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DADOS DE COPYRIGHT<br />
Sobre a obra:<br />
A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o<br />
objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como<br />
o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.<br />
É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso<br />
comercial do presente conteúdo<br />
Sobre nós:<br />
O Le Livros e seus parceiros, disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade<br />
intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem<br />
ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso<br />
site: LeLivros.Info ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.<br />
Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por<br />
dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível.
RUBEM ALVES<br />
ostra feliz<br />
não faz pérola
Copyright © 2008, <strong>Rubem</strong> <strong>Alves</strong><br />
Revisão: Tulio Kawata<br />
Capa: Vanderlei Lopes<br />
Imagem de capa: Stijn and Marie/Stone+/Getty Images<br />
Projeto de miolo e diagramação: Gustavo Abumrad<br />
Conversão em epub: {kolekto}<br />
<strong>Alves</strong>, <strong>Rubem</strong><br />
<strong>Ostra</strong> feliz não faz pérola / <strong>Rubem</strong> <strong>Alves</strong>. –<br />
São Paulo : Editora Planeta do Brasil, 2008.<br />
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)<br />
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)<br />
ISBN 978-85-7665-572-5<br />
1. Crônicas brasileiras I. Título.<br />
07-9540 CDD-869.93<br />
Índices para catálogo sistemático:<br />
1. Crônicas : Literatura brasileira 869.93<br />
2010<br />
Todos os direitos desta edição reservados à<br />
Editora Planeta do Brasil Ltda.<br />
Avenida Francisco Matarazzo, 1500<br />
3º andar — conj. 32B — Edifício New York<br />
05001-100 | São Paulo-SP<br />
www.editoraplaneta.com.br<br />
vendas@editoraplaneta.com.br
Para a Thais
Sumário<br />
Caleidoscópio<br />
Amor<br />
Beleza<br />
Crianças<br />
Educação<br />
Natureza<br />
Política<br />
Saúde Mental<br />
Religião<br />
Velhice<br />
Morte
Caleidoscópio
<strong>Ostra</strong> feliz não faz pérola<br />
<strong>Ostra</strong>s são moluscos, animais sem esqueleto, macias, que representam as delícias<br />
dos gastrônomos. Podem ser comidas cruas, com pingos de limão, com arroz,<br />
paellas, sopas. Sem defesas – são animais mansos –, seriam uma presa fácil dos<br />
predadores. Para que isso não acontecesse, a sua sabedoria as ensinou a fazer<br />
casas, conchas duras, dentro das quais vivem. Pois havia num fundo de mar uma<br />
colônia de ostras, muitas ostras. Eram ostras felizes. Sabia-se que eram ostras<br />
felizes porque de dentro de suas conchas saía uma delicada melodia, música<br />
aquática, como se fosse um canto gregoriano, todas cantando a mesma música.<br />
Com uma exceção: de uma ostra solitária que fazia um solo solitário. Diferente da<br />
alegre música aquática, ela cantava um canto muito triste. As ostras felizes se riam<br />
dela e diziam: “Ela não sai da sua depressão...”. Não era depressão. Era dor. Pois<br />
um grão de areia havia entrado dentro da sua carne e doía, doía, doía. E ela não<br />
tinha jeito de se livrar dele, do grão de areia. Mas era possível livrar-se da dor. O<br />
seu corpo sabia que, para se livrar da dor que o grão de areia lhe provocava, em<br />
virtude de suas aspereza, arestas e pontas, bastava envolvê-lo com uma<br />
substância lisa, brilhante e redonda. Assim, enquanto cantava seu canto triste, o<br />
seu corpo fazia o trabalho – por causa da dor que o grão de areia lhe causava. Um<br />
dia, passou por ali um pescador com o seu barco. Lançou a rede e toda a colônia<br />
de ostras, inclusive a sofredora, foi pescada. O pescador se alegrou, levou-as para<br />
casa e sua mulher fez uma deliciosa sopa de ostras. Deliciando-se com as ostras,<br />
de repente seus dentes bateram num objeto duro que estava dentro de uma ostra.<br />
Ele o tomou nos dedos e sorriu de felicidade: era uma pérola, uma linda pérola.<br />
Apenas a ostra sofredora fizera uma pérola. Ele a tomou e deu-a de presente para<br />
a sua esposa.<br />
Isso é verdade para as ostras. E é verdade para os seres humanos. No seu<br />
ensaio sobre O nascimento da tragédia grega a partir do espírito da música,<br />
Nietzsche observou que os gregos, por oposição aos cristãos, levavam a tragédia a<br />
sério. Tragédia era tragédia. Não existia para eles, como existia para os cristãos,<br />
um céu onde a tragédia seria transformada em comédia. Ele se perguntou então<br />
das razões por que os gregos, sendo dominados por esse sentimento trágico da<br />
vida, não sucumbiram ao pessimismo. A resposta que encontrou foi a mesma da<br />
ostra que faz uma pérola: eles não se entregaram ao pessimismo porque foram<br />
capazes de transformar a tragédia em beleza. A beleza não elimina a tragédia, mas<br />
a torna suportável. A felicidade é um dom que deve ser simplesmente gozado. Ela<br />
se basta. Mas ela não cria. Não produz pérolas. São os que sofrem que produzem a<br />
beleza, para parar de sofrer. Esses são os artistas. Beethoven – como é possível<br />
que um homem completamente surdo, no fim da vida, tenha produzido uma obra<br />
que canta a alegria? Van Gogh, Cecília Meireles, Fernando Pessoa...
Caleidoscópio<br />
O caleidoscópio nasceu na Inglaterra, nos primeiros anos do século passado. Seu<br />
inventor foi Sir David Brewster. Acho que era um vagabundo porque se fosse<br />
ocupado não teria a ideia. O trabalho intenso faz mal à criatividade. Nietzsche,<br />
dirigindo-se àqueles para quem a vida é “trabalho furioso”, aqueles para quem “o<br />
trabalho furioso é coisa boa, e também tudo o que é rápido, novo e diferente”,<br />
conclui: “O fato é que vocês não se suportam. Seu trabalho é fuga, um desejo de<br />
se esquecerem de vocês mesmos. Mas vocês não têm conteúdo... nem mesmo para<br />
a preguiça”. Deve ter sido num momento de vagabundagem que a ideia do<br />
caleidoscópio apareceu na cabeça de Sir David Brewster. Como era homem culto e<br />
conhecia o grego antigo, uniu as palavras gregas kalos (= belo), eidos (= imagem)<br />
e scopéo (= vejo). Caleidoscópio quer dizer “vejo belas imagens”. As belas<br />
imagens do caleidoscópio se fazem com caquinhos de vidro, clipes, tachinhas,<br />
pedrinhas. O mesmo acontece com os artistas. Eles têm a capacidade de produzir o<br />
belo com o insignificante. Esse livro está cheio de caquinhos que podem,<br />
eventualmente, produzir belas imagens.<br />
Albert Camus<br />
... sonhava com o momento em que poderia escrever com liberdade total, na orgia<br />
anárquica do corpo: “Quando tudo estiver acabado: escrever sem preocupação de<br />
ordem. Tudo o que me passar pela cabeça” (A. Camus, Primeiros Cadernos, p.<br />
427). Ele não teve essa chance. Morreu antes. Eu estou tendo.<br />
Pregador de vagabundagem<br />
Jovem, quando eu era pastor, era frequente que meus sermões provocassem<br />
reações negativas nos conservadores porque eles esperavam que eu falasse sobre<br />
a certeza da salvação de suas almas e eu, que nada sabia e ainda nada sei sobre a<br />
vida após a morte, falava sobre as coisas da vida. Recebi então um convite para<br />
pregar na Igreja Presbiteriana da Lapa, São Paulo. Disse para mim mesmo: “Estou<br />
cansado de confusões. Vou pregar um sermão pra ninguém botar defeito. Todos<br />
sorrirão. Falarei sobre as crianças...”. Li as palavras de Jesus: “E se vocês não<br />
mudarem suas maneiras de sentir e pensar e não se transformarem em crianças,<br />
jamais entrarão no Reino dos Céus...”. Aí falei sobre as crianças. Diferentes dos<br />
adultos, que vivem para trabalhar, as crianças vivem para brincar. Brincar é o<br />
sentido da vida... Esse sermão provocou uma confusão que excedeu todas as
outras. Acusaram-me de corruptor da juventude, pregando a vagabundagem. Daí<br />
para frente, em qualquer igreja onde eu fosse pregar, lá estavam os inquisidores<br />
com gravadores para capturar as minhas heresias. Que Deus os tenha. Conselho<br />
aos jovens pregadores: se vocês querem ser bem-sucedidos digam aos membros<br />
de suas igrejas o que eles desejam ouvir. Bom conselho é “não lançar pérolas aos<br />
porcos”. Ou, na sua versão oriental, “nunca mostres teu poema a um não poeta”. O<br />
que eles desejam é ouvir a confirmação de suas velhas ideias. Eles amam as<br />
repetições e odeiam tudo o que perturba a sua paz. Existe um livrinho muito<br />
divertido que poderá ajudá-los na difícil tarefa de agradar a sua congregação.<br />
Infelizmente não foi traduzido para o português: How to be a bishop without being<br />
religious [Como ser um bispo sem ser religioso]. Ali você encontrará os conselhos<br />
que o ajudarão a chegar a bispo. É um velho bispo metodista que dá conselhos ao<br />
seu jovem sobrinho que acaba de ser ordenado. Como é bem sabido, os bispos<br />
protestantes se casam. Um dos conselhos mais importantes refere-se à escolha da<br />
sua mulher: escolha uma mulher feia. Se for uma mulher bonita, a congregação<br />
começará a fazer fantasias sobre o bispo e sua mulher na cama, e isso não é bom<br />
para a sua vida espiritual. E é importante que vocês não sejam felizes. Porque um<br />
pastor feliz quererá gastar muito tempo com sua amada em atividades não<br />
religiosas, o que roubará o precioso tempo em que ele deveria estar preparando o<br />
sermão, consultando os textos originais em hebraico e grego e os comentários<br />
bíblicos.<br />
Orgasmos nasais<br />
Acometido por uma crise de espirros enquanto caminhava pela fazenda Santa Elisa,<br />
lembrei-me de um estudante que me confessou espirrar sempre que se sentia<br />
excitado sexualmente. Nos livros sobre erótica que li nunca vi referência alguma a<br />
esse curioso fenômeno. É bem possível que os espirrantes, envergonhados dessa<br />
anomalia e com medo de serem catalogados psicanaliticamente como “perversos”<br />
tenham guardado o seu segredo. Para quem não sabe, ser “perverso”, em<br />
psicanalisês não quer dizer “malvado”. Do latim “perversus”, virado, ao contrário,<br />
feito contra o costume e a razão. Ter orgasmo com o nariz é uma perversão, não é<br />
normal. Quem sabe o Vaticano soltará uma encíclica condenando os espirros da<br />
mesma forma como condena os homossexuais e a camisinha? O fato é que o<br />
espirro muito se assemelha ao orgasmo. Começa com uma discreta cócega, a<br />
cócega cresce até estourar numa explosão eólica extremamente prazerosa seguida<br />
de alívio. O prazer sexual do espirro levou os antigos a inventar uma forma de ter<br />
orgasmos nasais artificialmente. Inventaram o rapé. O rapé era o Viagra nasal<br />
daqueles tempos: orgasmos nasais à vontade. Do francês “râper”, ralar, raspar.
Rapé é fumo raspado, em pó. Houve tempos em que era elegante cheirar rapé, o<br />
pó preto. Vendiam-se caixinhas de prata, à semelhança das caixas de fósforo,<br />
verdadeiras joias. Dentro ia um pedaço de fumo. De um lado, um minúsculo<br />
ralador. Ralava-se o fumo na hora para se obter um cheiro de qualidade superior,<br />
da mesma forma como, para se obter um bom café, o grão tem de ser moído na<br />
hora. Qual era a maneira elegante para se cheirar rapé? Primeiro, fechava-se uma<br />
das mãos, na horizontal. Depois esticava-se o dedão firmemente para cima. Ao<br />
fazer isso aparece, na junção da mão com o braço, um oco, produzido pelo tendão<br />
esticado do dedo. Nesse oco se coloca o pó. Aproxima-se então o pó de uma das<br />
narinas, tendo a outra tampada com o dedo indicador da outra mão. Respira-se<br />
com força, o pó entra pela narina e o espirro vem para o prazer do espirrante.<br />
Ainda é possível comprar rapé nas tabacarias. Eu mesmo tenho uma latinha que<br />
me foi dada por um amigo. Quem sabe seria possível substituir o pó branco pelo pó<br />
negro? Espirro dá prazer sem fazer mal.<br />
É preciso saber para passar no vestibular!<br />
Minha neta estava lendo um lindo livro de biologia. Ah! Como a biologia é<br />
fascinante! A vida! Mas não havia entusiasmo no seu rosto. Nem nada que se<br />
parecesse com curiosidade. Era mais uma expressão de tédio. Sei o que é isso. Há<br />
textos que reduzem o leitor a uma panqueca que se arrasta pelo chão. Arrasta-se<br />
porque tem que ler mas não quer ler. É por causa desses textos que Barthes disse<br />
que a preguiça é parte essencial da experiência escolar. Perguntei o que ela estava<br />
lendo. Ela me mostrou um parágrafo com o dedo. Era isso que estava escrito:<br />
“Além da catálase, existem nos peroxíssomos enzimas que participam da<br />
degradação de outras substâncias tóxicas, como o etanol e certos radicais livres.<br />
Células vegetais possuem glioxissomos, peroxissomos especializados e<br />
relacionados com a conversão das reservas de lipídios em carboidratos. O citosol<br />
(ou hialoplasma) é um coloide... No ciosol das células eucarióticas, existe um<br />
citoesqueleto constituído fundamentalmente por microfilamentos e microtúbulos,<br />
responsável pela ancoragem de organoides... Os microtúbulos têm paredes<br />
formadas por moléculas de tubulina...”. Encontrei ainda palavras que nunca lera:<br />
“retículo sarcoplasmático, complexo de Golgi, pinocitose, fagossomo, fragmoplasto,<br />
o padrão do axonema é constituído por 9+2, uma referência aos 9 pares de<br />
microtúbulos em torno de um par central”. Parece-me que essa última afirmação<br />
tem a ver com o rabo do espermatozoide, mas nesse momento os meus<br />
pensamentos já estavam tão confusos que não posso garantir. Não posso imaginar<br />
minha neta conversando sobre essas palavras com suas amigas ou seu namorado.<br />
Ele, eu acho, só vai se interessar pelo rabo do espermatozoide... Fico curioso: o
que é que o professor que escreveu esse texto imaginava que os adolescentes<br />
iriam fazer com ele? Li esse texto para um erudito professor de biologia. Sua<br />
reação foi: “Não entendi nada...”.<br />
Pocinhos do Rio Verde canhoneia Paris<br />
Quem suspeitaria que Pocinhos do Rio Verde, um lugarzinho bucólico, com matas,<br />
riachos, pássaros, um dia ajudou a canhonear Paris? Mas não foi por virtude de<br />
matas, riachos e pássaros. Foi em virtude do que havia nas montanhas vulcânicas,<br />
um metal raro, zircônio, bom para produzir aço para canhões. Desde o início do<br />
século XX, o zircônio era exportado para a Alemanha. Na guerra de 1914-1918, a<br />
Alemanha construiu três canhões gigantescos, de 420 mm de calibre, capazes de<br />
lançar granadas a 100 quilômetros de distância: Paris! O primeiro canhão explodiu<br />
no primeiro tiro, matando sua guarnição. Mas os outros dois, apelidados de “Berta”<br />
(com certeza, três irmãs gêmeas, de mau gênio...), conseguiram o seu objetivo.<br />
Bombardearam Paris. Minha hipótese para a explosão da primeira irmã Berta é que<br />
seu aço era de má qualidade, sem zircônio de Pocinhos. Pocinhos, quem diria,<br />
lugarzinho tão pacífico, tem essa mancha negra no seu passado... Mas Deus já<br />
perdoou. Foi sem querer... Essas informações se encontram no livro Memória da<br />
Companhia Geral das Minas (Poços de Caldas, Alcoa Alumínio). Nesse livro se<br />
encontra uma foto de Getúlio Vargas rodeado por pessoas importantes: todos<br />
vestidos em ternos de linho branco e calçados com sapatos brancos com ponta<br />
preta, lustrosa. O único urubu em meio a essas garças é um bispo... Afinal de<br />
contas: o que é que bispo tem a ver com mineração? Minas abençoadas produzem<br />
mais?<br />
Sobre o tamanho<br />
Se o maior fosse o melhor, o elefante seria o dono do circo.<br />
Novo slogan político<br />
Alguém escreveu num muro branco da Universidade do Porto, em Portugal, a sua<br />
exigência política: “Queremos mentiras novas!”. Quem o escreveu sabia das coisas.<br />
Sabia que seria inútil pedir o impossível: “Basta de mentiras!”. Na política, apenas<br />
as mentiras são possíveis. Mas ele já estava cansado das mentiras velhas, batidas,<br />
como piadas cujo fim já se conhece, que diariamente aparecem nos jornais.<br />
Mentiras velhas são um desrespeito à inteligência daqueles a quem são dirigidas.<br />
Que mintam, mas que respeitem a minha inteligência! Mintam usando a
imaginação! Por isso escrevia, em nome da inteligência, do possível e do humor:<br />
“Queremos mentiras novas!”.<br />
Os bichos vão para o céu?<br />
Tenho um amigo que é pastor de uma comunidade protestante. Por favor, não<br />
confundir “protestante” com “evangélico”... Contou-me de uma velhinha solitária<br />
que tinha como seu único amigo um cãozinho. Ela o procurou aflita. Havia lido no<br />
livro de Apocalipse, capítulo 22, versículo 15, que não entrarão no céu “os cães, os<br />
feiticeiros, os impuros, os assassinos, os idólatras...”. Que os impuros, os<br />
assassinos, os idólatras não entrem no céu está muito certo. “Mas, reverendo”, ela<br />
dizia, “o meu cãozinho... A Bíblia está dizendo que o meu cãozinho não vai entrar<br />
no céu... Mas eu amo o meu cãozinho. O meu cãozinho me ama... O que será de<br />
mim sem o meu cãozinho?” Aí eu pergunto aos senhores, teólogos, estudiosos dos<br />
mistérios divinos: há, no céu, um lugar para os cãezinhos? Sei qual será a sua<br />
resposta. “No céu não há lugar para cãezinhos porque cãezinhos não têm alma.<br />
Somente os humanos a têm.” Acho que, teologicamente, segundo a tradição, os<br />
senhores estão certos. Nas inúmeras telas que os artistas pintaram da bemaventurança<br />
celestial, por mais que procurasse, nunca encontrei animal algum.<br />
Aves, às quais são Francisco pregou (por que pregar-lhes, se elas não têm alma?),<br />
peixes, símbolos de Jesus Cristo, vacas, jumentos e ovelhas, que adoraram o<br />
Menino Jesus no presépio, todos eles serão reduzidos a nada. Não ressuscitarão no<br />
último dia. O céu será um mundo de almas desencarnadas. Não haverá beijos nem<br />
abraços. Falta às almas a materialidade necessária para beijos e abraços. Os<br />
senhores já observaram que no Credo Apostólico a “alma” não é sequer<br />
mencionada? Lá se fala em “ressurreição da carne”. É a carne que está destinada à<br />
eternidade. A carne é o mais alto desejo de Deus. Tanto assim que Ele se tornou<br />
carne, encarnou-se. A esperança é a volta ao Paraíso, onde havia bichos de todos<br />
os tipos. Se Deus os criou é porque Deus os desejava e deseja. Um céu vazio de<br />
animais é um céu de um Deus que fracassou. Ao final, Ele não consegue trazer de<br />
novo à vida aquilo que criou no princípio. Não. Herege que sou, direi à velhinha:<br />
“Fique tranquila. O seu cãozinho estará eternamente ao seu lado... Não só o seu<br />
cãozinho como também gatos, girafas, macacos, peixes, tucanos, patos e gansos...<br />
Deus gosta de bichos. Os bichos o louvam melhor que os humanos. Se Ele gosta de<br />
bichos eles serão ressuscitados no último dia...”.<br />
A arte da dança<br />
Contarei o milagre mas não contarei os santos. Não lhes pedi permissão. Eram um
lindo casal de brasileiros que faziam estudos avançados na Universidade de<br />
Lovaina, Bélgica. Convidaram-nos para uma recepção e lá foram eles<br />
elegantemente vestidos. Música. Danças. Dançavam eles no salão quando notaram<br />
que os outros casais paravam de dançar e formavam uma roda ao seu redor, todos<br />
a olhar para eles. Pensaram: devemos estar dançando muito bem. Aí capricharam<br />
nos passos para não desapontar a platéia até que a música terminou. Ao se<br />
aproximarem de um professor amigo ele lhes disse com um divertido sorriso: “É a<br />
primeira vez que vejo um casal dançando o hino nacional da Bélgica...”.<br />
Inspiração<br />
O livro do Eclesiastes adverte: “Um último aviso: escrever livros e mais livros não<br />
tem limite. E o muito estudo é enfado da carne...”. Não obedeci. Escrevi muitos<br />
livros. É o jeito que tenho de brincar. Livros são brinquedos para o pensamento. De<br />
todos os que escrevi, acho que o que mais amo é A menina e o pássaro encantado.<br />
Escrevi para transformar uma dor em beleza. Eu ia me ausentar do Brasil por um<br />
período longo e a minha filha de quatro anos, a Raquel, estava inconsolável. As<br />
crianças têm uma sensibilidade especial. Sabem que toda ausência passageira é<br />
metáfora de uma ausência definitiva. Ela sofria e eu sofria com o sofrimento dela.<br />
Aí, de repente, veio a inspiração. Inspiração é quando a gente não sabe de onde a<br />
ideia vem. Na ciência é o contrário: é preciso explicar o caminho que se tomou para<br />
chegar à ideia. É esse caminho que tem o nome de método. Seguindo o mesmo<br />
caminho, qualquer outro cientista poderá chegar à mesma ideia. Na literatura é o<br />
contrário: o escritor não sabe de onde as ideias vêm. Portanto não se pode ensinar<br />
o caminho. Veja como Fernando Pessoa descreveu essa experiência: “Às vezes<br />
tenho ideias felizes, ideias subitamente felizes... Depois de escrever, leio... Por que<br />
escrevi isso? Onde fui buscar isso? De onde me veio isso? Isto é melhor do que<br />
eu...”. A ciência é a caça de um pássaro definido de antemão que, depois de<br />
apanhado, será preso numa gaiola de palavras. Mas a inspiração não é uma caça. A<br />
inspiração chega em momentos raros de distração. Picasso explicou o seu<br />
“método”: “Eu não procuro. Eu encontro...”. Ou seja, a inspiração não tem método:<br />
o pássaro pousa no nosso ombro, sem que o tivéssemos procurado e apenas nos<br />
espantamos de que ele seja assim tão bonito... Foi assim que me apareceu a<br />
estória A menina e o pássaro encantado. Nela, uma menina que não suportava a<br />
saudade, para impedir que seu pássaro voasse tratou de prendê-lo numa gaiola.<br />
Resultado: o pássaro encantado deixou de ser encantado; perdeu as cores e<br />
esqueceu o canto. O pássaro só é encantado quando é livre. O sentido original da<br />
estória era claro: era uma estória para a minha filha e para mim cujo objetivo era<br />
transformar a dor em beleza. Mas aí aconteceu o inesperado: depois de publicado,
os leitores passaram a ver sentidos novos que eu não havia visto: o livro começou<br />
a ser usado por terapeutas para lidar com casais em que cada um tentava<br />
engaiolar o outro. E estavam certos. Foi então que um amigo me disse: “Que linda<br />
estória você escreveu sobre Deus!”. Espantei-me.“Sobre Deus? Qual?” “ A menina e<br />
o pássaro encantado”, ele respondeu. Contestei: “Mas a estória não é sobre<br />
Deus...”. Ao que ele me disse: “Pois eu pensei que o pássaro encantado era Deus,<br />
que as religiões aprisionam em gaiolas...”. Pode também ser... É impossível<br />
engaiolar o sentido.<br />
Ele não existe<br />
Eu e minha filha de cinco anos voltávamos do cinema. Tínhamos visto o E.T. Minha<br />
filha chorava convulsivamente. Nada a consolava. Em casa, depois do lanche, para<br />
consolá-la eu lhe disse: “Vamos ao jardim ver a estrelinha do E.T.”. Fomos. Mas o<br />
céu se cobrira de nuvens. Minha mágica não dera certo. Improvisei. Corri para trás<br />
de uma palmeira e gritei: “O E.T. está aqui! Venha ver!”. Ela ficou séria e disse:<br />
“Papai, não seja bobo. O E.T. não existe...”. Respondi: “Não existe? Então, por que<br />
é que você estava chorando?”. Ela respondeu: “Por isso mesmo, porque ele não<br />
existe...”.<br />
Pensamentos-brinquedos<br />
Pensamentos vagabundos são pensamentos que a gente pensa sem querer pensar,<br />
diferentes dos pensamentos que a gente pensa por precisar deles. Os pensamentos<br />
que a gente pensa por precisar deles andam sempre um atrás do outro como<br />
soldados em ordem unida. São ferramentas. Eles vêm quando a gente os chama.<br />
Os pensamentos vagabundos são como as nuvens que o vento leva, uma hora se<br />
parecem com um cachimbo, o cachimbo vira um navio, o navio se transforma em<br />
elefante, o elefante vira flor... Coisa de poetas desocupados... São brinquedos. Eles<br />
vêm sem serem chamados. Guimarães Rosa relata que foi assim que lhe chegou o<br />
conto “A terceira margem do rio”. Ele ia andando distraído pela rua quando,<br />
repentinamente, o conto lhe veio pronto, como a bola chega às mãos do goleiro.<br />
Ele foi para casa e o escreveu. Quando alguém lê o que escrevemos e gosta é<br />
porque entrou no brinquedo...<br />
Gaiola de prender ideias<br />
Quando uma ideia boa me chegava eu a prendia na minha “gaiola de prender<br />
ideias”, um caderninho, na esperança de um dia transformá-la num artigo. Mas a
quantidade de ideias que eu colocava na gaiola de prender ideias era muito maior<br />
que minha capacidade de escrever. Elas nunca iriam se transformar em literatura.<br />
Seriam condenadas ao esquecimento. Fiquei com dó delas. Resolvi então tirá-las da<br />
gaiola e soltá-las aos quatro ventos. Estão aí, neste livro...<br />
Sobre o amar e o ouvir<br />
Amamos não a pessoa que fala bonito, mas a pessoa que escuta bonito... A arte de<br />
amar e a arte de ouvir estão intimamente ligadas. Não é possível amar uma pessoa<br />
que não sabe ouvir. Os falantes que julgam que por sua fala bonita serão amados<br />
são uns tolos. Estão condenados à solidão. Quem só fala e não sabe ouvir é um<br />
chato... O ato de falar é um ato masculino. Fala é falus: algo que sai, se alonga e<br />
procura um orifício onde entrar, o ouvido... Já o ato de ouvir é feminino: o ouvido é<br />
um vazio que se permite ser penetrado. Não me entenda mal. Não disse que fala é<br />
coisa de homem e ouvir é coisa de mulher. Todos nós somos masculinos e<br />
femininos ao mesmo tempo. Xerazade, quando contava as estórias das 1001 noites<br />
para o sultão, estava carinhosamente penetrando os vazios femininos do machão.<br />
E foi dessa escuta feminina do sultão que surgiu o amor. Não há amor que resista<br />
ao falatório.<br />
Bernes<br />
As férias podem ser perigosas porque elas nos expõem a experiências insólitas.<br />
Camus sabia disso e disse que viajava só pra ter medo. Pois uma coisa incomum<br />
me aconteceu nas últimas férias que jamais poderia ter acontecido em Campinas.<br />
Peguei um berne. Ou melhor, uma mosca varejeira me pegou. Pra quem não sabe,<br />
varejeira é uma mosca caipira parecida com as moscas urbanas, só que maior. Não<br />
querendo se ocupar com os incômodos da maternidade, ela põe seus ovos em<br />
carne viva, boi, cães, seres humanos. Assim ela garante o alimento da larva sem<br />
ter de se preocupar. (Há uma vespa que faz a mesma coisa. Caça uma aranha de<br />
abdômen gordo, leva-a para dentro de sua toca, imobiliza-a com um líquido<br />
paralisante, põe seus ovos sobre sua barriga e se manda, para nunca mais. Quando<br />
nascem as larvas, elas têm carne fresquinha à sua disposição, sem que a aranha<br />
possa fazer qualquer coisa...) A gente não sente quando a varejeira pousa na pele.<br />
Sente só quando ela enfia o ferrão e põe o ovo. Aí o ovo vai crescendo... Coceira.<br />
Ferroadas a intervalos. Espremer não adianta, porque o berne não é bobo, refugiase<br />
no fundo da carne. Vai crescendo, engordando, na forma de um minivulcão com<br />
uma minicratera, respiradouro. Os homens do campo se valem de um artifício<br />
simples para extrair o berne. Colocam um pedaço de toucinho sobre o vulcanículo,
preso com um esparadrapo. O berne fica sem ar, sufocado. Trata de procurar ar<br />
para não morrer. Vai para a superfície e entra dentro do toucinho. Aí é só tirar o<br />
esparadrapo que o berne está lá. Não sei direito o que acontece se o berne se<br />
desenvolver até o fim. Acho que ele se transforma em varejeira e sai voando. Tive<br />
calafrios ao pensar nisso. O berne me fez pensar que o mundo está cheio de<br />
varejeiras que nos injetam ovos que vão crescendo vida afora, dando ferroadas.<br />
Malditos bernes que não podem ser retirados com toucinho porque se alojam nos<br />
sentimentos e nas ideias. Tenho muitos bernes na minha alma, bernes que coçam<br />
e dão ferroadas. O problema é que eles, por oposição aos bernes da varejeira, não<br />
saem voando, gostam de permanecer bernes dentro da alma. Com o tempo, a<br />
gente até passa a gostar deles, em virtude de sua coceirinha. Ficam porque<br />
gostamos... Meu berne não saiu nem com toucinho nem com espremeções. Precisei<br />
apelar para a ação de uma dermatologista que teve de fazer uma minicirurgia...<br />
Agora estou livre de ferroadas e coceiras.<br />
Inveja<br />
Ela estava muito feliz. A casa dos seus sonhos, que ela e o seu marido estavam<br />
construindo, ficou pronta. Queriam, agora, compartilhar a sua alegria com os<br />
amigos. Decidiram, então, fazer um dia de “Open House”, “Casa Aberta”, para o<br />
qual todos os amigos seriam convidados. A alegria compartilhada fica maior. Foi o<br />
que ela me disse numa sessão de psicanálise. Eu me calei. Não tive coragem de<br />
falar. Na sessão seguinte ela estava mergulhada em profunda tristeza. Nada<br />
acontecera como o esperado. Os amigos não ficaram felizes. Os visitantes trataram<br />
de estragar a sua alegria. “Mas você não acha que aquela parede amarela teria<br />
ficado melhor se tivesse sido pintada de verde?” “Esse forno de pizza: meu primo<br />
fez um; no início foi uma festa, depois foi o esquecimento. O forno de pizza está lá<br />
na casa dele, sem uso...” “Aquela escada de madeira teria dado mais classe à sua<br />
casa se fosse de granito...” Foi assim que ela aprendeu a dura lição da inveja. Não<br />
pense que seus ditos amigos ficarão felizes com a sua felicidade. Eles tratarão de<br />
destruí-la.<br />
Presente<br />
A conversa rolou solta, navegando ao sabor das memórias de infância. Contou-me<br />
esse amigo que o presente que o seu pai recebeu quando completou cinco anos<br />
foi... uma enxada! Sim, uma enxada! Dirão os que nada entendem de poesia: “Mas<br />
que presente absurdo para se dar a uma criança!”. Não, foi um presente<br />
profundamente amoroso. O pai estava dizendo ao filho pequeno: “Você já pertence
ao mundo dos grandes. Você já é nosso companheiro. Eu tenho uma enxada, seus<br />
tios têm enxadas, seu avô tem uma enxada. Nós trabalhamos no campo. E<br />
estamos felizes porque agora você é um de nós...”. Nas cerimônias de iniciação era<br />
assim que se fazia: o candidato era declarado adulto dando-se-lhe um objeto que<br />
só os adultos podiam usar.<br />
Parto no pilão<br />
Contou-me também que, para o parto do seu pai, sua avó foi colocada assentada<br />
num pilão! Parto de cócoras, que agora voltou à moda. E o avô foi colocado a<br />
correr em volta da casa, enquanto o parto acontecia. Diziam que a corrida do<br />
marido ajudava a mulher parindo. Duvido. Mas tinha duas grandes virtudes: afastar<br />
o pai do quarto, porque ele só iria atrapalhar a ação da parteira. E propiciar uma<br />
descarga muscular para a sua ansiedade. Correr liberta energias represadas e tem<br />
um efeito tranquilizador...<br />
Filosofia de jangadeiro<br />
A Vilma Cloris de Carvalho, maravilhosa professora aposentada da Unicamp, a<br />
quem deveria ser conferido o título de “Professora Emérita”, vive em Recife e<br />
descobriu sua veia literária. Isso acontece com frequência: que as pessoas, livres<br />
dos deveres dos empregos, descubram universos novos... Um dos seus prazeres é<br />
caminhar pela praia, pela manhã. Ela me contou o seguinte: “Na minha caminhada,<br />
passo por uma praia de jangadeiros. É ali que eles trazem os seus peixes. Todos<br />
eles já fazem uso do telefone celular para se comunicar com a terra. Passei por um<br />
jangadeiro que falava ao celular. Curiosa, diminuí o passo para ouvir a conversa.<br />
Ele falava com uma mulher. Foi isso que ele disse: ‘Meu bem, quando estou com<br />
você, sou só seu. Quando estou com a minha mulher, sou só dela. Mas, quando<br />
estou no mar, não sou de ninguém’”.<br />
O que a minha cadela pensa de mim<br />
Meu nome é Lola. É assim que me chamam. Quando gritam o meu nome, sei que<br />
me querem perto deles. Psicologicamente posso ser definida como um animal<br />
incapaz de mentir ou fingir. Minha alma mora na minha pele. Quando estou alegre,<br />
meu rabo abana por conta própria, independente da minha vontade. Quando a<br />
alegria é demais, dou umas mijadinhas. Quando estou triste, meu rabo e minha<br />
cabeça abaixam. Quando estou com sono, me esparramo no chão, do rabo ao<br />
focinho. Tudo se dependura: pele, orelhas, testa, olhos. Meu dono gosta de mim
embora fique bravo quando eu pulo para abraçá-lo e lhe dou uma lambida. O que é<br />
verdade para mim não é verdade para o meu dono. A alma dele não mora na pele.<br />
Ele mente. Ele finge. Nunca o vi dar uma mijadinha de felicidade. Talvez ele não<br />
seja suficientemente feliz para isso. Às vezes, eu estou deitada do jeito como<br />
descrevi e ele está assentado numa cadeira. Ele olha para mim de um jeito<br />
diferente. Não é alegria. Não é tranquilidade. Acho que é inveja. Ele gostaria de ser<br />
como eu sou, mas não tem coragem... Está morrendo de vontade de se esparramar<br />
também no chão frio, como eu. Mas não o faz. Fico a pensar: o que o impede? Acho<br />
que é vergonha. Os homens têm vergonha uns dos outros. Sou feliz porque não<br />
tenho vergonha e faço o que quero. Talvez essa seja a razão por que os homens<br />
gostam de ter pets: porque nos pets eles projetam uma felicidade que eles<br />
mesmos não têm. Diga-me o pet que você tem e eu saberei como é a sua alma. Os<br />
pets têm uma função terapêutica. Bem, eu sou uma cadela, e tudo o que disse foi<br />
de brincadeirinha. Porque eu mesma, na realidade, me contento em ser feliz. Não<br />
gasto tempo pensando essas coisas...<br />
Definição<br />
Para encerrar a conversa, a entrevistadora fez a última pergunta: “Como é que<br />
você se definiria?”. Êta pergunta impossível de ser respondida! Porque definir,<br />
como o próprio nome está dizendo, vem do latim finis, fim. Definir é determinar os<br />
limites. Mas sei eu lá quais são os meus limites! Para respondê-la, eu teria de<br />
encontrar uma frase que não fosse definição, que apontasse para o sem limites. Aí<br />
eu me lembrei da frase que Robert Frost escolheu para sua lápide e disse que<br />
aquela era a definição de mim mesmo: “Ele teve um caso de amor com a vida”.<br />
Quero que estas sejam as palavras na minha lápide.<br />
Formigas<br />
Li uma informação na revista National Geographic sobre as formigas que me<br />
horrorizou: “O peso de todas as formigas do mundo é aproximadamente o mesmo<br />
peso dos 6.000.000.000 de habitantes da Terra somados” (National Geographic,<br />
Edward O. Wilson, maio de 2006).<br />
Conselho ao Nelson Freire<br />
Caro Nelson Freire: Ao terminar de ouvir os dois concertos de Brahms interpretados<br />
por você, lembrei-me de um incidente que poderá lhe ser de grande valia. Bernard<br />
Shaw foi ouvir Jascha Heifetz. Chegando em casa, depois do concerto, escreveu-lhe
uma carta imediatamente. O conteúdo era mais ou menos assim: “Prezado senhor<br />
Jascha Heifetz. Ouvi-o no concerto desta noite. Voltei para casa profundamente<br />
preocupado. Porque tocando do jeito como o senhor toca é impossível que os<br />
deuses não se roam de ciúme – porque é certo que eles não conseguem tocar<br />
como o senhor. Eles sentirão inveja. E deuses invejosos são perigosos. Assim, doulhe<br />
um conselho. De noite, antes de dormir, não faça suas orações costumeiras.<br />
Pegue o seu violino e toque desafinado. Os deuses, ao ouvi-lo, se sentirão aliviados<br />
na sua inveja e deixarão o senhor em paz. Atenciosamente, George Bernard Shaw”.<br />
Nelson, faço meu o conselho de Shaw. Sozinho, de noite, em vez de rezar, toque<br />
mal, esbarre algumas notas, erre... Nenhum crítico o estará ouvindo. Mas os deuses<br />
estarão. E eles dormirão em paz e você dormirá em paz. Conselho do seu<br />
conterrâneo <strong>Rubem</strong> <strong>Alves</strong>.<br />
Dia das Mães<br />
Quando eu era menino, o Dia das Mães se celebrava assim: as crianças que tinham<br />
mãe colocavam uma flor vermelha na blusa; as crianças que não tinham mãe, uma<br />
flor branca. Era tudo. Tudo estava dito.<br />
Internet<br />
A Internet é um logra-bobos. Recebi um e-mail da princesa Kevin David, da Costa<br />
do Marfim, endereço eletrônico d011@yahoo.com ou kdavid@yahoo.com<br />
informando-me que estava pronta a transferir para uma conta bancária minha a<br />
modesta importância de 2 milhões de dólares, para negócios em sociedade e<br />
solicitando retorno. Não sei como ela descobriu o meu nome. Mas sei que ela<br />
descobriu muitos outros nomes que receberam a mesma oferta. Retornei: “Prezada<br />
princesa Mary Kevin David: Sinto-me profundamente honrado com a sua escolha da<br />
minha pessoa para receber US$2.000.000. Mas lamento informar que, por razões<br />
religiosas, não posso aceitá-los. Fiz votos de obediência, castidade e pobreza e não<br />
posso quebrá-los. Sua oferta me faria um homem rico. Mas estou destinado a ser<br />
pobre. Deus não me perdoará se eu quebrar o meu voto. Portanto eu rejeito sua<br />
generosa doação por medo do fogo eterno do Inferno. Humildemente, <strong>Rubem</strong><br />
<strong>Alves</strong>”.<br />
Fraqueza masculina<br />
O conto do vigário mais comum dirige-se aos homens. São muitas as empresas que<br />
o oferecem. Se oferecem, é porque é bom negócio. Transcrevo: “De: Thomas Bean,
ubrksqhf@partysone-berlin.de – Revolução sensacional na medicina. Aumente o<br />
seu pênis até 10 centímetros ou 4 polegadas. É uma solução herbal que não tem<br />
efeitos colaterais mas tem resultados 100% garantidos. Clique aqui: http://monkcotton.info”.<br />
Outro: “Ele é grande que chegue? 68% das mulheres dizem que o<br />
pênis dos seus amantes não é grande que chegue. Você é um deles? Nossos<br />
médicos desenvolveram uma pílula que vai fazê-lo crescer até 3 polegadas.<br />
Resultados 100% garantidos”. O mercado para esse remédio milagroso é<br />
inimaginável. Os homens sofrem muito... O sofrimento os torna bobos. Pagam, ele<br />
fica como era e não se pode reclamar, por vergonha...<br />
Memória<br />
A memória, por vezes, é uma maldição. Meu querido amigo Amilcar Herrera me<br />
confessou: “Eu desejaria, um dia, acordar havendo me esquecido do meu nome...”.<br />
Não entendi. Esquecer o próprio nome deve ser uma experiência muito estranha. Aí<br />
ele explicou: “Quando me levanto e sei que meu nome é Amilcar Herrera, sei<br />
também tudo o que se espera de mim. O meu nome diz o que devo ser, o que devo<br />
pensar, o que devo falar. Meu nome é uma gaiola em que estou preso. Mas se, ao<br />
acordar, eu tiver me esquecido do meu nome, terei me esquecido também de tudo<br />
que se espera de mim. Se nada se espera de mim, estou livre para ser aquilo que<br />
nunca fui. Começarei a viver minha vida a partir de mim mesmo e não a partir do<br />
nome que me deram e pelo qual sou conhecido”. Entendi na hora e fiz ligação com<br />
algo que Alberto Caeiro escreveu: “Procuro despir-me do que aprendi, procuro<br />
esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, e raspar a tinta com que me<br />
pintaram os sentidos, desencaixotar minhas emoções verdadeiras, desembrulharme<br />
e ser eu, não Alberto Caeiro, mas um animal humano que a natureza produziu”.<br />
Roland Barthes, na sua famosa “Aula”, também disse estar se entregando à<br />
desaprendizagem do aprendido para livrar-se das sucessivas sedimentações dos<br />
saberes que, com a passagem do tempo, vão se depositando em nossos corpos.<br />
Aconteceu comigo: sem nenhum esforço, sem que eu quisesse, repentinamente, eu<br />
me esqueci. Tive um ataque de amnésia. Não me esqueci do meu nome nem do<br />
nome das pessoas nem das ideias. Esqueci-me dos espaços. Coisa semelhante já<br />
havia acontecido com uma querida amiga, professora de neuroanatomia, doutora<br />
nos caminhos complicadíssimos do sistema nervoso. Acordou, olhou em volta e<br />
desconheceu. Que lugar é este? Onde estou? Foi até a porta e a abriu<br />
cuidadosamente. Olhou para um lado, olhou para o outro: um longo corredor com<br />
portas. Podia ser um hotel. Ou um mosteiro. Não teve coragem de sair e perguntar:<br />
“Por favor, digam-me onde estou!”. O outro morreria de susto. Entrou e fechou a<br />
porta. Resolveu pesquisar. Abriu a bolsa. Lá estava o passaporte. Dólares. Estava
num país estrangeiro. Carimbo de Portugal. Estava em Portugal. Mas onde? Para<br />
quê? Lembrou-se de um amigo. Telefonou-lhe. “Está lá?” Dali a pouco lá estava o<br />
amigo para salvá-la. A amnésia durou pouco. Recuperou a memória. O que a<br />
causou? Os exames nada revelaram. Assim me aconteceu. De repente, eu perdi a<br />
noção do espaço. Desconheci caminhos. Fechava as portas quando deveria abri-las.<br />
Ia para a direita quando deveria ir para a esquerda. <strong>Feliz</strong>mente eu não estava só.<br />
Me levaram para o hospital com medo de que estivesse tendo algo grave, como um<br />
AVC. Mas eu estava com saúde. Passado algum tempo, voltei ao mundo meu<br />
conhecido.<br />
Brinquedos<br />
Todo mundo sabe que os brinquedos me fazem feliz. Pois uma amiga de Vitória da<br />
Conquista me enviou um brinquedo dentro de uma caixa. Eis o que escreveu a<br />
Edméa: “Em janeiro, quando terminei de ler o seu livro Quando eu era menino<br />
mandei-lhe uma correspondência. Hoje volto a escrever-lhe para falar sobre um<br />
presente que estou lhe enviando. Trata-se de uma linda carroça, feita por uma<br />
criança negra de 85 anos que... demonstra muito talento e meticulosidade no fazer<br />
arte”. Aí ela me conta que, ao comprar uma carroça para presentear um neto, ela<br />
se lembrou de uma outra criança... eu! A carroça com o cavalo está sobre a minha<br />
mesa. É um brinquedo delicioso. Só de ver eu sorrio. A Edméa conhece a minha<br />
alma. Obrigado! Tenho dó dos adultos que assumiram a máscara de adultos, que<br />
se identificaram com isso que a sociedade fixou como normalidade para pessoas de<br />
uma certa idade. Há uns dias, lendo um livro de um educador português, dei-me<br />
conta de que Picasso nunca fez uma pintura cubista de uma criança. Todas as suas<br />
crianças são extraordinariamente belas. E ele mesmo se sentia como criança.<br />
“Nasci pintando como Rafael”, ele declarou, “e custou-me a vida toda aprender a<br />
pintar como uma criança”. Mas tenho uma tristeza: jogaram fora a caixa com o<br />
endereço da Edméa! E o envelope e a carta que vieram dentro da caixa não têm o<br />
endereço. Como é que vou agradecer? Se alguém souber o endereço da Edméa de<br />
Vitória da Conquista que me avise!<br />
Pássaros leem jornais<br />
O Carlos Rodrigues Brandão me deu um livro, faz tempo, que ainda não li. O título<br />
é: A linguagem dos pássaros. Nunca levei o dito a sério porque era minha firme<br />
convicção que passarinho não tem linguagem. Pois mudei de ideia. Eles não só<br />
falam como também leem os jornais. Tive prova disto, prova que não se pode<br />
contestar. Eu me queixei, numa de minhas crônicas, da ausência dos pássaros no
meu apartamento, a despeito do jardim que a Raquel, minha filha, pôs na varanda.<br />
Aventei a hipótese de que é porque moro no oitavo andar, talvez seja altura<br />
demais. Guimarães Rosa diz que, no sertão, só há duas alturas: altura de urubu ir e<br />
altura de urubu não ir. Fiquei pensando que, aqui no oitavo andar, só os urubus. A<br />
crônica saiu num domingo. Na segunda-feira, ao chegar em casa do trabalho no<br />
final do dia, lá estava, na sala, atendendo à minha queixa, um beija-flor<br />
empoleirado no lustre. O bichinho se assustou. Como se sabe, os homens são os<br />
seres que perderam a confiança dos pássaros. Ele se pôs a voar de um lado para<br />
outro, desorientado, sem saber onde estava a saída. Tentei pegá-lo. Inutilmente.<br />
Aí ele se refugiou no banheiro. Fechei a porta, subi numa cadeira e finalmente o<br />
segurei com palavras tranquilizantes. Ele não acreditou e até deixou várias penas<br />
na minha mão. Desci da cadeira, fui até a varanda e o soltei. Ele partiu como uma<br />
flecha. Ah! Como me senti feliz! Pois, no dia seguinte, a coisa se repetiu: não com<br />
o beija-flor, mas com uma curruíra. Ela não entrou no apartamento, mas ficou<br />
saltitando na minha mini-imitação dos jardins suspensos da Babilônia. Peguei as<br />
peninhas do beija-flor, azuis, amarrei-as com um fio e as pendurei no bambu do<br />
jardim, como mensagem de paz. Quero que os pássaros confiem em mim. Vocês<br />
não concordam comigo que o fato de um beija-flor e uma curruíra terem me<br />
visitado no meu apartamento é prova cabal de que leem jornal? Por que é que<br />
foram aparecer justo no dia seguinte ao da minha queixa? E fiquei feliz por saber<br />
que eles leem o que eu escrevo...<br />
Ninho<br />
Gaston Bachelard é um homem que amo pela erudição, simplicidade e poesia.<br />
Erudição e simplicidade, que coisa rara! A erudição de Bachelard está sempre<br />
escondida, para não atrapalhar. Erudição escancarada é sempre despudorada,<br />
pornográfica, ofensiva. A poética do espaço: esse é o título que deu a um dos seus<br />
livros. Poética do espaço? O espaço fica poético quando um homem o modela.<br />
Quem constrói uma casa faz um poema. Por isso enchemos as casas de plantas, de<br />
quadros, de música, de livros. E que dizer da poética das gavetas, dos cofres e<br />
armários? Ah! Quanta poesia as gavetas podem conter, especialmente aquelas que<br />
são trancadas a chave! A concha, casa assombrosa dos moluscos, os cantos, a<br />
imensidão íntima: todos esses espaços estão cheios de poesia. <strong>Faz</strong> uns dias,<br />
olhando o jardim que minha filha Raquel plantou na pequena varanda do meu<br />
apartamento, lembrei--me de um parágrafo seu que me comoveu: “Ergo<br />
suavemente um galho; um pássaro está ali chocando os ovos. Não levanta voo.<br />
Somente estremece um pouco. Tremo por fazê-lo tremer. Tenho medo que o<br />
pássaro que choca saiba que sou um homem, o ser que deixou de ter a confiança
dos pássaros. Fico imóvel. Lentamente se acalma – imagino eu! – o medo do<br />
pássaro e o meu medo de causar medo. Respiro melhor. Deixo o galho voltar ao<br />
seu lugar. Voltarei amanhã. Hoje, trago comigo uma alegria: os pássaros fizeram<br />
um ninho no meu jardim”. Lembrei-me desse parágrafo porque estou recebendo<br />
visitas regulares de um beija-flor e de uma curruíra. Minha alegria: quem sabe eles<br />
farão ninhos no meu jardim!<br />
Data show<br />
Sempre que vou falar em algum lugar, o pessoal técnico me pergunta, com<br />
antecedência, se vou usar data show. Se você não sabe, data show é uma<br />
expressão americana. Falar em inglês é mais avançado tecnologicamente. Show<br />
que dizer “mostrar”. E data que dizer “dados”. Trata-se de um artifício para mostrar<br />
dados, que são projetados em uma tela numa sala escura. Acho que o data show<br />
pode ser útil para mostrar dados. Mas o uso que dele se faz é horrível: os<br />
palestrantes o usam para projetar na tela os itens ou esboço da sua fala,<br />
eliminando dela qualquer surpresa, pois é claro que os ouvintes, de saída, leem o<br />
esboço até o fim. É como contar o fim da piada no início... Apagam-se as luzes, o<br />
palestrante e os ouvintes olham todos para a tela, e ele vai falando. Ninguém<br />
presta atenção. Mas todos acham que usar data show é prova de ser avançado,<br />
tecnologicamente. Quem não usa é atrasado. Quem leva suas notas num<br />
caderninho é como alguém que anda de carro de boi num mundo de Fórmula Um.<br />
Assim vão os palestrantes, todos com seus laptops, para a sessão de cineminha<br />
sem graça. Falando sobre isso, uma mulher que trabalha num firma promotora de<br />
eventos contou-me qual a maior vantagem dos data show, uma coisa em que eu<br />
não havia pensado: com as luzes apagadas, longe do olhar do palestrante, os<br />
ouvintes podem dormir à vontade. Contou-me de uma ocasião em que um homem<br />
dormiu e roncou tão alto que chegou a perturbar palestrante e ouvintes. Todo<br />
mundo se pôs a rir. Barulho de ronco é muito divertido... Mas ela foi obrigada a<br />
tomar providências. Tinha de fazer algo para pôr fim aos roncos. E o que ela fez,<br />
sádica e humoristicamente, foi colocar um microfone perto da boca do roncador. Aí<br />
ele acordou-se a si mesmo.<br />
Habilidades excepcionais<br />
Antigamente se usava chamar de “excepcionais” as pessoas deficientes. De fato,<br />
elas são exceções, em meio à dita normalidade. Hoje essa palavra não é mais<br />
usada. Mas eu gosto dela na expressão “habilidades excepcionais”. Foi criada por<br />
um empresário do Paraná para se referir às habilidades excepcionais que os
deficientes desenvolvem. “O boy da minha empresa”, ele me disse, “não tem os<br />
dois braços. Sendo deficiente de braços ele desenvolveu habilidades excepcionais<br />
com as pernas. Anda com uma velocidade... Vai para os bancos com a bolsa de<br />
cheques pendurada no pescoço. Quem vai assaltar o moço sem braços? Não paga<br />
ônibus. E ainda por cima não fica na fila...” Ele fabricava capas para vídeos.<br />
Contou--me que as capas de vídeos, ao sair das formas, têm rebarbas que devem<br />
ser eliminadas. Ele descobriu que os cegos são muito mais rápidos em identificar as<br />
rebarbas que os “videntes”. Basta correr a mão. Sendo cegos, desenvolveram<br />
habilidades excepcionais com o tato. Já os paraplégicos realizam com muita<br />
competência a tarefa de ascensoristas de elevador...<br />
Inteligência brilhante<br />
Tive um primo de inteligência fulgurante. Éramos da mesma idade. Aos oito anos<br />
brincávamos de soldadinhos de chumbo. Mas seu prazer era um dicionário<br />
comparativo de português, francês, inglês e alemão que estava fazendo. Eu olhava<br />
para aquele livro enorme de capa preta, daqueles que os contadores usavam para<br />
registrar a contabilidade de firmas, cada página dividida em quatro colunas, uma<br />
para cada língua. Na escola, quando tirava 98 numa prova ele batia com a palma<br />
da mão na testa em desespero e dizia: “Fracassei”. Dele jamais se poderia dizer<br />
que foi mau aluno. Seu brilho prometia uma vida de vitórias. Adulto, pela manhã,<br />
ao levantar, o seu primeiro gesto era ligar a fita da língua que estava aprendendo.<br />
Veio a conhecer doze línguas. Não sei direito para quê. Que utilidade poderia lhe<br />
ter a língua húngara? Os benefícios de falar húngaro eram desproporcionais ao<br />
esforço de aprendizagem. Como psicanalista, eu pergunto: Será que ele estava em<br />
busca da língua desconhecida que lhe permitiria entender a Babel da sua alma?<br />
Muitos brilhos são chamas de um coração infeliz. Lançou-se do sétimo andar de um<br />
prédio. Não suportou o sentimento de fracasso que lhe deu um discurso – pelos<br />
seus critérios, o tal discurso não era merecedor da nota 10. Matou-se por não<br />
suportar a vergonha de um pequeno fracasso. Esse é o perigo de querer ser<br />
perfeito. Não conheço nenhum estudo que explore as relações entre genialidade e<br />
loucura. Mas deve haver. Conheci um homem que se vangloriava por ter um QI<br />
acima de 200. E trazia sempre consigo a carteira de Membro dos Gênios de QI<br />
acima de 200. Acho que para certificar-se de que era inteligente. Quando os outros<br />
não concordavam com ele julgava-os burros e ele, um incompreendido. Autoritário.<br />
Quem se julga possuidor de QI 200 e se gaba disso tem de ser autoritário. Não<br />
saltou do 7o andar apesar de ser um chato presunçoso. Não sei onde andará.<br />
Suspeito que tenha se mudado para o país dos homens com QI acima de 200.
Patativa do Assaré<br />
Que homem extraordinário! Leia esse poeminha e você virará um poeta: “Pra gente<br />
aqui ser poeta/ Não precisa professor./ Basta vê no mês de maio/ Um poema em<br />
cada gaio/ Um verso em cada fulô”.<br />
O sucesso<br />
A moda é o sucesso. Um famoso conferencista anuncia com letras enormes: “O seu<br />
lugar é o pódio”. Imaginemos que assim seja. Jogos Olímpicos. Corrida de 100<br />
metros rasos. Aí ele diz para todos: “O seu lugar é o pódio!”. Os corredores<br />
disparam. Só um deles arrebenta a fita. Nas Olimpíadas, são pouquíssimos os que<br />
vão para o pódio. Isso vale para a vida inteira. Então, alguma coisa está errada. O<br />
mais provável é que o dito conferencista esteja mentindo para manter-se no pódio<br />
à custa da credulidade das pessoas. Quem acredita que o seu lugar é o pódio está<br />
sempre estressado, competindo, tentando passar na frente. Quem não tem<br />
pretensões ao pódio vive uma vida mais alegre. Não é preciso chegar na frente.<br />
Mas há uma seita que anuncia como palavra de Deus: “Você está destinado ao<br />
sucesso!”. Não sei onde descobriram isto. Pelo menos o Deus cristão não promete<br />
sucesso para ninguém.<br />
O pianista<br />
O filme O pianista provocou em mim sentimentos contraditórios. Primeiro foi a sua<br />
beleza trágica: a história de um homem que, em meio ao maior sofrimento,<br />
sobrevive alimentando-se com a beleza da música. É comovedor o momento em<br />
que ele se encontra com o oficial alemão e ele lhe pede que toque alguma coisa.<br />
Confesso que fiquei com medo que suas mãos, de tanto sofrer, tivessem se<br />
esquecido. Mas parece que a beleza é eterna. E ele toca a Balada no 1 em sol<br />
menor, de Chopin. Naquele momento, a diferença que os separava, ele, um judeu<br />
perseguido, e o oficial alemão, um nazista perseguidor, deixa de existir. Os dois<br />
eram um na beleza. O segundo sentimento foi uma mistura de raiva e tristeza.<br />
Pois, ao final, o último momento, quando o suspense havia sido resolvido e ele toca<br />
a Grande Polonaise – como se estivesse dizendo: “Esta é a razão da minha vida!”<br />
–, os espectadores começaram a deixar o cinema, como se a música não<br />
importasse. Prova de que não haviam entendido absolutamente nada. Pensaram<br />
que o filme havia terminado com a conclusão da ação. Não entenderam que a<br />
conclusão da ação levava precisamente àquele momento, o momento supremo: a<br />
razão da vida do pianista: a beleza. Aí me lembrei de um ditado triste de Jesus:
“não lanceis as vossas pérolas aos porcos...”. Nessa semana que se passou tive a<br />
experiência oposta. O filme havia realmente terminado. Tudo o que era para ser<br />
dito havia sido dito. A tela começou a mostrar os nomes dos técnicos que haviam<br />
trabalhado na produção. Era hora de ir embora. Mas ninguém se mexeu. O público<br />
estava paralisado. Paralisado pela beleza, pela bondade, pela humanidade, pela<br />
simplicidade. E, quando as luzes se acenderam, a platéia explodiu em aplausos.<br />
Tratava-se da história comovente e simples de dois jovens, estudantes de<br />
medicina. Antes de terminar o seu curso resolveram fazer uma aventura: viajar,<br />
com pouco dinheiro, numa motocicleta velha, a “Poderosa”, de Buenos Aires até a<br />
Venezuela, para conhecer o nosso continente, a América Latina. Os cenários são<br />
maravilhosos. A fotografia, lindíssima. Mas o que comove é a experiência humana,<br />
o contato com a prepotência dos ricos e a impotência dos pobres, os mineiros de<br />
face dura e triste, os leprosos deformados. Do princípio ao fim, o filme é uma<br />
experiência humana linda em que se misturam risos e choro. Não existe ação, no<br />
sentido que os americanos dão a esta palavra. Nenhum suspense de violência,<br />
nenhuma pregação ideológica. O que há de suspense angustiante são as crises de<br />
asma de um deles, o mais moço, Ernesto. O nome do filme é Diários de<br />
motocicleta, extraído do diário que o jovem asmático de 24 anos de idade, Ernesto<br />
Guevara, escreveu durante a viagem.<br />
Ovo frito<br />
Gosto muito de ovo. Ovo frito. Ovo escaldado, com pão torrado. Coisa boba, o fato<br />
é que comecei a pensar sobre as razões por que gosto de ovo. Lembrei-me... Meu<br />
pai era viajante. Passava a semana fora de casa. Voltava às sextas-feiras, no trem<br />
das oito. Noite escura, o trem das oito vinha apitando na curva, resfolegando de<br />
cansado, expelindo enxames de vespas vermelhas, chamuscava uma paineira,<br />
entrava na reta, passava a dez metros da nossa casa, todos nós estávamos lá, o<br />
pai com a cabeça de fora, sorrindo, e todos corríamos para a estação. Ele vinha<br />
com fome e sujo. Água quente não havia. Mas não tinha importância. Da leitura do<br />
Evangelho havíamos aprendido de Jesus, no lava-pés, que quem está com os pés<br />
limpos tem o corpo inteiro limpo. A coisa, então, era lavar os pés. E esse era o<br />
costume geral lá em Minas. Minha mãe esquentava água no fogão de lenha, punha<br />
numa bacia e eu lavava os pés do meu pai. Depois de limpo, ele se assentava à<br />
mesa e o que tinha para comer era sempre a mesma coisa: arroz, feijão, molho de<br />
tomate e cebola, ovo frito e pão. Ele me punha assentado ao joelho e comia junto.<br />
Ah, como é gostoso comer pão ensopado no molho de tomate, pão lambuzado no<br />
amarelo mole do ovo! Era um momento de felicidade. Nunca me esqueci. Acho que<br />
quando enfio o pão no amarelo mole do ovo eu volto àquela cena da minha
infância. Os poetas, somente os poetas, sabem que um ovo é muito mais que um<br />
ovo...<br />
O olhar<br />
Geórgia O’Keeffe foi uma pintora norte-americana. Seus quadros são assombrosos!<br />
Porque seus olhos são assombrosos! “Ninguém vê uma flor, realmente”, ela<br />
observou certa vez. “A flor é tão pequena... Não temos tempo e o ato de ver exige<br />
tempo, da mesma forma como ter um amigo exige tempo.” O ver, como fenômeno<br />
físico, acontece instantaneamente. Basta abrir os olhos... A luz toca a retina e a<br />
imagem se forma nalgum lugar do cérebro. Igual ao que acontece com a máquina<br />
fotográfica. Mas há um outro ver que não é coisa dos olhos. Como quando se<br />
contempla uma criança adormecida. A visão de uma criança adormecida nos<br />
acalma. <strong>Faz</strong>-nos meditar. O olhar se detém. Acaricia vagarosamente. O olhar se<br />
torna, então, uma experiência poética de felicidade. Sentimos que a criança que<br />
vemos dormindo no berço dorme também na nossa alma. E a alma fica tranquila,<br />
como a criança. É por isso que, mesmo depois de apagada a luz, ida a imagem<br />
física, vai conosco a imagem poética como uma experiência de ternura.<br />
Orgulho<br />
Era de manhã. Caminhava por uma praça de La Paz com um grupo de amigos.<br />
Mulheres índias haviam montado suas pequenas bancas de comércio e ofereciam<br />
os seus produtos. Uma delas vendia laranjas. Seu estoque não ultrapassava vinte<br />
laranjas. Pensamos em proporcionar-lhe uma grande alegria. Compraríamos todas<br />
as laranjas. “Não posso vender todas as laranjas agora”, ela disse. “Posso vender<br />
no máximo dez.” “Por quê?”, perguntamos surpresos. “Se eu vender todas as<br />
minhas laranjas agora, o que é que vou fazer no resto do meu dia?” Ela não estava<br />
lá para vender laranjas. Estava lá para ter o orgulho de ser proprietária de um<br />
estabelecimento comercial. Se vendesse todas as suas laranjas, ela ficaria sem um<br />
negócio e com isso seria roubada da sua dignidade.<br />
Patos selvagens<br />
Era uma vez um bando de patos selvagens que voava nas alturas. Lá em cima era<br />
o vento, o frio, os horizontes sem fim, as madrugadas e os poentes coloridos. Tudo<br />
tão bonito! Mas era uma beleza que doía. O cansaço do bater das asas, o não ter<br />
casa fixa, o estar sempre voando e as espingardas dos caçadores... Foi então que<br />
um dos patos selvagens, olhando lá das alturas para a terra aqui embaixo viu um
ando de patos domésticos. Eram muitos. Estavam tranquilamente deitados à<br />
sombra de uma árvore. Não precisavam voar. Não havia caçadores. Não<br />
precisavam buscar o que comer: o seu dono lhes dava milho diariamente. E o pato<br />
selvagem invejou os patos domésticos e resolveu juntar-se a eles. Disse adeus aos<br />
seus companheiros, baixou seu voo e passou a viver a vida mansa que pedira a<br />
Deus. E assim viveu por muitos anos. Até que... Até que, num ano como os outros<br />
chegou de novo o tempo da migração dos patos. Eles passavam nas alturas, no<br />
fundo do azul do céu, grasnando, um grupo após o outro. Aquelas visões dos patos<br />
em voo, as memórias de alturas, aqueles grasnados de outros tempos começaram<br />
a mexer com algum lugar esquecido dentro do pato domesticado, o lugar chamado<br />
saudade. Uma nostalgia pela vida selvagem, pelas belezas que só se veem nas<br />
alturas, pelo fascínio do perigo... Até que não foi mais possível aguentar a saudade.<br />
Resolveu voltar a ser o pato selvagem que fora. Abriu suas asas, bateu-as para<br />
voar, como outrora... mas não voou. Caiu. Esborrachou-se no chão. Estava gordo<br />
demais. E assim passou o resto de sua vida: em segurança, gordo de barriga cheia,<br />
protegido pelas cercas e triste por não poder voar...<br />
Dentaduras<br />
Meu dentista me contou que em tempos antigos as dentaduras se faziam com<br />
dentes arrancados aos escravos. E como não havia técnicas para fazer com que as<br />
dentaduras se encaixassem sob pressão nas gengivas, um dentista imaginoso fez<br />
dentaduras articuladas uma com a outra, mantidas abertas por meio de molas.<br />
Essas dentaduras, ao contrário das modernas, que permanecem discretamente<br />
fechadas quando fora da boca, dentro do copo d’água, estavam permanentemente<br />
abertas, prontas a morder.<br />
Caras<br />
Em situações de tédio somos capazes de ler as coisas mais absurdas. Numa cela de<br />
penitenciária, vazia, o prisioneiro lê até rótulo de pasta dental. Eu já li bula de<br />
remédio numa viagem de ônibus. Pois eu estava na sala de espera do meu<br />
dentista. Houve atraso, não por culpa dele. Eu tinha de matar o tempo. Na mesa,<br />
pilhas da revista Caras. Nunca havia me interessado por ler uma, embora soubesse<br />
da sua fama. Folheando, vi que havia palavras cruzadas. Um bom passatempo. Mas<br />
todas já estavam resolvidas. E eram muito fáceis. Resolvi, então, ir à substância da<br />
revista. Achei-a muito interessante. A pessoa que a criou deve ser um gênio.<br />
Podem imaginar uma revista que é sempre igual, tratando sempre de um mesmo<br />
assunto, e é comprada semanalmente por milhares de leitores famintos? Podem
imaginar um público que coma sempre a mesma comida? A pessoa que imaginou a<br />
Caras descobriu a comida que, sendo sempre a mesma, é comida sempre, com<br />
prazer. Pois todas as Caras, sem exceção, tratam de um único assunto: sorrisos de<br />
socialites. Cada revista é um caleidoscópio de sorrisos. Aí propus-me um jogo:<br />
contar quantos sorrisos estavam publicados na revista que eu tinha nas mãos. Fui<br />
rigoroso. Sorrisinho de boca fechada não valia. Só valia sorriso mostrando os<br />
dentes. Comecei a contar. No princípio foi fácil: um, dois, três. Mas quando cheguei<br />
aos cem ficou complicado: cento e sessenta e quatro. A língua começou a tropeçar.<br />
Tive de ir mais devagar. Lamentei que o meu instrumental de pesquisa não me<br />
permitisse distinguir sorrisos de dentes naturais dos sorrisos de dentadura. Como já<br />
informei, nas primeiras dentaduras, os dentes eram arrancados dos escravos.<br />
Escravo banguela, senhor sorridente... Quando o dentista me chamou, eu já havia<br />
contado todos os sorrisos dentais de metade da revista, muito grossa: trezentos e<br />
setenta e cinco. Abandonei a revista com tristeza. A pergunta continua a me<br />
atormentar: quantos sorrisos? Sugiro que vocês que leem a Caras façam a mesma<br />
brincadeira e me enviem o resultado das suas pesquisas. Contar sorrisos é uma<br />
atividade muito educativa, terapêutica, mesmo. Ao final, vocês também estarão<br />
não sorrindo, mas rindo. Sorrisos fotográficos têm sempre uma pitada de ridículo,<br />
por serem todos produzidos automaticamente quando o fotógrafo diz “cheese”.<br />
Compreendi, então, as razões para o fracasso da revista Bundas, criação de Ziraldo<br />
e companhia. É que bundas não sabem sorrir, não têm dentes a exibir, muito<br />
embora o Drummond, no seu livro O amor natural, tenha escrito, página 25: “A<br />
bunda, que engraçada. Está sempre sorrindo. Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz na<br />
carícia de ser e balançar...”.<br />
Linguagem dos mudos<br />
Quando eu era menino, com os meus colegas de escola aprendemos, por conta<br />
própria, a linguagem dos surdos-mudos, e assim conversávamos entre nós. Lição<br />
aos pedagogos: criança, quando quer, aprende, especialmente se a coisa não for<br />
lição de casa. Ainda hoje me lembro. Consigo falar com as mãos. Coisas simples.<br />
Ler é mais difícil. É preciso que a conversa seja vagarosa. Pois visitando o Instituto<br />
Metodista de Lins, um grupo de adolescentes me apresentou um colega surdomudo.<br />
Eu o saudei na linguagem dos surdos-mudos. O sorriso dele foi maravilhoso!<br />
Ficamos amigos sem um único som. O mesmo aconteceu, faz poucos dias, no caixa<br />
do Pão de Açúcar. Fiz uma brincadeira com o jovem que estava pondo minhas<br />
compras nos sacos plásticos e ele não disse nada. Aí a caixa explicou: “É surdomudo...”.<br />
Falei com ele em linguagem dos surdos-mudos. De novo, foi aquela<br />
alegria! Não seria legal se as crianças e adolescentes, por puro prazer,
aprendessem o alfabeto dos surdos-mudos? Não se aprende inglês e francês?<br />
Deveriam aprender, nas escolas, como parte de um projeto de inclusão.<br />
Excelentíssimo<br />
Ando pesquisando coisas antigas da terra onde nasci, Dores da Boa Esperança, à<br />
procura de vestígios da minha infância. Pois ontem, fuçando umas pastas velhas,<br />
encontrei lá uns jornais de antigamente, muito antes de eu nascer. Acho que os<br />
médicos de hoje fariam bem em se informar sobre os remédios daquele tempo que<br />
eram muito mais maravilhosos que os remédios de agora. Hoje, quando se toma<br />
um remédio, não se sabe quem o fez. Não há, portanto, um jeito de fazer a<br />
reclamação à pessoa responsável, caso o remédio não funcione. Naqueles tempos,<br />
os remédios traziam no rótulo o retrato do inventor da poção curativa. Tal é o caso<br />
do miraculoso remédio Elixir de Nogueira, um “santo remédio”, eficaz no<br />
tratamento de “escrófulas, darthros, boubas, inflamações do útero, corrimento dos<br />
ouvidos, gonorrhéas, fístulas, espinhas, cancros venéreos, rachitismo, flores<br />
brancas, úlceras, tumores, sarnas, rheumatismo em geral, manchas da pelle,<br />
affecções do fígado, dores no peito, tumores nos ossos, latejamento das artérias”<br />
(jornal A Esperança, Dores da Boa Esperança, 23 de outubro de 1927, p. 4). Agora<br />
me digam: que remédio moderno pode se comparar ao poder curativo do Elixir de<br />
Nogueira, atestado pela foto do dr. Nogueira, grande bigode retorcido nas pontas,<br />
óculos, colarinho e gravata? Os óculos sempre foram marca dos cientistas. Cientista<br />
sem óculos não é digno de crédito... Mas, examinando as notícias no miúdo nota-se<br />
que todas as pessoas eram “excelentíssimas” e “ilustríssimas”. Os que viajavam<br />
eram sempre o ilustríssimo senhor Fulano de Tal com sua excelentíssima esposa...<br />
Os juízes eram “meritíssimos”, isto é, portadores de méritos incontáveis. Contoume<br />
um juiz amigo que numa audiência numa cidade do interior o advogado insistia<br />
em chamá-lo de “meretríssimo”, tratamento insólito que lhe causou sério problema<br />
facial: ele não sabia se o advogado estava a ofendê-lo, chamando-o de “filho da<br />
puta”, caso em que ele deveria fechar a cara, ou se o advogado era apenas um<br />
pobre-diabo que não sabia o sentido das palavras, caso em que o seu rosto se<br />
abriria numa risada... Incapaz de concluir, ele optou pela postura indiferente,<br />
clássica no rosto dos juízes. Mas o que me levou a esta excursão foi o fato de um<br />
“meretríssimo”, convencido da sua grande importância, haver entrado na Justiça<br />
com uma ação contra os funcionários do edifício em que mora, posto que eles,<br />
ignorantes da sua excelência, não o tratavam com os devidos “doutor”,<br />
“excelentíssimo”, “ilustríssimo”. Esse juiz, ao que me parece, coloca paletó e<br />
gravata para defecar e usa fraque e cartola para perpetuar os coitos exigidos pelas<br />
obrigações conjugais, se é que o faz. Imagino que ele seja juiz por competência,
isto é, passou nos exames. O que é prova cabal de que o conhecimento das leis<br />
não é garantia da sabedoria do juiz. Como dizia um homem sábio, na cidade onde<br />
nasci, “duas são as coisas em que não se pode confiar: bunda de criança e cabeça<br />
de juiz...”. Se ele deu entrada nessa ação, imagino, é que deve haver dispositivos<br />
legais para obrigar as pessoas ao tratamento devido, meritíssimo, magnífico,<br />
reverendíssimo, ilustríssimo, excelentíssimo, doutor. Pergunto aos conhecedores da<br />
lei se não haverá dispositivos legais que punam pessoas que usam títulos sem<br />
possuí-los. Um bacharel pode colocar placa de doutor? Engenheiro é doutor?<br />
Lembro-me de um homem, também lá em Minas, que queria ser doutor a qualquer<br />
preço. Para ele, ser doutor era ter diploma de engenheiro agrônomo. Tirou o<br />
diploma. Mas o tiro saiu pela culatra. De caçoada, deram-lhe o apelido de Zé<br />
Doutor. Quando vejo escrito na capa de um livro, como autor, Doutor Fulano de<br />
Tal, não consigo esconder o riso. É uma pena que a lei não tenha provisões para<br />
punir a estupidez e a presunção.<br />
Desembarcar<br />
Bernardo Soares escreveu que nosso problema está em nossa incapacidade de<br />
desembarcar de nós mesmos. É inútil ir até a China se não saímos da bolha onde<br />
vivemos. Tudo o que virmos e pensarmos nessa viagem será uma repetição da<br />
nossa mesmice. Isso vale para viagens. E vale também para a leitura. Porque toda<br />
leitura é uma viagem por um mundo desconhecido. Não, isso que escrevi não está<br />
certo. Há livros que não nos levam a viajar por mundos desconhecidos. Eles apenas<br />
repetem a nossa mesmice. Por isso são de leitura fácil. Há alguns anos, quando<br />
estive preso numa cadeira por causa de uma operação de hérnia de disco, pus-me<br />
a ler uma série de livros que tinham estado à espera, numa prateleira. Mas eles<br />
davam canseira na cabeça de um homem que estava doente. Quem está doente<br />
não quer viajar. Mudei-me então para os policiais da Agatha Christie. Leitura para<br />
passar o tempo, porque não era preciso pensar. Todos eles são iguais. E eu ficava<br />
no meu mundinho. Para se entender um livro de outro mundo, a primeira condição<br />
é sair do nosso mundo. Isso exige uma decisão preliminar: “Vou, provisoriamente,<br />
num jogo de faz de conta, parar de ter minhas ideias. Vou desembarcar do meu<br />
mundo. Vou entrar no mundo do autor. Vou aprender a sua língua...”. Se eu não<br />
fizer isso não terei condições de entendê-lo, se for o caso, ainda que para discordar<br />
dele honestamente. Se eu parto do pressuposto de que o autor só diz besteiras eu<br />
só lerei besteiras – as que estavam dentro de mim. Lembro-me dos meus tempos<br />
de universidade: se alguém ia ler Max Weber, ia sabendo que ele era o “ideólogo<br />
da burguesia”. Se se ia ler Durkheim, sabia-se de antemão que ele era um<br />
“funcionalista conservador”. Para se ler Nietzsche é preciso antes ficar nu e tomar
um banho. Se vocês quiserem ler um exemplo de absoluta incompreensão de<br />
Nietzsche leiam o que Coplestone, padre jesuíta, disse dele na sua história da<br />
filosofia.<br />
Críticos<br />
Penso que um crítico de arte, ao se pronunciar sobre uma tela, uma música, um<br />
livro, uma escultura, deveria ter o cuidado de não dizer: “Essa obra é medíocre”,<br />
“Essa obra é genial”. Ao escrever assim, ele está fazendo uma afirmação sobre a<br />
verdade daquela obra. Mas o fato é que ele não sabe a verdade de coisa alguma.<br />
Muitas obras de arte hoje consideradas geniais foram ridicularizadas pelos críticos<br />
da moda. Segundo Karl Popper, nem mesmo a ciência sabe a verdade. A ciência só<br />
dá “palpites provisórios”, que são constantemente modificados. É preciso que os<br />
críticos se reconheçam como “palpiteiros”. Um crítico dá os seus palpites, opiniões,<br />
impressões, sentimentos acerca da obra sobre a qual escreve. Assim, um crítico<br />
cuidadoso e ético deveria dizer: “Penso que essa obra é medíocre”, “Penso que<br />
essa obra é genial”. Porque assim ele estará honestamente comunicando os seus<br />
pensamentos sobre a obra e não a verdade sobre a dita obra. A sua crítica é<br />
apenas um pedaço dele mesmo, a “sua” obra de arte, as suas reações subjetivas à<br />
obra. Muitas obras que foram sentenciadas como medíocres por críticos do<br />
momento foram consideradas geniais posteriormente. Nos Primeiros cadernos, de<br />
Albert Camus (Lisboa, Livros do Brasil, p. 213), encontra-se o seguinte fragmento<br />
de uma carta que o escritor escreveu ao crítico literário A. R.: “Três anos para<br />
escrever um livro, cinco linhas para o ridicularizar – e citações falsas”. Albert Camus<br />
recebeu o Prêmio Nobel de Literatura no ano de 1957. A história provou que<br />
medíocre era o crítico.<br />
Estórias para crianças<br />
Frequentemente pessoas me perguntam sobre o “método” que uso para escrever<br />
uma estória para crianças. Houve uma que chegou a me perguntar sobre a “teoria”<br />
de que eu me valia... Coisa de gente acostumada aos jeitos universitários. Nem<br />
método nem teoria. Tudo começa com uma coceira. Coceira é coisa que incomoda.<br />
A coceira pode ser, por exemplo, a ansiedade de uma criança que vai ser operada.<br />
Ou a ansiedade de uma criança diante da sua diferença: ela se julga feia, é<br />
deficiente, tem um defeito físico. A dor da criança se transforma em coceira na<br />
gente. Aí eu começo a coçar e vou coçando, até sair sangue. Quando o sangue sai,<br />
a estória está pronta para ser escrita. Como dizia Nietzsche, é preciso escrever com<br />
sangue.
Sem inveja<br />
“O tico-tico não se ressente do canto da patativa, e até mesmo o aprova, achandoo<br />
melodioso. Mas, se não canto como você canta, você me chama de mentiroso.”<br />
(Angelus Silesius, século XVII)<br />
O que Deus ajuntou...<br />
<strong>Faz</strong> muito tempo que não assisto a um casamento, e quando assisto não presto<br />
muita atenção naquilo que o padre fala porque aqueles que foram contratados para<br />
fazer o vídeo e o álbum de fotografias não deixam. Mas é assim mesmo. A<br />
cerimônia do casamento existe só para ser filmada e fotografada. Quando os<br />
amigos fazem uma visita é hora de mostrar o álbum de fotografias e os vídeos. O<br />
que comprova que todos os casamentos são iguais. “Como a noiva estava linda!”<br />
Todas as noivas são igualmente lindas. Disseram-me que num país do Oriente (as<br />
coisas estranhas só acontecem em países do Oriente...) escolhem-se as damas de<br />
honra entre as moças mais feias – para que a beleza da noiva fique realçada.<br />
Nesse país, ser convidada para ser dama de honra é um desaforo. Divaguei. Disse<br />
tudo isso só para explicar que não estou certo das palavras tradicionais da liturgia.<br />
“Aquilo que Deus ajuntou não o separe o homem”: é isso? Se for, acho que está<br />
errado. O verbo está no imperativo. De acordo com a teologia católica, quem<br />
realiza o sacramento não é o padre. É o próprio Deus. Se é Deus que ajunta está<br />
vedado aos homens desfazer o nó que Deus deu. O fervor da Igreja sobre a<br />
questão da indissolubilidade do casamento não é derivada de um piedoso amor à<br />
família. O que está em jogo não é a família, é a Igreja. Aceitar o divórcio é rejeitar<br />
a teologia sacramental da Igreja, é rejeitar a própria Igreja. Assim, está proibido<br />
separar aquilo que Deus ajuntou, isto é, aquilo que a Igreja julga ter ajuntado. Eu<br />
proponho, entretanto, que o verbo, em vez de estar no modo imperativo, deve<br />
estar no modo indicativo: “Aquilo que Deus ajuntou não o separa o homem”. Se<br />
separou é porque Deus não ajuntou. Os portugueses se horrorizaram ao saber que<br />
os índios matavam as pessoas e as comiam. Os índios se horrorizaram ao saber<br />
que os portugueses matavam as pessoas e não as comiam. Tudo depende do<br />
ponto de vista.<br />
Composição da mesa<br />
Há muitas coisas que provocam a minha curiosidade. Por que os paletós dos<br />
homens têm três botões nas mangas? Parece não terem função alguma. Disseram-
me que os botões foram aí colocados porque os homens, mal-educados e antihigiênicos,<br />
tinham o costume de limpar os narizes esfregando-os na ponta da<br />
manga. As golas dos marinheiros, curiosas, quadradas, como um babador que se<br />
coloca nas costas, era isso mesmo, um babador ao contrário. Em tempos muito<br />
antigos, os marinheiros usavam tranças que lubrificavam com óleo de peixe. As<br />
tranças lubrificadas lambuzavam a blusa. Então, uma pessoa inteligente,<br />
provavelmente a lavadeira, teve a ideia de colocar uma gola nas costas com a<br />
função de babador. Outra coisa que desperta a minha curiosidade é: por que, nas<br />
solenidades, se faz uma coisa chamada “composição da mesa”, que não tem<br />
função alguma? Compor a mesa é chamar para se assentar no palco, atrás de uma<br />
mesa, as pessoas importantes. Tenho horror de mesas compostas!<br />
Escrito numa calçada<br />
“Cachorro educado não faz cocô no chão.” Como cachorros não sabem ler, é óbvio<br />
que essa mensagem se dirige aos seus donos. Os cachorros que os donos levam a<br />
passear são extensões dos seus donos. Assim sendo, não são os cachorros que<br />
fazem cocô no chão. São os seus donos. Os donos e donas que contemplam seus<br />
pets na ridícula posição que tomam para realizar o ato fisiológico – são eles<br />
mesmos que, por metonímia, estão na posição ridícula, defecando na cidade.<br />
Propaganda<br />
Vamos ver se você tem cabeça de propagandista, se você pode se candidatar a um<br />
emprego na empresa do Duda Mendonça. Vi essa propaganda de um carro numa<br />
revista, quando morei nos Estados Unidos. Um conversível vermelho, sem capota,<br />
num bosque. Você colocaria uma, duas, três, quatro ou nenhuma pessoa dentro do<br />
carro? E as duas portas? Estariam fechadas? As duas estariam abertas? Ou apenas<br />
uma aberta? Pense e dê o seu palpite. A solução vem depois.<br />
O que o sogro imaginou<br />
A estória me foi contada por um amigo, um homem sábio e manso, que conhece as<br />
coisas da alma humana. Aconteceu na sua cidade, faz muito tempo. Um moço<br />
visitava pela primeira vez a casa dos pais da sua namorada. Era uma visita<br />
importante. Precisava que os pais o aprovassem. Tudo transcorria agradavelmente<br />
quando ele se sentiu premido por uma inadiável necessidade fisiológica. Vermelho<br />
de vergonha pediu para ir ao banheiro. Foi e fez. Não imaginava que esse ato<br />
simples, democraticamente partilhado por todos e ditado por pressões intestinais
que se encontram fora do controle da razão, seria o fim da sua esperança de<br />
casamento. O pai da moça ficou furioso por sua petulância. E com um gesto<br />
definitivo pôs fim ao namoro. Esse relato me fez pensar. O que teria passado pela<br />
cabeça do pai da namorada? A única resposta que me ocorreu, resposta que só<br />
poderia ocorrer a um psicanalista, é que o pai se ofendeu porque o moço colocou<br />
as suas partes pudendas no mesmo lugar em que sua filha também colocava as<br />
suas partes pudendas. Diante dos seus olhos zelosos da pureza de sua filha teria<br />
ocorrido uma comunhão de partes pudendas nuas: as de sua filha e as do<br />
namorado. E ele imaginou que o namorado, ao olhar para a privada, tivesse<br />
imaginado: essa privada vê, diariamente, as partes deleitosas da minha amada.<br />
Que excitante! Moço atrevido, imoral e indecente. E, com essa conclusão, pôs fim a<br />
um amor... Tudo por causa de uma privada...<br />
Uma formiga<br />
Olhei para a tampa da minha escrivaninha. Vi uma formiga quase invisível. Não<br />
deveria ter mais que dois milímetros. A forma como corria indicava que estava<br />
perdida. Corria como tonta, em todas as direções. Pus os olhos de novo no micro.<br />
Escrevi. Olhei de novo. A pobrezinha continuava lá, correndo na mesma velocidade<br />
na direção da confusão. Ela não sabia onde está. Caiu, por obra de algum vento,<br />
nessa superfície lunar. Enfiei os cotovelos na mesa e fiquei a observá-la. Sua<br />
velocidade era assombrosa. Proporcionalmente, ela corre a uma velocidade maior<br />
que os bólidos de Fórmula Um. Pensei que aquela formiga era mais maravilhosa<br />
que o universo. O Manoel de Barros é mais radical: “o cu da formiga é mais<br />
importante que uma usina nuclear”.<br />
Sobre o ouvir<br />
O ato de ouvir exige humildade de quem ouve. E a humildade está nisso: saber,<br />
não com a cabeça mas com o coração, que é possível que o outro veja mundos que<br />
nós não vemos. Mas isso, admitir que o outro vê coisas que nós não vemos, implica<br />
reconhecer que somos meio cegos... Vemos pouco, vemos torto, vemos errado.<br />
Bernardo Soares diz que aquilo que vemos é aquilo que somos. Assim, para sair do<br />
círculo fechado de nós mesmos, em que só vemos nosso próprio rosto refletido nas<br />
coisas, é preciso que nos coloquemos fora de nós mesmos. Não somos o umbigo do<br />
mundo. E isso é muito difícil: reconhecer que não somos o umbigo do mundo! Para<br />
se ouvir de verdade, isso é, para nos colocarmos dentro do mundo do outro, é<br />
preciso colocar entre parêntesis, ainda que provisoriamente, as nossas opiniões.<br />
Minhas opiniões! É claro que eu acredito que as minhas opiniões são a expressão
da verdade. Se eu não acreditasse na verdade daquilo que penso, trocaria meus<br />
pensamentos por outros. E se falo é para fazer com que aquele que me ouve<br />
acredite em mim, troque os seus pensamentos pelos meus. É norma de boa<br />
educação ficar em silêncio enquanto o outro fala. Mas esse silêncio não é<br />
verdadeiro. É apenas um tempo de espera: estou esperando que ele termine de<br />
falar para que eu, então, diga a verdade. A prova disto está no seguinte: se levo a<br />
sério o que o outro está dizendo, que é diferente do que penso, depois de<br />
terminada a sua fala eu ficaria em silêncio, para ruminar aquilo que ele disse, que<br />
me é estranho. Mas isso jamais acontece. A resposta vem sempre rápida e<br />
imediata. A resposta rápida quer dizer: “Não preciso ouvi-lo. Basta que eu me ouça<br />
a mim mesmo. Não vou perder tempo ruminando o que você disse. Aquilo que você<br />
disse não é o que eu diria, portanto está errado...”.<br />
O múltiplo e o simples<br />
O Tao-Te-Ching, livro sagrado do taoísmo, já dizia há mais de um milênio que<br />
temos dois lados. Há um lado que olha para fora. Olhando para fora defrontamonos<br />
com o mundo da multiplicidade, 10 mil coisas que se impõem aos nossos<br />
sentidos, nos dão ordens, nos atropelam, e nos enrolam aos trambolhões, como<br />
aquelas ondas de praias de tombo. Mas há um outro lado que olha para dentro. Aí<br />
nos defrontamos com uma única coisa, o desejo mais profundo do nosso coração,<br />
aquela coisa que, se a tivéssemos, nos traria alegria. Jesus contou a parábola de<br />
um homem que tinha muitas joias e que, ao encontrar uma única pérola<br />
maravilhosa, vendeu as muitas para comprar uma única. No primeiro lado mora o<br />
conhecimento, a ciência, a bolsa de valores, a cotação do dólar, as coisas que se<br />
podem comprar, e todas as coisas que compõem a nossa vida de fora. Essas coisas<br />
são “meios para se viver” – ferramentas que podemos usar. No segundo lado mora<br />
a sabedoria, que é a capacidade para discernir as coisas que valem a pena. Num<br />
bufê, você encheria o seu prato com tudo o que está na mesa? Somente um tolo<br />
faria isso. Você consultaria o seu desejo: “De tudo isso que está à minha frente, o<br />
que é que realmente desejo comer?”. Tolos são aqueles que, seduzidos pela<br />
multiplicidade, se entregam vorazmente a ela. Eles acabam tendo uma terrível<br />
indigestão... Sábios são aqueles que, da multiplicidade, escolhem o essencial.<br />
Simplicidade é isso: escolher o essencial.<br />
Receitas<br />
Leonardo da Vinci foi um dos maiores gênios da humanidade. Pintor, músico,<br />
construtor de instrumentos musicais, compunha, improvisava, arquiteto, escultor,
imaginava máquinas de todos os tipos, inclusive voadoras, estudou os fósseis, a<br />
meteorologia, a anatomia, amava os cavalos. Pois fiquei sabendo que, além de<br />
tudo isso, ele se dedicava à culinária. No final do século XV, foi trabalhar na corte<br />
de Ludovico Sforza, governante e protetor da cidade. Lá ele não só inventava<br />
utensílios culinários (foi ele que inventou a tampa para as panelas) como também<br />
coordenava eventos pantagruélicos. Aqui vão os nomes de alguns dos pratos que<br />
se serviam nos banquetes: crista de galo com miolo de pão, testículos de carneiro<br />
com creme e mel, rabos de porco com polenta, pastelão de cabeça de cabra, sopa<br />
de rã, enguias cozidas, galinha recheada com uvas, sopa de caracóis, intestinos de<br />
truta. Quem quiser experimentar as receitas que compre o livro e depois me diga:<br />
Os cadernos de cozinha de Leonardo da Vinci (Rio de Janeiro, Editora Record,<br />
2002).<br />
Linguagem<br />
Linguagem, essa mentirosa... Agora é moda falar em carros seminovos, em<br />
celulares seminovos. Isso é uma enganação. Ou é novo ou não é. Há coisas que<br />
não podem ser “semi”: semivirgem, semigrávida, semi-honesto, semibom...<br />
Culinária<br />
Os textos sagrados dizem que, quando Deus voltar à terra do seu exílio, a sua<br />
presença será servida como um banquete: todos reunidos à volta de uma mesa,<br />
comendo, bebendo, conversando, rindo... Deus se dá como comida. Tal como<br />
aconteceu no filme A festa de Babette. Babette, a feiticeira, com a sua culinária<br />
transformou uma aldeia de pessoas amargas em crianças! O comer é um ritual<br />
mágico. Comer é o impulso mais primitivo do corpo. O nenezinho tudo ignora: para<br />
ele, o mundo se reduz a um único objeto mágico, o seio da sua mãe. Nasce daí a<br />
primeira filosofia, resumo de todas as outras: o mundo é para ser comido. Disse<br />
alguém que a nossa infelicidade se deve ao fato de que não podemos comer tudo o<br />
que vemos. Sabem disso os poetas. Os poetas são seres vorazes. Escrevem com<br />
intenções culinárias. Querem transformar o mundo inteiro, os seus fragmentos mais<br />
insignificantes, em comida. Quem sabe numa simples azeitona... Poemas são para<br />
serem comidos. “Sou onívoro de sentimentos, de seres, de livros, de<br />
acontecimentos e lutas”, dizia Neruda.“Comeria toda a terra. Beberia todo o mar...”<br />
“Persigo algumas palavras... Agarro--as no voo... e capturo-as, limpo-as, aparo-as,<br />
preparando-me diante do prato, sinto-as cristalinas, ... vegetais, oleosas, como<br />
frutas, como azeitonas... E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as...” A<br />
memória mais forte que tenho do cozinhar é a de um pai preparando um peixe
para o forno. Ele ficava transfigurado. Acho que teria se realizado mais como<br />
cozinheiro. Quando via o prazer no rosto dos convidados era como se eles<br />
estivessem devorando ele mesmo, o cozinheiro, antropofagicamente. Todo<br />
cozinheiro quer sentir-se devorado. Toda comida é antropofagia, toda comida é<br />
sacramento. Fico a me perguntar: quais foram as razões que fizeram com que a<br />
culinária nunca tenha sido elevada à dignidade acadêmica de “arte”, como a<br />
música e a pintura? Não sei a resposta.<br />
“De onde?”<br />
Apresentei-me à recepcionista da empresa e disse: “Sou <strong>Rubem</strong> <strong>Alves</strong>. Tenho uma<br />
entrevista marcada...”. Ela me olhou e perguntou: “De onde?”. Levantei o meu<br />
braço em curva e, com o indicador, apontei verticalmente para o cocuruto da minha<br />
cabeça e lhe disse: “Daqui!”. Ela ficou espantada, achou que eu fosse louco. Essa<br />
pergunta “de onde?” quer dizer: De que empresa? E traduzida em linguagem mais<br />
clara significa o seguinte: O senhor como indivíduo não existe. Mas o senhor<br />
passará a existir para a minha empresa quando disser o nome da empresa a que o<br />
senhor se encontra plugado. Acho que nunca passara pela cabeça da recepcionista<br />
que houvesse pessoas que não estivessem plugadas a empresas, cuja identidade<br />
não dependesse do “onde”. Essa é a norma, ao telefone. Quando a inocente<br />
telefonista (inocente porque esse procedimento lhe foi ensinado) me faz a<br />
pergunta de praxe, eu lhes respondo: “De onde? Da rua Frei Antônio de Pádua,<br />
1521”. Ela se embaraça. E eu, de maldade, acrescento: “É no bairro Guanabara,<br />
Campinas...”. Elas não são culpadas. Disseram-lhes que fizessem assim. Mas essa<br />
simples pergunta revela um horror: vivemos no mundo em que as pessoas<br />
deixaram de existir como pessoas. Essa é a tragédia dos aposentados: estão<br />
desplugados de empresas. Cartesianismo ao contrário: “Estou desplugado de uma<br />
empresa, logo não existo...”.<br />
Telefone<br />
Ligo para a Receita Federal. A telefonista atende. Eu digo: “Preciso falar com o<br />
delegado da Receita Federal...”. Pergunta a telefonista: “Quem gostaria?”.<br />
Respondo: “Gostaria? Eu não disse que gostaria. Na verdade, eu não gostaria. Eu<br />
preferiria não ter que falar sobre imposto de renda... Eu só disse que preciso falar<br />
com o delegado, mesmo sem gostar...”. Terrível é quando nos deixam ao telefone<br />
enquanto, na espera, fica uma gravação falando sobre as maravilhas da empresa.<br />
Se demora, a gravação começa a se repetir. E eu não tenho alternativas. Tenho de<br />
ficar ouvindo, à espera de que o outro atenda. Obrigar uma pessoa a ouvir o que
ela não quer ouvir é grosseria.<br />
Por que se suicidam mais?<br />
Fui informado de uma pesquisa que concluiu que gaúchos e paranaenses se<br />
suicidam mais que baianos. Não devia ser. Rio Grande do Sul e Paraná têm índices<br />
de qualidade de vida mais altos que os da Bahia. Alguém sugere uma explicação?<br />
Solução<br />
O carro está vazio, com as duas portas abertas. Se apenas a porta do motorista<br />
estivesse aberta, a gente concluiria que ele saiu do carro para fazer xixi. Se as duas<br />
portas estão abertas, é porque no carro havia duas pessoas: um homem e uma<br />
mulher. Normalmente homens não vão juntos passear nas matas em conversíveis<br />
vermelhos. Por que saíram? Onde estarão agora? O que estarão fazendo agora? A<br />
fisga da propaganda não está naquilo que ela mostra. Está naquilo que ela faz<br />
imaginar.<br />
Murilo Mendes<br />
Lendo Murilo Mendes dou-me conta da minha indigência literária. Eu precisaria<br />
viver de novo para andar pelos mundos por onde ele andou. Mas infelizmente só<br />
descobri a literatura muito tarde. Há livros maravilhosos que a gente lê uma vez.<br />
Não adianta ler a segunda porque já se sabe o fim da estória. Outros não contam<br />
estória alguma, são feitos de fragmentos inconclusos, e cada fragmento é uma<br />
chave para um mundo inteiro. Assim é Transistor (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,<br />
1980), que me foi presenteado pelo Heládio Brito, um dos que me introduziram à<br />
literatura. Ler o Murilo Mendes é uma fonte inesgotável de felicidade.<br />
A recuperação dos criminosos<br />
Todos sabem que as penitenciárias são escolas do crime. Não se sabe de um<br />
criminoso que tenha sido reformado pelo sistema penitenciário. Juntando-se<br />
criminosos num mesmo lugar é certo que pensarão maneiras mais eficientes de<br />
realizar o crime. Da mesma forma como torcedores de um mesmo time, juntos, vão<br />
falar sobre o seu time. Um sequestrador recém-capturado confessou que foi numa<br />
penitenciária, onde se encontrava cumprindo pena por crime pequeno, que<br />
aprendeu as vantagens e técnicas do crime grande, os sequestros. É preciso notar<br />
que os criminosos não são criminosos só por razões práticas, como dinheiro e
poder. Eles são criminosos também por razões estéticas. Todos os homens<br />
desejam ser figuras lendárias, heróis, objetos de admiração, espanto ou mesmo de<br />
horror. A felicidade do criminoso quando a sua fotografia aparece na primeira<br />
página do jornal! Há um enorme prazer em se sentir temido e odiado. O horrendo<br />
pode ser belo. Também os criminosos se alimentam de fantasias narcísicas! Na<br />
Idade Média havia uma forma curiosa de punir os criminosos. Eles eram colocados<br />
em pelourinhos com cabeças e mãos presas numa peça de madeira. O pelourinho<br />
ficava numa praça pública. Ali ficavam os infratores, expostos ao riso e zombaria do<br />
povo. Essa situação de ridículo, imagino, se constituía num poderoso antídoto a<br />
quaisquer imagens heroicas que os criminosos pudessem ter de si mesmos. Não há<br />
narcisismo que resista à zombaria. Aí fiquei pensando se não haveria uma forma<br />
moderna de se aplicar esse castigo pedagógico e inspirado na psicanálise. O medo<br />
do ridículo é capaz de desencorajar muitas ações. Já imaginaram? Poderia haver<br />
praças dedicadas aos políticos corruptos, aos sequestradores, aos pedófilos, aos<br />
assassinos, etc., etc. Lá ficariam eles expostos ao riso público e, preferivelmente,<br />
com as partes pudendas à mostra. Se essa proposta é inviável, por razões práticas<br />
(não há praças em número suficiente, o número dos criminosos é muito grande), as<br />
autoridades competentes poderiam colocar na Internet um site com o nome de<br />
“Pelourinho”. Ali poderíamos ver a cara dos criminosos nas mais variadas versões.<br />
Aí o povo começaria a rir deles. Quem sabe os criminosos se regenerariam, por<br />
vergonha...<br />
Sobre direitos e avessos<br />
“Consulte sempre um advogado. Você tem direitos. Consulte sempre um<br />
psicanalista. Você tem avessos...”<br />
Emulsão de Scott<br />
Como é que uma coisa ruim vira coisa boa, e só é boa se continuar a ser ruim?<br />
Não, não pensem que endoidei. Vou contar o que aconteceu. Esses dias de outono,<br />
céu muito azul, um friozinho gostoso, as cores mais brilhantes... Me lembrei, com<br />
saudade, da minha infância em Minas. Lembrei-me que, quando chegava o mês de<br />
julho, mês de férias, era o tempo de tomar Emulsão de Scott. Para quem não sabe,<br />
Emulsão de Scott é um fortificante à base de óleo de fígado de bacalhau. Branco,<br />
pastoso, difícil de engolir, malcheiroso, gosto ruim. Vinha a minha mãe com a<br />
colher de Emulsão de Scott numa mão e uma tampa de laranja na outra, pra tirar<br />
gosto e cheiro. Pois não é que fiquei com saudade da Emulsão de Scott! Pensei,<br />
então, que eu gostaria de tomar Emulsão de Scott para voltar, na imaginação, à
minha infância. Fui à farmácia, comprei um vidro e preparei-me. Mas, oh!<br />
decepção! Os laboratórios estragaram a emulsão. Deixou de ser branca. Está corde-rosa!<br />
E o que fizeram com o gosto ruim de óleo de fígado de bacalhau?<br />
Estragaram-no com sabor doce de morango! Fracassou minha programada volta à<br />
infância! Porque Emulsão de Scott, para ser boa, para ter poderes mágicos, tem de<br />
ser ruim...<br />
Convicções<br />
“É preciso que aquele que pensa não se esforce em persuadir os outros a aceitar<br />
sua verdade... (Esse é) o lamentável caminho do ‘homem de convicções’; os<br />
homens políticos gostam de se qualificar assim. Mas o que é uma convicção? É um<br />
pensamento que parou, que se imobilizou, e o ‘homem de convicções’ é um homem<br />
tacanho; o pensamento experimental não deseja persuadir, mas inspirar; inspirar<br />
um outro pensamento, pôr em movimento o pensar.” (Ignoro o autor)<br />
Avestruz<br />
Falam muito mal dos avestruzes, injustamente. Seus detratores, movidos por<br />
motivos inconfessáveis, declaram que aquelas aves são de estupidez sem paralelo.<br />
Dizem que elas, ao se defrontar com um leão, enterram suas cabeças na areia. Se<br />
assim eles se comportam é porque devem ser adeptos de uma antiga filosofia que<br />
afirmava que “ser é perceber”. Raciocinam os avestruzes: se não percebo o perigo,<br />
o perigo não existe para mim. (Traduzido popularmente: “Aquilo que os olhos não<br />
veem, o coração não sente”.) Continua o pensamento dos avestruzes: “Posso,<br />
assim, me comportar como se ele não existisse, desde que continue com a cabeça<br />
enterrada na areia”. Tudo estaria bem se o leão não fosse de verdade. E o<br />
resultado é que o avestruz acaba na barriga do leão... Mas, como disse antes, eu<br />
não acredito que os avestruzes sejam assim tão estúpidos. Estupidez igual somente<br />
encontrei em exemplares da espécie Homo sapiens a que pertencemos. O que<br />
provocou essa meditação foi uma conversa que tive com o dr. Augusto Rocha, que<br />
me falou sobre o curioso comportamento de pessoas que têm hipertensão arterial e<br />
se recusam a tomar remédio. Hipertensão é doença crônica. Sem cura. Para o resto<br />
da vida. Como o diabetes. Embora não possam ser curadas, as doenças crônicas<br />
podem ser controladas. Para isso, o doente há de aceitar uma rotina diária de<br />
tomar os remédios devidos. Se isso é doença crônica, podemos dizer que todos nós<br />
somos portadores de uma enfermidade crônica que, se não for tratada rotineira e<br />
diariamente, pode levar à morte em um mês. É a fome. E o remédio diário para ela<br />
é um bom prato de comida... O fato é que ninguém se esquece de comer. Mas
alguns doentes crônicos se esquecem de tomar seus medicamentos. Na verdade,<br />
não creio que seja esquecimento. Segundo Freud, todos os esquecimentos são<br />
intencionais. Os portadores de doenças crônicas se “esquecem” de tomar seus<br />
medicamentos porque eles são adeptos da filosofia dos avestruzes. Acham que,<br />
não percebendo, a coisa não existe. Acham que ninguém pensa assim? Tive um<br />
amigo, um homem inteligente de extraordinárias habilidades mecânicas que não ia<br />
ao médico de forma alguma. Alegava: “Não vou ao médico porque pode ser que eu<br />
tenha alguma coisa...”. Não ia ao médico para não saber. Não sabendo, ele<br />
acreditava que a doença não existia. O leão existe mesmo quando fechamos os<br />
olhos...<br />
Direitos humanos<br />
Li que Baudelaire escreveu: “Esqueceram-se de dois direitos na Declaração dos<br />
Direitos do Homem: o de se contradizer e o de se ir embora”. De acordo. Mas<br />
quero acrescentar outro: o direito ao silêncio. O silêncio é parte do meu espaço.<br />
Qualquer ruído que o perturbe é uma invasão da minha casa, uma agressão ao<br />
meu corpo.<br />
Cidades<br />
As cidades são como os seres humanos: têm um corpo e têm uma alma. Talvez<br />
muitas almas, porque o corpo é um albergue onde moram muitas almas, todas<br />
diferentes em ideias e sentimentos, todas com a mesma cara. O corpo das cidades<br />
são as ruas, praças, carros, lojas, bancos, escritórios, fábricas, coisas materiais. A<br />
alma, ao contrário, são os pensamentos e sentimentos dos que nela moram. Há<br />
corpos perfeitos com almas feias e são como um violino Stradivarius em mãos de<br />
quem não gosta de música e não sabe tocar. Mas pode acontecer o contrário: um<br />
corpo tosco com alma bonita. Aí é como acontecia com as rabecas do querido<br />
Gramanni. Rabecas são violinos rústicos fabricados por artesãos desconhecidos.<br />
Mas o Gramanni era capaz de tocar Bach nas suas rabecas... O mesmo vale para as<br />
cidades: cidades bonitas por fora e com almas feias, cidades rústicas por fora com<br />
almas bonitas. Onde se podem encontrar as almas das cidades? Eu as encontro<br />
bonitas nas feiras, nas bancas de legumes e frutas, no mercadão, no sacolão. Esses<br />
são lugares onde acontecem reencontros felizes. Também na feira de artesanato,<br />
nos jardins onde há crianças, nos concertos... Mas ela aparece assustadora nas<br />
torcidas de futebol e no tráfego... Ah, o tráfego! É nele que a alma da cidade<br />
aparece mais nua. Pensei nisso na semana que passei em Portugal. Lembrei-me<br />
que há lugares onde os motoristas sabem que o pedestre tem sempre a
preferência. Eles param para que o pedestre passe. Um amigo me contou de sua<br />
experiência em Munique: desceu da calçada, pôs o pé no asfalto e, para seu<br />
espanto, viu que todos os carros pararam para que ele atravessasse a rua. Sempre<br />
que paro meu carro para que o pedestre passe percebo a surpresa no seu rosto.<br />
Não acredita. É preciso que eu faça um gesto com a mão para que ele se atreva.<br />
Não é incomum ver um motorista acelerar o carro ao ver um pedestre atravessando<br />
a rua. Disseram-me que existe mesmo um videogame cuja sensação está em<br />
atropelar os pedestres. E a contagem é maior se o atropelado for um velho... As<br />
cidades voltarão a ser bonitas quando os motoristas compreenderem que o natural<br />
é andar a pé. Os pedestres devem ter sempre a preferência. No Brasil há uma<br />
cidade assim. Mas não estou bem certo... Acho que é Campo Mourão, no Paraná.<br />
Praias no inverno<br />
As praias, no inverno, são mais bonitas. Vocês já viram uma vaca coberta de<br />
carrapatos? É algo de dar dó... Pois assim são as praias no verão: os milhares de<br />
pessoas são carrapatos que infestam as areias brancas. No inverno, as praias são<br />
lisas, solitárias. Quase ninguém. Parece que os homens têm medo da solidão.<br />
Gostam mesmo é do falatório, do agito, do som... Prefiro a música do mar e do<br />
vento porque ela faz eco na minha alma. Não se ouvem vozes humanas. Apenas o<br />
pio dos pássaros. E os pensamentos vêm mansamente. Águas-vivas mortas – seria<br />
inútil jogá--las no mar novamente. Eram bonitas vivas, flutuando<br />
transparentes...Caranguejos de olhos saltados, andando de lado, fugindo para os<br />
buracos na areia. Parecem-se com certas pessoas que não conseguem andar para<br />
frente... Catar conchinhas... Eis aí uma deliciosa brincadeira para quem deseja ser<br />
escritor. A alma é um grande mar que vai depositando conchinhas no pensamento.<br />
É preciso guardá-las. Quem deseja ser escritor há de aprender com as crianças a<br />
catar conchinhas, pensamentos avulsos como esses com que estou brincando, e<br />
guardá-los num caderninho. De Camus, o livro que mais amo – e por isso mesmo<br />
releio sempre – são os seus Cadernos da juventude. Ali ele anotava o voo dos<br />
pássaros, uma trovoada, uma nesga azul no céu de tempestade, uma citação que<br />
lhe vinha à cabeça, um diálogo entre marido e mulher. Nietzsche também<br />
colecionava conchinhas que ele transformava em aforismos. O problema com os<br />
aprendizes é que eles pensam que literatura se faz com coisas importantes. O que<br />
torna a conchinha importante não é o seu tamanho, mas o fato de que alguém a<br />
cata da areia e a mostra para quem não a viu: “Veja...”. Literatura é mostrar<br />
conchinhas...
Notícias de jornal<br />
Ele tinha medo dos sessenta anos não por causa do número de anos, mas por<br />
causa dos jornais. Dizia: “Se eu for atropelado vão noticiar ‘Sexagenário<br />
atropelado’”. Ele nunca foi atropelado. A notícia não aconteceu. Mas eu li uma mais<br />
divertida: “Ancião de cinquenta anos atropelado”. Era um concurso importante,<br />
livre-docência. O candidato, um dentista professor competentíssimo, meu amigo, já<br />
falecido. A imprensa compareceu e noticiou: “Ao final a banca examinadora<br />
concedeu-lhe o título de Professor Livre-docente. E, além deste, deram-lhe também<br />
o título de ‘Ad referendum da Congregação’”. Numa matéria sobre a sinfônica, o<br />
repórter escreveu: “Será tocado o Concerto no 5, em si bemol, Imperador, com os<br />
movimentos Allegro, Adagio un poco mosso e Rondó: Allegro todos eles compostos<br />
por Beethoven”.<br />
Explicações que ofendem<br />
O rei estava reunido com o seu ministério e tratava de dar explicações duvidosas<br />
para uns gastos com banquetes gastronômicos. Os ministros, sem acreditar, faziam<br />
de conta que acreditavam. Mas o bobo, um dos ministros do rei (todo governo<br />
deveria ter um bobo da corte...), deu uma risadinha e comentou em voz alta:<br />
“Majestade, há explicações que são piores que uma ofensa...”. O rei ficou furioso,<br />
expulsou o bobo e declarou que, se ele não explicasse essa declaração absurda até<br />
o fim do dia, iria passar uma semana no calabouço. O bobo sumiu. O rei, cansado,<br />
ao fim de um dia de explicações, ia sozinho por um corredor do palácio, corredor<br />
esse decorado com grandes colunas de mármore. Atrás de uma delas estava o<br />
bobo escondido, pronto a provar sua tese. Quando o rei passou, o bobo pulou e<br />
agarrou as nádegas do rei. O rei deu um grito de susto e raiva. E o bobo se<br />
desculpou: “Perdão, Majestade, eu pensei que fosse a rainha...”. Estava provada a<br />
tese de que há explicações que são piores que uma ofensa.<br />
Humilhação<br />
Fico literalmente enfurecido quando vejo alguém humilhar uma pessoa mais fraca,<br />
mais pobre. Quando isso acontece, eu me esqueço da idade que tenho e dos<br />
conselhos da prudência. Aconteceu no supermercado Champion. Ouvi uma pessoa<br />
que vociferava em alta voz ofensas a uma outra. Fui ver o que estava acontecendo.<br />
Um cliente, valendo-se da sua condição de cliente, cliente tem sempre razão,<br />
valendo-se do fato de que os empregados não podem reagir, sob pena de perder o<br />
emprego, destratava um empregado humilde que tudo ouvia em silêncio, de<br />
cabeça baixa. Não aguentei. Aproximei-me e disse ao dito: “É desprezível que uma
pessoa mais poderosa se valha de sua suposta superioridade para humilhar uma<br />
pessoa mais fraca...”. Ele poderia ter me xingado ou dado um murro. Não pensei<br />
nisso. O fato é que ele enfiou a viola no saco e se foi resmungando. Coisa<br />
semelhante aconteceu dias atrás no Pão de Açúcar: um homem de 1,90 de altura<br />
humilhou uma mocinha modesta que estava no caixa. Eu estava meio longe, não<br />
ouvi o que ele disse. Ele se foi e ela começou a chorar... Só pude tentar consolá-la.<br />
Tenho o maior desprezo por pessoas que, para afirmar sua duvidosa superioridade,<br />
pisam nos mais fracos.<br />
Um amigo<br />
Um amigo é uma pessoa com quem se tem prazer em compartilhar ideias de forma<br />
tranquila e mansa. Não é preciso estar de acordo. O rosto do meu amigo não é<br />
igual ao meu rosto. E essa diferença me dá alegria. Se convivemos bem com<br />
nossos rostos diferentes, por que haveríamos de querer que nossas ideias fossem<br />
iguais? Experimentar a diferença de ideias mansamente é uma das evidências da<br />
amizade. Assim, se você deseja saber se uma pessoa é sua amiga, pergunte-se:<br />
Temos prazer e gastamos tempo compartilhando ideias? Acho que os casais –<br />
namorados ou casados de papel passado – deveriam se propor esse teste. Não<br />
existe amor que sobreviva só de sentimentos, sem a conversa mansa.<br />
Amigos ausentes<br />
Uma das alegrias da literatura está em que ela cria a possibilidade de estabelecer<br />
conversas mansas com pessoas ausentes e mesmo mortas. Muitos dos meus<br />
melhores amigos, pessoas com quem converso longamente, estão mortos há muito<br />
tempo. É o caso de Albert Camus. Ler Camus é um exercício de felicidade.<br />
Poderíamos até formar uma dupla... Seus pensamentos mais pessoais não se<br />
encontram em seus livros com princípio, meio e fim. Encontram-se nos seus diários,<br />
onde registrava os pensamentos que lhe ocorriam sem imaginar que um dia seriam<br />
transformados em livros. Muitas das suas experiências batem com as minhas. Num<br />
certo lugar ele escreve notas para um romance: “Infância pobre. Eu tinha vergonha<br />
da minha pobreza e da minha família. Só conheci essa vergonha quando me<br />
puseram no liceu. Antes, toda a gente era como eu e a pobreza parecia-me o<br />
próprio ar desse mundo. No liceu foi-me dado comparar”. Num outro lugar ele<br />
comenta: “Que pode um homem desejar de melhor do que a pobreza? Não disse<br />
miséria nem o trabalho sem esperança do proletário moderno. Mas não vejo o que<br />
pode desejar-se a mais do que a pobreza ligada a um ócio ativo”. Foi exatamente<br />
essa a minha experiência. Minha infância foi vivida na pobreza. A princípio, grande
pobreza. Depois, pobreza simplesmente. Desses anos não tenho uma única<br />
memória infeliz. Tive dores, como toda criança tem: dor de dente, dor de tombo,<br />
dor de barriga, dor de queimadura. Mas não tive experiência de infelicidade. Minha<br />
infelicidade começou quando a vida melhorou e nos mudamos de uma cidade do<br />
interior de Minas para o Rio de Janeiro. Meu pai me matriculou num colégio de<br />
cariocas ricos. Foi então que, como Camus, senti vergonha da minha pobreza e da<br />
minha família: eu era diferente, não pertencia ao mundo elegante dos meus<br />
colegas. Num outro lugar do seu diário, Camus registrou: “Atenção: Kierkegaard, a<br />
origem dos nossos males está na comparação”. Kierkegaard foi um solitário filósofo<br />
dinamarquês. Os desbravadores são sempre solitários. Veem coisas que os outros<br />
não veem. Como foi o caso de Nietzsche. Kierkegaard foi meu primeiro amigo<br />
filósofo. Com ele tive longas e mansas conversas. Sua filosofia é construída em<br />
meio a uma teia de sutis percepções psicológicas. O sofrimento da pobreza, quando<br />
não é miséria, se encontra na comparação. A miséria é diferente da pobreza. A<br />
pobreza está muito próxima da simplicidade. Simplicidade tem a ver com as coisas<br />
que são essenciais. Simplicidade é caminhar com uma mochila leve. A riqueza, ao<br />
contrário, é caminhar arrastando muitas malas pesadas, sem alças... A pobreza<br />
simples é uma pobreza feliz. <strong>Feliz</strong> porque leve. É a comparação, origem da inveja,<br />
que a torna infeliz. Camus e eu experimentamos a infelicidade da comparação na<br />
escola. Mas hoje não é preciso ir à escola para sentir a sua maldição. Basta ligar a<br />
televisão. A televisão é uma máquina de infelicidade, na medida em que ela nos<br />
obriga a comparar. Os pobres, nos lugares mais distantes, ligam as novelas e<br />
sentem a sua desgraça. A comparação é um exercício dos olhos: vejo-me; estou<br />
feliz.<br />
Armadilha da memória<br />
Um dia eu estava andando de carro com meu amigo Carlos Rodrigues Brandão, em<br />
Pocinhos, por uma estrada de terra. Aí ele começou uma conversa mole sobre a<br />
memória. Disse-me: “<strong>Rubem</strong>, estou agora seguindo a seguinte filosofia: eu não<br />
possuo aquilo de que me esqueci. O que é que você acha disso?”. Pensei: Eu me<br />
esqueci da coisa que possuo. Se me esqueci dela é como se ela não existisse para<br />
mim. Não vou usá-la nem sentirei a sua falta. E concluí: “Está certo: eu não possuo<br />
aquilo de que me esqueci”. Aí a fala mole do Brandão ficou rápida e concluiu: “Você<br />
se esqueceu de que eu lhe devo R$200,00. Portanto, você não os possui mais. Vou<br />
dá-los para a Soninha comprar tijolos...”. Soninha era uma amiga comum que<br />
estava lutando para construir sua casa. E assim ele o fez. E eu não pude reclamar<br />
porque havia acabado de concordar que não possuo aquilo de que me esqueci... Eu<br />
havia me esquecido de que o Brandão me devia R$200,00.
Confissão<br />
Escrevi um texto de elogio à calvície. Nunca imaginei que uma calva pudesse ser<br />
objeto de literatura. Os cabelos têm trânsito fácil na poesia. Já a calva é sempre<br />
objeto de riso e nunca de êxtase estético. Escrevi para salvar a minha neta. Ela<br />
queria que eu fosse à sua escola contar estórias. Eu disse que iria. Aí, quando sua<br />
mãe foi buscá-la na escola ela estava em prantos. “Não quero que o vovô venha à<br />
escola...” A razão para sua mudança: uma coleguinha vira uma foto minha na<br />
orelha de um livro... careca. E morreu de dar risada. Ela queria poupar a mim e a si<br />
mesma da vergonha do riso... O Artur da Távola até me mandou um e-mail sobre o<br />
assunto. Já escrevi sobre ele várias vezes. Ele apresenta o programa Quem tem<br />
medo de música clássica? na TV Senado e não se cansa de repetir: “Música é vida<br />
interior. E quem tem vida interior nunca está sozinho”. Emociona-me o seu amor<br />
pelas crianças. Está sempre pedindo aos pais que chamem os seus filhos para ver e<br />
ouvir música clássica. Uma amiga, separada, segredou a outra amiga que nunca<br />
mais se casaria, a não ser que fosse com o Artur da Távola... No seu e-mail, ele fez<br />
uma confissão que me comoveu. Achei tão humana a sua confissão que lhe pedi<br />
licença para transcrevê-la. “Quando eu era criança, anos 40, não estava em moda<br />
usar barba. Meu pai, exceção, mantinha uma, a nazareno, como se chamava então.<br />
Tímido que sempre fui, morria de encabulamento. Uma tarde ele é que foi buscarme<br />
no colégio. A garotada riu daquele homem de barba e eu, assustado, disse que<br />
era meu avô. Minha mãe, à noite, achou a desculpa criativa. Mas meu pai ficou<br />
triste por rirem dele e por me haver causado o envergonhar-me. Até hoje essa<br />
mentirinha me persegue. Ele morreu quando eu tinha onze anos e nunca pude<br />
excusar-me com ele. Aceite o abraço de outro vasto careca e parabéns pela<br />
defesa.” Parece que isso é algo universal. As crianças têm medo que os outros riam<br />
dos seus pais e, consequentemente, riam delas. Todas as crianças querem ter pais<br />
bonitos e admirados. Lembro-me de que, quando vivi nos Estados Unidos, o diretor<br />
da Cathedral School, onde meus filhos pequenos estudavam, convidou-me a falar<br />
para as crianças. Aceitei. Anunciou-se minha ida. Aí notei que o Sérgio e o Marcos<br />
começaram a ter um comportamento incomum, cheios de conversinhas pelos<br />
cantos. Até que eu os encantoei e pedi explicações. Aí eles me disseram, meio<br />
encabulados: “Please, Daddy, don’t say anything which will embarrass us...” que,<br />
traduzido livremente em linguagem de hoje, seria: “Papai, não nos faça pagar<br />
mico...”.<br />
A língua
Sou feliz pelos amigos que tenho. Um deles muito sofre pelo meu descuido com o<br />
vernáculo. Por alguns anos ele sistematicamente me enviava missivas eruditas com<br />
precisas informações sobre as regras da gramática que eu não respeitava, e sobre<br />
a grafia correta dos vocábulos, que eu ignorava. Fi-lo sofrer pelo uso errado que fiz<br />
de uma palavra. Acontece que eu, acostumado a conversar com a gente das Minas<br />
Gerais, falei em “varreção” – do verbo “varrer”. De fato, trata-se de um equívoco<br />
que, num vestibular, poderia me valer uma reprovação. Pois o meu amigo, paladino<br />
da língua portuguesa, se deu ao trabalho de fazer um xerox da página 827 do<br />
dicionário, aquela que tem, no topo, a fotografia de uma “varroa” (sic!) (você não<br />
sabe o que é uma “varroa”?) para corrigir-me do meu erro. E confesso: ele está<br />
certo. O certo é “varrição” e não “varreção”. Mas estou com medo de que os<br />
mineiros da roça façam troça de mim porque nunca os vi falar de “varrição”. E se<br />
eles rirem de mim não vai me adiantar mostrar-lhes o xerox da página do<br />
dicionário com a “varroa” no topo. Porque para eles não é o dicionário que faz a<br />
língua. É o povo. E o povo, lá nas montanhas de Minas Gerais, fala “varreção”<br />
quando não “barreção”. O que me deixa triste sobre esse amigo oculto é que nunca<br />
tenha dito nada sobre o que eu escrevo, se é bonito ou se é feio. Toma a minha<br />
sopa, não diz nada sobre ela, mas reclama sempre que o prato está rachado.<br />
Para corromper um jovem<br />
“A maneira mais simples de corromper um jovem é ensiná-lo a respeitar mais<br />
aqueles que têm opiniões iguais às suas que aqueles que têm opiniões diferentes<br />
das suas.” (Nietzsche)<br />
Samuel Lago<br />
... é um homem risonho, afável, apaixonado pela educação. Escreve<br />
deliciosamente. Recebi dele um livrinho, livrinho mesmo, 7 centímetros de largura<br />
por 10 de comprimento, cheio de aforismos sobre a educação. Muitos grandes<br />
pensadores se deliciavam com os aforismos. Lembro-me de Lichtenberg, que<br />
Nietzsche e Murilo Mendes muito amavam, Nietzsche, Oscar Wilde. Um aforismo é<br />
um relâmpago: brevíssimo, ilumina os céus. Por vezes racha rochas. Muitos<br />
cérebros são rochas. Aqui vão alguns canapezinhos. “A verdadeira dificuldade não<br />
está em aceitar ideias novas, mas em escapar das ideias antigas” (Keynes). “Sábio<br />
é aquele que se espanta com tudo” (André Gide). “Todos os jogos são educativos,<br />
menos os jogos educativos” (André Lapierre). “Pensa como pensam os sábios, mas<br />
fala como falam as pessoas simples” (Aristóteles). “Tudo que se ensina à criança a<br />
impede de inventar ou de descobrir” (Piaget). O aforismo de André Gide, em
especial, me deixou feliz. Porque eu já fiz a sugestão (minhas sugestões,<br />
usualmente, não são levadas a sério. Aqueles que as leem acham que estou<br />
brincando, fazendo gozação. Tudo o que é diferente espanta!)... eu já fiz a<br />
sugestão de que se criasse um novo tipo de professor: professor de espantos.<br />
Mas... todo professor não deveria ser um professor de espantos?<br />
Bestiário<br />
O meu imaginário está cheio de animais. Pássaros, gatos, ratos, galos, águias,<br />
onças, elefantes, sapos, porcos, lobos, dinossauros, cobras, patos, gansos: já<br />
escrevi estórias sobre todos eles. Sinto um enorme carinho pelas coisas vivas e me<br />
espanto diante delas. Por vezes, lá em Pocinhos do Rio Verde, fico parado diante<br />
da parede da casa, a admirar as mariposas que nela pousaram, atraídas pela luz.<br />
Suas asas são assombros estéticos. Depois de admirar, fico a pensar no mistério da<br />
vida. Como é possível? De que fundura de mistério surge tanta beleza? Gosto dos<br />
patos. Novinhos, acabados de sair do ovo, amarelinhos, fofos, sem que ninguém<br />
lhes tenha ensinado, já sabem nadar. Mesmo que tenham sido chocados por uma<br />
galinha. E como é tranquilizante vê-los deslizando calmos sobre as águas de um<br />
lago. Vai aí um conselho terapêutico para a tranquilidade: ficar a ver os patos a<br />
nadar por meia hora. <strong>Faz</strong> bem para a cabeça. Sobre eles escrevi a estória O<br />
patinho que não aprendeu a voar. Uma livreira me contou que um pai, indignado,<br />
devolveu o livro que havia comprado sob a alegação de que o seu filho, ao final da<br />
estória, se pôs a chorar. Ele achava que livros para crianças devem sempre<br />
terminar em riso. Mas, que posso fazer? Escrevi a estória pra fazer chorar. Parte da<br />
educação é mostrar às crianças que a vida se faz também com o choro. Está dito<br />
nas Sagradas Escrituras: “Os que com lágrimas semeiam com alegria ceifarão”.<br />
Escrevi outra sobre gansos, animais que conheci lendo as estórias de Andersen. Por<br />
isso tratei de povoar meu lugarzinho em Pocinhos do Rio Verde, o sítio Mar de<br />
Minas, com patos e gansos. Lá eles podiam viver tranquilos, sob a minha proteção.<br />
Eu jamais mataria um deles para fazer um assado. Não troco a alegria permanente<br />
de vê-los pelo prazer glutão de comê-los que termina em poucos minutos. Cada um<br />
tem sua própria dignidade. Os gansos são arrogantes, têm consciência da sua<br />
importância, andam sempre com o nariz empinado, assoprando. Os patos,<br />
desajeitados no andar, são garças ao voar. Sobem até o alto do morro e, de lá,<br />
voam brancos numa curva para descer no lago. Sim, lá eles estão seguros.<br />
Morrerão de velhice.<br />
Badulaque
“BADULAQUE, s. m.: Guisado de fígado e bofes; coisa miúda, ou velha, de pouco<br />
valor; o que as mulheres põem no rosto para amaciar ou enfeitar a pele.” Está no<br />
Aurélio. No sobradão colonial do meu avô, com sala de visitas de teto barroco,<br />
piano Pleyel vindo da França, castiçais para velas, vidros coloridos importados e<br />
desenhos dourados, havia um quartão que as tias mantinham fechado a chave<br />
(aquelas chavonas pretas, enormes, que se pegam com a palma da mão) e que<br />
nós, os sobrinhos, apelidamos de “quarto do mistério”. Sobre ele escrevi uma<br />
crônica, que se encontra no livro O quarto do mistério. Nele se encontravam coisas<br />
maravilhosas: canastras antiquíssimas cheias de coisas velhas, aparelhos de<br />
medicina que meu tio médico havia abandonado, duas cítaras bordadas em<br />
madrepérola, caixas com bisnagas de tinta (minhas tias eram prendadas;<br />
pintavam, tocavam cítara, piano, bandolim...), uma vitrola sem a corneta, revistas,<br />
um relojão de parede redondo, parado... Os sobrinhos eram proibidos de entrar lá,<br />
por causa da poeira e das teias de aranha. Mas a gente roubava a chave, entrava,<br />
trancava por dentro, e ficava viajando por mundos imaginários. E havia um outro<br />
quarto, não tão proibido, o “quarto dos badulaques”. Lá não se servia guisado de<br />
fígado e bofes, nem havia as coisas que as mulheres põem no rosto para amaciar<br />
ou enfeitar a pele. Lá se encontravam “coisas miúdas, velhas, de pouco valor”,<br />
quinquilharias sem conta, brinquedos, livros de figura... Era o “quarto dos<br />
badulaques”...<br />
Miolo<br />
Meu sogro era um alemão que veio para o Brasil após a Primeira Guerra. Filho de<br />
um pastor adventista, tinha uma série de tabus alimentares. Não comia carne de<br />
porco, camarão, frango ao molho pardo... E tinha também um tabu particular:<br />
detestava, sem nunca haver comido, miolo de boi. Pois um dia ele foi convidado a<br />
almoçar numa casa tipicamente brasileira. E ficou felicíssimo porque o prato<br />
principal era couve-flor empanada. Comeu, gostou, repetiu, encheu a barriga. Ao<br />
final, boca e estômago havendo aprovado, ele quis fazer um elogio à dona da casa.<br />
“Essa couve-flor estava divina!”, ele disse. Ao que ela esclareceu: “Me alegro que o<br />
senhor tenha gostado. Mas não é couve-flor. É miolo...”. Ouvida a palavra miolo o<br />
estômago entrou em estertores e ele teve de sair correndo da mesa para vomitar<br />
no banheiro. O que foi que ele vomitou? Ele vomitou a palavra “miolo”. Nós<br />
gostamos não é da “coisa”, mas do nome que pomos nela...<br />
Médicos<br />
Eu desejei muito ser médico. Por que não fui, nem sei explicar direito. Mas, na
minha juventude, os médicos eram diferentes dos médicos de hoje. Tinham de ser<br />
porque o mundo era diferente Os hospitais eram raros e raros também eram os<br />
laboratórios. Como um Sherlock Holmes, valendo-se de pistas mínimas, o médico<br />
tinha de descobrir o criminoso que deixava suas marcas no corpo do doente.<br />
Naqueles tempos a inteligência do médico era muito importante. Os médicos eram,<br />
frequentemente, heróis solitários que atendiam unha encravada, cachumba,<br />
desidratação, bronquite, pneumonia, parto, prisão de ventre, resfriado, crupe,<br />
disenteria, gonorreia, berne, conjuntivite, furúnculo, hemorroidas, lombriga, dor de<br />
garganta, coqueluche, tosse de cachorro, verruga, indigestão... E tinham de ser<br />
humildes porque as derrotas na luta contra a morte e o sofrimento eram mais<br />
frequentes. Vocês poderiam ler a estória do Jeca Tatuzinho, do Monteiro Lobato,<br />
distribuída em mais de oitenta milhões de exemplares. Com meus cinco anos, eu<br />
sabia a estória do Jeca Tatuzinho de cor e a “lia”, compenetrado, para minha tia<br />
Noemia, que estava doente... Com frequência, o médico recebia como pagamento<br />
um frango, duas dúzias de ovos, um leitão – mais a eterna gratidão de quem tinha<br />
sido atendido e não podia pagar. Deus no céu, o “doutor” na terra, eram as valias<br />
dos pobres. O médico que me inspirou foi Albert Schweitzer. Hoje, quando se pensa<br />
num médico, pensa-se em alguém portador de um conhecimento especializado: a<br />
lista deles se encontra no catálogo da Unimed... Cada médico é uma unidade<br />
biopsicológica móvel portadora de conhecimentos especializados e que executa<br />
atos sobre o corpo do paciente... Naqueles tempos era diferente. Os médicos<br />
tinham, sim, conhecimentos e executavam atos sobre o corpo do paciente. Mas o<br />
que os caracterizava, mesmo – pelo menos no imaginário popular –, era o fato de<br />
serem seres movidos por compaixão. Compaixão, nas suas origens etimológicas,<br />
quer dizer “sofrer com um outro”. A compaixão é, talvez, a mais humana das<br />
nossas características. Toda pessoa que procura um médico está sofrendo. O<br />
“paciente” é aquele que sofre. Há sofrimentos dos mais variados tipos, das hérnias<br />
de disco e cálculos renais até a absoluta falta de apetite e a tristeza. O médico,<br />
que pode não estar sofrendo nada (se ele estiver sofrendo será um médico mais<br />
compassivo...), sofre um sofrimento que não é seu, é de um outro. E é só porque<br />
sofre com os sofrimentos dos outros que ele se impõe a disciplina de estudar,<br />
pesquisar e desenvolver habilidades: para que o outro sofra menos ou deixe de<br />
sofrer. A medicina nasceu da compaixão. Albert Schweitzer era uma pessoa muito<br />
especial. Desde menino sofria com o sofrimento de todas as coisas vivas, os<br />
mínimos animais e até mesmo com o capim cortado pela foice. Se disserem que ele<br />
deveria ter alguma perturbação mental, eu direi que vocês provavelmente estão<br />
certos. Esse tipo de sensibilidade não se encontra no normal das pessoas. Mas é<br />
precisamente essa sensibilidade exacerbada que caracteriza os grandes homens e<br />
as grandes mulheres. São Francisco, Chopin, Cecília Meireles, madre Teresa de
Calcutá, Nietzsche, Faure, Gandhi foram todos pessoas de sensibilidade<br />
exacerbada. Por causa deles o mundo ficou melhor e mais bonito. O que faz um<br />
médico não são os seus conhecimentos de ciência médica. A ciência médica é algo<br />
que lhe é exterior e que ele leva consigo, como se fosse uma valise. Os<br />
conhecimentos científicos, qualquer pessoa pode ter. Mas a alma de um médico<br />
não se encontra no lugar do saber, mas no lugar do amor. O médico é movido pela<br />
compaixão. Albert Schweitzer transformou esse sentimento num princípio ético que<br />
todo médico deveria ter afixado no seu consultório, para não se esquecer:<br />
“Reverência pela vida”. Toda vida, a mais ínfima, é sagrada. E foi movido por esse<br />
sentimento que aos trinta anos começou os seus estudos de medicina e foi exercêla,<br />
pelo resto de sua vida, num lugar abandonado do coração da África chamado<br />
Lambarene.<br />
Os primeiros colocados nos vestibulares<br />
Já faz anos que os cursinhos publicam as fotografias dos seus alunos que passaram<br />
em primeiro lugar nos exames vestibulares. Tais alunos bem que merecem, pois se<br />
trata de um feito extraordinário. Mas eu gostaria mesmo é que alguém fizesse uma<br />
pesquisa sobre o destino profissional desses gênios de memória. É preciso não<br />
confundir memória com inteligência.<br />
Inteligência emocional<br />
Fez e ainda faz muito sucesso um livro com esse título, Inteligência emocional. Mas<br />
o meu amigo, professor Eduardo Chaves, fez uma observação muitíssimo correta:<br />
“Não existe inteligência emocional. O que existe é emoção inteligente”. É a emoção<br />
que busca inteligência para realizar os seus sonhos. A inteligência é ferramenta da<br />
emoção. A inteligência, em si mesma, não sente necessidade alguma da emoção.<br />
Pianos<br />
Murilo Mendes, em suas memórias de infância, diz que Juiz de Fora era a cidade<br />
dos pianos. Hoje não dá mais para perceber. Mas, antigamente, quando se andava<br />
a pé, ao caminhar ouvia-se o som dos pianos, os principiantes estudando o Czerny,<br />
os mais adiantados tocando valsas. Ter um piano era prova de nobreza. Quem não<br />
era nobre tocava violão ou clarineta. Boa Esperança, cidadezinha onde nasci,<br />
perdida no interior, sem trem de ferro, não era nobre. Tinha não mais que dois<br />
pianos. Minha mãe, de origem nobre, ao casar recebeu de meu avô, como<br />
presente, um piano importado da França, Pleyel. Demorou a chegar. E nem sei
como chegou. Sua chegada foi notícia nas rodas de conversa. Chegou dentro de<br />
uma caixa de madeira. Chamaram um marceneiro para tirar o piano de dentro da<br />
caixa. Para o homem foi a coisa mais importante da sua vida. Tão importante que,<br />
para o evento, caixa de ferramentas na mão, ele compareceu vestido de fraque...<br />
Filhos<br />
Meus filhos, eu os abençoo. Sugiro aos pais ler a página de Gibran Khalil Gibran no<br />
seu livro O profeta com o título “Os filhos”. “Vossos filhos não são vossos filhos.<br />
Eles vêm através de vós mas não são vossos, e apesar de estarem convosco não<br />
vos pertencem. Sois os arcos dos quais seus filhos, como flechas vivas, são<br />
arremessados na direção do alvo que o arqueiro vê no infinito.” Uma vez disparada,<br />
a flecha voa para longe do arco que fica, vazio... A imagem é linda. Mas não me<br />
parece que seja totalmente verdadeira. E isso porque a flecha, ainda que não<br />
atinja o alvo, vai sempre na direção do alvo que o arqueiro viu. Sugiro, então, uma<br />
alteração: “Vossos filhos são flechas que, uma vez disparadas, se transformam em<br />
pássaros que voam para onde querem e não na direção do alvo que o arqueiro<br />
viu”. Ser pai é alegrar-se com o voo do pássaro, livre, para longe, numa direção<br />
não sonhada. Se eu tivesse voado na direção do alvo que meu pai viu, eu seria um<br />
engenheiro, talvez um médico. Pode até ser que tivesse atingido sucesso<br />
profissional e me tornado um homem rico. Mas minhas asas me levaram para um<br />
lugar que nunca passou pelos seus sonhos, e nem mesmo pelos meus... Nunca<br />
imaginei que seria escritor. Parece que as asas sabem mais sobre as direções da<br />
alma que nossos pensamentos. E estou contente. E nesse dia abençoo meus filhos<br />
nos seus voos.<br />
Mude<br />
No passado, o normal era que um jovem escolhesse uma carreira e permanecesse<br />
nela até morrer, ainda que ela não lhe desse felicidade, tal como acontecia<br />
também com os casamentos. Para sempre, até que a morte os separe. Uma coisa<br />
boa dos tempos em que vivemos, a despeito de todas as suas confusões, é que as<br />
pessoas descobriram que é possível mudar a direção do voo. Nada as obriga a voar<br />
sempre na mesma direção até o fim. Eu mudei minhas direções várias vezes e não<br />
me arrependo. Meu amigo Jether era um próspero dentista na cidade do Rio de<br />
Janeiro. Estava ficando rico. Riqueza dá segurança. Segurança dá tranquilidade à<br />
família. Mas, enquanto ele olhava para o mundo delimitado pelos dentes dos seus<br />
clientes, a sua alma voava por outros mundos! E foi assim que, num belo dia, ele<br />
resolveu voar. Chegou em casa e comunicou à esposa Lucília: “Meu bem, vou
vender o consultório”. E assim, com mais de quarenta anos, voltou para a estaca<br />
zero e foi se preparar para o vestibular... E ele seguiu um caminho feliz! Está com<br />
82 anos, tem cara de sessenta, disposição de quarenta e leveza de criança! Cada<br />
profissão delimita um mundo: há o mundo dos advogados, dos dentistas, dos<br />
engenheiros, dos professores, dos médicos, dos músicos, dos artistas, dos<br />
palhaços, do teatro. O jovem estudante do filme Sociedade dos poetas mortos<br />
sonhava em ser artista de teatro. Mas seu pai havia mirado seu arco para a<br />
medicina... Dezoito ou dezenove anos é muito cedo para definir o que se vai fazer<br />
pelo resto da vida. Esse é um tempo de procuras, indefinições, sonhos confusos. É<br />
normal que, ao meio do curso universitário, o jovem descubra que tomou o trem<br />
errado e se disponha a saltar na próxima estação. É angústia para os pais. Claro,<br />
porque o que eles mais desejam é ver o filho formado, empregado, ganhando<br />
dinheiro. Isso lhes daria liberdade para viver e permissão para morrer... Mas não<br />
seria terrível para ele – ou ela – se, só para não “perder tempo”, “só para não<br />
voltar ao início”, continuasse até o fim? Se não quero ir para as montanhas, se<br />
quero ir para a praia, por que continuar a dirigir o carro pela estrada que vai para<br />
as montanhas? Pais, não fiquem angustiados. Sua angústia é inútil. E nem fiquem<br />
com a ilusão de que o diploma dará emprego ao filho. Não dará. Assim, é melhor ir<br />
devagar, seguindo a direção que o coração manda. O difícil, para os pais, será se o<br />
filho, no último ano de direito, lhes comunicar: “Descobri que não gosto de direito.<br />
Vou estudar para ser palhaço!”. Aí posso imaginar o embaraço do pai e da mãe<br />
quando, em meio a uma reunião social, quando se fala sobre os filhos, alguém lhes<br />
dirija a palavra e diga: “Meu filho está no Itamarati. Vai ser diplomata. E o seu?”.<br />
Resposta: “O nosso está no circo. Vai ser palhaço...”. Cá entre nós: não sei qual<br />
profissão dá mais felicidade, se a de diplomata ou se a de palhaço...<br />
Leitura dinâmica<br />
Um professor meu amigo afixou na porta da sua sala a seguinte frase: “Havendo<br />
Deus colocado limites precisos à nossa inteligência é profundamente lamentável<br />
que ele não tenha estabelecido limites também para a nossa estupidez”. Veio-me a<br />
memória essa frase ao pensar em leitura dinâmica. Ler rapidamente, com retenção<br />
total! Por que gastar um mês lendo Grande sertão – veredas se com as técnicas de<br />
leitura dinâmica você poderá lê-lo em uma hora? A vida moderna corre rápida, não<br />
há tempo para vagarezas. Ler dinamicamente é muito importante no preparo para<br />
o vestibular. Quem anda devagar fica para trás! Sugiro que a filosofia da leitura<br />
dinâmica seja também aplicada a outras áreas. Sexo dinâmico! Por que perder<br />
tempo gastando uma hora fazendo amor se com a técnica do sexo dinâmico tudo<br />
se realiza em dois minutos? Comer dinamicamente! Quanto tempo se perde nas
efeições! Com a técnica da comida dinâmica, um jantar termina em cinco minutos.<br />
Música dinâmica! A Nona sinfonia pode ser ouvida em dois minutos! Durma<br />
também dinamicamente! Você terá muito mais tempo para fazer outras coisas!<br />
Pessoalmente, eu estaria interessado em pesquisas para se desenvolver técnicas<br />
de ver televisão dinamicamente: programas de várias horas reduzidos a poucos<br />
minutos. O Pequeno Príncipe encontrou-se com um vendedor de pílulas para matar<br />
a sede. “Para que servem essas pílulas?”, perguntou o principezinho. Respondeu o<br />
vendedor: “Para economizar tempo. Já se fizeram pesquisas que mostram que, por<br />
semana, gastamos duas horas indo até o filtro para beber água. Se você tomar as<br />
pílulas contra a sede você não gastará esse tempo”, explicou o vendedor. “E o que<br />
é que eu faço com esse tempo?” “Com esse tempo você faz o que quiser...” O<br />
Pequeno Príncipe parou, pensou e concluiu: “Que bom! Se eu tiver duas horas livres<br />
eu quero ir vagarosamente, mãos nos bolsos, até a fonte para beber água...”.<br />
O pôr do sol e a orquídea<br />
O sol estava se pondo. O pôr do sol a fez lembrar-se do seu pai. E ela começou a<br />
falar. Ele estava mortalmente enfermo e sabia disso. Ela abandonou o seu trabalho<br />
para estar com ele. E conversavam sobre a partida que se aproximava.<br />
Tranquilamente. Aqueles que aceitam a chegada da morte ficam tranquilos. Disseme<br />
que a hora que seu pai mais amava era o crepúsculo. Desde menina, ele se<br />
assentava com ela e ia mostrando a beleza das nuvens incendiadas, a progressiva<br />
e rápida sucessão das cores, azul, verde, amarelo, abóbora, vermelho, roxo... À<br />
medida que a morte se aproximava, a fraqueza aumentava. Mas, mesmo fraco,<br />
queria ver o pôr do sol. Talvez pela irmandade de um homem que morre e um sol<br />
que se põe. Numa dessas tardes, ela não conseguiu conter as lágrimas. Chorou. Ele<br />
a abraçou e colocou seu dedo sobre os seus lábios. “Não quero que você chore...”<br />
E, apontando para o sol que se punha, disse: “Eu estarei lá...”. E contou-me<br />
também de uma orquídea que silenciosamente acompanhou esses momentos de<br />
despedida. A orquídea, depois que seu pai partiu para o pôr do sol, se recusou a<br />
parar de florir... Será que o seu pai foi morar na orquídea? É possível...<br />
Futebol I<br />
Onde se encontra a emoção do futebol? Será na sua beleza? Sim, é bom ver uma<br />
partida que se parece com um balé. Mas esse espetáculo coreográfico não faz o<br />
torcedor feliz. Uma partida que termina zero a zero é um tédio. O grito vem quando<br />
o gol acontece. É no gol que mora a alegria e... o sofrimento... A alegria do<br />
torcedor cujo time fez o gol é simétrica ao sofrimento do torcedor do time que<br />
sofreu o gol. Cada gol que se faz é uma afirmação de potência, enquanto cada gol
que se leva é uma afirmação de impotência. E o gol é, fundamentalmente, um ato<br />
sádico. Um estupro. Um gol é um time que enfia a sua bola no buraco do outro –<br />
dolorosamente –, embora o outro tenha feito tudo para impedir que isso<br />
acontecesse.<br />
Futebol II<br />
A emoção do futebol, suas alegrias e tristezas, vêm do fato de que futebol é<br />
guerra. Uma copa do mundo é uma guerra estilizada entre muitos países. Daí a<br />
importância das bandeiras e dos hinos nacionais. Quem está em campo é um país<br />
em guerra contra um inimigo. A seleção são seus melhores heróis guerreiros, como<br />
na guerra de Troia. O campeão é o vencedor da guerra. Os outros são os vencidos.<br />
Medalha de prata não tem graça. O vice-campeão é também um vencido.<br />
Futebol III<br />
O povo unido, esquecidas as diferenças, esquecidos os partidos políticos,<br />
esquecidas as crenças religiosas: todos sentindo igual, todos cantando igual, todos<br />
gritando ao mesmo tempo, uma única bandeira. O entusiasmo do futebol provoca a<br />
união. Essa unanimidade de sentimentos e ações é característica dos tempos de<br />
guerra. Diante de um inimigo comum que ameaça, os conflitos internos perdem o<br />
seu sentido. As esquerdas argentinas, inimigas da ditadura militar, se esqueceram<br />
da sua inimizade e se uniram ao povo e aos militares nas praças, quando as ilhas<br />
Malvinas foram invadidas. A guerra faz esse milagre: ela transforma as inimizades<br />
internas em amizade. Campeonato mundial de futebol é a guerra que dissolve<br />
todas as oposições internas.<br />
Futebol IV<br />
Mas o fim da Banda é triste. “Mas para meu desencanto/ o que era doce acabou,/<br />
tudo tomou seu lugar/ depois que a Copa acabou...” Terminada a guerra contra o<br />
grande inimigo, começam os conflitos entre os irmãos. Passada a Copa, os<br />
torcedores tiram a camisa verde-amarela e cada um veste a camisa do seu time.<br />
Retorna, então, a guerra antiga...
Amor
Mastectomia<br />
A mulher havia perdido um seio. Chorando, ela abraçava o marido, sentindo-se<br />
mutilada na sua feminilidade e beleza. Como poderia continuar a ser amada pelo<br />
marido? O marido a aperta carinhosamente contra o peito e lhe diz: “De agora em<br />
diante, ao abraçar você, o meu peito estará mais perto do seu coração...”.<br />
O limite da paixão<br />
“Um mandarim estava apaixonado por uma cortesã. ‘Serei sua’, disse ela, ‘quando<br />
tiver passado cem noites a me esperar sentado num banquinho, no meu jardim,<br />
embaixo da minha janela.’ Mas, na nonagésima nona noite o mandarim se<br />
levantou, pôs o banquinho embaixo do braço e se foi.” (Barthes, Fragmentos de um<br />
discurso amoroso, p. 96)<br />
Compaixão<br />
Minha neta Camila estava chorando, aos soluços. Fui conversar com ela para<br />
partilhar da sua dor. Ela me explicou: “Vovô, eu não posso ver ninguém sofrer.<br />
Quando eu vejo uma pessoa sofrendo, o meu coração fica junto ao coração dela. E<br />
aí eu choro com ela...”.<br />
Mistérios do amor<br />
Um amigo médico contou-me o seguinte. Ele era médico de um leprosário.<br />
Leprosos, estigmatizados, deformados, isolados. As enfermeiras eram freiras: ali<br />
passavam a sua vida. É extraordinário o que o sentimento religioso é capaz de<br />
fazer! Uma das freiras teve uma infecção urinária. Teve de fazer um exame de<br />
urina. Juntamente com todas as informações patológicas, o laboratorista encontrou<br />
na urina evidências do amor: muitos espermatozoides. Ele respeitou esse segredo.<br />
Não colocou essa informação na folha do exame.<br />
Amantes<br />
Gosto da palavra “amantes”. Amantes são aqueles que se amam. Os amantes,<br />
separados pela distância, sentem saudades... Alegram-se com a memória do rosto<br />
da pessoa amada. Diferente das palavras “marido” e “esposa”. Para se ser<br />
“marido” e “esposa” não é preciso amar. Ouvi de um padre, na sua homilia aos<br />
noivos: “O que os une não é o seu amor. É o contrato”. Padre ortodoxo aquele.<br />
Conhecia bem a teologia da Igreja. Porque, para a Igreja, o que une as pessoas
não é o que elas sentem. É o ato sacramental que o sacerdote executa. É a Igreja<br />
que estabelece a união matrimonial. Sacramentos são atos que um sacerdote<br />
executa, em nome de Deus. Portanto, é Deus que executa. E se é Deus que<br />
executa, não pode ser desfeito. “Aquilo que Deus ajuntou não o separe o homem.”<br />
A rejeição do divórcio por parte da Igreja nada tem a ver com o seu amor pela<br />
família. O que está em jogo é o poder divino da Igreja para unir. Se ela aceitasse o<br />
divórcio, estaria confessando que o sacramento do matrimônio não é coisa divina.<br />
E, com isso, estaria se desqualificando como legítima representante de Deus. Acho<br />
que o certo seria dizer: “Aquilo que Deus ajuntou o homem não separa. Se separou<br />
é porque Deus não juntou...”.<br />
Quem não pode transar não pode casar<br />
<strong>Faz</strong> tempo escrevi um artigo com esse título, “Quem não pode transar não pode<br />
casar”. Uma enfermeira e seu paciente paraplégico se apaixonaram e queriam<br />
casar. Mas, por ser paraplégico, o homem não poderia ter relações sexuais.<br />
Queriam casar por puro amor. Mas o bispo proibiu alegando que a sã doutrina da<br />
Igreja estabelecia que a função do casamento é a procriação. Daí o título do meu<br />
artigo: “Quem não pode transar não pode casar”. Com os progressos da ciência,<br />
poderá chegar um dia em que a Igreja exigirá um espermograma dos noivos, e os<br />
estéreis estarão proibidos de casar, bem como os velhos.<br />
É difícil dizer que se ama<br />
Havia uma moça que passava sempre defronte da minha casa. Eu a via, do outro<br />
lado da rua. Ela tinha um defeito na perna que a fazia mancar. O seu rosto tinha<br />
uma suavidade, uma beleza que me encantava. E eu ficava com vontade de<br />
atravessar a rua e dizer-lhe: “Eu acho você muito bonita!”. E voltar correndo para<br />
dentro de casa. Nunca tive coragem. Tive medo de que ela me considerasse um<br />
velho desrespeitoso, dando-lhe uma cantada. E eu fico a me perguntar: por que é<br />
tão difícil dizer aos outros o quanto gostamos deles?<br />
Encontro e separação<br />
Amor é isto: a dialética entre a alegria do encontro e a dor da separação. E neste<br />
espaço o amor só sobrevive graças a algo que se chama fidelidade: a espera do<br />
regresso. Quem não pode suportar a dor da separação não está preparado para o<br />
amor. Porque amor é algo que não se possui, jamais. É evento de graça. Aparece<br />
quando quer, e só nos resta ficar à espera. E, quando ele volta, a alegria volta com
ele. E sentimos então que valeu a pena suportar a dor da ausência, pela alegria do<br />
reencontro.<br />
Demografia<br />
A obrigação de realizar o ato sexual tem a ver com a demografia dos céus e dos<br />
infernos. É preciso completar o número dos salvos e dos condenados para que a<br />
Divina Comédia chegue ao fim. O objetivo da união sexual não é a realização do<br />
amor. O amor é sentimento humano. O objetivo da união sexual é a procriação.<br />
Essa é a lei da natureza.<br />
Sexo e ódio<br />
Um homem e uma mulher unidos pelo sacramento têm o dever de se unir<br />
sexualmente, ainda que se odeiem. Porque não é o amor que justifica o sexo; é o<br />
contrato...<br />
Sexo racional<br />
Santo Agostinho colocou essa questão de maneira muito precisa ao elogiar o fato<br />
de Abraão haver engravidado sua escrava Hagar a fim de ter um filho, posto que<br />
Sara, sua mulher, era estéril. Diz o santo que Abraão agiu de maneira racional, por<br />
dever e não por prazer. Ele não gozou ao transar com Hagar. Estabelece-se um<br />
problema fisiológico: “É possivel ejacular sem prazer?”.<br />
Sexo é brinquedo<br />
Amar é brincar. Não leva a nada. Não é para levar a nada. Quem brinca já chegou.<br />
<strong>Faz</strong>er amor com uma mulher ou um homem é brincar com o seu corpo. Cada<br />
amante é um brinquedo brincante. “Creio na ressurreição do corpo”: não é a<br />
esperança de um milagre escatológico no fim dos tempos. É uma possibilidade de<br />
cada dia. Os sentidos precisam sair do túmulo onde os deveres os enterraram.<br />
Corpo de criança, corpo brincante: é nele que acontece a alegria!<br />
As delícias do corpo<br />
O corpo é um lugar maravilhoso de delícias. Mas Xerazade sabia que todo amor<br />
construído sobre os prazeres do corpo tem vida breve. A chama se apaga tão logo<br />
o corpo tenha esvaziado o seu fogo. O seu triste destino é ser decapitado pela
madrugada. Mais que prazer, é preciso alegria. “Não quero prazer”, dizia Tereza a<br />
Tomás. “Quero alegria!”<br />
Maquineta de fazer crianças<br />
Nos livros de medicina, os órgãos sexuais aparecem sob o título de “aparelho<br />
reprodutor”. Essa ideia de sexo como aparelho, maquineta de fazer crianças, me é<br />
repulsiva. Só podem tê-la aqueles que não leram o Cântico dos cânticos. Não existe<br />
naquele livro uma única sugestão de que sexo seja para procriar. Ali, sexo é só<br />
para a alegria do amor.<br />
Bicho-de-pé e educação sexual<br />
O bicho-de-pé (Tunga penetrans) merece sobreviver por suas múltiplas utilidades,<br />
entre elas, o seu uso didático, utilíssimo em aulas de educação sexual. A jovem,<br />
com medo da noite de núpcias, perguntou à mãe se doía muito. Ao que a mãe<br />
respondeu: “É feito bicho-de-pé. Dói um pouquinho, mas depois a gente não quer<br />
parar de esfregar...”.<br />
Luz das velas<br />
O amor nasce, vive e morre pelo poder – delicado – da imagem poética que o<br />
amante vê no rosto da amada. O amor prefere a luz das velas. Talvez porque seja<br />
isso tudo o que desejamos da pessoa amada: que ela seja uma luz suave que nos<br />
ajude a suportar o terror da noite.<br />
As mãos<br />
Como são diferentes as mãos ternas das mãos que desejam a posse! A ternura não<br />
deseja nada. O beijo terno apenas encosta os lábios... O olhar terno deseja que<br />
aquele momento seja eterno. Daí o seu cuidado, a voz que fala baixo, a mão que<br />
tateia, o mover-se vagaroso: para que o encanto da imagem não se quebre...<br />
Conversa<br />
“Ao pensar a possibilidade do casamento cada um deveria se fazer a seguinte<br />
pergunta: ‘Serei capaz de conversar com prazer com esta pessoa até a minha<br />
velhice?’” (Nietzsche) Tudo o mais no casamento é transitório.
Androginia<br />
O segredo do amor é a androginia: somos todos, homens e mulheres, masculinos e<br />
femininos ao mesmo tempo. É preciso saber ouvir. Deixar que o outro entre dentro<br />
da gente. Nada mais fatal contra o amor que a resposta rápida. Uma resposta<br />
rápida é um alfanje que decapita. Escutar demanda tempo. Há pessoas muito<br />
velhas cujos ouvidos ainda são virginais: nunca foram penetrados.<br />
O que amo?<br />
Releio as Confissões de santo Agostinho. Ele pergunta: “O que é que amo quando<br />
amo o meu Deus?”. Ele sabia que a simples afirmação “Eu amo o meu Deus” não<br />
significa coisa alguma. O amor exige um rosto. Imaginem que um apaixonado<br />
fizesse essa pergunta à sua amada: “Que é que eu amo quando amo você?”. Ela<br />
responderia perplexa: “Então, não é a mim que você ama? Você ama uma outra<br />
coisa que aparece em mim?”. Esse é um segredo que nenhum amante sabe: ele<br />
não ama a pessoa amada. Ele ama algo misterioso que se mostra no seu corpo. A<br />
raposa olhava para os campos de trigo e sentia amor ao vê-los oscilando ao vento.<br />
Amava os campos de trigo porque eles a faziam lembrar do cabelo dourado do<br />
Pequeno Príncipe. A pessoa amada é apenas o lugar onde a aparição acontece. “O<br />
que amamos é sempre um símbolo”, disse Hermann Hesse. “Símbolo” é algo que<br />
está no lugar da outra coisa. O pão e o vinho eucarísticos marcam o lugar da<br />
ausência de Cristo. O símbolo, qualquer símbolo, sendo “uma outra coisa” que não<br />
a coisa amada, é sempre um lugar de saudade. “Por que tenho saudade de você,<br />
no retrato, ainda que o mais recente? E por que um simples retrato, mais que você,<br />
me comove, se você mesma está presente?” (Cassiano Ricardo)<br />
Sem razões<br />
Angelus Silesius disse que o amor é como a rosa: “A rosa não tem ‘porquês’. Ela<br />
floresce porque floresce”...<br />
A cena<br />
O apaixonado sofre menos com a morte da pessoa amada que com a sua partida<br />
para um novo amor. A morte torna eterno o amor. Ela fixa, para sempre, a bela<br />
cena. A partida, ao contrário, a destrói.
Como o seio<br />
Somos amantes muito antes de nos encontrarmos com a mulher ou o homem que<br />
será objeto do nosso amor. Somos como a criancinha que já ama o seio mesmo<br />
antes do primeiro encontro.<br />
Sentimentos não se podem prometer<br />
Somos donos dos nossos atos, mas não somos donos dos nossos sentimentos.<br />
Somos culpados pelo que fazemos, mas não somos culpados pelo que sentimos.<br />
Podemos prometer atos. Não podemos prometer sentimentos. “Eu sei que vou te<br />
amar, por toda a minha vida vou te amor...” Lindo e mentiroso. Não se podem<br />
prometer sentimentos. Eles não dependem da nossa vontade. Sua existência é<br />
efêmera. Como o voo dos pássaros...<br />
Reflexo efêmero<br />
Meditando sobre as telas de Monet você entenderá o amor. Tudo são reflexos<br />
efêmeros... Por um momento a beleza cintila, mas logo o tremor da água faz<br />
desaparecer o reflexo... O êxtase do amor é como os reflexos da luz sobre a<br />
superfície das águas da lagoa.<br />
Alegre-triste<br />
Disse a Adélia: “O amor é a coisa mais alegre. O amor é a coisa mais triste. O amor<br />
é a coisa que eu mais quero...”. Todo símbolo é alegre-triste. Alegre, por lembrar a<br />
coisa amada, triste por ser o lugar onde ela não está... Hesse conclui não ser<br />
possível fixar o nosso amor em nenhuma pessoa. A fidelidade a uma única pessoa<br />
seria um equívoco...<br />
Narciso<br />
Pobre Narciso, enfeitiçado pela beleza que via refletida na superfície da fonte...<br />
Sempre que tentava tocá-la, seus dedos encrespavam o espelho da água e ela<br />
desaparecia. Será assim o êxtase da experiência amorosa? A bela imagem está lá,<br />
sorridente, no rosto da pessoa amada! Aí, vamos tocá-la – e ao tentar fazê-lo ela<br />
se desvanece...<br />
Sobre a desilusão amorosa
Os apaixonados vivem num mundo maravilhoso de fantasia amorosa. Concordam<br />
com o Tom Jobim: “O nosso amor vai ser assim, eu pra você, você pra mim...”. Eles<br />
acreditam firme e honestamente que o casamento será a realização da sua paixão<br />
em toda a pureza da fantasia. Mas todo mundo sabe, menos os apaixonados, que<br />
na vida não acontece assim. As rotinas do dia a dia não combinam com fantasias<br />
amorosas. Casados os apaixonados na casinha pequenina, eles terão agora de lidar<br />
com uma porção de coisas banais e irritantes. Por exemplo, o pingo de xixi na<br />
tampa da privada... Alguém me contou que, na Alemanha, encontrou nos banheiros<br />
cartazes proibindo que os homens fizessem xixi da maneira clássica, macha, de pé.<br />
A ordem é fazer xixi assentado, como as mulheres. <strong>Faz</strong>er xixi assentado pode ser<br />
um golpe na autoimagem machista dos homens mas, sem dúvida, é uma solução<br />
para as tampas de privada molhadas com xixi. Milan Kundera, no seu livro Os<br />
testamentos traídos, faz um comentário sobre Madame Bovary, de Flaubert,<br />
indicando que naquele livro o autor fez uma descoberta “por assim dizer,<br />
ontológica: a descoberta da estrutura do momento presente”, que é feito pela<br />
“coexistência perpétua do banal e do dramático sobre o qual nossas vidas estão<br />
fundamentadas”. Muitos momentos terríveis nascem de coisas absolutamente<br />
banais, como uma tampa de privada respingada de xixi... Uma tampa de privada<br />
respingada de urina é um golpe definitivo na imagem do príncipe encantado pela<br />
qual a esposa estava apaixonada...<br />
Quer ser amado? Alugue os seus ouvidos<br />
A delícia dos livros está em que eles, repentinamente, nos abrem os olhos, e<br />
vemos então coisas que nunca havíamos visto. A diferença entre os textos<br />
científicos e os textos literários está em que, enquanto os textos científicos nos<br />
colocam diante da mesa metálica onde se dissecam os cadáveres, os textos<br />
literários nos colocam bem no centro da vida. Quando se lê literatura vive-se a vida<br />
de outras pessoas, em outros tempos, em outros lugares. Vidas que não existiram.<br />
Acabei de ler O livro do riso e do esquecimento, de Milan Kundera. Uma simples<br />
frase me deu um choque: “Nós escrevemos porque nossos filhos se<br />
desinteressaram de nós”. Sim, escrevemos porque somos seres solitários à procura<br />
de outros filhos. Ele conta a estória de uma jovem que trabalhava como garçonete<br />
num bar. Seu nome era Tamina. Tamina “fica sentada no bar, num tamborete, e<br />
quase sempre há alguém que quer conversar com ela. Todo mundo gosta de<br />
Tamina. Porque ela sabe ouvir o que lhe contam. Mas será que ela ouve mesmo?<br />
Ou não faz outra coisa senão olhar, muito atenta, muito calada? O que conta é que<br />
ela não interrompe a fala. Vocês sabem o que acontece quando duas pessoas<br />
conversam. Uma fala e a outra lhe corta a palavra: ‘é exatamente como eu, eu...’ e
começa a falar sobre si até que a primeira consiga por sua vez cortar: ‘é<br />
exatamente como eu, eu...’. Essa frase, exatamente como eu, eu... parece ser um<br />
eco aprovador, uma maneira de continuar a reflexão do outro, mas é um engodo:<br />
na verdade é uma revolta brutal contra uma violência brutal, um esforço para<br />
libertar o nosso próprio ouvido do adversário. Pois toda a vida do homem entre<br />
seus semelhantes nada mais é do que um combate para se apossar do ouvido do<br />
outro. Todo o mistério da popularidade de Tamina é que ela não deseja falar sobre<br />
si mesma. Sem resistência, ela aceita os ocupantes de seu ouvido...” De repente,<br />
os diálogos comuns do dia a dia se me tornaram mais claros.
Beleza
Moça com brinco de pérolas<br />
... é um filme sobre uma tela do pintor holandês Vermeer, do século XVII. O filme<br />
não tem mistério, mortes, suspense, ação rápida. Tudo é devagar. A vida é<br />
devagar. Depressa, só a morte. É uma aprendizagem de ver. Trata-se de uma<br />
estória imaginada provocada pela visão dessa tela singela, o rosto de uma jovem<br />
com um brinco de pérolas. Como disse Bachelard, “o que se vê não pode se<br />
comparar ao que se imagina”. Vale, numa tela, a imaginação que ela provoca. Por<br />
isso, muitas pessoas de vista perfeita nunca viram realmente um quadro, embora o<br />
tenham visto. Falta-lhes imaginação. O autor da estória viu a tela Moça com brinco<br />
de pérolas e sua imaginação voou. Se me der na telha vou publicar de novo a<br />
estória que inventei ao meditar sobre uma outra tela de Vermeer, Mulher lendo<br />
uma carta. As telas de Vermeer põem paz na minha alma. Elas me reconduzem a<br />
um mundo de intimidade tranquila, de sombra e luz, de cores quentes, de falar<br />
baixo que não existe mais. É nesse mundo que mora a minha alma. Acostumados à<br />
ação rápida, é altamente provável que os jovens não consigam ficar até o fim. Não<br />
são culpados. Mas fico triste... Sugestão de um presente insólito para um<br />
adolescente: vá a uma livraria boa e compre um livro com telas de Vermeer da<br />
coleção Taschen. É barato. Quem sabe seu filho ou filha acabe se encantando...<br />
Mulher com uma vela<br />
Encontrei numa livraria de porão um cartão que me fascinou. É noite. Uma jovem<br />
segura uma vela sobre um fundo negro. A chama da vela está na horizontal, o que<br />
indica que há uma brisa soprando. A moça protege a chama com a sua mão. A luz<br />
da vela se filtra através de sua carne translúcida. De onde estará vindo o vento? A<br />
tela não explica. Mas a imaginação sugere. Para se ver bem não basta ter bons<br />
olhos. É preciso ter uma imaginação sensível. Ela abriu a porta de sua casa para<br />
alguém que bateu, o que explica a brisa. Quem poderia estar batendo à sua porta<br />
a tal hora da noite? Não se trata de um estranho porque ela está discretamente<br />
sorrindo, sem olhar diretamente nos olhos desse estranho que o pintor não pintou.<br />
É duvidoso que esse alguém invisível fosse o seu pai. O seu sorriso não é um<br />
sorriso que se oferece a um pai. Há uma pitada de pudor no seu rosto, ligeiramente<br />
inclinado... Seria o seu amado? Haviam marcado um encontro, ao abrigo dos olhos<br />
curiosos? Com certeza! Quem seria o seu amado? Provavelmente o pintor. O artista<br />
imortalizou na sua tela aquele momento de felicidade amorosa. O que é belo deve<br />
ser imortal. A prova de que ele imortalizou aquele momento está no fato de que<br />
hoje, séculos depois da morte dos dois, aquela cena continua a nos encantar... A<br />
arte não suporta o efêmero. Ela é uma luta contra a morte.
Ritmo binário<br />
Dizem que a razão por que se embalam as criancinhas em ritmo binário é porque<br />
durante nove meses ouvimos a pulsação binária do coração da mãe. O ritmo<br />
binário do coração da mãe se inscreve no corpo da criancinha como uma memória<br />
tranquilizadora.<br />
Sou bonito<br />
Não é meu costume ouvir música enquanto escrevo. Fico possuído pela música,<br />
numa espécie de êxtase, e isso faz parar meus pensamentos. Contrariando o meu<br />
hábito, coloquei no micro um cd de uma peça que nunca ouvira, a sonata para<br />
violino e piano de César Franck. Minutos depois eu estava chorando. Aí interrompi o<br />
choro e fiz um exercício filosófico. Perguntei-me: “Por que é que você está<br />
chorando?”. A resposta veio fácil: “Choro por causa da beleza...”. Continuei: “Mas o<br />
que é a experiência da beleza?”. Sem uma resposta pronta, veio-me algo que<br />
aprendi com Platão. Platão, quando não conseguia dar respostas racionais,<br />
inventava mitos. Ele contou que, antes de nascer, a alma contempla todas as<br />
coisas belas do universo. Essa experiência é tão forte que todas as infinitas formas<br />
de beleza do universo ficam eternamente gravadas em nós. Ao nascer, esquecemonos<br />
delas. Mas não as perdemos. A beleza fica em nós adormecida como um feto.<br />
Assim, todos nós estamos grávidos de beleza, beleza que quer nascer para o<br />
mundo qual uma criança. Quando a beleza nasce, reencontramo-nos com nós<br />
mesmos e experimentamos a alegria. Agora vem a minha contribuição. Continuo o<br />
mito. Há seres privilegiados – eles bem que poderiam ser chamados de anjos – aos<br />
quais é dado acesso a esse mundo espiritual de beleza. Eles veem e ouvem aquilo<br />
que nós nem vemos nem ouvimos. Aí eles transformam o que viram e ouviram em<br />
objetos belos que os homens normais podem ver e ouvir. É assim que nasce a arte.<br />
Ao ouvir uma música que me comove por sua beleza, eu me re-encontro com a<br />
mesma beleza que estava adormecida dentro de mim.<br />
O lugar onde mora a beleza<br />
“Quando te vi amei-te já muito antes. Tornei a encontrar-te quando te achei.” Essa<br />
é a mais bela declaração de amor que conheço, escrita pelo anjo Fernando Pessoa.<br />
Você já morava dentro de mim antes que nos encontrássemos. Nosso encontro não<br />
foi encontro; foi re-encontro... Isso que o poeta diz para um homem ou uma mulher<br />
pode ser dito também para uma música: “Quando te ouvi, ouvi-te já muito antes.
Tornei a ouvir-te quando te ouvi...”. O que me comoveu, então, não foi a música de<br />
César Franck. Foi a sonata que estava adormecida dentro de mim e que a sonata<br />
de César Franck fez acordar. Ao me comover com a beleza da música, eu me reencontro<br />
com a minha própria beleza. Por isso a música me traz felicidade...<br />
Metáforas<br />
É preciso entender que os poetas nunca falam sobre as coisas acerca das quais<br />
estão a falar. Falam sobre as coisas para falar sobre si mesmos. É isso que são as<br />
metáforas. Retratos da alma. Fernando Pessoa escreveu sobre as estrelas... Tão<br />
distantes. Mas era sobre si mesmo que falava. “Tenho dó das estrelas/ luzindo há<br />
tanto tempo,/ há tanto tempo.../ Tenho dó delas./ Não haverá um cansaço das<br />
coisas,/ de todas as coisas,/ como das pernas ou de um braço?/ Um cansaço de<br />
existir,/ de ser,/ só de ser,/ o ser triste brilhar ou sorrir.../ Não haverá, enfim,/ para<br />
as coisas que são,/ não a morte,/ mas sim uma outra espécie de fim,/ ou uma<br />
grande razão – qualquer coisa assim/ como um perdão?” Sim, ele estava muito<br />
cansado. Seu cansaço deveria ser tão grande como o cansaço das estrelas,<br />
brilhando sem fim, desejando apagar e dormir.<br />
A biblioteca submersa<br />
Debussy musicou um poema de Mallarmé, “La Cathedrale engloutie”, a catedral<br />
submersa. Ouvindo a música, a fantasia nos leva para as funduras do mar, a luz se<br />
filtrando através das águas inquietas, vitrais de corais, anêmonas, peixes coloridos<br />
e os nossos olhos, “dois baços peixes”, à procura, encantados. E se ouve o som dos<br />
sinos misturado ao silêncio das águas... Místico. Pensei em escrever um poema<br />
parecido, “La biblioteque engloutie”, a biblioteca submersa... Essa ideia me veio<br />
quando me lembrei de algo que aconteceu em 1964. Eu acabara de voltar dos<br />
Estados Unidos onde passara um ano, estudando. Logo depois do golpe. Meus<br />
livros haviam ficado em Lavras, Minas, onde eu fora pastor de uma igreja<br />
presbiteriana. Eu havia sido delatado como subversivo embora jamais tenha<br />
pertencido a qualquer organização política. Por todos os lados pululavam os<br />
delatores. Em tempos de violência política, a delação é uma prova de amor e<br />
subserviência aos donos das armas. A delação liga os delatores aos poderosos, o<br />
que lhes dá uma deliciosa sensação de poder impune: “Os outros estão à mercê da<br />
minha palavra!”. Era preciso eliminar as provas da minha subversão. Os livros. Em<br />
tempo de ditadura, pensar é crime. Só se permitem hinos patrióticos. Livros<br />
completamente inocentes. Um deles, Communism and the theologians, um simples<br />
relatório de opiniões de teólogos sobre o comunismo, tinha a capa vermelha com a
foice e o martelo. Não poderia esperar que o capitão inquisidor soubesse inglês e<br />
se desse ao trabalho de ler. As fogueiras já estavam acesas. Era preciso encontrar<br />
as bruxas para justificá-las. Os militares haviam tomado conta da cidade. Muitas<br />
pessoas presas. Eu seria uma das próximas. Os livros se recusaram a ser<br />
queimados. Um amigo meu, Sílvio Modesto, fazendeiro, fez a sugestão: que eu<br />
ensacasse os livros e ele os jogaria no fundo do rio Grande. Foi o que fiz. Sacos e<br />
mais sacos de livros foram para o fundo do rio Grande. Devem estar lá, acervo da<br />
Biblioteca Submersa <strong>Rubem</strong> <strong>Alves</strong>, frequentada por lambaris, piabas e dourados...<br />
Patativa do Assaré<br />
“Prefiro falá as coisa certa com as palavra errada a falá as coisa errada com as<br />
palavra certa.”<br />
Arte e ideologia<br />
Existe uma inimizade natural entre a ideologia e a arte. Ideologias são gaiolas. O<br />
seu objetivo é prender o pensamento. A arte são pássaros em voo. O seu objetivo<br />
é fazer o pensamento voar livre. Na revolução cultural da China se queimavam<br />
instrumentos musicais do Ocidente em nome de uma ideologia a um tempo<br />
comunista e rural. O comunismo sacralizou o chamado “realismo socialista” – um<br />
horror total, pintura sem sombras. Maiakóvski se suicidou porque o partido<br />
desejava que ele subordinasse a sua poesia à ideologia. A arte moderna foi banida<br />
da Alemanha nazista sob a alegação de que se tratava de arte degenerada. Assim<br />
se irmanam os ideólogos de direita e de esquerda. O que eles desejam é usar a<br />
arte como instrumento de convencimento ideológico. As marchas militares fazem<br />
os corpos marchar e entopem o pensamento.<br />
Mozart<br />
Eu almoçava num restaurante e ouvia-se música: Mozart, Pequena serenata, uma<br />
das peças mais leves, alegres e brincalhonas jamais escritas. Senti-me feliz. Quis<br />
que o dono ou dona do restaurante soubesse da minha alegria. Dirigi-me à moça<br />
do caixa: “Por favor, diga ao dono ou dona do restaurante que a comida estava<br />
ótima e a música melhor que a comida”. A moça me olhou espantada e perguntou:<br />
“O senhor está falando sério ou está me gozando?”. Se eu só tivesse elogiado a<br />
comida ela teria compreendido. Mas que eu tivesse elogiado a música, e música de<br />
Mozart, isso lhe era incompreensível. Só poderia ser gozação... Assim, minha<br />
alegria se quebrou ao me dar conta do fato de que há pessoas, muitas pessoas,
para quem Mozart é barulho. Sorri para a moça e falei sério: “Não, de verdade...”.<br />
Fui-me imaginando que ela estaria pensando que há pessoas com gosto musical<br />
muito esquisito...<br />
Coisas simples<br />
A poesia gosta mesmo é de coisas simples. Basta uma imagem banal. A Adélia<br />
Prado é especialista em fazer poesias com insignificâncias. Quiabos “chifre de<br />
veado”, ora-pro-nobis, tanajuras, galinhas, ovos, escamação de peixes, galinhas de<br />
bico aberto, a mãe cantando enquanto cozinhava exatamente arroz, feijão-roxinho<br />
e molho de batatinhas: com essas coisas ela faz poesia. Pois poesia é feito<br />
caleidoscópio: faz beleza com caquinhos de vidro. Por que é que os poetas são<br />
assim tão ligados às insignificâncias? Porque é com insignificâncias que a vida é<br />
feita. Pois eu escrevi sobre a insignificância de chupar laranjas... O Zé, marido da<br />
Adélia, me mandou e-mail imediato lá de Divinópolis, juntando-se a minha<br />
conversa sobre os jeitos de chupar laranja. E ele me disse que por lá os pobres<br />
também chupavam de gomo. Só que enfiavam o gomo inteiro na boca, depois<br />
cuspiam os caroços e engoliam o bagaço. Isso, por causa da prisão de ventre. Se<br />
eu escrevi e o Zé me respondeu é porque a amizade se faz com insignificâncias. Em<br />
Minas Gerais até jeito de chupar laranja é poesia...<br />
Beleza<br />
O filósofo russo Nicolas Berdjaev disse que no Paraíso não havia nem ética, nem<br />
ciência, nem política: só estética. Deus nos criou para a Beleza. E foi por isso que<br />
nos encheu de Amor. Para que dela não nos esquecêssemos...<br />
Olhar perturbado<br />
A poesia é uma perturbação do olhar. O poeta vê o que não está lá. Para ele, as<br />
coisas são transparentes, abrem-se para outros mundos. A Adélia Prado diz que<br />
Deus de vez em quando a castiga, tirando-lhe a poesia. Ela olha para uma pedra e<br />
vê uma pedra. William Blake, poeta inglês, escreveu um poema em que diz: “Ver<br />
um mundo num grão de areia e um céu numa flor silvestre...”. Octávio Paz<br />
descreve essa experiência: “Todos os dias atravessamos a mesma rua ou o mesmo<br />
jardim; todas as tardes os nossos olhos batem no mesmo muro avermelhado feito<br />
de tijolos e tempo urbano. De repente, num dia qualquer, a rua dá para um outro<br />
mundo, o jardim acaba de nascer, o muro fatigado se cobre de signos”. A Raposa<br />
começou a ver nos campos dourados de trigo batidos pelo vento o cabelo louro do
Pequeno Príncipe que partira. Meu filho pequeno, nas minhas ausências e com<br />
saudades, ia para o meu escritório vazio para sentir o cheiro do fumo de cachimbo.<br />
O cheiro do cachimbo era o que ele tinha de mim. O cheiro do cachimbo era, para<br />
ele, um sacramento. Sacramento é uma presença na qual mora uma ausência. A<br />
única coisa que recebi de meu pai como herança foi um peso de papel de vidro<br />
esverdeado. Quando olho para o peso de papel não vejo peso de papel,<br />
insignificância. Vejo o rosto do meu pai.<br />
Palavra que apunhala<br />
Recebi um e-mail em inglês que me foi enviado por uma senhora, Lola Degenszjn,<br />
nascida na cidade do Cairo, Egito, mas residindo no Brasil há muitos anos. Ela se<br />
desculpou dizendo que lia português mas não escrevia bem. Disse-me que gostava<br />
das coisas que eu escrevia. Mas uma única palavra que usei foi uma punhalada na<br />
sua alma. A palavra, bem... Eu escrevia para as minhas netas e descrevia como era<br />
a casa pobre em que vivi, quando menino. Fogão de lenha, luz de lamparina, sem<br />
geladeira (não havia eletricidade), as comidas eram guardadas num armário de<br />
tela chamado guarda-comida. Foi essa palavra banal que escrevi sem nenhuma<br />
emoção que lhe deu a punhalada. “With this I was stabbed”, ela disse. E como que<br />
se lembrando, escreveu o nome do guarda-comida em francês: “garde manger”... A<br />
punhalada aconteceu porque, ao ler a palavra, ela se viu menina, na sua casa no<br />
Cairo. Lá havia um guarda-comida... Tanto tempo se passara! Ela até se esquecera<br />
de tal objeto. Ao ler a palavra “guarda-comida” no meu texto ela foi devolvida a<br />
uma cena da sua infância: ela, menina, na cozinha de sua casa... Eu e a Lola,<br />
agora, nos tornamos amigos ligados por essa palavra banal, “guarda-comida”...<br />
Variações<br />
Milan Kundera observou que “as variações eram a forma favorita de Beethoven ao<br />
final da sua vida”. Variação é ficar repetindo a mesma coisa, cada hora de um jeito.<br />
Por que é que se repete? Por ser bonito. A gente quer a repetição do beijo, do<br />
doce, do poema, do pôr do sol... A alma não quer ir para a frente. Quem quer ir<br />
para a frente é porque ainda não encontrou. Está ainda à procura. Quem quer<br />
repetir é porque já encontrou o que procurava. Acho que é por causa disso que, faz<br />
muito tempo, estou sempre a repetir as mesmas coisas, cada hora de um jeito.<br />
A alma é música<br />
Quero ouvir música: aquelas que fazem parte da minha alma. Pois a alma, no seu
lugar mais fundo, está cheia de música. E, sem precisar me desculpar pelo meu<br />
gosto, digo que amo música erudita. Música erudita é aquela que nos faz comungar<br />
com a eternidade. Sobre isso escrevi o livro para grandes pequenos O Barbazul.<br />
Os limites da palavra<br />
Muito tarde aprendi os limites da palavra. Alguns pensam que os seus argumentos,<br />
por sua clareza e lógica, são capazes de convencer. Levou tempo para que eu<br />
compreendesse que o que convence não é a “letra” do que falamos; é a “música”<br />
que se ouve nos interstícios de nossa fala. A razão só entende a letra. Mas a alma<br />
só ouve a música. O segredo da comunicação é a poesia. Porque poesia é<br />
precisamente isso: o uso das palavras para produzir música. Pianista usa piano,<br />
violeiro usa viola, flautista usa flauta – o poeta usa a palavra.<br />
Fernando Pessoa<br />
Ele confessou, no Livro do desassossego, que a sua alma era uma orquestra. E<br />
escreveu esse poema: “Cessa o teu canto! Dessa, que, enquanto o ouvi, ouvia uma<br />
outra voz como que vindo nos interstícios do brando encanto com que o teu canto<br />
vinha até nós. Ouvi-te e ouvi-a no mesmo tempo e diferente juntas a cantar. E a<br />
melodia que não havia, se agora lembro, faz-me chorar...”.<br />
Velho<br />
O senhor Américo era um homem humilde, nascido na roça, religioso, que só tinha<br />
ouvidos para pachorrentos hinos de igreja. Pois, não sei como, aos oitenta anos,<br />
quando já estava meio surdo, os seus ouvidos começaram a ouvir música clássica.<br />
Não é que ele nunca tivesse ouvido. Ouvira com o corpo, não ouvira com a alma.<br />
Mas, de repente, a alma começou a ouvir e a vida do sr. Américo se transformou.<br />
Ficou assombrado, inundado de alegria, e passou o resto da sua vida, até sua<br />
morte aos 92 anos, colecionando e ouvindo discos de música clássica.<br />
A viola<br />
... só existe para fazer música. Sem o tocador a viola fica muda. A viola, para ser<br />
boa, tem de fazer a música que está na alma do tocador. Pois o corpo é assim<br />
mesmo: como uma viola... Há muita gente, viola boa, saúde 100%, que é como<br />
viola desafinada, sem tocador. Não faz música. Ninguém é amado por ter saúde<br />
boa. Há pessoas de boa saúde cuja companhia ninguém deseja. E, ao contrário, há
pessoas de corpo doente que são fontes de beleza. Muita viola velha faz beleza de<br />
fazer chorar... Beethoven estava completamente surdo, no fim da vida. E foi dele<br />
que saiu a Nona sinfonia – que é um hino à alegria.<br />
A alegria<br />
Alegria é o que sinto com o corpo quando ele se encontra com aquilo que desejava.<br />
Coisa simples e efêmera... Brecht, num momento de grande depressão, escreveu<br />
um poema para lembrar-se das alegrias ao seu redor, a que deu o nome de<br />
“Felicidades”. É bom que seja assim, felicidades, no plural. Porque ela não é uma e<br />
final. Sempre pequenas e passageiras.<br />
Prazer<br />
Digo que este é o objeto da vida: prazer... Haverá algo melhor? O trabalho? Mas o<br />
objetivo do trabalho é o jardim que se planta, ou a casa que se constrói, ou o livro<br />
que se escreve... Ou será a ciência? Os cientistas de outros tempos sabiam que a<br />
única finalidade da ciência era aliviar o sofrimento e tornar possível a construção do<br />
Paraíso... A revolução social? Mas para que é que se fazem as revoluções? Não<br />
será, por acaso, para pôr fim às ferramentas de sofrimento, e assim as pessoas<br />
possam ser livres para usufruir o jardim?<br />
Outono<br />
A primavera é linda, cheia de cores, cios e odores. Mas não me comove. Não<br />
encontro nela lugar para a saudade. Por isso lhe falta aquela gota de tristeza, que<br />
mora em toda obra de arte. É que ela existe na paradisíaca inconsciência do fim...<br />
O verão é diferente. Excita meu lado de fora, e me transforma em sol, céu, mar.<br />
Misturo-me com seu universo luminoso, quente e suarento, cheio de cachoeiras e<br />
limonadas geladas. Tudo me convida a não pensar. A só rir, gozar, usufruir... Mas o<br />
outono me chama de volta. Devolve-me à minha verdade. Sinto então a dor bonita<br />
da nostalgia, pedaço de mim, de que não posso me esquecer... O céu, azul<br />
profundo, as árvores e grama de um outro verde, misturados com o dourado dos<br />
raios de sol inclinados. Tudo fica mais pungente ao cair da tarde, pelo frio, pelo<br />
crepúsculo, o que revela o parentesco entre o outono e o entardecer. O outono é o<br />
ano que entardece.<br />
Pôr do sol
... é metáfora poética, e se o sentimos assim é porque sua beleza triste mora em<br />
nosso próprio corpo. Somos seres crepusculares.<br />
Haicais<br />
Séculos antes da invenção das máquinas fotográficas, os japoneses já eram<br />
mestres na arte de fotografar. Fotografavam sem máquinas. Para isso usavam<br />
palavras. Suas maravilhosas miniaturas fotográficas feitas com palavras têm o<br />
nome de haicais. Quem lê um haicai vê. São tão pequenos – mas pesam tanto!<br />
Leminski, valendo-se de uma sugestão de Jorge Luis Borges, descreve um haicai<br />
como um objeto poético mínimo de peso intolerável. Não tente entender. Você<br />
entende um pôr do sol? Um pássaro em voo? Um sorriso da pessoa amada? Não<br />
são para ser entendidos. São para ser vistos. O prazer do que se vê está no ato de<br />
ver e não no ato de pensar sobre o visto. Os pensamentos prejudicam a visão. Não<br />
foi à toa que Alberto Caeiro afirmou que “pensar é estar doente dos olhos”. Quem<br />
lê um haicai fica curado dos olhos por nos obrigarem a não pensar. Veja esse<br />
haicai: “Na velha casa que abandonei as cerejeiras florescem”. Acabou. É só isso.<br />
Agora, sem ser levado pelo desejo de compreender, entregue-se à visão. Veja a<br />
casa velha. A casa que abandonei. Passei por ela. Triste solidão. Os muros estão<br />
caídos. O jardim de outrora se transformou num matagal. As paredes estão<br />
descascadas. Mas, a despeito desse abandono, as cerejeiras florescem... As<br />
cerejeiras são fiéis. Pode-se confiar nelas. Às vezes brinco de fazer haicais, embora<br />
não obedeça à técnica. Aqui está um, inspirado pelas cerejeiras. Era o tempo<br />
quando se tinha medo de andar pelas ruas de Campinas. A morte estava à espreita<br />
nas esquinas. Aí eu vi um ipê florido e o haicai saiu: “Na cidade amedrontada os<br />
ipês-amarelos florescem”. Os ipês amarelos estão floridos de novo. Voltam sempre,<br />
no mesmo tempo, na ordem certa. Em julho florescem os ipês-rosas. Em agosto, os<br />
amarelos. Em setembro, os brancos. De todos, os mais desavergonhados são os<br />
ipês-amarelos. Minivulcões em erupções de alegria. É bom ver sua copa amarela,<br />
sem uma única folha, contra o céu azul. Alguns deles, fui eu que plantei. Mas são<br />
poucos os que se assombram e param para vê-los. Acho um ipê-amarelo florido um<br />
milagre maior que um cego ver ou um paralítico andar.<br />
Helena Kolody<br />
Na minha ignorância, eu nunca havia ouvido o seu nome. Conheci-a como um<br />
presente de um amigo, Samuel Lago, um livro de poemas. Comecei a ler sem<br />
muito interesse e foi amor à primeira leitura. Sou como aqueles poemas. Li os<br />
poemas e senti o espanto de me descobrir. O poema me diz. Diz o que eu já sabia
sem saber. Bem disse Bernardo Soares que “arte é comunicar aos outros a nossa<br />
identidade íntima com eles”. Meu rosto aparece refletido no espelho de vidro.<br />
Dentro dele, do espelho, vejo diariamente meu rosto conhecido. Meu reflexo não<br />
me surpreende. Mas o poema é um espelho onde a minha alma, desconhecida,<br />
aparece refletida. Espanto-me. Nunca me havia visto assim. O poema me mostra a<br />
beleza da minha alma – que eu não via. Por isso a poesia é salvação. Na minha<br />
solidão, dou-me conta de que existe uma outra pessoa cuja alma se parece com a<br />
minha. Fico grato porque tal pessoa existe. Minha solidão se transforma em<br />
comunhão.
Crianças
Memória de infância<br />
Nos seus devaneios sobre a infância, Bachelard se reencontra com remédios que se<br />
tornaram obsoletos, remédios que tinham nomes poderosos, nomes que faziam<br />
parte de suas potências curativas. Bastava ouvir o nome para se sentir meio<br />
curado. A leitura de Bachelard me levou de volta aos remédios antigos... Lembreime<br />
da Emulsão de Scott. Quem teria sido esse senhor Scott? O rótulo da garrafa<br />
dizia que o senhor Scott era um homem que conhecia os segredos curativos dos<br />
peixes. Lá está a figura de um homem carregando às suas costas um peixe<br />
enorme, do seu tamanho, um bacalhau. Quem toma Emulsão de Scott ganha a<br />
saúde dos peixes. Fiquei com tanta saudade que fui à farmácia e comprei um vidro,<br />
pois ela ainda sobrevive, a emulsão, para atender os devaneios dos velhos. Em<br />
casa abri o vidro e oh!, desapontamento. Seu horrível cheiro original havia sido<br />
substituído pelo perfume de morangos! Mas que têm os morangos, delicadas<br />
frutinhas da horta, a ver com os mares profundos onde nadam os bacalhaus? Voltei<br />
à farmácia. <strong>Feliz</strong>mente ainda há os originais. Vejo-me menino, é o mês de julho,<br />
mês do frio, mês de tomar Emulsão de Scott. Minha mãe chega com uma colher<br />
cheia do líquido pastoso branco de gosto e cheiro horríveis em uma mão, e a<br />
metade de uma laranja na outra. A laranja, para consertar o gosto e o cheiro...<br />
Resolvi fazer uma pesquisa. Fui à Farmácia Carcajon, minha vizinha, à procura dos<br />
remédios velhos. Os atendentes, meus amigos, se juntaram à minha pesquisa. Rum<br />
Creosotado. Rum Creosotado é poesia. “Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro<br />
que o senhor tem ao seu lado. E no entretanto acredite: quase morreu de<br />
bronquite. Salvou-o o Rum Creosotado.” A poesia torna eternas as lembranças...<br />
Essas rimas se encontravam em todo bonde. Pra passar o tempo enquanto viajava,<br />
a gente ia lendo e decorando. Os bondes não mais existem, as rimas não mais se<br />
leem. Limonada purgativa. Ah! Coisa terrível. Aplicada a quem estava com dor de<br />
barriga, produzia uma limpeza apocalíptica no intestino. Muitos apêndices<br />
inflamados supuraram por causa da limonada! Nenhuma mulher podia prescindir do<br />
Regulador Xavier, números 1 e 2. De novo, o nome: Xavier. Os cientistas,<br />
inventores dos remédios, tratavam de perpetuar os seus nomes nos vidros das<br />
poções mágicas que inventavam. Mágicas? Isso mesmo! Até se usava a expressão:<br />
“Um santo remédio!”. Naqueles tempos, os remédios tinham qualidades teológicas,<br />
pertenciam ao mundo dos mistérios sagrados. É o caso da palavra “elixir”. A<br />
etimologia muito me tem revelado sobre a arqueologia das palavras, o que<br />
significavam quando do seu nascimento. Na minha cabeça, a palavra “elixir” me<br />
transporta para o mundo das estórias de encantamento. Elixir d’amore! Emulsão<br />
não se aplicaria. Emulsão de amor não soa bem. Por quê? Não sei. A poesia tem<br />
razões que a prosa desconhece. O Dicionário Webster, meu amigo fiel, me<br />
informou que a palavra elixir vem do árabe “el iksir”, que significa “pedra filosofal”.
Na alquimia, os elixires eram líquidos que tinham o poder de transformar metais<br />
baratos em ouro. E tinham o poder de prolongar a vida indefinidamente. Elixir<br />
Dória. Para quem comeu demais. Umas gotas pretas, amargas. Na figura da<br />
propaganda, um homem de boca aberta da qual saía a cabeça de um boi, com<br />
chifre e tudo. O Elixir Dória digeria até cabeça de boi... Eu ainda faço uso de um<br />
elixir, o Elixir Paregórico. Potentíssimo. Ação rápida. Contra cólicas. Sempre carrego<br />
um vidrinho em minhas andanças. Outro elixir era o Elixir de Inhame Goulart. Quem<br />
diria que dos inhames se podem extrair maravilhas curativas! E, por falar nisso,<br />
tinha um remédio com o nome de Maravilha Curativa. Quem seria capaz de resistir<br />
ao poder do nome? Não sei o que curava, mas que curava, curava... E o<br />
Phimatosan, para tosse, com o qual os meninos faziam uma brincadeira: “Caim<br />
matou Abel, Phi matou Zan, Esper matou Zoide...”. E que dizer das pílulas? Pílulas<br />
de Vida do dr. Ross, redondinhas, branquinhas, do tamanho de um caroço de uva.<br />
Dizia a propaganda: “pequeninas mas resolvem”. Resolvem o quê? Constipação<br />
intestinal, prisão de ventre. Havia os novatos que não acreditavam, as pílulas eram<br />
muito pequenas, e resolviam tomar logo cinco de uma vez. Ah! Pobres coitados,<br />
condenados a passar uma noite inteira sem poder dormir, correndo entre a cama e<br />
a privada... O Biotônico Fontoura. O nome está dizendo: bio = vida + tônico = que<br />
fortalece. Remédio que dá vida. Ficou famoso com a estória do Jeca Tatuzinho, que<br />
era um pobre caboclo que morava numa casinha coberta de sapé. Tomou o<br />
Biotônico, ficou forte, derrubou mato, ficou valente, deu murro em onça, ficou rico,<br />
os porcos e galinhas da sua fazenda todos usavam sapatos, para não terem<br />
verminose, fumou charuto. Naqueles tempos, o símbolo da riqueza não era ter<br />
BMW, era fumar charuto. Era comum se encontrar nos armazéns um quadro com<br />
duas metades. Na primeira metade, um magricela, esfarrapado, assentado no chão<br />
de um quarto vazio, cheio de teias de aranhas e ratos, com os dizeres: “Eu vendi<br />
fiado”. Na outra metade, um homem gordo, papada redonda, assentado numa<br />
poltrona, numa loja rica, “burra” aberta com dinheiro derramando, fumando um<br />
charuto, com os dizeres: “Eu vendi a dinheiro”. É, os tempos mudaram. Hoje só fica<br />
rico quem vende fiado. Prova disso são os cartões de crédito. Acho que vai chegar<br />
um tempo em que o dinheiro vai desaparecer. Apenas usaremos cartões e<br />
trabalharemos com números. Vai desaparecer o delicioso prazer de contar dinheiro<br />
com o dedo “pai de todos”, o dedo do prazer... Os valores monetários serão valores<br />
virtuais. E tinha o Xarope de Limão Bravo, Xarope São João, Salicilato de Bismuto,<br />
Pílulas de Lussen, Pílulas de Erva de Bicho, Violeta de Genciana. Compare esses<br />
nomes potentes com os nomes dos remédios de agora: Garasone, Lognox,<br />
Deiclogenon, Cetroloc, Flixotide, Vioxx (com dois “x” mesmo...), Celebra, Clo,<br />
Efexor XR, Clob-X, Buscopan, Amaril. Acho que outros nomes, mais poéticos, mais<br />
fantasiosos, teriam mais efeito.
Uma criança<br />
Há livros que se lê uma vez e depois joga-se fora. Lidos, esgotaram o que tinham<br />
para dizer. Parecem-se com as piadas: as piadas só fazem rir na primeira vez que<br />
são contadas. Outros livros, entretanto, são como fontes. A fonte é a mesma. Mas<br />
a água que dela brota é sempre fresca, sempre nova, sempre outra água.<br />
Retornamos sempre às fontes. Cada retorno é uma felicidade nova. Na minha<br />
infância havia uma fonte, um buraco simples em forma de bacia, que me dava<br />
grande alegria visitar. Não que eu estivesse com sede. Apenas para me encantar.<br />
Daquela fonte nem meu pai nem minha mãe ficaram sabendo. Vocês são os<br />
primeiros a quem estou contando. Que felicidade encontrei na minha infância, solto<br />
por espaços vazios de olhos adultos! Os adultos estragam o mundo das crianças<br />
com os seus olhos. Diante da fonte, minha amiga, eu estava sozinho,<br />
absolutamente sozinho. Guimarães Rosa, falando de sua infância, disse que ela foi<br />
muito gostosa. A única coisa que a atrapalhava eram os olhos dos adultos que se<br />
intrometiam em tudo. Livrou-se disso quando arranjou uma chave para o seu<br />
quarto. Trancado, podia gozar livremente os seus devaneios. Esses livros-fonte não<br />
são de diversão. São livros de encantamento. A sua leitura é como beber água da<br />
fonte, sempre. Por isso sempre voltamos a eles. Um dos livros-fonte que mais me<br />
encantam é A poética do devaneio, de Bachelard. Volto sempre a ele e é sempre<br />
como se fosse pela primeira vez. Um curto texto que me encanta: “Nos grandes<br />
infortúnios da vida, ganhamos coragem quando somos o sustentáculo de uma<br />
criança. A inquietação que temos pela criança sustenta uma coragem invencível”<br />
(São Paulo, Livraria Martins Fontes, p. 127). Esse livro maravilhoso nunca foi e<br />
nunca será best-seller. É uma fonte escondida da qual poucos bebem. Quando<br />
muitos bebem na mesma fonte, a água fica poluída. Lembrei-me desse texto ao<br />
pensar num dos demônios mais potentes a habitar a alma humana: o tédio. Viver<br />
sem razões para viver. Pensei logo: só são atacadas pelo demônio tédio as pessoas<br />
que não são sustentáculo de uma criança, que não se inquietam por uma criança. O<br />
tédio, nenhum exorcista pode com ele. Nenhum terapeuta sabe as palavras que o<br />
afugentam. O tédio se cura com o olhar de uma criança. Há tantas crianças soltas<br />
pelas ruas da cidade, prontas a salvar-nos do tédio...<br />
Perdoar<br />
As crianças são maravilhosas na sua capacidade de perdoar. Lembro-me de que,<br />
quando fazia alguma injustiça com meus filhos pequenos, eu ia à sua cama<br />
confessar o meu erro e pedir perdão. Os abraços apertados que me davam são
inesquecíveis.<br />
Aconteceu de verdade?<br />
Quando eu lhe contava estórias antes de dormir, minha filha sempre me<br />
perguntava: “Essa estória que você está contando aconteceu de verdade?”. E eu<br />
não podia dar a resposta certa. Seria difícil para a sua compreensão. A resposta<br />
certa seria: “Essa estória não aconteceu nunca para que aconteça sempre...”. Esse<br />
é o poder das coisas que vivem no mundo da fantasia. Elas nunca aconteceram.<br />
Mas todas as vezes que as ouvimos recontadas, ou como poema, ou como estória,<br />
ou como música, elas acontecem de novo: encarnam-se no corpo.<br />
Coisas que as crianças dizem<br />
As crianças dizem coisas deliciosas. O menininho viajava de avião pela primeira<br />
vez. O voo partira à noite e ele nada viu. Logo dormiu. Quando acordou pela<br />
manhã, olhou para fora, o céu absolutamente azul para cima e, lá embaixo, nuvens<br />
brancas navegantes... Assustado, disse ao pai: “Papai, o céu caiu lá embaixo...”. A<br />
avó, que morava num sítio, estava recebendo a primeira visita da netinha que<br />
morava num apartamento. Levou-a à horta, coisa que a menina nunca vira.<br />
Agachou-se diante de um canteiro, retirou a terra fofa e arrancou algumas<br />
cenouras. Comentário da menininha: “Você guarda suas cenouras num lugar<br />
esquisito. Em casa nós as guardamos na geladeira...”. A menina, baseada em<br />
sólidos argumentos linguísticos, discordava: “Não, o nome não pode ser canteiro.<br />
Canteiro é um lugar de canto. Um lugar onde crescem as plantas deve se chamar<br />
planteiro...”. Hora do jantar, o menininho de cinco anos tomava sopa. Fez então,<br />
ao pai, uma pergunta teológica: “Papai, onde está Deus?”. O pai respondeu<br />
segundo o catecismo: “Está em todos os lugares, meu filho”. Rápido, o menino<br />
concluiu: “Está então nesta colher de sopa que estou tomando?”. O menino visitava<br />
a fazenda pela primeira vez. De manhã, todos ao lugar onde se fazia a ordenha das<br />
vacas, o leite jorrando espumante das exuberantes tetas do manso animal. Todos<br />
bebiam do leite quente. Chegada a vez do menino, ele recusou o copo de leite e se<br />
pôs a chorar: “Não quero tomar leite de bicho. Quero tomar leite de saquinho...”.<br />
Pergunta metafísica de uma menininha: “Para onde vão os dias que passam?”. Sim,<br />
eu me pergunto: para onde foram os dias que vivi?<br />
Outras perguntas<br />
Por que o céu é azul? O que faz a Terra girar? Por que a chuva cai em gotas e não
toda de uma vez? Quem inventou as palavras? Cavalo poderia se chamar “sabiá” e<br />
sabiá se chamar “cavalo”? Por que os bons morrem cedo? Existe o Inferno? Quem o<br />
criou?<br />
Voltar a ser criança<br />
O místico Jacob Boehme disse que a única coisa que Deus faz é brincar. Os homens<br />
perderam o Paraíso quando deixaram de ser crianças brincantes e se tornaram<br />
adultos trabalhantes... As escolas existem para transformar as crianças que<br />
brincam em adultos que trabalham.<br />
Eternas<br />
As crianças que moram em nós são eternas. Não envelhecem. Tal como acontece<br />
nos gibis. Os sobrinhos do Pato Donald até hoje são pirralhos. E também o Calvin...<br />
Alberto Caeiro era da mesma opinião. Ele fala da eterna criança que o<br />
acompanhava sempre e que lhe fazia cócegas, brincando com as suas orelhas.<br />
Assim, a gente vai ficando velho por fora, as linhas do rosto marcando a<br />
verticalidade. Mas é só a criança acordar para que o rosto velho se ponha a<br />
brincar...<br />
Mexericas<br />
Por razões que só Freud explica, quando eu era menino adorava descascar<br />
mexericas e enfiar meu indicador no buraco que há no meio dos gomos. Ficava com<br />
a mexerica espetada, mostrando para todo mundo. De vez em quando, nas minhas<br />
falas, conto esta experiência infantil e o auditório morre de dar risada. Porque<br />
todos fizeram a mesma coisa. Não é estranho isso, que todas as crianças tenham a<br />
mesma ideia e o mesmo prazer?<br />
Crianças diferentes<br />
Tenho dó das crianças diferentes. Eu fui uma criança diferente. Caipira de Minas em<br />
meio aos meninos da riqueza carioca. Roupas diferentes, sotaque ridículo. Fui<br />
motivo de chacota. Nunca tive um único amigo na escola. Foi assim que aprendi a<br />
solidão. Há as crianças que aprendem mais devagar, que correm também mais<br />
devagar por serem gordas, que não são bonitas, que não são atléticas, que têm<br />
alguma limitação, síndrome de Down, gagueira, estrabismo, deficiência visual. As<br />
crianças ainda são discriminadas pela cor. Muitas estórias infantis se escreveram
sobre a dor da diferença: o Patinho Feio, a Gata Borralheira. Eu mesmo escrevi<br />
Como nasceu a alegria, A porquinha do rabo esticadinho. É difícil para essas<br />
crianças pertencer à “turma”. Não são convidadas. São abandonadas pelos colegas.<br />
Parece que as crianças ditas normais não são educadas para ser amigas delas. E<br />
nem as professoras sabem o que fazer.<br />
Pai e filho<br />
A escola organizou uma excursão de alunos e pais por uma mata. O objetivo da<br />
excursão era contemplar as árvores e os pássaros. Mas, para um menininho, mais<br />
maravilhoso que todas as árvores foi ver o seu pai subir em uma delas. Ele nunca<br />
havia imaginado que seu pai fosse capaz de fazer tal coisa! Desde esse dia seu pai<br />
se tornou um super-herói!<br />
O espaço secreto<br />
A menininha vivia numa solidão imensa. Seus pais não permitiam que ela tivesse<br />
amigos. “Bastam os parentes”, diziam. As janelas da casa eram protegidas do<br />
exterior por persianas abaixadas que criavam um espaço interior de sombras. Pelas<br />
frestas das persianas, ela olhava o mundo luminoso que vivia lá fora. Sua casa não<br />
era sua casa. Não havia nela espaço para sua solidão. A solidão da criança é<br />
aquele mundo em que ela está protegida da vigilância adulta. Da minha infância<br />
tenho memórias felizes dos meus espaços solitários, espaços da minha liberdade.<br />
Há os grandes espaços solitários, a criança correndo livre, longe dos olhos adultos.<br />
Vejo-me soltando pipa... E há os pequenos espaços solitários, os espaços<br />
aconchegantes. As crianças gostam de fazer cabaninhas, sonham com uma casa no<br />
alto de uma árvore, onde os adultos não chegam. Pois essa menininha descobriu o<br />
seu espaço, espaço que era só dela, ninguém mais sabia, ninguém entrava nele:<br />
era um taco de assoalho solto no fim de um corredor. Quando ela levantava o taco,<br />
ele se transformava na caverna de Ali Babá, cheia de tesouros. Ali a menininha<br />
guardava pedrinhas coloridas. Não importava o valor das pedrinhas. Importava que<br />
elas eram o seu tesouro, as suas joias... Naquele espaço ninguém mais entrava. Só<br />
ela... Uma terapeuta contou-me de um paciente seu, um menino esquizofrênico.<br />
Ele tinha uma caixa onde guardava os seus tesouros. Numa sessão de terapia, ele<br />
e ela fizeram um jogo num papel. Ele achou o jogo maravilhoso. Guardou-o no seu<br />
cofre. Na sessão seguinte, ela lhe perguntou sobre o jogo. Ele respondeu: “Jogou<br />
fora” e não soube dar maiores explicações. Como ele só falava na terceira pessoa,<br />
ela entendeu o “Jogou fora” como “Joguei fora”. Conversando com a mãe do<br />
menino, ela perguntou: “O que o Joãozinho fez com o jogo que fizemos?”. Ela
queria compreender as razões do comportamento do menino. A mãe não entendeu.<br />
A terapeuta explicou: “Ele havia guardado o jogo naquela caixa...”. “Ah!”, sorriu a<br />
mãe, “aquela caixa de tranqueiras bobas e sujas? Limpei a caixa. Joguei tudo<br />
fora...” Pobre mãe! Ela não sabia que havia jogado fora pedaços preciosos da alma<br />
do seu filho.<br />
Crianças na noite<br />
Dez e meia da noite. Cruzamento da rua Benjamin Constant com a avenida Júlio de<br />
Mesquita. Duas crianças, um menino e uma menina. Entre sete e oito anos de<br />
idade. Vendiam balas de goma com olhos tristes. Minha vontade era levá-los para<br />
minha casa, servir-lhes uma sopa, tomar conta deles. Não fiz nada disso. O sinal<br />
ficou verde e acelerei o carro. Mas as duas crianças dormiram comigo, acordaram<br />
comigo e ainda estão comigo.<br />
Para educar um filho<br />
Era uma sessão de terapia. “Não tenho tempo para educar a minha filha”, ela<br />
disse. Um psicanalista ortodoxo tomaria essa deixa como um caminho para a<br />
exploração do inconsciente da cliente. Ali estava um fio solto no tecido da<br />
ansiedade materna. Era só puxar o fio... Culpa. Ansiedade e culpa nos levariam<br />
para os sinistros subterrâneos da alma. Mas eu nunca fui ortodoxo. Sempre<br />
caminhei ao contrário na religião, na psicanálise, na universidade, na política, o que<br />
me tem valido não poucas complicações. O fato é que eu tenho um lado bruto,<br />
igual àquele do Analista de Bagé. Não puxei o fio solto dela. Ofereci-lhe meu<br />
próprio fio. “Eu nunca eduquei os meus filhos...”, eu disse. Ela fez uma pausa<br />
perplexa. Deve ter pensado: “Mas que psicanalista é esse que não educa os seus<br />
filhos?”. “Nunca educou os seus filhos?”, perguntou. Respondi: “Não, nunca. Eu só<br />
vivi com eles”. Essa memória antiga saiu da sua sombra quando uma jornalista,<br />
que preparava um artigo dirigido aos pais, me perguntou: “Que conselho o senhor<br />
daria aos pais?”. Respondi: “Nenhum. Não dou conselhos. Apenas diria: a infância é<br />
muito curta. Muito mais cedo do que se imagina os filhos crescerão e baterão as<br />
asas. Já não nos darão ouvidos. Já não serão nossos. No curto tempo da infância<br />
há apenas uma coisa a ser feita: viver com eles, viver gostoso com eles. Sem<br />
currículo. A vida é o currículo. Vivendo juntos, pais e filhos aprendem. A coisa mais<br />
importante a ser aprendida nada tem a ver com informações. Conheço pessoas<br />
bem informadas que são idiotas perfeitos. O que se ensina é o espaço manso e<br />
curioso que é criado pela relação lúdica entre pais e filhos.” Ensina-se um mundo!<br />
Vi, numa manhã de sábado, num parquinho, uma cena triste: um pai levara o filho
para brincar. Com a mão esquerda empurrava o balanço. Com a mão direita<br />
segurava o jornal que estava lendo... Em poucos anos, sua mão esquerda estará<br />
vazia. Em compensação, ele terá duas mãos para segurar o jornal.<br />
Coisas simples que comovem<br />
Coisas extremamente simples acham um lugar imortal no coração. Há dias,<br />
conversando com os meus filhos, encontrei-me com elas, as coisas simples. O<br />
Sérgio me contou sobre quando ele era menino, tempo em que eu ainda fumava<br />
cachimbo. “Você viajava, eu ficava com saudade. Ia para o seu escritório que<br />
estava impregnado com o cheiro bom de fumo de cachimbo, perfumado. Era o meu<br />
jeito de matar a minha saudade...” O Marcos, por sua vez, me lembrou um<br />
incidente muito engraçado. Eu e ele estávamos no banco. Eu preenchia as guias de<br />
depósito, distraído. Enquanto isso, ele examinava os cheques, sem que eu<br />
percebesse. Aí ele notou que as assinaturas estavam muito feias (eram cheques de<br />
uma outra pessoa) e se prontificou a me ajudar, melhorando-as. Pegou uma caneta<br />
e mãos à obra. Quando percebi, já era tarde demais. Não sabia se ria, se chorava,<br />
se ficava bravo... <strong>Feliz</strong>mente o gerente foi compreensivo e tudo terminou bem. Isso<br />
é uma das delícias de conversar com os filhos. A conversa é um ritual mágico que<br />
ressuscita memórias há muito enterradas.
Educação
Desensinando o amor aos livros<br />
Quer ensinar um jovem a odiar literatura? Dê-lhe, como dever, fazer fichamentos<br />
de obras clássicas. A tarefa de fichar o livro desvia o aluno do único objetivo da<br />
leitura que é o prazer. Eu estava em processo de mudança. Numa sala, uma<br />
montanha de livros. Um dos carregadores olhou assombrado para os livros. Era<br />
certo que nunca havia visto tantos. E comentou: “Como deve ser difícil decorar<br />
todos esses livros...”. Aquele carregador dizia em linguagem direta o que está dito<br />
na tarefa de fichar: ler é uma tarefa penosa. Em vez do fichamento, peça que o<br />
aluno fale sobre as ideias dele, aluno, que aquele livro o fez pensar. Para que fazer<br />
um resumo do livro se o livro inteiro já está escrito? Pavlov, cientista russo,<br />
mostrou que é possível fazer um cão salivar pelo simples toque de uma campainha.<br />
Sua lição se aplica à pedagogia. Os fichamentos, repetidos várias vezes, criam no<br />
aluno o reflexo condicionado de repulsão pelo livro.<br />
Desejos<br />
Quero viver muitos anos mais. Mas com alegria. Quero ter forças para travar as<br />
batalhas que julgo importantes! A preservação da Amazônia! Viver com mais<br />
sabedoria! Entre a multidão dos meus desejos para a educação, elejo como minha<br />
prioridade acabar com os vestibulares. Os vestibulares são, a meu ver, a coisa mais<br />
estúpida que estraga a educação. Não me importam os vestibulares como processo<br />
seletivo para a entrada nas universidades. Importa-me o que eles fazem com todo<br />
o processo escolar que os antecede. Em primeiro lugar, eles são inúteis. Os<br />
supostos saberes exigidos para os malditos exames estão condenados ao<br />
esquecimento. Eu não passaria nos vestibulares, nossos reitores não passariam nos<br />
vestibulares, os professores de cursinhos não passariam nos vestibulares. Os<br />
especialistas em português tombariam diante dos problemas de física e química. Os<br />
professores de física e química tombariam diante das questões de análise sintática.<br />
Memória ruim? Não. Memória inteligente. A memória inteligente sabe esquecer o<br />
que não faz sentido. E a desgraça é que as escolas, desde o seu início, vivem sob a<br />
sombra do grande bicho--papão. Quem determina os saberes a serem sabidos são<br />
os professores que preparam as questões para os exames. E, então, as questões<br />
fundamentais da educação, da formação humana dos alunos, são enviadas para o<br />
porão. O prazer da leitura? Quem pensará que leitura dá prazer quando ela é<br />
obrigatória? Não existe forma mais rápida de fazer um aluno detestar a leitura que<br />
fazer dela um dever de que se terá de prestar contas. A apreciação da música, a<br />
educação dos sentidos, a curiosidade vagabunda... Tudo é deixado de fora. Tanto<br />
sofrimento para nada – porque tudo é esquecido. Além de inúteis são perniciosos,<br />
porque criam hábitos mentais tortos. Para cada pergunta há uma resposta correta!
Mas na vida não é assim. Nem na ciência. A ciência se faz com uma infinidade de<br />
erros. Sem os vestibulares, as escolas estariam livres para realmente educar.<br />
Quero o fim dos vestibulares. Mas que processo os substituiria? Minha sugestão:<br />
um sorteio... Loucura? Parece, mas não é.<br />
Dois tipos de ideias<br />
Há dois tipos de ideias: ideias inertes e ideias com poder gravitacional. As ideias<br />
inertes, como o nome está dizendo, são destituídas de poder. Estão onde estão e<br />
isso é tudo. Como pedras. A maior parte das ideias que se ensinam nas escolas<br />
pertence a essa categoria. Um bom exemplo se encontra naquele parágrafo do<br />
livro de biologia que minha neta tinha de aprender. Via de regra, essas ideias são<br />
logo esquecidas. A memória as deleta e joga na lixeira. Algumas permanecem na<br />
memória consciente como lixo. Por exemplo, aprendi no curso de admissão que a<br />
ilha de Tupinambarana é a segunda maior ilha fluvial do mundo. Essa informação<br />
não faz nada com a minha cabeça. Note-se que as ideias inertes, frequentemente,<br />
possuem os critérios cartesianos de clareza e distinção. As ideias com poder<br />
gravitacional são aquelas que têm o poder de chamar outras. Elas nunca estão<br />
sozinhas. São sóis do sistema solar que é a nossa mente. Elas produzem big bangs<br />
na cabeça dos quais nascem universos. É assim que acontecem a poesia, a<br />
literatura, a música: uma única ideia explode e eis a obra!<br />
Lixos e cocôs<br />
Fez-se o cálculo de que cada pessoa da Terra produz em média um quilo de lixo<br />
por dia. Em média: os pobres não produzem nada, os ricos produzem muitos quilos.<br />
Temos seis bilhões de habitantes. O que quer dizer seis bilhões de quilos por dia.<br />
Seis bilhões de quilos são seis milhões de toneladas. Multipliquem por 365, número<br />
de dias do ano. O resultado será a quantidade de lixo que lançamos na Terra por<br />
ano. Uma montanha do tamanho do Himalaia. Há dois tipos de lixo: os<br />
biodegradáveis e os que não são biodegradáveis. Lixo biodegradável é o lixo que<br />
pode ser transformado em alimento para a Terra: cascas de frutas, de ovos,<br />
verduras, madeira, papel, restos de comida. A Terra funciona como um estômago:<br />
ela digere esse tipo de lixo e o lixo se transforma em adubo. Nós mesmos somos<br />
biodegradáveis. Morremos e a Terra nos digere. Somos transformados em esterco.<br />
O que é vida para a Terra. Lixos não biodegradáveis são aqueles lixos que a Terra<br />
não digere. Vidros, todos os tipos de plástico, pneus, metais. De volta à Terra, esse<br />
lixo fica lá, indefinidamente. Vocês viram as montanhas de pneus que foram<br />
retirados do leito do rio Tietê? Esse lixo a Terra não consegue transformar. Imagine
que você, além de comer pão, verduras, carnes, massas, coma também,<br />
diariamente, um prego, um alfinete, um botão... Os primeiros alimentos seriam<br />
digeridos e assimilados, isto é, ficariam semelhantes ao seu corpo. E isso seria bom<br />
para a sua saúde. Mas os outros não seriam assimilados. Ficariam depositados no<br />
seu corpo até adoecê-lo e eventualmente matá-lo. Assim acontece com o lixo não<br />
biodegradável. Ele fica depositado na Terra, envenenando-a. Que fazer com ele? A<br />
solução é reciclar. Reciclar é transformar esse tipo de lixo para que ele seja usado<br />
de novo. Sendo usado de novo ele não entra no estômago da Terra... Calcula-se<br />
que cada habitante da Terra produza, em média, diariamente, 250 gramas de cocô.<br />
Se multiplicarmos por 6.000.000.000 teremos o peso, em gramas, do cocô que a<br />
população da Terra produz por dia. Multiplicando-se por 365 teremos o peso do<br />
cocô que, durante um ano, os seres humanos produzem. Há de se acrescentar a<br />
essa cifra os cocôs produzidos por todos os animais.<br />
O hábito da leitura<br />
Perguntam-me: o que fazer para criar o hábito da leitura? Respondo: “Nada. Não se<br />
deve criar o hábito da leitura. Hábito tem a ver com cortar as unhas, tomar<br />
banho... Os hábitos produzem ações automáticas. Um homem pode ter o hábito de<br />
dar um beijinho na mulher ao sair de casa estando com o pensamento muito longe<br />
dela. O que há de se fazer é ensinar as crianças a amar os livros...”.<br />
Da Vinci<br />
... afirmava que só se pode amar aquilo que se conhece. Eu, presunçoso, digo o<br />
contrário: só se pode conhecer aquilo que se ama. É o amor que busca o<br />
conhecimento. As Sagradas Escrituras estão certas ao chamar o ato sexual de<br />
“conhecer”. Amo uma mulher, logo, quero conhecê-la...<br />
Exame de admissão ao doutoramento<br />
Quando eu ainda era professor universitário, fui nomeado presidente de uma<br />
comissão que iria examinar os candidatos ao doutoramento. Uma longa lista de<br />
livros havia sido preparada com antecedência, livros que os candidatos deveriam<br />
estudar. Aí no dia do exame eu tive uma ideia que submeti aos meus colegas e<br />
eles concordaram. Em vez de inquirir os candidatos sobre as ideias de outros<br />
escritas nos livros, ideias que nós já conhecíamos, por que não pedir que eles nos<br />
falassem sobre suas próprias ideias? Falando sobre suas ideias teríamos condições<br />
de conhecê-los melhor. Assim, quando o candidato passava pela porta da sala,
trêmulo, esperando as perguntas terríveis sobre a bibliografia, eu lhe pedia: “Por<br />
favor, fale-nos sobre aquilo que você gostaria de falar...”. Pensei que isso seria<br />
uma felicidade: falar sobre aquilo que pensavam! Foi não. Foi um choque. De tanto<br />
ler o que os outros pensavam, eles se haviam esquecido daquilo que eles mesmos<br />
pensavam. Uma jovem entrou em surto, achando que se tratava de um truque.<br />
Poucos tiveram ideias sobre o que falar. O que nos levou a pensar que talvez seja<br />
isso que acontece: de tanto ler as ideias de outros, os alunos se esquecem de que<br />
eles também podem pensar e que o seu pensamento é importante. Excesso de<br />
leitura pode fazer mal à inteligência. Com o que concorda Schopenhauer: “É o caso<br />
de muitos eruditos: leram até ficar estúpidos. Porque a leitura contínua, retomada<br />
a todo instante, paralisa o espírito...”. E, em oposição àqueles que ensinam leitura<br />
dinâmica, Schopenhauer afirma que a leitura só é boa quando é bovina, quando<br />
leva à ruminação.<br />
Discurso de paraninfo<br />
Lembrei-me de um artista goiano que não tirou diploma mas ficou artista e foi<br />
convidado por uma turma para ser paraninfo. Ficou apavorado, porque fazer arte<br />
ele sabia, mas não sabia fazer discursos, especialmente discurso segundo as<br />
etiquetas da academia. Procurou o auxílio de um amigo, reitor da universidade, e<br />
implorou que ele lhe escrevesse o tal discurso. Negado o seu pedido, o artista<br />
resolveu fazer uma pesquisa: entrevistou várias pessoas já formadas para saber o<br />
que, no discurso do seu paraninfo, mais o impressionara. O resultado da sua<br />
pesquisa foi surpreendente: nenhum dos entrevistados tinha a menor ideia do que<br />
o paraninfo havia falado. Assim, munido desse saber, no dia da formatura ele se<br />
levantou perante o público ilustrado de professores, pais e formandos, e no seu<br />
jeito de quem não sabia falar a língua própria, contou dos resultados da sua<br />
pesquisa. E concluiu: “Como vocês não vão se lembrar mesmo do que vou falar,<br />
quero só dizer que não vou falar nada. Só quero que vocês sejam muito felizes”.<br />
Falou três minutos e foi delirantemente aplaudido. Do seu discurso ninguém se<br />
esqueceu.<br />
Currículos<br />
Se eu pudesse mexer nos currículos de educação dedicaria metade do tempo à<br />
literatura. Tais como estão, eles se orientam no sentido de formar “cientistas” da<br />
educação. Mas as ciências, todas elas, moram na “caixa das ferramentas”. E os<br />
educadores moram na “caixa dos brinquedos”... As ciências da educação nos dão<br />
conhecimento sobre as crianças. Mas não é o conhecimento que faz educadores. É
preciso amar e respeitar as crianças. E isso a ciência não consegue ensinar. A<br />
literatura, sem dar conhecimento científico, nos ensina a amar as crianças. Não<br />
seria fantástico que os professores lessem a literatura infantil? Acho que podíamos<br />
mesmo fazer um congresso só para a leitura de estórias...<br />
Dona Clotilde<br />
Tive uma surpresa jamais sonhada, surpresa feliz. <strong>Faz</strong> uns tempos, escrevi um<br />
artigo cujo assunto era a forma como as relações de aprendizagem e ensino se dão<br />
através das pontes poéticas que o amor constrói. Uma dessas pontes tem o nome<br />
de “metáfora”, que faz ligações entre coisas parecidas. No filme O carteiro e o<br />
poeta, o carteiro diz que se sentia como um “barco batido pelas ondas”. Essa<br />
metáfora ligou a sua alma a um barco. Eles se pareciam. “Metonímia” é quando<br />
uma imagem nos conduz a relações de proximidade. Tenho um peso de papel sem<br />
valor que o meu pai me deu. É claro que ele não se parece com o meu pai. Não é<br />
metáfora. Mas foi objeto do meu pai. Ficava na sua mesa de trabalho. Por isso,<br />
porque o peso de papel e o meu pai estiveram juntos, o peso de papel me faz<br />
lembrar o meu pai. No dito artigo, que se chamou “Aprendo porque amo”, o<br />
assunto era a metonímia. Contei então uma experiência infantil, quando eu estava<br />
no primeiro ano do Grupo Escolar Brasil, na cidade de Varginha. Minha professora<br />
era a dona Clotilde, uma jovem senhora de respeito. Pois ela fazia o seguinte:<br />
assentava-se numa cadeira bem no meio da sala, num lugar onde todos os alunos<br />
a veriam, e ia desabotoando a blusa até o estômago, ante nossos olhares<br />
assustados. Ela não se dava conta do nosso susto porque aquilo que ela estava<br />
fazendo era-lhe perfeitamente natural. Aí ela enfiava a mão dentro da blusa e<br />
puxava para fora um seio lindo, liso, branco... E nós, meninos, de boca aberta...<br />
Mas o encantamento não durava mais que cinco segundos porque ela logo pegava<br />
o seu nenezinho e o punha para mamar. Toda mãe fazia assim. Mas nós, meninos,<br />
ficávamos sentindo coisas estranhas que não entendíamos. Somente o corpo sabia.<br />
Terminada a aula, os meninos faziam fila junto à dona Clotilde, pedindo para<br />
carregar a pasta. Quem recebia a pasta era um felizardo, invejado. Aquela pasta<br />
não era pasta. Era uma metonímia do objeto desejado, proibido, o seio da dona<br />
Clotilde... Aí inventei um ditado que ninguém entende: “Quem não tem seio<br />
carrega pasta...”. Essa estória, aplicada à pedagogia, serve para mostrar que,<br />
frequentemente, os alunos aprendem as coisas mais difíceis (carregam a pasta) em<br />
virtude de sua relação amorosa com o professor, relação de respeito e admiração.<br />
Pois a surpresa foi esta, acontecida na cidade de Cambuquira, bem pequena, cheia<br />
de matas, de águas minerais... Fui lá fazer uma fala. Contei o caso da metonímia<br />
da dona Clotilde. Todo mundo riu. Ao final veio a surpresa. Disseram-me que a
dona Clotilde está viva. Noventa e dois anos de idade. Mas o assombroso é que<br />
ela, aos noventa anos, defendeu tese de mestrado. E sua cabeça está mais lúcida<br />
do que nunca, cheia de indagações metafísicas... Que alegria!<br />
Incipit vita nuova!<br />
Há muitos anos escrevi sobre um japonês que fez vestibular para medicina aos<br />
setenta anos. Ele se explicou. Jovem, tinha de cuidar dos pais. Adulto, tinha de<br />
cuidar dos filhos. Mortos os pais, criados os filhos, ele estava agora livre para<br />
realizar o seu sonho de criança. Há pessoas que quanto mais velhas mais parecidas<br />
ficam com os pássaros.<br />
Mafalda<br />
Diálogo entre a Mafalda e um seu coleguinha. Mafalda: “O boi baba”. Colega:<br />
“Vovó viu a uva”. Mafalda: “O rato roeu a roupa do rei de Roma”. Colega: “Dito deu<br />
o dado à dona Diná...”. Comentário da Mafalda: “Nossos diálogos ficaram tão<br />
literários depois que aprendemos a ler...”.<br />
Ideias boas<br />
Não há métodos para se ter boas ideias. Se houvesse, bastaria aplicar o método<br />
para termos ideias geniais. As ideias boas vêm quando elas querem, nas horas e<br />
lugares mais absurdos. As boas ideias ignoram os catecismos das pós-graduações,<br />
segundo os quais, tudo acontece pela combinação de teoria e método... A única<br />
coisa que se pode fazer para se ter boas ideias é não tentar ter boas ideias. As<br />
boas ideias fogem de alçapões teóricos e metodológicos.<br />
Antropofagia<br />
“Para comer meus próprios semelhantes, eis-me sentado à mesa”, escreveu<br />
Augusto dos Anjos (“Eu”, 1912, Revista de Antropofagia 1). Eu escrevo<br />
antropofagicamente: quero que me devorem. Eu leio antropofagicamente: quero<br />
devorar aquele que escreveu. Nietzsche sentia o mesmo e disse que só amava os<br />
livros escritos com sangue. Como na eucaristia. A eucaristia é um ritual<br />
antropofágico. “Esse pão é o meu corpo; esse vinho é o meu sangue. Comei.<br />
Bebei.” Literatura é antropofagia, o que está de acordo com a teologia do<br />
evangelho de João, que afirma que a Palavra é igual à Carne.
Miguel de Unamuno<br />
Os livros que amo são aqueles que se tornam meus companheiros vida afora. É o<br />
caso do livro Do sentimento trágico da vida, de Miguel de Unamuno. Lembrei-me<br />
dele, tirei-o da estante, passei os olhos. É uma brochura vagabunda, papel jornal,<br />
está todo desmilinguido, cheio de anotações. Fiquei feliz ao devorar de novo<br />
pedaços daquele homem que nunca vi, que já morreu. Quero repartir com vocês<br />
algumas das coisas que ele disse. “Pelo que me diz respeito, jamais de bom grado<br />
me entregarei, nem outorgarei a minha confiança a um condutor de povos que não<br />
esteja penetrado da ideia de que, ao conduzir um povo, conduz homens, homens<br />
de carne e osso, homens que nascem, sofrem e, ainda que não queiram morrer,<br />
morrem; homens que são fins em si mesmos e não meios...” “Não existe um só<br />
que, chegando a distinguir o verdadeiro do falso, não prefira a mentira que ele<br />
encontrou à verdade que um outro descobriu.” “A ciência é um cemitério de ideias<br />
mortas, ainda que delas saia a vida. Também os vermes se alimentam de<br />
cadáveres. Os meus próprios pensamentos, uma vez arrancados das suas raízes no<br />
coração, transportados para esse papel, são já cadáveres de pensamentos.”<br />
“Podemos ter um grande talento e sermos estúpidos de sentimentos e moralmente<br />
imbecis.”<br />
Literatura e filósofos<br />
Guimarães Rosa, perguntado sobre a relação entre os filósofos e a literatura, disse<br />
que os filósofos são assassinos da literatura com duas exceções: Unamuno e<br />
Kierkegaard.<br />
Visita médica<br />
Num evento em São Paulo, onde fui fazer uma fala, fiz um novo amigo: o dr. Milton<br />
de Arruda Martins, professor da USP. Ele é um desses professores raros, que vive<br />
para ensinar aos seus alunos, além da competência técnica, a ética e os<br />
sentimentos humanos que devem fazer parte do caráter de um médico. Tem<br />
tentado reformular a educação médica, inclusive a visita hospitalar, aquela em que<br />
o professor e seus alunos passam pelos doentes para estudar os seus casos.<br />
Fizeram uma classificação das visitas em três tipos. No primeiro tipo de visita, o<br />
professor e os alunos passam pelo enfermo, observam-no e o apalpam, sem nada<br />
dizer. Vão discutir o caso num outro lugar. O paciente fica mergulhado no mistério.<br />
No segundo tipo, professor e alunos discutem o caso na presença do doente, como<br />
se ele não estivesse presente, usando todas as palavras científicas que só os
iniciados entendem. Como o doente não sabe o que elas significam, ele fica<br />
pensando que vai morrer. No terceiro tipo, o professor e os alunos conversam com<br />
o paciente e o chamam pelo nome. “O que é que o senhor acha que tem?” Todo<br />
doente tem ideias sobre a sua doença e formas de explicá-la. “O que é que o<br />
senhor espera de nós?” As respostas dos doentes são surpreendentes. Lembro-me<br />
de um filme em que a visita do segundo tipo estava acontecendo. Os alunos faziam<br />
todo tipo de perguntas ao professor. Mas ninguém se dirigia ao doente. Foi então<br />
que um dos estudantes, o Robin Williams, levantou a mão e perguntou: “Qual é o<br />
nome do paciente?”. Ninguém sabia.<br />
Lâmpadas e inteligência<br />
Num dos meus momentos de vagabundagem, um pensamento me apareceu que<br />
fez uma ligação metafórica entre lâmpadas e inteligências que nunca me havia<br />
passado pela cabeça. Tratei, então, de seguir a trilha. As lâmpadas servem para<br />
iluminar. Para isso são dotadas de potências de iluminação diferentes. Há<br />
lâmpadas de 60 watts, de 100 watts, de 150 watts etc. Qual é a melhor lâmpada?<br />
Parece que as de 150 watts são as melhores porque iluminam mais. Também as<br />
inteligências servem para iluminar. Tanto assim que se diz “tive uma ideia<br />
luminosa!”. E nos gibis, para dizer que um personagem teve uma boa ideia, o<br />
desenhista desenha uma lâmpada acesa sobre a sua cabeça. E também as<br />
inteligências, à semelhança das lâmpadas, têm potências diferentes. Os psicólogos<br />
inventaram testes para atribuir números às inteligências. A esses números deram o<br />
nome de QI, coeficiente de inteligência. Segundo as mensurações dos psicólogos,<br />
há QIs de 100, de 150, de 200... Ah! Uma pessoa com QI 200 deve ser<br />
maravilhosa! Porque, como todo mundo sabe, inteligência é coisa muito boa. Todo<br />
pai quer ter filho inteligente. Mas as lâmpadas não são objetos de contemplação.<br />
Não se fica olhando para elas. Olhamos para aquilo que elas iluminam. Uma<br />
lâmpada de 150 watts pode iluminar o rosto contorcido de um homem numa<br />
câmara de torturas. E uma lâmpada de 60 watts pode iluminar uma mãe dando de<br />
mamar ao filhinho. As lâmpadas valem pelas cenas que iluminam. As inteligências<br />
valem pelas cenas que iluminam. Há inteligências de QI 200 que só iluminam<br />
esgotos e cemitérios. E como ficam bem iluminados os esgotos e os cemitérios! E<br />
há inteligências modestas, como se fossem nada mais que a chama de uma vela,<br />
que iluminam o rosto de crianças e jardins! A inteligência pode estar a serviço da<br />
morte ou da vida. E a inteligência, pobrezinha, não tem o poder para decidir o que<br />
iluminar. Ela é mandada. Só lhe compete obedecer. As ordens vêm de outro lugar.<br />
Do coração. Se o coração tem gostos suínos, a inteligência iluminará chiqueiros,<br />
porcos e lavagem. Se o coração gosta de crianças e jardins, a inteligência iluminará
crianças e jardins. Por isso é mais importante educar o coração que fazer<br />
musculação na inteligência. Eu prefiro as inteligências que iluminam a vida, por<br />
modestas que sejam.<br />
Professores inesquecíveis<br />
Tive professores inesquecíveis. Alguns são inesquecíveis pela beleza da sua pessoa,<br />
por sua inteligência, pelo respeito aos alunos. Esses me fazem sorrir. Outros se<br />
tornaram inesquecíveis por sua pequenez e tolice. Esses me fazem rir. É o caso de<br />
um professor de geografia que tive no curso científico. Ele tinha um caderninho<br />
onde estavam escritas as aulas que tinha ditado por anos. Ele ditava, nós<br />
copiávamos – nisso se resumia sua filosofia da educação. De tudo o que ele ditou,<br />
uma única coisa ficou gravada na minha memória, de tão ridícula. Falando sobre a<br />
importância política dos rios, terminou a aula com essa afirmação que, segundo<br />
ele, provava o seu ponto: “E o grito de independência de dom Pedro aconteceu às<br />
margens do rio Ipiranga”. É. Se o riachinho Ipiranga não existisse, dom Pedro não<br />
teria gritado “Independência ou morte!” e nós ainda seríamos colônia de Portugal.<br />
(Mas será que foi isso mesmo que ele gritou? Por vezes, os gritos reais dos heróis<br />
são impublicáveis...) Por razões que não conheço, o dito professor resolveu<br />
candidatar-se a vereador, no Rio de Janeiro, certamente convencido de que tinha<br />
uma grande contribuição política a oferecer à cidade. Ou pode ser que ele mesmo<br />
tenha sentido o tédio dos seus ditados. Melhor ser vereador. Ganhar dinheiro sem<br />
fazer força, sem ditados, sem corrigir provas. Muitas decisões políticas se fazem por<br />
razões não políticas. Ele parava de ditar e falava sobre sua vitória certa. “Tenho<br />
sido professor por vinte anos. Por minhas mãos passaram 2500 alunos.” (Inventei<br />
esse número. O número real eu esqueci.) Esses alunos se casaram. 2500 se<br />
transformam em 5000: maridos e esposas. Esses 5000 têm parentes e amigos... Ao<br />
final de suas contas ele seria eleito com mais de 50.000 votos...<br />
Ler<br />
... é uma das maiores fontes de alegria. Claro, há uns livros chatos. Não os leiam.<br />
Borges dizia que, se há tantos livros deliciosos de serem lidos, por que gastar<br />
tempo lendo um livro que não dá prazer? Na leitura fazemos turismo sem sair de<br />
casa gastando menos dinheiro e sem correr os riscos das viagens. O Shogun me<br />
levou para uma viagem ao Japão do século XVI, em meio aos ferozes samurais e às<br />
sutilezas do amor nipônico e das cerimônias de chá. Cem anos de solidão, que reli<br />
faz alguns meses, me produziu espantos e ataques de riso. Achei que o Gabriel<br />
García Márquez deveria estar sob o efeito de algum alucinógeno quando o
escreveu. A poesia do Alberto Caeiro me ensina a ver, me faz criança e fico<br />
parecido com árvores e regatos. Também o Mário Quintana. E o Manoel de Barros.<br />
E o Solte os cachorros, da Adélia. No momento estou em meio à leitura do livro Na<br />
berma de nenhuma estrada, de Mia Couto (Editorial Ndjira), escritor moçambicano.<br />
Berma: nunca havia lido ou ouvido essa palavra. O dicionário me disse que “berma”<br />
é um “caminho estreito à beira de fossos”. Contos curtíssimos de três páginas. Mia<br />
Couto se parece com o Manoel de Barros, vai descobrindo jeitos diferentes de dizer.<br />
E o leitor vai vivendo experiências que não viveu e se espantando o tempo todo.<br />
Desejo e inteligência<br />
As crianças gostam de aprender. O que não quer dizer que elas gostem das<br />
escolas. As escolas são, frequentemente, lugares onde elas são obrigadas a<br />
aprender, sob pena de punições, aquilo que elas não querem aprender. E aquilo<br />
que as escolas tentam ensinar contra a nossa vontade é rapidamente esquecido.<br />
Sabedoria de um velho ditado caipira: “É fácil levar a égua até o meio do ribeirão.<br />
O difícil é obrigar a égua a beber a água...”. Aprendemos o que desejamos<br />
aprender. É o desejo que desperta em nós a inteligência. O filósofo Aristóteles<br />
disse: “Todos os homens têm, naturalmente, o desejo de aprender”. Ele estava<br />
errado. Vou corrigi-lo: “Todos os homens, enquanto crianças, têm naturalmente o<br />
desejo de aprender...”. O que dá às crianças desejo de aprender? Primeiro, é a<br />
curiosidade. As crianças acham as coisas do mundo muito interessantes e querem<br />
saber por que elas são do jeito como são. Pra que serve isso? Pra nada. Apenas<br />
pelo prazer: matar a curiosidade. Depois elas querem aprender para adquirir<br />
competências. Ser capaz de fazer... A criança quer aprender a andar de bicicleta, a<br />
descascar laranja, a abrir a porta com a chave – para ter o delicioso sentimento:<br />
“Eu posso!”. É um sentimento de poder. E, por fim, elas querem aprender para<br />
brincar. Controlar a bola, armar quebra-cabeças, jogar damas... Adultos, continuam<br />
vivos em nós os mesmos impulsos que levam as crianças a aprender. A menos que<br />
os matemos.<br />
Os surdos-mudos cantam<br />
Aconteceu em Uberaba. Disseram-me que antes da minha fala haveria um coro de<br />
crianças surdas que cantaria o hino nacional. Desacreditei. Crianças surdas não<br />
cantam. Aí entraram as crianças no palco. Um menininho de não mais de quatro<br />
anos de idade olhava espantado para aquele mundaréu de pessoas, todo mundo<br />
olhando para ele! Entrou a regente e fez-se silêncio. Silêncio para nós, porque para<br />
os surdos é sempre silêncio. Iniciou-se o hino nacional. Os acordes introdutórios. A
egente levantou os braços... e eles cantaram o hino nacional com gestos!<br />
Cantaram com as mãos, os braços, os olhos, o rosto, o corpo inteiro! A voz calada,<br />
o corpo cantando! Ouvimos a música que mora no silêncio. Terminado o hino,<br />
todas as crianças se abriram num enorme sorriso e correram a abraçar a regente.<br />
E, aí, cantaram para mim a “Serra da Boa Esperança”. Por vezes não é possível não<br />
chorar...<br />
Atividades desafinadoras<br />
Houve uma professora que, fazendo um relatório, referiu-se às “atividades<br />
desafinadoras para seus alunos...”. Ela não é culpada. Já se tornou praxe usar<br />
palavras que não se entende por serem palavras da moda. Quando uma palavra da<br />
moda é usada, ninguém se atreve a perguntar: “Mas o que essa palavra significa?”.<br />
<strong>Faz</strong>er tal pergunta é confessar ignorância. Nos tempos em que tentei ensinar na<br />
universidade, tempos de fervor religioso marxista, tudo se resolvia com a palavra<br />
“dialético”. Ai daquele que perguntasse: “Mas o que é dialético?”. Talvez o<br />
“desafinadoras” tenha um sentido. Os mestres zen se esforçavam sempre por<br />
introduzir desafinações nas afinações dos seus discípulos. Ouvidos que ouvem tudo<br />
afinado devem estar estragados. É preciso ouvir as desafinações do mundo!<br />
Como ensinar<br />
Se eu fosse ensinar a uma criança a arte da jardinagem, não começaria com as<br />
lições das pás, enxadas e tesouras de podar. Eu a levaria a passear por parques e<br />
jardins, mostraria flores e árvores, falaria sobre suas maravilhosas simetrias e<br />
perfumes; a levaria a uma livraria para que ela visse, nos livros de arte, jardins de<br />
outras partes do mundo. Aí, seduzida pela beleza dos jardins, ela me pediria para<br />
ensinar-lhe as lições das pás, enxadas e tesouras de podar. Se fosse ensinar a uma<br />
criança a beleza da música, não começaria com partituras, notas e pautas.<br />
Ouviríamos juntos as melodias mais gostosas e lhe falaria sobre os instrumentos<br />
que fazem a música. Aí, encantada com a beleza da música, ela mesma me pediria<br />
que lhe ensinasse o mistério daquelas bolinhas pretas escritas sobre cinco linhas.<br />
Porque as bolinhas pretas e as cinco linhas são apenas ferramentas para a<br />
produção da beleza musical. A experiência da beleza tem de vir antes. Se fosse<br />
ensinar a uma criança a arte da leitura, não começaria com as letras e as sílabas.<br />
Simplesmente leria as estórias mais fascinantes que a fariam entrar no mundo<br />
encantado da fantasia. Aí então, com inveja dos meus poderes mágicos, ela<br />
desejaria que eu lhe ensinasse o segredo que transforma letras e sílabas em<br />
estórias. É muito simples. O mundo de cada pessoa é muito pequeno. Os livros são
a porta para um mundo grande. Pela leitura vivemos experiências que não foram<br />
nossas e então elas passam a ser nossas. Lemos a estória de um grande amor e<br />
experimentamos as alegrias e dores de um grande amor. Lemos estórias de<br />
batalhas e nos tornamos guerreiros de espada na mão, sem os perigos das<br />
batalhas de verdade. Viajamos para o passado e nos tornamos contemporâneos<br />
dos dinossauros. Viajamos para o futuro e nos transportamos para mundos que não<br />
existem ainda. Lemos as biografias de pessoas extraordinárias que lutaram por<br />
causas bonitas e nos tornamos seus companheiros de lutas. Lendo, fazemos<br />
turismo sem sair do lugar. E isso é muito bom.<br />
Queijos<br />
Será inútil escrever um tratado sobre queijos e torná-lo leitura obrigatória nas<br />
escolas de um país onde nunca se viu um queijo. A palavra “queijo” só tem sentido<br />
para quem já comeu queijo. A compreensão exige um antecedente de experiência.<br />
É preciso primeiro ter a experiência do queijo para depois entender um texto que<br />
fale de queijos. Só de brincadeira, vamos imaginar o que passaria pela sua cabeça<br />
ao ler um texto em que o autor diz: “O rato roeu o queijo do rei de Roma”, sem<br />
que você jamais tivesse visto um queijo! Sua cabeça iria se esforçar por<br />
compreender. Mas, como não tem experiência alguma de queijos, ela iria procurar<br />
no estoque de experiências que a memória guarda das coisas que um rei deve ter e<br />
que poderiam ser roídas por um rato: sapatos, chapéus, livros, bolos, cuecas,<br />
camisas, cintos, meias... A única coisa que não sairia do estoque de experiências<br />
que a memória guarda seria um queijo. Daí a afirmação de Nietzsche de que, ao<br />
ler, os leitores tiram do seu estoque de experiências... as suas próprias<br />
experiências. Então estamos condenados a nunca sair das bolhas em que vivemos?<br />
Podemos sair desde que usemos uma chave chamada “a arte da desconfiança”...<br />
Ao ler sobre os queijos que nunca comeu, você poderia, roído pela curiosidade,<br />
fazer uma pesquisa à procura do país dos queijos. Você iria até lá, comeria um<br />
queijo e diria: “Agora sei o que é um queijo...”. É preciso, antes de mais nada,<br />
desconfiar do nosso estoque de experiências, colocar as nossas certezas de lado.<br />
Aqueles que imaginam que o mundo é do tamanho de suas experiências ficam<br />
autoritários. Frequentemente inquisidores. É preciso rezar diariamente a reza que<br />
Karl Popper nos ensinou: “Nós não temos a verdade. Nós só podemos dar<br />
palpites...”.<br />
Professores medíocres<br />
De repente senti uma gratidão inesperada pelos meus professores medíocres. Os
ons professores, eu os acompanhava encantado. Surfava nas suas ideias. Mas os<br />
professores medíocres me irritavam tanto que eu me vi forçado a pensar minhas<br />
próprias ideias. Comecei a pensar minhas próprias ideias como reação à<br />
mediocridade. Os teólogos medievais falavam sobre a opus proprium dei e opus<br />
allienum dei. A obra própria de Deus é quando ele faz a obra boa, diretamente,<br />
sem desvios. A obra estranha de Deus é quando ele faz uma coisa ruim para<br />
chegar à boa. Os bons professores são opus proprium dei. Os professores<br />
medíocres são opus allienum dei.<br />
Memória prodigiosa<br />
Conheci um homem de memória prodigiosa. Nela estavam estocadas as mais<br />
incríveis informações, minúcias que só se encontram em dicionários. Ele passaria<br />
em qualquer vestibular. Só que as milhares de informações que arquivara na sua<br />
memória estavam paralisadas, imóveis, como se estivessem arrumadas em<br />
prateleiras. O que ele sabia fazer era repeti-las. Mas não sabia pensar. O<br />
pensamento acontece quando as ideias adquirem vida, saem das prateleiras, se<br />
põem a dançar e fazem amor umas com as outras, produzindo ideias não pensadas<br />
anteriormente. É preciso notar: memória não é inteligência. Leia o fascinante conto<br />
de Jorge Luis Borges, “Funes, o memorioso”, no livro Ficções. E você compreenderá<br />
então que quem tem memória perfeita é incapaz de pensar.<br />
Só palavras...<br />
Na escola eu aprendi complicadas classificações botânicas, taxonomias, nomes<br />
latinos – que esqueci. Mas nenhum professor jamais chamou a minha atenção para<br />
a beleza de uma árvore ou para o curioso das simetrias das folhas. Parece que,<br />
naquele tempo, as escolas estavam mais preocupadas em fazer com que os alunos<br />
decorassem palavras que com a realidade para a qual elas apontam. As palavras só<br />
têm sentido se nos ajudam a ver melhor o mundo. Aprendemos palavras para<br />
melhorar os olhos.<br />
Lunetas e estrelas<br />
Havia um homem apaixonado pelas estrelas. Para ver melhor as estrelas, ele<br />
inventou a luneta. Aí formou-se uma escola para estudar a sua luneta.<br />
Desmontaram a luneta. Analisaram a luneta por dentro e por fora. Observaram os<br />
seus encaixes. Mediram as suas lentes. Estudaram a sua física óptica. Sobre a<br />
luneta de ver as estrelas escreveram muitas teses de doutoramento. E muitos
congressos aconteceram para analisar a luneta. Tão fascinados ficaram pela luneta<br />
que nunca olharam para as estrelas.<br />
Filosofia<br />
Alguém disse que a era dos filósofos acabou. Foi substituída pela era dos<br />
professores de filosofia, que ensinam o que os outros pensaram. “O dedo aponta<br />
para a Lua, mas ai daquele que confunde o dedo com a Lua.” “É glória bastante<br />
feia a daquele que estudou, formou-se em filosofia mas nunca filosofou!” Assim<br />
disse o filósofo Patativa do Assaré.<br />
Distúrbios de aprendizagem<br />
Andando pelas ruas de uma cidade do interior paulista, encontrei uma clínica de<br />
psicopedagogia que anunciava sua especialidade em “distúrbios da aprendizagem”.<br />
Dei-me conta de já ter visto muitas clínicas com a mesma especialização, mas<br />
nenhuma que anunciasse “distúrbios de ensinagem”. Por acaso serão só os alunos<br />
que sofrem de distúrbios? Somente eles têm dificuldades em aprender? E os<br />
professores? Nenhum sofre de “distúrbios de ensinagem”? Que preconceito nos leva<br />
a atribuir o problema sempre ao aluno? Que providências terapêuticas tomar<br />
quando o perturbado é o professor? Mas que psicólogo terá coragem para passarlhe<br />
esse diagnóstico? É mais fácil culpar o aluno.<br />
Alegrias<br />
As alegrias chegam de forma inesperada. Eu tive duas. Uma delas foi uma coisa<br />
que uma professora me contou. Um inspetor visitava a sua escola. Entrou numa<br />
sala de aulas e viu trabalhos das crianças relativos a alguns dos livros infantis que<br />
escrevi. Para testá-las, ele perguntou: “Quem é <strong>Rubem</strong> <strong>Alves</strong>?”. Um menininho<br />
respondeu: “É um homem que gosta de ipês-amarelos”. Fiquei comovido. Foi a<br />
mais bela e concisa descrição de mim mesmo que já tive. A outra veio-me por<br />
outra professora. Entregou nas minhas mãos alguns volumes. “São livros seus”, ela<br />
explicou. Livros meus? Mas não havia nada escrito no papel imaculadamente<br />
branco. É que aqueles livros não eram para serem lidos com os olhos. São para<br />
serem lidos com a ponta dos dedos. Braille. Que alegria saber que os cegos me<br />
lerão! Nunca imaginei...<br />
Exame de aptidão
Para o estudo de certas profissões exige-se que o candidato passe por um exame<br />
de aptidão. É o caso da música. Não basta desejar ser músico. É preciso ter as<br />
qualificações necessárias para a profissão de músico. Eu acho que o mesmo deveria<br />
ser obrigatório para aqueles que querem ser professores. Um teste de aptidão para<br />
os candidatos ao magistério seria assim: o candidato seria solto num pátio onde se<br />
encontram muitas crianças. Se ele se enturmasse com elas, desse risadas e<br />
participasse das suas brincadeiras, seria aceito. Caso contrário, deveria procurar<br />
outra profissão, ainda que tivesse tirado dez em todas as provas teóricas.<br />
Vagareza<br />
A educação é incompatível com a pressa. O tempo da alma é vagaroso. Não gosto<br />
de visitar museus em que uma multidão me obriga a andar. O prazer que sinto num<br />
museu diante de um quadro amado não é estético. É existencial. Sinto a emoção<br />
de saber que estou bem próximo da superfície que foi tocada pelo pincel do pintor.<br />
Sinto-me, assim, perto dele. É uma experiência de comunhão: estamos próximos,<br />
partilhamos um mesmo pequeno espaço. A experiência estética, o encantamento<br />
diante da pintura, eu a tenho em casa, assentado, admirando a reprodução da tela<br />
que se encontra num livro. A admiração exige tempo. Não se admira correndo.<br />
Ninguém que me apresse. Demora um pouco para que a tela acorde, tome<br />
consciência de que estou diante dela e comece a me tocar. Desde que a pressa se<br />
instala, a alma se recolhe e somos projetados na voragem do tempo exterior.<br />
Mapas<br />
Tenho estado a pensar num aprendizado extremamente complicado que acontece<br />
sem que disso nos apercebamos: somos desenhadores de mapas. A cabeça é um<br />
arquivo de mapas. Para ir do quarto para a cozinha, a criança consulta o mapa de<br />
sua casa que ela desenhou na sua cabeça. Ela caminha sem cometer erros.<br />
Também os adultos: gavetas, armários, caixas, álbuns. Por causa do mapa da casa<br />
que temos na cabeça, ao necessitar de uma agulha, de um lápis, de um martelo,<br />
de um remédio, não saímos a procurar a esmo. Vamos diretamente ao lugar<br />
indicado no mapa. Vêm depois os mapas da redondeza, da cidade, ruas, praças,<br />
bares, restaurantes, farmácias, hospitais – tudo organizado. É dizer o nome de um<br />
lugar para que o computador espacial cerebral trace imediatamente o caminho<br />
para se chegar até lá. Cidades, estradas, país, universo. Nos céus, as constelações.<br />
Direções. Os navegadores de antigamente viam as rotas na Terra refletidas nas<br />
estrelas dos céus. Sem os mapas mentais somos crianças perdidas numa cidade<br />
grande desconhecida.
Vestibulares<br />
Teste os seus conhecimentos! Avalie suas chances! Responda essas questões: 1.<br />
Calcule o logaritmo neperiano da enésima potência da própria base. 2. O fenômeno<br />
da trissomia é provocado pela: (a) simples deleção dos cromossomos; (b) não<br />
disjunção das cromátides; (c) não reversão que ocorre na diacinese; (d)<br />
translocação do cromossoma na mitose. 3. Nos peixes cartilaginosos encontramos a<br />
tiflósolis, dobra intestinal também encontrada em: (a) poríferos; (b) platelmintes;<br />
(c) asquelmintes; (d) anelídeos; (e) moluscos. 4. Vertebrados anamniotas,<br />
tetrápodes, poiquilotermos, de respiração branquial durante a vida larvária e<br />
pulmonar, na fase adulta são: (a) répteis; (b) mamíferos; (c) anfíbios; (d) aves; (e)<br />
peixes. Se você conseguiu dar respostas corretas a essas questões isso quer dizer<br />
que você está se aproximando do Funes, o memorioso. Cuide-se. Falta sabedoria à<br />
sua memória. Ela não sabe distinguir entre o digno de ser aprendido e o indigno de<br />
ser aprendido. Acho melhor procurar um psiquiatra.<br />
Ver<br />
Walt Whitman assim descreveu suas primeiras experiências na escola: “Ao começar<br />
meus estudos me agradou tanto o passo inicial, a simples conscientização dos<br />
fatos, as formas, o poder de movimento, o mais pequeno inseto ou animal, os<br />
sentidos, o dom de ver, o amor – o passo inicial, torno a dizer, me assustou tanto,<br />
e me agradou tanto, que não foi fácil para mim passar e não foi fácil seguir<br />
adiante, pois eu teria querido ficar ali flanando o tempo todo, cantando aquilo em<br />
cânticos extasiados...”.<br />
Quebra-cabeças<br />
Gosto de armar quebra-cabeças. Nome errado. Eles não quebram a minha cabeça.<br />
Ao contrário, põem a minha cabeça no lugar. Nome mais apropriado deveria ser<br />
“junta-cabeças”. Todas as atividades que implicam arrumar, armar, juntar, montar,<br />
tecer têm uma função terapêutica. Elas ativam processos organizatórios das<br />
emoções e das ideias. Juntando as peças do meu junta-cabeça sobre a mesa vou<br />
juntando as peças do meu junta-cabeça interno. Pois eu comprei um de 1000<br />
peças. Lindo cenário: céu azul, montanhas cobertas de neve, florestas... Comecei a<br />
armar. Mas o tempo era curto. A construção progredia lentamente. Especialmente<br />
naquelas partes de uma cor só. Fui ficando desanimado. Deixei as peças<br />
espalhadas sobre a mesa da sala por mais de um mês. Aí eu percebi que Deus
estava me ajudando. O junta-cabeça estava se formando sem a minha intervenção.<br />
Pensei logo: “Miracolo!”. Algum anjo, talvez... Que nada. Era a Jai que me ajuda,<br />
dois dias por semana, arrumando as minhas bagunças. Aí começamos a fazer<br />
apostas: quem colocaria mais peças. Chegando ao final, não tive coragem de pôr a<br />
última peça. Deixei que ela gozasse o prazer do triunfo! O que me impressionou foi<br />
a inteligência da Jai. Porque as atividades necessárias para se armar um juntacabeça<br />
colocam em ação uma série de potências intelectuais, que incluem a<br />
imaginação, a identificação gestáltica de padrões até a abstratíssima função lógica<br />
de identificar ângulos, linhas e tamanhos. Pensei que a Jai pode ser muito mais que<br />
uma faxineira. Ela só tem o segundo ano primário. Animei-a a continuar os estudos.<br />
Ela está se preparando para fazer o supletivo. Quanto ao junta-cabeça de 1000<br />
peças está de novo na caixa, até que me disponha a medir forças com ele de novo.<br />
Pedagogia do caracol<br />
Há muitas pessoas de imaginação sensível que amam as crianças. Encontrei na<br />
revista pedagógica Cem Modialitá, que se publica na Itália (Via Piamarta 9 – 25121<br />
– Brescia – Itália), um artigo com um título curioso: “A pedagogia do caracol”. O<br />
autor, Gianfranco Zavalloni ( www.scuolacreativa.it) conta da mãe de uma menina<br />
que o procurou e lhe relatou o seguinte: “Outro dia minha filha me disse: mamãe,<br />
os professores dizem sempre: ‘Força, crianças! Não podemos perder tempo porque<br />
devemos andar para frente!’. Mas, mamãe, para onde devemos ir? Para frente,<br />
onde?’”. Essas perguntas da menina o levaram questionar o ritmo de pressa que as<br />
escolas impõem às crianças. No seu lugar, ele propõe a pedagogia do caracol. Os<br />
caracóis não sabem o que é pressa. E ele fala de um curso de formação de<br />
professores do Gruppo Educhiamoci alla Pace di Bari sobre o tema “Na companhia<br />
do ócio, da lentidão e da poesia”. Sugere que no cotidiano dos professores com as<br />
crianças deveria haver tempo para simplesmente jogar conversa fora, conversa que<br />
não quer ensinar coisa alguma. Simplesmente ouvir as crianças é coisa muito<br />
preciosa. Elas aprendem que são importantes e que é importante ouvir as outras.<br />
Caminhar, passear, andar a pé, observando as coisas ao redor. Contemplar as<br />
nuvens. Escrever cartas e cartões a lápis ou caneta; não usar os e-mails. Plantar<br />
uma horta. Plantando uma horta, as crianças aprendem sobre os ritmos da<br />
natureza. Quem observa os ritmos da natureza acaba por ganhar equilíbrio pessoal.<br />
Plantar uma horta talvez seja uma terapia mais poderosa que a dos consultórios. A<br />
velocidade é o ritmo das máquinas. Mas nós não somos máquinas. Somos seres da<br />
natureza como os animais e as plantas. E a natureza é sempre vagarosa. É<br />
perigoso introduzir a pressa num corpo que tem suas raízes na lentidão da<br />
natureza.
Escola<br />
Andréa é o nome da menininha de quatro anos. Entrou para a creche. Ao fim do<br />
primeiro dia, a mãe lhe perguntou: “Como é a professora?”. Andréa respondeu: “Ela<br />
grita!”.<br />
Aula de química<br />
O professor estava furioso com o que acontecera. Procurou a diretora e lhe relatou<br />
o seguinte. Preparava-se para iniciar sua aula de química quando notou que algo<br />
estranho estava acontecendo: todos os alunos tampavam os seus narizes com os<br />
polegares e indicadores e riam. Ele não entendeu até que respirou fundo. Então<br />
entendeu. Um aluno, ele não sabia quem, havia enchido o ambiente com uma<br />
ventilação intestinal malcheirosa. Considerava esse ato uma ofensa pessoal à sua<br />
dignidade. Pedia providências disciplinares. A diretora, movida por inexplicável<br />
inspiração, lhe perguntou: “E qual seria o assunto da sua aula?”. Ele respondeu:<br />
“Os gases”. A diretora o encarou com espanto e lhe disse: “Mas o senhor perdeu<br />
uma maravilhosa ocasião de falar sobre os gases...”.<br />
O garçom<br />
Já passava das 23 horas, o restaurante do hotel estava vazio e assim eu podia<br />
fazer uma coisa que me dá prazer: conversar com o garçom. Sem ter mais ninguém<br />
para atender, ele estava por minha conta. Parecia ter uns cinquenta anos.<br />
Perguntei sobre sua vida, onde nascera, como vivera... O seu rosto se iluminou e<br />
ele começou a falar com o maior entusiasmo. Nascera num lugarzinho ínfimo.<br />
Esqueci-me do nome. Só sei que tinha alguma coisa a ver com “antas”. Lá no norte<br />
de Minas. Matas, onças, antas, pacas, macacos, pássaros de todos os tipos.<br />
Solidão. Farmácia plantada na horta. <strong>Faz</strong>er fogo batendo uma pedra na outra.<br />
Tinham de sobreviver com o que havia ao redor, na natureza, e com o que<br />
plantavam. Pai pobre, só pôde fazer o grupo, curso primário. Depois se mudara<br />
para Belo Horizonte. Já trabalhava naquele hotel havia mais de 25 anos. Aí ele deu<br />
uma paradinha, sorriu e disse sem a menor vergonha: “Sou homem inteligente.<br />
Não me conformei com o curso primário. Resolvi estudar. Fui numa livraria que<br />
vende livros para pobres. Comprei vários. Estou terminando o supletivo...”. Aí<br />
começou a me falar sobre o que aprendera. Eu escutava fascinado. “<strong>Faz</strong> uns dias<br />
fui atender uma senhora. Eu disse: Por aqui, minha senhora... Ela respondeu: ‘I<br />
don’t speak Portuguese’. Eu disse: ‘But I speak English’”. E desandou a falar inglês
num sotaque bonito. Os mineiros da roça, bem como os piracicabanos e os<br />
tatuienses, têm, por causa do sotaque natural, facilidade para falar os erres tortos<br />
dos americanos. E acrescentou: “E falo também alemão!”. Com o meu alemão de<br />
pé quebrado tratei de colocá-lo à prova, para ver se ele não sabia só meia dúzia de<br />
palavras. Que nada! Ele falava mesmo! Seu nome: João Batista Souto, 54 anos,<br />
maître do restaurante do Belo Horizonte Othon Palace. No dia seguinte, ao sair,<br />
deixei na portaria uns livros para ele.<br />
Missa do cadáver<br />
Nos meus anos de professor na Unicamp, conheci uma professora de quem me<br />
tornei um grande amigo: Vilma Clóris de Carvalho. Sua especialidade e prazer era a<br />
neuroanatomia. E até frequentei um dos seus cursos como aluno igual aos outros,<br />
pra valer. O que eu mais admirava na Vilma é uma virtude que está ficando cada<br />
vez mais rara: ela era apaixonada por ensinar. Gostava dos seus alunos. Digo que<br />
a paixão por ensinar está ficando cada vez mais rara porque, nos relatórios de<br />
avaliação que os professores têm de preencher para os órgãos oficiais de controle<br />
burocrático, as atividades de ensino nem mesmo são mencionadas. O que vale são<br />
as pesquisas publicadas em revistas internacionais. Os professores, assim, deixam<br />
de ser professores. Transformam-se em pesquisadores. Os alunos não importam.<br />
Na realidade, atrapalham... Eu, pessoalmente, acho que ensinar é muito mais<br />
importante que pesquisar. Porque é no ensino que se aprende a pensar. E é da<br />
capacidade de pensar que surgem os pesquisadores. Se a pesquisa é um fruto, o<br />
ensino são as sementes que foram plantadas. Sem sementes não há árvores, sem<br />
árvores não há frutos. Pois a Vilma vivia para plantar, vivia a ensinar a pensar. Era<br />
uma verdadeira educadora. Uma das práticas mais comoventes de suas atividades<br />
como professora de anatomia era a “Missa do Cadáver”. Lidando com peças<br />
anatômicas diariamente, o aluno pode se tornar insensível e embrutecido,<br />
esquecido de que aquelas peças um dia foram um corpo que sonhou, sofreu, amou<br />
– alguém como nós. A “Missa do Cadáver” era para que os alunos se lembrassem<br />
das pessoas... Lembro-me de que, numa das missas, sobre a mesa eucarística,<br />
dentro de um recipiente de vidro, havia um coração vermelho. Houve tempo em<br />
que aquele coração batia... O caráter da Vilma marcou os seus alunos. Aposentouse.<br />
Mudou-se para Recife. Escreveu um lindo livro em que aparecem combinadas as<br />
suas memórias de vida – fascinantes! – e o seu trabalho como professora e<br />
pesquisadora: Vivendo sem calendário.<br />
Janucz Korczak
“Vocês dizem: ‘Cansa-nos ter de privar com crianças’. Têm razão. Vocês dizem<br />
ainda: ‘Cansa-nos porque precisamos descer ao seu nível de compreensão’. Descer,<br />
rebaixar, inclinar-se, ficar curvado. Estão equivocados. Não é isto o que nos cansa,<br />
e sim o fato de termos de elevar-nos até alcançar o nível de sentimentos das<br />
crianças. Elevar-nos, subir, ficar na ponta dos pés, estender a mão. Para não<br />
machucá-las.” (Do livro Janucz Korczak, Edusp,1998)<br />
As Olimpíadas<br />
... são um evento assombroso. Começa com aquela festa linda, comovente, festa<br />
de fraternidade e paz. Norte-americanos e iraquianos desfilaram no mesmo desfile<br />
sem que o Bush tentasse matar os atletas do Iraque como terroristas disfarçados.<br />
Ele estava jogando golfe. O grande símbolo: uma oliveira cheia de folhas! Dizem os<br />
poemas sagrados que a pomba que Noé soltou ao final do dilúvio voltou com um<br />
ramo de oliveira no bico. Que bom seria se aquela oliveira anunciasse o fim do<br />
dilúvio de loucuras bélicas que está destruindo o mundo! Algumas dessas festas<br />
ficam inesquecíveis. Lembro-me do ursinho que marcou as Olimpíadas de Moscou.<br />
No encerramento, o ursinho chorou: lágrimas escorriam pelo seu rosto. Sei muito<br />
bem que urso não tem rosto, urso tem é focinho, mas seria feio dizer “lágrimas<br />
escorriam pelo seu focinho”. Do jeito como as coisas vão, em breve se dirá que os<br />
bichos têm rosto e os homens têm focinho. Aí chega o primeiro dia. Vai-se a<br />
fraternidade. Agora é briga. Briga pelo pódio. O pódio é motivo de briga. Todo<br />
pódio é motivo de briga. Nas Olimpíadas não há lugar para fraternidade porque<br />
fraternidade significa todo mundo junto brincando de roda e nas Olimpíadas não há<br />
cantigas de roda. No pódio só cabem três. Cada atleta quer mesmo é que o outro<br />
se dane. Ah! A suprema felicidade do velocista dos 100 metros quando sabe que o<br />
recordista baixou no hospital acometido de uma súbita cólica renal, na véspera das<br />
finais. E as ginastas rezam, enquanto as adversárias executam os seus números:<br />
“Tomara que ela escorregue...”.<br />
Atletismo<br />
Havia na Unicamp um professor visitante na Faculdade de Educação Física, Manoel<br />
Sérgio, que era muito contra o atletismo. Ele perguntava: “Você conhece algum<br />
atleta longevo?”. E concluía: “Quem vive muito são essas velhinhas que se<br />
encontram ao fim da tarde para tomar chá com bolo...”. Já viu cavalo treinando os<br />
1500 metros? Só quando dominado por homens. As Olimpíadas não são uma<br />
manifestação de saúde. São uma exaltação do desejo de ser o maior. Prova disso<br />
são os dopings. Os atletas sabem que a coisa faz mal à saúde. Pode matar. Mas
uma morte prematura bem vale um lugar no pódio! Aquela máquina de correr, uma<br />
negra norte-americana, me esqueci do nome dela, só músculos, morreu<br />
subitamente de um ataque cardíaco. Assim, não pensem que os atletas têm boa<br />
saúde, que praticam hábitos saudáveis de vida. Lembram-se da corredora suíça, ao<br />
final da maratona? Era a imagem de um corpo torturado pela dor. Penso nas<br />
nadadoras. Elas me assustam. Não se parecem com mulheres. Aqueles ombros<br />
enormes! Acho que meus braços não conseguiriam abraçar uma delas. E nem eu<br />
quereria. E acho que nem ela quereria. Abraço é perda de tempo. É preciso<br />
aproveitar o tempo lutando contra a água. Inimigas da água. Isso mesmo. Porque<br />
uma pessoa que passa dez anos de sua vida treinando seis horas por dia não por<br />
prazer mas para sair da piscina um centésimo de segundo na frente da marca<br />
olímpica só pode ter ódio da água. A água é o inimigo a ser vencido. Compare com<br />
as crianças. Elas amam a água. Elas não querem sair da água. A água é sua<br />
companheira de brincadeiras. As nadadoras, ao contrário, não brincam com a água.<br />
Lutam contra ela. Tocada a borda da piscina, para onde olham as nadadoras? Elas<br />
olham para o placar onde aparece o tempo. É isso. É o tempo que elas amam.<br />
Quanto mais depressa melhor! O perigoso é que elas apliquem essa doideira em<br />
outras coisas da vida nas quais o que vale é “quanto mais devagar melhor”.<br />
Pai indignado<br />
Numa escola de São Paulo, um pai ficou indignado quando soube que seu filho e<br />
seus colegas catavam lixo numa praça, como parte das atividades da escola. “Não<br />
estou pagando uma escola para que meu filho faça serviço de gari.” Por vezes<br />
penso que os pais podem ser grandes inimigos da educação. Não se preocupam<br />
com a educação. O que eles querem é que seus filhos passem no vestibular.<br />
Aluninha<br />
A Maria Alice (mulher a quem os deuses deram o dom natural de ensinar e ajudar<br />
especialmente as crianças que estão tendo problemas na escola) contou-me de<br />
uma aluninha que lhe dizia: “Eu quero saber tanta coisa. O mundo está cheio de<br />
coisas tão interessantes. Mas não dá tempo. Tenho tanta lição para fazer...”.<br />
Aos líderes de comunidades<br />
O professor José Pacheco me disse, sobre a Escola da Ponte: “O segredo de uma<br />
escola é simples: É preciso que todos estejam apaixonados pelo projeto. É preciso<br />
que todos sonhem o mesmo sonho. Havendo isso, fica fácil resolver o resto...”.
Professor que é contratado para dar aulas da sua disciplina e que só dá aulas da<br />
sua disciplina, professor que não sonha o grande sonho, que é só funcionário, esse<br />
é uma pedra no sapato. Toda diretora ou diretor de escola deveria entender isso:<br />
sua tarefa fundamental não é cuidar do patrimônio e fazer relatórios. Isso, qualquer<br />
funcionário faz. É tarefa mecânica. Sua tarefa é abrir um espaço para os sonhos,<br />
pastorear os sonhos, como se fossem ovelhas... Conversando com o Gilberto<br />
Dimenstein sobre a comunidade que faz o projeto “Bairro Escola Aprendiz”<br />
funcionar, um grupo de amigos apaixonados pela ideia, ele me disse: “Fiz um<br />
acordo com eles: os erros são meus; os acertos são nossos...”.<br />
Corrida engraçada<br />
Lembrei-me de uma passagem engraçada no livro Alice no País das Maravilhas, de<br />
Lewis Carroll. Tratava-se de uma corrida. Alice queria saber as regras. O Pássaro<br />
Dodô explicou: “Primeiro marca-se o caminho da corrida, num tipo de círculo (a<br />
forma exata não tem importância), e então os participantes são todos colocados<br />
em lugares diferentes, ao longo do caminho, aqui e ali. Não tem nada de ‘um, dois,<br />
três, já’. Eles começam a correr quando lhes apetece, ou abandonam quando<br />
querem, o que torna difícil dizer quando a corrida termina”. Assim a corrida<br />
começou. Depois que haviam corrido por mais ou menos meia hora, o Pássaro<br />
Dodô gritou: “A corrida terminou!”. Todos se reuniram ao redor de Dodô e<br />
perguntaram: “Quem ganhou?”. “Todos ganharam”, disse Dodô. “E todos devem<br />
ganhar prêmios.”<br />
Lançamento de celulares<br />
Acabo de ser informado sobre uma nova modalidade de lançamento de peso ou de<br />
disco que despertou meu entusiasmo, e espero que ela venha a ser incorporada<br />
aos esportes olímpicos. Trata-se de “lançamento de telefones celulares”. O fato é<br />
que o mercado de celulares está produzindo uma quantidade cada vez maior de<br />
aparelhos que logo se transformam em velharias. Vocês se lembram dos primeiros<br />
celulares, enormes, que quase exigiam uma mochila para ser carregados? Onde<br />
estão? Nalgum lugar da sua casa. Espero que vocês não os tenham colocado no<br />
lixo, por razões ecológicas. Pois agora há um uso saudável para tais objetos<br />
inúteis: eles são transformados em material esportivo. Como psicanalista, eu creio<br />
que o lançamento de celulares terá uma função terapêutica. O fato é que<br />
frequentemente tenho vontade de lançar meu celular para bem longe. Mas não me<br />
atrevo a fazê-lo porque esses ímpetos por vezes acontecem em espaços públicos e<br />
seria inevitável que as pessoas, ao me ver fazendo tal tresloucado gesto, se
apressassem a chamar o pronto-socorro psiquiátrico. Já na pista de atletismo<br />
poderei lançar quantos celulares quiser, livrar-me-ei de minhas raivas e ainda serei<br />
aplaudido por minha técnica.<br />
Sobre o ler<br />
Ler rapidamente aquilo que o autor levou anos para pensar é um desrespeito. É<br />
certo que os pensamentos, por vezes, surgem rapidamente, como num relâmpago.<br />
Mas a gravidez é sempre longa. Há frases que resumem uma vida. Por isso é<br />
preciso ler vagarosamente, prestando atenção nas ideias que se escondem nos<br />
silêncios que há entre as palavras. Eu gostaria que me lessem assim. Quer eu<br />
escreva como um poeta, no esforço para mostrar a beleza, ou como palhaço, no<br />
esforço para mostrar o ridículo, é sempre a minha carne que se encontra nas<br />
minhas palavras.<br />
Cursinhos<br />
Tomei o café da manhã com um amigo, dono de um famoso cursinho. Ele me disse<br />
algo mais ou menos assim: “Tudo o que ensinamos é perda de tempo. Não faz<br />
sentido. Não está ligado à experiência viva dos estudantes. Por isso aquilo que nós<br />
supostamente ensinamos e eles supostamente aprendem é logo esquecido...”. E eu<br />
acrescento: a culpa não é deles, dos cursinhos. É dos vestibulares – esse estúpido<br />
sistema que muito contribui para a ruína da educação. Por isso não dou a menor<br />
importância às fotografias dos que passaram em primeiro lugar...
Natureza
Plantar árvores<br />
Amo aqueles que plantam árvores sabendo que não se assentarão à sua sombra.<br />
Plantam árvores para dar sombra e frutos àqueles que ainda não nasceram.<br />
Plantas<br />
“Tirem todos os homens da Terra, e as plantas continuarão felizes, sem notar sua<br />
falta. Tirem as plantas da Terra, e os homens não sobreviverão.” (Paul Travers,<br />
National Geographic Magazine, julho de 2002, p. 120)<br />
A natureza sonha<br />
Penso que a natureza sonha. Montanhas, florestas, mares, ares, rios, lagos,<br />
nuvens, cachoeiras, animais, flores – todos sonham um mesmo sonho. Sonham que<br />
chegará o dia em que os seres humanos desaparecerão da face da Terra. Pois os<br />
dinossauros não desapareceram? Quando isso acontecer será a felicidade! A<br />
natureza estará, finalmente, livre dos demônios que a destroem. A natureza, então,<br />
tranquilamente, sem pressa, se curará das feridas que lhe causamos.<br />
Canários-da-terra<br />
Moravam nas árvores da minha infância. Amarelos, cabeças vermelhas, eram<br />
também conhecidos como “cabecinhas de fogo”. Aos poucos foram sumindo. Pensei<br />
que nos haviam abandonado, definitivamente. De medo. Para sobreviver. Teriam<br />
ido para longe dos homens... “Os homens são aqueles que perderam a confiança<br />
dos pássaros.” E com razão. Tantas coisas horríveis lhes fizemos. Nos meus dias de<br />
infância, o esporte favorito dos meninos era matar passarinhos com estilingue, pelo<br />
puro prazer de matar. Ou engaiolá-los. Há uma canção do Chico sobre a passarada<br />
em que a alegria é sempre interrompida pelo refrão “... o homem vem aí, o homem<br />
vem aí”. Mas eles estão voltando. Nas montanhas de Minas vi um espetáculo<br />
maravilhoso que nunca imaginei que existisse: bandos de mais de cinquenta<br />
canários-da-terra, voando. Isso me deu alegria. E esperança. Pena que os nossos<br />
meninos não saibam o que são canários-da-terra nem saibam identificar o seu<br />
canto. Deveriam aprender isso nas escolas. Porque dá mais alegria um pássaro<br />
voando que um dígrafo e duas mesóclises na prova.<br />
As onças...<br />
Tem uma emoção nova no ar de Pocinhos do Rio Verde, lugar onde planto árvores
para meus amigos que partiram para o outro mundo. Agora até mudei de ideia:<br />
estou plantando árvores para amigos que ainda não partiram. A minha própria<br />
árvore já está com mais de três metros. Pois a nova emoção é um cheiro diferente.<br />
É só ir lá para sentir. Antes era só tranquilidade, os cheiros conhecidos do capimgordura,<br />
dos assa-peixes, dos lírios-do-brejo. Pois agora tem um cheiro novo,<br />
cheiro de onça... “Eu senti o cheiro dela, quando andava na minha roça de<br />
mandioca”, contou-me um sitiante. É, as onças estão voltando. Confesso que fiquei<br />
feliz. Minha felicidade é porque estou me sentindo transportado para o passado, os<br />
lugares da minha meninice. Naqueles tempos, sim, as onças estavam por toda<br />
parte. Jeca Tatuzinho que o diga! Porque, depois de curado de suas lombrigas e de<br />
ter tomado três vidros do Biotônico, ele topou com um par de onças no mato.<br />
Ouviu o miado. “E eu aqui, sem nem mesmo uma faca...”, ele pensou. Mas medo<br />
não teve. Fincou firme as botinas no chão e esperou. A onça chegou, arreganhou a<br />
dentuça e pulou com um miado de fazer pedra tremer. Jeca Tatuzinho pregou-lhe<br />
um murro nas fuças que fez com que ela rolasse pelo chão. “Conheceu, papuda?!” –<br />
foi isso que ele foi dizendo enquanto a estrangulava com suas próprias mãos. A<br />
outra onça, vendo o que acontecia, tratou de pôr-se a salvo, e, se os boatos são<br />
verdadeiros, está correndo até hoje. Até o Pedrinho, neto da dona Benta, do Sítio<br />
do Pica-pau Amarelo, teve uma aventura com uma delas, das pintadas, numa de<br />
suas caçadas. Antigamente, quem morava na roça pensava em onça. Me lembro, lá<br />
na fazenda velha onde vivi. Todo mundo já tinha topado com onças, todo mundo<br />
contava estórias de onças. “Pois eu vinha pela trilha quando, de repente, a cara de<br />
uma onça apareceu atráis duma pedra. Peguei a espingarda, mirei no meio dos<br />
zoio e pum! – era uma veiz uma onça. Mas aí não aquerditei no que vi. A onça<br />
apareceu de novo. Imaginei que estava ruim dos zoio, que estava perdendo a<br />
pontaria. Mirei de novo. Pum! – era uma veiz uma onça! Pois não é quela apareceu<br />
de novo? E assim foi, a onça aparecendo, eu atirando, ela aparecendo de novo –<br />
seis veiz, seis veiz. Aí, ela num apareceu mais. Fui chegando, matreiro,<br />
descunfiado, pra vê atráis da pedra. E ocê num vai aquerditá nu qui eu vi: seis onça<br />
morta com um tiro no meio da testa...” Pois uma onça, daquelas cinzentas,<br />
suçuarana, tamanho de um cão pastor, matou a mula de um homem lá em<br />
Pocinhos. Ele chamou os amigos, reuniu a cachorrada, e lá foram em perseguição<br />
da onça. Encontraram. Mataram. Mas não adiantou. Apareceu uma outra, igual.<br />
Amigos e cachorrada encurralaram a dita. Ela subiu numa árvore. A cachorrada<br />
ficou embaixo, latindo. Aí um dos caçadores ponderou que era melhor chamar a<br />
Polícia Florestal. Veio o polícia, olhou para a onça encarapitada no galho alto da<br />
árvore, e deu o veredito: “Este lugar é terra da onça. Vocês são invasores. A onça<br />
fica. Ninguém mata. Vocês se mudem para outro lugar”. Não sei se foi isso mesmo<br />
que ele disse, mas foi o que me relataram. Mas, como quem conta um conto
aumenta um ponto, como mineiro acredito desacreditando. Me contaram do jeito<br />
seguro para saber se a onça está na tocaia. Primeiro é o cheiro. Quem quiser saber<br />
qual é o cheiro da onça é só visitar um zoológico. Depois é o barulhinho. Quando a<br />
onça está tocaiando, os entendidos me informaram, ela vai mexendo as orelhas<br />
para ouvir melhor. E quando ela mexe as orelhas, as orelhas fazem um barulho<br />
característico, um “clique” seco, como se fosse um galho quebrado. Assim, quem<br />
for andar por trilhas em Pocinhos, que preste atenção nos “cliques”. E cuidado se<br />
algum mineiro o convidar para pescar. Pois dizem que aconteceu de verdade. Um<br />
mineiro e um paulista estavam pescando, assentados à beira do rio, pitando um<br />
cigarrinho de palha, bebendo uma pinguinha, vida que se pediu a Deus – até que<br />
se ouviu um miado no mato. “Que miado é esse?”, perguntou assustado o paulista.<br />
“Acho que é miado de onça...”, respondeu o mineiro sem se mexer. Outro miado<br />
mais forte. “Parece que a onça está vindo pra cá”, disse o paulista. “É, está vindo<br />
pra cá”, disse calmamente o mineiro. Um outro rugido terrível. O paulista se<br />
apavorou. O mineiro calmamente abriu o embornal, tirou lá de dentro um par de<br />
tênis que se pôs a calçar. “Você está louco?”, disse o paulista. “Acha que vai correr<br />
mais depressa que a onça?” “Não, não vou correr mais depressa que a onça. O que<br />
eu quero é correr mais depressa que você...”<br />
Capim-gordura<br />
Quem experimentou o cheiro e a cor do capim-gordura não esquece mais. Menino,<br />
lá em Boa Esperança, meu tio João Gordo, que era extremamente magro, me<br />
pegava antes das seis da manhã para ir até a fazenda, para a ordenha das vacas.<br />
Os cavalos caminhavam sem pressa. Conheciam o caminho. Passadas as ruas da<br />
cidade, entrávamos na estrada de terra e tomávamos uma trilha à direita. A trilha<br />
quase não se via, coberta que estava pelo gordo capim-gordura que se derramava<br />
sobre ela. O silêncio, o cheiro dos cavalos, o barulho dos cascos no chão, o cricri<br />
dos grilos, a música da água de um riachinho que corria escondido sob o capim, a<br />
neblina e o perfume do capim... Isso faz parte da terra das Minas Gerais, terrasaudade.<br />
É pedaço de mim. Quem é mineiro sente dor só de lembrar. Depois,<br />
quando era maior, da janela do meu quarto eu via um campo de capim-gordura<br />
florido, ao longe. Cor-de-rosa. Quando o vento passava o rosa ondulava. As vacas<br />
gostavam. Acho que ficavam felizes e da sua felicidade saía o leite mais saboroso,<br />
o queijo mais perfumado, como aqueles queijos da serra da Canastra. Mas depois<br />
veio o tal do progresso e disseram que havia um capim mais forte, o tal de<br />
braquiária, africano. De fato, mais forte. Praga que uma vez plantada não há o que<br />
acabe com ela. As vacas comem por não ter outro. Mas se vingam. Seu leite não<br />
tem o mesmo cheiro. Os queijos não têm o mesmo perfume. Andando pelos
campos, a gente ainda encontra os capins-gordura floridos. Quando o sol ilumina<br />
suas delicadíssimas flores, a gente, sem querer, rende graças.<br />
Goiabas<br />
As goiabas... Ah! As goiabas... Ficam vendendo goiabas em caixa nos semáforos.<br />
Sou doido por goiabas e por isso não compro as goiabas que eles vendem. Porque<br />
aquelas frutas que estão vendendo não são goiabas. Acho que foram inventadas<br />
pelos japoneses, que são extraordinários pelo seu poder de mudar as coisas. Por<br />
que as inventaram? Não porque amassem as goiabas. Mas porque queriam ganhar<br />
dinheiro com as goiabas. Goiaba que é goiaba não se presta pra ganhar dinheiro.<br />
Goiaba de verdade é mole, não resiste ao transporte. Deteriora-se rapidamente,<br />
não se presta a ser guardada. É habitada por bichos brancos, que dão testemunho<br />
do seu gosto delicioso. Comprem uma dessas goiabas de semáforo. Tentem sentir<br />
o seu perfume. Não têm. Mordam e sintam como são duras. E vejam se há algum<br />
bicho lá dentro. Não tem. Por quê? Porque as goiabas são melhores? Não. Porque<br />
não têm gosto. Até os bichos sabem que aquilo não é goiaba. Eu me lembro... A<br />
gente viajava de jardineira. Abarrotada. O dono recebia o dinheiro das passagens e<br />
fazia fiado pra quem não tinha dinheiro. Eu me lembro, uma vez... A jardineira<br />
entrou num trecho da estrada de terra que passava por um enorme goiabal de<br />
goiabeiras nativas, carregadas de goiabas amarelas. Ele deu uma ordem para o<br />
motorista. O motorista parou a jardineira. E então ouviu-se o seu grito dirigido aos<br />
passageiros: “Pessoal, todo mundo catando goiaba...”. Todo mundo desceu e foi<br />
uma felicidade. Tão grande que não me esqueci. Lembro-me da manhã ensolarada,<br />
do campo verde, do perfume das goiabas e da alegria dos passageiros,<br />
transformados em crianças. Sentido da vida? É catar goiaba madura, bichada, doce,<br />
em manhã ensolarada...<br />
O humor das frutas<br />
Cada fruta tem um humor específico. Maçãs e peras são sérias, não contam piadas,<br />
e são próprias para aparecer em reuniões de pessoas graves. Cocos são chatos,<br />
sem assunto. A jaca é uma enorme gargalhada. Enquanto jabuticabas, pitangas,<br />
caquis são coisas brincalhonas. Até acho que a fruta proibida, no Paraíso, não foi a<br />
maçã, como muitos dizem, mas o caqui. Existirá coisa mais erótica? Já as uvas têm<br />
um ar de nobreza, combinam com música erudita.<br />
Os ipês coloridos
Quer ficar tranquilo? Contemple calmamente os ipês que fazem o seu trabalho de<br />
cores! Eles estão floridos por toda a cidade. O que eles nos dizem é que a natureza<br />
está cheia de beleza e tranquilidade. Para que servem as suas cores? Para eles,<br />
devem servir para alguma coisa. Para nós, não servem para nada. Suas cores não<br />
têm uso algum que lhes possamos dar. Mas elas, sem linguagem e sem fala, nos<br />
falam. Falam da simplicidade da vida. Falam da nossa tolice. Não sabemos florir.<br />
“Ah, como os mais simples dos homens são doentes e confusos e estúpidos ao pé<br />
da clara simplicidade e saúde em existir das árvores e das plantas. Sejamos<br />
simples e calmos, como os regatos e as árvores, e Deus amar-nos-á fazendo de nós<br />
belos como as árvores e os regatos, e dar-nos-á verdor na sua primavera, e um rio<br />
aonde ir ter quando acabemos” (Alberto Caeiro).
Política
Sobre os dois tipos de política<br />
Santo Agostinho sugere que há dois tipos de política. A política do “poder do amor”,<br />
a que ele deu o nome de Cidade de Deus, e a política do “amor ao poder”, a que<br />
ele deu o nome de Cidade dos Homens. Tudo tem a ver com a forma como “poder”<br />
e “amor” se relacionam. Pensada utopicamente, a política do “poder do amor” pode<br />
ser definida como a arte da jardinagem aplicada às coisas públicas. Jardinagem é a<br />
arte e a técnica que busca estabelecer harmonia entre o homem e a natureza.<br />
Jardins são espaços que o amor modelou no sentido de que sejam belos e seguros.<br />
Neles não existe o medo e o corpo experimenta a exuberância dos sentidos. Nos<br />
jardins, o homem e a natureza estão reconciliados, são amigos. Nessa política, o<br />
poder é ferramenta e instrumento do amor: esse é o sentido da ética. Ética é,<br />
sempre, limitação do poder. Pensada realisticamente, a “política do amor ao poder”<br />
é o conjunto de artimanhas que tem por objetivo estabelecer o poder de um grupo<br />
sobre um determinado território. Nessa política, os sonhos de amor estão<br />
subordinados e a serviço do poder. O que significa que nela o poder é o valor<br />
supremo e não existe uma ética que o controle.<br />
Albert Camus,<br />
um dos escritores que mais amo, se horrorizava com a política. “Cada vez que ouço<br />
um discurso político ou que leio os que nos dirigem, há anos que me sinto<br />
apavorado por não ouvir nada que emita um som humano. São sempre as mesmas<br />
palavras que dizem as mesmas mentiras. E, visto que os homens se conformam,<br />
que a cólera do povo ainda não destruiu os fantoches, vejo nisso a prova de que os<br />
homens não dão a menor importância ao próprio governo e que jogam, essa é que<br />
é a verdade, que jogam com toda uma parte de sua vida e dos seus interesses<br />
chamados vitais.” “Não sou feito para a política porque sou incapaz de querer ou de<br />
aceitar a morte do adversário.”<br />
Ética e trapaça<br />
O sociólogo Peter Berger escreveu um livrinho divertido e inteligente que eu<br />
gostava de ler com meus alunos quando era professor da Unicamp: Introdução à<br />
sociologia. Um dos seus capítulos tem um título esquisito: “Como trapacear e se<br />
manter ético ao mesmo tempo”. Disse “esquisito” porque é conhecimento comum<br />
que “trapaça” e “ética” não fazem acordos. Mas o momento atual da política<br />
brasileira está demonstrando que esse não é o caso. Ao contrário, que é de suma<br />
importância juntar ética e trapaça quando as coisas relativas ao dinheiro e ao<br />
poder estão em jogo. Para esclarecer esse assunto enigmático, vou contar uma
pequena estória: Havia numa cidade dos Estados Unidos uma igreja batista. Os<br />
batistas, como se sabe, são um ramo do cristianismo muito rigoroso nos seus<br />
princípios éticos. Havia na mesma cidade uma fábrica de cerveja que, para a igreja<br />
batista, era a vanguarda de Satanás. O pastor, representante de Deus, não<br />
poupava a fábrica de cerveja nas suas pregações. Aconteceu, entretanto, que, por<br />
razões pouco esclarecidas, a fábrica de cerveja fez uma doação de 500.000 dólares<br />
para a igreja batista. Os membros da igreja foram unânimes em denunciar aquela<br />
quantia como dinheiro do Diabo que não poderia ser aceito. Passada a exaltação<br />
dos primeiros dias, acalmados os ânimos, os mais ponderados começaram a<br />
analisar os benefícios que aquele dinheiro poderia trazer. Uma pintura nova para a<br />
igreja, um órgão de tubos, jardins mais bonitos, um salão social para festas.<br />
Reuniram-se então os membros da igreja em assembléia e depois de muita<br />
discussão registrou-se a seguinte decisão no livro de atas: “A Igreja Batista Betel<br />
resolve aceitar a oferta de 500.000 dólares feita pela cervejaria na firme convicção<br />
de que o Diabo ficará furioso quando souber que o seu dinheiro vai ser usado para<br />
a glória de Deus”. Quando a ideologia é nobre qualquer meio é permissível. Se<br />
esse acordo entre “ética” e “trapaça” valeu para a igreja, por que não valerá para<br />
os partidos políticos?<br />
A honestidade dos estúpidos<br />
... é mil vezes mais perigosa que a mentira dos inteligentes. É da honestidade dos<br />
estúpidos que surgem os fanáticos. Os fanáticos são pessoas honestas que<br />
acreditam nos seus pensamentos e nada os dissuade do seu caminho. E porque<br />
acreditam na verdade dos seus pensamentos tudo fazem para destruir aqueles que<br />
têm ideias diferentes.<br />
O voo 0666<br />
“Senhores passageiros do voo 0666, Paris-São Paulo, da TARIG, linhas aéreas<br />
democráticas.” A voz soou metálica na sala do aeroporto onde os passageiros<br />
aguardavam o início do embarque. Cessaram imediatamente as conversas, fez-se<br />
silêncio e os passageiros trataram de prestar atenção nas instruções que se<br />
seguiriam. A voz continuou: “A TARIG, linhas aéreas democráticas, no esforço para<br />
democratizar os seus serviços, avisa os senhores passageiros que dentro de alguns<br />
minutos terá início uma assembléia livre e soberana para a escolha democrática do<br />
piloto que comandará o voo Paris-São Paulo. Os candidatos poderão se inscrever no<br />
balcão da empresa devendo, para isso, preencher as seguintes condições: (1) ser<br />
maior de idade; (2) dar prova de ser capaz de assinar o nome”. Fez-se um grande
silêncio na sala de embarque. Os passageiros olharam uns para os outros,<br />
incrédulos, pegaram suas bolsas, pastas e mochilas e em silêncio deixaram vazia a<br />
sala da TARIG, linhas aéreas democráticas, e foram em busca de uma linha aérea<br />
que, sem ser democrática, fosse inteligente e que escolhesse seus pilotos por<br />
competência e não por voto da maioria.<br />
O Estado<br />
A medicina é uma arte rigorosa, regida por princípios de assepsia e de ética. Por<br />
exemplo: quando se vai aplicar uma injeção é preciso desinfetar o lugar onde a<br />
agulha vai entrar no corpo. Pura curiosidade: os médicos que aceitam a função de<br />
carrascos nas penitenciárias desinfetam o lugar onde a agulha com o líquido letal<br />
vai penetrar na veia do condenado? Acho que sim. É preciso evitar infecções. Será<br />
que os carrascos na cama, de noite, pedem perdão ou se entendem apenas como<br />
executores de um ato burocrático? Os criminosos de guerra alemães alegaram que<br />
eles apenas cumpriam ordens. O argumento não foi aceito. Foram enforcados. Não<br />
é horrendamente imoral que o Estado tenha o direito de matar? Matam na guerra,<br />
milhões. Não são caçados como terroristas. São saudados como heróis. Como são<br />
bonitas as fardas dos generais! A diferença entre os morticínios de Estado e os<br />
morticínios dos terroristas está em que os primeiros são feitos em nome do Estado<br />
e os segundos são feitos em nome de uma crença política ou religiosa. Os<br />
morticínios são feitos por loucos. Mas a loucura do Estado é legítima.<br />
Os ratos viram gatos<br />
Diante do perigo do gato, os ratos se unem e sonham sonhos de fraternidade em<br />
que todos repartirão socialisticamente o queijo inacessível, guardado pelo gato.<br />
Morto o gato, os ratos se esquecem da solidariedade socialista e começam a brigar<br />
entre si por um pedaço maior do queijo.<br />
Futebol e política<br />
Alguns amigos se juntaram e resolveram fazer algo pela pequena cidade do interior<br />
em que moravam. Pensaram que seria possível colocar um pouco de razão nessa<br />
coisa tão movida a paixões que é a política. Nada partidário. Não levantaram<br />
bandeiras. Não defenderam candidatos. Não gritaram slogans. Propuseram aos dois<br />
candidatos a prefeito que respondessem a uma série de perguntas sobre os seus<br />
planos, as mesmas perguntas para os dois. As perguntas foram feitas por escrito e<br />
eles tiveram dez dias para escrever suas respostas. As perguntas e as respostas,
com a concordância de ambos, foram transformadas num tabloide e distribuídas<br />
pela população. Num dia previamente marcado, os dois candidatos deveriam ler as<br />
suas respostas e assiná-las, como um documento público. Assim aconteceu. Os dois<br />
candidatos compareceram ao local designado junto com seus partidários, que se<br />
assentaram em dois blocos de cadeiras separadas. Mas o que sucedeu nada teve<br />
de racional. Era mais como o confronto entre torcidas de dois times de futebol,<br />
cada torcida odiando a outra. Vaias, gritos, apupos, xingamentos. Ninguém estava<br />
interessado em ouvir e compreender o outro. O clima foi ficando tenso e havia a<br />
possibilidade de que, terminado o evento, houvesse um confronto físico entre os<br />
dois grupos, tal como frequentemente acontece com torcidas de futebol. Ao final, a<br />
palavra foi aberta aos presentes. Uma amiga, uma mansa mulher, se levantou<br />
trêmula e disse algo mais ou menos assim: “Eu e meu marido nos mudamos para<br />
cá por opção. Cansados da brutalidade de São Paulo, escolhemos esta cidade<br />
porque ela nos pareceu habitada por pessoas cordiais e pacíficas. Mas agora estou<br />
triste. Perdemos nossas ilusões...”. Disseram alguns participantes que foi essa fala<br />
mansa que envergonhou as torcidas já preparadas para a briga. Que pena que<br />
aconteça assim! Usando a metáfora do futebol: as eleições não são um confronto<br />
entre dois times que se odeiam. Não há dois times. O time é um só. Todos<br />
jogamos nele. Nosso time é a cidade. O que acontecer na cidade acontecerá a<br />
todos nós. O que acontece nas eleições é a escolha do técnico do time no qual<br />
todos nós jogamos. Dizem as Sagradas Escrituras que uma cidade dividida contra si<br />
mesma não pode sobreviver. Será esse o nosso destino, viver batalhas de ódio que<br />
só produzem divisões? As pessoas, por terem ideias diferentes, têm de se tornar<br />
inimigas? Alguns acham que sim. Elas se tornam inimigas daqueles que têm ideias<br />
diferentes das suas. Eu mesmo ganhei muitos inimigos... Isso acontece porque há<br />
aqueles que se julgam possuidores da verdade. Mas ninguém é dono da verdade.<br />
Por isso existe a democracia: porque ninguém tem a verdade. Só temos opiniões<br />
precárias. Quem se julga dono da verdade tem de ser intolerante.<br />
Sofrimento<br />
Não acredito que o crucial seja o sofrimento. Um povo tem uma capacidade infinita<br />
para o sofrimento. É capaz de aceitar as maiores privações e de conviver com os<br />
maiores sacrifícios se acreditar na justiça da causa e na beleza do futuro. Prova<br />
disso são os povos que, por decênios, lutaram e lutam contra a opressão, em meio<br />
ao mais cruel sofrimento. Mas isso somente quando o sofrimento é parte de uma<br />
disciplina para se criar um futuro novo.
As roupas do rei<br />
Hans Christian Andersen foi um dinamarquês que gostava de contar estórias. Vou<br />
recontar a sua estória do rei vaidoso que gostava de roupas bonitas com dois<br />
finais: o dele e o meu. “Havia um rei muito tolo que adorava roupas bonitas. Os<br />
tolos gostam de roupas bonitas. Ele enviava emissários por todo o país para<br />
comprar roupas diferentes. Chegou ao cúmulo de mandar tecer uma faixa real nova<br />
com fios de ouro. Dois espertalhões ouviram falar da vaidade do rei e resolveram<br />
aproveitar-se dela para se enriquecer. Dirigiram-se ao palácio e anunciaram-se:<br />
‘Somos especialistas em tecidos mágicos’. O rei nunca ouvira falar de tecidos<br />
mágicos. Ficou curioso. Ordenou que os dois fossem trazidos à sua presença.<br />
‘Falem-me sobre o tecido mágico’, ordenou o rei. Um dos espertalhões pôs-se a<br />
falar: ‘Majestade, o tecido que tecemos é mágico porque somente as pessoas<br />
inteligentes podem vê-lo. Vestindo uma roupa feita com esse tecido Vossa<br />
Majestade saberá se aqueles que o cercam são inteligentes ou não’. O rei<br />
imediatamente contratou os dois espertalhões. Passados alguns dias, o rei mandou<br />
chamar o ministro da Educação e ordenou-lhe que fosse examinar o tecido. O<br />
ministro dirigiu-se ao aposento onde os tecelões trabalhavam. ‘Veja, Excelência, a<br />
beleza do tecido’, disseram eles com a mãos estendidas. O ministro da Educação<br />
não viu coisa alguma e entrou em pânico. ‘Meu Deus, eu não vejo o tecido, logo<br />
sou burro...’ Resolveu, então, fazer de conta que era inteligente. Voltou à presença<br />
do rei e relatou: ‘Majestade, o tecido é maravilhoso’. O rei ficou muito feliz.<br />
Passados dois dias, o rei convocou o ministro da Guerra e ordenou-lhe examinar o<br />
tecido. Aconteceu a mesma coisa. ‘Meu Deus’, ele pensou, ‘não sou inteligente. O<br />
ministro da Educação viu e eu não estou vendo...’ Resolveu adotar a mesma tática<br />
do ministro da Educação. E o rei ficou muito feliz com o seu relatório. E assim<br />
aconteceu com todos os outros ministros. Até que o rei resolveu pessoalmente ver<br />
o tecido maravilhoso. Não vendo coisa alguma, ele pensou: ‘Os ministros da<br />
Educação, da Guerra, das Finanças, da Cultura, das Comunicações viram. Mas eu<br />
não vejo nada! Sou burro. Não posso deixar que eles saibam da minha burrice...’. O<br />
rei se entregou então a elogios entusiasmados sobre o tecido que não havia.<br />
Marcou-se uma grande festa para que todos os cidadãos vissem o rei em suas<br />
novas roupas. No Dia da Pátria, a praça do palácio cheia de homens e mulheres,<br />
tocaram-se os clarins e ouviu-se uma voz pelos alto-falantes: ‘Cidadãos do nosso<br />
país! Dentro de poucos instantes a sua inteligência será colocada à prova. O rei vai<br />
desfilar usando a roupa que só os inteligentes podem ver’. Canhões dispararam<br />
uma salva de seis tiros. Rufaram os tambores. Abriram-se os portões do palácio e o<br />
rei marchou vestido com a sua roupa nova. Foi aquele oh! de espanto. Todos<br />
ficaram maravilhados. Como era linda a roupa do rei! Todos eram inteligentes. No<br />
alto de uma árvore estava um menino que via com seus olhos ignorantes. Não viu
oupa nenhuma. O que viu foi o rei pelado exibindo sua enorme barriga, suas<br />
nádegas murchas e as vergonhas dependuradas. Com uma gargalhada, deu um<br />
grito que a multidão inteira ouviu: ‘O rei está pelado!’. Fez-se um silêncio profundo,<br />
seguido por uma gargalhada mais ruidosa que a salva de artilharia. E todos se<br />
puseram a gritar: ‘O rei está nu, o rei está nu...’. O rei tratou de tapar as vergonhas<br />
com as mãos e voltou correndo para dentro do palácio.” Agora vou contar a mesma<br />
estória com um fim diferente. Ela é em tudo igual à versão de Andersen, até o<br />
momento do grito do menino. “O rei está pelado!” Fez-se um silêncio profundo,<br />
seguido pelo grito da multidão enfurecida. “Menino louco! Não vê a roupa nova do<br />
rei! Menino burro!” Com estas palavras agarraram o menino e o internaram num<br />
manicômio. Moral da estória: Em terra de cego, quem tem um olho não é rei. É<br />
doido.<br />
O corpo<br />
Quando eu era jovem, a menor unidade do meu pensamento era o universo e a<br />
eternidade. Eu vivia no mundo dos deuses. Não havia percebido que meus deuses<br />
tinham pés de barro. Seus pés se esfarelaram, eles caíram e eu fiquei mais<br />
modesto. Troquei-os pelos heróis da política. Deixei os céus para os pardais e<br />
tornei-me um habitante do mundo. O marxismo era a grande religião. Ao<br />
envelhecer, dei-me conta de que também a política era muito grande para mim.<br />
Encolhi-me mais uma vez. Voltei ao meu corpo. É no corpo que vivo meu cotidiano.<br />
O corpo só conhece o presente.<br />
China<br />
Quando um assunto se torna tema para o humor dos cartunistas é porque já se<br />
tornou objeto de uma aflição coletiva. É o caso da economia chinesa, que está<br />
crescendo de uma forma assustadora, as grandes economias industriais ricas se<br />
revelando incapazes de lidar com o perigo que as ameaça. O preço das<br />
manufaturas chinesas é imbatível. Um pequeno estojo de delicadas chaves de<br />
fenda é vendido pelo preço de três reais! É ver e querer comprar, não pela<br />
utilidade, mas pelo preço. No campo dos têxteis, de forma especial, a indústria<br />
chinesa está arrasando as competidoras. Criou-se, então, o slogan: “Say ‘No’ to<br />
chinese textiles” – “Diga ‘Não’ aos têxteis chineses”. Em meio a esse pânico, os<br />
cartunistas já estão fazendo piadas. Vi, num jornal inglês, o seguinte cartoon: uma<br />
barraca de camelô que vende camisetas com os mais diferentes slogans. O dono,<br />
ao lado, um chinês sorridente. E entre as camisetas que ele vende, uma ocupava o<br />
lugar mais visível. A mais vendida. A que lhe dava mais lucro. O slogan nela escrito
era: “Say ‘No’ to chinese textiles”. Dois ingleses, observando a cena, comentam:<br />
“Esses chineses são realmente imbatíveis...”. Há previsões de que, num futuro não<br />
muito distante, a China terá atingido o padrão de desenvolvimento dos Estados<br />
Unidos, da Alemanha e do Japão. Que coisa maravilhosa, não? Haver atingido esse<br />
padrão significa que os chineses consumirão, individualmente, tanta energia quanto<br />
consomem os habitantes dos países desenvolvidos. Um bilhão e meio de chineses!<br />
E aí a crise se anuncia: o petróleo não vai chegar para todos. A luta pelo petróleo<br />
não será resolvida por meios pacíficos. E com a queima de tanto combustível a<br />
temperatura do planeta se elevará. O derretimento das calotas polares já em<br />
andamento será acelerado. O nível dos oceanos subirá. E haverá uma série de<br />
consequências ecológicas, impossíveis de se prever. Esse é o preço do progresso.<br />
Os dinossauros, que consumiam energia demais, morreram. As lagartixas, que<br />
consumiam uma quantidade ínfima de energia, continuam vivas...<br />
No espírito de Jonathan Swift<br />
... atrevo-me a apresentar uma pequena proposta para se resolver o problema<br />
político do Brasil. O problema que mais ofende é a corrupção. Fiquei assombrado<br />
quando um deputado mostrou na televisão as pilhas de documentos que deveriam<br />
ser analisados pela CPI de que faz parte. Uma tonelada... Pensei: quanto tempo vai<br />
demorar? Ler tudo aquilo para se chegar a uma conclusão? O Brasil não pode<br />
esperar. Lembrei-me então das Viagens de Gulliver. Um dos países por ele visitado<br />
era notável por suas universidades e instituições de pesquisa científica. Lagado era<br />
o nome desse país erudito. Pois o Departamento de Política de uma das suas<br />
universidades estava trabalhando num projeto revolucionário, a pedido do governo.<br />
O rei estava preocupado com a possibilidade de sedição entre os parlamentares,<br />
talvez até mesmo um complô para matar o rei. Como descobrir esses inimigos da<br />
ordem pública? Responderam os cientistas: “É fácil, Majestade. Basta que se<br />
façam, periodicamente, análises das fezes daqueles sobre quem caem as suspeitas.<br />
Porque as intenções da alma se acham reveladas nos excelentíssimos cocôs. É no<br />
cocô que se encontra a somatização da sedição”. O rei ficou encantado com<br />
sugestão tão científica e à pesquisa concederam-se fundos generosos e sem limites<br />
que foram a felicidade dos pesquisadores. Acontece, entretanto, que os resultados<br />
da pesquisa foram negativos. Não porque a teoria estivesse errada, mas porque os<br />
cientistas se enganaram num ponto: a sedição não é somatizada no cocô, ela é<br />
somatizada na bílis verde. O que é somatizado no cocô é a corrupção. Isso só ficou<br />
claro através da sagacidade analítica de Freud, que demonstrou que,<br />
simbolicamente, cocô = dinheiro. Assim, chega-se ao caráter de uma pessoa<br />
através da análise do cocô e dos seus hábitos escatológicos. Em primeiro lugar,
analisa-se o cocô em si mesmo: consistência, cor, cheiro, volume. A seguir,<br />
analisam-se os hábitos da pessoa em questão, tais como posição, expressões<br />
fisionômicas, frequência, se lê ou não jornais enquanto obra. Essa análise permite<br />
ao médico concluir se os cocôs em questão saem de um corrupto ou não. Um<br />
procedimento semelhante a esse, aplicado aos nossos congressistas, evitaria a<br />
chateação e a demora das intermináveis sessões de interrogatório e de pilhas de<br />
documentos a serem lidos. As televisões anunciariam simplesmente: “O<br />
Departamento de Escatologia Política, havendo analisado as fezes do<br />
excelentíssimo (nome da pessoa), chegou à seguinte conclusão (segue-se a<br />
conclusão)”. Tomar-se-iam então as providências legais cabíveis cientificamente<br />
justificadas. Mas não basta que os representantes do povo sejam honestos. O<br />
mundo está cheio de pessoas honestas e burras. Um deputado burro é uma<br />
vergonha nacional. Com base nessa constatação, apresento minha segunda<br />
proposta: todos os candidatos a representantes do povo, em todas as suas esferas,<br />
deverão passar por um exame vestibular antes de ser aceitos como candidatos.<br />
Ouvi dizer que há cidades cujos prefeitos têm dificuldade em assinar o próprio<br />
nome. Claro que isso deve ser intriga da oposição. Mas, da mesma forma que os<br />
produtos mais simples só podem ser oferecidos ao público depois de passados pelo<br />
controle de qualidade, julgamos que a mesma norma deve se aplicar aos<br />
candidatos a vereadores, deputados, senadores, prefeitos, governadores,<br />
presidente. O exame seria muito simples, em nada parecido com os vestibulares.<br />
Não haveria questões sobre logaritmos neperianos, nem sobre a tabela periódica,<br />
nem sobre escolas literárias. Seriam questões tiradas do cotidiano da vida de um<br />
excelentíssimo. Por exemplo: a) “Justifique filosófica e praticamente a<br />
obrigatoriedade do uso da gravata nos espaços do Congresso”. Faço essa pergunta<br />
em parte movido pela curiosidade, porque não sei para que serve a gravata. Teria<br />
sido, nas suas origens, um guardanapo que se amarrava ao pescoço? Não posso<br />
admitir que um deputado ou senador faça alguma coisa sem saber por quê. b)<br />
“Justifique psicologicamente o uso obrigatório de ‘Vossa Excelência’ nos<br />
tratamentos nas sessões do Congresso.” Esse tratamento significa que aquele que<br />
está falando realmente acredita que o seu interlocutor é excelente? Tem de<br />
acreditar. Caso contrário, ele estaria mentindo, o que é imperdoável num<br />
representante do povo. De quais critérios se vale para determinar a excelência?<br />
Dada a suspeita de que há muitos corruptos no Congresso, não seria prudente<br />
suspender por um período de tempo esse tratamento? E isso porque um corrupto<br />
poderia alegar inocência afirmando, com razão, que todos o trataram por “Vossa<br />
Excelência” nos interrogatórios. Se ele é excelente, como poderia ser corrupto?<br />
Excelente é o superlativo de bom. Se, em vez de excelente, um congressista fosse<br />
tratado por “bom”, isso seria uma quebra do decoro parlamentar por parte daquele
que assim o tratou? c) Sobre o português: Completem os espaços vazios com “eu”<br />
ou “mim”: 1. “É necessário mais tempo para ......... terminar o relatório. 2. Os meus<br />
eleitores estão pedindo para ......... apoiar este projeto. d) Conhecimentos gerais:<br />
“Para que serve o dedo indicador do urologista?”. Houve um deputado que ignorava<br />
para que serve o dedo indicador do urologista. Por não saber para que serve o<br />
dedo indicador do urologista, esse deputado subiu à tribuna para acusar o seu<br />
urologista de haver desrespeitado o seu cu. Perdoem-me os meus leitores pelo uso<br />
dessa palavra de duas letras tão chula. Mas o que é isso comparado àquilo que os<br />
corruptos estão fazendo enquanto dizem “Vossa Excelência”? Valho-me do<br />
antecedente da Adélia Prado, que escreveu um texto inteiro sobre tal orifício. E<br />
também do Manoel de Barros, que mencionou o referido de uma formiga.<br />
Pornográfico mesmo foi o deputado que, ignorando para que serve o dedo do<br />
urologista, levou o seu excelentíssimo orifício anal para a tribuna. Isso teve<br />
repercussões internacionais e os portugueses morreram de rir dos brasileiros. No<br />
Brasil, rimos das piadas inventadas sobre os portugueses. Em Portugal, eles se<br />
riem da realidade dos políticos brasileiros.<br />
Riso<br />
“Eu poderia crer somente num deus que dançasse. E quando vi o meu demônio eu<br />
o encontrei sério, rigoroso, profundo e solene: era o espírito da gravidade – por ele<br />
todas as coisas afundam. Não se mata por meio do ódio. Mata-se por meio do riso.<br />
Venham, vamos matar o espírito da gravidade!” (Nietzsche)<br />
Sobre a democracia<br />
Para que uma organização democrática exista é preciso que haja equilíbrio de<br />
poder entre os seus membros. Uma organização democrática entre lobos e<br />
cordeiros jamais poderia existir, ainda que os cordeiros fossem em número maior<br />
que os lobos, sempre ganhassem as votações e estivessem sempre com a razão. É<br />
hora de recontar a fábula do lobo e do cordeiro, porque ela nos ajuda a<br />
compreender o momento. “Estavam o lobo e o cordeiro a beber num riachinho,<br />
quando o lobo assim falou ao cordeiro: ‘Por que sujas a água que estou bebendo?’.<br />
Retrucou o cordeiro: ‘Como posso eu sujar a água que o senhor está bebendo se<br />
sou eu que estou abaixo na correnteza? A água passa primeiro pelo senhor e só<br />
depois chega a mim...’. O lobo não se alterou com as evidências. ‘Sim, de fato. Mas<br />
você sujou a minha água no ano passado’, disse o lobo. Respondeu o cordeiro: ‘Isso<br />
não pode ser, senhor lobo, pois tenho apenas seis meses. Não havia ainda nascido<br />
no ano passado’. O lobo arreganhou os dentes e gritou: ‘Se não foi você foi o seu
pai’. E devorou o cordeiro...” Uma sociedade democrática entre os lobos é possível<br />
porque existe equilíbrio de poder entre os lobos. Uma sociedade democrática entre<br />
cordeiros é possível porque existe equilíbrio de poder entre os cordeiros. Mas não é<br />
possível uma sociedade democrática onde haja lobos e cordeiros. Os lobos sempre<br />
devorarão os cordeiros...<br />
Loucura<br />
“A loucura é rara em indivíduos – mas em grupos, partidos, nações e eras ela é a<br />
regra.” (Nietzsche)<br />
Povo<br />
Nunca fui capaz de gritar, em comícios, “o povo unido jamais será vencido”.<br />
Primeiro, porque não sei o que é povo. Segundo, porque tenho medo de que o povo<br />
vença. É o povo que escolhe, como seus líderes, de forma democrática, os<br />
bandidos, criminosos e corruptos. E que não me digam que o faz por ignorância. O<br />
povo se vende fácil. E, terceiro, porque não é verdade que “o povo unido jamais<br />
será vencido”. Assisti pela TV a uma entrevista com Esquivel, prêmio Nobel da Paz.<br />
E seguidamente, ao ser perguntado sobre que tática adotar diante dos absurdos<br />
dos governos, ele respondia: “Que el pueblo le diga no”. Aí fiquei a perguntar: Que<br />
povo? Onde ele se encontra? Dizer não de que forma? Lembrei-me de um encontro<br />
acidental que tive com meu amigo Paulo Wright, morto pelos militares. Eu passava<br />
pela praça da República, em São Paulo, e ouvi alguém que me chamava: “<strong>Rubem</strong>,<br />
<strong>Rubem</strong>...”. Era ele. Estava na clandestinidade. A sorte dos clandestinos já estava<br />
selada. A ditadura havia triunfado. Era só uma questão de tempo... Mas ele se<br />
segurava numa esperança absurda: “O povo vai se levantar...”. Mas o povo tem<br />
medo. Ele só fica valente em grandes demonstrações. O povo não se levantou. Ele<br />
foi morto.<br />
Micuins<br />
Estou com o corpo cheio de pequenas feridinhas, pontos vermelhos. Nada grave.<br />
Marcas de micuins. Micuins são carrapatos tão pequenos que são praticamente<br />
invisíveis. Numa caminhada pelos campos de Pocinhos devo ter esbarrado num<br />
cacho dos ditos. Eles se espalham invisivelmente e a gente só os sente depois que<br />
se agarram à pele. A coceira é infernal. Meu primeiro contato com os micuins<br />
aconteceu quando eu tinha lá meus catorze anos. Estava passando férias numa<br />
fazenda, no estado do Rio. Caminhei por um pasto e quando voltei os micuins,
centenas deles, cobriam o meu corpo. Quando o carrapato é grande, é fácil acabar<br />
com ele. Ele se agarra à pele, engorda, fica visível, perde a mobilidade. A gente o<br />
agarra, puxa e joga dentro da privada, se tiver nojo de espremer com a unha. Pode<br />
também queimar com um fósforo aceso. Eu corri para o banheiro. Tirei a roupa.<br />
Tomei banho. Esfreguei-me com bucha. Esfreguei-me com álcool. Mas havia um<br />
problema: como me livrar dos micuins que infestavam minha roupa ? Catá-los, um<br />
a um? Impossível. O enorme fogão de ferro, fogaréu aceso, deu-me uma ideia.<br />
Resolvi dar aos micuins o tratamento que a pia Inquisição espanhola dava aos<br />
judeus: pus minha roupa no forno do fogão de lenha. Mas me esqueci. O alarme foi<br />
dado quando a cozinha se encheu da fumaça que saía do forno. Meu tratamento<br />
fora eficaz. Os micuins estavam reduzidos a carvão. Mas minha roupa também.<br />
Xadrez e política<br />
Existe uma grave falha na minha formação: não aprendi a jogar xadrez, talvez o<br />
jogo mais fascinante jamais inventado. Claro, conheço as peças e sei movê-las.<br />
Mas, no xadrez, sou como o homem descrito por Sacks: não consigo perceber o<br />
“rosto” do jogo. Não me dediquei à aprendizagem da totalidade. E, na guerra,<br />
quem não tem a visão do todo, perde. Eu perco sempre e rápido. Xadrez é um jogo<br />
de guerra. Ou de política. Porque política e guerra são a mesma coisa. A guerra é a<br />
política quando feita com o uso das armas. Claro que na política se faz uso de<br />
armas também. Mas esse uso é dissimulado. Xadrez: dois exércitos que se<br />
defrontam. O confronto só é possível porque há um espaço vazio. Se não houvesse<br />
esse espaço, as peças ficariam imóveis, sem sair do lugar. O objetivo é mover as<br />
peças de tal forma que, ao final, o rei adversário fique sem saída e abdique. O que<br />
se chama xeque-mate. No tabuleiro estão presentes as forças, cada uma delas com<br />
um potencial de fogo diferente. Os bispos se movendo sempre na diagonal. O<br />
cavalos se movendo aos saltos. As torres, nas horizontais e nas perpendiculares. Os<br />
peões, infantaria, andam na frente, um passo de cada vez. Serão as primeiras<br />
vítimas na batalha. E a rainha, poder supremo, que desliza nas horizontais, nas<br />
verticais e nas diagonais! Com certeza, o inventor do jogo morava num país em<br />
que quem mandava era a rainha, o rei sendo nada mais que um fantoche, um<br />
símbolo, uma simples bandeira, com pouquíssimo poder de ataque, e que fica o<br />
tempo todo se escondendo por saber que o exército inimigo está atrás dele. Há<br />
muitos estilos diferentes no jogo. Mas, qualquer que seja o estilo, uma coisa é<br />
certa: as regras são fixas. Os jogadores têm liberdade para escolher o estilo, mas<br />
não têm liberdade para escolher as regras. Não é possível jogar o jogo do poder<br />
com ética. Porque o poder não conhece limites. É insaciável. Quer crescer cada vez<br />
mais. Deseja ser absoluto. E a ética é um empecilho a essa pretensão. Não existe
lugar para ética no tabuleiro. Há uma única pergunta: “Que movimento fazer para<br />
derrotar o adversário?”. Isso é verdadeiro para o jogo de xadrez, o jogo econômico<br />
e o jogo político. Maquiavel, Marx e Weber sabiam disso. A ética é sempre invocada<br />
pelos que estão perdendo. Não conheço caso de partido no poder que tenha<br />
invocado princípios éticos para colocar limites ao uso de seu poder. Transparência!<br />
Que lindo princípio ético! Somente um louco seria transparente! Ser transparente é<br />
ser vulnerável. E quem é vulnerável fica fraco. Maquiavel, nos seus conselhos ao<br />
príncipe, faz a seguinte pergunta: “O que é mais importante? Que o príncipe seja<br />
virtuoso ou que o príncipe pareça ser virtuoso?”. A ética responderia: “Que ele seja<br />
virtuoso, transparentemente virtuoso!”. A esperteza política responde: “Que ele<br />
pareça ser virtuoso. O que o príncipe é, na realidade, deve ser protegido dos olhos<br />
por uma cortina opaca”. O jogo de xadrez pode muito bem nos ajudar a entender o<br />
nosso momento político. Tudo se faz para “parecer ser” e tudo se faz para evitar a<br />
transparência. Compreende-se o esforço do governo para preservar a “rainha”.<br />
Afinal de contas, é a peça mais importante para proteger o “rei”... É preciso<br />
entender: ninguém é culpado. Os jogadores não têm alternativas. Eles têm de se<br />
submeter às regras. Assim é a política, sempre.<br />
Chapeuzinho Vermelho<br />
A estória de Chapeuzinho Vermelho nos ensina preciosas lições políticas.<br />
Caminhando pela floresta, Chapeuzinho, tão bobinha, acredita na fala do lobo,<br />
escondido no meio das árvores. Assim é o povão: acredita em qualquer coisa. Se<br />
duvidam, sugiro que gastem um pouco do seu tempo olhando os programas<br />
religiosos na televisão. Esses programas poderiam ser usados para avaliar o grau<br />
de inteligência e educação da população. É assombroso aquilo em que se pode<br />
acreditar! Acredita-se em tudo, desde que um milagre seja prometido. Muito mais<br />
espertos que o lobo de antigamente, os lobos de agora valem-se da mais moderna<br />
tecnologia. Contratam “produtores de imagem”. O que é um “produtor de<br />
imagem”? É um profissional de estética que faz operações plásticas na imagem do<br />
candidato de forma que ele deixe de ser o que era, naturalmente, e fique parecido<br />
com a imagem que o povo deseja. Pois o lobo, já com a vovozinha dentro da<br />
barriga – (Voz gutural: “Que grande goela a minha! Engoli a velha inteirinha!”) –,<br />
“fantasiou-se” de vovozinha. “Toc, toc, toc...”, Chapeuzinho bateu à porta. “Quem<br />
bate sem ordem minha?”, pergunta o lobo com voz grossa. “Sou eu,<br />
Chapeuzinho...” O produtor de imagem que se escondia atrás da cabeceira da cama<br />
lhe disse logo: “Mude a voz, mude a voz...”. E sua voz gutural se transforma na<br />
trêmula voz de uma velhinha indefesa: “Pode entrar, minha netinha”. Chapeuzinho<br />
conhecia a vovó muito bem. Aproxima-se da cama e, pasmem!, não percebe a
diferença. As orelhas, os olhos, o focinho, os dentes, os pelos na pata, o cheiro de<br />
corrupção, tudo dizia: “Fuja! Não é a vovozinha! É o lobo!”. Mas Chapeuzinho era<br />
muito burra, muito burrinha mesmo. Como o povão que vê televisão, ela acreditava<br />
na “imagem”. Na estória, os caçadores salvam a tonta. Mas acho que não merecia<br />
ser salva. O lobo era mais inteligente que ela. A burrice não merece ser salva. Essa<br />
estória dá duas lições negativas às crianças. A primeira é que nem sempre é sábio<br />
fazer o que a mãe manda. Uma mãe que manda uma filha por uma floresta onde<br />
havia um lobo só pode ser louca. Maternidade não é garantia de sanidade. A<br />
segunda é uma lição mentirosa: que não importa ser burro porque os caçadores<br />
aparecem no fim para consertar o estrago. Na vida real o fim é outro. O lobo,<br />
juntamente com os caçadores e os produtores de imagem, comem Chapeuzinho<br />
Vermelho, como atestam esses anos de “democracia” no Brasil.<br />
Se começou errado não tem conserto<br />
O destino da democracia se decide no momento da sua fundação. Se os lobos são<br />
eleitos para estabelecer as regras do jogo, será inútil que as ovelhas que os<br />
elegeram berrem depois ao serem transformadas em churrasco. Pois os lobos, que<br />
elas elegeram como seus representantes para fazer as leis, escreveram como lei:<br />
“É direito dos lobos comer ovelhas”. Não existe caso em que os lobos tenham,<br />
democraticamente, aberto mão dos direitos que eles mesmos estabeleceram. As<br />
ovelhas são as culpadas de sua desgraça. Foram elas que, pelo voto, deram poder<br />
aos lobos.<br />
Apesar de você...<br />
No tempo da ditadura havia mais esperança. Era noite e nós sonhávamos sonhos<br />
lindos. Aí ela se foi e os sonhos não se realizaram. Agora é difícil sonhar.<br />
Insônia<br />
Foi no tempo do terror, a ditadura. Eu não conseguia dormir. O medo era grande.<br />
Amigos já tinham sido mortos. Levantei-me, fui até a janela do prédio e olhei. A<br />
cidade dormia. O silêncio era quebrado apenas pelos apitos dos guardas noturnos,<br />
informando os ladrões da sua aproximação. Olhei para o céu estrelado. Pensei que<br />
ele tinha estado lá por bilhões de anos e continuaria a estar lá daqui a bilhões de<br />
anos. Lembrei-me do que um prisioneiro deixou escrito na cela de um campo de<br />
concentração nazista: “Daqui a cem anos tudo isso terá passado”. Com essas<br />
palavras na cabeça, voltei a dormir.
Fotografias<br />
Aquelas fotos de um homem nu, as mãos escondendo o rosto. Não me importa<br />
quem era. São fotos de um homem, como eu. Eu poderia estar no lugar dele. Nu,<br />
numa cela. Reduzido, pela força, à condição de maior humilhação. Humilhação e<br />
desespero. Ele sabia o fim que o aguardava. Não sairia vivo dali. Sua sentença de<br />
morte já estava lavrada. Mas o horror maior não está na fotografia. Ela se encontra<br />
em algo que não está na fotografia: o olho do fotógrafo. Por que fotografou? Por<br />
prazer? Pode ser que o fotógrafo fosse um colecionador de horrores. Pode ser que o<br />
sofrimento de homens indefesos lhe desse prazer. Ou terá sido para documentar?<br />
Documentar a própria crueldade? Eu não entendo. O fato é que a impunidade – o<br />
fotógrafo julgava que não seria punido – cria condições para que a besta humana<br />
que em nós habita se manifeste. As bestas estão à espreita, prontas a fazer suas<br />
vítimas.
Saúde Mental
Saúde mental<br />
Fui convidado por uma empresa a dar uma palestra sobre saúde mental. Aceitei<br />
sem pensar muito. Sou psicanalista e devo saber o que é saúde mental. Quando a<br />
data se aproximava, pus-me a pensar e descobri que eu não sabia o que era saúde<br />
mental. Para uma empresa, quando é que um funcionário tem saúde mental? Ele<br />
tem saúde mental quando os seus pensamentos e emoções não interferem no seu<br />
desempenho na empresa: não falta, produz, tem boas relações. A empresa usa<br />
para avaliar o seu funcionário os mesmos critérios de avaliação da “saúde” de uma<br />
peça de uma máquina. Peça boa é aquela que não exige reparos e funciona<br />
sempre. Para que isso aconteça é preciso que a peça esteja totalmente ajustada à<br />
“ideia” da máquina. Assim, um funcionário com saúde mental é aquele cuja alma<br />
está ajustada à alma da empresa. Ajustamento produz contentamento. Aí comecei<br />
a pensar nos homens que tenho no meu coração. Foram todos desajustados e<br />
infelizes. Van Gogh, Walter Benjamin e Maiakóvski cometeram suicídio. Nietzsche<br />
ficou louco. Fernando Pessoa era dado à bebida. Então, as pessoas que amo não<br />
tinham saúde mental. Não eram ajustadas. Então, por que as amo? Pelas coisas<br />
que elas produziram. As pessoas ajustadas são indispensáveis para fazer as<br />
máquinas funcionar. Mas só as desajustadas pensam outros mundos. A criatividade<br />
vem do desajustamento. Imagine que nossa sociedade é louca. As evidências<br />
dizem que sim. Estar ajustado a essa sociedade é estar ajustado à sua loucura.<br />
Então, há um tipo de “saúde mental” que é uma manifestação de loucura. Mas<br />
aqueles que são lúcidos, que percebem a loucura da sociedade e sofrem com ela,<br />
desajustados, são os que verdadeiramente têm saúde mental.<br />
Ora o Sol, ora a Lua<br />
Freud, se fosse poeta, em vez de falar em consciente e inconsciente, teria dito:<br />
Nós, como a Terra, somos iluminados ora pelo Sol, ora pela Lua. Os pensamentos e<br />
sentimentos que temos quando iluminados pela luz do Sol não são os mesmos<br />
sentimentos e pensamentos que temos quando iluminados pela Lua. Sol: o mundo<br />
brilha e somos inundados por suas cores e formas. Lua: luz suave, cheia de<br />
sombras e indefinições. Sob a luz do Sol nós trabalhamos. Sob a luz da Lua nós<br />
amamos.<br />
Problema<br />
Quando se tem um problema a ser resolvido tem-se um problema a ser resolvido.<br />
Quando ao problema a ser resolvido se acrescentam lamúrias e lamentações, temse<br />
dois...
Aos terapeutas<br />
Albert Camus escreveu no seu diário um pensamento que julgo ser merecedor da<br />
cuidadosa meditação dos terapeutas, especialmente psicanalistas: “Por uma<br />
psicologia generosa: Ajudamos mais uma pessoa dando dela própria uma imagem<br />
favorável do que apontando constantemente os seus defeitos”.<br />
Exílio<br />
Por que se gosta de um autor? Gosta-se de um autor quando, ao lê-lo, tem-se a<br />
experiência de comunhão. Arte é isso: comunicar aos outros nossa identidade<br />
íntima com eles. Ao lê-lo eu me leio, melhor me entendo. Somos do mesmo<br />
sangue, companheiros no mesmo mundo. Não importa que o autor já tenha<br />
morrido há séculos... Inversamente, quando não gosto de um autor, é porque não<br />
há comunhão. É como se ele fosse uma comida estranha que causa repulsa. Essa é<br />
a razão por que gosto tanto de Nietzsche. Foi amor à primeira vista. O que ele diz<br />
ilumina o meu ser. E há nele um sentimento doloroso: o sentimento de exílio. “Em<br />
cada chegada eu sou uma partida”, ele disse. É comum entre os escritores esse<br />
sentimento de estranheza no mundo. Drummond via isso na Cecília e dizia que<br />
esse era um dos seus traços marcantes. Sinto o mesmo. Se os que creem na<br />
reencarnação estão certos, então está tudo explicado. Nasci neste tempo, mas<br />
minha alma ficou num lugar do passado que eu muito amei.<br />
O universo é música<br />
Eu ia guiando o meu carro pelos caminhos de Minas Gerais enquanto ouvia o<br />
Messias, de Haendel. Percebi então, repentinamente (as revelações sempre<br />
acontecem de repente), as razões por que amo tanto aqueles lugares. É que lá eu<br />
retorno, ainda que por um curto espaço de tempo, ao mundo barroco, e<br />
experimento a felicidade da alienação... Tudo é harmonia. Os beija-flores flutuam.<br />
No campo verde, as vacas pastam tranquilamente. Ao lado direito, o rio escorre<br />
entre as pedras. O vento balança as árvores. As flores florescem como sempre<br />
floresceram. No céu azul, as nuvens navegam sem saber para onde vão. “As<br />
nuvens são dos rios seus claros pensamentos que um dia serão rios...”, assim viu o<br />
Heládio Brito. Será que as flores são os pensamentos da terra? Tudo gira, tudo<br />
volta ao início. O belo quer voltar, repetir-se, eternamente. Todos os seres são<br />
belos. Cada um deles é uma nota no coral de Bach que o universo entoa. Todos os<br />
seres são o que deviam ser. O universo é uma catedral. O céu é uma abóbada
esférica onde o Sol, a Lua e as estrelas giram seu giro eterno à nossa volta. Do<br />
céu, Deus, que tudo vê, garante que as coisas serão sempre assim. Ah! Giordano<br />
Bruno! Você quis destruir esse mundo esférico dizendo que o universo era infinito...<br />
Mas o infinito é aquilo que não tem forma. Não tendo forma, não pode ser belo!<br />
Você não compreendeu que, ao afirmar que o universo era infinito, estava<br />
roubando dos homens a sua perfeição estética? Ouço Haendel. O universo é<br />
música.<br />
Fala<br />
Kierkegaard, filósofo dinamarquês, o primeiro que li, observou que toda fala<br />
contém duas coisas. Primeiro, aquilo que se diz, a mensagem que devo comunicar.<br />
Segundo, uma música, um jeito de falar, andamento, os pianíssimos, os<br />
fortíssimos. Para ele, é na música da fala que nós moramos, é ali que se encontra a<br />
nossa alma. Uma mesma mensagem pode ser dita ao som dos tambores ou do<br />
oboé. Lendo Kierkegaard aprendi isso intelectualmente. Na minha prática de<br />
psicanalista aprendi isso existencialmente. Eu tinha uma paciente que falava num<br />
dia em tom maior, no outro, em tom menor. Só de ouvir a música da sua fala, sem<br />
prestar atenção naquilo que ela estava dizendo, eu sabia como estava a sua alma.<br />
(É importante que um terapeuta não preste muita atenção naquilo que o seu<br />
cliente diz, a fim de ouvir aquilo que ele não diz...) Moramos na música das<br />
palavras. Somos amados não pelo que dizemos, mas pela música com que o<br />
dizemos. Preste atenção na sua música. Se a sua música não tiver pausas mansas,<br />
isso é sinal de que você é um chato que não deixa o outro falar nem ouve o que ele<br />
tem para dizer. Deveria haver uma terapia que ajudasse as pessoas a mudar a<br />
música de sua fala. Se conseguir mudar a música da sua fala, você ficará diferente.<br />
Isso é especialmente importante para os professores, para os pais, para os<br />
amantes... Só por curiosidade, ligue a sua televisão num programa em que algum<br />
deputado esteja discursando. Como eles gritam e sacodem o dedo! São tão<br />
eloquentes... Quando você for procurar um candidato a qualquer cargo eletivo, não<br />
preste atenção no que ele diz, porque todos eles dizem a mesma coisa. Pres te<br />
atenção na música da sua fala...<br />
Solidão fundamental<br />
Respeito as descobertas provisórias da ciência médica. Sem elas, eu já estaria<br />
morto. Mas não desprezo intuições de outras tradições que nos ajudam a<br />
compreender o mistério humano. Porque nós, humanos, não somos apenas<br />
matéria. Somos poesia. A poesia nos move. Se você duvida, é porque nunca amou.
O corpo humano é tocado (no mesmo sentido em que um violino é tocado, um<br />
piano é tocado: o corpo é um instrumento musical...) por coisas que não existem.<br />
Manoel de Barros diz algo mais ou menos assim: “Tem mais presença em mim o<br />
que me falta...”. Pois um médico amigo que combina razão e coração, ciência e<br />
poesia, Ocidente e Oriente, comentou que é possível que a psicologia das<br />
mulheres, tão mais sensíveis à solidão que os homens, se deva ao destino triste ou<br />
alegre do óvulo: arrancado do seu ninho, é empurrado por um canal apertado que<br />
o leva a um vazio... E não lhe resta nada mais que a solidão da espera. Foi um<br />
óvulo neste estado de espera angustiosa que disse pela primeira vez: “To be or not<br />
to be, that is the question!”. O óvulo, produto das mulheres, tem sua origem na<br />
solidão. Já os espermatozoides têm suas origens na maratona, milhões de<br />
espermatozoides sendo lançados no mundo ao mesmo tempo (acho que Heidegger<br />
gostaria da metáfora...). São corredores, muitos, e é preciso chegar primeiro... O<br />
prêmio para o segundo colocado é a morte. Não seria por acaso que os homens<br />
gostam tanto de futebol, metáfora do grande evento inicial, todos os jogadores<br />
lutando por uma bola! Os espermatozoides também querem fazer gol. Só um<br />
consegue...<br />
Sobre o estresse<br />
Estresse é uma palavra usada na física dos materiais. Ela tem a ver com o<br />
comportamento dos materiais submetidos à pressão, à distensão, à torção.<br />
Aplicada a nós, a palavra estresse revela a nossa condição de seres submetidos às<br />
pressões, distensões e torções que as 10.000 coisas nos impõem. Inúteis são as<br />
técnicas de relaxamento. Alívio provisório – como os descansos entre duas sessões<br />
de tortura. As 10.000 coisas voltam sempre... Só existe uma solução: libertar-nos<br />
do domínio das 10.000 coisas... Mas isso é difícil, porque elas nos fazem promessas<br />
de prazeres no futuro. “Tudo isso te darei...” Somente nos libertamos do estresse<br />
quando compreendemos que ele é um sintoma do domínio da morte sobre a nossa<br />
vida. A consciência da morte nos faz abrir os olhos. E aí, então, estamos em<br />
condições de olhar para dentro, à procura do desejo mais profundo que as 10.000<br />
coisas enterraram. “O que é que, se eu tivesse, me daria alegria?” Essa é uma<br />
pergunta que toda pessoa deveria se fazer diariamente.<br />
Depressão<br />
Não existe remédio melhor para a depressão do que uma cólica renal. A dor é tanta<br />
que enche os espaços mentais, não sobrando tempo para pensamentos tristes.<br />
Uma terapia alternativa é encher-se com os sentimentos tristes dos outros. Assim
não sobra espaço para os nossos próprios pensamentos tristes.<br />
Patologia<br />
Quem conta é Oliver Sacks, um famoso neurologista. Aconselharia a todos que<br />
lessem os seus livros. São fascinantes porque nos fazem entrar no mundo bizarro<br />
da alma humana. Pois ele foi procurado por um homem que a ele veio contra a<br />
vontade, empurrado por amigos, para lidar com algo estranho em sua forma de ver<br />
as coisas. Sacks relata a primeira entrevista, ele e o homem conversando de<br />
maneira normal, sem que fosse possível notar qualquer coisa que sugerisse alguma<br />
perturbação mental. Mas Sacks ficou intrigado com um sentimento estranho: ele<br />
tinha a impressão de que aquele homem que o encarava de frente não o estava<br />
vendo. Tinha os olhos perfeitos, via tudo, mas não via... Até que ele, Sacks, atinou<br />
com o mistério dos seus olhos: eles viam as partes perfeitamente bem, mas não<br />
eram capazes de juntar as partes num todo significativo. Via as orelhas, a boca, o<br />
nariz, os cabelos – mas os via soltos, sem que se encaixassem para formar um<br />
rosto. Sim, os olhos daquele homem não eram capazes de ver um rosto. Diante de<br />
uma fotografia do seu irmão que lhe foi mostrada com a pergunta “Quem é essa<br />
pessoa?”, ele se pôs imediatamente a descrever as partes da imagem com a maior<br />
precisão. A testa larga, os lábios finos, o nariz ligeiramente achatado, o maxilar...<br />
“Esse maxilar, com esse ângulo me faz pensar... Sabe? Meu irmão tem um maxilar<br />
com um ângulo exatamente igual a esse. Será, por acaso, uma foto do meu<br />
irmão?” Ele foi incapaz de reconhecer o rosto do irmão. Chegou ao irmão através<br />
da geometria: a igualdade dos ângulos do maxilar. “O que é isso?”, Sacks lhe<br />
perguntou, mostrando-lhe uma luva. “Bem, trata-se de um saco maior do qual<br />
saem cinco sacos finos e compridos...” Ele descreveu perfeitamente a luva, mas foi<br />
incapaz de reconhecê-la. Seus olhos só percebiam as partes. O interessante das<br />
patologias é que elas frequentemente não passam de traços comuns das pessoas<br />
ditas normais, aumentados por meio de uma lupa. A patologia, assim, serve-nos<br />
como um espelho. As grandes bizarrices da patologia são nossas pequenas<br />
bizarrices vistas através de um zoom... Como é o caso do homem que assistiu a um<br />
concerto e dele o que mais o impressionou foi a calva do clarinetista... Às vezes eu<br />
tenho a impressão de que a especialização científica pode produzir um efeito<br />
semelhante: os cientistas se tornam especialistas nas partes e as conhecem com<br />
grande precisão. Mas ficam perdidos quando se trata de ver o “rosto” da realidade.<br />
Na verdade, nem mesmo reconhecem o seu próprio rosto quando o veem no<br />
espelho. Essas associações foram provocadas por aquele homem desconhecido que<br />
toma a sopa mas só percebe o lascado na beirada do prato...
Religião
Altares<br />
Fui sabatinado por quatro jornalistas da Folha e por aqueles que estavam no<br />
teatro. Dos ouvintes veio-me uma pergunta: “Você acredita em Deus?”. Como a<br />
pergunta era vaga perguntei: “Qual Deus?”. A pessoa não entendeu. Expliquei<br />
então: “Há muitos deuses, cada um com a cara e o coração daquele que o tem<br />
dentro do peito. O Deus de são Francisco não era o Deus de Torquemada. São<br />
Francisco usava o fogo do seu Deus para aquecer a alma. Torquemada usava o<br />
fogo do seu Deus para churrasquear hereges em fogueiras que eram a diversão do<br />
povo”. Como a pessoa não soubesse me esclarecer o assunto, adiantei-me e<br />
confessei. “Não sei se acredito em Deus. Mas sei que sou um construtor de<br />
altares”. Construo os meus altares com poesia e música. Os altares têm de ser<br />
belos. Eu os construo diante de um abismo profundo, escuro e silencioso. Os fogos<br />
que neles acendo iluminam o meu rosto e me aquecem. Mas o abismo continua o<br />
mesmo: escuro, frio, silencioso.<br />
Templos<br />
“O que existe de mais sagrado num templo é o fato de ser o lugar aonde se vai<br />
chorar em comum. Um Miserere cantado em coro por uma multidão açoitada pelo<br />
destino vale tanto quanto uma filosofia.” (Unamuno) Nós, povo do Brasil, somos<br />
nesse momento uma multidão açoitada pelo destino.<br />
Deus<br />
Aviso aos meus leitores: quando escrevo “Deus”, não estou me referindo ao<br />
“Grande Mistério”. Estou me referindo à palavra “Deus” tal como é usada pela<br />
teologia e pelos religiosos. Assim, se algumas vezes a minha escrita parece<br />
blasfema, ofensa à divindade, lembre-se que é à linguagem religiosa que estou me<br />
referindo.<br />
Mozart<br />
O teólogo protestante Karl Barth brincava dizendo que os anjos, quando estavam<br />
diante de Deus, tocavam Bach. Mas, em suas reuniões particulares, tocavam<br />
Mozart. E eu acrescento: E Deus escutava atrás da porta.<br />
Os cegos<br />
Viviam, num país do Oriente, cinco cegos que mendigavam juntos à beira de um
caminho. Eram amigos em virtude de seu infortúnio comum. Todos tinham um<br />
grande desejo. Já haviam ouvido falar de um animal extraordinário, enorme,<br />
chamado elefante. Tão maravilhoso era o dito animal que muitos afirmavam que<br />
era divino. Mas eles, pobres cegos, nunca haviam estado com um elefante. Ah!<br />
Como gostariam de conhecer um elefante. Aconteceu, porque Alá ouviu suas<br />
preces, que um domador de elefantes foi por aquele caminho conduzindo seu<br />
animal. Foi uma festa! A criançada gritando, homens e mulheres falando. Ouvindo<br />
tal rebuliço, os cegos perguntaram: “O que está acontecendo?”. “Um elefante, um<br />
elefante”, responderam. Eles se encheram de alegria e pediram ao domador que os<br />
deixasse tocar o elefante, já que ver não podiam. O domador parou o animal e os<br />
cegos se aproximaram. Um deles foi pela traseira, agarrou o rabo do elefante e<br />
ficou encantado. O segundo foi pelo lado, abraçou uma perna e ficou encantado. O<br />
terceiro apalpou o lado do elefante e ficou encantado. O quarto passou as mãos<br />
nas orelhas do elefante e ficou encantado. E o último segurou a tromba e ficou<br />
encantado. Ido o elefante, os cegos começaram a conversar. “Quem diria que o<br />
elefante é como uma corda!”, disse o primeiro. “Corda coisa nenhuma”, disse o<br />
segundo: “É como uma palmeira”. “Vocês estão loucos”, disse o terceiro. “O<br />
elefante é como um muro muito alto.” “Vocês não são só cegos dos olhos”, disse o<br />
quarto. “São também cegos da cabeça, pois é claro que o elefante é como uma<br />
ventarola.” “Doidos, doidos”, disse o quinto. “O elefante é como uma cobra<br />
enorme...” Por mais que conversassem, eles não conseguiram chegar a um acordo.<br />
Começaram a brigar. Separaram-se. E cada um deles formou uma seita religiosa<br />
diferente: a seita do deus corda, a seita do deus palmeira, a seita do deus parede,<br />
a seita do deus ventarola, a seita do deus cobra... Assim são as religiões.<br />
Ser mais religiosos que Deus<br />
Dietrich Bonhoeffer foi um teólogo protestante que, por ter participado num complô<br />
para assassinar Hitler, foi preso num campo de concentração e enforcado. As cartas<br />
que escreveu da prisão são um monumento de simplicidade e clarividência<br />
teológicas. Numa delas, datada de dezembro de 1943, ele diz o seguinte: “Estou<br />
certo de que devemos amar a Deus nas nossas vidas e nas bênçãos que ele nos<br />
envia. Falando francamente, ansiar pelo transcendente quando se está nos braços<br />
da pessoa amada é, para colocá-lo de forma delicada, uma falta de gosto e isso<br />
não é, certamente, aquilo que Deus espera de nós. Devemos encontrar Deus e<br />
amá-lo nas bênçãos que ele nos envia. Se ele tem prazer em nos dar uma<br />
maravilhosa felicidade terrena, não devemos ser mais religiosos que o próprio<br />
Deus”. Isso é tão óbvio! Quando dou um presente para uma de minhas netas, o<br />
que desejo é ver o seu rosto de felicidade ao ver o presente. Ficarei frustrado se
ela, ignorando o presente, ficar me olhando e dizendo: “Como você é bom, como<br />
você é bom”. Eu não quero que ela diga que eu sou bom. Quero mesmo é que ela<br />
brinque com o presente. A propósito da falta de gosto em se ansiar pelo<br />
transcendente quando se está nos braços da pessoa amada, lembrei-me de que<br />
num desses cursos religiosos de preparação para o casamento aconselhava-se os<br />
noivos a sempre rezar um “padre-nosso” antes de transar. As pessoas que falam<br />
sobre Deus o tempo todo são como as crianças que não brincam com o brinquedo e<br />
ficam bajulando o avô...<br />
Alegria na tristeza<br />
“O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no<br />
meio da alegria, e inda mais alegre no meio da tristeza! Só assim, de repente, na<br />
horinha em que se quer, de propósito – por coragem.” (Guimarães Rosa)<br />
Igreja do Cuspe de Cristo<br />
Os seres humanos me assombram. Andando pela feirinha de artesanato fico a<br />
pensar: como é que eles inventam tantas coisas? Mas o que me assombra mais não<br />
são as coisas que os seres humanos fazem. São os pensamentos que eles pensam.<br />
Um amigo, estudioso do crescimento numérico e multiplicação qualitativa das<br />
seitas evangélicas, disse-me haver uma Igreja do Cuspe de Cristo. Achei que ele<br />
estivesse fazendo broma, gozação com a minha cara. Mas ele, sério, jurou que era<br />
verdade. Aí me pus a pensar. Está certo. Pois não existem seitas e ordens do<br />
sangue de Cristo? O sangue de Cristo é sagrado por ser o sangue do Filho de Deus.<br />
Tudo aquilo que sai do Filho de Deus tem de ser divino. Porque, se houver algo que<br />
não é divino nele, a sua divindade está maculada. Agora, o cuspe... O evangelho<br />
nos relata que um cego procurou N. S. Jesus Cristo pedindo para ser curado. Jesus<br />
cuspiu na terra, fez um barrinho, passou nos olhos do cego e mandou que ele fosse<br />
se lavar no tanque de Siloé – se a minha memória não falha. Pois dito e feito: o<br />
cego ficou curado. Então o cuspe de Cristo é tão sagrado quanto o seu sangue. É<br />
divino. Daí a propriedade do nome da Igreja do Cuspe de Cristo. Eu não me<br />
espantaria se houvesse outros desdobramentos dessa tendência.<br />
Teologia popular<br />
Ainda falando sobre a imaginação teológica do povo, encantou-me um adesivo<br />
colado num carro: “Deus é joia. O resto é bijoteria (sic!)”. Por mais que eu me<br />
esforçasse, nunca me ocorreria uma afirmação teológica semelhante.
Sacramentos<br />
Sociedades se constroem quando os homens concordam sobre coisas grandes. A<br />
amizade acontece quando os homens concordam sobre coisas pequenas. <strong>Faz</strong><br />
tempo escrevi um artigo longo sobre um tema que esqueci. O dito artigo levou um<br />
dos meus leitores do sul de Minas a escrever-me uma carta. Escreveu-me não para<br />
comentar o artigo – irrelevante –, mas para dizer que ficara comovido porque, num<br />
certo lugar, eu falara sobre “o cheiro bom do capim-gordura”. A partir dessa<br />
imagem, a um tempo visual e nasal – pois havia a visão do campo de capimgordura<br />
e o cheiro do capim-gordura –, ele se pôs a descrever sua experiência<br />
diária: passava, de manhãzinha, sol ainda não nascido, por um campo coberto de<br />
capim-gordura. “O silêncio verde dos campos...” E havia a névoa misteriosa que<br />
tudo envolvia. De vez em quando, o barulhinho de algum regato que corria<br />
invisível, coberto pela vegetação. E, saindo dele, como se fosse sua respiração, seu<br />
mais profundo segredo, o perfume. Mistério. Mistério, essa palavra misteriosa. Em<br />
inglês, a palavra mistério se escreve “mystery”. Pois um dia, por inspiração<br />
imediata, passei a escrevê-la de uma forma diferente: misteerie. “Mist” é neblina. E<br />
“eerie” quer dizer assombroso, que provoca medo. Acho que minha grafia,<br />
inspirada na poesia, é melhor que a grafia do dicionário, derivada da etimologia.<br />
Essa é a minha contribuição para a língua inglesa. É isso que se sente de<br />
manhãzinha, sozinho, ao caminhar pelos campos de capim-gordura. Não há igreja,<br />
templo ou santuário que se lhe compare. Essas caixas de tijolo e cimento que os<br />
empresários da religião constroem para engaiolar o sagrado, na maior parte das<br />
vezes provocam-me o sentimento oposto, de horror estético. Deus deve ter muito<br />
mau gosto... Pois é: quando li aquela carta imediatamente me descobri amigo<br />
daquele homem distante. Se não me equivoco, o seu nome era Gerson e vive em<br />
Poços de Caldas. Sempre que vejo capim-gordura me lembro dele. De todo o<br />
palavrório que escrevi naquele artigo, o que sobrou, o que valeu, foi uma imagem<br />
imobilizada num momento eterno: o capim-gordura, com o seu cheiro bom...<br />
O papa reza pela paz<br />
Todo mundo quer a paz. Mas, como muito bem observou santo Agostinho, cada um<br />
deseja a paz que lhe seja conveniente. A paz das galinhas é um mundo sem<br />
gambás. A paz dos gambás é um galinheiro cheio de galinhas. O presidente Bush<br />
quer a paz e, para que a sua paz seja alcançada, é preciso que o Irã seja destruído.<br />
O Irã deseja a paz e, para que a sua paz seja alcançada, é preciso que os Estados<br />
Unidos sejam destruídos. O papa reza pela paz. Não sei por que é necessário orar
pela paz. Jesus disse que, antes que rezemos, Deus já sabe tudo. Qual será o<br />
objetivo de rezar pela paz? Chamar Deus à razão? Ele não está prestando atenção?<br />
Convencê-lo a fazer o milagre da paz? Será que Deus não quer a paz? Ao que tudo<br />
indica, ele não quer. Porque, se quisesse, a paz aconteceria... Ele atenderia às<br />
rezas do seu representante.<br />
Dois amores<br />
No ônibus, as duas mulheres conversavam. Falavam sobre os seus amores. “Eu o<br />
amo pelas coisas bonitas que ele me fala”, disse a primeira. “Na cama, antes de<br />
dormir, ele recita poemas ao meu ouvido. E o mundo fica todo colorido. E quando<br />
ele me toca bem de leve, o meu corpo estremece. Olhando dentro dos seus olhos,<br />
eu me vejo bonita...” A outra mulher diz: “Meu amor é diferente. Eu amo o meu<br />
homem por aquilo que ele me dá. Qualquer coisa que eu peça ele entrega na<br />
minha mão. Às vezes eu penso que ele é como aqueles gênios que moram nas<br />
lâmpadas. É só pedir... Ele é capaz de ir até a Lua para satisfazer um desejo meu”.<br />
Essas duas mulheres exemplificam dois tipos de religião. Há uma religião que se<br />
parece com a música. Ela não atende desejos, mas nos enche de beleza. A outra<br />
religião vive de milagres. Se os milagres não acontecem, o amante é abandonado e<br />
a pessoa sai em busca de outro. É isso que explica um grande número de<br />
conversões.<br />
Santo Expedito<br />
Anote essa data: 19 de abril, dia de santo Expedito. Santo Expedito era militar do<br />
exército romano e foi decapitado na Armênia, no dia 19 de abril de 303. Segundo o<br />
dicionário Houaiss, “expedito” quer dizer “aquele que resolve problemas com<br />
presteza”. Santo Expedito aparece na sua armadura de soldado romano tendo na<br />
mão uma cruz onde está escrito “hoje”, seu pé direito esmagando um corvo<br />
chamado “crás”, deixar para depois. É o santo milagreiro de minha devoção porque<br />
atende ao pedido por um milagre no dia em que foi feito. Sendo assim, não<br />
entendo por que os outros santos milagreiros ainda têm devotos. Prefiro soluções<br />
rápidas. Com tal presteza, é certo que os devotos dos santos vagarosos acabarão<br />
por aderir a santo Expedito. Prova de seu poder me foi relatado por uma senhora<br />
religiosa que tem em sua chácara santuários para vários santos. Seguro morreu de<br />
velho... Disse-me ela que foi procurada por uma amiga que sofria com o marido<br />
que a maltratava. Ela a aconselhou: “Peça a santo Expedito!”. A amiga fez o<br />
aconselhado e o problema foi resolvido definitivamente. Perguntei: “Que aconteceu<br />
com o marido? Converteu-se a uma igreja evangélica? Enfartou? Foi atropelado?”.
Eram as únicas soluções rápidas que me passaram pela cabeça. “Não”, ela<br />
respondeu. “Ele se enforcou...” É isso que me agrada em santo Expedito: ele não<br />
respeita o que dizem os teólogos. Pois os teólogos já disseram que suicídio é<br />
pecado sem perdão. Antigamente suicida nem podia ser enterrado no campo<br />
santo... Graças ao poder do santo Expedito, inaugura-se agora um novo tempo, o<br />
tempo dos suicídios milagrosos.<br />
Evangelho de Judas<br />
Chegou-me a última edição da revista Geographic Magazine, toda ela dedicada ao<br />
Evangelho de Judas, que está produzindo uma grande confusão nos círculos<br />
religiosos. E isso porque esses manuscritos trazem uma versão diferente do que<br />
aconteceu: Judas não foi traidor. Não entendo essa confusão, porque qualquer<br />
pessoa minimamente informada em teologia sabe que Judas não foi um traidor.<br />
Trair é romper um pacto. Mas Judas não rompeu pacto algum. Pelo contrário: fez<br />
cumprir o pacto que lhe havia sido destinado por Deus Pai desde toda eternidade.<br />
Porque Deus, na sua onisciência, estabeleceu um plano de salvação para os<br />
homens que, de outra forma, iriam para o Inferno. Deus poderia perdoar os seus<br />
pecados. Mas Deus não perdoa. Aquilo a que se dá o nome de perdão é, na<br />
realidade, o pagamento de uma dívida pendente. Deus não perdoa dívidas. As<br />
dívidas têm de ser quitadas. Quitadas com quê? Dizem as Escrituras que sem<br />
sangue não há remissão de pecados. Deus só aceita pagamento em sangue. Que<br />
sangue seria suficiente para pagar os pecados do mundo? Somente um sangue de<br />
valor infinito. Mas, sangue de valor infinito, só o sangue divino. Para isso veio Jesus<br />
– segundo a teologia –, para derramar o seu sangue de valor infinito que Deus<br />
aceitaria como pagamento. Deus planeja a morte do seu próprio filho para nos<br />
salvar do Inferno. Por que Deus criou o Inferno, isso eu não sei. Sei que não foi o<br />
Diabo, porque Deus, sendo onipotente, não permitiria que o Diabo tivesse tais<br />
poderes. Então, todo o plano elaborado por Deus Pai desde toda a eternidade<br />
dependia de que Jesus fosse crucificado. Imaginem que ele não fosse crucificado.<br />
Que ele se mudasse para a Grécia e terminasse os seus dias com 88 anos de idade,<br />
como professor de filosofia. A filosofia ganharia, mas a humanidade iria para o<br />
Inferno. Foi assim que Deus, desde toda eternidade, determinou que um homem<br />
chamado Judas entregasse Jesus para o sacrifício. Judas não tinha alternativa. Ele<br />
tinha de ser fiel àquilo que Deus determinara. Então não foi Judas que entregou<br />
Jesus. Parece assim, vendo-se do lado do tempo. Mas, vendo-se sub specie<br />
aeternitatis, é Deus que está fazendo tudo. Judas foi um fiel instrumento de Deus<br />
para que a salvação se realizasse. Assim, nenhum outro apóstolo contribuiu tanto<br />
para a salvação da humanidade quanto Judas. Isso já era do conhecimento da
Igreja, desde sempre. Não entendo, portanto, o rebuliço. Proponho a canonização<br />
de Judas.<br />
Escolha<br />
“Se Deus tivesse, na sua mão direita, a verdade toda, e na sua mão esquerda a<br />
infinita busca da verdade, sem nunca chegar a ela, e me dissesse: ‘Escolha!’, eu<br />
diria: ‘Dá-me a tua mão esquerda porque a verdade é para ti somente’.” (Lessing)<br />
Eucaristia<br />
Nas celebrações eucarísticas me impressionam os rostos compungidos das pessoas<br />
depois de tomar a eucaristia. Parece que a hóstia lhes dá grande sofrimento. Acho<br />
esquisito. A eucaristia nos faz tristes? Pensei que fosse o contrário. O corpus Christi<br />
está cheio de alegria. Acho que a fila dos que estão indo para tomar a eucaristia<br />
deveria ser a fila dos tristes e a fila dos que tomaram a eucaristia deveria ser a fila<br />
dos alegres. O papa deveria tomar providências a esse respeito.<br />
Sermões<br />
Um frequentador de igreja escreveu para um jornal dizendo que não fazia sentido ir<br />
à igreja aos domingos. “Eu tenho ido à igreja por trinta anos”, ele escreveu, “e<br />
durante este tempo eu ouvi uns 3000 sermões. Mas não consigo me lembrar de<br />
nenhum deles.” Meu sofrimento é diferente do dele. Sofro porque me lembro.<br />
A Bíblia<br />
... tem estórias interessantíssimas. Quase ninguém as conhece porque estão<br />
perdidas no meio de milhares de páginas e letras pequenas. Pensei, então, numa<br />
brincadeira... Se disserem que não se deve fazer brincadeira com a Bíblia digo que<br />
Deus nos convida a rir. Os sérios, eu acho, não se darão bem no céu. Lá há muitas<br />
crianças e a bagunça é total... Dou--lhes alguns exemplos: você sabia que o<br />
primeiro assassinato registrado pela Bíblia foi por causa de dieta? Isso mesmo: os<br />
vegetarianos contra os carnívoros? E que Caim não é nada disso que dizem dele? E<br />
que Sansão foi o primeiro homem-bomba da história? E que o primeiro caso de<br />
assédio sexual foi cometido por uma rainha contra um jovem casto? E que houve<br />
um homem que derrotou um exército inteiro de homens aguerridos e armados<br />
usando como arma uma caveira de burro? E que há o registro de uma mula que<br />
falava hebraico? E que há razões bíblicas para que eu não goste de dobradinha? E
que os terapeutas de então usaram um remédio insólito para que Davi não<br />
morresse? Deveremos usar o mesmo remédio? E sabia que um profeta careca vale<br />
mais que 42 crianças? Tenho medo de escandalizar as almas fracas. Mas a<br />
tentação de escrever é grande.<br />
A Torá,<br />
... onde se encontram os dez mandamentos que Deus escreveu em duas pedras no<br />
monte Sinai, diz que o sábado é dia sagrado e que nesse dia todo tipo de trabalho<br />
está proibido. Os intérpretes da lei, no seu zelo para garantir o cumprimento<br />
rigoroso da lei, fizeram um levantamento de todas as formas possíveis de se<br />
transgredir esse mandamento. Fizeram aquilo a que hoje os juristas chamam de<br />
“regulamentar” uma lei. Dirigindo-se aos alfaiates, os intérpretes os advertiram de<br />
que, ao pôr do sol da sexta-feira, quando o sábado se inicia, é importante que<br />
tirem das suas roupas quaisquer agulhas que ali tivessem sido colocadas durante o<br />
dia. E isso porque as agulhas, sendo seu instrumento de trabalho, se ficarem<br />
espetadas na sua roupa, é como se eles, alfaiates, estivessem levando suas<br />
ferramentas por onde vão. E quem caminha carregando o seu instrumento de<br />
trabalho está trabalhando. O alfaiate distraído que se esquecesse de pôr a agulha<br />
sobre a mesa estaria, sem saber, quebrando o quarto mandamento e incorrendo na<br />
ira de Yaweh. Aí fiquei pensando: Deus é realmente um credor terrível! Vê tudo,<br />
contabiliza tudo. Contabiliza até a agulha de um alfaiate distraído... O dr. John<br />
Mackay, um dos mais extraordinários líderes do movimento ecumênico, contou que<br />
na Escócia, sua terra natal, aos domingos não era permitido tomar o bonde para ir<br />
à igreja porque isso implicava uma transação comercial: a passagem de bonde<br />
tinha de ser paga. Os pobres, assim, iam a pé para a igreja, enquanto os ricos iam<br />
nos seus carros... Escreveu um jovem poe-ta protestante de há uns quarenta anos:<br />
“Domingo Deus descansa e os homens sofrem mais...”.<br />
Ordem na semana<br />
Na semana da criação, Deus trabalha seis dias e descansa no sétimo, o sábado. A<br />
Igreja cristã inverteu a ordem: o dia de descanso é o primeiro, o domingo, a ser<br />
seguido pelos seis dias de trabalho. Nos textos sagrados, trabalha-se para, no fim,<br />
gozar, vadiar, se alegrar. Na semana cristã, descansa-se para trabalhar...<br />
Vida após a morte<br />
Achei apropriado informar os meus leitores sobre aquilo que sinto e penso acerca
da vida após a morte. Meu coração está tranquilo e não há dúvidas que o<br />
perturbem porque são duas, apenas duas, as possibilidades à minha frente.<br />
Primeira possibilidade: há vida após a morte. Nesse caso, estou tranquilo porque,<br />
se há vida após a morte, é porque há um Poder Misterioso que a garante, poder<br />
esse a que alguns dão o nome de Deus, sem saber o que ele seja. No caso de<br />
haver esse Poder Misterioso, é minha tola convicção (todas as convicções são tolas)<br />
de que ele é só amor. Não estou sozinho nessa crença, tendo a meu favor o<br />
testemunho de profetas, místicos e poetas. Sendo só amor, é claro que a vida após<br />
a morte será uma realização do amor. A ideia de que o Poder Misterioso é um<br />
torturador que mantém, para prazer próprio, uma câmara de torturas sem fim<br />
chamada Inferno, é uma calúnia espalhada pelos seus inimigos, na esperança de<br />
que os homens deixem de amá-lo e passem a odiá-lo. Mas, quando é que o amor<br />
se realiza? O amor se realiza quando recebemos de volta as coisas que amamos e<br />
perdemos. É por isso que sentimos saudade. A saudade é a nossa alma dizendo<br />
para onde ela quer voltar. Assim, em havendo uma vida após a morte, estou certo<br />
de que voltarei a subir em jabuticabeiras, a brincar em riachinhos, a balançar no<br />
balanço amarrado no galho da mangueira, a comer ora-pro-nóbis refogado com<br />
carne de porco, angu, feijão e pimenta, a fazer virar a locomotiva maria-fumaça no<br />
virador, a empinar papagaios em tardes de céu azul, a catar flores de paineira para<br />
com elas fazer soldadinhos... Que mais posso desejar? Como disse a Maria Alice,<br />
deve haver tantos céus quantas pessoas há. Meu céu não é igual ao seu. Nem<br />
poderia ser. Nossas saudades são diferentes. Em torno de cada pessoa gira um<br />
universo que é só dela. Dizem os astrônomos que há muitos bilhões de anos (para<br />
mim não faz a menor diferença se são bilhões ou milhões, porque esses números<br />
são impensáveis) houve um estouro gigantesco, o Big Bang, a partir do qual foram<br />
projetados no espaço sem fim os astros celestes que hoje formam o universo que<br />
conhecemos. Nada impede que haja infinitos outros, além dos nossos telescópios.<br />
Pois eu acho que não foi só isso: todos nós fomos também projetados no espaço<br />
sem fim, cada um de nós é uma estrela em volta da qual se forma uma nebulosa<br />
espiralada... Essa é a primeira e deliciosa possibilidade. Segunda possibilidade: não<br />
há vida após a morte. Nesse caso, a morte significa que vou voltar ao lugar onde<br />
estive por todo o tempo infinito passado, inclusive no Big Bang. Esse período de<br />
bilhões de anos não me foi doloroso, não me fez sofrer, nem demorou a passar. E<br />
poderei, então, imaginar que o evento maravilhoso do meu nascimento a partir<br />
desse caos indefinido poderá se repetir daqui a um bilhão de anos, mas não<br />
sofrerei nem ficarei impaciente, porque estarei mergulhado no sono profundo da<br />
não existência. Assim, por que ter medo? Medo eu não tenho. Tenho é tristeza<br />
porque este mundo é muito bom e quereria continuar a fazer minhas coisas por<br />
aqui. Pelo menos por agora é isso que sinto. Pode ser que eu venha a mudar de
ideia. Fernando Pessoa escreveu um poema que vai assim: “Tenho dó das estrelas,<br />
luzindo há tanto tempo, há tanto tempo... Tenho dó delas. Não haverá um cansaço<br />
das coisas, de todas as coisas, um cansaço de existir, de ser, só de ser, o ser triste<br />
brilhar, ou sorrir... Não haverá, enfim, para as coisas que são, não a morte, mas<br />
sim uma outra espécie de fim, ou uma grande razão – qualquer coisas assim como<br />
um perdão?”. Pode ser que eu venha a sentir esse cansaço e venha a desejar um<br />
fim. Mas ainda não me sinto cansado, agora.<br />
O melro<br />
Escrito por Brecht: “Quando no quarto branco do hospital acordei certa manhã e<br />
ouvi o melro, compreendi bem. Há algum tempo já não tinha medo da morte. Pois<br />
nada me poderá faltar se eu mesmo faltar. Então consegui me alegrar com todos<br />
os cantos dos melros depois de mim”.<br />
Onde estava Deus?<br />
Ela contava a sua experiência no dia 11 de setembro, o World Trade Center<br />
atacado pelos aviões terroristas, aquelas gigantescas construções transformadas<br />
em fogueira, vindo abaixo, o gigante Golias atingido pela pedra da funda do<br />
menino Davi. “Foi um milagre! Foi Deus que me salvou! Foi Deus que me salvou!”<br />
Foi assim que ela explicou o fato de estar viva. E aqueles que morreram? Se eles<br />
pudessem falar de dentro da sua morte, o que é que diriam? Acho que diriam:<br />
“Deus não quis me salvar. Por isso morri...”. Onde estava Deus? Se Deus estivesse<br />
por lá, teria tomado providências imediatas para que os terroristas não<br />
sequestrassem os aviões. Assim, o milagre seria muito maior. Todos seriam salvos.<br />
E, por falar nisso, onde estava Deus quando Hiroshima e Nagasaqui foram<br />
bombardeadas? E quando um tsunami matou mais de 200.000 pessoas, crianças,<br />
velhos, inocentes e pecadores? E quando 6.000.000 de judeus foram mortos em<br />
campos de concentração? Está escrito no salmo 91, versículo 7,10: “Mil cairão à tua<br />
esquerda e dez mil à tua direita; mas tu não serás atingido. Nenhum mal te<br />
sucederá, praga alguma chegará a tua tenda”. Ah! Parece que o escritor sagrado<br />
estava dizendo que quem está em boas relações com Deus não precisa fazer<br />
seguro... Conclui-se logicamente que, se algo de mau me acontece, é porque não<br />
estou em boas relações com Deus. Se uma desgraça me atinge, isso é evidência da<br />
minha impiedade. Fui abandonado por Deus. Quem sofre é ímpio porque, se não o<br />
fosse, nenhum mal lhe teria acontecido. Um paciente que chegou para a terapia<br />
contou que havia dado uma batida com o seu carro. Mas o que o afligia não era a<br />
batida. Milhares de carros batem diariamente pelo mundo. O que o afligia era uma
dúvida: “Sou um homem religioso. Obedeço aos mandamentos. O meu carro bateu.<br />
Então não estou em boas relações com Deus. O que estará errado na minha vida?<br />
Porque, se não houvesse algo errado, nenhum mal me sucederia...”.<br />
Mosaicos<br />
Mosaicos são obras de arte. São feitos com cacos. Os cacos, em si, nada significam.<br />
Não têm beleza alguma. São peças de um quebra-cabeça. É preciso que um artista<br />
junte os cacos segundo o seu desejo. As Sagradas Escrituras são um livro cheio de<br />
cacos: poemas, estórias, mitos, pitadas de sabedoria, relatos de acontecimentos.<br />
Quem lê junta os cacos segundo manda o seu coração. Os mosaicos podem ser<br />
bonitos ou feios. Tudo depende do coração do artista. Como disse Jesus, o homem<br />
bom tira coisas boas do seu bom tesouro; o homem mau tira coisas más do seu<br />
mau tesouro. Coração mau faz mosaico feio, coração bom faz mosaico bonito.<br />
Como sugeriu Bachelard, quem tem muitas vinganças a realizar faz mosaicos de<br />
infernos.<br />
Sobre o perdão<br />
Não sei se se deve perdoar sempre. Como perdoar o torturador? Como perdoar o<br />
adulto que espanca uma criança? Como perdoar a Inquisição, os campos de<br />
concentração, a bomba atômica, os homens públicos que se enriquecem à custa do<br />
dinheiro do povo que sofre e morre? Quem perdoa tudo é porque não se importa<br />
com nada.<br />
Diário<br />
Um diário é um livro que ainda não é livro. É um livro vazio, folhas de papel em<br />
branco. Não há nada escrito nele. Tudo está por escrever. Será o seu dono que irá<br />
nele registrar as coisas do dia a dia que julga merecedoras de serem lembradas,<br />
coisas que não devem ser esquecidas. Escreve-se um diário por não se confiar na<br />
memória. Nenhum diário é igual a outro porque nenhuma pessoa é igual a outra.<br />
As pessoas, ao passar pela vida, vão catando coisas diferentes. Um diário é um<br />
livro onde se colocam as coisas catadas. É impossível conhecer uma pessoa,<br />
diretamente. Mas é possível conhecê-la por aquilo que ela guarda. O que se guarda<br />
é um retrato da alma. Um diário registra muitas coisas. Mas essas muitas coisas, se<br />
ajuntadas, revelam um perfil. Essa é a razão por que um diário é, normalmente,<br />
secreto. Nudez de corpo, tudo bem. Mas ninguém tem o direito de ver a minha<br />
alma na sua nudez. Por isso os diários são mantidos em gavetas fechadas a chave.
Um diário novo não diz nada. É o silêncio. Ele só começará a dizer depois que eu<br />
escrever nele as minhas coisas. Num diário eu me leio porque ele é um espelho<br />
que guarda minhas imagens passadas. Esses pensamentos sobre um diário fizeram<br />
minha imaginação voar. E eu pensei se a palavra “Deus” não é também o nome de<br />
um livro em branco à espera da minha escritura. O que escrevo nesse livro?<br />
Escrevo os meus suspiros, as minhas dores, o pulsar de um coração num mundo<br />
sem coração, as minhas esperanças, canções de ninar que desejo ouvir. Orações<br />
são palavras que eu desejo eternas. Não há um só diário que seja igual a outro.<br />
Quem está dentro do livro é o escritor. Nossos deuses são nossas imagens num<br />
espelho. Cada um tem a sua.<br />
Os 3 nomes de Deus<br />
De vez em quando perguntam-me se acredito em Deus. Mas é claro. Acredito mais<br />
que a maioria das pessoas. Tenho até 33 nomes para ele. Esses nomes foi a<br />
Marguerite Yourcenar que me contou. Foi ela que escreveu o livro Memórias de<br />
Adriano, quem lê nunca mais esquece, quer ler de novo. Pois esses são os 33<br />
nomes de Deus que ela me ensinou. É só falar o nome, ver na imaginação o que o<br />
nome diz, para que a alma se encha de uma alegria que só pode ser um pedaço de<br />
Deus... Mas é preciso ler bem devagarinho... Os 33 nomes de Deus... O mar da<br />
manhã. O barulho da fonte nos rochedos sobre as paredes de pedra. O vento do<br />
mar de noite, numa ilha... Uma abelha. O voo triangular dos cisnes. Um cordeirinho<br />
recém-nascido... O mugido doce da vaca e o mugido selvagem do touro. O mugido<br />
paciente do boi. O fogo vermelho no fogão. O capim. O perfume do capim. Um<br />
passarinho no céu. A terra boa... A garça que esperou toda a noite, meio gelada, e<br />
que vai matar sua fome ao nascer do sol. O peixinho que agoniza no papo da<br />
garça. A mão que entra em contato com as coisas. A pele, toda a superfície do<br />
corpo. O olhar e tudo o que ele olha. As nove portas da percepção. O torso<br />
humano. O som de uma viola e de uma flauta indígena. Um gole de uma bebida<br />
fria ou quente. Pão. As flores que saem da terra na primavera. O sono na cama.<br />
Um cego que canta e uma criança enferma. Um cavalo correndo livre. A cadela e os<br />
cãezinhos. O sol nascente sobre um lago gelado. Um relâmpago silencioso. O<br />
trovão que estronda. O silêncio entre dois amigos. A voz que vem do leste, entra<br />
pela orelha direita e ensina uma canção... Não é preciso que esses 33 nomes sejam<br />
os seus. Faça a sua própria lista. Eu incluiria: a sonata Appassionata, de<br />
Beethoven. Sapos coaxando no charco. O canto do sabiá. Banho de cachoeira. A<br />
tela Mulher lendo uma carta, de Vermeer. O sorriso de uma criança. O sorriso de<br />
um velho. Balançar num balanço tocando com o pé as folhas da árvore... Morder<br />
uma jabuticaba... Todas essas coisas são os pedaços de Deus que conheço... Sim,
acredito muito em Deus.<br />
Milagre<br />
Dostoiévski observou que os seres humanos não estão à procura de Deus; estão à<br />
procura do milagre. Deus é o objeto mágico que, se propriamente manipulado, faz<br />
a minha vontade, realiza o meu pedido. Traduzindo em linguagem grosseira: não é<br />
ela ou ele que eu desejo, ao me casar. É o dinheiro que ela ou ele tem. No mundo<br />
do “eu-tu”, o outro ouve atentamente e acolhe o tu como parte de si mesmo. Pode<br />
ser um cachorro, uma árvore, uma criança, um ancião, até mesmo o chefe... E, ao<br />
assim me relacionar, um mundo humano é criado ao meu redor, mundo em que as<br />
entidades não são objetos de uso, mas objetos de prazer. Buber conclui sua<br />
filosofia dizendo que Deus não está aqui, não está ali; Deus está “entre”, na<br />
relação, no hífen... Deus se encontra no espaço misterioso e invisível da relação.<br />
Dois tipos de experiência religiosa<br />
O primeiro é quando a alma faz silêncio para ouvir a música sagrada que o Grande<br />
Mistério faz tocar no universo. Não se pede nada. A beleza do sagrado nos basta.<br />
Essa experiência religiosa nos torna mais sábios e belos. O segundo tipo de<br />
experiência religiosa é quando a alma sai em busca de fórmulas para engaiolar o<br />
sagrado a fim de usá-lo para os seus propósitos. A alma nada ouve da melodia do<br />
Grande Mistério porque está chafurdada na confusão dos desejos e na confusão da<br />
vida. Quanto mais ávidos do milagre, mais longe de Deus.<br />
Quem mais ama?<br />
Não é preciso acreditar que Deus existe para se ter a experiência do sagrado. Os<br />
poetas ateus sabem disso. Disse o Chico: “Saudade é o revés do parto. É arrumar o<br />
quarto para o filho que já morreu”. Qual é a mãe que mais ama? Aquela que<br />
arruma o quarto porque o filho vai chegar ou aquela que arruma o quarto para o<br />
filho que nunca vai chegar? Muitos altares são construídos diante do abismo escuro.<br />
Sabia disso também o místico espanhol católico dom Miguel de Unamuno:<br />
“Acreditar em Deus é, antes de mais nada e principalmente, querer que ele exista”.<br />
O sentimento religioso não mora no mundo das coisas que existem. Se Deus<br />
existisse, então o mundo seria o Paraíso... Deus mora no mundo das coisas que<br />
não existem, o mundo da saudade, da nostalgia. Os deuses que moram no mundo<br />
das coisas que existem não são deuses. São ídolos.
Oração<br />
Não é preciso acreditar em Deus para orar. A mãe que arruma o quarto para o filho<br />
que já morreu está orando. Ela ora diante de uma ausência. As ausências são a<br />
morada dos objetos amados que se perderam no tempo. Oração é a saudade<br />
transformada em poema. Oração é o suspiro da criatura oprimida.<br />
Milagres<br />
Pelo que sei, para um candidato a santo ser beatificado tem de dar provas de haver<br />
feito milagres. Discordo. A marca do divino não são os milagres excepcionais. A<br />
marca do divino é o milagre cotidiano que é este mundo, a vida, o meu olho, a asa<br />
de uma libélula, uma flor, o arco-íris, a chuva, a sopa de fubá, o café, o pão<br />
quente, o perfume do jasmim, o amor entre duas pessoas, uma gota d’água numa<br />
folha, uma teia de aranha, uma concha de caramujo, um poema. Eu amaria um<br />
santo que não tivesse feito milagre algum mas que tivesse ficado extasiado<br />
contemplando os milagres que Deus espalhou pelo mundo.<br />
Uma minhoca<br />
“Atrevo-me a dizer que uma minhoca que ama o seu torrão seria mais divina que<br />
um Deus sem amor no meio dos seus mundos.” (Robert Browning)<br />
Monopólio da verdade<br />
Enquanto a Igreja Católica acreditar que ela é detentora do monopólio da verdade,<br />
qualquer conversa sobre ecumenismo não passará de palavras ocas. Porque o<br />
ecumenismo se constrói sobre o desejo de ouvir o que o outro tem a dizer. Ora, se<br />
eu me acredito possuidor da verdade toda, qual o sentido de ouvir o outro? Tudo o<br />
que ele vier a dizer diferente do que penso só poderá ser mentira. A Igreja Católica<br />
define ecumenismo de uma forma peculiar: é a volta de todas as religiões ao seu<br />
seio. Mas seria mais evangélico prestar atenção ao que diz o apóstolo Paulo na sua<br />
primeira carta à igreja de Corinto: “Agora vemos tudo obscuramente, reflexos num<br />
espelho mal polido...”. <strong>Feliz</strong>mente uma grande parcela do povo católico acredita<br />
mais no que diz o apóstolo do que no que diz o Magistério Romano. O perigo é que<br />
a Igreja, em decorrência de acreditar-se possuidora da verdade, vá se distanciando<br />
cada vez mais da realidade, da ciência, das questões éticas do momento, da<br />
política e da própria realidade do seu povo. Corre o perigo de se tornar um gueto<br />
que ninguém leva a sério.
Papa<br />
O papa escreveu um documento espinafrando os católicos que não santificam o<br />
domingo. Ele exorta os fiéis a fazer do jeito preciso que os protestantes faziam.<br />
Será esse um gesto de aproximação ecumênica? No passado não era assim. Nós,<br />
protestantes, morríamos de inveja dos católicos. Os fiéis iam à missa e, com isso,<br />
seus deveres para com Deus estavam cumpridos. Depois disso, tudo era liberdade:<br />
praia, piqueniques, rádio, futebol, sorvete, cinema. Entendo a preocupação do<br />
supremo pontífice. Os tempos são outros. Os ritos sagrados, graves, não podem<br />
competir com as deliciosas tentações do mundo. O Diabo é muito sedutor. Com<br />
isso, as igrejas ficam vazias. As igrejas na Alemanha, sempre vazias, colocaram<br />
telões dentro dos templos para que os fiéis pudessem assistir à copa de futebol<br />
cristãmente. Foi a única forma que encontraram para, provisoriamente, encher os<br />
seus templos. Os fiéis deixaram de ter medo de Deus. Fez bem o papa em<br />
determinar que os católicos cumpram o mandamento de santificar o domingo.<br />
Domingo não é dia de diversão. Domingo é dia de devoção. Domingo é dia da<br />
Igreja. Eu só não entendo as razões por que as seitas evangélicas não têm esse<br />
problema. Parece que os seus templos estão sempre cheios. Por quê? Deve haver<br />
alguma razão. Talvez porque, não tendo dinheiro para ir à praia, as reuniões nos<br />
templos se tornam uma alternativa alegre. A pobreza muito contribui para a<br />
santidade.<br />
Remédio contra a morte<br />
Há doenças que só chateiam: resfriado, torcicolo, frieira, hemorroidas... Ninguém<br />
pensa que vai morrer por causa delas – só se for uma pessoa perturbada da<br />
cabeça. Doente com essas doenças, o incômodo fica nosso companheiro, em todas<br />
as horas. Mas há outras doenças que, inevitavelmente, trazem consigo a<br />
possibilidade da morte. Quem tem câncer pensa em morte. Quem tem uma<br />
insuficiência renal crônica pensa em morte. Quem tem leucemia pensa em morte.<br />
Quem sofre de uma degeneração progressiva do sistema nervoso pensa em morte.<br />
Quem tem hepatite C pensa em morte. Quem tem aids pensa em morte. Só o<br />
nome da doença já traz a companhia do fantasma da morte. E o corpo fica sendo<br />
um lugar mal-assombrado. Alguns pensam que o remédio contra o fantasma é não<br />
falar nele. Tive um tio de quem eu muito gostava que se recusava a ir ao médico. E<br />
a sua justificativa era: “Pode ser que eu tenha alguma coisa”. Ele pensava que a<br />
coisa só existe quando é falada. Assim, o remédio contra a morte é não falar.<br />
Pensamento positivo! Falemos sobre música e flores! Sobre futebol e política! O
emédio contra o fantasma da morte é a “distração”! Nada mais tolo... Quando não<br />
admitimos a morte na sala de visitas ela nos invade pela porta da cozinha, aloja-se<br />
silenciosamente no corpo e ali faz o seu trabalho de ansiedade, medo e raiva.<br />
Traduzido em linguagem psicanalítica: quando a morte é reprimida no consciente,<br />
ela nos penetra via inconsciente. Só há uma forma de exorcizar o demônio da<br />
morte: é falando honestamente sobre ela, chamando-a pelo seu nome. Os<br />
demônios são exorcizados quando o seu nome é pronunciado em voz alta: essa é<br />
uma lição que nos vem dos evangelhos e da psicanálise. Sobre isso escrevi, há<br />
muitos anos, uma estória para a minha filha pequena e para os adultos que<br />
quisessem: A menina e a pantera negra. Ela sonhou com uma pantera negra. Do<br />
sonho surgiu a estória. A pantera negra urrava durante as noites amedrontando<br />
todo mundo na casa. Ela parou de urrar quando a menina descobriu o seu nome e<br />
a chamou. Aí ela se aproximou e colocou seu focinho no colo da menina... E seus<br />
urros se transformaram num ronronar macio...<br />
Pergunta de leitora<br />
Uma leitora me perguntou: “Por que é que você escreve tanto sobre Deus e<br />
religião?”. A pergunta dela brotava de uma convicção: “O <strong>Rubem</strong> <strong>Alves</strong> não deveria<br />
gastar o seu tempo com Deus e a religião. Ele estudou filosofia, estudou<br />
sociologia... Não sabe que religião é o ‘ópio do povo’? Não sabe que Nietzsche, que<br />
ele tanto cita, falou que ‘Deus morreu’?”. Vou responder: escrevo sobre Deus e a<br />
religião pela mesma razão por que Freud escreveu sobre os sonhos. Os sonhos são<br />
as religiões individuais. As religiões são os sonhos coletivos. Elas nos revelam as<br />
profundezas da alma do povo. Citando Marx, as religiões são “o suspiro da criatura<br />
oprimida”. E escrevo porque gosto de literatura... Perguntado sobre o que achava<br />
de Deus, Jorge Luis Borges respondeu: “É a mais extraordinária criação do realismo<br />
fantástico...”. Acho as religiões mais fascinantes que a science fiction. Para se<br />
comunicar com alguém é preciso falar a linguagem que esse alguém entende. E eu<br />
quero me comunicar com o povo.<br />
Castelos<br />
Nos tempos em que fui pastor de uma igreja numa cidade do interior de Minas<br />
fiquei amigo de um casal delicioso, senhor João José e dona Guilhermina. Eu era<br />
jovem; eles já eram velhos. Eram a encarnação de uma bondade modesta. Foram<br />
amigos fiéis e silenciosos nos meses em que, acusado de subversivo por irmãos na<br />
fé, vivi sob o medo de ser preso, nos tempos da ditadura. Dona Guilhermina, já<br />
velhinha, ficou sofrendo de uma forma graciosa do mal de Alzheimer. Passou a
viver num mundo encantado em que era proprietária de uma infinidade de castelos<br />
espalhados por todo o mundo. Generosa que era, dava um castelo de presente a<br />
todos os que a visitavam. Eu mesmo ganhei dela um castelo na Escócia, que ainda<br />
não visitei. Fico a imaginar como será. É possível que eu me mude para ele se um<br />
dia um mal de Alzheimer gracioso me tocar. Então receberei a dona Guilhermina<br />
como hóspede no meu castelo e conversaremos sobre os bons tempos de<br />
antigamente enquanto tomamos café com pão de queijo...<br />
Cânticos dos cânticos<br />
Escrevi um texto sobre o Cântico dos cânticos. Uma senhora, aflita, escreveu-me<br />
para dizer que o livro Cântico dos cânticos era sagrado, um poema de amor de<br />
Salomão dedicado à sua esposa. Ela pensou que eu estava achando o poema<br />
imoral. Nada mais distante das minhas intenções. Acho aquele poema lindíssimo,<br />
puro, cheio de amor, um exemplo de amor a ser seguido (enquanto for possível...).<br />
Deveria ser objeto de estudo constante nas escolas dominicais e aulas de<br />
catecismo. A minha lamentação está precisamente nisso; que, durante todos os<br />
meus anos de vida, nunca ouvi um sermão sobre esse poema. Acho que os<br />
pregadores têm vergonha desse livro inspirado das Sagradas Escrituras. Um outro<br />
pensou que eu estava menosprezando Jesus Cristo ao dizer que, para mim, do<br />
cristianismo só sobrava a arte. Eu não disse “de Jesus”; disse “do cristianismo”.<br />
“Cristianismo” são as coisas que os homens disseram e fizeram a propósito de<br />
Jesus. Teologia é parte do cristianismo, um conjunto de palavras de homens. O que<br />
os homens disseram sobre Jesus não é aquilo que Jesus disse. Eu amo as coisas<br />
que Jesus disse, muito embora não tenha compreendido muitas delas, como<br />
“granjeai amigos com as riquezas da iniquidade”. O sermão do monte, as<br />
parábolas, os diálogos são todos maravilhosos e sobre eles escrevi muitas vezes.<br />
Amo o que Jesus falou. Mas não presto muita atenção naquilo que os teólogos<br />
falaram...<br />
A casa<br />
Três homens conversam. Assentados, olham para o horizonte. Um deles diz: “Vejo<br />
uma casa e dentro dela está um homem”. Outro diz: “Vejo a casa, mas não vejo<br />
nenhum homem dentro dela”. Um terceiro comenta: “Não vejo a casa. Não vejo um<br />
homem. Só vejo o mar imenso, sem fim...”. Assim são os três. O primeiro é o que<br />
vê uma Presença habitando os espaços invisíveis do universo. Acredita em Deus. O<br />
segundo vê os espaços invisíveis do universo, mas não encontra neles nenhuma<br />
presença. Eles estão vazios. A essa pessoa dão o nome de ateu. Porém, que nome
dar àquele que não vê os espaços invisíveis do universo, mas apenas o mar<br />
misterioso, ao longe, mar para o qual caminha, mar em que haverá de se tornar...<br />
Que nome lhe dar? “Com que tristeza o horizonte avisto, aproximado e sem<br />
recurso! Que pena a vida ser só isso...” (Cecília Meireles).<br />
Pomar<br />
As Sagradas Escrituras são um pomar onde crescem macieiras cheias de maçãs<br />
vermelhas, doces e perfumadas, oferecidas a quem quiser apanhar e comer. Mas<br />
nesse mesmo pomar também crescem espinheiros, joás de lobo, losnas amargas. O<br />
homem sábio sabe distinguir entre as maçãs e as plantas bravas. Colhe a maçã,<br />
sente seu doce e o seu perfume e diz: “Palavra do Senhor”. O tolo pensa que tudo<br />
o que cresce no pomar é coisa de Deus, não sabe distinguir, colhe os espinhos, os<br />
joás de lobo, a losna, come-os, sua boca sangra com os espinhos e seu estômago<br />
sente ânsias de vômito com a losna. Mas ele, tolo, repete: “Palavra do Senhor”...<br />
Bem disse Jesus que o homem bom tira coisas boas do seu bom tesouro. O homem<br />
mau tira coisas más do seu mau tesouro.<br />
Dúvidas<br />
Cliquei o botão do controle remoto da televisão e me vi dentro de um enorme<br />
templo, completamente lotado. O programa se chamava, se não me engano, O<br />
culto em sua casa. O pregador dizia aos fiéis: “A dúvida é a principal arma do<br />
Diabo”. Ele não teve coragem de dizer tudo o que essa afirmação piedosa contém.<br />
Se ele está no púlpito, lugar sagrado, deve ser bispo ou missionário. Sendo bispo<br />
ou missionário, tem acesso privilegiado a Jesus: o Peixe Dourado lhe revelou<br />
pessoalmente os mistérios do Mar... Fala diariamente com Jesus. Segue-se que<br />
aquilo que ele fala são as palavras de Jesus. Assim, se alguém tem dúvidas sobre o<br />
que ele diz, está duvidando de Jesus. Conclusão: quem duvida do que ele diz está<br />
enredado nas artimanhas do Diabo... Penso o contrário: que as convicções são as<br />
principais armas do Diabo. As maiores atrocidades da história da humanidade,<br />
religiosas e políticas, foram cometidas por pessoas que não tinham dúvidas sobre a<br />
verdade dos seus pensamentos. As pessoas que duvidam, ao contrário, são<br />
tolerantes. Sabem que o que pensam não é a verdade. Seus pensamentos não<br />
passam de “palpites”. Por isso ouvem o que os outros têm a dizer, pois pode ser<br />
que a verdade esteja com eles... As religiões ocidentais, o cristianismo e o<br />
islamismo, se construíram sobre certezas. Sempre tiveram medo da dúvida. Sobre<br />
os que duvidavam colocaram a ameaça das fogueiras ou do Inferno. E isso deixou<br />
marcas tão profundas nas pessoas religiosas que, ainda hoje, elas têm medo de
duvidar. O que significa: elas têm medo de pensar. Contentam-se em repetir o que<br />
lhes foi dito. Porque é com a dúvida que o pensamento se inicia. Mas eu não<br />
respeitaria um Deus que, havendo nos dado asas nos proibisse de voar. Contra o<br />
autoritarismo das certezas só há um remédio: o humor. Como o filme Deus é<br />
brasileiro. Deus, cansado de ser Deus, resolveu tirar umas férias. Viajaria por uma<br />
outra galáxia. Mas teria de deixar uma outra pessoa no seu lugar, durante a sua<br />
ausência. Lá de cima escolheu o homem que mais competência teria para assumir<br />
suas funções. Assim, baixou sobre essa terra e pôs-se a procurá-lo. Depois de<br />
muitos desencontros, finalmente o encontrou. Sua busca havia chegado ao fim!<br />
Poderia iniciar suas férias! Que nada! O dito homem que ele escolhera era ateu.<br />
Acontece conosco o que acontece com os galos. Quer o galo cante, quer não cante,<br />
o sol sempre aparece... Assim, podemos cantar ou não cantar, desafinar ou<br />
inventar um canto dodecafônico, o sol nem liga...<br />
Deus<br />
Deus é o nome que dou a um vazio imenso que mora na minha alma, vazio onde<br />
voam os meus desejos na esperança de encontrar, no futuro, as coisas amadas que<br />
o tempo me roubou.<br />
As crianças e Deus<br />
As crianças são os melhores teólogos. <strong>Faz</strong>em perguntas que ninguém mais faz.<br />
“Numa tarde, durante o trajeto de casa para o jardim de infância, as crianças<br />
começaram a fazer perguntas sobre a morte. Após alguns minutos de reflexão, Ana<br />
Carolina saiu-se com esta: ‘Deus está muito errado. Ele faz a gente, coloca a gente<br />
aqui, deixa a gente gostá de tudo e depois mata todo mundo!!!’” Carta a Deus:<br />
“Querido Deus: Em vez de deixar as pessoas morrerem e ter que fazer outras<br />
novas, por que você não mantém aquelas que você tem agora?” “Hora do jantar.<br />
Enquanto toma sopa o menino faz ao pai uma pergunta teológica: ‘Papai, onde<br />
está Deus?’ O pai responde segundo o catecismo: ‘Está em todos os lugares...’.<br />
Rápido o menino conclui teologicamente: ‘Então está nessa colher de sopa que<br />
estou tomando?’.” Não transcrevo essas tiradas teológicas para fazer rir.<br />
Transcrevo para fazer pensar. (Do livro Me dá o teu contente que eu te dou o meu,<br />
organizado por Cristina Matoso, São Paulo, Verus Editora. Vale a pena.)<br />
O mar e Deus<br />
O mundo das ideias religiosas é mais fascinante e assombroso que a literatura mais
fantástica. Quando digo mundo das ideias religiosas, refiro-me àquilo que os<br />
homens pensam, àquilo em que acreditam, àquilo que está dentro da sua cabeça e<br />
que é criado pelas suas fantasias. O homem cria Deus à sua imagem e<br />
semelhança. Ouvindo uma pessoa falar sobre Deus, temos acesso à sua alma.<br />
Ideias religiosas nada têm a ver com o Grande Mistério. Grande Mistério? Estamos<br />
diante do mar sem fim. Na praia, os homens começam a imaginar: o que haverá<br />
nas suas funduras? Monstros, sereias, jardins, peixes coloridos, anêmonas<br />
venenosas, cidades submersas? As ideias religiosas são as fantasias que os homens<br />
produzem diante do Grande Mistério, mar sem fim. O Grande Mistério me fascina.<br />
Mas as ideias dos homens me espantam. Não porque eles as tenham. Mas porque<br />
acreditam nelas. Confundem o que pensam com o fundo do mar! Alberto Caeiro<br />
disse de forma definitiva: “Pensar em Deus é desobedecer a Deus. Porque Deus<br />
quis que o não conhecêssemos, por isso se nos não mostrou...”. Diante do Grande<br />
Mistério, o certo é o silêncio, o não pensar.<br />
Programas evangélicos<br />
Um amigo que sofre de insônia acorda de madrugada e liga a TV num programa<br />
evangélico na esperança de que haja algum milagre para fazer dormir... Contou-me<br />
que, num desses programas, vários pastores se reuniram em torno de uma enorme<br />
taça de vidro, cheia de um óleo sagrado vindo de uma montanha também sagrada<br />
no Oriente, certamente onde a burra de Balaão pastou... (Se vocês não sabem a<br />
estória da burra de Balaão, posso adiantar que era uma burra que falava. Da<br />
mesma forma como o Grilo Falante era a consciência do Pinóquio, a burra era a<br />
consciência do seu dono, Balaão...) A seguir tomaram um pó dourado nas mãos –<br />
diziam que era pó de ouro, ele achou que era purpurina – e o jogaram dentro do<br />
óleo. Vinham os fiéis então, em fila, para mergulhar o dedo no óleo dourado e<br />
esfregar na testa, para ficarem ricos. Que coisa maravilhosa! Cristo se encarnou e<br />
morreu na cruz para que ficássemos ricos! É preciso democratizar essa bênção para<br />
que todos os pobres fiquem ricos, resolvendo-se assim o problema da pobreza e da<br />
fome no Brasil.<br />
Gosto de voar<br />
Voar me dá grande prazer e não é normal que eu sinta medo. Digo “não é<br />
normal...” porque, de vez em quando, o medo é muito grande. Eu voava de Montes<br />
Claros, norte de Minas, para Belo Horizonte. Longe a gente via, no horizonte, uma<br />
gigantesca nuvem sinistra, mistura de marrom e preto, sobre Belo Horizonte. Se eu<br />
fosse o comandante, teria embicado o avião para o aeroporto de Confins, céu azul.
Mas o comandante resolveu arriscar. Enfiou o avião na nuvem. Chovia forte. Os<br />
raios iluminavam a escuridão. O avião pulava. Um grande silêncio pairou sobre<br />
todos os passageiros. Ninguém conversava. Silêncio medo. Silêncio reza. Com uma<br />
exceção: um menino e uma menina. Os pulos do avião, eles os recebiam com<br />
gargalhadas. Acho que imaginavam que aquilo era uma espécie de montanharussa,<br />
um parque de diversões, muita adrenalina sem nenhum perigo. Acho que<br />
todos rezavam. Uma vez viajei ao lado de um grande mestre de xadrez brasileiro,<br />
monge. Céu azul, sem turbulência, o ronronar macio das turbinas... Mas ele agarrou<br />
um terço e ficou batendo beiço a viagem inteira. Como pode ser isso, que um<br />
grande mestre de xadrez, mente lógica, ao entrar no avião esqueça a lógica e se<br />
transforme em feiticeiro? Acho que ele pensou, ao aterrissar: “Se não fosse por<br />
minha reza...”. Eu estava com muito medo mas não rezava. Acho que não, porque<br />
não acredito. Se rezar adiantasse, aviões não cairiam, porque há sempre alguém<br />
que faz o sinal da cruz quando o avião arranca para a decolagem. Por que caem<br />
aviões? Porque as rezas não foram suficientes? Deus só sustenta os aviões se os<br />
passageiros rezarem? É Deus que mantém o avião lá em cima? Quer dizer que foi<br />
Deus que manteve no ar o avião norte-americano que levou as bombas atômicas<br />
para Hiroshima e Nagasaki? Ele ficou no ar porque os norte-americanos rezaram<br />
mais que os japoneses? Se eu fosse Deus, o destino da fortaleza voadora teria sido<br />
outro... Não rezei. Para não perder o respeito por Deus. Eu não respeitaria um<br />
Deus que só salvasse os homens que constantemente o chamam ao telefone.<br />
<strong>Feliz</strong>mente o próprio comandante se encheu de medo, criou juízo e fez o avião dar<br />
meia-volta, rumo ao céu azul, rumo ao aeroporto de Confins. Juízo na cabeça é<br />
melhor que reza em boca de quem não tem juízo...<br />
Gosto de música erudita<br />
A beleza é inexprimível. Está além das palavras. Por mais que uma pessoa diga “é<br />
belo, é belo”, essas palavras não me fazem sentir o belo. Tente descrever a beleza<br />
do sol poente ou a beleza do sorriso de uma criança. Por mais que você escreva,<br />
suas palavras não me comunicarão nada. Imagine agora uma pessoa que não<br />
gosta de música clássica. Que ela ouça uma música que me fala ao coração, a<br />
Suíte no 1 de Bach, para violoncelo. E ela diga: “Que música mais sem graça!”. Aí<br />
eu fico bravo. Fico bravo com a Suíte de Bach? Não. Fico bravo com aquilo que<br />
alguém disse sobre ela. O que ela disse exprime o que sentiu e pensou ao ouvir a<br />
Suíte no 1. É, na verdade, uma revelação sobre ela mesma. Assim acontece com<br />
Deus... Os teólogos e pregadores tentam dizer o Grande Mistério, o Mar Sem Fim.<br />
São pintores. Eles pintam com palavras o Deus que existe nos seus corações. Quem<br />
lê um livro de teologia tem acesso ao coração do teólogo.
Consultório bíblico<br />
Laura Schlessinger é uma conhecida locutora de rádio nos Estados Unidos. Ela tem<br />
um desses programas interativos que dá respostas e conselhos aos ouvintes que a<br />
chamam ao telefone. Recentemente, perguntada sobre a homossexualidade, a<br />
locutora disse que se trata de uma abominação, pois assim a Bíblia o afirma no<br />
livro de Levítico 18:22. Um ouvinte escreveu-lhe então uma carta que vou<br />
transcrever: “Querida dra. Laura: Muito obrigado por se esforçar tanto para educar<br />
as pessoas segundo a Lei de Deus. Eu mesmo tenho aprendido muito do seu<br />
programa de rádio e desejo compartilhar meus conhecimentos com o maior número<br />
de pessoas possível. Por exemplo, quando alguém se põe a defender o estilo<br />
homossexual de vida, eu me limito a lembrar-lhe que o livro de Levítico, no capítulo<br />
18, versículo 22, estabelece claramente que a homossexualidade é uma<br />
abominação. E ponto final... Mas, de qualquer forma, necessito de alguns conselhos<br />
adicionais de sua parte a respeito de outras leis bíblicas concretamente e sobre a<br />
forma de cumpri-las:<br />
Gostaria de vender minha filha como serva, tal como o indica o livro de Êxodo,<br />
21:7. Nos tempos em que vivemos, na sua opinião, qual seria o preço adequado?<br />
O livro de Levítico 25:44 estabelece que posso possuir escravos, tanto homens<br />
quanto mulheres, desde que sejam adquiridos de países vizinhos. Um amigo meu<br />
afirma que isso só se aplica aos mexicanos, mas não aos canadenses. Será que a<br />
senhora poderia esclarecer esse ponto? Por que não posso possuir canadenses?<br />
Sei que não estou autorizado a ter qualquer contato com mulher alguma no seu<br />
período de impureza menstrual (Lev. 18:19, 20:18, etc.). O problema que se me<br />
coloca é o seguinte: como posso saber se as mulheres estão menstruadas ou não?<br />
Tenho tentado perguntar-lhes, mas muitas mulheres são tímidas e outras se<br />
sentem ofendidas.<br />
Tenho um vizinho que insiste em trabalhar no sábado. O livro de Êxodo 35:2<br />
claramente estabelece que quem trabalha nos sábados deve receber a pena de<br />
morte. Isso quer dizer que eu, pessoalmente, sou obrigado a matá-lo? Será que a<br />
senhora poderia, de alguma maneira, aliviar--me dessa obrigação aborrecida?<br />
No livro de Levítico 21:18-21 está estabelecido que uma pessoa não pode se<br />
aproximar do altar de Deus se tiver algum defeito na vista. Preciso confessar que<br />
eu preciso de óculos para ver. Minha acuidade visual tem de ser 100% para que eu<br />
me aproxime do altar de Deus? Será que se pode abrandar um pouco essa<br />
exigência?<br />
A maioria dos meus amigos homens tem o cabelo bem cortado, muito embora<br />
isto esteja claramente proibido em Levítico 19:27. Como é que eles devem morrer?
Eu sei, graças a Levítico 11:6-8, que quem tocar a pele de um porco morto fica<br />
impuro. Acontece que adoro jogar futebol americano, cujas bolas são feitas de pele<br />
de porco. Será que me será permitido continuar a jogar futebol americano se usar<br />
luvas?<br />
Meu tio tem uma granja. Deixa de cumprir o que diz Levítico 19:19, pois planta<br />
dois tipos diferentes de sementes no mesmo campo, e também deixa de cumprir a<br />
sua mulher, que usa roupas de dois tecidos diferentes, a saber, algodão e poliéster.<br />
Além disso, ele passa o dia proferindo blasfêmias e maldizendo. Será que é<br />
necessário levar a cabo o complicado procedimento de reunir todas as pessoas da<br />
vila para apedrejá-los? Não poderíamos adotar um procedimento mais simples,<br />
qual seja, o de queimá-los numa reunião privada, como se faz com um homem que<br />
dorme com a sua sogra, ou uma mulher que dorme com o seu sogro (Levítico<br />
20:14). Sei que a senhora estudou esses assuntos com grande profundidade de<br />
forma que confio plenamente na sua ajuda. Obrigado de novo por recordar-nos que<br />
a Palavra de Deus é eterna e imutável.”<br />
A Reforma Protestante<br />
Eu sou de tradição protestante, muito embora, para permanecer protestante, tenha<br />
me desligado das igrejas protestantes. É preciso esclarecer que a tradição<br />
protestante nada tem a ver, absolutamente nada, com esses movimentos religiosos<br />
que se denominam “evangélicos”. A tradição protestante não promete milagres,<br />
cultiva a razão, estimula a ciência, é profundamente ética, e a ela estão ligados<br />
nomes como Leibniz, Kant, Hegel, Kierkegaard, Albert Schweitzer, Martin Luther<br />
King Jr., Dag Hamarkjoeld, Dietrich Bonhoeffer, Mondelaine. Em que consiste essa<br />
tradição? A Reforma, contrariamente ao nome, não foi um movimento que visava<br />
“reformar” a Igreja Católica do século XVI: não se coloca remendo de pano novo<br />
em tecido podre. Não é um conjunto de doutrinas teológicas diferentes como<br />
justificação pela graça e sacerdócio universal das pessoas. Não é uma nova<br />
organização da Igreja. Quem só sabe essas coisas não viu o que é essencial. Para<br />
dizer o que foi o espírito da Reforma, vou me valer de uma peça musical, a<br />
Segunda sinfonia de Gustav Mahler (1860-1911), chamada Sinfonia da ressurreição.<br />
Eis como ele mesmo descreve o último movimento da sinfonia: “Chegou o dia do<br />
julgamento final. O terror cobre a terra. A terra estremece, as sepulturas se abrem,<br />
os mortos ressuscitam, poderosos e humildes, reis e mendigos, justos e injustos.<br />
Um grito terrível enche o universo com um pedido de perdão que enche o espaço.<br />
Ouvem-se as trombetas apocalípticas. É hora do ajuste de contas, débitos e<br />
créditos, Céu e Inferno, Inferno tão bem pintado nas telas horrendas de Hieronimus<br />
Bosch. Então, em meio a um silêncio sinistro, ouve-se o canto de um rouxinol
distante. Uma grande tranquilidade invade tudo. E eis, surpresa! Não há<br />
julgamento, não há débitos e créditos, não há justos e pecadores, não há<br />
poderosos e humildes, não há vinganças e recompensas, não há condenações! Um<br />
sentimento de amor perfuma o mundo”. A Reforma foi o canto de um rouxinol<br />
nesse horror de culpa e medo. Não há julgamento. Deus é todo bondade.<br />
Maria Santíssima de arma na mão<br />
O guia, para atestar a profunda religiosidade do seu povo, disse-me que a mansa<br />
mãe de Deus, Maria Santíssima, tem a patente de generala do Exército do seu<br />
país, Chile. Fiquei pasmo. Assombrou-me mais que a Igreja do Cuspe de Cristo.<br />
Porque para o nome Igreja do Cuspe de Cristo há, pelo menos, recurso aos textos<br />
evangélicos, nos quais se relata que Cristo curou um cego com cuspe. O cuspe foi<br />
usado para o bem. Mas “generala”... Não encontro nos textos sagrados autorização<br />
para transformar a mãe de Cristo em patente militar. Há de se perguntar, em<br />
primeiro lugar, quem foi que a agraciou com esse título? A seguir, há de se<br />
perguntar se ela o aceitou. Se aceitou, duvido da santidade da Virgem. Porque,<br />
pelo que conheço, a mãe de Jesus era uma mansa mulher. Não posso imaginá-la<br />
fardada, cavalgando um cavalo negro, com espada desembainhada. Não posso<br />
imaginá-la a examinar mapas do campo de batalha e a determinar bombardeios e<br />
baionetas caladas. Pois não é isso que fazem os generais? Ou a Virgem não é a<br />
mansa mulher que sempre imaginei ou esse título é espúrio. Acho que vou<br />
denunciar a heresia ao papa para que ele trate de excomungar os detratores do<br />
caráter da Mãe de Deus.<br />
Olhai as aves do céu...<br />
É um conselho de Jesus. Se ele aconselhou é porque o voo das aves no céu é uma<br />
metáfora do sagrado. As aves voam porque são amigas do ar e dos ventos (vejam<br />
só os urubus voando nas funduras do céu sem bater asas...). E foi o próprio Jesus<br />
que declarou que Deus é um vento que sopra sem que saibamos donde vem nem<br />
para onde vai. Nosso destino é ser aves; flutuar ao sabor do vento. Por decisão<br />
divina, somos seres destinados ao voo. Não é por acaso que o céu estrelado foi um<br />
dos primeiros objetos da curiosidade científica dos homens. A famosa Torre de<br />
Babel que os homens se puseram a construir e cujo topo deveria bater nos céus foi<br />
um artifício técnico bolado pelos homens para compensá-los do seu aleijão: haviam<br />
perdido suas asas. Quem não pode voar tem de subir pelos degraus... Mas vocês<br />
sabem o que aconteceu: a torre nunca foi concluída e os homens se espalharam<br />
pelo mundo na maior confusão. De fato, para se tocar as estrelas é preciso ter
asas. Se duvidam, releiam a estória do sapo que resolveu ir à festa nos céus dentro<br />
do buraco da viola do urubu. Terminou estatelado numa pedra. Acho que o mito da<br />
Torre de Babel e a estória do sapo são variações do mito de Ícaro.<br />
Sexo<br />
As igrejas cristãs são responsáveis por haverem estragado um dos mais deliciosos<br />
brinquedos que Deus nos deu: o sexo. Primeiro ela estragou o brinquedo afirmando<br />
que o sexo era um artifício do demônio para a perdição das nossas almas. O que<br />
explica o voto de castidade imposto aos religiosos. Quem é religioso, quem ama a<br />
Deus, não brinca com brinquedos do demônio. Quem primeiro expressou essa<br />
teoria de forma sistemática foi santo Agostinho. Foi por meio do prazer sexual que<br />
o pecado entrou no mundo. O desejo sexual, segundo ele, era uma das evidências<br />
da desordem que o pecado provocou no corpo. Explicando as razões por que o<br />
homem fez para si mesmo uma tanga de folhas para cobrir a sua nudez, ele diz que<br />
foi por vergonha, para esconder um membro que se movimentava por vontade<br />
própria, contrariando os imperativos da razão. Sexo certo é sexo sem prazer, mas<br />
por dever. Para a reprodução. Para completar a população dos céus e dos infernos.<br />
Os órgãos sexuais, em especial o órgão masculino, deveriam se comportar como o<br />
dedo, que só se movimenta quando a razão manda, sem a interferência do desejo<br />
carnal e do prazer. Havendo fracassado essa tentativa de estragar os prazeres do<br />
brinquedo sexo, as igrejas inventaram um outro artifício: divinizaram-no. Sendo<br />
coisa divina, o sexo deixa de ser brinquedo para ser coisa séria. Transar, tudo bem.<br />
Desde que se cantem litanias enquanto se transa.<br />
Inseminação artificial<br />
<strong>Faz</strong> anos, a TV Globo anunciou uma coisa extraordinária, através do rosto piedoso<br />
e a voz paternal do Cid Moreira: os moralistas da cúria romana haviam descoberto<br />
uma forma de tornar a inseminação artificial eticamente correta! Entenda-se, é<br />
claro, inseminação com o sêmen do marido. Anteriormente, até com o sêmen do<br />
marido ela era considerada pecado. Porque o sêmen só podia ser obtido de forma<br />
imoral. A primeira das imoralidades é a masturbação. Que é pecado, por frustrar a<br />
natureza. A segunda das imoralidades é a relação sexual com camisinha – que<br />
frustra a natureza da mesma forma: os espermatozoides estão impedidos,<br />
fisicamente, de entrar no útero. Mas aí os ortodoxos teólogos moralistas pensaram:<br />
“Caso se faça um pequeno furo na camisinha, a natureza não estará sendo<br />
frustrada, porque existe sempre a possibilidade de que um espermatozoide passe<br />
pelo buraquinho...”. Assim, se o sêmen for colhido com uma camisinha furada, a
inseminação artificial pode ser realizada sem pecado... Aí eu fiquei imaginando um<br />
departamento, nos céus, encarregado de classificar as camisinhas. Camisinhas sem<br />
furo são pecado. Levam ao Inferno. Camisinhas com furo revelam uma alma<br />
piedosa, obediente à sabedoria moral da Igreja... Meu Deus: eu gostaria de ter o<br />
humor do Macaco Simão para falar sobre essas coisas! Como é que Deus aguenta?<br />
Santo feliz<br />
Não conheço nenhum santo feliz. Estão todos com uma cara de sofrimento, feridas,<br />
espadas, espinhos, punhais. Quero um santo que seja uma pessoa normal,<br />
exuberante, brincante, feliz, neste mundo onde Deus plantou o Paraíso! Deus<br />
sonhou com um lugar maravilhoso, de delícias e beleza, e o plantou. Tão bonito<br />
que ele deixou os céus (lá não havia nem árvores, nem riachos, nem pássaros. Se<br />
houvesse, ele não teria criado o Paraíso...) e ficou andando pelo jardim. Pelo<br />
menos é isso que dizem os textos sagrados. Para mim, um santo seria uma pessoa<br />
que planta jardins e vive neles. Mas os olhos dos santos canonizados não sorriem<br />
para os jardins. Para eles, este mundo é um vale de lágrimas onde perambulam os<br />
degredados filhos de Eva, como diz uma reza do rosário. Por isso olham<br />
languidamente para os céus. Deus olha para baixo e sorri. Eles olham para cima,<br />
chorando. São mais espirituais do que Deus...<br />
Sebastião Gama,<br />
poeta português (1924-1952): “Por que não me deixaram sempre agreste e<br />
criança? As minhas leituras seriam todas fora dos livros. Havia de olhar para tudo<br />
com uma alegria tão grande, com uma virgindade tão grande, que até Deus<br />
sorriria, contente de ter feito o Mundo...”.<br />
Deus nos deu asas<br />
As religiões inventaram as gaiolas. Nossas asas são a imaginação. Pela imaginação<br />
voamos longe, muito longe, pela terra do nunca mais, pela terra do impossível,<br />
pela terra do impensado. Não entenderam? Leiam Cem anos de solidão. Vocês<br />
entenderão. Eu até que entendo a razão por que se fazem gaiolas e cercas. Vejam<br />
o caso das galinhas. Se não vivessem em cercados, como colher os seus ovos? Se<br />
os pássaros não estivessem nas gaiolas, como possuir o seu canto? Cercas e<br />
gaiolas são construídas para se possuir aquilo que, de outra forma voaria livre, para<br />
longe... <strong>Faz</strong> tempo, escrevi uma estória para a minha filha, A menina e o pássaro<br />
encantado. É sobre uma menina que tinha como seu melhor amigo um pássaro.
Mas o pássaro voava livre. Vinha quando tinha saudades da menina. E depois ia<br />
embora e deixava a menina a chorar. Aí a menina comprou uma gaiola... Essa<br />
estória eu a escrevi porque iria ficar muito tempo longe, nos Estados Unidos, e ela,<br />
minha filha de quatro anos, não queria que eu fosse. Fui e voltei. Depois de<br />
publicada, fui informado de que a estória estava sendo usada por terapeutas como<br />
material para tratamento de homens que queriam engaiolar as mulheres e<br />
mulheres que queriam engaiolar os homens. Aí um amigo me disse. “Que linda<br />
estória você escreveu sobre Deus...” Fiquei sem entender. Ele perguntou então:<br />
“Mas o Pássaro Encantado não é Deus, que as religiões tentam prender numa<br />
gaiola?”. Cada religião anuncia que o Pássaro Sagrado está na sua gaiola, só na<br />
sua gaiola. Os outros pássaros, nas gaiolas das outras religiões, não são o<br />
verdadeiro Pássaro Encantado...<br />
Canto ou ovos?<br />
Há pessoas que amam o Pássaro Encantado por causa do seu canto. Outros, por<br />
causa dos seus ovos. Com ovos se fazem deliciosas omeletes. Jesus disse a mesma<br />
coisa de outra forma. Há os que amam a Deus por causa dos seus poemas. Deus é<br />
poeta. No princípio era o Verbo. Outros amam a Deus por causa dos pães. Deus é<br />
um bom padeiro.<br />
Fogueira<br />
Um amiga me advertiu de que, se continuar a falar sobre os absurdos da religião,<br />
eu vou acabar como Huss, Savonarola, Giordano Bruno, Servetus: amaldiçoado<br />
como herege e transformado em churrasco nas fogueiras sempre acesas da eterna<br />
inquisição. Porque a inquisição, caso não o saibam, não foi um acidente histórico<br />
enterrado no passado. A inquisição é uma eterna tentação que seduz o espírito<br />
humano. Mas herege eu não sou. Pelo contrário. Sou místico, vejo milagres nas<br />
mais absurdas insignificâncias do cotidiano. O canto de um pássaro não é um<br />
milagre? Uma teia de aranha não é um milagre? Uma concha de caramujo não é<br />
um milagre? O assombro mora no visível. Claro que há pessoas cegas, que não<br />
vêem o assombroso que está diante dos seus narizes, e ficam em busca de<br />
acontecimentos sobrenaturais. Pois, para mim, é o natural que é sobrenatural. O<br />
sagrado é a tela sobre a qual a vida é tecida.<br />
Promessas<br />
É bom dar presentes para pessoas amadas. Para uma pessoa amada, a gente
pensa muito antes de comprar o presente. Porque o que se deseja é que o<br />
presente lhe dê felicidade. Quando eu dou um presente, com ele estou dizendo:<br />
“Acho que você vai se alegrar...”. Uma flor, um CD, um brinquedo, um livro...<br />
Quando se fazem promessas a Deus, para assim seduzi-lo a fazer o que queremos,<br />
usamos o mesmo artifício. Assim: “Se tu me deres o que peço, eu te darei aquilo de<br />
que gostas...”. O que você prometer a Deus revela o que você acha do caráter<br />
dele. Sendo assim, por favor, me expliquem, eu só quero entender: Por que não<br />
fazemos promessas do tipo: vou ler poesia meia hora por dia? Vou ouvir música ao<br />
acordar? Vou brincar uma hora com o meu filho? As promessas que se fazem a<br />
Deus são sempre promessas de sofrimento: fazer caminhadas de joelhos, passar<br />
seis meses sem beber refrigerante, fazer jejum... Então é o nosso sofrimento que<br />
faz Deus feliz? Deus é sádico? Prestem atenção: não sou eu que estou dizendo.<br />
Isso não é blasfêmia minha. É blasfêmia de quem promete casca de ferida a Deus.<br />
Mordomia<br />
No linguajar comum, a palavra “mordomia” se tornou sinônima de luxo, prazer,<br />
conforto... “Que mordomia, hein?” Os protestantes (não confundir com evangélicos)<br />
já a usavam há muito tempo, com um sentido completamente diferente. O<br />
mordomo é o administrador supremo da casa. A casa não é dele. Foi-lhe confiada.<br />
Mordomia é um conceito ético: somos responsáveis pela administração dos bens<br />
que Deus nos confiou. Um dos bens que Deus nos confiou é a inteligência.<br />
Inteligência: capacidade de pensar, de duvidar, de buscar alternativas. Quando<br />
uma pessoa tem uma inteligência preguiçosa, ela para de pensar e se prende a<br />
hábitos passados. Quem se recusa a pensar está sendo um mau mordomo. Jesus<br />
contou a parábola de um servo a quem o senhor confiara um dinheiro para ser<br />
administrado na sua ausência. O dito servo, não querendo fazer força, enterrou o<br />
dinheiro para que não fosse roubado. Retornando o senhor, ele pediu que o servo<br />
prestasse contas do dinheiro. O servo lhe entregou o mesmo dinheiro que havia<br />
recebido. O senhor, irritado com a preguiça do servo, tirou-lhe o dinheiro e deu-o a<br />
um outro que tinha muito. A inteligência é assim: quem a deixa enterrada acaba<br />
ficando sem ela. Há uma mordomia da inteligência: é nosso dever fazê-la voar...<br />
Deus ama as inteligências audazes. Se não fosse assim, ele nos teria feito sem<br />
inteligência, como os animais... Muitas pessoas gostariam de ser como os animais.<br />
Acredita-se em tudo<br />
Meu irmão Ismael, lá de Lavras, envia-me recortes do jornal local onde aparecem<br />
publicadas as “Simpatias da Akemi”. Não tenho a menor ideia do que seja essa
“Akemi”. Mas as simpatias são uma prova do que a estupidez humana é capaz de<br />
inventar e acreditar. “Para curar diabetes: pegar um mamão-macho, cortar uma<br />
tampa, urinar dentro dele (o diabético), tampar bem tampado e depois enterrar o<br />
mamão. Para atrair muito dinheiro: na lua nova pegar uma nota, a maior que tiver<br />
em mão, chegar à janela, levantar a nota para a Lua, dizendo três vezes: Lua nova,<br />
renova essa nota para mim em milhões, cem milhões. Rezar um Pai-Nosso e uma<br />
Ave-Maria.” Fiquei em dúvida sobre se deveria colocar essas simpatias no texto.<br />
Explico: a Bia, da Papirus, me disse que recebeu um texto com a afirmação: “É<br />
impossível morder o cotovelo”. Pois ela duvidou e imediatamente tentou morder o<br />
cotovelo. Fracassou. O texto continuava: “Você não acreditou. Tentou morder...”.<br />
Imaginei que o mesmo poderia acontecer com alguns leitores que gostariam de<br />
colocar as simpatias à prova e se dispusessem a urinar dentro do mamão e a<br />
mostrar cédulas de R$100,00 para a Lua... Se der resultado me avisem...<br />
“A quem muito se lhe deu muito se lhe pedirá”<br />
Albert Schweitzer é uma das pessoas que mais admiro. Teólogo, filósofo, prêmio<br />
Goethe de Literatura, concertista de órgão, especialista em Bach, sobre quem<br />
escreveu uma obra clássica, prêmio Nobel da Paz, aos trinta anos abandonou tudo.<br />
Mudou a direção do seu voo. Profundamente místico, com grande compaixão pelos<br />
que sofriam, resolveu estudar medicina e passar o resto de sua vida num lugarejo<br />
miserável, no coração da África. Ele levava a sério as palavras de Jesus: “A quem<br />
muito se lhe deu, muito se lhe pedirá”. E pensava: “Muito, muitíssimo me foi dado;<br />
muito, muitíssimo eu tenho que dar”. E deu a sua vida inteira. Jamais passaria pela<br />
sua cabeça imaginar que ele, em virtude do muito que havia recebido, deveria<br />
gozar de privilégios especiais. Lembrei-me dele ao ler sobre aqueles que, havendo<br />
recebido muito, argumentam que, por haverem recebido muito, têm o direito de<br />
receber mais ainda. O Brasil é o país onde o que vale é o contrário do que diz<br />
Jesus, e isso a despeito dos crucifixos e benzeções: “A quem muito se lhe deu,<br />
muito mais se lhe dará”. Se não é de Jesus, de quem será? Não me atrevo a<br />
sugerir. É assim que aqueles que foram encarregados democraticamente de<br />
proteger os fracos fazem leis em benefício próprio, leis que acrescentam só a eles<br />
privilégios dos quais o povo comum está excluído. Isso não é coisa nova. Os<br />
profetas já denunciavam os pastores que engordavam com a carne das ovelhas que<br />
deveriam proteger. Acho, sim, que se há um grupo que é merecedor de leis<br />
especiais que lhe garantam privilégios, esse grupo são as crianças. As crianças<br />
abandonadas são uma ferida horrível numa sociedade de classes privilegiadas e<br />
arrogantes que vivem em palácios... Como é bem sabido, “quem semeia ventos<br />
colhe tempestades...”.
Templos ou jardins?<br />
No Paraíso não havia nem templos nem altares. Como o Paraíso foi o jardim<br />
plantado por Deus, jardim onde se encontravam todas as coisas boas sonhadas<br />
pelo Criador, concluímos que os templos e os altares não se encontravam entre os<br />
seus sonhos. Não eram objetos do seu desejo. Se ele tivesse sonhado um templo<br />
ou altar, é certo que ele os teria feito. Segundo o que os religiosos acreditam,<br />
templos e altares são a casa de Deus. Deus mora lá. Reza feita na igreja é mais<br />
poderosa. É por isso que os piedosos fazem o sinal da cruz ao passar diante de<br />
uma igreja. No Paraíso não havia templos e altares porque Deus estava misturado<br />
com todas as coisas. Sua casa não era uma casa de quatro paredes. Eram as<br />
árvores, as flores, os frutos, as fontes, o vento... O poema bíblico da criação diz que<br />
Deus passeava pelo jardim ao vento fresco da tarde...<br />
Palavra proibida de se dizer<br />
Deus é uma palavra para ser calada, proibida de ser dita. Por isso os judeus eram<br />
proibidos de dizê-la. O nome Deus, para eles, era um grande silêncio. E de tanto<br />
fazer silêncio sobre ele acabaram por esquecê-lo. Havia uma lenda de que, no dia<br />
mais sagrado do ano, o sumo sacerdote entrava no Santo dos Santos, lembrava-se<br />
do nome de Deus e o pronunciava. E o universo inteiro o ouvia. Mas imediatamente<br />
todos o esqueciam. Quando se começa a falar o nome de Deus é certo que se está<br />
falando sobre outra coisa que não Deus. Fala-se sobre Deus quando ele foi perdido.<br />
Para reencontrá-lo é fácil: basta caminhar em silêncio em um jardim.<br />
Peregrinações<br />
Pessoas religiosas fazem longas e penosas viagens, peregrinações, para visitar<br />
lugares santos. Não há lugares santos. Dizer que um lugar é santo, que ali o<br />
sagrado está mais presente do que em outros, é dizer que há lugares em que Deus<br />
está menos presente, como se ele os tivesse abandonado. E isso, a se acreditar<br />
nos teólogos, é negar a onipresença de Deus – o que é heresia. O universo inteiro<br />
é hóstia. O místico não é o milagre grosseiro: o paralítico que volta a andar, o cego<br />
que volta a ver, o ladrão que para de roubar, seres do outro mundo que aparecem<br />
em cavernas ou são pescados do fundo de rios. Milagre é o arabesco da asa de<br />
uma borboleta; o voo do beija-flor; o perfume da magnólia; a flor do trevo; a<br />
cachoeira; o arco-íris; uma noite estrelada; o pasto rosa com as flores do capimgordura;<br />
a chuva; o canto do sabiá; um caramujo; uma teia de aranha; a
amizade... Milagre são meus olhos, os meus ouvidos, as minhas mãos. Não é<br />
preciso fazer peregrinações. Tudo é milagre. O universo é um milagre. Mas aqueles<br />
que vendo nada veem procuram milagres em lugares esquisitos.<br />
Lixo<br />
Gandhi, profundamente místico, se horrorizava com a sujeira dos lugares sagrados.<br />
Senti o mesmo quando visitei Aparecida. O que revelava a alma dos fiéis. Achavam<br />
que a santa estava dentro da basílica, mas não nos pátios. No interior da basílica<br />
silêncio, preces balbuciadas, genuflexões, sinais da cruz. Fora da basílica, sujeira.<br />
Eles não sabem que a limpeza é um ato de reverência. Porque, a se acreditar na<br />
iconografia católica, a capa azul de Nossa Senhora cobre o mundo. E toda sujeira<br />
que se faz é lixo depositado na sua capa.<br />
O que acontece com a inteligência?<br />
Você não é bobo. Não acredita em qualquer coisa. Sabe distinguir o possível<br />
daquilo que é mentira. Eu lhe digo que no meu sítio há uma raça de gansos verdes<br />
de três pernas que botam ovos quadrados. Você não acredita. O seu filho lhe diz<br />
que no seu quarto há um elefante cor-de-rosa soprando bolinhas de sabão verdes.<br />
Você não acredita. Ou o menino está fazendo uma brincadeira ou ficou louco. A<br />
inteligência “testa” as ideias para saber se elas são dignas de crédito. Agora me<br />
explique: por que é que, quando se entra no campo da religião, as pessoas estão<br />
prontas a acreditar em qualquer coisa que outra pessoa lhes diz? Será que, para se<br />
ter sentimentos religiosos é preciso abandonar a inteligência?<br />
Milagre<br />
Carlos Rodrigues Brandão, antropólogo apaixonado pelo povo simples, apaixonouse<br />
pela Espanha e escreveu um livro lindíssimo, cheio de fotografias de lugares<br />
abandonados, casas de pedra, aldeias quase vazias, campos, caminhos, gente<br />
rústica: Aldeas: escritos e imaxes da Galicia tradicional (Santiago de Compostela,<br />
Toxosoutos, 2003). O povo espanhol é muito religioso e ligado a milagres. Pois o<br />
Brandão me relatou que um velho camponês lhe descreveu um milagre: o santo foi<br />
decapitado. Mas, mesmo decapitado, ele se curvou, apanhou sua cabeça e a<br />
beijou. “Mas como é isso possível”, lhe perguntou o Brandão, “que um corpo sem<br />
cabeça, só pescoço, beije a sua cabeça?” O camponês o olhou espantado,<br />
certamente perplexo de que um professor universitário fosse tão estúpido para<br />
coisas da fé, e lhe deu a explicação definitiva: “Pero, señor, en esto precisamente
está el milagro!”.<br />
Sorvete e religião<br />
Manhã de domingo. Jardim. A menininha chorava. Queria chupar um sorvete. A<br />
mãe dizia que “não”. As roupas e o jeito diziam que eram pobres. Um senhor,<br />
compadecido da dor da menininha, ofereceu-se para comprar-lhe o sorvete. A<br />
menininha respondeu: “Não adianta. A gente, além de ser pobre, é crente”. Foi-me<br />
contado pelo Jether Ramalho.<br />
Moram no mesmo edifício<br />
Católicos e protestantes: quantas lutas, quantos ódios, quantas perseguições,<br />
quanto sangue derramado. Há dias vi na televisão um filme terrível sobre a Noite<br />
de São Bartolomeu, montanhas de cadáveres ensanguentados, assassinados em<br />
nome de Deus. Não deviam tê-lo sido. Porque eles, católicos e protestantes, são<br />
primos tão próximos. Moram no mesmo edifício de três andares, propriedade do<br />
Senhor Invisível que ninguém jamais viu, à semelhança do “Senhor” de O castelo,<br />
de Kafka. O andar térreo é este mundo, lugar de transição, efêmero. Os que ali<br />
estão, todos nós, estão à espera da residência definitiva onde passaremos a<br />
eternidade. Nos porões estão as câmaras de tortura, administradas pelo Diabo,<br />
lugar de sofrimento. É claro que o Senhor Invisível, se quisesse, poderia acabar<br />
com as câmaras de tortura. Afinal, ele é todo-poderoso e foi ele mesmo quem as<br />
fez, entregando ao Diabo a sua administração. Será que o Diabo é um funcionário<br />
de Deus, da mesma forma que eram funcionários do presidente da República os<br />
torturadores do tempo da ditadura? É um assunto a se pensar. No andar de cima<br />
estão os céus, lugar de prazeres e felicidade, para onde irão os inquilinos que<br />
adoram o Senhor Invisível. Nesse edifício moram protestantes e católicos. O que os<br />
distingue é a forma como veem o trânsito de influências dentro do prédio. Os<br />
protestantes afirmam que tudo se resolve diretamente com o Senhor Invisível e<br />
que a chave para o andar superior é semelhante à chave que Ali Babá usava para<br />
abrir a porta da caverna dos tesouros: uma fórmula mágica: Abre-te Sésamo! A<br />
fórmula protestante é “Tenho Cristo no coração” ou “Creio em Cristo como meu<br />
salvador”. Os católicos, ao contrário, dizem que existe uma complexa rede<br />
burocrática intermediária composta de duas classes de representantes do chefe: há<br />
aqueles que ainda se encontram no andar térreo entre os vivos e milhares de<br />
outros que já habitam o andar superior. O que é crucial é que a pessoa seja<br />
devidamente cadastrada por uma instância burocrática devidamente autorizada e<br />
que possui a chave da porta do andar superior. Fora dessa instância não há
salvação.<br />
Oração de uma criança<br />
“Deus, que os maus não sejam tão maus e que os bons não sejam tão chatos.<br />
Amém.”<br />
Estória que me contaram<br />
“Havia certa vez um homem que dizia o nome de Deus. Quando o coração lhe doía<br />
por uma criança que chorava, ou um pobre que mendigava, ele andava até a<br />
floresta, acendia o fogo, entoava canções e dizia as palavras. E Deus o ouvia... O<br />
tempo passou. Voltou à mesma floresta. Mas não carregava fogo nas mãos. Só lhe<br />
restou cantar as canções e dizer as palavras. E Deus o atendeu ainda assim. Um<br />
tempo mais longo se foi. Sem fogo nas mãos, sem força nas pernas, não alcançou a<br />
floresta. Mas do seu quarto saíram as mesmas canções e as mesmas palavras. E<br />
Deus lhe disse que sim. Chegou a velhice. Nem floresta nem fogo ou canções.<br />
Restaram as palavras. E o mesmo milagre ocorreu. Por fim, sem fogo ou floresta,<br />
sem canções ou palavras. Só mesmo o infinito desejo e o silêncio: e Deus<br />
atendeu...”<br />
Teologando<br />
Assim diz a Cecília Meireles: “Foi, desde sempre, o Mar...”. Diz a Cecília? O certo<br />
não seria “disse”? Pois o poema foi escrito há muito tempo, pertence ao passado...<br />
E a Cecília já não vive entre nós. Vive, encantada, como peixe no fundo do Mar...<br />
Mas não me lembro de que a Cecília tenha usado jamais a palavra Deus – muito<br />
embora os seus poemas estejam perpassados do sentimento de assombro ante o<br />
Grande Mistério que nos cerca. E que metáfora mais bela para o Grande Mistério<br />
pode existir que o Mar que desde sempre foi? Lá está ele, enorme, sem fim, sua<br />
superfície azul escondendo os mistérios das profundezas! Silencioso, o Mar não<br />
revela os seus segredos. Sem nada saber, só nos resta ver e sonhar. E ficamos a<br />
imaginar o que estará lá no fundo! E a nossa imaginação coloca nas profundezas do<br />
Mar Sem Fim os seres que nadam em nosso pequeno mar chamado alma! Toda<br />
alma é também um mar. Assim são todas as palavras que se dizem sobre Deus.<br />
Tolos, os homens acreditam que as palavras que se dizem sobre o Mar Sem Fim<br />
revelam o seu mistério. Alguns há, atrevidos, que chegam a dizer que um Peixe<br />
Dourado, saído do fundo do mar, lhes contou os segredos... E andam por aí a<br />
espalhar as fantasias das suas almas como se fossem a verdade do Mar Sem Fim.
(E, por falar em “Peixe Dourado”, você sabe a razão por que os cristãos comem<br />
peixe na semana santa? Por favor, não repita a bobagem de que é porque carne de<br />
vaca tem sangue, e é como se estivéssemos bebendo o sangue e comendo a carne<br />
de Cristo. Pois não foi o próprio Cristo que disse que era necessário que<br />
comêssemos sua carne e bebêssemos seu sangue? Então, a razão deve ser outra...<br />
Ou será que você come peixe sem saber por quê?... ) Certo está o Alberto Caeiro<br />
que diz: “Pensar em Deus é desobedecer a Deus. Porque Deus quis que não o<br />
conhecêssemos. Por isso se nos não mostrou. Se ele quisesse que eu acreditasse<br />
nele, sem dúvida que viria falar comigo e entraria pela minha porta dentro dizendome:<br />
Aqui estou!”. Com o que concorda Walt Whitman: “Eu sou curioso sobre todas<br />
as coisas e não sou curioso acerca de Deus. Não há palavra capaz de dizer quanto<br />
eu me sinto em paz perante Deus e a morte”. Emily Dickinson, mulher frágil dotada<br />
de asas, tinha um delicado senso do Mistério. Mas, por isso mesmo, por sentir-se<br />
assombrada pelo Mistério que nos cerca, desprezava aquilo que sobre ele diziam os<br />
religiosos. “Alguns guardam o Domingo indo à igreja/ Eu o guardo ficando em casa/<br />
Tendo um Sabiá como cantor/ E um Pomar por Santuário./ Alguns guardam o<br />
Domingo em vestes brancas/ Mas eu só uso minhas Asas/ E ao invés do repicar dos<br />
sinos na Igreja/ Nosso pássaro canta na palmeira.// É Deus que está pregando,<br />
pregador admirável/ E o seu sermão é sempre curto. Assim, ao invés de chegar ao<br />
Céu, só no final/ eu o encontro o tempo todo no quintal.” Mas, afinal de contas, o<br />
que é que o Sabiá diz com o seu canto? Nada. Canto de Sabiá não é para ser<br />
compreendido. É para ser amado. Bem disse o avô Celestino, lá das bandas do<br />
Manoel de Barros: “Deus é assunto delicado de pensar; faz conta um ovo: se<br />
apertamos com força parte-se; se não seguramos bem cai”. Tantas coisas loucas os<br />
homens pensam sobre Deus. Esses tais se parecem com um tico-tico que me visita<br />
sempre. Pois ele se assenta no parapeito da janela e fica a bicar o vidro. Se lhe<br />
perguntássemos a razão por que bica o vidro, ele nos responderia: “O que é vidro?<br />
Não estou bicando vidro. Bico esse tico-tico à minha frente invasor do meu espaço.<br />
Mas o danado é esperto. Ele sempre adivinha onde vou bicar e se defende. O meu<br />
bico sempre bate no bico dele. Ele parece nada sofrer. Mas o meu bico está<br />
doendo...”. Pobre tico-tico. Ele não sabe o que são espelhos. Assim são os homens:<br />
vêem o seu rosto refletido nas águas do Mar Sem Fim e pensam que a imagem que<br />
veem é o rosto do Senhor do Mar, olhando para eles. Como o tico-tico, eles não se<br />
dão conta de que estão vendo sua própria imagem, refletida. Se você quiser saber<br />
como é a alma de uma pessoa, peça-lhe para falar sobre o seu Deus. Tudo o que<br />
disser sobre o seu Deus, ela estará falando sobre si mesma. Pessoas vingativas<br />
têm um deus vingativo. Como disse Bachelard, para se acreditar no Inferno é<br />
preciso ter muitas vinganças a realizar. Pessoas que se deixariam comprar por<br />
bajulações e favores têm um Deus que se deixa comprar por bajulações e favores...
Acham que isso é normal. Pessoas com alma policial têm um Deus carrasco...<br />
Pessoas que amam a música têm um Deus que é música... Pessoas que amam<br />
jardins têm um Deus jardineiro...<br />
Ervas amargas<br />
Na Páscoa judaica, as comidas eram servidas com ervas amargas. Absinto, losna...<br />
Acho que deveríamos misturar losna com nossas comidas e bebidas. É preciso<br />
beber o amargo da vida para se ter noção da doçura, ausente, distante... Paul<br />
Tillich, em um dos seus sermões, contou a seguinte história: “Nos julgamentos por<br />
crimes de guerra em Nuremberg compareceu uma testemunha que havia vivido por<br />
certo tempo num túmulo de um cemitério judaico. Era o único lugar onde ele e<br />
muitos outros podiam viver, escondidos, depois de haverem escapado das câmaras<br />
de gás. Durante esse tempo ele escreveu poesia, e um dos seus poemas era a<br />
descrição de um nascimento. Numa sepultura próxima, uma jovem deu à luz um<br />
menino. O coveiro, de oitenta anos, envolto num lençol de linho, foi o parteiro.<br />
Quando o menininho recém-nascido deu o seu primeiro choro, o velho homem<br />
orou: ‘Grande Deus, será que Tu finalmente nos enviaste o Messias? Pois quem,<br />
além do Messias, poderia nascer numa sepultura?’”.<br />
Deus não ri nunca?<br />
Na minha infância, toda igreja protestante tinha um quadro terrível, chamado Os<br />
dois caminhos. À direita, o caminho estreito, das abstenções e sacrifícios, que<br />
conduz ao céu: para ganhar o céu, após a morte, é preciso sofrer na terra, durante<br />
a vida. À esquerda, o caminho largo, cheio de prazeres, que conduz a um lago de<br />
fogo e enxofre. No alto desse cenário, resumo do mundo, flutuando no céu azul, o<br />
olho sem pálpebras de Deus, que tudo vê, indiferente e sem lágrimas. O olho de<br />
Deus não tem pálpebras porque nunca se fecha. Deus não dorme. É também um<br />
olho sem sorrisos. Os olhos, para sorrir, precisam de um rosto. Mas os olhos de<br />
Deus não estão num rosto. Estão dentro de um triângulo, figura geométrica<br />
perfeita. Deus é um teorema. Mantenho uma dessas gravuras emoldurada em<br />
rococós dourados pendurada numa parede. Para não me esquecer das coisas<br />
horríveis que os homens fazem com Deus. Deus não ri nunca?<br />
Inferno<br />
A monumental arquitetura de palavras que a Igreja construiu através dos séculos, a<br />
teologia dita ortodoxa, tem como seu alicerce o Inferno. A Trindade, a imaculada
conceição, a encarnação, a cruz, a expiação, a redenção, a salvação, o céu – todas<br />
essas doutrinas foram elaboradas em resposta à grande questão: como livrar os<br />
homens do Inferno. Se se eliminar o Inferno, o edifício inteiro implode. Agora,<br />
imaginar que Deus, que as Sagradas Escrituras declaram ser Amor, seja capaz de<br />
uma vingança tamanha, vingança eterna, contra pecadores que fizeram os seus<br />
pecados no tempo – isso me é inimaginável. Deve ser terrível acreditar num Deus<br />
assim.<br />
A sobra<br />
Da tradição cristã, então, não sobra nada? Sobra a arte. As catedrais, os vitrais, o<br />
canto gregoriano, o Messias de Haendel, os corais de Bach, as telas de Salvador<br />
Dali, de Grünenwald. A arte cristã é alimento para a minha alma, desde que os<br />
teólogos não a expliquem.<br />
Exegese<br />
Nietzsche se horrorizava ante as violências contra os textos sagrados que eram<br />
perpetradas dos púlpitos na Alemanha. Ele era filho de um pastor luterano; sabia<br />
sobre o que estava falando... Um exemplo tupiniquim, verdadeiro. O pregador<br />
falava sobre as Sagradas Escrituras. “Meus irmãos: a gente lê a Bíblia e duvida.<br />
Pois lá está escrito, acerca da volta de Jesus, nas nuvens, que ‘todo olho o verá’.<br />
Mas como é isso possível? A terra é redonda. Se ele voltar nas nuvens da China<br />
como poderemos nós, no Brasil, assistir a sua volta triunfante? Mas as Sagradas<br />
Escrituras não falham. Porque hoje, graças aos satélites e à televisão, todos<br />
poderemos assistir à volta de Cristo confortavelmente de nossas casas.” É<br />
assombroso que alguém tenha pensado e dito tal idiotice. Mais assombroso ainda é<br />
que a congregação não tenha gritado em protesto e tenha voltado mansamente no<br />
domingo seguinte, com os seus dízimos. Para isso eu tenho uma explicação: a<br />
religião põe a inteligência a dormir.<br />
Multiplicação dos pães e peixes<br />
Um outro teólogo famoso, conselheiro de poderosos, assim interpretou a estória da<br />
multiplicação dos pães e peixes: cada um da multidão que seguia Jesus tinha<br />
levado consigo o seu lanchinho particular, para uma eventual emergência. A<br />
multiplicação aconteceu porque os que haviam levado um lanchinho resolveram<br />
repartir com aqueles que não haviam levado um farnel. Daí ele salta para a<br />
magnífica conclusão: “A multiplicação dos pães é o anúncio do socialismo”. As
violências que se fazem com os textos sagrados para justificar opções políticas<br />
presentes não têm fim. Jesus: o primeiro líder socialista! O Reino de Deus é o<br />
socialismo! O dito teólogo nem se deu ao trabalho de ler um pouquinho adiante<br />
quando Jesus se voltou para as multidões “socialistas” que continuavam a segui-lo<br />
e as acusou: “Vós me seguis não porque vistes sinais do Reino mas porque<br />
comestes do pão e vos fartastes”. Ou seja: vocês não passam de um bando de<br />
interesseiros que não estão interessados no Reino de Deus, mas em encher a<br />
barriga. Jesus dá lanche de graça. Não me entendam mal: acho o socialismo um<br />
lindo ideal, uma estrela no céu, impossível de ser alcançada. O que me horroriza é<br />
o uso desonesto dos textos sagrados com o propósito de batizar políticas e<br />
partidos. Houve mesmo um líder político que declarou, em tempos idos, que a cor<br />
vermelha da bandeira do seu partido era o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
Não preciso de imperativos bíblicos para tomar posições políticas a favor dos<br />
fracos. Acho indecente ser bom e lutar pela justiça porque Deus manda. Há muitos<br />
que lutam pela justiça simplesmente porque amam os que estão sendo<br />
injustiçados, sem precisar que Deus lhes dê ordens.<br />
Índex<br />
Os cristãos, católicos e protestantes, acreditam que a Bíblia inteira é inspirada, de<br />
capa a capa. Tudo o que está dentro dela é “Palavra do Senhor”. Por favor, me<br />
expliquem então as razões por que há partes da Bíblia sobre as quais os púlpitos<br />
fazem silêncio completo. Esse silêncio é uma “censura”? Os clérigos católicos e<br />
protestantes “escolhem” os textos que lhes são mais convenientes e “escondem” os<br />
textos “embaraçosos”? Veja, por exemplo, o texto abaixo. Está na Bíblia. É,<br />
portanto, “Palavra do Senhor. Graças a Deus”. Você já ouviu algum sermão sobre<br />
ele? Claro que não. Esse texto está no Index Librorum Prohibitorum... “Como és<br />
formosa, querida minha, como és formosa! Teus olhos são como pombas e brilham<br />
através do teu véu. Os teus lábios são como um fio escarlate e as tuas faces como<br />
uma romã partida... Arrebataste-me o coração com um só dos teus olhares! Os<br />
teus lábios destilam mel. Mel e leite se acham debaixo da tua língua. Os meneios<br />
dos teus quadris são como colares trabalhados pelas mãos de um artista. O teu<br />
umbigo é uma taça redonda a que não falta bebida. E o teu ventre é um monte de<br />
trigo cercado de lírios. Os teus seios são como os cachos da videira e o aroma da<br />
tua respiração como o das maçãs... Vem, ó meu amado... Já despi a minha<br />
túnica...” (Cântico dos cânticos)<br />
Medalhas
Ela, menina, tinha um punhado de medalhas no pescoço. Sua mãe lhe ensinara que<br />
eram santos e que eles davam proteção. De noite, depois de rezar a todos os<br />
santos que estavam em quadros pendurados na parede, ela tinha de beijar todas a<br />
medalhas. Mas como as medalhas eram muitas, ela nunca tinha certeza de haver<br />
beijado todas. Assim, ficava beijando interminavelmente as imagens (se um santo<br />
fosse esquecido havia a possibilidade de que ele se vingasse) até que dormia de<br />
cansaço...<br />
Reverência pela vida<br />
A Igreja Católica é radicalmente contrária ao aborto. Trata-se de uma postura ética<br />
que merece todo o meu respeito. Um teólogo católico, explicando a posição da<br />
Igreja na televisão, declarou: “Somos contra o aborto porque somos a favor da<br />
vida”. Fiquei encantado! Eu também sou a favor da vida. E Gandhi. E Albert<br />
Schweitzer. Reverência pela vida. É isso mesmo! É preciso ser a favor da vida. Tudo<br />
aquilo que conspira contra a vida deve estar sob a maldição eclesiástica. Uma das<br />
virtudes intelectuais dos pensadores católicos, desenvolvida através dos séculos, é<br />
a coerência lógica. Coerência lógica é aceitar todas as consequências de um<br />
princípio que se toma como normativo. No nosso caso, o princípio de que toda vida<br />
é sagrada. Se toda vida é sagrada, então, juntamente com o aborto, devem ser<br />
colocados na lista de pecados mortais tudo aquilo que contribua direta ou<br />
indiretamente para a morte. Hoje as armas matam um número infinitamente maior<br />
de pessoas que o aborto. Mas não conheço nenhuma atitude da Igreja contra a<br />
fabricação, venda e posse de armas que se compare, em firmeza, com a sua<br />
atitude contra o aborto. E o presidente Bush, o primeiro-ministro Blair e todos os<br />
generais envolvidos deveriam ter sido excomungados. Também não conheço<br />
nenhuma atitude da Igreja contra a pena de morte. A Igreja Católica andou de<br />
braços dados com o generalíssimo Franco (quem lhe terá dado esse título<br />
magnífico?), ditador cruel de comunhão diária que matou muita gente no garrote<br />
vil. Eu pediria do cardeal Ratzinger – quero preservar o seu nome – que exercite a<br />
virtude da coerência que ele tão bem exerceu na caça aos teólogos dissidentes.<br />
Os caminhos da burocracia celestial<br />
Um texto teológico medieval explicava aos homens os caminhos da burocracia<br />
celestial que têm de ser seguidos para que os seus desejos sejam atendidos pelo<br />
distante Deus Pai Todo-poderoso. A primeira instância a ser visitada é a Virgem<br />
Maria, mãe amorosa que, como toda mãe, quer fazer todas as vontades dos filhos.<br />
Diante da Virgem, o pedinte expõe o seu desejo: arranjar um marido, o marido já
arranjado deixar de ter amantes, o filho vagabundo passar no vestibular, etc. A<br />
pura Virgem acolhe o pedido do seu filho ou filha, mas ela mesma não tem poder<br />
para atendê-lo. Ela vai, então, pessoalmente, para a segunda instância, que é<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo. Diante dele, ela expõe o pedido que lhe foi feito e, para<br />
convencer o seu Divino Filho, ela lhe mostra o seio, o seio que o amamentou. Ele<br />
não tem alternativas. Como poderia dizer “não” ao seio que o amamentou? Mas<br />
nem mesmo Jesus tem a última palavra, embora a doutrina da Trindade afirme que<br />
ele é consubstancial com o Pai (ou, como diziam os teólogos de antigamente, em<br />
grego, “homoousios” com o Pai. Houve uma enorme polêmica que rachou a Igreja<br />
sobre se Jesus era “homoousios” com o Pai ou “homoiousios” com o Pai! Que<br />
diferença faz um simples “i”...). Ele tem de pedir a aprovação de Deus Pai Todopoderoso.<br />
De que artifício vai ele se valer para isso? Deus não se comove com<br />
“seios”, objetos de erotismo prazeroso. Mas ele se comove com feridas, objetos de<br />
erotismo doloroso. Uma pitadinha de sadismo na burocracia. O Filho, então, lhe<br />
mostra as mãos, perfuradas pelos cravos – perfurações dolorosas que aconteceram<br />
para que Deus Pai acertasse sua contabilidade com os homens. Deus, sem nem<br />
pensar no pedido do pedinte, comovido pela visão das mãos perfuradas, diz sim e o<br />
milagre desejado acontece.<br />
A Ordem dos Cata-lixo<br />
Sugeri ao sumo pontífice que criasse uma nova ordem religiosa, a Ordem dos Catalixo.<br />
Sua missão seria ir pelas cidades e pelos caminhos catando lixo e ensinando<br />
os fiéis a catar lixo. Mais importante que construir igrejas é catar lixo. Porque Deus<br />
não mora em igrejas. Mora no bom mundo que criou como Paraíso e os seres<br />
humanos estragaram com o lixo. Enquanto isso, as penitências poderiam ser<br />
transformadas de repetições de rezas (Deus e a Virgem já as sabem de cor e estão<br />
cansados de ouvi-las, sempre as mesmas...) em sacos de lixo a serem catados.<br />
Uma mentira, um saco de lixo. Um xingamento: cinco sacos de lixo. Infidelidade:<br />
dez sacos de lixo. Corrupção: o corrupto iria dentro do saco e teria de viver por um<br />
ano no lixão, na companhia dos urubus, seus colegas...<br />
Culpa<br />
Os judeus têm uma fina percepção do poder do sentimento de culpa. Eles mesmos<br />
inventaram esta piadinha. Uma mãe italiana, quando está furiosa com o filho, faz<br />
uma gritaria, joga pratos, pega o rolo de macarrão, o filho foge correndo pela porta<br />
enquanto ela diz: “Desgraçado, eu te mato...”. A mãe judia, quando está furiosa<br />
com o filho, chega-se mansamente a ele, uma lágrima escorrendo pelo rosto, e diz
em baixinho: “Meu filho, eu me mato...”. Há um hino protestante que é uma<br />
versão musical da piadinha: “Morri, morri na cruz, por ti. Que fazes tu por mim?”. A<br />
cruz, vista pelos olhos do Mel Gibson, não liberta. Escraviza. Por isso não vi o filme.<br />
Aplausos ao papa<br />
O papa assinou uma instrução sobre a liturgia que merece todo o meu louvor. Pôs<br />
ordem na casa. Primeiro, proibiu que padres permitissem que pastores protestantes<br />
participassem da celebração dos sacramentos. Muito certo. Sem essa proibição a<br />
casa cai. Pois a doutrina da Igreja está baseada na crença de que o Espírito Santo<br />
é comunicado pela imposição das mãos, coisa que vem desde são Pedro. Há, de<br />
são Pedro até os dias de hoje, um contínuo fluir desse carisma. E é esse carisma<br />
que dá ao sacerdote o poder para, ao pronunciar as palavras sagradas,<br />
transubstanciar o pão e o vinho em corpo e sangue de Cristo. Ora, os pastores<br />
protestantes estão fora dessa corrente. Portanto, falta-lhes o Espírito Santo. Se<br />
eles participarem da celebração dos sacramentos, o milagre da transubstanciação<br />
não acontece. Permitir que pastores protestantes participem da celebração dos<br />
sacramentos equivale a negar o fundamento sobre o qual a Igreja Católica foi<br />
construída. É por isso que o ecumenismo é também proibido. A diferença está em<br />
que a Igreja Católica afirma que o Espírito Santo anda dentro de um cano chamado<br />
“sucessão apostólica”. Os protestantes, ao contrário, acreditam que não há formas<br />
de encanar o Espírito Santo. Porque ele mais se parece com a chuva que cai onde<br />
quer, quando quer... Parabenizo, assim, o papa, por sua sólida coerência teológica.<br />
A seguir, ele proibiu o uso de música popular na missa. Tem todo o meu apoio. Há<br />
músicas que se cantam nas missas que são lamentáveis. E não tem nada a ver com<br />
ser popular ou não. “Oh! Deus salve o cálice bento onde Deus fez a morada...” é<br />
música popular e é absolutamente linda. A Missa Crioula, a Missa Luba. O problema<br />
é a qualidade. Não basta juntar rimas e violão para se ter música. A tradição<br />
musical cristã é maravilhosa: canto gregoriano, Bach, Monteverdi, Haendel, Mozart,<br />
Fauré, os spirituals dos negros norte-americanos. Por outro lado, as músicas<br />
tradicionais católicas, arrastadas, que se cantavam nas procissões, não são<br />
modelos de beleza. Por último, o que mais me agradou. Imagino que o sumo<br />
pontífice deve ter lido uma crônica que lhe dirigi, faz anos, com o nome “De Rerum<br />
Vetustarum”. Nessa crônica, eu lhe implorava que restaurasse o uso do latim na<br />
liturgia. Porque o latim é música pura, um deleite ouvi-lo. Só que eu não entendo<br />
latim. Assim, ao ouvir latim sem entender, fico com a beleza da sua música e livre<br />
daquilo que se diz. Não quero entender para não me irritar. Não entendendo, fico a<br />
imaginar que o pregador está dizendo coisas maravilhosas. Pois não é que o papa<br />
deu permissão aos padres para fazer uso do latim nas missas? Logo que as missas
voltarem a ser ditas em latim, eu estarei lá. Parabéns ao papa, cardeal Ratzinger.<br />
Zelo missionário<br />
Um amigo, historiador, falou-me sobre uma carta curiosa, se não me engano<br />
datada do século XVII, escrita por um zeloso missionário aos seus superiores em<br />
Portugal. Ele estava preocupado com o destino eterno das almas dos índios que era<br />
sua missão salvar. Acontecia que eles, sem as luzes das doutrinas da Igreja, nada<br />
sabiam sobre o pecado da nudez. Andavam por todos os lugares, homens,<br />
mulheres, crianças, exibindo de forma despudorada as partes do seu corpo que<br />
deveriam ficar ocultas. Como é do conhecimento geral dos homens civilizados, a<br />
visão das partes do sexo tem o poder de provocar pensamentos libidinosos,<br />
pecaminosos, que colocam as almas em perigo de irem para o Inferno. Deus<br />
prefere os homens vestidos aos homens nus. Ele informava então os seus<br />
superiores que sua missão salvífica só poderia ser realizada se a sua pregação da<br />
doutrina fosse acompanhada por uma distribuição de ceroulas. Solicitava, então,<br />
que lhe fossem enviadas de Portugal algumas centenas de ceroulas para cobrir as<br />
vergonhas dos índios, tornando possível, assim, a salvação de suas almas. No céu,<br />
todos os homens usam ceroulas.<br />
Novos negócios da Trindade<br />
Como é do conhecimento geral, gastei grande parte da minha vida estudando os<br />
mistérios da teologia. Aprendi sobre a Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, em que<br />
estão contidos todos os segredos do universo. Sinto--me, portanto, profundamente<br />
perturbado quando leio afirmações públicas que indicam que a Trindade já não é<br />
mais a mesma. Fosse em tempos passados e a Igreja já teria ordenado que se<br />
celebrassem autos de fé para que os autores de tais informações purgassem suas<br />
heresias nas fogueiras da Inquisição. Como já não existem os recursos<br />
purificadores das fogueiras, ficam eles soltos por aí escrevendo impunemente em<br />
lugares públicos aquilo que seus pensamentos ímpios maquinam. Dou exemplos. Vi<br />
um açougue com o nome Açougue Bom Jesus. O que nos dizem os evangelhos é<br />
que Jesus é o Bom Pastor. Um pastor cuida das ovelhas. Poder-se-ia imaginar um<br />
Bom Pastor pastoreando ovelhas para levá-las ao açougue? Diz mais a teologia:<br />
que sua missão cósmica foi morrer na cruz para que a humanidade fosse salva.<br />
Ora, o que esse nome Açougue Bom Jesus está dizendo é que a Segunda Pessoa da<br />
Santíssima Trindade abandonou sua missão divina e está se dedicando agora ao<br />
negócio de carnes. Confesso que não posso imaginar Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
envolvido com linguiças, bifes, costeletas, pernis e hambúrgueres. Outros, ao
contrário, afirmam que ele entrou para o ramo dos veículos. Prova disso são os<br />
inúmeros carros que circulam pela cidade com os dizeres “Propriedade Exclusiva de<br />
Jesus”. Acho muito estranho, posto que Jesus, dentro dos limites do meu<br />
conhecimento, sempre andou a pé, com uma única exceção: quando foi a<br />
Jerusalém montado em um manso burrico. Intriga-me o fato de os carros da dita<br />
frota divina serem sempre carros velhos. Nem sequer pertencem à curiosa<br />
categoria dos seminovos. Ainda não vi nenhum Mercedes ou BMW. Certamente isso<br />
não se deve à falta de dinheiro. Se, conforme a teologia da prosperidade afirma,<br />
Jesus dá riqueza a todos aqueles que lhe são obedientes, é claro que seus recursos<br />
financeiros são infinitos. Uma frota de carros de propriedade de Jesus certamente<br />
conta com sua proteção, o que significa que não dão trombadas, não enguiçam e,<br />
melhor de tudo, não são roubados. Quem se atreveria a roubar um carro da<br />
Segunda Pessoa da Santíssima Trindade? Alguns veículos portam a advertência aos<br />
ladrões: “Rastreado por satélite” – roubou, será pego. Que dizer então de uma<br />
frota de carros rastreada pelo olho divino? E há ainda aqueles que dizem que Deus<br />
expandiu seus negócios também para o ramo imobiliário. Prova disto são os<br />
prédios que ostentam gigantescas afirmações do tipo: “Este prédio está sendo<br />
construído com a bênção divina”. O que me deixa assombrado. E isso porque,<br />
segundo as narrativas bíblicas, a construção de torres nunca teve a bênção divina.<br />
O caso mais famoso é a Torre de Babel, que naqueles tempos deveria comparar-se<br />
ao World Trade Center. Deus foi lá e confundiu a língua dos construtores. Deixaram<br />
de se entender. O que ainda acontece frequentemente nas assembleias de<br />
condôminos em prédios de apartamentos. O que se quer dizer quando se afirma:<br />
“Este prédio está sendo construído com a bênção divina”? Que todos os que ali<br />
trabalham são felizes? Que todos eles ganham salários dignos? Que se trata de<br />
uma cooperativa, os lucros ao final sendo igualmente divididos por todos? Ou será<br />
que Deus assinou um contrato? Ah! Fico só pensando no mandamento que diz:<br />
“Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão”. Será que esses blasfemos não<br />
têm medo de que Deus os castigue com a maldição que lançou sobre o exército<br />
dos filisteus? Ele atacou o seu exército com uma praga de hemorroidas. E diz o<br />
texto sagrado que os seus gemidos se ouviam a quilômetros...<br />
Domingo Deus descansa...<br />
Aos poucos, a Igreja Católica está ficando parecida com as igrejas protestantes do<br />
tempo da minha infância e juventude. Tempos terríveis aqueles. O domingo era um<br />
inferno. Não se podia fazer nada. O domingo era santificado mesmo – o que<br />
significava que nada que desse felicidade pra gente podia ser feito. Era o que dizia<br />
o mandamento: “Lembra-te do dia de sábado para o santificar. Não farás nesse dia
obra alguma, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua<br />
serva, nem o teu animal, nem o forasteiro das tuas portas para dentro”. Comprar<br />
alguma coisa, nem falar. Já contei a história de uma menininha que, numa manhã<br />
de domingo, chorava, pedindo que a mãe lhe comprasse um sorvete. A mãe<br />
respondia firme que não. Um senhor que contemplava a cena teve dó da menina e<br />
quis dar-lhe um sorvete de presente. Mas a menininha respondeu entre soluços:<br />
“Num adianta. Nois, além de ser pobre, é crente”. Domingo as crianças choravam.<br />
Não podiam brincar. Brincar era pecado. Ir ao futebol, nem falar. E nem ouvir rádio.<br />
Os missionários protestantes vieram para o Brasil na segunda metade do século<br />
XIX. O seu programa era bonito: construir escolas, para salvar o povo da<br />
ignorância. Construir hospitais, para salvar o povo das doenças. Construir igrejas,<br />
para salvar o povo do Inferno. Porque, como se sabia, os católicos eram almas<br />
perdidas. Um grupo veio para Campinas. Aí aconteceu a epidemia de febre<br />
amarela, muita gente morreu. Os missionários deixaram a cidade empesteada e se<br />
transferiram para Minas, Patrocínio e Lavras. Em Lavras, quem os protegeu foram<br />
os meus parentes, que não gostavam de padres. Os padres eram atentados contra<br />
a inteligência. Eles eram espíritas, liberais, republicanos, amantes das ciências.<br />
Meu bisavó, doutor Jorge, que tinha uma belíssima propriedade cheia de árvores<br />
(ele era dendrófilo, e chegou a importar mudas para a sua chácara ), vendeu-a aos<br />
missionários por dezoito contos de réis para que lá fizessem uma escola, o Instituto<br />
Gammon, que chegou a gozar de fama pelo Brasil inteiro, nos tempos em que os<br />
pais ricos enviavam seus filhos para receberem educação em internatos. Os líderes<br />
mais notáveis dessa instituição foram o doutor Samuel Gammon e a dona Carlota<br />
Kemper. Há um incidente engraçado ligado à dona Carlota. Um dia, conversando<br />
com uma empregada, notou que esta não tirava os olhos dos seus sapatos.<br />
Perguntada por que olhava tão fixamente para os sapatos da patroa, ela<br />
respondeu, muito encabulada, que queria saber se aquilo que o padre dissera era<br />
verdade. Ele havia afirmado, num sermão, que os protestantes tinham pé de bode.<br />
O doutor Gammon acrescentava às suas funções de educador a função de<br />
pregador. Ia todos os domingos a uma cidadezinha distante oito quilômetros,<br />
Ribeirão Vermelho, celebrar o culto com uma meia dúzia de recém-convertidos.<br />
Para isso ele se valia de um tílburi puxado a cavalo. Domingo, de manhã bem cedo,<br />
um empregado pegava o cavalo no pasto e o atrelava ao tílburi. Dona Carlota,<br />
rigorosa observadora do domingo (diziam que se alguém lhe trouxesse uma carta,<br />
num domingo, ela não a abria...), repreendeu o doutor Gammon: ele estava<br />
transgredindo o mandamento fazendo com que o empregado trabalhasse e fazendo<br />
o mesmo com o cavalo. Não sei se por medo da dona Carlota ou por convicção, o<br />
fato é que daquele dia em diante o doutor Gammon fazia a viagem de ida e volta a<br />
Ribeirão Vermelho a pé... O que deve ter feito muito bem para a sua saúde física e
espiritual – porque caminhar em silêncio por caminhos cheios de árvores e pássaros<br />
é uma experiência mística. Isso aconteceu no início do século passado. Pois lá pela<br />
década dos anos 1950, era a mesma coisa. Eu havia me mudado para o Rio de<br />
Janeiro. Manhãs luminosas de domingo, as praias, o mar – proibidos. Rádio:<br />
proibido. Leitura de jornais: proibida. Cinema: pecado mortal. <strong>Faz</strong>er amor, nem se<br />
fala. Deus não mora no mundo. Deus mora num lugarzinho apertado chamado<br />
igreja. E, com muita vergonha, confesso: eu acreditava. A grande revista daqueles<br />
tempos era O Cruzeiro. Pois o pastor relatou que, depois do culto da noite,<br />
voltando muito tarde para a sua casa, pôs pijama, deitou-se e começou a ler O<br />
Cruzeiro. Sua mulher se horrorizou com pecado tamanho: “Mas, meu benzinho,<br />
hoje é domingo...”. Aí ele deu uma gargalhada e arrematou: “Então eu mostrei o<br />
relógio para ela: era meia-noite e um”. É verdade porque eu ouvi. Assim os<br />
protestantes santificavam o domingo.
Velhice
Velhice<br />
Descobri que eu estava velho há muitos anos, num metrô de São Paulo. Foi assim:<br />
o vagão estava lotado e não havia assento vago. Não liguei. Eu era jovem, pernas<br />
e braços fortes, podia fazer a viagem de pé, segurando um balaústre. Aí comecei a<br />
observar metodicamente o rosto das pessoas, coisa que gosto muito de fazer. Os<br />
rostos revelam o mundo. Muitas crônicas me apareceram no ato de observar um<br />
rosto. Uma vez, tomando o meu café da manhã num hotel em Uberaba, fui<br />
comovido pelo rosto de um garçom já meio velho, magro, calvo, daqueles que não<br />
cortam o cabelo de um lado, para com seus fios compridos tentar disfarçar<br />
(inutilmente) a calva lisa. Aquele rosto me comoveu. E, quase num segundo,<br />
apareceu na minha imaginação a trama de um conto que nunca escrevi. É sobre<br />
um garçom que trabalhava num hotel onde pilotos e aeromoças pernoitavam. Ele<br />
se apaixona por uma delas e a sua vida passa a girar em torno dos dias em que<br />
sua escala de voos fazia com que aquela que ele amava secretamente dormisse no<br />
hotel. O garçom, servindo o café da manhã, dela se aproximava e respirava fundo<br />
para sentir o seu perfume. Até saiu pelas lojas de perfume, à procura daquele...<br />
Terminado o café, ele recolhia copos e xícaras. Aí, furtivamente, na cozinha,<br />
quando ninguém estava olhando, comia e bebia os restinhos que haviam sobrado...<br />
Era como se ele a estivesse beijando. Isso o excitava... Mas, voltando ao metrô. De<br />
repente, meus olhos encontraram uma moça que também olhava para mim, com<br />
um discreto sorriso nos lábios. Foi um momento de suspensão romântica: eu<br />
olhando para ela, ela olhando para mim. Aquele poderia ser o início de uma estória<br />
de amor por acontecer. Muitas estórias de amor se iniciam em estações. Mas<br />
então, naquele momento de suspensão romântica, ela fez um gesto delicado:<br />
sorrindo, levantou-se e me ofereceu o lugar... Entendi então o sentido do seu<br />
sorriso: olhando para mim, ela se lembrava do seu avô, velhinho tão querido...<br />
Compreendi que estava velho. Foi um momento de revelação. Desde então, o meu<br />
pensamento volta sempre para a velhice.<br />
Amor de velho<br />
Simone de Beauvoir, no seu livro sobre a velhice, diz que há uma coisa que não se<br />
perdoa nos velhos: que eles possam amar com o mesmo amor dos moços. Aos<br />
velhos está reservado outro tipo de amor, amor pelos netos, sorrindo sempre<br />
pacientes, olhar resignado, espera da morte, passeios lentos pelos parques, horas<br />
jogando paciência, cochilos em meio às conversas. Mas, quando o velho ressuscita,<br />
e no seu corpo surgem de novo as potências adormecidas do amor, ah! os filhos se<br />
horrorizam e dizem, como explicação: “Ficou caduco”. Amor de mocidade é bonito,<br />
mas não é de se espantar. Jovem tem mesmo é de se apaixonar. Romeu e Julieta é
aquilo que todo mundo considera normal. Mas o amor na velhice é um espanto,<br />
pois nos revela que o coração não envelhece jamais. T. S. Eliot, na juventude dos<br />
seus setenta anos, escreveu: “O amor retribuído sempre rejuvenesce”.<br />
Os pés têm a mesma idade<br />
O senhor idoso estava com um problema no pé esquerdo. Dores. Como pontas de<br />
agulhas. Difícil andar. Foi ao médico. O médico apalpou, radiografou, concluiu: “Os<br />
pés são membros complicados do nosso corpo. Muitos ossinhos têm de se ajustar.<br />
E ocorre que, com o passar dos anos, os encaixes vão se desajustando. As dores no<br />
seu pé têm a ver com os muitos anos de caminhar...”. Ele disse isso com um sorriso<br />
bondoso. O velho não se conformou e respondeu: “Mas o meu pé direito não tem<br />
dores e ele tem a mesma idade que o pé esquerdo...”.<br />
Apresentação<br />
“Papai, quero lhe apresentar um amigo.” Responde o pai, ancião: “Já conheço<br />
gente demais. Não quero conhecer mais um”.<br />
Amor crepuscular<br />
A Tomiko, amiga querida, me contou que a viúva do Dico Schiller, um pastor<br />
metodista extraordinariamente humano e inteligente, se casou. Ela, passados os 76<br />
anos. O novo marido, passados os 80... Não é lindo? Velhos do mundo: amai! O<br />
amor faz bem à saúde. Já escrevi sobre um caso parecido. Os dois velhos se<br />
casaram e viveram juntos por dois anos. O marido morreu aos 81, feliz,<br />
transformado em poeta. Ela aos 79. Depois da morte do marido, ela me telefonou<br />
e disse: “Pois é, professor, nessa idade a gente não mexe muito com as coisas do<br />
sexo... A gente vivia de ternura...”.<br />
Tempo ao contrário<br />
O amor tem este poder mágico de fazer o tempo correr ao contrário. O que<br />
envelhece não é o tempo. É a rotina, o enfado, a incapacidade de se comover ante<br />
o sorriso de uma mulher ou de um homem. Mas será incapacidade mesmo? Ou não<br />
será uma outra coisa: que a sociedade inteira ensina aos seus velhos que velho<br />
que ama é velho sem-vergonha, que o tempo do amor já passou, que agora é<br />
tempo de esperar a morte, que o preço de serem amados por seus filhos e netos é<br />
a renúncia aos seus sonhos de amor?
Velho<br />
No dia do meu aniversário escrevi uma crônica com o título “Fiquei velho...”. Estava<br />
feliz quando escrevi. Mas minha crônica provocou cartas de protesto. Muitos velhos<br />
não gostam de ser chamados de “velhos”. Querem ser chamados de “idosos”. Não<br />
gostaram do título da crônica. Pediram que eu trocasse o “velho” por “idoso”. Mas a<br />
palavra “idoso” é boba. Não se presta para a poesia. “Idoso” é palavra que a gente<br />
encontra em guichês de supermercado e banco: fila dos idosos, atendimento<br />
preferencial. Recuso-me a ser definido por supermercados e bancos. “Velho”, ao<br />
contrário, é palavra poética, literária. Já imaginaram se o Hemingway tivesse dado<br />
ao seu livro o título de O idoso e o mar? Eu não compraria. E o poema das árvores,<br />
do Olavo Bilac: “Veja essas velhas árvores...”. Que tal “Veja essas árvores<br />
idosas...”? É ridículo. Eu jamais diria de uma casa que ela é “idosa”. A palavra<br />
“idosa” só diz que faz muitos anos que a casa foi construída. Mas a palavra “velha”<br />
nos transporta para o mundo da fantasia. O velho sobradão do meu avô, onde vivi<br />
minha infância. Meus livros velhos, folhas soltas de tanto uso. Estão assim porque<br />
viveram muito, fiz amor com eles, tão frequentemente e tantas vezes que se<br />
gastaram. O Chico tem uma linda canção com o título: “O velho”. É triste. Se o<br />
título fosse “O idoso” seria ridícula. Já imaginaram? O casal vai fazer bodas de<br />
ouro: cabeças brancas. Eles se abraçam, se beijam, e ele diz para ela,<br />
carinhosamente: “Minha idosa” – ao que ela responde com um sorriso: “Meu idoso”.<br />
Não é nada disso. É “minha velha” e “meu velho”...<br />
Meu pai<br />
Do meu pai fica o seu retrato de olhar perdido, olhando o espaço vazio, cachimbo<br />
na boca, a fumaça dissolvendo os contornos. Eu disse “espaço vazio”. Só para<br />
quem não o conhecia. Porque era ali que moravam seus sonhos. Já velho, pôs-se a<br />
criar galinhas, o que foi um desastre comercial, pois não permitia que fossem<br />
mortas, cada uma com o seu nome próprio e o seu prazer era vê-las, ao cair da<br />
noite, buscando os poleiros onde dormir. Foi muito rico, perdeu tudo, ficou pobre,<br />
mas acho que nunca lamentou. Nunca se acostumou com a civilização e tenho a<br />
impressão de que sempre teve saudades das casas de adobe e dos quintais de<br />
jabuticabeiras onde passara sua infância. Dizem que ficou esclerosado. Perdeu<br />
contato com a realidade. Talvez a verdade seja outra: voltou para a sua verdade, o<br />
“ignoto lar” a que se refere o Álvaro de Campos, inacessível a todos nós, do lado de<br />
cá. Entrou em sua canoa e remou para a terceira margem do rio, como no conto do<br />
Guimarães Rosa.
A chuva<br />
Quando chovia, depois de muito sol quente, meu pai gostava de ficar na janela da<br />
casa velha, lá em Minas, vendo as plantas do quintal, cada uma delas fazendo os<br />
gestos que sabia. Os tomateiros, hortelãs e manjericão, exalando seus perfumes.<br />
As folhas de couve e de espinafre, brincando de juntar gotas d’água, grandes e<br />
brilhantes. As árvores e arbustos executando seus passos de dança, balançando as<br />
folhas, sob os pingos que caíam... Ele olhava, sorria, baforava o seu cachimbo e<br />
dizia: “Veja só como estão agradecidas”.<br />
Crepúsculo<br />
A metáfora mais bonita que conheço para a velhice é o crepúsculo, o pôr do sol. O<br />
crepúsculo é lindo. <strong>Faz</strong> pensar. No crepúsculo tomamos consciência da rapidez do<br />
tempo. As cores rapidamente passam do azul para o verde, para o amarelo, para o<br />
abóbora, para o vermelho, para o roxo, para o negro... No crepúsculo sentimos o<br />
tempo fluir rapidamente. Por isso muitas pessoas têm medo dele. A famosa happy<br />
hour foi inventada como terapia para a tristeza do crepúsculo. No crepúsculo nos<br />
tornamos poetas. Muitos poetas escreveram sobre ele: Cecília Meireles, Fernando<br />
Pessoa, Browning, Wordsworth.<br />
Sem substância<br />
Alan Watts, no seu lindo livro O Tao: o caminho das águas ; não é bem assim, mas<br />
digamos que o “Tao” é o deus do taoísmo. O deus do taoísmo é um rio em que<br />
temos de navegar sem remar, flutuando ao sabor das águas, sem fazer força,<br />
porque é inútil nadar ao contrário; pois é, o Alan Watts escreveu o seguinte:<br />
“Especialmente à medida que se vai ficando velho, torna-se cada vez mais evidente<br />
que as coisas não possuem substância, pois o tempo parece passar cada vez mais<br />
rápido, de forma que nos tornamos conscientes da liquidez dos sólidos; as pessoas<br />
e as coisas ficam parecidas com reflexos e rugas efêmeras na superfície da água”.<br />
Nona<br />
Recebi um telefonema de dona Nicolina Palermo, 86 anos de idade, a quem os<br />
amigos tratam por “Nona”. Foi um momento de felicidade. É maravilhoso esse<br />
poder que têm os livros para criar pontes entre pessoas que se amam sem se<br />
conhecer. Uma vez, num lançamento de livros em Belo Horizonte, a inevitável
sessão de autógrafos, vieram primeiro os velhos, os deficientes... Aproximou-se<br />
uma anciã que eu desconhecia numa cadeira de rodas, olhou para mim e disse:<br />
“Nunca te vi e sempre te amei”. E começou a chorar. Eu chorei também.<br />
Quantos anos você não tem?<br />
Quando eu desfiz sessenta anos... Desfiz: é a forma correta de dizer. Porque esses<br />
sessenta são os anos que não tenho mais. Quantos eu tenho, só Deus sabe...<br />
Quando desfiz sessenta anos consolei-me poeticamente com a palavra<br />
“sexagenário”: sex + agenário = idade do sexo. Para trás ficou a década dos<br />
sessenta. Chegou a década dos setenta. Agora, quanto ao sexo que ficou para trás,<br />
se tenta...<br />
Assustei-me<br />
Um homem, cabeleira branca, estava com os braços levantados, como se estivesse<br />
sendo assaltado, no aeroporto. Aproximei-me. De fato, era um velho. Devia ter<br />
aproximadamente a minha idade. De fato, estava com os braços levantados.<br />
Estavam apoiados no vidro que separa os que partem dos que ficam. Ele era um<br />
dos que ficavam. Lágrimas escorriam dos seus olhos. Alguém partira. Seus braços<br />
levantados, encostados no vidro, diziam da inutilidade das suas lágrimas. Há um<br />
momento na vida em que cada separação anuncia a Grande Separação. Olhei para<br />
o porteiro que verificava os cartões de embarque. Ele entendeu a pergunta que<br />
estava no meu olhar e só disse: “O filho partiu...”. Tive vontade de abraçá-lo.<br />
Porque eu também tenho despedidas a cumprir.<br />
Sobre a velhice<br />
Por oposição aos gerontologistas, que analisam a velhice como um processo<br />
biológico, eu estou interessado na velhice como um acontecimento estético. A<br />
velhice tem a sua beleza, que é a beleza do crepúsculo. A juventude eterna, que é<br />
o padrão estético dominante em nossa sociedade, pertence à estética das manhãs.<br />
As manhãs têm uma beleza única, que lhes é própria. Mas o crepúsculo tem um<br />
outro tipo de beleza, totalmente diferente da beleza das manhãs. A beleza do<br />
crepúsculo é tranquila, silenciosa – talvez solitária. No crepúsculo, tomamos<br />
consciência do tempo. Nas manhãs, o céu é como um mar azul, imóvel. Nos<br />
crepúsculos, as cores se põem em movimento: o azul vira verde, o verde vira<br />
amarelo, o amarelo vira abóbora, o abóbora vira vermelho, o vermelho vira roxo –<br />
tudo rapidamente. Ao sentir a passagem do tempo, nós percebemos que é preciso
viver o momento intensamente. “Tempus fugit” – o tempo foge –, portanto, “carpe<br />
diem” – colha o dia. No crepúsculo, sabemos que a noite está chegando. Na<br />
velhice, sabemos que a morte está chegando. E isso nos torna mais sábios e nos<br />
faz degustar cada momento como uma alegria única. Quem sabe que está vivendo<br />
a despedida olha para a vida com olhos mais ternos...<br />
Bom lugar para uma sepultura<br />
O poeta R. S. Thomas, falando sobre o lugar que escolheria para a sua sepultura,<br />
disse o seguinte: “Ela deverá estar próxima à árvore da poesia, que é a eternidade<br />
vestida com as folhas verdes do tempo...” (“It will be found somewhere within sight<br />
of the tree of poetry, that is eternity wearing the green leaves of time”).<br />
Depressão da velhice<br />
Recebi dois e-mails que me deram grande alegria. Um deles, de uma mulher que<br />
me falava de sua mãe. O outro, também de uma mulher, falava-me sobre sua avó.<br />
A primeira me contava de sua mãe, já velha, como eu, que estava mergulhada<br />
numa profunda melancolia. Passava os seus dias com olhar perdido. Certamente<br />
pensava no fim que se aproximava. Nunca havia lido um único livro em toda a sua<br />
vida. Na tentativa de tirar sua mãe da depressão, começou a ler para ela alguns<br />
dos meus textos. Um milagre aconteceu. Ela ressuscitou. Começou a ler e agora<br />
não queria parar. A outra me contou algo semelhante. Sua avó vivia a tristeza de<br />
duas perdas: do marido e da filha. A neta teve a mesma ideia: começou a ler para<br />
a sua avó. O mesmo milagre aconteceu. Agora não parava de ler. O que teria<br />
acontecido? Talvez eu, velho, tivesse colocado em palavras coisas que estavam nas<br />
suas almas. A grande tristeza da velhice é a solidão. Lembro-me de uma tola,<br />
tentando consolar um velho de 92 anos que só vivia de saudades: “É preciso<br />
esquecer o passado! É preciso olhar para a frente!”. Mas que “para a frente” existe<br />
na alma de um velho de 92 anos? Talvez uma coisa simples e barata que possa ser<br />
feita para os velhos seja ler-lhes literatura, quem sabe poesia. A literatura nos<br />
liberta da solidão. E traz alegria.<br />
Liberdade e velhice<br />
T. S. Eliot se refere a um momento da vida quando se atinge “a liberdade íntima do<br />
desejo prático, quando se está livre da obrigação de fazer, livre das compulsões<br />
internas e externas...”. Citei esse texto de Eliot num dos meus livros. O revisor se<br />
horrorizou. Imaginou que eu havia me enganado. Corrigiu a minha tradução e
assassinou Eliot. Escreveu: “a liberdade íntima para o desejo prático...”. Desejo<br />
prático é o desejo de fazer coisas. Nunca havia passado pela cabeça do revisor,<br />
certamente um ativista político, que exista na vida um delicioso momento de<br />
vagabundagem. Quando as mãos nada têm a fazer por obrigação. É nesse<br />
momento de vagabundagem que as coisas que haviam permanecido sufocadas<br />
durante a vida inteira pela obrigação prática de fazer começam a fazer o que<br />
querem. Max Weber confessou que suas melhores ideias lhe vinham quando<br />
caminhava distraído pelas ruas de Heidelberg. As ideias veem quando não as<br />
estamos buscando. E, quando aparecem, ficamos surpresos. “Eu não procuro, eu<br />
encontro”, dizia Picasso. A velhice é um desses momentos. Os velhos não têm<br />
obrigação de fazer coisa alguma. Nada se espera deles. Tempo da aposentadoria.<br />
A poesia começou a brotar da Cora Coralina depois dos setenta anos. Antes disso,<br />
a poesia não apareceu. Certamente ela estava muito ocupada com as obrigações<br />
de uma dona de casa. Meu primo Paulo Berutti passou a vida inteira fazendo as<br />
coisas que sua profissão de engenheiro agrônomo o obrigava a fazer. Aposentado,<br />
veio a vagabundagem. Perguntou-se: “Que vou fazer?”. Foi então que surgiu das<br />
funduras do esquecimento o tapeceiro que ele fora desde sempre. Suas tapeçarias<br />
maravilhosas viajaram o mundo. E que dizer do professor Avelino Rodrigues de<br />
Oliveira, que durante sua vida profissional se dedicou de maneira competente a<br />
ensinar os mistérios da bioquímica aos seus alunos? Aposentou-se e o pintor que<br />
morara nele desde que nascera floresceu. Ele pinta quadros maravilhosos. A<br />
profissão é, frequentemente, o túmulo dos artistas.<br />
Hans Born<br />
Aconteceu com o meu amigo Hans Born, alemão de nascimento, naturalizado<br />
“mineirro”. Aposentou-se. Mudou-se de São Paulo para Caldas com a Tomiko, sua<br />
esposa. Tomiko é aquela que, quando completei sessenta anos, me disse que<br />
chegara a hora de eu comprar um blazer vermelho, a cor dos deuses, a quem tudo<br />
é permitido. Comprei, está no meu guarda-roupas, mas tenho vergonha de usá-lo.<br />
Livre da compulsão prática, o Hans viu nascer dentro dele um artesão apaixonado<br />
pelas madeiras. Artesão menino que gosta de brincar. As madeiras são os seus<br />
brinquedos. Acaba de fazer um painel com 35 cubos de madeiras diferentes que<br />
podem ser identificadas pela cor, pelos desenhos, pelo perfume. Com as madeiras,<br />
ele faz quebra-cabeças fantásticos de precisão milimétrica, inspirados nos desenhos<br />
doidos de Escher. Não servem para nada. Não têm nenhuma função prática.<br />
Servem para brincar. Mas só o Hans brinca três vezes. Brinca planejando o que vai<br />
fazer. Brinca fazendo o que planejou, serrando a madeira com serras da espessura<br />
de uma lâmina de gilete. Brinca uma terceira vez montando os quebra-cabeças...
Quando se está livre da compulsão prática, a criança que foi reprimida pelo adulto<br />
salta lá de dentro e põe-se a fazer artes, a fazer arte. Os velhos são morada de<br />
crianças. “Os grandes silêncios da alma das crianças!”¸ escreveu Miguel de<br />
Unamuno. “Os grandes silêncios da alma dos anciãos...” Crianças e velhos estão<br />
assim tão próximos uns dos outros porque ambos estão livres da compulsão<br />
prática. Tenho uma inveja boa do Hans. O seu rigor. A sua paciência. A ordem e<br />
limpeza da sua oficina. Mas o que o Hans gostaria mesmo de fazer, eu penso, é<br />
ensinar. Ensinar as crianças a ser crianças. Ensinar os adultos a ser crianças. E o<br />
que ele quer fazer, sem ter que fazer, por puro prazer, é transformar as madeiras<br />
em brinquedos, em entidades dotadas de alma. Não conheço ninguém que se<br />
pareça com ele, o Hans. Ele é uma caixa de surpresas. Surpresas que estiveram<br />
guardadas por muitos anos, os anos de suas atividades profissionais práticas. Até<br />
que chegou o momento feliz da liberdade da obrigação prática...<br />
Causa mortis<br />
Estou curioso. Pergunto aos médicos. Será que, num atestado de óbito se pode<br />
escrever, na causa mortis, simplesmente “velhice”? Se não pode, acho que deveria<br />
poder. Explico. Há várias causas para explicar o fato de a chama da vela ter-se<br />
apagado: uma lufada de vento, alguém a apagou, faltou oxigênio, pingou água no<br />
pavio... Nesses casos, houve uma causa mortis exterior que produziu o<br />
apagamento da chama. Mas há também o caso daquela vela que vai queimando,<br />
vai queimando, até que a cera acaba e o pavio não tem outra alternativa a não ser<br />
apagar. A vida não será assim? Há golpes exteriores que lhe põem um fim. Aí faz<br />
sentido dizer: causa mortis. Mas há essa situação em que a morte acontece porque<br />
a vida gastou-se toda. Não houve uma causa para a morte. A vida simplesmente<br />
acabou... Causa mortis: velhice.<br />
Inutilidade<br />
À minha frente, um auditório cheio de idosos, cabelos brancos, calvas, rugas,<br />
desejoso de viver a vida. Eu, muito mais novo que eles (isso aconteceu há vinte<br />
anos...), comecei: “Senhoras e senhores: Então vocês chegaram finalmente à idade<br />
em que podem se dar ao luxo de ser totalmente inúteis...”. Estabeleceu-se a<br />
confusão. Protestos. Serenados os ânimos, continuei: “Uma sonata de Mozart é<br />
inútil, não serve para nada. Mas uma vassoura é muito útil. Vocês preferem a<br />
companhia das vassouras à companhia da música de Mozart... Uma poesia do<br />
Fernando Pessoa não serve para nada, é inútil, mas o papel higiênico é muito útil.<br />
Vocês acham o papel higiênico mais importante que a poesia do Fernando
Pessoa...”. Os rostos bravos abriram-se em sorrisos. Eles compreenderam...<br />
Velhice<br />
Numa reunião do grupo de poesia com que me reúno às terças-feiras, uma<br />
participante contou a seguinte piada. Os dois velhinhos estavam ruins de memória.<br />
Esqueciam tudo. Foram ao médico. O médico, coitado, sabia que há males para os<br />
quais não há remédio. De qualquer forma, receitou-lhes uns placebos e deu-lhes<br />
um conselho prático: “Eu sugiro que vocês criem o hábito de carregar um<br />
caderninho, cada um com o seu, e que nesse caderninho escrevam as coisas que<br />
não podem ser esquecidas”. Os dois ficaram encantados com sugestão tão simples.<br />
Compraram caderninhos numa papelaria a caminho de casa. Em casa, a mulher,<br />
cansada, disse ao marido: “Que vontade de tomar sorvete...”. O marido respondeu:<br />
“Vou pegar o sorvete para você na geladeira, meu bem”. Ela argumentou: “Acho<br />
melhor você escrever no caderninho: duas bolas de sorvete de creme com calda de<br />
chocolate”. “Não é preciso”, ele disse. “Daqui até a cozinha, não vou esquecer.”<br />
Passados vinte minutos, ele voltou com o pedido da mulher. Trazia dois ovos fritos<br />
num prato. Ela disse irritada: “Eu sabia que você iria esquecer. Onde estão as tiras<br />
de bacon?”. Um artifício de que lanço mão para não trocar sorvete por ovos fritos é<br />
ficar repetindo. Faço isso frequentemente com números de telefone... Repetir é<br />
coisa de quem tem memória fraca. Aí eu não entendo por que as pessoas religiosas<br />
ficam repetindo a mesma reza, as mesmas palavras. Por que repetir? Deus está<br />
com memória fraca? Deus tem Alzheimer? Deus se esquece com facilidade? Ou<br />
será que acham que Deus gosta de ouvir repetições? Se ele gosta, perdeu o meu<br />
respeito.<br />
Êrro de acentuação<br />
Um casal de velhos procurou um médico geriatra. Queriam viver uma vida<br />
saudável. Examinados os dois, o médico lhes prescreveu uma receita e deveriam<br />
voltar dali a duas semanas para uma reavaliação. No dia do retorno, o médico ficou<br />
perplexo: a velhinha estava sorridente, pintada, rejuvenescida vinte anos. Já o<br />
estado do marido era lamentável, joelhos trêmulos, dentadura frouxa. O médico<br />
pensava: como pode uma mesma receita produzir efeitos tão opostos? Até que, em<br />
meio à conversa, ele decifrou o enigma. E, dirigindo-se ao velho, falou: “Eu lhe<br />
disse que comesse avêia três vezes por dia e o senhor comeu a véia três vezes por<br />
dia...”.
Velhos do mundo! Uni-vos!<br />
Sinto uma grande ternura pelos velhinhos. Dentro daqueles corpos que os anos<br />
desgastaram – enrugados, flácidos, fracos – moram crianças que desejam brincar.<br />
Eles não brincam porque não fica bem. Seria um embaraço para os filhos... E<br />
moram também jovens que querem amar. Querem amar e ser amados. Abraçar.<br />
Beijar. Bom seria que os velhos se sentissem livres para fazer o que quisessem sem<br />
ter de prestar contas aos filhos. Há o Manifesto comunista que convida os<br />
operários, classe oprimida, à revolução. Mas os velhos não serão também uma<br />
classe oprimida? São. Então, que se escreva um Manifesto dos velhos que termine<br />
com um grito: “Velhos do mundo! Uni-vos!”.<br />
Aposentadoria<br />
Não é curioso isso, que a velhice sendo o destino de todos nós, não haja nada, nas<br />
escolas, que nos prepare para essa experiência? Acho que é porque as escolas, e<br />
especialmente as universidades, estão comprometidas em preparar seus alunos<br />
para o mercado de trabalho. Acontece que os velhos estão fora do mercado de<br />
trabalho. A nossa sociedade define a nossa identidade por aquilo que fazemos, da<br />
mesma forma que os objetos são definidos por aquilo que podem fazer.<br />
Esferográficas: escrever. Lâmpadas: iluminar. Lâminas de barbear: barbear.<br />
Quando esses objetos ficam velhos e não mais podem executar a sua função, são<br />
jogados no lixo. Quem deixou de ter função econômica deixou de ter identidade.<br />
Vai para um lixo social chamado exclusão.
Morte
Sonho<br />
Ela estava com câncer. Sabia que iria morrer. Mas não queria morrer. Era muito<br />
cedo. Havia muita coisa a ser vivida. Então, teve um sonho. Era um jantar, muitos<br />
amigos reunidos, comendo. Aí um garçom dirigiu-se a ela e segurou a borda do seu<br />
prato para tirá-lo. Mas ela não terminara ainda! A comida estava gostosa. Seu<br />
prato estava cheio. Segurou então o prato para impedir que o garçom o levasse.<br />
Ela queria comer tudo o que estava no seu prato, até o fim. Houve um momento<br />
imóvel: o garçom, decidido a levar seu prato, e ela, decidida a não deixar que ele o<br />
fizesse. Passados alguns segundos nesse impasse, ela olhou para o garçom, sorriu,<br />
largou o prato e disse: “Pode levá-lo...”.<br />
Cecília Meireles<br />
Eu sinto uma terrível tristeza, uma vontade de não partir. Promessas de<br />
imortalidade da alma não me consolam. Sou um ser deste mundo. Meu corpo<br />
precisa dos cheiros, das cores, dos gostos, dos sons, das carícias... Poderia, por<br />
acaso, haver um caqui espiritual, ou um mar que não fosse água? Lembro-me da<br />
Cecília Meireles: “Pergunto se este mundo existe, e se, depois que se navega, a<br />
algum lugar enfim se chega... O que será, talvez, mais triste. Nem barca, nem<br />
gaivota: somente sobre-humanas companhias...”. Não, não quero partir. Meu corpo<br />
pertence a este mundo.<br />
Poeta<br />
Muita gente tenta escrever poesia. Poucos conseguem. Eu mesmo nunca me atrevi.<br />
Mas tenho uma amiga agraciada pelos deuses, Cássia Janeiro. A poesia mora nela.<br />
O professor Antonio Candido, ao ler os poemas da Cássia, ficou espantado com a<br />
sua profundidade e beleza. O que o levou a escrever o prefácio do seu primeiro<br />
livro. Antes de me conhecer pessoalmente, a Cássia leu o que escrevi sobre pérolas<br />
e ostras. E foi isso que ela disse: “Certa vez li, num artigo de <strong>Rubem</strong> <strong>Alves</strong>, a<br />
seguinte expressão: ‘<strong>Ostra</strong> feliz não faz pérola.’ Aquilo ficou guardado na minha<br />
cabeça e me acompanhou nos momentos mais profundos de dor e de solidão que,<br />
quem sabe, tenham se transformado em pérolas ou ainda estejam se<br />
transformando”. Pois a Cássia, ostra, produziu uma pérola poética, um novo livro<br />
de poemas com o título A pérola e a ostra. Com licença dela, transcrevo o poema<br />
que ela dedicou ao professor Antonio Candido, que havia acabado de perder sua<br />
esposa:<br />
O QUE SOBROU
O que sobrou de você neste<br />
Apartamento<br />
Foram as suas roupas,<br />
Que logo vão ser dadas,<br />
Os seus livros,<br />
Alguns dos quais serão meus,<br />
Aqueles que compramos juntos,<br />
As lembranças.<br />
O que sobrou foram seus retratos e,<br />
Quando vi uma foto sua, sorridente e saudável,<br />
Lembrei-me de que não me preparei<br />
Para a sua vinda,<br />
Mas pude me preparar para a sua ida.<br />
Mas quando você foi,<br />
Ah, meu Deus!<br />
O que sobrou?<br />
O que sobrou<br />
Fui eu.<br />
A vida é o que fazemos com a nossa morte<br />
Se estiver para morrer, que me digam. Se me disserem que ainda me restam dez<br />
anos, continuarei a ser tolo, mosca agitada na teia das medíocres, mesquinhas<br />
rotinas do cotidiano. Mas se só me restam seis meses, então tudo se torna<br />
repentinamente puro e luminoso. Os não essenciais se despregam do corpo como<br />
escamas inúteis. A Morte me informa sobre o que realmente importa. Me daria o<br />
luxo de escolher as pessoas com quem conversar. E poderia ficar em silêncio, se o<br />
desejasse. Perante a morte tudo é desculpável... Creio que não mais leria prosa.<br />
Com algumas exceções: Nietzsche, Camus, Guimarães Rosa, Gabriel García<br />
Márquez, Saramago. Todos eles foram aprendizes da mesma mestra. E certo que<br />
não perderia um segundo com filosofia. E me dedicaria à poesia com uma volúpia<br />
que até hoje não me permiti. Porque a poesia pertence ao clima de verdade e<br />
encanto que a Morte instaura. E ouviria mais Bach e Beethoven. E o Chico... Além<br />
de usar meu tempo no prazer de cuidar do meu jardim... Não, não é nada mórbido.<br />
É que não temos opções. A vida é aquilo que fazemos com a nossa Morte. Ou a<br />
olhamos de frente e ela se torna amiga, ou fazemos de conta que ela não bate à<br />
porta, e ela entra noturna, pela porta da cozinha, para nos ir comendo em silêncio.<br />
Curioso que ela nada saiba sobre si mesma. Quem sabe sobre a Morte são os vivos.<br />
A Morte, ao contrário, só fala sobre a Vida, e depois do seu olhar tudo fica com<br />
aquele ar de “ausência que se demora, uma despedida pronta a cumprir-se”<br />
(Cecília Meireles). E ela nos faz sempre a mesma pergunta: “Afinal, que é que você<br />
está esperando?”. Como dizia o bruxo dom Juan ao seu aprendiz: “A Morte é a
única conselheira sábia que temos. Sempre que você sentir que tudo vai de mal a<br />
pior e que você está a ponto de ser aniquilado, volte-se para a sua Morte e<br />
pergunte-lhe se isso é verdade. Sua Morte lhe dirá que você está errado. Nada<br />
realmente importa fora do seu toque... Sua Morte o encarará e lhe dirá: ‘Ainda não<br />
o toquei’”.<br />
Direito<br />
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos falta um direito: “Todos os seres<br />
humanos têm o direito de morrer sem dor”.<br />
Suicídio<br />
Albert Camus disse que o suicida prepara seu suicídio como uma obra de arte,<br />
ainda que horrenda. Quem vê a cena não esquece. Creio que algumas pessoas que<br />
morreram de morte natural, sabendo que iam morrer, também prepararam a sua<br />
morte como uma obra de arte. Um conhecido nos Estados Unidos doou o seu corpo<br />
para uma escola de medicina. Assim, não haveria velório nem sepultamento. Para<br />
preencher essa lacuna, ele deixou uma generosa quantia para um jantar do qual<br />
seus amigos mais queridos participariam. Um outro conhecido dispensou as urnas<br />
funerárias que são vendidas e compradas. Elas são de um mau gosto atroz. Aliás,<br />
toda a parafenália dos velórios é horrenda. Em anos passados, havia no velório<br />
municipal, ao lado do Cemitério da Saudade, umas frases que eram de fazer<br />
arrepiar os cabelos dos mais sensíveis. “Eterno e silencioso é o descanso dos<br />
mortos.” Imaginar-me passando a eternidade descansando e em silêncio é horrível.<br />
Não sei se as ditas frases ainda estão lá. Esse conhecido mandou fazer uma urna<br />
funerária de pinho, sem nenhum adorno, nem mesmo verniz. Era outono. O chão<br />
estava coberto de folhas de plátano amarelas e vermelhas. Seus amigos se<br />
reuniram e costuraram centenas de folhas de outono até fazer um lençol que cobriu<br />
a urna funerária. As folhas vermelhas e amarelas caem das árvores e voltam à<br />
terra. Também os homens e as mulheres caem e voltam à terra... Nos velórios, o<br />
morto não tem vontade. O que é uma pena. Muitas pessoas que aparecem e fazem<br />
cara de tristeza, pela vontade do morto não estariam lá. No jantar é diferente. É<br />
preciso ser convidado... Se você fosse deixar um jantar pago para reunir seus<br />
amigos queridos, quais seriam eles?<br />
Sobre a vida e a morte<br />
Somente aqueles que se tornam discípulos da morte sentem a doçura da vida.
Quem não é discípulo da morte fica sempre achando que ainda há muito tempo e,<br />
com isso, não se dá conta dos morangos que há à beira do abismo. Ele pensa que<br />
há um lugar onde se chegar. Não há. Todos os caminhos levam ao mesmo fim. Na<br />
vida só há o caminho...<br />
Meu velório<br />
Vou ser cremado por não gostar de lugares fechados. As cinzas podem ser soltas ao<br />
vento ou colocadas como adubo na raiz de uma árvore. Assim posso virar nuvem ou<br />
flor. Um jantar para os amigos com sopa, vinho e Jack Daniels. Será que no outro<br />
mundo há Jack Daniels? Ofício religioso, Deus me livre. Não quero que se digam<br />
palavras dizendo que fui para o céu. O céu me dá calafrios. Mas gostaria que meus<br />
amigos ouvissem algumas das músicas que amo. São muitas. Separei algumas.<br />
Gluck: Melodia, da ópera Orfeu e Eurídice, Nelson Freire ao piano. Está no seu DVD.<br />
De Bach: o Minueto, do Livro de Ana Madalena. É a coisa mais singela... O CD<br />
Bach, do grupo O Corpo, com o Uakti. A primeira suíte para violoncelo, sobre a qual<br />
escrevi o livro O Barbazul. O CD Lambarena, em homenagem a Albert Schweitzer,<br />
com ritmos africanos. Bach ficaria assombrado! A ária para a quarta corda. Carl<br />
Orff, a canção “In trutina”, da Carmina Burana. De Mozart, a Sonata em lá maior<br />
KV. 331 ( Marcha turca); Uma pequena serenata (Eine kleine Nacht Music). Eu fazia<br />
meu filho Sérgio dormir ouvindo essa delicadeza... De Liszt: a Consolação no 3, de<br />
uma pungência infinita. De Dvorjak, Sinfonia do Novo Mundo, segundo movimento.<br />
De Ravel, o segundo movimento do Concerto para piano e orquestra em sol maior.<br />
E de Astor Piazzola, Oblivion, Arthur Moreira Lima ao piano.<br />
Morte repentina<br />
Odeio a ideia de morte repentina, embora todos achem que é a melhor. Discordo.<br />
Tremo ao pensar que o jaguar negro possa estar à espreita na próxima esquina.<br />
Não quero que seja súbita. Quero tempo para escrever o meu haicai.<br />
O direito de morrer<br />
A vida humana, diferente da vida dos bichos e plantas, que se mede por sinais<br />
biológicos e elétricos, se mede pela possibilidade de alegria que ela contém.<br />
Quando essa possibilidade não mais existe, uma pessoa tem o direito de exigir que<br />
sua vida biológica não seja mantida por meios heroicos, porque cada pessoa é<br />
senhora de sua vida. Há uma hora em que o corpo e a alma desejam partir. Não se<br />
deve impedi-los se assim desejarem, por meio da força. Ainda que seja a força
médica. <strong>Faz</strong>er isso seria uma crueldade que não se pode admitir.<br />
Por quê?<br />
Haviam acabado de jantar. Pai velho e filho médico vão para a sala de estar, para<br />
conversar. Conversa mansa, gostosa... De repente, o filho nota que o pai ficou<br />
silencioso, não mais reagia às suas palavras, a cabeça pendida para o lado...<br />
Médico, ele compreendeu imediatamente: seu pai morrera. Fez então aquilo que<br />
lhe haviam ensinado, que fazia parte dos seus automatismos médicos: deitou o pai<br />
no chão, fez respiração boca a boca, massagem cardíaca, lutou contra a morte,<br />
como é dever dos médicos. O coração recomeçou a bater. A respiração voltou. Seu<br />
pai voltou a viver. Mas houve sequelas. Ele perdeu o controle dos seus esfíncteres e<br />
ficou obrigado às humilhações e incômodos do fraldão. Assentado na sua cadeira,<br />
ele olhava o filho e lhe dizia: “Por que você fez aquilo? Eu morri tão feliz, em meio<br />
à nossa conversa... Mas você me trouxe de volta e agora estou aqui. Por que você<br />
fez aquilo, filho?”.<br />
Necrologia<br />
Era a página de necrologia. Havia fotografias dos mortos enquanto vivos. Entre<br />
elas, a de uma linda menina. Teria uns dez anos, talvez. Era o convite para uma<br />
missa, por ocasião do dia em que seria o seu aniversário. Meu coração ficou junto<br />
ao coração dos pais. Imaginei-me na situação deles, a dor pela perda de uma filha<br />
menina ainda. Mas houve uma afirmação que não entendi. Dizia-se que a missa<br />
seria “em sufrágio de sua alma”. Eu não sei o que “sufrágio” quer dizer. A alma da<br />
menininha estaria em alguma fila de espera no outro mundo? Deus não abraça as<br />
crianças? Há débitos pendentes? Não estava no céu? Acho que não. Porque se<br />
estivesse no céu seria só alegria. Nenhum sufrágio seria necessário. Tenho uma<br />
enorme dificuldade em entender as coisas das religiões.<br />
Solução criativa<br />
Meu irmão foi engenheiro-chefe da Rede Ferroviária Federal, em Minas. E havia<br />
uma norma relativa ao uso dos telégrafos: somente os telegrafistas-chefes tinham<br />
permissão para telegrafar. Imagino que essa norma foi escrita para impedir abusos,<br />
namoro pelo telégrafo, recados pelo telégrafo. Pois um telegrafista-chefe e seu<br />
ajudante se encontravam numa estaçãozinha perdida na serra. E o telegrafistachefe<br />
teve um ataque de coração e morreu. O ajudante ficou numa situação<br />
impossível. De um lado, ele tinha de avisar o escritório central rapidinho do
ocorrido. Do outro, ele estava proibido de fazê-lo usando o telégrafo, por causa da<br />
dita norma. Mas ele encontrou uma solução inteligente. Por ela deveria ter sido<br />
promovido a telegrafista-chefe. Foi ao telégrafo e mandou a mensagem: “Quero<br />
comunicar à chefia que faleci esta manhã”. E assinou o nome do telegrafista-chefe.<br />
O direito de decidir sobre a própria vida<br />
Todos saem comovidos do filme Menina de ouro. O assunto é o direito que tem<br />
uma pessoa de tomar a decisão de pôr um fim à sua vida quando a vida perdeu o<br />
sentido. Os diálogos com o padre, no filme, são terríveis. O padre nada sente da<br />
vida. Ele vive num mundo de regras que teólogos lógicos deduziram. Identifiqueime<br />
com a moça. Se estivesse na situação dela, eu não desejaria continuar a viver.<br />
E identifiquei-me com o seu treinador, Clint Eastwood. Eu teria feito o que ele fez.<br />
Esse assunto vai crescendo dentro de mim à medida que a vida se escoa. Amo a<br />
vida absurdamente. Meu epitáfio deverá ser: “Ele teve um caso de amor com a<br />
vida...”. Mas a vida humana não se mede por batidas cardíacas ou ondas cerebrais.<br />
A vida humana só é humana enquanto existe a possibilidade de beleza e riso. Sem<br />
beleza e sem risos a vida humana acabou. O que resta é apenas um corpo que<br />
deseja morrer. Hoje já se está dando atenção ao que se chama “terapia paliativa”.<br />
“Paliativo” vem do latim pallium, capa, cobrir, esconder. A terapia paliativa entra<br />
em cena quando se sabe que a batalha está perdida. Não há mais sentido para os<br />
“recursos heroicos”. Quantas quimioterapias sabidamente inúteis deixariam de ser<br />
feitas! Quanto sofrimento seria poupado! O objetivo da terapia paliativa é tornar o<br />
mais confortável possível a despedida da pessoa que vai morrer. Há de se viver<br />
bem. Há de se morrer bem. A ideia de que a medicina é uma luta contra a morte<br />
está errada. A medicina é uma luta pela vida boa, da qual a morte faz parte.<br />
Delicadeza<br />
Eu estava nos Estados Unidos com a família, como professor visitante do Union<br />
Theological Seminary, Nova York. Era novembro. Um telefonema do Brasil nos deu<br />
a triste notícia: meu sogro havia morrido num acidente automobilístico. A notícia<br />
correu, mas estávamos mergulhados na dor e na solidão, no pequeno apartamento<br />
onde vivíamos. Nada podíamos fazer. Aí, por alguma razão, abrimos a porta de<br />
entrada. No chão se encontrava um buquê de flores. Devia ter estado lá por<br />
bastante tempo. A pessoa que o trouxera não apertara o botão da campainha.<br />
Simplesmente deixara o buquê ali, silenciosamente, e se fora. O envelope tinha o<br />
nome da minha esposa. No cartão havia uma única frase, curtíssima: “Não quis<br />
perturbar a sua dor”. Já faz muitos anos. Mas não me esqueci e não me esquecerei.
Morte<br />
E pediram ao profeta: Fale-nos sobre a Morte. E ele disse: “A coruja, cujos olhos<br />
noturnos são cegos durante o dia, não pode revelar o mistério da luz. Se quereis<br />
realmente contemplar o espírito da morte, abri bem o vosso coração para a vida.<br />
Pois a vida e a morte são uma, assim como o rio e o mar são um. Nas profundezas<br />
das vossas esperanças e desejos está vosso conhecimento silencioso do além. E,<br />
como sementes sonhando embaixo da neve, vosso coração sonha com a primavera.<br />
Confiai em vossos sonhos, pois neles estão escondidas as portas para a eternidade.<br />
Pois o que é o morrer além de estar nu ao vento e derreter-se ao sol? E o que é<br />
cessar de respirar, senão livrar a respiração de suas incansáveis marés, que se<br />
elevam e expandem e buscam Deus sem obstáculos? Só cantareis de verdade<br />
quando beberdes do rio do silêncio. E quando chegardes ao topo da montanha, só<br />
então começareis a subir. E quando a terra pedir os vossos membros, só então<br />
dançareis.” (Khalil Gibran, O profeta)<br />
O que falar da morte?<br />
As Sagradas Escrituras sugerem que o silêncio é a palavra mais significativa que se<br />
pode falar diante da morte. Porque no silêncio não dizemos nada. O silêncio é<br />
como uma taça vazia que, por ser vazia, permite que a pessoa que está sofrendo<br />
recolha nela todas as suas lágrimas, que nós não conhecemos.<br />
Quem leu O pequeno príncipe entenderá<br />
“Naquela noite não o vi partir. Saiu sem fazer barulho. Quando consegui alcançá-lo<br />
ele caminhava decidido, num passo rápido. Disse-me apenas: ‘Ah! aí estás...’. E<br />
segurou a minha mão. Mas preocupou-se de novo: ‘Fizeste mal. Tu sofrerás. Eu<br />
parecerei estar morto e isso não será verdade...’. Eu me calara. ‘Tu compreendes. É<br />
muito longe. Eu não posso carregar este corpo. É muito pesado.’ Eu continuava<br />
calado. ‘Mas será como uma velha concha abandonada. Não tem nada de triste<br />
numa velha concha... Será lindo, sabes? Eu também olharei as estrelas. Todas as<br />
estrelas serão como poços com um roldana enferrujada. Todas as estrelas me<br />
darão de beber... As pessoas veem as estrelas de maneira diferente. Para aqueles<br />
que viajam, as estrelas são guias. Para outros, elas não passam de pequenas luzes.<br />
Para os sábios, elas são problemas... Mas todas essas estrelas se calam. Tu,<br />
porém, terás estrelas como ninguém nunca as teve... Quando olhares o céu de<br />
noite, eu estarei habitando uma delas, e de lá estarei rindo; então será, para ti,
como se todas as estrelas rissem! Dessa forma, tu, somente tu, terás estrelas que<br />
sabem rir!’”<br />
Pensamentos da hora da morte<br />
Tive uma amiga, professora da Universidade de Birmingham, na Inglaterra, que<br />
adorava escalar montanhas. Por que escalar uma montanha? Ela respondia:<br />
“Porque ela está lá...”. Cada pico coberto de neve lhe era um desafio irresistível!<br />
Pois ela me contou o seguinte: ela e um grupo de amigos escalavam uma<br />
montanha gelada, se não me engano no Peru ou no Equador. Os membros do<br />
grupo, por segurança, estavam todos amarrados uns nos outros. De repente, um<br />
deles escorregou e começou a deslizar encosta abaixo. Os outros foram arrastados<br />
com ele. Os alpinistas levam uma minipicareta amarrada ao pulso. Enquanto ela<br />
deslizava montanha abaixo, possivelmente para a morte, não pensou sobre a<br />
morte. Não sentiu terror. Começou a pensar irrelevâncias. Seus braços jogados<br />
para cima, a picareta pulava de um lado para o outro acima da sua cabeça. E o que<br />
ela pensou foi: “Como são perigosas essas picaretas! É preciso fazer algo para<br />
diminuir o seu perigo!”. Quatro dos seus amigos morreram. Ela sobreviveu. Pois<br />
algo parecido aconteceu com meu querido amigo Carlos Rodrigues Brandão, que<br />
não morreu por pouco. Viajava de ônibus para uma pequena cidade do Triângulo<br />
Mineiro. O ônibus se chocou com um caminhão. Ele foi projetado contra o banco da<br />
frente e teve vários ossos do rosto fraturados. Sentiu-se sem movimentos e sem<br />
sensibilidade no corpo. Imaginou que a medula havia se rompido. O sangue jorrava<br />
e escorria pelo rosto. Pensou que iria morrer. Então rezou agradecendo a vida que<br />
estava por terminar. Mas repentinamente lhe veio um pensamento: “O <strong>Rubem</strong><br />
planta uma árvore no seu sítio para cada amigo que morre. E eu não lhe disse qual<br />
a árvore que quero que plante para mim. Como é que ele vai fazer? Deveria ter-lhe<br />
dito que eu quero que plante uma paineira branca...”. O Brandão está bem, boca<br />
amarrada, comendo por um canudo, chupando sopa fazendo barulho... Já ganhei<br />
uma muda de paineira branca, linda e rara. Acho que não vai fazer mal plantá-la<br />
agora. A minha árvore já está plantada, com mais de três metros de altura...<br />
“Me ajuda...”<br />
Foi-me relatado por um amigo médico. Ele estava ao lado de um menino, onze<br />
anos, segurava suas mãos. O menino estava morrendo. O menino olhou para ele,<br />
apertou sua mão e disse: “Tio, como é difícil morrer! Me ajuda a morrer...”.
Onipotência<br />
Um amigo querido do Rio de Janeiro está passando por momentos doloridos. Faloume<br />
do seu sofrimento. Seu irmão está vivendo talvez os últimos dias numa cama<br />
de hospital. Mas a tristeza do meu amigo e da família é acrescida pela<br />
insensibilidade arrogante do médico que cuida do seu irmão. Meu amigo, professor<br />
universitário, deseja ver os resultados dos exames de laboratório. Eu também<br />
desejaria. Pois o referido médico determinou que somente ele, médico, pode ter<br />
acesso aos exames. A família permanece na ignorância. Esse é um dos horrores<br />
possíveis no caso de uma internação hospitalar: a perda dos direitos sobre o<br />
próprio corpo. Fica-se à mercê de um outro, desconhecido. Infelizmente ainda há<br />
médicos que, possuídos de arrogância e onipotência, se julgam donos do doente.<br />
Pois eu acho que quem é dono é o doente, dono dos procedimentos médicos que<br />
ele pode aceitar ou rejeitar, dono das informações que ele passa ao médico, se<br />
assim o desejar. Esta é uma questão muito séria e julgo que os médicos deveriam<br />
estudá-la, como parte da ética médica. O doente, por ser doente, não está<br />
reduzido à condição de um nabo cozido. Ele continua sendo um ser humano, dono<br />
de si mesmo. E se ele não está em condições, são os seus seres queridos que<br />
administram os seus direitos e cuidam para que eles não sejam transgredidos. Um<br />
comportamento assim seria objeto de punição se acontecesse em qualquer outra<br />
situação. Até os criminosos são protegidos pela lei. Imagino que Kafka deve ter se<br />
inspirado numa situação hospitalar para escrever O processo. É preciso que os<br />
médicos estejam conscientes de que não são donos do doente, mas servos do<br />
doente. Assim, uma das condições essenciais para o exercício da medicina é a<br />
humildade. Comportamentos como esse que denuncio não são a regra. Mas<br />
existem.<br />
Cata-vento<br />
Ele visitava semanalmente o túmulo do pai e levava flores novas. Ficava triste<br />
vendo as flores murchas e secas da semana anterior, que ninguém regara. Aí teve<br />
a ideia de substituir as flores por um cata-vento. Fincado o catavento, sempre que<br />
o vento soprava, ele girava...<br />
No cemitério<br />
... minha filha de quatro anos explicava ao irmão grande que a levava pela mão:<br />
“Há dois tipos de túmulo. Nesses que parecem uma caixa as pessoas são<br />
enterradas deitadas. Nesses que parecem uma torre de igreja elas são enterradas<br />
de pé...”.
“O pão nosso de cada dia...”<br />
O norueguês Thor Heyerdahl, que em 1947 empreendeu a famosa expedição Kon-<br />
Tiki, através do oceano Pacífico, morreu enquanto dormia, aos 87 anos. Parou de<br />
comer e beber ao ser informado de que sofria de um tumor cerebral. E se os<br />
médicos, em nome da ética, o entubassem e o obrigassem a ingerir alimentos?<br />
Uma paciente antiga relatou-me que o pai velho, doente e religioso, havia parado<br />
de comer. Mas era seu hábito orar diariamente o Pai-Nosso. Aí ela notou que o seu<br />
Pai-Nosso estava diferente. Ele não rezava a cláusula “o pão nosso de cada dia dainos<br />
hoje”.<br />
Tristeza e comunhão<br />
Os que bebem juntos da mesma fonte de tristeza descobrem, surpresos, que a<br />
tristeza partilhada se transmuta em comunhão.<br />
“Será que eu escapo desta?”<br />
“Doutor, agora que estamos sozinhos quero lhe fazer uma pergunta: Será que eu<br />
escapo desta? Mas por favor, não responda agora porque sei o que o senhor vai<br />
dizer. O senhor vai desconversar e responder: ‘Estamos fazendo tudo o que é<br />
possível para que você viva’. Mas não me interessa nem o que o senhor está<br />
fazendo nem o que todos os médicos do mundo estão fazendo. Sou uma pessoa<br />
inteligente. Sei a resposta. Sei que vou morrer. Na escola de medicina os senhores<br />
aprendem a ajudar as pessoas a viver. Mas haverá professores que ensinam a arte<br />
de ajudar as pessoas a morrer? Pois a morte não é parte da vida da mesma forma<br />
que o crepúsculo é parte do dia? Ou isso não faz parte dos saberes de um médico?<br />
O que eu desejo é que o senhor me ajude a morrer. Meus parentes mais queridos<br />
se sentem perdidos. Quando quero falar sobre a morte, eles logo dizem: ‘Tire essa<br />
ideia de morte da cabeça. Logo você estará andando...’. Mentem. Então eu me<br />
calo. Quando saem do quarto, choram. Sei que eles me amam. Querem me<br />
enganar para me poupar de sofrimento. Mas são fracos e não sabem o que falar...<br />
Fico então numa grande solidão. Não há ninguém com quem eu possa conversar<br />
honestamente. Fica tudo num faz de conta... As visitas vêm, assentam-se, sorriem,<br />
comentam as coisas do cotidiano. <strong>Faz</strong>em de conta que estão fazendo uma visita<br />
normal. Eu finjo que estou prestando atenção, obedecendo às normas da<br />
delicadeza. Sorrio. Acho estranho que uma pessoa que está morrendo tenha a<br />
obrigação social de ser delicada com as visitas. As coisas sobre que falam não me
interessam. Dão-me, ao contrário, um grande cansaço. Elas pensam que estou ali<br />
na cama. Não sabem que já estou longe, dentro da minha canoa, navegando no<br />
grande rio, rumo à terceira margem. Mas o meu tempo é curto e não posso<br />
desperdiçá-lo ouvindo banalidades. Contaram-me de um teólogo místico que teve<br />
um tumor no cérebro. O médico lhe disse a verdade: ‘O senhor tem mais seis<br />
meses de vida...’. Aí ele se virou para sua mulher e disse: ‘Chegou a hora das<br />
liturgias do morrer. Quero ficar só com você. Leremos juntos os poemas e<br />
ouviremos as músicas do morrer e do viver. A morte é o acorde final dessa sonata<br />
que é a vida. Toda sonata tem de terminar. Tudo o que é perfeito deseja morrer.<br />
Vida e morte se pertencem. E não quero que essa solidão bonita seja perturbada<br />
por pessoas que têm medo de olhar para a morte. Quero a companhia de uns<br />
poucos amigos que conversarão comigo sem dissimulações. Ou somente ficarão em<br />
silêncio’. Enquanto pude, li os poetas. Nesses dias eles têm sido os meus<br />
companheiros. Seus poemas conversam comigo. Os religiosos não me ajudam. Eles<br />
nada sabem sobre poesia. O que pensam saber são coisas do outro mundo. Mas o<br />
outro mundo não me interessa. Não vou gastar o meu tempo pensando nele. Se<br />
Deus existe, então não há por que me preocupar com o outro mundo, porque Deus<br />
é amor. Se Deus não existe então não há razão para me preocupar com o outro<br />
mundo, porque ele não existe e nada me faltará se eu mesmo faltar. Ah! Como<br />
seria bom se as pessoas que me amam lessem os poemas de que gosto. Então eu<br />
sentiria a presença de Deus. Ouvir música e ler poesia são, para mim, as supremas<br />
manifestações do divino. A consciência da proximidade da morte trouxe lucidez aos<br />
meus sentimentos. Eles ficaram simples e claros. Neste momento, o que enche a<br />
minha alma é a tristeza. A vida está cheia de tantas coisas boas! Não quero<br />
partir... Acho que o nome dessa tristeza é saudade. Já estou com saudades deste<br />
mundo... Um amigo me contou que sua filha de dois anos o acordou pela manhã e<br />
lhe perguntou: ‘Papai, quando você morrer você vai sentir saudades?’. Foi o jeito<br />
que ela teve de dizer: ‘Papai, quando você morrer eu vou sentir saudades’. Na<br />
cama, o dia todo fico a meditar: ‘Nas escolas ensinam-se tantas coisas inúteis que<br />
não servem para nada. Mas nada se ensina sobre o morrer’. Me diga, doutor: O que<br />
lhe ensinaram na escola de medicina sobre o morrer? Sei que lhe ensinaram muito<br />
sobre a morte como um fenômeno biológico. Mas o que lhe ensinaram sobre a<br />
morte como uma experiência humana? Para isso seria necessário que os médicos<br />
tivessem lido os poetas. Os poetas foram lidos como parte do seu currículo? Na<br />
escola de medicina nada lhe ensinaram sobre o morrer humano porque ele não<br />
pode ser dito com a linguagem da ciência. A ciência só lida com generalidades. Mas<br />
a morte de uma pessoa é um evento único, nunca houve e nunca haverá outro<br />
igual. Minha morte será única no universo! Uma estrela vai se apagar. Os remédios<br />
que o senhor receita, nesse ponto, são inúteis e o senhor sabe disso. O senhor os
eceita como desencargo de consciência. Na verdade, o senhor está medicando os<br />
meus parentes. São ilusões para manter neles acesa a chama da esperança. Mas<br />
há um momento da vida em que é preciso perder a esperança. Abandonada a<br />
esperança, a luta cessa e vem então a paz. Mas há algo que os seus remédios<br />
podem fazer. Não quero morrer com dor. Nesse ponto, é para isso que serve a<br />
ciência: para me tirar a dor. Muitos médicos se enchem de escrúpulos por medo de<br />
que os sedativos matem o doente. Preferem deixá-lo sofrendo a fim de manter<br />
limpa e sem pecado sua própria consciência. Com isso, eles transformam o fim<br />
harmonioso da melodia que é a vida num acorde de gritos desafinados. Somos<br />
humanos apenas enquanto brilha em nós a esperança da alegria. Quando a<br />
possibilidade de alegria se vai, é porque a vida humana se foi. Este é o meu último<br />
pedido: quero que minha sonata termine bonita e em paz... E agora, doutor, me<br />
responda: Será que eu saio desta? Ficarei feliz se o senhor não me der aquela<br />
resposta boba mas se assentar ao lado da minha cama e me disser: ‘Você está com<br />
medo de morrer. Eu também tenho medo de morrer...’. Então conversaremos sobre<br />
o medo que mora em nós dois que vamos morrer...”<br />
Oração pelos que vão morrer<br />
“Ó tu, Senhor da eternidade, nós que estamos condenados a morrer elevamos<br />
nossas almas a ti à procura de forças, porque a Morte passou por nós na multidão<br />
dos homens e nos tocou, e sabemos que em alguma curva do nosso caminho ela<br />
estará nos esperando para nos pegar pela mão e nos levar... não sabemos para<br />
onde. Nós te louvamos porque para nós ela não é mais uma inimiga, e sim um<br />
grande anjo teu, o único a poder abrir, para alguns de nós, a prisão de dor e de<br />
sofrimento e nos levar para os espaços imensos de uma nova vida. Mas somos<br />
como crianças, com medo do escuro e do desconhecido, e tememos deixar esta<br />
vida que é tão boa, e os nossos amados, que nos são tão queridos. Dá-nos um<br />
coração valente para que possamos caminhar por essa estrada com a cabeça<br />
levantada e um sorriso no rosto. Que possamos trabalhar alegremente até o fim e<br />
amar os nossos queridos com ternura ainda maior, porque os dias do amor são<br />
curtos. Sobre ti lançamos a carga mais pesada que paralisa nossa alma: o medo<br />
que temos de deixar aqueles que amamos, os quais teremos de deixar<br />
desabrigados num mundo egoísta. Nós te agradecemos porque experimentamos o<br />
gosto bom da vida. Somos-te gratos por cada hora de nossas vidas, por tudo o que<br />
nos coube das alegrias e lutas dos nossos irmãos, pela sabedoria que ganhamos e<br />
será sempre nossa. Se nos sentirmos abatidos com a solidão, sustenta-nos com a<br />
tua companhia. Quando todas as vozes do amor ficarem distantes e se forem, teus<br />
braços eternos ainda estarão conosco. Tu és o Pai dos nossos espíritos. De ti
viemos e para ti iremos. Regozijamo-nos porque, nas horas das nossas visões mais<br />
puras, quando o pulsar da tua eternidade é sentido forte dentro de nós, sabemos<br />
que nenhuma agonia da mortalidade poderá atingir nossa alma inconquistável e,<br />
para aqueles que em ti habitam, a morte é apenas a passagem para a vida eterna.<br />
Nas tuas mãos entregamos o nosso espírito.” (Walter Rauschenbusch, Orações por<br />
um mundo melhor, São Paulo, Paulus, 1997)
© Jackson Romanelli<br />
O contador de histórias <strong>Rubem</strong> <strong>Alves</strong> é um dos intelectuais mais conhecidos do<br />
Brasil. Sua vasta obra emociona e ensina adultos, jovens e crianças.<br />
Ele é membro da Academia Campinense de letras, professor emérito da<br />
Unicamp e cidadão honorário de Campinas, onde recebeu a Medalha Carlos Gomes<br />
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