente<br />

semelhantes em virtude de seu sexo – isto é, ela supõe a<br />

diferença que os homens atribuem às mulheres. [...] Eu acredito,<br />

pelo contrário, que não há força ou realidade ‘fora’ de nossas<br />

relações sociais e atividades [...] que nos livrará de parcialidade<br />

e diferenças. (FLAX, 1991, p. 248-9)<br />

Por certo, traz profundas consequências para o processo de<br />

teorização feminista a realização dessa chamada “virada linguística”<br />

em direção a uma fina sintonia com os discursos de corte<br />

pós-moderno, como o pós-estruturalismo. Claudia Costa vai sinalizar<br />

para a instauração de uma “intensa e acentuada crise de<br />

identidade”, ao lembrar essa sintonia com o pensamento pós-<br />

Gênero, mulheres e feminismos 43


moderno, pois, “em alguns círculos acadêmicos, significou um<br />

questionamento radical das categorias analíticas tradicionais do<br />

feminismo, inclusive de alguns dos seus conceitos mais centrais<br />

(mulher, gênero, experiência) [...]” (1998, p. 76).<br />

Como veremos a seguir, há polêmicas e posturas conflitantes<br />

na discussão acerca da conveniência da relação entre feminismo<br />

e pós-modernidade que vão merecer um olhar mais aproximado,<br />

pois, como lembra Kate Soper, o olhar sobre “qualquer grande esquema<br />

de melhoramento social” do passado ou do presente deve<br />

ser cuidadosamente analisado, pois também “há algo de demasiado<br />

totalizante na resposta pós-moderna”, já que, para ela, essa<br />

“situação é muito mais complexa do que se pode pensar via a mera<br />

oposição das perspectivas” (1992, p. 177) em confronto.<br />

Para onde vai essa relação? O feminismo e seus<br />

impasses frente à pós-modernidade<br />

Até que ponto interessa às feministas o aprofundamento de<br />

sua relação com as teorias pós-modernas? Pode o discurso pósmoderno<br />

oferecer respostas teóricas e políticas satisfatórias e<br />

coerentes com a trajetória do processo de teorização feminista?<br />

No “cômputo final”, pode-se dizer que há mais ganhos ou perdas<br />

para o feminismo com a continuidade do “investimento nessa<br />

relação”?<br />

Logicamente, qualquer tentativa de responder a essas questões<br />

já denuncia um “olhar posicionado” em torno da pertinência<br />

(ou não) da contribuição do discurso pós-moderno ao estreitar<br />

relações com o feminismo e, “deixando cair minha própria máscara”,<br />

acredito haver muito mais perdas do que ganhos para o feminismo<br />

nesse processo.<br />

Inicialmente, volto ao provocativo “trote de Alan Sokal”, retomando<br />

o episódio que gerou tanta polêmica nos meios acadêmi-<br />

44<br />

Gênero, mulheres e feminismos


cos, na década de noventa. Esse pensador abriu um amplo debate<br />

em torno do significado do discurso pós-moderno e evidenciou o<br />

conservadorismo desta perspectiva, ao jogar por terra qualquer<br />

possibilidade “de um projeto universal e não-fragmentário”, posicionando-se,<br />

explicitamente, em relação à impossibilidade de<br />

qualquer vinculação com esse tipo de discurso e assumindo, portanto,<br />

sua própria vinculação política: “eu pertenço à esquerda<br />

– entendida amplamente como corrente política que condena as<br />

injustiças e as desigualdades do sistema capitalista e procura eliminá-las,<br />

ou ao menos minimizá-las”. (SOKAL apud ALMEIDA,<br />

1997, p. 71) Assim, Sokal traz para a cena do debate contemporâneo<br />

uma das grandes contradições do discurso pós-moderno,<br />

pois, ao criticar as metanarrativas, enfatizar a alteridade e estimular<br />

lutas parciais, evita a questão do poder global e, lembra<br />

Almeida,<br />

[...] ao fazer um discurso radicalmente antiteleológico, se apresenta<br />

como portador de uma teleologia do fim da história. Absorvendo<br />

o que há de fragmentário no mundo contemporâneo<br />

e negando a possibilidade de alternativas humanas globais [...],<br />

acabam somando ao status quo. (1997, p. 70)<br />

A esse respeito ainda, Antônio Flávio Pierucci (1998) faz uma<br />

instigante análise sobre o que ele chama de “as ciladas da diferença”,<br />

ao realizar uma crítica ao discurso do direito à diferença,<br />

típico do pensamento pós-moderno (e, também, do pensamento<br />

feminista). Sem negar a importância da diferença, o autor vai resgatar<br />

que, historicamente, a ênfase na diferença tem sido um traço<br />

característico de grupos mais reacionários, como, por exemplo,<br />

os grupos de direita, e aponta algumas questões: como investir<br />

demasiadamente em uma “lógica diferencialista” sem incorrer<br />

em algum modo de discriminação? Até que ponto a diferença não<br />

é uma via de gerar mais diferença? É possível a coexistência dos<br />

movimentos de afirmação da diferença com os princípios uni-<br />

Gênero, mulheres e feminismos 45


versalistas? Estaria, portanto, instalado o dilema entre “abstrato/<br />

universal” e “concreto/particular”?<br />

Diante de tantas questões, Pierucci vai lembrar que os discursos<br />

pós-modernos, ao criticarem o sujeito universal via afirmação<br />

da diferença, vão construindo “labirintos” de novas, múltiplas e<br />

inesgotáveis diferenças – “a diferença jamais é uma só, mas sempre<br />

já-plural, sempre sobrando, muitas; sem unidade, sem união<br />

alguma possível” (1998, p. 150). Portanto, ele acredita que o desafio<br />

que permanece para a superação dos dilemas da diferença é a<br />

“reconstrução do geral, sem essencializar as diferenças”. 4<br />

Onde essa discussão rebate diretamente no feminismo? O que<br />

o feminismo ganha e o que perde, diante – como diria Pierucci –<br />

dos “labirintos da ênfase na diferença” do discurso pós-moderno?<br />

Kate Soper trata essa questão com muita lucidez, ao criticar o excessivo<br />

impulso desconstrutivista do discurso pós-moderno que,<br />

ao enfatizar, exclusivamente, a lógica da diferença, inviabiliza a<br />

possibilidade da defesa de que as identidades diferentes possam ter<br />

direitos iguais às mesmas formas de reconhecimento. Assim, ela<br />

afirma: “desconstruímos o terreno sobre o qual qualquer prática<br />

política pode ser promovida – o que faz ver toda prática atual como<br />

despótica, ‘um obscuro objeto de desejo de impossível realização’<br />

[a democracia autêntica]”. (1992, p. 180-1, tradução nossa)<br />

Acredito que o principal desafio de pensar a diferença traz uma<br />

questão elementar, já apontada anteriormente: nesse contexto,<br />

quem é o sujeito do feminismo? O “impulso desconstrucionista”<br />

pós-moderno, como lembrou Soper (1992), não questionou “apenas<br />

o sujeito masculino, mas também o sujeito ‘mulher’ e com ele<br />

o sujeito do feminismo”. (MARIANO, 2005, p. 489) Toda a crítica à<br />

4 Vale ressaltar aqui que o discurso desse autor, a despeito da importância para os objetivos<br />

políticos mais amplos de emancipação humana, pode oferecer “combustível” para uma lógica<br />

de contestação de uma relevante estratégia política de emancipação feminina, como é o<br />

caso da “Política de cotas” – que assume claramente seu direito de ser uma “discriminação<br />

positiva”, até que esse tipo de estratégia atinja seu objetivo final e não mais seja necessária.<br />

46<br />

Gênero, mulheres e feminismos


noção de experiência contida na ideia de uma “opressão comum”<br />

vai implodir a possibilidade de uma “unidade” entre as mulheres,<br />

colocando em xeque, teórica e politicamente, a questão da<br />

identidade e, em última instância, o próprio processo de constituição<br />

de um possível “sujeito do feminismo”. Mariano (2005,<br />

p. 493) apresenta algumas questões instigadoras a esse respeito:<br />

“com a desconstrução do sujeito ‘mulher’, está o feminismo condenado<br />

ao fracasso de sua ação política? Para se pensar na prática<br />

política, é necessário que se conceba de antemão a existência de<br />

um sujeito?”.<br />

As respostas para essas questões são objeto de um intenso debate<br />

entre feministas dos mais variados matizes teóricos, muito<br />

bem sumarizado pela referida autora. 5 Para os objetivos deste<br />

texto, limitar-me-ei a perseguir um caminho teoricamente mais<br />

simples e pragmático, isto é: pensar nas consequências, para o feminismo<br />

e para a sua ação política, da perspectiva da elisão do seu<br />

sujeito. Defendem algumas autoras – como Judith Butler e Chantal<br />

Mouffe – que “desconstruir o sujeito, não é declarar sua morte<br />

[...], mas sua re-significação”, segundo Mariano (2005, p. 493-4),<br />

que, nessa linha de raciocínio e inspirada pela argumentação de<br />

Butler, dirá ainda que<br />

[...] em vez de teorias que concebem o sujeito de antemão, precisamos<br />

de teorias que se proponham a pensar como o sujeito é<br />

constituído e como as diferenças e hierarquias são construídas e<br />

legitimadas nessas relações de poder [...] [pois] a crítica ao essencialismo,<br />

levada às últimas conseqüências, resultou na celebração<br />

de um ‘feminismo sem mulheres’. [...] Trata-se, porém,<br />

de um equívoco supor que a desconstrução da categoria ‘mulheres’<br />

signifique a inexistência das mulheres.<br />

Nesse debate, várias questões são postas e muitas ainda permanecem<br />

sem resposta, dentre as quais uma grande interrogação:<br />

5 Ver: MARIANO, 2005, p. 483-505.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 47


é a unidade realmente necessária para uma ação politicamente<br />

consequente do feminismo, nesse contexto? A partir das reflexões<br />

de Butler, Scott e Mouffe, responderá Mariano (2005) que não, que<br />

é possível pensar em “coalizões” (Butler) ou “múltiplas formas de<br />

unidade e de ação comum como resultado da criação de pontos<br />

nodais” (Mouffe). Assim, Mariano não descarta a possibilidade da<br />

construção de processos de identificação contingentes em torno<br />

da categoria mulher, sem significar “que o componente de gênero<br />

seja determinante em relação aos outros” (SCOTT, 1990 apud<br />

MARIANO, 2005, p. 498), e afirma, ainda, que, paradoxalmente,<br />

a ausência de unidade,<br />

ao contrário de fragilizar a prática política feminista, a crítica<br />

ao essencialismo e a defesa da diferença podem contribuir para<br />

o seu revigoramento. [...] [Pois,] negar a essência da identidade<br />

não implica negar a existência de sujeitos políticos e de prática<br />

política, mas sim redefinir sua constituição. (MARIANO, 2005,<br />

p. 496-7)<br />

Vale, portanto, enfatizar que a crítica aos processos de essencialização<br />

da identidade não precisa ser lida, literalmente, como<br />

a impossibilidade absoluta de trabalhar com qualquer noção de<br />

identidade. Nessa direção, vai lembrar ainda essa autora, citando<br />

Mouffe, que<br />

[...] o aspecto da articulação é decisivo. Negar a existência de um<br />

vínculo a priori, necessário, entre as posições do sujeito, não<br />

quer dizer que não existam constantes esforços para estabelecer<br />

entre elas vínculos históricos, contingentes e variáveis. (1999,<br />

p. 33 apud MARIANO, 2005, p. 498)<br />

Essa possibilidade de diálogo na diferença não faz desaparecer<br />

os dilemas do feminismo, pois implica constantes negociações de<br />

múltiplas identidades coexistindo e se articulando em contextos<br />

específicos, o que não significa a ideia de “pluralismo extremo”<br />

criticada por Mouffe, por defender que há “limites à celebração<br />

48<br />

Gênero, mulheres e feminismos


das diferenças, uma vez que muitas delas constroem subordinação”.<br />

(MARIANO, 2005, p. 500) Assim, negociar identidades é<br />

lidar simultaneamente com igualdade e diferença, o que vai significar<br />

a manutenção dos conflitos, isto é:<br />

[...] para Mouffe e Butler, a articulação no campo político, se se<br />

pretende democrática e não essencializada, deve pressupor a<br />

existência de conflitos. [...] Há [pois] nessa concepção feminista<br />

uma noção de positividade em relação aos conflitos. Chantal<br />

Mouffe deixa essa posição mais explícita ao tratar de sua proposta<br />

de uma democracia agonística, a qual pressupõe o conflito,<br />

no lugar do consenso. (MARIANO, 2005, p. 503)<br />

À guisa de conclusão do exercício proposto neste texto sobre<br />

o “repensar dessa relação”, considero pertinente e bastante lúcida<br />

a avaliação de Linda Hutcheon (2002) – à qual me filio – sobre<br />

as reais possibilidades de encontro dos projetos feministas e pósmodernos.<br />

Ela será categórica ao afirmar que não há como esses<br />

projetos possam vir a confluir, pois há profundas diferenças entre<br />

ambos, apesar de possuírem algumas “zonas de contato”, como<br />

já apontado anteriormente. Seu argumento mais forte está assentado<br />

na ideia de que a principal (e inconciliável) diferença entre<br />

ambos é de natureza política. Isso porque, para ela, “o feminismo<br />

é uma política”, enquanto o pós-modernismo não o é, embora<br />

ele seja político, mas, para ela, ambivalente (porque duplamente<br />

envolvido, como crítico e cúmplice) em relação à realidade que<br />

deseja questionar.<br />

Para Hutcheon, o feminismo não pode prescindir de uma “noção<br />

necessária de ‘verdade’”, pois ainda não pode abrir mão completamente<br />

das metanarrativas, ainda que conteste a patriarcal:<br />

Diz a autora:<br />

Os feminismos continuarão a resistir à incorporação ao pósmodernismo,<br />

em grande parte devido à sua força revolucionária,<br />

como movimentos políticos, que lutam por mudanças<br />

Gênero, mulheres e feminismos 49


sociais reais. Eles certamente vão além de tornar a ideologia explícita<br />

e, desconstruindo-a, argumentam sobre a necessidade de<br />

sua mudança, para produzir uma transformação real [...], que<br />

só pode vir com a transformação das práticas sociais patriarcais.<br />

O pós-modernismo não teorizou este tipo de responsabilidade;<br />

não tem estratégias de resistência real que correspondam às feministas.<br />

Não pode ter. Este é o preço a pagar por essa incredulidade<br />

em relação à metanarrativa. (HUTCHEON, 2002, s.p.)<br />

Referências<br />

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Análogos: Anais da I SAF-PUC. RJ: Booklink, 2001. Disponível em:<br />

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Versão 1.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.<br />

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feminista. In. HOLLANDA, Heloisa B. (Org.). Pós-modernismo<br />

e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p. 217-50.<br />

GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo:<br />

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Janeiro: DP&A, 2003. Disponível em: . Acesso em: 8 maio 2007.<br />

HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1989.<br />

50<br />

Gênero, mulheres e feminismos


HUTCHEON, Linda. A incredulidade a respeito das metanarrativas:<br />

articulando pós-modernismo e feminismos. Labrys − Estudos<br />

Feministas [online], n. 1-2, jul./dez. 2002. Disponível em: . Acesso em:<br />

14 jul. 2007.<br />

MARIANO, Silvana Aparecida. O sujeito do feminismo e o pósestruturalismo.<br />

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Humanas, Centro de Comunicação e Expressão/UFSC, Florianópolis,<br />

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THOMÉ, Nilson. Considerações sobre modernidade, pós-modernidade<br />

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Labrys − Estudos Feministas, jan./jul. 2004. Disponível em: .<br />

Acesso em: 8 maio 2007.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 51


ANTROPOLOGIA FEMINISTA<br />

o que é esta antropologia adjetivada? 1<br />

Alinne de Lima Bonetti<br />

Ao refletir sobre a minha própria prática acadêmica, como<br />

antropóloga, pesquisadora do campo dos estudos de gênero e feminista,<br />

e também instigada pelo desejo de compreender a especificidade<br />

da contribuição antropológica para a Teoria Feminista,<br />

deparei-me com a seguinte dúvida: afinal, o que define uma Antropologia<br />

Feminista?<br />

Seria aquela cuja teoria e método se fundamentam em determinados<br />

pressupostos, tais como o reconhecimento de uma opressão<br />

específica que atingiria as mulheres? Supondo correta esta<br />

interrogação, como é possível conciliar o olhar parcial da abordagem<br />

feminista, que parte de um pressuposto universalizante,<br />

1 Este texto é uma versão do apresentado no Simpósio Temático (ST) Entre pesquisar e militar:<br />

contribuições e limites dos trânsitos entre pesquisa e militância feministas do VII Seminário<br />

Internacional Fazendo Gênero, ocorrido entre os dias 28 e 30 de agosto de 2006, na<br />

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que se encontra disponível nos Anais do referido<br />

seminário, como também compõe o Dossiê homônimo ao ST, que se encontra disponível<br />

em: . Registro o meu<br />

agradecimento à leitura atenta e às preciosas sugestões feitas a esta versão do texto por Soraya<br />

Fleischer, bem como aos comentários e ao rico debate realizado pelas(os) participantes do<br />

referido Simpósio, que foram imprescindíveis para a revisão deste texto.


com a tradição antropológica de questionamento das categorias<br />

analíticas de relativização e de valorização dos saberes locais, do<br />

ponto de vista do nativo e dos conceitos de experiência próxima<br />

(GEERTZ, 1998)? Não estariam ambas condenadas ao desaparecimento,<br />

a partir desta combinação? Como conciliar a emancipação<br />

feminista das mulheres com o questionamento tipicamente antropológico<br />

do próprio conceito de emancipação?<br />

Campo ainda instável na tradição antropológica brasileira, a<br />

ausência do adjetivo feminista – talvez subsumido pela locução de<br />

gênero – é notável frente à existência de muitas antropólogas que<br />

se identificam como feministas, o que talvez esteja relacionado<br />

com as particularidades da relação estabelecida entre academia e<br />

militância, no Brasil, em especial no campo feminista. Maria Luiza<br />

Heilborn, em um levantamento crítico sobre a Antropologia da<br />

Mulher no Brasil, identifica uma mudança no nome dos grupos de<br />

trabalho, que passou a ocorrer nas Reuniões da Associação Brasileira<br />

de Antropologia (ABA) em 1980, de Antropologia da Mulher<br />

para Representação e Gênero, em 1988, e Relações de Gênero, em<br />

1990. Segundo a autora, tal mudança, além de representar uma<br />

virada conceitual, se deve:<br />

[a um] desejo de driblar uma classificação tida como um ‘objeto<br />

menor’ dentro do campo da Antropologia. Estamos [pesquisadoras/es<br />

da área] sem dúvida inseridas/os em um conjunto<br />

maior de relações de força e legitimidade que configuram um<br />

campo intelectual. (HEILBORN, 1992, p. 95)<br />

As relações de força e legitimidade às quais se refere a antropóloga<br />

podem ser melhor compreendidas na formulação de Maria<br />

Filomena Gregori, sobre a situação de liminaridade em que se<br />

viam as antropólogas feministas face à dupla resistência de que<br />

eram alvo. Por um lado, essa resistência vinha do próprio movimento<br />

feminista, que via com desconfiança a produção acadêmica,<br />

e, por outro, da própria academia<br />

54<br />

Gênero, mulheres e feminismos


cujas concepções mais objetivistas do conhecimento sempre<br />

afirmaram o risco de que a identificação com o objeto nos<br />

transformasse em ‘pesquisadoras pela metade’, e que o papel do<br />

intelectual estaria reduzido a instrumentalizar transformações<br />

sociais e, quando muito, a organizar ou divulgar teorias nativas.<br />

(1999, p. 228)<br />

Na sua posição acerca da relação entre produção de conhecimento<br />

e militância, Heilborn não acredita que<br />

o engajamento ético-político comprometa a priori a tarefa intelectual-acadêmica.<br />

Evidentemente isto está relacionado ao grau<br />

de relativização das próprias convicções ideológicas, segundo a<br />

coerência (e validade) teórico-metodológica e, last but not least,<br />

à pertinência das questões que orientam a investigação científica.<br />

(1992, p. 97-8)<br />

Parece-me que, mesmo tentando encontrar uma saída para<br />

a Antropologia brasileira feita sob a égide do feminismo, a autora<br />

continua recaindo em critérios de validação do conhecimento<br />

ditados por uma comunidade acadêmica que transforma<br />

pesquisadoras(es) engajadas(os), em pesquisadoras(es) pela metade,<br />

conforme explicita Gregori (1999) acima. 2 Identifica-se aqui<br />

a “pouca disposição das acadêmicas feministas em assumir uma<br />

posição de confronto ou de isolamento na academia” (HEILBORN;<br />

SORJ, 1999, p. 188), não incorporando a contribuição da radicalidade<br />

crítica da teoria feminista para o enfrentamento do campo<br />

intelectual, como aconteceu nos Estados Unidos.<br />

Dessa forma, a instabilidade não se verifica na tradição antropológica<br />

anglo- saxã, vide o contraste entre, por exemplo, a Associação<br />

Americana de Antropologia (AAA), que tem uma seção de<br />

2 É curioso notar que essa equação pesquisadoras(es) engajadas(os) = pesquisadoras(es) pela<br />

metade não se aplica no caso da Etnologia indígena brasileira. O engajamento de antropólogos<br />

nas causas indígenas é histórico e notório, além de parte constituinte da Antropologia brasileira.<br />

Por que há, então, dois pesos e duas medidas? Seria mais legítimo engajar-se em uma causa em<br />

que o Outro é um diferente, como é o caso na Etnologia, do que quando esse um Outro é, por<br />

vezes, o mesmo? São perguntas sem respostas fáceis, mas convidativas para a reflexão.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 55


Antropologia Feminista − a Associação de Antropologia Feminista<br />

(AFA) − e a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), na qual<br />

não há nenhuma menção à Antropologia Feminista. 3 A efervescência<br />

autorreflexiva da Antropologia Feminista anglo-saxã e a<br />

presença velada do feminismo na Antropologia brasileira são inspiradoras<br />

para a minha análise aqui e explicam, em grande medida,<br />

a orientação dos textos que a embasam.<br />

Assim, por meio de um passeio pela literatura antropológica<br />

feminista, majoritariamente anglo-saxã, neste texto, reflito sobre<br />

a relação entre Antropologia e Feminismo. Busco compreender o<br />

que especifica essa produção de conhecimento, quais as suas características<br />

teórico-metodológicas e, sobretudo, quais as implicações,<br />

contribuições e limites do seu caráter engajado. Enfim,<br />

pretendo reunir elementos que possam servir de subsídios para<br />

incentivar o debate brasileiro.<br />

Da antropologia das mulheres à antropologia<br />

feminista: os desafios feministas<br />

Um dos mais importantes desafios à Antropologia colocados<br />

pela crítica feminista está no questionamento acerca do conhecimento<br />

que produz. O surgimento da Antropologia Feminista está<br />

marcado pela combinação entre a crítica epistemológica e a crítica<br />

sobre a forma pela qual as mulheres eram representadas nas<br />

etnografias.<br />

3 Parece-me sintomático que na coleção O que ler na Ciência Social Brasileira − 1975-1995 (1999)<br />

editada pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS),<br />

o capítulo sobre Estudos de Gênero, escrito por uma antropóloga e uma socióloga (Maria Luiza<br />

Heilborn e Bila Sorj), bem como o seu Comentário Crítico, escrito por uma antropóloga (Maria<br />

Filomena Gregori), esteja no volume referente à Sociologia e não naquele relativo à Antropologia<br />

e seja denominado com a locução “de gênero” e não com o adjetivo “feminista”. Para uma<br />

comparação entre as Associações de Antropologia estadunidense e brasileira, ver os seguintes<br />

sítios: http://sscl.berkeley.edu/~afaweb.html e http://www.abant.org.br/<br />

56<br />

Gênero, mulheres e feminismos


A primeira fase da Antropologia Feminista, surgida na década<br />

de 70, ficou conhecida como a Antropologia das Mulheres, dado<br />

o seu enfoque na busca pela visibilidade das mulheres nas produções<br />

etnográficas. 4 Voltada para a reflexão sobre a variabilidade de<br />

sentidos culturais da categoria mulher, esta primeira Antropologia<br />

Feminista questionou a universalidade e unidade da categoria<br />

sociológica mulher. Sua produção foi marcada pela constituição<br />

de um aparato teórico que buscava explicar, dentre a variabilidade<br />

do que é ser mulher, o caráter secundário que ela supostamente<br />

ocupa nas mais diferentes culturas. Se há inovação de um lado,<br />

de outro, há a permanência de um pressuposto universalista, o da<br />

subordinação feminina transcultural.<br />

A ênfase na biologização do gênero, neste contexto entendido<br />

como a “elaboração cultural do sentido e significado dos fatos naturais<br />

das diferenças biológicas entre homens e mulheres” (MOO-<br />

RE, 2000, p. 151) e na universalidade da subordinação, denuncia o<br />

persistente viés ocidental nas análises realizadas pela Antropologia<br />

das Mulheres que, equivocadamente, interpretavam diferença<br />

e assimetria como se fossem desigualdade e hierarquia. Segundo<br />

Henrietta Moore,<br />

quando os pesquisadores percebem as relações assimétricas<br />

entre homens e mulheres em outras culturas, eles supõem tais<br />

assimetrias como sendo análogas à sua própria experiência cultural<br />

das relações de gênero, na sociedade ocidental, de natureza<br />

desigual e hierárquica. (1988, p. 2)<br />

4 As duas antologias pioneiras, que foram responsáveis pelo estabelecimento da Antropologia<br />

Feminista, são Woman, culture and society, organizada por Michelle Rosaldo e Louise Lamphere,<br />

e Toward an anthropology of women, organizada por Rayna Rapp (BEHAR, 1993). Deve-se<br />

destacar que, talvez a primeira goze de maior popularidade na antropologia brasileira por contar<br />

com uma tradução para o português, o que nos remete a uma inescapável reflexão sobre a<br />

política de traduções no Brasil, que está ainda por ser feita.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 57


Não tardam as reformulações e a Antropologia Feminista<br />

passa, aos poucos, a ter uma nova cara 5 e as posições anteriores<br />

acerca dos universais da opressão/subordinação feminina e o<br />

imperativo biológico do gênero foram revistas.<br />

Michelle Rosaldo, em um texto bastante crítico (e, sobretudo<br />

autocrítico) em relação ao que considera abusos da Antropologia,<br />

põe em questão os universais de opressão feminina que afirmara<br />

anteriormente e declara que a procura obstinada pelas origens e<br />

pela confirmação da opressão transcultural tornou os pesquisadores<br />

cegos às formas pelas quais as relações de gênero se constituem:<br />

“[...] tendemos repetidamente a contrastar e insistir em<br />

diferenças presumivelmente dadas entre homens e mulheres ao<br />

invés de perguntar como essas diferenças são elas mesmas criadas<br />

por relações de gênero” (1995, p. 23) e, acrescenta, se e de que<br />

maneira, essas diferenças se constituem em desigualdades. Para<br />

Rosaldo, “gênero, em todos os grupos humanos, deve ser entendido<br />

em termos políticos e sociais com referência não a limitações<br />

biológicas, mas sim às formas locais e específicas de relações sociais<br />

e particularmente de desigualdade social” (1995, p. 22).<br />

A questão em jogo muda de uma busca pelas vítimas oprimidas<br />

de cada sociedade e pelas formas através das quais esta opressão se<br />

manifesta, para uma investigação sobre como cada sociedade organiza<br />

os seus sistemas de valores de gênero e como tais sistemas<br />

implicam ou não em estruturas de desigualdade. Busca-se chamar<br />

a atenção para o fato de que há uma organização das estruturas<br />

de gênero constituída por relações de poder que podem transformar<br />

diferenças em desigualdades, dependendo do contexto e das<br />

combinações que assumam.<br />

5 Janet Atkinson (1982) situa nesta classificação, dentre outros, os livros de: Michelle Rosaldo,<br />

Knowledge and passion: Ilongot notions of self and social life, de 1980; de Sherry Ortner e<br />

Harriet Whitehead, Sexual meanings: the cultural construction of gender and sexuality, de 1981;<br />

e o de Carol MacCormack e Marilyn Strathern, Nature, culture and gender, de 1980.<br />

58<br />

Gênero, mulheres e feminismos


É, portanto, na etnografia que a Antropologia feita sob a influência<br />

do feminismo parece estabelecer a sua especificidade no<br />

campo da Teoria Feminista. A universalidade da opressão passa a<br />

ser questionada a partir da ênfase nos processos sociais que a etnografia<br />

revela, associada a um crescente interesse na interação<br />

entre situação, contexto e sentido (ATKINSON, 1982), ou seja, a<br />

ênfase na etnografia permite revelar as complexidades das experiências<br />

culturais relativas ao gênero, as variações de sentidos<br />

a ele atribuídos, os contrastes entre convenções constitutivas<br />

de repertórios e as variadas formas como eles são vivenciados e<br />

ressignificados, enfim, as intricadas relações entre convenções e<br />

prática.<br />

Assim, as pesquisas etnográficas se voltam para a exploração<br />

dos domínios de sentido de gênero, dos contextos a que estão associados<br />

e dos usos situados. O grande potencial relativizador da<br />

pesquisa empírica antropológica, com os seus dados transculturais<br />

e o seu potencial comparativo, advindos daí para a desessencialização<br />

e desontologização de identidades de gênero, pode ser<br />

ressaltado como a grande contribuição desta segunda leva da Antropologia<br />

Feminista estadunidense e inglesa. (MOORE, 1994)<br />

Outro aspecto importante para a Antropologia Feminista relativo<br />

a essa virada etnográfica é a problematização das relações<br />

de poder inerentes à situação etnográfica. O ponto central dessa<br />

mudança parece estar na atenção ao posicionamento dos(as)<br />

pesquisadores(as) em campo e nas relações de poder envolvidas<br />

seja na definição da relação de pesquisa, na troca desigual que se<br />

estabelece entre pesquisador(a)/pesquisado(a), seja na potencial<br />

exploração do(a) pesquisado(a). (WOLF, 1996 apud PANAGAKOS,<br />

2004)<br />

Tais preocupações partem da concepção de que, na relação de<br />

pesquisa, há uma distribuição diferencial dos recursos de poder<br />

entre pesquisador(a)/pesquisados(as) que emerge da combinação<br />

Gênero, mulheres e feminismos 59


entre distintos eixos produtores de diferenças e de desigualdades,<br />

tais como idade, gênero, raça, classe e nacionalidade, que se interseccionam.<br />

Reflete-se, portanto, sobre como essas combinações<br />

produzem mais diferenças que, por sua vez, produzem desigualdades,<br />

e de que forma tais mecanismos devem aparecer na representação<br />

produzida sobre o/a Outro(a) na escrita. Em vista disso,<br />

põem-se como implicações dessas transformações metodológicas<br />

na Antropologia Feminista a busca pela manutenção de uma postura<br />

crítica sobre o trabalho de campo, o questionamento dos cânones,<br />

a transformação das noções convencionais sobre pesquisa<br />

qualitativa através da imaginação e a luta por projetos e coalizões<br />

politicamente significativos. (PANAGAKOS, 2004)<br />

Assim, o método etnográfico se revela como a marca distintiva<br />

da Antropologia Feminista dentro do campo da teoria feminista.<br />

A preocupação com as relações de poder e com as estruturas de<br />

desigualdade que marcam a Antropologia Feminista estão presentes<br />

também na postura crítica com que a etnografia é encarada. 6<br />

A antropologia feminista e o seu objeto<br />

A partir desse revisionismo crítico, podemos nos aproximar<br />

do que seria o objeto da Antropologia Feminista, elemento crucial<br />

para a delimitação das fronteiras do campo. Em artigo provocativo,<br />

Sarah Ono (2003) afirma que o desafio contemporâneo para<br />

a Antropologia Feminista é a possibilidade de se constituir prescindindo<br />

das mulheres como seu objeto. Mas qual seria, então?<br />

6 Cabe ressaltar que as preocupações acerca das relações de poder em campo, assim como<br />

sobre o potencial imperialismo teórico da Antropologia, o não reconhecimento de outras<br />

tradições antropológicas que não as euro-americanas e a autoridade do antropólogo enquanto<br />

aquele que escreve sobre outras culturas foram questões centrais da autocrítica chamada<br />

pós-moderna por que passou a disciplina, ao longo da década de 80. (CLIFFORD; MARCUS,<br />

1986; MOORE, 1996; MARCUS; FISCHER, 1986) No entanto, a crítica feminista a essa produção<br />

aponta para o silêncio em relação às mulheres e ao seu lugar secundário nas etnografias. (BELL;<br />

CAPLAN; KARIM, 1993) Assim, parece haver um interessante avanço da crítica feminista em<br />

relação à crítica pós-moderna direcionada à Antropologia.<br />

60<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Tal objeto me parece ser constituído por alguns elementos: uma<br />

noção de diferença complexificada, relações de poder e a preocupação<br />

com a produção de desigualdades.<br />

A Antropologia Feminista, ao criticar a noção de diferença<br />

cultural característica da Antropologia, introduz uma noção de<br />

diferença que passa a ser complexificada, havendo um comprometimento<br />

com complexos feixes de diferenças que se interseccionam<br />

e cujas combinatórias são variáveis, de acordo com os<br />

contextos e situações investigados. Muito embora o gênero tenha<br />

um lugar de destaque, ele não é o único produtor de diferença,<br />

devendo, portanto, ser tomado no cruzamento com outros elementos<br />

produtores de diferença tais como raça, etnia, nacionalidade,<br />

geração e classe.<br />

Como se pode perceber, o gênero parece ser a pedra de toque<br />

para a Antropologia Feminista, no entanto, a mera aparição da<br />

palavra gênero não implica, necessariamente, no adjetivo feminista.<br />

Mas há que se fazer uma ressalva a fim de explicitar o sentido<br />

que assume nesta produção. Muito embora a Antropologia<br />

Feminista implique na utilização da categoria gênero ao invés da<br />

categoria mulher, nem todo estudo sobre gênero na Antropologia<br />

é feminista. (MOORE, 1988; ONO, 2003) Gênero se complexifica:<br />

tal como passa a ser tomado pela Antropologia Feminista, ele é<br />

entendido como “um princípio pervasivo da organização social”.<br />

(STRATHERN, 1987, p. 278) No seu estado atual, a Antropologia<br />

Feminista vai além do estudo da construção social da identidade<br />

de gênero e dos papéis de gênero, feito pela Antropologia do Gênero,<br />

segundo a caracterização de Moore (1988).<br />

Nesse sentido, parece-me rentável para a Antropologia Feminista<br />

acolher o conceito de gênero tal como proposto por Marilyn<br />

Strathern, como uma “categoria de diferenciação” (1990, p. 9) que<br />

tem como referência a imagística sexual. Nas suas formulações,<br />

essa categoria de diferenciação cria categorizações cujas interre-<br />

Gênero, mulheres e feminismos 61


lações revelam possibilidades inventivas sobre relações de gênero<br />

e sobre relações sociais. Assim, perpassa e marca as mais diversas<br />

ações sociais, não se restringindo, portanto, à relação corpo<br />

biológico−sexo−gênero, antes, abarca e dota de sentido a organização<br />

da vida social. 7 Essa noção de gênero, tida como guia na<br />

consideração de alteridades complexas, leva, também, à busca<br />

pela compreensão das relações de poder nelas embutidas e dos<br />

processos de constituição de sistemas de desigualdades.<br />

Com isto, chegamos, inevitavelmente, às considerações sobre<br />

a natureza política dessa Antropologia, outro elemento fundamental<br />

para a delimitação do campo. O seu caráter político,<br />

presente na aparição recorrente da proposta de luta por projetos<br />

e coalizões politicamente significativos nos textos consultados –<br />

como a proposta de se ter um conhecimento produtivo, politicamente<br />

levantada por Deborah Gordon (1993) e Ono (2003) –,<br />

recoloca no seu horizonte teórico a noção de engajamento como<br />

uma característica que lhe é inerente.<br />

A noção de político aqui presente me parece estar associada a<br />

um questionamento e a uma busca pela compreensão de como se<br />

configuram as relações de poder e em como a ideia de diferença,<br />

tão cara à Antropologia em geral e à Antropologia Feminista, em<br />

especial, se complexifica e aparece na constituição de desigualdades.<br />

O intuito parece ser, de posse desse mapa cultural das relações<br />

de poder, o de contribuir para a sua reconfiguração. É nesse<br />

sentido que Gordon (1993) entende a Antropologia Feminista e o<br />

seu caráter engajado, inspirado pela reflexão de Peggy Sanday sobre<br />

fraternidades, estupro e masculinidade entre homens bran-<br />

7 Algumas vertentes de estudos sobre a violência contra as mulheres no Brasil se utilizam de uma<br />

noção de gênero que associa corpo biológico−sexo−gênero. Ver, por exemplo, a compilação de<br />

Maria Amélia Teles e Mônica Melo (2002) sobre o tema e Suely Almeida (1998). Ver também o<br />

levantamento crítico realizado por Maria Luiza Heilborn (1992).<br />

62<br />

Gênero, mulheres e feminismos


cos universitários estadunidenses, 8 e reflete sobre a ideia de que<br />

a produção antropológica feminista pode ser uma forma de ação<br />

social. Cabe ressaltar que Gordon reflete sobre esse tema em um<br />

contexto marcado por uma então recente Antropologia Feminista<br />

voltada para pesquisar a sua própria sociedade e preocupada<br />

em compreender questões sócio-político-culturais que atingem,<br />

particularmente, as mulheres. Assim, esse caráter engajado e, de<br />

certa forma, útil, da pesquisa antropológica feminista demarca o<br />

seu cunho político.<br />

O adjetivo feminista modificador do substantivo Antropologia,<br />

implica na “reestruturação ou subversão das estruturas de<br />

poder em algum nível”, subversão aqui associada à ideia de um<br />

desafio crítico às formas de produção de conhecimento estabelecidas,<br />

de uma possibilidade de redefinição dos caminhos a serem<br />

seguidos e da expansão dos temas a serem estudados. (ONO, 2003,<br />

p. 4) Através da sua imaginação criativa e da sua crítica, a Antropologia<br />

Feminista tem um grande potencial inovador, de extrema<br />

relevância para a expansão da disciplina.<br />

Por uma antropologia feminista brasileira<br />

Soa particularmente estranho, em uma época de rompimento<br />

de fronteiras disciplinares, querer delimitar as fronteiras de uma<br />

disciplina em um campo essencialmente interdisciplinar. Nessa<br />

intensa proliferação de referenciais e de combinações disciplinares,<br />

encontrei o estímulo para pensar qual seria a particularidade<br />

do olhar antropológico. A busca por uma maior clareza na definição,<br />

nas implicações, nas possibilidades e nos limites dessa Antropologia<br />

adjetivada se fundamenta em uma avaliação de que me<br />

8 Segundo Gordon (1993), Sanday foi levada a estudar esse tema em função de uma aluna sua que<br />

foi estuprada por um grupo de estudantes universitários. A realização da pesquisa fez com<br />

que a antropóloga pudesse conhecer essa realidade e contribuir para a criação de mecanismos<br />

de combate a essa violação nos campi estadunidenses.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 63


parece ser este um passo importante para a consolidação de um<br />

olhar, de um lugar de fala e de uma tradição.<br />

Junto a isso há, ainda, a tentativa de transpor uma certa resistência<br />

semelhante àquela que talvez esteja nas origens da ausência<br />

de uma Antropologia Feminista no rol de possibilidades de<br />

atuação e de interesse previsto pela Associação Brasileira de Antropologia.<br />

Em se transpondo tal resistência, desvela-se o feminismo<br />

fortemente presente na Antropologia brasileira, como se<br />

pode perceber na larga tradição de estudos antropológicos sobre<br />

o tema da violência contra a mulher como os de Mariza Corrêa<br />

(1983), Miriam Grossi (1988), Maria Filomena Gregori (1993),<br />

entre outras(os).<br />

Em vista disto, e em um registro mais político, tendo a concordar<br />

com a distinção, proposta por Moore (1988), entre Antropologia<br />

Feminista e Antropologia do Gênero. Sabemos que gênero<br />

e feminismo não são termos independentes, mas, também, que<br />

não têm uma relação necessária. Creio que a necessidade de afirmar<br />

o “feminista” da antropologia é uma atitude, em si, política,<br />

de positivar o engajamento político na produção de conhecimento<br />

e emprestar um caráter especificamente crítico à prática antropológica.<br />

Em muitos contextos, os usos da locução “de gênero” no lugar<br />

do adjetivo “feminista” se revela uma importante estratégia a<br />

fim de tornar este último mais palatável. No entanto, acredito que<br />

apostar em uma postura mais frontalmente política e reafirmar<br />

o adjetivo “feminista” da Antropologia que fazemos, lhe confere<br />

um comprometimento crítico para “desafiar e re-desafiar as suposições<br />

sobre os próprios lugares das pessoas no mundo [...] com<br />

seus complexos conflitos inter-gênero, inter-racial, inter-cultural<br />

e internacional num modo ética e politicamente sensível”.<br />

(MASCIA-LEES; BLACK, 2000, p. 106 apud ONO, 2003, p. 4)<br />

64<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Não joguemos o bebê fora junto com a água do banho, no<br />

entanto. Por um lado, confiramos ao gênero a sua crucialidade<br />

dentro do campo, por ser uma categoria fundamental para a Antropologia<br />

Feminista tal como a entendemos aqui e eixo importante<br />

da noção de diferença com que esta trabalha, lado a lado do<br />

escrutínio das relações de poder inerentemente incrustadas na<br />

constituição do social e dos sistemas de desigualdades. Por outro<br />

lado, esse comprometimento político não nos pode cegar para as<br />

especificidades locais, para os processos contextuais de negociação<br />

de sentidos; daí a importância da vigilância epistemológica<br />

em relação ao uso do método etnográfico para o questionamento<br />

e escrutínio dos conceitos tão caros à Antropologia.<br />

Feitas as devidas ponderações, assumamos, a partir de então,<br />

este adjetivo e este lugar dentro do campo da Antropologia e da<br />

Teoria Feminista para que, parafraseando Gregori (1999), a Antropologia<br />

mereça também ser chamada de Feminista, sem reservas.<br />

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66<br />

Gênero, mulheres e feminismos


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Passos).<br />

Gênero, mulheres e feminismos 67


Segunda parte<br />

G<br />

Tratando de<br />

interseccionalidades


FEMINISMO, GERONTOLOGIA<br />

E <strong>MULHERES</strong> IDOSAS 1<br />

Alda Britto da Motta<br />

Introdução<br />

A mulher idosa é uma personagem em suspensão – ela não é<br />

posta de forma integral em quase nenhum lugar social. Inclusive<br />

na produção científica. Vejamos: O feminismo sempre a ignorou.<br />

No auge da militância política feminista e não-classista das décadas<br />

de 60 e 70, a conclamação pela sisterhood não deu vazão<br />

às diferenças de idade – éramos todas jovens, geração das filhas<br />

de nossas “atrasadas” mães. Quarenta anos depois, continuamos<br />

inadvertidamente “jovens”, somos todas ainda filhas briguentas,<br />

apenas da grande Simone, a pioneira e libertária − e que, por ironia,<br />

nunca pretendeu ter filhos – mas é a única antepassada intelectual<br />

que reconhecemos com orgulho.<br />

1 Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no XIV Encontro da REDOR, realizado em<br />

Fortaleza, Ceará, em dezembro de 2007.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 71


No percurso das elaborações teóricas que se sucederam, criada<br />

a indispensável categoria gênero, reconhecido o seu caráter<br />

relacional, a sua dimensão existencial e de análise, sua transversalidade,<br />

em contínua intersecção com outras categorias relacionais<br />

como classe, raça/etnia e – relutantemente – idade/geração,<br />

as velhas quase nunca têm sido objeto direto de consideração e<br />

pesquisa. Nem sequer de crítica, pelo seu presumido passadismo,<br />

nem quando reconhecida a heterogeneidade identitária dos grupos<br />

categoriais na vivência da pós-modernidade.<br />

A gerontologia, ao contrário, não a ignoraria. Nela constrói<br />

o mais básico de sua prática. Mas, como expressa Clary Krekula,<br />

a mulher velha é aí tratada como objeto, problema e não sujeito.<br />

E quando estudada, o tem sido, predominantemente, from a<br />

misery perspective, enfatizado o seu envelhecimento como problema.<br />

Teoricamente mais grave, “[...] nunca se inicia com a experiência<br />

das mulheres, nem da perspectiva de gênero como um<br />

processo social e princípio organizador que cria as experiências de<br />

mulheres e de homens”. (2007, p. 160, tradução nossa) 2<br />

Desencontros teóricos<br />

Uma visão realmente limitada, sem problematização da condição<br />

etária/geracional, tem sido a comum na teoria feminista,<br />

que pressupôs, na sua origem, e ainda pressupõe, em grande<br />

parte, a mulher como a mãe jovem/ esposa/trabalhadora, a que<br />

realiza(va) a famigerada dupla jornada de trabalho. Aquelas em<br />

idade produtiva... e reprodutiva. Como enfatiza, ainda, Krekula<br />

(2007), as mulheres muito jovens, as que não têm filhos e as velhas<br />

(“não trabalhadoras”) ficam invisíveis. Nessa concepção, as ido-<br />

2 No original: “[…] neither starts from women’s own experiences, nor from the perspective of<br />

gender regarded as a social process and organizing principle that creates women’s and men’s<br />

experiences.”<br />

72<br />

Gênero, mulheres e feminismos


sas não seriam mais nem produtivas nem reprodutivas... Quando,<br />

em realidade, como mulheres, continuam a reproduzir, real ou<br />

potencialmente, a força de trabalho, em seu cotidiano doméstico;<br />

além de, especialmente como velhas, atualizarem a memória<br />

social. Lembrando-se que mesmo as mais idosas atuam, em graus<br />

variados, no âmbito doméstico.<br />

Muito mais que “olhar” os netos, D. Vitalina, 82 anos, viúva,<br />

seis filhos, relata: “Faço tudo em minha casa. Há muito que não<br />

tenho uma empregada. Acho que não conseguiria mais dividir<br />

minha casa com mais ninguém”. (BRITTO DA MOTTA, 2004) E D.<br />

Eremita, 91, viúva, ainda que não morando só, revela: “Eu ainda<br />

cozinho, nessa idade que você está vendo”.<br />

Ironicamente, entretanto, aquele enfoque corresponde, em<br />

seus defeitos, ao da família em modelo único (à maneira de Talcott<br />

Parsons, na década de 50), mais ou menos restrito à forma nuclear,<br />

tão criticado pelo feminismo das décadas de 60 e 70 do século<br />

passado e em cuja referência atual já perdeu o seu lugar produtivo<br />

a mulher/mãe idosa, titular, quando muito, de um supostamente<br />

desolador ninho vazio... que, entretanto, “na roda da História”<br />

está voltando a se encher... de filhos adultos e netos, tangidos pela<br />

reestruturação produtiva e pelas atuais recomposições familiares.<br />

Só mais recentemente – e não diretamente relacionado às<br />

discussões feministas e, não raro, sequer às teorias de gênero –<br />

chega-se à percepção da existência de novas formas de família,<br />

entre elas a ampliada, multigeracional, até com duas gerações de<br />

idosos; em geral, de idosas, ensejada pela longevidade crescente<br />

e pelas novas formas de solidariedade intergeracional, mas que é<br />

tema/ enfoque/objeto de pesquisa ainda relativamente raro e, seguramente,<br />

não-prioritário para o feminismo. (BRITTO DA MOT-<br />

TA, 1998b; GOLDANI, 1999)<br />

Também as referências diretas à categoria idade, quando ocorrem,<br />

na teoria feminista são em geral incolores, analiticamente<br />

Gênero, mulheres e feminismos 73


inexpressivas, porque não pretendem elucidar situações reais, ou<br />

vividas, nem discutir teoricamente as vivências temporalmente<br />

situadas − o que se dá, aliás, de referência a todas as idades −, e<br />

apenas completa o ciclo da não-referência analítica ao âmbito das<br />

gerações, iniciada com o caso das mulheres idosas. Longe fica,<br />

esse quase descarte, das menções enfáticas e do vigor analítico<br />

com que são tratadas outras categorias identitárias como, além de<br />

gênero, raça e classe social.<br />

Como eco da ausência de percepção/discussão sobre idosos no<br />

meio científico, nos grandes levantamentos mais ou menos públicos<br />

da mídia, as idades consideradas são sobretudo medianas,<br />

avançando raramente para além dos sessenta. Perdendo, portanto,<br />

em representatividade. (Vejam-se os periódicos dossiês ou resultados<br />

de pesquisa da Folha de São Paulo e da revista Veja, por<br />

exemplo).<br />

A Gerontologia, sim, conta e reconta a existência da mulher<br />

idosa – mas, geralmente assim, no singular e genérica − não como<br />

objeto preferencial, que são os velhos, também genericamente;<br />

a mulher como personagem do real imediato, embora já saindo<br />

de cena: desgastada e sem muitos recursos próprios, vivenciando<br />

perdas, principalmente corporais e de saúde, e necessitando<br />

de cuidados. Como os homens. Neste ponto, aparentemente, sem<br />

diferenças de gênero. Mas eles são – como minoria demográfica<br />

– ainda menos conhecidos que as mulheres; embora, contraditoriamente,<br />

com lugar social definido, status melhor situado.<br />

(HEARNS, 1995)<br />

Elas são mais referidas porque maioria demográfica e, supostamente,<br />

mais desvalidas economicamente; além de repetidamente<br />

reportadas, na literatura gerontológica e geriátrica, como<br />

portadoras de mais constantes e duradouros problemas de saúde<br />

que os homens − o que, diante de sua provada aptidão para maior<br />

74<br />

Gênero, mulheres e feminismos


longevidade é um paradoxo que exige maior esclarecimento. Ao<br />

mesmo tempo − nova contradição −, só ela, mulher, apesar das<br />

“deficiências” sempre apontadas, devendo ser também cuidadora<br />

de maridos “velhos” (isto é, doentes ou, incapacitados), de filhos<br />

e netos, pois cuidar é o “destino” clássico e persistente de todas as<br />

mulheres. Imagem pública que se funde com a prevalente na vida<br />

cotidiana, expressão de um contrato social imemorial.<br />

O protótipo dessa imagem/papel de cuidadora é atualmente<br />

materializado na figura ambígua da avó, vista ao mesmo tempo,<br />

ou alternadamente, como a que vive ajudando a família e/ou,<br />

pela “idade”, “pesando” sobre a família. Reconhecida, enfim,<br />

e só muito recentemente, pela premência dos fatos a se repetirem,<br />

numerosos, em um papel de apoio diretamente “materno”,<br />

na criação ou cuidado fundamental de netos (quase) sem mães;<br />

mas, aí, pelas Ciências Sociais, não contextualizadas diretamente<br />

pelo feminismo. Realizando-se, como também analisa Goldani,<br />

“[...] uma continuada discriminação em que a mulher idosa é vista<br />

como dependente da família, quando, na verdade, ela cumpre,<br />

cada vez mais, a função de cuidadora de todos” (1999, p. 82).<br />

Em compensação, essa visão social e analiticamente rarefeita,<br />

particularista, das idosas – como também dos idosos – tem consequências<br />

profissionalmente interessantes para os especialistas<br />

da área –, alimentam o seu dia a dia de atividades e o seu sucesso<br />

ou realização profissional, pois, como expõe Remi Lenoir (1998,<br />

p. 63) o que se define como problema social “[...] varia segundo as<br />

épocas e as regiões e pode desaparecer como tal”. E enquanto não<br />

desaparece, alimenta as práticas profissionais.<br />

No que se refere ao sexo e à idade, vistos, habitualmente, como<br />

condições biológicas e:<br />

[...] critérios de classificação dos indivíduos no espaço social<br />

[...] a elaboração de tais critérios está associada ao aparecimen-<br />

Gênero, mulheres e feminismos 75


to de instituição e agentes especializados que encontram nessas<br />

definições a força motriz e o fundamento de suas atividades.<br />

(LENOIR, 1998, p. 64).<br />

Porque, afora a eventual – porque assistemática e nem sempre<br />

diretamente intencional – percepção (insight) da literatura de<br />

ficção (no Brasil, exemplos de Clarice Lispector, Lygia Fagundes<br />

Telles, Sonia Coutinho), a própria Simone de Beauvoir com a sua<br />

femme rompue e, muito recentemente, raros estudos acadêmicos<br />

sobre as velhas na produção literária, a exemplo de Susana Lima<br />

(2007), somente a pesquisa das Ciências Sociais, por se debruçar<br />

na observação metódica e analítica da realidade individual/social<br />

das pessoas, reconstrói esse ser integral, ainda que heterogêneo<br />

em seus modos de vida e suas várias e articuladas dimensões identitárias<br />

– ser do sexo feminino, em determinado momento histórico,<br />

avançada na trajetória da(s) idade(s), vivenciando, cada<br />

uma, individual e coletivamente, o resultado da vida construída<br />

entre a subjetividade e o que o contexto social lhe facultou (neste<br />

ponto, como todas as mulheres em cada uma das suas idades).<br />

Evidente que também os cientistas sociais têm proveito profissional<br />

com os seus estudos e pesquisas com essa personagem,<br />

sobretudo quando se tornam pesquisadores burocratas, mas também<br />

têm realizado tarefas realmente produtivas, nos moldes sugeridos<br />

por Lenoir:<br />

O objeto da sociologia da velhice não consiste em definir quem é<br />

e não é velho, ou em fixar a idade a partir da qual os agentes das<br />

diferentes classes sociais se tornam velhos, mas em descrever o<br />

processo através do qual os indivíduos são socialmente designados<br />

como tais. (1998, p. 71)<br />

Em compensação maior, têm a possibilidade de realizar um<br />

reconhecimento social da categoria idosa/idoso que lhes permite<br />

ir mais fundo em sua ação e, potencialmente, alcançar uma<br />

76<br />

Gênero, mulheres e feminismos


militância ética e política mais eficaz. Guita Debert expressa isto,<br />

também, com o exemplo dos recursos da Antropologia:<br />

[...] Com a idéia de estranhamento a Antropologia nos ajuda a<br />

contestar certas convenções próprias do senso comum [e, não<br />

raro, acrescentaria, até oriundas do campo científico] que organizam<br />

nossas práticas. [...] O pressuposto que organiza o discurso<br />

gerontológico é que nós vamos ficar mais velhos, vamos<br />

ficar mais doentes e vamos gastar mais. Raramente discutimos<br />

essa convenção [...]. (2005, p. 109)<br />

E, mais adiante:<br />

O que a Antropologia pode fazer é oferecer elementos para politizar<br />

certas afirmações que se pretendem neutras politicamente<br />

e que afetam os velhos e nos afetam [...] ela exige que tenhamos<br />

um cuidado maior com as previsões para o futuro e nos mostra<br />

como essas previsões acabam por organizar o nosso presente,<br />

muitas vezes de maneira nefasta para certos grupos da população.<br />

(DEBERT, 2005, p. 110)<br />

Falando-se em militância, é importante lembrar, ao mesmo<br />

tempo, ações práticas com resultados eficazes empreendidas por<br />

instituições pioneiras no trato com os idosos no Brasil, como o<br />

SESC, apesar de todo um tempo de estranhamento destas diante<br />

da pesquisa acadêmica. Como registra Márcia Gomes: “[...] a<br />

atuação das entidades autoproclamadas representantes dos idosos,<br />

especialmente o SESC e a SBGG, 3 foi de grande importância<br />

no trabalho de reconhecimento e legitimação pública do problema<br />

social da velhice” (2006, p. 14). Por outro lado, continua a expor,<br />

“a participação dos especialistas em geriatria e gerontologia<br />

foi fortemente sentida no conjunto do Plano Nacional do Idoso<br />

(PNI) (1994, regulamentado em 1996), especialmente com relação<br />

ao desenvolvimento de ações governamentais voltadas às áreas de<br />

3 SESC − Serviço Social do Comércio; SBGG −Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 77


saúde e de educação, propondo-se até a inclusão de geriatria e gerontologia<br />

como disciplinas curriculares nos cursos superiores.<br />

Mas aí se retorna ao dilema fazer x aproveitar exposto por<br />

Lenoir – criam-se as políticas e as instituições e, concomitantemente,<br />

criam-se/definem-se os seus gestores... Entretanto, reconhecemos<br />

todos, foi o próprio movimento dos idosos, nos anos 90,<br />

especialmente na luta pelos 147% da Previdência, que deu visibilidade<br />

e propiciou reconhecimento político às questões da velhice.<br />

(BRITTO DA MOTTA, 1998a; SIMÕES, 1998; 2000; AZEVEDO, 2004;<br />

GOMES, 2006) Apenas, naquele momento, as mulheres quase não<br />

estavam no movimento... Só depois iriam chegando...<br />

Mas é curioso recordar as que já estavam, como, por exemplo,<br />

as primeiras – poucas – mulheres participantes das reuniões<br />

semanais da Associação de Aposentados da Bahia, início da década<br />

de 90 do século passado, no Clube Fantoches de Euterpe, em<br />

Salvador. Eram, sobretudo, pensionistas, raras participando das<br />

discussões e iniciativas do grupo, uma única mulher na Diretoria,<br />

espécie de Secretária Feminina, como ainda era usual – espécie<br />

de casos álibi − em agremiações na época. Figura modelar, atuava<br />

à maneira de dona de casa, recebendo os que chegavam, obsequiando,<br />

providenciando água e cafezinhos... como observado<br />

pela equipe de jovens estudantes de sociologia da UFBA, na época.<br />

(PEREIRA; et al., 2002)<br />

Anos depois, “escoladas” na Associação, mas, também nos<br />

Grupos e Programas para a Terceira Idade desse movimentado fim<br />

de século (ver BRITTO DA MOTTA, 1999), vamos (re)encontrá-las<br />

bem mais ativas, numerosas e reivindicativas como participantes<br />

do Fórum Permanente em Defesa do Idoso.<br />

Criado em Salvador em 2004, objetivando articular a atuação<br />

de várias entidades envolvidas com a questão do envelhecimento,<br />

passa e ultrapassa a questão previdenciária em direção a horizonte<br />

mais amplo, o dos (vários) direitos dos idosos, estendendo-se<br />

78<br />

Gênero, mulheres e feminismos


à implementação do ainda recente Estatuto do Idoso, sua inspiração<br />

e estímulo. Pretendendo recobrir, em princípio, a abrangência<br />

de ações diferenciadas que informam as duas últimas décadas do<br />

século XX, o Fórum desemboca em uma politização do cotidiano<br />

que o Estatuto apenas inicia. O tempo dirá mais. (ver AZEVEDO,<br />

2007; 2010)<br />

Como estão as mulheres idosas<br />

Acompanhando a discussão sobre a invisibilidade e/ou a<br />

ideologização das mulheres idosas nos estudos e pesquisas tanto<br />

feministas como gerontológicas, exponho alguns resultados<br />

de pesquisas e análises na dimensão das Ciências Sociais que informam<br />

sobre sua situação atual. Algumas se referem a autores<br />

“clássicos” sobre a questão, como Myriam Lins de Barros, Guita<br />

Debert e Clarice Peixoto, outras introduzem autores de produção<br />

acadêmica recente, em recortes temáticos dos mais imediatos.<br />

O processo de envelhecimento é algo que as mulheres têm,<br />

evidentemente, em comum com os homens, porém muitas das<br />

vivências e os modos de realização deste ainda são bastante diferenciados<br />

segundo o gênero. As condições comuns a homens<br />

e mulheres, que sintetizam muito do que é a vida dos idosos no<br />

Brasil hoje, ainda se centram no fato de constituírem segmento<br />

populacional sem um lugar social e, por isso mesmo, objeto de<br />

preconceito e cerceamentos sociais que se expressam pelo fato de<br />

ainda permanecerem:<br />

• Alijados, cada vez mais prematuramente, do mercado de<br />

trabalho.<br />

• Sem papel social definido, ou em papéis ambíguos (seriam<br />

incômodos, mas também ajudam...), e sem gozarem de suficiente<br />

respeito, também na família.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 79


• Objetos de preconceito, especialmente censurados “pela<br />

idade”, e pelo que ousam ainda fazer, inclusive coibidos em<br />

sua sexualidade. Principalmente as mulheres.<br />

• Com atuação minoritária e segmentar na política formal, a<br />

participação representativa geralmente só ensejada por privilégios<br />

de classe ou manobras do familismo. Como eleitores,<br />

esquecidos nas plataformas e até, em princípio, alijados,<br />

porque dispensados da obrigação de votar (voto facultativo)<br />

aos 70 anos.<br />

• Se não legalmente, pelo menos, de fato, excluídos de procedimentos<br />

da vida econômica, já a partir dos 60 anos, como<br />

realizar compras a prazo de bens e mercadorias de mais alto<br />

custo, como casas e carros ou tomar empréstimos bancários.<br />

Exceção dos recentes e nefastos empréstimos consignados,<br />

frequentemente fraudulentos, que merecem denúncia e investigação<br />

à parte.<br />

• Como defesa psicológica, por não se reconhecerem na imagem<br />

social negativa da velhice que ainda predomina, sujeitos<br />

a uma autopercepção ilusória como não-velhos, ou velhos<br />

“diferentes” – mais saudáveis, mais dinâmicos, melhor de<br />

“cabeça” que os “outros”.<br />

Ao mesmo tempo, em um contexto social extraordinariamente<br />

dinâmico, estão sendo muitas, e rápidas, as mudanças, vivenciadas<br />

ou construídas, sobretudo pelas mulheres. Principalmente:<br />

• No âmbito da economia, no setor de produção, em contraposição<br />

à tendência de expulsão, os idosos estão começando<br />

a permanecer mais longamente ou, sobretudo, retornando,<br />

com mais frequência, depois da aposentadoria ao mercado<br />

de trabalho, em consultorias ou em atividades quase sempre<br />

de status inferior ao dos seus empregos anteriores – em<br />

variações, a depender de sua classe social e condição de gê-<br />

80<br />

Gênero, mulheres e feminismos


nero. (BRITTO DA MOTTA, 2001; PEIXOTO, 2004; SOUZA,<br />

2009)<br />

• No setor do consumo, constituindo-se em destacada fatia<br />

do mercado, principalmente, da indústria de lazer (via clubes<br />

e viagens “para a terceira idade”) e programas de atividades<br />

e ensino “para aprender a envelhecer” (BRITTO DA<br />

MOTTA, 1999), com “qualidade de vida”, como doutrina a<br />

Gerontologia.<br />

• No âmbito da sociabilidade, buscaram, principalmente as<br />

mulheres, novas formas de circulação extrafamília, o que é<br />

facilitado pelas várias modalidades desses referidos grupos<br />

“de convivência” ou programas e cursos “para a terceira<br />

idade”, oferecidos no mercado educacional e de lazer/cultural.<br />

No que, afinal, ampliam pelo menos a sociabilidade<br />

intrageracional, a família mantendo, entretanto, a centralidade<br />

afetiva e das trocas de apoios e serviços. (BRITTO DA<br />

MOTTA, 1998; 2004)<br />

• Mais que dependentes da família, firmam-se os idosos atuais,<br />

cada vez mais, como arrimos de família – ainda quando,<br />

paradoxalmente, percebendo parcos proventos e pensões –<br />

por disporem de rendimentos regulares em uma sociedade a<br />

cada hora mais marcada por uma reestruturação produtiva<br />

que leva a dificuldades de sobrevivência material e social.<br />

Quando ter uma casa, inclusive, é crucial para o possível<br />

abrigo de filhos e netos, desempregados ou descasados.<br />

(BRITTO DA MOTTA, 1998b; CAMARANO, 2003)<br />

• Estão construindo e vivenciando nova inserção na dimensão<br />

política, firmando renovada imagem de respeitabilidade<br />

pública geral, principalmente através do movimento de<br />

aposentados – desde a conhecida luta pelos 147% da Previdência.<br />

(SIMÕES, 1998; 2000; AZEVEDO, 2005)<br />

Gênero, mulheres e feminismos 81


• Terem se tornado objetos de destinação de políticas públicas,<br />

afinal. Entretanto, políticas durante longo tempo mais<br />

anunciadas do que realmente implementadas e, quando afinal<br />

executadas, o sendo quase sempre de forma pontual e<br />

com insuficiente informação à população. Ao mesmo tempo,<br />

ameaçados por uma política de seguridade social, especialmente<br />

a Previdência, que os expõe, porque crescentemente<br />

numerosos, como uma espécie de perigo público para a<br />

reprodução social, ao mesmo tempo em que os reduz, em<br />

maioria, quando aposentados, a condições de maior pobreza<br />

ou até de miserabilidade.<br />

A situação atual, de grandes mudanças em processo, vem<br />

acentuando as diferenças de comportamento e expectativas entre<br />

homens e mulheres, tanto na vivência ou projeção das situações<br />

comuns aos dois sexos, apontadas anteriormente, mas também,<br />

ou sobretudo, ensejando características diferenciais de condição<br />

ou atuação de gênero que podem ser temporárias, mas estão sendo,<br />

centralmente, das mulheres. E às vezes de forma tão marcante,<br />

esses efeitos das relações de gênero, que se sobrepõem, como<br />

venho registrando desde trabalhos anteriores, aos da própria<br />

condição de classe. Há, contudo, ainda algumas outras diferenças<br />

ou ênfases de gênero que moldam mais especificamente o novo<br />

perfil da idosa brasileira.<br />

Em primeiro lugar, a expressão demográfica. É sabido que as<br />

mulheres são mais numerosas que os homens, constituindo quase<br />

60% da população que envelhece; diferença que tende a se ampliar<br />

significativamente nas faixas etárias mais avançadas. É uma<br />

tendência mundial, peça essencial do fenômeno que se vem analisando<br />

como “feminização da velhice”. (BERQUÓ, 1996) A imagem<br />

social do idoso está realmente assumindo essa face feminina, apesar<br />

do contingente masculino presente no movimento dos aposentados<br />

ser marcante, pela determinação e repercussão das suas<br />

82<br />

Gênero, mulheres e feminismos


ações, ainda que ao mesmo tempo numericamente minoritário<br />

e de visibilidade pública intermitente. A imagem mais presente<br />

no cotidiano e fixada, inclusive, pela imprensa, vem sendo a dos<br />

alegres grupos “de terceira idade”, dedicados a uma sociabilidade<br />

programada e centrada no lazer e na cultura – que são predominantemente<br />

femininos.<br />

Esses não representam, entretanto, a totalidade do contingente<br />

de idosos que não estão nas associações de aposentados.<br />

Aliás, venho há tempos discutindo como o termo “terceira idade”,<br />

curiosamente cada vez mais aceito e difundido, certamente<br />

pelo seu conteúdo eufemístico, não recobre a totalidade de situações<br />

dos velhos, mas informa, sobretudo, acerca dos idosos<br />

“jovens”, sua porção feminina e, em grande parte, de camadas<br />

médias. (BRITTO DA MOTTA, 1996) Porque também existem os<br />

muito pobres e, em número crescente, os muito idosos, que, habitualmente<br />

não participam desses programas, mas de uma sociabilidade<br />

tradicional – a das datas familiares e religiosas e dos<br />

remanescentes antigos amigos. (BRITTO DA MOTTA, 2004) Estes<br />

só alcançam a mídia individualizadamente, como “fenômenos”,<br />

exceções, em especial quando atingem idades provectas, geralmente,<br />

centenários, sempre instados a revelar o “segredo” de sua<br />

lucidez e durabilidade. (BRITTO DA MOTTA, 2006)<br />

Mas, para ambos os segmentos de idosas, as “jovens” e as mais<br />

velhas, uma característica existente, raramente registrada – e<br />

de múltiplos significados − é a de serem mulheres sós. Mulheres<br />

que excedem, estatisticamente, os homens, ficando sem par estável,<br />

mas com o governo da própria vida. Os homens morrem<br />

mais cedo e, quando separados ou viúvos, recasam, preferencialmente<br />

com mulheres de gerações mais novas, de acordo com o<br />

conhecido padrão cultural brasileiro e latino-americano de atualização<br />

da juventude... das companheiras. Com isso, resta sempre<br />

uma significativa parcela de mulheres solteiras e, principalmen-<br />

Gênero, mulheres e feminismos 83


te, descasadas e viúvas, que terminam por assumir aquele posto<br />

tradicionalmente masculino, mas, crescentemente feminino, de<br />

chefes de família. E vivem, simplesmente, a solidão afetiva – ou,<br />

pelo menos, a condição de sós.<br />

Esse quadro de solitude, que se evidencia na própria vida cotidiana<br />

(quem não conhece muito maior número de viúvas, descasadas<br />

e solteiras idosas que homens nessas mesmas condições?)<br />

é confirmado nas pesquisas. (OLIVEIRA, 1996; BERQUÓ, 1996;<br />

BRITTO DA MOTTA, 1998)<br />

Entretanto, as pesquisas revelam também um ângulo surpreendente<br />

do sentimento dessas mulheres sem companheiros: a grande<br />

maioria declarou que, tida a oportunidade, não casaria de novo.<br />

(ver BRITTO DA MOTTA, 1999; 2004)<br />

— Casar eu não queria. Ia paquerar e deixar lá. Eu casar e botar<br />

um homem dentro de casa? Mais nunca! Eu ia passear<br />

muito, trabalhar − o sonho e a frustração da vida dela −, me<br />

vestir bem, porque é bonito uma mulher bem arrumada.<br />

(Sra. Altina, 72 anos)<br />

— Deus me livre! Não quero mais. Eu vejo o espelho dos outros.<br />

As pessoas estão viúvas e vivendo numa boa, aí casam<br />

de novo para arranjar problemas!<br />

(Sra. M. de Lourdes, 64 anos)<br />

— Eu não gostaria de casar de novo, para não ficar embaixo do<br />

pé do homem. Não me acostumo ninguém mais mandando<br />

em mim. Eu sozinha estou melhor.<br />

(Sra. M. Hermilina, 60 anos)<br />

Subentendido fica, então, que uma apreciada liberdade que<br />

quase todas proclamam (BRITTO DA MOTTA, 1998a) refere-se,<br />

no âmago, à libertação da histórica subordinação de gênero vivi-<br />

84<br />

Gênero, mulheres e feminismos


da individualmente (além de publicamente...) no interior de cada<br />

casa e casamento.<br />

Essa condição de só significa, paralelamente a uma possível<br />

e apreciável forma de afirmação pessoal, ou superação de desigualdade<br />

nas relações de gênero, ainda um indicador alternativo<br />

de probabilidade de empobrecimento. Porque enquanto a chefia<br />

masculina de domicílios figura, comumente, a existência de uma<br />

partilha de responsabilidades econômicas e/ou sociais (além das<br />

domésticas!) com outro adulto – a esposa – a chefia da família<br />

por uma mulher expressa, majoritariamente, a referida solidão<br />

geracional e afetiva – isto é, que o homem não está lá. O empobrecimento<br />

ou, pelo menos, a queda do nível econômico é a mais<br />

visível consequência. Tanto mais facilmente encontrável, quando<br />

as mulheres hoje idosas tiveram muito menos oportunidades educacionais<br />

e de participação – inclusive igualitária − no mercado de<br />

trabalho que os homens da sua geração e têm, portanto, rendimentos<br />

mais baixos ou mais escassos que eles. Por isso mesmo,<br />

as mulheres, principalmente das classes populares, têm que “se<br />

virar” em tarefas tradicionalmente femininas na produção doméstica<br />

ou/e fazer render, penosamente, o magro provento ou a<br />

pensão de viúva. Tanto mais quanto é cada vez mais comum alguma<br />

forma de dependência econômica, por parte de filhos e netos,<br />

inclusive adultos, dos pais idosos, como venho registrando.<br />

Morar sozinha pode ter, entretanto, um significado alternativo<br />

e mais satisfatório. Pode ser, mais que consequência inevitável<br />

de celibato, viuvez, descasamento indesejado ou morte dos filhos,<br />

também consequência de decisão própria, maneira de autoafirmação<br />

ou busca de tranquilidade e independência – uma característica<br />

nova das mulheres, inclusive das de mais idade.<br />

Márcia Macêdo (2008) realiza um recorte analítico intensamente<br />

atual da vivência de mulheres chefes de família, no qual,<br />

Gênero, mulheres e feminismos 85


a par das diferenciações segundo situação de classe, em sua possibilidade<br />

ou não de realização de escolhas, analisa como “novo<br />

objeto”, “aquisição histórica recente”, a mulher chefe de família<br />

de classe média. Onde cabem, e talvez com mais experiência<br />

e segurança, as mulheres idosas. Comparadas às que, em quase<br />

confidência, na pesquisa me declaravam “Agora chegou o tempo<br />

de pensar também em mim” (BRITTO DA MOTTA, 1999), quase<br />

dez anos depois, a dinâmica social lhes ensejou maior escolaridade,<br />

profissionalismo e segurança interna, para poderem falar,<br />

sempre com satisfação, em termos de “recomeçar a vida” e dar<br />

depoimentos como o de Maysa:<br />

Num certo sentido, depois que eu me separei minha situação<br />

melhorou, eu fiquei mais sem grana, porque tenho que assumir<br />

tudo sozinha, inclusive uma filha, mas eu estou tendo, como há<br />

muito tempo não tinha, minha vida de volta para mim. (Maysa,<br />

50 anos, economista). (MACÊDO, 2008, p. 222)<br />

Uma das razões fortes para o desejo de morar só das mulheres<br />

idosas com os filhos criados se refere à comum e pressionante<br />

tentativa de interferência, ou até ingerência, dos membros mais<br />

novos da família sobre a vida – atividades, saídas, uso do dinheiro,<br />

até vida sexual-afetiva – dos seus idosos, principalmente das<br />

mulheres. É também o registro de Diniz: “É curioso, também,<br />

como os familiares se acham no direito de intervir na vida das velhas,<br />

das mães, principalmente”. E relembra o desabafo revoltado<br />

da setentona Fermina de O amor no tempo do cólera, de Gabriel<br />

García Márquez: “Se nós, viúvas, temos alguma vantagem, é que<br />

já não nos resta ninguém que nos dê ordens” (1993, p. 13).<br />

Elvira Wagner (1992), em entrevista sobre pesquisa que coordenou<br />

com quase 300 idosos, em São Paulo, já revelava que 60,9%<br />

dos entrevistados (dos quais 77% eram mulheres), reconheciam<br />

que “a solidão, por vezes, é boa” e que 80% deles prefeririam<br />

morar em suas próprias casas se tivessem os meios para manter<br />

86<br />

Gênero, mulheres e feminismos


a independência. A pesquisa de Macêdo (2008) confirma isto, em<br />

dados recentes.<br />

Os meios sim, mas, também, a certeza de apoio, como recolhi<br />

em entrevistas. (BRITTO DA MOTTA, 2004) D. Eremita, por<br />

exemplo, aos 91 anos e morando com um filho casado, revela:<br />

“− Se eu tivesse saúde, eu morava sozinha. Eu ainda cozinho,<br />

nessa idade que você está vendo”. Enquanto D. Judite, apesar de<br />

mais saudável, em seus 93 anos, morando com o filho casado e as<br />

netas, não arrisca: “− Hoje não gostaria de morar sozinha, já estou<br />

muito velha para isto. Mas sempre gostei de ter minha casa;<br />

sinto muita falta disso”.<br />

Goldani (1993), além de ter sido das primeiras a assinalar, no<br />

Brasil, mudanças interessantes na estrutura e no relacionamento<br />

entre os membros da família atual, com a convivência de maior<br />

número de gerações e uma superposição de papéis na família e de<br />

situações de parentesco em cada indivíduo, identificou, por outro<br />

lado, também, um aumento crescente do número de idosos<br />

vivendo sós: de 8%, em 1980, para 10%, em 1989, desses, cerca<br />

de dois terços sendo mulheres. Os dados mais recentes divulgados<br />

pelo IBGE (Censo 2000) confirmam e acentuam isso. Assim é<br />

que os domicílios unipessoais de idosos, em 1991, representavam<br />

15,4% do total e, no Censo de 2000, 17,9%. Continuando a elevada<br />

proporção de mulheres – cerca de 67%, em 2000. Aguardemos<br />

para breve os do Censo 2010.<br />

Acompanha tudo isto, uma feição absolutamente atual e única<br />

das mulheres idosas: expressarem mais otimismo, alegria, dinamismo<br />

e forte afirmação (ou sentimento) de liberdade. Comparando,<br />

com vantagem, tanto o tempo atual da velhice com estágios<br />

anteriores de suas vidas, como a sua velhice com a das mulheres<br />

de gerações que as antecederam. Nesse sentido são os depoimentos<br />

de mulheres de classe média (BRITTO DA MOTTA, 1999):<br />

Gênero, mulheres e feminismos 87


— [...] Agora acabou aquilo da mulher de 50 anos ficar em<br />

casa fazendo crochê e tendo filhos. Pelo que eu vejo, a velhice<br />

vai ser de 100 anos.<br />

(Sra. Maria José, 65 anos)<br />

— Acho um barato! Bato a porta do apartamento, saio a hora<br />

que quero.<br />

(Sra. Fernanda, 68, viúva)<br />

— Não sei o que é solidão, porque tento ter uma vida social<br />

muito ativa. Eu posso me considerar hoje uma pessoa feliz.<br />

Não que eu não fosse feliz com meu marido. Mas a maneira<br />

que eu levo minha vida hoje é muito melhor.<br />

(Sra. Eleonora, 70 anos, viúva) 4<br />

Assim como o de mulheres das classes populares, de grupos de<br />

bairro (BRITTO DA MOTTA, 1999):<br />

— Acho que agora é o período mais feliz. Eu só queria uma<br />

pensão melhor [...].<br />

(Sra. Maria Lúcia, 64, viúva)<br />

— Na minha velhice é que estou vivendo, porque na juventude<br />

eu não conseguia quase nada, não tinha liberdade. Agora,<br />

não, sou dona do meu próprio nariz, faço o que quero e<br />

o que gosto. Ninguém me impede de fazer nada [...].<br />

(Sra. Francisca, 66, casada)<br />

Venho, há algum tempo, analisando essa percepção das mulheres,<br />

que denominei liberdade de gênero, e resumiria aqui como<br />

realmente correspondendo ao sentimento de alívio pela cessação<br />

de antigos controles e obrigações societários que pesavam sobre<br />

a mulher quando jovem, e até madura, etapas em que a sua definição<br />

social se dava, antes de tudo, como reprodutora – de novas<br />

4 Folha de São Paulo, 22 de junho, 1997.<br />

88<br />

Gênero, mulheres e feminismos


vidas pelo casamento, da domesticidade e, depois e sempre, da<br />

vida privada. (BRITTO DA MOTTA, 1998)<br />

Cumprido o ciclo básico da vida familial, aqueles controles<br />

tornados desnecessários – porque internalizados ou superados – a<br />

vida, na velhice, pode agora se tornar mais leve, mais livre, nesta<br />

sociedade pós-revolução feminista, em rápida mudança de valores<br />

e costumes. Necessário é que os vários campos, científicos e<br />

políticos, percebam isso.<br />

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92<br />

Gênero, mulheres e feminismos


SEXO, AFETO E SOLTEIRICE<br />

intersecções de gênero, raça e geração<br />

entre mulheres de classe média<br />

Márcia Tavares<br />

Nas próximas linhas, debruço-me sobre os relatos de duas<br />

mulheres solteiras, oriundas das classes médias soteropolitanas,<br />

uma com 35 anos e outra com 67 anos, de forma a identificar especificidades<br />

e mudanças em suas vivências sexuais. Mais precisamente,<br />

procuro realçar como as molduras de sociabilidade, sob<br />

a influência do gênero, grupo étnico e geração a que pertencem,<br />

contribuem para definir suas trajetórias e escolhas no campo afetivo-sexual.<br />

O trabalho foi dividido em três etapas: na primeira, traço um<br />

esboço da solteirice feminina a partir de comentários extraídos<br />

de livros, artigos científicos e revistas comerciais que compõem o<br />

aporte teórico deste trabalho. Na segunda etapa, faço observações<br />

sobre o percurso metodológico adotado para a realização da pesquisa<br />

empírica. Por fim, na terceira, tento desvendar a experiência<br />

íntima das mulheres investigadas, de forma a descobrir como<br />

o gênero, a classe social, o grupo étnico e a geração a que perten-


cem interferem na elaboração de suas aspirações amorosas e em<br />

suas práticas sexuais na condição de solteiras. Nas considerações<br />

finais, procuro contrastar rupturas e continuidades relativas às<br />

percepções e sentimentos, assim como os limites e possibilidades,<br />

no campo afetivo-sexual, das mulheres que nunca contraíram<br />

matrimônio.<br />

À procura de vestígios da solteirice no Brasil:<br />

o que dizem os livros e revistas<br />

No imaginário social das primeiras décadas do século XX, o<br />

não-casamento e a não formação de uma família eram considerados<br />

sintomas emblemáticos de doença ou desvio que, por<br />

conseguinte, deveriam ser tratados, pois ameaçavam o modelo<br />

normativo vigente. Particularmente no caso das mulheres, os<br />

romances naturalistas publicados no período em questão reiteravam,<br />

através das personagens femininas, o discurso médico de<br />

então segundo o qual as moças solteiras que chegavam à idade de<br />

25 anos sem se casar tinham maior propensão a desenvolver crises<br />

nervosas e se tornarem “histéricas”. (ENGEL, 1989)<br />

Da mesma forma, a opção feita por mulheres de se dedicarem<br />

a uma carreira profissional indicava um comportamento desviante,<br />

pois estas negavam suas “inclinações naturais” – o matrimônio<br />

e a maternidade – e superestimavam seu intelecto, o orgulho, a<br />

vaidade e o celibato. Daí porque eram internadas em instituições<br />

psiquiátricas como loucas, submetidas a práticas terapêuticas e à<br />

disciplina asilar, a fim de recuperarem o juízo e, finalmente, exercerem<br />

o seu papel “natural” de mãe e esposa. (CUNHA, 1989)<br />

Ao estudar revistas comerciais publicadas entre 1945 e 1964,<br />

Carla Bassanezi (1996) constata que a felicidade feminina permanecia<br />

restrita ao casamento, à formação de uma família e à<br />

dedicação ao lar, ou seja, as revistas da época defendiam como<br />

94<br />

Gênero, mulheres e feminismos


“inclinação natural” da mulher e, portanto, única fonte de realização,<br />

o matrimônio, a maternidade e os afazeres domésticos. Nos<br />

anos de 1940 e 1950, o discurso moralizante das publicações encerra<br />

um caráter pedagógico, na medida em que ensina as leitoras<br />

a seguirem o “caminho certo”, o casamento, ao qual permanece<br />

confinado o exercício da sexualidade feminina com fins eminentemente<br />

procriativos.<br />

Conforme as revistas publicadas nas décadas de 1940 e 1950,<br />

o celibato era considerado uma ameaça que pairava sobre a vida<br />

das mulheres, principalmente sobre aquelas com mais de 25 anos,<br />

idade que anunciava o declínio das chances de casamento e, consequentemente,<br />

a probabilidade de uma vida futura desprovida<br />

de sentido, cuja tristeza e solidão seriam amenizadas pelo apego a<br />

um animal de estimação, o devotamento aos sobrinhos e afilhados<br />

ou a dedicação ao trabalho. O celibato, escolhido ou forçado, isto<br />

é, o não-casamento confirmaria o fracasso feminino, pois, arranjar<br />

um marido era a maior conquista de uma mulher.<br />

Acrescenta Bassanezi (1996) que, nas décadas de 1950 e 1960,<br />

a mulher com mais de 25 anos sem um pretendente a marido era<br />

rotulada como “encalhada”, “solteirona”, “aquela que ficou para<br />

titia”, o que a tornava alvo de zombaria das pessoas, além de causar<br />

embaraço aos familiares, pois era considerada “incompleta”,<br />

ou seja, não conseguira cumprir o destino natural de esposa-mãe,<br />

o que acarretava um sentimento de culpa e de inadequação.<br />

A partir da década de 1960, um novo cenário se revela para as<br />

mulheres das classes médias urbanas impelido por fatores diversos:<br />

a crescente inserção nas universidades e no mercado de trabalho;<br />

a ampliação de seu espaço político; o surgimento de novos<br />

métodos contraceptivos que favorecem a liberação sexual e eliminam<br />

o risco de uma gravidez indesejada; e a difusão da Psicanálise,<br />

provocando questionamentos acerca dos papéis tradicionais de<br />

esposa-mãe e impulsionando a busca de autonomia e realização<br />

Gênero, mulheres e feminismos 95


pessoal, independência emocional e financeira, liberdade e igualdade<br />

na relação entre os sexos. Por fim, os movimentos emancipatórios<br />

feministas, ao defenderem direitos iguais entre os sexos,<br />

desestabilizam os padrões relacionais e os papéis sexuais, incidindo<br />

no processo de construção identitária dessas mulheres.<br />

Entretanto, as conquistas femininas não conseguem revogar<br />

os modelos tradicionais: a cultura ainda define como ideal feminino<br />

de felicidade o matrimônio e a formação de uma família. Por<br />

conseguinte, a mulher que subverte a ordem, que tem outras ambições<br />

e, por exemplo, supervaloriza a realização profissional e a<br />

independência financeira, parece fadada a permanecer solteira e a<br />

se tornar prisioneira da solidão, caso contrário, deve ocultar suas<br />

insatisfações, diminuir as expectativas relacionais, ou seja, ser menos<br />

exigente em relação aos parceiros, pois somente assim poderá<br />

ter a chance de encontrar “um homem para chamar de seu”.<br />

Até mesmo feministas como Branca Moreira Dias e Rose Marie<br />

Muraro ponderam que a mulher permanece sozinha em função de<br />

tecer expectativas irreais acerca do relacionamento amoroso e por<br />

ser exigente em relação ao parceiro elegível, pois o que não falta<br />

são homens disponíveis. Muraro acrescenta que a solidão feminina<br />

tem sido um problema, principalmente para as mulheres de<br />

classe média e alta, já que elas se recusam a casar com alguém de<br />

classe inferior e, por isso, acabam ficando sós; mas, aconselha, há<br />

solução: “Vai arrumar um homem de outra classe social que você<br />

encontra dez”. (GOLDENBERG; TOSCANO, 1992, p. 85)<br />

Tal argumento é também utilizado por revistas comerciais<br />

dirigidas ao público feminino, que procuram orientar a mulher<br />

acerca de estratégias e truques para driblar a solidão enquanto não<br />

encontra sua alma gêmea; mapeiam espaços de sociabilidade ou<br />

capitais onde há maior número de homens disponíveis, de acordo<br />

com o perfil idealizado por cada mulher, além de indicarem regras<br />

de comportamento para arranjar um namorado, sem se esquece-<br />

96<br />

Gênero, mulheres e feminismos


em de sinalizar para os riscos e armadilhas a que se expõem as<br />

mulheres acima de quarenta anos, uma vez que a diminuição das<br />

chances no mercado matrimonial acentua sua carência afetiva.<br />

Algumas reportagens chamam a atenção para o crescimento<br />

do número de mulheres que escolhem permanecer solteiras, enquanto<br />

outras destacam que estas podem ser felizes mesmo sem<br />

um par, mas esse tipo de artigo ainda é exceção. De modo geral,<br />

as revistas defendem que tanto o investimento das solteiras neoliberadas<br />

na carreira profissional como o consumo em shoppings<br />

centers não passam de um lenitivo contra a solidão, enquanto não<br />

estabelecem um relacionamento amoroso estável. (GONÇALVES,<br />

2007) Logo, mesmo priorizando a carreira, as mulheres por volta<br />

dos 30 anos, sob a influência de amigas casadas ou em vias de se<br />

casar, se sentem inquietas, ansiosas e projetam fantasias em torno<br />

do casamento, ou seja, as solteiras sem par desenvolvem uma sensação<br />

de “incômodo social”, por serem diferentes das demais mulheres<br />

do seu círculo de convivência. (ZAIDAN; CHAVES, 2003)<br />

Observa-se que, apesar das profundas transformações sociais<br />

das últimas décadas, a mulher sem parceiro ainda é concebida<br />

como problemática, incompleta e, ainda, ao que parece, o fato de<br />

conferir prioridade a um projeto profissional pode sugerir egoísmo,<br />

alguma espécie de culto narcísico ou uma compensação para<br />

a ausência de vida afetiva. Além disso, reafirma-se a pretensa vocação<br />

natural da mulher para o casamento e a maternidade, bem<br />

como a prerrogativa masculina no jogo da sedução; assim, a mulher<br />

permanece como objeto e não como sujeito do desejo, o homem<br />

ainda escolhe e ela, se quiser ser escolhida, deve ignorar suas<br />

expectativas pessoais/relacionais, ou seja, abdicar do poder de fazer<br />

suas próprias escolhas. Em compensação, ganha como prêmio<br />

“um cobertor de orelha fixo” (LIMINHA; DA MATA, 2004),<br />

mesmo que, para isso, tenha de chamar o sapo de príncipe, como<br />

recomendam os versos da canção popular.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 97


Percurso metodológico<br />

Este artigo condensa uma das discussões que desenvolvo em<br />

minha tese de doutorado, intitulada “Os novos tempos e vivências<br />

da ‘solteirice’ em compasso de gênero: ser solteira/solteiro<br />

em Aracaju e Salvador”, cuja amostra foi composta por treze<br />

homens e treze mulheres que nunca se casaram ou conviveram<br />

maritalmente com alguém, oriundos(as) das classes médias e residentes<br />

nas respectivas capitais. Aqui, detenho-me apenas nos<br />

depoimentos de duas mulheres solteiras, com idades de 35 e 67<br />

anos e que moram em Salvador. Privilegiei os relatos dessas mulheres<br />

em virtude da diferença etária/geracional, mas, também,<br />

por pertencerem a grupos étnicos distintos.<br />

Vale destacar que, diferentemente de outros sujeitos da pesquisa,<br />

essas duas mulheres não criaram obstáculos tampouco<br />

demonstraram inibição e/ou resistência em conceder seus depoimentos.<br />

Ao contrário, mostraram-se acessíveis e receptivas, apesar<br />

de não me conhecerem, uma vez que tinham sido indicadas<br />

por uma amiga em comum. A mais jovem, inclusive, ao ser informada<br />

sobre o tema da pesquisa, espontaneamente, se ofereceu<br />

para prestar seu depoimento.<br />

Para a coleta de dados, optei por ouvir suas histórias de vida,<br />

procurando interferir o mínimo possível em seus relatos, manifestando-me<br />

apenas para responder a essa ou aquela pergunta que<br />

me faziam, ora para saber se estavam correspondendo à minha<br />

expectativa, ora para esclarecer alguma dúvida ou, ainda, abordar<br />

sucintamente minha própria trajetória de vida, diante da curiosidade<br />

das informantes. Como técnica complementar, organizei um<br />

diário de campo no qual registrei as circunstâncias e peculiaridades<br />

de cada entrevista.<br />

Finalmente, cabe destacar que a leitura e a interpretação dos<br />

dados aqui contidos se encontram referendadas em artigos cien-<br />

98<br />

Gênero, mulheres e feminismos


tíficos, livros e reportagens publicadas em revistas comerciais que<br />

garimpei ao longo da elaboração da tese, cujas menções à temática<br />

me ajudaram a esboçar um mosaico da solteirice, de que me utilizo<br />

para retomar os depoimentos de Eva e Indira, nomes fictícios<br />

que adotarei, de agora em diante, para dialogar com as minhas<br />

informantes.<br />

O corpo em movimento<br />

Os indivíduos são sugestionados pelo contexto e pela temporalidade<br />

social e histórica, que produzem deslocamentos na dinâmica<br />

familiar, engendram oposições e complementaridades na<br />

trajetória das gerações cujo legado familiar pode ser reelaborado<br />

e/ou reinterpretado, de forma a compor uma simultaneidade entre<br />

os referenciais identitários que os classificam como mulheres e<br />

homens, membros das classes médias e a restrição ou pluralidade<br />

de escolhas presentes na tessitura social. Tais indicativos também<br />

sugerem que as tramas e coreografias da solteirice são diversas no<br />

tocante à experiência pessoal e à vida afetiva e sexual, mesmo entre<br />

grupos contíguos.<br />

Com efeito, as mulheres nascidas entre 1940 e 1950, 1 como é<br />

o caso de Indira (67 anos), foram educadas para cultivar o recato<br />

e a virtude; até mesmo o flerte deveria ser uma etapa inicial<br />

para alcançar o matrimônio, caso contrário indicaria ausência de<br />

pudor e inconsequência. Então, o corpo da mulher era mantido<br />

sob forte vigilância e qualquer deslize ou mal-entendido poderia<br />

comprometer irrevogavelmente a reputação da jovem casadoira,<br />

que passava a ser classificada pelo seu reverso, “garota de programa”,<br />

aquela com quem os rapazes não se casam, o que fazia com<br />

que as moças tentassem negar, sublimar seus desejos sexuais até<br />

1 Ver, por exemplo, Carla Bassanezi (1996; 2000); Marlene Fáveri (1999).<br />

Gênero, mulheres e feminismos 99


o casamento. Por isso, as moças tramavam estratégias para burlar<br />

a censura familiar e aplacar os apelos do corpo:<br />

— Vinte, vinte e muitos [...] eu sentia os desejos do meu corpo<br />

e eu não queria me casar; isso criava uma confusão dentro<br />

de mim muito grande, até que eu conheci alguns homens,<br />

eles eram argentinos [...]. Então, eu pensei que eu ia deixar<br />

de ser virgem, não ter aquela coisa de se guardar para o casamento.<br />

Aí, quando eu decidi, fui com uma amiga comprar<br />

um anticoncepcional – a amiga que pediu, porque eu tinha<br />

a impressão que ia aparecer um letreiro na minha cara. [...]<br />

Eu, praticamente, não o conhecia; a gente tinha se conhecido<br />

no Rio e eu vim embora para cá; depois, eu viajei para<br />

a Argentina para me encontrar com ele. Aí, entre a repressão<br />

toda que estava dentro e o meu hímen, que era bastante<br />

espesso, na primeira vez, não chegou a romper porque ele<br />

disse que era uma coisa muito prazenteira e eu ia ficar com<br />

uma impressão horrível. Então, quando eu vim, antes de<br />

voltar, eu fui a minha ginecologista e pedi que ela lancetasse<br />

o meu hímen para eu não sentir; expliquei a situação e<br />

foi isso que aconteceu.<br />

(Indira)<br />

Em uma época em que o casamento é considerado o destino<br />

natural da mulher, o exercício da sexualidade feminina está condicionado<br />

ao matrimônio, ou seja, as moças aprendem a reprimir<br />

sua sexualidade, a preservar a pureza e a manter a ignorância sexual,<br />

caso contrário, arriscam-se a ficar mal faladas e/ou a serem<br />

consideradas levianas, pelos futuros pretendentes, o que elimina<br />

as chances de conquistar um bom partido. Para aquelas com<br />

“vinte e muitos” anos, as oportunidades de se casar são remotas e,<br />

caso não consigam sublimar o desejo, se torna cada vez mais difícil<br />

manter a continência sexual.<br />

100<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Quando a mulher ousa desafiar a ordem moral instituída, preferindo<br />

continuar solteira e exercer uma atividade remunerada,<br />

a vigilância social e familiar sobre o corpo feminino se intensifica,<br />

pois se supõe que o clamor do sexo a transformará em ameaça<br />

para homens casados e esse controle sobre seu corpo impedirá que<br />

perca a virtude sexual e se torne uma concubina, prostituta ou<br />

mantenha relacionamentos fortuitos. 2<br />

Para Indira, portanto, a decisão de perder a virgindade veio<br />

acompanhada de culpa, de medo de ser descoberta e condenada, o<br />

que requereu o uso de estratagemas: viajar para o Rio de Janeiro, 3<br />

um centro urbano considerado mais avançado onde não corria<br />

o risco de ser flagrada ao se desviar do caminho traçado para as<br />

moças de família, conhecer homens de outra nacionalidade, pedir<br />

ajuda a uma amiga para comprar, em seu lugar, o anticoncepcional<br />

e, dessa forma, permanecer incógnita.<br />

Além disso, Indira precisou lidar com a própria censura, isto é,<br />

a repressão internalizada, o que exige medidas extremas, antecipa<br />

a ansiedade e o mal-estar físico sentidos na primeira relação sexual<br />

com o parceiro: rompe o hímen por meio de uma incisão feita<br />

pela ginecologista; desloca-se para outro País, onde os olhares<br />

censores não podem alcançá-la; e, finalmente, opta por manter<br />

distância geográfica dos homens com quem mantém relacionamentos<br />

amorosos, o que resguarda a sua imagem, isto é, camufla<br />

a existência de uma vida sexual.<br />

Esse comportamento persiste ao longo da vida adulta, uma<br />

vez que Indira rejeita o destino reservado para as mulheres de sua<br />

família – o casamento, a maternidade e a maternagem –, principalmente,<br />

porque isso implicaria em reprisar o papel submisso,<br />

a domesticidade e a resignação diante da dominação masculina<br />

2 Idem.<br />

3 Ver, por exemplo, Maria Luiza Heilborn, para quem o Rio de Janeiro, no imaginário social, é<br />

representado como um “cenário propiciador da sexualidade e da sedução” (1999, p. 99).<br />

Gênero, mulheres e feminismos 101


calcados no ideário judaico-cristão e referendados pelo grupo<br />

familiar.<br />

Eva, 35 anos, ao contrário de Indira, teve uma educação mais<br />

liberal e sua primeira experiência sexual ocorreu com um namorado,<br />

sem culpas ou medos. Afinal, sua geração é herdeira daquela<br />

que desbravou os caminhos da revolução sexual, isto é, embora a<br />

iniciação sexual seja também concebida por Eva como o primeiro<br />

momento de experimentação da sexualidade e a descoberta do<br />

corpo, sua narrativa aponta um novo padrão de comportamento<br />

no tocante à perda da virgindade. As profundas mudanças em relação<br />

à sexualidade ocorridas nas duas últimas décadas têm provocado<br />

uma espécie de inversão do tabu da virgindade, ou seja,<br />

atualmente, o fato de jovens com mais de 19 anos permanecerem<br />

virgens causa estranhamento; chega-se até a cogitar que tenham<br />

algum problema psicológico. (JABLONSKI apud DIEHL, 2002)<br />

Nesse sentido, as mulheres nascidas nos anos 1970 classificam<br />

como “tardia” 4 a primeira experiência íntima, caso aconteça<br />

após os 19 anos. Vale destacar, também, que a experimentação da<br />

sexualidade feminina deixa de estar subordinada ao casamento,<br />

assim como não se restringe à função procriativa, na medida em<br />

que passa a ser exercitada de forma recreativa, isto é, casais de namorados<br />

e/ou amigos iniciam, juntos, a aprendizagem do prazer<br />

sexual que é permeada por mais afeto e intimidade entre os pares.<br />

Mas, será que o pertencimento a diferentes faixas etárias e grupos<br />

étnicos trama enredos distintos para as vivências sexuais de Indira<br />

4 Ver, por exemplo, Maria Luiza Heilborn (2005) na Pesquisa Gravad, que constata que moças em<br />

união precoce, residentes em Porto Alegre (RS), Rio de Janeiro (RJ) e Salvador (BA), começam<br />

a vida sexual antes das solteiras e classificam como tardia a iniciação sexual das mulheres<br />

quando acontece depois dos 18 anos. Ver, também: Michel Bozon (2005) que, ao refletir sobre<br />

as novas normas às quais se encontra condicionada a experimentação da sexualidade no Brasil<br />

e na América Latina, identifica que, em nosso país, houve um decréscimo de mais de dois anos<br />

na idade considerada tardia de iniciação sexual das mulheres, de 1950 (20,5 anos) para 1975;<br />

e Mirian Goldenberg que, ao investigar as representações de gênero e discurso sobre o valor<br />

atribuído à sexualidade e ao uso do corpo entre jovens das classes médias cariocas, constata<br />

que “as próprias mulheres com mais de 20 anos que não perderam a virgindade parecem se<br />

perceber como desviantes em termos de comportamento sexual” (2005, p. 55).<br />

102<br />

Gênero, mulheres e feminismos


e Eva? Será que tanto uma como outra, na busca por independência<br />

e autonomia, consegue desfrutar o desejo e o prazer sexual,<br />

sem condicioná-lo à existência do sentimento amoroso?<br />

Declara o poeta que homens e mulheres se tornam parceiros<br />

sexuais efêmeros ou temporários, sem a obrigatoriedade do sentimento<br />

amoroso e, tal qual equilibristas em cima do muro tecem o<br />

encontro sem as amarras da romanticidade e possessividade, baseados,<br />

desta feita, na combinação entre sexo e amizade. A partir<br />

das narrativas de Indira e Eva, transformo sua afirmativa em indagação:<br />

Então, “tá combinado”: 5 é tudo somente<br />

sexo e amizade?<br />

Os versos da canção popular anunciam um pacto entre os pares<br />

que se formam descompromissadamente, apenas para aplacar<br />

a lacuna afetiva de um e de outro. Desprovidos de ilusão, ambos<br />

ensaiam o bailado erótico sob os acordes da ternura e da aventura,<br />

resguardados na certeza de se saberem sós, sem estarem sós,<br />

enquanto o amor não os surpreende. Os relatos de Indira e Eva,<br />

entretanto, revelam uma nota discordante nessa melodia e nos<br />

impelem a outras ilações.<br />

Com a maturidade, os amores e paixões de Indira se tornam<br />

raros e ela se ressente quando, aos cinquenta anos, os homens já<br />

não lançam um olhar cobiçoso, que admira, manda uma mensagem<br />

falada de que você é desejável, o que afeta sua autoestima<br />

e gera depressão, mas não esmorece o desejo, levando-a a confrontar<br />

fantasmagorias e buscar alternativas para saciar o desejo<br />

incontido:<br />

5 Refiro-me ao título da canção popular de Peninha, intitulada “Tá combinado”, gravada<br />

por Caetano Veloso. Disponível em: .<br />

Gênero, mulheres e feminismos 103


— O desejo eu resolvo com masturbação [...] não é que seja<br />

bom, mas é a solução que encontro [...] eu acho que fico<br />

com vergonha de estar com desejo e procurar alguém. Durante<br />

muito tempo, fiquei com medo de envelhecer e ser<br />

uma pessoa ridícula [...] se for por atração física, eu iria<br />

para trás, um homem mais jovem. Só que sempre penso no<br />

problema do homem mais jovem: é como que, um pouco,<br />

a mulher mais velha... não ser uma coisa honesta, ser uma<br />

coisa mais utilitária. [...] Tive uma experiência pequena<br />

com outro argentino [...] quarenta e poucos anos; ele escreveu<br />

um e-mail dizendo que se eu pagasse a passagem ele<br />

viria, sabe a primeira coisa? ‘– Ah! Eu pagar a passagem?’.<br />

Aí conversando com uma amiga minha, ela me diz assim:<br />

‘– Porque você não arrisca? Se você puder pagar, o que é<br />

que tem?’. Então, eu paguei, ele veio e, mal estava comigo,<br />

já foi procurar uma garota dez ou quinze anos mais jovem<br />

do que ele.<br />

(Indira)<br />

As meninas assimilam, durante o processo de educação socializadora,<br />

as primeiras noções sobre o que é ser mulher, desde os<br />

comportamentos – formas de falar, andar e sentar – à aprendizagem<br />

de cuidados com o corpo para se fazerem femininas e corresponderem<br />

aos padrões estéticos vigentes. Para as moças, a beleza<br />

e juventude consistem em moeda de troca que lhes assegura o ingresso<br />

no mercado matrimonial e/ou em predicados de que se valem<br />

para atrair os rapazes. – Quando eu era jovem e entrava nos<br />

lugares, os olhares masculinos se dirigiam para mim – lembra<br />

Indira.<br />

Todavia, a beleza e a juventude têm prazo de validade e, ao<br />

completar cinquenta anos, a mulher é confrontada, segundo Indira,<br />

com a mudança hormonal, que indica a proximidade da<br />

cessação de sua capacidade reprodutora e o início do processo<br />

104<br />

Gênero, mulheres e feminismos


de envelhecimento, de declínio da beleza física, o que gera um<br />

problema cultural, pois, na sociedade brasileira contemporânea,<br />

predomina uma cultura baseada na eternização da juventude. De<br />

fato, salienta Brownmiller, as cobranças sociais em torno da aparência<br />

jovem são gendradas, ou seja, “a mulher com aparência<br />

envelhecida tem menos ‘capital simbólico’ no mercado afetivo/<br />

sexual do que o homem em semelhantes circunstâncias”. (apud<br />

SARDENBERG, 2002, p. 64)<br />

Nesse sentido, afirma Indira, incomoda muito, porque a chamada<br />

meia-idade não só exclui quem deseja se casar do mercado<br />

matrimonial como também se torna um impeditivo para a vivência<br />

afetivo-sexual de mulheres como ela, que optaram por permanecer<br />

solteiras: − Aos cinquenta anos, eu notei que os homens<br />

não olham mais. A mulher deixa de ser desejável, porque não<br />

mais se enquadra nos modelos socialmente erigidos para a estética<br />

feminina e, por isso, a perspectiva do envelhecimento a assombra<br />

e o medo e a vergonha de se expor ao ridículo e à censura social<br />

tolhem a expressão do desejo.<br />

Além disso, o avanço da idade não impede que o homem conquiste<br />

parceiras mais novas, pois, em nossa sociedade, os valores<br />

patriarcais ainda determinam como prerrogativa masculina a<br />

iniciativa no jogo erótico, em que o homem escolhe as mulheres<br />

enquanto permanecem atraentes. Daí porque, para a mulher mais<br />

velha que se sente atraída por homens mais jovens, a possibilidade<br />

de um romance, mesmo efêmero, reafirma a legitimidade social<br />

atribuída ao homem e negada à mulher como sujeito do desejo.<br />

Indira, mesmo consciente da ausência de afetividade no relacionamento,<br />

não consegue proteger sua autoestima e amor próprio,<br />

ao constatar que o parceiro mais jovem não a enxerga sequer<br />

como objeto de prazer, pois é reduzida a um corpo que o amante<br />

usa e descarta quando perde a utilidade. Em outras palavras, Indira<br />

não concebe o sexo dissociado da afetividade, ou seja, o prazer<br />

Gênero, mulheres e feminismos 105


mútuo e a diversão descompromissada e casual não lhe bastam e,<br />

se já não consegue despertar a cobiça e o desejo de homens mais<br />

jovens, adota como solução para aplacar o desejo sexual a masturbação,<br />

pois as chances de encontrar um parceiro se tornam cada<br />

vez mais remotas.<br />

Para as mulheres solteiras como Eva, na faixa dos 30 anos, uma<br />

das soluções encontradas é se relacionar com homens casados, 6<br />

em determinados momentos de fragilidade, quando necessitam<br />

de uma atenção diferenciada — ...ele estava naquele momento<br />

no lugar certo...; ou seja, pode ser um homem solteiro ou casado,<br />

desde que capaz de suprir sua lacuna afetiva. Em outros termos,<br />

o interlúdio começa e termina sem conflitos ou cobranças e, Eva<br />

segue adiante: — Eu não me vi, não me vejo... não é passado, é<br />

presente... eu não me vejo uma eterna amante. Tapou um buraco<br />

na minha vida, mas acabou... enquanto não surgem outros<br />

vazios. Entretanto, esclarece:<br />

— Uma amiga disse: ‘— O problema não é subir nas paredes, é<br />

descer’, porque quando você está lá em cima você fica escolhendo<br />

tudo; eu ainda estou. [...] E quando você desce,<br />

você pega qualquer coisa, porque você está à espera [...] e<br />

eu não me vejo pegando qualquer um; aí, algumas amigas<br />

dizem que por isso eu estou só [...] mas não pinto... Não é<br />

isso [...] eu não vou beijar uma pessoa sem querer, eu não<br />

vou com uma pessoa para a cama sem querer; acabou-se o<br />

tempo, quem quer fazer, até respeito, mas não é para mim.<br />

Então, entre ficar sozinha, tomar um banho frio, ligar para<br />

as amigas, chorar e pegar um filme numa locadora e ver,<br />

colocar agora a cara nos estudos, como eu estou fazendo,<br />

eu vou fazer isso... do que ir para a cama com uma pessoa<br />

que eu não queira, do que estar com uma pessoa que não<br />

6 Ver, por exemplo, Elza Berquó (2006); Mirian Goldenberg (2006).<br />

106<br />

Gênero, mulheres e feminismos


me respeite; pelo menos esse é o meu momento. Não sei se<br />

daqui a dez anos...<br />

(Eva)<br />

Segundo Eva, acabou-se o tempo em que a representatividade<br />

e visibilidade social feminina eram alcançadas através de um<br />

homem, que lhes proporcionava segurança e respeitabilidade, ou<br />

seja, em que a mulher, resignada e submissa, tinha como senhor<br />

do seu destino o homem – pai, marido... O ingresso das mulheres<br />

nas universidades, sua crescente participação no mercado de<br />

trabalho e o investimento na profissão bem como a conquista de<br />

maior liberdade sexual têm proporcionado maior autonomia e independência<br />

feminina, no âmbito emocional e financeiro. Em outras<br />

palavras, as mulheres se tornam protagonistas de sua história<br />

e fazem suas próprias escolhas, na medida em que descortinam<br />

possibilidades plurais de autorrealização. 7<br />

Nesse sentido, a mulher independente economicamente se<br />

torna mais exigente e elabora novos padrões de elegibilidade do<br />

parceiro, que deve ser alguém com quem tenha afinidade, no<br />

tocante a visões de mundo e projetos de vida, compatibilidade<br />

intelectual e no gosto, ou seja, seu desejo é seletivo, sua escolha<br />

é personalizada e discriminante (LIPOVETSKY, 2000), pois<br />

não sai pegando qualquer um; para ela, é melhor estar só do que<br />

mal-acompanhada. Contudo, isso não significa que Eva não seja<br />

advertida e/ou censurada, inclusive por outras mulheres, por<br />

exercer o direito de escolha: sua exigência em relação ao perfil dos<br />

parceiros é considerada uma insensatez, que provoca muito mais<br />

desencontros do que encontros. Em resumo, a mulher mais jovem<br />

está sozinha porque quer, uma vez que conhece a fórmula para<br />

driblar a incompatibilidade: fazer-se mais condescendente e diminuir<br />

as expectativas relacionais.<br />

7 Ver, por exemplo, Mirian Goldenberg e Moema Toscano (1992); Goldenberg (2005).<br />

Gênero, mulheres e feminismos 107


Para Eva, que se recusa a baixar as expectativas enquanto não<br />

surge uma pessoa interessante, o desejo sexual é aplacado através<br />

da masturbação, pois você pode se proporcionar prazer; recorre,<br />

sem acanhamento, àquela listinha dos ex, com os quais elimina a<br />

disjunção entre desejo e afeto; inventa diferentes formas de sublimação:<br />

toma um banho frio, conversa com amigas, assiste a um<br />

filme, devora um pote de chocolate ou investe na expansão profissional.<br />

Pelo menos, no momento, essa é a sua posição; mas ela<br />

não deixa de se questionar, ou seja, ela não tem certeza se, daqui a<br />

dez anos, quando estiver mais velha e as chances no mercado afetivo<br />

forem remotas, não seguirá os conselhos das amigas e tentará<br />

ser menos exigente na escolha dos parceiros. Todavia, com base<br />

em sua própria experiência, acrescenta que a mulher afrodescendente<br />

ainda enfrenta outra barreira no mercado amoroso – a cor<br />

da pele. Segundo afirma:<br />

— [...] mesmo em Salvador, a preferência dos homens negros<br />

por mulheres brancas, isso é fato... e quantas mulheres negras<br />

interessantes também estão sozinhas; então, a questão<br />

racial passa, porque passa pela autoestima, porque passa<br />

pela identificação, identificar o negro ou uma negra bonita...<br />

eu tenho, assim, eu tenho amigos negros casados com<br />

negras e também respeito o negro que queira casar com a<br />

branca ou a negra que queira casar com o branco; as emoções<br />

inter-raciais, se é por opção, ótimo, mas, infelizmente,<br />

quem não se trabalha isso, vai procurar limpar, entre<br />

aspas, a pele, de status, ascensão, então, é muito mais interessante<br />

ou eu vou me autoafirmar... aí vai para a masculinidade,<br />

o homem querer se autoafirmar com uma mulher<br />

loura, então, isso também é um agravante para a mulher<br />

negra solteira, que é interessante; às vezes, já cheguei a algumas<br />

situações e disse: ‘— Poxa! Será que aquele cara me<br />

acha interessante?’.<br />

(Eva)<br />

108<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Com efeito, Nelson Silva (1987), ao investigar casamentos<br />

inter-raciais no Brasil, identifica a predominância de uniões de<br />

homens mais escuros com mulheres mais claras, fato que atribui<br />

tanto a fatores demográficos como a um padrão matripolar de<br />

aquisição de status e mobilidade social. O casamento de um negro<br />

com uma mulher branca ou de pele clara possibilita que seus<br />

filhos tenham acesso a socialização e status superiores aos seus.<br />

Os dados levantados pelo autor indicam que, quanto mais elevada<br />

for a posição social desses indivíduos, maior o percentual de endogamia.<br />

Na mesma linha de pensamento, Elza Berquó, ao estudar a<br />

desigualdade sob uma perspectiva demográfica, também aponta<br />

para um branqueamento da população, pois, ao mesmo tempo<br />

em que identifica um excedente de mulheres em relação aos homens<br />

e um número maior de homens negros do que de homens<br />

brancos, os homens negros não tendem a se unir com mulheres<br />

da mesma raça. Segundo a autora, “a tendência do clareamento se<br />

dá pelo fato dos homens procurarem mulheres mais claras” (1988,<br />

p. 79), o que coloca as mulheres negras em desvantagem no mercado<br />

amoroso e, certamente, faz com que elas se sintam inseguras<br />

quanto ao seu poder de sedução. Além disso, se associarmos a<br />

clivagem racial ao fato de serem independentes financeiramente,<br />

bem-sucedidas na profissão e de terem acima de 30 anos, tudo<br />

indica que as chances dessas mulheres se tornam ainda mais remotas,<br />

caso se recusem a relativizar os critérios de elegibilidade<br />

para a formação do par. Em suma, a mulher negra tem maior probabilidade<br />

de permanecer solteira 8 do que a mulher branca.<br />

8 Certamente, não ignoro que as emoções inter-raciais podem fluir à revelia de normas e regras,<br />

independentemente de quadros estatísticos. Ver, por exemplo, Laura Moutinho (1999); Zelinda<br />

Barros (2003). Por outro lado, Monica Weinberg e Erin Mizuta (2005) identificam, na Bahia, uma<br />

maior tendência das mulheres negras oriundas dos segmentos de baixa renda sobreviverem<br />

sem parceiros, devido à tradição matriarcal que vigora no Estado e à forte influência do<br />

candomblé. Tais argumentos apontam para a necessidade de um maior aprofundamento acerca<br />

Gênero, mulheres e feminismos 109


Arremate<br />

Constata-se que as mulheres da geração de Indira, que experimentaram,<br />

na educação socializadora, a repressão da sexualidade,<br />

conseguiram descortinar novas possibilidades do desejo, respaldadas<br />

na revolução sexual, mas, também, a partir da inserção no<br />

mercado de trabalho e na Universidade, que lhes proporcionaram<br />

maior independência emocional e financeira. Desse modo, desafiam<br />

os padrões de comportamento e normas sociais vigentes,<br />

quando se recusam a cumprir o destino reservado para as jovens<br />

de sua geração – o casamento, a maternidade e a maternagem. No<br />

entanto, o desejo e o prazer sexual são experimentados às escondidas,<br />

estratégia adotada para se resguardarem da vigilância e do<br />

controle sociofamiliar. Daí porque vivenciam amores epistolares<br />

ou sazonais, que preservam a intensidade do interlúdio sexual ao<br />

mesmo tempo em que resguardam o relacionamento afetivo da<br />

rotinização e da institucionalização a que está submetido o casamento.<br />

Vale destacar, entretanto, que a formação e continuidade<br />

do par são baseadas na mutualidade do sentimento, ou seja, elas<br />

rejeitam relacionamentos episódicos e descartáveis.<br />

Não se pode negar que entre a geração de Indira e Eva, muitas<br />

mudanças ocorreram: as conquistas femininas obtidas nas últimas<br />

décadas produziram uma revolução na educação dos afetos,<br />

os papéis sociais e sexuais de homens e mulheres se tornaram<br />

menos rígidos e uma das consequências positivas é que a mulher<br />

pode manifestar, de forma mais explícita, o seu desejo e, eventualmente,<br />

tomar a iniciativa na conquista amorosa. Entretanto, há<br />

de se observar que, apesar da liberação sexual, tanto para Indira<br />

como para Eva o erotismo está condicionado à sentimentalidade<br />

e, por isso, seu desejo é seletivo.<br />

dos impeditivos e possibilidades de uniões inter-raciais em Salvador, o que foge da proposta<br />

deste artigo.<br />

110<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Entre o antigo e o novo, essas mulheres elaboram referenciais<br />

identitários e modelos relacionais que busquem conciliar o ethos<br />

do amor romântico – a indiferenciação e a completude do par –<br />

com o ideário individualista – a conquista de projetos e espaços<br />

próprios. Dessa forma, não há sexo sem nexo, isto é, sem afetividade<br />

e, mesmo quando este acontece de forma episódica, a casualidade<br />

consiste em risco calculado através do qual a mulher exercita<br />

seu poder de atração e baliza as chances no mercado afetivo.<br />

Ao mesmo tempo, observa-se que Indira e Eva buscam se<br />

apropriar de seus corpos e desejos, que a ausência de um parceiro<br />

fixo não as impede de obter prazer sexual através da masturbação<br />

ou, se assim o desejarem, de tramarem artifícios para iludir<br />

o desejo, através da leitura de um livro, da conversa com amigas<br />

entre outras formas de prazer. Mas, se a associação entre sexo e<br />

afeto as aproxima, bem como os critérios de seletividade para vivenciarem<br />

uma relação amorosa – a compatibilidade entre o relacionamento<br />

amoroso e seus projetos de crescimento pessoal e<br />

profissional –, a distância etária que as separa é um marcador de<br />

diferença que não pode ser ignorado, principalmente no tocante<br />

à vida afetivo-sexual.<br />

De fato, a solitude parece acenar para Indira, pois, com idade<br />

acima de sessenta anos, já não atrai os olhares cobiçosos dos homens.<br />

Além do declínio físico e da perda da capacidade procriativa,<br />

o fenecimento da juventude a exclui do mercado amoroso, o<br />

que afeta sua autoestima e desencadeia momentos de depressão,<br />

principalmente agora que se aproxima da aposentadoria, quando<br />

é confrontada com a inatividade na esfera pública e privada, isto<br />

é, no trabalho, na casa e na cama. Contudo, permanecer solteira<br />

foi uma escolha consciente da qual afirma não se arrepender.<br />

Para Eva, ainda favorecida pela idade na competitividade do<br />

mercado afetivo, a ausência de um parceiro fixo não a impede de<br />

perseguir seus projetos de vida no âmbito pessoal e profissional.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 111


Por enquanto, prefere ficar só a estar mal-acompanhada, mas<br />

isso não significa que, com o avanço da idade, não possa vir a mudar<br />

de ideia e rever seu ponto de vista, ou seja, ser menos exigente<br />

e seletiva na escolha dos parceiros.<br />

Seus relatos demonstram que, embora não façam “apologia à<br />

solidão”, essas mulheres não têm conseguido conciliar suas aspirações<br />

de liberdade e de realização íntima e que, na intrincada<br />

dança a dois, a combinação entre sexo e amizade não as satisfaz.<br />

O bailado erótico, pelo menos entre as mulheres entrevistadas,<br />

não tem tecido aproximação, mas dessintonia, na medida em que<br />

o um não se faz dois, pois os passos se mostram cada vez mais dispar-atados.<br />

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Gênero, mulheres e feminismos 113


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114<br />

Gênero, mulheres e feminismos


RESISTÊNCIA INVENTIVA<br />

as mulheres fumageiras<br />

Elizabete Silva Rodrigues<br />

Lina Maria Brandão de Aras<br />

[...] em vez de formular o problema da alma central, creio<br />

que seria preciso procurar estudar os corpos periféricos<br />

e múltiplos, os corpos constituídos como sujeitos pelo<br />

efeito do poder. (FOUCAULT, 1979, p. 183)<br />

A resistência das mulheres fumageiras enquanto enfrentamento<br />

às ações de exploração no trabalho deve ser compreendida<br />

a partir do seu contexto histórico e, sobretudo, cultural, pois,<br />

neste caso, se trata de uma situação que vai além da questão de<br />

classe, perpassando, necessariamente, a questão de gênero e, ainda,<br />

como relações de gênero são relações de poder, faz-se necessário<br />

entender, mesmo que brevemente, como se constituíram,<br />

histórica e culturalmente, as relações de gênero no mundo ocidental<br />

influenciando aquela sociedade e, por conseguinte, a vida<br />

e a história das mulheres fumageiras do Recôncavo Baiano.


Fazer a leitura da opressão e da exploração das mulheres fumageiras<br />

e, principalmente, de suas reações, a partir de uma perspectiva<br />

feminista é uma posição considerada politicamente correta.<br />

Porém, não é tão simples: faz-se necessário perguntar: qual perspectiva<br />

feminista? O olhar feminista, o ponto de vista feminista<br />

e a interpretação feminista dos fatos não são posições isoladas,<br />

fechadas em uma disciplina ou que obedecem a um cânone. São<br />

múltiplas as perspectivas feministas e elas se utilizam das várias<br />

áreas do conhecimento para fazer a crítica feminista, ao mesmo<br />

tempo em que, as diversas áreas do conhecimento incorporam<br />

em suas análises a perspectiva feminista de gênero, incluindo, na<br />

mesma medida, a crítica feminista ao conhecimento.<br />

A História, por sua vez, tem sido uma das ciências que melhor<br />

tem empreendido esta tarefa apesar de não apresentar, ainda,<br />

uma preocupação mais direcionada para a questão das mulheres.<br />

Mas, ao lado de ciências como a Antropologia, a História tem se<br />

aproximado de outros campos do saber e, a exemplo do que fez os<br />

estudos feministas, também tem produzido uma crítica contundente<br />

ao conhecimento e seus tradicionais métodos, assim como<br />

tem se lançado por caminhos “estranhos”, ousado novos métodos<br />

quase que arqueológicos para encontrar o que foi apagado, novos<br />

objetos, novas fontes, novos olhares sobre antigos objetos, 1 questionando<br />

e invalidando as teorias supostamente neutras.<br />

A História das Mulheres, apesar das críticas que tem sofrido, 2<br />

foi um dos principais pontos de partida para romper as barreiras<br />

da invisibilidade das mulheres na história bem como sua negação<br />

enquanto sujeitos do conhecimento. É, portanto, os campos da<br />

1 A Escola dos Annales (1929), a partir de seus representantes Lucien Febvre e Marc Bloc, dentre<br />

outros pertencentes às duas principais gerações de historiadores, foi a responsável por esta<br />

mudança na escrita da História, derrubando o paradigma positivista defensor dos princípios da<br />

Ciência Moderna.<br />

2 Os/as críticos(as) da História das Mulheres acusam as elaborações em torno do tema de<br />

sexistas, restritas e parciais e alegam que partem dos mesmos pressupostos androcêntricos.<br />

116<br />

Gênero, mulheres e feminismos


história que oferecem as condições para analisar a constituição da<br />

opressão das mulheres fumageiras no contexto das relações sociais<br />

da região que, naquele espaço e naquele momento, se configuravam<br />

como patriarcais. É preciso perceber, além das origens, a<br />

continuidade do patriarcado e a sua dinâmica nas relações sociais;<br />

compreender como ele se manteve através do tempo, quais foram<br />

as formas em que ele se travestiu em determinados espaços,<br />

através dos discursos que perpassavam os valores e as instituições,<br />

para manter a dominação dos homens sobre as mulheres.<br />

Na região fumageira do Recôncavo Baiano, desde os primórdios,<br />

é possível identificar as marcas e os instrumentos que denunciam<br />

uma história de opressão das mulheres, bem como de<br />

suas lutas, organizadas ou não, contra o seu opressor. A família era<br />

o reduto de produção e reprodução da dominação das mulheres,<br />

contudo, foi nos estabelecimentos de trabalho que a dominação se<br />

expressou de forma organizada e pública, que as relações sociais<br />

patriarcais demarcaram os espaços físicos e sociais e as relações<br />

de trabalho. 3<br />

Mesmo tratando-se de mulheres que chefiavam suas famílias,<br />

tanto no que se refere ao aspecto econômico e administrativo da<br />

casa, quanto na educação e cuidado dos filhos e agregados, elas<br />

viviam sob os parâmetros de uma sociedade com características<br />

das relações sociais patriarcais, tomando como referência a definição<br />

explícita no questionamento de Drude Dahlerup:<br />

3 A família como expressão de dominação capitalista e patriarcal é citada várias vezes, em<br />

diálogo com diversas autoras, por Ana Alice Costa que afirma que a família é a “instituição que<br />

instrumentaliza e mantém a opressão da mulher em toda a história dessa sociedade, já que a<br />

família evoluiu e se adaptou de forma mais eficiente que as outras instituições aos interesses<br />

da classe dominante” (1998, p. 21). Não se trata aqui de examinar o modelo de família existente<br />

no Recôncavo canavieiro ou aquele da Casa Grande discutido por Gilberto Freire, tampouco, as<br />

relações sociais patriarcais reproduzidas naquele contexto, embora considerando que a sua<br />

influência ultrapassou tempos, espaços e classes sociais.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 117


Algunas personas dicen ‘vean a todas esas mujeres que dominan<br />

completamente a su familia? Como pueden entonces llamarla<br />

una sociedad patriarcal?’<br />

La respuesta es que como promedio en nuestra sociedad las<br />

mujeres ganan menos que los hombres, que en general las mujeres<br />

avanzan menos que los hombres y tienen puestos inferiores,<br />

que las mujeres arrastran un doble peso de trabajo, que<br />

son violadas, golpeadas, están sometidas a la violencia física<br />

de los hombres y al hostigamiento sexual en el trabajo; que las<br />

instituciones políticas, los partidos políticos y los sindicatos<br />

están dominados por hombres y por último, que las niñas y las<br />

mujeres son despreciadas por los hombres – y por ellas mismas.<br />

La auto-estima de las niñas y de las mujeres es en general<br />

más baja. Estas son algunas de nuestras razones para<br />

llamarla una sociedad patriarcal. (1987, p. 117)<br />

A compreensão do conceito de patriarcado 4 passa pela sociedade<br />

de modo geral, porém, é preciso levar em consideração as<br />

variações e as especificidades nas relações sociais entre homens e<br />

mulheres, conforme os espaços políticos, a classe e a raça em que<br />

estejam inseridos ou e que façam parte, pois, os efeitos do patriarcado<br />

sobre as mulheres têm ocorrido diferentemente para cada<br />

caso, mantendo, apenas, o traço comum da desigualdade nas relações<br />

entre homens e mulheres.<br />

Dessa forma, importa-nos entender como se caracterizavam e<br />

se organizavam as relações sociais patriarcais no âmbito da indústria<br />

fumageira do Recôncavo Baiano e como as mulheres trabalhadoras<br />

se moviam nesse ambiente minado pela opressão e pela<br />

exploração, à medida que lutavam pela sobrevivência, acumulando<br />

a construção das duas identidades – de mulher e de trabalhadora,<br />

pois é possível entender que a exploração não se dê, apenas,<br />

no âmbito da produção, nem a opressão patriarcal apenas no âmbito<br />

da reprodução, uma vez que a complexidade da realidade não<br />

4 Sobre o patriarcado ver: RIVERA, 1993, p. 40-1.<br />

118<br />

Gênero, mulheres e feminismos


comporta dicotomias reducionistas. Ana Alice Costa informa que<br />

“patriarcado e capitalismo convivem através da divisão sexual<br />

do trabalho na família e na produção social, em um processo de<br />

dependência mútua: um se adapta às necessidades do outro”, e<br />

mais, “[...] os dois são duas faces de um mesmo sistema produtivo<br />

e devem examinar-se como formas integradas” (1998, p. 36; 39).<br />

Logo, a situação daquelas e de outras trabalhadoras nos espaços<br />

de trabalho estava relacionada com a sua situação de mulher, a<br />

partir de suas funções na família ou a partir de um modelo de família,<br />

bem como nos moldes das desigualdades de gênero em que<br />

a sociedade estava estruturada. 5<br />

Em sua origem, o conceito de patriarcado era utilizado para<br />

denominar uma sociedade regida por homens, a exemplo da sociedade<br />

feudal, em que o pai era considerado o cabeça da família,<br />

com poderes sobre sua mulher, filhos, trabalhadores e serventes.<br />

(DAHLERUP, 1987, p. 112) Desde então, o conceito de patriarcado<br />

tem sido usado para denominar a subordinação das mulheres,<br />

uma vez que todas as sociedades contemporâneas se encontram<br />

sobre o domínio dos homens, principalmente no que se refere às<br />

atividades políticas e econômicas, tratando-se, pois, de um sistema<br />

de dominação classista e não natural/biológico.<br />

O patriarcado “es un sistema social de dominación que consagra<br />

la dominación de los individuos del sexo masculino sobre<br />

los de sexo femenino”, para Maria José Palmero (2004, p. 34), que<br />

faz uma análise histórica e cultural das origens do patriarcado e do<br />

5 Conforme Drude Dahlerup (1987, p. 124), o conceito marxista de exploração de classe se define<br />

pelas relações da classe trabalhadora com os meios de produção, enquanto a opressão das<br />

mulheres não deriva de um único jogo de relações sociais, mas de um complexo sistema<br />

de estruturas e relações interconectadas. Para Danièle Combes e Monique Haicault (1986,<br />

p. 25), produção e reprodução são indissociáveis, uma é condição da outra, porém, se o<br />

modo de produção transforma o próprio ser humano em uma mercadoria apenas confirma<br />

a subordinação da reprodução à produção e essa subordinação se apoia em uma outra<br />

subordinação ou submissão – a das mulheres aos homens, que repousa na divisão sexual do<br />

trabalho. Acrescenta, ainda, que essa relação corresponde à instauração do sistema patriarcal<br />

articulado com o desenvolvimento de sociedades de classes.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 119


seu aparato de legitimação alimentado pela mitologia, que atribui<br />

a masculinidade e a paternidade a um Deus, modelo consagrado<br />

aos homens, enquanto às mulheres, que em nada se identificam<br />

com esse modelo, coube-lhes, apenas, o papel de servir a Deus<br />

e a seus representantes na terra − os homens. Assim, o “mito da<br />

criação” faz de Eva a companheira e, depois, a pecadora, que precisa<br />

redimir a sua culpa com as dores do parto, mas, sempre ocupando<br />

o papel ora de maldita ora de inferior. Em seguida, vem<br />

Maria, para transformar Eva em mãe e cujo sofrimento a redime<br />

do “pecado original” ao mesmo tempo em que substitui a imagem<br />

da mulher lasciva pela imagem da madona que permite que a sua<br />

sexualidade e reprodução sejam controladas pelo homem.<br />

Prescritos aí, estão os fundamentos do patriarcado e, com ele,<br />

a gênese da opressão das mulheres. O que está dito é que os homens<br />

detêm, naturalmente, o poder e que as mulheres, por sua<br />

fraqueza, incapacidade ou rebeldia o perderam e, naturalmente,<br />

não apresentam as condições necessárias para ocupar postos de<br />

governo ou cargos que exijam o manejo do poder. Ora, Eva não<br />

conseguiu controlar a sua sexualidade, os seus impulsos diante do<br />

fruto proibido, portanto, demonstrou fraqueza e, por isso, a sua<br />

descendência precisa ser controlada e vigiada sempre, não podendo,<br />

sequer, ficar a sós com outro homem que não seja aquele que a<br />

proteja de sua própria fragilidade, o seu guardião. 6 Por outro lado,<br />

esse homem honrado e forte que, segundo Deus, precisava de uma<br />

companheira, elevou Eva à condição de Maria e esta acolheu com<br />

obediência o cargo nobre e eterno, o de mãe. O governo do lar é<br />

seu, enquanto o governo do mundo externo e de suas instituições<br />

é do homem, este que sempre foi forte diante das adversidades.<br />

Instituiu-se, assim o modelo de família: “El hombre es cabeza de<br />

6 Segundo Palmero (2004, p. 37), a repressão da sexualidade nas mulheres e o seu controle é o<br />

verdadeiro cavalo de batalha do patriarcado.<br />

120<br />

Gênero, mulheres e feminismos


familia, la mujer el cuerpo: se reproduce así el esquema de dominación<br />

ancestral”, diz Maria José Palmero (2004, p. 49).<br />

O patriarcado, então, passou a funcionar como um jogo de<br />

relações sociais entre os homens e instituiu normas gerais de valoração<br />

dos gêneros, com prejuízos, historicamente irreparáveis<br />

para as mulheres. O pai, o irmão, o marido e o filho se encontram,<br />

ainda, em posições superiores à mulher. Por um longo período<br />

de tempo, assinaram pelas mulheres, falaram por elas e, ainda,<br />

deram-lhes o nome; diante das mulheres, sentaram-se nos melhores<br />

lugares, comeram o que havia de melhor; tinham liberdade<br />

de ir e vir a qualquer hora e em qualquer lugar; puderam amar<br />

mais de uma mulher sem medo e sem vergonha; em vida, eram,<br />

sozinhos, os donos da riqueza, mesmo que esta tivesse sido produzida<br />

por toda a família, que somente vinha a ter a posse quando<br />

o “cabeça” falecia; a transmissão das riquezas e do poder, através<br />

do sistema de hereditariedade, os favoreceu com prioridade absoluta;<br />

a palavra de decisão na família foi um de seus maiores patrimônios.<br />

Enfim, os homens exerceram o poder em detrimento<br />

das mulheres.<br />

O jogo das relações sociais patriarcais sempre proibiu as mulheres<br />

de exercerem o poder e de deterem o conhecimento e, se,<br />

em dados momentos, alguma delas se atreveu a desafiá-lo foi rotulada<br />

como maldita ou ridícula, a exemplo de Eva, Pandora e outras.<br />

(PALMERO, 2004, p. 37)<br />

Assim, qualquer definição ou descrição sobre o patriarcado<br />

traz em si algo comum que é o foco no poder dos homens e na<br />

dominação destes sobre as mulheres, variando, historicamente, a<br />

forma de ação, conforme os contextos político, econômico, social<br />

e cultural. Contudo, é preciso estar atenta/atento para não perder<br />

de vista que esse poder/dominação não é o resultado de uma determinação<br />

biológica que se baseia na diferença sexual; trata-se<br />

Gênero, mulheres e feminismos 121


de uma dominação classista e que se perpetua através da família e<br />

da divisão sexual do trabalho.<br />

Assim, de todos os pares opostos instituídos pela cultura ocidental,<br />

no sentido de estabelecer uma ordem objetiva de compreensão<br />

do mundo, o masculino/feminino, a cultura/natureza<br />

e o “um/outro” ofereceram as bases para a ordem hierarquizada<br />

e simbólica do patriarcado, dificultando o seu questionamento<br />

ou mesmo outra possibilidade de nomeação, conceituação e organização<br />

do mundo e de suas instituições, inclusive a da divisão<br />

sexual do trabalho que, através da figura do caçador, instituiu<br />

culturalmente a valorização da masculinidade e das tarefas realizadas<br />

pelo homem.<br />

A história das mulheres trabalhadoras, em qualquer tempo e<br />

lugar, tem revelado quão exploradas e sujeitadas têm sido as mulheres<br />

e, também, como tem sido grande a sua luta para resistir e<br />

romper com esse sistema sociopolítico injusto, uma vez que suas<br />

vitórias têm provado que essa situação é resultado de uma construção<br />

cultural e social, que a sujeição é uma situação imposta às<br />

mulheres e não uma condição da natureza feminina que faz com<br />

que elas devam se resignar e aceitar, facilitando, portanto, a exploração.<br />

A história tem testemunhado muito mais as lutas que<br />

a passividade das mulheres, a sua capacidade de minar as forças<br />

opostas, de organizar estratégias sutis ou abertas de enfrentamento<br />

e de resistência à exploração e à dominação, até de romper<br />

com os padrões sociais e morais institucionalizados que reforçam<br />

a dominação e a opressão como lei natural. 7<br />

A luta ainda é mais complexa porque o inimigo não é declarado<br />

e não se situa fora, à parte, ou à distância de sua presa: o patriarcado<br />

é introjetado pelas pessoas de qualquer sexo, idade, credo,<br />

7 Muito embora, ao lutar contra os instrumentos patriarcais que geram a sua opressão/<br />

exploração, as mulheres tenham, por vezes, que aplicar métodos patriarcais, uma vez que se<br />

encontram inseridas em um sistema de relações patriarcais e fazem parte dele. (SHOTTER;<br />

LOGAN, 1993, p. 100)<br />

122<br />

Gênero, mulheres e feminismos


aça ou classe, sem se configurar ou se autodeclarar, abertamente,<br />

um sistema de opressão que serve aos homens em detrimento das<br />

mulheres; ao contrário, a ideologia patriarcal está expressa nas relações<br />

e nas práticas sociais, está incorporada às maneiras como as<br />

pessoas se comportam e agem cotidianamente, como se estivesse<br />

na natureza humana e das coisas em geral, conforme John Shotter<br />

e Josephine Logan (1993, p. 91-2). Seria um erro pensar que esse<br />

fenômeno ocorre separadamente e que atinge uns e outros não,<br />

pois são práticas sociais autorreproduzidas, com caráter de uma<br />

“lei natural” que ordena o mundo, inclusive os espaços.<br />

O processo histórico e ideológico da sujeição das mulheres aos<br />

homens e de sua reclusão no espaço doméstico, sendo excluída da<br />

acumulação de riquezas, foi engendrado desde os primórdios da<br />

humanidade e vem se aperfeiçoando com métodos rigorosamente<br />

sofisticados que tornam cada vez mais perversas as suas ações, escamoteadas,<br />

porém, pelo elevado grau de sua sutileza. Nesse sentido,<br />

Danièle Combes e Monique Haicault informam:<br />

Se a divisão sexual do trabalho que designa prioritariamente os<br />

homens para a produção e as mulheres para a reprodução é bem<br />

anterior ao modo de produção capitalista, é claro, no entanto,<br />

que o advento do capitalismo subverte não apenas as condições<br />

da produção de bens mas também as condições da produção dos<br />

seres humanos. (1986, p. 27)<br />

Nessa análise, é possível afirmar que, historicamente, a dominação<br />

masculina tem sido reestruturada conforme os processos<br />

de transformações políticas, sociais, culturais e, sobretudo, econômicas,<br />

passando a fazer parte da estrutura da sociedade atual.<br />

(DAHLERUP, 1987, p. 115)<br />

Sob a miragem do ideal universalista da Modernidade, que<br />

incluiria a todos e todas, o patriarcado se reconstruiu com uma<br />

Gênero, mulheres e feminismos 123


nova roupagem. 8 Enquanto os ideais ilustrados triunfaram para os<br />

homens, as mulheres foram relegadas à menoridade (PALMERO,<br />

2004, p. 47), criando a sua necessidade, segundo essa ideologia,<br />

de proteção, devendo ser mantidas no lar para o bem da família –<br />

traduza-se, para o bem dos homens – e da sociedade.<br />

Assim, foi conclamado por todos e todas, principalmente pelas<br />

feministas, que as mulheres ficaram de fora dessa nova ordem<br />

política e moral da sociedade moderna; porém, é preciso ressaltar<br />

que elas foram excluídas do que se convencionou como “direitos<br />

universais”, que incluía a sua cidadania, mas que, no projeto<br />

mais amplo da modernidade, significou a sua inclusão no plano de<br />

sustentação e garantia dos direitos e liberdades masculinas, como<br />

também no plano econômico, pois coube às mulheres todo o empreendimento<br />

doméstico e familiar sem qualquer remuneração,<br />

pois, ao contrário, este foi ideologicamente instituído como uma<br />

tarefa eminentemente feminina.<br />

As mulheres apenas ocupavam a categoria de “cidadãs de segunda<br />

classe”, pois estavam submetidas ao “pacto de sujeição”,<br />

firmado pelo matrimônio, 9 que restringia sua atuação ao espaço<br />

doméstico, onde a lei não entrava para protegê-las nem física nem<br />

moralmente, sendo consideradas como seres sem dignidade e sem<br />

cidadania. Essa divisão dos lugares e das funções entre as duas metades<br />

da humanidade instituiu severamente o discurso da ruptura<br />

entre público e privado, supervalorizando as atividades relativas<br />

ao espaço público, portanto, masculinas, e desvalorizando as ati-<br />

8 Neste momento, Rousseau sistematiza e codifica as bases do patriarcado moderno, a partir do<br />

seu projeto de educação distinto para homens e mulheres, de um lado representado por Emílio,<br />

que se ocupa de tarefas que lhe dão autonomia e autorrealização, e de outro, por Sofia, que<br />

representa o modelo da mulher burguesa, pura, dedicada ao lar e submissa.<br />

9 Além da mitologia, que traz as justificativas para a submissão das mulheres em relação aos<br />

homens, o matrimônio, historicamente representa um pacto de sujeição de cada mulher a seu<br />

marido, selado publicamente desde o direito romano e sem modificação até o início do século<br />

XIX, quando esta “no puede contratar ni obligarse con terceros sin autorización de su marido;<br />

aunque este en régimen de separación de bienes, es legalmente incapaz de dar, enajenar,<br />

hipotecar o adquirir”. (PETIT, 1994, p. 54)<br />

124<br />

Gênero, mulheres e feminismos


vidades relacionadas ao espaço privado, destinado às mulheres,<br />

excluindo-as do direito à cidadania, como afirma Palmero:<br />

[...] el corte público/privado pretendió excluir a las mujeres no<br />

solo de su papel como sujetos de la historia, sino de las atribuciones<br />

de la ciudadanía y del reconocimiento de su dignidad<br />

personal como autonomía. (2004, p. 44)<br />

O espaço doméstico não se constituiu, apenas, como um espaço<br />

privado de toda a família, mas, também, como um espaço de<br />

confinamento das mulheres, de disciplinamento de seus corpos e<br />

de sua mente, para que formassem o seu caráter modelado pelas<br />

“boas” regras de conduta e de moral, com base em um modelo<br />

pré-estabelecido de feminino. Paradoxalmente, contrariando os<br />

valores burgueses que incluem a privacidade e a individualidade,<br />

neste mesmo espaço as mulheres não dispõem de um espaço privado<br />

nem de tempo próprio e, fora dele, sofrem o massacre da<br />

vigilância da opinião pública sobre os seus atos e sobre a sua imagem.<br />

(PALMERO, 2004, p. 51-2)<br />

No espaço privado/doméstico, o patriarcado agiu com maestria.<br />

Usou de força física para aprisionar as mulheres e para<br />

torná-las dóceis, mas, também, soube, estrategicamente, usar<br />

instrumentos mais sofisticados e poderosos como, por exemplo,<br />

a educação, que não modela apenas o comportamento, como<br />

também o ser, visto que o processo de socialização das meninas<br />

começa desde a mais tenra idade e, diferindo completamente da<br />

educação dos meninos, 10 não trabalha a individualidade, mas a<br />

sua domesticação. Não se trata de uma educação formal, com base<br />

em conhecimentos universais, mas de um processo de disciplinamento<br />

específico, de caráter ideológico, no sentido de construir<br />

10 Simone de Beauvoir analisa e descreve o processo de socialização das meninas em comparação<br />

com o dos meninos, constatando o engenhoso trabalho de construção cultural do feminino,<br />

deflagrado na célebre frase que abre a sua mais importante obra O segundo sexo: “Não se nasce<br />

mulher, torna-se mulher”. (BEAUVOIR, 1980)<br />

Gênero, mulheres e feminismos 125


o ideal de esposa e dona de casa perfeita, bem como de mãe virtuosa,<br />

reunidas em uma única mulher representativa do modelo<br />

feminino necessário à sociedade burguesa. Ao mesmo tempo,<br />

moldada pela emoção, essa nova mulher continuava satisfazendo<br />

plenamente às relações sociais patriarcais, por ser afetiva, passiva<br />

e dependente, estereótipos mantidos pelo patriarcado para caracterizar<br />

a personalidade feminina. (COSTA, 1998, p. 49)<br />

As bases da sociedade moderna se assentaram sobre o novo<br />

modelo de feminino e de masculino, que separou e caracterizou os<br />

espaços de forma que o privado/doméstico é feminino e o público<br />

ou não-doméstico é masculino, 11 ao mesmo tempo em que estes<br />

espaços passaram a funcionar como instituições socializadoras e<br />

formadoras dos gêneros, separando e hierarquizando os sexos, de<br />

modo que a sociedade passou a ser organizada pelo parâmetro da<br />

divisão sexual, determinando uma ordem moral e dualista baseada<br />

no poder social entre o masculino/hegemônico e o feminino/<br />

passivo.<br />

É um paradoxo, mas é possível afirmar que é o patriarcado subsistindo<br />

na sociedade formalmente igualitária, o que representa<br />

dizer que, mesmo no bojo das lutas das feministas pela autonomia<br />

individual das mulheres e considerando os ganhos reais por elas<br />

obtidos nos períodos revolucionários da história do Ocidente, o<br />

patriarcado vem se recriando a partir das condições econômicas e<br />

políticas vigentes em cada contexto cuja ação fortalece a organização<br />

social necessária à manutenção do sistema em um processo<br />

de retroalimentação entre a ideologia patriarcal e as instâncias de<br />

poder que compõem e mantêm o sistema político, econômico e<br />

social.<br />

11 Dahlerup (1987) afirma que a esfera pública estava regida por homens e que estes não estavam<br />

ausentes da esfera da família, mas atuavam nas duas esferas, enquanto a mulher só teria uma<br />

esfera de atuação. Essa autora também faz uma discussão do que seria privado, dos vários<br />

significados que reúne este termo e da imprecisão dos limites entre as duas esferas.<br />

126<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Seja qual for a definição ou o conceito utilizado para compreender<br />

o patriarcado, seja qual for a forma e o contexto em que ele<br />

atuou ou atua, sejam quais forem as maneiras pelas quais se reestruturou<br />

para acompanhar o desenvolvimento dos sistemas político,<br />

econômico e social, o patriarcado tem a ver, diretamente,<br />

com o poder, a autoridade e o controle dos homens sobre as mulheres.<br />

(DAHLERUP, 1987, p. 119)<br />

O que é preciso observar são as nuances de sua atuação nos devidos<br />

tempo e espaço, pois, apesar de utilizar esses instrumentos<br />

ao longo da história até nossos dias, as circunstâncias mudaram,<br />

os contextos políticos, econômicos e sociais mudaram e determinaram<br />

outras posturas e há, ainda, as lutas e resistências das feministas<br />

a todo tipo de opressão, exploração e discriminação das<br />

mulheres. No contexto das sociedades capitalistas, por exemplo, o<br />

controle dos homens sobre as mulheres não é o mesmo, ele não se<br />

dá mais tão diretamente entre um homem e uma mulher, mas se<br />

encontra presente em todas as estruturas da sociedade, impregnado<br />

e introjetado nas/pelas pessoas, presente nas instituições,<br />

diluído nas ações e comportamentos coletivos. Identificando essa<br />

concepção na análise “socialista-feminista”, Dahlerup (1987) 12<br />

salienta:<br />

[...] el mercado laboral que está segregado en función del sexo;<br />

el doble peso de trabajo de las mujeres, el cual en su mayor parte<br />

no es asalariado; las mujeres como una fuerza laboral de reserva;<br />

la diferencia salarial entre los hombres y las mujeres; el efecto<br />

del proceso de socialización sobre las niñas y las mujeres; la relativa<br />

falta de poder de las mujeres de la política tradicional, etc.<br />

(DAHLERUP, 1987, p. 120-1)<br />

12 Drude Dahlerup (1984) identifica um patriarcado pessoal e um patriarcado estrutural; também<br />

identifica, nas sociedades ocidentais, vários tipos de opressão: pessoal e impessoal, visível e<br />

invisível, física/material e psicológica, legítima e ilegítima.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 127


Com base nessa análise da constituição das relações sociais patriarcais,<br />

Maria José Palmero (2004) sugere que a tarefa é refazer<br />

a história e desacreditar no relato patriarcal, que tem dificultado<br />

a incorporação das mulheres ao espaço público e, consequentemente,<br />

a ausência de modelos femininos como protagonistas nesse<br />

espaço, exceto os casos que fogem à regra. Mas, a desconstrução<br />

do patriarcado passa pela desconstrução cultural dos estereótipos<br />

de gênero e a sua análise a partir do ponto de vista feminista constitui<br />

uma denúncia e uma reflexão da situação atual das mulheres,<br />

com o objetivo de conduzi-las, cada vez mais, à quebra do “contrato<br />

sexual” e de sua sujeição, que têm dado suporte à sua dupla<br />

exploração.<br />

É preciso (re)visitar o passado, vasculhar as memórias e confrontar-se<br />

com as situações concretas em que viviam as mulheres<br />

para entender a lógica da opressão em cada contexto e em cada<br />

situação, especificamente. Da mesma forma que, para entender<br />

a exploração bem como as lutas e resistências das fumageiras no<br />

cenário fabril da indústria do fumo, se faz necessário conhecer<br />

as suas histórias, suas experiências como trabalhadoras e a estrutura<br />

organizacional em que estavam inseridas, pois, só assim,<br />

para compreender a dimensão de cada ato, de cada gesto, de cada<br />

comportamento naquele campo de forças.<br />

Organizar para imobilizar<br />

O trabalho produtivo realizado pelas mulheres fumageiras do<br />

Recôncavo Baiano se circunscreve a dois espaços distintos – a casa<br />

e a fábrica. 13 O primeiro se caracteriza como um espaço privado,<br />

13 Neste caso, a “fábrica” representa todos os estabelecimentos fabris (armazéns de fumo e<br />

fábricas de charutos e cigarrilhas) da indústria fumageira do Recôncavo baiano.<br />

128<br />

Gênero, mulheres e feminismos


de constituição da família, 14 lugar de disciplina, de produção e<br />

reprodução dos gêneros em correspondência com as demandas<br />

morais, religiosas, culturais e sociais, em seus diversos contextos,<br />

lugar adequado para a exploração e, de forma inseparável, a opressão,<br />

seja na produção ou na reprodução. Os valores produzidos e<br />

reproduzidos nesse espaço refletem, diretamente, nos ambientes<br />

e nas relações de trabalho. O segundo, a fábrica, se caracteriza<br />

como espaço externo, disciplinado e de disciplinamento, onde o<br />

controle e a vigilância dos sujeitos, no caso, as trabalhadoras, não<br />

advêm de ou servem a uma tradição, mas a um sistema de produção<br />

que tem como objetivo principal produzir em larga escala<br />

para obter lucros imediatos e cada vez maiores, o que faz extraindo<br />

do(a) trabalhador(a) todo o seu tempo e a sua força laboral.<br />

A casa e a fábrica, espaços onde se desenrolaram as atividades<br />

fumageiras de beneficiamento, preparação dos fumos e fabricação<br />

de charutos e cigarrilhas, se constituíram e se caracterizaram a<br />

partir das relações de trabalho, como também das relações sociais<br />

mais gerais entre os sujeitos envolvidos, direta e indiretamente,<br />

no cenário econômico e social da região do Recôncavo. Em casa,<br />

tanto a atividade doméstica como o trabalho com o fumo diretamente,<br />

eram realizados sob o comando das mulheres, mas, envolvia,<br />

exceto os homens, todos os membros da família, inclusive as<br />

crianças. 15<br />

Nas fábricas, patrões, gerentes, mestres, operários e operárias<br />

ocupavam a cadeia hierárquica das posições de poder e das funções<br />

para a realização do trabalho fabril, em espaços separados fisica-<br />

14 Apesar de ter predominado na literatura e no imaginário social do Recôncavo Baiano o modelo<br />

de família nuclear, na prática esse modelo se resumiu, apenas, à pequena elite econômica.<br />

Nos meios populares a família se constituía de maneira mais contingente, contudo, os valores<br />

sociais e morais também afetavam esse grupo. Em relação à noção do espaço da casa como<br />

privado, não se tratava de uma noção de lugar fechado, inacessível e sem relação com o<br />

mundo exterior, ao contrário, tratava-se, também, de um espaço de produção cuja linha que o<br />

separava da rua era muito tênue.<br />

15 A análise do trabalho das fumageiras no próprio domicílio se encontra mais à frente.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 129


mente e distintos em sua função primeira, mas que se faziam unidos<br />

pela rede de relações tecida pela população fumageira, aquela<br />

que transitava entre os espaços (re)inventando os seus modos de<br />

vida, ao mesmo tempo em que forjava todas as possibilidades de<br />

resistência à exploração e à dominação 16 impostas pelo trabalho<br />

nos seus respectivos lugares.<br />

É na estrutura organizacional dos estabelecimentos fabris da<br />

indústria fumageira que se observa uma das mais fortes evidências<br />

das estratégias ideológicas de dominação a serviço da exploração<br />

das trabalhadoras do fumo. Essa estrutura reproduzia e materializava<br />

a ideologia patriarcal desde a distribuição dos espaços, das<br />

instalações e dos objetos até a hierarquização das funções e das<br />

pessoas. E, apesar da relevância em se observar, em primeira mão,<br />

a exploração que imperava nos ambientes fabris, independentemente<br />

do sexo, foram as relações sociais patriarcais baseadas nas<br />

desigualdades de gênero que lançaram as bases e geraram as condições<br />

para que a exploração pudesse ocorrer a contento do sistema<br />

econômico, considerando que capitalismo e patriarcado se<br />

produzem e reproduzem mutuamente.<br />

Dessa forma, as mulheres, no caso as fumageiras, se encontravam<br />

duplamente em desvantagem – oprimidas e exploradas.<br />

Por mais importante que fosse a sua posição na hierarquia de poder,<br />

por mais necessária que fosse a sua função para a indústria<br />

fumageira, a mulher continuava sendo um ser inferior diante dos<br />

homens, mesmo daqueles que ocupavam funções menos importantes<br />

que a sua.<br />

16 Não se trata aqui de uma dominação no sentido geral ou global, mas de uma dominação<br />

específica das relações de trabalho no contexto da indústria fumageira do Recôncavo,<br />

considerando as questões de classe e, sobretudo as questões de gênero; como também, não<br />

se trata de uma dominação rígida de um grupo sobre o outro, uma vez que, se considera a<br />

dominação em questão como uma das múltiplas formas de dominação exercidas na sociedade,<br />

pois, segundo Foucault, ela não ocorre, apenas, de cima para baixo na escala social, mas nas<br />

“múltiplas sujeições que existem e funcionam no interior do corpo social” (1979, p. 181).<br />

130<br />

Gênero, mulheres e feminismos


A organização dos espaços fabris na região fumageira atendeu<br />

à lógica capitalista da divisão social do trabalho. No entanto, foi o<br />

caráter da suposta naturalização da divisão das tarefas entre homens<br />

e mulheres que caracterizou, em grande medida, a atividade<br />

fumageira dentro e fora das fábricas. O gênero demarcava os<br />

espaços físicos e as relações entre os/as trabalhadores(as) e entre<br />

estes/estas e os superiores hierárquicos. Mas o que explica a adoção<br />

do método “natural” de divisão sexual do trabalho na indústria<br />

do fumo do Recôncavo? Era a adoção ingênua e gratuita das<br />

formas de organização da própria sociedade, naquele momento?<br />

A incorporação da dinâmica das relações sociais patriarcais<br />

que predominava na região do Recôncavo, pelos empresários do<br />

fumo, se associava com seus interesses mais amplos. Era cômodo,<br />

ou seja, não necessitava romper com a cultura local, não criava nenhum<br />

tipo de desagrado àquela sociedade, ao contrário, a organização<br />

fabril reforçava e reproduzia os valores da cultura patriarcal<br />

que determinava lugares para homens e mulheres na hierarquia<br />

social. Outro aspecto e, talvez, o mais importante é que o modelo<br />

patriarcal servia, fielmente, ao sistema econômico vigente.<br />

A forma como os estabelecimentos fabris estavam organizados,<br />

revelava um propósito: a distribuição dos(as) trabalhadores(as)<br />

nos espaços e nas funções era, ideologicamente projetada, no sentido<br />

de manter o controle dos grupos, de poder adotar diferentes<br />

instrumentos de disciplina e, principalmente, de evitar qualquer<br />

possibilidade de articulação e de mobilização de ações políticas<br />

pelos(as) trabalhadores(as).<br />

As fábricas de charutos e cigarrilhas eram compostas por diversas<br />

repartições, variando muito pouco de uma para outra fábrica,<br />

quando se tratava do mesmo porte empresarial. As grandes fábricas<br />

se compunham de recepção, escritórios, cofre (uma pequena<br />

saleta com paredes e porta adequadas), almoxarifados, elevador de<br />

carga, conforme o porte da fábrica e a estrutura do prédio, ambula-<br />

Gênero, mulheres e feminismos 131


tório, sanitários, refeitório, oficina mecânica, depósitos, caldeiras,<br />

câmaras de fumo e de charutos, carpintaria, salões de beneficiamento<br />

de fumo, onde se concentrava grande parte do pessoal nas<br />

várias etapas do preparo do fumo, salão de anelamento, salão de<br />

encaixamento, bancas de capas e a charutaria.<br />

Salvo as áreas e repartições comuns, as demais eram divididas<br />

entre os dois sexos, ou seja, havia repartições masculinas e repartições<br />

femininas. Os homens ocupavam as áreas administrativas,<br />

a área de serviços pesados e serviços gerais. As mulheres ocupavam,<br />

apenas, as repartições de trabalho ligadas diretamente ao<br />

beneficiamento dos fumos e à confecção e embalagem dos charutos<br />

e cigarrilhas. Todas as áreas e repartições eram, estrategicamente,<br />

projetadas para atender, além das necessidades da cadeia<br />

de produção, a localização dos indivíduos conforme o gênero e a<br />

posição na escala do poder. 17 Assim, as mulheres fumageiras foram<br />

distribuídas, em suas diversas funções, no centro da fábrica<br />

– onde se localizavam os salões de beneficiamento dos fumos, de<br />

encaixamento e anelamento dos charutos – e na parte da frente,<br />

onde se localizava a charutaria. (SILVA, 2001)<br />

A seção de charutaria, um espaço predominantemente feminino,<br />

ficava sempre no salão da frente onde as bancas eram distribuídas<br />

em fileiras duplas, dispondo as mulheres sentadas em<br />

tamboretes, uma ao lado da outra em cada fileira de bancas. As<br />

bancas eram divididas, em média, em dez lugares cada uma, separadas<br />

por tábuas laterais que ofereciam a cada charuteira um<br />

espaço individualizado, onde arrumavam seus instrumentos e materiais<br />

de trabalho. Porém, como se observa na primeira fotografia<br />

a seguir, a distribuição das bancas da charutaria não favorecia a<br />

17 A divisão dos espaços na fábrica obedece ao método de racionalização da produção para<br />

garantir a produtividade em menos tempo possível, evitando gastos e comportamentos<br />

supérfluos, conforme os princípios tayloristas de organização do trabalho. Contudo, a<br />

subordinação de gênero manifestada na divisão sexual do trabalho foi uma base aliada à<br />

exploração das mulheres e, neste caso, expressamente às fumageiras.<br />

132<br />

Gênero, mulheres e feminismos


comunicação e a articulação horizontais, ou seja, da charuteira<br />

com a sua vizinha da frente, pois, ou as bancas se localizavam distantes<br />

uma da outra ou, quando juntas, eram separadas por uma<br />

coluna mais alta que o lastro da banca, uma espécie de cabeceira.<br />

Ora, se as charuteiras se sentassem uma frente à outra, sem<br />

qualquer obstáculo, isso possibilitaria não apenas a conversa entre<br />

elas, mas a possibilidade de parar o trabalho, enquanto se olhassem<br />

para estabelecer uma comunicação mais direta, o que era<br />

mais difícil ocorrer com as colegas de suas laterais. A conversa e<br />

o “olho no olho” enquanto trabalhavam, poderia ser interpretado<br />

pelos patrões, através dos mestres, como um “comportamento<br />

supérfluo” que tomaria tempo e prejudicaria a produção, bem<br />

como uma senda para as estratégias de resistências sutis.<br />

Figura 1 – Seção de charutaria de uma fábrica de charutos do Recôncavo<br />

Fonte: Arquivo Público do Estado da Bahia<br />

As fotografias revelam que os assentos eram desconfortáveis<br />

e sem recosto; a distância entre as trabalhadoras era mínima,<br />

Gênero, mulheres e feminismos 133


dificultando a locomoção e até o movimento dos braços enquanto<br />

cortavam a folha de fumo e enrolavam os charutos (Figura 1).<br />

A arrumação da charutaria ia além da economia de espaços, favorecia,<br />

também, os mecanismos de disciplina e controle usados<br />

pelos mestres de seção, dentre outras peculiaridades da organização<br />

fabril.<br />

A seção de embalagem dos charutos seguia a mesma organização<br />

e controle da charutaria. Nesses espaços ou seções de trabalho,<br />

tanto o gênero quanto o poder interferiam diretamente na<br />

realidade mais concreta das trabalhadoras fumageiras, o seu corpo,<br />

desde as vestimentas, que as aprisionavam em um corpo de<br />

mulher, até as posturas que deveriam manter durante o período<br />

de trabalho. Seus corpos estavam disciplinados para além da sexualidade;<br />

a sua distribuição no espaço fabril anunciava a ordem e<br />

a disciplina a que as fumageiras estavam submetidas; eram corpos<br />

marcados e arruinados pela história. (FOUCAULT, 1979, p. 22) Era,<br />

enfim, a presença de um “poder disciplinar” 18 específico daquele<br />

contexto, que tinha como objetivo produzir as trabalhadoras necessárias<br />

àquele tipo de indústria, tornando seus corpos força de<br />

trabalho, a partir de um sistema político de dominação de gênero<br />

e classe, pois, assim afirma Michel Foucault:<br />

A disciplina é o conjunto de técnicas pelas quais os sistemas de<br />

poder vão ter por alvo e resultados os indivíduos em sua singularidade.<br />

[...] é a vigilância permanente, classificatória, que permite<br />

distribuir os indivíduos, julgá-los, medi-los, localizá-los e,<br />

por conseguinte, utilizá-los ao máximo. (1979, p. 107)<br />

18 A análise do processo de disciplinamento das trabalhadoras fumageiras no espaço fabril ou do<br />

esquadrinhamento e da organização do espaço como mecanismo de disciplinamento, não tem<br />

como objetivo caracterizar o trabalho das fábricas de charutos como um “trabalho disciplinar”,<br />

mas identificar a disciplina como um dos principais instrumentos de controle das trabalhadoras<br />

no processo do “trabalho produtivo”, com vistas a garantir, ao máximo, a extração de sua<br />

capacidade laboral, o melhor uso do tempo e atingir o nível mais elevado de produção, uma vez<br />

que, segundo Foucault, “as técnicas de poder foram inventadas para responder às exigências<br />

da produção [...] produção em sentido amplo”. Ainda, ao destacar a função tripla do trabalho:<br />

produtiva, simbólica ou de adestramento ou disciplinar, este autor afirma que “o mais freqüente<br />

é que os três componentes coabitem” nas categorias que ocupavam. (1979, p. 223-4).<br />

134<br />

Gênero, mulheres e feminismos


A organização do espaço fabril da indústria fumageira era,<br />

portanto, um dos principais meios de disciplinamento das trabalhadoras,<br />

além do controle do tempo, que as submetia aos rigores<br />

do cumprimento da produção, considerando, ainda, a exigência<br />

da qualidade. Por outro lado, essas ações jamais se concretizariam<br />

espontaneamente ou através de meras ordens dos superiores hierárquicos<br />

das trabalhadoras: foi preciso recorrer à implementação<br />

do mais antigo instrumento de controle, a vigilância constante<br />

dos mestres, uma das “células periféricas do poder” nas fábricas.<br />

Esses, auxiliados pelos contramestres e passadores de charutos,<br />

estavam destinados ao trabalho de observar, fiscalizar e controlar<br />

todo o processo de trabalho da confecção dos charutos; de fazer as<br />

anotações e encaminhá-las aos devidos setores; e de disciplinar as<br />

trabalhadoras.<br />

Segundo Foucault, foi nas corporações de ofícios do século<br />

XVII que surgiram os personagens do mestre e contramestre, este<br />

último destinado “não só a observar se o trabalho foi feito, como<br />

pode ser feito rapidamente e com gestos melhor adaptados”, uma<br />

vez que “as técnicas de poder foram inventadas para responder<br />

às exigências da produção” no sentido amplo (1979, p. 106; 223).<br />

A necessidade dessas funções era reveladora da trama política<br />

que envolvia os sujeitos no espaço fabril, pois, frequentemente,<br />

registravam-se casos de erros propositais na produção, desobediência<br />

e reincidência em práticas proibidas pelo regulamento das<br />

fábricas, gerando um repertório de punições, desde a advertência<br />

verbal e escrita, à suspensão e, até, à demissão.<br />

Os métodos de disciplina implantados nas fábricas controlavam<br />

não apenas a produção, mas a qualidade dos produtos, desde<br />

a seleção dos tipos de fumo, o tratamento dado a cada folha do tabaco<br />

à confecção e embalagem dos charutos. Contudo, “o controle<br />

não atingia o próprio gesto”, não atingia o ritmo dos movimentos<br />

dos braços e mãos no vai-e-vem do abrir e enrolar os fumos até<br />

Gênero, mulheres e feminismos 135


obter o produto final. Para realizar a produção, as fábricas dependiam<br />

de cada charuteira, do seu talento e da habilidade de suas<br />

mãos que, com arte e ciência fazia e refazia os detalhes, buscando<br />

a perfeição, em cada segundo, para, então, surgir o charuto, como<br />

uma peça de arte, das mãos da artista, pois, enquanto confeccionavam<br />

os charutos e cigarrilhas, as mãos das charuteiras sobre a<br />

matéria-prima formavam uma simbiose a galgar a perfeição estética<br />

e o bom paladar deste produto que alimentava o gosto e a<br />

preferência dos seus adeptos.<br />

A qualidade do fumo e da mão de obra determinava o resultado<br />

final da produção, ou seja, sua qualidade e quantidade. (SILVA,<br />

2001) Preparar os fumos e confeccionar os charutos constituía o<br />

campo de saber das fumageiras que, ao estabelecer relações com<br />

outros campos de saber existentes no espaço fabril, determinavam<br />

uma prática social de poder específica. Apesar da fiscalização<br />

e da disciplina impostas pelos fabricantes que resultavam, diretamente,<br />

no controle dos corpos das fumageiras, elas detinham<br />

todo o saber da preparação dos fumos e da confecção dos charutos,<br />

acumulando, portanto, uma gama de poder e de controle,<br />

também, sobre a produção.<br />

Embora a indústria fumageira, naquele momento, já tivesse<br />

introduzido a separação entre trabalho manual e trabalho intelectual<br />

no processo de industrialização do fumo, grande parte do<br />

saber sobre as tarefas específicas de tratamento dos fumos e da<br />

fabricação de charutos e cigarrilhas ainda era dominada pelos(as)<br />

trabalhadores(as). É neste sentido que se concorda com Foucault<br />

(1979), quando ele afirma que “o saber acarreta efeitos de poder”,<br />

pois o saber das mulheres fumageiras representava uma força poderosa<br />

temida pelos empresários, o que permitia a constituição de<br />

novas relações no campo do poder no universo fabril regional.<br />

136<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Considerações finais<br />

As relações de trabalho são uma forma particular das relações<br />

sociais e, por isso, não se constituem apenas pelas questões de<br />

classe dissociadas das demais; ao contrário, é, exatamente aí que<br />

residem as questões de raça, gênero e geração e, portanto, relações<br />

perpassadas e cingidas de poder e pelo poder. As intrincadas<br />

relações tecidas pelos sujeitos no âmbito do trabalho, independentemente<br />

do tipo de atividade exercida ou da posição que cada<br />

um ocupa na hierarquia do poder, são, na maioria das vezes, tensas,<br />

conflituosas e carregadas de desconfiança. O fato de que nem<br />

sempre são vistas e interpretadas desta forma se deve à maneira<br />

como são constituídas, conforme o contexto e as situações em que<br />

cada indivíduo ou grupo se encontra inserido, nos quais as disputas,<br />

as lutas e a negociação entre o superior e o subalterno, bem<br />

como entre os subalternos, podem ocorrer tanto de forma aberta<br />

e direta, como fechada e sutil, amistosa ou não.<br />

O campo de forças se estabelece a partir de uma rede de relações<br />

e, não apenas, a partir de dois polos isolados, um positivo<br />

e outro negativo, um ativo e o outro passivo. Assim, não se pode<br />

compreender um campo de forças, em se tratando das relações<br />

dos sujeitos em seus espaços de trabalho, apenas, pelo viés do<br />

conflito aberto e das lutas organizadas; é preciso perceber todas as<br />

formas de luta que se estabelecem entre os indivíduos especificamente<br />

nesse espaço, mesmo porque não cabe mais a compreensão<br />

de que há, de um lado, aquele(a) que manda, que detém o poder e,<br />

portanto, o/a que explora e, de outro lado, aquele(a) que apenas<br />

obedece e sofre passivamente a ação daquele(a) que manda, portanto,<br />

não detém poder algum e é de todo explorado(a).<br />

É a partir dessa compreensão e desse contexto que deverá se<br />

desenvolver a análise direta da resistência inventiva das mulhe-<br />

Gênero, mulheres e feminismos 137


es fumageiras do Recôncavo Baiano, especificamente na primeira<br />

metade do século XX, considerando as relações de poder que, historicamente,<br />

entrelaçavam as ações dos sujeitos e que permeavam<br />

outras relações, como as de gênero, raça e classe.<br />

Referências<br />

ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA. Secretaria da Agricultura.<br />

Série: Fotografia sobre a cultura fumageira. S/d cx. 2378, março 149,<br />

doc. 557.<br />

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Málaga, 1993. p. 19-42.<br />

SHOTTER, John; LOGAN, Josephine. A penetração do patriarcado: sobre<br />

a descoberta de uma voz diferente. In: GERGEN, Mary Mccaney.<br />

138<br />

Gênero, mulheres e feminismos


O pensamento feminista e a estrutura do conhecimento. Brasília:<br />

Edumb/Rosa dos Tempos, 1993. p. 91-109.<br />

SILVA, Elizabete Rodrigues da. Fazer charutos; uma atividade<br />

feminina. Salvador, 2001. 203p. Dissertação (Mestrado em História)<br />

– Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da<br />

Bahia, Salvador, 2001. Disponível em: .<br />

Gênero, mulheres e feminismos 139


A PERIFERIA, A CASA E A RUA<br />

limites difusos na cidade<br />

Iracema Brandão Guimarães<br />

Introdução<br />

O título deste trabalho remete a um clássico das Ciências Sociais,<br />

Roberto Da Matta (1997, p. 26), ao situar a casa e a rua como<br />

instâncias sociais separadas, (assim como os espaços públicos e<br />

privado). Analiticamente, essas instâncias se apresentam como<br />

opostas e, ao mesmo tempo, complementares, uma vez que nelas<br />

a sociedade é representada por relações impessoais − o mundo da<br />

rua − enquanto o domínio das relações pessoais se refere à casa, à<br />

dimensão privada e encoberta. Interpretada como o ambiente da<br />

família, o espaço moral, o domínio privativo e íntimo, esse espaço<br />

se assemelharia a um palco, um local físico, onde os atores parecem<br />

não comparecer. Nos termos de semelhante oposição, embora<br />

situada em menor escala, Pierre Bourdieu (2009, p. 439-41)<br />

descreve a parte alta e a parte baixa da casa, na sociedade Kabyla,<br />

na qual se reproduz o que se encontra estabelecido como “dentro”


e “fora” – a parte íntima e reservada da casa como o espaço feminino<br />

e a parte destinada à recepção, jardins e áreas externas, como<br />

espaço masculino.<br />

Reportamo-nos a essas duas referências para introduzir alguns<br />

aspectos de um trabalho empírico realizado com moradores<br />

da periferia urbana, na cidade de Salvador, para os quais esses<br />

espaços assumem, atualmente, conotações, às vezes, diversas do<br />

destaque inicial. Para tanto, introduzimos algumas referencias teóricas<br />

que permitem interpretar as atuais mudanças nas relações<br />

entre o público e o privado, tanto do ponto de vista da própria<br />

esfera privada e da família como do ponto de vista das relações<br />

comunitárias, da vizinhança e das redes sociais que caracterizam<br />

esta última. Isto porque tais espaços são marcados pelas posições<br />

dos agentes sociais em razão da desestabilização do mundo do<br />

trabalho, tal como ocorreu no Brasil a partir da década de 80, trazendo<br />

problemas cruciais como o crescente desemprego juvenil e<br />

a intensificação do trabalho das mulheres, sendo este último muitas<br />

vezes interpretado como estratégia compensatória da pobreza<br />

nas camadas populares.<br />

Esses dois problemas (desemprego juvenil e trabalho feminino)<br />

que resultam das transformações do mundo do trabalho, se encontram<br />

associados às mudanças que atingem as instituições primordiais<br />

(família e comunidade). Trata-se, portanto, de um processo<br />

de desestabilização das estruturas produtivas e salariais, através da<br />

redução das legislações protetoras e dos direitos do trabalho, que<br />

atingem, principalmente, as empresas e, através desta instabilidade<br />

que advém da situação de trabalho, esta se transmite aos eixos de<br />

integração (família e comunidade) de modo a afetar os limites entre<br />

a casa (vida privada, família) e a rua (comunidade, espaço público).<br />

A apresentação desse esquema analítico, de modo bastante<br />

amplo, requer um recorte que permita revelar os aspectos mais<br />

importantes da vida de homens e mulheres situados como traba-<br />

142<br />

Gênero, mulheres e feminismos


lhadores informais e precários, residentes em bairros nos quais os<br />

difusos limites entre a casa e a rua se tornam mais evidentes. Neste<br />

texto, buscamos trazer alguma contribuição a um debate relativo<br />

ao mundo da periferia, revisando alguns argumentos de autores<br />

que nele comparecem de modo convincente e trazendo algumas<br />

situações relativas aos contextos de moradia na periferia da cidade<br />

de Salvador, Bahia, Brasil.<br />

Reciprocidade e solidariedade familiar<br />

Residir nas periferias, aqui consideradas como os espaços urbanos<br />

ocupados pelas populações de baixa renda, implica em ser<br />

submetido a intensos processos de desestabilização e deterioração<br />

das condições de vida, ao tempo em que se é duplamente desafiado:<br />

primeiramente, a reinventar continuamente os modos de<br />

mobilização de recursos (as trocas, a solidariedade, a inserção na<br />

vida comunitária) os quais se tornam cada vez mais urgentes para<br />

assegurar a sobrevivência e a reprodução das famílias nos bairros<br />

populares ou periferias e, segundo, a garantir a inserção no mercado<br />

de trabalho. Sobre isso, cabe considerar que,<br />

[...] nem todas as pessoas que não dispõem da propriedade de<br />

meios de produção se apresentam, realmente, como ofertantes<br />

no mercado de trabalho (como é o caso das crianças, dos deficientes,<br />

ou dos muito idosos). Os nichos, espaços livres, e ‘áreas<br />

de escape’ onde – inicialmente na comunidade familiar – se<br />

reproduzem os despossuídos que não são trabalhadores assalariados,<br />

fundamentam-se socialmente em normas culturais e<br />

políticas que fixam, do modo mais ou menos duradouro, quais<br />

pessoas, e em que situações de vida, não precisam ou não podem<br />

oferecer sua força de trabalho no mercado. (OFFE; HENRICHS,<br />

1989, p. 57)<br />

Essa função da comunidade familiar – de reprodução dos despossuídos<br />

e de não trabalhadores – se propaga às outras situações,<br />

Gênero, mulheres e feminismos 143


como o trabalho precário ou o desemprego aberto, nas quais se<br />

aprofundam as experiências da pobreza. Em tais casos, os recursos<br />

somados da família se tornam cruciais, como observa Mike Davis<br />

(2006, p. 175), “em todo o 3º Mundo, os choques econômicos<br />

obrigaram os indivíduos a se reagruparem em volta dos recursos<br />

somados da família, e da capacidade e engenhosidade desesperada<br />

das mulheres”. Por outro lado, Ladislaw Dowbor (2003,<br />

p. 23) também observa que “a família deixa de representar rede de<br />

apoio, implicando em maior perda para as populações pobres”.<br />

As duas observações aparentemente contrastantes chamam<br />

a atenção para um aspecto aqui considerado, ainda que de modo<br />

geral, e que se refere ao papel agregador exercido pela família –<br />

e paralelamente pela comunidade/vizinhança. Tratando-se de<br />

um fenômeno observado ao longo da história, sua modificação se<br />

manifesta na atualidade como uma perda, um ponto de inflexão<br />

das instituições integradoras, o que nos remete às transformações<br />

das próprias estruturas familiares e das relações de gênero. Cabe<br />

esclarecer que o destaque acima atribuído ao papel agregador da<br />

família, encontra expressão em diferentes níveis da vida social,<br />

o que explicaria a sua importante mediação na reprodução da<br />

força de trabalho e da própria sociedade. Nesse sentido, as transformações<br />

do mundo do trabalho afetam a esfera da família e da<br />

reprodução, a ponto de estudos anteriores demonstrarem que os<br />

sistemas de benefícios sociais que foram desenvolvidos na Europa<br />

e, posteriormente, suprimidos nas últimas décadas, em função<br />

das crises econômicas e da desestabilização do emprego e dos benefícios<br />

concedidos à classe trabalhadora, implicaram em redução<br />

dos salários, das aposentadorias e do número de pessoas cobertas<br />

por seguro social. Isso contribuiu para modificar as possibilidades<br />

de a família cumprir, com a eficiência que o fazia anteriormente,<br />

um papel de “amortecedora” nas conjunturas de crise e ajustamentos<br />

econômicos. (LAUTIER, 1992 apud MONTALI, 2004)<br />

144<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Embora a questão requeira uma análise mais profunda para<br />

caracterizar de maneira satisfatória a crise ou desmonte da “sociedade<br />

salarial” (CASTEL, 1998, p. 48), o seu contraponto reaparece,<br />

no que tange ao papel da família nos termos anteriormente<br />

citados. A esse respeito, Pedro Vera e Marcos Díaz (2009, p. 125)<br />

contribuem para tal debate, utilizando a noção de familismo para<br />

pensar um modelo de solidariedade familiar e de parentesco cuja<br />

eficácia se mantém e apresenta sólidos laços, segundo afirmam<br />

os autores. Isso é observado, de modo especial, na Europa do Sul,<br />

enquanto nos países anglo-saxões tal fenômeno não ocorre com a<br />

mesma intensidade, pelo fato de a família nuclear se tornar mais<br />

rara – por exemplo, nos EEUU, a proporção da mesma passou de<br />

cerca de 45%, em 1970, para perto de 25%, em princípios do sec.<br />

XXI (CARLING; DUNCAN, 2002 apud VERA; DÍAZ, 2009), indicando<br />

que as famílias monoparentais é que se tornam cada vez<br />

mais frequentes.<br />

Segundo a referida argumentação, continua pertinente a referência<br />

a um modelo de micro solidariedade familiar, identificado<br />

empiricamente na Espanha e na Itália (VERA; DÍAZ, 2009), o que<br />

indicaria um interesse renovado no funcionamento da dinâmica<br />

familiar e reitera a hipótese de sua função de “amortecedora” das<br />

carências do Estado. Entretanto, ressalta-se, desta vez, a contribuição<br />

das mulheres em prover cuidados não remunerados, principalmente,<br />

para as crianças, idosos e doentes, revisitando-se a<br />

temática que hoje se atualiza sob o rótulo dos “cuidados”, onde<br />

se discute que uma parte importante das atividades de bem-estar<br />

e satisfação vital dos cidadãos continuaria coberta pela família<br />

(mesmo sem a ajuda pública), embora, nem sempre se faça o<br />

devido reparo de que a exacerbação desta função faz recair sobre<br />

ela (família) um protagonismo excessivo, lançando-lhe o ônus de<br />

suas próprias necessidades − dentro da atual lógica neoliberal.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 145


A renovação de tal debate leva outros observadores a se concentrarem<br />

nas mudanças resultantes das novas formas familiares,<br />

dentre as quais se destaca a redução de tamanho da rede de parentesco<br />

que afeta, de maneira desigual, as gerações, observando-se<br />

que os atuais adultos têm acesso a uma considerável rede de familiares<br />

diretos, o que não mais ocorre com as novas gerações. Assim,<br />

a fragilização da rede familiar enquanto âmbito de exercício da solidariedade<br />

entre as gerações constitui um dos importantes pontos<br />

de reflexão sobre uma provável perda de influência da família extensa<br />

e uma crise da família moderna, fenômenos que ocorrem com<br />

maior intensidade nas sociedades complexas ou pós-industriais.<br />

Para outros, a queda da natalidade e a redução do tamanho da família<br />

não implicariam, necessariamente, na fragilização da solidariedade<br />

relacional das redes de parentesco. Ainda que se verifique uma<br />

tendência à separação convivencional entre as gerações, isto tende<br />

a ser contrabalançado pelo aumento da esperança de vida que pode<br />

ampliar as possibilidades de interação entre três gerações.<br />

Entretanto, prevalece o argumento de que a vida urbana implica<br />

em maior distância física, o que também dificulta a convivência<br />

familiar, enquanto outros observadores retrucam que isso<br />

não elimina o intercâmbio afetivo, a ajuda e os serviços entre familiares,<br />

a tal ponto que se vive hoje a emergência da “intimidade<br />

à distância”, propiciada pelas tecnologias – celular, internet – que<br />

possibilitam alguma revitalização das relações familiares. (VERA;<br />

DÍAZ, 2009, p. 126)<br />

Esses argumentos permitem indagar até que ponto, na ausência<br />

da “sociedade salarial” e dos seus benefícios e direitos adquiridos<br />

pelos trabalhadores, a solidariedade familiar continua<br />

a ser uma garantia de proteção, se considerarmos um conjunto<br />

de novas situações decorrentes do fato que a família não é mais a<br />

mesma, tanto do ponto de vista demográfico como do ponto de<br />

vista do domicílio, da casa, enquanto ambiente privado, domínio<br />

146<br />

Gênero, mulheres e feminismos


privativo e íntimo dos direitos e obrigações morais, os quais são<br />

afetados pelas mudanças das redes de parentesco e das relações de<br />

gênero, estas últimas consideradas enquanto relações de poder.<br />

O argumento anterior que se baseou na eficácia do modelo<br />

de solidariedade familiar e de parentesco, parece, no entanto,<br />

contrariar uma tese anterior de André Michel (1981) que alertava<br />

sobre “o mito do familismo”, entendendo-o como uma ideologia<br />

que nasceu do modo de vida baseado em um modelo da<br />

família conjugal composta pelo casal e filhos, correspondente à<br />

prática e ao ideal de uma classe minoritária ascendente, a burguesia,<br />

e pressupondo a existência de um marido que exerce a posição<br />

de provedor e uma esposa que realiza atividades domésticas.<br />

As ponderações desse autor conduzem à relativização desse modelo,<br />

observando-se que não é identificado da mesma forma nas<br />

demais classes sociais, nem no meio rural, onde as mulheres exercem<br />

frequentemente atividades extradomésticas e a família conjugal<br />

é menos frequente, citando-se, sobre isso, dados relativos<br />

ao Terceiro Mundo, onde uma em cada três famílias é dirigida por<br />

uma mulher desde a década de 80. (MICHEL, 1981, p. 2)<br />

Novas situações indicam que a família não é mais a mesma,<br />

o que pode ser interpretado através da distinção de um primeiro<br />

tipo familiar moderno (SINGLY, 2000) correspondente ao período<br />

inicial do século XX e perdurando até os anos 60, caracterizado<br />

pela presença de uma “lógica de grupo” centrada no amor e afeto,<br />

na qual os adultos se colocam a serviço do grupo e das crianças,<br />

geralmente baseada no trabalho masculino e na atividade doméstica<br />

da mulher; e um segundo tipo, que emerge a partir dos anos<br />

60, quando começa a predominar uma “lógica individualista e relacional”,<br />

baseada em reivindicações de autonomia e no desejo de<br />

escolher a convivência na esfera privada. Para o autor:<br />

Assim se constroem e se desfazem as famílias contemporâneas,<br />

percebidas como um novo modo de convivência entre as indivi-<br />

Gênero, mulheres e feminismos 147


dualidades masculina e feminina, cujas singularidades tendem<br />

a se sobrepor à ‘lógica de grupo’ que demarcava um modo de<br />

convivência anterior. (SINGLY, 2000, p. 15)<br />

O argumento da “lógica de grupo” parece estar, portanto, na<br />

base da solidariedade familiar (e do papel agregador) até aqui discutida<br />

e implícita no conceito de familismo apresentado por Vera<br />

e Díaz (2009). Observa-se, no entanto, que as práticas que sustentam<br />

tal lógica não estariam exclusivamente associadas à família<br />

conjugal e à existência do casamento, o que parece condizente<br />

com a realidade da vida doméstica e familiar existente na periferia<br />

das cidades. Para tanto, Robert Castel explica que à sociabilidade<br />

primária cabe o papel de integração entre os membros de um grupo,<br />

sejam familiares, amigos ou vizinhos ou, ainda, do ambiente<br />

de trabalho, onde os indivíduos vivem “em redes de interdependência<br />

sem a mediação de instituições específicas”, e considera<br />

que, nas sociedades reguladas por essa interdependência, a integração<br />

primária pode ser ameaçada dos processos de desfiliação<br />

que dissolvem os sistemas familiares e os sistemas de interdependência<br />

fundados sobre as relações comunitárias. (1998, p. 48) 1<br />

Tratando-se de situações nas quais os indivíduos vivem “em<br />

redes de interdependência”, Mercedes de la Rocha (1999) discute<br />

um modelo teórico das estratégias de intensificação da mão de<br />

obra familiar e de ajuda mútua, considerando a sua relação com<br />

contextos históricos e sociais de crises econômicas e desemprego.<br />

Para essa autora, as redes de relações nem sempre funcionariam<br />

como “colchões amortecedores da pobreza”, sugerindo, então,<br />

que se conheça com mais acuidade em quais contextos ela continua<br />

a operar na garantia da sobrevivência. O seu argumento se<br />

baseia no fato de que as redes sociais alimentam as expectativas<br />

1 Para Castel (1998), a reestruturação das redes de integração pode ocorrer mediante a utilização<br />

de recursos próprios a um grupo, família ou comunidade, quando tais relações são submetidas<br />

a processos de rupturas.<br />

148<br />

Gênero, mulheres e feminismos


dos participantes de receberem bens e serviços e de retribuí-los,<br />

fazendo com que a participação implique em custos materiais,<br />

tempo, dedicação, “estar disponível” sempre que se é requerido,<br />

o que traz dificuldades de retribuição nas situações de extrema<br />

pobreza. Questionando, igualmente, a reciprocidade como regra,<br />

Rubens Kaztman (2001) discute de que maneira o parentesco e os<br />

velhos laços de amizade podem servir como articulações no processo<br />

de migração para as cidades.<br />

Por outro lado, Amalia Eguía focaliza os mesmos fatos, como<br />

estratégias complementares de reprodução que não se limitam ao<br />

chefe da família, mas se estendem a outros membros do domicílio,<br />

como maneiras de maximizar a renda e demonstrar o papel<br />

da organização doméstica como parte do processo de reprodução<br />

familiar, divisão sexual de trabalho e participação das mulheres.<br />

Amplia-se, assim, o foco para as redes informais de ajuda mútua<br />

que se constituem em um dos meios permanentes de reprodução,<br />

com a prestação de serviços gratuitos baseados na confiança e na<br />

reciprocidade (o “cuidado”), especialmente, entre pessoas unidas<br />

por relações de parentesco, vizinhança ou amizade. Esses estudos<br />

alertam, sobretudo, para o fato de que a pobreza não é homogênea<br />

e as relações intrafamiliares com os âmbitos externos aos domicílios<br />

apontam para a existência de organizações conflitivas, cujos<br />

membros manifestam interesses divergentes ou contraditórios,<br />

onde a distribuição de direitos e obrigações depende mais das relações<br />

de poder internas – de gênero – e menos de acordos de solidariedade,<br />

parentesco, vizinhança. (EGUÍA, 2004)<br />

Reciprocidade e solidariedade na periferia<br />

de Salvador<br />

Podemos, então, considerar que a mobilização de redes sociais<br />

não é um dado nem uma regra e quando ocorre isto pode indi-<br />

Gênero, mulheres e feminismos 149


car que se trata mais de um atributo definidor das relações estabelecidas<br />

entre parentes, vizinhos ou amigos entre os quais a<br />

reciprocidade pode ser um pressuposto. As questões apresentadas<br />

anteriormente permitem abordar os dados empíricos correspondentes<br />

a duas fases de pesquisa realizadas em Salvador, em 2002,<br />

e, posteriormente, em 2010. Metodologicamente, nos baseamos<br />

no estudo das periferias urbanas, que remete, primeiramente, ao<br />

enfoque urbanístico – apontado como hegemônico sobre o tema<br />

– no qual se parte das causas e consequências do problema habitacional<br />

e dos déficits de moradia para identificar as soluções consideradas<br />

espontâneas ou informais de habitação popular, como as<br />

favelas e os loteamentos ou ocupações periféricas. (SOUZA, 2008,<br />

p. 37)<br />

Para Lícia Valladares e Lidia Medeiros, o tema das favelas vem<br />

sendo abordado desde os anos 40, tendo sido intensificado na fase<br />

que correspondeu à erradicação das favelas, ao longo das décadas<br />

de 70 e 80, através da atuação de agências públicas. Na década<br />

de 90, a intensificação de estudos foi marcada pela expansão do<br />

poder público e das Organizações Não-governamentais (ONGs),<br />

mas passou a se identificar por um distanciamento das posturas<br />

consideradas “antifavela”. (BURGOS, 1998 apud VALLADARES;<br />

MEDEIROS, 2003, p. 12) Nesse caso, desenvolve-se um enfoque<br />

social e crítico, que encontramos no uso mais generalizado do<br />

termo periferia substituindo o termo favela, em que “periferia”<br />

passa a expressar um distanciamento dos referenciais urbanísticos<br />

(marcado pela ausência do poder público), com a ressalva feita<br />

por Silva (2010) de que<br />

[...] o conceito de periferia é reduzido ao distante, embora a cidade<br />

contemporânea não tenha mais um único centro; a maioria<br />

das favelas está na periferia do ponto de vista econômico, mostrando<br />

que este conceito é cada vez mais vinculado à ordem social<br />

e ao poder, e marcado pela questão social.<br />

150<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Esse último argumento permite introduzir observações sobre<br />

a realidade dos locais de moradia da população de baixa renda na<br />

cidade de Salvador, atualmente a terceira cidade em número de<br />

habitantes do Brasil. Partimos de um conjunto formado por 116<br />

bairros definidos pelo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano<br />

(PDDU) de Salvador como Zonas Especiais de Interesse Social<br />

(ZEIS) 2 cujos critérios de identificação são a faixa de renda dos<br />

moradores e as más condições de habitabilidade, sendo que a sua<br />

delimitação permite chegar-se a uma seleção de bairros com base<br />

na localização dos mesmos nos três vetores de expansão urbana<br />

de Salvador − a Orla Marítima e o Centro; o Miolo Geográfico; e o<br />

Subúrbio Ferroviário. Utilizamos tal critério para indicar as diferenças<br />

e semelhanças quanto à origem da ocupação ou moradia,<br />

seja como ocupações populares, invasões ou favelas, e categorizadas<br />

como ZEIS (PDDU, 2004), o que oferece a possibilidade de se<br />

conhecer alguns aspectos do modo de vida da população pobre,<br />

especialmente no que se refere às famílias e vizinhanças, aos jovens<br />

e crianças que vivem nesses contextos marcados pela precarização<br />

e vulnerabilidade social.<br />

No sentido restrito, o Subúrbio Ferroviário é a área na qual se<br />

concentram os bairros mais pobres da cidade e onde há ausência<br />

de infraestrutura e serviços básicos. Desde a criação da Região<br />

Metropolitana de Salvador (RMS), em 1972, o Subúrbio Ferroviário<br />

se define “de forma decisiva como periferia da cidade, deixando<br />

para trás um passado distante, no tempo e na aparência,<br />

em que consistia em local de veraneio da classe média baiana”.<br />

(PIMENTEL, 1999, p. 35) Se é verdade que a periferia não está<br />

2 Esta categoria nomeia uma política pública desenvolvida na área habitacional, com vistas<br />

a modificar uma realidade existente até 1970, quando as ocupações e invasões não faziam<br />

parte da legislação urbanística e não faziam parte da cidade. Nos anos 80, como resultado<br />

da luta de moradores, surgiu este instrumento urbanístico, e segundo Raquel Rolnik (1998),<br />

este instrumento permite que as áreas antes marginalizadas sejam incorporadas ao conjunto<br />

da cidade por meio de uma legislação própria (que visa o atendimento das suas demandas<br />

específicas).<br />

Gênero, mulheres e feminismos 151


desarticulada do restante da cidade e se reafirma não pela exclusão<br />

mas pelo papel que exerce em um contexto mais amplo da cidade,<br />

isso se consolidou, no passado, tanto por uma expansão de caráter<br />

“periférico”, desde os anos 50, quanto pelas ocupações primárias,<br />

de nível inferior, que, em grande parte, tiveram a função pioneira<br />

de conquistar novos espaços urbanos levando, em muitos casos, à<br />

sua valorização posterior. (BRANDÃO, 1978)<br />

Além disso, a tradicional periferia também se caracteriza pelos<br />

circuitos sociais que articulam a moradia, o trabalho e o consumo.<br />

Boa parte do pessoal ocupado residente na periferia, muitas<br />

vezes, tem situação indefinida, como empregado com e sem carteira<br />

assinada, o que indica proporções mais elevadas desta situação<br />

indefinida entre os responsáveis por domicílios residentes<br />

em Alagados, S. João do Cabrito, Plataforma, Alto da Terezinha,<br />

Rio Sena, Periperi, Fazenda Coutos, Nova Constituinte, Coutos,<br />

Paripe, Boa Vista do Lobato e Capelinha. A maior concentração de<br />

mulheres como chefes de domicílios residentes no local, inseridas<br />

de forma precária no mercado de trabalho, como a prestação de<br />

serviços domésticos e outros serviços pessoais (COSTA, 2007) indica<br />

que, a maioria aufere rendimentos, às vezes, inferiores a um<br />

salário mínimo (mais de 18%) em praticamente todos os bairros<br />

desta área residencial. Além disso, aí se encontram as mais altas<br />

médias de moradores por domicílio em relação ao total da cidade,<br />

com alta carga de dependência (filhos pequenos e outros parentes)<br />

cujas casas estão situadas nas áreas mais pobres deste importante<br />

espaço urbano.<br />

Guimarães (2002) observou que nesses bairros, a maior distância<br />

física que caracteriza a vida urbana, também dificulta a<br />

convivência familiar, confirmando os argumentos citados anteriormente<br />

em relação à fragilização da rede familiar como âmbito<br />

de exercício da solidariedade. Assim, as mulheres entrevistadas<br />

residentes em Alagados, Coutos, ou Vista Alegre, argumentam:<br />

152<br />

Gênero, mulheres e feminismos


“Os parentes estão longe”; “A família mesmo é mais difícil, torna-se<br />

mais fácil contar com um estranho”; “Ter um bom amigo<br />

vale mais do que parente”; “Procuro resolver tudo com o marido e<br />

os filhos, não recorro à família, apesar de me relacionar bem com<br />

eles (os irmãos)”. Em muitos dos casos considerados, as moradoras<br />

residem nos bairros há cerca de dez anos, em média, o que<br />

geralmente implica em afastamento da família de origem, quando<br />

residente na área rural ou em bairro distante.<br />

Comunidade, vizinhança – a rua<br />

Segundo os argumentos já citados, a partir da interação entre<br />

as unidades residenciais e de vizinhança, pode-se continuar<br />

cumprindo a função de compartir funções domésticas, o que depende<br />

da circulação e da dinâmica entre os indivíduos no cotidiano<br />

dos bairros populares. Essa questão também permite retomar<br />

a relação entre espaços públicos e privados – buscando entender<br />

até que ponto estas relações cumprem aquele papel chave de mecanismo<br />

de reprodução cotidiana e de amenização da experiência<br />

da pobreza. Robert Cabanes (2006) contribui para essa reflexão,<br />

analisando as interações entre espaço público e privado e considerando<br />

as famílias mais populares como mais expostas às influências<br />

externas provenientes do espaço público. Partindo da<br />

diferenciação entre espaço privado e família, o autor atribui relativa<br />

autonomia a ambos frente ao espaço público, discutindo o<br />

espaço privado – no sentido de privacidade – a partir do grau de<br />

interação com o espaço público, da relação entre a casa e a rua<br />

através da qual é possível perceber como a comunidade deixa de<br />

ser apenas espaço de sociabilidade e de trocas, marcado pelas relações<br />

de confiança.<br />

Na percepção dos autores citados, as diferentes situações indicam<br />

tendências ao fortalecimento, enquanto outras mostram<br />

Gênero, mulheres e feminismos 153


situações de fragilização dessas dimensões societárias. Apreende-se,<br />

desse modo, a dinâmica de unidades mais amplas, como<br />

o bairro, a comunidade, o território, através da relação entre<br />

espaços públicos e privados pela qual se percebe um “acúmulo<br />

socioespacial das dificuldades” do contexto urbano, geralmente,<br />

acompanhando a desestabilização do mundo do trabalho nas<br />

grandes cidades (HIRATA; PRETECEILLE, 2002) ou a reorganização<br />

de práticas e estratégias populares, já que estas passam a<br />

ocorrer em um novo contexto que se caracteriza como um “movimento<br />

geral de precarização” e no qual se observa o quanto a<br />

vida social nos bairros de periferia está circunscrita ao improviso<br />

e à instabilidade, que parecem se tornar quase regra geral. Diante<br />

disso, importa localizar as situações que favorecem a constituição<br />

de redes de solidariedade, ou que tendem a debilitá-las, fragilizálas<br />

e a romper suas potencialidades de capital social. 3<br />

Mercedes de la Rocha (1999) analisa o caso do México, apontando<br />

elementos que provocam uma erosão dos sistemas de apoio<br />

em contextos de exclusão do emprego, explicando como ocorre<br />

a busca de soluções para o grande número de problemas que<br />

os pobres enfrentam cotidianamente através das redes sociais,<br />

da reciprocidade, da autoajuda e da ajuda mútua. Segundo o seu<br />

argumento, a participação em redes sociais implica em custos<br />

materiais, o que dificulta a retribuição nas situações de intensa<br />

pobreza e converge para um relativo isolamento social no qual a<br />

reciprocidade é ameaçada e se configura como um custo a mais<br />

para a pobreza.<br />

3 O conceito original de capital social na obra de Pierre Bourdieu é assim definido:<br />

“A rede de ligação é o produto de estratégias de investimento social, consciente ou<br />

inconscientemente orientadas em direção à institucionalização ou à reprodução de relações<br />

sociais diretamente utilizáveis, em curto ou longo termo, ou seja, em direção à transformação<br />

de relações contingentes, como as relações de vizinhança, de trabalho, ou mesmo de<br />

parentesco, em relações às vezes necessárias e eletivas, implicando em obrigações duráveis<br />

(sentimentos de reconhecimento, de respeito, de amizade), ou institucionalmente garantidas<br />

(através de direitos), (1998, p. 67).<br />

154<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Rubén Kaztman (2001) também analisa a inquietude e a insegurança<br />

de crescente parcela da população no contexto latino-americano,<br />

pela ligação precária e instável com o mercado<br />

de trabalho e pelo seu isolamento progressivo das correntes predominantes<br />

na sociedade, enfatizando as mudanças ocorridas na<br />

estrutura social que contribuem para um isolamento social dos<br />

pobres urbanos, através dos seguintes fatores: redução dos âmbitos<br />

de sociabilidade informal entre as classes quanto ao uso dos<br />

mesmos serviços e, consequentemente, redução dos problemas<br />

de domínio comum enfrentados pelas famílias na vida cotidiana.<br />

Assim, as transformações no mundo do trabalho afetam os<br />

segmentos dos pobres urbanos, não apenas pela instabilidade de<br />

emprego e queda dos níveis de remuneração (precarização), como<br />

também, pelo fato de o lugar de trabalho constituir um meio privilegiado<br />

de construção de redes de amizades e de acesso a informações<br />

e serviços, constituindo, assim, uma dimensão de capital<br />

social individual. Quanto à dimensão do capital social coletivo,<br />

esta se expressa através das interações entre trabalhadores de<br />

distintas qualificações. Nesses casos, pressupõe-se que a existência<br />

de tais subestruturas e o seu deslocamento enquanto eixos de<br />

integração na sociedade – das instituições primordiais (família e<br />

comunidade) para o mundo do trabalho –, significa que no novo<br />

contexto econômico global, mas desigual, grandes parcelas da<br />

população não logram estabelecer vínculos estáveis e protegidos<br />

com o mercado de trabalho e assim desconhecem tais processos<br />

de integração social. (KAZTMAN, 2001) Além disso, a concentração<br />

dos pobres no plano espacial (os bairros) gera uma segregação<br />

residencial, cuja origem se encontra no processo de concentração<br />

de renda e que se reflete na privação material e no baixo acesso ao<br />

consumo.<br />

Nos bairros da “Periferia de Salvador” observam-se semelhantes<br />

fatores em atuação, tais como a instabilidade, a insegurança e a<br />

Gênero, mulheres e feminismos 155


incerteza que atravessam as diferentes dimensões da vida cotidiana<br />

e restringem as perspectivas, distanciando as famílias dos processos<br />

de mobilização de recursos que antes constituíam parte do<br />

seu “habitus”. (BOURDIEU, 1989) Outro aspecto importante no<br />

contexto focalizado, é que tais problemas não são diretamente resultantes<br />

de uma desagregação ou uma crise da família − que mais<br />

parece uma instituição acuada. Tais problemas são resultantes das<br />

transformações, (fragilização, erosão) das funções ou mediações<br />

exercidas por essa instituição na sociedade, cujos impactos são<br />

mais visíveis na classe trabalhadora urbana, porque, em função<br />

dos baixos níveis de renda, se tornam mais dependentes da solidariedade<br />

e ajuda de parentes e vizinhos. Essa questão remete a<br />

um interesse renovado que as pesquisas voltadas para os processos<br />

da vida cotidiana, de mobilização de recursos, de relações de<br />

vizinhança e de confiança voltam a despertar.<br />

Esta perspectiva também se enquadra entre os estudos que<br />

repensam a problemática da reprodução e da vida cotidiana nos<br />

setores populares urbanos, entre os quais as funções ou mediações<br />

da sociabilidade e da integração são exercidas pelas famílias e<br />

pelas relações de proximidade. Os seus diferentes aspectos remetem<br />

a um conceito de reprodução social que pode ser articulado<br />

através de elementos que explicam permanências e mudanças,<br />

apontando para o uso de recursos, compreendidos como capacidades<br />

e conhecimentos dos agentes que permitem a continuidade<br />

(e integração) na sociedade. (GIDDENS, 1981, p. 3)<br />

Segundo o conjunto dos argumentos apresentados, a sociabilidade<br />

primária (familiares, amigos ou vizinhos) pode ser ameaçada,<br />

indicando uma ruptura do tecido social, o que pode levar<br />

ao desenvolvimento de processos de desfiliação e dissolução dos<br />

sistemas familiares e de interdependência, fundados sobre as relações<br />

comunitárias. (CASTEL, 1998, p. 50) Assim, a vizinhança é<br />

uma vivência comum que permeia os espaços sem delimitar, de<br />

156<br />

Gênero, mulheres e feminismos


maneira precisa e segregada, onde começa e onde terminam suas<br />

interações. Nas relações de vizinhança, o espaço público da rua<br />

pode se transformar em um ambiente “familiar” intercambiando<br />

esferas do mundo exterior. Mas a relação entre a casa e a rua,<br />

pressupõe, também, que a comunidade deixe de ser apenas espaço<br />

de sociabilidade e de trocas as quais são asseguradas pelas<br />

relações de confiança.<br />

Essas questões estão presentes na periferia de Salvador, entre<br />

os bairros residenciais onde se encontram as mais altas médias de<br />

moradores na cidade: a) domicílios com 6 a 8 moradores (22 a 27%,<br />

no Subúrbio); e b) domicílios com mais de 10 moradores (12,3%,<br />

em Fazenda Coutos, e 11,5%, em São João do Cabrito, Invasão de<br />

São João e Invasão de Boiadeiro). Esse alto número de moradores<br />

é representado pela presença de filhos cujas proporções mais elevadas<br />

são encontradas em Itacaranha/Praia Grande (44,7%) e em<br />

Rio Sena e Fazenda Coutos (49 a 50%), além de elevadas proporções<br />

de netos (entre 5 e 6%).<br />

A maioria das casas localizadas nesses bairros não apresenta<br />

a privacidade típica das classes médias e das sociedades economicamente<br />

mais igualitárias e as portas ficam menos solidamente<br />

fechadas que nos outros locais. A esfera privada não se constitui e<br />

as paredes podem ser delgadas, de tal forma que o que acontece<br />

dentro de uma casa pode ficar ao alcance dos olhos e ouvidos dos<br />

vizinhos; assim, a separação é menor entre a casa e a rua. Dentro<br />

de tal contexto, que prevalece na periferia, as redes sociais tendem<br />

a operar de modo desigual, como observou Guimarães (2002):<br />

— Conto com alguma ajuda de vizinhos, mas não espero nada<br />

em troca; A ajuda funciona mais, é com vizinho mesmo, já<br />

contei com ajuda de uma senhora, quando fiquei desabrigada.<br />

Quando mais precisei, um acidente com uma filha,<br />

contei com um vizinho.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 157


Em tais casos, o princípio da solidariedade, ou ajuda, permanece<br />

nas situações que demandam urgência e as relações de vizinhança<br />

podem ser vistas sob a forma de cordialidade, em um<br />

primeiro momento, como se pode observar no relato de moradoras<br />

do bairro de Coutos:<br />

— Todo mundo se dá, me relaciono com todos; Aqui não tenho<br />

o que dizer dos meus vizinhos.<br />

Mas, em um segundo momento, verifica-se a interferência de<br />

outros fatores:<br />

“Todo mundo se dá, mas não conto muito com vizinhos”; “Não<br />

costumo conversar com vizinhos sobre problemas pessoais”.<br />

Em circunstâncias semelhantes, moradoras do bairro do Uruguai,<br />

afirmaram:<br />

— Não gosto muito de envolvimento com vizinhos, é bom a<br />

gente cá e ele lá, aprendi com minha avó, se tiver sal, come<br />

com sal, se não tiver, come sem sal; Eu aqui não vou na casa<br />

de ninguém; agora, se precisar de ajuda eu dou, aí é diferente;<br />

Gosto dos vizinhos mas eles lá e eu cá”; Porque, eu só<br />

vivo dentro de casa, não tenho aproximação com ninguém<br />

assim da rua, tem gente aí que eu nem conheço na rua; Não<br />

conto com parente, nem vizinho, quando peço a um menino<br />

para comprar alguma coisa, tem que pagar.<br />

Conclusão<br />

Os argumentos apresentados permitem indagar até que ponto<br />

a noção de comunidade aplicada às relações de vizinhança subentende<br />

que estas continuam a cumprir o papel das trocas de<br />

serviços, da solidariedade e de amenização da experiência da<br />

pobreza. Buscamos, também, discutir como as famílias, situadas<br />

no contexto da vizinhança e nas suas formas de participação,<br />

158<br />

Gênero, mulheres e feminismos


encontram variadas soluções, informações e acessos a diferentes<br />

instituições e políticas públicas, através de articulações nos espaços<br />

de moradia.<br />

Essas questões vêm apresentando um interesse renovado através<br />

de metodologias de pesquisa que possibilitam a construção de<br />

novos parâmetros para a compreensão do papel das redes pessoais<br />

e sociais na atualidade. A esse respeito, Eduardo Marques et al.<br />

(2006) consideram que as redes sociais são centrais na sociabilidade<br />

dos indivíduos e no seu acesso aos mais diferenciados elementos<br />

materiais e imateriais. Nos debates sobre a pobreza, as redes são<br />

citadas como fatores-chaves na obtenção de empregos, na organização<br />

comunitária e política, no comportamento religioso e na sociabilidade<br />

em geral. O conhecimento das formas de estruturação<br />

das redes de indivíduos pobres permite se chegar ao entendimento<br />

de suas trajetórias, de seu cotidiano e de suas estratégias de sobrevivência,<br />

assim como chegar ao conhecimento de processos sociais<br />

que contribuem para a reprodução da pobreza em um sentido mais<br />

amplo.<br />

Na variada literatura apresentada nos trabalhos desses autores,<br />

encontramos uma proposta de diferenciação das redes a partir de<br />

padrões que constituem um dos principais traços diferenciadores da<br />

sociabilidade moderna, baseada em uma grande quantidade de vínculos<br />

secundários, bastante heterogêneos em conteúdo, fracos em<br />

intensidade e não necessariamente organizados territorialmente, ao<br />

contrário dos padrões característicos do mundo rural e das cidades<br />

pequenas. Outros autores argumentam que a vida nas grandes cidades,<br />

apoiada nas novas técnicas de comunicação e transporte, ajudam<br />

a superar as barreiras físicas da vizinhança e da comunidade.<br />

Segundo Ferrand (apud MARQUES; et al., 2006, p. 5), para os<br />

estudos sobre a pobreza urbana, entretanto, o fator espacial-geográfico-territorial<br />

continuaria a constituir um elemento chave da<br />

sociabilidade, indicando que as interações sociais ainda se cons-<br />

Gênero, mulheres e feminismos 159


tituem “porta-a-porta” – reafirmando os limites difusos entre a<br />

casa e a rua nas periferias da cidade. Esta perspectiva conduz ao<br />

estudo da composição típica das microestruturas no interior de<br />

comunidades/bairros, representando, portanto, um forte apelo<br />

para a continuidade das pesquisas baseadas nas novas concepções<br />

de redes pessoais e sociais que possam acrescentar e lançar novas<br />

luzes ao conjunto dos argumentos aqui apresentados.<br />

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162<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Terceira parte<br />

G<br />

Da ação política


FEMINISMO VERSO “ANTI-FEMINISMO”<br />

embates baianos<br />

Iole Macedo Vanin<br />

June Hahner, ao refletir sobre as profissionais liberais latinoamericanas<br />

no século XIX, afirma que a discussão acerca do acesso<br />

feminino à educação superior no Brasil “tornou-se um assunto<br />

digno de atenção em poucos e restritos círculos sociais” (1994,<br />

p. 55) e, acrescente-se, recheado de posições polêmicas entre<br />

“ideias feministas” 1 e “antifeministas”. 2 A autora em questão faz<br />

uma breve descrição desses debates a partir da segunda metade do<br />

século XIX. Na Bahia, também é possível mapear, através de diversas<br />

fontes, a existência de tal situação, principalmente, o embate<br />

“feministas” versus “antifeministas”. As ideias consideradas<br />

“feministas” bem como as práticas já se encontravam presentes<br />

entre nós muito antes dos oitocentos, mas é, no entanto, a partir<br />

do lapso de tempo compreendido entre as décadas iniciais dos<br />

1 Neste trabalho “idéias feministas” são compreendidas como os discursos, concepções do<br />

período que se referem à situação feminina e são favoráveis ao acesso das mulheres à educação<br />

superior e ao voto.<br />

2 Estamos denominando de “idéias antifeministas” os discursos que se manifestam contrários à<br />

inserção das mulheres no espaço público e às reivindicações pela cidadania feminina.


novecentos que existe um seu consistente registro. Apresentar e<br />

analisar alguns desses embates a partir dos discursos “antifeministas”<br />

é a finalidade do presente artigo.<br />

No confronto entre “feministas” e “antifeministas”, nota-se<br />

o conflito de uma ou mais representações em busca de prevalecer<br />

em detrimento de outra(s). É o jogo feito com o intuito de conseguir<br />

ou de manter poder, para ocupar posições estratégicas ou<br />

hegemônicas em relação a outras que lhes são antagônicas, procurando,<br />

assim, garantir os interesses do grupo a que estão vinculadas.<br />

Nas palavras de Roger Chartier:<br />

[...] sobre as representações supõe-nas como estando sempre<br />

colocadas num campo de concorrência e de competições cujos<br />

desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. As<br />

lutas de representações têm tanta importância como as lutas<br />

econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um<br />

grupo impõe ou tenta impor, a sua concepção do mundo social,<br />

os valores que são os seus, e o seu domínio. (CHARTIER, 1990,<br />

p. 17)<br />

É interessante notar que as representações defendidas nos<br />

dois grupos têm como suporte a função e os papéis femininos<br />

de mãe e esposa, definidos como pilares da família e da sociedade,<br />

demonstrando uma preocupação em manter coerência com<br />

a moral patriarcal vigente no período. 3 As “antifeministas”, ao<br />

contrário das “feministas”, tentavam convencer que a mulher,<br />

ao assumir funções tradicionais masculinas, a exemplo das profissões<br />

médicas e jurídicas, seria uma figura que traria ou desenvolveria<br />

características impróprias e incompatíveis com a função<br />

3 Adolfo S. Vasquez (2005, p. 37-60), ao definir Ética como a ciência que estuda a Moral,<br />

demonstra o caráter histórico e cultural desta última, entendida como um conjunto de normas<br />

e regras que regulam as relações dos indivíduos em uma dada comunidade. A partir dessa<br />

conceituação, compreendendo que ela não é a-histórica e associando-se a isto o fato de que<br />

todo grupo, comunidade ou sociedade pauta e regula as suas relações a partir de categorias<br />

fundantes como gênero, raça/etnia, geração e classe, podemos falar na existência de uma<br />

moral patriarcal, que é temporal e espacialmente situada.<br />

166<br />

Gênero, mulheres e feminismos


primeira da mulher, a maternidade, uma vez que se tornariam<br />

frias, mundanas, imorais, além de irem de encontro ao estabelecido<br />

pela natureza.<br />

Nos registros encontrados, o principal eixo da argumentação<br />

utilizada foram pressupostos científicos oriundos da Teoria da<br />

Complementaridade do Útero e Evolucionista, 4 ou seja, as teorias<br />

científicas europeias construídas e utilizadas nos séculos XVIII e<br />

XIX para justificar e legitimar a exclusão das mulheres da ciência<br />

foram importadas e reelaboradas para criticar, ou melhor, impedir<br />

e inibir, por exemplo, o acesso das mulheres baianas à formação<br />

e ao exercício de profissões liberais ligadas, sobretudo, à área<br />

biomédica.<br />

Nesse sentido, o primeiro exemplo é o artigo publicado na seção<br />

Variedades da Gazeta Médica da Bahia, de 31 de outubro de<br />

1868, “A mulher médica” que não possui assinatura de autoria, o<br />

que me leva a pensar que tenha sido uma produção da editoria da<br />

Gazeta, ou seja, a equipe responsável pela publicação do periódico<br />

compactuava com a ideia expressa de que a Medicina não era uma<br />

atividade a ser exercida por mulheres, pois a referida ciência devia<br />

ser exercida por indivíduos possuidores de “sangue frio”, não<br />

emocionais, “duros”. (SANTOS FILHO, 1991)<br />

Era impossível que seres delicados, “anjos de azas multicolores”,<br />

“Rosa, d’onde devem emanar os perfumes enebriantes do<br />

amor” (p. 71), puros, inocentes, frágeis e que “creou-se para esposa<br />

e mãe” (p. 72) – pois, “fez Deos a mulher para ser a companheira<br />

do homem, deo-lhe o logar mais santo da família, incumbio-lhe as<br />

funcções instinctivas da maternidade” (p. 71) – passassem a exercer<br />

uma atividade que iria transformá-las em seres sem pudor, sem<br />

timidez, com espírito forte; além disso, “a sociedade, moralmen-<br />

4 Sobre essas teorias e sua relação com as mulheres, recomenda-se a leitura de: Maria Teresa<br />

Citeli (2001), Fabíola Rodhen (2001, 2002, 2003), Ana Paula Martins (2004) e Londa Schiebinger<br />

(2005).<br />

Gênero, mulheres e feminismos 167


te, parece-nos que havia de lucrar pouco com estas acquisições”<br />

(p. 71). Nem mesmo a justificativa de que as mulheres precisam<br />

ter uma profissão para não terem de se prostituir faz com que haja<br />

uma mudança de opinião. (A MULHER..., 1868)<br />

Aliás, o artigo, nesse caso, sugere que as mulheres sejam direcionadas<br />

às atividades “dignas e próprias do seu sexo” (A MULHER...,<br />

1868, p. 72), pois, desta maneira, estas atividades deixariam de ser<br />

exercidas por homens que, ao fazê-lo, passavam os seus dias em salamaleks<br />

(frescuras?). Enfim, representações de gênero, em específico,<br />

características próprias da masculinidade, como em outros<br />

aspectos da sociedade baiana, foram requisitadas para justificar a<br />

quem se destinava a profissão médica: aos homens, pois estes, sendo<br />

viris, fortes, racionais, preparados para a vida mundana, estariam<br />

aptos a exercerem a função sem ônus morais negativos para a<br />

sociedade.<br />

Não se percebe todavia que haja prazer possível em uma mulher<br />

conviver com as doenças mais repugnantes, e passar os melhores<br />

dias da sua mocidade a dissecar cadáveres. Não pode haver<br />

mulher de gosto tão deploravelmante [sic] depravado! Para se<br />

tornar bom cirurgião e bom médico é preciso que o homem desde<br />

o começo da sua instrucção technica se dê com toda a vontade<br />

e perseverança aos estudos anatômicos. Na [sic] desempenho<br />

d’estes é mister vencer muita repugnância, desprezar muitos<br />

preconceitos, expor-se a muitos perigos. A mulher pela sua<br />

compleição, pelos seus hábitos, pela sua organização nunca poderia<br />

vencel-os. Se para ser bom prático é preciso tudo isso, a<br />

mulher nunca poderia ser boa médica. (A MULHER..., p. 70-1,<br />

grifo nosso)<br />

O viés de raciocínio que conduz esse artigo é o mesmo que se<br />

encontra nas discussões do deputado e médico pernambucano<br />

Malaquias, quando se manifesta contra a petição de bolsa de estudo<br />

feita por Josefa Águeda Felisbela Mercedes de Oliveira para<br />

cursar Medicina nos Estados Unidos, apresentada à Assembleia<br />

168<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Provincial de Pernambuco pelo seu genitor – o jornalista Romualdo<br />

Alves Oliveira. A verificação de que esse médico se utilizou da<br />

Teoria Fisiológica para apresentar o seu parecer se torna possível<br />

por meio da leitura do discurso que Tobias Barreto fez se contrapondo<br />

a Malaquias, pois as ideias defendidas pelo médico e deputado<br />

pernambucano ali se fazem presentes.<br />

A análise ou mesmo a menção do debate entre esses dois legisladores<br />

não é algo inédito nos trabalhos que versam sobre Ciência,<br />

Educação e Gênero no Brasil. Esse é um episódio já mencionado<br />

tanto por June Hahner (2003, p. 141), quanto por Heleieth Saffioti<br />

(1969, p. 215), Fabíola Rohden (2001, p. 85), Elisabeth Juliska<br />

Rago (2005b, p. 176-80) e Ana Paula Martins (2004, p. 217-58).<br />

As três primeiras apenas registram o acontecido e a posição de<br />

Tobias Barreto a favor do acesso das brasileiras aos cursos superiores,<br />

contrária à do médico Malaquias. Martins (2004), ao estudar<br />

a presença feminina nos discursos dos nossos intelectuais e médicos,<br />

na segunda metade do século XIX, e Rago (2005b), quando<br />

analisa os contextos em que as primeiras médicas estavam inseridas,<br />

fazem uma descrição do conteúdo do referido debate. Para<br />

sustentar a sua posição, o médico pernambucano se pautou em<br />

três pontos argumentativos os quais foram rebatidos pelo advogado<br />

Tobias Barreto no discurso que proferiu na sessão de 22 de<br />

março de 1874, na Assembleia Provincial de Pernambuco.<br />

O primeiro argumento de Malaquias, na verdade, foi constituído<br />

de uma omissão. Ele omitiu no discurso que realizou o acesso<br />

das mulheres às universidades bem como os debates que o envolveram,<br />

em países europeus e americanos. Essa omissão foi definida<br />

pelo jurista como uma tentativa de “má fé” de desqualificar<br />

a petição da qual ele era defensor; por isso, na primeira parte do<br />

seu discurso, cita casos de mulheres que se formaram na Suíça, na<br />

Alemanha e nos Estados Unidos da América.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 169


Mas, foi a forma como o jurista definiu esses países que me<br />

forneceu pistas para os prováveis motivos da omissão de Malaquias<br />

e para a lembrança de Tobias Barreto. O jurista, em 1879,<br />

classifica esses países como o “alto mundo científico” (BARRETO,<br />

1962, p. 66) e nesta fala, entende-se que o “alto mundo científico”<br />

foi uma característica atribuída às ditas nações civilizadas. Tornar<br />

o Brasil um país civilizado foi uma discussão que permeou todo o<br />

século XIX, sendo uma preocupação de intelectuais, profissionais<br />

liberais e governantes. (MARTINS, 2004)<br />

Nessa perspectiva, a omissão de Malaquias foi uma forma de<br />

evitar que o seu posicionamento fosse associado a uma possível<br />

tendência contrária às medidas e situações que levariam o Brasil<br />

a ser definido como civilizado, enquanto a lembrança de Tobias<br />

Barreto mostra que o acesso das mulheres às faculdades era uma<br />

realidade das nações civilizadas, portanto, nada mais coerente<br />

que aqui também o fosse. Em outras palavras, aceitar a petição<br />

de Romualdo Alves Oliveira e, ao mesmo tempo, defender o acesso<br />

feminino aos cursos superiores, que era, na verdade, o âmago<br />

daquele debate, que se estendeu por duas semanas, como ele<br />

bem pontuou, era demonstrar que os legisladores pernambucanos<br />

estavam em sintonia com as premissas que definiam um povo<br />

como civilizado. E foi por isso que finalizou o combate à omissão<br />

do oponente afirmando que, ao explicitá-la, estava evitando que<br />

os seus pares cometessem “um crime de lesa-civilização, de lesaciência”.<br />

(BARRETO, 1962, p. 60)<br />

Decrépita e anacrônica, no sentido de que não seria mais condizente<br />

com as discussões realizadas no “alto mundo científico”,<br />

foram os adjetivos que o advogado utilizou, a partir da citação de<br />

cientistas europeus que fundamentam a sua afirmação, para se<br />

referir à Teoria Fisiológica que constitui o segundo argumento do<br />

médico pernambucano, para quem, com base nas ideias do doutor<br />

170<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Bischoff, o que determinava a incapacidade intelectual feminina<br />

era o tamanho do cérebro.<br />

[...] Não admito essa mecânica cerebral, essa proporção entre a<br />

massa do cérebro e o grau de inteligência. Acho-a incompreensível<br />

e acho-a assim porque não vejo razão alguma de força, que<br />

a possa sustentar.<br />

O SR. MALAQUIAS: – As leis fisiológicas.<br />

O SR. TOBIAS – Quais são elas?<br />

O SR. MALAQUIAS – Quanto mais bem desenvolvido é o órgão,<br />

melhor é a função.<br />

O SR. TOBIAS – E isto já será decerto uma lei? O maior peso do<br />

cérebro é por si só uma prova de maior desenvolvimento? A fisiologia,<br />

que até hoje, como diz pessoa competente, não se tem<br />

ocupado nem com as funções do desenvolvimento, nem com o<br />

desenvolvimento das funções, bem poucas leis apresenta, que<br />

não possam sofrer contestação; e nesse número não se contam<br />

as que dizem respeito ao cérebro. (BARRETO, 1962, p. 72)<br />

E foi entre as linhas da fala de Tobias Barreto, para demonstrar<br />

o não procedimento desta lei fisiológica, que encontrei o combate<br />

a outras posições contrárias à instrução superior feminina que circulavam<br />

desde o início da segunda metade do século XIX: a de que,<br />

ao ingressar nas faculdades e/ou universidades, as mulheres perderiam<br />

as suas características naturais, aquelas apresentadas pelo<br />

artigo da Gazeta Médica da Bahia, em 1868. A esses argumentos,<br />

que persistem não só no contexto da Assembleia pernambucana,<br />

Barreto rebateu com uma única sentença: “onde existe a cultura,<br />

existe de parceria com ela a docilidade”. (BARRETO, 1962, p. 70)<br />

O emprego da palavra “docilidade” como característica feminina,<br />

que pode ser interpretada não só como ternura e carinho,<br />

invoca, para mim, a mensagem de que a instrução superior<br />

não representava perigo para as relações existentes entre ho-<br />

Gênero, mulheres e feminismos 171


mens e mulheres e, consequentemente, muito menos o abandono<br />

das funções de mãe e esposa. Ao contrário, para os partidários<br />

da emancipação intelectual, essa iria colaborar para o desenvolvimento<br />

civilizatório do país, uma vez que as responsáveis pela<br />

formação dos “homens de bem” que definiam o futuro da nação,<br />

estariam bem mais preparadas para essa nobre função. (MARTINS,<br />

2004, p. 218-37)<br />

Esse foi um argumento que continuou em vigor até meados<br />

da primeira metade do século XX, tendo sido, inclusive, utilizado<br />

pelas feministas baianas nas suas estratégias de expansão (artigos,<br />

por exemplo) do número de mulheres com nível superior na<br />

Bahia. Ao fazermos o link entre essa fala do jurista pernambucano<br />

e o contexto nacional da luta pela emancipação das mulheres,<br />

podemos pensar que ele era um seu incondicional defensor, em<br />

todos os sentidos, uma percepção que se esvai ao analisarmos de<br />

que maneira ele combate o terceiro argumento apresentado pelo<br />

deputado Malaquias.<br />

Pela transcrição da fala de Tobias Barreto, inferimos que o<br />

doutor Malaquias, ao ser questionado − o que pode ter acontecido<br />

nas sessões anteriores −, acerca da omissão do fato da emancipação<br />

feminina que acontecia em outros países, tenha afirmado<br />

que se tratavam de extravagâncias da natureza, pois, segundo as<br />

palavras do jurista: “a mulher nasceu para ter filhos [...] que ela<br />

não tem cabeça, que é fraca do juízo!... Eis aí! Eu não sei, Sr. Presidente,<br />

como o nobre deputado, antagonista do projeto, espírito<br />

emancipado, pode chegar, sob este ponto de vista”. (BARRETO,<br />

1962, p. 78)<br />

Parece que a Teoria do Útero também fez parte do embasamento<br />

científico do médico pernambucano, pois, ao afirmar que,<br />

além desses fatores, a mulher tinha sensibilidade, em vez de razão<br />

– necessária para o trabalho científico –, nota-se nas entrelinhas<br />

a ideia de que a mulher era governada pelo seu útero e a sua exis-<br />

172<br />

Gênero, mulheres e feminismos


tência pelo exercício da função deste. Contra esses argumentos,<br />

Tobias Barreto afirmou que se a mulher não era emancipada intelectualmente<br />

era porque a sua educação não o permitia e, para<br />

combater a definição de exceção que o médico atribuíra às mulheres<br />

que se emanciparam intelectualmente em outros países, ele vai<br />

fazer um verdadeiro resumo histórico, desde a Grécia Antiga até o<br />

século XVIII, sobre a participação das mulheres nas ciências.<br />

Assim, para Tobias Barreto, a emancipação da mulher era uma<br />

das questões contemporâneas mais importantes e não algo “extravagante”<br />

que, no entanto, possuía três faces: a política, a civil<br />

e a social. Às duas primeiras faces são dedicadas poucas palavras,<br />

apesar dos protestos de alguns deputados, porque era no aspecto<br />

social que estava “compreendida a emancipação cientifica e literária<br />

da mulher, emancipação que consiste em abrir ao seu espírito<br />

os mesmos caminhos que se abrem ao espírito do homem;<br />

e a este lado é que se prende o nosso assunto” (BARRETO, 1962,<br />

p. 76), palavras com as quais o jurista consegue se livrar de explicar<br />

porque não era favorável à emancipação política das mulheres:<br />

Quanto ao primeiro, a emancipação política da mulher, confesso<br />

que ainda não a julgo precisa, eu não a quero por ora. Sou<br />

relativista: atendo muito às condições de tempo e de lugar. Não<br />

havemos mister, ao mesmo no nosso estado atual, de fazer deputadas<br />

ou presidentas de província.<br />

Um Sr. Deputado – V. Exca. É oportunista.<br />

O Sr. Tobias – Pelo que toca, porém, ao ponto de vista civil, não há<br />

dúvida que se faz necessário emancipar a mulher do jugo de velhos<br />

prejuízos, legalmente consagrados. (BARRETO, 1962, p. 75)<br />

No trecho citado acima, nota-se que ele ignora o insulto de um<br />

deputado, ao mesmo tempo em que deixar entrever que não está<br />

sendo “decrépito” e nem “anacrônico”, como adjetivou o médico,<br />

e, muito menos, cometendo o “crime de lesa-civilização”,<br />

Gênero, mulheres e feminismos 173


como sugerira que os contrários ao seu pleito estavam passíveis<br />

de cometer. E ele demonstra isso ao afirmar, em poucas palavras,<br />

que, se a instrução superior feminina era uma realidade nas<br />

nações civilizadas, o mesmo não acontecia em relação aos direitos<br />

políticos: “atendo muito às condições de tempo e de lugar”.<br />

(BARRETO, 1962, p. 75) Destaco que esse foi um dos argumentos<br />

utilizados quase duas décadas depois (1890/1891) para negar às<br />

mulheres o direito de votar e serem votadas.<br />

Ao longo da sua fala, o jurista deixou evidente que não havia<br />

nenhum vínculo entre a emancipação científica e a política; ou<br />

seja, as mulheres que desejavam cursar Medicina, por exemplo,<br />

não estavam interessadas em assumir responsabilidades nos poderes<br />

legislativo e/ou executivo. Ledo engano, como mostram as<br />

táticas empreendidas por várias profissionais liberais – odontólogas,<br />

médicas e advogadas – em tentarem exercer o voto ou mesmo<br />

se candidatarem, ainda no século XIX.<br />

Ana Paula Martins (2004, p. 204), ao analisar o pensamento<br />

de Tobias Barreto em relação à mulher, afirmou que, em outros<br />

textos, o jurista pernambucano continuou contrário aos direitos<br />

políticos das mulheres, fato que a leva a classificá-lo como “conservador”;<br />

ou seja, a defesa dos direitos femininos por esse intelectual<br />

pernambucano era parcial, devendo-se a uma questão<br />

de manutenção de situação estratégica masculina em uma sociedade<br />

que era e continuou a ser patriarcal. Nessa perspectiva,<br />

possibilitar às mulheres as ferramentas para exercer melhor o seu<br />

papel de formadoras dos “homens de bem” que iriam dirigir a nação,<br />

era diferente de deixá-las assumir os cargos que permitiam<br />

a esses mesmos homens decidirem o futuro do país. É a ideia da<br />

mulher como redentora moral da sociedade que guia a discurso<br />

de Tobias Barreto, como ele bem acentuou ao concluí-lo: “Todo<br />

homem tem a sua mania; e é infeliz aquele que não a tem: a minha<br />

mania, senhores, é pensar que grande parte, se não a maior parte<br />

174<br />

Gênero, mulheres e feminismos


dos nossos males vem exatamente da falta de cultura intelectual<br />

do sexo feminino”. (BARRETO, 1962, p. 87) Certamente que, dentre<br />

as manias do jurista pernambucano, a exemplo de muitos de<br />

seus colegas, não se encontrava a de dividir o poder político que<br />

detinha.<br />

As ideias defendidas tanto por Tobias Barreto como pelo doutor<br />

Malaquias não se restringiam à sociedade pernambucana; elas<br />

permeavam toda a sociedade brasileira, como bem demonstram<br />

Rohden (2001) e Martins (2004) ao analisarem a instituição da<br />

denominada “medicina da mulher” – a ginecologia e obstetrícia<br />

– no Brasil, bem como a visão que esta tinha da mulher. Poucos<br />

anos após a polêmica ocorrida na Assembléia Provincial de Pernambuco,<br />

Hahner (2003) registra a existência de um artigo que<br />

retoma as ideias misóginas apresentadas tanto pelo médico e deputado<br />

pernambucano como pelos autores do artigo “A mulher<br />

médica”, publicado pela Gazeta Médica da Bahia em 1868. E desta<br />

vez, sei o fator motivador para tal publicação na Gazeta Acadêmica,<br />

periódico certamente produzido por discentes dos cursos<br />

da Faculdade de Medicina da Bahia: 5 foi a chegada da gaúcha Rita<br />

Lobato ao curso de Medicina, transferida da instituição carioca.<br />

No debate que se instaurou nesse periódico, o grupo contrário à<br />

presença feminina utilizava “argumentos fisiológicos como o de<br />

que o pequeno tamanho do cérebro das mulheres impedia-as de<br />

reter a ‘intrincada jóia’ das verdades médicas”; e que elas deviam<br />

dedicar-se ao mundo doméstico e à família, enquanto “o outro<br />

lado do debate [...] argumentava que algumas mulheres podiam<br />

dominar temas científicos que homens de cérebros menores não<br />

5 Apesar de localizar vários periódicos produzidos pelos acadêmicos da Faculdade de Medicina da<br />

Bahia, a exemplo de O Acadêmico, Instituto Acadêmico, A Razão, O incentivo, Norte Acadêmico,<br />

não conseguimos localizar nos arquivos baianos exemplares da Gazeta Acadêmica. A própria<br />

June Hahner (2003, p. 173) declara ter tido acesso a cópias desse periódico em arquivo<br />

particular nos Estados Unidos da América.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 175


podiam, e que as mulheres podiam e deviam estudar medicina”.<br />

(HAHNER, 2003, p. 149)<br />

A verbalização de ideias baseadas nas teorias da Complementaridade,<br />

do Útero e do Evolucionismo, na Bahia, a exemplo do<br />

que ocorreu em outras partes do Brasil, não se circunscreveu<br />

apenas à segunda metade dos oitocentos; ela se fez presente nas<br />

primeiras décadas dos novecentos revelando que “a idéia de inferioridade<br />

feminina foi compartilhada por boa parte dos médicos<br />

da Faculdade de Medicina da Bahia, influenciados pelos trabalhos<br />

de Spencer e Proudhon; autores que atribuíam uma elevada dignidade<br />

à maternidade”. (RAGO, 2005a, p. 8)<br />

Como exemplo de tal fato, trago a cena às sessões de 1º e 15 de<br />

agosto de 1937, da Sociedade de Medicina de Itabuna, onde encontrei<br />

o debate entre os médicos Diógenes Vinhaes e Moysés Hage<br />

acerca da naturalidade ou não do parto. Em defesa da obrigatoriedade<br />

do parto hospitalar 6 realizado por um obstetra ou dirigido<br />

por esse, o médico Diógenes Vinhaes centrou a sua apresentação<br />

em dois argumentos que julgava auxiliar a sua reivindicação: a não<br />

naturalidade do parto. A partir de uma visão eugenista 7 afirmava<br />

que “o parto não é função natural” e que este ia se tornando “mais<br />

difícil à medida que o progresso se faz sentir e a civilização aumenta”.<br />

(VINHAES, 1937, p. 189-90) A dor, as complicações – morte e<br />

lesões – que poderiam surgir para e nas parturientes bem como as<br />

consequências advindas do momento de nascimento (traumatismo<br />

do nascimento), que poderiam comprometer a vida futura do<br />

feto, foram os indicadores da não naturalidade do parto.<br />

6 Ele retoma uma discussão que havia feito anos antes na Sociedade de Medicina da Bahia.<br />

(VINHAES, 1937, p. 189)<br />

7 Sobre as concepções eugenistas na sociedade brasileira, sobretudo a sua influência no<br />

pensamento médico, recomenda-se a leitura de Schwarcz (1993) e Diwan (2007). A influência<br />

dessas concepções nos trabalhos produzidos pela médica e feminista Francisca P. Fróes foi<br />

objeto de estudo de capítulos específicos da tese de Rago (2005b, p. 211-354).<br />

176<br />

Gênero, mulheres e feminismos


O doutor Diógenes Vinhaes não estava discutindo a naturalidade<br />

da maternidade nem negando o papel primordial da mulher<br />

como mãe. Ele se manifestou contra o “parto natural”, que era realizado<br />

em casa e, geralmente, com a assistência de uma parteira.<br />

Estava defendendo um espaço de exercício profissional, 8 que “por<br />

ser tão cheio de empeços e tão preciso de cuidados, cotejado com<br />

as mais altas intervenções da cirurgia abdominal” não parecia lógico<br />

e “nem razoável” afirmar que o seu produto – o parto – se<br />

tratava “de uma função natural”. (VINHAES, 1937, p. 201)<br />

Após a apresentação do trabalho, estabeleceu-se uma discussão<br />

entre os presentes, que foram quase unânimes em sugerir a<br />

mudança do título − “O parto não é uma funcção natural” − de<br />

maneira a não criar impressões errôneas nos prováveis leitores.<br />

A preocupação advinda do título da comunicação feita pelo referido<br />

médico se deveu ao fato de ocasionar interpretações acerca<br />

do direito da mulher escolher ser mãe ou não, da possibilidade de<br />

a maternidade não ser mais considerada o principal objetivo da<br />

vida feminina. E foi contra o “absurdo” de “desviar as mulheres da<br />

maternidade” (HAGE, 1937) se insurgiu a fala do médico Moysés<br />

Hage. Contra as ideias pretensamente defendidas anteriormente<br />

por seu colega, na sessão de 15 de agosto de 1937, ele apresentou a<br />

comunicação “Contestação ao Trabalho do Dr. Diógenes Vinhaes:<br />

O parto não é uma função natural”, dando início ao seu discurso<br />

afirmando que o fazia “porque convicto estou de me achar ao lado<br />

da verdade”. (HAGE, 1937, p. 217) Cabe-me perguntar: que verdade<br />

era essa?<br />

Era a crença de que homens e mulheres não são iguais devido<br />

ao fato de as mulheres serem governadas pelas substâncias produzidas<br />

pelos órgãos reprodutores. Essa crença permeia todo o<br />

8 A disputa entre parteiras leigas ou formadas e os médicos remete ao final do Período Colonial e<br />

início do Imperial. Essa questão foi abordada tanto por Souza (1998), quanto por Barreto (2000),<br />

Witter (2001) e Sampaio (2001). Permanecem nos dias de hoje uma série de restrições impostas<br />

às parteiras através das associações médicas.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 177


texto, mas foi exteriorizada de forma incisiva na seguinte frase:<br />

“a mulher é profundamente differente do homem. Cada uma das<br />

cellulas do seu corpo traz a marca do seu sexo”. Por isso “nunca a<br />

mulher poderá ter as mesmas ocupações do homem, nem os mesmos<br />

poderes, nem as mesmas responsabilidades”. (HAGE, 1937,<br />

p. 225)<br />

Em outras palavras, a Medicina, o Direito e o próprio Magistério<br />

não eram ocupações a serem desenvolvidas pelo sexo feminino,<br />

que deveria se dedicar aos filhos – concebê-los e criá-los –,<br />

uma vez que “a procreação é a finalidade naturalissima da mulher”.<br />

(HAGE, 1937, p. 225) Dessa forma, “o seu papel no processo<br />

da civilização é muito mais relevante do que o do homem” (HAGE,<br />

1937, p. 225) e ela não devia abandoná-lo em prol de responsabilidades<br />

ou ocupações outras, a exemplo do exercício político e<br />

profissional. Foram esses os argumentos apresentados pelo doutor<br />

Moysés Hage para defender a naturalidade do parto – com suas<br />

dores e complicações – como uma função.<br />

Considerando-se que Diógenes Vinhaes, apesar do polêmico<br />

título do seu trabalho, em nenhum momento desvincula a mulher<br />

da maternidade, acredito que Hage tenha se valido do trabalho do<br />

seu colega para manifestar a sua posição contrária às ideias feministas<br />

– em prol dos direitos políticos e de uma educação intelectual<br />

voltada para o exercício de profissões liberais – de então. Esta<br />

suposição se origina das referências feitas no texto desse médico<br />

que afirma que o que colocava a vida das mulheres em risco não<br />

era o parto natural, a maternidade, mas uma falsa educação e a<br />

atuação de um “feminismo pedante” (p. 220), chegando a expressar<br />

o seguinte ensejo: “praza a Deus que nenhuma mulher, ‘sadia’<br />

se impressione pelos falsos conceitos dos propugnadores do feminismo”.<br />

(HAGE, 1937, p. 225)<br />

O que Hage definiu como “falsa educação” era toda educação<br />

que não se pautava nas diferenças biológicas entre os sexos,<br />

178<br />

Gênero, mulheres e feminismos


pois, segundo a sua concepção, aspectos como tamanho e peso do<br />

cérebro e função reprodutiva deveriam determinar o tipo de educação<br />

a ser ministrado ao sujeito: “Não se deve dar às moças a<br />

mesma formação intelectual, o mesmo gênero de vida, o mesmo<br />

ideal dos moços. Os educadores devem levar em consideração as<br />

differenças orgânicas e mentaes do homem e da mulher”. (HAGE,<br />

1938, p. 226) Ao contrário do texto de Diógenes Vinhaes, o de<br />

Moysés Hage não causou nenhuma celeuma, dando-me a sensação<br />

de que as ideias por ele apresentadas eram comungadas por<br />

todos os membros daquela sociedade científica.<br />

A contestação das afirmações misóginas utilizadas por Moysés<br />

Hage, já tinha sido feita por algumas feministas baianas dentre as<br />

quais se destacou Laurentina Pughas Tavares que, seis anos antes,<br />

ao participar de “A Tribuna Feminista” promovida pelo Jornal<br />

A Tarde, utilizando-se de dados científicos (quantitativos) respondeu<br />

às colocações misóginas acerca da capacidade intelectual<br />

feminina. Assim, se tivesse participado das discussões que tiveram<br />

lugar na Sociedade de Medicina de Itabuna quando o mencionado<br />

médico apresentou as suas teses, Laurentina teria dito:<br />

No dia em que os paes encararem igualmente a instrucção dos<br />

filhos e filhas deixando em todos elles se manifestar o pendor<br />

profissional, outra mentalidade se formará em torno do feminismo<br />

e alguns homens não terão tanta sem cerimônia no<br />

desrespeitar o direito das mulheres. Bischoff, sábio fisiologista<br />

allemão, anti-feminista ferrenho, affirmava a inferioridade da<br />

mulher pela sua exigüidade cerebral, porquanto achava para o<br />

cérebro do homem, um peso médio de 1350 grammas e para o da<br />

mulher 1250 grammas. Entretanto, morto Bischoff, pesaram o<br />

seu cérebro e acharam apenas 1245 grammas, 5 grammas abaixo<br />

da media por elle obtida para as mulheres. E então? (TAVARES,<br />

1931, p. 2, grifo meu).<br />

Obviamente, Laurentina procurou destruir os argumentos de<br />

seus contemporâneos acerca da inferioridade feminina. Certa-<br />

Gênero, mulheres e feminismos 179


mente, o Dr. Moyses Hage não tinha conhecimento da entrevista<br />

dada por ela seis anos antes, no jornal A Tarde e, com certeza,<br />

não sabia ou preferiu ignorar a história do cérebro do Dr. Bischoff.<br />

Assim, não é destoante mediar o diálogo fictício entre essas duas<br />

personagens, uma vez que, apesar do lapso de tempo entre suas<br />

falas, permanecia a discussão acerca das capacidades femininas e<br />

das atividades ou funções pertinentes às mulheres.<br />

Um caso que ilustra a presença das ideias “anti-feministas”<br />

na Bahia, em específico na capital baiana, foi o ocorrido pela indicação<br />

de Edith Gama e Abreu, 9 em detrimento do jornalista e<br />

escritor Eduardo Tourinho, para membro da Academia Baiana de<br />

Letras, em 9 de agosto de 1938. Esse seria mais um episódio “sereno”<br />

e lógico se um dos candidatos não fosse uma mulher, pois,<br />

a partir dessa candidatura criou-se uma celeuma que teve como<br />

um dos seus pontos altos a saída do presidente da Academia, em<br />

uma das sessões de preparação para a votação, em sinal de protesto<br />

pela quebra do estatuto da instituição que, segundo ele e o<br />

grupo ao qual pertencia, vetava a participação feminina.<br />

Constavam da ordem do dia, duas questões: a elegibilidade de<br />

candidatos do sexo feminino e a realização da eleição [...]. Um<br />

grupo de acadêmicos, porém, que ficava em minoria, manifestaram-se<br />

contra esse modo de ver sustentando que, dizendo o<br />

citado art. 5º. que ‘só podem ser membros effectivos os bahianos<br />

que tenham, em qualquer dos gêneros da literatura, publicado<br />

trabalho’, etc., as mulheres estavam assim excluídas de fazer<br />

parte da Academia. Só teriam esse direito si no artigo, em vez de<br />

‘bahianos’ simplesmente se lesse – ‘bahianos ou bahianas’, ou<br />

‘bahianos de ambos os sexos’. [...]. Mal, porém, ia sendo feita a<br />

proposta para proceder-se logo à votação, um dos membros da<br />

minoria retira-se, propositalmente afim de que desfalcando-se<br />

o ‘quorum’ indispensável, não pudesse ser ella levada a effeito.<br />

[...]. Basta o número mínimo para haver sessão, que é 7. Com<br />

9 Em “Mulheres de elite em movimento por direitos políticos: o caso de Edith Mendes da Gama e<br />

Abreu”, Cláudia Vieira (2002) faz uma análise da obra de Edith Gama e Abreu.<br />

180<br />

Gênero, mulheres e feminismos


essa attitude da totalidade dos membros da Academia que compareceram,<br />

não concordou o presidente, o dr. Braz do Amaral,<br />

que estava do lado da minoria, deixando a direcção e convidando<br />

para assumil-a o 1º Vice-presidente, dr. Gonçalo Moniz.<br />

(ACADEMIA..., 1938)<br />

Várias vozes, no entanto, se levantaram em defesa da eleição<br />

de Edith, dentre elas, Muniz Sodré, Gonçalo Moniz e Heitor Praguér<br />

Fróes que, na arena da Academia, faziam parte da corrente de<br />

J. J. Seabra que “não só era favorável a entrada de mulheres, mas,<br />

até quebrava lanças pela eleição de D. Edith da Gama e Abreu”<br />

(ELEIÇÃO..., 1938). Ao desenhar o perfil das fundadoras da Federação<br />

Baiana pelo Progresso Feminino, Almeida (1986), quando<br />

fala desse episódio da vida da líder feminista baiana, faz a seguinte<br />

análise:<br />

[...] aos 34 anos, entreva para a Academia de Letras da Bahia,<br />

quebrando a tradição nacional destas instituições de não admitir<br />

mulheres. Sua situação de classe mais uma vez reforçou as suas<br />

possibilidades e ajudou suas lutas individuais. J. J. Seabra e Dr.<br />

Praguér Fróes fizeram grande campanha e pressão para que fosse<br />

aceita. A resistência não foi pouca e alguns acadêmicos recusaram-se<br />

a freqüentar as reuniões a partir de então. (ALMEIDA,<br />

1986, p. 59-60)<br />

Por se tratar de uma instituição importante, composta por<br />

homens de prestígio, a luta extrapolou os domínios do privado<br />

para adentrar a dimensão pública onde, além de se acompanhar<br />

a “refrega”, passou-se a apoiar tanto uma corrente como a outra.<br />

Os partidários da candidatura feminina, por meio de entrevistas,<br />

defendiam o seu ponto de vista ou mesmo, de maneira anônima,<br />

as expressavam. Um exemplo é a nota que saiu no Jornal Cidade<br />

do Salvador:<br />

Poucas luctas temos visto mais desarrozoadas que a da Academia<br />

de Letras da Bahia querendo fechar as suas portas à entrada<br />

de um representante do sexo feminino no seu seio. Na verdade,<br />

Gênero, mulheres e feminismos 181


nunca vimos cousa mais absurda. Cousa que colloca a Bahia de<br />

tanta fama numa situação pouco invejável. Por que, qual a razão<br />

de se negar à sra. Gama Abreu o direito de ser immortal na Academia<br />

Bahiana? Digna por todos os títulos de receber tal honraria<br />

a candidata foi eleita e tem direito ao seu posto. Reconhecer<br />

‘sexo no espírito’ só mesmo uma visão muito vesga poderá fazer<br />

isso. Se a maioria da Academia de Letras da Bahia elegeu a sra.<br />

Gama e Abreu para fazer parte do seu cenáculo é porque os seus<br />

trabalhos, os seus dotes espirituaes estão à altura daquele tradicional<br />

templo da intelligencia bahiana. Querer desbanca-la<br />

agora pela razão mais tola, mais infantil, mais chocante possível<br />

é recuo que não fica bem para intellectuaes que se presam. A<br />

contenda bahiana chegou ao Rio e tem sido glosadissima (sic.).<br />

Todos se collocam ao lado da representante do sexo fraco, porque<br />

como disse o Sr. Afrânio Peixoto: − espírito não tem sexo!<br />

(NOTAS..., 1938)<br />

Nota-se nas entrelinhas das falas dos protagonistas da ala<br />

contrária, que a circulação da ideia acerca de os espaços intelectuais<br />

não serem destinados às mulheres – afinal, ali, o critério<br />

de participação era estabelecido por meio dos méritos alcançados<br />

pelos altos exercícios racionais, atributos não desenvolvidos<br />

pelo “fraco sexo” – se fazia presente no meio intelectual baiano da<br />

década de 1930. Essa minha interpretação é reforçada pela análise<br />

da frase que Afrânio Peixoto proferiu em uma das reuniões da<br />

Academia Baiana de Letras, na qual se discutiam os motivos para<br />

a aceitação ou não da candidatura de Edith: “Não conheço sexo<br />

do espírito”. (A MULHER..., 1938) Se traduzirmos essa afirmação<br />

como “a razão, o intelecto não tem sexo”, evidente se torna que as<br />

ideias acerca da inferioridade intelectual feminina estavam presentes<br />

naquele ambiente e que seus adeptos – apesar de não as<br />

expressarem explicitamente – não permitiriam o acesso feminino<br />

àquele espaço e, com este intuito, utilizaram-se dos mais diversos<br />

artifícios, desde o argumento baseado na manutenção da tradição<br />

182<br />

Gênero, mulheres e feminismos


dos estatutos, fruto da Academia Francesa de Letras, 10 que previa<br />

a inelegibilidade feminina, até a sabotagem da eleição por meio<br />

das suas ausências, fato que inviabilizaria as eleições por falta de<br />

quorum.<br />

A argumentação que utilizaram apareceu de forma mais elaborada<br />

e sutil no artigo “Eva e o seu domínio”, publicado pelo<br />

Jornal A Tarde, onde a preservação da tradição bem como a não<br />

alteração do “pensamento dos seus criadores” – entre eles, Machado<br />

de Assis − e nem o abandono do “modelo da Academia<br />

Franceza, à cuja cópia engendrou ele a nacional”, deveriam ser<br />

fatores a serem considerados ao se permitir a presença feminina.<br />

Interessante é que o autor desse artigo faz essas ressalvas para a<br />

Academia Nacional, pois, para ele: “Nada impede, porém, que as<br />

academias estaduais sejam mais urbanas e acessíveis as damas que<br />

não repudiam o estilo e o verso, a áspera proza e a rima suave, a<br />

forma do seu artigo de jornal e os ritmos de sua página de ficção”<br />

(EVA..., 1938)<br />

Ele, inicialmente, aparentou não querer se indispor com nenhuma<br />

das facções, pois, a exemplo das outras falas, não entra<br />

diretamente na discussão acerca das capacidades intelectuais<br />

das mulheres, dos seus papéis e espaços a partir desta. E, mesmo<br />

aceitando o fato de que a vaga foi ocupada por uma mulher, revelou<br />

– ainda que de forma camuflada, a visão androcêntrica. Na<br />

sua fala há uma hierarquia, baseada no status, entre as academias<br />

regionais e a nacional, tendo esta última, em relação às outras,<br />

mais prestígio e destaque; portanto, as mulheres poderiam ser<br />

10 Soma-se ao discurso acerca do “sexo fraco”, da inferioridade intelectual da mulher, para a não<br />

eleição de Edith Gama e Abreu o argumento de que a Academia Francesa não admitia mulheres<br />

e sendo tanto a baiana como a brasileira inspiradas naquela os seus estatutos não admitiam<br />

a participação feminina: “Duas correntes de opinião logo se formaram. Mas o que há de mais<br />

curioso é que a divergência, longe de atingir o mérito, dizia, apenas respeito ao... sexo dos<br />

candidatos. Um grupo de acadêmicos fiel à tradição seguida pela Academia Franceza e pelos<br />

40 do nosso Petit Trianon, se oppunha, terminantemente, a que a casa admittisse uma mulher”.<br />

(ELEIÇÃO..., 1938)<br />

Gênero, mulheres e feminismos 183


admitidas nas regionais, mas não na nacional. E parece ser com<br />

esse intuito que conclui o artigo conclamando: “que os rapazes se<br />

apercebam da competição e aparelhem-se para defender os últimos<br />

redutos do seu antigo domínio.” (EVA..., 1938) Ao que tudo<br />

indica, porém, os acadêmicos da nacional, não quiseram ser taxados<br />

de vesgos e retrógrados, como o foram os da baiana pela nota<br />

publicada no Jornal Cidade do Salvador, e, a partir de discussões<br />

passam, também, a aceitar a presença feminina no seu interior.<br />

A entrada de Edith para a Academia Baiana de Letras foi<br />

acompanhada pelas integrantes da Federação Bahiana pelo Progresso<br />

Feminino, não só pelo fato de ela ser a sua presidente, mas,<br />

sobretudo, porque aquele fato representava não somente uma<br />

glória individual, mas, também, uma vitória para o movimento,<br />

uma vez que, com o apoio de “bahianos illustres e eminentes que<br />

trabalharam pela causa da mulher [...] esmagaram... um velho<br />

preconceito que prohibia a candidatura feminina na Academia de<br />

Letras”. (FEDERAÇÃO..., 1938) Ou seja, na luta por direitos iguais,<br />

conseguiram alçar mais um degrau, reafirmando bem o seguinte<br />

princípio de Edith Gama e Abreu expresso em entrevista ao jornal<br />

O Imparcial:<br />

Desde os primeiros annos de reflexão que formei para mim mesma<br />

essa norma indiscutível – ‘um direito não se pede, tomase’.<br />

E se há quem nol-o recuse, também há quem nos ajude a<br />

conquistal-o. Assim, resolvi candidatar-me à Academia de Letras<br />

da Bahia. Não me era estranho o obstáculo que certo grupo<br />

antepunha ao ingresso da mulher naquelle cenáculo das lettras.<br />

(A MULHER..., 1938, grifo meu)<br />

Bem, o “obstáculo” não era fato exclusivo do contexto baiano<br />

e brasileiro e muito menos das primeiras décadas dos novecentos:<br />

ele esteve presente desde o momento em que as mulheres passaram<br />

a questionar os motivos que lhes negavam o acesso aos espaços<br />

de produção e socialização dos conhecimentos e, a exemplo do<br />

184<br />

Gênero, mulheres e feminismos


que ocorreu em outros espaços e tempos, revela uma disputa pela<br />

manutenção e acesso a um espaço estratégico que garantia e possibilitava,<br />

também, as benesses e/ou prestígios sociais, políticos e<br />

econômicos na sociedade baiana. 11<br />

Corpus documental<br />

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1868. Variedades.<br />

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HAGE, Moysés. Contestação ao trabalho do Dr. Diógenes Vinhaes:<br />

o parto não é uma funcção natural. In: SOCIEDADE DE MEDICINA DE<br />

ITABUNA. Annaes: ata da sessão de 15 de agosto de 1937. Itabuna: [s.n],<br />

1937.<br />

NOTAS Cariocas. A Academia de Letras da Bahia: os cavallos que sabem<br />

pensar. Jornal Cidade do Salvador. Salvador, 14 set. 1938.<br />

TAVARES, Laurentina Pughas. A Tribuna Feminista – “Acho que a<br />

mulher póde concorrer com o homem em todos os misteres da vida”.<br />

A Tarde, Salvador, 17 abr. 1931. p. 2. (Entrevista).<br />

11 Sobre “grupos de prestígio” na Bahia, recomenda-se a leitura de Thales de Azevedo<br />

(1996, p. 167-80).<br />

Gênero, mulheres e feminismos 185


VINHAES, Diógenes. O parto não é uma funcção natural. In:<br />

SOCIEDADE DE MEDICINA DE ITABUNA. Annaes: Ata da sessão de 1 de<br />

agosto de 1937. Itabuna: [s.n], 1937.<br />

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Gênero, mulheres e feminismos 187


A POLÍTICA DE COTAS<br />

NA AMÉRICA LATINA<br />

as mulheres e os dilemas<br />

da democracia<br />

Ana Alice Alcantara Costa<br />

Apesar de ser considerado um dos movimentos feministas<br />

mais atuantes na atualidade, as mulheres, na grande maioria dos<br />

países latino-americanos, convivem com um grande paradoxo: a<br />

intensa mobilização deste movimento e o avanço de importantes<br />

conquistas sociais não atingiram os espaços de deliberação política<br />

no âmbito estatal. Nesses países, as mulheres ainda convivem<br />

com baixos percentuais de participação política nas estruturas do<br />

poder formal.<br />

O reconhecimento dessa defasagem vem mobilizando grandes<br />

esforços, nos últimos vinte anos, por parte das organizações<br />

feministas, no sentido de superar os entraves que subsistem nas<br />

sociedades patriarcais da América Latina. Dentre esses esforços,<br />

tem merecido destaque a luta pelo estabelecimento de políticas<br />

de cotas como um mecanismo capaz de promover a ampliação da<br />

participação das mulheres nas estruturas de poder formal.


A aplicação do sistema de cotas, em vários países, nas mais<br />

diversas modalidades, tem possibilitado não só uma avaliação do<br />

instrumento de ação afirmativa em si, mas, em especial, um tratamento<br />

mais qualificado sobre as variáveis institucionais aplicadas<br />

e suas possibilidades de sucesso ou fracasso em contextos específicos.<br />

Inevitavelmente, tem existido uma preocupação maior em<br />

analisar os três contextos mais relevantes em função dos extremos<br />

que ocupam. Refiro-me às experiências do sistema de cotas<br />

aplicado no Brasil, na Costa Rica e na Argentina, com resultados<br />

diametralmente opostos, isto é, o Brasil, país em que o sistema<br />

de cotas tem se mostrado um completo fracasso e as experiências<br />

da Argentina e da Costa Rica, onde, ao contrário, tem propiciado<br />

uma ampliação significativa da participação feminina.<br />

A luta pelo voto e o déficit democrático<br />

A luta sufragista teve início na América Latina já no começo<br />

do século XIX com manifestações ocorridas em diversos países,<br />

em especial, através da imprensa feminina. Assim ocorreu no<br />

Brasil com os jornais “O Jornal das Senhoras”, em 1852, e, posteriormente,<br />

“O Sexo Feminino”, e, no México, em 1970, através<br />

do jornal “Siempre Viva”. Na Costa Rica e em Cuba, em 1890,<br />

apareceram nos principais jornais as primeiras manifestações pela<br />

igualdade e pelos direitos políticos das mulheres no contexto das<br />

reformas eleitorais realizadas nos dois países. Mas foi na Argentina,<br />

em 1862, que essa luta se manifestou de forma mais concreta<br />

quando algumas mulheres da província de San Juan tiveram acesso<br />

ao voto qualificado nas eleições municipais. Apesar disso, foi<br />

nas duas primeiras décadas do século 20 que as manifestações feministas<br />

apareceram com mais intensidade na maioria dos países<br />

latino-americanos.<br />

190<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Nesse período, merece registro a articulação desenvolvida<br />

pela National American Woman’s Suffrage Association (NAW-<br />

SA) organização norte-americana que, sob a presidência de Carrie<br />

Chapman Catt, realizou em Baltimore, em 1919, a Primeira Conferência<br />

Inter-Americana de Mulheres com a participação de diversas<br />

lideranças latino-americanas. A partir daí, em vários países<br />

da América Latina foram criadas organizações feministas com as<br />

mesmas características da NAWSA, com o objetivo de implementar<br />

e coordenar a luta sufragista nos seus respectivos países. Essa<br />

iniciativa funcionou através da estruturação de redes estabelecidas<br />

entre distintas organizações nos diferentes países e propiciou<br />

um grande impulso ao sufragismo na região. (MONTANHO, 2007,<br />

p. 22)<br />

O Equador foi o primeiro país a estabelecer o voto feminino,<br />

isso em 1929, seguido por Brasil e Uruguai, em 1932. No entanto,<br />

foi a década de 40 o período no qual um maior número de países<br />

estabeleceu uma legislação eleitoral que contemplasse o voto<br />

para as mulheres. Paraguai (1961) e Colômbia (1964) foram os países<br />

que mais demoraram em reconhecer os direitos políticos das<br />

mulheres. A conquista do voto foi acompanhada por um intenso<br />

processo de alistamento eleitoral por parte das mulheres.<br />

Na atualidade, a participação feminina na maioria dos países<br />

latino-americanos atinge percentuais significativos na composição<br />

do eleitorado, chegando inclusive, em muitos países, como<br />

Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, El Salvador, México, Panamá,<br />

Nicarágua, Uruguai e Paraguai, a se constituírem maioria absoluta<br />

(Tabela 1).<br />

Gênero, mulheres e feminismos 191


Tabela 1 − Participação da mulher na política latinoamericana, por país<br />

PAÍS<br />

Ano de<br />

Conquista<br />

do voto<br />

Participação<br />

no eleitorado<br />

Participação<br />

em gabinetes<br />

ministeriais<br />

Poder<br />

Local<br />

Argentina 1947 51% 25,0 8,5<br />

Bolívia 1952 49,9 30,0 4,6<br />

Brasil 1932 51,8 14,3 7,5<br />

Chile 1949 52,4 36,4 12,1<br />

Colômbia 1957 51,0 23,1 9,0<br />

Costa Rica 1949 50,0 37,5 9,9<br />

Cuba 1934 50,0 − 1<br />

40,6<br />

El Salvador 1939 54,1 15,4 8,0<br />

Equador 1929 50,5 32,0 6,0<br />

Guatemala 1945 45,8 25,0 2,4<br />

Honduras 1955 50,6 25,0 8,1<br />

México 1953 51,9 20,0 3,0<br />

Nicarágua 1955 54,0 31,2 10,4<br />

Panamá 1945 58,3 21,4 9,3<br />

Paraguai 1961 52,5 10,0 5.7<br />

Peru 1955 49,7 26,7 2,8<br />

Rep. Dominicana 1942 50,4 17,6 11,3<br />

Uruguai 1932 52,4 30,0 −<br />

Venezuela 1947 50,0 18,5 7,2<br />

1<br />

Um dado interessante em relação a Cuba é que nas últimas eleições para a Asamblea Nacional del<br />

Poder Popular (parlamento unicameral) as mulheres alcançaram 43,32 % dos cargos de deputados<br />

Fonte: Idea Internacional 2007a; Llanos; Sample, 2008.<br />

192<br />

Gênero, mulheres e feminismos


No entanto, apesar dessa supremacia na composição do eleitorado<br />

e do fato de que na maioria dos países as mulheres já exercem<br />

o direito de voto há mais de meio século, isso não significou<br />

que o acesso ao poder tenha sido possível para as mulheres. É suficiente<br />

uma análise dos percentuais de participação feminina nas<br />

esferas de poder, na grande maioria das democracias representativas<br />

da região, para vermos o quanto as mulheres estão longe<br />

deste direito e quanto esse acesso tem sido negado. Até os anos<br />

1990, a participação das mulheres nas instâncias representativas<br />

do poder formal era ocasional, escassa e limitada, sendo estas geralmente<br />

eleitas por sua condição de esposas, filhas e/ou irmãs de<br />

pessoas reconhecidas no âmbito da política. (VENEZIANI, 2006,<br />

p. 11) Essa, aliás, ainda é uma prática comum em muitos países da<br />

América Latina, que se estende também para os homens, como<br />

uma forma de a família ou o grupo político seguir controlando<br />

o poder; e as mulheres têm se constituído em peça fundamental<br />

nesse jogo. (COSTA, 1998)<br />

Na América Latina, até o momento, apenas cinco mulheres<br />

chegaram à presidência de seus países através do voto popular,<br />

três das quais perfeitamente integradas no modelo de ascensão<br />

como herança familiar. Assim foi na Nicarágua, com Violeta<br />

Chamorro (1990/97), viúva do jornalista Pedro Chamorro, líder<br />

da oposição não-sandinista ao ditador Anastácio Somoza; no Panamá,<br />

onde foi eleita Mireya Moscoso (1999/2004), após assumir<br />

a direção do Partido Arnulfista com a morte do seu marido Arnulfo<br />

Arias, presidente do Panamá por três vezes; e, mais recentemente,<br />

na Argentina, foi eleita Cristina Fernandez (2007/2011),<br />

advogada que, apesar de uma trajetória política própria como deputada<br />

provincial, deputada nacional e senadora, se candidatou<br />

em continuidade à gestão de seu marido, Nestor Kirchner. Foge<br />

a essa regra, Michelle Bachelet (2006/2010), eleita presidente do<br />

Chile. Médica, Ex-ministra da Saúde e Defesa, Bachelet construiu<br />

Gênero, mulheres e feminismos 193


sua liderança de forma autônoma e independente a partir de sua<br />

trajetória pessoal, profissional e partidária. E, agora, Dilma Rousseff,<br />

eleita presidente do Brasil com apoio do Lula, que foi Ministra<br />

de Minas e Energia e Ministra da Casa Civil. 1<br />

Por outro lado, mesmo fugindo aos processos eletivos, o número<br />

de mulheres ocupando a chefia dos ministérios também<br />

ainda é muito pequena. Segundo Beatriz Llanos e Kristen Sample<br />

(2008), nos últimos anos, em função do estabelecimento de ações<br />

afirmativas em alguns países, houve um incremento significativo<br />

da presença feminina na composição da chefia dos ministérios na<br />

América Latina. Em 2007, a presença feminina chegou a 24%, o<br />

que significa um grande avanço se tomamos como parâmetro o<br />

percentual de 1996 quando a presença feminina não ultrapassava<br />

a casa de 8,4.<br />

Esse crescimento se concentrou, basicamente, nos países que<br />

desenvolveram uma política de incorporação das mulheres às<br />

instâncias do executivo, a saber: Costa Rica, com 37,5%; Chile,<br />

36,4%; Equador, 32%; Nicarágua, com 31,2%; e, também, a Bolívia<br />

e o Uruguai com uma participação que se aproxima dos 30%.<br />

O contraponto são países como Venezuela (18,5%), República Dominicana<br />

(17,6%), El Salvador (15,4%), Brasil (14,3%) e Paraguai<br />

(10%) nos quais a participação feminina na chefia dos ministérios<br />

continua muito baixa. (LLANOS; SAMPLE, 2008, p. 18)<br />

Nessas estruturas, a participação feminina tende a aumentar à<br />

medida que diminui a hierarquia das esferas de decisões, ou seja,<br />

quanto mais importante o cargo, menor o número de mulheres.<br />

No que se refere às instâncias do Executivo cujo acesso se dá atra-<br />

1 Não obstante, outras mulheres já estiveram à frente dos governos centrais na América Latina<br />

através de outros processos que não o voto direto. Assim foi o caso de Isabel Perón, eleita Vicepresidente<br />

da Argentina e que com a morte do seu marido Juan Perón assumiu a Presidência da<br />

República, em 1979. Em 1979, Lidia Gueiler assume interinamente a Presidência da Colômbia por<br />

determinação do Congresso Nacional, depois do golpe de Estado que destituiu Walter Guevara<br />

Arce. Também em 1997, Roselia Arteano assume a presidência do Equador por apenas três dias.<br />

(LLANOS; SAMPLE, 2008)<br />

194<br />

Gênero, mulheres e feminismos


vés de processos eleitorais, onde não existe ainda nenhum sistema<br />

de cotas ou política de ação afirmativa a participação feminina<br />

segue irrisória e mesmo nos países onde a participação atinge dois<br />

dígitos ela é pequena, como é o caso do Chile, Republica Dominicana<br />

e Nicarágua. Os dados da Tabela 1 apresentam claramente<br />

essa situação.<br />

Por outro lado, essa baixa participação das mulheres nas estruturas<br />

do poder formal nos países latino-americanos não significa<br />

que as mulheres têm estado excluídas da ação política, da<br />

participação política em uma perspectiva mais ampla. Vários estudos<br />

têm demonstrado a intensidade e a amplitude da participação<br />

feminina, em especial, junto aos movimentos sociais.<br />

Referindo-se aos processos de democratização vivenciados<br />

em vários países latino-americanos (a exemplo de Chile, Brasil,<br />

Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia, Peru etc.), nos anos 80,<br />

no contexto de enfrentamento aos regimes militares e, posteriormente,<br />

de construção democrática, Sonia Alvarez destaca a<br />

importância da participação das mulheres no processo. Segundo<br />

essa autora (1994, p. 227) foram as mulheres que encabeçaram<br />

os protestos contra a violação dos direitos humanos, que buscaram<br />

soluções criativas para as necessidades comunitárias diante<br />

do descaso por parte do Estado. Foram elas que engrossaram as<br />

fileiras do movimento sindical e que lutaram pelo direito à terra.<br />

Foram as mulheres afro-brasileiras que ajudaram a criar um<br />

crescente movimento de consciência negra, antirracista; foram<br />

as lésbicas que se uniram aos homossexuais na luta contra a homofobia;<br />

foram as universitárias que pegaram em armas contra<br />

o regime militar ou que se integraram aos partidos de oposição.<br />

No entanto, toda essa participação feminina não se configurou em<br />

possibilidade real de acesso ao poder político.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 195


A tão almejada democracia em muitos destes países deixou de<br />

fora a maioria do eleitorado, o eleitorado feminino. A promessa<br />

da igualdade democrática não chegou de fato para as mulheres.<br />

Em todas as sociedades ditas democráticas, as mulheres tiveram<br />

de lutar arduamente, e seguem lutando, para ter acesso a direitos<br />

comuns a qualquer cidadão masculino, a exemplo de salário igual<br />

para trabalho igual, oportunidades de promoção, direito a integridade<br />

física, acesso ao trabalho, direito ao voto. Não obstante,<br />

a conquista do direito ao voto e do direito a candidatar-se aos postos<br />

de representação publica, na prática, não significou o direito<br />

de serem eleitas. (PETIT, 2007, p. 107)<br />

A impossibilidade de se elegerem, que as mulheres vêm encontrando<br />

ao longo da história, põe em cheque o compromisso<br />

democrático dessas sociedades bem como o discurso normativo<br />

da igualdade existente na maioria dos textos constitucionais onde<br />

a inclusão formal das mulheres está explicitada. Vários teóricos<br />

da democracia vêm apontando a inclusão das mulheres dentre as<br />

condições mínimas que definem o caráter democrático de uma<br />

sociedade. Exemplo nesse sentido é Roberto Dall que aponta como<br />

condições mínimas para o exercício da democracia a existência de<br />

partidos políticos e de organizações da sociedade civil com participação<br />

paritária de homens e mulheres, com programas e ideologias<br />

distintas da dominante, a aceitação de uma oposição política,<br />

o direito de qualquer indivíduo ou grupo desafiar ou substituir,<br />

através de eleições, a quem está no poder, a garantia da liberdade<br />

de expressão e de associação, a independência dos meios de comunicação<br />

e o respeito aos direitos humanos dos cidadãos e cidadãs,<br />

especialmente das minorias (1993, p. 29).<br />

Nesse mesmo caminho, segue Norberto Bobbio ao definir a<br />

“[...] democracia como via, como método, como conjunto de regras<br />

do jogo que estabelecem como devem ser tomadas as decisões<br />

coletivas e não quais decisões coletivas devem ser tomadas”<br />

196<br />

Gênero, mulheres e feminismos


(2000, p. 427). Dentre as regras por ele identificada como “pontos<br />

essenciais”, 2 merece destaque o item:<br />

todos os cidadãos que tenham alcançado a maioridade etária<br />

sem distinção de raça, religião, condição econômica, sexo, devem<br />

gozar de direitos políticos, isto é, cada um deles deve gozar<br />

do direito de expressão de sua própria opinião ou de escolher<br />

quem a expresse por ele mesmo que sejam regras estritamente<br />

do campo formal. (BOBBIO, 2000, p. 427)<br />

Em uma perspectiva crítica a essas posições, Anne Phillips<br />

(1996) diz que a democracia liberal costuma considerar que a promessa<br />

de igualdade e participação está suficientemente atendida<br />

com a normatização do sufrágio universal e com a possibilidade,<br />

igual para todas as pessoas, de se candidatar às eleições, como se<br />

as condições sociais e econômicas também não fossem determinantes<br />

nestes processos. A autora chama a atenção para o fato de<br />

que, mesmo nas sociedades modernas, são as mulheres que geralmente<br />

assumem as responsabilidades relacionadas ao trabalho<br />

doméstico não remunerado, à reprodução, ao cuidado das pessoas<br />

jovens, doentes e idosas, responsabilidades que, na prática, atuam<br />

como uma poderosa barreira impeditiva ao compromisso e à<br />

participação política das mulheres. Por outro lado, o fato de que<br />

a construção cultural da política como um assunto fundamentalmente<br />

masculino, de homens contribui para manter em desvantagens,<br />

quando não excluídas de fato, aquelas mulheres que apesar<br />

de todas as dificuldades tentam se inserir nos processos políticos.<br />

2 Para Bobbio, os outros pontos essenciais são: [...] 2) o voto de todos os cidadãos deve ter<br />

igual peso; 3) todos aqueles que gozam dos direitos políticos devem ser livres para poder<br />

votar segundo sua própria opinião formada, no máximo possível, livremente, isto é, em uma<br />

livre disputa entre grupos políticos organizados em concorrência entre si; 4) devem ser livres<br />

também no sentido de que devem ser colocados em condições de escolher entre diferentes<br />

soluções, isto é, entre partidos que tenham programas distintos e alternativos; 5) seja para as<br />

eleições, seja para as decisões coletivas, deve valer a regra da maioria numérica, no sentido<br />

de que será considerado eleito o candidato ou será considerada valida a decisão que obtiver<br />

o maior número de votos; 6) nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da<br />

minoria, particularmente o direito de se tornar por sua vez maioria em igualdade de condições”<br />

(2000, p. 427). Ver também Bobbio (1986, p. 19).<br />

Gênero, mulheres e feminismos 197


Para Almudena Hernando, além dessas questões colocadas<br />

por Anne Phillips, está o fato de que a identidade de gênero que<br />

segue sendo transmitida às mulheres faz com que elas enfrentem<br />

e vivenciem o poder de uma forma subjetiva muito distinta das<br />

vivências masculinas: “o poder implica para elas conflitos, desgastes<br />

e solidão ao que os homens, comumente, não têm que enfrentar”.<br />

Para a autora, essas dificuldades enfrentadas acontecem<br />

por conta do “[...] contexto subjetivo, identitário, inconsciente,<br />

determinado por séculos e séculos de identidade de gênero transmitida<br />

e reproduzida de acordo ao qual, às mulheres não lhes correspondiam<br />

ocupar posições de poder” (2003, p. 16).<br />

Para esse mesmo caminho se direciona Verônica Pérez que, ao<br />

fazer referência a autores como Inglehart, Norris y Welzel, destaca<br />

o papel da cultura no estabelecimento de limites ao acesso<br />

das mulheres ao poder. As atitudes tradicionais são uma das principais<br />

barreiras de acesso aos cargos de representação política,<br />

na medida em que os valores predominantes em uma sociedade<br />

determinam o tipo de direitos, recompensas e poderes, para homens<br />

e mulheres, nas distintas esferas da vida social e política.<br />

As mulheres não só sofrem as limitações impostas pela sociedade<br />

em geral, através dos papéis de gênero, mas, também limitações<br />

impostas por elas mesmas, definidas por sua condição de gênero<br />

subalterno, visto que a predominância de tais atitudes pode influir<br />

diretamente sobre a preparação e a decisão de se candidatar,<br />

assim como nos critérios utilizados pelos partidos políticos, pelos<br />

meios de comunicação e pelo próprio eleitorado ao escolher seus<br />

candidatos. (PÉREZ, 2006, p. 57)<br />

Na perspectiva de superar esses entraves na participação política<br />

das mulheres, Anne Phillips (1996) propõe, em linhas gerais,<br />

três possíveis soluções: 1) uma diferente divisão sexual do trabalho<br />

na produção e reprodução, com um reparte igualitário de toda<br />

a gama de trabalho remunerado e não remunerado existente na<br />

198<br />

Gênero, mulheres e feminismos


sociedade e que, até agora, é de responsabilidade quase exclusiva<br />

das mulheres; 2) a modificação na situação de trabalho dos políticos<br />

para que seja possível abrir possibilidades de participação para<br />

pessoas com responsabilidades parentais ativas; 3) a eliminação<br />

dos preconceitos de tipo “club masculino” próprios do eleitorado<br />

ou dos encarregados de escolher os candidatos nos partidos, algo<br />

que exige medidas de ações afirmativas para estimular a eleição de<br />

mulheres.<br />

Como aponta a própria autora, as feministas, nos últimos anos,<br />

têm envidado, sistematicamente, mais esforços na implementação<br />

do terceiro tipo de problema, o que, para ela, é uma demonstração<br />

de que não acreditam muito na possibilidade de mudar os<br />

dois primeiros. Eu diria que o que vem ocorrendo, de fato, é uma<br />

maior visibilidade nas ações direcionadas a mudanças no âmbito<br />

do Estado, como é comum ocorrer. A intervenção feminista nas<br />

diversas instâncias da vida social, no sentido de implementar mudanças<br />

no cotidiano feminino e, em especial, das famílias, tem sido<br />

a prática corrente do feminismo em mais de dois séculos de existência.<br />

A luta ideológica, a perspectiva de mudanças nos padrões<br />

culturais e a batalha incessante pela mudança na divisão sexual<br />

do trabalho e da afetividade do feminismo enquanto movimento<br />

social ou enquanto prática política tem buscado, precisamente,<br />

implementar as duas primeiras possíveis soluções indicadas pela<br />

autora; no entanto, exatamente por se travar, “essencialmente”,<br />

no âmbito privado, ela não é tão fortemente identificada e, até<br />

mesmo, pouco visibilizada. (COSTA, 2008b, p. 10)<br />

Por outro lado, não podemos esquecer a importância do papel<br />

do Estado como força política capaz de influenciar, implementar<br />

ações e políticas públicas transformadoras e, mesmo, através de<br />

medidas punitivas, mudar as práticas discriminadoras e excludentes<br />

em relação às mulheres. Nesse sentido, a implementação<br />

de ações afirmativas, a exemplo do sistema de cotas, pode ser um<br />

Gênero, mulheres e feminismos 199


dos caminhos para a construção de uma sociedade realmente democrática,<br />

garantindo uma participação paritária entre homens e<br />

mulheres.<br />

As cotas na América Latina<br />

A Argentina foi o primeiro país na América Latina a adotar<br />

um sistema de cotas, através da alteração do artigo 60º do Código<br />

Eleitoral, em 1991, a chamada “Ley de Cupos” que estabelecia a<br />

obrigatoriedade de que as listas de candidatos apresentadas pelos<br />

partidos em nível nacional garantissem um mínimo de 30% de<br />

mulheres.<br />

A lei foi fruto de todo um esforço das mulheres argentinas, em<br />

um processo iniciado ainda durante a ditadura militar com a ação<br />

das “Mães e Avós da Praça de Maio”, as primeiras a saírem em público<br />

denunciando as barbáries do regime militar e clamando pelo<br />

retorno do Estado de Direito. Paralelamente a esse movimento,<br />

desenvolveu-se um amplo movimento de mulheres ligado aos<br />

movimentos de resistência à Ditadura Militar. Em fins dos anos<br />

80, já era intensa a mobilização pela implantação de uma política<br />

de cotas protagonizada por setores do feminismo articulados com<br />

mulheres militantes dos partidos políticos.<br />

Inicialmente, a partir da experiência de países europeus, as<br />

mulheres tentaram negociar com os partidos majoritários a introdução<br />

das cotas nos programas partidários. Diante da reação<br />

negativa dos partidos, a nova estratégia foi apresentar projetos de<br />

reforma ao Código Eleitoral Nacional com o objetivo de “obrigar<br />

as organizações partidárias a incluir mais mulheres nas suas listas<br />

de candidatos aos cargos eletivos”. (MARX; BORNER; CAMINOT-<br />

TI, 2006, p. 8)<br />

Em novembro de 1989, a senadora Margarita Malharro de Torres,<br />

da União Cívica Radical (UCR), eleita pela província de Men-<br />

200<br />

Gênero, mulheres e feminismos


donza, apresentou um projeto de Reforma Eleitoral que obrigava<br />

as organizações partidárias a incluírem mulheres nas listas de<br />

candidatos a cargos legislativos. (MARX; BORNER; CAMINOTTI,<br />

2006, p. 9; MONTANHO, 2007, p. 28)<br />

Em 1990, forma-se a Rede de Feministas Políticas, integrada<br />

por quinze organizações partidárias, que, com o lema “Com<br />

poucas mulheres na política, mudam as mulheres; com muitas<br />

mulheres na política muda a política”, passou a ser a entidade organizadora<br />

de todo o processo de análise e pressão para a aprovação<br />

da Lei de Cotas. (MARX; BORNER; CAMINOTTI, 2006, p. 9)<br />

Em novembro de 1991, é sancionada a Lei n° 24.012, baseada<br />

na proposta da Senadora Malharro de Torres, e em março de 1993,<br />

foi promulgado o Decreto n° 379, que regulamentava aquela Lei,<br />

definindo mais explicitamente o mecanismo de cota feminina,<br />

ao estabelecer que “[...] a finalidade da lei é lograr a integração<br />

efetiva da mulher na atividade política, evitando sua postergação<br />

ao não se incluir candidatas femininas entre os candidatos com<br />

expectativa de serem eleitos”. (MARX; BORNER; CAMINOTTI,<br />

2006, p. 10)<br />

Em 1994, diante da constatação de que, mesmo aqueles partidos<br />

que cumpriam a lei, colocavam as mulheres nas listas em<br />

posições sem possibilidades de serem eleitas, foi realizada uma<br />

mudança na “Ley de Cupos” estabelecendo como exigência que<br />

as mulheres deveriam estar posicionadas nas listas em lugares<br />

com possibilidades reais de serem eleitas (uma mulher em cada<br />

três posições na lista) e se essa determinação não fosse cumprida,<br />

o partido não poderia inscrever sua lista e ficaria de fora do<br />

processo eleitoral. No entanto, esse requisito legal é cumprido<br />

de uma forma mínima pelos partidos, que costumam colocar as<br />

candidatas unicamente nos terceiros postos. (TOBAR; VILLAR,<br />

2006, p. 42)<br />

Gênero, mulheres e feminismos 201


Na tentativa de reverter essa prática partidária, várias contendas<br />

judiciais foram interpostas pelas mulheres no sentido de<br />

obrigar os partidos políticos a cumprirem a Lei de Cotas em sua<br />

integralidade. 3 Como consequência desses conflitos, em 2000, o<br />

então presidente De La Rua promulgou um novo decreto o Decreto<br />

Regulamentário n° 1.246 que estabelecia: 1) a cota eleitoral se<br />

aplica a todos os cargos eletivos de deputados, senadores e Constituintes<br />

Nacionais; 2) os 30% das candidaturas que devem ser<br />

destinadas às mulheres se referem à quantidade mínima; 3) a cota<br />

só é considerada cumprida quando aplicada ao número de cargos<br />

que cada organização partidária renova na eleição correspondente.<br />

(MARX; BORNER; CAMINOTTI, 2006, p. 12)<br />

Apesar dessas dificuldades na relação com os partidos, a Lei de<br />

Cotas na Argentina garantiu um impulso significativo na presença<br />

feminina no sistema representativo, passando de 5,9%, em 1991,<br />

para mais de 30%, na atualidade. Hoje, as mulheres preenchem<br />

39,6% das vagas da Câmara de Deputados. Essa experiência da<br />

Argentina tem servido de estímulo e exemplo para a implantação<br />

de políticas de cotas em outros países da América Latina.<br />

Porém, foi com a Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial<br />

sobre a Mulher: Ação para a Igualdade, o Desenvolvimento e<br />

a Paz, realizada em Beijing, na China, em 1995, que os mecanismos<br />

de ações afirmativas passaram a contar com a aceitação por<br />

parte dos governos nacionais, ao serem convocados a criar condições<br />

para o acesso efetivo das mulheres às instâncias de decisão.<br />

Na origem desse processo, foi fundamental a Convenção sobre a<br />

Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher<br />

(CEDAW), das Nações Unidas, de 1979, momento em que a desi-<br />

3 Merece registro o processo movido por Maria Merciadri de Morini, afiliada da UCR, em 1994,<br />

que apresentou denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) alegando<br />

violação de direitos políticos, da igualdade perante a lei. O CIDH admitiu o caso e interveio junto<br />

ao governo do Presidente Fernando de La Rua. Em março de 2001, chegou-se a uma solução<br />

amistosa para o conflito.<br />

202<br />

Gênero, mulheres e feminismos


gualdade vivenciada pela maioria das mulheres no âmbito político<br />

passa a ser motivo de interesse e atenção por parte dos organismos<br />

internacionais.<br />

Após a Conferência de Beijing e a aprovação da Plataforma de<br />

Ação, em menos de cinco anos, dez países da América Latina impulsionaram<br />

o sistema de cotas e, apesar de a maioria ter adotado<br />

a cota de 30%, a diversidade de modalidades tem sido surpreendente<br />

(Tabela 2).<br />

Nesse contexto pós-Beijing, um dos primeiros países a estabelecerem<br />

o sistema de cotas foi a Costa Rica, que hoje se constitui<br />

em uma das experiências de maior sucesso na região. O processo<br />

de luta pela implantação da política de cotas no país começou logo<br />

após a ratificação da CEDAW, em 1984, quando, por pressão do<br />

movimento de mulheres, alguns partidos começaram a criar mecanismos<br />

internos para promover e garantir a participação efetiva<br />

das mulheres na distribuição dos cargos e listas eleitorais. Porém,<br />

apesar da ampla mobilização, somente em novembro de 1996 foi<br />

aprovada a Lei n° 7.653 que estabelece o sistema de cotas pelo qual<br />

os partidos devem assegurar 40% de participação feminina tanto<br />

na estrutura partidária como nas cédulas para as candidaturas à<br />

eleição popular. A lei explicita, também, que as mulheres devem<br />

ser candidatas a postos elegíveis e recomenda a alternância e o<br />

respeito à média histórica. (MONTANHO, 2007, p. 29)<br />

Gênero, mulheres e feminismos 203


Tabela 2 − Cotas e sistemas eleitorais na América Latina<br />

PAÍS<br />

Ano da<br />

Cota<br />

%<br />

de mulheres<br />

antes da cota<br />

%<br />

mulheres<br />

hoje<br />

Cota<br />

mínima<br />

por lei<br />

Definição<br />

de posição<br />

na lista<br />

Tipo de<br />

lista<br />

Argentina 1991<br />

Câmara: 06,0<br />

Senado: 03,0<br />

38,3<br />

38,9<br />

30 sim fechada<br />

Paraguai 1996<br />

Câmara: 03,0<br />

Senado: 11,0<br />

10,0<br />

08,9<br />

20 sim fechada<br />

México 1996<br />

Câmara: 17,0<br />

Senado: 15,0<br />

22,6<br />

17,2<br />

30 não fechada<br />

Bolívia 1997<br />

Câmara: 11,0<br />

Senado: 04,0<br />

16,9<br />

03,7<br />

30 sim fechada<br />

Brasil 1997<br />

Câmara: 6,4<br />

Senado: 6,3<br />

08,8<br />

12,3<br />

30 não aberta<br />

Costa Rica 1997 Unicameral: 14,0 36,8 40 sim fechada<br />

Rep.<br />

Dominicana<br />

1997<br />

2000<br />

Câmara: 12,0<br />

19,7<br />

03,1<br />

25<br />

33<br />

não<br />

fechada<br />

Equador 1997 Unicameral: 04,0 26,0 sim aberta<br />

Panamá 1997 Unicameral: 08,0 15,3 30 não aberta<br />

Perú 1997 Unicameral: 11,0 29,2 25 não aberta<br />

Honduras 2000 Unicameral 23,4<br />

Uruguay 2004<br />

Câmara: 11.1<br />

Senado: 09,7<br />

Venezuela 1997 Unicameral 18,6 30 Não fechada<br />

Fonte: Veneziani, 2006; Idea Internacional, 2007a; Llanos; Sample, 2008<br />

204<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Da mesma forma que a Lei de Cotas da Argentina, a legislação<br />

costarricense necessitou ser aprimorada logo depois, para incorporar<br />

mecanismos de sanção aos partidos que não cumprissem<br />

o percentual mínimo estabelecido de 40% e a exigência de posicionamento<br />

das mulheres em lugares com reais possibilidades de<br />

serem eleitas. O que se viu, também na Costa Rica, já na primeira<br />

eleição subsequente à Lei, em 1998, foi que, mesmo aqueles partidos<br />

que cumpriram as cotas estabelecidas colocaram as mulheres<br />

em posições com escassas possibilidades de serem eleitas. O resultado<br />

dessa prática é que apenas duas mulheres a mais foram eleitas<br />

em relação às eleições de 1994. (PEREZ, 2008) Em 1999, atendendo<br />

a uma demanda do Instituto Nacional das Mulheres, o Tribunal<br />

Superior estabeleceu a Resolução n° 1.863 4 que criava mecanismos<br />

de controle e garantia do cumprimento da lei. Recentemente, em<br />

2007, a política nacional orientada para a igualdade e a equidade<br />

de gênero do Governo da Costa Rica incluiu, entre os seus eixos<br />

principais, o fortalecimento da participação política das mulheres;<br />

o cuidado da família como responsabilidade social e a valorização<br />

do trabalho doméstico; e o fortalecimento da institucionalidade<br />

pública em favor da igualdade e da equidade de gênero. A meta<br />

para 2017 é a participação política paritária em todos os espaços de<br />

tomada de decisões. (MONTANHO, 2006, p. 29)<br />

Juntamente com Costa Rica e Argentina, apesar de apresentarem<br />

índices de participação inferiores, podemos também considerar<br />

como experiências exitosas os sistemas de cotas femininas<br />

4 A Resolução nº 1.863, de setembro de 1999, estabelecia que: os 40% de participação das<br />

mulheres nas listas de candidaturas para a eleição de deputados, regentes e síndicos devem<br />

ser postos elegíveis; os 40% de cota feminina devem ser respeitados em cada assembléia e<br />

não é forma global; impõe a cada partido a obrigação de incorporar a seus estatutos os ajustes<br />

necessários para garantir efetivamente a participação das mulheres nas formas e percentuais<br />

definidos; o Registro Civil não fará a inscrição das listas (nóminas) dos candidatos quando estas<br />

não atendam a estes parâmetros, tampouco serão registradas as reformas estatutárias nem<br />

as atas das assembléias, quando a partir das atas ou dos relatórios dos delegados, o Tribunal<br />

considere que a lei não foi cumprida. O Tribunal se reserva o direito de fiscalizar, através dos<br />

diferentes mecanismos legais, o efetivo cumprimento do acordado. (MONTANHO, 2006, p. 29)<br />

Gênero, mulheres e feminismos 205


adotados no Equador e no Peru. A experiência chama a atenção<br />

pelo mecanismo utilizado, que vem dando importantes resultados.<br />

Em 1997, o Equador havia estabelecido uma cota de 20%, mas<br />

sem grandes resultados. Em 2000, por uma importante mobilização<br />

das mulheres, foi modificada a “Lei de Eleições” ou “Lei de<br />

Participação Política” estabelecendo 30% e um incremento gradual<br />

de 5%, a cada eleição, até chegar à paridade (50%). Segundo<br />

o artigo 58, da Lei de Eleições:<br />

As listas de candidaturas em eleições pluripessoais deverão apresentar-se<br />

com no mínimo, trinta por cento (30%) de mulheres<br />

entre os principais e trinta por cento (30%) entre os suplentes<br />

de forma alternada e seqüencial, percentual que será incrementado<br />

em cada processo eleitoral geral, em cinco por cento (5%)<br />

adicional até chegar a igualdade na representação. Se tomará em<br />

conta a participação étnico-cultural. (PACARI, 2004, p. 3)<br />

Toda a mobilização tomou como partida, o artigo 102 da nova<br />

Constituição do Equador aprovada em junho de 1998, que estabelece:<br />

O Estado promoverá e garantirá a participação equitativa de<br />

mulheres e homens como candidatos nos processos de eleição<br />

popular, nas instancias de direção y decisão no âmbito público,<br />

na administração de justiça, nos organismos de controle e nos<br />

partidos políticos.<br />

No Peru, o Congresso da República aprovou as cotas, em outubro<br />

de 1997, com a Lei n° 26.864 estabelecendo 25% para as eleições<br />

municipais e do Congresso Nacional. O artigo 10º da Lei de<br />

Eleições Municipais estabelece que a lista de candidatos deve ser<br />

apresentada em um único documento no qual se indique a posição<br />

dos candidatos na lista, que deve estar formada por, pelo menos,<br />

25% de homens ou mulheres. Em dezembro de 2000, através da<br />

Lei n° 27.387 aumentou-se a cota mínima de homens ou mulhe-<br />

206<br />

Gênero, mulheres e feminismos


es nas listas de candidatos ao Congresso da República em 30%.<br />

(MASSOLO, 2007, p. 34)<br />

Em seu estudo sobre participação política das mulheres na<br />

América Latina, no âmbito local, Alejandra Massolo (2007, p. 34)<br />

destaca como elemento fundamental para o sucesso do sistema de<br />

cotas do Peru, apesar da modalidade de lista aberta e da fragilidade<br />

dos mecanismos de sanções, a atuação de quatro instituições:<br />

o Movimento Manuela Ramos, Associação de Comunicadores Sociais<br />

CALANDRIA, o Centro de Estudos Sociais e Publicações (CE-<br />

SIP) e o Centro de Estudos para o Desenvolvimento e a Participação<br />

(CEDEP) que desenharam um programa de promoção política da<br />

mulher, o PROMUJER, responsável por um intenso trabalho de<br />

sensibilização de mulheres para a política e de formação política<br />

para mulheres candidatas.<br />

Outras experiências que se destacam no conjunto de análise da<br />

implementação do sistema de cotas na América Latina, não tanto<br />

pelo seu sucesso, mas, exatamente, pela possibilidade de identificação<br />

dos problemas e modelos não promissores, são os processos<br />

do México, Venezuela e do Brasil, este último como o exemplo de<br />

experiência mais fracassada na região.<br />

No México, a Lei de Cotas foi também estabelecida em 1996,<br />

após um processo de mobilizações, que teve início, em 1993, com<br />

a reforma do Código Federal de Instituições e Procedimentos Eleitorais<br />

(COFIPE) que determina que os partidos devem promover<br />

maior participação das mulheres na vida política (§ III, art. 175).<br />

Apesar do caráter generalista, essa legislação produziu um impacto<br />

na eleição de 1994, quando o percentual de mulheres passou<br />

de 8,4 para 13,8%, na Câmara Federal, e de 4,6% para 13,3%, no<br />

Senado. Em 1996, o COFIPE sofreu nova alteração com a incorporação<br />

do parágrafo XXII que estabelece que “os partidos políticos<br />

nacionais considerarão nos seus estatutos que as candidaturas<br />

Gênero, mulheres e feminismos 207


a deputados e senadores não excedam 70% para um mesmo gênero”.<br />

(REYNOSO; D’ANGELO, 2004, p. 5-6)<br />

Em 2002, na tentativa de tornar a lei de cotas mais eficaz,<br />

produz-se mais uma alteração no COFIPE, acrescentando-se três<br />

alíneas no artigo 175 pelas quais, em linhas gerais, ficam estabelecidos:<br />

a alternância na composição da lista definindo que, em<br />

cada um dos três primeiros segmentos de cada lista, haverá a candidatura<br />

de um sexo distinto; que o partido ou coalizão que não<br />

cumprir o dispositivo responderá junto ao Conselho Federal do<br />

Instituto Federal Eleitoral; e a punição do partido com a anulação<br />

do registro de candidaturas, em caso de reincidência. (REYNOSO;<br />

D’ANGELO, 2004, p. 6)<br />

Apesar dessas mudanças, a legislação eleitoral, ao não definir<br />

em quais tipos de candidaturas devem incidir as cotas, deixa<br />

brecha para que os partidos burlem a lei, colocando as mulheres,<br />

geralmente, na suplência. Essa prática tem impedido resultados<br />

significativos, posicionando o México no rol dos países em que a<br />

política de cotas não tem surtido os efeitos esperados, conforme<br />

podemos ver na Tabela 2 cujos dados apresentam um percentual<br />

de 22,6% de mulheres na Câmara e 17,2% no Senado.<br />

No México, todo esse processo foi construído a partir de importantes<br />

alianças suprapartidárias de mulheres militantes com o<br />

objetivo de estimular e reivindicar mecanismos que ampliassem a<br />

participação feminina nas instâncias de decisões, dentre as quais<br />

se destacou o Grupo Plural. (MONTANHO, 2006, p. 29)<br />

A experiência da Venezuela também merece registro. Em 1997,<br />

através do artigo 144 da Lei Orgânica do Sufrágio e da Participação<br />

Política, estabeleceu-se a obrigatoriedade dos partidos políticos e<br />

de grupos de eleitores incluírem um mínimo de 30% de candidatas<br />

nas listas eleitorais. Depois de implementado, na eleição seguinte,<br />

em 1998, o Sistema de Cotas foi considerado inconstitucional<br />

pelo Conselho Nacional Eleitoral, tido como contrário ao princí-<br />

208<br />

Gênero, mulheres e feminismos


pio de igualdade estabelecido na Constituição Venezuelana. Essa<br />

decisão foi ratificada, posteriormente, pelo Tribunal Supremo de<br />

Justiça. Em 1999, a nova Constituição, a Bolivariana, estabelece,<br />

pela primeira vez, no texto principal do país, de forma explícita<br />

e direta, o princípio da igualdade de direitos entre os cidadãos,<br />

estabelecendo, de forma clara, a diferença entre a “igualdade formal”<br />

e a “igualdade real e efetiva”. 5 A nova Constituição confere<br />

também aos Poderes Públicos capacidade para adotar ações positivas,<br />

quando sejam necessárias, para garantir a igualdade Real e<br />

Efetiva. (PRINCE, 2008, p. 5)<br />

Posteriormente, em 2005, por forte pressão do movimento<br />

feminista, usando, em especial, o postulado da igualdade contido<br />

na Constituição Bolivariana, o Conselho Nacional Eleitoral aprovou<br />

uma nova resolução estabelecendo a paridade e a alternância<br />

nas listas partidárias aos cargos de eleição popular. Em função da<br />

sua fragilidade e da inexistência de um sistema mais forte de controle,<br />

essa lei tem tido pouca eficácia na ampliação da participação<br />

política das venezuelanas.<br />

O caso brasileiro<br />

Apesar de constitucionalmente terem conquistado a cidadania<br />

política, desde 1934, e de hoje representarem a maioria absoluta<br />

do eleitorado, as mulheres brasileiras não têm conseguido se<br />

5 A Constituição Bolivariana da Venezuela em seu Artículo 21, estabelece que “Todas as pessoas<br />

são iguais perante a lei, e em conseqüência: 1. Não serão permitidas discriminações baseadas<br />

na raça, sexo, crença, condição social ou aquelas que, em geral, têm como objetivo ou resultado<br />

anular ou menosprezar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade, dos direitos<br />

humanos e liberdades de toda pessoa; 2. A lei garantirá as condições legais e administrativas<br />

para que a igualdade perante a lei seja real e eficaz; adotará medidas positivas em favor de<br />

pessoas ou grupos que possam ser discriminados, marginalizados ou vulneráveis, protegerá<br />

especialmente aquelas pessoas que por qualquer uma das condições antes de especificados,<br />

se encontram em circunstancia de aparente fraqueza e punirá eventuais abusos ou maus tratos<br />

a que contra elas se cometam. Constitución Bolivariana de Venezuela. Base de Datos Políticos<br />

de las Américas. Disponível em: . Acesso em: 2 jan. 2009.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 209


constituir cidadãs de fato, exercendo ativamente a prerrogativa<br />

de votar, mas, também, de serem votadas. As mulheres representam<br />

51% do eleitorado nacional, mas não chegam a ocupar 10%<br />

dos cargos eletivos do país. Segundo dados da União Inter-Parlamentar,<br />

o Brasil tem um dos registros mais baixos, com 8,8% de<br />

mulheres. Essa posição está abaixo da média mundial e coloca o<br />

Brasil na centésima terceira posição, em um total de 135 países na<br />

classificação mundial. (BALLINGTON, 2009, p. 173)<br />

A Lei n° 9.100, de 1995, conhecida como Lei de Cotas, que estabeleceu<br />

um mínimo de 20% das candidaturas partidárias reservadas<br />

para as mulheres, aplicada nas eleições municipais de 1996,<br />

não foi suficiente para alterar o quadro de exclusão política das<br />

mulheres brasileiras. Em 1997, foi aprovada a Lei n° 9.504 que<br />

ampliou para 25% a “obrigatoriedade” de candidaturas femininas,<br />

nas eleições de 1998, e para 30%, na seguinte. Assim, hoje,<br />

a lei “garante” 30% de candidaturas femininas no total de candidatos<br />

apresentados pelos partidos para os cargos nas eleições<br />

proporcionais − vereadores(as) e deputados(as) estaduais e federais.<br />

Anteriormente, o Brasil já tinha vivenciado outras experiências<br />

de cotas políticas. Em 1991, o Partido dos Trabalhadores (PT)<br />

aprovou uma cota de, no mínimo, 30% para cada um dos sexos,<br />

para os seus cargos de direção. Em 1993, a Central Única dos Trabalhadores<br />

(CUT) adotou a mesma política estabelecendo como<br />

norma o mínimo de 30% e o máximo de 70% de candidaturas para<br />

qualquer sexo.<br />

Apesar das cotas, o aumento da participação feminina tem<br />

sido irrisória, não tendo alterado sequer o índice de “crescimento”,<br />

nos últimos anos, quando não houve decréscimo. Na Câmara<br />

Federal, a participação feminina passou de 5%, em 1994, para<br />

9%, em 2006, permanecendo o mesmo na eleição de outubro último.<br />

As senadoras passaram de 8%, em 1994, para 12,3, em 2002,<br />

apresentando o mesmo percentual em 2006 e agora, em 2010,<br />

210<br />

Gênero, mulheres e feminismos


egistrou-se um pequeno aumento para 14%. Nas Assembleias<br />

Legislativas, as mulheres representavam 10%, em 1998, em 2002,<br />

passaram para 12,4% e, em 2006, houve uma redução para 11,6%;<br />

no último ano, passaram para 12,93, também um aumento insignificante.<br />

Já nas Câmaras Municipais, onde a presença feminina,<br />

tradicionalmente, é mais significativa, o número passou de 7%,<br />

em 1996, para 11,6%, em 2002, e 12,6%, em 2006.<br />

Segundo análises trazidas por Clara Araújo, a Lei de Cotas brasileiras<br />

define o mínimo de 30%, por sexo, no total da lista, porém,<br />

ao estipular que as listas podem ter até 150% de candidaturas<br />

em relação ao número de cadeiras a serem preenchidas, as cotas<br />

são sobre o 150%, isto é, sobre a lista potencial e não sobre a efetiva.<br />

Outra questão é que o não preenchimento não implica em<br />

penalidade; não há sanção (2009, p. 107).<br />

Esses dados apontam para a fragilidade da Lei de Cotas brasileira,<br />

na medida em que não esta contempla qualquer mecanismo<br />

que garanta sua obrigatoriedade por parte dos partidos políticos,<br />

visto que não existe qualquer tipo de penalidade para aqueles que<br />

não garantam os 30% de mulheres.<br />

Durante o processo de discussão da reforma política, no Congresso<br />

Nacional, iniciado logo após a primeira eleição do Governo<br />

Lula, o movimento feminista descortinou a possibilidade de aprimorar<br />

a legislação eleitoral no sentido de criar mecanismos mais<br />

eficientes que garantissem a ampliação do número de mulheres<br />

nas estruturas formais do poder. Ao final do processo, bem poucas<br />

mudanças foram incorporadas ao relatório final da reforma.<br />

As mulheres reivindicavam que fossem destinados 30% do<br />

fundo partidário para a educação política de mulheres, mas, na<br />

negociação, estabeleceu-se apenas 20% dos recursos destinados<br />

aos partidos políticos. A questão do tempo na propaganda partidária<br />

gratuita em TV e rádio para o tema da participação política<br />

das mulheres ficou vaga, não tendo sido definido um percentual.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 211


Outras demandas, como a alternância de sexo nas listas preordenadas<br />

e o financiamento público de campanha sequer foram contemplados.<br />

Nem mesmo uma legislação mais firme que, de fato,<br />

garantisse a aplicabilidade da Lei de Cotas foi aprovada. (COSTA,<br />

2008c)<br />

Essa dificuldade enfrentada pela bancada feminina para negociar<br />

e aprovar parte das suas iniciativas reflete exatamente o<br />

significado da força política das mulheres no Congresso Nacional<br />

brasileiro, em que não chegam a representar 10% do total dos<br />

parlamentares que constituem as duas Câmaras. A ausência das<br />

mulheres nas mesas de negociações, a dificuldade de atuarem<br />

como um bloco de gênero, submersas como vivem em um mar<br />

de interesses partidários e patriarcais, torna difícil imaginá-las<br />

conseguindo conduzir processos de mudanças ou, mesmo, de<br />

reformas.<br />

Na verdade, vive-se um paradoxo entre a força política de<br />

mobilização do movimento feminista de mulheres no Brasil e sua<br />

representação, de fato, nas instâncias de deliberação e implementação<br />

de políticas. A ausência feminina das estruturas de poder no<br />

país reflete, também, em sua possibilidade de intervenção, em sua<br />

capacidade de transformação democrática, em sua dificuldade<br />

de se constituir enquanto sujeito político demandante. (COSTA,<br />

2008c) Aliás, esse é um quadro que se repete em vários países da<br />

América Latina, como já vimos aqui.<br />

As cotas como um caminho para a paridade<br />

Uma análise mais superficial dos resultados das políticas de<br />

cotas na América Latina pode levar à falsa visão de que essa experiência<br />

não tem sido capaz de alterar significativamente o grau<br />

de participação feminina nas estruturas de poder, na medida em<br />

que, exceto na Argentina e Costa Rica, os índices de presença<br />

212<br />

Gênero, mulheres e feminismos


feminina seguem irrisórios. Nos países que implantaram algum<br />

tipo de cotas para o legislativo, anteriormente, a média de participação<br />

feminina ficava em torno dos 8%; hoje, depois do estabelecimento<br />

das cotas, a média está em torno de 13%. Como podemos<br />

ver, até então, a alteração vem sendo muito pequena.<br />

Porém, sabe-se que não é suficiente estabelecer um sistema<br />

de cotas, que as leis por si só não asseguram a ampliação da participação<br />

política das mulheres, que outras variáveis interferem<br />

sobre a possibilidade das mulheres serem eleitas, fatores associados<br />

à articulação de processos históricos, matrizes culturais etc.<br />

Segundo Drude Dahlerup (2003).<br />

However, research has shown that the quota system requires<br />

that women’s organizations develop programs of capacity<br />

building for the nominated and elected women. If the quotas<br />

for women shall lead for empowerment of women, the elected<br />

of women must get for women capacity an possibilities to perform<br />

their new task, in especially strong patriarchal societies.<br />

At the same time, quotas properly implement, might contribute<br />

to a more gender balanced society.<br />

Diversos estudos têm demonstrado que o sucesso ou fracasso<br />

do sistema de cotas está diretamente relacionado às características<br />

do sistema eleitoral, à exatidão das normas que sustentam<br />

este tipo de medidas e à ativa participação da sociedade não só na<br />

implementação e acompanhamento, mas, em especial, no monitoramento<br />

destas normas, da modalidade aplicada e do conjunto<br />

de sanções disponibilizadas para sua implementação. (VENEZIA-<br />

NI, 2006, p. 25)<br />

Argentina, Bolívia, Costa Rica, República Dominicana, Paraguai<br />

e Venezuela utilizam o sistema de listas de candidatos fechadas,<br />

isto é, um número de candidatos organizados a partir de uma<br />

ordem de prioridade. O eleitor vota na lista em sua totalidade,<br />

sem possibilidade de alterar a ordem. Se a Lei de Cotas define a<br />

Gênero, mulheres e feminismos 213


posição que as mulheres devem estar nessa lista, a possibilidade<br />

de sucesso é garantida, caso contrário, como ocorre na Costa Rica,<br />

República Dominicana e Venezuela, onde a legislação em vigor<br />

não diz nada a respeito do lugar que as mulheres devem ocupar<br />

na lista, os partidos tendem a situar as mulheres no final da lista,<br />

diminuindo, assim, as possibilidades de serem eleitas.<br />

Segundo Mark Bou (2000, p. 8), para que um sistema de listas<br />

fechadas seja efetivo, as leis relativas ao sistema de cotas devem<br />

incluir a determinação da posição a ser ocupada pelas mulheres na<br />

lista (mandato de posição) e estabelecer mecanismos de controle e<br />

de obrigatoriedade. Esse é o caso de Argentina, Bolívia e Paraguai,<br />

países nos quais a lei determina que se o partido não cumprir a<br />

cota não pode fazer o registro dos seus candidatos.<br />

No México, Equador, Peru, Brasil e Panamá, a legislação não<br />

especifica a posição que as mulheres devem estar na lista, bem<br />

como não estabelece mecanismos de controle. Esse tipo de política<br />

de cotas tende a fracassar no seu objetivo de ampliar a presença<br />

feminina. Se não há uma determinação expressa para a colocação<br />

das candidaturas femininas nas listas, o objetivo da cota tende a<br />

se perder diante das direções partidárias, geralmente, em mãos<br />

masculinas.<br />

Algumas conclusões<br />

A partir da experiência do sistema de cotas na América Latina<br />

podemos tirar algumas lições que podem contribuir, de forma<br />

efetiva, para a equidade das mulheres. As primeiras dessas<br />

lições são:<br />

• para que o sistema de cotas funcione em condições de atender<br />

seus objetivos é necessário que apresente um conjunto<br />

de normas e procedimentos claros, precisos e de acesso para<br />

todas;<br />

214<br />

Gênero, mulheres e feminismos


• como forma de garantir seu cumprimento, é necessário que<br />

a política contemple uma série de mecanismos legais de punição<br />

e restrições para aqueles que não atendam às determinações<br />

da lei;<br />

• o sistema eleitoral é um mecanismo fundamental no sucesso<br />

da cota, assim, sistemas amplos, bem delimitados possibilitam<br />

a ascensão;<br />

• os sistemas proporcionais tendem a promover, de uma forma<br />

evidente, a ascensão política das mulheres, do mesmo<br />

modo que os sistemas com listas fechadas e com definição de<br />

posições para as mulheres (alternância);<br />

• o sistema de cota, por si só, não cria as condições de empoderamento<br />

das mulheres. Ele deve vir acompanhado de políticas<br />

públicas de promoção da equidade que possam criar<br />

as condições para transformações mais radicais na estrutura<br />

patriarcal da sociedade na perspectiva da ampliação da<br />

democracia.<br />

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Gênero, mulheres e feminismos 215


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Gênero, mulheres e feminismos 219


AS COTAS POR SEXO NO LEGISLATIVO<br />

NA VISÃO DE PARLAMENTARES<br />

ESTADUAIS NORDESTINOS<br />

(mandatos 2003/2007 e 2007/2011)<br />

Sonia Wright<br />

Por que há tão poucas mulheres nas instituições políticas<br />

formais? Quais as dificuldades que diferentes mulheres enfrentam<br />

para fazerem parte de partidos, serem candidatas, se elegerem e<br />

exercerem mandatos? Como os sistemas eleitorais e partidários<br />

podem favorecer a representação feminina? Como tem sido a experiência<br />

de cotas? Haverá uma especificidade nordestina quanto<br />

a essa questão? Quais as propostas que estão sendo discutidas para<br />

superar estes obstáculos? Para contribuir para a reflexão sobre essas<br />

questões, este estudo enfoca a opinião 1 de parlamentares estaduais<br />

nordestinas(os), nas legislaturas de 2003/2007 e 2007/2011,<br />

sobre as cotas por sexo para o Legislativo. Para fundamentar,<br />

através de evidências empíricas, os entraves à implementação da<br />

1 Para Iris Young (2000), “opiniões são princípios, valores e prioridades das pessoas que<br />

condicionam sua escolha das políticas a serem efetivadas. Representar opiniões, como<br />

interesses, geralmente implica promover determinados resultados no processo de tomada de<br />

decisão”.


política de cotas, utiliza-se dados da pesquisa “A questão da mulher<br />

na visão parlamentar no Nordeste do Brasil”, realizada pela<br />

Rede Mulher & Democracia (M&D). 2<br />

Enquanto a pesquisa M&D teve um objetivo mais panorâmico<br />

e censitário, este trabalho se propõe a verificar se o pensamento<br />

das(os) parlamentares sobre as cotas varia de acordo com o perfil<br />

ideológico do seu bloco partidário de pertencimento. Nesse<br />

sentido, optou-se por agregar os partidos, conforme classificação<br />

de Barry Ames e Vera Pereira (2003, p. 265): 3 direita − Partido<br />

da Frente Liberal/Democratas (PFL/Dem), Partido Trabalhista<br />

Brasileiro (PTB) e Partido Progressista (PP); centro − Partido do<br />

Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e Partido da Social<br />

Democracia Brasileira (PSDB); e esquerda − Partido dos Trabalhadores<br />

(PT), Partido Socialista Brasileiro (PSB) e Partido Democrático<br />

Trabalhista (PDT). 4 Procura-se, também, verificar a possível<br />

implicação do número de mandatos exercidos pela(o) representante<br />

em seu posicionamento parlamentar referente às cotas.<br />

2 Rede constituída por organizações não-governamentais (ONGs) feministas e de mulheres,<br />

movimentos de mulheres, núcleos da Academia e instâncias governamentais de políticas para<br />

as mulheres que têm por objetivo favorecer a participação e a representação feminina nos<br />

Poderes da República, tendo como área de atuação a Região Nordeste. As atuais participantes<br />

são as seguintes organizações: Bahia (BA) − Secretaria de Políticas para as Mulheres de Lauro<br />

de Freitas, Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher da Universidade Federal da Bahia<br />

(Neim/UFBA); Ceará (CE) − Instituto Negra do Ceará, Elo Feminista/CE, e Núcleo de Estudos<br />

e Pesquisas sobre Gênero, Idade e Família (NEGIF)/UFC; Maranhão (MA) − Grupo de Mulheres<br />

Negras Mãe Andresa, Grupo de Mulheres Negras Maria Firmina e Grupo de Mulheres da Ilha de<br />

São Luís; Pernambuco (PE) − Associação das Mulheres de Nazaré da Mata (Amunam); Piauí<br />

(PI) − Gênero, Mulher, Desenvolvimento e Ação para a Cidadania (Gemdac); Rio Grande do Norte<br />

(RN) − Grupo de Ação da Mulher (Gam); Sergipe (SE) − Organização Cupim. A Secretaria Executiva<br />

é exercida pelo Centro das Mulheres do Cabo (CMC), que, juntamente com a Casa da Mulher do<br />

Nordeste (CMN), Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste (MMTR/NE) e Fundação<br />

Joaquim Nabuco (Fundaj) – compõem a Coordenação Colegiada da Rede.<br />

3 Existem outras classificações, como a de Scott Mainwaring e Timothy Scully (1995), Fernando<br />

Limongi e Argelina Figueiredo (1998), Jairo Nicolau (2000), André Singer (2000), Sylvio Costa e<br />

Antonio Augusto Queiroz (2007) e dos Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar<br />

(Diap) e Instituto de Estudos Sócio-Econômicos (Inesc) (2009), todas feitas a partir da<br />

composição da Câmara Federal. A agregação de Ames e Pereira (2003) é a que mais se aproxima<br />

do quadro encontrado na pesquisa M&D, com parlamentares estaduais do Nordeste.<br />

4 Foi retirado o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), da configuração ideológica de Ames, já que<br />

esse partido, assim como outros − tanto de esquerda, quanto de centro e direita − com menos<br />

de 3% de representação na pesquisa M&D, foram agrupados em Outros.<br />

222<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Além desses aspectos (partidário e de quantidade de mandatos),<br />

busca-se a diferenciação por gênero, para se compreender se esse<br />

fator interfere no pensamento das(os) legisladoras(es) sobre as cotas.<br />

Pretende-se, assim, contribuir para o melhor conhecimento<br />

da representação política das mulheres no Nordeste com o intuito<br />

de que esse conhecimento seja útil para a ação do movimento<br />

feminista e de mulheres na Região.<br />

A sub-representação dos estudos de gênero<br />

nas ciências sociais<br />

Um dos motivos centrais que embasa o estudo é a sub-representação<br />

dos estudos de gênero nas Ciências Sociais, principalmente<br />

na Ciência Política. Essa investigação se tornou necessária<br />

em função da existência de poucos estudos realizados com parlamentares<br />

em uma perspectiva de gênero. Ainda que, desde a década<br />

de 1970, existam “estudos sobre a mulher”, ou seja, sobre<br />

a sua situação nas mais variadas esferas da vida, especificamente<br />

na área de Ciência Política, a produção de conhecimento em uma<br />

perspectiva de gênero é bem menor. Segundo Maria Luiza Heilborn<br />

e Bila Sorj (1999), somente em 1984 foi publicado um artigo<br />

de Mariza Corrêa com um balanço sobre a literatura referente a<br />

Mulher e Política na Revista Brasileira de Informação Bibliográfica<br />

em Ciências Sociais (Bib). Sonia Miguel (2000), por sua<br />

vez, faz referência ao Grupo de Trabalho (GT) “Mulher e Política”<br />

da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais<br />

(Anpocs), coordenado, em 1987, por Carmen Barroso.<br />

A título de exemplo, embora, desde seu início, GTs sobre mulher<br />

ou gênero tenham estado presentes na Anpocs (HEILBORN;<br />

SORJ, 1999), verificou-se, no Encontro Anual de 2008, que, de 41<br />

GTs, apenas um (0,2%) tinha como temática central as relações<br />

de gênero; nenhum GT enfocou, especificamente, as mulheres na<br />

Gênero, mulheres e feminismos 223


política; e nos GTs cujas temáticas são consideradas como o “núcleo<br />

duro” da política − Controles Democráticos e Instituições Políticas;<br />

Cultura, Economia e Política; Estudos Legislativos; e Teoria<br />

Política: para além da democracia liberal − não foi apresentado um<br />

trabalho sequer com o recorte de gênero. Nos GTs “Comunicação<br />

Política e Eleições” e “Elites e Instituições Políticas”, também<br />

componentes do “núcleo duro” da Ciência Política, foi apresentado<br />

apenas um trabalho por GT, em doze sessões e cinco painéis, ou<br />

seja, 5% da atividade de cada um deles.<br />

Em termos de presença nas coordenações dos GTs acima nomeados,<br />

um terço é constituído por mulheres. Portanto, embora<br />

uma cota “voluntária” de 30% de mulheres em postos de coordenação<br />

seja alcançada, ela não se reflete no quantitativo da produção<br />

acadêmica apresentada com a inclusão da perspectiva de<br />

gênero. Conclui-se que, também transversalmente, a temática de<br />

gênero está sub-representada na Ciência Política. Segundo Sonia<br />

Miguel (2000), houve a institucionalização dos estudos de gênero,<br />

mas não a sua transversalização nas especialidades das Ciências<br />

Sociais.<br />

Na Região Nordeste, destaca-se, na produção científica sobre<br />

mulheres no poder, o trabalho de Ana Alice Alcântara Costa<br />

(1998), que integra o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a<br />

Mulher (Neim), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), criado<br />

ainda na década de 1980. Tomando por base o Neim − que possui<br />

uma dentre suas três linhas de pesquisa dedicada ao tema “Gênero,<br />

Poder e Políticas Públicas” – percebe-se que os estudos sobre<br />

a inserção das mulheres na política institucional estão crescendo<br />

em organizações acadêmicas, embora ainda sejam minoritários,<br />

principalmente aqueles que abordam a esfera regional.<br />

Registre-se, ainda, que, somente em 2007, na II Conferência<br />

Nacional de Políticas para as Mulheres, a sua participação nos espaços<br />

de poder e decisão foi amplamente debatida − tanto pelo<br />

224<br />

Gênero, mulheres e feminismos


movimento de mulheres e feminista, como por órgãos governamentais<br />

−, resultando em um capítulo específico do II Plano Nacional<br />

de Políticas para as Mulheres (BRASIL, 2008), inexistente<br />

no I PNPM.<br />

Mesmo assim, em estudo recente, Marlise Matos e Danuza<br />

Marques (2010) verificaram que a quantidade de estudos sobre a<br />

participação das mulheres nos movimentos sociais, na política do<br />

cotidiano, é muito maior que nos espaços da política formal. Segundo<br />

essas autoras, de 2000 a 2008, enquanto 122 (31,7%) dissertações<br />

e teses sobre Gênero, Mulheres e Política foram sobre<br />

Participação e Ativismo, apenas 31 (8,1%) foram sobre Representação<br />

Política. Esses dados demonstram que, mesmo entre a<br />

produção científica sobre as relações de gênero, a dimensão da<br />

participação das mulheres nas esferas de poder e decisão é sub-representada.<br />

Portanto, diante da necessidade de desenvolver mais<br />

estudos sobre participação e representação das mulheres na política<br />

formal, o presente trabalho busca dar visibilidade às opiniões<br />

das(os) integrantes das assembleias legislativas nordestinas sobre<br />

as cotas por sexo para eleições parlamentares proporcionais.<br />

No enfoque metodológico adotado, as mulheres são ouvidas<br />

e são igualmente autoras da pesquisa. Ao mesmo tempo, o olhar<br />

masculino sobre as cotas por sexo no Legislativo é contemplado.<br />

Outras particularidades dos procedimentos adotados são:<br />

(i) utiliza-se a pesquisa censitária de opinião, através de entrevistas<br />

com parlamentares mulheres e homens e não apenas uma<br />

amostra da população pesquisada (deputadas(os) estaduais do<br />

Nordeste); (ii) a cobertura de toda uma Região e não apenas de<br />

um ou outro estado; (iii) a aplicação do questionário não só com<br />

parlamentares mulheres, mas também com os homens; (iv) as diferenças<br />

entre os sexos são analisadas, bem como clivagens partidárias<br />

e de quantidade de mandatos exercidos; (v) as perguntas<br />

respondidas pelas(os) representantes estaduais são relacionadas<br />

Gênero, mulheres e feminismos 225


à legislação federal sobre cotas de 1997; (vi) a coleta de dados foi<br />

realizada em alguns estados, na legislatura 2003-2007, e em outros<br />

durante a legislatura 2007-2011, abrangendo, portanto, mandatos<br />

exercidos desde 2003 até 2007, quando foi finalizada essa etapa<br />

nos últimos estados; (vii) as questões têm um caráter educativo,<br />

já que, antes de solicitar a opinião da(o) entrevistada(o) esta(e) era<br />

informada(o) sobre a legislação em debate; e (viii) a realização da<br />

pesquisa, em todas as suas fases, por organizações integrantes da<br />

Rede Mulher & Democracia.<br />

Esta pesquisa cobriu as assembleias legislativas de nove estados<br />

– Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco,<br />

Alagoas, Sergipe e Bahia. O universo total de deputadas(os)<br />

estaduais da Região Nordeste é de 341 representantes, sendo que,<br />

deste total, responderam ao questionário, na forma de entrevista<br />

presencial, 262 parlamentares, ou seja, 77%, cerca de três quartos<br />

(3/4) do total. (Tabela 1).<br />

Tabela 1 – Relação entre o universo e o número de parlamentares entrevistada(o)s,<br />

segundo os Estados − Região Nordeste − Brasil, 2003-2011<br />

ESTADOS<br />

ENTREVISTADA(O)s<br />

Universo N° %<br />

Maranhão 42 32 76<br />

Piauí 30 29 96<br />

Ceará 46 38 82<br />

Rio Grande do Norte 24 20 83<br />

Paraíba 36 26 72<br />

Pernambuco 49 36 73<br />

Alagoas 27 17 63<br />

Sergipe 24 16 66<br />

Bahia 63 48 76<br />

Total 341 262 77<br />

Fonte: Rede Mulher & Democracia (M&D)<br />

O quarto restante de parlamentares não entrevistados(as)<br />

se recusou a colaborar com a pesquisa, afirmando não ter tem-<br />

226<br />

Gênero, mulheres e feminismos


po para responder ao questionário ou discordar do trabalho das<br />

feministas, não se dispondo a colaborar com a investigação. Ou<br />

seja, o grupo de 262 deputadas e deputados entrevistadas(os) foi<br />

formado somente por aquelas(es) parlamentares interessadas(os)<br />

e disponíveis para participar pessoalmente da pesquisa. Foram<br />

estendidas a todo o conjunto deste grupo as respostas, com reservas,<br />

pois algumas respostas podem ter seguido uma estratégia<br />

retórica (ARAÚJO, 2005), ou seja, discursivamente apoiando essa<br />

demanda das mulheres, mas sem compromisso efetivo com a sua<br />

implementação. Registra-se, ainda, que os resultados da pesquisa<br />

já refletem, de certo modo, uma base mínima de reconhecimento<br />

do movimento feminista e de mulheres, que pode ter um impacto<br />

nas respostas, já que não se conhece o que pensa a(o) parlamentar<br />

que não concorda com o movimento.<br />

Tabela 2 − Universo e número de entrevistadas(os), por sexo, segundo os Estados −<br />

Região Nordeste − Brasil, 2003-2011<br />

ESTADOS<br />

UNIVERSO<br />

ENTREVISTADAS(OS)<br />

N° % N° %<br />

Fem. Masc. Fem. Masc. Fem. Masc. Fem. Masc.<br />

Maranhão 8 34 19 81 7 25 22 78<br />

Piauí1 3 28 7 93 3 26 10 90<br />

Ceará2 3 43 4 96 3 36 8 92<br />

Rio Grande do Norte 4 20 17 83 2 19 10 90<br />

Paraíba 4 32 11 89 4 22 12 88<br />

Pernambuco 8 41 16 84 8 28 22 78<br />

Alagoas 3 24 11 89 2 15 12 88<br />

Sergipe 6 18 25 75 3 13 19 81<br />

Bahia 8 55 13 87 6 40 13 87<br />

TOTAL 46 295 11 89 38 224 15 85<br />

1<br />

Foram eleitas duas deputadas estaduais, sendo que uma suplente substituiu um parlamentar de<br />

licença.<br />

2<br />

Foram eleitas, em 2006, duas deputadas estaduais: Rachel Marques, do PT, e Lívia Arruda, do<br />

PMDB. A terceira deputada, Ana Paula Cruz, do PMDB, era a primeira suplente. Com a convocação<br />

de cinco deputados para compor o secretariado do governador Cid Gomes, ela volta a assumir uma<br />

cadeira legislativa.<br />

Fonte: M&D<br />

Gênero, mulheres e feminismos 227


Analisando o número de entrevistadas(os) por sexo, na Tabela 2,<br />

percebe-se que há uma variação de 6% entre mulheres e homens<br />

parlamentares entrevistadas(os): 82% das deputadas e 76% dos<br />

deputados. Essa diferença para mais no número das entrevistadas<br />

pode significar que, pelo fato de se tratar de reivindicação a elas<br />

relacionada, sejam essas mais favoráveis a essa demanda feminina,<br />

contribuindo para um resultado mais favorável às cotas, quando<br />

olhados de forma agregada. Ressalte-se que, nos estados do Piauí,<br />

Ceará, Paraíba e Pernambuco, 100% das deputadas participaram<br />

da pesquisa.<br />

A pesquisa foi dirigida a parlamentares estaduais e versa sobre<br />

projetos de lei e leis federais, ou seja, matéria sobre a qual eles(as)<br />

não têm nenhum poder de aprovação e/ou rejeição. O resultado da<br />

entrevista, por um lado, revela o posicionamento dessas(es) parlamentares<br />

e sua proximidade com os movimentos de mulheres,<br />

apesar de eles9as) não terem poder legal para a apreciação dessas<br />

matérias. 5 Por outro lado, esse distanciamento permite que suas<br />

respostas possam ser mais independentes e favoráveis aos direitos<br />

das mulheres do que a verificada em sua atuação parlamentar.<br />

Além dos dados de identificação da(o) parlamentar, as perguntas<br />

se referiam ao conhecimento sobre a Rede Mulher & Democracia,<br />

o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres e a Plataforma e<br />

Plano de Ação da Conferência de Beijing. Outros assuntos abordados<br />

na perspectiva de gênero foram: trabalho, direitos civis, saúde<br />

sexual e reprodutiva, violência contra a mulher, poder e representação<br />

política, recursos orçamentários e atividades partidárias.<br />

Quanto à dimensão temporal, a primeira fase da pesquisa foi<br />

realizada no primeiro semestre de 2005, envolvendo quatro estados<br />

(eleição 2002), e a segunda fase, no primeiro semestre de<br />

5 Não há impedimento legal de se “estadualizar” leis federais. No entanto, em levantamento<br />

realizado pelo Cfemea (RODRIGUES; CORTÊS, 2006), não há nenhuma iniciativa legislativa de<br />

cunho estadual no sentido de criar cotas por sexo para eleições parlamentares no Legislativo.<br />

228<br />

Gênero, mulheres e feminismos


2007, envolvendo os outros cinco estados (eleição 2006), ou seja,<br />

envolvendo legislaturas diferentes. Dado esse fato, o tratamento<br />

dos dados foi realizado em duas etapas. As assembleias dos estados<br />

que integraram a segunda fase da pesquisa, cujos parlamentares<br />

foram eleitos em 2006, tiveram mais tempo e oportunidade<br />

para entrar em contato com as demandas dos movimentos feministas<br />

e de mulheres dado que a institucionalidade de gênero vem<br />

cumulativamente apresentando avanços.<br />

A pesquisa foi implementada através da articulação de várias<br />

equipes de investigação, uma para cada estado, trabalhando sob<br />

uma coordenação geral e um marco teórico e metodológico comum,<br />

buscando coletar o mesmo tipo de informação nos diversos<br />

núcleos estaduais. As equipes estaduais foram montadas pelas<br />

organizações parceiras da Rede Mulher & Democracia (M&D), as<br />

quais já desenvolvem, em seus estados, um trabalho compartilhado,<br />

desde o início da Rede.<br />

A técnica de coleta de dados utilizada foi o questionário fechado<br />

e pré-codificado. O processamento eletrônico dos dados se<br />

deu através do tratamento dos dados dos nove estados nordestinos,<br />

inicialmente através do número e percentagens das respostas<br />

a cada questão e, posteriormente, através do cruzamento de dados.<br />

Esses dados subsidiam a análise da opinião parlamentar sobre<br />

as cotas e a inclusão das mulheres nos partidos.<br />

A cota como estratégia de inclusão das mulheres<br />

na política formal<br />

Segundo Branca Moreira Alves (1980), as primeiras mulheres<br />

a serem eleitas, a partir de 1928, eram principalmente feministas<br />

vinculadas à Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF).<br />

Da década de 1950 em diante, as eleitas ou eram de famílias tradicionais<br />

na política ou profissionais vinculadas aos movimentos<br />

Gênero, mulheres e feminismos 229


sociais (TABAK, 2002). No entanto, desde os primórdios da eleição<br />

de mulheres no Brasil, observa-se uma lógica inercial do recrutamento<br />

de candidatas. Diante dessa realidade, como aumentar a<br />

representação feminina?<br />

Uma das estratégias utilizadas para atingir a equidade de gênero<br />

na política formal é a redistribuição do capital político, tanto<br />

delegado como convertido. A política de assimilação, a estratégia<br />

das regras (KARAM; LOVENDUSKY, 2005, p. 187-235), a retórica<br />

(NORRIS, 2004a, p. 190), a de oportunidades iguais (MATLAND,<br />

2004), a de ideias (PHILLIPS, 1995; MIGUEL, L. F. 2000), a maternal<br />

(MIGUEL, 2001), a de presença (PHILLIPS, 1995) e as ações<br />

afirmativas (ARAÚJO, 1992), com destaque para as cotas no Legislativo,<br />

são outras táticas que vêm sendo utilizadas para a inclusão<br />

das mulheres na política.<br />

As cotas são consideradas mecanismos temporários e simbólicos,<br />

que visam educar a sociedade para a igualdade e a inclusão de<br />

gênero (ARAÚJO; GARCIA, 2006) e são insuficientes por si só para<br />

remover barreiras estruturais à inclusão feminina. Por outro lado,<br />

são mecanismos institucionais que permitem que se chegue a um<br />

equilíbrio de gênero na política, de forma mais rápida, contribuindo<br />

para os processos do empoderamento das mulheres bem como<br />

dando legitimidade a outras demandas femininas. No entanto, seus<br />

efeitos não são imediatos, mas processuais e cumulativos.<br />

Cotas podem ainda aumentar a consciência sobre a exclusão<br />

de outros grupos e contribuir para a correção de sua sub-representação.<br />

Elas são, efetivamente, um passo inicial na conquista da<br />

paridade de gênero. (DALEHRUP, 2006) Na concepção de Maria<br />

Mary Ferreira (2004, p. 22), as cotas representam um elemento<br />

que modifica a composição dos órgãos diretivos e trazem novas<br />

ideias para o debate, além de propiciar uma nova forma de aprendizagem<br />

do exercício do poder. Luis Felipe Miguel (2003) considera<br />

que as cotas são necessárias, por conta da diferença estrutural que<br />

230<br />

Gênero, mulheres e feminismos


se traduz na desigualdade da capacidade de intervenção na esfera<br />

pública. No entanto, sem mudanças estruturais na sociedade, a<br />

inclusão das mulheres nas instituições políticas não consegue alterar<br />

as relações de gênero. (DALEHRUP, 2006)<br />

Registra-se que há diferentes sistemas de cotas: reserva de assentos<br />

nos parlamentos, iniciativas voluntárias partidárias, legislação<br />

nacional de reserva de vagas partidárias. (ARAÚJO, 2001a;<br />

MATEO-DIAZ, 2006, p. 81) No Brasil, não se adota a reserva de<br />

assentos e sim cotas voluntárias e cotas legais, presentes na legislação<br />

eleitoral. As cotas tendem a ser melhor introduzidas em<br />

sistemas proporcionais, com listas fechadas, alternância de sexo<br />

e múltiplos partidos, sendo que os novos e de esquerda são mais<br />

propícios a absorver mulheres. (HTUN, 2001; ARAÚJO, 2001b)<br />

O acesso a fundos públicos e ao tempo gratuito de propaganda<br />

eleitoral também são aspectos que criam melhores condições<br />

para resultados que se aproximem mais da paridade desejada.<br />

A Lei n° 12.034/2009, que orientou as eleições de 2010, determinou<br />

o preenchimento, e não só a reserva, de, no mínimo, 30%<br />

e, no máximo, 70% das candidaturas por sexo, nas listas apresentadas<br />

por partidos ou coligações para as eleições proporcionais.<br />

(CFEMEA, 2010) Da mesma forma, houve um avanço para<br />

as mulheres na distribuição do tempo de propaganda partidária<br />

(10%) e na destinação dos recursos do fundo partidário (5%). No<br />

entanto, essa melhora na legislação eleitoral não repercutiu como<br />

prática nos partidos, mais uma vez predominando a estratégia retórica<br />

dessas instituições que fazem o recrutamento de aspirantes<br />

ao parlamento.<br />

Essa interação com o sistema eleitoral e partidário revela alguns<br />

limites da cota, para além da fragilidade da própria lei. Outra crítica<br />

é que elas promovem uma reacomodação dentro do sistema político<br />

vigente, obscurecendo a necessidade de transformações estruturais<br />

mais profundas. (VARIKAS, 1996 apud MIGUEL, 2003)<br />

Gênero, mulheres e feminismos 231


Em nível estadual e regional, assinala-se que as assembleias<br />

legislativas têm criado, como estratégia de fortalecimento das deputadas,<br />

comissões de mulheres suprapartidárias, como a Bancada<br />

Feminina Federal. No Nordeste, elas existem na Bahia, Paraíba,<br />

Piauí e Pernambuco. 6 Em Alagoas, Maranhão, Sergipe, Ceará e Rio<br />

Grande do Norte, os órgãos legislativos estaduais tratam das questões<br />

relativas às mulheres em Comissões de Direitos Humanos e<br />

Cidadania, ou seja, as mulheres ainda não conquistaram um espaço<br />

próprio dentro destas assembleias estaduais, sendo tratadas<br />

em conjunto com indígenas, pessoas negras e idosas e crianças e<br />

adolescentes.<br />

A opinião parlamentar sobre as cotas por sexo<br />

no legislativo<br />

Neste trabalho, foram escolhidas, para a análise, as perguntas<br />

e respostas da pesquisa mencionada que, de mais perto, questionam<br />

a distribuição do poder institucional em uma perspectiva de<br />

gênero, ou seja, a manutenção das cotas por sexo para o Legislativo.<br />

Verificou-se o posicionamento parlamentar sobre a questão<br />

por blocos partidários, número de mandatos exercidos e gênero.<br />

Considerando que as(os) parlamentares são atrizes e atores diretamente<br />

envolvidas(os) na temática, buscou-se conhecer suas<br />

opiniões sobre a questão. Dado o lugar de parlamentar estadual<br />

em uma Região como o Nordeste, será que se aproximam mais<br />

de uma posição favorável ou suas posições tendem a ser contrárias<br />

às cotas? Será que seu pertencimento partidário interfere em<br />

sua opinião sobre as cotas ou ele é irrelevante para o seu concei-<br />

6 Foram visitados os sites de todas as assembleias legislativas do Nordeste para confirmar essas<br />

informações.<br />

232<br />

Gênero, mulheres e feminismos


to sobre as mesmas? Outras variáveis, como gênero 7 e número de<br />

mandatos exercidos, intervêm na opinião parlamentar nordestina<br />

quanto às cotas por sexo no Legislativo, principalmente, nos estados<br />

escolhidos? Como o debate, o estímulo e o incentivo às cotas<br />

se relacionam com a opinião parlamentar?<br />

Na pesquisa M&D, 50,8% das(os) deputadas(os), cerca da metade,<br />

se manifestaram favoravelmente às cotas no Legislativo. O<br />

percentual contrário é, portanto, bastante expressivo (42%), havendo<br />

uma pequena faixa de indecisos, de 7,2%, como se vê no<br />

Gráfico 1.<br />

Gráfico 1 – Opiniões da(o)s entrevistada(o)s sobre a manutenção das cotas por sexo no<br />

Legislativo − Região Nordeste − Brasil, 2003-2011<br />

Fonte: M&D<br />

Ao agrupar as respostas nas tendências ideológicas dos partidos,<br />

verifica-se que, no conjunto, as(os) parlamentares favoráveis<br />

às cotas se concentram nos partidos de Esquerda (17,9%) 8 e que<br />

tanto a Direita como o Centro assim como os pequenos partidos<br />

7 Embora se reconheça a relação entre o componente sexual do gênero e a raça como fazendo<br />

parte das desigualdades que estruturam nossa sociedade (SCOTT, 2005), optou-se por deixar<br />

para um trabalho posterior traçar um paralelo entre ambos, principalmente no que concerne à<br />

política de cotas.<br />

8 Como foi dito anteriormente, esta é uma tendência nacional e internacional, comprovada pela<br />

literatura especializada no tema.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 233


agregados em Outros estão divididos entre favoráveis e contrários<br />

às cotas no Legislativo, com uma pequena vantagem para as(os)<br />

parlamentares contrários. As cotas são, portanto, uma questão<br />

em disputa nos partidos dessas correntes ideológicas. Mesmo nos<br />

de esquerda, as cotas no Legislativo não são consenso, pois 5% de<br />

suas/seus representantes se opõem a essa política afirmativa nesse<br />

Poder da República. Mas há ainda as(os) que não têm opinião formada<br />

sobre o assunto, principalmente entre os partidos de direita<br />

(Tabela 3).<br />

Tabela 3 − Posicionamento sobre as cotas por sexo no legislativo, por bloco partidário −<br />

Região Nordeste − Brasil, 2003-2011<br />

COTAS POR SEXO − POSICIONAMENTO<br />

Contrária à manutenção de cotas por<br />

sexo no âmbito do Poder Legislativo<br />

Favorável à adoção de cotas por sexo no<br />

âmbito do Poder Legislativo<br />

LEGISLATIVO P/ BLOCO PARTIDÁRIO (em %)<br />

Direita Centro Esquerda Outros TOTAL<br />

14,8 14,9 5 7,3 42,0<br />

12,9 11,4 17,9 8,4 50,7<br />

Não tem opinião formada 2,7 1,6 1,9 1,1 7,3<br />

Fonte: M&D<br />

Mas observa-se que, quando o critério é o número de mandatos,<br />

é entre as(os) parlamentares em segundo mandato que se expressa<br />

a maior diferença entre favoráveis (17,2%) e contrárias(os)<br />

(11,1%) às cotas. Em relação ao primeiro e terceiro ou mais mandatos<br />

não há diferenças expressivas nas opiniões de parlamentares<br />

sobre essa política de ação afirmativa e sim uma divisão levemente<br />

favorável às cotas. No entanto, verifica-se uma pequena queda<br />

progressiva entre as(os) favoráveis na medida em que o número de<br />

mandatos aumenta, ou seja, no primeiro mandato 17,9%, 17,2%,<br />

no segundo, e 15,3%, no terceiro ou mais. Isto pode significar que<br />

o número de mandatos exercidos seja um dos fatores determinantes<br />

do posicionamento parlamentar sobre as cotas no Legislativo,<br />

234<br />

Gênero, mulheres e feminismos


ou seja, quanto mais antiga(o) a/o parlamentar no exercício dos<br />

mandatos, maior a probabilidade que ela(e) seja contrária(o) à<br />

manutenção dessa política afirmativa. E quanto mais mandatos<br />

exercidos, menor a dúvida sobre essa legislação, conforme se<br />

observa na Tabela 4.<br />

Tabela 4 − Posicionamento sobre as Cotas por Sexo no Legislativo, por número de<br />

mandatos exercidos − Região Nordeste − Brasil, 2003-2011<br />

POSICIONAMENTO<br />

Contrária/o à adoção de cotas por sexo<br />

no âmbito do Poder Legislativo<br />

Favorável à adoção de cotas por sexo<br />

no âmbito do Poder Legislativo<br />

LEGISLATIVO P/ MANDATO (em %)<br />

Primeiro Segundo Terceiro TOTAL<br />

16,4 11,1 14,5 42,0<br />

17,9 17,2 15,3 50,7<br />

Não tem opinião formada 3,1 2,7 1,5 7,3<br />

TOTAL 37,4 31,0 31,3 100,0<br />

Fonte: M&D<br />

Na Tabela 5, verifica-se que, enquanto os homens estão divididos<br />

equilibradamente entre favoráveis (49,1%) e contrários<br />

(43,7%) à manutenção de cotas no Legislativo, a proporção<br />

de mulheres favoráveis (60%) é praticamente o dobro das que<br />

são contrárias (31,5%). Representantes de ambos os sexos (7,1%<br />

homens e 7,9% mulheres) têm um alto percentual de indecisão.<br />

Observa-se que, embora haja uma maioria de deputadas favoráveis<br />

à manutenção das cotas, o número das contrárias é bastante<br />

expressivo, já que é uma política que visa favorecer as próprias<br />

mulheres. Pode-se afirmar, então, que não há consenso entre as<br />

parlamentares estaduais nordestinas sobre as cotas no Legislativo,<br />

revelando-se uma multiplicidade de pontos de vista dentro do<br />

mesmo grupo. Uma explicação possível para o relativamente alto<br />

percentual de parlamentares contrárias é que o conceito de ações<br />

afirmativas não tenha sido suficientemente discutido na socieda-<br />

Gênero, mulheres e feminismos 235


de e, especificamente, nos parlamentos estaduais do Nordeste.<br />

É provável que ainda predomine uma concepção de igualdade formal,<br />

e não substantiva − ou de resultados, como prefere Drude<br />

Dahlerup (2006, p. 9).<br />

Tabela 5 − Posicionamento sobre as cotas por sexo no Legislativo, por sexo − Região<br />

Nordeste − Brasil, 2003-2011<br />

POSICIONAMENTO (em %)<br />

SEXO<br />

Favorável<br />

Contrária<br />

Não tem<br />

opinião formada<br />

TOTAL<br />

Masculino 49,1 43,8 7,1 100<br />

Feminino 60,5 31,6 7,9 100<br />

Fonte: M&D<br />

Considerações finais<br />

Este trabalho teve como propósito responder a algumas perguntas<br />

sobre a representação feminina no Nordeste, principalmente<br />

no que tange à opinião parlamentar sobre a cota por sexo<br />

no Legislativo, levando-se em consideração diferenças por bloco<br />

partidário, número de mandatos exercidos e gênero.<br />

Tanto a cultura política, ou seja, práticas e valores predominantes<br />

que perduram através do tempo, em que as mudanças<br />

ocorrem lenta e incrementalmente, bem como a dependência da<br />

trajetória institucional, que consolida valores que se enraízam nas<br />

práticas dificultando que novos mecanismos institucionais sejam<br />

experienciados e o capital político acumulado, isto é, o processo<br />

pelo qual alguns indivíduos e grupos, mais do que outros, são<br />

aceitos como atores políticos, influenciam enormemente a opinião<br />

parlamentar estadual nordestina.<br />

As raízes históricas, culturais e institucionais da pouca presença<br />

das mulheres nas instituições políticas formais fazem com<br />

236<br />

Gênero, mulheres e feminismos


que prevaleça a inércia frente às estratégias de inclusão feminina,<br />

ou seja, para fazerem parte de partidos, serem candidatas, se elegerem<br />

e exercerem mandatos, as mulheres dispõem de um capital<br />

político menor. O status quo favorece os homens e as relações de<br />

desigualdade estrutural tendem a se reproduzir. O capital político<br />

feminino geralmente não é delegado pelo partido, mas convertido<br />

da esfera familiar, profissional e dos movimentos para o campo da<br />

disputa eleitoral.<br />

Embora o sistema eleitoral e partidário formalmente não exclua<br />

as mulheres, prevalece a arraigada cultura política que favorece<br />

a manutenção da concentração do capital político em mãos<br />

masculinas. Experiências institucionais inovadoras, como as cotas<br />

por sexo, pela fragilidade da própria legislação e a sua fraca<br />

implementação, não têm sido suficientes para modificar o quadro<br />

de desigualdade na representação política de gênero.<br />

Essa análise é confirmada pelos dados sobre a posição parlamentar<br />

estadual nordestina acerca da manutenção das cotas no<br />

Legislativo. Verificou-se que: as(os) favoráveis à sua manutenção<br />

no Legislativo se concentram nos partidos de esquerda e que a direita<br />

e o centro estão divididos sobre a matéria; por outro lado,<br />

quanto maior o número de mandatos, menor o apoio às cotas;<br />

as mulheres são, majoritariamente, a favor dessa ação afirmativa;<br />

conclui-se, ainda, que é o bloco partidário de pertencimento<br />

da(o) legislador o que mais consistentemente tem contribuído<br />

para a posição favorável ou contrária às cotas. Em outras palavras,<br />

o pertencimento partidário é altamente relevante na posição relativa<br />

às cotas, pois, além de concentrar a responsabilidade de<br />

recrutar pessoas (inclusive mulheres) para os cargos públicos, influem<br />

em seu posicionamento político. Por outro lado, o gênero<br />

acentua a opinião parlamentar, pois as mulheres foram consistente<br />

e majoritariamente favoráveis à manutenção das cotas por<br />

sexo no Legislativo.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 237


O desafio que se apresenta é o uso habilidoso de estratégias<br />

diversificadas de inclusão das mulheres na política, com destaque<br />

para as cotas por sexo no Legislativo; é formar alianças que propiciem<br />

mudanças institucionais e culturais que favoreçam a distribuição<br />

equitativa do capital político.<br />

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Gênero, mulheres e feminismos 241


MOVIMENTOS FEMINISTAS,<br />

ABORTO E LAICIDADE<br />

o caso de Alagoinha como exemplar<br />

Carla Gisele Batista<br />

Cecília M. B. Sardenberg<br />

Este texto foi escrito a partir de observações feitas na nossa<br />

militância junto ao movimento de mulheres e feministas, na Bahia<br />

e em Pernambuco. Baseia-se, também, nas atividades realizadas<br />

por Carla Gisele Batista, primeira autora deste texto, no período<br />

em que integrou a Secretaria Executiva da Articulação de Mulheres<br />

Brasileiras (AMB) e a coordenação colegiada da Articulación<br />

Feminista Marcosur (AFM) 1 , o que a aproximou dos movimentos<br />

de mulheres e feministas 2 , em várias regiões do país, bem como<br />

em outros países da América Latina.<br />

1 AMB: compõe-se de fóruns e articulações estaduais de mulheres existentes nos Estados<br />

brasileiros (Ver em: ); AFM: articula organizações, redes<br />

e militantes feministas de alguns países da América Latina (Ver em: ). Ambas se originaram dos processos preparatórios para a Conferência de Beijing (1995).<br />

2 Compreendemos os movimentos aqui como de mulheres, no seu sentido mais amplo. Dentro<br />

deles, organizações e militantes feministas atuam junto a mulheres que não se identificam<br />

como feministas. Como a defesa da legalização do aborto, a nosso ver, está mais relacionada<br />

ao feminismo, no restante do texto usaremos a denominação movimentos feministas,<br />

considerando a pluralidade de sua composição.


No trabalho, buscamos fazer uma reflexão inicial sobre a forma<br />

como as atuações em defesa da legalização do aborto aproximam<br />

esses movimentos do debate sobre a laicidade do Estado. Compartilhamos,<br />

com Leila Linhares Barsted, a perspectiva de que<br />

[...] compreender a ação do movimento de mulheres, em especial<br />

na defesa do direito ao aborto, permite não apenas observar a<br />

constituição de um sujeito e de um campo político, mas também<br />

pode constituir um exercício de avaliação sobre os limites da democracia<br />

e da laicidade do Estado no Brasil. (2009, p. 229-30)<br />

A defesa dos direitos sexuais e de acesso a outros direitos e políticas<br />

relacionados à vida sexual e reprodutiva, para além da interrupção<br />

da gravidez, também provoca essa aproximação, mas<br />

estes não serão, no entanto, aspectos abordados aqui, ainda que<br />

seja reconhecida a sua relevância para a ampliação da democracia.<br />

Inicialmente, traçamos um desenho sobre o entrecruzamento<br />

entre movimentos feministas, Estado, políticas internacionais e<br />

nacionais, igrejas, aborto e laicidade. Em um segundo momento,<br />

apresentamos, ainda que brevemente, uma experiência que<br />

retrata o que foi demonstrado nesse panorama inicial, antes de<br />

concluir relacionando outras ações que se encontram inseridas no<br />

contexto apresentado. Note-se, porém, que este artigo não abrange,<br />

na sua totalidade, as ações realizadas em defesa da legalização<br />

do aborto no Brasil, mas, apenas algumas daquelas relacionadas<br />

ao campo no qual atuamos.<br />

Movimento de mulheres, aborto e laicidade<br />

Comecemos com algumas considerações de Barbara Klugman<br />

e Debbie Budlender:<br />

Para as mulheres, o aborto sempre foi um meio de controlar suas<br />

vidas. No passado, todas as culturas contavam com uma forma<br />

de prover aborto às mulheres que, por diversas razões, não de-<br />

244<br />

Gênero, mulheres e feminismos


sejavam filhos. No entanto, nos últimos séculos, a sociedade tem<br />

tratado de limitar cada vez mais a capacidade das mulheres de<br />

controlar sua capacidade reprodutiva. Por um lado, as políticas<br />

de população têm tentado decidir por elas se devem ter mais ou<br />

menos filhos. Por outro lado, a área médica tem buscado profissionalizar<br />

a saúde reprodutiva, erosionando com isso o papel<br />

das parteiras tradicionais e das mulheres neste mesmo campo.<br />

E ainda assim, em vários países, as instituições religiosas têm<br />

procurado aplicar regulamentações mais restritivas para as circunstâncias,<br />

quando existem, em que o aborto é aceitável. (2001,<br />

p. XV, tradução das autoras)<br />

Sabe-se que, nos últimos doze anos, vários países modificaram<br />

suas leis referentes ao acesso ao aborto: África do Sul e Albânia<br />

(1996); Camboja (1997); Guiné (2000); Mali, Chade e Suíça (2002);<br />

Benin (2003); Butão, Nepal e Etiópia (2004); Suazilândia (2005);<br />

Colômbia (2006); México, Portugal e Togo (2007). As conquistas oscilam<br />

entre a legalização, a exemplo do México D. F. e de Portugal,<br />

e a aprovação de alguns permissivos, como é o caso da Colômbia,<br />

apenas para citar países mais próximos culturalmente. Também<br />

variaram os sujeitos envolvidos e as estratégias utilizadas.<br />

O fato é que, nos países em que o aborto foi legalizado, houve<br />

uma sensível redução da mortalidade e da morbidade relacionadas<br />

ao aborto ilegal e inseguro. (BERER, 2008) Exemplos concretos<br />

foram abordados, por exemplo, em estudos sobre os EUA, África<br />

do Sul e Romênia. No entanto, para os movimentos feministas,<br />

a questão do aborto não pode ser interpretada apenas como um<br />

problema de saúde pública. Se evitar que as mulheres morram é<br />

tido como um direito fundamental a ser observado, tal questão<br />

é mais frequentemente lida, para esses movimentos, como indissociável<br />

de um conjunto mais amplo de lutas pela ampliação<br />

dos direitos de cidadania. Às mulheres como cidadãs precisam ser<br />

garantidos direitos outros que não morrer. Questões como a autonomia<br />

reprodutiva e a liberdade de decisão acerca do próprio<br />

Gênero, mulheres e feminismos 245


corpo estão presentes ao longo dos anos como parte fundamental<br />

dos discursos, reivindicações e estratégias nesse campo, levando<br />

os movimentos feministas a questionarem a própria definição de<br />

contrato social vigente no mundo ocidental e cristão, a partir das<br />

ideias de democracia e de diversidade.<br />

Ainda que os movimentos feministas, em sua maioria, 3 tratem<br />

da defesa do direito ao aborto a partir de um campo laico, este é<br />

um debate que está por demais imbricado a uma problemática religiosa<br />

e não apenas no Brasil. Na verdade, outros setores da sociedade<br />

vêm se integrando cada vez mais ao debate: universidades,<br />

judiciário e saúde/medicina, por exemplo. No entanto, persiste na<br />

mídia um tratamento da questão de forma a polarizar os posicionamentos<br />

entre feministas e igrejas, dando destaque para as opiniões<br />

e os discursos conservadores. As igrejas, sob esse aspecto,<br />

ainda são apresentadas como um bloco unívoco. A diversidade de<br />

opinião existente dentro delas corre à margem do que tem sido<br />

normalmente visibilizado através dos meios de comunicação.<br />

Em todas as religiões, a Católica em particular, as opiniões<br />

abarcam um leque amplo e divergente, mesmo para aqueles temas<br />

que estão colocados como dogmas ou seguem uma orientação<br />

definida por suas lideranças atuais. Essa diversidade de opiniões,<br />

que cria conflitos e disputas entre as suas hierarquias, não costuma<br />

estar visível no debate público. No entanto, pesquisas têm demonstrado<br />

que, no que se refere aos temas ligados à sexualidade e<br />

à reprodução, a maioria dos(as) fiéis orientam as suas decisões de<br />

forma distante daquela promovida pelas definições hierárquicas.<br />

(PIOVESAN; PIMENTEL, 2002)<br />

No trabalho educativo com mulheres do meio popular, isso<br />

pode ser frequentemente observado: cada mulher lida de forma<br />

particular com a gravidez quando não planejada ou indesejada.<br />

3 Organizações feministas como a “Católicas pelo Direito de Decidir”, que atuam em diversos<br />

países, são do campo religioso.<br />

246<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Mesmo aquelas que são devotas, praticantes fervorosas de alguma<br />

religião, em um entendimento pessoal com a divindade de sua<br />

devoção, encontram formas de reconhecer, sem culpa, a melhor<br />

decisão para si. Maria José Rosado-Nunes, em estudo realizado<br />

com líderes de Comunidades Eclesiais de Base da periferia de São<br />

Paulo, afirma que essas mulheres, “mesmo reticentes em relação<br />

ao aborto, tratando-se de práticas contraceptivas distanciam-se<br />

dos argumentos devedores do ethos cristão e aproximam-se do<br />

ideário feminista, afirmando o direito à autonomia individual”<br />

(2009, p. 214). Afirma ainda que:<br />

[...] o ideário católico sobre as mulheres continua a diferir radicalmente<br />

daquele das feministas e entra em conflito com suas<br />

reivindicações, invocando fundamentalmente seus direitos, relativos<br />

a todos os âmbitos de sua vida – privada e pública. Enquanto<br />

o feminismo construiu um novo campo de legalidades,<br />

incluindo a sexualidade e a reprodução entre os direitos humanos<br />

fundamentais das pessoas, especialmente das mulheres, no<br />

campo católico, e em parte do campo protestante e evangélico,<br />

as concepções tradicionais sobre sexo e sobre o agenciamento<br />

humano na reprodução devem-se à inscrição dessas áreas da<br />

vida humana na ‘natureza’, dada por Deus e imutável. Essas<br />

concepções religiosas opõem-se à construção feminista da reprodução.<br />

(2009, p. 208)<br />

É importante não esquecer também que, no que se refere às liberdades<br />

laicas, o Estado não pode se limitar a simplesmente garantir<br />

“uma coexistência pacífica entre diferentes credos”. Como<br />

parte de assegurar a laicidade, cabe também ao Estado, para usarmos<br />

palavras de Roberto Lorea, “garantir [...] o direito de divergir<br />

da hierarquia da sua própria igreja, contemplando a diversidade<br />

existente no seio de uma mesma doutrina religiosa” (2006, p. 186).<br />

Isso é bastante relevante considerar, vez que o cenário contemporâneo<br />

não é, de modo algum, de consenso ou de apaziguamento<br />

das lutas. Muito ao contrário, à medida que os movimentos se<br />

Gênero, mulheres e feminismos 247


organizam e se transformam ampliando suas agendas e conquistas,<br />

o campo de enfrentamento também se sofistica. O aborto, assim<br />

como está na agenda dos movimentos feministas, há alguns anos<br />

tem estado, também, na pauta dos religiosos conservadores. Se<br />

setores dos movimentos feministas investiram esforços, durante a<br />

década de 90, para avançar internacionalmente nas conferências<br />

das Nações Unidas em instrumentos de negociação e influência aos<br />

governos para a implantação de políticas que implementassem os<br />

direitos sexuais e os direitos reprodutivos, governos republicanos<br />

dos EUA adotaram diversas medidas políticas e vincularam dotação<br />

orçamentária para países em desenvolvimento para proposições<br />

que debilitam esses direitos e os avanços já alcançados. 4<br />

Essa contraposição se fez de diversas formas. Basicamente,<br />

restringiu-se as possibilidades das organizações que recebem<br />

recursos internacionais para a realização de ações no campo dos<br />

direitos sexuais e direitos reprodutivos (DSDR) de oferecerem ou<br />

trabalharem em prol do oferecimento de serviços de contracepção,<br />

prevenção ao HIV/AIDS, aborto legal, de fazerem mobilizações<br />

em favor de modificações nas legislações de seus países ou,<br />

até mesmo, de oferecerem assessoria médica ou referenciarem<br />

pacientes para serviços de interrupção de gravidez. Foram feitos<br />

investimentos, também, na organização de militância contrária<br />

ao exercício dos DSDR, investimento que tem multiplicado os seus<br />

frutos à medida que as possibilidades de avanço no sentido contrário<br />

se apresentam como possíveis. A mudança para um governo<br />

de partido democrático defensor do direito ao aborto poderá<br />

significar alterações que ainda não se fizeram perceber de forma<br />

4 Concretamente, foi anunciado, no segundo dia da administração Bush, em 22 de janeiro<br />

de 2001, a chamada Regra da Mordaça Global − Global Gag Rule (GGR), a mesma que já fora<br />

anunciada, pela primeira vez, pela administração Reagan, durante a Conferência de População<br />

da ONU – Cairo, 94. Essa política tem como propósitos principais “1 − Obstaculizar o acesso<br />

da população a uma ampla gama de métodos contraceptivos, incluindo a contracepção de<br />

emergência; 2 − Se contrapor aos esforços para assegurar o acesso à população ao aborto legal<br />

e seguro”. (CHÁVEZ; COE, 2006, p. 3, tradução das autoras)<br />

248<br />

Gênero, mulheres e feminismos


marcante fora do próprio país, em função das condições criadas<br />

anteriormente para a ação conservadora.<br />

O fato é que norte-americanos consonantes com o Partido<br />

Republicano, em sintonia com a ação teológica-política do Estado<br />

do Vaticano e de igrejas evangélicas, vêm se empenhando, de<br />

forma mais estratégica, na restrição das liberdades sexuais e reprodutivas,<br />

articulando discursos do direito à vida com os discursos<br />

convencionais de abstinência sexual, da interdição do uso de<br />

qualquer método contraceptivo − em particular, da contracepção<br />

de emergência −, ou de prevenção às DST e à AIDS, de valorização<br />

da família de modelo tradicional, patriarcal, heterossexual, com<br />

estratégias geopolíticas, econômicas e orçamentárias na luta contra<br />

a legalização do aborto em diversas nações do planeta.<br />

Para os movimentos sociais da América Latina, de um modo<br />

geral, o processo de abertura democrática subsequente aos períodos<br />

ditatoriais e à instalação, ainda que não imediata, de novos<br />

governos considerados progressistas, deveria representar um momento<br />

substantivo de diálogo sobre políticas demandadas a partir<br />

deste mesmo campo, o das lutas por uma sociedade mais democrática<br />

e justa. No entanto, toda a complexidade das relações que<br />

se instituem no campo internacional influencia, em boa medida,<br />

a forma como se redefinem nacionalmente as políticas, o que não<br />

quer significar que seria diferente se este tipo de orientação não<br />

se exercesse, afinal, seja no Brasil, seja na América Latina como<br />

um todo, a oposição às ditaduras militares foi, em grande parte,<br />

apoiada e abrigada, dentro de setores da Igreja Católica.<br />

Sabe-se que a oposição ao regime autoritário, ainda que compartilhada<br />

pelas mulheres, que estiveram presentes na ação política<br />

contra a ditadura, seja por razões teológicas ou por razões<br />

políticas, continuou contemplando as questões sobre autonomia<br />

trazidas pelas mulheres como secundárias. Segundo nos aponta<br />

Leila Barsted:<br />

Gênero, mulheres e feminismos 249


[...] ao lado da luta contra a interferência histórica do Estado sobre<br />

os corpos femininos, as feministas se engajaram no processo<br />

de redemocratização do país, embora fossem olhadas com desconfiança<br />

pelos demais setores opositores do regime militar, incluindo<br />

os militantes de esquerda, que desconsideravam como<br />

políticas as questões específicas no campo da sexualidade, especialmente<br />

quando colocadas pelas feministas como questões<br />

que diziam respeito a direitos individuais, inerentes à liberdade<br />

e autonomia do indivíduo. (2009, p. 229)<br />

Essas barreiras começam lentamente a se romper, mas não<br />

sem recuos, ainda que apenas em nível de um discurso limitado<br />

ao entendimento da problemática do aborto como uma questão<br />

de saúde pública.<br />

Muitos dos líderes políticos que atualmente estão ocupando<br />

cargos governamentais ou no Legislativo e Judiciário se formaram<br />

em escolas católicas. Foi também dentro da Igreja que muitos se<br />

iniciaram nos debates políticos e na militância, durante o regime<br />

de exceção. Uma entrevista do Presidente Lula ao periódico espanhol<br />

El País, em maio de 2010, ilustra esse fato: ele conta que, no<br />

período inicial de sua atuação sindical em São Bernardo do Campo,<br />

São Paulo, nenhuma ideologia alimentava suas ações. Mas,<br />

logo em seguida, suas ações receberam apoio dos movimentos de<br />

base católica. Lula afirma que “o Partido dos Trabalhadores não<br />

teria existido sem a ajuda de milhares de padres e comunidades<br />

cristãs do Brasil”. E ressalta: “ele (o PT) deve muito ao trabalho<br />

da Igreja, à teologia da libertação, aos padres progressistas. Tudo<br />

isso contribuiu para minha formação política, a construção do PT<br />

e a minha chegada ao poder”. No entanto, Lula finaliza afirmando<br />

que “minha relação pessoal com a Igreja Católica foi e continua<br />

sendo muito forte, mas somos um país laico, tratamos todas as<br />

religiões com respeito”. 5<br />

5 “A ONU precisa mudar ou não servirá para governo global”. 9 maio 2010. Disponível em:<br />

.<br />

250<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Assistimos, não sem reações, às modificações promovidas no III<br />

Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), sob pressão da Igreja<br />

Católica. Construído a partir dos debates realizados no processo<br />

participativo da Conferência Nacional de Direitos Humanos realizada<br />

em 2009, o texto inicial do programa afirmava a necessidade do<br />

compromisso governamental de “apreciar a aprovação de projeto<br />

de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das<br />

mulheres para decidir sobre seus corpos”. 6 Em decreto de número<br />

7.177, de 12 de maio de 2010, este texto foi modificado, a partir dos<br />

questionamentos recebidos, passando a ser: “considerar o aborto<br />

como tema de saúde pública, com a garantia do acesso aos serviços<br />

de saúde”. Entre um conteúdo e outro e a forma como foi feita a<br />

substituição, muito há que se refletir sobre a distância entre a fala do<br />

Presidente Lula e o que realmente se pratica na promoção de políticas<br />

públicas observando o princípio da laicidade e da participação.<br />

No Brasil, assim como em muitos países latino-americanos,<br />

os movimentos feministas têm formulado diferentes estratégias e<br />

discursos a elas relacionados, no tocante ao objetivo de alcançar a<br />

legalização do aborto. Uma estratégia recorrente, no entanto, tem<br />

sido a articulação transnacional dos movimentos, mesmo entre<br />

movimentos situados para além do continente americano. A ação<br />

internacionalista vem se instituindo, permanentemente, como<br />

um princípio organizativo de peso semelhante ou potencializador<br />

às ações nas esferas locais e nacionais. Ao mesmo tempo, quando<br />

pautam o debate sobre o aborto, trazem, implícita ou explicitamente,<br />

a essa discussão os debates sobre democracia e sobre laicidade<br />

do Estado.<br />

Note-se que as questões relacionadas aos avanços dos direitos<br />

sexuais e reprodutivos se confrontam permanentemente com barreiras<br />

religiosas restritivas a sua ampliação e, também, com a falta<br />

6 Para acessar o PNDH3 na íntegra: .<br />

Gênero, mulheres e feminismos 251


de ousadia e coragem, por parte dos gestores públicos, no enfrentamento<br />

a essas restrições, mesmo que para isso em muitos países<br />

existam garantias constitucionais, como é o caso do Brasil. Ações<br />

governamentais nesse campo não avançam ou recuam a qualquer<br />

manifestação contrária vinda dos setores religiosos conservadores.<br />

No Brasil, mesmo para os casos em que o aborto está garantido<br />

na legislação, a implantação de serviços, iniciada a partir do final<br />

da década de 80 do século passado − mais de quarenta anos após<br />

a existência de lei que garante a possibilidade de escolha para as<br />

situações de violência sexual e risco de vida para a mulher grávida<br />

–, tem se defrontado permanentemente com a recusa de profissionais<br />

dos serviços públicos a realizarem os atendimentos, em<br />

nome do direito a uma objeção de consciência. Enfrenta, também,<br />

a ineficácia na divulgação dos serviços já existentes, em nome de<br />

um receio à procura que eles poderiam suscitar, bem como constantes<br />

tentativas de aprovação de projetos de leis, por integrantes<br />

das bancadas religiosas, que eliminariam constitucionalmente essas<br />

possibilidades que já estão garantidas na legislação vigente.<br />

E não se há de esquecer a ação das instituições e da comunidade,<br />

estimuladas e alimentadas por lideranças religiosas, no sentido<br />

de buscar dissuadir, constranger, discriminar e até criminalizar as<br />

mulheres que se proponham a recorrer a esses direitos já previstos.<br />

Soma-se a esse constrangimento a própria ilegalidade na qual<br />

se mantém o aborto, empurrando as mulheres que por ele optam<br />

como solução extrema, para a clandestinidade.<br />

Alagoinha, um caso exemplar 7<br />

Um pequeno resumo dos acontecimentos desse caso que se<br />

passou em março de 2009, no Estado de Pernambuco: em uma me-<br />

7 Um documentário detalhado sobre o caso pode ser acessado através de .<br />

252<br />

Gênero, mulheres e feminismos


nina de nove anos vinda do interior, foi identificada uma gravidez<br />

gemelar, resultante de estupro. Essa gravidez foi considerada de<br />

risco, o que incluía o caso nas duas exceções à criminalização do<br />

aborto garantidas no Código Penal brasileiro. 8 Acompanhada de<br />

sua mãe, ela chegou ao Instituto Médico Legal (IML) para exame<br />

e foi encaminhada a um hospital credenciado para o atendimento<br />

aos casos de violência sexual e aborto legal.<br />

O caso, desde o início, foi acompanhado pela mídia local. Um<br />

secretário de governo e a Arquidiocese publicamente se manifestaram<br />

contrários à realização da interrupção da gravidez. A Arquidiocese,<br />

ao mesmo tempo, atuou pressionando o hospital para<br />

a não realização dos procedimentos garantidos nessas situações.<br />

É importante lembrar que o hospital em questão tem suas estruturas<br />

de funcionamento vinculadas, ou dependentes, da Igreja<br />

Católica.<br />

O movimento de mulheres local, articulado no Fórum de Mulheres<br />

de Pernambuco (FMPE), acompanhou, desde o início, o<br />

debate e intercedeu, nesse momento, no sentido de apresentar<br />

possibilidades à mãe da garota para que ela pudesse decidir, com<br />

maior informação e garantias legais, quais os encaminhamentos<br />

possíveis a dar ao caso. Isso fez com que a mãe pedisse a sua alta<br />

do hospital que se negou ao procedimento e fosse encaminhada a<br />

outro serviço de aborto legal, contatado pelo FMPE, que se prontificou<br />

em garantir o direito à interrupção. Mãe e filhas − eram<br />

duas filhas e ambas vinham sendo violentadas pelo padrasto − receberam<br />

acompanhamento e apoio da Secretaria Estadual de Políticas<br />

para as Mulheres para reorganizarem suas vidas após esses<br />

incidentes.<br />

Esse caso foi noticiado internacionalmente, provocando, no<br />

mundo inteiro, reações contrárias e, em alguns casos, contradi-<br />

8 Risco de morte para a mãe e violência sexual.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 253


tórias além do posicionamento da Igreja representado pelo Arcebispo.<br />

Ainda que se ouvissem algumas poucas vozes em apoio ao<br />

Arcebispo e a insistência não unívoca do Vaticano em referendar<br />

sua atitude, de todas as direções, as manifestações afirmavam o<br />

direito da garota ao aborto, vendo como equívoco querer impor<br />

a uma menina de nove anos uma gravidez fruto de violência. Defenderam,<br />

assim, a equipe médica que realizou os procedimentos<br />

de interrupção. Essas manifestações se posicionavam sobre a<br />

importância de separar da religião a ação do Estado e a efetivação<br />

de políticas públicas, já que as igrejas resistem a essa separação,<br />

atuando, permanentemente, para influenciar a forma como leis e<br />

políticas se efetivam.<br />

É impossível fazer uma avaliação de tudo o que se falou e debateu<br />

a respeito. Assim, trazemos aqui apenas duas citações restritas<br />

a manifestações feitas desde o Estado de Pernambuco, onde<br />

ocorreram os fatos. Vejamos, por exemplo, trecho de um artigo<br />

publicado por um professor universitário:<br />

A partir da inserção de novos sujeitos nos processos sociais de<br />

hegemonização, como a mídia e outros membros do campo religioso<br />

− os evangélicos, os espíritas etc. – Estado e Igreja Católica<br />

têm sofrido certo rearranjo conjuntural. As derrotas simbólicas,<br />

no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal, nos debates<br />

acerca das pesquisas com células-tronco, por exemplo,<br />

demonstram a vivência de uma nova trama nas atuais relações<br />

de poder. Importantes setores das classes dominantes exprimem<br />

publicamente discordâncias à Igreja. Esta passa, de modo cada<br />

vez mais direto, a tomar o Estado − antes seu incondicional aliado<br />

− como objeto de lutas. As posturas estatais diante do aborto,<br />

das distribuições e usos de preservativos e anticoncepcionais, da<br />

união entre pessoas do mesmo sexo, isso para citar somente algumas<br />

temáticas, são disputadas a ferro e fogo pelo clero.<br />

Por certo, mais do que o pecado de uma menina de nove anos<br />

vítima de um estupro, o arcebispo de Olinda e Recife contesta<br />

uma posição estatal. Dom José Cardoso Sobrinho vem por em<br />

254<br />

Gênero, mulheres e feminismos


xeque normas consagradas pelo ordenamento jurídico pátrio.<br />

As hipóteses de aborto legal não são novas no Código Penal, pelo<br />

contrário, sua justificação consta na Exposição de Motivos da<br />

Parte Especial do Código datada de 1940. Mesmo no campo jurídico,<br />

tradicionalmente reconhecido por seu conservadorismo,<br />

o artigo 128 não causa polêmicas significativas. Dá-se, contudo,<br />

que a disputa empreendida pelo arcebispo vai muito além<br />

do aborto legal. Ela se vale do caso sob discussão como meio de<br />

reafirmar as posições da Igreja e sua relevância na arena pública,<br />

ainda que arcebispo e Igreja surjam momentaneamente como<br />

anacrônicos, ortodoxos ou dogmáticos. A eficácia simbólica de<br />

todo esse processo está, destarte, menos no aborto em questão,<br />

legal e seriamente encaminhado pela equipe do Centro Integrado<br />

de Saúde Amaury de Medeiros (CISAM) da Universidade de<br />

Pernambuco, e mais na ratificação midiática da necessidade de<br />

veiculação da fala da Igreja, inclusive sobre um assunto que no<br />

Estado não causa mais divergências. (ÉFREM FILHO, 2009)<br />

Outro professor universitário também se refere às relações<br />

entre Estado e Igreja como tema principal a ser observado no caso.<br />

Cabe aqui reproduzir suas observações:<br />

[...] o arcebispo declarou, literal, pública e explicitamente, que a<br />

equipe médica, que realizara um procedimento médico legítimo<br />

e legal, e a mãe da criança de 9 nove anos, que autorizara tal procedimento,<br />

‘estavam excomungados automaticamente’ (sic). E<br />

repetiu, diversas vezes, o termo ‘automaticamente’. Ora, algumas<br />

questões, que fogem ao domínio religioso, colocam-se inelutavelmente<br />

e interessam a toda a sociedade civil. 1º) Em suas<br />

declarações, Dom José Cardoso afirmou que a ‘lei de Deus’ (isto<br />

é, a lei da Igreja Católica Romana, citando o Código Canônico)<br />

está acima de qualquer outra ‘lei dos homens’ (isto é, no caso em<br />

tela, a lei brasileira). Acrescentou, ainda, que, quando a ‘lei de<br />

Deus’ é contrariada pela ‘lei dos homens’, esta não tem o menor<br />

valor (sic) e, em consequência, como se pode inferir, não deve<br />

ser obedecida. Quer dizer, na hipótese, a lei brasileira não passaria<br />

de ‘lixo jurídico’. Para qualquer estudante de Faculdade de<br />

Direito, tal afirmação poderia ser considerada como tipificação<br />

do que estatui o Código Penal Brasileiro, isto é, um ‘incentivo<br />

público à prática de atos ilícitos’. E a ‘omissão de socorro’, por<br />

Gênero, mulheres e feminismos 255


exemplo, não estaria tipificada como delito penal? Como, acertadamente,<br />

aliás, alegou um dos médicos agredidos? Claro! O<br />

Arcebispo não teria tido tais intenções. [...] Com todo o respeito<br />

aos fiéis católicos e de outras seitas cristãs, tanto quanto a todos<br />

os religiosos, não seria interessante refletir criticamente sobre<br />

os atos da hierarquia de suas respectivas Igrejas? Não seria o momento<br />

para uma reflexão profunda sobre os avanços do espírito<br />

republicano e do Estado laico no Brasil? (PERRUSI, 2009)<br />

Em um artigo que analisa as construções discursivas de cartas<br />

às redações e artigos publicados no mês de março de 2009,<br />

em apenas três jornais pernambucanos, 9 a jornalista Nataly Lima<br />

(2010) assinala a importância do caso para reabrir a discussão sobre<br />

Estado laico e direitos reprodutivos. Segundo essa autora, no<br />

Jornal do Comércio, foram publicados onze artigos de opinião e<br />

doze cartas à redação; no Diário de Pernambuco, foram quatro<br />

artigos e dezessete cartas; e, na Folha de Pernambuco, dois artigos<br />

e duas cartas, números considerados por ela como bastante<br />

expressivos para o período delimitado.<br />

Lima utiliza o método de análise do discurso para fazer uma<br />

leitura desse material. Não temos aqui a intenção de reproduzir<br />

a sua análise, mas apenas utilizar algumas das informações por<br />

ela sistematizadas para comprovar o afirmado anteriormente.<br />

Sobre o perfil dos(as) autores(as), 62,5% eram homens: jornalistas,<br />

sociólogos, escritores, advogados, economistas, psicólogos,<br />

professores universitários e médicos. De forma geral, as opiniões<br />

veiculadas tratavam de defender a interrupção da gravidez<br />

(64,6%) ou de criticar o procedimento (35,4%).<br />

Os argumentos favoráveis abordavam como principais argumentos<br />

para a defesa desse posicionamento: o trauma sofrido por<br />

uma criança estuprada; o risco de morte; a intromissão da igreja<br />

nas políticas públicas; a indignação com o posicionamento<br />

9 Jornal do Comércio, Diário de Pernambuco e Folha de Pernambuco.<br />

256<br />

Gênero, mulheres e feminismos


do arcebispado, presente, principalmente, nas cartas. Segundo<br />

Lima (2010), no geral, mais se repudiou a atuação da Arquidiocese<br />

“do que se reformulou o paradigma do direito ao corpo, ou mesmo<br />

se discutiu amplamente a questão de gênero”. Na verdade, fica a<br />

constatação de que a separação entre igreja e Estado transversalizou<br />

todas as discussões.<br />

No final, pode-se avaliar que, a partir da atuação de feministas<br />

e de setores sensibilizados da sociedade estão sendo abertas novas<br />

possibilidades, ainda que restritas e, muitas vezes, fragilmente<br />

instituídas, de atendimentos às mulheres junto aos serviços públicos.<br />

Entre os diversos posicionamentos públicos, as declarações<br />

do Presidente da República e do Ministro da Saúde também<br />

demonstraram, nessa situação, um distanciamento crítico em relação<br />

à interferência da igreja no caso − talvez apenas em função<br />

da reação de toda a sociedade ou talvez porque se tratava de uma<br />

menina, em um caso gritante de violência. Se fosse uma mulher<br />

adulta envolvida, seria diferente?<br />

Conclusões<br />

Neste artigo, buscamos demonstrar como a pauta do Estado<br />

laico se entrecruza e convoca permanentemente as lutas feministas<br />

pela transformação social. Os movimentos feministas, ao reivindicarem<br />

a legalização do aborto, estão também alimentando as<br />

discussões sobre a ampliação da democracia e sobre a laicização<br />

do Estado, ao mesmo tempo em que estão sendo convocados pela<br />

necessidade de instituição da laicidade e pautados a incluírem<br />

esse tema como objeto de reflexão, construção de conhecimento<br />

e ação política. Quando atuam nesse campo, estão ampliando os<br />

debates, não apenas no diálogo com outros movimentos sociais e<br />

com os partidos políticos, dentro e fora dos governos, mas com a<br />

sociedade de forma mais ampliada.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 257


A campanha “Contra os Fundamentalismos, o Fundamental<br />

é a Gente”, lançada em 2002, no II Fórum Social Mundial (FSM),<br />

buscava inicialmente um diálogo com os movimentos sociais e<br />

lideranças ali presentes. Mas o seu objetivo final era o de atingir<br />

a toda a sociedade, o que foi acontecendo à medida que ações se<br />

multiplicaram em diversos países. 10 Afirmando que todas as formas<br />

de fundamentalismos são políticas e buscam a sujeição e a exclusão<br />

do outro/diferente, utilizou um termo de autorreferência<br />

religiosa 11 para provocar também os movimentos e militantes de<br />

esquerda sobre a necessidade de ouvir, respeitar e, por que não?,<br />

incorporar as demandas trazidas por distintos setores da sociedade,<br />

já que essas questões apresentadas estão em construção a<br />

partir de um lugar diverso que esses “outros e outras” ocupam no<br />

mundo.<br />

Nos debates sobre a construção de uma “plataforma dos movimentos<br />

sociais para a reforma do sistema político no Brasil”,<br />

os movimentos feministas também provocaram a discussão sobre<br />

o Estado Laico junto aos outros sujeitos políticos presentes. 12<br />

A reação às tentativas de impedimento da distribuição da contracepção<br />

de emergência em alguns municípios do Brasil, a ação<br />

junto ao Ministério Público para a retirada de símbolos religiosos<br />

das repartições públicas − estas e outras incidências, poderiam<br />

10 No Brasil, entre outras ações, a AMB organizou no processo do Fórum Social Mundial, nacional<br />

e regionais, a série de debates: “Estado Laico e Liberdades Democráticas” que resultou em uma<br />

publicação e “Aborto na Agenda Democrática”, com diversos movimentos sociais envolvidos.<br />

Lançou também a revista “Bocas no Mundo”.<br />

11 Autodesignação dada por um grupo de cristãos protestantes conservadores norte-americanos,<br />

no início do séc. XX, que se via como contraofensiva ao modernismo. Para eles, fundamentais<br />

eram “os conteúdos da fé, verdades absolutas e intocáveis, que deveriam ficar imunes à ciência<br />

e à relativização por meio do método histórico”. (DREHER, 2002) Defendiam uma leitura literal,<br />

portanto, sem interpretações, da Bíblia. Publicaram, também, uma série de textos sob o título<br />

The Fundamentals: a testimonium to the truth (Os Fundamentais – um testemunho em favor<br />

da verdade).<br />

12 Nesse ano de 2010, diversas organizações, em um trabalho conjunto com a organização<br />

Cfemea, de Brasília, lançaram uma Plataforma Feminista voltada para as eleições. Dirigida a<br />

candidatos(as), eleitores(as) e militantes, incluía o item “Estado laico e Democracia” entre os<br />

conteúdos a serem observados por todos(as).<br />

258<br />

Gênero, mulheres e feminismos


ter sido também desenvolvidas como comprovação às premissas<br />

deste texto.<br />

Fato é que a passagem do regime monárquico para o republicano<br />

no Brasil, mesmo que neste último se instituísse a laicidade<br />

como principio organizativo do Estado, não foi acompanhada<br />

de debate e da apropriação que pudessem garantir a sua institucionalização<br />

de fato e efetiva. Na passagem de um regime para o<br />

outro, os rearranjos foram feitos pelos homens. Se, por um lado,<br />

assistimos, no presente, a algumas mudanças significativas sobre<br />

a participação das mulheres na vida pública, por outro, podemos<br />

continuar afirmando que nós, mulheres, fomos excluídas do contrato<br />

social vigente. Por certo, o momento atual nos provoca outros<br />

debates e reflexões para o aprofundamento e a compreensão<br />

de novos desafios vindos nessa direção.<br />

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Nacional de Direitos Humanos − PNDH. DOU, 13 maio 2010. Disponível<br />

em: .<br />

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Gênero, mulheres e feminismos 259


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estudos acadêmicos. Campinas: Núcleo de Estudos de População –<br />

NEPO/UNICAMP, 2009. p. 207-26.<br />

260<br />

Gênero, mulheres e feminismos


DIREITOS SEXUAIS<br />

E DIREITOS REPRODUTIVOS<br />

teoria e práxis de feministas acadêmicas<br />

Simone Andrade Teixeira<br />

Silvia Lúcia Ferreira<br />

O movimento feminista brasileiro sempre protagonizou mobilizações<br />

reivindicatórias pelos direitos das mulheres. Podemos<br />

apontar, ao menos, dois momentos de grande articulação: o primeiro,<br />

ocorrido na primeira metade do século XX, quando as reivindicações<br />

se centravam, predominantemente, em torno dos<br />

direitos civis e cuja conquista expressiva foi o direito ao voto; e,<br />

o segundo, que, embalado pela “segunda onda” feminista da década<br />

de 1960, reivindicava, prioritariamente, a reapropriação dos<br />

corpos femininos pelas próprias mulheres.<br />

Após a conquista do direito ao voto feminino, em 1932, o movimento<br />

feminista brasileiro arrefeceu e sua reorganização só veio<br />

a ocorrer a partir da década de 1960, influenciado pela expressividade<br />

de um renovado feminismo oriundo dos Estados Unidos e da<br />

Europa, que passou a ser conhecido como “feminismo da segunda<br />

onda”. As célebres frases feministas desse período, “Nosso corpo


nos pertence” e “O pessoal é político” foram as tônicas que estimularam<br />

não apenas reflexões como, também, ações políticas,<br />

que reclamavam direitos tanto na esfera civil quanto nas esferas<br />

do exercício da sexualidade e da reprodução.<br />

Tais slogans enfatizavam que as mulheres deveriam ser donas<br />

de seus próprios corpos e livres para decidir sobre o exercício de<br />

sua sexualidade e de sua vida reprodutiva e, também, incentivavam<br />

a discussão e a consequente politização de problemas da vida<br />

privada vivenciados pelas mulheres, a exemplo dos mais variados<br />

tipos de violência, sexual, física e/ou psicológica.<br />

Toda a pauta reivindicatória feminista relacionada à violência<br />

perpetrada contra as mulheres e à reapropriação do próprio corpo<br />

se intensificou na década de 1980, quando os grupos feministas se<br />

configuraram, na esfera política, em torno de temas específicos<br />

que tratavam da saúde e da violência contra a mulher, em especial<br />

as Organizações Não Governamentais (ONGs) feministas. Ainda no<br />

início dessa década, foram fundados os primeiros núcleos de estudos<br />

sobre a mulher nas universidades brasileiras que, em muito<br />

vêm contribuindo para a conversão da pauta política feminista em<br />

políticas públicas, ao formular argumentações científicas em torno<br />

das questões referentes às mulheres.<br />

Também podemos atribuir aos movimentos, as práticas e teorias<br />

feministas das décadas de 1970-80 que conformaram na área<br />

da saúde, um novo campo científico, que passou a ser denominado<br />

como o campo da saúde da mulher. Naquela ocasião, a reivindicação<br />

principal era a integralidade da atenção em saúde, superando<br />

a ótica das políticas verticalizadas voltadas exclusivamente<br />

ao binômio mãe−filho(a). Para Maria Betânia Ávila (1993), esse<br />

campo privilegiou a discussão sobre a autodeterminação sexual<br />

e reprodutiva da mulher, questionou o poder e o saber médico,<br />

incorporou o discurso das mulheres sobre suas experiências corporais<br />

na produção do conhecimento, criticou a precária situação<br />

262<br />

Gênero, mulheres e feminismos


dos serviços de saúde e reclamou as obrigações do Estado tanto na<br />

promoção da saúde quanto no enfrentamento da violência contra<br />

as mulheres.<br />

Nesse contexto, em 1983, foi elaborado o Programa de Assistência<br />

Integral à Saúde da Mulher (PAISM), que representou<br />

uma ruptura paradigmática com os programas de saúde até então<br />

destinados às mulheres, ao exigir a posição da mulher enquanto<br />

sujeito, incorporar o direito da regulação da fertilidade como um<br />

direito social e enfatizar a dimensão educativa para que as mulheres<br />

pudessem fazer suas escolhas bem informadas e livres de<br />

coerção.<br />

Foi na reivindicação pelo direito das mulheres à saúde que a<br />

sexualidade se constituiu objeto de estudos no campo das Ciências<br />

Sociais e da Saúde. (FERREIRA, 2000) A articulação ocorrida<br />

entre o movimento feminista e o movimento sanitarista brasileiro<br />

fez incorporar a ideia da saúde sexual e reprodutiva à premissa<br />

original da saúde como um direito das cidadãs e cidadãos e dever<br />

do Estado. Assim, a saúde sexual e a saúde reprodutiva, inseridas<br />

em um ampliado conceito de saúde, passaram a ser reivindicadas<br />

pelos citados movimentos como um dever do Estado e um direito<br />

de cidadania.<br />

Em resposta às reivindicações do movimento feminista e de<br />

mulheres, a Carta Constitucional de 1988 assegurou, dentre outras<br />

coisas: igualdade, em direitos e obrigações, entre homens e<br />

mulheres; condições para que presidiárias pudessem permanecer<br />

com seus filhos durante a amamentação; licença gestação de 120<br />

dias sem prejuízo do emprego e do salário; licença paternidade;<br />

proibição de diferenças de salários, de exercício de funções e de<br />

critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil;<br />

integração das empregadas domésticas à Previdência Social;<br />

os títulos de domínio e concessão de uso de terras e demais imóveis<br />

foram conferidos à mulher ou ao homem, ou a ambos, inde-<br />

Gênero, mulheres e feminismos 263


pendentemente do estado civil; os direitos e deveres referentes à<br />

sociedade conjugal pelo homem e pela mulher; planejamento familiar<br />

de livre decisão do casal, competindo ao estado propiciar<br />

recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito,<br />

sendo vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições<br />

oficiais ou privadas.<br />

O movimento feminista empreendeu esforços pelo direito à<br />

saúde integral e conferiu visibilidade a temas como sexualidade,<br />

orientação sexual, aborto, violência, saúde materna, contracepção<br />

e morte materna, dentre outros. Contribuiu, ainda, para que<br />

essas questões passassem a ser abordadas como integrantes dos<br />

Direitos Humanos (DH) e adquirissem o status de Direitos Sexuais<br />

(DS) e de Direitos Reprodutivos (DR). Os movimentos e teorias<br />

feministas também reconheceram que a exclusão e/ou o comprometimento<br />

de acesso ao direito à saúde, sofridos pela população<br />

GLBT − Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros − constituíam<br />

uma violação de direitos humanos fundamentais e feriam os princípios<br />

de universalidade, integralidade e equidade que fundamentam<br />

a concepção filosófica do Sistema Único de Saúde (SUS).<br />

Dessa forma, o Ministério da Saúde (MS), também subsidiado<br />

pelos estudos feministas, lançou, em 2004, a Política Nacional<br />

de Atenção Integral a Saúde da Mulher (PNAISM), incorporando<br />

o enfoque de gênero em seu texto, objetivando promover o reconhecimento<br />

dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos de<br />

mulheres e homens e estabelecendo a assistência conjunta de ambos<br />

os sexos e o reconhecimento das especificidades das mulheres<br />

negras, lésbicas, profissionais do sexo e indígenas. Ademais,<br />

incluiu a importância do preparo técnico e ético das equipes que<br />

prestam e/ou prestarão cuidados à saúde desses segmentos populacionais<br />

a partir do enfoque de gênero. (BRASIL, 2004)<br />

Por reconhecer não apenas a profundidade argumentativa dos<br />

estudos feministas, mas, também, o seu potencial transforma-<br />

264<br />

Gênero, mulheres e feminismos


dor de mentalidades e de articulação, planejamento, execução e<br />

avaliação de ações políticas e de políticas públicas, a formação de<br />

novas feministas se apresenta como requisito fundamental para a<br />

continuidade de práticas e teorizações que promovam a saúde das<br />

mulheres em um contexto de reconhecimento dos direitos sexuais<br />

e dos direitos reprodutivos (DSDR).<br />

Nesse sentido, esta pesquisa objetivou verificar as formas de<br />

aproximação com o feminismo e com a temática da saúde sexual e<br />

reprodutiva, de acadêmicas feministas do campo da saúde coletiva,<br />

no sentido de identificar estratégias que possam ser utilizadas<br />

ainda hoje para estimular a aproximação de outras mulheres aos<br />

pensamentos e militâncias feministas e, ainda, desencadear um<br />

processo de formação de novas feministas comprometidas com a<br />

promoção da saúde integral das mulheres.<br />

A pesquisa realizada, que se classifica como qualitativa e exploratória,<br />

buscou identificar as formas de aproximação com o feminismo<br />

e com a temática da saúde sexual e da saúde reprodutiva<br />

com perspectiva feminista, por parte de feministas acadêmicas da<br />

área da saúde coletiva.<br />

O interesse de realizar essa investigação no campo da saúde<br />

coletiva, não se deu apenas em decorrência de ser esse o campo de<br />

exercício profissional das autoras, mas, também, sob a justificativa<br />

de que as pesquisas sobre a saúde da mulher sob a perspectiva<br />

feminista e de gênero são desenvolvidas, de forma prioritária, em<br />

vários grupos de pesquisa (GPs) brasileiros, principalmente naqueles<br />

cujas pesquisadoras atuam no campo da saúde coletiva, um<br />

dos campos mais politizados e permeáveis às reflexões socioantropológicas<br />

e de gênero que integram o vasto campo do saber em<br />

saúde.<br />

Everardo Duarte Nunes afirma que o campo da saúde coletiva<br />

[...] se fundamenta na interdisciplinaridade como possibilitadora<br />

da construção de um conhecimento ampliado da saúde, no<br />

Gênero, mulheres e feminismos 265


qual continuam presentes os desafios de trabalhar com as dimensões<br />

qualitativas e quantitativas, sincrônicas e diacrônicas,<br />

objetivas e subjetivas. Assim, não existe a possibilidade de uma<br />

única formulação teórica e metodológica quando espaço, tempo<br />

e pessoa não são simplesmente variáveis, mas constituem parte<br />

integrante de processos históricos e sociais. (2005, p. 32)<br />

Para esse estudo, foram realizadas entrevistas com base em<br />

um roteiro semiestruturado, com questões acerca das suas aproximações<br />

com o feminismo e com as temáticas “saúde sexual” e<br />

“saúde reprodutiva” com perspectivas feministas. Para a análise<br />

dos dados, optou-se pela utilização da técnica da análise de conteúdo<br />

(AC), baseada em Laurence Bardin, para quem a análise de<br />

conteúdo é “[...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações<br />

que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição<br />

do conteúdo das mensagens” (2002, p. 38).<br />

A seleção das acadêmicas feministas a serem entrevistadas se<br />

deu, inicialmente, a partir de uma busca nos grupos de pesquisa<br />

(GPs) que trabalhassem com essa temática cadastrados no Diretório<br />

dos Grupos de Pesquisa do CNPq. O principal critério adotado<br />

foi que o GP deveria conter linhas de pesquisa na área da saúde<br />

sexual e da saúde reprodutiva (SSSR) e/ou sobre direitos sexuais<br />

e direitos reprodutivos (DSDR). Para tal, foram utilizados os seguintes<br />

termos de busca: feminismo, saúde sexual e saúde reprodutiva,<br />

direitos sexuais e direitos reprodutivos, feminismo,<br />

gênero e saúde da mulher e mulher.<br />

Identificados os grupos de pesquisa, foram elencados os seguintes<br />

critérios para a escolha das pesquisadoras que melhor<br />

atenderiam aos objetivos: a) autodefinição como feminista no<br />

Currículo Lattes; b) publicações em periódicos feministas; c) publicações<br />

em periódicos não feministas, mas que revelassem comprometimento<br />

com a defesa da SSSR e dos DSDR sob perspectiva<br />

feminista, aproximação com o feminismo e temática da SR e/ou<br />

266<br />

Gênero, mulheres e feminismos


DSDR anteriores ao ano de 1994; 1 e d) atuação no campo da saúde<br />

coletiva. Enfim, esses critérios se revelaram suficientes e foram<br />

selecionadas seis acadêmicas. Em decorrência do compromisso<br />

com o anonimato, firmado através do Termo de Compromisso Livre<br />

e Esclarecido (TCLE), foram atribuídos às entrevistadas nomes<br />

de importantes feministas, tais como Christine (Pizan), Olympe<br />

(de Gouges), Michele (Ferrand), Bell (Hooks), Judith (Butler) e<br />

Anne (Fausto Sterling).<br />

Depois de gravadas e feitas as transcrições das entrevistas,<br />

verificou-se o atendimento do corpus documental aos critérios<br />

recomendados pela técnica da análise de conteúdo (AC): a) exaustividade<br />

− levantamento completo do material suscetível de ser<br />

utilizado; b) homogeneidade − referência a um mesmo tema e<br />

produzido pela mesma técnica; e c) representatividade e adequação<br />

aos objetivos desta pesquisa. Após a realização de leituras sucessivas<br />

às entrevistas em que se aplicou a técnica de sub-sínteses<br />

agrupadas a partir de leituras horizontais, verticais e diagonais, de<br />

documento a documento, e cada vez mais minuciosas, as respostas<br />

foram agrupadas por diferenciação e também por semelhanças<br />

em torno das categorias de análise.<br />

Aproximações com o feminismo<br />

As formas de aproximação das mulheres com o feminismo se<br />

revelaram variadas e aconteceram em diferentes momentos.<br />

Sobre sua aproximação com o feminismo, relata Michele:<br />

— [...] naquele momento, ainda na graduação, eu me envolvi<br />

com o feminismo, no caso, em 1975. Eu fiz parte da equi-<br />

1 Em 1994, foi realizada a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, no<br />

Cairo, que definiu os conceitos da saúde reprodutiva e dos DSDR. O critério de aproximação<br />

com o feminismo e temática da SSSR anterior ao referido ano foi adotado porque se objetivava<br />

selecionar docentes com experiência acumulada acerca dessas temáticas.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 267


pe que fez a primeira... o primeiro debate público sobre<br />

a construção do papel da mulher na sociedade brasileira,<br />

junto com Branca Moreira Alves, Jaqueline Pitangui, a Leila<br />

Linhares, a Mariska de Oliveira [...]. Eu tinha vinte anos<br />

naquela ocasião [...]. A Maria Helena Darcy de Oliveira tinha...<br />

conhecia vários livros vindos do feminismo francês.<br />

Ela me apresentou muitas coisas e eu comecei a ler e, a partir<br />

daquilo, a gente se reuniu. Ela conhecia Branca Moreira<br />

Alves e houve esta primeira reunião para a gente formar o<br />

que foi o Ano Internacional da Mulher, que foi comemorado<br />

pela ONU.<br />

O evento, de cuja comissão organizadora a entrevistada Michele<br />

afirma ter participado, denominado O papel e o Comportamento<br />

da Mulher na Realidade Brasileira, ocorreu no Rio de Janeiro, em<br />

julho de 1975, na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), e é considerado<br />

fundador do feminismo organizado no país. Segundo Céli<br />

Pinto (2003), esse evento foi planejado a partir da reunião de dois<br />

grupos feministas cariocas informais, que buscaram o patrocínio<br />

da Organização das Nações Unidas (ONU) e que eram formados por<br />

mulheres pertencentes à classe média intelectualizada, com experiência<br />

internacional e com uma rede de contatos que lhes possibilitava<br />

planejar e realizar um evento desse porte.<br />

Em entrevistas concedidas a Joana Maria Pedro (2006), Rose<br />

Marie Muraro e Maria Luíza Heilborn afirmaram que foi Mariska<br />

de Oliveira quem conseguiu recursos junto à ONU para a realização<br />

desse acontecimento a partir do qual foi constituído o Centro<br />

da Mulher Brasileira, no Rio de Janeiro, e houve a formação de<br />

outros espaços feministas no Brasil, a exemplo do Centro de Desenvolvimento<br />

da Mulher Brasileira de São Paulo, em outubro de<br />

1975, que se deu a partir do Encontro para o Diagnóstico da Mulher<br />

Paulista, patrocinado pelo Centro de Informação da ONU e<br />

pela Cúria Metropolitana. (PEDRO, 2008)<br />

268<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Embora o evento ocorrido sob os auspícios da ONU seja considerado<br />

o fundador do feminismo organizado no país, Joana Pedro<br />

(2008) destaca que a difusão do ideário feminista no Brasil é anterior<br />

à referida data. De acordo com a autora, em 1966, Rose Marie<br />

Muraro publicou o livro A mulher na construção do mundo futuro<br />

e, em 1971, intermediou a publicação do livro A mística feminina,<br />

de Betty Friedan. Em 1967, Heleieth Saffioti publicou o trabalho<br />

considerado pioneiro do feminismo acadêmico brasileiro: A mulher<br />

na sociedade de classes. Segundo Celi Pinto (2003), ainda<br />

em 1972, o Conselho Nacional da Mulher, liderado pela advogada<br />

Romy Medeiros, 2 realizou um congresso para discutir a situação<br />

da mulher do qual participaram Heleieth Saffioti, Rose Marie Muraro<br />

e Carmen da Silva. Em 1973, a Professora Zahidê Machado<br />

ministrou o curso Família e relações entre sexos, na UFBA, que já<br />

continha uma abordagem feminista.<br />

A universidade brasileira do período da ditadura serviu de suporte<br />

para intelectuais e ativistas políticos que difundiam ideais<br />

de liberdade e justiça dentre os quais o ideal de redemocratização<br />

do país, o ideário feminista e o ideário da medicina social, que<br />

consubstanciou o movimento conhecido como Reforma Sanitária.<br />

3 De acordo com Joana Pedro (2005), os estudos universitários<br />

representaram um refúgio para antigos militantes e, muitas vezes,<br />

a Universidade foi considerada como um espaço neutro entre<br />

2 Segundo Joana Maria Pedro, Romy Medeiros não pertencia ao grupo de esquerda que lutava<br />

contra a ditadura e tinha boas relações com as elites do governo. A referida autora levanta a<br />

hipótese de que em decorrência do evento não ter sido promovido por um grupo de esquerda,<br />

este não figure como um dos marcos do feminismo no Brasil. (PEDRO, 2005)<br />

3 Entre os anos 60 e 70, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) estimulou o emprego das<br />

reflexões oriundas das Ciências Sociais aplicadas à Saúde na América Latina. Esse pensamento<br />

médico social foi desenvolvido no período mais repressivo do regime militar brasileiro (final<br />

dos anos 60 e início dos 70) e a abordagem histórico-estrutural dos problemas de saúde no<br />

Brasil foi construída no interior dos departamentos de medicina preventiva. Surge daí um<br />

novo pensamento sobre a saúde que, em seu processo de articulação e desenvolvimento,<br />

conformou um novo sujeito coletivo, o movimento da reforma sanitária, que foi articulado por<br />

três vertentes: o movimento estudantil e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES); os<br />

movimentos de médicos residentes e de renovação médica; e a Academia. (ESCOREL, 1998)<br />

Gênero, mulheres e feminismos 269


a militância política e os cargos de trabalho oferecidos por órgãos<br />

do Estado.<br />

Assim, a Academia se constituiu tanto como espaço de construção<br />

de propostas políticas cientificamente respaldadas quanto<br />

como espaço de resistência, em momentos agudos de repressão<br />

política. Além disso, também passou a se configurar como um<br />

dos poucos espaços de trabalho possíveis para toda uma geração<br />

recém-formada de profissionais das Ciências Sociais, Filosofia,<br />

Ciências Humanas e Medicina Social, que não vislumbravam<br />

oportunidades de emprego em outros órgãos públicos. (ESCO-<br />

REL, 1998)<br />

Segundo Joana Pedro (2008), a origem de muitos Núcleos de<br />

Estudos sobre a Mulher, feministas e/ou de gênero está intrinsecamente<br />

ligada à história de mulheres militantes em grupos de<br />

esquerda e no feminismo, que passaram a atuar nas universidades<br />

e que, hoje, consideram ter configurado mais um espaço de militância<br />

feminista: o espaço acadêmico.<br />

Maria Luiza Heilborn e Bila Sorj, entretanto, sustentam a idéia<br />

de que o impulso para os estudos feministas no Brasil surgiu da própria<br />

Academia, diferentemente do que aconteceu nos EUA e França<br />

onde partiram das ruas para a Academia. Para essas autoras,<br />

[...] as acadêmicas, por sua maior exposição a idéias que circulam<br />

internacionalmente, estavam numa posição privilegiada<br />

para receber, elaborar e disseminar as novas questões que o feminismo<br />

colocara já no final da década de sessenta nos países capitalistas<br />

avançados. Assim, quando o movimento de mulheres<br />

no Brasil adquire visibilidade a partir de 1975, muitas das suas<br />

ativistas ou simpatizantes já estavam inseridas e trabalhavam<br />

nas universidades. (1999, p. 3)<br />

No caso específico da saúde, Sarah Escorel (1998) considera que<br />

“a academia foi a vertente que deu origem ao movimento sanitário<br />

e é sua base de consolidação, já que ela dá o suporte teórico às pro-<br />

270<br />

Gênero, mulheres e feminismos


postas transformadoras”. O movimento da reforma sanitária brasileira<br />

apontava os efeitos negativos da medicalização da sociedade<br />

e propunha programas alternativos de saúde que estimulassem o<br />

autocuidado. O movimento feminista, em comunhão com o pensamento<br />

da Reforma Sanitária, reivindicava a concepção dos corpos<br />

femininos como os loci de sujeitos e atores sociais, além da desmedicalização<br />

e da integralidade da atenção na saúde da mulher.<br />

Ainda no ano de 1975, o feminismo conseguiu espaço na reunião<br />

anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência<br />

(SBPC), em Belo Horizonte, e, a partir daí, por dez anos consecutivos,<br />

as feministas fizeram seus encontros nacionais no âmbito<br />

dessas reuniões, assumindo um perfil acadêmico e inaugurando<br />

com a pesquisa científica sobre a condição da mulher no Brasil,<br />

um tipo de atuação feminista que foi fundamental nas décadas que<br />

se seguiram.<br />

O espaço da universidade aparece como o local predominante<br />

onde se deram os contatos das entrevistadas com o feminismo,<br />

fosse como estudantes ou docentes. Sobre sua identificação com o<br />

feminismo, diz Anne:<br />

— [...] Até eu entrar na faculdade, eu nunca tinha me colocado<br />

muito isso do ponto de vista identitário [...] e tinha uma<br />

amiga que eu fiz e que é minha amiga até hoje, que ela era<br />

absolutamente feminista. Ela era nascida naquela cidade e<br />

tinha uma consciência muito aguda da discriminação. Depois,<br />

aos poucos, eu fui conhecendo detalhes, por exemplo,<br />

como ela não era mais virgem, [...] quando ela chegava<br />

no ginecologista, eles deixavam ela esperando mais tempo<br />

do que as outras pessoas; então, ela tinha uma consciência<br />

muito aguda disso...<br />

Anne relata que sua mãe foi a primeira feminista que conheceu<br />

e que sempre foi estimulada a ser independente. Entretanto, sua<br />

Gênero, mulheres e feminismos 271


identidade com o feminismo se deu a partir dessa relação de amizade,<br />

ao se sentir tocada pelo sentimento de discriminação sofrido<br />

pela amiga feminista.<br />

A universidade também foi o espaço de aproximação com o<br />

feminismo para Judith, Olympe e Bell.<br />

Judith revela que sua aproximação se deu na Academia, a partir<br />

dos estudos de gênero:<br />

— Na verdade, durante ainda o final da Graduação eu já fui<br />

me aproximando dos estudos de gênero. Quando estava<br />

no Mestrado, eu fiz um estudo essencialmente sobre mulheres;<br />

não era ainda dentro de uma matriz feminista; no<br />

Doutorado, já trabalhei diretamente com teoria feminista.<br />

Os estudos de gênero também aproximaram Olympe do feminismo,<br />

em 1988. A entrevistada, que já era docente universitária<br />

na época, revelou quando se deu sua aproximação com o feminismo:<br />

“— Quando entrei no Grupo de Pesquisas sobre a Mulher”.<br />

Na época, ela estava fazendo sua Tese de Doutorado sobre o perfil<br />

reprodutivo das mulheres segundo as classes sociais e descobriu<br />

que a classe enquanto categoria de análise não explicava alguns<br />

fenômenos que apareceram, dentre os quais o da violência contra<br />

a mulher. Foi na busca pela compreensão desses fenômenos<br />

que ficou sabendo de um curso sobre gênero, no Departamento de<br />

Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas<br />

(FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP), que seria ministrado<br />

por Eva Blay e Carmen Barroso. Ela não apenas fez o curso,<br />

como passou a integrar um núcleo de estudos feministas.<br />

Bell, que também já era docente universitária, relatou sua<br />

aproximação com o feminismo por duas vias, ambas em 1987:<br />

— Acho que tem um marco disso, que foi minha entrada no<br />

[Grupo de Pesquisas Feministas] e o encontro feminista de<br />

Garanhuns.<br />

272<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Mas, ao relatar sua aproximação com o feminismo, a ênfase da<br />

fala da entrevistada recaiu sobre sua participação no citado encontro<br />

feminista.<br />

— O que ele me sensibilizou, chocou, algumas vezes, botou<br />

um bocado de coisa de ponta cabeça. Foi a primeira vez que<br />

vi realmente se discutir isso. Se discutir seriamente. [...]<br />

Então, ali que eu pude ver, na prática, por exemplo, muitas<br />

das coisas que eu já falava sobre... por exemplo, falar<br />

de direitos sexuais e reprodutivos. Foi quando eu vi falar<br />

abertamente e discutir seriamente sobre opções sexuais,<br />

lesbianismo, ou outras formas de relacionamentos sexuais,<br />

sobre direitos reprodutivos, sobre aborto, sobre direito ao<br />

aborto, ao corpo; foi onde eu realmente me defrontei, de<br />

uma vez só, com toda essa discussão feminista. Porque o<br />

encontro era feminista. [...] Não existia aula [...], todas as<br />

coisas passavam a partir das experiências das pessoas, todas<br />

as discussões eram das experiências das pessoas, pelo<br />

menos das que eu participei. Tinha vivências, oficinas [...];<br />

foi quando, inclusive, eu participei de uma oficina, me<br />

submeti a uma oficina de autoexame ginecológico, que foi<br />

uma experiência surreal. [...] Inclusive, eu passei a adotar<br />

dali em diante, né? Fiz alguns trabalhos com mulheres de<br />

periferia, a partir dessa experiência, que eu acho que é fantástica.<br />

A práxis feminista para a reconstrução de uma nova perspectiva<br />

proporcionada pelas vivências, que tem na troca das<br />

experiências vividas seu principal alicerce, parece ter proporcionado<br />

maior mobilização da entrevistada em relação ao feminismo.<br />

A experiência vivida é trazida como a fonte que mobilizou a construção<br />

de um conhecimento que objetivava, dentre outros fins,<br />

o autoconhecimento. Seu relato sobre a mobilização e o aprendizado,<br />

ocorrido através de uma oficina feminista é um exemplo<br />

Gênero, mulheres e feminismos 273


de como uma metodologia pode adotar uma objetividade científica<br />

ressignificada e proporcionada por uma perspectiva parcial,<br />

como defendido por Donna Haraway (1995).<br />

O vanguardismo do feminismo, ao discutir sobre o corpo, a<br />

sexualidade e as orientações sexuais, foi apontado por Bell, que<br />

diz ter sido a primeira vez que viu esses temas serem tratados de<br />

forma diferenciada, um fato que é respaldado por autoras como<br />

Lucila Scavone (2004), Sílvia Lúcia Ferreira (2000) e Maria Betânia<br />

Ávila (1993), ao reconhecerem que foi a partir do movimento feminista<br />

que a sexualidade se constituiu objeto de estudos no campo<br />

das Ciências Sociais e da Saúde.<br />

Ainda refletindo sobre sua aproximação com o feminismo,<br />

Bell revelou:<br />

— [...] mas eu acho que foi o fato de que sempre trabalhei com<br />

mulheres. Porque, dentro dessa discussão feminista, como<br />

sou da área de saúde, e uma das bandeiras muito fortes do<br />

feminismo foi ligada à saúde... a questão da saúde foi uma<br />

bandeira e continua sendo, da qualidade da assistência.<br />

Uma bandeira muito forte do feminismo. Sei lá, acho que<br />

foi isso, esse foi o ponto de identificação, de identidade.<br />

De fato, ser professora universitária e pertencer à área da<br />

saúde da mulher propiciou a aproximação da entrevistada com o<br />

pensamento feminista, na década de 1980, uma década marcada<br />

por ampla mobilização de movimentos sociais dentre os quais o<br />

movimento feminista, que participou de forma intensa e propositiva<br />

na elaboração de políticas públicas para as mulheres, em<br />

especial na área da saúde da mulher. Foi nessa década que o movimento<br />

feminista conseguiu converter em políticas públicas várias<br />

reivindicações de sua agenda, dentre elas, o lançamento e a implementação<br />

do PAISM. Foi, portanto, nesse envolvente processo<br />

274<br />

Gênero, mulheres e feminismos


de ruptura paradigmática que a entrevistada Bell se envolveu com<br />

o feminismo.<br />

O processo de implementação do PAISM enquanto política<br />

oficial do Governo Federal demandou sua incorporação em disciplinas<br />

no interior dos cursos. Do mesmo modo, foi necessária<br />

a formação de profissionais na área da saúde da mulher nas universidades<br />

e a qualificação dos profissionais nos serviços públicos<br />

de saúde. Para o atendimento da ruptura paradigmática reclamada<br />

pelo Programa, cursos de capacitação foram oferecidos tanto<br />

para professores universitários quanto para os profissionais dos<br />

serviços de saúde e, de modo particular, para as enfermeiras, por<br />

desenvolverem a maior parte das ações dirigidas às mulheres que<br />

objetivavam a assimilação dos princípios do Programa, como,<br />

também, a superação das assimetrias de poder entre usuárias e<br />

serviços de saúde.<br />

No caso de Christine, a aproximação com o feminismo se deu<br />

de forma bastante diferenciada, pois, embora também fosse estudante<br />

universitária, era militante política de um partido de ideologia<br />

comunista.<br />

— Se deu na cadeia, quando eu fui torturada e torturaram a<br />

minha filha, na minha frente, para que eu falasse, e não<br />

torturaram minha filha na frente do pai dela. Não que eu<br />

quisesse que ele sofresse a mesma dor que eu sofri, mas<br />

comecei a me perguntar por que, e aí eu tive a resposta:<br />

que eu era mulher, mãe, e na compreensão patriarcal dos<br />

torturadores, e aí, machista, eles pensaram que torturar<br />

na minha frente, o simbólico da maternidade faria eu me<br />

fragilizar.<br />

Ela relata, ainda, que foi na solidão da prisão, a partir de suas<br />

próprias reflexões, que chegou à conclusão de que o machismo e<br />

a força do patriarcado alicerçavam as condutas violentas às quais<br />

Gênero, mulheres e feminismos 275


era submetida e que depois buscou a literatura feminista para<br />

tentar compreender melhor a violência à qual fora sujeitada.<br />

Vale aqui ressaltar que muito embora a Universidade seja<br />

citada como o principal espaço que favoreceu o contato com o<br />

feminismo, a matéria propulsora dessa aproximação foi o interesse<br />

das entrevistadas pela temática relacionada à sexualidade<br />

e à reprodução.<br />

Aproximações à temática saúde sexual e<br />

reprodutiva com a perspectiva feminista<br />

— Eu me lembro que a primeira vez que eu ouvi isso foi aqui<br />

na escola; uma pessoa que veio falar contra o planejamento<br />

familiar, aquele planejamento familiar... [...] E eu me lembro<br />

que eu pensava assim: ‘Meu Deus, tem alguma coisa aí<br />

que eu preciso ir atrás. Eu preciso ir atrás disso’. Com as<br />

discussões, é... quando a gente começou a ficar mais crítica<br />

em relação a isso, que a gente começou a ver que, na<br />

verdade, não era bem aquilo, né? Que era só uma forma a<br />

mais de dominação, via as mulheres e tal, a gente começou<br />

a fazer [...]. E comecei a procurar as críticas, então, que se<br />

faziam naquele momento. Uma a... todo aquele trabalho da<br />

BEMFAM... porque, quando veio para o Brasil e começou, a<br />

proposta da BEMFAM era uma proposta extremamente humanitária.<br />

Não tinha essa percepção que a gente tem hoje,<br />

e que teve logo depois de uma coisa de dominação, do IPPF<br />

e tal. Ela não veio com essa cara, ela veio com uma cara de<br />

uma coisa humanitária. [...] E eles faziam discurso do não<br />

controle de natalidade, que não era controle de natalidade,<br />

que era planejamento familiar. E aí eu comecei a fazer<br />

pesquisa nisso. Fiz várias, umas quatro, cinco. E sobre isso<br />

[...]. Enfim, foi uma aproximação que vem lá do planeja-<br />

276<br />

Gênero, mulheres e feminismos


mento familiar e se transforma na discussão dos direitos<br />

sexuais e reprodutivos [...].<br />

(Olympe)<br />

A fala de Olympe revela que seu despertar para a crítica feminista<br />

acerca da saúde sexual e reprodutiva se deu na Universidade,<br />

a partir de um pronunciamento contrário ao planejamento familiar<br />

desenvolvido pela Bemfam, principal agente da International<br />

Planned Parenthood Federation (IPPF), instituição norte-americana<br />

que, em conjunto com outras entidades não-governamentais,<br />

foi responsável pela execução da política internacional de<br />

controle populacional liderada pelos Estados Unidos para evitar<br />

uma explosão demográfica nos países pobres e em desenvolvimento.<br />

Dessa forma, o Brasil foi incluído nas estratégias globais de<br />

prevenção da tão temida “explosão demográfica” e os programas<br />

de planejamento familiar tiveram início e se desenvolveram em<br />

pleno regime militar, cujo discurso oficial era, paradoxalmente,<br />

pró-natalista. A política internacional de controle populacional se<br />

concretizou a partir da definição de metas populacionais de países-chave<br />

e por meio de pressão sobre líderes nacionais para que<br />

aceitassem as atividades de controle de fertilidade das mulheres.<br />

(VENTURA, 2006) Para o controle da natalidade, eram implantados<br />

serviços de “planejamento familiar” que, através de práticas<br />

persuasivas e coercitivas, distribuía métodos contraceptivos de<br />

alta eficácia, a exemplo da pílula, além de estimular a esterilização<br />

feminina.<br />

Foi na década de 1980 que a esterilização feminina começou<br />

a ser disseminada no Brasil e chegou a figurar como o primeiro<br />

método contraceptivo nacional, colocando o país entre aqueles<br />

com as mais altas taxas de esterilização do mundo. Essas esterilizações,<br />

ainda segundo Miriam Ventura (2006), eram realizadas<br />

Gênero, mulheres e feminismos 277


por instituições assistenciais financiadas por capital externo, de<br />

forma inadequada e ilícita, no bojo de ações dirigidas à saúde da<br />

mulher, com o propósito de controlar a natalidade nos segmentos<br />

mais pobres e de população negra.<br />

Segundo Sônia Corrêa e Rebecca Reichmann (1994), a existência<br />

dessa rede ativa de organizações não-governamentais (ONGs)<br />

de capital externo, voltadas para ações de planejamento familiar<br />

e para o desenvolvimento de estratégias de marketing de contraceptivos<br />

foi a principal responsável pela queda da fecundidade das<br />

mulheres brasileiras, nas décadas de 1970-80. Para Elza Berquó<br />

(1993), tal redução foi obtida pela elevada utilização da esterilização<br />

feminina e da pílula, usadas, respectivamente, por 44% e 41%<br />

das mulheres unidas, de 15 a 54 anos de idade, que usavam algum<br />

contraceptivo, o que fez com que as taxas passassem de 4,5 filhos<br />

por mulher, em 1980, para 3,5, em 1984, chegando a 2,5, em 1991.<br />

Para Elza Berquó e Suzana Cavenaghi, “a transição da fecundidade<br />

no Brasil teve início em meados da década de 1960. As taxas sofreram<br />

redução de 24,1%, entre 1970 e 1980, de 38,6%, na década<br />

seguinte e, a partir daí, 11,1%, entre 1991 e 2000” (2006, p. 11).<br />

É importante destacar, entretanto, que a queda abrupta da<br />

taxa de fecundidade não se deu exclusivamente em decorrência<br />

da atuação das ONGs estrangeiras, uma vez que outras variáveis<br />

também colaboraram para tal. De acordo com Margareth Arilha<br />

(1995), o desenvolvimento econômico, em especial o processo de<br />

industrialização, desencadeou a migração urbana e transformou<br />

os padrões ocupacionais das mulheres. A expansão de modernos<br />

sistemas de comunicação deu nova forma às normas culturais reprodutivas<br />

afetando os padrões reprodutivos no Brasil. Por outro<br />

lado, as políticas de crédito, incentivando novos padrões de<br />

consumo, também fizeram com que as mulheres e/ou casais repensassem<br />

o número de filhos. De acordo com Elza Berquó e Suzana<br />

Cavenaghi (2006), a tendência de declínio da fecundidade se<br />

278<br />

Gênero, mulheres e feminismos


manteve e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD),<br />

realizada em 2004, revelou que o número médio de filhos por mulher<br />

atingiu a taxa de 2,1, representando uma queda de 12,5% em<br />

relação ao último censo. 4<br />

O movimento feminista denunciou a prática ilegal da esterilização<br />

feminina ao Congresso Nacional, pressionando-o para a<br />

instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que<br />

acabou por confirmar que as mulheres se submetiam à esterilização<br />

cirúrgica, muitas vezes, inapropriadamente, por falta de outras<br />

opções contraceptivas disponíveis e reversíveis. A CPI, instituída<br />

em 1991, constatou, também, que a laqueadura era realizada,<br />

normalmente, durante o curso da cesariana, de forma inadequada<br />

e, em algumas ocasiões, sem consentimento da mulher (BRASIL,<br />

1993). As conclusões e recomendações dessa Comissão desencadearam<br />

ações legislativas no setor da saúde para a regulamentação<br />

das estratégias de planejamento familiar, inclusive, da esterilização<br />

cirúrgica.<br />

O direito ao planejamento familiar foi assegurado pela Constituição<br />

Federal Brasileira de 1988 (CF/88), entretanto, somente<br />

após oito anos foi regulamentado por meio da Lei n. 9.263, de 12<br />

de janeiro de 1996, que também estabeleceu critérios para a realização<br />

da esterilização cirúrgica voluntária. (BRASIL, 1996)<br />

Para Olympe que, desde o início da carreira universitária trabalhava<br />

com planejamento familiar, o desenvolvimento de um<br />

pensamento crítico sobre a sexualidade e a reprodução das mulheres<br />

aconteceu como uma evolução do seu trabalho, inclusive<br />

nas discussões sobre o PAISM, que trazia em sua concepção o pensamento<br />

feminista. Segundo a entrevistada:<br />

4 Berquó e Cavenaghi (2006) destacam que a educação e a renda das mulheres se mantêm<br />

em relação inversamente proporcional aos níveis de fecundidade. Entretanto, segundo Arilha<br />

(1995), no que tange à esterilização, esta também é escolhida por grande parte das mulheres<br />

com nível educacional mais elevado.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 279


— Eu participava das discussões sobre o PAISM. Por exemplo:<br />

aquelas capacitações que foram feitas para o PAISM, eu<br />

participei de todas elas. Eu fui capacitada e, depois, eu fiz<br />

muitas capacitações.<br />

Michele, que já era militante feminista desde a década de 1970,<br />

relatou que sempre se interessou pela temática da sexualidade e se<br />

decidiu pelos estudos da Antropologia da Mulher por considerar<br />

esse campo de investigação mais acolhedor aos seus questionamentos<br />

acerca das assimetrias de gênero. Ao se tornar docente,<br />

foi convidada por um colega para integrar o Instituto de Saúde<br />

Coletiva (ISC) de sua Universidade, com a seguinte argumentação:<br />

“— Você é uma feminista importante, trabalha com temas de<br />

sexualidade, muda aqui internamente [...], vem pra o Instituto<br />

de Saúde Coletiva”. Dessa forma, ela se decidiu pelo ISC e, mais<br />

tarde, passou a coordenar um grupo de pesquisas sobre saúde, gênero<br />

e sexualidade.<br />

Bell, ao refletir sobre sua aproximação com o feminismo acerca<br />

da temática da sexualidade e da reprodução, revela:<br />

— Particularmente, eu acho que foi uma formação que eu<br />

participei em Pernambuco, do SOS Corpo.<br />

De fato, em decorrência da ineficiência do Estado em relação<br />

à promoção da saúde sexual e reprodutiva das mulheres, as<br />

ONGs passaram a ocupar parte do espaço deixado pelo Estado,<br />

contribuindo como espaço de treinamento interdisciplinar para<br />

profissionais da rede pública, assim como no desenvolvimento de<br />

atividades promotoras do autoconhecimento e empoderamento<br />

das mulheres acerca de seus próprios corpos.<br />

A formação de ONGs foi uma das formas que as feministas<br />

brasileiras adotaram para a expressão de suas lutas políticas. As<br />

práticas de saúde sexual e reprodutiva desenvolvidas pelas ONGs<br />

280<br />

Gênero, mulheres e feminismos


feministas buscavam a politização das esferas da reprodução e da<br />

sexualidade que, amparadas em um novo paradigma de liberdade,<br />

tencionavam promover o autoconhecimento do corpo e a valorização<br />

da mulher como cidadã.<br />

Sobre a atuação das ONGs feministas, Sílvia Lúcia Ferreira relata<br />

que, nelas, além do atendimento diferenciado, “criou-se um<br />

espaço para a capacitação de profissionais em um verdadeiro e<br />

saudável casamento teoria e prática” e, ainda, que<br />

[...] o exercício de trabalhar com equipes multidisciplinares diferenciadas<br />

(antropólogos, sociólogos, assistentes sociais, enfermeiras,<br />

médicos) trouxe, por outro lado, a possibilidade de<br />

discussão da saúde sob ângulos teóricos diferentes e inovadores<br />

e tornou a rígida área da saúde muito mais permeável a outros<br />

campos do conhecimento. (2000, p. 98)<br />

A referida autora destaca, também, que essas ONGs se fortaleceram,<br />

influenciaram e pressionaram a Academia a assumir<br />

posturas mais avançadas e que, em 1991, foi criada a ONG Rede<br />

Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos que passou a articular<br />

os núcleos e grupos militantes da área.<br />

Assim, entre os anos de 1970 e 1990, o trabalho dessas organizações<br />

feministas associado a outros movimentos de mulheres se<br />

construiria, especialmente, baseado nas experiências das mulheres<br />

e em suas necessidades nos campos da sexualidade e da reprodução,<br />

o que inspirou a elaboração e o aprimoramento das noções<br />

dos direitos reprodutivos e dos direitos sexuais. Dessa forma, na<br />

teorização e na ação desenvolvidas pelas feministas do Brasil e<br />

do mundo, as demandas pelo livre exercício da sexualidade, pelo<br />

aborto legal e pela contracepção não coercitiva se tornaram os<br />

elementos condutores para o desenvolvimento do pensamento<br />

sobre os direitos sexuais e os direitos reprodutivos das mulheres.<br />

Judith, ao refletir sobre sua aproximação com a referida temática,<br />

relata:<br />

Gênero, mulheres e feminismos 281


— Na verdade eu fazia o Doutorado quando fiz aquele curso<br />

do NEPO, lembra? Era um curso que eles davam, de saúde<br />

sexual e direitos sexuais e reprodutivos, sempre, durante<br />

dez anos. Eu acredito que uma geração de pesquisadores<br />

passou por ali, que hoje trabalha nesta área.<br />

A fala de Judith nos apresenta a contribuição do Núcleo de Estudos<br />

de Populações (NEPO), 5 no sentido de qualificar profissionais<br />

para o exercício de suas funções no campo da sexualidade e da<br />

reprodução. Trata-se de uma iniciativa da Academia cujas docentes<br />

são feministas ou têm afinidades com o pensamento feminista<br />

e a qualificação a que Judith se referiu foi o “Programa de Estudos<br />

em Saúde Reprodutiva e Sexualidade”. A aproximação da entrevistada<br />

com a temática sob a ótica feminista se deu, portanto, por<br />

meio da militância feminista na Academia.<br />

Anne, por sua vez, destaca que o cenário da época foi muito<br />

propício à sua aproximação com a temática:<br />

— Tem toda uma coisa aí já de maior engajamento em grupos<br />

feministas no Rio e da reflexão, da leitura... [...] Com o retorno<br />

das mulheres exiladas em 1980, basicamente, que é o<br />

começo do retorno delas e é... principalmente, as que estavam<br />

vindo da França... então, foi um momento, assim, extremamente<br />

rico, que deu uma outra qualidade ao debate<br />

feminista no Rio de Janeiro, que era o lugar onde eu estava.<br />

E então, todas aquelas ideias do nosso corpo nos pertence,<br />

é... as estratégias de organização do movimento feminista<br />

que começara a mudar, o surgimento dos coletivos, da<br />

ideia de redes de estruturas não hierárquicas...<br />

5 A linha de pesquisa “Saúde Reprodutiva e Sexualidade” do NEPO/Unicamp visa a aprofundar<br />

a discussão sobre os aspectos legais, políticos, éticos e técnicos presentes nas questões da<br />

sexualidade e da reprodução. Como projetos, constam o Programa de Estudos em Saúde<br />

Reprodutiva e Sexualidade e o Programa Interinstitucional de Treinamento em Metodologia de<br />

Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Reprodução. Ambos são interdisciplinares e qualificaram<br />

profissionais para o exercício de suas funções no campo da sexualidade e da reprodução.<br />

Disponível em: .<br />

282<br />

Gênero, mulheres e feminismos


A fala de Anne rememora a efervescência política e de ideias<br />

da década de 1980, marcada por várias conquistas do movimento<br />

feminista e de mulheres em geral e que, dentro de um processo<br />

de reconstrução das instâncias da democracia, viriam a se tornar<br />

realidade. Dentre as suas reivindicações estavam a implantação,<br />

pelo Ministério da Saúde, do PAISM, a criação dos Conselhos dos<br />

Direitos da Mulher (CDM), em níveis nacional, estadual e municipal,<br />

e as Delegacias de Atendimento à Mulher vítima de violência<br />

(DEAMs). Ainda nessa década, mulheres atuaram ativamente na<br />

reorganização partidária, 6 nas eleições para os diversos níveis, na<br />

reelaboração da Constituição do país 7 e nas eleições presidenciais.<br />

Foi também nessa década que os grupos de reflexão feministas<br />

assumiram outros arranjos organizativos e instituíram os Coletivos<br />

Feministas e as ONGs que objetivavam o desenvolvimento de<br />

ações direcionadas ao resgate e/ou conquista da autonomia feminina<br />

nos campos da saúde, do corpo, da sexualidade, como também,<br />

ações de combate à violência.<br />

Segundo Karla Adrião (2008), as ONGs e as redes feministas<br />

são as formas através das quais o feminismo brasileiro vem se<br />

organizando com maior força, desenvolvendo papel importante<br />

no fomento de ações políticas e de políticas públicas que visam o<br />

6 “As eleições de 1982 haviam dividido as militantes feministas em dois grandes grupos,<br />

as peemedebistas e as petistas”. (PINTO, 2003, p. 79)<br />

7 O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) capitaneou uma ampla campanha nacional<br />

pelos direitos das mulheres na nova Constituição, com os lemas “Constituinte Para Valer tem<br />

que ter Palavra de Mulher” e “Constituinte para Valer tem que ter Direitos da Mulher”. No final<br />

de 1986, o CNDM organizou um grande encontro nacional em Brasília, no Congresso Nacional,<br />

para o qual se deslocaram centenas de mulheres de todas as regiões do país e no qual foi<br />

aprovada a “Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes”. Em março de 1987, quando da<br />

inauguração do Congresso Constituinte, essa Carta foi entregue pela Presidente do CNDM, Sra.<br />

Jaqueline Pitanguy, ao Deputado Ulisses Guimarães, Presidente do Congresso Nacional. A partir<br />

de então, teve início um grande movimento de luta pelos direitos das mulheres na Constituição,<br />

que ficou conhecido como “O Lobby do Batom”, que foi um movimento de sensibilização<br />

dos deputados e senadores para a relevância de considerar as demandas das mulheres<br />

visando à construção de uma sociedade guiada por uma Carta Magna verdadeiramente<br />

cidadã e democrática. Com a promulgação da Constituição, em outubro de 1988, as mulheres<br />

conquistaram a maioria expressiva de suas reivindicações. Disponível em: . Acesso em: 14 ago. 2009.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 283


empoderamento de mulheres. 8 Entretanto, adverte que as ONGs<br />

representam, também, uma profissionalização do movimento feminista,<br />

um fato ameaçador para a autonomia do movimento, já<br />

que muitas estratégias são também definidas por negociações de<br />

ordem global ou para atender a demandas específicas das fontes<br />

financiadoras.<br />

As Redes, por sua vez, foram criadas, na década de 1990, com o<br />

objetivo de manter conectados os mais diferenciados movimentos<br />

de mulheres e feministas, possibilitando a troca de experiências,<br />

o fortalecimento e a unificação dos movimentos de mulheres,<br />

independentemente de suas identidades e diferenças políticoideológicas.<br />

São exemplos desses esforços, a Rede Brasileira de Estudos<br />

e Pesquisas Feministas (REDEFEM), a Rede Feminista Norte<br />

e Nordeste de Estudos e Pesquisas Sobre a Mulher e Relações de<br />

Gênero (REDOR), a Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos<br />

Reprodutivos (Rede Saúde), a Articulação de Mulheres Brasileiras<br />

(AMB), a Marcha Mundial de Mulheres (MMM) e a Articulación<br />

Feminista Marcosur (AFM). 9<br />

A fala de Anne sobre o retorno das feministas exiladas está<br />

de acordo com Cynthia Sarti que relata que “a anistia permitiu<br />

a volta das exiladas e com elas um novo fôlego ao movimento, na<br />

medida em que traziam a influência de um movimento feminista<br />

8 Essa atuação é reconhecida por autoras como Pinto (2003) que destaca as ações realizadas<br />

junto à bancada feminina no Congresso Federal pela ONG CFemea. Lourdes Bandeira (2000)<br />

comenta sobre o fortalecimento de ONGs como o SOS Corpo, em Recife, e o Coletivo Feminista<br />

Sexualidade e Saúde, de São Paulo.<br />

9 A Rede Saúde foi criada em 1991, com o objetivo de articular os movimentos de mulheres e<br />

feministas para atuar em defesa da garantia dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos<br />

(ver em: http://www.redesaude.org.br). A AMB, fundada em 1994, foi organizada no sentido<br />

de unir e fortificar os movimentos de mulheres e feministas visando à Conferência de Beijing,<br />

em 1995 (Ver em: www.articulacaodemulheres.org.br). A MMM, fundada em 1995, no Canadá,<br />

é uma organização feminista internacional de luta contra a pobreza e a violência sexista, com<br />

participação de 159 países, dentre eles o Brasil (Ver em: www.sof.org.br). A AFM foi constituída<br />

em setembro de 2000, por organizações do Uruguai, Brasil, Chile, Paraguai, Argentina e Peru,<br />

em decorrência da avaliação da “IV Conferência Mundial da Mulher” (Beijing, 1995),<br />

objetivando fortalecer os espaços de articulação entre os movimentos sociais e reforçar a<br />

presença feminista nesses âmbitos e na sociedade (Ver em: http://www.mujeresdelsur-afm.<br />

org.uy/index_e.htm).<br />

284<br />

Gênero, mulheres e feminismos


atuante, sobretudo na Europa” (2001, p. 41). Tal fato é reconhecido<br />

por Renata Gonçalves (2009), ao declarar que a anistia política<br />

contribuiu de forma positiva para uma integração de agendas entre<br />

os movimentos de mulheres e feministas, politizando os debates<br />

e aumentando a incorporação do pensamento feminista nos<br />

movimentos de mulheres. Entretanto, essa integração também<br />

gerou tensões, uma vez que a pauta de reivindicações feministas<br />

trazidas pelas exiladas reclamava a liberação feminina em países<br />

democráticos, enquanto que, no Brasil, sob o regime da ditadura,<br />

as reivindicações feministas se concentravam em necessidades<br />

práticas do cotidiano, a exemplo da exigência de creches, fim da<br />

carestia, água encanada, dentre outras.<br />

Se, por um lado, o ideário feminista trazido pelas exiladas fortalecia<br />

o pensamento das feministas brasileiras, pois associavam o<br />

feminismo a um movimento libertário, que enfatizava o corpo, a<br />

sexualidade, o prazer e a ruptura com toda tutela e forma de dominação,<br />

por outro lado, incitava reações negativas não apenas<br />

dos partidos e grupos de esquerda, mas, também, de algumas feministas,<br />

que insistiam em subordinar a causa das mulheres à luta<br />

de classes, à luta do proletariado contra a burguesia.<br />

Ainda sobre a aproximação com a temática da saúde sexual e<br />

reprodutiva com perspectiva feminista, Cristine relata como se<br />

deu sua aproximação:<br />

— Desde sempre, desde quando... eu saí da cadeia, em 74, e aí<br />

eu já estava muito envolvida com essa temática. Depois, eu<br />

fui buscar ler... Eu já tinha lido rapidamente alguma coisa<br />

da Simone de Beauvoir... por incrível que pareça, ela e<br />

Alexandra Kolontai e a Emma Goldman tiveram uma influência<br />

muito grande na minha vida. As duas primeiras<br />

como militantes, Emma Goldman e a Alexandra Kolontai,<br />

e a Simone de Beauvoir como libertária. E depois eu vim<br />

Gênero, mulheres e feminismos 285


eencontrar Emma Goldman numa releitura também, nessa<br />

perspectiva da liberdade, de viver sexual...<br />

Conforme citado anteriormente, a entrevistada foi buscar a<br />

literatura feminista como forma de melhor entender as torturas<br />

que sofrera na prisão. Isso envolveu um autoesforço no sentido de<br />

articular sua formação marxista com a questão da subjetividade.<br />

Para Cíntia Sarti, “a discussão ontológica do ser mulher, inspirada<br />

pelas feministas marxistas (Alexandra Kollontai) e por Simone de<br />

Beauvoir, tornou-se imprescindível e inevitável para a elaboração<br />

do que havia sido vivido” (2001, p. 34).<br />

Conclusões<br />

As entrevistas realizadas revelaram que a aproximação com<br />

o feminismo das acadêmicas feministas se deu em diferentes circunstâncias<br />

e espaços temporais, contextualizados tanto durante<br />

o período mais duro da ditadura militar quanto no período de<br />

redemocratização do país. O espaço universitário foi o local por<br />

excelência das aproximações das entrevistadas, seja como estudantes<br />

ou como professoras, o que aponta a Universidade como<br />

importante espaço de difusão e adesão de mulheres e homens ao<br />

pensamento feminista.<br />

A principal forma de aproximação com o feminismo se deu<br />

através de contatos pessoais com feministas, fossem professoras,<br />

amigas ou colegas de universidade, um fato sugestivo de que a livre<br />

divulgação do pensamento feminista (entendida como todas<br />

e quaisquer oportunidades de expressar o pensamento feminista)<br />

se constitui como importante estratégia de agregação de pessoas<br />

ao movimento.<br />

Ao ampliarmos a concepção de militância para além da militância<br />

clássica das ruas e incorporarmos a produção da litera-<br />

286<br />

Gênero, mulheres e feminismos


tura feminista, podemos afirmar que todas as entrevistadas se<br />

aproximaram do feminismo em consequência da militância feminista<br />

através: da literatura (livros, artigos, dissertações, teses,<br />

panfletos); de palestras proferidas; da conformação dos núcleos<br />

e grupos de pesquisa sobre mulheres e gênero; de programas de<br />

treinamento oferecidos por universidades; de capacitações em<br />

ONG feministas; e de cursos de qualificação para a implantação<br />

do PAISM, que contou com a participação de feministas, e cujo<br />

processo de implementação, enquanto política pública oficial do<br />

Estado brasileiro para as mulheres, findou por se constituir como<br />

uma estratégia de divulgação do pensamento feminista por todo<br />

o país.<br />

O interesse das entrevistadas acerca da temática da sexualidade,<br />

da reprodução e da saúde integral da mulher aparece como<br />

elemento catalisador da aproximação com o ideário feminista que<br />

apresentava, e ainda apresenta novas reflexões e perspectivas<br />

teóricas que enriqueciam/enriquecem a construção de um conhecimento<br />

que queria/quer ser politizado, por extrapolarem o<br />

domínio das Ciências Biológicas e incorporarem reflexões da Sociologia,<br />

da História e da Antropologia sobre a saúde, os corpos e<br />

as sexualidades das mulheres.<br />

A partir das aproximações iniciais com o feminismo e com a<br />

temática da saúde sexual e reprodutiva sob o prisma do feminismo,<br />

as acadêmicas entrevistadas contribuíram para a consolidação<br />

do campo de estudos sobre a mulher/gênero/ feministas no<br />

país, através da fundação e/ou participação em núcleos de estudos<br />

de gênero e da mulher, fundação/participação em ONG feministas,<br />

publicações de pesquisas e inserção dos estudos sobre<br />

mulher/gênero/feministas nas universidades.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 287


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Gênero, mulheres e feminismos


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.<br />

290<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Quarta parte<br />

G<br />

Analisando<br />

representações


REPRESENTAÇÕES<br />

DE <strong>MULHERES</strong> EM SITCOMS<br />

neoconservadorismo (Mulheres em Séries, 19)<br />

Ivia Alves<br />

Existe essa questão de que a TV influencia a sociedade e vice-versa.<br />

No início existiram programas, principalmente americanos, que eram<br />

produzidos com o intuito de direcionar o comportamento social. Pode até<br />

ter conseguido em algumas camadas e por algum tempo, mas a sociedade<br />

não deixou de mudar por conta disso. Tanto é que a programação<br />

mundial é facilmente classificada por décadas. Em relação às séries de<br />

televisão, mais especificamente a americana, eles levavam uma década<br />

inteira para abordar um determinado comportamento. Muito embora os<br />

temas considerados tabus sempre estivessem camuflados nas entrelinhas.<br />

A vantagem da televisão é conseguir trazer para dentro das casas das pessoas<br />

situações nas quais elas podem se identificar e (se Deus quiser) permitir que<br />

elas se questionem; é levar para dentro das casas das pessoas um mundo<br />

de informações e imagens às quais elas não teriam acesso por falta de<br />

tempo, interesse, geografia, dinheiro ou cultura. Cabe à televisão saber<br />

utilizar essa vantagem. (FURQUIM, 2005)<br />

Sinto começar este artigo com negativas, mas sem elas não<br />

chegarei ao meu alvo: não vou falar sobre a indústria cultural nem<br />

mesmo sobre a televisão e todas as suas limitações − patrocinado-


es, programação e seu discurso conservador e dominante. Meu<br />

alvo é analisar de que maneira as séries (que, para a audiência são<br />

mais uma forma de lazer) vão, gradativamente, modificando suas<br />

mensagens e a forma de ler o mundo e como a audiência, desarmada,<br />

vai internalizando tais discursos, transformando-os em<br />

modelos de forma de vida. Refiro-me às modificações corporais,<br />

comportamentais, de visão de mundo e às metas, que vêm embaladas<br />

com uma indumentária específica que controla o corpo e,<br />

talvez, a forma de pensar, induzindo à não reflexão, a não criar ou<br />

acatar outros discursos alternativos. 1<br />

Vamos centrar a atenção e a análise em um gênero que vem se<br />

popularizando cada vez mais na programação televisiva: as séries<br />

norte-americanas. As sitcoms 2 ou séries de situação são pequenas<br />

cenas encadeadas que abordam risivelmente a vida cotidiana<br />

e que são encenadas na televisão, com plateia ou sem ela. Elas se<br />

diferenciam das comédias pela inclusão do público e essa inserção,<br />

seja real ou introduzida por risadas gravadas, se deve ao seu<br />

original suporte que foi o rádio no qual elas foram veiculadas a<br />

partir de 1930, tendo sido adaptadas pela televisão, no seu início<br />

(1950), graças à popularidade que conseguiam alcançar na mídia<br />

1 O centro da minha pesquisa são as séries policiais de procedimento investigativo, mas, à medida<br />

que as representações de mulheres foram se modificando e que encontrei o seu início nas<br />

sitcoms e comédias, meu foco se deslocou para esse estudo, no intuito de voltar e perceber,<br />

claramente, as transformações das personagens femininas no gênero policial. A minha escolha<br />

pelas séries policiais procede porque, sendo a instituição constituída, originariamente, por<br />

homens, com regras e hierarquias rígidas, só tendo ocorrido a inserção de mulheres a partir<br />

de 1960, oferece maiores possibilidades de análise das relações de gênero e de poder. Por<br />

serem, em geral, classificadas como dramas, as desigualdades não se colocam da mesma<br />

maneira como são exercitadas na comédia, em que são vistas como brincadeira. Mesmo que<br />

os questionamentos apareçam de forma muito sutil entre o elenco fixo, nas séries norteamericanas<br />

investigativas, é possível detectar as várias formas de desigualdades e assimetrias.<br />

2 Sitcom é a abreviatura da expressão em inglês situation comedy (comédia de situação, numa<br />

tradução livre) e, normalmente, consiste em uma ou mais histórias onde existe humor,<br />

encenada por personagens comuns, em ambientes comuns como família, grupo de amigos,<br />

local de trabalho; são, em geral, gravadas diante de uma plateia, ao vivo e se caracterizam<br />

pelos ‘sacos de risadas’, embora isso não seja uma regra. As situation comedies surgiram no<br />

Reino Unido, na época de ouro do rádio, mas hoje são peça fundamental da programação das<br />

televisões norte-americanas. Disponível em: .<br />

Acesso em: 4 nov. 2010.<br />

294<br />

Gênero, mulheres e feminismos


original. Mas não é só isso a comédia (ou sitcom) televisiva. 3 Aqui<br />

se pode pensar em adaptar a definição de Flávio Aguiar (2003)<br />

para a “comédia de costumes” que, desde sua origem, na Grécia,<br />

“caracteriza-se pela criação de tipos e situações de época, com<br />

uma sutil sátira social” e, ainda:<br />

Proporciona uma análise dos comportamentos humanos e dos<br />

costumes num determinado contexto social, tratando freqüentemente<br />

de amores ilícitos, da violação de certas normas de<br />

conduta, ou de qualquer outro assunto, sempre subordinados a<br />

uma atmosfera cômica.<br />

A trama desenvolve-se a partir dos códigos sociais existentes, ou<br />

da sua ausência, na sociedade retratada.<br />

As principais preocupações dos personagens são a vida amorosa,<br />

o dinheiro e o desejo de ascensão social.<br />

O tom é predominantemente satírico, espirituoso e cômico, oscilando<br />

entre o diálogo vivo e cheio de ironia e uma linguagem às<br />

vezes conivente com a amoralidade dos costumes.<br />

Assim, ao mesmo tempo em que tem uma forte marca de crítica,<br />

ao explorar atitudes e comportamentos de pessoas comuns,<br />

essa crítica pode passar ao largo, para uma audiência desavisada<br />

que ri das situações com as quais se identifica, mas, também, e<br />

principalmente, das que ela identifica no Outro. Por outro lado,<br />

no contexto econômico do país, que atinge tanto a produção de<br />

programas como o seu público alvo, atualmente, vem se intensificando<br />

a profusão de comédias que tratam de temas contemporâneos<br />

e ganhando grande espaço na programação da televisão.<br />

Qualquer outro tipo de programação, exceto o formato de no-<br />

3 No Brasil, há inúmeros exemplos de sitcoms como A grande família, de Oduvaldo Vianna Filho,<br />

o Vianinha, em sua primeira edição (1972-1975); e em sua segunda edição, argumento original<br />

de Vianinha com a colaboração de diversos roteiristas, (2001−); Sai de baixo, de Luís Gustavo e<br />

Daniel Filho (1996-2002); Os normais, de Fernanda Young (2001-2003); e várias outras, todas<br />

exibidas na programação da Rede Globo de Televisão.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 295


tícias, tem perdido espaço para o riso ou para os reality shows.<br />

Tempos duros economicamente, tempos de invenções. E assim,<br />

as duas formas mais ecônomicas de programação televisiva se<br />

tornam eficientes em tempos de cortes financeiros. Refiro-me às<br />

inúmeras séries de comédias “leves” atuais, mais precisamente a<br />

Glee (jovens perdedores de uma escola) e Modern Family (a nova<br />

“organização” de famílias), ambas ganhadoras de vários Prêmios<br />

Emmy’s, bem como a No Ordinary Family ou The Big Bang Theory<br />

que apresentam novas atitudes e formas de convivência da<br />

família parental, de jovens perdedores ou de nerds, os chamados<br />

geeks.<br />

As séries cômicas, que se caracterizam por cenários fixos, vêm<br />

passando por transformações e reiterando essas novas formas de<br />

viver e conviver. 4 E é dentro dessas transformações provenientes<br />

da necessidade da audiência e, ao mesmo tempo, das grandes<br />

modificações no contexto socioeconomico-cultural, que determinadas<br />

representações de mulheres se desenvolvem, afetando<br />

em cheio aquelas que perduraram por mais de vinte anos em inúmeras<br />

séries dramáticas do final do século XX, seguindo a agenda<br />

do “feminismo da segunda onda”.<br />

E assim, chegamos ao nosso foco de atenção: a análise das representações<br />

das mulheres que, nas produções seriadas dos últimos<br />

cinco anos, podem ser lidas como uma volta ressignificada<br />

dos paradigmas das décadas de 50/60. Detectamos o apelo muito<br />

forte ao casamento como uma forma de estabilidade não só emocional<br />

como financeira, um cuidado especial quanto ao ser mãe,<br />

com todos os atributos e obrigações que o papel implica e, ainda,<br />

uma gama de profissões voltadas para “o mundo da mulher”,<br />

isto é, moda, design, revistas, profissões variadas mas que giram<br />

4 Por sinal, o humor, a comédia ou cenas de comédia vêm contaminando inclusive os dramas e,<br />

dentre esses, até as séries policiais investigativas, formato clássico que, por tratar de crimes e<br />

assassinatos, resistiu, até os anos 2000, a introduzir o caricato, o riso fácil, o tom cômico.<br />

296<br />

Gênero, mulheres e feminismos


e circulam em torno da beleza. Nos roteiros das atuais séries, são<br />

escolhidas para um maior aprofundamento as personagens que<br />

têm profissões cujo “domínio [esteja], em geral, associado ao espaço<br />

da mulher”, como coloca Hamburger (2007, p. 168), em sua<br />

análise de novelas. “O domínio da arte, da moda, da estética e da<br />

cozinha” e eu acrescentaria, ainda, profissões relacionadas com<br />

o cuidado (médicas, enfermeiras) ou que observam e analisam o<br />

comportamento humano, como antropólogas, psicólogas, escritoras...<br />

As quatro séries em que iremos nos deter, dentre as quais duas<br />

reestruturam a representação das mulheres que vivem em grandes<br />

cidades (Boston e New York, principalmente) e duas tratam da<br />

consolidação dessa nova configuração, giram em torno do considerado<br />

“mundo feminino”.<br />

Mas, comecemos a falar dessa grande transformação (em geral,<br />

tida como pós-feminista) que nós consideramos ser um backlash,<br />

como trata Susan Faludi (2001), um movimento conservador que<br />

começou subrepticiamente e agora emerge como nova forma de<br />

ver o mundo e de se articular com ele. As duas principais manifestações<br />

desse backlash se assentam na “insatisfação” das mulheres<br />

que, tendo alcançado a faixa dos trinta anos, ainda permanecem<br />

solteiras e, em consequência disto, em uma demonstração<br />

de força da família parental que, aos poucos, nessas séries, vem<br />

constrangendo ou reiterando certos comportamentos para essas<br />

mulheres.<br />

A mudança atual vai ter como parâmetro a década de noventa,<br />

em que foram produzidas sitcoms de grande sucesso como<br />

Friends (1994−2004), Seinfeld (1990−1998), Frazier (1993−2004)<br />

e Will and Grace (1998−2006), comédias marcadas por representações<br />

de mulheres solteiras, com profissões diversas e relações<br />

afetivas casuais e que tinham, como tema básico, a apologia da<br />

amizade entre os jovens, os desafios de experimentações afetivas,<br />

Gênero, mulheres e feminismos 297


os fracassos, as falhas e defeitos de cada um dos personagens e<br />

que, embora tenham sido excelentes comédias de costumes, não<br />

conseguiram sobreviver à forte “onda tradicional” que, nos últimos<br />

anos, solapou o paradigma anterior.<br />

As primeiras modificações:<br />

desestabilizando as mulheres<br />

Estudar as representações da figura feminina na mídia, por<br />

si só, não resolve os problemas da busca da igualdade entre<br />

homens e mulheres, mas os traz à tona e mostra o quanto<br />

ainda há por ser feito e conquistado. Pelo fato de a mídia<br />

ser formadora de opinião, [poderão demonstrar] o processo<br />

lento e secular de luta contra a discriminação da mulher<br />

nas sociedades. (GHILARDI-LUCENA, 2003, p. 2)<br />

As sitcoms parecem, em geral, programas para diversão, apenas.<br />

Como são seriados de meia hora (poucos ultrapassam esse<br />

tempo) que tratam, na maioria das vezes, de temas do dia-a-dia,<br />

como a relação familiar, a relação entre amigos ou o cotidiano de<br />

escritórios, são sempre bem-vindos a um público mais ávido de<br />

novidades e com pouco tempo para o lazer. 5 Também são elas que<br />

apresentam experimentações de temas, quase sempre avançando,<br />

ousando mais, com a intenção de aproximar as narrativas da<br />

rotina diária de sua audiência. Assim começam a aparecer, timidamente,<br />

entre 1996 e 1998, sitcoms que vão colocar em cheque a<br />

profissão e o casamento e a dificuldade da mulher em se equilibrar<br />

entre esses dois mundos.<br />

A primeira delas, Suddenly Susan (criada por Clyde Phllips),<br />

que foi ao ar entre 1996 e 2000, apresenta uma jovem jornalista<br />

formada que, repentinamente, desiste do casamento e da vida que<br />

5 Nos últimos anos, além de sitcoms, também começam a aparecer comédias de duração maior,<br />

de cerca de 45 minutos.<br />

298<br />

Gênero, mulheres e feminismos


iria levar para retornar a sua coluna em uma revista cujos artigos<br />

tratavam, principalmente, de suas relações pessoais (difíceis<br />

e decepcionantes), bem como da sua facilidade em lidar com os<br />

colegas. Seguindo nessa esteira de mulheres voltadas para profissões<br />

consideradas do “mundo feminino”, Just shoot me, de Steven<br />

Levitan, indicada para seis Emmy Awards e sete Globos de<br />

Ouro, que começou a ser produzida em 1997 e foi concluída em<br />

2003, acompanhava a vida e o ambiente profissional de uma revista<br />

de moda. A personagem principal era formada em Stanford<br />

e tentava dar profundidade aos seus artigos (mas, sem sucesso)<br />

em uma revista dedicada às mulheres. Envolvida em um romance,<br />

acaba no hospital com um ataque de ansiedade provocado pelo<br />

medo de assumir um compromisso afetivo. Escrita por homens,<br />

determinadas marcas das práticas sociais eram colocadas em evidência;<br />

assim, eram voltadas para o sucesso na vida profissional<br />

de mulheres que, embora estivessem quase chegando aos trinta<br />

anos, ainda não tinham uma vida amorosa estável, um pretendido<br />

que as levasse ao casamento, filhos e família. Esse olhar masculino,<br />

para o qual não há possibilidade de a mulher conseguir conciliar<br />

os dois interesses, vai minando o desempenho profissional<br />

das mulheres.<br />

Quando se trata de televisão, nada mais normal do que esse<br />

mesmo tema ser explorado em outra série que também viraria<br />

sucesso, Ally McBeal. A frágil advogada, cheia de fantasia e romance,<br />

construída por mãos masculinas, alcançou sucesso e modelou<br />

o mundo feminino para os escritórios de advocacia. Embora<br />

seu criador, David E. Kelley, seja um escritor de sucesso, levando<br />

créditos de Chicago hope, O desafio (1997), Boston Legal (2000),<br />

Life on Mars (2008), o tratamento dado à personagem principal,<br />

que ele próprio concebeu como excêntrica, virou “o modelo” de<br />

mulher, exatamente no momento em que o backlash começava<br />

a se tornar o discurso dominante. Imediatamente, a comédia foi<br />

Gênero, mulheres e feminismos 299


aprovada pelos patrocinadores das televisões abertas, conseguindo<br />

alcançar cinco temporadas.<br />

Embora fosse muito bem cuidada e tratasse de causas jurídicas<br />

que estimulavam a reflexão, seu envólucro era totalmente cômico,<br />

sendo Ally a mais diferente das mulheres até então vistas<br />

e configuradas na televisão. Na verdade, a jovem advogada de 27<br />

anos, recém-formada, tinha como detonador de sua conturbada<br />

vida futura um romance amoroso iniciado aos oito anos e interrompido,<br />

abruptamente, no segundo ano da Faculdade, quando<br />

o casal se separa para seguir especialidades diferentes. Essa decisão<br />

de mudança de Universidade tomada pelo namorado − expressa,<br />

no Episódio 1, com a fala “– Basicamente, está colocando<br />

sua carreira de advogado entre nós” − vai configurar Ally McBeal<br />

por toda a série. Caía bem a história do primeiro amor nunca esquecido<br />

(mito romântico) como base da sua dificuldade de relacionamento<br />

com outros homens, embora sempre ela estivesse à<br />

procura de um.<br />

O estresse e desequilíbrio emocional de Ally se torna maior<br />

quando ela vai trabalhar na mesma firma do ex-namorado, que se<br />

encontra estável e casado. De suas crises de insegurança, da falta<br />

de confiança em si mesma e na profissão, do que fazer da sua vida<br />

pessoal, das mudanças emocionais e de estado de espírito, de suas<br />

metas e de sua maneira de ver a vida, não só o público iria participar<br />

− suas hesitações emocionais são trazidas à luz por meio de<br />

sequências de cenas de fantasia, com sua própria narrativa em off<br />

−, mas também o seu ex-namorado, que se tornara seu melhor<br />

confidente. Egoísta, aumentando seus problemas e não ouvindo<br />

os outros, ao completar 28 anos, ela, desesperada, comenta com<br />

a esposa de seu ex-namorado: “− Tinha planos. Aos 28 anos estaria<br />

tirando licença de maternidade, mas ainda teria uma brilhante<br />

carreira. Uma incrível vida doméstica, uma incrível vida<br />

profissional”; e ainda acrescenta: “− E ao invés disso vou para a<br />

300<br />

Gênero, mulheres e feminismos


cama com um boneco inflável e represento um cliente que chupa<br />

os dedões dos pés da ex-namorada. Esse não era o meu plano”<br />

(Episódio 119). Fantasiosa e romântica, no velho estilo ressignificado<br />

dos folhetins romanescos, essa personagem “excêntrica”<br />

passou a ser o “novo” modelo de aparência e de comportamento<br />

das mulheres da entrada do Século 21.Apesar de ter recebido muitas<br />

críticas provenientes das feministas, a série, desde seu início,<br />

se transformou em sucesso, conquistando sete premiações dentre<br />

as onze distribuídas pelas várias associações norte-americanas.<br />

Durante esse sucesso, seu criador assim se expressou sobre a personagem,<br />

em reportagem da Agência Reuters:<br />

— Eu realmente não achei que estivesse escrevendo uma personagem<br />

representativa para o gênero feminino em geral.<br />

Pensei em Ally como uma personagem excêntrica e diferente.<br />

Então, foi uma boa surpresa ver que a personagem<br />

era tão parecida com tantas mulheres. 6<br />

O interessante dessa configuração é que são mulheres competentes<br />

em suas profissões. Mesmo Ally que, inicialmente, se<br />

mostrava insegura, ao longo das temporadas, se torna excelente<br />

advogada e chega-se a esperar que ela venha a conseguir algum<br />

equilíbrio emocional, o que não acontece até o final da série. Longe<br />

do trabalho, ela vacila, é decididamente desajeitada com os<br />

pretendentes, como uma mulher jovem e solteira à procura da felicidade<br />

pessoal. O sucesso dessa “atualização” na representação<br />

de mulher (desestabilizada, frágil, preocupada em encontrar sua<br />

identidade em um mundo comandado por homens) vai servir para<br />

a análise dos comportamentos de quatro mulheres, na faixa etária<br />

dos trinta anos, em Sex and the City (1996), livro de sucesso, uma<br />

6 A personagem desencadeou um debate acalorado entre as feministas, atingindo seu auge com<br />

a capa na revista Time, em 1998, onde Calista Flockhart aparecia ao lado da frase ‘O feminismo<br />

está morto?’. Disponível em: .<br />

Acesso em: 4 nov. 2010.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 301


coletânea das colunas escritas para um jornal de Nova York por<br />

Candice Bushnell, que, reescrito para a televisão por Darren Star<br />

− portanto, um olhar masculino −, e supervisionado pela autora,<br />

teve seu roteiro modificado, embora tenha guardado a ironia do<br />

texto escrito.<br />

O livro foi consumido na primeira temporada e, ao longo das<br />

quatro temporadas seguintes, a visão de mundo da jornalista, que<br />

dera ao texto um tom entre crítico e irônico, foi sendo modificada<br />

pelo olhar masculino de seu criador, tendo a postura crítica cada<br />

vez mais se deslocado para uma expressão afirmativa, tornando<br />

as quatro diferentes mulheres modelos de conduta e de aparência<br />

para as mulheres reais. Vale destacar o olhar da escritora que, em<br />

2001, na “Apresentação” da segunda edição aumentada de seu livro<br />

coloca:<br />

Mas, acima de qualquer outra pergunta, Sex and the City busca<br />

responder a uma pergunta crucial: por que ainda estamos solteiras?<br />

Ora, depois da experiência que adquiri nesse campo, posso<br />

afirmar que estamos solteiras porque queremos. (BUSHNELL,<br />

2008, p. 8)<br />

Na versão televisiva, essa afirmativa e a intenção das crônicas<br />

da autora foram sendo totalmente desfiguradas e “domesticadas”,<br />

a cada temporada, dando a impressão de que essas mulheres independentes<br />

estavam, apenas à procura de parceiros para a formação<br />

de uma família. E para confirmar que sua ideia era mais uma observação<br />

crítica do que um compêndio de conduta, na segunda edição,<br />

Bushnell informa ter acrescentado mais dois capítulos sobre o<br />

fim do relacionamento de Carrie e Mr. Big, pois ele é “um homem<br />

que não existe na vida real”, e, desmantelando toda a possibilidade<br />

de uma narrativa romantizada que os leitores pudessem ter criado,<br />

acrescenta: “[...] se os leitores ficarem atentos, irão descobrir que<br />

até o próprio Mr. Big afirma que ele é uma fantasia na imaginação<br />

de Carrie, e que não se pode amar uma fantasia”, mostrando que<br />

302<br />

Gênero, mulheres e feminismos


ela vai ter que entrar em uma nova fase, compreender a vida (sem<br />

um homem) para poder se encontrar e “quando isso acontecer,<br />

talvez consiga começar uma relação” (2008, p. 10).<br />

Assim, um livro no qual a autora, logo na “Apresentação”,<br />

desfaz o “mito do romanesco” e afirma a necessidade de a mulher<br />

se conhecer e se reconhecer, veio a redundar não só em uma série<br />

televisiva como também em dois filmes em que o acontece o happy<br />

end e nos quais as mulheres só falam sobre o possível encontro<br />

de um parceiro estável, desfigurando o livro e reiterando, ou melhor,<br />

explicitando, o que as séries anteriores haviam insinuado: a<br />

representação de uma mulher bem-sucedida no trabalho, porém<br />

malsucedida no casamento (se o tiver) ou solteira, correndo atrás<br />

do tempo perdido e do parceiro ideal. 7<br />

Enquanto Sex and the City passava no canal original, entre<br />

1998 e 2004, 8 começou a despertar o interesse de outros canais,<br />

a partir das inúmeras premiações que obteve desde 2002. Novamente,<br />

uma série que fora produzida para a análise crítica de<br />

comportamentos foi dirigida e “lida”, pela audiência e pelos canais<br />

que passaram a comprá-la e divulgá-la, como uma comédia<br />

para mulheres, chamando a atenção pelo seu tema − sexo e relações<br />

sexuais − que ainda era visto como tabu na televisão aberta.<br />

Apesar de Ally McBeal ter como tema de seus devaneios, a<br />

mesma temática − as relações casuais, as escolhas dos parceiros<br />

por mulheres bem-sucedidas na vida profissional e que tinham<br />

dinheiro para sustentar roupas, sapatos de marca e frequentar os<br />

melhores lugares de Nova York −, é com Sex and the City que a<br />

configuração se torna completa. À bem-sucedida Ally McBeal e<br />

ao estrondoso sucesso de Sex and the City, produzidas entre 1998<br />

7 Não vou, aqui, transcrever as falas dos personagens masculinos sobre a possível mulher que<br />

querem, cenas que abrem o Capítulo Um da série homônima.<br />

8 Sendo a HBO um canal fechado e exclusivo que atende a um público diferenciado, isso implica<br />

em uma crítica à sociedade e em mais reflexão e instrução.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 303


e 2004, junte-se − em parte, visto que a personagem central não<br />

compete, em aparência, com as atrizes das duas séries − a comédia<br />

romântica O Diário de Bridget Jones, de 2001 (que reitera atitudes<br />

e comportamentos de busca do “homem ideal”), filme baseado no<br />

livro de Helen Fielding e dirigido por Sharon Maguire e, em 2004,<br />

sua continuação, intitulada Bridget Jones: a idade da razão, apenas<br />

com a colaboração da autora no roteiro.Iniciada a desestabilização<br />

da mulher com essas séries, a consolidação do paradigma<br />

agregada ao desejo de formação de uma família vai ocorrer nesses<br />

filmes, que combinam atitudes e comportamentos com a indústria<br />

da beleza e da moda, já presentes em Sex and the City. Os dois<br />

filmes provenientes da série colocam o foco nessa mesma modelagem<br />

limitante para as próprias mulheres, como refere Naomi<br />

Wolf, em seu livro O mito da beleza: como as imagens de beleza<br />

são usadas contra as mulheres (1992).<br />

Assim, a configuração da mulher firme, segura e confiante em<br />

si mesma vai se deslocando para um novo modelo: mulheres que<br />

se mostram competentes como profissionais, mas que, como pessoas,<br />

são representadas, irremediavelmente frágeis, física e emocionalmente,<br />

e, acima de tudo, em busca de um parceiro ideal para<br />

completar o ciclo com o casamento e a constituição da família com<br />

filhos. É marcante a escolha das atrizes que encarnam esse novo<br />

ideal cuja aparência física denota grande fragilidade. Transformase,<br />

assim, o tipo físico escolhido para a representação dessas mulheres,<br />

preferindo-se atrizes muito magras e de aparência delicada<br />

e frágil. Dentro dessa perspectiva, consolida-se o perfil da “feminilidade”,<br />

que já fora inaugurado por Ally McBeal (1997-2002) e<br />

seguido por três das quatro mulheres de Sex and the City (1998-<br />

2004), marcando o fim da mulher realizada profissionalmente,<br />

bem definida, decidida e independente. 9<br />

9 Um dado interessante: as duas escritoras, uma inglesa e outra norte-americana, nasceram em<br />

1958 e 1959, respectivamente, correspondendo à geração próxima à “segunda onda” feminista,<br />

304<br />

Gênero, mulheres e feminismos


A consolidação: as herdeiras do backlash 10<br />

Da ‘falta de homens’ à ‘epidemia de infertilidade’,<br />

do ‘estresse feminino’ à ‘prejudicial dupla jornada de<br />

trabalho’, estas pretensas crises femininas tiveram sua<br />

origem não nas condições reais da vida das mulheres<br />

mas sim num sistema fechado que começa e termina na<br />

mídia, na cultura popular e na publicidade – um contínuo<br />

feedback que perpetua e exagera a sua própria imagem<br />

fictícia da feminilidade. (FALUDI, 2001, p. 14, grifo nosso)<br />

Talvez seja possível datar o momento em que esse discurso<br />

passou a ser dominante abafando todos os discursos alternativos<br />

sobre as representações das mulheres. Podemos, mais ou menos,<br />

encontrá-lo, na entrada do século XXI, pois, embora Susan Faludi<br />

já o tivesse detectado na mídia norte-americana nos finais dos<br />

anos 80, no Brasil, ele aparece, sutilmente, nas novelas, em meados<br />

dos anos noventa. Em 2000, a TV paga inaugura vários canais<br />

para mulheres e, dentro dessa tendência, a GNT (da Rede Globo)<br />

se converte em um canal para mulheres, deslocando-se do seu<br />

rumo inicial em que não havia separação de gênero.<br />

Mas a divulgação e a disseminação dessas representações pela<br />

mídia televisiva, através de seus diversos canais, vêm mesmo a se<br />

consolidar a partir do ano de 2002, com a veiculação, para fora da<br />

HBO, de Sex and the City – Light, epíteto acrescentado por terem<br />

sido cortadas todas as cenas de sexo explícito que havia na série<br />

original, tornando-a mais palatável e muito próxima do discurso<br />

e publicaram seus livros perto dos 38 anos. Elas demonstram a divisão entre os dois paradigmas<br />

introjetados para a vida das mulheres e seus papéis na sociedade burguesa.<br />

10 O programa Happy Hour (GNT), de 30 de agosto de 2010, tratou dessa nova representação de<br />

mulher e de como ela, perto dos trinta anos, tem urgência em se realizar profissionalmente e<br />

está em busca da estabilidade do casamento. Embora as opiniões apresentem divergências,<br />

a posição dominante segue o “modelo” Bridget Jones e Sex and the City, entre outros,<br />

considerado como a postura pós-moderna, pós-feminista que demonstra a efetiva<br />

despolitização das mulheres, que vão adotando um discurso dominante e competente<br />

ideologicamente que as traz de volta “ao lar”, “solucionando”, pois, a dupla jornada e muito<br />

longe das reivindicações feministas dos anos 70/80 no país.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 305


dominante produzido por um olhar masculino. É nesse mesmo<br />

momento e em confluência com essa tendência de que as mulheres<br />

querem mesmo é encontrar seu par ideal e constituir uma família<br />

que bate recordes de bilheteria (também impulsionado pelo<br />

Oscar) o já citado filme O diário de Bridget Jones. 11<br />

Dessa mulher real que não consegue alcançar as medidas corporais<br />

do padrão, das dificuldades de uma profissional em decidir<br />

o que será seu “parceiro ideal”, dos “mitos de realização da mulher”<br />

com relação à reprodução e ao pouco tempo que lhe resta<br />

para contemplar a ideia de que só se é mulher ao ter um filho, tanto<br />

as séries como os filmes são representantes. Desse cadinho de<br />

informações, muitas vezes diversificadas e de campos semânticos<br />

diversos, o discurso dominante consegue desenvolver uma narrativa<br />

para a mulher sobre seus próprios desejos, agregando ainda<br />

sua aparência como “marca” determinante de feminilidade, 12 − o<br />

que “coincide” com a “indústria da beleza”, como intitula Naomi<br />

Wolf: uma mulher que se desdobra no consumo de cosméticos,<br />

vestuário (vestidos, salto alto, bolsas enormes e adereços) bem<br />

como a agregação de bens de consumo, como locais de festas e<br />

rituais de diversão, alimentação e restaurantes.<br />

11 “Constrangimento. Essa é a principal sensação que se tem ao assistir ao Diário de Bridget Jones<br />

[...]. Não que o filme seja ruim, ao contrário, é muitíssimo divertido. O que constrange são as<br />

inúmeras e fenomenais gafes protagonizadas pela personagem título, vivida por Renée Zellweger,<br />

daquelas que nos fazem sentir vergonha pela outra pessoa. [...] Ela parece ter a capacidade<br />

de sempre dizer as coisas erradas nas horas mais impróprias e de agir de forma estranha nas<br />

situações mais improváveis. [...] Essa identificação com a personagem é que fez dela um dos<br />

grandes sucessos do mercado editorial inglês dos últimos tempos. Quem lê o livro ou assiste ao<br />

filme sempre encontra algum ponto em comum com a desajeitada Bridget, principalmente, por<br />

ela ser uma mulher absolutamente comum: com trinta e poucos anos ainda não se casou, bebe<br />

e fuma demais, não se dá tão bem com a mãe, faz um trabalho sem graça e sempre acha que<br />

precisa fazer dieta, mas nunca faz. [...] Num final de ano, depois de cometer mais algumas gafes<br />

memoráveis [...], Bridget decide mudar sua vida e encontrar seu grande amor. [...] Embora seja<br />

um filme sobre as mulheres e feito para elas, não há qualquer contra-indicação para os homens<br />

que, com certeza, irão se divertir da mesma forma”. (GONÇALVES, 2010)<br />

12 Não esquecer também que o homem tem seu paradigma.<br />

306<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Essa representação de mulheres vai dar ênfase à aparência<br />

e vai focar (sem crítica) a difícil relação trabalho+casamento e a<br />

dupla jornada, nas comédias que seguem, a partir de 2005, e que<br />

podem ser tomadas como uma sequência da narrativa anterior,<br />

forjadas como medida exata para a vida das mulheres que, agora,<br />

se apresentam como altas executivas no mundo público, alternando<br />

esse papel com o de mulher−esposa−mãe, cuidadora de<br />

seus filhos, com as dificuldades de ser casada e enfrentar as solicitações<br />

de seu trabalho.<br />

É provável que o contexto histórico e cultural tenha ajudado<br />

nesse retorno de posições conservadoras na sociedade de origem<br />

dessas séries, com a consolidação de uma profusão de religiões<br />

fundamentalistas, dos recursos financeiros que passam a ter as<br />

mulheres profissionais (um teto todo seu?), com a ameaça advinda<br />

da destruição das “torres gêmeas”, a promessa da felicidade como<br />

uma sensação permanente de completude, a emergência de consumo<br />

da moda tanto para homens quanto para mulheres e a própria<br />

indústria do lazer e cultural. Por outro lado, deve-se levar em<br />

conta, também, a efetiva convergência do poder e a tecnologia da<br />

mídia, através da internet e dos telefones celulares, fatores que se<br />

tornam propícios para a entrada dessa sociedade mais voltada para<br />

a performance, para a apresentação pessoal e, portanto, menos reflexiva.<br />

A configuração das mulheres de Sex and the City se impõe<br />

e dá o tom do cotidiano nas práticas sociais: conversas sobre trivialidades<br />

e superficiais modelam essas mulheres e dirigem as reais.<br />

Talvez essa “virada”, a grande transformação do corpo (exigindo<br />

esforço, sacrifícios e academia), do vestuário (roupas ajustadas<br />

ao corpo, saltos altos e bolsas grandes para o trabalho), não<br />

tenha sido tão explícita e clara para a audiência do final do século,<br />

porque as comédias mesclaram temas discutidos nos anos noventa<br />

(as novas profissões relacionadas com a indústria cultural, resquícios<br />

da agenda feminista) com uma mulher menos reflexiva,<br />

Gênero, mulheres e feminismos 307


menos politizada, mais superficial e mais subordinada à impressão<br />

que sua aparência venha a causar aos outros. 13<br />

Thompson (2002), ao falar sobre a mídia, e Susana Funck e<br />

Nara Widholzer (2005), quando atentam para o efeito e a repercussão<br />

da TV no(a) receptor(a) desarmado(a), dizem que quando o<br />

real se mistura à ficção, ou vice-versa; quando se vê a modelagem<br />

do corpo das mulheres em busca do corpo de modelos e celebridades;<br />

quando se vê a orientação dos desejos da mulher − porque<br />

eles vêm sendo dirigidos, sutilmente, por reportagens, documentários,<br />

novelas, propagandas e séries que se tornam impossíveis<br />

de deter no maior veículo de modelagem da vida contemporânea;<br />

e quando se vê a direção ideológica que pretendem imprimir<br />

às sociedades de origem e receptoras, é preciso atentar para as<br />

“mensagens” que estão embutidas nessas séries. Apesar de a televisão<br />

parecer um lazer de segunda classe, menor, sem influência<br />

alguma para a internalização e a permanência de comportamentos,<br />

nós a consideramos de muita importância para a reentrada e a<br />

permanência de determinados códigos (que tinham sido desarticulados)<br />

os quais passaram, novamente, a forjar, de tão repetidos,<br />

os desejos e comportamentos nas relações de gênero.<br />

Partimos dessa perspectiva de análise e seguimos a proposta<br />

de Susan Faludi (2001) de que, desde o final dos anos 80, começou<br />

a surgir um discurso conservador que fazia emergir as normas<br />

tradicionais com relação às mulheres e que ela denominou de<br />

backlash. A partir, mais ou menos, do ano de 2005, o tom desse<br />

discurso dominante tira, finalmente, o véu e se torna competente<br />

para abranger a ideologia de todas as classes sociais, independentemente<br />

de etnia e mesmo de geração, e que já vinha sendo tematizado<br />

pelas sitcoms. Portanto, o discurso não era novo.<br />

13 Vide vários estudos, inclusive Messa, 2005.<br />

308<br />

Gênero, mulheres e feminismos


As matrizes atuais<br />

Os motes principais, a partir daí, para as sitcoms e comédias<br />

são: a família (que reaparece, inicialmente, disfuncional, depois<br />

abrangendo, inclusive, a família parental) e a mulher de aparência<br />

marcadamente “feminilizada”.<br />

Estabilizado o modelo ou a modelagem, a volta significativa do<br />

binarismo e das polaridades características de mulheres e homens<br />

como peculiaridades naturais da Modernidade comparecem como<br />

fundamento das práticas sociais, já não mais provenientes do contexto<br />

e da cultura, que estabelecem os padrões de conduta e uma<br />

“certa aceitação” de que está tudo em seus devidos lugares, aparece<br />

encenada nas séries Cashmere Mafia – A máfia de cashmere<br />

– (2008; sete episódios; criador Kevin Wade) e Lipstick Jungle – A<br />

selva do baton – (2008/09; vinte episódios), esta baseada no livro<br />

homônimo de Bushnell – que também o produziu–, escrita para a<br />

TV por Jennie Snyder Urman e desenvolvida por DeAnn Heline e<br />

Eileen Heisler. 14<br />

Podemos verificar que essas séries, que começam a serem<br />

produzidas quase cinquenta anos após o início da segunda onda<br />

feminista, já partem do discurso dominante tradicional de que<br />

as mulheres que têm sucesso profissional não dão atenção à família<br />

(sequer têm possibilidade de encontrar o parceiro afetivo),<br />

reimprimindo a construção discursiva da modernidade: ou isto ou<br />

aquilo; ou a família ou a profissão.<br />

As duas séries foram amplamente divulgadas pelo noticiário<br />

como sequências de Sex and the City que buscam discutir os relacionamentos<br />

afetivos e os comportamentos sexuais de mulheres<br />

emancipadas e, principalmente, já casadas, com mais de trinta<br />

14 A citação de nomes como criadores, escritores e roteiristas se torna importante para a análise<br />

das condições de produção. A série sofreu na primeira temporada com a greve dos roteiristas e,<br />

na segunda, não teve audiência suficiente para continuar.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 309


anos, vivendo e trabalhando em uma metrópole como Nova York.<br />

Logo, pretenderiam aprofundar as atribulações das mulheres em<br />

cargos de alta responsabilidade e na administração de seus casamentos.<br />

Assim, apesar de serem profissionais economicamente<br />

independentes e de ocuparem postos de destaque, o discurso dominante<br />

dirige o desejo dessas mulheres para o “desejo secreto” de<br />

busca da proteção de um homem ou enfocam o tédio da relação e a<br />

busca de provas constantes de amor de seus maridos e do dia a dia<br />

amoroso como as fantasias construídas por filmes romanescos. 15<br />

Certa “memória” trazida de quando a mulher desempenhava<br />

apenas o papel de dona de casa bem como a hostilidade competitiva<br />

nas relações de gênero existentes, quando se trata de altos<br />

cargos executivos no espaço público, ampliam ainda mais as<br />

demonstrações de como essas mulheres estão “fora de lugar”. 16<br />

É exemplar como uma das primeiras cenas de Cashmere Mafia<br />

rememora “qualidades” da mulher quando coloca o casal de executivos<br />

que se envolve afetivamente, em pleno Central Park, com<br />

ele querendo pedi-la em casamento à vista de todos os transeuntes.<br />

E mais: além de a situação privada ser encenada em um ambiente<br />

público, persiste o mito da memória afetiva da mulher e do<br />

esquecimento do homem, pois, quando ele afirma que o primeiro<br />

encontro foi naquele dia, a noiva retruca: “— Você quer dizer que<br />

eu não sei o dia em que começamos a namorar? Eu sou uma mulher!”<br />

(Episódio 1).<br />

Por que essa “aptidão” designada como feminina e construída<br />

pela sociedade moderna e burguesa seria retomada para o papel da<br />

mulher? Como pode ela se inserir em uma narrativa que se propõe<br />

a trabalhar com mulheres independentes e emancipadas, sexual<br />

15 Em 2005, esse modelo de mulher aparece no policial The Closer e, em 2010, em Rizzoli & Isles.<br />

16 Essa parte do artigo foi reescrita e ampliada a partir da Comunicação apresentada no V ENECULT,<br />

2009. Disponível em: . Acesso em: 4 nov.<br />

2009.<br />

310<br />

Gênero, mulheres e feminismos


e economicamente, do século XXI? E mais: esse discurso parte da<br />

editora-chefe de uma grande rede de revistas de origem japonesa,<br />

no momento culminante de sua vida afetiva, no intervalo das estressantes<br />

atividades de edição de uma revista... É, portanto, bastante<br />

significativo esse diálogo inicial para que observemos outras<br />

pistas que vão demonstrar como a mulher “está fora do lugar” no<br />

ambiente público − e também no privado.<br />

Voltemos ao ponto da divulgação dessas séries e das configurações<br />

das executivas de Cashmere Mafia e Lipstick Jungle − produzidas<br />

em 2008: na divulgação de ambas, as notícias informam<br />

as estreitas relações com Sex and the City, porque a primeira tem<br />

o mesmo produtor e a outra se baseia em livro da mesma autora,<br />

Candace Bushnell, que, segundo o noticiário do The New York<br />

Post, mostra, agora, a vida de três das “50 mulheres mais poderosas”<br />

– e o jornalista acrescenta – “dispostas a fazer quase tudo em<br />

troca do sucesso no mundo dos negócios”.<br />

A primeira mulher destacada é Wendy Healy (Brooke Shields),<br />

uma produtora executiva da indústria do cinema, na faixa etária<br />

dos quarenta anos, casada há mais de quinze anos, que tem três<br />

filhos e um casamento instável devido à desigualdade econômica<br />

entre o casal. A segunda, a loura e sofisticada Nico Reilly (Kim<br />

Raver), é editora-chefe de uma famosa revista de moda do mesmo<br />

conglomerado, casada com um professor universitário de renome,<br />

sem filhos e, apesar dos seus 38 anos, acha sua relação tediosa<br />

e rotineira. Finalmente, a mais moça e bem mais jovem, Victory<br />

Ford (Lindsay Price), é uma designer de moda e empresária globalizada<br />

que vê sua carreira em decadência até encontrar o “homem<br />

dos sonhos de qualquer mulher”, rico e romântico. Esses bons<br />

ingredientes não ajudaram muito a série, cuja audiência decaiu,<br />

a desenvolver o cotidiano dessas mulheres, mas sem deixar de<br />

evidenciar as dificuldades no espaço afetivo e do casamento.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 311


Cashmere Mafia segue a mesma disposição, apresentando<br />

quatro personagens mulheres, 17 duas casadas, uma noiva e a outra<br />

solteira. Segundo os resumos informativos, a série tratava de quatro<br />

ambiciosas mulheres, amigas desde o tempo da escola 18 que,<br />

além de suas reuniões íntimas em almoços semanais, se encontram<br />

frequentemente em eventos sociais e culturais, e que tentam<br />

conciliar trabalho e família ou trabalho e vida afetiva estável.<br />

A greve dos roteiristas de Hollywood, no final de 2007, dificultou<br />

a continuação da série que, provavelmente, pretendia abordar<br />

problemas mais específicos, como deixa transparecer o episódio<br />

piloto que contempla, inclusive, um casal com um casamento mais<br />

próximo dos contratos atuais, e cujo plano narrativo iria desenvolver<br />

as relações amorosas e profissionais das personagens: Mia<br />

Mason − uma mulher independente e decidida que trabalha como<br />

editora de uma revista de um grande conglomerado e que abre a<br />

cena da série se tornando noiva de um colega com o qual vai ter<br />

que competir por um cargo maior; Zoe Burden − uma executiva de<br />

investimentos, que forma, junto com o seu marido, um arquiteto,<br />

o casal equilibrado e contemporâneo que negocia sobre as atividades<br />

dos dois filhos maiores de sete anos até quando ele viaja para<br />

ocupar um cargo fora do estado; Juliet Draper − chefe de operações<br />

de um importante grupo de hotelaria, casada há quinze anos,<br />

com uma filha adolescente, e que, ao contrário do casal anterior,<br />

tem conflitos no casamento tais como o adultério e a rebeldia da<br />

adolescente; e a personagem Caitlin Dowd, solteira, que apresenta<br />

grande dificuldade em relacionamentos afetivos e trabalha em uma<br />

empresa de cosméticos como executiva de marketing. Trilhando<br />

lado a lado com Lipstick Jungle, essa série se mostrou mais densa<br />

17 Nos releases sobre a série vem como legitimação o nome de Kevin Wade como o criador de Sex<br />

and the City. A mudança é mínima e segue a mesma orientação: colocar mulheres no topo da<br />

carreira, entre sua vida pública e seu mundo afetivo.<br />

18 Embora elas sejam de gerações diferentes! E como são de classe média, não há explicação para<br />

tanta diferença de idade entre elas.<br />

312<br />

Gênero, mulheres e feminismos


e com situações melhor desenvolvidas, mas, no entanto, teve baixa<br />

audiência e a greve dos roteiristas ajudou-a a sucumbir, concluindo<br />

com sete episódios apenas.<br />

Aparentemente, as duas séries, que se passavam em Nova York,<br />

em ambientes sofisticados da alta classe executiva, com cenas no<br />

ambiente do trabalho e doméstico, além das frequentes cenas em<br />

eventos culturais glamorosos, estavam dispostas a apresentar,<br />

uma década após Sex and the City, a história de mulheres casadas,<br />

com vidas e vivências diferenciadas. No entanto, ambas vão reduzir<br />

o foco e tratar apenas da instabilidade dos casamentos, além<br />

das constantes competições profissionais.<br />

Partindo da premissa de que toda mulher estaria desestabilizada<br />

emocionalmente por ter alcançado sucesso na carreira<br />

profissional em detrimento de sua vida afetiva, quase todas as<br />

protagonistas estão no topo da carreira, mas não estão contentes;<br />

pesa o lado afetivo das relações amorosas, uma ideia de ausência<br />

de vida pessoal que já vinha subentendida em várias séries anteriores,<br />

da década de noventa, mas nunca fora tão bem explicitada<br />

como então. E, assim, elas iriam investir nisso e iriam mais longe,<br />

demonstrando que, mesmo casadas, suas vidas não deixaram de<br />

ser turbulentas. Em outras palavras: o deslocamento da mulher<br />

para o espaço público irá criar problemas com suas obrigações<br />

com a família, com os filhos e o marido. E para demonstrar esse<br />

discurso conservador, as dificuldades partem de situações familiares<br />

estereotipadas ou já cristalizadas ao longo do tempo e que<br />

são destacadas como um meio de impedir o trabalho ou a carreira<br />

ascensional das mulheres. São colocadas as seguintes temáticas<br />

ou situações desestabilizadoras: 1) competição profissional entre<br />

o casal; 2) assimetria financeira entre o casal; e 3) inversão de papéis,<br />

quando alguém precisa “cuidar dos filhos”.<br />

Nas duas séries, é relevante observar que, embora as mulheres<br />

tenham assumido postos mais altos ou iguais aos homens, a ênfase<br />

Gênero, mulheres e feminismos 313


do conflito se dá na instituição do casamento, onde a assimetria<br />

dos papéis do homem e da mulher é vista de maneira tradicional,<br />

sem possibilidade de modificação ou negociação, relações de poder<br />

assimétricas que são visibilizadas, para as mulheres, tanto no<br />

âmbito profissional quanto no campo afetivo e doméstico. No âmbito<br />

público, as relações profissionais são competitivas e atravessadas<br />

pelas relações de gênero e poder e passam a ser explicitadas<br />

como uma selva entre homens e mulheres da qual elas precisam se<br />

proteger criando uma “máfia” em torno delas.<br />

Uma das cenas exemplares dessas assimetrias pode ser analisada<br />

em Lipstick Jungle: em um almoço, no qual estão presentes<br />

o diretor-geral da empresa, um executivo e Nico Reilly, a protagonista,<br />

executiva, editora da revista de moda de maior vendagem<br />

do conglomerado, ela reivindica ser alçada ao posto de diretora de<br />

criação, posto acima de sua posição atual. Sua pretensão é imediatamente<br />

desencorajada pela fala do diretor-geral, que retruca<br />

dizendo que não a vê no posto de diretora de criação porque ela<br />

é uma mulher de certa idade e que está se aproximando do “momento<br />

crítico” de sua vida, que é a decisão de iniciar uma família<br />

(isto é, ter filhos). Ela refuta, falando que não tem essa intenção e<br />

que seu colega (que está sendo preparado para o cargo) tem dois<br />

filhos, ao que o diretor responde: “— Não tem comparação. É o<br />

mesmo que giz e queijo”. E finaliza com um exemplo: “— A última<br />

mulher que eu promovi a um cargo alto teve em seguida um<br />

bebê. E perdeu a direção, a concentração. Homens e mulheres<br />

são bem diferentes. Lógico que você pode me provar o contrário”<br />

(Episódio 101).<br />

Enfim, ele não tem certeza e não vai apostar nela, um excelente<br />

discurso para evidenciar o retorno ao essencialismo em que se lançou<br />

o nosso tempo e a retomada dos parâmetros tradicionais pelo<br />

discurso dominante de ideologia patriarcal, pondo em questão as<br />

conquistas alcançadas pelas lutas das mulheres do século XX.<br />

314<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Voltamos ao convencionalismo?<br />

Além de não perceber o atual deslocamento do comportamento<br />

das mulheres de suas antigas limitações de subalternidade,<br />

o discurso das comédias atuais reforça a dualidade de construções<br />

do homem e da mulher demonstrando que a mulher sempre irá<br />

privilegiar a afetividade, o ser querida, a “realização” e o desejo<br />

de ser mãe.<br />

Cashmere Mafia e Lipstick Jungle acatam o discurso conservador,<br />

que já dominava a propaganda, ajustando essas mulheres<br />

emancipadas, no topo de suas carreiras, chefes e diretoras de negócios,<br />

ao contexto cultural do momento que se direciona para<br />

reforçar as tradicionais instituições burguesas capitalistas: o casamento,<br />

a maternidade e a permanência dos papéis sexuais que estruturam<br />

a família. Assim, essas séries “para mulheres” procuram<br />

explicitar ou mesmo justificar: 1) a desestabilização do casamento,<br />

em função de a mulher ocupar um cargo de alta responsabilidade<br />

fora do ambiente doméstico; 2) a crise na família, porque<br />

os papéis exigidos não estão sendo preenchidos a contento; 3) a<br />

instabilidade dos membros da família, no momento em que a mulher<br />

ocupa a “posição” de provedora, com a “inversão” dos papéis<br />

pré-estabelecidos; e 4) serem poucas as mulheres em postos de<br />

comando por causa da maternidade que não permite que elas fiquem<br />

concentradas nos interesses das empresas.<br />

Assim, vêm reiterando, com uma roupagem aparentemente<br />

nova, atualizada, o papel central que as mulheres ocupam na família,<br />

colocando a antiga dualidade do pensamento moderno: ou<br />

isto ou aquilo. E nem bem essa polaridade: o que parece estar posto<br />

é que o melhor lugar para a mulher é em casa.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 315


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316<br />

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http://blogna.tv/sete-anos-depois-ally-mcbeal-finalmente-sai-emdvd/#<br />

318<br />

Gênero, mulheres e feminismos


<strong>MULHERES</strong><br />

o transe como devir<br />

Linda Rubim<br />

O transe, o fazer entrar em transe é uma transição,<br />

passagem ou devir. (Giles Deleuze)<br />

Terra em Transe, a obra prima da cinematografia glauberiana,<br />

filme qualificado como um marco da crítica aos pressupostos<br />

estéticos e políticos da produção cultural desenvolvida no período<br />

de sua realização e objeto de incontáveis estudos, foi produzido<br />

no Brasil da segunda metade dos anos 60 quando transformações<br />

acontecem, especialmente aquelas desencadeadas pelo golpe militar,<br />

desmontando toda uma circunstância e perspectiva político-cultural.<br />

Vivia-se um país onde a lógica da indústria cultural começava<br />

a apontar para um franco desenvolvimento, motivada pelas mudanças<br />

ocorridas na televisão, que chegara por aqui na década anterior,<br />

e pela expansão da propaganda e de seu mercado. Era uma<br />

nova cultura que se impunha e, com ela, a necessidade de outros<br />

centros de reflexão e formação que pudessem dar conta da nova


sociabilidade que daí surgia. Assim, observa-se o aparecimento,<br />

por exemplo, das escolas de comunicação, fato que acelerou a necessidade<br />

de tradução dos livros clássicos acerca da cultura midiática<br />

e da sociedade de consumo, como bem observa o professor<br />

Ismail Xavier (1993).<br />

Se Eldorado, o país fictício do filme, vive momentos aflitivos,<br />

estados de sofrimento, também o Brasil real estava em “transe”.<br />

Seus intelectuais e artistas purgavam os equívocos populistas que<br />

chegavam ao seu colapso, embora os projetos políticos e culturais<br />

elaborados pela intelectualidade brasileira, em sua maior parte<br />

proveniente das classes médias derrotadas pelo Golpe Militar de<br />

1964, teimosamente parecessem querer persistir, apesar das visíveis<br />

fraturas e da nova situação instalada. Assim, às portas da<br />

radicalização da ditadura, com a edição do Ato Institucional nº 5,<br />

em 1968, a intelectualidade se vê obrigada a repensar suas formulações.<br />

No caso do cinema, Terra em Transe desloca o olhar<br />

para o além campo que, anteriormente, parecera ser o cenário<br />

ideal para desfraldar a revolução, e procura rever os seus pactos.<br />

Inicia, inclusive, questionamentos quanto à inserção social dos<br />

intelectuais, de forma que se vê um Cinema Novo completamente<br />

em transe, focado em novas paisagens e novos atores sociais.<br />

(BERNARDET, 1967)<br />

No filme, emergem os palcos urbanos e seus novos protagonistas,<br />

trabalhadores da produção simbólica, dentre os quais,<br />

além do poeta Paulo Martins (Jardel Filho) no seu doloroso conflito<br />

entre a “poesia e a política”, Sara (Glauce Rocha), “a professora<br />

eficiente”, militante política, “lançada no coração do seu tempo,<br />

e Silvia (Danuza Leão), com a sua “mudez de morte”, protagonistas<br />

da representação das mulheres no filme.<br />

Este texto foca os personagens femininos de Terra em Transe<br />

buscando perceber a sua importância no contexto daquela narrativa<br />

fílmica. Elejo esse tecido múltiplo, o filme, para “deslindar”,<br />

320<br />

Gênero, mulheres e feminismos


e não, decifrar, os percursos percorridos por esses personagens,<br />

pois acredito que tais trajetórias organizam seus sentidos a partir<br />

da percepção de como se inserem na trama, de como se relacionam<br />

com os outros personagens e, ainda, da posição que ocupam<br />

no desenvolvimento da narrativa. Para realizar tal proposta, utilizo,<br />

como material de análise, além do texto fílmico, as “falas”<br />

extra-filme que Glauber Rocha elabora sobre eles e, em menor escala,<br />

mas não menos significativa, também referências de alguns<br />

estudiosos sobre essas “criaturas” fictícias. 1<br />

Observo que ouvir a voz do autor, no caso, Glauber Rocha, não<br />

significa aceitar, sem mais, que ele seja considerado como o melhor<br />

e mais avalizado intérprete de sua obra e dos seus personagens.<br />

Ao contrário disso, significa tomá-la como ponto de partida,<br />

sugerindo o estatuto problemático da autoria e, por conseguinte,<br />

os limites do autor enquanto intérprete da sua criação cultural.<br />

O vômito do transe<br />

Terra em Transe tece a política como seu principal personagem,<br />

tanto nas malhas de seu conteúdo, quanto na sua forma,<br />

inauguradora para a época e para o Cinema Novo no Brasil de então.<br />

A forma acompanha a crítica realizada mais explicitamente<br />

no plano do conteúdo, ao substituir as “bases de análises naturalistas”,<br />

por considerar que estas também tinham fracassado junto<br />

com os projetos políticos, como bem o percebe Jean-Claude Bernardet<br />

(1994).<br />

O filme se desenvolve com o uso intensivo da linguagem verbal,<br />

que ocupa praticamente todos os espaços, sem qualquer preocupação<br />

com o essencial contraponto do silêncio. Esse excesso<br />

verborrágico se consubstancia nos textos poéticos e na retórica<br />

1 Um maior aprofundamento sobre o assunto foi desenvolvido no Capítulo IV, “A fala dos<br />

intérpretes”, em: RUBIM, 1999.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 321


discursiva dos textos políticos que, em sua maior parte, são ditos<br />

por homens, habitantes hegemônicos daquele território fílmico e,<br />

não por acaso, da política no Brasil dos anos 60. Assim, no filme,<br />

elege-se a fala (o discurso verbal) como fundamental instrumento<br />

de trabalho da realização política, uma reprodução da tradicional<br />

relação dos discursos com a matriz cultural então predominante<br />

no país naquela época, – que privilegiava o caráter ornamental e<br />

“retórico” da cultura, utilizado para legitimar e por em destaque<br />

os atores sociais –, como também pelo estágio cultural brasileiro,<br />

marcadamente literário, devido à frágil presença de uma cultura<br />

audiovisual mais desenvolvida.<br />

Há de se levar em conta os circuitos culturais dominantes no<br />

Brasil da época, do início dos anos 60, quando ainda predominava<br />

uma cultura de forte viés literário marcada pela presença do texto<br />

escrito. Por contraposição a essa cultura hegemônica, os excluídos,<br />

apartados da cultura dominante, permaneciam na tradição<br />

oral. A presença de uma cultura audiovisual, traduzida na existência<br />

dos novos meios sociotecnológicos de comunicação e na<br />

produção cultural midiática, ainda era tênue, apesar da existência<br />

do cinema, já dominado pelas empresas hollywoodianas, e da televisão,<br />

chegada na década anterior, mas ainda fortemente elitista<br />

até meados dos 60.<br />

Observe-se, também, que só nos anos posteriores ao golpe<br />

militar começa a se configurar no país uma mudança cultural profunda<br />

com a emergência e a consolidação da lógica da indústria<br />

cultural sob a hegemonia da mídia televisiva. No pós-1968, a cultura<br />

audiovisual se desenvolve, redefinindo o panorama cultural<br />

brasileiro que passa a ser, simultaneamente, cada vez mais marcado,<br />

de um lado, pela repressão às atividades intelectuais e de<br />

outro pela intensificação da implantação da cultura midiatizada<br />

entre nós. (RUBIM; RUBIM, 2004)<br />

322<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Assim, em meados dos anos 60, a situação predominante era<br />

outra. A comunicação desenvolvida nas atividades políticas estava,<br />

naquele contexto, presa à ambiência dos palanques tradicionais<br />

em praças públicas onde os candidatos disputavam eleitores<br />

através dos seus “retóricos” e emocionados comícios: esta é a<br />

marca discursiva de uma política, para a qual os excluídos eram<br />

uma massa a ser manobrada e moldada. É, portanto, a alegoria<br />

desse ambiente que Glauber Rocha faz migrar para o seu terceiro<br />

longa-metragem.<br />

A fala do autor<br />

O filme se desenvolve em torno de Paulo Martins, o angustiado<br />

poeta que deseja fazer uma poesia nova, jornalista, estreante no<br />

universo da política que ele admira, mas que, também, o angustia:<br />

“— Eldorado! um inferno me matando, me envelhecendo [...]”;<br />

amesquinhado, ele vomita a sua repulsa sobre a estrutura podre e<br />

imoral da política que se faz naquele país fictício.<br />

Não é mera coincidência que esse sentimento, experimentado<br />

pelo herói de Terra em Transe, seja compartilhado pelo seu autor.<br />

Em variados momentos, Glauber Rocha expressa a sua repulsa aos<br />

temas ali tratados.<br />

[...] é um filme sobre o que existe de grotesco, horroroso e pobre<br />

na América Latina. Não é filme de personagens positivos, não<br />

é filme de heróis perfeitos, que trata do conflito da miséria, da<br />

podridão do subdesenvolvido [...] como eu detestava as coisas<br />

apresentadas por Terra em Transe, filmei com uma certa repulsão.<br />

(1981a, p. 140)<br />

Por esse campo da política “abominado” por Glauber, em<br />

Terra em Transe, circulam, também, Silvia e Sara – o duplo que<br />

nomeia e constitui o foco do nosso interesse maior no filme, neste<br />

trabalho –, os personagens femininos. A primeira, festejada e<br />

Gênero, mulheres e feminismos 323


everenciada como a “embaixatriz da beleza”, a futura “senhora<br />

Paulo Martins” circula com aparente desembaraço no mundo do<br />

transe, na sua emblemática mudez. A outra, Sara, que se autodescreve<br />

como uma mulher que foi “lançada no coração do seu<br />

tempo”, tem o respeito de todos, inclusive, na visão do então candidato<br />

Vieira, é a “professora eficiente que veio dar vida a Alecrim”.<br />

Já em 1965, em entrevista à Revista Civilização Brasileira,<br />

instado a falar sobre o lugar dos personagens femininos nos seus<br />

filmes, Glauber confessa: “Eu acho que mulher é coisa que não se<br />

entende racionalmente. Por isso eu quis dar àquela mulher, todas<br />

as contradições da alma feminina”. 2 Assim, é impossível não<br />

relacionar essa fala do cineasta com as teorias freudianas quando o<br />

criador da Psicanálise remete ao poeta a decifração da alma feminina.<br />

Essa recusa também é observada pela psicanalista Beth Fuks<br />

(1993) que diz:<br />

[...] ao remeter a problemática feminina ao campo da arte, Freud<br />

não só problematiza as suas próprias construções teóricas, até<br />

então a respeito do tema, como nos dá indicações da inviabilidade<br />

de lhe fornecer uma resposta definitiva e categórica [...] a<br />

mulher é um continente negro [...] porque ausente no imaginário<br />

e no simbólico ele terá de ser construído ininterruptamente<br />

e desmoronado imediatamente. [...] Um vazio, um sintoma,<br />

um sempre desejo do outro: o masculino que o preenche com as<br />

fantasias calcadas nas suas próprias referências.<br />

O cineasta e o pai da Psicanálise acabam por se encontrar, no<br />

que diz respeito ao entendimento do ser mulher ou à representação<br />

destas. Em 1967, por exemplo, quando instado a falar à revista<br />

Positif sobre as suas personagens, Glauber Rocha diz:<br />

[...] eu tenho muita dificuldade de trabalhar os personagens femininos.<br />

Escrevi muitos roteiros que não foram filmados. Nos<br />

2 Referindo-se a Rosa um dos seus personagens em Deus e o Diabo na Terra do Sol.<br />

324<br />

Gênero, mulheres e feminismos


quais eu tinha dificuldade de criar personagens que são comigo<br />

muito conscientes e têm uma influência moral e política [...].<br />

(1965, p. 122)<br />

A aura de mistério que circunda os personagens femininos<br />

no espaço fílmico de Glauber Rocha se traveste e se fragmenta,<br />

mas é sempre reflexo do olhar que os cria. No entanto, a opinião<br />

positiva, citada acima, acerca das personagens que representam<br />

mulheres não é generalizada. Em relação a Silvia, também uma<br />

das habitantes de Terra em Transe, o cineasta não tem qualquer<br />

condescendência. Ela não figura na sua galeria de personagens<br />

“conscientes”, com valoração positiva: é interditada e, por antecipação,<br />

como poderá ser lido na citação abaixo, tem o seu decreto<br />

de morte determinado pelo estado racional discursivo do artista:<br />

[...] não, Sílvia certamente não, [...] ela está em segundo plano,<br />

é uma espécie de musa, uma expressão de adolescência que se<br />

torna uma imagem fugitiva. Sílvia, aliás, não diz uma palavra<br />

em Terra em Transe, porque não consegui colocar uma palavra<br />

em sua boca. Escrevi diversos diálogos para ela, mas depois foram<br />

cortados porque tudo que ela dizia ficava ridículo. (ROCHA,<br />

1965, p. 83)<br />

O silêncio que conforma Silvia é visto pelo seu criador como<br />

a mais pura alienação, ausência de ser. Uma percepção compartilhada<br />

pela psicóloga Regina Andrade (1997) quando naturaliza a<br />

personagem como representação daquelas mulheres segundo ela,<br />

“sem vida, testemunhas passivas das lutas pelos ideais de poder.<br />

Cópia perfeita da época em que o filme foi realizado”. Cabe observar<br />

que a época à qual a estudiosa se refere, para além da cena<br />

cinematográfica, é o cenário social brasileiro dos anos 60, um<br />

contexto que, em geral, ainda não reconhece, de forma plena, o<br />

papel público das mulheres. Elas estavam fora da cena e desse cenário<br />

social compartilhado, instaladas no espaço privado da casa,<br />

com suas existências determinadas pelo amor a/de outrem. Suas<br />

Gênero, mulheres e feminismos 325


vidas só existiam através da garantia do emblema da “feminilidade”.<br />

(BRANDÃO, 1993, p. 115) 3<br />

No discurso glauberiano sobre Silvia, percebe-se o estabelecimento<br />

de um jogo em que afirmações e negações se permutam no<br />

tabuleiro narrativo. Isso pode ser visto na fala de Glauber, “não,<br />

Sílvia, certamente não”!, ainda que a ênfase em tal negação seja<br />

explicada pela própria negação de si: Silvia expressaria “sonhos”<br />

da adolescência do autor, portanto, não estaria enquadrada na<br />

performance das demais representações de mulher consideradas<br />

coerentes da sua vida adulta.<br />

Tal observação não tem qualquer intenção de psicanalisar o<br />

autor através da sua criação, porém, algumas associações nesse<br />

caminho são inevitáveis. Nós nos demos licença para os devaneios<br />

de forma a considerar que esse surto fugidio e sem consistência de<br />

ideias da adolescência, que Glauber faz recorrente nas suas falas<br />

sobre Silvia, soa e/ou se impõe como fantasias recalcadas na infância<br />

que retornam e são sublimadas através dessa personagem,<br />

estabelecendo uma concorrência que a autoridade de autor impede<br />

de ser: ele rasga as suas falas porque, no juízo dos seus valores,<br />

“tudo que ela dizia ficava ridículo”. Ao mesmo tempo, ele também<br />

a responsabiliza pela sua impotência como criador quando atribui<br />

à personagem, sua criação, a ausência de falas: “[...] não diz uma<br />

palavra sequer em Terra em Transe”. E, assim, a intenção de explicar<br />

Silvia, através da consciência do autor acaba por subsumir<br />

outras perspectivas de compreensão da personagem.<br />

É interessante lembrar que, em Terra em Transe, a palavra é<br />

moeda de identificação e de legitimidade para a economia e elaboração<br />

de sentidos dos personagens, mas, ainda assim, essa valoração<br />

é contraditada por Paulo Martins – o herói que, lembremos,<br />

3 Esta referência é alusiva ao comportamento do personagem Olímpia em “Contos Sinistros”<br />

de Cesarotto Hoffmann, analisado pela autora. Este personagem feminino desempenha na<br />

narrativa literária um papel similar ao de Sílvia em Terra em Transe.<br />

326<br />

Gênero, mulheres e feminismos


ealiza as ilusões do autor – quando, em determinado momento<br />

da narrativa ele murmureja: “− As palavras são inúteis”.<br />

No filme, a relação entre o autor e sua personagem está conformada<br />

por uma percepção que mantém a separação entre o<br />

mundo masculino e o feminino no âmbito do universo sociocultural<br />

fundado na oposição entre os sexos, na lei dos contrários.<br />

Como observa a pesquisadora Rosyska Darcy de Oliveira:<br />

No imaginário masculino, as mulheres são percebidas não só<br />

como diferentes, mas, sobretudo, como inferiores, ocupam, paradoxalmente,<br />

o lugar de ‘metade perigosa da sociedade’. Mais<br />

perto da natureza selvagem que da ‘paisagem humanizada’, detentoras<br />

da fertilidade da terra e da fecundidade do grupo, delas<br />

provém a ameaça suprema de que, caso rompam a relação<br />

primordial de alteridade/oposição e se recusem aos homens,<br />

estiole-se o solo e aniquile-se a espécie. (1991, p. 30)<br />

No entanto, o silêncio, a “morte” que o autor impôs a Sílvia,<br />

na tessitura do seu discurso racional, verbal, não consegue apagar<br />

o personagem. Para apoiar essa afirmação, se fazem recorrentes<br />

os estudos de Eni Orlandi quando diz que “a força corrosiva do<br />

silêncio faz significar em outros lugares o que não ‘vinga’ em um<br />

lugar determinado” (1993, p. 13). E essa perspectiva do silêncio se<br />

torna desencadeadora de tensões que emergem com vigor significativo<br />

no filme. Mas, para segurar, por enquanto, a atenção sobre<br />

Silvia na sua pobreza de fala, lançamos mão, também, de um texto<br />

de Eduardo Mascarenhas A Idade da Terra, no qual o psicanalista<br />

anota:<br />

O ato psíquico mais banal representa uma trama impensavelmente<br />

complexa. Nada é simples, nada é pobre, nada é burro e<br />

também nada é ‘puro’. Há pois que se ter respeito pelo ideologicamente<br />

considerado pobre, feio ou banal e menos respeito pelo<br />

ideologicamente considerado rico, belo e virtuoso. (1981, p. 98)<br />

Gênero, mulheres e feminismos 327


A Sílvia, nos múltiplos discursos glauberianos, contrapõe-se<br />

Sara. Ela se afirma uma mulher “lançada no coração do seu tempo”,<br />

mas, de certa forma, também é interditada pelo seu criador<br />

quando observa:<br />

Talvez, ela diga as coisas um pouco como um homem, talvez<br />

exista aqui um fenômeno de compensação porque não encontro<br />

na realidade brasileira mulheres tão conscientes. (ROCHA,<br />

1981b, p. 83)<br />

Glauber completa, tentando dar a Sara uma consistência de<br />

coerência da qual ele se apropria:<br />

Ela é lúcida, mas sempre comunista sempre fiel à linha do Partido<br />

[...] quando Sara vem com seus dois amigos comunistas ver<br />

Paulo, para conseguir mais uma vez sua adesão a Vieira, ele está<br />

consciente que uma união com Vieira não levará a nada de positivo,<br />

mas neste momento, a sua consciência política sofre uma<br />

interferência existencial: como ele ama Sara, liga-se a Vieira por<br />

causa dela. No fim Paulo é derrotado, ela o deixa; é um personagem<br />

lúcido e político; ela continua a luta; é o único caráter<br />

‘coerente’ de Terra em Transe. Eu partilho de sua opinião de<br />

que poesia e política são demais para um homem só. (ROCHA,<br />

1981b, p. 93)<br />

Desse modo, a positividade e a complexidade dessa outra representação<br />

feminina são também escamoteadas. A fala do autor<br />

nega a autoria do seu discurso já que, “talvez ela diga as coisas um<br />

pouco como homem” e neutraliza as suas ricas tensões, registros<br />

de um devir das mulheres que começa a ter solidez no mundo.<br />

Observamos que o filme foi realizado no apagar das luzes dos anos<br />

60, período em que o Brasil e grande parte da América Latina viviam<br />

sangrentas ditaduras. Em vista disso, as mulheres também<br />

estavam envolvidas por batalhas sociais gerais que as fizeram retardar<br />

as lutas pelas suas bandeiras específicas. Mulheres representadas<br />

por Sara, que se autodescreve como “lançada no coração<br />

do meu tempo”, e que mal tiveram tempo de assimilar a passa-<br />

328<br />

Gênero, mulheres e feminismos


gem de um estado mulher que tinha como percurso determinado<br />

o casamento e a maternidade, como evidencia a personagem, de<br />

forma veemente − “Eu também queria casar, ter filhos, ambições<br />

normais de uma mulher normal” −, para um momento que<br />

subverte esse caminho como destino. Assim, também nesse caso,<br />

mesmo dedicando a Sara o seu discurso mais fluente, o autor acaba<br />

por matar a personagem, ao amortecer as tensões que fazem<br />

emergir as suas diferenças.<br />

O fato dessa confessa simpatia de Glauber Rocha pela personagem<br />

Sara nos faz questionar se o modelo de “mulher consciente”<br />

idealizado por ele não seria aquele representado por Sara em Terra<br />

em Transe. Uma indagação que ganha a colaboração de outros<br />

estudiosos, a exemplo do professor Julio Lobo (1993) ao sugerir,<br />

de forma pertinente, que a militância política “aguerrida” de Sara<br />

seja o grande motivo de admiração de Glauber Rocha pela personagem,<br />

acentuando:<br />

[...] a política tinha naqueles anos uma aura toda especial. Dela<br />

partilhava a nata social que buscava os novos rumos para a sociedade<br />

brasileira, naquele momento, cheia de esperanças em<br />

suas potencialidades e em seu desenvolvimento. Constituía-se,<br />

portanto, como lugar sagrado para intelectuais e artistas desejosos<br />

de transformações. (1993, p. 53)<br />

Como se sabe, na efervescência da sua inconstância, Glauber<br />

nunca foi filiado a qualquer partido. A esse respeito, dizia:<br />

[...] nossa geração era comunista, utópica, vanguardística, populista<br />

e libertária e não poderia ser controlada pelo PC. Nossas<br />

relações eram cordiais e amistosas, mas nos sentíamos reprimidos<br />

porque logo queriam canalizar para uma prática burocrata<br />

da cultura. (ROCHA, 1981a, p. 294)<br />

No entanto, como argumenta Lobo (1993), grande parte dos<br />

jovens progressistas tinha proximidade com o Partido Comunista<br />

Brasileiro (PCB), força hegemônica da esquerda na época. (ROCHA,<br />

Gênero, mulheres e feminismos 329


1981a, p. 86) 4 Nessa perspectiva, não sem razão, Glauber Rocha<br />

mantém grande afinidade e identidade com Paulo Martins, personagem<br />

central de Terra em Transe. E assim, é possível que a<br />

crítica para alguns aspectos da política decorresse, de fato, desta<br />

alta consideração pela militância política como o caminho para a<br />

conscientização do país.<br />

É nesse lugar privilegiado que Glauber Rocha instala Sara. Não<br />

se pode esquecer que eram os anos 60 e a sociedade brasileira,<br />

mesmo em sua parcela progressista, guardava de forma acintosa<br />

as fronteiras entre os mundos público e privado. Às mulheres<br />

cabia cumprir os papéis definidos pelo segundo no qual a “esposa-mãe”<br />

era o modelo dominante enquanto os homens desenvolviam<br />

as relações mais relevantes e valorizadas, na esfera pública<br />

e, dentre estas, a política, seja no seu modelo conservador seja<br />

no progressista. Para as mulheres, esse lugar social significava,<br />

mais do que qualquer outro, um território estrangeiro e àquelas<br />

que conseguiam romper esta fronteira, no mínimo, era imposta a<br />

condição de “figura desviante” dos comportamentos sociais estabelecidos.<br />

Mas, Sara “talvez fale feito homem!”, diz o autor, confessando<br />

um estranhamento à própria criação, que representa uma mulher<br />

desviada do seu “destino”, habitando um “território” de domínio<br />

masculino. Mesmo sendo um criador genial, no seu discurso racional,<br />

Glauber Rocha não deixou de ser um homem da sua época,<br />

uma época na qual até mesmo as organizações políticas progressistas<br />

reproduziam o comportamento discriminador das relações<br />

entre os sexos vigentes na sociedade, e para as quais, como diz Ana<br />

Alice Costa, “[...] as mulheres deveriam se restringir às questões<br />

concretas da sobrevivência física, enquanto os homens viviam o<br />

4 É interessante observar esta relação identificadora entre Paulo Martins e seu autor. No livro<br />

A Revolução do Cinema Novo, Glauber escreve sobre o personagem: “Paulo Martins representa<br />

no fundo um comunista típico da América Latina. Pertence ao Partido sem pertencer, tem uma<br />

amante que é do partido. Coloca-se a serviço do partido quando este pressiona”.<br />

330<br />

Gênero, mulheres e feminismos


direito do mundo da liberdade, da ação e dos ideais” (1981, p. 82),<br />

ainda que nessas organizações, por vezes, acontecesse uma inversão<br />

em algumas funções previstas no modelo patriarcal da época.<br />

Está anotado no livro A memória das mulheres do exílio, de<br />

Albertina Costa, que “as mulheres sustentavam os homens e os<br />

homens se dedicavam aos grande trabalhos da revolução” (1998,<br />

p. 32) e esse tipo de comportamento era tão usual que acabou por<br />

levar o Partido Comunista Brasileiro a fazer uma autocrítica, em<br />

1979, quando reconheceu ter subestimado as potencialidades políticas<br />

femininas ao fazer uma divisão de trabalho por sexo dentro<br />

da organização, comportamento atribuído ao reflexo do machismo<br />

e do patriarcalismo milenar nas suas práticas. (COSTA, 1981,<br />

p. 82)<br />

A fala dos personagens femininos<br />

Na convulsão de tempo e memória, em que não é possível<br />

demarcar com nitidez as fronteiras entre as lembranças de algo<br />

realmente vivido e os desejos delirantes, entre as evocações do<br />

passado e as imagens do presente, Sara é o objeto de amor e admiração,<br />

tanto do autor quanto do dilacerado personagem Paulo<br />

Martins, dentre outros personagens. Ela é uma mulher discreta,<br />

comedida nas suas emoções, com trânsito no mundo da política e,<br />

em consequência, no universo dos homens. Sua presença e interferência<br />

nesse mundo são construídas de forma tão exemplar que<br />

lhe valeu o título de “um modelo de militante”. 5<br />

É importante observar que os personagens de Terra em Transe<br />

foram escolhidos de modo que, praticamente, vivenciassem no<br />

set as suas “realidades”, como declarou o próprio Glauber Rocha:<br />

“Glauce Rocha foi escolhida porque era comunista [...]. Danusa<br />

5 Ver o título de capítulo da dissertação de mestrado de LOBO, Julio César. Muito Romântico ou<br />

Poesia e Política no Filme Terra em Transe de Glauber Rocha (1993).<br />

Gênero, mulheres e feminismos 331


porque era a mulher mais desenvolvida da granfinagem varguista”<br />

(1981a, p. 261). Tal estratégia, a peculiar atitude de construção<br />

dos personagens neste filme também mereceu a atenção de Robert<br />

Stam, que diz:<br />

Em vez de criar personagens, Terra em Transe desenvolve figuras<br />

políticas [...] Porfírio Diaz [...] incorpora a visão latinoamericana<br />

do despotismo ibérico, enquanto sua carreira política<br />

lembra a de Carlos Lacerda [...]. Vieira por sua vez apresenta<br />

uma síntese de diversos líderes populistas. (1993, p. 41-2)<br />

A militância de Sara a faz se aproximar de Paulo Martins quando<br />

vai até a redação do jornal Aurora Livre em busca de um jornalista<br />

para ajudá-la na luta contra uma sociedade injusta que<br />

convive com crianças famintas. Esse primeiro encontro deflagra<br />

a entrada de Sara na vida de Paulo assim como é também decisivo<br />

para o ingresso do jornalista na militância política. Como já vimos,<br />

a admiração de Paulo Martins por Sara é compartilhada pelo<br />

criador dos personagens para quem ela é o único caráter coerente<br />

em Terra em Transe, o ideal de militância nunca realizado tanto<br />

por Paulo Martins quanto pelo próprio Glauber Rocha. Não é ele<br />

próprio que diz concordar com Sara de que “poesia e política são<br />

demais para um homem só”?<br />

O fato é que Glauber Rocha se identifica com Paulo Martins −<br />

ele mesmo confessa: “as ilusões de Paulo são as minhas” −, mas,<br />

por sua inconstância, vulnerabilidade e ambiguidade, o herói se<br />

torna um anti-herói, ao contrário de Sara que, durante toda a narrativa,<br />

se desenvolve de forma coerente e plena nas suas virtudes.<br />

Contudo, como a pólis não é lugar permitido às mulheres, Glauber<br />

Rocha, no seu discurso racional, resultado da cultura patriarcal<br />

vigente no seu tempo, diz não encontrar “na realidade brasileira,<br />

mulheres tão conscientes” e desconstrói o lugar de gênero da personagem:<br />

“ela fala feito homem”: então, ela não existe. É interessante<br />

ouvir sobre isso a pesquisadora Rosyska Darcy de Oliveira:<br />

332<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Longe do eterno feminino, para além da ambigüidade, resposta<br />

possível a mensagens contraditórias, a autoria do feminino é,<br />

antes de mais nada, a de uma linguagem para dizê-lo, invenção<br />

que lhe permita exprimir-se sem fechar-se nas lógicas das definições<br />

que, entretanto são incessantemente exigidas das mulheres.<br />

Porque do ponto de vista da lógica masculina, negá-la<br />

significa fatalmente afirmar o seu oposto, dito com as mesmas<br />

palavras, dentro de um mesmo quadro de referência. Inconcebível,<br />

pois, uma lógica outra, em que conte mais o aproximar-se<br />

do que ainda é indefinido do que o apropriar-se de uma identidade<br />

pré-fabricada no espelho dos homens. Aproximar-se do<br />

feminino, inventando-o a cada dia, é o movimento que farão as<br />

mulheres neste fim de século. (1991, p. 13)<br />

No percurso da construção dos personagens começam a emergir<br />

inevitáveis contradições que, inevitavelmente, tensionam os<br />

modelos estabelecidos. Se, por um lado, a consciência do homem<br />

Glauber não reconhece Sara enquanto representação de mulher, a<br />

sensibilidade do artista promove uma ação significativa ao instalar<br />

a personagem no território da política, um terreno hegemonicamente<br />

masculino, ao tempo em que liberta os seus simulacros de<br />

mulheres para expor os sentimentos contraditórios e as tensões<br />

próprias do seu momento histórico.<br />

Nas cenas dos anos 60, a personagem Sara, ao tempo em que<br />

se entristece por ter renunciado ao casamento e à maternidade,<br />

tem no filme um lugar de vanguarda na postulação dos espaços<br />

públicos e políticos, onde inscreve como pano de fundo a reivindicação<br />

da igualdade com o masculino, esse “objeto do desejo”<br />

sempre tão caro aos movimentos de mulheres. Todavia, para atualizar<br />

a trajetória de Sara, já que são passados quarenta anos desde<br />

a sua construção, pode-se recorrer ao Marcuse dos anos 70, quando<br />

profeciou:<br />

A realização dos objetivos do movimento de mulheres exige uma<br />

segunda etapa em que ele transcenderia o quadro no qual está<br />

funcionando no momento presente. Nessa etapa, para além da<br />

Gênero, mulheres e feminismos 333


igualdade, a libertação implica na consciência de uma sociedade<br />

regida por um princípio de realidade diferente, uma sociedade<br />

na qual a dicotomia atual masculino-feminino seria ultrapassada<br />

nas relações sociais e individuais. Assim, o movimento carrega<br />

consigo o projeto, não só de instituições sociais novas, mas<br />

também de uma mudança de consciência, de uma transformação<br />

das necessidades institucionais dos homens e das mulheres,<br />

liberadas das limitações da dominação e da exploração. (apud<br />

OLIVEIRA , 1991, p. 48)<br />

Silvia, o duplo de Sara, a “personagem muda” que, por essa<br />

sua condição, funcionaria na compreensão de Freud como suporte<br />

da fria máscara mortuária, nos sonhos do artista, também não<br />

se aquieta na sua mudez da morte. Essa mulher fictícia que convoca<br />

o seu criador, de modo tão declarado, a se debater com a alma<br />

feminina, no nosso entender, também vai além da imobilidade<br />

que lhe foi decretada.<br />

É uma mulher bonita, exuberante, de gestos delicados. Em alguns<br />

momentos, tem a leveza de uma fada, em outros, a elegância<br />

de uma escultura grega, aparência perfeitamente coerente com a<br />

imagem de musa que nos legou a cultura. É uma representação de<br />

mulher que transita no universo “burguês” daquele mundo em<br />

transe. No entanto, já sabemos, ela “não dá uma palavra do início<br />

ao fim do filme” e este seria o detonador das tensões que provocam<br />

o desconforto em seu criador e intérpretes.<br />

Se a comparamos com Sara, “a militante modelo”, Silvia realmente<br />

atua como o seu contraponto. Entre as duas, existem diferenças<br />

que se expressam nos modos de vestir, de comportamento,<br />

quiçá de percepção de mundo. Enquanto a primeira é vista com o<br />

rosto lavado, tenso, roupas escuras e clássicas, isenta de vaidades,<br />

sempre escrevendo ou falando, investida da militância política, Silvia<br />

usa longos vestidos finos e anda com elegância e leveza como se<br />

deslizasse na vida. Mesmo com seu ar etéreo, ela também cultiva<br />

sentimentos apaixonados e concretos, só que vinculados aos pra-<br />

334<br />

Gênero, mulheres e feminismos


zeres do sexo, da vida. O inesquecível Wilson Barros (1982) a interpreta<br />

como o oposto de Sara, “a sua cópia suja”, enquanto Ismail<br />

Xavier (1993) lhe dá o sentido da “fossa indolente” e Regina Andrade<br />

(1997) a vê como o lado “alienante e passivo” da feminilidade. 6<br />

Como se percebe, nas análises dos intérpretes dos personagens<br />

femininos glauberianos, aparece uma saturação de adjetivos<br />

dirigidos a Silvia que denotam antipatia, impaciência, intolerância<br />

e que a retêm na memória de todos sempre de modo depreciativo<br />

que, em certo sentido, convergem para a opinião de Glauber<br />

Rocha. Quando convocado a falar dessa sua criação ele sempre esteve<br />

impaciente em sua reiterada negação da personagem.<br />

É certo que a economia de elaboração de Silvia e Sara se desenvolve<br />

através de moedas completamente diversas. Mas é complicado<br />

compreender o sentido valorativo que se atribui às duas<br />

personagens quando a primeira recebe uma carga depreciativa<br />

muito forte e, como se diria popularmente, “já entra perdendo”,<br />

inclusive por alguns atributos que fazem parte da sua conformação<br />

e que, socialmente, são considerados positivos como atração, beleza,<br />

bom gosto, entre outros, que não apenas são relegados como<br />

reforçam a sua depreciação, na compreensão da maior parte dos<br />

seus intérpretes. Tomando-se como exemplo a beleza, este é um<br />

atributo para o qual existe um consenso de valor, mas que, para<br />

Silvia, não funciona, o que nos leva a questionar se os intérpretes 7<br />

de Silvia não estariam reproduzindo o banal estereótipo de que<br />

“mulher bonita é sempre burra”? Se assim for, estaria instalado<br />

mais um impasse, tão a gosto de Terra em Transe: beleza e positividade<br />

são demais para uma mulher só?<br />

Não resta dúvida que o personagem de Silvia transita de modo<br />

confortável no “lado podre”, o mundo dos vilões da trama. Os<br />

6 Palavras de Vieira quando apresenta Sara a Paulo Martins.<br />

7 Chamamos de intérpretes os pesquisadores que trataram desse tema nos seus estudos.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 335


políticos conservadores como Diaz são os que mais a acolhem e,<br />

aparentemente, ela seria um deles. No entanto, a isso se contrapõe<br />

o fato de que Paulo Martins, que também faz o mesmo percurso<br />

de Silvia, em nenhum momento ter tido abalada a sua condição<br />

de herói na trama. O mesmo acontece com Sara que, em nenhum<br />

momento, tem ameaçada a sua condição de modelo exemplar,<br />

mesmo comungando das políticas populistas de Vieira que se utiliza<br />

do aparato repressivo para liquidar o povo que reivindica sua<br />

cidadania.<br />

Tal problematização nos aponta para a suspeita da existência<br />

de um certo moralismo seja do autor, na sua fala sobre as personagens<br />

femininas, assim como dos seus intérpretes visitados por<br />

esse texto. Um moralismo que parece embotar as suas percepções<br />

em relação a várias ações da personagem, a exemplo da autonomia<br />

sobre o seu corpo, sua liberdade sexual sem qualquer insinuação<br />

de vulgaridade, em um contexto completamente adverso.<br />

Em verdade há uma grande tensão em relação a Silvia, a “personagem<br />

muda”, naquele filme totalmente conduzido pelo verbo.<br />

Na nossa compreensão, o que provoca desconforto, agressão, depreciação<br />

da personagem são ações, marcas sutis que já insinuam<br />

a independência da mulher em relação ao seu corpo e ao direito de<br />

contrariar expectativas, o silêncio, seu maior emblema, que contraria<br />

o dizer popular de que “mulher fala muito” e faz insuportável<br />

a sua permanência enquanto enigma que foge ao controle.<br />

Eni Orlandi, no seu interessante trabalho sobre os sentidos do<br />

silêncio, observa, com grande perspicácia, que:<br />

o nosso imaginário social destinou um lugar subalterno para<br />

o silêncio. Há uma ideologia da comunicação, do apagamento<br />

do silêncio, muito pronunciada nas sociedades contemporâneas.<br />

Isto se expressa pela urgência do dizer e pela multidão de<br />

linguagens a que estamos submetidos no cotidiano. Ao mesmo<br />

tempo, espera-se que se esteja produzindo signos visíveis<br />

(audíveis) o tempo todo. Ilusão de controle pelo que ‘aparece’:<br />

336<br />

Gênero, mulheres e feminismos


temos de estar emitindo sinais sonoros (dizíveis, visíveis) continuamente.<br />

(1993, p. 37)<br />

Esse trecho do estudo da professora é de extrema pertinência<br />

para uma interpretação menos passional de Silvia, particularmente<br />

inscrita no contexto de um filme como Terra em Transe.<br />

O universo do filme, como já foi dito, é saturado de falas. O verbo<br />

é sua via de comunicação hegemônica, como também o é na política,<br />

uma prática criticada pelo próprio filme. Naquele contexto,<br />

a linguagem exercita a sua soberania. Isso acontece nos diálogos<br />

entre os personagens, nos poemas que são declamados, nos discursos<br />

políticos, nas canções, nos textos que se transformam em<br />

imagens. É um mundo da retórica, das palavras. Dessa forma, o<br />

comportamento de Silvia só pode causar estranhamento, subverter<br />

aquela ordem tão prenhe de signos. Ademais, só existem duas<br />

figuras femininas de destaque no filme. Se a outra, Sara, é inteiramente<br />

integrada àquele contexto, Silvia, com o seu silêncio, a sua<br />

singular diferença, só pode ser desvio, transgressão, oposição.<br />

A dificuldade em reconhecer e aceitar a diferença é visível não<br />

só entre os intérpretes; os personagens, os que seriam seus pares<br />

no filme, recorrentemente tentam fazer dela o seu eco: “— Você<br />

entende, Silvia, porque ele nos acha irresponsáveis? [...] mas eu<br />

encontrei Deus! Silvia, você sabe o que é encontrar Deus?”. Dizeres<br />

com entonações e gestos que caracterizam um falar para si<br />

próprio. Falas que se repetem operando outros dispositivos, como<br />

por exemplo, que é o de falar por ela: “A Silvia que será a Sra.<br />

Paulo Martins!”; “[...] vai abandonar Silvia também?”. Esse expediente,<br />

em verdade, inviabiliza seu próprio discurso. É a recusa<br />

de reconhecimento do outro que não é conhecido.<br />

Eni Orlandi, ainda falando sobre o papel do silêncio, lembra<br />

da quebra de identidade produzida pela nossa relação com a linguagem.<br />

Diz a autora:<br />

Gênero, mulheres e feminismos 337


O silêncio, de seu lado, é o que pode transtornar a unicidade. Não<br />

suportando a ausência das palavras − ‘Por que você está quieto?’<br />

‘O que você está pensando?’ −, o homem exerce seu controle e<br />

sua disciplina fazendo o silêncio falar ou, ao contrário, supondo<br />

calar o sujeito. (ORLANDI, 1993, p. 36)<br />

Glauber Rocha, quando assume – “[...] não consegui colocar<br />

uma só palavra em sua boca porque tudo que ela dizia ficava ridículo”<br />

– também mostra a censura que faz a Silvia, em decorrência<br />

da resistência da personagem, da negação de ser eco. Nessa guerra<br />

entre o criador e a criatura que se nega e foge do destino de ser<br />

imagem refletida do seu “dono”, só lhe resta o castigo, a rejeição.<br />

Em verdade, o silêncio do personagem não é um silêncio com sentido<br />

de vazio, de falta, ele aporta uma série de outros significantes<br />

dos quais o mais importante é o que evoca uma relação de poder.<br />

O silêncio de Silvia é silenciamento, atitude de resistência e lhe<br />

garante assumir uma alteridade naquele mundo saturado de falas.<br />

Portanto, não é de se perceber passiva, sem mais, uma figura que<br />

se revela contraponto de um contexto hegemonicamente masculino.<br />

E que fique claro, isto acontece não só pela sua mudez de fala.<br />

Não nos interessa aqui, fazer um julgamento moral das relações<br />

de amizade da personagem, de ela estar próxima desta ou<br />

daquela facção na política. O que buscamos, são os seus estatutos<br />

de significância, em sentido positivo. Como, por exemplo, o corpo.<br />

No filme, a personagem é inteiramente constituída por ele. Ela<br />

é senhora de seu corpo e, consequentemente, ele é seu discurso.<br />

A legibilidade de Silvia se encontra na sua capacidade de manter<br />

uma lógica e um mundo marcadamente feminino à margem do<br />

território masculino contaminado pelo desencanto dos projetos<br />

políticos mal articulados.<br />

Finalizamos, inferindo que, nas cenas dos anos sessenta, as<br />

mulheres do imaginário glauberiano, principalmente aquelas que<br />

emergem dos palcos urbanos, também estão em transe. Nesse tra-<br />

338<br />

Gênero, mulheres e feminismos


alho, Sara, a militante política, “professora eficiente”, 8 mesmo<br />

nostálgica das “[...] ambições normais de uma mulher normal” 9 se<br />

coloca em posição de vanguarda na postulação dos espaços públicos<br />

e políticos, onde se inscreve como pano de fundo a reivindicação<br />

à igualdade com o masculino, esse “objeto do desejo” sempre<br />

tão caro aos movimentos sociais das mulheres. Enquanto Silvia<br />

com a sua mudez empreende um silenciamento, uma postura política<br />

de oposição aos desatinos do “verbo” no País em Transe.<br />

Referências<br />

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(Suplemento A Tarde Cultural).<br />

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo,<br />

Hucitec, 1979<br />

BARROS, Wilson. Espaços e Poderes. In: BERNARDET, Jean-Claude;<br />

COELHO, Teixeira. Terra em Transe/Os Herdeiros: espaços e poderes.<br />

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BERNARDET, Jean-Claude. O Brasil em tempo de cinema.<br />

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.<br />

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EDUSP, 1994<br />

BRANDÃO, Ruth Silviano. Mulher ao pé da letra: a personagem<br />

feminina na literatura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1993.<br />

COSTA, Ana Alice. Avances e definiciones del movimiento feminista<br />

en Brasil. Dissertação (Mestrado em Sociologia) − Facultad de Ciencias<br />

Políticas y Sociales/ División de Estudios Superiores, México, 1981.<br />

8 Palavras de Vieira quando apresenta Sara a Paulo Martins.<br />

9 “[...] o que sabe você das ambições? Eu queria me casar, ter filhos como qualquer outra mulher!<br />

Eu fui lançada no coração do meu tempo, eu levantei nas praças meu primeiro cartaz, eles<br />

vieram, fizeram fogo, amigos morreram e me prenderam e me deixaram muitos dias numa<br />

cela imunda com ratos mortos e me deram choques elétricos, me seviciaram e me libertaram<br />

com as marcas e mesmo assim eu levei meu segundo, terceiro e sempre cartazes e panfletos e<br />

nunca os levei por orgulho. Era uma coisa maior, em nome da lógica dos meus sentimentos!... E<br />

se foram a casa, os filhos, o amor, as ambições normais de uma mulher normal... De que outras<br />

ambições individuais ‘posso falar que não seja a felicidade entre pessoas solidárias e felizes?’”.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 339


COSTA, Albertina de Oliveira (Org.). Memória das mulheres no exílio.<br />

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.<br />

DELEUZE, Gilles. Cinema2: Imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense,<br />

1990.<br />

FUKS, Betty Bernardi, A mulher, o feminino e a feminilidade. In:<br />

ASSOUN, Paul Lurent. Freud e a mulher. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.<br />

LOBO, Julio César. Muito romântico ou poesia e política no filme Terra<br />

em Transe. Salvador, 1993. Dissertação (Mestrado em Comunicação<br />

e Cultura Contemporâneas) − Faculdade de Comunicação, Universidade<br />

Federal da Bahia, salvador, 1993.<br />

MASCARENHAS, Eduardo. A Idade da Terra: um filme em questão.<br />

Filme Cultura, Rio de Janeiro, v. XIV, n. 38/39, p. 59-73, ago./nov. 1981.<br />

OLIVEIRA, Rosiska Darcy. O elogio da diferença. São Paulo: Brasiliense,<br />

1991.<br />

ORLANDI, Eni. As formas do silêncio no movimento dos sentidos.<br />

Campinas, Editora da UNICAMP, 1993<br />

ROCHA, Glauber. Deus e o Diabo na Terra do Sol. Rio de Janeiro:<br />

Civilização Brasileira, 1965.<br />

ROCHA, Glauber. Entrevista a Michel Ciment. In: ROCHA, Glauber.<br />

Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra; Embrafilme,<br />

1981b. p. 83.<br />

ROCHA, Glauber. Entrevista a Michel Ciment. In: ROCHA, Glauber.<br />

Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra; Embrafilme,<br />

1981b. p. 83.<br />

RUBIM, Antonio Albino Canelas; RUBIM, Lindinalva. Televisão e política<br />

cultural no Brasil. Revista USP, São Paulo, n. 61, p. 16-28, mar./abr./<br />

maio 2004.<br />

RUBIM, Lindinalva S. O. A fala do intérprete. In: ______. O feminino<br />

no cinema de Glauber Rocha: diálogo de paixões. Rio de Janeiro: UFRJ/<br />

ECO,1999. 327p. Capítulo IV.<br />

STAM, Robert. Bakhtin: Da teoria literária à cultura de massas.<br />

São Paulo: Ática, l993.<br />

XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo:<br />

Brasiliense, 1993<br />

340<br />

Gênero, mulheres e feminismos


QUEM É QUEM<br />

Alda Britto da Motta<br />

Socióloga, Mestra em Ciências Sociais e Doutora em Educação.<br />

Professora dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais e<br />

em Estudos Interdisciplinares sobre Mulher, Gênero e Feminismo<br />

da UFBA. Pesquisadora do NEIM e do CNPQ.<br />

Alinne de Lima Bonetti<br />

Antropóloga e Doutora em Ciências Sociais, área de concentração<br />

Estudos de Gênero (Unicamp). Professora adjunta da Universidade<br />

Federal da Bahia, atuando no Bacharelado em Gênero e<br />

Diversidades e no Programa de Pós Graduação em Estudos Interdisciplinares<br />

sobre Mulheres, Gênero e Feminismo. Pesquisadora<br />

permanente do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a mulher<br />

– NEIM/UFBA. Contato: alinne.bonetti@gmail.com<br />

Ana Alice Alcântara da Costa<br />

Graduada em Ciências Sociais pela UFBA, Mestra e Doutora<br />

em Sociologia Política pela Universidade Nacional Autônoma do<br />

México e Pós-doutora no Instituto de Estudios de la Mujer da Universidad<br />

Autonoma de Madrid. Professora do Departamento de<br />

Ciência Política da Universidade Federal da Bahia, do PPGNEIM


e POSHIST da UFBA. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares<br />

sobre a Mulher – NEIM/UFBA. Bolsista (2006/2011)<br />

do Consórcio do Programa de Pesquisas (Research Programme<br />

Consortium − RPC) sobre o Empoderamento das Mulheres (Pathways<br />

of Women’s Empowerment), financiado pelo Department<br />

for International Development − DFID da Grã- Bretanha. Tem<br />

experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Atitude e<br />

Ideologias Políticas, atuando principalmente nos seguintes temas:<br />

gênero, cidadania, condição feminina, comportamento político,<br />

políticas publicas e feminismo.<br />

Ângela Maria Freire de Lima e Souza<br />

Bióloga e Doutora em Educação pela UFBA. Docente do Programa<br />

de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres,<br />

Gênero e Feminismos. Pesquisadora permanente do Núcleo de<br />

Estudos Interdisciplinares sobre a mulher – NEIM/UFBA. Dentre<br />

os seus temas de interesse e pesquisa estão: Gênero nas Ciências,<br />

epistemologias feministas e Gênero e Ensino de Ciências.<br />

Carla Gisele Batista<br />

Graduada em História, Mestranda no Programa de Pós-Graduação<br />

em Estudos sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da UFBA<br />

(PPG-NEIM/UFBA). Integrante de CLADEM/Brasil, foi educadora<br />

do SOS Corpo − Instituto Feminista para a Democracia e Secretária<br />

Executiva da AMB; integrou as coordenações da Articulación Feminista<br />

Mercosur, das Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto<br />

Legal e Seguro e também do Fórum de Mulheres de Pernambuco.<br />

A sua área de interesse são os estudos de gênero e feministas.<br />

Cecília Sardenberg<br />

Graduada em Antropologia Cultural na Illinois State University,<br />

Mestra e Doutora em Antropologia Social na Boston University.<br />

Professora do Departamento de Antropologia e no Programa<br />

342<br />

Gênero, mulheres e feminismos


de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres,<br />

Gênero e Feminismo − PPGNEIM da Universidade Federal da<br />

Bahia. Pesquisadora do NEIM, sendo, atualmente, coordenadora<br />

do PROCAD/CAPES com a Universidade Federal de Santa Catarina.<br />

Coordenadora Nacional do OBSERVE − Observatório de Monitoramento<br />

da Aplicação da Lei Maria da Penha. Coordenadora<br />

(2006/2011) do Grupo da América Latina do Consórcio do Programa<br />

de Pesquisas (Research Programme Consortium − RPC)<br />

sobre o Empoderamento das Mulheres (Pathways of Women’s<br />

Empowerment), financiado pelo Department for International<br />

Development − DFID da Grã-Bretanha através do Institute of Development<br />

Studies − IDS, Inglaterra, atuando principalmente nos<br />

seguintes temas: estudos feministas, estudos sobre mulheres e<br />

relações de gênero, feminismo e políticas públicas, gênero e desenvolvimento,<br />

gênero e corpo.<br />

Elizabete Silva Rodrigues<br />

Graduada em História pela Universidade do Estado da Bahia<br />

(1998), Mestre em História pela Universidade Federal da Bahia<br />

(2001) e Doutora em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres,<br />

Gênero e Feminismo – PPG/NEIM, da Universidade Federal da<br />

Bahia. Atualmente é professora titular da Secretaria de Educação<br />

do Estado da Bahia; Coordenadora do Curso e Professora da<br />

Faculdade Maria Milza – FAMAM. Professora pesquisadora I do<br />

PARFOR/UFRB. Tem experiência na área de História e Estudos de<br />

Gênero, com ênfase em História Regional do Brasil, atuando principalmente<br />

nos seguintes temas: gênero, trabalho, resistência; e<br />

História da Educação.<br />

Iole Macedo Vanin<br />

Mestra e Doutora em História. Professora da Universidade<br />

Federal da Bahia.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 343


Iracema Brandão<br />

Professora da Universidade Federal da Bahia, do Departamento<br />

de Sociologia, PPGNEIM, PPGCS. Pesquisadora do CNPQ<br />

no CRH/UFBA.<br />

Ivia Alves<br />

Professora de Letras (aposentada) da Universidade Federal da<br />

Bahia, e vinculada pelo PROPAP ao PPGLitC e ao PPGNEIM. Pesquisadora<br />

do CNPq e Pesquisadora permanente do NEIM (Núcleo<br />

de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher) da FFCH-UFBA,<br />

onde, atualmente, desenvolve pesquisa sobre o feminismo na<br />

Bahia, nas décadas1970/80 a 1990. Tem experiência na área de Letras,<br />

com ênfase em Literatura brasileira e baiana, bem como feminismo<br />

e gênero social e cultura. Trabalha as seguintes áreas de<br />

pesquisa: pesquisa de fontes primárias e estudos e recepção críticos:<br />

crítica feminista, crítica literária, mídia televisiva e representações<br />

de mulheres. Principais estudos já realizados: Herberto<br />

Salles, Vasconcelos Maia, Jorge Amado, Eugenio Gomes, Amélia<br />

Rodrigues, Arco & Flexa. Atualmente, desenvolve pesquisa sobre<br />

as representações de mulheres em narrativas serializadas de<br />

televisão (projeto Imagens e representações de Mulheres... fragmentadas).<br />

Possui, com um grupo de professoras pesquisadoras,<br />

o blog Mulheres em série e alimenta o site de Autoras baianas.<br />

Tem vários livros e artigos publicados sobre temas e autores acima<br />

citados.<br />

Lina Maria Brandão de Aras<br />

Graduada em Licenciatura e Bacharelado em História pela<br />

UFBa, Mestra em História pela Universidade Federal de Pernambuco,<br />

Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo<br />

e Pós-doutora na Universidade Federal de Pernambuco. Professora<br />

do Departamento de História da UFBA, do PPGNEIM e do<br />

POSHIST/UFBA. Tem experiência na área de História, com ênfase<br />

344<br />

Gênero, mulheres e feminismos


em História do Brasil Império, atuando principalmente nos seguintes<br />

temas: Bahia, rebeldias, região, literatura e gênero.<br />

Linda Rubim<br />

Professora da Facom-UFBA (Graduação e Pós) Doutora em<br />

Comunicação em Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro<br />

(1999), com a tese: “O Feminino no Cinema de Glauber Rocha,<br />

diálogo de paixões e Pós-doutora na Universidade de Buenos<br />

Aires com a pesquisa “O Cinema Argentino e Brasileiro Recentes,<br />

mulheres em Cena”. Atualmente é Coordenadora do MIDAS, grupo<br />

que congrega pesquisas que trabalham a interseção entre Mídia,<br />

Cultura e Gênero. Investiga a produção de cinema feito por<br />

mulheres na América Latina.<br />

Márcia dos Santos Macêdo<br />

Socióloga, Doutora em Ciências Sociais (UFBA). Professora<br />

adjunta do Departamento de Ciência Política. Pesquisadora permanente<br />

do NEIM/UFBA.<br />

Márcia Tavares<br />

Assistente Social e Doutora em Ciências Sociais pela Universidade<br />

Federal da Bahia. Professora do Curso de Serviço Social<br />

da Universidade Federal da Bahia. Coordenadora de Pesquisa do<br />

Observatório pela aplicação da Lei Maria da Penha - OBSERVE.<br />

E-mail: marciatavares1@gmail.com.<br />

Silvia Lúcia Ferreira<br />

Enfermeira. Professora do Depto. de Enfermagem Comunitária,<br />

do Curso de Graduação e Permanente do Programa de Pós<br />

graduação em Enfermagem e do Programa de Pós Graduação em<br />

Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo<br />

(PPGNEIM /UFBA). Pesquisadora e fundadora do Grupo de Estudos<br />

sobre Saúde da Mulher − GEM. Pesquisadora do NEIM.<br />

Gênero, mulheres e feminismos 345


Simone Andrade Teixeira<br />

Enfermeira, Mestra em Desenvolvimento Sustentável pela<br />

Universidade de Brasília e Doutora em Estudos Interdisciplinares<br />

sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pelo PPGNEIM/UFBA. Professora<br />

da graduação em Medicina da Universidade Estadual do<br />

Sudoeste da Bahia.<br />

Sonia Wright<br />

Professora Doutora na área de Gênero, Poder e Políticas Públicas,<br />

do Bacharelado em Gênero e Diversidade, do Núcleo de<br />

Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (Neim), vinculado ao<br />

Depto. de Ciência Política da Universidade Federal da Bahia (Ufba).<br />

Participa ainda como pesquisadora associada do Consórcio Bertha<br />

Lutz que investiga a participação das mulheres no processo<br />

eleitoral de 2010.<br />

346<br />

Gênero, mulheres e feminismos


Colofão<br />

Formato<br />

Tipologia<br />

Papel<br />

Impressão<br />

Capa e Acabamento<br />

Tiragem<br />

15 x 23 cm<br />

Leitura News e leitura Sans 10/16<br />

Alcalino 75 g/m 2 (miolo)<br />

Cartão Supremo 300 g/m 2 (capa)<br />

Edufba<br />

Fast Design<br />

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