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Revista da FAEEBA Educação e Contemporaneidade - Uneb

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB<br />

Reitor: Lourisvaldo Valentim <strong>da</strong> Silva; Vice-Reitora: Amélia Tereza Santa Rosa Maraux<br />

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS I<br />

Diretora: Ângela Maria Camargo Rodrigues;<br />

Programa de Pós-Graduação em <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de – PPGEduC – Coordenadora: Nadia Hage Fialho<br />

COMISSÃO DE EDITORAÇÃO<br />

Editora Geral: Yara Dulce Bandeira de Ataide<br />

Editor Executivo: Jacques Jules Sonneville<br />

Editora Administrativa: Jumara Novaes Sotto Maior<br />

GRUPO GESTOR: Ângela Maria Camargo Rodrigues, Jaci Maria Ferraz de Menezes, Jacques Jules Sonneville,<br />

Jumara Novaes Sotto Maior, Luciene Maria <strong>da</strong> Silva, Marcos Luciano Messeder, Nadia Hage Fialho, Renata Monteiro,<br />

Verbena Maria Rocha Cordeiro, Yara Dulce Bandeira de Ataíde.<br />

CONSELHO EDITORIAL<br />

Conselheiros nacionais<br />

Adélia Luiza Portela<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia<br />

Cipriano Carlos Luckesi<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia<br />

Edivaldo Machado Boaventura<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia<br />

Ivete Alves do Sacramento<br />

Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Bahia<br />

Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />

Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Bahia<br />

Jacques Jules Sonneville<br />

Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Bahia<br />

João Wanderley Geraldi<br />

Universi<strong>da</strong>de de Campinas<br />

Jonas de Araújo Romualdo<br />

Universi<strong>da</strong>de de Campinas<br />

José Crisóstomo de Souza<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia<br />

Kátia Siqueira de Freitas<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia<br />

Marcos Silva Palácios<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia<br />

Maria José Palmeira<br />

Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Bahia e Universi<strong>da</strong>de<br />

Católica de Salvador<br />

Maria Luiza Marcílio<br />

Universi<strong>da</strong>de de São Paulo<br />

Naddija Nunes<br />

Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Bahia<br />

Nadia Hage Fialho<br />

Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Bahia<br />

Paulo Batista Machado<br />

Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Bahia<br />

Raquel Salek Fiad<br />

Universi<strong>da</strong>de de Campinas<br />

Robert Evan Verhine<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia<br />

Walter Esteves Garcia<br />

Associação Brasileira de Tecnologia Educacional / Instituto<br />

Paulo Freire<br />

Yara Dulce Bandeira de Ataíde<br />

Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Bahia<br />

Conselheiros internacionais<br />

Antônio Gomes Ferreira<br />

Universi<strong>da</strong>de de Coimbra, Portugal<br />

Edmundo Anibal Heredia<br />

Universi<strong>da</strong>de Nacional de Córdoba, Argentina<br />

Ellen Bigler<br />

Rhode Island College, USA<br />

Luís Reis Torgal<br />

Universi<strong>da</strong>de de Coimbra, Portugal<br />

Marcel Lavallée<br />

Université du Québec à Montréal, Cana<strong>da</strong><br />

Mercedes Vilanova<br />

Universi<strong>da</strong>de de Barcelona, España<br />

Os pareceristas ad hoc do n. 25 serão divulgados junto com a lista na publicação do n. 26 <strong>da</strong> revista.<br />

Revisão: Vera Brito; Bibliotecária: Jacira Almei<strong>da</strong> Mendes; Tradução/revisão: Eric Maheu;<br />

Capa e Editoração: Linivaldo Cardoso Greenhalgh; Secretaria: Maria Fernan<strong>da</strong> Vieira Rosa<br />

EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - EDUNEB<br />

Diretora: Naddija Nunes<br />

Museu de Ciência e Tecnologia - Pró-Reitoria de Extensão - PROEX<br />

Aveni<strong>da</strong> Jorge Amado, s/nº - Boca do Rio - 41.710-050 Salvador/BA<br />

www.uneb.br / editora@listas.uneb.br - telefax (71) 3371.00148 – ramal 204


<strong>Revista</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong><br />

<strong>FAEEBA</strong><br />

<strong>Educação</strong><br />

<strong>Educação</strong><br />

ISSN 0104-7043<br />

e e Contemporanei<strong>da</strong>de<br />

Contemporanei<strong>da</strong>de<br />

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB<br />

Departamento Departamento de de <strong>Educação</strong> <strong>Educação</strong> - - Campus Campus I I<br />

I<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong>: <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, jan./jun., 2006


<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE<br />

<strong>Revista</strong> do Departamento de <strong>Educação</strong> – Campus I<br />

(Ex-Facul<strong>da</strong>de de <strong>Educação</strong> do Estado <strong>da</strong> Bahia – <strong>FAEEBA</strong>)<br />

Publicação semestral temática que analisa e discute assuntos de interesse educacional, científico e cultural. Os pontos<br />

de vista apresentados são <strong>da</strong> exclusiva responsabili<strong>da</strong>de de seus autores.<br />

ADMINISTRAÇÃO E REDAÇÃO: A correspondência relativa a informações, pedidos de permuta, assinaturas, etc.<br />

deve ser dirigi<strong>da</strong> à:<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de<br />

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA<br />

Departamento de <strong>Educação</strong> I - NUPE<br />

Rua Silveira Martins, 2555 - Cabula<br />

41150-000 SALVADOR - BAHIA<br />

Tel. (071)3117.2316<br />

Instruções para os colaboradores: vide últimas páginas.<br />

E-mail <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong>: refaeeba.dedc1@uneb.br<br />

E-mail para o envio dos artigos: jacqson@uol.com.br<br />

Site <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong>: http://www.revista<strong>da</strong>faeeba.uneb.br<br />

Indexa<strong>da</strong> em / Indexed in:<br />

– REDUC/FCC – Fun<strong>da</strong>ção Carlos Chagas – www.fcc.gov.br - Biblioteca Ana Maria Poppovic<br />

– BBE – Biblioteca Brasileira de <strong>Educação</strong> (Brasília/INEP)<br />

– Centro de Informação Documental em <strong>Educação</strong> – CIBEC/INEP - Biblioteca de <strong>Educação</strong><br />

– EDUBASE e Sumários Correntes de Periódicos Online – Facul<strong>da</strong>de de <strong>Educação</strong> – Biblioteca UNICAMP<br />

– Sumários de Periódicos em <strong>Educação</strong> e Boletim Bibliográfico do Serviço de Biblioteca e Documentação – Universi<strong>da</strong>de<br />

de São Paulo - Facul<strong>da</strong>de de <strong>Educação</strong>/Serviço de Biblioteca e Documentação.<br />

www.fe.usp.br/biblioteca/publicações/sumario/index.html<br />

– CLASE – Base de Dados Bibliográficos en Ciencias Sociales y Humani<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Hemeroteca Latinoamericana –<br />

Universi<strong>da</strong>de Nacional Autônoma do México:<br />

E-mails: hela@dgb.unam.mx e rluna@selene.cichcu.unam.mx / Site: http://www.dgbiblio.unam.mx<br />

– INIST - Institut de l’Information Scientifique et Technique / CNRS - Centre Nacional de la Recherche<br />

Scientifique de Nancy/France - Francis 27.562. Site: http://www.inist.fr<br />

Pede-se permuta / We ask for exchange.<br />

Tiragem: 1.000 exemplares<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong>: <strong>Educação</strong> e contemporanei<strong>da</strong>de / Universi<strong>da</strong>de do<br />

Estado <strong>da</strong> Bahia, Departamento de <strong>Educação</strong> I – v. 1, n. 1 (jan./jun.,<br />

1992) - Salvador: UNEB, 1992-<br />

Periodici<strong>da</strong>de semestral<br />

ISSN 0104-7043<br />

1. <strong>Educação</strong>. I. Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Bahia. II. Título.<br />

CDD: 370.5<br />

CDU: 37(05)


S S U U M M Á Á R R I I O<br />

O<br />

9 Editorial<br />

10 Temas e prazos dos próximos números <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e<br />

Contemporanei<strong>da</strong>de<br />

EDUCAÇÃO, ARTE E LUDICIDADE<br />

15 Eclipse do lúdico<br />

Cristina Maria d’Ávila<br />

27 Ludici<strong>da</strong>de e educação emocional na escola: limites e possibili<strong>da</strong>des<br />

Maria José Etelvina dos Santos<br />

43 Século XXI: o jogo necessário para o aprendizado e para o mundo do trabalho<br />

Nilce <strong>da</strong> Silva<br />

55 Se der a gente brinca: crenças <strong>da</strong>s professoras sobre ludici<strong>da</strong>de e ativi<strong>da</strong>des lúdicas<br />

Ilma Maria Fernandes Soares; Bernadete de Souza Porto<br />

79 Coração de professor: o (des)encanto do trabalho sob uma visão sócio-histórica e lúdica<br />

Sueli Barros <strong>da</strong> Ressurreição; Bernadete de Souza Porto<br />

99 O teatro-educação enquanto componente curricular no meio rural: uma experiência na<br />

Escola Comunitária Brilho do Cristal<br />

Rilmar Lopes <strong>da</strong> Silva<br />

117 Do desenho <strong>da</strong>s palavras à palavra do desenho<br />

Ricardo Ottoni Vaz Japiassu<br />

133 As ativi<strong>da</strong>des lúdicas na alfabetização político-estética de jovens e adultos<br />

Cilene Nascimento Can<strong>da</strong><br />

147 O especial dos jogos e brincadeiras no atendimento às diferenças<br />

Susana Couto Pimentel<br />

157 Arte: estampas híbri<strong>da</strong>s de arco-íris em flor – sinergia, religação e ecofraternização<br />

Miguel Almir Lima de Araújo<br />

163 Ban<strong>da</strong>s, filarmônicas e mestres de ban<strong>da</strong> <strong>da</strong> Bahia: formação de músicos e ci<strong>da</strong>dãos<br />

Juvino Alves<br />

173 Uma escola de música e artes brasileiras na Bahia<br />

Katharina Döring<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 1-272, jan./jun., 2006


185 Arte em movimento: a potenciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> arte na formação de educadores<br />

Izabel Dantas de Menezes<br />

201 Um percurso de escutar por todos os lados, sem sentir ou sentindo o seu próprio lado:<br />

reflexões sobre o fazer artístico e cultural nosso de ca<strong>da</strong> dia<br />

Isa Trigo<br />

ESTUDOS<br />

211 Fala e escuta de professores em sala de aula<br />

Maria de Lourdes S. Ornellas<br />

227 A concepção de conhecimento profissional e sua aquisição por professores do ensino médio<br />

Herivelto Moreira et al<br />

239 Em busca <strong>da</strong> América: Latinos (re)construindo os Estados Unidos<br />

Ellen Bigler<br />

RESENHAS<br />

261 PRADO, Guilherme do Val Toledo & SOLIGO, Rosaura (org.). Porque escrever é fazer<br />

história: revelações, subversões, superações. Prefácio Rui Canário. Campinas, SP: Graf.<br />

FÉ/UNICAMP, 2005. 384 p.<br />

Naddija Nunes<br />

266 COHN, Clarice. Antropologia <strong>da</strong> criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, 58 p.<br />

Eric Maheu<br />

268 QUEIROZ, Delcele Mascarenhas. Universi<strong>da</strong>de e desigual<strong>da</strong>de: brancos e negros no<br />

ensino superior. Salvador: Líber Livro, 2004. 167 p.<br />

Jocélio Teles dos Santos<br />

271 Instruções aos colaboradores<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 1-272, jan./jun., 2006


C C O O N N T T E E N N T T S<br />

S<br />

11 Editorial<br />

12 Themes and Time Limit to Submit Manuscript for the Next Volumes of <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong><br />

– Education and Contemporaneity<br />

EDUCATION, ART AND LUDICITY<br />

15 The Eclipse of Lucidity<br />

Cristina Maria d’Ávila<br />

27 Ludicity and Emotional Education in School – limits and possibilities<br />

Maria José Etelvina dos Santos<br />

43 XXI Century: the Essential Game for Learning and for the World of Work<br />

Nilce <strong>da</strong> Silva<br />

55 If Possible We’ll Play: Teachers’ Beliefs on Playfulness and Playful Activities<br />

Ilma Maria Fernandes Soares; Bernadete de Souza Porto<br />

79 Teacher Heart: the (dis)enchantment of his/her work according to a social-historical and<br />

ludic perspective<br />

Sueli Barros <strong>da</strong> Ressurreição; Bernadete de Souza Porto<br />

99 The Theater-Education as Component of Curriculum in the Agricultural Region: an<br />

experience in the comunitary school Brilho do Cristal<br />

Rilmar Lopes <strong>da</strong> Silva<br />

117 From Drawing Words to Giving Drawing some Chance to Speak<br />

Ricardo Ottoni Vaz Japiassu<br />

133 The Playful Activities in the Politic and Aesthetic Literacy of Young and Adults<br />

Cilene Nascimento Can<strong>da</strong><br />

147 The Special Character of Fun and Play while Attending to Special Needs Children<br />

Susana Couto Pimentel<br />

157 Art: Hybrids Impression of Rainbow in Flower – Synergy, Religation and Ecofraternization<br />

Miguel Almir Lima de Araújo<br />

163 Bands, Philharmonic Societies and Masters of Bahia: education and citizenship<br />

Juvino Alves<br />

173 A School for Brazilian Music and Arts in Bahia<br />

Katharina Döring<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 1-272, jan./jun., 2006


185 Art in Motion: the potentiality of art in educator’s formation<br />

Izabel Dantas de Menezes<br />

201 A journey of Listening from Everywhere, Feeling or not Feeling your Own Side:<br />

Reflections on our Every<strong>da</strong>y Artistic and Cultural Activities<br />

Isa Trigo<br />

STUDIES<br />

211 Speaking with Teachers and Listening to them in the Classroom<br />

Maria de Lourdes S. Ornellas<br />

227 The Conception of Professional Knowledge and its Acquisition by High School Teachers<br />

Herivelto Moreira et al<br />

239 In Search of America: Latina/os (Re)constructing the U.S.A.<br />

Ellen Bigler<br />

BOOK REVIEWS<br />

261 PRADO, Guilherme do Val Toledo & SOLIGO, Rosaura (org.). Why to Write and do<br />

History: revelations, subversions and overtaking. Prefácio Rui Canário. Campinas, SP:<br />

Graf. FÉ/UNICAMP, 2005. 384 p.<br />

Naddija Nunes<br />

266 COHN, Clarice. The Anthropology of Children. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, 58 p.<br />

Eric Maheu<br />

268 QUEIROZ, Delcele Mascarenhas. University and Inequality: Whites and Blacks in<br />

Superior Education. Salvador: Líber Livro, 2004. 167 p.<br />

Jocélio Teles dos Santos<br />

271 Instructions for collaborators<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 1-272, jan./jun., 2006


EDITORIAL<br />

EDUCAÇÃO, ARTE E LUDICIDADE é o tema do número 25 <strong>da</strong> <strong>Revista</strong><br />

<strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de. Sem dúvi<strong>da</strong>, é uma marca na<br />

história <strong>da</strong> revista, não apenas pela abor<strong>da</strong>gem de uma nova temática, de grande<br />

alcance e importância para o estudo <strong>da</strong> educação, mas também pela contribuição<br />

significativa do GEPEL – Grupo de Estudos e Pesquisas em <strong>Educação</strong> e<br />

Ludici<strong>da</strong>de – <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de <strong>Educação</strong> <strong>da</strong> UFBA, iniciando-se, deste modo,<br />

uma nova linha de cooperação científica, desta vez com uma instituição universitária<br />

de fora <strong>da</strong> UNEB, ain<strong>da</strong> que localiza<strong>da</strong> na mesma ci<strong>da</strong>de de Salvador.<br />

Esperamos que seja o início de um fecundo intercâmbio acadêmico com outras<br />

instituições acadêmicas, dentro e fora do Estado <strong>da</strong> Bahia, permitindo uma integração<br />

crescente dos diversos grupos de pesquisa em educação na região.<br />

Todos os textos têm como objetivo mostrar a importância vital <strong>da</strong> arte e <strong>da</strong><br />

ludici<strong>da</strong>de para o processo <strong>da</strong> prática educacional, seja no ensino formal seja<br />

num ambiente mais amplo. O primeiro texto, de Cristina Maria d’Ávila, analisa<br />

as práticas em curso e o papel superdimensionado concedido ao manual didático,<br />

revelando o eclipse que oblitera uma ação pe<strong>da</strong>gógica lúdica, prazerosa e<br />

criativa. Neste sentido, Maria José Etelvina dos Santos investiga as ativi<strong>da</strong>des<br />

lúdicas como recurso de prática educativa, que tenha presente o desenvolvimento<br />

emocional do estu<strong>da</strong>nte. Por sua vez, Nilce <strong>da</strong> Silva aponta algumas <strong>da</strong>s<br />

características necessárias para a constituição de uma Pe<strong>da</strong>gogia para Século<br />

XXI, cujo fio condutor é a criativi<strong>da</strong>de.<br />

Segue uma série de pesquisas de campo sobre a temática. Ilma Maria<br />

Fernandes Soares analisa as crenças <strong>da</strong>s professoras sobre ludici<strong>da</strong>de e ativi<strong>da</strong>des<br />

lúdicas, que, de alguma forma, explicam a resistência desses/as profissionais<br />

a um trabalho pautado na ludici<strong>da</strong>de. Já Sueli Barros <strong>da</strong> Ressurreição<br />

mostra a importância <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de na formação profissional, no investimento<br />

afetivo e no reencanto do professor em seu trabalho. Outro texto, de Rilmar<br />

Lopes <strong>da</strong> Silva, relata uma experiência pe<strong>da</strong>gógica em Teatro-<strong>Educação</strong> com<br />

o intuito de formar ci<strong>da</strong>dãos com capaci<strong>da</strong>de de serem criativos, críticos, participativos<br />

e autônomos. Ricardo Japiassu faz uma análise detalha<strong>da</strong> sobre<br />

desenvolvimento gráfico-plástico infantil e a formação do professor em arteensino<br />

na educação infantil e séries iniciais. O texto de Cilene Nascimento<br />

Can<strong>da</strong> descreve a importância <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de na construção do processo de<br />

conscientização na alfabetização de jovens e adultos. Finalmente, Susana Couto<br />

Pimentel discute a potenciali<strong>da</strong>de dos jogos e brincadeiras na promoção dos<br />

processos de aprendizagem e desenvolvimento de alunos com necessi<strong>da</strong>des<br />

educativas especiais.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, jan./jun., 2006 9


10<br />

O terceiro bloco de textos dá uma atenção especial à Arte, nas palavras de<br />

Miguel Almir Lima de Araújo, expressão ontológica <strong>da</strong> condição humana, com<br />

sua potência de transfiguração do real, através de nossa sensibili<strong>da</strong>de e imaginação<br />

criantes. Como exemplo, Juvino Alves traça um panorama histórico <strong>da</strong>s<br />

Ban<strong>da</strong>s e Socie<strong>da</strong>des Filarmônicas <strong>da</strong> Bahia e do seu papel educativo, ressaltando<br />

ain<strong>da</strong> a figura dos mestres de Ban<strong>da</strong>. Nesta perspectiva, Katharina Döring<br />

propõe a criação de uma Escola de Música e/ou Artes através dos departamentos<br />

<strong>da</strong> UNEB no interior <strong>da</strong> Bahia. O artigo de Izabel Dantas de Menezes<br />

procura compreender a potenciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> arte na formação dos educadores do<br />

movimento sócio-cultural MIAC, para além ‘do chão <strong>da</strong> escola’. Partindo <strong>da</strong><br />

sua experiência como docente, diretora e atriz dentro do campo <strong>da</strong>s artes cênicas<br />

e visuais, Isa Trigo discute a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> criação de um curso de<br />

Artes na UNEB, debatendo a questão <strong>da</strong>s artes e <strong>da</strong> cultura popular como<br />

espetáculo a ser valorizado através de mecanismos institucionais.<br />

Com a seção de Estudos, onde se estu<strong>da</strong>m, respectivamente, as representações<br />

sociais de professores sobre fala e escuta em sala de aula (Maria de<br />

Lourdes S. Ornellas), a concepção de conhecimento profissional entre os professores<br />

do ensino médio (Herivelto Moreira et al) e a mu<strong>da</strong>nça demográfica<br />

causa<strong>da</strong> pelos latinos que constituem atualmente o maior grupo minoritário nos<br />

Estados Unidos (Ellen Bigler), e a seção de três Resenhas, temos a convicção<br />

de que o número 25 <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> <strong>da</strong>rá uma nova e importante<br />

contribuição para o estudo <strong>da</strong> educação.<br />

Os Editores: Jacques Jules Sonneville<br />

Jumara Novaes Sotto Maior<br />

Yara Dulce Bandeira de Ataide<br />

Temas e prazos dos próximos números<br />

<strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong>: <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de<br />

Nº Tema<br />

Prazo de entrega<br />

dos artigos<br />

Lançamento<br />

previsto<br />

26 <strong>Educação</strong> e Trabalho 30.05.06 Setembro de 2006<br />

27 <strong>Educação</strong> Especial 30.09.06 Março de 2007<br />

28 <strong>Educação</strong> Ambiental e<br />

Socie<strong>da</strong>des Sustentáveis 30.05.07 Setembro de 2007<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, jan./jun., 2006


EDITORIAL<br />

Education, Art and Ludicity is the theme of the number 25 of the <strong>Revista</strong><br />

<strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de. Without any doubt, it will let<br />

a mark in this journal’s history, not only for the new theme embraced and for<br />

its importance and scope but also for the significant contribution of the GE-<br />

PEL – Grupo de Estudos e Pesquisas em <strong>Educação</strong> e Ludici<strong>da</strong>de from the<br />

UFBA. We open this way a new framework of scientific cooperation, this<br />

time with an universitary institution outside the UNEB but from the same city<br />

(Salvador). We hope that it may constitute the beginning of a fertile academic<br />

exchange with other institutions, in and out of Bahia, possibilitating a greater<br />

integration between education research groups.<br />

All the texts aim at showing the vital importance of art and ludicity within<br />

the process of educational practices, in a formal or larger context. The first<br />

paper, from Cristina Maria D’Ávila, analyses present practices and shows the<br />

overdimensioned role of the di<strong>da</strong>ctic book which obliterate a ludic, pleasurable<br />

and creative pe<strong>da</strong>gogy. In this sense, Maria José Etelvina dos Santos investigates<br />

ludic activities as resources from the educational practice focussing on<br />

the pupil emotional development. From her part, Nilce <strong>da</strong> Silva points out some<br />

necessary characteristics for the elaboration of XXIst century pe<strong>da</strong>gogy based<br />

upon creativity.<br />

Follow various texts relating fieldworks upon the theme. Ilma Maria Fernandes<br />

Soares explains the teachers’ beliefs about ludicity and playful activities,<br />

which, in a certain way, explain the teachers’ resistance to a work framed<br />

by ludicity. From her part, Sueli Barros <strong>da</strong> Resssureição shows the importance<br />

of lucidity in professional education within the affective involvement and reenchantment<br />

of teachers’ work. Next paper, from Rilmar Lopes <strong>da</strong> Silva tells<br />

about a pe<strong>da</strong>gogical experience of Theater Education which aims at education<br />

citizens able to be creative, critic, participative and autonomous. Ricardo Japans<br />

analyzes in a detailed way, the infantile plastic and graphic development<br />

and the teachers’ education in the teaching of art in the first years of primary<br />

school.<br />

Ilene Ancient Cana<strong>da</strong>’s paper describes the importance of ludicity during<br />

the conscientization process of young and adult while learning how to read and<br />

write. Finally, Susana Couto Pimentel discusses the potentiality of games in<br />

the promotion of learning processes and special students’ development.<br />

The third section gives a special attention to Art, in the words of Miguel<br />

Almir Lima de Araújo, onthologic expression of the human condition, with its<br />

potential of transfiguration of the real through our blatant sensibility and imagi-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, jan./jun., 2006 11


12<br />

nation. Juvino Alves, for example, draws an historical framework of the bands<br />

and philharmonic societies of Bahia and their educational role, pointing out the<br />

figure of the band masters. In the same perspective, Katharina Döring suggests<br />

the creation of a Music or Art School with the net of UNEB faculties outside<br />

the capital’s state of Salvador. The paper from Izabel Dantas de Menezes<br />

tries to understand art potentiality in teachers’ education within the socio-cultural<br />

movement called MIAC, beyond the classroom. Isa Trigo, constructing<br />

upon her experience as a teacher, director and actress within the visual and<br />

scenic art field, discusses the possibility of the creation of an Art Program at<br />

the UNEB, debating the question of arts an popular culture as spectacle to be<br />

valorized through institutionalized mechanisms.<br />

With the section Studies, where the teachers’ social representations about<br />

discourses and listening within the classroom (Maria de Lourdes S. Ornellas),<br />

the high school teacher’s conception of professional knowledge (Herivelto<br />

Moreira et al) and the demographic change provoked by Latinos who presently<br />

constitute the main ethnic group in the United States (Ellen Bigler) are<br />

respectively analysed, and the last section with three book reviews, we have<br />

the conviction that the 25 th volume of the <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> will contribute<br />

for the study of education.<br />

Nº<br />

Themes<br />

Editors: Jacques Jules Sonneville<br />

Jumara Novaes Sotto Maior<br />

Yara Dulce Bandeira de Ataide<br />

Themes and terms for the next journals<br />

of <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong>:<br />

<strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de<br />

Time limit Anticipated <strong>da</strong>te<br />

of publishing<br />

26 Education and Work 30.05.06 September 2006<br />

27 Special Education 30.09.06 March 2007<br />

28 Ecological Education and<br />

Sustainable Societies<br />

30.05.07 September 2007<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, jan./jun., 2006


EDUCAÇÃO,<br />

ARTE<br />

E LUDICIDADE


RESUMO<br />

ECLIPSE DO LÚDICO<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 15-25, jan./jun., 2006<br />

Cristina Maria d’Ávila<br />

Cristina Maria d’Ávila*<br />

Este artigo traz como escopo uma reflexão sobre a situação pe<strong>da</strong>gógica nas<br />

séries iniciais do nível fun<strong>da</strong>mental, utilizando como recurso ilustrativo um estudo<br />

de caso (relato de experiência), resultado de pesquisa realiza<strong>da</strong> em uma escola<br />

pública na ci<strong>da</strong>de de Salvador. Intenciona, ao analisar as práticas em curso<br />

nesse contexto e o papel superdimensionado concedido ao manual didático,<br />

revelar o eclipse que oblitera uma ação pe<strong>da</strong>gógica lúdica, prazerosa e criativa.<br />

Concluímos a favor de uma prática pe<strong>da</strong>gógica lúdica, apoia<strong>da</strong> sobre a arte<br />

como dimensão estruturante do humano. Neste sentido, sustentamos a idéia de<br />

que o saber sensível (artístico e lúdico), interligado aos demais saberes - saber<br />

e ao saber fazer - fun<strong>da</strong>ntes <strong>da</strong> prática pe<strong>da</strong>gógica, poderão fazer erigir uma<br />

pe<strong>da</strong>gogia lúdica, onde o pensar, o sentir e o agir, em uníssono, se expressam<br />

no processo de ensinar e aprender.<br />

Palavras-chave: Ludici<strong>da</strong>de – Ensino lúdico – Eclipse didático – Arte – Saber<br />

sensível<br />

ABSTRACT<br />

THE ECLIPSE OF LUDICITY<br />

This paper aims to reflect upon the pe<strong>da</strong>gogical situation in the first years of<br />

the Brazilian primary school through case study: a fieldwork research realized<br />

in a public school of the city of Salvador (Bahia). We pretend to analyse the<br />

practices within this context as well as the over dimensioned role of the<br />

schoolbook. We reveal a di<strong>da</strong>ctic eclipse which eliminates any playful,<br />

pleasurable or creative pe<strong>da</strong>gogical action. We conclude in favour of a playful<br />

pe<strong>da</strong>gogical practice, supported by art as a structuring dimension of humankind.<br />

In this way, we assess the idea the sensible knowledge (artistic and playful),<br />

interlinked with other knowledges (from knowing something up to knowing<br />

how to do something), at the base of the pe<strong>da</strong>gogical practice, may construct a<br />

playful pe<strong>da</strong>gogy in which, feeling and acting, could expresses themselves in<br />

harmony within the learning and teaching process.<br />

Keywords: Ludicity – Playful teaching – Di<strong>da</strong>ctic eclipse – Art – Sensible<br />

knowledge<br />

* Doutora em <strong>Educação</strong>, Professora do Programa de Pós-Graduação em <strong>Educação</strong> <strong>da</strong> FACED/UFBA e do PPGEDUC/<br />

UNEB. Professora de Didática e Prática de Ensino na UFBA e na UNEB. Vice-coordenadora do GEPEL – Grupo de<br />

Estudos e Pesquisas em <strong>Educação</strong> e Ludici<strong>da</strong>de – FACED/UFBA. Endereço para correspondência: Universi<strong>da</strong>de do<br />

Estado <strong>da</strong> Bahia - UNEB, Campus I, Mestrado em <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Rua Silveira Martins, 2555,<br />

Cabula, 41150-000 SALVADOR/BA. E-mail: cmdtm@terra.com.br<br />

15


Eclipse do Lúdico<br />

INTRODUÇÃO<br />

16<br />

Se você conhecesse o tempo tão bem quanto eu, disse o Chapeleiro, não<br />

diria gastar, referindo-se a ele.<br />

Não sei o que você quer dizer com isso, disse Alice.<br />

É claro que não sabe, respondeu o Chapeleiro, sacudindo desdenhosamente<br />

a cabeça; tenho certeza de que você nunca falou com o Tempo!...<br />

Talvez não, replicou Alice conscienciosamente; mas quando estudo música<br />

tenho que marcar o tempo...<br />

Ah! Então é por isso! Disse o Chapeleiro; ele não suporta marcação. Mas<br />

se você o tratar bem, fará o que você quiser com o relógio. Por exemplo: se<br />

fossem nove horas <strong>da</strong> manhã, hora de começar as lições e que você quisesse<br />

brincar, era só cochichar um pedidozinho ao Tempo e zás! Ele ro<strong>da</strong>va os<br />

ponteirinhos do relógio até marcar seis horas <strong>da</strong> tarde, Pronto! Num piscar<br />

de olhos seria hora do jantar!...<br />

Um rápido olhar sobre o que acontece na<br />

escola, principalmente nas classes dos anos iniciais<br />

do fun<strong>da</strong>mental, já nos possibilita enxergarmos<br />

o quão distantes estamos do que poderíamos<br />

chamar de uma prática pe<strong>da</strong>gógica lúdica, mormente<br />

quando se fala em educação pública.<br />

Se observarmos o cotidiano escolar, a partir<br />

dos ritos repetitivos de – chega<strong>da</strong> à escola, fila<br />

para entrar na sala de aula, a oração, deslin<strong>da</strong>mento<br />

dos conteúdos mediante a fala majoritariamente<br />

expositiva e dominante <strong>da</strong>s professoras,<br />

saí<strong>da</strong> para o recreio, fila para entregar a<br />

meren<strong>da</strong>, retorno, novamente a mesma professora<br />

que expõe magistralmente o conteúdo <strong>da</strong>s<br />

disciplinas, sineta que toca anunciando a hora<br />

<strong>da</strong> saí<strong>da</strong>, fila, porta a fora e a rua que, convi<strong>da</strong>tiva,<br />

chama as crianças que, finalmente, brincam<br />

– poderemos perceber que o espaço do<br />

brincar ou do deleite em aprender tem sido roubado<br />

na escola.<br />

Na sala de aula, o ensino criativo e lúdico<br />

tem cedido espaço para ações repetitivas e<br />

mecânicas. Muitas dessas ações, realiza<strong>da</strong>s,<br />

sobretudo no Ensino Fun<strong>da</strong>mental, têm no livro<br />

didático o seu mestre. Tal material, por constituir-se<br />

no mais poderoso, e mesmo, onipotente<br />

recurso de ensino, de que lançam mão os professores<br />

dos níveis fun<strong>da</strong>mental e médio de<br />

ensino, sobretudo nas escolas públicas, ditam<br />

(Alice nos País <strong>da</strong>s Maravilhas, Lewis Carrol).<br />

as regras do que fazer didático no dia-a-dia <strong>da</strong><br />

sala de aula. E, por isso mesmo, por se bastarem,<br />

equivoca<strong>da</strong>mente, suprimem <strong>da</strong> cena a<br />

criativi<strong>da</strong>de, autoria docente e a ludici<strong>da</strong>de. Este<br />

é o tema do presente artigo que tem por objetivo<br />

refletir sobre o espaço conferido à ludici<strong>da</strong>de<br />

no ensino fun<strong>da</strong>mental e o eclipse ocasionado<br />

por ações didáticas mecânicas, capitanea<strong>da</strong>s,<br />

principalmente, pelo livro didático, adotando, por<br />

considerar mais precisa, a terminologia manual<br />

didático.<br />

Tomaremos aqui como referências para análise<br />

do fenômeno anunciado, os autores Cipriano<br />

Carlos Luckesi (2000a; 2004b, 2005),<br />

Maturana e Ger<strong>da</strong> Verden-Zoller (2004), Johan<br />

Huizinga (1996), Deheinzelin (1996) Alessandrini<br />

(1992), dentre outros. Inicialmente discutiremos<br />

o conceito de ludici<strong>da</strong>de, de ensino e<br />

ativi<strong>da</strong>des lúdicas, em segui<strong>da</strong> discorreremos<br />

sobre a Arte como dimensão liga<strong>da</strong> ao ensino<br />

lúdico e, finalmente, apresentaremos alguns<br />

exemplos extraídos <strong>da</strong> pesquisa realiza<strong>da</strong> no<br />

contexto de uma escola pública de séries iniciais<br />

do nível fun<strong>da</strong>mental.<br />

Ludici<strong>da</strong>de: ensino lúdico e ativi<strong>da</strong>des<br />

lúdicas<br />

LUDO: Do latim LUDU – “tipo de jogo<br />

em que as pedras se movimentam segundo o<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 15-25, jan./jun., 2006


número de casas indicado pelos <strong>da</strong>dos. Uso<br />

comum: jogo, divertimento” 1 . Essa temática<br />

tem despertado interesse de educadores, psicólogos,<br />

terapeutas em geral, sociólogos, antropólogos,<br />

filósofos e historiadores, <strong>da</strong><strong>da</strong> a sua<br />

diversi<strong>da</strong>de e importância em face <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des<br />

sócio-econômicas, políticas e culturais, definidoras<br />

do mundo contemporâneo.<br />

Considerando-se a polissemia em torno do<br />

conceito de ludici<strong>da</strong>de, podemos destacar as suas<br />

acepções mais comuns: jogo, brincadeira, lazer,<br />

recreação... Em síntese, podemos dizer que do<br />

ponto de vista sociocultural o lúdico não é exatamente<br />

uma dinâmica interna do indivíduo, mas<br />

ativi<strong>da</strong>des dota<strong>da</strong>s de significação sociocultural.<br />

A cultura lúdica é, assim, um conjunto de<br />

procedimentos que se apodera dos elementos<br />

de ca<strong>da</strong> cultura específica. Por outro lado, na<br />

sua acepção psicológica, o lúdico deve expressar<br />

uma experiência interna de satisfação e plenitude<br />

no que se faz. Vejamos uma e outra<br />

concepção, segundo o pensamento de alguns<br />

autores, buscando nestas, o seu núcleo comum.<br />

Segundo Huizinga (1996), na socie<strong>da</strong>de antiga,<br />

o trabalho não tinha o valor que lhe atribuímos<br />

há pouco mais de um século e nem ocupava<br />

tanto tempo do dia. Os jogos e os divertimentos<br />

eram um dos principais meios de que dispunha<br />

a socie<strong>da</strong>de para estreitar seus laços coletivos<br />

e se sentir uni<strong>da</strong>. Isso se aplicava a quase todos<br />

os jogos, e esse papel social era evidenciado<br />

principalmente em virtude <strong>da</strong> realização <strong>da</strong>s<br />

grandes festas sazonais.<br />

Brougère (2002) compreende o jogo no seu<br />

enraizamento social. Diz ele que o ludus latino<br />

tem diferentes acepções a depender <strong>da</strong> cultura<br />

de que se fala. Criticando a psicologização em<br />

torno do conceito (a não compreensão <strong>da</strong> dimensão<br />

social que se encarna nas ativi<strong>da</strong>des<br />

humanas, dentre as quais, no jogo), explica que<br />

a brincadeira e o jogo são construções culturais.<br />

Sendo assim, só podem ser compreendidos<br />

dentro de um sistema de interpretação <strong>da</strong>s<br />

ativi<strong>da</strong>des humanas. Brougère destaca que<br />

“uma <strong>da</strong>s características do jogo consiste efetivamente<br />

no fato de não dispor de nenhum comportamento<br />

específico que permitiria separar<br />

claramente a ativi<strong>da</strong>de lúdica de qualquer outro<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 15-25, jan./jun., 2006<br />

Cristina Maria d’Ávila<br />

comportamento. O que caracteriza o jogo é<br />

menos o que se busca do que o modo como se<br />

brinca, o estado de espírito com que se brinca”<br />

(2002, p. 20).<br />

Maurício Silva, em sua “Trama doce-amarga.<br />

Exploração do trabalho infantil e cultura<br />

lúdica” (2003), define o lúdico na sua acepção<br />

antropológica, como um processo de relações<br />

interpessoais, um processo cultural que “mu<strong>da</strong><br />

de conteúdo, do nascimento até a morte de<br />

ca<strong>da</strong> participante e que, por sinal, não pode se<br />

separar analiticamente do contexto em que se<br />

produz...”(2003, p. 182). Na sua concepção,<br />

antes de mais na<strong>da</strong>, é preciso que se compreen<strong>da</strong><br />

a criança como ser social em permanente<br />

construção, cuja inserção no mundo se dá<br />

pela cultura.<br />

Encontramos em Maturana e Ger<strong>da</strong> Verden-<br />

Zoller (2004), um conceito do brincar muito próximo<br />

às nossas crenças: “Na vi<strong>da</strong> diária o que<br />

queremos conotar quando falamos em brincar é<br />

uma ativi<strong>da</strong>de realiza<strong>da</strong> como plenamente váli<strong>da</strong><br />

em si mesma. Isto é, no cotidiano distinguimos<br />

como brincadeira qualquer ativi<strong>da</strong>de vivi<strong>da</strong> no<br />

presente de sua realização e desempenha<strong>da</strong> de<br />

modo emocional, sem nenhum propósito que lhe<br />

seja exterior” (2005, p. 144).<br />

Tanto quanto no “Ócio Criativo” de Domenico<br />

De Masi (2000), onde o conceito de trabalho<br />

passa a ser entendido nas suas intercessões<br />

com o estudo e a ludici<strong>da</strong>de. Segundo o autor:<br />

Aquele que é mestre na arte de viver faz pouca<br />

distinção entre o seu trabalho e o tempo livre,<br />

entre a sua mente e o seu corpo, entre a sua educação<br />

e a sua recreação, entre o seu amor e a sua<br />

religião. Distingue uma coisa <strong>da</strong> outra com dificul<strong>da</strong>de.<br />

Almeja, simplesmente, a excelência em<br />

qualquer coisa que faça, deixando aos demais a<br />

tarefa de decidir se está trabalhando ou se divertindo.<br />

Ele acredita que está sempre fazendo as<br />

duas coisas ao mesmo tempo (2000, p. 148).<br />

E assim, completa De Masi, “a plenitude <strong>da</strong><br />

ativi<strong>da</strong>de humana é alcança<strong>da</strong> somente quando<br />

nela coincidem , se acumulam, se exaltam e se<br />

mesclam o trabalho, o estudo e o jogo” (2000,<br />

p. 148).<br />

1 Dicionário Aurélio, p. 1051.<br />

17


Eclipse do Lúdico<br />

Para Cipriano Luckesi (2004), o conceito de<br />

ludici<strong>da</strong>de se expande para além <strong>da</strong> idéia de<br />

lazer restrito à experiência externa, ampliando<br />

a compreensão para um estado de consciência<br />

pleno e experiência interna. Segundo o autor:<br />

18<br />

... quando estamos definindo ludici<strong>da</strong>de como<br />

um estado de consciência, onde se dá uma experiência<br />

em estado de plenitude, não estamos falando,<br />

em si <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des objetivas que podem<br />

ser descritas sociológica e culturalmente como<br />

ativi<strong>da</strong>de lúdica, como jogos ou coisa semelhante.<br />

Estamos, sim, falando do estado interno do<br />

sujeito que vivencia a experiência lúdica. Mesmo<br />

quando o sujeito está vivenciando essa experiência<br />

com outros, a ludici<strong>da</strong>de é interna; a<br />

partilha e a convivência poderão oferecer-lhe, e<br />

certamente oferecem, sensações do prazer <strong>da</strong><br />

convivência, mas, ain<strong>da</strong> assim, essa sensação é<br />

interna de ca<strong>da</strong> um, ain<strong>da</strong> que o grupo possa<br />

harmonizar-se nessa sensação comum; porém um<br />

grupo, como grupo, não sente, mas soma e engloba<br />

um sentimento que se torna comum; porém,<br />

em última instância, quem sente é o sujeito.<br />

(LUCKESI, 2005, p. 6). 2<br />

Neste sentido, o conceito do que é lúdico<br />

repousa sobre a idéia do prazer que reside no<br />

que se faz, como disse, há pouco tempo, o jornalista<br />

Ruy Castro: “O prazer não está em dedicar<br />

um tempo programado para o ócio. O<br />

prazer é residente. Está dentro de nós, na maneira<br />

como a gente se relaciona com o mundo”.<br />

O conceito defendido atravessa, pois, essa<br />

idéia <strong>da</strong> permanência no jogo, no sentir prazer<br />

e inteireza naquilo que se faz.<br />

Na escola, entretanto, essa dimensão tão<br />

natural aos seres humanos e a outros animais<br />

parece bastante descola<strong>da</strong> <strong>da</strong>s práticas cotidianas.<br />

Em seu mais recente livro, Maturana e<br />

Verden-Zoller (2004) sustentam, inclusive, que<br />

o amar e o brincar são fun<strong>da</strong>mentos esquecidos<br />

do humano e, contraditoriamente, estruturantes<br />

deste. Isto posto, cabe in<strong>da</strong>garmos acerca<br />

do espaço que a escola tem deixado para o brincar:<br />

De que maneira a ludici<strong>da</strong>de se faz presente<br />

ali? O que entendemos por ensino lúdico?<br />

Em primeiro lugar precisamos diferenciar<br />

ludici<strong>da</strong>de de ativi<strong>da</strong>de lúdica: o centro <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de,<br />

segundo a concepção que defendemos<br />

aqui, reside no que se vivencia de forma plena<br />

em ca<strong>da</strong> momento. Ou seja, no ensino lúdico,<br />

significa ensinar um <strong>da</strong>do objeto de conhecimento<br />

na <strong>da</strong>nça <strong>da</strong> dialética entre focalização<br />

e ampliação do olhar. Sem perder o foco do<br />

trabalho, entregar-se a ele. Muitas experiências<br />

de ensino em que se entremeiam ativi<strong>da</strong>des<br />

lúdicas deixam margem para uma dicotomia<br />

entre conteúdo curricular e ludici<strong>da</strong>de. A realização<br />

de ativi<strong>da</strong>des lúdicas na sala de aula não<br />

significa dizer que se está ensinando ludicamente,<br />

se este elemento aparece como acessório.<br />

O ensino lúdico é aquele em que se inserem<br />

conteúdos, métodos criativos e o enlevo em se<br />

ensinar e, principalmente, aprender. A esse propósito,<br />

Luckesi acentua:<br />

A metáfora criativa pode ser utiliza<strong>da</strong> dentro <strong>da</strong><br />

área de conhecimento com a qual trabalhamos<br />

ou fora dela. Proponho que um “ensino lúdico”<br />

deva servir-se <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s metáforas<br />

criativas dentro do foco <strong>da</strong> disciplina com a qual<br />

trabalhamos e não fora dela. O ensino lúdico, a<br />

meu ver, permite a nós e aos nossos educandos<br />

olhar os conteúdos que estamos estu<strong>da</strong>ndo com<br />

um “pescoço flexível”, que pode olhar o objeto<br />

de investigação e compreensão de diversos ângulos,<br />

mas sem suprimir ou escurecer o objeto<br />

de investigação. Ele é o mediador <strong>da</strong> investigação<br />

entre os sujeitos; o foco de atenção de educador<br />

e educandos está sobre esse objeto e<br />

trocam experiências a partir dele. A <strong>da</strong>nça em<br />

torno dele é que é lúdica e criativa. (LUCKESI,<br />

2005). 3<br />

A metáfora criativa a que chama atenção<br />

Cipriano seria, nessa perspectiva, a mola mestra<br />

de um ensino realmente lúdico – uma prática<br />

de ensino onde quem ensina e quem aprende<br />

se encontram enlevados na realização <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des,<br />

mesmo que a aula seja no mais puro e<br />

bom estilo expositivo. Com isso não se está<br />

querendo dizer que as aulas expositivas sejam<br />

lúdicas por si só. To<strong>da</strong> e qualquer aula é lúdica<br />

na medi<strong>da</strong> em que professor e estu<strong>da</strong>ntes se<br />

encontrem prazerosamente integrados e focados<br />

no conteúdo que se tem a trabalhar. Seria<br />

2 Disponível em www.luckesi.com.br. Acesso em: 18 fev.<br />

2006.<br />

3 Conteúdo de mensagem eletrônica envia<strong>da</strong> ao Grupo de<br />

Estudos e Pesquisas sobre <strong>Educação</strong> e Ludici<strong>da</strong>de - GEPEL –<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia, no ano de 2005.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 15-25, jan./jun., 2006


uma exposição com algo a mais e esse algo a<br />

mais inclui o elemento <strong>da</strong> metáfora criativa a<br />

que chamou atenção Cipriano Luckesi na sua<br />

fala.<br />

A criativi<strong>da</strong>de e a autoria são estruturantes<br />

de uma ação educativa lúdica. “Uma prática<br />

educativa lúdica possibilitará a ca<strong>da</strong> um de nós<br />

e a nossos educandos aprendermos a viver mais<br />

criativamente e, por isso mesmo, de forma mais<br />

saudável” (LUCKESI, 2004, p. 20). Incluímos<br />

aqui a dimensão <strong>da</strong> arte como ingrediente indispensável<br />

ao ensino lúdico. Voltaremos a esse<br />

ponto ao final do artigo; pelo momento interessa<br />

focalizarmos a arte como fun<strong>da</strong>mento de<br />

uma pe<strong>da</strong>gogia lúdica.<br />

Da arte como dimensão do ensino<br />

lúdico<br />

A aprendizagem ocorrerá significativamente<br />

quanto mais formos capazes de aproximar o<br />

pensar do fazer e do sentir. E através <strong>da</strong> arte o<br />

ser humano aprende de modo integral, pois que<br />

estes sentidos estão presentes: aprende-se pensando,<br />

fazendo e sentindo.<br />

Ressentimo-nos, nas práticas pe<strong>da</strong>gógicas<br />

que pudemos observar nas séries iniciais do<br />

ensino fun<strong>da</strong>mental, por ocasião <strong>da</strong> pesquisa<br />

realiza<strong>da</strong> no quadro do nosso doutoramento em<br />

educação (além de relatos compungidos de nossos<br />

estu<strong>da</strong>ntes estagiários do curso de pe<strong>da</strong>gogia),<br />

<strong>da</strong> ausência, para além do saber e do saber<br />

didático, de um outro saber capaz de transformar<br />

o professor ou a professora não somente<br />

num profissional competente, mas num artista.<br />

Falamos do saber sensível (artístico e lúdico)<br />

que nasce, primeiramente, do saber ouvir, do<br />

desenvolvimento de uma escuta sensível para,<br />

então, se construir uma nova práxis, refleti<strong>da</strong>.<br />

Trata-se de captar o desejo e, então, agir competente<br />

e artisticamente.<br />

Fazer <strong>da</strong> educação uma arte significa desenvolver<br />

este estado de sensibili<strong>da</strong>de e criativi<strong>da</strong>de.<br />

Inicialmente, significa afastar-se <strong>da</strong><br />

dependência de receitas mecânicas para abrirse<br />

às possibili<strong>da</strong>des infin<strong>da</strong>s oriun<strong>da</strong>s <strong>da</strong> rica<br />

vivência dos educandos. Macedo nos fala a<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 15-25, jan./jun., 2006<br />

Cristina Maria d’Ávila<br />

respeito do professor como estudioso <strong>da</strong> sua<br />

própria prática, na ver<strong>da</strong>de, um educador-etnopesquisador-crítico,<br />

capaz de “estabelecer uma<br />

competência até o momento outorga<strong>da</strong> a especialistas<br />

tecnocratas <strong>da</strong> pesquisa”, compreendendo<br />

cientificamente a sua prática para uma<br />

atuação conjunta e ressignifica<strong>da</strong> (MACEDO,<br />

1998, p.52). Sem dúvi<strong>da</strong>, na medi<strong>da</strong> em que este<br />

sujeito passar a se constituir como um in<strong>da</strong>gador<br />

contumaz de sua prática profissional, poderá<br />

passar a assinar sua autoria neste processo,<br />

deixando de reproduzir os modelos pe<strong>da</strong>gógicos<br />

oferecidos pelos manuais escolares e por<br />

outras autori<strong>da</strong>des educativas.<br />

O acúmulo de informações e explicações<br />

abstratas que tem caracterizado a mediação<br />

didática em escolas convencionais, ain<strong>da</strong> hoje,<br />

precisa, a meu ver, ceder espaço ao lúdico, à<br />

arte e, assim, ao prazer em ensinar e aprender.<br />

Horkheimer (apud DEHEINZELIN) sustenta<br />

que a pretensão do Iluminismo estava em “dissolver<br />

os mitos e anular a imaginação, por meio<br />

do saber” (1996, p. 68); no entanto, é possível<br />

que outros tipos de saber sejam trazidos, relembrados<br />

e reconstelados na escola, saberes que<br />

não dissociam sujeito e objeto de conhecimento.<br />

Nesta perspectiva, tornar-se-ia o professor um<br />

tradutor destes saberes; um sujeito capaz de ler<br />

com os olhos do outro e descobrir neste outro<br />

o seu desejo em aprender.<br />

“Ca<strong>da</strong> criança tem uma singulari<strong>da</strong>de que a<br />

torna única, assim como uma obra de arte”<br />

(DEHEINZELIN, 1996, p. 81). Gostaria de<br />

adotar essa premissa e dizer que, vista assim,<br />

na<strong>da</strong> mais coerente do que lhe ensinar artisticamente.<br />

Devemos aqui aprender com o construtivismo<br />

piagetiano que acredita que sujeito e<br />

objeto de conhecimento se constituem mutuamente,<br />

transformando-se e reconstruindo-se a<br />

ca<strong>da</strong> instante. Compreenderíamos que o saber<br />

não é um <strong>da</strong>do pronto, mas um constante devir;<br />

que se enraíza nas tradições sem conformar-se<br />

com elas; um saber que não se sedimenta, exclusivamente,<br />

na razão analítica, mas nas múltiplas<br />

determinações do sujeito e do objeto<br />

(DEHEINZELIN, 1996).<br />

Acredito que não só as estruturas cognitivas<br />

devam ser objeto de preocupação dos pro-<br />

19


Eclipse do Lúdico<br />

fessores, mas a educação do ser por inteiro.<br />

Afirma Argan que é somente na arte que pode<br />

ser alcança<strong>da</strong> “a uni<strong>da</strong>de entre a estrutura do<br />

sujeito e a estrutura do objeto, na medi<strong>da</strong> em<br />

que esta é justamente a reali<strong>da</strong>de que se cria a<br />

partir do encontro do homem com o mundo.<br />

Uma civilização sem arte estaria destituí<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

continui<strong>da</strong>de entre objeto e sujeito, <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de<br />

fun<strong>da</strong>mental do real” (apud DEHEINZELIN,<br />

1996, p. 93).<br />

A arte seria, assim, propiciadora <strong>da</strong>s relações<br />

entre interiori<strong>da</strong>de e exteriori<strong>da</strong>de. O saber<br />

sensível e artístico, somado ao saber<br />

didático, fariam, então, do professor, um leitor<br />

inteligente <strong>da</strong> alma humana, correspondendo,<br />

com justiça, ao que as crianças precisam e desejam<br />

saber.<br />

Segundo Cristina Allessandrini (1992), através<br />

<strong>da</strong> arte podemos desenvolver níveis superiores<br />

de cognição; habili<strong>da</strong>des cognitivas desenvolvi<strong>da</strong>s,<br />

tradicionalmente, através <strong>da</strong> linguagem,<br />

podem ser desenvolvi<strong>da</strong>s através <strong>da</strong> arte. A<br />

autora sustenta, ain<strong>da</strong>, que há certos bloqueios,<br />

no processo <strong>da</strong> aprendizagem, que impedem o<br />

indivíduo de utilizar-se do raciocínio e <strong>da</strong> linguagem<br />

verbal para exprimir-se. Aspectos sempre<br />

tão requeridos pela escola, aliás, estes são,<br />

via de regra, as únicas vias de aquisição do saber<br />

de que se utiliza a escola. A autora relata<br />

que na sua experiência como psicope<strong>da</strong>goga,<br />

mediante a linguagem extra-verbal (plástica,<br />

musical, gestual), o indivíduo expressa sentimento,<br />

pensamento e necessi<strong>da</strong>des. Esse trabalho<br />

é facilitador para que o educando contacte com<br />

suas próprias dificul<strong>da</strong>des conceituais. Num trabalho<br />

que alia arte à cognição, as estruturas do<br />

pensamento se desenvolvem operacionalizando<br />

o fazer artístico e criativo, assim, o indivíduo<br />

é trabalhado na sua inteireza. “Do ponto de vista<br />

psicológico, há o resgate do ser total e integrado<br />

em sua reali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong> criador e transformador,<br />

ativo e reflexivo na sua participação<br />

social” (ALESSANDRINI, 1992, p. 12).<br />

Fun<strong>da</strong>mentalmente, pode-se dizer que para<br />

aprendermos todos os nossos sentidos são postos<br />

à prova: ouvir, ver, cheirar, tocar, sentir o<br />

sabor… o sabor do saber. Com efeito, o termo<br />

saber vem do latim – sapere – e na origem,<br />

20<br />

significa ter gosto, sabor. Onde ficou perdido<br />

este elo?<br />

Aprendemos melhor se utilizamos estes canais<br />

de conhecimento, estas vias de acesso ao<br />

saber. Ativamos a cognição pela ação criativa.<br />

No momento em que estamos a criar, os nossos<br />

poros se abrem à nova aprendizagem. As funções<br />

cognitivas superiores – analisar, generalizar,<br />

compreender, deduzir, imaginar – estariam,<br />

assim, em melhores condições de estruturar as<br />

aprendizagens, como diria Vygotsky.<br />

Alessandrini sustenta que “a mu<strong>da</strong>nça na<br />

aprendizagem propõe uma variação interna e<br />

neuronal. Novas estruturas neuro-psicológicas<br />

são ativa<strong>da</strong>s ao se descobrir o refazer criativo”<br />

(1992, p.12). A assimilação de novas experiências<br />

concorre, assim, para as mu<strong>da</strong>nças nos processos<br />

mentais, a percepção se amplia e os<br />

processos que envolvem o raciocínio passam a<br />

incluir ca<strong>da</strong> vez mais abstrações. “O pensamento<br />

humano começa a apoiar-se no raciocínio lógico<br />

amplo; a esfera <strong>da</strong> imaginação criadora toma<br />

forma, o que por sua vez expande enormemente<br />

o mundo subjetivo do homem” (LURIA, 1990,<br />

apud ALESSANDRINI, 1992, p. 12).<br />

Na escola muito pouco se articulam os fatores<br />

afetivos e cognitivos, e a arte poderia garantir<br />

este elo. O não aprender – uma doença<br />

crônica nas escolas públicas, em geral – pode<br />

advir dessa falta de articulação. Fagali afirma<br />

a respeito <strong>da</strong> não-aprendizagem:<br />

… um dos pontos críticos desta não-aprendizagem<br />

se refere à falta de integração mundo internomundo<br />

externo, teoria-prática, conhecimento-vi<strong>da</strong>,<br />

passivi<strong>da</strong>de-ativi<strong>da</strong>de, recepção-ação e construção,<br />

a percepção de parte e o todo, as linguagens<br />

verbais e não-verbais. Em suma, a compartimentalização,<br />

as cisões e desintegrações têm sido o grande<br />

mal que interfere no não aprender, na não transformação<br />

e na não-criação. (1992, p. 7).<br />

Penso que estas cisões, menciona<strong>da</strong>s pela<br />

autora, e presentes, via de regra, na mediação<br />

didática mecânica, estão na raiz <strong>da</strong> insatisfação<br />

crescente que tem se apoderado de educadores<br />

e educandos. A não-aprendizagem afeta<br />

enormemente a confiança que o professor poderia<br />

gerar em si mesmo e no poder do seu<br />

trabalho. No entanto, ele constata, ca<strong>da</strong> vez<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 15-25, jan./jun., 2006


mais, perdido e descrente, o quão distante encontram-se<br />

seus alunos <strong>da</strong>quilo que ele teria por<br />

objetivos de aprendizagem. E o que pode mover<br />

o mundo interno e externo do sujeito no processo<br />

contínuo que caracteriza a aprendizagem?<br />

A meu ver, por meio <strong>da</strong> arte, como dimensão<br />

estruturante <strong>da</strong> condição humana, lúdica na<br />

sua definição (de tal modo que se torna pura<br />

tautologia se dizer de uma arte lúdica) pode-se<br />

fazer emergir a singulari<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> um e o<br />

prazer em ensinar e aprender, estando-se inteiro<br />

nesta ativi<strong>da</strong>de. Pois aprender implica em<br />

ampliar as percepções, utilizando-se dos diferentes<br />

canais sensoriais que possuímos. São as<br />

emoções que imprimem significado às aprendizagens;<br />

sem elas, os objetos de conhecimento<br />

não são apreendidos em sua dinâmica, são assimilados<br />

como corpos inertes. A arte em suas<br />

mais varia<strong>da</strong>s manifestações (literatura, música,<br />

plastici<strong>da</strong>de...) pode propiciar a apropriação<br />

do saber articulado à emoção. Desta forma,<br />

o objeto de conhecimento, em sua estrutura interna,<br />

pode ser explorado e integrado às necessi<strong>da</strong>des<br />

do educando, mediante outras relações<br />

que não absolutizam o raciocínio, mas casamse<br />

com ele - a relação entre o saber, o sentir e<br />

o fazer integrados, propiciados pela ativi<strong>da</strong>de<br />

artística, poderão render aprendizagens sempre<br />

significativas, duradouras e prazerosas.<br />

Luckesi compreende que o ser humano é<br />

um ser em constante movimento e, a partir <strong>da</strong>í,<br />

concebe a visão lúdico-biossistêmica <strong>da</strong> educação.<br />

Por acreditar que o homem é um ser<br />

inacabado, e passível de transformações ao longo<br />

de sua vi<strong>da</strong>, assume o conceito corpomente<br />

como fun<strong>da</strong>mental à qualquer prática educativa<br />

que tenha na ludici<strong>da</strong>de seu ponto de parti<strong>da</strong>.<br />

Assim, “para praticar uma educação e uma<br />

vi<strong>da</strong> lúdica, necessitamos de vivenciar integra<strong>da</strong><br />

e simultaneamente, a mente e o corpo, ou,<br />

se preferirmos, o corpomente ou a mente corpo”<br />

(2000, p. 26).<br />

O autor ressalta que o educador é aquele<br />

que amorosamente acolhe, sustenta e confronta<br />

a experiência vivi<strong>da</strong> pelo educando, permitindo,<br />

assim, a organização criativa e equilibra<strong>da</strong><br />

de sua vi<strong>da</strong>. Além disso, a prática educativa<br />

lúdica, por centrar-se na plenitude <strong>da</strong> experiên-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 15-25, jan./jun., 2006<br />

Cristina Maria d’Ávila<br />

cia, propicia ao educador e aos educandos<br />

aprender a ser e viver melhor (2000, p. 40).<br />

O que sustento, apoiando-me no ideário de<br />

Deheinzelin, Luckesi, Alessandrini e outros, é que<br />

é preciso estar-se inteiro e pleno no que se realiza<br />

para que a aprendizagem seja, de fato, significativa.<br />

O fazer integrado ao sentir, estimulará,<br />

assim, o pensar. Por meio <strong>da</strong> linguagem artística,<br />

o educando poderá expressar seu sentimento, seu<br />

pensamento e suas necessi<strong>da</strong>des, ativar a cognição,<br />

integrando melhor o mundo interno com o<br />

mundo externo. Dessa forma, o trabalho educativo<br />

poderá fazer eclodir novas aprendizagens,<br />

respeitando-se o aluno como ser inteiro, corpomente<br />

e emoção. Com a arte poderá o aluno<br />

estabelecer uma relação positiva com o aprender/construir<br />

o conhecimento, tornando-se mais<br />

receptivo, aberto às novas aprendizagens e construções.<br />

Com isso, romperíamos o ciclo vicioso<br />

em que vemos emaranhados professores e alunos,<br />

insatisfeitos os primeiros porque não conseguem<br />

ensinar e os últimos porque não conseguem<br />

aprender.<br />

Eclipses didáticos na sala de aula<br />

e o ensino lúdico<br />

Aqui sustento o argumento de que as práticas<br />

pe<strong>da</strong>gógicas – falando especificamente do<br />

ensino fun<strong>da</strong>mental nos seus primeiros anos –<br />

estão passando ao largo <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de do lúdico<br />

nas vi<strong>da</strong>s dos escolares, saibamos aqui:<br />

professores e educandos. Pela experiência vivi<strong>da</strong><br />

na pesquisa de onde ilustro alguns extratos<br />

neste artigo, pude verificar que a ludici<strong>da</strong>de não<br />

encontra terreno dentro dos muros escolares, a<br />

não ser em raríssimas ocasiões de recreação<br />

entre os próprios educandos e de maior sensibili<strong>da</strong>de<br />

por parte dos professores presentes.<br />

Tal reali<strong>da</strong>de pôde ser constata<strong>da</strong> também como<br />

presente a partir do relato de alunos nossos de<br />

cursos de licenciatura e Pe<strong>da</strong>gogia, em situação<br />

de estágio e pré-estágio, quando verificam<br />

em suas observações e diários itinerantes de<br />

pesquisa que o espaço para o prazer e a ludici<strong>da</strong>de<br />

em sala de aula e nas práticas educativas<br />

está longe de ser o ideal.<br />

21


Eclipse do Lúdico<br />

Quero aqui chamar a atenção para o fato<br />

de que quanto mais o professor (a) se encontra<br />

colado ao livro didático, menos criativas e lúdicas<br />

são suas ativi<strong>da</strong>des.<br />

Dos resultados encontrados na pesquisa realiza<strong>da</strong><br />

no ano de 2001 sobre a mediação docente<br />

em face do uso do livro didático, pudemos<br />

constatar, como padrão de conduta predominante<br />

(72,5%): a mediação didática do tipo mecânico<br />

com uso do manual didático escolar<br />

conduzi<strong>da</strong> pelas docentes. A desconfiança inicial<br />

se esclarecia aqui como resposta ao eclipse<br />

a que chamamos atenção neste artigo. Do<br />

total de 40 aulas observa<strong>da</strong>s, apenas 28%, representaram<br />

sinais de práticas mais criativas.<br />

Do que se pode depreender que 20% <strong>da</strong>s professoras<br />

conseguem desenvolver ativi<strong>da</strong>des<br />

criativas e lúdicas, sem uso do manual escolar.<br />

Mas 78% representam a prisão ao manual. E,<br />

por assim dizer, per<strong>da</strong> <strong>da</strong> autoria no trabalho<br />

pe<strong>da</strong>gógico e, por que não dizer, per<strong>da</strong> do gosto<br />

do ensinar e do aprender.<br />

O esquecimento <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de no trabalho<br />

pe<strong>da</strong>gógico pode ser vislumbrado a partir <strong>da</strong>s<br />

falas de professoras sobre práticas muito liga<strong>da</strong>s<br />

ao que reza o manual escolar. Diria<br />

que o potencial pe<strong>da</strong>gógico e o potencial intelectual,<br />

psíquico e sócio-cultural <strong>da</strong>s crianças<br />

são muito desperdiçados em ativi<strong>da</strong>des<br />

que reproduzem um ensino pautado em cartilhas.<br />

As poucas ativi<strong>da</strong>des lúdicas que observei<br />

não tinham relação com o manual.<br />

Vejamos alguns exemplos.<br />

Numa determina<strong>da</strong> aula observa<strong>da</strong> por mim,<br />

a professora <strong>da</strong> 2ª série desenvolve uma ativi<strong>da</strong>de<br />

extremamente instigante e não presente, como<br />

sugestão, no manual didático de sua classe. Trata-se<br />

<strong>da</strong> reciclagem de papel, ativi<strong>da</strong>de que ela<br />

desenvolve a partir de uma receita de papier<br />

maché. A ativi<strong>da</strong>de de recriação do lixo e sua<br />

transformação em produto utilizável (o papel),<br />

além de lúdica, tornaram possíveis as intercessões<br />

com outros objetos de conhecimento (ciências<br />

e artes, sobretudo). Abaixo a sua mediação:<br />

— O que é reciclagem? (Pergunta a professora<br />

à sua turma)<br />

— O lixo que vai para o lixo.<br />

— E o que é isso aqui dentro? (mostra a mis-<br />

22<br />

tura que faz com restos de papel jornal e água).<br />

— Reformar o lixo.<br />

— Jornal. (diz outro aluno).<br />

— Ah, pensei que fosse siri catado... (diz<br />

sorrindo). Vocês estão fazendo uma experiência,<br />

é? Me chamem depois...<br />

A professora passa a fazer outra ativi<strong>da</strong>de<br />

Organiza palavras por ordem alfabética: amendoim,<br />

bolo, canjica, laranja.<br />

— A laranja deve ficar de fora, pró. (Diz o<br />

aluno achando que o “L” depois do “C” não é<br />

possível).<br />

— Posso beber água? (essa é uma questão<br />

recorrente na sala; significa a justificativa para<br />

fugir <strong>da</strong> sala).<br />

— Amanhã tem aula, pró? (é sábado)<br />

— Não!<br />

— Ah, mas tem que ter!<br />

Exclama uma criança totalmente enleva<strong>da</strong><br />

com a ativi<strong>da</strong>de desenvolvi<strong>da</strong>. A professora começa<br />

a mexer a mistura de papier maché, sozinha;<br />

os alunos ficam em sua volta observando a<br />

magia que irá fazer... Já é hora do recreio. Do<br />

lado de fora, o que se ouve são os gritos <strong>da</strong>s<br />

crianças que saem para o recreio. Mas, aqui na<br />

sala, os alunos permanecem atentos ao processo<br />

de reciclagem... A professora deixa a mistura<br />

de papel descansando e vem conversar<br />

comigo; informo-me que trabalharão hoje com o<br />

ALP (símbolos); pergunto sobre suas férias, responde-me<br />

falando do seu não descanso, de sua<br />

falta de repouso e revolta contra com o governo.<br />

Perguntei sobre o uso do livro: em duas semanas<br />

de trabalho, só não usou o livro por dois dias.<br />

Chama os alunos e começa a passar o papel no<br />

liquidificador. Todos estão alegres e em volta<br />

dela. Ela também está alegre. Canta “Eu vou,<br />

eu vou...”, eles cantam com ela... olha a receita:<br />

“3 colheres de cola”...<br />

⎯ Vamos ver gente? (conta junto com eles...!)<br />

⎯ Tomara que dê certo!<br />

⎯ Dê certo! Dê certo!! (todos repetem)<br />

⎯ Pró, a gente vai chorar, viu pró?<br />

A emoção deles é tão grande, que um aluno<br />

chega a dizer que vai chorar. Finalmente liga o<br />

liquidificador. Todos correm para ver a mistura.<br />

Todos olham. A cola não dissolveu. Eu não<br />

posso perder um só instante dessa interação...<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 15-25, jan./jun., 2006


Tomo nota de tudo, registro com o olhar e a<br />

escrita... A professora mostra-me a mistura.<br />

Mostra orgulhosa a to<strong>da</strong> a sala. Finalmente desliga<br />

o liquidificador, passa a mistura na peneira<br />

e continua com o trabalho riquíssimo de reciclagem<br />

do lixo, produzindo papel reciclado. A<br />

classe inteira participa e se sente motiva<strong>da</strong>, a<br />

professora conduz a ativi<strong>da</strong>de com tal habili<strong>da</strong>de<br />

que envolve a todos – sinal claro de que,<br />

quando não se utilizam do manual, o que têm a<br />

produzir na classe é muito mais rico.<br />

Assisti a outras aulas não muito interessantes<br />

assim. Aulas em que o aspecto cognitivo<br />

predominava sobre o afetivo e demais dimensões<br />

do espírito humano. Na maioria ativi<strong>da</strong>des<br />

cola<strong>da</strong>s ao livro didático: 4<br />

— Agora fecha o livro de matemática e pega<br />

o ALP.<br />

— Ah!... (que desânimo...)<br />

— Ô pró... vamos pegar o caderno...<br />

— Depois do recreio, vamos fazer um bocado<br />

de caderno, viu? Página 129.<br />

— Pró, esqueci o livro em casa!<br />

— Esqueceu? O que é que eu digo? Esse<br />

ALP não pode ficar fora <strong>da</strong> pasta! Pronto?<br />

Agora quero atenção, hein?<br />

A ativi<strong>da</strong>de do manual reproduzi<strong>da</strong> pela professora<br />

nesta aula de 1ª série provém de um texto<br />

longe de representar a reali<strong>da</strong>de sócio-cultural<br />

dos educandos. É um texto que fala <strong>da</strong>s comi<strong>da</strong>s<br />

italianas, fortemente presente no cardápio dos<br />

paulistas – não gratuitamente a região de onde<br />

provém a maioria dos manuais didáticos. Vejamos<br />

a seguir, a ativi<strong>da</strong>de mediadora <strong>da</strong> professora,<br />

explorando o texto mencionado:<br />

— Quem aqui gosta de pizza?<br />

Alguns respondem:<br />

— Eu!<br />

— Observem a pergunta – qual o nome <strong>da</strong><br />

casa que vende pizza?<br />

— Pizzaria<br />

— Já comeram pizza?<br />

— Eu já, eu já.<br />

— Eu não. Eu não!<br />

— Não acredito, Michael. Vou trazer uma<br />

pra você comer.<br />

Os manuais didáticos no Brasil, na sua quase<br />

totali<strong>da</strong>de, são produzidos nas regiões Sul e<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 15-25, jan./jun., 2006<br />

Cristina Maria d’Ávila<br />

Sudeste do País. Os textos destes manuais fazem<br />

menção às reali<strong>da</strong>des sócio-culturais desse<br />

espaço geográfico; são as representações<br />

deste real distante de nossos alunos, baianos,<br />

que estão presentes no manual escolar e que<br />

são reproduzidos pela professora, sem qualquer<br />

vislumbre de intercessão com a reali<strong>da</strong>de cultural<br />

vivi<strong>da</strong> pelas crianças <strong>da</strong> Bahia, como no<br />

exemplo citado aqui. Como os professores estão<br />

colados ao manual, não fazem a ponte, não<br />

estabelecem ligações com a nossa reali<strong>da</strong>de,<br />

não conseguem ressaltar, por exemplo, os prazeres<br />

<strong>da</strong> culinária baiana, uma <strong>da</strong>s mais ricas do<br />

país, em sua singulari<strong>da</strong>de afro-descendente, nos<br />

seus cheiros, temperos e cores.<br />

Para finalizar, um último exemplo ilustrativo<br />

de um problema muito sério presente nas salas<br />

de aula de escolas públicas e particulares, capitaneado<br />

pelos manuais didáticos atuais. Tratase<br />

<strong>da</strong> utilização do merchandising na sala de<br />

aula. As imagens publicitárias, extremamente<br />

presentes nos manuais destinados, atualmente,<br />

aos níveis de ensino fun<strong>da</strong>mental e médio, aparecem<br />

como justificativa a um trabalho lingüístico<br />

sócio-construtivista (conforme o título do<br />

manual didático), atrelado à cotidianei<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />

crianças: quereria o manual traduzir o que seria<br />

leitura de mundo? Se for isso, importa saber<br />

que, para Paulo Freire (2000) a leitura do mundo<br />

sempre significou outra coisa: o compromisso<br />

deste educador que criou um pensamento<br />

pe<strong>da</strong>gógico, muito longe de reproduzir a comunicação<br />

persuasiva <strong>da</strong>s propagan<strong>da</strong>s, estava em<br />

desven<strong>da</strong>r o significado político-social <strong>da</strong> palavra<br />

escrita e, de modo mais amplo, do mundo<br />

letrado. Essa nova metodologia tem levado professores<br />

dos níveis fun<strong>da</strong>mental e médio a arrisca<strong>da</strong>s<br />

peripécias pe<strong>da</strong>gógicas, uma vez que<br />

li<strong>da</strong>m com um público vulnerável a todo tipo de<br />

apelo comercial. Ademais, a presença <strong>da</strong> propagan<strong>da</strong><br />

de produtos e marcas comerciais (advin<strong>da</strong>s,<br />

em maioria, de potentes multinacionais!)<br />

em manuais comprados com verbas públicas e<br />

distribuídos em to<strong>da</strong>s as escolas públicas deste<br />

País é, no mínimo, um desrespeito ao contribu-<br />

4 CÓCCO e HAILER, ALP, Análise Linguagem e Pensamento.<br />

São Paulo: FTD, 1995.<br />

23


Eclipse do Lúdico<br />

inte que paga por isso, no final <strong>da</strong>s contas 5 .<br />

Abaixo a situação de ensino/aprendizagem conduzi<strong>da</strong><br />

pela professora de 1ª série:<br />

⎯ Qual a marca de pasta dental?<br />

⎯ Eu uso Colgate.<br />

⎯ Ninguém usa Kollynos? Todo mundo usa<br />

Colgate? Tem a Kollynos, a Sorriso, Tandy.<br />

Qual o nome do leite (que aparece no manual)?<br />

⎯ Leite Ninho.<br />

⎯ Nescau, Leite em pó.<br />

⎯ Só Ninho?<br />

⎯ Não, Nescau. Em pó!<br />

⎯ Mas, qual o nome do leite?<br />

⎯ Ninho.<br />

⎯ Mas, tem outras marcas. Quero saber<br />

Itambé, ninguém usa? Cotochés?...<br />

⎯ Que mais? (Diz e escreve no quadro, em 1º<br />

lugar - Ninho). ⎯ Vejam o que vocês mais<br />

usam em casa e coloquem.<br />

⎯ Eu só uso mais Ninho.<br />

⎯ Qual o sabão?<br />

⎯ OMO (unânimes).<br />

⎯ Que mais? Qual o outro?<br />

⎯ Brilhante, ô tia, e aquele que chegou novo?<br />

⎯ Não tô lembra<strong>da</strong>, não.<br />

⎯ O Ala..., Ariel.<br />

⎯ Pode ser sabão em pedra também.<br />

⎯ Sabão de coco.<br />

⎯ Minuano.<br />

⎯ Tem o azul, pró.<br />

⎯ Serve para que esse material?<br />

⎯ Lavar casa, chão, o carro.<br />

⎯ E a pasta é pra quê?<br />

⎯ Escovar o dente...<br />

Esta situação se refere aqui ao abuso de um<br />

tipo de texto que vem sendo apresentado nos<br />

manuais como marca de produtos (merchandising),<br />

sem que se diga na<strong>da</strong> a respeito, nenhuma<br />

ressalva; os professores desavisa<strong>da</strong>mente trabalham<br />

com este tipo de texto num tal torpor que<br />

não se dão conta de que fazem propagan<strong>da</strong> sem<br />

receberem na<strong>da</strong> por isto. E a reprodução de um<br />

habitus, tal como denunciaram em idos de 1970,<br />

Bourdieu e Passeron, vai se sedimentando em<br />

práticas pe<strong>da</strong>gógicas aliena<strong>da</strong>s e alienantes.<br />

Bem, essas práticas aliena<strong>da</strong>s, mecânicas e<br />

acríticas estão longe de constituir-se em ativi<strong>da</strong>des<br />

lúdicas, menos ain<strong>da</strong> em ensino lúdico.<br />

24<br />

Elas roubam o espaço que poderia estar sendo<br />

utilizado com mais gosto para ambos os sujeitos<br />

do ato educativo, professores e educandos.<br />

Um trabalho pe<strong>da</strong>gógico que dispensa autoria<br />

jamais poderá ser lúdico, pois o ser criativo e,<br />

conseqüentemente, o trabalho como experiência<br />

plena nascem do desejo. E o desejo é autor.<br />

(In) conclusões<br />

Os exemplos que trazemos aqui são<br />

ilustrativos de outros contextos escolares. Evidentemente,<br />

a escola atravessa graves necessi<strong>da</strong>des.<br />

Necessi<strong>da</strong>des mínimas de funcionamento<br />

referentes, sobretudo, ao material de<br />

apoio para o ensino, onde se inclui os recursos<br />

didáticos e, nestes, o manual didático escolar.<br />

Aliás, a biblioteca está abarrota<strong>da</strong> de manuais<br />

didáticos – estes são, praticamente, a única<br />

fonte de informação e pesquisa dos professores<br />

e alunos, o que empobrece enormemente<br />

a prática educativa.<br />

No processo de mediação didática docente,<br />

ante os olhos e ouvidos dos alunos e o professor<br />

se antepõe, qual num eclipse, o livro didático,<br />

a roubar a autoria e criativi<strong>da</strong>des docentes,<br />

assim como a autonomia intelectual dos educandos.<br />

O contexto ilustrado aqui pode bem ser<br />

estendido a outras reali<strong>da</strong>des.<br />

Entretanto, há sinais nesta prática de que existe<br />

um potencial latente, adormecido. Um potencial<br />

criativo e lúdico que hiberna, mas que pode<br />

ser despertado à luz <strong>da</strong> esperança por melhores<br />

condições para o ensino. Esses nossos professores<br />

ain<strong>da</strong> mantêm acesa a chama, mesmo que<br />

sob condições tão adversas de trabalho, de tempo,<br />

de salário… Freire diagnostica: “É esta força<br />

misteriosa, às vezes chama<strong>da</strong> vocação, que<br />

explica a quase devoção com que a grande maioria<br />

do magistério nele permanece, apesar <strong>da</strong><br />

imorali<strong>da</strong>de dos salários. E não apenas permanece,<br />

mas cumpre, como pode, seu dever. Amorosamente,<br />

acrescento” (2000, p.161).<br />

5 As imagens publicitárias menciona<strong>da</strong>s aqui e presentes nos<br />

manuais analisados, se encontram no capítulo de análise dos<br />

manuais escolares <strong>da</strong> tese “Decifra-me ou te devoro. O que pode<br />

o professor frente ao manual escolar?”, Salvador: UFBA, 2002.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 15-25, jan./jun., 2006


Acredito, como Freire apostou, que ain<strong>da</strong><br />

podemos construir um futuro melhor para<br />

nossos alunos e professores, religando razão<br />

e sensibili<strong>da</strong>de. Saber sensível este que pode<br />

transformar to<strong>da</strong> uma ro<strong>da</strong> de práticas mecânicas<br />

e sem sentido. Um ensino lúdico que<br />

REFERÊNCIAS<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 15-25, jan./jun., 2006<br />

Cristina Maria d’Ávila<br />

traga na sua raiz a dimensão artística certamente<br />

fará brotar os frutos <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de interna<br />

de ca<strong>da</strong> um vivificado em experiências<br />

significativas. A inefável arte de ensinar verá<br />

então crescer a flor do desejo. O desejo de<br />

saber.<br />

ALESSANDRINI, C. D. Arte e expressão no trabalho com problemas de aprendizagem. <strong>Revista</strong> Construção<br />

Psicope<strong>da</strong>gógica, São Paulo, n. 1, p. 11-13, 1992.<br />

BROUGÈRE, Gilles. A criança e a cultura lúdica. In: KISHIMOTO, Tizuko (Org.). O brincar e suas teorias.<br />

São Paulo: Pioneira Thomson, 2002. p. 19-32.<br />

CÓCCO, Maria Fernandes; HAILER, Marco Antonio. ALP: análise, linguagem e pensamento. São Paulo:<br />

FTD, 1995.<br />

D’ÁVILA, Cristina M. Decifra-me ou te devoro: o que pode o professor frente ao manual escolar? Tese<br />

(Doutorado) - Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia, Salvador, 2002.<br />

DEHEINZELIN, Monique. Construtivismo: a poética <strong>da</strong>s transformações. São Paulo: Ática, 1996.<br />

DE MASI, Domenico. O ócio criativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.<br />

FAGALI, E. Q. A função <strong>da</strong> psicope<strong>da</strong>gogia na escola e na clínica e sua contribuição para os processos de<br />

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FREIRE, Paulo. Pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> autonomia. 16. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.<br />

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1996.<br />

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LUCKESI, C. (Org.). Ludope<strong>da</strong>gogia.. Salvador: UFBA, 2000. (Ensaios, 1)<br />

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Recebido em 28.02.06<br />

Aprovado em 26.03.06<br />

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<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 27-41, jan./jun., 2006<br />

Maria José Etelvina dos Santos<br />

LUDICIDADE E EDUCAÇÃO EMOCIONAL NA ESCOLA:<br />

LIMITES E POSSIBILIDADES<br />

RESUMO<br />

Maria José Etelvina dos Santos*<br />

Esta pesquisa teve por objetivo investigar as ativi<strong>da</strong>des lúdicas como recurso<br />

de prática educativa, que tenham presente o desenvolvimento emocional do<br />

estu<strong>da</strong>nte, como também compreender as possibili<strong>da</strong>des e limites de se trabalhar<br />

as emoções no contexto escolar, media<strong>da</strong>s por ativi<strong>da</strong>des lúdicas.<br />

Conseqüentemente, minha preocupação constituiu-se a partir <strong>da</strong>s constantes<br />

queixas dos professores com relação ao que chamam de “comportamento<br />

inadequado” de seus educandos, tais como: agredir física e moralmente os<br />

colegas, funcionários e professores, humilhar, coagir, xingar, não prestar atenção<br />

à aula e, sobretudo, apresentar dificul<strong>da</strong>des na aprendizagem. Tomando como<br />

referência a etnopesquisa-ação, o estudo foi composto por um diagnóstico inicial,<br />

uma intervenção e um diagnóstico final. Ancora<strong>da</strong> na visão psicanalítica, em<br />

estudos atuais sobre emoção e ludici<strong>da</strong>de, me propus a fazer este estudo, que<br />

apontou para a necessi<strong>da</strong>de de redirecionamento na função <strong>da</strong> escola dentro<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, para um olhar mais crítico sobre o contexto sócio-econômico em<br />

que os educandos estão inseridos e para o fortalecimento de políticas públicas<br />

que privilegiam uma educação integral.<br />

Palavras-chave: <strong>Educação</strong> emocional – Ludici<strong>da</strong>de – Psicanálise – Emoção<br />

ABSTRACT<br />

LUDICITY AND EMOTIONAL EDUCATION IN SCHOOL –<br />

LIMITS AND POSSIBILITIES<br />

The purpose of this research was to investigate the playful activities as a resource<br />

for educational practice, considering the emotional development of the student,<br />

as well as understanding the possibilities and limits of working with emotion in<br />

the school context through playful activities. Consequently, my concern lays on<br />

the constant complains of teachers about the so called pupils’ “inappropriate<br />

behaviour”, such as: physical and morally attacking the classmates or the school<br />

staff , including teachers, humiliating, coercing, offending, paying no attention<br />

to the class, and, especially, presenting learning difficulties. Based upon an<br />

ethnographical research-action, the study leads to an initial diagnostic, an<br />

* Mestre em educação pela FACED/UFBA; Especialização em Psicope<strong>da</strong>gogia pela UESC; gradua<strong>da</strong> e licencia<strong>da</strong> em<br />

Psicologia pela Facul<strong>da</strong>de de Ciências Humanas do Recife. Professora na Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Bahia - UNEB –<br />

Campus XV. Endereço pra correspondência: Rua Cecília Meireles, S/N° Centro – 45.400/000 Valença - Bahia. E-mails:<br />

mjtel@ufba.br e mjesantos@uneb.br<br />

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Ludici<strong>da</strong>de e educação emocional na escola: limites e possibili<strong>da</strong>des<br />

Introdução<br />

28<br />

intervention, and, in the end, to a final diagnostic. Strongly based on a<br />

psychoanalytic view, upon current studies about emotion and playful teaching,<br />

I decided to make this study, that pointed out to the need to redirect the function<br />

of the school in our society, to a critical look over the socio-economic context<br />

that the students experience and to the strengthening of the public policies that<br />

value a global education<br />

Keywords: Emotional education – Playful Teaching – Psychoanalysis –<br />

Emotion<br />

Efetuei a ligação deste estudo aos meus sonhos,<br />

esperanças e interesses pessoais, únicos<br />

dentro de mim; à minha relação profun<strong>da</strong> com a<br />

vi<strong>da</strong>, uma vez que, em nenhum momento, posso<br />

me separar <strong>da</strong> minha inspiração, pois sou pessoa<br />

e educadora, partes inseparáveis. Assim, justifico<br />

a escolha pelo uso <strong>da</strong> 1ª pessoa do discurso, por<br />

ser essa a que melhor expressa sonhos, emoções,<br />

motivações e sentimentos. A minha vivência com<br />

meus educandos foi abstraí<strong>da</strong> num processo de<br />

individuação, no meu aprendizado de ser.<br />

Nos cursos para formação de professores,<br />

onde atuo como docente de Psicologia, a queixa<br />

principal dos professores recai sobre o comportamento<br />

dos educandos, comentam que são<br />

indisciplinados, agressivos, não prestam atenção<br />

à aula, xingam o colega e isso faz com que<br />

não consigam <strong>da</strong>r aulas satisfatórias. Gostariam<br />

de aprender a li<strong>da</strong>r com esses comportamentos<br />

que chamam de inadequado e que<br />

prejudicam a aprendizagem do educando e dos<br />

demais estu<strong>da</strong>ntes em sala de aula.<br />

A criança é suscetível aos fatores que provavelmente<br />

se chocam com sua fragili<strong>da</strong>de interna,<br />

prejudicando seu aprendizado. Tais fatores<br />

podem ser, por exemplo, falta de afeto, de acolhi<strong>da</strong><br />

e de motivação do lar, ciúmes de outro<br />

irmão, sentimentos de culpa, de solidão, de rejeição,<br />

de abandono, separação dos pais.<br />

As crianças com comportamentos considerados<br />

não condizentes com o ambiente escolar<br />

terminam sendo marginaliza<strong>da</strong>s pelo professor<br />

e excluí<strong>da</strong>s do processo ensino-aprendizagem.<br />

São rotulados como problemáticas, imaturas,<br />

desinteressa<strong>da</strong>s, agressivas, violentas...<br />

Talvez muitas crianças apresentem comportamento<br />

inadequado 1 na escola devido à falta<br />

de respeito ao seu ritmo pessoal e ao seu real<br />

processo de desenvolvimento. Isso se dá por<br />

parte de familiares e professores que pressionam<br />

a criança, querendo que elas correspon<strong>da</strong>m<br />

a expectativas altamente fora do alcance<br />

de seu domínio, o que vem resultar em insegurança,<br />

fracasso e frustração, fatores pertinentes<br />

ao desenvolvimento de sentimento de<br />

desvalor e incompetência pessoal.<br />

Para compreender a criança nesse emaranhado<br />

contexto e conhecer suas aspirações, fazse<br />

necessário investigar aspectos pessoais,<br />

através de uma reflexão mais profun<strong>da</strong>, dirigi<strong>da</strong><br />

ou semi-dirigi<strong>da</strong>, onde se dê oportuni<strong>da</strong>de a<br />

ela de descobrir seus próprios sentimentos, valores<br />

pessoais, familiares e sociais.<br />

Nesse contexto, entendo que a educação<br />

emocional media<strong>da</strong> por ativi<strong>da</strong>des lúdicas é uma<br />

possibili<strong>da</strong>de de a escola intervir no mundo interno<br />

e nos significados interpretados pela vivência<br />

direta <strong>da</strong>s experiências, possibilitando aos educandos<br />

ressignificar, rever conceitos, valores e<br />

sentimentos que, porventura, estejam no âmago<br />

de seu comportamento e que possivelmente interfiram<br />

nas suas relações interpessoais e em<br />

sua aprendizagem escolar. Mas, quais são as<br />

1 Considera-se “comportamento inadequado”, neste estudo,<br />

os comportamentos dos educandos que, com freqüência, são<br />

expressos através do ato agressivo como, por ex.: agredir<br />

física e moralmente outro colega, funcionários e professores,<br />

coagir, humilhar, xingar, ameaçar, ficar desatento à aula<br />

e, por fim, apresentar dificul<strong>da</strong>de na aprendizagem. Entendemos<br />

que a agressivi<strong>da</strong>de é necessária para a aprendizagem,<br />

como esclareceu Freud, que em to<strong>da</strong> pulsão existe um quantum<br />

de agressivi<strong>da</strong>de que é sadio e promotor de aprendizagem;<br />

mas, o ato agressivo não, ele é inibidor do pensamento e por<br />

isso serve à destruição e não à construção.<br />

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possibili<strong>da</strong>des e limites de educar emocionalmente<br />

o educando mediado por ativi<strong>da</strong>des lúdicas?<br />

Utilizando a pesquisa-ação, por considerar o sujeito<br />

no contexto em que se insere, pesquisei esse<br />

tema utilizando a psicanálise como aporte teórico,<br />

por confluir em seu centro de estudos as<br />

emoções e a ludici<strong>da</strong>de, dois fenômenos presentes<br />

no âmago desta pesquisa.<br />

O estudo é importante quanto à contribuição<br />

na compreensão do mal-estar na escola<br />

referente ao comportamento do educando e,<br />

conseqüentemente, do professor. Faz uma reflexão<br />

sobre problemas preliminares de marginalização<br />

e evasão. Parte de uma maior<br />

compreensão dos sentimentos <strong>da</strong>s crianças e<br />

coopera no desenvolvimento de suas potenciali<strong>da</strong>des.<br />

A importância <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de na<br />

vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s crianças, na educação e<br />

na escola<br />

Ao observar uma criança, percebemos que<br />

a maior parte de seu tempo é utilizado em brincadeiras<br />

simples ou tecnologicamente sofistica<strong>da</strong>s.<br />

As crianças revelam uma irresistível<br />

atração e parecem desenvolver habili<strong>da</strong>des<br />

através do brincar. Ao longo do tempo, as brincadeiras<br />

vão se modificando no mundo infantil.<br />

Em um primeiro momento, observamos que brinca<br />

com o seu próprio corpo, em segui<strong>da</strong> descobre<br />

os objetos e suas potenciali<strong>da</strong>des para<br />

produzir prazer e bem-estar ao manuseá-los.<br />

Brougére (1998), estu<strong>da</strong>ndo a relação do<br />

lúdico com a aprendizagem, postulou que a primeira<br />

relação com a aprendizagem acontece<br />

quando a criança aprende a brincar. Nesse processo,<br />

a criança desenvolve certo tipo de comunicação<br />

peculiar, diferente <strong>da</strong>s normas de<br />

comunicação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> comum. É nessa fase que<br />

desenvolve as representações simbólicas, na qual<br />

o imaginário e a fantasia adentram sua vi<strong>da</strong> e<br />

tudo pode ter um outro sentido. Este momento<br />

é muito importante na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> criança, pois os<br />

brinquedos e objetos deixam de ser utilizados<br />

apenas para aquilo que foram criados e passam,<br />

no imaginário <strong>da</strong> criança, a ser tudo aquilo<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 27-41, jan./jun., 2006<br />

Maria José Etelvina dos Santos<br />

que querem, desejam e necessitam a ca<strong>da</strong> momento<br />

de sua vi<strong>da</strong>.<br />

A ludici<strong>da</strong>de é uma necessi<strong>da</strong>de do ser humano<br />

em qualquer i<strong>da</strong>de e não pode ser vista apenas<br />

como diversão. O desenvolvimento do aspecto<br />

lúdico facilita a aprendizagem, o desenvolvimento<br />

pessoal, social e cultural, colabora para uma<br />

boa saúde mental, prepara para um estado interior<br />

fértil, facilita os processos de socialização,<br />

comunicação, expressão e construção do conhecimento<br />

(SANTOS, 1997, p. 12).<br />

Este autor considera que os jogos e as brincadeiras<br />

permitem compreender como a criança<br />

vê e constrói o mundo. Através deles a<br />

criança aprende a dominar e conhecer o seu<br />

próprio corpo e as suas funções, a orientar-se<br />

no espaço e no tempo, a manipular e a construir<br />

os papéis necessários para as futuras etapas<br />

<strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>, a elaborar suas fantasias, seus<br />

temores, a sentir emoções, a saber perder e<br />

ganhar; enfim, ela pode desenvolver as suas<br />

potenciali<strong>da</strong>des em um ambiente seguro, longe<br />

<strong>da</strong> ansie<strong>da</strong>de dos fatos reais, controlá-los e<br />

revê-los, se assim desejar. Desta forma, as ativi<strong>da</strong>des<br />

lúdicas, permitem a representação dos<br />

fatos, possibilitando a liberação <strong>da</strong> imaginação<br />

e a presença <strong>da</strong> espontanei<strong>da</strong>de como também<br />

o desenvolvimento <strong>da</strong> criativi<strong>da</strong>de. Todos esses<br />

fatores são essenciais para o desenvolvimento<br />

normal e sadio do ser humano.<br />

Chateau (1987, p. 14) nos adverte que “é<br />

pelo jogo, pelo brinquedo, que crescem a alma<br />

e a inteligência. Uma criança que não sabe brincar,<br />

uma miniatura de velho, será um adulto que<br />

não saberá pensar”.<br />

Segundo este autor as ativi<strong>da</strong>des lúdicas são<br />

elementos que contribuem, de forma significativa<br />

e fun<strong>da</strong>mental, para o processo de formação<br />

social, afetiva e intelectual <strong>da</strong> criança. Ao<br />

brincar, está em contato direto com o outro, vivenciando<br />

uma relação de trocas, tanto afetivas<br />

como também de experiências, que lhe<br />

proporciona ganhar ou perder, obedecer a regras<br />

ou transgredi-las, li<strong>da</strong>r com a diversi<strong>da</strong>de,<br />

com a antecipação ou julgamento <strong>da</strong> situação<br />

do momento e, tantas outras experiências que,<br />

aos poucos, vão amadurecendo-a para a vi<strong>da</strong><br />

adulta.<br />

29


Ludici<strong>da</strong>de e educação emocional na escola: limites e possibili<strong>da</strong>des<br />

Piaget (1975) nos lembra que o pensamento<br />

infantil é qualitativamente diferente do pensamento<br />

do adulto, como também, que ca<strong>da</strong> criança<br />

é única e deve ser trata<strong>da</strong> e compreendi<strong>da</strong><br />

de forma diferencia<strong>da</strong>, a partir de sua lógica e<br />

do contexto em que se insere. O mundo infantil<br />

existe na proporção que é possível à criança<br />

jogar com ele, retirando <strong>da</strong>s vivências lúdicas<br />

possibili<strong>da</strong>des de prazer e de domínio sobre a<br />

reali<strong>da</strong>de, que, às vezes, pode ser desestruturante<br />

e paralisadora. O jogo passa a ser uma<br />

forma de interação com o mundo externo; sem<br />

as ativi<strong>da</strong>des lúdicas a condição para que a interação<br />

ocorra de forma efetiva seriam insuficientes.<br />

A partir de vários estudos sobre a importância<br />

<strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> criança, como os de<br />

Piaget (1975), Vygotsky (1998), Chateau (1987),<br />

Brougére (1995), Marcelino (1995), Kishimoto<br />

(1998), Huizinga (1996), algumas escolas começaram<br />

a adotar esse princípio do aprender brincando,<br />

mas têm encontrado muita resistência por<br />

parte dos próprios professores, pais e educandos<br />

que questionam em uma aula lúdica: “quando<br />

vão começar a estu<strong>da</strong>r, porque só fizeram<br />

brincar?”. A falta de conhecimento sobre as possibili<strong>da</strong>des<br />

lúdicas no processo de aprendizagem<br />

desencadeia este tipo de comportamento dos<br />

educandos, dos pais e, em muitos casos, dos próprios<br />

professores, por considerarem que brincadeira<br />

não é coisa séria.<br />

30<br />

O educador é um mediador, um organizador do<br />

tempo, do espaço, <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des, dos limites, <strong>da</strong>s<br />

certezas e até <strong>da</strong>s incertezas do dia-a-dia <strong>da</strong> criança<br />

em seu processo de construção de conhecimentos.<br />

É ele quem cria e recria sua proposta<br />

político-pe<strong>da</strong>gógica e para que ela seja concreta,<br />

crítica, dialética, este educador deve ter competência<br />

para fazê-la (SANTOS, 1997, p. 61).<br />

É de suma importância que o profissional de<br />

educação compreen<strong>da</strong> que as ativi<strong>da</strong>des lúdicas<br />

no contexto <strong>da</strong> sala de aula podem proporcionar<br />

riquíssimos resultados aos seus educandos,<br />

por exemplo, no sentido de escuta sensível<br />

aos apelos <strong>da</strong>s crianças, abrir-se à história individual<br />

de ca<strong>da</strong> um, dessa forma evitando que<br />

seus sentidos fiquem comprometidos, sua imaginação<br />

e criativi<strong>da</strong>de seja inibi<strong>da</strong> e que sua<br />

sensibilização e riqueza de expressão se esvaiam.<br />

Mas, para o educador incorporar o lúdico<br />

como um instrumento facilitador de aprendizagens<br />

em seu universo pe<strong>da</strong>gógico, é necessário<br />

que os cursos de formação de professores valorizem<br />

sua própria vivência lúdica. E exigir<br />

desse profissional a ludici<strong>da</strong>de no seu fazer pe<strong>da</strong>gógico<br />

significa exigir deles um posicionamento<br />

contrário ao modelo que vivenciou na sua<br />

formação.<br />

Há muitas críticas aos cursos de formação<br />

de professores, por não possibilitarem uma formação<br />

adequa<strong>da</strong> aos seus participantes e é,<br />

geralmente, no ensino infantil que este contingente<br />

vai lecionar, gerando insatisfação, desânimo,<br />

evasão e até agressão em muitos<br />

educandos por não saberem li<strong>da</strong>r com muitos<br />

comportamentos manifestados em sala de aula,<br />

justamente pela falta de base, preparo e compreensão<br />

<strong>da</strong> criança como um ser histórico social<br />

e lúdico.<br />

O sentido real, ver<strong>da</strong>deiro, funcional <strong>da</strong> educação<br />

lúdica estará garantido se o educador estiver<br />

preparado para realizá-lo. Na<strong>da</strong> será feito se<br />

ele não tiver um profundo conhecimento sobre<br />

os fun<strong>da</strong>mentos essenciais <strong>da</strong> educação lúdica,<br />

condições suficientes para socializar o conhecimento<br />

e predisposição para levar isso adiante<br />

(ALMEIDA, 1994, P. 42).<br />

É mister, portanto, repensar a formação do<br />

educador, proporcionando vivências lúdicas,<br />

experiências que utilizem ação, pensamento e<br />

linguagem; dessa forma, serão maiores as chances<br />

de que possa trabalhar com crianças de<br />

forma prazeirosa.<br />

Segundo Santos (1997, p. 14), a formação<br />

lúdica deve possibilitar ao futuro educador conhecer-se<br />

como pessoa, saber de suas possibili<strong>da</strong>des<br />

e limitações, desbloquear suas resistências<br />

e ter uma visão clara do jogo e do brinquedo<br />

para a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> criança, do jovem e do adulto.<br />

Refletindo sobre estes aspectos, cabe perguntar:<br />

de que forma o educador pode incluir<br />

os jogos e brincadeiras em seu fazer pe<strong>da</strong>gógico?<br />

Onde e como deverão ser empregados?<br />

Qual o custo orçamentário <strong>da</strong> escola para incluir<br />

o lúdico na educação? Em que contexto<br />

sócio-cultural pode acontecer?<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 27-41, jan./jun., 2006


O fazer pe<strong>da</strong>gógico de todo educador deve<br />

ser planejado, a inclusão do lúdico na educação<br />

também deve ser organiza<strong>da</strong> com objetivos,<br />

meios e fins a serem alcançados. O lúdico<br />

deve ser incluído de acordo com a leitura que<br />

o educador faz de sua turma e de seus pais,<br />

porque ca<strong>da</strong> estu<strong>da</strong>nte possui sua maneira de<br />

ser e agir no mundo, seu modo particular de<br />

enfrentar situações. Então, as peculiari<strong>da</strong>des<br />

dos educandos, do seu contexto e de seus pais<br />

devem ser considera<strong>da</strong>s, senão o educador semeará<br />

em campo estéril e não conseguirá contribuir<br />

no processo de aprendizagem de seus<br />

educandos. Os pais e as próprias crianças resistirão<br />

a qualquer tentativa de inclusão do lúdico<br />

em sala de aula. Então, não basta ter<br />

apenas boa vontade e intenção, é necessária<br />

a aceitação, compreensão e conscientização<br />

dos pais, educandos e comuni<strong>da</strong>de escolar, em<br />

geral, de todos os benefícios de uma educação<br />

centra<strong>da</strong> em ativi<strong>da</strong>des lúdicas. Para que<br />

isto ocorra, o professor pode promover uma<br />

semana de palestras, encontros, seminários<br />

através <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de para esclarecer à comuni<strong>da</strong>de<br />

escolar de sua nova prática e tê-los<br />

como parceiros de todo o processo.<br />

A aceitação, por parte <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de escolar,<br />

já autoriza o educador a colocar suas necessi<strong>da</strong>des<br />

financeiras no PDE (Plano de<br />

Desenvolvimento Escolar), o que possibilita a<br />

aquisição dos instrumentos necessários à aplicação<br />

<strong>da</strong> proposta, apesar de também poder<br />

utilizar material de sucata, que pode ser solicitado<br />

à comuni<strong>da</strong>de, e construir os jogos e brinquedos<br />

junto com seus educandos, sendo um<br />

momento rico no desenvolvimento <strong>da</strong> criativi<strong>da</strong>de,<br />

imaginação, socialização, pertencimento,<br />

independência e decisão <strong>da</strong> turma. “Brincar é<br />

decidir se vai fazer desaparecer um objeto, decidir<br />

se está na hora de deitar seu neném / boneca.<br />

Quem está brincando, está decidindo; um<br />

jogador é um tomador de decisões e esta é, sem<br />

dúvi<strong>da</strong>, uma <strong>da</strong>s características importantes do<br />

jogo.” (BROUGÉRE, 1998, p. 25).<br />

Aprender uma brincadeira ou jogo é, sobretudo,<br />

apropriar-se de suas estratégias e regras.<br />

É sucumbir ao perder e ganhar. Utilizar jogos e<br />

brinquedos no ensino é muito interessante, prin-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 27-41, jan./jun., 2006<br />

Maria José Etelvina dos Santos<br />

cipalmente quando são sugeridos, criados pelos<br />

professores e educandos, e não impostos.<br />

O papel do educador como agente de um<br />

processo historicamente construído é, além de<br />

informar, orientar as pessoas a construírem sua<br />

própria identi<strong>da</strong>de, levando-as a contribuírem de<br />

forma significativa com a socie<strong>da</strong>de, e a ludici<strong>da</strong>de<br />

tem sido enfoca<strong>da</strong> como um dos meios<br />

para alcançar esse encontro identitário.<br />

Com base nas idéias de Marcelino (1997), a<br />

negação do lúdico pela escola na<strong>da</strong> contribui<br />

para o desenvolvimento <strong>da</strong> criança, para a superação<br />

de seus conflitos, porque é nega<strong>da</strong> também<br />

a expressão de uma linguagem própria.<br />

Cabe à maioria <strong>da</strong>s escolas não tolher a vivência<br />

deste componente tão significativo e<br />

necessário ao desenvolvimento dos educandos,<br />

e dissociar a idéia <strong>da</strong> falta de serie<strong>da</strong>de, de bagunça<br />

e indisciplina que se agregam ao lúdico e<br />

atribuir-lhe o caráter de serie<strong>da</strong>de que realmente<br />

o evidencia.<br />

É fun<strong>da</strong>mental o resgate do lúdico no âmbito<br />

escolar como uma forma de conviver, reviver<br />

o prazer e a alegria do brincar, transformando<br />

o ensinar e o aprender mais envolvente<br />

e prazeroso.<br />

A visão psicanalítica de desenvolvimento<br />

emocional e ludici<strong>da</strong>de<br />

e suas implicações para o contexto<br />

escolar<br />

O jogo tem sido estu<strong>da</strong>do por psicólogos, filósofos<br />

e pe<strong>da</strong>gogos, sendo válidos seus descobrimentos<br />

ain<strong>da</strong> hoje, mas alguns estudos<br />

descrevem apenas aspectos parciais do problema<br />

ou mostram os fenômenos sem considerar<br />

seu significado inconsciente, que será redimensionado<br />

por Melanie Klein, partindo <strong>da</strong>s descobertas<br />

de Freud sobre o inconsciente infantil e<br />

suas considerações sobre o brincar na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

criança. Afirma, em seus estudos: “Pelo jogo, a<br />

criança traduz de um modo simbólico suas fantasias,<br />

seus desejos, suas experiências vivi<strong>da</strong>s”<br />

(KLEIN, 1997, p.27). Essa compreensão <strong>da</strong><br />

significação do jogo na criança é hoje coisa<br />

admiti<strong>da</strong>, mas, na época, ela abria um campo<br />

31


Ludici<strong>da</strong>de e educação emocional na escola: limites e possibili<strong>da</strong>des<br />

novo na exploração do psiquismo infantil. Inicialmente,<br />

é numa perspectiva profilática e educativa<br />

que a autora abor<strong>da</strong> o jogo na psicanálise.<br />

“Ao brincar, a criança está tão domina<strong>da</strong> pelo<br />

inconsciente que realmente é desnecessário<br />

recomen<strong>da</strong>r-lhe que exclua delibera<strong>da</strong>mente as<br />

interferências conscientes. A técnica lúdica proporciona<br />

abundância de material e dá acesso<br />

aos estratos profundos <strong>da</strong> mente.” (KLEIN,<br />

1997, p. 86).<br />

A técnica cria<strong>da</strong> por Melanie Klein baseiase<br />

na utilização do jogo e continua a investigação<br />

de Freud. Pensa que a criança, ao brincar,<br />

vence reali<strong>da</strong>des dolorosas e domina medos instintivos,<br />

projetando-os ao exterior nos brinquedos.<br />

Esse mecanismo é possível, porque muito<br />

cedo ele tem a capaci<strong>da</strong>de de simbolizar. Esse<br />

deslocamento <strong>da</strong>s situações internas ao mundo<br />

externo aumenta a importância dos objetos reais<br />

que, se em um princípio, eram fonte de ódio,<br />

produto <strong>da</strong> projeção dos impulsos destrutivos,<br />

com o jogo, e também por ele, se transformam<br />

em um refúgio contra a ansie<strong>da</strong>de, sentimento<br />

surgido pelo mesmo ódio. “A criança expressa<br />

suas fantasias, seus desejos e suas experiências<br />

reais de um modo simbólico, através de brincadeiras<br />

e jogos”. (KLEIN, 1997, p.27)<br />

O brinquedo permite à criança vencer o<br />

medo aos objetos reais, assim como vencer o<br />

medo aos perigos internos; faz possível uma<br />

prova do mundo real, sendo, por isso, uma ponte<br />

entre a fantasia e a reali<strong>da</strong>de principalmente<br />

quando a reali<strong>da</strong>de é intolerável, a brincadeira<br />

faz-se mais necessária ain<strong>da</strong>, uma vez que, fugindo<br />

de fato <strong>da</strong> experiência desagradável, a<br />

criança poderá reelaborar a reali<strong>da</strong>de de forma<br />

menos sofri<strong>da</strong> e com menos ameaça do mundo<br />

adulto que tanto a aflige.<br />

Outros analistas assumem a posição kleiniana<br />

e seguem seus princípios no tratamento com<br />

crianças através <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de, como Donald<br />

W. Winnicott. Seu prestígio nos países de influência<br />

psicanalítica é considerável pela riqueza<br />

e originali<strong>da</strong>de de sua compreensão do desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> criança em interação com o seu<br />

ambiente, principalmente o papel <strong>da</strong> mãe na<br />

constituição <strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de. Um mérito central<br />

movia a sua maneira de ser consigo mesmo<br />

32<br />

e com os outros: o brinquedo, não no sentido de<br />

jogo, jogo de socie<strong>da</strong>de, organizado por regras,<br />

mas sim no sentido de “ativi<strong>da</strong>de”, isto é todo<br />

ato que é uma “experiência de vi<strong>da</strong>”, uma expressão<br />

livre de si mesmo e declara: “Constituiria<br />

visão estreita supor que a psicanálise é o<br />

único meio de fazer uso terapêutico do brincar<br />

<strong>da</strong> criança”. (WINNICOTT, 1975, p. 74).<br />

Em seus estudos Winnicott mostra que um<br />

desenvolvimento afetivo bem sucedido revelase<br />

por meio de possibili<strong>da</strong>des de crianças que<br />

se realizam na arte de viver e na vi<strong>da</strong> cultural,<br />

por intermédio do jogo e do espaço potencial.<br />

Outro psicanalista que estudou o imaginário<br />

infantil foi Bruno Bettelheim que evidencia que<br />

“Brincar é muito importante, porque enquanto<br />

estimula o desenvolvimento intelectual e afetivo<br />

<strong>da</strong> criança também ensina, ensina sem que<br />

ela perceba, os hábitos necessários a esse crescimento<br />

(...) algumas pressões inconscientes nas<br />

crianças podem ser elabora<strong>da</strong>s através <strong>da</strong>s brincadeiras”.<br />

(BETTELHEIM, 1988, p. 168).<br />

As brincadeiras infantis possibilitam à criança<br />

entender como as coisas funcionam: o que<br />

pode ou não ser feito com os objetos, e, os rudimentos<br />

do por quê sim e do por quê não, como<br />

também, brincando com outras crianças, aprendem<br />

que existem regras de sorte e de probabili<strong>da</strong>des<br />

e regras de condutas, que devem ser<br />

cumpri<strong>da</strong>s. A brincadeira tem duas faces: uma<br />

dirigi<strong>da</strong> para o passado, ou seja, permite que se<br />

resolvam simbolicamente problemas não resolvidos<br />

do passado e outra, para o futuro, a fim<br />

de permitir que se enfrentem direta ou simbolicamente<br />

questões do presente. É também a<br />

ferramenta mais importante de que se pode dispor<br />

para se preparar para as tarefas do futuro,<br />

afirma Bettelheim (1988, p. 175).<br />

Esse autor afirma ain<strong>da</strong> que a tarefa mais<br />

importante e também mais difícil na educação<br />

de uma criança é ajudá-la a encontrar significado<br />

na vi<strong>da</strong>. Confirmou na prática clínica que<br />

se as crianças fossem cria<strong>da</strong>s de um modo que<br />

a vi<strong>da</strong> fosse significativa para elas, não necessitariam<br />

aju<strong>da</strong> especial. Acredita que:<br />

Para dominar os problemas psicológicos do crescimento<br />

– superar decepções narcisistas, dilemas<br />

edípicos, rivali<strong>da</strong>des fraternas, ser capaz de<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 27-41, jan./jun., 2006


abandonar dependências infantis, obter um sentimento<br />

de individuali<strong>da</strong>de e de auto-valorização,<br />

e um sentido de obrigação moral – a criança<br />

necessita entender o que está se passando dentro<br />

de seu eu inconsciente. Ela pode atingir essa<br />

compreensão, e com isto a habili<strong>da</strong>de de li<strong>da</strong>r<br />

com as coisas, não através <strong>da</strong> compreensão racional,<br />

<strong>da</strong> verbalização, mas familiarizando-se com<br />

ele através de brincadeiras, contos, devaneios –<br />

ruminando, reorganizando e fantasiando sobre<br />

elementos adequados em respostas a pressões<br />

inconscientes. (BETTELHEIM, 1980, p. 16).<br />

Assim, crianças que não têm oportuni<strong>da</strong>de<br />

de brincar sofrem interrupção ou retrocessos<br />

intelectuais e mentais, comprometendo todo o<br />

seu desenvolvimento.<br />

Na América Latina, Armin<strong>da</strong> Aberastury foi<br />

pioneira <strong>da</strong> Psicanálise Infantil e traz em seus<br />

livros a noção de que a ativi<strong>da</strong>de lúdica é a<br />

melhor expressão plástica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de fantasia e<br />

do desenvolvimento psicológico infantil.<br />

Ao brincar, a criança desloca para o exterior seus<br />

medos, angústias e problemas internos, dominando-os<br />

por meio <strong>da</strong> ação (...) Por meio <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />

lúdica, a criança expressa seus conflitos e, deste<br />

modo, podemos reconstruir seu passado, assim<br />

como no adulto fazemo-lo através <strong>da</strong>s palavras.<br />

Esta é uma prova convincente de que o brinquedo<br />

é uma <strong>da</strong>s formas de expressar os conflitos passados<br />

e presentes. (ABERASTURY 1992, p. 15 a 17).<br />

As situações lúdicas também possibilitam às<br />

crianças o encontro com seus pares, fazendo<br />

com que interajam socialmente, quer seja no<br />

âmbito escolar, ou não. “O jogo não suprime,<br />

mas canaliza tendências. Por isso a criança que<br />

brinca reprime menos que a que tem dificul<strong>da</strong>des<br />

na simbolização e dramatização dos conflitos<br />

através desta ativi<strong>da</strong>de.” (ABERASTURY,<br />

1982, p. 48-49).<br />

Como podemos observar, os psicanalistas<br />

são unânimes em considerar os jogos e brincadeiras<br />

infantis essenciais para o equilíbrio mental<br />

e emocional dos indivíduos; consideram que<br />

a escassez ou a ausência de brincadeiras na<br />

vi<strong>da</strong> dos infantes pode provocar retardo ou dificul<strong>da</strong>des<br />

futuras de a<strong>da</strong>ptação à reali<strong>da</strong>de.<br />

Outros estudiosos e terapeutas infantis acreditam<br />

que é na escola que as manifestações<br />

comportamentais <strong>da</strong>s crianças tornam-se mais<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 27-41, jan./jun., 2006<br />

Maria José Etelvina dos Santos<br />

significativas e reveladoras de suas condições<br />

no lar por ser o espaço escolar menos ameaçador<br />

e proporcionar um contato direto com outros<br />

colegas que estão passando pelas mesmas<br />

situações conflituosas.<br />

Violet Oaklander, terapeuta infantil, esclarece<br />

em seu livro que:<br />

A criança que se envolve em comportamentos<br />

hostis, intrusivos, destrutivos, agressivos e violentos<br />

é uma criança que possui sentimentos<br />

profundos de ira, sentimentos de rejeição, insegurança<br />

e ansie<strong>da</strong>de, sentimentos de mágoa, e<br />

muitas vezes um senso de identi<strong>da</strong>de difuso –<br />

tem também uma opinião muito pobre a respeito<br />

do seu eu que lhe é conhecido. É incapaz de<br />

expressar o que está sentindo, ou não está disposta<br />

a isso, ou ain<strong>da</strong> tem medo de manifestar<br />

seus sentimentos; pois se o fizer poderá causar<br />

reação agressiva nos adultos que cui<strong>da</strong>m dela.<br />

(OAKLANDER, 1980, p.233)<br />

Tal criança sente a necessi<strong>da</strong>de de fazer o<br />

que faz como um meio de sobreviver a um<br />

ambiente hostil, e é na escola que se sentirá à<br />

vontade para expressar-se com segurança, sem<br />

medo de ser “puni<strong>da</strong>” com tanta severi<strong>da</strong>de<br />

como fazem aqueles que cui<strong>da</strong>m dela. Então a<br />

escola passa a ser o ambiente propício para trabalhar<br />

a questão emocional mediado por ativi<strong>da</strong>des<br />

lúdicas dos aprendizes por ser um<br />

ambiente “menos ameaçador” do que o lar.<br />

Atualmente, estudos recentes sobre o reaprendizado<br />

emocional, especialmente, os de<br />

Daniel Goleman, Psicólogo, PHD, pela Universi<strong>da</strong>de<br />

de Harvard, corroboram com a visão de<br />

que os jogos aju<strong>da</strong>m na cura emocional.<br />

As brincadeiras, feitas repeti<strong>da</strong>s vezes, permitem<br />

que as crianças revivam o drama em segurança,<br />

como brincadeira. Isso oferece duas rotas<br />

de cura: de um lado, a memória repete o contexto<br />

de baixa ansie<strong>da</strong>de, dessessibilizando-a e permitindo<br />

que um conjunto de respostas não traumatiza<strong>da</strong>s<br />

se associe a ela. Outra rota de cura é<br />

que, na mente delas, as crianças podem magicamente<br />

<strong>da</strong>r à tragédia outro resultado, melhor.<br />

(GOLEMAN, 1995, p. 222-223).<br />

Assim, pela brincadeira, a situação traumática<br />

pode ser encara<strong>da</strong> sem ameaça pela criança<br />

e, neste processo ressignificar os efeitos <strong>da</strong><br />

situação incômo<strong>da</strong> vivi<strong>da</strong> em seu passado.<br />

33


Ludici<strong>da</strong>de e educação emocional na escola: limites e possibili<strong>da</strong>des<br />

Goleman (1995) acredita que as crianças<br />

traumatiza<strong>da</strong>s se tornam menos entorpeci<strong>da</strong>s<br />

do que os adultos porque usam a fantasia, as<br />

brincadeiras, os jogos e ativi<strong>da</strong>des lúdicas para<br />

lembrar e repensar suas provações e não represando<br />

em poderosas lembranças que depois<br />

podem irromper em comportamentos considerados<br />

“inadequados”.<br />

É importante esclarecer que, apesar de focarmos<br />

nosso estudo na perspectiva emocional<br />

dos indivíduos, entendemos que razão e emoção<br />

são inseparáveis e compartilhamos dos estudos<br />

de Antonio Damásio. “Em primeiro lugar,<br />

é evidente que a emoção se desenrola sob o<br />

controle tanto <strong>da</strong> estrutura subcortical como <strong>da</strong><br />

neocortical. Em segundo, e talvez mais importante,<br />

os sentimentos são tão cognitivos como<br />

qualquer outra imagem perceptual e tão dependente<br />

do córtex cerebral como qualquer outra<br />

imagem.” (1996, p. 190).<br />

O autor acredita que o corpo é o palco <strong>da</strong>s<br />

emoções, onde se desenrola a trama emocional<br />

e racional e, que, portanto, não podemos separar<br />

corpo, emoção e razão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> mental de<br />

um indivíduo. Enfatiza também que a emoção<br />

tem uma influência imensa em todos os aspectos<br />

e níveis <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de um ser humano.<br />

Ludici<strong>da</strong>de – suporte para a educação<br />

emocional na escola<br />

O GEPEL 2 , grupo de pesquisa sobre ludici<strong>da</strong>de<br />

e educação, dentro do Programa de Pós-<br />

Graduação em <strong>Educação</strong> FACED/UFBA, do<br />

qual participo, vem aprofun<strong>da</strong>ndo o conceito de<br />

ludici<strong>da</strong>de ao longo de suas reuniões. Muitos<br />

teóricos têm pesquisado a ludici<strong>da</strong>de a partir de<br />

um olhar sócio-histórico, como John Huizinga<br />

(1996), que enfatiza que o brincar é mais antigo<br />

que a cultura; Walter Benjamim (1984), com<br />

suas pesquisas histórico-sociais sobre o brinquedo<br />

e os brincares; Giles Brougére (1995),<br />

com a sociologia do brincar; Tizuko Morchi<strong>da</strong><br />

Kishimoto (1998), que contribui com seus estudos<br />

sobre esta temática no Brasil e tantos outros<br />

que se debruçaram sobre a questão <strong>da</strong><br />

ludici<strong>da</strong>de. Outros teóricos buscaram entender<br />

34<br />

a ludici<strong>da</strong>de como recurso de prática educativa,<br />

como Henri Wallon (1968), Vygotsky (1998),<br />

Constance Kamii (1985), Piaget (1975) etc.<br />

Outro aspecto <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de bastante estu<strong>da</strong>do<br />

e que vem sendo aprofun<strong>da</strong>do e retomado na<br />

Academia é o aspecto psicológico, abor<strong>da</strong>do<br />

anteriormente como base para esta pesquisa.<br />

Esses estudos corroboram com a crença de que<br />

a própria ativi<strong>da</strong>de lúdica é curativa e restauradora,<br />

conforme comentamos anteriormente.<br />

Porém, a questão que se faz presente é como<br />

podemos saber se uma pessoa foi toca<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deiramente<br />

pela ativi<strong>da</strong>de lúdica proposta<br />

como vivência de autodesenvolvimento?<br />

Cipriano Carlos Luckesi (In: PORTO, 2002,<br />

p. 26) eluci<strong>da</strong> esta questão, refletindo em seus<br />

textos que compreende ludici<strong>da</strong>de como um<br />

fenômeno interno do sujeito, que possui manifestações<br />

no exterior. A ativi<strong>da</strong>de lúdica não<br />

admite divisão: temos que estar inteiros, plenos<br />

e, caso estejamos com o corpo presente na ativi<strong>da</strong>de,<br />

mas a mente em outro lugar, então, nossa<br />

ativi<strong>da</strong>de não será plena e, por isso mesmo, não<br />

será lúdica. Então, conclui que o que caracteriza<br />

a ludici<strong>da</strong>de é a experiência de plenitude interna<br />

que ela propicia ao sujeito.<br />

Portanto, Luckesi acredita em uma educação<br />

lúdica que libere os bloqueios impeditivos<br />

dos educandos para a aprendizagem e concordo<br />

com sua visão, quando afirma:<br />

A ativi<strong>da</strong>de lúdica propicia um estado de consciência<br />

livre dos controles do ego, por isso mesmo<br />

criativo. O nosso ego, como foi construído,<br />

em nossa história pessoal de vi<strong>da</strong>, na base de<br />

ameaças e restrições, é muito constritivo, centrado<br />

em múltiplas defesas. Ele reage à liber<strong>da</strong>de<br />

que traz a ativi<strong>da</strong>de lúdica em si mesma. Por isso,<br />

uma educação centra<strong>da</strong> em ativi<strong>da</strong>des lúdicas<br />

tem a possibili<strong>da</strong>de, de um lado, de construir um<br />

Eu (não um ego) saudável em ca<strong>da</strong> um de nós,<br />

ou por outro lado, vagarosamente, auxiliar a transformação<br />

do nosso ego constritivo num Eu saudável.<br />

Educar crianças ludicamente é estar<br />

auxiliando-as a viver bem o presente e prepararse<br />

para o futuro. Educar ludicamente adolescen-<br />

2 GEPEL – Grupo de Estudo e Pesquisa em <strong>Educação</strong> e<br />

Ludici<strong>da</strong>de do Programa de Pós-Graduação em <strong>Educação</strong> <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia, sob Coordenação do Prof.<br />

Dr. Cipriano Carlos Luckesi.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 27-41, jan./jun., 2006


tes e adultos significa estar criando condições<br />

de restauração do passado, vivendo bem o presente<br />

e construindo o futuro (LUCKESI, 2000, p.<br />

21-22).<br />

Mais adiante o autor conclui: “Deste modo<br />

uma educação lúdica, a nosso ver, é uma orientação<br />

adequa<strong>da</strong> para uma prática educativa que<br />

esteja atenta à formação de um ser humano ou<br />

de um ci<strong>da</strong>dão saudável para si mesmo e para<br />

a sua convivência com os outros, seja na vi<strong>da</strong><br />

priva<strong>da</strong> ou pública” (2000, p. 22).<br />

Acredito em uma educação lúdica pauta<strong>da</strong><br />

nos objetivos <strong>da</strong> educação para o século XXI,<br />

segundo a Unesco, ser, conviver, fazer e conhecer,<br />

antes de qualquer coisa deve “começar<br />

por se conhecer a si próprio, numa espécie de<br />

viagem interior”, pois “o século XXI exigirá de<br />

todos nós grande capaci<strong>da</strong>de de autonomia e<br />

de discernimento, juntamente com o reforço <strong>da</strong><br />

responsabili<strong>da</strong>de pessoal, na realização de um<br />

destino coletivo” (DELORS, 2001 p. 20).<br />

Então, na<strong>da</strong> melhor que ativi<strong>da</strong>des lúdicas<br />

para favorecer a descoberta de si mesmo, de<br />

suas limitações ocorri<strong>da</strong>s através de bloqueios<br />

impeditivos ao crescimento, o que Freud chamou<br />

de forças regressivas, que, depois de desbloquea<strong>da</strong>s,<br />

afloram como possibili<strong>da</strong>des de<br />

crescimento e liber<strong>da</strong>de, o que Freud chamou<br />

de forças progressivas.<br />

Winnicott (1982) fez um estudo muito interessante<br />

sobre a ludici<strong>da</strong>de, o mundo interno infantil<br />

e como as brincadeiras podem restaurar o<br />

equilíbrio emocional <strong>da</strong>s crianças. Admite, em<br />

seus estudos, que a criança adquire experiência<br />

brincando. Enfatiza que, assim como o adulto<br />

estrutura sua personali<strong>da</strong>de, através <strong>da</strong>s experiências<br />

vivi<strong>da</strong>s, a criança evolui por intermédio<br />

de brincadeiras. Uma situação lúdica proporciona<br />

expressar seus conflitos, sua agressão, suas<br />

angústias, seu mundo interno e tolerado pelos<br />

adultos que presenciem tais ativi<strong>da</strong>des.<br />

Sobre a agressão na brincadeira esclarece:<br />

A agressão pode ser agradável, mas acarreta inevitavelmente<br />

o <strong>da</strong>no real ou imaginário de alguém,<br />

de modo que a criança não pode evitar ter de fazer<br />

frente a essa complicação. Até certa medi<strong>da</strong> isso<br />

é conseguido na origem, ao aceitar a criança a<br />

disciplina de exprimir o sentimento agressivo sob<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 27-41, jan./jun., 2006<br />

Maria José Etelvina dos Santos<br />

a forma de brincadeira e não apenas quando está<br />

zanga<strong>da</strong>. Outro processo é usar a agressivi<strong>da</strong>de<br />

numa forma de ativi<strong>da</strong>de que tenha uma finali<strong>da</strong>de<br />

básica objetiva. Mas essas coisas só se conseguem<br />

gra<strong>da</strong>tivamente. Compete-nos não ignorar<br />

a contribuição social feita pela criança ao exprimir<br />

seus sentimentos agressivos através <strong>da</strong>s brincadeiras,<br />

em lugar de o fazer em momentos de raiva.<br />

Poderemos não gostar de ser odiados ou feridos,<br />

mas não devemos ignorar o que está subentendido<br />

na autodisciplina, relativamente aos impulsos<br />

coléricos (1982, p. 162).<br />

Mais adiante, o autor conclui: “Conquanto<br />

seja fácil perceber que as crianças brincam por<br />

prazer, é muito mais difícil para as pessoas verem<br />

que as crianças brincam para dominar angústias,<br />

controlar idéias ou impulsos que<br />

conduzem à angústia se não forem dominados”<br />

(1982, p. 162).<br />

Winnicott acredita que a ludici<strong>da</strong>de propicia<br />

o desenvolvimento de esquemas emocionais<br />

sadios nas crianças se forem <strong>da</strong><strong>da</strong>s condições<br />

adequa<strong>da</strong>s para se expressarem, criarem e serem<br />

elas mesmas; pois, as brincadeiras servem<br />

de elo entre, por um lado, a relação do indivíduo<br />

com a reali<strong>da</strong>de interior, e, por outro lado, a relação<br />

do indivíduo com a reali<strong>da</strong>de externa ou<br />

compartilha<strong>da</strong>. Denomina de tendência saudável<br />

<strong>da</strong> brincadeira quando está relaciona<strong>da</strong> aos<br />

dois aspectos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, ou seja, o funcionamento<br />

físico e a vivência <strong>da</strong>s idéias. No entanto, se a<br />

relação do mundo interior não estiver conjuga<strong>da</strong><br />

com o mundo externo, a criança não pode<br />

brincar, pelo menos <strong>da</strong> forma como entendemos<br />

a brincadeira, que se configura em mútuas<br />

interações sociais com outros seres humanos.<br />

Neste caso, resta à criança brincar, porque a<br />

brincadeira é uma <strong>da</strong>s coisas que propendem<br />

para a integração <strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de, ou seja, só<br />

assim, ela pode restaurar seu equilíbrio emocional,<br />

que na<strong>da</strong> mais é do que conjugar seu mundo<br />

interno com o mundo externo.<br />

Nesse estudo, Winnicott revela também que<br />

“as brincadeiras, tal como os sonhos, servem à<br />

função de auto-revelação e de comunicação<br />

com o nível profundo” (1982, p. 165).<br />

Ao mesmo tempo em que manifesta o mundo<br />

interno, as brincadeiras restauram ou ressignificam<br />

o revelado, porque uma vez que o<br />

35


Ludici<strong>da</strong>de e educação emocional na escola: limites e possibili<strong>da</strong>des<br />

material veio à tona, mostrou-se, era devido não<br />

estar resolvido e, como um círculo vicioso, retorna<br />

à superfície to<strong>da</strong> vez que tenha oportuni<strong>da</strong>de,<br />

com o propósito de se atualizar e ser<br />

resolvido para retornar ao mundo interno resolvido,<br />

tranqüilo, amadurecido, passando a ser um<br />

fortalecedor para outras condutas e pensamentos.<br />

Um conflito resolvido torna-se um aliado<br />

<strong>da</strong>s forças progressivas. Outros surgirão ou ressurgirão,<br />

mas <strong>da</strong><strong>da</strong> à oportuni<strong>da</strong>de para primeiro<br />

expressar-se, num contexto propício, de uma<br />

forma lúdica, onde o ego não se sinta ameaçado,<br />

então ocorre a restauração e o equilíbrio ou<br />

homeostase. Sendo assim, tudo volta à normali<strong>da</strong>de,<br />

pelo menos temporariamente, até aflorarem<br />

outras questões e tudo volta a acontecer<br />

novamente; porém, a ca<strong>da</strong> ciclo, o ser humano<br />

sai mais fortalecido, mais gente, mais humano.<br />

Como enfatiza Lúcia Helena Pena (2005,<br />

p.92) em sua tese de doutorado:<br />

36<br />

As experiências lúdicas não existem por si, existem<br />

como vi<strong>da</strong> vivente, enquanto experiência do<br />

ser senciente. Na ativi<strong>da</strong>de lúdica, o que importa<br />

não é somente o produto <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de, o que<br />

dela resulta, mas a própria ação, o momento vivido.<br />

Possibilita a quem a vivencia, momentos de<br />

encontro consigo e com o outro, momentos de<br />

fantasia e de reali<strong>da</strong>de, de ressignificação e percepção,<br />

momentos de autoconhecimento e conhecimento<br />

do outro, de cui<strong>da</strong>r de si e olhar para<br />

o outro, momentos de vi<strong>da</strong>, de expressivi<strong>da</strong>de.<br />

Não há garantias de que as ativi<strong>da</strong>des lúdicas<br />

despertem ou elaborem conflitos, angústias<br />

ou ansie<strong>da</strong>des vivi<strong>da</strong>s pelo sujeito. Na reali<strong>da</strong>de,<br />

elas encerram possibili<strong>da</strong>des, potenciali<strong>da</strong>des<br />

que poderão ser ativa<strong>da</strong>s ou não por quem<br />

as vivencia. O sujeito é que lhe <strong>da</strong>rá significados,<br />

criará elos de sentido e se permitirá, estando<br />

aberto às mu<strong>da</strong>nças que se operarem, ou<br />

caso contrário, na<strong>da</strong> ocorrerá no nível profundo,<br />

mas, superficialmente, todos somos afetados<br />

quando brincamos.<br />

A experiência <strong>da</strong> pesquisa<br />

No intuito de alcançar a resposta à questão<br />

levanta<strong>da</strong>, tomei como referência a etnopesquisa<br />

crítica, por considerar, como Roberto Sidnei<br />

Macedo (2000, p. 262), que a etnopesquisa-ação<br />

nos conduz a um campo onde a Academia concretamente<br />

sai dos seus muros e age em termos<br />

de uma intervenção com a comuni<strong>da</strong>de,<br />

assumindo como principal objetivo <strong>da</strong> pesquisa<br />

a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de e a ética onde o pesquisador<br />

deverá estar implicado à situação a ser conheci<strong>da</strong><br />

e transforma<strong>da</strong>.<br />

O autor considera a implicação e a subjetivi<strong>da</strong>de<br />

elementos constitutivos do processo de construção<br />

de conhecimento, rompendo assim com a<br />

concepção positivista de pesquisa. O ideal de<br />

neutrali<strong>da</strong>de científica há muito tempo vem sendo<br />

questionado. A pesquisa de campo ocorreu<br />

em uma escola <strong>da</strong> Rede Pública de Ensino Fun<strong>da</strong>mental.<br />

Trabalhei com uma turma de aceleração,<br />

composta por 25 educandos, na faixa etária<br />

de 9 a 15 anos, inseri<strong>da</strong> no Projeto de Regularização<br />

do Fluxo Escolar 3 <strong>da</strong> 1ª à 4ª série <strong>da</strong> Secretaria<br />

de <strong>Educação</strong> do Estado <strong>da</strong> Bahia,<br />

pertencente ao programa: Educar para vencer.<br />

Esta turma foi escolhi<strong>da</strong> pela direção <strong>da</strong> escola<br />

porque, sob a alegação de era a que apresentava<br />

o maior índice de “comportamento<br />

inadequado” no cotidiano escolar, confirmado<br />

pela professora e pela equipe de coordenação<br />

do Programa do Fluxo Escolar onde esta turma<br />

estava inseri<strong>da</strong>.<br />

A pesquisa constou de três grandes momentos<br />

característicos <strong>da</strong> pesquisa-ação: o diagnóstico<br />

inicial para verificar o estado emocional<br />

atual dos educandos, a intervenção contando<br />

com 40 ativi<strong>da</strong>des lúdicas que foram aplica<strong>da</strong>s<br />

durante um semestre e o diagnóstico final, sendo<br />

reaplicados os mesmos instrumentos de investigação<br />

do diagnóstico inicial.<br />

O diagnóstico inicial constou <strong>da</strong> observação<br />

<strong>da</strong> rotina escolar <strong>da</strong> turma escolhi<strong>da</strong>, a entrevista<br />

com a direção <strong>da</strong> escola, coordenação<br />

geral e de área do “Projeto Educar para Vencer”<br />

e <strong>da</strong> professora <strong>da</strong> turma; posteriormente<br />

realizei entrevistas com os pais e testagem com<br />

os educandos através <strong>da</strong>s Fábulas de Duss 4 e,<br />

3 Projeto do governo do Estado <strong>da</strong> Bahia que objetiva corrigir,<br />

num prazo máximo de cinco anos, os elevados índices<br />

de distorção i<strong>da</strong>de-série observados nas escolas fun<strong>da</strong>mentais,<br />

onde mais de 70% dos educandos encontram-se nesta<br />

situação.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 27-41, jan./jun., 2006


complementando este teste, com as Frases para<br />

Completar 5 , de Madeleine Thomaz. Estes testes<br />

foram aplicados com o intuito de verificar o<br />

estado emocional inicial <strong>da</strong> turma.<br />

As Fábulas e os Contos de Madeleine Thomaz<br />

denunciaram o estado emocional em que<br />

se encontravam os educandos. Sentimentos de<br />

culpa eram o que mais emergiam nas respostas<br />

às Fábulas, talvez por sentirem-se culpados pela<br />

situação familiar de carências, desentendimentos<br />

e desencontros vivenciados pelo grupo, o<br />

que era expresso através de respostas autopunitivas.<br />

Sentimentos de rejeição e abandono também<br />

foram os que mais surgiram nas expressões dos<br />

estu<strong>da</strong>ntes; aliados aos sentimentos, estavam os<br />

conflitos fraternais, principalmente com os irmãos.<br />

O ciúme, que está na base dos conflitos familiares,<br />

foi evidente nas respostas às fábulas.<br />

A relação com os pais é muitas vezes percebi<strong>da</strong><br />

como persecutória, o que revela uma<br />

relação de amor e ódio, o que seria normal, se<br />

não fosse o conteúdo do ódio maior do que o<br />

amor. Na reali<strong>da</strong>de a forma punitiva de educar<br />

caracteriza a relação dos pais com os filhos<br />

como forma de manter a autori<strong>da</strong>de e o medo<br />

dos pais de solapar a autori<strong>da</strong>de, manifestar<br />

carinho ou afeto pelos filhos.<br />

A transição pelo complexo de Édipo e complexo<br />

Anal aju<strong>da</strong> a manter a visão de caos real<br />

e de sentimentos confusos com relação aos pais<br />

e irmãos.<br />

Há um misto de obediência passiva 6 e rebeldia<br />

em relação aos pais, o que me leva a<br />

supor que aquelas crianças que sucumbiram as<br />

punições em nome <strong>da</strong> boa educação se resignaram<br />

e, sob pena <strong>da</strong> rejeição, obedecem cegamente<br />

e se tornaram passivos frente às<br />

agressões sofri<strong>da</strong>s pelo meio social no qual estão<br />

inseri<strong>da</strong>s. As crianças que resistem às punições<br />

e não têm medo <strong>da</strong> rejeição ou já se<br />

sentem tão rejeitados que não se incomo<strong>da</strong>m<br />

mais com as rejeições sofri<strong>da</strong>s, respondem com<br />

agressão aos estímulos do meio e lutam para<br />

serem percebidos e aceitos.<br />

As Fábulas de Duss e os Contos são reveladores,<br />

desvelam os conflitos e complexos existentes<br />

no mundo interno <strong>da</strong>s crianças. Trazem<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 27-41, jan./jun., 2006<br />

Maria José Etelvina dos Santos<br />

à tona sentimentos advindos de experiências<br />

reais e traduzidos em sensações, emoções que<br />

se interiorizam povoando o mundo interno <strong>da</strong>s<br />

crianças e servindo de estímulo para que expressem<br />

apatia ou rebeldia, resignação ou<br />

agressivi<strong>da</strong>de, amor ou ódio, subordinação ou<br />

criativi<strong>da</strong>de.<br />

A intervenção foi realiza<strong>da</strong> após o término<br />

do diagnóstico inicial. Foi composto de 40 encontros,<br />

em dias alternados, com duração de<br />

uma hora mais ou menos e acontecendo sempre<br />

na primeira aula. Os encontros tinham como<br />

base ativi<strong>da</strong>des lúdicas relativas à expressão dos<br />

sentimentos dos estu<strong>da</strong>ntes e constou de quatro<br />

temáticas básicas, escolhi<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong>s<br />

dificul<strong>da</strong>des emocionais apresenta<strong>da</strong>s no diagnóstico<br />

inicial, a saber: identi<strong>da</strong>de, integração,<br />

comunicação e grupo. As ativi<strong>da</strong>des foram<br />

seleciona<strong>da</strong>s em diversos livros que continham<br />

jogos e exercícios vivenciais para o desenvolvimento<br />

emocional especificamente relativa às<br />

temáticas seleciona<strong>da</strong>s, com duração de tempo<br />

variado e nível de complexi<strong>da</strong>de mínimo.<br />

Após a intervenção, realizei o diagnóstico<br />

final, reaplicando os mesmos instrumentos do<br />

diagnóstico inicial e as respostas e entrevistas<br />

foram reveladores <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças opera<strong>da</strong>s no<br />

transcorrer <strong>da</strong> intervenção pelos educandos.<br />

A mãe continuou sendo a figura de valência<br />

na vi<strong>da</strong> dos jovens e não poderia ser diferente,<br />

por constituir pessoa pela qual os educandos<br />

sentem maior vinculação e por ser <strong>da</strong>do a ela o<br />

lugar de cui<strong>da</strong>dora, provedora e responsável<br />

pelos atos dos filhos.<br />

Houve um maior contato com as mágoas,<br />

os “sentimentos obscuros”, ou seja, a descoberta<br />

dos motivos que levavam os jovens a sentirem<br />

tristeza, solidão, rejeição, raiva, mu<strong>da</strong>nça<br />

de ânimo, etc, fazendo com que, conhecendo<br />

com clareza dos motivos reais que os faziam<br />

4 Fábulas de Duss – Teste projetivo psicanalítico que investiga<br />

os processos inconscientes de um determinado comportamento.<br />

5 Frases para Completar – Investigam a natureza dos conflitos<br />

atuais e conscientes de um determinado comportamento.<br />

6 Segundo Maud Mannonni (1977), para conseguirmos ser<br />

amado e aceitos pelos nossos pais podemos nos tornar tudo<br />

aquilo que eles desejam que sejamos, até loucos.<br />

37


Ludici<strong>da</strong>de e educação emocional na escola: limites e possibili<strong>da</strong>des<br />

sentirem-se de determina<strong>da</strong> maneira, pudessem<br />

expressar e conversar com as pessoas que estavam<br />

causando os sentimentos e terem a possibili<strong>da</strong>de<br />

de expressando e falando 7 o que<br />

estavam sentindo, elaborarem de alguma forma<br />

os incômodos advindos destas sensações.<br />

A relação com os pais passou de persecutória<br />

para uma relação de confiança básica. Assumiram<br />

os pais reais e abandonaram os pais<br />

idealizados. O desejo de morte dos pais cedeu<br />

lugar a desejos mais promissores de viagens e<br />

objetos reais.<br />

A rivali<strong>da</strong>de com os irmãos parece ter sido<br />

apazigua<strong>da</strong>, quando observamos respostas menos<br />

agressivas e mais solidárias e fraternais na<br />

fábula do carneirinho, que investiga este aspecto<br />

na dinâmica familiar.<br />

O sentimento de culpa tão expressado no<br />

diagnóstico inicial, refletido na autopunição, cedeu<br />

lugar a heteroagressão no diagnóstico final<br />

e a não se culparem tanto pelos humores parentais.<br />

Perceberam que existem outros motivos<br />

que deixam os pais tristes e zangados.<br />

A toma<strong>da</strong> de consciência <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças<br />

corporais, dos medos assumidos como reais e<br />

não imaginários parece ter forçado o crescimento,<br />

o amadurecimento comportamental. O<br />

fato de saber os “por quês”, parece ter <strong>da</strong>do<br />

aos sujeitos pesquisados um poder, um controle<br />

sobre os acontecimentos que promoveu um<br />

maior bem-estar e um equilíbrio emocional.<br />

Enfim, os achados <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> testagem <strong>da</strong>s<br />

Fábulas e dos Contos denotam mu<strong>da</strong>nças nas<br />

respostas e, conseqüentemente, no comportamento<br />

dos sujeitos pesquisados. O percentual<br />

de mu<strong>da</strong>nças ocorri<strong>da</strong>s em ca<strong>da</strong> sujeito não<br />

pode ser medido. Sabemos que todos foram<br />

afetados de uma forma ou de outra. Não são<br />

mais os mesmos. Algo aconteceu que é impossível<br />

mensurar, mas é possível verificar através<br />

<strong>da</strong>s manifestações de comportamento, visível<br />

no cotidiano escolar e social.<br />

Considerações finais<br />

Desejei falar nesta pesquisa de algo universal<br />

sobre o brincar e o amar. Queria mostrar<br />

38<br />

como uma atitude amorosa e uma escuta sensível<br />

8 aos sinais 9 <strong>da</strong> sala de aula, em relação<br />

aos estu<strong>da</strong>ntes pode lhes propiciar bons começos.<br />

Atitude amorosa que abarca, dialeticamente,<br />

liber<strong>da</strong>de e limites, disciplina, rotina e<br />

organização.<br />

O respeito à criança como ser humano que<br />

desde a mais tenra i<strong>da</strong>de sente, pensa e se expressa<br />

a seu modo, brincando, e seu direito a<br />

esse brincar são as mensagens mais importantes.<br />

Simples, básicas, primordiais.<br />

Penso que diante <strong>da</strong> trajetória percorri<strong>da</strong><br />

com a instituição escolar e seus atores sociais,<br />

diria que os limites são muitos, começando por<br />

observar que a escola continua a fragmentar o<br />

ser humano e a privilegiar apenas a razão, o<br />

intelecto, promovendo apenas a cultura do sujeito<br />

e não o ser total. Separa a cabeça <strong>da</strong>s mãos,<br />

a razão <strong>da</strong> emoção, não abarca a totali<strong>da</strong>de, na<br />

formação do ser como tal para a vi<strong>da</strong>. Observei<br />

nesta pesquisa que a escola continua a reproduzir<br />

a mesma rígi<strong>da</strong> organização no agrupamento,<br />

na seleção, na disposição do mobiliário,<br />

na seriação, na autori<strong>da</strong>de do professor, na<br />

transmissão dos conteúdos, na cosmovisão do<br />

século passado.<br />

Segundo Maria Cândi<strong>da</strong> Moraes (1997,<br />

p.14): a escola não cumpre seu papel; está com-<br />

7 Françoise Dolto afirma em conferência realiza<strong>da</strong> em<br />

Grenoble (1987) e intitula<strong>da</strong> “Tudo é Linguagem” que, enquanto<br />

as necessi<strong>da</strong>des devem ser satisfeitas, os desejos devem<br />

ser conhecidos e expressos em palavras. O conhecimento<br />

de vivências passa<strong>da</strong>s facilitará a integração <strong>da</strong>s<br />

memórias vincula<strong>da</strong>s aos sentimentos e impulsos que mantidos<br />

inconscientes podem ser vividos desordena<strong>da</strong>mente,<br />

através de diferentes atos, freqüentemente incompreensíveis<br />

para o próprio sujeito, que atônito pergunta-se: por<br />

que fiz isto? A negação à palavra e, portanto, ao conhecimento<br />

acerca do significado <strong>da</strong>s ações que envolvem os<br />

indivíduos conduzem, muitas vezes, a manifestações sintomáticas<br />

de to<strong>da</strong> ordem, o que nos permite afirmar que o<br />

desconhecimento de si pode conduzir à “comportamentos<br />

inadequados”.<br />

8 Oferecer uma escuta sensível, significa abrir espaço para o<br />

“não dito” e para o “mal dito”, isto é, <strong>da</strong>r ao educando a<br />

oportuni<strong>da</strong>de de falar sobre coisas que são omiti<strong>da</strong>s ou<br />

distorci<strong>da</strong>s no contexto <strong>da</strong> escola. O professor, por meio de<br />

sua escuta, possibilita ao sujeito articular seu desejo através<br />

<strong>da</strong> fala e <strong>da</strong> brincadeira, via ativi<strong>da</strong>des lúdicas na escola, e<br />

por conseguinte simbolizar aspectos que a ciência com seu<br />

pragmatismo, jamais irá alcançar.<br />

9 Os “sinais” sempre revelam alguma coisa que está oculta e<br />

cifra<strong>da</strong>. Tanto o investigador quanto o educador necessitam<br />

estar atentos para eles, tendo em vista descobrir o seu significado.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 27-41, jan./jun., 2006


pletamente dissocia<strong>da</strong> do mundo e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>; a<br />

deman<strong>da</strong> educacional não sai qualifica<strong>da</strong> dos<br />

bancos escolares. E denuncia: a presença de<br />

uma política educacional fragmenta<strong>da</strong>, desarticula<strong>da</strong>,<br />

descontínua e compartimenta<strong>da</strong> colabora<br />

para o prevalecimento <strong>da</strong>s atuais taxas de<br />

analfabetismo, evasão, repetência, baixa quali<strong>da</strong>de<br />

do ensino e tantas outras mazelas <strong>da</strong> educação<br />

brasileira. Considera que o aspecto mais<br />

grave de tudo isso está no fato de que a maioria<br />

dos projetos desconsidera o aprendiz como principal<br />

centro de referência de to<strong>da</strong> ação educacional.<br />

Desconhece as reais condições sociais<br />

e de pensamento do educando, a natureza de<br />

seus processos cognitivos e emocionais, seu<br />

processo de funcionamento, aspectos fun<strong>da</strong>mentais<br />

para que a aprendizagem ocorra.<br />

Os educandos eram rotulados de agressivo,<br />

brigão, problemático, deficiente cognitivo, possuidor<br />

de dificul<strong>da</strong>de de aprendizagem, etc. Os<br />

pais eram considerados os culpados pelos comportamentos<br />

considerados inadequados pelos<br />

professores e, diziam que: “na<strong>da</strong> podiam fazer,<br />

porque o que podiam, já realizavam na<br />

sala de aula, não eram milagrosos e que a<br />

família deixava a cargo <strong>da</strong> escola a educação<br />

de seus filhos, quando na reali<strong>da</strong>de era<br />

função deles educarem seus filhos”.<br />

Dividido no conhecimento, dissociado em<br />

suas emoções e em seus afetos, com a mente<br />

tecnicista e o coração vazio, sem um trabalho<br />

bem remunerado e satisfatório, compartimentalizado<br />

no viver e profun<strong>da</strong>mente infeliz, o professor<br />

também está em crise e precisando de<br />

aju<strong>da</strong>.<br />

Então, quais as possibili<strong>da</strong>des de uma educação<br />

emocional na escola mediado pela ludici<strong>da</strong>de?<br />

Como falar em valores humanos que<br />

passam pela emoção, afetivi<strong>da</strong>de, sensibili<strong>da</strong>de,<br />

sentimentos, se na escola, a cosmovisão<br />

continua sendo Newtoniano-cartesiano e onde<br />

o estu<strong>da</strong>nte é visto apenas como um ser fragmentado,<br />

reduzido, racional, um intelecto separado<br />

de si mesmo, vestido de uniforme escolar,<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 27-41, jan./jun., 2006<br />

Maria José Etelvina dos Santos<br />

que pensa aquilo que os outros querem que ele<br />

pense? Onde sua vi<strong>da</strong>, seu sorriso, suas lágrimas<br />

e dores não encontram ressonância?<br />

Penso que o professor precisa se apropriar<br />

de um saber que lhe foi negado, para que compreen<strong>da</strong><br />

que tudo está interligado, que o comportamento<br />

de seu educando não é apenas um<br />

comportamento, é a manifestação de vários<br />

fatores que correspondem à condição sócioeconômica<br />

e psico-afetiva em que seus pais<br />

estão inseridos. Precisa compreender o contexto<br />

<strong>da</strong> escola, dos pais e de sua própria escolha<br />

profissional, precisa compreender seus motivos<br />

e suas emoções também, precisa se encontrar,<br />

se autoconhecer, se descobrir como ser humano<br />

e como mediador do outro. Para se chegar a<br />

estas compreensões, são necessárias políticas<br />

públicas que proporcionem constante capacitação<br />

ao professor e valorização profissional, assistência<br />

a sua ação pe<strong>da</strong>gógica através de um<br />

projeto pe<strong>da</strong>gógico que integre os vários saberes<br />

e inclua a ludici<strong>da</strong>de como metodologia de<br />

ensino, sabendo que, para tanto, é necessário<br />

auxiliar o professor no seu fazer pe<strong>da</strong>gógico,<br />

porque não se pode cobrar o que não foi oferecido<br />

aos professores.<br />

Então, uma educação integral, lúdica, que contemple<br />

o ser humano total para um mundo global,<br />

deve ser como falou Jacques Delors (2001, p.49)<br />

em relatório para Unesco: “A educação tem, pois,<br />

uma especial responsabili<strong>da</strong>de na edificação de<br />

um mundo mais solidário, e a Comissão pensa que<br />

as políticas de educação devem deixar transparecer,<br />

de modo bem claro, essa responsabili<strong>da</strong>de. É<br />

de algum modo, um novo humanismo que a educação<br />

deve aju<strong>da</strong>r a nascer”.<br />

Isso requer novos métodos de ensino, novos<br />

currículos, uma nova cosmovisão para a era<br />

relacional, novos valores, e novas práticas educacionais,<br />

que contemplem as emoções, a razão,<br />

o corpo, a subjetivi<strong>da</strong>de dos educandos.<br />

Com certeza, uma prática absolutamente diferente<br />

<strong>da</strong> que estamos acostumados a encontrar<br />

em nossas escolas.<br />

39


Ludici<strong>da</strong>de e educação emocional na escola: limites e possibili<strong>da</strong>des<br />

40<br />

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<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 27-41, jan./jun., 2006<br />

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Recebido em 09.02.06<br />

Aprovado em 18.04.06<br />

41


<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 43-53, jan./jun., 2006<br />

Nilce <strong>da</strong> Silva<br />

SÉCULO XXI: O JOGO NECESSÁRIO<br />

PARA O APRENDIZADO E PARA O MUNDO DO TRABALHO<br />

RESUMO<br />

Nilce <strong>da</strong> Silva*<br />

Este artigo tem como principal objetivo apresentar algumas <strong>da</strong>s características<br />

para uma Pe<strong>da</strong>gogia do Século XXI, levando em consideração os trabalhos<br />

feitos pelo grupo de pesquisa, ensino e extensão “Acolhendo Alunos em Situação<br />

de Exclusão Social e Escolar: ao papel <strong>da</strong> instituição escolar” – http://<br />

www.projetoacolhendo.ubbihp.com.br/, desde 2002. Ancora-se nos seguintes<br />

conceitos de D. Winnicott: “espaço de criação” ou “espaço transicional”,<br />

“objetos transicionais” e “fenômenos transicionais”. Em segui<strong>da</strong>, baseados<br />

nestes conceitos, discutiremos a palavra “criativi<strong>da</strong>de”. O artigo descreve<br />

também, de acordo com Domenico De Masi, o “mundo do trabalho”<br />

implementado pela “Revolução Industrial”, que será o objeto destas reflexões,<br />

cujas características sobrevivem nos nossos tempos e, decorrente deste diálogo<br />

com a Pe<strong>da</strong>gogia, apresentamos um possível paradigma de estudo, trabalho e<br />

“tempo livre” que se instala como resultado <strong>da</strong>s novas e atuais tecnologias de<br />

informação. Finalmente, consideramos a “criativi<strong>da</strong>de” como eixo norteador<br />

<strong>da</strong> Pe<strong>da</strong>gogia deste novo milênio.<br />

Palavras-chave: Criativi<strong>da</strong>de – “Tempo livre” – Pe<strong>da</strong>gogia – Jogo<br />

ABSTRACT<br />

XXI CENTURY: THE ESSENTIAL GAME FOR LEARNING AND<br />

FOR THE WORLD OF WORK<br />

This paper main objective is to present some of the characteristics for a XXI<br />

Century Science of Education taking in consideration the academical works that<br />

have been made by the group of research, teaching and community works called<br />

“Acolhendo Alunos em Situação de Exclusão Social e Escolar: a importância <strong>da</strong><br />

instituição Escolar” – http://www.projetoacolhendo.ubbihp.com.br/, since 2002.<br />

This project is based in some of Winnicott’s concepts like: “space of creation”<br />

or “transactional space” or “transactional objects” and “transactional<br />

phenomena”. Latter, based in theses concepts, we’ll discuss the word<br />

“creativity”. This article describes, in accor<strong>da</strong>nce with Domenico De Masi,<br />

* Doutora em Didática e Metodologia do Ensino na Facul<strong>da</strong>de de <strong>Educação</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo, com<br />

doutorado sanduíche na Université Paris-Nord e pós-doutorado na Université Paris-Nord. Professora <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de<br />

<strong>Educação</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo. Endereço para correspondência: Facul<strong>da</strong>de de <strong>Educação</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de<br />

São Paulo. Aveni<strong>da</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de, 308. Bloco A. Sala 111. Butantã. São Paulo. SP. CEP: 05508-900. E-mail:<br />

nilce@usp.br<br />

43


Século XXI: o jogo necessário para o aprendizado e para o mundo do trabalho<br />

Introdução<br />

44<br />

the “world of work” implemented by the “Industrial Revolution”, that will be<br />

the object of these reflections, whose characteristics survive in our <strong>da</strong>ys and,<br />

as result of this dialogue with the educational sciences, we present one possible<br />

paradigm of study, work and “free time” which take place as result of the new<br />

and actual technologies of information. Finally, we consider “creativity” as a<br />

guide for Educational Sciences in this new millennium.<br />

Keywords: Creativity – “Free time” – Educational Sciences – Game<br />

Não é do trabalho que nasce a civilização:<br />

ela nasce é do tempo livre e do jogo.<br />

(Alexandre Koyré)<br />

Este artigo 1 tem como principal objetivo<br />

apontar algumas <strong>da</strong>s características necessárias<br />

para a constituição de uma Pe<strong>da</strong>gogia para<br />

Século XXI, cujo fio condutor é, do nosso ponto<br />

vista, a criativi<strong>da</strong>de.<br />

Freud (final do século XIX), ao inaugurar a<br />

Psicanálise, foi o primeiro pensador a chamar a<br />

nossa atenção a respeito <strong>da</strong> importância <strong>da</strong> criação<br />

do poeta, do escritor, dentre outros artistas<br />

que sabem, por meio <strong>da</strong> técnica, expor as<br />

fantasias, os anseios, os desejos, os devaneios<br />

comuns a uma varie<strong>da</strong>de de homens e mulheres<br />

– que, por sua vez, não sabem, não podem<br />

ou não querem expressá-los – sem nos causar<br />

repulsa enquanto leitores ou ouvintes, pelo contrário,<br />

causando-nos admiração.<br />

O escritor, por meio <strong>da</strong> sua criativi<strong>da</strong>de, suaviza<br />

o caráter dos nossos pensamentos e devaneios<br />

egoístas por meio de alterações,<br />

disfarces, figuras de linguagem, estética e nos<br />

subordina ao texto que nos oferece, na forma<br />

de belo, as suas e as nossas fantasias e desejos<br />

secretos. Por meio <strong>da</strong> criação <strong>da</strong> obra de<br />

arte, neste caso, literária, temos a possibili<strong>da</strong>de<br />

de liberar nosso interior – constituído pelas<br />

nossas mais profun<strong>da</strong>s fontes psíquicas – por<br />

meio <strong>da</strong>s palavras do poeta, do romancista, do<br />

escritor. Ou seja, usufruímos o bom livro, <strong>da</strong><br />

poesia, por exemplo, pois estes são meios de<br />

obtenção do prazer e ain<strong>da</strong> porque por meio<br />

destes instrumentos existe a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

libertação <strong>da</strong>s tensões <strong>da</strong>s nossas mentes por<br />

meio <strong>da</strong> palavra do “outro” que, na ver<strong>da</strong>de, é<br />

também a nossa palavra.<br />

Tal situação torna-se ain<strong>da</strong> mais interessante,<br />

de acordo com Freud (1920, 1929) e outros<br />

estudiosos, já que aceitamos por meio <strong>da</strong>s obras<br />

de arte, com menos auto-acusações, vergonhas<br />

e culpas, a nossa própria reali<strong>da</strong>de interior.<br />

Neste sentido, há que se considerar que não<br />

é apenas a pessoa que tem domínio <strong>da</strong>s técnicas<br />

<strong>da</strong> escrita literária – a alfabetiza<strong>da</strong>, a letra<strong>da</strong>,<br />

a culta – que sente a necessi<strong>da</strong>de de<br />

expressar seus sonhos e devaneios. Tal necessi<strong>da</strong>de,<br />

chamamos a atenção dos leitores, é humana<br />

e é ela que possibilita a realização cultural<br />

<strong>da</strong> espécie e, em última instância, a manutenção<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Ao recorrermos às obras de Winnicott (2001,<br />

1994, 1990, 1988), sabemos que já no bebê a<br />

necessi<strong>da</strong>de de criar se manifesta com to<strong>da</strong> a<br />

sua força. E, por isto, o estudo de alguns conceitos<br />

deste psicanalista – “espaço de criação”<br />

ou “espaço potencial” ou “espaço transicional”,<br />

“objetos e fenômenos transicionais” – mostramse<br />

promissores para a compreensão <strong>da</strong>s relações<br />

educacionais, sobretudo, conforme<br />

apontaremos, nos dias de hoje.<br />

Assim, na tentativa de compreender a criativi<strong>da</strong>de<br />

no adulto, recorremos ao estudo <strong>da</strong><br />

manifestação criativa no bebê que, para diminuir<br />

a angústia gera<strong>da</strong> pela ausência materna,<br />

cria e, neste processo/ resultado, acalma-se.<br />

Vejamos, agora, mais atentamente, o que nos<br />

diz o referido psicanalista inglês.<br />

1 O trabalho de investigação apresentado neste artigo, realizado<br />

no âmbito do grupo de pesquisa, ensino e extensão<br />

“Acolhendo Alunos em Situação de Exclusão Social e Escolar:<br />

o papel <strong>da</strong> instituição escolar” conta com o apoio do<br />

CNPq e <strong>da</strong> FAPESP.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 43-53, jan./jun., 2006


Aspectos <strong>da</strong> teoria de D. Winnicott:<br />

o espaço de criação<br />

Para Donald Winnicott (2001, 1994, 1990,<br />

1988), “espaço de criação” é um conceito que<br />

pretende explicar a relação “mãe” e “bebê” e,<br />

mais amplamente, significa a possibili<strong>da</strong>de de<br />

compreender a relação que as pessoas estabelecem<br />

com o mundo – reali<strong>da</strong>de – exterior.<br />

Este autor nos alerta para o fato de que a<br />

“mãe”, para que permita o pleno desenvolvimento<br />

de seu filho, não pode ser cruel, mesmo<br />

que sob o disfarce <strong>da</strong> proteção que limita ou<br />

ain<strong>da</strong> sob pretextos educacionais e <strong>da</strong> civili<strong>da</strong>de,<br />

sob ameaças vela<strong>da</strong>s, que aniquilam a alma<br />

e têm preços emocionais muito altos. No outro<br />

extremo, a “mãe” também não pode ser figura<br />

ausente ou inexistente: aquela que nunca pode<br />

ou que nunca está, a que abandona ou ain<strong>da</strong><br />

aquela que é displicente, que deixa seus filhos<br />

ao sabor dos acontecimentos sem introduzi-los<br />

no mundo que os rodeia.<br />

Tendo em vista estas considerações, Winnicott<br />

define a “mãe suficientemente boa”, que<br />

seria um meio termo entre a “mãe que sempre<br />

sabe”, “que sempre está”, “que sempre pode e<br />

faz” e a “mãe que nunca está”, “que nunca<br />

pode” e “nunca faz”. Ou seja, seria uma mãe<br />

que cui<strong>da</strong>, que tem desvelo pelos seus filhos e<br />

que, ao mesmo tempo, permite-lhes ser independentes<br />

dela, se constituírem como pessoas<br />

diferentes do que ela é e, assim, matá-la simbolicamente.<br />

Em síntese, é a mãe que permite que<br />

seu filho não seja tudo aquilo que ela é à sua<br />

imagem e semelhança, e sim, possibilita-lhe ser<br />

uma pessoa diferente, com gostos diferentes,<br />

dona de si própria.<br />

Para o referido psicanalista inglês, esta relação<br />

entre mãe e filho é um instante, não tão<br />

breve, muito significativo para todo o desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> criança, pois a marcará por to<strong>da</strong> a<br />

sua vi<strong>da</strong>.<br />

Quando a criança é apenas um bebê, a primeira<br />

relação que ela estabelece com a sua mãe<br />

se constitui em torno <strong>da</strong> amamentação. Nas<br />

primeiras semanas deste ato, o bebê pensa que<br />

ele é o próprio seio <strong>da</strong> mãe, pois quando mama,<br />

a sua satisfação é total, é uterina, ou ain<strong>da</strong>, é de<br />

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Nilce <strong>da</strong> Silva<br />

completude e satisfação. Aos poucos, com o<br />

distanciamento <strong>da</strong> mãe, conseqüência <strong>da</strong>s outras<br />

deman<strong>da</strong>s <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, e todo o processo de<br />

desenvolvimento neurológico sofrido pelo bebê,<br />

ele começa a perceber que o seio materno não<br />

está sempre à sua disposição e que, portanto, o<br />

seio <strong>da</strong> mãe não é ele, bebê. Esta distância, que<br />

pouco a pouco se constrói entre mãe e bebê –<br />

ou ain<strong>da</strong>, o fim desta ilusão vivencia<strong>da</strong> pelo bebê<br />

de onipotência – origina determina<strong>da</strong>s condições<br />

que foram defini<strong>da</strong>s por Winnicott (2001,<br />

1994, 1990, 1988) pelo conceito de “espaço<br />

transicional” ou “espaço de criação”, ou ain<strong>da</strong>,<br />

“espaço potencial”.<br />

Na medi<strong>da</strong> em que o bebê percebe que ele<br />

não é a mãe e que, entre eles, existe um “espaço”<br />

– físico e temporal – ou ain<strong>da</strong> que a mãe é<br />

reali<strong>da</strong>de exterior a ele – o bebê precisa preencher<br />

esta distância que o separa <strong>da</strong> mãe por<br />

“algo” que diminua a sua angústia <strong>da</strong> sua desilusão<br />

e conseguir suportar o sofrimento proveniente<br />

<strong>da</strong> espera do seio materno. Para<br />

preencher este espaço, o bebê precisa “inventar”,<br />

colocar algum “substituto” <strong>da</strong> mãe enquanto<br />

a aguar<strong>da</strong>, ou seja, ele precisa criar para<br />

não sofrer. E assim, o bebê, enquanto a mãe<br />

não vem, contenta-se com uma mamadeira, distrai-se<br />

com uma chupeta, com um paninho ou<br />

mesmo com o seu dedo. Assim, ele joga com<br />

estes objetos culturais na tentativa de suportar<br />

o sofrimento <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de vivi<strong>da</strong>.<br />

Estes objetos que se encontram entre a espera<br />

do bebê pela mãe e a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> mãe –<br />

objetos que minimizam a angústia – foram chamados<br />

por Winnicott (2001, 1994, 1990, 1988)<br />

de “objetos transicionais”, e despertam, ao mesmo<br />

tempo em que acolhem, a criativi<strong>da</strong>de do<br />

bebê para a solução <strong>da</strong> angústia <strong>da</strong> separação.<br />

Estes fenômenos foram conceituados como “fenômenos<br />

transicionais”.<br />

Há que se entender que os “objetos transicionais”<br />

não pertencem totalmente à reali<strong>da</strong>de<br />

interior do bebê, porém nela influenciam diretamente;<br />

nem pertencem à reali<strong>da</strong>de exterior, ou<br />

seja, situam-se em uma área intermediária.<br />

Segundo Winnicott (2001, 1994, 1990, 1988),<br />

esta situação de ilusão/ desilusão – quando o<br />

bebê pensa que o seio <strong>da</strong> mãe é ele mesmo e,<br />

45


Século XXI: o jogo necessário para o aprendizado e para o mundo do trabalho<br />

logo em segui<strong>da</strong>, decepciona-se ao perceber que<br />

o seio <strong>da</strong> mãe não é ele, e por isso, ele busca<br />

suportar a reali<strong>da</strong>de por meio <strong>da</strong> criativi<strong>da</strong>de –<br />

repete-se na relação estabeleci<strong>da</strong> entre o ser<br />

humano e a disputa que trava consigo mesmo<br />

para definir o que é “reali<strong>da</strong>de interior” e o que<br />

é “reali<strong>da</strong>de exterior” ao longo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. E, sendo<br />

assim, para que este ser humano não sucumba,<br />

obviamente, faz-se mister criar.<br />

Neste sentido, percebe-se que o “objeto transicional”<br />

antecede a função simbólica que virá<br />

quando a criança já puder distinguir entre fantasia<br />

e objetivi<strong>da</strong>de. Enquanto brinca na transicionali<strong>da</strong>de,<br />

a criança repousa <strong>da</strong> árdua e<br />

incessante tarefa de ter que discriminar a reali<strong>da</strong>de<br />

interna <strong>da</strong> externa, isto porque, o “objeto<br />

transicional” “é oriundo do exterior, segundo<br />

nosso ponto de vista, mas não o é, segundo o<br />

ponto de vista do bebê. Tampouco provém de<br />

dentro; não é uma alucinação” (WINNICOTT,<br />

1988, p. 18).<br />

Dito de outro modo, o “objeto transicional”,<br />

fruto e berço <strong>da</strong> criativi<strong>da</strong>de, tem como função<br />

preencher o vazio produzido pela ausência do<br />

corpo materno. Ou seja, ele é constituído para<br />

evocar a união perdi<strong>da</strong> com a mãe e re-significar<br />

a ausência materna. Destacamos que, ao<br />

longo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de estudos de Winnicott, observa-se<br />

que, muito rapi<strong>da</strong>mente, o “objeto transicional”<br />

será mais importante do que o objeto<br />

originário. Isto é, com ele a criança poderá suportar<br />

a espera pelo reencontro sem se desesperar,<br />

e ain<strong>da</strong>, explorará os limites ao testar a<br />

durabili<strong>da</strong>de do mundo, ou ain<strong>da</strong>, nas palavras<br />

de Winnicott “(...) a criança fica com a ilusão<br />

de que o mundo pode ser criado e de que o que<br />

é criado é o mundo” (1994, p. 44).<br />

Do nosso ponto de vista, conforme assinalamos<br />

acima, a angústia vivencia<strong>da</strong> pela criança,<br />

desde o momento do nascimento, é também<br />

vivencia<strong>da</strong> pelo jovem e pelo adulto. Dito de<br />

outro modo, esta necessi<strong>da</strong>de de encontrar substitutos<br />

para o que realmente se deseja e o quê e<br />

quando, de modo incerto, se poderá ter, exige<br />

que nos mantenhamos nesta ilusão saudável,<br />

aspecto constituinte <strong>da</strong> essência humana.<br />

Sendo assim, na próxima parte deste artigo,<br />

trataremos, especificamente, <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de<br />

46<br />

viver “fenômenos transicionais” entendidos por<br />

Winnicott (2001, 1994, 1990, 1988) como o “jogar”,<br />

o “brincar”. E neste sentido os sujeitos de<br />

nosso interesse serão os adultos e a obrigatorie<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> permanência no mundo do trabalho<br />

para a própria sobrevivência.<br />

Apenas para adiantar o posicionamento que<br />

aqui defenderemos, procuraremos demonstrar<br />

que há a possibili<strong>da</strong>de de que as relações de<br />

trabalho sejam entendi<strong>da</strong>s na perspectiva do<br />

“jogo”, <strong>da</strong> existência de “objetos transicionais”<br />

e, por isso, podem tornam-se salutares, além de<br />

promoverem e acolherem a “criativi<strong>da</strong>de”.<br />

Vejamos, primeiramente, os significados que<br />

a palavra “criativi<strong>da</strong>de” pode ter e como ela<br />

auxilia na reflexão do conceito winnicottiano de<br />

“espaço potencial”, terreno cuja natureza é o<br />

jogo, de fronteiras indetermina<strong>da</strong>s, que compõe<br />

a nossa reali<strong>da</strong>de.<br />

Criativi<strong>da</strong>de e mundo do trabalho:<br />

algumas considerações<br />

Conforme falávamos, a zona psíquica que<br />

intermedeia a reali<strong>da</strong>de exterior e a interior é a<br />

matriz <strong>da</strong> experiência cultural, a qual Winnicott<br />

(2001, 1994, 1990, 1988) denomina “espaço<br />

potencial”. Segundo o referido autor, a atenção<br />

de diferentes estudiosos tem focalizado as reali<strong>da</strong>des<br />

psíquica, pessoal e interna do sujeito de<br />

modo parcial. Conseqüência desta lacuna é o<br />

fato de que a experiência cultural não encontrou<br />

seu ver<strong>da</strong>deiro lugar nas teorias utiliza<strong>da</strong>s<br />

pelos analistas em seus trabalhos. Justamente<br />

neste vazio, a obra de Winnicott floresce, pois<br />

ele se preocupa intensamente com o espaço <strong>da</strong><br />

produção <strong>da</strong> cultura para Winnicott ou ain<strong>da</strong> o<br />

“espaço <strong>da</strong> criativi<strong>da</strong>de”.<br />

Criativi<strong>da</strong>de, neste contexto, é um conceito<br />

de difícil definição, pois, por mais que se tente<br />

delimitá-lo, ele ain<strong>da</strong> parece incompleto em contato<br />

com as múltiplas dimensões humanas.<br />

Ao longo de sua obra, Ostrower (1990) apresenta<br />

a criativi<strong>da</strong>de como geração <strong>da</strong> cultura e<br />

corrobora, do nosso ponto de vista, com a proposta<br />

winnicottiana. Para ela, a composição de<br />

novos arranjos de idéias já conhecidos, que de-<br />

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pois de passar pela elaboração mental de determina<strong>da</strong><br />

pessoa, formam algo novo, longe <strong>da</strong>s<br />

idéias considera<strong>da</strong>s tradicionais, convencionais<br />

ou conheci<strong>da</strong>s, pertence ao conceito de criativi<strong>da</strong>de.<br />

Dizemos, então, que criativi<strong>da</strong>de pode<br />

ser um trabalho valioso e incessante do cérebro<br />

que busca novos padrões que transformam<br />

objetos culturais comuns em objetos valiosos,<br />

propiciando o alívio para a tensão enfrenta<strong>da</strong><br />

pelo ser humano no confronto com a vi<strong>da</strong>. Com<br />

isto, não queremos dizer que o processo criativo<br />

é apenas um bálsamo para a alma humana,<br />

pelo contrário, para que, por exemplo, um<br />

adulto consiga produzir algo criativo é necessário<br />

o enfrentamento de processo doloroso.<br />

Esta pessoa precisa, antes de tudo, libertar-se<br />

<strong>da</strong>s castrações e restrições iniciais sofri<strong>da</strong>s no<br />

relacionamento com seus pais, pois, quer queiramos<br />

ou não, a relação inicial entre mãe e<br />

bebê, conforme procuramos descrever, pode<br />

constituir-se para to<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> com um modelo<br />

que interrompe ou não o fluxo criativo. E assim,<br />

nas palavras de Winnicott (2001, 1994,<br />

1990, 1988), caso um adulto não tenha tido<br />

uma “mãe suficientemente boa”, há a tendência<br />

de que o mesmo padrão estabelecido de<br />

relação com a reali<strong>da</strong>de continue o mesmo vivenciado<br />

na infância.<br />

Quando adultos, podemos manter boa parte<br />

dessas restrições construí<strong>da</strong>s enquanto éramos<br />

bebês. Poderá, portanto, ocorrer um embotamento<br />

ou ain<strong>da</strong> um acomo<strong>da</strong>mento de atitudes<br />

frente à reali<strong>da</strong>de que se constitui, fazendo com<br />

que a criativi<strong>da</strong>de não encontre espaço para<br />

manifestar-se e que a produção cultural <strong>da</strong> pessoa<br />

reduza-se ao quase na<strong>da</strong>.<br />

Destacamos, ain<strong>da</strong> que de passagem, que,<br />

até certo ponto, esta postura “não criativa” não<br />

representa perigo frente a outras pessoas, pois<br />

esta estabili<strong>da</strong>de significa segurança para os<br />

demais e a manutenção <strong>da</strong> ordem social vigente,<br />

e, portanto, tanto no ambiente de trabalho<br />

como no ambiente escolar a passivi<strong>da</strong>de e a<br />

submissão são atitudes bem-vin<strong>da</strong>s.<br />

Apesar disto, a criativi<strong>da</strong>de pode ser desenvolvi<strong>da</strong><br />

e manifestar-se em ca<strong>da</strong> pessoa desde<br />

que encontre uma pequena fen<strong>da</strong>, mesmo num<br />

ambiente opressor. E assim, apesar <strong>da</strong>s dificul-<br />

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Nilce <strong>da</strong> Silva<br />

<strong>da</strong>des e obstáculos, apostamos que o mundo do<br />

trabalho que se configura hoje, na era do conhecimento<br />

e <strong>da</strong> informação, tende a constituir-se<br />

como local de criação. Para sustentarmos esta<br />

afirmação, recorremos à obra do sociólogo italiano,<br />

Domenico De Masi (2000).<br />

É de conhecimento generalizado, a insatisfação<br />

diante do modelo centrado na idolatria do<br />

trabalho e <strong>da</strong> competitivi<strong>da</strong>de resultado <strong>da</strong> Revolução<br />

Industrial do século XVIII e que se perpetua<br />

em muitas partes do planeta. Porém, há<br />

que se compreender que este modelo, sobretudo<br />

devido às novas tecnologias inseri<strong>da</strong>s no cotidiano<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, está, aos poucos, mostrando-se<br />

ineficaz e sendo substituído por novas formas de<br />

organização do trabalho; fato que implica diretamente<br />

na psicologia do desenvolvimento do adulto,<br />

já que ele precisa relacionar-se do ponto de<br />

vista <strong>da</strong> transicionali<strong>da</strong>de dos objetos e <strong>da</strong>s relações<br />

pessoais de um jeito ou de outro.<br />

A proposta apresenta<strong>da</strong> pelo sociólogo Domenico<br />

De Masi, parece-nos muito interessante:<br />

é recomendável libertar-se <strong>da</strong> idéia<br />

tradicional de trabalho como dever para que<br />

este se misture com o tempo livre, estudo e<br />

jogo, constituindo o conceito de “ócio criativo”.<br />

Vejamos mais atentamente as idéias deste<br />

nosso contemporâneo.<br />

Para este autor, hoje, o mercado de trabalho<br />

tende a valorizar as ativi<strong>da</strong>des criativas, mesmo<br />

que, nos dias atuais, exista a tendência histórica<br />

para que se associe à idéia de ócio um<br />

pensamento negativo. Assim, quando a civilização<br />

cristã refere-se à pessoa ociosa, indica<br />

justamente aquela que nega o preceito bíblico<br />

de que ganharemos o pão com o suor do rosto.<br />

Conseqüência desta idéia, o ócio encontrase<br />

vinculado à preguiça, um dos sete pecados<br />

capitais; à vadiagem; ao não querer fazer na<strong>da</strong><br />

e à formação de indivíduos perigosos para a<br />

socie<strong>da</strong>de, pois, se na<strong>da</strong> produzem, irão se aproveitar<br />

<strong>da</strong>queles que trabalham.<br />

Para os católicos, o trabalho é uma sentença<br />

condenatória, como reafirmará a Rerum<br />

Novarum, em 1891: “As massas católicas impregna<strong>da</strong>s<br />

<strong>da</strong> Rerum Novarum que tinham ouvido<br />

falar em to<strong>da</strong>s as igrejas, estavam<br />

convenci<strong>da</strong>s de que tinham o dever de sofrer<br />

47


Século XXI: o jogo necessário para o aprendizado e para o mundo do trabalho<br />

em silêncio e trabalhar” (DE MASI, 2000, p.<br />

51 e 52). “A encíclica deixa claro, desde o começo,<br />

que a proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> é direito natural<br />

– logo divino. E o faz com o seguinte<br />

raciocínio abstruso: como os animais têm o direito<br />

de usar as coisas, mas não de possuí-las, o<br />

homem que é superior aos animais, deve ter<br />

um direito a mais. Por conseguinte, o direito à<br />

proprie<strong>da</strong>de” (DE MASI, 2000, p. 53). E ain<strong>da</strong>:<br />

48<br />

...a Igreja compreende que a indústria é sua inimiga:<br />

porque racionaliza o mundo, substitui a<br />

magia pela ciência e raciocínio, torna vã a fé na<br />

vi<strong>da</strong> depois <strong>da</strong> morte com a confiança no progresso.<br />

E o papa adverte para o perigo de que as<br />

classes pobres preten<strong>da</strong>m enriquecer. Quanto<br />

menor for o número de pobres, menor será o<br />

número de fiéis com o qual a Igreja poderá contar.<br />

(DE MASI, 2000, p. 55).<br />

A seguinte passagem bíblica, destaca<strong>da</strong> por<br />

De Masi na obra a que nos referimos, é muito<br />

significativa também: “Depois do pecado, o homem<br />

deveria trabalhar para expiar o pecado: a<br />

terra será maldita por sua causa; é pelo trabalho<br />

que tirarás com que alimentar-te todos os<br />

dias <strong>da</strong> tua vi<strong>da</strong>” (DE MASI, 2000, p. 54).<br />

Ou seja, a Igreja Católica tem pregado, durante<br />

séculos, que o dever do rico é <strong>da</strong>r a ca<strong>da</strong><br />

um o salário que este merece e ser caridoso.<br />

Com a difusão e defesa destas normas, induz o<br />

ser humano à passivi<strong>da</strong>de e não promove a criativi<strong>da</strong>de,<br />

o jogo e, finalmente, a cultura.<br />

Mesmo não sendo o foco deste artigo, fazse<br />

interessante notar que a ética protestante,<br />

sobretudo a calvinista, condiciona o trabalho à<br />

salvação e, assim, é muito mais rígi<strong>da</strong> do que a<br />

ética católica.<br />

Na prática isto significa que Deus aju<strong>da</strong> quem se<br />

aju<strong>da</strong>. Assim, o calvinista, como às vezes se percebe,<br />

criava sua própria salvação ou, como seria<br />

mais correto, a convicção disto. Esta criação,<br />

to<strong>da</strong>via, não podia como no Catolicismo constituir-se<br />

no acúmulo gradual de boas obras isola<strong>da</strong>s<br />

a crédito de alguém, mas, muito mais, em<br />

sistemático autocontrole que a qualquer momento<br />

se via ante a inexorável alternativa: escolhido<br />

ou condenado” (WEBER, 1987, p.80).<br />

Entretanto, hoje conforme anunciamos acima,<br />

a possibili<strong>da</strong>de real do tele-trabalho – que<br />

pode ser feito em to<strong>da</strong> a parte, inclusive em<br />

casa – fará com que os trabalhadores, homens<br />

e mulheres, possam ter uma maior autonomia<br />

no que diz respeito ao uso do seu tempo.<br />

Além desta maior autonomia, na antiga socie<strong>da</strong>de<br />

industrial, a formação se <strong>da</strong>va de uma<br />

vez só na vi<strong>da</strong> e esta servia até a aposentadoria<br />

do trabalhador. Hoje, porém, século XXI, a formação<br />

é contínua, sendo que um dos fatores<br />

que influencia nesta necessi<strong>da</strong>de é o aumento<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> média <strong>da</strong> população.<br />

Segundo De Masi (2000), na segun<strong>da</strong> metade<br />

do século XIX, a vi<strong>da</strong> média dos homens<br />

era de trinta e quatro anos, e, <strong>da</strong>s mulheres,<br />

trinta e cinco anos: menos <strong>da</strong> metade <strong>da</strong> atual<br />

expectativa de vi<strong>da</strong> do brasileiro que, diga-se<br />

passagem, não é “bom” exemplo neste sentido.<br />

Temos que, hoje, um grupo privilegiado de<br />

pessoas pode passar dos setenta anos de vi<strong>da</strong><br />

em alguns locais do planeta. Nestas “instituições<br />

escolares”, estas pessoas passarão mais<br />

<strong>da</strong> metade <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> na escola e no processo<br />

de trabalho. Conseqüência outra destes “novos<br />

tempos” é o novo significado atribuído à velhice<br />

que, segundo De Masi (2000) passa a ser<br />

considera<strong>da</strong> como o último período <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de<br />

uma pessoa, quando pela fatali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> doença<br />

ela perdeu a vitali<strong>da</strong>de que possuía e, portanto,<br />

tal situação independe <strong>da</strong> faixa etária.<br />

Desta maneira, em total consonância com a<br />

perspectiva de De Masi (2000), defendemos<br />

que se trabalhar significa também estu<strong>da</strong>r, e se<br />

esta junção contiver a satisfação deriva<strong>da</strong> do<br />

ato de aprender, o ócio criativo é o modo de<br />

vi<strong>da</strong> mais saudável para estes nossos tempos.<br />

Afirmamos que os procedimentos burocráticos<br />

que impedem a realização de ativi<strong>da</strong>des<br />

criativas precisam ser enfraquecidos <strong>da</strong>s instituições<br />

escolares e de trabalho, mesmo porque<br />

aqueles que a elas se encontram presos, no<br />

mundo atual, cuja ativi<strong>da</strong>de crescente é a prestação<br />

de serviços, não obterão os melhores resultados.<br />

Vejam a seguinte passagem do sociólogo<br />

italiano:<br />

Em primeiro lugar, a passagem <strong>da</strong> produção de<br />

bens à produção de serviços. Em segundo, a<br />

crescente importância <strong>da</strong> classe de profissionais<br />

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liberais e técnicos em relação à classe operária.<br />

Em terceiro, o papel central do saber teórico... Em<br />

quarto lugar, o problema relativo à gestão do<br />

desenvolvimento técnico: a tecnologia tornou-se<br />

tão poderosa e importante, que não pode mais ser<br />

administra<strong>da</strong> por indivíduos isolados e, em alguns<br />

casos-limite, nem mesmo por um só Estado. Em<br />

quinto, a criação de uma nova tecnologia<br />

intelectual, ou seja, o advento <strong>da</strong>s máquinas<br />

inteligentes, que são capazes de substituir o<br />

homem não só nas funções que requerem esforço<br />

físico, mas também nas que exigem esforço<br />

intelectual. (DE MASI, 2000, p. 36).<br />

Dito de outro modo, a socie<strong>da</strong>de pós-industrial<br />

pode ser defini<strong>da</strong> como uma socie<strong>da</strong>de criativa;<br />

já que, para as tarefas rotineiras, as máquinas<br />

encontram-se prontas para realizá-las.<br />

Ain<strong>da</strong> à luz <strong>da</strong>s idéias deste estudioso <strong>da</strong><br />

pós-moderni<strong>da</strong>de, a cega devoção zelosa de<br />

muitos trabalhadores faz com que eles permaneçam<br />

nas instituições. Porém, na medi<strong>da</strong> em<br />

que suas forças criativas se exaurem neste<br />

ambiente, dedicam-se a inventar regras e procedimentos<br />

inúteis para fazer com que seus<br />

colegas tenham “dores de cabeça” e só os prejudicam.<br />

Ou seja, existem intelectuais que passam<br />

mais de 20 anos na escola e depois ain<strong>da</strong><br />

se vêem obrigados a realizar uma função que<br />

lhe exigiria no máximo oito anos de estudo.<br />

Com relação ain<strong>da</strong> ao trabalho intelectual,<br />

De Masi (2000) chama nossa atenção para um<br />

outro tipo de pseudo-intelectuais: aqueles que<br />

pagam pouco ou não pagam pelas idéias dos<br />

outros, ou ain<strong>da</strong> as roubam.<br />

O referido sociólogo defende também a eliminação<br />

do que ele classifica como “trabalhos<br />

artificiais”, como, por exemplo, o trabalho de<br />

ascensorista, pois esta ativi<strong>da</strong>de dispensa uma<br />

pessoa especial para ser executa<strong>da</strong>, além de<br />

que, a tarefa em si mata a alma deste “pseudo”<br />

profissional.<br />

Por todos estes motivos, defendemos a proposta<br />

de De Masi: que o trabalho, ao unir estudo<br />

e jogo, promova, sobremaneira, situações em<br />

que a transicionali<strong>da</strong>de e a criativi<strong>da</strong>de sejam<br />

incentiva<strong>da</strong>s. Há que se valorizar a digni<strong>da</strong>de<br />

humana e desprezar a subordinação.<br />

O cérebro precisa de ócio para produzir idéias.<br />

Ele é alimentado pela transdisciplinari<strong>da</strong>de<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 43-53, jan./jun., 2006<br />

Nilce <strong>da</strong> Silva<br />

e por estímulos ideativos, e por este e outros<br />

motivos aqui apresentados, a luta que se trava<br />

hoje no mundo do trabalho é a luta entre os burocratas<br />

e os criativos, que segundo De Masi<br />

(2000), será ganha pelos últimos, afirmação que<br />

encontra total apoio na teoria de Winnicott (2001,<br />

1994, 1990, 1988), pois os criativos conseguirão,<br />

já que se encontram iludidos, ter quali<strong>da</strong>de<br />

de vi<strong>da</strong> melhor, desempenho de alto nível e concluirão<br />

que “a vi<strong>da</strong> vale à pena de ser vivi<strong>da</strong>”.<br />

Nesta discussão, não há como deixar de recorrer<br />

a J. Huizinga (1971), historiador holandês<br />

do final do século XIX, início do XX, mais<br />

especificamente a sua obra Homo Ludens, pois<br />

é no momento do “jogo” que o ser humano é<br />

capaz de expressar to<strong>da</strong> a sua criativi<strong>da</strong>de. Sua<br />

obra corrobora com nossa posição francamente<br />

winnicotiana de que:<br />

... desde a mais tenra infância, o encanto do jogo<br />

é reforçado por se fazer dele um segredo. Isto é,<br />

para nós, e não para os outros. O que os outros<br />

fazem, ‘lá fora’, é coisa de momento e não nos<br />

importa. Dentro do círculo do jogo, as leis e<br />

costumes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> quotidiana perdem vali<strong>da</strong>de.<br />

Somos diferentes e fazemos coisas diferentes.<br />

(HUIZINGA, 1971, p. 15).<br />

Para o referido historiador, a vi<strong>da</strong> deve ser<br />

vivi<strong>da</strong> como um jogo; explica<strong>da</strong> nesta metáfora:<br />

fazendo sacrifícios, cantando e <strong>da</strong>nçando. Só<br />

assim, o ser humano, em alusão à parte <strong>da</strong> mitologia<br />

grega, poderá conquistar o favor dos deuses<br />

e defender-se de seus inimigos triunfando no<br />

combate, ou ain<strong>da</strong>, quando se refere a Aristóteles<br />

quando classificou os vários aspectos do<br />

Homem, dividindo-os em homo sapiens (o que<br />

conhece e aprende), homo faber (o que faz,<br />

produz) e homo ludens (o que brinca, o que cria).<br />

Continuando este raciocínio, o referido autor<br />

holandês, defende a idéia de que é no jogo e<br />

pelo jogo que a civilização se desenvolve e que<br />

este sendo mais antigo do que a cultura exerce<br />

fascínio, pois ultrapassa os limites <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />

física ou biológica.<br />

Este encantamento produzido pelo jogo se<br />

deve ao fato de que, em comum acordo dentre<br />

as teorias acerca do fenômeno, é “algo” que se<br />

acha ligado ao jogo, e não o jogo, propriamente<br />

dito, é o objeto que proporciona prazer intenso.<br />

49


Século XXI: o jogo necessário para o aprendizado e para o mundo do trabalho<br />

Faz parte ain<strong>da</strong> do Homo Ludens em ação,<br />

a tensão e a incerteza, cerca<strong>da</strong> pela busca de<br />

virtudes, honra, nobreza e glória.<br />

Para Huizinga (1971), no mito e no culto se<br />

originam as grandes forças instintivas <strong>da</strong> civilização<br />

humana:<br />

50<br />

... o direito e a ordem, o comércio e o lucro, a indústria<br />

e a arte, a poesia, a sabedoria e a ciência. To<strong>da</strong>s elas<br />

têm suas raízes no solo primitivo do jogo (...) O<br />

homem primitivo procura, através do mito, <strong>da</strong>r conta<br />

do mundo dos fenômenos atribuindo a este um<br />

fun<strong>da</strong>mento divino. Em to<strong>da</strong>s as caprichosas invenções<br />

<strong>da</strong> mitologia, há um espírito fantasista que joga no<br />

extremo limite entre a brincadeira e a serie<strong>da</strong>de.<br />

(HUIZINGA, 1971, p. 7).<br />

Um dos exemplos mais fantásticos do jogo,<br />

sobretudo para os adultos, diz respeito ao “uso<br />

<strong>da</strong>s palavras”, sejam estas nas batalhas verbais,<br />

no jogo <strong>da</strong>s metáforas; na <strong>da</strong>nça e na<br />

música e, ain<strong>da</strong>, na poesia.<br />

Não menos importante ain<strong>da</strong> há estreita relação<br />

entre jogo e conhecimento, e que esta<br />

prática humana, em sua função, apresenta dois<br />

aspectos: a luta por algo ou a representação de<br />

algo. Nas palavras do autor, “o atrativo que o<br />

jogo exerce sobre o jogador reside exatamente<br />

nesse risco. Usufruímos com isso de uma liber<strong>da</strong>de<br />

de decisão que, ao mesmo tempo, está<br />

correndo um risco e está sendo inapelavelmente<br />

restringi<strong>da</strong>” (HUIZINGA, 1971, p. 149).<br />

Em suma, “o jogo possui uma essência própria”,<br />

independente <strong>da</strong> consciência <strong>da</strong>queles que<br />

jogam. O horizonte temático não pode ser limitado,<br />

nem dominado apenas pela subjetivi<strong>da</strong>de.<br />

O que é possibilitado ao jogador é a decisão<br />

sobre qual jogo quer ou não quer jogar. Segundo<br />

Huizinga, “trata-se de uma reali<strong>da</strong>de que ultrapassa<br />

a esfera <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana”. Portanto,<br />

seu fun<strong>da</strong>mento não reside na subjetivi<strong>da</strong>de, pois,<br />

se assim fosse, limitar-se-ia à humani<strong>da</strong>de”<br />

(1971, p. 5 e 6).<br />

Para os seres humanos e, no caso especificamente<br />

deste artigo, o “adulto”, a ânsia de ser<br />

o primeiro no jogo escolhido assume tantas formas<br />

de expressão quantas as oportuni<strong>da</strong>des que<br />

a socie<strong>da</strong>de oferece para tal.<br />

Neste ponto, retomamos uma <strong>da</strong>s questões<br />

assinala<strong>da</strong>s na obra em questão: Até que ponto<br />

será possível verificar a presença do elemento<br />

lúdico em épocas culturalmente mais desenvolvi<strong>da</strong>s<br />

e contemporâneas? De que maneira, o<br />

espírito lúdico domina as ativi<strong>da</strong>des do homem?<br />

Defendemos, nesta linha de argumentação,<br />

ao relacionarmos Winnicott (2001, 1994, 1990,<br />

1988), De Masi (2000) e Huizinga (1971), que<br />

o conhecimento escolar, mais especificamente<br />

na educação de jovens e adultos – nos seus<br />

diferentes níveis e mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des – pode se tornar<br />

um jogo muito atraente de ser jogado, desde<br />

que, do nosso ponto de vista, ele seja ligado<br />

ao trabalho. E que o trabalho, tarefa em princípio<br />

dos adultos, é um jogo também que pode<br />

ser criativo, desde que haja o ócio necessário<br />

para tanto.<br />

Vale a pena ressaltar a seguinte passagem<br />

<strong>da</strong> obra de J. Huizinga:<br />

Sempre que nos sentirmos presos de vertigem,<br />

perante a secular interrogação sobre a diferença<br />

entre o que é sério e o que é jogo, mais uma vez<br />

encontraremos no domínio <strong>da</strong> ética o ponto de<br />

apoio que a lógica é incapaz de oferecer-nos.<br />

Conforme dissemos desde o início, o jogo está<br />

fora desse domínio <strong>da</strong> moral, não é em si mesmo<br />

nem bom nem mau. Mas sempre que tivermos de<br />

decidir se qualquer ação a que somos levados<br />

por nossa vontade é um dever que nos é exigido<br />

ou é lícito como jogo, nossa consciência moral<br />

prontamente nos <strong>da</strong>rá a resposta. Sempre que<br />

nossa decisão de agir depende <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de ou<br />

<strong>da</strong> justiça, <strong>da</strong> compaixão ou <strong>da</strong> clemência, o<br />

problema deixa de ter sentido. Basta uma gota<br />

de pie<strong>da</strong>de para colocar nossos atos acima <strong>da</strong>s<br />

distinções intelectuais. Em to<strong>da</strong> consciência moral<br />

basea<strong>da</strong> no reconhecimento <strong>da</strong> justiça e <strong>da</strong> graça,<br />

o dilema do jogo e <strong>da</strong> serie<strong>da</strong>de, até aqui<br />

insolúvel, deixará de poder ser formulado. (1971,<br />

p. 236).<br />

Feitas estas considerações, gostaríamos de<br />

delinear uma proposta possível para a Pe<strong>da</strong>gogia<br />

do Século XXI.<br />

Proposta para a Pe<strong>da</strong>gogia do século<br />

XXI<br />

Conforme as características aponta<strong>da</strong>s anteriormente,<br />

a Pe<strong>da</strong>gogia do Século XXI está<br />

se constituindo por uma série de tarefas, rela-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 43-53, jan./jun., 2006


ções, modos de ensino, em que a criativi<strong>da</strong>de<br />

será a palavra central: o eixo gerador. A área<br />

<strong>da</strong> emoção humana ganhará, portanto, o seu<br />

máximo valor nos locais em que a prática do<br />

ensino se desenvolver.<br />

Sendo assim, professores, necessariamente,<br />

precisarão ser profissionais que tenham maior<br />

tempo livre para que eles mesmos possam relacionar-se<br />

com a docência de modo a reunir<br />

estudo, trabalho e criativi<strong>da</strong>de. Dito de outro<br />

modo, os professores precisarão do ócio criativo<br />

que implica em menos tempo encarcerados<br />

em instituições de ensino e mais tempo livre,<br />

uma vez que, todos concor<strong>da</strong>mos, no trabalho<br />

intelectual a inspiração é TUDO.<br />

Neste sentido, os alunos saberão que podem<br />

contar com seus professores de uma maneira<br />

não presencial, porém, totalmente comprometidos<br />

com eles.<br />

Frente a esta exposição e aos <strong>da</strong>dos que<br />

coletamos, consideramos a urgência, para que<br />

se promova o aprendizado de um modo geral,<br />

uma Pe<strong>da</strong>gogia capaz de preparar os indivíduos<br />

para o sucesso, para a superação de obstáculos,<br />

para que não sejamos pessoas vivas sem<br />

ilusões, incapazes de criar e anestesia<strong>da</strong>s. Esta<br />

construção, do aprendizado do sucesso, será,<br />

como sabemos, um processo doloroso, sobretudo<br />

porque os dias de hoje são sombrios e a<br />

ironia entre colegas é traço social internalizado.<br />

Porém, enfatizamos, se quisermos nos manter<br />

alfabetizadores vivos, precisamos criar e<br />

superar estes desafios.<br />

Uma <strong>da</strong>s sugestões que fazemos para contribuir<br />

com este problema pessoal e social ao<br />

mesmo tempo, é a implantação de “espaços de<br />

criação” não só para os alunos em situação de<br />

aprendizado <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> escrita <strong>da</strong> Língua<br />

Portuguesa, mas também, para os professores<br />

(as) alfabetizadores (as) para que estes sejam<br />

ouvi<strong>da</strong>s, e assim, ao ouvirem a si próprios, tornar-se-ão<br />

capazes de encontrar caminhos para<br />

sua formação, ou ain<strong>da</strong>, para se iludirem, no<br />

sentido winnicottiano do termo, e alçarem seus<br />

próprios vôos por meio de atos criativos.<br />

Nesta direção, para que a escola venha a<br />

servir para o mundo do trabalho que hoje se<br />

configura, tendo em vista a socie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> infor-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 43-53, jan./jun., 2006<br />

Nilce <strong>da</strong> Silva<br />

mação com a sua veloci<strong>da</strong>de intrínseca, defendemos<br />

que a Pe<strong>da</strong>gogia do Século XXI promova<br />

o jogo no sentido de promoção <strong>da</strong> cultura, <strong>da</strong><br />

mesma forma que a empresa – que desejar<br />

sobreviver neste mercado globalizado – deverá<br />

fazer.<br />

A Pe<strong>da</strong>gogia do Século XXI precisa levar<br />

em consideração as experiências ilusórias de<br />

todos os atores sociais e promover o jogo, não<br />

no sentido de devaneio, mas de possibili<strong>da</strong>de de<br />

ilusão para a criação do mundo adulto. Ou ain<strong>da</strong>,<br />

esta nova Pe<strong>da</strong>gogia sacralizará o “espaço<br />

de criação” e a experiência de vi<strong>da</strong> criativa,<br />

aprimorando os conjuntos simbólicos inventados<br />

pelas humani<strong>da</strong>des para permitir novas formas<br />

de expressão como to<strong>da</strong> a ludici<strong>da</strong>de<br />

permiti<strong>da</strong> para a vi<strong>da</strong> humana. Assim, construiremos<br />

um mundo em que a Ética terá maior<br />

importância do que regras burocraticamente<br />

defini<strong>da</strong>s.<br />

Defendemos que, mais do que nunca, a atitude<br />

do ócio deve ser aprendi<strong>da</strong>, preserva<strong>da</strong> e<br />

cultiva<strong>da</strong>, mesmo porque, conforme os trabalhos<br />

de Winnicott, o jogo criativo é decorrência<br />

do repouso, estado de indeterminação, não orientado<br />

a nenhum fim ou objetivo específico.<br />

Assim, este “estar à-toa” precisa ser defendido<br />

para e pelos educadores deste novo século,<br />

para e pelos seus alunos.<br />

Ain<strong>da</strong> que de passagem, gostaríamos de<br />

apresentar aqui, como exemplo, um trabalho que<br />

temos desenvolvido em sala de aula de graduação<br />

de Pe<strong>da</strong>gogia na Facul<strong>da</strong>de de <strong>Educação</strong><br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo, que denominamos<br />

“ativi<strong>da</strong>de livre”. Três dias do semestre<br />

letivo, burocraticamente definidos como aulas<br />

práticas, têm sido dedicados ao desenvolvimento<br />

de todo e qualquer tipo de reflexão que o aluno<br />

possa fazer no sentido de relacionar algo <strong>da</strong> sua<br />

vi<strong>da</strong> aos textos estu<strong>da</strong>dos em sala de aula. O<br />

aluno deixa de ir à Facul<strong>da</strong>de neste dia e tem<br />

como compromisso produzir um texto em que<br />

faz uso do conteúdo estu<strong>da</strong>do em sala de aula<br />

para “iluminar” qualquer experiência de sua vi<strong>da</strong><br />

social (i<strong>da</strong> ao cinema, ao teatro, museus, dentre<br />

outras) ou mesmo <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> interior (lembranças,<br />

recor<strong>da</strong>ções, episódios vividos, por exemplo).<br />

Constatamos que, durante três anos, as<br />

51


Século XXI: o jogo necessário para o aprendizado e para o mundo do trabalho<br />

ativi<strong>da</strong>des escritas pelos alunos referentes a<br />

estes momentos são as melhores ativi<strong>da</strong>des produzi<strong>da</strong>s<br />

durante o curso. Acompanhamos, portanto,<br />

o re-visitar de muitos alunos de Pe<strong>da</strong>gogia<br />

às suas infâncias quando, por exemplo, relêem<br />

trabalhos produzidos no início <strong>da</strong>s suas vi<strong>da</strong>s<br />

escolares; observamos como os mesmo recorrem<br />

às suas lembranças enquanto alunos e refletem<br />

sobre seu papel como mães e ou filhas,<br />

dentre outras incursões mentais, produzindo<br />

material textual, em verso, em prosa ou dissertativo,<br />

esteticamente belos e teoricamente embasados<br />

nas leituras feitas durante o curso.<br />

É, portanto, nesta aparente ociosi<strong>da</strong>de que,<br />

Oxalá, conseguiremos acompanhar a socie<strong>da</strong>de<br />

do conhecimento e dela fazer parte como<br />

atores e construtores; não apenas, como consumidores.<br />

Ou ain<strong>da</strong>, nas palavras de Paulo<br />

Freire:<br />

52<br />

Seres programados para aprender e que necessitam<br />

do amanhã como o peixe <strong>da</strong> água, mulheres<br />

e homens se tornam seres roubados se<br />

se-lhes nega a condição de partícipes <strong>da</strong> produção<br />

do amanhã. Todo amanhã, porém, sobre que<br />

se pensa e para cuja realização se luta implica<br />

necessariamente o sonho e a utopia. (...) Não há<br />

amanhã sem projeto, sem sonho, sem utopia, sem<br />

esperança, sem o trabalho de criação e desenvolvimento<br />

de possibili<strong>da</strong>des que viabilizem a<br />

sua concretização. É neste sentido que tenho<br />

dito em diferentes ocasiões que somos esperançosas<br />

não por teimosia, mas por imperativo existencial.<br />

É aí também que radica o ímpeto com que<br />

luto contra todo fatalismo. Não faço ouvidos de<br />

REFERÊNCIAS<br />

mercador ao discurso fatalista de educadores que<br />

em face dos obstáculos atuais ligados à globalização<br />

<strong>da</strong> economia reduzem a educação à pura<br />

técnica e proclamam a morte dos sonhos, <strong>da</strong> utopia.<br />

Se já não há classes sociais, portanto seus<br />

conflitos, se já não há ideologias, direita, esquer<strong>da</strong>,<br />

se o desenvolvimento não tem na<strong>da</strong> que ver<br />

com a política, mas com a ética, a do mercado,<br />

malva<strong>da</strong> e mesquinha, se a globalização <strong>da</strong> economia<br />

encurtou o mundo, se o mundo ficou mais<br />

ou menos igual, cabe à educação o puro treino<br />

ou adestramento dos educandos. Recuso esse<br />

pragmatismo reacionário tanto quanto o discurso<br />

acomo<strong>da</strong>do que fala dos famintos brasileiros<br />

ou dos desempregados do mundo como uma<br />

fatali<strong>da</strong>de do fim do século. O meu discurso em<br />

favor do sonho, <strong>da</strong> utopia, <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> democracia<br />

é o discurso de quem recusa a acomo<strong>da</strong>ção<br />

e não deixa morrer em si o gosto de ser<br />

gente, que o fatalismo deteriora. (FREIRE, 2001,<br />

p. 85 e 86).<br />

Finalmente, ain<strong>da</strong> que de modo modesto, nos<br />

“espaços de criação” instalados e coordenados pelo<br />

Grupo Acolhendo na ci<strong>da</strong>de de São Paulo (consultar<br />

www.projetoacolhendo.ubbihp.com.br), professores<br />

e seus alunos podem conhecerem-se<br />

a si mesmos e, no caso específico de situações<br />

de stress, poderão perceber as modificações<br />

que podem promover para si próprios para que<br />

encontrem e criem instrumentos para minimizar<br />

o sofrimento <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Em suma, temos procurado<br />

oportunizar o jogo entre estes<br />

profissionais e seus alunos no sentido que Einstein<br />

já nos alertou: Brincar é a mais eleva<strong>da</strong><br />

forma de pesquisa.<br />

DE MASI, Domenico. O ócio criativo: entrevista a Maria Serena Palieri. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.<br />

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Edição Stan<strong>da</strong>rd Brasileira <strong>da</strong>s Obras Completas de Sigmund<br />

Freud, XXI, 1929.<br />

_____. Além do princípio do prazer. Edição Stan<strong>da</strong>rd Brasileira <strong>da</strong>s Obras Completas de Sigmund Freud,<br />

XVIII, 1920.<br />

FREIRE, Paulo. Pe<strong>da</strong>gogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Ed. UNESP, 2001.<br />

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento <strong>da</strong> cultura. São Paulo: Perspectiva, 1971.<br />

OSTROWER, F. Acaso e criação artística. São Paulo: Campus, 1990.<br />

WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1987.<br />

WINNICOTT, D. Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes, 2002.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 43-53, jan./jun., 2006


_____. A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes, 2001.<br />

_____. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.<br />

_____. A natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990.<br />

_____. Textos selecionados: <strong>da</strong> pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 43-53, jan./jun., 2006<br />

Nilce <strong>da</strong> Silva<br />

Recebido em 06.05.05<br />

Aprovado em 20.04.06<br />

53


RESUMO<br />

SE DER A GENTE BRINCA:<br />

crenças <strong>da</strong>s professoras sobre<br />

ludici<strong>da</strong>de e ativi<strong>da</strong>des lúdicas<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 55-77, jan./jun., 2006<br />

Ilma Maria Fernandes Soares; Bernadete de Souza Porto<br />

Ilma Maria Fernandes Soares*<br />

Bernadete de Souza Porto**<br />

Esse estudo analisa as crenças de quatro professoras <strong>da</strong>s séries iniciais do<br />

Ensino Fun<strong>da</strong>mental público, do município de Salvador-BA, sobre a ludici<strong>da</strong>de<br />

e as ativi<strong>da</strong>des lúdicas. Tem a pesquisa qualitativa como opção metodológica e<br />

a observação, a entrevista e a (auto) biografia como instrumentos investigativos.<br />

A questão básica que norteou esse trabalho foi: quais as crenças que os<br />

professores têm elaborado sobre a ludici<strong>da</strong>de e as manifestações lúdicas?<br />

Constata-se, ain<strong>da</strong>, que a incorporação do elemento lúdico na escola requer<br />

que se mexa em várias convicções sobre a função <strong>da</strong> escola, o papel exercido<br />

por professores/as e alunos, o que, de alguma forma, justifica a resistência<br />

desses/as profissionais a um trabalho pautado na ludici<strong>da</strong>de. Diante dessa<br />

resistência, secun<strong>da</strong>riza-se o papel <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des lúdicas. O<br />

fato de a escola pesquisa<strong>da</strong> ser volta<strong>da</strong> para a formação <strong>da</strong>s crianças <strong>da</strong>s<br />

cama<strong>da</strong>s populares também é um aspecto que limita ou inviabiliza a vivência<br />

lúdica nesse espaço educativo. No âmbito do estudo <strong>da</strong>s crenças de professores,<br />

esse trabalho contribui ao acrescentar três características relaciona<strong>da</strong>s às<br />

convicções: a inter-relação dos aspectos pessoais e profissionais; o seu caráter<br />

de generalização e a sua influência na criação de estereótipos.<br />

Palavras-chave: Ludici<strong>da</strong>de – Ativi<strong>da</strong>des lúdicas – Crenças<br />

ABSTRACT<br />

IF POSSIBLE WE’LL PLAY: teachers’ beliefs on playfulness and<br />

playful activities<br />

This study analyses the beliefs of four teachers of the primary public school<br />

from Salvador (Bahia, Brazil) about ludicity and playful activities. It is a<br />

* Autora do artigo. Mestre pela Facul<strong>da</strong>de de <strong>Educação</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia – FACED/UFBA. Professora<br />

do Departamento de Ciências Humanas – DCH4 – <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Bahia – UNEB, Campus de Jacobina-<br />

BA. Endereço para correspondência: UNEB, DCH4, Av. JJ Seabra, 157, Bairro <strong>da</strong> Estação – 44700-000 Jacobina - BA.<br />

E-mail: ilma100@hotmail.com<br />

** Co-autora: orientadora <strong>da</strong> pesquisa. Doutora em <strong>Educação</strong> pela Universi<strong>da</strong>de Federal do Ceará (UFC). Professora e<br />

coordenadora do Núcleo Didático-Pe<strong>da</strong>gógico, na Universi<strong>da</strong>de Sete de Setembro, Fortaleza/CE. Endereço para correspondência:<br />

Facul<strong>da</strong>de 7 de Setembro, Rua Almirante Maximiano <strong>da</strong> Fonseca, 1395, Edson Queiroz – 60811.024<br />

Fortaleza-Ce. E-mail: b.porto@fa7.edu.br<br />

55


Se der a gente brinca: crenças <strong>da</strong>s professoras sobre ludici<strong>da</strong>de e ativi<strong>da</strong>des lúdicas<br />

56<br />

qualitative research whose methodology is based upon observation, interview<br />

and (self)-biography as investigative tools. The basic interrogation which guided<br />

this work was: what beliefs did teachers elaborated about ludicity and playful<br />

activities? It was also observed that the integration of the playful dimension in<br />

the school requires to deal with several convictions about the school foun<strong>da</strong>tion,<br />

the role played by the teachers and students, which somehow justifies the<br />

resistance of such professionals to a playful work. Because of this resistance,<br />

the role of ludicity and playful activities is downplayed. The fact that the<br />

researched school focuses on the education of children is also an aspect that<br />

limits or undermines a <strong>da</strong>ily life based on playfulness in the educational space.<br />

In the study of teachers’ beliefs, this paper contributes adding three conviction<br />

related features: the personal and professional aspects interrelation, its<br />

generalization feature and its influence on the creation of stereotypes.<br />

Keywords: Playfulness – Playful activities – Beliefs<br />

Esse artigo, fruto <strong>da</strong> pesquisa que realizei<br />

no período dedicado ao Mestrado em <strong>Educação</strong>,<br />

objetiva apresentar as crenças detecta<strong>da</strong>s<br />

em quatro professoras <strong>da</strong>s séries iniciais do<br />

Ensino Fun<strong>da</strong>mental público, do Município de<br />

Salvador-BA, no ano de 2004, sobre a ludici<strong>da</strong>de<br />

e as ativi<strong>da</strong>des lúdicas. A abor<strong>da</strong>gem<br />

metodológica para o desenvolvimento deste trabalho<br />

se embasou nos pressupostos <strong>da</strong> pesquisa<br />

qualitativa, sendo a observação, a entrevista<br />

semi-estrutura<strong>da</strong> e a autobiografia os três instrumentos<br />

investigativos utilizados. A escola<br />

pesquisa<strong>da</strong> localiza-se em um bairro popular,<br />

sendo sua população eminentemente de negros.<br />

No que se refere às professoras que contribuíram<br />

para a feitura desta pesquisa, os nomes<br />

fictícios adotados são: Cândi<strong>da</strong>, Margari<strong>da</strong>,<br />

Mariazinha e Teresinha.<br />

Diante <strong>da</strong> compreensão de que as crenças<br />

compõem um sistema que se organiza de forma<br />

a sustentar e justificar as demais, tornou-se<br />

também necessário, para uma melhor compreensão<br />

<strong>da</strong> temática dessa pesquisa, analisar algumas<br />

convicções sobre educação, escola,<br />

aluno e trabalho docente, de forma a compreender<br />

onde as convicções sobre ludici<strong>da</strong>de e<br />

ativi<strong>da</strong>des lúdicas se alicerçam. Dessa forma,<br />

esse trabalho apresentará as crenças presentes<br />

em ca<strong>da</strong> um desses blocos, discutindo as<br />

mais fecun<strong>da</strong>s para a compreensão desse estudo.<br />

No entanto, antes <strong>da</strong> apresentação <strong>da</strong>s<br />

crenças, torna-se importante discutir três conceitos-chave<br />

que nortearão esse trabalho: ludici<strong>da</strong>de,<br />

ativi<strong>da</strong>des lúdicas e crenças.<br />

1.ESCLARECIMENTOS CONCEITUAIS<br />

PARA A COMPREENSÃO DESSE ES-<br />

TUDO<br />

O primeiro conceito que trago é o de ludici<strong>da</strong>de,<br />

que entendo como fenômeno subjetivo<br />

que possibilita ao indivíduo se sentir inteiro,<br />

sem divisão entre o pensamento, a emoção e<br />

a ação. Essa plenitude é decorrente <strong>da</strong> absorção,<br />

<strong>da</strong> entrega, <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de associa<strong>da</strong> ao<br />

comprometimento do indivíduo, do significado<br />

que possui para ele a ativi<strong>da</strong>de que está se<br />

propondo a realizar. Assim, a ludici<strong>da</strong>de se<br />

caracteriza como uma atitude <strong>da</strong>s pessoas e<br />

não inerente a algo ou alguém. Também não<br />

poderá ocorrer,se mediante atitudes impositivas,<br />

rígi<strong>da</strong>s, que negam a espontanei<strong>da</strong>de, e o<br />

respeito às diferenças. Essa definição encontra-se<br />

embasa<strong>da</strong> nas discussões e estudos realizados<br />

pelos membros do GEPEL, a partir<br />

do trabalho de Cipriano Luckesi (2000; 2002).<br />

O autor define a ludici<strong>da</strong>de a partir de um<br />

ponto de vista interno e integral do sujeito. Essa<br />

plenitude poderá ser vivencia<strong>da</strong> com a presença<br />

<strong>da</strong> espontanei<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> flexibili<strong>da</strong>de e, nesse<br />

sentido, proporciona prazer e significado<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 55-77, jan./jun., 2006


para os seus participantes. Essa compreensão<br />

pode ser esclareci<strong>da</strong> a partir de Cipriano Luckesi<br />

(2000), quando assinala:<br />

Enquanto estamos participando ver<strong>da</strong>deiramente<br />

de uma ativi<strong>da</strong>de lúdica, não há lugar, na nossa<br />

experiência, para qualquer outra coisa, além<br />

dessa própria ativi<strong>da</strong>de. Não há divisão. Estamos<br />

inteiros, plenos, flexíveis, alegres, saudáveis.<br />

Poderá ocorrer, evidentemente, de estar no<br />

meio de uma ativi<strong>da</strong>de lúdica e, ao mesmo tempo,<br />

estarmos divididos com outra coisa, mas aí,<br />

com certeza, não estaremos ver<strong>da</strong>deiramente<br />

participando dessa ativi<strong>da</strong>de. Estaremos com o<br />

corpo aí presente, mas com a mente em outro<br />

lugar e, então, nossa ativi<strong>da</strong>de não será plena e,<br />

por isso mesmo, não será lúdica. (p. 21)<br />

Já ativi<strong>da</strong>des lúdicas é expressão que se<br />

refere aos jogos, às brincadeiras, às festas. São<br />

assim denomina<strong>da</strong>s por possibilitarem a manifestação<br />

do elemento lúdico, no entanto, esclareço<br />

que a ludici<strong>da</strong>de não se apresenta<br />

somente nessas ativi<strong>da</strong>des, pois ela pode encontrar-se<br />

presente em diferentes momentos <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> humana, seja individual ou coletivamente,<br />

sem esquecer, ain<strong>da</strong>, que não é o fato de propor<br />

uma ativi<strong>da</strong>de com jogos ou brincadeiras,<br />

por exemplo, que “magicamente” a ludici<strong>da</strong>de<br />

com suas características estarão presentes.<br />

O elemento lúdico pode encontrar-se presente<br />

em diferentes momentos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana,<br />

seja individual ou coletivamente. Essa<br />

diferenciação, trabalha<strong>da</strong> pelo GEPEL, a partir<br />

<strong>da</strong>s elaborações de Cipriano Luckesi (2000),<br />

caracteriza a ludici<strong>da</strong>de como “fenômeno interno,<br />

que possui manifestação no exterior” (p.<br />

26). Já as ativi<strong>da</strong>des lúdicas são concebi<strong>da</strong>s<br />

como formas de manifestação <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de<br />

por trazerem elementos tais como a alegria e a<br />

espontanei<strong>da</strong>de.<br />

As características elabora<strong>da</strong>s por Johan<br />

Huizinga (2000), por Christie (apud KISCHI-<br />

MOTO, 1998), Washington Oliveira (2002) em<br />

relação à ludici<strong>da</strong>de nos fazem perceber que<br />

é necessário estabelecer uma relação de respeito,<br />

de confiança entre professor e aluno para<br />

que possa estar presente o elemento lúdico. Sob<br />

esse aspectos, a ludici<strong>da</strong>de é importante porque<br />

é mediante o respeito mútuo, a entrega dos<br />

participantes, a conquista de uma práxis mais<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 55-77, jan./jun., 2006<br />

Ilma Maria Fernandes Soares; Bernadete de Souza Porto<br />

criativa, envolvente e flexível, que se desenvolve<br />

o vínculo afetivo entre educando e educador.<br />

Esse vínculo é de grande importância não<br />

somente para a busca de conhecimento, mas<br />

retroalimenta os participantes do processo ensino-aprendizagem<br />

para que eles continuem a<br />

desafiar os problemas que se apresentam no<br />

fazer-pe<strong>da</strong>gógico. Isto foi demonstrado pela<br />

Professora Mariazinha, durante a entrevista:<br />

A gente cria vínculos com os alunos, um vinculo<br />

de afetivi<strong>da</strong>de mesmo. Eu falo muito de vinculo<br />

de afetivi<strong>da</strong>de porque, pra mim, me<br />

alimenta muito, principalmente com as crianças,<br />

né? (...) E a gente precisa trocar um pouco<br />

com os colegas porque cria um vazio, um sentimento<br />

de incompetência, às vezes, até não ter a<br />

certeza do que está fazendo, se está bom ou não.<br />

Aí a gente ain<strong>da</strong> troca com os colegas.<br />

Em relação aos estudos sobre a importância<br />

<strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de para o desenvolvimento saudável<br />

<strong>da</strong> criança, vários estudiosos discutem<br />

esse tema, como Simão de Miran<strong>da</strong> (2001),<br />

Janet Moyles (2002) e Adriana Friedmann<br />

(1996,) que enumeram diferentes aspectos do<br />

ser humano que podem ser desenvolvidos por<br />

meio de ativi<strong>da</strong>des lúdicas. Simão de Miran<strong>da</strong><br />

(2001), ao concluir a sua pesquisa sobre o jogo<br />

infantil, resume a importância <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des<br />

lúdicas em cinco categorias: o cognitivo (linguagem,<br />

elaboração do pensamento lógico,<br />

percepção, abstração), o social (cooperação,<br />

interação, auto-expressão, respeito à regra), o<br />

afetivo (sensibili<strong>da</strong>de, estima), o criativo (imaginação,<br />

criação) e o motivacional (estímulo,<br />

alegria, ânimo etc.).<br />

Com base na análise de alguns estudiosos<br />

sobre o tema, acrescento outras dimensões humanas<br />

desenvolvi<strong>da</strong>s por meio de um trabalho<br />

lúdico: contribui para a conquista <strong>da</strong> autonomia,<br />

<strong>da</strong> independência e <strong>da</strong> liderança; permite a expressão<br />

<strong>da</strong>s emoções e conflitos, auxiliando,<br />

assim, o desenvolvimento <strong>da</strong> maturi<strong>da</strong>de emocional;<br />

favorece a desinibição. Ao exercer a<br />

sua ação motivacional, estimula a exploração e<br />

a inovação e desbloqueia tensões, medos, pois<br />

não supervaloriza os erros. Ao desenvolver esses<br />

aspectos, auxilia também no estabelecimento<br />

<strong>da</strong> autoconfiança.<br />

57


Se der a gente brinca: crenças <strong>da</strong>s professoras sobre ludici<strong>da</strong>de e ativi<strong>da</strong>des lúdicas<br />

A escolha por focalizar esse trabalho nos<br />

professores deu-se porque considero – mesmo<br />

sabendo <strong>da</strong> influência dos pais, <strong>da</strong> direção e <strong>da</strong><br />

coordenação <strong>da</strong> escola – que eles são os principais<br />

responsáveis pela presença <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des<br />

lúdicas nessa instituição. Além do mais,<br />

como acentua Miguel Arroyo (2000), “olhar os<br />

mestres é o melhor caminho para entender a<br />

escola e o movimento de renovação pe<strong>da</strong>gógica.”<br />

(p. 12). É esse mesmo autor a afirmar que<br />

os/as professores/as são mantidos em segundo<br />

plano, como apêndices, um recurso nas pesquisas<br />

e propostas educacionais, esquecendo que<br />

são eles os responsáveis diretos por qualquer<br />

transformação na escola. Portanto, quando me<br />

refiro a professor e não educador é, justamente,<br />

para ficar mais bem delimitado o sujeito desta<br />

pesquisa, relacionando-o ao local de trabalho,<br />

como profissão.<br />

Já sobre o “brincar” infantil, tenho a clareza<br />

de que a responsabili<strong>da</strong>de em relação a sua vivência<br />

não se restringe ao professor nem à escola,<br />

mas acredito na importância desse espaço<br />

como uma possibili<strong>da</strong>de de vivenciar experiências<br />

enriquecedoras que a família, a rua, o trabalho<br />

não têm mais condições de propiciar,<br />

principalmente nos grandes centros urbanos.<br />

Além do mais, a escola é o espaço primordial, na<br />

nossa socie<strong>da</strong>de, de formação cultural e, portanto,<br />

deve buscar trabalhar com os múltiplos saberes<br />

que circun<strong>da</strong>m o contexto <strong>da</strong> criança.<br />

O argumento principal que utilizo para a vivência<br />

lúdica na escola é embasado na medi<strong>da</strong><br />

em que cabe ao professor, e não só a ele, a<br />

tarefa de educar e o fenômeno lúdico é uma<br />

possibili<strong>da</strong>de de tornar esse processo educativo<br />

mais agradável e significativo. Com isso,<br />

atentar para a importância <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>s<br />

ativi<strong>da</strong>des lúdicas na escola, não é contribuir<br />

para sobrecarregar o professor – que de fato<br />

vem assumindo muitos papéis que algumas vezes<br />

lhe são alheios – mas buscar a consecução<br />

de uma educação mais prazerosa e uma compreensão<br />

<strong>da</strong> criança como ser indiviso.<br />

Feitas estas observações sobre a escolha do<br />

tema e do nível de ensino, considero necessário,<br />

também, justificar a escolha pelo estudo <strong>da</strong>s<br />

crenças. A necessi<strong>da</strong>de de aproximar <strong>da</strong>s ques-<br />

58<br />

tões mais arraiga<strong>da</strong>s dos/as professores/as foi<br />

percebi<strong>da</strong> por mim, quando observei que a ludici<strong>da</strong>de<br />

e as ativi<strong>da</strong>des lúdicas eram valoriza<strong>da</strong>s<br />

no discurso dos/as professores/as, quando,<br />

de fato, no seu fazer-pe<strong>da</strong>gógico, elas não se<br />

encontram presentes ou, quando utiliza<strong>da</strong>s na<br />

escola, perdem muito <strong>da</strong>s suas características.<br />

Essa mesma constatação é apresenta<strong>da</strong> por<br />

autores como Gisela Wajskop (2001) e Nelson<br />

Carvalho Marcellino (1990) dentre outros. Assim,<br />

constatei que, para que esses elementos,<br />

por mim considerados importantes na práxis<br />

pe<strong>da</strong>gógica ,pudessem estar presentes na escola<br />

e na sala de aula, aproximar-me do/a professor/a<br />

e <strong>da</strong>s suas crenças poderia ser um<br />

caminho ímpar no sentido de melhor poder analisar<br />

os porquês <strong>da</strong> inclusão/não inclusão <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de<br />

no processo educativo.<br />

Reconhecendo as crenças como uma <strong>da</strong>s<br />

formas de compreender o mundo, é importante<br />

conhecer, analisar e questioná-las, haja vista que<br />

as crenças interferem na consecução <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />

educacional, porque é a partir destas que<br />

os professores julgam, decidem; enfim, vivem<br />

a sua práxis pe<strong>da</strong>gógica.<br />

Assim, para efeito deste ensaio e diante do<br />

referencial sobre crenças, entendo-as como<br />

formulações simbólicas que nos dão “certezas”<br />

subjetivas, pragmáticas, que aparecem, muitas<br />

vezes, de forma vela<strong>da</strong>, feitas inconscientemente,<br />

através de nossas experiências, <strong>da</strong> rotina de<br />

trabalho, <strong>da</strong> linguagem, dentre outras. As crenças<br />

determinam o pensamento e a ação do sujeito<br />

e servem como suporte em relação à reali<strong>da</strong>de,<br />

ou seja, nos dão segurança, tornando-se,<br />

muitas vezes, sóli<strong>da</strong>s e cristaliza<strong>da</strong>s, servindo,<br />

assim, de “chão firme”. Isto não quer dizer, no<br />

entanto, que não poderão ser modifica<strong>da</strong>s. Como<br />

formas de compreensão e ação no mundo, ela<br />

deve ser primeiramente detecta<strong>da</strong>, questiona<strong>da</strong><br />

quanto a sua vali<strong>da</strong>de, pois a partir dessas<br />

ações é que poderemos efetivamente sensibilizar<br />

o sujeito que crê, para, posteriormente, confrontá-lo<br />

com os conhecimentos elaborados por<br />

outras áreas, tais como a Filosofia, a Epistemologia,<br />

a Arte.<br />

Ain<strong>da</strong> em relação às crenças, opta-se por<br />

utilizar os vocábulos convicções e “certezas”<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 55-77, jan./jun., 2006


com o mesmo sentido, diante do seu credo intenso,<br />

mesmo sem um conhecimento mais sistematizado<br />

do sujeito que crê.<br />

Enfatizo a noção de que essa análise está<br />

calca<strong>da</strong> no sentido de compreender as crenças<br />

<strong>da</strong>s professoras dentro de uma cultura, que<br />

abrange a cultura escolar e <strong>da</strong> escola, mas também<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de em geral. Assim, essa investigação<br />

também possibilita conhecer um pouco<br />

a instituição escolar na sua essência, ao descortinar<br />

o véu que encobre e naturaliza pensamentos,<br />

sentimentos e ações cotidianas.<br />

2. INICIANDO A TESSITURA... TRAZEN-<br />

DO ELEMENTOS PARA CONSTRUÇÃO<br />

DA REDE DE CRENÇAS SOBRE<br />

LUDICIDADE<br />

Esse tópico está organizado em cinco blocos,<br />

onde serão apresenta<strong>da</strong>s, respectivamente,<br />

as crenças sobre educação, escola, infância,<br />

trabalho docente e, por último, as convicções<br />

específicas sobre ludici<strong>da</strong>de e ativi<strong>da</strong>des lúdicas.<br />

A estruturação deste estudo com esses<br />

segmentos procura analisar o sistema de crenças<br />

<strong>da</strong>s professoras, de forma a compreender<br />

onde se alicerçam as suas convicções sobre a<br />

presença do elemento lúdico na escola. É importante<br />

dizer, to<strong>da</strong>via, que a ludici<strong>da</strong>de e as<br />

ativi<strong>da</strong>des lúdicas são o eixo central de to<strong>da</strong>s<br />

as discussões.<br />

2.1 As crenças sobre educação e<br />

sua relação com a vivência <strong>da</strong><br />

ludici<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des lúdicas<br />

As duas crenças a serem discuti<strong>da</strong>s nesse<br />

bloco se referem à educação: prepara para a<br />

vi<strong>da</strong> adulta e existe apenas uma cultura que é a<br />

ver<strong>da</strong>deira!<br />

A crença de que a educação prepara a<br />

criança para a vi<strong>da</strong> adulta é muito comum<br />

na posição e nas falas de muitos professores,<br />

pais e pessoas em geral. Essa convicção em<br />

que se nega o presente, o universo infantil,<br />

visando à formação do futuro adulto, consti-<br />

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Ilma Maria Fernandes Soares; Bernadete de Souza Porto<br />

tui-se como um desrespeito à criança e contribui<br />

para que o processo educativo seja algo<br />

desinteressante. Dessa forma, observo que a<br />

grande questão <strong>da</strong> escola é que tudo o que ali<br />

se realiza é com o objetivo alheio ao presente<br />

<strong>da</strong> criança, àquele momento específico.<br />

Não se pensa no processo de ensinar, como<br />

algo importante para o indivíduo naquele momento<br />

histórico, mas a preocupação é com o<br />

amanhã, especialmente voltado para o mercado<br />

de trabalho e preparação para o vestibular.<br />

Sem tirar a relevância desse aspecto,<br />

acredito que a escola deve valorizar mais o<br />

tempo presente, o tempo próprio <strong>da</strong> escola,<br />

com seus objetivos específicos, para esse<br />

momento que é único. Como nos diz Georges<br />

Snyders (1993), a escola deve preencher as<br />

duas funções: “... preparar o futuro e assegurar<br />

as alegrias presentes durante esses longuíssimos<br />

anos de escolari<strong>da</strong>de que a nossa<br />

civilização conquistou para ele.” (p. 27).<br />

Francisco Imbernón (2000) faz uma crítica a<br />

essa visão, argumentando que:<br />

Para o senso comum, a educação tende a ser<br />

compreendi<strong>da</strong> como preparação para a socie<strong>da</strong>de,<br />

para a vi<strong>da</strong> adulta, para o trabalho ou para<br />

seguir adquirindo cultura, quando antes de mais<br />

na<strong>da</strong>, como afirma Bruner (1997, p. 31), é uma<br />

forma de viver a cultura. A educação prepara<br />

para participar do mundo na medi<strong>da</strong> em que proporciona<br />

a cultura que compõe esse mundo e<br />

sua história, transformando-a em cultura subjetiva,<br />

o que dá a forma de nossa presença diante<br />

dos bens culturais, uma maneira de ser alguém<br />

diante <strong>da</strong> herança recebi<strong>da</strong> (LLEDÓ, 1998, p. 39).<br />

A isso chamamos saber. A quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> experiência<br />

cultural vivi<strong>da</strong> é a preparação mais real que<br />

pode e deveria propiciar a educação. (p. 43-44).<br />

Nesse sentido <strong>da</strong> educação, enquanto uma<br />

forma de viver a cultura, argumento que não<br />

percebi em momento algum a discussão ou qualquer<br />

ativi<strong>da</strong>de que abrangesse a cultura negra,<br />

muito presente na vi<strong>da</strong> dessas crianças, possibilitando<br />

que eu sistematizasse outra crença que<br />

nomeei: Existe apenas uma cultura que é a<br />

ver<strong>da</strong>deira!<br />

A percepção dessa crença ocorreu principalmente<br />

a partir <strong>da</strong>s aulas de capoeira, ministra<strong>da</strong>s<br />

por um mestre <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de, que<br />

59


Se der a gente brinca: crenças <strong>da</strong>s professoras sobre ludici<strong>da</strong>de e ativi<strong>da</strong>des lúdicas<br />

trabalha voluntariamente há três anos com os<br />

educandos do diurno, realiza<strong>da</strong> de forma estanque,<br />

desgarra<strong>da</strong> do trabalho pe<strong>da</strong>gógico <strong>da</strong>s<br />

professoras. Assim, elas liberam os alunos e<br />

não participam nem presenciam as ativi<strong>da</strong>des.<br />

Dessa forma, não é possível garantir que as professoras<br />

contribuem para o estabelecimento de<br />

uma cultura escolar multiculturalista, que, como<br />

argumenta Gimeno Sacristán (1998) como possibili<strong>da</strong>de<br />

dessa instituição realizar “... um projeto<br />

aberto, no qual caiba uma cultura que seja<br />

um espaço de diálogo e de comunicação entre<br />

grupos sociais diversos” (p. 83).<br />

Apesar <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des encontra<strong>da</strong>s, como,<br />

por exemplo, a falta de materiais necessários,<br />

ele observa que, ao associar as técnicas de capoeira<br />

às brincadeiras tradicionais, as crianças<br />

estão mais tranqüilas, respeitam mais os colegas.<br />

Por também ter essa percepção, é que<br />

considero importante que professoras exerçam<br />

a sua influência pe<strong>da</strong>gógica nesse momento.<br />

Essa desvinculação do trabalho <strong>da</strong> capoeira<br />

realizado pelo mestre e o trabalho do professor<br />

provavelmente ocorre porque existe a<br />

crença de que a função educativa do professor<br />

se restringe à sala de aula e à transmissão<br />

de uma cultura única, a ver<strong>da</strong>deira, a que consta<br />

nos livros.<br />

2.2 As crenças <strong>da</strong>s professoras<br />

sobre a escola pública e suas conseqüências<br />

para a vivência lúdica<br />

nesse espaço educativo<br />

Com esse tópico objetivo sistematizar as<br />

crenças sobre escola e os aspectos a ela relacionados<br />

e como tais convicções interferem na<br />

presença <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des lúdicas<br />

nesse ambiente educativo. Assim, abordo<br />

as seguintes crenças:<br />

- A escola para as crianças <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s<br />

populares é importante!<br />

- A escola é sufocante!<br />

- A profissão de professor é muito exigente!<br />

- Não posso fazer na<strong>da</strong>!<br />

- Queria uma sala homogênea!<br />

- O tempo <strong>da</strong> escola deve ser bem utilizado!<br />

60<br />

Essa última está sustenta<strong>da</strong> em outras que<br />

lhes dão suporte: Débora, olha, por favor, a<br />

pontuação!<br />

Um dos momentos em que observei a presença<br />

dessa primeira crença que consiste na<br />

importância <strong>da</strong> escola para as crianças <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s<br />

populares foi quando questionei a Professora<br />

Teresinha – que ensina nas redes<br />

pública e priva<strong>da</strong> – em qual <strong>da</strong>s duas ela gostava<br />

mais de trabalhar, e ela respondeu:<br />

A pública. Porque na pública eu acho que as<br />

crianças precisam muito mais de mim, do meu<br />

esforço, <strong>da</strong> minha dedicação como professor.<br />

Eu sinto que os alunos <strong>da</strong> escola particular,<br />

independente de mim, eles aprendem muita coisa<br />

em casa, porque têm acesso a computadores,<br />

a livros de literatura infantil, aju<strong>da</strong> dos pais e<br />

a criança <strong>da</strong> escola pública, não. Só tem essa<br />

oportuni<strong>da</strong>de aqui comigo, durante essas quatro<br />

horas. Se eu não souber aproveitar será um<br />

prejuízo pra elas.<br />

A análise <strong>da</strong> crença <strong>da</strong> Professora Teresinha<br />

em relação à importância <strong>da</strong> escola para<br />

as crianças <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s populares está alicerça<strong>da</strong><br />

na visão de que os pais e o meio social de<br />

onde elas provêm não são adequados para a<br />

sua formação.<br />

A segun<strong>da</strong> crença apreendi<strong>da</strong> diz que a escola<br />

é sufocante. Faz referência tanto ao posicionamento<br />

<strong>da</strong>s professoras em relação ao<br />

espaço físico quanto ao sentimento delas frente<br />

à profissão que exercem e a todo o seu fazerpe<strong>da</strong>gógico.<br />

Nesse sentido, as professoras também<br />

se referem à presença desse sentido de<br />

desânimo perante a escola por parte dos alunos.<br />

Muitos são os fatores enfrentados diariamente<br />

pelos professores/as que fazem com que sintam<br />

a escola como um lugar desgastante que<br />

desencadeia uma “falta de energia”. Ao ser<br />

questionado sobre o que causa esse esvaziamento,<br />

Mariazinha explica:<br />

Esvazia porque a gente cui<strong>da</strong> demais e não é<br />

cui<strong>da</strong><strong>da</strong>. Acho que basicamente é isso. A gente<br />

se dedica muito. A gente cria vínculos com os<br />

alunos, um vinculo de afetivi<strong>da</strong>de mesmo. Eu<br />

falo muito de vinculo de afetivi<strong>da</strong>de porque,<br />

pra mim, me alimenta muito, principalmente<br />

com as criança, né? E por exemplo, com as crianças<br />

menores, que não tem colaboração <strong>da</strong>s<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 55-77, jan./jun., 2006


famílias, às vezes é muita sobrecarga pra gente<br />

administrar as questões <strong>da</strong>s crianças pequenas<br />

que, na ver<strong>da</strong>de, deveriam ser administra<strong>da</strong>m<br />

junto com a família. Aí eu sinto que a gente<br />

se esvazia bastante com isso. E a gente precisa<br />

trocar um pouco com os colegas porque cria<br />

um vazio, um sentimento de incompetência, às<br />

vezes até não ter a certeza do que está fazendo,<br />

se está bom ou não. Aí a gente ain<strong>da</strong> troca com<br />

os colegas.<br />

Em relação ao vínculo afetivo que Mariazinha<br />

declara ser um dos motivos do esvaziamento<br />

<strong>da</strong> relação com a profissão docente, Wanderley<br />

Codo e Andréa Gazzotti (1999) declaram<br />

que a concretização <strong>da</strong> ligação afetiva estabeleci<strong>da</strong><br />

entre educando/a e educador/a ocorre<br />

parcialmente, pois as crianças não permanecem<br />

o tempo inteiro na escola; além do mais, as tarefas<br />

escolares requerem a obediência a algumas<br />

regras (p. 57).<br />

Essa constatação de esvaziamento relativa<br />

à escola também ocorre para os professores,<br />

porque esse espaço é visto como o lugar do<br />

dever, <strong>da</strong> obrigação, sendo as alegrias desloca<strong>da</strong>s<br />

para outros ambientes. Esse sentimento de<br />

tristeza, de desesperança, de estrangulamento<br />

que acomete as professoras e os professores é<br />

resultado <strong>da</strong> fragmentação do seu trabalho, do<br />

sentimento de alienação ocasionado pela supervalorização<br />

do conteúdo, <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de técnica<br />

do seu trabalho que os transforma em<br />

simples executores, contribuindo para a elaboração<br />

de um conhecimento utilitário e funcional,<br />

ocasionando, ain<strong>da</strong>, essa falta de prazer e<br />

de reconhecimento no trabalho que executa.<br />

Quanto a esse sentimento de desprazer em<br />

relação aos alunos, constato que, mesmo sabendo<br />

que na <strong>Educação</strong> Infantil as crianças não<br />

vivenciam adequa<strong>da</strong>mente ativi<strong>da</strong>des prazerosas,<br />

é ao ingressar no Ensino Fun<strong>da</strong>mental que<br />

elas são mais requeri<strong>da</strong>s a priorizar o racional e<br />

a serem introduzi<strong>da</strong>s nas noções de disciplina,<br />

obrigação, responsabili<strong>da</strong>de, exercícios. Sobre<br />

isso Nelson Carvalho Marcellino (2003) nos<br />

afirma que<br />

Antes, havia a possibili<strong>da</strong>de de vivências prazerosas,<br />

sem compromissos, e o tempo mágico <strong>da</strong>s<br />

brincadeiras estava ao alcance <strong>da</strong>s nossas mãos;<br />

agora, a obrigação sistematiza<strong>da</strong> introduzia o<br />

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Ilma Maria Fernandes Soares; Bernadete de Souza Porto<br />

tempo do relógio e o “dever de casa” invadia o<br />

reino encantado, o reino do lúdico. Parodiando<br />

Althusser, podemos dizer que a infância é hoje o<br />

período <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em que se fica entalado entre a<br />

obrigação e o prazer, entre o reino <strong>da</strong> escola e o<br />

reino do lúdico. E a nossa conformação social<br />

tende a nos empurrar ca<strong>da</strong> vez mais para dentro<br />

desse reino escola, onde imperam os valores <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de neoliberal: racionali<strong>da</strong>de, produtivi<strong>da</strong>de,<br />

eficiência, eficácia, competitivi<strong>da</strong>de, sucesso<br />

financeiro. (p. 18).<br />

Desta maneira, entendo que a ca<strong>da</strong> nível que<br />

a criança evolui dentro <strong>da</strong> escola, a idéia de<br />

obrigação vai se tornando mais complexa e a<br />

possibili<strong>da</strong>de de vivências lúdicas vai ficando<br />

mais escassa. A escola, com esse posicionamento,<br />

contribui para que, ca<strong>da</strong> vez mais cedo,<br />

as crianças neguem a sua infância e sejam incorpora<strong>da</strong>s<br />

ao mundo adulto.<br />

Diante <strong>da</strong> convicção de que a escola é sufocante,<br />

outra crença se apresenta: a que entende<br />

que a profissão de professor é muito<br />

exigente. Alguns motivos que sedimentaram<br />

essa crença foram apontados durante a pesquisa,<br />

em especial, durante a entrevista: a baixa<br />

remuneração; a característica de “monodocência”<br />

do/<strong>da</strong> professor/a <strong>da</strong>s séries iniciais, que<br />

exige que ele/ela tenha domínio <strong>da</strong>s diferentes<br />

áreas etc. Apesar dessa exigência e de outras<br />

dificul<strong>da</strong>des enumera<strong>da</strong>s pelas professoras,<br />

entretanto, elas também apresentaram aspectos<br />

positivos referentes à profissão docente.<br />

Diante <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des encontra<strong>da</strong>s para a realização<br />

do trabalho pe<strong>da</strong>gógico, to<strong>da</strong>s as professoras<br />

apresentaram essa crença.<br />

Compreendo que não é somente o fato de<br />

ter que trabalhar com diferentes áreas que sobrecarrega<br />

o/a professor/a <strong>da</strong>s séries iniciais,<br />

mas também a sua posição diante do seu fazer<br />

pe<strong>da</strong>gógico. Nesse sentido, cabe a citação de<br />

Janet Moyles (2002), quando expressa que:<br />

Se o papel é visto como o de instrutor, os professores<br />

precisam “instruir” ou ensinar alguma coisa<br />

diretamente para todos, todos os dias – uma<br />

tarefa muito difícil. Mas se o papel do professor<br />

é o de iniciador e mediador <strong>da</strong> aprendizagem, e o<br />

de provedor <strong>da</strong> estrutura dentro <strong>da</strong> qual as crianças<br />

podem explorar, brincar, planejar e assumir<br />

a responsabili<strong>da</strong>de, esta abor<strong>da</strong>gem certa-<br />

61


Se der a gente brinca: crenças <strong>da</strong>s professoras sobre ludici<strong>da</strong>de e ativi<strong>da</strong>des lúdicas<br />

62<br />

mente libera os professores para passar mais tempo<br />

com as crianças. O professor se torna um<br />

organizador efetivo <strong>da</strong> situação de aprendizagem,<br />

na qual ele reconhece, afirma e apóia as<br />

oportuni<strong>da</strong>des para a criança aprender à sua própria<br />

maneira em seu próprio nível e a partir de<br />

suas experiências passa<strong>da</strong>s (conhecimentos prévios).<br />

(p. 101).<br />

Pela análise dessa citação, mesmo reconhecendo<br />

as inúmeras atribuições <strong>da</strong>s professoras,<br />

percebo que outra atitude poderá ser toma<strong>da</strong><br />

diante do exercício <strong>da</strong> profissão docente, de uma<br />

forma que se torne menos desgastante e mais<br />

proveitosa para educandos e educadores.<br />

Entendo, ain<strong>da</strong>, que o sentimento de insatisfação<br />

<strong>da</strong>s professoras está ligado a outra crença:<br />

Queria uma sala homogênea! Quando me<br />

refiro a essa crença, estou expressando tanto o<br />

desejo <strong>da</strong>s professoras de que todos os alunos<br />

se comportem e apren<strong>da</strong>m igualmente, tendo<br />

os “melhores” alunos como parâmetro, quanto<br />

à crença de que, independentemente do contexto<br />

socioeconômico e histórico, as crianças<br />

devem se comportar <strong>da</strong> mesma forma.<br />

No que se refere à discussão sobre o tempo<br />

<strong>da</strong>/na escola e a influência deste na vivência <strong>da</strong><br />

ludici<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des lúdicas na escola,<br />

sistematizei a crença o tempo <strong>da</strong> escola deve<br />

ser bem utilizado. Tal convicção encontra-se<br />

alicerça<strong>da</strong> em outras assim descritas:<br />

No que tange à crença de que o tempo <strong>da</strong><br />

escola deve ser bem utilizado, observo que as<br />

suas compreensões dizem respeito ao fato de<br />

que só é bem utilizado o período escolar se for<br />

dirigido ou relacionado para o ensino ou avaliação<br />

dos conteúdos. Qualquer ativi<strong>da</strong>de que fuja<br />

desse terreno é considera<strong>da</strong> “per<strong>da</strong> de tempo”,<br />

“momento roubado ao ensino”, como nos afirma<br />

Miguel Arroyo (2000). É possível identificar,<br />

na citação de Regina Leite Garcia (2000),<br />

a mesma compreensão de Miguel Arroyo,<br />

quando expressa que para os professores:<br />

... tudo o que não seja aula formal na sala de<br />

aula, com trabalho no quadro, livro aberto, muito<br />

dever de casa e avaliação “muito severa”, é<br />

per<strong>da</strong> de tempo, num mundo tão competitivo,<br />

em que é preciso aproveitar o tempo, ao máximo,<br />

na corri<strong>da</strong> para o sucesso. Recreio, aula de arte,<br />

aula de educação física, qualquer ativi<strong>da</strong>de fora<br />

<strong>da</strong> sala de aula, tudo é per<strong>da</strong> de tempo, na avaliação<br />

do Banco Mundial, de onde emanam to<strong>da</strong>s<br />

as diretrizes <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> Brasileira hoje. (p. 7-8)<br />

Vale a pena chamar a atenção para o fato<br />

de que o controle do tempo na escola não incomo<strong>da</strong><br />

somente os educandos, mas também as<br />

professoras. A este respeito, considero ilustrativa<br />

a fala <strong>da</strong> Professora Mariazinha:<br />

Outro entrave é o tempo pe<strong>da</strong>gógico, a exigência<br />

desse tempo pe<strong>da</strong>gógico, que a gente tem<br />

que ficar, como é que eu digo (pausa) tem uma<br />

rigidez nesse tempo pe<strong>da</strong>gógico de sala de aula,<br />

de conteúdo. É uma coisa, assim, meio que mecânica<br />

mesmo no trabalho com os alunos. É uma<br />

exigência acima <strong>da</strong> gente e aí eu acho que falta<br />

um coordenador pe<strong>da</strong>gógico, também, para orientar<br />

essa divisão desse tempo, de tal forma que<br />

as crianças possam ter recreação, possa participar<br />

de jogos, possam até ter outra pessoa na<br />

sala que divi<strong>da</strong> com o professor ou que conte<br />

uma historia, ou dê aula de matemática.<br />

Essa constatação de Mariazinha em relação<br />

à rigidez demonstra como a escola está<br />

organiza<strong>da</strong> segundo uma lógica mercadológica,<br />

onde o tempo é algo que determina, sufoca e<br />

inibe a presença de ativi<strong>da</strong>des prazerosas no<br />

espaço escolar. Nesse caso, o tempo e as ativi<strong>da</strong>des<br />

escolares estão organizados de forma a<br />

atenderem às necessi<strong>da</strong>des do capital, <strong>da</strong> qualificação<br />

para o trabalho.<br />

A Professora Mariazinha é quem nos traz<br />

outra denúncia (em sua autobiografia), em relação<br />

à vivência <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de na escola, no<br />

que se refere ao tempo:<br />

As condições para que as crianças possam brincar<br />

na escola (em algumas escolas por onde<br />

passei) estão “escondi<strong>da</strong>s” Não há uma cultura<br />

que considere o tempo <strong>da</strong> brincadeira, como<br />

tempo pe<strong>da</strong>gógico e que seja valorizado como<br />

tal. As crianças não têm, ou melhor, não proporcionamos<br />

às crianças a criação do hábito<br />

de brincar, temos dificul<strong>da</strong>de de oferecer alternativas,<br />

falo do coletivo <strong>da</strong>s escolas.<br />

A partir dessa constatação, explano sobre o<br />

medo evidenciado por muitos/as professores/<br />

as de serem considerados/as irresponsáveis e<br />

incompetentes na sua tarefa de educar pelo fato<br />

de utilizarem ativi<strong>da</strong>des lúdicas em sala de aula.<br />

Essa idéia será modifica<strong>da</strong> quando forem re-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 55-77, jan./jun., 2006


vistas as crenças sobre escola, aprendizagem e<br />

ativi<strong>da</strong>des lúdicas e quando as professoras e os<br />

professores estiverem mais embasados em relação<br />

à presença do fenômeno lúdico na educação<br />

escolar.<br />

Enquanto estiver presente na escola a crença<br />

de que o tempo deve ser bem utilizado sem<br />

que haja uma reflexão sobre os resultados formativos<br />

<strong>da</strong>s crianças, ela continuará sendo um<br />

local desinteressante para os estu<strong>da</strong>ntes e, ao<br />

mesmo tempo, para os professores, pois a realização<br />

de ativi<strong>da</strong>des mecânicas, repetitivas e<br />

controla<strong>da</strong>s não confere prazer a ninguém.<br />

Outro aspecto que percebi em relação ao<br />

tempo e às ativi<strong>da</strong>des lúdicas é que as professoras,<br />

geralmente, só permitem às crianças brincarem<br />

ou desenharem quando resta um tempo<br />

para que seja indicado o momento de término<br />

<strong>da</strong>s aulas. A essa crença chamei de Eu utilizo<br />

jogos e brincadeiras para preencher o tempo!<br />

A fala de Cândi<strong>da</strong> é representativa dessa<br />

compreensão:<br />

Eu deixo eles brincarem na sala, geralmente,<br />

dia de sexta-feira, depois do recreio e no recreio<br />

ou então quando falta pouco tempo pra<br />

acabar e eu já acabei tudo, já venci o dia, aí eu<br />

deixo. Deixo brincar com as cards deles.<br />

É no sentido <strong>da</strong> desvalorização <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des<br />

espontâneas <strong>da</strong>s crianças que apresento a<br />

crença relaciona<strong>da</strong> ao tempo, a qual sucintamente<br />

expressa que o recreio não tem valor educativo.<br />

Essa crença foi percebi<strong>da</strong>, explicitamente,<br />

em Margari<strong>da</strong>, Cândi<strong>da</strong> e Teresinha. Essa concepção<br />

compreende que o recreio é o momento<br />

em que as crianças podem extravasar suas energias<br />

e depois, mais acomo<strong>da</strong><strong>da</strong>s, vão assistir às<br />

aulas. Nelson Marcellino (1990) anota haver sido<br />

nessa perspectiva que as ativi<strong>da</strong>des recreativas<br />

foram introduzi<strong>da</strong>s na escola.<br />

O recreio possui, ain<strong>da</strong>, na concepção <strong>da</strong>s<br />

professoras e professores, o caráter de lazer<br />

(recompensa) do que propriamente de manifestação<br />

lúdica (espontanei<strong>da</strong>de, alegria, prazer,<br />

criativi<strong>da</strong>de etc.). Nessa perspectiva de recompensa,<br />

também detectei outra crença que denominei<br />

Só brinca quem fizer tudo direitinho!<br />

A Professora Teresinha falou que, às vezes,<br />

deixa sem recreio as crianças que não se com-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 55-77, jan./jun., 2006<br />

Ilma Maria Fernandes Soares; Bernadete de Souza Porto<br />

portam devi<strong>da</strong>mente ou não fazem os exercícios.<br />

É nessa perspectiva que subliminarmente<br />

aparece a idéia de descanso como prêmio diante<br />

de um exercício realizado.<br />

Diante <strong>da</strong>s crenças agrupa<strong>da</strong>s nesse tópico,<br />

observo como essas contribuem para delinear<br />

o que chamamos escola, por meio <strong>da</strong>s suas interpretações<br />

e atitudes. Dessa forma, as convicções<br />

interferem na formulação <strong>da</strong> cultura <strong>da</strong><br />

escola, através de seus discursos e práticas,<br />

como também são feitas dentro dessa cultura,<br />

mesmo que nunca cheguemos a disso nos <strong>da</strong>r<br />

conta. Recorro a Miguel Arroyo (2000) quando<br />

diz:<br />

Certezas múltiplas protegem nossas tranqüili<strong>da</strong>des<br />

profissionais. Vêm do cotidiano. Dão a segurança<br />

necessária para repetir ano após ano<br />

nosso papel. São os deuses que protegem a escola<br />

e nos protegem. Não constam em tratados<br />

de pe<strong>da</strong>gogia, nem nos regulamentos, nem nos<br />

frontispícios <strong>da</strong>s escolas. São certezas que não<br />

se discutem, tão ocultas no mais íntimo de ca<strong>da</strong><br />

mestre. Não afloram. Tão inúmeras que não dá<br />

para contá-las nas pesquisas. São nossas certezas.<br />

Garantem velhas seguranças. Com um termo<br />

mais na mo<strong>da</strong> diríamos que essas certezas<br />

são a cultura escolar, a cultura profissional. São<br />

nossas crenças e nossos valores. Não se discutem,<br />

se praticam com fiel religiosi<strong>da</strong>de. (p. 171)<br />

É importante questionar, no entanto, até onde<br />

essas “certezas” contribuem para tornar esse<br />

ambiente educativo mais prazeroso para educandos<br />

e educadores. Nesse sentido, a escola<br />

é vi<strong>da</strong>, forma<strong>da</strong> por seres humanos que desejam<br />

e que se decepcionam; que se alegram e<br />

se frustram. Refletir sobre essas crenças pode<br />

ser um caminho para a presença <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de<br />

na escola e, talvez, até um pouco na nossa<br />

vi<strong>da</strong> fora dela. Trazer para a escola os elementos<br />

lúdicos <strong>da</strong> cultura é preparar uma práxis<br />

pe<strong>da</strong>gógica que realça a identi<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong><br />

sujeito, de sua comuni<strong>da</strong>de. É possibilitar a ca<strong>da</strong><br />

criança conhecer, mediante as manifestações<br />

lúdicas, a singulari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s <strong>da</strong>nças, dos jogos,<br />

dos folguedos, dos brinquedos, <strong>da</strong>s músicas <strong>da</strong><br />

sua região, mas também de outros povos, culturas<br />

diversas, vivenciando as diferenças e as<br />

semelhanças.<br />

63


Se der a gente brinca: crenças <strong>da</strong>s professoras sobre ludici<strong>da</strong>de e ativi<strong>da</strong>des lúdicas<br />

Essa visão <strong>da</strong> escola é ain<strong>da</strong> mais contingente<br />

quando volta<strong>da</strong> para a educação <strong>da</strong>s crianças<br />

<strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s populares. Autores como<br />

Nelson Marcellino (1990), Miguel Arroyo<br />

(1991), Gisela Wajskop (1995) e Gilles Brougère,<br />

(1998) entendem que as crianças <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s<br />

populares não encontram nas escolas<br />

públicas a mesma freqüência de ativi<strong>da</strong>des prazerosas<br />

como as crianças que vão às escolas<br />

particulares. Essa denúncia é grave e necessita<br />

um cui<strong>da</strong>do mais atento à visão de escola e<br />

criança que vigora nas escolas públicas.<br />

2.3 Discutindo as crenças <strong>da</strong>s professoras<br />

sobre seus/suas alunos/<br />

as: outra forma de conhecer as suas<br />

convicções diante ludici<strong>da</strong>de e<br />

<strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des lúdicas<br />

Com essa discussão objetivo analisar as crenças<br />

<strong>da</strong>s professoras sobre infância, em especial<br />

a respeito <strong>da</strong>s crianças <strong>da</strong>s classes populares,<br />

buscando demonstrar como essas crenças interferem<br />

na vivência <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des<br />

lúdicas na escola que atende às cama<strong>da</strong>s<br />

populares e no seu papel como educadoras.<br />

Dessa forma, está sistematiza<strong>da</strong> seguindo a<br />

descrição e análise de cinco crenças básicas:<br />

Como são carentes! As crianças <strong>da</strong> escola<br />

pública são muito violentas! As crianças <strong>da</strong>s<br />

cama<strong>da</strong>s populares não valorizam a escola!<br />

Os alunos têm que ficar quietos! Elas só<br />

gostam de brincar! Eu não sei ensinar brincando!<br />

As crianças aprendem melhor brincando!<br />

Conhecer as convicções que as professoras<br />

constituíram sobre seus/suas alunos/as é<br />

importante para este estudo porque entendo que<br />

é a partir delas que esses profissionais se posicionam<br />

frente à ludici<strong>da</strong>de e às ativi<strong>da</strong>des lúdicas.<br />

É válido dizer que essas crenças também<br />

influenciam na auto-imagem que as crianças<br />

fazem e na elaboração de propostas educacionais<br />

para essas crianças.<br />

A primeira crença sobre infância, que foi<br />

observa<strong>da</strong> em to<strong>da</strong>s as professoras, foi a que<br />

denominei como são carentes! A carência é<br />

64<br />

vista em diferentes aspectos, todos eles relacionados<br />

ao déficit de aprendizagem nutricional,<br />

cultural e afetiva. O fato de as crianças com as<br />

quais trabalham serem moradoras de bairro<br />

popular e pertencerem à classe social menos<br />

favoreci<strong>da</strong> torna essa crença ain<strong>da</strong> mais robusta.<br />

No que se refere a essa convicção, foi interessante<br />

observar que to<strong>da</strong>s as professoras pesquisa<strong>da</strong>s<br />

se ativeram aos fatores extra-escolares<br />

como causadores de carência e, em especial,<br />

aos aspectos familiares.<br />

Outra crença que também merece atenção,<br />

especialmente nos dias atuais, em que a relação<br />

professor-aluno tem sido um dos principais<br />

problemas enfrentados pelos docentes, diz respeito<br />

à convicção de que as crianças <strong>da</strong> escola<br />

pública são muito violentas. Percebi isso<br />

em Cândi<strong>da</strong>, Teresinha e Margari<strong>da</strong>, como uma<br />

interferência na relação que as professoras estabelecem<br />

com as crianças <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s populares,<br />

influenciando para que a ludici<strong>da</strong>de e as<br />

ativi<strong>da</strong>des lúdicas não se encontrem presentes<br />

na sala de aula nem na escola. Assim como na<br />

crença anterior, essa compreensão demonstra<br />

a responsabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> família em relação ao<br />

caráter “violento” <strong>da</strong>s crianças. Acreditar que<br />

as crianças <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s populares são violentas<br />

interfere negativamente para a vivência lúdica<br />

na escola freqüenta<strong>da</strong> por essa parte <strong>da</strong><br />

população.<br />

Similar a desvalorização <strong>da</strong> escola. Também<br />

percebi uma outra convicção que compreende<br />

que as crianças <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s populares não<br />

valorizam a escola. Essa convicção esteve<br />

evidente em Margari<strong>da</strong> e Teresinha, quando<br />

comparam as crianças <strong>da</strong> escola pública e <strong>da</strong><br />

escola priva<strong>da</strong>: o comportamento e a aprendizagem<br />

delas, além <strong>da</strong> forma de acompanhamento<br />

dos pais.<br />

Diante <strong>da</strong> afirmativa de que as crianças e<br />

seus pais não valorizam a escola, questionei a<br />

Margari<strong>da</strong> o que diferencia as crianças <strong>da</strong> escola<br />

pública e <strong>da</strong> escola particular e ela respondeu:<br />

A cobrança é maior. Eu acho que tem a cobrança<br />

dos pais que pagam, eles cobram mais porque<br />

eles estão pagando e querem ver retorno. E<br />

aqui na escola pública, não. Eles não cobram,<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 55-77, jan./jun., 2006


eles não aju<strong>da</strong>m a gente a fazer um trabalho,<br />

tem que ter continuação. Aqui a gente passa<br />

um dever de casa e os alunos não fazem. Já o<br />

aluno <strong>da</strong> escola particular, não. Eu acho que<br />

os pais cobram muito porque eles estão pagando.<br />

Eu acho que os pais que colocam os filhos<br />

numa escola particular, têm outro conhecimento,<br />

tem outra educação, sabe?! Os pais aqui<br />

botam os meninos pra estu<strong>da</strong>r porque precisam,<br />

mas vê que não é importante. Já os meninos<br />

<strong>da</strong> escola particular, ele sabe que é<br />

importante estu<strong>da</strong>r e ter uma profissão, para<br />

eles é a coisa mais importante que qualquer<br />

outra coisa poder ter uma profissão. (...) Para<br />

mim, é essa a diferença.<br />

Em relação a essa comparação entre os alunos<br />

e os pais <strong>da</strong> rede de ensino pública e priva<strong>da</strong>,<br />

Gimeno Sacristán (1996) nos chama a<br />

atenção para a noção de que:<br />

... essa comparação <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de do sistema<br />

público com a do privado desconsidera duas<br />

premissas metodológicas básicas: as condições<br />

socioeconômicas e culturais dos alunos<br />

dos dois sistemas; os objetivos educacionais,<br />

assim como as condições materiais, humanas,<br />

técnicas e metodológicas dispostas para a sua<br />

consecução. (p. 128)<br />

Ain<strong>da</strong> nesse sentido, Vera Corrêa (2000)<br />

salienta que a escola particular não é melhor,<br />

mas que o seu ensino é “adequado” a uma determina<strong>da</strong><br />

classe social. Assim, a baixa quali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> escola pública, entre outras questões,<br />

decorre do fato de ela não se a<strong>da</strong>ptar à classe<br />

social que a freqüenta, majoritariamente, as classes<br />

populares. Diante disso, justificam-se muitas<br />

<strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des encontra<strong>da</strong>s pelos alunos<br />

<strong>da</strong>s classes minotirárias na sua formação escolar.<br />

A noção de desinteresse dos pais e <strong>da</strong>s crianças<br />

<strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s populares traz a dificul<strong>da</strong>de<br />

em aprender no campo individual e não no social.<br />

Não se questiona, por exemplo, sobre o<br />

fato de que os conhecimentos que a escola valoriza<br />

não fazem parte <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de cotidiana<br />

dessas crianças; ao contrário, nega-se a sua<br />

reali<strong>da</strong>de, objetivando inculcar-lhes outros conhecimentos<br />

considerados singulares e ver<strong>da</strong>deiros.<br />

É necessário olhar com maior atenção<br />

a esse desinteresse <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s populares à<br />

escola. Régine Sirota (1994) contribui nesse<br />

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Ilma Maria Fernandes Soares; Bernadete de Souza Porto<br />

sentido, ao expressar que a frágil participação<br />

de crianças de classes populares na escola não<br />

significa desinteresse ou desinvestimento em<br />

relação à escola primária, mas uma atitude reativa<br />

de defesa diante de uma situação contraditória.<br />

(p. 106)<br />

Essa desvalorização <strong>da</strong> escola também é<br />

senti<strong>da</strong> pelas professoras, em cuja avaliação as<br />

crianças não se comportam como deveriam.<br />

Esse problema, no entanto, se agrava, ain<strong>da</strong><br />

mais, porque existe nesses profissionais a convicção<br />

de os alunos têm que ficar quietos.<br />

Essa crença é tão presente que foi manifesta<br />

por to<strong>da</strong>s as professoras, com exceção de Mariazinha.<br />

Iniciarei a discussão dessa crença abor<strong>da</strong>ndo<br />

o papel passivo <strong>da</strong>s crianças de forma mais<br />

geral e demonstrarei como essa crença se manifesta<br />

frente à vivência lúdica na escola. Considero<br />

interessante trazer nessa seção uma fala<br />

<strong>da</strong> Professora Margari<strong>da</strong>, em que esta convicção<br />

aparece com muita clareza:<br />

Não sei se é porque eu cobro muito de mim, eu<br />

acho que eu deveria ter uma aula assim, com<br />

todos alunos sentadinhos, ninguém levantasse,<br />

ficassem só ouvindo. Eu acho que eu sou<br />

incapaz de dominar a classe, me sinto fraca,<br />

apesar de que eu vejo que às vezes..., eu vejo<br />

que a falha não é minha, sabe, mas eu queria<br />

ter uns alunos sentadinhos, bonitinhos pra tudo<br />

que eu pudesse ensinar, sem dificul<strong>da</strong>des.<br />

Com a crença tão arraiga<strong>da</strong> de que os estu<strong>da</strong>ntes<br />

têm que assumir atitude passiva, não é<br />

difícil perceber que as ativi<strong>da</strong>des lúdicas na escola<br />

e, em especial, na sala de aula, estão ausentes,<br />

mas, quando são utiliza<strong>da</strong>s, são<br />

escolhi<strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des em que requeiram um<br />

mínimo de movimento por parte <strong>da</strong>s crianças.<br />

Mais uma vez, usando como exemplo a fala <strong>da</strong><br />

Professora Margari<strong>da</strong>, quero assinalar que a<br />

presença <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de em sala de aula tem<br />

relação direta com a nossa compreensão, saberes<br />

e crenças sobre a criança:<br />

Deixo. Eles brincam muito, às vezes quando eu<br />

chego eu dou um tempinho pra eles conversarem,<br />

botar os assuntos em dia, principalmente,<br />

segun<strong>da</strong>-feira. Agora, sem correrem, para evitar<br />

está correndo e se baterem um no outro.<br />

65


Se der a gente brinca: crenças <strong>da</strong>s professoras sobre ludici<strong>da</strong>de e ativi<strong>da</strong>des lúdicas<br />

66<br />

Mas quando eu vejo, estão correndo, se batendo.<br />

Eles não têm educação pra sentar e conversar,<br />

brincar. (...) Conversam entre si, não a sala<br />

to<strong>da</strong>; conversam comigo. Eu pergunto como foi<br />

o final de semana, se foram passear. (entrevista).<br />

Diante <strong>da</strong> dificul<strong>da</strong>de de alguns profissionais<br />

em li<strong>da</strong>r com a dinâmica <strong>da</strong>s crianças, uma<br />

posição assumi<strong>da</strong> por aqueles que buscam incluir<br />

as ativi<strong>da</strong>des lúdicas na sua prática pe<strong>da</strong>gógica<br />

é extrair dessas ativi<strong>da</strong>des qualquer<br />

possibili<strong>da</strong>de de movimento e expressão <strong>da</strong>s<br />

crianças.<br />

Não é somente a bagunça, incita<strong>da</strong> pelas<br />

ativi<strong>da</strong>des lúdicas em si, que incomo<strong>da</strong> as professoras,<br />

mas sim o fato de elas não saberem<br />

como “controlar” a turma nesses momentos, e<br />

o controle, como já discuti, é algo muito valorizado<br />

pelas professoras. Nesse sentido, a Professora<br />

Cândi<strong>da</strong> nos dá o seu testemunho:<br />

Pra eu trabalhar <strong>da</strong> forma que eu trabalho na<br />

escola, assim, eu acho que, como eu te falei,<br />

<strong>da</strong> minha preocupação de está controlando a<br />

turma, algumas vezes eu faço uma dinâmica,<br />

brincadeiras e tal em sala, mas eu não vou<br />

dizer que eu faço sempre. Isso! Então, o fato<br />

<strong>da</strong> turma ser assim, eu trabalho poucas dinâmicas<br />

mesmo.<br />

Com isso, observo que ain<strong>da</strong> se encontra<br />

presente em algumas professoras a crença de<br />

que o processo de aprendizagem ocorre mais<br />

eficazmente no silêncio e na passivi<strong>da</strong>de do que<br />

no movimento e na interação. Diante essa convicção,<br />

compreendi a resistência <strong>da</strong>s professoras<br />

às ativi<strong>da</strong>des lúdicas, pois elas também<br />

crêem que as ativi<strong>da</strong>des lúdicas geram bagunça.<br />

Essa crença busca justificar a resistência<br />

<strong>da</strong>s professoras às crianças vivenciarem<br />

jogos e brincadeiras na escola e na sala de aula,<br />

especialmente se a sua presença for em uma<br />

sala com muitos/as alunos/as.<br />

Em relação à disciplina, Johan Huizinga<br />

(2000) nos possibilita discor<strong>da</strong>r <strong>da</strong> crença <strong>da</strong>s<br />

professoras de que ativi<strong>da</strong>des mais dinâmicas<br />

produzem bagunça, ao demonstrar que, para a<br />

presença do elemento lúdico, é necessário que<br />

haja a ordem. Essa não é concebi<strong>da</strong> como obediência<br />

cega, repressora e arbitrária, mas como<br />

elaboração coletiva para o bom encaminhamen-<br />

to do que se propõe a realizar. Miguel Arroyo<br />

(2000) observa que:<br />

Manter os alunos silenciados é a negação de<br />

uma matriz educativa elementar: só há educação<br />

humana na comunicação, no diálogo, na interação<br />

entre humanos. Escola silenciosa é a negação<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> pe<strong>da</strong>gogia. No silêncio os<br />

alunos poderão aprender saberes fechados,<br />

competências úteis, mas não aprenderão a serem<br />

humanos. Não aprenderão o domínio <strong>da</strong>s<br />

múltiplas linguagens e o talento para o diálogo,<br />

a capaci<strong>da</strong>de de aprender os significados <strong>da</strong><br />

cultura. (p. 165)<br />

É possível observar que a preocupação com<br />

a desordem se encontra muito evidente em<br />

Margari<strong>da</strong>, quando justifica por que não estão<br />

presentes as ativi<strong>da</strong>des lúdicas no seu trabalho:<br />

Eu faço muito pouco. Eu evito muito por causa<br />

<strong>da</strong> bagunça que eles fazem muito. (...) Eu acho<br />

os jogos importantes, apesar de não fazer quase<br />

jogos com eles. Mas eu acho importante. Não<br />

tenho paciência, às vezes, eu começo a querer<br />

fazer um jogo com eles, mas aí, bagunça tudo e,<br />

eu paro.<br />

Essa falta de paciência a que Margari<strong>da</strong> se<br />

refere é oriun<strong>da</strong> <strong>da</strong> crença sobre o processo<br />

pe<strong>da</strong>gógico em que qualquer movimento <strong>da</strong> criança<br />

é tipo como desrespeito e incômodo. Nesse<br />

sentido, Cipriano Carlos Luckesi (2000) afirma<br />

que “A ativi<strong>da</strong>de lúdica, por si, é ação, e, como<br />

tal, implica em movimento, e, como tal, implica<br />

em movimento, em produção. Na medi<strong>da</strong> em<br />

que agimos ludicamente, criamos nosso mundo<br />

e a nós mesmos de forma lúdica.” (p. 26).<br />

A discussão <strong>da</strong>s convicções que crêem no<br />

papel passivo do aluno e de que o elemento lúdico<br />

na sala de aula rompe com essa passivi<strong>da</strong>de<br />

é relevante para compreender a resistência<br />

<strong>da</strong>s professoras a um trabalho sedimentado<br />

numa perspectiva lúdica.<br />

Julgo que o interesse <strong>da</strong>s crianças por ativi<strong>da</strong>des<br />

mais dinâmicas a elas incomo<strong>da</strong> por mexerem<br />

com suas crenças sobre o ensino e<br />

mostrarem a necessi<strong>da</strong>de delas assumirem outra<br />

atitude diante <strong>da</strong> práxis pe<strong>da</strong>gógica.<br />

Sobre a dificul<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s professoras em<br />

li<strong>da</strong>r com esse encantamento <strong>da</strong>s crianças pelas<br />

ativi<strong>da</strong>des mais dinâmicas, especialmente<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 55-77, jan./jun., 2006


com as ativi<strong>da</strong>des lúdicas, Giovanina Olivier<br />

(2003) assinala que “A especifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> infância,<br />

que é justamente a possibili<strong>da</strong>de de vivenciar<br />

o lúdico, é ignora<strong>da</strong> em prol <strong>da</strong> disciplina,<br />

do esforço, <strong>da</strong> aquisição de responsabili<strong>da</strong>des e<br />

de outras funções.” (p. 19).<br />

A constatação de que a criança e as ativi<strong>da</strong>des<br />

lúdicas não são valoriza<strong>da</strong>s na escola e<br />

na socie<strong>da</strong>de se agrava, por que tais ativi<strong>da</strong>des<br />

são volta<strong>da</strong>s para as crianças <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s populares.<br />

Essa visão sobre a criança pobre e que<br />

reflete na sua vivência lúdica tem origem desde<br />

Froebel (apud KISCHIMOTO, 1998). Esse<br />

importante estudioso do brincar, que defendeu<br />

o brincar livre <strong>da</strong> criança, acreditava que as<br />

crianças pobres precisam de maior orientação,<br />

direção, controle e disciplina. (p. 30).<br />

Noto que existe uma crença em relação ao<br />

desejo (e ao merecimento) de brincar que diferencia<br />

as crianças mais pobres <strong>da</strong>s demais. As<br />

crianças <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s populares não teriam o<br />

“comportamento” necessário para brincar. Ain<strong>da</strong><br />

em relação à vivência <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des lúdicas,<br />

Tizuko Kischimoto (1993), na sua análise<br />

histórica dos jogos, acentua que “As imagens<br />

de criança elabora<strong>da</strong>s por diversos segmentos<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira são responsáveis pelas<br />

percepções coletivas que traduzem perfis distintos<br />

para a criança pobre e rica, favorecendo<br />

ou ca<strong>da</strong>strando o direito de brincar” (p. 96).<br />

Essa concepção é discuti<strong>da</strong> por Paulo Nunes<br />

Almei<strong>da</strong> (2000), quando verifica que<br />

Enquanto para uma classe social privilegia<strong>da</strong> o<br />

conhecimento fornecido pela escola se caracteriza<br />

muito mais pelo jogo (condições normais e<br />

naturais de aprender), à classe menos favoreci<strong>da</strong><br />

o trabalho-jogo torna-se tão distante <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />

que leva os alunos ao desprazer, ao penoso,<br />

conseqüentemente ao fracasso, ao abandono e<br />

à reprovação em massa. (p. 61)<br />

São posições discriminatórias que fazem com<br />

que as crianças <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s populares, mesmo<br />

sabendo que a escola é necessária, não sintam<br />

prazer em freqüentá-la, originando o<br />

sentimento de que ir à escola é algo imposto e<br />

chato. Concepções como essa inviabilizam a<br />

presença <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de na escola, pois, para<br />

que os sujeitos do processo pe<strong>da</strong>gógico este-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 55-77, jan./jun., 2006<br />

Ilma Maria Fernandes Soares; Bernadete de Souza Porto<br />

jam envolvidos, é necessário que sejam respeitados,<br />

não somente como aprendizes, mas como<br />

seres humanos, que vivem em um contexto sociocultural<br />

específico. Conhecer as possibili<strong>da</strong>des<br />

e limites concretos <strong>da</strong>s crianças <strong>da</strong>s<br />

cama<strong>da</strong>s populares é contribuir para a sua formação<br />

como sujeitos humanos, que devem ser<br />

respeitados e educados <strong>da</strong> melhor maneira.<br />

A análise <strong>da</strong>s crenças <strong>da</strong>s professoras sobre<br />

as crianças <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s populares me permite<br />

constatar a força que essas convicções<br />

exercem sobre a prática pe<strong>da</strong>gógica dessas<br />

profissionais, inclusive dificultando a vivência<br />

<strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des lúdicas. Nesse<br />

sentido, Miguel Arroyo (2000) assinala que:<br />

Sem mexer nos valores, crenças, auto-imagens,<br />

na cultura profissional, não mu<strong>da</strong>remos a cultura<br />

política excludente e seletiva tão arraiga<strong>da</strong> em<br />

nossa socie<strong>da</strong>de. É a moderni<strong>da</strong>de conservadora<br />

e o credencialismo democraticista que se contentam<br />

com a reciclagem dos mestres, a lubrificação<br />

<strong>da</strong> função seletiva e excludente, a<br />

relativização do direito à educação e à cultura.<br />

Se contentam com limpar as artérias entupi<strong>da</strong>s<br />

<strong>da</strong> escola, facilitando os fluxos escolares, respeitando<br />

os ritmos diversos. O democratismo<br />

conservador não vai mais longe. (p. 177).<br />

Mesmo não demonstrando uma boa aceitação<br />

ao interesse <strong>da</strong>s crianças pela brincadeira,<br />

as professoras também crêem que as crianças<br />

aprendem melhor brincando. Essa foi<br />

uma frase que apareceu durante a entrevista<br />

de to<strong>da</strong>s as professoras entrevista<strong>da</strong>s. No que<br />

se refere a Margari<strong>da</strong> e Teresinha, mesmo sabendo<br />

que, em nível de conhecimento teórico,<br />

ambas são as que menos mostraram embasamento<br />

sobre educação, essa afirmação sobre o<br />

processo de aprendizagem <strong>da</strong>s crianças é fruto<br />

de teorias, com as quais elas, em algum momento,<br />

tiveram contato. Ouso ain<strong>da</strong> grifar que,<br />

embora elas saibam que as crianças aprendem<br />

melhor brincando, tal constatação não interfere<br />

no fazer pe<strong>da</strong>gógico que elas realizam, pois não<br />

pautam o seu trabalho pela via <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de.<br />

Tal constatação em relação à aprendizagem<br />

<strong>da</strong>s crianças faz surgir um dilema nas professoras,<br />

pois elas também percebem a sua deficiência<br />

em ensinar com base na prática de<br />

67


Se der a gente brinca: crenças <strong>da</strong>s professoras sobre ludici<strong>da</strong>de e ativi<strong>da</strong>des lúdicas<br />

ludici<strong>da</strong>de. Essa comprovação <strong>da</strong>s professoras<br />

Margari<strong>da</strong> e Cândi<strong>da</strong> constitui uma crença que<br />

denominei Eu não sei ensinar brincando! Essa<br />

crença não se refere somente às ativi<strong>da</strong>des lúdicas,<br />

mas também a um trabalho que tenha os<br />

pressupostos <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de. Essa deficiência<br />

é origina<strong>da</strong> nos cursos de formação que elas<br />

fizeram. Vejamos como Margari<strong>da</strong> se expressa<br />

sobre esse assunto:<br />

68<br />

Eu acho que na minha formação de magistério,<br />

eu não tive aquele negócio de trabalhar, ensinar<br />

brincando, eu não tive.<br />

A dificul<strong>da</strong>de que o/a professor/a tem em<br />

organizar sua práxis pe<strong>da</strong>gógica pela via <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de<br />

ocorre também porque a sua formação<br />

– incluindo todo o processo e não somente<br />

os cursos de formação de professor – não lhe<br />

confere o ensejo de vivenciar ativi<strong>da</strong>des que<br />

tenham esse caráter. Geralmente, entretanto,<br />

esses cursos ensinam e solicitam que esse profissional<br />

estabeleça a sua práxis pauta<strong>da</strong> nas<br />

teorias de conhecimento que defendem o educando<br />

como ser ativo e, também, que utilize as<br />

manifestações lúdicas no processo de ensinoaprendizagem.<br />

Assim como a criança precisa<br />

do adulto para ter acesso ao acervo lúdico disponível<br />

na cultura, os futuros professores, que<br />

se encontram em formação, também necessitam<br />

vivenciar a importância dessas ativi<strong>da</strong>des<br />

na condição de alunos.<br />

Acredito que a presença <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de na<br />

práxis do professor é muito mais do que a adoção<br />

de uma nova técnica de ensino. É, especialmente,<br />

a adoção de uma nova atitude em<br />

relação ao seu trabalho, aos sujeitos que dele<br />

participam. A escolha de uma posição que privilegia<br />

a visão mecânica, fecha<strong>da</strong>, postula<strong>da</strong> na<br />

racionali<strong>da</strong>de técnica ou em dimensões mais<br />

prazerosas, mais fluí<strong>da</strong>s e expressivas do seu<br />

fazer pe<strong>da</strong>gógico são escolhas que, embora não<br />

sendo somente uma opção racional, dependem<br />

muito do próprio sujeito.<br />

É importante mencionar, também, que, ao<br />

brincar com as crianças o professor não está<br />

somente contribuindo para a formação <strong>da</strong> criança,<br />

mas também proporcionando a si próprio<br />

entrar em contato, através <strong>da</strong> memória, com as<br />

suas experiências culturais, positivas e negativas,<br />

as quais têm sua fonte no pessoal e no social.<br />

Essa possibili<strong>da</strong>de não tem em si um caráter<br />

compensatório, pois acredito que a forma de<br />

vivenciar a ludici<strong>da</strong>de na infância não é a<br />

mesma no indivíduo adulto, haja vista que os<br />

referenciais que os dois trazem em si são diferenciados,<br />

mas talvez ajudem o adulto, ao conectar<br />

o passado e o presente, a estabelecer<br />

uma relação mais prazerosa com as crianças e<br />

consigo próprio.<br />

2.4 Trabalho docente e vivência<br />

lúdica na escola: que crenças<br />

permeiam o que fazer pe<strong>da</strong>gógico<br />

<strong>da</strong>s professoras?<br />

Neste tópico objetivo analisar as crenças <strong>da</strong>s<br />

professoras sobre a sua função docente, em<br />

especial, nas séries iniciais, compreendendo a<br />

discussão sobre o trabalho educativo, a especifici<strong>da</strong>de<br />

desse profissional e o seu papel frente<br />

à ludici<strong>da</strong>de e às ativi<strong>da</strong>des lúdicas. Procuro,<br />

ain<strong>da</strong>, demonstrar que uma atitude lúdica do<br />

professor contribui para a realização de um trabalho<br />

de quali<strong>da</strong>de na busca <strong>da</strong> formação humana.<br />

Um aspecto relevante em relação ao processo<br />

formativo e às crenças foi apresentado<br />

pela Professora Margari<strong>da</strong>, quando questionei<br />

a relação entre o seu fazer pe<strong>da</strong>gógico e o curso<br />

de magistério que fez. Sobre isso ela relata:<br />

Tudo que eu faço hoje, eu aprendi ensinando,<br />

perguntando aos colegas, por mim mesma, não<br />

o que eu aprendi no magistério.<br />

Essa constatação de Margari<strong>da</strong> é de grande<br />

importância para o estudo <strong>da</strong>s crenças, pois<br />

como já mostrei ao enumerar algumas características<br />

<strong>da</strong>s convicções, a escola é um espaço<br />

formativo de grande importância para o/a professor/a,<br />

inclusive se tornando mais decisivo nas<br />

atitudes assumi<strong>da</strong>s por eles/as em salas de aulas<br />

do que nos cursos de formação, como constatam<br />

Ana Maria Sa<strong>da</strong>lla (1998), Rita de C. Silva<br />

(2000), Maurice Tardif (2002) e Philippe Perrenoud<br />

(2001,) dentre outros. Assim, as esco-<br />

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las onde esses/as profissionais atuam e as suas<br />

salas de aula devem ser entendi<strong>da</strong>s como espaço<br />

de formação para o qual convergem reprodução<br />

e inovação. Como constatam Manuel<br />

Jacinto Sarmento (1994) e Rita de C. Silva<br />

(2000), porém, é mais preponderante a reprodução,<br />

inclusive com forte influência dos professores<br />

antigos sobre os iniciantes, fazendo<br />

com que, aos poucos, os seus ideais e conhecimentos<br />

sobre o ensino, aprendidos nos cursos<br />

de formação, sejam substituídos pela rotina e<br />

pelo tradicionalismo. Esse “rito de passagem”,<br />

como denomina Manuel Sarmento (1994), ocorre,<br />

principalmente, porque o jovem professor é<br />

obrigado a enfrentar uma escola fecha<strong>da</strong>, domina<strong>da</strong><br />

pela burocracia, hábitos, e que é resistente<br />

às inovações pe<strong>da</strong>gógicas.<br />

Nesse momento, acredito que as crenças dos<br />

professores se tornam mais fortes, pois, ao perceberem<br />

que alguns conhecimentos obtidos nos<br />

cursos de formação não resolvem os problemas<br />

mais emergenciais, recorrem ao período<br />

em que eram alunos/as, quando, na sua percepção,<br />

as coisas <strong>da</strong>vam certo – especialmente<br />

quando se trata <strong>da</strong>s questões referentes à<br />

disciplina e aprendizagem – ou eram mais fáceis<br />

para o educador.<br />

Com base nos recursos metodológicos utilizados,<br />

detectei as seguintes crenças: Ser professor<br />

é como se fosse mãe! Professor clareia<br />

caminhos! A gente transmite conteúdos!<br />

A análise dessas convicções nos faz compreender<br />

a necessi<strong>da</strong>de de uma redefinição <strong>da</strong><br />

profissionali<strong>da</strong>de docente, em que os/as professores/as<br />

adotem novas atitudes individuais e<br />

coletivas, abdiquem do caráter de sacerdócio e<br />

assumam o caráter profissional do seu ofício,<br />

incorporando não somente aspectos racionais,<br />

baseados no Iluminismo, mas também afetivos,<br />

corporais, artísticos dentre outros.<br />

A crença a gente transmite conteúdos demonstra<br />

o caráter reducionista do papel formativo<br />

do professor e interfere na vivência <strong>da</strong><br />

ludici<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des lúdicas na escola.<br />

Enfatizo que essa transmissão está atrela<strong>da</strong> e,<br />

na maioria <strong>da</strong>s vezes, limita<strong>da</strong>, aos conteúdos<br />

que constam no livro didático adotado pela professora.<br />

É importante mencionar que esse pa-<br />

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Ilma Maria Fernandes Soares; Bernadete de Souza Porto<br />

râmetro de avaliação do professor, se encontra<br />

presente em to<strong>da</strong> a socie<strong>da</strong>de e é sedimentado<br />

nos cursos de formação de professores/as.<br />

Miguel Arroyo (2000) faz uma crítica aos cursos<br />

de formação, explicando que:<br />

O modelo de escola e de mestre que os centros<br />

reproduzem na ocupação dos tempos e espaços<br />

é para o aulismo, para ser meros aulistas. Essas<br />

lacunas no aprendizado são irreparáveis. Como<br />

esses mestres vão valorizar a escola como espaço<br />

cultural, de socialização, de convívio, de trocas<br />

humanas se a escola em que estu<strong>da</strong>ram e se<br />

formaram não equaciona tempos, espaços, ativi<strong>da</strong>des<br />

de cultura, convívio e socialização? (p.131).<br />

Tal crença desconsidera a aprendizagem, tornando-se<br />

um processo mecânico, impessoal e<br />

exterior aos sujeitos envolvidos. Diante dessa crença<br />

relativa à função docente, atrela<strong>da</strong> à transmissão<br />

de conteúdo, é possível afirmar que para as<br />

professoras, os conteúdos são supremos.<br />

A supervalorização dos conteúdos é algo<br />

marcante no trabalho <strong>da</strong>s professoras e faz com<br />

que muitas considerem, mesmo que tacitamente,<br />

que o sentido do seu fazer pe<strong>da</strong>gógico se<br />

restrinja à transmissão de conteúdos, recaindo<br />

no “aulismo”. Essa concepção as torna defensivas<br />

em relação às propostas de renovação<br />

pe<strong>da</strong>gógica. No entanto, a necessi<strong>da</strong>de premente<br />

que enfatizo no que diz respeito à função do/<br />

a professor/a na contemporanei<strong>da</strong>de, não significa<br />

abdicar dos conhecimentos historicamente<br />

elaborados, mas assumir o seu caráter formador<br />

numa perspectiva mais ampla, como a criativi<strong>da</strong>de,<br />

a sensibili<strong>da</strong>de, a imaginação e a<br />

afetivi<strong>da</strong>de que sempre foram secun<strong>da</strong>riza<strong>da</strong>s<br />

do currículo escolar.<br />

Ao mesmo tempo, percebo embuti<strong>da</strong> a essa<br />

crença <strong>da</strong> supremacia dos conteúdos outra convicção<br />

relaciona<strong>da</strong> ao papel <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des lúdicas:<br />

as ativi<strong>da</strong>des lúdicas nas séries iniciais<br />

só devem estar presentes na escola se o objetivo<br />

for a transmissão de conteúdo.<br />

As três vezes em que pude observar Cândi<strong>da</strong><br />

utilizando jogos com os seus alunos foram<br />

para reforçar um conteúdo trabalhado em sala<br />

de aula. A professora falou, durante a entrevista,<br />

que aproveita do prazer que as crianças sen-<br />

69


Se der a gente brinca: crenças <strong>da</strong>s professoras sobre ludici<strong>da</strong>de e ativi<strong>da</strong>des lúdicas<br />

tem com as brincadeiras e jogos para transmitir<br />

o conteúdo. É nesse mesmo sentido que ela se<br />

posiciona ao ser interroga<strong>da</strong> se as brincadeiras<br />

devem estar presentes na escola:<br />

70<br />

Eu acho que tem que fazer parte sim, brincadeira<br />

que sirva para transmitir conteúdos. Para<br />

os pequeninos eu acho que as brincadeiras também<br />

tem que servir para o lazer, para o prazer<br />

deles, além do conteúdo, o prazer também. Até<br />

porque pros pequeninos, você brinca de cor<strong>da</strong>,<br />

de amarelinha, pois aju<strong>da</strong> na coordenação deles:<br />

de correr, de brincar, de pular no chão.<br />

Mas pros meus alunos que são de dez a quatorze<br />

anos, eu acho que o mais importante do lúdico,<br />

é na hora do conteúdo, pra tornar a aula<br />

mais interessa pra eles e pra ver se eles se voltam<br />

mais pra aula. Seria, né, no caso. Com os<br />

meus alunos eu acho que o lúdico tem que está<br />

ligado ao conteúdo. É está buscando forma de<br />

trabalhar o conteúdo de forma lúdica: fazer<br />

bingo, jogos em equipe pra quem consegue primeiro<br />

ou mais.<br />

A professora esclareceu, durante a entrevista<br />

que, ao se referir aos “pequeninhos”, ela<br />

está falando <strong>da</strong>s crianças do pré-escolar, de, no<br />

máximo, seis anos. Assim como D. Mariazinha,<br />

Cândi<strong>da</strong> também tem a crença de que as<br />

brincadeiras devem fazer parte do trabalho com<br />

as crianças na <strong>Educação</strong> Infantil, sendo que,<br />

para essa, é mais forte a necessi<strong>da</strong>de de associação<br />

dos jogos à transmissão de conteúdo.<br />

Do mesmo modo, constato na atitude <strong>da</strong><br />

Professora Teresinha aspectos semelhantes à<br />

Cândi<strong>da</strong> ao destacar, veementemente, que os<br />

conteúdos são o foco principal do trabalho do<br />

professor.<br />

Porque o professor tem que cumprir o conteúdo.<br />

A gente sabe disso. Que não pode deixar<br />

passar na<strong>da</strong>. Você tem um programa para ser<br />

cumprido e você tem que fazer, porque isso aí é<br />

uma coisa extra, porque as brincadeiras e os<br />

jogos não estão dentro do conteúdo, é você que<br />

coloca. Então eu procuro colocar no espaço<br />

<strong>da</strong> aula normal, para poder <strong>da</strong>r.<br />

Essa crença, além de dificultar a vivência<br />

<strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des lúdicas mais espontâneas na escola,<br />

em especial na sala de aula, compreende<br />

como educativo somente o que objetivar a transmissão<br />

ou reforço de conteúdos formais. As-<br />

sim, os jogos educativos, ao serem utilizados por<br />

algumas professoras, a partir do ponto de vista<br />

delas, perdem seu caráter mais amplo, tais como<br />

os aspectos corporais, a imaginação, a estética,<br />

a sensibili<strong>da</strong>de, dentre outros.<br />

Com essa observação, percebo que a forma<br />

como os jogos são utilizados nas escolas se caracteriza,<br />

muitas vezes, como exercício pe<strong>da</strong>gógico<br />

do que como ativi<strong>da</strong>de que trazem em si os<br />

princípios <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de. Essa atitude diante dos<br />

jogos justifica a falta de interesse, de muitos estu<strong>da</strong>ntes,<br />

pelos jogos propostos em sala de aula.<br />

Os jogos educativos são, muitas vezes, ativi<strong>da</strong>des<br />

obrigatórias a serem realiza<strong>da</strong>s pelos alunos,<br />

mesmo quando não há uma motivação interna,<br />

inclusive é comum a utilização de reforços (punições<br />

e/ou prêmios), de forma a estimular nas<br />

crianças a conclusão <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des.<br />

2.5 Está sendo a escola um espaço<br />

para a vivência lúdica? Relacionando<br />

as crenças e as teorias<br />

sobre ludici<strong>da</strong>de e ativi<strong>da</strong>des<br />

lúdicas.<br />

Nesse último módulo objetivo analisar as<br />

crenças <strong>da</strong>s professoras sobre ludici<strong>da</strong>de e<br />

ativi<strong>da</strong>des lúdicas, avaliando a importância desses<br />

elementos para o trabalho educativo. É importante<br />

registrar o fato de que esse módulo<br />

acrescenta basicamente duas crenças sobre<br />

essa temática e sua relação com a educação.<br />

São elas:<br />

- Brincadeira é coisa de criança!<br />

- A competição é estimulante no processo<br />

educativo!<br />

Por intermédio desta primeira crença, esclareço<br />

que a vivência lúdica não tem valor<br />

somente para as crianças, mas para as pessoas<br />

em qualquer i<strong>da</strong>de e a sua contribuição para<br />

nós, adultos-educadores, é enorme. Um trabalho<br />

que demonstra a importância <strong>da</strong> vivência<br />

lúdica pelo adulto é realizado por Airton<br />

Negrini (1998), em seu livro intitulado Terapias<br />

corporais: a formação pessoal do adulto.<br />

Nesse livro, o autor indica que a ludici<strong>da</strong>de<br />

não pode ser reserva<strong>da</strong> somente à criança e<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 55-77, jan./jun., 2006


essa compreensão é “... na<strong>da</strong> mais é do que a<br />

per<strong>da</strong> <strong>da</strong> naturali<strong>da</strong>de humana, imposta pelo<br />

homem ao próprio homem.” (p. 26). O autor<br />

acrescenta que é equivocado entendimento de<br />

que o adulto, quando volta a jogar (brincar), se<br />

torna criança novamente. Acontece é que essas<br />

ativi<strong>da</strong>des desbloqueiam as resistências,<br />

ampliam sensações de prazer, possibilitam ao<br />

educador se conhecer, contribuem para uma<br />

melhor disponibili<strong>da</strong>de corporal e, assim, a pessoa<br />

se conscientiza <strong>da</strong>s suas possibili<strong>da</strong>des e<br />

limitações, além de despertar para uma atitude<br />

de escuta em relação aos circunstantes,<br />

para melhor compreendê-los e relacionar-se<br />

com eles.<br />

Em relação à crença que compreende que<br />

a competição é estimulante no processo educativo,<br />

não se limita às ativi<strong>da</strong>des lúdicas. Na<br />

ver<strong>da</strong>de, a competição perpassa a escola em<br />

vários aspectos. Num sentido mais amplo, essa<br />

crença foi percebi<strong>da</strong> em Teresinha e Margari<strong>da</strong><br />

e, em relação à competição presente nos<br />

jogos, com muita força, em Cândi<strong>da</strong> e em Margari<strong>da</strong>.<br />

Para a Professora Cândi<strong>da</strong>, a competição é<br />

um elemento estimulador. Ela diz, inclusive, que<br />

“Se não houver prêmio, eles vão querer brincar”.<br />

Por mais que pareça que os jogos em si<br />

são naturalmente competitivos, isso não é ver<strong>da</strong>de.<br />

Celso Antunes (2001) esclarece que “Não<br />

é sua natureza mas suas regras que mais claramente<br />

definem se é o mesmo competitivo ou<br />

cooperativo”. (p.12). Paulo Ghiraldelli Júnior<br />

(2000) também faz uma crítica à competição,<br />

ao notar que:<br />

A hipervalorização <strong>da</strong> competência e a proposição<br />

<strong>da</strong> competitivi<strong>da</strong>de como um ideal educacional<br />

sugerem, reali<strong>da</strong>de, a volta ao “<strong>da</strong>rwinismo<br />

social” e à simples luta pela sobrevivência entre<br />

as diferentes espécies do reino animal, que termina,<br />

inevitavelmente, com o extermínio dos mais<br />

fracos pelos mais fortes. (p. 77)<br />

A valorização <strong>da</strong> competição, seja no processo<br />

de ensino-aprendizagem seja nos jogos,<br />

é contrária à compreensão de ludici<strong>da</strong>de aqui<br />

defendi<strong>da</strong>, pois não contribui para a educação<br />

humana nos seus aspectos formativos mais essenciais,<br />

tanto no trato consigo mesmo quanto<br />

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Ilma Maria Fernandes Soares; Bernadete de Souza Porto<br />

com os outros, pois nega a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, a cooperação,<br />

a partilha, a interação.<br />

A criação de um trabalho lúdico que se paute<br />

nos pressupostos elencados no início desta<br />

seção, não significa modismo, mas justifica-se<br />

diante <strong>da</strong>s suas contribuições para a formação<br />

humana. Assim, é necessário que os/as professores/as<br />

tenham acesso aos conhecimentos<br />

sobre a ludici<strong>da</strong>de. Somente assim entenderão<br />

a importância desses aspectos e os incluirão<br />

com objetivos pe<strong>da</strong>gógicos.<br />

Quanto à desvalorização <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des lúdicas<br />

e <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de isso só ocorre porque, de<br />

forma geral, as professoras desconhecem as<br />

inúmeras contribuições para o processo pe<strong>da</strong>gógico.<br />

3. AMARRANDO OS FIOS: ALGU-<br />

MAS POSSÍVEIS CONCLUSÕES<br />

As crenças sistematiza<strong>da</strong>s e a sua análise<br />

possibilitam fazer algumas considerações sobre<br />

a presença do elemento lúdico na escola. Nesse<br />

sentido, um dos resultados é que a resistência<br />

<strong>da</strong>s professoras não é somente aos jogos e<br />

brincadeiras, mas também a outras ativi<strong>da</strong>des<br />

que tragam em si o princípio <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de em<br />

que, portanto, haja maior participação <strong>da</strong>s crianças.<br />

Desse modo, percebo a centrali<strong>da</strong>de que<br />

os/as professores/as assumem em relação ao<br />

trabalho pe<strong>da</strong>gógico. Em vários momentos, durante<br />

a fala <strong>da</strong>s professoras, em especial de<br />

Teresinha e Margari<strong>da</strong>, é a sensação de desconforto<br />

que sentem, quando se propõem a fazer<br />

essas ativi<strong>da</strong>des, que determina continuar<br />

ou não um trabalho com esse caráter.<br />

Percebi, durante a pesquisa, que as professoras,<br />

diante <strong>da</strong> deficiência em sua formação,<br />

compreendem a ludici<strong>da</strong>de como recreação e<br />

confecção de ativi<strong>da</strong>des e recursos, ou seja, uma<br />

atribuição a mais no seu ofício. Dessa forma,<br />

não se sentem prepara<strong>da</strong>s, não consideram que<br />

isto faz parte do seu papel pe<strong>da</strong>gógico e, assim,<br />

não demonstram esse desejo de vivenciá-la com<br />

seus alunos. É necessário que eles enten<strong>da</strong>m<br />

que a ludici<strong>da</strong>de extrapola a utilização <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des<br />

lúdicas.<br />

71


Se der a gente brinca: crenças <strong>da</strong>s professoras sobre ludici<strong>da</strong>de e ativi<strong>da</strong>des lúdicas<br />

Em relação às crianças uma conclusão a que<br />

chego é que as professoras trabalham com a<br />

criança ideal, ficando difícil e, por que não dizer,<br />

impossível, as crianças se encaixarem nessas<br />

expectativas. Concluo também que se<br />

concebe a criança como um ser universal, negando-se<br />

o seu contexto histórico, sua individuali<strong>da</strong>de,<br />

sua faixa etária e os aspectos<br />

socioculturais.<br />

Após a análise <strong>da</strong>s crenças <strong>da</strong>s professoras,<br />

sistematiza<strong>da</strong>s ao longo desse trabalho, é<br />

possível assinalar que a ludici<strong>da</strong>de e as ativi<strong>da</strong>des<br />

lúdicas na escola são considera<strong>da</strong>s secundárias<br />

no processo pe<strong>da</strong>gógico. Essa<br />

desvalorização é decorrente de vários fatores:<br />

a vivência lúdica, na visão <strong>da</strong>s professoras<br />

encontra-se limita<strong>da</strong> ao uso de ativi<strong>da</strong>des<br />

como jogos e brincadeiras, o que, nas suas<br />

convicções, só justifica a sua utilização na<br />

sala de aula se for para o reforço ou avaliação<br />

de conteúdos, pois é a sua aquisição a<br />

priori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> escola;<br />

diante dessa supremacia dos conteúdos, os/<br />

as professores/as se cobram e são cobrados<br />

a cumprirem os assuntos estabelecidos<br />

para a etapa de ensino em que trabalham.<br />

Dessa forma, são estabelecidos horários rígidos<br />

para ca<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de e, nesse sentido, o<br />

tempo disponibilizado para as ativi<strong>da</strong>des<br />

lúdicas se restringe ao recreio, que a ca<strong>da</strong><br />

dia se encontra mais restrito, e uma parte<br />

do período <strong>da</strong>s sextas-feiras, com o objetivo<br />

de descanso. A realização de um trabalho<br />

pautado na ludici<strong>da</strong>de também é dispensa<strong>da</strong>,<br />

diante <strong>da</strong> convicção de que realizar um<br />

trabalho junto com os/as alunos/as, discutindo,<br />

arriscando, é um desperdício de tempo,<br />

o que as faz optarem por prática mais disciplinar,<br />

de exposição oral, cabendo aos alunos<br />

participarem com as respostas e ativi<strong>da</strong>des<br />

que lhes são solicita<strong>da</strong>s pelo professor.<br />

Dessa forma, o tempo de planejar também<br />

não é utilizado, geralmente, para organização<br />

de ativi<strong>da</strong>des lúdicas a serem feitas<br />

com as crianças, nem com propostas que<br />

possam ter a espontanei<strong>da</strong>de, o respeito às<br />

diferenças, a imaginação, a criativi<strong>da</strong>de, a<br />

72<br />

participação, a iniciativa, a alegria, a curiosi<strong>da</strong>de,<br />

o questionamento de concepções e<br />

estratégias suas e dos colegas para a<br />

efetivação <strong>da</strong> aprendizagem.<br />

por último, a desvalorizando <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de<br />

e <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des lúdicas é mais intensa se a<br />

escola for volta<strong>da</strong> para a formação <strong>da</strong>s crianças<br />

<strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s populares, pois as professoras<br />

crêem que esses elementos são<br />

“per<strong>da</strong>s de tempo”, já que essas crianças,<br />

além de serem mais carentes culturalmente,<br />

e pelo fato de a escola necessitar suprir<br />

essa privação, os seus comportamentos, violentos<br />

e indisciplinados, também limitam a<br />

experiência lúdica com esses/as alunos/as.<br />

Ain<strong>da</strong> nesse terreno <strong>da</strong> disciplina, desvalorização<br />

<strong>da</strong> manifestação lúdica na escola, principalmente<br />

em sala de aula, também ocorre pela<br />

crença de que a sua presença instiga a indisciplina.<br />

Essa crença é decorrente do movimento,<br />

<strong>da</strong> expressão de alegria, <strong>da</strong> absorção que, geralmente,<br />

ocorrem quando se utilizam ativi<strong>da</strong>des<br />

com esse cunho. Diante dessa convicção,<br />

percebi a dificul<strong>da</strong>de que as professoras têm<br />

em realizar um trabalho em que as crianças<br />

exerçam um papel mais ativo, em que mantenham<br />

um contato mais intenso com os/as colegas.<br />

Essas questões fazem com que elas neguem<br />

ou minimizem a importância de um trabalho lúdico.<br />

Tal crença decorre do processo de escolarização,<br />

guiado pela tendência tradicional, que,<br />

certamente, perpassou a formação dessas profissionais,<br />

que supervaloriza a disciplina, a transmissão<br />

de conteúdo, a homogeneização e nega<br />

a espontanei<strong>da</strong>de, a diferença, a flexibili<strong>da</strong>de, a<br />

incerteza dos resultados, a relevância no processo<br />

e não somente no produto. Diante disso,<br />

a presença <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de é recusa<strong>da</strong>, pois esta<br />

busca romper, entre outros aspectos, com a rigidez<br />

dos tempos cronometrados e com os papéis<br />

estereotipados.<br />

Diante <strong>da</strong> secun<strong>da</strong>rização <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de no<br />

processo educativo, constato que as professoras<br />

desconhecem os estudos que trazem os<br />

benefícios dessas questões para o desenvolvimento<br />

humano ou, se algumas a eles têm acesso,<br />

esse conhecimento convive com as crenças<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 55-77, jan./jun., 2006


que inviabilizam ou dificultam um trabalho que<br />

se paute na ludici<strong>da</strong>de. Dessa forma, defendo<br />

a importância dos cursos de formação, seja inicial<br />

ou continua<strong>da</strong>, em possibilitarem o acesso<br />

às discussões que vêm sendo feitas sobre a relevância<br />

<strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de. Essas discussões, porém,<br />

devem vir acompanha<strong>da</strong>s de vivências lúdicas<br />

para que os/as professores possam desbloquear<br />

suas resistências e experienciar sensações, como<br />

flexibili<strong>da</strong>de, inteireza e prazer. Assim, os professores<br />

compreenderão melhor o interesse <strong>da</strong>s<br />

crianças por essas ativi<strong>da</strong>des e se sentirão mais<br />

permeáveis em oferecer essas oportuni<strong>da</strong>des<br />

para os seus alunos. Essa junção do conhecimento<br />

teórico e vivencial pode possibilitar mexer<br />

nos valores e nas crenças que as professoras<br />

têm sobre a ludici<strong>da</strong>de, fazendo com que elas<br />

compreen<strong>da</strong>m a importância desse elemento no<br />

trabalho educativo.<br />

Acrescento o fato de que essas experiências,<br />

juntamente com um momento de reflexão<br />

sobre elas e a posição assumi<strong>da</strong> frente à vivência<br />

lúdica na escola, podem possibilitar às professoras<br />

reverem as suas crenças, a partir <strong>da</strong><br />

instauração <strong>da</strong>s dúvi<strong>da</strong>s, do desafio de caminhar<br />

por lugares ain<strong>da</strong> incertos. Nesse sentido,<br />

as crenças podem ser mobiliza<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong><br />

atitude aprendente, flexível do educador em<br />

relação a questionar as suas “ver<strong>da</strong>des”. Desestabilizar<br />

as “certezas” que temos também<br />

constitui movimento de formação para os educadores.<br />

As crenças não são imutáveis. Assim, trazê-las<br />

à tona não é “culpar” as professoras pelos<br />

males <strong>da</strong> educação, mas demonstrar como<br />

essas convicções, associa<strong>da</strong>s a outros mecanismos,<br />

interferem na elaboração e perpetuação<br />

de ideais que nem sempre são os mais<br />

adequados para a efetivação de um processo<br />

educativo de quali<strong>da</strong>de para as crianças pobres.<br />

Ao mesmo tempo, constato que o movimento<br />

realizado pelas ludici<strong>da</strong>de e as ativi<strong>da</strong>des<br />

lúdicas é exatamente o de romper com esses<br />

estereótipos presentes na sala de aula, pois<br />

mexe com a lineari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s crenças, por exemplo,<br />

em relação ao papel que professores e alunos<br />

assumem no processo pe<strong>da</strong>gógico: professor<br />

que transmite aluno que absorve. Esse aspecto<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 55-77, jan./jun., 2006<br />

Ilma Maria Fernandes Soares; Bernadete de Souza Porto<br />

causa desconforto em alguns/mas professores,<br />

pois é com essas “ver<strong>da</strong>des” que foi possível<br />

construir a sua compreensão do trabalho educativo.<br />

Ain<strong>da</strong> sobre os estereótipos, em vários<br />

momentos durante a fala <strong>da</strong>s professoras, em<br />

especial de Teresinha e Margari<strong>da</strong>, ficou clara<br />

a sensação de desconforto que sentem quando<br />

se propõem a fazer ativi<strong>da</strong>des lúdicas; inclusive<br />

é essa sensação que determina continuar ou<br />

não um trabalho com esse caráter.<br />

Um aspecto que considero relevante e que,<br />

na minha compreensão, pode ser considerado um<br />

fator que justifica a resistência de algumas professoras<br />

em realizar um trabalho pautado na ludici<strong>da</strong>de,<br />

diz respeito ao fato de que a<br />

incorporação desse elemento à prática pe<strong>da</strong>gógica<br />

não significa somente modificar as suas convicções<br />

sobre esse aspecto contingencialmente,<br />

mas incita a mexer em to<strong>da</strong> a sua rede de crenças<br />

sobre o processo educacional, que abrange<br />

sua visão de educação, escola, papel assumido<br />

por professores e alunos, processo de ensinoaprendizagem<br />

etc. Diante desse fato, de que alterar<br />

um dos componentes interfere em to<strong>da</strong> a<br />

estrutura do sistema de crenças, a viabilização<br />

de um trabalho lúdico não é fácil de ser congregado<br />

ao trabalho docente, pois incita outra forma<br />

de sentir, pensar e agir, o que justifica a<br />

presença do tradicionalismo no fazer de muitos/<br />

as educadores/as, pois foi assim que aprenderam<br />

a exercer o seu papel educacional, mas, ao<br />

mesmo tempo, é algo possível e enriquecedor.<br />

Por meio desta análise, é possível também<br />

sinalizar a marcante presença dos pressupostos<br />

tradicionais no trabalho pe<strong>da</strong>gógico <strong>da</strong> maioria<br />

<strong>da</strong>s professoras. Essa presença justifica-se<br />

porque tal tendência oferece ao professor maior<br />

segurança, uma vez que estabelece papéis<br />

bem determinados entre educandos/as e educadores/as,<br />

frente ao tratamento com os conteúdos,<br />

o ensino etc. Já a ludici<strong>da</strong>de corta essa<br />

polarização, pois, tanto o/a professor/a quanto<br />

o/a aluno/a assumem um papel ativo na elaboração<br />

do conhecimento, estabelecem uma relação<br />

mais horizontaliza<strong>da</strong>, o que, diante <strong>da</strong>s<br />

crenças dos/as professores/as, torna o trabalho<br />

pe<strong>da</strong>gógico mais difícil e, ain<strong>da</strong>, na compreensão<br />

de alguns deles/as, muitas vezes, inviável.<br />

73


Se der a gente brinca: crenças <strong>da</strong>s professoras sobre ludici<strong>da</strong>de e ativi<strong>da</strong>des lúdicas<br />

Assim, optar por continuar com um trabalho tradicionalista<br />

é mais tranqüilo e fácil, pois não<br />

mexe com seu sistema de crenças.<br />

Como contribuição teórica no campo <strong>da</strong>s<br />

crenças, penso ter esse estudo concorrido no<br />

sentido de aju<strong>da</strong>r a esclarecer o seu conceito,<br />

no sentido de que, ao analisar as crenças <strong>da</strong>s<br />

professoras, três características podem aju<strong>da</strong>r<br />

na compreensão e delimitação desse campo de<br />

estudo. São elas:<br />

a) As crenças que os/as professores formulam<br />

sobre o processo pe<strong>da</strong>gógico não se<br />

separam <strong>da</strong>s questões pessoais, mas a elas<br />

se misturam, pois suas convicções são frutos<br />

<strong>da</strong>s vivências pessoais e profissionais.<br />

Dessa forma, considero que as crenças, assim<br />

como os saberes dos/as professores/as,<br />

como argumenta Maurice Tardif (2002), são<br />

existenciais, no sentido de que são constituí<strong>da</strong>s<br />

a partir do que se acumulou em termos de<br />

experiência de vi<strong>da</strong> e foram elabora<strong>da</strong>s a partir<br />

<strong>da</strong> sua forma de sentir, pensar e atuar no/sobre<br />

o mundo.<br />

Acredito, também, que a identi<strong>da</strong>de pessoal<br />

do/a professor/a se encontra perpassa<strong>da</strong> pelas<br />

suas vivências profissionais. Nesse sentido,<br />

considero relevante citar, como exemplo principal<br />

dessa constatação, a atitude <strong>da</strong> Professora<br />

Mariazinha, que, conforme ela mesma<br />

demarca, a sua relação com a docência é permea<strong>da</strong><br />

pela experiência de ser mãe de uma criança<br />

especial. Percebi que, em relação a essa<br />

professora, o seu interesse em se conhecer, a<br />

ela possibilita maior abertura em buscar conhecer<br />

os alunos, como seres diferentes, nem por<br />

isso com menor valor.<br />

b) As crenças são pensa<strong>da</strong>s a partir de<br />

uma interpretação parcial <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, mas<br />

são usa<strong>da</strong>s para explicar genericamente diferentes<br />

situações, sem um conhecimento mais<br />

sistematizado do fato.<br />

Essa segun<strong>da</strong> característica diz respeito ao<br />

caráter de generalização <strong>da</strong>s crenças. Essa proprie<strong>da</strong>de<br />

ocorre diante <strong>da</strong> interpretação que<br />

generaliza algo contingente, que pode ter ocorrido<br />

somente uma vez. Essa característica é<br />

resultante do fato de que as convicções naturalizam<br />

o que parece estranho, o que, de alguma<br />

74<br />

forma, está associado à característica <strong>da</strong> segurança<br />

que as crenças nos proporcionam.<br />

Essa generalização ocorre pelo aspecto pragmatista<br />

<strong>da</strong>s convicções, que busca controlar<br />

diferentes setores sem maior compreensão dos<br />

porquês, que podem ser heterogêneos. Os principais<br />

elementos <strong>da</strong> pesquisa ,que me fizeram<br />

perceber essa característica foram o posicionamento<br />

generalizado <strong>da</strong>s professoras, por<br />

exemplo, em relação às crianças e seus membros<br />

familiares; a função <strong>da</strong> escola; as convicções<br />

sobre o trabalho docente, à ludici<strong>da</strong>de e<br />

às ativi<strong>da</strong>des lúdicas. Tal generalização, diante<br />

de um comportamento, fato ou experiência, por<br />

exemplo, torna-se visível, quando se utiliza termos,<br />

como todos e nunca. Essa marca <strong>da</strong>s crenças<br />

é perigosa, porque pode nos levar a enganos,<br />

diante <strong>da</strong> questão de que a interpretação de um<br />

recorte <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de não é a ver<strong>da</strong>de em si, pois<br />

é um conhecimento parcial. Além do mais, não<br />

se reflete sobre as causas, nem tampouco sobre<br />

os efeitos dessa generalização, o que faz<br />

gerar a característica seguinte.<br />

c) As crenças influenciam na criação de<br />

estereótipos.<br />

Esse aspecto, extremamente ligado à generalização,<br />

demonstra a dimensão ideológica <strong>da</strong>s<br />

crenças, pois a estereotipação é decorrente de<br />

um conhecimento sem maior fun<strong>da</strong>mentação e<br />

análise. Desse modo, perpetuam-se compreensões<br />

e comportamentos que, muitas vezes, limitam<br />

ou desvirtuam determinado objeto, sujeito<br />

e práticas.<br />

A pesquisa demonstrou mais fortemente os<br />

estereótipos <strong>da</strong>s convicções <strong>da</strong>s professoras<br />

quando essas se referiam aos alunos e famílias<br />

<strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s populares, na relação educandoeducador<br />

e também em relação à ludici<strong>da</strong>de e<br />

às ativi<strong>da</strong>des lúdicas. Essas crenças encontramse<br />

permea<strong>da</strong>s por idéias negativas e/ou fecha<strong>da</strong>s,<br />

sendo que, muitas vezes, são desprovi<strong>da</strong>s<br />

do conhecimento real dessas questões. Mesmo<br />

sem esse conhecimento mais aprofun<strong>da</strong>do, essas<br />

convicções se multiplicam, exercendo forte<br />

poder na prática pe<strong>da</strong>gógica dessas professoras<br />

no momento em que norteiam o trabalho<br />

que elas realizam como se fossem a “própria<br />

reali<strong>da</strong>de”. No sentido <strong>da</strong> vivência lúdica, cito,<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 55-77, jan./jun., 2006


por exemplo, a convicção de que essa cria bagunça.<br />

Estereótipos como esses interferem na<br />

restrição ou ausência <strong>da</strong> presença <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de<br />

na escola e, em especial, na sala de aula.<br />

Esclareço que o conhecimento científico também<br />

tem um caráter generalizante. No entanto,<br />

diferencia-se <strong>da</strong>s crenças, no sentido de que as<br />

convicções generalizam sem uma análise mais<br />

sistematiza<strong>da</strong>, por isso mesmo, cria os estereótipos;<br />

já na ciência, isso ocorre através de métodos<br />

que, utilizados num sistema de amostragem,<br />

tenta explicar e justificar todo um<br />

fenômeno. É nesse sentido que podemos afirmar<br />

que as ciências criam paradigmas.<br />

Diante do fato de a crença não ser um aspecto<br />

consciente para o indivíduo, a necessi<strong>da</strong>de<br />

de transformá-la é algo complexo. Ponto<br />

fun<strong>da</strong>mental é trazê-la para o nível <strong>da</strong> consciência,<br />

para assim poder avaliá-la e, se necessário,<br />

redimensioná-la. Esse não é um movimento<br />

fácil, pois a rotina e a execução quase<br />

mecânica dificultam observar, refletir e questionar<br />

os valores e atitudes que perpassam o trabalho<br />

que realizam cotidianamente. Diante do<br />

fato de as crenças serem elabora<strong>da</strong>s a partir<br />

de um contexto sociocultural, esse processo de<br />

REFERÊNCIAS<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 55-77, jan./jun., 2006<br />

Ilma Maria Fernandes Soares; Bernadete de Souza Porto<br />

modificação também poderá ser mais eficaz,<br />

se realizado coletivamente, mediante o questionamento,<br />

pois, como nota Eugenio Ramos<br />

(1997), as crenças não são imunes a dúvi<strong>da</strong>s e<br />

desequilíbrios. Dessa forma poderão se estabelecer<br />

o diálogo e o acesso a outros pontos de<br />

vista, com os estudos elaborados pelas diferentes<br />

áreas do conhecimento, que poderão interferir<br />

para modificar convicções que não contribuem<br />

adequa<strong>da</strong>mente para a melhoria do<br />

processo ensino-aprendizagem.<br />

Quando afirmo a importância de um trabalho<br />

profissional diferente, que torne a práxis<br />

pe<strong>da</strong>gógica do professor mais significativa para<br />

si e para os educandos, não desconsidero que<br />

esse processo é doloroso, permeado por dúvi<strong>da</strong>s,<br />

medos e conflitos, haja vista não ser fácil<br />

abrir mão de certezas, presentes há déca<strong>da</strong>s,<br />

na prática dos professores. Além do mais, para<br />

tentar mu<strong>da</strong>r essas crenças temos que focalizar<br />

não somente os professores, como categoria,<br />

mas é necessário atentarmos para todo<br />

o imaginário social que cristaliza um entendimento<br />

<strong>da</strong> profissão docente, que tanto influencia<br />

como é influenciado pelas convicções <strong>da</strong>s<br />

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SNYDERS, Georges. Alunos felizes: reflexão sobre a alegria na escola a partir de textos literários. Tradução<br />

76<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 55-77, jan./jun., 2006


<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 55-77, jan./jun., 2006<br />

Ilma Maria Fernandes Soares; Bernadete de Souza Porto<br />

de Cátia Ain<strong>da</strong> Pereira <strong>da</strong> Silva. São Paulo: Paz e Terra, 1993.<br />

SOARES, Ilma Mª Fernandes. Para além do cognitivo na formação dos educadores: uma contribuição <strong>da</strong>s<br />

ativi<strong>da</strong>des lúdicas. <strong>Revista</strong> de <strong>Educação</strong> CEAP, Salvador: Centro de Estudos e Assessoria Pe<strong>da</strong>gógica, v.<br />

10, n. 38, p. 37-45, 2002.<br />

_____. Jogos educativos: uma relação entre a educação e o lúdico ou uma desvirtualização <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des<br />

lúdicas? In: PORTO, Bernadete de Souza (Org.). Ludici<strong>da</strong>de: o que é mesmo isso?. Salvador: UFBA, 2002. p.<br />

194-212.<br />

_____. Se der a gente brinca: crenças de professoras sobre ludici<strong>da</strong>de e ativi<strong>da</strong>des lúdicas. 2005. 235 p.<br />

Dissertação (Mestrado) - Facul<strong>da</strong>de de <strong>Educação</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia, Salvador, 2005.<br />

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002.<br />

WAJSKOP, Gisela. Brincar na pré-escola. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2001. (Coleção questões <strong>da</strong> nossa época,<br />

v. 48).<br />

Recebido em 28.02.06<br />

Aprovado em 16.04.06<br />

77


<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 79-98, jan./jun., 2006<br />

Sueli Barros <strong>da</strong> Ressurreição; Bernadete de Souza Porto<br />

CORAÇÃO DE PROFESSOR:<br />

o (des)encanto do trabalho<br />

sob uma visão sócio-histórica e lúdica<br />

RESUMO<br />

Sueli Barros <strong>da</strong> Ressurreição*<br />

Bernadete de Souza Porto*<br />

A pesquisa teve como objeto de estudo a afetivi<strong>da</strong>de no trabalho docente,<br />

analisando a importância <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> vivência psicocorporal na formação<br />

de professores. Buscou, como pauta, a análise <strong>da</strong> ambigüi<strong>da</strong>de do papel profissional<br />

que permeia a crise do professorado neste século, diante <strong>da</strong>s pressões e exigências<br />

advin<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças sociais, <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de tecnocientífica, <strong>da</strong> pulverização<br />

do trabalho docente, <strong>da</strong> descaracterização de sua ação e seus reflexos na prática<br />

pe<strong>da</strong>gógica. Ao mesmo tempo, discutiu a importância <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de na formação<br />

profissional, no investimento afetivo e no reencanto do professor em seu trabalho.<br />

A investigação qualitativa foi realiza<strong>da</strong> mediante um estudo de caso com vinte e<br />

cinco professores <strong>da</strong> rede pública de Ensino Médio, vinculados aos principais<br />

colégios situados na ci<strong>da</strong>de de Salvador-Bahia. O estudo concluiu que as ativi<strong>da</strong>des<br />

lúdico-corporais na formação de professores representam uma estratégia eficaz<br />

para enfrentar as adversi<strong>da</strong>des do ofício, ao ampliar a consciência do educador<br />

e atuar no seu equilíbrio afetivo-energético. Dessa forma, podem contribuir para<br />

formulações de políticas volta<strong>da</strong>s para formação docente e para prevenção de<br />

doenças ocupacionais desta categoria.<br />

Palavras-chave: Afetivi<strong>da</strong>de – Trabalho Docente – Formação de Professores<br />

– Ludici<strong>da</strong>de – Ativi<strong>da</strong>des lúdico-corporais.<br />

ABSTRACT<br />

TEACHER HEART: the (dis)enchantment of his/her work according<br />

to a social-historical and ludic perspective<br />

This research is about affectivity in teaching. It analyzes the importance of<br />

playfulness and psychological body experience in the teacher formation. We<br />

have analyzed the teachers’ ambiguity as professionals, which permeates the<br />

* Autora do artigo. Psicóloga; psicoterapeuta corporal e especialista em psicope<strong>da</strong>gogia; mestre em educação pela<br />

FACED/UFBA. Professora assistente <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Bahia (UNEB) Campus XVII - Bom Jesus <strong>da</strong><br />

Lapa. Endereço para correspondência: Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias – Campus XVII - Universi<strong>da</strong>de<br />

do Estado <strong>da</strong> Bahia. Av. Agenor Magalhães, Amaralina – 47600.000. Bom Jesus <strong>da</strong> Lapa/BA. E-mails:<br />

suelibarros@pollynet.com.br / sressurreicao@uneb.com<br />

** Co-autora: orientadora <strong>da</strong> pesquisa. Doutora em <strong>Educação</strong> pela Universi<strong>da</strong>de Federal do Ceará (UFC). Endereço<br />

para correspondência: Facul<strong>da</strong>de 7 de Setembro, Rua Almirante Maximiano <strong>da</strong> Fonseca, 1395, Edson Queiroz –<br />

60811.024 Fortaleza-Ce. E-mail: b.porto@fa7.edu.br<br />

79


Coração de professor: o (des)encanto do trabalho sob uma visão sócio-histórica e lúdica<br />

80<br />

crises about teachers during this century, as they face pressures demands<br />

resulting from social changes, techno-scientific rationality, from the pulverization<br />

of teachers role, from the featureless of this action and its reflexes in the<br />

pe<strong>da</strong>gogic practice. At the same time, it discussed the importance of playfulness<br />

in professional formation and affective investment and renew the teacher<br />

enchantment in his/her work. The qualitative research was conducted through<br />

a case study involving twenty-five teachers from the high school public education<br />

system, linked to the main high schools situated in Salvador (Bahia, Brazil).<br />

The research concluded that the play-corporal activities in the teachers<br />

formation represent an efficient strategy to face adversities, amplify<br />

consciousness and balancing its energetic-affective equilibrium. This way,<br />

teachers can help to formulate politics directed to their formation and to avoid<br />

professional sickness.<br />

Keywords: Affectivity – Teaching – Teacher Formation – Playfulness – Playcorporal<br />

activities<br />

Qual é, então, a maneira mais certa de viver? A vi<strong>da</strong> deve ser vivi<strong>da</strong> como jogo, jogando<br />

certos jogos, fazendo sacrifícios, cantando e <strong>da</strong>nçando, e assim o homem poderá conquistar o<br />

favor dos deuses e defender-se de seus inimigos, triunfando no combate.<br />

(Platão, apud Huizinga, 2004, p. 22)<br />

Este artigo discute os resultados de uma<br />

pesquisa realiza<strong>da</strong> com um grupo de vinte e cinco<br />

professores do Ensino Médio <strong>da</strong> Rede Estadual<br />

em colégios situados na periferia e no centro<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Salvador –Bahia. O trabalho foi<br />

iniciado em 2004 e seus <strong>da</strong>dos foram analisados<br />

e apresentados no ano de 2005. 1<br />

A preocupação central <strong>da</strong> pesquisa consistiu<br />

em compreender a importância do Trabalho<br />

na estrutura psicológica do ser humano, segundo<br />

enfoque sócio-histórico, e a relação que estabelece<br />

com duas dimensões fun<strong>da</strong>mentais<br />

desta estrutura: a afetivi<strong>da</strong>de e a ludici<strong>da</strong>de 2 .<br />

Partiu do pressuposto materialista dialético de<br />

que o trabalho tem uma função ontológica na<br />

constituição e objetivação do ser humano<br />

(MARX e ENGELS, 1999) e de que a afetivi<strong>da</strong>de<br />

e a ludici<strong>da</strong>de se apresentam como dimensões<br />

constituintes do sujeito e fun<strong>da</strong>mental<br />

para o entendimento do processo <strong>da</strong> sua subjetivação,<br />

especialmente no que se refere a sua<br />

identi<strong>da</strong>de e estabelecimento de vínculos<br />

(ELKONIN,1998; WALLON, 1968 e<br />

VYGOTSKY, 1988).<br />

Desta preocupação emergiu a curiosi<strong>da</strong>de<br />

epistemológica de saber como a afetivi<strong>da</strong>de se<br />

apresenta no trabalho docente e qual a contribuição<br />

<strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de para a formação pessoal<br />

e profissional do professor. Para tanto, apresentamos<br />

três fontes de nossa aspiração ao tema<br />

de estudo: as pesquisas contemporâneas sobre<br />

o mal-estar dos professores, a nossa experiência<br />

como docente de alunos-professores na<br />

Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Bahia e a nossa prática<br />

clínica no atendimento aos profissionais de<br />

educação.<br />

A primeira fonte cita<strong>da</strong> apóia-se nas pesquisas<br />

realiza<strong>da</strong>s, nas últimas déca<strong>da</strong>s, sobre<br />

as conseqüências <strong>da</strong> relação aliena<strong>da</strong> do ho-<br />

1 O artigo é baseado na minha dissertação de mestrado,<br />

defendi<strong>da</strong> em 17 de outubro no Programa de Pesquisa e Pós-<br />

Graduação <strong>da</strong> FACED/UFBA, orienta<strong>da</strong> por Bernadete de<br />

Souza Porto (UFC), e tendo como banca examinadora<br />

Cipriano Carlos Luckesi (UFBA), Eliseu Clementino de<br />

Souza (UNEB) e Lúcia Helena Pena Pereira (UFSJ).<br />

2 Apesar de não haver registro dicotomizado em Português,<br />

é largo o seu emprego em Pe<strong>da</strong>gogia, Psicologia e ramos<br />

científicos afins, motivo por que aplicamos o vocábulo sempre<br />

grafado em itálico.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 79-98, jan./jun., 2006


mem com o trabalho e que ressaltam a importância<br />

<strong>da</strong> dimensão subjetiva <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de laboral<br />

para a saúde do trabalhador.<br />

Dentre estas pesquisas, pode ser destaca<strong>da</strong><br />

a do espanhol Esteve (1999) sobre o mal-estar<br />

docente, na qual analisa a crise contemporânea<br />

na profissão do educador e onde conclui que,<br />

nos últimos vinte anos, não só na Espanha, como<br />

em todo o mundo, o modelo socioeconômico<br />

acelerado mudou de forma significativa o perfil<br />

dos professores, suas relações e condições de<br />

trabalho na escola.<br />

Tais mu<strong>da</strong>nças acarretam pressões psicológicas<br />

e sociais constantes sobre a ativi<strong>da</strong>de<br />

docente, provocando efeitos permanentes de<br />

caráter negativo, denominados de “mal-estar”,<br />

que afetam a personali<strong>da</strong>de dos professores.<br />

O autor observa que, embora o mal-estar se<br />

manifeste de forma individual no professor<br />

(frustração, tensão, ansie<strong>da</strong>de, esgotamento),<br />

apresenta-se como problema coletivo, ou seja,<br />

tem raízes no contexto social onde se insere.<br />

Neste sentido, aponta alguns fatores desencadeantes,<br />

como por exemplo: aumento <strong>da</strong>s responsabili<strong>da</strong>des<br />

e exigências sobre os educadores,<br />

resultando em acúmulo de funções antes<br />

designa<strong>da</strong>s a outras instituições, a exemplo <strong>da</strong><br />

família; a subvalorização <strong>da</strong> afetivi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong><br />

representação social docente nos programas de<br />

formação; precárias condições de trabalho e<br />

modificações no status social medido pelo nível<br />

salarial; falta de autonomia e controle sobre<br />

o próprio trabalho.<br />

No Brasil, Codo (1999), numa extensa pesquisa<br />

realiza<strong>da</strong> em todos os estados brasileiros,<br />

com cinqüenta e dois mil professores do ensino<br />

fun<strong>da</strong>mental e médio, constatou que as mu<strong>da</strong>nças<br />

educacionais contemporâneas fragmentam<br />

o trabalho destes profissionais, causando-lhes<br />

uma tensão emocional constante e impondo-lhes<br />

uma cisão entre seu “eu profissional” e seu “eu<br />

pessoal”.<br />

Esta cisão pode provocar, segundo o autor,<br />

um estado de apatia, um desencanto que o faz<br />

“perder o fogo” na sua ativi<strong>da</strong>de, e que, uma<br />

vez não mediado, pode resultar num estresse 3<br />

ocupacional crônico denominado de Síndrome<br />

de Burnout ou Síndrome <strong>da</strong> Desistência.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 79-98, jan./jun., 2006<br />

Sueli Barros <strong>da</strong> Ressurreição; Bernadete de Souza Porto<br />

Também observamos, nestes últimos anos,<br />

que a Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº 9.394)<br />

de 20 de dezembro de 1996, os Parâmetros<br />

Curriculares Nacionais (PCN) e os pilares para<br />

<strong>Educação</strong> para o século XXI, defendidos no<br />

relatório de Delors (2001), trouxeram propostas<br />

de mu<strong>da</strong>nças significativas sobre as responsabili<strong>da</strong>des<br />

e competências para os professores<br />

e sua formação. Dessa forma, abriram vasto<br />

campo para pesquisa sobre profissionalização<br />

e formação de professores.<br />

A segun<strong>da</strong> fonte de nossa aspiração ao tema<br />

vem de nossa experiência na regência <strong>da</strong>s disciplinas<br />

Psicologia <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> e Psicomotrici<strong>da</strong>de,<br />

nos cursos de licenciatura <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

do Estado <strong>da</strong> Bahia (UNEB), nas quais<br />

observamos que as queixas dos alunos-professores<br />

se resumiam, às vezes, em fadiga, sentimento<br />

de impotência, ausência de motivação e<br />

despersonalização, o que de fato os tornavam,<br />

a priori, mais vulneráveis à chama<strong>da</strong> “queimadura<br />

interna” ou Burnout (CODO,1999).<br />

Percebíamos que o resultado <strong>da</strong> sobrecarga<br />

de responsabili<strong>da</strong>des ocupacionais, a falta de<br />

condições de administrar a sua própria ativi<strong>da</strong>de<br />

e o esquecimento de sua pessoa afetiva dota<strong>da</strong><br />

de sonhos e de estima própria poderiam<br />

propiciar um desencanto no trabalho.<br />

E, finalmente, a terceira fonte, advém do<br />

nosso exercício clínico, na área de Psicoterapia<br />

Corporal, onde tivemos oportuni<strong>da</strong>de de ouvir o<br />

cliente-professor, sobre o quanto seu trabalho<br />

estava sendo fatigante na medi<strong>da</strong> em que proporcionava<br />

poucas condições para o investimento<br />

afetivo, assim como para a sua realização<br />

profissional.<br />

Nesta trilha, pensamos que as ativi<strong>da</strong>des lúdicas<br />

e as vivências psicocorporais, inseri<strong>da</strong>s<br />

num espaço que possibilite aos professores compartilharem<br />

seus impasses e questionamentos<br />

enfrentados no cotidiano de sua práxis, podem<br />

ser um meio de ampliação de contato com os<br />

3 Codo (1999) esclarece que não se pode confundir Burnout<br />

com estresse. O estresse é um esgotamento pessoal com<br />

interferência na vi<strong>da</strong> do sujeito e não necessariamente na<br />

sua relação com o trabalho. O Burnout envolve atitudes e<br />

condições negativas com relação aos usuários, clientes, organização<br />

e trabalho.<br />

81


Coração de professor: o (des)encanto do trabalho sob uma visão sócio-histórica e lúdica<br />

processos psíquicos, servindo como estratégias<br />

para atuar no equilíbrio afetivo-racional (LU-<br />

CKESI, 2000). Podem ain<strong>da</strong> assumir um lugar<br />

importante na formação pessoal do professor<br />

na sua trajetória profissional, uma vez que a<br />

ludici<strong>da</strong>de ocupa papel fun<strong>da</strong>mental nas etapas<br />

do desenvolvimento psicológico e sociocultural<br />

como sustentam Elkonin (1998), Bróugérè<br />

(1998), Huizinga (1993), Vigotski (1998), dentre<br />

outros.<br />

Discorremos então com o objetivo principal<br />

de nossa pesquisa, qual seja, analisar a importância<br />

<strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> vivência psicocorporal<br />

na formação de professores, refletindo<br />

sobre a relação afetivi<strong>da</strong>de e trabalho.<br />

Para atingir tal objetivo, optamos pela abor<strong>da</strong>gem<br />

qualitativa e usamos como dispositivos<br />

de análise entrevistas e ativi<strong>da</strong>des<br />

lúdico-corporais inseri<strong>da</strong>s numa situação de<br />

grupo focal com os professores, selecionados<br />

através de um Curso de Extensão Universitária.<br />

O curso teve como foco o próprio objetivo<br />

<strong>da</strong> pesquisa, ou seja, a discussão sobre a<br />

afetivi<strong>da</strong>de do professor no seu trabalho e a<br />

importância <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>s práticas<br />

psicocorporais na sua formação. Contou com o<br />

apoio <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia/Facul<strong>da</strong>de<br />

de <strong>Educação</strong> (UFBA/FACED) e do Grupo<br />

de Estudo e Pesquisa em <strong>Educação</strong> e<br />

Ludici<strong>da</strong>de (GEPEL) <strong>da</strong> mesma Facul<strong>da</strong>de, para<br />

sua operacionalização, essencialmente no que<br />

tange à cessão do espaço físico, equipamentos,<br />

divulgação e emissão de certificados aos participantes.<br />

Neste curso, disponibilizamos um espaço<br />

onde os instrumentos oferecidos permitiam que<br />

a expressão lúdica e corporal dos professores<br />

se tornasse a principal mediadora para<br />

refletir sobre sua situação de trabalho, seu<br />

envolvimento profissional e seu equilíbrio<br />

afetivo presente na práxis pe<strong>da</strong>gógica.<br />

Assim, a vivência desses momentos de expressão<br />

e reflexão, utilizando os dispositivos<br />

anteriormente citados, mostrou-se coerente com<br />

o nosso objeto de investigação e ampliou nossa<br />

percepção sobre o problema <strong>da</strong> pesquisa, potencializando<br />

algumas questões que serão discuti<strong>da</strong>s<br />

a seguir.<br />

82<br />

SER OU NÃO SER? OS PROFESSO-<br />

RES RESPONDEM<br />

Na primeira fase <strong>da</strong> pesquisa no grupo, buscamos<br />

compreender como os professores<br />

percebem seu trabalho e sua formação profissional<br />

e quais os fatores presentes nesta<br />

ativi<strong>da</strong>de que trazem desencanto, ou seja,<br />

um “endurecimento afetivo” que os faz desistir<br />

de sua ação de cui<strong>da</strong>r, tirando-lhes a<br />

esperança, trazendo-lhes sentimentos de<br />

impotência e frieza emocional.<br />

Entendemos que a ativi<strong>da</strong>de docente, como<br />

práxis, não se restringe ao desempenho de habili<strong>da</strong>des<br />

técnicas, mas se apresenta como a<br />

elaboração de um saber socialmente compartilhado,<br />

tendo a finali<strong>da</strong>de de ampliar a consciência<br />

dos educandos no seu desenvolvimento<br />

como seres sócio-históricos. Assim, a ver<strong>da</strong>deira<br />

práxis 4 , é ação autônoma, refleti<strong>da</strong>, conheci<strong>da</strong><br />

e reconheci<strong>da</strong> pelo seu agente.<br />

Por outro lado, estudos mostram que o trabalho<br />

docente é afetado pelo ”fetichismo tecnológico”,<br />

que, segundo Giroux (2000, p. 69),<br />

consiste numa “racionali<strong>da</strong>de tecnocrática” que,<br />

debilita a práxis pe<strong>da</strong>gógica, reduzindo-a a metodologias<br />

que não priorizam o pensamento crítico,<br />

sendo os estu<strong>da</strong>ntes levados a querer saber<br />

“como fazer”, como “funciona” e não interpretando<br />

sua ação. Supõe, desta forma, que todos<br />

podem aprender com a mesma técnica, negando-lhes<br />

sua característica sócio-histórica.<br />

Tal racionali<strong>da</strong>de não reconhece o papel <strong>da</strong><br />

práxis educativa como um conjunto concreto<br />

de práticas na qual são forma<strong>da</strong>s identi<strong>da</strong>des,<br />

de onde emergem formas diferentes de conhecimento,<br />

de experiências e de subjetivi<strong>da</strong>des.<br />

E, neste veio tecnocrático, o professor, por sua<br />

vez, é visto basicamente como um receptor<br />

passivo do conhecimento científico e participa<br />

muito pouco <strong>da</strong> determinação do conteúdo e <strong>da</strong><br />

direção do seu programa de ensino. (GIROUX,<br />

1997).<br />

4 A práxis é a ativi<strong>da</strong>de humana real e efetiva que transforma<br />

o mundo natural e social para fazer dele um mundo<br />

humano segundo explica Sanches-Vázquez (1968). Este<br />

conceito e seus elementos serão discutidos no decorrer deste<br />

capítulo.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 79-98, jan./jun., 2006


Arroyo (2000, p. 19), ao estu<strong>da</strong>r o imaginário<br />

social do professor, na socie<strong>da</strong>de tecnocrática,<br />

observa que este é visto como “apêndice”, mero<br />

“recurso técnico”, pois a gestão tecnocrática nega<br />

a centrali<strong>da</strong>de do sujeito no trabalho em troca<br />

<strong>da</strong>s técnicas, conteúdos e métodos. Assinala que<br />

o “ofício de mestre”, assim chamado por ele, é<br />

uma imagem construí<strong>da</strong> social, histórica, cultural<br />

e politicamente e, por isto, está amarra<strong>da</strong> a interesses<br />

que extrapolam a escola.<br />

O autor questiona até que ponto a ativi<strong>da</strong>de<br />

docente é um “ofício descartável”, destacando a<br />

especifici<strong>da</strong>de deste ofício. Supõe o domínio de<br />

um saber específico e de uma identi<strong>da</strong>de profissional<br />

no campo <strong>da</strong> ação. Afirmamos que<br />

deste saber específico e de sua qualificação dependem<br />

a escola e outros espaços educativos.<br />

Para Arroyo (2000), ter esse ofício significa<br />

orgulho, satisfação. É ter afirmação e defesa<br />

de uma identi<strong>da</strong>de individual e coletiva, por isso,<br />

remete-nos à memória, aos artífices, a uma ação<br />

qualifica<strong>da</strong> e profissional. Os professores são<br />

mestres de um ofício que só eles sabem fazer:<br />

“porque aprenderam seus segredos, seus saberes”<br />

e uma “resistente cultura” contra a tecnocracia<br />

e ao lemas pragmáticos utilitários<br />

impostos pela política educacional.<br />

Convergindo para este pensamento, Nóvoa<br />

(1995) sublinha que as mu<strong>da</strong>nças e inovações<br />

pe<strong>da</strong>gógicas são inteiramente dependentes do<br />

processo identitário do professor. O autor entende<br />

este processo como um espaço dinâmico<br />

de lutas e conflitos, de uma maneira de ser e<br />

estar na profissão e se alimenta do tempo para<br />

assimilar e acomo<strong>da</strong>r as transformações.<br />

Na mesma direção, Pimenta (2002, p. 15-<br />

19) defende a posição de que o trabalho do professor<br />

ca<strong>da</strong> vez mais se torne necessário para<br />

a socie<strong>da</strong>de na constituição <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, na<br />

superação <strong>da</strong>s desigual<strong>da</strong>des sociais e do fracasso<br />

escolar. Conceitua identi<strong>da</strong>de com uma<br />

construção do sujeito historicamente situado, não<br />

sendo exclusivamente individual nem exclusivamente<br />

social. E, como tal, a profissão professor<br />

emerge de um contexto histórico como<br />

resultado <strong>da</strong>s deman<strong>da</strong>s sociais que, dinamicamente,<br />

vão se transformando e adquirindo novas<br />

características, ressignificando os papéis,<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 79-98, jan./jun., 2006<br />

Sueli Barros <strong>da</strong> Ressurreição; Bernadete de Souza Porto<br />

reafirmando e revisando hábitos, prática e teorias.<br />

Como é também individual, a identi<strong>da</strong>de<br />

profissional é forma<strong>da</strong> pelo modo de ser de<br />

ca<strong>da</strong> professor, de sentir, de situar-se e relacionar-se<br />

no mundo e perceber a reali<strong>da</strong>de.<br />

No seu estudo sobre a construção <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de<br />

do professor, divide os saberes <strong>da</strong> docência<br />

em três: saber <strong>da</strong> experiência, do conhecimento<br />

e pe<strong>da</strong>gógicos. Nesta tônica, o saber <strong>da</strong><br />

experiência constitui-se em dois níveis. O primeiro<br />

é pessoal, é o saber sobre ser professor<br />

por meio <strong>da</strong> história de vi<strong>da</strong>, <strong>da</strong> experiência<br />

acumula<strong>da</strong>. O segundo nível é profissional, produzido<br />

no cotidiano de sua práxis docente, num<br />

processo permanente de reflexão sobre sua<br />

prática em interação com os alunos, colegas e<br />

conteúdos teóricos.<br />

Já o saber sobre o conhecimento não significa<br />

apenas informação teórica, mas o significado<br />

que tais conhecimentos têm para si próprio<br />

e para a socie<strong>da</strong>de. O saber pe<strong>da</strong>gógico, no<br />

processo identitário do professor, é formado,<br />

segundo a autora, no confronto entre os conhecimentos<br />

<strong>da</strong> Pe<strong>da</strong>gogia e as estratégias utiliza<strong>da</strong>s<br />

pelos professores na sua práxis.<br />

Os autores, há pouco citados, reconhecem<br />

que os saberes são constitutivos <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de<br />

profissional do professor, por sua vez, interdependente<br />

do seu eu pessoal. Assim, valorizam<br />

o profissional como sujeito do seu próprio trabalho,<br />

como agente importante para transformação<br />

social.<br />

Em nossa pesquisa, observamos, nos depoimentos,<br />

que os professores percebem o valor<br />

social de seu trabalho, o compromisso ético,<br />

político e socioafetivo que envolve esta ativi<strong>da</strong>de.<br />

Percebemos também como desafiador o<br />

papel de “ampliar a visão de mundo” dos educandos,<br />

preocupando-se em levá-los à reflexão<br />

crítica <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de e à autonomia de pensamento.<br />

Notamos que eles têm a consciência de<br />

que sua ativi<strong>da</strong>de exige, a todo instante, reflexão<br />

sobre a ação, grande compreensão do seu<br />

processo, pois se configura como fun<strong>da</strong>mentalmente<br />

intelectual. Exige, ain<strong>da</strong>, uma conciliação<br />

constante entre as técnicas e os saberes, e<br />

contextualização destes em face <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />

na qual se encontram. Notamos ain<strong>da</strong> que eles<br />

83


Coração de professor: o (des)encanto do trabalho sob uma visão sócio-histórica e lúdica<br />

procuram fazer esta conciliação, quando tentam<br />

mostrar a importância <strong>da</strong> disciplina que lecionam<br />

para a vi<strong>da</strong> cotidiana, quando buscam<br />

conhecer a reali<strong>da</strong>de socioeconômica dos educandos,<br />

respeitando seus conhecimentos espontâneos<br />

e encorajando o desenvolvimento dos<br />

seus potenciais.<br />

Ao se reportarem sobre a ação básica de seu<br />

trabalho, os professores admitem que os afetos<br />

como querer bem, ser paciente, escutar, acolher,<br />

conciliar e outros similares, são quali<strong>da</strong>des<br />

essenciais para o cui<strong>da</strong>do pe<strong>da</strong>gógico.<br />

Reconhecem que sua ativi<strong>da</strong>de é multidimensional,<br />

assim possuem dimensões política, formadora<br />

(principio organizativo), técnica, afetiva e<br />

ética. Quando porém, in<strong>da</strong>gados sobre os entraves<br />

que atravessam a realização do seu trabalho,<br />

os professores trazem afetos de frustração,<br />

tristeza, insegurança, impotência, revolta,<br />

desânimo, decepção e angústia e exaustão.<br />

A “dor” de ser deste profissional é foca<strong>da</strong> na<br />

sua identi<strong>da</strong>de e na sua imagem social.<br />

Ao apontarem os fatores contextuais que<br />

provocam mal-estar, fatores que atingem a imagem<br />

social, observamos que eles se concentram<br />

numa desvalorização social do trabalho e<br />

na negação do professor como sujeito e figura<br />

principal no planejamento e desenvolvimento<br />

<strong>da</strong>s ações pe<strong>da</strong>gógicas. Tais fatores são: políticas<br />

públicas de formação docente, organização<br />

sindical e precárias condições de trabalho.<br />

Confirmamos neste estudo a desvinculação<br />

política, social e cultural dos cursos de formação<br />

inicial <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de concreta dos educandos.<br />

Os professores se queixaram <strong>da</strong> falta de<br />

discussão dos fun<strong>da</strong>mentos filosóficos que embasam<br />

as tendências pe<strong>da</strong>gógicas e de contextualização<br />

dos conhecimentos acadêmicos à<br />

reali<strong>da</strong>de em que vão atuar (ou já atuam), fato<br />

que reforça a dicotomia teoria/prática no trabalho<br />

educacional.<br />

Argumentam que os cursos de formação<br />

continua<strong>da</strong> são distanciados <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des<br />

<strong>da</strong> maioria, vêm como “pacotes prontos”, muitas<br />

vezes, sem objetivos claros ou centrados nas<br />

normas e nas técnicas, são desqualificadores<br />

<strong>da</strong>s capaci<strong>da</strong>des cognitivas dos docentes e não<br />

oferecem condições operacionais para se con-<br />

84<br />

cretizar no interior <strong>da</strong>s escolas. Acrescentam,<br />

ain<strong>da</strong>, que as políticas de formação se centram<br />

na formação pragmática e aligeira<strong>da</strong>, não se<br />

preocupam com o financiamento ou apoio a uma<br />

pós-graduação, a exemplo de cursos de mestrado<br />

ou doutorado.Os professores percebem<br />

que sua formação deve contemplar a dialética<br />

dos saberes tácito, escolar, pe<strong>da</strong>gógico e científico.<br />

Visualizam neste processo uma constante<br />

descoberta e autoconhecimento que contribuem<br />

para a reflexão sobre a prática e trazem<br />

opções para solucionar os dilemas cotidianos.<br />

Suas declarações mostraram as seguintes necessi<strong>da</strong>des:<br />

qualificação e ascensão profissional;<br />

aprofun<strong>da</strong>mento nos conhecimentos, principalmente<br />

no que tange à disciplina, ou disciplinas,<br />

que lecionam, buscando sua ressignificação;<br />

reflexão sobre os pressupostos epistemológicos<br />

que permeiam as propostas ou programas<br />

de formação profissional “centrados<br />

no contexto” (CANDAU, 2004);<br />

partilha com os colegas de idéias sobre o<br />

seu papel profissional, ensejando espaço para<br />

reconstrução constante <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de nesta<br />

área;<br />

reflexão sobre as relações interpessoais na<br />

escola, bem como a aprendizagem <strong>da</strong> convivência<br />

para desenvolver habili<strong>da</strong>des de<br />

escuta e tolerância frente às diversi<strong>da</strong>des<br />

socioculturais e étnicas, mormente em relação<br />

à clientela específica com que li<strong>da</strong>m. A<br />

esse respeito, sustentamos a idéia de que a<br />

aprendizagem <strong>da</strong> convivência nos cursos de<br />

formação pode levar os professores a compreenderem<br />

a maneira de ser, o estilo de vi<strong>da</strong>,<br />

os valores e crenças desta clientela, mu<strong>da</strong>ndo<br />

assim seus pensamentos e atitudes em<br />

relação a esta, poupando-a <strong>da</strong> tirania e dos<br />

preconceitos; e<br />

escuta, sobre suas in<strong>da</strong>gações, anseios, contradições,<br />

receios, dúvi<strong>da</strong>s e inovações. Isto<br />

porque a visão de mundo, os referenciais e<br />

a consciência <strong>da</strong> historici<strong>da</strong>de de seu saber<br />

e do papel social que desempenham são fun<strong>da</strong>mentais<br />

para qualquer projeto de formação<br />

ou reforma pe<strong>da</strong>gógica.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 79-98, jan./jun., 2006


Ao lado dos fatores ligados às políticas públicas<br />

de formação, os professores apontaram<br />

o “apartheid profissional”, que os discrimina e<br />

rotula como desinteressados e incompetentes.<br />

Além disso, são, em geral, responsabilizados pelo<br />

fracasso escolar dos estu<strong>da</strong>ntes, reforçando<br />

rótulos e adjetivos que lhes são atribuídos e interferindo<br />

no envolvimento afetivo <strong>da</strong> sua ativi<strong>da</strong>de.<br />

Quando partem para a reivindicação dos seus<br />

direitos e melhores condições de trabalho, são<br />

chamados de “baderneiros” pelas autori<strong>da</strong>des<br />

que ameaçam puni-los se permanecerem organizados<br />

nos movimentos grevistas. Por outro<br />

lado, a atuação do sindicato apresenta-se ambígua:<br />

ora cumpre o seu papel, fortalecendo a<br />

identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> categoria e conseguindo a adesão<br />

de um grande número de professores nos<br />

movimentos de luta, ora não consegue sustentar<br />

a própria força, trazendo para os profissionais<br />

envolvidos exaustão, abatimento e inércia,<br />

afetando-lhes a auto-estima.<br />

Os fatores que atingem diretamente o trabalho<br />

pe<strong>da</strong>gógico, ou fatores primários 5 , atuam<br />

diretamente na auto-estima do docente, à medi<strong>da</strong><br />

que este é negado como sujeito desta ativi<strong>da</strong>de.<br />

Nos depoimentos, predominaram as<br />

precárias condições físicas e materiais, superlotação<br />

<strong>da</strong>s salas, sobrecarga de trabalho, mecanismos<br />

de controle exercidos pela gestão<br />

escolar, falta de acolhimento no espaço onde<br />

atuam. Observamos como tais entraves ou adversi<strong>da</strong>des<br />

se apresentam como dificul<strong>da</strong>des<br />

para relações humanas na escola, para o vínculo<br />

afetivo do professor com seu produto, para<br />

a prática <strong>da</strong> dialogici<strong>da</strong>de (FREIRE, 1985 ) e<br />

para seu equilíbrio emocional. Notamos que o<br />

desgaste do professor frente a esta reali<strong>da</strong>de<br />

pode ser propulsor de sua “desistência simbólica”<br />

ou síndrome de Burnout e dos sintomas de<br />

estresse dos quais são vítimas.<br />

Um outro entrave muito debatido foram os<br />

mecanismos de pressão e regulação dos gestores<br />

educacionais sobre o docente. Dentre estes,<br />

os professores destacaram o exame de<br />

Certificação Ocupacional 6 , tido como um comprovante<br />

de que o professor não tem vez nem<br />

voz nos programas que dizem respeito ao seu<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 79-98, jan./jun., 2006<br />

Sueli Barros <strong>da</strong> Ressurreição; Bernadete de Souza Porto<br />

próprio desempenho. Tal exame, segundo depoimento<br />

do grupo, submeteu os professores a<br />

uma prova desqualificadora e potencializou os<br />

rótulos e estigmas sociais contra a imagem deste<br />

profissional. A avaliação, <strong>da</strong> forma como foi<br />

realiza<strong>da</strong>, trouxe sentimentos de indignação,<br />

humilhação e desconfiança crescente em relação<br />

aos órgãos gestores.<br />

Concor<strong>da</strong>mos com Vasconcelos (2003),<br />

quando afirma que o professor não é vítima nem<br />

vilão dessa história. Não sofre integralmente<br />

discriminação social, é também valorizado e<br />

reconhecido em diversos contextos e seu trabalho<br />

oferece flexibili<strong>da</strong>de para controlar e recriar<br />

o seu processo; mas também não merece<br />

ser apontado como responsável pelas mazelas<br />

do sistema educacional que o forma, ou deforma,<br />

por meio de métodos bancários e sob o<br />

império <strong>da</strong> práxis mimética, embora cobre dele<br />

uma postura autônoma e reflexiva.<br />

Como nos disse uma professora, integrante<br />

do grupo pesquisado, a partilha desses problemas<br />

ou entraves parece deixar o “fardo mais<br />

leve”. Mas, a quem recorrer e com quem compartilhar?<br />

Ao coordenador pe<strong>da</strong>gógico? Uma<br />

figura “formal” no espaço escolar que não é<br />

forma<strong>da</strong> para praticar a “escuta” e, muitas vezes,<br />

em razão <strong>da</strong>s circunstâncias, se posiciona<br />

contra os professores, conforme depoimento do<br />

grupo. A direção? Esta ora provoca medo por<br />

meio de pressões e chantagens, ora age com<br />

extrema indiferença ou apatia aos dilemas cotidianos.<br />

Aos colegas? É preciso superar a concorrência<br />

e a ausência de ética nesta profissão,<br />

fatores que contribuem para o isolamento do<br />

professor em seu trabalho e para desarticulação<br />

política deste em face <strong>da</strong> luta pelos seus<br />

direitos.<br />

Nossas observações e estudos realizados nos<br />

permitiram afirmar que o “corpo emocional”<br />

5 Esteve (1999, p. 27), no seu estudo sobre o mal-estar,<br />

chamou de fatores primários ou diretos aqueles que “incidem<br />

diretamente sobre a ação do professor em sala de aula, gerando<br />

tensões associa<strong>da</strong>s a sentimentos e emoções negativas.”<br />

E as condições externas que incidem sobre a ação<br />

docente de fatores secundários ou contextuais.<br />

6 Processo de avaliação dos conhecimentos e habili<strong>da</strong>des<br />

dos docente, um dos projetos prioritários do programa “Educar<br />

para Vencer” do governo do Estado <strong>da</strong> Bahia.<br />

85


Coração de professor: o (des)encanto do trabalho sob uma visão sócio-histórica e lúdica<br />

do professor, seu principal instrumento de<br />

trabalho e veículo de expressão afetiva, apresenta-se<br />

estasiado; 7 frente às adversi<strong>da</strong>des<br />

encontra<strong>da</strong>s na sua práxis. Esta exaustão ou<br />

estase docente pode contribuir, por sua vez,<br />

para um desânimo ou endurecimento afetivo<br />

perante a ativi<strong>da</strong>de, como podemos observar<br />

no depoimento <strong>da</strong> professora a seguir: “Como<br />

se tivesse me sugado tudo, sem ânimo. Tenho<br />

que me refazer energeticamente. Me<br />

envolvo demais e penso que preciso me controlar<br />

bastante”.<br />

Neste entorno, é necessário que a escola,<br />

como um “eixo de mu<strong>da</strong>nça em prol <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de<br />

de ensino”, conforme declaram os programas<br />

e gestores educacionais, se torne um<br />

espaço de democracia, criativi<strong>da</strong>de, promoção<br />

<strong>da</strong> saúde e acolhedora <strong>da</strong>s pessoas que a mantêm<br />

viva, especialmente dos docentes. Para<br />

tanto, tais pessoas precisam ser fortaleci<strong>da</strong>s no<br />

seu self (ego) e na sua imagem social, sendo<br />

percebi<strong>da</strong>s como gente que, como tal, conversam,<br />

trabalham, criam, festejam, criticam, cantam,<br />

brincam, entristecem, adoecem, entram em<br />

conflito, se encantam e desencantam. Isto parece,<br />

to<strong>da</strong>via, esquecido nas reformas dos currículos<br />

de formação docente e desenvolvimento<br />

escolar, como afirmam Arroyo (2000) e Santos<br />

(2004).<br />

A superação destes entraves começa pelo<br />

reconhecimento social do trabalho docente pela<br />

socie<strong>da</strong>de (especialmente os órgãos gestores e<br />

planejadores <strong>da</strong> educação) e pela organização<br />

política <strong>da</strong> categoria, implicando condições dignas<br />

de trabalho que permitam ao profissional<br />

potencializar seus conhecimentos e habili<strong>da</strong>des,<br />

e numa remuneração que permita ampliar seus<br />

conhecimentos e ter melhor quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong>.<br />

Acreditamos que a formação docente centra<strong>da</strong><br />

no aspecto lúdico do trabalho, necessário<br />

para alimentar o prazer e o afeto do professor<br />

com os elementos de sua práxis, possa também<br />

contribuir para o enfrentamento destes entraves.<br />

Será isso possível? Pode o trabalho docente<br />

trazer satisfação e alegria ao professor<br />

diante <strong>da</strong>s condições aqui debati<strong>da</strong>s?<br />

Para ilustrar nossas questões, destacamos<br />

um trecho <strong>da</strong> entrevista feita com a professora<br />

86<br />

Solange, que consideramos significativo para<br />

destacar a ambigüi<strong>da</strong>de presente na dimensão<br />

subjetiva do professor, tencionando levar o leitor<br />

a refletir sobre o próximo tema deste estudo:<br />

a relação de amor e ódio do professor com<br />

o seu trabalho e as estratégias de defesa que<br />

utiliza para enfrentar o mal-estar ou o próprio<br />

desencanto.<br />

Pesquisadora – Professora, como você percebe<br />

o trabalho docente?<br />

Profª A - Árduo, eu acho assim que é assim um<br />

desmatamento, (...) principalmente no momento<br />

em que a gente está vivendo, de que se precisa<br />

valorizar mais o profissional. E que a gente<br />

vê que não estão abertos para isso. É um desbravar<br />

mesmo, é você resistir aquele salário<br />

que você recebe no final do mês. Mas você, além<br />

de tudo, sabe que você está li<strong>da</strong>ndo com gente,<br />

que você precisa aju<strong>da</strong>r, por que você já conseguiu<br />

subir degraus, por que você pode aju<strong>da</strong>r<br />

essa pessoa também a alcançar mais êxito na<br />

vi<strong>da</strong>, ser mais feliz. Então, é muito amplo, é<br />

muito grande. É um constante assim. É de sofrimento,<br />

é de prazer, é uma mistura muito grande,<br />

é muito dura. Agora apesar de ser muito<br />

dura, eu me surpreendo de não ter ficado desencanta<strong>da</strong><br />

com ele.<br />

Assim, após discutirmos os fatores que podem<br />

levar os professores a desistirem, o segundo<br />

momento de análise foi saber por que,<br />

apesar <strong>da</strong>s pressões, discriminações e condições<br />

precárias de trabalho, estes professores<br />

persistem? Que trabalho é esse que causa tanta<br />

dor e tanto prazer?<br />

TRANSFORMANDO O TÉDIO EM<br />

MELODIA ...<br />

E ser artista no nosso convívio<br />

Pelo inferno e céu de todo dia<br />

Pra poesia que a gente não vive<br />

Transformar o tédio em melodia<br />

(Frejat/Cazuza)<br />

7 Na concepção reichiana, existe uma diferença entre êxtase,<br />

quando a energia é descarrega<strong>da</strong>, trazendo um estado de<br />

arrebatamento, encanto e absorção, e a estase quando a<br />

energia fica para<strong>da</strong>, impedi<strong>da</strong> de ser descarrega<strong>da</strong>.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 79-98, jan./jun., 2006


Notamos com este estudo que, mesmo vivenciando<br />

as dificul<strong>da</strong>des neste espaço de formação,<br />

os professores conseguem ver a<br />

“melodia” presente no seu trabalho, sendo um<br />

ver<strong>da</strong>deiro artista no “inferno e céu de ca<strong>da</strong><br />

dia”, como dizem os poetas. Os depoimentos<br />

analisados mostraram que o grupo tem uma<br />

capaci<strong>da</strong>de para se re-encantar ou re-equilibrar<br />

diante <strong>da</strong>s adversi<strong>da</strong>des. Observamos tal capaci<strong>da</strong>de<br />

nos seus discursos, quando narraram<br />

as opções para liberar suas tensões, buscando<br />

saí<strong>da</strong>s criativas para restabelecer os vínculos e<br />

repor as energias de acordo com suas necessi<strong>da</strong>des<br />

e oportuni<strong>da</strong>des.<br />

Importante é registrar que nos pautamos na<br />

proposta de Negrine (1998) e Santos (2000), sobre<br />

a formação lúdica para desenvolvermos uma<br />

atitude de escuta no grupo pesquisado. Assim,<br />

percebemos que os professores agem de forma<br />

diferencia<strong>da</strong> no enfrentamento do mal-estar ou<br />

desencanto; ora são mais emotivos, ora são mais<br />

racionais, a depender <strong>da</strong>s circunstâncias. Não<br />

desistem totalmente, ao contrário, muitas vezes<br />

se entregam e se absorvem nas ativi<strong>da</strong>des com<br />

entusiasmo e arrebatamento, expressando, nas<br />

palavras de Reich (1979), equilíbrio energético<br />

e capaci<strong>da</strong>de de resposta ao prazer e de<br />

tolerância com o outro.<br />

Dessa forma, foi possível compreendermos,<br />

pelos depoimentos, a afirmação de Soratto e<br />

Olivier-Heckher (1999) que não são as condições<br />

de trabalho que fazem os professores<br />

permanecerem no ofício, mas a relação<br />

de prazer que estabelecem com o produto<br />

do trabalho. Notamos, com este estudo, que,<br />

mesmo com salários baixos e com péssimas<br />

condições de trabalho, os professores se reencantam<br />

a ca<strong>da</strong> dia com o retorno cognitivo<br />

e afetivo <strong>da</strong>do pelos estu<strong>da</strong>ntes, pelo<br />

prazer em se sentir importantes para eles e<br />

pelo aprendizado contínuo que a ativi<strong>da</strong>de<br />

pe<strong>da</strong>gógica proporciona. Assim, conseguem<br />

obter desse trabalho o maior prazer que ele<br />

pode <strong>da</strong>r, são resistentes aos entraves e permanecem<br />

comprometidos com o ofício. O depoimento<br />

<strong>da</strong> professora, a seguir, ilustra estas<br />

afirmações:<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 79-98, jan./jun., 2006<br />

Sueli Barros <strong>da</strong> Ressurreição; Bernadete de Souza Porto<br />

Às vezes chego e pergunto: ‘E foi isso que eu<br />

quis?’ Tem momentos que tem que ter ânimo<br />

para poder seguir, com o sorriso ou com o carinho<br />

deles, eles chegam e dizem “Professora eu<br />

quero falar com a senhora”. .. essas coisas faz<br />

com que você ca<strong>da</strong> dia descubra a profissão,<br />

você ser pessoa, você está ali e saber que as<br />

pessoas confiam, acreditam em você, que você<br />

é útil, que gosta de você e mostra isso....<br />

Percebemos no depoimento destacado o<br />

cerne do trabalho docente: a troca entre produtor<br />

e o produto, troca de conhecimentos, afetos,<br />

experiências, crenças, hábitos, valores.<br />

Ocorre uma influência recíproca na vi<strong>da</strong> dos<br />

educadores/educandos que os transforma e os<br />

leva a buscar constantemente coisas novas. Este<br />

aspecto interativo, foi apontado pelo grupo<br />

pesquisado como o mais importante na ativi<strong>da</strong>de<br />

do professor; é ele que torna o trabalho<br />

desafiante e envolvido por “alegria e<br />

esperança” (FREIRE, 2001).<br />

Acreditamos que este aspecto precisa ser<br />

potencializado nos cursos de formação. Isto<br />

implica considerar a vertente subjetiva no trabalho<br />

educativo, que, para Vigotski (2001) e<br />

Wallon (1964), tem como base as reações emocionais<br />

entre os pares. De acordo com os estudos<br />

aqui apresentados, cumpre-nos lembrar que<br />

a afetivi<strong>da</strong>de, como componente principal desta<br />

vertente, é a energia que move a vi<strong>da</strong> e que<br />

a relação viva com o mundo, imprescindível para<br />

a aprendizagem, depende do “colorido emocional”<br />

(VIGOTSKI, 2001) e dos “conflitos dinamogênicos”<br />

(WALLON, 1964) que a envolvem.<br />

Dessa forma, a afetivi<strong>da</strong>de permeia todo o<br />

processo de trabalho docente, atuando como<br />

vitalizadora do pensar e do fazer pe<strong>da</strong>gógicos.<br />

Uma vez que a vertente subjetiva é percebi<strong>da</strong><br />

como parte integrante do todo <strong>da</strong> ação<br />

docente, compreendemos que a convivência<br />

diária com a ativi<strong>da</strong>de pe<strong>da</strong>gógica, fortalece a<br />

identi<strong>da</strong>de profissional e as estratégias de defesa<br />

contra os entraves do cotidiano traz à tona<br />

aspectos <strong>da</strong> dimensão lúdica como a flexibili<strong>da</strong>de,<br />

o desafio, a absorção, a entrega, a plenitude,<br />

a tensão e a leveza. Desse modo, inferimos<br />

que tal dimensão, ao emergir no “fazer-pe<strong>da</strong>gógico”,<br />

pode ser uma mediadora eficaz na<br />

87


Coração de professor: o (des)encanto do trabalho sob uma visão sócio-histórica e lúdica<br />

interação e nos sentidos e significados presentes<br />

na afetivi<strong>da</strong>de e no processo identitário<br />

do docente. Assim é que as ativi<strong>da</strong>des<br />

lúdico –corporais podem se tornar um valioso<br />

instrumento para o equilíbrio cognitivo e afetivo<br />

deste profissional. Conforme vimos em<br />

Wallon (1964), Vigotski (2001), Reich (1979)<br />

e Luckesi (2002), as ativi<strong>da</strong>des, quando são<br />

lúdicas e atuam nas tensões corporais, favorecem<br />

a ampliação <strong>da</strong> consciência e reorganizam<br />

a emoções.<br />

Inferimos que é neste lugar de vivaci<strong>da</strong>de,<br />

criativi<strong>da</strong>de e prazer onde se insere o aspecto<br />

lúdico no trabalho docente. A ludici<strong>da</strong>de,<br />

como uma <strong>da</strong>s dimensões constituintes do ser<br />

humano, está presente em qualquer i<strong>da</strong>de, sexo<br />

ou classe social, é relativa àquele que joga e<br />

brinca e envolve afetos como alegria, tensão e<br />

prazer, ações que tendem a ser repeti<strong>da</strong>s segundo<br />

o regulador orgânico: a emoção 8 .<br />

Tais ações são realiza<strong>da</strong>s num processo de<br />

interação social: “ Jogo é uma ativi<strong>da</strong>de em que<br />

se reconstroem sem fins utilitários diretos, as<br />

relações sociais” (ELKONIN,1998). E, por isso,<br />

envolvem vínculos e estão internamente implica<strong>da</strong>s<br />

de afetivi<strong>da</strong>de.<br />

Assim, concor<strong>da</strong>mos com Porto e Cruz<br />

(2002), quando garantem que na formação docente<br />

“a capaci<strong>da</strong>de lúdica do professor é um<br />

processo que precisa ser pacientemente trabalhado<br />

pois não é imediatamente alcança<strong>da</strong>”. É<br />

preciso que o professor compreen<strong>da</strong> a importância<br />

psicológica e sociocultural <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de,<br />

não só teoricamente, mas vivenciando<br />

situações lúdicas, que lhe proporcionem regular<br />

suas próprias reações ao ter espaço para<br />

expressão dos sentimentos e desenvolvimento<br />

de sua criativi<strong>da</strong>de.<br />

Podemos inferir, com isso, que a afetivi<strong>da</strong>de<br />

e a ludici<strong>da</strong>de, como dimensões essenciais do<br />

desenvolvimento humano, podem ser também<br />

a base de qualquer projeto educativo, seja formal<br />

ou informal. Neste sentido, não podemos<br />

compreender o trabalho do educador sem considerarmos<br />

os sentimentos envolvidos no seu<br />

processo de escolha, aprendizagem e atuação<br />

neste ofício.<br />

88<br />

Permea<strong>da</strong>s por estas informações, prosseguimos<br />

nossa investigação buscando compreender<br />

que fun<strong>da</strong>mentos essenciais poderiam<br />

tornar lúdica a prática pe<strong>da</strong>gógica, assunto que<br />

discutiremos a seguir.<br />

O TRABALHO E A FORMAÇÃO<br />

LÚDICA DO PROFESSOR<br />

No terceiro momento <strong>da</strong> investigação, procuramos<br />

saber dos professores o que entendiam<br />

por ludici<strong>da</strong>de e qual a importância desta para<br />

seu trabalho. Os professores responderam que<br />

a ludici<strong>da</strong>de é algo que abre o sujeito para a<br />

vi<strong>da</strong>, disponibiliza e flexibiliza sua convivência<br />

com o outro, produz bem-estar, descontração,<br />

bom humor e, como linguagem, dá sentido à prática<br />

pe<strong>da</strong>gógica. Reconhecendo o fazer pe<strong>da</strong>gógico<br />

como coletivo, destacam que a dimensão<br />

lúdica contribui para formação pessoal e<br />

profissional, pois fortalece os relacionamentos<br />

e aumenta o contato com o material de<br />

aprendizagem, aju<strong>da</strong>ndo a mobilizar e sensibilizar<br />

o educando para o conteúdo.<br />

Para alguns professores, o lúdico é visto<br />

como diversas formas de expressão, dentre elas,<br />

a música e o desenho, usados como linguagem<br />

para mediar os conhecimentos espontâneos com<br />

os conhecimentos científicos (VIGOTSKI,<br />

1998), como podemos observar no depoimento<br />

a seguir:<br />

Tive uma experiência muito legal a semana<br />

passa<strong>da</strong>, eu levei uma música, a Arca de Noé,<br />

porque o livro traz o poema e trabalha o tempo<br />

do calendário e do relógio e eu achei que era<br />

melhor colocar a música e pedir que eles desenhassem<br />

a partir do que eles estavam estu<strong>da</strong>ndo,<br />

deixar o livro de lado. Eles relacionaram a<br />

música, com o poema e me coloquei bem atrás,<br />

bem de fora para ver de que forma ia ficar e<br />

ficou muito lindo mesmo o trabalho. E me questionei<br />

a ativi<strong>da</strong>de:’ Será que vou conseguir fazer<br />

com tranqüili<strong>da</strong>de, sem estresse, será que a<br />

música vai sensibilizar ou vai dispersar?’ Eu<br />

consegui, eu gostei...<br />

8 “Se fazemos alguma coisa com alegria as reações emocionais<br />

de alegria significam na<strong>da</strong> senão que vamos continuar<br />

tentando fazer a mesma coisa” (VIGOTSKI, 2001, p. 139).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 79-98, jan./jun., 2006


A ludici<strong>da</strong>de está presente na ação desta<br />

professora, no prazer que sentiu ao levar a música<br />

e no envolvimento dos estu<strong>da</strong>ntes nessa ativi<strong>da</strong>de.<br />

Salientamos que a ação ou ativi<strong>da</strong>de lúdica<br />

não se constitui apenas de jogos ou técnicas dinamizadoras,<br />

pois também está presente na <strong>da</strong>nça,<br />

na música, no desenho, na pintura e em outras<br />

formas de expressão artística, ou seja, em outros<br />

signos. Huizinga (2004), ao pesquisar o aspecto<br />

cultural do lúdico, assinala que não é por<br />

acaso que encontramos na história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de<br />

diversas expressões para designar a ativi<strong>da</strong>de<br />

lúdica. Quanto à música, esclarece que nas<br />

épocas arcaicas o homem tinha plena consciência<br />

de que “a música era uma força sagra<strong>da</strong> capaz<br />

de despertar emoções e, além disso, era um<br />

jogo. Só muito mais tarde ela passou a ser aprecia<strong>da</strong><br />

como uma contribuição importante para a<br />

vi<strong>da</strong> e para a expressão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, em resumo, como<br />

uma arte no sentido atual <strong>da</strong> palavra.” (p.209).<br />

Fátima Vasconcelos, pesquisando sobre o jogo<br />

infantil na escola, tomando por base a concepção<br />

bakhtiana de linguagem, observou que o jogo,<br />

na sua dimensão simbólica, é uma forma de discurso<br />

que representa as interações e, para compor<br />

o sentido lúdico, ele utiliza-se de gestos,<br />

objetos, entonações, mu<strong>da</strong>nças de cenário e linguagem<br />

verbal. Neste sentido, o jogo é polifônico,<br />

nele estão imbutidos muitas falas, decorrentes<br />

<strong>da</strong> apropriação cultural <strong>da</strong> pessoa que joga: “O<br />

lugar imaginário do jogo é refratado e não refletido,<br />

na brincadeira ele cria um vínculo de representação”.<br />

(VASCONCELOS, 2003, p. 5).<br />

Parafraseando Bakhtin (1995, p.35), a consciência<br />

adquire forma e existência nos signos<br />

criados por grupos organizados no curso <strong>da</strong>s<br />

relações sociais. Nesta óptica, a ludici<strong>da</strong>de,<br />

como forma de linguagem, pode servir como<br />

ação mediadora <strong>da</strong> elaboração de sentidos na<br />

relação pe<strong>da</strong>gógica, atuando como forma de<br />

instrumentalização no movimento dialético de<br />

continui<strong>da</strong>de e ruptura do conhecimento 9 . Outra<br />

professora do grupo esclarece esta afirmação<br />

no seu depoimento:<br />

Quando eu busco uma ativi<strong>da</strong>de, eu gosto de<br />

<strong>da</strong>r uma ativi<strong>da</strong>de que envolva música (...) Pois<br />

já sei que vai desencadear uma coisa diferente<br />

em ca<strong>da</strong> um. Que posso estar atenta àquela di-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 79-98, jan./jun., 2006<br />

Sueli Barros <strong>da</strong> Ressurreição; Bernadete de Souza Porto<br />

ferença que vai ser desencadea<strong>da</strong>. Que ca<strong>da</strong><br />

um vai poder se expressar, é aquela liber<strong>da</strong>de<br />

que vai ser <strong>da</strong><strong>da</strong>.<br />

A partir dos autores e dos <strong>da</strong>dos referidos,<br />

podemos acentuar que a ludici<strong>da</strong>de, como dimensão<br />

do processo de formação do homem,<br />

pode estar presente como signo e ferramenta<br />

na ativi<strong>da</strong>de mediadora do professor no processo<br />

de problematização, ao passo que nutre as<br />

ações expressivas emocionais e cognitivas. A<br />

ação lúdica instrumentaliza o professor para<br />

mediar o educando a elaborar sua representação<br />

mental do conhecimento. As ativi<strong>da</strong>des lúdicas,<br />

como ferramentas, proporcionam contato<br />

com instrumentos físicos ou simbólicos que dinamizam<br />

a apreensão do conhecimento. Sobre<br />

este ponto, ilustramos um trecho <strong>da</strong> carta escrita<br />

sobre o curso de extensão por uma professora<br />

participante onde demonstra a presença<br />

<strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> afetivi<strong>da</strong>de no cotidiano e<br />

na expressão do seu saber:<br />

O curso foi muito bom, pois confirmei coisas<br />

que já sabia, to<strong>da</strong>via tinha receio, dúvi<strong>da</strong>s de<br />

colocá-las em prática. Agora, mais do que nunca,<br />

sei que o jogo, o lazer, a criativi<strong>da</strong>de, o brincar<br />

não estão fora <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, assim como os<br />

sentimentos e valores também são conteúdos<br />

importantes e urgentes, e fazem o trabalho docente<br />

também produtivo,leve, divertido e emocionante.<br />

A ludici<strong>da</strong>de, conforme foi abor<strong>da</strong><strong>da</strong> nesta<br />

pesquisa, é uma expressão media<strong>da</strong> por uma<br />

ativi<strong>da</strong>de que resulta numa experiência de entrega<br />

do ser humano em sua totali<strong>da</strong>de - motora,<br />

afetiva e intelectual (LUCKESI, 2004).<br />

Neste sentido, as ativi<strong>da</strong>des lúdicas servem<br />

como recursos para o autoconhecimento, como<br />

instrumento de expressão espontânea, fornecendo<br />

pistas eficazes para o processo de aprendizagem<br />

na medi<strong>da</strong> em que envolve vínculos e<br />

media a interação sujeito/mundo.<br />

De acordo com Porto e Cruz (2002), a presença<br />

<strong>da</strong> prática lúdica na educação assumiu<br />

9 O processo ensino-aprendizagem é também um momento<br />

de ruptura, pois o educando nega a continui<strong>da</strong>de (o conhecimento<br />

cotidiano) para incorporar o conhecimento sistematizado:<br />

“a ruptura é a confiança na obra prima e no papel<br />

<strong>da</strong> escola de modo que o aluno não fique alheio a ela.”<br />

(SNYDERS, 1995, p. 161).<br />

89


Coração de professor: o (des)encanto do trabalho sob uma visão sócio-histórica e lúdica<br />

três posicionamentos. A primeira está liga<strong>da</strong> à<br />

pe<strong>da</strong>gogia tradicional 10 que não admitia a presença<br />

de jogos e brincadeiras em sala de aula.<br />

A segun<strong>da</strong> posição, de acordo com as autoras,<br />

se ancorou nas correntes pe<strong>da</strong>gógicas escolanovista<br />

11 e construtivista, e admite a importância<br />

do jogo como recurso ou fins para<br />

aprendizagem de conteúdos:<br />

Fica claro que, neste caso, o jogo só atinge seu<br />

status de importante na escola se estiver associado<br />

a essa função de facilitar ou exercitar conhecimentos.<br />

A proposição é feita pelo professor. Com<br />

essa prática, os professores acabam reduzindo a<br />

possibili<strong>da</strong>de de brincar a momentos, muitas vezes,<br />

sem significado para as crianças, pois descarta<br />

uma <strong>da</strong>s principais características do jogo,<br />

que é ser fruto de ação livre e voluntária. (POR-<br />

TO; CRUZ, 2002, p. 154).<br />

A terceira posição se recusa à visão <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de<br />

como adorno ao processo ensino aprendizagem,<br />

e defende, além do jogo dirigido, a<br />

brincadeira livre na educação <strong>da</strong>s crianças, tendo<br />

como objetivo o desenvolvimento humano em<br />

sua integrali<strong>da</strong>de afetiva, motora e cognitiva.<br />

Na pesquisa realiza<strong>da</strong> com os professores,<br />

observamos que uma boa parte deles utiliza os<br />

jogos como facilitadores <strong>da</strong> aprendizagem ou<br />

para substituir o material escolar, de que o aluno,<br />

na maioria <strong>da</strong>s vezes, não dispõe por conta<br />

<strong>da</strong>s condições socioeconômicas, como podemos<br />

notar no discurso <strong>da</strong> professora a seguir:<br />

90<br />

A gente divide a turma em grupos e eles gostam<br />

muito de competir. Se eu for trabalhar, por exemplo,<br />

poluição <strong>da</strong> água, eu coloco dentro <strong>da</strong>s<br />

questões o grupo que responder um número de<br />

questões dentro do assunto. Fica uma certa rivali<strong>da</strong>de<br />

entre os grupos e eles ficam felizes<br />

quando conseguem acertar um determinado<br />

número de questões. (...) Porque às vezes a maioria<br />

não consegue atingir a média. É muito<br />

complicado, tem turma mesmo que não gosta<br />

de na<strong>da</strong> que exija assim, a população lá é muito<br />

carente, é tudo muito difícil, estou falando<br />

do pessoal do fun<strong>da</strong>mental, durante o dia, vai<br />

sem lápis sem caderno. Então, dentro destas<br />

coisas, destas ativi<strong>da</strong>des, eles conseguem se sair<br />

bem em alguma coisa. Para complementar: ‘O<br />

grupo que ganhou a brincadeira vai ganhar<br />

meio ponto na média’, isso motiva. E eu também<br />

me sinto melhor.<br />

A professora, embora tenha utilizado o jogo<br />

como mediador para a aprendizagem, trabalha<br />

com dois aspectos que compõem a pe<strong>da</strong>gogia<br />

tradicional; a competitivi<strong>da</strong>de e a prática de recompensar<br />

os estu<strong>da</strong>ntes por meio de pontos<br />

na nota. No primeiro aspecto, ela criou um “clima<br />

de rivali<strong>da</strong>de”, separando e dividindo a turma<br />

em torno do jogo proposto. No segundo<br />

aspecto, reforça a avaliação classificatória e<br />

rotulante que sustenta a prática tradicional na<br />

pe<strong>da</strong>gogia. Segundo Matui (1995), a educação<br />

tradicional apóia-se no maniqueísmo, atitude de<br />

separar e dividir os seres , entre bons e ruins, e<br />

na educação este pensamento é responsável<br />

pela separação entre prática e teoria, dissociando<br />

o pensamento e a prática.<br />

Já o terceiro posicionamento mencionado<br />

pelas autoras, ancora-se na construção dialética<br />

do conhecimento e parte do princípio <strong>da</strong><br />

aprendizagem significativa, ou seja, aquela que<br />

toma como contexto a vi<strong>da</strong> e incentiva atos criativos<br />

nos educandos, tendo como síntese a<br />

transformação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, bases <strong>da</strong> Pe<strong>da</strong>gogia<br />

Histórica Crítica (SAVIANI, 2003).<br />

Deste modo, configura-se uma educação<br />

centra<strong>da</strong> na visão do ser humano integral e inacabado<br />

e na elaboração dialética do conhecimento,<br />

supõe uma relação criativa e harmônica<br />

sujeito/ mundo. Neste sentido, as ativi<strong>da</strong>des lúdicas<br />

podem servir como mediação na formação<br />

e no trabalho do educador, para ampliar seu<br />

vínculo com os educandos, para estabelecer<br />

maior contato com os afetos ligados a sua práxis<br />

pe<strong>da</strong>gógica, além do desenvolvimento do seu<br />

nível de potencial cognitivo 12 .<br />

Partindo deste ponto de vista, a prática pe<strong>da</strong>gógica<br />

lúdica deve ser entendi<strong>da</strong> não como aquela<br />

realiza<strong>da</strong> com a mera aplicação de técnicas de<br />

10 Pe<strong>da</strong>gogia que vê o homem dotado de um essência imutável<br />

e pratica um ensino autoritário e rígido, no qual o professor<br />

é um ser completo , sabe mais e tem maior autori<strong>da</strong>de,<br />

e o aluno é um ser incompleto, devendo ter respeito e<br />

obediência ao mestre. (MATUI, p. 1995).<br />

11 “Na escola nova, o adulto não é mais modelo para a<br />

educação <strong>da</strong>s crianças, porque ele também é um ser incompleto,<br />

em acabamento. Ninguém é dono <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de; não<br />

existe mais a autori<strong>da</strong>de do magister dixit.” (MATUI, 1995,<br />

p. 7).<br />

12 Nível de Desenvolvimento Potencial (VYGOTSKY,<br />

1988)<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 79-98, jan./jun., 2006


dinâmicas de grupo para ensinar, mas aquela que<br />

transcende o conteúdo e a técnica e atinge o<br />

âmago <strong>da</strong> interação educador-educando, onde<br />

estão ancora<strong>da</strong>s a necessi<strong>da</strong>de, desejo, espontanei<strong>da</strong>de,<br />

liber<strong>da</strong>de, intencionali<strong>da</strong>de, disciplina,<br />

flexibili<strong>da</strong>de e dialogici<strong>da</strong>de no processo<br />

pe<strong>da</strong>gógico, como descreve Fortuna<br />

(2001):<br />

Uma aula ludicamente inspira<strong>da</strong> não é, necessariamente,<br />

aquela que ensina conteúdos com jogos,<br />

mas aquela em que as características do<br />

brincar estão presentes, influindo no modo de<br />

ensinar do professor, na seleção de conteúdos,<br />

no papel do aluno... a aula lúdica é aquela que<br />

desafia o aluno e o professor e situa-os como<br />

sujeitos do processo pe<strong>da</strong>gógico. A tensão do<br />

desejo de saber, a vontade de participar e a alegria<br />

<strong>da</strong> conquista impregnarão todos os momentos<br />

desta aula. (p. 116-117 – grifo nosso).<br />

Por isso, o caráter lúdico do trabalho pe<strong>da</strong>gógico<br />

não se reduz a um conjunto de técnicas<br />

ludope<strong>da</strong>gógicas e papéis legalmente definidos<br />

e registrados em receituários, pois estas ativi<strong>da</strong>des,<br />

quando mecanicamente realiza<strong>da</strong>s, podem<br />

não ser lúdicas. O jogo, neste contexto, é<br />

usado com uma visão mais abrangente, representando<br />

uma ação lúdica, entendi<strong>da</strong> como<br />

aquela que traz espontanei<strong>da</strong>de, expressivi<strong>da</strong>de,<br />

alegria e flexibili<strong>da</strong>de.<br />

Desta forma, podemos tecer alguns comentários<br />

que auxiliam na caracterização <strong>da</strong> ação<br />

lúdica. No ensino-aprendizagem, nem sempre<br />

os jogos e brincadeiras são lúdicos. Enquanto<br />

utilizados meramente como fim de divertimento<br />

ou restritos a transmissão de conhecimento,<br />

podem se tornar tão mecânicos e desprazerosos<br />

quanto algumas aulas expositivas taxa<strong>da</strong>s<br />

de monótonas e “bancárias” (FREIRE, 1985).<br />

Os jogos não se reduzem ao entretenimento,<br />

pois, quando usados com ludici<strong>da</strong>de, tornamse<br />

dispositivos fun<strong>da</strong>mentais para estabelecer<br />

vínculos no momento em que se realizam, à<br />

medi<strong>da</strong> em que trazem bem-estar e estimulam<br />

a criativi<strong>da</strong>de, facilitam a aprendizagem e a<br />

expressão. E, por último, não somente os jogos<br />

e brincadeiras podem ser utilizados como recursos<br />

lúdicos no processo de ensino, mas qualquer<br />

outra experiência vivi<strong>da</strong> nesta prática que<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 79-98, jan./jun., 2006<br />

Sueli Barros <strong>da</strong> Ressurreição; Bernadete de Souza Porto<br />

proporciona entrega, envolvimento, expressivi<strong>da</strong>de<br />

e ampliação <strong>da</strong> consciência.<br />

Porto (2004) esclarece que o lúdico numa<br />

ativi<strong>da</strong>de não é necessariamente um entretenimento,<br />

mas pode ser uma leitura ou escrita criativa,<br />

o silêncio, o choro, configurando-se como<br />

ação integradora. E é por isso que não é o que<br />

fazemos com a ativi<strong>da</strong>de e sim o para que fazemos<br />

que torna uma ativi<strong>da</strong>de lúdica e integrativa.<br />

Daí a necessi<strong>da</strong>de de distinguir a “ativi<strong>da</strong>de<br />

produtiva lúdica” <strong>da</strong> “ativi<strong>da</strong>de recreativa ou de<br />

entretenimento” 13 a fim de que nem a ludici<strong>da</strong>de<br />

seja reduzi<strong>da</strong> à recreação nem os jogos e<br />

brincadeiras se limitem aos recursos didáticos.<br />

A “ativi<strong>da</strong>de produtiva lúdica” diz respeito a uma<br />

ativi<strong>da</strong>de efetiva, onde o sujeito se entrega a<br />

ela com múltiplas possibili<strong>da</strong>des de interação<br />

consigo mesmo e com os outros e que abre<br />

caminhos para construção mais prazerosa e<br />

autônoma do conhecimento, partindo de uma<br />

motivação interna. Portanto, pode ser realiza<strong>da</strong><br />

de varia<strong>da</strong>s formas, desde uma brincadeira espontânea<br />

até uma leitura de um texto. As ativi<strong>da</strong>des<br />

recreativas, por sua vez, são tão<br />

necessárias quanto a primeira para o desenvolvimento<br />

do ser humano, pois configuram o momento<br />

em que ele possa brincar livre e<br />

espontaneamente e onde também ocorre ludici<strong>da</strong>de,<br />

porém não produzem conhecimento <strong>da</strong><br />

mesma forma que a primeira.<br />

Nesta perspectiva, entendemos que o lúdico,<br />

no trabalho docente, ocorre quando há sintonia<br />

entre os princípios pe<strong>da</strong>gógicos e os<br />

princípios <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de, propiciando maior<br />

abertura de ca<strong>da</strong> um para vi<strong>da</strong> e resultando<br />

numa experiência que vai <strong>da</strong> tensão ao prazer,<br />

do autoconhecimento ao heteroconhecimento,<br />

<strong>da</strong> espontanei<strong>da</strong>de à intencionali<strong>da</strong>de, <strong>da</strong><br />

comunicação à expressão, dos limites à autonomia,<br />

<strong>da</strong> emoção à razão.<br />

Com arrimo nestes <strong>da</strong>dos e na concepção<br />

dialética do conhecimento, concluímos que um<br />

dos fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> ação lúdica no trabalho<br />

13 Cipriano C. Luckesi,(2004), aula ministra<strong>da</strong> na disciplina<br />

Ludope<strong>da</strong>gogia III, no curso de Pós-graduação na FACED/<br />

UFBA.<br />

91


Coração de professor: o (des)encanto do trabalho sob uma visão sócio-histórica e lúdica<br />

docente é a mediação <strong>da</strong> continui<strong>da</strong>de, ou<br />

seja, do vinculo entre os conhecimentos espontâneos<br />

e científicos. Observamos que os professores,<br />

no primeiro momento do diálogo,<br />

tentam acolher as experiências de vi<strong>da</strong> dos educandos,<br />

buscam escutá-los nas suas expectativas,<br />

visão de mundo e sentimentos. Acreditamos<br />

que esta seja uma forma de cui<strong>da</strong>r que emerge<br />

do afeto positivo do profissional com seu trabalho,<br />

no qual ocorre um clima de liber<strong>da</strong>de, espontanei<strong>da</strong>de<br />

e respeito à comunicação e<br />

expressão recíprocas. Tal clima é nutrido pela<br />

ludici<strong>da</strong>de como dimensão do ser humano, que<br />

traz em si as características cita<strong>da</strong>s.<br />

Vemos como necessário para o desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> afetivi<strong>da</strong>de positiva no trabalho que,<br />

na formação inicial e continua<strong>da</strong>, o professor<br />

possa ser igualmente acolhido na expressão dos<br />

seus sentimentos e visão de mundo, constituindo<br />

vínculos entre sua experiência cotidiana e<br />

os saberes necessários para a práxis pe<strong>da</strong>gógica.<br />

Notamos que os professores pesquisados<br />

mostraram esta necessi<strong>da</strong>de quando argumentam<br />

que precisam compartilhar o cotidiano de<br />

sua prática para discutir as técnicas e ferramentas<br />

utiliza<strong>da</strong>s e compreender os fatores<br />

emocionais nela implicados, visando à formação<br />

de vínculos entre os educandos, com estes<br />

e os conteúdos, com os conteúdos em si.<br />

Como outro fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> pe<strong>da</strong>gogia lúdica,<br />

apontamos o momento <strong>da</strong> análise que inclui<br />

a problematização e a instrumentalização. A<br />

problematização abrange a mediação do confronto<br />

com a reali<strong>da</strong>de e a ruptura dos conhecimentos<br />

consoli<strong>da</strong>dos para incorporação dos<br />

novos conhecimentos (GASPARIN, 2003).<br />

Analisamos este como momento importante<br />

para ação lúdica, pois esta cria Zona de Desenvolvimento<br />

Potencial, segundo Vigotski<br />

(1988). Neste aspecto, destacamos a necessi<strong>da</strong>de<br />

de desenvolver o comprometimento e a<br />

competência política, teórica e técnica do<br />

docente, potenciais indispensáveis para negociação<br />

dos significados no processo de mediação,<br />

onde o educador resume, valoriza,<br />

interpreta, age, decide e avalia.<br />

Na instrumentalização, foi possível observar<br />

que os professores conscientes ou incons-<br />

92<br />

cientemente, utilizam na sua sala de aula várias<br />

formas de expressão lúdica – como desenhos,<br />

poesias e música, auxiliando os educandos a<br />

elaborar uma representação mental dos conhecimentos<br />

analisados. Assim, os professores também<br />

nutrem seus educandos com ferramentas<br />

lúdicas, atuando nos campos onde brotam a criativi<strong>da</strong>de,<br />

o desafio, a tensão e o prazer no processo<br />

de aprender. Os depoimentos mostraram<br />

que os professores que assim atuam também<br />

se nutrem dessas ferramentas, sentindo-se mais<br />

engajados e comprometidos com sua práxis.<br />

Outro importante fun<strong>da</strong>mento que destacamos<br />

como componente integrante <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de<br />

no trabalho docente foi a catarse, ou seja, a<br />

expressão <strong>da</strong> nova forma de entender a reali<strong>da</strong>de<br />

(GASPARIM, 2003). Na pesquisa, disponibilizamos<br />

vários momentos em que o grupo<br />

declarou seus sentimentos e percepções sobre<br />

o curso, ressignificando as vivências e opiniões<br />

debati<strong>da</strong>s. Neste momentos, os professores afirmaram<br />

que o curso representou um “intervalo<br />

do seu cotidiano escolar” 14 no qual foi<br />

possível olhar para si mesmo (sentir, pensar<br />

e agir), se conhecer na companhia dos colegas<br />

com liber<strong>da</strong>de de expressão, espontanei<strong>da</strong>de<br />

e superação de pré-conceitos”.<br />

Além do autoconhecimento, o professores revelaram<br />

que o curso trouxe maior clareza sobre<br />

seu papel como sujeitos <strong>da</strong> práxis, sobre<br />

a crise de identi<strong>da</strong>de profissional que<br />

atravessam e sobre as várias dimensões que<br />

assumem o seu trabalho. Desta forma, entendemos,<br />

por que a catarse representa a síntese<br />

na perspectiva dialética <strong>da</strong> construção do conhecimento,<br />

em que foi possível perceber a<br />

consciência amplia<strong>da</strong>, a criativi<strong>da</strong>de, o conhecimento<br />

e autoconhecimento nos professores<br />

pesquisados.<br />

A partir de tais observações, reafirmamos<br />

nossa posição de que a formação docente integra<br />

a tensão entre objetivi<strong>da</strong>de, formação teórica<br />

e lúdica, e a subjetivi<strong>da</strong>de que sugere a<br />

aprendizagem do ser e do conviver no tempo e<br />

espaço pe<strong>da</strong>gógicos, carecendo de uma forma-<br />

14 Semelhante ao jogo, de acordo com Huizinga (2004): um<br />

intervalo na vi<strong>da</strong> cotidiana.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 79-98, jan./jun., 2006


ção pessoal. Esta tensão exige a mobilização<br />

equilibra<strong>da</strong> <strong>da</strong> energia entre razão e emoção que,<br />

de acordo com os estudos teóricos e os depoimentos<br />

dos atores sociais, recebe grande contribuição<br />

<strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de para seu desempenho.<br />

Desse modo, ampliamos nossa percepção<br />

<strong>da</strong> importância de eluci<strong>da</strong>r a dimensão lúdica<br />

no trabalho docente a partir <strong>da</strong> integração dos<br />

princípios <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de com os princípios pe<strong>da</strong>gógicos,<br />

segundo a óptica “sócio-histórica <strong>da</strong><br />

construção do conhecimento” (GASPARIM,<br />

2003). Concor<strong>da</strong>mos com Santos (2001), to<strong>da</strong>via,<br />

quando afirma que o conhecimento desta<br />

importância não é suficiente para garantir, no<br />

processo de formação, o desenvolvimento <strong>da</strong><br />

capaci<strong>da</strong>de lúdica no trabalho pe<strong>da</strong>gógico. Neste<br />

sentido, as ativi<strong>da</strong>des lúdico-corporais, utiliza<strong>da</strong>s<br />

nesta pesquisa como dispositivos de<br />

observação e análise, se mostraram férteis na<br />

compreensão de que a formação pessoal docente<br />

supõe a vivência <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de para<br />

aumentar o contato do profissional consigo<br />

mesmo e com o seu objeto de trabalho (os<br />

educandos) e para reconhecer os limites do<br />

investimento afetivo-energético na sua práxis.<br />

Sobre este assunto discutiremos no próximo<br />

item.<br />

A VIVÊNCIA LÚDICO-CORPORAL<br />

NA FORMAÇÃO DOS PROFESSO-<br />

RES<br />

A última fase <strong>da</strong> pesquisa teve como objetivo<br />

aprofun<strong>da</strong>r a discussão <strong>da</strong> formação docente em<br />

sua vertente pessoal, analisando as ativi<strong>da</strong>des<br />

lúdico-corporais como ferramentas para esta<br />

formação, tendo como caminho a abor<strong>da</strong>gem<br />

reichiana. Assim, buscamos responder à terceira<br />

e última questão norteadora desta dissertação:<br />

como as ativi<strong>da</strong>des lúdico-corporais, vivencia<strong>da</strong>s<br />

na formação docente, podem<br />

contribuir para o engajamento afetivo e para<br />

o equilíbrio emocional dos professores.<br />

A formação pessoal docente, na perspectiva<br />

que está sendo aqui apresenta<strong>da</strong>, implica<br />

uma formação que “objetiva uma melhor disponibili<strong>da</strong>de<br />

corporal do professor a partir <strong>da</strong>s<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 79-98, jan./jun., 2006<br />

Sueli Barros <strong>da</strong> Ressurreição; Bernadete de Souza Porto<br />

vivências corporais que possibilitem a conscientização<br />

<strong>da</strong>s limitações e facili<strong>da</strong>de que ca<strong>da</strong><br />

um apresenta na relação com os pares, com os<br />

objetos e consigo mesmo.” (FALKENBACH,<br />

2004, p.66). A disponibili<strong>da</strong>de corporal implica<br />

maior domínio e consciência dos movimentos<br />

,sentimentos e pensamentos a partir de experiências<br />

que abram espaço para o profissional<br />

falar de si: afetos, crenças, aspirações expectativas<br />

e opiniões.<br />

Esta proposta de formação pessoal, formula<strong>da</strong><br />

por Negrine (1998, p. 27), é integra<strong>da</strong> a<br />

outras vertentes <strong>da</strong> formação inicial e continua<strong>da</strong>:<br />

teórica e pe<strong>da</strong>gógica. O autor esclarece<br />

que, quanto mais se toma consciência <strong>da</strong>s limitações,<br />

maiores as probabili<strong>da</strong>des de nos tornarmos<br />

mais tolerantes com os outros, criando<br />

uma atitude de escuta de si e do outro, conforme<br />

discutido neste estudo, e aqui retomamos<br />

com suas palavras: “<strong>da</strong>r tempo ao outro,<br />

não esperar que siga a mesma linha de quem o<br />

interpela ou age com ela, aceitar que as pessoas<br />

possam agir de forma diferencia<strong>da</strong> na solução<br />

de problemas”. Acrescenta que a formação<br />

pessoal busca também descobrir potenciali<strong>da</strong>des<br />

que estejam adormeci<strong>da</strong>s e que contribuam<br />

para redimensionar a auto-imagem e a<br />

auto-estima dos professores. Para isto, propõe<br />

experiências lúdicas, de sensibilização corporal<br />

em relação aos objetos, consigo mesmo e com<br />

seus iguais.<br />

Indica que a âncora pe<strong>da</strong>gógica <strong>da</strong> formação<br />

pessoal do professor é o jogo, entendido<br />

como ativi<strong>da</strong>de lúdico-corporal e cujo instrumento<br />

teórico-prático é o corpo. Para o autor, o<br />

adulto, quando brinca, revela o que é, libera o<br />

corpo e, conseqüentemente, ativa o pensamento<br />

e a memória. E argumenta :<br />

To<strong>da</strong> ação pe<strong>da</strong>gógica que oportuniza o adulto<br />

brincar abre canais para que o indivíduo vivencie<br />

sensações de prazer que, de certo modo,<br />

desbloqueiam resistências. Neste sentido, suas<br />

expressões são produto do inconsciente que, de<br />

alguma maneira, refletem seu estado interior.<br />

(NEGRINE, p. 1998, p.27).<br />

Na mesma direção, Falcão (2002) lembra<br />

que a ludici<strong>da</strong>de, como estado de potência do<br />

ser humano, não se situa num setor determina-<br />

93


Coração de professor: o (des)encanto do trabalho sob uma visão sócio-histórica e lúdica<br />

do (psíquico, somático, espiritual), mas se constitui<br />

como uma síntese integradora. Dessa forma,<br />

assinala que o lúdico não é típico <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de<br />

infantil, a criança brinca porque é criança, mas<br />

o adulto brinca, não porque ain<strong>da</strong> é criança, e<br />

sim porque é um adulto que não perdeu a capaci<strong>da</strong>de<br />

de brincar.<br />

A capaci<strong>da</strong>de de brincar envolve espontanei<strong>da</strong>de,<br />

entrega, descontração, absorção e<br />

intencionali<strong>da</strong>de e, como na ativi<strong>da</strong>de de trabalho,<br />

pede o uso criativo <strong>da</strong> cognição, a imaginação<br />

e o vínculo. Percebemos o quanto é<br />

importante manter esta capaci<strong>da</strong>de no adulto,<br />

especialmente no professor, cujo trabalho é essencialmente<br />

interativo e cujo corpo é bloqueado<br />

pelos entraves decorrentes <strong>da</strong> ambigüi<strong>da</strong>de<br />

de sua profissão e <strong>da</strong> despersonalização <strong>da</strong>s<br />

relações vivi<strong>da</strong>s no ambiente escolar, como discutimos<br />

amplamente neste estudo.<br />

Neste sentido, compreendemos que não há<br />

espaço para o prazer, a alegria e criativi<strong>da</strong>de num<br />

corpo bloqueado e desencantado, e, por esta razão,<br />

a prática <strong>da</strong> Pe<strong>da</strong>gogia Lúdica precisa trabalhar<br />

com a vivência simultânea <strong>da</strong> mente e do<br />

corpo, desbloqueando as resistências 15 do profissional<br />

de educação. Portanto, como instrumento<br />

teórico e prático desta formação, o corpo do<br />

professor precisa ser “lido” e “vivido” neste processo,<br />

e foi o que analisamos no discurso dos<br />

professores sobre as ativi<strong>da</strong>des lúdico-corporais<br />

desenvolvi<strong>da</strong>s no curso de extensão.<br />

Por que, então, não se tem atenção ao corpo<br />

do professor na sua formação? Sobre este<br />

assunto, uma <strong>da</strong>s professoras, na entrevista, nos<br />

fala <strong>da</strong> importância do trabalho lúdico-corporal,<br />

durante sua experiência no curso de extensão:<br />

94<br />

Então é importante que a gente sempre esteja<br />

voltando pro nosso corpo na prática. Porque<br />

uma coisa é a gente sentar, ir pra palestra,<br />

seminário, ir pra curso, ficar sentadinho<br />

balançando a cabeça ou intervir ou interceder<br />

com palavras. E outra coisa é a gente<br />

entrar pro corpo, porque nós somos o nosso<br />

corpo. Então a ver<strong>da</strong>de está no nosso corpo,<br />

coisas que as vezes que a gente fala e o corpo<br />

discor<strong>da</strong> e ali está a nossa ver<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong><br />

um de nós, um pouquinho ali. Assim, essa coisa<br />

<strong>da</strong> vivência é uma proposta que eu venho<br />

a tempo fazendo, mas é difícil (...) que se<br />

abrisse com a participação de professores<br />

nessa área do corpo mesmo. Porque não tem<br />

outra solução se não começar do professor, o<br />

professor se amando, se gostando, se conhecendo.<br />

Não precisa ser a questão <strong>da</strong> terapia<br />

necessariamente, mas você trabalhar inicialmente<br />

pelo corpo.<br />

Notamos neste depoimento que o sistema<br />

educacional contemporâneo não só nega os<br />

saberes <strong>da</strong> docência, mas do que isso, nega o<br />

seu próprio corpo como expressão do seu ser e<br />

estar no mundo. Entendemos que esta também<br />

pode ser uma maneira de desvalorizar o trabalho<br />

docente, pois negligencia a presença do seu<br />

próprio instrumento de trabalho. A professora<br />

parece denunciar este fato e propõe que o afeto<br />

e o autoconhecimento do professor sejam<br />

relevados nos cursos de formação, começando<br />

pelo corpo onde habita a ver<strong>da</strong>de dos sentimentos,<br />

pensamentos e ações.<br />

A esse respeito, segundo Wallon (1968), o<br />

corpo é o marco <strong>da</strong> existência concreta do ser<br />

no mundo e é também onde se inscrevem a dor<br />

e o prazer. Para ele, a emoção é a ressonância<br />

humana do desejo presente no corpo; este é integrado<br />

nos três campos – motor, afetivo e cognitivo<br />

– por isso faz, sente e cria.Similarmente,<br />

na abor<strong>da</strong>gem reichiana, a vi<strong>da</strong> do corpo é a história<br />

<strong>da</strong>s emoções e sentimentos vividos pela<br />

pessoa, ou seja, o corpo é o campo energético,<br />

força que permite viver e agir. Reich explica a<br />

estrutura psíquica como uni<strong>da</strong>de dinâmica de<br />

fatores bio-psíquico-sociais. Sendo integrados<br />

energeticamente, os processos psicológicos (psique)<br />

e os processos do corpo (soma) são funcionalmente<br />

idênticos, como explica o autor:<br />

O conceito de “identi<strong>da</strong>de funcional”, que tive<br />

de introduzir, significa apenas que as atitides<br />

musculares e as atitudes de caráter têm a mesma<br />

função no psiquismo: podem substituir-se e podem<br />

influenciar-se mutuamente. Basicamente,<br />

não podem separar-se. São equivalentes na sua<br />

função. (1961, p.230-231).<br />

15 O conceito de resistência difere do proferido por Giroux<br />

(1997), discutido nos capítulos <strong>da</strong> dissertação em foco.Neste<br />

momento de análise, ele ganhou o sentido psicanalítico<br />

concebido como forças inconscientes que se opõem ao<br />

processo de análise e a toma<strong>da</strong> de consciência para manter<br />

a neurose (LAPLANCHE; PONTALIS, 1983).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 79-98, jan./jun., 2006


Os autores ora citados parecem convergir<br />

nas idéias <strong>da</strong> professora há pouco destaca<strong>da</strong>,<br />

quando anota que a formação poderia começar<br />

pelo “professor se amando, se gostando, se<br />

conhecendo”. Desse modo, começar por ele é<br />

reconhecê-lo primeiramente no seu corpo, expressão<br />

do seu ser e estar no mundo. Este reconhecimento<br />

pode ser concretizado quando<br />

ancorados em experiências que envolvam o<br />

corpo e o jogo. No corpo, ao mobilizar movimentos<br />

e sentimentos, tais experiências ativam<br />

o pensamento, a memória e desbloqueiam as<br />

tensões.<br />

Em se referindo ao jogo, podemos dizer que<br />

é importante se desenvolver a capaci<strong>da</strong>de lúdica,<br />

que requer o uso criativo <strong>da</strong> cognição, <strong>da</strong><br />

imaginação e dos vínculos. Integra<strong>da</strong>s, estas<br />

ativi<strong>da</strong>des lúdico-corporais nos mostraram<br />

mu<strong>da</strong>nças significativas na expressão e na<br />

auto-estima dos professores, proporcionando<br />

maior contato consigo e com o outro e<br />

melhor saúde psíquica, que nas palavras de<br />

Reich (1979), é “estar plenamente vivo em to<strong>da</strong>s<br />

as situações <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>”.<br />

Como afirma Lowen (1977), as funções de<br />

contato, que representam as principais interações<br />

com o mundo, se dão no patamar corporal,<br />

no plano psíquico, com a terra e com a<br />

sexuali<strong>da</strong>de, e fazem emergir respectivamente<br />

a graciosi<strong>da</strong>de, maior sensibili<strong>da</strong>de, senso de<br />

reali<strong>da</strong>de e capaci<strong>da</strong>de para o prazer. Observamos<br />

tais funções na declaração dos professores<br />

sobre a avaliação que fizeram do curso,<br />

usando o “corpo do grupo” como metáfora. Ao<br />

se referirem à “cabeça do grupo”, mostraram<br />

que o desbloqueio <strong>da</strong>s defesas racionais proporcionou<br />

maior integração entre os sentimentos<br />

e pensamentos, trazendo maturi<strong>da</strong>de<br />

e uma nova óptica na relação com o trabalho:<br />

“o chão ficou mais firme e as idéias mais<br />

seguras”. No “coração do grupo”, observamos<br />

maior graciosi<strong>da</strong>de e prazer, ao declararem a<br />

presença de alegria e abertura para o diálogo<br />

e para o acolhimento. Nas “mãos”, enfatizaram<br />

a garra e a esperança no sentido<br />

<strong>da</strong> renovação: “a partir delas tudo pode recomeçar”,<br />

e nos “pés”, a firmeza e a ampliação<br />

<strong>da</strong> consciência <strong>da</strong> missão social que desem-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 79-98, jan./jun., 2006<br />

Sueli Barros <strong>da</strong> Ressurreição; Bernadete de Souza Porto<br />

penham, mostrando contato maior com a reali<strong>da</strong>de<br />

e maior segurança na sua expressão.<br />

Com âncora nesta análise, concluímos a<br />

pesquisa, respondendo que a tônica <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des<br />

lúdico-corporais vivencia<strong>da</strong>s na formação<br />

docente possibilita contato integral<br />

com o self (sentir, pensar e agir). Ao atuarem<br />

nos movimentos e sentimentos, tais ativi<strong>da</strong>des<br />

proporcionam maior consciência corporal<br />

que, por sua vez, leva o sujeito a escutar a si<br />

mesmo e ter maior disponibili<strong>da</strong>de para as interações.<br />

Dessa forma, o trabalho contribuiu para fortalecer<br />

a auto-estima e a expressão deste<br />

profissional e a aprendizagem <strong>da</strong> convivência,<br />

fator importante para possibilitar o seu reencanto<br />

com o trabalho e assim propiciar um<br />

maior engajamento e equilíbrio afetivo-energético.<br />

Acrescentamos que o tema deste estudo<br />

sugere a interpretação de outras abor<strong>da</strong>gens<br />

teóricas para compreensão mais aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

de sua dinâmica, abrindo caminhos de análise.<br />

Considerando que a ludici<strong>da</strong>de ocupa papel<br />

fun<strong>da</strong>mental nas etapas do desenvolvimento<br />

psicológico e sociocultural, reconhecemos que<br />

a prática <strong>da</strong> pe<strong>da</strong>gogia lúdica é apenas uma <strong>da</strong>s<br />

dimensões do trabalho docente que pode tornálo<br />

mais vivo e engajado nos seus objetivos e,<br />

portanto, outras dimensões precisam ser eluci<strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />

com este propósito.<br />

Manifestamos, ain<strong>da</strong>, o argumento de que o<br />

emprego <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des lúdico-corporais na formação<br />

de professores não pode obviamente<br />

acabar com o mal-estar docente, pois este tem<br />

origem em um contexto social mais amplo, como<br />

atestou a presente pesquisa. Quando, porém,<br />

inseri<strong>da</strong>s num espaço que possibilite o professor<br />

compartilhar seus impasses e questionamentos<br />

enfrentados no cotidiano de sua práxis, podem<br />

representar uma estratégia eficaz para enfrentar<br />

as adversi<strong>da</strong>des de seu ofício, ao ampliar<br />

sua consciência e atuar no seu equilíbrio afetivo-energético.<br />

Ao nos aproximarmos do final deste artigo,<br />

cumpre reiterar a noção de que, na elaboração<br />

de sua identi<strong>da</strong>de, o professor tem alegrias, insatisfações,<br />

prazer, amor e ódio, em decorrên-<br />

95


Coração de professor: o (des)encanto do trabalho sob uma visão sócio-histórica e lúdica<br />

cia do encontro com pessoas, do choque <strong>da</strong>s<br />

diferenças subjetivantes de ca<strong>da</strong> uma. Por isso,<br />

a relação do professor com sua profissão será<br />

sempre de encanto e desencanto, de envolvimento<br />

e abandono, de amor e ódio, em virtude<br />

<strong>da</strong> especifici<strong>da</strong>de do instrumento de sua práxis<br />

(conhecimento), a matéria-prima com a qual se<br />

encontra e desencontra (o educando) e a finali<strong>da</strong>de<br />

e o produto desta práxis: a consciência<br />

transforma<strong>da</strong> dos educandos. Nesta perspectiva,<br />

o cui<strong>da</strong>r do professor pressupõe uma aprendizagem<br />

contínua e uma postura integrativa,<br />

respeitando o momento e a condição do educando.<br />

É preciso, portanto, reconhecer o valor<br />

necessário do afeto no ato de educar e a importância<br />

deste no desenvolvimento integral <strong>da</strong><br />

pessoa.<br />

Almejamos que, a partir <strong>da</strong> nossa visão e<br />

dos “pés onde pisamos”, a pesquisa aqui apre-<br />

96<br />

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16 Trecho <strong>da</strong> música “Daquilo que eu sei”, de Ivan Lins.<br />

17 Trecho <strong>da</strong> música “Coração de Estu<strong>da</strong>nte”, de Milton Nascimento<br />

senta<strong>da</strong> possa contribuir para transformação na<br />

prática <strong>da</strong>s políticas públicas de atenção ao trabalho<br />

e à formação docente, tanto do ponto de<br />

vista teórico-técnico, como na área de formação<br />

pessoal e saúde do educador.<br />

E, nesta parcela de contribuição que pudemos<br />

oferecer, esperamos que os profissionais<br />

de educação cuidem dos “brotos”. Dos seus<br />

próprios brotos, mediados por uma formação<br />

lúdica, que lhe proporcionem autoconhecimento<br />

e crescimento pessoal, e dos<br />

brotos dos educandos, formando interações<br />

sadias e amadurecimento de suas potenciali<strong>da</strong>des<br />

e autonomia de pensamento e expressão.<br />

E, assim, “usando todos os sentidos” 16 e<br />

re-encantando o coração, o trabalho docente<br />

poderá continuar “<strong>da</strong>ndo flor e frutos” 17 como<br />

nos diz a música (expressão contagiante do afeto<br />

e do lúdico).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 79-98, jan./jun., 2006


<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 79-98, jan./jun., 2006<br />

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Recebido em 28.02.06<br />

Aprovado em 02.04.06<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 79-98, jan./jun., 2006


<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 99-115, jan./jun., 2006<br />

Rilmar Lopes <strong>da</strong> Silva<br />

O TEATRO-EDUCAÇÃO ENQUANTO COMPONENTE<br />

CURRICULAR NO MEIO RURAL:<br />

uma experiência na Escola Comunitária Brilho do Cristal<br />

RESUMO<br />

Rilmar Lopes <strong>da</strong> Silva*<br />

Este artigo apresenta um relato sistematizado de uma experiência pe<strong>da</strong>gógica<br />

em Teatro-<strong>Educação</strong> desenvolvi<strong>da</strong> na Escola Comunitária Brilho do Cristal<br />

(1991 a 1997), que fica localiza<strong>da</strong> no Vale do Capão, Chapa<strong>da</strong> Diamantina,<br />

Bahia. A Brilho do Cristal propõe um currículo construído numa relação<br />

dialógica, apoiando-se na Pe<strong>da</strong>gogia Libertadora de Paulo Freire. A construção<br />

de conhecimento se dá a partir do contexto sócio-político-cultural dessa<br />

comuni<strong>da</strong>de rural, com o intuito de formar ci<strong>da</strong>dãos com capaci<strong>da</strong>de de serem<br />

criativos, críticos, participativos e autônomos. Acreditando na Arte enquanto<br />

área de conhecimento, o Teatro funciona como ponte-instrumento de to<strong>da</strong>s<br />

as ações vivencia<strong>da</strong>s no Brilho do Cristal.<br />

Palavras chaves: Teatro-<strong>Educação</strong> – Currículo – Pe<strong>da</strong>gogia Libertadora –<br />

Área Rural<br />

ABSTRACT<br />

THE THEATER-EDUCATION AS COMPONENT OF CURRICULUM<br />

IN THE AGRICULTURAL REGION: an experience in the comunitary<br />

school Brilho do Cristal<br />

This article presents a systemized story of a pe<strong>da</strong>gogical experience in Theater-<br />

Education developed in the Communitarian School Brilho do Cristal (1991 to<br />

1997), located in the Valley of Capão, Chapa<strong>da</strong> Diamantina, Bahia. The Brilho<br />

do Cristal propose a curriculum constructed in a dialogic relation, supporting<br />

itself in the Liberating Pe<strong>da</strong>gogy of Paulo Freire. The knowledge construction<br />

is based on its social, political and cultural context of an agricultural community,<br />

with the intention to educate citizens with capacity to be creative, critical,<br />

participative and independent. Believing in the Art as knowledge area, the<br />

Theater works as bridge-instrument of all the actions lived in the Brilho do<br />

Cristal.<br />

Keywords: Theater-Education – Curriculum – Liberating Pe<strong>da</strong>gogy –<br />

Agricultural Area<br />

* Mestre em <strong>Educação</strong>. Aluna especial do doutorado do Programa de Pós-graduação <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de <strong>Educação</strong> –<br />

FACED/UFBA. Professora colaboradora <strong>da</strong> ACC - Ativi<strong>da</strong>de Curricular em Comuni<strong>da</strong>de de Teatro-<strong>Educação</strong> – UFBA.<br />

Assessora de Currículo <strong>da</strong> Escola Comunitária Brilho do Cristal. Endereço para correspondência: Escola Comunitária<br />

Brilho do Cristal, Vale do Capão – 46930-000 Palmeiras-Bahia. E-mail: riomarlopes@yahoo.com.br<br />

99


O teatro-educação enquanto componente curricular no meio rural: uma experiência na escola comunitária Brilho do Cristal<br />

Caminhando com o Teatro no<br />

Brilho<br />

100<br />

Ninguém educa ninguém,<br />

ninguém educa a si mesmo,<br />

as pessoas se educam entre si,<br />

mediatiza<strong>da</strong>s pelo mundo.<br />

(FREIRE, 1996, p.43)<br />

Este artigo é fruto do segundo capítulo <strong>da</strong><br />

minha dissertação de mestrado intitula<strong>da</strong>: “O<br />

Teatro-<strong>Educação</strong> Enquanto Componente Curricular<br />

no Meio Rural: O caso <strong>da</strong> Escola Comunitária<br />

Brilho do Cristal”, sob a orientação<br />

do Professor Dr. Sérgio Farias, pelo Programa<br />

de Pós-Graduação <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de <strong>Educação</strong><br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia. A Escola<br />

Comunitária Brilho do Cristal fica localiza<strong>da</strong> no<br />

Vale do Capão, Chapa<strong>da</strong> Diamantina - Bahia.<br />

Considerando o contexto de área rural e de<br />

Escola Comunitária que sofre todo o descaso<br />

com o ensino de Teatro por parte <strong>da</strong>s políticas<br />

públicas, é interessante saber como o Teatro-<br />

<strong>Educação</strong> se constituiu enquanto elemento curricular<br />

no Brilho do Cristal, no Vale do Capão,<br />

no período de 1991 a 1997.<br />

O Teatro faz parte <strong>da</strong>s práticas pe<strong>da</strong>gógicas<br />

<strong>da</strong> Brilho do Cristal desde a sua fun<strong>da</strong>ção,<br />

tendo estado presente em todo o processo de<br />

construção <strong>da</strong> Escola como exercício metodológico<br />

experimental. Metodologicamente busquei<br />

trabalhar o Teatro-<strong>Educação</strong> através de<br />

jogos, brincadeiras e processos de improvisações;<br />

tudo isso dentro de uma perspectiva <strong>da</strong><br />

Pe<strong>da</strong>gogia Libertadora, que apresenta o diálogo,<br />

a problematização e a contextualização como<br />

norteadores <strong>da</strong> prática pe<strong>da</strong>gógica. Nosso referencial<br />

teórico era composto por Paulo Freire<br />

(1987, 1996), Augusto Boal (1988, 1991),<br />

Paulo Dourado & Mª Eugênia Milet (1984),<br />

Viola Spolin (1992), livros didáticos e revistas<br />

educativas. Tínhamos também um rico referencial<br />

humano, as crianças e as professoras, cheias<br />

de conhecimentos e de boas idéias, prontas<br />

para trocar experiências, num exercício experimental.<br />

Para melhor entender o lugar do Teatro-<strong>Educação</strong><br />

enquanto elemento curricular no<br />

contexto do Brilho do Cristal, que propõe a cons-<br />

trução de um Currículo Crítico no qual as idéias<br />

de Paulo Freire é o principal referencial político-pe<strong>da</strong>gógico,<br />

procurarei reconstruir os passos<br />

dessa caminha<strong>da</strong>.<br />

Vai começar o espetáculo<br />

O encontro do Teatro com a comuni<strong>da</strong>de do<br />

Vale do Capão se deu no final do ano letivo de<br />

1991, na festa de encerramento <strong>da</strong> Escola Integra<strong>da</strong>,<br />

neste momento o Brilho do Cristal ain<strong>da</strong><br />

não existia. A Escola Integra<strong>da</strong> (1988) foi<br />

um projeto de um grupo de mães e pais, vindo<br />

de outros lugares para morar no Vale do Capão,<br />

alguns com formação acadêmica. Essas<br />

pessoas se juntaram para fazer a Escola Integra<strong>da</strong><br />

e convi<strong>da</strong>ram a se juntar ao projeto um<br />

pequeno grupo de mães e pais nativos que estavam<br />

insatisfeitos com a Escola Municipal.<br />

Nossos alunos eram nativos e alternativos 1 .<br />

Oficialmente a Escola Integra<strong>da</strong> não existia, os<br />

alunos eram matriculados na Escola Municipal,<br />

logo, a submissão à prefeitura, a falta de autonomia,<br />

a falta de recursos financeiros, a prefeitura<br />

colaborava com apenas um salário mínimo,<br />

enfim, tudo isso nos levou a realizar o sonho de<br />

termos nosso próprio prédio, uma escola Comunitária.<br />

Mesmo com to<strong>da</strong>s as carências, pudemos<br />

contar com a criativi<strong>da</strong>de de todos e assim o<br />

espetáculo começou. As crianças <strong>da</strong> multisseria<strong>da</strong><br />

(3ª e 4ª série) apresentaram uma a<strong>da</strong>ptação<br />

teatral do conto Chapeuzinho Vermelho.<br />

A idéia dessa concepção cênica se deu pelo<br />

fato de as crianças estarem trabalhando esse<br />

conto nas aulas de Português. Então um grupo<br />

de criança sugeriu a montagem do referido conto<br />

e a sugestão foi aceita por todos. O grupo de<br />

crianças alternativas já tinha tido oportuni<strong>da</strong>des<br />

de estu<strong>da</strong>r em outras escolas e algumas<br />

até já tinham feito teatro na escola. Ao contrário,<br />

as crianças nativas começavam seus primeiros<br />

contatos com o Teatro além de trazerem<br />

1 A comuni<strong>da</strong>de do Vale do Capão denomina de nativos as<br />

pessoas que nasceram no Vale do Capão e alternativos as<br />

pessoas que vem de outros lugares morar no Vale do Capão.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 99-115, jan./jun., 2006


uma experiência de educação extremamente<br />

repressora, basea<strong>da</strong> no autoritarismo.<br />

Para realizar a construção cênica, fizemos<br />

alguns encontros com as crianças. Brincamos,<br />

identificamos o local, as ações e os personagens<br />

<strong>da</strong> peça. O Vale do Capão era inspirador<br />

de simplici<strong>da</strong>de, ain<strong>da</strong> não havia luz elétrica,<br />

Rede Globo também não, o vestido de chita<br />

satisfazia e o forró na “boca <strong>da</strong> noite” trazia<br />

muita alegria. Porém, nem tudo era poesia e a<br />

maioria <strong>da</strong>s pessoas <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de, nativa do<br />

Vale do Capão, é analfabeta ou semi-analfabeta,<br />

não tem assistência médica e suas habitações<br />

são precárias. Diante de tal contexto não<br />

poderíamos deixar de contemplar a subjetivi<strong>da</strong>de<br />

e a singulari<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> um, assim como, a<br />

diversi<strong>da</strong>de do grupo e <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de. Nosso<br />

Teatro deveria ser contextualizado para que<br />

todos o entendessem, para que houvesse interação<br />

e troca de conhecimento. Nossas construções<br />

cênicas teriam em sua estética a “cara”<br />

do Vale do Capão.<br />

Como não tínhamos material cênico, fazíamos<br />

uma coleta na casa dos alternativos (roupas, sapatos,<br />

perucas, xales, panos e maquiagem); lembro<br />

que numa dessas vezes encontramos no caminho<br />

um cavalete velho, meio torto, jogado fora por algum<br />

pedreiro. Carregamos o cavalete e o colocamos<br />

no palco, ain<strong>da</strong> sem saber onde o usaríamos.<br />

Rapi<strong>da</strong>mente uma aluna providenciou um tapete<br />

colorido de tiras de tecido, colocou-o sobre o cavalete<br />

e falou: professora esse é o lugar onde o<br />

galo vai cantar - não deu tempo de perguntar-lhe:<br />

que galo? pois no mesmo instante, um menino, um<br />

dos mais tímidos <strong>da</strong> escola, pulou sobre o cavalete<br />

e soltou um som bem alto: - curu-cu-cuuu... todos<br />

vibraram e apontando para o menino falaram: - ele<br />

é o galo... - o galo que vai acor<strong>da</strong>r a vovozinha.<br />

O galo, que não existia no roteiro, passou a existir.<br />

Tais atitudes retratavam a fluência do processo criativo,<br />

o nível de envolvimento <strong>da</strong>s crianças no jogo,<br />

no fazer teatral.<br />

Com o galo cantando, a vovozinha gritando,<br />

o lobo rosnando e a platéia vibrando, a dramaturgia<br />

<strong>da</strong> peça Chapeuzinho Vermelho marcou<br />

o início de um diálogo estético 2 com a<br />

comuni<strong>da</strong>de. Foi hilário, algo fantástico. Nunca<br />

esquecerei <strong>da</strong>s bocas abertas, dos olhos arre-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 99-115, jan./jun., 2006<br />

Rilmar Lopes <strong>da</strong> Silva<br />

galados, dos aplausos e <strong>da</strong> alegria de todos diante<br />

desta cena teatral. A alegria era contagiante<br />

e dentro de mim ela ecoava a ca<strong>da</strong><br />

lembrança dos momentos agradáveis do processo<br />

de encenação. Não foi o grande espetáculo,<br />

porém, foi grandioso para as crianças,<br />

especialmente para os nativos que nunca tinham<br />

tido a oportuni<strong>da</strong>de de fazer Teatro.<br />

Para falar um pouco mais <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> do<br />

Teatro no Vale do Capão ofereço esse poema,<br />

como fruto de minhas lembranças.<br />

Nossa luz era o dia, luz elétrica não existia<br />

As cortinas se fechavam antes do fim do dia<br />

Bons dias...<br />

O espetáculo continuou. A apresentação, a<br />

materiali<strong>da</strong>de do Teatro, significava o surgimento<br />

do grande aliado. Naquele momento tinha certeza<br />

<strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de interagir com aquelas<br />

crianças, com a comuni<strong>da</strong>de escolar, tendo o<br />

Teatro como mediador.<br />

Após a apresentação, refletindo sobre o trabalho,<br />

percebi que a marca do nosso modelo de<br />

educação separatista, excludente, estava refleti<strong>da</strong><br />

em nossa construção cênica. Tínhamos em<br />

cena personagens com fala e personagens sem<br />

fala. A maioria dos alternativos tinha fala enquanto<br />

a maioria dos nativos não tinha fala. É<br />

certo que esta distribuição não foi pré-estabeleci<strong>da</strong>,<br />

ela foi se mol<strong>da</strong>ndo de acordo com identi<strong>da</strong>des,<br />

facili<strong>da</strong>des e passivi<strong>da</strong>des.<br />

Lamentavelmente por falta de formação, de<br />

reflexão prática e teórica fortalecemos nosso<br />

sistema opressivo quando nos acomo<strong>da</strong>mos diante<br />

<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. Percebi que não acreditamos<br />

no outro, logo não acreditamos na<br />

transformação.<br />

Quando o oprimido-opressor exerce sua violência<br />

contra um novo oprimido, ele reforça a estabili<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de opressora. Quando, ao contrário,<br />

dirige sua violência contra o opressor, ele inicia um<br />

movimento de decomposição dessas estruturas<br />

sociais opressoras. (BOAL; 1991, p.28)<br />

Muitas vezes somos os oprimidos-opressores,<br />

somos nós que fazemos essa socie<strong>da</strong>de<br />

opressora e oprimi<strong>da</strong>. Construímos uma socie-<br />

2 Chamo aqui diálogo estético a relação de interação cria<strong>da</strong>,<br />

durante a apresentação cênica, entre os atores e a platéia<br />

101


O teatro-educação enquanto componente curricular no meio rural: uma experiência na escola comunitária Brilho do Cristal<br />

<strong>da</strong>de cujo modelo social está fun<strong>da</strong>do em modelos<br />

hierárquicos: o patrão oprime o operário,<br />

que oprime a esposa, que oprime o filho que<br />

oprime o irmãozinho, que oprime... , modelos<br />

que estimulam o desejo dos oprimidos de um<br />

dia ser opressor ou ter o seu momento de opressor.<br />

Manter as crianças, que têm dificul<strong>da</strong>des<br />

em falar sem fala traduz nossas raízes sociais<br />

e culturais.<br />

É necessário acreditarmos que ca<strong>da</strong> criança,<br />

mesmo sem coragem de falar, tem algo a<br />

nos dizer. Tal exercício, tão distante <strong>da</strong> rotina<br />

<strong>da</strong>s nossas escolas, as deixava inibi<strong>da</strong>s. Algumas<br />

acham que suas falas são besteiras, outras<br />

acham que têm a voz feia. Infelizmente os fantasmas<br />

<strong>da</strong> nossa educação tradicional ron<strong>da</strong>m<br />

nossas crianças e a nós. Dialogar significa <strong>da</strong>r<br />

o direito a todos de falarem, escutarem, refletirem<br />

e proporem.<br />

102<br />

Não há também diálogo se não há uma intensa fé<br />

nos homens. Fé no seu poder de fazer e refazer.<br />

De criar e recriar. Fé na sua vocação de ser mais,<br />

que não é privilégio de alguns eleitos, mas direitos<br />

dos homens. A fé nos homens é um <strong>da</strong>do a<br />

priori do diálogo. Por isso existe antes mesmo de<br />

que ele se instale. (FREIRE, 1987, p.81).<br />

Portanto, para transformarmos essas estruturas<br />

sociais opressoras precisamos mu<strong>da</strong>r nosso<br />

comportamento diante delas e precisamos<br />

nos reconstruir no exercício pe<strong>da</strong>gógico. Torna-se<br />

imprescindível a construção de ci<strong>da</strong>dãos<br />

autônomos, líderes, capazes de interferir nos<br />

modelos sociais autoritários.<br />

Minhas reflexões me faziam aumentar o<br />

desejo de estabelecer um diálogo com a comuni<strong>da</strong>de<br />

através do Teatro. Vislumbrava a possibili<strong>da</strong>de<br />

de interferir de maneira crítica e criativa<br />

no modelo de educação do Vale do Capão. E<br />

assim, as primeiras reflexões sobre o Teatroeducação<br />

no Vale do Capão iam aflorando.<br />

Brincando com o Teatro no Brilho<br />

Iniciamos o ano letivo de 1992 em festa, pois<br />

estávamos no nosso próprio prédio 3 . Ter nosso<br />

prédio significou nossa independência, nossa<br />

autonomia. Em assembléia geral, as crianças<br />

elegeram o nome <strong>da</strong> escola - Escola Comunitária<br />

Brilho do Cristal. Começamos com duas<br />

salas de aulas, uma varan<strong>da</strong>, uma pequena secretaria-biblioteca,<br />

horta, pomar, jardim, balanços<br />

e um aumento significativo no número de<br />

crianças na escola. Fun<strong>da</strong>mos nossa Associação<br />

de Pais Mestres e Amigos <strong>da</strong> Escola Comunitária<br />

Brilho do Cristal. Acreditávamos<br />

numa proposta coletiva, segundo a qual nossos<br />

encontros semanais com todos os professores<br />

seriam não só para planejar como também para<br />

refletirmos nossas práticas pe<strong>da</strong>gógicas, para<br />

<strong>da</strong>rmos e pedirmos aju<strong>da</strong> um ao outro.<br />

Nossa equipe discente era forma<strong>da</strong> por vinte<br />

e um alunos, entre sete e quinze anos, divididos<br />

em três grupos: uma sala multisseria<strong>da</strong> de<br />

1ª e 2ª série, uma sala multisseria<strong>da</strong> de e 3ª e 4ª<br />

série e um grupo de três crianças, de sete anos,<br />

na alfabetização. Tínhamos uma grande diferença<br />

de i<strong>da</strong>de em nossas salas de multisseria<strong>da</strong>s,<br />

o que se constituiu em um grande desafio.<br />

Segundo os pais <strong>da</strong>s crianças nativas, o costume<br />

local era de colocar as crianças na Escola a<br />

partir dos oito ou nove anos, pois consideravam<br />

que antes disso as crianças ain<strong>da</strong> estavam muito<br />

novas. Por outro lado, normalmente, desde<br />

os cinco ou seis anos as crianças já aju<strong>da</strong>vam<br />

na roça e já possuíam uma pequena enxa<strong>da</strong>.<br />

Havia um grupo de mais ou menos cinco alunos<br />

que se assumiam enquanto burros. Algumas<br />

vezes ouvi frases assim: esse negócio de<br />

estudo não é para mim... isso não entra na<br />

minha cabeça... eu não tenho jeito para os<br />

estudos... eu sou burro mesmo... Através de<br />

depoimentos <strong>da</strong>s crianças e de alguns pais nativos,<br />

soubemos que era costume, na Escola Pública<br />

do Vale Capão, os professores colocarem<br />

orelha de burro nas crianças, assim como, literalmente,<br />

chamá-los de burros. A situação era<br />

3 Em 1991 solicitamos à comuni<strong>da</strong>de de Lothlorien a doação<br />

de um terreno e nosso pedido foi atendido. Construímos<br />

nosso primeiro núcleo durante o ano letivo de 1991. Em<br />

sala de aula, fizemos nossa trena, medimos nosso terreno,<br />

desenhamos a planta-baixa <strong>da</strong> “escola dos nossos sonhos” e<br />

fizemos a maquete. Em mutirão limpamos o terreno, catamos<br />

pedras para os primeiros alicerces, tiramos madeira na<br />

mata para fazer o telhado, ganhamos telhas e cimento,<br />

fizemos rifas e pedágio, fizemos nossos adobes e levantamos<br />

nossas paredes.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 99-115, jan./jun., 2006


constrangedora, as crianças nativas eram extremamente<br />

reprimi<strong>da</strong>s, suas vozes eram abafa<strong>da</strong>s,<br />

podíamos perceber, através de sua postura<br />

corporal, vergonha, susto e medo. Porém não<br />

era difícil roubar um sorriso de sua boca.<br />

A dificul<strong>da</strong>de no processo de aprendizagem<br />

apresenta<strong>da</strong> pelo grupo nativo era enorme em<br />

relação à comunicação e expressão, tanto corporal<br />

quanto emocional. A maioria <strong>da</strong>s crianças<br />

nativas já tinha freqüentado outro modelo<br />

escolar e trazia marcas de uma educação tradicional,<br />

autoritária, centra<strong>da</strong> na cópia e no castigo.<br />

Conhecia de perto a repressão escolar e o<br />

descaso dos órgãos públicos, no caso a prefeitura,<br />

com a Instituição Escola.<br />

Trabalhar o Teatro numa perspectiva libertadora<br />

significou a construção de uma proposta<br />

pe<strong>da</strong>gógica cujas bases eram o diálogo, o amor,<br />

a brincadeira, a improvisação e a construção<br />

coletiva. Acreditávamos que assim poderíamos<br />

contribuir para um melhor desenvolvimento físico,<br />

emocional e racional <strong>da</strong>s crianças. Coletivamente,<br />

na sala de aula com os alunos e no<br />

planejamento com os professores discutíamos<br />

nossas propostas, nossas experiências. Como<br />

aponta Freire (1996, p. 39) “é pensando criticamente<br />

a prática de hoje ou de ontem que se<br />

pode melhorar a próxima prática”. Assim busquei<br />

a construção de um Teatro experimental<br />

libertador.<br />

A partir <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de vigente me perguntava:<br />

Como construir uma proposta metodológica libertadora<br />

que consiga preencher as tantas lacunas<br />

detecta<strong>da</strong>s? Como formar ci<strong>da</strong>dãos capazes<br />

de ler e interpretar o mundo que os rodeia? Como<br />

impedir a evasão? Essas perguntas norteavam<br />

minha prática, por vezes me perseguiam.<br />

Além do impressionante quadro de abandono<br />

4 <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> no Vale do Capão, fiquei impressiona<strong>da</strong><br />

com a reação <strong>da</strong>s crianças diante<br />

dos alternativos. Quando as crianças viam um<br />

visitante ou um novo morador do Vale do Capão,<br />

corriam e se escondiam atrás <strong>da</strong> porta,<br />

deixando parte do rosto para o lado de fora.<br />

Num movimento de dentro para fora os seus<br />

rostos saíam, se moviam. Através dessa reação,<br />

dessa imagem, via um gesto de resistência<br />

à inibição, um espanto e uma curiosi<strong>da</strong>de dian-<br />

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Rilmar Lopes <strong>da</strong> Silva<br />

te do novo, confirmando a premissa de Freire:<br />

A curiosi<strong>da</strong>de como inquietação in<strong>da</strong>gadora,<br />

como inclinação ao desvelamento de algo, como<br />

pergunta verbaliza<strong>da</strong> ou não, como procura de<br />

esclarecimento, como sinal de atenção que sugere<br />

alerta faz parte integrante do fenômeno vital.<br />

Não haveria criativi<strong>da</strong>de sem a curiosi<strong>da</strong>de<br />

que nos move e nos põe pacientemente impaciente<br />

diante do mundo que não fizemos, acrescentando<br />

nele algo que fazemos. (1996; p.32)<br />

A curiosi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s crianças me deixava curiosa.<br />

Apostei nesta curiosi<strong>da</strong>de que nos movia.<br />

Juntos podíamos criar e recriar muitas<br />

estórias e através do Teatro contá-las. Nesse<br />

processo de reconhecimento, de troca, de práticas<br />

e de reflexões, íamos trocando, nos <strong>da</strong>ndo<br />

conta <strong>da</strong> nossa reali<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>s nossas necessi<strong>da</strong>des.<br />

As interrogações me perseguiam: como interferir<br />

de maneira construtiva nos processos<br />

de aprendizagens <strong>da</strong>s crianças? Elas precisavam<br />

ler e entender o mundo em que viviam,<br />

precisavam falar, chorar, discor<strong>da</strong>r, brincar, gritar,<br />

<strong>da</strong>nçar, poetizar, pintar e teatralizar. Acreditava<br />

que através do Teatro-educação poderia<br />

ajudá-las a ler as palavras, os gestos, o olhar, o<br />

silêncio, as formas e o mundo.<br />

O diálogo tão defendido por Paulo Freire<br />

tornou-se ação imprescindível em nossas práticas<br />

pe<strong>da</strong>gógicas. A práxis pe<strong>da</strong>gógica passou<br />

a ter seu lugar de honra no Brilho do Cristal.<br />

Entre ação-reflexão-acão fui construindo minha<br />

proposta teatral. Sendo a coletivi<strong>da</strong>de terreno<br />

fértil para desenvolvimento <strong>da</strong>s crianças e<br />

inerente à natureza do Teatro, na busca de um<br />

fazer teatral crítico e criativo, procurávamos<br />

exercitar o máximo a valorização <strong>da</strong> coletivi<strong>da</strong>de,<br />

todos eram sujeitos do processo. Em ro<strong>da</strong><br />

refletíamos nossas práticas pe<strong>da</strong>gógicas, nossas<br />

propostas cênicas, as temáticas trabalha<strong>da</strong>s<br />

eram discuti<strong>da</strong>s e sugeri<strong>da</strong>s pelas crianças.<br />

As construções coletivas nasciam a partir de<br />

4 Abandono pe<strong>da</strong>gógico vivido por muitos anos, revelado<br />

por uma população basicamente composta de analfabetos,<br />

inconscientes <strong>da</strong> real necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> educação para o desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de. Até o final dos anos oitenta<br />

prevalecia a educação autoritária, as orelhas de burros, e o<br />

índice de abandono a Escola era alarmante.<br />

103


O teatro-educação enquanto componente curricular no meio rural: uma experiência na escola comunitária Brilho do Cristal<br />

estórias coletivas construí<strong>da</strong>s pelo grupo, estórias<br />

conta<strong>da</strong>s pelos avós <strong>da</strong>s crianças, estórias<br />

cria<strong>da</strong>s pelas crianças, a<strong>da</strong>ptações de estórias<br />

<strong>da</strong> literatura infantil, assim como sugestões de<br />

temas que elas estavam trabalhando na Escola.<br />

To<strong>da</strong>s as ativi<strong>da</strong>des teatrais tinham como<br />

base metodológica as brincadeiras e os processos<br />

de improvisação.<br />

A brincadeira de faz de conta, assumir papéis,<br />

personagens, tão predominante nas crianças,<br />

favorecem a criação de situações<br />

imaginárias a partir <strong>da</strong>s experiências vivi<strong>da</strong>s. A<br />

reorganização de experiências vivi<strong>da</strong>s é considera<strong>da</strong><br />

por Vigotski imprescindível no processo<br />

de desenvolvimento <strong>da</strong>s crianças, logo a cultura,<br />

o saber construído no cotidiano, a troca de<br />

experiência e a interação devem ser valoriza<strong>da</strong>s.<br />

Torna-se necessário um diálogo entre educação,<br />

socie<strong>da</strong>de e cultura se desejarmos formar<br />

seres criativos, críticos.<br />

Cabe à escola a tarefa de estimular a fruição<br />

do conhecimento que ca<strong>da</strong> criança traz <strong>da</strong><br />

sua experiência de mundo e valorizá-lo enquanto<br />

conteúdo significativo. É fun<strong>da</strong>mental que a<br />

Escola receba outros elementos <strong>da</strong> cultura, que<br />

não a escolariza<strong>da</strong> e, assim, possa beneficiar e<br />

enriquecer o repertório imaginativo <strong>da</strong> criança<br />

através de jogos. Koudela afirma “que:”... o<br />

processo de atuação no Teatro deve ser baseado<br />

na participação em jogo. Por meio do envolvimento<br />

criado pela relação do jogo, o<br />

participante desenvolve liber<strong>da</strong>de pessoal dentro<br />

do limite de regras estabeleci<strong>da</strong>s e cria técnicas<br />

e liber<strong>da</strong>des pessoais necessárias para o<br />

jogo.” (1998, p.43)<br />

A ativi<strong>da</strong>de com o brincar de fazer Teatro<br />

era oferecido às crianças que queriam participar,<br />

independentes <strong>da</strong> série que estivesse cursando.<br />

Procurava incentivar a participação <strong>da</strong>s<br />

crianças. Algumas, porém, preferiam apenas<br />

assistir. As crianças nos desafiavam constantemente<br />

a sermos um, a encontrarmos a uni<strong>da</strong>de<br />

na diversi<strong>da</strong>de.<br />

Na busca de contemplarmos as diversi<strong>da</strong>des<br />

culturais e sociais tão presentes em nosso<br />

contexto, optamos, em relação a nossa<br />

organização espacial, pela ativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ro<strong>da</strong>.<br />

Além de acreditarmos na ro<strong>da</strong> enquanto sím-<br />

104<br />

bolo <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de, enquanto sistema de organização<br />

espacial, na ro<strong>da</strong> todos se vêem, não<br />

há uma distribuição hierárquica, provocadora<br />

de tensões, do tipo primeiro e último, frente<br />

e atrás, etc. A ro<strong>da</strong> tornou-se elemento<br />

constituinte de nossas práticas pe<strong>da</strong>gógicas:<br />

ro<strong>da</strong> de chega<strong>da</strong>, ro<strong>da</strong> de conversa, ro<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

comi<strong>da</strong>, ro<strong>da</strong> do agradecimento, ro<strong>da</strong> de assembléia,<br />

ro<strong>da</strong> de reunião, ro<strong>da</strong> de cadeiras,<br />

ro<strong>da</strong> de esteiras, ro<strong>da</strong> de avaliação, ro<strong>da</strong> de<br />

<strong>da</strong>nça e brincadeiras de ro<strong>da</strong>. Assim fomos<br />

nos reconhecendo e tecendo o nosso diálogo,<br />

afinal como coloca Freire:<br />

Não há diálogo, porém, se não há um profundo<br />

amor ao mundo e aos homens. Não é possível a<br />

pronúncia do mundo, que é um ato de criação e<br />

recriação, se não há amor que a infun<strong>da</strong>. Sendo<br />

fun<strong>da</strong>mento do diálogo o amor é, também, diálogo.<br />

Daí que seja essencialmente tarefa de sujeitos<br />

e que não possa verificar-se na relação de<br />

dominação. Nesta o que há de patologia de amor:<br />

sadismo em quem domina: masoquismo nos dominados.<br />

Amor não. Porque é um ato de coragem<br />

nunca de medo, o amor é compromisso com<br />

os homens... Este compromisso, porque é amoroso,<br />

é dialógico. (1987, p.80)<br />

Acreditávamos no compromisso amoroso,<br />

na dialogici<strong>da</strong>de. Nesses dois primeiros anos<br />

na busca de uma construção pe<strong>da</strong>gógica libertadora,<br />

experimentamos, ousamos, criamos<br />

e recriamos tendo como companheiro de<br />

to<strong>da</strong>s as horas a brincadeira, o jogo e o Teatro.<br />

Dessa forma criamos nossos textos e<br />

subtextos.<br />

Textos e Subtextos<br />

Após dois anos de experiência com o brincar<br />

de fazer Teatro, na interação com as crianças,<br />

me senti prepara<strong>da</strong> para fazer uma proposta<br />

mais ousa<strong>da</strong>. Como eu também era professora<br />

de História aproveitei para trabalhar construções<br />

cênicas a partir de algumas temáticas dessa<br />

área. Com a proposta interdisciplinar<br />

pudemos contemplar to<strong>da</strong> a turma, inclusive as<br />

crianças mais tími<strong>da</strong>s se interessaram pela proposta.<br />

Foi extremamente motivadora a idéia de<br />

montarmos as cenas de nossas pesquisas his-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 99-115, jan./jun., 2006


tóricas: Invasão dos Portugueses, A semana<br />

Santa Antigamente, entre outras.<br />

Nossas aulas de Teatro envolviam o trabalho<br />

com os principais elementos constituintes<br />

do Teatro: corpo, espaço e tempo. O trabalho<br />

com as temáticas de História não impediu que<br />

trabalhássemos também com outras temáticas,<br />

como a<strong>da</strong>ptações de pequenas estórias e construções<br />

coletivas. Por uma necessi<strong>da</strong>de do grupo,<br />

nossa ênfase foi <strong>da</strong><strong>da</strong> ao trabalho corporal,<br />

porém procurávamos seguir um roteiro em nossos<br />

encontros: exercícios corporais, respiratórios,<br />

espaciais, brincadeiras, jogos teatrais,<br />

improvisações, avaliação. To<strong>da</strong>s as ativi<strong>da</strong>des<br />

eram desenvolvi<strong>da</strong>s de maneira lúdica, tendo o<br />

jogo como uma <strong>da</strong>s principais ferramentas metodológicas.<br />

Para Spolin:<br />

O jogo é uma forma natural de grupo que propicia<br />

o envolvimento e a liber<strong>da</strong>de pessoal necessários<br />

para a experiência. Os jogos desenvolvem<br />

as técnicas e habili<strong>da</strong>des pessoais necessárias<br />

para o jogo em si, através do próprio ato de jogar.<br />

As habili<strong>da</strong>des são desenvolvi<strong>da</strong>s no próprio<br />

momento em que pessoa está jogando,<br />

divertindo-se ao máximo e recebendo a estimulação<br />

que o jogo tem para oferecer. (SPOLIN;<br />

1992, p.4)<br />

Jogamos com o corpo, jogamos nas improvisações,<br />

jogamos em cena e assim fomos nos<br />

assumindo enquanto jogadores. Desafiávamosnos<br />

diante <strong>da</strong>s regras que nos traziam limites.<br />

Num exercício dialógico e problematizador criávamos<br />

e recriávamos as regras.<br />

Durante o processo de construção cênica<br />

não trabalhamos com texto escrito e sim com<br />

texto oral e com texto corporal, ou seja, expressão<br />

corporal. Procurava evitar ao máximo a<br />

supervalorização do texto escrito. Quando recontávamos,<br />

procurávamos improvisar, não ficarmos<br />

presos ao texto original. Contávamos e<br />

recontávamos o texto várias vezes, de várias<br />

maneiras: diferenciando-lhes a voz dos personagens,<br />

diferenciando-lhes a postura corporal<br />

dos personagens, com adereços, mu<strong>da</strong>ndo o final,<br />

explorávamos, enfim, várias possibili<strong>da</strong>des<br />

de contar a estória. Esse processo acontecia<br />

de maneira participativa. O texto tornava-se<br />

pretexto para a construção de um novo texto.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 99-115, jan./jun., 2006<br />

Rilmar Lopes <strong>da</strong> Silva<br />

Quando esse novo texto começava a tomar forma,<br />

as crianças construíam um roteiro e em<br />

segui<strong>da</strong>, dependendo do processo de alfabetização<br />

de ca<strong>da</strong> criança, escreviam a cena, o<br />

esquete. No caso <strong>da</strong>s crianças menores ,essas<br />

a<strong>da</strong>ptações se <strong>da</strong>vam apenas na orali<strong>da</strong>de.<br />

Nossas construções cênicas eram permea<strong>da</strong>s<br />

por brincadeiras. Era um grande exercício<br />

de imaginação. Um dia recebemos uma doação<br />

de alguns livros de contos infantis. As crianças<br />

nativas, por nunca terem tido acesso aos<br />

contos, estavam encanta<strong>da</strong>s com o mundo encantado.<br />

Não se cansavam de escutar a mesma<br />

estória repeti<strong>da</strong>s vezes. Naturalmente<br />

tiveram a grande idéia de encenar um desses<br />

contos, que foi Rapunzel.<br />

O processo de construção cênica de Rapunzel<br />

foi cheio de fantasias. Como a estória de<br />

Rapunzel é bem simples, rapi<strong>da</strong>mente foi construído<br />

o seu roteiro cênico, a a<strong>da</strong>ptação. Várias<br />

crianças queriam fazer o príncipe, outras tantas<br />

queriam fazer Rapunzel. Fizemos, então, um<br />

rodízio de personagens. O contrário ocorreu com<br />

a Bruxa, pois ninguém queria fazer a bruxa. Elas<br />

ficavam assusta<strong>da</strong>s com a risa<strong>da</strong> <strong>da</strong> bruxa e a<br />

achavam muito feia. No dia <strong>da</strong> estréia de Rapunzel<br />

entrei em cena fazendo a bruxa. Estar<br />

em cena com as crianças foi extremamente<br />

prazeroso e divertido. Confirmávamos uma<br />

relação de companheirismo, e de cumplici<strong>da</strong>de.<br />

Juntos esquecíamos o texto e juntos improvisávamos.<br />

Claro, que na segun<strong>da</strong> apresentação<br />

de Rapunzel já tínhamos nossa bruxinha <strong>da</strong>ndo<br />

belíssimas gargalha<strong>da</strong>s. Depois <strong>da</strong> primeira bruxa<br />

assumi<strong>da</strong> por uma criança, muitas outras<br />

crianças também quiseram subir na vassoura e<br />

soltar a gargalha<strong>da</strong>. Não é difícil de constatar<br />

em tal atitude o quanto aprendemos com o outro,<br />

com a coragem do outro, <strong>da</strong>í a importância<br />

do fazer coletivo, <strong>da</strong> interação.<br />

A ca<strong>da</strong> apresentação, percebia que o diálogo<br />

estético ia crescendo. Assim que uma apresentação<br />

terminava já chegavam duas ou três<br />

crianças falando que queriam fazer Teatro. Fizemos<br />

várias montagens de Rapunzel, apresenta<strong>da</strong>s<br />

por vários grupos. Houve uma montagem<br />

de Rapunzel em que as crianças fizeram o castelo<br />

<strong>da</strong> bruxa em cima <strong>da</strong> árvore e a cor<strong>da</strong> de<br />

105


O teatro-educação enquanto componente curricular no meio rural: uma experiência na escola comunitária Brilho do Cristal<br />

brincar de pular virou as tranças de Rapunzel.<br />

Tais idéias, fruto <strong>da</strong> imaginação <strong>da</strong>s crianças,<br />

eram experimenta<strong>da</strong>s e refleti<strong>da</strong>s por todos<br />

nós. Sempre incentivei a experimentação <strong>da</strong>s<br />

idéias, tínhamos muito tempo, muito espaço,<br />

muito corpo, ain<strong>da</strong> éramos crianças, se errássemos,<br />

se não desse certo, mu<strong>da</strong>ríamos, misturaríamos<br />

e transformaríamos. Nosso lema era:<br />

vamos ver se dá certo.<br />

O principal objetivo em nossas construções<br />

cênicas não era a formação de ator e sim experimentar<br />

o fazer teatral baseado em brincadeiras<br />

e jogos teatrais. Para que, de maneira lúdica,<br />

a criança pudesse se apropriar dos elementos<br />

constituintes do Teatro e, conseqüentemente,<br />

fazer uso dos mesmos em seus processos criativos,<br />

expressivos e estéticos. Koudela observa<br />

que: “O objetivo do sistema de jogos teatrais não<br />

é a interpretação, mas a atuação que surge <strong>da</strong><br />

relação de jogo”. (1998, p.50)<br />

O jogo, a ludici<strong>da</strong>de propicia prazer, descontração,<br />

espontanei<strong>da</strong>de; pré-requisitos importantíssimos<br />

para a fluência dos processos criativos.<br />

Spolin substitui o termo ator por jogador. Com o<br />

intuito de formarmos jogadores teatrais (assumindo<br />

a terminologia de Spolin), produzimos<br />

muitas cenas interessantes. O desejo de mostrá-las<br />

era grande, as crianças se sentiam, de<br />

fato, autoras, criadoras <strong>da</strong>s cenas. Com certeza,<br />

compartilhar o resultado desse processo com<br />

a comuni<strong>da</strong>de escolar era inevitável.<br />

Apresentar o Teatro à comuni<strong>da</strong>de era interessante<br />

pelo caráter de entretenimento e pela<br />

oportuni<strong>da</strong>de do público, a partir <strong>da</strong> apreciação,<br />

identificar alguns elementos do Teatro: camarim,<br />

coxia, palco, platéia, personagens e texto.<br />

Mas, antes de tudo, era significativo pelo reconhecimento<br />

dos processos criativos <strong>da</strong>s crianças:<br />

reconhecê-las como construtoras de suas<br />

estórias, de seus conceitos. Precisávamos construir<br />

uma cultura teatral, cultura essa que valorizaria<br />

o processo criativo.<br />

Os finais <strong>da</strong>s apresentações eram fortemente<br />

marcados pelos aplausos que me enchiam<br />

de alegria. Sentia a pulsação do Teatro na nossa<br />

escola, não só enquanto entretenimento, mas,<br />

sobretudo, enquanto processo criativo-interativo.<br />

A maioria dos pais e amigos do Brilho do<br />

106<br />

Cristal gostava muito do Teatro, o que estava<br />

muito bem refletido através dos aplausos, <strong>da</strong>s<br />

risa<strong>da</strong>s, dos comentários positivos e incentivadores<br />

após as apresentações. Mas não só tínhamos<br />

aplausos, lamentavelmente havia<br />

aqueles que não assistiam, não aplaudiam e falavam<br />

assim: essa escola é de bruxa, essa<br />

Escola só faz brincar...<br />

A fama de Escola de bruxa parece ter nascido<br />

<strong>da</strong>s tantas apresentações de Rapunzel, <strong>da</strong>s<br />

tantas risa<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s bruxas que ecoavam na vizinhança.<br />

A personagem bruxa é muito popular<br />

no mundo <strong>da</strong> literatura infantil, cheio de mistério,<br />

tanto que a bruxa passou a ser cotadíssima<br />

pelas crianças no Teatro e <strong>da</strong>í tornaram-se inevitáveis<br />

às repeti<strong>da</strong>s apresentações de Rapunzel.<br />

Aos poucos, a idéia de escola de bruxa foi<br />

se diluindo na medi<strong>da</strong> em que vieram as fa<strong>da</strong>s,<br />

os gnomos, os sacis, os lobisomens e as crianças.<br />

Quanto ao comentário Escola que só faz<br />

brincar considero tal questionamento pertinente<br />

à reali<strong>da</strong>de dos pais <strong>da</strong>s crianças nativas, uma<br />

vez que eles não conheciam nenhuma escola<br />

que colocasse como priori<strong>da</strong>de a brincadeira, a<br />

alegria, no processo de ensino e aprendizagem.<br />

Apostamos nas brincadeiras, mesmo sabendo<br />

que teríamos que enfrentar um conflito cultural.<br />

Procuramos compreender o motivo de tais<br />

reações, afinal nossa escola abalava os princípios<br />

<strong>da</strong> educação tradicional, vigente no Vale<br />

do Capão. Sabíamos que o diálogo levaria a todos<br />

uma melhor compreensão <strong>da</strong> questão: brincar<br />

ou não brincar? Procuramos dialogar sobre<br />

tais questões em nossas reuniões pe<strong>da</strong>gógicas,<br />

em nossas assembléias e em visitas particulares<br />

às casas dos nativos. 5 Sempre procuramos<br />

falar <strong>da</strong> importância <strong>da</strong>s brincadeiras, do<br />

Teatro e <strong>da</strong>s artes em geral para o processo de<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> criança. Também aproveitamos<br />

a temática em questão para esclarecermos<br />

e fortalecermos nossas propostas em<br />

relação a uma pe<strong>da</strong>gogia que respeita o homem<br />

integral, que tem corpo, que pensa, que brinca,<br />

que imagina, que cria. Em nossos encontros<br />

5 Nossas visitas aconteciam periodicamente a partir <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des.<br />

Inicialmente visitamos quase que to<strong>da</strong> a população<br />

para esclarecimento sobre os objetivos <strong>da</strong> nossa escola.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 99-115, jan./jun., 2006


pe<strong>da</strong>gógicos eu procurava, sempre que possível,<br />

relatar alguma ativi<strong>da</strong>de teatral que estava<br />

desenvolvendo com as crianças e assim abrir<br />

discussões em relação às experiências pe<strong>da</strong>gógicas<br />

teatrais e à sua importância no processo<br />

de construção de conhecimento. Para<br />

defendermos nossas idéias precisávamos conhecê-las.<br />

No entanto foram às crianças, com sua transparência,<br />

as principais responsáveis pela aceitação<br />

<strong>da</strong> proposta pe<strong>da</strong>gógica <strong>da</strong> Brilho do Cristal,<br />

tanto por parte dos pais como por parte dos próprios<br />

professores. Além de serem bastante receptivas<br />

às brincadeiras, as crianças falavam bem<br />

<strong>da</strong> Escola em suas casas e com seus colegas.<br />

Com prazer, elas convi<strong>da</strong>vam seus pais, familiares<br />

e amigos a participarem de nossas festas,<br />

que eram muito alegres; tinha teatro, brincadeira,<br />

fogueira, muita comi<strong>da</strong> e forró. Nossa escola<br />

é marca<strong>da</strong> pela brincadeira e pelo jogo. Não só<br />

construíamos uma escola como também construíamos<br />

relações e conhecimento.<br />

Aos poucos, de mãos <strong>da</strong><strong>da</strong>s, fomos nos constituindo<br />

enquanto grupo, nos apresentando, nos<br />

fortalecendo e refletindo sobre nossas propostas<br />

pe<strong>da</strong>gógicas. E nesse processo de construção<br />

de uma identi<strong>da</strong>de pe<strong>da</strong>gógica o Teatro<br />

falava alto. O Teatro falar alto significava a<br />

evidência do Teatro no currículo <strong>da</strong> Brilho do<br />

Cristal. A arte até hoje ain<strong>da</strong> sofre preconceitos,<br />

para muitos não serve para na<strong>da</strong>. No Vale<br />

do Capão não era diferente. Não bastaria ter<br />

uma proposta de Teatro e executá-la, era preciso<br />

criar estratégias, mecanismos dialógicos a<br />

fim de problematizar os estereótipos <strong>da</strong>dos às<br />

artes, em específico ao Teatro: coisa de veado,<br />

coisa do diabo, coisa de desocupa<strong>da</strong> e<br />

desocupado. O desafio estava posto; eu apostava<br />

que, com o próprio fazer teatral, podíamos<br />

transformar os preconceitos. Através do Teatro<br />

dialogaríamos, interagiríamos e dessa maneira<br />

a aceitação aconteceria. Dessa forma o<br />

reconhecimento do Teatro foi se fazendo na<br />

medi<strong>da</strong> em que a platéia ia se constituindo.<br />

O ano de 1994 chegava com novas reflexões.<br />

A sensação é que estávamos realmente<br />

num movimento contínuo. Naturalmente ain<strong>da</strong><br />

tínhamos muito <strong>da</strong> Pe<strong>da</strong>gogia Tradicional, afi-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 99-115, jan./jun., 2006<br />

Rilmar Lopes <strong>da</strong> Silva<br />

nal fomos todos educados dentro desse modelo,<br />

então nem sempre conseguíamos transgredir.<br />

Porém tínhamos a liber<strong>da</strong>de para<br />

experimentar, assumir nossos limites e, mesmo<br />

sem uma base teórica sóli<strong>da</strong> em relação à interdisciplinari<strong>da</strong>de,<br />

buscávamos uma nova atitude,<br />

um novo olhar sobre as questões<br />

disciplinares. Refletimos nossa experiência a<br />

partir <strong>da</strong> proposta interdisciplinar. Em nossos<br />

planejamentos coletivos sempre procurávamos<br />

identificar a partir dos relatos e dos planos de<br />

aula dos colegas, em que conteúdo, em que área<br />

de conhecimento poderíamos trabalhar juntos<br />

para que pudéssemos construir um diálogo interdisciplinar.<br />

Reavaliando o caminho percorrido com o<br />

Teatro na Brilho do Cristal me propus a desenvolver<br />

o Teatro de bonecos, dessa vez com a<br />

multisseria<strong>da</strong> <strong>da</strong> 1ª e 2ª série e com a multisseria<strong>da</strong><br />

de 3ª e 4ª série trabalharíamos com o Teatro<br />

convencional, com atores e atrizes.<br />

O Teatro de bonecos foi muito bem aceito<br />

pelo grupo <strong>da</strong> 1ª e 2ª série: os bonecos trouxeram<br />

alegria, ousadia e interação. Além <strong>da</strong><br />

possibili<strong>da</strong>de de trabalharmos a voz e a imaginação<br />

tivemos a oportuni<strong>da</strong>de de quebrar o gelo,<br />

a passivi<strong>da</strong>de, a inibição de alguns. De onde<br />

vinham os textos dos bonecos? Em meio a to<strong>da</strong><br />

essa animação, os textos iam sendo construídos.<br />

Quando a criança pegava o boneco, de<br />

imediato ela buscava animá-lo e estabelecia um<br />

diálogo com outro boneco ou com as pessoas<br />

que estavam próximas ao boneco. Assim, após<br />

uma familiarização <strong>da</strong>s crianças com o boneco<br />

eu sugeria duplas, trios, a irem para trás do<br />

pano. Inicialmente os bonecos se apresentavam;<br />

em segui<strong>da</strong> estabeleciam um diálogo espontâneo<br />

entre eles (bonecos) e com a platéia. A<br />

platéia interagia sem dificul<strong>da</strong>des, respondia,<br />

perguntava, torcia, sugeria, identificava-se com<br />

determinados personagens, criava e resolvia<br />

conflitos. Num processo interativo, improvisacional<br />

e criativo.<br />

Mais tarde, senti necessi<strong>da</strong>de de criarmos<br />

uma estória ou de fazermos uma a<strong>da</strong>ptação. Li<br />

alguns poucos textos de Teatro de Boneco, porém<br />

não me convenci de que seriam os ideais<br />

para trabalhar com as crianças. Resolvi traba-<br />

107


O teatro-educação enquanto componente curricular no meio rural: uma experiência na escola comunitária Brilho do Cristal<br />

lhar com construção coletiva a partir de um<br />

tema. As crianças escolhiam um tema, normalmente<br />

entre os que estavam sendo trabalhados<br />

com o professor <strong>da</strong>s outras disciplinas. Na semana<br />

<strong>da</strong> higiene, por exemplo, como um grupo<br />

de alunos estava pesquisando sobre o piolho, as<br />

crianças criaram o esquete 6 Piolho para que<br />

te quero.<br />

O processo de construção dos esquetes se<br />

<strong>da</strong>va de maneira interativa. De início, eles exploravam<br />

o tema espontaneamente, brincavam<br />

livremente com os bonecos, passeavam pela sala,<br />

buscavam interações com outros bonecos e inventavam<br />

estórias. No momento em que os personagens<br />

já estavam definidos entre eles, a estória<br />

estava fluindo bem, organizávamos nossa apresentação.<br />

Normalmente tínhamos uns dois ou três<br />

elencos para ca<strong>da</strong> estória, formando uma platéia<br />

bem receptiva com as crianças que não estavam<br />

apresentando. Quando nossa construção<br />

dramatúrgica oral já estava tomando forma, partíamos<br />

para escrever um roteiro <strong>da</strong> estória que<br />

estávamos improvisando. Mais tarde, após a exploração<br />

do roteiro, as crianças maiores escreviam<br />

os diálogos, o texto.<br />

A existência de um texto ou de um tema<br />

como referência estimulava a improvisação. A<br />

improvisação no momento <strong>da</strong> ação cênica deixava<br />

as crianças mais à vontade. Seu universo<br />

fluía continuamente. Lembro que ouvi uma criança<br />

incentivando a outra, falando assim: vamos,<br />

a gente inventa a estória na hora...<br />

Com a turma multisseria<strong>da</strong> <strong>da</strong> 3ª e 4ª série<br />

trabalhamos com o Teatro convencional, com<br />

construções coletivas a partir de a<strong>da</strong>ptação de<br />

estórias que eles escolhiam para ler. Inicialmente<br />

os textos eram bem pequenos, mas para eles<br />

já eram enormes, extremamente significativos<br />

e desafiadores. As maiores dificul<strong>da</strong>des se <strong>da</strong>vam<br />

em relação à respiração, voz e movimento<br />

corporal. Ativi<strong>da</strong>des como pular, <strong>da</strong>nçar, requebrar,<br />

entre outras, eram desafiadoras de seus<br />

limites corporais. Persistindo nas brincadeiras<br />

corporais, elas foram se soltando.<br />

Não podemos separar o fazer teatral <strong>da</strong> apresentação;<br />

quando se fala em Teatro se pensa<br />

em apresentar. Dessa forma, as crianças sempre<br />

estavam perguntando: quando a gente vai<br />

108<br />

apresentar? Para que as crianças melhor entendessem<br />

o lugar <strong>da</strong> platéia, esse ente para<br />

quem elas iriam apresentar, procurava trabalhar<br />

também com jogos cujos objetivos eram<br />

exercitar o ator e a platéia. Penso que um dos<br />

maiores incentivos do fazer Teatro na escola<br />

foi o exercício de apresentar e assistir. Nossas<br />

construções cênicas saiam de dentro <strong>da</strong> sala e<br />

iam para a varan<strong>da</strong> para serem assisti<strong>da</strong>s pelos<br />

colegas. Apresentar o Teatro significava também<br />

um exercício de formação de platéia. A<br />

formação de platéia não é só importante para<br />

formar leitores estéticos, mas, antes de tudo,<br />

por ser elemento constituinte do Teatro.<br />

A platéia é o membro mais reverenciado do Teatro.<br />

Sem platéia não há Teatro. Ca<strong>da</strong> técnica<br />

aprendi<strong>da</strong> pelo ator, ca<strong>da</strong> cortina e plataforma<br />

no palco, ca<strong>da</strong> análise feita cui<strong>da</strong>dosamente pelo<br />

diretor, ca<strong>da</strong> cena coordena<strong>da</strong> é para o deleite <strong>da</strong><br />

platéia. Eles são nossos convi<strong>da</strong>dos, nossos<br />

avaliadores e o último elemento na ro<strong>da</strong> que pode<br />

então começar a girar. Ela dá significado ao espetáculo.<br />

(SPOLIN; 1992, p.11)<br />

Do desejo de apresentar o espetáculo nasce<br />

a platéia. E a platéia, por sua vez, se alimenta<br />

do espetáculo assistido, sem o espetáculo ela<br />

também não existiria. Nessa relação interativa<br />

realiza-se o processo de conhecimento e autoconhecimento.<br />

Acreditamos também que, a<br />

partir <strong>da</strong> apreciação, podemos despertar identi<strong>da</strong>des<br />

em relação ao fazer teatral, por exemplo:<br />

logo após as crianças <strong>da</strong> 1ª e 2ª série<br />

assistirem o Teatro do grupo <strong>da</strong> 3ª e 4ª série<br />

vieram falar que também queriam fazer Teatro<br />

de gente, não só Teatro de boneco. Por outro<br />

lado, as crianças <strong>da</strong> multisseria<strong>da</strong> <strong>da</strong> 3º e 4º série<br />

resolveram também fazer Teatro de Bonecos.<br />

No final, bonecos e crianças se revezavam no<br />

palco.<br />

Não incentivávamos a criança pequena apresentar<br />

seus jogos dramáticos, pois queríamos<br />

evitar seu constrangimento. Porém, elas pediam<br />

para apresentar, com certeza, por termos a<br />

cultura teatral muito presente na escola. Como<br />

buscávamos valorizar as vozes dos sujeitos envolvidos,<br />

procuramos dialogar com as crianças,<br />

6 Esquete: nome <strong>da</strong>do a um pequeno texto teatral.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 99-115, jan./jun., 2006


efletir a respeito de suas proposta e elas, firmes<br />

em seu propósito, não abriam mão <strong>da</strong> apresentação.<br />

Tornou-se impossível evitar que as<br />

crianças apresentassem seus Jogos Dramáticos.<br />

Slade afirma que o Jogo Dramático não é<br />

Teatro e, por isso, não deve ser apresentado.<br />

Para ele:<br />

Todos são fazedores, tanto ator como público,<br />

indo para onde querem e encarando qualquer<br />

direção que lhes apraz durante o jogo. A ação<br />

tem lugar por to<strong>da</strong> parte em volta de nós e não<br />

existe a questão de quem deve representar para<br />

quem e quem deve ficar sentado vendo quem<br />

fazendo o quê! (1978; p.18).<br />

Compreendo o pensamento de Slade (1978),<br />

porém acredito que a apresentação não invali<strong>da</strong><br />

o caráter de Jogo Dramático. Também, penso<br />

que mesmo no palco as crianças continuam<br />

no jogo dramático, fazendo e refazendo as regras.<br />

O público, para as crianças, não se constitui<br />

enquanto platéia, elemento constituinte do<br />

Teatro, e sim enquanto convi<strong>da</strong>dos <strong>da</strong>s crianças<br />

a assistirem seu jogo, seu Teatro. Não há<br />

um representar, naquele momento elas estão<br />

jogando e partilhando esse momento. Tal exercício,<br />

além de desinibir e de fortalecer a autoestima,<br />

também facilitará a absorção, mais<br />

tarde, dos Jogos Teatrais.<br />

Nossa referência principal para a criança<br />

apresentar ou não sua cena era o seu desejo,<br />

independente <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de. Nosso lema era um aju<strong>da</strong>r<br />

o outro, respeitando as diferenças, os tamanhos.<br />

Não existia nenhuma censura, seja<br />

estética, seja etária. Acredito que as crianças<br />

vivenciavam seu jogo dramático no palco, não<br />

apresentavam Teatro. A platéia, por sua vez,<br />

assistia a um Jogo Dramático, não a uma peça<br />

teatral.<br />

Normalmente a platéia não se dá conta do<br />

jogo dramático e cobra um comportamento teatral,<br />

fazendo crítica do tipo: falaram baixo, ficaram<br />

o tempo todo de costas, ficaram muito<br />

juntinhas, e tantas outras. Para evitar esse equívoco<br />

procuramos, antes <strong>da</strong>s apresentações, informar<br />

a platéia sobre o que ela ia assistir: um<br />

jogo dramático, um jogo teatral, uma colagem<br />

de cenas, uma construção coletiva, uma a<strong>da</strong>ptação<br />

de texto, uma releitura ou uma peça de<br />

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Rilmar Lopes <strong>da</strong> Silva<br />

Teatro. Neste processo a platéia mostrou-se<br />

como uma grande alia<strong>da</strong>, pois além <strong>da</strong> participação<br />

enquanto platéia, muitas pessoas se ofereciam<br />

para aju<strong>da</strong>r: montar e desmontar o<br />

cenário; recolher doações de roupas, adereço<br />

e maquiagem; maquiar as crianças; costurar,<br />

reformar roupas e tantas outras ativi<strong>da</strong>des. A<br />

força <strong>da</strong> coletivi<strong>da</strong>de era pulsante, o que tornava<br />

fértil a existência do Teatro.<br />

Nossas construções cênicas foram tomando<br />

forma a ca<strong>da</strong> ano, a ca<strong>da</strong> experiência. A<br />

cultura teatral na Brilho do Cristal se tornou um<br />

fato. Após a montagem do Casamento <strong>da</strong><br />

Roça na festa junina de 1994 nasceu o Grupo<br />

de Teatro Infantil do Brilho, que funcionava<br />

à tarde, fora do horário escolar.<br />

O Grupo de Teatro Infantil do Brilho se<br />

encontrava duas vezes na semana. Além <strong>da</strong>s<br />

aulas de Teatro confeccionávamos nossas roupas,<br />

nossos adereços e nosso cenário. Os textos<br />

encenados eram construções coletivas do<br />

grupo a partir de um determinado tema ou estória,<br />

defini<strong>da</strong> pelas crianças. De maneira improvisa<strong>da</strong><br />

construíamos nossas cenas que mais<br />

tarde se tornariam nossos textos, nossa construção<br />

coletiva. Nossos textos inicialmente eram<br />

construídos apenas na orali<strong>da</strong>de, a partir de estórias<br />

infantis. Recontávamos várias vezes e,<br />

de posse do entendimento <strong>da</strong> estória, as crianças<br />

improvisavam e recriavam sem nenhuma<br />

dificul<strong>da</strong>de.<br />

Para escrever nossos textos, como as crianças<br />

ain<strong>da</strong> não tinham uma fluência na escrita,<br />

primeiramente trabalhei com pequenos<br />

relatórios. Nos relatórios pedia para que elas<br />

contassem o que estavam fazendo nos encontros<br />

do grupo de Teatro. O segundo exercício,<br />

antes de chegarmos à escrita do nosso texto,<br />

foi ca<strong>da</strong> um escrever sobre seu personagem.<br />

Depois passamos a construir nossos roteiros e,<br />

a partir dos roteiros, começamos a escrever<br />

nossos diálogos, que se tornaram nossos textos.<br />

Trabalhávamos com pequenas construções<br />

coletivas: esquetes e colagem de cenas. Os<br />

temas dessas construções eram livres ou baseados<br />

nas temáticas dos eventos <strong>da</strong> Brilho do<br />

Cristal. O Teatro nos <strong>da</strong>va ânimo, nos fazia criar,<br />

pensar, imaginar. Quanto mais nos encon-<br />

109


O teatro-educação enquanto componente curricular no meio rural: uma experiência na escola comunitária Brilho do Cristal<br />

trávamos, mais produzíamos, mais nos uníamos,<br />

mais nos construíamos e mais sorríamos.<br />

O Grupo de Teatro Infantil do Brilho<br />

marcava sua presença cênica em todos os<br />

eventos <strong>da</strong> Brilho do Cristal. Além <strong>da</strong>s apresentações<br />

nos eventos <strong>da</strong> escola tivemos a oportuni<strong>da</strong>de<br />

de construirmos uma parceria com o<br />

IBAMA, que nos proporcionou apresentações<br />

em diversos lugares <strong>da</strong> Chapa<strong>da</strong> Diamantina,<br />

como: Lençóis, Piatã, Palmeiras, Mucugê e<br />

An<strong>da</strong>raí. Também pudemos viajar para Salvador,<br />

onde nos apresentamos no Teatro Santo<br />

Antônio, no Teatro Lauro de Freitas, no Hotel<br />

Pelourinho e no Festival de Cultura Alternativa<br />

em Arembepe. Viajar para Salvador foi um presente<br />

inesquecível para os nativos. Além de<br />

conhecer um Teatro de ver<strong>da</strong>de, com direito a<br />

camarim, foi possível conhecer uma ci<strong>da</strong>de<br />

grande, o mar, o Pelourinho, o Elevador Lacer<strong>da</strong>,<br />

o elevador de um prédio, a esca<strong>da</strong> rolante, o<br />

Shopping Center, o Aeroporto – assim como<br />

crianças dormindo na rua, favelas, poluição; e<br />

dessa maneira eles construíam conhecimento e<br />

se reconheciam enquanto moradores de um lugar<br />

privilegiado.<br />

To<strong>da</strong>s as construções cênicas significavam,<br />

também, incentivo à leitura, escrita e criativi<strong>da</strong>de,<br />

três lacunas profun<strong>da</strong>s que as crianças traziam<br />

em relação ao processo de ensino-aprendizagem.<br />

Desejávamos vê-las estimula<strong>da</strong>s para<br />

a leitura e a escrita de maneira criativa, crítica<br />

e alegre. Nesse contexto o Teatro funcionou<br />

como um dos maiores estímulos na construção<br />

de conhecimento <strong>da</strong>s crianças do Brilho do Cristal.<br />

O Teatro tornou-se o fio condutor dos processos<br />

criativos do Brilho do Cristal, como costumávamos<br />

falar um para o outro: Tudo no<br />

Brilho Vira Teatro.<br />

Tudo no Brilho Vira Teatro<br />

As sementes do Teatro brotavam dia após<br />

dia. Sempre tinha alguém com uma boa idéia.<br />

Em meio a to<strong>da</strong> simplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> nossa Escola e<br />

<strong>da</strong> nossa comuni<strong>da</strong>de, nosso Teatro estava<br />

marcando seu lugar enquanto elemento curricular<br />

imprescindível nas ações pe<strong>da</strong>gógicas <strong>da</strong><br />

110<br />

Brilho do Cristal. Na alegria, na brincadeira e<br />

na ousadia, contamos e recontamos estórias do<br />

folclore, estórias que os avôs contavam, contos<br />

infantis, parlen<strong>da</strong>s e provérbios, além <strong>da</strong>s estórias<br />

que criávamos. Divertíamos-nos, interagíamos,<br />

nos reconhecíamos enquanto sujeitos<br />

participantes <strong>da</strong> história, construtores <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />

Num exercício sensível, lúdico e criativo,<br />

Tudo no Brilho vira Teatro. Para melhor entendimento<br />

<strong>da</strong> afirmativa Tudo no Brilho Vira<br />

Teatro, apresentarei o processo de construção<br />

de cinco ativi<strong>da</strong>des de Teatro-<strong>Educação</strong> que<br />

considerei significativas na construção <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de<br />

teatral 7 do Brilho do Cristal.<br />

- Ato Público<br />

A Escola Brilho do Cristal tem em seu calendário<br />

pe<strong>da</strong>gógico algumas <strong>da</strong>tas cuja exploração<br />

pe<strong>da</strong>gógica era considera<strong>da</strong> relevante,<br />

como: Semana do Meio Ambiente, Semana do<br />

Índio, Semana do Folclore, Semana <strong>da</strong> Primavera,<br />

Semana do Carnaval, Semana <strong>da</strong> Criança,<br />

entre outras.<br />

Na preparação <strong>da</strong> Semana do Meio Ambiente<br />

no ano de 1993, quando pensávamos uma<br />

proposta de comemorar esse dia com alguma<br />

ativi<strong>da</strong>de fora dos muros <strong>da</strong> Brilho do Cristal,<br />

tivemos a idéia de fazermos uma passeata, um<br />

ato público. Os professores apresentaram a<br />

proposta para seus alunos, explicaram o que é<br />

um ato público e discutiram os objetivos. O ato<br />

público envolveria uma passeata de mais ou<br />

menos dois quilômetros para ir até a Vila e de<br />

dois quilômetros para voltar. As crianças abraçaram<br />

a idéia com entusiasmo, afinal como as<br />

crianças gostam mesmo é de movimento, de<br />

quebrar a rotina e de extrapolar os muros <strong>da</strong><br />

Escola, an<strong>da</strong>r não foi problema. As idéias afloraram<br />

em relação às possíveis ações educativas<br />

durante a passeata.<br />

7 Chamo aqui de identi<strong>da</strong>de teatral a nossa linha de construção<br />

cênica, ou seja, o nosso jeito de trabalhar com o Teatro-<strong>Educação</strong>,<br />

que tem como eixo norteador <strong>da</strong> dramaturgia<br />

a construção coletiva: criação de textos a partir de temáticas,<br />

a<strong>da</strong>ptações de narrativas (literatura infantil, textos didáticos)<br />

e releitura de textos (contextualização).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 99-115, jan./jun., 2006


Na Semana do Meio Ambiente, to<strong>da</strong>s as disciplinas<br />

trabalhavam com a exploração do tema<br />

gerador, meio ambiente. No caso do Teatro o<br />

tema gerador era condutor <strong>da</strong>s improvisações.<br />

A construção cênica sobre o meio ambiente,<br />

elabora<strong>da</strong> para o ato público trazia em sua indumentária<br />

elementos exagerados e bastantes<br />

coloridos, lembrando um pouco a estética do<br />

Teatro de Rua 8 . Durante o ato público, nossa<br />

construção cênica era apresenta<strong>da</strong> uma vez na<br />

Brilho do Cristal e outra vez no Coreto, no centro<br />

do Vale do Capão.<br />

O tema tornou-se realmente instigador de<br />

curiosi<strong>da</strong>des e de processos criativos; e como<br />

Tudo no Brilho vira Teatro quem não estava<br />

em cena, no esquete, procurava uma roupa ou<br />

uma fantasia interessante para compor o personagem<br />

que ia para a passeata. As conversas<br />

entre as crianças giravam em torno <strong>da</strong> pergunta:<br />

você vai como para a passeata? Eu vou de<br />

folha, eu vou de girassol, eu vou ser uma<br />

árvore, eu vou de palhaço, eu vou de borboleta,<br />

eu vou de ma<strong>da</strong>me, eu vou de corcun<strong>da</strong>,<br />

eu vou de fa<strong>da</strong>, eu vou de bruxa e<br />

eu de macaco...<br />

No quartinho do Teatro, espaço onde guar<strong>da</strong>mos<br />

as indumentárias e os adereços teatrais,<br />

a confusão era grande, entre as fantasias e roupas<br />

exóticas os batons e os espelhos se perdiam,<br />

enquanto uns passavam pasta d’ água no<br />

rosto do colega. As meninas olhavam com cobiça<br />

para o acervo de sapatos de bico e salto<br />

fino. Naquele momento elas percebiam que era<br />

hora de realizar o desejo de an<strong>da</strong>r de salto alto,<br />

mesmo que o sapato fosse bem maior que o pé.<br />

Assim elas iam experimentando suas idéias,<br />

opinando sobre a roupa do colega, aju<strong>da</strong>ndo uns<br />

aos outros, mergulhados no processo criativo.<br />

No dia <strong>da</strong> passeata tudo estava pronto: As<br />

poesias viraram placas, as latas de leite com<br />

pedrinhas dentro viraram instrumentos musicais.<br />

Os personagens <strong>da</strong> passeata brilhando de purpurina<br />

com as placas para o alto, pela Rua do<br />

Vale do Capão, cantavam e gritavam as palavras<br />

de ordem: Tire o sabão do rio queremos<br />

água limpa. An<strong>da</strong>r faz bem ao coração e não<br />

polui o Capão. No caminho, além de cantar e<br />

gritar as palavras de ordem, pregávamos as pla-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 99-115, jan./jun., 2006<br />

Rilmar Lopes <strong>da</strong> Silva<br />

cas com poesias ecológicas, brincávamos com<br />

os moradores que encontrávamos nas janelas,<br />

com os motoristas que passavam de carro, no<br />

meio do caminho, no Largo dos Brancos, parávamos<br />

e em ro<strong>da</strong>, junto com os moradores, cantávamos.<br />

Chegando ao centro, no coreto,<br />

fizemos apresentação de poesias e Teatro para<br />

os moradores. Após o lanche, voltamos para a<br />

Escola cantando e brincando.<br />

A experiência com o Ato Público deu certo.<br />

No Carnaval não resistimos e botamos o Bloco<br />

do Brilho na rua; muitos outros atos públicos<br />

foram realizados. O ato público se consolidou<br />

como uma prática pe<strong>da</strong>gógica do Brilho do Cristal.<br />

E até hoje não abrimos mão desse diálogo,<br />

tão prazeroso, com a comuni<strong>da</strong>de.<br />

- Do Surgimento <strong>da</strong> Terra aos Tempos<br />

de Hoje<br />

Em 1994 o Teatro já fazia parte do imaginário<br />

<strong>da</strong>s crianças <strong>da</strong> Brilho do Cristal. Assim<br />

durante uma pesquisa sobre a origem <strong>da</strong> Terra,<br />

a partir <strong>da</strong> teoria do Big-Bang, na sala <strong>da</strong> multisseria<strong>da</strong><br />

de 3ª e 4ª série , uma <strong>da</strong>s crianças<br />

sugeriu fazer a encenação <strong>da</strong> origem <strong>da</strong> Terra<br />

e sua evolução até os tempos de hoje. A construção<br />

cênica foi um processo de intensa criativi<strong>da</strong>de,<br />

que durou uma uni<strong>da</strong>de - dois meses.<br />

Essa ativi<strong>da</strong>de teve participação ativa de todos<br />

<strong>da</strong> turma, desde: brincadeiras corporais, escolha<br />

de jogos, pesquisa do tema, elaboração de<br />

roteiro, construção de personagens, confecção<br />

de indumentária, construção do cenário, a escrita<br />

do texto até a apresentação. Lembro de<br />

um diálogo criativo no processo de construção<br />

cênica que era mais ou menos assim:<br />

– Como vamos fazer a poeira cósmica?<br />

– Com um pano fino.<br />

– Já sei! Com filó.<br />

– Tem um monte de pe<strong>da</strong>ços de filó na casinha<br />

do Teatro<br />

– Podemos pintar os filós de azul claro.<br />

8 O teatro de rua traz em sua estética visual as cores fortes,<br />

adereços exagerados, placas informativas além <strong>da</strong> forte presença<br />

<strong>da</strong> linguagem corporal a partir <strong>da</strong> ampliação gestual.<br />

111


O teatro-educação enquanto componente curricular no meio rural: uma experiência na escola comunitária Brilho do Cristal<br />

– Lá em casa tem um mosquiteiro velho<br />

– Traga para a gente fazer a poeira cósmica...<br />

Outra situação extremamente criativa foi<br />

uma criança intriga<strong>da</strong> com o desafio <strong>da</strong> forma<br />

física do personagem dinossauro. Ela mexia em<br />

tudo no quartinho de Teatro em busca de algo<br />

que solucionasse seu problema. De repente, no<br />

meio dessa aflição, ela pegou um cabo de vassoura<br />

e colocou sob o lençol deixando seu rosto<br />

escondido, só aparecendo parte do corpo. Com<br />

o lençol para o alto, em movimentos lentos e<br />

grandes falou: eu sou um dinossauro. Realmente<br />

estávamos na frente do dinossauro. A ca<strong>da</strong> instante<br />

as soluções criativas iam surgindo, como<br />

uma mágica.<br />

Primeiramente as crianças fizeram a pesquisa<br />

e escreveram todo o resumo. Depois,<br />

transformaram o resumo em cenas, deram o<br />

nome às cenas e criaram um roteiro. Em segui<strong>da</strong>,<br />

fizeram o texto. A colagem de cena apresentava<br />

uma seqüência bem marca<strong>da</strong> do<br />

surgimento <strong>da</strong> terra e de sua evolução até chegar<br />

ao homem de hoje. O homem de hoje para<br />

eles é o homem que produz lixo, an<strong>da</strong> rápido,<br />

come lixo, é superficial, é intelectual e é ignorante.<br />

Para fechar o espetáculo, eles fizeram o<br />

planeta Terra de papier-mâché e ca<strong>da</strong> um em<br />

cena, na medi<strong>da</strong> em que recebia a Terra <strong>da</strong> mão<br />

do colega, falava uma poesia <strong>da</strong> própria autoria<br />

em homenagem a Terra. A experiência de vêlos,<br />

numa atitude plena, com a Terra na mão<br />

recitando sua poesia é indescritível.<br />

Esse trabalho foi apresentado para os alunos<br />

<strong>da</strong> Brilho do Cristal e para mães e pais na<br />

reunião pe<strong>da</strong>gógica 9 . Dessa forma,os pais e as<br />

mães iam tomando consciência, ca<strong>da</strong> vez mais,<br />

<strong>da</strong> importância do Teatro na educação <strong>da</strong>s crianças.<br />

- A invasão dos Portugueses<br />

Perseguíamos o diálogo entre as disciplinas,<br />

que fluía ca<strong>da</strong> vez mais. Como estava sendo<br />

também professora de História, resolvi propor<br />

às crianças de 1ª a 4ª série encenarmos a invasão<br />

dos portugueses ao Brasil. Pesquisamos<br />

coletivamente e individualmente o conteúdo te-<br />

112<br />

mático. Identificamos as indumentárias dos portugueses<br />

e dos índios <strong>da</strong>quela época, o que nos<br />

serviu de inspiração para construirmos nossa<br />

indumentária. Todos ficaram muito empenhados<br />

nas construções de adereços, cenários e<br />

até construíram uma oca de palha. Para maquiar<br />

os índios fizemos as tintas com argila, urucum,<br />

carvão e açafrão.<br />

Tivemos uma apresentação itinerante que<br />

acontecia em vários lugares <strong>da</strong> Escola. Tínhamos<br />

curumins por todo os lados. Lembro-me<br />

bem <strong>da</strong>s caravelas em alto mar e chegando a<br />

terra firme. O mar era o campo de futebol, imenso,<br />

as caravelas eram duas caixas de papelão<br />

emen<strong>da</strong><strong>da</strong>s, com os fundos desfeitos. Todos<br />

seguravam nas bor<strong>da</strong>s <strong>da</strong> caixa-caravela e<br />

com uma postura imponente navegavam rumo<br />

às terras indígenas. Quando eles navegavam<br />

na caravela, em alto mar, víamos seus pés, em<br />

passos, provocando o deslocamento <strong>da</strong> caravela,<br />

porém não deixávamos de ver a caravela<br />

e seu movimento e isso é o que para mim é<br />

inesquecível, esse momento de entrega, esse<br />

momento em que a criança assume o jogo, o<br />

jogador ou o personagem. A estética teatral<br />

estava além <strong>da</strong>s aparências.<br />

- Um Minuto de Teatro<br />

No ano de 1995 faltou professor de Português<br />

e lá fui eu ser professora de Português<br />

e Teatro na terceira e quarta série. Persistindo<br />

na união e não na separação, propus o projeto<br />

Um minuto de Teatro. O projeto deveria ser<br />

executado pelas crianças de maneira mais independente<br />

possível, como quase to<strong>da</strong>s as nossas<br />

propostas. Os objetivos gerais eram<br />

transformar textos literários em textos teatrais<br />

e fazer a encenação do texto a<strong>da</strong>ptado. Os objetivos<br />

específicos eram incentivar construções<br />

autônomas, trabalhar escrita e leitura, identifi-<br />

9 Nossas reuniões pe<strong>da</strong>gógicas acontecem a ca<strong>da</strong> bimestre e<br />

têm como objetivo principal refletir nossos processos pe<strong>da</strong>gógicos.<br />

Metodologicamente, optamos em trazer para<br />

nossas reuniões um pouco de nossas práticas, não só de<br />

teatro como <strong>da</strong>s outras áreas, como forma de melhor se<br />

estabelecer um diálogo crítico.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 99-115, jan./jun., 2006


car a diferença nos dois gêneros literários trabalhados,<br />

trabalhar ativi<strong>da</strong>des corporais e exercitar<br />

processos criativos teatrais a partir de<br />

releituras e improvisações.<br />

Os grupos eram orientados por mim no sentido<br />

de organização prática e técnica: chave <strong>da</strong><br />

sala, cui<strong>da</strong>do com as roupas de teatro <strong>da</strong> Escola,<br />

manter a ordem <strong>da</strong>s coisas, assumir compromisso<br />

com o grupo, organização de um cronograma<br />

de encontros para o desenvolvimento do processo,<br />

contemplando leitura de texto, brincadeiras,<br />

exercícios de voz, aquecimento, improvisações<br />

e ensaios. As crianças se encontravam em horário<br />

extra, à tarde. Desses encontros eu não<br />

participava, eram executados somente por elas.<br />

No horário de aula as crianças relatavam como<br />

estava se <strong>da</strong>ndo o processo e, na medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de,<br />

eu procurava ajudá-las.<br />

To<strong>da</strong>s as segun<strong>da</strong>s-feiras crianças <strong>da</strong> terceira<br />

e quarta série se dividiam em grupos e ca<strong>da</strong><br />

grupo escolhia uma estória <strong>da</strong> literatura infantil<br />

para encenar. A partir <strong>da</strong>í os grupos passavam<br />

to<strong>da</strong> a semana elaborando a construção cênica.<br />

Liam o texto, contavam as estórias identificavam<br />

o lugar, as ações, os personagens, separavam<br />

as cenas e escreviam. O texto era a<strong>da</strong>ptado,<br />

às vezes aumentado ou diminuído, dependendo<br />

<strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de. Quando precisava de ator ou<br />

atriz para complementar o elenco, elas mesmas<br />

convi<strong>da</strong>vam outras crianças de outras turmas e<br />

assim tínhamos também atriz convi<strong>da</strong><strong>da</strong>.<br />

Na sexta-feira, no horário do intervalo, a secretaria<br />

virava camarim. De vez em quando se<br />

via uma criança correndo, procurando algo, outras<br />

chegando com caixas, um outro grupo arrumando<br />

o cenário. Antes de começar, o apresentador,<br />

uma <strong>da</strong>s crianças do grupo, fazia a chama<strong>da</strong><br />

ao público, apresentava o trabalho, o tema, a estória<br />

que foi a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong> e pedia silêncio.<br />

Um aspecto interessante desse projeto era<br />

sua proposta de autonomia, uma vez que as crianças<br />

faziam tudo sozinhas: marcavam os ensaios<br />

em horários extras na escola, escolhiam o<br />

texto, escreviam o texto teatral, dirigiam, vestiam<br />

seus personagens, maquiavam-se e montavam<br />

o cenário.<br />

Um fato curioso é que na Escola havia um<br />

grande buraco, largo e não muito profundo, de<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 99-115, jan./jun., 2006<br />

Rilmar Lopes <strong>da</strong> Silva<br />

onde tinha sido tira<strong>da</strong> a terra para fazermos os<br />

adobes 10 para construir as paredes. Um dia,<br />

um grupo de crianças resolveu apresentar sua<br />

cena no buraco. A platéia foi forma<strong>da</strong> ao redor<br />

do buraco. O sucesso foi grande, pois tínhamos<br />

uma excelente visão <strong>da</strong> cena. A partir desse<br />

dia, o projeto Um minuto de Teatro passou a<br />

ser apresentado no buraco, que se tornou nosso<br />

Teatro de Arena e Areia.<br />

O projeto um minuto de Teatro conseguiu<br />

mobilizar a Brilho do Cristal tanto no fazer teatral<br />

quanto na construção de platéia e de apreciadores.<br />

A platéia vibrava. Os pequenos tinham<br />

os olhos arregalados. Às sextas-feiras, as crianças<br />

falavam uma para a outra: hoje é dia de<br />

Teatro! O estímulo provocado pelas apresentações<br />

era grande. O rodízio de artistas convi<strong>da</strong>dos<br />

aumentava e assim to<strong>da</strong>s as crianças<br />

participaram ativamente desse projeto. Passou<br />

a ser comum encontrar pela Escola grupos de<br />

crianças, sob ou sobre as árvores, organizando<br />

peças para apresentar na hora do intervalo, nas<br />

casas <strong>da</strong>s colegas ou em festas de aniversários.<br />

- Bolo <strong>da</strong>s mães<br />

Os anos se passavam, as crianças, algumas<br />

já pré-adolescendo, cheias de iniciativas, tinham<br />

se apropriado dos principais elementos constituintes<br />

do Teatro. O exercício <strong>da</strong> sua criativi<strong>da</strong>de<br />

era ação permanente nas rotinas <strong>da</strong>s<br />

crianças. Dessa forma, as palavras, os textos,<br />

as idéias, Tudo no Brilho vira Teatro, a exemplo<br />

do bolo do dia <strong>da</strong>s mães que também virou<br />

Teatro.<br />

Estávamos preparando a festa para o Dia<br />

<strong>da</strong>s Mães, escrevendo poesias que iríamos encenar<br />

no dia <strong>da</strong> festa, quando, de repente, uma<br />

criança falou de uma idéia que se estabeleceu<br />

no seguinte diálogo:<br />

– Vamos fazer um bolo para a festa do Dia <strong>da</strong>s<br />

Mães?<br />

– Lá em casa tem ovos<br />

– Mas Rilmar não come açúcar branco e ela é<br />

mãe... tem comer do bolo.<br />

10 Adobe é o tijolo de barro feito à mão, secado no sol,<br />

típico <strong>da</strong> região.<br />

113


O teatro-educação enquanto componente curricular no meio rural: uma experiência na escola comunitária Brilho do Cristal<br />

– Faz o bolo com rapadura<br />

– Rapadura é muito cara.<br />

– A gente pode fazer o melaço<br />

– A gente pega cana na roça de pai.<br />

– Eu sei onde tem cana fita.<br />

– Depois a gente passa no escoraçador <strong>da</strong> casa<br />

de Elidiane<br />

– É aí a gente pega a garapa e põe no tacho<br />

para cozinhar<br />

– Demora muito para <strong>da</strong>r o ponto<br />

– A gente faz o fogo no terreiro, com três pedras<br />

é fácil.<br />

– Eu sei fazer<br />

– Eu mexo o taxo,<br />

– Eu também<br />

– Eu também...<br />

– Vamos marcar o dia para a gente ir tirar as<br />

canas...<br />

Após esse diálogo, todos partimos para a<br />

organização do feitio do melaço do bolo <strong>da</strong>s<br />

mães. Como Tudo no Brilho Vira Teatro eis<br />

que uma aluna falou sua grande idéia: “Podíamos<br />

fazer o Teatro <strong>da</strong> estória do bolo <strong>da</strong>s mães,<br />

podíamos contar com foi que fizemos o bolo, a<br />

aula onde tivemos a idéia de fazer o bolo, a idéia<br />

de fazermos o Teatro até o dia <strong>da</strong> apresentação...”<br />

Todos ficaram entusiasmados. Assumimos<br />

a proposta e lá fomos nós escrever os<br />

diálogos, reconstituir nossa história e identificar<br />

nossas cenas.<br />

Inicialmente, após relembrar oralmente nosso<br />

processo de fazer o bolo, que, inclusive, estava<br />

em plena ação, identificamos as cenas: a idéia<br />

de fazer o bolo e o melaço, pegar a cana, moer<br />

a cana, fazer o fogo, mexer a garapa, a busca<br />

dos outros ingredientes, fazendo o bolo e fechamento.<br />

Naturalmente to<strong>da</strong>s as cenas previstas<br />

no roteiro tinham acontecido e isso foi<br />

bastante interessante, pois, enquanto providenciávamos<br />

a confecção do bolo, as crianças identificavam<br />

cenas para o teatro, como por<br />

exemplo, quando estávamos moendo a cana<br />

uma criança falou: Regina não tem força para<br />

moer a cana... e uma outra rapi<strong>da</strong>mente falou:<br />

Vamos colocar isso na cena...<br />

Ficou combinado, entre eles, que os personagens<br />

não podiam ser interpretados pela própria<br />

pessoa. Ca<strong>da</strong> uma faria um colega e uma<br />

114<br />

aluna fez o personagem professora Rilmar. Ficou<br />

acor<strong>da</strong>do que íamos <strong>da</strong>r um caráter engraçado<br />

aos personagens através do exagero.<br />

Essa proposta evitava que eles se preocupassem<br />

em fazer a cópia do colega, além de tornar<br />

o exercício mais descontraído. Foi tudo<br />

muito divertido, as crianças se viam na outra<br />

e, às vezes, não conseguiam <strong>da</strong>r seguimento<br />

aos ensaios de tanto que riam ao se verem na<br />

outra. Entre as cenas colocamos músicas e<br />

poesias. Na festa <strong>da</strong>s mães, durante a apresentação,<br />

as mães não sabiam se riam <strong>da</strong> comici<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> cena ou se choravam de emoção<br />

diante <strong>da</strong> construção cênica.<br />

Assim, vivemos momentos inesquecíveis do<br />

fazer teatral. A partir de improvisações pudemos<br />

trabalhar com pequenas cenas, grandiosas<br />

para as crianças. Isso nos deu possibili<strong>da</strong>de de<br />

construirmos os textos coletivamente, na sala<br />

de aula. Normalmente os textos eram escritos<br />

depois que estavam bem vivenciados na cena.<br />

O texto, nesse caso, é um registro do que foi<br />

construído cenicamente, ele não é um texto que<br />

foi escrito para ser encenado e sim uma encenação,<br />

um texto corporal cênico, que se tornou<br />

texto literário-teatral.<br />

Nesse exercício dialógico e dialético exercitamos:<br />

falar e escutar, criticar e propor, refletir<br />

e expressar o pensamento, exercícios<br />

fun<strong>da</strong>mentais para a reflexão crítica não só dos<br />

elementos constituintes do Teatro como também<br />

<strong>da</strong> constituição de nossa socie<strong>da</strong>de. Dessa<br />

forma, não é difícil concor<strong>da</strong>r com Moreira<br />

e Silva, quando dizem que:<br />

O currículo não é o veículo de algo a ser transmitido<br />

e passivamente absorvido, mas o terreno<br />

em que ativamente se criará e produzirá cultura.<br />

O currículo é, assim, um terreno de produção e<br />

de política cultural, no qual os materiais existentes<br />

funcionam como matéria prima de criação,<br />

recriação e, sobretudo, de contestação e transgressão.<br />

(1995, p. 28)<br />

Assim, nosso currículo foi se constituindo<br />

enquanto espaço de construção de conhecimento.<br />

A fruição <strong>da</strong>s crianças em relação à apreensão<br />

<strong>da</strong> proposta de Teatro-<strong>Educação</strong><br />

possibilitou uma desmistificação do fazer teatral,<br />

<strong>da</strong> idéia errônea de que criança não faz<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 99-115, jan./jun., 2006


Teatro, além de provocar uma ruptura com o<br />

Teatro enquanto ferramenta metodológica. No<br />

exercício de criticar, ser criticado e propor buscamos<br />

fortalecer o espírito coletivo, nos torna-<br />

REFERÊNCIAS<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 99-115, jan./jun., 2006<br />

Rilmar Lopes <strong>da</strong> Silva<br />

mos cúmplice um do outro nessa caminha<strong>da</strong> de<br />

acertos e erros no fazer teatral, no processo de<br />

alfabetização estética teatral e na construção<br />

de leitores críticos <strong>da</strong> imagem teatral.<br />

ARROYO, Miguel G. (Org.). Da escola carente à escola possível. 2.ed. São Paulo: Loyola, 1986. (Coleção<br />

educação popular).<br />

BOAL, Augusto. 200 exercícios para o ator e o não ator com vontade de dizer algo através do teatro. 7.<br />

ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.<br />

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COSTA, Marisa. O currículo nos limiares do contemporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.<br />

DUARTE Jr, João Francisco. Por que arte-educaçã0?. 7.ed. Campinas: Papirus, 1994.<br />

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FREIRE, Paulo. Pe<strong>da</strong>gogia do oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.<br />

_____. <strong>Educação</strong> como prática de liber<strong>da</strong>de. São Paulo: Paz e Terra, 1999.<br />

_____. Pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> autonomia: saberes necessários a prática educativa. 26.ed. São Paulo: Paz e Terra,<br />

1996.<br />

GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990.<br />

JAPIASSU, Ricardo. Metodologia do ensino de teatro. Campinas: Papirus, 2001.<br />

KOUDELA, Ingrid Dormien. Jogos teatrais. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.<br />

MOREIRA, Antônio (Org.). Currículo: questões atuais. Campinas: Papirus, 1997.<br />

MOREIRA, Antônio; SILVA, Tomaz Tadeu (Orgs.). Currículo cultura e socie<strong>da</strong>de. 2.ed.rev. São Paulo:<br />

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SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de identi<strong>da</strong>de: uma introdução às teorias do currículo. 2.ed. Belo Horizonte:<br />

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SLADE, Peter. O jogo dramático infantil. Tradução Tatiana Belinky. São Paulo: Summus, 1978.<br />

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VYGOTSKY, Lev. A formação social <strong>da</strong> mente. São Paulo: Martins Fontes, 1989.<br />

_____. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1989.<br />

Recebido em 28.02.06<br />

Aprovado em 29.03.06<br />

115


<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 117-132, jan./jun., 2006<br />

Ricardo Ottoni Vaz Japiassu<br />

DO DESENHO DAS PALAVRAS À PALAVRA DO DESENHO<br />

RESUMO<br />

Ricardo Ottoni Vaz Japiassu *<br />

O artigo expõe a evolutiva do grafismo infantil, segundo a perspectiva <strong>da</strong><br />

psicologia sócio-histórica e apresenta uma proposta terminológica original para<br />

a etapização do desenvolvimento gráfico-plástico infantil. Discute ain<strong>da</strong> a<br />

problemática relativa à formação do professor em arte-ensino na educação<br />

infantil e séries iniciais <strong>da</strong> escolarização nacional.<br />

Palavras-chave: Arte infantil – <strong>Educação</strong> infantil – Ensino de arte – Formação<br />

de professores – Psicologia sócio-histórica<br />

ABSTRACT<br />

FROM DRAWING WORDS TO GIVING DRAWING SOME CHANCE<br />

TO SPEAK<br />

The article exposes a historical-cultural psychological approach to child’s art<br />

and proposes an original taxonomy to its developmental features. It also presents<br />

some problems related to art-teaching in Brazilian primary school to<strong>da</strong>y.<br />

Keywords: Child art – Children education – Arts teaching – Teachers training<br />

programs – Cultural historical psychology<br />

Apresentação<br />

Seria totalmente injusto pensar que to<strong>da</strong>s as possibili<strong>da</strong>des criadoras <strong>da</strong>s crianças<br />

se limitam exclusivamente às artes. Lamentavelmente a educação tradicional, que tem<br />

mantido as crianças alija<strong>da</strong>s do trabalho, fez com que elas manifestassem e fomentassem<br />

sua capaci<strong>da</strong>de criadora preferentemente na esfera artística. (Lev Vygotsky)<br />

A problemática relativa ao ensino <strong>da</strong>s artes<br />

no país, hoje, põe em cheque a formação de<br />

professores ofereci<strong>da</strong> nas licenciaturas em arte<br />

(Artes Visuais, Dança, Música e Teatro), nos<br />

cursos de pe<strong>da</strong>gogia, em escolas normais superiores,<br />

nas habilitações para o magistério de<br />

nível médio e nos programas para o aperfeiçoamento<br />

em serviço do educador.<br />

(1) Que tipo de (in)formação os profissionais<br />

<strong>da</strong> educação estão tendo para trabalharem<br />

com seus alunos, de modo sistemático, as diferentes<br />

linguagens artísticas? (2) Se a habilitação<br />

para o magistério na educação infantil e<br />

séries iniciais do ensino fun<strong>da</strong>mental é prerro-<br />

* Doutor em <strong>Educação</strong> e mestre em Artes pela USP, licenciado e bacharel em Teatro pela UFBA, professor adjunto do<br />

DEDC/Campus XV, docente do quadro permanente do programa de pós-graduação em Crítica Cultural do campus II<br />

e colaborador do programa de pós-graduação em <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de do campus I <strong>da</strong> <strong>Uneb</strong>. Endereço para<br />

correspondência: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA-UNEB, Departamento de <strong>Educação</strong>/Campus XV, Rua<br />

Cecília Meireles, s/nº, Centro – 45400-000 Valença/BAHIA, Fone: (75) 36410599. E-mail: rjapiassu@uneb.br<br />

117


Do desenho <strong>da</strong>s palavras à palavra do desenho<br />

gativa do pe<strong>da</strong>gogo, por que nos cursos de pe<strong>da</strong>gogia<br />

e de formação de professores não são ofereci<strong>da</strong>s<br />

disciplinas que contemplem a<br />

especifici<strong>da</strong>de estética de ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s linguagens<br />

artísticas (Artes Visuais, Dança, Música e<br />

Teatro)? (3) Por que não se busca sinalizar procedimentos<br />

metodológicos para o trabalho sistemático<br />

com ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s linguagens artísticas<br />

nestes cursos? (4) Se cabe exclusivamente ao<br />

artista, ao arte-educador e ao professor de arte<br />

(egresso <strong>da</strong>s licenciaturas em Artes Visuais,<br />

Dança, Música e Teatro) o trabalho pe<strong>da</strong>gógico<br />

com as artes na educação infantil e séries iniciais<br />

do ensino fun<strong>da</strong>mental (1ª à 4ª série), por que<br />

é tão rara a presença desses profissionais nestes<br />

níveis <strong>da</strong> escolarização?<br />

Parece-me que evitar formular questões como<br />

as que são apresenta<strong>da</strong>s acima – ou não procurar<br />

respondê-las – revela uma silenciosa orquestração<br />

no sentido de “deixar tudo como está pra<br />

ver como é que fica”. Então, quero expor aqui<br />

meu ponto de vista em relação a esse tema.<br />

Não tenho a ambição de ser “dono <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de”.<br />

Aqui, assumo propor um equacionamento<br />

não desinteressado para essa problemática. Meu<br />

entendimento é o de que o professor <strong>da</strong> educação<br />

infantil e <strong>da</strong>s séries iniciais é essencialmente<br />

“polivalente”, ou seja, é aquele profissional “licenciado”<br />

para realizar a transposição didática<br />

dos conhecimentos de diferentes áreas do saber<br />

em creches, pré-escolas e nas séries iniciais do<br />

ensino fun<strong>da</strong>mental (1ª à 4ª série).<br />

Ora, não se tem notícia de professores de<br />

Matemática ou de Língua Portuguesa, por exemplo,<br />

atuando na educação infantil e nas quatro<br />

primeiras séries do ensino fun<strong>da</strong>mental. As licenciaturas<br />

em Matemática e Língua Portuguesa<br />

têm em vista o exercício do magistério<br />

unicamente <strong>da</strong> 5ª à 8ª série do ensino fun<strong>da</strong>mental<br />

e ao longo do ensino médio. O mesmo<br />

ocorre com as licenciaturas para o ensino <strong>da</strong>s<br />

demais áreas do conhecimento (artes, educação<br />

física, ciências naturais, história e geografia)<br />

(BRASIL, 1998, 1997).<br />

Os cursos de pe<strong>da</strong>gogia precisam, portanto,<br />

assumir a especifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> formação profissional<br />

que se propõem a oferecer criando condições<br />

de igual<strong>da</strong>de no oferecimento <strong>da</strong>s<br />

118<br />

diretrizes metodológicas para o trabalho pe<strong>da</strong>gógico<br />

com to<strong>da</strong>s as áreas de conhecimento.<br />

Afinal, a licença para o exercício do<br />

magistério na educação infantil e séries iniciais<br />

do ensino fun<strong>da</strong>mental é prerrogativa<br />

do pe<strong>da</strong>gogo. Essa licença é o “caroço” <strong>da</strong><br />

sua identi<strong>da</strong>de profissional. É fun<strong>da</strong>mental o<br />

compromisso dos departamentos de educação<br />

<strong>da</strong> <strong>Uneb</strong> para com a elaboração de uma matriz<br />

curricular que não comprometa a excelência do<br />

ensino de arte que os artistas, arte-educadores<br />

e professores de arte brasileiros almejam – e<br />

têm perseguido historicamente (JAPIASSU,<br />

2002, p. 49-54).<br />

Tenho procurado estar atento ao desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> área de Artes Visuais no Brasil através<br />

de publicações especializa<strong>da</strong>s (BARBOSA,<br />

1996; DEHEIZELIN, 1998; FERRAZ & FU-<br />

SARI, 1993a, 1993b; MOREIRA, 1984; PEN-<br />

NA, 2001; PILLAR, 1996a, 1996b, 1993). Além<br />

disso, busco freqüentemente participar dos encontros<br />

(virtuais e presenciais) promovidos pela<br />

Federação de Arte-Educadores do Brasil/<br />

FAEB. Interessa-me muito o estudo <strong>da</strong> estética<br />

do grafismo infantil na perspectiva <strong>da</strong> psicologia<br />

sócio-histórica e de sua teoria histórico-cultural<br />

<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de-CHAT (AZENHA, 1995; DE<br />

CAMILLIS, 2002; FERREIRA, 1998; LEVIN,<br />

1998; LURIA, 1994; MARÍN, 1985; ROCCO,<br />

1990; VYGOTSKY, 2001, 1998, 1996, 1982).<br />

Meu objetivo com este texto é contribuir –<br />

ain<strong>da</strong> que modestamente – para a (in)formação<br />

<strong>da</strong>s práticas pe<strong>da</strong>gógicas com as Artes Visuais<br />

do(a) professor(a) que irá atuar na educação<br />

infantil e séries iniciais do ensino fun<strong>da</strong>mental.<br />

Busco expor, de maneira objetiva, ao longo do<br />

texto, subsídios teórico-práticos para que o(a)<br />

leitor(a) tenha condições de compreender melhor<br />

e valorizar a expressão gráfico-plástica infantil.<br />

Por uma estética do grafismo infantil<br />

A estética do grafismo infantil refere o estudo<br />

<strong>da</strong>s condições de produção e efeitos (apreciação)<br />

<strong>da</strong> criação gráfico-plástica infantil.<br />

Trata-se de um campo de estudo que busca co-<br />

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nhecer as condições materiais de produção do<br />

grafismo infantil e entender o psiquismo <strong>da</strong> reação<br />

estética (fruição e apreciação dos resultados<br />

perceptíveis <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de criadora <strong>da</strong> criança).<br />

Muitos pe<strong>da</strong>gogos, psicólogos, professores<br />

e arte-educadores buscaram conhecer melhor<br />

e entender mais, sob variados enfoques, a estética<br />

do grafismo infantil. Entre eles podemos<br />

relacionar, por exemplo, Ana Angélica Albano<br />

Moreira, Analice Dutra Pillar, Arno Stern, Celestin<br />

Freinet, Esteban Levin, Florence de Méredieu,<br />

Georg Kerschensteiner, Jean Piaget, K.<br />

Bühler, Herbert Read, Liliane Lurçat, Luquet,<br />

Luria, Rolando Valdés Marin, Rho<strong>da</strong> Kellogg,<br />

Rudolf Arnheim, Schaefer-Simmern, Sueli Ferreira,<br />

Victor Lowenfeld, W. Lambert Brittain e<br />

Lev Vygotsky.<br />

Esses estudiosos do grafismo infantil, sem<br />

exceção, reconhecem haver determina<strong>da</strong>s fases,<br />

etapas ou períodos que são comuns aos<br />

sujeitos em processo de apropriação do desenho<br />

enquanto sistema de representação. E, de<br />

fato, desde o rabisco sem intencionali<strong>da</strong>de de<br />

representação até a representação gráfico-plástica<br />

propriamente dita de objetos, qualquer um<br />

pode, claramente, identificar aspectos visuais<br />

invariantes no processo de apropriação do desenho<br />

como sistema semiótico de representação<br />

por parte do sujeito.<br />

Evidentemente a criança precisa, para aprender<br />

a desenhar, encontrar-se imersa em um ambiente<br />

no qual o lápis e o papel, por exemplo,<br />

sejam parte do “kit de ferramentas” culturalmente<br />

disponibilizado a ela e em efetivo uso por parte<br />

dos membros mais experientes do seu meio<br />

social. Esses objetos (lápis e papel) e seus significados<br />

culturais convi<strong>da</strong>m explicitamente o sujeito<br />

a usá-los de um modo muito preciso. Os<br />

seus significados culturais só podem ser efetivamente<br />

apropriados pelo sujeito através <strong>da</strong> sua<br />

participação guia<strong>da</strong> em determinado meio social.<br />

A participação guia<strong>da</strong> se dá basicamente<br />

de duas formas: (1) a partir <strong>da</strong> observação periférica<br />

dos modos de agir com esses objetos<br />

por parte dos membros mais experientes do meio<br />

cultural do sujeito e (2) mediante instruções explícitas<br />

ao sujeito de como ele deve fazer uso<br />

desses objetos (ROGOFF et al., 1993).<br />

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Ricardo Ottoni Vaz Japiassu<br />

Adiante serão expostos alguns aspectos visuais<br />

invariantes que caracterizam etapas<br />

percorri<strong>da</strong>s por sujeitos aconchegados nas culturas<br />

letra<strong>da</strong>s ocidentais – e em processo de<br />

participação guia<strong>da</strong> nessas socie<strong>da</strong>des – ao<br />

longo <strong>da</strong> sua “toma<strong>da</strong> de posse” do desenho<br />

enquanto complexo sistema de representação<br />

semiótica.<br />

Não se tem notícia – ao menos até aqui –<br />

de nenhuma tentativa de unificar, nos estudos<br />

nacionais relativos à estética do grafismo infantil,<br />

por exemplo, os diferentes termos utilizados<br />

para caracterizar o desenvolvimento <strong>da</strong><br />

expressão gráfico-plástica <strong>da</strong> criança. Geralmente,<br />

as publicações nacionais que tratam do<br />

grafismo infantil costumam tomar empresta<strong>da</strong><br />

a nomenclatura formula<strong>da</strong> por um determinado<br />

autor – em razão de ele ser o esteio teórico<br />

utilizado para penetrar o vasto continente epistemológico<br />

dos saberes sobre a expressão psicográfica<br />

<strong>da</strong> criança (p. ex: PILLAR, 1996a,<br />

1996b; MOREIRA, 1995). Quando não é assim,<br />

apresentam-se exposições de diferentes<br />

concepções do desenvolvimento gráfico-plástico<br />

infantil acompanha<strong>da</strong>s de suas terminologias<br />

específicas para referir as sucessivas fases<br />

<strong>da</strong> figuração no desenho <strong>da</strong> criança (p. ex: FER-<br />

REIRA, 1998).<br />

A nomenclatura que proponho neste artigo<br />

serve ao propósito de sintetizar – sem reducionismos<br />

– a complexi<strong>da</strong>de dos pontos de vista<br />

enre<strong>da</strong>dos nas diferentes abor<strong>da</strong>gens à estética<br />

do grafismo infantil. Não se trata de ecletismo,<br />

mas de simplificação. Busco concretizar<br />

aqui a necessária transposição didática do conhecimento<br />

já historicamente acumulado na área<br />

– que, a bem <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, e é bom que se diga:<br />

encontra-se “vivo”, em processo contínuo de<br />

(co)laboração. Evidentemente – é claro – a<br />

escolha de uma nomenclatura revela muito do<br />

lugar de onde nos propomos olhar para determinado<br />

objeto de estudo.<br />

Meu pensamento é o de que nenhuma <strong>da</strong>s<br />

terminologias disponíveis no momento me parecem<br />

suficientemente claras para situar o(a)<br />

leitor(a) no âmbito dos saberes já historicamente<br />

constituídos sobre o grafismo e, ao mesmo<br />

tempo, fornecer-lhe acesso à perspectiva<br />

119


Do desenho <strong>da</strong>s palavras à palavra do desenho<br />

<strong>da</strong> psicologia sócio-histórica na abor<strong>da</strong>gem ao<br />

desenho como sistema cultural de representação<br />

semiótica.<br />

Por exemplo, a “etapização” do grafismo<br />

infantil formula<strong>da</strong> por Vygotsky deixa “de fora”<br />

todo um período <strong>da</strong> aquisição do sistema de representação<br />

do desenho que me parece ser de<br />

fun<strong>da</strong>mental importância para a formação do(a)<br />

professor(a) <strong>da</strong> educação infantil e séries iniciais<br />

do ensino fun<strong>da</strong>mental. Além disso, o que<br />

se tem acesso, hoje, em língua portuguesa - a<br />

respeito <strong>da</strong> “etapização” <strong>da</strong> expressão psicográfica<br />

infantil formula<strong>da</strong> por Vygotsky – resulta<br />

de traduções livres, ou melhor, de traduções<br />

<strong>da</strong> tradução do russo para o espanhol.<br />

Até a elaboração deste artigo, não se tinha<br />

notícia do interesse de qualquer editora do país<br />

em adquirir os direitos de publicação, em português,<br />

do ensaio psicológico em que Vygotsky<br />

abor<strong>da</strong> a problemática <strong>da</strong> construção do sistema<br />

semiótico do desenho – publicado sob o título<br />

La Imaginación y el arte em la infância<br />

pela editora Akal de Madrid (VYGOTSKY,<br />

1982).<br />

Vygotsky, em ver<strong>da</strong>de, não se propõe a investigar<br />

ali o processo de apropriação do desenho<br />

como processo semiótico. O que ele faz no<br />

livro é: (1) sinalizar a matriz conceitual que deve<br />

ser utiliza<strong>da</strong> na (co)laboração de conhecimentos<br />

a respeito do grafismo infantil numa perspectiva<br />

histórico-cultural e (2) destacar alguns<br />

aspectos visuais invariantes do desenho <strong>da</strong><br />

criança que caracterizam etapas muito níti<strong>da</strong>s<br />

do processo de desenvolvimento do grafismo,<br />

discutindo-os (VYGOTSKY, 1982).<br />

Apenas no oitavo capítulo desse livro é que<br />

Vygotsky abor<strong>da</strong> o grafismo infantil. Seu foco<br />

ali é o desenho como expressão observável <strong>da</strong><br />

imaginação criadora humana. O objetivo <strong>da</strong><br />

sua publicação é, antes, o de demonstrar a tese<br />

<strong>da</strong> constituição social <strong>da</strong> imaginação enquanto<br />

função psicológica cultural e de como ela é redimensiona<strong>da</strong><br />

pelo pensamento verbal (JAPI-<br />

ASSU, 2001).<br />

Sueli Ferreira esclarece isso muito bem: “a<br />

teoria de Vygotsky apresenta um avanço no<br />

modo de interpretação do desenho” porque “(a)<br />

a figuração reflete o conhecimento <strong>da</strong> criança;<br />

120<br />

e (b) seu conhecimento, refletido no desenho, é<br />

o <strong>da</strong> sua [<strong>da</strong> criança] reali<strong>da</strong>de conceitua<strong>da</strong>,<br />

constituí<strong>da</strong> pelo significado <strong>da</strong> palavra” (FER-<br />

REIRA, 1998, p. 40).<br />

A nomenclatura para caracterizar as etapas<br />

do grafismo infantil e a “etapização” <strong>da</strong> expressão<br />

psicográfica <strong>da</strong> criança que apresento<br />

a seguir é, portanto, uma iniciativa que traduz o<br />

meu esforço docente no sentido de tentar<br />

re(a)presentar uma abor<strong>da</strong>gem ao grafismo infantil<br />

que possa <strong>da</strong>r conta de estabelecer um<br />

elo entre os pressupostos teórico-metodológicos<br />

<strong>da</strong> teoria histórico-cultural <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de-<br />

CHAT e o relativismo estético pós-moderno –<br />

no qual se fun<strong>da</strong>mentam as diretrizes educacionais<br />

para a compreensão <strong>da</strong>s produções artísticas<br />

na contemporanei<strong>da</strong>de.<br />

O que basicamente faço a seguir é: (1)<br />

(re)tomar o conceito de esquema formulado<br />

por Viktor Lowenfeld e W. Lambert Brittain<br />

(LOWENFELD & BRITTAIN, 1977); 1 (2)<br />

apoiar-me em parte <strong>da</strong> nomenclatura utiliza<strong>da</strong><br />

por estes psicólogos para caracterizar etapas<br />

do grafismo infantil (LOWENFELD, 1954);<br />

(3) buscar estabelecer um diálogo entre a terminologia<br />

que proponho e aquela originalmente<br />

utiliza<strong>da</strong> por Vygotsky (FERREIRA, 1998;<br />

VYGOTSKY, 1982); e, por fim, (4) justificar<br />

a pertinência dos termos dos quais me sirvo<br />

para caracterizar as etapas do processo de<br />

apropriação do sistema do desenho. Antes,<br />

contudo, é meu dever apresentar ao leitor a<br />

nomenclatura e a “etapização” originalmente<br />

formula<strong>da</strong>s por Vygotsky.<br />

A evolutiva do grafismo infantil<br />

segundo Vygotsky<br />

Sabe-se que o primeiro estudo brasileiro que<br />

mencionou a nomenclatura utiliza<strong>da</strong> por<br />

Vygotsky para caracterizar as etapas do pro-<br />

1 O uso <strong>da</strong> palavra esquema por Lowenfeld & Brittain<br />

difere do uso que Vygotsky faz deste vocábulo em sua proposta<br />

terminológica para a caracterização <strong>da</strong>s etapas do<br />

grafismo infantil. Adoto o conceito de esquema de<br />

Lowenfeld & Brittain como ponto de parti<strong>da</strong> para propor a<br />

nomenclatura que apresento aqui.<br />

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cesso de (co)laboração do desenho como sistema<br />

semiótico é o livro Imaginação e linguagem<br />

no desenho <strong>da</strong> criança, <strong>da</strong> Profª. Drª.<br />

Suely Ferreira, baseado em sua dissertação de<br />

mestrado defendi<strong>da</strong> na Unicamp (FERREIRA,<br />

1998).<br />

Conheci a professora Suely quando ela fazia<br />

parte <strong>da</strong> diretoria <strong>da</strong> Federação de Arte-<br />

Educadores do Brasil-FAEB. Depois, sempre<br />

acabávamos nos “batendo” em encontros <strong>da</strong><br />

FAEB e <strong>da</strong> Associação de Arte-Educadores<br />

de São Paulo-AAESP – ou em seminários <strong>da</strong><br />

International Society for Cultural and Activity<br />

Research-ISCAT (Socie<strong>da</strong>de Internacional<br />

pela Ativi<strong>da</strong>de e Pesquisa Cultural).<br />

Suely informa que as quatro etapas identifica<strong>da</strong>s<br />

ao longo do desenvolvimento psicográfico<br />

<strong>da</strong> criança por Vygotsky são: (1) Escalão de<br />

esquemas; (2) Escalão de formalismo e esquematismo;<br />

(3) Escalão <strong>da</strong> representação mais<br />

aproxima<strong>da</strong> do real e (4) Escalão <strong>da</strong> representação<br />

propriamente dita (1998, p. 29).<br />

Pessoalmente, prefiro denominar as etapas<br />

descritas por Vygotsky de: (1) etapa simbólica<br />

em substituição a “escalão de esquemas” –<br />

porque, como ele próprio afirma, “el pequeño<br />

artista es mucho más simbolista que naturalista”<br />

(VYGOTSKY, 1982, p. 96); (2) etapa simbólico-formalista<br />

no lugar de “escalão de<br />

formalismo e esquematismo” – porque, nesse<br />

período, ele afirma que já se começa “a sentirse<br />

la forma y la línea” (1982, p. 97); (3) etapa<br />

formalista veraz (ou formalista-verossímil) em<br />

substituição a “escalão de representação mais<br />

aproxima<strong>da</strong> do real” – na qual passa a existir,<br />

segundo ele, uma “representación veraz” dos<br />

objetos desenhados (1982, p. 97) e (4) etapa<br />

formalista plástica (ou formalista propriamente<br />

dita) no lugar de “escalão <strong>da</strong> representação propriamente<br />

dita” – porque, nesta etapa, Vygotsky<br />

afirma ser possível identificar-se “la imagem<br />

plástica” (1982, 99).<br />

Daqui em diante usarei os termos que apresentei<br />

acima para designar as etapas que caracterizam<br />

ca<strong>da</strong> um dos períodos escalonados<br />

por Vygotsky, descrevendo-os. Mas vale a pena<br />

lembrar: Vygotsky efetua um recorte no desenvolvimento<br />

cultural do grafismo infantil despre-<br />

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Ricardo Ottoni Vaz Japiassu<br />

zando a “pré-história” do desenho. Por exemplo,<br />

a fase dos rabiscos, garatujas e “<strong>da</strong> expressão<br />

amorfa de elementos gráficos isolados” não<br />

interessa aos objetivos que ele possui em seu<br />

ensaio psicológico (1982, p. 94).<br />

De fato, o desenho – enquanto sistema semiótico<br />

– só existe efetivamente após o período<br />

dos rabiscos. No período dos rabiscos certamente<br />

não se pode falar de ativi<strong>da</strong>de representacional<br />

stricto sensu por parte <strong>da</strong> criança. A intenção<br />

de Vygotsky no livro – já disse – é demonstrar<br />

as interrelações entre a imaginação criadora<br />

e a criação artística infantil ,conforme elas se<br />

apresentam e podem ser observa<strong>da</strong>s ao longo<br />

particularmente de três formas de expressão<br />

estética na escolarização do sujeito: Literatura,<br />

Teatro e Artes Visuais/Desenho.<br />

Vygotsky no livro – volto a dizer – está a discutir<br />

a constituição social de uma importante função<br />

psíquica cultural: a imaginação criadora.<br />

Seu objeto de estudo não é o grafismo infantil<br />

enquanto tal mas, antes, as relações entre a imaginação<br />

criadora e a criação artística em<br />

geral (JAPIASSU, 2001). O desenvolvimento<br />

gráfico-plástico <strong>da</strong> criança é abor<strong>da</strong>do por ele<br />

muito rapi<strong>da</strong>mente. E só se justifica no livro por<br />

ser útil ao seu empenho de demonstrar o modo<br />

como a imaginação criadora se amplia e adquire<br />

um funcionamento qualitativamente superior<br />

ao longo do desenvolvimento cultural do<br />

sujeito ao interagir com o pensamento verbal.<br />

Verifica-se que a argumentação elabora<strong>da</strong><br />

por Vygotsky no oitavo capítulo do livro – onde<br />

ele abor<strong>da</strong> o grafismo infantil – é desenvolvi<strong>da</strong><br />

em diálogo com os resultados de pesquisas de<br />

estudiosos <strong>da</strong> expressão psicográfica <strong>da</strong> criança<br />

de sua época (BARNÉS; BAKUSHINSKII;<br />

BÜLLER; KERSCHENSTEINER; LA-<br />

BUNSKAYA & PESTEL; LEVINSTEIN;<br />

LUQUENS; POSPIÉLOVA; RICCI; SAKÚ-<br />

LINA e SELLY). O ensaio traz também um<br />

pequeno anexo com a reprodução de aproxima<strong>da</strong>mente<br />

duas dezenas de ilustrações coleta<strong>da</strong>s<br />

por estes pesquisadores – e às quais<br />

Vygotsky recorre para demonstrar a pertinência<br />

de sua “etapização”.<br />

Os aspectos invariantes do grafismo infantil<br />

são demonstrados por ele através de de-<br />

121


Do desenho <strong>da</strong>s palavras à palavra do desenho<br />

senhos de variados objetos, de figuras humanas<br />

e de animais que foram elaborados por crianças<br />

de condições sociais distintas e de<br />

diferentes i<strong>da</strong>des. Vejamos, a seguir, os períodos<br />

do desenvolvimento <strong>da</strong> expressão gráficoplástica<br />

infantil – e o que os distingue e<br />

caracteriza – conforme o pensamento de<br />

Vygotsky:<br />

(1) Etapa simbólica (Escalão de esquemas)<br />

– É a fase dos bonecos “cabeça-pés”,<br />

que representam, de modo resumido, a figura<br />

humana. Trata-se <strong>da</strong> etapa em que a visão<br />

do sujeito encontra-se totalmente subordina<strong>da</strong><br />

ao seu aparato dinâmico-táctil. Esta etapa<br />

é descrita por Vygotsky como o momento em<br />

que as crianças desenham os objetos “de memória”,<br />

sem aparente preocupação com qualquer<br />

fideli<strong>da</strong>de à coisa representa<strong>da</strong>. Ou seja:<br />

os sujeitos desenham o que já sabem sobre<br />

os objetos que buscam representar, procurando<br />

destacar-lhes apenas os traços que julgam<br />

mais importantes. É o período em que a criança<br />

“representa de forma simbólica objetos<br />

muito distantes de seu aspecto ver<strong>da</strong>deiro e<br />

real” (VYGOTSKY, 1982, p.94). Vygotsky<br />

explica-nos que a arbitrarie<strong>da</strong>de e a licença<br />

do desenho infantil nesta etapa é grande porque<br />

“o pequeno artista é muito mais simbolista<br />

que naturalista” (1982, p. 96 – destaque<br />

meu). Então, nas representações <strong>da</strong> pessoa<br />

humana, de maneira geral, nesta etapa, constata-se<br />

que o sujeito se limita a traçar apenas<br />

duas ou três partes do corpo fazendo com que<br />

os seus desenhos sejam “mais propriamente<br />

enumerações, ou melhor dizendo, relatos gráficos<br />

abreviados sobre o objeto que querem<br />

representar” (1982, p. 96). É também o período<br />

dos “desenhos-radiografia” (desenhos em<br />

que as crianças traçam pessoas vesti<strong>da</strong>s<br />

mostrando suas pernas sobre a roupa, por<br />

exemplo).<br />

(2) Etapa simbólico-formalista (Escalão<br />

de formalismo e esquematismo) – É a etapa<br />

em que já se percebe maior elaboração dos traços<br />

e formas do grafismo infantil. A visão e o<br />

aparato dinâmico-tactil do sujeito lutam para<br />

subjugarem um ao outro. É o período em que a<br />

criança começa a sentir necessi<strong>da</strong>de de não se<br />

122<br />

limitar apenas à enumeração dos aspectos concretos<br />

do objeto que representa e em que ela<br />

busca estabelecer maior número de relações<br />

entre o todo representado e suas partes. Há<br />

uma espécie de mescla de aspectos formalistas<br />

e simbolistas na representação plástica nesta<br />

etapa. Constata-se que os desenhos permanecem<br />

ain<strong>da</strong> simbólicos, mas, por outro lado, já se<br />

podem identificar neles os embriões de uma<br />

representação mais próxima <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. Trata-se<br />

de um período que não se distingue facilmente<br />

<strong>da</strong> fase precedente embora os desenhos<br />

revelem uma quanti<strong>da</strong>de bem maior de detalhes.<br />

As figuras representa<strong>da</strong>s assemelham-se<br />

mais ao aspecto que de fato possuem a olho<br />

nu. Há nítido esforço do sujeito em tornar suas<br />

representações mais verossímeis. Sobrevivem<br />

ain<strong>da</strong>, nesta etapa, os “desenhos-radiografias.”<br />

(3) Etapa formalista veraz (Escalão <strong>da</strong><br />

representação mais aproxima<strong>da</strong> do real) –<br />

É o período em que o simbolismo que se encontrava<br />

presente nas representações típicas<br />

<strong>da</strong>s duas etapas anteriores definitivamente<br />

fenece. A visão passa a subordinar totalmente<br />

o aparato dinâmico-táctil do sujeito. Nesta<br />

fase, as representações gráficas são fiéis ao<br />

aspecto observável dos objetos representados,<br />

mas a criança ain<strong>da</strong> não faz uso <strong>da</strong>s técnicas<br />

projetivas. Nos desenhos deste período<br />

as convenções realistas - que enfatizam a proporcionali<strong>da</strong>de<br />

e o tamanho dos objetos - são<br />

viola<strong>da</strong>s com freqüência e, em razão disso,<br />

“desestabiliza-se” to<strong>da</strong> a plastici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> figuração.<br />

(4) Etapa formalista plástica (Escalão <strong>da</strong><br />

representação propriamente dita) – Nesta<br />

etapa a plastici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> figuração é enriqueci<strong>da</strong><br />

e amplia<strong>da</strong> porque a coordenação viso-motora<br />

do sujeito já lhe permite o uso vitorioso <strong>da</strong>s técnicas<br />

projetivas e <strong>da</strong>s convenções realistas.<br />

Observa-se uma níti<strong>da</strong> passagem a um novo<br />

modo de desenhar. O sujeito não mais se satisfaz<br />

com a expressão gráfico-plástica pura e simplesmente:<br />

ele busca adquirir novos hábitos<br />

representacionais, diferentes técnicas gráficas<br />

e conhecimentos artísticos profissionais. O grafismo<br />

deixa de ser uma ativi<strong>da</strong>de com fim em si<br />

mesma e converte-se em trabalho criador.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 117-132, jan./jun., 2006


A estética do grafismo infantil<br />

Uma vez apresenta<strong>da</strong> a “etapização” do<br />

grafismo infantil segundo Vygotsky, passo a<br />

expor um panorama dos períodos que caracterizam<br />

o desenvolvimento do desenho como sistema<br />

de representação do modo como julgo<br />

adequado a uma intervenção pe<strong>da</strong>gógica tendo<br />

em vista a formação de professores para atuarem<br />

na educação infantil e séries iniciais do<br />

ensino fun<strong>da</strong>mental:<br />

(1) O rabisco descontrolado ou garatuja<br />

descontrola<strong>da</strong> – O rabisco descontrolado ou<br />

garatuja descontrola<strong>da</strong> caracteriza o período<br />

de desenvolvimento <strong>da</strong> coordenação motora fina<br />

necessária à manipulação objetal do marcador<br />

(lápis, caneta, pincel etc). As marcas gráficoplásticas<br />

produzi<strong>da</strong>s pelo sujeito sobre o suporte<br />

(p. ex: folha de papel, parede, chão) são muito<br />

mais o resultado do “exercício” <strong>da</strong> coordenação<br />

de ações motoras (praxias) absolutamente indispensáveis<br />

para o uso adequado de varia<strong>da</strong>s ferramentas<br />

culturais. A produção gráfico-plástica<br />

<strong>da</strong> criança, nesta etapa, possui uma natureza<br />

muito mais expressiva do que semiótica ou simbólica<br />

(Figura 1). Ou seja: as “descargas” motoras<br />

incontrola<strong>da</strong>s é que geram os rabiscos e<br />

“zigue-zagues” no suporte. Nesta fase, apenas<br />

o acaso pode levar o sujeito ao traçado, por exemplo,<br />

<strong>da</strong>s formas circulares. Traçar um círculo ain<strong>da</strong><br />

é uma tarefa de difícil solução para a criança<br />

neste momento. O destrismo (uso preferencial<br />

<strong>da</strong> mão direita) e o sinestrismo (uso preferencial<br />

<strong>da</strong> mão esquer<strong>da</strong>) ain<strong>da</strong> não podem ser claramente<br />

identificados. Verifica-se que as marcas<br />

geralmente ultrapassam os limites do suporte<br />

fornecido ao sujeito (o desenho extrapola as bor<strong>da</strong>s<br />

<strong>da</strong> folha de papel). Observa-se também, em<br />

geral, que as marcas inscritas pelo sujeito nos<br />

suportes, nesta fase, são “registra<strong>da</strong>s” ali de tal<br />

modo que sugerem ter sido emprega<strong>da</strong> ou muita<br />

“força” no traçado dos rabiscos ou, ao contrário,<br />

ter havido pouquíssima “pressão” com o marcador<br />

sobre o suporte. Costuma-se recomen<strong>da</strong>r,<br />

para uso <strong>da</strong>s crianças, nesta etapa, marcadores<br />

resistentes tais como lápis de carpinteiro, giz de<br />

cera, canetas hidrográficas e/ou pincéis grandes<br />

e grossos.<br />

Figura 1<br />

Garatuja descontrola<strong>da</strong><br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 117-132, jan./jun., 2006<br />

Ricardo Ottoni Vaz Japiassu<br />

(2) O rabisco controlado ou garatuja controla<strong>da</strong><br />

– O rabisco controlado ou garatuja<br />

controla<strong>da</strong> caracteriza maior diferenciação<br />

entre as marcas produzi<strong>da</strong>s no suporte por um<br />

mesmo sujeito. Constata-se que o “zigue-zague”<br />

incontrolado <strong>da</strong> etapa inicial cede lugar<br />

às formas circulares. Isto é: os traçados circulares<br />

– anteriormente frutos do acaso – agora<br />

são claramente intencionais. Nesta etapa,<br />

as formas circulares se repetem freqüentemente<br />

e vão sendo aperfeiçoa<strong>da</strong>s com base<br />

nas praxias já adquiri<strong>da</strong>s pela criança. Observam-se,<br />

neste momento, dois fenômenos muito<br />

curiosos: (1) uma espécie de proliferação<br />

de “círculos” justapostos de diversos tamanhos<br />

– como se houvesse a “produção em série”<br />

de muitas “bolinhas” (Figura 2); e (2) a irradiação<br />

ou desenho de formas circulares cilia<strong>da</strong>s<br />

(Figura 3). A criança demonstra com<br />

nitidez estar em um processo acelerado de<br />

aperfeiçoamento do traçado <strong>da</strong>s formas circulares.<br />

E revela claramente já conseguir manter<br />

suas marcas dentro dos limites do suporte<br />

que lhe foi fornecido. Em outras palavras: o<br />

sujeito nos informa ter adquirido, nesta fase,<br />

um maior controle sobre os movimentos <strong>da</strong><br />

mão. Neste período, as linhas “retas” (traços<br />

longos) se multiplicam e são aprimora<strong>da</strong>s pelo<br />

sujeito. Surgem os primeiros atos gráficos –<br />

a tentativa de representar delibera<strong>da</strong>mente<br />

objetos através do grafismo (LEVIN, 1998, p.<br />

121). Nos primeiros atos gráficos tudo ocorre<br />

como se a intenção representacional primeira<br />

do sujeito fosse “traí<strong>da</strong>” ao longo <strong>da</strong><br />

execução <strong>da</strong>s marcas – agora simbólicas –<br />

impressas no suporte. Isso acontece pela difi-<br />

123


Do desenho <strong>da</strong>s palavras à palavra do desenho<br />

cul<strong>da</strong>de que o sujeito ain<strong>da</strong> experimenta em<br />

coordenar as ações motoras complexas solicita<strong>da</strong>s<br />

no processo de representação gráficoplástica<br />

dos objetos. Paralelamente, ao associar<br />

as marcas produzi<strong>da</strong>s sobre o suporte a determinados<br />

objetos <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de concreta, a criança<br />

começa a “<strong>da</strong>r nome” ao seu desenho (a<br />

dizer quais objetos seu desenho busca representar).<br />

124<br />

Figura 2<br />

Garatuja controla<strong>da</strong><br />

Figura 3<br />

Irradiação<br />

(3) A representação gráfico-plástica préesquemática<br />

– A representação gráfico-plástica<br />

“pré-esquemática” equivale ao período<br />

denominado por Vygotsky de etapa simbólica<br />

(escalão de esquemas) e caracteriza a fase<br />

em que não se observam formas gráficas invariantes<br />

para referir um determinado objeto.<br />

Sol, nuvens e pássaros, por exemplo, não são<br />

representados do mesmo jeito ou por um único<br />

e mesmo esquema gráfico nos sucessivos e<br />

diferentes desenhos do sujeito. 2 Verifica-se,<br />

nesta etapa, o fenômeno <strong>da</strong> justaposição (Fi-<br />

gura 4), isto é, a colocação, lado a lado, de elementos<br />

que compõem o objeto representado<br />

pela criança sem aparentemente existir qualquer<br />

relação lógica entre eles. Na representação<br />

<strong>da</strong> figura humana, por exemplo, braços,<br />

cabelos, olhos e boca são desenhados ao lado<br />

ou “fora” do traçado do corpo. O grafismo, até<br />

então, ato impulsivo converte-se definitivamente<br />

em ato gráfico (LEVIN, 1998). O desenho,<br />

neste período, resulta de uma ação intencional<br />

do sujeito. Isto é: o desenho persegue claramente<br />

o objetivo de representar simbolicamente<br />

um determinado objeto. As marcas feitas pela<br />

criança sobre o suporte começam a ser planeja<strong>da</strong>s<br />

com antecedência em sua mente - vale<br />

dizer, no plano intramental. Verifica-se que, nesta<br />

etapa, as praxias <strong>da</strong> criança já se encontram<br />

bastante desenvolvi<strong>da</strong>s e consoli<strong>da</strong><strong>da</strong>s permitindo-lhe<br />

miniaturizar as marcas produzi<strong>da</strong>s<br />

sobre o suporte. É a partir desta etapa que se<br />

pode iniciar o aprofun<strong>da</strong>mento de estudos <strong>da</strong><br />

expressão gráfico-plástica infantil ou expressão<br />

psicográfica do sujeito (MARIN, 1985;<br />

VYGOTSKY, 1982).<br />

Através <strong>da</strong> análise do processo de produção<br />

gráfico-plástica do sujeito pode-se examinar,<br />

por exemplo, o modo como as crianças<br />

representam a reali<strong>da</strong>de social e conseguese<br />

inclusive identificar estágios <strong>da</strong> construção<br />

pessoal <strong>da</strong> criança concernentes à<br />

expressão político-ideológica de determinados<br />

temas em seus desenhos. Tais estudos costumam<br />

focalizar basicamente três aspectos<br />

<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de representacional gráfico-plástica:<br />

(1) sua dimensão psicomotora; (2) sua<br />

dimensão estético-conceitual, ou seja, os<br />

princípios gráficos utilizados na construção<br />

dos objetos representados; (3) a dimensão<br />

gráfico-ideológica, quer dizer, o significado<br />

e sentido <strong>da</strong>s comunicações através do grafismo<br />

(MARIN, 1985, p.27).<br />

2 O conceito referido por esquema (esquema gráfico, forma<br />

gráfica invariante), na nomenclatura de Lowenfeld &<br />

Brittain, difere do sentido desta palavra na expressão escalão<br />

de esquemas utiliza<strong>da</strong> por Vygotsky. O escalão de esquemas<br />

vygotskiano equivale ao que Lowenfeld & Brittain<br />

chamam de etapa pré-esquemática. Por isso optei por utilizar<br />

a expressão etapa simbólica na tradução <strong>da</strong> nomenclatura<br />

formula<strong>da</strong> por Vygotsky.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 117-132, jan./jun., 2006


Figura 4<br />

Justaposição<br />

(4) A representação gráfico-plástica esquemática<br />

– Este período equivale à etapa<br />

simbólico-formalista (escalão de formalismo<br />

e esquematismo) de Vygotsky. Nesta fase,<br />

observa-se a repetição de esquemas gráficos<br />

(formas gráfico-plásticas invariantes ou esterotipia)<br />

na representação de determinados objetos.<br />

A criança “descobre” uma solução gráfica<br />

para o desenho de alguns objetos (p. ex: o boneco<br />

“palito” para representar o ser humano; o<br />

telhado invariavelmente com chaminé para representar<br />

a cobertura <strong>da</strong>s casas; a letra “v” para<br />

os pássaros etc).<br />

Determinados esquemas gráficos, inclusive,<br />

podem ser compartilhados por mais de<br />

uma criança, revelando a existência de uma<br />

autêntica cultura gráfica infantil (Figura 6).<br />

Neste caso, os sujeitos aprendem com os seus<br />

pares e com os membros mais experientes<br />

dessa “cultura gráfica infantil” muitos dos esquemas<br />

freqüentemente observáveis em seu<br />

grafismo. Mas, atenção: só se pode afirmar<br />

existirem esquemas gráficos, comparando-se<br />

sucessivos desenhos de um mesmo sujeito ou<br />

de determinado grupo de crianças. Evidentemente<br />

não se deve subestimar o poder autoreprodutivo<br />

dessa cultura de esquemas nem<br />

tampouco a veloci<strong>da</strong>de do seu movimento de<br />

expansão no mundo globalizado. A disseminação<br />

de esquemas gráficos nas socie<strong>da</strong>des<br />

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Ricardo Ottoni Vaz Japiassu<br />

letra<strong>da</strong>s pós-modernas ocidentais pode apresentar-se,<br />

à primeira vista, como resultante de<br />

uma tendência universal ou “natural” dos seres<br />

humanos a um tipo muito preciso de prática<br />

gráfica, e levar-nos a crer que a construção<br />

do sistema de representação do desenho<br />

pela criança é algo espontâneo, “inato” e<br />

“igual” para todos os sujeitos. Então, vale a<br />

pena lembrar que os esquemas são construtos<br />

histórico-culturais, ou seja, são artefatos<br />

“não-naturais”. O psicólogo Karl Ratner explica<br />

muito bem esse fenômeno <strong>da</strong> “naturalização”<br />

de construtos histórico-culturais quando<br />

afirma que “a igual<strong>da</strong>de psicológica só existe<br />

na medi<strong>da</strong> em que tenha a sustentação de semelhanças<br />

na vi<strong>da</strong> social concreta. A universali<strong>da</strong>de<br />

sócio-psicológica não é um <strong>da</strong>do:<br />

ela tem que ser construí<strong>da</strong>” (Destaques<br />

meus). (RATNER, 1995, p.119).<br />

Ain<strong>da</strong> neste período verifica-se também o<br />

curioso fenômeno <strong>da</strong> transparência ou raiox<br />

(o “desenho-radiográfico” ao qual se refere<br />

Vygotsky). Isto é: a revelação de objetos<br />

que não seriam visíveis a olho nu por trás de<br />

uma superfície opaca no desenho (p. ex: ao<br />

desenhar a facha<strong>da</strong> de uma casa a criança<br />

mostra os móveis e objetos que supostamente<br />

estariam em seu interior). Além <strong>da</strong> transparência<br />

(Figura 5) pode ocorrer ain<strong>da</strong>,<br />

nesta fase, um outro intrigante fenômeno: o<br />

rebatimento. O rebatimento é uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />

de representação do espaço tridimensional<br />

em que as indicações de profundi<strong>da</strong>de e<br />

perspectiva encontram-se desenha<strong>da</strong>s num<br />

único plano (p. ex: ao desenhar uma estra<strong>da</strong><br />

entre árvores a criança representa as árvores<br />

como se estivessem “deita<strong>da</strong>s” ao lado<br />

do caminho).<br />

Neste período “esquemático” a laterali<strong>da</strong>de<br />

axial <strong>da</strong> criança é finalmente defini<strong>da</strong><br />

(seu “lado direito” e seu “lado esquerdo” se<br />

tornam evidentes) porque se observa, agora,<br />

que a dominância lateral (destrismo ou sinestrismo)<br />

organiza o ato motor e as praxias<br />

(coordenação de ações físicas) do sujeito. Estabiliza-se,<br />

enfim, a prevalência manual <strong>da</strong><br />

criança (recorrência do uso <strong>da</strong> mão esquer<strong>da</strong><br />

ou direita).<br />

125


Do desenho <strong>da</strong>s palavras à palavra do desenho<br />

126<br />

Figura 5<br />

Rebatimento (à esquer<strong>da</strong>)<br />

e transparência (à direita)<br />

Figura 6<br />

Esquema gráfico para<br />

a representação de mãos e pés<br />

(5) A representação gráfico-plástica pósesquemática<br />

– Esse período equivale às etapas<br />

formalista veraz ou formalista verossímil (escalão<br />

<strong>da</strong> representação mais aproxima<strong>da</strong> do<br />

real) e formalista plástica ou plástica propriamente<br />

dita (escalão <strong>da</strong> representação propriamente<br />

dita) de Vygotsky. A superação dos esquemas<br />

gráficos comuns à fase anterior só pode<br />

ocorrer se - e quando - o sujeito for submetido a<br />

uma intervenção pe<strong>da</strong>gógica ou “participação<br />

guia<strong>da</strong>” que o desafie a experimentar novas possibili<strong>da</strong>des<br />

para o tratamento gráfico-plástico de<br />

suas representações através do desenho. Geralmente<br />

constata-se uma tendência dos sujeitos em<br />

reproduzirem as convenções realista-naturalistas<br />

na representação dos objetos neste período<br />

(mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de dominante ou hegemônica de desenho).<br />

Pode surgir o interesse, nesta etapa, em<br />

conhecer e dominar as técnicas projetivas e<br />

euclidianas - ou “clássicas” - <strong>da</strong> representação<br />

gráfico-plástica do espaço.<br />

As técnicas projetivas consistem em convenções<br />

que nos permitem visualmente diferenciar<br />

e coordenar nosso ponto de vista em relação<br />

aos objetos representados graficamente.<br />

Através delas pode-se “projetar” um objeto no<br />

espaço, fornecendo-se a noção de primeiro e<br />

segundo planos, além <strong>da</strong> impressão de profundi<strong>da</strong>de<br />

(desenho em perspectiva). Já as técnicas<br />

euclidianas são aquelas convenções que<br />

permitem organizar visualmente o desenho de<br />

modo tal que os objetos possam ser traçados,<br />

considerando-se sua posição, distância e proporção<br />

em relação ao conjunto de referências<br />

espaciais que organizam e estabilizam a reali<strong>da</strong>de<br />

graficamente representa<strong>da</strong>. As convenções<br />

projetivas e euclidianas são técnicas em<br />

geral muito utiliza<strong>da</strong>s para criarem um efeito<br />

de “ilusionismo” e de “fideli<strong>da</strong>de” <strong>da</strong> coisa representa<strong>da</strong>.<br />

O senso comum, por exemplo, costuma<br />

denominar por “desenho bem feito” as<br />

representações gráfico-plásticas que recorrem<br />

às técnicas projetivas e euclidianas.<br />

Verifica-se também, neste período, a incorporação<br />

de um intrigante procedimento por parte<br />

dos sujeitos: o uso <strong>da</strong> linha de base. A linha<br />

de base é a definição - quase sempre explícita<br />

- <strong>da</strong> superfície geral em que se apóia a “cena”<br />

mostra<strong>da</strong> pelo desenho (p. ex: ao representar<br />

uma casa, seus habitantes e arredores o sujeito<br />

traça uma linha definindo a base sobre a qual<br />

serão apoiados os objetos e figuras do desenho).<br />

Recursos pe<strong>da</strong>gógicos para a coleta<br />

sistemática do grafismo infantil<br />

Acredito ter exposto até aqui uma proposta<br />

terminológica que considero adequa<strong>da</strong> à compreensão<br />

<strong>da</strong> “etapização” do grafismo infantil,<br />

relacionando-a à nomenclatura originalmente<br />

utiliza<strong>da</strong> por Vygotsky. O leitor deve ter percebido<br />

que a nomenclatura apresenta<strong>da</strong> busca<br />

atender às diretrizes formula<strong>da</strong>s pela teoria histórico-cultural<br />

<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de-CHAT numa clara<br />

abor<strong>da</strong>gem à expressão psicográfica <strong>da</strong> criança<br />

na perspectiva <strong>da</strong> psicologia sócio-histórica.<br />

Cabe mais uma vez lembrar que o processo<br />

de apropriação e (co)laboração do desenho<br />

como sistema de representação semiótico<br />

pressupõe a intervenção delibera<strong>da</strong> do(a)<br />

professor(a) porque “não se trata de algo mas-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 117-132, jan./jun., 2006


sificado, natural, espontâneo, ou seja, do surgimento<br />

por si mesmo <strong>da</strong> criação artística infantil,<br />

mas que esta criação depende <strong>da</strong> habili<strong>da</strong>de,<br />

de hábitos estéticos determinados, de<br />

dispor de materiais etc” (VYGOTSKY, 1982,<br />

p. 102). Além disso, “no fomento <strong>da</strong> criação<br />

artística infantil, incluindo a representativa,<br />

será necessário estar atento ao princípio de<br />

liber<strong>da</strong>de, como premissa indispensável para<br />

to<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de criadora” (1982, p. 102).<br />

Com o que foi dito anteriormente evidenciase<br />

to<strong>da</strong> a complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> problemática subjacente<br />

ao gerenciamento <strong>da</strong>s intervenções<br />

pe<strong>da</strong>gógicas no âmbito do ensino <strong>da</strong>s artes na<br />

educação infantil e séries iniciais do ensino fun<strong>da</strong>mental:<br />

se, por um lado, é importante garantir<br />

a inventivi<strong>da</strong>de e liber<strong>da</strong>de de criação por<br />

parte <strong>da</strong> criança, por outro, é necessário também<br />

assegurar-lhe a posse dos materiais, recursos<br />

e técnicas úteis ao pleno desenvolvimento<br />

de sua ativi<strong>da</strong>de criadora.<br />

No caso específico do processo de apropriação<br />

e (co)laboração do grafismo como sistema<br />

semiótico, fazer com que o sujeito venha a<br />

superar a fase esquemática solicita o compromisso<br />

do(a) professor(a) para com a elaboração<br />

de uma ambiente de aprendizado rico,<br />

estimulante e desafiador.<br />

Neste sentido, o paradigma metodológico<br />

triangular pode ser um grande aliado do(a)<br />

professor(a) para a melhoria <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de de<br />

suas intervenções pe<strong>da</strong>gógicas com as Artes<br />

Visuais na educação infantil e séries iniciais do<br />

ensino fun<strong>da</strong>mental (DEHEIZELIN, 1998).<br />

A “etapização” do grafismo infantil fornece<br />

um “passeio” pelos principais períodos que caracterizam<br />

o desenvolvimento psicográfico <strong>da</strong><br />

criança. A nomenclatura que refere ca<strong>da</strong> uma<br />

<strong>da</strong>s fases descritas aqui me parece a mais apropria<strong>da</strong><br />

para li<strong>da</strong>r com o relativismo estético pósmoderno<br />

na contemporanei<strong>da</strong>de.<br />

Evidentemente a identificação e delimitação<br />

de períodos comuns ao processo de apropriação<br />

e (co)laboração do desenho como sistema<br />

de representação, por parte do sujeito, não implica<br />

necessariamente compreender o “etapismo”<br />

ou “etapização” como “uma referência<br />

naturaliza<strong>da</strong> <strong>da</strong> passagem do sujeito por um<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 117-132, jan./jun., 2006<br />

Ricardo Ottoni Vaz Japiassu<br />

percurso universal abstrato” (OLIVEIRA e<br />

outros, 2002, p. 44).<br />

Examinando-se o ensaio psicológico de<br />

Vygotsky, constata-se que ele recorre a desenhos<br />

de crianças com diferentes i<strong>da</strong>des (7 a 10<br />

anos) para discutir os típicos “desenhos-radiográficos”<br />

<strong>da</strong> etapa simbólico-formalista (escalão<br />

de formalismo e esquematismo)<br />

(VYGOTSKY, 1982, p. 95). E mais: que algumas<br />

legen<strong>da</strong>s dos desenhos chegam a explicitar,<br />

inclusive, o capital cultural de seus autores:<br />

“não desenham em casa nem possuem livros<br />

com ilustrações”; “desenha em casa e possui<br />

livros com ilustrações” (1982, p. 112-117).<br />

A incorporação desse tipo de legen<strong>da</strong> aos<br />

desenhos demonstra haver uma clara tentativa<br />

de sinalizar a compreensão do “etapismo” como<br />

“uma referência historiciza<strong>da</strong> <strong>da</strong> passagem por<br />

um percurso culturalmente contextualizado”<br />

(OLIVEIRA e outros, 2002, p. 44).<br />

Embora Vygotsky não explicite a adoção de<br />

um sistema “rizomático” para interrelacionar as<br />

diferentes dimensões (cognitiva, afetiva, psicomotora,<br />

histórico-social ou cronotópica) enre<strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />

na ativi<strong>da</strong>de do desenho, parece que ele<br />

advoga uma análise de <strong>da</strong>dos menos “estruturalista”<br />

e menos “evolucionista” dos processos<br />

desenvolvimentais.<br />

Um indício desse tipo de análise – rizomática<br />

ou pós-estruturalista – é a importância conferi<strong>da</strong><br />

por ele à articulação de diferentes níveis<br />

genéticos (filogenético, macrogenético e ontogenético)<br />

em sua abor<strong>da</strong>gem à constituição<br />

social do psiquismo humano – se bem que não<br />

se pode negar que Vygotsky tece, muitas vezes,<br />

uma argumentação ambígua em torno <strong>da</strong><br />

idéia de desenvolvimento (VYGOTSKY &<br />

LURIA, 1996).<br />

Mas o desenvolvimento, na perspectiva histórico<br />

cultural, deve ser pensado como o conjunto<br />

dos processos de transformação que ocorrem<br />

ao longo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do sujeito - e que se<br />

relacionam “tanto a fenômenos orgânicos, maturacionais,<br />

que permitem asserções universalizantes<br />

sobre certos aspectos do desenvolvimento<br />

(especialmente nas menores i<strong>da</strong>des), como a processos<br />

enraizados historicamente, que requerem<br />

uma contextualização histórico-cultural para se-<br />

127


Do desenho <strong>da</strong>s palavras à palavra do desenho<br />

rem adequa<strong>da</strong>mente compreendidos” (OLIVEI-<br />

RA e outros, 2002, p. 43). Desse ponto de vista, a<br />

abor<strong>da</strong>gem desenvolvimental ou evolutiva diverge<br />

muito do modo “desenvolvimentista” ou “evolucionista”<br />

de aproximação de um objeto.<br />

Se o(a) professor(a) estiver atento às produções<br />

gráfico-plásticas dos seus alunos, poderá<br />

acompanhar os ritmos pessoais de ca<strong>da</strong><br />

criança e identificar eventuais fases comuns<br />

à to<strong>da</strong> sua turma de educandos. Mas não basta<br />

entender os mecanismos psicomotores, cognitivos,<br />

afetivos e histórico-culturais enre<strong>da</strong>dos<br />

no grafismo infantil. É preciso oferecer<br />

um ambiente de aprendizado desafiador e estimulante<br />

aos alunos que busque: (1) valorizar<br />

sua expressão psicográfica; e (2) promover<br />

avanços nos processos singulares de apropriação<br />

e (co)laboração do sistema de representação<br />

do desenho através <strong>da</strong> exposição do sujeito<br />

à varia<strong>da</strong>s obras de arte e do estímulo à<br />

sua experimentação artística .<br />

Adiante, passo a expor alguns instrumentos<br />

pe<strong>da</strong>gógicos úteis nesse sentido. Porém, inicialmente,<br />

é necessário fazer uma distinção muito<br />

grosseira entre desenho e pintura. Embora<br />

rude, a diferenciação será útil para esclarecer<br />

a especifici<strong>da</strong>de estética dessas duas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des<br />

de expressão gráfico-plástica bidimensional.<br />

Evidentemente o conceito de desenho pode<br />

ser ampliado - e as fronteiras entre desenho,<br />

pintura e escultura se tornarem pouco níti<strong>da</strong>s.<br />

Não cabe aqui uma discussão conceitual a esse<br />

respeito.<br />

No desenho, pode-se dizer, o sujeito deixará<br />

sempre o suporte - ou parte dele (papel, tela<br />

etc) - à mostra do observador. Ou seja: as marcas<br />

impressas em um determinado suporte não<br />

ocupam nem preenchem to<strong>da</strong> a extensão de sua<br />

superfície. Já na pintura, ao contrário, to<strong>da</strong> a<br />

superfície do suporte é recoberta por tratamento<br />

plástico. Atenção: deste ponto de vista desenho<br />

colorido não é pintura!<br />

Tanto o desenho como a pintura são representações<br />

gráfico-plásticas bidimensionais,<br />

isto é, buscam correlacionar duas dimensões<br />

na representação visual do objeto: a altura e a<br />

largura <strong>da</strong>s formas. Embora nos desenhos e<br />

pinturas as formas representa<strong>da</strong>s possam si-<br />

128<br />

mular possuir expessura e volume, elas – a representação<br />

propriamente dita dessas formas -<br />

não são tridimensionais. Falta-lhes a terceira<br />

dimensão, o volume. Desenhar e pintar em<br />

perspectiva uma caixa, por exemplo, difere<br />

muito de representá-la, moldá-la ou esculpi-la<br />

em três dimensões. To<strong>da</strong>via, na escultura a<br />

altura, largura e volume <strong>da</strong>s formas são <strong>da</strong>dos<br />

palpáveis, concretos. A escultura é uma<br />

representação gráfico-plástica tridimensional.<br />

Os instrumentos pe<strong>da</strong>gógicos de coleta do<br />

grafismo, relacionados a seguir, aplicam-se indistintamente<br />

às representações bi e tridimensionais<br />

<strong>da</strong>s crianças, isto é, aos seus desenhos<br />

e pinturas (representações plásticas bidimensionais)<br />

e esculturas (representações plásticas<br />

tridimensionais).<br />

(1) O desenho espontâneo – [Leia-se pintura<br />

espontânea, escultura espontânea]. É<br />

o desenho onde não existe uma proposta temática<br />

por parte do(a) professor(a). A criança<br />

busca desenhar o que quer e o que lhe é significativo<br />

em um <strong>da</strong>do momento.<br />

(2) O desenho <strong>da</strong> história – [Leia-se pintura<br />

<strong>da</strong> história, escultura <strong>da</strong> história]. O(a)<br />

professor(a) lê, conta ou apresenta através de<br />

vídeo, CD-ROM, teatro de sombras ou de fantoches,<br />

por exemplo, uma história para as crianças.<br />

Em segui<strong>da</strong>, propõe aos alunos que<br />

desenhem “de cabeça” (sem uso de modelos<br />

para cópia) a história que lhes foi apresenta<strong>da</strong>.<br />

(3) A história do desenho – [Leia-se história<br />

<strong>da</strong> pintura, história <strong>da</strong> escultura]. O(a)<br />

professor(a), após a ativi<strong>da</strong>de de desenho espontâneo<br />

do aluno, solicita ao aluno que conte<br />

a história do seu desenho.<br />

(4) O desenho de vivência – [Leia-se pintura<br />

de vivência, escultura de vivência].<br />

O(a) professor(a), após uma determina<strong>da</strong> vivência<br />

do grupo (excursão ao zoológico, i<strong>da</strong> ao<br />

teatro, por exemplo) solicita aos alunos o registro<br />

gráfico-plástico <strong>da</strong>quela experiência.<br />

(5) O desenho de observação – [Leia-se<br />

pintura de observação, escultura de observação].<br />

O(a) professor(a) apresenta um determinado<br />

objeto ou imagem à turma e, em segui<strong>da</strong>,<br />

solicita aos escolares que desenhem o que lhes é<br />

colocado à mostra (cópia do modelo).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 117-132, jan./jun., 2006


(6) O desenho a partir de interferência<br />

“sobre” o suporte – [Leia-se pintura a partir<br />

de interferência “sobre” o suporte, escultura<br />

a partir de interferência sobre o<br />

material a ser mol<strong>da</strong>do]. O(a) professor(a)<br />

apresenta ao grupo suportes com uma determina<strong>da</strong><br />

interferência gráfico-plastica (contendo<br />

parte de uma imagem recorta<strong>da</strong> de revista, por<br />

exemplo) e, a seguir, solicita aos escolares que<br />

completem, desenhando, o fragmento de ilustração<br />

cola<strong>da</strong> sobre o suporte.<br />

(7) O desenho a partir de interferência<br />

“no” suporte – [Leia-se pintura a partir de<br />

interferência “no” suporte]. O(a) professor(a)<br />

oferece à turma suportes em formatos variados<br />

(suporte em forma de círculo, de estrela etc) e, a<br />

seguir, pede aos escolares que façam um desenho<br />

espontâneo sobre eles.<br />

(8) O desenho a partir <strong>da</strong> “reunião de<br />

partes” – [Leia-se pintura a partir <strong>da</strong> “reunião<br />

de partes”, escultura a partir <strong>da</strong> “reunião<br />

de partes”]. O(a) professor(a) oferece<br />

aos alunos envelopes grandes contendo varia<strong>da</strong>s<br />

formas recorta<strong>da</strong>s em cores e tamanhos<br />

diversos (não apenas formas geométricas). A<br />

seguir, pede aos escolares que elaborem com<br />

elas uma composição gráfico-plástica utilizando<br />

as formas disponibiliza<strong>da</strong>s nos envelopes<br />

sobre um determinado suporte (pode ser desenho<br />

espontâneo, desenho de vivência, <strong>da</strong> história<br />

etc). Feita a composição, o(a) professor(a)<br />

pode solicitar ao aluno que, a seguir, desta vez<br />

sobre um novo suporte, desenhe, pinte ou esculpa<br />

a composição elabora<strong>da</strong> com as “partes”<br />

(neste caso desenho de observação do próprio<br />

desenho do sujeito). Atenção: as composições<br />

com as formas podem ser feitas solitariamente<br />

ou em grupo (duplas, trios etc). Os desenhos<br />

de observação <strong>da</strong> composição, no entanto, precisam<br />

ser individuais. Pode-se propor também<br />

a composição de formas no computador a partir<br />

de softwares gráficos (o programa paint, por<br />

exemplo). Mas o desenho observado deve ser<br />

necessariamente feito do modo tradicional (manualmente).<br />

(9) O diálogo gráfico – [Leia-se diálogo<br />

plástico no caso de se solicitar pintura ou escultura<br />

ao aluno]. O(a) professor(a) propõe a<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 117-132, jan./jun., 2006<br />

Ricardo Ottoni Vaz Japiassu<br />

uma dupla de alunos que, por exemplo, faça um<br />

desenho [pintura ou escultura] em conjunto,<br />

de maneira que os escolares se revezem, em<br />

turnos, na produção gráfico-plástica conjunta.<br />

(10) O desenho de memória – [Leia-se<br />

pintura de memória, escultura de memória].<br />

O(a) professor(a) propõe um “jogo” no qual<br />

ele(a), professor(a), irá pedir aos escolares que<br />

desenhem “de memória” determinados objetos<br />

ou cenas que serão revelados a todo o grupo<br />

(uma espécie de “ditado” gráfico-plástico).<br />

Acredito que essas dez propostas para a<br />

ativi<strong>da</strong>de gráfico-plástica, relaciona<strong>da</strong>s e descritas<br />

acima, são suficientes para animar uma<br />

série de intervenções pe<strong>da</strong>gógicas do(a)<br />

professor(a) na educação infantil e séries iniciais<br />

do ensino fun<strong>da</strong>mental. Não se quer dizer<br />

com isso que as propostas para ativi<strong>da</strong>de com<br />

as Artes Visuais na escolarização devam se<br />

restringir apenas a elas ou exclusivamente ao<br />

“fazer” artístico. As propostas que foram apresenta<strong>da</strong>s<br />

aqui constituem um importante conjunto<br />

de ferramentas pe<strong>da</strong>gógicas úteis na coleta<br />

<strong>da</strong> expressão psicográfica <strong>da</strong> criança. Costuma-se,<br />

porém, adotar alguns procedimentos para<br />

a catalogação e o arquivamento sistemático <strong>da</strong><br />

produção gráfico-plástica do aluno:<br />

(1) A primeira coisa a fazer é confeccionar<br />

portfólios (envelopes grandes para a guar<strong>da</strong><br />

dos desenhos e pinturas de ca<strong>da</strong> aluno). Podese<br />

propor aos próprios alunos a confecção dos<br />

seus respectivos portfólios. Embora estes sejam<br />

encontrados já prontos em papelarias é<br />

possível confeccioná-los, por exemplo, a partir<br />

<strong>da</strong> junção de duas folhas de cartolina uni<strong>da</strong>s<br />

por fita adesiva ao longo de três <strong>da</strong>s suas extremi<strong>da</strong>des.<br />

Em apenas uma <strong>da</strong>s folhas de cartolina<br />

- ou em ca<strong>da</strong> uma delas - poderá ter sido<br />

solicitado, anteriormente, um desenho ou pintura<br />

<strong>da</strong> criança. Neste caso, as folhas devem ser<br />

uni<strong>da</strong>s com as faces nas quais se encontram os<br />

desenhos ou pinturas <strong>da</strong>s crianças volta<strong>da</strong>s para<br />

o exterior, claro. To<strong>da</strong> a produção gráfico-plástica<br />

do aluno ao longo do ano deve ser arquiva<strong>da</strong><br />

em seu portfolio pessoal. Isso permitirá o<br />

acompanhamento longitudinal dos avanços, recuos<br />

e aspectos gráficos <strong>da</strong> expressão psicográfica<br />

do pré-escolar ou escolar.<br />

129


Do desenho <strong>da</strong>s palavras à palavra do desenho<br />

(2) Além do portfolio alguns hábitos precisam<br />

ser rotinizados por parte do(a) professor(a).<br />

O mais importante deles é, sempre, providenciar<br />

a identificação dos autores dos desenhos na<br />

face do suporte que não foi utiliza<strong>da</strong> pelo sujeito<br />

(“atrás” do desenho). A identificação deve<br />

revelar o nome do aluno, sua i<strong>da</strong>de, a <strong>da</strong>ta <strong>da</strong><br />

confecção do desenho e o tipo de ativi<strong>da</strong>de<br />

que lhe foi proposta. Exemplo: Bruna, cinco<br />

anos, 08 de maio de 2004, desenho espontâneo.<br />

Isso facilitará a avaliação por parte do(a)<br />

professor(a) <strong>da</strong> trajetória única, pessoal e insubstituível<br />

<strong>da</strong> criança em seus movimentos de<br />

apropriação e (co)laboração do desenho como<br />

sistema semiótico. Pais e pesquisadores do grafismo<br />

infantil, no entanto ,podem ser mais precisos<br />

na identificação do tempo de existência<br />

<strong>da</strong> criança. Neste caso, costuma-se revelar não<br />

apenas quantos anos a criança tem mas, também,<br />

informar a quanti<strong>da</strong>de de meses e dias de<br />

vi<strong>da</strong> do sujeito. Exemplo: Luis, 1; 6 (30). Neste<br />

tipo de anotação o(a) pesquisador(a),<br />

professor(a) ou pai registra a quanti<strong>da</strong>de de anos<br />

(um), de meses (seis) e dias (trinta) de vi<strong>da</strong> que<br />

o sujeito possui. Observe que após o nome <strong>da</strong><br />

criança coloca-se uma vírgula, para logo depois<br />

ser informado o número que corresponde<br />

à quanti<strong>da</strong>de de anos que ela possui. Em segui<strong>da</strong>,<br />

separado por um ponto e vírgula, informase<br />

a quanti<strong>da</strong>de de meses de vi<strong>da</strong> do sujeito.<br />

Por fim, entre parênteses, registra-se com precisão<br />

os dias de vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> criança (PIAGET,<br />

1978).<br />

Considerações finais<br />

Espero aqui ter compartilhado com você,<br />

leitor, alguns conhecimentos teórico-práticos que<br />

me parecem indispensáveis à implementação<br />

de intervenções pe<strong>da</strong>gógicas tendo em vista a<br />

apropriação e a (co)laboração do desenho enquanto<br />

sistema de representação por parte do<br />

educando.<br />

A discussão sobre a quem cabe a responsabili<strong>da</strong>de<br />

do ensino <strong>da</strong>s artes na educação infantil<br />

e séries iniciais do ensino fun<strong>da</strong>mental<br />

continua. Na introdução ao artigo eu me posici-<br />

130<br />

onei em relação a essa problemática. E minha<br />

opinião – já disse - é a de que esta é uma prerrogativa<br />

do pe<strong>da</strong>gogo, ou seja, do profissional<br />

<strong>da</strong> educação - (in)formado e licenciado para<br />

exercer o magistério nestes níveis iniciais <strong>da</strong><br />

escolarização. Mas isso não significa excluir definitivamente<br />

a possibili<strong>da</strong>de de o licenciado para<br />

o ensino <strong>da</strong>s diferentes linguagens artísticas<br />

(Artes Visuais, Dança, Música e Teatro), dos<br />

artistas e arte-educadores atuarem junto aos<br />

profissionais <strong>da</strong> educação infantil e <strong>da</strong>s séries<br />

iniciais do ensino fun<strong>da</strong>mental. 3 Mas – é claro<br />

– o professor de arte, o arte-educador e o artista<br />

autodi<strong>da</strong>ta, neste caso, necessitam obter<br />

(in)formações adequa<strong>da</strong>s para gerenciarem<br />

competentemente suas intervenções pe<strong>da</strong>gógicas<br />

nestes níveis <strong>da</strong> escolarização.<br />

A principal questão continua sendo a <strong>da</strong><br />

(re)conceptualização dos processos (in)formativos<br />

dos profissionais <strong>da</strong> educação na perspectiva <strong>da</strong><br />

melhoria <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> educação que é ofereci<strong>da</strong><br />

no país. Penso que, paralelamente à tradicional<br />

ênfase no saber (conhecimento), as<br />

universi<strong>da</strong>des e agências (in)formadoras do(a)<br />

professor(a) devem cui<strong>da</strong>r também para que o<br />

saber-fazer (transposição didática do conhecimento)<br />

e o ser (exercício consciente <strong>da</strong> profissão<br />

docente e <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia) recebam a mesma atenção<br />

por parte dos propositores <strong>da</strong>s matrizes<br />

curriculares dos cursos para a formação de professores.<br />

Isso só pode ser alcançado, no meu<br />

entendimento, a partir <strong>da</strong> indissociabili<strong>da</strong>de entre<br />

pesquisa-ensino no âmbito <strong>da</strong> prática reflexiva<br />

do futuro candi<strong>da</strong>to a professor.<br />

Não se deve, no entanto, jamais esquecer que<br />

“a escola é sempre construção dos sujeitos sociais,<br />

que se apropriam de determinado modo <strong>da</strong><br />

escola e <strong>da</strong>s determinações sociais e estatais a<br />

partir <strong>da</strong>s suas histórias particulares, e de suas<br />

experiências” (SAWAYA, 2002, p. 205). Então,<br />

não podemos ser ingênuos: a melhoria <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> educação nacional requer a melhoria <strong>da</strong><br />

quali<strong>da</strong>de dos processos (in)formativos dos pro-<br />

3 A Prefeitura de São Paulo fez acerta<strong>da</strong>mente concurso<br />

público para o ensino de artes nos CEUs abrindo inscrições<br />

para licenciados em arte, artistas e arte-educadores autodi<strong>da</strong>tas.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 117-132, jan./jun., 2006


fissionais <strong>da</strong> educação além, é claro, <strong>da</strong> elevação<br />

dos índices nacionais de desenvolvimento<br />

humano-IDH e <strong>da</strong> valorização (melhor remuneração)<br />

do magistério. Mas <strong>da</strong>í a cruzar os braços<br />

em sala de aula - e esperar a coisa ser resolvi<strong>da</strong><br />

ao nível <strong>da</strong>s macropolíticas educacionais -<br />

é, no mínimo, falta de compromisso com as classes<br />

sociais alija<strong>da</strong>s de uma escolarização de boa<br />

REFERÊNCIAS<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 117-132, jan./jun., 2006<br />

Ricardo Ottoni Vaz Japiassu<br />

quali<strong>da</strong>de. Equivale a aliená-las do direito universal<br />

à cultura escolar.<br />

Hoje, estou sinceramente convencido de que<br />

são as micropolíticas na esfera do cotidiano profissional<br />

do(a) professor(a) – no âmbito de sua<br />

prática docente em sala de aula – que fun<strong>da</strong>mentalmente<br />

(re)dimensionam o poder revolucionário<br />

<strong>da</strong> educação.<br />

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132<br />

Recebido em 15.02.05<br />

Aprovado em 26.07.05<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 117-132, jan./jun., 2006


<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 133-146, jan./jun., 2006<br />

Cilene Nascimento Can<strong>da</strong><br />

AS ATIVIDADES LÚDICAS NA ALFABETIZAÇÃO<br />

POLÍTICO-ESTÉTICA DE JOVENS E ADULTOS<br />

RESUMO<br />

Cilene Nascimento Can<strong>da</strong>*<br />

O presente artigo tem como objetivo analisar a importância <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de na<br />

construção do processo de conscientização na alfabetização de jovens e adultos.<br />

A metodologia utiliza<strong>da</strong> baseou-se no método <strong>da</strong> pesquisa-ação, no contexto<br />

<strong>da</strong> alfabetização de jovens e adultos em uma escola municipal de Salvador. A<br />

pesquisa-ação desenvolveu-se por meio <strong>da</strong> realização de círculos de leitura,<br />

vivências em ativi<strong>da</strong>des lúdicas, entrevistas com estu<strong>da</strong>ntes e levantamento<br />

bibliográfico. Este texto trata do entrelaçamento de dois conceitos educacionais:<br />

a ludici<strong>da</strong>de e a conscientização, considerando o contexto <strong>da</strong> exclusão social,<br />

do desenvolvimento <strong>da</strong> auto-estima e do aprendizado <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> escrita de<br />

jovens e adultos.<br />

Palavras-chave: Alfabetização de jovens e adultos − Auto-estima − Ludici<strong>da</strong>de<br />

e Conscientização<br />

ABSTRACT<br />

THE PLAYFUL ACTIVITIES IN THE POLITIC AND AESTHETIC<br />

LITERACY OF YOUNG AND ADULTS<br />

This paper aims to analyse the importance of the playful in the awareness<br />

construction in the young and adult literacy. The methodology used was based<br />

in the action – research, in the context of the young and adult literacy in a<br />

municipal public school of Salvador (Bahia, Brazil). The research was done<br />

through reading circles, experiments in playful activities, interviews with students<br />

and literature review. This text treats the entwinement of two educational<br />

concepts: the playful and the awareness, considering the social exclusion context,<br />

the self-esteem development and the learning of writing and reading abilities of<br />

young and adult.<br />

Keywords: Young and adult literacy − Self-esteem − Playful and Awareness<br />

* Mestran<strong>da</strong> em <strong>Educação</strong>, pela Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia. Diretora do Centro Municipal de Arte-<strong>Educação</strong> e<br />

Cultura Mário Gusmão - Secretaria Municipal de <strong>Educação</strong> e Cultura de Salvador. Endereço para correspondência:<br />

Aveni<strong>da</strong> Cardeal <strong>da</strong> Silva, nº 30, Edf. Cláudia, Apto 22A. Federação – 40.231-250. Salvador-BA. E-mail:<br />

cilenecan<strong>da</strong>@yahoo.com.br<br />

133


As ativi<strong>da</strong>des lúdicas na alfabetização político-estética de jovens e adultos<br />

1. Introduzindo idéias preliminares<br />

O presente artigo tem como objetivo tecer<br />

reflexões sobre a contribuição <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de<br />

no desenvolvimento do processo de<br />

conscientização na alfabetização de jovens e<br />

adultos. Esse se apresenta como um dos frutos<br />

<strong>da</strong> pesquisa de Mestrado “Aprender e<br />

brincar: é só começar: A ludici<strong>da</strong>de na alfabetização<br />

de jovens e adultos” que se encontra<br />

em an<strong>da</strong>mento na Pós-Graduação em<br />

<strong>Educação</strong>, <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de <strong>Educação</strong>/ Universi<strong>da</strong>de<br />

Federal <strong>da</strong> Bahia, orienta<strong>da</strong> pela<br />

professora doutora Bernadete Porto. Nesta<br />

pesquisa foi utilizado o método <strong>da</strong> pesquisaação,<br />

estando no atual momento em fase de<br />

análise dos <strong>da</strong>dos coletados e escrita <strong>da</strong> dissertação<br />

final. Por esta razão, convém ressaltar<br />

que este artigo não tem a finali<strong>da</strong>de de<br />

apresentar os <strong>da</strong>dos e resultados <strong>da</strong> pesquisa;<br />

busca-se apenas refletir sobre a ludici<strong>da</strong>de<br />

na alfabetização de jovens e adultos,<br />

trazendo à luz alguns elementos vivenciados<br />

na práxis pe<strong>da</strong>gógica. Nesta pesquisa-ação,<br />

realiza<strong>da</strong> na Escola Municipal do Pau Miúdo,<br />

são trabalhados, basicamente, dois conceitos<br />

na área educacional: o conceito de ludici<strong>da</strong>de<br />

e de conscientização, buscando discutir a<br />

sua importância na alfabetização de jovens e<br />

adultos. Estes dois conceitos constituem-se<br />

como foco central deste artigo.<br />

Na primeira parte, busca-se compreender<br />

quem é o aluno trabalhador inserido neste contexto<br />

de profun<strong>da</strong>s desigual<strong>da</strong>des sociais, partindo<br />

dos questionamentos: Como a reali<strong>da</strong>de<br />

de exclusão social afeta a auto-estima destes<br />

estu<strong>da</strong>ntes? Quais as influências desta prática<br />

social no aprendizado <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> escrita?<br />

Na segun<strong>da</strong> parte deste artigo, busca-se refletir<br />

sobre a baixa auto-estima como um dos<br />

graves problemas <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> de Jovens e<br />

Adultos (EJA), situando-a no contexto de exclusão<br />

social brasileiro. Neste sentido, pretende-se<br />

refletir sobre a importância <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de<br />

para o desenvolvimento <strong>da</strong> auto-estima dos educandos<br />

que participam de uma socie<strong>da</strong>de marca<strong>da</strong><br />

pela fragmentação <strong>da</strong>s dimensões<br />

humanas, como o pensar, o sentir e o agir.<br />

134<br />

A terceira parte deste artigo apresenta uma<br />

reflexão sobre o conceito de ludici<strong>da</strong>de, baseado<br />

nos conhecimentos construídos pelo Grupo<br />

de Estudo e Pesquisa em <strong>Educação</strong> e Ludici<strong>da</strong>de<br />

(GEPEL 1 ). Além disso, estabelece-se<br />

uma compreensão sobre o conceito de conscientização,<br />

construído pela Pe<strong>da</strong>gogia Libertadora,<br />

tendo como principal representante o<br />

educador Paulo Freire.<br />

Ao final deste texto, serão teci<strong>da</strong>s algumas<br />

possibili<strong>da</strong>des de interseção entre os dois importantes<br />

conceitos no âmbito <strong>da</strong> alfabetização<br />

de jovens e adultos, tendo como centro a compreensão<br />

do cenário social e econômico que<br />

influencia diretamente na educação <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s<br />

populares <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. O entrelace destes<br />

dois conceitos e <strong>da</strong>s reflexões dos estu<strong>da</strong>ntes<br />

entrevistados na pesquisa poderá contribuir para<br />

a compreensão do desenvolvimento de uma alfabetização<br />

político-estética de jovens e adultos,<br />

trabalhadores deste país.<br />

2. Quem são os estu<strong>da</strong>ntes jovens<br />

e adultos do nosso país?<br />

O povo foge <strong>da</strong> ignorância,<br />

Apesar de viver tão perto dela<br />

E sonham com melhores tempos idos,<br />

Contemplam essa vi<strong>da</strong> numa cela<br />

Esperam nova possibili<strong>da</strong>de<br />

De verem todo esse mundo se acabar<br />

(...) Ê, ô, ô, vi<strong>da</strong> de gado,<br />

povo marcado ê, povo feliz.<br />

(Zé Ramalho)<br />

O trecho <strong>da</strong> música de Zé Ramalho remete-nos<br />

aos anseios de uma classe excluí<strong>da</strong> de<br />

uma série de setores sociais, mas que busca a<br />

melhoria <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong>, por meio <strong>da</strong> educação<br />

e do trabalho. A esperança é o elemento<br />

que estimula o sujeito social a caminhar, mes-<br />

1 O Grupo de Estudo e Pesquisa em <strong>Educação</strong> e Ludici<strong>da</strong>de<br />

(GEPEL) é um grupo formado por mestrandos e doutorandos<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia. O GEPEL está inserido<br />

na Linha de Pesquisa <strong>Educação</strong>, Arte e Diversi<strong>da</strong>de, do<br />

Programa de Pós-Graduação em <strong>Educação</strong>. Atualmente, o<br />

GEPEL é coordenado pelo professor doutor Cipriano<br />

Luckesi.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 133-146, jan./jun., 2006


mo sem saber, ao certo, que direção seguir. O<br />

trabalho educativo junto a esses sujeitos permite-nos<br />

perceber, claramente, esta esperança e<br />

estes anseios. Olhar para a <strong>Educação</strong> de Jovens<br />

e Adultos representa um olhar sob a minha<br />

2 práxis pe<strong>da</strong>gógica; significa visualizar<br />

meus sonhos e utopias, frente à construção de<br />

uma socie<strong>da</strong>de mais justa, além de verificar as<br />

dificul<strong>da</strong>des de aprendizagem e os desafios encontrados<br />

nesse segmento de ensino. Olhar para<br />

este campo é deparar-se com as contradições<br />

existentes nos processos humanos: sonhos X<br />

reali<strong>da</strong>de e possibili<strong>da</strong>des X limitações. É deparar-se<br />

com o campo de incertezas que revelam<br />

fraquezas e conquistas na práxis pe<strong>da</strong>gógi-<br />

Com base nas respostas anuncia<strong>da</strong>s pelos<br />

30 estu<strong>da</strong>ntes, em entrevistas coletivas desta<br />

pesquisa, 63% tiveram a oportuni<strong>da</strong>de de estu<strong>da</strong>r<br />

na infância, enquanto 30% nunca tiveram<br />

contato com uma sala de aula e 6,67% preferiram<br />

não opinar sobre esta questão.<br />

Revelou-se também que 80% dos entrevistados<br />

que estu<strong>da</strong>ram na infância, afirmaram que<br />

a experiência escolar não possibilitou o desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> escrita, por diversos<br />

motivos anunciados por eles. Os motivos mais<br />

freqüentes estavam relacionados ao fato de terem<br />

estu<strong>da</strong>do durante um tempo restrito na es-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 133-146, jan./jun., 2006<br />

Cilene Nascimento Can<strong>da</strong><br />

ca. É a compreensão de estar construindo um<br />

percurso que não está instituído e que está sendo<br />

trilhado permanentemente.<br />

Olhar para estes trabalhadores analfabetos é<br />

olhar para uma parte <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de excluí<strong>da</strong> de<br />

todo um processo oficial de acúmulo de conhecimentos<br />

historicamente construídos pela humani<strong>da</strong>de<br />

na consoli<strong>da</strong>ção permanente <strong>da</strong> cultura,<br />

conforme se verificou nesta pesquisa de Mestrado,<br />

realiza<strong>da</strong> na Escola Municipal do Pau Miúdo.<br />

Neste grupo específico, grande parte dos<br />

alunos jovens e adultos sofreu a exclusão <strong>da</strong> escola<br />

durante a infância, tanto no que concerne<br />

ao acesso, quanto à oportuni<strong>da</strong>de de permanência,<br />

como mostra o gráfico 3 abaixo:<br />

cola, seja por conta <strong>da</strong> distância entre a escola<br />

e a casa do aluno, principalmente para os <strong>da</strong>s<br />

áreas rurais do interior <strong>da</strong> Bahia; ou por conta<br />

<strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de trabalhar durante a infância,<br />

dificultando as condições de freqüência a uma<br />

instituição formal de ensino e de acompanhamento<br />

do ritmo escolar. Esta situação está representa<strong>da</strong><br />

no gráfico a seguir:<br />

2 Optei, conscientemente, em utilizar as 1ª e 3ª pessoas,<br />

por reportar-me, algumas vezes, à minha pesquisa e prática<br />

pe<strong>da</strong>gógica e, outras vezes, ao contexto sócio-educacional.<br />

3 Fonte: Entrevistas realiza<strong>da</strong>s com os estu<strong>da</strong>ntes <strong>da</strong> <strong>Educação</strong><br />

de Jovens e Adultos em sala de aula.<br />

135


As ativi<strong>da</strong>des lúdicas na alfabetização político-estética de jovens e adultos<br />

Este gráfico 4 mostra que grande parte de<br />

adultos não se alfabetizou durante a infância<br />

por sofrerem privações sociais, principalmente<br />

a exploração do trabalho infantil. Esta situação<br />

de exclusão social confirma a exploração do<br />

trabalho de meninas e meninos brasileiros e de<br />

todo o mundo, conforme os <strong>da</strong>dos apresentados<br />

por Maurício Silva (2002):<br />

136<br />

De acordo com a OIT, 250 milhões de crianças<br />

entre 5 e 14 anos trabalham em todo o<br />

planeta. Desse número, estima-se que 140<br />

milhões sejam meninos e 110 milhões, meninas.<br />

Elas, assim como os meninos e as mulheres<br />

adultas, continuam sendo explorados<br />

em virtude de custarem menos para o capitalista,<br />

sendo, portanto, mais hábeis e por possuírem<br />

mãos mais delica<strong>da</strong>s que os homens.<br />

(SILVA, 2002, p.37)<br />

É necessário ressaltar que estes <strong>da</strong>dos anunciados<br />

não incluem a situação do trabalho infantil<br />

doméstico e não-remunerado que submete<br />

estas crianças a tarefas força<strong>da</strong>s, impedindoas<br />

de freqüentarem a escola na faixa etária<br />

adequa<strong>da</strong>, conforme conta a estu<strong>da</strong>nte do turno<br />

noturno desta escola pública:<br />

Eu nasci no interior <strong>da</strong> Bahia, em Ribeira do<br />

Pombal. Minha infância não foi boa não. A<br />

gente trabalhava na roça para aju<strong>da</strong>r na casa.<br />

Minha mãe tinha 10 filhos e eu ajudei a criar.<br />

Eu fazia comi<strong>da</strong>, lavava roupa, ia pegar água<br />

longe, por isso não pude estu<strong>da</strong>r. Eu ia para a<br />

escola um dia sim, um dia não. Tinha até semanas<br />

que eu nem ia. Eu e meus irmãos, a gente<br />

quase não brincava, porque o trabalho era<br />

pesado demais e não sobrava tempo. (Raimun<strong>da</strong><br />

de Jesus de Souza, 29 anos).<br />

No Brasil, crianças que passam por este tipo<br />

de situação são, na maior parte <strong>da</strong>s vezes, analfabetas<br />

e encontram-se vulneráveis, no ambiente<br />

de trabalho, aos maus-tratos físicos e<br />

psicológicos, bem como abuso emocional e sexual<br />

pelos patrões e familiares. Além disso, estas<br />

crianças sofrem privações de cunho<br />

emocional, conforme aponta Silva:<br />

... são priva<strong>da</strong>s do afeto e do apoio de seus pais,<br />

e sujeitas a humilhações por parte dos filhos de<br />

seus patrões, podendo, assim, serem afeta<strong>da</strong>s<br />

de maneira indelével em suas auto-estimas, enfim,<br />

impactando, do ponto de vista socioemocional,<br />

suas subjetivi<strong>da</strong>des que, assim, convertem-se<br />

em coisa. Esta forma de exploração é<br />

considera<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s formas de exploração infantil<br />

mais difundi<strong>da</strong>s e menos pesquisa<strong>da</strong>s, e<br />

que envolve muitos riscos para as crianças. (SIL-<br />

VA, 2002, p.39 e 40)<br />

Neste sentido, percebe-se que atuar no campo<br />

<strong>da</strong> alfabetização de jovens e adultos é defrontar-se<br />

com a exclusão de uma série de<br />

conhecimentos e práticas sociais importantes<br />

para a consoli<strong>da</strong>ção do bem-estar humano e social,<br />

desde a fase <strong>da</strong> infância. É confrontar-se<br />

com uma série de injustiças sociais a que estão<br />

submetidos os sujeitos que tanto contribuem para<br />

o desenvolvimento econômico e cultural do país.<br />

4 Fonte: Relatos realizados pelos estu<strong>da</strong>ntes <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> de<br />

Jovens e Adultos em sala de aula.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 133-146, jan./jun., 2006


A exclusão também ocorre na participação<br />

em ativi<strong>da</strong>des lúdicas, pois nos momentos em<br />

que as crianças deveriam estar freqüentando a<br />

escola e participando de ativi<strong>da</strong>des lúdicas, são<br />

explora<strong>da</strong>s no âmbito do trabalho, muitas vezes,<br />

escravo, conforme afirma este estu<strong>da</strong>nte<br />

em entrevista desta pesquisa:<br />

A melhor lembrança <strong>da</strong> infância era quando eu<br />

jogava bola com meus amigos. Só tinha o domingo<br />

para brincar, mas com tempo contado,<br />

porque às cinco horas <strong>da</strong> tarde tinha que soltar<br />

os animais que estavam amarrados. Eram só duas<br />

ou três horas de brincadeira por semana, só no<br />

domingo. Tinha domingo que nem brincava. Os<br />

meus amigos iam me chamar em casa, mas eu<br />

não podia sair, porque estava trabalhando. (Josias<br />

Brandão, 33 anos).<br />

Apesar de todo este panorama de exclusão<br />

social, percebe-se, por outro lado, que olhar para<br />

os estu<strong>da</strong>ntes jovens e adultos é possibilitar-se<br />

ao encontro com sujeitos que trazem consigo<br />

uma significativa bagagem de experiências<br />

construí<strong>da</strong>s ao longo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, que contribuíram<br />

para o que são hoje e, ao mesmo tempo, para a<br />

construção <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> cultura.<br />

Considerar o analfabeto brasileiro apenas<br />

como um sujeito sem conhecimentos proporcionados<br />

pela falta de leitura sistematiza<strong>da</strong>, além<br />

do autoritarismo expresso nesta conduta, é desconsiderar<br />

que a educação se dá em diferentes<br />

contextos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana e não somente na<br />

escola. Esse conhecimento construído por jovens<br />

e adultos, ao longo de suas vi<strong>da</strong>s, é expresso<br />

por Nelma Pereira Silva, estu<strong>da</strong>nte <strong>da</strong><br />

alfabetização de jovens e adultos, ao ser questiona<strong>da</strong><br />

sobre as ações que ela poderia desempenhar<br />

por meio <strong>da</strong> habili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong><br />

escrita:<br />

Ah! Eu ia escrever tudo o que aconteceu de bom<br />

e de ruim na minha vi<strong>da</strong>. Eu teria um diário ou<br />

escreveria um livro. Eu tenho muita coisa para<br />

contar. Mas só tenho coisas ruins para contar.<br />

Mas não vou falar, não. Se fosse escrever, eu<br />

escreveria. Um dia, você vai ler meu livro e vai<br />

saber <strong>da</strong>s minhas histórias, ia saber <strong>da</strong>s coisas<br />

que eu fiz e as que eu deixei de fazer. A senhora<br />

precisaria de muito tempo para ler to<strong>da</strong>s elas.<br />

(Nelma Pereira Silva, 27 anos, estu<strong>da</strong>nte <strong>da</strong> alfabetização<br />

de jovens e adultos).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 133-146, jan./jun., 2006<br />

Cilene Nascimento Can<strong>da</strong><br />

Compreender os educandos adultos que<br />

apresentam suas experiências de vi<strong>da</strong> marca<strong>da</strong>s<br />

pelo analfabetismo é considerá-los<br />

como parte integrante de uma classe social<br />

esqueci<strong>da</strong> pelos poderes públicos, fruto de<br />

uma cultura marca<strong>da</strong> por profun<strong>da</strong>s desigual<strong>da</strong>des<br />

sociais. Significa verificar que tais sujeitos<br />

não se consideram capazes de contribuir<br />

para a implementação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cultural e política<br />

do país. Olhar para a educação de jovens<br />

e adultos é conviver com sujeitos que<br />

apresentam a auto-estima espezinha<strong>da</strong> pelas<br />

práticas sociais excludentes. É confrontar-se<br />

com a busca e a esperança por uma digni<strong>da</strong>de<br />

a ser conquista<strong>da</strong> por meio <strong>da</strong> aquisição<br />

<strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> escrita, conforme ressalta a<br />

educan<strong>da</strong> entrevista<strong>da</strong>:<br />

Dizer que não sei ler é motivo para <strong>da</strong>rem risa<strong>da</strong><br />

ou criticarem quem não sabe ler. Eu fico com vergonha,<br />

me sinto muito mal. As pessoas só querem<br />

destruir a gente, só porque a gente não sabe<br />

como elas sabem. Quero aprender para poder<br />

ensinar aos meus netos também. (Rosa Maria<br />

Lima, estu<strong>da</strong>nte entrevista<strong>da</strong>, 53 anos).<br />

A análise desta estu<strong>da</strong>nte demonstra a imposição<br />

de um sistema hierárquico que estabelece<br />

a escrita como uma estrutura que está<br />

situa<strong>da</strong> acima dos seres humanos e não como<br />

um produto do processo de construções culturais.<br />

Indica também a impregnação cultural<br />

dos grupos sociais, nos quais a escrita<br />

estabelece uma relação de poder no convívio<br />

entre os sujeitos, separando aqueles que sabem<br />

e os que ain<strong>da</strong> não sabem ler. Esta distinção<br />

contribui, intensivamente, para ferir a<br />

auto-estima de jovens e adultos que se matriculam<br />

na escola, na busca de uma valorização<br />

humana nas relações estabeleci<strong>da</strong>s na<br />

família, no bairro, no trabalho e em outros<br />

setores sociais.<br />

Assim, para compreender os diversos fatores<br />

que contribuem para a baixa auto-estima de<br />

jovens e adultos, é necessária uma reflexão mais<br />

abrangente <strong>da</strong>s condições que estão submeti<strong>da</strong>s<br />

estas classes economicamente desfavoreci<strong>da</strong>s,<br />

frente a um processo de desqualificação <strong>da</strong>s práticas<br />

culturais volta<strong>da</strong>s para a coletivi<strong>da</strong>de e a<br />

inclusão social.<br />

137


As ativi<strong>da</strong>des lúdicas na alfabetização político-estética de jovens e adultos<br />

3. A exclusão social e a fragmentação<br />

<strong>da</strong>s dimensões humanas<br />

138<br />

Eu quero aprender a ler<br />

para adquirir digni<strong>da</strong>de.<br />

(Alcelino dos Santos, 43 anos,<br />

estu<strong>da</strong>nte <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> de<br />

Jovens e Adultos)<br />

Pensar e atuar na <strong>Educação</strong> de Jovens e<br />

Adultos sem considerar o sistema capitalista de<br />

exclusão social significa simplificar e fragmentar<br />

a compreensão <strong>da</strong> situação de abandono vivi<strong>da</strong><br />

por este público. No trabalho na educação<br />

de jovens e adultos, torna-se imprescindível refletir<br />

sobre este sistema que hierarquiza as relações<br />

com o conhecimento sistematizado pela<br />

escola e pela universi<strong>da</strong>de, tendo como hegemonia<br />

as práticas que envolvem a relação com a<br />

língua escrita. Aqueles que ain<strong>da</strong> não dominam<br />

este código de comunicação escrita estão fa<strong>da</strong>dos<br />

à exclusão em diversos aspectos.<br />

Além disso, percebe-se que a supervalorização<br />

<strong>da</strong> língua escrita é um processo mais<br />

amplo e que abrange diferentes setores sociais,<br />

pois com a hegemonia <strong>da</strong> ciência basea<strong>da</strong> no<br />

intelecto, as práticas sociais volta<strong>da</strong>s para a<br />

coletivi<strong>da</strong>de, sensibili<strong>da</strong>de e afetivi<strong>da</strong>de estão<br />

sendo, aos poucos, elimina<strong>da</strong>s do convívio social,<br />

principalmente, nos espaços <strong>da</strong> educação<br />

formal. Dessa forma, percebe-se que o raciocínio<br />

tem assumido, hegemonicamente, um lugar<br />

de destaque na produção de conhecimentos<br />

não somente na escola. O pensamento científico,<br />

por exemplo, caracterizado pela mensuração,<br />

classificação e quantificação dos <strong>da</strong>dos<br />

coletados em testes rigorosos tem ocupado o<br />

principal espaço <strong>da</strong> produção do saber historicamente<br />

acumulado. Verifica-se, nesse contexto,<br />

a fragmentação entre as estruturas humanas<br />

(razão/emoção e corpo/mente) em detrimento<br />

do aprendizado integral e potencializador <strong>da</strong><br />

criativi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> re-invenção do conhecimento<br />

humano. Confirma-se, portanto, a ruptura entre<br />

o pensar e o fazer, a razão e a emoção e<br />

entre o físico e o racional, dificultando a compreensão<br />

sobre o fazer do sujeito como ação<br />

coletiva e cultural.<br />

As ativi<strong>da</strong>des relaciona<strong>da</strong>s à inteligência do<br />

coração e à afetivi<strong>da</strong>de não têm sido considera<strong>da</strong>s<br />

como práticas propulsoras do desenvolvimento<br />

<strong>da</strong>s diferentes dimensões <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

humana. Neste modelo de socie<strong>da</strong>de, a emoção<br />

torna-se espetaculariza<strong>da</strong> e transforma<strong>da</strong><br />

em objeto sensacionalista dentro de um mercado<br />

de consumo que produz padrões e estereótipos<br />

culturais, massificando as formas de pensar,<br />

de sentir e de agir no campo social.<br />

Essa fragmentação tem causado diversos<br />

<strong>da</strong>nos para a aprendizagem escolar de jovens e<br />

adultos e na vivência no campo social. Os estu<strong>da</strong>ntes<br />

analfabetos que não dominam o sistema<br />

escrito <strong>da</strong> língua encontram-se inseridos nesta<br />

reali<strong>da</strong>de que privilegia o pensamento racional<br />

e técnico. O problema <strong>da</strong> supervalorização <strong>da</strong><br />

razão também é encontrado na escola, na qual<br />

os conhecimentos são compartimentados em<br />

disciplinas, cabendo ao aluno o aprendizado<br />

mínimo de conteúdos para a formação de uma<br />

mão-de-obra barata e sem uma contextualização<br />

mais ampla sobre a reali<strong>da</strong>de sócio-histórico-cultural<br />

do país. A escola ain<strong>da</strong> está pauta<strong>da</strong><br />

nesta lógica racionalista de acúmulo de conteúdos,<br />

sem destinar uma abor<strong>da</strong>gem crítica, reflexiva<br />

e questionadora em relação aos<br />

conhecimentos trabalhados.<br />

Em geral, a reflexão sobre a importância dos<br />

conteúdos para a vi<strong>da</strong> dos educandos e sobre a<br />

fonte histórica e cultural que deu origem ao<br />

conhecimento é realiza<strong>da</strong> de forma superficial<br />

e técnica. Pouco tem se refletido, na escola,<br />

sobre o porquê e o para quê trabalhar com determinados<br />

conhecimentos, condutas e valores<br />

com os aprendizes. Nesse sentido, torna-se<br />

possível ressaltar que nenhuma forma de conhecimento<br />

é neutra, pois nenhum ser humano<br />

ou grupo social é neutro em sua atuação cultural.<br />

Assim, o conhecimento é transmitido de<br />

forma unilateral dentro de uma estrutura cognitivista<br />

que se separa do desenvolvimento <strong>da</strong><br />

imaginação e <strong>da</strong> criativi<strong>da</strong>de.<br />

É evidente que fora <strong>da</strong> escola o aluno jovem<br />

ou adulto também se encontra nessa estrutura<br />

fragmenta<strong>da</strong>, na medi<strong>da</strong> em que as relações<br />

sociais estipulam o momento certo para o trabalho<br />

(considerado como ativi<strong>da</strong>de séria e pro-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 133-146, jan./jun., 2006


dutiva) e o momento de brincar, o amar e a expressão<br />

criativa (considerados, nesse tipo de<br />

socie<strong>da</strong>de, como não-sério, banais ou utilizados,<br />

simplesmente, como alívio para o estresse causado<br />

pelo excesso de trabalho). Assim, Washington<br />

Oliveira (2000) contrapõe-se a esta<br />

compreensão, afirmando:<br />

... precisaremos superar a percepção do senso<br />

comum, onde o brincar é uma ativi<strong>da</strong>de que se<br />

opõe a trabalhar, caracteriza<strong>da</strong> pela futili<strong>da</strong>de e<br />

oposição ao que é sério. A idéia de que o trabalho<br />

tem uma função moralizadora, considera<strong>da</strong><br />

antídoto <strong>da</strong> vagabun<strong>da</strong>gem, coloca a brincadeira<br />

como uma fantasia que pode ser vivi<strong>da</strong> em<br />

pequenos momentos, como uma concessão, para<br />

aliviar o fardo <strong>da</strong> dura reali<strong>da</strong>de. (OLIVEIRA,<br />

2000).<br />

No fazer cotidiano e no conhecimento construído<br />

pelo senso comum, o fazer humano encontra-se<br />

ca<strong>da</strong> vez mais separado do prazer.<br />

Além disso, as formas de relacionamento humano<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de atual caracterizam-se pela<br />

exploração do trabalho em função do enriquecimento<br />

<strong>da</strong>s estruturas dominantes, <strong>da</strong>s relações<br />

descartáveis de amor e amizade, <strong>da</strong> não-contemplação<br />

<strong>da</strong> estética produzi<strong>da</strong> por diferentes<br />

grupos sociais, contribuindo para a dificul<strong>da</strong>de<br />

do sujeito em atribuir sentido para a vivência<br />

lúdica, artística e política na socie<strong>da</strong>de. O sujeito,<br />

impedido de expressar suas emoções e sentimentos,<br />

encontra-se desapropriado não<br />

somente dos meios de produção, mas também<br />

<strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de criação e de relação com o<br />

mundo de forma mais prazerosa, mais solidária<br />

e mais humana.<br />

Em contraposição à fragmentação <strong>da</strong>s estruturas<br />

humanas (corpo, razão, emoção e intuição),<br />

encontra-se, no mesmo cenário social,<br />

a possibili<strong>da</strong>de de contemplação estética e vivência<br />

lúdica que permite a retoma<strong>da</strong> <strong>da</strong> concepção<br />

do sujeito enquanto ser completo e<br />

integral. Trata-se <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de como uma <strong>da</strong>s<br />

oportuni<strong>da</strong>des existentes do ser humano manifestar-se<br />

inteiro em suas quatro dimensões: a<br />

física, a emocional, a cognitiva e sócio-cultural.<br />

No entanto, no bojo <strong>da</strong> educação de jovens<br />

e adultos, percebe-se o distanciamento <strong>da</strong>s classes<br />

oprimi<strong>da</strong>s socialmente no que se refere ao<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 133-146, jan./jun., 2006<br />

Cilene Nascimento Can<strong>da</strong><br />

desenvolvimento integral. Esta fragmentação<br />

entre as dimensões humanas e a falta de sentido<br />

de atuação no mundo do trabalho dificultam<br />

o desenvolvimento satisfatório <strong>da</strong> auto-estima<br />

dos estu<strong>da</strong>ntes analfabetos.<br />

3.1. A auto-estima dos estu<strong>da</strong>ntes<br />

analfabetos<br />

Quando a gente não sabe ler é como se fosse<br />

um cego que não enxerga a reali<strong>da</strong>de.<br />

O mundo está aí na frente, mas o analfabeto não vê.<br />

A gente se sente um na<strong>da</strong>, porque saber ler é tudo.<br />

(Dona Zenil<strong>da</strong>, estu<strong>da</strong>nte <strong>da</strong><br />

<strong>Educação</strong> de Jovens e Adultos).<br />

Um dos problemas <strong>da</strong> alfabetização de jovens<br />

e adultos, bastante discutido nesta pesquisa,<br />

está relacionado à baixa auto-estima dos<br />

trabalhadores deriva<strong>da</strong> dos processos de exclusão<br />

social, <strong>da</strong> supervalorização do conhecimento<br />

sistematizado por meio <strong>da</strong> escrita, conforme é<br />

apontado na fala de Dona Zenil<strong>da</strong> (acima), e <strong>da</strong><br />

fragmentação entre o pensar, o agir e o sentir de<br />

forma integra<strong>da</strong>. As rupturas entre a razão e a<br />

emoção, e entre o trabalho e o prazer têm contribuído<br />

para a alienação do sujeito em relação<br />

ao significado e ao sentido do próprio fazer e<br />

estar no mundo. A baixa auto-estima dos jovens<br />

e adultos analfabetos dificulta a aprendizagem<br />

escolar e a convivência participativa no contexto<br />

social. Além disso, a baixa auto-estima dificulta<br />

que os sujeitos sociais percebam-se<br />

enquanto agentes de mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> situação de<br />

desigual<strong>da</strong>de social que vivenciam. Os jovens e<br />

adultos são oriundos <strong>da</strong>s classes econômicas<br />

menos favoreci<strong>da</strong>s, espezinha<strong>da</strong>s pelas práticas<br />

capitalistas, que sobrevivem em situações de<br />

abandono, fome, extrema violência e desemprego.<br />

Diante desses problemas sociais, tais estu<strong>da</strong>ntes<br />

apresentam a falta de esperança em<br />

relação às próprias perspectivas de vi<strong>da</strong> e em<br />

relação aos rumos políticos do país.<br />

Além disso, percebe-se que as práticas de<br />

alfabetização de jovens e adultos, enquanto segmento<br />

de ensino inserido neste contexto de desigual<strong>da</strong>de<br />

social, não atendem ao desenvolvi-<br />

139


As ativi<strong>da</strong>des lúdicas na alfabetização político-estética de jovens e adultos<br />

mento integral do ser humano e, conseqüentemente,<br />

ao processo de conscientização de mundo.<br />

As práticas de alfabetização de jovens e<br />

adultos ain<strong>da</strong> apresentam-se separa<strong>da</strong>s <strong>da</strong> experiência<br />

vivencia<strong>da</strong> pelo aprendiz e enfatizando<br />

as estruturas cognitivas de forma fragmenta<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong>s outras dimensões humanas. Isto tudo,<br />

aliado às condições precárias de sobrevivência,<br />

tem causado a baixa auto-estima que deriva<br />

no baixo rendimento de aprendizagem e evasão<br />

escolar.<br />

Em contraposição a essa visão fragmenta<strong>da</strong><br />

do ser humano e à baixa auto-estima, apresenta-se<br />

a educação lúdica e política, enquanto<br />

uma <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des de retoma<strong>da</strong> <strong>da</strong> concepção<br />

do sujeito integral, atuante na reali<strong>da</strong>de sócio-cultural<br />

por meio <strong>da</strong> aquisição <strong>da</strong> língua<br />

escrita. Neste sentido, a pesquisa desenvolvi<strong>da</strong><br />

na Escola Municipal do Pau Miúdo busca compreender<br />

a contribuição <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de para o<br />

processo de conscientização de jovens e adultos.<br />

A ludici<strong>da</strong>de é concebi<strong>da</strong>, nesta pesquisa,<br />

como um dos fatores que favorecem o desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> auto-estima dos educandos, pois<br />

desencadeia três importantes experiências:<br />

a) estado de prazer na tarefa de aprender e<br />

se relacionar com a descoberta e construção<br />

<strong>da</strong> língua escrita;<br />

b) reconhecimento <strong>da</strong>s próprias potenciali<strong>da</strong>des,<br />

por meio <strong>da</strong> integração <strong>da</strong>s quatro dimensões<br />

humanas: a física, a emocional, a<br />

cognitiva e a sócio-cultural;<br />

c) compreensão <strong>da</strong>s questões sociais que<br />

vivenciam na relação com o meio em que está<br />

inserido, como o bairro, a família, o trabalho, a<br />

escola, a igreja, etc.<br />

A seguir, serão trata<strong>da</strong>s questões relaciona<strong>da</strong>s<br />

à ludici<strong>da</strong>de como possibili<strong>da</strong>de de integração<br />

<strong>da</strong>s dimensões humanas.<br />

4. A ludici<strong>da</strong>de, uma experiência<br />

plena para o ser humano<br />

140<br />

Viver é afinar um instrumento<br />

de dentro para fora<br />

de fora para dentro.<br />

(Walter Franco)<br />

Segundo os estudos realizados no Grupo de<br />

Estudo e Pesquisa em <strong>Educação</strong> e Ludici<strong>da</strong>de, a<br />

ludici<strong>da</strong>de se apresenta como uma experiência<br />

interna do ser humano, conforme ilustra, acima,<br />

a letra <strong>da</strong> música de Walter Franco 5 . A ludici<strong>da</strong>de<br />

se caracteriza pela inteireza em que o sujeito<br />

se encontra durante a realização de determina<strong>da</strong><br />

ativi<strong>da</strong>de. Tal ativi<strong>da</strong>de não é, necessariamente,<br />

caracteriza<strong>da</strong> como jogo, brinquedo ou<br />

brincadeira, como convencionalmente alguns<br />

autores têm definido a ludici<strong>da</strong>de.<br />

A ativi<strong>da</strong>de pode ser considera<strong>da</strong> lúdica<br />

quando o sujeito não está somente sentindo prazer<br />

na sua realização, mas quando se encontra<br />

inteiro, ou seja, quando sentimentos,<br />

pensamentos e ações estão agindo de forma<br />

integra<strong>da</strong> e não-fragmenta<strong>da</strong> no momento presente<br />

<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de desenvolvi<strong>da</strong>. Assim, ao<br />

ouvir uma música que transmite uma sensação<br />

de prazer e bem-estar, de reflexão sobre<br />

a vi<strong>da</strong> e nos permite a construção de novos<br />

olhares em relação à reali<strong>da</strong>de, pode-se considerar<br />

que o ato de ouvir a música se constituiu<br />

em uma experiência lúdica. Neste<br />

momento de contato com a música, não há<br />

espaço para as preocupações e problemas<br />

externos à sala de aula, pois, neste instante, o<br />

que se torna mais importante é a realização<br />

<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de desenvolvi<strong>da</strong> com prazer e inteireza,<br />

nas relações com a língua escrita.<br />

Neste sentido, compreende-se que, quando<br />

o sujeito apresenta-se inteiro na ativi<strong>da</strong>de lúdica,<br />

este momento é caracterizado pela plenitude<br />

<strong>da</strong> experiência, em que se percebe a inteireza<br />

<strong>da</strong>s dimensões humanas, tais como as físicas,<br />

emocionais, cognitivas e sócio-culturais do sujeito.<br />

Numa linha próxima a essa compreensão,<br />

Kishimoto menciona que a ativi<strong>da</strong>de lúdica apresenta<br />

seis características importantes no seu<br />

desenvolvimento:<br />

• A liber<strong>da</strong>de de ação do jogador - refere-se<br />

à capaci<strong>da</strong>de de escolha <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />

lúdica a ser realiza<strong>da</strong> pelo participante, bem<br />

como a escolha de quando começa ou termina<br />

a brincadeira. Nesse sentido, o caráter de im-<br />

5 Walter Franco é cantor e compositor; gravou a música<br />

Serra do luar, em 1978, no álbum Respire fundo, pela CBS<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 133-146, jan./jun., 2006


posição e obrigatorie<strong>da</strong>de do jogo torna-se contraditório<br />

com o sentido de ludici<strong>da</strong>de que se<br />

está trabalhando nessa pesquisa.<br />

• A flexibili<strong>da</strong>de - é a capaci<strong>da</strong>de de o<br />

ser humano reestruturar a ativi<strong>da</strong>de que estiver<br />

desenvolvendo, ou seja, as regras podem ser<br />

modifica<strong>da</strong>s mediante o acordo prévio com o<br />

grupo participante <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de lúdica.<br />

• A relevância do processo de brincar<br />

- não há uma preocupação com o produto, resultados<br />

ou objetivos previamente estabelecidos.<br />

O objetivo <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de se encerra nela<br />

mesma, importando apenas o momento presente<br />

de plenitude. Não se brinca buscando a produtivi<strong>da</strong>de,<br />

pois a única função <strong>da</strong> brincadeira é a<br />

vivência do próprio processo lúdico.<br />

• A incerteza dos resultados - referese<br />

à impossibili<strong>da</strong>de do sujeito saber, antecipa<strong>da</strong>mente,<br />

o término <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de e o que será<br />

produzido por meio desta, pois o que importa é<br />

a ação do presente; o seu final deve ser sempre<br />

imprevisível, com a possibili<strong>da</strong>de de (re)<br />

construção pelo próprio sujeito <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de.<br />

• Controle interno - A ação de brincar é<br />

guia<strong>da</strong> pelo envolvimento na ativi<strong>da</strong>de, portanto,<br />

quem controla a ação são sujeitos que participam<br />

<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de e não o educador que estiver<br />

trabalhando com a turma.<br />

• Intencionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quele que brinca<br />

- todos os envolvidos devem estar com a intenção<br />

de brincar naquele momento; a ativi<strong>da</strong>de<br />

lúdica não deve ser imposta, e sim trabalha<strong>da</strong><br />

em forma de acordos coletivos. Esta é a característica<br />

principal que distingue se o brincar é<br />

lúdico ou não.<br />

Tais características <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de lúdica devem<br />

ser observa<strong>da</strong>s de forma bastante cui<strong>da</strong>dosa<br />

no âmbito <strong>da</strong> alfabetização de jovens e<br />

adultos, no sentido de considerar as individuali<strong>da</strong>des<br />

presentes na turma, a intencionali<strong>da</strong>de e<br />

a liber<strong>da</strong>de de escolha <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de, já que, de<br />

modo geral, os adultos não estão habituados a<br />

participar de vivências que envolvem o corpo,<br />

a imaginação e a criativi<strong>da</strong>de. Por esta razão,<br />

ao se propor a vivência em uma ativi<strong>da</strong>de lúdica,<br />

deve-se começar com ativi<strong>da</strong>des mais leves<br />

que não exijam muito esforço e movimento;<br />

os trabalhos com música, poesias, ou jogo com<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 133-146, jan./jun., 2006<br />

Cilene Nascimento Can<strong>da</strong><br />

palavras e poemas, por exemplo, apresentam<br />

bastantes resultados e possibilitam a abertura<br />

para a proposição de ativi<strong>da</strong>des com graus ca<strong>da</strong><br />

vez mais complexos e interativos. Assim, o processo<br />

de inserção <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de lúdica na sala<br />

de aula deve ocorrer de forma gradual e progressiva<br />

porque, em geral, os estu<strong>da</strong>ntes não<br />

estão acostumados a participar deste tipo de<br />

ativi<strong>da</strong>de e isto pode contribuir para uma grande<br />

resistência dos educandos em relação à ludici<strong>da</strong>de.<br />

Além disso, o envolvimento prazeroso vivenciado<br />

por esses aprendizes está muito voltado<br />

para um prazer externalizado, como, por exemplo,<br />

a recepção passiva dos programas humorísticos<br />

veiculados pela televisão. É nesse<br />

sentido que se torna necessário distinguir os<br />

termos como entretenimento, diversão e recreação<br />

<strong>da</strong> questão <strong>da</strong> ludici<strong>da</strong>de. A recreação, a<br />

diversão e o entretenimento, que também têm<br />

uma importância na socie<strong>da</strong>de, apresentam-se<br />

como estruturas externas do sujeito, ou seja, é<br />

algo que é lançado de fora para dentro, já que o<br />

sujeito se apresenta de forma passiva e receptiva.<br />

Não há liber<strong>da</strong>de de escolha e a flexibili<strong>da</strong>de<br />

na ludici<strong>da</strong>de e sim uma alegria externa,<br />

previsível e programa<strong>da</strong>. Já a ludici<strong>da</strong>de se relaciona<br />

ao campo do fazer, sentir e pensar humano<br />

de uma forma mais ampla e conjunta. Ela<br />

não está vincula<strong>da</strong> somente à presença em jogos<br />

e brincadeiras, mas também à “atitude do<br />

sujeito envolvido na ação, que se refere a um<br />

prazer de celebração em função do envolvimento<br />

genuíno com a ativi<strong>da</strong>de, a sensação de plenitude<br />

que acompanha as coisas significativas<br />

e ver<strong>da</strong>deiras” (RAMOS, 2000, p.52).<br />

Isto só é possível quando os sujeitos encontram-se<br />

plenos na ativi<strong>da</strong>de desenvolvi<strong>da</strong>, com<br />

envolvimento e presença integral, para absorver<br />

o seu real valor <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de que se destina<br />

realizar, de forma que “este envolvimento faz<br />

com que a ludici<strong>da</strong>de permeie qualquer ativi<strong>da</strong>de<br />

humana, quer sejam jogos, brincadeiras, ou<br />

o ‘fazer cotidiano’ que não se constituem como<br />

brincares e, até mesmo, o campo do trabalho”.<br />

(RAMOS, 2000, p.52).<br />

Assim, constitui-se como objetivo <strong>da</strong> escola<br />

proporcionar o espaço para que os sujeitos pos-<br />

141


As ativi<strong>da</strong>des lúdicas na alfabetização político-estética de jovens e adultos<br />

sam dialogar, discutir, opinar, brincar, com espaços<br />

para a dúvi<strong>da</strong>, os erros e para a criativi<strong>da</strong>de.<br />

Na alfabetização de jovens e adultos a<br />

ludici<strong>da</strong>de vivencia<strong>da</strong> no cotidiano de alguns<br />

estu<strong>da</strong>ntes que já participam destas experiências<br />

deve ser valoriza<strong>da</strong>, pois estas ações integram<br />

a dinâmica <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e enriquecem a<br />

cultura que é reconstruí<strong>da</strong> a ca<strong>da</strong> dia pelos sujeitos<br />

sociais.<br />

Mesmo com a exclusão dos estu<strong>da</strong>ntes nos<br />

meios sociais, conforme foi anunciado anteriormente<br />

no presente artigo, foram identificados,<br />

através <strong>da</strong> a pesquisa, educandos que<br />

trabalham com artesanato e corte e costura, que<br />

participam de clubes de mães, grupos de capoeira<br />

e associação de moradores, buscando uma<br />

participação ativa na socie<strong>da</strong>de, embora existam<br />

diversas dificul<strong>da</strong>des que, muitas vezes,<br />

impedem que esses sujeitos continuem a desenvolver<br />

este tipo de ativi<strong>da</strong>des. Muitos destes<br />

estu<strong>da</strong>ntes aproveitam o tempo livre, quando<br />

não estão executando ativi<strong>da</strong>des remunera<strong>da</strong>s,<br />

para o lúdico nas igrejas, como o canto-coral<br />

ou nas festas de finais de semana na comuni<strong>da</strong>de.<br />

No entanto, alguns estu<strong>da</strong>ntes advertem<br />

sobre a restrição do lúdico em seu cotidiano,<br />

conforme a citação abaixo:<br />

142<br />

Eu não tenho tempo pra me divertir. No sábado e<br />

domingo, eu fico em casa pra tomando conta<br />

dos meus netos, para minha filha ir trabalhar.<br />

Lavo, passo, cozinho e ain<strong>da</strong> costuro pra fora.<br />

Isso tudo no fim de semana. (Maria do Carmo,<br />

estu<strong>da</strong>nte <strong>da</strong> educação de jovens e adultos).<br />

Neste sentido, é função <strong>da</strong> escola favorecer<br />

condições de estímulos para que ca<strong>da</strong> vez<br />

mais os estu<strong>da</strong>ntes possam participar desses<br />

espaços. A escola, quando inseri<strong>da</strong> neste universo<br />

cultural <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de, incentiva a atuação<br />

desses sujeitos, valorizando a criação de<br />

espaços propícios para a manifestação de suas<br />

habili<strong>da</strong>des e de expressão de seus interesses,<br />

pensamentos e idéias, de forma que o conhecimento<br />

passe a ser trabalhado com vi<strong>da</strong>, na dinâmica<br />

cultural e isso possibilita o crescimento<br />

<strong>da</strong> alegria de aprender e de recriar novos olhares<br />

em relação ao mundo.<br />

Isto demonstra que a ludici<strong>da</strong>de se apresenta<br />

como estado interno do sujeito que pode ser<br />

compartilhado socialmente “de dentro para fora,<br />

de fora para dentro” (Walter Franco), enriquecendo<br />

a convivência comunitária dos aprendizes<br />

na alfabetização de jovens e adultos. A<br />

ludici<strong>da</strong>de é um estado de escolha livre e pessoal,<br />

que não pode ser imposta, para que não se<br />

perca o seu caráter essencialmente lúdico e<br />

criador.<br />

No entanto, no bojo desta discussão e diante<br />

<strong>da</strong>s experiências vivencia<strong>da</strong>s na alfabetização<br />

de jovens e adultos, pode-se afirmar que a<br />

ativi<strong>da</strong>de lúdica vivencia<strong>da</strong> por um adulto, que<br />

não tem acesso a este tipo de trabalho lúdico,<br />

apresenta desafios maiores do que para a criança<br />

que vivencia com mais freqüência e naturali<strong>da</strong>de<br />

o lúdico no seu convívio cotidiano. Tal<br />

desafio inicia a possibili<strong>da</strong>de do reconhecimento<br />

e <strong>da</strong> expressão <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de individual de<br />

romper bloqueios estabelecidos na sua história<br />

de vi<strong>da</strong>. Isto implica na exploração <strong>da</strong>s potenciali<strong>da</strong>des<br />

de jovens e adultos, possibilitando<br />

desencadear um processo de autoconhecimento<br />

e auto-estima por meio <strong>da</strong> percepção dos<br />

próprios limites e capaci<strong>da</strong>des.<br />

Evidentemente, ao propiciar o espaço de<br />

acolhimento do aprendiz, o educador consegue<br />

propiciar o desenvolvimento do autoconhecimento<br />

e auto-estima, mesmo com<br />

determina<strong>da</strong>s limitações. De acordo com Luckesi<br />

(2002), o acolhimento está relacionado<br />

à recepção do educando no estágio atual em<br />

que ele se encontra. Segundo o autor, é necessário<br />

aproximar-se do aluno, para que,<br />

após sentir-se acolhido, ele possa seguir novos<br />

caminhos a serem trilhados. Acolher é<br />

receber o outro <strong>da</strong> forma como ele é, sem<br />

julgá-lo. No entanto, é necessário criar um<br />

espaço seguro para que o educando realize o<br />

seu caminho de aprendizagem. O educador é<br />

responsável pela preparação e sustentação<br />

do ambiente e <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des, buscando que<br />

o estu<strong>da</strong>nte efetue o movimento de apreensão<br />

dos conhecimentos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. O educador<br />

é responsável por <strong>da</strong>r vi<strong>da</strong> ao espaço onde<br />

trabalha, tanto do ponto de vista físico, quanto<br />

psicológico. Neste ambiente educativo, o<br />

jovem e adulto precisam ter a certeza de que<br />

será acolhido, orientado e não julgado.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 133-146, jan./jun., 2006


Nessa relação de acolhimento, verifica-se<br />

que a ludici<strong>da</strong>de valoriza o sentido de cooperação,<br />

de estabelecimento de vínculos e de percepção<br />

<strong>da</strong>s potenciali<strong>da</strong>des na vivência do<br />

momento presente. Segundo os estudos de Luckesi,<br />

a ludici<strong>da</strong>de assume um caráter interno<br />

de absorção na realização <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de e esta<br />

absorção nem sempre se apresenta de forma<br />

alegre e diverti<strong>da</strong>. Uma ativi<strong>da</strong>de realiza<strong>da</strong> com<br />

a escrita, em que os participantes expressam<br />

os sentimentos a partir <strong>da</strong> visualização de uma<br />

fotografia, ou <strong>da</strong> escuta de uma música ou <strong>da</strong><br />

apreciação estética de um espetáculo teatral<br />

pode representar para eles um grande esforço<br />

de abstração e de expressão por meio do sistema<br />

<strong>da</strong> língua escrita. O ato de perceber os próprios<br />

limites, verificados na ativi<strong>da</strong>de lúdica, por<br />

exemplo, não se caracteriza como um momento<br />

divertido, mas como um desafio de romper<br />

limites; assim, o prazer é sentido na busca <strong>da</strong><br />

superação do limite encontrado.<br />

Neste sentido, convém afirmar que, quando<br />

o sujeito está inteiramente presente na ativi<strong>da</strong>de,<br />

está mobilizando as quatro dimensões, física,<br />

cognitiva, emocional e sócio-cultural, em um<br />

mesmo momento. Nesse instante, o sujeito manifesta-se<br />

de forma mais aberta e sensível para<br />

conhecer melhor as suas potenciali<strong>da</strong>des e limites,<br />

buscando superar determinados desafios<br />

encontrados na ativi<strong>da</strong>de essencialmente lúdica.<br />

A ativi<strong>da</strong>de lúdica relaciona-se com o reconhecimento<br />

dos limites e dos avanços do sujeito na<br />

realização de ativi<strong>da</strong>des que ativem as potenciali<strong>da</strong>des<br />

desse sujeito e as possibilitem evoluir.<br />

Nesse processo, o educando apresenta-se livre,<br />

participativo e voltado para a prática do autoconhecimento.<br />

Portanto, a ativi<strong>da</strong>de lúdica plena<br />

volta<strong>da</strong> para o autoconhecimento possibilita o<br />

contato do sujeito consigo mesmo, com o outro e<br />

com o mundo social de que participa.<br />

5. A alfabetização de jovens e adultos<br />

e o processo de conscientização<br />

Do ponto de vista <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> Libertadora,<br />

alicerça<strong>da</strong> pelas idéias do educador Paulo<br />

Freire, a alfabetização é concebi<strong>da</strong> como pro-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 133-146, jan./jun., 2006<br />

Cilene Nascimento Can<strong>da</strong><br />

cesso voltado para a democracia <strong>da</strong> cultura,<br />

compreendido como um ato de criação capaz<br />

de desencadear outros atos criadores. Paulo<br />

Freire (1978, p. 104) pensava “numa alfabetização<br />

em que o homem, porque não fosse seu<br />

paciente, seu objeto, desenvolvesse a impaciência,<br />

a vivaci<strong>da</strong>de, característica dos estados<br />

de procura, de invenção e reivindicação”. Nesse<br />

sentido, as relações que homens e mulheres<br />

estabelecem no mundo são decorrentes dos atos<br />

de criação e recriação de representação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />

cultural.<br />

Nessa relação entre sujeito e objeto, resulta<br />

o conhecimento, que é expresso pela linguagem.<br />

Sendo assim, o ato de alfabetização é alicerçado<br />

pela capaci<strong>da</strong>de de inquietação, de conscientização<br />

e de contextualização do mundo que<br />

o sujeito vivencia e constrói por meio do seu<br />

trabalho. O aprendizado <strong>da</strong> palavra escrita é<br />

um processo de descoberta, de criativi<strong>da</strong>de e<br />

de sentido vinculado com a cultura construí<strong>da</strong> e<br />

elabora<strong>da</strong> por homens e mulheres no percurso<br />

do estar-no-mundo.<br />

No processo de alfabetização de jovens e<br />

adultos, basea<strong>da</strong> na conscientização, os sujeitos<br />

não aprendem simplesmente a decodificar<br />

as palavras escritas nem a codificar as palavras<br />

fala<strong>da</strong>s de forma desconexa <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />

social dos aprendizes. Os sujeitos dão continui<strong>da</strong>de<br />

à interpretação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de em que<br />

vivem, representando-a de forma gráfica. As<br />

palavras que simbolizam o contexto social e<br />

cultural dos aprendizes são encharca<strong>da</strong>s de<br />

vi<strong>da</strong>, de experiências, de emoções vivencia<strong>da</strong>s<br />

pelos sujeitos.<br />

To<strong>da</strong>s as palavras fazem parte do universo<br />

conceitual e vivente do adulto e o processo de<br />

alfabetização tem a função de ampliar a consciência<br />

do mundo que constrói a ca<strong>da</strong> dia. As<br />

palavras só fazem sentido se tiverem efetivos<br />

significados na existência cultural do aprendiz.<br />

Aos poucos, o universo cultural do estu<strong>da</strong>nte<br />

vai se ampliando e, ao mesmo tempo, estabelecendo<br />

uma aproximação crítica <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de.<br />

A alfabetização não é somente um aprendizado<br />

<strong>da</strong> leitura <strong>da</strong>s palavras, consiste em uma<br />

apreensão de mundo e <strong>da</strong> compreensão <strong>da</strong> importância<br />

do ato de ler e de interpretar os fatos,<br />

143


As ativi<strong>da</strong>des lúdicas na alfabetização político-estética de jovens e adultos<br />

os nexos e as contradições <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. É nesse<br />

sentido que Paulo Freire afirma que: “A<br />

conscientização é um compromisso histórico.<br />

É também consciência histórica: é a inserção<br />

crítica na história que implica que os homens<br />

assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem<br />

o mundo. Exige que os homens criem sua<br />

existência com um material que a vi<strong>da</strong> lhes oferece.”<br />

(FREIRE, 1980, p.26)<br />

A conscientização é um processo a ser construído<br />

por meio <strong>da</strong> interação social e do diálogo<br />

crítico e participativo, no qual se destaca a valorização<br />

de ca<strong>da</strong> sujeito, enquanto construtor e<br />

realizador <strong>da</strong> cultura. Ca<strong>da</strong> trabalhador analfabeto,<br />

ao tomar consciência de sua existência<br />

ontológica, busca criar e transformar sua reali<strong>da</strong>de<br />

por meio <strong>da</strong> força de trabalho, agora consciente<br />

e contextualiza<strong>da</strong>. Assim, a conscientização<br />

não se refere somente a uma atitude de<br />

denúncia <strong>da</strong> situação dos oprimidos pelos opressores,<br />

mas também à atitude de considerar o ser<br />

humano como ser <strong>da</strong> práxis, <strong>da</strong> criação e <strong>da</strong> transformação<br />

através <strong>da</strong> força do trabalho. Tanto o<br />

educador quanto o educando são seres oprimidos<br />

socialmente e por meio do processo <strong>da</strong> conscientização<br />

apresentam-se como criadores de<br />

novas possibili<strong>da</strong>des e reali<strong>da</strong>des. É nessa perspectiva<br />

que Paulo Freire considera que:<br />

144<br />

Uma <strong>da</strong>s características do homem é que somente<br />

ele é homem. Somente ele é capaz de tomar distância<br />

frente ao mundo. Somente o homem pode<br />

distanciar-se do objeto para admirá-lo. Objetivando<br />

ou admirando- admirar se toma aqui no sentido<br />

filosófico- os homens são capazes de agir<br />

conscientemente sobre a reali<strong>da</strong>de objetiva<strong>da</strong>. É<br />

precisamente isto, ‘práxis humana’, a uni<strong>da</strong>de indissolúvel<br />

entre minha ação e minha reflexão sobre<br />

o mundo. (FREIRE, 1980, p. 25 e 26)<br />

O processo <strong>da</strong> conscientização caracterizado<br />

pela atitude de compreender a reali<strong>da</strong>de e<br />

intervir sobre ela (consciência + ação) está voltado<br />

para a construção de mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> polari<strong>da</strong>de<br />

opressores X oprimidos. A uni<strong>da</strong>de<br />

dialética entre a ação e a reflexão constitui o<br />

fazer humano de forma inacaba<strong>da</strong> e, por isso<br />

mesmo, permanente. O ser humano é o único<br />

ser capaz de pensar sobre seus próprios atos,<br />

de planejar a sua ação e de recriar a sua pró-<br />

pria prática. Além disso, somente o ser humano<br />

é capaz de reconhecer a existência de outras<br />

reali<strong>da</strong>des sociais e culturais, reconhece que<br />

não existe apenas o ‘eu’, mas também o ‘outro’<br />

e, ain<strong>da</strong>, compreende que ele não vive num<br />

momento presente, mas numa reali<strong>da</strong>de histórica<br />

e cultural pauta<strong>da</strong> pelo ontem e com os<br />

anseios voltados para o futuro. Esse posicionamento<br />

sobre a própria temporali<strong>da</strong>de se configura<br />

no pensamento <strong>da</strong> conscientização, fruto<br />

do sujeito que pensa, sente e age na reali<strong>da</strong>de<br />

social e política.<br />

6. Tecendo alguns fios para brincar<br />

de concluir<br />

Os estudos teóricos e as experiências na<br />

prática pe<strong>da</strong>gógica mostram que a necessi<strong>da</strong>de<br />

do estu<strong>da</strong>nte jovem e adulto não se resume<br />

somente à aquisição <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> escrita, mas<br />

a uma ampliação <strong>da</strong> compreensão do ato <strong>da</strong><br />

leitura de mundo e do contexto <strong>da</strong> escrita. Este<br />

percurso é alimentado por aprendizagens e produção<br />

de conhecimentos que valorizem também<br />

a expressão corporal, emocional e cognitiva de<br />

forma integra<strong>da</strong>.<br />

É nesse sentido que se percebe a necessi<strong>da</strong>de<br />

de uma abor<strong>da</strong>gem de educação pauta<strong>da</strong><br />

no desenvolvimento integral do ser humano; um<br />

processo de educação lúdica que possibilita aos<br />

sujeitos a experimentação de suas habili<strong>da</strong>des,<br />

ampliando suas capaci<strong>da</strong>des de atuação no<br />

mundo, de expressão, criação e construção de<br />

novas formas de conhecer e intervir na reali<strong>da</strong>de.<br />

Na pesquisa realiza<strong>da</strong> na Escola Municipal<br />

do Pau Miúdo, percebeu-se que esta forma de<br />

interação com o conhecimento contribui para<br />

elevar a auto-estima, permitindo que os estu<strong>da</strong>ntes<br />

percebam-se enquanto agentes capazes<br />

de contribuir com a socie<strong>da</strong>de, de forma lúdica<br />

e política, conforme afirma Maria do Carmo,<br />

uma <strong>da</strong>s estu<strong>da</strong>ntes entrevista<strong>da</strong>s: “Agora que<br />

eu já sei ler, eu entendo melhor as coisas <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>: consigo fazer coisas sozinha, sem depender<br />

de ninguém. Agora, eu sou uma mulher independente”.<br />

Com a auto-estima valoriza<strong>da</strong>, os<br />

educandos compreendem as inúmeras possibi-<br />

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li<strong>da</strong>des existentes de atuação em diversos setores<br />

por meio do uso <strong>da</strong> língua escrita.<br />

Assim, ao se construir um processo de alfabetização<br />

político-estética, pensa-se no sentido<br />

de não trabalhar apenas a apropriação <strong>da</strong> palavra<br />

escrita, tampouco com o desenvolvimento<br />

individual de forma isola<strong>da</strong> do contexto social.<br />

Na ver<strong>da</strong>de, a alfabetização político-estética<br />

está pauta<strong>da</strong> na vivência lúdica que possibilite<br />

a abertura sensível dos sujeitos sociais para as<br />

questões políticas e econômicas que estão coloca<strong>da</strong>s<br />

no bojo <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />

Partindo para a análise do público que compõe<br />

a alfabetização de jovens e adultos, percebe-se<br />

a distância existente entre a reali<strong>da</strong>de<br />

concreta desses trabalhadores e um estado equilibrado<br />

de valorização do ser humano, de contemplação<br />

estética e de participação artística,<br />

lúdica, cultural e política na própria comuni<strong>da</strong>de<br />

e na ci<strong>da</strong>de como um todo.<br />

Nesse sentido, a ludici<strong>da</strong>de apresenta-se<br />

como processo que possibilita ao sujeito o reconhecimento<br />

<strong>da</strong>s suas potenciali<strong>da</strong>des de forma<br />

integral. O processo lúdico é caracterizado<br />

pela absorção <strong>da</strong> experiência plena que diz respeito<br />

à presença completa do sujeito na experiência<br />

vivencia<strong>da</strong>. A educação lúdica baseia-se<br />

em uma abor<strong>da</strong>gem de desenvolvimento integral<br />

e não volta<strong>da</strong> somente para a aquisição de<br />

conteúdos na escola e fora dela. Este processo<br />

de desenvolvimento integral do ser humano<br />

abrange, de forma dialética, as quatro dimensões<br />

principais do sujeito: física, cognitiva, emocional<br />

e sócio-cultural. Estas quatro dimensões<br />

constituem o ser humano e quanto mais traba-<br />

REFERÊNCIAS<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 133-146, jan./jun., 2006<br />

Cilene Nascimento Can<strong>da</strong><br />

lha<strong>da</strong>s forem, maiores possibili<strong>da</strong>des de ampliação<br />

terá o seu desenvolvimento.<br />

Diante <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de essencialmente lúdica,<br />

o jovem ou adulto, no espaço de acolhimento e<br />

de sustentação do ambiente lúdico, tem a possibili<strong>da</strong>de<br />

de escolher entre romper e superar o<br />

limite estabelecido até aquele momento ou estagnar-se<br />

naquela situação. É saudável que isto<br />

ocorra, pois o adulto precisa encontrar um espaço<br />

propício para decidir se deseja e se pode<br />

participar do desafio, pois a ativi<strong>da</strong>de ver<strong>da</strong>deiramente<br />

lúdica apresenta o espaço para a decisão,<br />

a espontanei<strong>da</strong>de e a escolha. A ativi<strong>da</strong>de<br />

perde o seu caráter lúdico, ou seja, de experiência<br />

plena, quando não atende aos princípios<br />

de entrega e espontanei<strong>da</strong>de no ato de brincar.<br />

No entanto, a partir do envolvimento na ativi<strong>da</strong>de<br />

e após a concretização <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de proposta,<br />

os estu<strong>da</strong>ntes começam a perceber que<br />

são capazes de executar determina<strong>da</strong> tarefa,<br />

quando estão envolvidos e absorvidos na ativi<strong>da</strong>de<br />

realiza<strong>da</strong>. Desse modo, a superação de uma<br />

limitação ocorre quando o sujeito apresenta-se<br />

inteiro e pleno na ativi<strong>da</strong>de, ultrapassando seus<br />

preconceitos e estigmas construídos historicamente.<br />

Após esta superação e <strong>da</strong> sucessão de<br />

diversas experiências realiza<strong>da</strong>s com êxito, os<br />

estu<strong>da</strong>ntes vão tornando-se mais autoconfiantes,<br />

vão conquistando, aos poucos, a elevação <strong>da</strong> autoestima<br />

e passam a julgar-se aptos a aprender e a<br />

comunicar-se por meio <strong>da</strong> língua escrita. Em<br />

suma, estas foram algumas inquietações e proposições<br />

para a construção de uma educação<br />

lúdica e política e, por isso mesmo, mais saudável,<br />

mais solidária e mais humana.<br />

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146<br />

Recebido em 30.09.05<br />

Aprovado em 10.03.06<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 133-146, jan./jun., 2006


O ESPECIAL DOS JOGOS E BRINCADEIRAS<br />

NO ATENDIMENTO ÀS DIFERENÇAS<br />

RESUMO<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 147-156, jan./jun., 2006<br />

Susana Couto Pimentel<br />

Susana Couto Pimentel*<br />

Este artigo discute a potenciali<strong>da</strong>de dos jogos e brincadeiras na promoção dos<br />

processos de aprendizagem e desenvolvimento de alunos com necessi<strong>da</strong>des<br />

educativas especiais. Para melhor compreensão dessa discussão serão utilizados<br />

episódios de observação <strong>da</strong> prática docente de alunas do curso de Licenciatura<br />

Plena em Pe<strong>da</strong>gogia para as Séries Iniciais do Ensino Fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de Estadual de Feira de Santana, no município baiano de São<br />

Sebastião do Passé, bem como analisa<strong>da</strong>s as considerações destas alunas<br />

sobre o uso de jogos de brincadeiras em sua prática pe<strong>da</strong>gógica. Esses episódios<br />

foram observados durante o desenvolvimento do componente curricular Jogos<br />

e Recreação e apontam para a eficácia do uso de jogos e brincadeiras no<br />

atendimento a pessoas com necessi<strong>da</strong>des educativas especiais.<br />

Palavras-chave: Jogos e brincadeiras – Necessi<strong>da</strong>des educativas especiais<br />

– Processos de ensino e aprendizagem.<br />

ABSTRACT<br />

THE SPECIAL CHARACTER OF FUN AND PLAY WHILE<br />

ATTENDING TO SPECIAL NEEDS CHILDREN<br />

The present article discusses the potentiality of games and playful activities in<br />

the promotion of learning and development of students with special educational<br />

needs. To better understand this discussion some episodes of observation will<br />

be used from the teaching practice of students with a degree in Pe<strong>da</strong>gogy, in<br />

the initial grades of Elementary School of the Universi<strong>da</strong>de Estadual de Feira<br />

de Santana (State University of Feira de Santana), in the city of Sao Sebastiao<br />

do Passe, Bahia, Brazil as well as the students´ considerations about the use of<br />

playful activities in their pe<strong>da</strong>gogical practice. These episodes were observed<br />

during the development of Games and Recreation, a curriculum component,<br />

and they point out to the efficiency of using games and playful activities to deal<br />

with people with special educational needs.<br />

Keywords: Games and playful activities – Special educational needs – Learning<br />

and teaching processes.<br />

* Mestre em <strong>Educação</strong> Especial. Doutoran<strong>da</strong> em <strong>Educação</strong> <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de <strong>Educação</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia,<br />

e bolsista <strong>da</strong> FAPESB. Professora Assistente <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Estadual de Feira de Santana - UEFS. Endereço para<br />

correspondência: UEFS, Campus Universitário, BR 116 Norte, Km 3, 44031-460 Feira de Santana-BA. E-mail:<br />

sucpimentel12@yahoo.com.br<br />

147


O especial dos jogos e brincadeiras no atendimento às diferenças<br />

A proposta de ensino envolvendo a utilização<br />

do lúdico não é nova e tem sido compartilha<strong>da</strong><br />

por docentes não apenas <strong>da</strong><br />

<strong>Educação</strong> Infantil como também do Ensino<br />

Fun<strong>da</strong>mental. Este provável “consenso” fun<strong>da</strong>menta-se<br />

em estudos psicogenéticos que<br />

respal<strong>da</strong>m o uso de jogos com fins pe<strong>da</strong>gógicos<br />

considerando a sua importância para o<br />

desenvolvimento infantil.<br />

Estudos <strong>da</strong> neurociência também têm apontado<br />

para essa direção tendo em vista as descobertas<br />

de que o brincar coloca em ativi<strong>da</strong>de<br />

os hemisférios direito e esquerdo do cérebro,<br />

sendo ca<strong>da</strong> hemisfério dominante para alguns<br />

comportamentos. O hemisfério direito é dominante<br />

para: habili<strong>da</strong>des espaciais; processo<br />

emocional; atenção visual; memória auditiva e<br />

de frases; reconhecimento de objetos e figuras;<br />

música. O hemisfério esquerdo é mais especializado<br />

em habili<strong>da</strong>des de linguagem,<br />

matemática e lógica. No entanto, os dois trabalham<br />

em conjunto trocando informações através<br />

do corpo caloso. Assim, ao colocar em<br />

ativi<strong>da</strong>de esses dois hemisférios, o jogo potencia<br />

a inovação, interação social, internalização<br />

de conceitos e capaci<strong>da</strong>de de expressão, além<br />

de promover o desenvolvimento psicomotor<br />

(SANTOS, 2001).<br />

Todos esses estudos apontam para características<br />

essenciais do jogo, tais como suas dimensões<br />

educativa e lúdica. Para que o jogo<br />

seja utilizado como uma estratégia metodológica,<br />

ampliando o enfoque do seu caráter recreativo,<br />

precisa ser analisado em suas possibili<strong>da</strong>des<br />

de potencializador do processo de construção<br />

de conhecimento, que é a principal função <strong>da</strong><br />

escola.<br />

148<br />

É na sala de aula que a ludici<strong>da</strong>de ganha espaço,<br />

pois a criança se apropria de maneira mais prazerosa<br />

dos conhecimentos, aju<strong>da</strong>ndo na construção<br />

de novas descobertas, desenvolvendo e<br />

enriquecendo sua personali<strong>da</strong>de e, ao mesmo<br />

tempo, permitindo ao professor avaliar o crescimento<br />

gra<strong>da</strong>tivo do aluno, numa dimensão que<br />

vai além <strong>da</strong>s tradicionais provas classificatórias<br />

(SANTOS, 2001, p. 15).<br />

Porém, entender o jogo como estratégia<br />

metodológica não significa reduzi-lo a um mero<br />

instrumento didático, pois o jogo, como tal, é<br />

também conteúdo. Os conteúdos inerentes ao<br />

jogo contribuem para promover o desenvolvimento<br />

de estruturas cognitivas, psicomotoras,<br />

afetivas e morais, criando possibili<strong>da</strong>des de construção<br />

de atitudes necessárias ao exercício <strong>da</strong><br />

autonomia e <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia.<br />

To<strong>da</strong>via, ain<strong>da</strong> que assuma a dimensão<br />

educativa com finali<strong>da</strong>de de ensino, sendo utilizado<br />

como recurso pe<strong>da</strong>gógico ou conteúdo,<br />

o jogo é uma é ativi<strong>da</strong>de essencialmente<br />

lúdica. E certamente uma condição sine qua<br />

non, para considerar-se um jogo como tal, é<br />

o seu caráter lúdico. Portanto, utilizá-lo em<br />

sala de aula é trazer de volta o sentido <strong>da</strong><br />

“palavra grega utiliza<strong>da</strong> para escola - SCHO-<br />

LÉ (ócio, descanso, vagar), [que] traz a idéia<br />

de uma prática lúdica, menos rígi<strong>da</strong> e severa”<br />

(SANTOS, 1998, p. 53). Esta proposta<br />

de construção do conhecimento transversaliza<strong>da</strong><br />

por ativi<strong>da</strong>des lúdicas tem sido defendi<strong>da</strong><br />

numa proposta de educação inclusiva,<br />

como forma de promover o desenvolvimento<br />

infantil e de favorecer o atendimento às diferenças<br />

na sala de aula.<br />

A proposta de educação inclusiva assumi<strong>da</strong><br />

oficialmente no Brasil a partir <strong>da</strong> Declaração<br />

de Salamanca, em 1994, e <strong>da</strong> Lei de Diretrizes<br />

e Bases <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> Nacional – LDB<br />

9.394/96 – tem sido permea<strong>da</strong> pela idéia de<br />

a<strong>da</strong>ptação curricular para atender às necessi<strong>da</strong>des<br />

educativas especiais que se apresentam<br />

na escola. Essa compreensão de a<strong>da</strong>ptação<br />

curricular deve estar embasa<strong>da</strong>, entre outros<br />

aspectos, na proposta de funcionali<strong>da</strong>de do currículo<br />

para os alunos com necessi<strong>da</strong>des especiais.<br />

Entende-se por funcionali<strong>da</strong>de do currículo<br />

a adequação dos seus objetivos ao<br />

desenvolvimento de habili<strong>da</strong>des necessárias à<br />

vi<strong>da</strong> cotidiana de forma a promover a autonomia<br />

de todos os sujeitos que estão incluídos no<br />

espaço escolar. Diante disso, coloca-se para<br />

os educadores dessa chama<strong>da</strong> escola inclusiva<br />

o desafio de construir um currículo funcional,<br />

considerando-se o que foi dito anteriormente<br />

acerca <strong>da</strong> importância do jogo no<br />

processo de ensino e de aprendizagem de crianças<br />

com necessi<strong>da</strong>des especiais.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 147-156, jan./jun., 2006


As reflexões feitas neste texto foram<br />

construí<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> prática docente <strong>da</strong> autora<br />

no trabalho com o componente curricular<br />

Jogos e Recreação, ministrado no Curso<br />

de Licenciatura Plena em Pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

Estadual de Feira de Santana, no<br />

município de São Sebastião do Passé - Bahia.<br />

É importante esclarecer que as alunas desse<br />

curso são regentes de classe na rede municipal<br />

de ensino naquela ci<strong>da</strong>de. Assim, a partir<br />

dos estudos e discussões realizados durante<br />

o curso, as professoras têm possibili<strong>da</strong>de de<br />

refletir sobre sua própria prática e (re) direcioná-la<br />

num processo ativo de ação-reflexão-ação.<br />

Tendo como base o caráter deste curso<br />

como formação continua<strong>da</strong> em exercício, a proposta<br />

elabora<strong>da</strong> para o desenvolvimento do<br />

componente curricular Jogos e Recreação<br />

previa, além de estudos de teorias que subsidiam<br />

a compreensão do jogo como potencializador<br />

dos processos de aprendizagem e<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> criança, a observação de<br />

crianças em situação de brincadeiras espontâneas<br />

e a elaboração e aplicação de planejamentos<br />

de jogos de três tipos: brincadeiras<br />

tradicionais, construção de brinquedos de sucata<br />

e jogos para o trabalho de conhecimentos<br />

específicos.<br />

Vale ressaltar que os episódios descritos e<br />

analisados neste texto foram resultados <strong>da</strong> observação<br />

<strong>da</strong> prática docente em duas turmas<br />

de primeira série do Ensino Fun<strong>da</strong>mental, uma<br />

em escola especial (Escola 1) e outra em escola<br />

regular que recebe alunos com necessi<strong>da</strong>des<br />

educativas especiais no processo de educação<br />

inclusiva (Escola 2).<br />

1. Os jogos e brincadeiras no desenvolvimento<br />

infantil<br />

Para Vygotsky (1998, p.121), “o brinquedo<br />

preenche necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> criança”, pois através<br />

do brinquedo ela pode ter satisfeitas determina<strong>da</strong>s<br />

necessi<strong>da</strong>des não passíveis de serem<br />

realiza<strong>da</strong>s naquele determinado momento. Por<br />

exemplo, por não poder dirigir um automóvel, a<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 147-156, jan./jun., 2006<br />

Susana Couto Pimentel<br />

criança senta-se numa cadeira, toma um determinado<br />

objeto como volante e “faz de conta”<br />

que está dirigindo. A esse mundo ilusório de<br />

satisfação de necessi<strong>da</strong>des e desejos Vygotsky<br />

chama de brinquedo. Assim, pode-se dizer que<br />

o brincar implica uma ação consciente a partir<br />

de uma situação imaginária. Desse modo, o brinquedo<br />

traz consigo um elemento motivacional<br />

que lhe é intrínseco. Para a criança, esta motivação<br />

potencializa a importância do brincar e<br />

de tudo o que a envolve.<br />

Também, segundo Vygotsky (1998, p. 126) “é<br />

no brinquedo que a criança aprende a agir numa<br />

esfera cognitiva, ao invés de em uma esfera visual<br />

externa, dependendo <strong>da</strong>s motivações e tendências<br />

internas, e não dos incentivos fornecidos pelos<br />

objetos externos”. Desse modo, o objeto deixa de<br />

ser o determinante <strong>da</strong> ação do brincar e a situação<br />

imaginária passa a ampliar o significado imediato<br />

dos objetos. Por exemplo, a criança vê uma<br />

tampa de panela, conhece a sua utili<strong>da</strong>de, mas<br />

naquele momento lhe dá outro sentido fazendo <strong>da</strong><br />

tampa de panela o volante do seu carro. A criança<br />

passa a agir independente <strong>da</strong>s determinações<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong>s pelo seu campo visual. Isso demonstra avanço<br />

com relação ao desenvolvimento infantil, pois<br />

a ação <strong>da</strong> criança passa a ser regi<strong>da</strong> pelas idéias<br />

e não mais pelos objetos.<br />

O brinquedo, enquanto objeto utilizado na<br />

brincadeira, constitui-se uma representação <strong>da</strong><br />

reali<strong>da</strong>de, fornecendo à criança a possibili<strong>da</strong>de<br />

de manipulação e de substituições de objetos<br />

reais (KISHIMOTO, 2001). Diante disso, a<br />

construção de brinquedo, por si só, já representa<br />

inúmeras possibili<strong>da</strong>des de aprendizagens<br />

para a criança, pelo seu caráter de estímulo à<br />

criativi<strong>da</strong>de e à representação. A construção<br />

de brinquedo com sucatas, por sua vez, potencializa<br />

e enriquece essas aprendizagens.<br />

A sucata possibilita um olhar sobre duas dimensões,<br />

podendo ser vista como o que a socie<strong>da</strong>de<br />

de consumo considerou imprestável para<br />

o seu uso ou, por outro lado, como o “convite”<br />

à criação, construção e possibili<strong>da</strong>des de múltiplas<br />

expressões (WEISS, 1993). Dessa forma,<br />

o trabalho com sucata possibilita questionamentos<br />

e reflexões de ordem política, social, ética,<br />

econômica e ecológica.<br />

149


O especial dos jogos e brincadeiras no atendimento às diferenças<br />

Como um meio de expressão artística, a sucata<br />

é considera<strong>da</strong> um material rico e de enorme<br />

potencial para ser explorado. A diversi<strong>da</strong>de<br />

de cores, formas, consistências, texturas e<br />

tamanhos incentivam a pesquisa e favorecem<br />

um trabalho com inúmeras possibili<strong>da</strong>des de<br />

exploração, desde o momento de sua seleção.<br />

Ao selecionar o material de que vai fazer<br />

uso para a construção do seu brinquedo, a criança<br />

envolve-se num mundo ilusório, ou seja,<br />

um copo plástico passa a ser a torre de um<br />

castelo. De acordo com Vygotsky (1998, p.<br />

127), “os objetos perdem a sua força determinadora.<br />

A criança vê um objeto, mas age de<br />

maneira diferente em relação àquilo que vê.<br />

Assim, é alcança<strong>da</strong> uma condição em que a<br />

criança começa a agir independentemente<br />

<strong>da</strong>quilo que vê”. Essa mu<strong>da</strong>nça do domínio do<br />

objeto/visível para a ação/imagina<strong>da</strong> sugere um<br />

avanço no desenvolvimento cognitivo <strong>da</strong> criança,<br />

pois ela passa a dirigir seu comportamento<br />

não somente pela percepção imediata<br />

dos objetos, mas pelo significado <strong>da</strong> situação<br />

imaginária.<br />

Todo esse processo não deve ser analisado<br />

à parte dos resultados no campo do<br />

desenvolvimento motor. O manuseio <strong>da</strong> varie<strong>da</strong>de<br />

de materiais, a realização de movimentos<br />

através de ações motoras, táteis, visuais<br />

e auditivas proporciona o trabalho com<br />

a psicomotrici<strong>da</strong>de, laterali<strong>da</strong>de e equilíbrio.<br />

Por tudo isso, é importante se garantir na<br />

escola um espaço onde a vivência <strong>da</strong> construção<br />

do brinquedo de sucata seja uma reali<strong>da</strong>de<br />

,de forma a favorecer o desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> criança.<br />

Os jogos e brincadeiras são também construções<br />

culturais, sendo mantidos e difundidos<br />

culturalmente. De acordo com Friedmann<br />

(1996), as brincadeiras tradicionais fazem parte<br />

<strong>da</strong> cultura popular e têm como características<br />

o fato de serem parte <strong>da</strong> tradição de um<br />

povo; anônimas quanto a sua criação; coletiviza<strong>da</strong>s<br />

pelo grupo do qual é parte e transmiti<strong>da</strong>s<br />

de geração em geração. Por isso, são passíveis<br />

de modificações na forma (regras), tendo em<br />

vista que não há preocupação com o seu registro<br />

em forma escrita, porém não no conteúdo.<br />

150<br />

É, portanto, através <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de de um povo,<br />

de sua memória, que as brincadeiras tradicionais<br />

se perpetuam na cultura popular.<br />

A forma como a socie<strong>da</strong>de atual está organiza<strong>da</strong><br />

não tem favorecido a perpetuação dessas<br />

brincadeiras tradicionais. Outrora, eram<br />

comuns brincadeiras nas calça<strong>da</strong>s e o incentivo<br />

<strong>da</strong> família para que isso acontecesse. Hoje,<br />

com a disseminação <strong>da</strong> violência e <strong>da</strong> insegurança,<br />

a cultura do medo tem impossibilitado<br />

não apenas essas cenas, como também a substituição<br />

dessas práticas lúdicas por momentos<br />

em frente ao televisor, videogame ou computador.<br />

Os brinquedos confeccionados pelos adultos<br />

e crianças foram também substituídos pelos<br />

brinquedos produzidos em série pela indústria.<br />

No meu tempo, parte <strong>da</strong> alegria de brincar estava<br />

na alegria de construir o brinquedo. Fiz<br />

caminhõezinhos, carros de rolimã, caleidoscópios<br />

(...). (...) Os grandes, morrendo de inveja,<br />

mas sem coragem para brincar, brincavam fazendo<br />

brinquedos. As mães faziam bonecas<br />

de pano, arte maravilhosa hoje só cultiva<strong>da</strong><br />

por poucas artistas. (...) Hoje, quando a menina<br />

quer boneca, a mãe não faz boneca: compra<br />

uma boneca pronta que faz xixi, engatinha,<br />

chora, fala quando a gente aperta o botão, e é<br />

logo esqueci<strong>da</strong> no armário de brinquedos (AL-<br />

VES, 1997, p.119, 120).<br />

Nesse contexto, a escola tem uma importante<br />

função: a socialização do conhecimento<br />

historicamente construído, pois “... o ser humano<br />

nasce na cultura, mas não nasce com a cultura.<br />

A cultura é aprendi<strong>da</strong> socialmente, não<br />

transmiti<strong>da</strong> geneticamente. Logo, a inserção do<br />

indivíduo em determinado contexto cultural se<br />

faz mediante o processo gra<strong>da</strong>tivo de assimilação<br />

<strong>da</strong> cultura.” (SANTOS, 1998, p. 53).<br />

Dessa forma, o resgate dos jogos tradicionais<br />

pela escola e a confecção de brinquedos<br />

de sucata representam a garantia <strong>da</strong> perpetuação<br />

do patrimônio lúdico-cultural infantil nessa<br />

socie<strong>da</strong>de globaliza<strong>da</strong>. Entretanto, essa defesa<br />

não deve ser confundi<strong>da</strong> com uma proposta<br />

nostálgica, pois o resgate desses jogos e brinquedos<br />

dentro <strong>da</strong> escola deve ser visto não como<br />

a única, mas como mais uma possibili<strong>da</strong>de de<br />

valorização do lúdico pela educação.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 147-156, jan./jun., 2006


2. Os jogos e brincadeiras no processo<br />

educativo e no atendimento<br />

às diferenças<br />

A escola é, por excelência, um espaço que<br />

abriga diferenças, sejam culturais, religiosas, étnicas<br />

ou políticas. Porém, apesar de estar idealmente<br />

“aberta” para receber as diferenças, tendo<br />

em vista o mote de educação para todos, a<br />

escola tem demonstrado dificul<strong>da</strong>de de trabalhar<br />

com algumas diferenças como, por exemplo, diferenças<br />

físicas, sensoriais e cognitivas.<br />

Abrir o espaço escolar para inclusão destas<br />

diferenças ultrapassa a idéia de garantia de<br />

acesso. Esta idéia aponta para um entendimento<br />

equivocado de que, garantido o acesso, os<br />

sujeitos que apresentam estas diferenças devem<br />

se adequar às condições ofereci<strong>da</strong>s pela<br />

escola. Esta é a lógica que permeia o paradigma<br />

<strong>da</strong> integração, ou seja, a escola faz sua<br />

parte “consentindo” em abrir o seu espaço para<br />

sujeitos com tais diferenças, porém estes devem<br />

buscar condições para garantir sua permanência<br />

e sucesso no ensino escolar.<br />

Estar aberto para a inclusão de alunos com<br />

necessi<strong>da</strong>des educacionais especiais na escola<br />

regular implica, sobretudo num investimento <strong>da</strong><br />

escola em a<strong>da</strong>ptar-se para atender devi<strong>da</strong>mente<br />

essa nova deman<strong>da</strong>. Isso requer adequações<br />

que envolvem desde a estrutura física do espaço<br />

escolar até alterações na proposta curricular.<br />

Porém, para que estas alterações curriculares<br />

aconteçam, é necessário investimento na<br />

formação continua<strong>da</strong> do educador que desenvolve<br />

os atos de currículo.<br />

Esta deman<strong>da</strong> de a<strong>da</strong>ptação do currículo implica<br />

em situações de alterações significativas<br />

que envolvem mu<strong>da</strong>nças em termos de introdução<br />

ou eliminação de conteúdos, objetivos e/ou<br />

critérios de avaliação; ou não-significativas que<br />

não implicam em grandes modificações com relação<br />

à proposta curricular desenvolvi<strong>da</strong> para os<br />

demais alunos. Contudo, o que determina as<br />

modificações curriculares é a proposta de atenção<br />

às necessi<strong>da</strong>des e diferenças apresenta<strong>da</strong>s<br />

pelos alunos e, sobretudo, a confiança em suas<br />

potenciali<strong>da</strong>des de aprender e se desenvolver.<br />

Nesta perspectiva, o jogo, enquanto linguagem<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 147-156, jan./jun., 2006<br />

Susana Couto Pimentel<br />

estruturante do humano, assume a dimensão de<br />

mediação <strong>da</strong> pessoa com necessi<strong>da</strong>de especial<br />

na escola, tornando-se uma proposta eficaz de<br />

atendimento às necessi<strong>da</strong>des.<br />

No trabalho com jogos e brincadeiras são<br />

aponta<strong>da</strong>s distintas possibili<strong>da</strong>des e finali<strong>da</strong>des:<br />

1. recreativa; 2. ensino de conteúdos escolares;<br />

3. diagnóstica, a fim de se ajustar o ensino<br />

às necessi<strong>da</strong>des infantis; 4. ação espontânea<br />

prazerosa e livre (KISHIMOTO, 2001).<br />

No entanto, para que o jogo alcance ao máximo<br />

o seu potencial no desenvolvimento infantil,<br />

é necessário que ele seja planejado<br />

intencionalmente como forma de atender às necessi<strong>da</strong>des<br />

apresenta<strong>da</strong>s pelas crianças.<br />

Descobri que o jogo e a brincadeira não é apenas<br />

uma forma de divertimento, mas algo de suma importância<br />

para o desenvolvimento cognitivo <strong>da</strong><br />

criança, agindo como facilitador de sua aprendizagem,<br />

além disso, estimula o pensamento criativo,<br />

desenvolve coordenação motora, promove a<br />

interação social e aju<strong>da</strong> a adquirir valores éticos e<br />

morais. (...) Passei a inserir o lúdico no meu plano<br />

diário não como algo solto, mas com o objetivo<br />

de tornar as aulas mais agradáveis e levar os alunos<br />

a uma melhor compreensão através de jogos<br />

e brincadeiras (M. F. S. R/ Aluna do Curso de<br />

Pe<strong>da</strong>gogia/ Noturno – Auto-Avaliação).<br />

Na transcrição acima, observa-se que a docente<br />

em questão aponta a sua descoberta do<br />

potencial do jogo e, por isso, passa a incluí-lo<br />

como elemento em seu planejamento.<br />

Pesquisas (AGUIAR, 2004; MIRANDA,<br />

1999) têm demonstrado o potencial do jogo nos<br />

processos de ensino e aprendizagem de alunos<br />

com necessi<strong>da</strong>des educativas especiais. Conteúdos<br />

que envolvam a formação de conceitos<br />

e as habili<strong>da</strong>des operatórias de identificar (a<br />

partir de percepção <strong>da</strong>s características dos objetos<br />

como: cor, textura, forma, consistência),<br />

ordenar, classificar e generalizar têm sido trabalhados<br />

mais eficazmente com a utilização de<br />

jogos como procedimentos de ensino.<br />

No episódio descrito a seguir, se observa a<br />

professora <strong>da</strong> Escola 1 1 trabalhando, a partir<br />

1 A turma trabalha<strong>da</strong> é uma classe de 1ª série de uma escola<br />

especial com um total de seis alunos presentes naquele dia.<br />

Todos os alunos apresentam deficiência mental (DM) estando<br />

na faixa etária de 14 a 26 anos.<br />

151


O especial dos jogos e brincadeiras no atendimento às diferenças<br />

<strong>da</strong> brincadeira “Fitas” 2 , a nomeação e identificação<br />

de cores e de numerais. Essa brincadeira<br />

constitui-se um legado <strong>da</strong> cultura popular<br />

sendo, portanto, uma brincadeira tradicional.<br />

Durante o desenvolvimento <strong>da</strong> brincadeira,<br />

verificou-se que os alunos inicialmente rejeitaram<br />

assumir o papel de anjo mal, preferindo ser<br />

chamados de Anjo Ja e Anjo Jo (iniciais dos<br />

nomes dos alunos). Após o esclarecimento <strong>da</strong><br />

regra <strong>da</strong> brincadeira, a professora disse para<br />

os alunos que representariam as fitas quais as<br />

suas cores e, a partir de então, os anjos deveriam<br />

adivinhá-las. Porém, no decorrer <strong>da</strong> brincadeira<br />

os alunos diziam sempre a mesma cor e<br />

ain<strong>da</strong> que não tivesse nenhuma fita com aquela<br />

cor mantinham a mesma opção. Entretanto, essa<br />

opção de cor não era feita de forma aleatória,<br />

pois eles escolhiam a cor <strong>da</strong>s paredes <strong>da</strong> escola,<br />

<strong>da</strong>s nuvens (já que a brincadeira foi feita na<br />

área externa) ou <strong>da</strong> grama. Percebe-se que essa<br />

era uma estratégia utiliza<strong>da</strong> pelos alunos para<br />

lembrarem-se <strong>da</strong>s cores.<br />

152<br />

Foi possível vivenciar (...) as situações coloca<strong>da</strong>s<br />

no ato de planejar e ain<strong>da</strong> ir além nas descobertas,<br />

pois os alunos desenvolviam estratégias<br />

interessantes (...) na brincadeira (M. P. S. S./Aluna<br />

do Curso de Pe<strong>da</strong>gogia /Noturno – Autoavaliação).<br />

Como se pode ver no depoimento em destaque,<br />

a brincadeira como parte do processo de<br />

mediação pe<strong>da</strong>gógica proporciona avanços no<br />

desenvolvimento <strong>da</strong>s estratégias de aprendizagens<br />

pelos alunos.<br />

Outra situação observa<strong>da</strong> foi a repetição<br />

<strong>da</strong> cor a partir do acerto. Nesses momentos, a<br />

professora fazia mediações, solicitando que o<br />

aluno escolhesse outra cor que ain<strong>da</strong> não tivesse<br />

sido dita. Era notória nesses instantes a<br />

solicitude dos colegas, sugerindo outras possibili<strong>da</strong>des<br />

de cores. Isso demonstra o ambiente<br />

de cooperação que era estabelecido a partir<br />

<strong>da</strong> brincadeira, o que favorecia a aprendizagem<br />

dos alunos.<br />

No decorrer <strong>da</strong> brincadeira a professora também<br />

fazia intervenções do tipo: – Jo tem quantas<br />

fitas? – (Jo, contando, respondia) Um, dois,<br />

três. – E Ja? – perguntava a professora. – Uma<br />

(todos diziam). A professora então solicitava<br />

que os alunos reconhecessem o numeral três e<br />

o numeral um. Ao visualizarem o numeral três,<br />

os alunos diziam que era a letra E. A professora<br />

fazia novas mediações, mostrando a diferença<br />

entre ambos até que o grupo os pudesse<br />

diferenciar.<br />

Para Mantoan (1997), a ausência dessas<br />

mediações e interações desencadeia, nas pessoas<br />

com necessi<strong>da</strong>des educativas especiais, o<br />

chamado déficit circunstancial que se constitui<br />

a partir destes determinantes sociais e se transformam<br />

em obstáculos para aprendizagem e<br />

desenvolvimento do sujeito. Este déficit circunstancial<br />

associado ao déficit real ou orgânico<br />

potencializa as dificul<strong>da</strong>des vivencia<strong>da</strong>s por estas<br />

pessoas.<br />

Assim, é possível perceber a importância <strong>da</strong>s<br />

mediações sociais para o brincar e as possibili<strong>da</strong>des<br />

de criações de zonas de desenvolvimento<br />

proximal através do jogo, isto é, a possibili<strong>da</strong>de<br />

de resolver-se uma situação problema sob a<br />

mediação de um adulto ou colaboração de um<br />

companheiro mais capaz. Para Vygotsky (1998,<br />

p. 134), “o brinquedo cria uma zona de desenvolvimento<br />

proximal <strong>da</strong> criança”, pois possibilita<br />

um comportamento para além do seu<br />

habitual.<br />

A professora também solicitou que Jo separasse<br />

três cadeiras e todos os demais vibravam<br />

com o seu acerto. À outra aluna, a<br />

professora solicitou que separasse três meninos.<br />

E outra vibração acontecia a partir do acerto.<br />

Durante a brincadeira, podia-se observar o<br />

interesse e envolvimento de todos os alunos.<br />

Outro avanço observado foi com relação à<br />

memorização do verso pelos alunos e, mesmo<br />

2 FITAS - CONTEÚDOS: CONCEITUAIS - Identificar<br />

cores. PROCEDIMENTAIS - Desenvolver a orali<strong>da</strong>de, percepção,<br />

atenção e seqüenciação. ATITUDINAIS - Desenvolver<br />

a autonomia, observação e obediência de regras.<br />

PROCEDIMENTOS DIDÁTICOS: O grupo escolhe três<br />

colegas para serem: Anjo Bem, Anjo Mal e o proprietário<br />

<strong>da</strong>s fitas. O proprietário <strong>da</strong>s fitas dirá no ouvido dos demais<br />

participantes do grupo suas respectivas cores. O Anjo Bem<br />

e o Anjo Mal vão, em seqüência, tentar adivinhar as cores<br />

<strong>da</strong>s fitas dizendo ao proprietário: - Tum, tum, tum. Este<br />

responde: - Quem bate? - Sou eu, Anjo Bem. - O que<br />

deseja? - Uma fita. - Que cor? – (Diz uma cor) Quando<br />

acerta, leva a fita e quando erra, o proprietário diz: - Escorrega<br />

na gameleira pra lamber sabão. Vence a brincadeira<br />

quem conseguir o maior número de fitas.<br />

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quando houve esquecimento, os colegas foram<br />

solícitos em aju<strong>da</strong>r. Ain<strong>da</strong> como parte <strong>da</strong> ação<br />

mediadora <strong>da</strong> professora foi solicitado aos alunos<br />

que apontassem para algo que possuía a<br />

cor <strong>da</strong> fita que ele representava e todos vibravam<br />

com os acertos dos colegas. Após a conclusão<br />

<strong>da</strong> brincadeira, a professora trabalhou<br />

as quanti<strong>da</strong>des de fitas que ca<strong>da</strong> “anjo” aluno<br />

obteve e o reconhecimento dos numerais correspondentes<br />

a essa quanti<strong>da</strong>de, solicitando-lhes<br />

que dissessem o que se encontrava na sala naquela<br />

mesma quanti<strong>da</strong>de. Em segui<strong>da</strong>, ela pediu<br />

aos alunos que fizessem a contagem e<br />

representassem numericamente a quanti<strong>da</strong>de de<br />

mesas, de portas, de cadeiras existentes na sala<br />

de aula.<br />

Segundo Mantoan (1997), a pessoa com<br />

deficiência mental vivencia alguns obstáculos<br />

cognitivos que dificultam sua a<strong>da</strong>ptação ao meio,<br />

por isso, torna-se importante a realização de<br />

ativi<strong>da</strong>des que se ajustem às suas condições ao<br />

tempo em que possibilitem a conquista progressiva<br />

de sua autonomia intelectual. Nesse sentido,<br />

o jogo e a brincadeira assumem as<br />

características deste tipo de ativi<strong>da</strong>de.<br />

É importante ressaltar que todo este potencial<br />

pe<strong>da</strong>gógico do jogo torna-se mais ampliado<br />

a partir do planejamento dessas situações didáticas.<br />

Isso significa que, quanto mais intencional<br />

for a ação docente no trabalho com jogos e<br />

brincadeiras, mais potencial educativo o jogo terá<br />

entre os alunos. No entanto, no desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> disciplina Jogos e Recreação no curso de<br />

Licenciatura Plena em Pe<strong>da</strong>gogia, em São Sebastião<br />

do Passé, a idéia de planejamento de<br />

jogos foi acolhi<strong>da</strong> não sem dificul<strong>da</strong>des, pois<br />

planejar aulas para ministrar disciplinas específicas<br />

não representava problemas, tendo em<br />

vista que essa é uma ativi<strong>da</strong>de cotidiana dos<br />

professores; mas pensar em planejar jogos e<br />

brincadeiras tendo clareza do que os mesmos<br />

proporcionavam para as crianças trouxe certa<br />

inquietação inicial, porém muito crescimento.<br />

Com o planejamento <strong>da</strong>s brincadeiras pude compreender<br />

que o brincar possui funções que até<br />

então eu desconhecia. Para mim as brincadeiras<br />

não passavam de um passatempo lúdico, no entanto,<br />

descobri que todo o seu processo contri-<br />

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Susana Couto Pimentel<br />

bui para o desenvolvimento (...) do indivíduo (J.<br />

A. O. S./Aluna do Curso de Pe<strong>da</strong>gogia /Vespertino<br />

– Auto-avaliação).<br />

Além dos estudos de fun<strong>da</strong>mentação teórica,<br />

o desenvolvimento de uma observação<br />

do brincar espontâneo <strong>da</strong> criança proporcionou<br />

maior sensibilização do grupo com relação<br />

às possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> utilização desse<br />

recurso também em sala de aula. Com a observação,<br />

registro e análise de brincadeiras<br />

espontâneas desenvolvi<strong>da</strong>s pelas crianças foi<br />

possível para o grupo de alunas concluir que<br />

essas também proporcionam o desenvolvimento<br />

de diversos aspectos como, por exemplo,<br />

cognição (raciocínio, argumentação,<br />

atenção, memória etc); comportamento social<br />

(cooperação, conflito, integração etc);<br />

emoções/afetivi<strong>da</strong>de (interesse, motivação,<br />

satisfação, tensão); valores; psicomotrici<strong>da</strong>de;<br />

linguagem; iniciativa, criativi<strong>da</strong>de, autonomia<br />

e critici<strong>da</strong>de.<br />

Hoje tenho um novo olhar para qualquer tipo de<br />

jogo ou brincadeira infantil, espontânea ou não, e<br />

aprendi aplicar de forma significativa e prazerosa<br />

na minha prática pe<strong>da</strong>gógica (Z. F./Aluna do Curso<br />

de Pe<strong>da</strong>gogia /Vespertino – Auto-avaliação).<br />

Após esses momentos, a construção de um<br />

Arquivo de Jogos, foi assumi<strong>da</strong> pelo grupo e<br />

direciona<strong>da</strong> para a elaboração de planejamentos<br />

de jogos, brincadeiras e construção de brinquedos,<br />

de forma a deixar claro as funções<br />

lúdica e educativa na execução dessas ativi<strong>da</strong>des.<br />

Os planejamentos foram divididos em: brincadeiras<br />

tradicionais, jogos para ensino de<br />

conteúdos específicos e construção de brinquedos<br />

de sucatas. O material foi produzido pelo<br />

grupo de alunas de forma a ser utilizado como<br />

um recurso auxiliar para docentes que desejam<br />

transformar sua matéria em brinquedo, seduzindo<br />

seus alunos a brincar na certeza de que<br />

“depois de seduzido o aluno, não há quem o<br />

segure” (ALVES, 1997, p. 123)!<br />

A proposta de confecção de brinquedos de<br />

sucatas foi tão envolvente para os alunos <strong>da</strong>s<br />

séries iniciais que, de acordo com relato <strong>da</strong>s<br />

suas professoras, possibilitou inclusive mu<strong>da</strong>nça<br />

no momento do recreio escolar.<br />

153


O especial dos jogos e brincadeiras no atendimento às diferenças<br />

154<br />

Após a confecção dos brinquedos de sucata o<br />

recreio melhorou muito, pois os alunos passaram<br />

a brincar e diminuíram as brigas e acidentes<br />

(V. S./ Aluna do Curso de Pe<strong>da</strong>gogia/ Noturno –<br />

Depoimento).<br />

Noutro episódio observado em uma turma<br />

de primeira série do Ensino Fun<strong>da</strong>mental verificou-se<br />

o envolvimento de um grupo de alunos<br />

na faixa etária de seis e sete anos onde se encontravam<br />

inseridos dois alunos de dezesseis e<br />

vinte anos, ambos com deficiência mental e uma<br />

aluna, cega, de sete anos de i<strong>da</strong>de. Nessa turma<br />

foi utilizado o jogo de boliche de números 3<br />

e observou-se que, a partir <strong>da</strong> mediação feita<br />

pela professora, os alunos com necessi<strong>da</strong>des<br />

especiais incluídos na turma foram desafiados<br />

a participar <strong>da</strong> brincadeira. Aos dois alunos com<br />

DM, a professora solicitou que assumissem a<br />

liderança dos grupos que seriam formados a<br />

partir <strong>da</strong> seleção de colegas feita por eles; a<br />

um deles a professora delegou a tarefa de aju<strong>da</strong>r<br />

a criança cega a fazer o registro <strong>da</strong> quanti<strong>da</strong>de<br />

de pinos derrubados no boliche.<br />

Observa-se que com essa atitude, a professora<br />

evidencia a preocupação de envolver a<br />

todos com a brincadeira proposta. Ain<strong>da</strong> que<br />

no arremesso do boliche pela criança cega houvesse<br />

maior necessi<strong>da</strong>de de mediação pe<strong>da</strong>gógica,<br />

como por exemplo, chegar a criança para<br />

mais perto dos pinos e orientá-la a arremessar<br />

a bola para frente, o envolvimento dela na ativi<strong>da</strong>de<br />

proporcionou benefícios não apenas de<br />

ordem cognitiva através de novas aprendizagens,<br />

como também de ordem social e afetiva.<br />

Entretanto, nesse episódio é importante uma<br />

análise que aborde não apenas o potencial do<br />

jogo, mas que também enfoque as questões relaciona<strong>da</strong>s<br />

à prática <strong>da</strong> inclusão de alunos com<br />

necessi<strong>da</strong>des especiais na escola regular. Como<br />

já abor<strong>da</strong>do anteriormente neste texto, a proposta<br />

de educação inclusiva traz não apenas a questão<br />

<strong>da</strong> inserção ou acesso do aluno com<br />

necessi<strong>da</strong>de especial em uma escola regular, mas<br />

“é fruto do exercício diário <strong>da</strong> cooperação e <strong>da</strong><br />

fraterni<strong>da</strong>de, do reconhecimento e do valor <strong>da</strong>s<br />

diferenças (...)” (MANTOAN, 2003, p. 9).<br />

Nesta perspectiva, não basta apenas inserir<br />

o aluno com necessi<strong>da</strong>de especial em sala de<br />

aula regular, mas oferecer-lhe condições para<br />

que participe <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> escolar, interaja com seus<br />

pares, apren<strong>da</strong> e se desenvolva a partir de suas<br />

potenciali<strong>da</strong>des. É justamente essa possibili<strong>da</strong>de<br />

de interação social entre alunos com e sem<br />

necessi<strong>da</strong>des educacionais especiais que possibilita<br />

a troca e, portanto, a ampliação <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de<br />

individual.<br />

Sendo assim, observa-se na exposição do<br />

episódio <strong>da</strong> Escola 2 um esforço empreendido<br />

pela professora para criar um espaço de participação<br />

e interação entre seus alunos. Entretanto,<br />

há que se considerar que seria também<br />

necessário garantir condições mais favoráveis<br />

para se proceder a inclusão. Por exemplo, discutindo<br />

a regulamentação <strong>da</strong> LDB 9.394/96,no<br />

que se refere ao atendimento de educandos com<br />

necessi<strong>da</strong>des especiais ,preferencialmente na<br />

rede regular de ensino, Carvalho (1997) aponta<br />

que uma classe inclusiva deveria receber até<br />

três pessoas com necessi<strong>da</strong>des especiais na<br />

mesma área de excepcionali<strong>da</strong>de e que nestas<br />

classes o número total de crianças não deve<br />

exceder a vinte e cinco. Entende-se que estas<br />

condições favoreçam o trabalho mediador do<br />

professor, embora se reconheça que a heterogenei<strong>da</strong>de<br />

continue existindo não apenas entre<br />

os alunos com necessi<strong>da</strong>des especiais, apesar<br />

de se tentar reduzir as diferenças quando se<br />

trabalha com o mesmo tipo de excepcionali<strong>da</strong>de,<br />

mas também entre os demais alunos.<br />

No entanto, constata-se que na classe em<br />

questão há dois tipos diferentes de excepecionali<strong>da</strong>de<br />

(Deficiência Mental e Visual), além de<br />

uma enorme diferença com relação à faixa etária<br />

dos alunos (6 - 20 anos) o que certamente<br />

dificulta o trabalho docente tendo em vista as<br />

especifici<strong>da</strong>des de interesses de crianças e adolescentes.<br />

Apesar dessas considerações, a professora<br />

desta classe procurou utilizar favora-<br />

3 BOLICHE DE NÚMEROS - CONTEÚDOS/OBJETI-<br />

VOS: CONCEITUAIS - Estabelecer relação número, numeral.<br />

PROCEDIMENTAIS - Identificar os números. Lançar a<br />

bola de forma a derrubar os pinos. ATITUDINAIS - Respeitar<br />

as joga<strong>da</strong>s dos colegas. PROCEDIMENTOS DIDÁTI-<br />

COS: A sala será dividi<strong>da</strong> em grupos de no máximo 5 alunos.<br />

Ca<strong>da</strong> grupo terá a sua vez de jogar a bola para acertar os<br />

pinos. O grupo irá identificar os números derrubados, somar<br />

os valores e um membro registrará no quadro/caderno.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 147-156, jan./jun., 2006


velmente o jogo, permitindo para os diferentes<br />

alunos a possibili<strong>da</strong>de de desenvolvimento nos<br />

aspectos: 1. afetivo – nas relações de aju<strong>da</strong> e<br />

aceitação do outro com suas diferenças e especifici<strong>da</strong>des;<br />

2. social – nas interações e trocas<br />

entre os pares de alunos, ampliando as possibili<strong>da</strong>des<br />

individuais; 3. cognitivo – na<br />

elaboração de estratégias para fazer os registros;<br />

4. psicomotor – durante o próprio jogo com<br />

o desafio de acertar os pinos do boliche. Assim,<br />

a ludici<strong>da</strong>de não foi utiliza<strong>da</strong> com ênfase<br />

restrita a recreação/ lazer, mas buscando integrar<br />

o sentir, o pensar e o agir dos educandos<br />

que dela participaram.<br />

Dessa forma, ambos os episódios descritos<br />

fornecem elementos para apontar que no atendimento<br />

a crianças com necessi<strong>da</strong>des especiais<br />

o jogo proporciona maior interação entre os<br />

alunos e maior envolvimento dessas crianças<br />

com o conteúdo específico que se está trabalhando.<br />

Para elas, isso significa que numa relação<br />

estabeleci<strong>da</strong> a partir do jogo/brincadeira o<br />

foco deixa de ser o seu déficit real, isto é, o<br />

problema orgânico instalado para que sejam<br />

focaliza<strong>da</strong>s suas possibili<strong>da</strong>des construí<strong>da</strong>s em<br />

situação de interação social no jogo. Assim, a<br />

questão não está no que ela não consegue fazer,<br />

mas no que ela pode fazer sob condições<br />

de mediação pe<strong>da</strong>gógica adequa<strong>da</strong> através do<br />

uso de jogos/brincadeiras.<br />

Isso ocorre, pois no jogo os padrões e cobranças<br />

de eficiência, estabelecidos pela socie<strong>da</strong>de,<br />

são flexibilizados e abre-se a possibili<strong>da</strong>de<br />

para tentativas, erros e mediações sociais.<br />

Esta flexibilização reforça o caráter educativo<br />

do jogo que é subsidiado pela proposta de interação<br />

social e pela perspectiva inclusiva que se<br />

estabelece em seu desenvolvimento.<br />

REFERÊNCIAS<br />

Considerações finais<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 147-156, jan./jun., 2006<br />

Susana Couto Pimentel<br />

Diante do exposto, é possível visualizar o<br />

potencial dos jogos e brincadeiras no trabalho<br />

com crianças com necessi<strong>da</strong>des educativas<br />

especiais, pois, a partir dessa inserção do lúdico<br />

no espaço escolar, a aprendizagem torna-se<br />

mais desafiadora e prazerosa proporcionando<br />

um maior envolvimento dos alunos.<br />

Com estes princípios de desafio e prazer, o<br />

jogo assume um importante papel no processo<br />

de a<strong>da</strong>ptação curricular para a pessoa com necessi<strong>da</strong>de<br />

educativa especial, equilibrando as<br />

concepções de funcionali<strong>da</strong>de e ludici<strong>da</strong>de no<br />

desenvolvimento do currículo. Assim, pode-se<br />

trabalhar através do jogo questões <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana<br />

que aten<strong>da</strong>m às necessi<strong>da</strong>des específicas<br />

dos alunos, aju<strong>da</strong>ndo-os a avançar em<br />

seu desenvolvimento a partir dos objetivos propostos.<br />

Porém, vale ressaltar que, como parte do<br />

processo de mediação pe<strong>da</strong>gógica, os jogos e<br />

brincadeiras precisam ser intencionalmente planejados.<br />

O planejamento de jogos e brincadeiras<br />

pelo professor é imprescindível para que se<br />

alcance a plenitude de suas possibili<strong>da</strong>des no<br />

processo educativo. Nesse planejamento é importante<br />

que o docente tenha clareza dos aspectos<br />

do desenvolvimento aí envolvidos e <strong>da</strong>s<br />

aprendizagens que proporcionam para as crianças.<br />

Garantir também no planejamento docente<br />

espaços e momentos de brincadeiras espontâneas,<br />

construção de brinquedos de sucata e brincadeiras<br />

tradicionais é igualmente importante<br />

no processo de avaliação dos alunos pelo professor,<br />

pois estas também proporcionam conflitos,<br />

aprendizagens e desenvolvimento.<br />

AGUIAR, José Serapião de. <strong>Educação</strong> inclusiva: jogos para o ensino de conceitos. Campinas: Papirus,<br />

2004.<br />

ALVES, Rubem. Cenas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Campinas: Papirus, 1997.<br />

CARVALHO, Rosita Edlér. A nova LDB e a educação especial. Rio de Janeiro: VWA, 1997.<br />

FRIEDMANN, Adriana. Brincar: crescer e aprender: o resgate do jogo infantil. São Paulo: Moderna, 1996.<br />

155


O especial dos jogos e brincadeiras no atendimento às diferenças<br />

KISHIMOTO, Tizuko M. Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. São Paulo: Cortez, 2001.<br />

MANTOAN, Maria Teresa Eglér. Ser ou estar, eis a questão: explicando o déficit intelectual. Rio de Janeiro:<br />

WVA, 1997.<br />

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MIRANDA, Teresina G. A educação do deficiente mental: construindo um espaço dialógico de elaboração<br />

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156<br />

Recebido em 28.02.06<br />

Aprovado em 12.04.06<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 147-156, jan./jun., 2006


Miguel Almir Lima de Araújo<br />

ARTE: ESTAMPAS HÍBRIDAS DE ARCO-ÍRIS EM FLOR –<br />

SINERGIA, RELIGAÇÃO E ECOFRATERNIZAÇÃO<br />

RESUMO<br />

Miguel Almir Lima de Araújo *<br />

O texto abor<strong>da</strong> a Arte como expressão ontológica <strong>da</strong> condição humana, com<br />

sua potência de transfiguração do real, através de nossa sensibili<strong>da</strong>de e<br />

imaginação criantes, do senso intuitivo e com-preensivo, dos feixes do<br />

mitopoético. Realça, sobretudo, sua configuração arco-írica como “agregado<br />

sensível” que, em suas in-tensi<strong>da</strong>des, se traduz numa urdidura policrômica e<br />

híbri<strong>da</strong> que pode desbor<strong>da</strong>r processos pregnantes e anímicos de sinergização,<br />

religação e ecofraternização. A articulação dos símbolos <strong>da</strong> Arte, em seu<br />

pathos originário de celebração e de afirmação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, ao tocar fundo em<br />

nossos corações e almas, potencializa momentos e encontros mestiços intensivos<br />

entre as diferenças que podem levar a entrelaces interculturais que<br />

unem nossas singulari<strong>da</strong>des mediante os elos/elãs de nossas semelhanças.<br />

Destarte, a Arte pode nos co-implicar, nos fluxos tensoriais <strong>da</strong> coexistência do<br />

estar-sendo-no-mundo-com-os-outros, mediante o compartilhamento de nossos<br />

desejos, sonhos e paixões mais intensos e vastos. As in-tensi<strong>da</strong>des do estado<br />

poético <strong>da</strong> Arte fomentam os fluxos alquímicos <strong>da</strong>s mutações que jorram o<br />

advento do novo, a fruição do sentimento do mundo, a re-encantação do existir,<br />

do coexistir; conduzem a anima mundi; infundem poéticas de compartilhamento<br />

que entrecruzam a Ética e a Estética nas estampas finas <strong>da</strong>s teias<br />

ecofraternizantes.<br />

Palavras-chave: Arte – Arco-íris – Anímico – Ecofraternização<br />

ABSTRACT<br />

ART: HYBRIDS IMPRESSION OF RAINBOW IN FLOWER -<br />

SYNERGY, RELIGATION AND ECO-FRATERNIZATION<br />

The text approaches Art as onthologic expression of human condition, with its<br />

capacity of reality transfiguration through our creative sensibility and imagination,<br />

through intuitive and comprehensive sense and mythopoetics bundles. It mainly<br />

emphasizes its rainbow like configuration as “sensitive aggregates” that in its<br />

in-tensities, translates itself into a hybrid and polychromic warp that can overflow<br />

vivid and pregnant processes of reconnecting and eco-fraternization. The<br />

Art symbols articulation, in its original pathos of celebrating the affirmation of<br />

* Doutor em <strong>Educação</strong> pela UFBA. Professor <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Bahia - UNEB e <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Estadual<br />

de Feira de Santana - UEFS. Endereço para correspondência. Departamento de <strong>Educação</strong> - Campus XI/UNEB - R.<br />

Álvaro Augusto, s/n, Bairro <strong>da</strong> Rodoviária – 48700-000 Serrinha/BA. E-mail: malmir@uol.com.br<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 157-162, jan./jun., 2006 157


Arte: estampas híbri<strong>da</strong>s de arco-íris em flor – sinergia, religação e ecofraternização<br />

158<br />

life, when touching deep in our hearts and souls, it potentializes intensives<br />

mongrel moments and meets among the differences that can bring up<br />

transcultural interlaces, that unit our singularities across the links of our<br />

similarities. Therefore, the Art can co-implicate us in the tensional floods of<br />

the coexistence of “to be – being” in the world with the others through sharing<br />

our most intense and vast desires, dreamers and passions. The in-tensities of<br />

Art poetic state foments the alchemic floods of mutations, that gush the coming<br />

of the new and the “feeling of the world”, the re-enchantment of existing, of<br />

co-existing, conduces to an anima mundi; infuses shearing poetics that<br />

intercross the Ethics and the Aesthetics in the fines impressions of the ecofraternities<br />

textures.<br />

Keywords: Art - Rainbow – Animic World – Eco-fraternization<br />

A Arte, como uma <strong>da</strong>s formas singulares<br />

de expressão <strong>da</strong> condição humana, se caracteriza,<br />

em seus modos de transfiguração do real,<br />

pela presença intensiva <strong>da</strong> imaginação e <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de<br />

criantes, dos sentimentos e <strong>da</strong>s crenças<br />

mais viscerais, dos feixes <strong>da</strong> intuição, <strong>da</strong><br />

consciência compreensiva, dos flancos do mitopoético.<br />

A Arte emerge a partir de nossa relação<br />

de espanto e de assombro diante dos fluxos<br />

tensoriais e <strong>da</strong> porosi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s contingências do<br />

cotidiano, e se materializa, com o sopro de nossa<br />

imaginação criante, através dos símbolos<br />

polifônicos que traduzem luzes e sombras, a<br />

franja <strong>da</strong> penumbra, do crepuscular, o admirável<br />

do existir humano. Se enre<strong>da</strong> e se desenre<strong>da</strong><br />

por seus meandros incomensuráveis e<br />

indeterminados. Assim, a Arte garimpa as sen<strong>da</strong>s<br />

descomunais dos enigmas que constituem<br />

os desvãos do ser, dos paradoxos e dos imponderáveis<br />

<strong>da</strong> existência humana. Evoca e nos<br />

mergulha na imensidão do anímico, do co-movente<br />

e do alumbrante, <strong>da</strong> poetici<strong>da</strong>de do universo.<br />

Noutro texto (ARAÚJO, 2002) teci considerações<br />

acerca <strong>da</strong> Arte, em suas dimensões<br />

vastas, de modo mais amplo. Nesse pequeno<br />

ensaio, procuro realçar a mesma em suas potenciali<strong>da</strong>des<br />

sinérgicas e agregantes, que incidem<br />

nos processos de religação, de entrelaça-<br />

A vi<strong>da</strong> só é possível pelas miragens <strong>da</strong> arte.<br />

(Nietzsche)<br />

O ver<strong>da</strong>deiro objeto <strong>da</strong> arte é criar agregados sensíveis.<br />

(Deleuze)<br />

mento e de celebração <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e que levam à<br />

fraternização, à ecofraternização.<br />

Através <strong>da</strong>s linguagens peculiares de seus<br />

símbolos, de suas imagens polissêmicas como<br />

a Música, a Dança, o Teatro, as Artes Plásticas,<br />

a Poesia, a Literatura etc., as expressões<br />

<strong>da</strong> Arte plasmam os tons mestiços e arco-íricos<br />

de nossos desejos e paixões, de nossas ambigüi<strong>da</strong>des<br />

e paradoxos; estampam as silhuetas<br />

de nossa existência demasia<strong>da</strong>mente humana,<br />

nos rasgos de suas in-tensi<strong>da</strong>des e ambigüi<strong>da</strong>des<br />

em seu estado nascente e ad-mirante, vivente<br />

e originário.<br />

As expressões <strong>da</strong> Arte brotam <strong>da</strong> matéria<br />

disforme de nossos sonhos, de nossa relação de<br />

perplexi<strong>da</strong>de e de ad-miração diante <strong>da</strong> plastici<strong>da</strong>de<br />

dos fenômenos, <strong>da</strong>s vicissitudes do mundo,<br />

dos influxos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana. Co-movidos pelo<br />

pathos que arrebata, impulsiona e nos precipita<br />

nas venturas do existir, somos compelidos à fruição<br />

sensível do vivido, de modo in-tensivo e desinstalante.<br />

O pathos transgressivo <strong>da</strong> Arte, com<br />

seu cunho anárquico e com a verve de seu impulso<br />

criador, de sua pulsão criante, nos inspira e<br />

nos implica em processos de criação e de invenção<br />

de imagens e formas sensíveis que transfiguram<br />

o real, que o recriam e o ressemantizam;<br />

que o re-velam em suas dimensões e cama<strong>da</strong>s<br />

mais vívi<strong>da</strong>s, encanta<strong>da</strong>s e anímicas.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 157-162, jan./jun., 2006


Essa transfiguração se traduz na composição<br />

e na materialização de formas poéticas que<br />

apresentam a in-tensi<strong>da</strong>de de nossos sentimentos<br />

e desejos, de nossas sensações e inquietudes,<br />

de nossos sonhos e delírios, nas sagas <strong>da</strong>s<br />

tragicomédias do humano. Formas poéticas que<br />

se plasmam mediante a potência de nossa sensibili<strong>da</strong>de<br />

e imaginação criantes com suas ressonâncias<br />

quânticas. A plastici<strong>da</strong>de estésica<br />

dessas estampas poéticas, teci<strong>da</strong>s com a fineza<br />

de seus relevos e cores, de seus silêncios e<br />

sons, de seus recurvamentos e espessuras, proporciona<br />

novos sentires e sentidos, novos modos<br />

e perspectivas de relação com a vi<strong>da</strong>, com<br />

o mundo, em seus fluxos escorrentes.<br />

A Arte, ao tocar com intensi<strong>da</strong>de na imanência<br />

de nossa sensibili<strong>da</strong>de, de nossa intuitivi<strong>da</strong>de,<br />

de nosso imaginário mítico, portanto, dos<br />

desvãos <strong>da</strong> condição humana, em suas instâncias<br />

originárias e pregnantes e em nosso estar<br />

sendo-no-mundo-com-os-outros, nos conduz aos<br />

confins do indizível, <strong>da</strong> desmesura, dos estados<br />

incontornáveis, curvos e admiráveis do existir;<br />

nos conduz ao âmago magmático de nosso coração<br />

e de nossa alma, nos anima com os feixes<br />

do elã vital; infunde o anímico.<br />

Mobilizando nossos sentires mais in-tensos<br />

e inefáveis, a Arte nos inspira e nos leva a estados<br />

de fruição e de encantamento, nos precipita<br />

no estado poético, na poetici<strong>da</strong>de do<br />

ser-sendo, em que a vi<strong>da</strong> pode resplandecer,<br />

com seu fulgor aurorecente, e assim, pode florejar<br />

a sua pujança primavérica.<br />

As expressões <strong>da</strong> Arte, ao nos mobilizar para<br />

esses estados intensos em que se desbor<strong>da</strong>m<br />

os sentimentos mais pregnantes e vastos, para<br />

os ermos do “sentimento do mundo”, pode nos<br />

possibilitar a dissolução de nós e de couraças<br />

que nos aprisionam e nos enrijecem; pode nos<br />

aproximar com mais intimi<strong>da</strong>de e desnu<strong>da</strong>mento<br />

de nós mesmos e dos outros. O estado de<br />

fluidez e de ludici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s proezas <strong>da</strong> Arte, no<br />

jogo de seus movimentos sincopados, de seus<br />

matizes de gratui<strong>da</strong>de e de inutileza, co-move<br />

e mobiliza o corpo e o espírito nas travessuras<br />

<strong>da</strong>s folias e na abertura graciosa do riso que<br />

estampa alegria e contenteza. Viceja o feixe<br />

lampejante dos sentimentos de ternura e de<br />

Miguel Almir Lima de Araújo<br />

acolhimento, de compaixão e de cordiali<strong>da</strong>de<br />

na partilha e na fruição <strong>da</strong>s coisas simples, <strong>da</strong><br />

grandeza supremal dos enigmas <strong>da</strong> existência<br />

humana e dos seres do universo.<br />

As formas expressivas <strong>da</strong> Arte, em seu sentido<br />

mais originário, despontam a partir <strong>da</strong>s dimensões<br />

imensuráveis de nosso imaginário<br />

mítico, mitopoético, e traduzem arquétipos profundos<br />

de nosso inconsciente coletivo. Dessa<br />

forma, as imagens, os símbolos <strong>da</strong> Arte, re-velam<br />

sonhos, desejos e crenças coletivas que<br />

povoam a humani<strong>da</strong>de, em suas cama<strong>da</strong>s mais<br />

fun<strong>da</strong>s e sutis, em seus repertórios mitopoéticos<br />

vastos, inspiradores e alumbrantes. Projetam<br />

o estan<strong>da</strong>rte de nossas utopias e esperanças<br />

na dinâmica de seus ritos de celebração e de<br />

re-encantação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

A Arte não explica, nos implica. O explicar<br />

tende a separar e fragmentar. O implicar nos<br />

cumpliciza, nos en-volve e nos empatiza com<br />

os outros, com a vi<strong>da</strong>, com as coisas. Com essa<br />

potenciali<strong>da</strong>de de nos dis-por para a abertura<br />

simpatizante e aproximante, de fomentar os liames<br />

que entrelaçam, a Arte, em seus sentidos<br />

originários, pode compelir a atitudes abertas e<br />

simpáticas que nos fraternizam, que nos ecofraternizam<br />

(com todo o universo). Nos conduz<br />

a posturas de reconhecimento do brilho de<br />

ca<strong>da</strong> estrela humana (de si mesmo e dos outros)<br />

na constelação <strong>da</strong> teia do humano, do ecohumano.<br />

Dessa forma, podemos sorver a<br />

fruição <strong>da</strong>s centelhas, <strong>da</strong>s energias, dos “agregados<br />

sensíveis” que fazem vibrar a radiância<br />

do humano, do profana e divinamente humano,<br />

através dos elos que nos sinergizam e que nos<br />

entrelaçam na afirmação de nossa condição de<br />

seres singulares e semelhantes, com a plurali<strong>da</strong>de<br />

de nossas diferenças.<br />

Irradiados com esse elã sensível, podemos<br />

converter as formas singulares de nossas diferenças<br />

em condições que nos dis-põem a<br />

compartilhar a diversi<strong>da</strong>de de sentimentos e<br />

de valores, por meio <strong>da</strong>quilo que nos une – o<br />

liame e o núcleo <strong>da</strong> condição humana: o pulsar<br />

de nossos corações e o vibrar de nossas<br />

almas. Pulsar que nos faz arrepiar na in-tensi<strong>da</strong>de<br />

do laço terno do abraço caloroso que nos<br />

amoriza.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 157-162, jan./jun., 2006 159


Arte: estampas híbri<strong>da</strong>s de arco-íris em flor – sinergia, religação e ecofraternização<br />

Nessa perspectiva, a Arte se re-vela como<br />

emanação de formas encanta<strong>da</strong>s de celebração<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, de sua renovação permanente, no<br />

fluxo dos movimentos cíclicos de suas estações.<br />

Com seu tom iniciático, a Arte, mediante os mais<br />

diversos ritos de iniciação (manifestações e<br />

celebrações coletivas), nos inicia nas aprendências<br />

pregnantes de nosso ser-sendo, nos horizontes<br />

do anímico. Assim, co-movidos pelo seu<br />

elã vital, podemos, nas proezas de ca<strong>da</strong> aventura,<br />

renascer para a “eterna novi<strong>da</strong>de do mundo”<br />

nas franjas dos arrebóis de ca<strong>da</strong> alvorecer;<br />

podemos renascer redivivos, alvorecentes!<br />

Como expressão vívi<strong>da</strong> e pregnante de celebração<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, as linguagens de Arte proporcionam<br />

encontros mestiços, encruzilha<strong>da</strong>s híbri<strong>da</strong>s,<br />

em que a diversi<strong>da</strong>de de valores e de cosmovisões,<br />

de crenças e de sentires podem se interpenetrar<br />

com in-tensi<strong>da</strong>de, na composição <strong>da</strong><br />

estampa mestiça que pode fazer flamejar a “compaixão<br />

do coração” e o “humanismo do espírito”.<br />

Despojados e simpatizados nessa teia do ser-sendo-com-os-outros,<br />

do estar a-con-te/cendo, na<br />

fruição do estado poético que nos anima e nos comove,<br />

que nos implica e nos co-implica, podemos<br />

fruir a jorrância dos sentimentos mais preciosos e<br />

altaneiros <strong>da</strong> amorosi<strong>da</strong>de ecofraternizante.<br />

Sabemos que, nas populações que constituem<br />

as diversas tradições culturais, também estão<br />

presentes as posturas etnocêntricas que<br />

tendem a segregar e excluir. Porém, também<br />

sabemos/sentimos que, em muitas <strong>da</strong>s experiências<br />

pregnantes plasma<strong>da</strong>s mundo afora, essa<br />

potenciali<strong>da</strong>de agregadora e entrelaçante <strong>da</strong><br />

Arte tem se afirmado e se expandido.<br />

A abertura e a plastici<strong>da</strong>de do estésico, do<br />

vigor de nosso ser sensível, fomentam e mobilizam<br />

a imaginação criante nos processos de criação<br />

de imagens poéticas que co-movem o<br />

corpo e o espírito, a alma e o coração humanos,<br />

na manifestação de nossos sentimentos mais<br />

intensos e finos. A vibração dos acordes desses<br />

sentimentos ecoa ressonâncias que nos envolve<br />

com intensi<strong>da</strong>de e que fazem irradiar, para<br />

nós e para os outros, a empatia entrelaçante,<br />

através dos fios invisíveis <strong>da</strong>s sinergias que nos<br />

co-implicam, que nos conduzem ao espírito de<br />

compartilhamento e de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, de afir-<br />

160<br />

mação e de reencantação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, do mundo.<br />

Essas ressonâncias, provoca<strong>da</strong>s pela vivência<br />

oceânica com a fruição <strong>da</strong> Arte, suscitam<br />

nossa sensibili<strong>da</strong>de e consciência compreensiva<br />

para a escuta e a percepção de nossa condição<br />

de seres coexistentes, complementares e interdependentes,<br />

na teia viva, in-tensiva e vibrante<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, <strong>da</strong> cultura, do universo/pluriverso. Dessa<br />

forma, as expressões <strong>da</strong> Arte fomentam o<br />

sentimento anímico de nosso co-pertencimento<br />

na teia planetária e viva do ecossistema.<br />

De modo geral, com as devi<strong>da</strong>s exceções, as<br />

instituições religiosas, os partidos políticos, as diversas<br />

instituições sociais etc. tendem a segregar<br />

e excluir, desencadeando posturas intolerantes,<br />

etnocêntricas e reducionistas, cimenta<strong>da</strong>s em<br />

ideologias que se pretendem portadoras de ver<strong>da</strong>des<br />

únicas e imutáveis. Dessa forma, os espíritos<br />

e os corações se armam e se enrijecem na<br />

instauração de relações e de posturas frias e ressenti<strong>da</strong>s,<br />

competitivas e barbarizantes.<br />

Os lampejos <strong>da</strong> expressão do “sentimento<br />

do mundo” proporcionados pela Arte podem nos<br />

dis-por para o estar-sendo-com-os-outros, na<br />

nervura in-tensiva do mundo vivido, para os laços<br />

que nos interligam e nos ecofraternizam.<br />

Lampejos que, assim, nos abrem e nos impelem<br />

para a vivência <strong>da</strong> poética do existir, <strong>da</strong><br />

<strong>da</strong>nça co-movente do cosmos com seus ritmos<br />

e contornos mestiços e transversais.<br />

Em todo o mundo, ca<strong>da</strong> vez se expande um<br />

pouco mais a emergência de grupos, ONGS,<br />

movimentos diversos que, através <strong>da</strong>s múltiplas<br />

linguagens de Arte, plasmam e envi<strong>da</strong>m projetos,<br />

vivências e celebrações que, com a intensi<strong>da</strong>de<br />

do pathos criador, do elã <strong>da</strong> poetici<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

Arte, vão afirmando a vi<strong>da</strong>, os valores humanos,<br />

infundindo o estado anímico e ecofraternizante<br />

nos compassos fecundos de reencantamento do<br />

mundo. Nesse sentido, concebemos Arte, não<br />

como um mero instrumento ou recurso pe<strong>da</strong>gógico,<br />

mas como uma forma de conhecimento<br />

ontologicamente constituí<strong>da</strong> que, com suas características<br />

e sentidos peculiares, pode proporcionar<br />

o sorver degustante desses processos de<br />

re-encantamento <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, do mundo.<br />

Na proporção em que toca fundo em nossa<br />

sensibili<strong>da</strong>de, em nossa intuição e em nossos<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 157-162, jan./jun., 2006


sentires mais despojados, o cui<strong>da</strong>do primoroso<br />

e sensível para com a plastici<strong>da</strong>de do estésico,<br />

<strong>da</strong> fruição estética do mundo, potencializado<br />

através <strong>da</strong>s linguagens de Arte, nos conduz aos<br />

territórios <strong>da</strong> Ética. Assim, os sentimentos do<br />

bem, <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> paz, <strong>da</strong> digni<strong>da</strong>de, do altruísmo<br />

etc. são compreendidos como constitutivos<br />

<strong>da</strong> magnitude <strong>da</strong> condição humana. Estética<br />

e Ética configuram assim, instâncias estruturantes<br />

e constituintes <strong>da</strong> condição humana, de<br />

forma implica<strong>da</strong> e coexistente, na complexi<strong>da</strong>de<br />

de sua inteireza aberta e híbri<strong>da</strong>.<br />

Nesse horizonte compreensivo, as expressões<br />

<strong>da</strong> Arte, em sua condição mais originária e anímica,<br />

agregam coexistencialmente a Ética e a Estética,<br />

o bem e o belo, a forma e o conteúdo, a<br />

delicadeza e a elegância, o útil e o agradável, o<br />

sentimento e o pensamento, no cui<strong>da</strong>do com essa<br />

inteireza dinâmica e in-tensiva <strong>da</strong> condição eternamente<br />

precária e inacaba<strong>da</strong> do existir humano.<br />

O advento <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de, do cui<strong>da</strong>do com<br />

o sensível, <strong>da</strong> busca <strong>da</strong> delicadeza, do espírito de<br />

fineza e de poetici<strong>da</strong>de, proporcionados pelas<br />

expressões <strong>da</strong> Arte, pode, portanto, propiciar o<br />

burilar do estado anímico de nosso ser-sendo, na<br />

busca permanente <strong>da</strong> vivência dos valores humanos,<br />

<strong>da</strong>s metamorfoses que nos renovam e<br />

vivificam, que nos tornam melhores uns com os<br />

outros. O elã do estado poético pode operar a<br />

alquimia que converte o feio em bonito, o metal<br />

pesado em ouro, a lama em lótus, mediante os<br />

processos in-tensivos de transmutação de valores,<br />

de sentires e de posturas que nos tornam<br />

mais humanos, amorosos e altivos. Possibilitanos<br />

compreender e vivenciar os paradoxos e<br />

ambigüi<strong>da</strong>des do humano em que nosso existir<br />

se constitui de dor e de prazer, de tristeza e de<br />

alegria, de feieza e de boniteza. As expressões<br />

<strong>da</strong> Arte podem nos proporcionar estados de “harmonia<br />

conflitual” em que aprendemos a <strong>da</strong>nçar<br />

melhor com os fluxos tensoriais de suas ambivalências,<br />

de suas torsões pregnantes.<br />

A Arte se instaura na interligação e no entrecruzamento<br />

entre Caos e Cosmos, entre<br />

Desordem e Ordem, como instâncias que potencializam<br />

os processos de criação e de transmutação.<br />

Ela é androgínica ao fomentar a<br />

juntura simbiótica e in-tensiva entre masculino<br />

Miguel Almir Lima de Araújo<br />

(Apolo) e feminino (Dioniso), como potenciali<strong>da</strong>des<br />

energéticas que constituem a inteireza<br />

de nosso ser-sendo. Simbiose que se traduz na<br />

relação de coexistência fecun<strong>da</strong> e criante entre<br />

essas polari<strong>da</strong>des interpolares. Essa coexistência<br />

não incide na redução de uma polari<strong>da</strong>de<br />

na outra. É no interfluxo <strong>da</strong> relação de copulação<br />

entre as diferenças – na interpolari<strong>da</strong>de –<br />

que podem ser fecun<strong>da</strong>dos os processos de<br />

engravi<strong>da</strong>ção e de partejamento do novo, dos<br />

sentidos anímicos do existir.<br />

As potenciali<strong>da</strong>des criadoras e transmutantes<br />

<strong>da</strong>s expressões <strong>da</strong> Arte, nas texturas do estado<br />

poético, quando conduzi<strong>da</strong>s pela inteligência<br />

sensível e espirituosa, quando mobiliza<strong>da</strong>s por<br />

sentimentos mais altivos e sublimes, mediante o<br />

poder incomensurável de nossa imaginação e<br />

sensibili<strong>da</strong>de criantes, opera com nossas dores,<br />

conflitos e angústias como motes, como forças e<br />

momentos germinais que podem, como vimos,<br />

nos inspirar para os fluxos de transformação, de<br />

partejamentos renovantes e alargantes.<br />

Assim, o feixe tensorial dos conflitos, <strong>da</strong>s dores<br />

do mundo que nos perturbam e até nos fazem<br />

chorar, com sua agudeza cortante, podem se<br />

configurar como momentos promissores <strong>da</strong>s travessias<br />

e se tornar passagens alvissareiras. Passagens<br />

que, mediante nossa sensibili<strong>da</strong>de e<br />

imaginação criantes, podem se desdobrar no riso<br />

desmesurado <strong>da</strong> contenteza que resulta do nascimento<br />

amanhecente do novo vivificante.<br />

Na proporção em que as expressões <strong>da</strong> Arte<br />

tocam nossos sentimentos mais fundos e singelos,<br />

elas nos dis-põem e mobilizam para momentos<br />

celebrativos em que, despojados e<br />

abertos, podemos compartilhar com os outros<br />

nossas alegrias e tristezas, nossos sonhos e utopias;<br />

em que podemos urdir a teia dos laços<br />

afetivos <strong>da</strong> compaixão, <strong>da</strong> empatia, <strong>da</strong> soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de,<br />

<strong>da</strong> fraternura. A festa que as manifestações<br />

<strong>da</strong> Arte nos propiciam pode fazer jorrar<br />

a sinergia que nos entrelaça e ecofraterniza<br />

no cultivo dos valores e sentimentos mais preciosos,<br />

nos impelindo às buscas <strong>da</strong> beleza suprema<strong>da</strong>;<br />

nos infunde o elã do anímico que faz<br />

vicejar a dinâmica in-tensiva <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de na<br />

multiplici<strong>da</strong>de através <strong>da</strong> plastici<strong>da</strong>de de suas<br />

formas simbólicas.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 157-162, jan./jun., 2006 161


Arte: estampas híbri<strong>da</strong>s de arco-íris em flor – sinergia, religação e ecofraternização<br />

A Arte se plasma como experiência vivi<strong>da</strong>,<br />

penetrante, que atravessa por dentro, pelas entranhas<br />

<strong>da</strong> nervura do vivido, do vivente, e implica no<br />

cultivo de nossa subjetivi<strong>da</strong>de vital, ao mesmo tempo<br />

em que afirma e nos conduz à dinâmica <strong>da</strong>s<br />

relações intersubjetivas. Os símbolos <strong>da</strong> Arte interligam,<br />

interpenetram e nos enre<strong>da</strong>m nas estampas<br />

<strong>da</strong> teia anima<strong>da</strong> que entretece o humano, o<br />

interhumano, fazendo ecoar as ressonâncias dos<br />

versos que versejam o universo, na ro<strong>da</strong> mestiça<br />

e pregnante <strong>da</strong> ecofraternização.<br />

As urdiduras poéticas <strong>da</strong> Arte trazem graça<br />

e encantação. Podem, assim, nos tornar mais<br />

graciosos e altaneiros. Nos imergem pelos desvãos<br />

do sublime, <strong>da</strong> sutileza, dos mistérios inefáveis<br />

do ser, do universo, nos fazendo celebrar<br />

a insustentável beleza <strong>da</strong> leveza do ser. Nos<br />

dis-põem com mais audácia e terneza para as<br />

travessuras <strong>da</strong>s travessias oblíquas que nos atravessam,<br />

que atravessamos. Assim, podemos<br />

trilhar em nossas sagas com mais denodo e<br />

paixão, com mais inventivi<strong>da</strong>de e vigor, com<br />

162<br />

REFERÊNCIAS<br />

mais poetici<strong>da</strong>de e alumbramento. As urdiduras<br />

<strong>da</strong> Arte nos precipitam com afinco e desprendimento<br />

pelas ondulações <strong>da</strong> tensivi<strong>da</strong>de do<br />

vivido, e assim podemos bailar com mais desenvoltura<br />

nos volteios de suas curvaturas.<br />

A potência germinal e criante <strong>da</strong> Arte nos renova<br />

e nos reinventa cotidianamente. Nos metamorfoseia<br />

nos ciclos <strong>da</strong>s estações de nossos verões,<br />

invernos, outonos e primaveras. Infunde os<br />

sentimentos dos estados de alumbramento que nos<br />

co-movem nas itinerrâncias nômades, no desbor<strong>da</strong>r<br />

de nossas utopias. Renova o espírito e o<br />

coração na movência dos fluxos de nosso sersendo-com-os-outros,<br />

no advento e na fruição do<br />

novo renovante e reencantante.<br />

Como estampas híbri<strong>da</strong>s de arco-íris em flor,<br />

a Arte desbor<strong>da</strong> os fractais <strong>da</strong>s curvaturas e<br />

dos entrecruzamentos do existir, <strong>da</strong> teia policrômica<br />

e semovente do coexistir, mediante o<br />

arco do abraço intercultural/transcultural que,<br />

de modo in-tensivo e pregnante, entrelaça os<br />

tons multicores de nossas tradições culturais.<br />

ARAÚJO, Miguel Almir L. de. Laços de encruzilha<strong>da</strong>: ensaios transdisciplinares. Feira de Santana: Ed.UEFS, 2002.<br />

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RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. São Paulo: Globo, 2003.<br />

Recebido em 28.02.06<br />

Aprovado em 05.03.06<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 157-162, jan./jun., 2006


Juvino Alves<br />

BANDAS, FILARMÔNICAS E MESTRES DE BANDA DA BAHIA:<br />

formação de músicos e ci<strong>da</strong>dãos<br />

Socie<strong>da</strong>de Lítero Musical Minerva Cachoeirana, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em 1878,<br />

em Cachoeira-Bahia. Arquivo <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong>de Minerva Cachoeirana<br />

(Foto do início do século XX)<br />

RESUMO<br />

Juvino Alves *<br />

O presente trabalho 1 traça um panorama histórico <strong>da</strong>s Ban<strong>da</strong>s e Socie<strong>da</strong>des<br />

Filarmônicas <strong>da</strong> Bahia e do seu papel educativo, ressaltando ain<strong>da</strong> a figura dos<br />

mestres de Ban<strong>da</strong>. As Socie<strong>da</strong>des Filarmônicas surgiram oficialmente com o<br />

advento oficial <strong>da</strong>s Ban<strong>da</strong>s Militares em 20 de Agosto de 1808, ao finalizar-se<br />

o Brasil colonial. Essas Socie<strong>da</strong>des são centros culturais de formação musical<br />

* Juvino Alves dos Santos Filho é doutor em música pela UFBA com concentração em Clarineta. É um dos coordenadores<br />

do Projeto Ro<strong>da</strong> de Choro e Presidente <strong>da</strong> Casa de Choro <strong>da</strong> Bahia. Bolsista Desenvolvimento Tecnológico<br />

Regional – DTR 2 <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção de Apoio à Pesquisa <strong>da</strong> Bahia – FAPESB, junto ao Programa de Pós-Graduação em<br />

<strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, no Projeto Memória <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> na Bahia. É professor <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Filosofia,<br />

Ciência e Letras de Candeias-Ba. Estu<strong>da</strong> formas alternativas de educação musical na socie<strong>da</strong>de brasileira. Endereço para<br />

correspondência: Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Bahia - UNEB, Mestrado em <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Rua<br />

Silveira Martins, 2555, Cabula – 41150-000 SALVADOR/BA E-mail: juvinoalves@terra.com.br<br />

1 Texto apresentado no VII Colóquio de História <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> na Bahia, em Mesa Coordena<strong>da</strong> 3 sobre “O Ensino/<br />

Aprendizado de Arte na Bahia”, coordena<strong>da</strong> pelo autor deste no dia 16/12/2006. Projeto Memória <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> na Bahia.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 163-171, jan./jun., 2006 163


Ban<strong>da</strong>s, filarmônicas e mestres de ban<strong>da</strong> <strong>da</strong> Bahia: formação de músicos e ci<strong>da</strong>dãos<br />

164<br />

e ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, além de constituírem laboratórios <strong>da</strong>s diferentes tendências do<br />

que acontece na música no Brasil e no mundo. Apresenta o Mestre de Ban<strong>da</strong>s<br />

Manuel Tranquillino Bastos, que viveu num período de grande intensi<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

ativi<strong>da</strong>de musical <strong>da</strong>s Ban<strong>da</strong>s e Filarmônicas – o final do século XIX e início do<br />

XX. Naquele momento, existia grande quanti<strong>da</strong>de de Ban<strong>da</strong>s na Bahia, tendo<br />

sido o Recôncavo Baiano o centro de manifestação dessas corporações, muitas<br />

delas cria<strong>da</strong>s pelo próprio Tranquillino Bastos.<br />

Palavras-chave: Ensino <strong>da</strong> Música na Bahia – História <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> para as<br />

Artes – Ban<strong>da</strong>s, Filarmônicas e Mestres <strong>da</strong> Bahia – Musicologia.<br />

ABSTRACT<br />

BANDS, PHILHARMONIC SOCIETIES AND MASTERS OF<br />

BAHIA: EDUCATION AND CITIZENSHIP<br />

This study delineates the historical path of the Bands and Philharmonic Societies<br />

of Bahia and their educational role, emphasizing the position of the Bands’<br />

masters. The Philharmonic Societies officially started with the creation of the<br />

Military Bands on August. 20th , 1808, at the end of the Brazilian colonial period.<br />

These societies are cultural centres of musical education and citizenship, besides<br />

functioning as laboratories of different trends in relation to Brazilian and world<br />

music. The text presents the Master of Bands Manuel Tranquillino Bastos,<br />

who lived within a period of intensive musical activities among the Bands and<br />

the Philharmonic Societies – at the end of the 19th century and beginning of the<br />

20th century. At that time, there was a great amount of bands in Bahia, and the<br />

“Bahian Recôncavo” was the centre of manifestations of such institutions,<br />

many of them created by Tranquillino Bastos.<br />

Keywords: Musical Education in Bahia – History of Art Education – Bands,<br />

Philharmonic Societies and Masters of Bahia – Musicology<br />

1. Ban<strong>da</strong>s de Música e Filarmônicas:<br />

as origens<br />

Os termos Ban<strong>da</strong> de Música e Filarmônica<br />

indicam duas distintas e independentes corporações<br />

musicais. O primeiro se refere aos<br />

conjuntos musicais <strong>da</strong>s corporações militares e<br />

o segundo às socie<strong>da</strong>des civis. Segue abaixo o<br />

relato de entrevistas onde é defini<strong>da</strong> a diferença<br />

entre Ban<strong>da</strong> de Música e Filarmônica, por dois<br />

experientes músicos que conviveram em ambas<br />

as corporações. De acordo com o primeiro deles,<br />

Mestre de Ban<strong>da</strong> Bernardo <strong>da</strong> Silva 2 :<br />

Ban<strong>da</strong> de música, quando se diz ban<strong>da</strong> de música,<br />

é o caso <strong>da</strong>s ban<strong>da</strong>s militares ou de profissi-<br />

onais, significa ban<strong>da</strong> de profissionais, de músicos<br />

que recebem remuneração para executarem<br />

peças musicais. E a filarmônica é um conjunto de<br />

músicos amadores, que sem recompensa monetária<br />

se reúnem para executar peças musicais,<br />

também. A filarmônica é uma socie<strong>da</strong>de musical<br />

de fins filantrópicos, entendeu? Quando se reúne<br />

uma ban<strong>da</strong> sinfônica com uma filarmônica,<br />

isto é, uma ban<strong>da</strong> de profissionais com uma ban<strong>da</strong><br />

de amadores, aí se dá o nome de sinfofilarmônica.<br />

(SILVA, 2002).<br />

2 O Mestre Bernardo <strong>da</strong> Silva é um renomado e experiente<br />

Mestre de Ban<strong>da</strong>, integrante <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong>de Filarmônica 30<br />

de Junho <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de de Serrinha-Ba. Ele atou também como<br />

Mestre de Ban<strong>da</strong> na Ban<strong>da</strong> <strong>da</strong> Polícia Militar Maestro<br />

Wanderley em Salvador-Ba, chegando à patente de capitão<br />

nessa corporação.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 163-171, jan./jun., 2006


E segundo Igaiara Índio dos Reis 3 :<br />

A Filarmônica, ela é uma corporação musical<br />

onde existem sócios. É como se fosse uma coisa<br />

priva<strong>da</strong>, já entendeu? Então tem a diretoria, têm<br />

sócios, os sócios contribuem, e tal. E a ban<strong>da</strong> de<br />

música não. A ban<strong>da</strong> de música, no caso <strong>da</strong> ban<strong>da</strong><br />

Maestro Wanderley, é uma coisa pública, entendeu?<br />

Ela é paga pelo poder público, e<br />

musicalmente tem muita diferença. Ah, tem muita<br />

diferença, tem muita diferença, porque a ban<strong>da</strong><br />

de música, a ban<strong>da</strong> de música profissional,<br />

ela justamente, ela pega o que há de melhor, de<br />

tarimbado <strong>da</strong>s filarmônicas. Ela incorpora, já entendeu?<br />

E a filarmônica não. (REIS, 2003).<br />

Quando Igaiara Índio fala que a “Ban<strong>da</strong> de<br />

Música pega o que há de melhor, de tarimbado<br />

<strong>da</strong>s Filarmônicas, ela incorpora”, ele está se<br />

referindo aos bons músicos que são formados<br />

pelas Filarmônicas e que, geralmente, vão tocar<br />

nas Ban<strong>da</strong>s de Música. As filarmônicas<br />

foram grandes formadoras de músicos no Brasil.<br />

Sobre isso podem ser cita<strong>da</strong>s palavras de<br />

Vicente Salles, um grande estudioso desse tipo<br />

de tradição musical: “a ban<strong>da</strong> de música é, pois,<br />

o conservatório do povo e é, ao mesmo tempo,<br />

nas comuni<strong>da</strong>des mais simples, uma associação<br />

democrática, que consegue desenvolver o<br />

espírito associativo e nivelar as classes sociais.<br />

No Brasil, tem sido, além disso, celeiro dos<br />

músicos de orquestra, no que tange a madeiras,<br />

metais e percussão”. (SALLES, 1985, p. 11).<br />

O termo ban<strong>da</strong> também se refere à filarmônica,<br />

como um sinônimo. O termo filarmônica é<br />

particularmente usado no estado <strong>da</strong> Bahia, mais<br />

do que em qualquer outro estado. Ban<strong>da</strong> é o<br />

termo mais utilizado no Brasil.<br />

No Brasil, as primeiras manifestações de<br />

ban<strong>da</strong> de música são encontra<strong>da</strong>s na Bahia.<br />

De acordo com Almei<strong>da</strong> (apud KIEFER, 1976,<br />

p. 19):<br />

... visitando a Bahia, em 1610, o francês Pyrard<br />

de Laval cita um potentado de então, cujo nome<br />

não menciona, mas que diz ter sido capitão-general<br />

de Angola, o qual possuía uma ban<strong>da</strong> de<br />

música de trinta figuras, todos negros escravos,<br />

cujo regente era um francês provençal. E como<br />

devesse ser melômano, queria que a todo instante<br />

tocasse a sua orquestra, a acompanhar, ain<strong>da</strong>,<br />

uma massa coral “ 4 .<br />

Juvino Alves<br />

Um tipo de corporação musical muito importante<br />

no Brasil colonial foi aquela dos choromeleiros:<br />

5<br />

Os conjuntos instrumentais dos choromeleiros<br />

é que nunca devem ter faltado às festivi<strong>da</strong>des<br />

<strong>da</strong> Senhora do Rosário, como também, muito provavelmente,<br />

deviam abrilhantar o dia <strong>da</strong> coroação<br />

dos reis e rainhas angolas ou crioulos. As<br />

charamelas constituíam especiali<strong>da</strong>de dos negros,<br />

escravos ou não. Trata-se seguramente de<br />

uma herança direta <strong>da</strong> cultura portuguesa, implanta<strong>da</strong><br />

no nordeste brasileiro já desde remotas<br />

eras, inclusive no meio indígena. (DINIZ,<br />

apud CARNEIRO, 1998, p. 17).<br />

A música de barbeiros foi um outro tipo de<br />

manifestação musical ocorri<strong>da</strong> nesse mesmo<br />

período no Brasil e, em particular, na Bahia e<br />

no Rio de Janeiro. Através de relatos históricos<br />

é possível constatar a existência de grupos<br />

musicais bem organizados chamados de choromeleiros<br />

e barbeiros que contribuíram enormemente<br />

para a formação do que hoje chamamos<br />

de Ban<strong>da</strong> de Música e Filarmônica. Segundo<br />

Tinhorão (1998, p. 160), em 1802 o negociante<br />

inglês Thomas Lindley, preso no Forte do Mar,<br />

na Bahia, por tentativa de contrabando, via passar,<br />

“freqüentemente, ban<strong>da</strong>s de música em<br />

grandes lanchas, tocando pelo caminho rumo<br />

às vilas <strong>da</strong> vizinhança, na baía, para comemorar<br />

o aniversário de algum santo ou por ocasião<br />

de alguma festa especial”. E ain<strong>da</strong> acrescenta:<br />

“Esses músicos são pretos retintos, ensaiados<br />

pelos diversos barbeiros-cirurgiões <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de,<br />

3 Igaiara Índio dos Reis é compositor, trombonista e tenente<br />

<strong>da</strong> Polícia Militar <strong>da</strong> Bahia.<br />

4 Esta ban<strong>da</strong> é também referi<strong>da</strong> por Campos, João <strong>da</strong> Silva,<br />

em artigo intitulado “O lendário Bângala”, publicado in<br />

Quatro Séculos de História <strong>da</strong> Bahia, Álbum Comemorativo<br />

do 4º Centenário <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de de Salvador <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> Fiscal <strong>da</strong><br />

Bahia, 1949, pág 210-211. Para este autor, o Bângala (Capitão-mor<br />

Balthazar de Aragão) fora o organizador <strong>da</strong> referi<strong>da</strong><br />

ban<strong>da</strong> de música – também denomina<strong>da</strong> de “saubara” –<br />

composta de 30 escravos negros e regi<strong>da</strong> por um francês <strong>da</strong><br />

Provença.<br />

5 Os choromeleiros eram conjuntos musicais de caráter militar<br />

e religioso formados por instrumentos de palheta, conhecido<br />

como charamela (antigo instrumento de palheta<br />

dupla, de som estridente, do qual descendem o oboé e o<br />

fagote). O termo “choromelleyros” (ou charamelleiros)<br />

abrangia não apenas os tocadores <strong>da</strong> charamela, mas também<br />

os de outros instrumentos de sopro. (CARNEIRO,<br />

1998, 17)<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 163-171, jan./jun., 2006 165


Ban<strong>da</strong>s, filarmônicas e mestres de ban<strong>da</strong> <strong>da</strong> Bahia: formação de músicos e ci<strong>da</strong>dãos<br />

<strong>da</strong> mesma cor, os quais vêm ser músicos itinerantes<br />

desde tempos imemoriais”.<br />

Manuel Querino, em seu livro Bahia de Outrora,<br />

de 1916 (QUERINO, apud TINHORÃO<br />

1998, p. 162), narra a participação dos barbeiros,<br />

nos fins do século XIX, na ain<strong>da</strong> hoje conheci<strong>da</strong><br />

Festa do Bonfim: “E todos subiam e<br />

desciam acompanhados pelos ternos de barbeiros,<br />

ao som de cantatas apropria<strong>da</strong>s, numa alegria<br />

indescritível. Enquanto uns se entregavam<br />

ao serviço <strong>da</strong> lavagem, outros, a um lado <strong>da</strong><br />

igreja, entoavam chulas e cançonetas, acompanhados<br />

de violão”.<br />

Pelo visto a música de barbeiros perdura até<br />

nossos dias. No caso <strong>da</strong> Bahia ain<strong>da</strong> existem<br />

vestígios desses grupos em ci<strong>da</strong>des do interior.<br />

Sobre isso o Mestre Bernardo <strong>da</strong> Silva dá um<br />

testemunho, acrescentando uma suposta origem<br />

<strong>da</strong> filarmônica através do grupo de barbeiros:<br />

166<br />

Ain<strong>da</strong> conheci uma aqui. Vi tocar aqui em Serrinha<br />

em [19]52 um grupo de barbeiro de Tanque<br />

Grande, eu vi. Era uma coisa até engraça<strong>da</strong>, viu?<br />

Era. Era tudo de ouvido. E <strong>da</strong>í do grupo de barbeiro<br />

se resolveu criar escolas, com a finali<strong>da</strong>de<br />

de fazer música. De estu<strong>da</strong>r música, canto e <strong>da</strong>nça,<br />

não é? Se destinava a tudo isso, o canto a<br />

<strong>da</strong>nça e a música. Depois se desmembrou, não<br />

é? As escolas de <strong>da</strong>nça, as de canto e as de<br />

música. Aí surgiram as filarmônicas, que é diferente<br />

dos grupos de barbeiros. Enquanto os barbeiros<br />

eram músicos que tocavam de ouvido, as<br />

filarmônicas tocavam por música, como é até hoje,<br />

não é? (SILVA, 2002).<br />

2. Ban<strong>da</strong>s de Músicas e Filarmônicas<br />

e o ensino de música<br />

O século XIX no Brasil é marcado pelo surgimento<br />

de importantes manifestações musicais<br />

como a chega<strong>da</strong> aos Salões Imperiais de <strong>da</strong>nças<br />

em voga na Europa como a Polca, a Mazurca,<br />

o Schotisch, a Quadrilha; pelo surgimento<br />

do Choro; o advento do Nacionalismo Musical<br />

não só no Brasil, mas em outros países do mundo;<br />

e pelo movimento que pode ser considerado<br />

o mais amplo, difuso – ocorrido em todo o<br />

Brasil concomitantemente – e uma <strong>da</strong>s mais<br />

importantes manifestações culturais brasileiras:<br />

a Ban<strong>da</strong> de Música e a Filarmônica, que se<br />

constituíram como ver<strong>da</strong>deiros laboratórios <strong>da</strong>s<br />

diferentes tendências de tudo que acontecia na<br />

música no Brasil, e no mundo, apontando, para<br />

os anos que viriam, características estéticomusicais<br />

muito próprias dentro do amplo universo<br />

<strong>da</strong> cultural musical brasileira.<br />

As Socie<strong>da</strong>des Filarmônicas surgiram oficialmente<br />

e em suas formações como são vistas<br />

até hoje, a partir do advento oficial <strong>da</strong> Ban<strong>da</strong><br />

Militar no Brasil Colonial, quando foi determina<strong>da</strong><br />

a organização de uma ban<strong>da</strong> de música<br />

em ca<strong>da</strong> Regimento de Infantaria.<br />

Com o decreto de 20 de agosto de 1802, ficou<br />

determina<strong>da</strong> a organização, em ca<strong>da</strong> regimento<br />

de infantaria, de uma ban<strong>da</strong> de música com instrumentação<br />

fixa, passando o seu financiamento<br />

<strong>da</strong>s mãos <strong>da</strong> oficiali<strong>da</strong>de para o Erário régio.<br />

Outro decreto, de 27 de março de 1810, estabeleceu<br />

que em ca<strong>da</strong> um dos quatro regimentos de<br />

Infantaria e Artilharia <strong>da</strong> corte, fosse forma<strong>da</strong><br />

uma ban<strong>da</strong> de música com 12 ou 16 músicos, não<br />

podendo este número ser aumentado por motivo<br />

algum. Um novo decreto, de 11 de dezembro<br />

de 1817, determinou aos batalhões de Infantaria<br />

e de Caçadores a organização de suas respectivas<br />

ban<strong>da</strong>s de música, utilizando-se os seguintes<br />

instrumentos: duas primeiras clarinetas,<br />

sendo uma delas também o mestre, duas segun<strong>da</strong>s<br />

clarinetas, um flautim, uma requinta, duas<br />

trompas, dois clarins, dois fagotes, um trombão<br />

ou serpentão, um segundo serpentão, um bombo<br />

e uma caixa de rufo. (REIS, apud SCHWEBEL<br />

1987, p. 8).<br />

As Socie<strong>da</strong>des Filarmônicas, de Euterpe ou<br />

Lítero Musicais são ver<strong>da</strong>deiros centros culturais<br />

de formação musical e ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, que têm<br />

como objetivo desenvolver em ca<strong>da</strong> indivíduo<br />

uma nobre e importante quali<strong>da</strong>de humana: a<br />

sensibili<strong>da</strong>de. Essas socie<strong>da</strong>des atuam como<br />

extensões <strong>da</strong> família na formação educacional<br />

e músico-profissional do sujeito na socie<strong>da</strong>de,<br />

incorporando-o eticamente na coletivi<strong>da</strong>de. Segundo<br />

afirmação de Fred Dantas, “Elas eram<br />

constituí<strong>da</strong>s de uma diretoria que se interessava<br />

pela criação de bibliotecas, salas para audição<br />

de poemas e apresentações de <strong>da</strong>nça”.<br />

(http://www.casa<strong>da</strong>sfilarmonicas.org.br/). As<br />

Ban<strong>da</strong>s liga<strong>da</strong>s a essas socie<strong>da</strong>des apresentamse<br />

em coretos, festas e comemorações cívicas<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 163-171, jan./jun., 2006


e religiosas. Ain<strong>da</strong> segundo Fred Dantas, “A<br />

Socie<strong>da</strong>de Filarmônica Erato Nazarena, <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />

de Nazaré-Bahia, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em 1863, foi a<br />

primeira a ser cria<strong>da</strong> no Estado <strong>da</strong> Bahia”. (http:/<br />

/www.casa<strong>da</strong>sfilarmonicas.org.br/).<br />

A ativi<strong>da</strong>de musical <strong>da</strong>s Ban<strong>da</strong>s e Filarmônicas<br />

na Bahia foi muito intensa no final do século<br />

XIX e início do XX; basta observar a quanti<strong>da</strong>de<br />

de Filarmônicas que surgiram na Bahia nesse<br />

período. Segundo a Casa <strong>da</strong>s Filarmônicas, 6<br />

existem hoje no Estado <strong>da</strong> Bahia cerca de oitenta<br />

e seis filarmônicas e uma ban<strong>da</strong> em ativi<strong>da</strong>de<br />

http://www.casa<strong>da</strong>sfilarmonicas.org.br/). Dessas,<br />

vinte e duas Filarmônicas ultrapassam os<br />

cem anos de existência e a Ban<strong>da</strong> <strong>da</strong> Polícia<br />

Militar do Estado <strong>da</strong> Bahia “Maestro Wanderley”,<br />

a que já me referi, hoje com seus 154 anos<br />

de i<strong>da</strong>de, é a mais antiga corporação musical<br />

militar do Brasil em ativi<strong>da</strong>de. De acordo com<br />

minhas pesquisas, além dessas corporações,<br />

existem ain<strong>da</strong> quatro Filarmônicas e três Ban<strong>da</strong>s<br />

ain<strong>da</strong> não incluí<strong>da</strong>s nesta lista. Destas quatro<br />

Filarmônicas, três estão desativa<strong>da</strong>s e uma<br />

está em ativi<strong>da</strong>de, sendo que somente três têm<br />

mais de cem anos de existência. Sendo assim,<br />

no período de vi<strong>da</strong> de Tranquillino Bastos existiam<br />

cinqüenta e duas corporações musicais<br />

civis e militares em plena ativi<strong>da</strong>de na Bahia.<br />

Vale a pena salientar que a maioria dessas corporações<br />

está localiza<strong>da</strong> no Recôncavo Baiano<br />

e proximi<strong>da</strong>des.<br />

Durante minhas pesquisas, constatei a presença<br />

de dois outros tipos de corporações liga<strong>da</strong>s<br />

e origina<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s Ban<strong>da</strong>s e Filarmônicas. A<br />

primeira é uma orquestra constituí<strong>da</strong> somente<br />

por mulheres, de nome “Lyra de Ouro Sobre<br />

Azul”, que atuou em fins do século XIX e início<br />

do XX. Essa Orquestra era forma<strong>da</strong> por flautas,<br />

violões, bandolins e bandurras e era agrega<strong>da</strong><br />

à Filarmônica 30 de Junho, <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de<br />

Serrinha-Bahia. Para essa formação instrumental,<br />

eu encontrei no arquivo <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong>de Orpheica<br />

Lyra Ceciliana uma obra intitula<strong>da</strong> “Um<br />

Passeio a Ba<strong>da</strong>joz - Novo Passa-Calle”, <strong>da</strong><br />

autoria de Joaquim José d’Almei<strong>da</strong>. A partitura<br />

dessa obra indica os seguintes instrumentos:<br />

flautas, violinos, violoncelos, bandolins, bandoletas<br />

(bandurras), violas e violões. A segun<strong>da</strong><br />

Juvino Alves<br />

corporação é a Ban<strong>da</strong> de Música de Gaita 7 ou<br />

simplesmente Ban<strong>da</strong> de Música que é forma<strong>da</strong><br />

apenas de homens e suas primeiras manifestações<br />

são, aproxima<strong>da</strong>mente, <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1920.<br />

Segundo Lydia Hortélio (1984, p. 3), que<br />

documentou e estu<strong>da</strong> essa tradição musical<br />

desde 1968, essas Ban<strong>da</strong>s originaram-se <strong>da</strong>s<br />

Ban<strong>da</strong>s de Música e <strong>da</strong>s Filarmônicas: “As<br />

Zabumbas são certamente mais antigas e delas<br />

provavelmente saíram as Ban<strong>da</strong>s de Música<br />

inspira<strong>da</strong>s nas Ban<strong>da</strong>s de Música <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de,<br />

embora seu conteúdo musical seja mais próximo<br />

<strong>da</strong> tradição cultural de origem.”<br />

Essas Ban<strong>da</strong>s também são chama<strong>da</strong>s de<br />

“Ban<strong>da</strong> de Gaita”, “Bandinha de Gaita” ou<br />

“Música de Gaita” e são forma<strong>da</strong>s por: gaitas,<br />

caixa clara, bombo e par de pratos. “As gaitas<br />

são imitações em madeira <strong>da</strong>s clarinetas existentes<br />

nas Ban<strong>da</strong>s e Filarmônicas. A influência<br />

<strong>da</strong>s Ban<strong>da</strong>s e Filarmônicas sobre a Ban<strong>da</strong> de<br />

Gaita pode ser observa<strong>da</strong> também nas estruturas<br />

composicionais <strong>da</strong>s músicas que elas tocam”.<br />

(HORTÉLIO, 1984, p. 5). Estudos de<br />

Lydia Hortélio detectaram quatro dessas Ban<strong>da</strong>s:<br />

Ban<strong>da</strong> <strong>da</strong> Lagoa Cava<strong>da</strong>, Ban<strong>da</strong> <strong>da</strong> Fazen<strong>da</strong><br />

Tira Barro, Ban<strong>da</strong> <strong>da</strong> Fazen<strong>da</strong> Grota<br />

Fun<strong>da</strong> e Ban<strong>da</strong> de Zé de Bilia; dessas, só está<br />

em atuação a última, as demais foram extintas.<br />

To<strong>da</strong>s essas Ban<strong>da</strong>s foram localiza<strong>da</strong>s em fazen<strong>da</strong>s<br />

do município de Serrinha-Bahia.<br />

3. Mestres de Ban<strong>da</strong> <strong>da</strong> Bahia<br />

Os Mestres de Ban<strong>da</strong> são ver<strong>da</strong>deiros apóstolos,<br />

dedicados ao ensino <strong>da</strong> música atuando<br />

também como regente, compositor, arranjador,<br />

conduzindo eticamente seus discípulos na socie<strong>da</strong>de,<br />

e assim formando ci<strong>da</strong>dãos e profissionais<br />

<strong>da</strong> música. Segundo Fred Dantas (2003, p.<br />

103-4), na filarmônica a hierarquia de tutores e<br />

pupilos é estabeleci<strong>da</strong> <strong>da</strong> seguinte maneira: um<br />

mestre, um contramestre, um professor, os dis-<br />

6 Casa <strong>da</strong>s Filarmônicas, socie<strong>da</strong>de civil de direito privado,<br />

sem fins lucrativos, cujo principal objetivo é preservar,<br />

manter e soerguer as socie<strong>da</strong>des filarmônicas.<br />

7 Tipo de flauta de formato vertical construí<strong>da</strong> pelos próprios<br />

tocadores.<br />

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Ban<strong>da</strong>s, filarmônicas e mestres de ban<strong>da</strong> <strong>da</strong> Bahia: formação de músicos e ci<strong>da</strong>dãos<br />

cípulos e os aprendizes. O mestre rege a ban<strong>da</strong><br />

e prepara o repertório, com arranjos próprios,<br />

arranjos de outros compositores e composições<br />

próprias. O contramestre é um músico experiente,<br />

de destaque entre os demais que afina a<br />

ban<strong>da</strong>, ensaia os trechos mais difíceis com os<br />

colegas e substitui o mestre na sua ausência. O<br />

professor de música é uma pessoa, às vezes<br />

músico veterano, com especial talento para pe<strong>da</strong>gogia,<br />

responsável pela escolinha de música<br />

que irá prover o corpo musical de novos executantes.<br />

Os discípulos são músicos de destaque,<br />

que o mestre seleciona para transmitir seus<br />

conhecimentos de regência, instrumentação e<br />

liderança. Finalmente, os aprendizes são os alunos<br />

matriculados na escola de música manti<strong>da</strong><br />

pela socie<strong>da</strong>de filarmônica.<br />

Uma <strong>da</strong>s mais importantes personali<strong>da</strong>des<br />

na criação, organização e difusão <strong>da</strong>s Socie<strong>da</strong>des<br />

Filarmônicas na Bahia foi o Mestre de Ban<strong>da</strong><br />

Manuel Tranquillino Bastos 8 que atuava<br />

como compositor, educador musical, arranjador,<br />

instrumentista, escritor, teórico musical e obolicionista,<br />

ao lado de relevantes figuras de sua<br />

época, como o distinto poeta Sabino de Campos,<br />

que escreveu a letra do “Hymno <strong>da</strong> Cachoeira”,<br />

composto por Tranquillino Bastos, em<br />

1922. De acordo com Jorge Ramos, Tranquillino<br />

nasceu <strong>da</strong> união de um português com uma<br />

negra alforria<strong>da</strong> e, ain<strong>da</strong> menino, aprendeu a<br />

tocar clarineta e se incorporou ao Coro de Santa<br />

Cecília, a padroeira dos músicos e, mais tarde,<br />

à Ban<strong>da</strong> Marcial São Benedito, forma<strong>da</strong><br />

basicamente por músicos negros. (A TARDE-<br />

Cultural [Salvador-Ba], 07 de Outubro de 2000).<br />

Fred Dantas afirma que “Manuel Tranquilino<br />

Bastos foi o principal compositor surgido no<br />

seio <strong>da</strong>s filarmônicas <strong>da</strong> Bahia no final do século<br />

XIX”. (DANTAS, 2003, p. 116). De acordo<br />

com sua autobiografia, escrita em seu<br />

“Caderno de Anotações” (BASTOS, 1910-<br />

1924), Tranquillino foi o responsável pelo surgimento<br />

de mais de seis dessas socie<strong>da</strong>des, criando<br />

ou organizando-as. Dentre elas estão a Ban<strong>da</strong><br />

Musical <strong>da</strong> “Socie<strong>da</strong>de Euterpe Ceciliana” e<br />

sua “orchestra religiosa”, que mais tarde tornou-se<br />

a “Socie<strong>da</strong>de Cultural Orpheica Lyra<br />

Ceciliana” (1870), a “Filarmônica Comercial”<br />

168<br />

e a “Harpa Sanfelixta”, <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de São Félix,<br />

a Ban<strong>da</strong> <strong>da</strong> “Socie<strong>da</strong>de Filarmônica Victoria”,<br />

de Feira de Santana e a “Socie<strong>da</strong>de Musical<br />

Lyra São Gonçalense”, de São Gonçalo dos<br />

Campos, hoje to<strong>da</strong>s centenárias e algumas delas<br />

extintas, como a “Socie<strong>da</strong>de Filarmônica<br />

Victoria”, a “Harpa Sanfelixta” e a “Filarmônica<br />

Comercial”. A primeira Ban<strong>da</strong> regi<strong>da</strong> por<br />

Tranquillino pertencia à “Socie<strong>da</strong>de Recreio<br />

Cachoeirano”.<br />

Manuel Tranquillino Bastos esteve sempre<br />

à frente dos movimentos sociais e políticos de<br />

sua ci<strong>da</strong>de natal e de seu país. Isso pode ser<br />

verificado através de algumas de suas obras 9<br />

como o “Hymno Abolicionista” (1884), “Hymno<br />

13 de Maio” (1888), “Hymno <strong>da</strong> Cachoeira”,<br />

o “Dobrado Navio Negreiro”, homônimo<br />

do poema de Castro Alves, seu contemporâneo.<br />

A Letra do “Himno Abolicionista” proclama:<br />

“Brasileiros cantai liber<strong>da</strong>de/ Nossa pátria<br />

não quer mais escravos/Os grilhões vão quebrar-se<br />

num povo/De origem somente de Bravos”...)<br />

e, mais adiante: “O jugo do servilismo/<br />

Role em pe<strong>da</strong>ços no chão/ Pize altiva a liber<strong>da</strong>de<br />

sobre o pó <strong>da</strong> escravidão (...) Quebre-se os<br />

ferros <strong>da</strong> tyrania, sejamos todos livres um dia”.<br />

Essas obras eram compostas como forma<br />

de protesto e repúdio à escravidão, expressado<br />

também através de seus escritos em crônicas<br />

que versavam ain<strong>da</strong> sobre assuntos diversos<br />

como arte, religião, cultura, vi<strong>da</strong>, morte, comportamento<br />

social, música, e vários outros temas<br />

humanísticos. Essas crônicas eram<br />

publica<strong>da</strong>s numa coluna dominical denomina<strong>da</strong><br />

de “Cartas Musicaes” no semanário “O Pequeno<br />

Jornal” que circulava em Cachoeira. Elas<br />

foram escritas entre 1924 até sua morte, em<br />

1935. Tais crônicas foram arrola<strong>da</strong>s por Tran-<br />

8 Ver, a respeito, SANTOS FILHO, Juvino Alves. Manuel<br />

Tranquilino Bastos (1850-1935): mestre dos mestres de<br />

ban<strong>da</strong> <strong>da</strong> Bahia. In:MENEZES, Jaci et al <strong>Educação</strong> na Bahia:<br />

memória, registros, testemunhos. Salvador: EDUNEB, 2005;<br />

e SANTOS FILHO, Juvino Alves. Manuel Tranquillino Bastos:<br />

estudo de duas obras para clarineta. Universi<strong>da</strong>de Federal<br />

<strong>da</strong> Bahia, Tese de Doutorado, 2003.<br />

9 Uma pequena amostra <strong>da</strong> obra de Manuel Tranquilino Bastos<br />

foi produzi<strong>da</strong> pelo autor desse texto no CD “Cartas<br />

Musicaes – Manuel Tranquilino Bastos – O Mestre dos Mestres<br />

de Ban<strong>da</strong> <strong>da</strong> Bahia”, projeto vencedor do Prêmio Brasken<br />

Cultura e Arte 2002, patrocinado pela Braskem S.A.<br />

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quillino em um livro, não publicado, intitulado<br />

“Minhas Percepções”. Tranquillino Bastos legou<br />

à posteri<strong>da</strong>de um acervo com cerca de<br />

1.500 (hum mil e quinhentos) documentos musicais<br />

entre manuscritos e impressos constando<br />

partituras, livros de crônicas e de teoria <strong>da</strong><br />

música de sua autoria e de outros autores brasileiros<br />

e estrangeiros.<br />

Tranquillino Bastos formou muitas gerações<br />

de músicos em várias ci<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Bahia durante<br />

sua longa ativi<strong>da</strong>de – que durou mais de sessenta<br />

anos – como professor de música,<br />

regente, compositor, arranjador, instrumentista,<br />

formando músicos de renome, como Irineu Sacramento,<br />

que o sucedeu à frente <strong>da</strong> ban<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

Socie<strong>da</strong>de Orpheica Lyra Ceciliana e que conquistou<br />

notorie<strong>da</strong>de como Mestre de Ban<strong>da</strong> na<br />

Bahia.<br />

O domínio que Manuel Tranquillino Bastos<br />

possuía em muitas áreas do conhecimento humano,<br />

como a medicina natural, a homeopatia,<br />

o estudo do espiritismo, <strong>da</strong> filosofia, conhecimento<br />

de línguas, o domínio <strong>da</strong>s letras, um amplo<br />

e variado conhecimento musical e uma<br />

elabora<strong>da</strong> apreciação crítica do mundo, documenta<strong>da</strong><br />

em seu livro não publicado “Minhas<br />

Percepções”, o distingue dos demais Mestres<br />

e faz de Manuel Tranquillino Bastos um homem<br />

além do seu tempo.<br />

Outros destacados Mestres de Ban<strong>da</strong> e compositores<br />

que viveram na Bahia na época de<br />

Manuel Tranquillino Bastos serão aqui também<br />

referidos: Lourenço José de Aragão (1815-<br />

1887), João Manoel Dantas (Cachoeira, 1815-<br />

1874), Miguel dos Anjos de Sant’Anna Torres<br />

(Salvador, 1837-1902), José de Souza Aragão<br />

(Cachoeira, 1819-1904), Francisco José <strong>da</strong><br />

Costa (Cachoeira, 1830-1908), Eduardo Mendes<br />

Franco (Cachoeira, 1852- ?), Heráclio Paraguassu<br />

Guerreiro (Maragogipe, 1877-1950),<br />

Álvaro Villares Neves (Rio de Contas, 1886-<br />

1986), Isaias Gonçalves Amy (Queima<strong>da</strong>s,<br />

1888-1960), Júlio Cézar Souza (Mucugê, 1889-<br />

1983), Ovydio Santa Fé Aquino (Belmonte,<br />

1898-1987), Almiro Oliveira (Nazaré, 1903-<br />

1993), Armindo Oliveira (Nazaré), Amando<br />

Nobre (Maragogipe, 1903-1970), Ceciliano de<br />

Carvalho (Senhor do Bomfim), Esaú Pinto (Rio<br />

Juvino Alves<br />

de Contas), João Antônio Wanderley (Salvador),<br />

Estevam Moura (Santo Estevão, 1907-<br />

1951), Norberto de Aquino-Mestre Xaxá (Irará),<br />

João Sacramento Neto (Condeúba, 1933-<br />

?), Osório de Oliveira (Santo Amaro), Santa<br />

Isabel, João Mariano Sobral, Tertuliano Santos<br />

(Feira de Santana), Waldemar <strong>da</strong> Paixão (Salvador),<br />

Irineu Sacramento (Cachoeira), Carlos<br />

Teixeira (Nazaré), Anthenor Bastos (Cachoeira),<br />

Candido Alves de Almei<strong>da</strong> (Castro Alves),<br />

João Nunes Azevedo (Serrinha) e Martinho<br />

Pereira de Araújo (Remanso, 1887[?]-1971<br />

Salvador).<br />

Além dos mestres e compositores, também<br />

podem ser citados alguns importantes músicos<br />

dessa mesma época, que estiveram ligados às<br />

Ban<strong>da</strong> e Socie<strong>da</strong>de Filarmônica: Lourenço José<br />

de Aragão (1815-1887), também compositor e<br />

Mestre de Ban<strong>da</strong>; Feliciano Batista, que tocava<br />

também oboé e corno-inglês; Joaquim Silvério<br />

de Bittencourt e Sá (Salvador, 1829-1899),<br />

que foi também compositor, organista, tocador<br />

de violeta e teve como irmão o compositor<br />

Manuel Tomé de Bittencourt e Sá; Anthenor<br />

Bastos (Cachoeira, 1889- ?) filho de Tranquillino<br />

Bastos, que além de clarinetista foi compositor<br />

e Mestre de Ban<strong>da</strong>, atuando na “Socie<strong>da</strong>de<br />

Filarmônica Filhos de Apolo” de Santo Amaro<br />

<strong>da</strong> Purificação e Eustáquio Rebouças <strong>da</strong> Cruz<br />

(Maragogipe, 1837-1881), que estudou inicialmente<br />

fagote e oboé.<br />

4. Conclusão<br />

As Ban<strong>da</strong>s e Filarmônicas – que representam<br />

centros de fomento a manifestações culturais<br />

no Brasil, juntamente com os Mestres de<br />

Ban<strong>da</strong> – que representavam o esteio dessas<br />

corporações, ensinando a arte musical e<br />

<strong>da</strong>ndo,ao mesmo tempo, os princípios na formação<br />

do ci<strong>da</strong>dão, tiveram total falta de amparo,<br />

vivendo momentos de decadência. Contudo,<br />

vivem agora instantes de esperança em atuarem<br />

em suas reais funções, em decorrência do<br />

surgimento de instituições como a Casa <strong>da</strong>s Filarmônicas<br />

e a FUNARTE, que vêm realizando<br />

trabalhos na busca de ampará-las e<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 163-171, jan./jun., 2006 169


Ban<strong>da</strong>s, filarmônicas e mestres de ban<strong>da</strong> <strong>da</strong> Bahia: formação de músicos e ci<strong>da</strong>dãos<br />

soerguê-las. São também, como se pode ver<br />

em diversos momentos do nosso texto, espaços<br />

de participação dos negros na socie<strong>da</strong>de baiana,<br />

seja como escravos, no passado, seja como<br />

homens livres. Executores, portanto, não apenas<br />

do trabalho pesado, mecânico, manual, mas<br />

também do que se pode considerar expressão<br />

de linguagens artísticas.<br />

Manuel Tranquillino Bastos revela-se um indivíduo<br />

de incontestável importância cultural. Sua<br />

atuação sócio-política e artístico-cultural, testemunha<strong>da</strong><br />

pelos vários acontecimentos históricos,<br />

o consagrou como abolicionista, fun<strong>da</strong>dor e organizador<br />

de Ban<strong>da</strong>s e Socie<strong>da</strong>des Filarmônicas,<br />

escritor, clarinetista, Mestre de Ban<strong>da</strong>. Em sua<br />

época, Tranquillino teve o merecido reconhecimento<br />

pela socie<strong>da</strong>de; hoje, contudo, é apenas<br />

mais um grande vulto <strong>da</strong> história <strong>da</strong> música bra-<br />

170<br />

REFERÊNCIAS<br />

sileira que esmaece, dia após dia, na memória<br />

<strong>da</strong>queles que o conhecem ou conheceram, salvo<br />

trabalhos como este aqui realizado e o de seu<br />

biógrafo Jorge Ramos que tenta trazê-lo, juntamente<br />

com sua obra, para os nossos dias.<br />

Ban<strong>da</strong>s, Filarmônicas, Mestres e instrumentistas<br />

são, no nosso entendimento, elementos de<br />

grande importância no estudo dos diversos processos<br />

educativos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira, atuando<br />

não apenas na aquisição de habili<strong>da</strong>des<br />

referentes ao uso de instrumentos e à execução<br />

de textos musicais, de peças escritas ou<br />

transmiti<strong>da</strong>s “de ouvido a ouvido”, como também<br />

<strong>da</strong> transmissão de valores no aprendizado<br />

<strong>da</strong> soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> disciplina, do trabalho coletivo,<br />

<strong>da</strong> formação de coletivi<strong>da</strong>des. Mais ain<strong>da</strong>,<br />

no que poderíamos chamar de “<strong>Educação</strong><br />

<strong>da</strong> Sensibili<strong>da</strong>de”, articulando múltiplas formas<br />

de expressão do belo, <strong>da</strong> dor ou <strong>da</strong> alegria.<br />

BASTOS, Manuel Tranquillino. Caderno de Anotações, 1910-1924 (?). Acervo de Jorge Ramos, Salvador,<br />

[s.n: s.a.].<br />

CARNEIRO, Maurício Soares. A música de câmara brasileira: clarineta e piano-clarineta solo. Monografia<br />

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DANTAS, Fred. Teoria e leitura <strong>da</strong> música para filarmônicas. Salvador: Selo Editorial <strong>da</strong> Casa <strong>da</strong>s Filarmônicas,<br />

2003.<br />

HORTÉLIO, Lydia Maria. Instrumentos musicais brasileiros: Região Nordeste, Estado Bahia. MADUREIRA,<br />

Antônio José (Coord.). Relatório de pesquisa, Salvador: FUNART; FUNDAJ, 1984. (Caderno 3)<br />

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Relatório de pesquisa, Salvador, v.1, 1968. (Trabalho não publicado)<br />

KIEFER, Bruno. História <strong>da</strong> música brasileira: dos primórdios ao inicio do século XX. Porto Alegre:<br />

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RAMOS, Jorge. Conservador antenado. A Tarde, Salvador, 7 out. 2000. Caderno cultural, p.8.<br />

REIS, Dalmo Trin<strong>da</strong>de. Ban<strong>da</strong>s de música, fanfarras e ban<strong>da</strong>s marciais. Rio de Janeiro: Eulenstein Música,<br />

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REIS, Igaiara. Índio, compositor e trombonista <strong>da</strong> Ban<strong>da</strong> Polícia Militar <strong>da</strong> Bahia “Maestro Wanderley”.<br />

Entrevistado pelo autor em 3 de maio de 2003, Salvador. Gravação em fita cassete.<br />

SALLES, Vicente. Socie<strong>da</strong>des de Euterpe: as ban<strong>da</strong>s de música no Grão-Pará. Brasília: Gene Gráfica e<br />

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_____. Manuel Tranquillino Bastos: estudo de duas obras para clarineta. Tese (Doutorado) - Universi<strong>da</strong>de<br />

Federal <strong>da</strong> Bahia, 2003.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 163-171, jan./jun., 2006


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_____. Manuel Tranquilino Bastos (1850-1935): mestre dos mestres de ban<strong>da</strong> <strong>da</strong> Bahia. In: MENEZES, Jaci<br />

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Baianos – CEB, n. 125, p.1-57, mar. 1987.<br />

TINHORÃO, José Ramos. História social <strong>da</strong> música popular brasileira. São Paulo: Ed.34, 1998.<br />

Recebido em 28.02.06<br />

Aprovado em 18.04.06<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 163-171, jan./jun., 2006 171


RESUMO<br />

UMA ESCOLA DE MÚSICA E<br />

ARTES BRASILEIRAS NA BAHIA<br />

Katharina Döring<br />

Katharina Döring*<br />

O presente artigo propõe a reflexão sobre a possível criação de uma Escola<br />

de Música e/ou Artes, através dos departamentos <strong>da</strong> UNEB, no interior <strong>da</strong><br />

Bahia. Essa idéia surge a partir de estudos e práticas de pesquisa e ensino<br />

com tradições musicais populares que refletem a diversi<strong>da</strong>de estética e artística<br />

desse país e não se encontram inseri<strong>da</strong>s nas instituições de ensino dos diversos<br />

níveis no estado <strong>da</strong> Bahia. A metodologia consiste em reflexões teóricas a<br />

partir de estudos e literatura sobre identi<strong>da</strong>de e diversi<strong>da</strong>de cultural, Estudos<br />

Culturais, arte-educação / educação musical e processos civilizatórios dos<br />

povos afro-ameríndios. As principais linhas <strong>da</strong> argumentação, para uma<br />

transformação <strong>da</strong> prática e teoria em arte-educação com identi<strong>da</strong>de e<br />

diversi<strong>da</strong>de cultural, são frutos de observações e pesquisas de campo em<br />

regiões culturais distintas como também <strong>da</strong> prática de ensino com educação<br />

musical e arte-educação em diversas instituições educacionais e socioculturais.<br />

O artigo se conclui com a apresentação de dois projetos no âmbito <strong>da</strong> UNEB<br />

que estão em fase de implantação e poderão trazer experiências práticas para<br />

alicerçar e ampliar a proposta inicial <strong>da</strong> autora.<br />

Palavras-chave: <strong>Educação</strong> Musical – Arte-<strong>Educação</strong> – Identi<strong>da</strong>de e<br />

Diversi<strong>da</strong>de Cultural – Artes e Culturas Populares Locais<br />

ABSTRACT<br />

A SCHOOL FOR BRAZILIAN MUSIC AND ARTS IN BAHIA<br />

The present article proposes a reflection about a future creation of a Music or<br />

Art School in the interior of Bahia, by intermediation of the UNEB university<br />

faculties. This idea originates from several studies and practical experiences<br />

with popular musical traditions that reflect the aesthetical and artistic diversity<br />

of this land and which is not included in the diverse levels of educational system<br />

of the state of Bahia. The methodology consists in theoretical reflections<br />

substantiated by studies and literature about cultural identity and diversity,<br />

Cultural Studies, art and music education, and processes of civilization of the<br />

Afro-Amerindian peoples. The principal items and arguments for a<br />

transformation in practice and theory of art-education with cultural identity<br />

and diversity are resulting from observation and research in various cultural<br />

regions as well as from practical experience in art and music education in<br />

* Mestre em Etnomusicologia. Professora Assistente de Arte-<strong>Educação</strong>, Departamento de <strong>Educação</strong>, Campus I –<br />

UNEB. E-mails: Katharinadoring@yahoo.com.br / Katharina@atarde.com.br<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 173-184, jan./jun., 2006 173


Uma escola de música e artes brasileiras na Bahia<br />

Introdução<br />

174<br />

several educational and sociocultural institutions. The article concludes with<br />

the summary of two projects which are in process of realization in the realm of<br />

the UNEB and might bring some practical experiences to corroborate and<br />

enrich the suggestion of the author.<br />

Keywords: Music Education – Art-Education – Cultural Identity and Diversity<br />

– Local Popular Arts and Cultures<br />

Como seria uma Escola de Música e Artes<br />

que incluísse e refletisse os processos identitários<br />

e a diversi<strong>da</strong>de cultural <strong>da</strong>s suas regiões?<br />

Muitas pessoas, principalmente artistas, compositores,<br />

professores de artes, mestres <strong>da</strong> tradição<br />

oral, educadores, pesquisadores, e agentes<br />

socioculturais já devem der sonhados com uma<br />

escola com cara nordestina / brasileira. No entanto,<br />

ain<strong>da</strong> não encontramos uma escola dessa<br />

característica no Nordeste inteiro, uma região<br />

que deu origem a inúmeros estilos, gêneros e<br />

ritmos musicais, poéticos, cênicos e coreográficos<br />

e incontáveis músicos e compositores reconhecidos<br />

regional e (inter)nacionalmente.<br />

Existem sim, algumas iniciativas que partiram<br />

principalmente de diversas organizações no terceiro<br />

setor, utilizando a arte de forma geral (<strong>da</strong>nça,<br />

música, teatro, artes plásticas etc.) e muitas<br />

vezes a cultura regional, como uma ferramenta<br />

de transformação social voltado para jovens e<br />

crianças em situações de risco. Na ci<strong>da</strong>de de<br />

Salvador p. ex. encontramos várias instituições<br />

que ensinam práticas locais (capoeira, <strong>da</strong>nça<br />

afro, música popular entre outros), inclusive com<br />

produções artisticamente muito interessantes,<br />

sem falar do valor social agregado a estas ativi<strong>da</strong>des<br />

e os resultados decorrentes.<br />

Na presente reflexão me concentro na questão<br />

do ensino musical, sendo que os argumentos<br />

aqui colocados podem ser ampliados para<br />

uma escola de artes de forma geral, abrangendo<br />

o campo <strong>da</strong>s artes cênicas e visuais igualmente.<br />

A ênfase na música como eixo central<br />

<strong>da</strong> minha argumentação se deve principalmente<br />

à minha própria formação e experiência em<br />

educação musical e etnomusicologia, como também<br />

ao fato de que, na minha avaliação, o ensi-<br />

no musical na Bahia entre as formações artísticas<br />

ain<strong>da</strong> está mais distante dos conteúdos regionais<br />

e experiências locais, do que to<strong>da</strong>s as<br />

outras linguagens artísticas. Por outro lado, são<br />

e sempre foram as criações e inovações musicais<br />

que renderam à Bahia um reconhecimento<br />

nacional como berço <strong>da</strong> musicali<strong>da</strong>de genuinamente<br />

brasileira, a qual não está inseri<strong>da</strong> na<br />

educação musical.<br />

Os espaços formais de ensino musical se<br />

constituem na teoria e prática em 80 % do repertório,<br />

<strong>da</strong> metodologia e <strong>da</strong>s referências estéticas<br />

e culturais cultivando a música clássica<br />

européia, a qual tem sua importância e contribuição<br />

inegável para a música e cultura brasileira,<br />

porém não representa as culturas, artes e<br />

vivências regionais do seu povo e também não<br />

representa a música popular brasileira que já<br />

constitui um universo musical internacionalmente<br />

reconhecido. Antes de esboçar idéias e modelos<br />

práticos e teóricos para o fun<strong>da</strong>mento de<br />

uma escola de música com cara nordestina,<br />

gostaria fazer uma reflexão mais profun<strong>da</strong> sobre<br />

processos e conceitos culturais identitários.<br />

Olhando mais de perto para a região do<br />

Nordeste, e neste caso a Bahia, percebe-se que<br />

coexistem há muito tempo práticas culturais e<br />

estilos musicais de diversas origens étnicas e<br />

épocas históricas, mas nem sempre de forma<br />

pacífica ou coerente, como percebe Armstrong<br />

buscando <strong>da</strong>dos para a aplicação dos Estudos<br />

Culturais no contexto <strong>da</strong> Bahia.<br />

Quanto ao tema <strong>da</strong> miscigenação em si, existe<br />

um elenco vasto de abor<strong>da</strong>gens possíveis à<br />

questão. Por exemplo, o pesquisador deve interrogar<br />

as pessoas sobre como percebem as relações<br />

raciais, e a sua própria identi<strong>da</strong>de? Ou deve<br />

estu<strong>da</strong>r os discursos, as palavras? E dentro do<br />

repertório de discursos, deveríamos admitir to-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 173-184, jan./jun., 2006


dos os tipos (políticos, comerciais, artísticos...)<br />

ou somente a classe de discurso que parece adequa<strong>da</strong><br />

à pesquisa? Um exemplo <strong>da</strong> ambigüi<strong>da</strong>de<br />

do discurso figura na indústria do axé music,<br />

nas letras e na promoção. Misturam-se retóricas<br />

de amor e progresso, que sugerem integração<br />

racial harmoniosa. Escamoteiam-se mil contradições<br />

subjacentes. O sujeito lírico é negro, mas<br />

os cantores são desproporcionalmente brancos.<br />

Ao mesmo tempo, celebram-se a miscigenação e<br />

o afro-centrismo. Isto nas palavras. E nos “fatos”?<br />

(ARMSTRONG, 2001, p.77)<br />

As contradições são muitas, nos discursos<br />

artísticos e estéticos em si e principalmente nos<br />

discursos <strong>da</strong>queles que falam e comentam sobre<br />

os fatos culturais e se apropriam deles para<br />

construir seu próprio discurso político. E quanto<br />

ao discurso pe<strong>da</strong>gógico? As dificul<strong>da</strong>des nas<br />

práticas e teorias pe<strong>da</strong>gógicas já são imensas,<br />

pensando somente nos muitos conteúdos que<br />

vem do legado europeu e <strong>da</strong>s constantes inovações<br />

no cenário internacional que contrastam<br />

com o cotidiano de professores e alunos na<br />

Bahia o qual envolve o desafio permanente dos<br />

problemas existenciais (pobreza material, violência,<br />

alienação nas mídias de massa, políticas<br />

de aparências, imediatismo e resultados em<br />

curto prazo, falta de mobili<strong>da</strong>de e poder aquisitivo),<br />

adversários de processos educativos demorados,<br />

pacíficos e contínuos. Nossas<br />

preocupações diárias são marca<strong>da</strong>s pela carência<br />

de todo tipo de material (em quali<strong>da</strong>de e<br />

quanti<strong>da</strong>de) didático e do acesso à tecnologia e<br />

a saberes diferenciados que podem estar ao<br />

nosso redor, no entanto despercebidos e excluídos<br />

dos nossos códigos e <strong>da</strong> nossa visão pe<strong>da</strong>gógica.<br />

A reali<strong>da</strong>de é que poucos professores brasileiros<br />

têm se aproximado <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de cultural<br />

do seu país – são poucos os educadores<br />

na Bahia p.ex. que trabalham com as manifestações<br />

tradicionais e populares desta macroregião<br />

e suas micro-regiões e muito menos ain<strong>da</strong><br />

com tradições e práticas culturais de outros<br />

estados brasileiros. A imagem do “Outro” (negro,<br />

índio, sertanejo, subalterno...) ain<strong>da</strong> domina<br />

no imaginário de muitos, que não percebem<br />

que são eles, os “Outros” – que são eles que<br />

estão construindo ou desconstruindo as identi-<br />

Katharina Döring<br />

<strong>da</strong>des culturais regionais. O que falta muitas<br />

vezes para criar práticas e teorias pe<strong>da</strong>gógicas<br />

mais consistentes e convincentes é a dimensão<br />

do reconhecimento do qual Canclini fala em<br />

segui<strong>da</strong>. O discurso do “Outro”, artificial- e historicamente<br />

construído, também está presente<br />

no aproveitamento do folclore e em todos os<br />

discursos que querem separar, segmentar e classificar<br />

as representações culturais e expressões<br />

artísticas dos povos e dos indivíduos em escalas<br />

valorativas.<br />

À medi<strong>da</strong> que o especialista em estudos culturais<br />

queira realizar um trabalho cientificamente consistente,<br />

seu objetivo final não é representar a<br />

voz dos silenciados, mas entender e nomear os<br />

lugares em que suas questões ou sua vi<strong>da</strong> cotidiana<br />

entram em conflito com os outros. As categorias<br />

de contradição e conflito estão, portanto, no<br />

núcleo desta maneira de conceber os estudos<br />

culturais. Porém não para ver o mundo a partir de<br />

um só lugar de contradição, mas para compreender<br />

sua estrutura atual e sua possível dinâmica.<br />

As utopias de mu<strong>da</strong>nça e justiça, neste sentido,<br />

podem articular-se com o projeto dos estudos<br />

culturais, não como prescrição do modo como<br />

devem selecionar-se e organizar-se os <strong>da</strong>dos, mas<br />

como estímulo para in<strong>da</strong>gar sob que condições<br />

(reais) o real pode deixar de ser a repetição <strong>da</strong><br />

desigual<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> discriminação, para converterse<br />

em palco de reconhecimento dos outros. Retomo<br />

aqui uma proposta de Paul Ricoeur quando,<br />

em sua crítica ao multiculturalismo norte-americano,<br />

sugere mu<strong>da</strong>r a ênfase sobre a identi<strong>da</strong>de para<br />

uma política de reconhecimento. Na noção de<br />

identi<strong>da</strong>de há apenas a idéia do mesmo, enquanto<br />

reconhecimento é um conceito que integra diretamente<br />

a alteri<strong>da</strong>de, que permite uma dialética<br />

do mesmo e do outro. A reivindicação <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de<br />

tem sempre algo de violento a respeito do<br />

outro. Ao contrário, a busca do reconhecimento<br />

implica a reciproci<strong>da</strong>de.” (CANCLINI, 1999, p. 28<br />

- grifos meus)<br />

A idéia do reconhecimento é fascinante<br />

como uma moção inclusiva que possibilita enxergar<br />

as semelhanças e diferenças que temos<br />

com outros sem discriminação, enquanto a questão<br />

<strong>da</strong> afirmação <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de (cultural, étnica,<br />

racial, social) sempre remete à idéia de<br />

separação, fronteira, demarcação defini<strong>da</strong>, o<br />

que muitas vezes limita mais as pessoas na sua<br />

definição e atuação em vez de libertá-las.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 173-184, jan./jun., 2006 175


Uma escola de música e artes brasileiras na Bahia<br />

Diversi<strong>da</strong>de cultural brasileira e<br />

processos educacionais<br />

As possibili<strong>da</strong>des e potenciali<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s Artes<br />

e Culturas Brasileiras nos espaços e processos<br />

educacionais, formais e/ou informais,<br />

ain<strong>da</strong> estão longe de serem compreendi<strong>da</strong>s e<br />

explora<strong>da</strong>s. O grande campo <strong>da</strong>s culturas brasileiras<br />

regionais que se alimenta <strong>da</strong>s narrativas,<br />

corporei<strong>da</strong>des, práticas cênico-musicais e<br />

dos imaginários, mitos e religiões dos povos<br />

ancestrais ameríndios, africanos e europeus se<br />

encontra ain<strong>da</strong> marginalizado como um simples<br />

“folclore”, enquanto na ver<strong>da</strong>de as inspirações<br />

inovadoras muitas vezes são extraí<strong>da</strong>s e “aproveita<strong>da</strong>s”<br />

desse campo sem, no entanto, lhe<br />

devolver reconhecimento material e simbólico,<br />

autoria e participação ativa.<br />

Nos últimos anos percebo em diversos encontros<br />

sobre história e memória oral, sobre<br />

folclore e cultura popular e sobre educação<br />

com identi<strong>da</strong>de e plurali<strong>da</strong>de cultural, o crescimento<br />

do interesse e <strong>da</strong> preocupação com a<br />

forma e o conteúdo <strong>da</strong> transmissão do patrimônio<br />

imaterial, isto é, dos saberes, valores,<br />

celebrações e modos de fazer do povo brasileiro.<br />

Aos poucos estão surgindo em algumas<br />

universi<strong>da</strong>des e instituições de ensino artístico<br />

algumas linhas de pesquisa e ação, embora não<br />

são claramente defini<strong>da</strong>s e carecem de fun<strong>da</strong>mento<br />

teórico que já se encontra nos diversos<br />

campos científicos (antropologia, história<br />

oral, estudos culturais, etnomusicologia, comunicação<br />

etc.). Estes conhecimentos ain<strong>da</strong> são<br />

pouco conectados com a área de educação<br />

cultural, artística e patrimonial de forma mais<br />

abrangente, não obstante o interesse em pesquisar<br />

e transmitir a arte e cultura brasileira<br />

está crescendo pela parte dos professores e<br />

estu<strong>da</strong>ntes em diversas instituições culturais e<br />

educacionais, formais e informais.<br />

Existem poucas pesquisas e tentativas práticas<br />

na educação brasileira que buscam uma<br />

ligação entre as tradições, saberes, práticas e<br />

valores <strong>da</strong>s culturas populares brasileiras e a<br />

área de atuação e teoria pe<strong>da</strong>gógica. Graças<br />

ao movimento negro e suas iniciativas e reivindicações<br />

que defendem inclusão social, com-<br />

176<br />

bate ao racismo, políticas afirmativas e o respeito<br />

pela diferença cultural, étnica e religiosa,<br />

temos acesso a diversas pesquisas e projetos<br />

que trabalham com os conteúdos <strong>da</strong> história e<br />

cultura <strong>da</strong> ancestrali<strong>da</strong>de africana em projetos<br />

pe<strong>da</strong>gógicos. Nos últimos anos também podemos<br />

assistir a um esforço bastante grande por<br />

parte do terceiro setor e do poder público na<br />

questão <strong>da</strong> educação específica para os índios<br />

brasileiros e seus descendentes que preservam<br />

os valores e saberes históricos e culturais <strong>da</strong>s<br />

diversas tribos indígenas. Estas iniciativas defendem<br />

a educação especializa<strong>da</strong> para determinados<br />

grupos étnicos e raciais que afirmam<br />

o desejo de manter sua história e singulari<strong>da</strong>de<br />

através <strong>da</strong>s tradições orais. No entanto, temos<br />

uma grande maioria de brasileiros que se definem<br />

como um misto cultural, étnico-racial e histórico<br />

e que pouco sabem <strong>da</strong>s diversas culturas<br />

e práticas artísticas locais do seu povo, compostas<br />

pelas tradições indígenas, africanas e<br />

européias.<br />

Cultura e <strong>Educação</strong> são processos constantemente<br />

interligados na formação do indivíduo e<br />

do coletivo e alimentam o imaginário e o conjunto<br />

de suas ações e produções. Porém, na era<br />

<strong>da</strong>s redes, <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des apreendentes, <strong>da</strong>s produções<br />

e processos interdisciplinares e interativos,<br />

muito pouco podemos identificar socie<strong>da</strong>des<br />

monoculturais e partir <strong>da</strong> construção de identi<strong>da</strong>des<br />

culturais homogêneas dos indivíduos, pois,<br />

“o pluralismo cultural não existe somente entre<br />

as nações, ele está no interior <strong>da</strong>s nações, no<br />

interior <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des que as compõem, e os<br />

próprios indivíduos não escapam à lei geral <strong>da</strong><br />

diferenciação interna e <strong>da</strong> mestiçagem.” (FOR-<br />

QUIN, 1993, p. 126). As identi<strong>da</strong>des pluriculturais<br />

estariam no interior de ca<strong>da</strong> indivíduo, portanto<br />

as identi<strong>da</strong>des a serem construí<strong>da</strong>s nos processos<br />

pe<strong>da</strong>gógicos são por natureza pluriculturais,<br />

o que não significa que eles não possam ter fun<strong>da</strong>mentos<br />

característicos de ca<strong>da</strong> país, etnia, classe,<br />

região geográfica etc. Para poder inovar,<br />

absorver, criar e transformar, é necessário antes<br />

de tudo, estar enraizado no chão seguro de uma<br />

identi<strong>da</strong>de forma<strong>da</strong>, determina<strong>da</strong> pelos fatores<br />

socioculturais, históricos, estéticos e religiosos de<br />

uma região ou alguns grupos de pertencimento –<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 173-184, jan./jun., 2006


um processo que deve acontecer na infância e<br />

juventude e conseqüentemente não se reduz ao<br />

ambiente familiar e religioso. O papel <strong>da</strong> escola<br />

e universi<strong>da</strong>de neste processo é mais do que somente<br />

uma contribuição – acaba sendo formador<br />

de opiniões e valores, se considerarmos que<br />

a maior parte <strong>da</strong> alimentação cultural <strong>da</strong>s crianças<br />

e jovens brasileiros é a televisão e ca<strong>da</strong> vez<br />

mais a internet. As possibili<strong>da</strong>des do novo século<br />

com suas transformações tecnológicas e conceituais<br />

que exigem de nos quali<strong>da</strong>des tais como<br />

flexibili<strong>da</strong>de, sociabili<strong>da</strong>de, interativi<strong>da</strong>de, criativi<strong>da</strong>de<br />

e mobili<strong>da</strong>de, não acrescentam muito se<br />

os jovens não estiverem com uma base sóli<strong>da</strong> de<br />

auto-conhecimento e auto-estima que deveria se<br />

alimentar dos imaginários, saberes, práticas, narrativas<br />

e vivências culturais especificas.<br />

A transmissão envolve o conceito e o estudo<br />

sobre as culturas européias antigas e as culturas<br />

orais dos povos afro-ameríndios as quais<br />

vivem momentos de valorização tanto nas criações<br />

musicais e artísticas em geral como também<br />

nos estudos acadêmicos (pós-graduação)<br />

de diversas áreas (história, educação, artes, literatura,<br />

comunicação, antropologia etc.) Por<br />

um lado, os conteúdos e assuntos <strong>da</strong>s artes e<br />

culturas locais ain<strong>da</strong> não entraram nos currículos<br />

p. ex. nas escolas superiores de música,<br />

como tampouco nas diversas escolas de formação<br />

artística, e por outro lado os demais professores<br />

passam por uma carência muito grande<br />

de materiais didáticos específicos e principalmente<br />

de experiências, metas e parâmetros para<br />

trabalhar com artes e culturas locais em sala<br />

de aula. A preocupação com as tradições orais<br />

não deveria somente contemplar o conteúdo em<br />

si, desassociado do seu contexto social, histórico<br />

e cultural e sim, levar em conta as formas<br />

tradicionais de transmissão as quais envolvem<br />

conceitos como orali<strong>da</strong>de, “ecologia <strong>da</strong> cultura”,<br />

o respeito pelo saber notório e pela prática<br />

do cotidiano, como p. ex. a arte do improviso e<br />

a capaci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> espontanei<strong>da</strong>de, a convivência<br />

- “osmose” do saber e fazer e entrosamento<br />

permanente <strong>da</strong> prática com a teoria.<br />

Os processos identitários são hoje complexos e<br />

plurais, há uma combinação de raízes e escolhas.<br />

Apenas reforçar as raízes pode inibir nossa<br />

Katharina Döring<br />

capaci<strong>da</strong>de de criação e invenção e, portanto,<br />

desestimular a liber<strong>da</strong>de de criar cultura; por<br />

outro lado, abrir mão <strong>da</strong>s raízes e viver em função<br />

apenas <strong>da</strong>s escolhas é negar heranças culturais<br />

valiosas para nosso processo vital. A vi<strong>da</strong><br />

social sem escolhas é negar a criação, o ato fun<strong>da</strong>dor<br />

<strong>da</strong> cultura; construir uma socie<strong>da</strong>de sem<br />

raízes é como criar árvores que se resumem a<br />

folhas e frutos. Tomando a metáfora a árvore, as<br />

raízes são os nossos mitos e crenças – substrato<br />

essencial <strong>da</strong> cultura. Devemos valorizar o local<br />

e nos abrirmos para os patrimônios universais<br />

<strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de. Trata-se <strong>da</strong> construção de<br />

identi<strong>da</strong>des abertas, móveis, individuais e coletivas,<br />

plurais, que passem pelos parâmetros de<br />

debate público e não sejam estabelecidos a priori<br />

pelas elites locais, que muitas vezes desejam<br />

fortalecer sua própria memória. O processo de<br />

modernização <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des tem tratado a questão<br />

<strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de de forma a valorizar a memória<br />

dos seus dirigentes históricos e não as manifestações<br />

diversas de seus grupos sociais constitutivos.<br />

A identi<strong>da</strong>de se constrói com quali<strong>da</strong>de<br />

cultural, promovendo um ver<strong>da</strong>deiro encontro<br />

<strong>da</strong>s diferenças. (FARIA, 2003, p. 37)<br />

A questão fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong>s raízes e escolhas<br />

e do encontro <strong>da</strong>s diferenças traz a tona<br />

um fun<strong>da</strong>mento importante de uma socie<strong>da</strong>de<br />

e uma escola dinâmica que seria capaz de preservar<br />

e cultivar suas raízes, isto é, suas heranças<br />

culturais e matrizes étnicas, e ao mesmo<br />

tempo estaria aberta e criando espaços para<br />

outras heranças, influências e conhecimentos<br />

artísticos que são frutos dos conhecimentos de<br />

diversas culturas e valores que se tornaram<br />

universais. Hamilton Faria resumiu de forma<br />

expressiva o que deveria ser o norte <strong>da</strong>s nossas<br />

buscas, idéias e ações em prol <strong>da</strong>s artes e<br />

culturas locais: a combinação de raízes e escolhas!<br />

Parece fácil, mas não é, todos nós sabemos<br />

disso. Quais as raízes que nos alimentaram<br />

e continuam alimentando de ver<strong>da</strong>de? Tem<br />

muitas lacunas, mentiras, omissões e negações<br />

quando se trata de desven<strong>da</strong>r raízes culturais,<br />

históricas e étnicas dos brasileiros. Os efeitos<br />

negativos, herança <strong>da</strong> colonização, <strong>da</strong> escravidão<br />

e do genocídio praticados nessa terra em<br />

quinhentos anos, certamente levarão ain<strong>da</strong> bastante<br />

tempo para serem superados e transformados<br />

em algo que traz esperança, criativi<strong>da</strong>de,<br />

prosperi<strong>da</strong>de e quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong> para o seu<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 173-184, jan./jun., 2006 177


Uma escola de música e artes brasileiras na Bahia<br />

povo. As artes e culturas locais <strong>da</strong>s muitas regiões<br />

brasileiras com suas expressões e produções<br />

tão diversifica<strong>da</strong>s e complexas podem<br />

oferecer mais um caminho para a compreensão<br />

e a construção de uma, ou melhor, várias<br />

identi<strong>da</strong>des brasileiras que não precisam copiar<br />

modelos idealizados e aplicados em outros<br />

contextos culturais. <strong>Educação</strong> e produção cultural<br />

com arte e cultura popular, também não<br />

significa de buscar uma estratégia de marketing<br />

ou método para vender seu produto “regionalizado”<br />

com cara de chapéu de palha ou<br />

organizar festas caipiras em escolas e sim<br />

desenvolver pensamentos e ações que integram<br />

valores e conhecimentos artísticos <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de<br />

com os saberes e valores culturais determinados<br />

pela memória oral e o patrimônio<br />

imaterial de um povo e suas regiões, tradições<br />

e reali<strong>da</strong>des distintas.<br />

A essência do projeto “Uma Escola de Música<br />

/ Artes com Cara Nordestina / Brasileira”<br />

seria o trabalho com as expressões artísticas e<br />

identi<strong>da</strong>des culturais regionais valorizando as<br />

sonori<strong>da</strong>des, as corporei<strong>da</strong>des, os conhecimentos<br />

e as práticas est-éticas e po-éticas de populações<br />

negras, indígenas, caboclas, sertanejas<br />

entre outras as quais historicamente não são<br />

inseridos nos espaços pe<strong>da</strong>gógicos formais.<br />

Para modificar essencialmente a estrutura formal<br />

e seus agentes, o sistema educacional (universal)<br />

quanto à educação cultural e estética,<br />

serão necessárias inúmeras experiências (particulares)<br />

em projetos pilotos e formas de ensino-aprendizagem<br />

no campo artístico e informal<br />

com as artes e culturas locais. Vem-me a mente<br />

uma frase de Rubem Alves no prefácio do<br />

livro Fun<strong>da</strong>mentos Estéticos <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> de<br />

J. F. Duarte: “A questão não é incluir a arte na<br />

educação. A questão é repensar a educação<br />

sob a perspectiva <strong>da</strong> Arte. <strong>Educação</strong> como ativi<strong>da</strong>de<br />

estética.” (1997, p.12)<br />

Dessa maneira quero dizer que não é suficiente<br />

a inclusão <strong>da</strong>s artes e culturas locais em<br />

alguns momentos pe<strong>da</strong>gógicos (tipicamente nas<br />

<strong>da</strong>tas comemorativas), seria mais interessante<br />

perceber o que estas artes e culturas têm a<br />

contribuir para to<strong>da</strong>s as expressões e linguagens<br />

artísticas e a forma como elas podem ser<br />

178<br />

(re-)produzi<strong>da</strong>s e transmiti<strong>da</strong>s nos espaços educacionais<br />

específicos num processo contínuo e<br />

não “relâmpago”:<br />

Semple é crítico desse exemplo (“cursos rápidos<br />

sobre as formas artísticas africanas ou indianas”),<br />

argumentando que as formas artísticas não<br />

têm a menor chance de serem realmente contextualiza<strong>da</strong>s<br />

e são trivializa<strong>da</strong>s quando coloca<strong>da</strong>s<br />

fora do currículo normal <strong>da</strong> escola. Sua objeção<br />

mais fun<strong>da</strong>mental a esse modelo, contudo, é que<br />

ele implica que o conhecimento europeu está no<br />

centro <strong>da</strong> filosofia educacional e quaisquer outras<br />

filosofias do mundo têm importância secundária.<br />

Baseado no princípio <strong>da</strong> omissão, isso<br />

implica que há somente um ponto de vista correto.<br />

Semple admite que o modelo de fusão que ela<br />

prefere é idealístico, mas identifica a necessi<strong>da</strong>de<br />

de estabelecer a diversi<strong>da</strong>de cultural como<br />

integrante, não periférica, a educação dominante<br />

<strong>da</strong>s artes.” (MASON, 2001, p. 123)<br />

Mason se refere aqui a uma situação típica<br />

dos Estados Unidos e <strong>da</strong> Europa onde as artes<br />

“étnicas” são aceitas num espaço delimitado e<br />

como experiências “exóticas” mas não são absorvi<strong>da</strong>s<br />

de fato nas estruturas de ensino-aprendizagem,<br />

assim fazendo parte do tronco escolar<br />

comum, uma situação que corre o risco de ser<br />

repetido no Brasil, onde encontramos cursos de<br />

elementos <strong>da</strong> cultura popular ou em projetos<br />

sociais que geralmente trabalham a prática, mas<br />

não os fun<strong>da</strong>mentos teóricos e conceituais ou<br />

então ultimamente em espaços culturais mais<br />

freqüentados pela classe média urbana que tem<br />

um interesse parcial nessa aprendizagem, no<br />

entanto nem sempre conecta estas vivências<br />

num nível mais profundo e transformador.<br />

Na Europa o processo do multiculturalismo<br />

tem sido diferente porque parte <strong>da</strong> idéia de uma<br />

nação com identi<strong>da</strong>de cultural historicamente<br />

construí<strong>da</strong> que nas últimas déca<strong>da</strong>s teve que se<br />

deparar com as minorias culturais dos imigrantes,<br />

oriundo dos mais diversos paises e continentes.<br />

Discursos de “tolerância”, conteúdos e<br />

espaços pe<strong>da</strong>gógicos diferenciados para minorias<br />

étnicas e religiosas não questionaram a<br />

dominância dos valores culturais do ocidente e<br />

nem são mais aceitos pela segun<strong>da</strong> e terceira<br />

geração de imigrantes que querem ter igualmente<br />

acesso à circulação de bens e informações e<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 173-184, jan./jun., 2006


tampouco se fechar num gueto cultural nas<br />

metrópoles européias, segundo Forquin que considera<br />

que:<br />

... numa socie<strong>da</strong>de multicultural é injustificável<br />

privar certos indivíduos de benefícios intelectuais<br />

e sociais que podem propiciar a ampliação dos<br />

conhecimentos e o acesso a uma plurali<strong>da</strong>de de<br />

sistemas de referências e de valores. Para aqueles<br />

que se poderia chamar de multiculturalistas ‘liberais’,<br />

o respeito que se deve ás culturas não deve<br />

se exercer em detrimento do princípio de justiça<br />

entre as pessoas, e a identi<strong>da</strong>de cultural não deve<br />

se tornar nem um rótulo nem uma marca suscetíveis<br />

de constituir obstáculo ao desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de individual. O multiculturalismo <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de não deve ser também concebido como<br />

uma justaposição de ‘monoculturalismos’ fechados.<br />

Isto significa que, numa ótica pluralista liberal,<br />

não é somente a socie<strong>da</strong>de que é ou deve se<br />

tornar autenticamente multicultural, são os próprios<br />

indivíduos.” (1993, p. 138-139)<br />

Ele traz uma reflexão importante sobre a<br />

questão <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de respeitar e incluir<br />

conteúdos, processos e valores particulares<br />

que de forma exclusivista não representariam<br />

uma solução e sim deveriam estar em diálogo<br />

com os conteúdos, processos, e valores universais<br />

de determina<strong>da</strong> época e região cultural<br />

e assim mesmo vão transformando os pilares<br />

de uma suposta universali<strong>da</strong>de que na ver<strong>da</strong>de<br />

se compõe e recompõe pelas diversas contribuições<br />

e reivindicações particulares no caso<br />

mais ideal de uma socie<strong>da</strong>de pluralista.<br />

A conclusão parece ser que a universali<strong>da</strong>de é<br />

incomparável com qualquer particulari<strong>da</strong>de e,<br />

entretanto, não pode existir à parte do particular.<br />

Nos termos <strong>da</strong> análise anterior: se apenas protagonistas<br />

particulares, ou constelações de protagonistas<br />

particulares, podem atualizar a qualquer<br />

momento o universal, nesse caso a possibili<strong>da</strong>de<br />

de tornar visível o não-encerramento inerente<br />

a uma socie<strong>da</strong>de pós-domina<strong>da</strong> – isto é uma<br />

socie<strong>da</strong>de que tenta transcender a própria forma<br />

de dominação – depende de se tornar permanente<br />

a assimetria entre o universal e o particular.<br />

O universal é incomparável com o particular,<br />

mas não pode, entretanto existir sem o último.”<br />

(LACLAU, 2001, p. 248)<br />

Laclau aponta uma pista para o eterno conflito<br />

entre ver<strong>da</strong>des universais que se tornam<br />

Katharina Döring<br />

hegemônicas, pouco flexíveis e exclusivas e<br />

ver<strong>da</strong>des particulares que nascem no bojo de<br />

movimentos, lugares e pessoas autênticas, experiências<br />

originais que precisam lutar para seu<br />

reconhecimento e assim de certa forma passam<br />

a tornar ser parte do universal que já não<br />

seria mais o mesmo. A diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s artes e<br />

culturas locais brasileiras pode servir muito bem<br />

para ilustrar uma situação que estaria digamos<br />

justamente no ponto <strong>da</strong> mutação onde o universal<br />

ain<strong>da</strong> resiste e marginaliza (“folcloriza”)<br />

estas musicali<strong>da</strong>des, narrativas e corporei<strong>da</strong>des,<br />

percebendo ao mesmo tempo, que o chão está<br />

fértil para uma ampliação e incorporação à<br />

Cultura Brasileira.<br />

Evidentemente os resultados de um projeto<br />

educacional artístico e cultural com cara nordestina<br />

ain<strong>da</strong> serão parciais e não podem abranger<br />

to<strong>da</strong> a complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> inserção <strong>da</strong>s artes<br />

e culturas locais nos espaços e processos educacionais<br />

e as implicações acima discuti<strong>da</strong>s. No<br />

entanto, pretende se construir o início de um<br />

diálogo em longo prazo entre os saberes dos<br />

mestres <strong>da</strong> tradição oral e dos jovens que de<br />

certa maneira se complementam, pois são ambos<br />

saberes e experiências particulares que<br />

buscam uma inserção, um reconhecimento e<br />

mesmo uma transformação dos paradigmas<br />

universais de uma cultura brasileira que ain<strong>da</strong><br />

nem se conhece profun<strong>da</strong>mente. Para este diálogo<br />

estético e musical acontecer, é necessário<br />

afirmar o valor <strong>da</strong> ancestrali<strong>da</strong>de e do<br />

respeito profundo pelos conhecimentos e atitudes<br />

dos mais velhos e saber escutar e aprender<br />

com eles de forma presencial, complementado<br />

por dinâmicas e recursos didáticos e materiais<br />

do ensino musical e <strong>da</strong> arte-educação contemporânea.<br />

Pois, não se pretende criar um ensino-aprendizagem<br />

que consiste na repetição e<br />

imitação <strong>da</strong>s artes e culturas locais sem reflexões<br />

e contribuições estéticas próprias, que<br />

devem ser desenvolvi<strong>da</strong>s a partir desse encontro<br />

entre as gerações e regiões. Isto significa<br />

que to<strong>da</strong> a quali<strong>da</strong>de e o legado <strong>da</strong> cultura musical<br />

européia e de outras culturas universaliza<strong>da</strong>s,<br />

como também a vivência cultural, os<br />

desejos e ideais musicais dos jovens nas periferias<br />

urbanas e rurais fazem parte desse diálo-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 173-184, jan./jun., 2006 179


Uma escola de música e artes brasileiras na Bahia<br />

go. Os mestres e educadores, portanto, deveriam<br />

trabalhar com as referências musicais, poéticas,<br />

corporais e estéticas do universo juvenil,<br />

apoiado em teorias e experiências seculares <strong>da</strong><br />

música euro-brasileira, erudita e/ou popular,<br />

como também com as práticas e saberes <strong>da</strong><br />

música afro-brasileira e ameríndia.<br />

Perspectivas<br />

Quais seriam parâmetros, conteúdos e referências<br />

metodológicas para a construção de uma<br />

“Escola de Música com Cara Nordestina / Brasileira”?<br />

Somente uma resposta complexa do<br />

tamanho de um doutorado em <strong>Educação</strong> Musical<br />

e/ou Artística/Cultural/Patrimonial poderia<br />

satisfazer essa necessi<strong>da</strong>de de fun<strong>da</strong>mentar, planejar,<br />

projetar e realizar um empreendimento<br />

desta natureza o que não impede ousar realizar<br />

os primeiros passos nesta direção. Acredito na<br />

experiência e trajetória prática e teórica de educadores,<br />

músicos, produtores, antropólogos, mestres,<br />

artistas e professores <strong>da</strong>s demais linguagens<br />

artísticas que principalmente no Nordeste nos<br />

últimos anos estão buscando e construindo uma<br />

reali<strong>da</strong>de cultural original e inovadora e <strong>da</strong>ria<br />

neste momento somente algumas idéias norteadoras<br />

que podem servir como linhas de ação e<br />

reflexão a construção de um projeto educacional<br />

nesta linha:<br />

• Interdisciplinari<strong>da</strong>de - o ensino musical<br />

não deveria somente contar com<br />

músicos, compositores e educadores<br />

musicais profissionais e sim contar com<br />

a experiência e contribuição profissional<br />

<strong>da</strong> etnomusicologia, tradição e memória<br />

oral, sócio-antropologia, história, produção<br />

cultural, comunicação, literatura, arteeducação,<br />

ludici<strong>da</strong>de, e principalmente<br />

<strong>da</strong>s linguagens artísticas cênicas (<strong>da</strong>nça<br />

e teatro).<br />

• Diversi<strong>da</strong>de musical - o ensino musical<br />

deveria pesquisar, registrar, sistematizar<br />

e transmitir os diversos estilos musicais<br />

nordestinos contextualizando-os<br />

com a aju<strong>da</strong> <strong>da</strong> equipe interdisciplinar<br />

quanto à diversi<strong>da</strong>de de gêneros (cêni-<br />

180<br />

co-) musicais e suas variações locais em<br />

termos de: ritmos, melodias, harmonias,<br />

arranjos, tonali<strong>da</strong>des, timbres vocais e<br />

instrumentais, poesias, instrumentos,<br />

materiais, técnicas etc.<br />

• Integração artística e cultural – o ensino<br />

musical deveria contemplar e estu<strong>da</strong>r<br />

as diversas expressões musicais <strong>da</strong><br />

cultura popular em combinação com as<br />

outras linguagens artísticas, sendo que as<br />

músicas de tradição oral geralmente se<br />

apresentam de forma integra<strong>da</strong> e complexa<br />

com as narrativas e corporali<strong>da</strong>des<br />

específicas <strong>da</strong>s matrizes africanas,<br />

ameríndias e luso-ibero-árabes que deveriam<br />

ser estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s através <strong>da</strong> <strong>da</strong>nça,<br />

do teatro, <strong>da</strong> literatura oral, <strong>da</strong> estética e<br />

arte visuais.<br />

• Perspectiva profissional contemporânea<br />

– uma escola de música brasileira<br />

contemporânea deve proporcionar uma<br />

formação flexível para um mercado de<br />

trabalho na visão do séc. XXI. As novas<br />

dimensões no campo profissional devem<br />

levar ao estudo <strong>da</strong>s artes com especializações<br />

para uma prática contemporânea,<br />

formando músicos em diversos estilos de<br />

execução, educadores musicais, diretores<br />

musicais, arranjadores, compositores,<br />

técnicos de gravação e mixagem, produtores<br />

musicais, críticos, pesquisadores e<br />

radialistas e músicos/artistas interdisciplinares<br />

que buscam interface profissional<br />

com outras linguagens artísticas<br />

(<strong>da</strong>nça, teatro, cinema, poesia etc.)<br />

• Relação com a comuni<strong>da</strong>de – o ensino<br />

musical brasileiro, deveria reconhecer<br />

o privilégio de participar de uma mu<strong>da</strong>nça<br />

cultural que abre o horizonte para<br />

seus tesouros culturais e musicais locais<br />

e procurar caminhos para trocar seus<br />

privilégios intelectuais e materiais com as<br />

pessoas e regiões que produzem e preservam<br />

as riquezas culturais, mas carecem<br />

de acesso aos bens materiais e as<br />

informações e estruturas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

urbana contemporânea. Recomendo a<br />

inclusão de mestres e músicos <strong>da</strong> cultu-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 173-184, jan./jun., 2006


a popular ao corpo docente como também<br />

a elaboração de um projeto paralelo<br />

ao ensino formal <strong>da</strong> escola que aconteceria<br />

tanto nas comuni<strong>da</strong>des como na<br />

própria escola com jovens <strong>da</strong>s periferias<br />

urbanas e rurais.<br />

As possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> <strong>Uneb</strong> -<br />

Multicampi<br />

A Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Bahia é a<br />

maior Universi<strong>da</strong>de pública e multi-campi do<br />

Brasil num estado que está entre os piores índices<br />

de educação pública deste país. A responsabili<strong>da</strong>de<br />

social <strong>da</strong> nossa instituição é enorme,<br />

visto que a maior parte dos estu<strong>da</strong>ntes vem de<br />

classes populares e muitas vezes precisamos<br />

contornar os equívocos do ensino fun<strong>da</strong>mental<br />

e médio durante os cursos de graduação, os<br />

quais também estão seguindo modelos formais<br />

que não são atualizados dentro de uma perspectiva<br />

<strong>da</strong> Cultura Brasileira. Por outro lado,<br />

encontramos muita disposição e talento entre<br />

os estu<strong>da</strong>ntes que são a próxima geração para<br />

assumir os destinos <strong>da</strong> educação e do trabalho<br />

neste país. O talento artístico dos baianos, p.<br />

ex. já é um chavão encontrado e repetido na<br />

mídia por to<strong>da</strong> parte. O que surpreende, é que<br />

nem sempre os supostos talentos estão na capital<br />

onde o acesso à cultura e arte e à produção<br />

e ao ensino artístico profissionais estão de<br />

alcance fácil. Nos últimos dois anos, foi reativado<br />

o Festival Universitário de Música com<br />

muito sucesso e entre as quatro universi<strong>da</strong>des<br />

participantes (UNEB, UFBA, UNIFACS, Universi<strong>da</strong>de<br />

Católica de Salvador - UCSal) se<br />

destacaram inclusive como finalistas e premiados<br />

muitas composições e apresentações musicais<br />

dos estu<strong>da</strong>ntes <strong>da</strong> UNEB, na sua grande<br />

maioria vindo dos interiores <strong>da</strong> Bahia. A diversi<strong>da</strong>de<br />

cênico-musical nas regiões culturais <strong>da</strong><br />

Bahia está registra<strong>da</strong> em inúmeras gravações<br />

em áudio e vídeo pela IRDEB e por outras produções<br />

independentes, e comprova<strong>da</strong> pelo grande<br />

número de compositores e músicos reconhecidos<br />

os quais encontraram suas inspirações<br />

musicais nas manifestações tradicionais que<br />

Katharina Döring<br />

marcaram sua infância. A UNEB poderia assumir<br />

seu papel como mediador cultural nas diversas<br />

regiões e implantar escolas de música e<br />

artes que recebessem as pessoas com seus talentos<br />

e suas tradições musicais, incentivando<br />

um aprendizado artístico que constrói um diálogo<br />

com as artes e culturais locais.<br />

Um projeto pensado e formatado por mim<br />

nesse sentido, é a Escola ABC, inicialmente<br />

previsto para vários campi <strong>da</strong> UNEB e aprovado<br />

pelo Ministério de Cultura como Ponto de<br />

Cultura no departamento de Conceição de Coité<br />

no semi-árido <strong>da</strong> Bahia. Sendo que o projeto<br />

ain<strong>da</strong> está em fase de implantação, não será<br />

possível trazer os primeiros resultados, mas para<br />

ampliar a discussão acima esboça<strong>da</strong>, gostaria<br />

de apresentar o conteúdo do projeto, que naturalmente<br />

é uma proposta que precisa ser transforma<strong>da</strong><br />

em ação e preenchi<strong>da</strong> de vi<strong>da</strong>.<br />

Apresentação do projeto<br />

Arvore de conhecimento - Barracão de<br />

movimento - Canteiro de corpo e som –<br />

Uma escola de Artes ABC como espaço permanente<br />

<strong>da</strong> cultura e herança estética do nosso<br />

povo. Um lugar e um centro <strong>da</strong> memória,<br />

de aprendizagem e de continui<strong>da</strong>de produtiva<br />

em torno <strong>da</strong>s práticas culturais, musicais, poéticas,<br />

cênicas e religiosas que se formaram a<br />

partir <strong>da</strong>s matrizes culturais indígenas, africanos<br />

e europeus criando expressões artísticas<br />

particulares nas diversas regiões geo-culturais<br />

<strong>da</strong> Bahia. Através <strong>da</strong> pesquisa <strong>da</strong> memória dos<br />

mais velhos e oficinas de música, <strong>da</strong>nça e artes<br />

serão transmitidos práticas e conhecimentos<br />

teóricos <strong>da</strong> cultura local, <strong>da</strong>ndo destaque<br />

para as tradições cênico-musicais, plásticas e<br />

poéticas de ca<strong>da</strong> locali<strong>da</strong>de em diálogo com a<br />

história e o ensino <strong>da</strong>s linguagens artísticas em<br />

escolas formais. A pesquisa e transmissão desses<br />

saberes serão fortaleci<strong>da</strong>s e renova<strong>da</strong>s<br />

com o diálogo entre tradição oral e cultura digital<br />

que envolve oficinas de informática, registro<br />

audiovisual/fonográfico, educação e<br />

produção cultural, através dos quais a juventude<br />

cria estratégias de geração de ren<strong>da</strong> e<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 173-184, jan./jun., 2006 181


Uma escola de música e artes brasileiras na Bahia<br />

produz resultados culturais numa linguagem<br />

contemporânea, disponível para escolas e a<br />

comuni<strong>da</strong>de em geral. O projeto acontecerá<br />

em Conceição de Coité, campus <strong>da</strong> UNEB no<br />

interior <strong>da</strong> Bahia, tecendo laços permanentes<br />

com as comuni<strong>da</strong>des, disponibilizando suas<br />

experiências técnicas e acadêmicas a serviço<br />

<strong>da</strong> população rural e construindo o fun<strong>da</strong>mento<br />

de um curso profissionalizante e/ou universitário<br />

em Artes.<br />

Objetivos do projeto<br />

182<br />

– Preservar e revitalizar o patrimônio<br />

imaterial <strong>da</strong> população negra, mestiça,<br />

cabocla etc. em seus aspectos musicais,<br />

cênicos, po-éticos, est-éticos, espirituais,<br />

históricos e criativos;<br />

– capacitar adolescentes/jovens para estu<strong>da</strong>r,<br />

pesquisar e transmitir as manifestações<br />

culturais locais de forma artística e<br />

profissional mediante cursos e oficinas<br />

em música, <strong>da</strong>nça, criação cênica, artes<br />

visuais, informática (Word, Internet,<br />

Finale, Coreldraw, Photoshop, etc.) produção<br />

cultural, tecnologia de vídeo e<br />

áudio digital, educação;<br />

– pesquisar e estruturar a memória especifica<br />

de ca<strong>da</strong> locali<strong>da</strong>de e grupo cultural,<br />

mediante pesquis-ação e utilização <strong>da</strong>s<br />

tecnologias digitais através dos agentes<br />

cultura viva e os mestres do notório saber,<br />

os griôs<br />

– promover apresentações, palestras, seminários<br />

e encontros permanentes e temporários<br />

de aprendizagem e troca de saberes<br />

envolvendo to<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de, em<br />

especial crianças, adolescentes, jovens e<br />

pessoas <strong>da</strong> terceira i<strong>da</strong>de, que se destacam<br />

como mestres de tradição oral;<br />

– produzir diversos resultados culturais, tais<br />

como programas de rádio, vídeo –<br />

documentário, cd-áudio, uma página na<br />

internet, uma revista/livreto com textos<br />

e as fotografias <strong>da</strong>s pesquisas e apresentações/lançamentos<br />

em <strong>da</strong>dos momentos<br />

e lugares;<br />

– desenvolver parcerias com as escolas<br />

locais para criar um diálogo cultural e<br />

artístico, possibilitando a criação de ban<strong>da</strong>s-mirins,<br />

grupos teatrais, corais, oficinas<br />

de arte, artesanato, apresentações e<br />

mostras nos espaços educacionais e comunitários;<br />

– articular parcerias permanentes com instituições<br />

culturais; uni<strong>da</strong>des de ensino<br />

superior na área de artes, comunicação,<br />

turismo e história; profissionais <strong>da</strong> área<br />

de produção cultural; setor público, privado,<br />

terceiro em geral.<br />

Justificativa<br />

A Escola ABC (Arvore de conhecimento<br />

- Barracão de movimento - Canteiro de corpo<br />

e som) se dirige principalmente aos jovens e<br />

idosos para juntos construírem uma ponte entre<br />

os saberes orais dos mais antigos e as aspirações<br />

e preocupações <strong>da</strong> juventude que não aceita<br />

mais o lugar do “Folclore” e busca a inserção<br />

em processos de formação, mercados de trabalho<br />

e uma identi<strong>da</strong>de cultural que dialoga com a<br />

contemporanei<strong>da</strong>de. Através de cursos permanentes<br />

em informática básica e específica, e nas<br />

diversas linguagens artísticas que serão supervisionados<br />

por professores universitários <strong>da</strong>s diversas<br />

áreas, instrutores locais e pelos mestres<br />

<strong>da</strong> tradição oral, os jovens trabalham e estu<strong>da</strong>m<br />

o fun<strong>da</strong>mento prático e teórico <strong>da</strong>s memórias<br />

culturais, musicais, poéticas, cênicas e religiosas.<br />

Este trabalho será fortalecido por oficinas específicas<br />

e intensivas, onde o jovem escolha sua<br />

área de capacitação gerando resultados na área<br />

de produção cultural, tecnologia de vídeo e áudio,<br />

construção de acervo cultural, artesanato e<br />

culinária, educação entre outros. A pesquisa - o<br />

registro <strong>da</strong> memória local é um trabalho básico<br />

no qual to<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de, mas principalmente os<br />

agentes Cultura Viva e os mestres antigos estarão<br />

envolvidos criando todos os subsídios para<br />

os cursos, as oficinas e os outros trabalhos e produtos<br />

que serão realizados em forma de programas<br />

de rádio, cd–áudio, vídeo-documentário,<br />

encontros <strong>da</strong> cultura popular, formação de ban-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 173-184, jan./jun., 2006


<strong>da</strong>s-mirins, corais, grupos de teatros, seminários<br />

e palestras, assim beneficiando diretamente e indiretamente<br />

to<strong>da</strong> a população regional.<br />

Este trabalho se justifica por ser uma ação<br />

afirmativa <strong>da</strong>s populações negras e caboclas<br />

que vivem em condições precárias nas áreas<br />

rurais, mas que dispõem de uma riqueza e diversi<strong>da</strong>de<br />

cultural que ain<strong>da</strong> não tem encontrado<br />

seu devido reconhecimento simbólico e<br />

material. Visto a enorme quanti<strong>da</strong>de de jovens<br />

talentosos e inspirados nas culturas locais sem<br />

perspectiva de ren<strong>da</strong> e realização individual,<br />

percebe-se uma deman<strong>da</strong> crescente de oferecer<br />

cursos e ativi<strong>da</strong>des artísticas e culturais que<br />

valorizam os saberes locais, mas conseguem<br />

estabelecer pontes para os saberes globalizados,<br />

tanto os formais/impressos como os virtuais/digitais.<br />

A UNEB, como universi<strong>da</strong>de pública<br />

e multi-campi com muitos anos de experiência<br />

na pesquisa e na extensão universitária, reconhece<br />

seu papel de intermediador neste processo<br />

que busca a democratização e a troca<br />

dos saberes e fazeres e afirma a necessi<strong>da</strong>de<br />

de criar perspectivas profissionais e descentraliza<strong>da</strong>s<br />

para a ativi<strong>da</strong>de e o ensino artísticos nas<br />

regiões geo-culturais <strong>da</strong> Bahia.<br />

Espaço<br />

Um outro campo de atuação que abrange a<br />

herança <strong>da</strong>s artes e culturas locais é o processo<br />

de revitalização do Samba de Ro<strong>da</strong> do Recôncavo<br />

baiano o qual foi declarado como Patrimônio<br />

Imaterial <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de pela Unesco no<br />

dia 25 de novembro 2005. Como etnomusicóloga<br />

estou pesquisando o samba de ro<strong>da</strong> e principalmente<br />

o samba chula há vários anos e<br />

participei como consultora, pesquisadora e produtora<br />

durante o inventário e a elaboração <strong>da</strong><br />

candi<strong>da</strong>tura do samba de ro<strong>da</strong> do Recôncavo no<br />

ano 2004. A UNEB, representa<strong>da</strong> pelo Departamento<br />

de <strong>Educação</strong>, Campus I, foi incluí<strong>da</strong> por<br />

REFERÊNCIAS<br />

Katharina Döring<br />

mim no dossiê oficial <strong>da</strong> candi<strong>da</strong>tura do samba<br />

de ro<strong>da</strong>, enviado para a Unesco, como uma <strong>da</strong>s<br />

instituições parceiras no processo de revitalização<br />

do samba de ro<strong>da</strong>. Desde 2004, estamos com<br />

um grupo de colaboradores discutindo e elaborando<br />

junto com os sambadores que se organizaram<br />

na “Associação dos Sambadores e<br />

Sambadeiras do Estado <strong>da</strong> Bahia”, as diversas<br />

medi<strong>da</strong>s, parâmetros e projetos de revitalização<br />

e preservação <strong>da</strong>s tradições do samba.<br />

A transmissão dos saberes <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de é<br />

uma <strong>da</strong>s preocupações mais urgentes dos sambadores<br />

e principalmente <strong>da</strong>s mulheres entre<br />

as quais encontramos várias professoras de<br />

ensino fun<strong>da</strong>mental e médio que tem experiências<br />

com projetos educacionais formas e informais<br />

e que se revoltam contra a deformação<br />

na mídia de valores ancestrais do samba de ro<strong>da</strong><br />

que se reflete em comportamentos equivocados<br />

entre seus filhos e alunos. Os homens sambadores<br />

estão empenhados também nos<br />

processos de transmissão musical, revitalizando<br />

instrumentos antigos, como a viola machete,<br />

que estava quase extinta, além de toques e cantos<br />

que correm o risco de serem esquecidos e<br />

padronizados demais em função <strong>da</strong> música comercializa<strong>da</strong>.<br />

Para os sambadores e as sambadeiras,<br />

a preservação e transmissão dessa<br />

memória cultural e estética de matriz africana<br />

e <strong>da</strong> sua história específica, representam um<br />

dos parâmetros mais importantes a serem alcançados.<br />

A consciência de que eles her<strong>da</strong>ram<br />

o samba de ro<strong>da</strong> nas suas formas primordiais<br />

dos seus ancestrais africanos está de aceitação<br />

geral, reconhecendo também as misturas<br />

com outras culturas antigas (ameríndias e portuguesas)<br />

no decorrer dos séculos. A transmissão<br />

<strong>da</strong> história e cultura do povo negro na<br />

diáspora através do samba de ro<strong>da</strong> e outras tradições<br />

cênico-musicais constitui uma <strong>da</strong>s metas<br />

do futuro centro de referência do Samba de<br />

Ro<strong>da</strong> no Recôncavo Baiano.<br />

ALVES, Rubens. Prefácio. In: DUARTE JÚNIOR, João F. Fun<strong>da</strong>mentos estéticos <strong>da</strong> educação. São Paulo:<br />

Cortez, 1981, p. 11-13.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 173-184, jan./jun., 2006 183


Uma escola de música e artes brasileiras na Bahia<br />

ARMSTRONG, Píer. Cultura popular na Bahia & estilística cultural pragmática. Feira de Santana: UEFS<br />

Editora, 2002.<br />

CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e ci<strong>da</strong>dãos: conflitos multiculturais <strong>da</strong> globalização. Rio de Janeiro:<br />

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FARIA, Hamilton. Políticas Públicas de Cultura e Desenvolvimento Humano nas Ci<strong>da</strong>des. In: BRANT,<br />

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FORQUIN, Jean Claude. Escola e cultura. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.<br />

LACLAU, Ernesto. Universalismo, Particularismo e a Questão <strong>da</strong> Identi<strong>da</strong>de. In: MENDES, Candido (org.).<br />

Pluralismo cultural, identi<strong>da</strong>de e globalização. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 229-250.<br />

MASON, Rachel. Por uma arte-educação multicultural. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2001.<br />

PRICE, Sally. Arte primitiva em centros civilizados. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000.<br />

184<br />

Recebido em 28.02.06<br />

Aprovado em 04.05.06<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 173-184, jan./jun., 2006


Izabel Dantas de Menezes<br />

ARTE EM MOVIMENTO:<br />

a potenciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> arte na formação de educadores<br />

RESUMO 1<br />

Izabel Dantas de Menezes*<br />

Considerando que a contemporanei<strong>da</strong>de trouxe a necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> re-significação<br />

<strong>da</strong> educação e do conhecimento a partir de orientações também sensíveis e<br />

que a idéia de “formação” é entendi<strong>da</strong> enquanto um fenômeno polissêmico e<br />

complexo, que acontece, também, para além ‘do chão <strong>da</strong> escola’, este artigo<br />

procura compreender a potenciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> arte na formação dos educadores e<br />

educadoras do movimento sócio-cultural MIAC. O Movimento de Intercâmbio<br />

Artístico Cultural pela Ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia é uma rede forma<strong>da</strong> por diversas instituições<br />

de Salvador – Ba, que tem como princípio basilar <strong>da</strong> sua pe<strong>da</strong>gogia a utilização<br />

<strong>da</strong> arte como provocadora de mobilização social e de aprendizagens acerca<br />

dos direitos e <strong>da</strong>s formas emancipatórias de atuar na comuni<strong>da</strong>de e na escola.<br />

Palavras-chaves: Formação de educadores – Movimentos sociais – Saber<br />

sensível – Arte e educação<br />

ABSTRACT<br />

ART IN MOTION: The Potentiality of Art in Educator’s Formation<br />

In this paper, we use the concept of “formation” as a polysemic and complex<br />

phenomenon which happens beyond the classroom, in the cloth of social relations,<br />

in various spaces and times. In this sense, we try to understand the potentiality<br />

of art in educators’ formation within the social movement MIAC (Movement<br />

of artistic and culture exchange in favour of citizenship), believing that it favours<br />

a different pe<strong>da</strong>gogy, able to ally reason, sensibility, critical sense and creativity.<br />

The MIAC is a network formed by various institutions from the City of Salvador<br />

(Bahia, Brazil) and has as its basic pe<strong>da</strong>gogical principle, the use of art to<br />

provoke social mobilization and learning about human rights and emancipatory<br />

ways of acting within the school and community.<br />

Keywords: Educators’ formation – Social movements – Sensible knowledge<br />

– Art and education<br />

* Mestre em <strong>Educação</strong>, professora Auxiliar <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Bahia – UNEB, no Departamento de<br />

<strong>Educação</strong>, Campus XIII. Endereço para correspondência: Rua Dr. Orman Ribeiro dos Santos, S/N- 46880000 Itaberaba/<br />

Bahia. E-mail: bebeldm@yahoo.com.br<br />

1 Este artigo foi preparado a partir <strong>da</strong> dissertação de Mestrado: “Formação de educadores além ‘do chão <strong>da</strong> escola’: Quais os<br />

sentidos educativos tramados pela rede MIAC?”, do Programa de Pós-graduação <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de <strong>da</strong> UNEB,<br />

realiza<strong>da</strong> entre os anos de 2003 e 2004, orientação Profa . Dra . Cristina D’ Ávila. Traz o resultado <strong>da</strong> pesquisa que foi<br />

anuncia<strong>da</strong> num artigo anterior de minha autoria, publicado nesse mesmo veículo, <strong>Revista</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e<br />

Contemporanei<strong>da</strong>de, v, 12, n. 20, 2003.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 185-200, jan./jun., 2006 185


Arte em movimento: a potenciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> arte na formação de educadores<br />

1. O ‘saber sensível’ 2<br />

186<br />

Em suma, o sensível não é apenas um momento<br />

que se poderia ou deveria superar, no quadro de<br />

um saber que progressivamente se depura. É<br />

preciso considerá-lo como elemento central no<br />

ato de conhecimento. (MAFEFESOLI, 1998, p.<br />

189)<br />

Assim como Duarte Jr (2001), preferi, neste<br />

artigo, utilizar a expressão “saber sensível”<br />

em detrimento do termo “conhecimento sensível”,<br />

porque a primeira possui um sentido mais<br />

amplo do que o segundo no que se refere a sua<br />

aplicabili<strong>da</strong>de no cotidiano, ou seja, o “sabedor”<br />

não se limita aos conhecimentos parciais sobre<br />

a reali<strong>da</strong>de, ele encharca suas ações diárias de<br />

saberes e habili<strong>da</strong>des mais abrangentes e incorporados<br />

entre si e ao seu viver cotidiano.<br />

Considerando a educação moderna, podemos<br />

constatar uma preferência latente do intelecto<br />

e uma desvalorização <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de. Ao<br />

fazer um histórico sobre a “razão instrumental”<br />

ou “razão calculante”, Duarte Jr (2001) destaca<br />

que, através <strong>da</strong> desvalorização do ser humano<br />

em nome do lucro, e <strong>da</strong> separação entre<br />

o corpo e a mente, o homem moderno foi submetido<br />

a uma deseducação dos seus sentidos<br />

em virtude de um ambiente deteriorado,<br />

espaços coletivos frios e imposições consumistas<br />

na nossa forma de ser e de viver em socie<strong>da</strong>de.<br />

Sobre a investi<strong>da</strong> <strong>da</strong> racionalização na<br />

socie<strong>da</strong>de moderna, como estratégia de anulação<br />

<strong>da</strong>s dimensões sensíveis humanas, Duarte<br />

Jr (2002) refere que:<br />

... o nosso estilo moderno de viver precisa ser<br />

visto como diretamente vinculado a uma maneira<br />

de se compreender o mundo e de sobre ele<br />

agir, maneira que se veio identificando como tributária<br />

dessa forma específica de atuação <strong>da</strong> razão<br />

humana: a forma instrumental, calculante,<br />

tecnicista, de se pensar o real. (...) Tal conhecimento,<br />

tendo (epistemologicamente) negado<br />

desde os seus primórdios o acesso sensível do<br />

ser humano ao mundo, veio crescendo, desumanizando<br />

o nosso planeta e as nossas relações<br />

sociais (...) a crise desse tipo de conhecimento<br />

que engendrou e a ela deu sustentação, em detrimento<br />

de outros tipos de saberes, em especial<br />

o saber sensível. (DUARTE JR, 2001, p, 69-70)<br />

Hoje se faz necessário o reconhecimento <strong>da</strong><br />

sensibili<strong>da</strong>de humana, enquanto forma de saber,<br />

sob pena de ficarmos cristalizados num<br />

mundo que nos toma como mercadorias e à<br />

produção do conhecimento como ativi<strong>da</strong>de “científica”<br />

elabora<strong>da</strong> por poucos ‘iluminados’.<br />

A superação desta concepção passa inicialmente<br />

pelo fortalecimento de uma educação que<br />

não tenha na divisão sujeito/objeto, na duali<strong>da</strong>de<br />

corpo/mente e na supervalorização <strong>da</strong> razão<br />

pura, seus pilares e forma. Deve-se entender<br />

também a importância de voltarmos “às coisas<br />

mesmas”, ou seja, ao refinamento e desenvolvimento<br />

dos nossos sentidos em face do mundo,<br />

e que, para tanto, é preciso lançar mão de<br />

uma proposta educativa que tenha como princípio<br />

o saber sensível como aquele “saber primeiro<br />

que vem sendo sistematicamente<br />

preterido em favor do conhecimento intelectivo”<br />

(DUARTE JR, 2001, p. 14).<br />

Mas o que significa esse “saber sensível”?<br />

Através de que se alcança esse saber sensível?<br />

Como se inter-relacionam os desejos individuais<br />

e coletivos neste processo de educação do sensível?<br />

Para responder a estas inquietações cito<br />

inicialmente Maffesoli (1998), quando traz a figura<br />

mitológica de Dionísio como contraponto à<br />

figura de Prometeu, que representa to<strong>da</strong> a instrumentali<strong>da</strong>de<br />

racional moderna:<br />

... convém elaborar um saber “Dionisíaco” que<br />

esteja o mais próximo possível de seu objeto.<br />

Um saber que seja capaz de integrar o caos ou<br />

que, pelo menos, conce<strong>da</strong> a este o lugar que lhe<br />

é próprio. Um saber que saiba, por mais paradoxal<br />

que isso possa parecer, estabelecer a topografia<br />

<strong>da</strong> incerteza e do impossível, <strong>da</strong> desordem<br />

e <strong>da</strong> efervescência, do trágico e do nãoracional.Coisas<br />

que, em graus diversos, atravessam<br />

as histórias individuais e coletivas.Coisas,<br />

portanto, que constituem a via crucis do ato de<br />

conhecimento ... (MAFFESOLI, 1998, p.13).<br />

Um saber também que se faz dialetizante,<br />

próprio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana, que é teci<strong>da</strong> entre<br />

opostos que se complementam: perfeição –<br />

imperfeição, caos – harmonia, tragédia – co-<br />

2 Título inspirado na obra de DUARTE JR, João Francisco.<br />

O sentido dos sentidos: a educação (do) sensível. Curitiba:<br />

Criar Edições, 2001.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 185-200, jan./jun., 2006


média, etc. É com base na percepção desta<br />

ambivalência que o saber sensível encontra seu<br />

sentido fun<strong>da</strong>dor, trazendo para o seu foco de<br />

interesse a vi<strong>da</strong> com suas diversas manifestações,<br />

formas e expressões de sensibili<strong>da</strong>des.<br />

Diante disto é que Duarte Jr (2001) afirma que<br />

a arte é para o ser humano o seu encontro primeiro,<br />

sensível, com o mundo.<br />

2. A arte na educação do sensível<br />

A arte nos liga a um “saber sensível” de nós<br />

mesmos e <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de que nos cerca, muito<br />

antes <strong>da</strong> nossa compreensão “concreta” acerca<br />

<strong>da</strong>s coisas. Ela, segundo Duarte Jr (2001)<br />

situa-se, “... a meio caminho entre a vi<strong>da</strong> vivi<strong>da</strong><br />

e a abstração conceitual, as formas artísticas<br />

visam a significar esse nosso contato carnal com<br />

a reali<strong>da</strong>de, e a sua apreensão opera-se bem<br />

mais através de nossa sensibili<strong>da</strong>de do que via<br />

intelecto.” (DUARTE JR, 2001, p.68).<br />

Este saber sensível não se opera por intermédio<br />

<strong>da</strong> fragmentação entre o nosso corpo e a<br />

nossa emoção; ao contrário, este saber conecta<br />

as nossas dimensões num “tecer junto”, que vai<br />

<strong>da</strong> nossa emoção ao nosso intelecto, <strong>da</strong> escuta<br />

ao diálogo, do sonho à ação e do individual ao<br />

coletivo. Para modificar a reali<strong>da</strong>de, já nos dizia<br />

Freire (1981), é necessário conhecê-la, ou seja,<br />

“perceber a dramatici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> hora atual” para<br />

poder transformá-la. Para tanto, é preciso educar,<br />

educar os olhos, os ouvidos dos educandos.<br />

Assim, educar para a sensibili<strong>da</strong>de é:<br />

... sobretudo e primeiramente, a educação dos<br />

nossos sentidos perante os estímulos mais corriqueiros<br />

que a reali<strong>da</strong>de do mundo moderno nos<br />

oferece em profusão (...) é voltar primeiramente<br />

para o nosso cotidiano mais próximo, para a ci<strong>da</strong>de<br />

onde vive, as ruas e praças pelas quais<br />

circula e os produtos que consome, na intenção<br />

de despertar sua sensibili<strong>da</strong>de para com a vi<strong>da</strong><br />

mesma, consoante leva<strong>da</strong> no dia-a-dia. (DUAR-<br />

TE JR, 2001, p. 25)<br />

O reconhecimento do papel transformador<br />

<strong>da</strong> arte passa pela valorização do saber sensível,<br />

que consegue agregar as dimensões do sujeito;<br />

expressar valores e idéias; descobrir o eu<br />

criativo que existe em ca<strong>da</strong> um; <strong>da</strong>r formas e<br />

Izabel Dantas de Menezes<br />

expressão aos nossos sentimentos e pensamentos,<br />

atitude dialógica intercultural entre indivíduos<br />

e grupos de díspares, e a condição de ator/<br />

autor do sujeito; enfim, consegue interpretar e/<br />

ou inventar a vi<strong>da</strong>.<br />

Desta forma, a arte evoca, no indivíduo,<br />

memórias e reflexões de si mesmo, <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />

que o cerca, à medi<strong>da</strong> que o sujeito expressa<br />

de diversas formas e linguagens as suas<br />

histórias, frustrações, projetos, culturas e desejos.<br />

Este olhar, ca<strong>da</strong> vez mais sensível e crítico<br />

acerca <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, é uma construção assegura<strong>da</strong><br />

por um processo educativo que “repense<br />

a educação sob a perspectiva <strong>da</strong> arte” (RU-<br />

BEM, 1981, apud DUARTE JR, 1981, p. 16).<br />

No entanto, verifica-se a exclusão de uma<br />

parcela significativa <strong>da</strong> população, tanto no<br />

acesso à arte produzi<strong>da</strong>, quanto aos próprios<br />

mecanismos que possibilitam o seu desenvolvimento.<br />

No entendimento de Porcher (1982), a<br />

arte sempre teve na socie<strong>da</strong>de moderna uma<br />

conotação de requinte...<br />

... aristocrática, enquanto exercício de lazer e<br />

marca registra<strong>da</strong> <strong>da</strong> elite. As muralhas estéticas<br />

definiam o território fechado de uma certa forma<br />

de ócio elegante. Mas esse lazer ocioso, essa<br />

utilização do tempo livre não foram <strong>da</strong>dos a todos<br />

por igual dentro <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de: construíram-se<br />

em privilégio <strong>da</strong>s classes sociais favoreci<strong>da</strong>s, que<br />

foram também as classes sociais dominantes.<br />

Quando se tornou obrigatória, a escola primária<br />

não se propunha a abrir a todos o acesso a esse<br />

tipo de responsabili<strong>da</strong>de. (PORCHER, 1982, p. 13<br />

– grifos meus).<br />

Ao recuperar, mesmo que brevemente, a<br />

história do ensino de Arte 3 , pode-se observar a<br />

3 Ao longo do século XX, registraram-se ações e práticas<br />

diferencia<strong>da</strong>s, representa<strong>da</strong>s por correntes teóricas pe<strong>da</strong>gógicas<br />

de pensamento que influenciaram as tendências pe<strong>da</strong>gógicas<br />

do Ensino de Arte no Brasil. Essas tendências pe<strong>da</strong>gógicas<br />

são representa<strong>da</strong>s por escolas de pensamento que se<br />

dividem em: Pe<strong>da</strong>gogia Tradicional, Nova e Tecnicista. Na<br />

Pe<strong>da</strong>gogia Tradicional o ensino <strong>da</strong> arte, no caso o desenho,<br />

estava diretamente relacionado à preparação técnica para o<br />

universo do trabalho. O que se valorizava neste ensino eram<br />

o traço, o contorno e a repetição de modelos de objetos que<br />

geralmente vinham de fora do país. A boa expressão artística<br />

estava na grande capaci<strong>da</strong>de do indivíduo de reproduzir<br />

uma copia perfeita. A Pe<strong>da</strong>gogia Nova tinha como foco a<br />

expressão, como um <strong>da</strong>do subjetivo e individual em to<strong>da</strong>s as<br />

ativi<strong>da</strong>des que passam dos aspectos individuais para os afetivos.<br />

Nesta linha pe<strong>da</strong>gógica o aluno é visto como um ser<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 185-200, jan./jun., 2006 187


Arte em movimento: a potenciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> arte na formação de educadores<br />

integração de diferentes orientações e concepções<br />

referentes às finali<strong>da</strong>des, à formação e<br />

atuação dos professores. Estas orientações sofreram,<br />

contudo, variações e enfoques diversos,<br />

de acordo com o contexto histórico e a sua<br />

reali<strong>da</strong>de sócio-cultural, que, a depender, influenciaram<br />

o ensino <strong>da</strong> arte através de políticas<br />

educacionais, enfoques filosóficos, pe<strong>da</strong>gógicos<br />

e estéticos.<br />

Observa-se também que neste percurso histórico<br />

a predileção pela racionalização <strong>da</strong> prática<br />

pe<strong>da</strong>gógica criou um estatuto seletivo, que<br />

tornou insignificantes e menores os saberes<br />

pautados em lógicas afetivas e culturais, não<br />

permitindo a inclusão <strong>da</strong> afetivi<strong>da</strong>de e do desejo<br />

nas práticas de aprendizagem, conforme Fernandes<br />

(2005); uma prática pe<strong>da</strong>gógica artística<br />

volta<strong>da</strong> ao desenvolvimento e preparação de<br />

destrezas úteis para a formação de mão-de-obra<br />

especializa<strong>da</strong> para o trabalho; uma presença <strong>da</strong><br />

arte na escola marginaliza<strong>da</strong> presente nas <strong>da</strong>tas<br />

comemorativas como ornamento decorativo;<br />

uma idéia <strong>da</strong> arte como representante de<br />

um saber ‘não sério’ e inferiorizado, conforme<br />

Barbosa (1975).<br />

Neste contexto, cabe ressaltar que estas<br />

orientações sobre a arte e a educação não são<br />

as únicas a transitarem no cenário. É interessante<br />

mostrar que, historicamente, a perspectiva<br />

<strong>da</strong> arte como instrumento de transformação<br />

individual e coletiva esteve presente nos trabalhos<br />

teórico-práticos que colocam em foco a<br />

grandeza <strong>da</strong> arte e sua capaci<strong>da</strong>de educativa.<br />

Pode-se citar como exemplo o trabalho do dramaturgo<br />

judeu-alemão Bertold Brecht (1898-<br />

1956). Ele escreveu dezenas de peças épicas<br />

criativo, e deve ser estimulado a realizar tarefas que tenham<br />

um significado para ele mesmo. Desta forma, foge-se <strong>da</strong><br />

competitivi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> idéia de perfeição, possibilitando que<br />

o aluno desenvolva sua expressão artística através do “aprender-fazendo”,<br />

<strong>da</strong> experimentação. A Pe<strong>da</strong>gogia Tecnicista<br />

enfatizava um “saber exprimir-se” espontaneístico, na<br />

maioria dos casos, caracterizando pouco compromisso com<br />

o conhecimento de linguagens artísticas. Esta pe<strong>da</strong>gogia é<br />

orienta<strong>da</strong> por uma concepção mais mecanicista na qual o<br />

que importa é cumprir os objetivos específicos do planejamento<br />

de aula. Não há aqui uma valorização nem do sujeito<br />

(aluno), nem do objeto (a arte). (Vide texto a<strong>da</strong>ptado por<br />

FERNANDES, 2005, p. 177-178, do livro de FERRAZ,<br />

Maria Heloisa. Metodologia do ensino <strong>da</strong> arte. São Paulo:<br />

Cortez, 1999).<br />

188<br />

de espetáculo, e outras mais, para experimentação<br />

pública <strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s peças didáticas,<br />

pois tinham uma intenção pe<strong>da</strong>gógica e faziam<br />

parte <strong>da</strong> sua pe<strong>da</strong>gogia político-estética, conforme<br />

Ricardo Japiassu (2001).<br />

A peça didática ensina quando nela se atua, não<br />

quando se é espectador. (...) a peça didática baseia-se<br />

na expectativa de que o atuante possa<br />

ser influenciado socialmente, levando a cabo<br />

determina<strong>da</strong>s formas de agir, assumindo determina<strong>da</strong>s<br />

posturas, reproduzindo determina<strong>da</strong>s<br />

falas... (KOUDELA, 1991, apud. JAPIASSU, 2001,<br />

p. 32).<br />

Ou ain<strong>da</strong>: “A peça de Brecht pode ser subdividi<strong>da</strong><br />

em quatro pontos principais: a peça didática<br />

é para Brecht sinônimo de exercício<br />

coletivo; a peça didática visa autoconhecimento;<br />

auto-significa um Eu coletivo e não Eu individualizado;<br />

o público não é passivo, porém<br />

atuante” (KOUDELA, 1992, p. 34).<br />

A pe<strong>da</strong>gogia de Brecht, segundo a professora<br />

Ingrid Koudela, significa:<br />

... algo como o termo greco-romano ‘ateneu’<br />

(uma espécie de escola de cultura geral, de retórica,<br />

filosofia, direito), cujo sentido pode ser combinado,<br />

por analogia talvez, com o neologismo<br />

‘politeu’. Tal conceito pretende que se enten<strong>da</strong><br />

por ‘locais de aprendizagem’ espaços para onde<br />

indivíduos se dirigem a fim de ampliar as suas<br />

possibili<strong>da</strong>des de intervenção na polis (ou, ao<br />

menos, refleti-las, experimentá-las no terreno do<br />

ludus), o espaço <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, o espaço político,<br />

na acepção mais ampla. Tal espaço lúdico teria<br />

um denominador comum com o processo de desalienação.<br />

(KOUDELA, 1992, p.43)<br />

Aqui no Brasil, dentre outras experiências,<br />

cito a do MIAC – Movimento de Intercambio<br />

Artístico Cultural pela Ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, proposto em<br />

1997 pelo CRIA como uma rede de mobilização<br />

social forma<strong>da</strong> por diversas instituições e<br />

grupos culturais <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Salvador-Ba, que<br />

tem como princípios a parceria entre adolescentes<br />

e adultos; a utilização <strong>da</strong> arte-educação<br />

como metodologia especial; a integração escola,<br />

comuni<strong>da</strong>des e outros grupos comprometidos<br />

com a luta por uma educação pública e de<br />

quali<strong>da</strong>de; a gestão participativa; a valorização<br />

<strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de cultural (Relatório MIAC, 2001,<br />

p.15-18).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 185-200, jan./jun., 2006


Espaço onde a arte experimenta<strong>da</strong> potencializa<br />

a condição de sujeito que consegue expressar,<br />

falar de si, de suas fraquezas, sonhos,<br />

resistências, desejos, necessi<strong>da</strong>des e vontades,<br />

e também do mundo. As expressões artísticas<br />

cria<strong>da</strong>s nesta Rede serviram para que seus participantes<br />

interpretassem a si e ao mundo, primando<br />

por relações dialógicas entre os grupos,<br />

pessoas e instituições de culturas 4 díspares,<br />

numa atitude que se quis intercultural. Esta interculturali<strong>da</strong>de,<br />

na medi<strong>da</strong> em que possibilitou<br />

a relação dialógica entre sujeitos e culturas distintas,<br />

promoveu, em certa medi<strong>da</strong>, a ruptura<br />

com orientações monorreferenciais de produzir<br />

conhecimento. De acordo com Fleuri (2004),<br />

nesta relação intercultural é preciso:<br />

Superar o modo de entender o mundo por oposições<br />

(ou/ou) e elaborar um modo de compreender<br />

as relações por conexões (e/e) (...); em lugar de se<br />

entender educação como a busca de conformar o<br />

pensamento e o comportamento <strong>da</strong>s pessoas a<br />

padrões culturais pré-definidos e homogêneos,<br />

entende-se que as pessoas se educam e se humanizam<br />

construindo processos identitários entre<br />

suas diferenças. (FLEURI, 2004, p. 17)<br />

A pesquisa, desenvolvi<strong>da</strong> por Fernandes<br />

(2005), sobre a rede MIAC, “Sociabili<strong>da</strong>de,<br />

comunicação e política: a Rede MIAC como<br />

provocadora de potenciali<strong>da</strong>des estético-comunicativas<br />

na ci<strong>da</strong>de de Salvador”, defende a tese<br />

de que o ci<strong>da</strong>dão MIAC exercita a sua potenciali<strong>da</strong>de<br />

estético-comunicativa através do<br />

diálogo intercultural.<br />

Na construção desse conceito, a autora recorre<br />

à idéia de complementari<strong>da</strong>de, de origem<br />

nagô, descrito pelo historiador Marco<br />

Aurélio Luz. Conforme o autor, “uma <strong>da</strong>s principais<br />

características <strong>da</strong> visão de mundo nagô<br />

é de que os poderes e princípios que regem o<br />

universo são complementares.” (LUZ, 2000, p.<br />

35 apud FERNANDES, 2005, p. 147). Desta<br />

forma, para Fernandes:<br />

A idéia de complementari<strong>da</strong>de apresenta-se também<br />

na ação desses jovens, que compreenderam<br />

que deman<strong>da</strong>r políticas públicas não significa<br />

apenas reivindicar ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia por intermédio de<br />

instituições partidárias; esse é apenas um dos<br />

caminhos. É preciso tecer junto, e para que a trama<br />

societal cresça é necessário comunicar, com<br />

Izabel Dantas de Menezes<br />

uso <strong>da</strong> arte e <strong>da</strong> educação, as diversi<strong>da</strong>des culturais<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. (FERNANDES, 2005, p. 187)<br />

A arte consegue retirar <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de imediata<br />

seu objeto e pensar num mundo possível. Como<br />

diz Espinheira, é um tapete mágico, <strong>da</strong>í a sua complexi<strong>da</strong>de<br />

e grandeza. É este “tapete mágico” que<br />

coloca a pertinência de um devir para educadores<br />

e educadoras, na medi<strong>da</strong> em que oportuniza a<br />

expressão de culturas e identi<strong>da</strong>des, bem como<br />

de direitos. O “tecer junto”, no cotidiano <strong>da</strong> rede<br />

MIAC, é forjado pelo desejo de participação<br />

ci<strong>da</strong>dã e pelo diálogo intercultural entre sentidos,<br />

sentimentos e culturas díspares.<br />

3. A potenciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> arte na formação<br />

dos educadores do MIAC<br />

O MIAC traz inspiração<br />

No verso, no olhar, na canção<br />

Esse monte de jovens<br />

Exercitando a ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia<br />

É momento de aprendizado<br />

Quando estamos juntos<br />

Tudo é emoção. Se transforma<br />

Num imensurável planeta<br />

Que chamamos<br />

ARTE-EDUCAÇÃO 5<br />

4 Assim como Fernandes (2005), entende-se que “cultura<br />

não é simplesmente um referente que marca uma hierarquia<br />

de civilização, em que uma socie<strong>da</strong>de é mais civiliza<strong>da</strong> que a<br />

outra e que por isto é mais “avança<strong>da</strong>”. Ou ain<strong>da</strong> que “ter<br />

cultura” significa ter acesso a bons estudos, à educação, a<br />

conhecimentos diversificados, ou ser um intelectual que<br />

“sabe pensar o mundo”, mas sim a maneira de viver total de<br />

um grupo, socie<strong>da</strong>de, país ou pessoa. Cultura é um mapa, um<br />

código pelo qual podemos entender como as pessoas de um<br />

<strong>da</strong>do grupo pensam, vivem, se organizam, se vestem, festejam,<br />

trabalham, comem, estu<strong>da</strong>m e modificam o mundo e a<br />

si mesmas. Cotidianamente estamos reencontrando-nos e<br />

reafirmando-nos culturalmente com o outro e, através dele,<br />

formando e construindo códigos comuns. E é justamente<br />

esse comum entre o eu e o outro o que nos une, o que nos<br />

aproxima aos interesses múltiplos (racionais, emocionais,<br />

objetivos, subjetivos), o que dá sentido à existência social, é<br />

o que podemos denominar de cultura. Entendemos, então,<br />

por cultura o conjunto <strong>da</strong>s práticas e relações sociais e simbólicas<br />

de uma determina<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Entendendo que ela é<br />

dinâmica, híbri<strong>da</strong>, flui<strong>da</strong>, o que significa que não existem<br />

culturas “puras”, intoca<strong>da</strong>s e isola<strong>da</strong>s. E que também não<br />

existe uma cultura melhor do que a outra, mas sim uma<br />

cultura diferente <strong>da</strong> outra.” (FERNANDES, 2005, p. 185)<br />

5 Jovens <strong>da</strong> Escola Estadual Azevedo Fernandes – Relatório<br />

MIAC, 1999.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 185-200, jan./jun., 2006 189


Arte em movimento: a potenciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> arte na formação de educadores<br />

Para descrever as potenciali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> arte<br />

na formação dos seus educadores e educadoras,<br />

acredito ser de fun<strong>da</strong>mental importância<br />

retomar três idéias centrais: primeira, a de que<br />

considerei o MIAC – Movimento de Intercâmbio<br />

Artístico Cultural pela Ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia - como uma<br />

rede de mobilização sociocultural que, com seu<br />

modo de organização, é formativa, posto que<br />

“nos interroga, choca, sacode valores, concepções,<br />

culturas e estruturas” (ARROYO, 2000,<br />

p. 11); segun<strong>da</strong>, o conceito de formação de educadores<br />

como um fenômeno amplo, complexo<br />

e polissêmico que acontece, também, além do<br />

“chão <strong>da</strong> escola”; e a terceira, o sentido <strong>da</strong> arte<br />

como uma referência especial nesta formação.<br />

A amplitude do processo de formação dos<br />

docentes, entrementes, não está restrita ao espaço<br />

formal, ou seja, apesar <strong>da</strong> imposição <strong>da</strong><br />

“formação formal como o todo <strong>da</strong> formação”,<br />

outras possibili<strong>da</strong>des existem. Mesmo deixando<br />

claro o reconhecimento <strong>da</strong>s deman<strong>da</strong>s existentes<br />

para que esses níveis de formação sejam<br />

acessados pelos educadores, é importante identificar<br />

a existência de outros espaços de formação<br />

docente que estão para “fora do chão<br />

<strong>da</strong> escola”, ou mesmo, dentro do universo escolar,<br />

surgem por conta de circunstâncias que<br />

não estão previstas dentro do roteiro/regulamento<br />

instituído pela uni<strong>da</strong>de escolar.<br />

Para aqueles que já atuam como profissionais<br />

<strong>da</strong> docência, a continui<strong>da</strong>de do seu processo<br />

de formação, além de se constituir numa<br />

deman<strong>da</strong> que deve ser assumi<strong>da</strong> tanto pelo poder<br />

público, quanto pelo estabelecimento escolar,<br />

constituindo-se num direito e numa<br />

prerrogativa dos professores, pode (e deve) também<br />

ser pensa<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong>s imbricações que<br />

esses profissionais constroem nas diversas esferas<br />

<strong>da</strong> sua atuação profissional, política e/ou<br />

cultural.<br />

Nóvoa (2002) nos remete a um elemento<br />

importante sobre o problema apresentado para<br />

entender a “formação”. Todo o debate referente<br />

ao processo formativo esteve, por muito tempo,<br />

fun<strong>da</strong>mentado numa perspectiva de que a<br />

formação dos indivíduos estaria circunscrita a um<br />

espaço delimitado (a Escola) e a um período específico<br />

<strong>da</strong> formação (a infância). Tais limita-<br />

190<br />

ções só vão ser transpostas a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong><br />

de 1960, quando alguns autores passam a reivindicar<br />

uma maior amplitude para o debate, trazendo<br />

à tona concepções como a de uma<br />

“<strong>Educação</strong> Permanente” (NÓVOA, 2002, apud<br />

JOSSO, p.08). Portanto, descrever e analisar<br />

sentidos educativos vivenciados por educadores<br />

dentro do espaço MIAC é uma oportuni<strong>da</strong>de de<br />

entender melhor a ‘pe<strong>da</strong>gogia’, muitas vezes<br />

anônima, dos movimentos sociais.<br />

Vale destacar, também, que os veios aqui<br />

destacados representam uma possibili<strong>da</strong>de, dentre<br />

muitas possíveis, de compreender o que os<br />

educadores/as percebem como fun<strong>da</strong>mental nos<br />

seus próprios processos de formação, tomando<br />

o espaço <strong>da</strong> rede MIAC e a arte como referências.<br />

Os veios destacados correspondem, em<br />

primeiro lugar, à formação identitária dos educadores<br />

e educadoras; em segundo lugar, à formação<br />

para a conscientização do direito a ter<br />

direito; e, terceiro e último, à formação para a<br />

atuação político-pe<strong>da</strong>gógica na escola e na comuni<strong>da</strong>de.<br />

4. Aprendizado de direitos<br />

Diante <strong>da</strong> plurali<strong>da</strong>de de direitos: saúde,<br />

moradia, terra, segurança, proteção, infância<br />

etc., o MIAC coloca a luta por educação de<br />

quali<strong>da</strong>de e a valorização <strong>da</strong>s diferentes culturas<br />

no campo dos direitos. Esta opção é destaca<strong>da</strong>,<br />

também, por seus participantes, por sua<br />

dimensão educativa para a formação de muitos<br />

educadores e educadoras que participaram ou<br />

participam do MIAC. É o que pontuam as narrativas:<br />

Tem também o que a gente chama dentro <strong>da</strong>s<br />

formações que são as discussões que enriquecem<br />

demais, né? Coisas que eu até não tinha me<br />

tocado, como no último trabalho nosso, e de repente<br />

aqui no MIAC eu vim ter um conhecimento<br />

de política, <strong>da</strong> questão econômica, e isso é<br />

coisa que a gente não se propõe a fazer um curso<br />

para aprender. E esses temas que vem sendo<br />

discutidos aqui enriquecem muito o conhecimento<br />

<strong>da</strong> gente e ca<strong>da</strong> vez que a gente aprende mais<br />

alguma coisa a gente revê a nossa prática, não<br />

só como profissional, mas como ci<strong>da</strong>dã. Às ve-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 185-200, jan./jun., 2006


zes a gente vem para uma reunião para escrever<br />

um projeto e antes começa um bate-papo que é<br />

enriquecedor pra caramba, quantas coisas a gente<br />

aprende e ensina? (Educadora H – NELCY<br />

PIAGGIO)<br />

E o MIAC é muito interessante e importante porque<br />

lá a gente faz as descobertas; eu já me emocionei<br />

várias vezes com o MIAC, lá a gente faz<br />

trabalho com políticas públicas e também leva a<br />

gente a viver os direitos; por exemplo, eu nunca<br />

entrei no Clube Baiano de Tênis, um dia me vi lá<br />

com o MIAC, assistindo um filme que tem a ver<br />

com nossas vi<strong>da</strong>s de educador popular, muitas<br />

coisas assim. Eu me vi ali naquele filme; o que<br />

me despertou também outras coisas, encorajando,<br />

acor<strong>da</strong>ndo. (...) Estou me lembrando do que<br />

aconteceu com as mulheres que foram retira<strong>da</strong>s<br />

aqui do Pelourinho e que receberam uma quantia<br />

irrisória para isso. E levaram os filhos, que<br />

não queriam ficar lá. A prefeitura então inventou<br />

um projeto que se chamou “Os Nossos Filhos”<br />

– porque os meninos já haviam se acostumado<br />

aqui e voltaram para ficar por aqui. Tem a Gamboa<br />

de Baixo também. Precisamos discutir “Tecendo<br />

a Ci<strong>da</strong>de” criando um sentido político<br />

para isso, questionar isso... (Educadora E –<br />

MARINALVA GÓES).<br />

O aprendizado dos direitos leva tais educadores<br />

a questionar e in<strong>da</strong>gar sobre a brutal exclusão<br />

dos setores populares urbanos dos<br />

serviços públicos mais básicos. Quando Paulo<br />

Freire (1981) justifica a Pe<strong>da</strong>gogia do Oprimido,<br />

sinaliza que tal pe<strong>da</strong>gogia se nutre do<br />

sujeito como problema de si mesmo ou <strong>da</strong> problematização<br />

de nos formarmos humanos. Seu<br />

objeto de teorização é a trágica descoberta de<br />

nós mesmos (ARROYO, 2004, p.5-7).<br />

Esta descoberta, segundo Freire (1981), se<br />

faz especialmente nos movimentos sociais:<br />

Os movimentos de rebelião, sobretudo de jovens,<br />

no mundo atual... manifestam, em sua profundi<strong>da</strong>de,<br />

esta preocupação em torno do homem e<br />

dos homens, como seres no mundo e com o mundo.<br />

Em torno do que e de como estão sendo...<br />

buscando a afirmação dos homens como sujeitos<br />

de decisão. Todos estes movimentos refletem o<br />

sentido mais antropológico do que antropocêntrico<br />

de nossa época. (FREIRE, 1981, p.27)<br />

Os dramáticos processos <strong>da</strong> convivência<br />

humana trazem grandes interrogações para os<br />

Izabel Dantas de Menezes<br />

homens e mulheres. Os sujeitos, segundo Arroyo<br />

(2004), “... reeducam as teorias pe<strong>da</strong>gógicas,<br />

as humanizam ou as aproximam <strong>da</strong>s<br />

grandes interrogações que estão em sua origem.<br />

Pe<strong>da</strong>gogia como acompanhamento <strong>da</strong>s<br />

possibili<strong>da</strong>des de sermos humanos, de realização<br />

do humano possível...”.<br />

A possibili<strong>da</strong>de de questionar e atuar politicamente<br />

como “sujeitos de decisão” ou como<br />

“atores/autores” capazes de contribuir para a<br />

melhoria <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de social <strong>da</strong> educação, contribuindo<br />

efetivamente para a construção de<br />

condições mais humanas e solidárias, pela conseqüente<br />

atuação política nos seus espaços (escola,<br />

comuni<strong>da</strong>de, conselhos, fóruns, etc.), só<br />

foi possível de ser feita pela formação desenvolvi<strong>da</strong><br />

internamente no movimento.<br />

As falas a seguir representam um destes<br />

momentos de mobilização e pressão ci<strong>da</strong>dã. São<br />

reflexões críticas a respeito <strong>da</strong>s concepções<br />

político-pe<strong>da</strong>gógicas instituí<strong>da</strong>s e mapea<strong>da</strong>s<br />

durante a “ro<strong>da</strong> de discussão” na Escola Renan<br />

Baleeiro, ação que fez parte <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des<br />

<strong>da</strong> “Semana de Ação Mundial 2004” – O político<br />

vai à escola. O político convi<strong>da</strong>do foi um<br />

miaqueiro, o professor Albertino Nascimento,<br />

componente do Conselho Estadual de <strong>Educação</strong><br />

<strong>da</strong> Bahia, representando o SINPRO – Sindicato<br />

dos Professores <strong>da</strong> Rede Particular de<br />

Ensino, também parceiro do MIAC.<br />

É importante registrar que o MIAC, aqui em<br />

Salvador, na ação de O político vai à escola,<br />

quebrou a lógica do político parlamentar que<br />

está coloca<strong>da</strong> na campanha. Pensamos em trazer<br />

essa questão do político de forma mais amplia<strong>da</strong>;<br />

afinal de contas, somos todos seres políticos no<br />

cotidiano do nosso fazer, particularmente na<br />

escola. A participação do MIAC tem o papel<br />

fun<strong>da</strong>mental de enriquecer essa participação<br />

popular dentro do Conselho (...) Portanto, é uma<br />

ro<strong>da</strong> dinâmica como essa que nos move, faz com<br />

que estejamos sempre em movimento. (Membro<br />

do Conselho Estadual de <strong>Educação</strong> <strong>da</strong> Bahia,<br />

Albertino Nascimento).<br />

Acredito muito num pacto entre professor e aluno<br />

no sentido de buscar melhorar a quali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> educação; é preciso estabelecer relações de<br />

cumplici<strong>da</strong>de. A partir disso, certamente come-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 185-200, jan./jun., 2006 191


Arte em movimento: a potenciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> arte na formação de educadores<br />

192<br />

çaremos conjuntamente a criar alternativas para<br />

melhorarmos a situação <strong>da</strong> educação, principalmente<br />

no que diz respeito à quali<strong>da</strong>de do ensino<br />

público. (Educadora H – NELCY PIAGGIO)<br />

Aqui, as narrativas demonstram que a <strong>Educação</strong><br />

não é uma dádiva e passa a ser exigi<strong>da</strong><br />

como um direito. Esse processo sacode uma<br />

velha “cultura política de clientes agraciados<br />

pelos políticos e governantes”. Esta dimensão<br />

pe<strong>da</strong>gógica é peculiar aos movimentos sociais<br />

como um todo e no MIAC, na medi<strong>da</strong> em que<br />

essa reeducação política vai pontuando a educação<br />

não como mercadoria, mas sim como um<br />

direito (ARROYO, 2004).<br />

A escola não consegue ver essas questões sociais,<br />

ou melhor, não dá conta de atender às necessi<strong>da</strong>des<br />

dos alunos; temos que atuar<br />

baseados nos padrões instituídos, que, na maioria<br />

<strong>da</strong>s vezes, não são sensíveis às particulari<strong>da</strong>des<br />

dos nossos alunos (...) Não podemos<br />

conceber a educação pública num sistema perverso<br />

como esse, como concebíamos há 20, 30<br />

anos atrás, em que tínhamos uma situação diferente,<br />

onde ain<strong>da</strong> existiam empregos e uma condição<br />

de vi<strong>da</strong> diferencia<strong>da</strong>. Hoje, os nossos<br />

alunos precisam trabalhar para sobreviver e a<br />

nossa escola não é, em momento algum, sensível<br />

a essa reali<strong>da</strong>de. Nós, que estamos à frente<br />

<strong>da</strong> direção <strong>da</strong>s escolas, estamos o tempo todo<br />

preocupados com a questão legal do processo, e<br />

não com a questão social; em conseqüência disso,<br />

expulsamos esses meninos <strong>da</strong> escola. (...)<br />

Acredito na educação, mas a partir de uma outra<br />

lógica; acredito em pessoas que fazem diferente.<br />

Existem pessoas que ocupam esse espaço para<br />

fazer diferente; no nosso caso, buscamos que a<br />

escola tenha interação com a comuni<strong>da</strong>de, abrimos<br />

as portas para que possamos compartilhar,<br />

vivenciar o mesmo espaço (...) Encontros como<br />

os do MIAC na escola são fun<strong>da</strong>mentais para<br />

que possamos compreender melhor e continuarmos<br />

a nossa luta por mu<strong>da</strong>nças efetivas. (Educadora<br />

A – AIDÊ)<br />

Nesse depoimento, a dimensão pe<strong>da</strong>gógica<br />

passa por reconhecer que a formação humana<br />

é inseparável <strong>da</strong>s condições básicas de sobrevivência.<br />

Ele fala sobre as teorias pe<strong>da</strong>gógicas,<br />

o que a concepção crítica de educação tanto<br />

pontuou, a pertinência “que têm as lutas pela<br />

humanização <strong>da</strong>s condições de vi<strong>da</strong> no proces-<br />

so de formação. A luta pela vi<strong>da</strong> educa, por ser<br />

o direito mais radical <strong>da</strong> condição humana”<br />

(ARROYO, 2004, p. 07). Como pensar currículos,<br />

práticas pe<strong>da</strong>gógicas, tecnologias, políticas<br />

públicas, sem incluir a relação entre as<br />

condições de sobrevivência dos alunos e seus<br />

respectivos processos formativos?<br />

Diante destas questões sociais com as<br />

quais, diariamente, os docentes se deparam,<br />

destaco, neste processo de luta e de aprendizagem<br />

por direitos, uma formação do MIAC<br />

que tinha como objetivo discutir sobre a valorização<br />

dos professores e construir um “parangolé<br />

itinerante 6 ” que circularia por algumas<br />

escolas. O momento era para que os próprios<br />

educadores falassem <strong>da</strong>s diversas dimensões<br />

<strong>da</strong> valorização, vivencia<strong>da</strong>s ou almeja<strong>da</strong>s por<br />

eles, tecendo, através de histórias, depoimentos,<br />

desenhos, enfim..., uma grande colcha de<br />

retalhos que expressasse a plurali<strong>da</strong>de dos<br />

sentidos ali emergidos.<br />

A metodologia, portanto, é inspira<strong>da</strong> no “parangolé”<br />

e no “Jogo Jogante”, numa homenagem<br />

a Felipe Serpa, pe<strong>da</strong>gogo. Ela seguiu<br />

inicialmente com a acolhi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s pessoas numa<br />

ante-sala, através de uma dinâmica coordena<strong>da</strong><br />

por Eliciana (coordenadora do Lar Joana<br />

Angélica). Depois seguiram para outra sala,<br />

ouvindo um recital de poesia “Corredor <strong>da</strong> Poesia”;<br />

a sala encontrava-se ambienta<strong>da</strong> com dois<br />

móbiles no teto, com uma grande interrogação<br />

“o que é valorização docente?”. No chão, uma<br />

trilha com pega<strong>da</strong>s num pano contendo imagens,<br />

palavras, artigos <strong>da</strong> LDB, desenhos e objetos.<br />

A ativi<strong>da</strong>de começou com um convite a um Jogo<br />

<strong>da</strong> Trilha; este jogo, afirmou um dos coordenadores<br />

<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de, é “um jogo-jogante”.<br />

Esse ano Felipe Serpa foi a pessoa que começou<br />

esse ano uma ação do MIAC; quando<br />

nós pensamos em discutir Quali<strong>da</strong>de Social <strong>da</strong><br />

6 Parangolé - escultura móvel cria<strong>da</strong> pelo artista plástico<br />

Hélio Oiticica, em 1960. Utilizando-se do seu corpo, o<br />

indivíduo veste o parangolé que pode ser uma capa feita<br />

com cama<strong>da</strong>s de panos coloridos que se revelam à medi<strong>da</strong><br />

que ele se movimenta correndo ou <strong>da</strong>nçando. Oiticica o<br />

convi<strong>da</strong> a participar do tempo <strong>da</strong> criação de sua obra e<br />

oferece entra<strong>da</strong>s múltiplas e labirínticas que permitem a<br />

imersão e intervenção do “participador”, que nela inscreve<br />

sua emoção, sua intuição, seus anseios, seu gosto, sua imaginação,<br />

sua inteligência. (SILVA, 2002, p.167)<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 185-200, jan./jun., 2006


<strong>Educação</strong>, entramos em contato com ele e ele<br />

prontamente aceitou. Disse: “se é para subverter<br />

essa escola que está aí eu vou a qualquer<br />

lugar, onde é?” Ele usava muito esta metáfora,<br />

ele dizia assim, o grande lance <strong>da</strong> educação e<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> é a gente buscar se compreender jogante,<br />

antes do <strong>da</strong>do marcar os pontos, naquele<br />

momento que você sacode e joga os <strong>da</strong>dos;<br />

antes dele marcar os pontos, aquele momento<br />

é um momento de muito sentido possibili<strong>da</strong>de<br />

de construir a trilha. (RELATÓRIO FORMA-<br />

ÇÃO, 2003)<br />

Observei que o Movimento usou nesse momento<br />

de formação artístico-pe<strong>da</strong>gógica duas<br />

imagens que sugeriam e instigavam a participação.<br />

Ao invés de assumir o lugar de alguém<br />

que recebe a informação, ou de quem espera<br />

por um direito, próprio <strong>da</strong> perspectiva <strong>da</strong> “bancária<br />

de educação”, o sujeito assume o lugar<br />

de “ator/autor” de todo o processo, reconhecendo<br />

que o segredo <strong>da</strong> conquista de ca<strong>da</strong> direito<br />

está na participação de ca<strong>da</strong> um que, no<br />

caso do MIAC, completa com suas vivências,<br />

significados e desejos a mobilização em prol <strong>da</strong><br />

educação. Sobre o parangolé diz Silva (2002,<br />

p.167):<br />

Ele é pura proposição à participação ativa do<br />

“espectador” – termo que se torna inadequado,<br />

obsoleto. Trata-se de participação sensório-corporal<br />

e semântica e não de participação mecânica.<br />

Oiticica quer a intervenção física na obra de<br />

arte e não apenas a contemplação imaginal, separa<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> proposição. O fruidor <strong>da</strong> arte é solicitado<br />

à “completação” dos significados propostos<br />

no parangolé. E as proposições são abertas, o<br />

que significa convite à co-criação <strong>da</strong> obra. Assim<br />

a obra requer “completação” e não simplesmente<br />

contemplação. Segundo o próprio Oiticica,<br />

“o participador lhe empresta os significados correspondentes<br />

– algo é previsto pelo artista, mas<br />

as significações empresta<strong>da</strong>s são possibili<strong>da</strong>des<br />

suscita<strong>da</strong>s pela obra não previstas, incluindo a<br />

não-participação nas suas inúmeras possibili<strong>da</strong>des<br />

também. (SILVA, 2002, p.167)<br />

Com a força destas imagens, a discussão<br />

foi intensa, com vários depoimentos, histórias e<br />

reflexões críticas sobre a temática. Para concluir<br />

o trabalho, foi construído o “parangolé itinerante”<br />

que, no início de 2004, deveria começar<br />

Izabel Dantas de Menezes<br />

a sua itinerância pela Escola Renan Baleeiro 7 .<br />

Destaco a fala que segue como uma referência<br />

deste sentido de co-autoria e de jogadorjogante<br />

defendido pelo MIAC:<br />

Acho importante confirmar o que já foi dito a<br />

respeito <strong>da</strong> lógica e atuação do governo em relação<br />

à educação no nosso estado; vende-se a imagem<br />

do sucesso, <strong>da</strong> educação de quali<strong>da</strong>de e o<br />

que acontece de fato, quando estamos trabalhando<br />

nas escolas e projetos educacionais promovidos<br />

pelo governo, é nos depararmos com<br />

uma outra reali<strong>da</strong>de, que é extremamente contraditória.<br />

Existe uma política social oficializa<strong>da</strong> e<br />

publiciza<strong>da</strong> que, na ver<strong>da</strong>de, é meramente de facha<strong>da</strong>,<br />

não acontece efetivamente. As mu<strong>da</strong>nças<br />

necessárias não acontecem, e o nosso desafio<br />

é, acima de tudo, resgatar a esperança e crença<br />

na educação e, sobretudo, na escola. (Educadora<br />

B – ANA CLÁUDIA, na ro<strong>da</strong> de discussão em<br />

24/04/04).<br />

A crença de que é possível a existência de<br />

outro mundo encontra-se também em Milton<br />

Santos (2004, p. 18), quando ele nos convoca a<br />

refletir sobre a existência de três mundos em<br />

um só: o mundo como nos fazem crer, o mundo<br />

como é e o mundo como pode ser. Com isto,<br />

ele afirma a “pertinência <strong>da</strong> utopia” (2004, p.160)<br />

e nos convi<strong>da</strong> a completar a lista com as questões<br />

que ain<strong>da</strong> não foram mapea<strong>da</strong>s pela “globalização<br />

perversa” e que nos interessam<br />

enquanto ser humano. Sem perder de vista este<br />

contexto o MIAC sinaliza com:<br />

• necessi<strong>da</strong>de de uma educação de quali<strong>da</strong>de<br />

social em condições de construir<br />

ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia;<br />

• reais condições de justiça sociocultural;<br />

• democratização <strong>da</strong> gestão escolar, através<br />

<strong>da</strong> participação de todos os segmentos<br />

<strong>da</strong> escola;<br />

• acabar com a exclusão sócio-cultural, democratizando<br />

o conhecimento, as vagas,<br />

o acesso e a permanência na escola;<br />

• ampliar e garantir os espaços <strong>da</strong> participação<br />

dos jovens;<br />

• incluir a arte e a cultura popular e o diálogo<br />

permanente nas práticas pe<strong>da</strong>gógicas;<br />

7 O parangolé esteve na escola no dia 24/04/04 como parte<br />

<strong>da</strong> programação <strong>da</strong> “ro<strong>da</strong> de discussão”.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 185-200, jan./jun., 2006 193


Arte em movimento: a potenciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> arte na formação de educadores<br />

• valorização dos profissionais <strong>da</strong> educação,<br />

através de planos de carreiras, remuneração<br />

digna e formação continua<strong>da</strong>;<br />

• avaliação democrática do sistema e <strong>da</strong>s<br />

instituições educacionais. 8<br />

Quem nos convi<strong>da</strong> a entrar na luta pela garantia<br />

desses direitos, de forma poética e metafórica,<br />

é Marinalva:<br />

194<br />

... atravessar o rio como Che Guevara 9 , atravessei<br />

e por ter tido essa coragem de atravessar<br />

muitas coisas e estar aqui de pé conseguindo<br />

falar, porque teve uma época na minha juventude<br />

em que eu não falava - era muito oprimi<strong>da</strong>,<br />

muito cala<strong>da</strong>, não sabia falar na<strong>da</strong> –, mas depois<br />

passei por um estudo com Ana Célia, do movimento<br />

negro, e descobri muitas coisas maravilhosas,<br />

como a questão de gênero racial, vim<br />

entender sobre candomblé... muitas coisas boas<br />

tenho aprendido nos movimentos. As pessoas<br />

me criticam e dizem que temos que trabalhar para<br />

ganhar dinheiro; eu não ganho dinheiro, mas<br />

ganho muita coisa que quem com tanto dinheiro<br />

não vai chegar nunca a ter. Esse é meu lado Che<br />

Guevara, que saiu para fazer aquela viagem e viu<br />

tantas coisas que mudou, e não era mais aquele<br />

mesmo homem de antes <strong>da</strong> viagem. Bem assim é<br />

a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> gente, quando temos que tomar decisões,<br />

quando queremos nos descobrir, a gente<br />

se ver, ver o outro, e vai todo mundo junto nessa<br />

caminha<strong>da</strong> em busca de deixar uma socie<strong>da</strong>de<br />

mais transforma<strong>da</strong>, como a gente gostaria, mais<br />

igual, com mais respeito, combatendo a discriminação<br />

e sabendo dividir, como a gente divide no<br />

MIAC. (Educadora E – MARINALVA GÓES).<br />

5. Aprender com o MIAC e atuar<br />

na comuni<strong>da</strong>de, na escola e no<br />

“chão <strong>da</strong> sala”<br />

Fala comuni<strong>da</strong>de<br />

Comuni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> periferia <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />

Comunicabili<strong>da</strong>de cadê?<br />

Você que é discriminado<br />

Pode man<strong>da</strong>r o seu recado<br />

Exija mais respeito, combata os preconceitos<br />

Você tem direitos,<br />

Trabalho, salário digno, saúde,<br />

Moradia, educação de quali<strong>da</strong>de, com base na<br />

reali<strong>da</strong>de<br />

Somos afrodescendentes,<br />

Somos negros resistentes.<br />

Na<strong>da</strong> de racismo; discriminação<br />

Gera confusão.<br />

Temos nessa crença,<br />

Religiosi<strong>da</strong>de é cultura na nossa<br />

Da nossa raça.<br />

(Educadora E – MARINALVA GÓES).<br />

O aprendizado dos direitos, destacado pelos<br />

educadores e educadoras como uma dimensão<br />

formativa, amplia a possibili<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> um<br />

fazer sua “leitura do mundo”, compartilhar o<br />

mundo lido, conforme Freire (1981), e atuar de<br />

forma efetiva na comuni<strong>da</strong>de, na escola e na<br />

sala de aula, em busca <strong>da</strong> transformação e reconstrução<br />

destas reali<strong>da</strong>des.<br />

Esta é, para o educador, uma possibili<strong>da</strong>de<br />

formativa que se revitaliza, à medi<strong>da</strong> que o seu<br />

“saber ser” e seu “saber fazer” é mediatizado<br />

por uma atitude crítica e reflexiva de si mesmo<br />

(dos seus complexos processos sociais, formativos<br />

e culturais), <strong>da</strong> sua práxis pe<strong>da</strong>gógica (dos<br />

projetos <strong>da</strong> escola, <strong>da</strong> sua participação) e do<br />

seu cotidiano (dos modelos sociais e educacionais).<br />

Há, neste encontro, a articulação <strong>da</strong>s dimensões<br />

“pessoal, profissional e social”,<br />

conforme Nóvoa (1992), do educador e <strong>da</strong> educadora,<br />

condição ímpar para a revitalização político-pe<strong>da</strong>gógica<br />

do seu processo formativo<br />

num:<br />

... incentivo para que a comuni<strong>da</strong>de desperte para<br />

criar coisas importantes para a própria comuni<strong>da</strong>de,<br />

como a biblioteca do final de linha, a ro<strong>da</strong><br />

com os professores comunitários. São muitas<br />

coisas bacanas, tiveram os Caldeirões, onde a<br />

gente teve oportuni<strong>da</strong>de de estar com outros<br />

professores, uma coisa bem bacana, que é o espaço<br />

onde a gente pode mostrar o que nós faze-<br />

8 Texto MIAC escrito pelos participantes <strong>da</strong> reunião a partir<br />

de um texto elaborado por Cláudio Orlando. “Um movimento<br />

pela quali<strong>da</strong>de social <strong>da</strong> educação”, 1999.<br />

9 Aqui ela se refere ao filme “Diário de motocicleta”, filme<br />

que discute o processo de formação do jovem Che Guevara.<br />

A cena onde o personagem atravessa o rio para ir ao encontro<br />

dos doentes de lepra é uma metáfora muito interessante<br />

que representa a sua escolha política e de vi<strong>da</strong>. Os educadores<br />

e jovens do MIAC assistiram ao filme durante a “3ª.<br />

ro<strong>da</strong> de discussão”, na sala de arte do Clube Baiano de Tênis,<br />

onde, após o filme, fizeram um debate sobre história de vi<strong>da</strong><br />

e formação.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 185-200, jan./jun., 2006


mos, porque na visão do sistema nós somos ninguém<br />

(pausa). Então eu tive a oportuni<strong>da</strong>de de<br />

fazer exposição, mostrar artesanato, uma coisa<br />

basea<strong>da</strong> na cultura local, na cultura de origem de<br />

remanescente do Quilombo Oca do Tatu (...), são<br />

marcas que não são esqueci<strong>da</strong>s por quem participa<br />

e pelos que vão assistir; são coisas que vão<br />

se construindo, se descobrindo, se reeducando,<br />

porque a educação oficial ela é muitas vezes tradicional<br />

e não trabalha uma reali<strong>da</strong>de, uma identi<strong>da</strong>de<br />

mesmo <strong>da</strong> pessoa se gostar, gostar de ser<br />

educadora e se <strong>da</strong>r valor ao que faz, ser o que ela<br />

é, saber que ela pode crescer, ser inteligente,<br />

ter a certeza de que nós podemos fazer na comuni<strong>da</strong>de<br />

e mostrar. Então tem tudo isso de bom no<br />

MIAC. Tenho muito a aprender ain<strong>da</strong>. (Educadora<br />

E – MARINALVA GÓES).<br />

A relação que a educadora faz entre “si, os<br />

outros e o meio” (PINEAU, 1985) demonstra<br />

um aprendizado tecido de forma contínua e relacional<br />

entre os seus saberes, a sua identi<strong>da</strong>de<br />

docente e de sujeito <strong>da</strong> educação e <strong>da</strong> História.<br />

Dentre os muitos entraves <strong>da</strong> formação docente,<br />

talvez o mais preponderante seja o <strong>da</strong> fragmentação,<br />

pela “omni-ausência de duas grandes<br />

reali<strong>da</strong>des à pessoa do professor e à organização<br />

<strong>da</strong> escola” (Nóvoa, 2002, p. 56). Em “formação<br />

de professores e trabalho pe<strong>da</strong>gógico”,<br />

Nóvoa (2002) apresenta o que seria, na sua visão,<br />

uma nova concepção <strong>da</strong> formação docente<br />

e a constrói ancorando-a no que chama de<br />

“trilogia <strong>da</strong> formação continua<strong>da</strong>: produzir a<br />

vi<strong>da</strong>, a profissão e a escola”. Esta trilogia é,<br />

sobretudo, um apelo a uma epistemologia que<br />

seja capaz de: “investir a pessoa e a sua experiência;<br />

investir a profissão e os seus saberes;<br />

investir a escola e os seus projectos” (2002, 56-<br />

62), conforme se observa na assertiva de Malaquias:<br />

Na ver<strong>da</strong>de os professores estão ávidos por<br />

novas propostas; dizer que eles não querem<br />

na<strong>da</strong>, não condiz com a ver<strong>da</strong>de. Eles foram<br />

formados para não quererem na<strong>da</strong>, é diferente.<br />

Então ele já vem <strong>da</strong> tradição do não querer na<strong>da</strong>,<br />

mas quando você propõe, percebe que não é<br />

bem assim, só que ele não sabe mais que postura<br />

tomar, porque já foi modificado pela ideologia<br />

do sistema, que é reprodutiva, adormeceu a sua<br />

memória, sua visão de mundo, mas quando<br />

começa a despertar, começa também a ver um<br />

Izabel Dantas de Menezes<br />

mundo diferente, e aí ca<strong>da</strong> um segue uma<br />

caminha<strong>da</strong> diferente, uns vão mais rápido outros<br />

mais devagar, ca<strong>da</strong> um caminha no seu ritmo no<br />

sentido de querer melhorar (...); nosso trabalho<br />

aqui tem sido feito baseado no resgate <strong>da</strong> autoestima.<br />

10 (Educador F – MALAQUIAS)<br />

Realmente, é uma prática recorrente no<br />

Brasil depositar apenas na figura do professor<br />

a responsabili<strong>da</strong>de pelos baixos índices de aprovação<br />

e aproveitamento discente: “a prevalência<br />

do modelo tradicional de ensino: o professor<br />

se sente o todo-poderoso, repete conceitos e<br />

não sabe interagir com os alunos (...)” (Paulo<br />

Renato – Ministro <strong>da</strong> <strong>Educação</strong>, em 2000 - em<br />

entrevista à Folha de São Paulo, 29/11/2000).<br />

Para a revitalização política e epistemológica<br />

<strong>da</strong> formação contínua, é necessário que se considere<br />

a dimensão pessoal, profissional e organizacional,<br />

em seus diferentes níveis e contextos,<br />

para uma efetiva formação identitária, pe<strong>da</strong>gógica,<br />

e também política do educador inserido<br />

num determinado contexto.<br />

É importante frisar que, para a revitalização<br />

desta formação, assim concebi<strong>da</strong>, os caminhos<br />

mais fecundos são trilhados a partir <strong>da</strong> atitude<br />

reflexiva sobre si mesmo, sobre o mundo, numa<br />

relação dinâmica e dialógica com o outro. Assim,<br />

é possível rever o instituído e instituir outras<br />

possibili<strong>da</strong>des democráticas, de troca de<br />

experiências e saberes, de construção de conhecimentos<br />

que venham a colaborar com o que<br />

ca<strong>da</strong> educador deseja para si, para os outros e<br />

para a sua comuni<strong>da</strong>de...<br />

Então, o MIAC representa um espaço caminhando<br />

para o espírito democrático, porque a democracia<br />

a gente está em constante construção;<br />

10 O professor é diretor <strong>da</strong> Escola Renan Baleeiro, parceira do<br />

MIAC. No momento ele fala <strong>da</strong> participação e reação docente<br />

frente à relação entre a escola Renan e os projetos, parcerias<br />

com o MIAC e outros grupos culturais <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de no<br />

“jortudo”, jorna<strong>da</strong> pe<strong>da</strong>gógica – momento também de formação<br />

–, e no dia-a dia. Porque na Renan vários espaços são<br />

formativos: “pela primeira vez, o Colégio Renan Baleeiro<br />

participa desse projeto cultural através do projeto Corre Beco.<br />

O forró do trem é o forró <strong>da</strong> alegria, e está contando com a<br />

participação dos professores no evento, <strong>da</strong>nçando forró e<br />

viva a alegria! (gritos!!!). É aprendizado do resgate <strong>da</strong> cultura<br />

nordestina e o resgate <strong>da</strong> nossa auto-estima, também pelo<br />

nordestino trem de ferro, uma orla lin<strong>da</strong> que precisa ser mais<br />

cui<strong>da</strong><strong>da</strong> e mais respeita<strong>da</strong>.” (AIDÊ) (Depoimento concedido<br />

durante a ativi<strong>da</strong>de festiva <strong>da</strong> Renan no Trem <strong>da</strong> Calça<strong>da</strong> em<br />

Paripe - Bairro de Salvador).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 185-200, jan./jun., 2006 195


Arte em movimento: a potenciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> arte na formação de educadores<br />

196<br />

então possibilita esses momentos de tensionamento<br />

do pensar, é tensionar e chamar a comuni<strong>da</strong>de,<br />

diversas comuni<strong>da</strong>des, grupos que pensam<br />

mais a ci<strong>da</strong>de e o país de forma diferente; e o<br />

mais bonito é que, por mais que ca<strong>da</strong> ser que<br />

está ali representando um grupo ou instituição,<br />

ca<strong>da</strong> um deve ter suas ansie<strong>da</strong>des e querer que<br />

as suas perspectivas, o seu projeto, sejam logo<br />

correspondidos. Mas até por uma necessi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> história não dá para querer que<br />

as resoluções dos problemas sejam matematicamente<br />

resolvidos, é geralmente uma coisa tensiona<strong>da</strong><br />

que pulsa por mais que a gente busque<br />

pensar objetivamente o mundo e a educação.<br />

(Educador J – ROBSON POETA).<br />

Observa-se que a discussão sobre o reconhecimento<br />

dos direitos e <strong>da</strong> democratização<br />

<strong>da</strong> participação dos sujeitos e <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de<br />

nos projetos pe<strong>da</strong>gógicos <strong>da</strong> escola e do modelo<br />

de socie<strong>da</strong>de passa por assumir a tensão inerente<br />

à concretização destas questões. Lembro<br />

que a Nova LDB (Lei nº 9.394/96) diz que:<br />

... os estabelecimentos de ensino, respeita<strong>da</strong>s<br />

as normas comuns e as do seu sistema de ensino,<br />

terão a incumbência, entre outras, de elaborar<br />

e executar sua proposta pe<strong>da</strong>gógica (...),<br />

articular-se com as famílias e a comuni<strong>da</strong>de, criando<br />

processos de integração <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de com<br />

a escola (...), construindo conselhos escolares<br />

com representação <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de.<br />

No entanto, este direito, consagrado na legislação,<br />

de participação dos sujeitos como “atores/autores”<br />

dos rumos <strong>da</strong> escola, nem sempre<br />

é garantia de respeito e execução. A atuação<br />

ativa docente na escola não é uma tarefa simples,<br />

passa por reconhecer estas tensões que<br />

envolvem não apenas questões pe<strong>da</strong>gógico/<br />

metodológicas, como também políticas e de<br />

poder. Cabe destaque ao depoimento que se<br />

segue:<br />

O primeiro impacto é o que nós estávamos discutindo:<br />

a questão <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong>de que era tabu;<br />

foi o maior impacto, e aí a supervisora achava<br />

que a gente não devia tratar disso, que não tínhamos<br />

competência para educar a sexuali<strong>da</strong>de.<br />

Depois veio a questão do poder, começamos a<br />

ser referência na escola; as mães dos meninos<br />

iam lá para saber por que os filhos, que antes<br />

não gostavam de ficar na escola, passaram a<br />

querer ficar na escola o dia todo; isso incomo-<br />

dou. Vinham à eleição de diretoria e aí na cabeça<br />

do grupo a gente estava fazendo aquele trabalho,<br />

porque queria ocupar o lugar de direção,<br />

apesar de nos convi<strong>da</strong>rem para fazer parte <strong>da</strong><br />

chapa e termos rejeitado, isso incomo<strong>da</strong>va. Na<br />

época, o trabalho foi tão forte que a Secretaria<br />

de <strong>Educação</strong> foi lá assistir a um trabalho nosso,<br />

porque não acreditavam que o que estávamos<br />

dizendo era ver<strong>da</strong>de (...), então vem sempre a<br />

questão do poder; estávamos incomo<strong>da</strong>ndo, diziam<br />

que o trabalho <strong>da</strong> gente estava aparecendo<br />

muito mais. (Educadora H – NELCY PIAGGIO)<br />

Este dilema <strong>da</strong> participação se estende até<br />

a comuni<strong>da</strong>de e suas organizações e movimentos<br />

sociais que, entre ranços e avanços, acreditam<br />

que é possível participar e instituir uma<br />

escola ci<strong>da</strong>dã, democrática para a sua comuni<strong>da</strong>de.<br />

O MIAC é um deles; para o Movimento:<br />

... a escola, espaço formal de educação, é o foco<br />

central. Através do diálogo entre esta e o MIAC,<br />

trocando experiências e saberes, podemos contribuir<br />

para que a escola se torne mais viva e<br />

mais democrática, incorporando a arte, a cultura,<br />

os espaços de escuta entre adultos e adolescentes,<br />

e os trabalhos planejados, avaliados, executados<br />

coletivamente. (Texto – MIAC, 1999).<br />

As Ações de Mobilização Regionaliza<strong>da</strong>s –<br />

AMR 11 foram oportuni<strong>da</strong>des formativas para<br />

os educadores do MIAC atuarem na sua comuni<strong>da</strong>de.<br />

O fragmento de diálogo em destaque,<br />

no parágrafo anterior, evidencia algumas<br />

situações que foram vivi<strong>da</strong>s durante e a partir<br />

<strong>da</strong>s AMR. Elas nasceram <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de<br />

ca<strong>da</strong> grupo/pessoa/instituição <strong>da</strong> Rede MIAC<br />

trabalhar mais diretamente com a sua comuni<strong>da</strong>de,<br />

mobilizar a escola e as organizações existentes<br />

no seu bairro/região em prol <strong>da</strong> educação<br />

pública e de quali<strong>da</strong>de. Outra ativi<strong>da</strong>de, cita<strong>da</strong><br />

no diálogo, aconteceu em 2004, na Escola Estadual<br />

Renan Baleeiro, em Águas Claras - Salvador,<br />

onde o MIAC, através de oficinas<br />

artísticas, ro<strong>da</strong>s de discussão e apresentações<br />

culturais, intercambiou saberes, ações, soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de<br />

entre os grupos e instituições presentes.<br />

11 AMR – Foi uma estratégia de organização do Modelo<br />

Artístico Pe<strong>da</strong>gógico, movimento que visava a desenvolver<br />

mobilizações e trabalhos artísticos e pe<strong>da</strong>gógicos nas comuni<strong>da</strong>des,<br />

reconhecendo a arte, a cultura e os sujeitos de ca<strong>da</strong><br />

locali<strong>da</strong>de.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 185-200, jan./jun., 2006


A valorização <strong>da</strong>s manifestações culturais<br />

<strong>da</strong>s várias locali<strong>da</strong>des, o respeito à diversi<strong>da</strong>de,<br />

o diálogo intercultural e o trabalho com a arte<br />

como eixo dos processos pe<strong>da</strong>gógicos pelo desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia formam as diretrizes/princípios<br />

fun<strong>da</strong>mentais que nortearam<br />

estas ações. Neste sentido, o MIAC, segundo<br />

Fernandes (2005, p. 192):<br />

... defende uma escola “fora do lugar”, isto é,<br />

uma escola em que os conteúdos, como raios de<br />

um círculo misterioso, atinjam to<strong>da</strong>s as partes<br />

do mundo social, mas cujo centro apresenta-se<br />

em lugar algum. Uma escola que interaja e inclua<br />

a reali<strong>da</strong>de cotidiana em seus aprendizados, que<br />

construa esse novo caminho em parceria com os<br />

jovens e outros educadores <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>dã.<br />

Esta escola “fora do lugar” potencializa<br />

aprendizagens e descobertas, como esta narra<strong>da</strong><br />

por uma educadora:<br />

Descobri uma coisa lin<strong>da</strong>! Que expresso em meu<br />

artesanato uma coisa basea<strong>da</strong> na cultura local,<br />

na cultura de origem de remanescente do Quilombo<br />

Oca do Tatu. Você sabia que Sete de Abril<br />

foi um quilombo? (Faço sinal com a cabeça que<br />

não). Se chamava Oca do Tatu, ou Buraco do<br />

Tatu, um destes nomes. No meu xadrez de sucata<br />

faço figuras que representam a cultura africana<br />

deste quilombo. Inclusive já fiz exposição no<br />

Caldeirão do MIAC <strong>da</strong> Boca do Rio; é uma marca<br />

importante pra mim. Esse Caldeirão se chamou<br />

Seu Terno, Meu Peixe ... A Isca, Nossa Rede.<br />

(Educadora E – MARINALVA GÓES)<br />

Segundo Fernandes (2005), há no MIAC:<br />

... intencionali<strong>da</strong>de de mostrar aos jovens que a<br />

tradição, com base na memória e na História, é<br />

constituidora de suas experiências, vivi<strong>da</strong>s hoje<br />

em termos socioculturais. E que o “futuro” pode<br />

ser construído hermeneuticamente com os “pés”<br />

fincados na diversi<strong>da</strong>de cultural, sem utilizarmos<br />

um único “modelo sociocultural” como parâmetro<br />

de desenvolvimento humano. (FERNANDES,<br />

2005, p. 184)<br />

Esta intencionali<strong>da</strong>de, no entanto, adverte<br />

Fernandes (2005), não é utiliza<strong>da</strong> para afirmar<br />

“uma identi<strong>da</strong>de fixa, ou um retorno idílico ao<br />

passado, mas sim para reconstruir a história<br />

pessoal dessas crianças e jovens (...). No momento<br />

em que lhes mostra que também têm<br />

cultura e história, o MIAC resgata a auto-esti-<br />

Izabel Dantas de Menezes<br />

ma promovendo o reencantamento comunitário”<br />

(p.184).<br />

Há, portanto, neste sujeito que experimenta<br />

a arte, uma possibili<strong>da</strong>de de exercitar a reflexão<br />

acerca <strong>da</strong>s suas histórias; reconhecer as<br />

suas identi<strong>da</strong>des em contato com a cultura local;<br />

valorizar o seu lugar, suas origens; e, possivelmente,<br />

ressignificar a sua história e a história<br />

<strong>da</strong> sua comuni<strong>da</strong>de. Este processo é possível<br />

pela revitalização sensível <strong>da</strong> auto-estima, que<br />

tem na soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, no amor, no respeito e na<br />

esperança seus eixos (FREIRE, 1981, p. 34).<br />

Quem acredita nisto é a educadora do MIAC,<br />

quando diz que o espaço <strong>da</strong> escola formal deveria<br />

assumir, com to<strong>da</strong> a radicali<strong>da</strong>de e critici<strong>da</strong>de,<br />

a magia <strong>da</strong> educação pelo e para o afeto,<br />

e mais o amor:<br />

A riqueza desse debate precisa ser salienta<strong>da</strong>; é<br />

de extrema importância estarmos aqui com tanta<br />

gente nova no movimento discutindo sobre arte<br />

e mobilização cultural, identi<strong>da</strong>de racial, cultural,<br />

e a inserção dessas temáticas nos diversos<br />

espaços de educação, no MIAC em particular, é<br />

despertar sempre a possibili<strong>da</strong>de de novos olhares,<br />

é poder se perceber e perceber o outro, é a<br />

ampliação de horizontes e a necessi<strong>da</strong>de de sermos<br />

pró-ativos, chegarmos ao momento de não<br />

podermos mais ficar parados física e intelectualmente<br />

(...) olhar que lançamos sobre nós mesmos;<br />

precisamos estar todo o tempo revendo e<br />

reformulando os nossos conceitos, entendendo<br />

que estamos num processo de formação contínua.<br />

Essa é a mágica de se colocar enquanto<br />

aprendente, inclusive exercitando e aprimorando<br />

a educação sentimental, valorizando o afeto,<br />

o carinho, as relações interpessoais, saber <strong>da</strong><br />

importância de recuperar o valor do amor entre<br />

as pessoas. (Educadora B – ANA CLÁUDIA, 5ª<br />

ro<strong>da</strong>, 29/05/04)<br />

Duarte Jr (2001) discute também em seu<br />

livro O sentido dos sentidos: a educação do<br />

sensível sobre essa educação dos sentimentos,<br />

a que Ana Cláudia se refere de forma legítima<br />

e comprometi<strong>da</strong> com este valor. Este autor, recuperando<br />

uma idéia de Horkheimer (apud<br />

DUARTE JR., p. 15) de que a “razão não basta<br />

para defender a razão”, traça uma crítica<br />

contundente e oportuna à hegemonia de um tipo<br />

de conhecimento centrado na razão pura que<br />

hipertrofia e desconsidera o saber sensível, cau-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 185-200, jan./jun., 2006 197


Arte em movimento: a potenciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> arte na formação de educadores<br />

sando o que ele chama de “anestesia” nos indivíduos,<br />

para depois recuperar a pertinência e a<br />

urgência <strong>da</strong> educação <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de, recuperar<br />

o sabor sensível - a “estesia”.<br />

Todo este processo de aprendizagem vivenciado<br />

pelos educadores do MIAC é posto em<br />

prática não apenas na comuni<strong>da</strong>de, durante as<br />

ações desenvolvi<strong>da</strong>s nos intercâmbios, reuniões,<br />

manifestações públicas, etc., mas também como<br />

na escola e no “chão <strong>da</strong> sala de aula”.<br />

198<br />

Sinalizo como importante na minha formação na<br />

questão pe<strong>da</strong>gógica: quando conheci o MIAC<br />

no festival me apaixonei, era tudo o que eu queria<br />

fazer na escola... oficinas artísticas, integração<br />

com os jovens de várias instituições, depois<br />

os Caldeirões, onde participei <strong>da</strong> comunicação<br />

do evento junto com outros jovens. Então, esta<br />

questão pe<strong>da</strong>gógica é diferente <strong>da</strong> proposta de<br />

muitas escolas que querem os alunos quietos,<br />

fazendo exercícios e o professor um tarefeiro<br />

obediente. <strong>Educação</strong> nesta visão é <strong>da</strong>r conteúdo,<br />

forçar o aluno a decorar e ensinar a ele que o<br />

importante é a nota. Eu não aceito isto não!!!<br />

(Educadora C – JOSELEIDE CALISTO)<br />

A fala <strong>da</strong> educadora me permite destacar<br />

duas questões fun<strong>da</strong>mentais a respeito do seu<br />

processo <strong>da</strong> “mediação didática” em sala de<br />

aula: primeiro, é o sentido <strong>da</strong> incorporação <strong>da</strong><br />

arte no seu discurso e na sua prática, o que a<br />

torna, segundo Cristina D´Ávila (2001), “uma<br />

‘leitora <strong>da</strong> alma humana’ por aproximar, na sua<br />

prática, ‘o pensar, do fazer e do sentir’, no elo<br />

entre o saber sensível e artístico ao saber didático”<br />

(D’ÁVILA, 2001, p. 382); em segundo<br />

lugar, quando ela diz “eu não aceito isto!” demonstra<br />

uma posição crítica diante do que está<br />

posto como prática pe<strong>da</strong>gógica, a ponto de “assinar<br />

a sua autoria neste processo, deixando de<br />

reproduzir os modelos pe<strong>da</strong>gógicos oferecidos<br />

por manuais escolares e por outras autori<strong>da</strong>des<br />

educativas” (D´ÁVILA, 2001, p. 380).<br />

Ou ain<strong>da</strong> como nos afirma Freire (1981):<br />

Sua solução estaria em deixarem a condição de<br />

‘seres fora de’ e assumirem a de ‘seres dentro<br />

de’. Na ver<strong>da</strong>de (...) os oprimidos estiveram sempre<br />

‘dentro de’. Dentro <strong>da</strong> estrutura que os<br />

transforma em ‘seres para outro’. Sua solução,<br />

pois, não está em integrar-se, em incorporar-se a<br />

esta estrutura que os oprime, mas transformá-la<br />

para que possam fazer-se ‘seres para si’. (FREI-<br />

RE, 1981, p. 85)<br />

Foi experimentando a arte que se firmou no<br />

Movimento um dos princípios fun<strong>da</strong>ntes <strong>da</strong> sua<br />

“pe<strong>da</strong>gogia”:<br />

... um trabalho maravilhoso de mu<strong>da</strong>nça de comportamento<br />

tanto na educação como na comuni<strong>da</strong>de<br />

em geral; era uma comuni<strong>da</strong>de extremamente<br />

carente socialmente, culturalmente, educacionalmente,<br />

e as pessoas confundem muito comuni<strong>da</strong>de<br />

pobre com violência, pelo fato de ser periferia,<br />

são coisas completamente diferentes, essa comuni<strong>da</strong>de<br />

não é violenta ela é violenta<strong>da</strong>. Portanto,<br />

os <strong>da</strong>dos de violência que existem por aqui são<br />

na ver<strong>da</strong>de de defesa, não de ataque, são atos de<br />

sobrevivência. Se a gente provocar o aluno positivamente<br />

ele responde, se provocar negativamente<br />

também, a nossa proposta de trabalho é<br />

provocá-los positivamente e eles têm respondido.<br />

(Educador F – MALAQUIAS)<br />

De uma brincadeira de fazer poesia, de fazer<br />

letra de música, passou a ser tão levado a sério<br />

pelo alunado, eles perceberam que é possível<br />

aprender, ter educação formativa e<br />

natural. Nós ousamos levar isso mais a sério e<br />

estamos tentando fazer uma coletânea, que já<br />

está pronta praticamente, com poesias feitas<br />

pelos próprios alunos, poesias didáticas, pe<strong>da</strong>gógicas<br />

e poesias livres também, porque é<br />

muito importante deixar fluir do aluno, do ser<br />

humano Mazé, essa possibili<strong>da</strong>de de expressar<br />

o sentimento, através <strong>da</strong> poesia, <strong>da</strong> educação,<br />

é muito importante essa coletânea que<br />

vamos fazer e lançar no final do ano. (Educador<br />

G – MAZÉ)<br />

Os educadores nos mostram, mais uma vez,<br />

a potenciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> arte na “mediação didática”<br />

que, diante <strong>da</strong> definição de D’Ávila (2001),<br />

posso entender como uma “mediação didática<br />

crítica”, onde a aprendizagem ocorre “num fluir<br />

provocativo”, significativo e prazeroso de “expressão<br />

de sentimentos, pensamentos e necessi<strong>da</strong>des...”,<br />

mediante a sua capaci<strong>da</strong>de de “tecer<br />

junto” to<strong>da</strong>s as dimensões humanas, ou seja,<br />

“aprende-se pensando, fazendo e sentindo”<br />

(2001, p. 382).<br />

Estas experiências educativas, que têm como<br />

ponto de parti<strong>da</strong> a arte, assemelham-se ao conceito<br />

construído por Cipriano Luckesi (2000)<br />

corpomente que traduz a educação lúdica como<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 185-200, jan./jun., 2006


uma prática que potencializa no educador e no<br />

educando a sua capaci<strong>da</strong>de de “ser e viver melhor”,<br />

entendendo-os na sua plenitude, ou seja,<br />

essa é uma possibili<strong>da</strong>de que integra “(...) simultaneamente,<br />

a mente e o corpo, ou, se preferirmos,<br />

o corpo-mente ou a mente-corpo”<br />

(LUCKESI, 2000, p. 26, apud D’ÁVILA, 2001,<br />

p. 384).<br />

REFERÊNCIAS<br />

Izabel Dantas de Menezes<br />

Em síntese, essas educadoras e educadores<br />

“atores/autores” do/em Movimento aprendem<br />

cotidianamente a serem sujeitos “para si”, ao<br />

se autorizarem a pensar individual e coletivamente<br />

a sua própria vi<strong>da</strong> e formação, inventando,<br />

imaginando e instituindo na sua comuni<strong>da</strong>de,<br />

na sua escola e na sua sala de aula práticas<br />

educativas criativas, prazerosas e humaniza<strong>da</strong>s.<br />

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200<br />

Recebido em 28.02.06<br />

Aprovado em 17.03.06<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 185-200, jan./jun., 2006


UM PERCURSO DE ESCUTAR POR TODOS OS LADOS,<br />

SEM SENTIR OU SENTINDO O SEU PRÓPRIO LADO:<br />

reflexões sobre o fazer artístico<br />

e cultural nosso de ca<strong>da</strong> dia<br />

RESUMO<br />

O trabalho reflete sobre o fazer artístico e cultural possível dentro <strong>da</strong> UNEB<br />

partindo de quatro eixos: a transmissão formal e informal de saberes, a formação<br />

do artista <strong>da</strong>s artes cênicas baianas e o treinamento e criação artística voltados<br />

para as manifestações populares, buscando a formação de uma identi<strong>da</strong>de e de<br />

maior auto-estima para os artistas e comuni<strong>da</strong>de em geral. A autora parte <strong>da</strong> sua<br />

experiência como docente, diretora e atriz, no campo <strong>da</strong>s artes cênicas e visuais.<br />

Palavras-chave: Artes cênicas – Manifestações culturais – Formação artística<br />

ABSTRACT<br />

A JOURNEY OF LISTENING FROM EVERYWHERE, FEELING OR<br />

NOT FEELING YOUR OWN SIDE: reflections on our every<strong>da</strong>y artistic<br />

and cultural activities<br />

The work reflects on the possible production of artistic and cultural manifestation<br />

at UNEB, considering four angles: the formal and informal transmission of<br />

knowledge, the development of the scenic arts artists of Bahia, and the art’s<br />

training and creation oriented toward popular manifestations. It aims at the<br />

formation of identity and higher self-esteem for the artists and community as a<br />

whole. The author use her experience as a teacher, art director and actress in<br />

the area of scenic and visual arts.<br />

Keywords: Scenic arts – Cultural manifestations – Artistic formation<br />

Este texto, eminentemente voltado para<br />

questões práticas, foi construído a partir de uma<br />

comunicação oral. Por ter sido exposto a uma<br />

platéia, carrega a tessitura e a incompletude <strong>da</strong><br />

cena “ao vivo”. 1 Nasceu a partir de diversas<br />

Isa Trigo<br />

Isa Trigo*<br />

conversas com vários professores, funcionários<br />

e alunos <strong>da</strong> UNEB – e de fora dela – sobre<br />

a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> criação de um curso de Artes<br />

na nossa universi<strong>da</strong>de, e sobre a questão<br />

<strong>da</strong>s artes e <strong>da</strong> cultura dentro dela. O pensa-<br />

* Mestra e Doutora em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas <strong>da</strong> UFBA. Professora<br />

Titular no Departamento de <strong>Educação</strong> – Campus I – UNEB – Salvador. Endereço para correspondência: Depto.<br />

<strong>Educação</strong> I - UNEB - Estra<strong>da</strong> <strong>da</strong>s Barreiras, s/n. Narandiba, Cabula, Salvador, Bahia. E-mail: trigo.isa@gmail.com<br />

1 Esse texto foi construído para a comunicação oral do VI Colóquio de História <strong>da</strong> <strong>Educação</strong>, ocorrido na UNEB em<br />

dezembro de 2005<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 201-207, jan./jun., 2006 201


Um percurso de escutar por todos os lados, sem sentir ou sentindo o seu próprio lado: reflexões sobre o fazer artístico e ...<br />

mento aqui se constrói sobre quatro pontuações,<br />

que se seguem logo abaixo, no próximo parágrafo.<br />

A partir delas, dialogo com algumas outras<br />

questões, como as formas diversas de<br />

transmissão, a formação do sujeito como artista<br />

e ci<strong>da</strong>dão e o mercado de trabalho para as<br />

artes dentro <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />

O meu campo não é o <strong>da</strong> História <strong>da</strong> <strong>Educação</strong>,<br />

nem o <strong>da</strong> Pe<strong>da</strong>gogia formal. No entanto,<br />

a questão <strong>da</strong> transmissão dos saberes,<br />

formais e informais, em ambientes diversos,<br />

em especial naqueles ambientes <strong>da</strong> cena, ocorrendo<br />

num espaço teatral ou na rua, é central<br />

no meu percurso acadêmico. Como me é cara<br />

também a questão <strong>da</strong> formação do artista <strong>da</strong>s<br />

artes cênicas baianas e a transmissão desse<br />

saber artístico. Seja este artista bailarino, músico,<br />

dramaturgo ou ator. A terceira coisa que<br />

me interessa, e com ela labuto desde os 19 anos<br />

de i<strong>da</strong>de, é a do treinamento e criação artísticos<br />

ligados à arte popular e à educação não<br />

formal, com pessoas liga<strong>da</strong>s às comuni<strong>da</strong>des e<br />

às manifestações culturais baianas. A quarta<br />

ponta é construí<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong>s três primeiras; é<br />

um desejo e um caminho, como to<strong>da</strong>s as perguntas<br />

são. Como construir um percurso artístico<br />

e de transmissão para os artistas<br />

locais que os torne artífices e gerenciadores<br />

<strong>da</strong>s suas próprias características culturais,<br />

<strong>da</strong>s suas festas e do seu cotidiano<br />

especial?<br />

A linha básica <strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong> profissional está<br />

liga<strong>da</strong> à <strong>Educação</strong> e às Artes, tendo sempre<br />

trabalhado nessas áreas de diversas formas.<br />

Tive, desde os cinco anos, uma formação artística<br />

que incluiu música, <strong>da</strong>nça e artes plásticas.<br />

A partir dos 19 anos me envolvi em teatro popular<br />

amador e de rua, quando também me iniciei<br />

como orientadora de trabalhos corporais e<br />

teatrais em associações e paróquias. Atuei<br />

como atriz, desde então. Desta época são os<br />

trabalhos feitos nos D.As e nos bairros populares,<br />

nunca mais abandonados. Esse tipo de ativi<strong>da</strong>de<br />

me deu duas dimensões até hoje váli<strong>da</strong>s:<br />

o compromisso com uma arte volta<strong>da</strong> para o<br />

povo e o popular, e um tipo de urgência e intensi<strong>da</strong>de<br />

tanto na cena quanto no dia a dia, que<br />

busco manter como princípio de vi<strong>da</strong>. Priorita-<br />

202<br />

riamente atuando em instituições, pessoas e<br />

grupos ligados ao teatro para a comuni<strong>da</strong>de ou<br />

de fora dos muros <strong>da</strong> Escola de Teatro, trabalhei<br />

ao lado de Antonio Gody e Geraldo Aragão,<br />

sob a indicação de Sergio Farias, como<br />

coordenadora de Teatro no CECUP (Centro de<br />

Estudos e Cultura Popular), como coordenadora<br />

de pesquisa e atriz no projeto Teatro (Márcio<br />

Meirelles, Ma. Eugenia Millet e Ângela<br />

Fialho) e como atriz e assessora de peças e<br />

festivais <strong>da</strong> Casa Via Magia, dentre muitos outros<br />

projetos.<br />

Analisando minha trajetória, vejo que minha<br />

principal motivação no trabalho artístico<br />

tem sido a compreensão dos seus processos,<br />

com vistas à valorização do sujeito.<br />

Muitas outras iniciativas alimentaram, desde<br />

então, meu pensamento em ação sobre o fazer<br />

artístico enquanto baiana, um fazer artístico<br />

conectado ao fazer cultural já existente na minha<br />

terra. Essa motivação define minha atuação<br />

como pesquisadora, educadora e autora.<br />

Define também um olhar e um caminho metodológico<br />

como pesquisadora, o que justifica<br />

minha narrativa de trajeto pessoal. A pesquisa<br />

em artes, feita a partir do artista-pesquisador,<br />

não pode prescindir do corpo e do olhar deste,<br />

criando seus próprios métodos e estratégias a<br />

partir desse lugar.<br />

Nos últimos anos, tenho pensado no que seria<br />

um curso, ou melhor, um percurso de artes<br />

dentro <strong>da</strong> UNEB. Parto do referencial teórico<br />

dos estudos sobre o corpo, sobre a corporei<strong>da</strong>de<br />

e os modos de uso do corpo (Marcel Mauss,<br />

Andrée Grau, Paulo Freire). Dos estudos sobre<br />

voz e gesto vocal de Sara Lopes, dos instrumentos<br />

de Walter Smetack, <strong>da</strong> música para<br />

a cena e dos sons dessa minha terra. Tenho<br />

também acompanhado as discussões sobre o<br />

campo <strong>da</strong> Etnocenologia, criado a 10 anos, do<br />

qual me interessam principalmente as noções<br />

de espetacular e cotidiano e de estados psicofísicos<br />

como metodologia de trabalho do artista<br />

<strong>da</strong> cena, abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s em especial os trabalhos<br />

de Armindo Bião, Jean-Marie Pradier e Rafael<br />

Mandressi.<br />

Voltando à UNEB, em 1995 pensei em criar<br />

um curso de artes cênicas, ou de cinema. Isso<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 201-207, jan./jun., 2006


foi uma idéia inicial, que partilhei com a reitoria<br />

na época. Mas hoje não o faria com esta mesma<br />

ligeireza e vou dizer o porquê, mas não de<br />

imediato.<br />

Trabalhando nesses anos todos com atores,<br />

<strong>da</strong>nçarinos, músicos e professores <strong>da</strong>s mais diversas<br />

procedências dentro <strong>da</strong> área cultural <strong>da</strong><br />

Bahia, como atriz, bailarina, diretora e produtora<br />

cultural e também em outros estados e países,<br />

penso diferentemente agora. Um percurso<br />

em direção ao que é a cultura e as artes, especialmente<br />

na UNEB, tem que ser pensado mais<br />

além de um curso de graduação. Ela é um país<br />

de diversi<strong>da</strong>des, abrigando nos seus Campi<br />

muitíssimas coisas.<br />

É preciso lembrar que a Bahia conta hoje<br />

com dois cursos de artes cênicas – um na UFBA<br />

e outro no ISBA; conta também com, pelo menos,<br />

dois cursos de Design e também de Mo<strong>da</strong>,<br />

além do tradicional curso de Belas Artes <strong>da</strong><br />

UFBA, que passa atualmente por uma reformulação<br />

curricular, ao que tudo indica, intensa,<br />

assim como o <strong>da</strong> Escola de Teatro <strong>da</strong> UFBA.<br />

Temos um mercado de trabalho que não absorve<br />

a mão-de-obra que sai. Essa mão-de-obra<br />

acaba indo <strong>da</strong>r aulas de arte, eventualmente sem<br />

preparo pe<strong>da</strong>gógico, frustra<strong>da</strong> por não estar nos<br />

palcos, ou cumprindo o êxodo do Sul ou do estrangeiro.<br />

Quanto à <strong>da</strong>nça, como já falei, há a<br />

Fun<strong>da</strong>ção Cultural, que serve a jovens desde<br />

os 11 anos até 20, mais ou menos, habilitandoos<br />

para <strong>da</strong>nçar e <strong>da</strong>r aulas, mas não em nível<br />

universitário, e a Escola de Dança <strong>da</strong> UFBA, a<br />

mais antiga do Brasil, em pleno processo de<br />

reformulação curricular. Os jovens oriundos de<br />

ambas as instituições em geral vão <strong>da</strong>r aulas na<br />

rede pública secundária estadual, em academias<br />

ou viajam em excursões de ballet folclórico,<br />

fazendo eventualmente um espetáculo ou outro,<br />

na melhor <strong>da</strong>s hipóteses. Pensar cursos de<br />

artes é, portanto, pensar seu mercado, sua destinação,<br />

seu contexto atual.<br />

Coloca-se a questão: o que é a UNEB hoje<br />

no panorama baiano <strong>da</strong>s artes e <strong>da</strong> cultura? O<br />

que é pensar as artes e a cultura dentro <strong>da</strong><br />

UNEB? É propor cursos de graduação? Ou é<br />

pensar a UNEB e seu entorno, suas vocações<br />

e as comuni<strong>da</strong>des às quais serve ou deve ser-<br />

Isa Trigo<br />

vir? Que artista queremos formar? Que sujeito,<br />

que educador, que ci<strong>da</strong>dão devemos formar?<br />

Como pode a arte contribuir para a vi<strong>da</strong> baiana<br />

e para a formação do indivíduo, artista ou não?<br />

Proponho aqui pensarmos estas questões<br />

cambiantes a partir de três eixos de atenção.<br />

Esses eixos são os seguintes: o <strong>da</strong> transmissão<br />

de saberes nos diversos contextos, o eixo<br />

<strong>da</strong> formação <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de enquanto artista<br />

e ci<strong>da</strong>dão e o eixo de mercado de trabalho<br />

na socie<strong>da</strong>de. Estão todos muito relacionados<br />

uns com os outros. E, dentro destes eixos, características<br />

tais como periodici<strong>da</strong>de do acontecimento<br />

artístico, como é encarado por parte<br />

dos seus agentes e definições acerca de espetaculari<strong>da</strong>de<br />

e teatrali<strong>da</strong>de, cotidiano e extraordinário<br />

seriam pontos a destacar e a combinar<br />

entre os eixos.<br />

Coloco aqui também minha posição: considero<br />

que qualquer iniciativa de criação de cursos<br />

ou de política cultural dentro <strong>da</strong> UNEB deve<br />

tomar como modelo de reflexão e de ação<br />

o que as artes e as culturas populares dentro<br />

<strong>da</strong>quela iniciativa já trouxerem. Quero<br />

com isso dizer que, ao pensar, por exemplo, na<br />

palavra teatro, termo ocidental europeu, penso<br />

que ele não dá conta do que há aqui em Saubara,<br />

ou em Cairu, ou num samba de ro<strong>da</strong>, ou em<br />

outros estados, por exemplo num Maracatu <strong>da</strong><br />

Zona <strong>da</strong> Mata, ou num Cavalo Marinho 2 manifestação<br />

popular em que há música, teatro, <strong>da</strong>nça<br />

e artes plásticas sendo construídos na<br />

simultanei<strong>da</strong>de <strong>da</strong> manifestação, no tempo e no<br />

espaço.<br />

Penso também que há uma deficiência de<br />

cunho colonialista na formação do artista dito<br />

profissional a partir dos cursos formais em relação<br />

a aprofun<strong>da</strong>r os saberes oriundos de nossas<br />

práticas, tais como a capoeira, o samba, as<br />

<strong>da</strong>nças, as len<strong>da</strong>s, os costumes, os saberes.<br />

Estes saberes, tão louvados de boca, são, na<br />

prática curricular, muitas vezes, desprezados<br />

2 Manifestação cênica popular pernambucana. Consiste numa<br />

espécie de drama representado por vários personagens, denominados<br />

figuras, que <strong>da</strong>nçam, cantam, falam e interagem<br />

com a platéia. Nesta manifestação, que dura em média 10h,<br />

começando de tardinha e terminando de madruga<strong>da</strong>, há<br />

música, encenação, dramaturgia, <strong>da</strong>nça, máscaras, canto e<br />

tradição popular.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 201-207, jan./jun., 2006 203


Um percurso de escutar por todos os lados, sem sentir ou sentindo o seu próprio lado: reflexões sobre o fazer artístico e ...<br />

como menores do que outros, estrangeiros, o<br />

que se percebe na carga horária a eles destina<strong>da</strong>,<br />

no lugar que ocupam no fluxograma e nas<br />

outras ativi<strong>da</strong>des acadêmicas, na forma como<br />

seus professores são tratados... Ao mesmo tempo,<br />

o novo, o que vem de fora é indispensável<br />

também. Não devemos ficar no nosso umbigo,<br />

todos sabemos disso. A questão é: como organizar<br />

a transmissão mais ou menos sistemática<br />

<strong>da</strong>s artes sem incorrer nos velhos vícios<br />

pe<strong>da</strong>gógicos de uma escola formal e colonizadora<br />

e de uma atitude burocrática?<br />

No âmbito do eixo de transmissão, me vêm<br />

à mente, pelo menos, dois tipos de transmissão<br />

tradicionalmente praticados, dois extremos didáticos,<br />

a partir dos quais muitas combinações<br />

são possíveis e efetivamente ocorrem; o primeiro<br />

deles é o eixo <strong>da</strong> transmissão num largo<br />

período de tempo, muitas vezes, inicia<strong>da</strong> na<br />

tenra infância, multifaceta<strong>da</strong> e eventualmente<br />

não conscientiza<strong>da</strong> pelos seus agentes; a este<br />

eixo pertencem praticamente to<strong>da</strong>s as tradições<br />

e manifestações culturais que aparecem sob a<br />

forma de festas mais ou menos institucionaliza<strong>da</strong>s<br />

e também outros saberes, tais como <strong>da</strong>nças<br />

rituais e religiosas afro-baianas, ro<strong>da</strong>s de<br />

samba de fim de semana no bar ou na varan<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> casa familiar, aprendizados de Arrocha 3 nas<br />

ruas e bailes, pagodes 4 e modismos diversos,<br />

sejam estes praticados pela juventude ou pertençam<br />

a estruturas cênicas considera<strong>da</strong>s tradicionais,<br />

como o samba de ro<strong>da</strong>, os ternos de<br />

reis, as festas estabeleci<strong>da</strong>s e às cenas dentro<br />

<strong>da</strong>s festas. Uma imagem que ilustra isso me<br />

vem: num dia de sol, a <strong>da</strong> filha de um colega, de<br />

dois anos, <strong>da</strong>nçando com seu pai, na festa de<br />

aniversário do sacerdote de uma casa tradicional<br />

<strong>da</strong> tradição religiosa afro-descendente.<br />

O outro modo de transmissão seria aquele<br />

que ocorre dentro de escolas e institutos criados<br />

para este fim. Escolas de arte, de <strong>da</strong>nça,<br />

academias, universi<strong>da</strong>de e escolas públicas, com<br />

mais ou menos inserção dentro do currículo<br />

escolar, variando desde as academias de <strong>da</strong>nça<br />

particulares, à Escola de Dança <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção<br />

Cultural e a <strong>da</strong> UFBA, aos cursos livres de teatro,<br />

pagos ou gratuitos. Quanto à música, esta<br />

se dá através <strong>da</strong>s aulas ofereci<strong>da</strong>s à comuni<strong>da</strong>-<br />

204<br />

de pela Escola de Música <strong>da</strong> UFBA, a EMUF-<br />

BA, e também pelos cursinhos particulares de<br />

instrumentos ou escolas na ci<strong>da</strong>de.<br />

Há também todo um treinamento social,<br />

talvez o mais presente e invisível, mais ou menos<br />

informal, mais ou menos permanente, sendo<br />

feito nos terreiros de Candomblé, nos<br />

bares <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, na farra; no próprio dia-adia<br />

baiano, pelos mais jovens – e também<br />

pelos mais velhos – que se encontra mais na<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de transmissão tradicional; e nisso<br />

ele se mescla ao aprendizado dos jovens<br />

ligados às aulas de <strong>da</strong>nça afro e afins, como<br />

a aeróbica que usa ritmos afro-baianos, as<br />

aulas de <strong>da</strong>nça <strong>da</strong> Escola de Dança <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção<br />

Cultural; enfim, onde for necessário<br />

um percussionista, haverá sempre uma rede<br />

de meninos ao redor dos atabaques, que vão<br />

“pegando” os ritmos, na esperança de “ganharem<br />

uns trocados” com isso.<br />

Observe-se aí que, dentro de uma escola,<br />

como é a <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção, por exemplo, vamos<br />

encontrar também a transmissão feita de maneira<br />

semelhante à tradicional, o que é interessante,<br />

pois é uma mixagem e se constitui num<br />

nicho a<strong>da</strong>ptado de aprendizado, ain<strong>da</strong> que já com<br />

um outro tipo de preocupação, aparentemente<br />

didática, mas muito próxima <strong>da</strong>quela do Candomblé,<br />

em que o sujeito vive imerso no ambiente<br />

sonoro, cinético e plástico e aprende, por<br />

assim dizer, por todos os lados, sem sentir.<br />

Por todos os lados, sem sentir. Esta também<br />

é uma boa caracterização do cotidiano,<br />

<strong>da</strong>quilo que se faz todos os dias, do automático.<br />

O espetacular, em contraparti<strong>da</strong> – e também a<br />

reflexão crítica – seria a possibili<strong>da</strong>de de se<br />

estranhar, de se desconhecer, de refletir, corporalmente,<br />

racionalmente, fisicamente. Estar<br />

um pouco de lado e poder se observar. Esta<br />

é a atitude que estamos tentando aqui. A atitude<br />

mais acadêmica, e paradoxalmente identifi-<br />

3 Dança muito populariza<strong>da</strong> de alguns anos para cá em Salvador,<br />

misto de ritmos de guarânia e de samba. Em Recife,<br />

este mesmo estilo de música é chamado Brega.<br />

4 Tipo de música e <strong>da</strong>nça oriun<strong>da</strong> dos sambas de quintal e de<br />

amigos, e mesmo chamado de pagode, que ocorre tanto no<br />

Recôncavo baiano quanto no Rio de Janeiro, ain<strong>da</strong> que com<br />

variações.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 201-207, jan./jun., 2006


ca<strong>da</strong> com o espetacular 5 O treinamento institucionalizado<br />

e mais formalizado tenta se <strong>da</strong>r<br />

nesta segun<strong>da</strong> vertente. E como o espetacular<br />

é um conceito relacional, no sentido de que são<br />

necessárias as presenças tanto <strong>da</strong>quele que faz<br />

como <strong>da</strong>quele que vê, o que, para um, é espetacular,<br />

para outro, pode não ser. Para o turista, a<br />

baiana de acarajé é espetacular; a forma de<br />

an<strong>da</strong>rmos na rua, de nos vestirmos e olharmos<br />

é inusita<strong>da</strong>, estranha e nova; espetacular, neste<br />

sentido. Para nós não, não percebemos na<strong>da</strong><br />

disso como espetacular. Talvez por isso não a<br />

valorizemos, apesar de ser tão original. Cegos<br />

de tanto vê-la.<br />

Entro aí numa questão que desemboca em<br />

duas outras muito importantes: a identi<strong>da</strong>de e<br />

sua formação, o treinamento e sua visibilização.<br />

Ou seja: tudo indica que somos lindos, espetaculares<br />

e imitados pelo mundo todo. E que<br />

usos fazemos de nós mesmos, em termos artísticos<br />

e espetaculares? O que ganhamos com<br />

isso? Creio que estes usos e criações dependem<br />

muito do quanto nos reconhecemos e do<br />

quanto utilizamos nosso próprio “material”, por<br />

assim dizer. Para isso, um treinamento é indispensável.<br />

Mas pode vir a ser também um veículo<br />

eficaz de alienação e inferiorização, como<br />

foi e ain<strong>da</strong> é o balé clássico para muitos bailarinos<br />

negros e pobres <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de do Salvador.<br />

Então, o treinamento em artes cênicas pode vir<br />

a ser um processo de espetacularização, de<br />

estranhamento, de reflexão viva e de libertação.<br />

Pode ser também um processo de subordinação<br />

inconsciente a estéticas e a modos de<br />

uso do corpo estrangeiro, sempre muito mais<br />

eficazes do que um diálogo racional que, quando<br />

não conseguidos, levam a uma sensação de<br />

incompetência muito forte. De forma que uma<br />

grade curricular, uma escolha de práticas, linhas<br />

e conteúdos pode ser – e vem sendo – uma<br />

maneira de reproduzir procedimentos e conteúdos<br />

subordinantes, especialmente na área de<br />

artes. Ao educador artista, ao educador preocupado<br />

com as artes, cabe pensar e intervir.<br />

Por isso, considero que a criação de um<br />

percurso de aprendizagem artística, especialmente<br />

se diz respeito às artes cênicas, nas quais<br />

incluo a música, o teatro, a orali<strong>da</strong>de e a <strong>da</strong>nça,<br />

Isa Trigo<br />

precisa ser pensado no contexto <strong>da</strong> cultura –<br />

ou <strong>da</strong>s culturas – nas quais ele nasce. Isso significa<br />

que existem aprendizados, temáticas,<br />

modos de compreensão, métodos e conteúdos<br />

que precisam ser articulados ao meio local e<br />

nele buscarem estratégias, e este meio tem que<br />

ser ré-significado. Em outras palavras, espetacularizado,<br />

valorizado no que tem de interessante.<br />

Por exemplo, se vão ser aprendidos os<br />

passos <strong>da</strong> <strong>da</strong>nça de Iansã, que hoje são codificados<br />

e muito difundidos de determina<strong>da</strong> maneira,<br />

é interessante conhecer como nasceram<br />

nos corpos dos mais velhos, por exemplo, e, ao<br />

mesmo tempo, estu<strong>da</strong>r o entorno destes passos,<br />

suas implicações, suas mu<strong>da</strong>nças, ver onde<br />

eles reaparecem nas <strong>da</strong>nças modernas... Não<br />

ter preconceitos. Esta atitude pede um espaço<br />

físico inexistente na UNEB para o um fazer<br />

pe<strong>da</strong>gógico completamente diferente do que<br />

usualmente dispomos.<br />

Deveremos enfatizar trilhas de criação, e<br />

definir os objetivos de um percurso de aprendizagem<br />

a partir dessas vertentes. Percurso, mais<br />

que curso. Por isso, tenho hoje uma cautela que<br />

não tinha anteriormente. Estou convenci<strong>da</strong> de<br />

que a criação de uma graduação, pura e simplesmente,<br />

não adianta. Não sei se seria uma<br />

graduação, ou se seriam ativi<strong>da</strong>des, inicialmente<br />

no bairro do Cabula, de extensão, de criação<br />

de laços com as comuni<strong>da</strong>des. Minha atitude<br />

hoje é escutar o mundo me dizer, de uma certa<br />

forma. Criar o espaço propício e começar a<br />

articular pessoas, grupos, trabalhos. Ver como<br />

esses movimentos se desenham. Congregar<br />

pessoas que queiram pensar um percurso a<br />

partir do que temos de nosso. E, ao mesmo tempo,<br />

não incorrer no erro de desprezar o que foi<br />

criado pela cultura alheia. Enfim, este é o momento<br />

que vejo agora. De prospecção. De reflexão<br />

e de contatos. Reconhecendo e limpando<br />

o terreno.<br />

O outro aspecto importante, a partir do receber<br />

de todos os lados sem sentir é uma<br />

questão que os mestres <strong>da</strong> tradição alegam.<br />

5 Espetacular no sentido de sair de si, observar-se, criar sua<br />

cena, estranhar-se, preparar e ampliar o que o outro vai<br />

ver, pensar-se. Seja na ativi<strong>da</strong>de cientifica, seja na cênica.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 201-207, jan./jun., 2006 205


Um percurso de escutar por todos os lados, sem sentir ou sentindo o seu próprio lado: reflexões sobre o fazer artístico e ...<br />

Queixam-se que seus filhos não gostam do que<br />

fazem, não vêem graça em na<strong>da</strong> do que lhes é<br />

ensinado e que os folguedos vão se extinguir.<br />

Compreende-se a sua angústia. Aqueles que<br />

seriam seus herdeiros, por terem sido “treinados”<br />

desde pequenos, muitas vezes talentosos,<br />

não se interessam pela arte do pai ou <strong>da</strong> mãe,<br />

pelo menos pelo modo como ela se apresenta.<br />

A questão não é mu<strong>da</strong>r a cabeça do filho nem<br />

a cabeça do pai. A questão é entender as questões,<br />

pois to<strong>da</strong>s elas estão imbrica<strong>da</strong>s, se a proposta<br />

é criar uma “ensenanza”, como se diz<br />

em espanhol, um ensino-aprendizado, que correspon<strong>da</strong><br />

ao aprendizado <strong>da</strong>s nossas competências<br />

artísticas únicas. Há, então, uma transmissão<br />

sendo feita; é preciso entender como e por<br />

quê ela funcionou e continua funcionando assim,<br />

e que elementos podem ser recriados e<br />

aproveitados numa situação mais formal ou intensa<br />

de aprendizagem.<br />

Enfim, por que os herdeiros não se interessam<br />

pelo tradicional? E como fazer os jovens<br />

compreenderem e ao mesmo tempo encontrarem<br />

o que é novo e estranho dentro do que conhecem?<br />

Como poder aproveitar o que têm?<br />

Fazer como os estrangeiros, que usam o que<br />

absorvem aqui e depois nos mostram o que usaram<br />

de nós...Temos que poder fazer melhor,<br />

diferente. Fazermo-nos. Pensarmo-nos.<br />

A questão tem dois lados. Porque, muitas<br />

vezes, quando os jovens estão na tradição, começando<br />

a se interessar por ela, e em algum<br />

momento dão uma sugestão, enfim, tentam<br />

construir a ponte entre o mundo contemporâneo<br />

e a manifestação, são barrados, de uma<br />

forma ou outra, por seus mestres, que, muitas<br />

vezes, acumulam o papel de pais e mestres. A<br />

didática é sem palavras, normalmente. Um gesto<br />

de cabeça, um ritmo, uma bati<strong>da</strong> no instrumento,<br />

um olhar... E tudo se estabelece.<br />

Cito o exemplo de um encontro. Novembro<br />

de 2005, Chã de Camará, Maracatu Estrela de<br />

Ouro. Nesse encontro, estavam presentes os<br />

Mestres do Maracatu, dos Caboclinhos e do<br />

Cavalo Marinho. Discutiam quem poderia fazer<br />

o quê dentro de um possível espetáculo “condensado”,<br />

destinado a viajar para o exterior. Em<br />

certo momento, alguns citaram um dos meni-<br />

206<br />

nos que toca no Banco 6 e no Coco 7 , como alguém<br />

que poderia ir no Cavalo Marinho. Eles,<br />

sem falar, eliminaram a possibili<strong>da</strong>de de o menino<br />

ser treinado para o Cavalo Marinho. Por<br />

quê? Não sei. Apenas vi a cara do menino. Tudo<br />

se passou em poucos segundos, no silêncio <strong>da</strong>s<br />

decisões corporais. O quanto isso motivou ou<br />

desmotivou este jovem? Ele não teve voz. Deveria<br />

ter?<br />

Acredito que se deva buscar, sempre e antes<br />

de tudo, que as artes sejam formas de libertar<br />

as pessoas. No caso <strong>da</strong>s artes cênicas e do<br />

treinamento e transmissão em artes, que é a<br />

minha área, considero que a conscientização –<br />

ou melhor – a nossa reflexão espetaculariza<strong>da</strong><br />

sobre nós mesmos – pode lançar uma luz sobre<br />

nossos processos de individuação e de socialização<br />

– e que estes processos, se forem potencializados<br />

por percursos educativos eficazes e<br />

delicados, podem ser ver<strong>da</strong>deiras vias expressas<br />

de desenvolvimento para nós.<br />

Falemos do mercado. O que é isso? É a<br />

possibili<strong>da</strong>de – maior ou menor – de se sustentar<br />

fazendo Arte ou ensinando Arte depois de<br />

concluído um curso. Mas é mais que isso. O<br />

sujeito que não consegue se sustentar financeiramente<br />

com o seu oficio pode sentir que, por<br />

isso, não é um artista ou um educador. E isso,<br />

em parte, é ver<strong>da</strong>de, pois o tempo necessário<br />

para se dedicar ao trabalho precisa ser subsidiado<br />

financeiramente, senão o sujeito não tem<br />

como se manter enquanto profissional. A pressão<br />

social também colabora para essa compreensão.<br />

Mas num lugar onde não há público<br />

consumidor de artes, pela própria pobreza generaliza<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> população, como deve ser encarado<br />

este parâmetro? Ao mesmo tempo, há<br />

mercados e mercados. Há o mercado dos bares,<br />

dos restaurantes, dos shows folclóricos. Há<br />

o mercado – rarefeito – dos filmes – há o mercado<br />

– também rarefeito – <strong>da</strong>s produções subsidia<strong>da</strong>s<br />

pelo Estado, o grande pagador e o<br />

grande definidor – queira-se ou não – do rumo<br />

6 O Banco é o conjunto musical do Cavalo Marinho. É<br />

denominado assim porque consiste mesmo num banco de<br />

madeira, onde os músicos se sentam para começar a função.<br />

7 Coco. Manifestação musical e de <strong>da</strong>nça e canto nordestina.<br />

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cultural <strong>da</strong> terra. Há o mercado, para os arteeducadores,<br />

<strong>da</strong>s escolas, dos cursos.<br />

É preciso ver o que o mercado hoje aponta.<br />

E pensar a articulação com o estrangeiro e com<br />

o turismo, por exemplo, que mobiliza um contingente<br />

na<strong>da</strong> desprezível de artistas pobres<br />

saindo e sonhando com o além mar. Há um<br />

êxodo e um sonho de sair e fazer a vi<strong>da</strong> fora do<br />

país, do estado. Este imaginário está sempre<br />

presente na mente do artista. Há a televisão<br />

também. São estéticas e treinamentos diversos.<br />

E neste momento, os mercados se especializam.<br />

Mesmo que o samba de ro<strong>da</strong> seja visto como<br />

um espetáculo complexo e completo, ele é prioritariamente<br />

divulgado como música, e vendido<br />

em cds, de maneira mais ou menos<br />

REFERÊNCIAS<br />

Isa Trigo<br />

abrangente. Enfim, no reino <strong>da</strong>s artes, há formatos<br />

e formatos. O que é hoje uma exposição<br />

de quadros? E uma instalação com vídeos?<br />

Quem consome, quem paga, para quem serve?<br />

Estou certa de que novos horizontes pedem<br />

novas estratégias e a derruba<strong>da</strong> de preconceitos.<br />

E por isso reafirmo: sou a princípio reticente<br />

quanto à criação de mais um curso de Artes<br />

Cênicas na ci<strong>da</strong>de, principalmente se ele não<br />

tiver um formato voltado para o popular, tanto<br />

em termos dos seus conteúdos quanto em termos<br />

<strong>da</strong>s suas dinâmicas e metodologias. É preciso<br />

primeiro escutar este corpo coletivo falar.<br />

E apenas depois seguir o que ele indica, criando<br />

mecanismos institucionais que não esmaguem<br />

a criação e a arte dentro ca<strong>da</strong> um de nós.<br />

ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia <strong>da</strong> visão criadora. Tradução de<br />

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Recebido em 28.02.06<br />

Aprovado em 17.03.06<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 201-207, jan./jun., 2006 207


ESTUDOS<br />

ESTUDOS


Maria de Lourdes S. Ornellas<br />

FALA E ESCUTA DE PROFESSORES EM SALA DE AULA<br />

RESUMO<br />

Maria de Lourdes S. Ornellas *<br />

Fala e escuta de professores, na sala de aula, encontram-se ancora<strong>da</strong>s na<br />

minha experiência profissional como professora e psicanalista e compreendi<strong>da</strong>s<br />

por meio de saberes que as sustentam. Nesse sentido, uma pergunta emerge:<br />

que lugar e posição teriam as representações sociais de professores sobre fala<br />

e escuta em sala de aula e como os suportes psicanalíticos permitiriam<br />

compreender essas representações? Compreender o lugar e a posição que<br />

teriam as representações sociais de professores sobre fala e escrita significa<br />

definir os seguintes objetivos deste estudo: a) analisar a fala e a escuta de<br />

professores, em sala de aula, compreendi<strong>da</strong>s pelo campo <strong>da</strong>s representações<br />

sociais; b) compreender diferentes sentidos que a fala e a escuta revelam em<br />

sala de aula, com base no referencial teórico <strong>da</strong> psicanálise. As categorias<br />

descritivas e teórico-interpretativas foram construí<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong>s entrevistas<br />

e <strong>da</strong>s observações, quando foram registrados os comportamentos verbais dos<br />

professores em três momentos <strong>da</strong> aula: recepção de chega<strong>da</strong>, durante a aula e<br />

conclusão <strong>da</strong> aula. A pesquisa mostrou que a fala e a escuta de professores<br />

em sala de aula estão ancora<strong>da</strong>s em representações de sedução, relação<br />

transferencial, ambivalência, repressão e frustração. Essas representações,<br />

ao serem observa<strong>da</strong>s mereceram atenção, desvelando, assim, os sentidos <strong>da</strong><br />

fala e escuta em classe.<br />

Palavras-chave: Representação social – Psicanálise – Professor – Fala –<br />

Escuta<br />

ABSTRACT<br />

SPEAKING WITH TEACHERS AND LISTENING TO THEM IN THE<br />

CLASSROOM<br />

As a teacher an psychoanalyst, I can understand what happens while speaking<br />

with teachers and listening to them in the classroom with the help of the<br />

knowledge sustaining discourses. In this sense, a question surges: in which<br />

place and position would take place the teachers’ social representations about<br />

discourses and listening within the classroom and how psychoanalysis may<br />

help to understand those representations. To understand the place and position<br />

means to define this paper’s objectives: 1- analyse teachers’ discourses within<br />

the social representations framework, 2- understand various meanings revealed<br />

* Dra. em Psicologia <strong>da</strong> <strong>Educação</strong>. Professora de Psicologia na Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Bahia – UNEB e Psicanalista.<br />

Endereço para correspondência: Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Bahia - UNEB, Mestrado em <strong>Educação</strong> e<br />

Contemporanei<strong>da</strong>de, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula – 41150-000 Salvador/BA. E-mail: ornellas1@terra.com.br<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 211-225, jan./jun., 2006 211


Fala e escuta de professores em sala de aula<br />

212<br />

through classroom discourses within a psychoanalytical framework. Descriptive<br />

and interpretative categories were constructed through interviews and fieldwork<br />

observations done at three different times: when students come by, during the<br />

class and at the end of the class. Our research shows that teachers discourses<br />

are based upon representation of seduction, transfer, ambivalence, repression<br />

and frustration.<br />

Keywords: Social representation – Psychoanalysis – Teacher – Discourse<br />

– Listening<br />

Revelando a instância <strong>da</strong> letra<br />

Não fales as palavras dos homens.<br />

Palavras com vi<strong>da</strong> humana.<br />

Que nascem, que crescem, que morrem.<br />

Faz a tua palavra perfeita.<br />

Dize somente coisas eternas.<br />

Vive em todos os tempos<br />

Pela tua voz.<br />

Lê o que o ouvido nunca esquece.<br />

Repete-te para sempre.<br />

Em todos os corações.<br />

Em todos os mundos.<br />

(Cecília Meireles, Cântico, 2001)<br />

Escrever é uma tarefa não conclusa, que se<br />

impõe tanto ao autor como ao leitor, e faz parte<br />

desse movimento a evidência de que, ao escrever,<br />

teremos um sentimento de estarmos sendo<br />

olhados por um possível leitor, in<strong>da</strong>gando ca<strong>da</strong><br />

letra até o seu próprio silêncio.<br />

Colocar no papel os significados <strong>da</strong> fala e<br />

<strong>da</strong> escuta no processo de conhecimento significa<br />

também não ter dúvi<strong>da</strong>s sobre os fios imaginários<br />

que circulam entre os dois elos e, assim,<br />

tenta-se, neste escrito, amarrar e desatar os fios<br />

do material teórico a ser tecido.<br />

O ato de escrever é muito parecido com o ato de<br />

amor. Há o prazer do momento, o enlevo <strong>da</strong> experiência<br />

em si mesma. Mas, para quem deseja há a<br />

esperança de que o amor se transforme em semente<br />

e vire gravidez. Coisa escrita num papel<br />

são sementes: ganham vi<strong>da</strong> própria, ficam autônomas,<br />

desligam-se <strong>da</strong> intenção original do autor<br />

e passam a fazer coisas que nunca foram<br />

imagina<strong>da</strong>s. (Alves, 1995, p.192)<br />

Nesse sentido, pode-se pensar que a fala e<br />

a escuta constituem uma via para que o ensinoaprendizagem<br />

se transforme em possibili<strong>da</strong>des<br />

<strong>da</strong> cadeia discursiva entre professor e aluno.<br />

Este artigo, que no início era apenas uma idéia,<br />

foi, em segui<strong>da</strong>, ampliado e traduzido em um<br />

discurso destinado a mais de UM. É um estudo<br />

sobre algo pouco explorado: o professor ensina<br />

através <strong>da</strong> sua fala e <strong>da</strong> sua escuta.<br />

Assim afirma Barthes: “... há uma i<strong>da</strong>de em<br />

que se ensina o que se sabe; mas vem em segui<strong>da</strong><br />

outro, em que se ensina o que não sabe<br />

(...) (1978, p.47). Nesse enfoque tentei escrever<br />

e articular o objeto de pesquisa com a intenção<br />

de ensaiar algum recorte que possa<br />

constituir um tecido mais consistente sobre a<br />

referi<strong>da</strong> temática. Por detrás <strong>da</strong> folha em branco,<br />

há o leitor que pode ser comparado com o<br />

psicanalista – aquele que faz uso do divã. Associam-se<br />

a resistência <strong>da</strong> matéria na folha em<br />

branco, a resistência do interlocutor e o silêncio<br />

que, muitas vezes, fala mais que as palavras.<br />

Esse suporte, que é a folha de papel, sofreu<br />

mu<strong>da</strong>nças ao longo <strong>da</strong> história: passou pela parede<br />

rochosa, pela areia, chegou ao pergaminho,<br />

encontrou o papiro, demandou as paredes<br />

<strong>da</strong> casa paterna e, na contemporanei<strong>da</strong>de, gestou<br />

a tela e o teclado do computador.<br />

Escrever é o começo do começo. Para engatar<br />

a sério uma conversa é preciso, como<br />

quem na<strong>da</strong> quer, puxar por ela. Depois, assunto<br />

puxa assunto, conversa traz conversa e, neste<br />

movimento, escrever suscita leituras que suscita<br />

o reescrever.<br />

Pode-se afirmar que este escrever é uma obsessão,<br />

é quase paixão. Escrever uma tese supõe ter<br />

um título, um objeto, um problema, elaborar categorias,<br />

tecer costuras teóricas e viver com este<br />

ato amoroso uma boa parte do dia. Em segui<strong>da</strong><br />

dormir com estas idéias, acor<strong>da</strong>r e começar de<br />

novo. (MARQUES, 1997, p. 10)<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 211-225, jan./jun., 2006


Faz-se necessário pontuar a escrita. Escrever,<br />

deletar, apagar e reescrever. Pontuar a escrita<br />

é fazer como os passarinhos a beber água;<br />

bico no pote e bico para cima, a contemplar o<br />

desfile <strong>da</strong>s nuvens. O apoio bibliográfico é imprescindível,<br />

aju<strong>da</strong> a sair dos impasses. Também<br />

é importante a interlocução com os autores<br />

<strong>da</strong>s obras mediante as citações, o que pode levar<br />

os leitores a ampliar suas leituras e reflexões<br />

e avaliar minhas ousadias interpretativas.<br />

O valor <strong>da</strong>s nossas pesquisas está diretamente<br />

sintonizado com a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s leituras<br />

feitas. Refiro-me não somente às leituras dos<br />

livros, mas à leitura de si, do outro, do mundo,<br />

bem como as conversas filosóficas e ideológicas<br />

com os nossos companheiros.<br />

Freud associava o escrever ao fluir de um<br />

líquido de dentro de nós, similar à simbolização<br />

de um coito. Ernest Jones, seguidor de Freud,<br />

dizia: “... existe um vínculo interior entre o fato<br />

de urinar e o de escrever, e, certamente isso<br />

não acontece somente comigo.” (apud MAR-<br />

QUES, 1995, p. 133)<br />

Não se pode perder de vista que escrever é<br />

gestar uma interlocução de muitas vozes. Uns<br />

pensam, refletem, outros criticam e tantos outros<br />

silenciam ou tentam contribuir com suas<br />

in<strong>da</strong>gações, registrando, assim, suas impressões<br />

de nossas incertezas, titubeios e descaminhos.<br />

Nenhum pesquisador pode dispensar presenças<br />

assim, nem que sejam para espantar os demônios<br />

<strong>da</strong> solidão ou a tentação do monólogo consigo<br />

mesmo.<br />

Quando comecei a escrever, as idéias não<br />

estavam claras. Em segui<strong>da</strong>, foram ganhando<br />

contornos porque a todo instante o virtual leitor<br />

vinha à baila. O texto escrito é um ponto de<br />

mediação entre o autor e o leitor. Cabe ao autor<br />

<strong>da</strong>r conteúdos e forma legível ao texto e, ao<br />

leitor não apenas assimilar a mensagem escrita,<br />

mas decodificá-la e transcendê-la. Pensando<br />

sobre o escrevente, Sartre diz:<br />

... uma idéia mágica <strong>da</strong> palavra que nos faz escrever<br />

por escrever; inventam-se palavras, formamse<br />

conjuntos de palavras, faz uma palavra como<br />

se faz um castelo de areia quando se é criança,<br />

pelo gosto de o fazer, não para o mostrar; ou<br />

então, se o mostramos, os leitores são em todo<br />

Maria de Lourdes S. Ornellas<br />

caso inessenciais, exatamente como o são os<br />

pais a quem o garoto diz: “vejam como eu fiz um<br />

lindo castelo de areia,” e a quem os pais respondem:<br />

“mas como é bonito este castelo de areia!”<br />

Não sem certa decepção, esbate-se depois esse<br />

caráter mágico <strong>da</strong> palavra que tem uma história<br />

dentro <strong>da</strong> história <strong>da</strong> língua e uma relação histórica<br />

com o escrevente. (SARTRE, 1970, p. 76-80)<br />

Escrever este artigo é, assim, deman<strong>da</strong>r um<br />

enquadramento singular de desejos. O título está<br />

simbolizado e ancorado na minha estrutura subjetiva<br />

e teorizado por meio dos saberes que a<br />

sustentam. A teoria se constrói através <strong>da</strong> pesquisa,<br />

ensina o mestre Florestan Fernandes<br />

(1978).<br />

Gostaria que a fala e a escuta que aqui se<br />

trançarão fossem semelhantes às i<strong>da</strong>s e vin<strong>da</strong>s<br />

de uma criança que brinca em volta <strong>da</strong> mãe,<br />

dela se afasta e depois volta, para trazer-lhe<br />

um brinquedo, um objeto, desenhando assim,<br />

neste espaço, um movimento lúdico, no qual o<br />

brinquedo e o objeto importam finalmente menos<br />

do que os olhares que deles se faz, porque:<br />

... na hora em que os outros dormem, está ele<br />

inclinado sobre a mesa, lançando sobre uma folha<br />

de papel o mesmo olhar que há pouco lançava<br />

sobre as coisas... E as coisas renascem sobre<br />

o papel, naturais e mais que naturais, belas e<br />

mais que belas, singulares e dota<strong>da</strong>s de uma vi<strong>da</strong><br />

entusiasta como a vi<strong>da</strong> do autor. (BAUDELAI-<br />

RE, 1993, p.226)<br />

O ato de escrever é disseminado de sentidos<br />

e precisa ser exercido graciosamente, não<br />

tem ponto de parti<strong>da</strong> nem ponto de chega<strong>da</strong>,<br />

mas circula produzindo significados e significantes.<br />

É por isso que na escrita o sujeito se tece e<br />

se engendra. Precipitar este artigo é convi<strong>da</strong>r o<br />

leitor a uma constante busca de sentidos.<br />

Partindo desse pressuposto, as tentativas de<br />

aproximação de possíveis representações sociais<br />

sobre fala e escuta de professores em sala<br />

de aula foram realiza<strong>da</strong>s neste estudo, mediante<br />

um instrumento de pesquisa que privilegiou o<br />

discurso oral, seja por meio de observações realiza<strong>da</strong>s<br />

em classe, seja por meio de entrevistas.<br />

Para a construção teórica, percorri os<br />

passos <strong>da</strong> representação social que, de mãos<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong>s com a psicanálise, justificam os esforços<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 211-225, jan./jun., 2006 213


Fala e escuta de professores em sala de aula<br />

de pedir a estas duas concepções teóricas que<br />

revelem algo do que têm a dizer sobre este objeto.<br />

Neste sentido, uma pergunta emerge: que<br />

lugar e posição teriam as representações sociais<br />

do professores sobre fala e escuta em sala<br />

de aula e como os suportes psicanalíticos permitiram<br />

compreender estas representações sociais?<br />

Compreender o lugar e posição que teriam<br />

as representações sociais do professor sobre<br />

fala e escuta em sala de aula significa definir<br />

os objetivos deste estudo:<br />

♦ analisar a fala e a escuta de professores<br />

em sala de aula, compreendi<strong>da</strong>s pelo<br />

campo <strong>da</strong>s representações sociais;<br />

♦ compreender diferentes significados e<br />

significantes que a fala e a escuta revelam<br />

em sala de aula, a partir do referencial<br />

<strong>da</strong> psicanálise.<br />

A deman<strong>da</strong> feita neste escrito busca fazer<br />

emergir um encontro <strong>da</strong>s representações sociais<br />

de professores sobre fala e escuta, com a<br />

finali<strong>da</strong>de de pensar como estas se lançam na<br />

sala de aula. Isto significa percorrer um caminho<br />

para conhecer o discurso do professor, analisá-lo<br />

e encontrar significados e significantes<br />

que carrega, na busca de condições necessárias<br />

para também entender o eco.<br />

Escutar professores parece abrir uma porta<br />

singular para se chegar “às vitrines” e olhar o<br />

que brilha e o que embaça, os contornos e os<br />

entornos, as cores frias e quentes, as formas<br />

visíveis e invisíveis de sua própria representação<br />

social.<br />

Representação social e psicanálise:<br />

um laço possível?<br />

A representação social é um conhecimento<br />

do senso comum e é forma<strong>da</strong> em razão do cotidiano<br />

do sujeito. É uma abor<strong>da</strong>gem que se<br />

encontra hoje no centro de um debate interdisciplinar,<br />

na medi<strong>da</strong> em que se tenta nomear,<br />

fazer relações entre as construções simbólicas<br />

com a reali<strong>da</strong>de social e dirige seu olhar epistêmico<br />

para entender como esta reali<strong>da</strong>de cons-<br />

214<br />

trói a leitura dos símbolos presentes no nosso<br />

cotidiano.<br />

Por representações sociais, entendemos um conjunto<br />

de conceitos, proposições e explicações<br />

na vi<strong>da</strong> cotidiana no curso de comunicação interpessoais.<br />

Elas são o equivalente, em nossa<br />

socie<strong>da</strong>de, aos mitos e sistemas de crenças <strong>da</strong>s<br />

socie<strong>da</strong>des tradicionais, podem também ser vistas<br />

como a versão contemporânea do senso comum.<br />

(MOSCOVICI, 1978, p. 181)<br />

Os estudos desenvolvidos no campo <strong>da</strong>s representações<br />

sociais, nos últimos trinta anos,<br />

consequentemente, reportam-se ao conceito<br />

trabalhado por Moscovici (1978) e tomam como<br />

referência o estudo: La psychanalyse, son<br />

image et son public. A obra aponta para a dificul<strong>da</strong>de<br />

de conceituar as representações sociais,<br />

admitindo que, se por um lado o fenômeno<br />

é passível de observação e de identificação, por<br />

outro, o conceito, pela sua complexibili<strong>da</strong>de,<br />

requer um tempo de maturação para que a definição<br />

seja construí<strong>da</strong> de modo consciente.<br />

Allport usa uma metáfora para historiar a<br />

origem <strong>da</strong> representação social e sugere uma<br />

uni<strong>da</strong>de orgânica entre a flor e a raiz:<br />

Tanto a flor como suas raízes são européias, e<br />

existe uma similari<strong>da</strong>de na forma entre a flor (uma<br />

forma sociológica de psicologia social) e a semente<br />

<strong>da</strong> qual ela nasceu (isto é, a sociologia).<br />

No caso <strong>da</strong> psicologia social, a semente e o solo<br />

germinaram, provieram de continentes diferentes<br />

(Europa e América do Norte) e de diferentes<br />

disciplinas acadêmicas (sociologia e psicologia).<br />

(ALLPORT, apud ARRUDA, 1998, p.31-32)<br />

Essa metáfora, além de sinalizar a origem,<br />

pontua os terrenos demarcados pela representação<br />

social.Trata-se de um conceito germinado<br />

nesta complexibili<strong>da</strong>de, no entanto não é<br />

apenas a soma <strong>da</strong>s contribuições, é a construção<br />

de algo novo, pretendendo observar um<br />

fenômeno básico <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de cotidiana.<br />

Fortalecendo a argumentação de Moscovici<br />

(1978), Ibanez (1988) sinaliza duas justificativas<br />

para essas complexibili<strong>da</strong>des conceituais:<br />

a primeira, refere-se ao fato de ser a representação<br />

social um conceito híbrido, não pertencendo<br />

a uma única área do conhecimento, visto<br />

que sua origem vincula-se tanto à sociologia<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 211-225, jan./jun., 2006


quanto à psicologia – o que leva a concluir que<br />

a representação social é um conceito psicossocial.<br />

A outra justificativa deriva <strong>da</strong> primeira, pois<br />

como os conceitos aglutinados de outras áreas<br />

são mais restritos, uma vez que tratam basicamente<br />

de objetos e não de fenômenos, constituem-se<br />

em relação ao próprio conceito de<br />

representação social, os mais operativos.<br />

Estas peculiari<strong>da</strong>des transformam o conceito de<br />

representação social em um conceito-chave que<br />

aponta mais para um conjunto de fenômenos e<br />

processos do que para objetos claramente diferenciados<br />

ou até mecanismos precisamente definidos.<br />

Mas talvez a própria natureza dos<br />

fenômenos, aos quais o conceito de representação<br />

social faz referência, requer um grau de complexibili<strong>da</strong>de<br />

conceitual e uma flexibili<strong>da</strong>de<br />

dificilmente compatível com critérios estritamente<br />

operativos. Assim, o tipo de reali<strong>da</strong>de social para<br />

o qual o conceito de representação social aponta<br />

está imbricado por um conjunto de elementos<br />

de natureza diversa: processos cognitivos, inserções<br />

sociais, fatores afetivos, sistema de valores...<br />

(SIC) que devem ter lugar simultaneamente<br />

no instrumento conceitual utilizado para elucidá-lo.<br />

(IBANEZ, 1988, p.32)<br />

Vale pontuar que a dificul<strong>da</strong>de na construção<br />

<strong>da</strong> conceituação não lhe retira o mérito de<br />

ser hoje um conceito fun<strong>da</strong>mental na psicologia<br />

social. A representação recebe a nomeação de<br />

social justamente porque é uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de<br />

conhecimento particular, que tem por função<br />

compreender comportamentos e estabelecer a<br />

comunicação entre sujeitos. Esse conhecimento<br />

se nutre <strong>da</strong>s ciências que, por sua vez, é apropria<strong>da</strong><br />

pelos sujeitos pertencentes a determinados<br />

grupos.<br />

A representação, portanto, é compartilha<strong>da</strong><br />

e elabora<strong>da</strong> por um determinado grupo, já que<br />

sua construção ocorre na relação dos sujeitos<br />

entre si e com os objetos. Nesse processo, desconstrói-se<br />

uma reali<strong>da</strong>de que é única, específica,<br />

mas que é compartilha<strong>da</strong> pela comunicação<br />

de sujeitos em interação com o outro. Não há<br />

representação social sem objeto e sem sujeito<br />

social, coletivo no individual, pertencente a um<br />

determinado grupo.<br />

Pode-se dizer que a representação social,<br />

ao estu<strong>da</strong>r a ação humana, expressa uma es-<br />

Maria de Lourdes S. Ornellas<br />

pécie de saber prático de como os sujeitos sentem,<br />

assimilam, aprendem e interpretam o mundo,<br />

inseridos no seu cotidiano, sendo, portanto,<br />

produzidos coletivamente na prática <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

e no decorrer <strong>da</strong> comunicação entre os<br />

sujeitos. “As representações sociais devem ser<br />

estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s articulando elementos afetivos, mentais<br />

e sociais e integrando, ao lado <strong>da</strong> cognição<br />

<strong>da</strong> linguagem e <strong>da</strong> comunicação, as relações<br />

sociais que afetam as representações e a reali<strong>da</strong>de<br />

material social e ideal sobre as quais elas<br />

intervirão”. (JODELET, 2001, p. 41)<br />

É possível pontuar que esse conhecimento<br />

tem uma base cognitiva e afetiva e, portanto,<br />

não constitui categoria bipolar, podendo, desse<br />

modo, afirmar que as representações sociais não<br />

são saberes articulados apenas ao cognitivo, mas<br />

se tecem, de forma dinamiza, em um processo<br />

histórico, que envolve tanto racionali<strong>da</strong>de quanto<br />

afetivi<strong>da</strong>de emotivi<strong>da</strong>de.<br />

Pesquisadores <strong>da</strong> área de <strong>Educação</strong>, e também<br />

fora dela, mostram-se preocupados em<br />

integrar aspectos afetivos e simbólicos na eluci<strong>da</strong>ção<br />

e análise <strong>da</strong>s representações sociais,<br />

concebendo que na ativi<strong>da</strong>de representativa o<br />

objeto deixa de existir como tal, para se converter<br />

num equivalente dos objetos aos quais<br />

foi vinculado como uma contingência psicossocial.<br />

Moscovici pensa representação associa<strong>da</strong><br />

às experiências subjetivas do sujeito, expressas<br />

na comunicação social simultaneamente como<br />

um produto e um processo: “... a ativi<strong>da</strong>de representativa<br />

constitui, portanto, um processo<br />

psíquico que permite tornar familiar e presente<br />

em nosso universo interior, um objeto que está<br />

distante e, de certo modo, ausente...” (MOS-<br />

COVICI, 1978, p.28)<br />

No papel de sujeitos cognitivos, afetivos e<br />

sociais, produzem e comunicam aos seus pares,<br />

incessantemente, suas próprias representações,<br />

designa<strong>da</strong>s tanto por conteúdos<br />

conscientes como por processos inconscientes.<br />

... identificar a natureza complexa <strong>da</strong>s representações<br />

sociais implica, inevitavelmente estabelecer<br />

um intercâmbio entre intersubjetivi<strong>da</strong>des e<br />

o coletivo, na combinação de um saber que não<br />

se dá apenas por processos cognitivos, mas que<br />

contém aspetos inconscientes emocionais, afe-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 211-225, jan./jun., 2006 215


Fala e escuta de professores em sala de aula<br />

216<br />

tivos, tanto na produção como na reprodução<br />

<strong>da</strong>s representações sociais. (LANE, 1993, p. 61)<br />

Na última déca<strong>da</strong>, o estudo <strong>da</strong>s representações<br />

sociais tem espaço garantido na educação<br />

e de modo específico na Psicologia <strong>da</strong><br />

<strong>Educação</strong>. Observa-se hoje um número ca<strong>da</strong><br />

vez maior de pesquisas nessa área, o que pode<br />

contribuir para a construção de um novo olhar<br />

no que se refere aos processos educativos e<br />

subjetivos que interagem na sala de aula. Nesse<br />

sentido, Sousa nos diz:<br />

No final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1980 e início dos anos 90,<br />

as investigações nas áreas de educação passaram<br />

a exigir construções teóricas que conciliassem<br />

pontos de vista do autor individual e do<br />

autor social e de perspectiva micro e macro. É<br />

nesse contexto que a “descoberta” <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong>s<br />

representações sociais, pelos educadores, surge<br />

como uma <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des teóricas relevantes<br />

<strong>da</strong> área <strong>da</strong> Psicologia, possibilitando a<br />

compreensão de um sujeito sócio-historicamente<br />

situado e, ao mesmo tempo, formando condições<br />

para a análise de dinâmicas subjetivas<br />

(SOUSA, 2002, p.286)<br />

A área de educação constitui um campo fértil<br />

para a investigação <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong>s representações<br />

sociais. Gilly acrescenta (1984, p. 364):<br />

... o campo educativo aparece como um campo<br />

privilegiado para verificar como se constroem,<br />

evoluem e transformam as representações sociais<br />

no interior dos grupos sociais, e esclarece<br />

sobre o papel dessas construções nas relações<br />

desses grupos com o objeto de sua representação.<br />

A representação como conjunto organizado<br />

de significações sociais permite na nova via<br />

para explicação dos mecanismos por meio dos<br />

quais fatores propriamente sociais agem sobre o<br />

processo educativo e influenciam resultados.<br />

O estudo de Gilly (1994) sobre as representações<br />

sociais no campo educacional, ao produzir<br />

uma revisão de literatura, conclui que são<br />

poucos os estudos sobre representações sociais<br />

tanto na área <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> quanto na área<br />

<strong>da</strong> Psicologia <strong>da</strong> <strong>Educação</strong>. O autor também<br />

identifica que os poucos estudos existentes não<br />

possuem o aporte teórico-metodológico <strong>da</strong>s representações<br />

sociais, uma vez que apenas estu<strong>da</strong>m<br />

alguns aspectos <strong>da</strong>s representações<br />

sociais ou, quando muito, esboçam fatores para<br />

explicar resultados que nem sempre podem ser<br />

identificados como representação social.<br />

Aspectos afetivos e emocionais constituemse<br />

de processos subjetivos que emergem no interior<br />

<strong>da</strong> sala de aula e é possível que a<br />

psicanálise possa <strong>da</strong>r conta na produção e reprodução<br />

<strong>da</strong>s representações sociais.<br />

Freud acalentava um sonho de que a psicanálise<br />

pudesse um dia vir a contribuir com a<br />

socie<strong>da</strong>de como um todo e, especialmente, com<br />

a educação; acompanhava os movimentos sociais<br />

e sempre estimulava que a psicanálise<br />

pudesse estender-se a outras áreas do conhecimento.<br />

A partir <strong>da</strong>í, a psicanálise, ain<strong>da</strong> que<br />

sutilmente, ousou adentrar os muros <strong>da</strong> escola.<br />

A psicanálise, por sua vez, não tem receitas<br />

sobre o que deve ser feito na escola, mas reflete<br />

sobre o que tem sido feito, visto que pode<br />

contribuir na escuta do discurso do professor e<br />

do aluno. Articular psicanálise e educação é um<br />

grande desafio, e o fato de a psicanálise se oferecer<br />

como um importante fun<strong>da</strong>nte do instrumento<br />

<strong>da</strong> escuta é o que possibilita, muitas vezes,<br />

contribuir para a leitura do mal-estar vivido pelo<br />

professor no contexto educativo. “O mal-estar<br />

na escola tem diversas faces para serem olha<strong>da</strong>s<br />

e pensa<strong>da</strong>s: é como se olhássemos um cubo,<br />

que tem seis faces, como sabemos, mas só podemos,<br />

de um determinado lugar, ver três faces,<br />

é necessário que nos desloquemos para que<br />

vejamos to<strong>da</strong>s as faces.” (OUTEIRAL; CER-<br />

ZER, 2003. p.1)<br />

Não restam dúvi<strong>da</strong>s de que a psicanálise<br />

pode transmitir ao educador uma ética, um modo<br />

de ver e de entender a prática educativa. É um<br />

saber que pode gestar, dependendo, naturalmente,<br />

<strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des subjetivas de ca<strong>da</strong> educador,<br />

um lugar, uma posição, uma filosofia de<br />

trabalho que aponte para o desvelar dessa desconheci<strong>da</strong><br />

rede de relações circulando numa<br />

instituição escolar. A queixa do professor é desejar<br />

ser escutado e não vislumbrar a possibili<strong>da</strong>de<br />

de decifrar o que e por que tal fato ocorre.<br />

Nesse sentido, Kupfer acrescenta: “Antes,<br />

o professor parecia saber o que falava ao sujeito.<br />

Hoje, pensa falar com um objeto; e se desespera<br />

porque não consegue ensinar na<strong>da</strong> para<br />

este suposto objeto.” (2000, p.121).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 211-225, jan./jun., 2006


Ora, a psicanálise é uma <strong>da</strong>s áreas do conhecimento<br />

responsável pelo resgate do sujeito.<br />

Essa constatação é escuta<strong>da</strong> nos mais<br />

variados planos.<br />

Disto se encontram resquícios no discurso pseudo-humanitário<br />

sustentado por muitos educadores,<br />

cuja bandeira é despertar o ser humano<br />

que há em todos nós e que confunde a “tentativa<br />

de atribuição de um lugar para o sujeito no<br />

discurso” com liberação <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de e com<br />

laissez-faire. E está presente também na perspectiva<br />

de resgate de um sujeito que faz oposição<br />

à objetivação do mundo do consumo, que<br />

diz não à transformação do aluno em mercadoria,<br />

não à banalização pela inteligência emocional<br />

– banalização que nivela, acachapa, o que no<br />

sujeito é espesso, enigmático, dividido, não repetido,<br />

não em série. (KUPFER, 2000, p. 228)<br />

Pela escuta cui<strong>da</strong>dosa dos sintomas presentes<br />

no mal-estar na sala de aula, por parte do<br />

professor, é que penso que algumas fronteiras<br />

são possíveis entre psicanálise e educação, pois<br />

é preciso escutar o ambiente transferencial de<br />

sala de aula, lugar onde acontece o ato educativo.<br />

Nesse ambiente em que ocorre a escuta<br />

<strong>da</strong> relação professor-aluno, visto como um campo<br />

de condutas humanas que se configura sob<br />

a nomeação de disciplina ou (in) disciplina escolar,<br />

constituindo, na atuali<strong>da</strong>de, uma <strong>da</strong>s preocupações<br />

mais emergentes do professor.<br />

Nos dias atuais, quando o professor se dirige<br />

para a sala de aula, questiona-se sobre como<br />

administrar a dispersão, a falta de atenção e de<br />

interesse pelas ativi<strong>da</strong>des desenvolvi<strong>da</strong>s em<br />

classe. Diante desse mal-estar no ambiente<br />

escolar, a escuta pe<strong>da</strong>gógica pode abrir um canal<br />

de comunicação, porque o instrumento dessa<br />

escuta envolve não só o sentido do ouvir,<br />

mas o de fazer uma leitura subjetiva do discurso,<br />

apresentado pelo sujeito escutante.<br />

Em relação a esse pensamento, Cerezer e<br />

Oiteiral complementam:<br />

A escuta de uma fala ou de um discurso é o que<br />

nos possibilita uma leitura subjetiva <strong>da</strong>quilo que<br />

está sendo expressado. A fala tece e a palavra<br />

ocupa um lugar estratégico na relação professor-aluno:<br />

logo, o sistema de categorias que<br />

modela o mundo do falante é essencial para que<br />

o sujeito filtre informações <strong>da</strong>s situações que<br />

vivencia. (2003, p.60)<br />

Maria de Lourdes S. Ornellas<br />

Por este caminho, em que a escuta é vista<br />

essencialmente como instrumento de trabalho<br />

do professor e neste sentido Kupfer diz:<br />

Uma leitura que inclua o discurso social que circula<br />

em torno do educativo e do escolar (...) estará<br />

produzindo um inflexão na ação do psicanalista<br />

e o levará a uma prática que não coinci<strong>da</strong> mais<br />

com a clínica psicanalista “ortodoxa”, pois ele terá<br />

de se movimentar o suficiente para ouvir pais e<br />

escola. Isso amplia o campo de ação do psicanalista,<br />

que passa a incluir a instituição escola como<br />

lugar de escuta (2000, p. 34)<br />

Se a psicanálise pode contribuir, de alguma<br />

forma, com o campo de educação, terá de apontar<br />

para a necessi<strong>da</strong>de de uma postura reflexiva<br />

sobre a tarefa de escutar, que supõe uma<br />

reconstrução a ser feita pelo professor junto aos<br />

alunos. Escutar é <strong>da</strong>r sentido ao mundo que<br />

cerca o aluno. Ao escutar os ditos e os não<br />

ditos, produz-se e amplia-se o mundo <strong>da</strong>s coisas,<br />

dá-se uma versão própria que é a réplica e<br />

não uma repetição.<br />

A escuta <strong>da</strong>s vozes e <strong>da</strong>s situações é, na<br />

ver<strong>da</strong>de, um diálogo dentro de nós mesmos com<br />

as muitas vozes que nos constituíram e nos constituem.<br />

Escutar e falar fazem parte do processo<br />

educativo, porém, este binômio na escola<br />

parece ter pesos diferentes entre os atores.<br />

Esse mundo desejante, que habita diferentemente<br />

em ca<strong>da</strong> sujeito, estará sempre preservado<br />

ca<strong>da</strong> vez que um professor renuncie<br />

ao controle e aos efeitos de seu poder sobre o<br />

aluno. Matar o mestre – para falar, escutar e<br />

tornar o mestre de si mesmo – é uma lição que<br />

precisa ser ressignifica<strong>da</strong>.<br />

Se por um lado, Freud foi, de fato, um antipe<strong>da</strong>gogo,<br />

por várias razões, foi também um<br />

mestre <strong>da</strong> educação. Seu jeito peculiar de fazer<br />

teoria revelou a singular relação que tinha<br />

com o auto de pensar, falar e escutar. Freud<br />

pensou com a mente e com o desejo e, talvez<br />

por isso, a fala e a escuta tenham ocupado um<br />

lugar singular no seu modo de educar.<br />

A psicanálise já encerra em si mesma fatores revolucionários<br />

suficientes para garantir que todo<br />

aquele que nela se educou jamais tomará em sua<br />

vi<strong>da</strong> posterior o partido <strong>da</strong> reação e <strong>da</strong> repressão.<br />

Penso até mesmo que as crianças revoluci-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 211-225, jan./jun., 2006 217


Fala e escuta de professores em sala de aula<br />

218<br />

onárias não são desejáveis, sob nenhum aspecto.<br />

(FREUD, 1976, v. 22, p. 348)<br />

As conexões <strong>da</strong> psicanálise e educação precisam<br />

ser ain<strong>da</strong> estabeleci<strong>da</strong>s. Talvez, desde já,<br />

a psicanálise possa possibilitar à educação um<br />

outro olhar, não narcísico, não tão etnocêntrico,<br />

mas um olhar em que o professor se coloque<br />

no lugar <strong>da</strong>quele que investiga, <strong>da</strong>quele que<br />

questiona o saber fechado, previamente estruturado<br />

do aluno.<br />

Em meio a to<strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong>de de se casar<br />

a psicanálise com a educação, é certo que ambas<br />

começam a se olhar. Nesse caso, estão<br />

abertas portas para que o saber <strong>da</strong> representação<br />

social tome lugar entre esses dois saberes,<br />

mostrando ao leitor o que podemos ver por detrás<br />

dele, sem, contudo, conduzi-lo para dentro,<br />

porque educar, segundo Freud, parece ser mesmo<br />

uma tarefa difícil.<br />

Após discorrer sobre as relações entre psicanálise<br />

e educação, faz-se pertinente encontrar<br />

um ritmo, um compasso entre representação social<br />

e psicanálise. Nesse sentido, Kaes diz:<br />

A psicanálise é ela própria, objeto de representação<br />

social. De fato, foi em relação a ela que S.<br />

Moscovici (1960) definiu o próprio conceito de<br />

representação social e seu método de estudo.<br />

(...) É pouco provável que os dois objetos coinci<strong>da</strong>m,<br />

pois se constituem de projetos, epistemológicos<br />

diferentes e práticos diferentes; mas<br />

é possível que ligações pouco evidentes se desvelem<br />

(apud JODELET, 2001 p. 67-68)<br />

Por esta via, é possível tentar percorrer uma<br />

trilha demarcando que tanto a representação<br />

social quanto a psicanálise foram e são influencia<strong>da</strong>s<br />

pela cultura. E nesse contexto, a representação<br />

social e a psicanálise são convi<strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />

a comparecer neste estudo, entendendo que<br />

ambas as áreas engendram-se no desfiladeiro<br />

<strong>da</strong> cultura. A palavra cultura pode ser entendia<br />

como:<br />

O resultado de tudo o que o homem produz para<br />

construir sua existência. No sentido amplo, antropológico,<br />

cultura é tudo o que o homem faz,<br />

seja material ou espiritual, seja pensamento ou<br />

ação. A cultura exprime as varia<strong>da</strong>s formas pelas<br />

quais os homens estabelecem relações entre si e<br />

com a natureza. ... (ARANHA, 1996, p. 14-15)<br />

Desse modo, pode-se resgatar que a representação<br />

social e a psicanálise estão presentes<br />

de mil maneiras na cultura e na vi<strong>da</strong> cotidiana.<br />

Ambas as concepções são em si mesmas uma<br />

parte <strong>da</strong> cultura contemporânea, tanto no plano<br />

científico-filosófico, quanto no efeito que essas<br />

posições teóricas têm sobre os costumes, as<br />

idéias, o senso comum e a própria civilização.<br />

A problemática <strong>da</strong> cultura constitui, tanto<br />

para a teoria <strong>da</strong>s representações sociais quanto<br />

para a psicanálise, um espaço em que as formações<br />

culturais apresentam os mesmos<br />

elementos e estruturas fun<strong>da</strong>mentais que vão<br />

engendrar a vi<strong>da</strong> cotidiana do sujeito, sua comunicação,<br />

opinião, atitude, etc. Portanto, ambas<br />

as teorias se tecem e se aproximam do tecido<br />

social e contribuem para um sistema de interpretação<br />

<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de.<br />

Pela trilha <strong>da</strong> cultura é que se faz possível<br />

mapear pontos em que a representação social<br />

e a psicanálise se engendram no contexto <strong>da</strong><br />

sala de aula. Sabemos o quanto a sala de aula é<br />

produtora de cultura, de relação e comunicação<br />

e, por sua vez, é um espaço de construção<br />

<strong>da</strong>s representações sociais.<br />

Pode-se afirmar que tanto a psicanálise contribui<br />

com a educação, para desvelar os aspectos<br />

afetivos do desenvolvimento, quanto a teoria<br />

<strong>da</strong>s representações sociais reconhece igualmente<br />

a importância dos aspectos afetivos.<br />

A escola é um espaço onde a construção<br />

<strong>da</strong>s relações afetivas acontece, e ao mesmo<br />

tempo, é onde acontece a fala e a escuta. Uma<br />

fala, se bem elabora<strong>da</strong>, pode ser escuta<strong>da</strong>, troca<strong>da</strong><br />

e analisa<strong>da</strong> na prosa <strong>da</strong> sala de aula, na<br />

prosa <strong>da</strong> relação. E nesse lugar se encontram<br />

os dois sujeitos: o professor e o aluno. Ambos<br />

os sujeitos são portadores de uma fala, de uma<br />

escuta e <strong>da</strong>s representações que os sustentam.<br />

Logo, pode-se dizer que a representação<br />

social de professores (sujeito) sobre fala e escuta<br />

(objeto) constitui um leque de possibili<strong>da</strong>des<br />

para que se perceba um novo olhar sobre a<br />

sala de aula, no que se refere à relação professor<br />

aluno.<br />

Vale pontuar que o campo <strong>da</strong>s representações<br />

sociais e <strong>da</strong> psicanálise encontra-se no<br />

centro de um debate interdisciplinar, na medi<strong>da</strong><br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 211-225, jan./jun., 2006


em que se tenta nomear, fazer relações entre<br />

as construções simbólicas com a reali<strong>da</strong>de social<br />

e dirige seu campo epistêmico para entender<br />

como esta reali<strong>da</strong>de constrói a leitura dos<br />

símbolos presentes no cotidiano que move ca<strong>da</strong><br />

sujeito à ação. Na condição de pesquisadora,<br />

pergunto: não seria essa capaci<strong>da</strong>de de <strong>da</strong>r uma<br />

nova forma às coisas pela ativi<strong>da</strong>de psíquica<br />

que constitui uma representação social?<br />

A fala é costura<strong>da</strong> a partir de um emaranhado<br />

de representações sociais que servem<br />

de trama articula<strong>da</strong> nas esferas <strong>da</strong>s relações<br />

sociais, ou seja, pela sua própria relação dialética<br />

com a cultura e a reali<strong>da</strong>de. Escutar a fala e<br />

exercitar a escuta exige, ao mesmo tempo, o<br />

sentido <strong>da</strong>s representações sociais que elas<br />

apresentam.<br />

Kaes (2001), ao pensar sobre representação<br />

social numa vertente psicanalítica, elabora<br />

a hipótese de que a representação é um trabalho<br />

de lembranças <strong>da</strong>quilo que está ausente, que<br />

está em falta. Logo, a representação tanto quanto<br />

a psicanálise indicam uma ausência, se formam<br />

como traço e reprodução de um objeto<br />

perdido.<br />

A representação social do professor sobre<br />

fala e escuta em sala de aula, de que trata este<br />

artigo, busca superar dualismos, estabelecer<br />

interfaces com outros campos do saber, para<br />

dizer o que não pode ser dito internamente, mas<br />

que ain<strong>da</strong> insiste em dizer, representação e psicanálise<br />

não constituem ambigüi<strong>da</strong>des, parece<br />

que algo evidente se desvela, mistura-se numa<br />

sintonia de tons e formas, e expressa o desejo<br />

de colocar o homem para realizar a tarefa que<br />

o mestre ensinou. “Assim como o planeta gira<br />

em torno de um corpo central enquanto ro<strong>da</strong><br />

em torno do seu próprio eixo, assim também o<br />

indivíduo humano participa do curso do desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, ao mesmo tempo<br />

em que persegue o seu próprio caminho <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>.” (FREUD, 1976, p.163)<br />

Representação e psicanálise são como a<br />

imagem do tecelão: alguns fios aprecem partidos,<br />

outros estão unidos desenhando em seu<br />

trajeto uma peça necessariamente interminável.<br />

Então, posso suspirar mais alivia<strong>da</strong> ante o<br />

esforço feito para encontrar na cultura um ca-<br />

Maria de Lourdes S. Ornellas<br />

minho por meio do qual representação social e<br />

psicanálise se encontram, mesmo sabendo que<br />

a incerteza atormenta o laço possível.<br />

Trilhas e atalhos<br />

A partir <strong>da</strong> delimitação do problema, o contexto<br />

escolhido para a coleta de <strong>da</strong>dos foi uma<br />

escola pública do Ensino Médio, situa<strong>da</strong> em<br />

Salvador-Bahia. Os sujeitos que colaboraram<br />

com a realização deste estudo pertencem a<br />

uma classe do ensino médio, de ambos os sexos,<br />

encontrando-se na faixa etária de 16 a 19<br />

anos. A classe serviu de palco para que se<br />

pudesse proceder à observação dos professores.<br />

Optou-se por escutar, mediante observação<br />

e entrevista, quatro professores durante<br />

cem dias. Em segui<strong>da</strong> foi estabelecido que a<br />

aula seria observa<strong>da</strong> com base em três momentos<br />

distintos: recepção de chega<strong>da</strong>, durante<br />

a aula e conclusão <strong>da</strong> aula. Com relação ao<br />

tempo, esses momentos foram assim divididos:<br />

recepção de chega<strong>da</strong> (dez minutos), durante a<br />

aula (trinta minutos) e conclusão <strong>da</strong> aula (dez<br />

minutos).<br />

Os registros de ca<strong>da</strong> um desses momentos<br />

foram reorganizados em categorias descritivas,<br />

o que permitiu uma primeira leitura dos <strong>da</strong>dos<br />

e, em segui<strong>da</strong>, as categorias teórico-interpretativas<br />

foram também construí<strong>da</strong>s, quando se<br />

buscou o referencial <strong>da</strong> teoria psicanalítica, o<br />

que contribuiu para o processo <strong>da</strong> análise.<br />

Com relação às categorias teórico-interpretativas<br />

<strong>da</strong>s observações do momento de recepção<br />

de chega<strong>da</strong>, observou-se que a sedução<br />

se fez presente, a relação transferencial mostrou-se<br />

durante a aula, enquanto que, no momento<br />

de conclusão <strong>da</strong> aula, destacou-se a<br />

repressão e a reatualização <strong>da</strong> sedução. As<br />

categorias teórico-interpretativas <strong>da</strong>s entrevistas<br />

foram agrupa<strong>da</strong>s em: ambivalência e frustração.<br />

Trilhas e atalhos são nomeações do que chamamos<br />

de método, este não constitui norma<br />

autônoma, mas deve subordinar-se a uma construção<br />

teórica no sentido de captar o objeto na<br />

sua especifici<strong>da</strong>de, no seu ágalma.<br />

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Fala e escuta de professores em sala de aula<br />

Ajustes e Achados<br />

Pretende-se, neste momento, restituir o discurso<br />

dos professores em sala de aula, na medi<strong>da</strong><br />

em que ca<strong>da</strong> fala, com suas ausências e<br />

presenças, parece ter produzido uma nova descoberta<br />

a partir <strong>da</strong>s representações desvela<strong>da</strong>s<br />

neste estudo. Fala não tem um único sentido. A<br />

fala tem sempre um mais além atrás do que diz<br />

um discurso, há o que ele quer dizer e, atrás do<br />

que quer dizer, há ain<strong>da</strong> um certo dizer.<br />

220<br />

... esta palavra aliena<strong>da</strong> coloca o alente à escuta<br />

do que não sabia ter dito nem “pretendia” dizer;<br />

pode-se resistir à palavra interpretante, seja negando<br />

a sua identi<strong>da</strong>de – “não foi o que eu disse”,<br />

seja negando sua alteri<strong>da</strong>de – “foi exatamente<br />

o que eu queria dizer”; a fala integrante<br />

não bastou de compreender mais profun<strong>da</strong>mente<br />

o que foi dito, mas, apenas de deixar ouvir o<br />

que a fala disse. A fala fala e nela o homem reside.<br />

(FIGUEIREDO, 1994, p. 128-129)<br />

Fazer uma experiência com a fala é, <strong>da</strong> mesma<br />

forma, deixar-se atravessar por ela, acolhêla<br />

no seu poder mais próprio, ou seja, na sua<br />

alteri<strong>da</strong>de. Fazer uma experiência com a fala é<br />

preciso: “Por conseqüente, libertar a palavra para<br />

seu outro dizer, para seu dizer outro, isto implica<br />

em deixar que a fala fale e, mesmo quando as<br />

palavras brotem <strong>da</strong> minha boca, colocar-me à<br />

escuta”. (FIGUEIREDO, 1994, p. 122).<br />

Considerando o objeto deste estudo e que a<br />

fala é uma <strong>da</strong>s formas que permite ao sujeito expressar<br />

sua subjetivi<strong>da</strong>de, sua singulari<strong>da</strong>de e suas<br />

representações sociais, fiz a opção pela análise<br />

de discurso como técnica de análise dos <strong>da</strong>dos,<br />

uma vez que tal escolha me permitiria captar concepções,<br />

valores, atitudes e até mesmo contradições<br />

na fala dos sujeitos <strong>da</strong> pesquisa.<br />

Vale dizer que a categorização dos <strong>da</strong>dos<br />

foi organiza<strong>da</strong> à medi<strong>da</strong> que surgiram conteúdos<br />

latentes e manifestos nas falas. Em segui<strong>da</strong>,<br />

foram interpretados à luz <strong>da</strong>s teorias explicativas<br />

deste estudo, tomando como referência,<br />

as falas que emergiram <strong>da</strong>s observações em<br />

classe e <strong>da</strong>s entrevistas dos professores, sem,<br />

no entanto, perder de vista que coube ao pesquisador<br />

uma constante i<strong>da</strong> e volta ao material<br />

de coleta.<br />

A letra fala<strong>da</strong> e a letra escrita, conti<strong>da</strong>s nas<br />

observações e entrevistas dos sujeitos dessa<br />

análise, foram submeti<strong>da</strong>s à análise de discurso.<br />

Cabe lembrar que o que está dito, escrito é<br />

o ponto de parti<strong>da</strong>: a análise e interpretação é o<br />

processo a ser seguido e a contextualização é o<br />

pano de fundo que pode assegurar relevância.<br />

Para analisar a fala dos professores, foi preciso<br />

saber ouvir, sentir os tons, pausas, ritmos,<br />

de preferência, sem pressa, para que as falas<br />

tomassem forma e o imaginário se encarregasse<br />

de captar o belo. A fala é como o desenho,<br />

composto de um conjunto de linhas e<br />

contornos, em que o falante representa, traça,<br />

projeta e manifesta o que sente e também o<br />

que não sente.<br />

Assim posto, os ajustes e os achados a partir<br />

<strong>da</strong> fala dos professores produziram sentidos<br />

e me deixaram confortável para armar o “quebra-cabeça”,<br />

pedir licença ao leitor para traduzir<br />

a imagem o discurso e, desse modo, permitir<br />

que a mensagem fizesse eco.<br />

Nesse caminho, analisaram-se as representações<br />

sociais de professores sobre fala e escuta<br />

em sala de aula, compreendendo os<br />

diferentes significados e significantes destas<br />

representações com base no referencial teórico<br />

<strong>da</strong> psicanálise.<br />

A pesquisa mostrou que a fala e a escrita<br />

de professores em sala de aula estão ancora<strong>da</strong>s<br />

em representações de sedução, relação<br />

transferencial, ambivalência, repressão e<br />

frustração, observa<strong>da</strong>s nos momentos de recepção<br />

de chega<strong>da</strong>, durante a aula e de conclusão<br />

<strong>da</strong> aula.<br />

A sedução foi observa<strong>da</strong> no momento de<br />

recepção de chega<strong>da</strong> e se reatualiza na relação<br />

pe<strong>da</strong>gógica porque, <strong>da</strong><strong>da</strong> a assimetria existente<br />

entre professor e aluno, remete à<br />

polari<strong>da</strong>de inicial entre um que quer saber, saber-suposto,<br />

saber do professor – e um que não<br />

sabe e quer saber, o aluno.<br />

A relação pe<strong>da</strong>gógica entre um que detém<br />

o saber – o professor e o outro que quer saber<br />

– o aluno, reproduz a relação originária que é a<br />

própria relação de sedução: o aluno atualiza<br />

conflitos edipianos na sala de aula, onde a autori<strong>da</strong>de<br />

cindi<strong>da</strong> do professor personifica o co-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 211-225, jan./jun., 2006


nhecimento, ocupando o lugar superegóico <strong>da</strong><br />

lei e <strong>da</strong> ordem – <strong>da</strong> onipotência <strong>da</strong>s figuras parentais<br />

introjeta<strong>da</strong>s.<br />

As falas a seguir ilustram o processo de sedução<br />

em sala de aula:<br />

Bom dia, meus amores, acalmem-se, vocês estão<br />

agitados...<br />

Vamos, meus queridos amigos, vamos entrando<br />

e sentando...<br />

Ca<strong>da</strong> um olhe para mim e para dentro de si e se<br />

pergunte: como estou em relação aos ensinamentos<br />

<strong>da</strong> professora?<br />

Quando o professor emite essas falas, revela<br />

representações sociais, ancora<strong>da</strong>s na sedução;<br />

observa-se que ele as utiliza para,<br />

possivelmente, manter a disciplina e sua autori<strong>da</strong>de<br />

em sala de aula, bem como para reafirmar<br />

sua posição de mediador do processo<br />

ensino-aprendizagem, reforçando, desta maneira,<br />

no aluno, a busca do conhecimento.<br />

O processo de sedução na relação pe<strong>da</strong>gógica<br />

fun<strong>da</strong>menta-se na vinculação erótica à autori<strong>da</strong>de<br />

professoral – atualização do vínculo original<br />

pré-edipiano de identificação. Pode-se auxiliar<br />

ou obstaculizar o processo educativo do aluno,<br />

obstaculiza-o quando o professor assume contratransferencialmente<br />

o lugar <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de primordial,<br />

colocando-se no lugar <strong>da</strong> lei e <strong>da</strong> ordem<br />

e no lugar do conhecimento. Ao assumir esse<br />

lugar, não cumpre sua função de mediador, pois<br />

o aluno fica vinculado a ele e não ao saber. (MOR-<br />

GADO, 1995, p. 35)<br />

É preciso salientar, no entanto, que tais representações<br />

sociais, ancora<strong>da</strong>s na sedução,<br />

podem dificultar o ato educativo, quando o professor<br />

também encarna o lugar <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de<br />

primordial, e, nessa possibili<strong>da</strong>de, pode deixar<br />

de assumir a função de mediador <strong>da</strong> aprendizagem,<br />

para estabelecer com o aluno vínculos<br />

apenas afetivos, não os transferindo para o processo<br />

de conhecimento.<br />

Assim sendo, o professor precisaria investir-se<br />

de sua autori<strong>da</strong>de pe<strong>da</strong>gógica para neutralizar<br />

a autori<strong>da</strong>de primordial. Rompendo o<br />

fascínio sedutor que essa autori<strong>da</strong>de exerce<br />

sobre ele e sobre o aluno, criará condições<br />

para que a relação pe<strong>da</strong>gógica centre-se no<br />

conhecimento.<br />

Maria de Lourdes S. Ornellas<br />

Observou-se que, no momento nomeado de<br />

durante a aula, as representações sociais ancora<strong>da</strong>s<br />

na relação transferencial se presentificaram,<br />

e a relação professor-aluno estabeleceu-se<br />

a partir <strong>da</strong> transferência do aluno e <strong>da</strong> contratransferência<br />

do professor.<br />

Pode-se pontuar que Freud (1900) estava<br />

certo, ao afirmar que o aluno transfere ao professor,<br />

de uma maneira singular, algo <strong>da</strong> relação<br />

entre pai e mãe, transfere também um saber<br />

que ele não tem e, assim, para estabelecer essa<br />

relação, o professor deve oferecer-se como<br />

detentor do saber que lhe é suposto na transferência.<br />

Observemos uma fala entre aluno e professor:<br />

Aluno: Prozinha, venha cá me tirar essa dúvi<strong>da</strong>,<br />

a senhora sabe, venha pró, sente aqui.<br />

Professor: Sei alguma coisa, um dia você chega lá.<br />

Aluno: Pró, você está elegante...<br />

Professor: Que bom saber disso.<br />

Aluno: Pró, me ensine esse exercício.<br />

Professor: Que aju<strong>da</strong> você precisa?<br />

Nessas falas, pode-se constatar que o aluno<br />

reconhece o saber do professor e este faz semblante,<br />

isto é, parece evidenciar que sabe e é<br />

essa a singular contribuição que a relação<br />

transferencial pode oferecer para a educação,<br />

que o aluno, diante <strong>da</strong> sua castração (não saber),<br />

possa encontrar no saber do professor um<br />

caminho para seu processo de crescimento,<br />

considerando que o sujeito procura no outro o<br />

saber sobre aquilo que lhe falta. Na relação com<br />

o analista, o sujeito busca o saber sobre aquilo<br />

que lhe falta, na relação com o professor na<br />

escola, o aluno supõe no professor o saber sobre<br />

seus estudos, projetos, medos e desejos. Em<br />

suma, é a falta que leva o aluno a transferir e<br />

esta tem como princípio constitutivo o sujeito<br />

suposto saber (Sss) 1 .<br />

Freud chega a afirmar que a relação transferencial<br />

está presente também na relação professoraluno.<br />

Para ele, trata-se de um fenômeno que<br />

permeia qualquer relação humana. Ë isso o que<br />

1 Lacan utiliza esta nomeação para explicar que o sujeito<br />

(paciente) atribui um saber ao analista. (1993, p.87)<br />

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Fala e escuta de professores em sala de aula<br />

222<br />

nos autoriza a substituir a expressão “relação<br />

analista – paciente” pela expressa “relação professor-aluno”.<br />

(KUPFER, 2001, p.88)<br />

As representações ancora<strong>da</strong>s na relação<br />

transferencial foram reveladoras de que a ênfase<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong> às relações professor-aluno não estavam<br />

apenas no valor dos conteúdos transmitidos,<br />

mas sobretudo nas relações afetivas e de<br />

saber estabeleci<strong>da</strong>s entre estes atores e é nesse<br />

momento que a fala do professor ganha força,<br />

passando, com isso, a ser escuta<strong>da</strong>.<br />

Observou-se que, no momento de conclusão<br />

<strong>da</strong> aula, as representações sociais ancora<strong>da</strong>s<br />

na repressão se fizeram presentes. Nesse<br />

sentido, dizem os professores.<br />

A maioria de vocês não entregou o trabalho, o<br />

trabalho, me aguardem! Vocês vão ver o que vai<br />

acontecer com vocês <strong>da</strong>qui pra frente!<br />

Apenas cinco alunos apresentaram o trabalho e<br />

os demais não fizeram. Vou solicitar uma reunião<br />

de pais para apertar a cor<strong>da</strong> de vocês.<br />

Hoje está sendo o último dia de discurso, agora<br />

eu vou agir.<br />

Estas falas, possivelmente, têm a intenção<br />

de barrar comportamentos indesejáveis apresentados<br />

pelo aluno no que se refere às tarefas<br />

escolares. Constitui-se de um dispositivo que<br />

muitas vezes o professor utiliza para tentar<br />

modelar o comportamento do aluno. Chemama,<br />

falando de repressão diz: “Qualquer impulso,<br />

fora <strong>da</strong> consciência, de um conteúdo<br />

representado como desprazeroso ou inaceitável;<br />

ação do aparelho psíquico sobre o afeto”<br />

(1995, p. 192)<br />

Vale salientar que essas representações, simboliza<strong>da</strong>s<br />

nas falas do professor, são carrega<strong>da</strong>s<br />

de conteúdos repressivos para modificar a<br />

conduta <strong>da</strong> classe. O professor parece querer<br />

que os alunos apren<strong>da</strong>m a emitir um comportamento<br />

que possa se aproximar de maior disciplina<br />

e responsabili<strong>da</strong>de com vistas a atingir seus<br />

objetivos pe<strong>da</strong>gógicos.<br />

Nas entrevistas realiza<strong>da</strong>s, a fala dos professores<br />

foi submeti<strong>da</strong> ao mesmo processo de<br />

categorização que indicou duas categorias teórico-interpretativas:<br />

ambivalência e frustração.<br />

A ambivalência presente nos discursos dos pro-<br />

fessores revela a coexistência de tendências<br />

afetivas opostas em relação a uma mesma situação.<br />

As falas dos professores ilustram esta<br />

oposição:<br />

Não sei o que é melhor, ser professora <strong>da</strong> rede<br />

particular ou ensinar na rede pública. Essa profissão<br />

é mesmo difícil.<br />

Meus alunos em sala de aula são normais. Alguns<br />

alunos apresentam dificul<strong>da</strong>des, problemas<br />

de comportamento também. É normal, agora com<br />

certas restrições...<br />

Eles não estão querendo mais ouvir. Não ouvem.<br />

Estão só querendo conversar, brincar. Não<br />

sei se é o sistema mesmo de ensino que está<br />

decadente, mas acho que, particularmente, esse<br />

é o melhor ensino que ain<strong>da</strong> existe.<br />

São falas ambivalentes que pontuam os conflitos<br />

de sala de aula, onde o movimento de<br />

melhor/pior; saber/não saber, estão presentes e<br />

expressos em meio a dois sentimentos opostos.<br />

Neste contexto, Kaufmann diz: ”O mais freqüente<br />

e o mais dramático são essas publicações<br />

duplas serem próprias de representações<br />

de pessoas que o sujeito teme, ou ama ao mesmo<br />

tempo.” (1996, p. 25-26)<br />

Essa ambivalência, muitas vezes, é apresenta<strong>da</strong><br />

com certo mal-estar e denota a dificul<strong>da</strong>de<br />

que o professor tem enfrentado em li<strong>da</strong>r com<br />

o novo, com o diferente em sala de aula. Superar<br />

este mal-estar implica que o professor no<br />

cotidiano <strong>da</strong> sala de aula pense o sentido simbólico<br />

<strong>da</strong> ambivalência na relação pe<strong>da</strong>gógica<br />

e possa construir representações que forneçam<br />

o encontro <strong>da</strong> escuta desses discursos, com vistas<br />

a entender as marcas do desejo que circulam<br />

entre professor e aluno.<br />

Frustração foi também uma categoria que<br />

se evidenciou nas entrevistas dos professores.<br />

As falas a seguir são ilustrativas dessa representação:<br />

Sinto-me por baixo quando me esforço para ensinar<br />

e vejo os resultados estão abaixo <strong>da</strong> média.<br />

O nível do aluno está ca<strong>da</strong> vez mais baixo. O<br />

aluno está ca<strong>da</strong> dia mais chegando à sala de aula<br />

mais despreparado.<br />

O pior de tudo são as conversas paralelas. Eu<br />

acho que quando há conversas paralelas é por-<br />

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que aquilo que se está ensinando não está interessante<br />

para o aluno.<br />

Pode-se dizer que a frustração é um estado<br />

do sujeito que se acha impossibilitado de obter<br />

o objeto de prazer que almeja. Nesse sentido,<br />

frustração é compreendi<strong>da</strong> como “denominando<br />

qualquer impossibili<strong>da</strong>de do sujeito se apropriar<br />

<strong>da</strong>quilo que deseja.” (CHEMAMA, 1995,<br />

p. 88).<br />

Os discursos dos professores são reveladores<br />

do quanto o professor expressa o desejo de<br />

algo que lhe falta: os resultados desfavoráveis<br />

podem ser entendidos como a insatisfação do<br />

professor devido à recusa do aluno em atender<br />

uma exigência libidinal.<br />

É possível afirmar que as falas dos professores<br />

são marca<strong>da</strong>s de representações que<br />

desvelam sentimentos frustrados que implicam<br />

falta, ou seja, falta algo, há um obstáculo que<br />

precisa ser revisto. É possível dizer que a fala<br />

dos professores participantes <strong>da</strong> pesquisa é<br />

permea<strong>da</strong> de frustração porque seus objetivos<br />

disciplinadores e pe<strong>da</strong>gógicos não foram alcançados.<br />

Uma insatisfação bordeja seu trabalho<br />

pe<strong>da</strong>gógico, denuncia a não escuta do<br />

aluno, o professor, por isso, busca encontrar o<br />

objeto perdido...<br />

Pode-se pensar que essas representações<br />

sociais emergiram porque se revelam em ato.<br />

Este ato foi conduzido pelo pesquisador que<br />

no olhar, percepção e escuta, tentou fotografar<br />

algumas imagens, mesmo que tênues, <strong>da</strong><br />

escuta <strong>da</strong> fala do professor em sala de aula,<br />

uma vez que revelaram, ain<strong>da</strong> que inconscientemente,<br />

ser ele mesmo o sujeito <strong>da</strong> falta, sujeito<br />

do desejo.<br />

Em alguns momentos <strong>da</strong> observação e <strong>da</strong><br />

entrevista, pude perceber que havia por parte<br />

dos professores um movimento de transmitir.<br />

Mostraram algo mais do que comunicar a informação,<br />

evidenciaram o desejo de escutar o<br />

aluno, mas é possível pensar que a escuta realiza<strong>da</strong><br />

tenha sido um trabalho feito pelas bor<strong>da</strong>s,<br />

na medi<strong>da</strong> em que não se registrou participação<br />

<strong>da</strong> classe, o que ficou registrado foi uma<br />

voz apenas – a do professor – que tentou anunciar<br />

uma mensagem ain<strong>da</strong> que difusa, mensagem<br />

de falas que não foram (des)cobertas.<br />

Maria de Lourdes S. Ornellas<br />

Diante dos passos construídos, a minha argumentação<br />

é de que a fala e a escuta de professores<br />

em sala de aula vão além <strong>da</strong> transmissão<br />

de conteúdos, mas se revestem de<br />

subjetivi<strong>da</strong>des em que afetos, emoções, crenças,<br />

valores, contradições e representações<br />

permeiam seu discurso. O professor é possuidor<br />

<strong>da</strong> sua cultura e <strong>da</strong> sua história, desenvolve<br />

relação consigo mesmo, com o outro e com o<br />

mundo, e essas dimensões estão (entre) laça<strong>da</strong>s<br />

na sala de aula.<br />

Estes achados, sem dúvi<strong>da</strong>, representam um<br />

avanço no conhecimento sobre a temática, na<br />

medi<strong>da</strong> em que apontam alguns elementos essenciais<br />

<strong>da</strong>s representações <strong>da</strong> fala e escuta<br />

de professores em sala de aula. No entanto, ao<br />

mesmo tempo, tornam ca<strong>da</strong> vez mais precisa a<br />

necessi<strong>da</strong>de de transpor o nível de constatação,<br />

seja do que se passa no cotidiano <strong>da</strong> sala<br />

de aula, seja do que ocorre no imaginário do<br />

professor e do aluno. Faz-se necessário refletir<br />

como e por que essas falas e escutas são construí<strong>da</strong>s<br />

e ressignifica<strong>da</strong>s.<br />

Constituímos, como educadores, nossas próprias<br />

representações e, em razão delas, orientamos<br />

nossas ativi<strong>da</strong>des e as impomos ao aluno,<br />

na suposição de que sabemos o que é melhor<br />

para ele.<br />

Conhecer as representações sociais dos professores<br />

constituiu-se uma boa trilha para aju<strong>da</strong>r<br />

a ajustar com maior visibili<strong>da</strong>de o quanto a<br />

fala e a escuta em sala de aula podem contribuir<br />

na eficácia do projeto pe<strong>da</strong>gógico <strong>da</strong> escola.<br />

Este estudo pode contribuir para a educação<br />

na medi<strong>da</strong> em que permite elaborar um novo<br />

problema: o que o professor acha que o aluno<br />

fala e escuta? Talvez seja uma outra porta que<br />

poderá ser aberta com vistas a <strong>da</strong>r passagem<br />

para outros achados na busca de também <strong>da</strong>r<br />

voz e ouvido ao aluno.<br />

Pode-se também arrematar que os professores<br />

envolvidos neste estudo exercitaram, em<br />

certa medi<strong>da</strong>, a transmissão; os trabalhos de<br />

preenchimento <strong>da</strong> falta foram estruturantes para<br />

o ensaio <strong>da</strong>s representações sociais pela via de<br />

ancorar sua fala e escuta em sala de aula. Esta<br />

pesquisa não esgota aqui e agora, por isso ela<br />

não se conclui de quase todo, mas exige outras<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 211-225, jan./jun., 2006 223


Fala e escuta de professores em sala de aula<br />

etapas processuais num ato em que o movimento<br />

de fala e escuta canaliza a interlocução do suposto<br />

saber.<br />

Como todo investimento libidinal, parece-me<br />

que o debate não está suspenso, há arquivos<br />

incandescentes a serem achados, ajustados,<br />

arremates a serem feitos, uma vez que me constituo<br />

no lugar do sujeito <strong>da</strong> falta. Confesso que<br />

224<br />

REFERÊNCIAS<br />

gostaria de continuar escrevendo sobre essa<br />

temática, uma vez que o escrever exige sempre<br />

recomeçar. Mas, talvez esta escrita não<br />

acabasse, não tivesse medi<strong>da</strong> e, possivelmente,<br />

seria uma simples repetição. Como remédio ou<br />

até como “receita”, prefiro tentar tirar alguns<br />

véus e, quem sabe, troco a repetição por um<br />

ato de criação. E começo de novo...<br />

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Recebido em 22.07.04<br />

Aprovado em 04.04.05<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 211-225, jan./jun., 2006 225


Herivelto Moreira; Guiomara Ribas; Elza Rumiko W. Soavinsky; Raimundo Fortes; Maria do Carmo Wiese; Ethel Fisher<br />

A CONCEPÇÃO DE CONHECIMENTO PROFISSIONAL<br />

E SUA AQUISIÇÃO POR PROFESSORES DO ENSINO MÉDIO<br />

RESUMO<br />

Herivelto Moreira 1<br />

Guiomara Ribas 2<br />

Elza Rumiko W. Soavinsky 3<br />

Raimundo Fortes 4<br />

Maria do Carmo Wiese 5<br />

Ethel Fisher 6<br />

O objetivo do presente artigo foi identificar a concepção de conhecimento<br />

profissional de professores do Ensino Médio de sete escolas públicas do<br />

município de Curitiba. A abor<strong>da</strong>gem metodológica foi a pesquisa qualitativa de<br />

natureza interpretativa. A técnica de coleta de <strong>da</strong>dos foi a entrevista individual<br />

semi-estrutura<strong>da</strong>. Os participantes do estudo foram 30 professores, homens e<br />

mulheres, de diferentes disciplinas, em diferentes estágios na carreira<br />

profissional. A amostra foi intencional. As entrevistas foram grava<strong>da</strong>s e<br />

transcritas literalmente. Os principais resultados mostraram que os professores<br />

participantes deste estudo, na sua grande maioria, concebem o conhecimento<br />

como uma busca constante, a somatória de experiências adquiri<strong>da</strong>s com a<br />

prática do dia-a-dia e o domínio do conteúdo de suas disciplinas.<br />

Palavras-chave: Formação em serviço − Conhecimento do professor −<br />

Repertório de conhecimentos − apropriação do conhecimento.<br />

ABSTRACT<br />

THE CONCEPTION OF PROFESSIONAL KNOWLEDGE AND ITS<br />

ACQUISITION BY HIGH SCHOOL TEACHERS<br />

The objective of the present article was to identify the conception of knowledge<br />

of high school teachers from seven public schools located in Curitiba. The<br />

methodological approach was qualitative of interpretative nature. The technique<br />

used to collect <strong>da</strong>ta was the semi-structured individual interview. The participants<br />

1 Doutor em <strong>Educação</strong>, Professor e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

Tecnológica Federal do Paraná. Endereço para correspondência: Rua Gastão Câmara, 559 – 80730-300 Curitiba/PR.<br />

E-mail:<br />

2 Mestre em Tecnologia e Professora de Pe<strong>da</strong>gogia do UNIEXP.<br />

3 Mestre em Tecnologia e Professora <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de OPET.<br />

4 Mestre em Tecnologia e Professor <strong>da</strong> Rede Pública do Estado do Paraná.<br />

5 Mestran<strong>da</strong> do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia do Centro Federal de <strong>Educação</strong> Tecnológica do Paraná.<br />

6 Mestran<strong>da</strong> do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia do Centro Federal de <strong>Educação</strong> Tecnológica do Paraná.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 227-238, jan./jun., 2006 227


A concepção de conhecimento profissional e sua aquisição por professores do ensino médio<br />

228<br />

of the study were 30 teachers of different subject matter, career stages and<br />

sex. The sample was intentional. The interviews were recorded and transcribed<br />

literally. The main results showed that for the vast majority of the teachers,<br />

knowledge is a constant search, the sum of acquired experiences in every <strong>da</strong>y<br />

practice and the domain of the content of their subject matters.<br />

Keywords: In service training – Teacher’s knowledge – Knowledge base –<br />

Knowledge appropriation<br />

INTRODUÇÃO 7<br />

Uma característica distinta de qualquer profissão<br />

é o corpo de conhecimentos necessários<br />

para praticar essa profissão. Os profissionais<br />

de qualquer área são chamados a prestar serviços<br />

porque possuem um entendimento único<br />

e uma visão crítica em relação a uma situação<br />

que é inacessível ao leigo.<br />

Para o professor, esse corpo de conhecimentos,<br />

também chamado de repertório de conhecimentos,<br />

reflete o alcance e a riqueza do<br />

conhecimento profissional necessário para que<br />

ele exerça o seu trabalho nas escolas.<br />

O repertório de conhecimento que os docentes<br />

precisam ter para exercer a profissão é<br />

muito discutido na literatura de pesquisa na área<br />

<strong>da</strong> formação inicial e <strong>da</strong> formação continua<strong>da</strong><br />

de professores. Essa discussão se concentra<br />

na natureza desse conhecimento e na extensão<br />

pela qual os pesquisadores são capazes de entender<br />

o que os professores sabem.<br />

Vários rótulos têm sido utilizados na literatura<br />

de pesquisa, principalmente na literatura<br />

internacional, sobre o conhecimento do professor,<br />

ca<strong>da</strong> um indicando um aspecto relevante<br />

desse conhecimento. Os rótulos ilustram principalmente<br />

o aspecto que é considerado o mais<br />

importante pelos respectivos autores. Juntos,<br />

esses rótulos dão uma visão <strong>da</strong> maneira pela<br />

qual o conhecimento do professor tem sido estu<strong>da</strong>do<br />

até agora.<br />

Os rótulos mais comuns são: “conhecimento<br />

pessoal”, indicando que esse conhecimento<br />

é único; “a sabedoria <strong>da</strong> prática”, e, em publicações<br />

mais recentes, “conhecimento profissional<br />

artesanal”, referindo-se a um componente<br />

específico do conhecimento que é principalmen-<br />

te o produto <strong>da</strong> experiência prática do professor;<br />

“conhecimento orientado pela prática”, indicando<br />

que esse conhecimento é para o uso<br />

imediato na prática do professor; “conhecimento<br />

relacionado com o conteúdo e o contexto”, conhecimento<br />

que é em grande extensão tácito e<br />

o conhecimento que é baseado na reflexão sobre<br />

as experiências.<br />

No Brasil, as pesquisas nessa área surgem<br />

a partir de 1990, com a marca <strong>da</strong> produção intelectual<br />

internacional (TARDIF, NÓVOA,<br />

GAUTHIER, SHULMAN, GOODSON, entre<br />

outros) e influenciaram a busca de novos caminhos<br />

na pesquisa sobre formação inicial e continua<strong>da</strong><br />

de professores.<br />

Apesar de to<strong>da</strong> a contribuição <strong>da</strong> literatura<br />

de pesquisa, esse tema é ain<strong>da</strong> carente de estudos<br />

empíricos, pois faltam estudos que nos<br />

permitam entender melhor como os professores<br />

concebem e adquirem os conhecimentos<br />

necessários para desenvolver a prática pe<strong>da</strong>gógica.<br />

Nesse sentido, o objetivo deste artigo é<br />

identificar a concepção de conhecimento de<br />

professores do Ensino Médio de sete escolas<br />

públicas do município de Curitiba.<br />

REVISÃO DA LITERATURA<br />

Há certa tendência observa<strong>da</strong> na literatura<br />

internacional (GAUTHIER et, al, 1998; NÓ-<br />

VOA, 1992; PERRENOUD, 2001; 2002; TAR-<br />

DIF, 2000; SHULMAN, 1986; ZEICHNER,<br />

1993; 1998) e na literatura nacional (FIOREN-<br />

7 O presente estudo é resultado do Projeto de Pesquisa “A<br />

apropriação e o uso do conhecimento pelo professor”,<br />

apoiado pelo CNPq, processo 30530/2002-9.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 227-238, jan./jun., 2006


Herivelto Moreira; Guiomara Ribas; Elza Rumiko W. Soavinsky; Raimundo Fortes; Maria do Carmo Wiese; Ethel Fisher<br />

TINI et al., 1998; LÜDKE, 1996; 2001; PI-<br />

MENTA, 1996; 1999; SILVA, 1997; THERRI-<br />

EN, 1995, dentre outros) de redirecionar os<br />

estudos sobre a prática e os conhecimentos profissionais<br />

dos professores que até pouco tempo<br />

objetivava a capacitação destes, por intermédio<br />

<strong>da</strong> transmissão do conhecimento de uma<br />

maneira prescritiva, a fim de que aprendessem<br />

a atuar eficazmente na sala de aula, para uma<br />

abor<strong>da</strong>gem de analisar a prática que esse professor<br />

vem desenvolvendo, enfatizando a temática<br />

do conhecimento docente.<br />

Segundo Lüdke (2001), direta ou indiretamente<br />

esse tema tem sido tratado por autores<br />

conhecidos no Brasil, como Perrenoud, Antônio<br />

Nóvoa, Kenneth Zeichner e Donald Schön<br />

ain<strong>da</strong> que, acompanhando análises volta<strong>da</strong>s para<br />

outras questões específicas, como as competências<br />

ou a identi<strong>da</strong>de do professor (PERRE-<br />

NOUD, 1993; NÓVOA, 1992; 1995), o<br />

professor-reflexivo (SCHÖN, 1995) ou, ain<strong>da</strong>,<br />

a questão do professor-pesquisador (ZEICH-<br />

NER, 1993; 1998).<br />

Segundo Nunes (2001), os estudos sobre o<br />

conhecimento e a formação dos professores não<br />

são inéditos no Brasil, já que, de certa forma,<br />

vinham sendo desenvolvidos por meio <strong>da</strong> discussão<br />

de temas como a prática docente, o processo<br />

ensino-aprendizagem, a relação teoriaprática<br />

no cotidiano escolar, etc., num contexto<br />

diferenciado, onde a escola era ti<strong>da</strong> como local<br />

privilegiado para a transmissão do conhecimento<br />

pelo professor, que, supostamente, detinha<br />

todo o conhecimento a ser repassado ao aluno.<br />

Nunes (2001) apresenta uma análise de<br />

como e quando a questão dos saberes docentes<br />

aparece nas pesquisas brasileiras sobre formação<br />

de professores.<br />

Da valorização quase exclusiva do conhecimento<br />

(saberes específicos) que o professor tinha<br />

sobre a sua disciplina, característica <strong>da</strong><br />

déca<strong>da</strong> de 1960, passa-se, na déca<strong>da</strong> de 1970,<br />

à valorização dos aspectos didático-metodológicos<br />

relacionados às tecnologias de ensino,<br />

passando para um segundo plano o domínio dos<br />

conteúdos. Nos anos de 1980, o discurso educacional<br />

é dominado pela dimensão sócio-política<br />

e ideológica <strong>da</strong> prática pe<strong>da</strong>gógica. Já os<br />

anos de 1990 foram marcados pela busca de<br />

novos enfoques e paradigmas para a compreensão<br />

<strong>da</strong> prática docente e dos saberes dos professores.<br />

Essa discussão foi introduzi<strong>da</strong> em 1991,<br />

por um artigo de M. Tardif, C. Lessard e L.<br />

Lahaye, publicado na <strong>Revista</strong> Teoria e <strong>Educação</strong>.<br />

Na literatura nacional, é possível destacar<br />

vários estudos nessa área, os quais passaremos<br />

a apresentar em segui<strong>da</strong>.<br />

O estudo conduzido por Pimenta (1996) com<br />

alunos de licenciatura teve como objetivo repensar<br />

a formação inicial e continua<strong>da</strong> a partir<br />

<strong>da</strong> análise <strong>da</strong>s práticas pe<strong>da</strong>gógicas. A autora<br />

identificou três tipos de saberes <strong>da</strong> docência: a)<br />

o saber <strong>da</strong> experiência, b) o saber do conhecimento<br />

e c) os saberes pe<strong>da</strong>gógicos. Ela sugere<br />

que a fragmentação entre esses três tipos de<br />

saberes seja supera<strong>da</strong>, considerando a prática<br />

social como objetivo central para possibilitar<br />

assim uma re-significação dos saberes na formação<br />

dos professores.<br />

Partindo <strong>da</strong> relação teoria/prática, Fiorentini<br />

et al. (1998) procurou identificar e caracterizar<br />

os saberes docentes e como esses saberes<br />

poderiam ser apropriados/produzidos pelos professores<br />

por meio de uma prática reflexiva e<br />

investigativa. Sua principal conclusão é que a<br />

articulação <strong>da</strong> teoria com a prática poderá contribuir<br />

na formação do professor/pesquisador de<br />

forma contínua e coletiva, utilizando a prática<br />

pe<strong>da</strong>gógica como instância de problematização,<br />

significação e exploração dos conteúdos de formação<br />

teórica.<br />

Guarnieri (1997) desenvolveu um estudo<br />

sobre a atuação de professores iniciantes, a<br />

partir <strong>da</strong> idéia de que a profissão vai sendo construí<strong>da</strong><br />

à medi<strong>da</strong> que o professor articula o conhecimento<br />

teórico-acadêmico, a cultura escolar<br />

e a reflexão sobre a prática.<br />

Ain<strong>da</strong>, a respeito do assunto, Silva (1997)<br />

conduziu uma pesquisa com professores por<br />

meio de entrevistas que revelou a existência de<br />

um conhecimento profissional que vai sendo<br />

construído ao longo <strong>da</strong> carreira e Therrien<br />

(1995) enfatizou que nos estudos sobre a formação<br />

de professores ain<strong>da</strong> persiste uma dissociação<br />

entre a formação e a prática cotidiana,<br />

não enfatizando a questão dos saberes que são<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 227-238, jan./jun., 2006 229


A concepção de conhecimento profissional e sua aquisição por professores do ensino médio<br />

mobilizados na prática, ou seja, os saberes <strong>da</strong><br />

experiência. Ele considerou que a plurali<strong>da</strong>de<br />

de saberes (curriculares, disciplinares, e de formação<br />

profissional) que envolve os saberes <strong>da</strong><br />

experiência é ti<strong>da</strong> como central na competência<br />

profissional e é oriun<strong>da</strong> do trabalho cotidiano<br />

do professor.<br />

Borges (1996) conduziu um estudo com professores<br />

de <strong>Educação</strong> Física para analisar como<br />

eles construíam os seus saberes docentes. Concentrou<br />

a investigação na trajetória profissional<br />

de dois professores a partir <strong>da</strong> análise de sua<br />

formação e prática pe<strong>da</strong>gógica. Concluiu que<br />

tanto as experiências esportivas, acadêmicas e<br />

profissionais contribuem na gênese dos saberes<br />

que os professores de <strong>Educação</strong> Física<br />

mobilizam no cotidiano escolar.<br />

Caldeira (1995) buscou investigar os saberes<br />

implícitos construídos e apropriados pelo<br />

professor em sua prática durante sua trajetória<br />

profissional e pessoal. Partindo <strong>da</strong> suposição de<br />

que o docente se apropria e produz saberes na<br />

ativi<strong>da</strong>de escolar, procurou descrever e analisar<br />

a prática docente de uma professora do<br />

Ensino Fun<strong>da</strong>mental e a reconstrução do processo<br />

de constituição do seu saber. A autora,<br />

basea<strong>da</strong> no estudo de Tardif et al. (1991), considera<br />

os diversos tipos de saberes (<strong>da</strong>s disciplinas,<br />

curriculares, profissionais e <strong>da</strong> experiência)<br />

como integrantes <strong>da</strong> prática docente,<br />

sendo que a diferença estaria na relação do<br />

professor com ca<strong>da</strong> um deles.<br />

Todos esses estudos procuram, de certa<br />

maneira, enfatizar o conhecimento <strong>da</strong> experiência<br />

do professor, mas usar o rótulo “conhecimento<br />

do professor” ou “conhecimento prático<br />

do professor” ou “conhecimento <strong>da</strong> experiência”<br />

como um conceito abrangente para as cognições<br />

do professor significa incluir formas<br />

tácitas de conhecimento.<br />

Muito embora o conhecimento <strong>da</strong> experiência<br />

esteja recebendo mais e mais atenção na<br />

literatura recente e alguns autores dão boas vin<strong>da</strong>s<br />

a essa progressiva atenção como uma possível<br />

resposta a dúvi<strong>da</strong>s sobre o profissionalismo<br />

do professor, é muito importante basear os julgamentos<br />

sobre os estudos do conhecimento do<br />

professor no exame preciso do que é o estudo<br />

230<br />

e não nos rótulos usados. Isso não altera o fato<br />

de que parece ser muito difícil compreender os<br />

componentes tácitos e intuitivos <strong>da</strong>s cognições<br />

do professor na pesquisa sobre o seu conhecimento,<br />

o que torna as iniciativas de desenvolvimento<br />

de teorias e de pesquisas nessa área<br />

muito importante.<br />

O conhecimento do professor, derivado <strong>da</strong><br />

experiência pessoal significa que o conhecimento<br />

não é alguma coisa objetiva e independente<br />

para ser aprendido e transmitido, mas ao contrário,<br />

é a soma total <strong>da</strong>s suas experiências.<br />

Eraut (1994) enfatizou que é necessário<br />

muito mais pesquisas nessa área para entender<br />

melhor o processo pelo qual os professores adquirem<br />

e integram os conhecimentos de diferentes<br />

fontes no modelo conceitual que orienta<br />

suas ações na prática. E, é claro, os professores<br />

podem diferir enormemente no grau pelo<br />

qual utilizam o conhecimento teórico em seu<br />

conhecimento prático.<br />

No entanto, ao investigar o conhecimento<br />

do professor, o principal foco de atenção deverá<br />

ser na complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s cognições,<br />

nas maneiras como isso se desenvolve<br />

e na maneira como isso interage com o comportamento<br />

do professor na sala de aula. O<br />

conhecimento e as crenças são vistos como inseparáveis,<br />

embora as crenças sejam vistas, de<br />

modo geral, como se referindo a valores pessoais,<br />

atitudes e ideologias e o conhecimento às<br />

proposições mais factuais do professor (VER-<br />

LOOP; VAN DRIEL; MEIJER, 2001).<br />

É importante observar que o repertório de<br />

conhecimentos que o professor detém afeta<br />

ca<strong>da</strong> aspecto do ato de ensinar. Ele afeta a relação<br />

professor/aluno, a interpretação do professor<br />

<strong>da</strong> sua disciplina e a sua importância na<br />

vi<strong>da</strong> dos alunos; como os professores trabalham<br />

com os livros textos recomen<strong>da</strong>dos; o planejamento<br />

curricular, a avaliação dos alunos e assim<br />

por diante.<br />

Quando se fala de “conhecimento do professor”,<br />

o conceito de “conhecimento” deve<br />

ser usado como um conceito abrangente e inclusivo,<br />

resumindo uma ampla varie<strong>da</strong>de de<br />

cognições, desde opiniões conscientes e bem<br />

equilibra<strong>da</strong>s a intuições inconscientes e irre-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 227-238, jan./jun., 2006


Herivelto Moreira; Guiomara Ribas; Elza Rumiko W. Soavinsky; Raimundo Fortes; Maria do Carmo Wiese; Ethel Fisher<br />

fleti<strong>da</strong>s. Isso está relacionado ao fato de que,<br />

na mente do professor, os componentes do<br />

conhecimento, as crenças, as concepções e<br />

as intuições estão inextricavelmente entrelaçados.<br />

Essas considerações sugerem um aprofun<strong>da</strong>mento<br />

nos estudos sobre o professor reconhecido<br />

como pessoa única e como aprendiz<br />

que possuí e desenvolve um tipo especial de<br />

conhecimento. Esse conhecimento é significantemente<br />

influenciado e determinado pelas experiências<br />

em vários contextos. Por outro lado,<br />

a maneira como o professor age em uma determina<strong>da</strong><br />

situação e em um contexto específico,<br />

também pode determinar e influenciar esses<br />

contextos.<br />

O PERCURSO METODOLÓGICO<br />

A metodologia utiliza<strong>da</strong> foi a pesquisa qualitativa<br />

de natureza interpretativa. Essa abor<strong>da</strong>gem<br />

foi utiliza<strong>da</strong> para melhor definir o problema<br />

tendo como base a reali<strong>da</strong>de dos docentes, pois<br />

segundo Moreira (2002), na pesquisa qualitativa<br />

o foco <strong>da</strong> investigação é na essência do fenômeno<br />

e a visão de mundo é função <strong>da</strong><br />

percepção do indivíduo. O objetivo é fazer com<br />

que as pessoas que estão participando do estudo<br />

falem por si próprias, para proporcionar suas<br />

perspectivas em palavras e em ações. Portanto,<br />

a pesquisa qualitativa envolve uma abor<strong>da</strong>gem<br />

interpretativa e naturalista do que está<br />

sendo estu<strong>da</strong>do.<br />

Os participantes do estudo foram 30 professores<br />

do Ensino Médio de sete escolas públicas<br />

de Curitiba. A amostra foi intencional.<br />

Isso significa que a amostra foi seleciona<strong>da</strong> levando<br />

em consideração aquelas pessoas que<br />

podiam contribuir mais para o estudo. Nesse<br />

tipo de amostragem, como sugerem Bog<strong>da</strong>n e<br />

Biklen (1994, p.96) o número de participantes<br />

do estudo não é definido a priori, pois “as entrevistas<br />

caminham até a altura em que o estudo<br />

atinge aquilo que se designa de saturação de<br />

<strong>da</strong>dos, ou seja, o ponto <strong>da</strong> coleta de <strong>da</strong>dos a<br />

partir do qual a aquisição <strong>da</strong>s informações se<br />

torna redun<strong>da</strong>nte”.<br />

A amostra constituiu-se de 10 professores e<br />

20 professoras com média de i<strong>da</strong>de de 44 anos.<br />

Dos 30 participantes, cinco professores estavam<br />

no estágio inicial na carreira (cinco anos<br />

de experiência ou menos), quatorze no estágio<br />

intermediário (seis a doze anos de experiência)<br />

e onze no estágio avançado (treze anos de experiência<br />

ou mais). 21 professores possuíam<br />

pós-graduação, sendo 17 em nível de especialização<br />

e quatro em nível de mestrado. Ministravam,<br />

em média, 36 aulas semanais e possuíam,<br />

em média, 22,9 anos de magistério.<br />

A técnica de coleta de <strong>da</strong>dos foi a entrevista<br />

individual semi-estrutura<strong>da</strong>. A entrevista<br />

semi-estrutura<strong>da</strong> parte de um protocolo que inclui<br />

um número de temas a serem discutidos na<br />

entrevista, mas que não são introduzidos <strong>da</strong><br />

mesma maneira, na mesma ordem, nem se espera<br />

que os entrevistados sejam limitados nas<br />

suas respostas e nem que respon<strong>da</strong>m tudo <strong>da</strong><br />

mesma forma. O entrevistador é livre para deixar<br />

os entrevistados desenvolverem as questões<br />

<strong>da</strong> maneira como eles quiserem. Ao usar<br />

esse tipo de entrevista, é possível exercer certo<br />

tipo de controle sobre a conversação, embora<br />

se permita ao entrevistado alguma liber<strong>da</strong>de. O<br />

protocolo de entrevista foi elaborado a partir <strong>da</strong><br />

experiência dos pesquisadores e <strong>da</strong> literatura<br />

na área.<br />

As entrevistas foram conduzi<strong>da</strong>s no próprio<br />

local de trabalho dos professores, sendo grava<strong>da</strong>s<br />

e transcritas literalmente.<br />

ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS<br />

DADOS<br />

A análise dos <strong>da</strong>dos foi indutiva, isto é, as<br />

abstrações foram sendo construí<strong>da</strong>s à medi<strong>da</strong><br />

que os <strong>da</strong>dos particulares foram coletados e<br />

foram se agrupando. Os <strong>da</strong>dos foram segmentados,<br />

portanto, divididos em uni<strong>da</strong>des de significados<br />

relevantes, embora tenha sido manti<strong>da</strong><br />

a conexão com o todo. A análise iniciou com a<br />

leitura de todos os <strong>da</strong>dos de modo a proporcionar<br />

a familiarização dos pesquisadores com os<br />

mesmos. Os segmentos de <strong>da</strong>dos foram categorizados,<br />

de acordo com um sistema organi-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 227-238, jan./jun., 2006 231


A concepção de conhecimento profissional e sua aquisição por professores do ensino médio<br />

zacional que deriva predominantemente dos<br />

próprios <strong>da</strong>dos.<br />

O objetivo desse tipo de análise foi tentar<br />

discernir similari<strong>da</strong>des conceituais, melhorar o<br />

poder discriminativo <strong>da</strong>s categorias e descobrir<br />

padrões. A seguir, apresentamos as categorias<br />

de análise.<br />

A concepção de conhecimento<br />

Quando perguntamos aos professores qual<br />

a concepção que os mesmos tinham sobre o<br />

conhecimento, várias opiniões surgiram, variando<br />

de um entendimento do conhecimento<br />

como uma busca constante, como uma somatória<br />

de experiências adquiri<strong>da</strong> na prática do diaa-dia,<br />

até o conhecimento como domínio do<br />

conteúdo.<br />

Informação e conhecimento são, ca<strong>da</strong> vez<br />

mais, peças-chave para o sucesso do professor.<br />

As duas palavras parecem sinônimas, mas<br />

não são. Definir e diferenciá-las não é uma tarefa<br />

fácil. Alguns professores participantes desse<br />

estudo apresentaram essa dificul<strong>da</strong>de, ao<br />

opinar sobre o que o termo conhecimento significava<br />

para eles. Vejamos o que o professor<br />

Ângelo pensa a esse respeito “Bom, conhecimento<br />

já no que você nasce está recebendo informações<br />

e tudo o que você carrega dentro de<br />

você é o conhecimento. Pra mim, isto é idéia<br />

de conhecimento”. (Professor de <strong>Educação</strong><br />

Física, dez anos de Magistério).<br />

A informação é o conjunto de <strong>da</strong>dos organizados<br />

em padrões cheios de significado que<br />

podem ser possuídos e também transferidos de<br />

uma pessoa a outra. A informação é exterior à<br />

pessoa e de ordem social.<br />

Já o conhecimento refere-se à capaci<strong>da</strong>de<br />

de agir, fazer ou realizar. É normalmente construído<br />

por professores e/ou aprendido em livros.<br />

É integrado à pessoa e de ordem pessoal. Dos<br />

30 professores participantes desse estudo, apenas<br />

três professores expressam essa noção de<br />

maneira clara. Vejamos as suas opiniões:<br />

232<br />

Conhecimento pra mim a pessoa só tem quando<br />

ela toma posse e põe em prática. Só o aprender<br />

por aprender, ouvir, escrever e retornar numa<br />

prova pra mim não é conhecimento. Pra mim é no<br />

momento que ela toma posse e usa na vi<strong>da</strong> (...)<br />

eu acho que conhecimento é quando você incorpora<br />

o aprendizado. (Professora de Português,<br />

30 anos de Magistério).<br />

Conhecer alguma coisa pra mim é interiorizar, é<br />

fazer parte de mim aquilo. Aquilo tem que ser<br />

natural na minha cabeça. Quando eu digo eu sei<br />

alguma coisa, aquilo tem que fluir naturalmente.<br />

Não é alguma coisa que eu tenho que forçar para<br />

demonstrar. Quando eu sei, quando eu conheço<br />

aquilo eu já dou a resposta na ponta <strong>da</strong> língua.<br />

Então pra mim é algo já interiorizado. Se eu não<br />

interiorizei, eu não conheço. (Professor de Física,<br />

quinze anos de Magistério).<br />

Eu acho que é tudo, pois é o papel <strong>da</strong> escola,<br />

aquisição do conhecimento, ou seja, a construção<br />

do conhecimento. O conhecimento para mim<br />

é a capaci<strong>da</strong>de de trabalhar com a informação de<br />

aplicar a informação na leitura de mundo, no caso<br />

<strong>da</strong> história, a informação passa<strong>da</strong> na história tem<br />

qual função? Que o aluno consiga fazer uma leitura<br />

do mundo, consiga interagir, consiga pensar<br />

criticamente, consiga estabelecer a relação passado<br />

e presente e consiga se situar a partir dessas<br />

informações, porque é comum as pessoas<br />

só terem informações, mas por exemplo, no caso<br />

<strong>da</strong> história, tem uma série de informações sobre<br />

o contexto histórico do problema <strong>da</strong> terra, do<br />

problema <strong>da</strong> questão do negro e do menor abandonado,<br />

mas tem visões do senso-comum e visões<br />

racistas. Quer dizer a pessoa não conseguiu<br />

transpor a informação em conhecimento. (Professora<br />

de História, 18 anos de Magistério).<br />

Vários entrevistados afirmaram que o conhecimento<br />

é um somatório de experiências<br />

adquiri<strong>da</strong>s ao longo do tempo e, sendo assim,<br />

“devem ler muitos livros para memorizar”. Talvez<br />

aí resi<strong>da</strong> um equívoco pe<strong>da</strong>gógico, pois a<br />

memorização deve ser compreendi<strong>da</strong> como um<br />

subproduto de um trabalho de construção intelectual.<br />

A opinião abaixo ilustra muito bem essa<br />

questão:<br />

Conhecimento é a somatória de detalhes que leva<br />

a uma conclusão final. Por mais que você tenha<br />

uma certa quanti<strong>da</strong>de de idéia, de assuntos, sempre<br />

é uma seqüência. A gente chega à conclusão<br />

que essa somatória é infinita. Jamais a gente<br />

consegue chegar a uma conclusão final. A gente<br />

tem uma conclusão parcial, mas o número ob-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 227-238, jan./jun., 2006


Herivelto Moreira; Guiomara Ribas; Elza Rumiko W. Soavinsky; Raimundo Fortes; Maria do Carmo Wiese; Ethel Fisher<br />

jetivo final, o resultado final, dificilmente a gente<br />

consegue chegar... (Professor de Física, dez anos<br />

de Magistério).<br />

Outra concepção de conhecimento que ficou<br />

muito clara na fala dos professores participantes<br />

desse estudo é a do conhecimento como<br />

uma busca constante, principalmente do conteúdo<br />

<strong>da</strong>s respectivas disciplinas que ministram.<br />

Dos 30 professores entrevistados, onze concebem<br />

o conhecimento como uma busca constante.<br />

Observemos as opiniões mais representativas:<br />

O conhecimento é uma busca que a gente está<br />

sempre fazendo. Conhecimento para mim é uma<br />

caminha<strong>da</strong>, mas prazerosa. (Professora de Geografia,<br />

doze anos de Magistério).<br />

Eu acho que o conhecimento é você ir atrás, você<br />

se aprofun<strong>da</strong>r naquilo que você faz e nunca ficar<br />

parado. Sempre se atualizar, sempre estar por<br />

dentro do que está acontecendo e eu acho que o<br />

conhecimento você vai adquirindo com o tempo<br />

Eu acho que é por aí, você estar sempre em busca,<br />

você nunca tem o conhecimento completo<br />

de tudo, você tem que ir em busca dele ca<strong>da</strong> vez<br />

mais . (Professora de Português, três anos de<br />

Magistério).<br />

Essas três concepções de conhecimento<br />

foram as concepções que mais se destacaram<br />

na opinião dos professores participantes desse<br />

estudo. A próxima categoria trata de uma questão<br />

correlata, pois diz respeito aos conhecimentos<br />

que os professores consideram mais<br />

relevantes para o exercício do ato de ensinar.<br />

O conhecimento do conteúdo e o<br />

relacionamento com o aluno<br />

Essa questão teve como objetivo identificar<br />

uma questão importante que retrata muito bem<br />

a noção que os professores têm sobre os conhecimentos<br />

exigidos para exercer o Magistério<br />

de maneira competente. Foi possível<br />

perceber que a grande maioria dos participantes<br />

desse estudo considera o conhecimento do<br />

conteúdo e o conhecimento pe<strong>da</strong>gógico, isto é,<br />

como repassar ao aluno este conhecimento específico<br />

de suas disciplinas como os conheci-<br />

mentos mais relevantes. Vejamos as opiniões<br />

que expressam melhor essa visão:<br />

O conhecimento dos conteúdos para passar para<br />

os alunos e as dinâmicas para facilitar o conhecimento<br />

e o aprendizado dos alunos. (Professora<br />

de Biologia, quinze anos de Magistério).<br />

Conhecimento mais relevante? (pausa). Tanto é o<br />

do conteúdo <strong>da</strong> história, não dá para colocar em<br />

termos de mais relevante, mas eu acho que o conteúdo<br />

é fun<strong>da</strong>mental, mas é também o conhecimento<br />

<strong>da</strong>s relações sociais <strong>da</strong> escola, <strong>da</strong> relação<br />

professor-aluno, <strong>da</strong> experiência adquiri<strong>da</strong> no diaa-dia<br />

e a compreensão <strong>da</strong> história <strong>da</strong> educação. O<br />

professor que não tem a compreensão <strong>da</strong> história<br />

<strong>da</strong> educação e como se constroem as relações<br />

sociais ele acaba não conseguindo fazer a transposição<br />

metodológica, porque o trabalho metodológico<br />

essa transposição do conhecimento ela<br />

é resultado <strong>da</strong> interação que se desenvolve entre<br />

conhecimento teórico e a prática pe<strong>da</strong>gógica e<br />

uma prática que vai se construir. (Professora e<br />

História, 18 anos de magistério).<br />

É importante enfatizar que, embora ca<strong>da</strong> um<br />

a sua maneira, os professores têm uma boa<br />

noção de que para exercer o Magistério é preciso<br />

muito mais do que simplesmente o conhecimento<br />

científico. Para eles, é preciso refletir<br />

a respeito <strong>da</strong>s questões <strong>da</strong> escola e <strong>da</strong> educação<br />

de uma maneira mais ampla. Entendem,<br />

ain<strong>da</strong>, que há outros conhecimentos que os professores<br />

têm que pensar, discutir e aprofun<strong>da</strong>r.<br />

Isso, em parte, corrobora a opinião de vários<br />

autores já citados na revisão <strong>da</strong> literatura.<br />

No entanto, alguns professores foram categóricos<br />

ao afirmar que o mais importante para<br />

eles era o conteúdo específico <strong>da</strong> disciplina, pois<br />

acreditam que sem esse conhecimento fica quase<br />

impossível adentrar a sala de aula. A seguir,<br />

opiniões de professores que expressam bem<br />

essa concepção:<br />

O mais importante para mim é o conhecimento<br />

específico. Na ver<strong>da</strong>de, o conteúdo. (Professor<br />

de Matemática, cinco anos de Magistério).<br />

Eu acho que é fun<strong>da</strong>mental o domínio do conteúdo<br />

que tem que ser <strong>da</strong>do. Se você não tem<br />

esse domínio, irá para a sala de aula inseguro.<br />

Conhecer também a história <strong>da</strong> Ciência é fun<strong>da</strong>mental.<br />

(Professor de Física, oito anos e magistério).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 227-238, jan./jun., 2006 233


A concepção de conhecimento profissional e sua aquisição por professores do ensino médio<br />

Os professores que têm uma opinião mais<br />

ampla sobre os tipos de conhecimento são professores<br />

com mais tempo de dedicação ao<br />

Magistério, ao passo que os professores que<br />

têm uma visão um pouco mais restrita sobre o<br />

conhecimento são professores em estágio inicial<br />

e intermediário <strong>da</strong> carreira que, possivelmente,<br />

ain<strong>da</strong> estão tentando conseguir li<strong>da</strong>r com<br />

questões relativas ao domínio <strong>da</strong> turma e aspectos<br />

inerentes à administração <strong>da</strong> sala de aula<br />

e o repasse puro e simples do conteúdo.<br />

Um outro aspecto muito interessante a ser<br />

observado é a questão de como os professores<br />

participantes deste estudo adquirem o conhecimento.<br />

A aquisição do conhecimento<br />

Quando perguntamos aos professores como<br />

eles adquirem o conhecimento para exercer a<br />

profissão docente, as respostas variaram: por<br />

meio de cursos por iniciativa própria e por meio<br />

de cursos ofertados pela Secretaria de <strong>Educação</strong>,<br />

leitura de livros na área específica e na<br />

experiência do dia-a-dia.<br />

234<br />

Tenho feito cursos. O curso de especialização<br />

que eu fiz foi muito bom. Tenho lido muitos livros,<br />

tenho visto outras reali<strong>da</strong>des. Eu trabalhei<br />

um tempo na Prefeitura de Curitiba. Vai <strong>da</strong> busca<br />

e do objetivo. (Professora de Português/Inglês,<br />

oito anos de Magistério).<br />

Eventualmente. Eu leio revistas como a Nova<br />

Escola, jornais, etc. Cursos eu faço eventualmente,<br />

quando a Secretaria nos oferece um curso,<br />

principalmente quando está dentro do<br />

nosso horário de trabalho. É interessante porque<br />

a gente considera esses cursos como trabalho,<br />

então é muito bom. Mesmo assim, por<br />

exemplo, esse ano eu fiz um curso de informática<br />

(internet e PowerPoint) para entender<br />

como eu posso preparar as minhas aulas com<br />

uma linguagem mais interessante para os alunos<br />

e foi super divertido, foi assim dois meses<br />

de aula e foi no meu horário de trabalho, duas<br />

manhãs e foi aqui na escola, pois temos um<br />

excelente laboratório e temos a Internet à vontade.<br />

Então, duas manhãs eu não trabalhava e<br />

ficava no laboratório. (Professora de Biologia,<br />

doze anos de Magistério).<br />

Eu fui atrás. O próprio governo ofertou vários<br />

cursos de “Tapeação” e não “Capacitação”. O<br />

governo seleciona profissionais “teóricos” para<br />

ministrar as aulas a professores “práticos” que<br />

querem aperfeiçoar suas práticas em sala de aula.<br />

Dois cursos que eu participei não corresponderam<br />

as minhas expectativas e frustração. A maioria<br />

dos profissionais falou dos vários fatores que<br />

causam a surdez, tipos de surdez, aparelhos, exames<br />

e outros. Mas não conhecem a cultura do<br />

surdo, e as limitações educacionais dos mesmos.<br />

Então resolvi procurar um curso que me proporcionasse<br />

resultados. Concluí o curso de <strong>Educação</strong><br />

Especial e faço LIBRAS. Língua dos Sinais. Infelizmente<br />

a secretaria de educação não pensa em<br />

suprir as necessi<strong>da</strong>des educacionais, limitam despesa<br />

com xerox, laboratório práticos, recursos didáticos<br />

e mescla a capacitação profissional,<br />

teorizando os problemas e as soluções. Essa atitude<br />

é automaticamente passa<strong>da</strong> as escolas que<br />

pouco conseguem fazer, sem apoio. (Professora<br />

de História, dez anos de Magistério).<br />

Para aprofun<strong>da</strong>r um pouco mais essa questão,<br />

perguntamos aos professores de onde vinha<br />

o interesse em buscar o conhecimento. Todos os<br />

professores participantes do estudo responderam<br />

que o interesse era impulsionado pela própria<br />

vontade. A seguir, apresentamos as opiniões mais<br />

representativas dessa questão:<br />

Vem <strong>da</strong> minha vontade. O aluno me desafia muito<br />

pouco na sala de aula. Eu vou buscar mais conhecimentos<br />

para poder contextualizar mais as aulas<br />

e trazer temas que agradem mais a i<strong>da</strong>de deles e<br />

neste sentido, a química é privilegia<strong>da</strong> (Professora<br />

de Química, cinco anos de Magistério).<br />

Da minha vontade. Eu não consigo me imaginar<br />

sem buscar o conhecimento. Por parte do aluno<br />

só se for indiretamente. Quando eu percebo que<br />

uma maneira de agir em sala faz com que o aluno<br />

tenha uma produtivi<strong>da</strong>de melhor ai eu sinto estímulo<br />

e vou buscar mais para aprofun<strong>da</strong>r os meus<br />

conhecimentos, mas não é o aluno conscientemente<br />

que me estimula a fazer isso. (Professor<br />

de Física, oito anos de Magistério).<br />

Acho que depende <strong>da</strong> gente mesmo. Veja bem,<br />

os alunos estão ca<strong>da</strong> vez mais acomo<strong>da</strong>dos, não<br />

procuram se esforçar e infelizmente é a grande<br />

maioria. Então o professor deve correr atrás, pesquisar<br />

e se municiar de materiais para <strong>da</strong>r conta<br />

do conteúdo, tentar mu<strong>da</strong>r seu jeito de <strong>da</strong>r aula.<br />

Não é fácil porque como eu disse, a gente quase<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 227-238, jan./jun., 2006


Herivelto Moreira; Guiomara Ribas; Elza Rumiko W. Soavinsky; Raimundo Fortes; Maria do Carmo Wiese; Ethel Fisher<br />

não tem tempo, mas a gente precisa <strong>da</strong>r um jeito<br />

para buscar novos conhecimentos (Professor de<br />

História, 20 anos de Magistério).<br />

A aquisição do conhecimento pelo professor<br />

ain<strong>da</strong> está centra<strong>da</strong> em cursos sazonais ,de<br />

acordo com as necessi<strong>da</strong>des individuais em<br />

determinados momentos <strong>da</strong> carreira. O modelo<br />

de formação continua<strong>da</strong> de professores ain<strong>da</strong><br />

está calcado no interesse e na necessi<strong>da</strong>de,<br />

particularmente está centrado na oferta <strong>da</strong> secretaria<br />

de educação.<br />

A sustentação <strong>da</strong> prática pe<strong>da</strong>gógica<br />

Quando perguntamos aos professores participantes<br />

do estudo o que sustentava a sua prática<br />

pe<strong>da</strong>gógica na sala de aula, 17 dos 30<br />

professores responderam que era uma combinação<br />

entre um bom relacionamento com os alunos<br />

e o domínio do conteúdo. A esse respeito,<br />

vejamos o que nos disse um professor (Professor<br />

de Química, dez anos de Magistério) “São os<br />

conhecimentos adquiridos durante a formação<br />

no curso superior”. O que se segue são as opiniões<br />

mais representativas dessa questão:<br />

Eu até já comentei que tenho uma boa compreensão<br />

<strong>da</strong> relação professor/aluno. O que sustenta<br />

a minha prática é a minha boa relação com<br />

os alunos e também acho que tenho uma boa<br />

dinâmica na sala de aula e consigo fazer com que<br />

os alunos que têm mais dificul<strong>da</strong>des compreen<strong>da</strong>m<br />

a matéria. Eu costumo fazer atendimento<br />

individual. A minha prática é essa. (Professor de<br />

Matemática, cinco anos de magistério).<br />

É claro que o conteúdo é o mais importante, mas<br />

para você poder trabalhar o conteúdo você tem<br />

que ter amizade, senão eles (referindo-se aos alunos)<br />

te respondem, você não consegue trabalhar<br />

e passa a manhã inteira chamando a atenção<br />

dos alunos e li<strong>da</strong>ndo com a indisciplina, pois a<br />

indisciplina está gravíssima (Professora de Português/Inglês,oito<br />

anos de Magistério).<br />

O domínio do conteúdo é uma questão realmente<br />

importante, pois muitos professores se<br />

sentem desafiados pelos alunos quando não têm<br />

esse domínio e acreditam que poderiam ser<br />

desprestigiados por não saberem resolver uma<br />

questão ou simplesmente não ter uma resposta<br />

imediata para o aluno.<br />

Eu acho que o professor para entrar em uma sala<br />

de aula e passar um exercício, principalmente em<br />

matemática. Eu não estou falando de outras disciplinas.<br />

Se eu passar um exercício matemático,<br />

uma equação ou uma inequação e tiver uma certa<br />

dificul<strong>da</strong>de para resolver aquilo eu acho que<br />

<strong>da</strong>í a aula vai por água abaixo. Eu acho que não<br />

tem na<strong>da</strong> a ver a minha aula naquela situação, se<br />

eu não tiver segurança para fazer aquilo, é uma<br />

situação totalmente adversa. (Professor de Matemática,<br />

cinco anos de magistério).<br />

Ao aprofun<strong>da</strong>r um pouco mais essa questão<br />

com os professores, foi possível perceber que<br />

as respostas continuaram sendo em torno <strong>da</strong><br />

relação professor aluno e do domínio do conteúdo.<br />

Para alguns professores, o domínio do<br />

conteúdo, ou seja, o saber científico é um dos<br />

principais fatores que trazem segurança na sala<br />

de aula. O professor se impõe pelo que ele sabe,<br />

principalmente em disciplinas como Matemática,<br />

Física e Química, pois o domínio do conteúdo<br />

é a base para a autori<strong>da</strong>de do professor e<br />

para ser levado a sério pelos alunos.<br />

Outros professores consideraram a relação<br />

professor x aluno como o fator fun<strong>da</strong>mental<br />

para a condução <strong>da</strong> aula.<br />

A forma como trabalhar com os alunos. Eu trabalho<br />

tendo como referência a amizade entre o<br />

professor e o aluno e não um estilo sempre man<strong>da</strong>ndo.<br />

Eu trabalho com eles no espírito de conversa<br />

e de diálogo, é mais no sentido de amizade<br />

com os alunos. Se eu fosse uma ditadora, não<br />

conseguiria nem sequer <strong>da</strong>r aula. (Professora de<br />

Português, oito anos de Magistério).<br />

A aprendizagem pela experiência<br />

e a contribuição para o trabalho<br />

Essa categoria diz respeito aos saberes que<br />

os professores constroem na própria experiência.<br />

Dos depoimentos colhidos, depreende-se<br />

que é na experiência que os professores vislumbram<br />

a possibili<strong>da</strong>de de aprenderem com<br />

colegas de trabalho, com os próprios alunos e<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 227-238, jan./jun., 2006 235


A concepção de conhecimento profissional e sua aquisição por professores do ensino médio<br />

de refletirem sobre seu trabalho, reformulando<br />

sua forma de ser e agir.<br />

Quando perguntamos aos professores se a<br />

experiência do dia-a-dia na sala de aula aju<strong>da</strong>va<br />

no trabalho, todos responderam que sim. Isso<br />

corrobora a opinião de vários autores (NÓVOA,<br />

2000; PIMENTA, 1996) que afirmam que o professor<br />

aprende o seu ofício na escola. Os participantes<br />

desse estudo acreditam que a experiência<br />

do dia-a-dia colabora em dois sentidos: para<br />

o professor aperfeiçoar a sua didática, principalmente<br />

na base <strong>da</strong> tentativa e erro e para aprender<br />

a li<strong>da</strong>r com os problemas disciplinares, que<br />

em algumas escolas é um aspecto que toma a<br />

maior parte do esforço do professor. As opiniões<br />

a seguir foram as mais representativas:<br />

É fun<strong>da</strong>mental. O meu trabalho se baseia no conteúdo<br />

que eu tenho que saber, mas como agir na<br />

sala de aula, eu só descobri com a experiência do<br />

dia-a-dia. Eu comecei absolutamente verde e só<br />

com o tempo fui adquirindo o jeito de agir na<br />

sala de aula. (Professor de Física, oito anos de<br />

Magistério).<br />

Aju<strong>da</strong> e aju<strong>da</strong> muito. A partir <strong>da</strong>s experiências,<br />

<strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de que eu estou vendo em sala eu<br />

vou propor elaborar o que se ministrar para os<br />

meus alunos. Então se eles têm necessi<strong>da</strong>de de<br />

aprender, por exemplo, uma ação social, porque<br />

está faltando isso para eles aí a gente vai relacionar<br />

a alguma situação. (Professora de matemática,<br />

dez anos de Magistério).<br />

Os depoimentos dos professores entrevistados<br />

confirmam que a prática é muito importante<br />

no processo ensino-aprendizagem, <strong>da</strong><br />

mesma forma que os conhecimentos oriundos<br />

<strong>da</strong> experiência. Esses conhecimentos são também<br />

aqueles que os professores produzem no<br />

cotidiano de seu trabalho, “num processo de<br />

reflexão sobre sua prática, mediatiza<strong>da</strong> pela de<br />

outrem – seus colegas educadores” (PIMEN-<br />

TA, 1996, p. 77).<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

O objetivo desse artigo foi verificar qual a<br />

concepção de conhecimento de professores de<br />

sete escolas estaduais de Ensino Médio do<br />

município de Curitiba. Para investigar essa ques-<br />

236<br />

tão, vários aspectos do conhecimento foram tratados<br />

com os professores. As evidências mostram<br />

que os professores participantes deste<br />

estudo, na sua grande maioria, concebem o conhecimento<br />

como uma busca constante, a somatória<br />

de experiências adquiri<strong>da</strong> com a prática<br />

do dia-a-dia e o domínio do conteúdo.<br />

No entanto, para a maioria desses professores,<br />

os conhecimentos mais importantes para<br />

exercer a profissão se concentram ao redor do<br />

domínio do conteúdo e do bom relacionamento<br />

com os alunos.<br />

Com certeza, o domínio do conteúdo é um<br />

componente central do arsenal de conhecimentos<br />

necessários para desenvolver um bom trabalho<br />

na sala de aula, uma vez que as exigências<br />

em torno do ato de ensinar têm provocado um<br />

renovado interesse no conhecimento do conteúdo<br />

do professor. Embora a questão sobre o<br />

que os professores precisam saber sobre suas<br />

disciplinas seja muito difícil de ser respondi<strong>da</strong>.<br />

A relação professor-aluno é outro aspecto<br />

bastante relevante, pois conhecer o aluno e entendê-lo<br />

passa a ser uma condição para que o<br />

professor possa fazer a transposição didática<br />

de seu conteúdo.<br />

As respostas mais comuns em relação à<br />

concepção de conhecimento tomam a forma de<br />

um relato <strong>da</strong>s crenças dos professores sobre o<br />

conhecimento. No entanto, o conhecimento tem<br />

que satisfazer uma “condição ver<strong>da</strong>deira”, enquanto<br />

que as crenças, não. Sistemas de crenças<br />

são resistentes à mu<strong>da</strong>nça.<br />

Neste momento, ain<strong>da</strong> está obscuro se as<br />

crenças dos professores estão diretamente relaciona<strong>da</strong>s<br />

às práticas em sala de aula, entretanto<br />

parece lógico que isto deva ser assim. Há<br />

uma concordância mais geral de que as crenças<br />

e as práticas existem em uma relação recíproca<br />

uma com a outra. É provável que a prática<br />

influencie as crenças como também é possível<br />

o contrário.<br />

Observa-se que a palavra conhecimento é<br />

utiliza<strong>da</strong> pelos professores para se referir ao<br />

“conhecimento livresco” que está publicamente<br />

disponível de uma maneira já codifica<strong>da</strong>. Essa<br />

noção fica muito clara nos depoimentos dos<br />

professores participantes deste estudo. Nesse<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 227-238, jan./jun., 2006


Herivelto Moreira; Guiomara Ribas; Elza Rumiko W. Soavinsky; Raimundo Fortes; Maria do Carmo Wiese; Ethel Fisher<br />

sentido, é preciso que os professores rompam<br />

com esta compreensão equivoca<strong>da</strong>, para não<br />

desenvolver uma consciência limita<strong>da</strong> <strong>da</strong> natureza<br />

de seu conhecimento profissional.<br />

Embora o conhecimento <strong>da</strong> experiência, ou<br />

seja, o conhecimento adquirido durante o próprio<br />

exercício do Magistério seja uma questão<br />

muito valoriza<strong>da</strong> pelos professores participantes<br />

deste estudo e por alguns autores nacionais<br />

e internacionais, ele não pode se constituir na<br />

única forma de conhecimento. A valorização<br />

REFERÊNCIAS<br />

do conhecimento prático adquirido por meio <strong>da</strong><br />

experiência auxilia o profissional docente a expressar<br />

o que sabe, à luz <strong>da</strong> teoria – reunificando<br />

saberes, mas é preciso enfatizar que confiar<br />

somente no conhecimento <strong>da</strong> experiência poderá<br />

<strong>da</strong>r a falsa impressão de que os conhecimentos<br />

acadêmico, teórico e científico adquirido<br />

no âmbito <strong>da</strong> formação profissional não são<br />

importantes e que os cursos de formação não<br />

têm <strong>da</strong>do conta adequa<strong>da</strong>mente dessa formação<br />

profissional.<br />

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238<br />

Recebido em 21.06.05<br />

Aprovado em 30.07.05<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 227-238, jan./jun., 2006


IN SEARCH OF AMÉRICA:<br />

LATINA/OS (RE)CONSTRUCTING THE U.S.A.<br />

ABSTRACT<br />

Ellen Bigler<br />

Ellen Bigler, Ph.D. *<br />

Taken collectively, Latinos are now the largest “minority” group in the USA.<br />

This chapter, with a focus on U.S. Latinos, explores the changing face of the<br />

USA in recent decades and the significance of this demographic change for<br />

the ongoing construction and negotiation of an American identity. The “culture<br />

wars” (e.g., debates over the canon, curriculum, and language) of the late<br />

1980s and 1990s, and the contested role of schools in the arena of critical<br />

multiculturalism, are examined for insights into the bases of resistance to change.<br />

The author draws from her experiences in public schools as both a teacher and<br />

a researcher, as well as her experiences educating future teachers.<br />

Keywords: American Identity – US Latinos – Racialization – Latinization –<br />

Borderlands<br />

RESUMO<br />

EM BUSCA DA AMÉRICA: LATINOS (RE)CONSTRUINDO OS<br />

ESTADOS UNIDOS<br />

Considerados coletivamente, os Latinos constituem atualmente o maior grupo<br />

minoritário nos Estados Unidos. Este artigo, com enfoque nos Latinos dos EUA,<br />

explora a mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> “cara” dos EUA nas déca<strong>da</strong>s recentes e o significado<br />

dessa mu<strong>da</strong>nça demográfica para a subseqüente construção e negociação <strong>da</strong><br />

identi<strong>da</strong>de americana. As guerras culturais (i.e. debates sobre o cânone, o<br />

currículo e a linguagem) <strong>da</strong>s déca<strong>da</strong>s de 80 e 90, bem como o papel controverso<br />

<strong>da</strong>s escolas na arena do multiculturalismo, são analisa<strong>da</strong>s através de registros<br />

<strong>da</strong>s fontes de resistência às mu<strong>da</strong>nças. A autora utiliza suas experiências em<br />

escolas públicas, como professora e pesquisadora, além de ser educadora na<br />

formação de futuros professores.<br />

Palavras-chave: Identi<strong>da</strong>de Americana – Latinos nos EUA – Racialização –<br />

Latinização – Fronteiras<br />

* Professor, Department of Educational Studies/ Dept. of Anthropology. HBS 217-1. Rhode Island College. 600 Mt.<br />

Pleasant Avenue. Providence, RI 02906 - U.S.A. Email: ebigler@ric.edu<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 239-257, jan./jun., 2006 239


In search of América: latina/os (re)constructing the U.S.A.<br />

240<br />

we gave birth<br />

to a new generation<br />

AmeRícan salutes all folklores,<br />

european, Indian, black, Spanish,<br />

and anything else compatible…<br />

(Tato Laviera, AmeRícan, 1985, p.94)<br />

Latina/os 1 have long been invisible in the collective<br />

U.S. imagination. Their “invisibility” changed<br />

forever on June 18, 2003, when the U.S.<br />

Census Bureau announced that U.S. Latina/os 2<br />

had reached a long-anticipated and symbolically<br />

significant milestone in the U.S.; Latinos were<br />

now the nation’s largest “minority,” displacing<br />

African Americans (EL NASSER, 2003). The<br />

news coverage on the significance of this event<br />

for understanding who we are as a nation spoke<br />

of Hispanics as if they were a monolithic population.<br />

Never mind that there is no pan-ethnic<br />

Latina/o identity and that the term “Latina/os”<br />

encompasses diverse groups, histories, generations,<br />

social classes, and even languages. And<br />

never mind that for Americans 3 in some parts of<br />

the nation the news was not exactly news –<br />

California, for instance, where as of July 4 2001 4<br />

over 50 percent of all babies born were already<br />

Hispanic (MURPHY, 2003). The nation had crossed<br />

a threshold that pointed beyond all doubt to<br />

the growing latinization of the population.<br />

In this chapter I examine the impact of the<br />

Latina/o presence in the U.S.A. through time,<br />

and the paradigms that they have challenged<br />

and/or helped undermine. Latinos have forced<br />

the nation to re-visit how the American West<br />

was “won” (and therefore how to characterize<br />

the building of the United States); to re-visit what<br />

constitutes “the” immigrant experience; to rethink<br />

how we see one another racially (beyond<br />

the black/white binary); and to re-conceptualize<br />

what constitutes the “border” and being<br />

“American” in an era characterized by increasing<br />

global interdependence.<br />

An Enduring – and Marginalized –<br />

Latina/o Presence<br />

Mexicans and Puerto Ricans, unlike their<br />

European counterparts, initially became part of<br />

the U.S.A. through conquest. The acquisition of<br />

Flori<strong>da</strong> in the early 1800s brought people with<br />

Spanish roots into the nation. The first significant<br />

numbers of Latina/os to become part of the<br />

American population, though, were incorporated<br />

through U.S. acquisition of Mexican lands in the<br />

mid-1800s. Mexico lost almost half of its land<br />

and three-quarters of its mineral resources in the<br />

mid-1800s to its powerful northern neighbor<br />

(GONZALEZ, 2000). Texas’ contrived secession<br />

and U.S. victory in the Mexican War were<br />

followed by the subsequent “purchase” from<br />

Mexico of what was to become the American<br />

Southwest. These acquisitions were a thin veneer<br />

for 19 th century U.S. imperialism. As one<br />

Chicana (Mexican American) poet put it, “No<br />

crucé la frontera, la frontera me cruzó a mí”<br />

(ROSALDO, 1997). These realities, however,<br />

run counter to the historical narrative traditionally<br />

taught in U.S. history texts, depicting the U.S. as<br />

a nation of immigrants moving east to west into<br />

seemingly uninhabited spaces.<br />

Mexicans in the U.S., while their experiences<br />

differed somewhat depending upon their<br />

state of residence, rapidly came to constitute a<br />

class of exploited laborers. Stigmatized, socially<br />

segregated, and politically marginalized, they<br />

1 This is a new term gaining popularity in the U.S. in order<br />

to include women (Latinas), also sometimes written as Latino/as.<br />

2 The umbrella terms “Latino” and “Hispanic” are often<br />

used interchangeably in the U.S. to refer to people of Latin<br />

American origin. “Hispanic” was introduced by the U.S.<br />

government in the 1970s, and then adopted in the 1980<br />

census to identify U.S. residents who trace their ancestry to<br />

Spanish-speaking regions of the world. “Latino” gained<br />

popularity in the 1980s and 1990s, largely because more<br />

politicized community members felt it affirmed their Latin<br />

American (and therefore racially mixed) origins rather than<br />

privileging their Spanish roots. As such, it also can embrace<br />

the growing Brazilian population now in the U.S. A recent<br />

survey by the Pew Hispanic Center revealed that only 24<br />

percent prefer to use the terms “Hispanic” or “Latino.”<br />

Overall 54 percent preferred to be identified by their country<br />

of origin—though among American-born Hispanics that<br />

dropped to 29 percent, with 46 percent preferring to be<br />

identified as “Americans” (BUSTOS, 2002).<br />

3 I acknowledge the problems with using this term to refer<br />

to only people of the USA. There is however no suitable<br />

substitute in English.<br />

4 There is a delicious irony here. July 4 is the <strong>da</strong>te that the<br />

13 original colonies (all on the east coast, and populated by<br />

European, African-origin peoples and Native Americans)<br />

declared independence from Britain.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 239-257, jan./jun., 2006


ecame what historian Rudolfo Acuña (1988)<br />

would later characterize as an “internal colony”.<br />

Yet their contributions to the development of<br />

the American West were invaluable (TAKAKI,<br />

1993); Mexican and Mexican American labor<br />

in agriculture and ranching, in mines and on the<br />

railroads played a significant role in the expansion<br />

of American capitalism into the Southwest.<br />

The numbers of Mexicans and Mexican American<br />

communities grew as U.S. employers,<br />

hand in hand with the U.S. government, sought<br />

to encourage migration to provide a source of<br />

cheap labor. The enduring racism and marginalization<br />

that these early Mexican-origin communities<br />

encountered from the mid-1800s to the<br />

mid-1900s set the stage for the particular form<br />

of political activism that was to mark the 1960s<br />

and 1970s.<br />

Puerto Ricans too became U.S. Americans<br />

through conquest. The U.S. defeated Spain in<br />

1898 in the Spanish American War, acquiring<br />

Puerto Rico, the Philippines, and Guam in the<br />

process. The government refused to grant Puerto<br />

Rican demands for independence, and, in<br />

fact, gave them less autonomy than they had<br />

experienced under the Spanish at the commencement<br />

of the war. Almost twenty years later,<br />

in 1917, the U.S. granted Puerto Ricans citizenship.<br />

Citizenship in turn made them eligible<br />

to migrate freely to the mainland. There they<br />

constituted a readily available labor pool in the<br />

Northeast and filled 12,000 jobs created by the<br />

war effort. The U.S. government inducted another<br />

18,000 Puerto Rican men into the military<br />

for World War I, where they were obliged to<br />

serve in racially segregated units (DEFREITAS,<br />

1999).<br />

Puerto Ricans, like their Mexican American<br />

counterparts, suffered the consequences of a<br />

racialized social order in the U.S. that assumed<br />

Anglo-American superiority and the “racial”<br />

inferiority of racially “mixed” Mexican and Puerto<br />

Rican peoples. Assumptions of racial superiority<br />

on the part of U.S. Americans went<br />

hand in hand with assumptions of cultural superiority.<br />

Official government policy deliberately<br />

attempted to “Americanize” Puerto Ricans on<br />

the Island through establishment of a secular<br />

Ellen Bigler<br />

public school system. Students were taught U.S.<br />

heroes, holi<strong>da</strong>ys, symbols, historical narratives,<br />

and the English language (NEGRÓN DE MON-<br />

TILLA, 1975). Ironically, Americanization – in<br />

essence cultural and linguistic imperialism –<br />

contributed to a legacy of resistance to Anglo-<br />

American dominance on the Island that continues<br />

to the present (ZENTELLA, 1981).<br />

The U.S. occupation of Puerto Rico introduced<br />

American corporations to the Island and<br />

brought about economic shifts that displaced<br />

small farmers and propelled thousands of Puerto<br />

Ricans into a migratory stream between<br />

Island and mainland. By 1940 there were 70,000<br />

Puerto Ricans on the mainland (PADILLA,<br />

1985). “Operation Bootstrap,” the U.S. government<br />

program begun in 1947 to transform Puerto<br />

Rico’s plantation economy into an industrial<br />

one, created still further economic displacement.<br />

These shifts, alongside cheap air fares from the<br />

Island to New York City, were intended to encourage<br />

migration to meet demands for cheap<br />

mainland labor. The Puerto Rican “diaspora”<br />

was underway. The numbers of Puerto Ricans<br />

on the mainland reached nearly 900,000 by 1960,<br />

with the migrants concentrated overwhelmingly<br />

in the New York City metropolitan area<br />

(GROSFOGUEL and GEORAS, 1996). By<br />

1990, the mainland Puerto Rican population,<br />

despite significant return migration, topped 2.5<br />

million.<br />

Cubans, the third largest Latina/o population,<br />

initially settled along the east coast in the<br />

late 1800s and early 1900s to work in factories.<br />

The demographics of Cuban immigrants changed<br />

dramatically, however, with Fidel Castro’s<br />

ascent to power in 1959. Island elites fleeing<br />

Castro, poured into Miami. By 1965, 210,000<br />

had entered the U.S. By 1973, another 345,000<br />

had arrived (PORTES and BACH, 1985). Their<br />

refugee status, the warm welcome and U.S.<br />

government aid they received, their social and<br />

cultural capital, and their light skins 5 positioned<br />

them very differently from their Mexican Ame-<br />

5 Later waves of Cubans, in particular the marielitos of the<br />

1980s, included more <strong>da</strong>rk-skinned and working class Cubans.<br />

By then the Cuban enclave was well established and able to<br />

offer their own support (PORTES and STEPICK 1993).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 239-257, jan./jun., 2006 241


In search of América: latina/os (re)constructing the U.S.A.<br />

rican and Puerto Rican working class counterparts.<br />

These early Cuban immigrants were able<br />

to parlay their many advantages in to economic<br />

and political strength, benefiting later immigrants<br />

and revitalizing Miami in the process.<br />

By 1970, these three groups collectively<br />

comprised five percent of the U.S. population.<br />

Mexican Americans, the overwhelming majority,<br />

remained concentrated in the Southwest<br />

(with a growing number making their way to<br />

the Midwest), Puerto Ricans in the New York<br />

City region, and Cubans in the Miami area. In<br />

the three decades since, Latina/os have dispersed<br />

far beyond their traditional places of settlement,<br />

and their numbers have almost tripled as<br />

a consequence of increased (im)migration 6 and<br />

the higher birth rates of this relatively younger<br />

population. As of 2004, Hispanics 7 comprised<br />

13.5 percent of the U.S. population and numbered<br />

39.9 million (NEW YORK TIMES, 2004).<br />

There are more Hispanics in the U.S. to<strong>da</strong>y than<br />

are Peruvians, Chileans, or Canadians in their<br />

respective countries. Mexican Americans, numbering<br />

20.6 million, continue to constitute the<br />

majority group, approximately 60 percent. Puerto<br />

Ricans on the mainland (roughly half of all<br />

Puerto Ricans) now number 3.4 million, and<br />

Cuban Americans 1.2 million. Other Latin<br />

Americans seeking economic opportunity or<br />

political refuge further swell the ranks of the<br />

Latina/o population. These include Dominicans<br />

(2.2 million), various Central American populations<br />

(4.8 million), and 3.8 million South Americans<br />

(INFOPLEASE, 2004), including possibly<br />

up to one million Brazilians (BALLVE, 2003).<br />

The tremendous diversity within the Latina/<br />

o population is oftentimes obscured by the use<br />

of the umbrella term “Hispanic” in the media,<br />

or by the demographic dominance of Mexican<br />

Americans. The opportunity to be seen as being<br />

from one’s particular country of origin can depend<br />

upon where one lives in the USA. As Davis<br />

(2001, p.20) points out, in Los Angeles<br />

“Salvadoreans, Guatemalans and Ecuadoreans<br />

– as well as indigenous immigrants like Zapotecs,<br />

Yaquís, Kanjobals and Mixtecs – struggle<br />

to defend their distinctive identities within a hegemonically<br />

Mexican/Chicano popular culture.”<br />

242<br />

In New York City, meanwhile, the dominant<br />

Hispanic population is no longer Puerto Rican.<br />

Dominicans are catching up to Puerto Ricans<br />

numerically, and Mexican immigrant communities<br />

are on the rise. These demographic shifts<br />

in turn make intercultural exchanges more likely.<br />

Fully half of the Spanish-surname marriages<br />

in New York City are intermarriages between<br />

people of different Hispanic backgrounds, in contrast<br />

to Los Angeles, for instance, where only<br />

14 percent of married people of Mexican origin<br />

married non-Mexican origin Hispanics (see<br />

DAVIS, 2001, p.22). This variability underlines<br />

the point that Latina/os fail to fit any one mold;<br />

they bring differing cultures and histories to the<br />

U.S., and live different realities depending on a<br />

myriad of factors from time of arrival to race to<br />

generation to class to place of settlement. However,<br />

despite such variability, there are similarities<br />

in their experiences that situate them<br />

largely outside the so-called American “Melting<br />

Pot.”<br />

The American Melting Pot: Mobility<br />

or Marginality<br />

America is God’s Crucible, the great Melting-<br />

Pot where all the races of Europe are melting and<br />

re-forming! A fig for your feuds and vendettas<br />

(…) into the Crucible with you all! (Israel Zangwill,<br />

The Melting Pot, 1909, p.37)<br />

Like other people of color 8 , the U.S. Latina/o<br />

population set roots in a nation built upon<br />

profound racial inequalities. The nation’s founders<br />

from the outset sought to limit eligibility for<br />

citizenship. Only white propertied males acqui-<br />

6 The term connotes both immigration and the Puerto Rican<br />

migration (as U.S. citizens).<br />

7 The U.S. Census uses the term “Hispanic” and does not<br />

count Brazilians among them.<br />

8 “People of color” is a term used currently in the U.S. to<br />

refer to non-whites, to reference their collective experiences<br />

of discrimination historically and their commonalities. It<br />

differs from the term “colored people,” which was used<br />

along with “Negro” to refer to African Americans up until<br />

the 1950s and was replaced with the terms “Black” or<br />

“African American.”<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 239-257, jan./jun., 2006


ed the right to vote. In 1790, Congress passed<br />

a bill limiting naturalization to “free white (male)<br />

citizens,” claiming itself a democracy while systematically<br />

denying the rights of citizenship to<br />

both people of color and women. It took another<br />

75 years before slavery officially ended –<br />

and almost a century beyond that before racial<br />

segregation laws in the South were ruled unconstitutional.<br />

Mexicans incorporated into the<br />

U.S. after the Mexican War of 1848 soon lost<br />

rights granted them in the Treaty of Gua<strong>da</strong>lupe<br />

Hi<strong>da</strong>lgo, and were quickly overwhelmed numerically<br />

and ultimately subjugated by whites flooding<br />

into California in search of gold. Others<br />

fared no better (TAKAKI, 1993). Native Americans<br />

became a conquered people and suffered<br />

the consequences of oftentimes-genoci<strong>da</strong>l<br />

policies. Chinese workers who struggled alongside<br />

Mexicans to complete the nation’s first<br />

transcontinental railroad by 1869, found the open<br />

racism they encountered in their <strong>da</strong>y-to-<strong>da</strong>y lives<br />

codified in the 1882 Chinese Exclusion Act<br />

that forbid further immigration from China. Antimiscegenation<br />

laws (forbidding marriage across<br />

racial lines) were on the books of many states<br />

as late as 1967, until the Supreme Court belatedly<br />

declared them unconstitutional.<br />

Being “American” had quickly come to be<br />

constructed as being “white”. Newly arrived<br />

Europeans <strong>da</strong>nced along racial border lines. The<br />

religious and cultural “otherness” of the Irish,<br />

arriving in large numbers in the mid-1800s, and<br />

the cultural and “racial” differences of southern<br />

and eastern European immigrants, who poured<br />

into eastern cities between the 1880s and<br />

1910s 9 , made them suspect. While most settled<br />

in urban areas in ethnic enclaves, maintaining<br />

their native languages and customs, they<br />

were under tremendous pressure to abandon<br />

them. Racist and prejudicial attitudes of the “oldtimers”<br />

were further legitimated by many scientists’<br />

arguments for the extant social hierarchy<br />

being grounded in innate differences. Madison<br />

Grant, a highly regarded anthropologist of the<br />

1920s, for instance argued that the:<br />

… new immigration contained a large and increasing<br />

number of the weak, the broken, and the<br />

mentally crippled of all races drawn from the lo-<br />

Ellen Bigler<br />

west stratum of the Mediterranean basin…. The<br />

whole tone of American life, social, moral, and<br />

political, has been lowered and vulgarized by…<br />

human flotsam. (HANDLIN, 1957, p.93-94, cited<br />

in: SANTA ANA, 2002, p.274)<br />

Mobility<br />

In a relatively short time, however, these<br />

populations moved from being viewed as questionably<br />

“white” to being accepted as part of<br />

the larger American community (DILEONAR-<br />

DO, 1992). The new European immigrants and<br />

their descen<strong>da</strong>nts benefited from a confluence<br />

of factors that worked to reduce their segregation<br />

and identity with their homeland cultures.<br />

Significantly, there was a steep decline in immigration<br />

from Europe beginning in the late 1910s,<br />

as nativist sentiments led to restrictive immigration<br />

policies designed to keep out the “unassimilables.”<br />

This meant less replenishment of<br />

ethnic communities, a phenomenon furthered by<br />

the low numbers of immigrants arriving during<br />

the Great Depression and World War II eras.<br />

The children of immigrants, meanwhile, mixed<br />

with native-born children in schools, factories,<br />

and the military. Factory jobs that did not require<br />

education were widely available. Their significant<br />

voting power was courted by city<br />

political machines. Federal legislation supporting<br />

unionization in the 1930s and 1940s ensured<br />

that many blue-collar jobs paid a living wage.<br />

A booming World War II economy, the U.S.<br />

government-funded post-war GI Bill that provided<br />

free college educations for returning veterans,<br />

an expanding economy and higher<br />

education system, and an expanded middle class<br />

in the 1950s and 1960s 10 all worked to their<br />

9 Both the Irish and the southern and eastern European<br />

populations were considered racially “other” and a threat<br />

to the assumed superiority of the (white) American stock.<br />

See for instance Roediger (1991) and Gould (1981) on thendominant<br />

social constructions of race and how these groups<br />

negotiated and contested the boun<strong>da</strong>ries of the racial<br />

constructions they encountered in the U.S.A.<br />

10 See American Conversations: Puerto Ricans, White<br />

Ethnics, and Multiculturalism (BIGLER, 1999) for a<br />

summary of the differing experiences and thus different<br />

outcomes for white U.S. Americans and Puerto Ricans in<br />

the 20th century.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 239-257, jan./jun., 2006 243


In search of América: latina/os (re)constructing the U.S.A.<br />

advantage. Marginalized people of color, though,<br />

were largely unable to take advantage of<br />

much of this.<br />

The vision of the U.S.A. as a bubbling caldron,<br />

a “melting pot” where all people blended<br />

and lost their distinctive ethnic characteristics,<br />

had a firm hold on the social imaginary for well<br />

over half of the 20 th century. Accompanying<br />

this metaphor was an almost religious faith in<br />

the American Dream, with the nation seen as a<br />

land of opportunity for all, where hard work<br />

would provide the route to upward mobility. New<br />

immigrants and their descen<strong>da</strong>nts, so the story<br />

went, would progress through hard work up the<br />

social class ladder, marching along a linear path,<br />

abandoning their foreign customs, tongues, and<br />

loyalties, and assimilating into the American<br />

mainstream.<br />

The brunt of the descen<strong>da</strong>nts of the waves<br />

of southern and eastern Europeans who entered<br />

at the turn of the 19 th century did indeed<br />

achieve upward mobility. It was not hard work<br />

alone though that made possible their success<br />

– or explained the failure of populations of color<br />

to rise in the social hierarchy.<br />

Marginality<br />

Descen<strong>da</strong>nts of turn-of-the-century European<br />

immigrants did not experience the enduring<br />

consequences of racialization and racial discrimination<br />

that have long haunted people of color<br />

in the U.S. Like Native Americans, Chinese<br />

Americans, Japanese Americans, and African<br />

Americans, Latina/os endured prejudice, discrimination,<br />

and oftentimes legalized segregation. 11<br />

Chicanos in the Southwest were politically, economically,<br />

and socially marginalized. Puerto Ricans<br />

in the New York area in the 1950s and<br />

1960s found themselves on the economic and<br />

social margins of society, heavily concentrated<br />

in the secon<strong>da</strong>ry labor market and deteriorating<br />

inner cities. Public schools for both populations<br />

were inferior. Like other people of color, they<br />

were essentially excluded from the American<br />

melting pot.<br />

244<br />

The ensuing residential and occupational<br />

segregation they experienced, hand in hand with<br />

the ongoing ethnic revitalization that occurs as<br />

Latina/os maintain connections to their homelands<br />

and newcomers arrive on a regular basis,<br />

enhanced the likelihood of developing a distinct<br />

identity and ethnic soli<strong>da</strong>rity. As Nelson and<br />

Tien<strong>da</strong> note:<br />

(R)esidential and occupational concentration –<br />

are especially crucial to the formation of ethnic<br />

group soli<strong>da</strong>rity in that they produce common<br />

class interests, lifestyles and friendships. When<br />

the ethnic experience includes rejection, discrimination<br />

and oppression, the elaboration of ethnic<br />

ties provides a ready system of support for<br />

groups distinguishable by race, national origin<br />

or language. (1997, p.9)<br />

While the maintenance of identity and language<br />

is understood as a voluntary phenomenon,<br />

and most certainly does have an element<br />

of choice attached to it, it is also a product of a<br />

different reality for Latina/o communities when<br />

compared to the experiences of early 1900s<br />

southern and eastern European immigrants.<br />

Identity may seem a voluntary phenomenon, but<br />

we can also speak of the “structuring” of ethnic<br />

identity 12 .<br />

Despite second-class citizenship, men from<br />

these marginalized groups fought valiantly for<br />

democracy in World War II 13 . What they found<br />

though upon their return, though, was that they<br />

were still denied full citizenship in their own<br />

country. Mexican American soldiers on leave<br />

dressed in zoot suits, for instance, became victims<br />

of mob violence in California while police<br />

stood idly by. A decorated Mexican American<br />

11 It is far beyond my capacity given space limitations to<br />

trace the experiences of these groups in this paper. For an<br />

excellent and succinct insight into U.S. history seen from<br />

the side of the oppressed, see Ronald Takaki’s A Different<br />

Mirror (1993).<br />

12 But at the same time the boun<strong>da</strong>ries are porous, Latina/os<br />

are a diverse lot, and as recent studies substantiate, there<br />

are many ways to “be” Latina/o and to characterize the<br />

Latina/o experience. See for instance García-Colón, 2004.<br />

We must therefore avoid overgeneralizing when trying to<br />

encapsulate “the Latina/o experience.”<br />

13 Soldiers from these groups, including Japanese Americans<br />

whose own families were interned in the U.S. during the war<br />

as potential security threats, were among the most decorated<br />

groups.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 239-257, jan./jun., 2006


soldier was denied burial rights in a military cemetery<br />

because of his race. These wartime<br />

experiences gave impetus to the long-simmering<br />

struggle for equal rights, and alongside the<br />

impact of colonial independence struggles in the<br />

1950s, gave birth to the various civil rights movements<br />

of the 1950s, and 1960s.<br />

Turning Points: From “Greaser 14 ”<br />

to “Chicano,” from “Spic 15 ” to<br />

“Boricua”<br />

The two largest and oldest U.S. Latina/o<br />

populations, Mexican Americans and Puerto<br />

Ricans, “invented” (KLOR DE ALVA, 1997)<br />

new identities in the U.S. that affirm that they<br />

are “neither/nor” (i.e., not Mexican and not U.S.<br />

American), but rather something else. These<br />

“inventions” took different forms in the two<br />

communities, reflecting their different realities<br />

and histories.<br />

Mexican Americans had long found themselves<br />

suspended between two poles, accepted<br />

as neither Americans nor Mexicans. They were<br />

“pocho,” too Americanized to be Mexican, and<br />

too “Mexican” in the U.S. to be American. The<br />

terms “Mexican” or “Greaser,” were routinely<br />

used disparagingly by whites in the southwestern<br />

U.S. while the “polite” term to refer to someone<br />

of Mexican descent was “Spanish” –<br />

reflecting the valuing of the Spanish (and therefore<br />

European) side of Mexicans’ roots.<br />

Mainland Puerto Ricans were also derided on<br />

returning to the Island for their perceived loss<br />

of Puerto Rican culture and the intermixture of<br />

English into their Spanish. In both Mexican<br />

American and Puerto Rican communities, light<br />

skin and “white” features were valued more<br />

highly.<br />

The 1960s marked an important moment in<br />

the nation’s history. The Black Civil Rights<br />

Movement began as a push for integration into<br />

the U.S. American mainstream, but the slow<br />

pace of change and the resistance African<br />

American activists encountered produced a new<br />

set of leaders, among them Malcolm X, who<br />

argued instead for cultural nationalism and chal-<br />

Ellen Bigler<br />

lenged assimilation as the goal. “Black Pride” 16 ,<br />

with its rejection of mainstream aesthetic values<br />

and representations, gave impetus to other<br />

similarly positioned groups. “Negroes” became<br />

“Blacks”; Mexican Americans became “Chicanos”;<br />

and Puerto Rican mainlanders began<br />

to refer to themselves as “Neoricans” or<br />

“Nuyoricans.” These terms affirmed their differences,<br />

and represented the emergence of<br />

new “politicized” peoples, born of a fusion of<br />

Spanish, Indian, African and American roots 17 .<br />

Chicano and Puerto Rican communities organized<br />

and challenged mainstream “cultural<br />

deficit” depictions of their communities and the<br />

unquestioned assumption that they were positioned<br />

like European immigrants to assimilate into<br />

the mainstream. Instead, many argued, they<br />

were better understood as “internal colonies.”<br />

Challenging the need to abandon their languages<br />

and cultures to be accepted as “Americans,”<br />

they rejected the vision of the U.S. as a<br />

melting pot and the desirability of being assimilated.<br />

In the Mexican American community, farm<br />

worker organizers César Chávez and Delores<br />

Huerta fought for the rights of workers to unionize.<br />

Utilizing ethnic pride, shared religious beliefs,<br />

and a sense of community and history to<br />

organize Mexican and Mexican American farm<br />

workers (ACUÑA, 1988), their actions sparked<br />

the Chicano Movement. Young and politically<br />

active Mexican Americans took up the Farmworkers’<br />

banner to fight for their rights. Reborn<br />

“Chicanos” – originally a derogatory term<br />

used to refer to lower class members of the<br />

community – they organized to reappropriate<br />

lands taken improperly from Mexican Americans,<br />

to organize youth, to form new political<br />

parties, and to celebrate their cultural roots.<br />

14 The term is a derogatory one used in the U.S. to refer to<br />

someone who is of Mexican origin.<br />

15 The term “spic” is derogatory, and Puerto Ricans were<br />

frequently referred to as spics.<br />

16 It was not totally new in the 1960s. Marcus Garvey in the<br />

1920s taught a similar doctrine with his “Back to Africa”<br />

movement.<br />

17 The thrust for equal rights and cultural pride also took off<br />

in other oppressed communities, including American Indians<br />

and gays, who saw parallels in their own situations.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 239-257, jan./jun., 2006 245


In search of América: latina/os (re)constructing the U.S.A.<br />

El Movimiento, the Chicano Movement,<br />

flourished between the mid-1960s and the mid-<br />

1970s. The Southwest became “Aztlan,” the<br />

mythical homeland of the Aztec peoples who<br />

Cortes conquered in the 1500s. Aztec legend<br />

held that a drought had forced the Aztecs out<br />

of their original homeland northwest of Tenochtitlán<br />

(central Mexico, now Mexico City); led<br />

by their gods they roamed until a divine sign<br />

appeared, an eagle perched on a cactus with a<br />

serpent in its mouth. Chicanos, turning Anglo<br />

claims on their head, thus claimed themselves<br />

as the original inhabitants of the American Southwest<br />

and positioned Euro-Americans as the<br />

outsiders. They transformed the Indian heritage<br />

of Mexicans from a source of shame into a<br />

source of pride and an affirmation of their hybrid<br />

roots. Chicanos “re-invented” themselves<br />

– not as hyphenated Americans, but as a people<br />

with a unique and valuable heritage and culture.<br />

Chicano artists appropriated Mexican<br />

imagery and the mural form for their public art;<br />

musicians and <strong>da</strong>ncers resurrected “indigenous”<br />

music and <strong>da</strong>nce and taught it to their children;<br />

social critics assailed the media for its lack of<br />

positive images of Mexican Americans; activists<br />

demanded – and obtained – Chicano Studies<br />

programs in the universities. A new<br />

generation of Chicano academics joined forces<br />

with academics from other oppressed groups<br />

and their allies to question media representations,<br />

school curricula and textbooks, and historical<br />

narratives that had long portrayed the nation<br />

from the perspective of the dominant Anglo-<br />

American group 18 . While the Chicano Movement<br />

was in decline by the mid-1970s, it left in<br />

its wake a powerful legacy of social change.<br />

In Puerto Rican communities in the Northeast<br />

and Chicago, activists organized around issues<br />

relevant to their urban communities: decent<br />

housing, health care and community services,<br />

elimination of racial discrimination and police<br />

brutality, drug abuse programs, and better educational<br />

services for their children including support<br />

for bilingual education. Puerto Rican<br />

writers and artists explored and valorized their<br />

identities as a hybrid people. Their spiritual homeland<br />

was one rooted in an actual physical<br />

246<br />

space, the island. Puerto Rico was “Boriquen,”<br />

the Taino Indian name for Puerto Rico, and<br />

Puerto Ricans “boricuas” (KLOR DE ALVA,<br />

1997). The Puerto Rican Young Lords Party,<br />

the most well-known political organization, sought<br />

to develop links between mainland Puerto<br />

Ricans and their island counterparts and advocated<br />

independence for the Island (YOUNG<br />

LORDS PARTY, 1971).<br />

Puerto Rican activists also sought to build connections<br />

with their African American neighbors,<br />

joining forces to work for programs that benefited<br />

both communities. As Pablo Guzmán, a <strong>da</strong>rk-skinned<br />

Puerto Rican activist succinctly put it:<br />

Puerto Ricans like myself, who are <strong>da</strong>rker-skinned,<br />

who look like Afro-Americans, couldn’t…<br />

(avoid seeing connections between the two communities),<br />

‘cause to do that would be to escape<br />

into a kind of fantasy. Because before people<br />

called me a spic, they called me a nigger. (YOUNG<br />

LORDS PARTY, 1971, p.74).<br />

Those connections – based in shared experiences<br />

of prejudice and discrimination and<br />

grounded in their shared neighborhoods, schools,<br />

and workplaces and the Afro-Caribbean<br />

elements brought from the island – are visible<br />

to<strong>da</strong>y in much of the Nuyorican literature, music,<br />

language usage, and artistic production.<br />

melao was nineteen years old<br />

when he arrived from santurce (city in Puerto<br />

Rico)<br />

spanish speaking streets…<br />

malaíto his son now answered<br />

in black american soul english talk<br />

with native plena sounds (African-based Puerto<br />

Rican music)<br />

and primitive urban salsa beats. (LAVIERA, 1988,<br />

p.27)<br />

18 See for instance the New York State Education Department<br />

Ibero-American Heritage Curriculum Project (1987): Latinos<br />

in the Making of the USA: Yester<strong>da</strong>y, To<strong>da</strong>y and<br />

Tomorrow, which involved academics from various Latino<br />

communities and Latin American countries. It was originally<br />

conceptualized as a “celebration” of Hispanics to be released<br />

in 1992, marking 500 years of the “discovery” by Columbus<br />

of the “New World.” The academics involved in the Project<br />

insisted instead that it also look critically at the experiences<br />

and situation of U.S. Latinos and the making of Latin<br />

America. The heated national response to the New York<br />

State Education Department’s publication of a suggested<br />

“Curriculum of Inclusion” (see SOBOL, 1989), an analysis<br />

generated largely by minority academics, is also noteworthy.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 239-257, jan./jun., 2006


The black/white racial binary that the U.S.<br />

was founded on – where one drop of “black”<br />

blood makes a person “black” – conflicts with<br />

notions of race that Latinos bring to the U.S.<br />

(RODRÍGUEZ, 2000). Puerto Ricans, among all<br />

Latinos, have felt the impact of racialization in<br />

the U.S. most profoundly. Indeed, different shades<br />

of color within the community have translated<br />

into different experiences (KLOR DE ALVA,<br />

1997; RODRÍGUEZ, 1989). Dark-skinned Puerto<br />

Ricans must confront a society that sees<br />

them first as “black”. Piri Thomas, a Puerto Rican<br />

writer, recounts in his autobiography Down<br />

These Mean Streets his painful discovery of what<br />

it meant to be <strong>da</strong>rk-skinned when he applied for<br />

a sales job. Told that a job is filled, his light-skinned<br />

Puerto Rican friend who applies after him is<br />

hired for the position on the spot.<br />

I didn’t feel so much angry as I did sick, like<br />

throwing-up sick. Later, when I told this story to<br />

my buddy, a colored cat, he said, ‘Hell Piri, Ah<br />

know stuff like that can sure burn a cat up, but a<br />

Negro faces that all the time.’ ‘I know that,’ I<br />

said, ‘but I wasn’t a Negro then. I was still only<br />

a Puerto Rican.’ (1967, p.104)<br />

The racial diversity of the New York Puerto<br />

Rican and Dominican populations, in turn, has<br />

promoted a “more reciprocal and fluid relationship”<br />

(FLORES, 1993, p.183) to African<br />

American culture. The cultural sharing and fusion<br />

that takes place is visible in mainland Puerto<br />

Rican music, <strong>da</strong>nce, and language. Latino<br />

rap for instance creatively comments on these<br />

lived realities in intermingling Spanish and Black<br />

English:<br />

I rarely talk Spanish and a little trigueño<br />

(Spanglish)<br />

People be swearin’ (Black English verb construction)<br />

I’m a moreno (black)<br />

Pero guess what? I’m puertorriqueño.<br />

Word ‘em up.<br />

All jokes aside, I ain’t tryin’ to dis (Black English<br />

phrase equivalent to “disrespect”) any race.<br />

(lyrics by KT, in FLORES, 2000, p.129)<br />

Race is not a fixed biological essence but<br />

rather a set of socially constructed meanings<br />

that vary from one location to another (OMI<br />

and WINANT, 1994). These meanings are sub-<br />

Ellen Bigler<br />

ject to change and contestation, as seen in the<br />

case of the counter-narrative launched by Latina/os<br />

and African American social movements<br />

beginning in the 1960s. “Race” in the U.S. –<br />

with only categories of “white” and now<br />

“nonwhite,” – differs from “race” in the Caribbean<br />

and Latin America, where intermediary<br />

categories exist and “race” is not as fixed (RO-<br />

DRÍGUEZ, 2000). People in the same family<br />

can be classified as different races, depending<br />

on their physical appearance. Changes in dress<br />

or social class can alter perceptions of one’s<br />

race. This fluidity runs counter to American<br />

ways of evaluating race, and the encounter with<br />

American categories can be disorienting for<br />

Latina/os. Jorge Duany, for instance (2003,<br />

p.274), recounts a colleague’s story of how she<br />

moved from being an india clara (literally, a<br />

light Indian) in the Dominican Republic to being<br />

perceived as “black” in the U.S. Dominicans in<br />

the U.S. may choose to emphasize their “dominicanness”<br />

to avoid being taken for African<br />

American (DUANY, 2003). The experience of<br />

living in the U.S., though, can also result in a<br />

greater identification with African Americans,<br />

recognition of their common bonds, and ultimately<br />

greater opportunities for cultural exchange<br />

as both Puerto Ricans and Dominicans live and<br />

interact in close proximity with their urban African<br />

American counterparts. As Duany (2003,<br />

p.283-284) notes: “For many racially mixed immigrants<br />

(from the Caribbean), coming to America<br />

has meant coming to terms with their own,<br />

partially suppressed, sometimes painful, but<br />

always liberating sense of negritude.”<br />

As Puerto Ricans and “Dominican Yorks”<br />

on the mainland participate in these different<br />

realities, they become culturally differentiated<br />

from their Caribbean counterparts. The return<br />

to the idealized homeland can lead to disenchantment<br />

and psychic pain (FLORES, 2000),<br />

as they struggle with the clashes between the<br />

imaginary and the “real,” and the disorienting<br />

identity claims of “here” and “there”.<br />

yo peleo por ti, puerto rico, ¿sabes?<br />

yo me defiendo por tu nombre, ¿sabes?<br />

entro en tu isla, me siento extraño, ¿sabes?<br />

entro a buscar más y más, ¿sabes?<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 239-257, jan./jun., 2006 247


In search of América: latina/os (re)constructing the U.S.A.<br />

248<br />

pero tú con tus calumnias,<br />

me niegas tu sonrisa<br />

me siento mal, agallao<br />

yo soy tu hijo,<br />

de una migración<br />

pecado forzado,<br />

me man<strong>da</strong>ste a nacer nativo en otras tierras<br />

por qué, porque éramos pobres, ¿ver<strong>da</strong>d?<br />

Porque tu querías vaciarte de tu gente pobre,<br />

Ahora regreso, con un corazón boricua, y tú,<br />

Me desprecias, me miras mal, me atacas mi hablar,<br />

Mientras comes mcdonalds en discotecas<br />

americanas,<br />

Y no pude bailarla salsa en san juan, la que yo<br />

Bailo en mis barrios llenos de to<strong>da</strong>s tus<br />

costumbres,<br />

así que, si tú no me quieres, pues yo tengo<br />

un puerto rico sabrosísimo en que buscar refugio<br />

en nueva york, y en muchos otros callejones<br />

que honran tu presencia, preservando todos<br />

tus valores, así que,por favor, no me<br />

hagas sufrir, ¿sabes? (LAVIERA, 1985, p.53)<br />

The differing experiences and perceptions<br />

of mainland and Island Puerto Ricans could not<br />

have been more apparent than in their response<br />

to Mattel’s release of “Puerto Rican Barbie”<br />

in 1997. Puerto Ricans on the Island were<br />

delighted; Puerto Rican Barbie was an affirmation<br />

of their existence. Mainland Puerto Ricans,<br />

on the other hand, were offended by her<br />

light skin, Anglicized features, and colonial-tiered<br />

dress. The divergent views were prominently<br />

displayed in Island and mainland Puerto Rican<br />

news coverage.<br />

Evidently both communities wrapped a different<br />

narrative around the plastic and made the Barbie<br />

a desirable playmate – silent, but endowed – to<br />

engage in the increasingly high-stakes game of<br />

interests and intrigue called ‘Puerto Rican identity.’<br />

(NEGRÓN-MUNTANER, 2002, p.39)<br />

Puerto Ricans’ disruption of racial categories<br />

in this instance – and so many others—<br />

speaks to the emergence of new ways of being<br />

“Puerto Rican” on the mainland. Like Chicanos’<br />

insistence on defining who they are, it also<br />

reveals the socially constructed nature of racial<br />

categories, providing yet another rent in<br />

the fabric of American binary constructions<br />

of race.<br />

From Melting Pot to Tapestry?<br />

Latina/os have been major contributors to a<br />

seismic shift in the U.S., from celebrating the<br />

nation as a homogeneous melting pot to conceptualizing<br />

and (at least in name) valuing it as culturally<br />

pluralistic, a “tapestry” or a “salad” made<br />

up of diverse and distinctive ingredients that taken<br />

together comprise a whole, with all contributing<br />

to the “mix.” U.S. history and literature texts in<br />

schools to<strong>da</strong>y are more “multicultural” and sensitive<br />

to cultural stereotyping than texts in the<br />

1960s (REINHOLD, 1991). More accurate and<br />

balanced treatments of Mexican-U.S. relations<br />

may still all too infrequently make their way into<br />

high school U.S. history texts (ROSALDO and<br />

FLORES, 1997), but there has been movement.<br />

Schools can no longer punish students for speaking<br />

Spanish on school grounds, as happened<br />

into the 1960s (CRAWFORD, 1995). Schools<br />

are now required to provide students assistance<br />

learning English since the 1973 Supreme Court<br />

case Lau vs. Nichols. Teachers in training are<br />

required to complete coursework on multicultural<br />

education. By 1997, the renowned American<br />

historian Nathan Glazer, who had earlier characterized<br />

the calls for affirming cultural pluralism<br />

and the emphasis on the oppression<br />

experienced by minority groups as divisive, epitomized<br />

the shift by proclaiming in print that “we<br />

are all multiculturalists now.”<br />

Backlash<br />

The transition has not been a smooth and<br />

unidirectional one. The profound critique launched<br />

by people of color, women, social historians,<br />

and other academics and activists<br />

confronted a sustained counterattack beginning<br />

in the 1980s. It is a culture war that continues<br />

to the present <strong>da</strong>y.<br />

In my own ethnographic research in upstate<br />

New York in the early 1990s 19 , in which I examined<br />

community and school discourses regar-<br />

19 See American Conversations (BIGLER, 1999) for a fuller<br />

treatment of the community conflict over multiculturalism<br />

and bilingualism.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 239-257, jan./jun., 2006


ding educational and economic success and<br />

Latina/os’ perceived inability to make progress<br />

in these areas, I repeatedly found Latina/os<br />

compared unfavorably to earlier white European<br />

immigrants. Their greater economic marginalization<br />

was seen not as owing to forces<br />

largely beyond their control – discrimination, loss<br />

of manufacturing jobs, globalization, impoverished<br />

homelands – but rather as the product of<br />

their unwillingness to work hard and sacrifice.<br />

Outspoken community elders – descen<strong>da</strong>nts of<br />

the turn-of-the-century southern and eastern<br />

Europeans – envisioned welfare as something<br />

that individuals abused to avoid work 20 :<br />

[Hispanics] seem to feel that they are owed<br />

something (…) [They should] exercise their<br />

rights and return to their native homeland.<br />

America, love it or leave it.” (Letter to the Editor)<br />

[Latinos are responsible for] 90 percent of all<br />

troubles in Arnhem. (…) You people aren’t<br />

wanted here – go get welfare somewhere else.<br />

(Letter to Latino community activists, read at a<br />

school board meeting)<br />

I can’t understand why the Hispanic population<br />

doesn’t want to be educated (…) Do you think<br />

that (…) [European immigrants] were just handed<br />

everything? No, they worked hard. (Speaker #13,<br />

public forum)<br />

Latina/os’ insistence on maintenance of a<br />

distinct ethnic identity and their use of Spanish<br />

in public were held to be choices that represented<br />

their unwillingness to “become” Americans:<br />

Why are these [Puerto Rican] kids doing this?<br />

Why are they not speaking English when they<br />

can? Why aren’t they trying to fit into the<br />

mainstream? (…) There’s never going to be an<br />

American identification if we all have our own<br />

areas. They’re not different than earlier waves.<br />

They worked, they learned the language, and that<br />

was your key to success. (Debra Moskowitz, Euro-<br />

American Spanish language teacher, age thirty)<br />

Keep your heritage and language, speak Spanish<br />

at home or with your friends, but learn to speak<br />

English in school and the outside world if you<br />

want to succeed. [Loud applause from the<br />

audience.] Whether you like it or not, this is an<br />

English-speaking country (…) I myself am<br />

learning Spanish because I want to. You have to<br />

Ellen Bigler<br />

want to learn English. (School board member,<br />

public forum)<br />

They [Latinos] come here, they want their own<br />

ways, they want to change our ways. And our<br />

ways is our ways, and if they want their own<br />

ways, they should go back to wherever they came<br />

from. (Talk show caller)<br />

Latinos, these older Euro-American citizens claimed,<br />

were confronting neither more nor less than<br />

what their own grandparents had confronted.<br />

If there’s been racism in Arnhem school district,<br />

maybe I’m naïve, I don’t know about it. I didn’t<br />

feel it. . . . The Italians were called guineas and<br />

wops, so what’s new, what’s the difference?<br />

(Retired teacher, public forum)<br />

(Speaking to a guest who is upset about her<br />

<strong>da</strong>ughter being called “nigger”) Let me tell you<br />

something. Just like the one lady said, they were<br />

all – what are the Italian people called? Grease<br />

balls, wops, and everything like that. (…) [Did]<br />

they make a big fuss over it, and have trouble in<br />

the community over it? (…) I think it’s [the<br />

complaints in the Latino community about their<br />

treatment] turning a lot of people that did like<br />

the Costa Ricans, the Puerto Ricans, the<br />

Hispanics, I think it’s turning them the other way<br />

a lot. (local talk show caller)<br />

What went unacknowledged in these community<br />

discourses were the structural factors<br />

and the ongoing racism facing Latina/os, differentiating<br />

them from earlier immigrants.<br />

The Latina/o community challenged the picture<br />

painted by the white ethnic senior citizens.<br />

“Difference” was not problematic; they portrayed<br />

it as a positive quality and something that<br />

the nation was founded on. Spanish language<br />

maintenance was not a hindrance, but rather a<br />

strength.<br />

Nowhere in the U.S. Constitution is English the<br />

official language. (…) They left it open so that<br />

people who wanted to come (…) didn’t have to<br />

20 The mid-1990s welfare reforms that put in place policies<br />

profoundly limiting people’s access to welfare were<br />

envisioned as the catalyst for putting people back to work,<br />

and initially deemed a success. The reality was otherwise: it<br />

was the expansion of work opportunities in the late 1990s<br />

boom that meant that people could leave welfare. With<br />

jobs once again in jeopardy, the perceived success of the<br />

cutbacks appears to have been overly optimistic.<br />

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In search of América: latina/os (re)constructing the U.S.A.<br />

250<br />

worry about speaking English to fit in. (…) The<br />

“English Only” movement is only gonna <strong>da</strong>mage<br />

the greater culture (…) because we’re such a<br />

mixture of many, many cultures. (Latina/o college<br />

student, public forum)<br />

We should learn from other ethnic minorities who<br />

regret that they can’t speak their native language.<br />

(…) We don’t want our children to have that<br />

same regret. (Latina/o community agency leader,<br />

newspaper interview)<br />

It was racism and exclusion, they argued,<br />

that <strong>da</strong>maged the self-esteem and chances for<br />

Latina/os’ upward mobility:<br />

The self-esteem of Hispanic students is suffering<br />

in our schools, because we hear every <strong>da</strong>y of<br />

negative messages about who we are and why<br />

we are here (…). We want to achieve (…) to<br />

organize as a group (…) [to] deal with the<br />

prejudice (…) constructively. (Latina/o high<br />

school student, public forum)<br />

Without that information [ethnic contributions<br />

to the United States], children are handicapped<br />

– they are defenseless – and information about<br />

their heritage is needed to arm them (…). If they<br />

hear nothing (…) then they think, ‘I must be<br />

nothing.’ (Latina/o community leader, newspaper<br />

interview)<br />

The debates in this particular community had<br />

their own local “accent,” but they were held<br />

against the backdrop of a larger national debate<br />

about language, the telling of history, and how<br />

to explain the prevailing sense of decline in the<br />

nation’s wellbeing. The impact of de-industrialization<br />

and the move toward a service economy<br />

were being more intensely felt as economic restructuring<br />

threatened the traditional livelihood<br />

of blue collar male workers. Minorities simultaneously<br />

were entering the middle class and previously<br />

“white” institutions in greater numbers<br />

because of the successes of the civil rights<br />

movements and demanding changes. Conservative<br />

whites, threatened by earlier gains like<br />

government-supported affirmative action programs<br />

and bilingual education, organized to oppose<br />

what they viewed as “reverse racism,”<br />

“government handouts,” and divisive language<br />

and education policies they perceived as pandering<br />

to minorities. English Only and Official<br />

English movements gained ground 21 . Conservative<br />

intellectuals like historian Arthur Schlesinger<br />

joined the raucous debate in publishing<br />

The Disuniting of America (1991), which argued<br />

that the promotion of multiculturalism was<br />

<strong>da</strong>ngerous to democracy because it threatened<br />

the unity of the nation. Racial tensions were<br />

palpable, albeit in a new form.<br />

Into the 21 st Century<br />

While the economic boom beginning in<br />

the mid-1990s helped to momentarily quell some<br />

of the more strident voices, the subsequent economic<br />

downturn and the psychological and economic<br />

impact of the September 11, 2001 attacks<br />

on the World Trade Center Towers have contributed<br />

to a climate of uncertainty and greater<br />

potential for conservative movements. Latinos,<br />

whose demographic growth is being highly publicized,<br />

make an easy target.<br />

Latina/os surpassed African-Americans as<br />

the second largest “racial” group in New York<br />

City in 1996; California joined New Mexico in<br />

becoming a “majority-minority society” in 2000;<br />

and in seven of the ten largest cities Latina/os<br />

now outnumber African Americans (DAVIS,<br />

2001). Calls to close the borders against the<br />

“brown tide rising” have become louder.<br />

California governor Pete Wilson in his reelection<br />

campaign, for instance, spoke of “hordes<br />

of Mexican immigrants,” “invaders” that<br />

“pour” into the U.S., and of California as a state<br />

“awash under a brown tide” (SANTA ANA,<br />

2002, p.286-287). Books like Alien Nation<br />

(BRIMELOW, 1995), which argues that the<br />

American people are in <strong>da</strong>nger of being engulfed<br />

by foreigners, hit a responsive chord among<br />

many Americans. With a sense of social and<br />

economic vulnerability on the rise since the late<br />

1990s, nativist forces have found new villains.<br />

African American “welfare queens,” purported<br />

to be living off the fat of the land, have been<br />

21 See Bigler, 1999 for an analysis of this period, and an upclose<br />

ethnographic study of a community locked in conflict<br />

over multiculturalism and bilingual education.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 239-257, jan./jun., 2006


displaced by the “flood” of Mexican immigrants<br />

as the culprits likely to bring down the nation.<br />

The well-read magazine Foreign Policy recently<br />

printed excerpts from Who Are We by Samuel<br />

Huntington (2004b), Chairman of the<br />

Harvard Academy for International and Area<br />

Studies, in which the author sounds the alarm<br />

against Hispanic immigration. “One index foretells<br />

the future,” he warns ominously, “In 1998,<br />

‘Jose’ replaced ‘Michael’ as the most popular<br />

name for newborn boys in both California and<br />

Texas” (HUNTINGTON, 2004a, p.38).<br />

The persistent influx of Hispanic immigrants<br />

threatens to divide the United States into two<br />

peoples, two cultures, and two languages. Unlike<br />

past immigrant groups, Mexicans and other<br />

Latinos have not assimilated into mainstream<br />

U.S. culture, forming instead their own political<br />

and linguistic enclaves – from Los Angeles to<br />

Miami – and rejecting the Anglo-Protestant<br />

values that built the American dream. The United<br />

States ignores this challenge at its peril.<br />

(HUNTINGTON, 2004a, p.30)<br />

Responding to the outcry over Huntington’s<br />

article, Patrick Buchanan, well-known spokesperson<br />

for right-wing causes and editor of The<br />

American Conservative, concurred:<br />

Will the U.S. Southwest cease to be truly American<br />

by mid-century? Is Mexifornia reality and<br />

Mexamerica 22 a certainty? (…) It is impossible to<br />

see who, or what, is going to stop the invasion of<br />

the United States before the nation’s character is<br />

altered forever, and we become two nations with<br />

two languages and cultures – not unlike the<br />

Palestinians and Israelis on the West Bank.<br />

(BUCHANAN, 2004)<br />

Huntington further argued that working class<br />

and middle class “white nationalism” in response<br />

to loss of jobs, government affirmative action<br />

programs, and perceived cultural and<br />

linguistic threats from the expanding power of<br />

Hispanics may be moving the U.S. toward racial<br />

conflict without precedent in our history.<br />

Continuation of large-scale immigration:<br />

… could divide the United States into a country<br />

of two languages and two cultures…. There is<br />

no Americano dream. There is only the American<br />

dream created by an Anglo-Protestant society.<br />

Ellen Bigler<br />

Mexican Americans will share in that dream and<br />

in that society only if they dream in English.<br />

(HUNTINGTON, 2004a, p.44-45)<br />

Such arguments reflect an ignorance of,<br />

or willingness to ignore, our immigration and<br />

national history and the changing international<br />

scene. Hispanics are not “invading” the United<br />

States: The percentage of the U.S. that is foreign<br />

born to<strong>da</strong>y, 12.4 percent (U.S. Census<br />

Bureau American Community Survey, 2005),<br />

is lower than in 1890, when 14.8 percent of<br />

Americans were foreign-born (SUÁREZ-<br />

OROZCO and ORFIELD, 2004). Three in five<br />

Hispanics are native-born U.S. citizens, and over<br />

20 percent of immigrants were naturalized by<br />

2002 (DANIELS, 2004). Hispanics are not rejecting<br />

education and choosing to remain impoverished:<br />

Immigrant children are completing<br />

more years of school than did immigrants a century<br />

ago (SUÁREZ-OROZCO and ORFIELD,<br />

2004). Latin American “fatalism” is not about<br />

to create a separate cultural divide within the<br />

nation: Three-quarters of English-speaking Latina/os<br />

(the same percentage as the general<br />

population) disagree with the statement “It<br />

doesn’t do any good to plan for the future because<br />

you don’t have any control over it”<br />

(SURO, 2004). As for the charge that Hispanics<br />

are not hard-working and in pursuit of the<br />

American Dream, while most came to the U.S.<br />

with nothing, 78.6 percent of Hispanics to<strong>da</strong>y<br />

live above the poverty line (DANIELS, 2004).<br />

A recent survey by National Council of La Raza<br />

(2004) found that fully 90 percent strongly or<br />

somewhat agreed with the statement “If you<br />

work hard, you will succeed in America,” and<br />

89 percent strongly agreed that “It is important<br />

that Latina/o children get a college education.”<br />

Finally, while Latinos do tend to value speaking<br />

two languages, they are not the first<br />

American immigrants to want to maintain their<br />

native language. German immigrants – the very<br />

model of successful assimilation – from the<br />

colonial era through the early 1900s created lar-<br />

22 The terms “Mexifornia” and “Mexamerica” combine the<br />

words Mexico with California and America, signifying the<br />

“takeover” by Mexicans.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 239-257, jan./jun., 2006 251


In search of América: latina/os (re)constructing the U.S.A.<br />

ge linguistic enclaves with German-language<br />

instruction in public schools. In 1880, four of<br />

every five students of German descent in St.<br />

Louis, for example, attended bilingual schools<br />

(SURO, 2004). Germans by World War I were<br />

economically and socially integrated into the<br />

U.S. Only the extreme anti-German sentiments<br />

of the war era led them to abandon their language<br />

and oftentimes their very names.<br />

Unfortunately for the nation, given the need<br />

in a globalized economy for speakers of other<br />

languages, Latina/os do not appear to be retaining<br />

their language significantly better than earlier<br />

groups. The 2002 National Survey of Latina/<br />

os found that among second-generation adults,<br />

only seven percent relied on Spanish as the<br />

primary language. Half had no Spanish skills at<br />

all, and the rest were bilingual. Learning English<br />

is considered essential; eighty-six percent<br />

strongly agreed in the National Council of La<br />

Raza Survey (2004) that “The ability to speak<br />

English is important to succeed in this country,”<br />

and 84 percent agree that “The government<br />

should support and expand the numbers of programs<br />

to help immigrants learn English.” Hispanics<br />

also recognize the need to come together<br />

themselves if change is to occur; eighty-eight<br />

percent agreed that “It is important for the Hispanic<br />

community to work together to build political<br />

power.”<br />

Toward New Paradigms<br />

Past models for understanding the immigrant<br />

experience are no longer viable for many of<br />

to<strong>da</strong>y’s newcomers, who are better conceptualized<br />

as “transnationals.” The globalization that<br />

has proceeded apace in recent decades has set<br />

millions of people around the world into motion,<br />

as neoliberal policies displace peoples and First<br />

World countries hold out some meager measure<br />

of hope to the dispossessed. One could argue<br />

that what the U.S. is witnessing is a “harvest<br />

of empire” (GONZALEZ, 2000). U.S. actions<br />

have helped put in place policies and people that<br />

promoted inequalities in its hemispheric neighbors<br />

and ultimately economic instability that dri-<br />

252<br />

ves immigration (as with other colonial powers).<br />

Mexican workers who moved at the whim of<br />

U.S. government needs, and Puerto Ricans<br />

shuttling back and forth between the Island and<br />

mainland in search of survival were perhaps the<br />

earliest transnationals. They are now joined by<br />

a multitude of people who hold multiple allegiances<br />

that straddle physical borders.<br />

Transnational identities cross over territorial<br />

boun<strong>da</strong>ries and national culture in ways that are<br />

difficult to grasp from a traditional ethnographic<br />

perspective (APPADURAI, 1991, 1990). Recent<br />

approaches to transnational communities have<br />

begun by discarding the conventional image of<br />

immigration as a form of cultural stripping away<br />

and complete absorption into the host society<br />

(ROSALDO, 1989). Rather, immigrants belong to<br />

multiple communities with fluid and hybrid<br />

identities that are not necessarily grounded in<br />

geopolitical frontiers but perhaps in subjective<br />

affiliations. Border crossing becomes an apt image<br />

for not just the physical act of moving to another<br />

country but also the crossover between cultures,<br />

languages, and nation-states in which transnational<br />

migrants participate. (DUANY, 1994, p.2)<br />

Older notions of the nation-state, of impermeable<br />

borders, and citizenship must be rethought<br />

in the current era when one of every hundred<br />

people around the world are living in a country<br />

other than their country of birth (FRITZ, 1998).<br />

Latinos are deeply insinuated into the fabric of<br />

this new globalized world as transnational networks<br />

and communities continue to expand.<br />

Sixty-one percent of Mexicans have a relative<br />

currently residing in the United States, and remittances<br />

from abroad are Mexico’s third-largest<br />

source of income (THOMPSON, 2002).<br />

The number of Latin American countries allowing<br />

dual citizenship jumped in the 1990s from<br />

four to ten, including Mexico in 1998. U.S. Latinos<br />

with dual citizenship are voting in federal<br />

elections in their home countries, or even running<br />

for elected office. Regardless of whether<br />

people hold dual citizenship, they retain connections<br />

to their homelands; remittances from the<br />

U.S. to the Dominican Republic for instance<br />

grew from 25 million dollars in 1970 to almost<br />

800 million dollars in 1995 (VÉLEZ-IBÁNEZ<br />

and SAMPAIO, 2002).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 239-257, jan./jun., 2006


Latina/os are by definition adept border crossers<br />

and border straddlers. They cross racial<br />

borders, cultural borders, language borders, physical<br />

borders. They re-invent themselves as “not<br />

neither,” as Sandra Maria Esteves (1984, p.26)<br />

puts it, continuing to maintain their claims to the<br />

right to distinctive identities, to exist in the “borderlands.”<br />

Those “borderlands” are visible in<br />

contemporary Latina/o literatures and the arts.<br />

Chicano artist and social critic Guillermo Gómez-<br />

Pena, poet Sandra Maria Esteves, Chicana activist<br />

and author Gloria Anzaldua, Nuyorican<br />

ethnographer Juan Flores, all examine and embrace<br />

“the ‘Border’ – everything that represents<br />

the interpenetration of social formations and stands<br />

between simple choice of national identity –<br />

as a distinctively Latino and dialectical epistemology”<br />

(DAVIS, 2001, p.18).<br />

Being Puertorriqueña<br />

Americana<br />

Born in the Bronx, not really jíbara 23<br />

Not really hablando bien<br />

But yet, not gringa either. (SANDRA MARIA<br />

ESTEVES, Not neither, 1984)<br />

Creatively playing with English and Spanish,<br />

Guillermo Gómez-Pena reflects in his artistic<br />

manifesto on what “The Border Is” (1993):<br />

Border culture means boycott, complot, ilegali<strong>da</strong>d,<br />

clandestini<strong>da</strong>d, contrabando, transgression<br />

desobediencia binacional…<br />

But it also means transcultural friendship and collaboration<br />

among races, sexes, and generations.<br />

But it also means to practice creative appropriation,<br />

expropriation, and subversion of dominant<br />

cultural forms.<br />

But it also means a multiplicity of voices away<br />

from the center, different geo-cultural<br />

relations among more culturally akin regions….<br />

But it also means regresar, volver y partir: to return<br />

and depart once again . . .<br />

But it also means a new terminology for new<br />

hybrid identities and métiers<br />

Constantly metamorphosizing….<br />

To live in these borderlands can be painful,<br />

and Anzaldúa (1987, p.2-3) paints vivid images<br />

of that pain with words:<br />

1,950 mile-long open wound<br />

dividing a pueblo, a culture,<br />

Ellen Bigler<br />

running down the length of my body,<br />

staking fence rods in my flesh,<br />

splits me splits me<br />

me raja me raja<br />

This is my home<br />

this thin edge of<br />

barbwire.<br />

[This open wound that is the U.S./Mexican<br />

border is]<br />

… where the Third World grates against the first<br />

and bleeds. And before a scab forms it hemorrhages<br />

again, the lifeblood of two worlds merging<br />

to form a third country – a border culture.<br />

Straddling that border, poet Aurora Levins<br />

Morales sees the emergence of a new hybrid<br />

self, and can affirm her “wholeness”:<br />

I am a child of the Americas<br />

a light-skinned mestiza of the Caribbean<br />

a child of many diaspora, born into this continent<br />

at a crossroads.<br />

I am not african. Africa is in me, but I cannot<br />

return.<br />

I am not taína. Taíno is in me, but there is no way<br />

back.<br />

I am not european. Europe lives in me, but I have<br />

no home there.<br />

I am new. History made me. My first language<br />

was spanglish.<br />

I was born at the crossroads and I am whole.<br />

(1986, p.50)<br />

Latina/os have challenged traditional<br />

analytical frames that assume they will travel<br />

a unilinear path of language and cultural<br />

loss, cultural identity shift, and disappearance<br />

into the larger social body. This is in part<br />

an outcome of their unique histories in a racialized<br />

society. It is in part a response to the<br />

differing conditions of contemporary immigration<br />

and the economic restructuring in a globalizing<br />

society that favors bi-national or<br />

transnational identities. It is in part the product<br />

of a series of endless choices they make<br />

and the stories they tell themselves and others.<br />

As Stuart Hall reminds us, identity is “‘production,’<br />

which is never complete, always in<br />

23 “Jibara” is a term used in Puerto Rico to reference the<br />

“genuine” Puerto Rican. In the past it meant someone who<br />

was a “country bumpkin.”<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 239-257, jan./jun., 2006 253


In search of América: latina/os (re)constructing the U.S.A.<br />

process” (1990, p.222). Challenging the national<br />

ideology of monoculturalism and assimilation,<br />

and forcing Euro-Americans to<br />

confront their own checkered past, they have<br />

encountered powerful opposition in the process.<br />

“Producing” themselves within the nation-state,<br />

they have contributed to a<br />

re-defining of what it means to be American.<br />

The “Latinization” of the U.S. goes beyond<br />

cross-over artists, food, and music that have<br />

entered the mainstream; these are only the<br />

most visible elements of a nation in transition.<br />

Latinos are forging cross-national alliances,<br />

revitalizing spent urban areas, remaking<br />

urban ethnoscapes (DAVIS, 2001). “AmeRícan,”<br />

proclaims Nuyorican poet Tato Laviera:<br />

254<br />

REFERENCES<br />

AmeRícan defining myself my own way any way<br />

many<br />

ways Am e Rícan, with the big R and the<br />

accent on the í (1985, p. 95)<br />

As always, the U.S. is being “reinvented”<br />

from forces within and without. But these new<br />

realities co-exist with a nostalgia for an idealized<br />

past. What remains to be seen is whether<br />

“America becoming 24 ” will embrace the diversity<br />

and potential of the growing numbers of<br />

Latinos and become the nation that it has so<br />

long claimed to be. The “threat” to the nation<br />

for the foreseeable future will not be Latinos,<br />

but rather the failure of the national will to create<br />

a more equitable 25 and just society that can<br />

deliver on the promise that is America.<br />

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24 The phrase “America Becoming” was used as part of the title of a report on the state of racial relations and racial equity<br />

in the U.S., commissioned in the 1990s by then-President Bill Clinton<br />

25 A review of statistical <strong>da</strong>ta underlines the critical nature of this situation. Almost twenty-two percent (21.9) of Hispanics<br />

live below poverty level (2004), compared to 8.6 percent of non-Hispanic whites. Information available at , accessed September 6, 2006. Only<br />

57 percent of Hispanics have a high school or beyond education (2003) compared to 89 percent of non-Hispanic whites.<br />

Information available at , accessed<br />

September 6, 2006.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 239-257, jan./jun., 2006


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Recebido em 02.08.04<br />

Aprovado em 24.08.06<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 239-257, jan./jun., 2006 257


RESENHAS<br />

RESENHAS


PRADO, Guilherme do Val Toledo & SOLIGO, Rosaura (org.). Porque<br />

escrever é fazer história: revelações, subversões, superações. Prefácio Rui<br />

Canário. Campinas, SP: Graf. FÉ/UNICAMP, 2005. 384 p.<br />

Naddija Nunes ∗<br />

PRADO, Guilherme do Val Toledo & SOLIGO, Rosaura (org.). Why to<br />

Write and do History: revelations, subversions and overtaking. Prefácio Rui<br />

Canário. Campinas, SP: Graf. FÉ/UNICAMP, 2005. 384 p.<br />

O livro Porque escrever é fazer história,<br />

organizado por Prado & Soligo, professores <strong>da</strong><br />

Facul<strong>da</strong>de de <strong>Educação</strong> <strong>da</strong> UNICAMP, o primeiro,<br />

coordenador, e o segundo, integrante do<br />

Grupo de Estudos e Pesquisas em <strong>Educação</strong><br />

Continua<strong>da</strong> – GEPEC, apresenta a leitura e a<br />

escrita sob cinco perspectivas: 1) a escrita como<br />

instrumento para refletir sobre quem somos; 2)<br />

o exercício <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de escrever e pensar;<br />

3) a sistematização dos saberes e conhecimentos<br />

construídos; 4) o uso <strong>da</strong> escrita<br />

favorecendo o desenvolvimento intelectual; e<br />

5) a afirmação profissional.<br />

Esta publicação reúne artigos de professores-pesquisadores,<br />

integrantes do GEPEC e <strong>da</strong><br />

Facul<strong>da</strong>de de <strong>Educação</strong> <strong>da</strong> UNICAMP, e de<br />

profissionais com experiência na área de formação<br />

continua<strong>da</strong> de diferentes estados do<br />

Brasil, apresentados sob a forma de relato de<br />

experiências cujo foco é a leitura e a escrita.<br />

Os organizadores desta obra articularam<br />

três partes compostas em capítulos distintos,<br />

mantendo a intertextuali<strong>da</strong>de e o diálogo entre<br />

os diferentes textos, através de artigos que revelam<br />

a importância <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> escrita no<br />

desenvolvimento pessoal e profissional dos educadores.<br />

A segun<strong>da</strong> parte relata as dificul<strong>da</strong>des<br />

e a importância <strong>da</strong> produção de textos para<br />

estu<strong>da</strong>ntes e pesquisadores sobre as questões<br />

apresenta<strong>da</strong>s no ato de escrever, a potenciali<strong>da</strong>de<br />

do trabalhar com memórias na graduação<br />

e na pesquisa acadêmica, além de provocar a<br />

escrita no âmbito <strong>da</strong> graduação e <strong>da</strong> pesquisa,<br />

visando à contribuição na subversão de metodologias<br />

convencionais de tratar a escrita no<br />

espaço acadêmico. E por último, as superações<br />

na forma de relatos, manifestando a importância<br />

<strong>da</strong> produção de textos nas práticas<br />

<strong>da</strong> formação continua<strong>da</strong>, as quais valorizam e<br />

incentivam a escrita dos educadores em tipologia<br />

e gênero discursivos diversos como meio<br />

de superar a cristalização dessas práticas.<br />

A primeira parte do livro está subdividi<strong>da</strong><br />

em três capítulos em cujo primeiro destaco<br />

quatro revelações anuncia<strong>da</strong>s por Soligo &<br />

Prado, no artigo Leitura e escrita: dois capítulos<br />

desta história de ser educador, como<br />

conquistas obti<strong>da</strong>s pela leitura e pela escrita:<br />

“a possibili<strong>da</strong>de de utilizá-las como resposta a<br />

necessi<strong>da</strong>des de diferentes naturezas; o direito<br />

de autoria; o exercício <strong>da</strong> expressão” e que<br />

“ler e escrever são ativi<strong>da</strong>des de risco.” (p.<br />

24). Ao longo do texto, os autores apresentam<br />

um registro de um jogo de transgressão, fruto<br />

de uma interlocução imaginária, entre pensadores<br />

<strong>da</strong> atuali<strong>da</strong>de que vêm manifestando<br />

* Mestre em <strong>Educação</strong>. Professora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Bahia – UNEB/Departamento de <strong>Educação</strong> I.<br />

Diretora <strong>da</strong> Editora UNEB e Diretora <strong>da</strong> Associação Brasileira de Editoras Universitárias - Região Nordeste ABEU-<br />

RN. Endereço para correspondência: UNEB/DEDC I, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula – 41150-000 SALVADOR/<br />

BA. E-mail: naddija.nunes@uol.com.br / naddijanunes@uneb.br<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 261-265, jan./jun., 2006 261


idéias sobre possíveis riscos e conquistas que<br />

o leitor pode experienciar através <strong>da</strong> leitura e<br />

<strong>da</strong> escrita.<br />

A primeira emoção com palavras é de Elisa<br />

Lucin<strong>da</strong> (2002) 1 , poetisa e atriz brasileira: “A<br />

poesia é síntese filosófica, fonte de sabedoria e<br />

bíblia dos que, como eu, crêem na eterni<strong>da</strong>de<br />

do verbo, na ressurreição <strong>da</strong> tarde e na vi<strong>da</strong><br />

bela, amém!”; Guiomar de Grammont (in: PRA-<br />

DO; CONDINI, 1999, p. 71-73) revela: “Ler<br />

realmente não faz bem. A criança que lê pode<br />

se tornar um adulto perigoso, inconformado com<br />

os problemas do mundo, induzido a crer que tudo<br />

pode ser de outra forma.” (p. 27); Paulo Freire<br />

(1995, p. 29 e 34) eternizou na expressão que<br />

“ler (...) é um trabalho paciente, desafiador,<br />

persistente. Não é tarefa para gente demasiado<br />

apressa<strong>da</strong> ou pouco humilde” (p. 29). Nesta<br />

mesma perspectiva de revelações Prado &<br />

Soligo conduzem o leitor para uma reflexão sobre<br />

a escrita e convi<strong>da</strong>m Percival Leme (apud<br />

BRITO, 2003, p. 49) para manifestar que riscos<br />

são estes que a escrita tem? “É uma arma<br />

perigosa, se não por outra razão, porque seu<br />

destino é a leitura. A escrita documenta. Comunica.<br />

Organiza. Eterniza. Subverte. Faz pensar.<br />

...” (p. 32). Ao concluir o texto, eles<br />

conclamam os educadores a ensinar todos os<br />

seus alunos a ler e a escrever.<br />

Prado & Soligo, ao reunirem contribuições<br />

sobre o gênero textual memorial, no artigo Memorial<br />

de formação: quando as memórias<br />

narram a história <strong>da</strong> formação, anunciam<br />

para os educadores a necessi<strong>da</strong>de de enfrentar<br />

o desafio de assumir a palavra e escrever sobre<br />

o processo de formação e a sua prática<br />

educativa. O memorial de formação é o registro<br />

que preserva a nossa história do esquecimento.<br />

Nele o autor assume ser, ao mesmo<br />

tempo, escritor/narrador/personagem <strong>da</strong> sua<br />

história. As autoras conduzem o leitor a elaborar<br />

o seu memorial por caminhos antes nunca<br />

sugeridos e configura-se como um texto<br />

di<strong>da</strong>ticamente correto. Concluem com uma revelação<br />

de Clarice Lispector (1982): “É na hora<br />

de escrever que muitas vezes fico consciente<br />

de coisas, <strong>da</strong>s quais, sendo inconsciente, eu<br />

antes não sabia que sabia.” (p. 23).<br />

262<br />

Em seu texto O diálogo sobre as memórias<br />

nos clássicos e nossas clássicas memórias,<br />

Cunha 2 manifesta que “esse exercício<br />

de escrita abre a possibili<strong>da</strong>de de lançar um<br />

novo olhar para as experiências vivi<strong>da</strong>s, a reali<strong>da</strong>de,<br />

o mundo e a cultura, revelando saberes<br />

e conhecimentos tecidos na prática <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

e <strong>da</strong> profissão de professoras.” (p.63). A autora<br />

busca na literatura revelar, através dos<br />

clássicos, a intenção <strong>da</strong> escrita de ca<strong>da</strong> autor,<br />

assim como responder por que escrevemos<br />

memoriais? Para que registrar memórias? E<br />

neste sentido, transportando Soares (1991) ao<br />

texto, ela reescreve: “nossa vi<strong>da</strong> é bor<strong>da</strong><strong>da</strong> sem<br />

conhecimento prévio do desenho riscado e sem<br />

conhecermos por inteiro a peça. Voltarmos<br />

para olhar, admirar e pensar sobre o bor<strong>da</strong>do<br />

já feito pode desven<strong>da</strong>r o risco desconhecido,<br />

garantindo a compreensão de partes ignora<strong>da</strong>s.”<br />

(p. 71).<br />

O conjunto de artigos <strong>da</strong> parte II, que trata<br />

de subversões, inicia-se com a reflexão sobre<br />

a relação do escritor e seu/s outro/s no ato <strong>da</strong><br />

escrita e no ato <strong>da</strong> leitura. Enfoca a questão<br />

‘quem escreve/quem lê’ e ‘o que se escreve/o<br />

que se lê’, envolvendo confrontos, concepções,<br />

idéias, contradições, desdobramentos surgidos<br />

de conseqüências <strong>da</strong> escrita, quando esta é socializa<strong>da</strong><br />

e li<strong>da</strong>. Destaca-se dentre o conjunto<br />

de textos o que Mota 3 intitula O escritor e seu<br />

outro, no qual toma como referência a sua experiência<br />

como pós-graduan<strong>da</strong> no Curso de<br />

Mestrado em <strong>Educação</strong>. O texto se processa<br />

partindo de questionamentos como: quem é esse<br />

escritor? O que está por trás do ato de escrever?<br />

Eu, a escrita e o outro. O escritor e seu<br />

Outro: encontros e desencontros. Para ela, o<br />

“escritor é o autor que componha uma escrita<br />

seja de que tipologia for (...) o importante é escrever<br />

para alguém ler.” Ela confessa que a<br />

leitura deu-lhe suporte e segurança para escrever.<br />

(p. 71).<br />

1 Fragmento <strong>da</strong> palestra proferi<strong>da</strong> por Elisa Lucin<strong>da</strong>, sobre a<br />

utili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> poesia, na 14ª feira internacional do livro de<br />

Cuba, em janeiro de 2005.<br />

2 Professora universitária e integrante do GEPEC<br />

3 Integrante do GEPEC, mestre e professora (convenia<strong>da</strong>)<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal do Acre.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 261-265, jan./jun., 2006


O artigo de Ropelato 4 & Souza 5 , Escrita de<br />

si: um ponto na linha do avesso, pelo próprio<br />

título já sugere o estilo adotado no texto. Rico em<br />

metáforas e conduzido como pauta musical, analisa<br />

a produção escrita de futuros profissionais <strong>da</strong><br />

educação e os modos como os universitários interagem<br />

com os textos que produzem. Neste sentido,<br />

as autoras apontam que “a escritura necessita<br />

de desenvolvimento e de sucessão, simultanei<strong>da</strong>de<br />

e instantanei<strong>da</strong>de”. (p. 98).<br />

Fernandes 6 traz partes do seu memorial de<br />

formação para deixar marcas com possibili<strong>da</strong>des<br />

de mostrar-se como sujeito-professora em<br />

formação. No seu artigo Entre a disciplina e<br />

a (re)invenção: a escrita <strong>da</strong>s professoras no<br />

cotidiano escolar e nos entremeios do discurso<br />

pe<strong>da</strong>gógico, ela busca estabelecer uma<br />

relação entre o seu memorial e os escritos <strong>da</strong>s<br />

professoras. Ela considera que é preciso construir<br />

autonomia e a autoria <strong>da</strong>quilo que falamos<br />

e escrevemos, a partir <strong>da</strong> reflexão sobre o que<br />

nos atravessa e influencia, de forma a poder<br />

li<strong>da</strong>r criticamente com esses determinismos.<br />

Tamboril 7 reflete em seu artigo, Memórias<br />

de escrita e desenvolvimento <strong>da</strong> competência<br />

escritora na formação de professoras: uma<br />

experiência escritora na formação de professoras:<br />

uma experiência no Portal <strong>da</strong> Amazônia,<br />

a importância <strong>da</strong> escrita como estratégia de<br />

formação de professoras, tomando como referência<br />

a própria experiência. Ela é convenci<strong>da</strong><br />

de que “professores e professoras também querem<br />

aprender e não só ensinar”. (p.131)<br />

Varani 8 , em Memórias de professores na<br />

pesquisa em educação: experiências que reexistem,<br />

confessa que a escola é um espaço de<br />

possibili<strong>da</strong>des. A experiência vivi<strong>da</strong> com um<br />

grupo de professores, que gestou um projeto<br />

político pe<strong>da</strong>gógico em uma escola pública em<br />

São Paulo, levou-a a destacar duas lições: a<br />

primeira, que “o processo de recuperação de<br />

memória supera perspectivas que não consideram<br />

a escola como espaço de produção”, a segun<strong>da</strong>,<br />

que “o conjunto de experiências relatado<br />

pelos professores reflete o conjunto do trabalho<br />

docente coletivo.” (p. 140).<br />

Nogueira 9 narra uma experiência de pesquisa<br />

conseqüente de um programa de forma-<br />

ção continua<strong>da</strong>. Memórias e quintais confirma<br />

que a escrita de memoriais se constitui como<br />

espaço para interagir com momentos esquecidos,<br />

“de conhecer a força real de suas histórias,<br />

de narrar suas memórias.”<br />

Em Escrita de professoras: estratégia de<br />

formação e instrumento de valorização profissional,<br />

Zibetti 10 apresenta experiências de<br />

formação de professoras alfabetizadoras cuja<br />

ênfase foi no uso <strong>da</strong> escrita como estratégia<br />

formadora e reflete sobre algumas conquistas<br />

e desafios desta prática.<br />

Melo 11 revela em Resistência, dificul<strong>da</strong>des<br />

e avanços: o registro escrito como estratégia<br />

de formação na Universi<strong>da</strong>de que<br />

as escritas foram evoluindo: de registros mais<br />

descritivos para registros mais reflexivos. Usar<br />

o registro como dispositivo de formação reafirma<br />

o quanto esse tipo de proposta é um recurso<br />

importante para o desenvolvimento pessoal<br />

e profissional que deve ser considerado nos<br />

cursos de formação de professores.<br />

Garcia 12 e Dutoit 13 em Ler e escrever, a<br />

quem se destina? Uma abor<strong>da</strong>gem sobre o<br />

ensino <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> produção de textos<br />

no Ensino Superior, evidenciam desafios e<br />

alertam para que “professores e alunos pensem<br />

em projetos ou programas que superem as<br />

limitações sobre a leitura e a escrita e as enca-<br />

4 Carla Clauber <strong>da</strong> Silva Ropelato: mestre em educação,<br />

professora colaboradora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Joinville e<br />

supervisora <strong>da</strong> Secretaria Municipal de <strong>Educação</strong>.<br />

5 Roselete Fagundes Aviz de Souza: mestre em educação,<br />

professora colaboradora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Joinville e<br />

supervisora <strong>da</strong> Secretaria Municipal de <strong>Educação</strong>.<br />

6 Carla Helena Fernandes: pe<strong>da</strong>goga, doutoran<strong>da</strong> na Unicamp<br />

e integrante do GEPEC.<br />

7 Maria Ivonete Barbosa Tamboril: pe<strong>da</strong>goga, mestre e doutoran<strong>da</strong><br />

na USP.<br />

8 Adriana Varani: doutora pela Unicamp e integrante do<br />

GEPEC.<br />

9 Eliane Greice Davanço Nogueira: professora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

de Mato Grosso do Sul e integrante do GEPEC.<br />

10 Marli Lúcia Tonatto Zibetti: professora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

Federal de Rondônia.<br />

11 Elisabete Carvalho de Melo: professaora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

Federal do Acre.<br />

12 Midian Garcia: professora <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de Jorge Amado e <strong>da</strong><br />

UESB, Bahia.<br />

13 Rosana Dutoit: professora, coordenadora de projetos <strong>da</strong><br />

Abaporu.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 261-265, jan./jun., 2006 263


em como práticas que lhes caberá ensinar.”<br />

(p. 185)<br />

Chaluh 14 , ao refletir sobre os processos de<br />

leitura e de escrita ocorridos no espaço de formação,<br />

no artigo Leitura e escrita: possibili<strong>da</strong>des<br />

para a reflexão, procura compreender<br />

o significado <strong>da</strong> inclusão <strong>da</strong> literatura na disciplina<br />

Prática de Ensino nas Séries Iniciais, ao<br />

tempo em que instiga sobre o sentido de valorizar<br />

a leitura e descobrir pistas que permitam<br />

entender a prática de leitura que privilegia a literatura.<br />

Ela busca em Larrosa (2002) uma<br />

definição para a formação de um outro tipo de<br />

leitor que possa fazer <strong>da</strong> ‘leitura uma aventura’.<br />

Além disto, compreender que “o mais importante<br />

não é ter um método para ler, mas saber<br />

interiorizar-se por territórios inexplorados no<br />

qual possamos produzir sentidos novos e múltiplos.”<br />

(p. 199)<br />

A experiência <strong>da</strong> escrita ou reflexões sobre<br />

relatos de formação docentes narrados<br />

na liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong> leitura, contribuição trazi<strong>da</strong><br />

por Santos 15 , propõe a “leitura do cotidiano escolar<br />

como possibili<strong>da</strong>des de organização de<br />

narrativas <strong>da</strong>s experiências docentes e de organização<br />

de conhecimentos lastreados na experiência.”<br />

(p. 214).<br />

Ferreira 16 , em Uma experiência de produção<br />

coletiva de textos, conclui a segun<strong>da</strong><br />

parte narrando três experiências que aconteceram<br />

em momentos diferentes nos encontros<br />

do GEPEC. Ao compreender a produção coletiva<br />

de textos, a partir “do pressuposto de que a<br />

ação de ler e socializar a própria produção reflexiva<br />

extravasa e amplia o texto e seu contexto<br />

inicial, abrindo-o para o infinito”, ela<br />

confirma que assim “as idéias já não são mais<br />

de um único sujeito, mas <strong>da</strong>queles que fazem<br />

do texto um exercício de polifonia.” (p. 241).<br />

Em superações, última parte desta obra,<br />

Fujikawa 17 destaca no seu artigo, A escrita<br />

como pretexto de reflexão <strong>da</strong> prática pe<strong>da</strong>gógica<br />

e como estratégia de intervenção na<br />

formação de professores, a socialização dos<br />

registros como estratégia de intervenção privilegia<strong>da</strong><br />

na formação, a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> revisão<br />

<strong>da</strong>s ações e dos posicionamentos assumidos nas<br />

diferentes experiências vivencia<strong>da</strong>s.<br />

264<br />

Rosa 18 , ao revelar sobre A escrita dos professores:<br />

instrumento de reflexão sobre a<br />

prática pe<strong>da</strong>gógica, anuncia que a escrita é<br />

um auxílio à memória e que escrever vai além<br />

do contar, necessitando de escolhas e decisão<br />

sobre o quê e como contar.<br />

Neves 19 evidencia, em seu artigo O Relatório<br />

de aprendizagem como estratégia de<br />

avaliação formativa e de desenvolvimento<br />

profissional docente, a relação existente entre<br />

a leitura, escrita e orali<strong>da</strong>de; o exercício de<br />

escrever sobre a prática sendo um elemento<br />

desafiador do professor.<br />

Foi escrevendo sobre O que revelam profissionais<br />

<strong>da</strong> educação quando refletem por<br />

escrito sobre sua trajetória profissional, que<br />

Moraes 20 acredita ser competência profissional<br />

essencial à atuação de um professor reflexivo<br />

a capaci<strong>da</strong>de de registrar o que pensa<br />

sobre o que faz.<br />

Vaz 21 e Veliago 22 afirmam, no artigo Ler<br />

para simplesmente ler. Ler para melhor escrever,<br />

que os educadores precisam “assumir<br />

o seu próprio lugar como participantes <strong>da</strong> cultura<br />

escrita”. (p. 319).<br />

Corroborando com estas idéias, Broner 23<br />

em A escrita de diários no processo de formação<br />

profissional revela os sentidos que elaborou<br />

no exercício <strong>da</strong> formação de professores<br />

e destaca a linguagem escrita como o caminho<br />

para um trabalho voltado para indivíduos e as<br />

14 Laura Noemi Chaluh: doutoran<strong>da</strong> pela Unicamp e integrante<br />

do GEPEC.<br />

15 Professora mestre e integrante do GEPEC.<br />

16 Cláudia Roberta Ferreira: professora, mestre, participante<br />

do grupo GEPEC.<br />

17 Mônica Matie Fujikawa: mestre em educação e formadora<br />

de educadores.<br />

18 Maria <strong>da</strong> Conceição de Carvalho Rosa: professora do<br />

Instituto de Aplicação de UERJ<br />

19 Josélia Gomes Neves: professora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal<br />

de Rondônia.<br />

20 Marilza Bode de Moraes: professora assistente do CAP-<br />

UERJ.<br />

21 Débora Vaz: pe<strong>da</strong>goga, coordenadora pe<strong>da</strong>gógica e formadora<br />

de professores.<br />

22 Rosangela. Pe<strong>da</strong>goga Veliago: coordenadora pe<strong>da</strong>gógica e<br />

formadora de professores.<br />

23 Ester M. Broner: Professora, pe<strong>da</strong>goga, formadora de<br />

professores na Universi<strong>da</strong>de Hebraica de Jerusalém.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 261-265, jan./jun., 2006


histórias de seus percursos na construção de<br />

sua identi<strong>da</strong>de em contextos de aprendizagem.<br />

Afirma que escrever é “um ato solidário do pensamento”.<br />

Soligo confessa numa carta aos leitores, a<br />

importância deste gênero textual na vi<strong>da</strong> e na<br />

formação pessoal e profissional e a transporta<br />

para o seu texto. Ressalta que a carta é um<br />

gênero que deve ser valorizado e que favorece<br />

a escrita e apresenta uma maneira de como se<br />

pode vê-la em face do texto acadêmico. Para<br />

ela, é motivo de sobra tomar a carta como um<br />

texto de relevância em nossa vi<strong>da</strong>, na formação<br />

pessoal e profissional.<br />

Esta resenha não seria mais instigante se<br />

não fosse descritiva. A beleza explícita nos textos,<br />

as emoções expressas e senti<strong>da</strong>s pelos seus<br />

autores, as revelações, as subversões e as superações,<br />

os reflexos conseqüentes marcados<br />

no leitor não estariam tão visíveis para convi-<br />

REFERÊNCIAS<br />

dá-lo se não fosse por este caminho, considerado<br />

o mais acertado por esta resenhista. O<br />

conjunto de textos aqui publicados encanta qualquer<br />

leitor mais avisado sobre a escrita e a leitura,<br />

patrocinou em mim muita inquietação,<br />

sobretudo os registros que deixam a escrita e a<br />

leitura na existência humana. Na condição de<br />

leitora, necessito revelar que não somente li,<br />

mas vivi o lido. Assim confirmo o que Larrosa<br />

(2002, p.17) evidencia: “A experiência <strong>da</strong> leitura<br />

não consiste somente em entender o significado<br />

do texto, mas em vivê-lo”.<br />

Sem dúvi<strong>da</strong>, a leitura deste livro favorecerá,<br />

substancialmente, os profissionais interessados<br />

na leitura e na escrita, professores formadores<br />

em diferentes níveis de ensino e no leque abrangente<br />

de habilitações, desde que considerem que<br />

ler e escrever são práticas sociais e culturais<br />

que devem ser conquista<strong>da</strong>s para se ter acesso<br />

ao conhecimento.<br />

BRITO, L.P.L. Socie<strong>da</strong>de de cultura escrita, alfabetismo e participação. In: RIBEIRO, V.M. (Org.). Letramento<br />

no Brasil. São Paulo: Global Editora/Instituto Paulo Montenegro/Ação Educativa, 2003. p.50-51<br />

FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não. São Paulo: Olho d’Água, 1995.<br />

LARROSA, J. Nietzsche e a <strong>Educação</strong>. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.<br />

LUCINDA, Elisa. A escrita: memória dos homens. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.<br />

LINSPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de janeiro: Rocco, 1984.<br />

PRADO, J.; CONDINI, P. (org.). A formação do leitor: pontos de vista. Rio de Janeiro: Argus, 1999.<br />

SOARES, M. Metamemórias-memórias: travessia de uma educadora. São Paulo: Cortez. 1991.<br />

Recebido em 06.02.06<br />

Aprovado em 08.05.06<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 261-265, jan./jun., 2006 265


COHN, Clarice. Antropologia <strong>da</strong> criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, 58 p.<br />

266<br />

As crianças como sujeitos sociais<br />

Eric Maheu ∗<br />

COHN, Clarice. The Anthropology of Children. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,<br />

2005, 58 p.<br />

O livro de Clarice Cohn atende muito bem<br />

aos objetivos <strong>da</strong> coleção “Passo a Passo”, na<br />

qual está publicado, por ser muito acessível e<br />

atualizado. Este volume constitui ver<strong>da</strong>deiramente<br />

uma introdução ideal sobre o assunto para os<br />

neófitos e me parece muito bem vindo no contexto<br />

atual, pois a área de educação no Brasil é<br />

bastante domina<strong>da</strong> por perspectivas psicológicas<br />

pouco atentas às dimensões mais vela<strong>da</strong>s<br />

<strong>da</strong>s variações culturais.<br />

Por esse motivo, embora sejam relativamente<br />

conhecidos os trabalhos pioneiros de Philippe<br />

Ariès sobre a criança no Antigo Regime,<br />

persiste ain<strong>da</strong>, entre os pesquisadores em educação,<br />

uma forte tendência em naturalizar a<br />

infância e, por isso, em não ouvir as vozes <strong>da</strong>s<br />

pessoas rotula<strong>da</strong>s como “crianças”. Quantas<br />

pesquisas sobre a escola brasileira procuram<br />

saber como os alunos representam a escola,<br />

quais são as suas estratégias para aprender ou<br />

não aprender, como eles dão um sentido ao<br />

mundo que os rodeia? As crianças que aparecem<br />

nas pesquisas são, ora vitimas, ora reflexos<br />

(<strong>da</strong> exploração, <strong>da</strong> corrupção, <strong>da</strong> desigual<strong>da</strong>de,<br />

do racismo, do subfinanciamento <strong>da</strong><br />

educação pública, etc.). Uma perspectiva antropológica<br />

sobre a criança pode nos permitir,<br />

como afirma Cohn, superar esta perspectiva <strong>da</strong><br />

criança como um ser incompleto a ser formado,<br />

o que nos impede de considerar seriamente<br />

o seu ponto de vista como sujeito social. Cohn<br />

inicia a sua apresentação dos estudos antropológicos<br />

pelos estudos clássicos de Margareth<br />

Mead e Gregory Batheson, que relativizaram e<br />

desnaturalizaram tanto a infância como a adolescência,<br />

mas que, como as perspectivas estrutural-funcionalistas<br />

a seguir, mantinham a<br />

visão <strong>da</strong> criança como objeto (de um processo<br />

de socialização) e ser inacabado. Estes abor<strong>da</strong>gens<br />

permitiram a inserção <strong>da</strong>s crianças em<br />

seus contextos socioculturais, porém não abriram<br />

as perspectivas para uma concepção mais<br />

ativa <strong>da</strong> infância.<br />

O olhar sobre as coisas mu<strong>da</strong> com o surgimento<br />

de uma perspectiva mais complexa e mais<br />

dinâmica <strong>da</strong> cultura como sistema simbólico nos<br />

anos 1960. Enquanto a socie<strong>da</strong>de era pensa<strong>da</strong><br />

só em termos <strong>da</strong> transmissão e aquisição (de<br />

valores, normas) não se podia conferir uma<br />

perspectiva ativa à criança que doravante passava<br />

a “… ter um papel ativo na definição de<br />

sua própria condição.” (p.32)<br />

A autora ilustra este papel ativo, doravante,<br />

presente na antropologia <strong>da</strong> criança em várias<br />

pesquisas: sobre as crianças Xicrin que ela<br />

mesma estudou, sobre meninos de rua de São<br />

Paulo e crianças Fiji. Em todos estes casos, as<br />

crianças pesquisa<strong>da</strong>s se revelam como produtores<br />

de cultura e como tendo uma relativa autonomia<br />

cultural em relação ao mundo adulto.<br />

No final, abor<strong>da</strong> a questão <strong>da</strong> pesquisa em<br />

educação enriqueci<strong>da</strong> por uma antropologia <strong>da</strong><br />

criança: “em ca<strong>da</strong> caso, uma concepção de<br />

pessoa, criança e aprendizagem conformará um<br />

modelo específico de transmissão e apropriação<br />

de conhecimentos” (p.39). Em ca<strong>da</strong> contexto<br />

sociocultural existe um modelo diferente,<br />

não só de ensino e aprendizagem, mas também<br />

* Mestre em Antropologia Cultural na Université Laval (Canadá) e doutorando na Université de Montréal (Canadá).<br />

Professor adjunto do curso de pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Visconde de Cairu. Endereço para correspondência: Fun<strong>da</strong>ção<br />

Visconde de Cairu, Rua do Salete, n. 50, Barris – 40070.200 Salvador-BA. E-mail: ericmaheu@gmx.fr<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 266-267, jan./jun., 2006


de transmissão e de conhecimento. A autora<br />

conclui, comentando sobre as interfaces entre<br />

a antropologia <strong>da</strong> criança e outras disciplinas<br />

ou práticas interdisciplinares, e cria um reper-<br />

tório de técnicas relevantes para a pesquisa.<br />

Recomen<strong>da</strong>ções para a leitura e bibliografia<br />

comenta<strong>da</strong> completam esta estimulante e útil<br />

obra.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 266-267, jan./jun., 2006 267


QUEIROZ, Delcele Mascarenhas. Universi<strong>da</strong>de e desigual<strong>da</strong>de: brancos e negros<br />

no ensino superior. Salvador: Líber Livro, 2004. 167 p.<br />

268<br />

Ações Afirmativas, Ensino Superior e Políticas Públicas<br />

Jocélio Teles dos Santos *<br />

QUEIROZ, Delcele Mascarenhas. University and Inequality: Whites and<br />

Blacks in Superior Education. Salvador: Líber Livro, 2004. 167 p.<br />

Nos últimos meses a Universi<strong>da</strong>de Federal<br />

<strong>da</strong> Bahia vive uma experiência inédita. O sistema<br />

de cotas implantado provocou reações<br />

diversas que podem ser vistas na imprensa,<br />

seja em matérias sobre as ações judiciais ou<br />

em cartas dos leitores. Vários são os argumentos<br />

utilizados para a defesa ou a crítica à<br />

adoção <strong>da</strong>s ações afirmativas. Um deles é o<br />

percentual que a UFBA reservou para os alunos<br />

oriundos <strong>da</strong> escola pública: 43%. Esse<br />

questionamento aparece na própria universi<strong>da</strong>de<br />

ou em debates que se multiplicam em<br />

várias ci<strong>da</strong>des do país. Qual foi o critério lógico<br />

para tal reserva de vagas? A resposta se<br />

encontra no livro recém-publicado, Universi<strong>da</strong>de<br />

e Desigual<strong>da</strong>de. Brancos e Negros no<br />

Ensino Superior, de Delcele Mascarenhas<br />

Queiroz, professora <strong>da</strong> <strong>Uneb</strong>. Em 1997, o Programa<br />

A Cor <strong>da</strong> Bahia <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Filosofia<br />

e Ciências Humanas apoiou uma pesquisa<br />

proposta por Delcele Queiroz.<br />

Tratava-se de uma incursão inédita: um levantamento<br />

sobre a distribuição dos alunos em<br />

termos de cor, gênero, escolari<strong>da</strong>de dos pais,<br />

ren<strong>da</strong> familiar. Até aquele ano, vários eram os<br />

estudos no país sobre desigual<strong>da</strong>des raciais em<br />

espaços como o mercado de trabalho. Mas, não<br />

havia um desenvolvimento sistemático de algo<br />

similar com relação à educação superior. Havia,<br />

com certeza, muito impressionismo, ou o<br />

popular “achismo”. A razão era que o quesito<br />

cor não existia nos formulários de inscrição para<br />

o vestibular em nenhuma universi<strong>da</strong>de do país.<br />

A realização <strong>da</strong> pesquisa provocou reações<br />

<strong>da</strong>s mais diversas, desde o questionamento de<br />

pais, estu<strong>da</strong>ntes, professores e a administração<br />

central <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de sobre a necessi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> resposta a uma pergunta que é similar ao<br />

que respondemos no censo demográfico. Lembro-me<br />

de reações em programas de televisão<br />

e rádio <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de do Salvador como, por exemplo,<br />

“Eu acho que não tem na<strong>da</strong> a ver!”, “Se a<br />

UFBA quer saber a cor é por que quer discriminar.”<br />

A pesquisa realiza<strong>da</strong> por Delcele Queiroz<br />

na UFBA se estendeu, em 2000, para outras<br />

instituições públicas do país como a UFRJ,<br />

UFPR, UnB e UFMA, assim como as reações<br />

à inclusão do quesito cor nos formulários <strong>da</strong>s<br />

universi<strong>da</strong>des. Se, naquele período, não se falava<br />

em sistema de cotas no país, por outro lado<br />

um levantamento científico acerca <strong>da</strong> distribuição<br />

dos alunos por cursos de prestígio (Medicina,<br />

Engenharias, Odontologia, Direito, Comunicação-Jornalismo)<br />

nas universi<strong>da</strong>des indicava<br />

o secular dilema brasileiro: a possibili<strong>da</strong>de de<br />

inclusão de negros em espaços de prestígio indicava,<br />

de imediato, a sensação de incômodo,<br />

quando não de tergiversações.<br />

A pesquisa realiza<strong>da</strong> na UFBA deu como<br />

resultado a elaboração <strong>da</strong> tese de doutorado e,<br />

* Professor do Depto. de Antropologia e Diretor do Centro de Estudos Afro-Orientais <strong>da</strong> UFBA. Endereço para<br />

correspondência: Rua Carlos Conceição, 42, Residencial Praia de Buraquinho, Casa 7 E, Buraquinho – 42700-000<br />

Lauro de Freitas-Bahia - CEP – E-mail: jocelio@ufba.br<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 268-269, jan./jun., 2006


finalmente, a edição em livro. Os <strong>da</strong>dos levantados<br />

mostram, primeiro, que o percentual de pretos<br />

e pardos, em 1998, era de 41,8% e que eles<br />

se encontravam em cursos considerados na socie<strong>da</strong>de<br />

como de baixo prestígio. Segundo, que o<br />

sistema de classificação racial brasileiro era absorvido<br />

e reproduzido em um ambiente universitário,<br />

tanto as cinco categorias do IBGE (preto,<br />

pardo, branco, amarelo e indígena) quanto às<br />

varia<strong>da</strong>s categorias de “uso múltiplo” no cotidiano<br />

como negro, moreno, moreno claro, escuro,<br />

preto e mulato eram auto-identificadoras para<br />

aqueles que ingressaram nas universi<strong>da</strong>des públicas<br />

federais. Terceiro, ao trabalhar com uma<br />

série histórica (1993-1998), podemos perceber<br />

como a perversão do sistema era contínua. Os<br />

negros tinham um crescimento na seleção <strong>da</strong><br />

UFBA, mas isso ocorria em cursos considerados<br />

de baixo prestígio. Os ingressos em cursos<br />

como Medicina, Odontologia, Direito se autodeclaravam<br />

brancos, haviam estu<strong>da</strong>do em escolas<br />

particulares e a escolari<strong>da</strong>de dos seus pais<br />

era de nível superior.<br />

Destaco a importância desse estudo para a<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia, posto que ele muito<br />

nos auxiliou na elaboração <strong>da</strong> proposta de ações<br />

afirmativas aprova<strong>da</strong>. Ao contrário de universi<strong>da</strong>des<br />

cuja decisão pelas cotas foi toma<strong>da</strong> pela<br />

Assembléia Legislativa, ou mesmo por determinações<br />

de percentuais que não têm nenhuma con-<br />

sistência com a distribuição de estu<strong>da</strong>ntes negros<br />

e de escolas públicas nessas universi<strong>da</strong>des, a<br />

UFBA teve um referencial objetivo para compor<br />

uma proposta. Os <strong>da</strong>dos demonstrados com acui<strong>da</strong>de<br />

no trabalho original indicam que não se tratava<br />

somente de um trabalho original, mas de uma<br />

pesquisa que foi traduzi<strong>da</strong> em política pública. Não<br />

é à toa que a proposta do governo que tramita no<br />

Congresso Nacional teve como inspiração aquela<br />

adota<strong>da</strong> pela UFBA, que, por sua vez, amparouse<br />

em <strong>da</strong>dos coletados e analisados por Delcele<br />

Queiroz.<br />

Infelizmente, a editora optou por publicar<br />

somente dois capítulos <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> tese, pois no<br />

trabalho original vemos o desempenho dos estu<strong>da</strong>ntes<br />

oriundos <strong>da</strong>s escolas públicas e priva<strong>da</strong>s<br />

em cursos como Medicina, ao longo de quatro<br />

anos. E, nesse momento, em que mais de<br />

dez universi<strong>da</strong>des públicas adotaram o sistema<br />

de cotas, a análise de desempenho dos estu<strong>da</strong>ntes<br />

“cotistas” é fun<strong>da</strong>mental para uma avaliação<br />

crítica <strong>da</strong>s políticas recentemente adota<strong>da</strong>s.<br />

De todo modo, o mérito de transformar<br />

em livro uma publicação anteriormente restrita<br />

a especialistas traduz-se como o reconhecimento<br />

do ineditismo deste trabalho.<br />

Recebido em 05.07.05<br />

Aprovado em 01.05.06<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, p. 268-269, jan./jun., 2006 269


INSTRUÇÕES AOS COLABORADORES<br />

A <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de é uma publicação semestral e<br />

aceita trabalhos originais que sejam classificados em uma <strong>da</strong>s seguintes mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des:<br />

- resultados de pesquisas sob a forma de artigos, ensaios e resumos de teses ou monografias;<br />

- entrevistas, depoimentos e resenhas sobre publicações recentes.<br />

Os trabalhos devem ser apresentados em disquete ou enviados via Internet para Jacques<br />

Jules Sonneville – e-mail: jacqson@uol.com.br - segundo as normas defini<strong>da</strong>s a seguir:<br />

1. Na primeira página devem constar: a) título do artigo; b) nome(s) do(s) autor(es), endereços<br />

residencial e profissional, telefone, e-mail; c) titulação; d) instituição a que pertence(m) e cargo<br />

que ocupa(m).<br />

2. Resumo e Abstract, ca<strong>da</strong> um com no máximo 200 palavras, incluindo objetivo, método, resultado,<br />

conclusão. Logo em segui<strong>da</strong>, as Palavras-chave e Keywords, cujo número desejado é de,<br />

no mínimo, três e, no máximo, cinco. Traduzir, também, o título do artigo. Atenção: cabe aos<br />

autores entregar traduções de boa quali<strong>da</strong>de.<br />

3. As figuras, gráficos, tabelas ou fotografias (cor cinza, dpi 300), quando apresentados em separado,<br />

devem ter indicação dos locais onde devem ser incluídos, ser titulados e apresentar referências<br />

de sua autoria/fonte. Para tanto, devem seguir a Norma de apresentação tabular, estabeleci<strong>da</strong><br />

pelo Conselho Nacional de Estatística e publica<strong>da</strong> pelo IBGE em 1979.<br />

4. Sob o título Referências deve vir, após parte final do artigo, em ordem alfabética, a lista dos<br />

autores e <strong>da</strong>s publicações conforme a NBR 6023 de setembro de 2003, <strong>da</strong> ABNT (Associação<br />

Brasileira de Normas Técnicas). Vide os seguintes exemplos:<br />

a) Livro de um só autor:<br />

BENJAMIM, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1986.<br />

b) Livro até três autores:<br />

NORTON, Peter; AITKEN, Peter; WILTON, Richard. Peter Norton: a bíblia do programador. Tradução de<br />

Geraldo Costa Filho. Rio de Janeiro: Campos, 1994.<br />

c) Livro de mais de três autores:<br />

CASTELS, Manuel et al. Novas perspectivas críticas em educação. Porto Alegre: artes medicas, 1996.<br />

d) Capítulo de livro:<br />

BARBIER, René. A escuta sensível na abor<strong>da</strong>gem transversal. In: BARBOSA Joaquim (Org.).<br />

Multirreferenciali<strong>da</strong>de nas ciências e na educação. São Carlos: EdUFSCar, 1998. p. 168-198.<br />

e) Artigo de periódico:<br />

MOTA, Kátia Maria Santos. A linguagem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, a linguagem <strong>da</strong> escola: inclusão ou exclusão? Uma<br />

breve reflexão lingüística para não lingüistas. <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong>, Salvador, v. 11, n. 17, p. 13-26, jan./jun.<br />

2002.<br />

f) Artigo de jornais:<br />

SOUZA, Marcus. Falta de quali<strong>da</strong>de no magistério é a falha mais séria no ensino privado e público. O<br />

Globo, Rio de Janeiro, 06 dez. 2001. Caderno 2, p. 4.<br />

g) Artigo de periódico (formato eletrônico):<br />

TRINDADE, Judite Maria Barbosa. O abandono de crianças ou a negação do óbvio. <strong>Revista</strong> Brasileira<br />

de História, São Paulo, SP, v. 19, n. 37, 1999. Disponível em: . Acesso em: 14 ago.<br />

2000.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, jan./jun., 2006 271


272<br />

h) Livro em formato eletrônico:<br />

SÃO PAULO (Estado). Entendendo o meio ambiente. São Paulo, 1999. v. 3. Disponível em: . Acesso em: 19 out. 2003.<br />

i) Decreto, Leis:<br />

BRASIL. Decreto n. 89.271, de 4 de janeiro de 1984. Dispõe sobre documentos e procedimentos para<br />

despacho de aeronave em serviço internacional. Lex: Coletânea de legislação e Jurisprudência, São<br />

Paulo, v. 48, p. 3-4, jan./mar., 1. trim. 1984. Legislação Federal e marginalia.<br />

j) Dissertações e teses:<br />

SILVIA, M. C. <strong>da</strong>. Fracasso escolar: uma perspectiva em questão. 1996. 160 f. Dissertação (Mestrado) –<br />

Facul<strong>da</strong>de de <strong>Educação</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996.<br />

k) Trabalho publicado em Congresso:<br />

LIMA, Maria José Rocha. Professor, objeto <strong>da</strong> trama <strong>da</strong> ignorância: análise de discursos de autori<strong>da</strong>des<br />

brasileiras, no império e na república. In: ENCONTRO DE PESQUISA EDUCACIONAL DO NORDESTE:<br />

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 13., 1997. Natal. Anais... Natal: EDURFRN, 1997. p. 95-107.<br />

IMPORTANTE: Ao organizar a lista de referências, o autor deve observar o correto emprego <strong>da</strong><br />

pontuação, de maneira que esta figure de forma uniforme.<br />

5. O sistema de citação adotado por este periódico é o de autor-<strong>da</strong>ta, de acordo com a NBR<br />

10520 de 2003. As citações bibliográficas ou de site, inseri<strong>da</strong>s no próprio texto, devem vir entre<br />

aspas ou em parágrafo com recuo e sem aspas, remetendo ao autor. Quando o autor faz parte do<br />

texto, este deve aparecer em letra cursiva, observando e respeitando a língua portuguesa. Exemplo:<br />

De acordo com Freire (1982, p.35), etc. Já quando o autor não faz parte do texto, este deve<br />

aparecer no final do parágrafo, entre parênteses e em letra maiúscula, como no exemplo a seguir:<br />

A pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong>s minorias está à disposição de todos (FREIRE, 1982, p.35). As citações extraí<strong>da</strong>s<br />

de sites devem, além disso, conter o endereço (URL) entre parênteses angulares e a <strong>da</strong>ta de<br />

acesso. Para qualquer referência a um autor deve ser adotado igual procedimento. Deste modo,<br />

no ro<strong>da</strong>pé <strong>da</strong>s páginas do texto, devem constar apenas as notas explicativas estritamente necessárias,<br />

que devem obedecer à NBR 10520, de 2003.<br />

6. As notas numera<strong>da</strong>s devem vir no ro<strong>da</strong>pé <strong>da</strong> mesma página em que aparecem, assim como os<br />

agradecimentos, apêndices e informes complementares.<br />

7. Os artigos devem ter, no máximo, 30 páginas, e as resenhas até 4 páginas. Os resumos de<br />

teses/dissertações devem ter, no máximo, 250 palavras, e conter título, número de folhas, autor (e<br />

seus <strong>da</strong>dos), palavras-chave, orientador, banca, instituição, e <strong>da</strong>ta <strong>da</strong> defesa pública.<br />

Atenção: os textos só serão aceitos nas seguintes dimensões no Winword 97 ou 2000:<br />

• letra: Times New Roman 12;<br />

• tamanho <strong>da</strong> folha: A4;<br />

• margens: 2,5 cm;<br />

• espaçamento entre as linhas: 1,5;<br />

• parágrafo justificado.<br />

8. As colaborações encaminha<strong>da</strong>s à revista são submeti<strong>da</strong>s à análise do Conselho Editorial, atendendo<br />

a critérios de seleção de conteúdo e normas formais de editoração, sem identificação <strong>da</strong><br />

autoria para preservar isenção e neutrali<strong>da</strong>de de avaliação. A aceitação <strong>da</strong> matéria para publicação<br />

implica na transferência de direitos autorais para a revista.<br />

A Comissão de Editoração<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> <strong>FAEEBA</strong> – <strong>Educação</strong> e Contemporanei<strong>da</strong>de, Salvador, v. 15, n. 25, jan./jun., 2006

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