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EMBAIXO ESTRELAS - guido viaro

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

<strong>EMBAIXO</strong><br />

das velhas<br />

<strong>ESTRELAS</strong><br />

GuIdO VIARO<br />

1


GuIdO VIARO<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

1ª edição<br />

curitiba . 2008


Capa<br />

“Homem sem Rumo” de Guido Viaro<br />

Foto capa<br />

Juliano Sandrini<br />

Projeto gráfico e diagramação<br />

Ideale Comunicação e design<br />

Revisão<br />

Marisa Karam Saltori<br />

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO<br />

BIBLIOTECÁRIA RESPONSÁVEL: MARA REJANE VICENTE TEIXEIRA<br />

Viaro, Guido, 1968<br />

Embaixo das Velhas Estrelas / Guido Viaro. --<br />

Curitiba : Ideale, 2008<br />

240p. ; 12 x 18 cm<br />

ISBN 978-85-61649-00-5<br />

1. Literatura brasileira -- Paraná. I. Título.<br />

CDD (22ª ed.)<br />

B869.35


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

GuIdO VIARO


6<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong>


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

As camélias amarelas do caminho o fizeram parar. Olhou<br />

para elas e para o céu azul-marinho que começava a ganhar<br />

escuridão. As cores começavam a se misturar, o verde da<br />

vegetação que tudo envolvia começava a perder sua força.<br />

Havia também o marrom do caminho de terra, que já parecia<br />

cor nenhuma, uma ausência por onde ele trilhava seus passos.<br />

Ele lembrou-se de onde tinha saído, o que havia deixado<br />

para trás. Virou-se e viu distante as pálidas luzes do vilarejo,<br />

tristes corzinhas amareladas sendo engolidas pela imensidão.<br />

Essa visão o fez imediatamente mergulhar em recordações. Elas<br />

o confundiram por alguns instantes, levando arbitrariamente o<br />

pensamento de um lado para o outro. Finalmente ele chegou<br />

à conclusão, de que essas memórias do pequeno lugar distante<br />

é que o fizeram tomar a decisão de iniciar sua caminhada para<br />

longe dali. Então decidiu que não iria mais se deixar conduzir<br />

por idéias que estavam tentando novamente estabelecer um<br />

controle sobre ele. Aquilo havia ficado para trás e ponto final,<br />

buscava novas cores e ares.<br />

Reparou novamente na mesma camélia que agora estava<br />

azulada. Percebeu que daqui para frente teria de tomar mais<br />

cuidado com o caminho. Apesar da luz branca que vinha da<br />

lua cheia, as pequenas pedras e buracos do percurso irregular<br />

conseguiam se esconder na escuridão.<br />

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8<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

O ar puro da noite refrescava seus pulmões, ele seguia<br />

cuidadoso e contente, sabendo que esse era o caminho que<br />

deveria ser percorrido. Às vezes alguns galhos de arbustos ou<br />

árvores raspavam em suas costas ou pernas, então ele sentia-se<br />

ainda mais confiante de que era ali mesmo que deveria estar.<br />

Aos poucos a lua foi ganhando ajuda das luzes e das estrelas.<br />

Foi só quando chegou no alto de uma colina que percebeu<br />

que a noite estava estrelada. Nesse instante esqueceu-se de<br />

onde tinha vindo e até mesmo de por quê havia decidido partir.<br />

Seu cérebro libertou-se da maneira de pensar confusa e passou<br />

a funcionar somente em uma direção, mas essa única direção<br />

abrangia todas as outras.<br />

As estrelas estavam fortes naquela noite. Pequenos buracos<br />

profundos no azul-escuro. O ar esfriava-se, mas só até o ponto<br />

de não trazer frio. O homem sentia-se bem. Parecia-lhe que<br />

nada havia existido antes daquele instante, nada precisaria<br />

existir depois. Sentou-se para olhar para o céu, os muitos<br />

pontinhos brancos pareciam lhe dizer que teria de dispor de<br />

uma eternidade para contemplação. Mas essa informação não o<br />

dissuadia, ou ele acreditava que dispunha do eterno, ou estava<br />

conseguindo enxergá-lo no finito.<br />

de qualquer maneira, escolheu uma meia dúzia de estrelas<br />

para olhar melhor, deixou as outras de lado. uma em cada canto<br />

do céu, ele no meio da terra, no começo nenhum pensamento<br />

lhe veio à mente, um vazio sem fim nem estrelas, mas assim<br />

como com o céu, os buracos começaram a aparecer. No começo<br />

idéias sobre o que não tem fim, depois sobre o que sempre


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

acaba. Os buracos começaram a se unir até não sobrar mais céu,<br />

seu pensamento estava novamente confuso como um barco à<br />

deriva. Estava sob as estrelas, mas vivia sob as luzes artificiais.<br />

Quando percebeu isso quis fazer algo, primeiro tentou deter<br />

o pensamento, aquietar-se e voltar a ser uma noite escura. Não<br />

conseguiu, e parecia que quanto mais tentava mais as coisas<br />

pioravam e mais ainda as pequenas idéias descartáveis lhe<br />

atravessavam. Então decidiu mover-se, esqueceu as estrelas e<br />

agora só tinha olhos para as pedras do chão. Caminhava rápido,<br />

desejava que o cansaço físico se encarregasse de também diminuir<br />

as forças de seu pensamento. Atravessou campos cobertos de<br />

flores sem nem perceber que elas existiam. Subiu e desceu colinas,<br />

concentrando todo seu esforço em apenas não escorregar.<br />

O suor começou a escorrer por sua testa, seus pulmões<br />

começaram a ficar ofegantes, o ar fresco da noite já não era<br />

suficiente para refrescá-los. Começou a sentir que os músculos<br />

de suas pernas estavam trabalhando, todo seu corpo estava<br />

sendo movido pela energia que antes sustentava os pensamentos<br />

dispersos. Continuou... atravessou campos e matas, riachos<br />

e caminhos de pedras, sua roupa grudava no corpo e às vezes<br />

alguma gota de suor lhe atrapalhava a visão.<br />

A lua cheia movia-se no céu sem que ele percebesse. de<br />

repente ele parou. Já não podia mais, estava exausto. uma<br />

máquina de respirar no meio da natureza, acalmando-se<br />

lentamente, aquietando-se. Sendo apenas seu corpo que<br />

recobra energias.Tinha feito um esforço válido, estava longe<br />

das idéias.<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Era apenas a força animal de si mesmo, escorria líquidos que<br />

perdiam-se no escuro. Quando seu corpo começou a acalmarse,<br />

ele passou a mão pela terra e tentou ver na luz da lua se seu<br />

suor tinha conse<strong>guido</strong> molhá-la. Não conseguiu enxergar nada.<br />

Então permaneceu mais algum tempo recuperando-se, talvez<br />

no estado que tenha buscado quando se decidiu pelo esforço,<br />

porque agora já não sofria e conseguia não pensar em nada.<br />

As estrelas estavam por toda parte e acabaram encontrando<br />

seus olhos, que reagiram a elas com desdém. Parecia que ele<br />

apreciava continuar sendo o animal pulmonar de até então. Ao<br />

mesmo tempo ele sabia que precisava prosseguir, que aqueles<br />

instantes em que não precisou refletir, tinham sido momentos<br />

anestésicos e fugazes. As estrelas o chamavam, e junto com o<br />

chamado traziam o peso das escolhas.<br />

Resignado e descansado continuou seu caminho embaixo da<br />

Via Láctea. Aos poucos as idéias foram novamente aparecendo<br />

e trazendo suas companheiras. dessa vez ele foi mais seletivo, não<br />

proibiu a entrada delas, mas somente uma por vez. Controlandoas<br />

dessa forma, percebeu que poderia continuar seu caminho sem<br />

ter de exaurir seu corpo para bloquear-lhes as entradas.<br />

Ritmou seu corpo e deixou de ignorar o que estava em volta.<br />

A idéia sobre de onde tinha vindo, veio e se foi. uma rajada de<br />

vento o fez pensar em onde seria seu destino final, essa idéia<br />

foi-se embora com o vento, idéias passageiras que deixaram<br />

sensações. Não pensava em nada mas tinha o coração ansioso,<br />

memórias e expectativas deixaram rastros profundos, apesar de<br />

seus pés marcharem firmes seu interior estava hesitante.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

umas gotas finas de garoa começaram a cair e acabaram<br />

aquietando seu coração. A chuva fina trouxe-lhe a idéia de que<br />

ele poderia adoecer e não poder mais continuar o caminho.<br />

Enquanto mastigava esses pensamentos e suas conseqüências,<br />

a garoa parou. As poucas gotas sobre a cabeça secaram logo e<br />

junto com elas a idéia de adoecer.<br />

Agora ele já estava um pouco mais acostumado ao<br />

caminho, caminhava sem medo, aceitava as barreiras e<br />

procurava transpô-las com determinação concentrandose<br />

em sua tarefa. A concentração também ajudaria a evitar<br />

que ele mesmo criasse barreiras e essas, por sinal, é que<br />

tinham se mostrado as mais eficientes. Mas ele também<br />

havia percebido que concentrar-se não significava isolar-se<br />

do resto do mundo e pensar somente nas pedras em que se<br />

pisa. Sabia que olhar para as estrelas e para o verde-escuro<br />

da mata, era parte do caminho.<br />

Aprendendo a equilibrar-se, ele começou a sentir o<br />

cansaço natural de alguém que já caminha há um bom<br />

tempo. Sentou-se em uma pedra e começou a massagear as<br />

próprias pernas, escutou alguns barulhos da natureza, sentiu<br />

a brisa fresca, imaginou que talvez naquele instante o orvalho<br />

estivesse se formando. Ficou olhando para a relva e sentindo<br />

o cheiro de terra úmida. Grilos e sapos se manifestavam,<br />

enquanto olhava para a relva percebeu a luz branca da lua<br />

molhando o chão, resistiu o quanto pôde, como alguém que<br />

guarda o melhor da refeição para o final, mas finalmente<br />

cedeu. deitou-se de costas no chão e deixou que o universo<br />

sem fim desabasse sobre ele.<br />

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12<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Não se importou com a relva molhada, a única coisa que<br />

evitava era que algum capim mais alto entrasse no seu campo<br />

de visão, queria sentir-se completamente mergulhado naquele<br />

grande mistério. Aceitou tudo o que o céu lhe emanava e<br />

que eram, basicamente, sensações. Primeiro um medo do<br />

desconhecido, mas aos poucos uma aceitação, como se o<br />

desconhecido começasse a fazer parte dele e vice-versa. E<br />

mergulhado nessa grande banheira de si mesmo, ele sorriu.<br />

Para ele o resto do mundo havia desaparecido. Tinha mesmo se<br />

esquecido que a noite termina e as estrelas desaparecem durante<br />

o dia. Era uma criança divertindo-se com seu patinho de<br />

borracha durante o banho. Seus olhos engoliam as estrelas, mas<br />

tentavam enxergar além. O que ele tentava era compreender<br />

tudo aquilo, abocanhar uma quantidade para depois digeri-la.<br />

Levantou os braços como se quisesse tocar as estrelas, na<br />

verdade era isso mesmo que queria. Não teve medo de queimar<br />

seus dedos, mas eles nada alcançaram. A visão de seus braços<br />

movendo-se em vão, despertou-lhe do sonho acordado em<br />

que vivia. Sentiu-se ridículo e infantil, começou mesmo a<br />

questionar-se sobre se algum dia deveria ter abandonado<br />

o vilarejo. Passou algum tempo tentando elencar todas as<br />

vantagens da vida na cidade. Encontrou várias, mas logo em<br />

seguida lembrou-se das desvantagens, olhou para o céu e para<br />

seus pés, sentiu-se perdido. Já não podia mais enxergar as luzes<br />

pálidas de seu vilarejo, estava muito longe e elas tinham sumido<br />

na escuridão.<br />

Refletiu por alguns instantes e chegou à conclusão de que<br />

não conseguiria encontrar o caminho de volta, mas até se


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

conseguisse não tentaria encontrá-lo. Mesmo que o caminho<br />

daqui para frente fosse vazio de certezas, no vilarejo ele<br />

possuía algumas, apesar disso ainda escolheu seguir adiante,<br />

atravessando a noite. depois de tomada essa decisão ficou<br />

pensando nos pequenos prazeres abandonados, a vontade de<br />

dar meia-volta foi quase tão grande quanto a de prosseguir.<br />

Seus passos não refletiam seu interior e seguiam firmes e<br />

decididos. Após uma caminhada longa teve o repouso merecido.<br />

Nessa pausa as lembranças da aldeia já tinham ficado para<br />

trás. O que o preocupava era o que viria, ou não, pela frente.<br />

Mas sobretudo sua imensa impossibilidade diante daquilo<br />

que almejava. Ele tinha a aparência de alguém preocupado.<br />

Aos poucos foi relaxando, sentou-se mais confortavelmente e<br />

deixou que os barulhos da natureza o distraíssem. Quase sem<br />

perceber sorriu ao imitar o coaxar de um sapo.<br />

Perguntou-se há quanto tempo atrás havia iniciado sua<br />

caminhada, não obteve resposta. Parecia que quando ele saíra<br />

do vilarejo o tempo havia sido extinto. Antes ele seguia um<br />

percurso em linha reta, agora era como se flutuasse num mundo<br />

sem dimensões ou fronteiras.<br />

Pensou então, que talvez tivesse de se adaptar a essa nova<br />

maneira de viver, e que o tempo poderia ser apenas um dos<br />

fatores diferenciados dessa escolha pelo novo que havia feito.<br />

Tudo poderia mudar. Reparou na coloração do céu e notou uma<br />

diferença com o céu de alguns instantes atrás. Pensou que talvez<br />

a cor fosse a mesma, e talvez ele é que estivesse influenciado<br />

pelas idéias de mudança. Agora também lhe parecia que as<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

estrelas tinham aumentado em número. Ocorreu-lhe a idéia<br />

de que talvez a mudança viesse dentro da mudança. Essa<br />

idéia apareceu-lhe como um quebra-cabeças desmontado, ele<br />

deveria decifrá-la. Assim como quando quis tocar as estrelas,<br />

fracassou. Mas dessa vez aceitou a derrota com mais resignação.<br />

Entretanto continuou acreditando que o céu estava mudando<br />

de cor e as estrelas de número, até a lua não parecia estar no<br />

mesmo lugar de uns instantes atrás.<br />

Como as mudanças não paravam de acontecer, reparou em<br />

si mesmo, em como agora estava de bom humor. Lembrouse<br />

do estado ansioso de há pouco tempo atrás. Pensou que<br />

talvez a mudança que vinha dentro da mudança, fosse isso, ele<br />

possivelmente tivesse encontrado uma das peças do quebracabeças,<br />

as mudanças deveriam ocorrer de dentro para fora.<br />

E se assim não fosse, ele pelo menos havia percebido que,<br />

exatamente da mesma maneira que com o céu e com o vento, o<br />

interior das pessoas também muda repentinamente.<br />

Animado com o caminho mental que iniciara, ele continuou<br />

seu raciocínio: se o homem refletia esse aspecto da natureza,<br />

será que não refletiria também outros, talvez todos? E se assim<br />

fosse, o comportamento ideal para o ser humano não seria<br />

aquele que se parecesse o máximo possível com o ritmo da<br />

natureza? um sorriso de contentamento invadiu seus lábios,<br />

ele percebeu que se essas idéias fossem verdadeiras ele havia<br />

tomado a melhor de todas as decisões.<br />

O vento começou a mover a vegetação e mesmo com a pouca<br />

luz do luar ele observou a lógica sutil do movimento das folhas.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Elas mexiam-se sem exageros, mesmo quando o vento era mais<br />

forte, a mudança era ao mesmo tempo individual e em grupo.<br />

Possuíam seu ritmo, e esse ritmo, estranhamente, era o mesmo<br />

até quando elas estavam imóveis. Parecia haver um grande<br />

caminho natural para as coisas. Lembrou-se de um momento<br />

prosaico de sua infância que nunca esqueceu, uma vez quando<br />

tinha uns quatro ou cinco anos, tinha ido com seus pais para um<br />

lago próximo ao vilarejo. Estava sentado à beira do lago quando<br />

um pato sai d’água e aproxima-se dele, a ave foi aproximando-se e<br />

ele não teve medo, tranqüilo, conseguiu reparar na cor alaranjada<br />

do bico e em como ele estava molhado. Após recordar-se desse<br />

episódio antigo ele fez uma analogia entre os movimentos das<br />

folhas e as gotas d’água que molhavam o bico daquele pato.<br />

Lembrou-se também de como as águas refletem as imagens<br />

das árvores e do bater de asas de um beija-flor. Parece que havia<br />

conse<strong>guido</strong> encaixar mais uma peça do quebra-cabeças.<br />

O ritmo natural não teria relação direta com a velocidade<br />

dos acontecimentos, seria algo que pertenceria a uma ordem<br />

bem mais sutil, mas no fundo a natureza falaria sempre a mesma<br />

língua, que aparentemente soava como diferentes dialetos.<br />

Quanto mais próximo a vida de um homem estivesse desse<br />

ritmo misterioso, melhor fluiria sua vida, porque contra menos<br />

barreiras ele teria de lutar. Mas da mesma maneira que por uma<br />

razão profunda, o ritmo do bater das asas de um beija-flor é<br />

idêntico ao de um carvalho imóvel, a expressão “melhor fluiria”,<br />

não quer dizer que uma vida que siga mais o ritmo natural,<br />

esteja menos repleta de acontecimentos. Talvez o que haja é<br />

que os acontecimentos sejam mais concentrados e apresentem<br />

mais densidade.<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

desde que havia iniciado sua caminhada nunca tinha<br />

se sentido tão bem. Sentia-se como alguém que havia<br />

descoberto que a multidão estava caminhando em sentido<br />

errado. Mas os caminhos floridos também têm bifurcações,<br />

não sabia se deveria gritar para que a multidão se virasse e<br />

caminhasse em sentido contrário, ou deveria apenas ignorála,<br />

seguindo sozinho por onde achasse que fosse melhor.<br />

Levantou de seu descanso, já era hora de prosseguir. O<br />

céu parecia que tinha ganho uma tonalidade arroxeada. A lua<br />

que parecia que havia se movido mais um pouco, agora estava<br />

mais clara do que nunca e espalhava suas luzes pelo caminho.<br />

Ele apenas prosseguiu, não se lembrou de qualquer multidão.<br />

Esqueceu-se de que há instantes atrás achava que havia tomado<br />

a melhor das decisões.<br />

Seguiu com passos naturais, criando seu ritmo. Caminhou<br />

mais um pouco e bem no instante em que sentiu sede, seus pés<br />

chegaram à beira de um riacho. Estranhou a coincidência e<br />

lembrou-se do bico de pato molhado de sua infância. O riacho<br />

era bem raso e para beber água ele teve de inclinar a cabeça,<br />

encostando o rosto na terra. Não enxergava o que bebia e<br />

seu primeiro receio foi o de engolir um pequeno peixe verde.<br />

Não sabia exatamente o porquê da cor. Esses goles noturnos<br />

restauraram completamente suas forças. Nunca havia se<br />

sentido tão disposto, enquanto bebia sentia o cheiro das pedras<br />

e do musgo, esse odor parecia a vida lhe dizendo – continue, é<br />

por aí mesmo que deves prosseguir. Aproveitou e lavou o rosto,<br />

queria guardar um pouco daquele cheiro perto de si.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Percebeu então que as coisas iam se revelando aos poucos,<br />

caminhou alguns passos e virou-se para olhar o riacho, mas ele<br />

já havia desaparecido no escuro, mas ainda conseguiu escutar o<br />

suave barulho d’água que procurou guardar na memória. Agora<br />

a noite estava silenciosa, ele atravessava um caminho de barro<br />

sem muita vegetação ao redor, e o que escutava era o barulho de<br />

seus passos e o sopro de uma brisa.<br />

Ele sabia bem o que uma situação como essa poderia atrair,<br />

sabia que os pensamentos desordenados poderiam começar<br />

a brotar como cogumelos no campo. Procurou se lembrar<br />

do barulho d’água do riacho, mesmo assim os cogumelos<br />

começaram a aparecer... até onde ele iria caminhar? O que faria<br />

quando chegasse a seu destino final? do que se alimentaria?<br />

As perguntas iam se acumulando sem que nenhuma fosse<br />

respondida. E se estivesse longe demais para voltar? Não seria<br />

melhor dar meia volta e continuar em direção do vilarejo? A<br />

experiência havia sido boa, mas já não teria sido suficiente?<br />

E nenhuma resposta aparecia, enquanto isso seus passos<br />

continuavam firmes, incólumes ao peso da dúvida. Ele<br />

começou, então, a reparar que algumas coisas se resolvem por<br />

si mesmas. Quando ele não sabia o que fazer, seus pés acabaram<br />

seguindo em frente, e agora aquela dúvida já era passado. Ele<br />

perguntou-se se tudo não acabaria se resolvendo dessa maneira.<br />

Sem obter respostas, reparou que havia recobrado o controle<br />

de seus pensamentos, e as perguntas que surgiam seguiam uma<br />

lógica interna baseada em acontecimentos já vividos. A partir<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

dessa constatação resolveu aprofundar-se em seus raciocínios:<br />

caso tudo acabasse se resolvendo naturalmente, nossos maiores<br />

esforços não seriam mais simbólicos do que práticos?<br />

Nesse instante seus pés pararam de caminhar. Estático no<br />

meio da natureza, olhava para tudo de maneira desconfiada.<br />

Sentiu o contrário de quando deixou-se entregar às estrelas, agora<br />

era um corpo indissolúvel boiando em um oceano estranho.<br />

Permaneceu parado por um bom tempo, ao seu redor os<br />

barulhos das cigarras e as luzes dos vaga-lumes. Ele os observava<br />

sem pensar em nada. O primeiro pensamento que surgiu veio<br />

justamente quando olhou para o céu, que lhe pareceu de uma<br />

cor diferente, o tom arroxeado havia se transformado num<br />

perfeito azul-marinho. Lembrou-se de que as coisas mudam<br />

de dentro para fora. Então, mesmo que fosse verdade, que tudo<br />

se resolve espontaneamente e que somos apenas figurantes,<br />

quando nos julgamos os atores principais, mesmo assim caberia<br />

a ele tomar a primeira atitude, talvez inútil, mas ele resolveu<br />

continuar andando. As luzes verdes dos vaga-lumes estavam<br />

por toda parte, lembrou-se do peixe verde que temeu engolir<br />

enquanto bebia água. Sem nunca tê-lo visto lembrava-se de sua<br />

cor como um verde brilhante quase fosforescente. Outras idéias<br />

brotaram sem que tivesse controle sobre elas: será que outros<br />

bichos e objetos da mesma ordem desse peixe, não teriam uma<br />

existência tão, ou tão pouco, sólida, quanto a sua? Resolveu não<br />

se aprofundar nesse tipo de pensamento que só o conduziria a<br />

mais e mais perguntas sem respostas.<br />

do peixe inexistente aproveitou a cor e mentalmente<br />

compôs combinações com o azul-escuro do céu. de repente


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

atravessou-lhe a idéia de que se o peixinho verde nunca existiu,<br />

de uma certa maneira os vaga-lumes eram seus representantes.<br />

Como se fossem diplomatas que simbolizam no mundo físico<br />

algo originário do mundo das idéias. Esse tipo de pensamento<br />

insistia em voltar, mas ele não os desejava por perto. Aos poucos<br />

percebeu que esses pensamentos também têm sua importância,<br />

e que não se deve tentar evitá-los por completo. Bastaria buscar<br />

o ponto de equilíbrio, sugar deles suas essências para utilizá-las<br />

no mundo prático.<br />

Começou misturando todas as cores que conhecia e<br />

criando novas, imaginou também novas texturas, sensações,<br />

criou dentro de si um mundo inexistente, mas que estava sob<br />

controle. um paraíso sensitivo-isolado, que não tinha pontas<br />

amarradas à linha sem fim. Sabia que aquilo poderia se tornar<br />

seu pequeno vício, mas se usada com moderação essa técnica o<br />

ajudaria a sair de momentos de dificuldade. Funcionou. E ele<br />

sentiu-se novamente equilibrado. As perguntas sem respostas<br />

continuavam brotando, mas agora não o incomodavam muito,<br />

soavam como algo inevitável, a morte para quem está vivo.<br />

Os vaga-lumes foram ficando para trás, agora só um ou<br />

outro desgarrado atravessava seu caminho, ele olhou para trás<br />

e viu uma nuvem verde brilhando na noite escura. Lembrou-se<br />

da mancha de luz esmaecida, quando viu de longe seu vilarejo<br />

sumido nas trevas.<br />

Reparou que o caminho à frente era uma grande planície<br />

e que as bordas da picada por onde caminhava eram cobertas<br />

de flores. Identificava que eram flores de vários tipos mas não<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

conseguia distinguir as cores. de qualquer forma sentiu-se bem<br />

pela companhia delas. A presença de cores reais tão perto de si,<br />

sem que pudesse enxergá-las, o fez pela primeira vez se lembrar de<br />

que cedo ou tarde o sol iria nascer, revelando as tonalidades que a<br />

noite escondia. Pensou que de dia , com tantas cores disponíveis<br />

e com a luz destruindo os mistérios noturnos, ficaria mais fácil<br />

escapar dos pensamentos encadeados que tanto o incomodavam.<br />

Pensou também exatamente o contrário, a fartura de imagens<br />

levaria a uma fartura de pensamentos superficiais.<br />

Mas não havia no céu ainda nenhum sinal de que o dia<br />

estava nascendo. Pelo contrário, já fazia um bom tempo que<br />

o céu parecia que não mudava de cor e nem a lua de lugar. Ele<br />

concluiu que a não mudança de algo que vinha constantemente<br />

mudando, não deixava de ser uma mudança também. Concluiu<br />

também que as mudanças poderiam ter o tamanho dos céus<br />

e todas as direções dos ventos. Tanto tudo mudava, que ele<br />

poderia dar meia-volta e retomar o rumo do vilarejo. Esse<br />

pensamento lhe atravessou rapidamente deixando em seus<br />

lábios um leve sorriso.<br />

Seus pés continuaram mudando de lugar. Seus olhos<br />

mudavam de direção tentando identificar algumas das cores<br />

escondidas pela noite. Repleto de busca, ele continuou<br />

caminhando em meio ao silêncio e à escuridão. Seus olhos não<br />

apenas se moviam, dentro deles havia uma grande vontade de<br />

engolir o mundo. Começavam até a se irritar com a escuridão<br />

que lhes escondia os mistérios. Esse início de irritação ficou<br />

claro quando ele chutou longe uma pedra e logo depois olhou<br />

para o céu. Pela sua fisionomia talvez ele tenha pensado que


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

aquela poderia ser a última das noites, a que nunca amanhecerá<br />

e manterá todos os mistérios escondidos. E que todo seu<br />

esforço teria sido em vão. E que num caso desses teria sido<br />

melhor nunca ter saído do vilarejo, que tinha luzes pálidas, mas<br />

que pelo menos tinha alguma luz.<br />

Mas ele não era ingênuo, sabia que os males e as felicidades<br />

nunca são tão grandes quanto imaginamos. O dia logo<br />

amanheceria e ele nunca descobriria todos os mistérios do<br />

mundo. Teria de se contentar com algumas migalhas e com o<br />

nascimento e morte contínuos dos dias. Além disso, se saberia<br />

reflexo do mundo, mudança viva, encarnada e sem controle.<br />

Saberia que se decidisse sentar-se para sempre, não deixaria de<br />

seguir caminhando e refletindo.<br />

Seus olhos sabiam de tudo isso mas ao mesmo tempo<br />

faziam esforço para acreditar no contrário, queriam o dia<br />

eterno, a noite que não amanhece, queriam descobrir fórmulas<br />

para enxergar no escuro e dormir de dia, queriam o melhor dos<br />

dois mundos sem os pesos que os acompanham. Caminhos<br />

sem dores, acompanhado sempre pelas flores dos teus sonhos.<br />

doces ilusões, que os olhos quando querem, sabem como tentar<br />

enxergá-las. Projeções de luzes que encantam, e que amarelam e<br />

avermelham o céu azul.<br />

Mas as gotas de suor sempre chegam para dizer que existem<br />

subidas e descidas. E agora elas escorriam em quantidade por sua<br />

testa. A brisa da noite havia cessado e agora o ar estava parado.<br />

Olhando para a lua imóvel teve uma sensação de asfixia. Respirou<br />

fundo, mas faltaram-lhe pulmões para contentar sua ansiedade.<br />

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22<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Tentou enxergar na luz do luar a mão molhada que tinha passado<br />

pela testa. Teve uma grande vontade de estar em outro lugar, ou<br />

então de não estar em lugar algum. Pensou que cada ilusão tem um<br />

preço a ser pago, assim como cada cor tem suas sombras.<br />

As gotas de suor desciam à medida que suas pernas não<br />

paravam de subir a colina, parecia que a subida era difícil<br />

demais para as flores que tinham ficado para trás. A paisagem<br />

havia se tornado árida, pedras, buracos, nada que se pudesse<br />

distinguir direito na noite escura.<br />

Mas havia alguma coisa que o fazia perseverar nesses<br />

momentos de dificuldades. Ele extraia de si um instinto vital que<br />

fazia com que cada passo fosse dado com mais determinação do<br />

que quando estava em terreno plano e florido. Cravava suas unhas<br />

e dentes na árvore da vida, esquecia-se que existem dificuldades<br />

que vêm depois que as dificuldades foram vencidas. Nesses<br />

instantes só existia o próximo obstáculo, após ele o paraíso.<br />

Então seus sofrimentos cessaram, as gotas deixaram de<br />

escorrer pois ele havia chegado ao cume da colina. Mas o<br />

paraíso prometido era um lago seco, lugar que ninguém mais se<br />

lembrava que um dia fosse molhado. Chegando onde aspirava<br />

sentia a garganta seca, lembrou-se do riacho onde havia bebido<br />

água. Apesar da descida ele parecia desanimado, agora o que<br />

o preocupava era a sede e a possibilidade de não existir mais<br />

nenhuma fonte de água pela frente. Mas logo que terminou a<br />

descida reencontrou o mesmo riacho, que após algumas curvas<br />

havia reaparecido. Sucedeu-se um novo paraíso seco, dessa vez<br />

com a garganta molhada.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

depois de matar sua sede ele sentou-se à beira do riacho e<br />

pôs-se a refletir: estava sempre insatisfeito em busca de algo,<br />

mas uma vez que esse objetivo fosse atingido, imediatamente<br />

esquecia-se dessa conquista, traçava outro alvo e mantinha<br />

viva a insatisfação. dessa forma percebeu que nunca poderia<br />

usufruir do produto de seu esforço. Tentou pensar numa<br />

maneira de reverter essa situação. Não era fácil, ele não gostaria<br />

de ficar para sempre bebendo a água que descobriu logo depois<br />

de subir a colina, mas também não queria tão rapidamente<br />

impor-se novo objetivo. Talvez o caminho do meio fosse o mais<br />

apropriado. Aproveitar o valor das conquistas, mas sem perder<br />

o desejo de prosseguir adiante.<br />

Essa idéia levou-o a outra: o caminho em si, já seria ele<br />

mesmo, um ponto de partida e de chegada, não sendo apenas<br />

um meio de se atingir um objetivo, mas o próprio. Tentou então<br />

incluir-se nesse raciocínio, se é ele quem trilhava o caminho,<br />

então também ele possuiria um fim em si mesmo. Sua vida<br />

seria todo um esforço para se atingir objetivos, mas ao mesmo<br />

tempo, sem que esses objetivos fossem alcançados, ela já seria<br />

plena. E tudo o que existe seguiria por esse mesmo caminho.<br />

Adicione-se a isso a possibilidade de escolha do caminho do<br />

meio... ele vivia num entroncamento de possibilidades que o<br />

deixavam confuso e estático.<br />

Para piorar a situação, lembrou-se de uma idéia que lhe veio<br />

à cabeça logo que começou a caminhar “a mudança vem dentro<br />

da mudança”. Sentiu que tudo aquilo era demais para ele,<br />

havia chegado a hora de usar uma de suas técnicas de escape.<br />

Pensar em cores, cansar o corpo para que as idéias também se<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

cansem. Lembrando-se dessas maneiras de bloquear idéias,<br />

não pôde deixar de considerá-las um pouco ridículas. Acabou<br />

sorrindo e depois gargalhando por um bom tempo. Quando<br />

terminou percebeu que as risadas tinham-no afastado dos<br />

pensamentos de que queria fugir. Ele tinha gargalhado porque<br />

havia se considerado ridículo, mas aquilo havia lhe feito bem,<br />

e o processo havia fluido de maneira bem mais natural do que<br />

quando usava as outras técnicas.<br />

Experimentou fazer a mesma análise com sua inteira<br />

caminhada, desde o momento em que deixou o vilarejo, tudo<br />

pelo que passou, as sensações e idéias que teve. Não se conteve,<br />

explodiu na maior das gargalhadas, que ecoou por toda a<br />

mata despertando alguns animais adormecidos. A resposta<br />

enfurecida dos bichos o levou a um acesso ainda maior de risos,<br />

teve de deitar-se no chão para não perder o fôlego.<br />

Quando finalmente conseguiu parar, reparou que estava<br />

todo sujo de lama, suas roupas e até seu cabelo. Refletindo sobre<br />

esse fato chegou à conclusão de que estava sujo de vida. Nem<br />

procurou limpar-se, deixou que a lama secasse naturalmente.<br />

Lembrou-se de que durante o caminho havia percebido que<br />

a vida tem um ritmo natural, e que quanto menos lutarmos<br />

contra ela, menos barreiras teremos de saltar. O que chamou-lhe<br />

a atenção foi perceber como coisas importantes como essa são<br />

rapidamente esquecidas. Por outro lado acabamos guardando<br />

com cuidado toneladas de coisas sem importância.<br />

Percebeu o quão pouco era rigoroso consigo mesmo e o<br />

quanto era com os outros. Perguntou-se então, quanto de seu


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

desejo de abandonar o vilarejo e iniciar a caminhada, provinha<br />

do fato de ele, enquanto vivia no vilarejo, ter se portado dessa<br />

maneira e sofrido por causa das conseqüências: não soube<br />

responder. Começou a suspeitar de si mesmo, de que todos<br />

seus ideais de busca de uma vida maior, poderiam ter tido como<br />

origem justamente o que há de menor no ser humano. E nesse<br />

caso, com as raízes contaminadas, essa planta não daria frutos,<br />

e se os desse, seriam venenosos.<br />

Foi imediatamente contaminado por um grande desânimo,<br />

o homem que havia alguns instantes atrás, contorcia-se no chão<br />

num acesso de gargalhadas, agora mergulhava num escuro mar<br />

interior. E esse pequeno oceano sem luzes movia-se de um lado<br />

para o outro, salgando-lhe as veias e escapando-lhe pelos olhos.<br />

Ele chorava, estava perdido, seus pés estavam mortos, suas mãos<br />

abandonadas. A tempestade interior não dava sinal de que iria<br />

terminar tão cedo, as veias vermelhas dos olhos bombeavam<br />

sangue com toda força. Seu maxilar inferior caído, mostrava a<br />

tremenda indiferença com que ele próprio se enxergava.<br />

Ele ajoelhou-se e depois entregou-se ao chão, agora molhava<br />

com suas lágrimas a terra já úmida. Algum tempo depois<br />

adormeceu. Acordou assustado sem saber onde estava. O céu<br />

continuava escuro. Suas lágrimas secas estavam misturadas à<br />

lama que lhe cobria o rosto. Voltou até o riacho para lavar-se,<br />

foi só então que se lembrou da razão de seu ataque de desespero.<br />

Na verdade os momentos de sono ajudaram a diminuir as dores<br />

que sentia. A dúvida permanecia lá, mas agora ele já não a<br />

enxergava como algo tão aterrador. Percebeu que a vida possui<br />

uma técnica secreta de nos distanciar dos extremos. Tanto a<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

idéia genial que modificaria a maneira de viver do ser humano,<br />

quanto o pior dos pesadelos psíquicos, após algumas lágrimas<br />

e algum tempo de sono, já não nos parecem assim tão terríveis<br />

nem tão maravilhosos.<br />

Talvez os extremos não combinassem com a fluidez natural<br />

que a vida necessita, eles acabam se tornando barreiras que<br />

precisam ser deglutidas para que o processo natural avance.<br />

E era exatamente o que estava acontecendo com ele. depois<br />

de se lavar ele recomeçou a caminhar como se nada tivesse<br />

acontecido. No começo os passos ainda não tinham a mesma<br />

firmeza de antes, mas logo caminhava com toda a vitalidade<br />

que possuía.<br />

Quando se lavou no riacho acabou molhando suas roupas, e<br />

agora a brisa da madrugada lhe trazia um problema concreto, o<br />

frio. Isso por um lado o ajudou a sepultar de vez suas infelicidades,<br />

pois tinha algo prático com o que se preocupar. Mas por outro<br />

lhe trazia um problema grave. Ele caminhava apenas com as<br />

roupas do corpo e elas estavam molhadas, ele sentia frio. Não<br />

sabia o que fazer, se tirasse as roupas provavelmente sentiria<br />

ainda mais frio. Não tinha como se defender.<br />

Continuou caminhando com a roupa molhada esperando<br />

que ela fosse secando, mas parecia que quanto mais andava<br />

mais frio sentia. Resolveu buscar um refúgio, uma caverna<br />

ou algo do gênero. Não encontrou nada parecido, encontrou<br />

uma terra arenosa na qual conseguia cavar facilmente com as<br />

mãos. Tirou suas roupas e as estendeu sobre uma pedra, em<br />

seguida entrou dentro do buraco, permanecendo na posição


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

fetal. Funcionou, a terra servia como um isolante térmico,<br />

estava completamente encoberto, apenas sua cabeça ficava de<br />

fora. Sentiu-se profundamente acolhido. um enorme conforto<br />

físico e espiritual. O único pensamento que o incomodou<br />

levemente foi o de que em algum momento teria de abandonar<br />

o buraco. No mais ele vivia seus instantes ideais, até mais do<br />

que quando se deitou no chão para mergulhar nas estrelas.<br />

Naqueles instantes havia uma busca, e por melhor que fosse o<br />

que viveu, qualquer busca revela alguma forma de desconforto.<br />

Agora, sua busca havia terminado no momento em que ele<br />

acabara de se enterrar, depois, só o que houve foi plenitude.<br />

Lentamente seus pensamentos foram saindo da total<br />

integração com o corpo e recobrando sua independência. Ele<br />

perguntava-se por quê momentos como aqueles eram tão raros<br />

de serem vividos. Se aquelas sensações existiam e eram possíveis,<br />

por que não viver permanentemente mergulhado nelas? Tentou<br />

então formular uma descrição para o que havia sentido: era a<br />

sensação de que tudo o que existe gostava dele e faria o máximo<br />

para que ele se sentisse bem. Havia uma enorme conspiração<br />

amorosa que o abraçava de todas as formas possíveis.<br />

Não ficou muito contente com a descrição, pois ela<br />

ainda estava longe do que sentira. Então seus pensamentos<br />

começaram a se aprofundar em dúvidas: será que o que havia<br />

vivido, não seria parecido com o não existir? Sem a memória<br />

dos instantes e nem a consciência da individualidade, mas<br />

no fundo compartilhando da mesma união com o todo<br />

que também não existe. E se assim fosse, e a vida fosse uma<br />

grande espera pelo momento de não mais existir, por que<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

não antecipar logo esse encontro? Bastaria que ele não se<br />

levantasse mais do buraco.<br />

Sabia perfeitamente onde esse tipo de pensamento iria<br />

desembocar. Mesmo estando confortavelmente enterrado,<br />

resolveu levantar-se e prosseguir a caminhada. uma camada de<br />

terra ainda cobria sua pele e ele sentia menos frio. Verificou suas<br />

roupas e elas ainda estavam úmidas, resolveu passar uma camada<br />

de terra por dentro de sua camisa e calça, para que a umidade fosse<br />

em parte absorvida. dessa maneira o frio se tornava suportável.<br />

Foi caminhando e reparando na consistência da terra por<br />

onde ia passando, sabia que poderia apelar novamente para o<br />

mesmo artifício enquanto a terra fosse mole e pudesse ser cavada<br />

com as mãos. Mas conforme caminhava o solo ia ficando mais<br />

rochoso, impedindo-o de buscar seu refúgio. Na prática não<br />

tinha mais necessidade de fugir do frio, a terra que colocara<br />

nas roupas tinha ajudado a secá-las e o vento havia cessado. O<br />

pequeno desconforto que sentia não justificaria o esforço de<br />

cavar um outro buraco.<br />

Mas a sensação de acolhimento permanecia viva em sua<br />

memória, ele adoraria viver aquilo novamente. Por outro lado<br />

sabia também que aquilo não era bom, conduzia a um caminho<br />

perigoso e egoísta. O prazer que havia vindo por acaso, quando<br />

buscava sobreviver, se fosse buscado apenas pelo prazer em si,<br />

traria apenas o vício.<br />

Refletindo, chegou à conclusão que as necessidades tem<br />

de serem satisfeitas à medida que forem surgindo, e não temos


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

como acumular prazeres que ainda não aconteceram. Eles<br />

acabam apodrecendo e tornando-se um material infecto que<br />

pode nos nutrir por alguns dias, mas que não nos sustentará<br />

por uma vida.<br />

Parou de examinar a consistência da terra e esqueceu-se dos<br />

buracos. Mas dessa experiência conseguiu extrair algo ainda<br />

maior do que quando olhava para as estrelas. Sabia agora que<br />

além de qualquer objeto que pudesse enxergar, existe um mundo<br />

vivo, mas o número de maneiras de se estar vivo é infinitamente<br />

maior do que o número de estrelas do céu. Foi invadido então<br />

por uma grande sensação de humildade, tudo era muito mais<br />

complexo do que aparentava, inclusive ele mesmo. Sua própria<br />

consciência seria apenas a mínima amostra de seu ser, e nem a<br />

respeito dela ele possuía grande conhecimento. Sentiu-se como<br />

um náufrago, que nada por horas em busca de terra firme, e<br />

então descobre que as águas em que nada, são da banheira de<br />

um navio, que por sua vez também está à deriva.<br />

Mas o fato de sentir-se tão pequeno também tem suas<br />

vantagens. O orgulho também diminui e acaba-se aceitando o<br />

inevitável eterno. É a velha história do ritmo natural da vida e<br />

da diminuição das barreiras criadas artificialmente. As coisas<br />

mudam em aparência, mas acabam voltando sempre para o<br />

mesmo ponto de partida. Entretanto, quem percebe isso, dá<br />

um passo além dos outros, uma coisa não elimina a outra.<br />

E foi dessa maneira que ele recomeçou a caminhar. Não<br />

olhava nem muito para o chão nem muito para o céu, não ia<br />

nem rápido nem devagar, estava próximo de encontrar seu<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

ritmo ideal. Sua fisionomia não demonstrava grandes emoções,<br />

mas não escondia que elas existiam. Chegou à conclusão de que<br />

era um homem aprendendo a ser homem, ou talvez mais do<br />

que isso, era um homem aprendendo a ser.<br />

Havia crescido desde sua partida, esperava continuar nessa<br />

evolução. Sabia de algumas coisas que aprendeu no caminho,<br />

mas principalmente sabia que a maioria das dúvidas estava<br />

além de seu alcance. E que o negócio era ir lidando com elas,<br />

seguindo a espiral mesmo sabendo que o caminho mais curto<br />

era a linha reta.<br />

Aliás, o caminho pelo qual passava agora parecia-se com<br />

uma espiral, um ziguezague em meio a uma vegetação que ia<br />

ficando cada vez mais densa. As árvores foram aos poucos<br />

aumentando de tamanho e já tinham o dobro de sua altura.<br />

Os galhos mais altos atravessavam a picada formando um<br />

túnel que encobria parcialmente o céu, deixando o percurso<br />

ainda mais escuro. Ele tateava com os braços para encontrar<br />

o caminho, levava grandes sustos quando galhos ou cipós<br />

encostavam em seus ombros como se fossem pessoas que o<br />

estivessem chamando. Estava começando a ficar irritado com<br />

essa mata fechada, temia que continuasse assim ou então fosse<br />

piorando. Ele poderia estar entrando numa grande floresta,<br />

imaginou todos os perigos de uma.<br />

Pela primeira vez temeu morrer. Não propriamente a<br />

morte em si, mas o processo, imaginou-se caído sem forças<br />

para se levantar, sendo devorado por milhares de mosquitos e<br />

escutando os animais selvagens se aproximando. Pensou que


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

esse seria o fim de tudo, e tudo o que havia aprendido até então<br />

teria sido em vão. Era preciso usar a inteligência para que a<br />

coisa não chegasse a um ponto irreversível.<br />

Pensou em voltar até o ponto em que as árvores começaram<br />

a encobrir o céu, decidiu que seria o melhor a fazer. Virouse<br />

para retornar, e há poucos centímetros de seu rosto<br />

estavam dois enormes e brilhantes olhos amarelos. Gritou<br />

desesperado, e instintivamente continuou o caminho floresta<br />

adentro, só que agora correndo. Correu o máximo que pôde,<br />

tropeçou e caiu, esbarrou em um galho e quando percebeu, a<br />

mata fechada havia terminado. Logo em seguida viu a dona<br />

dos olhos bater asas sobre sua cabeça. A coruja parecia mais<br />

assustada que ele.<br />

Sua mão tremia, sentou-se um pouco para recobrar o<br />

fôlego e reparou que havia machucado o joelho e o cotovelo.<br />

O ferimento do joelho parecia superficial, mas no cotovelo<br />

havia um grande corte e parecia que uma farpa de madeira<br />

tinha entrado sob sua pele. Rasgou um pedaço de sua camisa e<br />

amarrou com força sobre o machucado. Não sentia dores, mas<br />

sabia que aquilo poderia ter conseqüências graves. Resolveu<br />

descansar um pouco nessa clareira em que estava, decidiu<br />

esquecer-se temporariamente do ferimento.<br />

A passagem pela mata fechada havia deixado nele marcas<br />

que não estavam em sua pele. do mesmo jeito que a farpa o<br />

fazia lembrar-se de seu machucado, alguma farpa invisível o<br />

lembrava que fora dentro da mata que pela primeira vez ele<br />

havia pensado no fim.<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Agora que o perigo eminente de morrer à míngua havia<br />

passado, esse assunto não o entristecia nem o apavorava, talvez<br />

despertasse uma curiosidade levemente masoquista, como<br />

alguém que provoca em si mesmo dores que pode suportar.<br />

E a farpa invisível movia-se dentro dele: como seria a<br />

sensação de não mais existir? Talvez fosse a continuação do<br />

prazer que sentiu quando se enterrou, um alívio dos pesos, das<br />

dores, expectativas, alegrias, tudo iria se dissolvendo junto com<br />

a consciência. Para cada dor que sumisse um prazer também<br />

desapareceria. E no final sobraria apenas o não ser. Lembrouse<br />

então, que havia chegado à conclusão que nessa caminhada<br />

seu objetivo era conseguir ser, apenas isso. Logo, todo o esforço<br />

que fazia era no sentido oposto da morte, lutava contra ela.<br />

depois de muito refletir, julgou que não tinha condições<br />

de escolher o melhor caminho para decidir sobre essa questão.<br />

Acreditou que fosse necessário alguém que não participasse<br />

dela. Alguém que não estivesse nem vivo nem morto. Mas<br />

percebeu que se estava percorrendo esse caminho e não o<br />

outro, era porque alguma razão o havia levado até lá. Não<br />

tendo nenhum argumento sólido para contrapor a essa razão<br />

desconhecida, decidiu que deveria continuar no caminho que<br />

vinha trilhando. Mas isso não significava que a farpa havia<br />

desaparecido, ela o acompanharia até o final da caminhada.<br />

Apalpou-a, sentindo-a sob a pele. Não havia dor. Levantou-se<br />

e olhou para o trecho de mata fechada que havia atravessado, não<br />

conseguiu enxergar grande coisa, mas teve a impressão de um<br />

longo túnel feito de árvores. A sensação de ter atravessado esse


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

túnel permaneceu-lhe impressa na mente como uma segunda<br />

farpa, que poderia trazer recordações e lhe despertar para novos<br />

caminhos. Talvez os ferimentos fossem as provas físicas de que<br />

estava trilhando a estrada certa, e que a mata, o medo, a coruja,<br />

tudo isso fossem degraus da escadaria. Por um instante pensou<br />

que esses degraus serviriam para subir e para descer, e não tinha<br />

certeza se subia ou descia. Lembrou-se que já havia decidido que<br />

isso não importava e que o importante era seguir seu caminho,<br />

independente de onde quer que fosse terminar.<br />

Recomeçou. O túnel escuro ficou para trás e agora o<br />

caminho era aberto, nenhuma subida ou descida grandes, uma<br />

ou outra flor solitária à beira do caminho, bastante capim.<br />

Algumas nuvens noturnas encobriam as estrelas que<br />

continuavam aparecendo nos espaços vazios. Nenhum<br />

barulho, a vida dormia. Parecia que ele havia chegado à<br />

parte mais tediosa de sua jornada. Nenhum risco, nenhum<br />

mistério, nenhuma beleza escondida. Apalpou a farpa sob<br />

a pele e ela continuava lá, seu machucado começou a coçar.<br />

Ele desamarrou a atadura, coçou o cotovelo e recolocou<br />

a bandagem improvisada. Logo após amarrar, o cotovelo<br />

começou novamente a coçar, então arrancou de vez a atadura<br />

e continuou a caminhada sem curativos.<br />

Todo esse processo o chateou, sentia que já havia caminhado<br />

muito, agora estava machucado e nada de maravilhoso<br />

projetava-se pela frente. Ele já havia vivido bons momentos, o<br />

que estava por vir estava longe de ser o mais interessante do<br />

percurso. Se tivesse certeza de que a distância até o final seria<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

mais longa do que a que tinha percorrido até agora, daria meiavolta<br />

imediatamente.<br />

Mas acabou deixando seus pés continuarem, mesmo sem<br />

muita vontade. Passos curtos e lentos de quem não tem muita<br />

certeza de porquê está caminhando. O caminho agora era<br />

completamente plano e a vegetação pobre e tediosa. Para piorar<br />

começaram a cair algumas gotas de garoa, que lentamente foi<br />

engrossando. Ele continuou com o mesmo ritmo e nem pensou<br />

em procurar algum lugar para se abrigar da chuva. Apenas<br />

deixou-a acontecer, participando dela.<br />

Lembrou-se do esforço que havia feito para secar-se, da outra<br />

vez que havia se molhado, e do prazer que sentiu quando se<br />

enterrou para fugir do frio. Instintivamente olhou para a terra,<br />

que agora era lama. Não sentiu nenhuma vontade de enterrar-se<br />

ali. Mas se a terra estivesse seca, sua indiferença provavelmente<br />

seria a mesma. A chuva parou e deixou o caminho cheio<br />

de poças d’água. Ele continuou com seu ritmo, seus olhos<br />

estavam distantes, não que seus pensamentos estivessem em<br />

outro lugar, parecia que seu cérebro tinha pálpebras e que elas<br />

estavam fechadas. Mas as pálpebras de seus olhos verdadeiros<br />

permaneciam abertas, e deles escorriam gotas de chuva que<br />

pareciam lágrimas. Mas naqueles momentos ele estava tão<br />

distante das alegrias quanto das tristezas, e por isso mesmo,<br />

aquelas falsas lágrimas não iriam se transformar em verdadeiras.<br />

Parou, precisava de descanso, sentou-se sobre a lama.<br />

Permaneceu um bom tempo apalpando-a e sentindo sua<br />

consistência. A primeira idéia concreta que lhe surgiu foi, se


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

alguém pudesse enxergá-lo naquele instante, sozinho, sujo,<br />

molhado e machucado no meio da natureza, o que essa pessoa<br />

pensaria? Ele não estava curioso por vaidade, nem temia a<br />

opinião dos outros, apenas desejava saber o que alguém, que o<br />

visse naquela situação, pensaria dele. Tentou colocar-se no lugar<br />

dessa hipotética pessoa fingindo não ser ele mesmo, voando<br />

até uma estrela e de lá o observando. Chegou à conclusão que,<br />

ao contrário do que imaginava, sua imagem não despertaria<br />

nenhum sentimento negativo ou de nojo, como chegou a<br />

cogitar. Talvez despertasse uma certa estranheza, como uma<br />

formiga que não se comporta como suas semelhantes e está<br />

bem longe de seu formigueiro.<br />

Essa imagem mental animou-o um pouco, afinal de contas<br />

ele tinha deixado o vilarejo porque estava cansado de se comportar<br />

como os outros. Olhou para cima e imaginou alguém<br />

olhando-o naquele instante. Começou a sentir uma ponta de<br />

orgulho por estar ali, sentado na lama no meio da noite.<br />

Seu lábio inferior encobriu o superior, estava pensando<br />

como as coisas mudam rapidamente, seu estado interno variava<br />

mais rápido que o vento, desde que partira há apenas algumas<br />

horas, já havia experimentado todos os estados de espírito.<br />

Mais do que a velocidade de mudança, o que o chocava era a<br />

inconstância de seu interior. Ser assim tão volúvel, revelava uma<br />

grande capacidade de adaptação, mas também mostrava uma<br />

enorme fragilidade, como se os componentes que formassem<br />

uma determinada estrutura estivessem sempre entrando em<br />

fusão entre si, dissolvendo eles mesmos e também a estrutura<br />

que formam. Sentiu-se como uma substância efervescente que<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

mergulhada n’água vai compondo formas aleatórias. Adicionou<br />

a isso uma consciência, ou algo que se assemelhasse a uma, e<br />

terminou seu auto-retrato.<br />

Mas sabia que teria de conviver com isso, e sabia também que<br />

os que tentam evitar que suas substâncias internas se fundam,<br />

formando desenhos exóticos, acabam apenas se dissolvendo<br />

n’água sem ao menos embelezar o mundo.<br />

E a mudança continuava, estava na hora de prosseguir e<br />

começou a pensar em algum lugar para se refugiar e novamente<br />

secar suas roupas. Mas com a lama toda que havia no caminho<br />

ele não poderia cavar um buraco para aquecer-se. Não sentia frio,<br />

não sabia se a noite havia esquentado ou se seu organismo tinha<br />

se acostumado àquela temperatura. Continuou procurando<br />

algum lugar que pudesse servir de refúgio. Lentamente, a<br />

paisagem ao seu redor foi se modificando, as grandes retas<br />

monótonas foram dando lugar a caminhos mais sinuosos com<br />

curvas fechadas e vegetação mais rica. um pequeno riacho<br />

atravessava frequentemente o caminho e escutava-se a vida<br />

escondida na noite gritar seus barulhos. Ele tinha um pouco de<br />

luz, pois vaga-lumes ajudavam na iluminação. Tudo isso acabou<br />

distraindo-o e esqueceu-se de encontrar o refúgio. O barulho<br />

sempre presente do riacho tinha a propriedade de acalmá-lo.<br />

Seu estado de espírito foi tranqüilizando-se de tal modo que<br />

por algum tempo esqueceu-se até de seus ferimentos.<br />

Pela primeira vez desde que começou a caminhar ele pensou<br />

em sua vida, nas razões que o tinham levado a começar a<br />

caminhada. Possuía o distanciamento de analisar sua vida quase


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

como se fosse a de outra pessoa. Isso lhe dava a independência<br />

de uma observação descontaminada de emoções. Lembrou-se<br />

da formiga solitária longe do formigueiro.<br />

Então mergulhou em sua vida de formiga dentro do<br />

formigueiro. Refletiu sobre as razões pelas quais se sentia<br />

inadequado vivendo lá dentro. Primeiro atribuiu aos outros<br />

egoísmo e a si mesmo generosidade, depois ficou pensando se<br />

não seria exatamente o contrário. Não queria culpar ninguém<br />

e esse tipo de raciocínio sempre acaba derramando a culpa<br />

em cima de alguém. decidiu examinar melhor seu próprio<br />

comportamento e esquecer-se do dos outros.<br />

Chegou à conclusão de que em qualquer vilarejo, existe um<br />

objetivo final para a comunidade, este alvo não está descrito em<br />

lugar algum e na verdade são poucas as pessoas que percebem<br />

que ele existe. Ele era um dos poucos, apesar disso sentia-se<br />

como alguém que entendeu o que estava escrito, mas não o<br />

significado que as palavras queriam dar. Para ele o objetivo do<br />

vilarejo não fazia sentido algum, e estranhava muito quando<br />

algumas pessoas que conseguiam perceber esse objetivo,<br />

aceitavam-no como algo lógico e coerente. Sentia-se então um<br />

completo estrangeiro, pouco interagia com a grande massa que<br />

nem percebia o objetivo último do vilarejo, e menos ainda com<br />

aqueles que o entendiam, e nele encontravam sentido.<br />

durante algum tempo tentou encontrar esse sentido<br />

que os outros enxergavam, chegou a conviver mais de perto<br />

com aqueles que acreditavam nele, mas não adiantou, nunca<br />

conseguiu entender. Chegou até a pensar fingir ser um deles,<br />

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38<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

mas percebeu que seria inútil. Mas invejava-os, principalmente<br />

a maneira simples e fácil com que se relacionavam com seus<br />

semelhantes. Eles pareciam ter os mesmos olhos, e isso derrubava<br />

as barreiras, criando uma intimidade que, apesar de superficial,<br />

os distraía, deixando-os num estado permanente de alegria<br />

mediana. Ele, ao contrário, sentia-se sempre ímpar e hiato.<br />

Tentou então outro caminho, iria falar aos que de nada sabiam,<br />

alertá-los primeiro de que o vilarejo tinha um objetivo, e depois<br />

fazê-los enxergar que esse objetivo não tinha nenhum sentido.<br />

Poucos foram os que quiseram ouvi-lo. A grande maioria<br />

não tinha tempo a perder, precisavam se ocupar de seus<br />

sustentos, e mesmo seus tempos livres, desejavam utilizar<br />

da mesma maneira que seus semelhantes já utilizavam.<br />

O que de uma certa forma completava o ciclo de suas<br />

vidas, não deixando nenhum espaço vago. Aqueles que<br />

aceitaram ouvi-lo, escutaram-no com atenção até o final<br />

de suas explicações, mas depois quiseram saber o que eles<br />

ganhariam se fizessem o que ele estava sugerindo. Ele lhes<br />

respondeu que não sabia, mas que aquilo era pelo menos a<br />

tentativa de um caminho alternativo, um sabor diferente,<br />

e mais do que tudo de encontrar um objetivo que fizesse<br />

algum sentido. Foi aí que acabou ficando sozinho, ouvindo<br />

que eles não iriam trocar o certo pelo duvidoso.<br />

Reparou que os que nada sabiam, também tinham os<br />

olhos parecidos entre si, e a mesma habilidade da comunhão<br />

superficial que possuíam aqueles que acreditavam no objetivo<br />

que não fazia sentido. Isso o entristeceu, principalmente<br />

porque, no fundo, ele invejava essa capacidade que ambos


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

os grupos tinham de se relacionar com seus semelhantes.<br />

Secretamente nutria o desejo de poder fazer o mesmo com<br />

eventuais assemelhados seus.<br />

O estágio seguinte foi o do isolamento, começou a evitar<br />

ao máximo o contato com ambos os grupos. Não concordava<br />

com suas maneiras de viver, como não conseguiria ter com eles<br />

momentos de integração, escolheu não ter nenhuma relação.<br />

Falava o absolutamente necessário para a vida cotidiana, viveria<br />

em seu mundo e eles nos deles. Conviveria como convivem<br />

animais diferentes em um zoológico. Essa fase durou pouco,<br />

ele começou a sentir-se extremamente sozinho e a indiferença<br />

que sentia pelos outros logo se transformou em raiva. Ficou<br />

agressivo, discutia por qualquer assunto, considerava-se<br />

superior aos outros, o mínimo deslize de quem quer que fosse o<br />

fazia explodir e jogar nessa pessoa a culpa por, mesmo julgandose<br />

superior, não conseguir ser aceito.<br />

Mas ele logo percebeu que não poderia viver odiando,<br />

resolveu então ceder um pouco, começou a fingir ser um<br />

deles, não importava muito qual dos dois grupos, conseguia<br />

passar-se pelos dois. Mas esse fingimento tinha limites, não<br />

conseguia contrariar seus ideais, apenas matava algumas horas<br />

com divertimentos rasos. Tentava sempre encontrar pontos<br />

em comum com essas pessoas, às vezes procurava acreditar<br />

em semelhanças que simplesmente não existiam. Quando as<br />

diferenças eram muito gritantes, recordava-se que todos eram<br />

seres humanos, esquecia-se da íris, da pupila e do brilho do<br />

olhar e reparava em como o branco dos olhos dos outros era<br />

parecido com o seu.<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

dessa maneira conseguiu conviver bastante tempo com<br />

os outros. Entretanto, nunca foi aceito plenamente pelos<br />

grupos, da mesma maneira que nunca os aceitou de verdade.<br />

Viveu uma vida de meias mentiras, mas aquilo era suficiente<br />

para que ele não fosse considerado um elemento nocivo ao<br />

vilarejo. Consideravam-no alguém estranho, problemático, um<br />

fracassado que não havia encontrado seu caminho na vida, mas<br />

não incomodava, era um pesinho morto, inofensivo.<br />

Por outro lado, ele começou a questionar-se sobre a vida sem<br />

sentido que levava, se o objetivo final da vida, para ele não fazia<br />

sentido, sua vida em si, fazia ainda menos. Não queria terminar<br />

seus dias representando um papel em que não acreditava.<br />

Perguntava-se constantemente em nome do que, continuava<br />

com aquela vida. A única resposta honesta que conseguiu<br />

foi, em nome do medo. Lembrou-se dos dias em que viveu<br />

odiando a todos, e chegou à conclusão de que ódio e medo são<br />

sentimentos parecidos. Ele apenas havia transformado o que<br />

sentia em algo que pudesse ser, socialmente, mais aceitável.<br />

Esses foram dias de grande sofrimento, sentiu uma solidão<br />

profunda, estava perdido, todos os caminhos pareciam estradas<br />

sem saída. Mas sabia também que vivia um período de mudanças<br />

e honestidade, como nunca vivera antes. Suas feridas estavam<br />

expostas e as dores eram grandes, mas pelo menos tinha tirado<br />

a bandagem podre que por tanto tempo havia encoberto suas<br />

chagas. A longo prazo, o ar fresco só lhe faria bem.<br />

Foi então que decidiu-se, sabia que no fundo desprezava a<br />

todos aqueles com quem convivia. Sabia que isso era errado e


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

que deveria respeitá-los. Resolveu partir para longe do convívio<br />

de quem quer que fosse. Não queria evitar os homens, queria<br />

um dia poder respeitá-los. Não sabia o que fazer e nem para<br />

onde ir, resolveu andar, quando percebeu as luzes do vilarejo<br />

estavam distantes e pequenas.<br />

Ao seu lado a vida se manifestava com barulhos e as flores<br />

haviam voltado a aparecer ao longo do caminho. Ele estava<br />

vivendo um momento agradável e caminhava com gosto.<br />

Lembrou-se de como são volúveis os sentimentos e as coisas em<br />

geral. Mesmo assim, contrariando toda a lógica, desejou com<br />

todo seu coração que seu caminho continuasse florido e cheio<br />

de vida até o fim. Esse desejo, que era o contrário de como a vida<br />

funcionava, o fez pensar que talvez fosse necessário acreditar<br />

em algumas mentiras para se viver melhor. Não em qualquer<br />

uma, mas naquelas que percebesse que acompanhavam o<br />

ritmo natural da vida. Chegou à conclusão que a capacidade<br />

de acreditar em mentiras, sabendo-as inverdades, demonstrava<br />

uma grande sabedoria. Mesmo porque o que se considerava<br />

como verdade tinha bases muito frágeis. um homem que<br />

conseguisse agir dessa forma teria compreendido o transitório<br />

e o eterno do instante. E talvez estivesse aí a chave que abriria a<br />

porta que ele tanto havia desejado atravessar.<br />

Mas decidiu não preocupar-se com portas nem com<br />

caminhos, sentia-se fortalecido física e mentalmente. Parecialhe<br />

que ao mesmo tempo em que caminhava e descobria<br />

novas paisagens, seu cérebro fazia o mesmo e revelava-lhe um<br />

mundo de idéias desconhecidas até então. Era verdade que o<br />

que enxergava eram mais contornos do que paisagens, suas<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

essências continuavam escondidas pela noite. Podia ser que<br />

acontecesse o mesmo com suas idéias, ele já as considerava<br />

claras e bem definidas, mas somente quando a luz viesse é que<br />

elas se mostrariam por inteiras. Na profundidade de seus tons<br />

de cores e dimensões.<br />

Lembrou-se dos caminhos horríveis que já havia percorrido<br />

mentalmente. Enquanto atravessava o riacho, percebeu que se<br />

estivesse de dia talvez ele pudesse enxergar seu reflexo nas águas.<br />

Imediatamente relacionou os maus caminhos mentais como um<br />

reflexo dos maus caminhos percorridos, um reflexo de duas vias<br />

que talvez pudesse ser aplicado a todos os aspectos da vida.<br />

As perguntas começaram a chegar, ele não queria que elas<br />

se multiplicassem sem controle, mas também não poderia<br />

barrar-lhes completamente o caminho, deixou que algumas<br />

acontecessem: como sabemos que importância dar ao mundo<br />

mental e qual ao mundo físico? Esses mundos separados não<br />

seriam apenas duas versões mais e menos concentradas de um<br />

terceiro mundo, esse sim real?<br />

Sabia que se não interrompesse, elas continuariam surgindo<br />

e ele não teria nenhuma resposta a dar. Mas não se preocupou<br />

com isso, continuou andando e de repente foi surpreendido por<br />

uma resposta, que não se referia a nenhuma das duas perguntas<br />

anteriores: sim.<br />

Assim como de manhã, ao acordarmos somos ingênuos e<br />

nos movemos como crianças, ao longo do dia vamos ganhando<br />

agilidade e atingindo nossos limites físicos e mentais, no final


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

da tarde estamos cansados e já acumulamos um dia inteiro nas<br />

costas, e à noite nossa consciência acompanha o desgaste de<br />

nosso corpo e desprende-se dele.<br />

dessa vez os espelhos estavam invertidos e a resposta veio<br />

antes da pergunta, mas essa logo em seguida apareceu: não seria<br />

o dia uma miniatura da vida?<br />

Ele divertiu-se com a inversão e chegou à conclusão de que<br />

muito mais coisas poderiam estar invertidas, o que significava<br />

que não existia, de fato, lado de cima e lado de baixo. Olhou<br />

para o céu e imaginou-o como um grande chão, onde as<br />

estrelas seriam as conchinhas da praia, e ele alguma espécie de<br />

caminhante, que de cabeça para baixo conseguia se equilibrar<br />

num planeta qualquer sem despencar.<br />

Continuou caminhando e pensando: já que, em cima<br />

e em baixo, são lugares assim tão relativos, não seria relativo<br />

também todo o resto, todos os pares de opostos? E em assim<br />

sendo, a verdade, ou pelo menos algo que se aproximasse<br />

dela, não estaria sempre o mais longe possível das aparências<br />

mais evidentes? Escondida em algum meio-termo sutil e<br />

desconhecido, alguma esquina esquecida onde o vento faz a<br />

orquídea mover-se. E para que alguém conseguisse observar<br />

seus movimentos, seriam necessários silêncio e esquecimento.<br />

E para que além dos movimentos, alguém consiga enxergar<br />

a verdadeira cor, é necessário um mergulho sem volta dentro<br />

de si mesmo, um auto-afogamento de seu ser conflitante, para<br />

que das águas emirja o novo homem, que trará nos dentes as<br />

orquídeas que quiser.<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Seus pensamentos haviam percorrido tanto o caminho das<br />

flores, que ele pensou em arrancar uma para observá-la mais de<br />

perto. Talvez depois da curiosidade satisfeita ele simplesmente<br />

a jogasse fora. Imaginou-a apodrecendo no meio da lama.<br />

Lembrou-se das idéias que acabara de ter, uma flor arrancada<br />

era apenas a aparência de uma flor, já essas milhares de outras<br />

que estavam encobertas pela noite, e que ele não conseguia<br />

enxergá-las, estavam muito mais próximas de ser o que é a<br />

essência de uma flor. desistiu de arrancar e até de aproximar<br />

qualquer uma dos olhos para enxergá-la melhor. Aquelas flores<br />

estavam exatamente onde deveriam estar, e ele também.<br />

Estava tentando se aproximar do que existe de mais sutil...<br />

percebeu que o caminho era árduo e complicado, cheio de<br />

pistas falsas e bifurcações. Teria de deixar pelo caminho muito<br />

peso interno que carregava desde criança. Lágrimas pesadas<br />

escorreram de seu rosto. Ele lutava para ser sensível e poder<br />

enxergar o que os outros não viam, então tudo o que não fosse<br />

puro teria de ser botado para fora.<br />

Gritou e xingou, maldisse a tudo e a todos, despejava o lixo<br />

no meio da natureza, sua cabeça doía, seus machucados doíam,<br />

a farpa de madeira parecia que havia começado a se mover<br />

dentro do braço. de repente a tempestade passou. Não sabia<br />

se por causa de seu esforço ou não. O que começou a sentir foi<br />

fome. Talvez esse despejar de instintos primários é que tenha<br />

atraído a fome, mas de qualquer forma, mais cedo ou mais<br />

tarde ela viria mesmo. Não se lembrava quando havia feito<br />

sua última refeição, o que tinha acontecido ainda no vilarejo<br />

parecia encoberto por uma bruma que tornava tudo distante.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

desde que iniciara o caminho, não tinha visto nada de<br />

comestível, mas talvez existissem árvores frutíferas encobertas<br />

pela escuridão e esperando a manhã para poder existir. Em<br />

um caso extremo poderia comer flores, mas a fome estava no<br />

começo. Bebeu bastante água no riacho e lembrou-se novamente<br />

do peixe verde brilhante que logo no início do percurso havia<br />

imaginado engolir. Imaginou-se engolindo-o, e o peixinho<br />

crescendo dentro de si até o tamanho exato de seu estômago.<br />

Não sei se com seu esforço ele aprendeu algum segredo, ou<br />

se então estava apenas fingindo que reflexos podem apresentar<br />

formas físicas, mas o fato é que sua fome acabou. Sentiu até o<br />

peso no estômago de quando se exagera numa refeição.<br />

Nova mudança, com a satisfação, verdadeira ou falsa, de<br />

seus instintos primários, ele acabou esquecendo-se do esforço<br />

e das lágrimas em sua busca pela essência do sutil. Agora, ao<br />

contrário, pensava no mundo físico, o alimento, o calor, o sono,<br />

e desta maneira trazia para junto de si também todos os opostos<br />

do que estava desejando.<br />

Pela primeira vez começou a sentir medo da escuridão,<br />

suspeitava dos menores barulhos, olhava constantemente para<br />

trás e sempre parecia que tinha enxergado um resto de sombra<br />

que não fosse a sua. Quando ele estava na mata fechada e temeu<br />

nunca mais conseguir sair de lá, havia ao menos uma razão<br />

concreta para o medo, mas agora apenas a ausência de luz já era<br />

suficiente. Atrás de cada árvore imaginava um inimigo, olhava<br />

para cima e para baixo, de qualquer canto poderia partir um<br />

ataque. Ele era o alvo do universo.<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

O medo consumia todas suas energias, contraindo seus<br />

nervos e fazendo seus dentes apertarem-se uns contra os outros.<br />

Ele roía as unhas até machucar os dedos. Olhou para seu<br />

ferimento e enxergou-o bem maior do que antes, a farpa que<br />

estava sob sua pele também parecia ter aumentado de tamanho.<br />

O machucado no joelho, que nunca havia incomodado, agora<br />

dificultava sua caminhada.<br />

Não conseguia vigiar ao mesmo tempo tantos possíveis<br />

inícios de seu fim, e esse vertedouro de energias estava<br />

esgotando-o. Queria simplesmente deitar no chão, mas aí<br />

estaria entregando-se de vez aos inimigos. Sua mente e seu<br />

corpo começaram a entrar em conflito, um queria prosseguir<br />

o outro não. Começou a desconfiar de si mesmo, não estaria<br />

ele mesmo conspirando para o próprio fim? Parado, virava-se<br />

para todos os lados, percebeu então que sua parte conspiratória<br />

havia vencido e ela era que o tinha feito parar de caminhar.<br />

Continuou a andar e a situação foi só piorando, além de ter<br />

medo de si mesmo, agora temia o próprio medo.<br />

Não sabia mais o que fazer, se andava, se parava, o medo é<br />

pesado, e carregá-lo dessa forma esgota qualquer um. Agora parou<br />

porque seu corpo não mais o obedecia, suas pernas tremiam de<br />

tanto esforço, deixou-se cair no chão. Olhava o céu estrelado e<br />

temia-o, imaginou um imenso raio saindo do céu sem nuvens<br />

e fulminando-o. Sentia cãibras por todo o corpo, não podia se<br />

levantar, e sem poder vigiar todos os lados, seus medos começaram a<br />

acumularem-se e sobreporem-se. Ele entrou num estado alterado de<br />

consciência, seus medos diminuíram um pouco e ele adormeceu.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Acordou melhor, ainda sentia algumas dores musculares<br />

mas após se levantar e dar alguns passos elas foram diminuindo.<br />

Lembrava-se do pavor que havia vivido antes de adormecer e<br />

aquilo tudo lhe pareceu uma imensa fraqueza. Sentiu-se um<br />

pouco culpado por ter se deixado chegar naquele estado. Sabia<br />

que as coisas e os sentimentos mudam com grande velocidade,<br />

mas fazia parte do crescimento humano controlar excessos<br />

nessas mudanças.<br />

Estava lentamente se recuperando, a primeira etapa tinha<br />

sido o reconhecimento de culpa. Percebeu que às vezes dava<br />

um grande passo à frente e em seguida três grandes passos para<br />

trás. Prometeu para si mesmo que isso não mais aconteceria.<br />

Em todos os sentidos, seria melhor que seu avanço fosse lento<br />

e seguro. Fez alguns exercícios para movimentar os músculos.<br />

Respirou fundo três vezes, concentrou-se, procurou esvaziar<br />

a cabeça de quaisquer pensamentos. Estava pronto para<br />

recomeçar, esperava haver transformado essa experiência em<br />

aprendizado.<br />

Observou seus ferimentos com olhos neutros, eles não<br />

pareciam ter aumentado. A dor no joelho havia desaparecido<br />

e ele podia caminhar tão bem como antes. Lembrou-se de<br />

que havia decidido que, para melhorar, iria deixando todos os<br />

pesos inúteis pelo caminho. O medo talvez fosse seu fardo mais<br />

pesado. decidiu que não teria mais medo, sabia que apenas<br />

decidir poderia não representar nada, teria de acreditar e<br />

praticar essa decisão. Cavar dentro de si até encontrar as raízes<br />

do medo e arrancá-las para que a planta não voltasse a nascer.<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Para ele a raiz de todos os medos era a idéia de que as coisas<br />

têm apenas uma existência física, sem existirem paralelamente<br />

no mundo das idéias. A partir do momento em que um objeto<br />

ou uma pessoa existe apenas no mundo físico, ela está sujeita<br />

a desaparecer dele a qualquer instante, e aí nasce o medo. As<br />

religiões, o que faziam, era transportar esse mesmo mundo<br />

físico para um falso mundo de idéias, mas que continuava<br />

obedecendo às regras do mundo físico. desta forma o se<strong>guido</strong>r<br />

de religiões tinha duas vezes mais chances de ter medo do que<br />

aquele que não as segue.<br />

O mundo das idéias estava abrindo-se para ele, poderia<br />

ser seu refúgio e fonte energética. Sabia, porém, que precisava<br />

buscar um equilíbrio, não poderia viver num mundo onde<br />

ninguém tem um corpo a nutrir. Gostava do mundo físico e de<br />

suas sensações e não queria abandoná-lo. Nesse instante uma<br />

brisa noturna soprou trazendo o aroma das flores que estavam<br />

em volta. Era o mundo físico mostrando-se em sua exuberância,<br />

parecia que não queria perder um servidor fiel.<br />

Como havia decidido pelo equilíbrio, aceitou o aroma das<br />

flores imaginando-as em sua beleza máxima. Mas logo percebeu<br />

que dessa forma estava apenas reproduzindo imagens físicas no<br />

plano mental, sem realmente modificar nada. O que teria de<br />

fazer seria imaginar a essência dessas flores, a idéia primeira,<br />

fonte geradora daqueles aromas. dessa forma ele estaria<br />

moendo as folhas da vida para extrair-lhes o suco, e depois<br />

de bebê-lo, conseguiria enxergar como funciona a sutileza do<br />

verbo viver.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Fez várias experiências mentais nesse sentido, sabia que seu<br />

corpo não poderia ser esquecido nessa busca, respirou fundo,<br />

sentou-se confortavelmente e continuou experimentando. Às<br />

vezes alguma coceira o distraía, às vezes eram pensamentos<br />

inúteis que atravessavam seu caminho, mas ele seguia adiante.<br />

Queria entender a essência das coisas para poder se livrar de<br />

vez do medo. Aos poucos foi apurando sua sensibilidade e<br />

atingindo estados mentais que desconhecia. Mas não tinha<br />

idéia se estava próximo ou distante de compreender a essência<br />

de um objeto. desconfiava que se conseguisse entender uma<br />

flor teria entendido todo o universo.<br />

Resolveu então dar uma parada nas experiências, lembrouse<br />

do equilíbrio. Apalpou seu ferimento, massageou seus<br />

pés que doíam, levantou-se e recomeçou a andar. Logo nos<br />

primeiros passos, a idéia de que poderia compreender todo o<br />

universo começou a cutucá-lo. Lembrou-se dos habitantes do<br />

vilarejo, e de como eles estavam distantes de entender coisas<br />

infinitamente mais simples. Pensou também no poder que<br />

adquiriria uma pessoa que conseguisse compreender tudo o<br />

que existe. Esse poder não deixaria de ser um imenso fardo.<br />

Peso que voltaria a causar desequilíbrio.<br />

Talvez muitas coisas existam para não serem entendidas, o<br />

grande fardo do mistério poderia ser um imenso contra-peso<br />

natural, que ajudaria o ser humano a continuar existindo.<br />

Mesmo porque um mundo sem mistérios seria um mundo<br />

pobre de idéias, e se por um lado elas existem para explicar os<br />

mistérios, por outro elas não podem existir sem eles.<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Cada vez mais acreditava que o homem, como participante<br />

dos mundos físico e mental, possui limitações em ambos, e não<br />

deve tentar excedê-las, sob pena de causar o desequilíbrio em<br />

si mesmo e nos outros. Talvez a idéia da imagem da flor que,<br />

no escuro exalou o aroma, seja o limite humano, talvez haja<br />

um estado intermediário entre essa idéia e o descobrimento da<br />

essência da flor. Mas a essência de todas as coisas estaria além de<br />

onde o homem pode pisar.<br />

Agora estava entrando em um território lamacento, seus pés<br />

afundavam até a altura do calcanhar e ele tinha dificuldades para<br />

caminhar. Avançava lentamente e notou que a lama ia ficando<br />

cada vez mais funda e já estava quase na altura de seu joelho.<br />

Tinha de fazer bastante força para avançar e acabou perdendo<br />

na lama um de seus sapatos. Ouviu o coaxar de sapos e percebeu<br />

que estava em um pântano. usou tudo o que aprendera durante<br />

a caminhada para manter o equilíbrio emocional e bloquear a<br />

entrada do medo.<br />

Parou por alguns instantes, respirou fundo, percebeu que a<br />

profundidade da lama havia crescido até a altura de seu joelho<br />

mas parara por aí. Então, aparentemente, ele não corria riscos<br />

de afundar mais. Passo após passo foi avançando, como já havia<br />

perdido um sapato, resolveu livrar-se do outro.<br />

Algo gelado tocou sua perna, pôde ver o contorno da cobra<br />

d’água sumindo na vegetação. Sobre a lama havia uma pequena<br />

camada d’água, mas era o suficiente para conseguir refletir<br />

a lua. Com seus movimentos, esse reflexo distorcia-se como<br />

num labirinto de espelhos, e pequenas luas iluminavam todo o


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

pântano. A lama em que caminhava era macia e gostosa de pisar,<br />

mas ele tomava cuidado com algumas pontas de raízes e pedras<br />

que havia no fundo, por isso caminhava devagar, admirando a<br />

nova lua que ajudara a criar.<br />

Os sapos nunca tinham sido tão barulhentos, parecia que se<br />

comunicavam entre si anunciando a presença de um estranho.<br />

Ele os escutava sem enxergá-los. desejou que uma poderosa luz<br />

iluminasse o pântano naquele instante, perguntou-se quanta<br />

vida ela revelaria. Ele poderia estar cercado por todos os lados,<br />

não somente por sapos, mas por outros seres silenciosos que<br />

o olhariam e não entenderiam sua presença por ali. Resolveu<br />

apagar o grande refletor imaginário e dar paz a quem merecia.<br />

Bastava sua presença ali, perturbando a vida de todos.<br />

Olhava para cima e para baixo, e chegou à conclusão<br />

que a cópia parecia mais real do que a original. No reflexo,<br />

as manchas e rugosidades pareciam ter mais profundidade e<br />

a água ajudava a aumentar o brilho da lua. Olhando para a<br />

imagem refletida, reparou em cada detalhe, nas montanhas<br />

lunares, nas cores, na forma redonda, não pensou em nada<br />

nem quis fazer nenhuma relação com seus pensamentos<br />

anteriores. divertiu-se dando um soco n’água e partindo a lua<br />

em mil pedaços. As várias pequenas luas refletidas estavam<br />

apenas esperando sua passagem para voltarem a se unir numa<br />

grande lua brilhante.<br />

Notou que a profundidade da lama começou a diminuir e<br />

quando viu estava fora do pântano. Havia vivido um episódio<br />

divertido e conse<strong>guido</strong> manter o equilíbrio emocional. Mas<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

também tinha perdido seus sapatos e eles lhe fariam falta no<br />

terreno pedregoso que vinha pela frente.<br />

Pensou em voltar para o pântano para tentar encontrar seus<br />

sapatos, mas seria pouco provável que conseguisse encontrálos.<br />

Tentou então descobrir uma maneira de improvisar alguma<br />

proteção para seus pés. Se encontrasse alguma planta com folhas<br />

grandes, poderia rasgar um pedaço de sua camisa e amarrá-las<br />

nos pés. Mas não havia nenhuma planta por perto que pudesse<br />

servir para essa função. Teria de continuar descalço mesmo.<br />

Não seria fácil, porque além de não enxergar direito, o caminho<br />

estava cheio de pedras e pequenos buracos.<br />

Teria de seguir com muito cuidado, mas mesmo assim os<br />

machucados seriam inevitáveis. Começou dando alguns passos<br />

e parando para limpar o pé das pedrinhas que ficavam grudadas<br />

nele. Essa técnica até que funcionava, mas sua caminhada se<br />

tornava muito lenta. Na verdade ele não tinha pressa de chegar a<br />

lugar algum, mas ainda carregava heranças da época do vilarejo,<br />

onde o tempo deve ser contado e valorizado.<br />

A diferença da velocidade de caminhada atual com a<br />

anterior começou a deixá-lo ansioso. Tentou deixar a trilha e<br />

caminhar pelo meio dos arbustos, mas percebeu que era ainda<br />

pior e seus pés sairiam ainda mais machucados<br />

Aos poucos foi reparando nos pequenos ferimentos que<br />

foram aparecendo, cada vez que parava havia um número maior<br />

deles. Eram pequenos cortes causados pelos pedregulhos, mas em<br />

grande quantidade poderiam incomodar. Para sua alegria o riacho


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

havia voltado de uma de suas longas curvas e ele pode lavar seus pés<br />

e mergulhá-los na lama macia. Sentiu suas dores aliviadas e acabou<br />

se esquecendo da pressa inconsciente que carregava. Massageou seus<br />

pés e ficou sentado à beira do riacho sem pensar em nada. Sentia os<br />

pés e a força da água que os envolvia, sentia a textura da lama e a<br />

primeira idéia que teve foi que adoraria poder construir sapatos<br />

cuja parte de dentro fosse tão macia quanto a lama do riacho.<br />

depois percebeu que as águas e a lama tinham cumprido sua<br />

missão e era hora de recomeçar. Levantou-se como quem tem<br />

de cumprir uma obrigação, antes passou uma grossa camada de<br />

lama sobre as solas dos pés, sabia que aquilo pouco o protegeria,<br />

mas queria levar uma recordação dos instantes de alívio.<br />

As dificuldades pioraram porque parecia que a quantidade<br />

de pedrinhas tinha aumentado, além disso, agora havia também<br />

pedras maiores e pontudas, cujos eventuais cortes seriam<br />

também maiores, precisava distingui-las no escuro e evitálas.<br />

Era todo atenção ao caminho, sabia que um corte maior<br />

poderia comprometer sua mobilidade.<br />

Nunca, desde que havia deixado o vilarejo, ele fora tão<br />

prático, bloqueou qualquer idéia que não fosse relativa ao<br />

caminho em si: calculava quantos passos daria até o próximo<br />

descanso, o tempo aproximado de cada pausa, estava sempre<br />

atento se ao redor poderia encontrar algo que servisse de<br />

proteção para seus pés. O resto do mundo não existia para ele.<br />

depois de mais algumas paradas, resolveu contabilizar<br />

seus cortes, já passavam de cem em cada pé. Eram pequenos,<br />

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54<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

mas se ele continuasse por muito tempo acabariam se unindo<br />

numa grande chaga. decidiu esperar para que seus pés se<br />

recuperassem um pouco, sabia que isso pouco adiantaria, em<br />

todo caso massageou-os com cuidado e depois passou sobre as<br />

solas uma camada de lama. Sentiu que eles latejavam e decidiu<br />

esperar até que isso parasse.<br />

Notou que sua veia do pescoço também latejava, sentiase<br />

como uma máquina que havia sido utilizada além de seus<br />

limites. Era preciso fazê-la repousar para que não se quebrasse.<br />

Como um dono de fábrica que não deseja que suas máquinas<br />

parem de produzir, ele observava seus pés, sentia a circulação de<br />

seu sangue, que aos poucos se acalmava.<br />

Estava ansioso para continuar. Quando recomeçou, tentou<br />

usar mais as partes do pé que pouco se usa para caminhar, as<br />

laterais externas, que ainda não tinham sido machucadas.<br />

Pensou que desta forma distribuiria os cortes não afetando<br />

apenas uma área. Logo percebeu que andando desse jeito<br />

acabava forçando muito os músculos da panturrilha e as cãibras<br />

não demoraram a chegar.<br />

Continuou caminhando do jeito antigo e reparando na<br />

expansão dos ferimentos nas solas de seus pés. Percebeu que<br />

havia se esquecido por completo do seu ferimento no cotovelo.<br />

Ocorreu-lhe a idéia de que sempre temos de estar preocupados<br />

com algo, se não houver nada criamos alguma preocupação<br />

antecipando problemas futuros. Por outro lado, nossa câmara<br />

de preocupação só comporta um problema, não importando se<br />

é real ou imaginário. Se um entra o outro tem de sair.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Ele não havia resolvido o problema do cotovelo, com o qual<br />

havia se preocupado tanto, mas ele já não o inquietava mais.<br />

Perguntou-se então porque havia gasto tanta energia com ele, se<br />

sua resolução não havia se demonstrado ser tão essencial assim.<br />

Seu sorriso abriu-se e ele quase deu um grito de alegria<br />

quando viu bem ao lado do caminho uma árvore que parecia<br />

alguma espécie de palmeira. A base de suas grandes folhas era<br />

de uma madeira fácil de ser quebrada. depois de algum tempo<br />

de trabalho ele reiniciou a caminhada vestindo uma espécie de<br />

tamancos improvisados.<br />

As folhas côncavas adaptaram-se perfeitamente a seus pés,<br />

a substância porosa poderia absorver as gotículas de sangue e<br />

até ajudar na cicatrização. Ele caminhava mais rápido do que<br />

quando tinha sapatos, mas não tinha a mesma firmeza, a parte<br />

de baixo de seu calçado era fina deixando-o bem mais vulnerável<br />

a quedas. E foi o que aconteceu. Caiu sobre o cotovelo que não<br />

estava machucado. A princípio achou que só tinha esfolado um<br />

pouco a pele, mas assim que moveu o braço começou a sentir<br />

uma dor forte. Temeu haver fraturado o braço. Sentia-se como<br />

um grande saco plástico, todo furado e de onde vazava sangue.<br />

Agora não era mais uma questão de controle emocional e<br />

nem de força de vontade. Se seu braço estivesse mesmo quebrado<br />

não poderia prosseguir. Além disso, teria de procurar por uma<br />

ajuda que não sabia se existia. Examinou seu braço e ele parecia<br />

inchado, com uma mancha, provavelmente roxa, bem no lugar<br />

da queda. Com o que havia sobrado de sua camisa improvisou<br />

uma tipóia. A dor era grande, porém suportável. Seus tamancos<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

continuavam nos pés, mas agora ele andava devagar, só um<br />

pouco mais rápido do que quando estava descalço.<br />

Aquele inchaço poderia também ser apenas um hematoma<br />

causado pela queda. Procurou com todas suas energias pensar<br />

positivo e acreditar que aos poucos seu braço voltaria ao<br />

normal. A dor havia se estabilizado, mas qualquer movimento<br />

brusco tornava-a insuportável. Vários pássaros que dormiam na<br />

noite, voaram assustados por causa de seus gritos.<br />

A noite parecia que havia atingido seu ponto mais escuro, e<br />

ele era um homem com dores no meio da escuridão. Sabia que<br />

esse tipo de situação era a porta de entrada para todos os tipos<br />

de pensamentos negativos e dos conseqüentes reflexos no plano<br />

físico. Sentou-se em um canto para melhor poder se concentrar<br />

na defesa contra as idéias que sabia que logo viriam. Sua tarefa<br />

não foi fácil, para onde quer que olhasse, os pensamentos<br />

aproveitavam o ambiente propício para brotar.<br />

Resolveu usar como escudo as idéias que tivera<br />

anteriormente, quanto mais aparentes as coisas são, mais longe<br />

estão do real, então aquela noite escura que somada às dores,<br />

o tentava puxar para baixo, não passava de uma miragem<br />

transitória. O sol brilhante e um corpo sem dores estavam mais<br />

próximos da verdade, pois eram menos aparentes.<br />

Em seu plano mental, imaginou a mais bela das luzes,<br />

raios difusos de um sol da manhã, não muito forte para não<br />

ferir as vistas, mas o suficiente para encher as pupilas com a<br />

quantidade exata de luz que elas precisam. Imaginou árvores


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

com folhas coloridas e uma relva muito verde. Nesse panorama<br />

ele corria, movimentava-se, deitava-se sobre as raízes, escalava os<br />

troncos para apanhar os frutos. Suas expressões faciais indicavam<br />

que toda a situação, a temperatura, a luz, o gosto das frutas e<br />

principalmente seu estado interior, combinavam e completavamse,<br />

formando instantes de um prazer vivo e verdadeiro.<br />

Escondido em seu canto escuro ele protegia-se com seu<br />

escudo de cores brilhantes. Muitos golpes de espada tentaram<br />

atingi-lo. Mas ele refugiou-se no prazer. Na verdade, nesses<br />

momentos esteve mais perto do que nunca de chegar perto<br />

da essência de algo. Percebeu que havia ascendido mais alguns<br />

degraus e não pôde conter um sorriso de alegria. Imaginou sua<br />

figura, no estado físico em que se encontrava, perdido no meio de<br />

uma noite escura, sem nada nem ninguém por perto, mas ainda<br />

sorrindo. Ficou orgulhoso de si mesmo e sorriu novamente.<br />

Sentiu que a ameaça das idéias negativas havia passado,<br />

e agora precisaria recomeçar a pensar de forma prática.<br />

Verificou o braço, que não estava mais latejando, mas<br />

continuava doendo e inchado como antes. Recolocou os<br />

tamancos e conseguiu amarrá-los com apenas uma mão.<br />

Apertou bem a tipóia para que o braço balançasse o menos<br />

possível e recomeçou a andar.<br />

Aos poucos as pedras foram desaparecendo e o caminho<br />

chegou a ficar completamente liso, apenas barro úmido. Pensou<br />

em retirar os tamancos e continuar a caminhar descalço, depois<br />

percebeu como havia sido difícil amarrar com um braço só as<br />

tiras que prendiam as folhas. Achou melhor ser previdente<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

e continuar com eles até ter certeza de que as pedras não<br />

voltariam mais adiante.<br />

Algum tempo depois as pedras estavam de volta, no<br />

canto de seu lábio apareceu um esboço de sorriso. Ele estava<br />

apreendendo, ficou alguns instantes orgulhoso de si mesmo,<br />

mas logo em seguida seus lábios inverteram-se, mostrando<br />

descontentamento. Havia se lembrado de quando tentou tocar<br />

as estrelas. Todo seu aprendizado e sabedoria não passariam de<br />

uma mão abrindo-se e fechando-se na direção da Via Láctea.<br />

Sentiu-se pequeno e inútil. Sabia que não deveria<br />

querer se comparar ao eterno, mas sim aos homens como<br />

ele. Na verdade, não deveria se comparar com nada nem<br />

com ninguém, era um ser único, estava existindo... e isso<br />

era o suficiente. Mas havia dentro dele algo que não se<br />

conformava, que queria respostas grandes para perguntas<br />

sem tamanho. E foi essa a razão, que no fundo, o fez sair<br />

do vilarejo. Sozinho ele achava que poderia ter mais acesso<br />

às respostas. O problema era que nem mesmo as perguntas<br />

ele sabia quais eram. E isso o angustiava como uma agulha<br />

colocada permanentemente sob a pele.<br />

Quando olhava para cima e não enxergava fim no que<br />

via, aquilo lhe pesava um pouco sobre os ombros, sabia que<br />

era por ali que deveria iniciar seu caminho, mas sentia ser<br />

algo grande demais para ele. Gostava de olhar para o céu,<br />

mas tentava abster-se dos pensamentos que não conseguiria<br />

dar conta. Precisava enxergar as margens do rio em que<br />

estivesse nadando.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Estava num beco sem saída, retroceder e avançar lhe<br />

pareciam duas possibilidades igualmente assustadoras, e<br />

não se sentia confortável onde estava. Quando vivia no<br />

vilarejo, constantemente mergulhava em períodos de grande<br />

desânimo, nada fazia sentido e a vida parecia uma grande<br />

espera. Agora ele se perguntava se não estaria exatamente na<br />

mesma situação de quando estava no vilarejo, à exceção de<br />

seu tremendo desconforto físico. Temia que seu sofrimento<br />

estivesse sendo inútil.<br />

Por outro lado imaginou-se voltando para seu ponto de<br />

partida, tendo suas dores físicas curadas e inventando para si<br />

mesmo que todas suas opiniões anteriores não tinham passado<br />

de enganos. Esse pensamento lhe animou um pouco, porque<br />

percebeu que poderia ter tomado atitudes piores do que as que<br />

tomou até aquele instante. Mas continuava sem saber o que<br />

fazer, apenas prosseguia numa decisão que já havia sido tomada.<br />

Quis saber, se ainda estivesse no vilarejo, teria novamente<br />

reiniciado a caminhada?<br />

Mas algo ainda mais importante que as perguntas sem<br />

respostas o afligia, as tiras que prendiam seus tamancos<br />

começavam a se rasgar. Se elas se rompessem ele tentaria rasgar<br />

o resto de sua camisa para fazer outras. Mas com seu braço no<br />

estado em que estava isso seria bem difícil. Começou a andar<br />

mais devagar para não forçá-las, mas pensando no que faria<br />

caso elas não resistissem. decidiu que sem uma proteção para<br />

os pés e com seu braço naquele estado, ele não continuaria a<br />

caminhar em nenhuma das duas direções. Sentar-se-ia no chão<br />

e aguardaria o que a vida lhe mandasse. Não estaria desistindo,<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

estaria apenas invertendo o fluxo, que antes passava por ele<br />

para desaguar no mar, e que agora o teria como oceano.<br />

Sentia as fibras do tecido cedendo a cada passo que dava.<br />

Procurava pisar sempre da maneira que menos as forçasse,<br />

mas desse jeito acabava forçando mais os músculos do pé, que<br />

já estavam doendo. Sentiu-se triste, pois sabia que não estava<br />

preparado para ser oceano. Todos os pequenos prazeres que<br />

tinha quando vivia no vilarejo voltaram-lhe à mente e ela encheulhe<br />

os olhos. Forçava ao máximo os músculos dos pés para que<br />

as tiras pudessem sobreviver, caminhava quase sem flexionar os<br />

joelhos para que o impacto sobre elas fosse mínimo.<br />

Estava fazendo a sua parte, tinha até esquecido que seu braço<br />

doía. Refletiu sobre sua eventual desistência, ele sentado no meio<br />

da mata, ferido e no escuro, apenas aguardando que a grande onda<br />

de conseqüências desabasse sobre si. Não temeu as conseqüências<br />

em si, o que o amedrontou foram as eventuais idéias que teria<br />

enquanto estivesse esperando. Temeu-as. Temeu-se.<br />

O caminho agora não tinha pedras. Ele sabia que essa<br />

condição era provisória, mesmo assim alegrou-se com isso.<br />

Logo em seguida uma das tiras arrebentou-se, cada olho seu<br />

derramou uma lágrima. Tentou com apenas uma das mãos dar<br />

um nó no ponto que havia se rompido. Não conseguiu, tirou o<br />

resto da camisa que vestia, mas com as duas mãos já havia sido<br />

difícil rasgar o tecido, com uma seria impossível. Teve a idéia de<br />

fixá-la no chão com um dos pés e tentar cortá-la com alguma<br />

pedra pontuda. Mas não havia pedras por perto, o caminho de<br />

terra batida era perfeitamente liso. Procurou pedras e não as


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

encontrou, decidiu livrar-se do outro tamanco, prosseguiria de<br />

qualquer maneira.<br />

Sentiu a terra úmida e lisa sob os pés, teve prazer, estava feliz<br />

com sua escolha. Lembrou-se do peixe verde que não existia<br />

e que temeu engoli-lo, dessa vez sentiu-se como o peixe que<br />

consegue escapar de ser engolido. Estava agora nadando em seu<br />

rio de terra úmida e os passos fluíam como água na correnteza.<br />

diminuiu um pouco a velocidade, apenas por causa de seu<br />

braço que balançava muito na tipóia. Parou para examiná-lo e,<br />

não sabia se era impressão sua, mas ele parecia um pouco menos<br />

inchado, a dor também diminuíra e ele havia parado de latejar.<br />

Não quis precipitar-se em alegrias e resolveu continuar com os<br />

mesmos cuidados que vinha tendo.<br />

O caminho continuava completamente liso, apenas a terra<br />

havia amolecido um pouco mais, grudando nas solas dos pés<br />

e chegando a fazer cócegas quando desgrudava. Percebeu que<br />

não tinha sido um bom estrategista, não devia ter abandonado<br />

os tamancos. Esse pensamento chegou exatamente quando<br />

o contato de seus pés com a terra estava lhe proporcionando<br />

um grande prazer. Identificou o medo querendo retomar seu<br />

lugar. Imediatamente livrou-se da culpa de não haver trazido<br />

os tamancos e sublinhou em sua mente a idéia de que era uma<br />

estupidez carregar-se de pesos inúteis.<br />

A cada passo que dava, a terra úmida entrava por entre seus<br />

dedos exalando um odor vivo e fazendo soar um barulho de<br />

movimento. Esses ingredientes pareciam ajudá-lo a cicatrizar.<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Suas feridas ainda estavam abertas, mas ele estava ajudando a<br />

que a crosta se formasse.<br />

Começou a reparar nos cheiros da noite, em como eles se<br />

modificam e se misturam, aliás como todo o resto. Lembrouse<br />

de como são rápidos e eficientes os esquecimentos dos bons<br />

momentos vividos. deixou-se mergulhar na piscina noturna<br />

de cheiros. Reparou na sutileza das misturas de odores se<br />

sobrepondo. A relva molhada, a terra úmida, a resina que escorria<br />

pelo tronco das árvores, as frutas caídas derramando seus sucos<br />

na terra. Não enxergava as fontes desses cheiros, mas conseguia<br />

distingui-los bem, e dentro de sua mente eles eram bem reais.<br />

Lembrou-se da fome que sentia há algum tempo atrás e que<br />

agora havia sido esquecida. Se pudesse distinguir os cheiros<br />

teria acesso às frutas. Para isso teria de apurar sua sensibilidade.<br />

Seguindo nesse raciocínio chegou à conclusão, de que apurando<br />

sua sensibilidade de uma maneira geral, poderia ter acesso a<br />

muitas outras realidades que permaneciam encobertas. Mas<br />

sabia que não poderia se precipitar, teria de dar um passo de<br />

cada vez. Se conseguisse encontrar uma fruta na noite, através<br />

do cheiro, teria dado um importante primeiro passo.<br />

Parou de caminhar e tentou separar os cheiros, a relva<br />

molhada se sobrepunha aos outros odores, mas sentia a<br />

presença de uma fruta que tinha caído de madura. Ela estava<br />

lá, escondida em algum lugar da escuridão. A brisa da noite,<br />

mesmo estando bem leve, poderia dissimular as direções das<br />

origens dos odores. Começou a caminhar lentamente em<br />

círculos, tentando identificar se o cheiro da fruta aumentava


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

ou diminuía. Percebeu que aquilo não seria fácil, perdia com<br />

facilidade o traço do cheiro. desconfiou que poderia ter se<br />

enganado, ou até imaginado aquele odor.<br />

Voltou para a posição inicial e o cheiro permanecia<br />

lá. Tentou distinguir na escuridão se poderia enxergar o<br />

contorno de algo que pudesse ser uma árvore frutífera. A<br />

vegetação estava compacta e não havia nenhuma silhueta<br />

muito alta. Moveu-se então lentamente na direção da mata,<br />

ficando atento para não perder a trilha do odor e confiando<br />

em seus olhos para distinguir contornos. Seus pés tinham<br />

saído do conforto do barro molhado e agora enfrentavam os<br />

espinhosos capinzais da beira do caminho. Entretanto, seu<br />

nariz parecia indicar que aquela trilha difícil é que levaria à<br />

recompensa. O cheiro de fruta aumentava à medida em que<br />

ele avançava. Novos cheiros de natureza apareciam, mas agora<br />

distinguia-se claramente o da fruta. Não se arriscava a dizer<br />

de qual era, mas imaginava sua cor, um amarelo-alaranjado,<br />

quase um fraco tom de marrom. Cor que se confunde com as<br />

sombras da noite, mas que de dia é presa fácil para os olhos<br />

distinguirem do verde da vegetação.<br />

Ela estava lá, escondida, agora ele tinha certeza de sua<br />

existência. Começou a desejá-la, mesmo sem estar sentindo<br />

fome naquele instante. Imaginava-se dando uma dentada, via<br />

os sucos escorrendo por seus lábios, o gosto invadindo sua<br />

boca e o prazer chegando até seu cérebro. A cor que havia<br />

imaginado dava-lhe a idéia de madureza, de que aquele fruto<br />

estava em seu ponto máximo de sabor e textura, e que de agora<br />

para frente só decairia.<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Com cuidados redobrados para não ferir os pés nos<br />

espinhos, avançou rumo ao cheiro, a uma certa altura soube<br />

que estava realmente próximo da origem. O cheiro estava bem<br />

forte e agora vinha acompanhado de um outro, parecido, só<br />

que em estado mais avançado, eram frutos já apodrecidos.<br />

Tinha certeza de que estava próximo, todos os outros<br />

odores da noite haviam diminuído bastante, era o alimento que<br />

contaminava os ares com mais força. Mas ele não conseguia<br />

ainda distinguir a origem, aproximou-se de alguns arvoredos e<br />

arbustos e começou a apalpá-los em busca de frutos. Conseguiu<br />

apenas alguns arranhões nas mãos. A medida em que avançava<br />

em direção das árvores o cheiro só aumentava. A vegetação era<br />

compacta e cheia de galhos secos que arranhavam. Ele fechou<br />

os olhos, cobriu o rosto com a mão que tinha livre e atravessou<br />

a barreira natural de galhos mortos.<br />

Foram seus pés que primeiro sentiram a textura das<br />

frutas caídas no chão. Elas estavam espalhadas pelo chão<br />

e também penduradas nos galhos. A princípio ele achou<br />

que fossem pêssegos, mas examinando o formato percebeu<br />

se tratarem de pêras. Conseguiu alcançar os galhos mais<br />

baixos que estavam carregados de frutos. decidiu que a<br />

primeira que experimentaria seria uma das que estivesse<br />

caídas no chão.<br />

Através do odor examinou algumas que já lhe pareceram<br />

apodrecidas. Continuou o exame apalpando as texturas até que<br />

encontrou uma que era macia sem ser mole, levou-a ao nariz e<br />

não havia sinais de deterioração. Com todo o desejo do mundo


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

deu uma grande dentada. O gosto pareceu-lhe perfeito, o exato<br />

ponto máximo de sabor na exata melhor consistência.<br />

Alguns instantes a mais ou a menos teriam modificado<br />

aquele momento ideal. Lembrou-se de que tudo havia<br />

começado quando decidiu aumentar sua sensibilidade, e que<br />

o apuramento dos odores seria apenas o primeiro passo. E<br />

tinha dado certo. Ele sorriu contente porque aquele era seu<br />

primeiro instante de autonomia. A fruta possuía o tamanho<br />

exato de seu desejo. Se comesse outra estaria estragando<br />

aquele momento perfeito. Mas sabia que a vida era uma<br />

grande emenda de todos os tipos de instantes, então decidiu<br />

se prevenir. Colheu da árvore quatro pêras e colocou-as<br />

nos bolsos da frente e de trás. Em seguida procurou sair<br />

rapidamente de perto da árvore e voltar para a trilha. Não<br />

queria contaminar o instante, que ficaria registrado em sua<br />

memória como perfeito.<br />

Enquanto caminhava pensava na importância de ter se<br />

tornado, pelo menos por enquanto, um ser autônomo. Havia<br />

ampliado suas fronteiras, poderia caminhar indefinidamente,<br />

conheceria as luzes dos dias, os pôres-do-sol, os pontos mais<br />

escuros e mais claros, observaria a natureza banhada de luz<br />

e submersa no escuro. E esse degradê fotométrico valeria<br />

também para todos os outros aspectos da vida, ele poderia<br />

apreciar os amargos e doces de tudo o que é humano, e fazer isso<br />

sem estar preso aos filtros sociais. Sentiu-se poderoso e sortudo,<br />

mas sabia que junto com o poder vêm as responsabilidades<br />

de exercê-lo. Lembrou-se também do vilarejo que agora lhe<br />

parecia um pequeno e escuro formigueiro. Com todas as<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

vidas espremendo-se em minúsculos corredores subterrâneos,<br />

lutando por suas sobrevivências individuais.<br />

A idéia de que aquela árvore poderia ser a única que ele<br />

encontraria, diminuiu sua auto-confiança e aumentou o<br />

tamanho dos corredores por onde espremiam-se as formigas<br />

de sua aldeia. de qualquer modo, independentemente se viesse<br />

ou não a encontrar outras fontes de alimentação, sabia que não<br />

poderia tudo ver nem tudo sentir. Talvez fosse uma formiga<br />

diferenciada, mas não deixava de ser formiga. Para caminhar mais<br />

longe e deglutir mais vida, precisava exercitar sua humildade.<br />

Perguntou-se então, se mesmo que a alimentação ao longo do<br />

percurso fosse garantida e abundante, e que ele tivesse todo o<br />

tempo e energia do mundo para exclusivamente buscar seus<br />

objetivos, se tudo isso o tornaria verdadeiramente autônomo?<br />

Sabia que não importasse o quão favoráveis fossem as<br />

condições de sua busca e quão livres aparentassem ser suas<br />

escolhas, haveria sempre alguns fios invisíveis, que sutilmente<br />

curvariam a linha reta por onde ele havia decidido caminhar.<br />

de qualquer forma não se arrependeu de estar carregando<br />

quatro pêras nos bolsos, e até ocorreu-lhe a idéia de parar de<br />

caminhar e morar ao lado da árvore, garantido dessa forma<br />

seu sustento e usufruindo de uma liberdade que não tinha no<br />

vilarejo. Rapidamente percebeu que não estaria fazendo nada<br />

mais do que fundar um outro vilarejo. Voltou então à memória,<br />

à volúvel memória que em instantes encobre arranha-céus de<br />

desejos e os substitui por montanhas de neve, que por sua vez<br />

derretem-se criando oceanos, ele havia tido sucesso em seu


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

primeiro exercício prático de aumento de sensibilidade. Queria<br />

seguir adiante, alçando vôos maiores.<br />

Parou. Sentou-se à beira do caminho. deu uma dentada<br />

numa das pêras. Ela lhe pareceu ácida e dura, jogou-a fora e<br />

ficou imaginando a fruta apodrecendo sem haver servido de<br />

alimento. Pensou que talvez os passarinhos pudessem comêla,<br />

ou talvez os vermes. Ela não pereceria em vão, percebeu<br />

que as coisas de uma maneira ou de outra sempre acabam se<br />

encaixando e formando blocos. Que por sua vez encaixam-se<br />

em outros. Sentiu-se como a pêra mordida e abandonada na<br />

escuridão. Ele também estava à espera de seu encaixe, que o<br />

uniria a algo maior, e que por sua vez também faria o mesmo.<br />

Esse momento prosaico de reflexão havia sido um passo<br />

na direção do aumento de sensibilidade. Ainda com o gosto<br />

amargo na boca procurou respirar fundo para que a vida<br />

continuasse escorrendo através dele, sem barreiras.<br />

deixou-se fluido, acontecendo como um rio que corre, e<br />

que no máximo emite notas tranqüilizadoras de som. O escuro<br />

da noite ajudou-o a não se distrair com as ilusões das cores, as<br />

formigas e os formigueiros foram esquecidos, as dores no corpo<br />

anestesiadas. Estava só, sem nada nem ninguém, sem idéias ou<br />

desejos. Era um grande receptáculo esperando o gotejar da<br />

vida, momento puro de humanidade respirando entre as folhas<br />

cobertas de orvalho. Estava preparado para engolir todo o<br />

rio que despejaria suas águas sobre ele, entretanto o que veio<br />

foram as mesmas gotas de orvalho que molhavam a vegetação.<br />

Nenhuma grande revelação, nenhum aumento de percepção.<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Voltou a sentir o gosto amargo na boca, engoliu a seco, percebeu<br />

que as coisas vêm sempre devagar, e que quando vêm depressa<br />

também vão embora depressa.<br />

de qualquer forma, as gotículas tinham-no refrescado e ele<br />

estava bem. Sabia que tinha uma longa estrada a percorrer, mas<br />

sentia-se como alguém que duvidando de estar no caminho<br />

correto, acaba de enxergar uma placa indicativa confirmando<br />

que está. Sem que ele percebesse, sua pele absorveu as gotas de<br />

orvalho pelas quais ele havia se esforçado tanto.<br />

Mesmo sem muita fome decidiu comer mais duas pêras. Elas<br />

lhe pareceram frutas corretas, longe da perfeição da primeira e<br />

do amargor da segunda. No momento em que se levantou para<br />

recomeçar a caminhar, se ele pudesse se enxergar, repararia que<br />

mesmo no escuro seus olhos brilhavam.<br />

Continuou a caminhada como um semi vaga-lume humano<br />

que não tem noção de que emite luz. Sua meia felicidade<br />

continha uma metade de decepção. Sabia que seu tesouro<br />

estava escondido atrás de uma montanha, e que o único mapa<br />

para se chegar lá estava escrito na língua que apenas os sensíveis<br />

entendem. Sentiu-se como se estivesse em uma encruzilhada<br />

com diversas placas indicativas, que apontavam para múltiplas<br />

direções, menos para aquela que desejava ir.<br />

Seus passos diminuíram de certeza e seu braço recomeçou<br />

a latejar, no outro braço sentiu a farpa de madeira sob a pele.<br />

Nesses instantes de indecisão o brilho de seus olhos só fez<br />

aumentar. Ele cruzou novamente com o riacho e aproveitou


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

para beber água, se tivesse tido um pouco de paciência repararia<br />

no belo reflexo da lua sobre as águas, e em como essa luz refletida<br />

era parecida com aquela que emitiam seus olhos. Mas ele estava<br />

distraído com seu pessimismo.<br />

Se pudesse perceber a quantidade enorme de belezas<br />

que aconteciam a seu lado... mas ele tinha os olhos fixos nas<br />

miudezas da lógica. Procurava uma brecha que o levasse a<br />

retomar a estrada que o havia levado a descobrir a árvore<br />

frutífera no escuro.<br />

Tentou esquecer-se das dores que tinham retornado,<br />

procurou com toda sua energia construir à força o caminho<br />

para a sensibilidade. Era prático: sentou-se no chão, respirou<br />

fundo e esperou que o mundo lhe falasse. Mas quem falava era<br />

ele mesmo, os velhos pensamentos vulgares em cadeia. Irritouse<br />

e fez nova tentativa, outro fracasso que só aumentou sua<br />

irritação. Com ela vieram as coceiras, seus dois braços coçavam<br />

e tornaram-se encarregados de coçar suas costas. Quebrou um<br />

galho seco que encontrou no chão e coçou-se sem perdão.<br />

Algumas gotas de sangue manchavam seus dois braços, mas por<br />

alguns instantes sentiu um grande alívio. A paz provisória de<br />

quem está no olho do furação.<br />

Mas o maremoto de ventos desabou com força total, foi seu<br />

olfato o emissário da má notícia, havia algo podre por perto.<br />

Muito mais perto do que ele imaginava. O cheiro vinha de<br />

um de seus braços. Não daquele que mais doía e que achava<br />

estar quebrado, mas daquele com a farpa de madeira. Ainda<br />

não tinha certeza se o que sentia fosse sinal de apodrecimento,<br />

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70<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

mas estranhava aquele cheiro, que o transportou para os piores<br />

cenários possíveis.<br />

A condição volúvel de ser humano, que a essa altura já o havia<br />

feito esquecer de sua busca pela sensibilidade, pensava apenas<br />

no cheiro, em suas origens e possíveis conseqüências. Sabia que<br />

precisaria fazer alguma coisa, suspeitava que seu braço estivesse<br />

infeccionado e que a infecção pudesse matá-lo. Primeiro pensou<br />

em atitudes práticas, no que poderia neutralizar ou pelo menos<br />

diminuir seu problema. A essa altura, o que instantes atrás era<br />

apenas uma suspeita, agora já possuía a força de uma certeza.<br />

Novamente a memória havia sido apagada pela emoção.<br />

Raciocinou então, como poderia usar os recursos que estavam<br />

à sua disposição para combater a infecção. O cheiro parecia que<br />

só aumentava e até começou a revirar-lhe o estômago. Sentia<br />

nojo de si mesmo. Voltou até o riacho e lavou bem o braço,<br />

mas isso pareceu só avivar o vermelho do ferimento e aumentar<br />

ainda mais o odor.<br />

Pensou em amarrar folhas sobre o ferimento para que<br />

elas absorvessem um pouco da secreção, arrancou algumas<br />

de uma árvore, mas como tinha pouca mobilidade no outro<br />

braço e nada com o que amarrá-las acabou desistindo da idéia.<br />

Tentava imaginar o que poderia ajudá-lo, mas não enxergava<br />

nada que estivesse disponível. de repente um estalo, lembrouse<br />

da sensação acolhedora que sentiu quando enterrou-se na<br />

lama para se proteger do frio. A terra estava meio úmida e<br />

ele decidiu cobrir seu braço inteiro de lama. Como não tinha<br />

nenhum conhecimento científico sobre o assunto, estava


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

assumindo um grande risco, sabia que poderia estar piorando<br />

ainda mais sua situação.<br />

Com coragem esfregou a lama gelada sobre o ferimento,<br />

à medida que a terra desprendia-se de sua pele ele adicionava<br />

outra camada. Inicialmente a sensação foi agradável, a baixa<br />

temperatura parecia que anestesiava as dores e a terra úmida<br />

bloqueava o cheiro. Mas à medida que a lama escorria, o<br />

problema voltava a estaca zero. O cheiro trazia idéias e elas<br />

o desânimo. Imaginava todos os tipos de matérias vivas em<br />

estado de apodrecimento, depois imaginava as células podres<br />

de seu braço espalhando-se por todo seu corpo. Enxergava-se<br />

com olhos e língua, com idéias e vontades apodrecidas.<br />

Seus olhos agora brilhavam por causa das lágrimas que se<br />

acumulavam com vontade de escorrer. Ele havia se entregado<br />

ao medo. Mas dessa vez seu medo não era dos sofrimentos que<br />

antecederiam uma eventual morte por infecção no meio da<br />

mata. Temia a morte em si. O que nela existe de humilhante<br />

e de derrota. Temia apodrecer, não mais existir, ser apagado da<br />

memória de todos, até daqueles que mais desprezava. Temia<br />

não mais poder agir, nem se mexer, não mais poder escolher...<br />

não mais nada.<br />

Mesmo que a morte cessasse todos os sofrimentos, ele<br />

decidiu que preferiria a pior das dores à anulação completa.<br />

Sabia que ela era inevitável, mas usaria até a última munição<br />

que tivesse em sua batalha perdida. O medo tornava a noite<br />

ainda mais escura. A podridão flutuava no ar, sentiu vontade de<br />

tapar as narinas e respirar pela boca. Percebeu que estaria apenas<br />

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72<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

se enganando e irrigando ainda mais as idéias negativas, que sem<br />

poder sentir, estariam livres para inventar o avanço da infecção.<br />

Pediu ajuda, gritou pelo equilíbrio emocional, acudiu-lhe<br />

a idéia de que aquele cheiro ruim, que lhe trazia tantas idéias<br />

negativas, era o resultado de uma reação de seu organismo.<br />

Aquelas secreções tinham origem em um desejo de vida e não de<br />

morte. E talvez o medo que estivesse sentindo fosse da vida e não<br />

da morte. E, sendo a morte inevitável e democrática como é, não<br />

faria sentido temê-la, pois seria algo como temer o ar ou o sol.<br />

Perguntou-se, então, se realmente seu medo era da vida. Não<br />

conseguiu responder, não conseguiu identificar de maneira<br />

clara sintomas desse eventual medo, mas também não duvidava<br />

completamente de sua existência. Comparou sua vida com a<br />

de outras pessoas do vilarejo, tentava descobrir se elas também<br />

temiam a vida ou se então tinham descoberto uma maneira<br />

secreta de encobrir esse medo. Nada descobriu. Resolveu<br />

esquecer-se dos outros e prestar mais atenção em si mesmo.<br />

Não seria todo seu ideário, de onde tinham nascido as razões<br />

que o fizeram abandonar o vilarejo, uma espécie de refúgio<br />

contra todos os sabores da vida? Eliminava os azedos que o<br />

incomodavam, mas para isso todos os outros gostos também<br />

desapareciam. Por um medo inconsciente de alguns instantes<br />

desagradáveis, viveria uma vida insossa. Não tinha certeza de<br />

que isso fosse verdade, mas a mera possibilidade incomodou-o<br />

bastante. Esqueceu-se completamente de suas dores físicas e<br />

mergulhou em busca de uma resposta.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Caso sua suspeita se provasse verdadeira, ele estaria<br />

caminhando pela estrada certa mas em sentido errado, e<br />

seus companheiros de vilarejo é que teriam o direito de<br />

enxergá-lo como uma formiga. Seriam eles que, mesmo<br />

inconscientemente, escolheram viver de maneira natural, não<br />

criando obstáculos para que a vida neles acontecesse. Por um<br />

instante sentiu-se o pior dos homens, mas logo em seguida<br />

percebeu que não conseguiria encontrar nem as grandes<br />

virtudes nos outros e nem os imensos defeitos em si próprio,<br />

que justificassem sua suspeita.<br />

Revendo seus pensamentos, não eliminou a hipótese de<br />

ter criado para si um refúgio contra a vida. Mas atribuiu a seus<br />

conterrâneos uma mera condição de inconsciência, que quando<br />

dela evoluíssem, chegariam à sua posição atual. Tinha voltado<br />

a enxergá-los como formigas. Se o sentido em que caminhava<br />

não era correto, agora tinha voltado a ser, porque apenas ele<br />

decidia para onde estava indo.<br />

Mas continuava tentando descobrir o quanto de medo<br />

havia em seus atos de coragem. Pensou nas possibilidades que<br />

existiam e que não eram aquelas que havia escolhido. Pensou em<br />

unir-se aos outros, mas guardando sempre um sorriso irônico<br />

que procuraria esconder. Talvez gritar, tentando convencer<br />

os outros de suas verdades. Julgava essas outras opções tão<br />

vitoriosas e derrotadas quanto a que havia escolhido. Eliminava<br />

a primeira porque a julgava puro egoísmo, e a segunda porque,<br />

para tentar convencer alguém de alguma coisa, seria preciso ter<br />

certeza do que se está dizendo.<br />

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74<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Olhou para a noite que continuava escura e deixou de<br />

arrepender-se de escolhas. Não tinha chegado a nenhuma<br />

conclusão a respeito do eventual refúgio criado contra a vida.<br />

Talvez por essa razão, é que inconscientemente quis aproximarse<br />

mais da natureza, que julgava a representante mais pura dela.<br />

Mas a pergunta sem resposta ainda lhe incomodava,<br />

ocupando o espaço das dores físicas. Arrancou algumas<br />

folhas de uma árvore e ficou sentindo a textura, com os dedos<br />

conseguiu perceber os vasos por onde as folhas são nutridas. A<br />

vida acontecia com toda força a seu redor, os minúsculos vasos<br />

que nutrem a folha lhe pareceram tão importantes quanto seu<br />

próprio sistema circulatório. Ele era apenas mais uma folhinha<br />

na floresta da vida. A ironia da situação estava no fato, de para<br />

que ele sentisse estar imerso nesse oceano de vida, ele havia<br />

arrancado as folhas da árvore, matando-as. Percebeu isso e jogouas<br />

no chão, esfregou os dedos como que para limpá-los, sentiu-se<br />

como alguém que havia acabado de acariciar um cadáver.<br />

A verdade é um fruto cuja semente é uma mentira. Essa frase<br />

que atravessou-lhe a mente poderia explicar muitas de suas<br />

dúvidas. E explicaria de maneira simples: não há verdade que<br />

resista à verdade. Também não existiriam caminhos certos ou<br />

errados, porque todos eles teriam de, algum dia, ser percorridos.<br />

Cada vida seria como uma folha de uma árvore, e o objetivo<br />

maior de cada uma delas seria ficar o maior tempo possível<br />

presa a seu galho, deixando que as outras caíssem primeiro.<br />

Mas para a árvore é completamente irrelevante a ordem em que<br />

as folhas caem, e para um observador que não seja nem folha e<br />

nem árvore, é ainda mais irrelevante. dessa forma, os grandes


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

dramas humanos são grandes apenas sob o ponto de vista de<br />

quem está envolvido neles. Sob um ponto de vista mais amplo,<br />

o da vida em si, esses dramas não têm nenhum sentido.<br />

Ele sabia que esse raciocínio não poderia levá-lo muito longe<br />

de tudo que já havia vivido, afinal de contas ele era um homem<br />

e não teria como deixar de sê-lo. de qualquer forma, chegou<br />

à conclusão que era sempre bom conhecer outros pontos de<br />

vista, e que esse conhecimento poderia ajudá-lo a relativizar<br />

seus momentos de desespero. Nesses instantes ele poderia se<br />

lembrar que existe um mundo muito maior que o seu, e que<br />

está absolutamente imune a qualquer problema que lhe aflija.<br />

Procurou guardar essa descoberta na parte menos<br />

vulnerável de sua memória. Feito isso, deixou-se atacar por<br />

alguns questionamentos oriundos da frase que havia iniciado<br />

seu raciocínio: se tudo tinha como origem uma mentira,<br />

então ela estaria espalhada por todos os cantos da existência e<br />

qualquer aspecto da vida, se bem investigado, logo revelaria suas<br />

inverdades... e assim sendo, toda a busca humana, mesmo as<br />

mais generosas e desinteressadas, obedeceriam a desejos alheios<br />

aos valores almejados... e todos os resultados dessas buscas,<br />

mesmo os mais sólidos e duradouros, seriam como rígidas tábuas<br />

boiando em um oceano, que pela precariedade da visão humana<br />

aparentaria eternidade, mas que visto sob o prisma da vida e não<br />

o dos vivos, seria o que existe de mais provisório.<br />

Ao contrário do raciocínio anterior, percebeu que desse não<br />

poderia extrair nada de produtivo para sua vida provisória. Iria<br />

esticando as verdades até que todas suas certezas desaparecessem.<br />

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76<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Teria de fingir para si mesmo que alguns valores são absolutos<br />

e imutáveis. Lembrou-se de uma vez ter assistido a um documentário<br />

sobre um homem que se perdeu no deserto e começou<br />

a enxergar miragens de oásis que não existem, perseguiu-os um<br />

após o outro sempre se decepcionando. Até que, finalmente,<br />

quando suas energias estavam no fim, chegou a um vilarejo onde<br />

lhe deram água e comida e lhe trataram das queimaduras do sol.<br />

No filme, o homem dizia que mesmo passados tantos anos de<br />

quando se perdeu, ainda não tinha certeza de que tudo ao seu<br />

redor era real. Ainda temia ter vivido todos aqueles anos numa<br />

espécie de longa miragem. Que na verdade poderia ser uma<br />

peça pregada pelo tempo, o que para ele foram longos anos, na<br />

verdade não teriam passado de algumas horas.<br />

Precisava recomeçar a andar, tinha de desenterrar seu<br />

lado prático do chão, ele estava encoberto pelos escombros<br />

do pensamento livre. Mas antes que desse o primeiro passo<br />

havia uma questão que o incomodava e pedia-lhe um pouco de<br />

atenção... o tempo tinha sido mentiroso, essa frase espetava-o,<br />

trazendo consigo todas suas infinitas implicações... o que<br />

diabos era o tempo afinal de contas?<br />

um líquido que não se pode engarrafar e que para cada<br />

um tem um gosto diferente, garrafas que aparentam estarem<br />

vazias e que se confundem com outras, que de fato o estão.<br />

O único vencedor no jogo da vida... aquele que tudo destrói,<br />

enferruja, derrete montanhas, dissolve civilizações e idéias...<br />

a grande onda que corre pelo horizonte da eternidade e que<br />

precisa de barreiras que serão engolidas, para que sua grandeza<br />

seja demonstrada.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Acabava de descobrir que até mesmo o tempo tinha suas<br />

fraquezas. Se ele nunca encontrasse eventos que pudesse<br />

amassar, demonstrando seu poder, percorreria as bordas do<br />

eterno até começar a perder suas forças, e finalmente ser<br />

engolido pelo horizonte calmo e sem perturbações.<br />

Mas não podemos escrever a biografia de alguém tendo<br />

como informação apenas sua data de morte, da mesma maneira,<br />

saber-se que o tempo é destrutível, não diz nada do que ele<br />

realmente é. Mas percebeu que teria de se contentar com isso,<br />

senão nunca mais daria o primeiro passo. Antes de caminhar<br />

olhou para as estrelas, lembrou-se de tudo o que havia escutado<br />

sobre estar enxergando o passado, e de todos os pensamentos e<br />

sensações que esse fato lhe trouxe.<br />

Os pequenos canais de seiva que nutriam as folhas que ele<br />

arrancara da árvore voltaram a seu pensamento. O objeto<br />

brilhante que o havia inspirado em sua caminhada por uma nova<br />

vida, poderia não passar de um grupo de cadáveres emitindo<br />

reflexos. As miragens do deserto espalhavam-se por todo o<br />

universo carregando dentro de seu bojo sua semente de mentira.<br />

Mas isso, ao contrário do que poderia parecer, não o abateu.<br />

Iniciou sua caminhada fortalecido. Imaginava seus músculos<br />

da perna em seu esforço vão, flexionando-se, imaginava seus<br />

ossos provisórios movendo-se, suas juntas trabalhando e<br />

desgastando-se. Imaginava-se muito pequeno, atravessando um<br />

pequeno bosque de um pequeno canto perdido de um planeta<br />

perdido. Mas olhava para os lados e para cima e não se sentia<br />

inferior a nada nem a ninguém.<br />

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78<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Vivia seu momento de grandeza, mas não havia arrogância<br />

em seus olhos. Sentia-se a mistura do universo inteiro com o<br />

que há fora dele. O tudo e o nada compartilhavam igualmente<br />

de suas energias. Sentia ter deixado pelo caminho boa parte dos<br />

pesos que havia carregado durante toda a vida. Havia adquirido<br />

uma condição diferente, não sabia bem como defini-la, a palavra<br />

que mais se aproximava do que sentia, era independência.<br />

Mas não queria se iludir, sabia estar tão longe da<br />

independência quanto sempre esteve e quanto qualquer um<br />

de seus conterrâneos estava. de qualquer maneira era muito<br />

bom haver se livrado de pesos inúteis que carregou por toda sua<br />

vida. Não sabia exatamente quais eram esses pesos, e enquanto<br />

procurava descobri-los, escutou um grito de seu lado prático “o<br />

tempo não importa, não perca o seu tempo.”<br />

Reiniciou a caminhada, parecia que a mata escura era<br />

sua velha conhecida, sentia-se confiante e com as energias<br />

restauradas. Seus braços doíam um pouco, mas nada que o<br />

impedisse de continuar com vontade. Percebeu que aquela<br />

era mais uma etapa que havia atravessado, iniciava um novo<br />

capítulo com bastante história já acumulada.<br />

O relevo agora tinha pequenas subidas e descidas, uma<br />

vegetação rasteira com algumas árvores isoladas, mas o<br />

interessante era que o riacho corria paralelo ao caminho. Não<br />

havia pedras no chão e a terra úmida massageava seus pés. A<br />

sensação de bem-estar em que vivia superava o desconforto das<br />

dores nos braços.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

um leve sorriso apareceu em seus lábios, lembrou-se da<br />

última pêra que tinha no bolso. Sentou-se despreocupadamente<br />

à beira do riacho para comê-la. Ficou escutando o barulho das<br />

águas, elas pareciam completamente escuras, desejou saber<br />

como os peixes enxergavam à noite, se eles dormiam, e caso<br />

dormissem, como não eram levados pela correnteza? Aquelas<br />

águas escuras, que não deveriam ter mais de dois palmos de<br />

profundidade, já escondiam mais perguntas do que as respostas<br />

que ele poderia dar. decidiu que o mistério também tem<br />

direito à vida, e procurou esquecer-se dos peixes, estivessem<br />

eles acordados ou dormindo.<br />

Tirou a fruta do bolso e saboreou-a sem pensar em nada. O<br />

gosto ajudou-o, pois sem estar no ponto ideal de sabor, a pêra<br />

tinha uma consistência macia e um gosto levemente ácido. uma<br />

série de pensamentos sem importância quiseram se aproveitar<br />

desses instantes de relaxamento para invadi-lo. Conseguiu<br />

espantar todos concentrando-se no ruído das águas. A brisa<br />

noturna soprou sem trazer frio.<br />

Procurou um lugar confortável à margem do rio e deitou-se<br />

de barriga para cima. Com as mãos construiu um travesseiro<br />

de terra úmida. Lá em cima estavam as estrelas, mais brilhantes<br />

e numerosas do que nunca. Mas dessa vez não procurou<br />

mergulhar para tentar ser uma delas, nem tentou descobrir-lhes<br />

os segredos. Apenas as olhou em silêncio. Quem o observasse<br />

de perto repararia que elas refletiam em seus olhos. Mas não<br />

passavam daí, sua mente era preenchida apenas pela sensação<br />

do instante e não por idéias decorrentes dele. Em seus lábios<br />

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80<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

não havia expectativas ou decepções. Sem refletir sobre o<br />

tempo, o homem que vivia um momento de plenitude sentiu<br />

que aqueles instantes tinham se esgotado.<br />

Levantou-se e procurou limpar a parte de trás de sua cabeça<br />

da terra que tinha se grudado aos seus cabelos, sentiu uma<br />

pontada de dor no braço que achava estar inflamado. A dor<br />

lembrou-o que ele não sentia mais o cheiro de podridão que<br />

antes exalava daquele braço. Levou o nariz ao braço e o cheiro<br />

era apenas o de sangue coagulado. Beijou a ferida e sorriu. Não<br />

sabia ao certo se o problema estava resolvido, mas achava que o<br />

pior já havia passado.<br />

dessa vez tentou não se esquecer dessa vitória, lembrouse<br />

como facilmente esquecia-se das preocupações resolvidas.<br />

Procurou conservar essa alegria e emendá-la com o instante<br />

que vivia, queria criar novamente uma sensação de bem-estar.<br />

Sentiu-se bem, e isso o levou a refletir sobre como os estados<br />

de espírito podem ser auto-manipulados, de maneira que não<br />

precisemos viver à deriva, largados aos desejos aleatórios das<br />

marés. Percebeu que podemos construir barragens e até inverter<br />

as direções dos cursos dos rios, e nem por isso estaremos vivendo<br />

vidas artificiais. São técnicas mentais de auto-proteção que<br />

equivalem às técnicas físicas de luta contra o frio ou a fome.<br />

Sua onda de positividade aumentou quando ele resolveu<br />

examinar o braço que achava estar fraturado. Com cuidado<br />

desamarrou a tipóia que o prendia. O braço doía, com cuidado<br />

foi tentando abri-lo para ver até onde conseguia. Para sua grande<br />

surpresa conseguiu abri-lo completamente. Isso indicava que


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

não estava fraturado, devia ser uma luxação ou algo equivalente.<br />

de qualquer maneira resolveu ser prudente e refez a tipóia.<br />

A prudência também foi utilizada para que os instantes de<br />

positividade em que vivia não se transformassem em euforia.<br />

Sabia ser ela tão inimiga do equilíbrio quanto o desespero.<br />

Tranqüilo, procurou refletir de forma clara, os problemas pelos<br />

quais havia passado mostravam-se menores do que aparentavam<br />

inicialmente, mas de todo jeito eles continuavam existindo e<br />

exigindo cuidados para que não aumentassem seus tamanhos.<br />

Achava que na situação em que se encontrava, o melhor cuidado<br />

para seus braços seria simplesmente não forçá-los, deixando que<br />

o organismo continuasse com seu trabalho de recuperação.<br />

Lembrou-se de como há pouco tempo atrás eram seus pés<br />

que mais o preocupavam, mas desde então o caminho tinha<br />

sido liso e sem pedras. Na infância ele havia aprendido alguns<br />

fundamentos de xadrez, e agora comparava seu percurso com<br />

as possibilidades que se abrem e se fecham com cada escolha de<br />

movimento. Só não soube responder se, como no xadrez, ao<br />

final de cada partida, há um vencedor ou não. E mais do que<br />

isso, no xadrez a força motriz do cérebro do jogador é a busca<br />

pela vitória, no seu caso não sabia qual era, talvez um instinto<br />

de sobrevivência, mas seguramente não era só isso. Montanhas<br />

submersas no inconsciente escondiam essa resposta.<br />

Não era hora de buscá-la. Queria ajudar a inércia para que<br />

a onda de positividade em que estava vivendo prolongasse-se o<br />

máximo possível. Começou a pensar em seus companheiros de<br />

vilarejo, o que estariam fazendo naquele instante? deviam estar<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

todos dormindo. Isso não lhe interessava, queria imaginá-los em<br />

suas atividades cotidianas, reparar em como eles repetiam sempre<br />

os mesmos atos, em como suas comunicações usavam sempre as<br />

mesmas palavras, porque espelhavam as mesmas idéias.<br />

Imaginou, então, um dia inteiro na vida de um habitante<br />

do vilarejo, como não conhecia em profundidade o cotidiano<br />

de nenhum deles, juntou fragmentos de vários em uma pessoa<br />

fictícia. O caminho agora era absolutamente plano, a terra macia<br />

lhe dava tranqüilidade para reflexão e não havia praticamente<br />

nenhuma vegetação nem som de animais para distraí-lo.<br />

O homem fictício acordou cedo porque precisava trabalhar.<br />

Seu sono não havia sido bom, não se lembrava dos sonhos, mas<br />

sentia que as preocupações cotidianas tinham inventado uma<br />

história noturna para se manifestar. Aliás, essas preocupações<br />

ocuparam todos os instantes de preparação antes que saísse<br />

de casa. Esse homem era casado e encontrou sua mulher na<br />

mesa do café da manhã, trocando com ela algumas palavras<br />

mecânicas. Nesses instantes, ainda cansado pela noite mal<br />

dormida, ela era para ele tão viva quanto o relógio de parede<br />

ou algum outro objeto que se movesse um pouco.<br />

Enquanto caminhava até seu local de trabalho estava<br />

alheio, meio zonzo, os miúdos pensamentos se misturavam<br />

às preocupações e absorviam todas suas energias mentais.<br />

Chegando lá, ele imaginou o trabalho desse homem fictício<br />

como sendo um misto de repartição pública com indústria.<br />

Havia a burocracia da primeira com o barulho e a necessidade<br />

de produção da segunda. Ele sentou-se numa mesinha apertada


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

numa grande sala com várias outras mesinhas apertadas e<br />

grandes máquinas que produziam algo o tempo todo. Sobre<br />

sua mesa havia vários quilos de papéis, pilhas que ficavam<br />

altas demais e despencavam sobre a pilha ao lado. Havia<br />

também muitos carimbos, grampeador, furador de papel, uma<br />

máquina calculadora com impressora, uma espátula para abrir<br />

correspondência, uma caixa com clips e outra com elásticos<br />

para dinheiro.<br />

Sentado, começou a procurar algo. Revirava os papéis que<br />

estavam sobre a mesa, abriu as gavetas. Estava visivelmente<br />

irritado e desanimado. Encontrou o que procurava, mas isso<br />

não lhe trouxe nenhuma alegria, seus lábios continuavam<br />

refletindo seu estado interior. Carimbou duas vezes o papel e<br />

levantou-se para levá-lo para o outro lado da sala. Passou ao<br />

lado da grande máquina produtora e barulhenta. Seus ouvidos<br />

quase estouraram e para se proteger fechou os olhos. Chegou<br />

à mesa de quem deveria entregar o papel, era um homem<br />

muito magro e pálido com óculos de fundo de garrafa. Ele<br />

olhou apenas para o papel, rabiscou um visto e devolveu-lhe<br />

sem mover a cabeça. Voltou para sua escrivaninha passando<br />

novamente em frente à máquina barulhenta, desta vez além<br />

de fechar os olhos, comprimiu os lábios como se quisesse<br />

realmente fechar a boca.<br />

Sentou-se em sua cadeira. Estava calor e ele suava, sua<br />

camisa começava a ficar grudada no corpo. Olhou para o<br />

grande relógio de parede que ficava bem no centro da sala.<br />

Olhou para as pilhas de papel sobre a mesa, parecia que tinha<br />

algo a fazer mas não sabia por onde começar. Pegou um papel<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

qualquer e começou a abanar-se, respirava com dificuldades,<br />

sua gordura que se concentrava quase toda na barriga, parecia<br />

que lhe minava completamente o fôlego.<br />

Olhou novamente para o relógio e parou de se abanar,<br />

vasculhou a pilha de papéis e encontrou um que parecia fazer<br />

parte de seu trabalho. Colocou os óculos bem na ponta do nariz<br />

e fez algumas anotações em uma folha em branco. Às vezes<br />

parava de ler e olhava para os lados, observava a cesta de papéis<br />

amassados, o garrafão de água mineral, o descascado da parede,<br />

procurava evitar olhar para a grande máquina barulhenta.<br />

A moça do cafezinho ofereceu-lhe uma xícara, ele aceitou<br />

meio envergonhado por estar olhando para os lados e<br />

rapidamente começou a escrever algo numa folha em branco.<br />

Ela era jovem e sem ser bonita atraía sua atenção, lhe dava a<br />

impressão de um ser vivo. Lembrou-se de sua mulher e do que<br />

realmente ela representava para ele... riscou tudo o que havia<br />

escrito na folha em branco... olhou para a máquina barulhenta,<br />

observou-a produzindo sem parar. Respirou fundo, abanou-se<br />

com seus papéis e olhou para o grande relógio da parede.<br />

decidiu parar. Não conseguia mais seguir imaginando o<br />

dia daquele homem que havia inventado. Sentiu-se um grande<br />

manipulador que estava jogando seus próprios defeitos nos<br />

ombros de outra pessoa. O riacho depois de um bom tempo<br />

voltou a aparecer trazendo seus barulhos calmantes. Ele parou<br />

um pouco e mesmo sem muita sede bebeu água e lavou o rosto.<br />

Enquanto bebia sentiu a força da correnteza pressionando de<br />

leve um lado de seu rosto. Isso levou-o a pensar se a direção


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

das águas de um rio não seria seu objetivo. E sendo o rio e tudo<br />

mais que existe, natureza, então naturalmente, ao contrário<br />

do que havia imaginado antes, ele também teria de buscar um<br />

objetivo definido na vida. Precisaria de um alvo.<br />

Esse raciocínio lhe parecia lógico, mas ia contra tudo<br />

o que havia aprendido desde que começara a caminhar,<br />

principalmente aqueles momentos em que sentia que estava<br />

evoluindo, e que por isso mesmo tinham sido seus instantes de<br />

maior felicidade. Havia chegado a uma bifurcação, sabia que<br />

qualquer dos caminhos que escolhesse traria recompensas e<br />

arrependimentos, e que o pior que podia fazer seria ficar parado<br />

na bifurcação tentando escolher a melhor opção.<br />

Foi conservador. Escolheu permanecer na estrada que<br />

estava percorrendo, o objetivo não estava no final, e sim<br />

espalhado pelos instantes que vivesse e os passos que desse. E<br />

mesmo assim, a palavra objetivo talvez não fosse apropriada,<br />

porque ela pressupõe um lugar linear... ele não queria se perder<br />

em pensamentos a respeito do tempo, mas acreditava menos na<br />

linha reta e mais na panela de pipocas, onde os acontecimentos<br />

explodem ao redor das coisas e as coisas também são milhos<br />

aquecidos que explodirão ao redor dos acontecimentos.<br />

Feita a escolha, esperou por ele. O arrependimento não<br />

demorou a chegar. Era um absurdo escolher algo que se opõe<br />

à lógica, pior que isso, era ilógico. Estava caminhando contra a<br />

correnteza da vida, desperdiçando o que nela havia de concreto.<br />

Por um instante pensou que ainda era tempo de escolher o<br />

outro lado. Em seguida usou a lógica, se o pior que podia fazer<br />

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86<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

era perder tempo escolhendo um dos caminhos, ainda pior<br />

seria escolher um, arrepender-se e escolher o outro. Esse outro<br />

caminho ofereceria tantas garantias e tantas possibilidades de<br />

arrependimento quanto o primeiro.<br />

Apressou e fortaleceu os passos procurando construir uma<br />

certeza que não possuía. Tentou criar argumentos mentais<br />

que solidificassem sua decisão. Mas cada um que surgia vinha<br />

acompanhado de seu contrário. Tentou fugir, cores, números,<br />

mas sabia que aquilo acabaria levando-o a um estado de<br />

confusão mental. Lembrou-se do homem fictício que havia<br />

criado, decidiu que iria deixá-lo continuar a viver:<br />

O grande relógio de parede soou como um despertador, que<br />

estava ali para fazê-lo acordar de um pesadelo. Ele levantou-se,<br />

foi até o banheiro e olhou-se no espelho. Seus olhos encheramse<br />

de lágrimas com o que enxergou. Seu retrato físico decadente<br />

prenunciava uma velhice doentia. Mas isso era o que menos o<br />

incomodava, o que o destruiu por dentro foi enxergar o ser<br />

amortalhado que havia se tornado. Seus olhos denunciavam<br />

que tudo nele era pequeno e mesquinho, que ele havia escolhido<br />

viver a parte apodrecida da vida, desprezando tudo que não<br />

estivesse deteriorado.<br />

Saiu do banheiro e voltou para sua sala de trabalho.<br />

Aproximou-se da grande máquina barulhenta, encostou nela, o<br />

barulho parecia não incomodá-lo mais. Seus companheiros de<br />

trabalho olharam-no, todos assustados. Ele urinava na máquina.<br />

Seu pênis estava muito próximo das grandes engrenagens de<br />

aço que se moviam com grande virilidade. Ele parecia nem


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

notar o perigo de ser castrado. Quando terminou, guardou o<br />

pênis que derramou ainda várias gotas de urina nas calças. Saiu<br />

sem dizer nada a ninguém.<br />

Caminhou um pouco pelo centro do vilarejo, parecia<br />

confuso e seus olhos estavam mudados. Na praça central<br />

encontrou um vendedor de flores, comprou um grande buquê<br />

de rosas vermelhas. Pediu ao vendedor que lhe entregasse as<br />

flores como se estivesse presenteando-o com elas. Ele pagava<br />

pelo prazer de receber rosas vermelhas. Sorriu com alegria e<br />

surpresa quando segurou o buquê nas mãos. Abraçou-se a ele<br />

e cheirou cada um dos botões. Em seguida sentou-se em um<br />

dos bancos da praça, o sol estava forte e ele suava. Enfiou o<br />

dedo no sovaco que veio molhado, chupou o dedo sentindo<br />

o salgado do suor. Aquele gosto saído de si mesmo lhe parecia<br />

uma grande novidade. Continuou sentado escutando os<br />

barulhos ocasionais do vilarejo e sentindo a ação do sol sobre<br />

sua pele. Foi até o coreto que havia no centro da praça, subiu os<br />

três degraus e continuou olhando para a vida, que sutilmente<br />

acontecia ao seu redor.<br />

Pronto. Ele já não pensava mais que tinha pego o caminho<br />

errado. O homem fictício havia ajudado-o a continuar a<br />

caminhar sem remorsos. Porém sabia que tinha se utilizado de<br />

um artifício provisório e que não poderia depender disso em<br />

outras ocasiões. Mas o importante era que havia funcionado,<br />

não sabia como nem por quê.<br />

Mesmo tendo sido seu autor, não havia compreendido<br />

essa segunda parte da história de seu personagem fictício.<br />

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88<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

A primeira pergunta que aterrisou foi a mais óbvia de todas,<br />

quanto desse homem vinha dele mesmo? Achou-a tão óbvia<br />

que nem se preocupou em respondê-la, mas percebeu que<br />

mesmo que quisesse não saberia fazê-lo.<br />

de qualquer forma o episódio deixou-o ciente de que a<br />

criatividade era uma arma que possuía e que poderia usar<br />

em momentos de necessidade. Cada passo dado vai aos<br />

poucos eliminando a memória dos anteriores, e como já<br />

tinha caminhado bastante desde que teve a dúvida sobre qual<br />

caminho percorrer, o esquecimento havia soterrado a outra<br />

possibilidade.<br />

Seu cérebro, que havia zerado as dúvidas, agora possuía<br />

espaço vago para idéias e preocupações. Mesmo sem se<br />

lembrar porque esse espaço existia, ele percebeu isso e tentou<br />

preenchê-lo com algo alegre, que ajudasse a manter sua onda<br />

de positividade. Procurou se lembrar dos melhores momentos<br />

de sua vida. Vasculhou sua memória em busca desses instantes<br />

e logo percebeu que eles eram realmente instantes. Relâmpagos<br />

de curta duração que produziram uma luz que muitos anos<br />

depois continuava armazenada em sua memória.<br />

Esboçou um leve sorriso dentro do qual estava incluído<br />

também uma certa melancolia. Cada recordação agradável<br />

trazia junto de si a tristeza por existir apenas como memória.<br />

Mas o pior era que nada vinha solto. Junto com os momentos<br />

felizes vinham amarradas as situações em que esses momentos<br />

tinham ocorrido. E o grande novelo continuava se desenrolando<br />

até chegar às razões pelas quais havia decidido abandonar o


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

vilarejo. Quando percebeu estava novamente emaranhado em<br />

ódios e julgamentos.<br />

Percebeu isso a tempo e procurou se esquecer dos bons<br />

momentos vividos, queria cortar o novelo em seu começo para<br />

se desembaraçar da parte que não lhe interessava.<br />

Após o corte sentiu que algo o incomodava. Era aquilo<br />

que havia temido, mas cujo temor tinha sido encoberto<br />

pela sucessão de pensamentos. Seus pés estavam perdendo<br />

o conforto da terra macia, as pedras estavam de volta. No<br />

começo eram pedrinhas pequenas que incomodavam um<br />

pouco, mas não impediam que ele continuasse, mas elas<br />

foram aumentando até chegarem a pedras pontudas quase<br />

do tamanho de seus pés. Aquele caminho não era feito para<br />

se andar descalço. Foi obrigado a parar. Sentou-se sobre uma<br />

pedra grande e tentou imaginar uma saída. Analisando todas<br />

as possibilidades não encontrou nenhuma, se continuasse iria<br />

destruir seus pés, que para ele tinham uma importância muito<br />

maior do que seus braços.<br />

Lembrou-se dos tamancos feitos com folhas de palmeira,<br />

de como tinham sido úteis. Lembrou-se também que os havia<br />

jogado fora. Mesmo percebendo que a vida funciona em ciclos<br />

repetitivos, jogou-os fora. Questionou-se então se talvez,<br />

inconscientemente, ele não havia desejado estar exatamente na<br />

situação em que se encontrava. Não conseguiu chegar a uma<br />

resposta, mas não encontrou razões sólidas para que desejasse<br />

se auto-punir de maneira tão severa. Atribuiu a falta de<br />

prevenção a um puro relaxo, sentiu-se estúpido.<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Rapidamente esqueceu-se de tudo que havia aprendido<br />

durante a viagem, tudo isso foi encoberto por uma grande<br />

onda negra de ódio. Primeiramente o sentimento tinha como<br />

alvo ele mesmo, começou a chutar mentalmente tudo o que<br />

para ele tinha valor, também com a mente cuspiu em todas as<br />

crenças que lhe eram mais caras. Sentiu-se como alguém que<br />

tenta roubar uma casa mas fica entalado na chaminé e depois é<br />

ajudado pelos próprios donos da casa.<br />

Gostaria de poder apertar um botão que o levaria<br />

imediatamente para seu quarto. Mas sabia que já havia<br />

caminhado bastante e o caminho de volta seria longo. um<br />

longo caminho ridículo, imaginou-se passando pelos mesmos<br />

lugares que passou, só que agora sem expectativa nenhuma<br />

pela frente, apenas a confirmação do próprio fracasso. Além<br />

do que, havia uma questão prática, não conseguiria encontrar<br />

os tamancos no escuro, teria de esperar o dia nascer. Por um<br />

lado isso não deveria demorar a acontecer, poderia descansar<br />

esperando pela luz e depois recomeçar a caminhada de volta<br />

para casa. Apesar disso parecer a escolha mais lógica, para<br />

ele era algo impossível de ser feito. Estava ilhado, voltar pelo<br />

mesmo caminho seria multiplicar por cem o ódio que sentia<br />

por si mesmo.<br />

Os longos dedos escuros que o envolviam pareciam estar<br />

crescendo, e o sentimento negativo que traziam espalhavase<br />

ao seu redor, começou a odiar o lugar que estava, o negro<br />

da noite e o barulho do riacho. Com seu grande poder de<br />

propagação, o sentimento escuro percorreu rapidamente todo<br />

o caminho de volta para o vilarejo. Ele odiava cada pedra de


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

sua cidadezinha. Quando percebeu que o sentimento avançava<br />

na direção dos habitantes, fez um último esforço tentando se<br />

libertar da grande sombra que encobria seu mundo.<br />

Olhou para o lado em busca de palmeiras, queria construir<br />

novos tamancos que lhe permitissem enfrentar o caminho<br />

pedregoso. Mas não havia nada na vegetação com mais de dois<br />

palmos de altura. Esse novo pequeno fracasso teve o efeito de<br />

reforçar seu ódio, que agora abrangia cada pessoa do vilarejo,<br />

mesmo aquelas que ainda naquela noite antes de sair de casa,<br />

ele gostava. Todas as cores tinham perdido o brilho e todas<br />

as personalidades individuais se confundiam em apenas uma<br />

odiosa e fedorenta figura negra.<br />

Se pudesse se enxergar no escuro, ele repararia como<br />

o vermelho inundava seu rosto. Essa grande nuvem negra<br />

sugava-lhe as energias, fazia seus dentes de cima friccionaremse<br />

nos de baixo e seus dedos dos pés e das mãos moverem-se<br />

em vão. Sentia-se como uma banheira de água fria cuja tampa<br />

foi retirada e rapidamente vai se esvaziando.<br />

Aos poucos o grande ser único a quem odiava foi se<br />

subdividindo e ganhando rostos conhecidos. Entrou então<br />

num estado de confusão mental, pois não sabia por qual dos<br />

rostos começaria a odiar e nem quais deles mereceriam mais<br />

ódio. Procurou organizar as prioridades lembrando-se das<br />

histórias individuais e das razões pelas quais os odiava. Essa<br />

tarefa parecia que aumentava a velocidade com a qual suas<br />

energias se esgotavam. Sentiu-se como uma banheira vazia<br />

onde só restam pequenas pocinhas de água suja.<br />

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92<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Estava completamente esgotado, parecia que havia<br />

consumido até a lenha que alimentava o fogo de seu ódio, que<br />

aos poucos foi diminuindo. Todos os rostos individuais dos<br />

habitantes do vilarejo começaram a se reagrupar num grande<br />

ser de personalidade única. Aos poucos esse monstro começou<br />

a parecer menos pavoroso, e à medida que em seu próprio rosto<br />

iam diminuindo os tons vermelhos, a fera começou a perder os<br />

contornos, deixando cair no chão as longas presas e tendo seu<br />

nariz e olhos dissolvidos. A feiúra desapareceu e deu lugar a<br />

algo que não conseguia identificar. Essa nova forma não parava<br />

de se mover, ele olhava-a tentando compreendê-la. Aos poucos<br />

seus contornos foram se definindo, e logo tinham voltado a<br />

tornarem-se familiares. Ele estava olhando para seu vilarejo.<br />

Sua memória lhe pintava um retrato fiel da geografia de sua<br />

cidade. A praça central, o comércio, as casas e as ruas. A calma<br />

do vilarejo arrefeceu completamente seu coração. Estava calmo<br />

e agora utilizava-se de suas recordações para passear pelo lugar<br />

onde tinha ligações emocionais. Enquanto fazia isso lembravase<br />

dos eventos ligados a cada canto.<br />

Esses acontecimentos que pareciam vivos, de uma certa maneira<br />

continuavam acontecendo dentro de si... a percepção desse fato<br />

levou-o a ser cutucado por pensamentos a respeito do tempo,<br />

os eventos não parariam de acontecer depois de terminados.<br />

Apenas mudariam de freqüência para continuar acontecendo na<br />

memória e depois mudariam novamente para acontecer sob a<br />

forma de símbolos. desta maneira o final de qualquer coisa seria<br />

uma ilusão do mesmo nível que o começo dela.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

A grande esfera multidimensional de eventos englobaria,<br />

além da ilusão do presente, tudo que já aconteceu e irá<br />

acontecer. Nesse instante em que tinha essas idéias, ele estaria<br />

também dormindo em sua cama, dando o primeiro passo do<br />

início de sua caminhada e morrendo. Mas como a morte seria<br />

apenas mais uma transformação, com uma aparência mais<br />

radical, mas no fundo tão importante quanto qualquer de<br />

nossas mudanças cotidianas, no fundo ele estaria como tudo,<br />

apenas participando da grande esfera multidimensional.<br />

Atravessou-lhe uma pergunta: digamos que isso seja<br />

verdade e que as coisas funcionem dessa maneira mesmo, o<br />

que deve fazer alguém com um cérebro poroso, limitado e<br />

que vive preso ao tempo linear? Trocaria sua descoberta por<br />

um bom par de sapatos.<br />

Voltou a lembrar-se de sua aldeia, mas a idéia de que estava<br />

fatalmente atado a seu destino linear, o fez desta vez lembrar-se<br />

menos dos locais e acontecimentos, e mais das pessoas. Seus<br />

companheiros de condição. Nomes e rostos foram surgindo,<br />

alguns conhecidos e outros que eram apenas lembranças de<br />

pessoas que eventualmente via. Lembrou-se também das<br />

pessoas que não gostava, mas dessa vez qualquer sentimento<br />

negativo tinha desaparecido. Todos eram igualmente seus<br />

companheiros, e nutria por eles uma grande simpatia que não<br />

fazia distinções.<br />

Sua memória invadiu as vidas de seus companheiros de<br />

condição, lembrou-se de suas profissões, da maneira como<br />

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94<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

protegiam-se do frio, de como aproveitavam o sol sentados<br />

nos bancos de praças, de como se alimentavam, olhavam para<br />

os outros, de como às vezes enchiam o peito de esperanças e<br />

esvaziavam os olhos de lágrimas. Lembrou-se de suas pequenas<br />

felicidades cotidianas, de suas dúvidas e certezas, de seus sonhos,<br />

dos pequenos e dos grandes. Lembrou-se do salivar das bocas à<br />

espera do prato preferido, do nervoso do primeiro encontro de<br />

dois namorados, dos pequenos orgulhos, das pequenas alegrias,<br />

do frio na espinha que acompanha as doces expectativas.<br />

As mudanças continuavam seu caminho, a simpatia<br />

que nutria por seus iguais foi se transformando. A imensa<br />

onda começou a se formar, no profundo oceano as águas<br />

começaram a se movimentar, forças escondidas foram<br />

unindo porções de água, correntes submarinas moveram-nas.<br />

Silenciosa, a grande parede de água se levantava, o oceano<br />

fornecia todo o material que ela precisava para crescer o<br />

quanto quisesse, e ela aumentou até o ponto de, para ele,<br />

tornar-se quase insuportável. Finalmente não pôde mais, e<br />

sua onda de amor arrebentou-se. Amava toda a humanidade.<br />

As águas invadiram seu vilarejo e molharam todos os<br />

habitantes, mas naqueles instantes seu vilarejo representava o<br />

gênero humano, os vivos, os mortos e os que ainda estão por<br />

nascer. Ninguém escapava de sua fúria amorosa. As pequenas<br />

diferenças que o separavam de seus semelhantes foram todas<br />

dissolvidas, e as grandes semelhanças ficaram evidentes a seus<br />

olhos. Reconhecia-se em cada ato que sua memória atribuía a<br />

seus concidadãos. Seus olhos transbordavam de uma imensa<br />

solidariedade, desejou abraçar alguém e sentir o coração dessa<br />

pessoa batendo junto ao seu.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Lembrou-se de alguns funerais a que tinha ido, e onde<br />

havia percebido que pessoas dos mais diversos tipos uniamse<br />

em favor do morto. Na época, pensou que se aquela<br />

união conseguisse sair intacta do cemitério o mundo estaria<br />

definitivamente mudado. Mas o que sentia era mais forte do<br />

que isso. Não existia razão que fosse forte o suficiente para<br />

provocar qualquer desentendimento, a discórdia era um<br />

barco furado. No fundo de cada homem brotava uma energia<br />

feita de aceitação e generosidade, e como elétrons em uma<br />

corrente elétrica, essas forças sutis naturalmente se somariam<br />

e dominariam a humanidade, eliminando qualquer resquício<br />

de desamor.<br />

Essa onda amorosa foi aprofundando suas raízes em<br />

seu peito, uma paz profunda tomou conta de seu coração,<br />

diminuindo a velocidade de seu fluxo de pensamentos. As<br />

pessoas amadas foram perdendo suas individualidades e<br />

misturando-se com a natureza, que estava a seu redor para<br />

formar um grande ser silencioso ao qual ele também pertencia.<br />

Acariciou com as pontas dos dedos a própria mão, em<br />

seguida uma pedra. Naqueles instantes era irrelevante qual<br />

seria o objeto de seu carinho, nada era grande ou pequeno.<br />

O encantamento durou um tempo que não pertence ao<br />

tempo. Mas aos poucos seus pensamentos foram retornando<br />

à velocidade normal, e fazendo um balanço dos últimos<br />

acontecimentos. Ele havia percorrido todo o espectro<br />

emocional que um coração suporta. Havia sentido todos<br />

os tipos de sabores e guardava ainda as sobras de amor que<br />

lhe enchiam de bem-estar. Percebeu que tentar estocá-las<br />

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96<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

seria como guardar cubos de gelo no bolso, precisaria estar<br />

sempre renovando-as, ou então inventando uma maneira<br />

de produzi-las.<br />

Sabia que se proteger contra o ódio era o primeiro passo<br />

para produzir amor, mas também que não poderia nunca<br />

viver na extremidade amorosa que visitara. Sua estrutura<br />

simplesmente não suportaria. Precisaria encontrar um ponto<br />

confortável onde pudesse ser sobretudo um bom condutor para<br />

aquela força luminosa que o havia invadido. Enquanto ainda<br />

possuísse uma personalidade e vivesse uma individualidade<br />

não poderia integrar-se àquele brilho eterno.<br />

Sentia que tinha vivido mais intensamente nesses últimos<br />

instantes do que em toda sua vida. Mas ainda não conseguia<br />

deglutir racionalmente essa experiência, construindo com ela<br />

algo de proveitoso. Talvez fossem necessários anos para isso,<br />

talvez nunca conseguisse e aquilo seria sempre seu diamante<br />

secreto, que nunca poderia vender, mas que de vez em quando,<br />

sem que ninguém percebesse, observaria seus brilhos.<br />

de qualquer forma percebeu que tinha vivido algo grande,<br />

que a maioria das pessoas nunca vive, e que ele também não<br />

viveria se tivesse ficado em casa dormindo. Orgulhou-se de estar<br />

onde estava, olhou para as pedras pontudas que lhe ameaçavam<br />

os pés. Parecia que o imenso fluxo energético que atravessara seu<br />

cérebro havia desmanchado barreiras inúteis e agora, mesmo<br />

as idéias práticas corriam com mais fluidez. Rapidamente<br />

imaginou dezenas de saídas possíveis para seu problema, cada<br />

escolha vinha acompanhada de suas conseqüências.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Não sabia como havia sentido tanto frio há apenas<br />

algumas horas atrás, mas o fato era que não sentia mais, seu<br />

raciocínio lógico utilizou-se de parte do problema para sua<br />

própria resolução. Ficou nu. Com as pedras pontudas que lhe<br />

ameaçavam os pés, conseguiu cortar ao meio suas calças e seu<br />

cinto. dobrou várias vezes os dois pedaços de tecido formando<br />

uma espécie de chinelo macio. Com os dois pedaços de sua<br />

cinta amarrou nos pés esse chinelo. Não tinha certeza se aquilo<br />

funcionaria e antes de dar o primeiro passo foi preparado para<br />

uma possível decepção. Lentamente deu o primeiro passo<br />

sobre as pedras pontudas. Seus pés mal sentiram que tinham<br />

caminhado sobre algo irregular. Continuou caminhando<br />

com todo o cuidado possível, desconfiando cada vez mais da<br />

duração de algo que estava funcionando tão bem.<br />

Após mais alguns passos parou para verificar os nós que<br />

tinha dado e tudo continuava perfeito. As pedras pontudas às<br />

vezes incomodavam um pouco, mas nada que o atrapalhasse de<br />

verdade. Estava vencendo mais um obstáculo. Aos poucos as<br />

pedras foram ganhando formas mais arredondadas e ele então<br />

se sentiu caminhando com seu sapato favorito.<br />

Esse início de conforto físico deixou-lhe espaço vago para<br />

pensar em sua situação, um sorriso despreocupado apareceulhe<br />

nos lábios. Ele enxergava-se de longe e ria de si mesmo.<br />

Imaginou-se outra pessoa encontrando-se com ele naquele<br />

lugar e situação. Riu ainda mais de sua possível reação. Sempre<br />

valorizou aqueles que conseguiam rir de si próprios, e agora ele<br />

estava naquela situação, era ridículo e não se importava com<br />

isso. um outro conforto somou-se ao que seus pés sentiam.<br />

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98<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

E para melhorar as coisas ainda mais, de repente, as pedras<br />

desapareceram de vez e o caminho voltou a ser somente de<br />

terra macia.<br />

decidiu que preferia retirar os chinelos e voltar a sentir a<br />

maciez da terra, mas dessa vez não os abandonou, conseguiu<br />

acomodá-los dentro da tipóia que segurava seu braço. Aquela<br />

decisão era fruto claro do aprendizado que acontecera no<br />

caminho. Ele havia galgado mais um degrau, mas aproveitou seu<br />

estado de espírito e riu disso também. Lembrou-se de algumas<br />

vitórias pessoais de seus concidadãos e riu delas todas. Mas o<br />

mais importante seria rir das próprias vitórias. Analisando sua<br />

vida não conseguiu encontrar nada que pudesse identificar como<br />

grande vitória, entretanto lembrou-se de alguns momentos<br />

em que havia se sentido derrotado. Conseguiu facilmente<br />

gargalhar desses instantes, principalmente quando percebeu<br />

quão irrelevantes teriam sido as mudanças de seu destino,<br />

caso suas derrotas tivessem sido transformadas em vitórias.<br />

Por último, conseguiu rir de alguém como ele mesmo, que ria<br />

de tudo. Achou esse tipo de fuga engraçada, principalmente<br />

porque poderia ser executada em qualquer situação.<br />

Suas risadas cessaram. Sentia o peito leve e até uma ligeira<br />

coceira no estômago. Lembrou-se de seus braços, que estavam<br />

melhores do que pensara no começo, mas que estavam<br />

machucados e ainda doíam, a vida voltava a pesar-lhe, mas o<br />

fardo parecia emagrecido. Apalpou a farpa de madeira que<br />

continuava no mesmo lugar. Com os dedos inspecionou o<br />

ferimento do outro braço, a ferida parecia seca. Tomou um<br />

pouco de coragem e aproximou o nariz do ferimento. Voltou


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

a sorrir com o cheiro de sangue coagulado. Apesar do pouco<br />

conhecimento que tinha, achava que já poderia afastar de vez a<br />

hipótese de fratura.<br />

O riacho reapareceu e a primeira idéia que lhe veio foi a<br />

de tomar um banho. Imaginou-se apenas com os olhos para<br />

fora d’água, mergulhando num reflexo escuro de estrelas, e<br />

sentindo a leveza de seu corpo boiando. Logo percebeu que as<br />

águas eram muito rasas e geladas. de qualquer forma apreciou<br />

o frio que sentia nos pés, que anestesiava seus pequenos<br />

cortes. Aproveitou também a textura do musgo que encobria<br />

as pedras do fundo e que era ainda mais relaxante do que a<br />

terra molhada. Encontrou uma pedra grande no rio, e com<br />

todo cuidado sentou-se nela e deixou seus pés divertirem-se<br />

embaixo d’água.<br />

O barulho suave da correnteza não era atrapalhado por<br />

nenhum outro ruído, os sons foram amolecendo suas ondas<br />

cerebrais, diminuindo o raciocínio lógico e aumentando<br />

sua capacidade contemplativa. As estrelas e a lua moviam-se<br />

suavemente por entre as pedras cobertas de musgo verde escuro.<br />

Tremendo, às vezes confundiam suas silhuetas, e parecia que o<br />

ruído do riacho era a conversa dos astros. Eles animadamente<br />

discutiam em uma língua que ele não conseguia entender, mas<br />

que apreciava ouvir o som.<br />

Abaixou-se para tomar um gole, e no último instante teve de<br />

decidir se bebia algumas estrelas ou a lua. Acabou escolhendo a<br />

lua, que lhe parecia mais palpável, transmitindo a idéia de que<br />

a água que dela viesse seria mais líquida e molhada.<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

A água desceu sua garganta como gelo que derrete<br />

fogo. Sentiu-se completamente refrescado e esse conforto<br />

distraiu-o do caminho contemplativo. Resolveu aproveitar<br />

a oportunidade para novamente lavar suas feridas. Molhou<br />

os dedos e com cuidado espirrou algumas gotas sobre os<br />

ferimentos. A lua e as estrelas continuavam mergulhadas nas<br />

águas, mas ele já estava imerso no mundo prático: até onde iria<br />

caminhar? Precisava arrumar algumas roupas, seus ferimentos<br />

necessitavam de cuidados. O que iria fazer se chegasse a algum<br />

povoado, retornaria para seu vilarejo ou reiniciaria sua vida lá?<br />

Não daria tudo no mesmo? E se esse caminho não levasse a<br />

lugar algum, e ele nunca mais visse outro ser humano, mesmo<br />

que conseguisse sobreviver sozinho no meio da natureza, será<br />

que sua vida seria melhor do que era no vilarejo?<br />

decidiu testar-se: se houvesse dois botões para pressionar,<br />

uma escolha, um deles o levaria imediatamente de volta<br />

para seu vilarejo, e tudo o que aconteceu no caminho seria<br />

apagado. Não existiriam mais os ferimentos, nem as dúvidas,<br />

nem o aprendizado, tudo seria anulado como se nunca<br />

tivesse existido. O outro botão, se pressionado, lhe daria a<br />

capacidade de auto-suficiência. Ele aprenderia a tirar alimento<br />

da natureza, a construir uma moradia, nada lhe faltaria para<br />

o sustento físico. Mas ele teria de viver sozinho no meio da<br />

mata. Poderia aproveitar dos prazeres secretos, dos reflexos no<br />

riacho, não teria horário nem obrigações com o mundo formal,<br />

não precisaria nunca vestir qualquer tipo de máscara social,<br />

nem estaria sujeito a qualquer poder que não fossem as forças<br />

naturais da vida.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Perguntou-se com toda a honestidade possível qual dos<br />

botões apertaria, pois essa máquina hipotética tinha apenas<br />

mais uma regra além da escolha, apertado o botão o caminho<br />

seria irreversível. Seus olhos pareciam divididos e querendo<br />

tomar caminhos distintos. Analisou as duas possibilidades,<br />

lembrou-se das mediocridades do vilarejo, apalpou o braço<br />

onde havia a farpa de madeira que o incomodava, lembrou-se<br />

da lua refletida no riacho e do colchão macio de sua cama.<br />

Sempre fora um homem solitário, mas para ele a solidão<br />

era um problema menor. Na verdade estava acompanhado por<br />

suas idéias, mas sabia que escolher estar para sempre longe de<br />

qualquer companhia humana poderia, a longo prazo, tornálo<br />

um inimigo daquilo em que mais acreditava. O que o faria<br />

obstinadamente desejar qualquer companhia humana. Por<br />

outro lado lembrou-se de seu personagem fictício, urinando<br />

sobre a grande máquina barulhenta que o oprimia, lembrouse<br />

também de velhos calendários de paredes cujas folhas<br />

destacáveis eram amassadas e jogadas no lixo, sobrando<br />

somente uma cartolina branca com a indicação do ano. Essa<br />

imagem lhe trazia a sensação de que a vida havia sido mastigada<br />

pelo tempo e o que sobrava do passado eram sempre ossos, e<br />

por conseqüência, de tudo o que existe, o que sobraria no final<br />

seriam sempre dejetos sem importância.<br />

Esses últimos pensamentos, por alguns instantes trouxeramlhe<br />

a certeza de qual botão apertaria. depois ponderou, mesmo<br />

no meio da natureza e longe dos calendários, ele nunca estaria<br />

imune às mandíbulas do tempo. Talvez um pouco menos<br />

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102<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

pressionado ideologicamente, mas o calendário poderia<br />

continuar existindo dentro de seu cérebro. Aliás, tudo o que<br />

detestava no vilarejo poderia continuar existindo na mata,<br />

mesmo se vivesse sozinho e trabalhasse apenas para se manter.<br />

Caso se decidisse por apertar o botão que o deixaria para sempre<br />

no meio da natureza, antes de mais nada ele próprio teria de<br />

passar por uma rigorosa faxina, que o limparia das sementes<br />

daquilo que detesta, e que vivem em seu corpo.<br />

Lembrou-se do doce de leite, sua sobremesa favorita. Era<br />

um daqueles seus pequenos prazeres, mas que para um homem<br />

como ele, que questionava as grandes respostas que o mundo<br />

organizado oferecia como verdades, acabavam se tornando<br />

algo fundamental. Não havia doce de leite no meio da mata.<br />

Então se questionou sobre a real importância desse doce<br />

em sua vida, estava reduzindo a amplitude do ser humano a<br />

algumas sensações gustativas, desprezando os outros sentidos<br />

e todo o oceano mental que acreditava ser a grande região<br />

inexplorada da vida.<br />

A balança continuava rigorosamente equilibrada, não<br />

tinha razões suficientes para qualquer escolha. Achou que<br />

talvez a tomada de decisão viesse com o tempo, quando<br />

tivesse experimentado mais do caminho que havia escolhido e<br />

pudesse usar essa experiência para facilitar a escolha. Logo em<br />

seguida achou o contrário, as dúvidas nunca seriam sanadas,<br />

e sempre depois de uma bifurcação surgiriam outras e seriam<br />

necessárias mais e mais escolhas. E a única maneira de fugir<br />

disso seria fechar os olhos e se deixar conduzir pelos outros<br />

para onde eles desejassem.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Sentia-se dentro de uma bifurcação circular que estava<br />

voltando a conduzir seu raciocínio a labirintos. Percebeu que<br />

era hora de encerrar o descanso. Levantou-se com cuidado, de<br />

agora em diante sempre que se sentasse teria de cuidar para não<br />

ferir seus testículos, que ficavam extremamente vulneráveis.<br />

Tentou se lembrar de como os animais selvagens protegiam<br />

seus genitais, eles já nasciam com eles protegidos. Lembrou-se<br />

então dos índios, alguns andavam completamente nus e não<br />

pareciam preocupados com eventuais machucados, estavam<br />

adaptados, sabiam andar e sentar, e como nunca tinham<br />

usado roupas, desenvolveram uma sabedoria do corpo, que<br />

inconscientemente resolvia esses problemas. Ele ainda era uma<br />

criança pequena aprendendo detalhes básicos de como viver na<br />

mata. Não possuía a casca protetora natural dos animais e nem<br />

a casca cultural dos indígenas, que tinha sido desenvolvida ao<br />

longo de centenas de gerações.<br />

Sua pele branca e fina seria um banquete para os mosquitos<br />

e não resistiria muito a força de um sol tropical. Quando saiu<br />

do riacho e recomeçou a caminhar, havia perdido a paz e as<br />

certezas de quando relaxava com os pés na água. A trilha<br />

continuava livre de pedras e feita apenas de terra macia, mesmo<br />

assim ele retirou de dentro da tipóia seus chinelos de pano e<br />

amarrou-os aos pés. Parecia que queria compensar a falta de<br />

inteligência de seu corpo com a força de seu cérebro.<br />

Sentia-se desajeitado, quando caminhava sobre as pedras<br />

não tinha muito equilíbrio e procurava acelerar o ritmo para<br />

atravessar mais depressa, acabava arriscando-se mais. Entre<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

pequenos perigos encontrava espaço para reflexões: qual seria<br />

a diferença entre ele e um índio, que corria sobre pedras onde<br />

ele achava difícil caminhar, que mergulhava em rios sem antes<br />

tentar descobrir a profundidade, e que atravessava a mata<br />

fechada a toda velocidade sem ferir os pés nem cair?<br />

A resposta era, não havia diferença alguma, cada um estava<br />

perfeitamente adaptado ao tipo de vida que levava. Seria como<br />

a evolução das espécies, os animais de regiões frias têm mais<br />

pêlos e camadas de gordura que os protegem. Ele vinha de um<br />

mundo onde a inteligência física não era exigida e portanto,<br />

não havia sido desenvolvida.<br />

Questionou-se então, o porquê dele, um pingüim<br />

desengonçado, estar caminhando sem rumo pelas dunas do<br />

deserto. Seu destino biológico deveriam ser as geleiras e a<br />

companhia de outros pingüins. Quis saber então se essa sua falta<br />

de inteligência física não estaria ligada a outros aspectos da vida.<br />

Seu sexo balançava desengonçado de um lado para outro, e<br />

era exatamente assim que ele enxergava o seu, e o de qualquer<br />

outra pessoa que já conhecera. O sexo era sempre um fardo<br />

precioso com o qual precisamos gastar todas nossas energias<br />

carregando-o, e que quando a velhice exaure nossas forças,<br />

esse bem, ao mesmo tempo, perde seu valor. O diamante que<br />

carregamos a vida toda entre os dedos, de repente transformase<br />

em areia.<br />

Os raciocínios começavam a se unir em blocos querendo<br />

formar conclusões. As forças invisíveis que criavam e mantinham


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

os vilarejos unidos, se nutriam das fraquezas de pessoas sem<br />

liberdade de movimento que carregavam pesos inúteis.<br />

Olhou para seu braço imobilizado pela tipóia e deixou<br />

os pensamentos fluírem: os bloqueios físicos e mentais são<br />

o combustível das sociedades. Elas os geram e os mantém e<br />

criam maneiras de que as pessoas acreditem que são benéficos a<br />

todos. Para que dois braços se você pode viver muito bem com<br />

apenas um... ter dois olhos pode ser perigoso, cada um escolhe<br />

uma direção e você acaba perdido, se por acaso alguém de vocês<br />

nascer com dois, um deles terá de ser arrancado para que suas<br />

vidas transcorram de maneira mais eficiente.<br />

Se os bloqueios são o combustível, é o medo que acende o<br />

estopim da sociedade e a faz lançar suas luzes fracas no meio<br />

da natureza, cheia de várias camadas diferentes de sombras<br />

profundas. O silêncio e a escuridão são inimigos dessas luzes<br />

artificiais e provisórias. A grande tocha-medo que acende as<br />

luzes sociais e faz os vilarejos funcionarem, é o temor de não ser<br />

igual aos outros. Com esse veredicto chegamos à conclusão de<br />

que no fundo são frágeis os fundamentos que mantém unidos<br />

os vilarejos.<br />

Se as pessoas levantassem de onde estão e decidissem apenas<br />

subir numa árvore de seus próprios jardins, poderiam ver seus<br />

vizinhos de cima, e reparar que tanto eles quanto qualquer<br />

outro, são muito pequenos diante do que os circunda, e que as<br />

certezas que têm, são ainda menores do que eles. Então por quê<br />

todos deveriam seguir por uma única trilha, obedecendo a um<br />

único padrão, se os guias a quem seguem sabem tanto quanto<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

eles. Subam nas árvores de vossos jardins, descubram trilhas<br />

alternativas que passam pelo meio de pântanos com barulhos de<br />

animais que nem sabem quais são. descubram flores que nascem<br />

escondidas nos altos das árvores, nos cantos escuros dos bosques,<br />

nos buracos apodrecidos de velhas árvores mortas.<br />

Seus olhos brilhavam e sua cabeça movia-se de um lado para<br />

outro. Resolveu remover a tipóia. devagar, moveu o braço que<br />

ainda doía um pouco, mas a tipóia o incomodava mais do que<br />

a dor. Jogou fora seus chinelos, desta vez não foi imprevidente,<br />

estava ciente de que talvez mais para frente as pedras poderiam<br />

recomeçar a aparecer, mas precisava se livrar deles. Caminhava<br />

devagar para que seu braço não se movesse muito, mas sua<br />

mente voava alto, de suas idéias genéricas atravessou para<br />

outras mais específicas, deu nome aos bois: consideremos o<br />

mais sólido banco do mundo, se apenas uma pequena parcela<br />

de seus clientes exigirem seu dinheiro lá aplicado... não havia<br />

escapatória, o princípio que erige o sólido é frágil... se algumas<br />

pessoas subirem nas árvores de seus jardins, ou perguntaremse<br />

por que carregam pesos inúteis, todo o sistema mundial de<br />

vilarejos falirá. Essas pessoas começarão a não obedecer mais<br />

aos padrões, e aqueles que obedecem, perceberão que não existe<br />

mais apenas um líder a ser se<strong>guido</strong>. Ficarão confusas e após a<br />

confusão começarão por si só a buscar seus próprios caminhos.<br />

E o primeiro passo para poderem se encontrar, será subirem nas<br />

árvores de seus jardins para poderem ter uma visão mais ampla<br />

da situação em que vivem.<br />

Pela primeira vez ele sentiu que seus pensamentos eram<br />

forças da natureza da mesma maneira que as árvores ou


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

os trovões. Sentia-se chovendo sobre a terra e fazendo a<br />

vegetação crescer, era um deus fraco e um Homem divino,<br />

que havia descoberto segredos que na verdade eram verdades<br />

aparentes. Seu corpo atravessava o caminho escuro, seus<br />

braços exigiam-lhe, através da dor, um pouco de atenção,<br />

mas ele estava em outros lugares, talvez em lugar algum.<br />

Apenas movimentava-se entre idéias encobertas por neblina,<br />

paisagens sem testemunha, belos nascimentos e genuínas<br />

mortes. Flores sem nome de cores misturadas.<br />

Ele era a presença oculta nos grandes acontecimentos<br />

misteriosos, elevado acima das árvores de seu próprio quintal,<br />

enxergando as montanhas e a cabra que pasta tranqüila em seu<br />

cume. E vendo o olhar dela e o reflexo da vegetação em suas<br />

pupilas.<br />

Mas um pé seu permanecia no solo e chamava-o de volta,<br />

ele teria de continuar vivendo no chão, mas traria a experiência<br />

das alturas. Voltou de lá gritando alto: enxerguem o ridículo<br />

dessas pequenas paredes de barro, e das ruas que dividem tudo<br />

em quadrados idênticos, é dessa maneira primária que são<br />

construídos vossos vilarejos. Percebam que esse ridículo não<br />

desaparecerá se vocês apenas mudarem o material que levanta as<br />

paredes de vossas casas, e que a divisão em quadrados idênticos<br />

atravessou vosso mundo material e invadiu o mundo de suas<br />

idéias. Olhos e espírito abertos para a falta completa de sentido<br />

das regras a que vocês obedecem, percebam como elas são filhas<br />

de medos infantis. E que por vezes vocês, e eu me incluo nesse<br />

pronome, fazem o maior esforço para que a corda que os enforca<br />

não se rompa. É o medo de que os outros medos acabem.<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Como crianças, vocês procuram as pequenas proteções<br />

que os vilarejos de todos os tamanhos e formatos oferecem.<br />

Escondidos atrás de paredes transitórias, e iluminados<br />

por fracas luzes de velas com pavio curto, eu e vocês nos<br />

julgamos completamente protegidos. Mas essas certezas<br />

têm a permanência de uma nuvem ao vento, logo começam<br />

a brotar rachaduras que enfraquecem nosso bem-estar e<br />

inflam nossos medos. Então percebemos que nada nunca<br />

nos protegerá de verdade, que as paredes, as luzes artificiais<br />

e as ruas esquadrinhadas, não têm importância suficiente<br />

para que percamos nossas vidas lutando por elas e por suas<br />

manutenções.<br />

A verdade imposta revela-se uma farsa, as crenças em<br />

um sistema de viver desabam, e ao homem advindo dessa<br />

desilusão só restam os céus e as matas. Mas ele deve escolher,<br />

se mesmo ciente da mentira, continua vivendo dentro dela<br />

e nutrindo-se das sobras de energias mortas que satisfazem<br />

seus pequenos prazeres, ou então se decide iniciar seu próprio<br />

sistema de viver. Caso decida-se por essa última possibilidade,<br />

tem de ficar muito atento para não construir apenas uma<br />

cópia maquiada daquilo que renegou.<br />

Os céus e as matas impõem-se imensos diante daqueles<br />

que abandonam os vilarejos, são mistérios molhados, e<br />

nesses instantes iniciais, as recordações de certezas secas<br />

chegam trazendo grandes dúvidas. O desânimo pode<br />

inventar justificativas para um retorno ao vilarejo, pra que se<br />

incomodar... as coisas são assim mesmo... eu não vou mudar<br />

o mundo...


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Pela primeira vez desde sua queda ele conseguiu<br />

movimentar seu braço, abrindo-o e fechando-o várias vezes, a<br />

dor havia diminuído bastante, as reflexões parece que o tinham<br />

fortalecido. Qualquer observador poderia reparar no brilho de<br />

seus olhos, mas talvez um observador mais eficaz conseguisse<br />

reparar que esse brilho expandia-se para além de seus globos<br />

oculares, de uma certa maneira todo seu corpo parecia<br />

envolvido por uma leve membrana luminosa. É verdade que<br />

aquilo poderia ser apenas um reflexo da luz do luar. Mas a lua já<br />

havia brilhado mais e ele nunca tanto.<br />

Se não fosse pela farpa de madeira que permanecia sob sua<br />

pele, ele poderia dizer que havia superado todos os obstáculos,<br />

sem que eles lhe deixassem grandes marcas. Os cortes e<br />

arranhões foram como os pequenos e inevitáveis percalços do<br />

dia-a-dia. Apalpou a farpa que parecia que havia se movido<br />

dentro de seu braço, conseguia senti-la menos, pois ela tinha<br />

entrado mais fundo em sua pele. Primeiro refletiu sobre as<br />

conseqüências práticas desse fato, não chegou a conclusões,<br />

então mergulhou no mundo dos símbolos. Aquela farpa seria<br />

a representação de todos os obstáculos que queria transpor e<br />

agora ela estava fundindo-se com ele.<br />

Ele não era mais o mesmo homem que começou a<br />

caminhada, a farpa se tornara parte dele e simbolicamente,<br />

nunca poderia ser arrancada. Iria se dissolver em suas<br />

entranhas fazendo que suas fibras virassem sangue e dando a<br />

seu sangue algumas características da madeira. A idéia de que<br />

seu sangue poderia virar madeira conduziu-o a uma sensação<br />

muito forte de integração com a natureza. Sentia sua própria<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

personalidade perdendo as fronteiras que a separavam do<br />

exterior.<br />

Lembrou-se das ruas e mentes esquadrinhadas, e imaginou<br />

que um poderoso solvente verde invadia o mundo e as cabeças,<br />

e derretia tudo que não seguisse o ritmo natural da vida. Os<br />

comportamentos reprimidos e as máscaras sociais seriam<br />

derretidos da mesma maneira que os prédios e os produtos<br />

burros. Mas o que fosse verdadeiro não sofreria com a onda<br />

devastadora, na verdade nem perceberia que ela tinha existido.<br />

Percebeu que estava novamente criando um universo seu, o<br />

mesmo em que habitava seu homem fictício. Perguntou-se por<br />

onde andaria ele, se ele continuaria a existir caso fosse apagado<br />

de sua memória.<br />

Sem resposta, voltou para o raciocínio anterior, queria um<br />

mundo limpo daquilo que imaginava sujo. Essa onda detergente<br />

dissolveria os acúmulos nocivos, espalhando e fazendo circular<br />

todos os tipos de substâncias, que por possuírem concentrações<br />

elevadas, às vezes acabavam entupindo os canos da vida e<br />

impedindo seu fluxo adequado. Eliminados os excessos,<br />

tudo tenderia a um equilíbrio natural. O mundo e a questão<br />

humana estariam resolvidos. Só o que precisaria seria descobrir<br />

a fórmula dessa substância dissolvente. Rapidamente procurou<br />

exemplificar alguns casos que confirmariam sua teoria – os<br />

males vêm dos excessos – a frase encerrou seu raciocínio e, para<br />

ele, comprovou suas suspeitas.<br />

Mas a frase foi também a semente de muitas perguntas:<br />

como poderia descobrir essa substância? Não teria de viver em


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

sociedade para testar os resultados? Ou poderia viver na mata<br />

e encontrar os canos entupidos da natureza, e encontrando-os,<br />

a solução naturalmente se espalharia por todo mundo? Mas<br />

a natureza não seria já a forma mais pura e fluida de vida, ou<br />

ainda poderia estar contaminada por rolhas que impediriam o<br />

fluxo perfeito da vida?<br />

uma risada suave encerrou seus pensamentos, riu de si<br />

mesmo por estar começando a acreditar que sozinho, poderia<br />

resolver o problema do universo. Reparou em seu corpo nu e<br />

em seus machucados, sentiu-se infantil e pequeno. Escura e<br />

mal cheirosa, a idéia de que estava simplesmente jogando sua<br />

vida no lixo, trouxe-lhe um fardo que pesou sobre seus ombros.<br />

Ele não chegou a parar de andar, mas diminuiu bastante a<br />

velocidade.<br />

Resolver o problema do universo... lembrou-se dessa frase...<br />

a questão do homem na Terra... quis saber se no fundo existem<br />

mesmo esses problemas e essas questões, se essas buscas não são<br />

também filhas do medo, disfarçadas de filosofia... e tudo não<br />

passaria de um “eterno estabelecido”, ao mesmo tempo mutável,<br />

mas que não precisava de perguntas nem oferecia respostas. E<br />

as coceiras do mundo e do homem, no fundo teriam a mesma<br />

importância de seus momentos de maior enlevo espiritual,<br />

quando ele achava que estava de maneira mais completa<br />

cumprindo seu destino de grande homem, que se espalhava pelo<br />

mundo integrando-se com o universo. Talvez não perdesse em<br />

grandeza, se simplesmente apanhasse no chão algum pedaço de<br />

pau para coçar as costas. Sorriu. Parecia-lhe estranho o fato de<br />

que talvez, a resposta final para a grande busca humana, tivesse<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

de primeiro passar por raciocínios complicados, atravessar<br />

corredores com paredes feitas de tempo, mergulhar num<br />

labirinto interno composto de incontáveis camadas humanas,<br />

para que no fim chegasse à conclusão de que a única resposta<br />

para tudo é: cada um que coce suas coceiras.<br />

O fato concreto é que suas costas começaram a coçar<br />

muito. Não teve nem tempo de pensar se seus raciocínios<br />

tinham influenciado, procurou alívio imediato, mas tinha<br />

dificuldades para alcançar o ponto que coçava. Encontrou um<br />

arbusto e rapidamente arrancou um de seus galhos rugosos. A<br />

satisfação foi grande, naquele instante nenhuma resposta para<br />

a vida poderia ser mais verdadeira do que aquela. Imaginou<br />

seu personagem fictício saciando de uma só vez todos seus<br />

instintos carnais, e depois deitado, com os olhos refestelados<br />

de tudo aquilo que seu corpo pedia. Olhos que estavam<br />

mortos para as perguntas, mas carregados de respostas. Era<br />

bem verdade que essas respostas se esvairiam com a rapidez<br />

de um intestino.<br />

Imaginou que suas costas deveriam estar vermelhas de<br />

tanto que coçou. No galho de arbustos que usou havia flores,<br />

não conseguia distinguir suas cores, mas pelos contrastes<br />

imaginava que fossem vermelhas. Cheirou-as e o odor era<br />

adocicado, mentalmente uniu o cheiro com o vermelho que<br />

havia imaginado, na verdade aumentou bastante o brilho da<br />

cor que acreditava a verdadeira. Começou a criar uma imagem<br />

mental que combinasse o melhor das duas sensações. dessa<br />

vez deixou em paz seu personagem fictício, e utilizou-se como<br />

cobaia nesse caminho mental.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Recriou-se, e também a todo o cenário em volta, modificou<br />

cores e sensações, o verde escuro da vegetação passou a ser um<br />

rosa-choque com detalhes em azul-marinho. O escuro da noite<br />

não faria diferença, pois seus olhos enxergariam iluminados<br />

pelo brilho individual que exalaria de todas as coisas. O ar seria<br />

mais compacto que o normal, e o vento teria a propriedade de<br />

massagear o corpo, como se fosse mãos invisíveis que flutuassem<br />

por toda parte. Mas essa consistência maior não atrapalharia a<br />

mobilidade, pelo contrário, ele poderia utilizar-se dessa maior<br />

densidade para subir escadas inexistentes e saltar longe sem<br />

medo de ferir-se com as quedas. Nesse mundo brilhante seus<br />

novos braços estavam completamente curados. As sensações<br />

duvidosas e as subidas tinham sido extintas. Ele percorreria esse<br />

novo mundo, usufruindo de um paraíso que havia sido criado<br />

através do conhecimento adquirido no caminho real. Todas as<br />

dificuldades foram extraídas e os prazeres intensificados.<br />

Mas o mundo real reclamava atenção, sua consciência<br />

repetia a frase “você está jogando sua vida fora”, ele abandonou<br />

a estrada colorida e continuou caminhando no seu velho caminho<br />

noturno, analisando as cobranças que seu inconsciente lhe fazia.<br />

O mundo do vilarejo exigia que sua cabeça, seus braços e seu<br />

sexo exercessem funções práticas. Como havia abandonado sua<br />

cidade, justamente porque não queria participar delas, rejeitava,<br />

a princípio, essas tarefas. Mas por outro lado sentia ter um<br />

compromisso com o mundo verdadeiro, e seus braços, cabeça<br />

e sexo, pertenciam a ele. Não poderia simplesmente abandonar<br />

tudo e viver mergulhado num mundo de cores artificiais, onde<br />

perigos e dificuldades tinham sido simplesmente arrancados.<br />

Isso seria como sempre comer frutas sem sementes, facilita<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

não ter de tirá-las fora, mas após algum tempo as frutas não<br />

existiriam mais. O detalhe não poderia ser mais importante do<br />

que o principal.<br />

As cores e os brilhos saídos de sua imaginação poderiam<br />

servir-lhe de alívio em alguns momentos, mas seu caminho<br />

teria de continuar a ser trilhado em meio às dificuldades e<br />

dúvidas. Suspirou fundo como quem descobre que o toque<br />

do telefone não traz o telefonema esperado. Ninguém poderia<br />

ajudá-lo a não ser ele mesmo. Enxergou seu personagem fictício<br />

em um dia de imenso calor, suando, sentado num banco da<br />

praça central do vilarejo, o sol o castigava, ele tirava do bolso<br />

um lenço e enxugava o rosto. Por sua nuca, axilas e dobras<br />

dos joelhos, escorria suor. Ele estava derretendo-se e com ele<br />

derretiam-se também as cores brilhantes, o ar compacto e a<br />

ausência de obstáculos que havia imaginado. Sobrava o homem<br />

seco que estava se tornando, sem suor nem lágrimas, esquecido<br />

das ilusões, porém secretamente ainda escondendo algumas,<br />

um ser dúbio construído de coragem e medo. Criatura feita sob<br />

medida para bifurcações.<br />

Alguém como ele não poderia fazer nada além de<br />

prosseguir, seria com seus passos mata adentro, que iria<br />

criando a utilidade reclamada pelas partes de seu corpo. As<br />

missões rígidas do vilarejo tinham ficado definitivamente<br />

para trás, a linha de retorno já havia sido ultrapassada.<br />

Qualquer arrependimento, de agora em diante, não faria<br />

o menor sentido. Esse peso não lhe incomodava mais, mas<br />

a vida arrumava maneiras de sempre substituir os espaços<br />

vagos, e ele não se sentia mais leve.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Precisava criar sua utilidade, era esse o fardo que lhe pesava.<br />

Se o que buscava era um caminho alternativo, sabia que já o<br />

havia encontrado, mas perguntava-se: “e agora, o que faço<br />

com ele?”. Sua fase contemplativa havia ficado para trás, agora<br />

colocava toda sua lógica para trabalhar, tentando encontrar<br />

uma maneira de existir, no meio da escolha que tinha feito.<br />

Lembrou-se das pêras que havia comido, apenas sua subsistência<br />

física não saciaria seu desejo de utilidade, mas seria o primeiro<br />

passo inevitável a ser dado. O riacho talvez lhe fornecesse<br />

peixes, as árvores frutas... mas sua mente prática saltava para<br />

frente não conseguindo se contentar com um degrau de cada<br />

vez... satisfeito o corpo, o que viria depois?<br />

Não conseguia responder a essa pergunta, primeiro tinha<br />

sérias dúvidas de que conseguiria realmente ser auto-suficiente<br />

no meio da mata, mas caso conseguisse, não queria que a<br />

utilidade de seu corpo fosse destinada apenas para o suprimento<br />

de suas necessidades básicas. Se fosse para isso preferiria nunca<br />

ter saído do vilarejo. Sentiu um nó na garganta mas procurou<br />

lutar por seu equilíbrio emocional, conseguiu controlar-se<br />

desviando o pensamento para perguntas quase sem respostas...<br />

tempo, vida... distraiu-se e acalmou-se.<br />

Sentou-se na beira do caminho, o riacho seguia paralelo.<br />

decepcionado, lembrou-se da profundidade de suas águas.<br />

Águas tão rasas não poderiam dar peixes que matassem a<br />

fome. Olhou ao redor e não havia, pelos contornos, nada<br />

que parecesse uma árvore frutífera. Se sua subsistência fosse<br />

difícil, com poucas e escondidas fontes de alimentos, daí talvez<br />

ele tivesse de usar toda sua inteligência e criatividade para<br />

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116<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

conseguir se alimentar. Cada descoberta seria uma verdadeira<br />

conquista, e talvez isso o ocupasse e não deixasse espaços vagos<br />

para que surgissem necessidades que não fossem as básicas.<br />

O nó na garganta voltou a doer só que dessa vez mais forte.<br />

Sentiu que nesse caso pouco o diferenciaria de um animal,<br />

com o agravante de que seria um animal que não deveria estar<br />

ali. Lembrou-se da formiga longe do formigueiro e a colocou<br />

caminhando confusa por uma geleira.<br />

Não sentia fome e sabia que as luzes do dia poderiam abrirlhe<br />

novas perspectivas. decidiu não sofrer por antecipação.<br />

Continuou a caminhar, os passos o ajudavam a destruir o nó na<br />

garganta impulsionando o círculo de idéias, e logo sua possível<br />

vida de formiga gelada havia ficado para trás. Cada passo dado<br />

girava a roda da vida trazendo novas idéias, esperanças e medos.<br />

As camadas se acumulavam umas sobre as outras, as feridas que<br />

ardiam em sua alma viravam entulhos sobre o qual as alegrias<br />

do instante eram erigidas. As tristezas esperavam que as alegrias<br />

secassem para pisá-las e ganhar sua vez de existir. Ele tinha tomado<br />

consciência desse revezamento, e nada seria tão absolutamente<br />

brilhante ou escuro quanto no início do percurso.<br />

Alguns pedriscos começaram a aparecer no caminho, teve de<br />

andar mais devagar. Não era nada que impedisse a continuação,<br />

mas foram suficientes para lembrar-lhe que havia decidido jogar<br />

fora seus chinelos de pano mesmo sabendo que as pedras poderiam<br />

voltar. Percebeu que não tinha direito a arrependimentos.<br />

As pedrinhas eram arredondadas e incomodavam seus pés<br />

sem feri-los. Caminhou um bom trecho e elas não evoluíram


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

para pedras maiores. As pedras arredondadas lembravam as do<br />

riacho. O caminho talvez tivesse um palmo de profundidade<br />

em relação às margens. Talvez caminhasse sobre um riacho<br />

seco, um afluente morto do vizinho que corria paralelo. Essa<br />

idéia despertou-lhe várias outras, tentou imaginar-se um peixe<br />

e misturar sua visão de mundo com a do animal, a brincadeira<br />

não durou muito, pois ele não sabia ao certo como enxergava<br />

o mundo. depois, a visão do que imaginava ser um riacho<br />

seco, o fez se lembrar de fósseis de animais e plantas que havia<br />

visto no tempo de infância. Essa recordação trouxe consigo os<br />

inevitáveis mergulhos no mistério-tempo.<br />

Imaginava o grande sanduíche a que tudo será submetido<br />

até que seus contornos fiquem impressos em rocha. Perguntouse<br />

se talvez o mais importante não seria existir no mundo<br />

concreto, do que no abstrato. Quanto tempo havia durado<br />

a mais antiga demonstração abstrata de vida, talvez existam<br />

objetos de arte, ou algo que lembre ela, com trinta mil anos,<br />

digamos que eles resistam mais vinte mil, entretanto a vida<br />

concreta impressa em pedra, os dedos do lagarto que deixavam<br />

ver como ele arrastou-se pela terra, estavam há muitos milhões<br />

de anos perpetuando sua existência. Continuou o raciocínio<br />

que lhe pedia para que tentasse enxergar a vida e o mundo da<br />

maneira mais ampla possível, com olhos que, desamarrados<br />

do tempo, enxergassem muito além da história... o mundo em<br />

que vivemos nos diz “nossa essência lenta tem de ser lapidada,<br />

o refinamento da inteligência e dos sentimentos é o caminho<br />

da evolução”, mas talvez a evolução seja cíclica e não linear e<br />

se, após a Idade Média aconteceu o Renascimento, talvez no<br />

futuro voltemos para as matas. E o espírito, que levou séculos<br />

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118<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

para produzir poetas, talvez reagrupe-se em algo mais coletivo<br />

e volte a manifestar-se através do grito de uma fera na floresta.<br />

Olhou então para a lua, ela continuava brilhante, mas<br />

alguma coisa nela parecia ter mudado, não conseguia identificar<br />

o que era. A lua não era suficiente, precisaria imaginar o local<br />

mais distante do universo, seria lá que seus olhos se sentariam<br />

para poder observar com isenção, e sem o incômodo do<br />

tempo, a aventura humana. Imaginou-se reparando na eterna<br />

noite ganhando luzes, nos violentos eventos astronômicos<br />

que deram forma à Terra, em seu monótono período inicial,<br />

cheia de caldos e gases, nas primeiras moléculas, onde mais<br />

claramente pôde começar a reparar nos ciclos. A primeira de<br />

todas as mortes, os ciclos existindo dentro de outros maiores, e<br />

manifestando-se de formas cada vez mais criativas.<br />

A vida ganhando sofisticação na aparência, mas continuando<br />

a repetir os mesmos padrões que já existiam no primeiro ser<br />

vivo. O tardio surgimento das civilizações, a linguagem, a arte<br />

e a tecnologia, nessa parte seus olhos distantes começaram a<br />

prestar mais atenção porque seu cérebro pedia confirmações e<br />

desmentidos. As células e os reinos eram idênticos, o homem e<br />

as plantas, as focas e as pedras, para quem enxergava de longe, as<br />

ilusões desapareciam e as semelhanças se tornavam evidentes.<br />

Não houve surpresas, todos os grandes impérios desmoronaram<br />

exatamente como acontecia com os castelinhos de<br />

madeira que as crianças montavam. As grandes estátuas<br />

enferrujavam e desapareciam, e normalmente quanto maior<br />

e mais eterna julgava-se uma civilização ou uma corrente de


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

pensamento, mais depressa ela passava a ser ridicularizada.<br />

O pensamento humano obedecia à mesma lei cíclica que<br />

comandava todo o resto.<br />

decidiu trazer seus olhos de volta. Seu peito havia se<br />

enchido de uma doce sensação de que tudo era inevitável. Ao<br />

mesmo tempo, lembrou-se de seus compatriotas de vilarejo e<br />

de suas visões a respeito do mundo e da vida. Não pôde evitar<br />

que a soberba o invadisse. Mas lutou contra ela, os castelos<br />

desmoronados o ajudaram, ele também participava dos ciclos,<br />

todos participavam. Não queria ser ridículo, era vaidoso.<br />

Acalmou-se e voltou a olhar para o caminho, procurou<br />

esquecer-se do riacho morto e fazer com que cada passo seu<br />

fosse apenas um passo.<br />

Aos poucos seus olhos foram se fixando exatamente dentro<br />

de seus globos oculares, e seu pensamento ocupando-se apenas<br />

dos movimentos de seu corpo. Tornou-se uma máquina mansa<br />

de caminhar. Seus raciocínios práticos o faziam fluir. deslizou<br />

pelo caminho até que uma grande flor o fez parar. Ela pendia<br />

de um arbusto e balançava com a brisa. Era enorme, ele nunca<br />

tinha visto uma flor daquele tamanho, aproximou-se dela, seu<br />

raciocínio voltou a ser abstrato. Olhou-a e apalpou-a, tomava<br />

cuidado para não estragá-la. Ela balançava muito próxima ao<br />

chão enlameado, porém sem tocá-lo.<br />

As idéias começaram a chegar de todos os lados, essa flor<br />

havia brotado da terra, e por alguns instantes seria bela antes<br />

de voltar para ela, misturar-se e renascer sob outra forma, o<br />

tempo e a morte mostraram suas caras dentro de seu raciocínio.<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Procurou evitar que qualquer idéia dominasse integralmente<br />

seus pensamentos, defendeu-se espalhando sua atenção por<br />

diversos compartimentos.<br />

Sentiu o cheiro de manhã que exalava da flor. Os símbolos<br />

conseguiram que seu cérebro refletisse sobre eles. Os objetos<br />

seriam concentrações simbólicas de realidades desconhecidas.<br />

O que ele tinha na sua frente era a essência de uma força pura da<br />

natureza. A representação daquilo que não possui condensações<br />

mortas de energia não circulante.<br />

Sentiu-se invadido por uma sensação de devoção, respeitava<br />

aquele pedaço de natureza perfeita. Começou a tentar<br />

identificar em si mesmo onde estavam os bloqueios que o<br />

separavam daquela perfeição. Eram tantas as possibilidades de<br />

começo e fim, que decidiu esquecer-se de si e pensar na grande<br />

flor do caminho. Foi sendo cada vez mais pressionado pelo<br />

peso do perfeito. Estava a um passo de ceder e entregar-se à<br />

devoção.<br />

Abriu os olhos e as coisas se modificaram. Ele, que até então<br />

não havia pensado na cor da grande flor, agora começava a<br />

enxergá-la. A noite começava a morrer e lentamente todas as<br />

cores nasciam. Os símbolos começavam por um amarelo vivo<br />

dos estames, e se expandiam por um vermelho sangue que<br />

terminava num roxo escuro, ainda bastante encoberto pelas<br />

sombras da noite.<br />

Sua devoção abandonou as fronteiras da flor e espalhouse<br />

por todo seu campo de visão. As estrelas permaneciam


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

acesas, mas já tinham diminuído em número. O verde<br />

começava a ganhar força e pintar a mata. Sabia que de agora<br />

em diante o processo seria rápido e a cada instante as luzes se<br />

modificariam.<br />

A contemplação do símbolo mágico de alguns instantes<br />

atrás, havia se transformado numa seqüência de surpresas.<br />

O instante era composto de vários saltos de consciência que<br />

traziam novidades. Mas esses momentos móveis quebravam<br />

suas certezas, arrastando-o para o desconhecido, estava em um<br />

território novo e mutável. A mudança vinha acompanhada da<br />

figura sombria do medo. Como ele vivia instantes fronteiriços<br />

entre luzes e sombras, todas suas certezas pareciam que<br />

também atravessavam marcos e perdiam forças. Sentiu no<br />

fundo do peito uma angústia que inchava. Observava o azul<br />

escuro perdendo sua cor, as mudanças que nunca deixaram de<br />

acontecer, mas que estiveram encobertas pela capa da noite,<br />

agora se mostravam. Talvez quando o dia clareasse de vez, as<br />

mudanças voltassem a ser encobertas, dessa vez pelas luzes.<br />

Essa situação de nascimento e morte o incomodava e<br />

amolecia as estruturas emocionais que ele havia conse<strong>guido</strong><br />

sedimentar ao longo do percurso. Voltou a imaginar<br />

seu personagem fictício, agora sentado em um banco da<br />

praça principal do vilarejo. Para ele também o dia estava<br />

amanhecendo. As luzes que o envolviam estavam confusas.<br />

Chovia forte, mas isso lhe parecia indiferente. Seu olhar<br />

parado num ponto indicava que as poucas certezas que tinha<br />

haviam evaporado. O que existia agora era o vazio e o medo.<br />

As luzes estranhas não deixavam claro se era hora de dormir<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

ou de ficar acordado. Pareciam não saber a resposta, de dia era<br />

vida, à noite morte, mas aquilo era um estado intermediário<br />

com o pior dos dois mundos. A chuva torrencial era um detalhe<br />

insignificante que não o perturbava.<br />

Abandonou aquele homem encharcado para refletir sobre<br />

sua própria condição, aquele mundo mal iluminado e mal<br />

resolvido, talvez fosse o que de mais próximo exista de alguma<br />

eventual verdade absoluta. A escuridão que a tudo encobre e<br />

as luzes que tudo revelam, seriam instrumentos da ilusão, que<br />

construíam projeções mentais de objetos escuros, ou então<br />

diriam que os objetos claros são a verdade última das coisas.<br />

Entretanto seria nesse mundo nebuloso e sem certezas que se<br />

esconderia o ferro e o concreto que dão estrutura à vida.<br />

Nessas flores amarelo-escuras e que a cada instante<br />

ficavam mais amarelas, estava escondido um grande mistério.<br />

O segredo do exato meio-termo, morte e vida perfeitamente<br />

sincronizadas escorrendo seus instantes de uma para outra.<br />

Batalhas que alternavam pontualmente vitórias e derrotas,<br />

e cujos participantes possuíam a sabedoria de jamais querer<br />

conquistar uma vitória após a outra. desejou saber se era<br />

possível alguém viver dessa maneira. Lembrando-se de seu<br />

personagem fictício, alegrou-se porque pelo menos não estava<br />

chovendo. Ao contrário de seu amigo inventado, achava que a<br />

chuva enfraqueceria ainda mais suas certezas.<br />

Agora o caminho era verde e cheio de flores. As cores<br />

lutavam contra a aurora. A trilha de barro ainda permanecia<br />

fiel à escuridão, mas sabia que aquilo era extremamente


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

provisório. Reparou numa árvore carregada de frutinhas<br />

vermelhas, estava em um estado de torpor tão grande que nem<br />

ligou a idéia das frutas à da alimentação, e simplesmente seguiu<br />

reto. Caminhava passos que pareciam indiferentes, na verdade<br />

eram metade contemplativos e metade reflexivos. Sentia-se um<br />

servidor de dois senhores, mas o resultado de seu trabalho, no<br />

fundo, acabava servindo somente a um terceiro, que era inimigo<br />

dos dois primeiros.<br />

Procurou lembrar-se do quão provisório era esse estado<br />

de luzes em que se encontrava. Sabia, de qualquer forma, que<br />

estava contaminado com algumas seqüelas advindas desse<br />

estado intermediário, e que o acompanhariam mesmo quando<br />

o sol estivesse a pino. decidiu então enfiar o dedo na ferida<br />

e levantar o tapete para retirar a sujeira debaixo: o verdadeiro<br />

motivo para temer aquele período intermediário de luzes, era<br />

que elas o conduziam para perto da idéia da morte. Percebeu,<br />

então, que escalaria muitos degraus em seu mundo espiritual se<br />

esquecesse dos temores que viviam apodrecidos no fundo de<br />

seu ser, e aceitasse o fato de que tudo e todos morrerão. Sabia<br />

que limpar e secar essas feridas era tarefa árdua que lhe custaria<br />

muitas lágrimas.<br />

Aproximou-se de uma pequena flor vermelha ainda encoberta<br />

pela escuridão. Observou quando o primeiro fraco raio de luz<br />

revelou um pouco de sua cor. A florzinha ficava na parte debaixo<br />

de um arbusto quase tocando o chão. Escolheu-a justamente por<br />

sua insignificância. Observou-a recebendo cada vez um pouco<br />

mais de luz e tendo sua beleza revelada. A fragilidade da flor<br />

parecia tocar-lhe, e ele engolia a seco enquanto observava-a.<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Aos poucos os pequenos detalhes foram se revelando, as<br />

pétalas eram mais escuras no centro e mais claras nas bordas.<br />

Os filamentos que davam estrutura à flor eram verde-claros e os<br />

estames que ficavam no centro, azuis. A pequena flor era uma<br />

obra-prima de combinação de cores e formas. O insignificante<br />

mostrava sua majestade, e ele logo percebeu que havia escolhido<br />

uma flor que achava que não era bela, justamente para evitar<br />

encarar de frente a grande destruidora de todas as belezas,<br />

a morte. Queria fingir para si mesmo que não estava mais<br />

varrendo a sujeira para debaixo do tapete. Inconscientemente<br />

desejava acreditar que quem morre é sempre feio, e que é até um<br />

alívio que se vá, porque pára de enfear o mundo. Mas morremos<br />

todos os dias, e o falecimento em si é só mais um detalhe da<br />

grande morte que ocorre em todos os lugares, o tempo todo.<br />

Queria, de vez, se tornar um adulto, e sabia que nunca<br />

conseguiria se não superasse essa barreira. Emendou morte<br />

com nascimento destruindo as duas palavras e criando a<br />

mudança. Espalhou mentalmente a mudança por todos os<br />

lugares, tempos e circunstâncias que pôde. Enfiou-a dentro das<br />

células e dos sentimentos, dentro da memória, das crenças e<br />

das árvores. Não deixou os espelhos de fora, e nem a própria<br />

mudança, que nunca cessaria de assumir novas formas.<br />

A luz avançou revelando ainda mais detalhes da pequena<br />

flor, que não parava de surpreender por sua beleza. Rapidamente<br />

atravessou-lhe a vontade de arrancá-la e fechar os olhos até que<br />

o sol chegasse, iluminando tudo e estabelecendo seu jogo fácil<br />

de luzes e sombras. Rechaçou essa tentação, iria acompanhar<br />

todo o processo de morte da noite e da revelação de uma grande


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

beleza efêmera. Mas um detalhe revelou-se, bem no centro da<br />

flor havia um pequeno círculo verde-claro que dava um detalhe<br />

de refinamento na já bela composição de cores.<br />

Aos poucos foi se deixando ir, aceitando os meios tons e<br />

suas transitoriedades. As luzes agora já molhavam suavemente<br />

a terra preta, que começava a mostrar o marrom de seus torrões.<br />

O verde da vegetação ainda era escuro, mas já havia abandonado<br />

por completo os tons negros de alguns instantes atrás. Ele<br />

percebeu que não poderia perder o foco e continuou aceitando<br />

o inevitável, reparando nos detalhes sutis das sombras, nas<br />

novas cores que se formavam e naquelas que desapareciam.<br />

As cores e as coisas passam, ele sentiu essa idéia. As mudanças<br />

pintavam o barro com as primeiras gotas de dourado. O céu<br />

mostrava cada vez menos estrelas, a lua estava próxima de ser<br />

engolida pelo horizonte. As flores estavam por toda parte.<br />

Será que elas não haviam estado sempre a seu lado, mas apenas<br />

agora conseguia enxergá-las? Os roxos, vermelhos e azuis<br />

começaram a pontilhar o verde da mata. Esse aparecimento<br />

de novos tons, antes inexistentes, colocou-o em estado de<br />

contemplação. Era uma criança que observava as formas e<br />

cores em um caleidoscópio. Nada mais existia, nem ele mesmo.<br />

Os momentos escoavam mudando as combinações de cores e<br />

sombras, os escuros perdiam força, as luzes ganhavam espaço.<br />

Os pequenos detalhes das folhas das árvores e das pedras<br />

puxaram-no para fora de seu repouso contemplativo. O mundo<br />

real chamava-o. Estava acordando de uma noite de sono, mas<br />

quis se dar ao luxo de permanecer mais alguns instantes deitado<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

antes de se levantar. Continuou observando a mudança, como<br />

acontece o nascimento de um dia, como é o caminho que a luz<br />

percorre para iluminar a última folha escondida de um arbusto.<br />

do estado contemplativo foi conduzido a algumas reflexões<br />

sobre o que havia sentido, na verdade eram sensações que<br />

procurava cristalizar em pensamento: as luzes que destroem<br />

a escuridão são forças vitais que se manifestam de muitas<br />

maneiras, de formas mais ou menos aparentes. uma luz não<br />

existe se tudo o que existir forem luzes. E para que uma nasça<br />

outra deve morrer e deixar um espaço escuro. Esse grande<br />

ciclo vital move o universo. Somos ao mesmo tempo causa e<br />

conseqüência desse grande processo de formação de sombras.<br />

Numa eventual viagem para nosso interior mais profundo,<br />

repararemos que o esqueleto básico desse sistema sempre<br />

se repetirá. Aconteceria o mesmo, se ao invés de viajarmos<br />

para dentro, saíssemos do sistema solar e chegássemos à exata<br />

fronteira entre a existência e o nada: repetição de padrões.<br />

Enquanto ele raciocinava sobre se o esqueleto de luzes<br />

também aconteceria além dos limites da existência, foi<br />

interrompido por um acontecimento que capturou toda sua<br />

atenção. A noite realmente agonizava, os primeiros raios de<br />

sol deixavam grandes manchas amarelas sobre a lama marrom.<br />

O verde escuro era perfurado por luzes que atravessavam<br />

as primeiras camadas de folhas. As flores revelavam suas<br />

cores que se misturavam entre si e com o amarelo dos raios<br />

de sol da manhã. Mas não foi a exuberância de misturas<br />

e tonalidades que chamou sua atenção, foi um detalhe. A<br />

natureza oferecia buquês multicolores de pequenas e grandes


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

flores emolduradas pelo verde da mata, mas foi num canto<br />

esquecido que descobriu uma flor de forma e tamanho<br />

vulgares, e totalmente branca. A ausência de cor, ou a<br />

presença de todas elas ao mesmo tempo, proporcionaramlhe<br />

a possibilidade de enxergar claramente o percurso da luz,<br />

que gradualmente cobria as pétalas. Percebeu que ao mesmo<br />

tempo em que a luz revelava verdades escondidas pela noite,<br />

contava mentiras com os reflexos que trazia. decidiu não<br />

esquentar a cabeça com essa descoberta, procurando sentir<br />

o instante sem tentar decifrá-lo.<br />

Vida e morte estavam a seu lado, mas isso não o<br />

incomodou. Aquele instante e lugar eram onde deveria estar,<br />

e nada poderia perturbá-lo naqueles momentos de percepção.<br />

As luzes avançavam de cima para baixo, as pétalas superiores<br />

estavam iluminadas enquanto as de baixo ainda mantinham<br />

a pureza dos meios-tons originados pela noite. O miolo da<br />

flor foi sendo iluminado, mas não revelou novos tons. Ela<br />

continuava sendo a perfeita imagem da castidade. O tempo<br />

molhava as pétalas de brilhos. O leite surgiu como uma imagem<br />

associada ao que sentia. Engoliu a seco procurando distrairse<br />

de suas observações. Queria abrir-se para aquele instante,<br />

qualquer idéia restringiria seu mergulho no momento vivo<br />

em que estava envolto.<br />

Conseguiu bloquear os raciocínios que tentavam conquistar<br />

sua atenção. A flor já estava completamente iluminada, apenas<br />

uma pétala ainda mergulhava na penumbra. O dia vencia a<br />

batalha. Seu peito começou a mover-se. As emoções corriam de<br />

um lado para o outro. Lembrou-se da grande sensação amorosa<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

do início da caminhada. Procurou anular suas memórias para<br />

que elas não atraíssem raciocínios que bloqueariam o que ele<br />

começava a sentir.<br />

Seu peito ganhou olhos que enxergaram um grande brilho,<br />

que começava dentro de si e iluminava tudo ao redor. Ele<br />

também estava raiando. A grande noite das vísceras havia<br />

ficado para trás. Seus olhos da face percebiam que tudo ao<br />

seu redor também individualmente raiava e tornava-se fonte<br />

de luz. O mundo pareceu-lhe completamente encantado, as<br />

individualidades se bastavam em suas suficiências, e devido<br />

a essa mesma razão, perdiam suas necessidades de continuar<br />

sendo individuais.<br />

As luzes pareciam se cumprimentar exibindo suas<br />

exuberâncias. As plantas de folhas maiores começaram a ser<br />

envolvidas por halos. Cada objeto era fonte, mas também<br />

anteparo para as luzes emitidas por outros. Ele sentiu-se assim,<br />

de seu interior jorravam luzes, mas sua própria presença na<br />

terra seria uma eterna fábrica de sombras. Sua condição era<br />

a contradição. desviou-se do raciocínio fatalista, seus olhos<br />

queriam nutrir-se da beleza que acontecia. Então as efêmeras<br />

cores e sombras dançaram para ele. Se pudesse enxergar-se veria<br />

que nunca seus olhos tinham brilhado tanto. Eles também<br />

mudavam de cor, afetados pelo jogo de luzes e sombras.<br />

Cada vez mais fortes, os raios atravessavam os arbustos mais<br />

fechados. O chão estava amarelado de luzes e a pequena faixa<br />

escura ao lado dos arbustos, clareava-se aos poucos. Os pássaros<br />

cantavam e voavam. A vida renascia e seu peito continuava a


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

se mover, seus olhos internos pareciam mais acostumados à<br />

luminosidade. O medo inicial, quando a noite começou a<br />

morrer, agonizava. Era apenas uma recordação distante.<br />

Os movimentos expandiam-se por todo seu corpo. A vida<br />

nascente inflava de sangue pulsante todas suas veias, e pelo o<br />

que percebia, deveria fazer o mesmo com toda natureza. Sua<br />

percepção também parecia mais aguçada, reparava nos odores<br />

da floresta, distinguia, à distância, suaves graduações de verde.<br />

A ele parecia que a natureza era um grande ente único que<br />

estava se comunicando. Sua linguagem muda era percebida<br />

por todos seus sentidos, e sua própria existência já era uma<br />

resposta às perguntas feitas pela natureza. A comunicação<br />

acontecia constantemente, e só seria interrompida quando ele<br />

interpusesse barreiras. Sabia ser seu cérebro sua grande fábrica<br />

de obstáculos.<br />

Relaxou o raciocínio, queria escutar o que a vida lhe dizia<br />

através da natureza. A noite estava condenada, escondia-se<br />

medrosa em cantos e atrás de algumas folhas escuras. Apesar<br />

do sol já ter invadido quase tudo, seus raios ainda eram suaves,<br />

bons condutores para as mensagens sutis da natureza.<br />

Ele deu alguns passos lentos, reparou nos detalhes escondidos<br />

pela noite. Não queria descobrir segredos, buscava apenas<br />

aumentar sua abertura contemplativa. Seus passos conduziramno<br />

à borda do riacho, a luz refletia nas águas formando sobre<br />

elas uma suave camada amarelada. Podia enxergar as pedras<br />

cobertas de limo verde. Seus olhos não enxergavam nenhum<br />

peixe, mas seu coração não se preocupou com isso. uma de suas<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

mãos parecia envolvida pelo mesmo halo de luz que circundava<br />

as plantas e as águas. O suave murmúrio afastou qualquer<br />

idéia intrusa, as barreiras de comunicação desapareceram, ele<br />

foi sentindo a natureza ao seu redor, dentro dele as fronteiras<br />

foram sendo apagadas. A grande comunicação era baseada<br />

exclusivamente em sensações, mas se fosse possível sintetizar<br />

em palavras o que ele sentia, tudo se resumiria em “aceite-me”.<br />

Enquanto as luzes dançavam sobre as águas, passarinhos<br />

banhavam-se nas bordas. uma grande flor cor-de-rosa caiu na<br />

corrente e foi conduzida para longe. Seus olhos acompanharamna<br />

e levaram-no novamente ao mundo das idéias. A comunicação<br />

com a natureza encerrou-se. O dia nasceu.<br />

As únicas sombras que existiam agora eram as causadas<br />

pelos próprios objetos que desviavam a luz do sol. A noite era<br />

uma recordação recente que já parecia envelhecida. Olhou para<br />

cima e pela primeira vez viu o céu claro, sem lua nem estrelas.<br />

Seus medos tinham morrido, seus pulmões estavam cheios de<br />

ar. Olhou ao redor e parecia que pela primeira vez enxergava<br />

a natureza. Tudo o que vivera antes de iniciar a caminhada<br />

parecia um distante e nebuloso passado.<br />

Cada detalhe o surpreendia, estava renascendo junto com<br />

o dia e seus olhos eram inocentes, estavam abertos para a<br />

aceitação. As folhas caídas, os restos de gravetos, as pedras, a<br />

lama, deglutia tudo sem preconceitos. As águas que carregavam<br />

um graveto para longe, conduziram seu raciocínio para o<br />

mundo prático. Talvez ele tivesse dormido uma meia hora,<br />

não mais que isso, entretanto não tinha sono algum. Também


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

não se sentia cansado. Se quisesse poderia continuar andando.<br />

decidiu esquecer-se desse fato e não se preocupar com o sono<br />

perdido. Percebeu a importância dos instantes que vivia. As<br />

coisas estavam acontecendo ao seu redor, se o sono não vinha,<br />

por quê ele iria gastar sua atenção com algo que naquele<br />

instante não era real.<br />

Pensou em se levantar mas logo desistiu. Carregava dentro<br />

de si um peso enorme, se caminhasse sentir-se-ia pesado.<br />

Sentado, deglutiria o espetáculo de vida que acontecia<br />

dentro e fora de seu corpo. Brotar e explodir, talvez fossem<br />

os verbos mais adequados para descrever a maneira como a<br />

vida se manifestava. Seus sentidos não conseguiam assimilar<br />

as informações e sensações que vinham de fora, e pesavam em<br />

seu estômago. Mas percebeu que a digestão era uma questão de<br />

tempo e que apenas ela lhe interessava. Mais nada.<br />

As luzes desenhavam formas efêmeras sobre as águas, as<br />

árvores livravam-se de algumas folhas mortas, que ganhavam<br />

movimento impulsionadas pela correnteza. Perguntou-se se<br />

por alguns instantes elas não estariam retornando à vida. Seus<br />

sentidos foram aos poucos se acostumando ao novo ambiente.<br />

Suas dores simbólicas foram diminuindo e a digestão sensorial<br />

sendo efetuada. Reparou nos pequenos detalhes, nas ranhuras<br />

das pedras, nas pequenas poças d’água acumuladas nas margens<br />

do riacho, no vôo de insetos em bando sobre um ponto<br />

específico das águas, nos desenhos abstratos que as cascas das<br />

árvores formavam, na diversidade de tipos e tamanhos de<br />

plantas, nas tonalidades de coloração das folhas, todas essas<br />

informações compunham uma grande esfera de pensamentos<br />

131


132<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

que se formava, e na qual estava imerso. Nenhuma delas tinha<br />

mais importância do que qualquer das outras. Sentia-se dentro<br />

de uma grande bola de natureza, e ela havia se transferido para<br />

dentro de sua cabeça, formando uma bola de idéias.<br />

Sabia que essas duas bolas isoladas poderiam arrebentar<br />

suas fronteiras formando uma única. E o resultado disso seria<br />

uma grande sensação de união, epifania, revelação, parecida<br />

com a que tinha passado quando tentara agarrar as estrelas.<br />

Mas não era isso que queria, já havia provado daquela sensação<br />

maravilhosa, mas agora queria algo novo, desejava manter seus<br />

pés no chão. Não queria dissolver seu ego, pretendia utilizá-lo<br />

para apreciar os sabores que o momento lhe proporcionava.<br />

Precisaria de um cérebro racional, que fosse deglutindo e<br />

formando conceitos. Sabia que, se se deixasse levar por um<br />

êxtase de sentidos, acabaria deglutindo muito mais do que se<br />

decidisse percorrer o caminho racional. Mas era um homem<br />

cheio de limites e fronteiras e teria de viver dentro de suas<br />

restrições.<br />

Escolher um, quando se tem a possibilidade de optar por<br />

mil, a princípio foi uma decisão difícil. Mas, aos poucos, foi<br />

encontrando cada vez mais sabedoria nela. Aquilo era um riacho<br />

envolto por natureza e ele era um homem nu que contemplava<br />

essa natureza. Nada mais precisaria ser dito. A observação<br />

desvendaria os raciocínios. Procurou não se deixar conduzir<br />

pelas emoções, que vinham amarradas à beleza e à harmonia.<br />

Olhava tudo de um ponto de vista quase isolado, ele mesmo era<br />

o único ponto de união entre seu raciocínio e as idéias.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Por um bom tempo apenas observou tudo sem tentar fazer<br />

qualquer juízo de valores. Engolia sem se preocupar com a fome<br />

ou a digestão. Mas tudo o que engolimos sempre gera uma<br />

conseqüência. Aos poucos uma idéia-dúvida foi se formando,<br />

começou a perguntar-se, se tudo que o envolvia marchava<br />

ou não para algum objetivo final. Se o objetivo não seria a<br />

existência em si, ou então a auto-destruição, que criaria espaço<br />

para o surgimento de sucessores, que também esperariam por<br />

seus finais para gerar espaços para outros...<br />

A pergunta estava em processo de formação, e por isso<br />

mesmo era longa e inexata... haveria alguma espécie de<br />

consciência coletiva dessa força natural, e se houvesse, teria ela<br />

noção de seu próprio destino... caso possuísse essa noção, então<br />

a natureza seria superior ao homem, que de forma alguma a<br />

possui... mas talvez o homem fosse apenas uma folha seca ou<br />

um graveto caído, e essa noção do próprio destino só existiria<br />

para o conjunto de todas as formas naturais, da mesma maneira<br />

que só existiria para o conjunto de toda a humanidade... então<br />

existia a possibilidade de uma grande e escondida capacidade<br />

humana de perceber e descobrir o próprio destino... e tendo<br />

percebido-o, continuar vivendo, aceitando-o fosse qual fosse...<br />

mas onde estaria essa capacidade, escondida dentro do branco<br />

dos olhos de cada um? A pergunta começou a solidificar-se.<br />

E caso essa capacidade coletiva realmente existisse, e<br />

pudesse de alguma forma transferir-se do coletivo para o<br />

individual, deixando que cada homem conseguisse enxergar<br />

o sentido de sua própria existência, havendo ou não algum,<br />

então conseguiríamos continuar vivendo da maneira como<br />

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134<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

vivemos? Caso não conseguíssemos, como então seria essa<br />

nova maneira de viver? Conseguiríamos carregar o peso de<br />

nossas individualidades, junto com o peso de conhecer o<br />

próprio destino? Será que não teríamos de abandonar o peso<br />

das individualidades para continuar a marcha?<br />

As perguntas foram se multiplicando até deixá-lo irritado<br />

e confuso. Sentiu-se pesado e indefeso. Teria de aprender a<br />

carregar fardos enormes. Procurou esquecer as dúvidas que<br />

se empilhavam dentro de sua cabeça. Após alguns instantes<br />

conseguiu não pensar em mais nada. O que sobrou foi um<br />

certo remorso e um gosto amargo na boca.<br />

Recomeço. Pensou em quantas vezes durante a jornada<br />

teve de recomeçar. Vivia mais um desses instantes. Reiniciava<br />

buscando o caminho da simplicidade, onde não tentaria<br />

engolir mais do que conseguia digerir, e onde as perguntas<br />

viriam em número parecido das respostas. Não exigia<br />

exatidão, alguma pergunta poderia ficar sem resposta e viceversa.<br />

Reiniciava para se livrar dos extremos, os êxtases e os<br />

ódios se revelavam igualmente nocivos para seu percurso.<br />

Esquecer-se-ia de sua aldeia e da eternidade. Sepultaria seu<br />

personagem fictício e selaria bem seu túmulo para que de lá<br />

outros como ele não saíssem.<br />

O fato de ser dia o ajudaria a se manter distante das iscas que<br />

atraíam seu pensamento em direção das idéias de eternidade. As<br />

estrelas não estavam lá e as luzes não deixavam muito espaços<br />

vagos para o mistério. Mas não era o simples e correto executor<br />

de missões o que ele queria se tornar. Mesmo porque não


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

achava ser o que estava vivendo, uma missão. Buscava um meio<br />

termo que não sabia qual era, o árduo caminho sutil, pluma<br />

leve enterrada sob rochas pesadas. O equilíbrio entre raciocínio<br />

e emoção, o discreto que diz somente o que é necessário e<br />

nenhuma palavra a mais.<br />

Começou o novo caminho da mesma maneira que<br />

terminou o antigo, com uma longa reflexão sobre os prós<br />

e os contras dos extremos. Chegou à conclusão de que<br />

ambas as pontas não eram saudáveis, essas idéias levaramno<br />

à exemplificação de casos, que por sua vez conduziramno<br />

a emoções apaixonadas. Ele não conseguia se libertar do<br />

círculo. Percebendo isso interrompeu imediatamente sua<br />

seqüência de pensamentos. Também parou de respirar. Não<br />

prendeu o fôlego, simplesmente não aspirou mais ar. A ânsia<br />

da falta de fôlego começou a invadi-lo e às suas idéias. um<br />

negrume azedo escureceu-o, o mundo virou desespero por<br />

ar. Agüentou até o limite extremo que podia e finalmente<br />

respirou sua salvação. Esse percurso tão rápido entre extremos<br />

pareceu tê-lo purificado. A escuridão e a luz que cega,<br />

inconscientemente, ficaram impressas dentro de si como algo<br />

a ser evitado. Os pensamentos não se grudavam mais uns aos<br />

outros, e nem carregavam consigo emoções aleatórias.<br />

O riacho escorria suas águas iluminadas. Molhou as mãos<br />

para lavar os ferimentos. Notou a fina crosta que seu organismo<br />

formara ao redor do corte. Sentiu que a farpa de madeira<br />

continuava sob a pele, e que sem que ele percebesse, seu corpo<br />

havia fechado a entrada do objeto estranho. uma idéia rápida o<br />

invadiu: a natureza é sábia, mas ela também é estúpida.<br />

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136<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

depois dessa rápida conclusão, dedicou-se a observar de<br />

maneira isenta as extensões do ferimento. Havia bastante<br />

sangue coagulado ao redor das feridas, o que o forçou a esfregar<br />

com as pontas dos dedos para limpá-las. Feito isso percebeu<br />

como eram as pequenas feridas. A luz do dia derretia os bons<br />

e os maus mistérios. Não havia fraturas nem nada mais grave,<br />

seu único problema real era a farpa instalada sob a pele. Voltou<br />

a apalpá-la, reparando que ela não estava muito profunda,<br />

pensou em extraí-la, ele mesmo, com o auxílio de algum<br />

graveto. Resolveu que só acabaria piorando a situação.<br />

Levantou-se e lembrou-se que estava nu. Sobre esse fato não<br />

teve nenhuma idéia. Retomou o caminho de barro, a princípio<br />

não pode deixar de comparar as cores que agora enxergava,<br />

com as sombras da noite. Tentou descobrir qual sombra<br />

correspondia a qual cor. Algumas vezes parava para admirar as<br />

belezas que a natureza lhe oferecia, desses instantes extraia a<br />

beleza e mais nada.<br />

Seus passos eram constantes sem serem vigorosos. Quem o<br />

visse caminhando não diria que ele tinha excesso ou falta de<br />

tempo. Talvez dissesse que caminhava naturalmente. O dia<br />

havia nascido por completo, o sol já abandonara a linha do<br />

horizonte e subira o primeiro degrau de sua escada diária. Ele<br />

estava sereno, mental e fisicamente. Seu equilíbrio, entretanto,<br />

sofria pressões. Os pequenos detalhes que formavam a natureza<br />

procuravam cada qual atrair sua atenção. Se não tomasse<br />

cuidado acabaria seguindo os mais atraentes e logo se veria<br />

imerso no mundo de idéias amarradas, o que acabaria seu<br />

período de equilíbrio.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Além disso, lembrou-se de que havia passado quase<br />

a noite inteira andando, que o dia tinha nascido e ele<br />

continuava caminhando. Mesmo assim não sentia o<br />

menor sono. Ocorreu-lhe a idéia de que talvez nunca<br />

mais dormisse, e que teria descoberto o segredo da eterna<br />

vigília. Em seguida questionou-se, se em algum instante de<br />

descuido, sem que percebesse, morrera e agora prosseguiria<br />

sua caminhada nesse limbo iluminado, sem noites ou<br />

sono. Cogitou também como outra possibilidade, que seu<br />

descuido de atenção que o levaria a estar morto, tivesse<br />

ocorrido ainda no vilarejo, e que todo o percurso pudesse<br />

ser um efeito colateral desse seu possível estado.<br />

E que dias e noites se sucederiam, mas sua consciência<br />

livre do peso real de um corpo vivo, prosseguiria atravessando<br />

barreiras e luzes, para sempre. Avançando e retrocedendo,<br />

passos na direção da luz para encontrar-se com a escuridão<br />

e passos rumo ao escuro para... interrompeu essas reflexões<br />

quando apalpou a farpa. Pela primeira vez alegrou-se com sua<br />

presença, ela confirmava que não estava morto.<br />

O fato de estar vivo, não tinha certeza absoluta disso, mas<br />

as possibilidades contrárias eram desprezíveis, lhe enchia<br />

o peito de uma certa responsabilidade misteriosa. Como a<br />

certeza da morte futura era absoluta, ele sentia a necessidade de<br />

enquanto estivesse vivo, dar o seu melhor. Não sabia como faria<br />

isso, e muito menos o que seria esse melhor. Mas suspeitava<br />

que qualquer que fosse o caminho escolhido, o equilíbrio<br />

emocional seria sempre um instrumento importante para que<br />

pudesse extrair seu máximo.<br />

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138<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

As luzes continuavam aumentando de intensidade, mas<br />

agora já eram luzes maduras que iluminavam os objetos de<br />

maneira mais rígida e com menos danças. Seu estado emocional<br />

parecia acompanhar o desenvolvimento delas e oscilava dentro<br />

de um limite envelhecido. Com uma boa olhada ao seu redor,<br />

procurou identificar a harmonia e o equilíbrio na natureza, a<br />

princípio teve dificuldades. Logo percebeu, que talvez estivesse<br />

buscando uma harmonia que se relacionava com o padrão<br />

mental construído a partir de sua vida no vilarejo. Afrouxou<br />

as amarras da percepção e deixou que o ritmo do balançar das<br />

folhas, o som dos pássaros, as tonalidades de verde, e outros<br />

tipos de manifestações naturais, mostrassem que completavamse,<br />

formando uma frase cheia de significado e beleza, escrita<br />

com palavras de diversos idiomas diferentes.<br />

O mundo completava-se encaixando-se de maneira perfeita,<br />

entretanto a harmonia disfarçava-se de caos. Questionou-se<br />

então, se a harmonia matemática e aparente do vilarejo não<br />

seria apenas uma grande bagunça fingindo organização, e<br />

que transmitiria a seus se<strong>guido</strong>res esse estado de permanente<br />

desconforto. Procurava não formular conclusões, mas não<br />

conseguiu escapar de uma: as realidades menos aparentes estão<br />

mais distantes das mentiras mais evidentes.<br />

Em seguida olhou demoradamente para seu corpo<br />

procurando encaixá-lo na harmonia discreta que havia ao seu<br />

redor. Encontrou dificuldades para distanciar-se o suficiente de<br />

si mesmo, a ponto de considerar-se de maneira isenta. Reparou<br />

então, como sua consciência estava ligada à sua imagem física.<br />

E como isso interferia em sua participação na harmonia


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

natural. Seguindo por esse caminho, percebeu que seu corpo<br />

isoladamente poderia se integrar à harmonia universal, mas<br />

sua consciência seria sempre uma pedra mal posicionada que<br />

quebraria a perfeição do mais equilibrado dos jardins.<br />

Sentia-se um acúmulo de vivências, próprias e ancestrais, que<br />

fundiam-se, brotavam, e se realimentavam, mas que originavamse<br />

sempre da sua separação com a natureza em harmonia. Se<br />

esse raciocínio estivesse correto, quais seriam seus caminhos,<br />

viveria para sempre desalinhado na vida, participando dela<br />

como alguém que assiste a um espetáculo teatral, mas sem nunca<br />

poder pisar no palco? Ou então encontraria uma maneira de<br />

dissolver os caroços de sua consciência, até torná-la tão líquida<br />

quanto a harmonia necessitasse para se manifestar.<br />

Sorriu sem tentar responder, percebeu que novamente,<br />

qualquer que fosse a resposta, ela o conduziria para novas<br />

perguntas... respirou fundo e continuou caminhando,<br />

pela primeira vez viu os raios de sol inteiros, lhe cobrindo<br />

completamente de luz. O céu não tinha nenhuma nuvem<br />

e o dia prometia calor. Entretanto, aquela hora da manhã<br />

oferecia a temperatura ideal para caminhadas. Aos poucos<br />

a vegetação foi se modificando, o riacho fez uma curva e<br />

distanciou-se da trilha.<br />

A mata foi ficando rala, com alguns arbustos esparsos em<br />

meio a uma terra que mudava de tonalidade em direção ao<br />

vermelho. Havia barrancos desmoronados pela erosão com<br />

algum capim em cima, que formavam esculturas de terra,<br />

subidas, descidas, pequenos planaltos secos e grandes depressões<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

em cujo fundo havia poças d’água. As tonalidades diferentes da<br />

terra formavam desenhos abstratos, que após alguma observação<br />

ganhavam formas concretas. Na linha do horizonte o céu azul<br />

mergulhava na terra avermelhada. A luz cada vez mais forte do<br />

sol soldava essas cores distantes, tornando difícil para os olhos<br />

a contemplação dessa mistura rica. O mundo se mostrava árido<br />

e colorido. As poças d’água dos fundos dos buracos pareciam<br />

indefesas e condenadas, diante do sol cada vez mais forte.<br />

As linhas de terra mais escura desenhavam formas na terra<br />

avermelhada, e conforme caminhava, tinha impressão de que elas<br />

se movimentavam. Chegou mesmo a sentir-se acompanhado<br />

por essas formas móveis. Com o canto dos olhos percebia que<br />

elas continuavam lá, seguindo-o. Isso o incomodava, talvez<br />

tivesse a necessidade de ser o pioneiro em seu percurso. Parou<br />

para que o movimento também cessasse, olhou para o barranco<br />

de terra avermelhada e bem no meio dele havia uma camada de<br />

terra preta que se parecia com uma cobra.<br />

A idéia de ser se<strong>guido</strong> por uma serpente o perturbou<br />

e trouxe com ela várias idéias inconvenientes. Por um bom<br />

tempo combateu-as, procurando enxergar na camada de<br />

terra, apenas terra. As primeiras gotas de suor escorreram<br />

de sua testa. Limpou-as com a mão e esqueceu-se da cobra, a<br />

água para beber era mais importante do que ela. Temeu não<br />

haver outra fonte de água que não fosse o riacho, que já há<br />

um bom tempo tinha sumido. Lembrou-se das poças d’água<br />

do fundo dos buracos, mas aquela água deveria ser de chuva.<br />

Não teria dificuldades de voltar até o último ponto onde vira<br />

o riacho, mas não queria limitar seu percurso aos desejos do


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

traçado do córrego. Mesmo porque, às vezes, não havia como<br />

caminhar a seu lado.<br />

O sol aumentava sua força e as gotas d’água escorriam por<br />

sua testa. A sede já tinha começado. Lembrou-se do equilíbrio<br />

emocional que tentava buscar, lembrou-se também da lógica,<br />

que havia decidido, seria sua aliada... mas sabia que existia o<br />

lado encoberto da realidade, e que não poderia desprezá-lo...<br />

o mistério que fazia com que os olhos de um homem sejam<br />

diferentes dos de um peixe dentro de aquário, e que sua voz<br />

não se pareça com o grunhido de um porco. Apostou naquilo<br />

que desconhecia e continuou caminhando em direção oposta<br />

ao riacho. Bloqueou sua mente contra arrependimentos,<br />

mas sabia que essa blindagem duraria somente enquanto sua<br />

situação física fosse razoável.<br />

duas gotas de suor escorreram debaixo de seus olhos e o<br />

levaram a ter um pressentimento negativo, essa fraquejada<br />

pintou instantaneamente um retrato mental, onde ele caído no<br />

meio da terra vermelha e pegajosa, morria à míngua tentando<br />

lamber as últimas gotas que a chuva deixara. Rapidamente<br />

enxugou com os dedos as lágrimas feitas de suor e procurou<br />

inundar sua mente de cenas aquáticas.<br />

Quando recomeçou a caminhar nem se lembrava mais que<br />

há pouco tempo atrás havia se incomodado com os desenhos<br />

de terra nos barrancos. Olhou para os arbustos em volta, que<br />

apesar de não serem muito grandes, não pareciam sofrer de<br />

falta d’água. Foi invadido por uma onda de otimismo, que<br />

após alguns instantes reparou ser tão pouco justificável e tão<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

útil quanto a de pessimismo. Procurou livrar-se dela sem, no<br />

entanto, abandonar a idéia inicial que a havia originado. Os<br />

arbustos possuíam sua fonte, ou havia um lençol subterrâneo<br />

a pouca profundidade, ou então aquela região era abundante<br />

em chuvas. Mas ser abundante em chuvas para uma planta, era<br />

diferente de sê-lo para um ser humano. Em uma semana de<br />

seca provavelmente a planta manteria o mesmo verde de suas<br />

folhas... decidiu perder energias com arrependimentos apenas<br />

quando essa perda não fizesse mais nenhuma diferença.<br />

Avistou algo diferente no horizonte, o sol não deixava<br />

identificar o que era. Parecia um grande objeto amarelado.<br />

O aparecimento desse grande totem misterioso trouxe novo<br />

ânimo, e as gotas abundantes de suor e a boca seca, foram<br />

esquecidas. Aumentou a velocidade de seus passos que também<br />

ficaram mais largos, não conseguia identificar o objeto, mas<br />

sabia que era grande e amarelo. Lembrou-se de tantas histórias<br />

que tinha escutado a respeito das miragens do deserto. Por<br />

um instante desconfiou que seus olhos poderiam estar lhe<br />

pregando alguma peça, mas a desconfiança durou pouco,<br />

porque aquele objeto parecia querer combater os raios de sol<br />

que o contornavam. Parecia que, o que quer que fosse aquilo,<br />

cheirava e pesava à realidade.<br />

Não mais suspeitava que o objeto pudesse não existir,<br />

entretanto de alguma forma havia sido enganado por uma<br />

miragem. A distância a qual imaginava estar o objeto não era<br />

real, ele caminhava, mas parecia que seus passos não diminuíam<br />

o espaço que o separava da torre amarela. um certo desânimo<br />

o invadiu, um novo ânimo foi criado e ele prosseguiu ainda


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

mais determinado. Havia se esquecido de tudo o que conhecia<br />

e toda sua atenção e energia estavam direcionadas na busca do<br />

que desconhecia.<br />

Finalmente a distância que o separava do objeto começou a<br />

ceder diante de seu esforço, mesmo assim ainda não conseguia<br />

identificar o que era. Abriu espaço em sua mente para<br />

especulações, desejava saber não somente o que era aquilo, como<br />

também as possíveis conseqüências de cada hipótese. Agora<br />

saíam de seus olhos lágrimas reais causadas por suas tentativas de<br />

encarar o sol, que estava bem atrás do grande objeto. Lembrouse<br />

do pressentimento que tivera quando o suor escorrera de<br />

seus olhos, as lágrimas verdadeiras tinham escorrido mais<br />

cedo do que ele poderia imaginar, e por uma razão que jamais<br />

desconfiaria. Isso o conduziu a uma daquelas conclusões que<br />

ele detestava, pois representavam o contrário daquilo em que<br />

acreditava: as evidências do evidente são pouco evidentes.<br />

Quanto mais se aproximava, mais o sol interferia em sua<br />

visão. decidiu caminhar olhando para seus pés. Observava<br />

seus passos para poupar seus olhos. Entretanto, sua mente<br />

pintava a cada instante um retrato do objeto misterioso. E essas<br />

representações, simbolizadas por alguns objetos que existiam e<br />

outros que não, transmitiram-lhe um frio na barriga que ele não<br />

sentia desde os tempos de infância. Eventualmente levantava a<br />

cabeça para verificar se caminhava na direção correta, mas o sol<br />

continuava lá, bloqueando sua visão.<br />

Olhou fixamente para o trabalho de seus pés, o movimento<br />

dos ossos, reparou na marca que seus calcanhares deixavam na<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

terra mole. Percebeu como a terra penetrara sob suas unhas.<br />

Assistiu contemplativamente os movimentos se sucederem,<br />

era um passageiro de trem hipnotizado com o movimento da<br />

roda. Reparava nos detalhes, mas prestava mesmo atenção na<br />

essência do que estava acontecendo. Chegou até, por alguns<br />

instantes, a esquecer-se do objeto misterioso.<br />

Esse estado contemplativo parece que encurtou o tempo<br />

vivido, e junto com ele a distância que o separava do objeto.<br />

Estava próximo, mas a luz solar ainda não o deixava identificar do<br />

que se tratava. Reparou que a cor amarela cobria a parte superior<br />

do objeto, interrompia-se e depois reaparecia na parte inferior.<br />

Olhou novamente para o movimento dos pés, queria<br />

aproveitar por mais alguns instantes a doce sensação de<br />

mistério que coçava seu estômago por dentro. Esses instantes<br />

tiveram os melhores gostos de sua vida, à surpresa da infância<br />

foram somadas as descobertas da adolescência e os sonhos<br />

da vida adulta. Viveu seu pequeno paraíso provisório, seus<br />

passos diminuíram de velocidade porque sabia que o objeto<br />

já estava muito próximo, queria sugar o máximo que pudesse<br />

desse instante.<br />

Algumas flores amarelas caídas no chão misturavamse<br />

com a terra vermelha, formando uma combinação de<br />

cores hipnotizante. distraído com os matizes radicais, nem<br />

percebeu que havia cada vez mais amarelo e menos vermelho.<br />

Caminhava sobre um tapete amarelo de folhas caídas. Bem no<br />

meio delas uma grande sombra vertical. Ele havia chegado ao<br />

grande objeto. Não poderia mais cultivar os doces instantes de


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

mistério, se tentasse, eles apodreceriam dentro de seu estômago<br />

e apagariam a recordação das boas sensações que tivera.<br />

Levantou a cabeça, o sol ainda incomodava seus olhos,<br />

mas não o suficiente para que ele não conseguisse identificar<br />

do que se tratava. Estava sob uma imensa árvore, cuja copa<br />

amarelada, deixava flores caírem no chão. Sua primeira reação<br />

foi decepcionar-se. Estava revelado o mistério e ele não era tão<br />

brilhante quanto os desejos que movimentaram seu estômago.<br />

Num segundo instante ele percebeu que qualquer que fosse<br />

o objeto, seria sempre menor que o mistério. Num terceiro<br />

instante seu lado prático pediu passagem para aumentar sua<br />

decepção, ele desejava que a revelação lhe trouxesse algum auxílio<br />

prático para continuar o percurso. Passados esses instantes<br />

iniciais, equilibrou seus sentimentos e procurou, antes de mais<br />

nada, observar a árvore. Afastou-se alguns passos para melhor<br />

enxergá-la. A copa estava coberta por flores amarelo-claras, que<br />

se chocavam diretamente com o azul-anil do céu. Ele olhava-a<br />

de um ângulo em que o sol não o incomodava, mas apenas o<br />

choque de cores já era suficiente para que seus olhos tivessem<br />

dificuldades de deglutir o que enxergavam. Primeiro pensou<br />

que fosse a disparidade de cores, num segundo instante atribuiu<br />

essa dificuldade de assimilação à pura beleza que enxergava.<br />

O imenso buquê amarelo unia-se a um tronco escuro de<br />

cascas poderosas que voltava a se emendar com o amarelo das<br />

flores caídas no chão. deu mais alguns passos para trás para<br />

ampliar seu campo de visão. O vermelho circundava a mancha<br />

amarelada. Sentou-se no chão para conseguir engolir a beleza.<br />

Não teve pressa, começou pelas bordas, onde as primeiras folhas<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

caídas se misturavam com a terra vermelha. Gradualmente<br />

avançou rumo ao tapete de flores, escalou o tronco de cortiça,<br />

atravessou o mar amarelo da copa e terminou nas últimas<br />

flores, que encostavam no azul claro do céu.<br />

Seus olhos pareciam saciados, saídos de um grande<br />

banquete. Sua mente estava serena. Ele aproximou-se do tronco<br />

e deitou-se sobre o tapete amarelo de flores caídas. Sentia-se<br />

puro, olhava para as flores mortas caídas à sua volta e divertiase<br />

com suas cores berrantes. Olhava para cima e via as flores<br />

vivas existindo, de vez em quando alguma delas descia para<br />

fazer parte do tapete em que estava deitado. descia lentamente,<br />

fazendo curvas no ar. Começou a sentir um calor invadindo seu<br />

rosto, suas pálpebras começaram a pesar. uma brisa derrubou<br />

algumas flores sobre ele, olhava-as de perto, reparando em<br />

seus mínimos detalhes. Reparou também em alguns galhos<br />

secos que já tinham despejado no chão todas suas flores. Eles<br />

apontavam como dedos para o céu azul. Com os olhos ainda<br />

impregnados de amarelo, fixou sua atenção no azul indicado<br />

pelos dedos secos. O azul foi escurecido por suas pálpebras.<br />

despertou sem recordações do sono. Sentia-se completamente<br />

restituído de seus esforços. Lembrou-se da única vez na<br />

vida em que se sentira tão bem quanto naquele instante, fora<br />

uma vez saindo do banho, quando tinha sete anos de idade.<br />

Não tinha idéia de quanto tempo havia dormido, mas reparou<br />

que o sol já estava quase perpendicular em relação ao solo. As<br />

luzes fortes dessas horas eram filtradas pelas flores amarelas da<br />

copa, que amortecia os raios solares, transformando-os numa<br />

substância sutil que amarelava o ar e parecia poder ser tocada.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Continuou deitado observando aqueles instantes raros.<br />

um breve odor das flores caídas chegava até suas narinas, era<br />

um cheiro de flor misturado com cheiro de flor apodrecida. Isso<br />

acabou interrompendo sua estada no mundo do encantamento,<br />

e apressando sua volta ao mundo do raciocínio. Na verdade,<br />

talvez escolhesse um meio-termo entre os dois. Não podia deixar<br />

que aquela beleza fosse simplesmente engolida pelas engrenagens<br />

da lógica, mas também não queria continuar para sempre nesse<br />

rio sem margens, que era o estado contemplativo.<br />

Olhou para as flores vivas que estavam penduradas no<br />

alto da copa, reparou no exato instante em que uma delas<br />

se desprendeu e desceu até o chão. depois a olhou caída,<br />

cercada de muitas outras em todos os estados de deterioração.<br />

Enxergou nas flores vivas toda a eternidade, elas eram a<br />

representação de todas as que já existiram e aquelas que<br />

ainda existirão, eram o símbolo do encadeamento sem fim<br />

de tudo o que foi, é, ou será banhado pela existência. As<br />

flores vivas eram um grito constante, onde estavam incluídos<br />

todos os sentimentos e sensações que já foram, são e serão<br />

experimentados. um rasgo amarelo brilhante no pano escuro<br />

da não-existência, furo que jamais poderá ser consertado, mas<br />

que também nunca cresceria de tamanho.<br />

A flor amarela seria a eterna representação do instante, o<br />

acontecendo, a vida manifestando-se e sendo notada, justamente<br />

porque existem substâncias que não estão vivas e outras que não<br />

existem. Sua vida real e simbólica era ao mesmo tempo a semente<br />

de seu próprio contrário, e por isso mesmo, por essa contradição<br />

grandiosa, é que a flor refletia tão bem as luzes do sol.<br />

147


148<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

A queda das flores se dava em elipse. Elas escorriam pelo<br />

ar em círculos que se expandiam, até caírem no chão. A<br />

eternidade desprendia-se de sua fina haste para um mergulho<br />

em busca do efêmero.<br />

As coisas mudam, transferem-se de condição, aquilo que é<br />

tudo e não tem fim, transforma-se naquilo que é seu próprio<br />

fim. Flor encolhendo-se para dentro, escondendo-se da<br />

existência, mão invisível que tenta costurar o rasgo no pano<br />

escuro do nada. Mas dentro de cada coisa, e não apenas das<br />

flores vivas, brotam sempre as sementes de seu perfeito oposto.<br />

E os restos desbotados de flores que o tempo apaga, estão apenas<br />

escondendo-se por alguns instantes, para depois voltarem a<br />

mostrar suas caras de eternidade. As espirais em que giram as<br />

flores em queda, são círculos disfarçados que se movimentam<br />

entre aparências diferentes, que são estágios por onde tudo o<br />

que existiu, existe ou existirá, passou, está passando ou passará.<br />

Ele sentia-se no meio da máquina da vida, observando as<br />

engrenagens que rodavam ao seu redor. Mas não se orgulhava<br />

de suas descobertas. Faltavam-lhe ainda as mais importantes<br />

respostas, o que impulsionava tudo aquilo, e principalmente,<br />

por que tudo aquilo teria de sempre girar, essa grande roda<br />

sem fim... deixou de lado o raciocínio abstrato e apenas olhou<br />

para a grande árvore. Eram nesses espaços vazios entre as<br />

flores, nas sombras de umas sobre as outras, nas pequenas<br />

anomalias de formação das pétalas, no reflexo da luz de fim de<br />

dia sobre seus amarelos, eram nesses monolitos existenciais<br />

que se escondiam os segredos sutis, que estariam sempre além<br />

de sua compreensão.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Apesar de permanecer deitado, ajoelhou-se diante daquilo<br />

que sempre seria maior do que ele. Antes de se levantar deu<br />

uma última olhada na árvore, com todas suas forças procurou<br />

fugir das conclusões. Quando ergueu-se, estava leve e vazio.<br />

um largo horizonte avermelhado salpicado de pontos verdes<br />

o aguardava. Observou seus pés pisando a terra, que tinha<br />

cada vez menos flores amarelas. uma rápida onda nostálgica<br />

o atravessou. Ele sentia-se bem e o caminho o chamava. Já<br />

distante, a árvore pediu uma última olhada para trás, mas ele<br />

fingiu não escutar.<br />

Notava que à medida que caminhava, a terra ia ficando cada<br />

vez mais fofa, isso levou-o a pensar que talvez existisse água<br />

por perto. O sol estava no ápice, e os efeitos dele sobre sua pele<br />

começaram a ser sentidos. Além do suor, sentia que estava se<br />

queimando muito rapidamente. Os contornos do horizonte<br />

eram confusos, e a essa hora do dia as ilusões de ótica criavam<br />

chamas transparentes que distorciam a verdadeira paisagem.<br />

Mas a cada passo o chão lhe dizia que as águas não deveriam estar<br />

longe. Caminhava por um terreno cada vez mais macio, sentia<br />

na sola de seu pé a umidade que deveria vir do subterrâneo.<br />

Apesar do sofrimento físico que começava a aumentar, seu<br />

estado emocional estava equilibrado. Lembrou-se, com um<br />

sorriso no canto dos lábios, da tremenda quantidade de energia<br />

que desperdiçou, quando achando que seus ferimentos tinham<br />

piorado, havia imaginado para si mesmo um fim doloroso.<br />

Os passos eram importantes, cada um deles representava uma<br />

pequena vitória sobre sua condição anterior. Era seu trabalho<br />

individual e solitário, queria melhorar-se.<br />

149


150<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

O que o preocupava agora eram as raízes espinhosas e os<br />

pequenos tocos de madeira enfiados na terra, que poderiam<br />

machucar seus pés, algumas pedras redondas parecidas<br />

com as do riacho também apareceram. Caminhava devagar<br />

certificando-se bem por onde pisava. Nas paradas para olhar<br />

adiante, encontrava no horizonte a mesma bruma confusa que<br />

subia da terra e não deixava o olho definir o que enxergava.<br />

O sol forte despejava calor sobre seu couro cabeludo e<br />

ele começava a sentir dor de cabeça. A boa notícia era que o<br />

terreno por onde caminhava parecia cada vez mais úmido.<br />

Não sabia qual seria a possível origem da água que umedecia<br />

seus pés, mas aquilo já era um sinal positivo. Temia apenas que<br />

aquela terra estivesse úmida por alguma chuva do dia anterior.<br />

Parou alguns instantes para observar a consistência da lama,<br />

e ela não lhe pareceu ter sido gerada por chuvas. A umidade<br />

penetrava profundamente na terra, tanto que sem muito<br />

esforço conseguiu enfiar o punho inteiro no chão.<br />

Ao se abaixar, reparou que suas coxas já estavam avermelhadas<br />

pela ação do sol. Lembrou-se de quando se enterrou<br />

no chão, para se proteger do frio da noite. Espalhou lama por<br />

todo seu corpo e rosto, esperando contar com uma segunda<br />

ajuda da terra. Aparentemente funcionava, e mesmo que a lama<br />

escorresse conforme fosse caminhando, ainda restaria uma fina<br />

camada de proteção, que seria melhor do que nada.<br />

Percebeu que a natureza estava lhe oferecendo o problema<br />

e a solução. Para água, comida e tudo mais que necessitasse, a<br />

coisa deveria ser parecida, fornecido o problema, a solução não


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

deveria estar longe de seu alcance. Bastaria que ele mantivesse<br />

os olhos bem abertos e não tivesse medo de enxergar onde não<br />

costumava olhar. Enquanto limpava a lama que se acumulava<br />

embaixo das unhas de seus pés, ele perguntou-se, se não<br />

seria essa sua teoria, aplicável a qualquer situação: o homem<br />

perfeito seria aquele que conseguiria enxergar as soluções que<br />

a vida nos coloca para todos os problemas. Localizando essas<br />

respostas, esse homem hipotético estaria livre dos pesos que<br />

todos são obrigados a carregar, e então, teria independência e<br />

leveza para ser criativo. Graças aos seus imensos olhos abertos<br />

ele não teria culpas ou arrependimentos, e o que criasse seria<br />

como o desabrochar de uma flor violeta no instante em que o<br />

dia nasce e o céu tem exatamente essa mesma cor.<br />

Limpas as unhas dos pés, as das mãos tinham se sujado.<br />

Resolveu deixá-las assim mesmo e continuar desviando dos<br />

pequenos obstáculos do caminho. Estava numa região que<br />

mudava rapidamente de características, isso o fez lembrar-se<br />

de si mesmo e de tudo que o caminho já lhe mostrara. Os<br />

tocos e as raízes espinhosas desapareceram e agora a terra<br />

estava ainda mais úmida, tanto que, a cada passo que dava<br />

seus pés mergulhavam por inteiro no barro, e quando saíam,<br />

alguma água barrenta aparecia no fundo de suas pegadas.<br />

Tentou cavar com as mãos para ver se chegava na fonte dessa<br />

água, depois de algum esforço reparou que por mais que<br />

cavasse, a quantidade de água que se acumulava no fundo<br />

do buraco era a mesma que se acumulava no fundo de suas<br />

pegadas. A água deveria estar espalhada e não concentrada.<br />

Não havia respostas fáceis e nem poços enterrados prontos<br />

para jorrar.<br />

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152<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

A sutileza leva a caminhos árduos e o contrário também<br />

é verdade. Ele abaixou-se para beber a água lamacenta de<br />

cada uma de suas pegadas. Foi interrompido por sua própria<br />

gargalhada, imaginou-se enxergando alguém na sua situação,<br />

todo sujo de lama e bebendo água de uma poça qualquer. Que<br />

tipo de animal seria esse? Finalmente conseguiu lamber a água<br />

barrenta da primeira pegada, passou à segunda e à terceira.<br />

Como se ajoelhava para beber, também dessas marcas sobrava<br />

alguma água no fundo, e delas também bebeu.<br />

Não sabia se aquilo resolveria seu problema, a boca ficava<br />

umedecida, mas junto com a pouca água ele engolia bastante<br />

terra. Já tinha ouvido histórias de pessoas famintas que em<br />

situações extremas se alimentavam de terra. Mas sua situação<br />

ainda não era extrema, esqueceu-se da água perdida no fundo de<br />

muitas outras pegadas. Lembrou-se da suculenta pêra que havia<br />

encontrado de noite, a mistura perfeita de líquidos, alimento e<br />

sabor. Sua boca salivou, mas seu estômago já reclamava da terra<br />

que tinha engolido. O enjôo durou pouco porque o vômito<br />

veio rápido. Seus olhos lacrimejantes não quiseram olhar o que<br />

seu corpo havia posto para fora. Talvez por nojo, talvez por<br />

medo de reconhecer os restos das pêras.<br />

Percebeu que sua decisão de beber aquela água suja, tinha-o<br />

feito perder mais líquidos que todo o suor que escorrera de<br />

sua pele. Sentiu-se fraco e sentou-se no chão para descansar<br />

por algum tempo. O sol parecia que havia atingido sua força<br />

máxima, e não parecia querer diminuir sua intensidade e<br />

nem iniciar sua descida. de qualquer forma ele não poderia<br />

prosseguir imediatamente, teria de aceitar seus castigos


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

enquanto recobrava forças. Voltou-lhe à memória sua teoria a<br />

respeito das soluções oferecidas pela vida para cada problema<br />

que surgia. Já não acreditava nela tanto assim. Suas opiniões<br />

voltavam a mover-se com velocidade e instantes depois já estava<br />

ao ponto de considerá-la uma grande bobagem.<br />

A força do sol parecia que havia conse<strong>guido</strong> atravessar a<br />

camada de lama que cobria seu corpo, sentia uma ardência por<br />

toda parte. Isso o irritou e levou-o a ficar com raiva de tudo,<br />

principalmente de si próprio. um grito ecoou pelos vales<br />

vermelhos concentrando todo seu desespero. O desabafo teve<br />

efeito benéfico e conseguiu acalmá-lo. Espalhou mais lama pelo<br />

corpo e continuou a caminhar.<br />

A paisagem era violenta, poucos arbustos ressecados no<br />

meio da terra sangrenta. O céu sem nuvens compunha com a<br />

terra uma combinação de cores, que se não fosse o sofrimento<br />

que lhe trazia, ele definiria como bonita. Sulcos de erosão<br />

cavavam caminhos aleatórios por toda a paisagem. O ar parado<br />

parecia facilitar o trabalho de aquecimento do solo. Havia<br />

pequenos montes e algumas depressões no terreno, mas agora,<br />

provavelmente devido ao sol, não havia mais poças d’água no<br />

fundo dos buracos. Até onde conseguia enxergar, a paisagem<br />

repetia-se, terminando sempre numa fronteira brumosa onde<br />

céu e terra confundiam-se.<br />

Sem desequilibrar-se emocionalmente, e talvez de modo<br />

inconsciente, ele começou a afrouxar os laços que o prendiam<br />

à vida. Não estava desistindo de nada, mas se os caminhos<br />

estivessem conduzindo-o a becos sem saída, seria mais fácil, se<br />

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154<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

ele não estivesse assim tão aferrado àquilo que não poderia mais<br />

continuar existindo. Seu pensamento levou-o para duzentos<br />

anos no futuro, época em que todas as pessoas que naquele<br />

instante estavam confortavelmente abrigadas do sol e bem<br />

hidratadas, já estariam todas mortas.<br />

Sua imaginação tentou formar um retrato desse mundo<br />

futuro, mas as imagens que se formavam estavam todas<br />

comprometidas por seu sofrimento físico. Naquele instante<br />

os mistérios do futuro eram apenas uma desculpa, imaginava<br />

uma época onde a morte tivesse ceifado a todos que conhecia.<br />

Igualando desse modo todos os destinos. Talvez sentisse<br />

vergonha do que estava vivendo, mas não podia admitir isso<br />

para si mesmo.<br />

Nesses delírios ensolarados concebeu pessoas da época que<br />

imaginou, todas muito gentis para com ele, seus personagens<br />

sabiam que ele pertencia ao passado, e o admiravam por isso,<br />

por essa sua vitória sobre a...<br />

Percebeu que sua situação estava delicada, as gotas de suor<br />

tinham diminuído de intensidade, isso não era bom sinal. A<br />

perda do equilíbrio emocional representaria o começo do fim.<br />

Reparou como, em pouco tempo, seus braços e pernas tinham<br />

se avermelhado ainda mais, ele estava confundindo-se com a<br />

cor da terra. A primeira decisão foi poupar energias, caminharia<br />

devagar e esperaria o sol baixar um pouco, procuraria abrigo<br />

nas sombras de algum arbusto. Olhando para os lados percebeu<br />

que todos eles eram baixos e desfolhados e não poderiam<br />

abrigá-lo. Lembrou-se da terra protetora, talvez conseguisse


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

cavar na terra que não estava mais úmida, mas não era muito<br />

dura. Se protegeria do sol... desistiu, não tinha mais forças para<br />

cavar um buraco onde coubesse inteiro, e depois, seu problema<br />

pior eram os efeitos do sol sobre sua cabeça, e ela não poderia<br />

enterrar. As queimaduras do corpo eram um problema menor.<br />

Transferiu do inconsciente para o consciente o afrouxamento<br />

dos laços que o atavam à vida, uma frase resumiu tudo:<br />

farei meu máximo, mas se não der não deu, fazer o quê... esse<br />

pensamento relaxou-o um pouco da tensão que sentia, tirando<br />

de suas costas uma responsabilidade que não era apenas sua. A<br />

outra lei de sua autoria deu uma amostra que talvez não fosse de<br />

todo infundada, logo que conseguiu livrar-se de um peso que<br />

carregava, a vida colocou à sua disposição um pequeno prêmio.<br />

um arbusto um pouco maior e com folhas grandes apareceu à<br />

sua direita, junto com ele sua sombra.<br />

Sentou-se e procurou refletir sobre o acontecido, precisava<br />

ampliar suas conquistas, o arbusto não era suficiente, a vida<br />

tinha lhe colocado nessa enrascada e cabia a ele encontrar a<br />

saída. A possível solução de suas dificuldades deveria estar ao<br />

alcance de suas mãos. Sabia que teria de manter os olhos abertos<br />

e atentos, aquele arbusto não havia aparecido por acaso, já tinha<br />

dado o primeiro passo no sentido correto... precisava manterse<br />

vigilante, ouvidos prontos para escutar algum murmúrio do<br />

vento, qualquer dos sentidos poderia ser usado para que a vida<br />

dissesse onde estaria a salvação.<br />

Abrigado do ataque direto dos raios de sol, ele continuava a<br />

sentir o calor que o envolvia como braços acolhedores. deitou-<br />

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156<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

se no chão, queria chegar a conclusões, escutar vozes e<br />

perceber verdades, a terra vermelha já era sua amiga íntima,<br />

encostou o rosto nela. Seus pensamentos foram aos poucos<br />

amolecendo. Olhava ao redor mas sua consciência tinha<br />

perdido o alvo certeiro em que antes mirava. O mundo<br />

parecia que zumbia numa mistura de cores fortes e fumaça<br />

transparente que se levantava do horizonte. um cheiro<br />

diferente invadiu suas narinas, não sabia do que, talvez<br />

fosse do próprio arbusto, o aroma parecia menta, jasmim,<br />

ou qualquer coisa levemente anestesiante. Suas pálpebras<br />

pesavam e ele desconfiou o que aconteceria se elas se<br />

fechassem, uma vez tentou resistir... o calor o chamava<br />

para um descanso, a terra era seu leito e lhe despertava uma<br />

sensação de acolhimento, de solidariedade... tentou resistir<br />

uma segunda vez... o calor subiu até seu rosto e soprou por<br />

sua nuca invadindo seus ouvidos... tudo conspirava, ele não<br />

teria mais por quê resistir, sua vontade secou e seus olhos<br />

fecharam-se.<br />

Sua boca abriu-se em relaxamento. Seu corpo inerte parecia<br />

que era sugado para dentro da terra vermelha. Os movimentos<br />

do mundo pararam, ou quase isso, o ar imóvel parecia pesado,<br />

com isso as cores de todas as coisas perderam um pouco de<br />

seus brilhos. O vermelho transformou-se em marrom e os tons<br />

de verde perderam suas definições. Sua mão estava espalmada<br />

no chão. Seus dedos abandonados. A pouca distância dele,<br />

formigas escalavam os galhos do arbusto, carregavam comida<br />

para estocar no formigueiro. Logo havia uma longa fila indiana<br />

delas atravessando por cima de sua perna. Ele era apenas mais<br />

um obstáculo rochoso.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

As primeiras nuvens no céu apareceram trazidas por uma<br />

brisa, uma delas parou na frente do sol, modificando novamente<br />

as cores de tudo, algumas tonalidades desapareceram e outras<br />

surgiram. O sol havia começado sua descida diurna, e aos poucos<br />

as chamas transparentes que o calor fazia que saíssem da terra,<br />

começavam a desaparecer. uma formiga solitária separou-se de<br />

suas companheiras que tinham acabado de descer de sua perna.<br />

Ela caminhou em sentido contrário, desceu até o joelho e com<br />

as antenas observou por onde pisava. Em seguida caminhou em<br />

direção da virilha, atravessou todo o tórax e pescoço, chegando<br />

ao rosto. Entrou na boca que estava aberta e de lá saiu pouco<br />

tempo depois, escalou a face e desapareceu na floresta de<br />

cabelos para reaparecer novamente no chão, balançando mais<br />

do que nunca suas antenas.<br />

O vento alto que trouxera as nuvens, agora também soprava<br />

baixo, arrastando algumas pequenas folhas de arbusto e<br />

trazendo de volta o movimento. As grandes bocas abertas pela<br />

erosão, com a diminuição gradual da força do sol, já pareciam<br />

menos devoradoras, tinham perdido a força de seus dentes<br />

vermelhos, tornando-se inúteis mandíbulas desdentadas.<br />

As folhas, as forças, as cores e as nuvens se mexiam, as<br />

sombras inquietas saltavam, buscando outros lados. O mundo<br />

mudava mundando, explosões implodidas, brotos apodrecidos<br />

renascendo de dentro da morte. Odores misturados, trazidos de<br />

regiões distantes temperavam os ares que moviam suavemente<br />

os galhos dos arbustos. Havia também um outro movimento<br />

acontecendo, era sutil e difícil de definir. Caminhava em<br />

ambos os sentidos, no imenso e no infinitamente pequeno,<br />

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158<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

estava no sorriso que não acontece, na recordação que escapa<br />

da memória e no vôo das pombas das praça dos vilarejos.<br />

Movia-se o instante, arrastando com ele todas as sensações de<br />

se estar vivo, as conscientes e as inconscientes, e atado a tudo<br />

isso, vinha o apenas ser dos vegetais e minerais (monumento<br />

filosófico com quem os homens têm muito a aprender), nessa<br />

grande amarração estava construída a base existencial que<br />

preenche os espaços vazios entre objetos e eventos, e que dão<br />

unidade à vida.<br />

Esse movimento misterioso acontecia e inspirava os insetos<br />

e as folhas a mexerem-se, as nuvens caminhavam em direção<br />

do horizonte trazendo com elas um pássaro solitário que<br />

atravessava os céus gritando. O grito do falcão deu seqüência às<br />

ondas expansivas de movimento, e nem ele, o homem que havia<br />

deitado, deixou de movimentar-se.<br />

Levantou-se de seu sono profundo. Seus olhos demoraram<br />

a reconhecer o que lhe mostravam. Sua memória trabalhava<br />

para ligar o instante a seu último momento de consciência. Aos<br />

poucos foi reparando nas mudanças que tinham acontecido,<br />

observou o sol em seu caminho descendente, notou a<br />

modificação nas cores e nas sombras. A fascinação pelo novo<br />

atenuava as recordações dos momentos de dificuldades. A dor<br />

agora estava encoberta por uma névoa, que a atenuava e até<br />

tornava inexata sua existência.<br />

Mas esse mundo renascido não prometia paraísos. Mesmo<br />

enfraquecidas as recordações ainda incomodavam, eram como<br />

a farpa sob sua pele. E assim como ela, serviam como registro do


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

caminho percorrido. Sentia suas forças restauradas, mas sabia<br />

que isso era uma sensação falsa e transitória. Precisava hidratarse.<br />

O calor havia diminuído e isso lhe daria a possibilidade de<br />

caminhar à procura d’água. Olhou para todos os lados, não<br />

se lembrava mais de qual direção tinha vindo, não conseguia<br />

enxergar pegadas no chão. Procurou identificar qual direção<br />

oferecia melhores perspectivas. A paisagem era toda muito<br />

parecida, mas à sua direita os arbustos pareciam um pouco mais<br />

verdes, e isso poderia ser um sinal de maior proximidade com<br />

alguma fonte d’água. desconfiou que talvez esse brilho na cor<br />

poderia ser apenas um efeito da luz do sol, e que no fundo os<br />

arbustos eram todos iguais. Mas precisava acreditar em alguma<br />

coisa e caminhou na direção das folhas mais verdes.<br />

Mares revoltos percorriam sua mente. O conteúdo de seus<br />

pensamentos modificava-se a cada instante, mas sua forma<br />

chacoalhante e cíclica é que talvez tenha sido inspirada por<br />

seu subconsciente sedento. Chegou até a imaginar que seus<br />

pensamentos tanto se moviam que poderiam acabar escorrendo<br />

por suas orelhas. Mas aos poucos suas águas mentais foram<br />

serenando, e mais tranqüilo pôde raciocinar sobre as sensações<br />

que teve pouco antes de fechar os olhos. Essas reflexões<br />

estavam conduzindo-o novamente a conclusões e dúvidas...<br />

interrompeu-as para retomar seu lado prático: água.<br />

Parecia haver uma linha que separava os arbustos um pouco<br />

mais verdes, dos outros. A possibilidade de ser apenas um<br />

efeito das luzes ele já afastara. Aqueles arbustos deveriam estar<br />

mais irrigados. de qualquer forma, aquilo não significava que<br />

aquela água estaria a seu alcance. Mesmo assim acompanhou o<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

caminho das plantas verdes, que em poucos metros o conduziu<br />

novamente à margem do riacho.<br />

A princípio achou que se tratava de uma ilusão de ótica, o<br />

barulho das águas é que fez o grito de alegria ecoar no meio<br />

da natureza. Fartou-se com a água, banhou-se e ficou um<br />

bom tempo deitado nas pedras do fundo do riacho sentindo<br />

a força da correnteza. As águas revoltas, que balançavam com<br />

violência seus pensamentos, pareciam ter escorrido para dentro<br />

do córrego. Vivia instantes vazios de serenidade. O sol, que<br />

antes castigava sua pele, agora parecia um lutador envelhecido<br />

e inofensivo. A luz era confortável e não ofendia suas pupilas.<br />

dentro do conforto brota a semente de seu oposto. E ela<br />

floresceu em forma de dúvida. Não sabia que horas eram, mas<br />

pela posição do sol talvez a metade da tarde estivesse próxima. A<br />

última vez que se alimentara havia sido na noite anterior, apenas<br />

algumas frutas, e o desarranjo estomacal o tinha feito pôr tudo<br />

para fora. Entretanto não sentia fome alguma, nem fraqueza.<br />

Ficou apreensivo, pois nessa situação de aparente saúde poderia<br />

estar escondido um grande desequilíbrio de seu organismo,<br />

esperando para se manifestar a qualquer instante. Mas o que<br />

poderia fazer? Se tivesse alimentos ao alcance comeria mesmo<br />

sem ter fome. Mas ao seu redor nada era comestível.<br />

Procurou esquecer-se de algo que era apenas uma<br />

possibilidade, não queria sofrer por antecipação, mas não<br />

pôde evitar que uma farpa mental se colocasse em um lugar de<br />

difícil extração. Sabia que ela poderia, quando menos esperasse,<br />

lembrar-lhe de que caminhava à beira de um abismo. Mas como


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

a função das farpas é incomodar apenas de vez em quando,<br />

esqueceu-se da falta de apetite e de seu possível problema de<br />

saúde. Observou suas pele, seus braços, pernas, todo seu corpo<br />

havia sido bastante castigado pela força do sol. Entretanto não<br />

sentia dor alguma, talvez a água tivesse servido de analgésico<br />

para as ardências.<br />

Tentou ver seu rosto refletido nas águas, o movimento<br />

delas não o deixou enxergar direito os efeitos do sol sobre<br />

ele. Enxergou apenas uma turbulenta mancha com sobras de<br />

olhos, nariz e boca, uma mistura física que talvez refletisse sua<br />

mistura interior. Perguntou-se se talvez, pela primeira vez, uma<br />

substância reflexiva não estaria lhe contando a verdade.<br />

Seu raciocínio deu um salto ilógico, pulando da dúvida para<br />

dentro das águas do riacho, imaginou a vida dos peixinhos,<br />

lembrou-se do peixe hipotético verde brilhante, de sua própria<br />

criação. Refletindo sobre a mistura de idéias, percebeu que<br />

talvez o verde brilhante de sua imaginação tivesse sido tirado<br />

da cor dos vaga-lumes. Tentou se lembrar se tinha criado seu<br />

peixe antes ou depois de ver os vaga-lumes, não conseguiu.<br />

A idéia de algo de sua própria criação remeteu-o para o<br />

homem que havia inventado e decidira sepultar de vez. Onde<br />

andaria ele? Se pudesse sair de sua tumba e renascer para<br />

apenas mais uma cena, qual seria ela? Afrouxou as amarras<br />

que continham sua criatividade e enxergou novamente seu<br />

personagem. dessa vez parecia que seu poder criador estava<br />

tão vivo e forte, que ele literalmente enxergava o homem à sua<br />

frente, do outro lado do riacho.<br />

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162<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Sua curiosidade foi maior que seu espanto e não acordou<br />

sua lógica, observou-o sem questionamentos. Ele parecia<br />

mais gordo do que antes, mas sua gordura concentrava-se<br />

principalmente na barriga, na papada e nas pernas. Trajava um<br />

velho terno cinza surrado e fora de moda, a camisa mal podia<br />

conter suas formas e os botões estavam a ponto de estourar. O<br />

homem parecia confuso, andava com dificuldades de um lado<br />

para outro, e parecia que não podia enxergá-lo, mesmo estando<br />

eles distantes apenas alguns metros.<br />

Respirava de maneira ofegante, e a camada de gordura<br />

de suas pernas fazia com que elas se atritassem a cada passo,<br />

dificultando sua movimentação. Ele suava muito e sua camisa<br />

estava empapada de suor, embaixo de seus braços, o paletó<br />

tinha duas grandes manchas de transpiração. Seu aspecto<br />

físico transmitia-lhe uma certa sensação de agonia. Seus<br />

movimentos descoordenados aumentaram o desconforto. O<br />

criador procurou acalmar-se olhando para uma borboleta<br />

azul pousada sobre um galho.<br />

Quando olhou novamente para o homem, ele estava sentado<br />

sobre uma pedra. Passava a língua sobre o lábio superior, como<br />

alguém que está se preparando para falar, seus óculos estavam<br />

meio embaçados e seu corpo inquieto, como se tivesse coceiras,<br />

mas não possuísse mãos. Após algum tempo, percebe-se que<br />

seus cacoetes continuam e que ele não estava se preparando<br />

para nada. Nem para falar e nem para tomar qualquer atitude.<br />

Aquele era seu estado final, e nem suas coceiras, se elas realmente<br />

existissem, existiam para ser saciadas. Aquele homem não era<br />

resposta para nenhuma pergunta. Mas talvez ele fosse uma


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

pergunta: num caminho entre dois pontos, não é legítima a<br />

decisão de não prosseguir nem recuar, estacionando no meio<br />

do percurso?<br />

Prosseguiu mais algum tempo observando seu personagem,<br />

ele continuava na pedra executando seus pequenos trejeitos e<br />

fazendo parecer que estava se preparando para algo. Aquilo<br />

começou a irritá-lo, ele era um homem que precisava de<br />

respostas para viver. Fechou os olhos e quando os abriu o<br />

homem continuava lá, passando repetidamente a língua sobre o<br />

lábio superior. Teve raiva daquela língua, daquela barriga, odiou<br />

seus movimentos e sua passividade. Se ele o havia criado, bem<br />

que poderia destruí-lo. Na verdade já tinha feito isso e depois<br />

optado por sua ressurreição. Então o abandonou sentado sobre<br />

a pedra e resolveu voltar a caminhar, tinha certeza de que ele<br />

não o seguiria.<br />

dessa vez escolheu caminhar acompanhando a margem do<br />

rio. Na verdade, nem pensou em afastar-se dela, talvez tenha<br />

sido seu corpo que o obrigou a ficar perto d’água, pelo menos<br />

das imagens dela. O sol a essa altura já havia passado da metade<br />

da tarde e sua luz suave acalmou-o, fazendo esquecer-se do<br />

homem que o irritara. A terra da beira do riacho era arenosa e<br />

gostosa de pisar, as cores modificavam-se rapidamente e, nesses<br />

instantes, eram o que mais o interessava. Conseguia encarar o<br />

sol e os amarelos que ele transmitia, engoliu mentalmente essas<br />

cores procurando compreendê-las, não de maneira racional, mas<br />

procurando a fusão do sentir com o descobrir. Sem conclusões,<br />

talvez digestões. Na metade do caminho já estava contido todo<br />

ele. Lembrou-se por um instante do homem. Outras cores e<br />

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164<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

tons entraram por sua retina e misturaram-se dentro dele para<br />

construir novos semi-caminhos. Curtos percursos iluminados,<br />

ricos em cores e sentimentos, mas que não necessariamente<br />

interligavam-se ou conduziam a novos pensamentos. Talvez ele<br />

estivesse criando uma nova maneira de pensar, ou então apenas<br />

bloqueando definitivamente um eventual retorno ao velho<br />

mundo do pensamento encadeado.<br />

Ficaria isolado em sua própria ilha de idéias que não seriam<br />

nunca compatíveis com as idéias de qualquer outra pessoa, não<br />

porque tivessem conteúdo diferente, mas sim porque surgiam<br />

e se desenvolviam de maneira diferenciada. Outra vez lembrouse<br />

do homem, dessa vez a lembrança era de sua língua lambendo<br />

o lábio superior e dos movimentos de corpo que ele executava.<br />

Ao contrário do que supunha essas lembranças não o irritaram<br />

e até trouxeram-lhe um sopro de solidariedade ao coração,<br />

acompanhado de um leve sorriso.<br />

Essa compaixão fez com que a imagem do homem se<br />

derretesse, abandonando definitivamente seus pensamentos e<br />

memória. E se esse homem tinha algum peso, de agora em diante<br />

ele não precisaria mais carregá-lo. Seus olhos acompanhavam<br />

o escorrer das águas. Caminhava em sentido contrário ao<br />

da correnteza, dessa forma conseguia enxergar quando as<br />

pedrinhas cobertas de musgo eram molhadas, e percebia a total<br />

tranqüilidade dos gravetos conduzidos pela correnteza. Aquele<br />

córrego lhe sussurrava aos ouvidos: inexorável, inexorável...<br />

escutou esses murmúrios mas procurou não levar adiante<br />

qualquer reflexão. Aqueles instantes quase lhe bastavam,<br />

grandes momentos acompanhados de pequenas farpas.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Tirou os olhos do riacho e percebeu que de vez em quando<br />

apareciam pequenas flores brancas no meio do capim da<br />

margem. Eram pequenas e pareciam estar ali somente para<br />

que o verde não reinasse absoluto. Eram as farpas no reino<br />

do verde. Continuou a caminhada aberto a perceber tudo o<br />

que o mundo lhe oferecia, mas havia uma idéia fermentando<br />

em sua cabeça... não teria tudo o que existe, a sua respectiva<br />

farpa, que teria como função nunca deixar que o que quer<br />

que seja, em qualquer ocasião, reinasse absoluto? Elas seriam<br />

o lembrete que a vida dá, de que tudo é relativo e dependente<br />

de outras individualidades. Elas não seriam apenas saudáveis<br />

para qualquer organismo ou objeto, mas imprescindíveis<br />

para suas sobrevivências. Caso fossem extraídas renasceriam<br />

imediatamente sob outras formas. E qualquer solução radical,<br />

que eventualmente as fizesse desaparecer em definitivo, estaria<br />

também condenando ao fim os hospedeiros que as abrigavam.<br />

Passou dois dedos sobre sua hóspede e desligou o raciocínio<br />

que pedia-lhe conclusões. Reparou que, à medida em que<br />

avançava, o riacho parecia que alargava-se e aumentava seu<br />

volume de águas. Ao mesmo tempo as florzinhas brancas<br />

cresciam em número, tornando as margens igualmente verdes e<br />

brancas. Não havia canteiros de flores, elas se misturavam com<br />

o capim e aceitavam o movimento que a brisa impunha a esse<br />

conjunto. Sentou-se sobre essa mistura, arrancou um talo de<br />

capim que trouxe junto às raízes da flor.<br />

A brisa criava ondas que se sucediam, movimentando a<br />

vegetação da margem e repetindo esse mesmo movimento<br />

dentro dele. As águas continuavam seu percurso... inexoráveis,<br />

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166<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

sempre correndo na mesma direção, sempre molhando as<br />

pedras cobertas de musgo, o vento também soprava sobre as<br />

águas e ciclicamente fazia com que alguma gota espirrasse nas<br />

margens. Em seus musgos mais escondidos, naqueles que nunca<br />

conhecerão senão água, ele sente profundamente essas emendas<br />

da vida, pulsando e acontecendo. Costuras que sente serem<br />

aparências, mentirinhas que são contadas para as crianças até que<br />

elas tenham idade para poder entender como as coisas realmente<br />

são. Enxerga o balançar da vegetação como o latejar de uma<br />

grande artéria, sente tudo, apenas isso, sem questionamentos.<br />

Se pudesse questionar acho que gostaria de saber que<br />

espécie de olho é esse que consegue enxergar do lado de dentro<br />

das coisas? Como ele tinha se tornado esse aparelho inquiridor,<br />

que não aceita os limites planos que cerceiam as vidas dos<br />

outros? Perguntaria também o que deveria acontecer a tal tipo<br />

de olho, a multiplicação ou a cegueira?<br />

Felizmente ele não precisaria perguntar nada disso, porque<br />

apenas sentia, e isso era suficiente. Era sangue e veia, flor e<br />

capim. Os ciclos ocorriam e ele participava deles sem perder<br />

a consciência disso, ao mesmo tempo sabia de seus passos e do<br />

ar que respirava, sentia os raios enfraquecidos de sol na pele e a<br />

textura acolhedora das areias sob seus pés.<br />

Estando nesse estado próximo da plenitude, estava na hora<br />

da teoria da farpa começar a mostrar ser verdadeira. E foi o que<br />

aconteceu. Se não somos cuidadosos ao apanhar um botão de<br />

rosa, acabamos furando o dedo nos espinhos. Quase senhor da<br />

vida e seus ritmos, ele iludiu-se com a beleza. Tentando eleger


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

um representante físico que simbolizasse tudo o que estava<br />

vivendo, acabou perdendo-se em comparações. Achou que<br />

em uma específica flor poderia estar contido o eterno, não se<br />

arrependeu de ter pensado assim, entretanto a transição mental<br />

do estado em que se encontrava, para um mundo mais físico e<br />

cheio de equivalentes e símbolos, acabou furando seu dedo e<br />

interrompendo sua vivência maior. Recolocando-o no mundo<br />

do tradicional fluxo de pensamentos. Quando deu por si,<br />

o sentir-se sangue e artéria ao mesmo tempo, não passava de<br />

memória. E ele mirava uma flor, que até poderia representar<br />

todo o universo, mas ele estaria mentindo se dissesse que nela<br />

conseguia enxergar algo além de uma flor.<br />

Sem que percebesse, a teoria da farpa havia voltado a<br />

funcionar. O pêndulo tinha se mexido, passando da ilusão<br />

para a desilusão. Mas as forças físicas que o moviam estavam<br />

apenas acumulando energia suficiente para que pudesse haver<br />

novo movimento. Não demorou, sua boca mostrava um leve<br />

desencanto, mas seus pés já se moviam com energia<br />

Continuou acompanhando o curso do riacho. Seu<br />

pensamento passeou por todos os lados, rápidas recordações de<br />

sua vida no vilarejo, logo bloqueadas, um grande resumo de todo<br />

seu percurso até aquele instante, imagens do céu escuro, da lua<br />

refletida n’água, retratos sem formas de todos seus sentimentos.<br />

Sabia que de vez em quando era preciso recuar um passo<br />

para se conseguir avançar dois, por isso mesmo deixou que<br />

as memórias mostrassem suas caras por algum tempo, antes<br />

de discretamente conseguir fazer com que desaparecessem.<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Precisava abrir-se para o mundo, sentia mais forte do que nunca<br />

essa necessidade.<br />

Percebeu que a luz havia diminuído mais um pouco e o<br />

sol entrava no quarto final de seu percurso, isso iniciava um<br />

longo jogo de conseqüências: as cores e sombras modificavamse,<br />

o calor diminuía, seu estado interior alterava-se e suas<br />

idéias caminhariam em outra direção. Essas conseqüências<br />

provavelmente continuariam adiante, mudando tudo que<br />

estivesse ao seu alcance. E, provavelmente, o sol era apenas mais<br />

um degrau da mudança, que deveria estar vindo de muito longe.<br />

Foi invadido pela serenidade dessa luz que começava a<br />

perder sua força. Entretanto suas energias pessoais continuavam<br />

intactas e seu corpo lhe pedia apenas que continuasse a<br />

caminhar. Percorreu um longo trecho sem pensar em nada, nem<br />

se deixando influenciar com o que via. A paisagem repetitiva<br />

o conduziu à sua primeira idéia: parecia que ele não saía do<br />

lugar, as distâncias eram engolidas por seus passos, mas o que<br />

havia em volta era tão parecido que não faria muita diferença<br />

caminhar ou ficar parado.<br />

Isso o levou a refletir sobre por quê ele deveria caminhar,<br />

perguntou-se se o movimento em si era necessário para<br />

aquilo que buscava. Sorriu ironicamente, pois não sabia o que<br />

buscava. Sentiu-se como um náufrago no meio do oceano que<br />

está agarrado a um pedaço de madeira, e que encontra outro<br />

náufrago na mesma situação, e ele lhe pede conselhos. O riso<br />

lhe fez bem e diminuiu sua vontade de obter uma resposta<br />

para a pergunta que se fazia. Mesmo assim resolveu escolher


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

um lugar que lhe parecia agradável e imaginou-se estático,<br />

vivendo ali para sempre.<br />

Sem mais necessidades de caminhar, percorreu então os<br />

caminhos possíveis de seu futuro naquele lugar, talvez as<br />

coisas continuassem mais ou menos como estão, suas pernas<br />

se transformariam em seu cérebro e sua vida seria muito mais<br />

interiorizada do que enquanto caminhava. Talvez apenas<br />

se tornasse alguém sem nenhuma ocupação, que cultuaria<br />

pequenas idéias e grandes vícios, ou então mergulharia tão<br />

profundamente dentro de si mesmo que acabaria decifrando<br />

os mistérios da vida.<br />

decidiu que não entraria em bifurcações e continuaria<br />

seguindo por sua estrada, mesmo que não soubesse onde ela<br />

iria dar, pelo menos estaria sendo coerente com seu desejo<br />

inicial de movimento. Tinha sido ele que o havia tirado de<br />

seu vilarejo e o apresentado a um mundo mais rico do que<br />

tudo o que vivera anteriormente. despediu-se de sua dúvida<br />

olhando para suas pernas, que pareciam mais fortes do que<br />

nunca. Não sabia se era efeito da luz, mas não conseguia<br />

enxergar as queimaduras de sol que tinha pelo corpo. Elas não<br />

poderiam ter desaparecido tão depressa, a luz deveria estar<br />

lhe pregando alguma peça.<br />

desacreditado de seus olhos, arrancou uma das pequenas<br />

flores brancas que estavam por toda parte e começou a reparar<br />

em seus detalhes. Tudo parecia muito bem desenhado, a<br />

combinação de formas, a proporção, as pequeninas manchas<br />

amarelas na parte de trás das pétalas, tudo tão bem ordenado<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

e harmônico que o fez chegar a desconfiar. Não seria tudo o<br />

que ele vê, uma grande armação cênica, feita para que ele<br />

acreditasse que existe uma harmonia natural que dá origem às<br />

coisas e aos ritmos de vida? Quando na verdade o que existe é<br />

uma inteligência manipuladora que se diverte conduzindo-o<br />

por caminhos escolhidos por ela, porém fazendo-o acreditar<br />

que é ele quem toma as decisões. dessa forma, sua rebelião<br />

contra a vida no vilarejo teria sido enfiada em sua cabeça através<br />

de artifícios, sem que ele percebesse. E se isso fosse verdade, ela<br />

teria sido tudo menos rebelião.<br />

Olhou ao redor desconfiando de tudo, logo eliminaria<br />

essa idéia, mas queria usá-la um pouco para ver se dela extraía<br />

algumas gotas de verdade. O céu, o sol, tudo mentira, as<br />

árvores, o riacho, a brisa, invenções de alguém para conduzi-lo<br />

a tomar determinadas atitudes, mas por quê? Ele mesmo uma<br />

invenção, seu raciocínio também, tudo subordinado a interesses<br />

desconhecidos. Arrancou as pétalas da flor, olhou para os lados<br />

como querendo informar que estava ciente da armação.<br />

Poderia prosseguir nesse raciocínio, desenvolvê-lo até<br />

encontrar algo de útil. Parou quando conseguiu definir com<br />

uma palavra como poderia classificar esse tipo de idéia: perversa.<br />

Ainda tentou melhorar essa definição adicionando o adjetivo:<br />

apodrecida. Apesar disso achava possível encontrar qualidades e<br />

riqueza em alguma coisa perversa e apodrecida. Pois a perversão<br />

não deixava de ser um apodrecimento da moral, e a podridão era<br />

a exacerbação das qualidades particulares de cada coisa. uma<br />

maçã podre era uma fruta em seu momento máximo de maçã. E<br />

o que era afinal de contas a moral, senão a ética apodrecida.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Apesar de sua grande desconfiança de tudo o que enxergava,<br />

e até de si mesmo, resolveu ser coerente com os procedimentos<br />

que vinha adotando. Não iria entrar em bifurcações, continuou<br />

a acompanhar o leito do riacho, e procurou esquecer que tudo<br />

o que existia poderia não ser real.<br />

O homem coerente é o que mais respeita seus próprios<br />

erros. Essa frase assaltou-o mas foi logo repelida. O riacho<br />

fazia curvas agudas e ele as acompanhava, subidas e descidas,<br />

longas e tediosas retas, e fielmente ele trilhava seus passos pela<br />

margem. Era um se<strong>guido</strong>r obediente, e o riacho, sua verdade.<br />

Parou de caminhar. Não estava cansado, nem a rotina de<br />

acompanhar a margem o entediava, parou sem saber por quê.<br />

Já parado, desconfiou que essa atitude tivesse sido determinada<br />

pelo provável e misterioso condutor de seu destino. Acabou<br />

aceitando que fora ele mesmo que decidira parar.<br />

Olhando para uma árvore que estava próxima, comparou<br />

as idéias mais evidentes às folhas da copa, mais visíveis e<br />

efêmeras. Será que a decisão de parar não seria uma dessas<br />

folhas... continuou percorrendo a árvore com os olhos, o<br />

tronco, talvez viesse daí sua escolha, madeira grossa que<br />

esconde atrás de cascas veias pulsantes de seiva. Mais abaixo<br />

o tronco entrava na terra, algumas raízes expostas indicavam<br />

que muitas outras se escondiam. Perguntou-se que tipo de<br />

raciocínio teria como origem as raízes profundas que vivem<br />

na escuridão. Prosseguiu questionando-se: qual seria o<br />

raciocínio equivalente ao momento mágico, quando a planta<br />

nutre-se, absorvendo luz e transformando-a em energia vital,<br />

inventando o que até então não existia?<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Antes de conseguir qualquer resposta, seu raciocínio<br />

foi interrompido quando reparou que ao lado da árvore de<br />

copa cheia de folhas verdes, havia uma outra completamente<br />

seca. Reparou então, que próximo ao caule havia os restos de<br />

algumas flores amareladas. Era uma árvore da mesma espécie<br />

daquela, que coberta de flores amarelas, o tinha proporcionado<br />

momentos diferentes de tudo o que já vivera. Mas agora as<br />

flores tinham ido embora e restavam apenas os grandes dedos<br />

ósseos dos galhos, cada um indicando uma direção.<br />

As pobres flores que sobravam eram retratos desbotados<br />

do que um dia foram. Suas cores pálidas iam sendo corroídas<br />

por manchas marrons que em breve apagariam qualquer<br />

resquício da cor amarela. Ele decidiu tomar uma atitude.<br />

Nem se questionou sobre qual camada de seu ser inspirou tal<br />

movimento. Certamente não tinham sido as efêmeras folhas da<br />

copa, pois seu ato foi mecânico e brotou de alguma região sua<br />

que deveria estar em contato com a terra.<br />

Apanhou os restos de uma flor amarela e colocou-os nas<br />

águas. Acompanhou seus movimentos até perdê-los de vista.<br />

As curvas e submersões a que a correnteza submetia os restos<br />

da flor, parecia que atuavam sobre seus ombros. Quando<br />

recomeçou a caminhar sentiu-se mais leve, havia se livrado de<br />

um peso que carregava sem perceber.<br />

A morte flertava com o dia, as luzes diminuíam e pareciam-se<br />

cada vez mais com as de velas. Raios amarelados que molhavam<br />

as coisas que existiam. As sombras cresciam e começavam a se<br />

emendar. Nunca o dia havia sido tão belo. O sol mandava os


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

raios começarem a atacar seus olhos, mas dessa vez a luz parecia<br />

inofensiva. Iluminava suas pupilas da mesma forma que as<br />

cascas das árvores. Mas seus olhos serenos estavam indiferentes<br />

a esses ataques. Sentia-se vivo.<br />

Foi justamente essa sensação que o fez lembrar-se que havia<br />

um bom tempo que ele não via nem escutava qualquer forma<br />

de vida. A natureza parece que havia silenciado por completo.<br />

Nem insetos encontrava no chão. O único ruído era o de seus<br />

passos e o do riacho. Sentiu-se o único ser vivo do mundo, a<br />

testemunha solitária de uma existência mineral e vegetal.<br />

Como sentia-se mais leve, presenteou-se com um pouco de<br />

fantasia. Imaginou seu reinado solitário como única consciência<br />

viva. Existindo e tendo a noção disso. Suas imaginação<br />

borbulhava mas suas pernas prosseguiam, acompanhando<br />

o leito do riacho. um pedaço de papel apareceu à sua frente,<br />

estava escrito à mão e informava-o ser ele o último organismo<br />

biológico da face da Terra. As bolhas da fervura de sua<br />

imaginação escorreram para fora da panela e desenharam com<br />

suas formas um mundo onde ele fosse o único sobrevivente.<br />

depois de apanhar o papel no chão e lê-lo, sua reação foi<br />

nenhuma. Não demonstrou emoções e nem indicou com o<br />

corpo que iria tomar alguma decisão.<br />

Enquanto isso suas outras pernas, aquelas que não tinham<br />

lido o bilhete, continuavam acompanhando o traçado do riacho.<br />

Parado, parecia estar olhando todas as opções que se ofereciam.<br />

E eram tantas que se sentia como se fosse nenhuma.<br />

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174<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

depois desse tempo parado sentou-se no chão deixando<br />

que as perguntas o bombardeassem: se conseguisse viver<br />

completamente sozinho, resolvendo ele mesmo todos seus<br />

problemas de alimentação, moradia, e se psicologicamente se<br />

sentisse bem, não sofrendo com a solidão e nem com nenhum<br />

outro mal advindo de sua condição, não estaria ele atingindo o<br />

mais alto grau de desenvolvimento a que qualquer homem já<br />

chegou? Não soube responder.<br />

O que faria com o fruto de sua convivência com a natureza<br />

muda, escreveria suas impressões na areia para que o vento<br />

apagasse, sem se preocupar com o desaparecimento, ou então<br />

apenas engoliria tudo o que o mundo fosse lhe oferecendo,<br />

tentando tudo deglutir e vomitando os excessos? Não<br />

soube responder. E se não conseguisse resolver os problemas<br />

psicológicos, se o fardo da solidão fosse pesado demais, ele se<br />

tornaria alguém que urra de dores e tenta com uma pedra quebrar<br />

o dente que lhe faz sofrer. Esquecendo-se de sua raiz inflamada.<br />

Surgiu-lhe na mente a imagem dele próprio carregando pedras<br />

na mão, que serviriam para minorar seu sofrimento.<br />

O peso que as flores mortas tinham tirado de seus ombros,<br />

sua imaginação tinha recolocado lá. Interrompeu sua criação,<br />

não sem antes se perguntar por quê sempre que criava algo, isso<br />

logo se transformava em dor e tristeza. Não soube responder.<br />

Procurou então se esquecer de todas as perguntas e<br />

dessa sua tendência de criar mundos fictícios recheados de<br />

sofrimento. desejava que o movimento natural de seu corpo<br />

fizesse escorrer de seus ombros esses pesos inúteis, que uma


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

parte secreta sua insistia em carregar. Caminhou procurando<br />

sentir nada além de si mesmo. Logo percebeu como isso era<br />

difícil, e que o que sentia era na verdade os contatos de seu<br />

interior com o exterior.<br />

Seus pés pisando na areia macia, seu corpo recebendo os raios<br />

de sol, seu rosto sendo soprado pela brisa, suas idéias surgindo a<br />

partir do que ele estava vivendo. Essa constatação o conduziu a<br />

uma conclusão: quem existia não era propriamente ele, mas sim<br />

o resultado do atrito entre ele e o mundo externo. Ao contrário<br />

do que sempre imaginou, ele não era a chama da vela, mas sim o<br />

pavio que arde e é encoberto pela chama. Seu verdadeiro ser teria<br />

de se consumir como combustível, para que a vida continuasse<br />

acontecendo e projetando para ele e para o mundo, os resultados<br />

do atrito de quem ele era com o que existia fora dele.<br />

Levemente decepcionado por ter descoberto que era<br />

grande a possibilidade de que simplesmente não existisse,<br />

resolveu inconscientemente derrubar vários outros pequenos<br />

pesos inúteis que trazia amarrados a partes do corpo e da alma.<br />

Esses pesos tinham a forma de expectativas de realizações.<br />

Qual o sentido de conservá-las se ele próprio não fosse real?<br />

Por outro lado sabia que uma decisão dessas poderia ser um<br />

grande sinal de covardia. desistiria de qualquer ganho para<br />

evitar qualquer responsabilidade. Não havia como fugir, as<br />

bifurcações estavam por toda parte.<br />

Optou pelo conforto imediato, não queria carregar nada<br />

de inútil, nem a culpa de ser um eventual covarde. Sorriu. No<br />

sorriso havia o desapego de quem não precisa mais realizar nada.<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Sentiu o sol, a brisa, a areia, não o inquietou o fato de poder ser<br />

algo diferente do que achava anteriormente que era. Imaginou<br />

uma vela, com pavio, e a chama ardendo, a vela consumindo-se<br />

até que a chama se apagasse. Estava sereno.<br />

As luzes também estavam serenas, ganhando cada vez mais<br />

tonalidades amareladas. O mundo inteiro parecia acalmado dos<br />

furores do meio-dia. As águas e os barulhos do riacho escorriam<br />

tranqüilos, misturando o prateado com tons dourados que<br />

desciam do céu. Serena também foi a perturbação que o<br />

cutucou, as areias do chão não pareciam vivas, não pareciam<br />

existir de verdade. Não sentia na sola dos pés nenhum contato<br />

com o solo, sentia-se caminhando sobre nuvens. Mas enxergava<br />

seus pés pisando no chão. Era como se fosse cego do tato.<br />

Refletiu de maneira prática sobre sua situação, poderia<br />

estar perdendo a sensibilidade nos pés, ou então eles estariam<br />

tão acostumados a caminhar descalços que não consideravam<br />

mais opostas as superfícies que pisavam. uma possível perda de<br />

sensibilidade pareceu-lhe uma possibilidade mais lógica, temeu<br />

que se isso fosse verdade esse mal pudesse se espalhar por seu<br />

corpo tornando-o completamente insensível. A serenidade em<br />

que vivia logo inundou seu desconforto, dissolvendo-o.<br />

Apesar de estranho, aquele acontecimento não prejudicava<br />

em nada a continuidade de sua caminhada, pelo contrário,<br />

parecia que por mais que andasse, nada o desgastava.<br />

Reparou então, que à medida em que o dia começava a<br />

morrer, surgiam alguns tons de cores que ele nunca tinha


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

reparado existirem na natureza. um raio oblíquo de sol filtrado<br />

pelo verde dos arbustos projetava-se violeta sobre o tronco<br />

de uma árvore. Enxergou também lilases, azul-esverdeados,<br />

marrons claros, dourados envelhecidos, não havia cores<br />

absolutas e sim uma grande miscigenação de tonalidades.<br />

Nesse grande caldo cromático estavam mergulhados ele<br />

e sua serenidade. Parecia que a poesia colorida da natureza<br />

havia aparado as pontas que tornavam a vida espinhosa.<br />

Ele vivia aqueles instantes tranqüilos que sentimos alguns<br />

momentos antes de adormecer. As preocupações esquecidas<br />

e um calor no rosto contra o qual não desejamos lutar. Mas<br />

no seu caso esse estado de esquecimento e proteção não<br />

progredia para a inconsciência ou para o mundo dos sonhos,<br />

ele continuava a fazer o mesmo que no dia anterior decidiu<br />

começar a fazer. Cada passo que dava parecia que trazia<br />

menos responsabilidades, ao mesmo tempo não tinha aquela<br />

sensação de dever cumprido, que os passos da primeira parte<br />

da jornada lhe traziam. Mas isso não o incomodava.<br />

Sentia sintomas de leveza por toda parte, não conseguiria<br />

precisar como, mas de uma certa forma o mundo todo parecia<br />

ter perdido um pouco de sua solidez. Talvez essa estranha razão<br />

tivesse colaborado para que a vegetação e o relevo começassem<br />

a se tornar menos ríspidos. A terra avermelhada foi aos poucos<br />

perdendo sua tonalidade sanguínea e tendendo para um<br />

amarelo suave e inofensivo. Os espaços vazios entre arbustos<br />

foram sendo preenchidos por capim e flores silvestres. Tudo<br />

foi ficando mais verde. As grandes fendas causadas pela erosão<br />

desapareceram e o terreno agora era completamente plano.<br />

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178<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Ele percebia tudo isso e sentia-se participando de um grande<br />

quebra-cabeças, as peças estavam encaixando-se ao seu redor.<br />

As mudanças aconteciam, mas faziam parte de uma lógica,<br />

tudo seguia uma linha mestra, invisível para ele. O máximo que<br />

conseguia era enxergar-lhe os efeitos e reparar que havia um<br />

padrão que se repetia. Mas deixava, sem muitas preocupações,<br />

que os amarelos e verdes continuassem a se misturar, e que ele<br />

próprio continuasse se tornando diferente.<br />

Suas mudanças interiores não o inquietavam. Mas como<br />

agora o riacho corria em linha reta, a vegetação repetia-se e não<br />

havia subidas ou descidas para se distrair. deixou-se refletir<br />

sobre a outra pessoa que havia se tornado. Não saberia precisar<br />

quando, mas grandes mudanças tinham se operado dentro<br />

dele. Não somente dentro, mas também de dentro para fora, na<br />

maneira como enxergava a projeção da vida.<br />

Era como se antes existissem recantos apodrecidos dentro<br />

de si, que continuavam lá, mas ele conseguia enxergá-los. Só que<br />

isso, em uma situação normal, o levaria a uma revolta ou agonia,<br />

mas agora o conhecimento de suas podridões não o perturbava<br />

em nada. Sentia-se envolvido por uma nuvem anestésica, que<br />

não o deixava se revoltar contra seus abscessos. Talvez soubesse<br />

inconscientemente que com a própria caminhada eles secariam<br />

naturalmente. Talvez fosse apenas a responsabilidade que<br />

tivesse escorrido pelo caminho, e ele agora ria daquilo que<br />

desenvolvia-se para eliminar os sorrisos.<br />

Sua relação com o mundo exterior também tinha se<br />

modificado. A mudança havia sido sutil e, por isso mesmo,


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

profunda. A linha reta do seu contato com o que havia fora<br />

de si, permanecia a mesma, mas os pequenos detalhes tinham<br />

mudado e continuavam mudando. uma flor continuava sendo<br />

flor, mas ao mesmo tempo era símbolo, além disso, uma flor<br />

era um monte de pétalas reunidas, idéia que ele nunca teria<br />

anteriormente, e a flor também era cor. E essa cor o transmitia<br />

a um mundo mental onde entrava em contato com idéias e<br />

objetos (dentre eles até algumas flores), e então ele percebia as<br />

semelhanças entre essências de coisas aparentemente diferentes.<br />

E até parentescos entre objetos e idéias. Isso acabou tornando<br />

a flor muito menos importante do que quando ele ainda se<br />

relacionava com o mundo do jeito antigo. Na nova maneira o<br />

que havia era uma perda de importância das individualidades,<br />

dos tijolos da realidade, porque todos pareciam aparentemente,<br />

complementos dos outros. As flores encontravam maneiras de<br />

se unirem ao céu, a água do riacho era também ele próprio.<br />

Ele percebeu tudo isso. Não sabia as causas dessas<br />

mudanças, mas também não estava preocupado em descobrilas.<br />

A caminhada continuava. Olhando para cima encontrou<br />

uma nuvem no céu que se parecia muito com os arbustos que<br />

estavam ao seu redor. Era seu mundo mental, que soldava os<br />

diferentes unindo realidades. Reparou então que sua maneira<br />

de pensar havia se suavizado e isso acompanhava as mudanças da<br />

paisagem. da mais soterrada de suas idéias, até a mais distante<br />

nuvem, tudo parecia seguir uma lógica de desenvolvimento.<br />

Por um instante teve vontade de contrariar essa matemática<br />

secreta. Pararia de andar, voltaria pelo caminho já percorrido.<br />

desejou ser uma rachadura no vaso perfeito. Imediatamente a<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

nuvem anestésica borrifou-o com a idéia de que, não importava<br />

o que ele fizesse, isso já estaria previsto nos desenhos que<br />

decoram o vaso, e ao contrário do que pensava, estaria apenas<br />

colaborando de maneira mais eficiente para que as equações<br />

matemáticas funcionassem com mais precisão.<br />

depois desse princípio de rebelião interior, a anestesia<br />

parecia que havia penetrado profundamente em seu corpo<br />

e mente. Ele caminhava sem perceber, olhava sem enxergar<br />

e nutria-se de pequenas idéias repetidas que não lhe traziam<br />

felicidades ou dissabores. As cores ao seu redor pareciam cada<br />

vez mais irreais e lembravam as das flores desbotadas de uma<br />

coroa fúnebre.<br />

Após muito caminhar resolveu sentar-se em uma rocha.<br />

Não estava cansado, e já não se perguntava mais por que razão<br />

o cansaço não chegava. Mas essa parada o fez abandonar um<br />

pouco o torpor mental em que vivia, e recolocou seu raciocínio<br />

para funcionar. Examinou os ferimentos dos braços, abriu-os<br />

e fechou-os completamente sem sentir qualquer dor. Sentiu<br />

a farpa alojada sob sua pele, ela continuava no mesmo lugar.<br />

Não conseguiu fazer uma relação de suas feridas com o que<br />

estava ao seu redor, o que o deixou contente, pois começava a<br />

ficar cansado desse mundo ideal onde todas as coisas têm um<br />

encaixe correspondente.<br />

Precisava de coisas ímpares que não pedissem complementos,<br />

sabia que o mundo era cheio delas. Mas, principalmente, temia<br />

que em um lugar onde nada sobra sem um correspondente,<br />

ele próprio não tivesse lugar. Olhando para o chão encontrou


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

algumas pedras irregulares cuja disposição parecia não<br />

obedecer a nenhuma lógica, entretanto sabia que a lógica e a<br />

matemática eram sutis e dissimuladas, e que a mais irregular<br />

das situações poderia encontrar perfeito encaixe. Resolveu<br />

não aguçar sua percepção, vivendo cada instante de maneira<br />

relativamente rasa e aparentemente independente.<br />

Olhou para a paisagem que parecia perfeitamente regular<br />

até onde seus olhos enxergavam. Enfiou os pés n’água, cuja<br />

temperatura era tão neutra que nem parecia que seus pés<br />

estavam molhados. Reparou que o fundo do riacho era<br />

agora perfeitamente plano, areia e nada mais. Avançou com<br />

cuidado, não queria ser surpreendido por pedras, mas o fundo<br />

continuava plano. A água não atrapalhava em nada o ritmo<br />

de sua caminhada, prosseguia com a mesma facilidade que<br />

se caminhasse pela margem. Nenhuma depressão, nenhum<br />

resquício de irregularidade, o riacho parecia que havia sido<br />

canalizado de tão simétrico que era.<br />

As águas eram agora bastante transparentes e ele conseguia<br />

enxergar bem por onde pisava. Via seus pés e nada mais, nenhum<br />

resquício de qualquer substância viva, folhas, gravetos, peixes,<br />

nada, aquele riacho parecia um animal empalhado. Apesar da<br />

água ser transparente, começou a sentir seus pés sujos. Olhavaos<br />

e eles estavam limpos, mas sentia-os sujos. Talvez, o caminhar<br />

por um córrego com nenhum sinal de vida, fosse parecido a<br />

caminhar por outro atolado de cadáveres que boiavam.<br />

Saiu d’água e continuou caminhando pela margem, o<br />

horizonte lhe dizia sempre a mesma coisa, lembrou-se da dúvida<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

sobre parar de andar e continuar a enxergar o mesmo que<br />

enxergava, mas já havia decidido prosseguir. de alguma forma<br />

o ato de colocar pé ante pé, devia fazer algum sentido, e mesmo<br />

que ele nunca conseguisse compreender o real significado dessa<br />

atitude, isso não teria muita importância.<br />

O tédio da paisagem foi interrompido pelo aparecimento<br />

de umas pequenas florzinhas vermelhas que brotavam dos<br />

mesmos arbustos que antes mostravam apenas folhas verdes. As<br />

flores pareciam gotinhas de sangue flutuando no ar. Surgiu-lhe<br />

a idéia, de que talvez esse sangue estivesse procurando seu dono.<br />

O canto de sua boca moveu-se para cima com essa imagem. E as<br />

gotas agora formavam um mar, as flores se espalhavam até onde<br />

seus olhos conseguiam enxergar. A paisagem havia deixado de<br />

ser repetitiva, apenas para voltar a ser. O riacho a essa altura<br />

estava invadido pelas luzes de um dia velho. Os dourados<br />

começavam a ganhar o peso dos séculos, e já nasciam pelos<br />

cantos as primeiras amostras de azul escuro. Essas cores pesadas<br />

eram contornadas pelo vermelho sanguíneo, e formavam uma<br />

combinação, que a princípio, lhe enchia os olhos. Ele enxergava<br />

a beleza, talvez a maior que já tinha visto.<br />

A caminhada prosseguiu, e apesar das luzes prosseguirem<br />

sua lenta mudança, as flores permaneciam intactas, acompanhando<br />

fielmente o percurso do leito do riacho. Após algum<br />

tempo seus olhos foram se acostumando àquela paisagem. E o<br />

que era belo, após algum tempo tornou-se banal. As mesmas<br />

cores que o encantaram, agora só lhe despertavam tédio. O<br />

que não foi de todo negativo, pois o ajudou a manter-se longe<br />

daquele estado de anestesia que o tomava anteriormente.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Entediado, conseguiu abrir-se para alguns questionamentos<br />

sem esperar respostas: qual será o destino das misturas, quando<br />

todos os ingredientes que a compõe estiverem dissolvidos, qual<br />

será o resultado desse caldo integral? Muitas outras perguntas<br />

surgiram, mas cada uma vinha menos cheia que a anterior. A<br />

primeira englobava quase tudo o que ele desejava saber, mesmo<br />

assim a resposta não era necessária. Identificou na constatação<br />

de que a resposta para sua maior dúvida não ser necessária, um<br />

claro sinal de que estava mudando profundamente.<br />

Os passos se sucediam, e aquela sensação de que caminhava<br />

em nuvens era cada vez mais forte. de repente algo mudou,<br />

as flores vermelhas começaram a rarear, havia espaços vazios<br />

entre os arbustos e algumas árvores maiores apareceram. Entre<br />

elas enxergou uma pereira carregada. Sua primeira reação foi<br />

aproximar-se dela e estender a mão para apanhar o fruto. Mas<br />

sua mão parou no meio do caminho, seu estômago não lhe<br />

pedia mais nada. Sentia-se fisicamente pleno. Seu lado racional<br />

falou-lhe da seqüência do caminho e sua mão tocou a fruta sem<br />

arrancá-la da árvore. Os raios oblíquos de sol molharam-na de<br />

amarelo, e o transitório invadiu-o como idéia e sentimento.<br />

Reparou nos tons avermelhados que indicavam a madureza<br />

do fruto, soltou o que segurava e baixou a mão. Recomeçou a<br />

caminhar sem que nenhum arrependimento o atingisse.<br />

Novamente lhe parecia que as mudanças na vegetação<br />

eram mais uma maneira de quebrar uma rotina apenas para<br />

criar outra. A falsa mudança era mais conservadora do que<br />

apenas a manutenção das coisas como eram. Os espaços<br />

vazios entre arbustos, apesar de aparentemente irregulares,<br />

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184<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

comportavam-se de maneira repetitiva. O falso torto era<br />

uma maneira sofisticada de construir a velha linha reta. Os<br />

números ímpares surgiam em seu pensamento, vários exemplos<br />

de objetos que não encontram complementos ajudaram-no a<br />

identificar-se como algo que também vive dessa forma. Não<br />

sabia se havia começado a caminhar em razão de ser assim, ou<br />

a caminhada tinha por objetivo deixá-lo sem a necessidade de<br />

precisar de complementos.<br />

Era difícil admitir, mas se não sabia a qual dos dois opostos<br />

pertencia, então provavelmente tudo o que sabia, não valia<br />

muita coisa. Mas um dos pesos abandonados pelo caminho<br />

havia sido o orgulho, então não se abalou com a possibilidade<br />

de que os castelos que construiu durante o percurso ruíssem<br />

como brinquedos de areia. Aceitou com passividade o fato de<br />

que seu aprendizado tinha sido mentiroso, e talvez tivesse de<br />

novamente começar do zero e aprender o que fosse verdadeiro.<br />

Os arbustos de flores vermelhas ganhavam agora a<br />

companhia de flores alaranjadas, que brotavam nos mesmos<br />

galhos. O mundo acabava de ganhar mais uma cor, e a surpresa<br />

trouxe novamente por alguns instantes, o belo. Com cada vez<br />

menos peso nas costas, as dúvidas de uns poucos momentos<br />

atrás tinham se dissolvido. Mas o fato de se carregar pouco<br />

peso, e gradualmente ir se livrando do resto, tem vários tipos de<br />

conseqüências. Por um lado, não se sofre por inutilidades, mas<br />

por outro, a contemplação da beleza torna-se rasa e efêmera.<br />

Perguntou-se então, se o sentido último da beleza, não seria<br />

essa raridade e essa efemeridade, e se um mergulho profundo<br />

no belo, não seria apenas o saciamento de um vício que sempre


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

precisaria de mergulhos mais profundos. Só que nesse caso, o<br />

profundo era o que havia de mais superficial.<br />

Mas o que importava era que estava leve e escorregadio,<br />

qualquer que fosse a dúvida que o inquietasse, uma dúzia de<br />

passos para frente ela já tinha escorrido por seus ombros e<br />

ficado pelo caminho. Imune ao cansaço e às reivindicações<br />

do corpo, continuava caminhando. Não estava mergulhado<br />

em pensamentos egoístas, nem entregue a estados mentais<br />

anestésicos, reparava no que enxergava, aceitava as flores e<br />

luzes sem julgá-las ou questioná-las. Sentia-se bem, mas essa<br />

sensação não possuía nada do prazer oferecido pelo vício, era<br />

uma saudável alma aceitando as formas com que a natureza se<br />

apresentava.<br />

E uma nova cor surgiu, junto das florzinhas vermelhas<br />

e alaranjadas que havia nos arbustos, apareceu a flor azulmarinho.<br />

O mundo ganhava mais cor e seus olhos engoliam<br />

essa beleza sem procurar retê-la. Reparou que esses arbustos<br />

com flores de três cores se espalhavam para além das margens<br />

do riacho. Havia grandes espaços vazios onde apenas capim<br />

nascia, mas até onde seus olhos conseguiam enxergar, havia<br />

pontinhos coloridos com os arbustos multicolores. E à medida<br />

que caminhava os arbustos aumentavam de número e os<br />

espaços vazios diminuíam.<br />

Apesar de o dia estar caminhando rapidamente para seu fim,<br />

das luzes mudarem a cada instante, o céu permanecia neutro. E<br />

assim como o céu, estava seu estado interno. O único fato que<br />

o tirou da neutralidade foi, após um bom tempo, perceber que<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

estava participando dela. Notou que tudo estava encaixando-se<br />

de maneira muito natural, o que não era natural. Céu e terra<br />

neutros e ele passeando sem responsabilidades ou culpas, tão<br />

leve que nem pegadas deixava impressas no chão. Ele era um<br />

homem cheio de sangue por dentro, idéias, rins e tudo mais, não<br />

podia viver nesse mundo do perfeito encaixe, pois ele mesmo<br />

era uma farpa sob a pele do mundo. Nascido para incomodar e<br />

ser incomodado. Olhou para seus ferimentos, levou o braço até<br />

o nariz, nada, as secreções tinham ficado para trás e o ferimento<br />

perdera suas cores. Era como um retrato desbotado do que<br />

havia sido um ferimento.<br />

O que fazer contra esse estado de coisas? de dentro da<br />

perfeição anestésica de seu próprio estado de neutralidade,<br />

nascia a farpa que deveria perturbar a existência tranqüila desse<br />

estado. Talvez seja assim mesmo, as coisas nasçam agitadas e<br />

aos poucos vão aquietando-se, quando estão perfeitamente<br />

sossegadas, recomeçam com o movimento.<br />

Alegrou-se por essa energia que sentia mover-se dentro de<br />

si. Estava vivo e isso era a única coisa que importava. Possuía<br />

um corpo que se movia e um cérebro que poderia levá-lo onde<br />

quisesse. Começou a andar mais depressa, não sabia se era real ou<br />

apenas auto-sugestão, mas começou a sentir novamente o contato<br />

de sua sola do pé com o chão. Além disso, após algum tempo de<br />

marcha acelerada, começou a sentir sinais de cansaço. Sentou-se<br />

à beira do riacho contente com os pedidos de seu corpo.<br />

Não suava, mas suas juntas e ossos pareciam enjoados de<br />

executarem sempre o mesmo movimento. Enquanto seu corpo


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

recobrava o velho ânimo, ele observava as novas luzes que o dia<br />

moribundo trazia consigo. O sol iniciava seu mergulho rumo a<br />

seu esconderijo, amarelando toda a região ao seu redor. Reparando<br />

naquela cor, desejou estar envolto por ela, e surgiu-lhe a idéia de<br />

que aquele lugar irreal, que o céu todas as tardes pinta de dourado,<br />

que era ali sua verdadeira e única moradia. E que tudo mais, o<br />

vilarejo, a mata e o caminho, eram apenas um desvio provisório<br />

que um dia o levaria de volta à sua eterna morada.<br />

Logo percebeu que as luzes terminais do sol, exerciam<br />

sobre ele um certo efeito hipnótico, que poderia conduzi-lo<br />

novamente àquele estado de neutralidade do qual procurava<br />

fugir. desviou o olhar. Nas águas do riacho só o que havia era<br />

novamente os amarelos do sol, procurou alguém que não lhe<br />

contasse sempre a mesma história. deu de cara com as folhas<br />

coloridas de um arbusto, além das três cores desabrochadas,<br />

reparou haver pequenos brotos de outras cores. Havia florzinhas<br />

lilases, azuis, amarelas e até estranhas flores pretas que nunca<br />

tinha visto iguais. Os pequenos brotos existiam em todos os<br />

arbustos vizinhos.<br />

um maremoto de idéias agitou-se dentro de si. Primeiro<br />

havia visto arbustos sem flores, depois com flores de apenas<br />

uma cor, depois duas, três... e agora... percebeu que o arbusto<br />

era sempre o mesmo, e que conforme caminhava, as florações<br />

é que se multiplicavam. As cores iam se revelando aos poucos,<br />

conforme o tempo passava. As camadas se sobrepunham, mas<br />

sua consciência permanecia sempre alerta, enxergando o tipo de<br />

memória que o tempo deve apagar. Mas existia outra questão,<br />

não havia transcorrido tempo suficiente para que as flores<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

desabrochassem. Parecia que vivia num grande entroncamento<br />

de corredores vazios, e à medida que caminhava, células fotoelétricas<br />

iriam acendendo as luzes da sala em que ele estivesse<br />

naquele instante.<br />

Os mares agitados deslocavam de lugar suas certezas e<br />

traziam novos ingredientes que, misturados, tinham um gosto<br />

confuso, que não sabia julgar bom ou mau. Tempo, realidade,<br />

memória, ilusão, novas cores, novos estados mentais, novas<br />

relações entre tudo o que existe, os pacotes de certezas acabaram<br />

escorregando pelo tombadilho de seu navio e desaparecendo<br />

no fundo do mar escuro.<br />

Precisava de terra firme, decidiu que aqueles arbustos<br />

tinham flores e ponto final. Não importava quando e como elas<br />

surgiam, não queria saber se elas deixavam de existir assim que<br />

ele as deixava para trás, nem se as que estavam à frente ainda não<br />

existiam. Olhou para as flores e reparou nos pequenos brotos<br />

multicolores, era a vida se reproduzindo. A beleza o encantou,<br />

mas ele precisava de algo que represasse as águas revoltas que<br />

se moviam dentro de si. Lembrou-se da farpa que tinha sob a<br />

pele. Apalpou o braço procurando encontrá-la. Numa primeira<br />

tentativa nada encontrou, talvez ela tivesse sido absorvida pelo<br />

organismo dissolvendo-se na corrente sanguínea. Apalpando<br />

melhor encontrou um pedaço dela, tinha um terço do tamanho<br />

original. Mas ela estava lá, e apesar de parecer não querer mais<br />

ser, ainda era concreta.<br />

As flores estavam por todos os lados e suas cores eram<br />

como mil bifurcações para caminhos mentais especulativos.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Procurou refúgio nas águas do riacho. deitou-se e deixou que<br />

a correnteza lhe massageasse o couro cabeludo e lhe assoprasse<br />

nos ouvidos um zumbido agudo, que apesar de não ser muito<br />

agradável, lhe dava uma forte impressão de que alguma coisa<br />

viva estava a seu lado. Foram instantes de reequilíbrio. Suas<br />

emoções se assentaram sobre seu raciocínio. A água tinha um<br />

efeito tranqüilizante e parecia que recarregava suas baterias.<br />

O zumbido que ouvia foi diminuindo de intensidade à<br />

medida que a calma o invadia. Parecia que aquele ruído indicava<br />

seu nível de desequilíbrio, e agora ele sentia-se novamente<br />

sintonizado na freqüência correta. Essa paz interna espalhouse<br />

por seu corpo, a força suave das águas massageou todos seus<br />

músculos e tendões de uma maneira tão eficiente, que a sensação<br />

que tinha era a de que seu corpo simplesmente não existia. A<br />

leveza era total. Sentia-se tão bem que chegou a suspeitar que a<br />

água tivesse dissolvido seu corpo, e agora ele era também água,<br />

misturando-se na correnteza e seguindo rio abaixo.<br />

Levantou uma perna para certificar-se que estava ali. Algo<br />

chamou sua atenção, havia uma mancha roxa no meio de sua<br />

coxa. Não conseguiu se lembrar de ter batido aquela região.<br />

Quando ficou de pé reparou que havia várias dessas manchas<br />

espalhadas por seu corpo. Olhou nas águas e viu que as manchas<br />

avançavam até seu rosto. Algumas eram bem escuras, outras mais<br />

claras, indicavam que escureceriam em algum tempo. Assustouse,<br />

talvez tivesse sido picado, sem perceber, por algum escorpião<br />

ou cobra. Verificou todo seu corpo, e até onde conseguiu<br />

enxergar e apalpar, não havia nenhum sinal de mordida. Tentou<br />

então lembrar-se de todas as doenças que conhecia, e que não<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

eram muitas, não conseguiu encaixar suas manchas em nenhuma<br />

delas. Concluiu que talvez pudesse ser alguma espécie de<br />

gangrena causada por seus ferimentos. Mas por que sua perna<br />

gangrenaria por causa de um ferimento no braço?<br />

Além das manchas não sentia mais qualquer sintoma, pelo<br />

contrário, as águas do riacho tinham lhe feito muito bem e<br />

ele continuava sentindo-se aliviado do peso do próprio corpo.<br />

Imaginou então que aquilo poderia ser algum tipo de alergia, ao<br />

sol, à água, à terra, não sabia, mas achou que da mesma maneira<br />

que vieram, as manchas poderiam desaparecer.<br />

Procurou não olhar para elas, principalmente para as<br />

mais escuras. decidiu que fosse o que fosse aquilo, não o iria<br />

atrapalhar. Saiu do riacho e recomeçou a caminhar pela margem.<br />

As flores cheias de mistérios coloridos não mais o inquietavam.<br />

O local destinado a preocupações havia sido ocupado pelas<br />

manchas. Perguntou-se por que deveria acompanhar o leito do<br />

riacho, nem se lembrava direito das razões pelas quais escolhera<br />

caminhar por lá. Embrenhou-se no meio dos arbustos deixando<br />

o córrego para trás, talvez o fato das águas refletirem imagens, o<br />

tenha ajudado em sua decisão.<br />

Apesar de caminhar entre arbustos seus passos fluíam<br />

naturalmente e seus pés não sentiam os pequenos obstáculos<br />

do caminho. Ao longe, parecia que sumiam os espaços entre<br />

os arbustos, e os buquês de flores se uniam formando um<br />

único mundo colorido. A visão longínqua dessa maravilhosa<br />

imperfeição feita de pétalas, o fez lembrar-se de seu vilarejo.<br />

Aquilo que enxergava à frente era exatamente o contrário do


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

lugar onde passara toda sua vida. Talvez em algum estágio<br />

anterior da caminhada, dissesse que o que enxergava era melhor<br />

que seu vilarejo, ou então que o que via era a essência da beleza<br />

e em sua cidade a beleza espremia-se pelos cantos, afugentada<br />

pelo poder da feiúra. Ficou contente com sua definição “o<br />

contrário”, nela não havia méritos ou deméritos, nela havia<br />

espaço para mudanças e aceitava-se as qualidades e defeitos de<br />

ambos os lugares.<br />

Além disso, essa sua caminhada sempre teve por objetivo,<br />

mesmo quando decidiu não ter objetivos, o alargamento de sua<br />

percepção da vida, e o que havia de melhor para aumentar o<br />

campo de visão, do que conhecer dois extremos opostos do que<br />

quer que seja? Agora novamente tinha um objetivo, caminharia<br />

em direção do local onde todas as flores se unem. Lembrouse<br />

de quando havia caminhado na direção da grande árvore<br />

solitária de flores amarelas, de como tinha sido enganado pelas<br />

distâncias, não se esqueceu também das miragens, que sempre<br />

pregavam peças nos viajantes ansiosos. Mas não estava ansioso,<br />

e não achou que aquele tipo de luz fosse capaz de contar<br />

mentiras.<br />

Quando deu o primeiro passo tinha um sorriso nos<br />

lábios, o motivo eram os ciclos. Eles vêm e vão, e além de<br />

não nos darmos conta de suas existências, nos esquecemos<br />

rapidamente de seus altos e baixos. Vivemos o instante, que<br />

está embrulhado no futuro e recheado de passado. O momento<br />

inconsciente e inconsistente é nossa única religião, e pelos<br />

poros da consciência escorrem as memórias de todos os nossos<br />

ciclos. Acreditamos nas projeções cotidianas de uma realidade<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

impalpável, louvamos a união dos instantes, sem nunca duvidar<br />

de que seja uma verdade absoluta. Sem nunca suspeitar que o<br />

papel impermeável que embala cada segundo, não permite que<br />

eles se fundam.<br />

Ele sorriu de tudo isso, sorriu do que dentro de si, não pode<br />

ser consertado. Sorriu da imensa corrente indestrutível que para<br />

sempre ficará atada a seus pés. E foi sorrindo, que esse homem<br />

coberto de manchas roxas começou sua caminhada para onde<br />

o humano havia se tornado flor.<br />

Não tinha idéia da distância que o separava de seu objetivo,<br />

mas sabia que não era pequena. Entretanto, depois que os<br />

arbustos uniam seus buquês, parecia-lhe que não havia mais fim<br />

para esse novo mundo. devido à planície do terreno, conseguia<br />

enxergar muito longe, e até a linha do horizonte cobria-se por<br />

essa substância multicolor. de longe os arbustos individuais<br />

desapareciam confundindo-se num grande borrão colorido.<br />

O sol estava cada vez mais próximo do desaparecimento e<br />

escolhera sumir exatamente na direção das flores. A idéia de<br />

que esse fato poderia tornar a beleza do que enxergava quase<br />

insuportável, o levou a concluir que a beleza excessiva é tão<br />

benéfica e nociva quanto a feiúra demasiada. Por alguns instantes<br />

desconfiou de para onde estava caminhando, achou que talvez<br />

aquilo pudesse ser pior que seu vilarejo, onde no final das contas<br />

poderia encontrar porções de beleza espremidas pelos cantos.<br />

Mas seus passos eram naturais, seu corpo encaminhava-se para<br />

aquele lugar, e havia muito pouco o que fazer para impedir.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Por outro lado, ele estava formando uma conclusão<br />

precipitada, julgando, pelo que via de muito longe.<br />

Certamente quando chegasse lá descobriria as imperfeições<br />

daquele lugar. Encontraria as feiúras que a beleza espremia<br />

nos cantos. E podia ser até, que as belezas fossem bem<br />

menores do que o que ele imaginava, e ele se deparasse com<br />

um mundo muito parecido com o que estava acostumado.<br />

um lugar onde os ímpares caminhassem em vão à procura de<br />

seus complementos, e com a energia que despendiam, faziam<br />

com que a vida continuasse acontecendo.<br />

O belo canteiro sem fim prometia bons e maus caminhos...<br />

ele parou de caminhar desconfiado de si mesmo, estaria ele<br />

formando conclusões mentirosas e continuando a pensar de<br />

uma maneira viciada... o canteiro não prometia nada, era ele<br />

mesmo que criava e destruía virtudes e defeitos, transformandoos<br />

em algo absolutamente neutro. As bifurcações eram sempre<br />

escolhas dentro de si, as alegrias e as culpas também. Percebeu<br />

isso não apenas em relação ao grande mar colorido de flores,<br />

mas em relação a todos os aspectos da vida.<br />

Parou de caminhar, olhou para o chão e depois para o céu,<br />

fixou o olhar na linha do horizonte e depois pronunciou “o<br />

mundo é neutro”. Continuou caminhando, seus passos ganharam<br />

serenidade. Seu raciocínio prosseguiu, mas já não era como a onda<br />

quebrando-se na praia, era como a água da onda voltando para<br />

o mar. um mundo neutro é um mundo livre. Os heróis de todas<br />

as espécies, ou aqueles que almejam ser e não conseguem, todos<br />

esses são seres míopes que lutam contra o ritmo da vida. Talvez<br />

até, os que tentam e não conseguem, sejam menos míopes do<br />

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194<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

que os vencedores a quem invejam. Porque de alguma forma,<br />

seus fracassos representam uma espécie de visão inconsciente,<br />

que não os deixa seguir todos os passos, que a lenda de um<br />

mundo dividido entre bem e mal, quer lhes contar.<br />

E talvez seja dessa horda de fracassados que nascerá aquele que<br />

dará um passo adiante, aceitando e entendendo a neutralidade<br />

do mundo. Criando a nova forma de viver, onde bem e mal sejam<br />

apenas fatos históricos, e cuja única utilidade futura deles, seria<br />

humorística. Talvez a vida desse eventual homem neutro fosse<br />

muito parecida com a do atual, rotinas parecidas, sonhos, lágrimas<br />

e sorrisos. Mas cada ato ou emoção, cada movimento ou sorriso,<br />

estaria parcialmente preenchido com seu exato oposto. Sempre<br />

sobraria alguma energia positiva ou negativa que faria as coisas<br />

funcionarem. Mas todas as grandes culpas seriam neutralizadas<br />

pela presença das forças opostas a qualquer atitude.<br />

Recordou-se da grande árvore de flores amarelas, todas<br />

aquelas flores mortas caídas no chão, essa era a grande culpa que<br />

todos sempre carregam. Ninguém nunca se perdoa pelo fato de<br />

que algum dia morrerá. Apesar de todos os pesos inúteis que<br />

foi deixando pelo caminho, o que tornaram seu percurso mais<br />

agradável, sentia que desse peso ainda não tinha conse<strong>guido</strong> se<br />

livrar. Questionou-se sobre a impossibilidade de caminhar sem<br />

carregar peso algum. A própria natureza da caminhada talvez<br />

fosse inseparável de alguma espécie de carga.<br />

Olhando para as manchas de sua pele sentiu-se pesado e<br />

desanimado. O caminho até as flores parecia imenso e talvez<br />

elas não passassem de uma ilusão de ótica. Podia ser também


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

que a ilusão não viesse de seus olhos e sim de sua mente. Olhou<br />

para seus pés, que pareciam bem e estavam livres das manchas.<br />

Foram os pés, que lutando contra o desânimo, reiniciaram a<br />

caminhada.<br />

A vida continuava completamente ausente de seu percurso,<br />

nenhum sinal de insetos, nenhum pássaro no céu, nada além<br />

dele próprio se movendo no meio da vegetação. Apesar de<br />

perceber esse fato, isso parecia não perturbá-lo. Talvez, sem<br />

perceber, ele estivesse começando a viver de maneira mais<br />

neutra. Esse estado que poderia estar tomando-o para si, talvez<br />

tivesse começado sua invasão pelos pés. Que não se importaram<br />

muito com o desânimo que possuía todo seu corpo e deram a<br />

primeira ordem para que ele seguisse avante.<br />

Assim como aconteceu com a grande árvore de flores<br />

amarelas, a distância parecia que recusava-se a ser vencida,<br />

e depois de caminhar um bom tempo, as flores coloridas<br />

pareciam estar à mesma distância de quando dera o primeiro<br />

passo. A hipótese da ilusão ganhou força, mas seu corpo<br />

continuou caminhando. Não pensava em nada, andava olhando<br />

para o chão e de vez em quando verificava se a distância havia<br />

diminuído. Mas da mesma forma que aconteceu com a árvore<br />

de flores amarelas, quando ele já não esperava mais, a distância<br />

começou a ceder e pôde confirmar que as flores não eram<br />

ilusão. Elas ainda estavam bem longe mas a mancha colorida<br />

começava a ganhar contornos.<br />

Antes que seu cérebro pudesse raciocinar, suas pernas<br />

aumentaram a velocidade dos passos. Ele gostava de surpresas e<br />

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196<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

por isso continuava caminhando e olhando para baixo, queria<br />

se surpreender com as novas formas que a proximidade das<br />

flores apresentaria. Esse seu desejo acabou levando-o a uma<br />

surpresa bem maior do que imaginava. No seu caminho, semienterrada,<br />

havia uma rocha azulada.<br />

Ela chamou sua atenção, que com as mãos limpou a terra à<br />

sua volta. Percebeu que a rocha tinha uma forma elaborada e<br />

que o resto dela estava enterrada. Com o auxílio de uma pedra<br />

começou suas escavações. As formas aos poucos iam se revelando<br />

e enchendo-lhe de interrogações. Eram curvas elaboradas<br />

que compunham uma formação difícil de definir, se tivesse de<br />

utilizar uma palavra seria: matemática. E mesmo sendo o que<br />

mais se aproximava de uma definição, ainda era insuficiente para<br />

englobar o que aquelas formas poderiam representar.<br />

Resolveu não buscar definições nem deixar que as<br />

perguntas se perguntassem, antes que conseguisse desenterrar<br />

completamente aquele objeto. A terra onde cavava era<br />

extremamente mole, logo dispensou a pedra e cavou apenas<br />

com as mãos. A rocha azulada, além de outras formas, ia aos<br />

poucos revelando também outras cores. Surgiram tons de<br />

verde, amarelo, cores misturadas, outras que brilhavam, cada<br />

avanço seu presenteava-lhe com uma outra tonalidade. Além<br />

dos tons, as cores se manifestavam com brilhos, e também com<br />

algo mais, que não conseguia definir, talvez uma vibração que<br />

sentia nas pontas dos dedos quando tocava a rocha.<br />

Por alguns instantes temeu que esses brilhos coloridos<br />

pudessem representar perigo, alguma espécie de combustível


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

para suas manchas roxas da pele. de qualquer forma já tinha<br />

manipulado tanto aquela rocha que a coisa estava feita.<br />

Esqueceu-se dos temores e continuou cavando. Reparou<br />

que o objeto misterioso cheio de curvas revelava-se sempre<br />

de maneira oposta àquela que esperava. Parecia que seus<br />

contornos não obedeciam a nenhum tipo de lógica, nem<br />

humana, nem natural. Aliás, ele não conseguira definir se<br />

a rocha era criação humana ou da natureza. Ela possuía<br />

características de ambos.<br />

Cada nova forma era acompanhada de uma nova cor e de<br />

uma nova maneira de se manifestar dessa cor: vibrações, odores,<br />

brilhos intensos, ausência total de cor, e a mais estranha de todas,<br />

onde parecia que a textura e a cor da rocha se complementavam,<br />

tato e visão se fundiam numa única sensação, e aquela cor sem<br />

nome só poderia ser apreciada com os dedos.<br />

Junto das cores as formas se revelavam, a terra havia sido<br />

completamente removida e ele afastou-se para conseguir ter<br />

uma visão do conjunto. A peça inteira deveria ter uns três<br />

metros de largura por uns dois de comprimento, a profundidade<br />

das formações era pequena, talvez um palmo. Essas medidas<br />

técnicas foram fáceis de serem feitas, e ele procurou iniciar por<br />

elas a definição do que, afinal de contas, seria aquilo. Sabia que<br />

os passos seguintes seriam bem mais difíceis, mas não poderia<br />

se negar a dá-los.<br />

Ateve-se primeiramente àquele imenso conjunto de cores<br />

vivas, algumas estáticas, exercendo o papel tradicional de<br />

uma cor, outras pulsantes, brilhantes, incomodadas com o<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

existir, da mesma forma que uma sacola plástica quando é<br />

jogada de um lado para o outro por uma rajada de vento. Todos<br />

esses graus de aceitação, manifestados de maneira cromática,<br />

conviviam lado a lado. Alguns pedaços de verde pareciam veias<br />

pulsantes, loucas para jorrar sangue, e esses pedaços irrequietos<br />

de rocha colorida uniam-se a plácidos amarelos, que pareciam<br />

que sempre foram e sempre seriam pedaços de rochas coloridas.<br />

E caso recebessem o fluxo de vida que seus vizinhos estavam<br />

loucos para despejar-lhes, provavelmente continuariam se<br />

comportando como rochas amarelas. As conexões eram tantas<br />

e tão variadas, que talvez simplesmente tivesse de se conformar<br />

que não daria conta de compreendê-las.<br />

um roxo de um brilho intenso o fez lembrar-se de suas<br />

manchas na pele. decidiu abandonar as cores e ater-se às<br />

formas. Havia um núcleo central, que era a parte azul que<br />

havia enxergado primeiro, desse núcleo partiam braços (ou<br />

pernas) curvos, que acabavam conectando-se entre si. A forma<br />

toda parecia integrada e nenhuma de suas curvas parecia<br />

sem função. Entretanto, ele não poderia dizer que aquela<br />

era uma forma geométrica ou matemática. Se dissesse isso<br />

teria de dizer a mesma coisa de si próprio. As grandes formas<br />

compridas lembravam as patas de uma aranha. Procurou<br />

reconhecer na pedra azul o corpo e os olhos, mas aquilo não<br />

era uma aranha.<br />

Lembrou-se de que uma vez havia lido algo a respeito dos<br />

mil ângulos diferentes de visão desses animais, talvez aquela<br />

forma representasse o que uma aranha enxerga quando se olha<br />

no espelho.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Aquela era uma explicação muito simples, lembrou-se das<br />

formas da Mandala, nunca entendera ao certo o que realmente<br />

era uma, parecia ser uma espécie de mapa ósseo da vida e do<br />

universo. Mas não queria se aventurar em especulações sobre o<br />

que desconhecia. Sentia que seu caminho para o entendimento<br />

passava mais pela sensibilidade e menos pela lógica. E sua<br />

intuição sinalizou-lhe que aquilo não era um esqueleto. Não<br />

importaria com quais carnes preenchesse aquelas formas, nada<br />

dali nasceria. Mas isso não indicava que estivesse diante de algo<br />

ruim, lembrou-se do mundo neutro.<br />

Voltou a reparar nos brilhos coloridos que cobriam parte<br />

do grande objeto, eles lhe pareceram reflexos cristalizados das<br />

estrelas, de uma época em que o universo ainda conversava<br />

consigo próprio. Essa percepção deixou-o contente e saciado<br />

em seu desejo de descobrir o imenso. Não poderia deglutir toda<br />

a comida que lhe era oferecida e havia encontrado a hora certa<br />

de parar sem correr o risco de indigestão. Mas a gula ainda o<br />

fez dar uma última garfada: aquilo parecia alguma espécie de<br />

rolha da vida.<br />

Se conseguisse retirar dali aquelas formas esculpidas em<br />

pedra, todo o mundo escorreria pelo buraco aberto, a grande<br />

banheira da vida seria completamente esvaziada. Essa idéia<br />

pareceu-lhe advinda de uma alucinação causada por uma<br />

grande indigestão. de qualquer maneira, deu um passo para<br />

trás afastando-se da formação. Com esse único passo ganhou<br />

distância suficiente para melhor reparar nas cores. Algumas<br />

tonalidades pediam uma definição qualitativa, perverso,<br />

foi aplicado a um marrom escuro salpicado de partículas<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

verdes fosforescentes, plácido, a um azul celeste que refletia<br />

a luz de fim de tarde. dois adjetivos que de uma certa forma<br />

se compensavam, talvez então, se somasse e diminuísse as<br />

impressões que todas aquelas cores faziam em sua retina,<br />

também houvesse a mesma compensação. Então, teria uma<br />

prova científica de que a vida e o mundo são neutros.<br />

A rolha da vida o olhava, e ele percebeu que sua relação com<br />

ela não teria mais nenhum sentido em prosseguir. Continuou<br />

a caminhada, já no primeiro passo a forma rochosa havia<br />

escorrido de sua memória.<br />

As luzes do dia festejavam o final de sua vida bem vivida, o<br />

céu ia perdendo o brilho, mas a noite não parecia que queria<br />

chegar. As flores chamavam-no para perto delas, a distância<br />

havia diminuído, e apesar de conseguir identificar os arbustos e<br />

ter certeza de que o que enxergava não era mentira, continuava<br />

havendo algo de irreal naquilo que via. Mas o irreal também tem<br />

direito de existir. Percebeu que esse mesmo toque de irrealidade<br />

repetia-se na coloração do céu. Os tons lilases, dourados e azul<br />

misturavam-se, e a impressão que tinha era que aquilo era um<br />

cenário pintado. As cores não pareciam ter profundidade e seus<br />

tons eram perfeitos demais para serem reais.<br />

de qualquer forma, mesmo que o céu fosse mentiroso, ele<br />

teria de fingir que continuava acreditando nele, porque se até<br />

dele começasse a descrer, nada mais lhe restaria.<br />

Continuava caminhando e olhando para baixo, para que<br />

pudesse se surpreender com a distância que diminuía. A


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

tonalidade duvidosa do céu e a rotina dos passos o colocaram<br />

em um estado de tédio irritadiço. Começou a desconfiar<br />

que talvez não valesse a pena continuar andando, que<br />

talvez ele estivesse servindo a interesses que desconhecia.<br />

Pensou seriamente em parar, não dar mais nenhum passo e<br />

simplesmente aguardar. Esperando o que sabia que nunca<br />

iria chegar, mas não tinha problema, dessa forma pelo menos<br />

ele estaria tomando o destino em suas mãos. Entretanto,<br />

mesmo com a decisão tomada, suas pernas continuavam<br />

andando, é bem verdade que diminuíram a velocidade e<br />

deram aos passos a dúvida que antes não existia. Mas ele<br />

prosseguiu, lentamente diminuindo a distância que o<br />

separava do bosque de flores.<br />

Essa dúvida que começava em seus passos espalhava-se<br />

por todo seu corpo. Todo ele parecia mais relapso, efetuando<br />

movimentos de ombros e quadris que não colaboravam de<br />

maneira prática com a caminhada, seu corpo lhe perguntava se<br />

deveria mesmo prosseguir e usava para isso os instrumentos que<br />

estavam ao seu alcance.<br />

Ele percebeu qual seria o próximo passo da dúvida,<br />

seria o mais perigoso de todos, ela espalhava-se, e do corpo<br />

avançaria sobre o cérebro. Se chegasse lá teria grandes<br />

chances de convencê-lo a abandonar a caminhada. Já havia<br />

pensado nisso, mas dessa vez sentia essa idéia crescendo<br />

como uma onda enorme que quer se arrebentar na praia.<br />

Teria de descobrir alguma maneira de evitar que a onda se<br />

formasse. desviou o pensamento para onde pôde, o vilarejo,<br />

momentos engraçados e outros tristes, lembrou-se de várias<br />

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202<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

etapas de sua caminhada, sonhos de infância, desilusões,<br />

números, nada conseguia impedir que a vontade de parar<br />

de caminhar continuasse se espalhando por seu corpo.<br />

Seu incômodo crônico... apalpou longamente seu braço<br />

mas não conseguiu localizar qualquer sinal da farpa de<br />

madeira sob sua pele. Até seu ferimento parecia desbotado,<br />

havia perdido a força, e as gotas brilhantes e vivas de sangue,<br />

agora eram pequenas manchinhas de sangue coagulado. Seu<br />

organismo havia matado aquilo que queria matá-lo. Sorriu<br />

ironicamente percebendo que apesar de tudo, é sempre a<br />

morte que vence no final. Seu sorriso morreu para que uma<br />

dúvida nascesse: mas o que teria acontecido com a farpa?<br />

Teria escapado pelo próprio ferimento, ou havia derretido<br />

dentro de si? Lembrou-se que da última vez que a apalpara<br />

ela parecia menor, mas o que poderia indicar aquilo?<br />

As hipóteses se sucediam e o conduziam a um estado de<br />

confusão mental, enquanto isso seu corpo prosseguia com<br />

passos cada vez mais duvidosos. decidiu que não importava<br />

o que tinha acontecido com a farpa, ela não existia mais e<br />

ponto final. Mas uma idéia estranha surgiu no fundo de seu<br />

pensamento e aumentou rapidamente cristalizando-se em<br />

pergunta: será que aquela farpa teria algum dia existido?<br />

Essa pergunta confirmava que suas desconfianças tinham<br />

proporções maiores do que aparentavam. Ele tinha se lembrado<br />

da farpa com o objetivo de esquecer-se das suspeitas que nutria<br />

sobre a coloração dos céus, mas o remédio havia se provado<br />

pior que a doença.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Entristeceu-se por sua falta de perspectivas, sentiu que<br />

chorava, mas apalpando os próprios olhos percebeu que eles<br />

não derramavam lágrimas. Esse choro seco lhe trouxe novas<br />

perguntas: caso a farpa nunca tivesse existido, não teria ela<br />

sido criada por ele mesmo, como um instrumento de defesa<br />

contra um mundo perfeito? Porque nos mundos perfeitos não<br />

existem lugares para as individualidades, e ele, como ilha ímpar<br />

boiando solitária e tentando não se dissolver no oceano, usava<br />

de todos os artifícios possíveis para continuar imperfeito, mas<br />

existindo. Caso sua doença fosse curada, também o seria a vida<br />

que se amarrava a ela?<br />

E as perguntas continuaram se espalhando, ele sabia que<br />

teria de lutar contra elas: além da farpa, o que mais poderia<br />

ser irreal? Sobraria algo concreto? E se sobrasse, e ele tivesse<br />

certeza de que uma determinada árvore era verdadeira, o que<br />

então deveria fazer, subir nela e viver o resto da vida no alto de<br />

sua copa?<br />

O fogo das perguntas ardeu tanto e de maneira tão rápida,<br />

que parece que consumiu todo o oxigênio que as sustentava.<br />

Elas extinguiram-se, e em meio ao que sobrou, ele sentiuse<br />

como uma abelha, que se acalma quando a borrifam com<br />

fumaça. As dúvidas tinham sumido até de sua memória, seus<br />

passos eram automáticos e sua mente enevoada não desconfiava<br />

das cores suspeitas dos céus.<br />

Ele agora caminhava olhando para frente, não esperava<br />

mais as surpresas de diminuição de distância, que as olhadas<br />

eventuais para frente lhe traziam. Encarava o bosque que se<br />

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204<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

aproximava lentamente, mas seus olhos não mostravam mais<br />

ansiedade e nem contentamento pela distância que aos poucos<br />

era vencida.<br />

Esse estado nebuloso, que amainava a ira das perguntas,<br />

parecia que havia se espalhado por todo seu ser. Seu raciocínio<br />

voava sobre céus cinzentos sem enxergar onde poderia pousar.<br />

Coincidentemente algumas nuvens atravessaram o caminho<br />

do sol que estava quase se pondo, modificando completamente<br />

as luzes e as cores desse final de tarde.<br />

O mundo ficou um pouco mais cinza, e os verdes menos<br />

verdes, esse fato invadiu-o, despertando-o do estado mental<br />

enfumaçado em que estava, e colocando-o em um outro, onde<br />

o raciocínio e a emoção desenhavam-se, mas seus tons eram<br />

pastéis. Seus passos também adquiriram essas características,<br />

e ele caminhava como um profissional, passadas econômicas e<br />

constantes, de quem sabe que o percurso é longo.<br />

O bosque florido já não estava tão longe, mas a vegetação<br />

do caminho foi aos poucos empobrecendo-se. Espaços vazios<br />

apareciam cada vez em maior número, a terra cor de cobre<br />

começava a ficar exposta. As flores coloridas pareciam agora<br />

uma ilha de águas rodeada de secura. Mas ele não tinha sede.<br />

Caminhava por lá por outras razões.<br />

Olhava para frente e enxergava o bosque florido, as nuvens<br />

não tinham destruído a força das cores, ao contrário, o<br />

acinzentado havia se transformado em prateado e presenteava<br />

as flores com pequenas gotas de brilho, o que tornava tudo


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

ainda mais bonito. Mas não para os seus olhos. Eles enxergavam<br />

bem e percebiam a sofisticação que os pontos brilhantes<br />

adicionavam às cores brutas. Mas era dentro de seus olhos que<br />

algo havia mudado, eles não se impressionavam mais com a<br />

beleza bruta, preferindo a harmonia e a combinação de cores.<br />

Seus olhos não eram mais o ponto final de seus sentidos, eram<br />

apenas um fio condutor para o coração. O belo era mais sentido<br />

do que enxergado, e mais harmônico do que vistoso. Mas essa<br />

mudança não alterou sua disposição de continuar a caminhada<br />

rumo ao bosque.<br />

Vivia instantes cinzentos, e seu pensamento embrulhado<br />

nessa mesma cor, assim como suas pernas, caminhava com<br />

passos profissionais: não estava nem alegre e nem triste, e desde<br />

quando havia deixado o vilarejo, e mesmo antes disso, nunca<br />

havia se sentido tão equilibrado. Estava exatamente à mesma<br />

distância do riso do que das lágrimas. Sua mente começava a<br />

abolir os extremos. Ele estava mudando e imaginou seu próprio<br />

sangue encoberto pelas bolinhas de brilho prateado. Elas<br />

atenuavam o que havia de desespero no sangue, dando-lhe uma<br />

aparência aceitável e traduzindo-o como imagem semelhante à<br />

de uma flor ou de uma pedra.<br />

Sua mente fez um parágrafo para perguntas, e mais uma vez<br />

percebeu como as coisas tinham mudado, dessa vez elas não eram<br />

como um campo de cogumelos brotando simultaneamente<br />

em qualquer canto, elas se pareciam mais com uma árvore<br />

sólida cuja semente é atirada por um pássaro em um grande<br />

terreno vazio: caso eu realmente estivesse me tornando um<br />

homem neutro, que despreza os extremos, escolhendo sempre<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

o caminho do meio, seria possível encontrar grandeza longe<br />

das bordas? Ou o grande mora apenas nas pontas dos objetos?<br />

A pergunta lhe pareceu sólida, mas não se iludiu, os grandes<br />

carvalhos às vezes estão podres por dentro e desabam ao menor<br />

vento. Tentou dar uma resposta de casca grossa, que pelo menos<br />

aparentasse solidez: o grande mora nas bordas, no centro e em<br />

qualquer ponto intermediário de qualquer objeto que exista.<br />

Mas nossos olhos é que têm mais facilidade de enxergá-lo<br />

quando ele está no meio, bem em frente deles.<br />

Sem acreditar e nem descrer da resposta que havia dado,<br />

deixou espaço para mais uma pergunta: caso existisse um<br />

homem completamente neutro, será que ele conseguiria<br />

sorrir? Ou chorar? Não seriam o riso e o choro justamente<br />

conseqüências de uma ação extremada?<br />

Sua pergunta desdobrou-se em outras duas, e se não prestasse<br />

atenção estaria novamente em um campo de cogumelos que se<br />

reproduziam sem parar, cada um deles ansioso por sua própria<br />

resposta, que novamente conduziria a outras perguntas.<br />

Percebeu que ainda não era um homem neutro, que estava<br />

se encaminhando para isso, mas suspeitou que talvez o que<br />

houvesse fosse apenas caminho, e o homem perfeitamente<br />

neutro seria uma projeção de luzes no horizonte do deserto.<br />

Sorriu. Nem se lembrou da dúvida que tinha, se o<br />

homem neutro sorriria ou não. Talvez ele não fosse neutro,<br />

fosse apenas cinzento ou prateado. Aquilo não importava<br />

muito. Antigamente quando decidia que uma coisa não


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

tinha importância, logo era conduzido a pensar naquelas<br />

que realmente tinham. Mas dessa vez isso não aconteceu.<br />

Estava se distanciando do mundo feito de heróis. Pessoas,<br />

objetos e situações igualavam seus brilhos, e nada ou ninguém<br />

distinguiria sua silhueta da dos outros. Percebendo isso, não<br />

pode deixar de considerar esse acontecimento como um sinal<br />

claro de que estava se tornando um adulto. Continuou o<br />

raciocínio tentando definir o que seria um verdadeiro adulto,<br />

talvez fosse alguém que olhasse para um objeto, sem deixar<br />

que qualquer de suas partes individuais conseguissem fazê-lo<br />

formar uma opinião sobre o todo desse objeto.<br />

Mais um sorriso, dessa vez foi proporcionado por uma<br />

pergunta irônica: será que valia a pena ser adulto? Tentou<br />

pesar o custo benefício dessa escolha mas não conseguiu<br />

distanciamento suficiente para uma resposta. Experimentou<br />

então a técnica de imaginar-se fora da situação, enxergando<br />

tudo de longe, novo fracasso. Procurou não pensar mais nesse<br />

assunto, estava se tornando um adulto e não queria mais lutar<br />

contra isso. Lembrou-se das tremendas oscilações emocionais<br />

que tinha no início da caminhada, e comparou com a<br />

serenidade que vivia naquele instante. Então permitiu-se uma<br />

última pergunta a respeito desse assunto: seria tornar-se adulto,<br />

ir aos poucos enfraquecendo suas emoções?<br />

Olhou para o céu com vontade de enxergar algum pássaro.<br />

Nenhum inseto, nenhum ruído, nem seus próprios passos<br />

escutava. O mundo parecia absorver todos os sons e engolir<br />

toda a vida. Saudades da escuridão apareceram, o mistério<br />

encoberto pela capa noturna e iluminado pela lua e pelos vaga-<br />

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208<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

lumes, pediu para voltar a existir. Todas as sensações que<br />

vivera de noite queriam voltar à vida. Instintivamente buscou<br />

as estrelas no alto, mas encontrou a camada maciça de nuvens<br />

lilases e amarelas. Procurou se lembrar que as estrelas estavam<br />

lá, e era apenas ele que não conseguia enxergá-las.<br />

Mas se assim fosse, na verdade era como se elas não<br />

existissem. Tudo só existia através de seus olhos. Já nos tempos<br />

de vilarejo havia refletido sobre isso e essa constatação sempre<br />

o incomodara. desejava não ser sempre a mesma pessoa com o<br />

mesmo ponto de vista, desejava ser outros e enxergar as coisas<br />

sob ângulos diversos. Achava que não importava o quão culto,<br />

espiritualizado e observador qualquer pessoa fosse, por mais<br />

imbecis e restritas que fossem duas pessoas, seus pontos de<br />

vista diferenciados ofereceriam uma riqueza muito maior do<br />

que qualquer individualidade.<br />

Então sonhava em ser vários, pular de galho em galho e<br />

voltar carregado de experiências para sua velha morada. Não<br />

ter de acordar dia após dia repetitivamente com a mesma<br />

personalidade, os mesmos sonhos e culpas. Mas até onde<br />

sabia aquilo era um fato consumado, teria de se conformar<br />

em ser sempre um, convivendo com seu nome, seus hábitos e<br />

com a imagem que os outros faziam dele.<br />

Havia imaginado muitas maneiras de tentar ser outros, mas<br />

todas tinham se mostrado estratagemas infantis que não iam<br />

além das águas mais rasas. Enquanto isso, seus companheiros<br />

de vilarejo estavam perfeitamente conformados em serem<br />

apenas eles mesmos. Pelo contrário, todos seus esforços eram


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

no sentido de reforçar suas personalidades individuais. um<br />

nome bastava-lhes, e isso irritava-o e isolava-o. Fazendo-o<br />

consumir boa parte de suas energias, apenas com a mágoa que<br />

se acumulava em seu coração.<br />

As luzes opacas desse fim de tarde neutro, parece que<br />

dissolveram essas velhas mágoas. E ele tentou mentalmente<br />

se colocar na pele daqueles que desprezava, porque se<br />

contentavam com tão pouco. Entendeu-os. Quase os aceitou.<br />

A onda gigantesca de contentamento inundou-o, quando ele<br />

percebeu, pela primeira vez na vida, mesmo que de forma<br />

insipiente, que havia conse<strong>guido</strong> ir além de suas próprias<br />

fronteiras.<br />

Mas as luzes, as cores e a nova realidade em que vivia,<br />

não conseguiam sustentar alegrias por muito tempo, e após<br />

a onda arrebentar-se na praia, ela foi novamente sugada para<br />

dentro do mar sereno. O bosque colorido estava próximo,<br />

conseguia identificar as flores e os arbustos. Parecia-lhe<br />

que flores de várias cores brotavam apenas de um arbusto,<br />

construindo uma grande salada de cores. Era o mesmo tipo<br />

de arbusto que havia visto próximo das margens do riacho,<br />

mas agora a floração parecia estar completa. À distância em<br />

que estava, os arbustos pareciam buquês de flores e o bosque<br />

um grande arbusto composto por muitos buquês. Talvez cada<br />

galho de cada arbusto, se olhado de perto, também fosse um<br />

pequeno bosque... as verdades vinham dentro de outras iguais<br />

a elas, tudo não seria assim também? Imaginou um homem<br />

do tamanho do horizonte arrancando o bosque inteiro com<br />

uma mão e presenteando alguém com algumas flores.<br />

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210<br />

Humildade e passos ritmados, era disso que precisava<br />

e era para lá que o mundo o conduzia. Por enquanto ele era<br />

pouco maior que um arbusto, e as flores menores que sua<br />

mão. Parecia que a vida queria discipliná-lo, ensinando-o a<br />

cada instante coisas novas. Talvez o básico, que não havia<br />

sido bem aprendido. Estava como uma criança de colo que,<br />

cuidada pela mãe, aprende a dar os primeiros passos. Grande<br />

parte de seu orgulho havia ficado pelo caminho, e ele sentiu-se<br />

bem confortável em dar os primeiros passos, mesmo após uma<br />

caminhada tão longa.<br />

Ainda havia alguma distância entre ele e as flores. Olhou<br />

para sua mão posicionada na frente do bosque, que a essa<br />

distância cabia dentro dela. Naquele instante ele era o gigante<br />

que presentearia a amada com um buquê do tamanho do<br />

bosque. Sua grandeza estava em seus olhos e naquele instante.<br />

Eles juntos construíam gigantes que daqui a pouco tornavamse<br />

minúsculos homenzinhos, para quem uma flor era uma<br />

montanha a ser escalada.<br />

Os tamanhos só existiam se relacionados a outros objetos.<br />

Nada era isoladamente grande ou pequeno. Imagens de gigantes<br />

encolhendo até ficarem do tamanho de formigas invadiram<br />

seus pensamentos. E quando os gigantes uniram-se em grupo<br />

criando um formigueiro para eles, uma outra pergunta pode<br />

aparecer: não seria todo o resto assim também? As coisas só<br />

existiriam porque estavam relacionadas com outras, formando<br />

uma teia invisível que sustentava a vida. Nada existiria<br />

isoladamente e nada poderia ser separado do todo, nem se fosse<br />

destruído ou pulverizado, sempre sobrariam resíduos desses


objetos que continuariam existindo e relacionando-se com o<br />

todo de alguma outra maneira.<br />

Nenhum feito ou atitude humana conseguiria escapar<br />

dessa regra implacável. E para efeito do bom funcionamento<br />

desse sistema, não haveria qualquer espécie de distinção real<br />

para duas atitudes diametralmente opostas. Tudo contribuiria<br />

da mesma forma para que o jogo continuasse a ser jogado,<br />

impulsionado sempre pelo inextinguível combustível das<br />

causas e conseqüências.<br />

Num mundo feito dessa maneira, teoricamente não haveria<br />

espaços para as individualidades. Elas seriam como alguém<br />

eternamente nadando contra a correnteza, ou então como<br />

ilhas de sal, cuja existência é testemunho diário de sua própria<br />

dissolução no mar. Talvez isso explicasse porque todos os seres<br />

humanos que havia conhecido, sentiam constantemente um<br />

desconforto existencial. Algo como uma ardência na alma, que<br />

está represada, mas cujo estado natural é a liberdade. Existir<br />

então, seria esperar que o sal que forma cada um, dissolva-se<br />

no mar que o envolve. Mas por que seria necessária essa etapa,<br />

por que precisamos primeiro dividir para depois unir? Talvez<br />

o sal marinho venha desses bilhões de ilhotas individuais, que<br />

quando se derretem no mar acabam presenteando-o com seus<br />

gostos característicos.<br />

Sua mente viajava por esses raciocínios abstratos, até que<br />

finalmente conduziu-o de volta para o formigueiro de gigantes.<br />

um formigueiro clássico com formigas clássicas, mas com uma<br />

exceção, todas elas tinham a clássica cabeça de um gigante,<br />

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212<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

barba, cara de mau, cabelos longos, um nariz comprido e<br />

olhos ameaçadores. Acompanhou mentalmente a rotina do<br />

formigueiro, que era igual à de qualquer outro. Tarefas prédeterminadas<br />

pelos genes e cumpridas a risca, um sistema<br />

social perfeito, com exemplares obedecedores de regras.<br />

dali sua mente conduziu-o para seu vilarejo, recordou-se<br />

das formigas desgarradas do caminho e de seu personagem<br />

fictício. Teve também algumas pequenas recordações de<br />

seus atos cotidianos, barbeando-se, escovando os dentes e<br />

almoçando.<br />

Agora o bosque já estava bem perto e os arbustos pareciam<br />

cada vez maiores. Se os gigantes não fossem como formigas, as<br />

formigas é que seriam gigantescas. Seus passos profissionais em<br />

pouco tempo cobririam a distância que o separava das flores. O<br />

dia estava acabando, mas talvez ele chegasse a tempo de ver o<br />

mergulho do sol deixando rastros de luz por entre os arbustos.<br />

Mesmo assim não apressou o passo.<br />

Seus pensamentos de instantes atrás já estavam nublados,<br />

sentiu-se como uma imensa ampulheta cuja parte debaixo estava<br />

quebrada. O universo derramava-lhe imensas quantidades de<br />

areia, que atravessavam rapidamente sua cabeça e escorriam por<br />

seu corpo para voltarem a ser derramadas no chão, ajudando a<br />

formar as dunas de um deserto. Lembrava-se ainda do conteúdo<br />

do que tinha pensado, mas tudo aquilo parecia distante e sem<br />

importância. Talvez outras idéias viessem, e no instante em que<br />

estivessem escorrendo por sua cabeça lhe pareceriam grandes<br />

e importantes, mas após algum tempo só o que mudaria<br />

seriam as dunas do deserto, que aumentariam de tamanho.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Sorriu. Como costumava fazer quando estava segurando um<br />

punhado de areia na mão e ela escorria por entre seus dedos.<br />

Reparou que nesses últimos metros de percurso, a terra havia<br />

se transformado em areia. Perguntou-se se a areia voltaria<br />

a ser terra, ou se flores tão coloridas quanto as do bosque<br />

poderiam encontrar alimento na areia branca.<br />

Sua pergunta ficou sem resposta, desconfiou que<br />

talvez, de agora em diante, se houvesse outras perguntas,<br />

elas também só ouviriam o silêncio. E era isso que ele<br />

continuava escutando. As imagens mudas dominavam seus<br />

sentidos, pensou em gritar alguma coisa, ou então sussurrar.<br />

Permaneceu calado. O universo despejava novas areias que<br />

estavam atravessando sua cabeça: um grito talvez fosse<br />

como o aparecimento do sol, logo após o sol se pôr. Calouse<br />

porque as mudanças precisam ter um sentido, e acabam<br />

sendo nocivas se existem apenas pela mudança em si. da<br />

mesma forma que qualquer coisa é nociva quando existe<br />

apenas para si mesma.<br />

Ele não precisava de dois sóis. Metade daquele que conhecia<br />

já havia sido engolido pelo horizonte. As nuvens tinham sido<br />

varridas para longe. Mas não havia vento. Apesar de não haver<br />

mais nuvens, do céu voltar a estar limpo e do sol amarelar o<br />

horizonte, a sensação de meios-tons que o mundo transmitia<br />

nunca tinha sido tão forte. E esses meios-tons não se referiam<br />

apenas às luzes, ele sentia-se fluido, amarelado e distante, como<br />

uma nuvem que tenta se aproximar de um sol poente. desejou<br />

naquele instante ter um espelho para poder olhar-se. Temeu<br />

não conseguir enxergar nada.<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Estava a poucos metros do bosque, imaginou que a essa<br />

distância, tantas flores juntas exalariam um odor que deveria<br />

ser tão delicado quanto as flores eram belas. O ar estava parado<br />

e atribuiu a isso a falta de cheiro. Aliás, tudo estava parado,<br />

o bosque era completamente imóvel, e envolvido pelas cores<br />

irreais do fim de dia, tinha a impressão de que caminhava<br />

dentro de uma fotografia.<br />

Essa ausência completa de tudo que se move, começou a<br />

movê-lo do estado contemplativo e nublado em direção aos<br />

trovões barulhentos da solidão. Não que não sofresse com ela,<br />

mas desse mal nunca morreria, ela era no máximo como um<br />

resfriado forte que o deixava de cama por dois dias. Mas pela<br />

primeira vez sentiu que esse resfriado poderia se tornar uma<br />

pneumonia.<br />

Olhou para os céus e para o chão, nenhuma formiga e<br />

nenhum mosquito. Tudo completamente estático. Aquilo<br />

começou a irritá-lo. Arrancou um tufo de capim e atirou-o<br />

para cima observando seu movimento no ar. Mas uma fração<br />

de segundo depois o capim estava estático no chão. E por ter<br />

sido arrancado parecia ainda mais parado.<br />

Sentiu um grande vazio no peito, como se todos seus órgãos<br />

internos tivessem sido extraídos. Ele era apenas uma casca de<br />

homem, que se movia impulsionado pela força da inércia. Mas<br />

seu cérebro permanecia no lugar e tentou racionalizar o que<br />

estava sentindo: se o fato de estar completamente sozinho o<br />

deixava sentindo-se como apenas um esboço de ser humano,<br />

então o que preenchia seus espaços em branco não eram as


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

linhas e cores de sua própria matéria interna, mas sim um<br />

conjunto de informações que pertenciam a outras pessoas,<br />

objetos e situações. Ele mesmo não existiria. Seria apenas mais<br />

um recipiente materializado pela vida, para que ela pudesse<br />

continuar se manifestando. A dor devia-se ao vazio, mas<br />

enchendo-se esse espaço vago, a dor cessaria.<br />

Começou a tentar definir-se, o que realmente ele era, ou<br />

tinha sido, um grande feixe de nervos cujo único propósito<br />

é existir inflado por um gás qualquer, que evitando que haja<br />

contato entre as partes sensíveis, evita a dor. Ele viveria com<br />

o único propósito de não sofrer. Percebeu que essa linha de<br />

raciocínio apenas aprofundaria o vazio que sentia, e que, por<br />

enquanto, ainda poderia ser suportado. Seria melhor investigar<br />

as outras possibilidades, do que apenas inventariar os prejuízos,<br />

se o que o preenchia escapou por um buraco deixando-o<br />

entregue às dores, o caminho lógico seria encher-se novamente<br />

e descobrir por qual orifício é que havia escapado seu recheio.<br />

Olhou para as flores, que já estavam bem próximas, depois<br />

para o céu, essas eram as matérias-primas a que tinha acesso.<br />

depois lembrou-se que talvez a primeira providência fosse<br />

achar o lugar por onde essas coisas escapam, para depois... mas<br />

mesmo que encontrasse, aquilo tudo lhe parecia tão provisório.<br />

Sentia-se pequeno e infantil, sabia que, no fundo, a única<br />

solução definitiva para as dores que sentia, seria construir-se de<br />

dentro para fora, empilhando matéria sólida, que teria origem<br />

em materiais externos, mas que seria transformada por ele. dos<br />

gases e líquidos que tomasse da natureza, construiria pedras<br />

que nunca escorrem por buracos, por maiores que sejam.<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

digam a um homem que grita de dores que ele deveria ter<br />

escovado melhor seus dentes, passando a escova tantas e tantas<br />

vezes em cada sentido para que as cáries não se formassem. Ele<br />

nada escutará. Qualquer ligeira brisa que movesse suavemente<br />

os arbustos, o aparecimento de uma joaninha ou mesmo a volta<br />

das águas em movimento do riacho, isso aliviaria suas dores<br />

fazendo-o esquecer do material sólido como sendo a solução<br />

definitiva para seu problema.<br />

Como nada disso acontecia, ele continuava mentalmente<br />

buscando sua cura completa, para isso despediu-se do pouco que<br />

tinha, parou de caminhar e fechou os olhos. Não queria luzes,<br />

cores nem formas, encararia de frente aquilo que o atormentava,<br />

sem pequenos subterfúgios nem gases anestesiantes. As idéias<br />

atropelavam-se com rapidez, sempre estive e todos sempre<br />

estiveram, estão e estarão absolutamente sós. Essa constatação,<br />

por si só, não é alegre nem triste. É apenas como o mundo é.<br />

Aceitar isso é um grande primeiro passo, mas o ato de caminhar,<br />

por si só, não é necessariamente melhor nem pior do que o ato<br />

de ficar parado. Quanto mais necessidade temos de estarmos<br />

sempre acompanhados, mais tendência possuímos de termos<br />

vazamentos nos gases que nos anestesiam.<br />

Abriu os olhos quando percebeu que estava sendo dogmático,<br />

não queria escrever os dez mandamentos contra a solidão.<br />

Também não tinha nenhuma certeza a respeito de suas próprias<br />

dores, do material gasoso e sólido, tudo isso poderia não passar<br />

de algum preconceito incrustado em seu subconsciente desde a<br />

infância. Alguma doença comportamental crônica que, sempre<br />

o fizera, nas mais diferentes épocas e situações, comportar-se


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

exatamente da mesma maneira. Como se existisse um esqueleto<br />

deformado que ele sempre enchia de carnes, e cujo resultado era<br />

alguém com a mesma deformação.<br />

deixou espaço para uma última idéia a respeito desse<br />

assunto: se existissem esses malditos gases da felicidade<br />

cotidiana, quando eles vazassem e a dor invadisse seu peito, essa<br />

dor também viria sob a forma gasosa e volátil, e da mesma forma<br />

disfarçada e sutil que chegou, iria embora. Abrindo espaço para<br />

que novamente os gases anestésicos voltassem.<br />

Levantou-se. Atravessou os poucos metros que o separavam<br />

do bosque. Já dentro dele caminhou entre os arbustos floridos.<br />

Percebeu que havia um espaço razoável entre as plantas, mas<br />

quando olhava de longe esse espaço não existia. Lembrou-se do<br />

gigante que havia se tornado formiga. Mas não era somente o<br />

espaço entre os arbustos que tornava a imagem distante, diferente<br />

do se estar dentro do bosque. Lá dentro ele não conseguia ter<br />

a noção do conjunto das cores combinadas. Observava galhos<br />

com diversas cores diferentes, mas as informações numerosas<br />

e diversas disputavam sua atenção, e não o deixavam formar<br />

uma imagem, nem construir uma sensação. Começou a sentirse<br />

como alguém que tem coceiras por todo corpo. Além disso,<br />

também as imperfeições das flores e do terreno ajudavam a<br />

conduzir sua atenção para outras bifurcações. Flores mortas<br />

fizeram-no lembrar-se da grande árvore de flores amarelas.<br />

Conduzido de um lado para outro pelo pensamento, ele<br />

começou a questionar-se sobre o sentido de ter feito tanta força<br />

para chegar a um lugar, que no fundo era tão vulgar quanto<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

qualquer outro do caminho. Irritou-se por não obter respostas.<br />

Arrancou com força um maço de flores, e antes de despedaçálas<br />

lembrou-se de cheirá-las, a falta de odor o irritou ainda mais.<br />

Colheu outras amostras e obteve os mesmos resultados, nada.<br />

Aquelas deveriam ser flores especiais, ou então ele deveria estar<br />

com algum problema de olfato.<br />

O bosque parecia maior do que ele imaginava. Para acalmarse<br />

caminhou pelo meio dele. Havia sim, beleza naquelas flores,<br />

e as imperfeições que percebeu não a diminuía. Mas mesmo<br />

havendo uma grande quantidade de cores, parecia haver<br />

um padrão repetitivo impresso naquelas tonalidades. uma<br />

pré-determinação sutil que tornava surpreendente a beleza,<br />

retirando dela seu lado selvagem. As flores mortas caídas no<br />

chão, compensavam parcialmente essa perfeição matemática,<br />

pontuando de vida o que estava vivo, mas não parecia estar.<br />

Nutrindo uma profunda simpatia pelas flores caídas, apanhou<br />

algumas delas do chão e com todo seu desejo procurou encontrar<br />

nelas alguma espécie de odor. Sua imaginação tentou ajudá-lo,<br />

mas foi honesto, naquele bosque nem a morte tinha cheiros.<br />

Conformou-se com esse fato e continuou andando por entre os<br />

arbustos, até onde enxergava eles continuavam coloridos, sem<br />

cheiro, com espaços regulares entre si. depois de muito andar as<br />

repetições não mais o chateavam, ele as havia aceito.<br />

As luzes inclinadas do sol jogavam seus dourados sobre<br />

as plantas e sobre seus olhos. Para ele parecia que o mundo<br />

dissolvia-se numa grande explosão amarelada. Três quartos da<br />

grande bola já tinham sido engolidos pelo horizonte.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Mesmo atrapalhando sua visão, essa luz teve sobre ele<br />

um efeito calmante. Fechou os olhos por alguns instantes e<br />

continuou percebendo, por detrás das pálpebras, a força da<br />

luz amarela.<br />

As flores mortas do chão já estavam mergulhadas numa<br />

escuridão crescente, entretanto, as flores dos galhos mais altos<br />

dos arbustos, recebiam raios diretos de luz, eram seus fugazes<br />

instantes de maior brilho antes que o escuro voltasse. Apanhou<br />

no chão uma pequena flor branca e levantou-a até onde<br />

pudesse ser iluminada por um raio de sol. A florzinha tingiu-se<br />

de amarelo e quem a visse do jeito que ela brilhou, nunca diria<br />

que ela não era branca e que não estava viva. deixou-a cair no<br />

chão escuro.<br />

Sua irritação havia terminado e ele agora sentia-se bem.<br />

Havia uma pequena clareira à sua frente, o único lugar que<br />

enxergava onde não nasciam arbustos. Ele foi até lá e sentouse<br />

no chão. Nesse instante percebeu que sua caminhada havia<br />

terminado. Não sabia qual a origem e a razão dessa informação,<br />

mas não teve nenhuma dúvida a respeito dela. Ela também<br />

não atraiu perguntas ou inquietações, veio com a sutileza de<br />

um inseto que consegue pousar sobre a superfície da água sem<br />

submergir. Ele também se sentia com esse mesmo peso. Nada<br />

de perguntas ou pensamentos encadeados. Apenas os últimos<br />

raios de sol e o lençol da noite sendo estendido sobre ele.<br />

deitou-se para poder contemplar luzes e sombras ao<br />

mesmo tempo. O chão tinha imperfeições e não conseguia ficar<br />

deitado, algo parecia que o incomodava, mas quando apalpava o<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

solo nada encontrava. Conformou-se em permanecer sentado,<br />

a noite terminava de engolir a calda do dia, mas a digestão<br />

prometia ser longa. O sol havia sido completamente devorado<br />

pelo horizonte, mas tinha deixado grandes quantidades de<br />

luzes amarelas para trás, e elas ainda esperneavam, acreditando<br />

que ainda tinham chances de existir.<br />

Ele mesmo sentia-se no meio de uma briga desigual. Mas<br />

sabia ser uma testemunha silenciosa, que mesmo que quisesse,<br />

não poderia interferir. Apesar de desigual, a disputa tinha algo<br />

de majestosa. E as luzes morriam de maneira heróica, uma<br />

grande batalha pintada de nobreza. disputa completamente<br />

silenciosa, onde qualquer ruído apenas diminuiria a grandeza<br />

do que estava acontecendo.<br />

As flores que estavam no alto dos arbustos tinham perdido<br />

suas fontes luminosas, e agora eram lambidas por uma palidez<br />

que diminuía a força de suas cores naturais, e que aos poucos,<br />

avançava do pálido para o escuro. Esse estado sombrio avançou<br />

das flores para o seu interior. Percebeu que da mesma forma<br />

que o chão não acolhia bem suas costas, o mundo inteiro era<br />

construído de imperfeições. Elas eram os tijolos da existência,<br />

e além de se manifestarem claramente através de tudo de<br />

imperfeito que existe, também formavam os esqueletos daquilo<br />

que aparentemente era perfeito.<br />

Acreditava que a busca da perfeição era um mito mentiroso<br />

criado pelo homem, mas entristecia-se em não poder fazer<br />

distinções entre dois objetos diferentes, pois ambos seriam<br />

imperfeitos. Talvez a imperfeição de um fosse mais evidente


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

que a de outro, mas mesmo as maiores virtudes evidentes<br />

poderiam se revelar grandes defeitos. A questão passava a ser<br />

outra, devemos ou não nos aprofundar em nossas observações,<br />

mesmo correndo o risco de que esse aprofundamento nos faça<br />

descrer daquilo em que acreditamos?<br />

Acreditar em um mundo com bons e maus era tão mais<br />

simples. Mas isso havia ficado definitivamente para trás. A noite<br />

havia engolido as luzes boas e más, e agora só o que existia era a<br />

grande camada azul escura que não fazia distinção de nada. A<br />

noite também havia engolido as últimas manchas amareladas<br />

do céu. Os ares tinham um azul irreal, nem claro e nem escuro.<br />

Olhou para o céu procurando as primeiras estrelas, mas elas<br />

ainda não tinham chegado.<br />

Apoiou suas mãos no chão, mas parecia que sempre<br />

havia algo que incomodava, alguma raiz ou pedra. Apalpava<br />

novamente o local com os dedos e não conseguia localizar o<br />

que era. Talvez nunca conseguisse o conforto ideal, e tivesse de<br />

se conformar com isso. de qualquer forma não se sentia mal,<br />

seu corpo continuava completamente saciado de todos seus<br />

desejos.<br />

As flores perdiam completamente suas cores, que deixavam<br />

de distinguir-se umas das outras. Qual era o significado de<br />

uma cor enquanto estivesse mergulhada no escuro? As cores<br />

existiriam somente para os olhos, ou seria o contrário? Essas<br />

perguntas atravessaram-lhe o pensamento rapidamente, sem<br />

pedir de verdade qualquer resposta. O azul sem definição,<br />

à medida que avançava rumo ao escuro, o acalmava, e ele já<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

aceitava sem debater-se, que as coisas todas poderiam ser mais<br />

parecidas do que aparentavam.<br />

Sentado no chão, no meio de um bosque de flores que vai<br />

sendo encoberto pela noite, sua situação abria a possibilidade<br />

para que muitos questionamentos acontecessem. Entretanto,<br />

a maioria deles não teve forças para atacá-lo. A situação toda<br />

servia de filtro para pensamentos lógicos. Nem sobre seu<br />

próprio futuro, nem sobre a seqüência dos acontecimentos<br />

ele quis saber, a única pergunta que atravessou o bloqueio que<br />

sua condição impunha foi essa: as noites de ontem e as flores<br />

de hoje não seriam apenas duas maneiras diferentes de dizer a<br />

mesma... a pergunta murchou antes que terminasse de florescer,<br />

entretanto deixou odores no ar, e eles fizeram seu cérebro<br />

funcionar de maneira diferente do que até então...<br />

Sentia-se enormemente distante da época em que precisava<br />

lutar para superar obstáculos e atingir objetivos. Os obstáculos<br />

em si, pareciam tão importantes quanto o objetivo. E as<br />

importâncias de tudo igualavam-se. um sorriso plácido e efêmero<br />

apareceu em seu rosto, mas seus lábios logo escorregaram para<br />

baixo, dando-lhe uma aparência de neutralidade.<br />

As flores sem cheiro, e que agora também não tinham cores,<br />

o envolviam, mas seus olhos estavam fixados no céu, que a essa<br />

altura já podia ser chamado de noturno. Não havia nuvens ou<br />

estrelas. Recordou-se de tudo o que vivera de estranho, das cores<br />

irreais, das sensações, da falta de cheiro das flores, suspeitou<br />

então que aquela poderia ser uma noite sem estrelas. Mas foi só<br />

terminar de pensar isso que conseguiu enxergar a primeira.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Logo em seguida outras começaram a aparecer. Elas estavam<br />

todas lá, as mesmas velhas estrelas da noite anterior. Sentiu algo<br />

como uma sensação de acolhimento, recordou-se do que havia<br />

sentido quando se enterrou num buraco para fugir do frio.<br />

Mas, no fundo, a sensação era diferente, daquela vez ele havia se<br />

entregado completamente ao prazer que sentia, dessa vez tudo<br />

parecia mais pálido, uma solidariedade da qual desconfiava e<br />

que sabia imperfeita.<br />

Mas isso não o incomodava, conformava-se com aquilo<br />

que possuía e acreditava que tinha exatamente o máximo<br />

que poderia ter, qualquer coisa a mais seria um excesso<br />

mentiroso, mais peso para carregar inutilmente. de<br />

repente reparou na lua. Ela já deveria estar lá há um bom<br />

tempo, mas só agora ele percebera. A lua cheia iluminava<br />

a noite com suas luzes prateadas. Algumas flores do alto<br />

dos arbustos tiveram suas cores ressuscitadas pelo luar.<br />

Mas não eram exatamente as cores que existiam durante o<br />

dia, agora se apresentavam atenuadas de suas extremidades<br />

cromáticas. O prateado, por outro lado, adicionava um<br />

brilho particular, que parecia dar equilíbrio à cor, podando<br />

tudo o que fosse excessivo aos olhos. Após admirar essa<br />

tonalidade, surgiu-lhe a idéia de que a cor mais bonita para<br />

os olhos de qualquer pessoa, é qualquer uma, desde que<br />

viesse acompanhada por esse brilho prateado.<br />

Em seu canto, agora já completamente escuro, desejou que<br />

seus olhos tivessem esse brilho, mesmo que nem ele e nem<br />

ninguém conseguissem enxergá-lo. Talvez seu inconsciente<br />

tenha tentado ajudá-lo, criando um nó em seu peito, que se<br />

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224<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

transformou em lágrimas e que encheram seus olhos, sem no<br />

entanto escorrerem. A água sempre facilita os brilhos.<br />

Nesses instantes, não apenas imaginou-se brilhante, mas<br />

tudo o que conseguia enxergar tinha ganho um brilho extra.<br />

Mas assim que as lágrimas sumiram o brilho desapareceu.<br />

Nunca tinha ouvido falar de lágrimas que inundam os olhos e<br />

depois voltam para dentro deles. Essa era mais uma curiosidade<br />

de seu mundo, que se mostrava cada vez mais estranho.<br />

A noite agora estava completamente estrelada, nunca vira<br />

tantas estrelas juntas. E o céu estava vivo, conseguiu enxergar<br />

três delas que eram cadentes. Por três vezes lembrou-se de que<br />

era costume se fazer um pedido cada vez que se enxerga uma,<br />

mas nas três vezes não conseguiu encontrar algo que desejasse.<br />

Com mais calma vasculhou sua memória, tentando encontrar<br />

algo que quisesse, nada apareceu. depois tentou descobrir se<br />

o fato de não desejar nada era algo bom ou mau. Conseguiu<br />

fortes e fracos argumentos que sustentavam igualmente os dois<br />

lados. decidiu encerrar o raciocínio percebendo que logo seria<br />

conduzido a um jogo mental vicioso.<br />

depois de tanto tentar, quando já havia se esquecido que<br />

era um homem sem desejos, finalmente encontrou algo que<br />

desejava. Pediu que o eterno céu estrelado e o bosque florido,<br />

conseguissem inspirá-lo a ter idéias que fossem além daquelas<br />

que vinha tendo. Não ambicionava que suas idéias atingissem<br />

o lugar onde o espaço termina, mas que pelo menos fossem tão<br />

longe quanto vão as estrelas cadentes. A figura de uma idéia<br />

cadente encantou-o. um pensamento que surgisse do nada,


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

sem participar de nenhuma seqüência de raciocínios, que<br />

brilhasse por alguns instantes e que em seguida desaparecesse<br />

na escuridão. Percebeu que um tipo de idéia dessas não poderia<br />

surgir a partir de um esforço seu, ela teria de simplesmente<br />

acontecer, da mesma forma que acontecem as flores maduras<br />

que deixam-se cair no chão.<br />

Seu esforço então, não seria no sentido de construir um<br />

pensamento, mas sim no de não impedir que ele se construísse.<br />

O que poderia ser ainda mais difícil. Em seguida começou<br />

a raciocinar sobre como funcionaria essa nova maneira de<br />

pensar, e principalmente quais suas conseqüências. Logo<br />

desistiu porque percebeu que o momento que vivia não era o<br />

de construção de grandes frases, vivia instantes de reticências...<br />

Nesse grande bosque das incertezas a vida acontecia ao seu<br />

redor. Sentia-se isolado por uma bolha plástica, enxergando<br />

tudo e até podendo tocar na vida, mas sem participar<br />

verdadeiramente dela. E mesmo ela, parecia ter perdido sua<br />

espontaneidade e ganho brilhos artificiais. Se conseguisse se<br />

libertar de sua prisão, talvez caísse dentro de outra.<br />

desconfiava de si mesmo e desse mundo que não formava<br />

frases e nem insetos. Enfiou com toda sua força seu dedo dentro<br />

da ferida de seu braço. Suas carnes não ofereceram muita<br />

resistência. Seu dedo penetrou fundo e saiu. A luz do luar não<br />

o deixou enxergar nenhuma mancha de sangue. Também não<br />

sentiu nenhuma dor. Num mundo tão abstrato como esse, teve<br />

medo de ser contaminado pela eternidade.<br />

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226<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

O medo moveu-se dentro dele, pedindo alguma manifestação,<br />

primeiro pensou em recomeçar a caminhar, depois em exprimir<br />

seus pensamentos em voz alta. No escuro, permaneceu calado<br />

e imóvel, engolindo a seco sua vontade de verbalizar. Poderia<br />

também, se quisesse, começar a escutar os sons que vinham<br />

de dentro de sua imaginação, entregando-se às fantasias e<br />

criando para si uma outra bolha que lhe fosse mais confortável.<br />

desperdiçaria então a ácida possibilidade de encontrar a vida<br />

seca, sem temperos ou dissimulações.<br />

As reticências do mundo o incomodavam... elas eram o<br />

caminho para a neutralidade, para que ele conseguisse ficar<br />

mais parecido com a vida. Era sua grande chance, mas seu<br />

corpo reagia, não queria perder o conforto da bolha em que<br />

vivia, estava protegido contra contaminações, e a parte lógica<br />

de seu cérebro argumentava que não se troca o certo...<br />

O conflito se acirrava e seus dedos nervosos arranhavam o<br />

chão, as estrelas brilhavam mas o céu inteiro lhe parecia um<br />

imenso tesouro perdido no fundo do mar. Logo seu fôlego<br />

terminaria e ele nunca conseguiria transportar para a superfície<br />

as riquezas que enxergava. Procurava olhar para baixo e<br />

encontrar na terra escura pequenas riquezas que pudesse<br />

usufruir com segurança.<br />

Escutou um forte zumbido. Pela primeira vez em muito<br />

tempo seus ouvidos pareciam funcionar. Era o som de um grande<br />

enxame de insetos. Talvez fossem abelhas ou vespas, mas o ruído<br />

aproximava-se dele. Não sentiu medo. desconfiou. Talvez fosse<br />

uma bolha plástica que estava querendo materializar-se para


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

protegê-lo da vida crua. Ele mesmo poderia estar inventando a<br />

ameaça que na verdade evitava...<br />

O zumbido continuava forte mas ainda não havia visto<br />

nenhum inseto. Olhou para o alto aceitando o peso do céu e<br />

enxergando-o barulhento. As flores sem cheiro não pareciam ter<br />

forças para atrair o furor de um enxame tão ruidoso. O som não<br />

parava de aumentar e já o incomodava, seus dedos apanharam um<br />

torrão de terra no chão e o esfarelaram como forma de alívio. Lá<br />

em cima continuava a impassividade, o eterno jamais se preocupa<br />

com os destinos finitos, ao contrário do que os mortais...<br />

Seus ouvidos pesavam como a lua, mas o céu estava leve<br />

como uma flor que cai de um galho. Nunca sentiu de maneira<br />

tão forte o que era a verdadeira neutralidade. Gritou. Queria<br />

que o som de sua voz abafasse o zumbido que o enlouquecia.<br />

Aparentemente a coisa funcionou, então continuou gritando<br />

até perder o fôlego. Percebeu que até sua falta de ar acontecia<br />

de maneira diferenciada. Parecia-lhe que tinha sido seu<br />

inconsciente e não seus pulmões, que tinha pedido que parasse<br />

de gritar e respirasse fundo.<br />

Recobrando o fôlego quis saber se alguém que sofre<br />

pode se tornar uma pessoa neutra, ou então se a razão do<br />

sofrimento é justamente o fato da pessoa não enxergar a vida<br />

de maneira neutra. Se a segunda parte de sua pergunta fosse<br />

verdadeira, então só ele mesmo poderia acabar com o zumbido<br />

ensurdecedor que o atormentava. Gritou novamente até que<br />

decidisse que seus pulmões estavam esgotados, durante o grito<br />

novamente o zumbido desapareceu.<br />

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228<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Se não gritasse o som não parava de aumentar, sabia<br />

que não poderia viver gritando, que essa era uma solução<br />

paliativa, olhou para todos os lados em busca de algum<br />

inseto desgarrado que confirmasse a existência do enxame.<br />

Nada viu além dos contornos dos arbustos e do céu estrelado.<br />

Muitas formigas, de todos os tipos, lhe apareceram, todas elas<br />

amarradas a imagens de trechos do seu percurso, inclusive<br />

aqueles que não aconteceram. Essas imagens uniram-se e<br />

quiseram também transformá-lo em uma grande...<br />

Grandes eram as estrelas no céu, nada parecia abalá-las,<br />

absolutamente neutras, não se preocupavam nem quando uma<br />

delas caía em tentação, escorregando e riscando de prateado o<br />

azul escuro. Essas idéias ajudaram a distraí-lo, mas sua cabeça<br />

estava estourando, onde estavam as malditas abelhas? Aquilo<br />

era insuportável. Gritou quatro, cinco vezes, cinco vezes os<br />

zumbidos voltaram.<br />

Apanhou bocados de terra no chão e atirou-os longe,<br />

talvez conseguisse espantar os insetos, não pôde escutar a<br />

terra caindo no chão. Os zumbidos agora tinham se tornado<br />

menos homogêneos, parecia que duas espécies diferentes de<br />

insetos se enfrentavam. Ou então seria apenas uma espécie<br />

que conversava em voz alta. Mas a opinião daquelas vozes já<br />

não era unânime. Isso não o aliviou, pelo contrário, adicionou<br />

mais um peso ao fardo que já carregava. Levou as mãos ao<br />

rosto e desejou que lágrimas escorressem por ele, mas elas não<br />

vieram. Lembrou-se das estranhas manchas roxas que tinham<br />

surgido em sua pele. Tentou enxergá-las à luz do luar. Não<br />

conseguiu.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

As vozes individuais dos insetos pareciam ter ganho<br />

independência e agora o que ele escutava não era mais um<br />

enxame organizado, e sim milhões de opiniões diferentes, cada<br />

qual gritando por suas verdades. desistiu de gritar porque<br />

achou que havia chegado ao fundo do poço, as coisas não<br />

poderiam piorar. Se havia suportado o pior, não teria por quê<br />

fugir do que não fosse tão...<br />

Enquanto esperava que sua dor diminuísse, percebeu<br />

que cada uma das milhões de individualidades, agora se<br />

manifestavam não apenas através de suas vozes, mas seus<br />

ouvidos também escutavam os milhões de pensamentos<br />

dos insetos. O fardo multiplicara-se por mil e seu peso era<br />

insuportável. Gritou um longo grito. Enquanto gritava<br />

procurou com as mãos cavar um buraco no chão onde pudesse<br />

enfiar a cabeça. A terra era fácil de ser cavada e conseguiu<br />

fazer um buraco do exato tamanho de sua cabeça. deitou-se<br />

no chão deixando apenas o nariz para fora. Quando parou de<br />

gritar não tinha a menor idéia de quanto tempo havia durado<br />

seu grito, poderia ser um minuto ou um ano, percebeu<br />

que o buraco não adiantava, seus ouvidos continuavam<br />

desprotegidos...<br />

A dor o fez mergulhar imediatamente em outro grito.<br />

Voltou a sentar-se, e olhando para a lua que continuava<br />

absoluta, iluminando de prateado o bosque florido, perguntou-se<br />

se o mundo e a vida seriam mesmo neutros, ou se então,<br />

as coisas se dividiriam em boas e más, e ele estando mergulhado<br />

no inferno, teria de buscar seu salvador? Estendeu os braços<br />

desesperados para a lua, mas ela...<br />

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230<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Enquanto gritava conseguia raciocinar sem a influência da<br />

dor, não queria acreditar em heróis ou vilões, mas as memórias<br />

do sofrimento também não o faziam aceitar que, nem a vida<br />

nem o mundo possuíssem opiniões. Estava rasgado, e cada<br />

um de seus poros sofria de uma enorme sensação de falta de<br />

confiança em si mesmo.<br />

Olhando ao redor, os arbustos pareciam armadilhas<br />

espinhosas prontas para feri-lo. Não adiantava mais sua<br />

memória lembrar-lhe de flores e cores, a luz prateada estava<br />

pronta para derreter sua pele e as estrelas cairiam como tijolos<br />

mal posicionados em cima de um andaime. O bem parecia que<br />

havia se ausentado e seus pulmões eram seus únicos protetores.<br />

Mas o mal que o circundava estava preparado para devorálos.<br />

deixando-o sem ninguém, completamente entregue aos<br />

milhões de vozes e pensamentos confusos dos pequenos insetos<br />

que queriam...<br />

Antes de terminar seu grito decidiu que algo precisava ser<br />

feito. A vida da planta precisava manifestar-se, furando a casca<br />

da semente e botando para fora as riquezas que a terra lhe havia<br />

transmitido. Calou-se. Parou de gritar. O zumbido recomeçou<br />

mais forte do que nunca, mas logo foi interrompido. Ele havia<br />

descoberto uma nova maneira de detê-lo, ao invés de gritar,<br />

agora ele falava:<br />

“Eu falo para afastar minhas dores. Meu caminho que<br />

agora está escuro, teve luzes de todos os tipos, cores, brilhos,<br />

teve-me brilhando e colorido. Girando sem perceber, iludido<br />

pelas distrações ao meu redor. Enquanto girava, dentro de mim


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

outros mundos acompanhavam meus movimentos. Memórias,<br />

todos os tipos de vilarejo que trago dentro, tanta coisa... falo<br />

e falo, mas por mais que verbalize nada de importante direi,<br />

nem de perto arranharei os pés do absoluto... sou um pequeno<br />

passarinho que acordou cedo e avisa os outros que o novo dia<br />

está chegando.<br />

Tudo é tão misturado e tão pouco absoluto que nada nem<br />

ninguém deveria ter direito a um nome. Mas como tudo é<br />

nominado, nasce então a primeira e grande contradição, somos<br />

ensinados desde pequenos que o gasoso é completamente<br />

sólido. Acreditamos nessa ficção mesmo que a evaporação<br />

aconteça diante de nossos olhos, caso haja dúvidas, somos<br />

considerados míopes e conduzidos a um tratamento de vistas<br />

que nos fará enxergar direito. Mas mesmo essa conspiração<br />

malvada, que é mãe de todas as outras, mesmo ela é também<br />

uma mentira, porque não existe bem ou mal. O mal será<br />

compensado por algum bem, que de maneira secreta acontece<br />

em algum lugar, e a coisa toda acaba equivalendo-se. No<br />

balanço final a vida é neutra.<br />

E essa bolha mental do tempo molha a todos, mas existem<br />

toalhas e podemos enxugar-nos dessa substância viscosa que<br />

tudo enruga. Mesmo que a máquina da vida volte a molhar-nos<br />

com o óleo fundamental que lubrifica o universo, é importante<br />

sabermos que a substância grudenta do tempo não faz parte de<br />

nossa pele. E se quisermos poderemos secá-la.<br />

Não teria mais nada a dizer, mas como preciso continuar<br />

falando para que não sinta dores, agora falarei do imenso<br />

231


232<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

oceano que desconheço. Escuro mundo submarino, cheio de<br />

seres de olhos brilhantes. Pergunto, por quê? Tudo... como<br />

está... por que simplesmente, não, nada, grande vazio? Talvez<br />

o nada também exista em algum lugar e tudo o que exista seja<br />

uma compensação pela existência (ou não existência) do nada.<br />

Cada coisa para existir, precisaria ter uma compensação, com<br />

seu exato oposto também existindo de alguma maneira.<br />

O sabichão aqui, está nesse meio do nada, sentado sabendo<br />

que não mais se levantará e respondendo às grandes dúvidas<br />

humanas. Nem às minhas consegui responder, nenhuma<br />

escolha nunca me pareceu fácil e agora eu... o vilarejo, uma vez<br />

escrevi uma carta para um cego que tocava sanfona na praça,<br />

coloquei na caixinha de moedas e fiquei de longe observando a<br />

hora em que seu filho vinha buscá-lo. O rapaz leu para ele que<br />

eu o amava porque ele embelezava a vida. Não assinei. O cego<br />

sorriu. A chuva caiu e eu não me importei em me molhar.<br />

depois vivi muitas coisas que não entendi: a vida parecia<br />

ser escrita numa língua que eu não dominava... talvez<br />

existissem dicionários, compensações, ou então não entender<br />

talvez fosse bom porque mantinha o mistério. dias nublados<br />

de chuvisco, meios-tons, luzes banais, enjôo no estômago,<br />

espera sem sentido... as compensações e eu no meio delas. Sou<br />

um sanduíche feito de tédio e mistério, sou o recheio desse<br />

sanduíche, mas quem é que deve me devorar?<br />

Os aprendizados do caminho serviriam para que? Será<br />

mesmo que existiriam? A gente vai se esfarelando, mas e daí?<br />

Não seria melhor apenas tentar se manter inteiro? Grande


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

mundo vago de idéias incompletas, me abane com suas<br />

reticências! Aceito-te. Teu canto morto do porão. Teu sono sem<br />

sonhos. Tua camisa sem uso guardada no fundo do armário.<br />

Esqueço que existem compensações secretas guardadas em<br />

gavetas perdidas. Aceito teu chuvisco e teu suspiro esvaziado<br />

e não peço nada em troca, nenhum herói carregado de grandes<br />

feitos. Sou mesmo essa porcaria grandiosa que mora depois do<br />

ponto final e vive antes da próxima frase.<br />

Não preciso de imagem nem de rotina, escorro entre os<br />

instantes prosaicos iluminados por luz nublada. Aceito as<br />

prisões que me são impostas, mesmo sabendo que possuo as<br />

chaves para delas me libertar.<br />

Grande bosque floral, o que me dizes do meu poço sem<br />

fundo que sou eu? Estrelas brancas e vaidosas, sempre intocadas<br />

por qualquer sujeira, limpinhas, o que me dizem de um homem<br />

cujo destino é derreter? Não reclamo. derreter ou não derreter,<br />

não devem ser coisas assim tão diferentes... ninguém me diz<br />

nada, grande silêncio e minha voz que não pode parar porque...<br />

...eu aquele que é sombra, profissão tranqüila, sombra e<br />

água fresca, mistério respondido para os outros, que sabem<br />

teu segredo. Mas como você vive projetando-se pelas paredes<br />

e isso te é suficiente, nem deseja saber o próprio segredo... eu<br />

os outros, olhos mil, sonhos um, chateando-me, chateandonos,<br />

voltando atrás, querendo juntar toda a farinha que o<br />

vento espalhou... que voe longe e encontre frestas escuras onde<br />

ninguém vê, embaixo de camas, tapetes felpudos, grãos por<br />

todos os lados e sem nenhuma resposta.<br />

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234<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Meus machucados me chamam mas eu finjo que<br />

não escuto a campainha, talvez eles acabem achando que não<br />

tem ninguém em casa. um dia eu me chamei e me escondi,<br />

conseguia me observar impaciente esperando-me. Aquilo não<br />

era hora de eu estar fora de casa. Escondido, espiei-me até que<br />

eu perdesse a paciência e fosse embora. Quando fui embora,<br />

pude sair de meu esconderijo e passei a tarde inteira olhando<br />

para uma sombra que se formava na varanda da minha casa. Ela<br />

invadia a solidão do sol, e eu não pude formar qualquer idéia a<br />

respeito daquilo que assistia.<br />

Ventei. uma vez na escola escrevi essa palavra em uma<br />

redação. A professora me disse que ela não existia, insisti com<br />

ela que existia sim e que eu poderia provar. As estrelas lá em<br />

cima parecem que estão pedindo sapos que possam coaxar para<br />

elas. Mas os sapos devem ter ventado e não querem cantarolar.<br />

Os verbos são seres livres, homens de carne e osso que tem o<br />

sagrado direito de ir e vir. Ou melhor, o salgado direito de vir<br />

e ir... comigo recheio de sanduíche cheio de perguntas que aos<br />

poucos vão escorrendo do meu centro para penetrar nos pães<br />

que me envolvem.<br />

Jogo num grande moedor de carne todas minhas certezas<br />

e teorias, com a pasta gosmenta que sobra faço surpresas para<br />

os outros, colocando pequenos montinhos grudentos dessa<br />

porcaria em lugares estratégicos. Bancos de igreja, cantos de<br />

pratos, no interior de chapéus, no sutiã das moças, dentro do<br />

livro de chamada das escolas, no sapato de quem caminha.<br />

Todos sentirão o gosto enjoativo e a temperatura gelada do<br />

que já foi minha verdade e agora é meu divertimento. Como


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

um Saci traquinas espalharei essa substância por toda parte,<br />

causando primeiro surpresa e depois nojo. O sentido desse meu<br />

ato será nenhum. Minhas risadas tudo justificarão.<br />

Aliás, se agora pudesse parar de falar começaria a rir.<br />

Infelizmente o zumbido me obriga a continuar falando. Falo<br />

então de compotas, um grande vidro verde que ficava em<br />

cima de um móvel da casa de um tio-avô meu. Inacessível às<br />

minhas mãos, guardei aquela imagem por toda minha vida.<br />

Nunca consegui identificar o que existia dentro daquele vidro.<br />

Mas meu cérebro de criança usou o conteúdo misterioso para<br />

construir mundos de todas as consistências. Sabores, texturas,<br />

surpresas, cheiros, tudo se misturava nesse mundo que tinha<br />

começado naquele vidro verde.<br />

Esse mesmo tio tinha uma criação de faisões e pavões,<br />

as cores daqueles bichos fascinavam meus olhos infantis, e<br />

me lembro de uma vez que vi um pavão abrindo suas asas e<br />

mostrando toda sua beleza. Nunca tinha visto nada como<br />

aquilo, a combinação irreal de cores, aquela pequena cabeça de<br />

olhos amarelos comandando todo aquele festival de harmonia.<br />

Reparei que no meio da cauda havia desenhos, inclusive um que<br />

se parecia muito com um olho humano, e que aparentemente<br />

me olhava. Ali se abriu outra porta que sabia que não teria<br />

fim, um outro mundo estava à minha disposição. No olho, a<br />

fantasia ajudou-me a alcançar um mundo sem gravidade, em<br />

todos os possíveis sentidos que essa palavra possa inspirar, nada<br />

era impossível e tudo aceitável. Não existia qualquer noção de<br />

tempo, as coisas flutuavam num grande mar vital. Esse oceano<br />

era feito de uma grande espuma mental que tinha o gosto dos<br />

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236<br />

<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

meus sabores prediletos. Em minha contemplação de menino<br />

eu vivia o prazer, e a espera pelo prazer ao mesmo tempo. E<br />

tudo era costurado por um fio misterioso que dava um sentido<br />

único àquilo.<br />

Onde andarão aqueles olhos desenhados nas caudas dos<br />

pavões, e aqueles vidros verdes que ficavam em cima do armário?<br />

E todo aquele mar mental que enchia meu estômago de<br />

arrepios e me mostrava um mundo que nunca mais enxerguei?<br />

Terá secado para sempre, ou foi a ponte que me levava até lá<br />

que se quebrou? Mas mesmo que eu conseguisse mergulhar<br />

novamente nas espumas, sei que não sentiria mais os mesmos<br />

gostos. Aquilo desapareceu como uma sombra que se derrete<br />

com a chegada da noite.<br />

Tenho de aprender a aceitar as sombras e a noite. Quero<br />

voltar a sentir aqueles prazeres misteriosos utilizando-me do<br />

que está ao meu alcance. Fui eu mesmo que deixei de achar<br />

graça no que talvez nunca tenha se modificado. Na verdade eu<br />

é que fui perdendo minhas flexibilidades e exigindo caminhos<br />

cimentados com esquinas perpendiculares. O sol quando se<br />

põe deixa suas luzes espalhadas por toda parte, de onde foi que<br />

tirei essa necessidade de organização?<br />

Se em minha aurora enxerguei outras realidades, por que<br />

não poderia fazer o mesmo ao meu meio-dia ou em meu<br />

pôr-do-sol, quando já sei melhor como as coisas funcionam?<br />

Entulhos. Fui juntando tanta coisa dentro do meu apartamento<br />

que agora essa lixarada bloqueia o sol, que na infância entrava<br />

com facilidade pela mesma janela de sempre.


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Aceito... a sombra pode ser tão bela quanto o sol... aceito...<br />

as flores no escuro são tão ricas quanto quando mostram a<br />

exuberância de suas cores... aceito que não preciso descobrir<br />

tudo... porque as coisas são... aceito que não preciso completar<br />

as frases... aceito meu oposto cheio de espinhos, permito até<br />

que ele me abrace...<br />

As flores sem cheiro e encobertas pela escuridão me parecem<br />

um grande símbolo do que acho que seja meu oposto. Mas não<br />

vou achar mais nada, porque tenho menos importância do que<br />

penso ter. Se deixar de achar, talvez os entulhos desloquem-se<br />

do caminho e deixem o sol iluminar meu apartamento.<br />

Nada me dói e nada desejo. As flores escuras estão ao meu<br />

redor mas elas não me incomodam, minhas pernas funcionam,<br />

mas não quero fazer uso delas. Estou sereno. Cada homem tem<br />

o paraíso que consegue alcançar.”<br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong>


<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

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<strong>EMBAIXO</strong> das velhas <strong>ESTRELAS</strong><br />

Se as pessoas levantassem de<br />

onde estão e decidissem apenas subir<br />

numa árvore de seus próprios jardins,<br />

poderiam ver seus vizinhos de cima, e<br />

reparar que tanto eles quanto qualquer<br />

outro, são muito pequenos diante do<br />

que os circunda, e que as certezas que<br />

têm, são ainda menores do que eles.<br />

Então por quê todos deveriam seguir<br />

por uma única trilha, obedecendo a<br />

um único padrão, se os guias a quem<br />

seguem sabem tanto quanto eles.<br />

Subam nas árvores de vossos jardins,<br />

descubram trilhas alternativas que<br />

passam pelo meio de pântanos com<br />

barulhos de animais que nem sabem<br />

quais são. descubram flores que nascem<br />

escondidas nos altos das árvores, nos<br />

cantos escuros dos bosques, nos buracos<br />

apodrecidos de velhas árvores mortas.

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