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Luiz Renato Martins - Departamento de Artes Plásticas - USP

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<strong>Luiz</strong> <strong>Renato</strong> <strong>Martins</strong> EconoMia poLítica<br />

da arte mo<strong>de</strong>rna/ providências<br />

para uma história crítica<br />

Este texto, a ser publicado em duas partes, contém, com pequenas modificações para efeito <strong>de</strong> edição, extratos<br />

da introdução e da conclusão da tese <strong>de</strong> doutorado A fabricação da pintura: <strong>de</strong> Manet a Rothko, <strong>de</strong>fendida no<br />

<strong>Departamento</strong> <strong>de</strong> Filosofia, FFLCH-<strong>USP</strong>, sob orientação do Prof. Dr. Paulo Arantes em 20001 .<br />

Opondo-se à visão hegemônica propagada pelas correntes formalistas, cujas motivações i<strong>de</strong>ológicas<br />

preten<strong>de</strong> explicitar, o ensaio salienta a valorização dos processos produtivos frente às obras acabadas como<br />

característica fundamental da arte mo<strong>de</strong>rna, característica por meio da qual os artistas resistem ao progresso<br />

da mo<strong>de</strong>rnização capitalista.<br />

palavras-chave: arte como processo; formalismo; arte mo<strong>de</strong>rna; mo<strong>de</strong>rnização<br />

O objeto <strong>de</strong>ste estudo é, em primeiro lugar, a produção material.<br />

K. Marx, [Introdução] Para a crítica da economia política 2<br />

Quatro teses para a crítica do formalismo<br />

1. A arte mo<strong>de</strong>rna (que surgiu, segundo Bau<strong>de</strong>laire [1821-1867], com a<br />

obra republicano-revolucionária <strong>de</strong> Jacques-Louis David [1748-1825] realizada<br />

entre 1791 e 1794) firmou-se em meados do século XIX como <strong>de</strong>sdobramento<br />

cultural dos valores da Revolução Francesa, contraditados pela reação conservadora<br />

que cobriu toda a Europa antes e após a intensa onda revolucionária <strong>de</strong> 1848.<br />

2. A arte <strong>de</strong> vanguarda não foi <strong>de</strong> vanguarda, mas, para usar uma expressão<br />

tardia <strong>de</strong> Mário Pedrosa (1900-1981) 3 , <strong>de</strong> retaguarda e resistência, ou seja, consistiu<br />

numa forma <strong>de</strong> guerrilha simbólica contra o progresso da mo<strong>de</strong>rnização capitalista.<br />

3. O formalismo, que elaborou a visão mais aceita e difundida da arte<br />

mo<strong>de</strong>rna, constituiu uma perspectiva associada e própria <strong>de</strong> apenas algumas das<br />

tendências do mo<strong>de</strong>rnismo, especificamente do impressionismo e do simbolismo<br />

pós-impressionista, e veiculou assim os valores próprios <strong>de</strong>ssas correntes, segundo<br />

a i<strong>de</strong>ologia da “opticalida<strong>de</strong>” – ou da “école <strong>de</strong>s yeux” (escola dos olhos), como então<br />

se dizia na França – conforme doutrina que consistia num <strong>de</strong>rivado atualizado e<br />

sumário do neoplatonismo antigo. Portanto o formalismo nunca pô<strong>de</strong> dar conta dos<br />

princípios e das fronteiras constitutivos da arte mo<strong>de</strong>rna como um todo.<br />

4. Um dos pontos cegos do formalismo – cujos princípios supõem a<br />

positivação e a reificação ou a absolutização da noção <strong>de</strong> obra <strong>de</strong> arte, como ser dotado <strong>de</strong><br />

razão própria, <strong>de</strong> completu<strong>de</strong> e auto-suficiência – consiste precisamente na dificulda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ste em assimilar, como uma das características fundamentais da arte mo<strong>de</strong>rna, a<br />

Jackson Pollock. Foto <strong>de</strong> Hans Namuth, 1950.<br />

<strong>Martins</strong><br />

81<br />

1. Daí seu caráter<br />

fragmentário e suas<br />

referências freqüentes<br />

a um texto maior que<br />

é o da tese referida. A<br />

primeira parte, ora<br />

publicada, foi extraída<br />

da introdução. Será<br />

seguida, assim espero,<br />

no próximo número<br />

<strong>de</strong> Ars, pela parte<br />

correspon<strong>de</strong>nte à<br />

conclusão. Entre as<br />

modificações em<br />

relação ao texto<br />

original, constam as<br />

do título e intertítulos<br />

e da epígrafe,<br />

específicos da<br />

presente publicação.<br />

2. Essa introdução,<br />

que ficou inédita,<br />

prece<strong>de</strong> possivelmente<br />

os apontamentos <strong>de</strong><br />

Marx entre os anos <strong>de</strong><br />

1857-8. Segundo José<br />

Arthur Giannotti e<br />

Edgar Malagodi, "foi<br />

<strong>de</strong>scoberta em 1902<br />

entre os manuscritos<br />

<strong>de</strong>ixados por Marx, e<br />

publicada pela<br />

primeira vez por<br />

Kautsky, na revista Die<br />

Neue Zeit em 1903. É<br />

a esta Introdução que<br />

Marx faz alusão em seu<br />

prefácio <strong>de</strong> Para a<br />

crítica da economia<br />

política. O título<br />

‘Introdução à crítica da<br />

economia política’ não<br />

é do seu próprio autor,<br />

mas refere-se ao nome<br />

com que foi publicada<br />

pela primeira vez e que<br />

se tornou tradicional".<br />

Cf. GIANNOTTI, José<br />

Arthur; MALAGODI,<br />

Edgar. Nota 1. Para a<br />

crítica da economia<br />

política. In: MARX,<br />

Karl. Manuscritos


econômico-filosóficos e<br />

outros textos escolhidos.<br />

Sel. <strong>de</strong> textos <strong>de</strong> J. A.<br />

Giannotti, trad. <strong>de</strong> J.<br />

C. Bruni et al. São<br />

Paulo: Nova Cultural,<br />

1987, p. 3. (Coleção<br />

Os pensadores).<br />

3. Ver PEDROSA,<br />

Mário. Variações sem<br />

tema ou a arte da<br />

retaguarda. In:<br />

Política das artes/<br />

Mário Pedrosa: textos<br />

escolhidos I. Org. e<br />

apres. Otília Arantes.<br />

São Paulo: Edusp,<br />

1995, p. 341-7.<br />

dissolução do valor da obra acabada, correlata à primazia dos processos produtivos<br />

frente aos resultados.<br />

Em poucas palavras, tais são algumas das idéias e das linhas <strong>de</strong> investigação<br />

<strong>de</strong>senvolvidas pelo estudo cuja introdução se segue.<br />

82 <strong>Martins</strong><br />

introdução:<br />

Providências gerais e pontuais para a construção <strong>de</strong> uma investigação<br />

sobre a arte como processo produtivo<br />

(Situar historicamente)<br />

A razão da ênfase do artista mo<strong>de</strong>rno nos processos produtivos, em<br />

<strong>de</strong>trimento da obra acabada, é o fato <strong>de</strong> que o processo geral <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização,<br />

fundado no sistema capitalista <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> mercadorias, traz entre outras<br />

conseqüências a rápida caducida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todo valor e forma social <strong>de</strong> relação, o que<br />

no campo específico da arte se traduz na necessida<strong>de</strong> constante <strong>de</strong> renovação das<br />

formas <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> valor artístico diante do precoce envelhecimento das fórmulas<br />

<strong>de</strong> valoração e significação prece<strong>de</strong>ntes.<br />

(Focar o estudo no processo <strong>de</strong> produção)<br />

O inacabamento, o mo<strong>de</strong>lado sumário, a produção simultânea <strong>de</strong> várias<br />

obras ou a multiplicação das versões, como variantes <strong>de</strong> um mesmo processo, e a<br />

rapi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> execução põem-se assim como distintas maneiras por meio das quais<br />

os artistas mo<strong>de</strong>rnos buscaram estabelecer a primazia da produção sobre a forma<br />

final, a fim <strong>de</strong> prevenir e remediar o esvaziamento e o envelhecimento, cada vez<br />

mais rápidos, dos seus materiais e modos <strong>de</strong> trabalho.<br />

Decerto, não se supõe que seja esta uma característica singular e exclusiva<br />

da arte mo<strong>de</strong>rna senão na intensida<strong>de</strong> e no grau <strong>de</strong> aceleração, que nesta última caracterizaram<br />

crescentemente a fadiga e o perecer das matérias, modos e valores. Assim,<br />

a importância histórica que vários dos estudos <strong>de</strong> Giulio Carlo Argan (1909-1992)<br />

atribuem ao maneirismo do século XVI, e especialmente aos non-finiti <strong>de</strong> Michelangelo<br />

(1475-1564), Ticiano (1490-1576) e Palladio (1508-1580) – neles estabelecendo o novo<br />

estatuto simbólico adquirido pela práxis artística –, salienta a etapa inicial do processo<br />

<strong>de</strong> valorização do momento produtivo em <strong>de</strong>trimento daquele da obra acabada.<br />

Em conexão com a valorização do processo <strong>de</strong> produção em contraposição<br />

àquele <strong>de</strong> contemplação, os estudos <strong>de</strong> Argan sobre a arquitetura e a arte barrocas,<br />

em L’Europa <strong>de</strong>lle capitali (1964) e outros ensaios, subvertem e explicitam – ao<br />

<strong>de</strong>stacarem o caráter marcadamente “interessado” e urbanisticamente planejado<br />

da produção artística do século XVII em diante – o teor i<strong>de</strong>ológico do discurso<br />

estético que se aglutinará no século seguinte em torno da idéia <strong>de</strong> contemplação,<br />

no nascer da “estética” como disciplina ou ciência da contemplação do belo.


Assim, a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> priorizar o exame da produção, tomada por Walter<br />

Benjamin (1892-1940), Argan e outros, constitui um ato <strong>de</strong> estratégia crítica em<br />

face <strong>de</strong> uma tendência i<strong>de</strong>ológica, historicamente dominante; tendência esta,<br />

claramente pró-capitalista, que tem o propósito, no campo da arte como nos<br />

<strong>de</strong>mais, <strong>de</strong> estabelecer, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente das questões da produção, os critérios<br />

da contemplação ou da consi<strong>de</strong>ração exclusiva da moeda da forma, em toda e<br />

qualquer realização humana.<br />

(Reconhecer e periodizar a hegemonia histórica da gran<strong>de</strong> narrativa formalista)<br />

É necessário, para uma construção crítica da história da arte mo<strong>de</strong>rna,<br />

confrontar-se com juízos e princípios da corrente crítico-historiográfica <strong>de</strong>nominada<br />

formalista e da doutrina estética a ela inter-relacionada: a teoria da “pura visibilida<strong>de</strong>”.<br />

Apoiadas na idéia <strong>de</strong> contemplação, ambas elaboraram a visão mais influente e<br />

difundida das artes plásticas entre o final do século XIX e a maior parte do século<br />

XX, período abordado por esta investigação.<br />

Apesar <strong>de</strong> se apresentarem ao longo do século XX visões críticas <strong>de</strong><br />

exceção – como as <strong>de</strong> Benjamin, Argan, Pierre Francastel (1905-1970), T. J. Clark<br />

(1943-) e outras em diálogo com o materialismo histórico – e, ainda, <strong>de</strong> surgirem,<br />

mais recentemente, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os idos <strong>de</strong> 1980, críticas ecléticas contra o formalismo<br />

– como a dos “estudos culturais” no bojo do difuso conjunto <strong>de</strong> posições chamadas<br />

<strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rnistas –, é necessário reconhecer que o formalismo continua a ser,<br />

em razão <strong>de</strong> sua ampla e longeva hegemonia no século XX, e dado o volume, a<br />

serieda<strong>de</strong> e argúcia das suas interpretações, senão o paradigma historiográfico<br />

ainda o mais influente, certamente, a referência incontornável em se tratando da<br />

“gran<strong>de</strong> narrativa” ou da história das artes visuais mo<strong>de</strong>rnas como um todo.<br />

Noutras palavras, para além dos méritos individuais <strong>de</strong> seus artífices ou<br />

<strong>de</strong> seus opositores, é uma questão <strong>de</strong> fato, ou seja, <strong>de</strong> juízo histórico e <strong>de</strong> uma<br />

periodização racional dos ciclos <strong>de</strong> idéias, reconhecer que o formalismo constituiu<br />

certa leitura ou narrativa da arte mo<strong>de</strong>rna, cuja coerência se impôs internacionalmente<br />

a um amplo número <strong>de</strong> estudiosos, que, com ressalvas pontuais, a ela se referem,<br />

aceitando-lhe o nexo essencial.<br />

De outro lado, por mais significativas e inovadoras que tenham sido, no<br />

campo da arte mo<strong>de</strong>rna, as pesquisas específicas empreendidas por estudiosos<br />

<strong>de</strong> extração não-formalista, como Argan, Francastel e Leo Steinberg (1920-), ou,<br />

mais esporadicamente, os <strong>de</strong> matriz iconológica ou warburguiana, cuja inclinação<br />

é mais afeita à arte antiga, como Panofsky (1892-1968), Chastel (1912-1990) e<br />

Gombrich (1909-2001), dificilmente os seus resultados lograram, do ponto <strong>de</strong><br />

vista da influência 4 , ultrapassar certos limites ou o teor <strong>de</strong> estudos pontuais, para<br />

consolidar efetivamente uma outra narrativa da arte mo<strong>de</strong>rna.<br />

Já o formalismo, originariamente <strong>de</strong> expressão alemã e vienense, <strong>de</strong>itou<br />

sólidas raízes a partir do final do século XIX e do início do XX no meio cultural anglo-<br />

<strong>Martins</strong><br />

83<br />

4. Para não per<strong>de</strong>r o<br />

fio, <strong>de</strong>ixo <strong>de</strong> referir<br />

aqui uma série <strong>de</strong><br />

autores não-formalistas<br />

<strong>de</strong> gerações mais<br />

recentes, cujos


trabalhos são objeto<br />

<strong>de</strong> discussão ou<br />

aplicação no curso da<br />

tese referida. Nesta<br />

passagem, é o caso <strong>de</strong><br />

indicar, apenas, ou<br />

obras já completas ou<br />

com fisionomia já<br />

plenamente <strong>de</strong>finida,<br />

como a <strong>de</strong> Leo<br />

Steinberg.<br />

5. Para efeito <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>finição e a título <strong>de</strong><br />

síntese, a noção <strong>de</strong><br />

realismo que é<br />

compatível com o<br />

pensamento <strong>de</strong> Argan<br />

e, <strong>de</strong> resto, também<br />

com o <strong>de</strong> Brecht, e<br />

com a qual se irá<br />

trabalhar aqui, foi bem<br />

precisada em 1923 por<br />

Tarabukin: “Eu uso o<br />

conceito <strong>de</strong> realismo<br />

no seu sentido mais<br />

amplo e não <strong>de</strong> modo<br />

algum i<strong>de</strong>ntificado<br />

com o naturalismo,<br />

que é uma das formas<br />

<strong>de</strong> realismo e, nessa<br />

condição, uma das<br />

mais primitivas e<br />

americano, e conquistou apoios <strong>de</strong> monta em vários outros círculos, inclusive,<br />

hoje, na França e nos EUA, on<strong>de</strong> se verificaram hibridizações do formalismo à base do<br />

neo-estruturalismo. O composto resultante encontra atualmente gran<strong>de</strong> aceitação<br />

nos EUA. Trata-se portanto <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> língua franca internacional,<br />

no que concerne à história e à crítica da arte mo<strong>de</strong>rna.<br />

Logo, em vista <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>bate, que é incontornável para a reabertura da<br />

discussão sobre a formação do processo artístico e estético mo<strong>de</strong>rno, adquire valor<br />

estratégico o reexame daquelas teses que se tornaram os esteios principais da concepção<br />

formalista da arte mo<strong>de</strong>rna, a saber: a visão <strong>de</strong> Manet (1832-1883) como origem da<br />

arte mo<strong>de</strong>rna e pintor precursor do impressionismo, segundo a doutrina opticalista; as<br />

teses acerca <strong>de</strong> Cézanne (1839-1906) como paradigma “clássico” do mo<strong>de</strong>rnismo e,<br />

correlatamente, do cubismo como estilo fundamentalmente abstrato.<br />

Por fim, a <strong>de</strong>smontagem crítica do dispositivo historiográfico formalista,<br />

que foi incorporado pelas instituições norte-americanas, <strong>de</strong>verá rematar com a<br />

abordagem, na presente investigação, <strong>de</strong> um tópico <strong>de</strong>cisivo na história da ascensão<br />

da arte norte-americana: a discussão do expressionismo abstrato, posto pelo<br />

formalismo como corolário do processo histórico da arte mo<strong>de</strong>rna.<br />

(O partido do realismo)<br />

Não se buscará negar a importância marcante do trabalho dos artistas em<br />

questão, mas <strong>de</strong> reabrir a interpretação <strong>de</strong> suas obras, e reinscrevê-las em situações<br />

e partidos históricos muito diversos daqueles apontados pela historiografia<br />

formalista. À diferença da orientação <strong>de</strong>sta última, o partido investigativo aqui<br />

adotado, <strong>de</strong> acordo com Argan, <strong>de</strong>staca o realismo como o principal fio condutor<br />

da arte mo<strong>de</strong>rna, observando sucessivamente, nos pintores cujas obras são adiante<br />

focalizadas, a saber, Manet, Monet (1840-1926), Cézanne, Van Gogh (1853-1890),<br />

Braque (1882-1963) e Picasso (1881-1973), distintas etapas e perspectivas <strong>de</strong><br />

uma reflexão crítica cujo móvel comum consiste na atualização do realismo como<br />

explicitação dos processos produtivos 5 . Dessa perspectiva, as obras <strong>de</strong> Pollock<br />

(1912-1956) e Rothko (1903-1970), longe <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rem ser classificadas como<br />

abstratas, explicam-se, com mais pertinência, no âmbito próprio da crise da<br />

figuração e da dialética correlata entre figuração e abstração, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada<br />

no próprio âmago do realismo, a partir do <strong>de</strong>sdobramento reflexivo das suas<br />

premissas principais.<br />

De resto, esses dois artistas norte-americanos, muito embora cientes <strong>de</strong><br />

fazerem uma arte <strong>de</strong> crise e <strong>de</strong> se encontrarem numa situação em larga medida<br />

aporética quanto à tradição realista, nunca abandonaram o diálogo com o realismo,<br />

nem renunciaram à ambição paradoxal <strong>de</strong> uma “re-semantização”, entendida<br />

como re<strong>de</strong>finição da função ou da objetivação da pintura, como discurso realista<br />

da produção, visando à sua reinserção na discussão e na reflexão <strong>de</strong> questões<br />

extrapictóricas, projetadas contra a história humana como um todo.<br />

84 <strong>Martins</strong>


(Pôr em situação)<br />

Antes, porém, <strong>de</strong> discutir esses pontos cruciais da arte mo<strong>de</strong>rna, a<br />

investigação <strong>de</strong>ve enfocar as primeiras décadas do século XIX, para situar<br />

historicamente os atos iniciais <strong>de</strong> um processo cultural, comandado no terreno<br />

cognitivo pela ciência que, partindo das novas investigações sobre a fisiologia,<br />

conduziu à completa reestruturação da noção <strong>de</strong> percepção e, em particular, para<br />

o que ora interessa, da idéia <strong>de</strong> olhar.<br />

Deu-se assim entre 1810 e 1840, um <strong>de</strong>senraizamento da visão frente a<br />

parâmetros fixos e estáveis, dissolvendo-se todo princípio racional <strong>de</strong> verossimilhança.<br />

A ruptura com a concepção clássica da visualida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> matriz geométrica,<br />

dissolveu a idéia da visão como apreensão neutra <strong>de</strong> objetos naturais preexistentes,<br />

para em lugar disso refundar a visualida<strong>de</strong> no sujeito e numa concepção ativa<br />

da sensibilida<strong>de</strong> como instância espontaneamente produtiva. A postulação da<br />

autonomia do sujeito e a positivação do corpo como foco espontâneo <strong>de</strong><br />

sensações acarretaram a liquidação do diálogo paradigmático entre arte e natureza,<br />

no qual se fundara a tradição artística e estética anterior.<br />

Afastando-se, porém, dos i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong> e emancipação do<br />

Iluminismo, a reestruturação do olhar re<strong>de</strong>finido como produção subjetiva,<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte dos objetos preexistentes da visão e em vinculação com os<br />

processos fisiológicos estabelecidos pela exploração científica do corpo, ocorreu no<br />

âmbito <strong>de</strong> um corpo <strong>de</strong>snaturalizado, sujeito a estímulos artificiais e ritmos heterônomos,<br />

tais como aqueles da linha <strong>de</strong> montagem, dos novos meios <strong>de</strong> transporte e da<br />

parafernália da diversão e da informação em gran<strong>de</strong> escala, que visavam a sensação<br />

num corpo parcelado e segmentado, “in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntizado” ou isolado da consciência.<br />

Nesse prisma, um mo<strong>de</strong>lo perceptivo, com funcionamento autônomo<br />

diante da natureza e <strong>de</strong> todo vínculo <strong>de</strong> origem, já é cogitado pela ciência e gera<br />

padrões culturais algumas décadas antes das gran<strong>de</strong>s transformações que se<br />

tornarão evi<strong>de</strong>ntes na pintura da segunda meta<strong>de</strong> do século XIX.<br />

Os traços mais nítidos da quebra dos cânones artísticos acadêmicos, com<br />

que se costuma i<strong>de</strong>ntificar o início do mo<strong>de</strong>rnismo nas artes, sobrevêm décadas<br />

após as primeiras formulações das ciências positivas. Melhor seria, portanto, para<br />

dar conta <strong>de</strong>sse atraso das reações artísticas, após o progresso acelerado das ciências<br />

positivas, da tecnologia e das mudanças políticas e das relações sociais que<br />

antece<strong>de</strong>m àquelas nas artes, não chamar a arte mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> arte <strong>de</strong> vanguarda,<br />

mas <strong>de</strong> retaguarda, como observou Mário Pedrosa 6 . Isso tem a vantagem <strong>de</strong> tornar<br />

mais clara a razão <strong>de</strong> ser do caráter provocativo, freqüentemente assumido pela<br />

arte mo<strong>de</strong>rna, evi<strong>de</strong>nciando que a agressão pontual e isolada contra o bloco <strong>de</strong><br />

forças hegemônicas é própria <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> resistência conduzido por forças<br />

minoritárias, que golpeiam os flancos ou a retaguarda <strong>de</strong> um inimigo, a cujo avanço<br />

não po<strong>de</strong>m fazer frente. Assim, por exemplo, é em termos antitéticos que a arte<br />

mo<strong>de</strong>rna se firma como discurso, nas críticas <strong>de</strong> Daumier (1808-1879) contra a<br />

<strong>Martins</strong><br />

85<br />

ingênuas. A consciência<br />

estética contemporânea<br />

transferiu a idéia<br />

<strong>de</strong> realismo, do<br />

conteúdo para a forma<br />

do trabalho <strong>de</strong> arte.<br />

Doravante o motivo<br />

dos esforços realistas<br />

<strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser a cópia<br />

da realida<strong>de</strong> (como<br />

tinha sido para os<br />

naturalistas). [...] Nas<br />

formas da sua arte o<br />

artista cria a sua<br />

atualida<strong>de</strong>, e, para ele,<br />

o realismo é a criação <strong>de</strong><br />

um objeto genuíno...”.<br />

Cf. TARABUKIN, N.<br />

From the easel to the<br />

machine (1923). Trad.<br />

Christina Lod<strong>de</strong>r. In:<br />

FRASCINA, F.;<br />

HARRISON, C. (Org.).<br />

Mo<strong>de</strong>rn art and<br />

mo<strong>de</strong>rnim: a critical<br />

anthology. Nova Iorque:<br />

Icon Editions/ Harper<br />

& Row, 1987, p. 136.<br />

6. Ver PEDROSA.<br />

Op. cit., p. 341-7.


monarquia <strong>de</strong> Luís-Felipe (1773-1850); <strong>de</strong> Courbet (1819-1877) e Manet contra<br />

o II Império e a república conservadora, a seguir; <strong>de</strong> Cézanne e Van Gogh contra a<br />

industrialização; do fovismo e do cubismo contra a direita chauvinista que levaria<br />

a França à guerra <strong>de</strong> 14; <strong>de</strong> Picasso e Miró (1893-1983) contra o franquismo;<br />

do expressionismo abstrato contra o teor totalitário do macarthismo e da vida<br />

administrada, nos EUA do pós-guerra. Desse modo, freqüentemente anticapitalista<br />

– ainda se só mais ocasionalmente revolucionária –, a arte mo<strong>de</strong>rna constituiu-se,<br />

com freqüência, numa fuga para a frente, num ato <strong>de</strong> guerrilha e <strong>de</strong> sobrevivência,<br />

numa manobra <strong>de</strong> resistência à ameaça concreta <strong>de</strong> aniquilação.<br />

Em suma, as correntes artísticas – historicamente assentadas nos valores<br />

da maestria artesanal e her<strong>de</strong>iras da politização <strong>de</strong>sses segmentos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Revolução<br />

Francesa, mas tornadas anacrônicas pela nova divisão social do trabalho que se impõe<br />

com força esmagadora – ditas imprecisamente <strong>de</strong> vanguarda, ao partirem <strong>de</strong> um intuito<br />

crítico, <strong>de</strong>senvolverão uma relação antitética e crítica com a nova or<strong>de</strong>m social, o que<br />

se evi<strong>de</strong>ncia na estruturação <strong>de</strong> um discurso estético agressivo e provocativo.<br />

(Os novos modos do valor ou a arte como processo)<br />

Se a arte mo<strong>de</strong>rna não apresenta “obras” propriamente acabadas, mas<br />

antes processos, tal condição requer – ao contrário do elenco <strong>de</strong> procedimentos<br />

analíticos formalistas – práticas e disposições <strong>de</strong> parte do investigador, que<br />

priorizem a análise dos procedimentos produtivos. Assim, por exemplo, se a partir<br />

do impressionismo a questão serial se tornou um problema latente, já o cubismo,<br />

por sua vez, implicou que a obra, ao invés <strong>de</strong> ser analisada isoladamente, precisava<br />

ser remetida à série processual que a engendrou.<br />

É certo que, muitas vezes, essa série não se apresenta em termos efetivos e<br />

positivos, por motivos variados. De fato, constitui prática mais tardia a disposição<br />

<strong>de</strong> expositores e <strong>de</strong> curadores <strong>de</strong> mostrar cada trabalho como parte <strong>de</strong> uma série,<br />

com as suas variações possíveis ao lado. E, antes, muitas vezes até ocorria do<br />

próprio artista, mesmo quando dispunha <strong>de</strong> variações ou formas preliminares,<br />

como no caso <strong>de</strong> Monet, ou ocultá-las e não apresentar ao público outros termos<br />

da mesma cepa, tal como os trabalhos consi<strong>de</strong>rados como meros esboços ou<br />

aproximações infrutíferas do tema em tela, ou não extrair maiores conseqüências<br />

<strong>de</strong> um modo <strong>de</strong> trabalho já parcialmente serial, para continuar a elaborar, ao<br />

invés, estruturas pictóricas ainda orgânicas ou unas.<br />

Já, por outro lado, <strong>de</strong>ve-se consi<strong>de</strong>rar que o chamado inacabamento ou<br />

mo<strong>de</strong>lado sumário – que acomete os trabalhos mo<strong>de</strong>rnos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início do realismo<br />

francês, vi<strong>de</strong>, por exemplo, Manet e Cézanne, tão criticados à época pelo estado inacabado<br />

<strong>de</strong> suas obras – constitui um prenúncio ou sintoma inicial <strong>de</strong> um fenômeno<br />

estrutural e mais radical: o <strong>de</strong> que cada trabalho mo<strong>de</strong>rno é virtualmente<br />

concebido só como uma alternativa possível, entre outras, ou, noutras palavras, para<br />

emprestar a expressão <strong>de</strong> James Joyce (1882-1941), como uma “obra em progresso”.<br />

86 <strong>Martins</strong>


Se o caráter serial do processo é proclamado por notas complementares,<br />

como será no caso <strong>de</strong> Duchamp (1887-1968), ou se é ou não escamoteado pelo<br />

artista, como no caso Monet, é uma outra questão, mais específica e pertinente<br />

a cada conduta autoral. De todo modo, uma das hipóteses gerais que se <strong>de</strong>vem<br />

averiguar – com a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> indício da valorização da produção sobre a<br />

contemplação – afirma que é quase sempre como alternativa ou variação possível,<br />

e quase nunca como solução final, que os trabalhos mo<strong>de</strong>rnos mais marcantes<br />

e relevantes são levados a público. Das inúmeras “Sainte-Victoires” <strong>de</strong> Cézanne,<br />

passando por “Les <strong>de</strong>moiselles d’Avignon”, pelas obras cubistas, pelos tantos<br />

trabalhos <strong>de</strong> Duchamp, até os trabalhos do chamado expressionismo abstrato,<br />

os casos mais significativos da arte mo<strong>de</strong>rna são permeados <strong>de</strong>ssa espécie <strong>de</strong><br />

fragilida<strong>de</strong>, que os constitui inevitavelmente como formas provisórias e estases<br />

momentâneas <strong>de</strong> um processo que, por outro lado, vem a ser enfatizado a partir<br />

da originalida<strong>de</strong> e radicalida<strong>de</strong> dos seus procedimentos. Logo, ao invés <strong>de</strong><br />

produtos, salientam-se processos elaborativos e modos <strong>de</strong> produção. O artista<br />

não se <strong>de</strong>staca tanto pelos exemplares únicos, quanto pelos processos que<br />

concebe e realiza ou propõe. De télos ou <strong>de</strong>stino final, a obra mo<strong>de</strong>rna se transforma<br />

assim em mero documento ou registro <strong>de</strong> um certo modo produtivo. E vem a se<br />

reestruturar, ao modo <strong>de</strong> uma “refuncionalização” ciente e por sua própria conta,<br />

numa nova or<strong>de</strong>m, a do capitalismo avançado, a cujo andamento a arte como<br />

paradigma <strong>de</strong> excelência artesanal é <strong>de</strong>snecessária.<br />

(Os processos e suas séries)<br />

A consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong>ssa condição documental como característica marcante<br />

da obra mo<strong>de</strong>rna é um dos <strong>de</strong>sdobramentos possíveis que po<strong>de</strong>m ser extraídos<br />

das reflexões <strong>de</strong> Benjamin no controvertido ensaio “A obra <strong>de</strong> arte na era <strong>de</strong><br />

sua reprodutibilida<strong>de</strong> técnica” (1936). Entretanto, para além <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar a<br />

extração manual ou mecânica da obra como um condicionante, com um ou outro<br />

valor, <strong>de</strong>duz-se das cogitações <strong>de</strong> Benjamin a necessida<strong>de</strong> da atenção à qualida<strong>de</strong><br />

serial <strong>de</strong> muitos dos processos artísticos mo<strong>de</strong>rnos em antítese à tradicional e<br />

“aurática” unicida<strong>de</strong> da obra <strong>de</strong> arte.<br />

É essa condição produtiva básica, aqui consi<strong>de</strong>rada, que contradita e, do<br />

ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong>ste estudo, diminui consi<strong>de</strong>ravelmente o real alcance dos métodos<br />

investigativos do formalismo – não obstante todo rigor e todas as minúcias <strong>de</strong><br />

certos intérpretes, que operam concentrados única e exclusivamente na análise<br />

supostamente imanente, mas que, na verda<strong>de</strong> crua, exerce-se isolada e <strong>de</strong>scontextualizada<br />

da obra, tal como esta se apresenta no ambiente neutro do museu ou<br />

da coleção. Há nessa perspectiva que positiva e absolutiza a obra, convertendo-a<br />

numa espécie <strong>de</strong> pequeno universo encapsulado e auto-referido, a premissa<br />

implícita <strong>de</strong> que a obra, tal uma cifra secreta, encerre em si mesma a verda<strong>de</strong><br />

do todo; verda<strong>de</strong> esta <strong>de</strong> que a arte se faria supostamente portadora, como uma<br />

<strong>Martins</strong><br />

87


7. “Um problema<br />

central do materialismo<br />

histórico que finalmente<br />

<strong>de</strong>verá ser observado:<br />

se a compreensão<br />

marxista da história<br />

tem <strong>de</strong> ser adquirida<br />

necessariamente ao<br />

preço da visibilida<strong>de</strong><br />

(Anschaulichkeit) da<br />

própria história. Ou:<br />

por qual caminho é<br />

possível unir visibilida<strong>de</strong><br />

intensificada e<br />

aplicação do método<br />

marxista? O primeiro<br />

passo <strong>de</strong>ste caminho<br />

será assumir o<br />

princípio da montagem<br />

na história. Erigir,<br />

assim, as gran<strong>de</strong>s<br />

construções a partir <strong>de</strong><br />

minúsculos elementos<br />

confeccionados <strong>de</strong><br />

modo nítido e preciso.<br />

E mesmo <strong>de</strong>scobrir, na<br />

análise do pequeno<br />

momento particular,<br />

o cristal do<br />

espécie <strong>de</strong> relíquia auto-suficiente da unida<strong>de</strong> e da autotransparência da razão, nos<br />

termos <strong>de</strong> certa concepção <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong> que, no fundo, é mitológica e mística.<br />

Para a perspectiva ora <strong>de</strong>senvolvida, a obra em estado <strong>de</strong> isolamento carece<br />

efetivamente <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong>, se não for remetida ao seu contexto próprio, o que<br />

não impe<strong>de</strong> que, historicamente, no diálogo ou confronto <strong>de</strong> uma obra com outra,<br />

aspectos antes <strong>de</strong>sapercebidos ou latentes sobressaiam e ganhem novo peso, em<br />

função <strong>de</strong> rearticulações num ou noutro sentido, eventualmente produzidas, tal<br />

numa montagem, pela interpretação.<br />

(Estratégia crítica)<br />

A fim <strong>de</strong> reabrir a leitura <strong>de</strong> algumas obras mo<strong>de</strong>rnas, as investigações<br />

em pauta priorizam: a remissão da obra ao contexto histórico <strong>de</strong> origem e a<br />

busca, mediante a montagem <strong>de</strong> diálogos ou confrontos com elementos<br />

variados do seu contexto <strong>de</strong> produção, dos aspectos ignorados nessas obras pelo<br />

formalismo; procuram assim estabelecer um confronto explícito com as<br />

interpretações formalistas.<br />

Desse modo, é necessário certas vezes contornar ou adiar a interpelação<br />

direta da obra visada, porque se <strong>de</strong>ve passar pela construção <strong>de</strong> um espaço<br />

histórico, até eventualmente nele se reencontrar o trabalho em questão, mediante<br />

a reposição do confronto com algum outro termo do seu contexto.<br />

De acordo com o propósito <strong>de</strong> reinscrever a obra no seu chão histórico,<br />

rearticulado pela pesquisa “a partir <strong>de</strong> minúsculos elementos confeccionados <strong>de</strong><br />

modo nítido e preciso”, como indica Benjamin 7 , o trabalho presente consiste,<br />

em gran<strong>de</strong> parte, numa montagem que recolhe e integra resultados <strong>de</strong> análises<br />

e <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> diferentes fontes e procedências. Umas e outras são incluídas<br />

num enca<strong>de</strong>amento que tem como objetivo precípuo explicitar possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

rediscussão da arte mo<strong>de</strong>rna, relegadas pelo formalismo.<br />

88 <strong>Martins</strong><br />

SUMÁRio: Do tRaJEto DESta inVEStiGaÇÃo 8<br />

Para além da recapitulação crítica dos principais tópicos da interpretação<br />

formalista dos artistas focalizados, o trabalho esboça novas aproximações<br />

interpretativas. Assim, examina-se a reinvenção do realismo por Manet, a partir da<br />

insuficiência manifesta dos parâmetros do realismo prece<strong>de</strong>nte, protagonizado por<br />

Courbet. A proposição <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire, <strong>de</strong>mandando a combinação da experiência<br />

individual da transitorieda<strong>de</strong> e do instante, que é caracteristicamente mo<strong>de</strong>rna,<br />

com o teor duradouro e universalizante da reflexão, sinaliza a estratégia <strong>de</strong> Manet<br />

<strong>de</strong> atualização do realismo, que situará o horizonte para a re<strong>de</strong>finição <strong>de</strong>ssa<br />

perspectiva, não mais em função da veracida<strong>de</strong> estereométrica, mas da verossimilhança<br />

temporal, como apreensão do flagrante.


Propõe-se a seguir o confronto da pintura <strong>de</strong> Manet com o impressionismo<br />

e a verificação da tese <strong>de</strong> que as obras <strong>de</strong> Cézanne e Van Gogh <strong>de</strong>senvolveram<br />

uma espécie nova <strong>de</strong> realismo, na linha <strong>de</strong> Manet, assentada na documentação<br />

autêntica da atualida<strong>de</strong> do fazer pessoal – que reage à abstração crescente das<br />

formas sociais <strong>de</strong> trabalho – e na explicitação da trama da pintura, crescentemente<br />

empenhada em aliar concretu<strong>de</strong> e reflexão, ou seja, em expor o engendramento<br />

concreto da consciência, assim como da pintura, como condição <strong>de</strong> acesso ao<br />

mundo do sujeito, posto em termos fenomênicos.<br />

A investigação aborda o cubismo a partir da hipótese <strong>de</strong> que este tenha<br />

se constituído como síntese crítica e dialética diante do novo modo <strong>de</strong> produção<br />

industrial. A impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreensão <strong>de</strong> um trabalho cubista, tomado<br />

isoladamente ou in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente dos outros que fazem parte da mesma série<br />

produtiva, coloca a necessida<strong>de</strong> da análise estética enfrentar os novos princípios<br />

produtivos: a “forma aberta” ou o “princípio da <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong>”, a produção<br />

simultânea, a permutação das partes e a combinação <strong>de</strong> elementos ostensivamente<br />

não relacionados entre si. Nesse sentido, a investigação do cubismo apresenta<br />

também novas dificulda<strong>de</strong>s para a interpretação, exigindo uma compreensão<br />

efetiva da natureza da série e levando o intérprete a adotar uma postura não<br />

contemplativa, mas ativa e intervencionista como num processo <strong>de</strong> montagem.<br />

A seguir, a investigação enfoca o surgimento do expressionismo abstrato<br />

e a obra <strong>de</strong> Pollock em especial. Sobressaem aí os novos condicionantes gerais<br />

da arte mo<strong>de</strong>rna, ligados ao contexto propriamente norte-americano e às trágicas<br />

experiências históricas que levam à II Guerra Mundial e ao seu <strong>de</strong>senlace, que<br />

revertem o componente otimista do cubismo, e das quais emerge o expressionismo<br />

abstrato. Entram em cogitação como fatores originários <strong>de</strong>ssa pintura a releitura<br />

pictórica da colagem e da construção, a releitura crítica da pintura surrealista e<br />

ainda e principalmente elementos extrínsecos à pintura e próprios à superprodução<br />

da economia norte-americana.<br />

Salienta-se a re<strong>de</strong>finição da idéia <strong>de</strong> forma a partir <strong>de</strong> fatores quantitativos,<br />

na obra <strong>de</strong> Pollock, no imediato pós-guerra, o que implica uma espécie <strong>de</strong> pintura<br />

que, em ruptura com a idéia albertiana do quadro como janela, consiste na<br />

sobreposição <strong>de</strong> camadas e requer a participação ativa do corpo na produção<br />

como na observação da arte, segundo termos cinestésicos que foram lançados,<br />

décadas antes, pela escultura-construção cubista.<br />

Destaca-se ainda a assunção por Pollock, a partir do acerto firmado, em<br />

1943, com a galeria <strong>de</strong> Peggy Guggenheim, do mo<strong>de</strong>lo simbólico do contrato<br />

como or<strong>de</strong>nação <strong>de</strong>scontínua dos interesses, como novo paradigma para a arte<br />

em lugar daquele da natureza e, em conseqüência, a assimilação, na esteira <strong>de</strong><br />

Duchamp, da idéia da circulação ou do modo <strong>de</strong> difusão da arte, como fator<br />

intrínseco à produção. A hipótese <strong>de</strong>ste estudo é a <strong>de</strong> que, uma vez finda toda a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> diálogo vivo com a natureza, ou da funcionalida<strong>de</strong> histórica do<br />

<strong>Martins</strong><br />

89<br />

acontecimento total<br />

(Totalgeschehen).<br />

Romper, portanto,<br />

com o naturalismo<br />

histórico vulgar.<br />

Compreen<strong>de</strong>r a<br />

construção da história<br />

enquanto tal. Na<br />

estrutura do<br />

comentário. Detritos<br />

da história”.<br />

BENJAMIN, Walter.<br />

O trabalho das<br />

passagens. n. 2, 6.<br />

Trad. Sonia C. N.<br />

Ferrari. Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong><br />

filosofia alemã, 3, São<br />

Paulo, <strong>Departamento</strong><br />

<strong>de</strong> Filosofia da <strong>USP</strong>,<br />

FFLCH-<strong>USP</strong>, 1997,<br />

p. 75<br />

8. O primeiro<br />

capítulo da tese, que<br />

dá seguimento ao<br />

presente texto, já teve<br />

alguns extratos ou<br />

artigos <strong>de</strong>rivados<br />

publicados nas<br />

revistas Arte e ensaio,<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

PPGAV-EBA-UFRJ,<br />

n. 8, p. 102-11, 2001;<br />

Mais-valia, São Paulo,<br />

n. 1, p. 88-95, nov.<br />

2007; na ARS, n. 10,<br />

p. 50-60, 2007 e<br />

originou o livro<br />

Manet: uma mulher<br />

<strong>de</strong> negócios, um<br />

almoço no parque e<br />

um bar. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Zahar, 2007.<br />

(Coleção Arte+).


“gênio” concebido como natureza, a arte <strong>de</strong> Pollock, sendo a do gênio re<strong>de</strong>finido<br />

segundo a configuração social existente, como força contratada, já opera, tal<br />

como a arte <strong>de</strong> Duchamp, <strong>de</strong> corpo inteiro no “mundo <strong>de</strong>sencantado”.<br />

Por fim, a investigação focaliza a obra <strong>de</strong> Mark Rothko. Em face da morte<br />

anunciada da “pintura <strong>de</strong> cavalete” e do sujeito pictórico artesanal, que foi<br />

<strong>de</strong>scortinada por Tarabukin, em 1923, na URSS (portanto, vinte e cinco anos antes<br />

<strong>de</strong> Clement Greenberg [1909-1994] anunciar a crise da produção <strong>de</strong> cavalete,<br />

nos EUA do pós-guerra), a dimensão intrinsecamente histórica e reflexiva da<br />

pintura <strong>de</strong> Rothko leva-a a promover a releitura crítica incessante e cerrada das<br />

questões nucleares da tradição pictórica: a transparência, a luminosida<strong>de</strong>, o<br />

tonalismo, a contemplação, a unida<strong>de</strong> orgânica da obra etc. A exigência materialista<br />

da pintura <strong>de</strong> Rothko o conduz à busca das condições <strong>de</strong> exposição e difusão da<br />

pintura, as mais próximas possíveis daquelas verificadas na produção, e à postulação<br />

<strong>de</strong> uma refuncionalização da pintura, para a qual o teatro e a arquitetura<br />

exercerão papel paradigmático.<br />

O trabalho examina a hipótese da chamada “Capela Rothko”, na Menil<br />

Foundation <strong>de</strong> Houston, assinalar o corolário <strong>de</strong>sse projeto histórico-pictórico. A<br />

capela também representaria, nesse sentido, o <strong>de</strong>saguadouro do projeto geral do<br />

expressionismo abstrato, <strong>de</strong> superar a “pintura <strong>de</strong> cavalete” e <strong>de</strong> levar a pintura a<br />

exercer, sob a forma do mural e das obras <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> formato, um estatuto simbólico<br />

cívico, além dos limites esgotados do quadro.<br />

<strong>Luiz</strong> <strong>Renato</strong> <strong>Martins</strong> é professor do <strong>Departamento</strong> <strong>de</strong> <strong>Artes</strong> <strong>Plásticas</strong> da Escola<br />

<strong>de</strong> Comunicações e <strong>Artes</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo.<br />

90 <strong>Martins</strong> Peggy Guggenheim. Fotografia <strong>de</strong> Man Ray, 1924.


<strong>Martins</strong><br />

91

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