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In pulverem38 - Othoniel Menezes

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<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong><br />

Obra reunida


<strong>Othoniel</strong> não é apenas o maior poeta do<br />

Rio Grande do Norte, como também o<br />

maior entre todos os do Norte do Brasil<br />

e que não saíram do Norte do Brasil...<br />

um dos poetas máximos do Brasil.<br />

Olegário Mariano<br />

Um culto no espaço de iletrados.<br />

Tarcísio Gurgel<br />

Sabem os homens de espírito desta<br />

província que <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> é<br />

ainda por mais que passem os anos e<br />

novas gerações de poetas venham, o<br />

poeta mais autêntico do Rio Grande do<br />

Norte. Sabem os homens da província e<br />

mais alguns poucos no resto do Brasil.<br />

Berilo Wanderley<br />

<strong>Othoniel</strong> não era nem nunca foi<br />

comunista. Era apenas um cafeísta,<br />

amigo e eleitor de Café Filho. E essa<br />

confusão o perseguiria quase a vida<br />

toda.<br />

Murilo Melo Filho<br />

<strong>In</strong>grata Cidade que mataste Itajubá e<br />

feriste Jorge Fernandes, pára um pouco<br />

a mão impiedosa que rasga a alma do<br />

Poeta de “Praieira”. Já sofreu demais<br />

este homem. Deixa ao menos que nos<br />

seus dias finais possa ele cantar como<br />

fazia, o teu encanto de mulher entre um<br />

rio e um mar e sustentando entre as<br />

mãos um sol vivo e verânico, como uma<br />

rosa de fogo.<br />

Newton Navarro


<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong><br />

Obra reunida


<strong>Othoniel</strong><br />

<strong>Menezes</strong>


^:<br />

Seleção, Revisão e Notas<br />

Laélio Ferreira de Melo


OTHONIEL MENEZES – OBRA REUNIDA © LAÉLIO FERREIRA DE MELO 2011<br />

Editora MARIZE CASTRO<br />

Edição, projeto gráfico, capa UNA<br />

Fotos ACERVO DE LAÉLIO FERREIRA DE MELO<br />

Editoração eletrônica ALESSANDRO AMARAL<br />

Catalogação na Fonte: Biblioteca Pública Estadual Câmara Cascudo<br />

M543o <strong>Menezes</strong>, <strong>Othoniel</strong>, 1895-1969.<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> – obra reunida. / <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>.- Natal<br />

(RN) : Una, 2011.<br />

922 p.<br />

ISBN: 978-85-60036-11-0<br />

Notas, Revisão, seleção: Laélio Ferreira de Melo<br />

1. Literatura brasileira. 2. Poesia norte-rio-grandense.<br />

I. Título.<br />

CDD B869<br />

2011.01 CDU B869.0 (81) - 1<br />

Una<br />

Rua Antônio Mor, 2812, Ponta Negra, 59090-330<br />

Natal, Rio Grande do Norte, Brasil<br />

unanatal@gmail.com<br />

(84)99882812


A glória a que aspiro – a única –<br />

e que há de ser minha túnica,<br />

mais sagrada que a de um rei,<br />

posse intangível, se planta<br />

na alma do povo – que canta<br />

as canções que lhe ensinei!<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>


Louvação<br />

A Murilo Melo Filho – Jornalista, advogado e escritor, membro da<br />

Academia Brasileira de Letras e da Academia Norte-Rio-Grandense<br />

de Letras; natalense vitorioso, figura aclamada do Jornalismo nacional,<br />

cidadão do mundo e autor do Prefácio desta "Obra Reunida";<br />

a Tarcísio Gurgel – Escritor, Professor Doutor da UFRN, contista,<br />

dramaturgo, crítico literário, ator, declamador, homem de televisão,<br />

(com a vantagem de ser) irmão do poeta e folclorista Deífilo<br />

Gurgel – que, à época de jovem estudante em Natal, foi um dos<br />

"meninos da academia de <strong>Othoniel</strong>", ocupante de uma das<br />

"hemiplégicas poltronas" da modesta residência do Poeta. Tarcísio<br />

Gurgel, com proficiência, zelo e erudição, escreveu o magnífico<br />

estudo introdutório desta edição.<br />

a Cláudio Galvão – Professor universitário (UFRN), escritor,<br />

musicólogo; pesquisador da vida e da obra de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>;<br />

organizador de várias publicações póstumas do Poeta (Ara de Fogo,<br />

Abysmos, Esparsos, A Cidade Perdida e Desenho Animado) – agora revisa-


das, anotadas e incluídas nesta edição. Pesquisou, anotou e publicou<br />

o Cancioneiro de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> - 1995, UFRN-CCHLA) – na íntegra,<br />

neste volume. É de sua autoria, ainda, nesta edição, a cronologia<br />

da vida e da obra do Poeta e o segundo prefácio do livro Sertão<br />

de Espinho e de Flor. Escreveu Príncipe Plebeu - uma biografia do poeta<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> (Edição FAPERN, Natal/ 2010);<br />

a Isaura Amélia de Sousa Rosado Maia – Professora Doutora<br />

(UFERSA), educadora e cientista social formada em Salamanca, membro<br />

do Conselho Estadual de Cultura, ex- presidente da Fundações<br />

José Augusto, de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Norte e Capitania<br />

das Artes, ex-Secretária Adjunta de Estado da Educação e Desportos.<br />

Durante anos, pacientemente, diuturnamente, zelosamente,<br />

cobrou do organizador o término da tarefa. Sabendo-o<br />

encaramujado e arredio – em muita coisa parecidíssimo com o pai<br />

– foi dela, a Professora, a iniciativa feliz – e muito honrosa, para o<br />

signatário, pela aceitação das tarefas – de pedir a Murilo Melo e a<br />

Tarcísio Gurgel, respectivamente, o prefácio e o estudo para o livro,<br />

engrandecendo-o.<br />

a Águeda Mousinho Zerôncio – Professora Doutora (UFRN), autora<br />

do livro <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> (publicado na Coleção Nossos Clássicos<br />

pela Editora Universitária em 1985);<br />

a Diógenes da Cunha Lima – Advogado de renome, poeta e professor<br />

universitário, Presidente da Academia Norte-Rio-Grandense de<br />

Letras – que, quando Reitor da UFRN, de motu proprio, em 1980,<br />

publicou e prefaciou, com carinho e admiração pelo Poeta, uma<br />

segunda edição do livro A Canção da Montanha;<br />

aos filhos: Laura, Laélia, Iluska, <strong>Othoniel</strong>, Laélio, Laíse, João Gabriel<br />

e Lívia;


aos netos: Hermilo, Guilherme, Stela, Sthéphanie, Paolo, Maria<br />

Gabriela, Maria Manuela, Mariane e Caíque; e finalmente, aos meus<br />

mortos, os que se foram para o Azul: <strong>Othoniel</strong> e Maria, Marione,<br />

Euryalo (Nodia), Maria do Carmo (Tamina), Washington, Teresinha,<br />

Hermilo (Netinho) e Chico Castilho.


Esclarecimentos<br />

Todas as despesas decorrentes da organização, revisão, editoração, da<br />

impressão e quaisquer outras com a publicação do presente volume,<br />

foram atendidas com recursos financeiros pessoais, próprios, do<br />

organizador - originários, exclusivamente, de economias da sua conta<br />

bancária, correspondente, esta, aos proventos auferidos por sua<br />

aposentadoria no serviço público federal.<br />

Por outro lado, do número total de exemplares, o organizador se<br />

apropriará de apenas vinte por cento (20%), para distribuição restrita<br />

a familiares e amigos. O restante dos volumes será doado, para<br />

livre comercialização, a três instituições beneficentes - uma delas, já<br />

escolhida, o Albergue Noturno de Natal. Essa instituição kardecista,<br />

em 1952, recebeu de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, de uma edição de 1.000,<br />

700 exemplares do livro Sertão de Espinho e de Flor.<br />

O signatário – responsável pela seleção, revisão e redação das Notas<br />

deste volume – não levou em consideração o último Acordo Ortográfico<br />

da Língua Portuguesa.


Sumário<br />

<strong>Othoniel</strong>: o príncipe dos poetas<br />

Murilo Melo Filho<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>: um parnasiano na terra Natal<br />

Tarcísio Gurgel<br />

Carta para <strong>Othoniel</strong> no Azul<br />

Laélio Ferreira de Melo<br />

Da vida e da obra – Cronologia<br />

Cláudio Galvão<br />

POESIA<br />

Gérmen<br />

Prefácio da edição de 1918<br />

Henrique Castriciano<br />

Ícaro<br />

Via-crúcis<br />

Visão medieva<br />

Mística<br />

A árvore<br />

23<br />

29<br />

51<br />

61<br />

77<br />

79<br />

81<br />

89<br />

90<br />

91<br />

92<br />

93


Israelita<br />

Azul<br />

Sugestão da luz<br />

Coqueiro<br />

Odisséia<br />

<strong>In</strong> pulverem<br />

Sésamo!<br />

Tragédia humana<br />

Crepúsculo<br />

Tristeza de Zaratustra<br />

Jardim tropical<br />

Jardim tropical<br />

Pindorama<br />

Flamboyant<br />

Thalassa!<br />

A serenata do mar<br />

Sob as mangueiras<br />

Costureirinha<br />

Camponesa<br />

O vigia<br />

Onde mora Zaineb<br />

O ferreiro<br />

Estâncias<br />

Natal<br />

Pela mão de Dante<br />

Deus<br />

95<br />

96<br />

97<br />

98<br />

99<br />

100<br />

101<br />

102<br />

106<br />

108<br />

115<br />

117<br />

118<br />

119<br />

120<br />

121<br />

123<br />

126<br />

127<br />

128<br />

130<br />

131<br />

132<br />

134<br />

135<br />

136


Crença de outrora<br />

O aeroplano<br />

Poema da noite<br />

Perfeição<br />

Sertão de espinho e de flor<br />

Aspectos do panorama físico e social dos sertões<br />

norte-rio-grandenses<br />

Prefácio à primeira edição<br />

Luis da Câmara Cascudo<br />

Prefácio à segunda edição<br />

Claudio Galvão<br />

Canto 1 – Sertão de espinho e de flor<br />

Canto 2 – Santa Bárbara! São Jerônimo!<br />

Canto 3 – Cântico dos cânticos<br />

Canto 4 – Apartação<br />

Canto 5 – Fogo na canjica<br />

Canto 6 – Pino do sol<br />

Canto 7 – No piso do comboio<br />

Canto 8 – Como a ave que volta ao ninho antigo<br />

Canto 9 – Cheiro de jurema<br />

Canto 10 – As sete espigas<br />

Canto 11 – Sertão prestou<br />

Canto 12 – No tempo do ipsilone<br />

Canto 13 – Novenário da Conceição<br />

Canto 14 – Roteiro dos diamantes<br />

Canto 15 – Minha viola a chorar<br />

Canto 16 – Um juazeiro no céu<br />

137<br />

138<br />

139<br />

140<br />

145<br />

147<br />

155<br />

179<br />

223<br />

245<br />

259<br />

277<br />

305<br />

325<br />

349<br />

379<br />

389<br />

401<br />

475<br />

485<br />

509<br />

515<br />

529


A canção da montanha<br />

Prefácio da primeira edição<br />

Esmeraldo Siqueira<br />

Prefácio da segunda edição<br />

Diógenes da Cunha Lima<br />

Clarim<br />

A canção da montanha<br />

As sereias<br />

Arco-íris<br />

Meus caminhos<br />

Ouro sobre azul<br />

Caridade<br />

Desdobramento<br />

Veneno da mandrágora<br />

Confiteor<br />

Correu a estrela<br />

Rumba de flauta do feliz selvagem<br />

Ela<br />

Irmã água<br />

Berceuse<br />

Fuga<br />

Madrigal triste<br />

S.O.S.<br />

Coroa de beijos<br />

Translação<br />

Relatividade<br />

Atlântida<br />

539<br />

541<br />

547<br />

553<br />

554<br />

558<br />

563<br />

567<br />

573<br />

575<br />

578<br />

584<br />

585<br />

587<br />

589<br />

591<br />

593<br />

594<br />

598<br />

602<br />

603<br />

605<br />

606<br />

607<br />

608


Banzo<br />

Viração<br />

Banana<br />

Os simples<br />

Visão na casa dos mortos<br />

Cassino<br />

Ara de fogo<br />

Meu irmão <strong>Othoniel</strong> – Prefácio à primeira edição<br />

Francisco <strong>Menezes</strong> de Melo<br />

Ara de fogo, abysmos, esparsos – Prefácio à segunda<br />

edição<br />

Cláudio Galvão<br />

Clóris<br />

Paraíso perdido<br />

Os bem-te-vis<br />

Serenata<br />

A catedral encantada<br />

Quando o sonho morre<br />

A luz dos meus olhos<br />

Poeta<br />

Maio<br />

Circo<br />

Mon droit<br />

Abysmos<br />

Tristeza<br />

Ruína sagrada<br />

609<br />

610<br />

611<br />

612<br />

613<br />

615<br />

627<br />

629<br />

633<br />

639<br />

640<br />

641<br />

642<br />

643<br />

644<br />

645<br />

646<br />

647<br />

648<br />

649<br />

653<br />

655<br />

656


Elevação<br />

Rosa<br />

Teus olhos tristes<br />

Íxion<br />

Esparsos<br />

Parte I<br />

Índio<br />

Vesperal<br />

Poema da noite<br />

Teus olhos claros...<br />

Parte II – Poesia inédita em livros<br />

Atavismo<br />

Canção do exílio<br />

As sereias<br />

Jorge e o dragão<br />

Ricardo da Cruz<br />

Henrique Castriciano<br />

Marinha brasileira<br />

Caminhos de sangue<br />

A cidade perdida<br />

<strong>In</strong>trodução<br />

Cláudio Galvão<br />

A cidade perdida<br />

Solidão<br />

Papai<br />

Horóscopo<br />

Serénade<br />

657<br />

658<br />

659<br />

660<br />

663<br />

665<br />

667<br />

668<br />

669<br />

670<br />

671<br />

673<br />

678<br />

679<br />

680<br />

681<br />

682<br />

683<br />

684<br />

691<br />

693<br />

701<br />

702<br />

703<br />

704<br />

705


De longe...<br />

A uns olhos<br />

Saudade<br />

O pintassilgo<br />

Canção de abril<br />

Tebaida<br />

Margareth<br />

Boêmios<br />

Sic transit<br />

Miragem<br />

Sinfonia vesperal<br />

Viagem sentimental<br />

As andorinhas<br />

Os cravos brancos<br />

O último potiguara<br />

Tríptico da seca<br />

Auriverde pendão<br />

Paraíso da América estrelada<br />

O maior mandamento<br />

Per angusta<br />

Alba mística<br />

Desenho animado<br />

As borboletas<br />

Os pavões<br />

Os sapos<br />

Os carneiros<br />

706<br />

707<br />

708<br />

709<br />

710<br />

711<br />

712<br />

713<br />

714<br />

715<br />

716<br />

717<br />

718<br />

720<br />

721<br />

722<br />

725<br />

726<br />

727<br />

728<br />

729<br />

733<br />

735<br />

736<br />

737<br />

738


Os macacos<br />

Os lobos<br />

Os papagaios<br />

As águias<br />

Os burros<br />

Os ursos<br />

Os perus<br />

O cancioneiro de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong><br />

<strong>In</strong>trodução<br />

Claudio Galvão<br />

Serenata do pescador<br />

Alice<br />

Luar de agosto<br />

Jasmineiro<br />

Sereia<br />

Mimosa<br />

Versos<br />

Viver de amor<br />

Viver de amor (Antítese)<br />

Sob as mangueiras<br />

Minha mãe<br />

PROSA<br />

A Liberdade<br />

Ferreira Itajubá – (Trechos de um Ensaio)<br />

O drama da vida de província<br />

739<br />

740<br />

741<br />

742<br />

743<br />

744<br />

745<br />

749<br />

751<br />

756<br />

760<br />

764<br />

767<br />

769<br />

771<br />

773<br />

776<br />

779<br />

781<br />

784<br />

787<br />

789<br />

797<br />

799


No tempo de mecenas<br />

Poesia versus gramática<br />

A última flor do Lácio inculta e bela...<br />

Variações sobre um conceito de Álvaro Lins<br />

Ele era senhor do sábado<br />

A ilha do tesouro e as aranhas de Vautrin<br />

O amigo da onça e o convite de Walt Witman<br />

Luis da Câmara Cascudo: estilista<br />

Velhas cartas<br />

A poesia oculta de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong><br />

Celso da Silveira<br />

804<br />

811<br />

815<br />

821<br />

830<br />

836<br />

842<br />

885<br />

897<br />

909


<strong>Othoniel</strong>: o príncipe dos poetas<br />

Se esta apresentação não tiver outro mérito, terá tido o condão<br />

de aproximar-me da memória de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> de Melo,<br />

um grande poeta do Rio Grande do Norte.<br />

Aprofundei-me em sua vida, naveguei na sua obra, conheci os<br />

seus sofrimentos e, de todo esse retorno a um passado recente, saí<br />

reconfortado pelo encontro de um enorme manancial de cultura,<br />

de inspiração e de sabedoria poéticas.<br />

Quem foi <strong>Othoniel</strong>?<br />

Soube que nasceu em Natal, no dia 10 de março de 1895,<br />

estudou no Colégio Santo Antônio e no Atheneu, foi sargento no<br />

29º. Batalhão de Caçadores e integrou as tropas mandadas ao Piauí<br />

em perseguição à Coluna Prestes, que naquele tempo devassavam<br />

o interior brasileiro.<br />

Quando viajava para Teresina, perdeu a bordo do navio os originais<br />

do seu livro Ara de fogo, com alguns dos melhores poemas.<br />

Anos antes, foi promotor público em Macau, onde se aproximou<br />

do poeta e acadêmico Edinor Avelino.<br />

23


24<br />

Passou no Acari e voltou a Natal, onde, em 1935, foi o autor da<br />

única edição do jornal A Liberdade, que circulou no dia 27 de novembro<br />

daquele ano, como órgão oficial da revolução comunista<br />

de então, impresso por curiosa coincidência nas oficinas do jornal<br />

oficial do Estado, A República, do qual o poeta e jornalista era o<br />

secretário. Na pressa de imprimi-lo, como não havia matéria suficiente<br />

para mais uma página, <strong>Othoniel</strong> nela incluiu um anúncio<br />

do “Sal de Fructas Eno”.<br />

<strong>Othoniel</strong> não era nem nunca foi comunista. Era apenas um<br />

cafeísta, amigo e eleitor de Café Filho. E essa confusão o perseguiria<br />

quase a vida toda.<br />

Foi várias vezes convidado a candidatar-se à Academia Norte-<br />

Rio-Grandense de Letras. Enquanto pôde, resistiu aos convites.<br />

Mas terminou vencido por eles e, atendendo a uma exigência de<br />

acadêmicos amigos, terminou aceitando ser candidato à Cadeira<br />

nº. 23, na qual teve como patrono Antônio Glicério, sucedeu a<br />

Bezerra Júnior e foi sucedido por Jayme dos Guimarães Wanderley<br />

e Iaperi Araújo, seu atual ocupante.<br />

Ensaísta, <strong>Othoniel</strong> escreveu textos importantes, como o ensaio<br />

sobre “Ferreira Itajubá – O drama da vida de província”,<br />

patrono e um dos meus antecessores na Cadeira nº. 19, da Academia<br />

Norte-Rio-Grandense de Letras que, no meu discurso de posse,<br />

chamei de “boêmio, irrequieto, genioso, combativo, lírico, irônico,<br />

messiânico, Manoel Virgílio Ferreira Itajubá, além de poeta e<br />

jornalista, foi também orador popular, professor e inspetor do<br />

Atheneu, agitador socialista, partidário de José da Penha, líder<br />

operário, pregador protestante, aprendiz de pintor e artista de<br />

circo, onde fazia de tudo: diretor, empresário, domador de feras e<br />

acrobata. Conseguiu ser tudo isto em apenas 35 anos de uma vida<br />

atípica. Parecia até que tinha pressa em viver e cuidou de exercer<br />

o maior número de profissões, no menor espaço de tempo possível.<br />

Existiram e conviveram vários Itajubás dentro de um só”.


<strong>Othoniel</strong> foi consagrado com um título que não o envaidecia<br />

muito: o de “Príncipe dos poetas potiguares”.<br />

O acadêmico e poeta Esmeraldo Siqueira, da ANRL, prefaciando<br />

o livro A canção da montanha, de <strong>Othoniel</strong>, escreveu que “o seu<br />

lirismo é de uma larga simpatia que abraça e envolve o mundo”.<br />

E o acadêmico Olegário Mariano, da ABL, que o visitou numa<br />

passagem por Natal, considerou-o “um dos maiores poetas brasileiros”.<br />

Realmente, a poesia de <strong>Othoniel</strong> é elegante e vigorosa, trabalhada<br />

por uma dedicação de admirável artesão, na polidez e brilho<br />

dos seus versos. Seu estro vai buscar influxo na poética de Vigny,<br />

Antero, Rimbaud, Guerra Junqueiro, Bilac, Alberto de Oliveira,<br />

Cecília e muitos outros.<br />

Veríssimo de Melo comentou certa vez que <strong>Othoniel</strong> era um<br />

autodidata, que adquiriu requintada cultura literária, conquistada<br />

no contato com escritores e poetas de Portugal, Espanha e França,<br />

tendo sido um poeta de influência universal.<br />

Veríssimo reconstituiu a pitoresca história do poema “Praieira”,<br />

que <strong>Othoniel</strong>, em 1922, no Centenário da República, escreveu,<br />

a pedidos, dedicado à odisséia de seis pescadores potiguares<br />

que realizaram um heróico “raid” de Natal ao Rio de Janeiro:<br />

Praieira dos meus amores,<br />

Encanto do meu olhar!<br />

Quero contar-te os rigores<br />

Sofridos a pensar<br />

Em ti sobre o alto-mar...<br />

Ai! Não sabes que saudade<br />

Padece o nauta ao partir,<br />

Sentindo na imensidade,<br />

O seu batel fugir,<br />

<strong>In</strong>certo do porvir!<br />

25


26<br />

O poema alcançou tanto sucesso em Natal que <strong>Othoniel</strong> se<br />

animou a pedir a Eduardo Medeiros que o musicasse. Passaram-se<br />

várias semanas e o músico não dava sinal de vida. Até que um<br />

amigo comum deu o conselho: “Molhe a mão dele, que num instante<br />

a música sai!”.<br />

No dia seguinte, o músico estava na porta de <strong>Othoniel</strong>, violão<br />

em punho, executando os acordes de “Praieira”, tendo a honestidade<br />

de confessar que, para fazer a composição, “com tanta pressa”,<br />

tivera de apropriar-se de alguns compassos de um velho tango.<br />

O certo é que nasceu aí uma bela melodia, que se transformou<br />

numa espécie de hino da cidade de Natal e que foi agora imortalizada<br />

num compact disc com o Trio Irakitã, nascido em Natal sob<br />

as bênçãos de Cascudo, nas vozes de Gilvan, Edinho e Joãozinho.<br />

<strong>Othoniel</strong> era um poeta popularíssimo, talvez um pouco pelo<br />

sucesso de “Praieira”, mas que não explorava essa popularidade,<br />

nem tirava dela o menor proveito ou vantagem.<br />

Tinha um modesto emprego na Base Aérea de Natal, que deixou<br />

para embarcar num avião do Correio Aéreo Nacional e vir<br />

para o Rio, a chamado do chefe da nação.<br />

Três vezes foi recebido oficialmente no Palácio do Catete pelo<br />

presidente Café Filho, seu conterrâneo e correligionário e somente<br />

depois de muita insistência dos amigos se viu nomeado escriturário<br />

do <strong>In</strong>stituto Nacional do Sal.<br />

<strong>Othoniel</strong> era um homem correto e digno, altivo em sua pobreza<br />

e humildade, grato e reconhecido aos seus amigos, mas também<br />

muito sofrido, e, não raro, revoltado pelas ingratidões recebidas.<br />

Com a primeira esposa, Maria do Carmo, sua prima legítima,<br />

teve três filhos: Euryalo, Maria do Carmo e Maria de Lourdes.<br />

Com Maria da Conceição Ferreira, sua musa derradeira e companheira<br />

de quase cinqüenta anos, foi pai de Washington, Teresinha,<br />

Hermilo e Laélio.


Seu estado de saúde agravou-se sempre, com as seqüelas do<br />

atropelamento de que fora vítima há vários anos e que se complicaram<br />

muito com o mal de Parkinson, vindo a morrer no dia 19<br />

de abril de 1969, num modesto apartamento da rua Queiroz Lima,<br />

nº. 18, no bairro do Catumbi.<br />

Tinha 74 anos de idade e foi sepultado no Cemitério do Caju.<br />

Causa mortis: edema agudo do pulmão e infarto do miocárdio.<br />

Seu filho Laélio – que ainda em vida o poeta encarregou de<br />

guardar e zelar pelos seus escritos – encontrou depois vários volumes<br />

datilografados e rubricados por <strong>Othoniel</strong> e uma caderneta<br />

com o manuscrito de seus poemas inéditos, já amarelados, manchados<br />

e emendados com fita adesiva.<br />

Eles estavam dispersos e espalhados por aí e são agora reunidos<br />

neste livro, graças aos diligentes esforços de Isaura Rosado e do<br />

próprio Laélio Ferreira.<br />

São suas obras completas – de sua prosa e de sua poesia: Gérmen,<br />

o primeiro livro; Jardim tropical; Sertão de espinho e de flor; A canção<br />

da montanha; Ara de fogo; Abysmos; A cidade perdida; Desenho animado;<br />

Esparsos e Ferreira Itajubá.<br />

Todos eles bem merecem ser lidos.<br />

E meditados.<br />

Rio de Janeiro, 12 de novembro de 2007<br />

Murilo Melo Filho*<br />

* Jornalista, escritor, membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia<br />

Norte-Rio-Grandense de Letras.<br />

27


<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> (sentado, à esquerda), a filha Theresinha e o jornalista e<br />

escritor paraibano Ademar Vidal, em Natal. De pé, estudantes paraibanos<br />

em visita ao Rio Grande do Norte (1931)


<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>:<br />

um parnasiano na terra Natal<br />

Do poeta natalense <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> pode-se dizer com segurança<br />

que foi, na boa feição parnasiana, um obcecado pela forma.<br />

Mas, tal afirmativa não dá conta da complexa posição que o<br />

poeta ocupa na literatura local. Porque, à boa maneira de Sísifo,<br />

personagem mitológica que teima em levar ao topo de uma montanha<br />

– até a eternidade – uma enorme pedra, que rolando de<br />

volta obriga-o a um eterno recomeço, assim também ele, adepto<br />

do formalismo que consagrou e revelou os excessos estilísticos de<br />

um Alberto de Oliveira, tentará, até o final da vida uma paradoxal<br />

aproximação com a simplicidade na criação poética. Detentor de<br />

forte personalidade, e de um indiscutível talento para a poesia,<br />

parecia disso ter, desde cedo, uma clara consciência. 1 Não é, aliás,<br />

difícil comprová-lo, a julgar pelo tom atrevido com que se dirige<br />

à própria Glória, já no soneto de abertura de Gérmen, livro de<br />

estréia, em 1918:<br />

Glória: para o teu seio enfim, levanto<br />

o condoreiro vôo do meu sonho. 2<br />

29


30<br />

Henrique Castriciano abençoa essa estréia, com um curioso<br />

prefácio em que, sem prejuízo do elogio feito ao jovem poeta,<br />

propõe-lhe curiosamente nova régua, novo compasso, insinuando<br />

que a visão social e o nacionalismo – que, afinal, povoavam corações<br />

e mentes no ano em que se encerra a Primeira Guerra Mundial<br />

– deveria tomar o lugar do interesse mitológico que o jovem<br />

lírico revelava. Mas é claro que o consagrado autor de Vibrações<br />

percebeu que, aquele, se tratava de um livro especial e até surpreendente<br />

para um rapaz de apenas 23 anos. E, a julgar procedente<br />

a informação editorial contida no seguinte, Jardim tropical mais<br />

surpreendente ainda fora a tiragem, de 3.000 exemplares, esgotados<br />

cinco anos depois. 3 Não pode existir dúvida de que aquele<br />

rapaz de olhar penetrante, cabelos cuidadosamente penteados,<br />

bigodinho ostensivo, trajando no rigor da moda, tinha consciência<br />

de que poderia preencher aquela espécie de vácuo surgido<br />

com o desaparecimento de Auta de Souza (1901), Açucena (1907),<br />

Segundo Wanderley (1909), Gothardo Neto (1911) e Itajubá<br />

(1912) todos importantes poetas da Belle Époque natalense. Talento<br />

é que não lhe faltava. E o espaço estava disponível, como se<br />

vê, porque o próprio Castriciano, que lança Vibrações, em 1903 4<br />

não voltaria a publicar livros. É bem verdade que a bela e talentosa<br />

Palmyra Wanderley também se lança neste mesmo ano com Esmeraldas<br />

e, já admirada pela sua intensa atividade jornalística e teatral,<br />

obtém um merecido reconhecimento. Porém é o autor de<br />

Gérmen que, por mérito próprio e pelas circunstâncias apontadas,<br />

se tornará o nosso principal poeta, na década. E uma aura bastante<br />

intensa envolverá o seu nome até os nossos dias.<br />

Culto, declaradamente filiado a uma escola em que,<br />

metalingüisticamente, um dos leitmotiv era o próprio trabalho de<br />

construção do poema, ele se tornará, com sua produção poética<br />

um estimulante desafio, tamanho o leque de aspectos que em sua


obra merecem atenção. Por isto me proponho a partir deste ponto<br />

o excitante desafio de demonstrar como, na opulência da forma<br />

de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> se esconde uma tenaz busca de simplicidade<br />

num parnasiano que estaria muito mais próximo de Itajubá<br />

– de resto o seu poeta mais querido – que de Olavo Bilac,<br />

Raimundo Correia e Alberto de Oliveira, provavelmente os mais<br />

admirados.<br />

Vocábulos raros, mitologia, poemas<br />

Comecemos por considerar uma seara riquíssima para quem<br />

trabalha, por exemplo, com análise morfológica: a grandiloqüência<br />

traduzida em seu discurso lírico por imagens apoiadas em vocábulos<br />

de espantosa raridade. Tal procedimento, fruto de uma linhagem<br />

retórica que estimulou a nossa irreprimível atração pelo<br />

torneio vocabular e imagético – herança do púlpito barroco, a<br />

que não ficaram imunes as poéticas vigentes nos séculos XVIII,<br />

XIX, começos do XX – ressoa até na, permitam-me o superlativo<br />

pouco original, estranhíssima poesia de Augusto dos Anjos.<br />

Um culto no espaço de iletrados, por vezes <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong><br />

parece divertir-se com o uso de vocábulos como adyto, báratro,<br />

alcaceta, infrene, yatagan, citharedo, ultriz, víride, ortivo, tredo,<br />

patacho, louçã, cyprio, brunido, virtualha, colhidos nos primeiros<br />

poemas de seu livro de estréia 5 procedimento que se reduziria<br />

ao essencial em seu último livro publicado em vida, A canção da<br />

montanha, de 1955.<br />

Outro caminho certamente fértil pra um estudo dessa exuberante<br />

poética e da já mencionada aproximação com Itajubá é buscar<br />

entender a recorrência de <strong>Othoniel</strong> ao uso de signos retirados<br />

da mitologia grega. É necessário desde logo ressaltar que nenhum<br />

31


32<br />

outro poeta local utilizou-se tanto e tão eficazmente de um acervo<br />

mitológico assim. A professora Águeda Zerôncio 6 já assinalara<br />

este aspecto, acrescido da clara opção do poeta por aqueles heróis<br />

mitológicos (Ícaro, Tântalo, Sísifo, as Danaides) que têm suas existências<br />

martirizadas pela obrigação de realizarem tarefas que jamais<br />

se completarão.<br />

Importa finalmente considerar outro aspecto que está a merecer<br />

a atenção da crítica: o zelo paternal que o poeta revela por<br />

cada novo livro que entrega ao leitor, cercando-o de cuidados,<br />

explicações, epígrafes e calorosas dedicatórias, onde repontam<br />

semideuses parnasianos federais e, no plano doméstico, tendo<br />

como alvo principal a grande figura do poeta Henrique Castriciano,<br />

a quem ele classificará em Jardim tropical de “O primeiro na minha<br />

terra”. 7<br />

Tudo contribui, como se vê, para tornar maior o desafio crítico<br />

de explicar-lhe a estranha tensão de sendo em essência um<br />

romântico, obrigar-se a, diariamente, burilar a pedra do lirismo a<br />

ser conduzida em fatigantes jornadas na direção da glória. Ainda<br />

mais que, tendo deixado inéditos e esparsos, a tarefa de reunir-lhe<br />

a obra, certamente não está concluída, continuando a revelar-lhe<br />

novas facetas. 8<br />

No parnaso, mas não completamente<br />

Publicado o seu segundo livro, Jardim tropical, <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong><br />

já não consegue disfarçar o descontrole de uma inspiração que se<br />

traduz na mais pura emoção itajubalina. Ainda uma vez a<br />

predominância é de sonetos, mas, as seções em que ele divide os<br />

núcleos poemáticos – todos nomeados com a exuberância da flora<br />

– e a própria escolha dos temas, são denunciadores de que o jovem,


agora travando contato com uma realidade cheia de desafios, voltará<br />

os olhos para a realidade social, senão com a intensidade nacionalista<br />

sugerida por Castriciano, ao menos com a simplicidade solar do<br />

nosso poeta romântico mais amado. Não por uma mera<br />

coincidência, o poema “Serenata do pescador”, que o povo<br />

rebatizaria “Praieira” – no qual a evocação saudosa dá-se como<br />

uma anáfora, alternadamente, ao longo de todo o texto lírico – se<br />

tornará emblemático da sua poesia. Igualmente não terá sido uma<br />

mera coincidência que o seu autor, pressuroso, num procedimento<br />

tipicamente seu, registrasse em nota de rodapé os riscos de uma<br />

popularidade que o atemorizava. A esse respeito, já havíamos<br />

considerado em nota à p. 67 de <strong>In</strong>formação da Literatura Potiguar<br />

que, entre algumas anedotas que cercam o poeta com o seu forte<br />

temperamento, havia aquela que Jayme Wanderley contava<br />

gostosamente, de ele haver despedido uma empregada doméstica<br />

por haver cantado a pobre mulher, de forma errada, verso de sua<br />

autoria já popularizado pela via da modinha. Também assinalamos<br />

que ele próprio, <strong>Othoniel</strong>, revelara-se assustado com a enorme<br />

popularidade que “Serenata do pescador” 9 adquiriu, identicamente,<br />

cantado por toda Natal, o que o levou a fazer uma curiosa<br />

observação, em nota estampada à p. 51 de Jardim tropical:<br />

Sei quanto é modesto o valor artístico destes versos.<br />

Feitos às pressas, para serem recitados a pescadores,<br />

achou-os o inspirado musicista Eduardo de Medeiros,<br />

capazes de ser amparados pelo seu talento,<br />

valorizando-os com lindíssimo fado que a cidade<br />

repete nas serenatas ou nos salões da aristocracia, de<br />

bairro a bairro. Por isso, e para satisfazer a pedidos<br />

muito gentis que me orgulham e me confortam,<br />

publico no livro a minha “Praieira”, que me tem dado<br />

muitas vezes, noite alta, enquanto um violão soluça<br />

33


34<br />

na rua solitária, a ilusão efêmera e perigosa da<br />

popularidade.<br />

E arremata com uma advertência que não poderia ser mais<br />

característica de suas ansiedades parnasianas:<br />

Vá ela, a pobre “Praieira”, e que agora se ponha a<br />

salvo dos assassínios com que a têm supliciado.<br />

O grifo é do próprio <strong>Othoniel</strong>.<br />

O ensaio sobre Itajubá<br />

Ainda não publicado em livro, há um texto do poeta de Gérmen<br />

no qual sobressai exemplarmente a tensão entre o zelo parnasiano<br />

e a sua admiração por Ferreira Itajubá. E é escrevendo em prosa,<br />

talvez até mais que em sua poesia, que o poeta de quem estamos<br />

tratando ressalta ainda mais o sisífico conflito que o acompanhou<br />

por quase toda a vida. Trata-se de uma série de artigos intitulada<br />

com o próprio nome do poeta romântico (e acompanhada de uma<br />

observação “Trecho de um ensaio”, o que insinua ser apenas parte<br />

de um texto maior) que fez publicar, em 1947, no jornal da capital<br />

O Democrata. 10<br />

Há, certamente, nos comentários produzidos sobre o nosso<br />

principal romântico elementos para reforçar-se a metáfora do sabiá<br />

no parnaso com que costumamos nos referir ao poeta que vimos<br />

estudando. É que partindo de um amargo comentário sobre o<br />

drama de ser intelectual no mesquinho espaço da província, o<br />

poeta parnasiano vai construindo o cenário em que se move o<br />

ídolo romântico em sua condição de quase marginal, para deterse,<br />

ao final, em dois aspectos mais demoradamente: a linguagem


do poeta de Terra Natal e as circunstâncias misteriosas em que ocorre<br />

a sua morte. Sinteticamente é essa a estrutura do ensaio. E seria<br />

simples entendê-lo, não fosse o seu autor <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>; não<br />

fosse o objeto do seu estudo, o poeta que mais amou: Ferreira<br />

Itajubá. 11<br />

É de se ressaltar a indignação do poeta de Jardim tropical para<br />

uma questão sobre a qual apenas uns poucos devem, hoje em dia,<br />

estar informados: a querela que durante bom tempo dominou as<br />

discussões sobre a publicação póstuma da obra de Itajubá. À boca<br />

pequena, os intelectuais da cidade comentavam que alguém poderia<br />

ter tentado “melhorar” o rude estilo do autor de “Versos de<br />

abril”. 12 Corajoso como era, sempre pronto a encarar injustiças –<br />

e por isto, tendo que pagar tributo à mesquinhez da vida prática,<br />

não poderia alhear-se a essa polêmica. E, na parte do ensaio denominada<br />

“Última flor do lácio inculta e bela”, após transcrever o<br />

soneto “Destino”, onde o exilado/eleito potiguar discorre simbolicamente<br />

sobre a existência, comenta:<br />

Não possuímos Harmonias do Norte, livro através de<br />

cujo texto original, aliás – sabemo-lo todos – andou<br />

mão estranha, numa fúria de heresia necrófoba,<br />

emendando, substituindo, desnaturando, de acordo<br />

com o maldito “espírito gramatical”, muitas<br />

expressões, muitas imagens, versos inteiros que, na<br />

forma daí por diante postos, muito perderam do<br />

virginal, saboroso, inimitável pitoresco da primitiva<br />

publicação (Revista da ANRL, cit.).<br />

Hoje tem-se como certo que algumas modificações chegaram<br />

a ser feitas, porém não tantas que não pudessem ser aproximadas<br />

da versão original, já anunciada por Itajubá anteriormente à publicação<br />

deTerra Natal. Mantendo o título de Harmonias do Norte,<br />

35


36<br />

Henrique Castriciano, fez com que o reunissem ao outro, integrando-o,<br />

definitivamente ao volume Poesias Completas, em 1927,<br />

no mesmo ano em que Jorge Fernandes 13 lançaria o seu Livro de<br />

Poemas.<br />

Mas é preciso destacar que o zelo e a admiração do ensaísta não<br />

escondem um certo maniqueísmo dominante na vida literária<br />

natalense que sempre sugeriu estarem: de um lado a elite oligárquica<br />

com seus intelectuais cheios de má vontade para com o poeta<br />

Ferreira Itajubá e do outro ele próprio, exposto, com toda a sua<br />

fragilidade. Pois é ele próprio que, sem qualquer constrangimento,<br />

chega a homenagear com um soneto o governador Alberto<br />

Maranhão numa comemoração de aniversário do oligarca, no próprio<br />

palácio, em 03.10.1911. Aliás, a empolgação revelada é tamanha<br />

que o poeta de “Um marujo parte” parecia haver tomando<br />

de empréstimo o estro condoreiro de Segundo Wanderley. Considerando-se<br />

a tonitruância dos dois últimos versos: “Pirilampo<br />

imortal das Ribas potiguares;/ trigo do pão da luz, Glória da minha<br />

terra!” podemos imaginar o fascínio que o mesmo há de ter<br />

causado no quase menino <strong>Othoniel</strong> já atento à produção lírica da<br />

terra.<br />

Como quer que seja, apenas uma admiração assim, capaz de<br />

projetar um desejo inconsciente de tornar-se idêntico à pessoa<br />

admirada, justificaria ensaio tão veemente. Aliás, se tratamos de<br />

temperamento, é possível dizer-se que, afastado o lado boêmio de<br />

Ferreira Itajubá, não poucos aspectos os aproximavam. Porque<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> foi igualmente, à sua maneira, um displaced, anjo<br />

torto, um inadaptado à hipócrita mesmice provinciana. 14 Este sentir-se<br />

obrigado a tomar as dores por um idêntico é que dá o tom<br />

do ensaio de que vimos falando.<br />

Embora em três dos oito artigos que compõem “Ferreira Itajubá”<br />

ele defenda a idéia de que o sentimento tende, considerado o


talento de quem o revela – no caso Itajubá – a sobrepujar o léxico,<br />

chegando a se valer de um conceito de Álvaro Lins, “incontinência<br />

verbal”, com o qual justifica aspectos da poesia de Augusto<br />

Frederico Schmidt 15 <strong>Othoniel</strong> acaba por lamentar que o poeta de<br />

“Versos de abril” não conte “[...] com um instrumento de expressão<br />

à altura do seu extraordinário talento poético” o que o teria<br />

projetado “[...] no cenário nacional, dominado, literariamente,<br />

pelos perfeccionistas da geração de Bilac”. Na seqüência, comenta,<br />

desolado, que o mesmo Castriciano teria levado até Vicente de<br />

Carvalho alguns poemas de Itajubá, tendo o poeta santista falado<br />

mal dos alexandrinos do romântico natalense...<br />

Mas, é sem dúvida, no artigo, intitulado de forma dessacralizadora<br />

“Ele era o senhor do sábado”, em que estabelece uma<br />

analogia entre a poesia do alegre perdulário da existência – o poeta<br />

e cidadão Manoel Virgílio Ferreira, dito Itajubá – e os<br />

acontecimentos taumatúrgicos descritos por Mateus, onde fica<br />

clara e de modo definitivo, a admiração de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> pelo<br />

poeta romântico. E se lemos numa camada mais profunda, as<br />

trajetórias e a poética de um e de outro, iremos detectar aquele<br />

desejo de impossível realização, aquela espécie de consciência da<br />

danação sisífica que perseguiu o autor de Jardim tropical. Considere<br />

o leitor os trechos seguintes:<br />

Cáspite! nenhum de nós outros, desde Lourival<br />

Açucena, irrequieto Anacreonte dos suaves convívios<br />

pelos numerosos caramanchéis do Barro Vermelho<br />

e da Passagem, nos princípios deste século, velho<br />

fauno latinista, canário e garnizé da cabocla<br />

Porangaba, até esse superestesiado, paradoxal,<br />

poliédrico Esmeraldo Siqueira, dispensando no batepapo<br />

dos “cafés” a joalharia de mil e uma noites de<br />

um estro celinesco e uma formidável cultura literá-<br />

37


38<br />

ria – nenhum de nós, reconheçamos sem falsas modéstias,<br />

desencantou coisas mais lindas.<br />

[...]<br />

Ainda, como acontecia ao tempo dos prodígios, com<br />

o testemunho visual de S. Mateus, Cap. 12, ele era<br />

senhor do sábado, fazendo milagres – transformando<br />

em vinho generoso a água-de-cheiro de velhos<br />

temas puídos por algumas gerações de<br />

lamartinistas lamurientos, semeando trigo onde havia<br />

beldroega e mata-pasto; reproduzindo, sobre o<br />

nosso lirismo enfaixado nos linhos pútridos do espólio<br />

europeu,a ressurreição de Lázaro – acima da legalidade<br />

restritiva e formalística do Sinédrio...<br />

Ei-lo, portanto, que, falando de Itajubá, sugere estar falando<br />

de si mesmo, ainda que o fizesse às avessas. <strong>In</strong>compreendido, viria<br />

também a se exilar, já não mais como um romântico – pois nem a<br />

idade-padrão teria mais, para justificar qualquer metáfora – mas,<br />

como um magoado com as agruras, absurdos sofrimentos, onde<br />

não faltou, a omissão dos amigos poderosos segundo insinua (fazendo<br />

suas as palavras de Newton Navarro) o irmão Francisco<br />

<strong>Menezes</strong>. 16 Omissão que, diga-se de passagem, o próprio <strong>Othoniel</strong><br />

<strong>Menezes</strong> não deixa de assinalar no episódio da morte de Itajubá,<br />

como o faz no dramático artigo com que encerra o ensaio de que<br />

falamos aqui.


Sertão medido a emoções<br />

Embora pertencendo a outra geração, <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> pode<br />

ser considerado o último dos grandes poetas de um grupo que<br />

pontificou entre o final do século XIX e o início do XX, na capital<br />

do Rio Grande do Norte. A diferença de idade não o impediria de<br />

iniciar-se na poesia um quase menino, de tal maneira que, mesmo<br />

quando estréia em livro, apenas o bigode ostensivo e o duro olhar<br />

afrontam a indisfarçável juventude, como já ficou assinalado, na<br />

foto clássica que ilustra o seu livro de estréia.<br />

Naquele cenário de festejados líricos certamente admira que o<br />

rapaz nascido em 1895 tenha a responsabilidade de manter a tradição<br />

ao lançar o seu primeiro livro com apenas 23 anos. E ele a<br />

mantém. E até a expande, com sua popularidade.<br />

Sem pretender exagerar na ênfase biográfica, considero pertinente<br />

lembrar: quando o poeta Ferreira Itajubá morre a sua morte<br />

misteriosa de indigente, o poeta de “Serenata do pescador” encontra-se<br />

em plena adolescência. E o menino contestador, logo<br />

um cultor do lirismo parnasiano, estudioso de mitologia, amigo<br />

admirado do líder sindicalista Café Filho, depois redator de A Liberdade,<br />

órgão oficial da transitória administração comunista em<br />

1935, zelosamente reservara um lugar no seu panteon particular<br />

para aquele romântico que rompeu todos os diques do preconceito<br />

na sociedade de então para ver triunfar a sua rude poesia.<br />

Pois também Itajubá, informa-nos o seu primeiro biógrafo, José<br />

Bezerra Gomes, agitou passeatas em manifestações lideradas pela<br />

Liga Artístico-Operária Norte-Rio-Grandense. Não seria difícil,<br />

assim, perceber na vida e na poesia daquele estreante e em seus<br />

livros subseqüentes (nos quais repontam, por vezes, heróis mitológicos<br />

malsucedidos), a crescente admiração.<br />

39


40<br />

Mas, a fama de Bilac, o desafio de “esculpir” idéias líricas,<br />

preferentemente numa forma fixa – o soneto – e uma certa<br />

ludicidade na construção poética acabaram fazendo do jovem poeta<br />

natalense um admirador incondicional dos modos e moldes<br />

parnasianos. E ele quase fica para sempre parnasiano, assumindo<br />

de modo definitivo, embora não convincente, a condição daquele<br />

que sabia “fazer versos contadinhos nos dedos”, como referiu<br />

Jorge Fernandes, ao falar genericamente da escola, no poema de<br />

abertura da série “Meu Poema Parnasiano”. Ninguém notou igualmente<br />

que, na perspectiva de que as escolas se sucedem sempre<br />

com a presunção de que a mais recente decreta o esgotamento da<br />

anterior, ele estaria dando um possível passo atrás ao lançar, em<br />

1923 o seu Jardim tropical. Trata-se de um livro dividido em núcleos<br />

que semelham canteiros do grande jardim que, aliás, tem como<br />

um dos primeiros poemas aquele intitulado “Pindorama”, em que<br />

o poeta cede abertamente à tentação romântica, ecoando a citada<br />

admiração itajubalina. Por uma caprichosa coincidência consolidaria<br />

sua aura, agora de modo definitivo, com um poema que o<br />

ídolo provavelmente assinaria: “Serenata do Pescador”.<br />

Quase trinta anos após haver publicado Jardim tropical, (podendo-se<br />

atribuir tal demora em voltar ao livro à sua vida atribulada<br />

em meio à agitação do período: revolução, interventorias, insurreição<br />

comunista, afastamento de Natal, Segunda Guerra Mundial)<br />

o poeta lança outro livro surpreendente: Sertão de espinho e de<br />

flor. O resultado é, como em quase tudo na sua vida, exemplo da<br />

mais pura ousadia. Trata-se de um livro híbrido, por conter ao<br />

mesmo tempo poesia e exercício de etnografia, não sendo exagero<br />

afirmar-se que, o poeta não se limitou a revelar sua emoção,<br />

falando de uma terra que viu com olhos de criança. Cuidou igualmente<br />

de traduzir para os leitores menos avisados, em notas de<br />

grande riqueza, o significado de tal palavra, tal situação, tal costume,<br />

tal alimento, etc.


Ousadia maior não poderia haver: tido e havido nos meios literários<br />

como um poeta de cultura refinada, <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> produz<br />

em Sertão de espinho e de flor uma paráfrase da fala sertaneja,<br />

que ganha corpo através de sextilhas septissilábicas, conforme registra<br />

Luis da Câmara Cascudo no texto “Ecce Homo”, com que<br />

apresenta o livro. Significa dizer: aquele eu-lírico que primava pelo<br />

verso resultante de um trabalho idêntico ao de escultor ou ourives,<br />

assume agora corajosamente o tom monótono da cantoria<br />

agreste e bela com que os poetas populares fertilizam o sentimento<br />

sertanejo. Obviamente, um desafio assim, só poderia ser encarado<br />

por um poeta assim, tão corajoso. Sabendo que corria riscos,<br />

ele habilmente muniu-se de inúmeras citações, fazendo quase todos<br />

os dezesseis poemas serem precedidos de epígrafes de Euclides<br />

da Cunha. Esta escolha tem, digamos, um peso certamente simbólico:<br />

o autor de Os Sertões era igualmente talentoso e contraditório,<br />

tanto que para produzir sua obra-prima (também desafio interminável<br />

para crítica e leitores) obrigou-se a refazer sua própria<br />

visão de intelectual republicano. E o seu trabalho magistral resultou<br />

numa obra compósita: relato de guerra, ficção, história, tratado<br />

científico, etc.<br />

Portanto, não sendo por definição um poeta popular, <strong>Othoniel</strong><br />

<strong>Menezes</strong> enfrentará um problema logo visível ao leitor arguto que<br />

é, claramente, a já sabida tentação romântica indisfarçável em certos<br />

versos. Mas aqui é possível assinalar um aspecto que o favorece:<br />

ao cantador, ao poeta popular, fascina a linguagem empolada, o<br />

tom gongórico, a hipertrofia utilizada para descrever certas situações.<br />

E isso decorre, não chega a ser nenhum segredo, do diálogo<br />

permanente, do intercâmbio que se verifica entre a cultura<br />

popular e a outra, de natureza erudita. E mesmo Euclides, também<br />

ele, valeu-se da hipérbole, da antítese, do oximoro.<br />

Constatações essas que apontam para nossa tendência ibérica a<br />

um certo barroquismo lingüístico que, afinal, diz muito bem so-<br />

41


42<br />

bre quem somos. De modo que vemos desfilar nos dezesseis poemas<br />

de Sertão de espinho e de flor um sertão mítico que, feito de<br />

antíteses, é céu e inferno, grandeza e miséria, amargo e doce,<br />

estiagem e inverno; sertão que se eterniza – a despeito de contágios<br />

civilizatórios (hoje se dirá: globalizantes) – em criadores como<br />

José de Alencar, Cego Oliveira, Graciliano, Guimarães Rosa, Juarez<br />

Barroso, Francisco C. Dantas, Oswaldo Lamartine, Ariano Suassuna,<br />

Paulo Balá e Patativa do Assaré.<br />

Quanto à parte do livro que trata do sertão como objeto de<br />

interesse propriamente etnográfico, nas incontáveis notas que se<br />

seguem aos poemas, <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> revela uma comovente postura<br />

intelectual. À sua experiência empírica, recolhida da memória<br />

infantil, acrescenta à de autoridade em assuntos sertanejos da<br />

estatura de Gustavo Barroso, José Américo de Almeida, Câmara<br />

Cascudo, Leonardo Mota, tantos outros. E o que é mais: às fontes<br />

vivas, interlocutores da região, verdadeiros narradores das coisas<br />

do sertão, como o notável fazendeiro de Acari, Cipriano Bezerra<br />

Galvão, zeloso guardador da memória, antepassado de estudiosos<br />

competentes como os citados Oswaldo Lamartine e Paulo Balá.<br />

O resultado é um conjunto inestimável de informações sobre o<br />

Sertão. Sertão de cuja medida se tem idéia pela emoção do seu<br />

autor.<br />

A escalada da montanha<br />

O ponto ideal da sua poesia, <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> atinge com A<br />

canção da montanha o último livro publicado em vida. Ele próprio,<br />

como vimos, aparentado daqueles heróis míticos cujo destino é<br />

cumprir uma tarefa infindável e frustrante, embora tendo acumulado<br />

tantos revezes ao longo da existência, parece compadecido


de si, produzindo agora versos com notável equilíbrio. E tendo<br />

estreado quando a Primeira Guerra Mundial ainda acontecia e a<br />

ele, menino, parecia interessar apenas a escalada da imortalidade,<br />

agora como um humanista que não disfarça as cãs e deplora a estupidez,<br />

identifica ecos da Segunda Guerra acabada na década anterior,<br />

nos lamentáveis acontecimentos de uma sociedade movida a<br />

hipocrisia que assiste agora, passivamente, o surgimento da Guerra<br />

Fria. Impressiona, pela assumida mudança de atitude poética e<br />

a crítica à omissão da sociedade, o tom do soneto de abertura<br />

“Clarim”, que assemelhando paradoxalmente pela diferença de<br />

propósitos daquele “Ícaro”, que abria Gérmen, parece conter um<br />

propósito – admitir o fechamento de um ciclo:<br />

Pela janela aberta para o mundo,<br />

onde a vida dos povos tumultua,<br />

arremessei o escopro florentino<br />

com que talhava o molde dos sonetos.<br />

Que valem decassílabos à lua,<br />

quando tudo, aqui mesmo, anseia e sofre,<br />

e o destino das coisas mais sagradas<br />

quem mais armas possui, guarda no cofre?<br />

Bardo! Pendura a cítara dolente<br />

em que choraste apenas o teu drama!<br />

vão teus filhos bem cedo à barricada!<br />

Antes porém que os tome a vaga ardente,<br />

cai, cantando no círculo de chamas,<br />

entre rimas, blasfêmias e granadas!<br />

Trata-se, portanto, de mais um surpreendente livro do poeta<br />

de “Sugestão da luz”. Mas não se trata de um livro que tem por<br />

43


44<br />

bandeira o pacifismo. E é por certo em poemas em que ele próprio<br />

se insinua, amargurado por derrotas sucessivas, porém<br />

humanizado pela maturidade que os anos propiciam a certas pessoas,<br />

que a voz do poeta tem a força de uma autêntica confissão<br />

como no trecho que se segue, do belo poema que dedicou à grande<br />

amiga e grande poetisa que foi Myriam Coeli:<br />

Como no itinerário de outros homens vacilantes e<br />

falíveis, / Muitas coisas ficaram sem corpo no meu<br />

destino. / Muitas atitudes imaterializadas na minha<br />

culposa displicência / muitos gestos felizes / morreram<br />

sem expressão na estática dos silêncios<br />

infecundos.<br />

Adequadamente intitulado “Confiteor”, o poema apregoa a sua<br />

clara expectativa de que, ao fim e ao cabo, “[...] a todos os viventes/<br />

os inconscientes e os conscientes – / chegue a verdadeira<br />

mensagem que à Harmonia Universal/ deve toda perfeita inteligência.”<br />

Trata-se de fazer, em vários momentos do livro, uma espécie<br />

de balanço existencial, em que evoca amigos, ou os homenageia<br />

dedicando-lhes poemas, deixando a inspiração fluir mais<br />

livremente, sem preocupação com as cafuas léxicas de outrora.<br />

Trata-se, portanto, de um livro deliberadamente novo em seu discurso<br />

poético e o que, paradoxalmente o favorece, é ainda a coragem<br />

– restos, talvez, da impetuosidade do esgrimista da juventude<br />

– que o revela capaz de tratar de temas imprevistos e dolorosos<br />

como falar da mãe suicida num poema batizado genialmente<br />

de “Berceuse”, numa magnífica inversão do olhar infantil agora<br />

resgatado. Por isso afirmamos, sem qualquer preocupação de esconder<br />

um evidente sentimento de latinidade no já citado <strong>In</strong>formação<br />

da Literatura Potiguar (p. 68).


Se se pudesse tentar uma síntese dessa obra complexa,<br />

poderíamos dizer que a escalada sugerida naquele seu soneto de<br />

estréia, acabou se dando em sentido diverso. Isto é: no atingimento<br />

de uma simplicidade que, embora insinuada no regionalista Sertão<br />

de espinho e de flor, só ocorrerá de fato em seu último livro publicado<br />

em vida: A canção da montanha. Aqui, um <strong>Othoniel</strong> despreocupado<br />

com as rígidas imposições da forma parnasiana, mostra-se mais<br />

autêntico. Vale-se da ironia abrindo mão da causticidade, apregoa<br />

lições de profundo humanismo, desenvolve certa ontologia,<br />

considerando a sua própria maturidade, mesmo que as cicatrizes<br />

estejam visíveis.<br />

Alguns dos melhores momentos da poesia potiguar encontramse<br />

em poemas de A canção da montanha justamente porque o poeta,<br />

em paz com o seu romantismo, e dominando a forma sem excesso,<br />

sem receio de expandir-se, liricamente, em versos por vezes<br />

bastante longos, à Whitman – podendo dosar tal expansão quando<br />

julgou necessário – não se intimidou sequer quando se sentiu<br />

completamente dominado por certo sentimento latino (bolero<br />

ou tango, por que envergonhar-se de estar ao sul da América?), na<br />

canção de ninar cuja belíssimo título, “Berceuse”, por si só já<br />

causaria admiração, feito para a mãe suicida.<br />

Tinha um roupão encarnado<br />

estampado com ramagens,<br />

e tocava violão.<br />

Uma letrinha miúda que há tempo vi já desbotada<br />

no vetusto livro de orações<br />

da minha prima Conceição,<br />

– com flores secas, pétalas fanadas, um pobre aroma<br />

de ilusões perdidas<br />

[...]<br />

45


46<br />

Considerando-se panoramicamente – tal como agora é possível<br />

ver com a sua obra reunida pelo filho Laélio – podemos afirmar<br />

que este poeta, que à maneira do ídolo Itajubá também terminou<br />

seus dias no Rio de Janeiro, e que, ao longo da vida enfrentou<br />

incompreensões que o aproximaram ainda mais do autor de<br />

Terra Natal (especialmente na sua maturidade, quando teve que<br />

tentar retomar sua vida praticamente do zero, numa cidade que<br />

não era sua, com amigos que julgava ter), deixou uma obra à altura<br />

dos que o precederam. Mas, curiosamente, o seu aspecto mais<br />

importante decorre da tensão que leva a essa incompletude, ou<br />

seja, do fato de que ele não conseguiu jamais superar a evidência<br />

de se saber um romântico no espaço do Parnaso.<br />

Tarcísio Gurgel*<br />

* Escritor, doutor em Literatura Comparada, professor da Universidade<br />

Federal do Rio Grande do Norte. Autor, entre outros, do livro <strong>In</strong>formação<br />

da Literatura Potiguar (2001).


Notas (de Tarcísio Gurgel)<br />

1 Há, na crônica familiar um episódio reproduzido pela pesquisadora Águeda<br />

Zerôncio no livro <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> (publicado na coleção Nossos Clássicos)<br />

pela Editora Universitária em 1955, bem ilustrativo disso: conta-se<br />

que quando ele nasceu foi alvo de um vaticínio que a vida acabou confirmando:<br />

o de que haveria de ser um poeta.<br />

2 O soneto “Ícaro” revela alguns indícios curiosos da complexidade<br />

inicialmente assinalada. Este vôo de sonho, que tem por característica ser<br />

condoreiro, é um bom exemplo. Para não falar que o aspecto<br />

morfossintático, tocado pelo motor da juventude (“é por ela que, ao sol<br />

da mocidade/ à orquestração fremente dos meus hinos/ – tento a escalada<br />

da Imortalidade!”) é pouco, muito pouco parnasiano.<br />

3 A edição de Gérmen é da Tip. Atelyer M. Victorino. Seguem-se: Jardim<br />

tropical – Recife, Imprensa <strong>In</strong>dustrial – I. Nery da Fonseca, 1923; Sertão de<br />

espinho e de flor – Natal, Departamento de Imprensa, 1952 (a edição foi<br />

doada a uma associação espírita, como contribuição do autor à construção<br />

de um albergue); A canção da montanha – Natal, Departamento de Imprensa,<br />

1955. O poeta deixou inúmeros poemas esparsos e vários originais<br />

inéditos, objeto de importante pesquisa de Cláudio Galvão.<br />

4 Vibrações – Natal, Empresa da Gazeta do Comércio, 1903 (edição patrocinada<br />

pelo Grêmio Polimáthico)<br />

5 O aparente pedantismo vocabular é, segundo creio, a principal marca da<br />

opção parnasiana de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>. Num ensaio intitulado “Ferreira<br />

Itajubá”, o procedimento chega a ser provocativo, se pensamos no tipo de<br />

publicação em que foi veiculado: o jornal. <strong>Othoniel</strong> não faz por menos e<br />

vergasta a mediocridade provinciana com termos como: próvidas, hégira,<br />

sorna, estercoário, palingenésia, abantesmas, expluir, acatassolam, drósera,<br />

corrilhos, diátese, etc., um estranho vocabulário que, paradoxalmente,<br />

devia deixar fascinado o leitor, igualmente ao que sempre ocorreu com a<br />

recepção da poesia insólita de Augusto dos Anjos.<br />

6 Op. cit.<br />

7 O elenco de citações e dedicatórias nesse livro é imenso. Sintomaticamente<br />

<strong>Othoniel</strong> destaca uma em versos, “À altíssima memória de Bilac”,<br />

mas seguida de uma transcrição de outros tantos do poeta Fagundes Varela.<br />

8 Merece todo o reconhecimento, quer pela seriedade com que vai às fon-<br />

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48<br />

tes, quer pela justeza das análises empreendidas, a pesquisa já mencionada<br />

de Cláudio Galvão. Até agora, por exemplo, além da de natureza biográfica,<br />

ele resgatou os originais de dois conjuntos de poemas: Ara de fogo/<br />

Abysmos/Esparsos (Clima Artes Gráficas, 1989) e A cidade perdida/Desenho<br />

animado/Esparsos (UFRN-CCHLA – Coleção Humanas Letras, 1995),<br />

além de uma recolha de poemas que foram musicados: O cancioneiro de<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, também publicado em 1995 pela UFRN-CCHLA.<br />

9 A popularidade subitamente adquirida não pararia de crescer. Tanto que<br />

nos dias de hoje “Serenata do pescador” virou uma espécie de hino não<br />

oficial da cidade.<br />

10 Ferreira Itajubá divide-se em oito partes: I. O drama da vida de província: II.<br />

No tempo de mecenas; III. Poesia versus gramática; IV. Última flor do<br />

lácio inculta e bela; V. Variações sobre um conceito de Álvaro Lins; VI. Ele<br />

era senhor do sábado; VII. A ilha do tesouro e as aranhas de Vautrin e,<br />

finalmente, VIII. O amigo da onça e o convite de Walt Whitman (Publicado<br />

originalmente no jornal citado, em Natal, 1947, tendo merecido uma<br />

reedição no Número 8, de maio de 1970, Ano XIX, da Revista da ANRL. As<br />

citações que fazemos são desta última publicação).<br />

11 Convém utilizar com cautela certas idéias e conceitos ligados à existência<br />

tumultuária de Itajubá. A respeito da sua decantada marginalidade, por<br />

exemplo: vivia ele, de fato, em condições de pobreza e é igualmente certo<br />

que participou de arruaças típicas do período em que uma disputa de<br />

pastoril poderia acabar em pancadaria. Daí a dizer-se que era um iletrado<br />

ou não tivera acesso a publicações importantes da cidade, ou ainda que<br />

tinha na cabeça tantos cabelos como inimigos, vai uma distância enorme...<br />

No já mencionado <strong>In</strong>formação da Literatura Potiguar, a questão foi considerada.<br />

O que nunca ficou esclarecido e dificilmente o será, é o real motivo<br />

da sua ida para o Rio de Janeiro, onde veio a falecer, anonimamente, no ano<br />

de 1912 (ver p. 49 da obra citada).<br />

12 A insinuação parece dirigida a Henrique Castriciano, que se encarregou da<br />

publicação. Espécie de oráculo a quem quase todos recorriam – pois além<br />

de talentoso era membro da administração oligárquica – Henrique era<br />

igualmente um admirador de Itajubá e fez questão de chamar a atenção<br />

para a qualidade da sua poesia, como se pode ler no texto publicado no dia<br />

09.09.1917, na coluna “5 Minutos”, que com o pseudônimo de J. Cláudio,<br />

assinava em A República (cf. Henrique Castriciano – Seleta – Org. José


Geraldo de Albuquerque, Natal, sem data, sem indicação de editora, mas,<br />

como iniciativa assinalada da Escola Doméstica de Natal). Quanto a esta<br />

possível “colaboração” tão surpreendente quanto nebulosa, há uma carta<br />

de Ivo Filho, transcrita na Revista da ANRL já citada, que reproduziu o<br />

ensaio sobre Ferreira Itajubá, revelando opinião contrária e contendo, a<br />

propósito, elementos bem interessantes.<br />

13 No livro já citado, de Águeda Zerôncio, há um conjunto de transcrições<br />

interessantes a respeito das dificuldades enfrentadas pelo poeta, uma das<br />

quais fala de uma redução de vencimentos de funcionário público, que<br />

acabou mobilizando imprensa, clube de serviço, Legislativo, e da sua<br />

mudança para o Rio de Janeiro. Todo esse roteiro de angústia é descrito<br />

minuciosamente por Cláudio Galvão na excelente apresentação de A cidade<br />

perdida, cit.<br />

14 O poeta-ensaísta vale-se de um comentário feito por Álvaro Lins à poesia<br />

de Schmidt, assinalando que na construção poética a substância tem tal<br />

força que acaba determinando o modo de expressão sendo inevitável, em<br />

casos como o de Itajubá, o que classifica de “incontinência verbal”, que<br />

viria a resultar no que ele, <strong>Othoniel</strong> consideraria a manière, a forma peculiar<br />

da sua poesia: rude, com imagens insólitas, insubmissa aos padrões<br />

parnasianos, vigentes na época.<br />

15 Ver o texto “Meu irmão <strong>Othoniel</strong>”, discurso com que Francisco <strong>Menezes</strong>,<br />

irmão do poeta, agradeceu a homenagem que, postumamente, a ANRL<br />

prestou ao poeta de “Confiteor” – Revista da ANRL, ano XXI, n. 10, Natal,<br />

1972.<br />

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<strong>Othoniel</strong> e Maria da Conceição, em 1948, na Praça Pedro Velho<br />

(“Pracinha”) com os dois filhos temporãos: Laélio (à esquerda) e Hermilo


Carta para <strong>Othoniel</strong> no Azul<br />

Meu caro amigo eu não pretendo provocar<br />

Nem atiçar suas saudades<br />

Mas acontece que não posso me furtar<br />

A lhe contar as novidades<br />

...............................................................<br />

...............................................................<br />

Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá<br />

preta<br />

(Meu Caro Amigo, de Chico Buarque de Holanda)<br />

"Seu" <strong>Othoniel</strong>, me abençoe.<br />

Aqui está a sua Obra Reunida.<br />

Compromisso cumprido, comigo mesmo.<br />

Fiz o que pude, meu velho. Foram madrugadas sofridas, adiamentos,<br />

angústias, muita saudade. Relendo tudo o que escreveu,<br />

revisando e redigindo as notas – vão me chamar de prolixo, aposto!<br />

–, avivavam-se na cachola setentona as lembranças de tudo<br />

51


52<br />

quanto sofreu: as perseguições que lhe fizeram; a sua pobreza digna,<br />

altiva e ao mesmo tempo resignada; a doença, o auto-exílio, a<br />

saudade de Natal, a perda de Maria.<br />

Nas notas que redigi, as amargas, sobre indivíduos, pessoas,<br />

segui conselho do velho Balzac ("Pode perdoar-se, mas esquecer,<br />

isso é impossível"). Aos que lhe fizeram mal, perdoei alguns, poucos.<br />

Dos outros, não esqueci nenhum: os nominei e sobre eles fiz<br />

registro merecido.<br />

Há poucos dias, completei setenta e uma safras de caju, aqui<br />

mesmo, na ocara grande do mestre-de-campo Felipe Camarão. Há<br />

quarenta, logo depois de Mamãe, o senhor, saudoso da terra, exilado<br />

e esquecido no Rio de Janeiro, partiu para o Azul.<br />

Diz o povo – aqui, neste planeta amalucado – que a vida é<br />

frágil, que passa. Ficaram, porém, para mim, intangíveis, as suas<br />

obras, as lembranças, as saudades – repito. Permanecem, como<br />

impressões que o tempo atenua, mas não apaga. A eternidade tem<br />

a duração da memória de quem nos ama. Passamos pela vida dos<br />

outros deixando nossa imagem numa frase, num verso, no rosto<br />

de um descendente.<br />

E quanto lhe tenho vislumbrado por cá, meu velho! Nos meus<br />

filhos, nuanças das coisas que eram tão suas: sorrisos desconfiados,<br />

recolhimentos, alegrias. Neles, vejo, sempre comovido, tudo isso<br />

e até mais nos gestos, modos de andar, alguns tiques, nas vozes,<br />

nos olhos deles todos – filhos e netos. Noto-me, ainda, muito parecido<br />

com o senhor, "incompreendido e incompreendendo"<br />

quanta coisa deste mundão cá de baixo, com a mesmíssima larga<br />

aversão à mediocridade provinciana. Já houve quem nos chamasse,<br />

aos dois, pai e filho, de "irritadiços". Valeria, pois, para ambos,<br />

aquele contundente e velho conselho sertanejo de que "não se<br />

pode discutir com um burro sem ter um pedaço de pau na mão?"<br />

Vosmecê, meu pai, bem sabe que deixei os versos comportados<br />

muito cedo por muitas razões, limitando-me, nas horas vagas,


às glosas sacanas, fesceninas, quase sempre de crítica e desabafo,<br />

metendo a catana numa pá de gente – às vezes, até, me arrependendo<br />

por algumas grosserias: a velha história de "não perder o<br />

mote".<br />

Poesia e cultura –"agricultura insana da cabeça" – nunca rimaram<br />

com felicidade material, fortuna. O senhor mesmo dizia a<br />

Esmeraldo Siqueira, naquelas cavaqueiras das "hemiplégicas poltronas"<br />

lá de casa, que o único poeta que tinha dado certo, naquela<br />

sua época, era o Augusto Frederico Schimidt – milionário<br />

amigo e ghostwriter de Juscelino, embaixador e dono de supermercados.<br />

Fui à vida, à liça, muito cedo, sem nunca sonhar em vir a ser<br />

um daqueles "intelectuais conterrâneos" que por cá saltitam e<br />

pululam. Fui, sim, catar o pão de cada dia em atividade profissional<br />

sem nenhuma poesia, Brasil afora, vasculhando – a bem da<br />

verdade, com pouquíssimo sucesso na hora dos julgamentos pelas<br />

cortes – o lixo da corrupção fantástica de muitos comedores de<br />

verbas federais, lestos e mitrados rabos-de-couro, políticos viciados<br />

ou afilhados desta brava e malina gente.<br />

Até hoje, nessa banda escura, nada mudou no Pindorama. Acho<br />

eu que a coisa só fez piorar, desde os tempos da carta de Caminha.<br />

Aqui, na nossa não muito gentil Jerimunlândia – canguleiro eu,<br />

xaria o senhor –, há poucos dias, um estentóreo historiador nativo,<br />

freguês juramentado de caderneta do <strong>In</strong>stituto Histórico, deume,<br />

solene, de pé e com vasto calhamaço agasalhado no sovaco,<br />

mesta e acachapante notícia sobre uma grossa estripulia do João<br />

Rodrigues Colaço, Capitão-Mor da Fortaleza e, dizem alguns, fundador<br />

da Cidade. Pois não é que o nosso contraparente, marido<br />

empistolado da fidalga e distante "prima", Dona Beatriz de<br />

<strong>Menezes</strong>, está sendo acusado – veja só, o Senhor, pode rir! –,<br />

séculos depois da tal tribuzana, de "doar a si próprio uma sesmaria<br />

na Redinha". O que mal começa, segue mal a vida toda. "A gente<br />

53


54<br />

vai vivendo e esperando que alguma coisa divina aconteça..."<br />

(Borges).<br />

Linda e pobre terra, a nossa "iara morena, pulando na água<br />

serena do Potengi, a cantar"...<br />

Muita água no velho rio desceu, o tempo rodou e, vamos e<br />

venhamos, <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> – o parnasiano, o modernista, o<br />

jornalista, o ensaísta, o prosador, o etnógrafo, o folclorista, o crítico<br />

–, hoje, salvo para poucas pessoas, é apenas mais um nome de<br />

rua na Limpa dos Santos Reis. E apelido de prêmio de poesia da<br />

Prefeitura de Natal, só isso. Seus livros publicados foram poucos<br />

e, agora, são muito raros. O rio da sua canção, lá bem perto da<br />

ruazinha modesta, está poluído pela imundícia dos esgotos; o prêmio,<br />

temporariamente cassado pela pequenez cerebral da atual<br />

administração, entregue às baratas e borboletas viageiras.<br />

Seu nome, Papai, sob outro ângulo, é sempre lembrado pelo<br />

povo, ricos e pobres, quando se canta a "Praieira". Essa minha<br />

"irmã mais velha" que, aos oitenta e oito anos, permanece formosa,<br />

vetusta senhora, hino da terra, bela canção – "feita às pressas<br />

para homenagear humildes pescadores". Continuou, a modinha -<br />

sua e de Eduardo Medeiros –, fiel à premonitória nota de pé de<br />

página, de 1923, no Jardim Tropical, vaticinando a tal "ilusão efêmera<br />

da popularidade".<br />

Guimarães Rosa dizia: "Eu quase que nada não sei. Mas desconfio<br />

de muita coisa". Pois é, Papai, quem desconfia agora sou<br />

eu, "a coisa aqui tá preta", como diz aí por cima, na epígrafe, o<br />

filho de Sérgio Buarque de Holanda, aquele jovem que, na televisão,<br />

nos tempos da ditadura – aquela, infelizmente, que o senhor<br />

não lhe viu o fim – cantava "Pedro Pedreiro" e o chorão da "Praieira"<br />

chorava baixinho, fazendo chorar sua Maria, os dois na salinha<br />

modesta do apartamento do Catumbi.<br />

Aqui, há muitas exceções, honrosas, decentes, mas a coisa, no<br />

geral, no picollo mondo, "tá preta" mesmo no ensino (de todos os


graus), nas academias – inclusive na de Letras, aquela que o senhor<br />

nunca foi lá sequer tomar posse –, na política e no bestunto<br />

da maioria dos "intelectuais conterrâneos" – estes últimos produzindo<br />

mais do que sabiá no fundo da gaiola. O senhor, "Seu"<br />

<strong>Othoniel</strong>, não calcula quantos "poetas", quantos "cordelistas de<br />

bancada" (uma invenção recente!), quantos "escritores", quantos<br />

"tradutores" (os de Baudelaire, uspeanos cavilosos, são uma graça!),<br />

grosas de "jornalistas", dúzias de "críticos literários", centenas<br />

de "mestres" e "doutores" e até "filósofos metafísicos" expertos<br />

em "ciências mortas e línguas ocultas" (arre égua!) sobrenadam -<br />

todos! – engalfinhados, esfalfados, sem fôlego, em petição de miséria,<br />

sapecando caldo e danando cangapé uns nos outros, no "Poço<br />

do Dentão" da Praia do Meio...<br />

Para lá de atuais, perfeitos para a época – quadra gaiata por que<br />

passa o nosso torrão de canguleiros e xarias –, ajustam-se, como<br />

se luvas fossem, os sonetos do seu Desenho Animado. A colorida<br />

fauna, ali tão bem posta, permanece a mesma e quiçá muito pior.<br />

Os perus dos silogeus, por exemplo, continuam a rondar nos terreiros,<br />

sapientíssimos sandeus, os papos inflados a arrebentar de<br />

vento, fabricando, todo santo dia, gás do milho do alfabeto.<br />

Esmeraldo Siqueira, do seu tempo e que viveu mais tempo, seu<br />

amigo, verrumava mais direto:<br />

Os asnos são divertidos,<br />

Asnos bípedes, é claro,<br />

Todos se julgam sabidos,<br />

Dotados de senso raro.<br />

Darcy Ribeiro dizia: "Só há duas opções nesta vida: se resignar<br />

ou se indignar. E eu não vou-me resignar nunca."<br />

O mundo e o País mudaram. Manda no Brasil, hoje, um partido<br />

criado por trabalhadores, que degringolou para a corrupção<br />

55


56<br />

grossa, agradando aos pobres – e muito mais aos ricos –, "distribuindo<br />

riqueza" com projetos que dão o peixe, mas não ensinam<br />

a pescar.<br />

No Brasil, os bancos nunca lucraram tanto quanto lucram agora.<br />

O país do seu querido Roosevelt, hoje – quem diria! –, é governado<br />

por um negro bem intencionado e competente. Por cá,<br />

a economia melhorou, afinal o país é rico. A droga vem acabando<br />

com a mocidade, a liamba e a cocaína correm frouxas, inclusive<br />

entre muitos dos tais "intelectuais conterrâneos" papa-jerimuns.<br />

A violência campeia, em todos os níveis. Mulher anda casando<br />

com mulher, homem casando com homem. Os rios estão morrendo<br />

– o Armagedon se anuncia nas guerras e nas catástrofes, na<br />

fome, nas epidemias. E o Brasil, meu velho, perdeu a Copa do<br />

Mundo!<br />

Novidade grande é uma tal de <strong>In</strong>ternet e um certo "Professor<br />

Google". Ferramentas para o bem e para o mal, facas de dois gumes.<br />

O "professor" é um gênio ao quadrado. Equivale, o mestre -<br />

só para o senhor calcular, por baixo –, a umas cem mil miscelâneas<br />

daquelas de João Babão, 1 nos velhos tempos. Os sabichões daqui<br />

e de alhures deitam e rolam no munguzá: copiam o que lhes<br />

interessa e sapecam em baixo e jamegão lustroso, na maior cara<br />

de pau, ganhando fama e prestígio entre os bestas.<br />

No planeta poluído, os bons e justos ainda não descobriram<br />

aquela - "simples, fecunda, bíblica, feraz" – sementezinha de mostarda<br />

da paz de que o senhor fala nos versos da "Canção da Montanha"...<br />

Bem disse – e disse bonito! – o poeta lusitano José Saramago:<br />

"Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeramno<br />

de carne, e sangra todo dia".


Um beijo no senhor, aí, na dimensão Azul. Dê outro, muito<br />

saudoso também, em Maria de <strong>Othoniel</strong>.<br />

Seu fim-de-rama,<br />

Lelinho*<br />

Praça Pedro Velho, Natal, julho de 2010.<br />

Nota<br />

1 "João Babão" – Funcionário do Estado, boêmio, inteligentíssimo, famoso<br />

no meio literário de Natal nas primeiras décadas do século passado.<br />

Dizia possuir - sem a menor chance de empréstimo a quem quer que<br />

fosse - "a melhor e maior miscelânea de todo o Estado". Nunca ninguém<br />

viu o volumoso calhamaço. João, hoje, em Natal, seria, no mínimo, apodado<br />

de "peripatético". O Dicionário Aurélio registra: miscelânea [Do lat.<br />

miscellanea.] Substantivo feminino. 1. Mistura de variadas compilações<br />

literárias. 2. Volume que se compõe de coleção de estudos afins, escritos<br />

por vários autores para homenagear uma pessoa ou instituição em data<br />

significativa; polianteia, miscelânea de homenagem, volume de homenagem.<br />

3. Fig. Mistura de coisas diversas. [V. mixórdia (1).]4. Fig. Confusão,<br />

amontoamento, salgalhada.<br />

* Laélio Ferreira de Melo.<br />

57


Da vida e da obra<br />

Cronologia<br />

1895<br />

Nasce, <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, em 10 de março, na casa na Rua das<br />

Laranjeiras n° 16, filho de João Felismino de Melo e Maria<br />

Clementina de <strong>Menezes</strong> Melo. No mesmo local nasceram os irmãos<br />

Francisco, em 5 de março de 1892, Stela, em 1896 e falecida<br />

criança; <strong>Othoniel</strong>, em 10 de março de 1895; João, em 13 de<br />

junho de 1896 e Gabriel, em 5 de novembro de 1897.<br />

1899<br />

João Felismino é transferido para Jardim do Seridó, como chefe<br />

da Mesa de Rendas (Coletoria) local; chega com a família em 24<br />

de março.<br />

23 de outubro: Maria Clementina suicida-se; tinha 28 anos e<br />

<strong>Othoniel</strong>, 4 anos.<br />

61


62<br />

1900<br />

Fevereiro: João Felismino casa-se com Celsa Bezerra de Araújo<br />

Fernandes [de Melo](falecida em Natal, em 6 de novembro de 1957).<br />

Primeiras letras na escola do professor Jesuíno Ildefonso de Azevedo.<br />

1904<br />

O irmão Francisquinho é enviado para estudar no Colégio<br />

Diocesano Santo Antônio, inaugurado em 1903.<br />

1906<br />

<strong>Othoniel</strong> e João ingressam no Colégio Santo Antônio.<br />

1907<br />

<strong>Othoniel</strong> continua no Colégio Santo Antônio e se matricula no<br />

Atheneu Norte-Rio-Grandense, para cursar o 1º ano do curso<br />

secundário.<br />

1908<br />

Deixa o Colégio Santo Antônio ficando apenas no Atheneu.<br />

1911<br />

Março: Participa da diretoria do jornal O Ideal, do Grêmio Literário<br />

Frei Miguelinho, do Atheneu.<br />

Julho: Torna-se orador do Grêmio Literário Frei Miguelinho.<br />

3 de outubro: Aniversário do governador Alberto Maranhão, passeata<br />

dos alunos do Atheneu; discurso de <strong>Othoniel</strong>, como orador<br />

do Grêmio Literário Frei Miguelinho. No dia 12 discursou na<br />

data do descobrimento da América.<br />

6 de novembro: É publicado em A República “O mendigo”, primeiro<br />

poema publicado, aos 16 anos. Tudo indica ser este o início de sua<br />

vida literária.


1912<br />

Matricula-se na Escola Normal. Colega de classe de Alice Pereira<br />

de Brito, seu primeiro amor. Desliga-se da escola no final do ano.<br />

Conclui o Curso de Madureza no Atheneu. Publicados diversos<br />

poemas em A República .<br />

1913<br />

18 de fevereiro: Alista-se no Exército; incluído em 10 de março.<br />

Promovido a anspeçada a 20, cabo-de-esquadra em 3 de abril,<br />

cabo de estacionamento em 8 de maio. Aprovado com distinção<br />

em concurso para sargento, em 14 de maio.<br />

São publicados alguns poemas de sua autoria no Jornal da Manhã.<br />

5 de dezembro: Parte para o Rio de Janeiro, como 3º sargento.<br />

1914<br />

O irmão Francisquinho bacharela-se em Direito no Recife, com<br />

21 anos de idade.<br />

No início do ano, retorna a Natal; não mais pertence ao Exército.<br />

Desempregado, procura o irmão Francisco, promotor público da<br />

cidade de Macau.<br />

<strong>In</strong>icia sua colaboração no jornal A Folha Nova, de Macau.<br />

Julho: assume como redator-chefe do A Folha Nova. Muitas matérias<br />

publicadas. Longos poemas sem rima nem métrica indicam sua<br />

antecipação ao modernismo.<br />

Tenta casar-se com Marieta Teixeira; o pai da namorada nega permissão.<br />

Abril: Promotor público interino atua em sessões do júri popular.<br />

Poemas publicados em A República.<br />

1916<br />

Retorno a Natal. A prima Maria do Carmo <strong>Menezes</strong> Bonfim, estudando<br />

na Escola Normal, está hospedada na casa do tio Gabriel<br />

Álvares de <strong>Menezes</strong>.<br />

63


64<br />

12 de maio: Foge com Maria do Carmo <strong>Menezes</strong> Bonfim (Carmita);<br />

casam-se, ele com 21, ela com 15 anos incompletos.<br />

Maio: 1º emprego: secretário do jornal A Imprensa de propriedade<br />

do coronel Francisco Cascudo, pai de Luis da Câmara Cascudo,<br />

de quem se torna amigo.<br />

1918<br />

21 de março: Nomeado segundo oficial da Secretaria de Governo<br />

pelo Governador Joaquim Ferreira Chaves.<br />

13 de novembro: O escritor iniciante Luis da Câmara Cascudo<br />

publica em A Imprensa o artigo “<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> poeta”.<br />

Nasce o primeiro filho, Francisco Euryalo.<br />

1919<br />

Janeiro: Lançamento do seu primeiro livro de poemas,Gérmen.<br />

24 de janeiro: Nasce a filha Maria do Carmo (Tamina).<br />

1920<br />

5 de abril: Promovido a primeiro oficial da Secretaria de Governo.<br />

29 de setembro: O irmão João, piloto militar, falece em desastre<br />

de avião.<br />

1921<br />

19 de fevereiro: Nasce a filha Maria de Lourdes (Biúde).<br />

1922<br />

Janeiro: Funda o Ginásio Auta de Souza, na cidade de Nova Cruz.<br />

Estava licenciado.<br />

28 de agosto: Partida festiva dos três barcos tripulados por pescadores<br />

natalenses em reid ao Rio de Janeiro, comemorando o Centenário<br />

da <strong>In</strong>dependência do Brasil.<br />

8 de outubro: <strong>Othoniel</strong> e amigos se reúnem em um bar no Passo<br />

da Pátria, para comemorar o retorno dos pescadores. Na ocasião,


escreve o poema Serenata do Pescador (Praieira), depois musicado<br />

por Eduardo Medeiros.<br />

29 de novembro: Reencontra Alice Brito, professora do Estado.<br />

Compõe o poema Alice, musicado por Carolina Wanderley.<br />

16 de dezembro: Deolindo Lima canta em público, oficialmente<br />

pela primeira vez, a Serenata do Pescador, no Festival de <strong>Othoniel</strong><br />

<strong>Menezes</strong>, realizado no Teatro Carlos Gomes, com declamação de<br />

poemas do seu livro Jardim tropical.<br />

1923<br />

Publica seu segundo livro, Jardim tropical.<br />

Separa-se de Carmita.<br />

1924<br />

Conhece Maria da Conceição Ferreira da Silva (nascida em Ceará-<br />

Mirim, em 20 de novembro de 1899).<br />

Julho: J. F. S. publica na Revista do Centro Polimático n. 7, ano V, o<br />

ensaio Bibliografia, sobre o livro Jardim tropical.<br />

1925<br />

Setembro: A revista Letras Novas, em seu número 3, institui o concurso<br />

“Qual o príncipe dos poetas potiguares?”.<br />

Voltando de uma farra com amigos, derrubou com tiros abajures<br />

da iluminação pública. Foi processado por dano ao patrimônio<br />

público.<br />

14 de dezembro: Alista-se no Exército e parte para o Maranhão;<br />

luta contra a Coluna Prestes.<br />

18 de dezembro: Engajado como soldado do Exército no 29º Batalhão<br />

de Caçadores e, dias depois, promovido a 2º sargento.<br />

1926<br />

9 de janeiro: É licenciado de suas funções no Governo do Estado,<br />

recebendo a metade de seus vencimentos.<br />

65


66<br />

26 de fevereiro: Está em Alagoinhas, Bahia, ainda em missão contra<br />

a Coluna Prestes.<br />

1º de maio: Retorna a Natal.<br />

10 de agosto: Nasce Terezinha Ferreira de Melo.<br />

1928<br />

19 de janeiro: <strong>Othoniel</strong> e mais outros funcionários do Estado são<br />

dispensados de suas funções.<br />

16 de fevereiro: Engaja por mais dois anos.<br />

1929<br />

1º de janeiro: É excluído do efetivo do Batalhão de Caçadores.<br />

Março: Desempregado, desloca-se para Pesqueira/PE, em busca<br />

de emprego, com o irmão Francisco, delegado regional em Serra<br />

Talhada. Deixa esposa e filhos em Natal.<br />

21 de dezembro: Falece em Natal a professora Alice Brito.<br />

1930<br />

<strong>In</strong>gressa como soldado na Polícia Militar de Pernambuco; trabalha<br />

na Delegacia, com o irmão. Colabora no jornal Correio de Pesqueira.<br />

Escreve o romance Janina, a princesinha caeté. Revolução de<br />

1930 – Francisco <strong>Menezes</strong> é destituído do posto e retorna a Natal.<br />

O “soldado” <strong>Othoniel</strong> perde a função e regressa com o irmão.<br />

Na viagem, perde os originais do romance que escrevera.<br />

1931<br />

Março: Torna-se ajudante do 1º Cartório Judiciário de Natal.<br />

Assume a função de redator do jornal A República.<br />

1932<br />

Torna-se subgerente de A República.<br />

Fevereiro: É nomeado oficialmente redator de A República.


1935<br />

23 de novembro: Eclode o Levante Comunista em Natal.<br />

26 de novembro: Funcionários da Imprensa Estadual são convocados<br />

para prepararem a primeira edição do jornal revolucionário<br />

A Liberdade, lançado na manhã do dia 27. Fracassado o movimento,<br />

iniciam-se as perseguições. <strong>Othoniel</strong> é responsabilizado<br />

como redator principal do jornal.<br />

28 de novembro: <strong>Othoniel</strong> é demitido da função de secretário de<br />

A República.<br />

<strong>Othoniel</strong> foge para o Recife, mas suspeitando de que estava sendo<br />

seguido, desembarca do trem em Canguaretama, refugiando-se<br />

na casa do irmão Francisco.<br />

Segue para o Recife e se esconde na casa de um primo; preso, é<br />

transferido para 1ª Delegacia da Ribeira, em Natal.<br />

1936<br />

4 de setembro: Decretada sua prisão preventiva.<br />

1938<br />

30 de março: nasce o segundo filho com Maria, Hermilo Ferreira<br />

Neto (Netinho).<br />

9 de agosto: Condenado a três anos de reclusão pelo Tribunal de<br />

Segurança Nacional.<br />

29 de setembro: Apelando da decisão, é absolvido.<br />

1939<br />

1º de março: Desempregado, aceita trabalhar no Serviço Nacional<br />

de Malária, em Assu, numa fase de epidemia de malária.<br />

Apresenta festival no Cine Teatro Pedro Amorim: declamação e<br />

canto.<br />

Apresenta festival em Macau, no Cine Teatro Éden.<br />

30 de junho: Nasce Laélio, último dos três filhos com Maria.<br />

67


68<br />

1940<br />

29 de outubro: Dispensado como funcionário do Serviço Nacional<br />

de Malária.<br />

1941<br />

18 de dezembro: Realizado no Teatro Carlos Gomes o Festival<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, com números de música e declamação pelo<br />

autor.<br />

Redige o primeiro prefácio em versos da literatura do Rio Grande<br />

do Norte para o livro Meus Versos, de autoria de Paulo Benevides.<br />

1942<br />

17 de abril: Admitido pelo Office of Civilian Personnel para os trabalhos<br />

iniciais da Base Aérea de Natal , durante a Segunda Guerra<br />

Mundial. Residia em Natal, na rua Felipe Camarão, número 392.<br />

1947<br />

Por orientação de uma numerologista passa a assinar o nome como<br />

Otoniel Meneses.<br />

Publica no jornal O Democarata o ensaio “Ferreira Itajubá – o drama<br />

da vida de província”.<br />

Publica “Luis da Câmara Cascudo: estilista”, incluído em Luis da<br />

Câmara Cascudo – Depoimentos, edição do Centro de Imprensa Ltda.<br />

3 de outubro: Voltando de um jogo de futebol, é atropelado na<br />

avenida Hermes da Fonseca.<br />

1950<br />

12 de janeiro: Chega ao Rio de Janeiro.<br />

22 de fevereiro: Chegada da família.<br />

22 de setembro: por sugestão do amigo João Café Filho, embarca<br />

em avião militar para o Rio de Janeiro.<br />

Começa a organizar os poemas de A cidade perdida e Desenho animado.<br />

Encontro amistoso com Café Filho para tratar do prometido emprego.


21 de fevereiro: Chega de Natal, via navio, a esposa Maria, os filhos<br />

Laélio e Netinho, e o sogro Hermilo Abílio Ferreira.<br />

22 de setembro: Confiante no emprego prometido, pede demissão<br />

da função na Base Aérea de Natal.<br />

Desilude-se e rompe com Café Filho; fica desempregado no Rio<br />

de Janeiro.<br />

1951<br />

31 de janeiro: Posse de Café Filho na vice-presidência da República.<br />

13 de março: Nomeado escrevente-datilógrafo interino do <strong>In</strong>stituto<br />

Nacional do Sal; emprego conseguido por intervenção de<br />

Letícia Cerqueira, sogra de Jessé Café, superintendente do órgão.<br />

19 de novembro: designado para o cargo de inspetor “E” interino.<br />

Aprovado em concurso público para inspetor efetivo.<br />

1952<br />

7 de maio: Passa a exercer em caráter efetivo o cargo de inspetor<br />

Classe “E”, do quadro do <strong>In</strong>stituto Nacional do Sal.<br />

O Departamento de Imprensa publica Sertão de espinho e de flor.<br />

1954<br />

A Revista da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras (n. 2, 1954),<br />

reproduz em “Parnaso dos vivos”, o Canto 15 – Minha viola a<br />

chorar, de Sertão de espinho e de flor, porém não faz referência à<br />

publicação do livro. Não mais serão feitas referências, nos números<br />

posteriores da revista da ANRL aos outros livros de <strong>Othoniel</strong>.<br />

1955<br />

26 de maio: lançamento de A canção da montanha, na sede do Departamento<br />

de Imprensa. Prefácio de Esmeraldo Siqueira e capa<br />

de Newton Navarro. São impressos 500 exemplares, 300 doados à<br />

Liga Norte-Rio-Grandense contra o Câncer. Presente o presidente,<br />

Dr. Luís Antônio dos Santos Lima.<br />

69


70<br />

1956<br />

Tem reduzidos os seus vencimentos como funcionário do <strong>In</strong>stituto<br />

do Sal: dificuldades financeiras.<br />

Agravam-se os problemas de saúde.<br />

3 de agosto: Veríssimo de Melo denuncia: “<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> está<br />

passando fome”, no jornal O poti.<br />

8 de agosto: O Lions Clube de Natal concede prêmio de dez mil<br />

cruzeiros; comissão faz entrega na casa do poeta, à rua Correia<br />

Teles. No mesmo dia, o poeta Antônio Pinto de Medeiros encaminhou<br />

carta ao governador Dinarte Mariz narrando a situação<br />

do poeta.<br />

10 de agosto: Newton Navarro publica a crônica “<strong>Othoniel</strong>”, no<br />

jornal Diário de Natal, aderindo ao movimento.<br />

11 de agosto: comício no Grande Ponto, promovido por jornalistas<br />

e estudantes – reivindicam pensão especial para OM.<br />

17 de agosto: o governador Dinarte Mariz responde a carta de<br />

Antônio Pinto de Medeiros, comunicando haver mandado redigir<br />

uma mensagem ao Poder Legislativo, pleiteando uma pensão<br />

especial para o poeta.<br />

18 de agosto: o poeta Antídio de Azevedo publica crônica de solidariedade<br />

no jornal O poti.<br />

1958<br />

Eleito, na ANRL, para a vaga de Bezerra Júnior, na cadeira cujo<br />

patrono é Antônio Glicério.<br />

1959<br />

12 de novembro: o vereador Deoclécio Sérgio de Bulhões encaminha<br />

projeto de lei concedendo pensão especial a <strong>Othoniel</strong><br />

<strong>Menezes</strong>.<br />

23 de dezembro: projeto aprovado subiu à sanção do prefeito.<br />

Reclassificado no <strong>In</strong>stituto Nacional do Sal.


1960<br />

Aposenta-se.<br />

Ocorre em Natal o I Encontro Nacional de Escritores. Recebe<br />

visita de uma comissão. Impressionada com a situação econômica<br />

do poeta, apela para o Governo do Estado, que autoriza uma farmácia<br />

a lhe oferecer os remédios de que necessitava.<br />

Ao saber que as contas não estavam sendo pagas conforme combinado,<br />

desgosta-se e, considerando como última desconsideração<br />

recebida, decide mudar-se para o Rio de Janeiro.<br />

1962<br />

Doente, recorre ao senador Dinarte Mariz.<br />

25 de março: retorno definitivo ao Rio de Janeiro. Diagnosticado<br />

com Mal de Parkinson.<br />

1965<br />

20 de abril: posse na Academia Potiguar de Letras, por procuração<br />

ao poeta Antídio de Azevedo, saudado pelo poeta Jayme<br />

Wanderley.<br />

1967<br />

Novembro: 24, 25, 26, 27,28 e 29. Encenada em Natal, no Teatro<br />

Alberto Maranhão, a opereta “Praieira dos meus amores”; texto<br />

de Jayme Wanderley e música de Garibaldi Romano.<br />

1968<br />

25 de julho: falece a esposa Maria.<br />

1969<br />

19 de abril: falece em sua residência, no apartamento 201, da rua<br />

Queiroz Lima, 18, no bairro de Catumbi. Seu atestado de óbito<br />

indica edema agudo do pulmão e infarto do miocárdio. Sepultado<br />

no Cemitério de São Francisco Xavier.<br />

71


72<br />

1970<br />

A Revista da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, ano 9, n. 8,<br />

republica o ensaio “Ferreira Itajubá – o drama da vida de província”.<br />

Publica também o seu necrológio, na sessão Nossos Mortos.<br />

1971<br />

Padre Jorge O’Grady de Paiva publica no Rio de Janeiro “A escalada<br />

poética de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>”.<br />

1980<br />

Segunda edição de A canção da montanha, UFRN, Editora Universitária.<br />

1985<br />

Publicado o volume A cidade perdida, Desenho animado, Esparsos, pela<br />

UFRN (Coleção Humanas Letras), no centenário do poeta.<br />

1989<br />

Publicado o volume Ara de fogo, Abysmos, Esparsos, pela editora Clima,<br />

em Natal.<br />

1995<br />

Publicado pela UFRN o livro O Cancioneiro de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, de<br />

Cláudio Galvão.<br />

2009<br />

Príncipe Plebeu – uma biografia do poeta <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, Edição da<br />

FAPERN.<br />

Cláudio Galvão*<br />

* Professor universitário, escritor, musicólogo; pesquisador da vida e da<br />

obra de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, organizador das publicações póstumas, seu<br />

biógrafo. Autor, entre outras obras, de A Modinha Norte-Rio-Grandense.


Poesia<br />

Marize Castro [ 77 ]


Gérmen<br />

[1918]


Prefácio da edição de 1918<br />

Mais de uma vez interrompi a leitura do Gérmen, arrastado por<br />

vários pensamentos sobre a missão dos nossos poetas nesta hora<br />

de crise universal, em que a alma brasileira, sentindo o esplendor<br />

do mundo que se está formando sobre os destroços da Grande<br />

Guerra, tateia hesitante, sem norte e sem guias espirituais.<br />

Censuram, geralmente, os políticos pelo que fazem e pelo que<br />

não fazem. A inércia ou a desorientação dos homens de letras –<br />

jornalistas, sociólogos, romancistas, poetas – representa falta bem<br />

maior numa coletividade como a nossa, em que vão desaparecendo<br />

todas as conquistas morais dos antepassados e mal se divisam,<br />

na sombra crepuscular em que se afogam, vinte e cinco milhões<br />

de destinos humanos.<br />

Dentro da natureza tropical, murmuremos com outros, onde<br />

tudo é viço e esperança, só o homem não tem saúde e alegria...<br />

Assim pensava eu, de quando em quando, ao ler e reler as páginas<br />

deste formoso livro.<br />

O leitor encontrará no Gérmen uma esplêndida vocação poética.<br />

Tudo nele denota elegância, clareza, distinção. Mas receio que<br />

o poeta, à semelhança de tantos, esmoreça em meio do caminho.<br />

Este coração que pulsa forte e diz o que sente em belíssimos<br />

cânticos, talvez venha a enfraquecer quando não se chamar adoração<br />

o amor que o ilumina agora:<br />

81


82<br />

Levo o Amor a fulgir na fronte! Oponho<br />

Às dores, esperanças... tenho o manto<br />

de aedo e a lira em que, sofrendo, canto,<br />

do mundo pelo báratro medonho!<br />

Sinto que é uma ascensão para a Beleza<br />

– A Arte – que minha mãe, a natureza,<br />

me deu, na correnteza dos destinos...<br />

É por ela que ao sol da mocidade,<br />

à orquestração fremente dos meus hinos,<br />

tento a escalada da imortalidade...<br />

No Comme il vous plaira, 1 se bem me recordo, Shakespeare comparou<br />

o mundo a um teatro imenso. São atores homens e mulheres<br />

e a vida uma tragicomédia em sete atos – as sete idades que ele<br />

nos concede e cuja síntese expõe com o humour dilacerante de<br />

um inglês de gênio.<br />

Shakespeare repetiu um pensamento que já era sem dúvida lugar-comum<br />

no seu tempo. Não valia a pena afirmar, como então<br />

afirmou, que nós temos duas infâncias: a dos primeiros anos e a da<br />

velhice. Transformam os lustros e a existência e esta mergulhará<br />

afinal no eterno esquecimento, o abismo sem fim que gelava o próprio<br />

Renan. 2 Mas há quem possua o segredo de conservar a juventude<br />

até o extremo limite dos anos. É aquele em que o amor se<br />

transfigura e vai sentindo, pela existência em fora, a alma dilatar-se.<br />

Tente <strong>Othoniel</strong> a escalada da Imortalidade, mas para tanto se<br />

faz preciso que seu amor de poeta, sagrada origem do Gérmen, abra<br />

as asas de oiro sobre a nossa Gente e sobre a nossa Natureza! Se tal<br />

não suceder, a Vida, dentro de alguns anos, terá apagado o artista.<br />

Múltipla e variável, mudando o aspecto como as ondas, a Vida é<br />

cruel e só um amor infinito, capaz de metamorfose, pode dar à<br />

Arte vigor para vencê-la.


Lede, adiante, o “Crepúsculo”.<br />

São versos de inexcedível harmonia: lendo-os, o espírito imerge<br />

na suavidade do sol-posto e nas recordações do pretérito, saturado<br />

da tristeza da tarde evanescente e da noite invasora. Entretanto,<br />

ao volver a página, percebi que não era plena a minha emoção.<br />

Creio faltar a essa paisagem de sonho uma figura humana, em que<br />

os olhos, numa concentração emotiva, demorem a rever lembranças<br />

de alguma existência serena e profunda como a hora crepuscular.<br />

E me veio à memória o Angelus, de F. Millet. 3 Viva eu cem<br />

anos e hei de lembrar o frisson que me deu essa tela imortal ao<br />

contemplá-la pela primeira vez no Louvre. O contraste entre a<br />

planície verde e o céu mergulhado na luz violeta do fim do dia nos<br />

comove e exalta. Apesar disso, não seria duradoura a impressão<br />

do quadro, se não se divisassem nele as duas figuras humildes e<br />

grandiosas que lá estão e o campanário cujo sino, na vibração<br />

lugente 4 da Ave-maria, recorda o imenso passado espiritual do<br />

Cristianismo.<br />

Os poetas do norte do Brasil abandonaram quase por completo<br />

a corrente nacionalista iniciada pelos grandes românticos. Estes<br />

erraram, divinizando o caboclo, o pior dos elementos étnicos<br />

formadores da nossa nacionalidade. Guiou-os, todavia, um ideal e<br />

foi bastante para escreverem estrofes de alto-relevo. Os nossos<br />

bardos setentrionais de hoje deveriam reatar a corrente de outrora,<br />

mas aproveitando sobretudo o tipo resultante das duas raças<br />

consideradas inferiores, porque representam mais diretamente o<br />

povo, as suas tradições, as suas alegrias e tragédias intimas.<br />

No campo e na cidade, seres e coisas esperam a organização<br />

complexa que os arranques do esquecimento e os eleve à luz da<br />

experiência emotiva de agora, na revelação da vida interior aberta<br />

ao contato do mundo e das existências que povoam o mundo.<br />

Há necessidade de um ideal na poesia, como, de resto, em todas<br />

as manifestações intelectuais do Brasil. Nada mais verdadeiro<br />

83


84<br />

do que a afirmação de J. Bryce: 5 o brasileiro não tem ideal. Julgamento<br />

terrível, porque sintetiza admiravelmente a nossa estagnação!<br />

Que os poetas como <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> aproveitem a bondade<br />

e a inteligência, trabalhando com ardor em procura do fim desejado.<br />

O Gérmen quase todo é um hino à mulher. Não podia ter<br />

feição diversa. Na idade do autor, Beleza chama-se Graça Feminil<br />

e devemos agradecer-lhe o fulgor de muitos dos versos que vão<br />

ser lidos.<br />

Mudam, porém, os anos e, com eles, a fonte da inspiração. O<br />

amor feminino apelidar-se-á recordação ou amizade e se nos faltar<br />

outro desígnio, faltar-nos-á também o entusiasmo gerador da grande<br />

Arte.<br />

É a explicação da mudez de tantas liras promissoras.<br />

Que o estudo e a piedade salvem no futuro este poeta de real<br />

merecimento, dobrando-lhe os joelhos diante da Pátria e mostrando-lhe<br />

em sangue e em lágrimas o coração do nosso povo. 6<br />

Natal, 31 de dezembro de 1918.<br />

Henrique Castriciano7


Notas<br />

1 Comme il vous plaira. Em português: Como ele (ou isto) vos agradará.<br />

Título (em francês) de uma peça de Shakespeare, uma pequena comédia<br />

escrita durante o ano de 1599, pouco antes Hamlet (1600-1601).<br />

2 Joseph Ernest Renan (Tréguier/França, 28.02.1823-Paris/França,<br />

02.10.1892). Escritor, filósofo, filólogo, poeta e historiador francês. Escreveu<br />

Vida de Jesus – seu livro mais importante, polêmico e revolucionário:<br />

conta a verdadeira história do Homem-Deus.<br />

3 Jean-François Millet (Gruchy/França, 1814-Barbizon/França, 1875).<br />

Pintor francês. Suas telas, inspiradas no mundo rural da região de Barbizon<br />

– segundo os críticos –, influenciaram Van Gogh.<br />

4 Plangente; lastimoso; lamentoso.<br />

5 Sir James Bryce. 1º.Visconde Bryce (Belfast/Irlanda do Norte,<br />

l0.05.1838-Sidmouth, Devon/<strong>In</strong>glaterra, 22.01.1922). Jurista, político,<br />

diplomata, alpinista e historiador irlandês. Autor de vasta obra, escreveu<br />

América do Sul: Observações e Impressões (1912), livro no qual tece comentários<br />

sobre o Brasil, certamente lido por Henrique Castriciano.<br />

6 Anotação de OM, manuscrita, no exemplar datilografado e por ele revisado<br />

para as obras completas: “Segui o conselho do Mestre. A partir de Jardim<br />

tropical (1923), há na minha mensagem poética uma constante preocupação<br />

pelo sofrimento humano. Especialmente em Sertão de espinho e de flor<br />

(1952) e em A canção da montanha (1955). Sob outro ângulo, do Sertão de<br />

espinho e de flor, 600 exemplares – de uma edição de 1.000 – foram<br />

doados à Mocidade Espírita, em favor da construção do Albergue Noturno<br />

de Natal”. Também da primeira edição de A canção da montanha (1955), dos<br />

500 exemplares editados pelo Departamento de Imprensa do Estado,<br />

300 foram entregues à Liga Norte-Rio-Grandense contra o Câncer para a<br />

construção do Hospital, nas Quintas. Recebeu-os a figura inolvidável do<br />

Dr. Luiz Antônio Ferreira Souto dos Santos Lima (Assu/RN, 15.09.1890-<br />

Natal/RN, 10.04.1961), médico, professor e político, fundador da<br />

entidade e amigo do Poeta.<br />

7 Henrique Castriciano de Souza (Macaíba/RN,15.03.1874-Natal/<br />

RN, 26.07.1947). Advogado, jornalista, poeta, ensaísta, crítico literário,<br />

secretário de governo, vice-governador, procurador-geral, deputado estadual,<br />

educador. Fundador da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras<br />

e da Escola Doméstica de Natal.<br />

85


...imune passe o verso que burilo,<br />

à baba do invejoso e à critica do fútil.<br />

Mário Linhares 1<br />

Florões


Ícaro<br />

Glória! para o teu seio, enfim, levanto<br />

o condoreiro vôo do meu sonho!<br />

Que importa que o teu ádito 2 risonho<br />

só atinja à custa do meu sangue e pranto?<br />

Levo o amor a fulgir na fronte! oponho<br />

às dores – esperanças! Tenho o manto<br />

de aedo, 3 e a lira em que, sofrendo, canto,<br />

do mundo pelo báratro 4 medonho!<br />

Sinto que é uma ascensão para a beleza,<br />

– a arte – que minha mãe, a natureza,<br />

me deu, no ciclo eterno dos destinos...<br />

É por ela que, ao sol da mocidade,<br />

à orquestração fremente dos meus hinos,<br />

– tento a escalada da imortalidade...<br />

89


90<br />

Via-crúcis<br />

A minha mãe faltou-me, eu era pequenino;<br />

mas, da sua piedade, o fulgor diamantino<br />

ficou abençoando a minha vida inteira:<br />

como, junto de um leão – um sorriso divino!<br />

como, sobre uma forca – um ramo de oliveira!<br />

G. Junqueiro 5<br />

Velhice do Padre Eterno<br />

Há quanto tempo a dor, sem cessar, me devora<br />

a vida, e a essa amargura injusta me acalceta! 6<br />

Dês que morreste, Mãe, que o meu peito de poeta<br />

é um soturno retiro onde a saudade chora!<br />

Desde que ao céu volveste, anjo da guarda! a aurora<br />

de ventura e de amor e esperança dileta,<br />

abismou-se na treva... Hoje, a traidora seta<br />

da dúvida, se trespassa a alma ingênua de outrora!<br />

Não maldigo, entretanto, a dor fecunda e grande!<br />

dentro da sua luz sagrada, o pensamento,<br />

à aspersão batismal das lágrimas, se expande...<br />

Vou, com os pés a sangrar, meu Gólgota subindo...<br />

mas levo, à cruz pesada e ao fel do meu tormento,<br />

– a alma noiva do sonho e o coração, florindo!


Visão medieva 7<br />

À memória de Pedro Alexandrino 8<br />

Negro, à luz dos crepúsculos, avulta<br />

o castelo otomano abandonado.<br />

Lembra o guerreiro sonho do passado,<br />

– grita infrene, 9 ranger de catapulta...<br />

Trégua. Num varandim da torre, ao lado,<br />

a sultana, – a infiel! – na sombra oculta,<br />

se debruça, a cismar. Suspira... exulta<br />

pelo amor do cristão do elmo dourado!<br />

O vôo dos falcões o espaço risca.<br />

Sobe a lua... Mudez. Da sentinela<br />

o iatagã 10 gemífero 11 faísca...<br />

O exército cruzado, ao longe, vela...<br />

– E, alto, no luar que nos vitrais corisca,<br />

tremula o pavilhão da cidadela!<br />

91


92<br />

Mística<br />

Ao grande e livre espírito de Manoel Arão 12<br />

Rosa branca, expandindo, etérea e langue, à fria<br />

amplidão do silêncio a palidez magoada,<br />

aberta, enorme – cheia –, a lua desmaiada<br />

unge os ermos, de sonho e de melancolia.<br />

Diz a dor da hora morta a voz triste, erradia,<br />

de um cão, dentro da noite algente, 13 embalsamada.<br />

O velho citaredo 14 – o vento –, pela estrada,<br />

na verde lira em flor das frondes, salmodia... 15<br />

Desperta, sente uma ânsia... Abre a janela... E<br />

pensa,<br />

banhando-se ao luar, nessa tortura imensa<br />

que o seu corpo de monja, histérico, apunhala...<br />

Lá fora, a luz, pairada, em delíquios, 16 escorre...<br />

– E ela, fria, a julgar que é a sua alma que morre,<br />

reza, à lua, ajoelhada, estática e sem fala...


A árvore<br />

I<br />

A Ferreira Chaves 17<br />

Grande, no promontório o alto perfil soerguendo,<br />

imperialmente, à luz, afrontando a procela,<br />

coroada a flores de ouro, a árvore antiga e bela<br />

muitos anos de glória e de dor vai vencendo...<br />

Dias, noites sem conta, os músculos torcendo<br />

a seus pés, leão convulso, o mar, a hedionda goela<br />

abre, cheia de espuma... Heróica, a sentinela<br />

da floresta ergue aos céus corpanzil estupendo!<br />

Pode estrondear o oceano! uivar, danado, o vento!<br />

funda, a voz do trovão, no temporal violento,<br />

abale a encosta! o campo, o incêndio atroz devore-o!<br />

– Ela, verde! ela, em flor! E, ante a espantosa<br />

guerra,<br />

– firme a brônzea raiz nas entranhas da terra,<br />

grande, apruma o perfil no alto do promontório!<br />

93


94<br />

II<br />

Vezes, o mar serena e, outro Hércules, ensaia,<br />

em torno ao tronco esvelto 18 enfestonado 19 de<br />

ouro,<br />

– cantando madrigais, humilde, em suave choro–,<br />

a alva renda da espuma entretecer, na praia...<br />

Então, na tarde meiga, a víride 20 atalaia,<br />

luminosa, ostentando o fausto imorredouro<br />

da fronde, aspersa 21 ao brilho estival do astro louro,<br />

vibra e murmura... O mar, suspiroso, desmaia...<br />

E é de ver-se este quadro (a alma de encanto<br />

presa!):<br />

– manso, o atlânteo 22 titã, força da natureza,<br />

vem da árvore ao redor, fazer lascivas rondas...<br />

E, enquanto ortivo 23 sol veste em púrpura a falda, 24<br />

ela – a noiva do mar –, da auriflórea grinalda,<br />

esparze 25 um turbilhão de pétalas, nas ondas!


Israelita<br />

A Clementino Câmara 26<br />

– Contar-te-ei– disse, o apólogo obscuro,<br />

em dolorosos símbolos traçado!<br />

A esfinge... vejo-a, além, no meu futuro,<br />

rindo o riso enigmático e parado...<br />

Hebreu, no cativeiro (em vão procuro<br />

esquecer!), um faraó e malvado,<br />

– o amor! –, fez-me construir, de sangue puro,<br />

a Babilônia imensa do pecado...<br />

– Expiei, sofri... provei dores tiranas!<br />

E, ardendo em fé, guiei meus passos calmos<br />

no mar vermelho das paixões humanas...<br />

– Hoje, é o deserto, é o fim... Moisés tristonho,<br />

– de pé, no monte Nebo 27 do meu sonho,<br />

vejo, ao longe, a Canaã dos Sete Palmos...<br />

95


96<br />

Azul<br />

(Sob Tema)<br />

A Carolina Wanderley 28<br />

Perpetuamente esplendorosa e pura,<br />

o ar, na amplidão dos páramos, 29 invades;<br />

és sempre-viva, nas imensidades<br />

da harmonia cromática da altura!<br />

Vestes Nossa Senhora da Amargura,<br />

nas brancas ermidinhas das cidades.<br />

Alma profunda e casta das saudades<br />

que o mar, em tardes plácidas, murmura!<br />

Tuas miragens místicas, estranhas,<br />

nos confins do horizonte e das montanhas,<br />

– aos olhos tristes, que tristeza, ao vê-las!<br />

És da eterna ilusão pálio bendito...<br />

– cor do céu! céu dos simples, infinito,<br />

resplandecendo acima das estrelas!


Sugestão da luz<br />

Na glória vesperal do sol, que o facho<br />

forja em florões de fogo e prata ardente,<br />

passa, dentro do incêndio, lentamente,<br />

– subindo o rio – o vulto de um patacho. 30<br />

Pando, à brisa cantante, o amplo velacho 31<br />

oscila, e molha a ponta na corrente...<br />

A água murmura. A espuma abrolha, rente<br />

à proa, abrindo em férvido penacho!<br />

Toda tarde, é este esplêndido cenário:<br />

– negro, rasgando a tela azul do estuário,<br />

o barco avança, ao lento embalo da onda...<br />

Lá vem! parece, à luz – que é fogo e prata -,<br />

o navio fantasma de um pirata,<br />

trazendo maravilhas de Golconda! 32<br />

97


98<br />

Coqueiro<br />

À minha irmã Gizélia 33<br />

Coqueiro esguio e triste, aqui vives sozinho,<br />

– curvo, ao peso da idade, o teu corpo cinzento!<br />

Que dizes, no ciciar das palmas? que lamento<br />

renovas, poeta antigo e pagão do caminho?<br />

O incompreendido horror de tanto isolamento<br />

punge o teu coração, como um tenaz espinho...<br />

Ó coqueiro de ruína! és o último avozinho<br />

do coqueiral que o outono arrebatou no vento!<br />

Não sei se a tua alma verde e vegetal padece.<br />

– Ouço-lhe a voz magoada e trêmula, que desce,<br />

tonta de sons, cantando à paisagem louçã... 34<br />

Sei que te amo e que tens, na cúpula pendida,<br />

a cor serena, a cor saudosa, a cor sentida<br />

do pensativo olhar de minha linda irmã!...


Odisséia<br />

Preso o olhar nas visões que só o sonho alcança,<br />

um dia eu fui seguindo, ébrio do cíprio 35 vinho<br />

da conquista... O esplendor do sol, pelo caminho,<br />

faiscava, no cristal brunido 36 da água mansa.<br />

Novo Ulisses, provando as lutas e o daninho<br />

tumultuar das paixões, a minha heróica lança<br />

tive quebrada, e vi naufragar a esperança...<br />

– os pés em sangue, em treva o olhar, e a alma sem<br />

ninho!<br />

Volto, exausto; volto exausto, ao teu seio,<br />

na angústia de um viajor que, de entre abismos,<br />

veio<br />

selvas, mares vencendo, atormentado e aflito...<br />

Creio, agora, no amor! E amo-te mais, lembrando<br />

todo o tempo em que tu – Penélope –, 37<br />

esperando,<br />

reservaste esse prêmio ao teu herói proscrito!<br />

99


100<br />

<strong>In</strong> pulverem 38<br />

(Vendo passar o enterro de um potentado)<br />

Foste “grande” e orgulhoso. Um fardo de matéria,<br />

eis, agora, o que és tu. Vitualha 39 envenenada,<br />

sobre a qual há de vir, nessa fúria danada<br />

da fome, a bicha ultriz. 40 A ronda deletéria<br />

dos cães, farejará, de calçada em calçada,<br />

uivando infernalmente, apupando a miséria<br />

do esquife de ouro e seda, em que passou, trancada,<br />

a tua carne, roxa, a apodrecer... A artéria<br />

que foi teu coração – é um negro pão de lodo!<br />

Os olhos, onde, outrora, ardia o anseio todo<br />

da vida – hão de enseivar os jardins do nirvana... 41<br />

E, antes de seres nada, hás de ser ossos, poeira...<br />

E hás de rir, no teu riso hediondo, de caveira,<br />

– da ambição, da vaidade, e da soberba humana!


Sésamo!<br />

Assim, nas “Mil e uma noites”,<br />

falava Ali-Babá à pedra encantada da<br />

floresta, e ela abria-se em tesouros...<br />

A José Augusto Soares 42<br />

Contam que um persa (ou árabe) possuía,<br />

oculta num desvão de selva umbrosa, 43<br />

grande, imensa riqueza, fabulosa,<br />

– ouro em barras, montões de pedraria.<br />

Muitas vezes, por simples fantasia,<br />

vinha e, ao rezar palavra misteriosa,<br />

de certa gruta a entranha silenciosa<br />

toda em rubis e pérolas se abria...<br />

Também o coração, como essa gruta,<br />

– se a voz do amor, o grande mago, escuta,<br />

rebenta em fogos de cristais dispersos...<br />

Abre-se em rosas de esmeralda e ouro,<br />

flora, fulge e transluz, feito um tesouro,<br />

todo em milhões de lágrimas e versos!<br />

101


102<br />

Tragédia humana<br />

I<br />

...J’aime la magesté<br />

des soufrances humaines....<br />

A. de Vigny 44<br />

La maison du Berger<br />

...num deserto só, árido e fundo,<br />

ecoam nossas vozes... Que o destino<br />

paira mudo e impassível sobre o mundo.<br />

................................................<br />

E dizem os cativos: – Na amplidão<br />

jamais se extingue a eterna claridade...<br />

A alma tem o vôo e a liberdade...<br />

O homem tem os muros da prisão!<br />

Antero de Quental 45<br />

Há quantos longos séculos malditos<br />

o homem padece, escravo, pelo mundo,<br />

– Cristo! Jó! Prometeu! – ao céu profundo<br />

e impassível, a erguer cansados gritos?<br />

Debalde ciências novas, novos mitos<br />

jorram visões de luz, no pego 46 imundo...<br />

– a vida é o mesmo horror dantesco, oriundo<br />

das revoltas, das ânsias dos aflitos!


Morre a fé, mente o amor. <strong>In</strong>sano e lento,<br />

sobe, então, do calvário, ao firmamento,<br />

o extremo apelo, entrecortado de ais...<br />

Em vão! Sobre este inferno imenso e torvo, 47<br />

e cruento, a voz fatídica do corvo,<br />

sempre a grasnar o anátema 48 – JAMAIS!<br />

II<br />

O que há de a alma escolher, em tanto engano?<br />

Se uma hora crê, de fé, logo duvida.<br />

Se procura... só acha o destino!<br />

A. de Quental<br />

Pobre! queimam-te o cérebro, estas cismas<br />

em que aprofundas todo o pensamento!<br />

– a lei universal do sofrimento<br />

é um labirinto de milhões de prismas!<br />

Buscas, de queda em queda, e em treva, o alento<br />

a esta revel 49 pergunta em que te abismas:<br />

– “De onde vim? - Aonde irei?”... – Bebe o<br />

tormento,<br />

no Estige 50 inesgotável dos sofismas!<br />

De que te serve o facho da consciência<br />

se a essa, que arrastas, mísera existência,<br />

não dás beleza e nem finalidade?<br />

103


104<br />

Tantalizado 51 na razão, somente,<br />

hás de bater, vencido, inutilmente,<br />

às cem portas de bronze da verdade...<br />

III<br />

Tudo o que existe consola e fortalece o sábio, porque<br />

a sabedoria<br />

consiste em pesquisar e admitir tudo o que existe.<br />

Tenhamos confiança no amor como temos confiança<br />

na vida, pois<br />

que nós somos feitos para ter confiança e que o<br />

pensamento mais<br />

funesto em todas as coisas é aquele que tende a<br />

desconfiar da<br />

realidade.<br />

Tome a felicidade a forma de um rio, de um ribeiro<br />

subterrâneo, de<br />

uma torrente ou de um lago, só há uma nascente<br />

única nos lugares<br />

secretos do nosso coração, e o mais desgraçado dos<br />

homens pode<br />

fazer uma idéia da maior das felicidades.<br />

Maurice Maeterlinck 52<br />

A sabedoria e o destino<br />

Bem sabes, sonhador, que, às vezes, basta,<br />

para que o instinto acorde, um sonho vão;


e a alma tranquila, a alma liberta e casta,<br />

vai na onda amarga e escura da paixão...<br />

Ai de ti, homem forte, se te arrasta,<br />

o sangue fraco, às chamas do vulcão!<br />

– hás de sentir que um mal feroz devasta<br />

as coisas virgens do teu coração...<br />

Mas, no amor blinda o espírito e, sereno,<br />

– aceitando por vinho o que é veneno –<br />

a tua sede ansiosa enganarás...<br />

E, embora triste e, ainda, incontentado,<br />

– aprendendo a aceitar – hás alcançado<br />

teus grandes sonhos de justiça e paz!<br />

105


106<br />

Crepúsculo<br />

A Luis da Câmara Cascudo<br />

De ouro e cinza a azul-pálido vestida,<br />

flutua a tarde linda,<br />

pensativa e saudosa!<br />

E, ao intenso esplendor do sol que, ainda,<br />

a gigantesca auréola escandescida, 53<br />

como um escudo em triunfo, ergue, fremente,<br />

– a clâmide 54 sidérea, aberta em rosa,<br />

por todo o céu estende! O poente,<br />

vasto cenário bizantino, e trágico,<br />

arde, na combustão fantástica das cores:<br />

– do almagre 55 dos florões, aos cambiantes rubores<br />

das nuvens colossais, de caprichosa franja,<br />

que o sol, bizarro paisagista e ourives mágico,<br />

tinge, doura, e acairela 56 em púrpura e laranja!<br />

e do rubro de vinho velho, que ensangüenta<br />

toda a perspectiva ocídua 57 da celagem, 58<br />

ao violeta, ao verde-azul, ao suave creme<br />

das zonas em circuito...<br />

A luz aumenta;<br />

expande-se, em gradações maravilhosas;<br />

prestes, esgarça... opaliza-se... treme,<br />

esmaece! e desfaz-se, em descoradas rosas,<br />

fluindo, pelo hemiciclo da paisagem...


Morno, chameja ainda, sobre o abismo,<br />

– qual, depois de violento, estranho cataclismo,<br />

portentosa cratera – o sol tombado...<br />

E, doce, evocativo, embalsamado<br />

em perfume e silêncio, o crepúsculo pálido<br />

desce... desce, nostálgico, nimbando 59<br />

as montanhas azuis, na redondeza,<br />

de cinza, de solidão e de tristeza...<br />

O peregrino, harmonioso bando<br />

das aves passa, fugindo, no céu cálido.<br />

E erguem-se da terra, em litanias, 60 quantas<br />

vozes a Natureza acorda, universais:<br />

– almas contemplativas, panteístas, 61<br />

de pastores, de poetas e de artistas;<br />

almas de aves, de insetos; almas brutas<br />

de feras, nos desertos e nas grutas;<br />

almas rudimentaríssimas de plantas<br />

e almas inertes de cristais...<br />

Entrementes, fenece a tarde amena,<br />

meiga e branca. a flutuar em névoa, pelas<br />

várzeas...<br />

E a sombra vai, na abóbada serena<br />

do Céu, abrindo o olhar magoado das estrelas...<br />

107


108<br />

Tristeza de Zaratustra 62<br />

Deu o vento, levantou- se o pó:<br />

Parou o vento, caiu...<br />

Padre Vieira 63<br />

Sermão da Quarta-feira de Cinzas<br />

L´Homm - Terre, je suis ton roi.<br />

La Terre - Tu n’es que ma vermine...<br />

V. Hugo 64<br />

Abîme<br />

Por mais que o ansioso olhar abra, na imensa treva<br />

do meu imenso orgulho, os segredos fecundos<br />

das causas e das leis, na harmonia primeva, 65<br />

– nunca decifrarão, meus olhos moribundos!<br />

Meus impulsos febris, meus sarcasmos profundos,<br />

e o ódio – o jaguar que o meu instinto ceva –,<br />

não valem contra a força onímoda, 66 que eleva,<br />

no espaço, a multidão luminosa dos mundos!<br />

Rebelde e alucinado, ando a acordar, em gritos,<br />

essas dores mortais, meus males infinitos,<br />

– síntese atroz do mal que, em todo crânio, estala...<br />

...Entretanto, ao redor de mim, tudo é grandeza!<br />

Mesquinho semideus, diante da Natureza,<br />

é um mísero trilar de inseto, a minha fala...


Notas<br />

1 Mário Rômulo Linhares (Fortaleza/CE, 19.08.1889-Rio de Janeiro/RJ,<br />

14.12.1965). Poeta parnasiano, jornalista, escritor, genealogista. Membro das Academias<br />

Cearense e Carioca de Letras.<br />

2 Ádito. O que se adiciona a (algo) para torná-lo completo.<br />

3 Aedo. Poeta, bardo, vate. Aedo era, na Grécia antiga, um artista que cantava as<br />

epopéias acompanhando-se de um instrumento de música, o fórminx – uma espécie<br />

de cítara ou lira mais leves. O aedo distingue-se do rapsodo, mais tardio, por compor<br />

as próprias obras. Os mais célebres foram Homero e Orfeu (na mitologia).<br />

4 Báratro. Abismo, voragem – o inferno.<br />

5 Abílio Manuel Guerra Junqueiro (Freixo de Espada à Cinta/Portugal,<br />

17.09.1850-Lisboa/Portugal, 07.07.1923). Bacharel em direito pela Universidade<br />

de Coimbra, alto funcionário administrativo, político, deputado, jornalista, escritor<br />

e poeta. Foi o poeta português mais popular da sua época e o mais típico representante<br />

da chamada Escola Nova. Panfletário, a sua poesia ajudou criar o ambiente<br />

revolucionário que conduziu à implantação da República.<br />

6 Acalceta. Terceira pessoa do indicativo presente do raro e antigo verbo acalcetar<br />

(Espanha e Portugal). Fixar no tornozelo do prisioneiro argola de ferro (braga,<br />

grilheta, grilhão, galé), ligada à cintura por meio de correntes e/ou ao pé de outro<br />

prisioneiro. Designava, ainda, o criminoso, o forçado; também à pena imposta ao<br />

condenado.<br />

7 Medieva. Medieval.<br />

8 Pedro Alexandrino dos Anjos (Natal/RN, 26.11.1872-Natal/RN, 05.10.1917).<br />

Professor e jornalista polêmico. Autodidata, segundo Câmara Cascudo, foi analfabeto<br />

até os 24 anos.<br />

9 <strong>In</strong>frene. Desprovido de freio, desenfreado; imoderado, nada contido, destemperado,<br />

desordenado.<br />

10 Iatagã. Facão longo ou sabre curto, desprovido de guarda e cuja lâmina descreve<br />

uma curva em dois sentidos diferentes, usado pelos muçulmanos para execuções ou<br />

em combate; atagã.<br />

11 Gemífero. Que produz ou apresenta gemas (pedras preciosas).<br />

12 Manoel Arão de Oliveira Campos (Afogados da <strong>In</strong>gazeira/PE, 11.01.1875-<br />

Recife/PE, 14.01.1930). Poeta, jornalista polêmico, dramaturgo, romancista. Pertenceu<br />

à Academia Pernambucana de Letras e ao <strong>In</strong>stituto Arqueológico, Histórico<br />

e Geográfico do Estado de Pernambuco. Espírita kardecista (como foi OM) e maçom.<br />

13 Algente. Muito frio, gélido; álgido.<br />

109


110<br />

14 Citaredo. Na Grécia antiga, cantor que se apresentava acompanhado pela<br />

cítara.<br />

15 Salmodia. Maneira própria de cantar ou de recitar os salmos; no cantochão,<br />

a entoação do canto dos salmos.<br />

16 Delíquios. Perdas de sentidos; desfalecimentos, desmaios.<br />

17 Joaquim Ferreira Chaves Filho (Recife/PE, 15.10.1852- Rio de Janeiro/RJ,<br />

12.02.1937). Magistrado, político, foi Ministro da Marinha e<br />

da Justiça, Senador da República. Governou o Rio Grande do Norte duas<br />

vezes. Em 21 de março de 1916, nomeou OM Segundo Oficial da Secretaria<br />

do Governo, cargo cobiçado à época. Sem dúvida nenhuma, merecia<br />

o soneto.<br />

18 Esvelto. Esbelto, gracioso, elegante.<br />

19 Enfestonado. Que se adornou de festões (grinalda de frutos, flores,<br />

folhagens, pedrarias, etc., entrelaçados usados na ornamentação de fachadas<br />

e recintos).<br />

20 Víride. Da cor da relva; verde.<br />

21 Aspersa. Respingada, borrifada.<br />

22 Atlânteo. Variação de atlântico, relativo a esse oceano. “Temperamento<br />

atlânteo de gladiador feroz” (Veiga Santos).<br />

23 Ortivo. Relativo a ou situado no Oriente; nascente, oriental.<br />

24 Falda. Parte lateral, lado.<br />

25 Esparze. O mesmo que esparge (do verbo espargir: espalhar, derramar,<br />

irradiar, difundir).<br />

26 Clementino Hermógenes da Silva Câmara (Tibau do Sul-Goianinha/<br />

RN, 17.01.1888-Natal/RN, 18.09.1954). Professor, jornalista e escritor.<br />

Escreveu vários livros, entre os quais Décadas (1936). Era protestante<br />

e maçom.<br />

27 Nebo. Monte, na atual Jordânia, considerado sagrado. Moisés, antes de<br />

morrer, aos 120 anos de idade, teria, dessa elevação, avistado a “Terra<br />

Prometida” (Deuteronômio – 34.1).<br />

28 Maria Carolina Wanderley (Assu/RN, 04.01.1891-Natal/RN,<br />

25.08.1975). Professora, dramaturga, poeta e musicista publicou dois<br />

livros de poemas: Alma em versos (1919) e Rimário infantil (1926). Musicou<br />

versos de OM, dentre esses os da famosa modinha “Alice”. Foi a primeira


mulher a ocupar uma cadeira na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras.<br />

29 Páramos. De “páramo”, a abóbada celeste; o firmamento, a amplidão.<br />

30 Patacho. Embarcação antiga, de guerra, de dois mastros.<br />

31 Velacho. Vela que enverga na verga do velacho. Mastaréu (mastro suplementar)<br />

que se prolonga do mastro real do traquete.<br />

32 Golconda. Mina de riquezas (no sentido próprio e no figurado). Cidade<br />

e fortaleza em ruínas da região central da Índia conhecida por seus tesouros,<br />

situada a 11 quilômetros de Hiderabad, no estado de Andhra Pradesh.<br />

Tanto a cidade quanto a fortaleza foram construídas sobre uma colina de<br />

granito de 120 metros de altura. A origem do forte é do ano 1143, aproximadamente,<br />

quando a dinastia hindu dos Kakatiya governava a área. O<br />

nome deriva do termo telugú (língua dravídica) Golla Konda, que significa<br />

“colina do pastor”.<br />

33 Gizélia Bezerra Fernandes de Melo (Jardim do Seridó/RN, 1902-<br />

João Pessoa/PB, 1980). Meio-irmã de OM, filha do segundo matrimônio<br />

de João Felismino Ribeiro Dantas de Melo com Celsa Bezerra de<br />

Araujo Fernandes (ver notas adiante, num dos prefácios do livro Sertão de<br />

espinho e de flor). Gizélia casou cedo, indo residir em Campina Grande, na<br />

Paraíba. Era afilhada de Juvenal Lamartine de Faria e de sua mulher Silvina<br />

Bezerra – prima legítima de sua mãe, a boa madrasta de OM.<br />

34 Louçã. Cheia de frescor, de brilho; agradável, bela, viçosa.<br />

35 Cíprio. Da ilha de Chipre (Mediterrâneo oriental); cipriota, chiprense,<br />

cíprico.<br />

36 Brunido. Lustroso, luzidio, primoroso, polido, brilhante.<br />

37 Penélope. A mulher de Ulisses, rei de Ítaca.<br />

38 <strong>In</strong> pulverem. Pulvis es et in pulverem reverteris (Vulgata, Gênesis 3.19): “Tu<br />

és pó, e ao pó tornarás.”<br />

39 Vitualha. Vívere, comida, alimento.<br />

40 Ultriz. A que vinga, que pune, feminino de ultor, vingador.<br />

41 Nirvana. No budismo, estado de ausência total de sofrimento; paz e<br />

plenitude a que se chega por uma evasão de si que é a realização da sabedoria.<br />

Quietude perpétua. Apatia, inércia.<br />

42 José Augusto Soares de Araújo (Natal/RN, 28.02.1893-Rio de Ja-<br />

111


112<br />

neiro/RJ, 29.01.1922). Poeta e jornalista. Estudava Medicina no Rio,<br />

onde faleceu, tuberculoso.<br />

43 Umbrosa. Que tem ou produz sombra; escuro, sombrio.<br />

44 Alfred Victor de Vigny (Loches/França, 27.03.1797-17.09.1863).<br />

Poeta e pensador francês.<br />

45 Antero Tarquínio de Quental (Ponta Delgada/Portugal, 18/04/<br />

1842-11.09.1891). Bacharel, escritor, político, tipógrafo e poeta português.<br />

Um dos fundadores do grupo Cenáculo, de que fizeram parte, entre<br />

outros, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. Em 1874, adoeceu de psicose<br />

maníaco-depressiva, acabando por suicidar-se. Antero defendia a poesia<br />

como Voz da Revolução, como forma de alertar as consciências para as<br />

desigualdades sociais e para os problemas da humanidade.<br />

46 Pego. Abismo no mar, pélago; voragem.<br />

47 Torvo. Que causa ou infunde terror; iracundo, terrível.<br />

48 Anátema. Reprovação enérgica; condenação, repreensão, maldição,<br />

execração, excomunhão.<br />

49 Revel. Revoltada, insurgente, rebelde, teimosa.<br />

50 Estige (Styx). Um dos rios do inferno clássico. Os outros são o Aqueronte,<br />

o Flegetonte, o Letes e o Cócito. O Estige é um rio pantanoso que cerca a<br />

cidade de Dite. É também o quinto círculo onde ficam submersos os<br />

iracundos. Os vencidos pela ira são amontoados no rio Estige juntos com<br />

seus semelhantes que não conseguiram controlar a raiva. Submetidos,<br />

assim, aos efeitos da ira causados por seus semelhantes, e então se mordem,<br />

se batem e se torturam. No fundo do Estige estão os rancorosos<br />

que, por nunca terem externado sua ira, não podem subir à superfície e<br />

ficam a gorgolar a lama no fundo do rio.<br />

51 Tantalizado. Que se tantalizou; atormentado por desejo de realização ou<br />

consecução impossível; fortemente atraído, maravilhado, siderado.<br />

52 Maurice Polydore-Marie-Bernard Maeterlinck (Ghent/Bélgica,<br />

29.08.1862-Nice/França, 06.05.1949). Poeta simbolista, dramaturgo e<br />

escritor belga. Em tom místico escreve livros que discutem o destino<br />

humano, como O tesouro dos humildes (1896), A sabedoria e o destino (1898),<br />

e sobre os mistérios da natureza, como A vida das abelhas (1901), A vida das<br />

térmitas, A vida das formigas e A inteligência das flores (1907), que mesmo<br />

sem rigor científico foram amplamente lidos em todo o mundo.


53 Escandescida. Candente, inflamada, rubra.<br />

54 Clâmide. Na Grécia antiga, manto que se prendia por um broche ao<br />

pescoço ou aos ombros.<br />

55 Almagre. Argila avermelhada (ocre vermelho).<br />

56 Acairela. Pôe cairel (fita) em; guarnece ou adorna com cairel; cairela, debrua.<br />

57 Ocídua. Que se encaminha para o ocaso, para o fim<br />

58 Celagem. Matiz do céu, especialmente as cores do horizonte, à hora do<br />

crepúsculo e da alvorada.<br />

59 Nimbando. Cercando de nimbo, em círculo luminoso; aureolando.<br />

60 Litanias. Ladainhas.<br />

61 Panteístas. Adeptas, crentes do Panteísmo: doutrina filosófica caracterizada<br />

por uma extrema aproximação ou identificação total entre Deus e o<br />

universo.<br />

62 Zaratustra (ou Zoroastro). Profeta persa, nascido em meados do século<br />

VII, fundador do Masdeísmo ou Zoroastrismo.<br />

63 Padre Antônio Vieira (Lisboa/Portugal, 06.02.1608-Salvador/BA,<br />

18.07.1697). Religioso, escritor e orador português da Companhia de<br />

Jesus. Um dos mais influentes personagens do século XVII em termos de<br />

política, destacou-se como missionário em terras brasileiras. Defendeu<br />

infatigavelmente os direitos humanos dos povos indígenas, combatendo a<br />

sua exploração e escravização. Era por eles chamado de “Paiaçu” (Grande<br />

Pai, em tupi). Defendeu também os judeus, a abolição da distinção entre<br />

cristãos-novos (judeus convertidos, perseguidos à época pela <strong>In</strong>quisição)<br />

e cristãos-velhos (os católicos tradicionais), e a abolição da escravatura.<br />

Criticou severamente os sacerdotes da sua época e a própria <strong>In</strong>quisição.<br />

64 Victor Hugo. Nasceu em Besançon, na França,em 26.02.1802 , e faleceu<br />

em Paris, em 13.05.1885. Poeta, romancista, dramaturgo e um dos mais<br />

importantes escritores românticos franceses do século XIX. Uma das<br />

obras mais conhecidas de Hugo é Notre Dame de Paris (também conhecida<br />

como O corcunda de Notre-Dame), escrita em 1831, além de Les miserables<br />

(Os miseráveis), de 1862.<br />

65 Primeva. Que existiu outrora; velha, antiga, primitiva.<br />

66 Onímoda. Que é de todos os modos; que abrange todos os modos de<br />

ser; que abrange tudo, que não tem restrições; ilimitada.<br />

113


Jardim tropical<br />

[1923]


Jardim tropical<br />

No Jardim tropical, dentre a cheirosa rama,<br />

Clóris 1 desabotoa os manacás e os nardos.<br />

Vai Locusta, 2 sutil demônio de olhos pardos,<br />

e o veneno e a traição nas corolas derrama...<br />

Vida e morte. Esplendor e sombra. A inquieta<br />

chama<br />

da asa dos colibris arde, ao sol; dormem tardos<br />

ofídios; a água canta, em diamantes se inflama...<br />

Floram, sangrentamente, os mulungus e os cardos...<br />

Na hora miracular da gênese, a mãe-terra,<br />

nutriz, multifecunda, as entranhas descerra<br />

para a glória da luz, num parto augusto e belo...<br />

A pletora da selva abre em festões! Na falda<br />

se ergue, qual o de um rei, sobre um trono<br />

esmeralda.<br />

– o diadema solar do pau-d’arco-amarelo!<br />

117


118<br />

Pindorama 3<br />

Berço do meu amor, onde desperto<br />

à luz de um sol perene, e em cujo seio<br />

rasga o Amazonas portentoso veio<br />

de pompa e seiva tropical referto 4 !<br />

Canaã de ouro e palma! sonho aberto<br />

em fartura e esplendor, sonoro, cheio<br />

da voz das juritis, do gargarejo<br />

das seriemas, no sertão deserto!<br />

Teus lindos mares fúlgidos, bravios,<br />

verdejam, norte a sul, gloriosamente,<br />

embalando as jangadas e os navios...<br />

E o Cruzeiro, a abençoar, do céu profundo,<br />

guia a tua bandeira para frente,<br />

– promissão do porvir do Novo Mundo!


Flamboyant<br />

Todo rubro – um clarim do verão, na folhagem –<br />

a fronde chamejando ao sol do meio-dia,<br />

o altivo flamboyant lembra um rei de poesia<br />

soturno, a delirar, vendo em sangue a roupagem...<br />

Mágoa de haver perdido a princesa, que o pajem<br />

lhe roubara, depois do combate, em que a fria<br />

lâmina do florete o abateu! A magia<br />

de uma fada cruel lhe transmudou a imagem...<br />

Chumbado à terra negra, hoje, é árvore. O escuro<br />

corpanzil de guerreiro apruma, além do muro,<br />

e parece bradar o alarma contra o pajem...<br />

Mostra do antigo drama a chaga, ardendo, acesa<br />

no peito ensangüentado – em flor, sobre a paisagem –,<br />

sonhando um novo duelo e esperando a princesa!<br />

119


120<br />

Thalassa! 5<br />

(Subindo a encosta do morro para Areia Preta)<br />

Salve, mar condoreiro, aos quatro ventos<br />

a proclamar essa eloqüência eterna!<br />

Só mesmo Deus, criador de mil portentos,<br />

teu portentoso coração governa!<br />

Amo-te a força, a cólera superna,<br />

com que espedaças teus bulcões 6 violentos!<br />

ou guaiando 7 saudades e lamentos,<br />

dentro da tarde suspirosa e terna.<br />

Tens carícias, tens ímpetos românticos:<br />

– cantas, na humilde esteira das jangadas,<br />

– blasfemas aos parcéis 8 e aos transatlânticos...<br />

És santo e réu de morte! esfinge, em cujos<br />

lábios gemem galeras naufragadas,<br />

imprecações e adeuses de marujos...


A serenata do mar<br />

Sobre o tristor 9 do dia findo<br />

por trás dos morros, num céu lindo,<br />

saudosamente, a lua cheia<br />

vem, fantasmática, 10 surgindo...<br />

Beija os coqueiros... vai subindo...<br />

as amplidões banha e clareia!<br />

O mar, que tem à lua branca<br />

amor antigo e singular,<br />

põe-se a cantar, põe-se a chorar.<br />

Do peito azul, magoado, arranca<br />

lamentações... à lua branca<br />

tenta subir – para noivar...<br />

Serenamente, altiva e nua,<br />

deusa intangível, resplandece,<br />

brilha nas ondas; continua<br />

subindo, a lua. Empalidece...<br />

– E a voz do mar lembra uma prece<br />

de dor suprema, erguida à lua,,,<br />

Ai! quem lhe dera esses desejos<br />

à virgem pálida contar!<br />

e, em turbilhões de espuma e beijos,<br />

– das ardentias 11 aos lampejos,<br />

nos braços verdes a embalar!<br />

nos seus palácios a abismar!<br />

121


122<br />

O mar, ciumento, odeia o monte,<br />

porque a lua, quando nasce,<br />

beija, primeiro, a sua face,<br />

– alta e formosa, no horizonte...<br />

Ah! se o dilúvio retornasse!<br />

levantaria, então, a fronte...<br />

– “O teu palor 12 de neve e prata,<br />

“oh lua gélida, desata<br />

“por solidões e por vergéis!<br />

“A minha eterna serenata,<br />

“meu desespero, minha oblata, 13<br />

hei de cantar sempre a teus pés!”<br />

É assim que o mar, à lua branca,<br />

diz os seus tristes madrigais.<br />

Do coração profundo, arranca<br />

hinos, canções sentimentais.<br />

E sempre, sempre, a lua branca<br />

vai se elevando... sobe mais...<br />

Serenamente, meiga e altiva,<br />

a imensidão do céu clareia...<br />

E o mar, ao vê-la fugitiva,<br />

canta, soluça, espuma, anseia,<br />

a dor suprema acorda, aviva,<br />

– desfaz-se em beijos sobre a areia!


Sob as mangueiras<br />

À sombra destas mangueiras,<br />

sussurrantes, altaneiras,<br />

pensativo, horas inteiras,<br />

me enterneço, a recordar.<br />

E não sei porque este sonho,<br />

tão querido, tão risonho,<br />

de te ver e de te amar,<br />

– veio em lágrimas findar!<br />

Foi ao dossel 14 destes ramos<br />

que, tanta vez, nos amamos,<br />

da tarde morna ao cair...<br />

Branca de medo e cansaço,<br />

reclinavas, no meu braço,<br />

a cabecinha – a sorrir...<br />

Não sei se lembras ainda<br />

aquela noite, tão linda,<br />

em que, ao luar, tu me deste<br />

tanto beijo que, entre olores,<br />

voltou crivado de flores<br />

teu vestido azul-celeste...<br />

As mangueiras perfumosas,<br />

altas, serenas, frondosas,<br />

cheias de mangas e ninhos,<br />

eram do nosso noivado<br />

123


124<br />

o virginal cortinado,<br />

verde, sonoro, encantado,<br />

repleto de passarinhos!<br />

Perto, os vem-vens e as cigarras<br />

faziam coro às algazarras<br />

dos teus irmãos a brincar.<br />

Vinha dos morros fronteiros<br />

o aroma dos cajueiros,<br />

a voz sentida do mar.<br />

Enchias as saias curtas<br />

de guabirabas e murtas,<br />

que me davas, com langor,<br />

– mais cheirosas que no galho –,<br />

embalsamadas no orvalho<br />

da tua boca de flor...<br />

Íamos ver, pela praia,<br />

à hora em que o sol desmaia,<br />

e a brisa as margens refresca,<br />

retornarem, de uma a uma,<br />

– com as proas brancas de espuma –<br />

as jangadinhas de pesca.<br />

Dizias, olhando as velas:<br />

– “Se eu fosse um dia, com elas,<br />

e não pudesse voltar?”–<br />

Eu tornava: – “Mudo e quedo,


“sozinho, neste rochedo,<br />

“morreria... a te esperar!”–<br />

Quanta poesia vivida,<br />

na quadra, nunca esquecida,<br />

das nossas juras primeiras!<br />

Os idílios, pelo monte,<br />

o verde-mar, no horizonte...<br />

a casinha entre as mangueiras...<br />

Hoje, entretanto, que resta<br />

dessa antiga e doce festa,<br />

da natureza ao fulgor?<br />

– só as mangueiras, ao vento...<br />

e a saudade, que é o tormento<br />

dos que sofrem mal de amor!<br />

125


126<br />

Costureirinha<br />

Toda de luto, merencória, 15 passa<br />

para o trabalho, diariamente, a bela<br />

costureirinha, cujo olhar revela<br />

não sei que triste, dolorosa graça!<br />

Em muitos corações gorjeia, esvoaça<br />

a andorinha gentil do amor, quando ela<br />

– toda de preto, cismativa, passa –<br />

tão boa, tão formosa, tão singela!<br />

Na oficina, a lidar, faz maravilhas:<br />

– arabescos de aljôfar, 16 uma rosa<br />

de veludo ou de seda, entre escumilhas.<br />

E apura-se no afã, com tal cuidado<br />

que parece bordar, triste e amorosa,<br />

– o florido enxoval do seu noivado!


Camponesa<br />

Violeta, a mais gentil das camponesas,<br />

de olhos azuis e cabeleira flava, 17<br />

enquanto o sol tudo redoura e lava,<br />

corre montes, campinas e devesas. 18<br />

Da luz, somente, companheira e escrava,<br />

– as pupilas na luz radiante acessas –,<br />

repete os estribilhos e as tristezas<br />

do pintassilgo ou da rolinha brava.<br />

De manhã, quando ri pelos caminhos,<br />

fulgem 19 corolas e palpitam ninhos,<br />

as borboletas cruzam-se num bando.<br />

E os montes, as campinas, as devesas,<br />

enchem-se, todos, de rumor, cantando:<br />

– Bom-dia, flor gentil das camponesas!<br />

127


128<br />

O vigia<br />

I<br />

Calma. No porto. A noite, aziaga 20 e preta,<br />

abisma-se, a espalhar mistério e susto.<br />

Parece um grito humano, ansioso, angusto, 21<br />

a vibração pausada da sineta...<br />

Mudamente, o armazém ergue a silhueta,<br />

qual de um colosso egípcio o enorme busto.<br />

O Potengi, na toada da mareta,<br />

chora, como num leito de Procusto... 22<br />

Longe, o farol a luz saudosa eleva.<br />

Queda o rebocador, monstro marinho,<br />

cérbero 23 negro, a dormitar na treva...<br />

E o vigia, o notâmbulo grilheta 24<br />

do sono, vibra, da água ao burburinho,<br />

o compassado alarma da sineta!


II<br />

Dentro da noite, a cujo imenso tédio<br />

se acostumou, sentindo o seu fadário, 25<br />

cisma o vigia, ao múrmuro 26 epicédio 27<br />

da voz das águas – quieto e solitário.<br />

Da lanterna ao lampejo funerário,<br />

tenta, às vezes, dormir – o medo impede-o!<br />

Que fazer, se essa vida é sem remédio,<br />

e a fome é a cruz e o fel do seu calvário?<br />

Olha o rio. Silêncio... Anda, vagueia;<br />

passa e repassa, maquinal, vigiando;<br />

procura rastros de ladrão na areia...<br />

Volta, mudo, a cismar... Pobre calceta! 28<br />

– Sei que é o teu coração, que está chorando,<br />

na pulsação pausada da sineta!<br />

129


130<br />

Onde mora Zaineb 29<br />

Fica entre ramas, plácidas, escondida<br />

na estrelada verdura de uma sebe,<br />

longe do ruído intenso da avenida,<br />

a risonha casinha de Zaineb.<br />

É uma choupana, meus amigos! Bebe<br />

pela janela humílima e fendida,<br />

a água gelada deste inverno! A vida<br />

chora, nos olhos negros de Zaineb...<br />

Nossa afeição, no entanto, de tão pura,<br />

doura, espiritualiza, transfigura<br />

da realidade os ríspidos açoites.<br />

Sei que, quando vou vê-la – em sonho e prece –,<br />

sua pobre casinha me aparece<br />

como um castelo das Mil e Uma Noites... 30


O ferreiro<br />

A Jorge Fernandes 31<br />

Mal desponta a manhã dourada e morna,<br />

o ferreiro – alma rija, adamantina 32 –<br />

bate, dentro da luz gloriosa e fina,<br />

o rem-tém-tém vibrante da bigorna.<br />

Faísca a limalha. O fole assopra. Torna<br />

o artífice a bater. Rebate. Afina<br />

a barra incandescente. Arfa... A oficina<br />

de um resplandor vulcânico se adorna!<br />

É este afã, dia a dia, imenso, eterno.<br />

Canta, o ferreiro! Forja. É um bom gigante,<br />

mourejando num círculo do inferno...<br />

Gilliat 33 , no mar de fogo do trabalho...<br />

– fez-lhe Deus a alma invicta, assim constante,<br />

do mesmo ferro de que é feito o malho!<br />

131


132<br />

Estâncias<br />

Quando a noite o veludo embalsamado<br />

da esplendorosa cabeleira ostenta,<br />

é-me grato esta mágoa lutulenta 34<br />

embebedar do vinho do passado!<br />

É’um milagre, o passado! gota fria<br />

de orvalho sobre a pétala pendida...<br />

Beijo de luar, clarão de ave-maria,<br />

dourando a cruz à velha torre erguida!<br />

Nestas horas, tão plácidas, da noite,<br />

quando as almas se encontram nas estrelas,<br />

para fugir do tédio ao fundo açoite,<br />

basta acordar lembranças – e vivê-las...<br />

Elas vão, peregrinas mariposas,<br />

de coração em coração, pairando...<br />

(Os corações são cristalinas lousas,<br />

ao pé de sempre-vivas branquejando.)<br />

Ao voltarem, nas asas consteladas,<br />

vêm trazendo, num cântico risonho,<br />

respostas, confissões apaixonadas,<br />

– pólen de amores, floração de sonho!<br />

Era assim, quando amávamos, outrora,<br />

e era uma estrada rósea, nossa vida:<br />

– na noite azul, chegava-me, sonora,<br />

de estrela a estrela, a tua voz, querida...<br />

Hoje, que tudo é findo, ninguém sofre


tortura igual à minha! Eternamente,<br />

será meu coração chumbado cofre<br />

das amarguras todas do presente!<br />

Ser moço, não importa; a gente vive<br />

cem anos, num momento... Quantas horas<br />

sonho, a ver desfilar, queimando auroras,<br />

a turba das quimeras que já tive!<br />

Dessa Via Lactea na aromada trilha,<br />

foste constelação; hoje, és saudade,<br />

– antélio 35 que, entre a névoa, ao longe, brilha,<br />

– fantasma esquivo da felicidade!<br />

Na calma da hora morta, no entretanto,<br />

quando, ao sereno, o bogari trescala,<br />

cuido ouvir, abafado em longo pranto,<br />

o etéreo rouxinol da tua fala...<br />

Amo, por isso, a noite imensa e casta,<br />

a cujos pés lucíferos 36 prostrado,<br />

sob a cruz que minha alma, inerme, arrasta,<br />

rezo o meu evangelho do passado!<br />

Sim! o passado é um bálsamo, no açoite<br />

da chaga ardente que nos punge a vida,<br />

sursum corda 37 de luar, dentro da noite,<br />

beijando a cruz da velha torre erguida!<br />

133


134<br />

Natal<br />

(Um aspecto)<br />

No sortilégio das visões do luar,<br />

noite velha, Natal, triste e sem vida,<br />

é uma aldeia lendária, adormecida<br />

aos suspiros do rio e aos trons 38 do mar.<br />

Merencória, na calma tumular<br />

das praças e jardins, a luz trepida.<br />

Lesto, 39 esgueira-se um vulto de perdida...<br />

O eco das serenatas chora no ar.<br />

Sussurram coqueirais, nos sítios. Corta,<br />

surdo, o tropel da ronda, o medieval<br />

recolhimento da cidade morta...<br />

Morta, à margem do rio toda acesa<br />

no plenilúnio, é um burgo de Veneza,<br />

na água fosca e parada do canal...<br />

1917


Pela mão de Dante<br />

Sujeita às mutações tristes da vida,<br />

que há de a gente concluir, senão que o passo<br />

dado, no mesmo círculo de espaço,<br />

pode ser de ascensão ou ser descida?<br />

Em meio a tanta lágrima vertida,<br />

tanto drama em redor, seguindo o traço<br />

de todos os destinos, o compasso<br />

do estuar 40 dos corações – é dor sentida!<br />

As horas morrem, longas, na esperança<br />

da redenção, que o espírito afrontado<br />

nem sabe, ao menos, se merece ou alcança...<br />

A descrença e a ilusão são filhas gêmeas<br />

deste tormento, em que se cumpre o fado 41<br />

– a alma tonta de anelos 42 e blasfêmias!<br />

135


136<br />

Deus<br />

Sinto, no meu silêncio merencório,<br />

pendida na oração a fronte mesta, 43<br />

a harmonia que és tu, desde o infusório 44<br />

ao torvo paquiderme da floresta!<br />

Desde os gigantes vegetais à giesta! 45<br />

do verme ao homem ! Do esplendor fosfóreo<br />

do raio, à voz do mar glauco 46 e estentóreo! 47<br />

das avezinhas na canora festa!<br />

Teu poder rege o cosmos, fibra a fibra!<br />

Dentro do espaço as forças equilibra,<br />

– em milhões de milhões de astros converso! 48<br />

Qual a soberba que inda se sustenta,<br />

diante de Quem, apenas, representa<br />

um grão de areia, humílimo, o Universo?


Crença de outrora<br />

Oh Simples! quem me dera, esta certeza<br />

com que volveis os olhos para o céu,<br />

– a alma na fé constantemente acesa,<br />

constantemente límpida, sem véu!<br />

Da existência do escuro macaréu, 49<br />

vim rolando, perdido, às tontas, presa<br />

do pecado, do tédio e da tristeza,<br />

no fatalismo do meu sonho incréu... 50<br />

Que saudade do tempo em que, pequeno,<br />

ouvindo o sino a soluçar, e o treno<br />

das oblações, da tarde ao doce fim,<br />

via, no altar, florido, como agora,<br />

pálida, a cintilar, Nossa Senhora,<br />

toda de azul – sorrindo para mim...<br />

137


138<br />

O aeroplano<br />

A João <strong>Menezes</strong> de Melo, 51 meu irmão.<br />

Zunindo, em longas curvas singulares,<br />

no esplendor de um verão americano,<br />

– gigantesca libélula –, o aeroplano<br />

galga o horizonte e apruma-se nos ares.<br />

Em poucas horas, léguas, aos milhares,<br />

vence; atinge o apogeu do vôo, ufano...<br />

Paira, afrontosamente, soberano,<br />

sobre florestas, precipícios, mares.<br />

Sobre as nuvens! – É um pássaro fantasma!<br />

Em baixo, a multidão segue-lhe, pasma,<br />

a vertigem do assomo condoreiro...<br />

Sobe, direto ao sol e à glória! e, avante,<br />

leva-o – mais que a sua hélice possante –<br />

o coração de herói do timoneiro!


Poema da noite<br />

Repassada de augúrios e perfumes<br />

sobre a calma da terra adormecida<br />

e exausta de emoções, de ânsias, de vida,<br />

– côncava, a noite azul reacende os lumes<br />

das estrelas. Milhões de vagalumes<br />

piscam, na treva. E, diáfana, expandida,<br />

a Via Lactea, a esplêndida avenida,<br />

desdobra, a fulgurar! Noite! – resumes<br />

muitas das grandes gestações secretas<br />

da Natureza! A esta hora, nascem rosas<br />

no teu sossego, noite imensa e bela!<br />

E a alma branca dos noivos e dos poetas,<br />

das crianças a dormir, das mães piedosas,<br />

– toda em sonhos e beijos se constela!<br />

139


140<br />

Perfeição<br />

Un immense fleuve d´oubli nous entraîne dans<br />

un gouffre sans nom.<br />

Ô abime, tu es le dieu unique!<br />

Tout n’est ici-bas que symbole et que songe...<br />

Les dieux passent comme les hommes...<br />

Renan (Prière)<br />

Diana 52 dos olhos verdes, intangível,<br />

que persegui, febril, na ânsia tamanha<br />

da beleza perfeita, cujo nível<br />

somente o que venceu teus passos, ganha!<br />

Ficarei na planície – dor terrível! –,<br />

vendo-te o rastro ardente, na montanha<br />

alta, serena, augusta, intransponível<br />

– que o sol da glória, esplendoroso, banha...<br />

Na tortura sisífica 53 da Forma,<br />

por ti, em vão, tentei dar vida e norma<br />

às atitudes do meu ser profundo.<br />

Não te alcancei! Pesar de poeta, assiste<br />

ao meu destino, a prova humana e triste:<br />

– encher de amor e lágrimas o mundo!


Notas<br />

1 Clóris. Uma das Alceíades, ninfa das flores. Apesar de ser uma ninfa completa,<br />

dizem ter descendência mortal por parte de mãe. Foi a última amante<br />

de Zéfiro, o vento Oeste. Depois do casamento, Hera e Afrodite a converteram<br />

em deusa das flores. Com Zéfiro teve Carpo, o deus dos frutos, mas<br />

ainda dizem que teve outros amantes. Em Roma, recebia o nome de Flora.<br />

2 Locusta. Célebre envenenadora. Na velha Roma, era uma mulher cujos<br />

venenos estavam destinados a intervir na história romana. Sua atividade<br />

nefasta – observada por Tácito – havia sido considerada como importante<br />

instrumento na turbulenta política do império. Sua primeira vítima foi o<br />

imperador Cláudio, cuja morte foi decidida por Agripina, sua ambiciosa<br />

consorte. Locusta, por ordem da imperatriz, preparou o veneno que o<br />

eunuco Haloto deu ao imperador. Britânico, filho de Cláudio com<br />

Messalina, foi, também, vítima das poções de Locusta, cúmplice de Nero,<br />

desta feita, na empreitada.<br />

3 Pindorama. Em tupi-guarani pindó-rama ou pindó-retama – terra, lugar,<br />

região das palmeiras. É uma designação pré-cabralina dada a regiões<br />

que mais tarde formariam o Brasil. Por extensão de significado, é o nome<br />

indígena por excelência do País.<br />

4 Referto. Muito cheio, pleno, volumoso.<br />

5 Thalassa. Palavra grega que significa mar. Os soldados de Xenofonte bradaram-na,<br />

ao avistar o Mediterrâneo depois de dura campanha contra os<br />

persas.<br />

6 Bulcões. Remoinho de um fluido e/ou de partículas sólidas num turbilhão<br />

denso.<br />

7 Guaiando. Soltando guais, suspiros, soluços, lamentos; queixando-se,<br />

lastimando-se; cantando em tom de lamento, de pranto; pranteando; dizendo,<br />

proferindo (algo) em tom lamentoso; produzindo sons (especialmente<br />

o vento) que evocam lamentos.<br />

8 Parcéis. Escolhos, recifes, baixios.<br />

9 Tristor. Tristeza, melancolia.<br />

10 Fantasmática. Fantasmagórica: irreal, fantástica.<br />

11 Ardentias. Brilhos, fosforescências, cintilações de cores.<br />

12 Palor. Palidez.<br />

141


142<br />

13 Oblata. Oferenda piedosa; qualquer oferenda.<br />

14 Dossel. Armação ornamental, saliente, forrada e franjada, que encima<br />

altar, trono, leito, etc.; sobrecéu; cobertura de flores; copa de verdura.<br />

15 Merencória. Melancólica, triste, sombria.<br />

16 Aljôfar. Pérola menos fina, muito miúda e irregular.<br />

17 Flava. Amarelada ou dourada; fulva, loura.<br />

18 Devesas. Alameda ou arvoredo que circunda um terreno; mata ou arvoredo<br />

em terreno cercado ou murado; campo fértil às margens de um rio.<br />

19 Fulgem. Brilham, resplandescem, fulguram.<br />

20 Aziaga. Que traz má sorte, de mau agouro; azarenta, infausta, nefasta; que<br />

faz recear infortúnio, agourenta.<br />

21 Angusto. Sem espaço; apertado, constrito.<br />

22 Procusto. Alusão ao personagem mitológico grego que torturava viajantes<br />

numa cama de ferro: caso a vítima fosse menor que a cama, esticava-lhe os<br />

membros até caber nela; caso fosse maior, cortava-os fora.<br />

23 Cérbero. Na Grécia antiga, cão tricéfalo, guardião dos infernos.<br />

24 Grilheta. Prisioneiro, forçado, galé, condenado, calceta.<br />

25 Fadário. Vida trabalhosa e difícil<br />

26 Múrmuro. Murmurante.<br />

27 Epicédio. Hino fúnebre, freqüentemente improvisado, que se cantava<br />

nas cerimônias dos funerais; lamentação na forma de poema lírico ou<br />

sinfônico, ou discurso, dedicado à memória de alguém.<br />

28 Calceta. Criminoso condenado à calceta; forçado, grilheta, prisioneiro.<br />

29 Zaineb. Nome, antropônimo, de mulher árabe.<br />

30 As mil e uma noites (Alf Lailah Oua Lailah). Obra clássica da literatura<br />

árabe, consistindo numa coleção de contos orientais compilados provavelmente<br />

entre os séculos XIII e XVI. São estruturados como histórias em<br />

cadeia, em que cada conto termina com uma deixa que o liga ao seguinte.<br />

Essa estruturação força o ouvinte curioso a retornar para continuar a história,<br />

interrompida com suspense no ar. O uso do número 1001 sugere<br />

que podem aparecer mais histórias, ligadas por um fio condutor infinito.<br />

Usar 1000 talvez desse a idéia de fechamento, inteiro, que não caracteriza<br />

a proposta da obra.


31 Jorge Fernandes de Oliveira (Natal/RN, 22.08.1887-17.07.1953).<br />

Poeta. Considerado por pesquisadores o precursor do Modernismo no<br />

Rio Grande do Norte. Foi comerciante, funcionário público e dramaturgo.<br />

32 Adamantina. Que tem brilho e rijeza semelhantes ao diamante; firme,<br />

íntegra, incorrutível.<br />

33 Gilliat. Personagem do romance Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo.<br />

Na obra formidável, o autor indica a fatalidade das coisas, trazendo o oceano<br />

e o homem num jogo aterrorizante de luta e preconceito, mas ao mesmo<br />

tempo libertador. Gilliat é um pescador rude, inteiramente nobre, que<br />

aprende a viver sozinho desde criança, quando sua suposta mãe falece.<br />

34 Lutulenta. Que ofende, agride.<br />

35 Antélio. Imagem do sol que, semelhante a uma mancha branca, aparece<br />

na atmosfera em posição oposta ao astro mas a igual altura do mesmo; na<br />

esfera celeste, ponto diametralmente oposto ao sol; anti-hélio.<br />

36 Lucíferos. Luminosos, claros, luzentes.<br />

37 Sursum corda. Expressão litúrgica latina que significa corações ao alto.<br />

38 Trons. Estrondos de canhão, tiros, sons de trovão.<br />

39 Lesto. Que se move com desembaraço, ligeireza; que mostra agilidade,<br />

velocidade; lépido, expedito, rápido, apressado, ligeiro, ágil.<br />

40 Estuar. Agitar-se, vibrar, pulsar.<br />

41 Fado. Sorte, destino, estrela, vaticínio – o que, necessariamente, tem de<br />

ser.<br />

42 Anelos. Desejo intenso, anelação, anélito, aspiração.<br />

43 Mesta. De aspecto sombrio, lúgubre.<br />

44 <strong>In</strong>fusório. Ramo taxonômico de classificações pioneiras que designava<br />

todos os diminutos seres presentes nas infusões (até o início do século<br />

XIX, eram incluídos sob esta categoria os atuais protistas e alguns<br />

nematóides, briozoários e rotíferos).<br />

45 Giesta. Planta de propriedades medicinais e para o fabrico de vassouras;<br />

gesta, giesteira, giesteiro.<br />

46 Glauco. Esverdeado, verde-claro, verde-azulado.<br />

47 Estentóreo. Possante, retumbante; que tem a voz muito forte.<br />

143


144<br />

48 Converso. Convertido.<br />

49 Macaréu. Grande onda de arrebentação, produzida em certos estuários<br />

pelo encontro da corrente descendente do rio e as águas da maré montante.<br />

50 <strong>In</strong>créu. <strong>In</strong>crédulo, sem fé, descrente.<br />

51 João <strong>Menezes</strong> de Melo (Natal/RN, 1896-Rio de Janeiro/RJ, 1920).<br />

Pioneiro e mártir da aviação militar brasileira (foi a sexta vítima). O primeiro<br />

aveador do Rio Grande do Norte. Sargento-piloto, da 2ª. Turma da<br />

Escola de Aviação do Exército. Voando num Nieuport (de caça), morreu,<br />

caiu do céu, aos 24 anos, em Marechal Hermes, subúrbio do então Distrito<br />

Federal, no Rio de Janeiro/RJ, nas proximidades do lendário Campo<br />

dos Afonsos, no dia 29 de setembro de 1920. No início da carreira militar,<br />

em 1913/1914, combateu, de arma na mão, os jagunços do “Padim Ciço”<br />

do Juazeiro, no Ceará. Poeta, também. OM anotou, na primeira edição<br />

deste livro: “Este soneto foi escrito para a glória de João <strong>Menezes</strong>, meu<br />

querido irmão, morto no grande desastre de 29 de setembro de 1920, no<br />

Campo dos Afonsos quando, intrépido sargento-aveador, tentava o Parafuso<br />

da Morte, num dos aparelhos escangalhados que a França nos<br />

impingiu. Deixa de ser publicado aqui o que se disse, a respeito, na revista<br />

Terra Natal, porque pretendo, oportunamente, de maneira menos inócua,<br />

estigmatizar o canalha do oficial francês responsável pela morte de João<br />

<strong>Menezes</strong>”.<br />

52 Diana. A Artemis grega. Era a deusa romana da lua e da caça, filha de<br />

Júpiter e de Latona e irmã mais velha de Apolo. Era muito ciosa de sua<br />

virgindade. Na mais famosa de suas aventuras, transformou em um cervo<br />

o caçador Acteão, que a viu nua durante o banho.<br />

53 Sisífica. Relativo ao mito grego de Sísifo, a quem os deuses condenaram a,<br />

incessantemente, rolar uma rocha até o topo de uma montanha, de onde<br />

a pedra cairia de volta devido ao seu próprio peso. Pensaram, com alguma<br />

razão, que não há punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem<br />

esperança.


Sertão de espinho e de flor<br />

Aspectos do panorama físico e social<br />

dos sertões norte-rio-grandenses


Prefácio à primeira edição<br />

Ecce... 1<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, natalense, acompanhou o pai ao sertão e lá<br />

se fez rapaz. Ficou emocionalmente sertanejo. Todas as impressões<br />

subseqüentes foram impostas na primitiva chapa infantil, já<br />

cheia de imagens vivas, nítidas, secas, sugestivas, água-forte que se<br />

denuncia, olhada contra o sol, como um desenho de tinta simpática,<br />

inconfundível, atravessando a massa das anotações posteriores.<br />

Com seu primeiro livro, Gérmen, logo depois dos vinte anos, e<br />

Jardim tropical, antes dos trinta, <strong>Othoniel</strong>, tanto mais alto sobe à<br />

luminosidade do seu dia vital, mais se aproxima da paisagem inicial<br />

de sua infância, figuras e almas, quadros e evocações imperecíveis,<br />

como gravadas na pedra branca dos serrotes, onde espreitou a<br />

corrida macia dos mocós.<br />

Vivendo na cidade, como um exilado, incompreendido e<br />

incompreendendo, sozinho, arredio, orgulhoso na sua pobreza<br />

como Barbey d’Aurevilly 2 nas alturas de sua mansarda, <strong>Othoniel</strong><br />

ouviu o coração cantar a história velha da primeira emoção.<br />

Dizem que as conchas marinhas guardam nas curvas da voluta 3<br />

o rumor amplo de todas as vagas do mar alto. Herédia 4 falara a<br />

uma concha:<br />

147


148<br />

Longue et desesperée,<br />

en toi gémit toujours la grande voix des mers<br />

Essa voz doce e fiel ressuscitou o mundo de outrora, o horizonte<br />

do sertão, para o poeta. Todos os elementos desceram, como<br />

rios cantantes, para o estuário de um livro de versos.<br />

Os sertanejos que residem distante da terra ardente que lhes<br />

deixou nos olhos a reverberação cegadora dos mormaços, o candelabro<br />

dos cardeiros imóveis recortados no azul da imensidão, o<br />

pereiro verde, o pau-d’arqueiro estrelado de flores de ouro, o<br />

gado lento, a tarde silenciosa interrompida pela ondulação melancólica<br />

do aboio, vejam com que adamantina transparência a<br />

saudade gravou na memória miraculosa do Poeta todos os aspectos,<br />

vocabulários e visões, fazendo-os vivos e presentes numa desfilada<br />

impressionante de beleza, de naturalidade e de graça espiritual.<br />

Em Montfort-l’Amaury (Seine-et-Oise), há anualmente a festa<br />

dos bretões que moram em Paris. Montfort pertenceu ao apanágio<br />

dos duques da Bretanha, até que a província se reuniu à França,<br />

com o casamento de Ana da Bretanha com o delfim Carlos, o futuro<br />

Carlos VIII. E, enviuvando, casou com Luis XII. Não podendo<br />

deixar a cidade tentacular e voltar a ouvir o biniou, 5 atravessando<br />

la lande, la lande para o perdão de Santana d’Auray, os bretões se<br />

reúnem em Montfort-l‘Amaury e revivem a terra longínqua.<br />

Charles Le Goffie, 6 saudando os patrícios bretões no Pardon de<br />

la Reine Anne, vindos de Paris para rever a Bretanha, disse:<br />

Levez-vous! C’est aujourd’hui fête,<br />

ó fronts courbés par la défaite,<br />

ó coeurs abreuvés de degoùts.<br />

Puisque, rivés à votre bagne,<br />

vous n’alliez pas à la Brétagne,<br />

la Bretagne est venue à vous!


Todo o sertão – como o gigante das Mil e uma noites coube no<br />

bojo de uma garrafa de cristal – está inteiro neste livro, prisioneiro<br />

do poder poético que tudo arrebatou, árvores e vaqueiros,<br />

serras e gados, várzeas, tabuleiros, silêncios doces, frêmitos do<br />

meio-dia, tardes de contemplação, noites de estrelas vivas:<br />

Sertão selvagem de Euclides!<br />

prosaicamente progrides,<br />

mas, nada te corrompeu!<br />

Paraíso de minha infância,<br />

ingênuo como uma estância<br />

de Casimiro de Abreul 7<br />

Touceira de xiquexique,<br />

cercadão de pau-a-pique,<br />

dez léguas de tombador...<br />

Mar de panasco dourado,<br />

bogari, cravo encarnado<br />

– SERTÃO DE ESPINHO E DE FLOR!<br />

Mantendo o ritmo tradicional e secular do setissílabo, gênio<br />

do idioma, molde popular, na fórmula AABCCB, 8 de notável formosura<br />

em sua simplicidade, o poeta realizou o poema do sertão<br />

vivo, em rimas naturais, rápidas, inesgotáveis, espelhando em pormenor<br />

e conjunto, psicologia, crítica social, etnografia, folclore,<br />

com o conhecimento infinito de fauna e flora, costumes, modismos,<br />

o próprio mecanismo do raciocínio; precisando, de maneira<br />

impecável e feliz, uma sucessão de frases e de imagens que fotografam,<br />

sem retoque e sem pose, o sertão, com seus espinhos e<br />

suas flores:<br />

Ah! Quem me dera, o tesouro<br />

da lira mágica, de ouro,<br />

que Apolo 9 deu a Anfion! 10<br />

149


150<br />

Desses penhascos da serra,<br />

te ergueria, oh minha terra,<br />

portentoso panteon!<br />

Rente às nuvens, o idealizo:<br />

vaqueiros, de pé, no friso,<br />

e um juazeiro, o coruchéu<br />

– emblema das tuas dores,<br />

verde, entre espinhos e flores,<br />

bebendo a chuva – no Céu!<br />

Um dos primeiros monumentos aí está, feito com sonho, sofrimento<br />

e talento vivo, neste poema ímpar pela sua força expressiva,<br />

intensidade lírica, grandeza emocional e abaladora dos corações<br />

que batam na cadência do solidarismo humano.<br />

O terceiro livro de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, um poeta dos maiores<br />

do Brasil, fecha um ciclo de inapagável repercussão intelectual. É<br />

um poema fiel à terra, e sem as convenções de qualquer coloração<br />

suspeita ao ambiente que transportou para o livro. É um Sertão<br />

viril, resistindo, atravessando a pedra para encontrar água, cavando<br />

o açude, emigrando ou não emigrando, mas possuindo um<br />

bom humor natural, um rico filão inesgotável de filosofia compreensiva,<br />

explicando cataclismos e injustiças, com o inesperado<br />

de uma comparação espontânea, de inacreditável verismo 11 pictórico,<br />

de rara felicidade ao ajustar-se à figura causadora do<br />

malefício coletivo.<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, testemunha presencial de vaquejadas e feiras,<br />

jornadas nos comboios que a madrinha dirige com o sonido<br />

de sua campainha cristalina; sabedor de segredos e do ambiente<br />

exato e completo, não angulou as fisionomias para os efeitos de<br />

uma tragédia perpétua, nem as caricaturou para a representação<br />

nos programas “caipiras” de palco e de rádio, longe da justiça e da<br />

lógica.


Esses sertanejos são os que conheci, com quem convivi, sem<br />

deformação e sem amplitudes sentimentais de mentira livresca.<br />

Um grande livro, espelhante de verdade, de indignação sagrada,<br />

de evocação maravilhosa e feliz, cores de todas as nuanças, dos<br />

afrescos às aquarelas que adoçam a vista; como certas melodias<br />

velhas, que ouvimos crianças, renovam a mocidade interior pela<br />

rearticulação sonora.<br />

Um livro inteiro feito com homens, batalhas, trabalhos, esperanças,<br />

material humano.<br />

Como para os poemas de Walt Whitman, 12 quem tocar esse<br />

livro abraça todo um povo...<br />

Luis da Câmara Cascudo 13<br />

151


152<br />

Notas<br />

1 Ecce Homo. São as palavras que Pôncio Pilatos teria dito, ao apresentar<br />

Jesus Cristo aos judeus, de acordo com o evangelho. Em português, a<br />

frase significa “Eis o homem”.<br />

2 Escritor francês, normando (1808-1889).<br />

3 Espiral.<br />

4 José Maria de Herédia (1842-1905). Poeta parnasiano francês nascido<br />

em Cuba. Publicou um único livro, Les trophées.<br />

5 Designação da cornamusa, na Bretanha; gaita de foles.<br />

6 Charles Le Gaffie. Poeta e acadêmico francês.<br />

7 Casimiro José Marques de Abreu. Poeta, nasceu em Barra de São<br />

João/RJ, em 4 de janeiro de 1839, e faleceu em Nova Friburgo/RJ, em<br />

18 de outubro de 1860.<br />

8 Sextilha, estrofe de seis versos, com as rimas dispostas na fórmula citada.<br />

9 Filho de Júpiter e de Latona, deus solar, condutor das musas. Seu oráculo,<br />

em Delfos, era o mais famoso da Grécia.<br />

10 Filho de Júpiter e de Antíope, poeta e músico, construiu os muros de<br />

Tebas. Segundo a fábula, as pedras se dispunham por si próprias ao som da<br />

sua lira.<br />

11 Movimento literário, de caráter naturalista, surgido na Itália no fim do<br />

século XIX, em oposição ao romantismo.<br />

12 Walt Whitman (1819-1892). Um dos maiores poetas da América, é<br />

considerado um bardo a serviço da democracia. Ninguém como ele até<br />

então enalteceu, com versos soberbos, o regime dos Estados Unidos da<br />

América, além de ter iniciado a emancipação da literatura do seu país do<br />

costume de imitar os europeus. OM conhecia, com profundidade, a obra<br />

de Whitman, por quem tinha verdadeira afeição.<br />

13 Luis da Câmara Cascudo (Natal-RN, 30.12.1898-Natal/RN,<br />

30.07.1986). Escritor, advogado, professor, jornalista, historiador,<br />

etnógrafo, sociólogo, folclorista, orador, boêmio, conversador admirável.<br />

Foi, na década de 1930, líder dos integralistas no Rio Grande do Norte,<br />

tendo ocupado a chefia provincial do movimento. Poeta bissexto é o maior<br />

nome das letras do Rio Grande do Norte, no cenário nacional. Contemporâneo<br />

e amigo de OM, chamava-o, carinhosamente, de “Titó”.


“Cascudinho”, para <strong>Othoniel</strong>. No “Ronda do tempo” (um diário), escreveu,<br />

em 23 de abril de 1969: “Soube, hoje, do falecimento de <strong>Othoniel</strong><br />

<strong>Menezes</strong>, a 19, no Rio de Janeiro. Relações de 1917. Um poeta maior da<br />

minha terra. Vai para o meu oratório, o ‘Gente Viva’ que estou pensando<br />

escrever. A morte existe, os mortos não!”<br />

153


Prefácio à segunda edição<br />

Para se compreender a gênese do Sertão de espinho e de flor faz-se<br />

necessário acompanhar-se o período da vida do poeta <strong>Othoniel</strong><br />

<strong>Menezes</strong> quando, ainda muito criança, manteve o primeiro contato<br />

com o sertão norte-rio-grandense e ali permaneceu durante<br />

sete anos.<br />

Seu pai, João Felismino de Melo, 1 exercia, desde os 22 anos de<br />

idade, a função de funcionário do Tesouro do Estado. Em consideração<br />

à sua eficiência, o <strong>In</strong>spetor do Tesouro do Estado,<br />

Comendador Joaquim Guilherme de Souza Caldas, 2 designou-o<br />

para chefiar a Mesa de Rendas de Jardim do Seridó que, naquela<br />

época, englobava as agências de Acari, Currais Novos, Flores (atual<br />

Florânia), Parelhas, Periquito (hoje Equador) e Espírito Santo<br />

(agora Ouro Branco).<br />

Corria o ano de 1899 quando para lá se deslocou. Com ele<br />

foram a esposa, Maria Clementina <strong>Menezes</strong> de Melo 3 , e os filhos<br />

Francisco 4 (nascido em 1892), João 5 (1896), <strong>Othoniel</strong> 6 (nascido<br />

10 de março de 1895) e Gabriel 7 (1897).<br />

Um confortável trem levou a família até Nova Cruz, onde findava<br />

a linha; de lá para Jardim do Seridó a viagem era feita sobre o<br />

lombo de burros, o único meio de transporte possível àquela época.<br />

O percurso levava normalmente quatro dias, mas naquele mês<br />

155


156<br />

de março de 1899, o bom inverno alongou o caminho, exigindo<br />

onze dias de lenta marcha.<br />

Os meninos Francisquinho, Joãozinho, Gabi e Tôni, foram em<br />

duas “caçambas” nas costas da égua “Mulata”. Às margens do rio<br />

Jacu, 8 mais um problema: havia chovido muito e o rio tomara<br />

água, dificultando e atrasando ainda mais a viagem.<br />

A pequena cidade de Jardim do Seridó e o sertão nativo e<br />

autêntico, original e diferenciado em seus usos e costumes, eram<br />

um mundo inteiramente novo para Tôni e seus irmãos. A família<br />

residiu no primeiro andar de um casarão conhecido como “sobrado<br />

grande do padre Justino”, hoje restaurado e tombado pelo<br />

Patrimônio Histórico Nacional. No andar térreo ficavam a Mesa<br />

de Rendas e a Delegacia de Polícia.<br />

Chegaram a Jardim do Seridó em 15 de março de 1899 e lá<br />

iriam, em poucos meses, sofrer o impacto brutal do suicídio de<br />

dona Clementina. Tinha 28 anos quando faleceu e <strong>Othoniel</strong>, quatro<br />

anos de idade, apenas.<br />

João Felismino decidiu casar-se outra vez; estava sozinho com<br />

os filhos, numa cidade onde não possuía parentes que o ajudassem.<br />

Era imprescindível, portanto, que houvesse outra esposa que<br />

cuidasse das crianças. Em fevereiro do ano seguinte, casava-se com<br />

Celsa Bezerra de Araújo Fernandes, 9 que passaria a se chamar, Celsa<br />

Fernandes de Melo.<br />

Chegada a idade escolar, tiveram todos as primeiras letras em<br />

casa, com o pai. <strong>Othoniel</strong> já sabia ler quando entrou para a escola<br />

do professor Jesuíno Ildefonso de Azevedo, irmão do coronel<br />

Felinto Elísio de Oliveira Azevedo, 10 destacada figura nos meios<br />

políticos do Estado.<br />

Foram sete longos anos de convivência com o sertão, uma experiência<br />

pessoal e não apenas livresca, o elemento responsável<br />

pelas influências, lembranças e imagens que resultaram no Sertão<br />

de espinho e de flor. Considere-se que essas impressões lhe foram


gravadas no período mais sensível da vida do poeta, a fase mais<br />

propícia para ocasionarem uma forte e duradoura saudade.<br />

Sertão de espinho e de flor é, portanto, um desfilar evocações, de<br />

revivências, de marcantes cenas vividas na infância. A começar<br />

pela seca, por exemplo, impacto maior causado por aquela região,<br />

que desde cedo lhe marcou a sensibilidade:<br />

Dois, três anos de calvário,<br />

Sertão! Teu rude fadário,<br />

Nem no evangelho tem rol!<br />

E a expectativa de inverno nas ansiosas previsões do sertanejo,<br />

em todos semeava a semente da esperança.<br />

Mil ingênuos profetas<br />

Farejam sinais. Hoje norte<br />

Que luta, de vida e de morte,<br />

Com o céu, essa esfinge azul.<br />

Por mais seco e desolado que esteja, o sertão tem seus momentos<br />

de rude beleza, como na floração persistente de suas árvores<br />

típicas:<br />

o pau-d’arco é um rei que dorme<br />

Com um manto de estrelas aos pés...<br />

E, à tristeza da árvore caída, tombada pela inclemência do clima<br />

ou pelo crime do homem, uma homenagem de sentida emoção:<br />

Pau-d’arco roxo caído,<br />

Morrendo, mas tão florido,<br />

És um quadro de paixão.<br />

157


158<br />

Traduzindo a dor do retirante, o poeta cantaria:<br />

Há poucos meses, ainda,<br />

Na estrada do exílio, infinda<br />

Pudera haver dor maior?<br />

É o quadro chocante do homem que foge, na esperança de um<br />

dia voltar, com a chuva, para a terra que é parte de seu ser.<br />

Ó! o drama das retiradas!<br />

Boiadas e mais boiadas,<br />

Num chouto exausto a mugir...<br />

O menino sentiu, também, as alegrias da chegada das chuvas,<br />

participando do festejar do povo. É quando o leito do rio, seco,<br />

torrado, recebe, incontida, a bruta caudal, fruto das primeiras<br />

chuvas.<br />

É a cheia! Lá vem o rio,<br />

turvo, assanhado, bravio,<br />

pelos grotões, a estrondar!<br />

O espetáculo da cheia, a torrente impetuosa, devem ter sido<br />

cenas marcantes para a sensibilidade da criança. O que antes era<br />

seco<br />

hoje é barreira a barreira,<br />

traz chuva da cabeceira,<br />

arrasta pau-d’arco e rês.<br />

Chegou abril! Quanto ninho,<br />

pulam corgos no caminho<br />

É o inverno que chegou. A mesa do sertanejo também reflete<br />

a reação da terra:


Queijo, paçoca, embotada,<br />

Que fartura perfumada<br />

Sobre a toalha de xadrez.<br />

A feira é toda uma ingênua festa.<br />

Um mar de chapéus de couro...<br />

Serras de queijos cor de ouro,<br />

Trincheiras de garajaus.<br />

E as lembranças das festas de São João, as mais típicas do interior?<br />

Quem seria aquela<br />

Ai São-Joões de minha roça!<br />

Quanto esta alma se remoça,<br />

Quanta saudade me traz...<br />

moça de saia encarnada<br />

que eu vi na volta da estrada,<br />

arisca, a olhar para mim?<br />

Quem sabe, um futuro amor brejeiro, uma esposa sertaneja<br />

que fosse, como se dizia por lá:<br />

Muié é cuma a minha,<br />

do currá pra camarinha.<br />

Sertão, Jardim do Seridó... quanta lembrança teria levado o<br />

poeta, por toda a sua agitada vida, em todos o lugares por onde<br />

andou. E o cantar dos pássaros, que tantas vezes se ouvia em sua<br />

poesia estreitavam, mesmo nos dias cinzentos da velhice, os laços<br />

com uma infância feliz:<br />

159


160<br />

Pintassilgo, és o violino<br />

de um gênio, cujo destino,<br />

é o de morrer... de cantar.<br />

Depois, uma mística saudação aos pássaros, àqueles mesmos<br />

aos quais falara há tanto tempo o pobre Francisco, nas verdes planuras<br />

da Úmbria distante. Aos pássaros sertanejos, que cantam e<br />

se amam festejando o inverno que chega, a saudação do poeta que<br />

foi menino no sertão:<br />

Amai, pássaros românticos!<br />

Isto é o Cântico dos Cânticos!<br />

<strong>In</strong>verno é ressurreição.<br />

Um dia, a fatal saída do paraíso. A idade exigia escolas melhores,<br />

que só havia em Natal. O Colégio Santo Antônio, 11 fundado<br />

em 1903 e funcionando no prédio do atual convento de Santo<br />

Antônio era a melhor opção. Primeiro, foi Francisquinho. No ano<br />

seguinte, 1906 , foi a vez de <strong>Othoniel</strong> e João.<br />

A vida seguiu o seu caminho. O menino tornou-se rapaz, publicou<br />

seus primeiros poemas nos jornais e, aos 24 anos, Gérmen,<br />

em 1918. Poemas de forma refinada, nada de resquícios do sertão.<br />

O poeta era um jovem e bem sucedido funcionário do Estado.<br />

12 Depois, em fins de 1922, o Jardim tropical, 13 na mesma linha,<br />

levaria o poeta à popularidade, por conter a “Serenata do pescador”,<br />

que a melodia de Eduardo Medeiros transformaria na “Praieira”,<br />

14 uma das mais queridas canções do Estado.<br />

A vida de <strong>Othoniel</strong> foi mudando conforme o tempo passava. O<br />

destino retirou-lhe as facilidades e a felicidade começou a se esvair<br />

tão rápido como antes chegara. O jovem e ardente poeta ia-se<br />

transformando em uma personalidade ressentida e ensimesmada.


A ligação afetiva com o sertão de sua infância o fariam voltar<br />

muitas vezes a Jardim do Seridó, em diversos períodos de sua<br />

existência, conforme seu próprio testemunho:<br />

e, só para matar saudades!<br />

às serras, às soledades<br />

do sertão que sempre amei!<br />

Quando teria iniciado a composição dos versos do Sertão de<br />

espinho e de flor?<br />

As notícias mais antigas datam de 1939-1940, período em que<br />

<strong>Othoniel</strong> viveu na cidade do Assu, como funcionário do Serviço<br />

Nacional de Malária, trabalhando contra uma grave epidemia de<br />

malária que se alastrava pela região. Correspondência entre ele e<br />

sua amiga Clarice de Sá Leitão 15 revelam o planejamento de um<br />

recital a ser realizado naquela cidade. Tencionava o poeta por à<br />

venda ingressos para entrada. Outros, de valor um pouco maior,<br />

teriam um canhoto destacável onde se lia: “O portador deste canhoto<br />

receberá de Clarice Leitão um exemplar do livro de<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, Sertão de espinho e de flor”.<br />

Outra carta para a mesma amiga, datada de Natal, 20 de abril<br />

de 1940, relata a realização de semelhante recital em Macau. Na<br />

ocasião, inaugurou-se o palco do Cine-Teatro Éden. Participaram<br />

várias pessoas do local com números de canto, dos quais não faltou<br />

a famosa “Praieira”. O poeta leu uma conferência, “entremeando-a<br />

com recitativo de versos meus (parte, também, do poema<br />

que vocês ouviram aí)”.<br />

Em 1941, o jornal A República, edição de 18 de dezembro,<br />

anunciava um Recital de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, promovido pelo Centro<br />

Esportivo Feminino e Centro Estudantil Potiguar, realizado<br />

no Teatro Carlos Gomes (depois Alberto Maranhão). O evento<br />

teve a participação da orquestra, músicos e cantores da Rádio<br />

161


162<br />

Educadora de Natal (depois Rádio Poti). Falou o poeta Esmeraldo<br />

Siqueira; 16 <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> declamou poemas do Sertão de espinho<br />

e de flor, “numa homenagem à mulher seridoense”. A renda foi<br />

revertida em benefício da Juventude Feminina Católica e do Natal<br />

dos pobres.<br />

No ano seguinte, 1942, o poeta participou do programa da<br />

Rádio Educadora de Natal – Poetas da Nossa Terra – transmitido<br />

em 2 de agosto, quando declamou trechos do Sertão de espinho e de<br />

flor.<br />

Certamente, naquele momento, o texto do Sertão de espinho e<br />

de flor já estava completo e o poeta debatia-se contra as barreiras<br />

comuns aos autores pobres que, sem contar com recursos próprios<br />

para publicação, apelavam para ouvidos – a maioria surda – de<br />

abastados e políticos pouco sensíveis.<br />

Esta conclusão está claramente evidenciada no editorial da revista<br />

Bando, 17 edição de fevereiro de 1950; nela se encontram indicações<br />

sobre a vida pessoal do poeta e se informa que o seu<br />

novo livro estava pronto, à espera de apoio para publicação.<br />

OM, o esteta do Jardim tropical, Gérmen, e de tantas<br />

outras obras de valor, nas letras norte-rio-grandenses,<br />

está, há mais de um ano, com um livro preparado<br />

para publicar. A vida de isolacionismo em que tem<br />

vivido, entre, nós, este poeta excepcional, os azares<br />

da sorte, somados ao indiferentismo criminoso que<br />

se vota, em geral, aos problemas da cultura e da inteligência,<br />

têm retardado até agora o aparecimento<br />

deste livro padrão que é, sem lisonja e sem exagero,<br />

Sertão de espinho e de flor.<br />

Nessa altura, valeria a pena perguntar: onde estão os<br />

amigos das letras, os devotos da poesia, os amigos do<br />

poeta, as forças interessadas na valorização do espíri-


to e da inteligência? Onde estão os capitalistas, instituições<br />

culturais, os amantes da arte, os grandes construtores<br />

do progresso de nossa terra?<br />

E lembrava que a Lei n. 145, de 6 de agosto de 1900, promulgada<br />

por Alberto Maranhão, 18 ainda estava em pleno vigor, e que<br />

a Constituição de 1946 previa a proteção à cultura. E reivindicava:<br />

OM, pela posição que assume na vida intelectual da<br />

província, pelo teor de sensibilidade que inspiram os<br />

seus versos, pelo grande poder de observação que<br />

encerra o seu livro, por tudo quanto ali está falando<br />

de meio e do povo que habita este pedaço do Brasil,<br />

merece o apoio e o amparo de todos para realização<br />

do seu sonho e da sua obra.<br />

Diplomado pela Faculdade de Direito do Recife, em 1950,<br />

retornava a Natal o poeta, escritor e crítico literário Antônio Pinto<br />

de Medeiros. 19 Nomeado para o posto de diretor do Departamento<br />

de Imprensa, que publicava o jornal A República, solidário e<br />

admirador de <strong>Othoniel</strong>, assumiu a empreitada da publicação do<br />

Sertão de espinho e de flor.<br />

Em crônica publicada no Diário de Natal, em 2 de dezembro de<br />

1951, comentava “Danilo” (Aderbal de França) 20 que os originais<br />

do Sertão de espinho e de flor haviam sido entregues ao editor.<br />

Graças ao empenho pessoal de Alberto Maranhão, o livro saía<br />

das impressoras nos começos de 1952, financiado pelo Estado,<br />

conforme permitia a antiga Lei n. 145.<br />

A qualidade do papel em que foi impresso o livro tornou-se<br />

motivo de comentários e críticas de alguns. Em carta datada de<br />

14 de novembro de 1953, <strong>Othoniel</strong> dirigia-se a Antônio Pinto:<br />

163


164<br />

Apresso-me em responder a tua carta de ontem, alarmado<br />

com a generosa injustiça que alguns amigos e<br />

inimigos te estão cominando, sem dúvida ainda pouco<br />

informados a respeito da primeira edição do maltrapilho<br />

Sertão de espinho e de flor.<br />

Sou o único culpado, o responsável direto pela qualidade<br />

do papel em que foi composto o livro. Preocupado<br />

com a péssima situação financeira do Estado, fiz<br />

questão de que fosse impressa em papel de jornal<br />

essa primeira edição; tendo mesmo, a tal propósito,<br />

escrito ao secretário geral (do Estado).<br />

Aliás, ao tempo que em que assumiste a direção do<br />

Departamento de Imprensa, já o caso estava resolvido<br />

entre o autor e o Governo, que despendeu, com a<br />

publicação (Lei n. 145, de 6 de agosto de 1900), o<br />

total de treze mil e quinhentos cruzeiros, numa tiragem<br />

de mil exemplares.<br />

Sobre a qualidade do papel jamais te formulei a mínima<br />

imputação, desde que seria disparate fazê-lo.<br />

Sou eu, repito, o único responsável pela qualidade do<br />

papel empregado na publicação do livrinho. Apesar de<br />

tão modestamente vestido (para o filho de fiscal do sal<br />

tanto basta!), anda ele por aí, pelas livrarias, pelas almas<br />

boas e caridosas adquirido heroicamente a trinta cruzeiros<br />

o volume em benefício das obras do Albergue<br />

Noturno. 21 E, mesmo tão modesto, merecendo o que<br />

mereceu, de um Mauro Mota, 22 de um Manuel Bandeira,<br />

23 de um Peregrino Júnior, de um Câmara Cascudo,<br />

de um Humberto Peregrino, de um Esmeraldo Siqueira,<br />

de um Manoel Rodrigues, de um Veríssimo de Melo, e<br />

de outros formidáveis sujeitos que tanto sabem deixar<br />

açúcar cândi na boca dos pais pobres...


À época da publicação, o poeta atravessava um momento onde<br />

qualquer ajuda financeira seria bem-vinda. Decidiu, entretanto,<br />

movido pelos princípios do espiritismo que adotara como diretriz,<br />

doar a renda de sua venda a uma instituição de caridade.<br />

Aqueles que possuem um exemplar da primeira edição do seu<br />

livro, decerto ainda têm, colado à parte interna da capa, um pequeno<br />

impresso:<br />

Esta primeira edição de Sertão de espinho e de flor é<br />

doada à União da Mocidade Espírita Norte-Rio-<br />

Grandense, como concurso do Autor à construção do<br />

Albergue Noturno de Natal, parte integrante do plano<br />

de assistência social Nosso Lar, a ser executado<br />

pela mesma agremiação.<br />

Há, no Sertão de espinho e de flor, entretanto, no âmago do Canto<br />

XV, algumas estrofes onde, ao invés de abordar o tema principal,<br />

o poeta abre o seu coração numa demonstração de mágoa e desencanto<br />

com a cidade por ele considerada como “madrasta<br />

mendaz”. É um momento de desabafo e manifestação do ressentimento<br />

que eclodiria, mais tarde, no seu auto-exílio no Rio de<br />

Janeiro, aonde viria a falecer, em 19 de abril de 1969.<br />

A sua mais legítima aspiração haveria de ser o reconhecimento<br />

de sua arte pelos seus conterrâneos. Nada mais queria, naquele<br />

momento.<br />

A glória a que aspiro – a única –<br />

e que há de ser minha túnica,<br />

mais sagrada que a de um rei,<br />

posse intangível, se planta<br />

na alma do povo – que canta<br />

as canções que lhe ensinei!<br />

165


166<br />

É isto que o Rio Grande está fazendo agora, com esta oportuna<br />

e muito esperada segunda edição de Sertão de espinho e de flor.<br />

É o momento afetivo e sentimental de serem, de novo, cantadas,<br />

as canções que <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> ensinou.<br />

Cláudio Galvão


Notas<br />

1 João Felismino de Melo. Nasceu em Ceará-Mirim (antiga Vila da Boca<br />

da Mata), em 24 de junho de 1870. Foi batizado João Felismino Ribeiro<br />

Dantas de Melo. Nunca se soube o porquê de ter deixado muito cedo de<br />

usar o sobrenome materno. Fazia versos e, muito jovem, ao lado de Pedro<br />

Velho, participou da campanha em favor da proclamação da República.<br />

Capitão da Guarda Nacional, coletor estadual, administrador de Mesas de<br />

Rendas (1892), delegado de polícia (em 1901, acumulando). Homem de<br />

espantosa coragem pessoal, honestíssimo, respeitado. Na função policial,<br />

combateu o cangaceirismo na região do Seridó. Mandou resposta viril,<br />

malcriada, a um recado de Antônio Silvino, o famigerado “Rifle de Ouro”<br />

– que ameaçava invadir Jardim do Seridó. Foi um dos incentivadores da<br />

criação dos atuais municípios de Parelhas e Equador, no RN. Era de estatura<br />

mediana, de tez alva, olhos azuis. Criava belos canários belgas. Casou<br />

duas vezes. Faleceu em Natal, em 10 de outubro de 1954.<br />

2 Joaquim Guilherme de Souza Caldas. Político, administrador. O<br />

cargo equivalia ao do secretário da Fazenda, hoje. Assuense (26.03.1836-<br />

26.02.1898).<br />

3 Maria Clementina <strong>Menezes</strong> de Melo.Quando solteira chamava-se<br />

Maria Clementina Álvares de <strong>Menezes</strong>. Nascida em 03 de janeiro de 1871,<br />

em Canguaretama/RN (antiga Penha), moradores seus pais em Nova Cruz/<br />

RN (antiga Anta Esfolada), onde viveu até casar. Foi, antes, por breve<br />

período, funcionária dos Correios. Seus antepassados, fundadores do último<br />

município – os Álvares de <strong>Menezes</strong> – vieram de Goiana/PE. Casou<br />

aos 20 anos com João Felismino, vindo para Natal. “Era alta... bonita... e<br />

tocava violão” – disse OM num belo poema. Suicidou-se aos 28 anos (em<br />

22 de outubro de 1899), em Jardim do Seridó/RN, para onde se mudara,<br />

acompanhando o esposo.<br />

4 Francisco <strong>Menezes</strong> de Melo (Natal/RN, 05.03.1892-Natal/RN,<br />

17.09.1989). Bacharel em Direito “de Olinda e Recife”, professor, magistrado,<br />

também poeta.<br />

5 João <strong>Menezes</strong> de Melo (sargento <strong>Menezes</strong>). Ver nota neste volume,<br />

em Jardim tropical.<br />

6 <strong>Othoniel</strong>. Nasceu em Natal, à Rua das Laranjeiras, número 16 (Cidade<br />

Alta). No local, hoje ergue-se a sede da Fundação Cícera Queiroz. O<br />

responsável pela instituição, Leôncio Queiroz, acatando sugestão do au-<br />

167


168<br />

tor destas notas, preservou a fachada da antiga residência do capitão João<br />

Felismino. Placas e fotografias registram o nascimento do poeta e do irmão<br />

aveador – João.<br />

7 Gabriel <strong>Menezes</strong> de Melo. Militar, da arma da Cavalaria. Morreu em<br />

Minas Gerais, na cidade de Pouso Alegre.<br />

8 O rio Jacu nasce na Serra dos Cariris Velhos, na Paraíba e vai até a localidade<br />

de Picos, no município de Nova Cruz. Seguindo, separa os municípios<br />

de Nova Cruz e Santa Cruz, chegando até a área do Umbuzeiro e segue seu<br />

curso pelas terras de Santo Antônio e Goianinha, despejando suas águas no<br />

mar na foz da lagoa de Guaraíras, em Tibau do Sul.<br />

9 Celsa Fernandes de Melo. De família tradicional do Seridó. Filha do<br />

juiz de Direito Manoel José Fernandes e Maria Rosalina Fernandes de<br />

Araújo. Era prima legítima de José Augusto Bezerra de Medeiros, político<br />

influente, professor, governador do Estado. Ajudou a criar, com carinho e<br />

compreensão, todos os enteados. Foi mãe de mais seis filhos de João<br />

Felismino: Waldemar, Gisélia, Miralva, Irama, Alda e Alba. Por um desses<br />

caprichos do destino, também pôs fim à vida, em 06 de novembro de<br />

1957, em Natal<br />

10 Felinto Elísio de Oliveira Azevedo. Coronel da Guarda Nacional,<br />

governador interino da Província duas vezes, deputado provincial e estadual<br />

por nove legislaturas, chefe político em Jardim do Seridó.<br />

11 Colégio Diocesano Santo Antônio. Suas instalações físicas, inclusive<br />

o internato, situavam-se no outão da igreja do mesmo nome. Anos depois<br />

transformou-se no atual Colégio Marista.<br />

12 Primeiro-oficial da Secretaria-Geral do Estado. Equivaleria, hoje, à Chefia<br />

da Casa Civil.<br />

13 Imprensa <strong>In</strong>dustrial, Recife, 1923.<br />

14 Serenata do pescador. A famosa “Praieira”, verdadeiro hino na voz do<br />

povo. Poema publicado no segundo livro do poeta, Jardim tropical, em<br />

1923. Em nota de rodapé naquele livro, modestamente ressaltando o<br />

“pouco valor dos versos”, reconhecia a “ilusão efêmera da popularidade”<br />

que as estrofes lhe tinham proporcionado. Por decreto-lei do Município<br />

de Natal, de 1971, tornou-se “A Canção Tradicional da Cidade”.<br />

15 Clarice de Sá Leitão. À época, deveria ter vinte e poucos anos. Filha de<br />

João de Sá Leitão, comerciante e agricultor, e Rosa Wanderley de Sá Leitão.<br />

Casou em 1945 com Francisco Esmeraldino Soares Filgueira.


16 Esmeraldo Homem de Siqueira. Amigo fiel – de todas as horas –,<br />

íntimo, fraterno, de OM. Médico, professor, poeta, jornalista, escritor,<br />

ensaísta, crítico, profundo conhecedor da literatura francesa. Veríssimo de<br />

Melo dizia-no a “expressão mais alta da nossa vida literária e científica”.<br />

Nasceu em Pedro Velho/RN (antiga Vila Nova) em 16.08.1908, faleceu<br />

em Natal/RN, em 20.06.1987.<br />

17 Revista literária que surgiu em Natal no final dos anos 1940. Circulou por<br />

dez anos.<br />

18 Alberto Frederico de Albuquerque Maranhão (Macaíba/RN,<br />

02.10.1872-Angra dos Reis/RJ, 01.02.1944). Foi governador do Rio<br />

Grande do Norte de 1900 a 1904. Irmão de Pedro Velho e Augusto Severo,<br />

deputado federal, procurador-geral. Aposentou-se no cargo de inspetor<br />

do <strong>In</strong>stituto Nacional do Sal. OM, coincidentemente, anos depois,<br />

ocuparia as mesmas funções, nelas também se aposentando, por invalidez.<br />

19 Antônio Pinto de Medeiros (Manaus/AM, 09.11.1919-Rio de Janeiro/RJ,<br />

09.02.1970). Poeta, jornalista, professor, advogado, crítico literário,<br />

conferencista. Renunciou à “imortalidade” da Academia Norte-<br />

Rio-Grandense de Letras. Publicou Um poeta à-toa (Imprensa Oficial –<br />

RN) e Rio do vento (mesma editora).<br />

20 Aderbal de França (Natal/RN, 05.01.1895-Natal/RN, 25.05.1974).<br />

Jornalista, fundou a revista Cigarra e o vespertino Diário de Natal. Estudou<br />

medicina na Bahia e no Rio de Janeiro, não concluindo o curso. Foi funcionário<br />

do IBGE. “<strong>In</strong>ventou” a crônica social no RN, sob o pseudônimo de<br />

“Danilo”. Estilo leve, escorreito, elegante. Amigo pessoal, contemporâneo<br />

de OM. Um dos fundadores da ANRL.<br />

21 Albergue Noturno. <strong>In</strong>stituição espírita natalense de caridade, em pleno<br />

funcionamento, até hoje. OM, dos mil exemplares editados em papel<br />

jornal, entregou setecentos à entidade. Dos trezentos que lhe restaram,<br />

nunca vendeu, negociou, mercantilizou, sequer uma única unidade. Ofereceu<br />

todos os exemplares aos amigos e parentes. <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> e<br />

também os seus herdeiros nunca lucraram financeiramente com nada,<br />

absolutamente nada, da sua obra.<br />

22 Mauro Ramos da Mota e Albuquerque ((Recife/PE, 16.08.1911-<br />

Recife/PE 22.11.1984). Jornalista, professor, poeta, cronista, ensaísta e<br />

memorialista. Publicou na imprensa pernambucana entrevistas com OM,<br />

a quem se afeiçoara. Foi membro da Academia Brasileira de Letras.<br />

169


170<br />

23 Manuel Bandeira (Recife/PE, 1886-Rio de Janeiro/RJ, 1968). É considerado<br />

um dos maiores poetas brasileiros, autor de ensaios, crônicas e<br />

memórias, tradutor e organizador de antologias.


A<br />

Café Filho 1<br />

protótipo nacional da energia, da perseverança e da sensibilidade<br />

da alma nortista;<br />

Sílvio Piza Pedroza 2<br />

o que, quando Prefeito da Cidade do Natal, reergueu, do pó de<br />

cimento e granito de decênios de administrativismo tacanho e<br />

utilitarista, a espiritual legenda meceniana de Alberto Maranhão,<br />

decidindo, em decretos publicados no órgão oficial do Estado,<br />

que um poema não vale menos que um paralelepípedo, no progresso<br />

do Município;<br />

Raul de Góes; 3<br />

Jessé Fernandes Café; 4<br />

J. A . Seabra de Melo; 5<br />

José Jannini ( Jin Kiang); 6<br />

Aprígio Câmara 7<br />

bandeirante nordestino, vitorioso na selva humana de São Paulo;<br />

José Bezerra Gomes 8 e Antídio de Azevedo 9<br />

seridoenses tipo “fibra longa 10 .


... Aqueles desconhecidos singulares, que ali estão – abandonados<br />

– há três séculos.<br />

Euclides da Cunha11 Os Sertões, p. 113, 11ª. edição<br />

... Neste composto indefinível – o brasileiro – encontrei alguma<br />

coisa que é estável, um ponto de resistência recordando<br />

a molécula integrante das cristalizações iniciadas. E era natural<br />

que, admitida a arrojada e animadora conjetura de que<br />

estamos destinados à integridade nacional, eu visse, naqueles<br />

rijos caboclos, o núcleo de força da nossa constituição futura,<br />

a rocha viva de nossa raça.<br />

... Entranhando-nos na terra, vemos os primeiros grupos fixos<br />

– o caipira, no sul, e o tabaréu, ao norte – onde já se tornam<br />

raros o branco, o negro e o índio puros.<br />

A mestiçagem generalizada produz, entretanto, ainda, todas as<br />

variedades díspares do cruzamento. Mas, à medida que prosseguimos,<br />

essas últimas se atenuam.<br />

Vai-se notando maior uniformidade de caracteres físicos e morais.<br />

Por fim, a rocha viva, o sertanejo.<br />

Os Sertões, Notas, p. 617-618, ed. cit.


Poeta do sul, vem ver minha terra do norte,<br />

pobre terra sem nome, obscura e comburida.<br />

Quanto mais minha gente é brava e é forte,<br />

mais dura e áspera é a luta pela vida.<br />

Olha este homem vencido, humilde e pequenino,<br />

maltrapilho, a bater a enxada na labuta.<br />

Vem apertar-lhe a mão: é o caboclo nordestino,<br />

um cordeiro na paz, um centauro na luta!<br />

Olegário Mariano12


176<br />

Notas<br />

1 João Café Filho (Natal/RN, 3.02.1889- Rio de Janeiro/RJ,<br />

20.02.1970). Advogado provisionado, sindicalista, jornalista; deputado<br />

federal, tribuno. Chegou à Presidência da República. Esqueceu os amigos.<br />

OM, embora decepcionado com o ex-companheiro de imprensa e de<br />

lutas políticas, conservou a dedicatória.<br />

2 Sílvio Piza Pedroza (Natal/RN, 12.03.1918- Rio de Janeiro/RJ,<br />

19.08.1980. Prefeito de Natal (1947-1951), governador do Estado (1951-<br />

1954). Admirador de OM, fazia – em companhia de Luis da Câmara<br />

Cascudo, Jayme Wanderley, Evaristo de Souza e outros – serenatas à porta<br />

do poeta, cantando a “Praieira”. Foi quem autorizou a publicação, pelo<br />

Departamento de Imprensa Estadual, da primeira edição deste livro, em<br />

1952.<br />

3 Raul de Góes (Natal/RN, 23.11.1907-Rio de Janeiro/RJ, 06.09.1944).<br />

<strong>In</strong>telectual paraibano, historiador, jornalista, secretário de estado na<br />

Paraíba, deputado federal. Amigo de Getúlio Vargas, exerceu altos cargos<br />

na administração pública do então Distrito Federal e do país. Foi presidente<br />

do <strong>In</strong>stituto Nacional do Sal.<br />

4 Jessé Fernandes Café. Natalense, funcionário público, irmão de João<br />

Café Filho. Foi quem amparou OM no Rio de Janeiro, em 1949. O poeta<br />

tinha sido convocado pelo futuro presidente, então candidato a vice de<br />

Getúlio Vargas, para assumir um cargo federal, tendo, inclusive, pedido<br />

demissão das funções que ocupava na Base Aérea de Natal, indo, por<br />

sugestão de Café, residir no então Distrito Federal. No entanto, o político<br />

falhou redondamente com o amigo. Jessé Café, a pedido de Letícia<br />

Cerqueira, sua sogra, amiga e comadre de OM, nomeou-o, interinamente,<br />

escriturário do <strong>In</strong>stituto Nacional do Sal, de onde era superintendente. O<br />

poeta, posteriormente, faria concurso público para o cargo de inspetor do<br />

citado órgão, efetivando-se no serviço público.<br />

5 João Augusto Seabra de Melo (Martins/RN, 22.06.1916-Brasília/<br />

DF, ?). Poeta, advogado, jornalista e funcionário público federal, colega de<br />

OM no <strong>In</strong>stituto Nacional do Sal (no Rio de Janeiro). Quando jovem,<br />

trabalhou na redação do jornal A República, em Natal. Publicou, no Rio,<br />

um livro de versos: Dentro da noite. Alto funcionário em Brasília, colaborou<br />

efetivamente para a criação da ESAM, atual UFERSA (Universidade


Federal da Região do Semi-Árido), sediada em Mossoró. É considerado<br />

um dos patronos do estabelecimento.<br />

6 José Jannini (Natal/RN, 18.05.1902-Rio de Janeiro/RJ, 28.07.1974).<br />

Poeta natalense, de família italiana, radicado no Rio de Janeiro no final da<br />

década de 1920. Radialista, compositor, jornalista e cantor, amigo de infância<br />

de OM. “Jin Kiang” era o pseudônimo com que assinava haicais<br />

(poemas japoneses curtos, compostos por três versos, o primeiro e o<br />

terceiro com sete sílabas e o segundo com cinco sílabas, sem rimas. Sua<br />

popularidade no Japão ocorreu no século XVII). Em 1926, na companhia<br />

de Damasceno Bezerra e OM, participou de inconseqüente noitada boêmia<br />

que marcaria, por toda a vida, o poeta da “Praieira”, fazendo-o perder<br />

o importante cargo de primeiro oficial da Secretaria-Geral do Governo<br />

Estadual, à época do titular José Augusto Bezerra de Medeiros. Escrevendo<br />

especificamente sobre Damasceno Bezerra, o subscritor destas notas<br />

publicou, na imprensa e na mídia eletrônica, crônica sobre o assunto:<br />

“UM IRMÃO DE QUEVEDO E DE BOCAGE. Conheci Damasceno<br />

Bezerra pouco antes da sua morte – eu, menino de calças curtas –, aí pela<br />

metade da década de 1940. Morava na Praia do Meio, quando ainda não<br />

existia a Avenida Circular, hoje Sílvio Pedroza, que a construiu (ou Café<br />

Filho?). Casas de alvenaria, ‘de veraneio’, somente aquelas, poucas, da<br />

Ponta do Morcego! Nada, ainda, de Praia dos Artistas. Fui, de bonde, com<br />

papai, descendo ali, no início da ladeira, hoje dita “do Sol”. Tuberculoso, as<br />

pernas feridentas, alto, magérrimo, cabeleira farta despenteada, enfiado<br />

num velho e roto calção de banho, cheio de cana, recebeu-nos com alegria<br />

na casinha de taipa modestíssima, de pescador, o chão batido. Vi quando<br />

meu pai, com discrição, quase chorando, passou-lhe, ainda na soleira<br />

da desconjuntada portinha, alguns trocados – que deviam ser muito poucos,<br />

‘para a feira’. Em 1926 (Cláudio Galvão sabe precisar), ele, <strong>Othoniel</strong><br />

<strong>Menezes</strong> e José Jannini, numa carraspana terrível, vieram do Alecrim ao<br />

Beco da Lama, para a saideira, atirando na iluminação pública – escândalo<br />

monumental! Papai perdeu o emprego supimpa de primeiro oficial da<br />

Secretaria do Governo (de José Augusto); ele, Damasceno, o de redator<br />

do A República; Jannini, a família deportou para o Rio, onde se deu bem.<br />

Era, o infeliz poeta, conversador admirável, pilhérico, fescenino! Nunca<br />

conseguiu dinheiro nem apoio oficial para publicar um livro de belos<br />

versos parnasianos, prefaciado por <strong>Othoniel</strong> e de nome belíssimo: Dias de<br />

sol! Antônio Damasceno Bezerra foi jornalista e poeta. Nasceu em Natal<br />

177


178<br />

em 22 de setembro de 1902, morrendo em 14 de setembro de 1947.<br />

Trabalhou nos jornais A República e Diário de Natal, além da revista Cigarra.”<br />

7 Aprígio Soares da Câmara. Educador, jornalista, nascido em Santana<br />

do Matos/RN. Foi professor em Jardim do Seridó, em Mossoró e Natal.<br />

Bacharel formado na Faculdade de Direito do Recife, em 1924, mudouse,<br />

mais tarde, para São Paulo, obtendo largo sucesso como advogado de<br />

grandes empresas. Faleceu, na capital paulista, em 06 de fevereiro de<br />

1967.<br />

8 José Bezerra Gomes. Romancista, ensaísta, advogado e poeta (Currais<br />

Novos/RN, 09.03.1911-Natal/RN, 26.05.1982). Escreveu sobre<br />

Ferreira Itajubá – Retrato de Ferreira Itajubá, 1944.<br />

9 Antônio Antídio de Azevedo (Jardim do Seridó/RN, 13.06.1887-<br />

Natal/RN 05.11.1975). Poeta de Zelações; tabelião em Natal. Prefeito de<br />

sua terra. De tão honesto e cioso, renunciou ao mandato às vésperas de<br />

receber a “cota federal” dos municípios. Um dos seus filhos é o professor<br />

emérito da UFRN, Max Cunha de Azevedo.<br />

10 Referência à excelência do algodão do Seridó, dito “mocó” (Gossypium<br />

hirsutum L.), o “ouro branco” da região, em tempos idos.<br />

11 Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha. Engenheiro, jornalista, professor,<br />

ensaísta, historiador, sociólogo e poeta, nasceu em Cantagalo/RJ,<br />

em 20 de janeiro de 1866, e faleceu, assassinado, no Rio de Janeiro/RJ,<br />

em 15 de agosto de 1909.<br />

12 Olegário Mariano Carneiro da Cunha. Poeta, político e diplomata.<br />

Nasceu em Recife/PE, em 24 de março de 1889 e faleceu no Rio de<br />

Janeiro/ RJ, em 28 de novembro de 1958. Foi da Academia Brasileira de<br />

Letras. Terceiro dos “príncipes” dos poetas brasileiros. Classificou <strong>Othoniel</strong><br />

<strong>Menezes</strong> como “um dos poetas máximos do Brasil”.


Canto 1<br />

Sertão de espinho e de flor


A terra... fere-a o sol e ela absorve-lhe os raios, e multiplicaos,<br />

e reflete-os, e retrata-os, num reverberar ofuscante; pelo<br />

topo dos cerros, pelos esbarrancados das encostas, incendeiam-se<br />

as acendalhas1 da sílica fraturada, rebrilhantes, numa trama<br />

vibrátil de centelhas; a atmosfera junto ao chão vibra num ondular<br />

vivíssimo de bocas de fornalha...<br />

Os Sertões, p. 28, 11ª. edição<br />

O sertanejo, assoberbado de reveses, dobra-se, afinal.<br />

Passa certo dia, à sua porta, a primeira turma de “retirantes”.<br />

Vê-a, assombrado, atravessar o terreiro, miseranda,<br />

desaparecendo adiante, numa nuvem de poeira, na curva do<br />

caminho... No outro dia, outra. E outras. É o sertão que se<br />

esvazia. Não resiste mais. Amatula-se num daqueles bandos,<br />

que lá se vão caminho em fora, debruando de ossadas as veredas,<br />

e lá se vai ele no êxodo penosíssimo para a costa, para as serras<br />

distantes, para quaisquer lugares onde o não mate o elemento<br />

primordial da vida.<br />

Os Sertões, p.188, 11ª. edição


Sertão selvagem, de Euclides!<br />

prosaicamente, progrides<br />

– mas, nada te corrompeu!<br />

Paraíso de minha infância, 2<br />

ingênuo como uma estância<br />

de Casimiro de Abreu!<br />

Touceira de xiquexique, 3<br />

cercadão de pau-a-pique,<br />

dez léguas de tombador... 4<br />

Mar de panasco 5 dourado,<br />

bogari, cravo encarnado<br />

– SERTÃO DE ESPINHO E DE FLOR!<br />

Quinzenas de noite escura,<br />

lambendo uma rapadura, 6<br />

de tocaia a algum Dom-João...<br />

Pudor. Constância. Coragem.<br />

Um vendaval, na ramagem:<br />

– “entregou-se”, o barbatão! 7<br />

Malacachetas, chispando.<br />

Da ipueira, de quando a quando,<br />

sobe o alarma dos tetéus. 8<br />

Mandacarus 9 torturados,<br />

com os braços ensangüentados,<br />

imprecam socorro aos céus...<br />

183


184<br />

Manhãs – de Alhambras 10 ferventes.<br />

Tardes câmaras-ardentes<br />

para a eutanásia do sol...<br />

Mar de cinza, monte a monte.<br />

Uma torre, 11 no horizonte,<br />

rutila, como um farol.<br />

A noite – que campo vasto!<br />

milhões de ovelhas no pasto,<br />

essas miunças de lis,<br />

que o matuto pastoreia,<br />

banzando 12 – as costas na areia;<br />

na rede – as pernas em “X”!<br />

Estouros das vaquejadas!<br />

– Tróias de espinho, esmagadas<br />

à flor dos serrotes nus...<br />

Árvores hirtas, enfermas.<br />

Pelas caatingas (tão ermas!),<br />

piam tímidos nambus.<br />

Meio dia. Refugiado<br />

do mar de chamas, o gado,<br />

numa “ilha” verde remói.<br />

Súbito, em notas extremas,<br />

rompe o tam-tam das seriemas...<br />

Como é triste! Como dói!<br />

As favelas, 13 esqueléticas,<br />

negras, sinistras – hamléticas,<br />

erguem os dedos, a fiar


a incandescente cortina<br />

de vidrilho e tremulina,<br />

que o sol desenrola no ar.<br />

Porque o mato aqui não medra,<br />

fez-se esta cerca – de pedra:<br />

sobe, desce, de viés<br />

– jibóia imensa, entre as chamas,<br />

lerda, a vibrar as escamas,<br />

coleando, em longos anéis...<br />

Ermo trágico, infinito. 14<br />

Fauna convulsa – em granito,<br />

monstros de cisma e de dor;<br />

uns, de rojo; outros, nos ombros,<br />

rolando lavas e escombros<br />

das fornalhas do equador...<br />

Prometeus, rugindo aos ventos;<br />

Atlas exaustos, sedentos;<br />

cavernas de Ali-Babá...<br />

Catas de Ofir, 15 soterradas;<br />

Pompéias desmoronadas,<br />

e Vales de Josafá. 16<br />

O Cabeço Verde estira<br />

as flechas de macambira,<br />

o cocar de catolé.<br />

Coivara, à tarde, no aceiro:<br />

faz rezas, o feiticeiro;<br />

bebe fumaça, o pajé...<br />

185


186<br />

Esta serra viu batismo:<br />

abre os braços, sobre o abismo,<br />

serenamente, uma cruz.<br />

Mil voltas, no itinerário,<br />

para atingir-se o calvário.<br />

– Foi mais fácil, a Jesus...<br />

Éden, que o sol incendeia!<br />

Se a nuvem te regateia<br />

água, por que não n’a tens<br />

dos homens que, se te esquecem<br />

dentro do fogo, aparecem<br />

para colher-te os vinténs?<br />

O estrangeiro te cobiça...<br />

Far-lhe-emos ouvir a “missa”<br />

que já ouviu o holandês...<br />

Teus penhascos alvadios<br />

são Guararapes bravios<br />

onde um fuzil vale três!<br />

***<br />

A cauã 17 chora, distante.<br />

Um Chevrolet, 18 coruscante, 19<br />

subiu a serra (que paz!).<br />

O ar vibra limalha de ouro...<br />

No angelim do bebedouro,<br />

gorjeiam urumarás.<br />

Rola 20 de azougue do diabo!<br />

– dois olhos de fogo, ao rabo,


e dois na tromba, a enrolar<br />

centos, milhares de léguas,<br />

que volta, depois, sem tréguas,<br />

roncando, a desenrolar!<br />

***<br />

Um cruzeiro. Nô Varela,<br />

correndo, caiu da sela,<br />

junto ao combro 21 do paul.<br />

Dá-lhe pedras, toda gente; 22<br />

a jitirana, somente,<br />

a esmola – da flor azul...<br />

Outra cruz. Maria Rosa<br />

ia fugindo com um prosa<br />

– o pai atirou nos dois! 23<br />

O canto é mal-assombrado:<br />

à meia-noite, o noivado<br />

passa... e um enterro, depois...<br />

Aqui, é o Corgo da Fome.<br />

Não achara, o Dante, 24 um nome<br />

mais negro, para lhe impor.<br />

Toda a família (que importa<br />

o nome?) prostrou-se morta<br />

no areal abrasador...<br />

Eram quatorze esqueletos,<br />

zumbis errantes – gravetos –,<br />

loucos, necrófagos, nus,<br />

187


188<br />

disputando, pela estrada,<br />

a carniça, arrebatada<br />

à festa dos urubus...<br />

Desde as três horas, Seu Zimba<br />

cava e a droga da cacimba<br />

nem ao menos marejou. 25<br />

Quem bebe, é a pedra, a malvada,<br />

que nem vaca jejuada,<br />

o suor que ele suou...<br />

No barro vermelho, a um lado<br />

da serra, o extinto roçado<br />

lembra hedionda cicatriz...<br />

Dardeja o sol, na tapera.<br />

Quem sabe onde, dantes, era<br />

o sítio Volta Feliz?<br />

Fugir da fome e da sede,<br />

no ombro os filhinhos e a rede<br />

e, adiante, o cão e a mulher...<br />

(Ai! que pena da casinha!)<br />

..........................................<br />

– Um punhado de farinha 26<br />

faz um rei, do que o tiver!<br />

***<br />

Dois, três anos de calvário,<br />

Sertão! Teu rude fadário<br />

nem no Evangelho tem rol!<br />

Cristo teve uma agonia:


– tu, morres é todo dia<br />

cravado na Cruz do sol...<br />

***<br />

Na cinza eólia 27 da tarde,<br />

a serra o perfil encarde.<br />

Erram longínquos solaus. 28<br />

O mofumbo das barrancas<br />

abriu as grinaldas brancas.<br />

Voejam os bacuraus. 29<br />

Vésper 30 , trêmula, fulgindo,<br />

é um bogari alvo e lindo,<br />

preso ao meio do bandó 31<br />

da Saudade, moça airosa,<br />

com um vestido cor-de-rosa<br />

de algodão do Seridó...<br />

O aboio ecoa, 32 magoado.<br />

Vagaroso, torna o gado,<br />

na meia-luz vesperal.<br />

Alta, a craibeira florida<br />

esfuma 33 a copa, estendida<br />

do oitão do rancho ao curral.<br />

O pau-d’arqueiro amarelo<br />

é um sol de flores – tão belo,<br />

que, até a maracanã,<br />

que tão alto ia passando,<br />

desceu, a gritar, cuidando<br />

que era ainda de manhã...<br />

189


190<br />

Pau-d’arco roxo, caído,<br />

– morrendo – mas, tão florido,<br />

és um quadro de Paixão!<br />

Pudesse, eu, por esses montes,<br />

cantando, com Martins Fontes, 34<br />

carregar-te em procissão!<br />

Roda de carro ronceiro<br />

que sonolento carreiro<br />

deixou vir rodando, ao léu,<br />

rompe a lua, das cumeadas...<br />

– as estrelas, assustadas,<br />

empalidecem, no céu.<br />

Jurema, 35 arbusto sagrado!<br />

Filtro do amor, do passado,<br />

hoje, dás lenha a fogão...<br />

Em Novembro o teu perfume<br />

a alma da terra resume<br />

– és o incenso do Sertão!<br />

É assim que te sintetiza,<br />

a que foi Santa e Poetisa,<br />

– Auta – 36 vendo, no fulgor<br />

da lua, a subir na treva,<br />

o incensório 37 que te eleva<br />

aos pés de Nosso Senhor!


Notas ao Canto 1<br />

Paraíso de minha infância: “Lá, respira-se força e saúde. A alma,<br />

aliviada dos atavios enervantes da civilização, sente-se mais sua, mais<br />

próxima da natureza e das fontes eternas da vida. Há na luz, no ar,<br />

no chão, mais energia vital que em outra parte; também tudo é<br />

forte no sertão, o clima, o homem, a terra...” (Domingos Barros, 38<br />

transcrito em Leituras Potiguares, p. 55, 1ª. edição, Calvino Filho, 1933).<br />

Uma trova anônima:<br />

São João manheceu cheirando,<br />

nas fulô dos mororó.<br />

Bicho e cristão é contente,<br />

da cabeça ao mocotó!<br />

... Vivi neste meio. E deliciosamente. Cortei<br />

macambira e xiquexique para o gado, nas secas.<br />

Banhei-me nos córregos no inverno. Esperei a “cabeça<br />

do rio” nas enchentes. Desengalhei tarrafas nas<br />

pescarias dos poços. Dei “lanços” nos açudes. Cacei<br />

mocós e preás nos serrotes. Subi nas “esperas”de emas<br />

sobre os juazeiros. Persegui tatus, de noite, com<br />

fachos, e cachorros amestrados. Matei ribaçã a pau e<br />

colhi-as nas aratacas. Ouvi o canto ululado 39 da “mãe<br />

da lua”, imóvel nas oiticicas. Ouvi histórias de<br />

Trancoso, 40 de cangaceiros, gente rica, guerras de<br />

família, heroísmos ignorados, ferocidades imprevistas<br />

e completas. Também recordaram vidas de<br />

missionários, de santos canonizados pelo povo,<br />

superstições, adivinhanças de chuvas e bom tempo,<br />

rezas fortes para ser feliz em tudo: para não cair de<br />

cavalo, para ficar-se invisível... (Câmara<br />

Cascudo,Vaqueiros e cantadores, p.6-7, 1a. Edição)<br />

191


192<br />

Xiquexique: Cactus peruvianus. Descreve-o Euclides, à página 43<br />

de Os Sertões, ed. cit: “São variantes de proporções inferiores.<br />

Fracionando-se em ramos fervilhantes de espinhos, recursos e rasteiros,<br />

recamados de flores alvíssimas. Procuram os lugares ásperos<br />

e ardentes. São os vegetais clássicos dos areais queimosos. Aprazem-se<br />

no leito abrasante das lajes graníticas feridas pelos sóis”.<br />

Vegeta, abundantemente, nos tabuleiros e altos pedregosos do<br />

sertão, onde é considerado ótima forragem e tem constituído, até<br />

agora, no decorrer de todo o ciclo pastoril do Nordeste, salvação<br />

verdadeiramente providencial para os rebanhos. E para o próprio<br />

homem que, nas épocas de grandes misérias, devora-lhe o miolo<br />

mucilaginoso e indigesto. (Vejam-se as notas ao Canto 16, no verbete<br />

– “O xiquexique é o maná”)<br />

Tombador: Alto, cômoro pedregoso, contraforte serrano.<br />

Panasco: Pastinasca sylvestris, gramínea. Escreve Tavares de Lira, 41<br />

na sua excelente Corografia do Rio Grande do Norte, página 69:<br />

Nessa região, excepcional para a indústria pastoril,<br />

se encontram as melhores forragens do Rio Grande<br />

do Norte, especialmente o capim panasco, de um<br />

extraordinário poder nutritivo, e que, maduro e<br />

sedimentado, o sertanejo considera, em peso igual,<br />

mais nutritivo que o milho. Nasce, espontaneamente,<br />

com prodigiosa abundância, logo após as primeiras<br />

chuvas. Em junho, está completamente maduro<br />

oferecendo aos viajantes o delicioso espetáculo de<br />

extensíssima preamar de seda e ouro, ondulando ao<br />

vento, através de dilatados plainos dos tabuleiros e<br />

das encostas dos ‘tombadores’, cuja nudeza áspera<br />

reveste de musselina jalde, tapizando com uma paina<br />

móbil e fulgurante a imensa caatinga acesa no sol<br />

[...].


Na opinião de muitos fazendeiros seridoenses, consultados pelo<br />

autor dessas Notas, o capim “milha”, também abundante nos pastos<br />

locais, é muito superior ao panasco.<br />

Lamber a rapadura: Aguardar pacientemente a oportunidade.<br />

Esperar o inimigo, na tocaia, “dormindo na pontaria”. Tornou-se<br />

proverbial, a expressão apoiada na reconhecida resistência, na<br />

pertinácia e frugalidade do matuto, capaz de, munido apenas de<br />

alguns punhados de farinha de mandioca e uma rapadura, esperar,<br />

durante dias, o momento azado ao desforço, em lugar ermo, especialmente<br />

se a questão envolve a honra de uma figura feminina<br />

da família do ofendido.<br />

Uma quintilha, de Tito de Barros, poeta popular alagoano, citado<br />

por Leonardo Mota, à página 203 do seu famoso livro, No<br />

tempo de Lampião (1ª. edição, Rio de Janeiro, 1920):<br />

Quem espera, desespera...<br />

Mas, em caso de vingança,<br />

mesmo perdida a esperança,<br />

parece que a gente espera,<br />

porque ódio velho não cansa...<br />

De tocaia a algum Dom-João: O sertanejo usa da maior violência<br />

concebível, quando se faz necessário, a seu juízo, desafrontar<br />

o pundonor da casa. Tem sido este, em grande parte, o móvel da<br />

irrupção do cangaceirismo no Nordeste. O escritor paraibano<br />

Ademar Vidal 42 traçou, a propósito do fenômeno, fascinante estudo.<br />

“O homem de brio é cangaceiro”, (Diário de Pernambuco,<br />

21.09.1941), tema que ampliou, parece-nos, em um dos seus últimos<br />

livros, Terra de homens, que ao autor destas Notas não foi<br />

dado ler. 43 Em inúmeros casos – desrespeito ao pudor de u’a<br />

mulher, e ainda que seja, ela, uma simples “cria” da família; um<br />

insulto grave à pessoa da parentela; maus tratos a uma rês apanha-<br />

193


194<br />

da a devastar a vazante ou o roçado, etc. – a desforra tem assumido<br />

caráter da mais sinistra comicidade, e isso como fito deliberado<br />

de agravar, o mais duramente possível, o moral da vítima da<br />

sanção draconiana. Assim é que, aos sedutores, namoradores e<br />

gabolas, preferentemente ao castigo pelo assassínio ou pela<br />

emasculação (caveant cônsules! 44 ), se aplica o clister 45 de pimenta<br />

máxime se o ofensor é de baixa categoria social. A “dose” usual e,<br />

mesmo, o recipiente técnico empregado no ato do “benefício”, é<br />

a garrafa-de-conta, cheia, até o gargalo, de pimenta malagueta, em<br />

infusão de cachaça ou vinagre. O atrevido é posto “de ladeira”,<br />

numa cerca, num lajedo qualquer; dois cabras, ao lado, de<br />

garruchas aperradas ou com as “parnaíbas” nuas, brilhando ao sol.<br />

E o desventurado “fiota” tem de “engolir”, sem reclamação que lhe<br />

sirva, o infernal chá-de-bico. Safando-se das mãos dos algozes, há<br />

de largar-se em busca da cacimba ou do açude mais próximo onde,<br />

num banho de tronco de três dias, fica a refrescar-se, e a matutar<br />

nas conseqüências do desaforo a que se arriscou...<br />

Uma sextilha, anônima:<br />

Viram Juju-Cocaína<br />

de semicúpio, na tina<br />

do banheiro da pensão.<br />

Disse uma léria a Mileta;<br />

o pai soube: a malagueta<br />

desagravou o sertão...<br />

Barbatão: Rês criada é solta, desgarrada do rebanho, tornada<br />

selvagem, e que não foi “beneficiada” pelo dono. “Beneficiar” é<br />

castrar, “assinar” ou ferrar. O “sinal” é feito à faca e, com o “ferro”<br />

ou “marca” (impresso a fogo, na anca, na espádua, na parte superior<br />

da perna, no pescoço, e até em partes laterais do focinho),<br />

constitui a convenção clássica e universal de reconhecimento do<br />

proprietário da rês.


O primeiro dono de um animal ferra-o na coxa. Os<br />

que vão comprando ou adquirindo de qualquer sorte,<br />

vão ferrando para cima. O último ferro é o que<br />

regula. Numa coxa vai o ferro da fazenda; na outra, o<br />

da freguesia. Os matutos têm um conhecimento<br />

profundo dessas marcas de gado. São elas o assunto<br />

predileto de suas palestras; e, enquanto conversam,<br />

desenham-nas no chão com um graveto ou com a<br />

ponta fina da parnaíba 46 afiada. Distinguem-nas ao<br />

longe. Jamais se enganam. Conhecem os ferros da<br />

ribeira toda de cor e salteado. E, quando aparece um<br />

animal de marca desconhecida, logo a riscam na porta<br />

da casa ou nos troncos insulados da várzea, para<br />

roteiro aos que procuram gados sumidos de fazendas<br />

distantes (Gustavo Barroso, 47 Terra de sol, p. 196, 3ª.<br />

edição).<br />

Além das marcas a fogo, dos ferros, existem os sinais, cortados<br />

à faca na orelha dos bovinos, das miunças e dos jumentos, para<br />

maior segurança. Os cavalos são isentos desse afeamento. A combinação<br />

de uns poucos desses sinais chama-se o “sinal da fazenda” e<br />

o ato de fazê-los barbaramente, à faca, “assinalar” (G. Barroso: “marcar<br />

a fogo é ‘ferrar’; e a ferra é sempre em junho – fins d’água. Se<br />

a orelha é espontada, denomina-se ponta-de-lança; se truncada,<br />

troncha ou ponta-troncha; uma entalhadura em ângulo agudo, é o<br />

canzil; em ângulo reto, o canto-de-porta; redonda, no centro da<br />

orelha, o buraco-de-bala; e leve, em semicírculo, no bordo, mossa.<br />

Com esses sinais fazem milhares de combinações; raramente se<br />

encontra uma repetida”.)<br />

Anexins 48 e Ditados:<br />

Boi sonso é que arromba curral. Mutuca é que tira<br />

boi do mato. Mulher calada é pior que boi sonso.<br />

195


196<br />

Camarada é boi de carro. Boi bravo, chegando na<br />

terra alheia, se faz de manso. Boi ronceiro bebe água<br />

suja. Boi com boi é que faz junta. Pra boi mocambeiro<br />

não tem bom vaqueiro. Boi é que sofre, o carro é<br />

que geme. Antes ser ferrão, que boi. A uns parem as<br />

vacas, a outros parem os bois. Vaqueiro novo faz o<br />

gado desconfiado. Café sem bucha, meu boi não puxa.<br />

Capricho só pra boi de carro. Não há tropa que não<br />

tenha um boi corneta. O trabalho é do maribondo,<br />

que quer fazer casa no cu do boi. Touro briga, mas é<br />

se borrando. Medroso como boi do cu branco.<br />

(Coleção Leonardo, liv. cit.)<br />

Tetéu: Quero-quero ou tero-tero, no Sul. Pernalta, da família das<br />

Caradrídeas (Belonopterus cayennensis), ribeirinha das fazendas e cidades<br />

do interior, famosa pela constante vigilância em que se conserva,<br />

dia e noite. Afirmam os matutos que o tetéu apenas cochila,<br />

colhendo um dos pés à altura do peito, e somente enquanto o pé<br />

não torna a cair, mal bate a pálpebra. Muito arisco e assustadiço, é<br />

uma espécie de “ganso do Capitólio”, sentinela perpetuamente alerta.<br />

Ao mais leve ruído em torno, todo o grupo revoa ruidosamente,<br />

garganteando o alarme. De quem sofre de insônia, ou dorme pouco,<br />

dizem que os matutos que comeu juízo de tetéu.<br />

[...] É um camarada muito suspeito. No Amazonas há<br />

um longirrostro que não dorme. É o maguari (Andréa<br />

maguari, Gimekl, ou ciconia maguari, Tenm.). Passa a noite<br />

tentando dormir, colocando o bico enorme sobre o<br />

lombo. Vai dorme-não-dorme, quando o bico escorrega<br />

o maguari desperta gritando. O nosso tetéu é assim<br />

também. Põe uma patinha no meio da outra, e<br />

fecha os olhos. A pata escapole, e o tetéu acorda, badalando<br />

uma guizalhada de despertar menino. Mas, o que<br />

torna o tetéu pouco amistoso, é que ele, voando dos


lugares molhados para os secos, leva agouro na certa.<br />

Voando do seco para o molhado, é felicidade. Convém<br />

não esquecer (Câmara Cascudo, As aves no folclore brasileiro,<br />

Panorama, São Paulo, Ano I, n.. 7, 1936).<br />

Mandacaru: Cereus peruvianus, Mill; ou jamacaru. Cactus, de grande<br />

porte, de longas hastes cilíndricas, embutidas de espinhos finos<br />

e curtos. Desde as cercanias de Macaíba (30 quilômetros ao sul da<br />

capital, até o sertão, avulta como elemento decorativo, quase<br />

obsidente, de tão numeroso, na bravia ornamentação nativa da<br />

caatinga. Euclides, numa de suas páginas ciclópicas em Os Sertões<br />

(página 43), assim os descreve:<br />

“Atingindo notável altura, raro aparecendo em grupos, assomando<br />

isolados acima da vegetação caótica, são novidade atraente.<br />

Aprumam-se tesos, triunfalmente, enquanto por toda a banda<br />

a flora se deprime. O olhar perturbado pelo acomodar-se à contemplação<br />

penosa dos acervos de ramalhos retorcidos, descansa e<br />

retifica-se percorrendo os seus caules direitos e corretos. No fim<br />

de algum tempo, porém, são uma obsessão acabrunhadora. Gravam<br />

em tudo monotonia inaturável, sucedendo-se constantes,<br />

uniformes, idênticos todos, todos do mesmo porte, igualmente<br />

afastados, distribuídos com uma ordem singular pelo deserto”.<br />

Melhor que os cardeiros (variedade que em todo o sertão, já<br />

de há muito, rareia, estupidamente sacrificada nas coivaras, excelente<br />

forragem, que é, durante as grandes estiagens). Merece, o<br />

mandacaru, a famosa imagem euclidiana na qual são aqueles comparados<br />

a enormes candelabros, acesos nas infindas chapadas do<br />

sertão baiano.<br />

O mandacaru dá um fruto pequeno, do tamanho e formato<br />

aproximados dos da goiaba, de um roxo ou escarlate brilhante,<br />

que é também a cor da polpa, muito doce e nutritiva. As hastes,<br />

quando secas e, então, desprovidas dos espinhos produzem chama<br />

197


198<br />

muito clara e vivaz, e eram utilizadas no sertão, como fachos, na<br />

procura de animais tresmalhados, caçadas noturnas a avoetes, etc.<br />

Daí a denominação sob a qual é popularmente designado, facheiro,<br />

em toda a vasta e desolada região onde preferentemente vegeta,<br />

(filho da pedra e do areal). Fornece boa madeira de construção<br />

(ripas), comparável à faia européia.<br />

Torre: Grande nuvem espessa, cúmulos ou nimbo. Esclarece abalizado<br />

consultor matuto, de Flores do Seridó (Florânia), o Sr. Félix<br />

Carneiro: 49 “Torre é o chapéu da nuvem, quando está chovendo.<br />

Rabo-de-galo, ou leque, são nuvens compridas e estreitas (stratus),<br />

sinal de inverno. Escamas de peixe ou sebo de rim (cirrus) são<br />

nuvens miúdas, cobrindo muito espaço”.<br />

Favela: 50 Arbusto espinhoso, espécie de urtiga gigante, cuja picada<br />

produz insuportável ardência, coceira, e tumefação da<br />

epiderme. Atinge até seis, oito metros de altura. Fica sem uma<br />

única folha, durante quase todo o ano, frondando, porém, rapidamente,<br />

aos primeiros núncios de chuva. Os acúleos, moles e cheios<br />

de líquido urente, ficam na parte inferior das folhas, nos frutos<br />

e galhos tenros. O fruto é semelhante ao do pinhão-bravo e da<br />

mamona; ouriçado de acúleos, perde-os com o picarão, que se<br />

contrai e larga facilmente, antes da deiscência, 51 e dá três a quatro<br />

pequeninas amêndoas, muito saborosas e nutritivas. Delas, fazem<br />

os famintos, na fase das “retiradas”, alimento de poupança de primeira<br />

ordem, devorando-as in loco, ou esmagando-as ao pilão, para<br />

extrair-lhes o suco, o leite de favela. As folhas, maduras ou secas,<br />

constituem forragem de salvação, para miunças e jumentos, que<br />

também lhe consomem gulosamente a casca, as raízes brandas e<br />

sumarentas, mau grado a fama do tingui, em que são, essas partes<br />

da planta, por muitos sertanejos consideradas. Tanto que, na safra<br />

das “avoetes” (Ver nota a esta palavra, no Canto 8), usam uma mis-


tura de fumo-do-brejo e raspas de favela, para envenenar as poças<br />

e velhas cacimbas onde se dessedentam as pombas. Estas,<br />

estabelecidas, vão caindo às centenas e, dentro de algumas horas,<br />

os caçadores (ou tinguijadores) enchem sacos, de arribações, as<br />

quais, ainda palpitantes, vão logo arrancando o papo, a fim de<br />

evitar ao consumidor a ação do veneno. (Em relação a “tingui”,<br />

veja-se este verbete, em notas ao Canto 11).<br />

“Anônimas ainda na ciência – ignoradas dos sábios, conhecidas<br />

demais pelos tabaréus – talvez um futuro gênero cauterium das<br />

leguminosas”, ao tempo de Euclides (Os Sertões, página 41) – as<br />

faveleiras se encontram, de há muito, já cientificamente classificadas,<br />

através de, pelo menos, três a quatro denominações típicas,<br />

com as respectivas variedades: Cnidosculus phytacantus Mast., Pax e<br />

Hoffman, ver, rapandus, Pohl, Muell, Arg; espécies típicas da caatinga. A<br />

variedade típica do Seridó é o Cnidoscolus vitifolius.<br />

Do reputado químico, Jaime Santa Rosa, 52 técnico do Ministério<br />

do Trabalho, e consumado escritor, mereceu a faveleira completo,<br />

interessantíssimo estudo, em monografia publicada em 1943,<br />

sob o título de “Óleo de Favela – nova riqueza da região das secas”,<br />

e na qual, sob critério rigorosamente científico e experimental,<br />

demonstra a importância ecológica da espécie, como elemento<br />

de fixação do homem ao meio geográfico, conferindo-lhe mesmo<br />

a possibilidade de, nesse aspecto, rivalizar com a carnaubeira, a<br />

oiticica, o algodão, o caroá. Assim é que – acredita Jaime Santa<br />

Rosa – convenientemente tratada, a faveleira oferece campo de<br />

fascinantes perspectivas à industrialização, rendendo óleo comestível<br />

cujas características fisiológicas e químicas se revelaram, no<br />

laboratório e no ensaio alimentar, vantajosamente capazes de concorrer<br />

com os mais afamados similares em voga na cozinha nacional.<br />

O subproduto, já também conhecido e analisado, e resultante<br />

da extração do óleo das amêndoas, é uma torta rica em proteínas<br />

199


200<br />

e fosfatos, “podendo servir como valiosa forragem para o gado, e<br />

representando mais uma fonte de receita nessa indústria”<br />

Para essa excelente, patriótica publicação, indispensável nos<br />

parece atentem, não somente aos senhores prefeitos da zona<br />

seridoense, como todos os sertanejos inteligentes e dados a iniciativas,<br />

interessados na revelação de novas fontes de riqueza e progresso<br />

de sua região, e que em torno das respectivas administrações<br />

municipais poderão suscitar um amplo, generalizado, providente<br />

movimento cooperativista, importando, de imediato, na<br />

defesa, cultura racional e aproveitamento econômico das sementes<br />

da faveleira.<br />

O endereço do Dr. Jaime Santa Rosa é rua Senador Dantas, 20,<br />

Salas 409/410, Rio de Janeiro.<br />

Ermo, trágico, infinito:<br />

[...] E as rochas espiavam pelos seus olhos de mica.<br />

Juntavam-se pedras, empilhadas nas outras, tão<br />

arrumadinhas, num milagre de equilíbrio, como tabuleiros<br />

de bugigangas. Havia pedras em cima dos<br />

cabeços negros, como penitência. Jaziam múmias de<br />

todas as cores, principalmente com laivos amarelos,<br />

como ferrugem do tempo. E muito quartzo sangrando.<br />

Contavam-se membros dispersos de um mundo<br />

que se despedaçara, na desordem dos cataclismos,<br />

jogando todas essas configurações polimórficas no<br />

mato, como uma estatuária de corpos esfacelados. E<br />

os gigantes, que baquearam na catástrofe e ficaram<br />

de bruços ou de costas, na imobilidade das quedas<br />

fatais. Alteavam-se penhascos, com chapelões, resguardados<br />

do sol. E pontas de pedra, em riste, cortavam<br />

os ventos. Outros monstros se levantavam com<br />

topetes de xiquexique e barbas de macambira. Todas<br />

as atitudes, todas as acrobacias, todos os gestos petri-


ficados na eternidade... (José Américo de Almeida, 53<br />

Coiteiros, páginas.107-108, 1ª. edição, Editora Nacional,<br />

Rio de Janeiro).<br />

POEMA DAS SERRAS<br />

Casa dos mocós... das saramantas... 54<br />

Escultura enigmática dos desertos...<br />

Só (para maior relevo das formas bruscas)<br />

Pedras que algum gigante milenário<br />

Pôs com mãos de milhões de HP misteriosos<br />

Pra contemplação dos olhos de hoje...<br />

Duas patas colossais na dianteira,<br />

O resto informe sobre outras pedras...<br />

Atitude imperfeita de cachorro<br />

Ladrando pra solidão das outras serras...<br />

(Jorge Fernandes, 55 Livro de poemas)<br />

Cauã: Ou acauã; nacauã, no Amazonas. Falconídea (Falco cachinaus<br />

ou Herpetotheres cachinaus), grande caçadora de serpentes. Nos degraus<br />

serranos, ou pousada num ramo de árvore seca da caatinga<br />

ou da serra, desfere, seu lamentoso grito, ouvido a grande distância,<br />

martelando prolongadamente a onomatopéia de que lhe adveio<br />

nome popular: acauã...acauã...acauã...<br />

O Coronel Cipriano Bezerra Galvão Santa Rosa, 56 venerando<br />

senhor da fazenda Fortaleza – um encantador, verdejante oásis,<br />

em pleno sertão de pedra e mandacaru, a três quilômetros da<br />

cidade de Acari – e a quem deve o Autor muitas e preciosas indicações<br />

para o desenvolvimento das presentes notas, assim descreve<br />

a caçada da cobra pela acauã:<br />

O processo que o casal emprega, para apanhar e<br />

matar uma cobra, é curioso. Uma cauã se apresenta<br />

diante do réptil, aproxima-se dele o mais rápido possível,<br />

com uma das asas em posição de escudo, a ca-<br />

201


202<br />

beça bem inclinada para trás. Quando a serpente atira<br />

um bote, ela o apara com um golpe da asa<br />

distendida, jogando ao mesmo tempo uma rápida<br />

unhada por baixo, visando sempre a cabeça do inimigo.<br />

Luta, luta; quando cansa, sobe para a árvore onde<br />

está de observação à companheira. Desce, esta, imediatamente,<br />

e continua o combate, empregando a<br />

mesma estratégia. Cansada por sua vez, o macho a<br />

substitui, e assim sucessivamente, até a vitória. Morta<br />

à cobra, uma das acauãs a conduz, presa nas garras<br />

terríveis, até o lugar onde estão os filhotes, celebrando<br />

ambas o triunfo, com aqueles gritos eloqüentes,<br />

que o amigo tão bem conhece.<br />

Escreve Câmara Cascudo, no ensaio sobre as aves brasileiras,<br />

anteriormente citado:<br />

É falsamente denunciada como agoureira. Muitas tribos<br />

adoravam-na, porque ela devorava as cobras que<br />

encontrava. É uma ave austera, cheia de gravidade e<br />

senso, que faz gosto vê-la. Andando devagar e compassadamente,<br />

como compete a um ente que tem<br />

direito ao culto dos homens, dá vontade de<br />

cumprimentá-la, como a um desembargador. O combate<br />

com a cobra lembra o embate do mirmilão 57<br />

com o rediário. 58 A acauã ataca e se abriga no escudo<br />

da asa estendida, até que fisga de vez a cabeça da<br />

cobra. E adeus cobra... Os Chipaias, índios do Pará,<br />

não caçam nem pescam, ouvindo-lhe o grito.<br />

Osvaldo Orico, 59 em Vocabulário de Crendices Amazônicas (Cia Ed.<br />

Nacional, 1ª. edição, 1937), anota, às páginas 19 e 21:


[...] Correm várias lendas, na Amazônia, a respeito<br />

deste curioso gavião. Diz-se que ele se apossa do espírito<br />

das mulheres, impondo-lhes que cantem, repetidamente,<br />

as três sílabas do seu nome: a-cau-ã.<br />

Em outros lugares, afirma-se que, surpreendendo um<br />

homem, ele o obriga a todos os papéis, até mesmo a<br />

chocar pedras, por via do seu canto agourento e fantástico.<br />

A vítima se compenetra e passa, então, os<br />

dias sentada em calhaus, estirando os braços no ar, à<br />

espera que dos seixos rompa a ninhada impossível...<br />

(...) O lúgubre e arrastado gemido desta ave, ecoando<br />

na mata, deflagra uma enfermidade nervosa,<br />

que se conhece pelo nome de “cantar de acauã”. O<br />

indivíduo atacado vive a repetir mecanicamente o<br />

grito soturno e melancólico. (...) Conta Barbosa<br />

Rodrigues 60 que, tendo ido um dia a Faro, visitar um<br />

amigo, ouviu o canto da acauã. Vendo o interesse que<br />

o grito lhe despertara, o amigo prontificou-se a mostrar<br />

de onde vinha, anunciando-lhe ao mesmo tempo,<br />

que a voz era de alguma mulher da vizinhança,<br />

“pegada pelo acauã”. E logo explicou que havia, por<br />

ali, a crença de que o canto do conhecido rapineiro<br />

era fatal para a mulher que o escutasse, originandose<br />

dele uma enfermidade que se caracterizava pela<br />

perda do juízo. A pessoa ficava semi-demente, e vivia,<br />

nesse estado, a repetir, sem cessar, o lúgubre<br />

murmúrio do pássaro. O naturalista, que não conhecia<br />

o fato, ficou bastante surpreso quando, em vez da<br />

ave, encontrou, numa choupana, uma cabocla, ainda<br />

moça, deitada na rede, em completa sonolência. “Arfava-lhe<br />

o peito fortemente, parecendo querer estalar,<br />

quando pronunciava, cantando, as palavras:<br />

“nacauã! nacauã!” que repetia seguidamente, terminando<br />

com uma gargalhada estridente como a do<br />

203


204<br />

pássaro. Passados alguns momentos de silêncio, recomeçava<br />

o canto. A causa desta moléstia, toda nervosa,<br />

e contagiosa, é o efeito da superstição. Aquela<br />

que vive a cantar o acauã fica certa de que lhe ameaça<br />

um infortúnio. A imaginação começa a trabalhar<br />

e acaba determinando um acesso nervoso em que a<br />

doente arremeda o pássaro.<br />

Chevrolet: É a marca de automóveis vitoriosa em todo o sertão.<br />

O primeiro automóvel chegado ao Seridó (cidade do Jardim,<br />

antiga Conceição dos Azevedo), “veio das bandas de Patos”<br />

(Paraíba), mais ou menos em 1916, segundo o idôneo testemunho<br />

de um correspondente do Autor. O primeiro seridoense a<br />

montar o “bicho”, foi o Dr. Heráclio Pires, 61 em viagem de Jardim<br />

a Parelhas – vinte e poucos quilômetros – “pela estrada de animais,<br />

no que levaram os pioneiros quase um dia”.<br />

Logo após, entusiasmado com o acontecimento, construiu o<br />

Dr. Heráclio a primeira estrada de rodagem do sertão seridoense,<br />

ligando Jardim a Pedra Lavrada, na Paraíba, a qual já estava ligada<br />

a Soledade, e esta a Campina Grande. Depois é que a <strong>In</strong>spetoria de<br />

Obras Contra as Secas 62 construiu as excelentes estradas feitas<br />

cobrindo o traçado que, primitivamente, adotara aquele benemérito<br />

e culto jardinense – ainda, graças a Deus, forte e vendendo<br />

saúde – traçado que realizou, segundo suas próprias palavras,<br />

“sem bússola e, sobretudo, sem dinheiro da Nação”. O poeta Major<br />

Vitoriano de Medeiros, 63 então segundo-tenente, e delegado<br />

do município de Jardim, dirigiu e fiscalizou, pessoalmente, a construção<br />

dessa primeira estrada de rodagem do Seridó, acompanhando,<br />

dia a dia, o trabalho de dez a doze presos de justiça recolhidos<br />

à cadeia local. Foi, no memorável empreendimento, o braço direito<br />

do dr. Heráclio Pires, a esse tempo (1918), presidente da<br />

<strong>In</strong>tendência Jardinense.


Urumará: Conirrostro (família das icterídeos), de plumagem azulescuro,<br />

quase negra, e de melodioso canto. Familiar das margens<br />

das cacimbas, vazantes e várzeas, devasta as plantações de milho,<br />

arroz, etc., arrancando das covas os grãos, mal começam a germinar.<br />

As fêmeas são de um belo azul-cinza, ou pardas.<br />

Rola: Rola-bosta, escaravelho (escarabeídeo).<br />

No sertão, o automóvel tem amigos decididos, e inimigos<br />

irredutíveis. Entre estes – de resto, em rápido declínio – razoavelmente<br />

se incluem o Zé Matajegue e alguns outros figurantes,<br />

mais ou menos notórios na acusação e na defesa, na “conversa de<br />

feira”, constante de todo o Canto 11 desse poema. Dos primeiros,<br />

como se verá, faz parte fervorosa mais de um interlocutor, nesse<br />

citado Canto, e cuja opinião se pode comparar à do herói de uma<br />

das anedotas que Leonardo Mota, 64 a propósito das vantagens da<br />

motorização, conta à página 189 do seu citado livro (No Tempo de<br />

Lampião):<br />

Como estivesse de saída para a cidade, o Dr. Monteiro<br />

de Morais, que dá uma perna ao diabo para ouvir conversas<br />

de matutos do Ceará, convidou o interessante<br />

e loquaz cliente a acompanhá-lo no Ford. Livrá-lo-ia<br />

assim do incomodo do regresso a pé, naquela soalheira<br />

de fim de junho. Em caminho, indagou qual a exata<br />

distância entre Quixadá e Quixeramobim.<br />

– O povo faz dez légua, seu dotô; mas, na pisada de um<br />

bicho veloz que nem este, não é nem légua e meia...<br />

Ao se apearem na praça da matriz, o Dr. Monteiro<br />

quis saber que tal o matuto havia achado o automóvel,<br />

gênero de locomoção pelo qual pela primeira<br />

vez se utilizava.<br />

– Então, que é que me diz do bichinho?<br />

– É a milhó das navegação, seu dotô, é a milhó das navegação...<br />

205


206<br />

Para muitos, era o automóvel “obra do Anticristo”, era mesmo<br />

uma encarnação do Maldito.<br />

Relata Câmara Cascudo, no prefácio de Vaqueiros e Cantadores, já<br />

citado: “O velho João de Holanda, de Caiana, perto de Augusto<br />

Severo, ajoelhou-se no meio da estrada e confessou, aos berros,<br />

todos os pecados, quando avistou, ao sol se pôr, o primeiro automóvel...”<br />

Respondendo a um questionário, que lhe foi proposto<br />

pelo Autor, o Sr. Manoel Bezerra de Araújo Galvão Júnior, 65 “Seu”<br />

Coquinho, um dos homens de maior lucidez e mais vasta e aclamada<br />

experiência, do Seridó, assim opina sobre o automóvel:<br />

Bom, porque tem facilitado o transporte regular das<br />

nossas matérias-primas, como o algodão, o couro, as<br />

peles, os minérios; o queijo e a carne, também, melhorando<br />

as condições de alimentação; abrindo novos<br />

caminhos às nossas riquezas, horizontes novos à circulação.<br />

Calcule este progresso, pelo que era a questão<br />

dos transportes, há vinte anos atrás. É certo que,<br />

logo que se deu o aparecimento do automóvel, os<br />

sertanejos não apreciaram; porém, hoje, quase todos<br />

o consideram elemento de grande valor.<br />

Já o Sr. Eloy de Souza 66 externa ponto de vista bem diferente,<br />

à página 32 do seu livro, Calvário das Secas (Imprensa Oficial, 1938):<br />

Quanto ao automóvel... em vez da necessidade de<br />

vulgarizar o uso desse veículo, o que há a fazer, e é<br />

preciso que se faça é impedir o seu abuso, que tanto<br />

está prejudicando a economia sertaneja. O seu número<br />

é considerável, de todas as marcas e de todos<br />

os preços, alguns dos quais de custo tão elevado que,<br />

em nosso entender, melhor fora não os vermos em<br />

velocidade vertiginosa, varando os nossos sertões<br />

adustos.


Afina por essa tecla – batida, como se vê, por um dos mais<br />

autorizados, brilhantes especialistas brasileiros em questões sociais<br />

e econômicas referentes ao sertão –, o desapoucado,<br />

veracíssimo Caetano Zacaria, pseudônimo de um dos mais legítimos<br />

expoentes da cultura, no Seridó, e que a uma consulta nossa<br />

assim se pronunciou na causa:<br />

Concordo em que civilizou o sertão. Isto aqui [referia-se<br />

a Jardim], hoje não é mais um arrabalde da<br />

Capital. O aluguel da casa, a carne, o ovo, etc... estão<br />

pelo mesmo preço corrente aí. Temos, assim, tudo<br />

que a capital tem, de ruim, e nada do que a Capital<br />

tem, de bom...De onde o êxodo da população, para<br />

a Cidade. E veja o amigo que Natal está infestada de<br />

matutos, sendo que a maioria deles finge ignorar a<br />

sua origem, e aí está bancando importância... De<br />

um modo geral, sou contra o automóvel, pois que<br />

muito apegado continuo ao século da luz; entretanto,<br />

não se pode negar que o automóvel civilizou o sertão<br />

– para os que entendem como a maioria, que se<br />

civilizar é dar pontapés em bolas, é a corrupção dos<br />

costumes, a mentira, o embuste. Eu sou daquele tempo<br />

em que um fio de cabelo da barba valia como<br />

documento...<br />

Embora possua, Caetano Zacaria, um bonito Chevrolet de luxo,<br />

no qual já fez o Autor deliciosa viagem, de Jardim a Santa Cruz –<br />

e com Zacaria ao volante...<br />

Dá-lhe pedras, toda gente...: No sertão, para quem ia de viagem,<br />

havia o dever sagrado de jogar uma pedra do caminho, ao<br />

sopé da cruz encontrada à margem, no tempo em que só se andava<br />

a cavalo. Atribui o Autor ao costume, mais que propriamente à<br />

superstição – que, sabe-se, preenche importantíssimo papel na<br />

207


208<br />

vida sertaneja em geral –, ao senso prático do matuto que, sempre<br />

profundamente respeitoso diante dos temas relacionados com<br />

a morte, assim assegura por muito mais tempo a conservação do<br />

singelo monumento, quase sempre – antes do automóvel, já se vê<br />

– o registro anônimo de uma dessas arrepiadoras tragédias de amor<br />

ou de ódio que rastilharam de sangue as solidões nordestinas. Presta-se,<br />

também, do mesmo passo, e de acordo com o que, no momento,<br />

pode oferecer a terra comburida e desnuda, sem uma flor,<br />

um ramo verde, piedosa homenagem ao herói ou ao infeliz tombado<br />

no local.<br />

Atendendo à consulta do Autor, julga o proprietário da fazenda<br />

“Pedra e Cal”, no município de Acari, o Sr. Manoel Bezerra de<br />

Araújo Galvão Júnior (“Coquinho”), grande sabedor do folclore<br />

seridoense, que o calhau atirado ao pé do cruzeiro do caminho “é<br />

a representação de uma prece”: sem tempo para debulhar o Padre-Nosso<br />

ou a Oração das Almas, desobriga-se o passante, mais<br />

praticamente, jogando sobre o cantinho onde repousam as cinzas,<br />

ou onde caiu o ignoto mártir, o seixo 67 dinamizado esotericamente<br />

pela intenção devota. Condiz, essa opinião, com o que, a respeito,<br />

em Viagem ao <strong>In</strong>terior do Brasil, registrou Georg Wilhelm Freireyss, 68<br />

citado por Câmara Cascudo, em Antologia do Folclore Brasileiro, página<br />

64: “O costume de se levantar uma cruz em cada lugar onde<br />

se encontra um cadáver, qualquer que seja a causa da morte, com<br />

o fim de fazer os transeuntes completarem o número de padresnossos<br />

necessários para resgatar do purgatório a alma de quem<br />

aqui morreu sem absolvição”.<br />

Atualmente, quando a rodagem está assinalada por centenas de<br />

cruzes, fincadas quilômetro a quilômetro, testemunhando, melancolicamente,<br />

o que o aceleramento da “cultura americana” está<br />

custando aos sertanejos (desminta-o, quem estiver acostumado a<br />

percorrer o interior), já não seria possível ao viajante pensativo


persignar-se, e atirar sua pedrinha votiva, sob pena de gastar doze<br />

dias na jornada (de Jardim a Natal), em lugar de seis, tão tranquilos,<br />

aos quais se refere a sextilha primeira do Canto 7 .<br />

Vangloriando-se de que era capaz de fazer num automóvel,<br />

certo Nestor dos Anzóis, que era chauffeur, 69 afamado cantador e<br />

mestre de samba, lembrado por José Martins 70 (Luzes do Canaã,<br />

ed. Imp. <strong>In</strong>dustrial, Recife), improvisava, convicto:<br />

Num artamove,<br />

faço tanta piruêta,<br />

que as roda fica zambeta, 71<br />

com vontade de sartá.<br />

No aceilerá,<br />

meu sapato láiga a sola,<br />

passageiro vira bola<br />

e o carro vira biá...<br />

Tal e qual. Por esta, se afere, com raríssimas exceções, a mentalidade<br />

universal do motorista, o impune, o intangível semeador<br />

de cruzes, na era moderna, em todas as “curvas da morte” das<br />

rodovias de penetração.<br />

A um velho repentista, aleijado de ambas as pernas, e que pede<br />

esmolas aos passageiros do trem da Central, em Duas Estradas<br />

(Paraíba), ouvimos esta admirável sextilha, ritmada ao tinir de uma<br />

moeda de níquel na tigelinha de flandres:<br />

Tal e qual...<br />

Chofé, pisa Deus e o mundo,<br />

e só não pisa baleia<br />

porque roda de pneu<br />

no mar não se arrimidéia.<br />

Chofé pisa inté o diabo<br />

mas não vai para a cadeia...<br />

209


210<br />

O pai atirou nos dois: Não nos inquinem de hiperbólica, a<br />

sextilha em apreço. Em tempos não muito remotos, vários crimes<br />

dessa natureza foram registrados, no sertão. O matuto é um extremo<br />

cioso, em questões que atinjam a honra da família; melindrosa,<br />

altamente nevrálgica, a suscetibilidade do pátrio poder.<br />

Numerosos romances de costumes, firmados por nomes os mais<br />

insuspeitos, documentam casos idênticos – e mais cruéis, mais<br />

iníquos, ainda, que o entrevisto na estrofe sob anotação. Alguns<br />

ilustres sertanejos do Seridó, e a quem foram pedidas informações<br />

a respeito, dando-lhes, todavia, liberdade de deixar de responder<br />

a quesitos dos quais dependesse responsabilidade imediata,<br />

preferiram deixá-los em branco, o que o Autor interpreta como<br />

louvável preservação de melindres: não quiseram tocar essa dolorosa<br />

cicatriz da história social do sertão.<br />

Há uma vigorosa página de Irineu Pinheiro 72 (Juazeiro do Padre<br />

Cícero, 1ª edição, Pongetti, 1938), que estabelece ótima e oportuna<br />

analogia:<br />

Resumia-se a vida social de caráter mundano quase<br />

que em festas de casamentos e batizados, e só nessas<br />

reuniões, sob os olhares ciosos dos pais, dançavam<br />

quadrilhas e valsas os rapazes e as moças do lugar.<br />

Naquele tempo não consentia a rigidez dos costumes<br />

relações freqüentes entre jovens de sexos diferentes.<br />

O rigorismo em certas famílias, atingia limites<br />

incríveis. Conheci, há muitos anos, o velho Manoel<br />

Pimenta, morador em Terra Vermelha, no Cariri.<br />

Pediu-lhe alguém uma das filhas em casamento, e foi<br />

esta concedida. Nunca se viram sós, ou mesmo acompanhados,<br />

os noivos durante os meses de noivado. No<br />

dia das núpcias, reuniram-se na casa de Manoel Pimenta,<br />

em seu sítio, o vigário da paróquia, as testemunhas<br />

e os convidados. Na sala da frente, o altar,<br />

enfeitado de flores de mofumbo. À hora determina-


da, por uma das portas do interior da casa, entrou na<br />

sala a noiva, acompanhada das madrinhas e de pessoas<br />

da família. Vê o noivo, estarrecido, que a que lhe<br />

dão em casamento não é a que pedira. De véu e grinalda,<br />

achava-se ao seu lado uma das irmãs da noiva<br />

substituída. Mas, não teve ele a coragem de protesto,<br />

e casou-se com a intrusa. Explicava depois, o velho<br />

Pimenta: – ‘Em minha família, é assim: casem-se<br />

as mais velhas, e depois as mais novas...’.<br />

Os Manoel Pimenta não foram fauna exclusiva do hinterland<br />

cearense... 73<br />

Um punhado de farinha: Garantindo-nos contra a suspeita<br />

do condoreirismo, remetemos o leitor às Notas ao verso: “ó! o<br />

drama das retiradas!”, no Canto 2, especialmente no final, quando<br />

transcrevemos o depoimento de Osias Guimarães. 74<br />

Bacurau: Ave noctâmbula 75 , de vôo curto e rasteiro. Começa a<br />

sair dos esconderijos, ao entardecer, povoando as estradas, voejando<br />

dois metros adiante dos autos, batendo com o peito nos “párabrisas”,<br />

acendendo no jato dos projetores os dois carbúnculos dos<br />

olhos sobrenaturais.<br />

O bacurau (Nyctidromus albicollis), tem o cognome<br />

de bacurau mede-léguas. Passa a noite pelos caminhos,<br />

olhos acesos como coivaras, contando as léguas.<br />

Também parece ser um vestígio de lenda desaparecida.<br />

Há um provérbio que diz: “É dizendo e bacurau<br />

escrevendo”, para significar a veracidade da afirmativa.<br />

Fica o mede-léguas com os direitos respeitáveis<br />

de tabelião. Apesar da feiúra, o bacurau é mascote.<br />

Pena de asa de bacurau cura dor de dentes, e<br />

algumas, dispostas entre a manta e a sela, fazem com<br />

211


212<br />

que o cavalo não caia, nem que salte um riacho cheio<br />

(Câmara Cascudo, ensaio citado).<br />

O aboio ecoa...: O aboio é uma espécie de toada, canto<br />

interjetivo, lentamente modulado em tons menores, de letra<br />

indistinguivel, sempre improvisado, longo e triste, e a cujo som<br />

toca o vaqueiro a boiada.<br />

A toada plangente do aboiar, dizem os vaqueiros, tem<br />

a propriedade de “humanizar” (amansar) o gado, tornando-o<br />

triste e cismarento. Às vezes, até lhe escorrem<br />

dos grandes olhos baixos, grossas lágrimas vagarosas...<br />

(Gustavo Barroso, Terra do Sol, página 54).<br />

Poetizou-o, superiormente, o querido e inesquecível mestre<br />

de Vibrações, H. Castriciano:<br />

Ah! Como é triste o aboio! Ah! Como é triste o canto<br />

sem palavras, tão vago! – a saudade exprimindo<br />

das seivas do sertão, no mês de junho rindo...<br />

Essa magoada voz que acorda as soledades,<br />

Essa trêmula queixa é o gemido e o brado<br />

De uma raça infeliz, cujo longo passado<br />

Simboliza o clamor da miséria e da fome,<br />

Procurando exprimir tanta mágoa sem nome.<br />

A voz do sertanejo, ansiando de saudade,<br />

Nessa triste canção, doce como uma prece,<br />

Cuja letra ninguém adivinha ou conhece,<br />

Mas cujo pensamento, ungido de emoção,<br />

Se coubesse num ritmo, era o do coração.<br />

Quantas vezes, ouvindo Felinto aboiar, me tenho lembrado<br />

do alvoroço da terra nas primeiras chuvas, do<br />

rumorejo dos rios cheios, da verdura repentina dos<br />

campos e das serras, do canto dos sapos festejando as


primeiras águas, e sentindo o cheiro das madrugadas<br />

do mato, vindo das flores que incensam, nesse mês,<br />

as várzeas e os tabuleiros do sertão! (“Cartas de um<br />

Sertanejo”, de Jacinto Canela-de-Ferro, pseudônimo<br />

de Eloy de Souza, em Leituras Potiguares).<br />

Jurema: Mimosácea, característica da região da caatinga e do sertão<br />

em geral (acacia jurema, Mart.). Há a preta e a branca. A esta,<br />

chamam também de amorosa, antítese relacionada com a grande<br />

quantidade de espinhos, aduncos e afiados, de que são eriçadas as<br />

vergônteas. A jurema flora de outubro a dezembro; cobre-se de<br />

alvura, e o delicioso, sonhador aroma, que desprende, faz-se sentir<br />

em toda a vastidão dos descampados sertanejos. É o seguinte, o<br />

terceto em que Auta de Souza se refere ao perfume da famosa<br />

árvore sagrada dos silvícolas:<br />

Ao longe, a lua vem dourando a treva.<br />

Turíbulo imenso, para Deus eleva<br />

O incenso agreste da jurema em flor.<br />

O soneto da imortal “cotovia mística das rimas”, publicado no<br />

Horto, tem o título de “Caminho do Sertão” e foi musicado pelo<br />

notável violonista, professor Eduardo Medeiros, 76 autor da solfa<br />

de “Praieira” (letra de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>) e de dezenas de outras<br />

canções popularizadas em todo o país. Eduardo Medeiros, exímio<br />

compositor de valsas, o único rival do grande Tonhéca, 77 musicou<br />

também quase todas as serranilhas de Ferreira Itajubá, Bezerra<br />

Júnior, 78 Clarice Palma, 79 etc.<br />

213


214<br />

1 Tudo o que serve para acender lume: cavacos, gravetos, etc.<br />

2 Ver notas de OM, no Canto 1.<br />

3 Idem.<br />

4 Idem.<br />

5 Idem.<br />

6 Ver notas de OM.<br />

7 Ver nota de OM.<br />

8 Idem.<br />

9 Idem, idem.<br />

10 Alhambra. Palácio mouro, em Granada, Espanha.<br />

11 Ver nota de OM.<br />

12 Matutando, pensando, cismando.<br />

13 Ver nota de OM.<br />

14 Idem.<br />

Notas<br />

15 Minas fabulosas, lendárias – que teriam existido no atual Zimbábue, exploradas<br />

por Hiran, rei de Tiro, e Salomão, monarca de Israel.<br />

16 “Juntarei todas as gentes e conduzi-las-ei ao Vale de Josafá e ali entrarei<br />

com elas em juízo acerca de Israel, meu povo e minha herança...” (Joel<br />

3,2) Parece ter sido a primeira expressão literária de um “Dia do Juízo<br />

Final”, tempo em que Deus poria fim à presente situação do mundo.<br />

17 Ver nota de OM.<br />

18 Idem.<br />

19 Que corusca; fulgurante, reluzente, cintilante.<br />

20 Ver nota de OM.<br />

21 Cômoro; pequena elevação de terreno.<br />

22 Ver nota de OM.<br />

23 Idem.<br />

24 O maior poeta medieval, Dante Alighieri, nasceu em Florença/Itália em<br />

1265 d.C.<br />

25 Deixou sair (líquido) em gotas, borbulhas ou em fios; gotejou; verteu.


26 Ver nota de OM.<br />

27 Referência aos ventos, à sua força.<br />

28 Antiga romança de música e letra tristes e melancólicas, canção medieval.<br />

29 Ver nota de OM.<br />

30 O planeta Vênus, quando aparece à tarde; estrela da tarde, estrela vespertina,<br />

31 Faixa de pano, tricô, croché ou renda, usado pelas mulheres na cabeça.<br />

32 Ver nota de OM.<br />

33 Enegrece com fumo; esfumaça.<br />

34 José Martins Fontes. Poeta paulista. Médico tisiologista. (Santos/SP,<br />

23.06.1884-25.06.1937). Escreveu, entre outros, Canções do meu vergel.<br />

35 Ver nota de OM.<br />

36 Auta Henriqueta de Souza (Macaíba/RN, 12.09.1876-Natal/RN,<br />

07.02.1901). Poeta. Morreu de tuberculose, muito jovem. Irmã de Elóy<br />

de Souza e Henrique Castriciano.<br />

37 Utensílio próprio para incensar; turíbulo, incensário.<br />

38 Domingos de Barros. Colaborador de Augusto Severo, íntimo da família<br />

dos Albuquerque Maranhão. Nasceu em Garanhuns, Pernambuco, em<br />

22 de março de 1865. Formado em Farmácia, fundou em Niterói, no Rio<br />

de Janeiro, uma pequena fábrica de produtos químicos. Positivista e republicano,<br />

alistou-se em um dos ”batalhões patrióticos” de Floriano Peixoto.<br />

Nesse momento, Augusto Severo necessitava de um técnico em<br />

química para a fabricação do hidrogênio necessário para a ascensão do<br />

balão “Bartholomeu de Gusmão”. Barros, engajado na guerra civil, foi<br />

enviado pelo Ministério da Guerra para trabalhar com Severo. Terminado<br />

o conflito, voltou às suas atividades civis. Dizem que presenciou, a bordo<br />

do vapor “Brasil”, no porto do Recife, o falecimento de Pedro Velho de<br />

Albuquerque Maranhão. Era um estudioso das coisas do sertão.<br />

39 Gritado, uivado lamentosamente; ganido produzindo som plangente.<br />

40 Gonçalo Fernandes Trancoso. Nasceu em Trancoso/Portugal na segunda<br />

década do século XVI e faleceu em 1596. Professor de Humanidades,<br />

vivia em Lisboa quando a cidade foi assolada pela peste em 1569,<br />

tendo-lhe morrido a mulher, dois filhos e um neto. Escreveu Contos e<br />

Histórias de Proveito e Exemplo (1575). As suas histórias comungam em<br />

215


216<br />

certa medida da tradição de Chaucer e Boccaccio. Um dos primeiros<br />

contistas portugueses. A sua obra teve grande sucesso, sofrendo múltiplas<br />

reimpressões até ao século XVIII.<br />

41 Augusto Tavares de Lyra. (Macaíba/RN, 25.12.1872-Rio de Janeiro/<br />

RJ, 21.12.1958). Historiador, professor, deputado federal, senador, governador<br />

do Estado. Ministro da Fazenda e da Justiça. Aposentou-se como<br />

Ministro do Tribunal de Contas da União.<br />

42 Ademar Victor de <strong>Menezes</strong> Vidal (João Pessoa/PB, 17.10.1897-<br />

Rio de Janeiro/RJ, 30.11.1986). Jurista, diplomata, jornalista, político,<br />

escritor, conferencista, biógrafo de Augusto dos Anjos.<br />

43 O livro foi publicado em 1945, conforme comentário inserido no site do<br />

<strong>In</strong>stituto Histórico da Paraíba.<br />

44 Em latim: “cuidem-se os governantes”, “que os cônsules tomem cuidado”.<br />

A expressão usada por OM, certamente, queria fazer referência aos<br />

filhos-família de então.<br />

45 <strong>In</strong>jeção, no reto, de água, de líquido medicamentoso ou de substância para<br />

contraste radiológico. Ajuda, enema, clisma, e lavagem, chá-de-bico,<br />

adjutório, cristel. O matuto diz “cristé”.<br />

46 Faca comprida e estreita, provida de ponta; lambedeira.<br />

47 Gustavo Dodt Barroso (Fortaleza/CE, 29.12.1888-Rio de Janeiro/<br />

RJ, 03.12.1959). Advogado, professor, político, contista, folclorista, cronista,<br />

ensaísta, historiador e romancista.. Foi eleito em 8 de março de<br />

1923 para a cadeira nº 19 da Academia Brasileira de Letras, da qual foi<br />

presidente em 1932, 1933, 1949 e 1950. Fundou e dirigiu o Museu Histórico<br />

Nacional. Anti-semita ferrenho, seguidor de Plínio Salgado,<br />

integralista, “galinha verde”.<br />

48 Anexim: sentença popular que expressa um conselho sábio; provérbio,<br />

máxima.<br />

49 Félix Carneiro de Melo. Produtor rural e músico amador da Banda de<br />

Música de Florânia/RN, contemporâneo de Tonhéca Dantas.<br />

50 Hoje se diz, também, do lugar de mau aspecto; situação que se considera<br />

desagradável ou desorganizada; periferia, reduto de operários e marginais.<br />

O Morro da Providência, no Centro do Rio, é o local onde surgiu aquela<br />

que é considerada a primeira favela brasileira. A comunidade apareceu por<br />

volta de 1897, quando ex-combatentes da Guerra de Canudos se fixaram


no lugar. Na época, o espaço ficou conhecido como o “Morro da Favela”,<br />

em alusão a uma planta do sertão da Bahia – onde houve a guerra – que<br />

tem esse nome. “Habitação popular” surge, pois, após a campanha de Canudos,<br />

quando os soldados, que ficaram instalados num morro daquela<br />

região, chamado de “Favela”, por lá existir grande quantidade da planta<br />

favela, ao voltarem ao Rio de Janeiro, pediram licença ao Ministério da<br />

Guerra para se estabelecerem com suas famílias no alto do morro e passaram<br />

a chamá-lo de “Favela”, transferindo o nome do morro de Canudos,<br />

por lembrança ou por alguma semelhança que encontraram. O nome se<br />

generalizou para “conjunto de habitações populares” (Fonte: Dicionário<br />

Eletrônico Houaiss).<br />

51 Fenômeno em que um órgão vegetal (fruto, esporângio, antera etc.) abrese<br />

naturalmente ao alcançar a maturação.<br />

52 Jaime da Nóbrega Santa Rosa. Cientista norte-rio-grandense, nascido<br />

em Acari, Doutor em Química, pioneiro no estudo da energia solar no<br />

Brasil, um dos fundadores do <strong>In</strong>stituto Nacional de Tecnologia e da SPBC.<br />

Em 1939, fundou a RQI-Revista de Química <strong>In</strong>dustrial, órgão da Associação<br />

Brasileira de Química, entidade de classe por ele idealizada. Historiador,<br />

Jaime é autor do livro Acari: Fundação, História, Desenvolvimento, Rio de<br />

Janeiro: Pongetti, 1974.<br />

53 José Américo de Almeida (Areia/PB, 1887-João Pessoa/PB, 1980).<br />

Político e escritor paraibano. Advogado, foi secretário de Estado, senador,<br />

ministro da Viação e Obras Públicas, governador da Paraíba e ministro do<br />

Tribunal de Contas da União. Escreveu A Bagaceira, livro que o projetou<br />

como o iniciador do novo romance regional brasileiro<br />

54 Salamanta, jibóia-vermelha (Epicrates cenchria cenchria).<br />

55 Jorge Fernandes de Oliveira (Natal/RN, 22.08.1887-Natal/RN,<br />

17.07.1953). Poeta. precursor do Modernismo no Rio Grande do Norte.<br />

Foi comerciante, funcionário público e dramaturgo.<br />

56 Cipriano Bezerra Galvão Santa Rosa (Acari/RN, 27.10.1857-<br />

Acari/RN, 14.02.1947).Tenente-Coronel da Guarda Nacional,<br />

agropecuarista, político abolicionista e republicano, foi juiz Distrital e governou<br />

o Município do Acari cinco vezes (intendente e prefeito). Por<br />

afinidade, aparentado com OM. Sua segunda esposa, Maria Iluminata da<br />

Nóbrega, era prima legítima da madrasta de <strong>Othoniel</strong>, Celsa Bezerra de<br />

Araújo Fernandes (de Melo). Pai do Químico Jaime da Nóbrega Santa<br />

217


218<br />

Rosa (v.cit.) e do servidor público Janúncio da Nóbrega Santa Rosa, casado<br />

com Elodia <strong>Menezes</strong> Santa Rosa – sobrinha e afilhada do poeta, filha de<br />

Francisco <strong>Menezes</strong> de Melo.<br />

57 Gladiador romano, de regra um escravo, oponente dos trácios e retiários.<br />

Usava um grande escudo numa mão e na outra uma espada curta. O<br />

capacete se assemelhava a um peixe.<br />

58 Em Roma, gladiador armado de tridente, punhal e rede, que atirava para<br />

tolher o adversário. O mesmo que retiário ou reciário.<br />

59 Osvaldo Orico. Professor, diplomata, poeta, contista, romancista, biógrafo<br />

e ensaísta, nasceu em Belém/PA, em 29 de dezembro de 1900, e<br />

faleceu no Rio de Janeiro/RJ, em 19 de fevereiro de 1981. Foi membro<br />

da Academia Brasileira de Letras.<br />

60 João Barbosa Rodrigues (Rio de Janeiro/RJ, 1842-Rio de janeiro/<br />

RJ, 1909). Botânico. Dirigiu, até morrer, o Jardim Botânico do Rio de<br />

Janeiro. Escreveu vários livros e monografias.<br />

61 Heráclio Pires Fernandes (Jardim do Seridó/RN, 28.06.1882-Natal/RN,<br />

22.03.1958). Nascido na Fazenda Três Irmãos, farmacêutico, presidente<br />

da <strong>In</strong>tendência de Jardim do Seridó (prefeito). Seridoense tipo<br />

“fibra longa”. Músico amador, tocava flautim.<br />

62 Criado sob o nome de <strong>In</strong>spetoria de Obras Contra as Secas (IOCS) através<br />

do Decreto 7.619 de 21 de outubro de 1909 (presidente Nilo Peçanha)<br />

foi o primeiro órgão a estudar a problemática do semi-árido. O hoje<br />

DNOCS recebeu ainda em 1919, através do Decreto 13.687, o nome de<br />

<strong>In</strong>spetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), antes de assumir<br />

sua denominação atual, que lhe foi conferida em 1945 (Decreto-Lei 8.846,<br />

de 28/12/1945), vindo a ser transformado em autarquia federal, através<br />

da Lei nº 4229, de 01.06.1963.<br />

63 José Vitoriano de Medeiros. No ano de 1913, em Natal, na 3ª. Companhia<br />

Isolada de Caçadores (à época, o único estabelecimento militar do<br />

Exército Nacional, no Estado), foi colega de farda de OM, ambos na<br />

graduação de terceiros-sargentos. Dois ou três anos mais velho do que o<br />

poeta, vem dessa época a longa e profunda amizade entre os dois companheiros.<br />

Mais tarde, na perseguição à Coluna Prestes, no Piauí, encontrarse-iam<br />

novamente: Vitoriano, capitão da Polícia Militar; <strong>Othoniel</strong>, como<br />

segundo-sargento do Exército. No início da década de 1930, Vitoriano, no<br />

posto de major, comandou a Polícia Militar do Estado. O oficial – que se


eformou como coronel – era homem de leituras, conhecendo bons<br />

autores e, também, poeta e músico. É o autor da Marcha Oficial da PM<br />

Potiguar (letra e música).<br />

64 Leonardo Mota. Nasceu em 10 de maio de 1891, na cidade de Pedra<br />

Branca/CE. Terminando o curso secundário, bacharelou-se pela Faculdade<br />

de Direito do Rio de Janeiro, em 1916. Regressando ao Ceará, foi<br />

nomeado promotor público da comarca de Ipu. Em Fortaleza, foi diretor<br />

da Gazeta Oficial (1922/1923) e foi redator do Correio do Ceará. Grande<br />

boêmio, contador de anedotas e causos, cronista, conferencista, percorreu<br />

grande parte do sertão nordestino colhendo material a ser usado em<br />

seus livros: Cantadores (1921), Violeiros do Norte (1925), Sertão alegre (1928),<br />

No tempo de Lampião (1930), Prosa vadia (1932) e muitos artigos publicados<br />

na imprensa. Faleceu em 2 de janeiro de 1948, em Fortaleza.<br />

65 Manoel Bezerra de Araújo Galvão Júnior (Acari/RN, 11.12.1862-<br />

Acari/RN, 25.12.1948). Conhecido como “Seu” Coquinho (era irmão<br />

do Coronel Cipriano Santa Rosa), senhor das terras da Fazenda Pedra e<br />

Cal, no Acari. Cidadão respeitado, foi um apaziguador de questões, um juiz<br />

sem diploma.<br />

66 Eloy Castriciano de Souza (Recife/PE, 04.03.1873-Natal/RN,<br />

07.10.1959). Jornalista brilhante, escritor e político. Advogado, foi delegado<br />

de polícia em Macaíba; dois anos depois, deputado federal. Senador<br />

e diretor da Imprensa Oficial do Estado. Profundo conhecedor dos problemas<br />

climáticos do Nordeste. No início da longa trajetória na vida pública<br />

do Estado, foi apadrinhado da oligarquia fundada por Pedro Velho de<br />

Albuquerque Maranhão. Irmão de Henrique Castriciano e Auta de Souza.<br />

67 A professora Semira Adler Vainsencher, pesquisadora da Fundação Joaquim<br />

Nabuco (ver site da FJN), escrevendo sobre o “Enterro Judeu”,<br />

informa que “as pessoas colocam pedrinhas sobre a sepultura do ente<br />

querido, em sinal de resignação com a sua morte. Cabe salientar que o<br />

ritual de colocação das pequenas pedras sobre o túmulo é efetuado sempre<br />

que se visita as sepulturas, indicando que o morto é lembrado e reverenciado.”<br />

Mais adiante, ensina que os rituais judeus, trazidos pelos marranos<br />

(cristãos-novos) – hebreus convertidos ao catolicismo, sob ameaça da<br />

<strong>In</strong>quisição – “continuavam seguindo suas tradições dentro de casa. Com o<br />

passar dos séculos, vários rituais continuaram sendo repetidos, sem que<br />

se soubesse mais o motivo de suas práticas. Trata-se, hoje, de indivíduos<br />

que se dizem católicos, em termos de religião, mas que reproduzem tradi-<br />

219


220<br />

ções hebréias. Isto pode ser observado em certos atos praticados no agreste<br />

e no sertão de Pernambuco, e em outros Estados nordestinos que, sem<br />

sombra de dúvida, foram absorvidos do judaísmo. Um deles, por exemplo,<br />

diz respeito à exigência de ser sepultado com mortalha e sem caixão.<br />

E, um outro, refere-se à prática de colocar pedrinhas sobre os túmulos.<br />

Mesmo sem saber, as pessoas que repetem esses costumes poderão ter<br />

uma ascendência judaica”. O autor destas notas, por sua vez, discorrendo<br />

sobre holandeses e judeus no Rio Grande do Norte (“De Natal a<br />

Manhattan”, revista Ciência Sempre, Ano 3, Número 6, agosto/setembro,<br />

2007, p. 28-29), anotou: “[...] Significativa, intensa até, foi a presença israelita<br />

no Nordeste durante a ocupação flamenga. Tangidos de Portugal e Espanha,<br />

acusados de heresias – vivendo outros na própria Holanda mas originários<br />

da Península, – os sefardins, ricos, chegavam aos nossos portos, atraídos<br />

pelo comércio, ganhando dinheiro, prosperando. No Recife, fundaram a<br />

primeira sinagoga das Américas. Gilberto Freire afirmava que, desde Cabral,<br />

de dez portugueses que vinham para cá, oito eram judeus marranos (cristãos-novos).<br />

No Rio Grande, hoje, pouca gente se dá conta da sua origem<br />

hebraica. Vencidos os holandeses nos Guararapes, liberada a Capitania, sua<br />

fortaleza e sua vila primeira (Natal), a maioria dos judeus afortunados da<br />

região – marranos ou não – se escafedeu para o Caribe e para uma outra<br />

“Nova Amsterdã”, um entreposto flamengo, na ilha de Manhattan – que<br />

depois, sob o guante da espada inglesa, viria a ser chamada de Nova Iorque.<br />

Esse grupo ajudaria a fundar o império capitalista americano. Os outros, os<br />

menos bafejados pela sorte, obrigados novamente a se cristianizarem, foram<br />

palmilhar os caminhos do sertão, misturando-se às populações indígenas.<br />

Ficaram, todavia, os sobrenomes reveladores: Carvalho, Moreira,<br />

Nogueira, Oliveira, Pinheiro, Lopes, Dias, Nunes, Souza, Medeiros, Costa,<br />

Cardoso, Fonseca e tantos outros. Dos costumes e manias – afirmam,<br />

por aí –, deixaram-nos a carne de sol, o comércio à prestação, de porta em<br />

porta, a pintura das casas no final do ano, a sangria dos animais para a<br />

alimentação, o sepultamento dos defuntos envolvidos em mortalhas. Os<br />

holandeses, por sua vez, parece (ainda bem, ainda bem!), só nos deixaram<br />

os Wanderley do Assu –salvas algumas poucas exceções, gente de brio, de<br />

prumo, de engenho e de muita arte, até nossos dias [...]”<br />

68 Georg Wilhelm Freireyss (1789-1825). Naturalista alemão. Acompanhou<br />

o príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied, em expedições científicas<br />

por Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Bahia.


69 Chofer, motorista, condutor (do francês).<br />

70 José Martins. Poeta popular paraibano, nascido em Patos, no século<br />

XIX.<br />

71 Diz-se de, ou indivíduo que tem os pés ou as pernas tortos; cambaio,<br />

zambeta.<br />

72 Irineu Pinheiro. Médico e renomado historiador, nasceu no Crato em 6<br />

de janeiro de 1881 e faleceu em 21 de maio de 1954. Fundador do <strong>In</strong>stituto<br />

Cultural do Cariri, sócio-correspondente do <strong>In</strong>stituto Histórico do<br />

Ceará e da Academia Cearense de Letras, foi um dos mais importantes<br />

intelectuais do Sul do Ceará. Escreveu cinco livros: Juazeiro do Padre Cícero<br />

e a Revolução de 1914, Joaquim Pinto Madeira, A cidade do Crato, O Cariri e<br />

Efemérides do Cariri.<br />

73 Aldo Fernandes Raposo de Melo, político importante, primo do<br />

governador Rafael Fernandes – temido e odiado por cafeístas e comunistas<br />

que perseguiu obstinadamente, ferozmente, quando secretário-geral<br />

do Estado depois do Levante de 1935 –, banqueiro e professor universitário<br />

(foi vice-reitor da UFRN). Enviuvando de uma das filhas do patriarca<br />

Jerônimo Rosado Maia (1861-1930), reluzente administrador e pioneiro<br />

incontestável do progresso de Mossoró/RN, como era o costume à época,<br />

procurou o sogro para pedir-lhe a mão de uma das cunhadas mais<br />

jovens. O rico industrial, fundador da dinastia dos Rosados, paraibano de<br />

Pombal/PB – afeito aos costumes sertanejos, como o cearense Manoel<br />

Pimenta, acima citado por OM –, não concordou com o pedido do genro.<br />

O primo do governador terminou casando com outra das filhas do Dr.<br />

Jerônimo – por sinal, nascida um pouco antes da pretendida noiva.<br />

74 Osias Guimarães Carneiro. Escritor e jornalista baiano. Fundou e dirigiu<br />

jornais e revistas no Rio de Janeiro e no Sul do país. Escreveu amor à terra<br />

– Realizações do decênio Getúlio Vargas no Nordeste brasileiro (Departamento<br />

de Imprensa e Propaganda, 1941). Foi compositor, no Rio do Janeiro. Em<br />

1937, as Irmãs Pagãs gravaram o samba “Sofrimento”, de sua autoria.<br />

75 Noturna, notívaga.<br />

76 Eduardo Medeiros. Nasceu no município de Touros/RN, em<br />

21.06.1887. Faleceu em Natal/RN, em 20.06.1961. Certos pesquisadores<br />

dizem que ele nasceu em Ceará-Mirim. Músico renomado, clarinetista<br />

e violonista, mestre de banda, compositor festejado, parceiro de OM,<br />

autor da música da “Serenata do pescador”, a consagrada “Praieira”. Mora-<br />

221


222<br />

dor tradicional do bairro das Rocas, em Natal. Ver, adiante, nesta Obra<br />

reunida, O cancioneiro de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, do pesquisador Cláudio Galvão.<br />

77 Antônio Pedro Dantas. Tonhéca Dantas (Carnaúba dos Dantas/RN,<br />

13.06.1870-Natal/RN, 07.02.1940). Músico seridoense, compositor,<br />

professor, militar e maestro. Autor da mais apreciada valsa do Rio Grande<br />

do Norte: Royal Cinema. Essa valsa famosa – embora pouco conhecidos –<br />

tem versos do poeta Bezerra Júnior.<br />

78 Joaquim Bezerra Júnior (Natal/RN, 10.05.1890-Natal/RN,<br />

18.09.1957). Poeta e romancista. Publicou dois livros de versos, Poemas<br />

da selva e Natureza. Deixou vários produções inéditas, entre elas, dois<br />

romances. Foi soldado, marinheiro e funcionário da <strong>In</strong>spetoria das Obras<br />

Contra as Secas. Homem sofrido, bondoso, modesto e fidalgo no trato.<br />

Foi quem sugeriu a OM levar os versos da “Serenata do pescador” (mais<br />

tarde apelidada de “Praieira”) para Eduardo Medeiros musicar. Ele próprio<br />

foi destacado autor de modinhas, em parceria com o festejado maestro<br />

canguleiro.<br />

79 Clarice da Silva Pereira Palma (Natal/RN, 12.04.1911-Natal/RN,<br />

11.08.1996). Poeta, teatróloga, atriz, agitadora cultural. Fundou o Clube<br />

dos Sete (teatro), a Academia dos Compositores, a Federação Norte-Rio-<br />

Grandense de Autores Teatrais e a Ordem dos Músicos (Seção do RN).<br />

Filha do poeta Francisco Palma. Ver nota no ensaio sobre Ferreira Itajubá.


Canto 2<br />

Santa Bárbara!<br />

São Jerônimo!


Mas, no empardecer de uma tarde qualquer, ...embruscado<br />

em minutos, o firmamento golpeia-se de relâmpagos<br />

precípites, 1 sucessivos, sarjando 2 fundamente a imprimadura<br />

negra da tormenta. Reboam ruidosamente as trovoadas fortes.<br />

As bátegas de chuva tombam, grossas, espaçadamente, sobre<br />

o chão, adunando-se 3 logo em aguaceiro diluviano...<br />

Os Sertões, p. 45<br />

O heroísmo tem nos sertões, para todo o sempre perdidas,<br />

tragédias espantosas. Não há revivê-las ou episodiá-las: surgem<br />

de uma luta que ninguém descreve – a insurreição da terra<br />

contra o homem...<br />

Os Sertões, p. 135


Dezembro. Faces inquietas 4<br />

de mil ingênuos profetas<br />

farejam “sinais”. 5 Ao sul,<br />

relampejou... Hoje, ao norte...<br />

Que luta, de vida e morte,<br />

com o Céu, essa esfinge azul!<br />

Num dia de março, ardente,<br />

a tarde é chumbo, ao nascente;<br />

que torre pesada, aí vem!<br />

Um raio abre o bombardeio,<br />

risca o céu, de meio a meio:<br />

responde o trovão, além<br />

– Sansão 6 de fogo, uma a uma,<br />

dentro das naves da bruma,<br />

rola avalanches de som...<br />

E, a cada nova descarga,<br />

o ozona 7 o circuito alarga,<br />

de um fluido eugênico e bom.<br />

<strong>In</strong>verno enfiado, linheiro, 8<br />

sob o túrbido 9 aguaceiro,<br />

o açude grande rachou.<br />

(Vibra e irradia, a atmosfera).<br />

O sertanejo olha, e espera...<br />

– Tá bom... foi Deus quem mandou...<br />

227


228<br />

Toma da enxada, o gigante!<br />

toma de um couro; 10 ao tirante,<br />

atrela, calado, o boi;<br />

lança pedra e areia ao rombo,<br />

vence! ... Responde mazombo: 11<br />

– Si foi sózim? E num foi?<br />

À luz fulmínea 12 e terrífica,<br />

reza a tua Magnífica, 13<br />

Rute 14 heróica do sertão!<br />

São Jerônimo te veja!<br />

Santa Bárbara proteja<br />

teu milho, da inundação!<br />

***<br />

Chuva, de noite, sem conta.<br />

Um corisco abriu a ponta<br />

do lajedo (credo em cruz!).<br />

Dos alagados do aceiro,<br />

sobe o coro alvissareiro,<br />

festivo, dos cururus.<br />

Passam vozes, pela rua.<br />

– Só foi a reima 15 da lua!<br />

– Qual! O inverno acimentou!<br />

– Olhe essa torre: vazando;<br />

olhe outra, já se formando!<br />

– Sinal que nunca bromou! 16<br />

Sobre a serra, quando a quando,<br />

marrecas revoam, piando.


Chocalhos cantam – tlém...tlim...<br />

Fia, em bordões, a biqueira.<br />

O ar é meigo. A terra cheira.<br />

Pirilampeia, o capim.<br />

***<br />

Estiou. Peneiram neblinas.<br />

Tremeluzem lamparinas,<br />

aqui e ali, nos quintais.<br />

Pia a criação, engrujada. 17<br />

A rosa da madrugada<br />

em palidez se desfaz...<br />

O sol... Que topázio fluido!<br />

não queima – só por descuido:<br />

ouve o epigrama ao xexéu.<br />

Andorinhas, rente às casas,<br />

picotam curvetas de asas,<br />

na porcelana do céu.<br />

O vento, em rijos açoites,<br />

despetalou as “boas-noites”,<br />

nos oitões de pedra e cal.<br />

Babugem, 18 na redondeza...<br />

– Que esperanças! Que certeza,<br />

nas almas em festival!<br />

(Há poucos meses, ainda,<br />

na estrada do exílio, infinda,<br />

– pudera haver dor maior? –<br />

229


230<br />

Agar, 19 a Ismael caído,<br />

no seio murcho e dorido,<br />

dava sangue com suor...<br />

Oh! O drama das retiradas! 20<br />

Boiadas e mais boiadas,<br />

num chouto exausto, a mugir...<br />

Aboio, ilíada 21 rude,<br />

tu, só tu, tens a virtude<br />

de tanta dor traduzir!<br />

És o sertão, festejando<br />

o inverno! O sertão chorando,<br />

ao ver deserto o curral!<br />

Saga e banzo, em tons magoados,<br />

voz dos campos enflorados,<br />

– apoteose e funeral...).<br />

***<br />

A ponte nova negreja...<br />

Até na torre da igreja,<br />

há gente, a olhar, a esperar:<br />

– é a cheia! Lá vem, o rio,<br />

turvo, assanhado, bravio,<br />

pelos grotões, a estrondar!<br />

Ontem, “cansou’, no areado<br />

do varjão fofo e tostado<br />

de dois anos de escassez;<br />

hoje, é barreira a barreira,


– traz chuva de cabeceira,<br />

arrasta pau-d’arco e rês. 22<br />

Tudo ilhado, da outra banda...<br />

– Masseira n’água! 23 – Desanda,<br />

vai adiante, vem a ré...<br />

Mas, chega lá, finalmente;<br />

volta, com bicho e com gente,<br />

que nem a Arca de Noé!<br />

(Arca do Pão! Te bendigo<br />

o cedro que, no perigo,<br />

como na paz, vem prover<br />

a vida! E uma vida, dessas,<br />

é ouro, ainda que o meças<br />

pelos grãos que hás de conter!).<br />

Oh, manhãzinha fagueira,<br />

cheirando a malva e cidreira,<br />

a manjerona e alecrim!<br />

A arruda, que andava morta,<br />

está verdinha, na horta!<br />

Todo alvo, o pé de jasmim!<br />

Ressoa o búzio, 24 “de cima”...<br />

Soturna, bárbara rima<br />

da odisséia sem cantor!<br />

– Gado, descendo... (Ah, matuto!<br />

Quanto amargo, no teu fruto;<br />

quanto espinho, em tua flor!<br />

231


232<br />

Rude, ingênuo São Cristóvão!<br />

Que contrastes se renovam,<br />

desse labor varonil!<br />

Do teu suor, no derrame,<br />

muito político infame<br />

vive a engordar, no Brasil!<br />

Teu algodão veste o mundo.<br />

Deus, porém, do Céu profundo,<br />

manda-te a prova de Jó...<br />

Explode a seca – é o Vesúvio;<br />

desaba o inverno – é o dilúvio...<br />

Tens de vencer tudo – só!).


Dezembro. Faces inquietas:<br />

Notas ao Canto 2<br />

Do meado de dezembro em diante, o sertanejo começa<br />

a olhar o céu, a ‘namorar as nuvens’, diz ele, a<br />

se encher de esperanças na presença dos stratus 25<br />

avermelhados que afogam ao sol e atulham o poente,<br />

dos grandes cúmulos brancos que surgem de manhã,<br />

ao nascente, como broncos zimbórios de fantásticas<br />

catedrais, esfarripando-se nos bordos a pouco e pouco,<br />

em cirrus 26 tênues, adelgaçados, que o vento espalha,<br />

marchetando o azul claro do zênite... (Gustavo<br />

Barroso, ob. cit.)<br />

Farejam sinais: Escreve, a respeito, o desembargador Felipe<br />

Guerra, 27 autor de Secas Contra as Secas, Em Defesa do Nordeste, Ainda<br />

o Nordeste (polêmica), obras clássicas na sociologia sertaneja:<br />

Entre as aceitas pelos sertanejos (refere-se às ‘profecias’,<br />

‘sinais’, etc.), penso eu, as principais são as<br />

seguintes: o dia primeiro do ano, limpo, com o sol<br />

claro, é sinal de bom inverno; chuvoso, indica mau<br />

inverno ou seca; o mesmo como dia 2 de fevereiro,<br />

chuvas parciais em outubro, ramas, relâmpagos para<br />

cima, bom sinal; chuvas em novembro, mau sinal.<br />

Chuvas em dezembro, ramas, babugem, relâmpagos<br />

para cima, ótimo sinal. O dia 24 de dezembro apresentou<br />

sinais de inverno, chuvas ou mesmo simples<br />

relâmpagos para cima? – pode comprar garrotes, sem<br />

medo, pois o inverno virá. Choveu domingo de carnaval,<br />

a Semana Santa foi chuvosa? Bom inverno. Dia<br />

de São José, 19 de março, foi limpo, ainda soprou o<br />

vento da seca? Pode contar com a seca.<br />

233


234<br />

Responde também, a consulta do Autor, um dos mais autorizados<br />

exegetas do Anuário Perpétuo, 28 no Seridó: “Sinais seguros de<br />

inverno, nos quais ainda acredita o matuto, ei-los: quando há relâmpagos,<br />

vésperas de Nossa Senhora da Conceição, de Santa Luzia<br />

e de São José; maus, quando faltem.”<br />

A “experiência de Santa Luzia”, ainda plenamente em voga,<br />

descrita em Os Sertões, e Euclides a consagra, conferindo-lhe mesmo<br />

razões científicas:<br />

No dia 12 (de dezembro) ao anoitecer, expõe ao relento,<br />

em linha, seis pedrinhas de sal, que representam,<br />

em ordem sucessiva, da esquerda para direita,<br />

os seis meses vindouros, de janeiro a junho. Ao alvorecer<br />

de 13, observe-as: se estão intactas, pressagiam<br />

a seca; se a primeira apenas se deita, transmudada<br />

em aljôfar límpido, é certa a chuva em janeiro; se a<br />

segunda, em fevereiro ou se a maioria ou todas, é<br />

inevitável o inverno benfazejo.<br />

Esta experiência é belíssima. Em que pese o estigma<br />

supersticioso tem base positiva, e é aceitável desde<br />

que se considere que dela se colhe a maior ou menor<br />

dosagem de vapor d’água dos ares e, dedutivamente,<br />

maiores ou menores possibilidades de depressões<br />

barométricas, capazes de atrair, o afluxo das chuvas.<br />

Adiante, ajunta Euclides, em Nota, estas quatro a cinco saborosas<br />

linhas de Sílvio Romero, 29 em A Poesia Popular no Brasil:<br />

Conta-se que no Ceará, fizeram esta experiência diante<br />

do naturalista George Garnir 30 ; mas o sábio, fazendo<br />

observações meteorológicas, e chegando a um<br />

resultado diferente do atestado pela Santa, exclamou<br />

em seu português atravessado: Non! Non! Luíza mentiu!.


Depõe José Américo de Almeida:<br />

Todos os anos era essa inquirição fremente da terra<br />

da seca; a lua aconchegada nas plumas da ‘bolandeira’,<br />

envolvida nesse halo quase branco; a barra cinzenta,<br />

como uma franja do céu sobre a terra; o vento solícito<br />

do anoitecer, soprando, de mansinho, sem querer<br />

acender fogueiras. Espreitava-se o panorama dos astros,<br />

pedindo-lhe as promessas do desconhecido. Era<br />

um povo para quem toda felicidade vinha do céu. E a<br />

experiência do alto era falaz 31 (Coiteiros, cit.)<br />

Enfiado: Contínuo, constante, cimentado, amarrado, efetivo.<br />

Linheiro: Vertical, cerrado, intenso. Esbelto (Veja-se, em Notas<br />

ao Canto 7, o verbete “linheira”).<br />

Toma de um couro: Na construção das paredes (barragem) dos<br />

açudes, o sertanejo se utiliza de um couro de rês cru, que enche<br />

de barro, e ao qual atrela um boi, ou uma “junta”, duas, etc., por<br />

meio de um tirante de cordas, também de couro cru, ou de correntes.<br />

O processo, muito primitivo e demorado, mais ainda em<br />

voga no sertão, tem a vantagem de contar com a compressão da<br />

argila e da areia, feita pelos cascos dos animais, simultaneamente<br />

com o arriamento do material. Os matutos usam também os jumentos,<br />

que carregam o barro e a areia em pequenos surrões de<br />

couro ou em caixões de querosene (vejam-se Notas ao Canto 11,<br />

observações à palavra “jegue”).<br />

Magnífica: Magnificat, cântico à Virgem, tirado do Cap. I, de São<br />

Lucas. Tem alta consideração, da parte do povo, como “oração<br />

forte” contra calamidade, aflição, perigo iminente, pestes, etc. 32<br />

Reima: Reuma, influência, força, inflamação, predisposição a infecções.<br />

Ferida reimosa; estar com o corpo reimoso.<br />

235


236<br />

Criação: Geralmente, galináceos. Todas as aves e pequenos animais<br />

que se criam nos quintalejos das casas do interior. No plural,<br />

são também os rebanhos de miunças – ovelhas, cabras, porcos.<br />

Engrujado: Encorujado, encolhido como a coruja; tiritando de<br />

frio. 33<br />

Babugem: Ou babuge. Pasto nascente.<br />

Cai a primeira chuva e, em três dias, uma película<br />

verde-claro, uniforme e delicada, como delgado<br />

cendal, 34 recobre a superfície avermelhada da terra,<br />

surge por encanto nos píncaros requeimados e nos<br />

interstícios das rochas... (Domingos de Barros, transcrito<br />

em Leituras Potiguares, página 55).<br />

Ó! O drama das retiradas! Escreve Tavares de Lira, na sua<br />

Corografia do Rio Grande do Norte, já citada:<br />

Com as longas estiagens, esteriliza-se o solo: desnudam-se<br />

os campos, aniquila-se a criação; esgotam-se<br />

todos os recursos, e grandes levas de “retirantes”,<br />

exaustos e em desespero, procuram, deslocando-se<br />

para o litoral, fugir a uma morte certa,<br />

impiedosamente dizimados sob um céu de fogo e sobre<br />

terras que abrasam. Aos milhares, se aglomeram em<br />

cidades e portos, em grande promiscuidade, de perniciosos<br />

efeitos para a ordem e saúde pública, mas<br />

nem aí podem permanecer, porque, sem meios com<br />

que possam assegurar a subsistência, são forçados a<br />

recorrer à esmola, que humilha e, vencidos pelo infortúnio,<br />

a abandonar a terra em que nasceram e a<br />

que já nada os prende, porque de tudo foram privados,<br />

nos transes angustiosos por que passam. Começa<br />

o êxodo para outras regiões do país; e, com os


aços válidos que inenarráveis sofrimentos arrebatam<br />

pela expatriação, ao trabalho fecundo, perdemse<br />

os mais essenciais elementos de vida para os Estados<br />

que, extintas as suas fontes de renda e agravada a<br />

sua situação financeira, pela ruína da fortuna pública<br />

e privada, se deparam na dolorosa contingência de<br />

apelar para o auxílio da União. É o que ocorre, sempre<br />

que se manifesta o tremendo flagelo, que tantos<br />

e duros sacrifícios nos têm custado.<br />

Os pais abandonavam os filhos, e as cenas de desespero<br />

chegavam ao auge. Até as cenas de antropofagia<br />

foram registradas na seca de 1877. A mulher era<br />

obrigada a percorrer enormes distâncias, carregando<br />

pedras, (nos serviços públicos de emergência, feitos<br />

por ordens do governo), para ter direito à alimentação<br />

diária, que consistia num naco de carne e<br />

um punhado de farinha, em cumprimento às determinações<br />

presidenciais. (Osias Guimarães, Amor à terra).<br />

Diz ainda o mesmo escritor, citando Arnaldo Pimenta da Cunha:<br />

35<br />

O cemitério da capital (referia-se ao Ceará) já não<br />

comportava mais cadáveres. Foram sepultados, oficialmente,<br />

56.791, além de inúmeros enterrados<br />

ocultamente, nos subúrbios da capital, dentro do mato;<br />

outros, encontrados em completa putrefação, foram<br />

queimados...<br />

Na seca do Rio Grande do Norte, em 1872, morreu<br />

um terço da população.<br />

Relata Eloy de Souza, em Calvário das Secas, já citado:<br />

237


238<br />

...Do drama de 1904, drama pungente cujas cenas<br />

inenarráveis assisti, numa multiplicidade dolorosa do<br />

sofrimento humano. Naquele ano, Natal chegou a<br />

contar em vários turnos, uma população adventícia<br />

superior a vinte e cinco mil pessoas...<br />

Natal viu tudo isto e mais a varíola ceifar centenas<br />

de criaturas dentro de poucos dias; as feridas bravas,<br />

deformarem homens e mulheres; as câmaras de sangue<br />

dizimarem impiedosamente a população infantil,<br />

e testemunhou a nudez de pobres moças sertanejas,<br />

constrangidas a essa vergonha pela miséria, que<br />

as obrigava a ir buscar nos postos de reunião das comissões<br />

de socorro os ingressos indispensáveis ao<br />

recebimento da ração diária. Foi assim que cerca de<br />

vinte cinco mil retirantes estacionaram aqui, aguardando<br />

transporte para o sul ou para o norte. Perto<br />

de vinte e três mil saíram barra a fora, ao léu da<br />

sorte. Muitos morreram nos seringais da Amazônia.<br />

Dos poucos que buscaram terras mineiras ou paulistas,<br />

alguns regressaram desencantados, outros por lá viveram<br />

ou vivem ainda, arrastando o infortúnio do<br />

trabalhador nordestino.<br />

Há três séculos que fazemos esta jornada dolorosa,<br />

desamparados e sozinhos.<br />

Estão, pois, justificados, e confirmados, os dois versos da 25ª.<br />

sextilha do Canto 1:<br />

Um punhado de farinha<br />

faz um rei – do que o tiver!<br />

Porque o que acontecia, quanto às precárias possibilidades de<br />

subsistência, apontadas por Osias Guimarães e Eloy de Souza, acontecia<br />

nas capitais, em plena capital. Aqueles heróis do poema estavam<br />

no coração do deserto, em plena fuga pânica diante do flagelo!


Arrasta pau-d’arco e rês:<br />

Em baixo, o rio, demasiado opulento, excede o leito,<br />

transvasa e dilata-se pelas margens, cobrindo as planícies<br />

laterais e tomando, às vezes, uma légua de<br />

largura. É a cheia, um mar toldado e barrento, acarretando<br />

de roldão os troncos arrancados e não raro,<br />

grandes árvores frondosas. E a inundação cobre as<br />

planícies, seis e oito dias... (Tavares de Lira, transcrevendo<br />

Domingos Barros, na Corografia)<br />

É o rio que “desce”! Lá vem a água, a roncar, sertão<br />

abaixo. Na frente, na “cabeça” acachoada, turbilhonam<br />

madeiros, garranchos, arbustos, troncos que se<br />

abarreiram de encontro às pedras do leito, ribanceiras<br />

a se diluírem sustidas por entretecimentos de<br />

raízes de uma solidez de taipa, estacas pontudas de<br />

cercas, longos “paus de bebedouros”, cadáveres de<br />

animais... (Gustavo Barroso, obra citada).<br />

Masseira n’água: No sertão, em grandes áreas, não há canoas<br />

em uso. Na emergência das grandes enchentes, o povo se tem servido<br />

das masseiras das padarias, ou de grandes gamelas que, nas<br />

engenhocas de alguns sítios, servem aos trabalhos do mel, ou de<br />

formas de açúcar. Quando era possível, adaptavam-se aos flancos<br />

da improvisada embarcação barrotes de mulungu (cuja madeira,<br />

seca, é semelhante à cortiça) a fim de minorar as condições de<br />

flutuação. Seis, oito, e mais, bons nadadores iam-se impelindo, a<br />

braço, vigorosamente, laboriosamente, contra tremenda força e<br />

as mil traições da correnteza. E o trajeto era sempre realizado<br />

numa dilatada curva em diagonal à margem oposta.<br />

“A masseira foi sair lá na passagem da craibeira grande; lá no<br />

sítio de Fulano, na oiticica de Beltrano”, etc., eram expressões<br />

próprias, desses dias e noites de angústia e alvoroço, partilhados<br />

239


240<br />

por dois terços, e mais, da população ribeirinha, que acudia em<br />

massa, desejosa de ajudar, a comentar, a sugerir, a estimular os<br />

nadadores, oferecendo auxílio, comentando o “despotismo” d’água.<br />

Assim se salvavam bichos da criação, miunças, etc., e mesmo pessoas,<br />

surpreendidas na outra margem do rio, pela inundação.<br />

Búzio: Grande caramujo das praias, univalve (Cassis tuberosa). A<br />

carapaça, perfurada no ápice, serve, nas fazendas, de trompa, a<br />

cujo som cavo e melancólico, diferentemente modulado, se dão<br />

sinais de alarme por incêndio no pasto, invasão de gado nas roças,<br />

aviso aos trabalhadores do campo para as refeições e para largar as<br />

tarefas, orientação a pessoas “ariadas” (perdidas) no mato, etc.


1 Rápido, veloz, apressado.<br />

2 Abrindo sarja em; fazendo incisão em.<br />

3 Reunindo-se para formar um todo.<br />

4 Ver nota de OM.<br />

5 Idem.<br />

Notas<br />

6 Espécie de guindaste usado para levantar grandes pesos em construções.<br />

7 O mesmo que ozônio, variedade alotrópica do oxigênio.<br />

8 Ver notas de OM.<br />

9 Escuro, sombrio, sem transparência.<br />

10 Ver nota de OM.<br />

11 Sorumbático, macambúzio, mal-humorado.<br />

12 Que possui a violência, o poder de destruição, o brilho e a rapidez de um<br />

raio.<br />

13 Oração que o povo tem o costume de rezar quando troveja. Ver nota de<br />

OM.<br />

14 Rute, a moabita. Personagem do Antigo Testamento, ascendente de Davi e<br />

Jesus.<br />

15 Ver nota de OM.<br />

16 Do verbo bromar: deu para trás; falhou, gorou, malogrou.Ver nota de<br />

OM, no Canto 13.<br />

17 Ver nota de <strong>Othoniel</strong>.<br />

18 Erva que brota com as primeiras chuvas. Ver nota de OM.<br />

19 Agar. Escrava egípcia de Sara. Teve um filho de Abraão, Ismael. De acordo<br />

com relatos históricos, os árabes descendem de dois ramos. O primeiro,<br />

originário de Kahtan, filho de Heber, na quarta geração de Noé. O segundo<br />

ramo, originário desse Ismael (ou Ismail).<br />

20 Ver nota de OM.<br />

21 Referência à “Ilíada”, poema do grego Homero (século VIII a.C.).<br />

22 Ver nota de OM.<br />

23 Idem.<br />

241


242<br />

24 Idem, idem.<br />

25 Nuvens muito baixas (0 a 1000m) de aspecto estratificado que cobrem<br />

largas faixas horizontais do céu, como um tapete com uma cor cinzenta<br />

mais ou menos uniforme. Por vezes estão na superfície como um nevoeiro.<br />

Quando se apresentam fracionadas são chamadas fracto-stratus (FS).<br />

26 Nuvens que se formam na alta troposfera, tipicamente a uns 8<br />

mil metros de altitude, numa temperatura ambiente inferior a 0ºC. São<br />

por isso constituídas por microscópicos cristais de gelo, que devido à ação<br />

dos ventos de grande altitude ficam com a aparência de novelos muito<br />

finos de cabelo branco. Têm um aspecto delicado, sedoso ou fibroso, de<br />

cor branca brilhante.<br />

27 Felipe Néri de Brito Guerra (Augusto Severo/RN, 26-05-1867-<br />

Natal/RN, 04.05.1951). Deputado estadual, procurador, desembargador,<br />

secretário de Estado, educador, sociólogo, historiador. Publicou Secas contra<br />

as secas, Ainda o Nordeste, A seca de 1915, O porto de Mossoró, História militar do<br />

Rio Grande do Norte.<br />

28 “Prognóstico Geral e Particular para todos os Reinos e Províncias”. Da<br />

lavra do valenciano Jeronymo Cortez, publicado em 1703, em Lisboa.<br />

Hoje o Lunário é uma preciosidade só encontrada na estante dos estudiosos<br />

ou bibliófilos. O raro almanaque trata da natureza dos ventos, prognósticos,<br />

épocas ideais para sementeira relacionadas com os astros, remédios<br />

universais à base de plantas, efeitos de Saturno, de Marte, sobretudo<br />

da Lua, fluxos e refluxos das marés, e de uma infinidade de outros assuntos<br />

e generalidades. Por quase 300 anos, o Lunário foi o livro mais lido nos<br />

sertões do Nordeste, principalmente por cantadores da tradicional arte<br />

do versejar, da cantoria.<br />

29 Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero. Crítico, jurista,<br />

ensaísta, folclorista, polemista, professor e historiador da literatura brasileira,<br />

nasceu em Lagarto/SE, em 21 de abril de 1851, e faleceu no Rio de<br />

Janeiro/RJ, em 18 de julho de 1914. Pertenceu à Academia Brasileira de<br />

Letras.<br />

30 George Garnir. Botânico escocês. Escreveu Travels in the interior of Brazil<br />

(Londres, 1846). Visitou o Ceará, em 1841. Coletou, inclusive, fósseis –<br />

estudados depois na Universidade de Harvard, por Louis Agassiz.<br />

31 Que ilude; quimérica.


32 Graciliano Ramos de Oliveira (1892-1953), no magistral Vidas secas<br />

(1938), faz referência às rezas fortes e à Ave-Maria, que “podiam esconjurar<br />

a seca e curar a novilha raposa que andava tresmalhada”. Fabiano e a<br />

família vão a igreja pelo Natal e “rezam para esconjurar os malefícios e<br />

doenças do gado.”<br />

33 Engurujado; encolhido com frio, ou por doença; de penas ou pêlo<br />

arrepiados; retraído, reservado.<br />

34 Tecido de seda ou linho, muito ralo e transparente.<br />

35 Arnaldo Pimenta da Cunha. Engenheiro fluminense, literato, primo<br />

e colaborador de Euclides da Cunha. Radicado na Bahia, foi secretário de<br />

Estado e prefeito de Salvador.<br />

243


Canto 3<br />

Cântico dos cânticos


Sobre o solo, que as amarílis atapetam, ressurge triunfalmente<br />

a flora tropical.<br />

É uma mutação de apoteose.<br />

Os Sertões, p. 46


Chegou abril. Quanto ninho!<br />

Pulam corgos, no caminho.<br />

Leite! A boiama em tropel...<br />

Cantigas, pelos roçados.<br />

Os cabeços, 1 refrondados,<br />

porejam resina e mel.<br />

O panasco, um mar de seda,<br />

se expande, afoga a vereda,<br />

chamalotando 2 na luz...<br />

Esmalta-se o chão, de flores;<br />

pendões, botões multicores,<br />

vermelhos, roxos, azuis.<br />

Alto, verde, bonecado, 3<br />

junto ao mocó 4 enflorado,<br />

balança-se o milharal.<br />

Naninha a saia arrregaça,<br />

apanha o feijão macassa, 5<br />

cantarolando... (É um postal!).<br />

Trescala a alfazema agreste.<br />

De alfombra 6 a serra se veste,<br />

garrida 7 como um andor.<br />

Pedras, de formas estranhas,<br />

– letreiros, frades, peanhas 8 –<br />

dão mais mistério ao sol-pôr...<br />

249


250<br />

Mil canários amarelos<br />

corruchiam ritornelos, 9<br />

a fervilhar no umari.<br />

De um desses lances, talvez,<br />

é que Carlos Gomes 10 fez<br />

O allegro 11 do “Guarany”. 12<br />

Cristo na várzea, o espinheiro<br />

abre os braços, num cruzeiro<br />

de flor de maracujá...<br />

Junto, o córrego, cantando.<br />

À beira d’água, assuntando, 13<br />

sozinha, uma garça está.<br />

A jaçanã grasna e voa<br />

sobre os juncos da lagoa:<br />

– a asa é um leque de charão... 14<br />

Vidrilha o sol, na água parda.<br />

Longe, um tiro de espingarda<br />

retumba, na solidão.<br />

A sensitiva dos prados<br />

oferta os flocos rosados,<br />

de humilde, suave matiz.<br />

– Malícia, moça dengosa,<br />

tua mãe morreu! – Pesarosa,<br />

murcha, da ponta à raiz...<br />

Bem cedinho, na quietude<br />

da água tépida do açude, 15<br />

Marias se vão banhar.


Confidências de matutas...<br />

– Bredo-azedinho, 16 o que escutas,<br />

é de fazer-te adoçar!<br />

Crespo, vivaz, soberano,<br />

o melão-de-São Caetano<br />

tufa, em macios dóceis;<br />

sobe a um pau-d’arco alto, enorme:<br />

o pau-d’arco é um rei, que dorme<br />

com um manto estrelado aos pés...<br />

Barrancas, cercas, taperas,<br />

pululam de primaveras.<br />

Mesmo este negro alcantil,<br />

cama 17 de cabras e ovelhas,<br />

vela em boninas vermelhas<br />

o solitário perfil.<br />

A salsa andava de rastros:<br />

agora, viceja, em nastros, 18<br />

volutas, 19 conchas, torçais;<br />

pendura grinaldas, na horta;<br />

aos ombros da aroeira morta,<br />

joga uma echarpe lilás...<br />

Reses, miunças, aos saltos,<br />

escaramuçam, nos altos,<br />

correm ao rio, em rumor,<br />

os olhos todos em chama.<br />

E, em vez de tosarem grama,<br />

tosam tapetes de flor... 20<br />

251


252<br />

A madressilva se estrela,<br />

sobe, em cachos, à janela<br />

do sobrado onde eu morei...<br />

Em tanta flor, quem pensava?<br />

– Parece a “Roseira Brava”,<br />

de Palmyra Wanderley. 21<br />

Relinchos, cantos, pipilos,<br />

sobem, dos vales tranquilos,<br />

descem, nos ecos da chã...<br />

Borboletas, às centenas,<br />

bandos de rolas morenas,<br />

giram, na luz da manhã.<br />

Amai, pássaros românticos!<br />

Isto é o Cântico dos Cânticos, 22<br />

inverno é ressurreição!<br />

Com tanta pompa de cores,<br />

não teve mais esplendores<br />

a corte de Salomão...


Notas ao Canto 3<br />

Bonecado: Cheio de “bonecas”. Boneca é a espiga nova, envolta<br />

em compridos fios dourados ou róseos (cabelo-de-milho).<br />

Mocó: Variedade de algodão, tão admiravelmente adaptada ao clima<br />

do alto sertão do Estado – em especial, do Seridó – que, de há<br />

muito, é considerada da região. O nome decorre da semelhança<br />

das sementes, miúdas e lisas, com o excremento do mocó (Ver a<br />

anotação a esta palavra, no Canto 6).<br />

Vive, o algodão mocó, 15, 20 anos, e mais, sempre produzindo<br />

compensadoramente. Devido a esta excepcional longevidade figura<br />

como bem de raiz, nas transações jurídicas, sendo a propriedade<br />

dos roçados como tal, transmitida de pais a filhos.<br />

Afirma o Dr. Cristóvão Dantas, 23 especialista de renome internacional:<br />

O mocó tem uma existência prolongada; dura, na<br />

média, quinze anos, produzindo todos os anos. E a<br />

sua capacidade produtora, não obstante ser ele um<br />

algodão de fibras longas é superior à capacidade produtora<br />

dos algodões de fibras curtas, que são considerados<br />

os mais prolíficos. É fácil encontrarem-se<br />

plantas acusando um cumprimento de fibras de acima<br />

de 50 milímetros. Isto, sem cuidados culturais,<br />

devido tão-somente à reação fisiológica entre a planta<br />

e o meio físico.<br />

Quando se pensa que, nos Estados Unidos e no Egito,<br />

para se alcançar nos algodoeiros um comprimento<br />

de fibras que tal, faz-se mister que exista um exército<br />

de selecionadores e agrônomos, ajuíza-se muito<br />

bem da superioridade das condições naturais do nos-<br />

253


254<br />

so Estado sobre as do meio algodoeiro americano e<br />

egípcio.<br />

(Artigo transcrito em Leituras Potiguares).<br />

Macassa: Qualquer espécie de feijão-de-corda, 24 o que enrama,<br />

e dá bagens longas, meio cilíndricas. Feijão-de-arranca (porque,<br />

na colheita, se arranca toda a planta) são o mulatinho, o vermelho,<br />

o gurgutuba, o enxofre (variedade sulista, vinda de pouco aos<br />

mercados do sertão), o preto, etc.<br />

Essas denominações [observa Gustavo Barroso, em<br />

Terra de Sol, página 76] “decorrem do aspecto do feijão:<br />

o mulatinho, é muito escuro, quase preto; o de<br />

arrancar, porque para colhê-lo, se arranca o pé; o de<br />

corda, porque os seus galhos lembram cordas; o careta,<br />

porque as suas pintas brancas formam uma espécie<br />

de quebra-cadeira, porque, sendo muito rasteiro,<br />

quem o colhe é obrigado a se baixar muito,<br />

ficando com as cadeiras doídas; o acalenta menino,<br />

porque é tão bom, dizem, que acalenta os próprios<br />

meninos chorões.”<br />

Assuntar: Pensar, cismar. Observar, estudar o ambiente.<br />

Açude: Eis um belo poema, com este título, do poeta conterrâneo<br />

Jayme dos Guimarães Wanderley, 25 extraído do livro Espinho de<br />

Jurema, 1934:<br />

Cobra verde esbarrou<br />

no paredão<br />

feito de pedra e cal<br />

e sente arrepio<br />

como alguém<br />

que tem<br />

mal


de sezão<br />

ou vive tremendo de frio....<br />

Marrecas, jaçanãs, mosqueiam a água revolta,<br />

furam aqui,<br />

sobem ali,<br />

cacarejando,<br />

voando,<br />

numa inquietação atroz.<br />

E acocorados nos esconderijos das barreiras,<br />

de vez em quando, ariscos, se levantam<br />

bandos e bandos ágeis de socós...<br />

Marginando-o, bem perto,<br />

a vazante viceja<br />

para a fartura da safra de cereais...<br />

E um regato escorrega molemente,<br />

dos borbotões que o sangrador despeja,<br />

para fertilizar os vegetais.<br />

O crepúsculo escancarou<br />

a boca ensangüentada<br />

sobre a água, que ficou<br />

toda chamalotada...<br />

Cobra de coral<br />

esbarrou no paredão<br />

feito de pedra<br />

e cal...<br />

Azedinho: Azedinha, planta oxilalidácea (oxalis barrelien), espécie<br />

de trevo comestível, muito comum nas margens dos açudes.<br />

Cama: Malhada, lugar ao abrigo do sol e dos ventos fortes, e onde<br />

o gado se acolhe, durante o pino do sol, ou onde dorme durante<br />

a noite.<br />

255


256<br />

Tosam tapetes de flor: “A relva estava tão florida, que os animais<br />

colhiam flores” (José Américo de Almeida, A Bagaceira, página<br />

279).<br />

Anexins e Ditados: “Brasileiro sem feijão está no chão”. “Feijão<br />

é que escora casa”. “Coitadinho do meu pé de feijão, tão pequenino,<br />

e já dando pendão”.


Notas<br />

1 Cume convexo e arredondado de um monte ou de uma pequena serra;<br />

monte relativamente pequeno e arredondado.<br />

2 De chamalote – tecido de textura similar à do tafetá, cuja trama produz<br />

efeitos ondulados no lado direito do tecido.<br />

3 Ver nota de OM.<br />

4 Idem.<br />

5 Idem, idem.<br />

6 Extensão de relva, verdura, flores etc., que recobrem o chão; tapete (de<br />

verdura, flores etc.).<br />

7 Viva, alegre, animada, graciosa, vistosa.<br />

8 Pedestais onde se colocam imagens, estátuas, cruzes, bustos, etc.<br />

9 Repetição mais ou menos regular de um verso no fim ou no início (como<br />

antecanto) de diversas estrofes, ou ainda no corpo da mesma estrofe,<br />

criando uma espécie de rima ou base rítmica para o poema. O poeta,<br />

professor e músico Manuel de Azevedo, estudando o poema de OM,<br />

escreveu no livro Bom-dia sertões, editado pela Fundação José Augusto e<br />

FAPERN (2009), a interessantíssima análise: “Sertão de Espinho, de Flor<br />

e de Música – Sinfonia Poética Sertaneja – a Música na Obra de Ohtoniel<br />

<strong>Menezes</strong>”. Nesse trabalho, o mestre de Santana do Matos exalta os conhecimentos<br />

musicais de OM.<br />

10 Antônio Carlos Gomes (Campinas/SP, então Vila Real de São Carlos,<br />

11.07.1836-Belém/PA, 16.09.1896). Músico erudito, maestro paulista,<br />

autor das óperas Colombo, O condor, O escravo, Fosca, O guarani, Joana de Flandres,<br />

Maria Tudor, A noite do castelo, Salvador Rosa.<br />

11 Alegro. Composição ou fragmento musical que tem andamento rápido,<br />

vivo, animado.<br />

12 Il guarany. Ópera-balé, do citado Carlos Gomes, em quatro atos. Libreto<br />

de Antônio Scalvini, concluído por Carlo D’Ormeville, baseado no romance<br />

do mesmo título de José de Alencar. Estreiou em 19 de março de<br />

1870, no Teatro Alla Scala de Milão, Itália.<br />

13 Ver nota de OM.<br />

14 Verniz negro ou vermelho, preparado na China ou no Japão.<br />

257


258<br />

15 Ver nota de OM.<br />

16 Ver nota de OM.<br />

17 Ver nota de OM.<br />

18 Fitas, faixas, tiras estreitas de seda, prata, ouro etc.<br />

19 Ornatos em espiral, qualquer elemento decorativo enrolado em espiral.<br />

20 Ver nota de OM.<br />

21 Palmyra dos Guimarães Wanderley (Natal/RN, 06.08.1894-Natal/<br />

RN, 19.11.1978). Jornalista, poetisa. Publicou Esmeraldas (1918), Roseira<br />

brava (1929). Irmã de Jayme dos Guimarães Wanderley. OM homenageou-a,<br />

batizando-a de Regina Poetarum.<br />

22 Poema de Salomão, rei de Israel, filho de Davi.<br />

23 Cristóvão Bezerra Dantas (Natal/RN, 19.04.1900-Natal/RN,<br />

17.10.1965). Engenheiro-agrônomo, foi secretário de Estado, jornalista,<br />

deputado federal. Publicou, em 1921, Lavoura seca do Rio Grande do Norte<br />

(Imprensa Oficial). Foi da ANRL.<br />

24 Vigna unguiculata. Vulgarmente chamado de feijão-de-corda, feijão<br />

macassa, caupi e outros. Predominante na região Nordeste e na Amazônia<br />

25 Jayme dos Guimarães Wanderley (Natal/RN, 06.06.1897-Natal/<br />

RN, 24.02.1986). Poeta, jornalista, bacharel em Farmácia, teatrólogo, radialista,<br />

professor, servidor público, amigo de infância de OM. Pertenceu<br />

às duas Academias de Letras do Estado e foi presidente e fundador do<br />

Clube de Poesia de Natal. Prolífico, trabalhador incansável, publicou mais<br />

de vinte livros, deixando vasta obra inédita. Em certa fase da longa existência,<br />

afligido por problemas pessoais, entregou-se à boêmia desregrada.<br />

Espírito superior, amparado pelos amigos e pela segunda esposa, sobrepôs-se<br />

às dificuldades e viveu serenamente, trabalhando e produzindo até<br />

falecer aos 89 anos.


Canto 4<br />

Apartação


De repente estruge 1 ao lado um estrídulo tropel de cascos<br />

sobre pedras, um estrépito de galhos estalando, um estalar de<br />

chifres embatendo; tufa nos ares, em novelos, uma nuvem de<br />

pó; rompe, às súbitas, na clareira, embolada, uma ponta de<br />

gado; e, logo após, sobre o cavalo que estaca esbarrado, o vaqueiro,<br />

teso nos estribos...<br />

Os Sertões, p. 126


JUNHO, da cor das espigas,<br />

nada em sambas e cantigas,<br />

visões, impressões gentis.<br />

Toda a passada amargura,<br />

esquecida, na fartura<br />

desse interlúdio feliz...<br />

Tresmalha, o gado. É preciso<br />

trazê-lo, de novo, ao piso<br />

da pastagem de criação.<br />

No Sombrio, à légua e meia,<br />

é vaqueiro que enxameia.<br />

Vai fazer-se a apartação. 2<br />

Janelas e portas, sujas<br />

de riscos e garatujas,<br />

monogramas e sinais;<br />

a fogo, acima, outras marcas<br />

– são ferros 3 de patriarcas,<br />

que não prevalecem mais.<br />

Baié traça uma, na areia.<br />

– É de Antão das Zangareia! 4<br />

explica <strong>In</strong>ácio Gogó.<br />

– Num tá veno o S, cortado,<br />

embora munto apagado?<br />

– Rebera do Seridó!<br />

263


264<br />

Um grupo discute, à parte.<br />

Um vaqueiro de Dinarte 5<br />

fala de gado zebu: 6<br />

– Diale! come inté velame!<br />

porém num respeita arame,<br />

num respeita côro cru!<br />

O curral enche-se, à cunha.<br />

Um touro preto desunha, 7<br />

escarvando 8 no tauá. 9<br />

A três rivais tomou contas:<br />

levou-os nos chuços das pontas,<br />

desde os mourões, ao jucá.<br />

Dois cavalos bons de gado<br />

esperam, de cada lado<br />

da porteira, a sapatear,<br />

o olho em brasa, a orelha fita...<br />

– Acunha o azeitão! – é a grita.<br />

O monstro espirra, 10 a espumar...<br />

Com poucos metros de perda,<br />

um à direita, outro à esquerda,<br />

erguendo golfões de pó,<br />

os dois centauros avançam.<br />

Um minuto... dois... alcançam!<br />

– vão mesmo no mocotó! 11<br />

Já pertinho da oiticica,<br />

Titonho aperta a mucica<br />

– que baque sensacional!


O bicho, que é redoleiro, 12<br />

torou um pé de facheiro, 13<br />

com a mó 14 da espinha dorsal...<br />

Lá vem, de chouto, mancando...<br />

Os estrepes vêm brilhando,<br />

na almofada do cupim. 15<br />

– Azeitão, 16 vai fazê renda? –,<br />

troça, o dono da fazenda.<br />

– Esse couro fica é ruim!<br />

Agora, é a vez da novilha.<br />

É um raio! Mas, logo, a cilha<br />

de Planeta se quebrou!<br />

Florado corre sozinho...<br />

Entra com ela no espinho; 17<br />

lá se vão... – Êh, cou! êh, cou!<br />

Mas, Lula não desanima!<br />

Vai de rojeiro, por cima<br />

de amorosa e gravatá<br />

e, agora, montado em osso!<br />

Planeta enfinca 18 o pescoço<br />

na rês – rebenta-lhe a pá!<br />

Aclamações, de mistura<br />

com uma vaia em Zé-Gastura,<br />

que é metido a valentão,<br />

mas, vendo a vaca malhada<br />

sacudir, perto, a papada,<br />

ganhou, de um salto, o mourão.<br />

265


266<br />

– Conde um touro tá co’a droga,<br />

diz Zumbéca, tira a goga 19<br />

dos metido a topadô; 20<br />

si é tropo 21 , fica ligeiro,<br />

se assóbe inté nos facheiro,<br />

dispois é que sente as dô...<br />

– Eita, badejo! 22 Alto, grita<br />

u’a morena bonita,<br />

do alpendre, batendo o pé.<br />

Badu, já velho, acrescenta:<br />

– Ah, cabra fixe, setenta!<br />

tem trato com Lucifé!<br />

Com modéstia mais singela,<br />

põe Lula, de novo, a sela<br />

(um dos loros 23 se perdeu)<br />

e volta ao pátio. Calado,<br />

esconde o cravo encarnado,<br />

que a moreninha lhe deu.<br />

De cáqui, todo pachola, 24<br />

num quartauzão 25 manquitola, 26<br />

lá vai Bíu Sunganenen.<br />

Berra, em coro, a molecada:<br />

– Tiborna! 27 Arreda da estrada!<br />

Tira essa besta conhén! 28<br />

Longe, o aboio. O gado muge.<br />

No meio do ruge-ruge,<br />

grita a janta, Dona <strong>In</strong>ês.


– Queijo, paçoca, imbuzada...<br />

Que fartura perfumada,<br />

sobre o toalhão de xadrez!<br />

A um canto, João de Binona<br />

coça o bucho 29 da sanfona,<br />

escanchado num baú.<br />

O zambê 30 vai ser de arranco,<br />

obrigado a vinho branco,<br />

cachaça e mel de uruçu...<br />

267


268<br />

Notas ao Canto 4<br />

Apartação: Encurralamento de grande número de reses, para<br />

serem identificadas, ferradas, e entregues aos respectivos proprietários.<br />

Em certas ocasiões, no inverno, a fim de fazer a apartação<br />

dos gados misturados, reúne-se a ‘vaquei-rama’<br />

toda de uma ribeira. Escolhe-se um campo, um tabuleiro,<br />

um vasto prado, próprios às proezas da<br />

estardiota 31 sertaneja. É um dia de festa, como o ‘adjunto’<br />

para os seareiros. Todos se apresentam em seus<br />

mais folgados e melhores cavalos de campo, arreios<br />

fortes, véstias (roupas de couro) pespontadas de branco.<br />

É a vaquejada. Os vaqueiros tocam todo o gado<br />

daquela redondeza para aquele lugar. É um belo espetáculo:<br />

centenas de vaqueiros fortes, desempenados,<br />

vestidos de couro de capoeiro (veado) da cabeça<br />

aos pés, cavalgando, num baralhamento, entre nuvens<br />

densas de poeira; milhares de rezes mugindo,<br />

batendo os chifres, medrosas, espantadiças,<br />

corcoveando, escoicinhando-se, numa barafunda de<br />

movimentos e sons que, de quando em quando, domina<br />

o urro potente e pausado de um novilho fusco,<br />

32 balanceando o cupim lustroso do pescoço. Começa<br />

a apartação, a divisão do gado em lotes, conforme<br />

os donos. Trocam-se noticias de animais sumidos,<br />

roteiros de gados tresmalhados, alborcam-se<br />

boiotes e novilhos, barganham-se cavalos. Quando<br />

uma rês ‘arranca’ assustadiça no meio da boiada e<br />

vara campo em fora, pronta a ‘amocambar-se’ nos<br />

matos, partem-lhe quase sempre dois vaqueiros no<br />

piso: um cerca-a de lado, ‘fazendo esteira’, o outro


procura pelo outro lado, ‘tarrafeando’, ‘fazem mão<br />

na bassoura’ – pegar-lhe o rabo, ‘fazer Piauí’, ‘dar a<br />

mucica’ e o ‘quedaço’. Há todo um argot, 33 na<br />

vaquejada (Gustavo Barroso, ob. cit., p. 51-52).<br />

De longe, ouve-se o estrupido do tropel, o estalar<br />

dos galhos e o eco do vaqueiro, em um mesmo rumor<br />

confuso de trovoada distante. E a carreira desabalada,<br />

turbilhonante, tremenda, prossegue pela caatinga<br />

adentro. A rês não para, e o vaqueiro não cede,<br />

por dever de oficio, por brio e pundonor, mas também<br />

pelo gosto de aventura, pelo prazer do obstáculo<br />

vencido à custa do próprio esforço e com risco da<br />

própria vida.<br />

Só um cavalo do sertão, montado por um sertanejo,<br />

persegue uma rês na caatinga. Os dois são um só<br />

todo solidário, uma só vontade, destra, inteligente e<br />

ágil. O ágil não é guiado, conhece o que vai fazer, e<br />

age com inteira consciência. Corre encostado à anca<br />

da rês, e nunca se distancia. (Domingos Barros, em<br />

Leituras Potiguares”, p.70-80).<br />

Veja-se, adiante, a anotação ao verso “Planeta infinca o pescoço”.<br />

Ferro, marca: Vide verbete Barbatão, Nota do Canto 1.<br />

Fala de gado zebu: Em carta ao Autor, depõe um dos mais adiantados,<br />

experientes criadores do Seridó:<br />

Não sou partidário do gado indiano, e não o admito,<br />

senão como um meio rápido de melhorar o nosso<br />

‘crioulo’. Pela seleção, chegaríamos a um gado muito<br />

melhor que o zebu, partindo daquele. Dá-se, porém,<br />

que o nosso criador não vai esperar pelo resultado<br />

da seleção e, assim, prefere logo o zebu, cuja<br />

269


270<br />

percentagem, entretanto, em nosso meio, é ainda<br />

muito inferior ao crioulo.<br />

Espirrar: Sair de ímpeto, disparar de dentro do mato, ou da boiada<br />

em marcha.<br />

No mocotó: Muito próximo, tocando já o calcanhar ou os tornozelos<br />

(mocotós) do que vai na frente.<br />

Mucica: Ou saiada. Impulso rápido e violento, que aplica o vaqueiro,<br />

fazendo “abrir” o cavalo para a esquerda ou para a direita.<br />

Logo que pode enrolar firme, na mão, a cauda da rês perseguida.<br />

A variante indicada acima provém de saia, sinônimo de cauda, a<br />

que também chamam os vaqueiros de bassoura, sedém, 34 tipiti,<br />

bandeira, cabo, etc.<br />

Redoleiro: Rotundo, corpulento, pesadão, chamurro.<br />

Facheiro: Mandacaru (ver Nota no Canto 1).<br />

Cupim: Geba, protuberância muscular, na parte superior do pescoço<br />

dos touros. É uma analogia, em relação ao formato e tamanho<br />

ordinário dos ninhos de térmitas (cupins).<br />

Azeitão: Cor de azeitona, pardo-escuro.<br />

Entra com ela no espinho:<br />

Por vezes, o vaqueiro não consegue apanhar um novilho<br />

no pátio e internam-se ambos no marmeleiro<br />

ou na caatinga. Então a corrida torna-se perigosa. O<br />

amor-próprio do primeiro, a quem parece já estar<br />

ouvindo a risota com que os outros lhe dirão: ‘Você<br />

botou o bicho no mato!’; o desejo insano de vencer a<br />

velocidade de um animal livre pela de outro que leva<br />

grande peso em cima, até o despeito cômico, a ‘rai-


va’ contra a rês que não se deixou pegar, tiram-lhe a<br />

razão. E, sem cuidado, desviando-se apenas instintivamente<br />

das árvores e das pedras, a cabeça baixa, o<br />

sólido chapéu de couro calcado sobre os olhos, ele se<br />

arremessa na abertura feita no mato pela carreira<br />

do novilho, saltando macambiras, cujos espinhos, duros<br />

e recurvados, deixam em sangue as pernas do<br />

cavalo, resvalando sobre os lajedos, tropeçando em<br />

troncos caídos, quebrando com as costas troncos atravessados<br />

na passagem – o que eles chamam ‘serrar o<br />

pau com as costas’ – até que, saindo numa capoeira,<br />

ou leito seco de riacho, chega, num esforço supremo,<br />

a atirá-lo ao chão.(“Policarpo Feitosa”, Antônio<br />

de Souza, 35 em Leituras Potiguares, p. 264-266).<br />

De rojeiro: Com violência, de roldão, aos encontrões.<br />

Amorosa: Jurema, da variedade branca (vide Nota, Canto 1).<br />

Em osso: Em pelo; no dorso nu do animal.<br />

Enfincar: Fincar, cravar. Planeta enfinca o pescoço: Entre vaqueiros<br />

famosos, no Seridó e, depois, no Assu, colheu o autor a informação<br />

de que há – ou já houve, nos tempos áureos do pastoreio –<br />

cavalos de campo que, muitas vezes, foram heróis da façanha descrita<br />

na sextilha em anotação. “Correr com o queixo em riba da<br />

anca da rês”, é expressão proverbial de elogio, ainda corrente, no<br />

sertão e nas várzeas imensas do Piranhas e do Upanema, ao valor<br />

da montada de muitos vaqueiros célebres nas duas regiões pastoris<br />

do Estado. Aliás, o cavalo conhece a perna do que o monta. Se<br />

um bom cavalo de gado sente que é pouco experiente o cavaleiro,<br />

avança sobre a rês perseguida, encosta-lhe o queixo no traseiro<br />

(mucumbu, 36 segundo a gíria matuta), só estacando quando o bicho<br />

e o estreante indeciso ou covarde rolam confundidos na mes-<br />

271


272<br />

ma poeirada do baque, sobre as touceiras de macambira, ferefogo<br />

ou palmatória, ou se escornam, ressupinos, 37 no pedregulho<br />

granulado das encostas do tabuleiro...<br />

Vide, a propósito, a citação de Domingos Barros, neste Canto,<br />

na palavra Apartação.<br />

Droga: 38 O diabo. Abórco (diabólico). Brasabu. Canhoto.<br />

Capiroto. Capeta. Catoco. Cachorro preto. Cão. Cambraia. Caim.<br />

Dimunho. Diacho. Diale. Dianho. Fute. Futico. Enticrito. Magro.<br />

Malino. Maldito. Não-sei-que-diga. Lucifé. O sujo. Pé-de-pato. Péde-quenga.<br />

Pé-de-cinza, Tinhoso. Satanás. Zumbi. Usados, todos,<br />

como substantivos.<br />

Goga (ó): Falsa valentia. Farrambamba. Gás. Lambança. Ganja.<br />

Lodaça. Pabulagem. Roço. Garganta. Bafo de boca. Goma (“Urubu<br />

caga goma, mas não tem casa de farinha”). Roço (de rocio) é<br />

mais empregado na acepção do orgulho, soberba: “Fulano carrega<br />

um roço marvado...”.<br />

Topador: O que usa o agulhão (ou agulhada), para “topar” a rês<br />

enfurecida. Só se conhece a agulhada, em todo o Nordeste, sob o<br />

nome de vara-de-ferrão, que é uma longa haste, ordinariamente<br />

de pau-d’arco. E em cuja extremidade há um pequeno chuço.<br />

“Topar” é receber a pé firme, na ponta de aço da vara, o arremesso<br />

do bovino furioso, ciscando no pátio, ou já encurralado, e que é<br />

preciso amarrar, pear ou “mascarar”, para receber ferro ou ser<br />

“assinalado” (assinado). O topador espicaça-o, de rijo, no focinho,<br />

entre os chifres, no pescoço, etc. A operação requer muita força<br />

muscular, extrema agilidade, absoluto sangue-frio, e tirocínio.<br />

Tropo: Trôpego, lerdo, pesadão, cansado, banzeiro, ronceiro,<br />

redoleiro, chamurro (subst.)<br />

Badejo: Exprime idéia de grandeza. Extraordinário, famoso, de


alta confiança. Baita. Aquilotado. Escanzinado. Sendeiro. “Servage”<br />

(de selvagem), “asservajado”. Danoso, “danasco”, danisco. Biguano.<br />

Pajuaba.<br />

Loro: Correia larga, de sola, da qual pendem os estribos. “Bater<br />

dos loros” é sinônimo de morrer.<br />

Manquitola: Manco, capenga. Caruara. Doentio. Chocho,<br />

esmirrado, guenzo, movido.<br />

Tiborna: Coisa sem valia. Espora (adjetivo). Ticaca, joça, pinóia,<br />

mixaria, porqueira, troço, mangalho.<br />

Conhém: O mesmo que tiborna (é adjetivo). Doente, mirrado.<br />

Coçar o bucho: Afinar, experimentar o instrumento de corda<br />

(violão, bandolim, cavaquinho). Ele, além de outras variantes.<br />

273


274<br />

1 Soa ou vibra fortemente; estronda, retumba.<br />

2 Ver nota de OM.<br />

3 Idem.<br />

Notas<br />

4 Zangarelhas, propriedade rural no Município de Jardim do Seridó. Na<br />

década de 1950, inugurou-se, na região, um açude, construído pelo Governo<br />

Federal.<br />

5 Dinarte de Medeiros Mariz (Serra Negra do Norte/RN, 23.08.1903-<br />

Brasília/DF, 09.07.1984). Fazendeiro, comerciante, industrial, político.<br />

Foi prefeito (de Caicó), senador, governador do Estado. Afável, generoso,<br />

amigo dos amigos. Homem de poucas letras, sem anel no dedo. Quando<br />

governador, assinou a Lei nº 2.307, no dia 25 de junho de 1958, criando a<br />

Universidade do Rio Grande do Norte, simbolicamente inaugurando uma<br />

nova realidade na terra potiguar. Apreciador de poesia, era admirador e<br />

contemporâneo de OM – que, politicamente, foi seu adversário, socialista<br />

que sempre foi. Quando senador da República, nos primeiros anos da<br />

década de 1960, amparou o poeta enfermo, auto-exilado no Rio de Janeiro,<br />

para onde, magoado, fugira à desatenção, à inimizade, à prepotência e à<br />

vingança do poderoso de plantão Aluízio Alves, à época, governador do<br />

RN, e seus zíngaros cortesãos. Ver nota neste volume sobre Aluízio Alves.<br />

6 Ver nota de OM.<br />

7 Dispara, corre.<br />

8 Abrindo escarvas, escavando (o solo) de maneira superficial, como faz o<br />

cavalo com as patas.<br />

9 Areia, chão erodido.<br />

10 Ver nota de OM.<br />

11 Idem.<br />

12 Idem.<br />

13 Idem.<br />

14 Grande massa; grande quantidade. Alusão ao cupim do animal. Ver nota de<br />

OM.<br />

15 Ver nota de OM.<br />

16 Idem.


17 Ver nota de OM.<br />

18 Idem.<br />

19 Idem.<br />

20 Idem.<br />

21 Trôpego; que anda com dificuldade, que mal consegue mover os membros<br />

ou locomover-se; tropo (Houaiss).<br />

22 Ver nota de OM.<br />

23 Idem.<br />

24 Bom, simples, ingênuo, para quem tudo está bem, bonachão; gracejador,<br />

brincalhão; gozador.<br />

25 Aumentativo de quartau – cavalo manso, castrado.<br />

26 Ver nota de OM.<br />

27 Coisa ruim, desprezível, sem valor; porcaria. Ver nota de OM.<br />

28 Ver nota de OM.<br />

29 Idem.<br />

30 No Dicionário do folclore brasileiro (1954), Câmara Cascudo transcreveu<br />

toda a sextilha, que oferecia nova acepção ao vocábulo “zambê”.<br />

31 Estardiota. Ou estradiota. Modo de montar, escola, estilo de equitação.<br />

Maneira de andar a cavalo com estribos longos e pernas estendidas – ao<br />

contrário da gineta (estribos curtos). Tipo, modalidade, de sela de montaria.<br />

Dizem que o primeiro tratado de equitação conhecido é de Simão de<br />

Atenas (século VI, a.C.).<br />

32 Diz-se do gado de pelo escuro, preto.<br />

33 Gíria.<br />

34 O traseiro, as nádegas, sedenho.<br />

35 Antônio José de Melo e Souza (Nísia Floresta/RN, 24.12.1867-Recife/PE,<br />

05.07.1965). Político, escritor, professor, advogado, jornalista,<br />

senador. Foi, duas vezes (1907-1908, 1920-1924), governador do RN.<br />

Escrevia às vezes sob dois pseudônimos: “Polycarpo Feitosa” e “Francisco<br />

Macambira”. Publicou vários livros, entre eles Gizinha, romance (Tipografia<br />

do Anuário do Brasil, 1939). OM trabalhou no seu Gabinete, de<br />

Secretário-Geral do Estado, no quadriênio 1920-1924. Foi nessa gestão<br />

promovido por Antônio de Souza de segundo a primeiro oficial da Secretaria<br />

(Casa Civil, hoje).<br />

275


276<br />

36 Mucubu, no Ceará.<br />

37 Com os ventres, as barrigas, para cima – deitados de costas.<br />

38 Outros nomes do Droga: Nordeste: Afuleimado, Amaldiçoado,<br />

Arrenegado, Barzabu, Bicho-Preto, Bruxo, Cafuçu, Canheta, Capa-Verde,<br />

Diogo, Diale, Dedo, Ele, Esmolambado, Excomungado, Feio, Feiticeiro,<br />

Ferrabrás, Futrico, Gato-Preto, Imundo, <strong>In</strong>imigo, Lúcifer, Mequetrefe,<br />

Mal-Encarado, Mofento, Não-Sei-Que-Diga, Negão, Nojento, Pé-de-<br />

Cabra, Pé-de-Pato, Peitica, Rabudo, Rapaz, Sapucaio, Sarnento, Tição, Tisnado,<br />

Tinhoso. No Dicionário Aurélio: anhangá, anhanguera, anjo mau,<br />

arrenegado, atentado, azucrim, beiçudo, bicho, bicho-preto, bode-preto,<br />

bute, cafuçu, cafute, caneco, canheta, canhim, canhoto, cão, cão-miúdo,<br />

cão-tinhoso, capa-verde, capeta, capete, capirocho, capiroto, careca,<br />

carocho, cifé, coisa, coisa-à-toa, coisa-má, coisa-ruim, contra, coxo,<br />

cramulhano, cujo, debo, decho (este, ant. e pop.), demo, diá, diabro,<br />

diacho, diale, dialho, diangas, dianho, diogo, droga, dubá, ele (ê), excomungado,<br />

exu, feio, figura, fute, futrico, galhardo, gato-preto, grão-tinhoso,<br />

indivíduo, inimigo, mafarrico ou manfarrico, maioral, maldito, mal-encarado,<br />

maligno ou malino, malvado, mau, mofento, mofino, moleque,<br />

moleque-do-surrão, não-sei-que-diga, nem-sei-que-diga, pé-cascudo, péde-cabra,<br />

pé-de-gancho, pé-de-pato, pé-de-peia, pero-botelho, pêrobotelho<br />

(ê), porco, porco-sujo, que-diga, rabão, rabudo, rapaz,<br />

romãozinho, sapucaio, sarnento, satânico, sujo, temba, tendeiro, tentação,<br />

tentador, tição, tinhoso, tisnado. No Grande Sertão: Veredas, de Guimarães<br />

Rosa, vários aparecem: o Cujo, o Oculto, o Tal, o Que-Diga,o Não-seique-Diga,<br />

o Que-não-Fala, o Que-não-Ri, o Que-nunca-se-Ri, o Sem-<br />

Gracejos, o Tristonho, o Muito-Sério, o Sempre-Sério, o Austero, o Severo-Mor,<br />

o Galhardo, o Romãozinho – um diabo-menino, o Rapaz, o Homem,<br />

o <strong>In</strong>divíduo, Dião, Dianho, Diogo, o Pai-da-Mentira, o Pai-do-Mal,<br />

o Maligno, o Coisa-Ruim, o Tendeiro, o Mafarro, o Manfarri, o Canho, o<br />

Coxo, o Capeta, o Capiroto, o Das-trevas, o Tisnado, o Pé-Preto, o Pé-de-<br />

Pato, o Bode-Preto, o Cão, o Morcego, o Gramulhão, o Xu, o Temba, o<br />

Dubá-Dubá, o Azarape, o Dê, o Dado, o Danado, o Danador, o Arrenegado,<br />

o Dia, o Diacho, o Rei-Diabo, o Demo, o Demônio, o Drão, o Demonião,<br />

Satanazim, Satanão, Sujo, o Dos-Fins, o Solto-Eu, o Outro, o Ele, além de<br />

outras variantes.


Canto 5<br />

Fogo na canjica


[...] Seguem para os sambas e cateretês ruidosos, os solteiros,<br />

famanazes no desafio, sobraçando os machetes, que vibram no<br />

choradinho ou baião, e os casados levando toda a obrigação, a<br />

família. Nas choupanas em festa recebem-se os convivas com<br />

estrepitosas salvas de rouqueiras, e como em geral não há espaço<br />

para tantos, arma-se fora, no terreiro varrido, revestido<br />

de ramagens, mobiliado de cepos, e troncos, e raros tamboretes,<br />

mas imenso, iluminado pelo luar e pelas estrelas, o salão<br />

de baile. Despontam o dia com uns largos tragos de aguardente,<br />

a teimosa. E rompem estridulamente os sapateados vivos.<br />

Os Sertões, p. 130


Hoje, brabo 1 aumenta fama.<br />

Quanto botequim de rama,<br />

na Rua da Conceição!<br />

No chalé de Néo Rosendo,<br />

diz que a coisa está fervendo<br />

– se é noite de Senhor São João!<br />

Cheiro de mato quebrado...<br />

Rasga um foguete, espritado,<br />

o cetim do céu azul.<br />

Claro, com letras e flores,<br />

passa um balão, de três cores,<br />

bojando 2 no vento sul.<br />

Nos botequins, 3 o alvoroço<br />

é enorme. – Aluá, 4 seu moço?<br />

– Não! Lasque cana 5 pra mim!<br />

rosna Tito, já cinzento, 6<br />

formalizado 7 (e ronhento 8 ),<br />

de braço mais Serafim.<br />

– Ele qué, mas é da uva!<br />

Aluá, é pras viúva,<br />

moça, toma capilé. 9<br />

– Cala essa boca, xereta! 10<br />

– seu Tito, mude a espoleta,<br />

se não, quebra o catolé! 11<br />

281


282<br />

O delegado azougou-se 12<br />

com Raimundo Bico-Doce,<br />

por causa do jaburu. 13<br />

– Que sanagoga 14 ispritada<br />

aqui, na minha carçada,<br />

num adoto vavavu! 15<br />

Já ontem, formou-se um rolo 16<br />

porque Florêncio Crioulo<br />

jogou tigre, e deu leão.<br />

Afuleimado, 17 dizia<br />

que a roda tinha ingrisia<br />

de prego, ou breu, ou sabão...<br />

E, o delegado: – Arritira!<br />

só dei orde p’ru caipira 18<br />

de cumpade Buriti!<br />

Bando de cabra de peia!<br />

(apontando pra cadeia)<br />

– Cambo 19 ocês tudo pr’alí!<br />

Fumam, chiando, as fogueiras.<br />

Arcos de palmas, bandeiras,<br />

lanterninhas de papel.<br />

O vento, em bruscas lufadas,<br />

sacode pelas calçadas<br />

folhas, flores, a granel.<br />

No terço de Dona Finha,<br />

que beleza, a ladainha,<br />

tirada por Guiomar!


Mas, virou frege! 20 Um canalha<br />

soltou um mijão 21 na palha,<br />

incendiou todo o altar!<br />

Brada a velha, tiririca: 22<br />

– Traga, depressa, essa arnica!<br />

queimei-me! meu Pai do Céu!<br />

E, no auge da tribuzana, 23<br />

suado, Alfredo Santana<br />

bate o fogo, com o chapéu.<br />

Ele próprio, em combinata<br />

com o Tonho Cabeça Chata,<br />

formou o charivari. 24<br />

Depois do fogo apagado,<br />

comenta, fora, o malvado:<br />

– Foi só pra gente se ri...<br />

– Isso, na rua, num presta!<br />

no verde, 25 é que é fixe a festa!<br />

– lembra Cazuza, entre uns dez.<br />

– Vambora? – Adonde? – É no Arto...<br />

– É longe... – Besteira, é um sarto!<br />

– Vambora, negrada, a pés!<br />

Lá vai o grupo ruidoso.<br />

O mais espalhafatoso,<br />

chegando, dá tiros no ar.<br />

– É pra sarvá a fazenda...<br />

– Doido! <strong>In</strong>furna essa incomenda!<br />

– pode as mulé se ispantá!<br />

283


284<br />

Grita Jóca, do terreiro:<br />

– Viva o santo padroeiro<br />

do logradô 26 do Poção!<br />

– Viva! Viva! – tudo berra.<br />

Repete os ecos, na serra,<br />

o estrondo de um foguetão.<br />

De longe, da Bela Vista,<br />

tinham trazido o Batista, 27<br />

– um vulto, de pé, no andor.<br />

As moças, magote lindo,<br />

cantando o bendito, 28 rindo,<br />

entre os pereiros em flor.<br />

***<br />

Toros de angico e jurema,<br />

labareda cor de gema,<br />

a fogueira se acendeu.<br />

E, enquanto se espera a brasa,<br />

começou, dentro de casa,<br />

animado, o peleleu. 29<br />

Pé-de-ouro, o Tota Veloso,<br />

todo enfronhado 30 e cheiroso,<br />

dança valsa, com Didi.<br />

Tropeça... Explode, afobado:<br />

– O compasso tá errado!<br />

– Eu num danço mai aqui!<br />

O tocador, com malícia,<br />

retruca: – Tive notícia


que, fiota 31 , só você!<br />

– Paluxo 32 , cabra inxirido!<br />

tu só qué vê descosido<br />

teu fole caxinguelê! 33<br />

<strong>In</strong>tervém Bilú Jandaia,<br />

rindo: – Que é isso, canáia?<br />

gaiganta num é ação!<br />

De medo, é sonhim 34 quem morre:<br />

o mais disposto, é quem corre...<br />

Deixa de afuleimação! 35<br />

– Queima! vadeia, 36 meu povo!...<br />

O harmonium 37 rompe, de novo,<br />

uma polca, em si bemol.<br />

Do chão, ao vivo compasso,<br />

sobe um pó vermelho e baço,<br />

que ondeia, à luz do farol. 38<br />

Lá dentro, alastrando a toalha,<br />

que tem uns frisos de malha,<br />

e cheira a cravo e benjoim,<br />

a cangiquinha amarela, 39<br />

com iniciais de canela...<br />

pé-de-moleque... 40 alfenim...<br />

Prato com água, na mesa. 41<br />

Uma vela benta, acesa,<br />

três agulhas, a boiar.<br />

– Lá vem duas, bem juntinho!<br />

(Baticum no peito) – É Guinho,<br />

com quem você vai casar!<br />

285


286<br />

Risadas. Dona Marieta<br />

quebra o ovo da franga preta,<br />

no copo (a água é de cristal);<br />

forma a clara, fio a fio,<br />

o contorno de um navio...<br />

– Xi! prá Siluca, é um naval!<br />

Nanu saiu, de carreira,<br />

direitinho à bananeira,<br />

enfiou no tronco a quicé.<br />

Mas, foi vista por Polônio,<br />

que, com um ciúme do demônio,<br />

cachopa 42 – O nome é Mané...<br />

Mão firme, atenção imensa:<br />

por um cabelo suspensa<br />

sobre o copo, a aliança está;<br />

bateu três vezes na borda?<br />

– São João, já sabe, concorda:<br />

o padre concordará...<br />

Esquivando-se à algazarra,<br />

plantou Bebé, junto à jarra,<br />

um dentinho de alho – um, só!<br />

Ai! nunca teve a alegria<br />

de ver que o alho nascia!<br />

– tem mesmo a sorte cotó... 43<br />

Dalva, a mais sonsa, carreia,<br />

de tudo que houve na ceia,<br />

um pedacinho, e escondeu;


fez jejum. E espera, em sonho,<br />

ver o príncipe risonho<br />

que sua alminha escolheu.<br />

***<br />

Arejando, no terreiro,<br />

aos pares, junto ao braseiro,<br />

que agora mesmo acamou,<br />

namorados assam milho.<br />

– Espiga verde! Teu brilho,<br />

muito segredo levou!<br />

Amenhã – diz Mestre Ubaldo –,<br />

na beirada do rescaldo, 44<br />

bem ante do sol nascê,<br />

bamo espiá, na bacia,<br />

quem vê a filusumia: 45<br />

Si não, o ano é de morrê!<br />

Joaninha, com muito rogo,<br />

três vezes cruzou o fogo,<br />

para ser prima de Almir.<br />

– Me abrace!... – E, Joaninha, nada!<br />

– Chegue! Num seje apocada! 46<br />

reclamava ele, a tinir...<br />

***<br />

O Santo perdoava tudo...<br />

xereta indulgente e mudo,<br />

287


288<br />

quão diferente, hoje és!<br />

Muito antes do Purgatório,<br />

puseste requisitório<br />

a Herodes e Salomés!<br />

Ai, são-joões da minha roça!<br />

Quanto esta alma se remoça,<br />

quanta saudade me traz<br />

da “prima”, que eu vejo, ainda,<br />

a fugir, pálida e linda,<br />

da “igreja” dos resedás!<br />

Fole! Edinor Avelino, 47<br />

estro puro, hermesfontino, 48<br />

“voz da roça” te chamou!<br />

Mais alto, te escuto e vejo:<br />

– és a alma do sertanejo,<br />

que o destino desterrou!


Notas ao Canto 5<br />

Brabo: Valentão, arruaceiro, imbuanceiro, inzoneiro. Também significa<br />

apoucado, acanhado; indivíduo que mora nos sítios,<br />

beradeiro (de beirada, arrebalde).<br />

Botequim: Cabana, improvisada com ramos verdes ou palmas de<br />

coqueiro e catolé, e onde se expunham à venda, durante as festas<br />

populares, em especial as religiosas (Nascimento, Ano Novo, São<br />

João e São Pedro, da Padroeira, etc.), gulodices e bebidas,<br />

foguinhos, etc. Hoje em dia, de resto, com a introdução de modas<br />

e costumes da Capital, já muito evidentes até nas mais apagadas<br />

cidadezinhas do interior, desapareceu quase por completo o delicioso<br />

pitoresco que ofereciam os botequins – substituídos pelas<br />

barracas futuristas, grã-finas, esfervilhantes 49 de lâmpadas voltaicas,<br />

laçarotes de papel crepom, e garçonetes “irresistíveis”. Dois<br />

Henriques – Ford 50 e Castriciano – são os responsáveis imediatos<br />

por essa revolução. Diga-se, aliás, evolução, em abono do que tem<br />

a nossa famosa Escola Doméstica operado, dentro desses trinta<br />

anos, no sentido do progresso social do Rio Grande do Norte.<br />

Irrecusavelmente – repitamos – é a Escola Doméstica o mais belo<br />

dos poemas de Henrique Castriciano.<br />

Os butiquim, qui são feito,<br />

uns maió, outros miúdo,<br />

é um retrato perfeito<br />

daquelas casa sem jeito<br />

dos jagunço de Canudo!<br />

(Zé-da-Luz, 51 “Um Natal na minha terra”,<br />

em O Cruzeiro, 18.12.1948)<br />

Aluá: Beberagem refrigerante, feita de milho fermentado em pote<br />

de barro, adoçado com açúcar, mel de abelha, ou rapadura.<br />

289


290<br />

Cana: Aguardente. A sinonímia é imensa: giribita (ou jeribita),<br />

teimosa, verbena, verbina, sinhaninha, caxixi, tira-frio, tira-teima,<br />

tira-medo, tira-pevide, truaca, veneza, pinga, mata-homem, branquinha,<br />

da boa, espalha sangue, mata-bicho, isprito, mandureba,<br />

parati, major, maior-do-que-deus, malvada, água-que-passarinhonão-bebe,<br />

52 “ela”, restilada, temperada (esta, segundo o testemunho<br />

de um dos mais prestimosos e abalizados correspondentes do<br />

Autor, “serve para dor de veado ou ventosidade encachada...”).<br />

Algumas destas denominações, vê-se logo, decorrem das marcas<br />

industriais mais em evidência, ao tempo da consulta feita ao<br />

apologista da temperada. A maioria, contudo, é clássica na gíria<br />

do sertão.<br />

Cinzento: Ébrio, melado, molhado, embalsamado, fumado, cosendo-bainha,<br />

cercando-frango. Champurrião (subst.). Diz-se<br />

triscado, do indivíduo ligeiramente alcoolizado; tocado, chumbado,<br />

quente.<br />

Formalizado: Solene, emproado, afetando dignidade, ancho.<br />

Significa, também, estar de fatiota nova. Entonado, encadernado,<br />

intertelado, esticado, chique, lorde, perequeté.<br />

Ronhento: Brigão, agressivo, birrento, zanho, afuleimado, espinhado.<br />

Capilé: Xarope de frutas, para ponche.<br />

Xereta: Alcoviteiro, adulador, chaleira, trombone, espoleta, lambaio,<br />

“colete”, corta-jaca, guarda-costas, “badoque”. No momento em<br />

que são revistas estas Notas (1951), não sabe o Autor se no Seridó<br />

já circulam o puxa-saco, o chupa-ovo, o balança, o enxuga-gelo, o<br />

cafofa, decorrentes da gíria metropolitana, e possivelmente já levadas<br />

ao sertão, no ritmo catalisador da gasolina ianque...


Quebrar o catolé: Ou bater o catolé. Falhar a arma o tiro,<br />

deflagrando apenas a espoleta.<br />

Azougar-se: Agastar-se, ficar espritado.<br />

Jaburu: Pequena roleta, com figuras de bichos numerados (geralmente,<br />

seis).<br />

O maió-ponto, o Bozó,<br />

o jaburu, o caipira,<br />

tudo jogo de patota,<br />

onde aquele que mais bota<br />

cum certeza menos tira.<br />

Sanagoga: Sinagoga, barulho, alarido.<br />

Vavavu: Veja-se, adiante: tribuzana.<br />

Rolo: Barulho, briga.<br />

Caipira: Jogo de parada, com um dado apenas, roleta.<br />

Cambar: Retirar, mudar.<br />

Me alembro qui um sordado<br />

quaje perde farda e gorro<br />

só pruquê Né Alejado<br />

tinha um dado aviciado,<br />

com três cabra e três cachorro.<br />

(Zé da Luz, “Um Natal na minha terra”)<br />

Virar frege: Degenerar em confusão, em barulho.<br />

Mijão: Foguinho são-joanesco, busca-pé.<br />

Tiririca: Irritado, zangado em alto grau. Espritado, azucrinado,<br />

trilando. Da gíria automobilística, há chispando, queimando óleo.<br />

291


292<br />

Tribuzana: Atribulação, confusão, vexame, vavavu, repiquete,<br />

vuco-vuco, bafafá, tundé, chafurdo, furdunço, toré, tereré, banzé;<br />

banzeiro, canzoada, cu-de-boi. Veja-se, adiante, afuleimação e,<br />

no Canto 11, angu.<br />

No verde: Na roça, fora de portas. Alusão às culturas de milho, a<br />

essa época no auge da exuberância. Mês da seiva do milho, chamou<br />

a junho Ferreira Itajubá, num dos mais belos, evocativos sonetos<br />

de “Harmonias do Norte” (Vide Ferreira Itajubá, Notas ao<br />

Canto 15).<br />

Logradouro: Ou logrador. Pequena fazenda; mais propriamente,<br />

simples casa-de-campo, onde o proprietário, residente na cidade<br />

(na rua, como se diz), passa parte do inverno – maio ou<br />

junho – quando a mais famosa rama do sertão, o mororó (bauhinia<br />

forficata), está “cimentada” e florida, pasto incomparável, possibilitando<br />

o leite mais abundante e mais saboroso, a mais fina coalhada,<br />

o melhor queijo-de-manteiga do mundo.<br />

Aluízio Alves, 53 autor de Angicos, geografia, etnografia e história do<br />

seu município (Pongetti, 1ª edição, 1940), afirmou pessoalmente<br />

ao autor destas Notas que, ali, a expressão significa, também, bebedouro<br />

de gado.<br />

Peleleu: Samba, sovacada, forró, fobó, zambê, 54 quebradinho,<br />

espalha-pés; furdunço. Namoro escandaloso, chamego (Ver anotação<br />

a esta palavra, no Canto 7).<br />

Enfronhado: Bem vestido, engomado, formalizado.<br />

Fiota: 55 No pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa,<br />

organizado por Manoel Bandeira e outros, e revisto por G.<br />

Barroso (2ª edição), registra-se a expressão com o significado de<br />

“elegante”, “janota”, “casquilho”. No Rio Grande do Norte, entretanto,<br />

é ela invariavelmente usada na acepção pejorativa, para es-


tigmatizar o sujeito de baixa categoria social, metido a namorado<br />

motejador, inveterado na chalaça, 56 atrevido, ponta-limpa. Explica,<br />

textualmente, um dos mais autorizados informantes do Autor,<br />

no Seridó: – “Fiota é o sujeito que usa chapéu quebrado em cima<br />

do olho direito, coloca um lenço no bolso das calças, com três<br />

pontas do lado de fora, cigarro no canto da boca...” Adiantado,<br />

enxerido (Veja-se esta palavra, no Canto 11).<br />

Paluxo: Pilhéria, zombaria, mangoça, capilossada, léra (léria), liberdade,<br />

gás.<br />

Fole: Harmonium, concertina. Sanfona. Gaita (pejorativo).<br />

Caxinguelê: 57 Sciurus ingrami, pequeno esquilo silvestre, o<br />

serelepe.<br />

Sonhim: Saguim, 58 ou sagui, pequenino macaco, da família dos<br />

Calitriquídeos.<br />

Afuleimação: <strong>In</strong>flamação. Discussão violenta, rezinga, perlenga,<br />

bate-boca, pega (masc.). Vide verbete angu, em Notas ao Canto11.<br />

Vadiar: A acepção lexicológica do vocábulo foi deturpada somente<br />

entre os cultos, no sertão. O matuto típico, o matuto puro,<br />

“chapado”, emprega ainda o verbo como sinônimo perfeito de<br />

divertir-se, não-ter-que-fazer, dar-se férias. Diz, singela e<br />

etimologicamente, falando da mulher e das filhas, se estão elas num<br />

samba, numa festança de casa de farinha, num banho coletivo no<br />

açude, num “adjunto”de roçado, em tempo de melancia ou melão:<br />

– “Fulana, mais as menina, foi vadiá em casa de Fulano”; “tão<br />

vadiando na mandioca de Beltrano”, etc.<br />

Farol: Candeia, de grande tocha, alimentada a querosene. Os mais<br />

velhos falam do azeite de carrapato (mamona, carrapateira), anti-<br />

293


294<br />

go combustível 59 da iluminação doméstica. Nas casas mais pobres,<br />

à época descrita pelo poema, era usada, como depósito do querosene<br />

u’a meia garrafa de barro vidrado, e era “distinto” que esta<br />

fosse um casco de cerveja preta, cintado de marrom no<br />

gargalo...Entre os remediados, dois pequenos gasômetros de<br />

carbureto, feitos de zinco. Nos bailes dos coronéis, a lâmpada a<br />

álcool, comprada no Recife ou em Campina Grande.<br />

A canjiquinha amarela: Canjica, espécie de creme, preparado<br />

com a polpa do milho verde. Antônio de Souza, (Policarpo<br />

Feitosa), autor de vários deliciosos romances regionais, e já várias<br />

vezes citados nas presentes Notas, assim descreve o apetecível<br />

quitute, rei do tradicional cardápio das festas de junho, em todo o<br />

Nordeste:<br />

“Quem não experimentou aquele prato, preparado<br />

com milhos cosidos no mesmo dia, “o leite” de cocos<br />

vindos de longe, porque os coqueiros são raros na<br />

região da caatinga, adoçado com açúcar adquirido<br />

especialmente para esse fim (porque o açúcar do cotidiano<br />

é a rapadura), temperado com muita ervadoce,<br />

muito cravo-da-índia, e salpicado de muitíssima<br />

canela, não pode imaginar o que é aquilo, pelos<br />

mingaus insípidos e indigestos, a que na cidade conferem<br />

a mesma denominação” (Leituras Potiguares, p.<br />

134-135).<br />

Pé-de-moleque: Delicioso bolo de mandioca e rapadura, temperado<br />

com erva-doce e gengibre e castanha de caju.<br />

Prato com água, na mesa: Relativamente às “sortes” e adivinhações<br />

são-joaninas, enumera o Barão de Studart 60 as seguintes<br />

(damos-lhes um resumo), em “Notas sobre a linguagem e costumes<br />

do Ceará”, citadas em Antologia do Folclore Brasileiro, de Câmara


Cascudo. Variando apenas em um ou outro aspecto de interpretação<br />

ou de ritual, servem elas, admiravelmente, de documentário<br />

ao que a propósito foi incluído no texto do poema.<br />

Verbi gratia, 61 em noite de São João:<br />

1) Duas agulhas metidas numa bacia d’água indicam<br />

casamento, se as agulhas se juntam.<br />

2) Escrevem-se em papelitos os nomes de várias pessoas,<br />

enrolam-se os papelitos e se os põe numa vasilha<br />

com água: o papel que amanhecer desenrolado<br />

indicará o nome do noivo ou da noiva.<br />

3) Enche-se a boca d’água e fica-se detrás da porta da<br />

rua: o primeiro nome que se ouvir, é o do noivo ou<br />

da noiva.<br />

4) Tomam-se três pratos, um sem água, outro com<br />

água limpa, e o terceiro com água suja; quem faz a<br />

experiência aproxima-se, com os olhos vendados, e<br />

põe a mão sobre um deles: o prato sem água não dá<br />

casamento; o de água suja indica que o casamento é<br />

com viúvo e, o de água limpa, casamento com solteiro.<br />

5) Põe-se u’a moeda de vintém na fogueira, e tirase,<br />

no dia seguinte, para dá-la ao primeiro pobre que<br />

aparecer: o nome do pobre é o nome do noivo.<br />

6) Dão-se nós nas pontas do lençol, tendo-se previamente<br />

escrito neles os nomes de quatro pessoas queridas,<br />

mas os nós sendo bem frouxos: ao amanhecer,<br />

o nó que estiver desmanchado indicará o nome do<br />

futuro esposo ou esposa.<br />

7) Põe-se um pouco de clara de ovo num copo contendo<br />

água: no dia seguinte, aparece uma igreja (casamento)<br />

ou um navio (viagem próxima), etc.<br />

8) Passa-se sobre a fogueira um copo contendo água;<br />

mete-se no copo, sem que atinja a água, um anel de<br />

295


296<br />

aliança, preso por um fio, e fica-se a segurar no fio:<br />

tantas são as pancadas dadas pelo anel, nas paredes do<br />

copo, quantos os anos que o experimentador terá de<br />

esperar por casamento.<br />

9) Para uma pessoa conhecer se está próximo a casar,<br />

planta, três dias antes de São João, três cabeças<br />

de alho: quantas cabeças de alho aparecerem nascendo,<br />

no dia de São João, tantos serão os anos de espera<br />

de casamento; se nenhum aparecer, é que a pessoa<br />

não casará.<br />

10) Quem, no escuro, tirar numa pimenteira uma<br />

pimenta verde, casará com moço; se encarnada, casará<br />

com velho.<br />

11) Passa-se um ramo de manjericão na fogueira, e<br />

atira-se ao telhado; se na manhã seguinte, o manjericão<br />

ainda estiver verde, o casamento é com moço;<br />

se murcho, é com velho.<br />

12) <strong>In</strong>troduz-se numa bananeira uma faca que ainda<br />

não tenha servido; no dia seguinte, aparecerá na faca<br />

a inicial da noiva ou do noivo.<br />

13) Põe-se uma bacia ou tigela com água, e olha-se<br />

para dentro: se não se vê a figura, é que se morrerá<br />

neste ano. Outros fazem a experiência, olhando o<br />

fundo de uma cacimba.<br />

14) O experimentador, tendo jejuado na véspera,<br />

escolhe bocados de cada prato das refeições, e guarda-os;<br />

à noite, prepara uma mesa, no quarto de dormir,<br />

e guarnece-a com os bocados guardados, como<br />

se esperasse algum conviva; dorme e, em sonho, vê<br />

o noivo ou a noiva sentar-se à mesa.<br />

15) Faz-se pirão com um pouco de farinha, e põe-se<br />

dentro um caroço de milho; com os olhos fechados,<br />

divide-se o pirão em três porções; coloca-se uma na<br />

porta da rua, outra sob o leito, e a terceira na porta


do quintal: se for encontrado o caroço de milho na<br />

porta da rua, é sinal de próximo casamento; se sob o<br />

leito, o casamento é demorado; se na porta do quintal,<br />

não há possibilidade de casamento.<br />

Baticum: Sinônimo onomatopaico de pulsação. Pancadaria: o<br />

baticum do bombo.<br />

Cachopar: Troçar, ridicularizar, mangar, xingar. G. Barroso e<br />

Manoel Bandeira não registram o termo, no Pequeno Dicionário,<br />

já muitas vezes aqui citado.<br />

Rescaldo: Remanescentes da fogueira; cinzas, de mistura com<br />

carvões ainda ardentes.<br />

Fisulumia: Fisionomia, rosto.<br />

Apocado: Apoucado, acanhado, arisco. Adiantado é um antônimo.<br />

Vide fiota, neste Canto 5, acima.<br />

Fole! Edinor Avelino: É o seguinte, o soneto em que o grande<br />

poeta de “Apologia do Silêncio”, “Serenidade”, “Diante do Mar”, e<br />

outras obras-primas, que integram o Sínteses, seu livro de estréia,<br />

ainda inédito, 62 focaliza o predileto instrumento musical dos<br />

matutos – a harmônica, harmonium, concertina, ou fole – , 63 para<br />

eles tão importante, quanto, para os russos; para os escoceses e<br />

espanhóis, o violão e a guitarra; a balalaica, 64 para os russos; para<br />

os escoceses, a gaita-de-foles e a cornamusa; 65 o arrabil, 66 para os<br />

árabes:<br />

HARMÔNICA<br />

É a voz da roça! Velha orquestra animadora,<br />

Que a gente, no arraial, para o prazer desperta,<br />

Ecoando pela noite e até que o sol redoura<br />

A serra – a encher de sons a vastidão deserta.<br />

297


298<br />

Ora lembra, saudosa, o que grato nos fora,<br />

Do passado a falar nas notas que concerta;<br />

Ora executa um canto à terra sedutora,<br />

De plantas aromais e frutos bons coberta.<br />

Toque dos ranchos! Voz do ermo! Recordo, a ouvi-la,<br />

O soberbo sertão com os seus ricos produtos,<br />

A paisagem cercando a fazenda tranquila!<br />

A vida solitária entre os lajedos brutos,<br />

O arroio que volteia e à luz do luar cintila,<br />

O regozijo, a festa e a dança dos matutos.


1 Ver nota de OM.<br />

Notas<br />

2 Verbo bojar. Termo de marinha, significando perfazer com embarcação o<br />

circuito de uma ilha, cabo ou porção proeminente da costa.<br />

3 Ver nota de OM.<br />

4 Idem.<br />

5 Idem.<br />

6 Idem.<br />

7 Idem.<br />

8 Idem.<br />

9 Idem.<br />

10 Idem.<br />

11 Idem.<br />

12 Idem.<br />

13 Idem.<br />

14 Idem.<br />

15 Barulho de vozes; algazarra; agitação, alvoroço, azáfama. Ver Nota de OM.<br />

16 Ver nota de OM.<br />

17 Exaltado, querendo briga.<br />

18 Ver nota de OM.<br />

19 Idem.<br />

20 Idem.<br />

21 Idem.<br />

22 Idem.<br />

23 Idem.<br />

24 Barulho de vozes; algazarra. Agitação, alvoroço, azáfama.<br />

25 Ver nota de OM.<br />

26 Logradouro. Ver nota de OM.<br />

27 São João Batista.<br />

28 Cântico católico que se inicia por aquela palavra.<br />

299


300<br />

29 Ver nota de OM.<br />

30 Idem, idem.<br />

31 Idem.<br />

32 Ver nota de OM. Veríssimo de Melo, em 1977 (Folclore brasileiro: Vocabulário<br />

do Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Funarte, 1977, p.14-16), depois,<br />

portanto, de OM, registrou paluxo como “pilhéria, zombaria”. O verbete<br />

de <strong>Othoniel</strong> anota muito mais: pilhéria, zombaria, mangoça, capilossada,<br />

léra (léria), liberdade, gás.” “Vivi” (era como OM chamava, carinhosamente,<br />

Veríssimo de Melo) apontou, no livro citado, várias outras palavras do<br />

jargão sertanejo estudadas por OM. Câmara Cascudo também o fez, no<br />

seu alentado Dicionário Brasileiro de Folclore. O escritor e acadêmico Manoel<br />

Onofre Júnior, entretanto, num dos seus livros (ou numa entrevista) achou<br />

que o poeta “inventava palavras”, colocando-as na boca dos matutos do<br />

Seridó... Logo OM – que fazia questão de respeitar o jargão do sertenejo<br />

seridoense. Vejamos o que o próprio poeta registra, adiante, nas Notas ao<br />

Canto 11 (nas palavras “jucá” e “quiri”): “Catulo da Paixão Cearense, num<br />

dos admiráveis poemas de Alma do Sertão, põe também assim o termo, na<br />

boca de um dos seus heróis, pelo que mereceu reparo de Humberto de<br />

Campos (Crítica, 1ª. série, editora Mariza, p. 188), enumerando, além<br />

desta, quirin, cerca de mais de vinte expressões que, por amor exclusivo<br />

da rima, o grande felibrista inventou, querendo fazê-las passar por apanhadas<br />

no linguajar do matuto. Este, ‘jamais cria expressões, deturpa-as, apenas’,<br />

na justa e autorizada observação de Humberto”.<br />

33 Ver nota de OM.<br />

34 Idem.<br />

35 Idem.<br />

36 Ver nota de OM.<br />

37 Harmônica. <strong>In</strong>strumento da família do acordeão, de forma hexagonal,<br />

dotado de dois teclados de botões com que se produzem acordes e melodias;<br />

gaita. Ver “fole”, nas Notas de OM,deste Canto.<br />

38 Idem.<br />

39 Idem.<br />

40 Idem.<br />

41 Idem.


42 Idem. Veríssimo de Melo também registrou o verbo “cachopar”, no livro<br />

citado.<br />

43 Pouca sorte, má sorte.<br />

44 Ver nota Nota de OM.<br />

45 No glossário das notas de OM (Ver adiante), “filusumia” corresponde a<br />

fisionomia, rosto. O termo sertanejo, hoje muito conhecido pelos apreciadores<br />

da poesia de cordel, com algumas variantes (“filogomia”, por exemplo),<br />

aparece, de tempos para cá, com os mais estapafúrdios significados<br />

nas insuperáveis e divertidas estrofes de Zé Limeira, o afamadíssimo bardo<br />

paraibano (de Teixeira), o “Poeta do Absurdo”, imortalizado pela pena<br />

competente de Orlando Tejo.<br />

46 Ver nota de OM.<br />

47 José Edinor Pinheiro Avelino (Macau/RN, 17.07.1898-Natal/RN,<br />

10.03.1977). Um dos maiores poetas do Estado, no seu tempo. Em 1923,<br />

OM já o classificava como “a mais bela afirmação entre os novos”. Eram<br />

amigos fraternos. Uma modinha de sua autoria, chamada “Macau” (música<br />

de Fernando Almeida), é considerada pelos macauenses como o “hino da<br />

terra das salinas”. Edinor, que foi funcionário autárquico federal, sofreu<br />

muito com a cegueira que o acometeu. Pertenceu à ANRL. Com o seu<br />

desaparecimento, substituiu-o, na mesma cadeira, o filho, Gilberto Avelino,<br />

também falecido.<br />

48 Relativo ao grande poeta sergipano Hermes Floro Bartolomeu<br />

Martins de Araújo Fontes (Boquim/SE, 1888-Rio de Janeiro/RJ,<br />

1930). Bacharel em direito, jornalista, caricaturista, funcionário dos Correios<br />

e Telégrafos – foi oficial de gabinete do ministro da Viação. Publicou<br />

Gênese (1913). Seguiram-se Ciclo da perfeição (1914), Miragem do deserto<br />

(1917), Microcosmo (1919), A lâmpada velada (1922) e A fonte da mata...<br />

(1930), entre outros.<br />

49 Que fervilham, mexem-se muito, movimentam-se com rapidez.<br />

50 Henry Ford (Greenfield, Michigan/Estados Unidos-Dearborn/Estados<br />

Unidos, 1947). <strong>In</strong>dustrial, ex-mecânico, milionário norte-americano.<br />

<strong>In</strong>troduziu inovações importantes tanto no campo da mecânica como no<br />

da gestão: vendas a prazo, fomento da exportação, divisão do trabalho,<br />

sistema de retribuição por prêmios, etc. Publicou uma obra, Filosofia do<br />

trabalho, em que expõe os seus princípios. Fundou, em 1903, a Ford Motor<br />

Company.<br />

301


302<br />

51 Severino de Andrade Silva (Zé da Luz). Nasceu em Itabaiana em 29<br />

de março de 1904 e faleceu no Rio de Janeiro em 12 de fevereiro de<br />

1965. Poeta popular, ficou famoso, nacionalmente, com o poema “As flô<br />

de Puxinanã”.<br />

52 Outros nomes da malvada, Brasil afora: abençoada; abrideira; acaba-festa;<br />

adorada; alpista; aninha; apreciada; arrebenta-peito; branca, branquinha,<br />

brasa; braseira; brasileira; bichinha-boa; acorda-o-velho; afamada; afiada;<br />

água-benta; água-bruta; água-de-briga; água-de-cana; aguada; águaforte;<br />

água-que-gato-não-bebe; alertadeira; alma-de-gato; amansa-sogra;<br />

amansa-corno; amargosa; antibiótico; apetitosa; arranja-briga; a-quematou-o-guarda;<br />

arranca-bofe; atitude; azarenta; bichinha; bicho-bom;<br />

bigorna; birinaite; birusca; bribada; branquinha; briosa; cabo; catutca;<br />

caídeira; calafrio; calorenta; cambirimba; cambraia; canavieira; canforada;<br />

canilina; capilé; catuta; catinguenta; chamegada; chamarisco; cipoada;<br />

cheirosinha; carinhosa; carraspana; caxaramba; caxiri; caxirim; chibatada;<br />

choraminga; chorumela; cobreira; corta-bainha; cotréia; cumbe; cumulaia;<br />

criminosa; curandeira; da boa; danadinha; desperta paixão; distinta;<br />

depurativo; douradinha; encantada; enrola-chifre; ensina-estrada; garapa;<br />

girgolina; goró; gororoba; jeribita; jurubita; lapada; limpa; lindinha; lisa;<br />

mandureba, mamãe-sacode; marafo; maria-branca; mata-bicho; mata-ovelho;<br />

mel; merol; meu-consolo; não-sei-quê; papôco; papudinha;<br />

precipício; piadeira; pifão;pinga; pisca-pisca; pura; purinha; queimante;<br />

quero-mais; reiada; saideira; sacudidela; salve-ela; samaritana; sapeca;<br />

sedutora; seleta; sopapo; sossega-leão; sputinik; renitente; suadeira; sururu;<br />

tacada; talagada; tagarela; tiririca; tiúba; tijolo-quente; tira-frio; tira-prosa;<br />

tira-reima; tiririca; tiúba; tentação; tenebrosa; treco; tremedeira; trombada;<br />

turbulenta; uma...; uma-da-boa; uma-daquelas; valentona; veneno;<br />

venenosa; virgem-afamada; vexadinha; vuco-vuco; xaropada; xixi-de-anjo;<br />

zombeteira; zinabre, zuninga.<br />

53 Aluízio Alves. Ver nota 160, do Canto 11.<br />

54 Ver nota no Canto 4. O Aurélio registra: festa popular; pagode, função.<br />

Baile popular; arrasta-pé, segundo o Houaiss.<br />

55 O Dicionário Houaiss, atualmente, registra “fiota” e (o mesmo que) fiote:<br />

aquele que anda bem vestido ou vestido com certo excesso de elegância;<br />

fiota, janota; aquele que se revela metediço, pedante; petulante.


56 Dito ou gracejo de mau gosto; espirituoso, zombeteiro; escárnio, gracejo,<br />

motejo.<br />

57 Outros sinônimos: acutipuru, agutipuru, caitité, caticoco, caxinxe, caxixe,<br />

coxicoco, cutia-de-pau, papa-coco, quatiaipé, quatimirim, quatipuru.<br />

58 Massau, mico, sauí, sauim, soim, tamari, xauim.<br />

59 Hoje, no século XXI, a mamona (ou carrapateira), Ricinus communis L, é,<br />

no Nordeste, uma das culturas eleitas pelos programas estaduais e federais<br />

para fornecer matéria-prima à produção do biodiesel – um combustível<br />

apontado como renovável e menos poluente do que o seu concorrente<br />

fóssil, o diesel.<br />

60 Guilherme Chambly Studart (Fortaleza/CE, 05.01.1856-Fortaleza/<br />

CE, 25.09.1938). Médico, historiador, filantropo, abolicionista, vicecônsul<br />

do Reino Unido no Ceará.<br />

61 “Por exemplo”, em latim.<br />

62 O livro Sínteses foi publicado em 1968, numa edição da Editora Pongetti.<br />

63 OM, sempre cuidadoso nas pesquisas, trabalhando vários anos – entre<br />

1939 e 1952 –, apenas registrou, neste livro, “sanfona” uma única vez. Não<br />

empregou acordeão, tampouco. O termo sanfona, largamente hoje difundido,<br />

parece, somente foi popularizado, através do rádio, nos sertões do<br />

Rio Grande do Norte, pelo pernambucano Luiz Gonzaga, na segunda<br />

metade dos anos 1940. O vocábulo acordeão, por sua vez, desde o início<br />

do século passado, era muito conhecido na região sulina. A primeira fábrica<br />

dessas gaitas no Brasil, no Rio Grande do Sul, foi criada pelo casal<br />

Cesare Arpini e Maria Savoia no final do século XIX, no atual município de<br />

Santa Tereza, na Serra Gaúcha. Outras fábricas apareceram em seguida em<br />

Garibaldi, Caxias do Sul e Bento Gonçalves.<br />

64 Tipo de bandolim de três cordas, braço trasteado e caixa de ressonância<br />

triangular, dedilhado com palheta, muito usado na música popular russa.<br />

65 Espécie de gaita-de-foles.<br />

66 <strong>In</strong>strumento de arco, de origem árabe, com duas a cinco cordas; aiabeba,<br />

rabil.<br />

303


Canto 6<br />

Pino do sol


[...] Os juazeiros, que perdem as folhas, de um verde intenso,<br />

adrede modeladas às reações vigorosas da luz. Sucedem-se<br />

meses e anos ardentes. Empobrece-se inteiramente o solo<br />

aspérrimo. Mas, nessas quadras cruéis, em que as soalheiras se<br />

agravam, às vezes, com os incêndios espontaneamente acesos<br />

pelas ventanias atritando rijamente os galhos secos e estonados 1<br />

– sobre o depauperamento geral da vida, em roda, agitam as<br />

ramagens virentes, 2 alheios às estações, floridos sempre,<br />

salpintando o deserto com as flores cor de ouro, álacres,<br />

esbatidas 3 no pardo dos restolhos – à maneira de oásis<br />

verdejantes e festivos.<br />

Os Sertões, p. 42


O algodoal cedo se agita.<br />

Rendeiras, 4 gastando 5 chita,<br />

catam maçã por maçã.<br />

(Linda, aquela! Mas, tão pobre,<br />

que a blusa, rota, descobre<br />

duas vingas 6 de romã...).<br />

Cismando heróicas lembranças,<br />

rodam sarilhos 7 de lanças,<br />

em atitudes marciais<br />

– pendões, de grimpas curvadas,<br />

com agulhetas douradas –,<br />

falanges de gravatás.<br />

Nem-ên... nem-ên... Quanto choro!<br />

Para que tamanho agouro,<br />

anum preto? Sai, ticum! 8<br />

Por que não cantas direito?<br />

Muita gente tem teu jeito:<br />

– caninga, até em jejum! 9<br />

O sol, todo o ouro fundindo<br />

no tamis 10 do tamarindo,<br />

rendilha o chão fresco e nu,<br />

morde a perna chocolate<br />

da lavadeira, que bate<br />

na tábua do cumaru.<br />

309


310<br />

Entre fileiras de cardos,<br />

– índios eretos, galhardos,<br />

em campo de prata e anil –<br />

alçando a estampa, o juazeiro,<br />

auriverde, alvissareiro,<br />

é um pavilhão do Brasil!<br />

Cheirosa, rendada mesa,<br />

em que, rindo, a Natureza,<br />

numa provida exceção,<br />

faz pães de mel, Ceia Larga,<br />

de massa nativa e amarga<br />

– e, em cada mesa, um milhão...<br />

Capelinha sempre aberta,<br />

na chã, na serra deserta,<br />

e onde, ao vivo repicar<br />

do cancão – sino de penas –<br />

as almas rudes, serenas,<br />

dos bois tristes, vêm rezar...<br />

Celeiro, oásis, tesouro!<br />

Com tanta estrelinha de ouro,<br />

és mesmo um cromo do céu!<br />

Deus, se a pé aqui andasse,<br />

duvido te não saudasse,<br />

levando ao peito o chapéu!<br />

Cor de gema, no colete,<br />

gola e capa azul-ferrete,<br />

pia o vem-vem, 11 no trapiá. 12


O coração da matuta<br />

bate...(Vem...vem...). 13 Põe-se à escuta:<br />

– notícia boa, será?<br />

Bem pixaim, bem cheirosa,<br />

a quixabeira frondosa,<br />

Mãe preta, meiga nutriz,<br />

desfaz-se em flor, para abelhas,<br />

engorda cabras e ovelhas,<br />

com frutinhas cor de ônix.<br />

Verdor das voltas do rio!<br />

Vazantes, ao desafio!<br />

– oásis, nos boqueirões.<br />

Flores roxas e amarelas<br />

marinham 14 pelas cancelas.<br />

Voga o aroma dos melões.<br />

Concliz, 15 clarim da alvorada,<br />

de túnica ensangüentada<br />

nas marselhesas do sol!<br />

Teu bico de ébano, fino,<br />

foi o punhal florentino<br />

de que lendário guinhol? 16<br />

Debaixo da aroeira grande,<br />

a sesta em risos se expande.<br />

– Corta esses cacho, Sinhá!....<br />

– Tem modo, reparadeira!<br />

venha c’a sua besteira,<br />

e eu conto a do aripuá... 17<br />

311


312<br />

No melhor da risadagem,<br />

rompe a calma da paragem<br />

o tereré 18 dos mocós. 19<br />

– Cascavé! –, diz a da blusa.<br />

– A cobra, num dou fiúza! 20<br />

– São Bento protege nós...<br />

(Um canção, 21 de sentinela,<br />

acua o ofídio. Martela,<br />

rasga o toque de reunir.<br />

Acodem cem passarinhos,<br />

chia, tudo! Entre os espinhos,<br />

a cobra toca a fugir).<br />

Terra e gente – madornando. 22<br />

O mormaço, formigando,<br />

cai sobre o imenso geral.<br />

Longe, em saudosa surdina,<br />

um carro de boi rechina... 23<br />

Rescende, o marmeleiral. 24<br />

Lento, o córrego perlonga 25<br />

os umaris. A araponga<br />

canta, no ermo do confim.<br />

Canta? – aço líquido entorna<br />

sobre invisível bigorna,<br />

limando: – rren-im...rren-im...<br />

Depois, sob a sucupira,<br />

uns favos de jandaíra, 26<br />

na barreira do riachão.


Coberto de “pasta”, 27 ao lado,<br />

é o tanque azul do talhado: 28<br />

– água, na concha da mão...<br />

Na malhada 29 da imburana,<br />

pegou-se a suçuarana,<br />

– meteu na arataca 30 um pé.<br />

Torquato, radiante, explode:<br />

– Num me sangra mais os bode!<br />

Vou te esfolá de quicé!...<br />

Fins de raça, sombras raras,<br />

dizimados nas coivaras,<br />

– pão do gado sofredor,<br />

cardeiros, pelos lajedos,<br />

erguem nas pontas dos dedos<br />

os candelabros da flor...<br />

As coroas-de-frade, hediondas,<br />

hirsutas, gordas, redondas,<br />

bolas de espinho, no chão,<br />

toucadas 31 de tons ardentes<br />

– são crânios de penitentes,<br />

rolando pelo sertão...<br />

Oiticica 32 da passagem! 33<br />

Quisera, ao menos de viagem,<br />

contar-te o que já sofri!<br />

banzar, 34 sob tua rama...<br />

Tu foste quase minha ama,<br />

– criei-me junto de ti!<br />

313


314<br />

Teu maternal agasalho<br />

é mais fresco do que o orvalho,<br />

disse José de Alencar. 35<br />

Mansão de brasilidade!<br />

Casa-grande, onde a Saudade<br />

vive penando, a sonhar...<br />

A ironia que há, na vida!<br />

Deste flor, sombra, guarida,<br />

a abelhas, ninhos, canções.<br />

Hoje, teus frutos carreia,<br />

– mesmo os podres, sobre a areia –<br />

Mercúrio – 36 o deus dos ladrões...


Notas ao Canto 6<br />

Rendeiro: O que paga rendas – certa percentagem de algodão<br />

em rama, cereais, farinha, etc., ao proprietário do terreno onde é<br />

feita a cultura.<br />

Gastar: Usar. Comer ou beber. O matuto diz – “Não gasto!” –, ao<br />

recusar qualquer bebida ou iguaria que lhe ofereçam. Com esta<br />

acepção, não figura o verbo no Pequeno Dicionário, de G. Barroso e<br />

M. Bandeira, edição já referida.<br />

Vinga: Fruto novo, mal saído da flor.<br />

Ticum: Pessoa ou coisa de cor preta.<br />

Caninga, até em jejum: Caningar, aborrecer, importunar,<br />

encharcar, inzonar, abodegar. Para o substantivo “caninga” há muitos<br />

sinônimos: cafifa, caipora, infuca, mofina, canzenza, azucrim,<br />

etc.<br />

Vem-vem: Pequeno canirrostro, de bela plumagem azul-ferrete<br />

e amarelo-laranja, chamado de vim-vim no Sul. É considerado ave<br />

de agouro.<br />

Nos ramos da gameleira,<br />

ouvi cantar o vem-vem.<br />

Passarinho, não me avives<br />

as saudades de meu bem.<br />

(Coleção Câmara Cascudo)<br />

Concliz: Pássaro cantor, de linda plumagem encarnada, asas cor<br />

de azeviche, com “encontros” brancos, da família dos icterídeos.<br />

Os de colorido mais carregado, são chamados “sangue-de-boi”. No<br />

Sul, “sofrê”, “corrupião”, “joão-pinto”, “tié-sangue”. A denomina-<br />

315


316<br />

ção indicada na sextilha é onomatopaica do canto natural da ave<br />

que, criada em casa, à sombra, desde tirada do ninho, fica com a<br />

plumagem amarela, e aprende a assobiar pequenos trechos de<br />

música, imitando o canto das outras aves engaioladas.<br />

Arapuá: Ou aripuá. Abelha negra, silvestre, Trigona rufricus. Quando<br />

assanhada, ataca, entrando pelos ouvidos e nariz do agressor<br />

enrodilhando-se-lhe nos cabelos, com insuportável zumbido. Faz<br />

comumente a colméia nos velhos cupins das árvores da caatinga, e<br />

o mel tem fama de medicinal. Em artigo na A República, de Natal<br />

(1948), o escritor José Bezerra Gomes enumera, em ordem alfabética,<br />

as principais abelhas do sertão seridoense: abreu, arapuá,<br />

amarela, canudo, cupira, capuxu, enxu, enxuí, mosquito (verdadeiro<br />

e remela), rajada, tubiba e zamboque.<br />

Mocó: Pequeno mamífero roedor, da família dos cávias, Kerodon<br />

ruprestis, do porte da cobaia, e maior que o preá. Tem o pelo pardo-escuro,<br />

ligeiramente mosqueado, 37 vermelho das ancas ao traseiro.<br />

Apesar da irracional, impiedosa perseguição que lhe movem,<br />

os mocós, assombrosamente prolíficos, vivem em grandes<br />

tribos, nas furnas e carrascais das serras e serrotes, e constituem<br />

caça de primeira qualidade. São, em extremo, ariscos; é preciso<br />

ser escopeteiro (bom atirador), para fazer colheita apreciável. Os<br />

caçadores usam de mil precauções e ardis, para “tomar chegada” às<br />

tocas, imitando-lhes o assobio, com um pequeno apito, fabricado<br />

com a madeira da imburana, e fácil de encontrar nas feiras. Característica<br />

muito curiosa, nos costumes dos mocós, é que “acuam”,<br />

isto é, dão sinal da aproximação dos inimigos da colônia, guinchando<br />

de maneira particular, facilmente reconhecível pelos bons<br />

observadores; sendo mesmo possível, a certa altura do alarme –<br />

quando sobe este a pizzicato –, 38 avaliar a que distância do mocozal<br />

se encontra o agressor, seja uma cascavel, o mais terrível inimigo


deles, ou uma raposa, um maracajá (gato selvagem), um gavião,<br />

etc., cuja marcha sobre a furna pode ser assim seguida. Em interessantíssima,<br />

minuciosa carta, que ao Autor escreveu, o saudoso<br />

Coronel Cipriano Bezerra de Araújo Galvão Santa Rosa, 39 a cujas<br />

abalizadas informações muito ficaram devendo a História, a<br />

Genealogia e o Folclore norte-rio-grandenses, pelo brilhante intermédio<br />

de Câmara Cascudo e outros, pormenoriza:<br />

São muito perseguidos por feras, cobras, aves de rapina,<br />

etc. Mas, têm seus meios de defesa, e são em<br />

extremo solidários no perigo. Assim é que, ao pressentirem<br />

o inimigo, começam a assobiar para os outros<br />

mocozais próximos: – cuit... cuit... cuit. Logo,<br />

aparecem os outros, às dezenas, por cima das pedras,<br />

nas bocas das furnas, assanhados, alvoroçados, o focinho<br />

aspirando o ar. À proporção que o inimigo se<br />

distancia, vão espaçando os assobios, até que cesse de<br />

todo o perigo. E os outros mocozais distantes propagam<br />

o alarme: Se o aperto não é muito grande; se,<br />

por exemplo, vislumbram uma cascavel apenas<br />

enrodilhada nas proximidades, chiam, num coro meio<br />

reprimido, espaçado, bem perceptível: – chuet...<br />

chuet... chuet... O caçador experiente conhece a direção<br />

ou a marcha da raposa, maracajá ou mesmo onça,<br />

podendo emboscar, muitas vezes, o animal – guiando-se<br />

pelas entonações especiais do alarme.<br />

Segundo esse mesmo inteligente, experimentado testemunho,<br />

também o cancão (quem-quem, no Sul), gralha branca, Cyanocorax<br />

cyanopogon, acua cobras e outros bichos da caatinga. Vendo aproximar-se<br />

o ofídio, dana-se, o cancão, a martelar seu canto metálico,<br />

pulando, aflito, de arbusto a arbusto. Logo, acodem outros pássaros<br />

da zona, mais outros, outros ainda, e entram, todos, num de-<br />

317


318<br />

sesperado alarido. A cobra raspa-se, enfiada, enquanto o estrídulo<br />

vedeta 40 das solidões, com o seu pequeno e sonoro exército alado<br />

de guerrilheiros, apupa o inimigo descoroçoado, 41 seguindo-o por<br />

cima da ponte pênsil dos cipós-imbés, da maranha 42 das juremas,<br />

dos postes descarnados dos marmeleiros... (Sextilha 15ª; deste<br />

Canto).<br />

Rescende o marmeleiral:<br />

Naquela região esse arbusto é bem o característico<br />

do sertanejo. Passando grande parte do ano despido<br />

de folhas, amarelecem, murcham e caem antes de<br />

começado o rigor do verão, às vezes, desde julho ou<br />

agosto, e com o aspecto desolado da planta morta<br />

em pé, logo à primeira chuva cobre-se de renovos<br />

avermelhados ou róseos que, se não demora a seguinte,<br />

dentro de uma semana são folhas verdes, ásperas,<br />

mas de perfume particular, que basta o atrito<br />

da passagem entre elas para despender. (“Policarpo<br />

Feitosa”, Antônio de Souza, transcrito em Leituras<br />

Potiguares, p. 32).<br />

O marmeleiro do campo, Maprounea braziliensis, é uma<br />

euforbiácea, excelentemente prestada ao habitante da caatinga e<br />

do sertão. Há o branco e o preto. A casca deste fornece uma infusão,<br />

famosa no tratamento empírico das moléstias do estômago. O<br />

carvão, pulverizado, dá produto similar do Belloc, 43 e é de grande<br />

eficácia na terapêutica de todas as afecções entéricas, segundo<br />

afiançou ao Autor dessas Notas o saudoso nova-cruzense, abalizado<br />

homeopata, José de Matos, velho e popular advogado<br />

provisionado, cheio de janeiros e experiências.<br />

A carne-de-sol, mesmo que esteja mofada, readquire o aroma<br />

primitivo, quando enrolada, durante algumas horas, em folhas de<br />

marmeleiro. Foi prática proverbial de muitos marchantes que, ao


tempo do tráfego em comboios (cinco ou seis dias de marcha, do<br />

Seridó a Natal), traziam o produto às feiras do agreste.<br />

Pasta: Delicada ninfeácea, de folhas minúsculas e redondas, e que<br />

se alastra, literalmente, na superfície da água dos açudes e tanques<br />

(Ver anotação a esta palavra, a seguir), protegendo-a contra a poeira,<br />

o aquecimento e a evaporação. Segundo opinião unânime<br />

dos sertanejos, conserva a pureza e a potabilidade da água.<br />

Tanque: Reservatório natural de água das chuvas, nas depressões<br />

e recôncavos das pedreiras das serras. Alguns são de grandes dimensões<br />

e notável profundidade, abastecendo de ótima água potável,<br />

verdadeiramente cristalina, toda a população da fazenda,<br />

durante o longo período da estiagem mais rigorosa.<br />

Talhado: Lajedo inclinado, rochedo de grandes proporções, a<br />

pique sobre os desfiladeiros serranos.<br />

Malhada: Sombra de árvore, onde o gado se refugia do rigor da<br />

canícula, ou onde dorme (nesse caso, diz-se mais propriamente<br />

“cama”), um lugar sempre ao abrigo dos ventos (Vide anotação a<br />

“cama”, no Canto 3).<br />

Arataca: Armadilha de ferro, constante de dois semicírculos<br />

denteados, ligados por u’a mola. Armada, as meias-luas ficam abertas,<br />

pousadas no chão, sob disfarce de ramos ou areia; tocada a<br />

“isca”, posta no centro, o engenho dispara, e a entrosagem apanha<br />

raposas, maracajás, onças e, excepcionalmente, até ladrões de roçados.<br />

É também o nome de uma armadilha para apanhar avoetes<br />

(arribaçãs).<br />

Oiticica: Soaresia nitida, grande árvore do sertão e das várzeas.<br />

Descreve-a o agrônomo Pimentel Gomes, 44 técnico dos mais<br />

eminentes, jornalista, ex-diretor da Escola Superior de Areia,<br />

319


320<br />

Paraíba, em artigo para A União, diário oficial daquele Estado, em<br />

9 de agosto de 1941:<br />

A oiticica é uma árvore gigantesca que encontra seu<br />

habitat nas regiões semi-áridas do Nordeste brasileiro.<br />

Cresce nas gordas e fertilíssimas terras de aluvião que<br />

perlongam, em regra, todos os cursos da região. E<br />

destaca-se, majestosa, pelo porte agigantado, pela folhagem<br />

densa, pelo diâmetro do caule, pela sombra<br />

macia, agradabilíssima, sombra que é um lenitivo aos<br />

viajantes, em dias ensolarados. A oiticica era apenas<br />

uma árvore de sombra e ornamental, até há bem pouco<br />

tempo. Hoje é um dos vegetais de grande valor<br />

industrial, capaz por si só, de tornar uma zona economicamente<br />

independente. Isto, graças à fruta produzida<br />

em grande quantidade. A fruta contém cerca de<br />

sessenta por cento de um óleo semelhante ao do<br />

tungue, 45 cuja procura é enorme. A oiticica frutifica<br />

abundantemente. Árvores excepcionais, em anos excepcionais,<br />

chegam a produzir mil quilogramas de fruto.<br />

Um quilograma de fruta custa, presentemente, dois<br />

mil réis. Há oiticicas que podem dar, portanto, num<br />

ano, dois contos de réis! É um absurdo: mesmo quase<br />

se pensa que tal, só muito excepcionalmente ocorre.<br />

A procura de óleo fez com que surgissem, em poucos<br />

anos, em nosso país, dezoito fábricas de beneficiar<br />

oiticica. A fruta da oiticica deu ao Brasil, na última<br />

safra, cerca de cento e dez mil contos de réis.<br />

Essa dramática valorização da espécie 46 que, segundo o testemunho<br />

do interlocutor com a palavra na sextilha 34 do Canto 11,<br />

“só prestava pra malhada e cerca”, suscitou, em próspero município<br />

do oeste potiguar, 47 na vigência da última guerra mundial, um<br />

caso curiosíssimo. Certo varzeano, tipo acabado de Manoel


Xiquexique, bestalhão, dorminhoco e sujo, tão miserável que nem<br />

ia às feiras na cidade, herdara, de parente próximo, vasto trecho<br />

de terreno, sem nenhum benefício de agricultura, mas sombreado<br />

com 200 a 300 pés da nova “árvore das patacas”, de que fala,<br />

acima, Pimentel Gomes. Sestas e sestas, estirado na piolheira 48<br />

encardida, nosso herói jamais cuidara de deixar cair uma semente<br />

de feijão, de gergelim ou milho, naquele fertilíssimo, escuro<br />

massapé da várzea. Nem, tampouco, consentia que lhe cortassem<br />

um ramo, sequer, às oiticicas. Cresceram elas à larga, frondaram<br />

magníficas, fizeram-se gigantes. E o preguiçoso Manoel<br />

Xiquexique, como sempre – de papo pro ar, batendo os pés um<br />

no outro, banzando, embalado pela cantiga dos sebites 49 e canções<br />

boêmias... Do dia para a noite, atomicamente, passou o fruto<br />

da oiticica a valer dois cruzeiros, o quilo. Mestre Manoel<br />

Xiquexique enriqueceu, numa safra. Riqueza da preguiça, foi como<br />

ficou conhecido o fato.<br />

Passagem: Corredor, atravessando a estrada, quase sempre no<br />

leito do rio ou riacho, a fim de impedir o acesso ao pasto ou às<br />

plantações da vazante ou do sítio. Vau, trecho do rio ou córrego,<br />

onde a pequena altura da corrente, no inverno, permite fácil tráfego<br />

de comboios e pedestres.<br />

321


322<br />

1 Que se estonou, que ficou sem tona, sem casca; descascados.<br />

2 Que verdejam; verdejantes, viridentes, viridantes, verdes.<br />

3 Desmaiadas, atenuadas, suavizadas.<br />

4 Ver nota de OM, adiante.<br />

5 Idem, idem.<br />

6 Idem.<br />

7 Hastes com braços em cruz, que servem para apoiar armas.<br />

8 Nota de OM.<br />

9 Idem.<br />

10 O que seleciona; filtro, crivo.<br />

11 Ver nota de OM.<br />

12 O mesmo que pau-d’alho – árvore nordestina (Crataeva tapia).<br />

13 Ver nota de OM.<br />

14 Do verbo marinhar: subir ao alto, como os marinheiros à gávea.<br />

15 Ver nota de OM.<br />

Notas<br />

16 Nome de uma marionete, personagem do teatro de fantoches, criado<br />

no século XIX em Lion, na França. Grand Guignol: tipo de drama surgido<br />

na França, no final do século XIX, com estilização de histórias macabras,<br />

sangrentas. Gênero teatral francês de horror.<br />

17 Ver nota de OM.<br />

18 Bate-papo durante a merenda, entre dois turnos de serviço.<br />

19 Ver nota de OM.<br />

20 Idem.<br />

21 Ver nota de OM.<br />

22 Ver nota de OM.<br />

23 Do verbo rechinar. Produzir som estrídulo e áspero; ranger, chiar, silvar.<br />

24 Ver nota de OM.<br />

25 Ir ao longo de; costear; Estender-se ao longo de.<br />

26 Ver nota de OM sobre Arapuá.<br />

27 Ver nota de OM.


28 Idem.<br />

29 Idem.<br />

30 Idem.<br />

31 Orladas, circundadas, coroadas.<br />

32 Ver nota de OM.<br />

33 Idem.<br />

34 Pensar detidamente; meditar, cismar, matutar.<br />

35 José Martiniano de Alencar (Messejana/CE, 01.05.1829-Rio de Janeiro/RJ,<br />

12.12.1877), “o patriarca da literatura brasileira”. Advogado,<br />

jornalista, político, orador, romancista e teatrólogo. Da ABL.<br />

36 Mercúrio (ou Hermes), deus de rara importância, era filho de Júpiter, o<br />

mais importante de todos (Zeus, na mitologia grega). Protegia o tráfego,<br />

os comerciantes, os pastores e aqueles que, não possuindo recursos, pilhavam<br />

dos ricos.<br />

37 Que tem malhas escuras; pintalgado, sarapintado.<br />

38 Pizzicato é o modo de tocar os instrumentos de corda (geralmente os de<br />

arco) pinçando as cordas com os dedos. Também muito utilizado no jazz,<br />

explorando a característica rítmica conferida ao instrumento nesse estilo.<br />

39 Ver nota anterior, no Canto l.<br />

40 Guarda avançada. Cavaleiro que, ficando de sentinela, avisava rapidamente<br />

do que descobria.<br />

41 Diz-se de, ou indivíduo sem coragem, sem ânimo; desanimado, desalentado.<br />

Variantes: desacorçoado, desacoroçoado, descorçoado.<br />

42 Coisa intrincada; emaranhamento, enredo, complicação, teia.<br />

43 O Jornal do Brasil, na edição de 26.05.1926, publicou o seguinte anúncio<br />

(a ortografia é a da época): “Para ter bom somno/Porque este tem um<br />

somno tão socegado? (legenda do clichê)/– E’ porque, para dormir bem,<br />

é necessário ter uma boa digestão./– Para ter uma boa digestão, é preciso<br />

tomar Carvão de Belloc. Façam como elle./O uso do Carvão de Belloc<br />

em pó ou em pastilhas basta effectivamente para curar dentro de alguns<br />

dias dias as doenças de estomago, mesmo as mais antigas e as mais rebeldes<br />

a qualquer outro remedio. Produz uma sensação agradavel no estomago,<br />

da appetite, accelera a digestão e faz desapparecer a prisão de ventre. E’<br />

soberano contra o peso no estomago depois das refeições, as enxaquecas<br />

323


324<br />

provenietnes de más digestões, arrotos, quaesquer affecções nervosas do<br />

estomago e do intestino. Pastilhas Belloc. – As pessoas que o preferirem,<br />

poderão tomar o Carvão de Belloc sob a forma de Pastilhas Belloc. Dose:<br />

uma ou duas pastilhas depois de cada refeição. A’ venda em/ todas as<br />

pharmacias e drogarias. Deposito geral: Casa Frére, 19, rua Jocob, Paris”.<br />

44 Frederico Pimentel Gomes (Piracicaba/SP, 19.12.1921-Piracicaba/<br />

SP, 24.11.2004). Engenheiro-agrônomo, matemático, cientista de renome<br />

internacional, consultor da FAO.<br />

45 Árvore da família das euforbiáceas (Aleurites fordii), procedente da China<br />

e cultivada pelo alto valor do seu óleo, de folhas verde-claras, lobadas,<br />

ovadas e agudas, pequenas flores pardacentas dispostas em panículas laxas,<br />

e cujo fruto é uma grande tricoca. As sementes cedem perto de 60% de<br />

um óleo especial, altamente secativo, insubstituível para certas tintas e<br />

vernizes.<br />

46 O fruto da oiticica – rico em óleo secante – é empregado na indústria de<br />

tintas de automóvel e para tintas de impressoras jato de tinta, além de<br />

vernizes e outros fins. Essa espécie – dizem os técnicos – pode ser importante<br />

para a sustentabilidade do biodiesel no semi-árido, aliado ao fato da<br />

época de colheita ser realizada entre os meses de dezembro a fevereiro,<br />

período de total escassez de renda para a agricultura familiar<br />

47 Hoje em dia, certamente, o “milagre” se dá, na região Oeste do Estado,<br />

com a descoberta de petróleo em terras de má qualidade para a agricultura<br />

e a pecuária. Milhões de royalties são pagos pela Petrobras, mensalmente,<br />

ao Governo do Estado, às prefeituras municipais e aos donos das terras.<br />

48 Rede de dormir, tipóia. Ver o livro Rede de dormir; uma pesquisa etnográfica,<br />

de Luis da Câmara Cascudo.<br />

49 Designação comum e imprecisa de diversas espécies de aves passeriformes<br />

de proporções diminutas, que o povo do interior não dá importância e<br />

não diferencia; caga-sebinho, caga-sebite, caga-sebito, sebinho, sebite,<br />

sebito.


Canto 7<br />

No piso do comboio


[...] As lendas arrepiadoras do caipora travesso e maldoso, atravessando<br />

célere, montado em caititu arisco, as chapadas, desertas,<br />

nas noites misteriosas de luares claros; os sacis diabólicos,<br />

de barrete vermelho à cabeça, assaltando o viandante retardatário,<br />

nas noites aziagas das sextas-feiras, de parceria com<br />

lobisomens e burras-sem-cabeça notívagos: todos os<br />

malassombramentos, todas as tentações do maldito [...]<br />

Os Sertões, p.139


Sertão dos meus dez janeiros!<br />

Cavalos mansos, baixeiros. 1<br />

Que delícia, era viajar,<br />

armando a rede nos ganchos<br />

do alpendre aberto dos ranchos, 2<br />

– seis dias, para chegar...<br />

Fazer uma madrugada! 3<br />

A tropa, inda estremunhada,<br />

trota, no barro da chã...<br />

Vai-se andando... vai-se andando...<br />

Rósea, a barra vem quebrando... 4<br />

Chora, no vale, a acauã.<br />

(Rompe-nuvem, baio lindo!<br />

Viaja-se, mesmo dormindo,<br />

no teu dorso embalador!<br />

Teu nome – de avanço e luta –<br />

é uma hipérbole matuta,<br />

chalaça de cantador!<br />

Assim, tardo, é que te quero,<br />

Rompe-nuvem! Que inda espero<br />

volver, tão dócil te sei,<br />

– e, só por matar saudades! –<br />

às serras, às soledades,<br />

do sertão que sempre amei!).<br />

***<br />

329


330<br />

A ária, dulcíssima, esparze-a<br />

nas carnaúbas da várzea,<br />

graúna, avatar de Orfeu! 5<br />

Tua asa é a tinta do poema<br />

dos cabelos de Iracema<br />

– que, de saudades, morreu...<br />

Latada! Mata esta sede<br />

de madornar numa rede<br />

bem alvinha, de algodão!<br />

Pelego, 6 na areia... areia<br />

que o rio enxaguou na cheia<br />

– mais fofa do que um colchão...<br />

Moça da saia encarnada,<br />

que eu vi, na volta da estrada,<br />

arisca, a olhar para mim<br />

– talvez nunca mais te veja!<br />

– ou, um dia te leve à igreja,<br />

a ouvir-te o risonho sim...<br />

Não, nunca mais! Bem m’o disse,<br />

na sua sábia crendice,<br />

meu arrieiro, o Tundéu:<br />

– Quem carcula, se atrapaia...<br />

de casamento e mortaia,<br />

o corte é feito no céu!<br />

Eu, condo fui do seu tope,<br />

quebrava no curilope 7<br />

no lenço de gurgurão. 8


Tive tomém uma cera 9<br />

c’uma cabrocha linheira, 10<br />

lustrosa que só o cão!<br />

Hoje, num dou mais nutiça:<br />

fizero machaviliça,<br />

briguemo. Foi fuzuê!<br />

Uma sujeita zanôia<br />

dixe que eu sou vira-fôia, 11<br />

e ela num quis mais me vê...<br />

– Diz us fio da Caindinha<br />

que ela, agora, é bonequinha<br />

do cabaré do Iguatú.<br />

Nun vê guaiaba passada? 12<br />

P’ru fora, cheira e é rosada<br />

– dento, só tem tapuru...<br />

Pricurei meu padim Ciço.<br />

Ele tornou-me: Feitiço<br />

de mulata, é bem capaz<br />

de atentá o prope Cristo;<br />

vá rezar, se esqueça disto,<br />

– muié, o vento é quem traz...<br />

Andei mascando a liamba, 13<br />

dei birrada, 14 acabei samba,<br />

bêbo foi meu naturá.<br />

Sarou. Mas, p’ru dento, é vivo,<br />

o diale do remativo<br />

desse estrepe de juá...<br />

331


332<br />

Iguá o freguês sem rumo,<br />

que entra no mato sem fumo,<br />

pra caçá, e fica é só.<br />

Toma ferrão de tubiba 15<br />

– e a caipora, pru riba,<br />

inda lhe infinca o cipó...<br />

O freguês só tem sossego<br />

si num arrumá chamego, 16<br />

mucuím, tixe 17 ou muié.<br />

Rabo de saia e mundiça, 18<br />

faz inté fazê toliça<br />

cavalo de carroçé! 19<br />

***<br />

Sobe a névoa matutina.<br />

Terno, o galo-de-campina<br />

fere a canção do arrebol.<br />

Desperta a fazenda, em baixo.<br />

O dendezeiro do riacho<br />

apara a esgrima do sol...<br />

Papa-arroz... 20 De nome, é feio;<br />

qual, porém, mais belo, veio<br />

da Amazônia, ou do Japão?<br />

Tão retinto, que azuleja:<br />

da gorja 21 ao peito, flameja<br />

um crachá cor de malvão!<br />

A Cidade ainda distante...<br />

Eu, o lírico estudante,


venho em férias. Olho ao sul:<br />

que alvoroço, que alegria!<br />

– a igreja da freguesia<br />

recorta a torre no azul...<br />

Aí vai, cruzando o caminho,<br />

um serrano no burrinho<br />

lerdo, mancando de um pé.<br />

Entra no mato. Mas, onde,<br />

em que cafundó se esconde<br />

seu ninho de caboré? 22<br />

Centelha, vivente, réstia<br />

de sol, gorjeando! Tiveste-a,<br />

a voz, no Céu, a afinar?<br />

Pintassilgo! és o violino<br />

de um gênio, cujo destino<br />

é o de morrer... de cantar!<br />

Casaca-de-couro. 23 O ninho,<br />

enorme, é todo de espinho.<br />

Dá-lhe o nome, a cor que tem.<br />

Canto, em dueto: alarido!<br />

– grita, frucudo, 24 o marido!<br />

– A mulher grita, também!<br />

Sem uma folha, uma, única,<br />

no adamascado da túnica,<br />

o flamboyant faz lembrar<br />

os Doze Pares de França: 25<br />

– é Roldão, 26 ferido à lança,<br />

de pé, com o peito a sangrar...<br />

333


334<br />

Ganhou Burbank 27 ouro e glória,<br />

obrigando a palmatória<br />

a sem espinhos nascer.<br />

A nossa, não passa disto:<br />

– nem a coroa de Cristo<br />

tanto espinho era de ter!<br />

Lavandeira, 28 lavandisca,<br />

bem casadinha! Petisca,<br />

desde o pátio, ao corredor.<br />

A lenda a protege e nimba: 29<br />

– na água e no anil da cacimba,<br />

lava pra Nosso Senhor.<br />

Mulungu, pau de tabuado,<br />

num açude, és um achado<br />

no cavalete 30 que dás!<br />

Florido, a contar de agosto,<br />

na tua fronde, o sol posto<br />

o fogo em retalhos faz...


Notas ao Canto 7<br />

Baixeiro: Hábil no baixo, modalidade miúda e macia, da marcha<br />

do cavalo ou do burro, muito cômoda e agradável para quem viaja.<br />

Em escala de velocidade ascendente, assim se classifica, no sertão,<br />

a marcha da montaria:<br />

– passo<br />

– chouto<br />

– baixo (ou carrego)<br />

– galope-em-cima-da-mão<br />

– galope alto (ou largo)<br />

– contramarcha<br />

– meio<br />

– esquipe<br />

– carreira<br />

Rancho: Ou arrancho. Pouso, lugar onde se descansava, durante<br />

o pino do sol (pingo-do-sol), ou onde se pernoitava, nas extenuantes,<br />

mas tão divertidas, tão pitorescas jornadas através do sertão,<br />

prolongadas por três, quatro ou cinco dias, na marcha ordinária<br />

dos comboios, marcha que consistia em dois períodos: pela<br />

madrugada, até as 10, às 11 horas, e das 14, ou 15, às 18, em<br />

etapas de 5, 6 léguas. Havendo luar, a segunda etapa se prolongava<br />

às 19, às 20 horas. Os ranchos eram o rústico alpendre, colmado 31<br />

de folhas de coqueiros ou ramas de oiticica, da habitação à margem<br />

da estrada, a cuja porta a integral, encantadora hospitalidade<br />

sertaneja proverbialmente desobrigava do clássico: “ó de casa!”.<br />

Comumente, também, se não era inverno, servia de pousada, para<br />

o pernoite, alguma copada de oiticica, uma quixabeira alvinha de<br />

flor, um espetacular juazeiro em cuja copa rotunda a gente pressentia<br />

o frêmito dos canários estremunhados, sobre o clarão da<br />

335


336<br />

pequena coivara onde ia ferver, na marmita de folha de flandres, a<br />

água para o café – o café mais gostoso, mais tonificante, mais perfumado<br />

desse mundo, e cujo pó grosso e rescendente se fazia assentar<br />

da panela.<br />

Durava cinco a seis dias, o trajeto entre Jardim do Seridó e<br />

Macaíba, ponto terminal da jornada, e de onde, através do rio<br />

Jundiaí, em lancha ou bote, se atingia Natal.<br />

Anexins e Ditados: “Agrado é que demora viagem”; “Hóspede<br />

em casa é dia-santo”.<br />

Fazer u’a madrugada: Sair do rancho, em prosseguimento da<br />

caminhada, às 3, às 4 horas e mais cedo. O mesmo que fazer u’a<br />

mineira, no Sul.<br />

A barra vem quebrando: Vir amanhecendo. Alusão às nuvens<br />

que, ordinariamente, se acastelam ao nascente, na antemanhã. Ao<br />

quebrar da barra, cedinho, de manhãzinha.<br />

Pelego: Idílio. Tem quase sempre sentido pejorativo e, nesta<br />

acepção, não figura no Pequeno Dicionário aqui já muitas vezes citado.<br />

Vejam-se adiante cera e chamego.<br />

Arrieiro: Pajem, pessoa que se encarregava de preparar as refeições,<br />

de cuidar dos animais, durante a jornada. Almocreve,<br />

comboieiro, tangerino, cargueiro.<br />

Condo: Quando.<br />

Tope (ó): Talhe, tamanho, estatura.<br />

Quebrar: Usar, por luxo. Fulano só quebra no brim branco; Fulano<br />

só quebra na seda.<br />

Curilópe: “Chlorilopolis do Japão”, marca de perfume<br />

popularíssimo no Seridó, há trinta anos. Era vendido em vidrinhos


de 5 a 8 gramas, com etiqueta dourada – uma gueixa sobre a<br />

sombrinha de bambu e seda – a 50 centavos.<br />

Cera: Namoro, idílio platônico. Veja-se adiante chamego.<br />

Linheira: Esbelta, delgada, lazarina (veja-se, no Canto 11, anotação<br />

à ultima palavra).<br />

Lustrosa: Que não é bonita, nem feia. Simpática, bonitona. G.<br />

Barroso e M. Bandeira não colhem o termo com este significado,<br />

clássico em todo o Nordeste (Referimo-nos sempre, nestas Notas,<br />

à segunda edição do excelente Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua<br />

Portuguesa).<br />

Cão: O diabo. Veja-se Nota à palavra droga, no Canto 4.<br />

Machaviliça: Maquiavelice, intriga.<br />

Fuzuê: Barulho, disputa, confusão, arrelia. Vide verbete angu,<br />

em Notas ao Canto 11.<br />

Vira-folha: <strong>In</strong>fiel, volúvel.<br />

Passada: Madura em excesso, meio podre (relativo a fruta).<br />

Andei mascando a liamba: Alusão ao ciclo da cachimbagem<br />

dessa erva, que é o cânhamo, cannabis sativa, diamba, riamba, pango,<br />

maconha (a denominação mais popular, esta última). Rica, interessantíssima,<br />

a sinonímia inclui, ainda, aliamba, dirijo, birra, fumode-Angola,<br />

atchí (corrutela de haxixe). 32 É uma variedade de cânhamo<br />

europeu, originário da Índia, (cannabis indica).<br />

Esta planta, cujo uso e contrabando tanto preocuparam a policia<br />

carioca, e foi assunto rendoso a muitos jornais sensacionalistas<br />

da capital da República, é conhecida, há muitos anos, no sertão,<br />

embora o fato não tivesse sido registrado, até agora, na crônica<br />

policial ou judiciária do Estado. No Seridó propriamente dito, e<br />

337


338<br />

talvez em todo o sertão norte rio-grandense, não se sabe do uso<br />

da diamba. 33<br />

Entretanto, o Dr. Manoel P. Diniz, 34 bacharel em direito, advogado,<br />

poeta incluído na coletânea de Laudelino Freire, 35 Sonetos<br />

Brasileiros, e que, em 1941, encontramos nas funções de secretário<br />

da Prefeitura da terra de Padre Cícero, 36 escreve o seguinte,<br />

no seu curiosíssimo livro, Mistérios do Joazeiro, que Câmara Cascudo<br />

considera (em Vaqueiros e Cantadores) um dos mais importantes,<br />

minuciosos documentários do ciclo folclórico dominado pela singular<br />

personalidade daquele malogrado Barjesus 37 caririense:<br />

M. Diniz continua,<br />

Não inventamos bichos-de-sete-cabeças, quando nos referimos<br />

ao uso da liamba [...] <strong>In</strong>felizmente, os nossos<br />

governos do Norte e Nordeste (onde há os mais perigosos<br />

centros de cultura e uso da liamba) ainda não criaram<br />

serviço especial de policia preventiva, contra entorpecente<br />

tão perigoso, que concorre, não só, para<br />

achinesar um povo, como para africanizar, que é muito<br />

pior. No Rio de Janeiro existe a legendária favela e, no<br />

sertão nordestino, que está mais próximo do Maranhão?<br />

(Simões da Fonseca, no Dicionário Enciclopédico, afirma<br />

que a liamba é nativa daquele Estado).<br />

Há muitas favelas, ou elementos de favelas, atuando<br />

particularmente nos grandes centros onde predomina<br />

a maioria da ignorância, como desgraçadamente aconteceu<br />

em Joazeiro, que só de há poucos anos a esta<br />

parte (1935) começou a sair do caos, como se fosse<br />

um novo orbe de que o padre Cícero seria o Padre-<br />

Eterno, conforme a crença de muitos romeiros que a<br />

estas horas, podem estar na Bem-Aventurança celeste,<br />

formando a imensa legião dos pobres de espírito


que constituíram o maior troféu com que o Patriarca<br />

se apresentou diante de Deus, ao ser julgado [...] Mas,<br />

dir-nos-iam, que tem isto com aquilo? Muitíssimo; pois<br />

muitas pessoas, mesmo das menos simplícias, pensavam<br />

que certos tipos, particularmente pretos ou bem<br />

trigueiros, eram realmente doidos ou malucos, conduzidos,<br />

furiosos, à presença do Patriarca, para curálos.<br />

Nem por sonho. Tais indivíduos, que vimos mais<br />

de uma vez à porta do Patriarca, contidos por seus<br />

condutores, cavilosos ou não, no dia seguinte estavam<br />

bons, e proclamando que tinham sido curados por milagres<br />

da bênção do Padim Ciço. Quase todos esses tipos<br />

eram liambados, e nada mais [...] E a liamba, para a<br />

formação desses pseudo-loucos? Existia e existe em<br />

Joazeiro, embora usada ocultamente, não por medo<br />

da policia, mas porque não queriam que o Padim soubesse;<br />

não porque o amassem mas porque temiam que<br />

ele mandasse castigar os empreiteiros da cultura da<br />

liamba e do seu uso maléfico. Damos testemunho de<br />

tal erva aqui. Vimos há anos, no quintal de uma casa, à<br />

rua da Conceição, desta cidade, alguns pés de um arbusto<br />

parecido com o mastruço e de sementes semelhantes<br />

às do coentro. Eram pés de liamba.(Mistérios do<br />

Joazeiro, M. Diniz, tipografia do O Joazeiro, Ceará,<br />

1935).<br />

Em 1947, a revista O Cruzeiro, do Rio, publicou sensacional<br />

reportagem em torno do uso da maconha (liamba). Américo<br />

Valério 38 e Gonçalves Fernandes, 39 de Pernambuco, têm publicado<br />

estudos especiais a respeito.<br />

Birrada: Pancada (de birro, bilro, cacete curto), caçambada,<br />

tamboretada, sabacuzada, lapada, gebada (esta última tem também<br />

sentido obsceno).<br />

339


340<br />

Remativo: Reumatismo. Qualquer dor surda e intermitente, cuja<br />

causa não conheçam, é assim denominada, entre os matutos.<br />

E a caipora, p’ru riba: O sertanejo acredita na caipora, 40 duende,<br />

espírito protetor dos animais silvestres, espécie de saci-pererê,<br />

um negrinho muito vivaz, de barrete vermelho, sempre cavalgando<br />

um porco ou um veado, e cuja presença se manifesta num<br />

assobio agudíssimo e prolongado. Exige, dos caçadores, o tributo<br />

de um pedaço de fumo, sem o que não poderiam eles penetrar<br />

impunemente no mato, ou realizar caçada compensadora. O castigo<br />

mais temido é o de uma sova de cipó, quando a caipora topa<br />

com um devedor relapso, reincidente. Aos caçadores mais felizes,<br />

atribui-se estarem em dia com o imposto.<br />

Chamego: Namoro, em sentido pejorativo. Agarrado, pegamasso,<br />

pelego, arranhado, xodó, chichinado (subst). Animação, cera, influência<br />

e ponta são empregados na acepção platônica. Por ocasião<br />

de sua última viagem ao Seridó (1941), já ouviu o Autor dessas<br />

Notas, em rodas de cafés e bilhares, chafandrilha, xumbregação,<br />

e fiapo (tirar fiapo com fulano, com fulana), termos da gíria plebéia<br />

natalense. Há, ainda, aqui (Santo Deus!), mamparra, fraguido,<br />

ronçoio (do verbo roçar?), etc.<br />

Macuim: Ou micuim, espécie de carrapato microscópico, habitante<br />

das folhas verdes, e cuja picada produz inaturável comichão.<br />

Tixe: Piolho das aves domésticas, goniodes stylifer. Cafife, mundiça. No<br />

feminino, cafifa, significa importunação, estribilho irritante, mofina,<br />

caninga, infuca, amolação (Veja-se caninga, nas Notas do Canto 6).<br />

Mundiça: Imundície. Denominação dada, entre o povo, a qualquer<br />

praga de parasitas, especialmente de galináceos e colombinos<br />

(mundiça). Gente ruim, canalha, cambada. Em sentido afetivo,<br />

trata também assim o matuto a própria família:


– Como lhe vai, a obrigação?<br />

– A mundiça tá viva, graças a Deus...<br />

Jaques Raimundo 41 (O Elemento afro-negro na Língua Portuguesa,<br />

p. 124) ensina que mundiça é sinônimo de grande quantidade<br />

(Mato-Grosso), e cita uma frase de Taunay, 42 em <strong>In</strong>ocência, p. 101:<br />

“Trouxeram de lá uma imundície de gente amarrada”.<br />

Pode ser, esta, a significação em que o matuto emprega a palavra,<br />

referindo-se à prole, ordinariamente numerosa entre os casais<br />

sertanejos.<br />

Cavalo de Carrossel: Sujeito que não sai dos limites, em questões<br />

de despesa; econômico, a mais não poder, somítico, avarento;<br />

pirão-na-unha, amarrado-de-corda, pão-duro, dura-fogo.<br />

Papa-arroz: Pássaro da família das Fringiloidas, Dolychonix<br />

oryzivorus. Xexéu de coqueiro, de plumagem negro-azeviche, ou<br />

azul-ferrete, encontradiço nos coqueirais e carnaubais. Anda sempre<br />

em bandos, nos quais avultam as fêmeas. O macho, ave belíssima,<br />

quando adulto, tem a plumagem ainda mais escura, e uma faixa<br />

cor de brasa viva no papo, começando da parte inferior do bico.<br />

Cafundó: Lugar deserto e longínquo, de difícil acesso; furna de<br />

serra.<br />

Caboré: Glaucidium brazilianum, Gm., pequenina coruja pintalgada,<br />

não apenas noturna, e que só nos ermos serranos comumente constrói<br />

o ninho, nos buracos da velhas árvores e barrancas. Quando<br />

canta, nas proximidades do inverno, é mau sinal. Cuidam os matutos<br />

ouvir, no melancólico regougo, 43 em tom grave do caboré, repetida<br />

sinistramente, a onomatopéia ameaçadora: sol... sol... sol...<br />

Casaca-de-couro: Ave do sertão e da caatinga, 44 da família das<br />

Mimidas, e também chamada maria-cocoruta, denominação que<br />

341


342<br />

lhe vem da poupa de penas. Na várzea do Assu, é também conhecida<br />

por catapirra. É toda de cor de couro, curtido recentemente.<br />

Anda aos casais, tanto no mato como nas árvores dos quintais<br />

urbanos, onde todos os anos faz o ninho – um ninho enorme, tão<br />

entretecido toscamente de gravetos espinhosos, mas forrados, no<br />

interior, com pluma de algodão e capins delicados. São tão grandes,<br />

estes rústicos gineceus, que, não poucas vezes, arreia com o<br />

peso deles o galho da jurema, de favela ou de turco, 45 que os suportava.<br />

Há árvores com cinco, seis, e mais, ninhos de casaca-decouro,<br />

sempre construídos pelo mesmo casal – anos e anos. A<br />

casaca tem dois terríveis inimigos, o punaré 46 e o concliz. O primeiro,<br />

um ardiloso e voraz rato silvestre, para lhe devorar os filhotes;<br />

o concliz, (Vide esta palavra no Canto 6), para expulsá-la,<br />

aproveitando-se velhacamente da “casa” pronta, para chocar a própria<br />

ninhada. A casaca só canta em dueto, um canto alto, agudíssimo,<br />

estridente, alegre, caprichoso, sem melodia consagrada pelos<br />

Hercules-Florence 47 e pelos Gonzaga-Duque 48 do pentagrama<br />

avícola do deserto, mas cheio de graça agreste e de saudosa ressonância,<br />

ouvido a grande longitude na solidão comburida dos meios-dias<br />

sertanejos. Frente a frente, junto ao ninho, e pulando vivo<br />

e miúdo, os topetes riçados, 49 as asas distendidas e peneirando,<br />

“marido” e “mulher” se desafiam, ardentemente, nesta estrídula<br />

melopéia que, a breves intervalos, martelam o dia inteiro.<br />

Lavandeira: Lavandisca, Fluvícola climazura. Esclarece Câmara<br />

Cascudo, em Aves no Folclore Brasileiro:<br />

Vão ter uma surpresa, quando lhes disser que a<br />

lavandeira está no Índex, 50 também. Apesar de seus<br />

hábitos simples, de sua familiaridade, de suas visitas<br />

às calçadas e cozinhas, de seus saltos e reviravoltas, a<br />

lavandeira não é boa peça. Se lavou a roupa de Nosso<br />

Senhor, é que foi obrigada, ou quis agradar uma vez


na sua vida. Dá azar, e dos grandes. Para anular seu<br />

inconveniente prestígio maléfico, quando lhe derem<br />

de comer, especialmente carne verde, não lhe dêem<br />

de beber. E vice-versa.<br />

Cavalete: Toro de madeira leve – especialmente, o mulungu –,<br />

muito usado, nos açudes e nos rios, como precioso auxiliar dos<br />

exercícios de natação. É o salva-vidas clássico no sertão.<br />

343


344<br />

1 Ver nota de OM.<br />

2 Idem.<br />

3 Idem.<br />

4 Idem.<br />

Notas<br />

5 Figura mitológica, filho da musa Calíope, músico e poeta, marido apaixonado<br />

de Eurídice. Quando tocava sua lira, os pássaros paravam de voar<br />

para escutar e os animais selvagens perdiam o medo. Ele ganhou a lira de<br />

Apolo; alguns dizem que Apolo era seu pai.<br />

6 Ver nota de OM.<br />

7 Ver notas de OM para “condo”, “tope” e “curilope”.<br />

8 Gorgorão, tecido encorpado de seda, com relevos formando finos cordões,<br />

originalmente fabricado na Índia.<br />

9 Ver nota de OM.<br />

10 Ver nota de OM.<br />

11 Idem, idem.<br />

12 Ver nota de OM.<br />

13 Ver nota 373.<br />

14 Ver nota de OM.<br />

15 Do tupi tuuíua – Pequena abelha silvestre meliponídea (Scaptotrigona<br />

tubiba-Smith).<br />

16 Ver nota de OM.<br />

17 Ver nota de OM.<br />

18 Ver nota de OM.<br />

19 Idem, idem.<br />

20 Idem.<br />

21 Garganta, goela, pescoço.<br />

22 Ver nota de OM.<br />

23 Ver nota de OM.<br />

24 O mesmo que frocado: com a coluna reta; aprumado, empertigado.<br />

25 Refere-se a “Carlos Magno e os Doze Pares de França”, canção de gesta,


narrativa com muitas batalhas que se espalhou por todo o sertão e inspirou<br />

violeiros e cantadores. A tradição é que esses pares, cavaleiros que<br />

formavam uma espécie de tropa de elite do imperador Carlos Magno,<br />

eram doze e assim se fixa o seu número no primeiro poema que celebrou<br />

a batalha de Roncesvalles – La chanson de Roland.<br />

26 Forma abrasileirada de Roland, um dos Doze Pares de França, personagem<br />

principal da canção carolíngia – acima referida -, do ano 1070, sobre<br />

a emboscada sofrida pelo rei franco Carlos Magno, no desfiladeiro de<br />

Roncesvales, em 778, pelos bascos.<br />

27 Luther Burbank (1849-1926). Pioneiro dos alimentos ditos hoje<br />

transgênicos, um dos maiores gênios de melhoria de plantas. Vivia na<br />

Califórnia no início do século XX e criou centenas de variedades. Livrepensador,<br />

darwinista.<br />

28 Ver nota de OM.<br />

29 Do verbo nimbar: cobrir uma imagem, pessoa ou figura com um halo ou<br />

auréola.<br />

30 Ver nota de OM.<br />

31 Coberto de colmo. Pequena casa coberta de colmo. Palhoça, cabana, choupana.<br />

32 Palavra africana (makanha, pl. com pref. ma- de dikanha, tabaco) do<br />

quimbundo, língua da família banta, de Angola. Consumida como o tabaco,<br />

seu princípio ativo é o tetraidrocanabinol. Nas línguas espanhola e inglesa é<br />

chamada de marijuana (Maria e Juana) e em árabe – e depois na França –<br />

conhecida como haxixe, nominando a planta. No Oriente, conhecida como<br />

charas. A.M.P: maconha embebida em formaldeído, seca e posteriormente<br />

fumada. Skunk: é a maconha de laboratório, cultivada em condições especiais,<br />

com finalidade de obter maconha com concentrações 7 a 10 vezes maiores<br />

de Delta 9 THC. Também chamada de Super Maconha. Outras denominações:<br />

abango, abangue, bagulho, bango, bangue, baseado, baura, bengue,<br />

bolo, bomba, bongo, bosta-de-burro, cabeça-de-nego, cangonha, chá, danada,<br />

dirígio, dorme-dorme, elba-ramalho, erva, erva-do-diabo, erva-docão,<br />

erva-do-capeta, erva-maldita, fininho, fuminho, fumo, fumo-do-mato,<br />

fumo-da-Índia, fumo-selvagem, fumo-de-caboclo, jererê, marijuana, manga-rosa,<br />

maria-joana, massa, mato, muamba, mutuca, massa, nadiamba, pacau,<br />

palha, pango, preto, rabo-de-raposa, ralfe, rafi, riamba, sariema, seruma,<br />

soruma, suruma, tabanagira, umbaru. Os jornais, no Rio Grande do Norte,<br />

345


346<br />

vez por outra, noticiam a descoberta de plantações de maconha em terras<br />

potiguares, no Seridó e no Alto-Oeste. Essas lavouras teriam surgido, dizem<br />

os entendidos, por conta do assédio da Polícia Federal aos latifúndios do<br />

chamado Polígono – ou Triângulo – da Maconha, nos cafundós de<br />

Pernambuco, ribeiras do São Francisco. A atividade, hoje, o plantio, o<br />

canhameiral, pode ser até novidade para os nossos sertanejos. O uso da<br />

droga – sempre pernicioso – é secular. A “erva maldita”, veladamente, por<br />

baixo do pano, sempre esteve presente nos sertões nordestinos. Graciliano<br />

Ramos, escrevendo o Linhas Tortas, em Palmeira dos Índios, no sertão das<br />

Alagoas, afirmava que “nas cidades os viciados elegantes absorvem o ópio, a<br />

cocaína, a morfina; por aqui há pessoas que ainda usam a liamba”.<br />

Nunca misteriosa, sempre perigosa e deletéria, a maconha, noutra modalidade<br />

de uso, recebeu na Arábia o nome de haxixe. É a resina, a cera<br />

extraída das flores e dos frutos (belotas). Homero, falando da embriaguez<br />

a que se entregavam os citas, faz alusão à inalação dos vapores do cânhamo.<br />

Os orientais (e muito buona gente em Natal, diga-se de passagem) servemse<br />

do haxixe (de alto preço) pitando o narguilé – cachimbo composto de<br />

um fornilho, um tubo e um vaso cheio de água perfumada, por onde<br />

atravessa a fumaça antes de chegar à boca do usuário.<br />

Mil anos a.C., os hindus já consideravam o cânhamo como planta sagrada,<br />

havendo, no Rig-Veda, alusão a respeito. Charas, na Índia, é, também,<br />

sinônimo de costume. Notável, curioso, é que, no Brasil – e aqui mesmo,<br />

na Cidade dos Três Reis, nas comunidades periféricas, nas reuniões dos<br />

“intelectuais” modernosos e emproados, dos artistas “performáticos”, dos<br />

poetas de vários calibres e segmentos, nos condomínios de luxo ou no<br />

Beco da Lama –, qualquer dependente da maconha, com ou sem leitura,<br />

ocupantes ou não de polpudos cargos comissionados no serviço público,<br />

sabe que um chara equivale a um longo, grosso, substancial “canela-deanjo”,<br />

um “cheio”! E a apologia da liamba corre frouxa, na Potiguarânia –<br />

mais das vezes, até, amparada, a título de produção cultural, pelo dinheiro<br />

de todos nós. Novidade não é que uma grande parte da hodierna<br />

intelligentzia do Rio Grande Sem Sorte, além da liamba, faz “clínica geral”,<br />

“inspirando” as raras cacholas, também, nos eflúvios dos chás de cogumelo,<br />

de zabumba (Figueira do <strong>In</strong>ferno, Maminho Bravo, Trombeta, Dabumba,<br />

Aubatinga-dos-<strong>In</strong>dios, Erva-dos-Mágicos, Erva dos Feiticeiros, Erva do<br />

Diabo, Erva dos Demoníacos) e da “hostil e mimosa” Jurema-Preta.


33 As pesquisas e as notas de OM são do período de 1939 a 1952. Hoje,<br />

infelizmente, a maconha corre solta Brasil afora, no Seridó e alhures, “nas<br />

Oropa, França e Bahia”<br />

34 Manoel Pereira Diniz. Paraibano de Alagoa Nova, nascido em 1887,<br />

formado em Direito (1911), pela Faculdade do Recife. Migrou para a terra<br />

do Padre Cícero, onde publicou livros (Mistérios do Juazeiro, 1935), fundou<br />

o Colégio São Miguel, e viveu até sua morte, em setembro de 1949. Com o<br />

pseudônimo de “Dr. Israel”, publicou, ainda, Lunário Moderno ou Manual do<br />

Nordestino. A proposta do autor era a de “adaptar o Lunário Perpétuo para o<br />

Hemisfério Sul”. Como advogado, atuou no inventário do “Padim Ciço”.<br />

35 Laudelino de Oliveira Freire (Lagarto/SE, 26.01.1873-Rio de Janeiro/RJ,<br />

18.06.1937). Advogado, jornalista, professor, político, crítico<br />

e filólogo. Foi membro da Academia Brasileira de Letras (ABL).<br />

36 Cícero Romão Batista (Crato/CE, 24.03.1844-Juazeiro do Norte/<br />

CE, 20.07.1934). Padre Cícero do Juazeiro, “Padim Ciço”. Político importante,<br />

“coronel” de muito prestígio, latifundiário, fez revolução contra<br />

o governo da República. Fundador da chamada “Meca nordestina”, ou<br />

seja, Juazeiro do Norte.<br />

37 Mago, feiticeiro judeu, falso profeta, também chamado de Élimas. Vivia<br />

em Chipre (Pafos), província senatorial de Roma, governada, à época,<br />

pelo procônsul Sérgio Paulo – a quem servia, como curandeiro. Segundo<br />

os Atos dos Apóstolos, quinto livro do Novo Testamento, Barjesus foi<br />

desmascarado por Saulo (ou Paulo) de Tarso, que, “cheio do Espírito Santo”,<br />

o amaldiçoou, cegando-o.<br />

38 Américo Valério. Médico carioca, nascido em 1898, ensaísta, professor<br />

catedrático. Escreveu sobre Euclides da Cunha, Machado de Assis, José<br />

de Alencar e Graça Aranha.<br />

39 Gonçalves Fernandes. Psiquiatra, antropólogo, folclorista e escritor<br />

especializado em superstições e religiosidade popular. Nasceu em Recife/PE,<br />

no ano de 1909. Formado em Medicina, em 1937, pela Universidade<br />

de Pernambuco. Foi professor na Faculdade de Ciências Médicas do<br />

Recife, na Faculdade de Direito do Recife e na Universidade do Brasil e<br />

diretor da Fundação Joaquim Nabuco. Faleceu na capital pernambucana,<br />

em 1986.<br />

40 Também chamado de Pai ou Mãe-do-Mato, Curupira e Caapora. Para os<br />

índios guaranis ele é o Demônio da Floresta. Às vezes é visto montando<br />

347


348<br />

um porco do mato. Uma carta do padre Anchieta datada de 1560, dizia:<br />

“Aqui há certos demônios, a que os índios chamam Curupira, que os<br />

atacam muitas vezes no mato, dando-lhes açoites e ferindo-os bastante”.<br />

41 Jacques (ou Jaques) Raimundo. Professor, jornalista, escritor e<br />

filólogo brasileiro, nascido no Rio de Janeiro. Especialista no estudo das<br />

línguas africanas e sua influência no idioma português. Um dos fundadores<br />

da Academia Brasileira de Filologia. Fernando Jorge, em A Academia do<br />

Fardão e da Confusão registra que o erudito professor desancou o filólogo<br />

Laudelino Freire, criticando ferozmente o Formulário ortographico do<br />

sergipano, “no qual encontrou centenas de erros. Estes lhe deram a impressão<br />

de ser uma “floresta emaranhada de cipós”.<br />

42 Alfredo Maria Adriano d’Escragnolle Taunay, visconde de<br />

Taunay (Rio de Janeiro/RJ, 22.02.1843-Rio de Janeiro/RJ, 25.01.1899).<br />

Escritor brasileiro do fim do século XIX, professor, militar, político, historiador<br />

e sociólogo.<br />

43 Som cavo, gutural; ronco, roncadura; ato ou efeito de regougar.<br />

44 Pseudoseisura cristata.<br />

45 O turco (Parkinsonia aculeata L.) é uma árvore de pequeno porte, pertencente<br />

à família Leguminosae - Caesalpinoideae, ocorrendo em áreas do Nordeste<br />

do Brasil e Rio Grande do Sul.<br />

46 Do tupi puna’re ‘. Espécie de mamífero roedor da família dos equimiídeos<br />

(Thrichomys apereoides), de pelagem macia e cauda longa; rato-boiadeiro.<br />

47 Antoine Hercules Romuald Florence. Chegou ao Brasil em 1824, e<br />

durante quase 50 anos viveu na Vila de São Carlos, hoje Campinas, em São<br />

Paulo – onde morreu em 27 de março de 1879. Entre 1825 e 1829,<br />

participou como desenhista de uma expedição científica chefiada pelo<br />

barão Georg Heirich von Langsdorff, cônsul geral da Rússia no Brasil.<br />

<strong>In</strong>ventou um sistema de impressão gráfica (polygraphie) e, muito antes de<br />

Daguerre, em 1833, usando câmera escura, chapa de vidro e papel sensibilizado<br />

para o contato, descobriu um processo fotográfico, dando-lhe o<br />

nome de photographie.<br />

48 Luiz Gonzaga Duque Estrada (Rio de Janeiro/RJ, 1863-Rio de Janeiro/<br />

RJ, 1911). Foi um crítico de arte e escritor brasileiro. Autor de A Arte Brasileira<br />

(1888) e do romance Mocidade Morta (1899), dentre outras obras.<br />

49 Eriçados, arrufados, postos em pé.<br />

50 Assinalado como indesejável, pernicioso.


Canto 8<br />

Como a ave que volta ao ninho antigo


Uma grande herança de abusões extravagantes, extinta na orla<br />

marítima pelo influxo modificador de outras crenças e de outras<br />

raças, no sertão ficou intacta.<br />

Os Sertões, p. 140


À fresca do oitão da igreja,<br />

na preguiçosa, 1 boceja,<br />

de chambre, 2 o padre Tomás.<br />

Ralha a um cabrito malhado,<br />

que pinoteia, ispritado: 3<br />

– T’es...con...juro, satanás!<br />

– Bons-dia, seu moço! – É o Binha.<br />

Já foi soldado de linha,<br />

pelejou no Paraguai. 4<br />

– Conte a guerra! – E ele, sanhudo: 5<br />

– Ahann... Num foi nada! Em Canudo, 6<br />

foi q’eu tive vai num vai...<br />

Tonhéca... 7 Magro, anzolado, 8<br />

é um gênio. Strauss, 9 reencarnado,<br />

compondo valsas gentis,<br />

– mas, de sol! de tardes quentes!<br />

de serranias dolentes,<br />

de arrulhos de juritis...<br />

No alpendre de Dona Santa,<br />

Preto Limão 10 cospe e canta,<br />

num tom de bravura e dó...<br />

Mistral 11 de chapéu-de-couro,<br />

teu verso é uma prima 12 de ouro,<br />

na viola do Seridó!<br />

353


354<br />

– Negro velho escopetêro, 13<br />

louve aqui meu companhêro,<br />

poeta que vem mais eu!<br />

Retruca o Homero tisnado:<br />

– Você traz um convidado,<br />

que é tomém amigo meu!<br />

– Pruquê abasta tê vindo<br />

mais você! Seu moço, eu brindo<br />

vossa entrada no lugá.<br />

Não tem fulôres agora,<br />

mas esta chorona chora<br />

e canta, pra lhe sarvá...<br />

No juazeiro verdinho,<br />

tá cantando um passarinho,<br />

outro chega, e pega o tom...<br />

Num faz mal que eu sêje franco:<br />

sô moreno, o moço é branco<br />

– café cum leite é que é bom...<br />

Poeta parnasiano 14<br />

– que faz um poema por ano,<br />

e livros lê, mais de cem –,<br />

renego o cinzel e a trena,<br />

beijo essa fita morena<br />

que a tua viola tem!<br />

O hotel de Tetê fervilha.<br />

É o casamento da filha,<br />

vai sair fogo do chão...


Mais tarde, fobó, 15 de fole:<br />

– dançar, até ficar mole,<br />

e pegar o sol com a mão! 16<br />

Já, depois da cerimônia,<br />

correu cerveja Teutônia.<br />

Afirma o Juiz de Paz,<br />

“invocando” o undécimo copo:<br />

– Com esta mermo, é que eu topo!<br />

mió, praqui, num vem mai!<br />

– Póiado, Chico Pessoa!<br />

A bicha é pra lá de boa,<br />

foi alamão que inventô!<br />

E, o noivo, já meio bambo:<br />

– <strong>In</strong>té cura dô de istambo! 17<br />

– dotô Castro arreceitô!<br />

***<br />

Izidro, o fiscal. Somítico,<br />

diz “perdoe!” a paralítico,<br />

a cego, a viúva, o judeu!<br />

A própria mãe, sinhá <strong>In</strong>ácia<br />

(conta o Tóta da farmácia),<br />

à míngua, os loros bateu... 18<br />

Ajojado, 19 de gravata,<br />

colete e esporas “de prata”,<br />

Bilé passeia o pedrês. 20<br />

Da esquina da padaria,<br />

355


356<br />

um entendido elogia:<br />

– Dessa cor, um vale três!<br />

Bem-te-vi, que diabo viste? 21<br />

A Donzinha vem tão triste,<br />

com o cesto cheio de imbu...<br />

Para ver o que há nos matos,<br />

finges catar carrapatos,<br />

no toitiço 22 do zebu!<br />

Manoel André, bom ferreiro,<br />

passou hoje o dia inteiro<br />

num vuco-vuco 23 do cão.<br />

– Mas, pra quê, tanta da lixa?<br />

– Tô limpano as Manulicha 24<br />

qui tem na Repartição!<br />

Capitão João Filirmino 25<br />

espera Antonho Sirvino,<br />

que já mandou portadô. 26<br />

– Alisou tudo, em Priquito... 27<br />

- Mái, se ele qué vê bonito,<br />

catuque o aministradô! 28<br />

– Num dixéro que o danado<br />

– Só fái é mandá recado,<br />

pra móde dispois num vim?<br />

– Num seio...Mái, astrudia,<br />

fez cota, baile e folia,<br />

deu dia santo em Jardim...


Ele tem disso: c’os pobre<br />

reparte as fazenda e os cobre<br />

que toma dos coroné.<br />

– Buliu cum moça donzela?<br />

sortêro casa cum ela!<br />

casado – do-tê-e-té!<br />

– Eu, num percisa é de rogo!<br />

meu rife papo-de-fogo 29<br />

tá pronto pru bafafá!<br />

– Pabulage, seu pamonha 30 !<br />

só c’um home na coronha,<br />

pode um rife papocá!<br />

***<br />

Cabocla, rolinha arisca!<br />

meu olho direito pisca,<br />

namorando mais você...<br />

Seu vestido de noivado<br />

há de ser – mal comparado –<br />

um cacho de muçambê! 31<br />

***<br />

Aí vem, a Andreza do Padre.<br />

De Deus e o mundo é comadre,<br />

seis vezes trinta já tem. 32<br />

– Burrinha, 33 cadê o freio? –,<br />

xinga o agente do Correio,<br />

rindo. E ela ri-se, também.<br />

357


358<br />

Dizia o pardo Ribeiro,<br />

bom regrista e mandingueiro: 34<br />

– Seu negro velho, o que foi!<br />

tive berloque 35 e bandeja,<br />

lavei quartau com cerveja, 36<br />

rebolava queijo em boi...<br />

Na bodega do Linhares,<br />

sentado nos calcanhares,<br />

“corta varas” 37 o Lolô:<br />

– Um pau, assim, de avoete!<br />

pêi!...caiu cem... – De alfinete,<br />

marmotas desencantou... 38<br />

– Abasta um arranhãozinho:<br />

fez sangue, sai do caminho,<br />

outra visage num faz!<br />

Macho – é certo que se amoite;<br />

sete-cidade, 39 p’ru noite,<br />

se é feme num corre mais...<br />

Por loroteiro, que o tomem,<br />

conta, e jura. O lobisomem 40<br />

andou, virou e mexeu,<br />

buliu com muito condado... 41<br />

– mas, no dele, é que o enjeitado,<br />

no fim, não apareceu...<br />

Há sensação no auditório.<br />

O menino do Gregório,<br />

com o gás, o brote 42 e o voador, 43


pensa em voltar... – Que degredo,<br />

da rua ao sítio! que medo,<br />

nesse quengo sonhador!<br />

Canário, rei dos troveiros!<br />

Na bastilha de ponteiros,<br />

pendurada no portal!<br />

Mesmo assim, Patápio 44 louro,<br />

estalas colcheias de ouro<br />

– numa pauta vertical!<br />

Clarinda, no alpendre ao lado,<br />

– Vênus de ébano molhado –,<br />

bate a caçula ao pilão, 45<br />

mais Flor. Tiram palha ao milho.<br />

Sobe, lânguido, o estribilho<br />

de velha, ingênua canção:<br />

– Vamos, Orgênia, fugindo,<br />

de tudo alegre nos rindo,<br />

bem longe nos ocurtar... 46<br />

Morre a tarde. Na ingazeira,<br />

uma asa-branca solteira<br />

põe-se, triste, a soluçar.<br />

***<br />

Manoel Pequeno, o andarilho... 47<br />

Chouteando, fora do trilho<br />

do que era a estrada real,<br />

na bolsa, a matalotagem, 48<br />

359


360<br />

não se arranchava, de viagem,<br />

fosse a Recife ou a Natal.<br />

Conversa – sadia, e pouca.<br />

De carregar pela boca,<br />

uma pistola Comblain. 49<br />

E (montando uma ema brava!)<br />

persignava-se... Voava,<br />

de Jardim a Tracunhém! 50<br />

Oficial de Justiça,<br />

antes de o sol dizer missa,<br />

à porta de réu ou ré<br />

– rabo-de-galo 51 de um lado -,<br />

saudava: – Têje intimado,<br />

pra ir preso...e fazer café!<br />

Não houve e nem há quem ande,<br />

quanto andou, no Rio Grande.<br />

Mercúrio rude e veloz,<br />

quando o supúnhamos de ida,<br />

vinha, de rota batida,<br />

por dentro dos mororós... 52<br />

Não tinha asas nos rajetos, 53<br />

não corria em bichos pretos,<br />

mas soubera transformar,<br />

as alpercatas 54 nodosas,<br />

– nas botas maravilhosas<br />

do Pequeno Polegar!


Notas ao Canto 8<br />

Preguiçosa: Espreguiçadeira, cadeira armada com madeira e lona,<br />

muito familiar no sertão, onde se usava mesmo na sala de visitas (copiar);<br />

na calçada, para as sestas; à noite, para os “adjuntos” da prosinha<br />

ligeira e do mexerico em torno dos poucos assuntos da cidade.<br />

Chambre: Robe de chambre, camisão, usado pelos antigos e<br />

correspondendo ao moderno pijama. Somente os “educados”, todavia,<br />

ostentavam uma indumentária íntima, sob a qual, de resto,<br />

se faziam vistos à calçada, e recebiam visitas de pouco protocolo.<br />

Porque o matuto autêntico – o único que, na maioria dos aspectos<br />

aqui abordados, interessa ao poema – e mesmo que legítimo<br />

coronel de guarda nacional, mais conhecido pelo topônimo da<br />

fazenda de que era dono, do que pelo sobrenome, usava, a esse<br />

tempo, e para todos os efeitos (só excluindo missa, eleição e júri),<br />

a camisa de zefir 55 ou algodãozinho, por cima das ceroulas amarradas<br />

com cadarços aos tornozelos. Se acontecia envergar as calças,<br />

conservava por cima destas a camisa, solta. Esse hábito, na plebe,<br />

foi em algum tempo reprimido pela polícia, às ordens de delegados<br />

ciosos da cultura do sertão e seu progresso. Progresso que foi<br />

muito lento, antes das duas revoluções a que, no Canto 5 (nas<br />

Notas), já se fez referência – a do automóvel e a da Escola Doméstica.<br />

Somente em casa, e na menagem da fazenda, podia, então,<br />

andar o tabaréu com a camisa por fora. Saindo à rua, tinha de<br />

“passar o pano”, isto é, meter a camisa para dentro. Os soldados do<br />

destacamento policial fiscalizavam, a rigor, o mau costume. Muitas<br />

prisões correcionais foram efetuadas, e até crimes houve a registrar;<br />

porque muitos feirantes, intimados a “passar o pano”, tomavam<br />

por desaforo a ordem, preferindo arrastar da lambedeira,<br />

e enfrentar o rabo-de-galo do representante da civilização...<br />

361


362<br />

Ispritado: Espritado, danado, com o espírito mau no couro. Esperto<br />

em demasia.<br />

O Binha: O herói da sextilha (a segunda deste Canto) é, ainda<br />

hoje, tipo popular encontradiço, e não só no interior, como nas<br />

capitais de todo o Brasil. 56 Velhos voluntários, ou conscritos, que<br />

fizeram a guerra do Paraguai, ou foram a Canudos, e vegetam<br />

miserrimamente, da caridade pública. Enquanto que nédios, 57<br />

cheirosos sinecuristas, flores assexuadas do nepotismo nacional,<br />

semideuses do futebol, baronetes, “artistas”, “bonitões”, dos institutos<br />

autárquicos, com tios, cunhados, primos ou “torcedores” nos<br />

Ministérios, metem empenhos sobre empenhos para se eximirem<br />

ao xadrez ou ao pagamento de multas por traficâncias na regularização<br />

do atestado de reservistas... de terceira categoria. O Diário<br />

da Noite, do Recife, em sua edição de 10 de abril de 1947, divulgou<br />

ilustrativa reportagem sobre Cândido Pessoa da Silva<br />

Wanderley, herói da guerra contra Lopez. Quase centenário, encontra-se<br />

totalmente desamparado, reduzido à conjuntura de<br />

mendigar. Documenta notícia uma fotografia do veterano, à frente<br />

do miserável casebre em que se abriga, na estrada de Paudalho,<br />

daquela Capital – sede de uma Região Militar –, a implorar a caridade<br />

dos transeuntes...<br />

Soldado-de-linha: Praça do Exército.<br />

Tonhéca: Antônio Pedro Dantas, Tonhéca, maestro conterrâneo,<br />

nascido em 1871, na Vila de Carnaúba, 58 no município seridoense<br />

de Acari. Famoso compositor de valsas, sendo as mais célebres<br />

“Royal Cinema” e “Delírios”, populares em todo o Brasil, e integrando<br />

as coleções do Conservatório de Música de Berlim. Foi<br />

mestre de música neste Estado, na Paraíba e no Pará. Por ocasião<br />

de um concurso, na Escola Normal de Natal, para provimento da<br />

cátedra de Música, perdeu. Concorreu com 240 composições,


cada qual mais primorosa. Perdeu, porém (et pourquoi pas? 59 ), para<br />

um ádvena, 60 “simpático” da situação política dominante. Faleceu<br />

em 7 de fevereiro de 1940 como simples músico da banda da<br />

Polícia Militar. E, por pouco, não havia verba para o enterro...<br />

Preto Limão: Anota Câmara Cascudo em Vaqueiros e Cantadores, p.<br />

256-257, ed. citada:<br />

Preto Limão, famosíssimo cantador e violeiro. Era<br />

um negro alto, esguio, de olhos amarelados, e com<br />

um cavanhaque de soba africano. É sempre enumerado<br />

entre os primeiros cantadores, e como residindo<br />

em Natal, embora não fosse verídico. Derrotou<br />

dezenas de menestréis, mais sua maior glória é ter<br />

se batido com Bernardo Nogueira, que o venceu.<br />

Dizem os cantadores que Preto Limão só foi vencido<br />

por estar doente, e ter a família adoecido também.<br />

Escopeteiro: Bom atirador, hábil no ofício. Diz-se, também, do<br />

sujeito cuja mulher lhe dá um filho todos os anos.<br />

Pegar o sol com a mão: Expressão muito vulgarizada, nos divertimentos<br />

sertanejos, especialmente nos bailes. Significa dançar<br />

toda a noite, só terminando a folgança ao romper do sol.<br />

Bater o loro: Morrer. Esticar a canela, virar a capela do olho,<br />

virar a raiz pro ar, emborcar, não comer mais farinha, ir ser plantado,<br />

dar o couro à vara. Queimar o fuzil (fusível). Esta última expressão<br />

é moderna, pertence ao ciclo idiomático da gasolina. (Vide<br />

o verbete xereta, em Notas ao Canto 5).<br />

Ajojado: Ajoujado, muito apertado, meio estrangulado na gravata;<br />

embainhado na farpela nova. Ajoujar o animal é apertar-lhe os<br />

arreios (cilha e rabicho, ou rabichola), a mais não poder.<br />

363


364<br />

Pedrês: Alimária de pelo branco (cardão), pintalgado de marrom<br />

(castanho).<br />

O sertanejo mantém convicções sobre as qualidades da montaria,<br />

em relação com a respectiva cor. Alguns anexins e ditados são<br />

populares:<br />

Cavalo pedrês, um vale por três.<br />

Cavalo alazão, freio no braço sela na mão.<br />

Cavalo castanho-escuro. Pisa no mole e no<br />

duro, carrega o dono seguro.<br />

Cavalo pampa, só tem a estampa.<br />

Cavalo russo, (branco), doce no pulso.<br />

Bem-te-vi, que diacho viste? A Donzinha vem tão triste:<br />

Em Os Escravos, diz Castro Alves a certa Maria:<br />

Mimosa flor dos escravos!<br />

O bando das flores bravas<br />

Voou com medo de ti!<br />

Levas hoje algum segredo...<br />

Pois te voltaste, com medo,<br />

Ao grito do bem-te-vi!<br />

Vuco-vuco: Afã, tribuzana, vavavu, repiquete.<br />

Manulicha: Mannlicher, 61 carabina antiga, de fabricação inglesa,<br />

usada, a esse tempo, pela Polícia estadual. Devido às dificuldades e<br />

perigos que, então, representava o exercício do fisco no sertão, o<br />

governo confiava aos administradores das mesas de rendas algumas<br />

dessas armas, para a eventualidade de um ataque de cangaceiros.<br />

Que já mandou portador: Antônio Silvino, 62 célebre<br />

quadrilheiro, que durante mais de vinte anos talou 63 os sertões e<br />

brejos nordestinos, costumava mandar ultimato aos visados pela


sua cavalaria andante do rifle: raras vezes, entretanto, cumprindo<br />

a ameaça, se a resposta era a da aceitação do desafio.<br />

Alisar: Tomar, no jogo, todo o dinheiro do parceiro; ou perdê-lo,<br />

completamente. Furtar, saquear.<br />

Priquito: Periquito, pequeno papagaio. Topônimo antigo de Equador,<br />

hoje próspero distrito 64 do município seridoense de Parelhas,<br />

e empório de algodão, à margem esquerda da estrada tronco<br />

da I.F.O.C.S., 65 para Campina Grande. Originou-se de uma fazenda<br />

de gado, pertencente a uma senhora Dona Maria, situada, há<br />

talvez mais de cem anos, na chã da serra do Periquito, no cordão<br />

da Borborema. “Priquito de Dona Maria” dizia-se, jocosamente,<br />

em toda a redondeza daquele oásis verdejante, cuja denominação<br />

somente os maliciosos moviam à malicia.<br />

Dona Maria era também proprietária de outro sítio, chamado<br />

“O Fundão”, porque encravado no vale, e vizinho ao Periquito.<br />

O Coronel José Tomás, paraibano ilustre, e a quem muito ficou<br />

a dever a cidade de Jardim do Seridó, conversava, certa vez,<br />

ao balcão de uma loja de fazendas, durante uma feira, com um<br />

freguês a quem despachava, de primeira compra. As páginas tantas<br />

do cavaco, indagou do matuto onde residia, e ele respondeu: –<br />

Saiba vossa mercê que sou assituado entre o Priquito e o Fundão de Dona<br />

Maria... José Tomás obtemperou-lhe, risonho: – Olhe, meu amigo,<br />

vossa senhoria mora num lugar bem apertado!...<br />

Abagão: Figurão, maioral, coronel.<br />

Bafafá: Barulho, arrelia.<br />

Pamonha: É adjetivo, e significa mole, covarde; mucufa, goteira,<br />

molóide, pomboca, abilolado, babaca, bobó, mané, trouxa, fumega,<br />

panema 66 (Mário Marroquim, 67 registra “apanemado”, em A<br />

Língua do Nordeste, p. 155, 2ª edição).<br />

365


366<br />

Muçambê: Cleome heptaphylla, família das caparidáceas. Arbusto<br />

espinhoso das várzeas e rios, e todos os lugares frescos, florindo<br />

em graciosos corimbos 68 alvinitentes, 69 de pistilos róseos. A infusão<br />

das raízes da (variedade branco) é meizinha contra macacoas 70<br />

de mulher, e febres, bronquites, etc.<br />

Seis vezes trinta: Expressão com qual procurou o Autor significar<br />

a avançada idade da heroína da sextilha, na conformidade do<br />

adágio popular: “negro, quando pinta, tem três vezes trinta”.<br />

Burrinha: Burra-de-padre, mula-sem-cabeça, em que se encanta<br />

a caseira do vigário, largando-se após, na estrada, com o tilintar<br />

de correntes, chocalhos, arreios e ferros-velhos, a percorrer sete<br />

cidades, por noite, nas sextas-feiras, até que cante o primeiro galo...<br />

Escreve Gustavo Barroso, à página 266 de Terra do Sol:<br />

Quando u’a mulher foi amante de um padre, aparece<br />

depois de morta sob a forma de uma mula sem<br />

cabeça, que vaga em doidas correrias pelos matos e<br />

que só se desencanta ao topar no caminho uma cruz<br />

de ramos bentos. De noite, muitas vezes, um barulho<br />

qualquer de animais a galope, bufando, desperta<br />

o sertanejo medroso de assombramentos. Ele recolhe-se<br />

na rede e reza. É a burra-de-padre que vai<br />

passando...<br />

No Seridó, entretanto, a crendice da burra-de-padre se manifesta,<br />

ordinariamente, a respeito da mulher mesmo viva.<br />

Xingar: <strong>In</strong>sultar, pilheriar, mangar. Quem não sabe rezar, xinga<br />

Deus.<br />

Mandingueiro: Fazedor de mandinga, feiticeiro, catimbozeiro,<br />

juremeiro. Veja-se Nota à palavra mandinga, adiante, no Canto 9.


Lavei quartau com cerveja: Quartau é o cavalo castrado. É<br />

verídico, o fato do banho de cerveja, e não somente em relação<br />

ao preto Ribeiro, em foco na estrofe sob anotação. São os sertanejos,<br />

hoje em dia, menos imprevidentes, menos perdulários, mercê<br />

das rigorosas, duríssimas lições que têm amargado, na luta sem<br />

tréguas contra as incertezas e traições do clima. Lavar o cavalo,<br />

com cerveja ou vinho, acender charutos, chegando-lhes lume com<br />

cédulas de cem e mais mil réis; afugentar reses da porta do paiol<br />

(quarto, junto ao curral e onde se guardam os apetrechos do<br />

pastoreio), arremessando-lhes queijos de dois quilos, foram atos<br />

vastamente testemunhados e corriqueiros, no sertão, ao tempo<br />

dos bons preços do “ouro branco”, quando o automóvel e o rádio<br />

ainda não haviam imposto ao matuto a revelação das mil e uma<br />

utilidades nas quais, se quiser ser tido por “civilizado”, tem de<br />

empregar, agora, o que lhe custou tanta canseira, tantas consultas<br />

ansiosas ao céu, a “esfinge azul” da primeira sextilha do Canto 2.<br />

Avoete: Ave de arribação, columbina, da família dos Peristerídeos<br />

(Zenaida auriculata), pomba-de-bando, pomba-do-sertão. Chamada<br />

de “ribaçã”, no Seridó, entre os meios-cultos; “rabaçã”, na plebe;<br />

ou “avoete”, mesmo. Nunca se disse “avoante”, como no Ceará<br />

(G. Barroso, Terra do Sol). No livro citado, tem o eminente folclorista<br />

uma página célebre, sobre o assunto.<br />

Pêi! Caiu cem: A expressão é hiperbólica; não fosse ela pabulagem<br />

do Lolô (Sextilha 23). Contudo, todos os caçadores de ribaçãs se<br />

poderão jactar de haver derrubado dez, vinte pombas, entre mortas<br />

e feridas, de um só tiro. Às vezes, devido ao número incalculável<br />

em que se abatem sobre o chão da caatinga, sobre pedras,<br />

arbustos e árvores secas das serras e riachos, aglomeram-se, de tal<br />

maneira, tão emparelhadas, que com uma boa espalhadeira, mal<br />

socada a bucha, não teria sido inverossímil a façanha proclamada<br />

367


368<br />

pelo Tartarim 71 seridoense, com a palavra na estrofe sob o comentário.<br />

De alfinete, marmotas desencantou: É crença, no sertão,<br />

que o lobisomem, a burrinha de padre, ou outra qualquer marmota<br />

de assombração e encantamento, desencanta-se, imediatamente,<br />

assim se lhes faça sangue, mesmo com a ponta de um alfinete...<br />

Marmota: Visagem, assombração, bicho feio e desengonçado.<br />

Lobisomem: Licantropo, homem que vira bicho. Amarelo, comelonge,<br />

maduro, força-de-sangue.<br />

Segundo uma “receita”, corrente entre os mitólogos no sertão,<br />

“para virar lobisomem”, basta, à meia-noite das sextas-feiras (menos<br />

durante a Semana Santa), vestir a roupa pelo avesso, e espojarse<br />

num curral bem emporcalhado pelos animais.<br />

Uma sextilha, de José Martins em Luzes do Canaã, já citado:<br />

Num vá tucaiá o lube,<br />

pode perdê nas questão.<br />

Basta sê que ele é um bicho,<br />

Mal se vira de cristão.<br />

É fio qui dá na mãe,<br />

E arrecebe mardição...<br />

Caçula: Batida de pilão, feita por duas pessoas, alternadamente.<br />

Patápio: Patápio Silva, flautista brasileiro, natural do Estado do<br />

Rio de Janeiro (22 de outubro de 1880) Morreu em abril de<br />

1907, em Florianópolis. Em Nota à terceira edição de Mata Iluminada,<br />

taxou-o Catulo da Paixão Cearense 72 de “gênio”.<br />

Manoel Pequeno: Manoel Ferreira dos Santos Pequeno, apelido<br />

que tomou para diferenciar-se de um homônimo, morador da<br />

mesma cidade (Jardim do Seridó). É uma das biografias mais inte-


essantes, mais ricas em episódios de bravura, de malícia e bomhumor,<br />

no sertão. Ficou famoso, em toda a vasta região do hiterland<br />

nordestino, pela rapidez com que viajava, invariavelmente a pé.<br />

Era o tempo dos “próprios”, e foi ele o mais expedito, o mais fiel,<br />

o mais espirituoso em expediente, o mais decidido de todos. Não<br />

sabe o Autor se, por isso, ou porque tivesse, em alguma época,<br />

trabalhado em transporte postal da União, era mais conhecido,<br />

profissionalmente, pela denominação de “correio” com a qual, aliás<br />

(segundo conta Câmara Cascudo), deu, depois, para se zangar, a<br />

ponto de briga. O sertão jamais teve mais rápido e dedicado mensageiro.<br />

Cobria o trajeto de Jardim a Recife, a João Pessoa, a Campina<br />

Grande, a Natal, e a outras muitas cidades distanciadas centenas<br />

de léguas do Seridó – na metade, num terço do tempo gasto<br />

pelos outros pedestres então utilizados como estafetas. Quando<br />

se viajava pelo sertão, a cavalo, tiveram eles grande utilização, e<br />

gozavam de estima geral. Manoel Pequeno, consagrado, em vida,<br />

pelo prestígio da lenda, foi o mais célebre de todos, aquele a quem<br />

se confiavam as missões mais difíceis, as cartas de maior sigilo, atas<br />

de eleições, dinheiro das mesas de rendas, ou das transações comerciais.<br />

Porque jornadeava sempre a pé, e pela importância das<br />

incumbências que lhe confiavam, nunca admitia companheiro, nem<br />

fazia descanso ou dormida em pousos comuns, à beira da estrada.<br />

Caminhava numa espécie de chouto miúdo, a cabeça baixa, mas<br />

alerta a vista de lince, o tronco meio inclinado para frente, preferindo<br />

sempre internar-se pelas veredas e atalhos – que conhecia a<br />

palmo – a fim de ganhar tempo. Conduzia a comida, já pronta<br />

para ser utilizada, num mocó 73 a tiracolo; e comia, andando. Um<br />

próprio, 74 a cavalo, vencia o itinerário Jardim-Natal, ou vice-versa,<br />

em três dias, dois e meio; fazia-o ele, em dois, um e meio. Daí,<br />

numerosas lendas, criadas a propósito e que ele de nenhum modo<br />

descoroçoava, ladino que era, sorrindo dos encômios e perguntas<br />

369


370<br />

indiscretas, safando-se de tudo com uma piada, uma anedota, perpetuamente<br />

bem humorado. Tinha pauta com o diabo; andava,<br />

dentro do mato, montado numa ema preta; envultava-se num gavião,<br />

ou num tronco seco a fumegar, e no qual o caminheiro desprevenido<br />

de mágicas acendia o cigarro ou o cachimbo; saía com<br />

a mão na anca do cavalo mais andador do Seridó e, a páginas tantas,<br />

voltando-se, o cavaleiro não dava mais de cara com Manoel<br />

Pequeno, de quem ia encontrar noticias dez, vinte, trinta léguas<br />

adiante: – Já passou aqui, ontem de manhã, naquele choutinho<br />

dele...<br />

Substituiu ao sogro, Severino Chaves, em 1889, no cargo de<br />

oficial de justiça, em cujo exercício veio a falecer, em 1928. Nunca<br />

perdeu uma diligência. Quando tinha de proceder a uma<br />

intimação a réu ou constituinte residente fora da cidade, num<br />

ermo da serra, o quebrar da barra já o encontrava de plantão no<br />

alpendre. E, muitas vezes, foi esta a sua saudação ao dono da casa:<br />

– Têje intimado, pra se assinar nesta carta precatória... e pra mandá fazê<br />

café...<br />

Tipo acabado de honradez, de disciplina moral, e da fidelidade<br />

incomparável do seridoense, era popularíssimo e querido em todo<br />

o sertão e na capital, onde contava com a amizade pessoal de Pedro<br />

Velho, 75 senhor todo-poderoso da Província, e a quem trouxera<br />

muita mensagem de relevância, dos chefes políticos do interior.<br />

<strong>In</strong>teligentíssimo, arguto como raposa escapa de armadilha, sabia<br />

safar-se maravilhosamente das “enrascadas” que o humilde cargo<br />

no foro, e a qualidade de mensageiro de confiança, lhe depararam<br />

inúmeras vezes, na vida.<br />

O Dr. Heráclio Pires, entre algumas das mais conhecidas traças<br />

“históricas” de Manoel Pequeno, deliciosamente nos relata esta:<br />

Por volta de 1890, existiu aqui (Jardim do Seridó),<br />

um louco, conhecido opor Silvestre Doido, que era o


terror da população. Eram pedradas, cacetadas nos<br />

transeuntes, palavras obscenas, e toda sorte de tropelias.<br />

As prisões e clausuras de Silvestre de nada<br />

serviam, pois, solto o homem, voltava às mesmas<br />

façanhas. O clamor era geral. A esse tempo, havia<br />

sido inaugurada a Tamarineira, asilo de loucos, em<br />

Recife, e do qual se contava muita coisa boa. Resolveram<br />

as autoridades, e a própria família de Silvestre,<br />

mandá-lo para a Tamarineira. Logo, se cotizaram<br />

todos, para as despesas de viagem, encarregando-se<br />

Manoel Pequeno de levar o louco; era, para isso, o<br />

homem de confiança. O maior comerciante da terra<br />

fez uma carta ao seu melhor amigo e patrão do Recife,<br />

encaminhando o pobre doente e, no dia aprazado,<br />

partiu Manoel Pequeno, com o homem algemado<br />

e nas cordas, em busca daquela capital, onde chegou<br />

depois de uns oito dias de viagem. Ali, Manoel<br />

Pequeno procurou logo o figurão para quem levava a<br />

mensagem e, com o Silvestre ao lado e sempre nas<br />

cordas, lhe entregou. Depois que o homem leu a carta,<br />

bastante aborrecido, chamou Manoel Pequeno e<br />

disse-lhe que, absolutamente, não se podia encarregar<br />

do internamento do doido; que ali era<br />

Pernambuco, e não o Rio Grande do Norte; que,<br />

finalmente, voltasse, tomasse conta do seu fardo, pois<br />

que nada podia fazer. Manoel Pequeno tomou a palavra<br />

e, desembaraçado no falar, como era, contou toda<br />

a história do Silvestre, o sofrimento do nosso povo<br />

por causa das tropelias dele, etc, terminando com<br />

um apelo ao tal graúdo, principalmente, – frisava –<br />

por não se achar com forças para voltar com o homem<br />

louco. O homem permanecia irredutível; disse<br />

que não atenderia ao apelo; estava tudo liquidado:<br />

a Tamarineira era para os infelizes de Pernambuco e<br />

371


372<br />

não os do Rio Grande do Norte. Nisto, o Manoel<br />

Pequeno perdeu a calma (ou fingiu havê-la perdido);<br />

falou grosso, também, dizendo: – Pois se assim é,<br />

tomem conta do doido, que esse doido é agora de<br />

Pernambuco!<br />

E, rápido, sacando de sua quicé, cortou todas as cordas<br />

ao furioso louco Silvestre, soltando-o porta afora;<br />

com que, vendo-se ele a vontade, iniciou imediatamente<br />

uma série de distúrbios em Recife. Dentro<br />

de poucas horas, estava o Silvestre agarrado, e recolhido<br />

à Tamarineira, como autêntico “louco<br />

pernambucano”. E, o Manoel Pequeno, livre para a<br />

sua caminhada de regresso.<br />

Foi o único homem, em Jardim, que espontaneamente se apresentou<br />

ao juiz distrital, para pegar Antônio Silvino, quando já se<br />

encontrava este dentro da cidade, na sua incursão de 1912.<br />

Em A República, diário oficial do Estado, edição de 6 de fevereiro<br />

de 1944, dedicou-lhe Câmara Cascudo uma “Acta Diurna,” 76<br />

sob o título de “Diário de Manoel Pequeno”. Depois de relatar<br />

muitos e divertidíssimos episódios da vida do inesquecível<br />

andarilho, remata o insigne rematador essa bela página, afirmando,<br />

com toda justeza: “Não o esqueceu a memória popular, e seu<br />

nome, ausente dos registros glorificadores, gravou-se indelével,<br />

nas almas claras em cuja doce luminosidade viverá para sempre”.<br />

Matalotagem: Provisão para a jornada, rancho, mastigo (subst.)<br />

A comida já pronta a ser utilizada e, ordinariamente, composta de<br />

farinha de mandioca, rapadura e carne seca, assada ou guisada.<br />

Também significa carneação: “Em casa de Fulano, tem matalotagem<br />

hoje”. Isto é, matou-se ali uma rês.<br />

Rabo-de-galo: Sabre Comblain, 77 de longa e grossa lâmina, há<br />

muitos anos usado pela polícia.


Mororó: Bauhinia forficata, arbusto abundante nas caatingas e serras<br />

do sertão, magnífica forragem para vacas leiteiras (Veja-se Nota à<br />

palavra logradouro, no Canto 5). A madeira, flexível, fortíssima,<br />

fornece cacetes famosos. Com um deles, o tangerino Magalhães,<br />

protegido e morador de Tomás de Araújo, 78 um dos abaetés 79 da<br />

nossa história política, derrubou um cangaceiro célebre, terror<br />

do sertão piauiense, segundo o relato de Manoel Dantas, 80 inserto<br />

em Leituras Potiguares, p. 279.<br />

Rajeto: Corrutela de jarrete. (O Pequeno Dicionário, de G. Barroso<br />

e Manoel Bandeira registra “rejeito”). No sertão, significa tornozelo,<br />

osso-do-gostoso, expressão, esta, antitética, 81 provinda do<br />

fato de provocar dor muito pungente e prolongada, qualquer choque<br />

nessa parte do pé. O matuto diz “rejêto”.<br />

Alpercata: 82 Em Coiteiros, p. 168, grafa J. Américo de Almeida,<br />

alpergatas, pondo mesmo o vocábulo na boca de um dos broncos<br />

heróis do seu livro. Apragata é o termo exclusivamente usado pelo<br />

matuto – por todos os matutos do Nordeste – e, até, pelos meios<br />

cultos. Lâmina larga, de sola, cortada à feição do pé, e presa aos<br />

dedos por correias. Atualmente, vendem-se no sertão as de pneus,<br />

mais resistentes e mais baratas. Usam-nas homens e mulheres; estas,<br />

especialmente nos trabalhos de roçado, ou quando viajam a<br />

pé.<br />

373


374<br />

1 Ver nota de OM.<br />

2 Idem.<br />

3 Idem.<br />

4 Ver notas de OM.<br />

5 Que causa medo; temível.<br />

6 Referência à Guerra de Canudos.<br />

7 Ver nota de OM.<br />

8 Muito magro; macérrimo.<br />

Notas<br />

9 Richard Strauss (Munique/Alemanha,11.06.1864-Garmisch-<br />

Partenkirchen/Alemanha, 08.09.1949). Compositor e maestro alemão,<br />

considerado o mais destacado representante da música entre o final do<br />

Romantismo e o início da Idade Moderna.<br />

10 Preto Limão. Ver Câmara Cascudo, no Vaqueiros e Cantadores. Nota de<br />

OM.<br />

11 Referência a Fréderic Mistral (Maillane, Provença/França, 08.09.1830-<br />

25.03.1914). Escritor, poeta e filólogo francês de língua occitana ou<br />

provençal – língua românica falada ao sul da França – ao sul do rio Loire<br />

–, assim como em alguns vales alpinos na Itália e no Val d’Aran,<br />

na Espanha. Sua poesia refletia os cenários naturais e o espírito nativo de<br />

seu povo. Premiado com o Nobel de Literatura de 1904.<br />

12 A corda mais fina de certos instrumentos (violino, violoncelo, guitarra,<br />

etc.), que dá o som mais agudo.<br />

13 Ver nota de OM.<br />

14 Pertencente ou relativo ao Parnaso. Diz-se dos partidários de uma escola<br />

poética que, em oposição ao lirismo romântico, cultivou uma poesia de<br />

feição mais objetiva e de notável apuro de forma.<br />

15 Conforme OM: samba, sovacada, forró, fobó, zambê, quebradinho, espalha-pés;<br />

furdunço.<br />

16 Ver nota de OM.<br />

17 Estômago, no dizer do matuto.<br />

18 Ver nota de OM.


19 Ajoujado. Curvado ou arriado ao peso de uma carga. Ver nota de OM.<br />

20 Salpicado de preto e branco na cor. Ver nota de OM.<br />

21 Ver nota de OM.<br />

22 A parte posterior da cabeça; cachaço, nuca.<br />

23 Ver nota de OM.<br />

24 Idem.<br />

25 João Felismino (Ribeiro Dantas) de Melo, pai de OM.<br />

26 Ver nota de OM.<br />

27 Ver notas de OM.<br />

28 Administrador. O pai do poeta, citado, era administrador da Mesa de Rendas<br />

Estadual em Jardim do Seridó, acumulando o cargo de delegado de<br />

polícia.<br />

29 O “papo”, num rifle, é a peça localizada na parte inferior da culatra (fecho).<br />

Nos sertões, a cor desse dispositivo, identificava o modelo, geralmente<br />

Winchester (1873), calibre 44.<br />

30 Ver notas de OM.<br />

31 Ver nota de OM.<br />

32 Ver nota de OM.<br />

33 Ver notas de OM.<br />

34 Ver nota de OM.<br />

35 Pequeno enfeite de matéria e forma variadas, que se traz pendente da<br />

cadeia do relógio, da pulseira; pingente, penduricalho.<br />

36 Idem.<br />

37 Contar lorota, mentir.<br />

38 Ver notas de OM.<br />

39 Lolô. O mentiroso personagem criado nas sextilhas por OM – por herança<br />

cultural dos colonizadores portugueses –, faz referência (compreensivelmente<br />

distorcida) à lenda da Ilha das Sete Cidades, divulgada e<br />

popularizada na Península Ibérica a partir da Idade Média. O primeiro<br />

documento ibérico referente às Sete Cidades (<strong>In</strong>sula Septem Civitatum, na<br />

Antiguidade) é uma crônica em latim da cidade de Porto Cale (a moderna<br />

cidade do Porto), aparentemente escrita, cerca de 750 d.C., por um clérigo<br />

cristão.<br />

375


376<br />

40 Ver nota de OM.<br />

41 Distrito, região, município.<br />

42 Biscoito ou bolacha pequena, torrada, feita de farinha de trigo.<br />

43 Peixe voador, salgado.<br />

44 Patápio Silva. Ver nota de OM.<br />

45 Ver nota de OM.<br />

46 “Canção da Boêmia”, de Castro Alves. Teve pelo menos duas versões<br />

(modinhas), com o título “Vamos, Eugênia, Fugindo”, musicadas no Ceará<br />

e na Paraíba. Eugênia Câmara era uma atriz portuguesa, grande paixão do<br />

poeta. A versão cearense foi gravada por Luís Heitor para o acervo da<br />

E.N.M.U.B., do Rio de Janeiro/RJ, em 1943, com canto e acompanhamento<br />

de duas violas.<br />

47 Ver nota de OM.<br />

48 Idem.<br />

49 Pistola de dois canos, de fogo central (dois tiros e uma carreira), geralmente<br />

de calibre 38. Lampião (Virgolino Ferreira), aos 17 anos, comprou<br />

uma dessas armas, a primeira de tantas outras que usou na sua caminhada<br />

de bandoleiro.<br />

50 O mesmo que Tracunhaém, cidade pernambucana, situada na zona da<br />

mata, distante 72 km de Recife.<br />

51 Ver nota de OM.<br />

52 Idem.<br />

53 Idem.<br />

54 Idem.<br />

55 Tecido de algodão, leve e transparente, com os fios do tecido geralmente<br />

formando listras.<br />

56 Atentar para que o livro foi escrito entre as décadas de 1930-1950.<br />

57 Luzidio, brilhante, de pele lustrosa.<br />

58 Atualmente, o município de Carnaúba dos Dantas, no Seridó.<br />

59 Em francês: “e por que não?”.<br />

60 Chegado de fora, estrangeiro, forasteiro.<br />

61 Clavina (ou carabina) adotada pelo Exército Brasileiro em 1892. Poucos<br />

anos depois, obsoleta, grandes quantidades dessa arma foram doadas às


forças públicas estaduais. Popularizou-se, nos sertões, com a corruptela<br />

do sobrenome do engenheiro austríaco que a desenhou, Ferdinand<br />

Ritter von Mannlicher (Mainz/Alemanha, 30.01.1848-Viena/Áustria,<br />

20.01.1904).<br />

62 Manuel Batista de Morais (Afogados da <strong>In</strong>gazeira/PE, 02.11.1875-<br />

Campina Grande/PB, 30.11.1944). Adotando a alcunha de “Antônio<br />

Silvino”, foi o mais famoso cangaceiro do Nordeste brasileiro, antes de<br />

Lampião. Rotulado de “Rifle de Ouro”, “Rei do Cangaço” e até de “Governador<br />

do Sertão”, durante 16 anos organizou saques, assassinou políticos,<br />

ignorou a polícia e só respeitava mulheres.<br />

63 Causou grave estrago em (algo); devastou, arrasou.<br />

64 Equador. Desmembrou-se de Parelhas e tornou-se município do Rio<br />

Grande do Norte (Lei Estadual 2.799, no dia 11 de maio de 1962). Em 17<br />

de março de 1963, ao mesmo tempo em que ocorria a instalação, tomava<br />

posse o primeiro prefeito, nomeado pelo governador.<br />

65 Antiga denominação do atual Departamento Nacional de Obras Contra a<br />

Seca.<br />

66 Que ou quem é infeliz na caça e/ou na pesca; infeliz na vida; azarado,<br />

caipora; vítima de feitiço.<br />

67 Mário Marroquim (Água Preta/AL, 22.03.1896-Maceió/AL,<br />

15.03.1975). Escritor, professor, folclorista, historiador e advogado<br />

alagoano. Foi secretário de Estado e procurador-geral. Da Academia<br />

Alagoana de Letras.<br />

68 Tipo muito comum de inflorescência em que as flores partem de alturas<br />

diferentes e alcançam o mesmo nível, na porção superior.<br />

69 De alvuras imaculadas.<br />

70 Doença sem gravidade.<br />

71 Tartarim (de Tarascon). Personagem de grande sucesso do escritor francês<br />

Alphonse Daudet (Nimes/França, 1840-Paris/França, 1897). O livro As<br />

Aventuras Prodigiosas de Tartarim de Tarascon apareceu em 1872. Tartarim é uma<br />

fusão de Dom Quixote e Sancho Pança e fixa um tipo hiperbólico e mitômano,<br />

vítima de seu próprio poder de se iludir. Era especialista em caçadas.<br />

72 Catulo da Paixão Cearense (São Luís do Maranhão/MA, 08.10.1863-<br />

Rio de Janeiro/RJ, 10.05.1946). Teatrólogo, poeta, músico, compositor<br />

e cantor brasileiro.<br />

377


378<br />

73 Bolsa de tiracolo para pequenas provisões, papéis, etc.<br />

74 Portador ou mensageiro.<br />

75 Pedro Velho de Albuquerque Maranhão (Natal/RN, 27.11.1856-<br />

Recife/PE, 09.12.1907). Proclamador da República no Rio Grande do<br />

Norte; político, jornalista, médico e abolicionista. Fundou o jornal A República,<br />

em 01.07.1889. Foi o primeiro governador do Estado, sob o<br />

novo regime. Criou a oligarquia que dominou o Estado até 1930.<br />

76 Explicou Câmara Cascudo: “Acta Diurna era uma espécie de jornal diário,<br />

uma folha onde os acontecimentos do dia eram fixados pelas autoridades de<br />

Roma, para conhecimento do povo. Pregavam-na a uma parede num dos<br />

edifícios do Fórum. No ano 131, antes de Cristo, já existia a Acta Diurna,<br />

informando ao cidadão romano as ‘novidades’ ou diretivas governamentais.<br />

Júlio César, cinqüenta e nove anos antes do nascimento de Cristo tornou-a<br />

oficial, de aposição obrigatória num determinado logradouro público. Conservo<br />

o título em latim. Por isso aparece o Acta com a segunda consoante do<br />

alfabeto. Acta significa, no latim, ações, obras, feitos, façanhas. Diurna é o que<br />

se pratica sob o sol, no espaço de um dia, ou diariamente”.<br />

77 Sabre-baioneta-iatagã. Adotado na França em 1842, tinha lâmina semelhante<br />

a de um iatagã. Utilizado no fuzil francês Comblain, de vários modelos,<br />

utilizados pelo Exército Brasileiro até 1915. Forjada e temperada em<br />

ferro carbono, a empunhadura em bronze naval e o guarda-mão em aço.<br />

78 Tomás de Araújo Pereira (Acari/RN,1765-Acari/RN1847). Patriarca<br />

seridoense, senhor de muitas terras e escravos. Político de prestígio, foi<br />

o segundo presidente da Província do Rio Grande do Norte, de 5 de maio<br />

a 8 de setembro de 1824.<br />

79 Ou abaetê, significando “homem bom, verdadeiro, de palavra, honrado”.<br />

80 Manoel Gomes de Medeiros Dantas (Caicó/RN, 26.04.1867-Natal/<br />

RN, 15.06.1924). Advogado, juiz, educador, jornalista, político e precursor<br />

dos estudos de folclore no Estado. Celebrizou-se com uma conferência –<br />

“Natal daqui a cinqüenta anos”–, cobrando ingressos dos expectadores (uma<br />

novidade, à época), proferida no Salão de Honra do Palácio do Governo<br />

(hoje a Pinacoteca do Estado), no dia 21 de março de 1909.<br />

81 Que contém ou constitui antítese.<br />

82 Registra o Dicionário Aurélio (Edição digital, 2008): albarca, alparca, alparcata,<br />

alpargata, alpergata, apragata, paragata, pracata, pargata, pragata.


Canto 9<br />

Cheiro de jurema


É a hora amável da ceia.<br />

Recende, a tigela, cheia<br />

de coalhada, a nevejar...<br />

Dezesseis pratos sopeiros,<br />

só a família. Os vaqueiros<br />

conversam, no copiar.<br />

Um deles, junto da talha,<br />

puxa a um cigarro de palha<br />

cheirosas nuvens azuis,<br />

fazendo um halo esgarçado<br />

ao “registro” 1 desmaiado<br />

do Coração de Jesus.<br />

Range, a cancela. A bafagem 2<br />

refresca; embala a folhagem.<br />

Alva, a angélica se abriu.<br />

Alva, a lua se levanta...<br />

Um galo, sozinho, canta.<br />

– Lá u’a moça fugiu!<br />

Lavado na luz tristonha,<br />

o coqueiral afla 3 e sonha.<br />

O céu parece um altar...<br />

Nem vivalma, pela rua.<br />

Espasmada, a mãe-da-lua 4<br />

abre o bocão, a chorar.<br />

381


382<br />

Corre uma estrela cadente<br />

– bogari, que a unha luzente<br />

da lua despetalou!<br />

Zelação, 5 alma penada,<br />

Deus te guie, para a morada<br />

do mar que, hoje, te apagou!<br />

Mandinga da lua cheia, 6<br />

quando, em silêncio, clareia<br />

o desertão do sertão!<br />

Ó jurema da Saudade!<br />

espinhas muito, é verdade<br />

– mas, cheiras, no coração...


Espasmado: Alucinado, abobado, em êxtase.<br />

Notas ao Canto 9<br />

Mãe-da-lua: Ave noturna. Minudencia Câmara Cascudo, no<br />

ensaio As Aves no Folclore Brasileiro, várias vezes já ilustrando estas<br />

Notas:<br />

Em 1913, voltava eu da Vila de Augusto Severo para<br />

Logradouro. Noite de luar. A estrada era margeada<br />

pelos capões de mato não onde se destacavam as<br />

oiticicas e juazeiros. Súbito, do sussurro dos grilos,<br />

saiu um lamento estranho, ululado, plangente, interminável.<br />

Um uivo quase humano, de dor desesperada,<br />

de agonia terrível, sufocando, impressionante,<br />

inesquecível, rasgou a solidão enluarada. Ao meu olhar<br />

assombrado, o companheiro respondeu, num arrepio<br />

incontido: – “É a mãe-da-lua”...<br />

Mãe-da-lua (Nyctibius griseus) é o anda-a-lua de Minas<br />

Gerais, o urutau das superstições americanas, cocucuy<br />

ou turay argentino, o iurutái dos índios tupis, o shippoor-Will<br />

das Guianas inglesas. É uma espécie de coruja<br />

alvacenta, com a boca enorme, e hábitos noturnos<br />

que a fazem misteriosa e sinistra. Fica imóvel<br />

num galho e passa a noite soltando aquela gargalhada<br />

fantástica que espalha o pavor. Não mais existem tradições<br />

locais sobre a mãe-da-lua, senão o medo instintivo<br />

que seu canto provoca. A lenda única, que<br />

pude colher sobre ela, é que tinha sido uma mulher<br />

extremamente amiga de festas. Deixou o marido, a<br />

quem adorava, adoentado, e dançou todo um baile.<br />

Voltando para casa, encontrou o marido, Paulo, morto.<br />

Desesperada de remorsos e convulsa de arrependimento,<br />

soltou um grito feroz e transformou-se na<br />

383


384<br />

mãe-da-lua. Até hoje chama Paulo e soluça uma risada<br />

de martírio.<br />

Mandinga: Feitiço, caborge, catimbó, muamba, coisa-feita, patuá,<br />

despacho, macumba, ebó, quimbanda. Sedução.<br />

Decorre do nome de uma tribo de negros africanos, das trazidas<br />

para o Brasil ao tempo da escravatura, os quais eram mestres em<br />

candomblés e macumbas. Enumera Ernani Silva Bruno, 7 na revista<br />

Panorama, de São Paulo, nº. 1:<br />

De procedência sudanesa, mostram Renato Mendonça<br />

e Artur Ramos, eram as nações mais importantes<br />

da Bahia, os jalofos, mandingas, fulos, haussás,<br />

achantis, jejes, minas e os jurubas ou iorubanos ou<br />

nagôs. De procedência bantu, eram os angolas, congos<br />

ou cabindas, benguelas, cassangues, bengalas, dembos,<br />

macuas e angicos.<br />

...da lua cheia: Uma linda trova, de José Martins, em Luzes do<br />

Canaã, antes já citado:<br />

A lua tá tão bonita,<br />

que inté parece que a lua<br />

num tá nem de saia branca,<br />

tá despidinha, tá nua.<br />

E esta, da coleção do Autor:<br />

A lua, na bolandeira, (*)<br />

não é crime comparar –<br />

é ver a Virgem das Dores,<br />

desmaiada no altar.<br />

(*) Por analogia com o sulco circular, feito pelos cascos dos<br />

animais que puxam a trave das engenhocas de cana e de prensar


algodão, e que têm esse nome, bolandeira é a grande circunferência<br />

azulada, de contornos nevoentos, e em cujo centro fica a lua,<br />

em certas épocas do ano. Conforme o mês e a fase lunar, é um dos<br />

“sinais” em que comumente se baseia o matuto, para prognósticos<br />

de inverno.<br />

***<br />

Aqui se reproduzem, extraídos da Mata Iluminada, 3ª edição,<br />

Livraria Castilho, Rio, 1928, os versos célebres, de Catulo da Paixão<br />

Cearense: 8<br />

Não há ó gente, ó não,<br />

Luar como esse do sertão!<br />

Ó que saudade do luar da minha terra,<br />

Lá na serra, branquejando folhas secas pelo chão!<br />

Esse luar cá da Cidade, tão escuro,<br />

Não tem aquela saudade do luar do meu sertão!<br />

Se a lua nasce por detrás da verde mata,<br />

Mais parece um sol de prata, prateando a solidão!<br />

E a gente pega na viola, que ponteia,<br />

E a canção é a lua cheia a nos nascer do coração!<br />

Quando, vermelha, no sertão, desponta a lua,<br />

Dentro da alma, onde flutua, também rubra, nasce a<br />

dor!<br />

E a lua sobre... E o sangue muda em claridade!<br />

E a nossa dor muda em saudade... Branca... assim,<br />

da mesma cor!<br />

Ai! Quem me dera que eu morresse lá na serra,<br />

Abraçado à minha terra, e dormindo de uma vez!<br />

Ser enterrado numa grota pequenina,<br />

Onde, à tarde, a sussurina chora a sua viuvez!<br />

385


386<br />

Diz uma trova, que o sertão todo conhece,<br />

Que se, à noite, o céu floresce, nos encanta e nos<br />

seduz,<br />

É porque rouba dos sertões as flores belas,<br />

Com que faz essas estrelas lá no seu jardim de luz!<br />

Mas, como é lindo ver, depois, por entre o mato,<br />

Deslizar, calmo, o regato, transparente como um véu!<br />

No leito azul das suas águas murmurando,<br />

Ir, por sua vez, roubando as estrelas lá do céu!<br />

A gente fria dessa terra sem poesia<br />

Não se importa com esta lua, nem faz caso do luar!<br />

Enquanto a onça, lá na verde capoeira,<br />

Leva uma hora inteira, vendo a lua, a meditar!<br />

Coisa mais bela, neste mundo não existe,<br />

Do que ouvir um galo triste, no sertão se faz luar!<br />

Parece até que a alma da lua é que descanta,<br />

Escondida na garganta desse galo, a soluçar!<br />

Se Deus me ouvisse, com amor e caridade,<br />

Me faria essa vontade – o ideal do coração:<br />

era que a morte a descansar me surpreendesse,<br />

e eu morresse numa noite de luar do meu sertão!<br />

Catulo, que era natural do Maranhão, morreu em maio de 1946,<br />

no Rio de Janeiro.


1 Imagem de santo ou de objetos de devoção.<br />

Notas<br />

2 Vento de muito fraca intensidade, menos que aragem; bafejo, bafuge.<br />

3 Agita-se ao vento.<br />

4 Ver notas de OM.<br />

5 Bólide, meteoro. Zelação, segundo Gustavo Barroso, é corruptela de exalação.<br />

Câmara Cascudo, no Dicionário do folclore brasileiro, dá conta que a<br />

expressão sertaneja “Deus te guie, zelação!” remete a estrela cadente para<br />

o mar, evitando a catástrofe – o fim do mundo pela explosão apocalíptica.<br />

6 Ver nota de OM.<br />

7 Ernani Silva Bruno. Escritor paulista, nascido no Paraná (Curitiba/PR,<br />

1913- São Paulo/SP, 1986). Advogado, historiador, jornalista, membro<br />

da Academia Paulista de Letras.<br />

8 Do site http://cifrantiga.wordpress.com/tag/catulo/ (sem registro da<br />

autoria do texto): “A toada “Luar do Sertão” é um dos maiores sucessos de<br />

nossa música popular em todos os tempos. Fácil de cantar, está na memória<br />

de cada brasileiro, até dos que não se interessam por música. Como a<br />

maioria das canções que fazem apologia da vida campestre, encanta principalmente<br />

pela ingenuidade dos versos e simplicidade da melodia. Embora<br />

tenha defendido com veemência pela vida afora sua condição de autor<br />

único de “Luar do Sertão”, Catulo da Paixão Cearense deve ser apenas o<br />

autor da letra. A melodia seria de João Pernambuco ou, mais provavelmente,<br />

de um anônimo, tratando-se assim de um tema folclórico – o<br />

coco “É do Maitá” ou “Meu Engenho é do Humaitá” –, recolhido e modificado<br />

pelo violonista. Este coco integrava seu repertório e teria sido por<br />

ele transmitido a Catulo, como tantos outros temas. Pelo menos, isso é o<br />

que se deduz dos depoimentos de personalidades como Heitor Villa-<br />

Lobos, Mozart de Araújo, Sílvio Salema e Benjamin de Oliveira, publicados<br />

por Almirante no livro No tempo de Noel Rosa. Há ainda a favor da<br />

versão do aproveitamento de tema popular, uma declaração do próprio<br />

Catulo (em entrevista a Joel Silveira) que diz: “Compus o Luar do Sertão<br />

ouvindo uma melodia antiga (…) cujo estribilho era assim: É do Maitá! É<br />

do Maitá”. A propósito, conta o historiador Ary Vasconcelos (em Panorama<br />

da música popular brasileira na belle époque) que teve a oportunidade de<br />

ouvir “Luperce Miranda tocar ao bandolim duas versões do ‘É do Maitá’:<br />

387


388<br />

a original e ‘outra modificada por João Pernambuco’, esta realmente muito<br />

parecida com Luar do sertão”. Homem humilde, quase analfabeto, sem<br />

muita noção do que representavam os direitos de uma música célebre,<br />

João Pernambuco teve dois defensores ilustres – Heitor Villa-Lobos e<br />

Henrique Foréis Domingues, o Almirante – que, se não conseguiram o<br />

reconhecimento judicial de sua condição de autor de Luar do Sertão, pelo<br />

menos deram credibilidade à reivindicação. Ainda do mesmo Almirante<br />

foi a iniciativa de tornar o “Luar do Sertão” prefixo musical da Rádio Nacional<br />

do Rio de Janeiro, a partir de 1939.”


Canto 10<br />

As sete espigas


Quadro da feira. 1 <strong>In</strong>do e vindo,<br />

quanta gente! O tamarindo<br />

serve de abrigo aos quartaus.<br />

Um mar de chapéus-de-couro... 2<br />

Serras de queijo cor de ouro,<br />

trincheiras de garajaus. 3<br />

– Isto é o cordão de Santana? 4<br />

– Nhôr não, batata... – Banana<br />

verde, madura, de vez. 5<br />

Surrões de farinha fina.<br />

Milho, aos montões (que esterlina! 6 ).<br />

Feijão vermelho... – Eh, freguês!<br />

As melancias maduras...<br />

Melhores, as mais escuras<br />

– alvas, do lado do chão;<br />

a casca – verde, raiada:<br />

dentro, uma fita encarnada!<br />

uma rosa, o “coração”!<br />

Duda, com a faca de ponta,<br />

de quatro delas deu conta,<br />

caroço e tudo... – Só mel!<br />

.........................................<br />

Adjunto. 7 Risos. Comédia:<br />

– o poldro torou a rédea,<br />

deu no barro com o Miguel.<br />

391


392<br />

Drama: “riscando” 8 a montada,<br />

Manoel Vermelho, à calçada<br />

quer subir, “por bem ou mal”.<br />

Cai... Da fronte, o sangue escorre...<br />

Berra um parceiro: – O home morre!<br />

me arcance cana cum sal! 9<br />

Transbordando do recinto,<br />

zoa, o imenso labirinto.<br />

A praça, toda, é um paiol.<br />

Comboios 10 bebem, no rio.<br />

Perpassa o fartum 11 sadio<br />

de queijo e carne-de-sol...<br />

Na barraca de alvejado, 12<br />

Andreza vende guisado<br />

de arribaçã e preá.<br />

Zumbéca, em voz de falsete,<br />

diz, puxando um tamborete:<br />

– Passa esta rola pra cá...<br />

Aqui, é a “banca” do Ganga.<br />

Fez, de tudo que é missanga,<br />

mirabolante bazar.<br />

“Bonito, Bom e Barato”.<br />

– Tem freio de amansar gato? 13<br />

– Venha, sábado, buscar!...<br />

(E não ficou na anedota.<br />

Caningado 14 com a lorota,<br />

não é que mandou fazer


a malvada da encomenda?<br />

Lá está. Quer venda ou não venda,<br />

freio pra gato, é de ter...)<br />

No mercado, houve bagunça:<br />

– Pague o imposto da miunça!<br />

gagueja o guarda, Bianor.<br />

E, o feireiro, arreliado!<br />

– Teje preso! – entra o soldado,<br />

leva o brabo ao Coletor...<br />

Formigam lojas e vendas.<br />

Tufam 15 de amostra as fazendas.<br />

Nos balcões, chia o morim.<br />

Zumbéca larga um gracejo:<br />

– Feirão! Farta caranguejo,<br />

qui é frúita pra guaxinim...<br />

***<br />

Três chuvas, sertão bendito,<br />

e as Sete Espigas do Egito, 16<br />

melhor que o previu José,<br />

– dão sete mil, por semente.<br />

Se uma chuva, apenasmente,<br />

já mostra a terra o que é!<br />

393


394<br />

Notas ao Canto 10<br />

Quadro da feira: Nome popular da praça do mercado, no interior.<br />

Ainda hoje, (1952) em Jardim do Seridó, apesar da vulgarização<br />

do fícus em toda a zona existem os veneráveis, robustos<br />

tamarindos, contemporâneos da infância do Autor destas Notas, e<br />

da feira descrita neste Canto.<br />

Um mar de chapéus-de-couro...: Reportou-se o Autor ao<br />

Seridó de sua meninice, antes do dramático “ciclo da gasolina”,<br />

que tão profundamente, e em vários aspectos para pior, está<br />

descaracterizando a hinterlândia, em todos os setores econômicos,<br />

políticos, sociais, espirituais. Atenuou-se já, consideravelmente,<br />

aquele pitoresco aspecto das feiras, devido ao encarecimento<br />

do couro e conseqüente divulgação dos chamados chapéus de massa<br />

(feltro). Atualmente, o chapéu-de-couro constitui visível minoria;<br />

só os vaqueiros profissionais, ou os feireiros remediados, os<br />

ostentam. Os de palha de carnaúba dominam agora no quadro<br />

descrito, indiciando o empobrecimento geral.<br />

Cordão: Cordilheira, espinhaço de serra.<br />

De vez: Próximo a amadurecer (fruto); em condições de ser retirado<br />

para a venda.<br />

Adjunto: Ajuntamento, reunião (de pessoas), potici. 17<br />

Riscar: Fazer estacar de súbito a montada, com um puxão enérgico<br />

de rédeas, firmando-se o cavaleiro rijamente nos estribos.<br />

Cana com Sal: Aguardente, ou vinagre, com sal, é hemostático<br />

ainda muito usado, nas emergências.


Comboio: Tropa de burros.<br />

Tem freio de amansar gato...: O episódio é verídico, e dele<br />

sabem todos os contemporâneos de Ganga (um pseudônimo, no<br />

poema). Existiu, na época, em Currais Novos, cidade do Seridó,<br />

vizinha de Jardim – que é, como já foi dito, o centro do poema<br />

uma casa comercial cujo sortimento era tão variado e tão grande,<br />

nos diversos ramos então em voga, na praça, que o seu proprietário,<br />

sertanejo ladino, influente na classe, prestimosíssimo, cheio<br />

de bom humor e iniciativa, chegou ao cúmulo de expor no mostruário<br />

para corresponder à indagação, sem dúvida apenas jocosa,<br />

de um freguês deslumbrado com os estoques da loja, um freio...<br />

de amansar gato!<br />

Eis, textualmente, de resto, e segundo nos assegurou o poeta<br />

Antídio de Azevedo, 18 seridoense que há muitos anos reside em<br />

Natal, e é o serventuário do 4º. Cartório, o anúncio então a propósito<br />

publicado no Diário de Natal, o famoso matutino de Elias<br />

Souto:<br />

Três chuvas:<br />

Vão à casa do Aleixo<br />

que tudo encontram, de fato:<br />

mandingas, coisas que nem sei,<br />

até bridas de amansar gato.<br />

As sementes, durante longo verão, dormem no solo<br />

um impaciente sono estival. Não germinam, mas não<br />

se corrompem. Cai a primeira chuva, e, em três dias,<br />

uma película verde-claro, uniforme e delicada, como<br />

delgado sendal, 19 recobre a superfície avermelhada<br />

da terra, surge por encanto nos píncaros requeimados<br />

e nos interstícios das rochas. Mais duas chuvas,<br />

intervaladas de quinze dias, e pastagens abundantes<br />

395


396<br />

e sem par, entre as gramíneas brasileiras, estão garantindo,<br />

por todo o ano, e os gados não as vencem.<br />

(Domingos Barros, Leituras Potiguares, p.55)<br />

As terras de uma fertilidade extrema, podendo, na<br />

opinião do químico do Departamento de Agricultura,<br />

em Washington, D.C., que as examinou quimicamente,<br />

serem usadas como adubo. De fato, a porcentagem<br />

enorme de nitratos e nitritos, aliada à presença<br />

de elementos nobres do solo, e do teor elevado<br />

de matéria orgânica, explicam a razão de ser de<br />

sua produtividade (Agrônomo Cristóvão Dantas, Leituras<br />

Potiguares, p.131-132),<br />

Com três chuvas, encontrando o molhado, nenhum vivente<br />

passa fome no sertão, dizem os matutos.<br />

Antônio Batista Guedes, 20 pernambucano, incluído por Câmara<br />

Cascudo, em Vaqueiros e Cantadores, apóia, com incontestável<br />

fluência a fidelidade à natureza e ao homem, a oportunidade desses<br />

aspectos do sertão, no poema “A Vida Sertaneja”:<br />

Quando o inverno é constante,<br />

O sertão é terra santa;<br />

Quem vive da agricultura,<br />

Tem muito tudo que planta.<br />

Há fartura e boa safra,<br />

Todo pobre pinta a manta...<br />

Dá milho, feijão,<br />

Tem fruta, tem cana,<br />

Melão e banana,<br />

Arroz, algodão.<br />

As melancias dão<br />

Tantas, como areia,


O jerimum campeia,<br />

Nas roças faz lodo...<br />

Vive o povo todo<br />

De barriga cheia!<br />

Quando finda o mês das festas<br />

E entra o mês de janeiro,<br />

Quem tem roçado destoca,<br />

E encoivara, ligeiro.<br />

Cada um quer ter a glória<br />

De ouvir o trovão primeiro...<br />

Com o inverno se alegra<br />

Na mata o bravo veado,<br />

Nas locas o caititu<br />

Fica todo arrepiado;<br />

Salta o mocó no serrote,<br />

Quando vê o chão molhado...<br />

Com vinte dias de chuva,<br />

Logo após a vaquejada,<br />

Chega a fartura do leite,<br />

Manteiga, queijo e coalhada!<br />

No tempo da apartação,<br />

Isto é que é festa falada!<br />

É, sim, um festão<br />

De muito desejo<br />

Para o sertanejo,<br />

Uma apartação.<br />

Os vaqueiros<br />

Vão gado derrubar,<br />

Cada um tirar<br />

Pras suas ribeiras...<br />

Famílias inteiras<br />

Vão a festa olhar.<br />

397


398<br />

Se pega a chuva em janeiro,<br />

Faz o povo a plantação;<br />

Em fevereiro e em março<br />

Quatro ou cinco limpas dão;<br />

De vinte de abril em diante<br />

Já comem milho e feijão...<br />

Chega a abundância,<br />

Chega a alegria,<br />

Passa a carestia,<br />

Passa a circunstância.<br />

Com exuberância<br />

A lavoura duplica,<br />

E uma vida rica<br />

Passa o sertanejo,<br />

Carne gorda e queijo<br />

Pamonha e canjica...<br />

E então, no mês de julho,<br />

O sol já fica mais quente,<br />

Caem as folhas dos paus,<br />

Seca o verde, de repente.<br />

É mês de pouco trabalho,<br />

Folga quase toda a gente...<br />

A rapaziada<br />

Quase todo dia<br />

Usa pescaria<br />

E muita caçada.<br />

Vida bem folgada<br />

Todo mundo passa;<br />

De mel e de caça<br />

Fazem seu vintém;<br />

Trajam, passam bem,<br />

Não choram desgraça...


Nisso, entra o mês de agosto,<br />

E aí começa o verão;<br />

Entra-se em quebra de milho,<br />

Bate-se e guarda o feijão.<br />

Desmancha-se então a cana,<br />

Descaroça-se o algodão.<br />

Quando a safra é boa,<br />

E o cobre se pega,<br />

Ninguém mais sossega,<br />

No sertão inteiro.<br />

Samba é balseiro,<br />

Bebedeira e jogo,<br />

Por causa do fogo<br />

Que dá o dinheiro...<br />

399


400<br />

Notas<br />

1 Ver nota de OM.<br />

2 Idem. idem.<br />

3 Aparelhos nos quais se conduz o peixe seco e outras mercadorias às feiras<br />

e mercados, compostos de duas peças chatas e quadrangulares, com cerca<br />

de 65cm de comprimento e 55cm de largura, formada cada peça por<br />

quatro varas presas pelas extremidades, cheio o intervalo com embiras ou<br />

palhas de carnaúba tecidas em largas malhas. Variação: grajau.<br />

4 Ver nota de OM.<br />

5 Idem, idem.<br />

6 De libra esterlina, moeda inglesa. Significando – a imagem do Poeta – o<br />

valor, a importância da safra de milho, a fartura no sertão.<br />

7 Ver nota de OM.<br />

8 Idem, idem.<br />

9 Ver nota de OM.<br />

10 Idem, idem.<br />

11 Mau cheiro resultante de ranço; bafio, aca, bodum, catinga, inhaca,<br />

morrinha.<br />

12 Tecido forte, grosso, de algodão – espécie de lona –, utilizado em sacos,<br />

velas de embarcação, toldos, tendas, etc.<br />

13 Ver nota de OM.<br />

14 Desgostoso, aborrecido, zangado.<br />

15 Tornam-se (as fazendas, no caso) mais altas ou mais grossas; aumentam de<br />

volume; incham, entufam.<br />

16 Alusão à interpretação, por José do Egito, dos sonhos do faraó (Gênesis, 41).<br />

17 Grande quantidade; quantidade, abundância, superabundância, cópia.<br />

18 Ver nota na dedicatória de Sertão de espinho e de flor.<br />

19 Caminho estreito usado pelos pedestres ou pelo gado de tamanho pequeno;<br />

atalho, vereda, sendeiro.<br />

20 Antônio Batista Guedes (Bezerros/PE, 12.08.1880-Guarabira/PB,<br />

22.05.1918). Discípulo do paraibano, de Patos, Silvino Pirauá de Lima,<br />

tido como o criador do “martelo agalopado”. Antônio Batista iniciou sua<br />

sina de cantador em 1903.


Canto 11<br />

Sertão prestou


A civilização avançará nos sertões, impelida por essa implacável<br />

“força motriz da História”, que Gumplowicz 1 maior do que<br />

Hobbes, 2 lobrigou, num lance genial [...]<br />

Os Sertões


(Taquigrafado numa feira)<br />

Chega, subindo do agreste,<br />

o caminhão, essa peste,<br />

que tudo, no lombo, traz...<br />

O Zé-Matajegue intriga:<br />

– Esses chofé! Figa! Figa!<br />

é cheio de prosa e gás!<br />

Essas viage, eu fazia...<br />

Hoje, é cem légua pru dia,<br />

só se navega a motô.<br />

Tem gêlo, ráido Filipe,<br />

inté no sitio Caípe.<br />

Casa – é tudo bangalô!<br />

Arrieiro, perdeu o emprego.<br />

Argudão – é dos galego. 3<br />

Pau – é figo bejamim. 4<br />

Cardêro, crôa de frade,<br />

é luxo, lá na cidade,<br />

infeita jarro e jardim.<br />

<strong>In</strong>té mêrmo tamarino,<br />

no Rio Grande, é servino<br />

prá mode enfeitá chalé;<br />

– o dotô Sirva Pedroza<br />

fez uma casa famosa, 5<br />

e apurveitou, dento, um pé!<br />

405


406<br />

– Mái... cuma se arrimidéia,<br />

C’uns lacráu, c’as surrupeia,<br />

fôia sêca nos terém?<br />

– Só gente inlustrada tópa...<br />

– O home aprendeu na Orópa,<br />

dá o valô que as arve tem!<br />

O perfeito, seu Batista,<br />

dixe qui tem cumunista...<br />

Xente! Eles véve é pra lá!<br />

Pru causo dessa mundiça,<br />

teve sobra de carniça<br />

prá urubu e carcará.<br />

Vinhéro pru Macaíba.<br />

A tropa da Paraíba<br />

foi quem esfriou o angu. 6<br />

Metraiadôra judia! 7<br />

papóca de carritia, 8<br />

canta, qui nem cururu!<br />

Diz-que uma só, atrepada<br />

num corte grande de estrada,<br />

lá na Serra do Dotô,<br />

matou deles, cumo bêia! 9<br />

Tem munta caveira feia,<br />

nas lóca dos tombadô...<br />

Munta gente sabe a históra.<br />

Mái, numa vale a pena, agora,<br />

assanhá esse inxuí... 10<br />

Ao dispois, numa imbolada,


eu desenho essa inrascada,<br />

dibúio 11 o qui vi e ouvi...<br />

Pode gozá, descansado,<br />

o dotô adevogado<br />

qui fêi trinta bangalô<br />

– diz os fio da Candinha –<br />

cum pacote qui num tinha,<br />

conde a revórta bromou. 12<br />

Nosso tempo anda é reimoso.<br />

Camalião, que é manhoso,<br />

sabe as cô que o mato tem...<br />

– Bem diz Leléco de Xancho:<br />

– Nem Santo Ontonho, c’um gancho,<br />

me bota mai no Belém! 13<br />

Num testo desta ingrizia!<br />

Tenho inté malincunia, 14<br />

conde me alembra a inleição:<br />

– virá juda, 15 de gravata,<br />

tirá o pé da apragata,<br />

trupica 16 nos sapatão!<br />

– <strong>In</strong>conte o mundo fô mundo,<br />

póbe anda sempe é cacundo, 17<br />

rico – em riba do selim...<br />

Pra que póbe babilonho? 18<br />

Dita de póbe é no sonho.<br />

– Um pra tu... trinta pra mim...<br />

407


408<br />

Quero tê uma camisa,<br />

uma só, listrada ou lisa,<br />

mái, ganha cum meu suó.<br />

Trabaiá, sem sê sujeito.<br />

– Num morrê de mal-do-peito... 19<br />

– E nem no droga de um Fó! 12<br />

– Meus fio, é criado bruto.<br />

Pra que luxo pra matuto? 21<br />

Num-sois-nada é coroné... 22<br />

– Muntos doutô que eu conheço,<br />

remata, 23 pur quarqué preço,<br />

os livro, o relójo, o ané.<br />

– Tem uma ciença boa,<br />

é o freguei abri a croa: 24<br />

de ofiço, é o mió qui tem.<br />

Impára toda a famía,<br />

é dunga 25 na freguesia,<br />

num fái fiado a ninguém!...<br />

– Muié, só é cumo a minha: 26<br />

do currá, pra camarinha; 27<br />

poucas vêi na sala vai.<br />

As menina é deferente...<br />

Mas, porém, moça é lá gente,<br />

qué lá conseio de pai?<br />

Mormente os limão saindo,<br />

já é tudo se infuluindo,<br />

caiando o fucim de pó.


– Dirmancha safa em vestido,<br />

aprende a lê iscundido,<br />

pra arrespostá os coió!<br />

Sertão prestô... 28 Derna o dia<br />

que tanta da poicaria 29<br />

(licença de vosmicei!)<br />

veio c’us carro, 30 de baixo,<br />

palavra de home é relaxo,<br />

veigonha – foi uma vei!<br />

Num se dança mai o xote,<br />

nem baiano, 31 nem serrote, 32<br />

fóle num vale um tustão.<br />

Os baile é só de infergáio... 33<br />

– A musga toca é chucaio, 34<br />

prato, tambô, rabecão!<br />

É... Só munta pinitença,<br />

pru povo tomá tenença, 35<br />

Frei Damião dixe aqui.<br />

Mái, num tem vorta, é da sina:<br />

inconte hové gasolina,<br />

o fute 36 ispáia o tingui... 37<br />

Arguicutô, tá na tira. 38<br />

Mió, prantá macambira,<br />

que diz que tá dando brim...<br />

– Mái, quem sabe se num baixa<br />

no contenente, e essas Caixa 39<br />

dá fuimiga e dá cupim?<br />

409


410<br />

– Criá, acabou-se o ciste. 40<br />

Tudo céicado, arrisiste<br />

gado, sem sombra e comê?<br />

– E, os patrão? Mái, é verdade!<br />

ganha tudo prá Cidade.<br />

ensiná os fio a lê...<br />

– A crisa tá tão tirana,<br />

que o besta mete a catana, 41<br />

fái um palaço, um chalé;<br />

se arrepende; pede preço:<br />

quem é que diz que eu ofreço<br />

metade do que ele qué?<br />

– Trabaiá, num dá mai gosto.<br />

O gunverno arrocha o imposto,<br />

e atucana 42 o pessoá.<br />

Se o freguêi pula de lado,<br />

a tá da murta é um condado! 43<br />

– E é de-meia c’us fiscá!<br />

– Astrudia, 44 em Logradouro,<br />

um desses rabo-de-couro 45<br />

imbaibelou 46 Zé Querói.<br />

Zé Querói danou-lhe a faca,<br />

rasgou-lhe os papé da bruaca, 47<br />

num morreu, pru móde nói!<br />

– Ou, antonce, é um causo séro:<br />

toca a vivê dos minéro,<br />

que anda bestando, a bambão. 48


– Só columbita, Lixande<br />

cambou 49 pra Campina Grande<br />

bem cincoenta caminhão.<br />

– As mina é à fulô da terra. 50<br />

Nos tombadô, pulas serra,<br />

se ajunta nique 51 c’us péi.<br />

– Souto, que era pobezinho,<br />

tem três liforme de linho,<br />

bruziguim 52 de cem-minrréi.<br />

– Um iscrivão lá das Lage<br />

me incurcou que essas pedrage<br />

foi istuça 53 de holandêi.<br />

– Fái pena! Tanta fartura,<br />

no distrito num atura,<br />

vai tudo pros inguilêi!<br />

– Num vê que eles têm cadença? 54<br />

Os dono da terra pensa<br />

que elas num vale um xenxém. 55<br />

– Se as péda num alumeia...<br />

chega o gringo, cascaveia,<br />

vê logo o metá que tem!<br />

– Seio d’um, cara sardenta,<br />

da pensão de sinhá Benta,<br />

risão e cunversadô.<br />

Chegô murcho, afragelado,<br />

tá de cabelo assentado,<br />

é liga 56 do Coletô...<br />

411


412<br />

– Nação besta, é brasilêro!<br />

pra que tanto do dinhêro,<br />

sem mio, fejão, jabá?<br />

– Amérca é quem tira limpo:<br />

leva o fino dos garimpo,<br />

casca bagana prá cá.<br />

– E, oiticica, é um disputirmo! 57<br />

Láu, tio torto 58 de Firmo,<br />

malandra lá dos Pilõe,<br />

noiteceu sem ter um tico,<br />

manhinceu pôde de rico,<br />

passando o quilo a dez-tõe.<br />

– Só prestava pra maiáda,<br />

ceica de ramo, e mái nada;<br />

hoje, quem tem prá vendê,<br />

fala arto, véve insolente,<br />

pisa nus dedo da gente<br />

– chama o Juiz de “você”...<br />

– Diz que pra guerra da Orópa<br />

os home vai mandá tropa.<br />

– Vai, cumpade? – Nanja 59 eu!<br />

Prus canhão, tanque, e essas mina,<br />

atirá c’as lazarina, 60<br />

fazeno vêi de Mateu? 61<br />

– Só c’a peste dum minero<br />

do Xiquexique, 62 fizéro<br />

Japão conhecê tingui. 63<br />

– Diz que só um pedacinho


do droga do metazinho,<br />

tinguijou sessenta mi...<br />

– Mái, num dixe, o delegado,<br />

que malandra mái marvado,<br />

só alemão, japonei?<br />

– Apois, cuma é que o mano,<br />

o nosso amigo amercano,<br />

o que eles fái, tomém fei?<br />

– Queremo metá de mina,<br />

pra acabá c’a nossa sina<br />

de vivê de percisão.<br />

Pórva e metá, quem carece,<br />

pra matá quem não conhece,<br />

é assassino e ladrão...<br />

– E, os avião de mergúio?<br />

sórta a bomba, fica o intúio,<br />

nem image fica em pé!<br />

– Chumbo arcança esse sendêro?<br />

– Quá, nada! Pro bombadêro,<br />

só bala de carrité! 64<br />

– Quem véve disprivinido,<br />

vai se metê a inxirido 65<br />

pras banda desses caím?<br />

– Uns prejura, 66 uns caicamano! 67<br />

leva o argudão, manda o pano,<br />

robano principe a fim!<br />

– Deixa eles lá, que eu num chego!<br />

bicheira, 68 assim, nos borrego,<br />

413


414<br />

e num tem mái rezadô...<br />

– Um buraquim, um tarugo, 69<br />

o argente diz que é refugo,<br />

resgateia, que é um horrô!<br />

– Se inda eu fosse arriquirido 70<br />

pra foimá nargum partido,<br />

o mais carranca – 71 era cá!<br />

Pru Brasí, agrado e tudo.<br />

Mái, pra galego frucudo, 72<br />

quirí e pau de jucá! 73<br />

– Ocês, tudo, é uns ponta-limpa! 74<br />

bode veiáco é quem grimpa 75<br />

nos taiadão 76 dos mocó,<br />

assim que os cadélo 77 late...<br />

– E, as uveia? É um disquilate! 78<br />

chega vira o mocotó... 79<br />

– Já num viro, criatura,<br />

que hai fiança mai segura,<br />

do que galão no boné?<br />

Apois eu, mermo tapado, 80<br />

tenho um fio pra sordado:<br />

vai chegá sê Canrrobé... 81<br />

– Pode sê...tudo contéce.<br />

Carrapicho tomém crece<br />

onde dá mio e feijão...<br />

– Nu gunverno Artu Bernarde, 82<br />

duma menhã p’ruma tarde,<br />

Lampião 83 foi capitão!


– Quá! Quá! Quá! Mái, é dispacho!<br />

pode sê – cabo prá baixo,<br />

taliquá direito o pai...<br />

– Sois, agora, tão valente,<br />

pruquê aqui já tem tenente,<br />

cangaceiro num tem mái!<br />

– Cum isso, tu nun me intópe!<br />

na guerra grande do Lópe, 84<br />

que em setenta se acabô,<br />

meu pai num contô loróta,<br />

ganhando a catinga e as gróta,<br />

que nem fêi o teu avô! 85<br />

– Nem cuma teu mano <strong>In</strong>aço,<br />

que, no tempo do cangaço,<br />

ele e um majó galalau. 86<br />

Cum dez légua de distança,<br />

perdeu o jeito e a sustança,<br />

cinco dia quebrou pau... 87<br />

– Todo mofino é caipora...<br />

o teu irmão saiu fora<br />

do maimelêro; bateu<br />

na bodega de seu Bento:<br />

falaro grosso de dento<br />

– aí foi que ele correu!<br />

– Vortando, inda de carrêra,<br />

sem réfe, 88 sem bandulêra,<br />

Virgulino tava lá!<br />

– Foi vestí cáqui engomado,<br />

415


416<br />

e deu as cara, ingasgado:<br />

– “Abença... seu generá!”<br />

– Lampião dixe: –”Macaco,<br />

tire o majó do buraco,<br />

traga esse péba 89 prá qui!”<br />

– “Seu generá...é... quem... manda!<br />

tá no forno, o home! Nem anda!<br />

“tá bambo de chirirí” 90 –<br />

– Mái, o majó veio vino,<br />

cum as môsca arredó, zunindo, 91<br />

condo Lampião lhe tornou:<br />

– “Taquí cachaça, seu peste!”<br />

– (Bebeu, só áico-celeste! 92<br />

Bem três garrafa invocou! 93 )<br />

– Acabou-se a mamãezada!<br />

tem puliça, tem estrada,<br />

tem fio nos catolé.<br />

Só branco entra pra Marinha.<br />

Tem ráido, tropa de linha,<br />

tem hospitá, tem quarté. 94<br />

– Tem Caixa... – Sim, mai as caixa<br />

inquisição 95 num relaxa,<br />

de terra, pra agarantí...<br />

– Tem barúio, pra quarté?<br />

Hospitá... Tua muié<br />

achou cama, prá parí?


– Se bota dente a martelo!<br />

Nestor Rato era banguelo,<br />

rói osso de corredô.<br />

Joana Sola, do Riacho,<br />

botou dente, em riba e embaixo,<br />

tudo de uns tá de privô...<br />

– E, Mariano Cuêio? 96<br />

tóra 97 mão, sórda juêio,<br />

tira os bofe do freguêi,<br />

dá drumidêra, nem sente!<br />

Sái as dô, no contenente,<br />

– é novo in fôia, astravêi!<br />

– Muié de sucesso, 98 à morte,<br />

num percisa reza forte.<br />

(Ah, trinchete bom do breu! 99 )<br />

Pegou Profira nos ferro<br />

– lá nela! – e o menino, aos berro,<br />

lutrido 100 e limpo, nasceu!<br />

– Num tem sobroço a istrupiço...<br />

E ainda, pru riba disso,<br />

fái de graça, sem cobrá!<br />

– Pra ele, póbe é o premero!<br />

Padim Ciço, no Juazêro,<br />

e ele, nas lês de curá!<br />

– Grande aquí quebra 101 no linho,<br />

na meia e no cularinho,<br />

se mistura lá mái nói?<br />

Só tiro mermo do meio,<br />

417


418<br />

Dinarte e Mariano Cuêio,<br />

que é pau que luma 102 nun rói!<br />

– Cá no sertão, é verdade!<br />

mái, nos mundão de cidade,<br />

onde matuto é relé, 103<br />

só iscôio um alemento<br />

que a póbe dá cabimento:<br />

– deputado João Café!<br />

– Mermo prus perré, 104 agora,<br />

Café Fio é a lui da oróra, 105<br />

Papai Noé do Brasí...<br />

– Ante dele sê tão grande,<br />

cafeísta era no frande, 106<br />

na virola e no fuzí...<br />

– Coração de mé de abêa,<br />

o Café, ocês mi crêa,<br />

imbora impate robá,<br />

vai dá ciloura 107 e camisa<br />

inté a Joaquim Marfisa, 108<br />

se de tanto percisá...<br />

– Cum tanto do “amigo novo”,<br />

vai mái é ficá pru povo<br />

deferente – é de amaigá!<br />

Num adianta, esse luxo<br />

de teimá sê péla-bucho... 109<br />

– camalião, vai pra lá! 110


– Potrésto! Entrei na enfiêra 111<br />

que ele rege, a tarde intêra,<br />

na Câmbra, prus infeliz!<br />

Num vi nem um saí triste!<br />

Tudo é sorrindo, c’os ciste 112<br />

que ele fái, ou que ele diz...<br />

– Aquilo é que é tê cadença!<br />

Suó, risada e paciença,<br />

só é pra quem tem de sê!<br />

– Sem sê pade ou comissáro,<br />

só pade in cunfissonáro,<br />

sabe de tanto sofrê...<br />

– Diz-que só pr’uma caneta,<br />

um putici 113 de xereta 114<br />

já tiraro um dinheirão.<br />

– Arvalia 115 só o choro...<br />

– Potrésto! É a caneta de ôro,<br />

pra ele ferrá 116 a inleição!<br />

– Diz-que Gegê 117 ta mardando 118<br />

deixá Café no cumando,<br />

só pra ladrão num valê...<br />

– Cum Café onde istá Varga,<br />

tirá dos pobe se larga!<br />

– Sertão Brasí é de sê!<br />

– Getúlio ou Café? num acho!<br />

São bom demái, faz relaxo<br />

de perdoá, de amorná...<br />

Deixá passá é vantage?<br />

419


420<br />

Górpe é toda a matutage<br />

isprimentá o Ademá! 119<br />

– É! O Ademá, presidente,<br />

e o Café Fio na frente<br />

da onde saiu Danton 120<br />

– trabaiou, arranja grana!<br />

Pra qui coisa mai bacana?<br />

Tubarão, que perca o dom!<br />

***<br />

– Foi-se o tempão da seringa. 121<br />

Se o freguês tinha mandinga,<br />

garrava o arapurú, 122<br />

trazia a timba 123 amojada,<br />

mái infurnava a bolada,<br />

nos cafundó do baú.<br />

– Eu, é que nunca fui nisso!<br />

Amazona foi sumiço<br />

pra quem lá os pé meteu!<br />

– Sampalo tomém num gravo:<br />

– Que fúria é vivê iscravo,<br />

nos cafezá dos judeu?<br />

– Quem tem pau-péda 124 e favela,<br />

– Sodóro 125 e imbu 126 pra guela,<br />

Morre aqui mermo. É mió...<br />

Caboco véve é teimano,


fixe na enxada, pegano<br />

queda de coipo com o só...<br />

– Ocês tem uma contina, 127<br />

dizê que essas coisa fina<br />

só tinha no ron-com-com. 128<br />

Chuliça! 129 Tudo comia<br />

farinha cum melancia,<br />

somente, e achava bom...<br />

– E, agora, o que tem nas fêra?<br />

Carne jabá de premêra,<br />

Arroi agúia, xerém...<br />

Camalião, se afeirasse, 130<br />

impanzinava de arface...<br />

inté manga-rosa vem!<br />

– <strong>In</strong>da antonte, do Condado,<br />

um caminhão, quilotado, 131<br />

que quáje istóra os pineu,<br />

trouve laranja, tão doce,<br />

que o farmaceute infincou-se,<br />

já chupou, que intristiceu...<br />

– Simpiliço Quina-quina<br />

ficou de canela fina,<br />

de tirá pau de raiz,<br />

pra mode vendê nas fêra,<br />

prus impacho e tremedêra,<br />

pra ispinhéla 132 e piluriz 133<br />

421


422<br />

– Agora, o nego é na agúia.<br />

Nem ripuna, 134 nem ingúia, 135<br />

cum essas tá de injerção.<br />

– Só quizila 136 e impata o sono,<br />

os braço cheio de imbono, 137<br />

o queimô da riação.<br />

– Pras maleita é Santo Lenho! 138<br />

Lotéro apanhou, no engenho<br />

dos Montenego, 139 no Assu,<br />

um repiquete 140 danado!<br />

– dispois dos mole furado,<br />

é esperto qui nem pitu!<br />

– Lá morreu, mái já foi gente!<br />

– Trêis mile e tanta, somente,<br />

Assu, Mossoró, Macau...<br />

Se num era um milagroso,<br />

um tá de Eleizon Cardoso, 141<br />

toda essa varge – babau!<br />

– O sertão tem munto açude.<br />

– Uns má-d’água! Nunca pude<br />

botá vazante, uma só!<br />

As parede é u’as montanha!<br />

Num dá revença. 142 E as piranha<br />

tora tudo que é de anzó!<br />

– Só isso? bote sentido:<br />

tem muntos dele perdido,<br />

salobo 143 de vante a ré!<br />

Salite, 144 que nem Sedoma... 145


Nem sabão preto se adoma<br />

co’as água do <strong>In</strong>haré! 146<br />

– Rigação... é o que “eles” conta...<br />

Os rio, de ponta a ponta,<br />

vai, aprumado, corrê.<br />

– <strong>In</strong>conte nóis veja isso,<br />

vai se dá munto estrupiço,<br />

munto cristão vai se vê!<br />

– Quem manda no seu terreno,<br />

arrume açude – pequeno.<br />

Entonce, de pedra-e-cá,<br />

uma barrage segura:<br />

tem varge a locé, 147 fartura,<br />

tem fruita, tem ceriá.<br />

– Esses Açude de serra 148<br />

(quem dixe é Felipe Guerra),<br />

só pra diante vai serví.<br />

Açude grande é projeto<br />

prus quêro 149 dos nosso neto...<br />

– piqueno, é o que é bom pr’aqui!<br />

–Diz que o Getúio é mitrado. 150<br />

Antonce um baixa-assinado<br />

vou mandá pra esse inspetô,<br />

potrestando essa açudama<br />

– só apórva pra correama<br />

de fiação a vapô.<br />

423


424<br />

– Diz-que conde o Gargaieira 151<br />

tivé cheio, uma cardeira<br />

de Pernambuco vai vim,<br />

com todos aviamento,<br />

pra mode tê, c’um talento,<br />

orpala, zéfe e murim... 152<br />

– Dia São-Nunca, de tarde...<br />

– Póde sê... – Jóca, num marde!<br />

– Num tô cachopano, não! 153<br />

– Cadê parede, seu Néio?<br />

Lá, só tem é ferro véio,<br />

mundiça nos barracão! 154<br />

– Este açudão se fazia<br />

e era da noite pru dia,<br />

se o Zé Amérco num sai!<br />

– Esse, sim, tinha vontade!<br />

Ah, doutouzão sem bondade!<br />

Pru sertão foi quaje um pai!<br />

– Gunverno é lá pai que preste!?<br />

– É fruita que dá no agreste;<br />

inxerga nunquinha nós?<br />

– Pra quem dôce é xiquexique,<br />

é desaforo e dibique.<br />

mé-de-assucra com fiós!<br />

– Matuto é o irmão jumento!<br />

Come péda, arrota vento,<br />

de nascido inté morrê.<br />

Mimo, pra bicho ingeitado,


só léra de deputado,<br />

conde a inleição vai corrê...<br />

***<br />

Vosmincê sabe uma coisa?<br />

nem é gato nem raposa:<br />

sertão é mermo sertão.<br />

Queremo nada de luxo.<br />

Só nóis agüenta repuxo<br />

c’os lombo neste solão!<br />

425


426<br />

Notas ao Canto 11<br />

Jegue: Jumento, jorme, jerico, paquete, capiba, gangão. Depois<br />

do advento do automóvel, é o pacífico, prestadio auxiliar do matuto<br />

também apelidado de “inspetor de veículo”, devido ao costume<br />

de atravessar-se desajeitadamente, na estrada, ao aproximar-se<br />

qualquer deles, perturbando, assim, a velocimania dos senhores<br />

motoristas.<br />

No sertão, antes do império do Chevrolet, utilizavam-se os<br />

muares, para o transporte regular do algodão, em sacas ou fardos,<br />

até Macaíba, de onde o produto “descia”, pelo Jundiaí, para os<br />

armazéns de Natal. E para “subirem” ao sertão as mercadorias adquiridas<br />

na praça, para o comércio local. Havia muitos desses comboios<br />

exclusivamente de jumentos, ainda hoje empregados no tráfico<br />

de utilidades de feira, rapaduras, frutas, farinha, algodão em<br />

rama, etc, entre cidades cuja vizinhança depende de pequeno trajeto<br />

de 10 a 15 léguas, e em trechos ainda inacessíveis a caminhões.<br />

Diz um técnico ilustre (A República, de Natal, em 10 de fevereiro<br />

de 1946) que,<br />

na espinha dorsal do jumento repousa toda a economia<br />

nordestina”. E o engenheiro José de Castro, em<br />

palestra na Escola Superior de Agricultura de Lavras<br />

(Minas Gerais) afirmava que, “sem o jumento, seria<br />

impossível a vida, no Nordeste seco”; acrescentando<br />

que, “se fizéssemos uma estatística sobre as construções<br />

dos nossos açudes, teríamos cerca de 99 por cento<br />

construídos com o auxílio do jumento. Até mesmo as<br />

construções federais não dispensaram a contribuição<br />

desse animal, como provam os açudes Itans, Cruzeta,<br />

<strong>In</strong>haré, etc.


Escreve Felipe Guerra, em Secas Contra as Secas, p. 137:<br />

O bode e o burro, que sem entrarmos na apreciação<br />

da proteção divina que, queremos crer, vela pela<br />

humanidade, são, nas crises, os maiores auxiliares do<br />

sertanejo. O bode, para fornecer alimentação, com<br />

a carne e com o leite, e dinheiro, com a pele; o burro,<br />

forte, sóbrio, resistente para o transporte. O bode<br />

e o burro têm dado mais vida ao sertão, tem concorrido<br />

mais para o seu progresso e têm amparado mais<br />

as calamidades do que todos os governos que têm<br />

abandonado aos próprios recursos as populações sofredoras<br />

das últimas secas (Veja-se em Notas ao Canto<br />

2, a observação à frase “toma de um couro”).<br />

Vôte!: <strong>In</strong>terjeição de espanto e desconfiança. Tibe, tibes, tibe-vôte,<br />

sái-te!, são sinônimos.<br />

Gás: Querosene. Petulância, atrevimento. Dar gás a alguém é darlhe<br />

confiança excessiva, permitir-lhe familiaridade descabida.<br />

Argudão é dos galego: Alusão à Sanbra e à Anderson Clayton,<br />

grandes firmas compradoras do produto, na vigência da composição<br />

do poema.<br />

Pau é figo-bejamim: Referência irônica ao ficus-benjamina, essência<br />

utilizada na arborização da capital e em quase todas as cidades<br />

do interior, de uns trinta anos a esta parte. O fícus foi introduzido<br />

na urbanística natalense, substituindo quase que totalmente<br />

as velhas e copadas mangabeiras, em 1916, pelo então presidente<br />

da <strong>In</strong>tendência, major Teodósio Paiva. 155<br />

Angu: Barulho, confusão, entrosa, sangangu, mexido, emboança,<br />

sarapatel, ingonga, fuxico, encrenca, bolo, trança, infuca, arrelia,<br />

toré etc. (Veja-se tribuzana, no Canto 5)<br />

427


428<br />

Belém: O mesmo que angu.<br />

Malincunia: Ou maninconia. Melancolia. Assim denominam<br />

também os matutos às equimoses (ronchas) que, sem o menor<br />

sofrimento físico apreciável, aparecem sob a epiderme. A<br />

maniconia, nesse caso, é atribuída a contrariedade, raivas fortes,<br />

ou ao gênio mau de quem, vez por outra, aparece com tais estigmas.<br />

Virar Judas: Das torturas da civilização, é a gravata uma das mais<br />

temidas pelo matuto, secularmente habituado à vida libérrima,<br />

simples, despida de etiquetas, do campo, onde nasce, vive e morre<br />

em contato com as fontes virgens e eugênicas da natureza da<br />

cidade, e sendo, quase todos da parentela. A um companheiro<br />

engravatado, chama de Judas, isto é, enforcado, marrado pelo pescoço.<br />

E pergunta-lhe se vai votar...<br />

Trupicar: Ou entropicar. Tropeçar, embaraçar-se com os sapatos.<br />

Cacundo: Corcunda, curvado, humilhado, anzolado, revesso.<br />

Babilonho: Veja-se referência à palavra “badejo”, em Notas ao<br />

Canto 4. (diz-se assim, mais propriamente, do indivíduo que empreende<br />

mais do que é capaz de realizar; o que faz ou adquire o<br />

que normalmente não está ao seu alcance).<br />

Mal-do-peito: Tuberculose pulmonar. O sertanejo, por superstição,<br />

por falta de educação sanitária, está muito longe, ainda, de<br />

conhecer a significação da origem microbiana, a origem e a natureza<br />

das moléstias comuns ao seu ambiente geográfico. Não gosta<br />

de dizer o nome próprio das moléstias reconhecidamente graves,<br />

ou por eles tidas como tais. Seria (pensa) arriscar-se a contraí-las.<br />

Daí, o vezo de nomeá-las por metáforas, hipérboles, etc. Só muito


excepcionalmente diz, por exemplo, “tuberculose”: – é a “tisga”,<br />

o “seca”, a “magrém”, a “isbilitação”, mal-do-peito ou simplesmente,<br />

a doença. “Cancro”, é ferida braba, ferida feia; varíola, é papoca<br />

roxa. De um tuberculoso, dizem que está afetado. Antes de nomear<br />

a doença, resmungam a Ave Maria! Ave Maria! E muitos se persignam.<br />

Descrevendo uma luta corporal, uma morte à faca ou<br />

bala, acrescentam sempre um “lá nele!”, ao indicarem a parte em<br />

que o ferido ou o defunto foi atingido pelo ferro.<br />

Não sois nada é coronel: Alude o interlocutor, sarcasticamente,<br />

à desmoralização a que o progresso e a política reduziram a<br />

Guarda Nacional, ridicularizada, enfim, em toda parte, com a<br />

corrutela de guarda-não-sois-de-nada.<br />

Esclarece J.Veiga Júnior, 156 delicioso animador de figuras e aspectos<br />

do passado, em artigo na A União, de João Pessoa, Paraíba,<br />

de 15 de junho de 1940:<br />

Ignora-se ainda o motivo por que foi extinta a velha<br />

Guarda Nacional, corporação que prestou assinalados<br />

serviços ao Império, não só em tempo de guerra,<br />

mas ainda em tempo de paz, e que a República<br />

conservou por muitos anos. Conservou e reformou.<br />

Apenas, suprimiu postos inferiores a alferes; deixando<br />

a corporação em condições mais singulares que o<br />

monstro da fábula. A hidra de Lerna 157 tinha sete cabeças<br />

e um corpo... A Guarda Nacional passou a possuir<br />

miríades de cabeças que não se juntavam a nenhum<br />

tronco. Também não se descobria ali um oficial<br />

general. Ao alferes não era dado o direito de ir além<br />

do coronelato. Como as patentes custavam dinheiro,<br />

tornou-se a G. Nacional uma razoável fonte de renda,<br />

que entrava para os cofres da União por via do<br />

Ministério da Justiça, a que estava subordinada a “Briosa”,<br />

apelido expressivo por que era conhecida. O<br />

429


430<br />

Governo soube tirar proveito inteligente da vaidade<br />

de muito cidadão que ansiava por entonar-se num<br />

espaventoso fardamento, rico de dourados e alamares.<br />

E deixem que não era desagradável à vista o desfile<br />

daquele curioso batalhão de oficiais, solenes, eretos,<br />

dragonas tombando dos ombros, espadas pendentes<br />

do talim, nos dias de procissão. Ou no pátio da Catedral,<br />

na noite dos militares, a receberem a continência<br />

dos soldados de polícia... O Governo não<br />

despendia um ceitil por essa original corporação. Bem<br />

ao contrário, recebia de cada candidato a oficial 80$,<br />

100$, 200$, 300$ e 400$, custo de cada graduação,<br />

de alferes a coronel. O agraciado ainda pagava 250$<br />

a 300$ pelo fardamento. O montante de tais despesas<br />

parece uma bagatela. Mas, para a época, representava<br />

um dinheirão. Os oficiais mais modestos usavam<br />

distintivo: um pequeno disco de metal, de fundo<br />

verde-limo, com dois semicírculos paralelos dourados,<br />

tendo ao centro, em relevo, o símbolo da arma<br />

respectiva. O posto era enfincado por pequeninas<br />

esferas douradas, não tão pequeninas que passassem<br />

despercebidas à continência obrigatória dos policiais.<br />

Se todo cidadão é um soldado da Pátria, quem<br />

não pertencesse à Guarda Nacional não passava de<br />

uma praça de pré. Esse, o argumento ingenuamente<br />

movedor dos que compunham a Briosa. Não houve<br />

mãos a medir, para os pedidos de patentes, a choverem<br />

de todos os recantos do país. Criava o Governo,<br />

semanalmente, brigadas e mais brigadas, mas não era<br />

possível atender à caudal dos que aspiravam vestir a<br />

farda mirífica que enfeitiçou não pequeno contingente<br />

de sisudos cavalheiros. Não seria desinteressante o<br />

restabelecimento da Briosa. As patentes passariam a<br />

ser uma espécie de imposto lançado sobre a vaidade


humana. Imposto simpático, dada a espontaneidade<br />

da contribuição.<br />

Rematar: Arrematar, em sentido pejorativo. Fazer mal ou displicentemente<br />

qualquer coisa. Entregar a preço vil.<br />

Dunga: Figurão, maioral, abagão, manda-chuva, coronel, graúdo.<br />

Vintém: Dinheiro. “Fulano tem uns vinténs”, isto é, não é pobre,<br />

é remediado. Se tem muitos vinténs, é rico.<br />

Muié, só é cuma a minha: Nessa sextilha, refere-se o Autor à<br />

mulher do povo, companheira e colaboradora do matuto cem por<br />

cento, aferrado aos preconceitos, crendices e hábitos do seu torrão<br />

serrano. Depõe Gustavo Barroso, à página 180 de Terra do Sol:<br />

A mulher do sertão cuida da casa, faz o queijo, ajuda<br />

na colheita e no plantio dos roçados. Não se mete<br />

em conversa de homens, quase não aparece a visitas.<br />

É recatada e de um imenso acanhamento.<br />

Louvemo-nos, ainda, no cabal testemunho de Leonardo Mota,<br />

em Cantadores:<br />

Foi numa das fazendas dos sertões de Crateús, que<br />

aprendi o mais extravagante argumento contra o feminismo.<br />

Em poucas palavras, vi fulminado por um<br />

matuto tudo quanto eu lera em livros simpáticos ao<br />

misoginismo nas letras. O abastado fazendeiro, capitão<br />

Franklin Cavalcanti (Seu Franklin Cavalcanti,<br />

como o chamavam os vaqueiros), “apanhava” nos bons<br />

invernos seus oitenta bezerros e, raro, perdia nas<br />

secas, pois costumava fazer retiradas para as fazendas<br />

que possuía também no território vizinho do<br />

Piauí. Era rico, casado, e tinha apenas uma filha, já<br />

431


432<br />

mocinha. Perguntei-lhe por que não mandava a filha<br />

cursar um dos colégios de Fortaleza. E o capitão<br />

Franklin me deu esta resposta desconcertante:<br />

– Pra que? Muié aprendida fica é atirada. Ciença se fez foi<br />

pra home. Só cavalo é que a gente ensina a braiá. 158 Quem<br />

foi que já viu se meter marcha em besta?<br />

Anexins e Ditados: Mulher, espingarda e relógio, não se empresta<br />

a ninguém; Ninguém se fie em cachorro que fica na cozinha,<br />

nem em mulher que passeia sozinha; Mula estrela, 159 mulher<br />

faceira e tubiba de aroeira, o diabo que queira; Quem quer bulir<br />

com a moça, bula com o pé e a bolsa; Quem apanha de mulher,<br />

não se queixa ao delegado; Mulher de igreja, Deus nos proteja!;<br />

Viúva rica, casada fica; Casa de mulher feia não precisa de tramela;<br />

Mulher de janela, nem costura nem panela; Não há mulher sem<br />

graça, nem festa sem cachaça; Cada uma em sua casa, o diabo não<br />

tem o que fazer; Para quem ama, catinga de bode é cheiro; Sossego<br />

de homem é mulher feia e cavalo capado.<br />

Camarinha: Alcova, quarto de dormir.<br />

Sertão prestou: O matuto que dispara o conceito na sextilha é<br />

pessimista, conservador acérrimo; foi uma das vítimas da concorrência<br />

do automóvel. “Telegrama e trilho de ferro foi quem trouxe<br />

a carestia”, já era velho ditado sertanejo, desabafo de filósofos<br />

humilhados na seleção vital imposta pela “força motriz da História”,<br />

a quem se referia Euclides, citando Gumplowicz, força motriz<br />

que, dos meados da última guerra, a esta parte, é dinamizada<br />

pela “eletricidade” de cooperação norte-americana. Veja-se opinião<br />

de Caetano Zacaria, sertanejo culto, citado nas Notas à palavra<br />

“rola”, última parte, no Canto 1.<br />

Derna: Desde.


Poicaria: Porcaria, porqueira, titica, imoralidade, ninharia, coisa<br />

sem valia. Porqueira é também adjetivo, e significa covarde, indivíduo<br />

sem valor, mucufa, fumega.<br />

Carro: Automóvel (para distinguir do caminhão).<br />

De baixo: Das capitais, do agreste.<br />

Baiano: Dança antiga, da plebe. Descreve-a Aluízio Alves, 160 em<br />

Angicos, já citado:<br />

“Baiano ou baião, dança sapateada, em que os personagens davam<br />

castanholas do começo ao fim. Estes eram convidados da seguinte<br />

maneira: sentados ou de pé, esperavam que o tocador se<br />

aproximasse, requebrando-se, e lhes fizesse uma cortesia, que<br />

constava de um cumprimento aberto, no qual a viola continuasse<br />

a tocar. O primeiro contemplado, após o tocador sentar-se, saía<br />

pelo salão, dando castanholas, e, logo, jogava o lenço da sorte a<br />

outro. E assim, sucessivamente, vinham dançar muitos dos presentes.<br />

Exemplo de um baião: Araruna...” (O autor de Angicos reproduz<br />

no citado livro a música desse sapateado matuto).<br />

Serrote: São do mesmo escritor e constam do mesmo capítulo<br />

da obra acima mencionada, estas explicações sobre o serrote:<br />

Xote dançado por dois ou três pares apenas, Formavam<br />

na sala, os cavalheiros de um lado e as senhoras<br />

de outro. Ao som da viola, saíam num pulo miúdo,<br />

trocando os pés para um e outro lado. Ao se encontrarem,<br />

na ida, apertavam, homem e mulher, a mão<br />

direita e, na volta, a esquerda. A dança se dirigia<br />

sempre em sentido contrário, de modo que o encontro<br />

do cavalheiro com a dama, cada um vindo de um<br />

ponto contrário (dois ângulos da casa, justificava o<br />

nome da dança).<br />

433


434<br />

<strong>In</strong>fergaio: Do verbo esfregar, que os matutos pronunciam infergar.<br />

Chucaio: Chocalho. Referência pejorativa ao jazz-band.<br />

Tenência: Cuidado, prudência, sabedoria.<br />

Tingui: Qualquer rama venenosa; por extensão, qualquer tóxico.<br />

Diz G. Barroso, à página 24 de Terra de sol: “O tingui, é uma<br />

malpighiácea e o terror dos criadores. As reses famintas comemno<br />

e se envenenam. Se a intoxicação não for completa e a rês não<br />

correr ou cansar, pode escapar; mas, se der o menor chouto, morre”.<br />

À consulta do Autor dessas Notas, sobre os vegetais mais conhecidos<br />

como tingui, no Seridó, responde o prestimoso, incansável<br />

e bom sabedor, Manoel Bezerra de Araújo Galvão Junior,<br />

seu Coquinho, do sítio Pedra-e-Cal (Acari):<br />

O tingui propriamente dito, espécie de cipó de folhas<br />

grandes, verde-escuras; a favela; a maniçoba; o<br />

angico – tudo isso, quando a rama ainda é nova.<br />

A folha da carrapateira (mamona) boa ração para vacas de leite,<br />

também tinguija, estando murcha, ou assizoada, isto é, quando<br />

apanhou uma neblina qualquer, durante o pino do sol (o termo<br />

parece provir de sezão, como são conhecidas, no interior, as febres<br />

intermitentes, o impaludismo). A macaxeira e a mandioca<br />

são também tingui, quando postas ao gado no mesmo dia em que<br />

são arrancadas.<br />

Essas caixa: Alusão irônica às cooperativas de empréstimos e que,<br />

anteriormente, se denominavam caixas-rurais.<br />

Ciste: Chiste, graça, valia. Estar em ciste, é estar aborrecido,<br />

tristonho. Fruta desenxabida, comida sem sal – estão sem ciste.


Meter a catana: Lançar-se com afinco à tarefa; “meter a ronca!”<br />

Um condado: Coisa muito alta no preço; uma salina.<br />

Atucanar: Perseguir, importunar.<br />

Astrudia: Ou istrudia – o outro dia, há tempo.<br />

Rabo-de-couro: Ladrão. Analogia em relação com uma espécie<br />

de rato, conhecida por essa denominação, que lhe vem de uma<br />

particularidade da cauda – muito grossa, e que faz bater<br />

pesadamente, ao fugir.<br />

O matuto conserva invencível prevenção contra o fisco e seus<br />

exatores. A qualidade de funcionário público sempre acarretou, a<br />

quem quer que o fosse, no sertão, a antipatia, o mal disfarçado<br />

sarcasmo e, quando menos mal, uma estima estritamente particular<br />

– de pessoa para pessoa – um tanto mesclada de vago despeito<br />

e íntima desconfiança. Ganhar dinheiro do governo era ganhá-lo<br />

em demasia; era boa-vida, vadiagem dourada, disponibilidades fáceis,<br />

pelegas, 161 novinhas, ainda a estalar, assinadas ali mesmo, pelo<br />

administrador da mesa-de-rendas. Esse, disporia desta inesgotável<br />

pecúnia, à vontade, porventura fabricando-a na própria repartição.<br />

Sem as canseiras da luta insana e incerta, dos nativos, contra a<br />

terra adusta e a natureza inconstante...<br />

Essa mentalidade, de resto, se tem modificado muito, e o sertanejo<br />

tributado, vai facilmente às agências de rendas, pagar o<br />

imposto.<br />

Continua, entretanto, a odiar e a temer o fiscal de consumo, 162<br />

numa justa e irredutível correspondência às incríveis,<br />

inconfessáveis iniqüidades por este perpetradas no interior.<br />

Imbaibelou: De embarbelar, fisgar, apanhar na barbela (farpa de<br />

anzol).<br />

435


436<br />

Bruaca: Bolsa de couro, dupla, ligada por correias, e que, antigamente,<br />

ao tempo das jornadas a cavalo, servia de farnel, carregando-a,<br />

o viajante, atravessada no traseiro da sela. Na sextilha sob<br />

anotação, trata-se da referência à pasta de couro-da-rússia 163 de<br />

um fiscal de consumo. Diz-se também mocó, quando é uma bolsa<br />

pequena; bodoróca.<br />

A bambão: Em abundância, ao léu, à locé.<br />

As mina é a fulô das terras: De todos os que lêem jornais e<br />

revistas, ou moram no Nordeste, é conhecido o fato da extraordinária<br />

abundância e variedade de minérios – alguns, diz-se, decisivos<br />

para a vitória das Nações Aliadas, na última guerra – verificadas<br />

nesses últimos seis e oito anos, e que está permitindo aos sertões<br />

deste Estado (o Seridó, principalmente) e da Paraíba, incomparável<br />

elemento de reparação e reajustamento das suas fontes econômicas,<br />

quase que completamente esgotadas, no plano agrícola, por<br />

estiagens tremendas, sem tréguas compensadoras, durante anos.<br />

Caminhões e caminhões de columbita, cristais de rocha<br />

puríssimos, rútilo, ouro, estanho, turmalina, etc, etc, transitam<br />

durante todo o ano, na rodovia Seridó-Campina Grande, carreando<br />

a produção das zonas limítrofes de Picuí e outros municípios<br />

paraibanos.<br />

É o novíssimo Eldorado, onde se agita enorme e heterogenia<br />

população de nativos e adventícios – uns, traficando, outros, explorando<br />

banquetas, 164 e outros, enriquecendo subitamente, garimpando<br />

terras onde a seca nunca permitira deixar cair uma semente...<br />

Engenheiros – autênticos e “de sessenta”; 165 geólogos, químicos;<br />

galegos 166 inidentificáveis, americanos em férias; joalheiros,<br />

ourives, mecânicos, artífices em ferro, soldadores, motoristas,<br />

espiões, jornalistas, rábulas, fazedores de mágicas; circos, agentes<br />

de seguros, políticos fracassados, marreteiros, prostitutas.


Cerca de oitenta por cento daquela ganga riquíssima – onde<br />

predominam a xelita e outros minérios estratégicos, – são colhidos<br />

pelos processos mais primitivos, a olho, no leito dos córregos,<br />

nos cimos e quebradas dos “tombadores”. Por ali afora, a columbita,<br />

em forma de seixos rolados, é apisoada indiferentemente pela<br />

alpercata do matuto inexperto, pelo casco do jumentinho<br />

prestadio, conduzindo água para a Golconda 167 pulverulenta. 168<br />

Nique: Níquel, ou qualquer metal. Moeda é nica. 169<br />

Cadença: Ciência, sabedoria, esperteza.<br />

Carcavear: Cascavilhar, remexer.<br />

Disputismo: Despotismo. É expressão muito generalizada, impondo<br />

idéia de grandeza, abundância, força surpreendente.<br />

Tio torto: Irmão do padrasto ou madrasta. Tio por afinidade.<br />

Lazarina: Espingarda de caça, de cano muito longo, cintado, até<br />

a boca, na parte inferior, pela madeira da coronha. Analogicamente,<br />

significa alto, delgado, esbelto: Uma cabrocha lazarina [...].<br />

Mateus: Um dos principais figurantes do Bumba-meu-Boi, o<br />

guardião do “bicho”. Espécie de palhaço, anunciador do folguedo<br />

(o speaker, 170 dir-se-ia mais modernamente) e predileto joguete,<br />

com os seus parceiros – o Gregório, o Laláia ou o Choco, em<br />

algumas regiões do Brasil – das cornadas do “boi”, e das piadas dos<br />

espectadores e da molecada. Para uma descrição completa desse<br />

folguedo popular, aliás, quase desaparecido já, veja-se Melo Morais<br />

Filho, 171 em Antologia do Folclore Brasileiro, monumental trabalho<br />

de Câmara Cascudo, edição da Livraria Martins, S. Paulo, vol.<br />

XV da Marcha do Espírito, p. 192-199.<br />

437


438<br />

Só c’a peste de um minéro: Em importantíssima reportagem<br />

de José Pires, publicada na edição de 18 de setembro de 1949, do<br />

Diário de Natal, sob o título e subtítulos de “Urânio potiguar levou<br />

o Japão à derrota – , não só Parnamirim ajudou a ganhar a guerra<br />

– Contribuição do Estado à indústria bélica – Riquezas minerais<br />

incalculáveis em Acari e Parelhas – Surpreendente revelação de<br />

um garimpeiro profissional” – aparece o minerador, simples “curioso”,<br />

de boa vontade, inteligente, ufanista convicto, o sr. Amaro<br />

Alves dos Santos, residente à rua dos Paianazes, 1.394, nesta capital,<br />

e profundo conhecedor das nossas serras, que examinou a palmo,<br />

tendo estado em contato constante com a BEW (Bureau of<br />

Economic Warfare), durante a última guerra. Assim se refere o repórter,<br />

nesse artigo, ao urânio no Rio Grande do Norte:<br />

Análises feitas nos Estados Unidos – Dias depois,<br />

Amaro Alves dos Santos entregava ao Haroldo Sims,<br />

então cônsul dos Estados Unidos, em Natal, retirada<br />

da mina Xiquexique (município do Acari), certa quantidade<br />

de minério que muito se assemelhava à<br />

tantalita. Solicitava ao representante consular 172 que<br />

lhe fizesse o favor de mandar examinar o material,<br />

nos laboratórios americanos. O resultado da análise<br />

feita nos Estados Unidos veio três meses depois. Na<br />

amostra enviada, havia sido encontrado urânio de alto<br />

teor. Na mina Xiquexique, o veio de urânio, segundo<br />

Amaro Alves dos Santos, tem uma extensão de<br />

seis quilômetros, por mais de um quilômetro de largura,<br />

de espessura desconhecida, até atingir uma serra,<br />

atravessando a esta e se prolongando pelo território<br />

paraibano adentro. Diz ainda Amaro Alves ter<br />

ouvido, da BBC de Londres, a informação de que, até<br />

então, se estimava em 70 quilogramas a quantidade<br />

de urânio do Brasil enviada aos Estados Unidos.


<strong>In</strong>xirido: Enxerido, desenvolto, metediço, oferecido, adiantado,<br />

ponta-limpa, metido a cavalo-do-cão, metido a sebo. Veja-se<br />

no Canto 5, a nota à palavra fiota.<br />

Prejura: Perjuro, excomungado, maldito. Usado sempre no feminino,<br />

como cafifa, vagabunda, malandra, etc. Cabra ruim, um<br />

prejura, um malandra!<br />

Bicheira: Ferida cheia de bichos, larvas, tapurus. Tratam-nas os<br />

vaqueiros a água de sal, fumo, creolina, leite de pinhão bravo,<br />

mercúrio. Quando, porém, o animal doente de bicheira está fugido<br />

ou tresmalhado, ou se trate de um barbatão, uma ovelha mais<br />

arisca, uma vaca recentemente parida e amoitada, manda-se curar<br />

pelo rastro. Para isso, o rezador resmunga um latinório<br />

ininteligível, de mistura com palavras tupis e africanas; traça, com<br />

um ramo verde, cruzes cabalísticas sobre as pegadas da rês – e,<br />

logo, vão caindo, às trouxas, os tapurus. E o animal sara.<br />

Eis uma das “orações” mais conhecidas:<br />

Mal que comeis a Deus não louvais e nesta bicheira<br />

não hás de comer mais. Hás de ir caindo de dez em<br />

dez, de nove em nove, de oito em oito, de sete em<br />

sete, de seis em seis, de cinco em cinco, de quatro<br />

em quatro, de três em três, de dois em dois, de um<br />

em um, e nesta bicheira não há de ficar um. Hás de<br />

ficar limpa, salva e sã, como ficaram limpas, salvas e<br />

sãs, as Cinco Chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />

Amém.<br />

Tarugo: Saliência, bossa, mormo 173 (este termo designa também,<br />

no sertão, uma doença de gado).<br />

Fracudo: De froco (floco), penacho. Soberbo, emproado, posudo,<br />

ganjento.<br />

439


440<br />

Jucá e Quiri: Madeiras encontradiças em todo o Nordeste, e<br />

cujas vergônteas são famosas, no fabrico de porretes, especialmente<br />

se de antemão passadas ao fogo. “Fulano ficou sem saúde, três semanas;<br />

tomou uma pisa de jucá assado”.<br />

Aliás, a infusão das cascas de jucá, em concomitância bem irônica,<br />

fornece ótima arnica, muitíssimo usada como descongestionante,<br />

anti-hemorrágico, e a ela proverbialmente recorrem<br />

as vítimas de surras, quedas, golpes, dores internas, etc.<br />

Quanto à segunda palavra indicada, grafou-a G. Barroso – “quirin”<br />

–, em Terra de Sol, variante que jamais circulou no vocabulário<br />

seridoense.<br />

Catulo da Paixão Cearense, num dos admiráveis poemas de<br />

“Alma do Sertão”, põe também assim o termo, na boca de um dos<br />

seus heróis, pelo que mereceu reparo de Humberto de Campos<br />

(Crítica, 1ª série, editora Mariza, p. 188), enumerando, além desta,<br />

“quirin”, cerca de mais de vinte expressões que, por amor exclusivo<br />

da rima, o grande felibrista 174 inventou, querendo fazê-las<br />

passar por apanhadas no linguajar do matuto. Este, na justa, autorizada<br />

observação de Humberto, “jamais cria expressões, deturpa-as,<br />

apenas”.<br />

Desquilate: Desastre, insucesso ruidoso.<br />

Virar o mocotó: Cair de pernas p’ro ar.<br />

Tapado: Ignorante, rude, xucro, broco (bronco), bocório (adjetivo).<br />

Lampião foi capitão: O Dr. Floro Bartolomeu da Costa, 175<br />

médico baiano, chegado em 1908 à cidade cearense de Juazeiro,<br />

foi o chefe “militar” da revolução caririense de 1914, contra o<br />

governo do coronel Franco Rabelo, 176 que derrubou, chegando<br />

às portas de Fortaleza com algumas centenas de cangaceiros,


arrebanhados na Meca do Padre Cícero, e após expugnar, uma a<br />

uma, todas as localidades à margem da estrada de ferro, guarnecidas<br />

por Exército e Polícia.<br />

Durante essa terrível luta civil, na qual, como em Canudos, a<br />

insurreição se apoiou profundamente na incoercível mitomania<br />

dos nossos broncos e desamparados patrícios dos sertões, foi vítima<br />

dos guerrilheiros de Floro, a 22 de fevereiro daquele ano, o<br />

inolvidável democrata norte-rio-grandense, capitão José da Penha,<br />

177 tombado na inglória escaramuça de Miguel Calmon.<br />

Escorado no formidável prestígio do Patriarca – “o anjo do<br />

Ceará”, segundo o bispo D. Luiz Antônio dos Santos; o “ladrão<br />

Cadmo,” 178 na opinião do padre Alencar Peixoto 179 –, Floro<br />

Bartolomeu, apesar da extrema crueza que o caracterizava, foi o<br />

verdadeiro civilizador da babilônia carola, impondo-lhe a ferro e<br />

fogo, o impulso decisivo para o progresso de que atualmente desfruta:<br />

é a segunda cidade do Estado do Ceará, em população, mantendo<br />

a primazia quanto à importância industrial e comercial. Todo<br />

o sólido calçamento urbano, o granito de que dispõe Juazeiro,<br />

em mais de um terço, é, ainda, o que foi assentado sob a administração<br />

pessoal do caudilho, cujo fura-bolos, sob a esmeralda simbólica<br />

do sedare dolorem, 180 se havia calejado no gatilho da<br />

Winchester. Fuzilou, sumariamente, dezenas de facínoras que infestavam<br />

o imenso arraial católico, e aos quais obrigava a trabalhar<br />

rudemente, em turmas sob a sua impiedosa fiscalização. Construiu<br />

e inaugurou a grande praça central da cidade, otimamente<br />

urbanizada, e toda pavimentada com quadriláteros de pedra, com<br />

um monumento ao Padre Cícero e elegante torre com relógio.<br />

Sob os auspícios do governo Artur Bernardes, improvisou, em<br />

1926, um batalhão patriótico (!), integrado pela fina flor dos<br />

suspeitíssimos, heterogêneos elementos anteriormente utilizados<br />

contra o governo legal de Franco Rabelo, batalhão que deveria<br />

441


442<br />

empregar na perseguição à Coluna Prestes, a esse tempo já atingindo<br />

a periferia cearense.<br />

Escreve M. Diniz, no seu movimentado, interessantíssimo livro,<br />

Mistérios do Juazeiro, já citado:<br />

O dr. Floro, que sempre apreciou os elementos do<br />

terrorismo, mandou uma carta a Lampião, chamando-o<br />

a esta cidade, para incorporar-se aos “patriotas”.<br />

O advogado José Ferreira de <strong>Menezes</strong> 181 foi o<br />

portador da carta, de Campos Sales 182 a esta cidade,<br />

onde havia um irmão do legendário bandoleiro, que<br />

conduziu-a em companhia de um dos tenentes dos<br />

Patriotas. Aproximou-se Lampião, dirigindo-se a esta<br />

cidade, quando o Dr. Floro, ou por já terem passado<br />

os revoltosos, ou por ter chegado o tenente-coronel<br />

Polidoro Coelho, com quem dizem teve forte alteração,<br />

passou a João Ferreira 183 o seguinte telegrama:<br />

“Comunique não é mais preciso Lampião. Povo<br />

já seguiu em perseguição a revoltosos”. Tal telegrama<br />

tem a data de 22 de janeiro de 1926, e pareceme<br />

autêntico, porque, efetivamente, Lampião aqui<br />

chegou, depois de 8 de fevereiro, quando o dr. Floro<br />

já tinha partido para o Rio. Lampião não incorporouse<br />

aos Patriotas, mas esteve nesta cidade. Não foi<br />

nomeado capitão, como dizem, mas consta que Uchoa<br />

(empregado no Ministério da Agricultura, e sem atribuição<br />

para tanto) nomeou-o capitão, para contentálo,<br />

pois ele exigia do Padre Cícero o cumprimento<br />

da promessa que lhe fora feita na carta que lhe remetera<br />

especialmente o Dr. Floro, que no Rio achava-se<br />

bem longe da tal embrulhada que deixara. Lampião<br />

regressou daqui, fardado de capitão, em companhia<br />

de seus 49 soldados devidamente uniformizados.


Leonardo Mota, em seu fascinante livro, No Tempo de Lampião,<br />

conta minuciosamente o caso, reproduzindo o depoimento de<br />

Pedro Albuquerque Uchoa, “um velho agrônomo que, àquele tempo<br />

exercia na Meca sertaneja do Ceará as funções do cargo de<br />

inspetor agrícola”. Segundo essa confissão, feita de viva voz ao<br />

saudoso folclorista, foi Uchoa quem, sob ditado do Padre Cícero,<br />

redigiu a famosa, inacreditável “patente” ao bandido, “em nome<br />

do governo da República” (sic).<br />

Galalau: <strong>In</strong>divíduo excepcionalmente alto, gangorra (adj),<br />

grangazá. 184<br />

Quebrar pau: Correr dentro do mato. Para quem corre, todo<br />

mato é caminho.<br />

Réfe: Facão “Comblaim”, rabo-de-galo, sabre antigamente usado<br />

pelo exército e policiais estaduais.<br />

Macaco: Designação insultuosa, dada aos soldados de polícia, por<br />

todos os facínoras que tem tido o Nordeste, mata-cachorro,<br />

soronha, meganha, canela-preta.<br />

Peba: Tatu, dasypus, pequeno mamífero desdentado. Cavador<br />

invencível, vive em tocas, saindo apenas para procurar alimentos,<br />

à noite, e usando de mil e uma traças 185 para não ser apanhado.<br />

Devasta plantações de melões e batatas, nas vazantes dos rios. Dizem<br />

que fura os túmulos, para roer defuntos frescos... E chega a<br />

ser responsável, muitas vezes, pelo arrombamento de açudes (Vide<br />

Eloy de Souza, Calvário das Secas, cit. p. 94).<br />

Anexins e Ditados: Dois tatus machos não moram num buraco;<br />

Quem nasceu pra ser tatu, morre cavando; Tatu velho não se esquece<br />

do buraco; Andar ligeiro, que só peba na areia; Na cacunda<br />

do tamanduá, tatu agüenta sol(Coleção Leonardo Mota).<br />

443


444<br />

Chiriri: Diarréia, caminhadeira, escorrença, digesto, chega-e-vira,<br />

frouxo. No Ceará diz-se também sedeca.<br />

<strong>In</strong>vocar: Beber todo o líquido, sem pausa; ver a moça no fundo<br />

do copo.<br />

Tem puliça, tem estrada: Há um batalhão da Polícia Militar,<br />

aquartelado na cidade do Caicó.<br />

Mamãezada: Cambalacho, acomodação vergonhosa, traficância,<br />

conchamblança, muambagem, capilossada, marretagem.<br />

Tem fios no catolé: O interlocutor elogia a civilização, que fez<br />

passarem os fios telegráficos através das serras mais ínvias, habitat<br />

preferido por aquela pequena palmeira. Viajando pela estrada tronco<br />

da I.F.O.C.S., 186 há pouco tempo, notou o Autor dessas Notas,<br />

num trecho entre a Paraíba e o Ceará, que muitas das árvores<br />

marginais estão servindo de postes vivos aos fios do Telégrafo Nacional.<br />

Só branco entra na Marinha: A alusão não se endereça, na<br />

sextilha sob anotação, à cor, mas à qualidade do indivíduo. Antigamente,<br />

o internamento nas escolas de Aprendizes de Marinheiro<br />

representava uma das ameaças mais decisivas, ou castigo dos mais<br />

terríveis, para os vadios ou desordeiros de menor idade, ou<br />

malazartes 187 precoces, os maus filhos, os que não davam nem para<br />

cangalha. Hoje, ao candidato a marinheiro nacional, se exigem<br />

documentos de exemplar conduta, certificado de saúde, licença<br />

dos pais, e até prova de estar de pazes feitas com o dentista.<br />

Um tal de Aleizon: Dr. Eleison Cardoso, notável sanitarista a<br />

quem deve o Rio Grande do Norte a extinção do gâmbia, o famoso<br />

pernilongo africano, responsável pela morte de muitos milhares<br />

de nordestinos, entre 1939-1940, principalmente na Várzea


do Assu. Veja-se, a propósito, Acta Diurna, de Câmara Cascudo, em<br />

A República, de Natal.<br />

Salitre, 188 que nem “Sedoma” (Sodoma): 189 O Dr. Juvenal<br />

Lamartine, presidente da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras,<br />

ex-presidente do Estado, e grande conhecedor dos seus problemas<br />

econômicos e agrícolas, em artigo publicado no Diário de<br />

Natal, de 21 de setembro de 1947, refere-se ao fenômeno:<br />

Luma: Ou “lunha”, a lua.<br />

As águas represadas se carregariam rapidamente de sal,<br />

como as do açude do <strong>In</strong>haré, em Santa Cruz, que estão<br />

imprestáveis até mesmo para a lavagem de roupa.<br />

Relé: Usado mais comumente como adjetivo, é também substantivo.<br />

Ralé.<br />

Perré: Governista, antônimo de cafeísta 190 (Este poema foi escrito<br />

antes de 1950).<br />

Papai Noé (Noel): Alusão, feita por muitos órgãos da imprensa em<br />

todo o país, ao trabalho vitorioso de Café Filho, então na Câmara dos<br />

Deputados, pelo abono de Natal aos funcionários civis e militares.<br />

Frande: Flandre, sinônimo popular de sabre.<br />

Virola: Correia de pneu, durante muito tempo utilizada pela<br />

polícia para seviciar presos.<br />

Péla-bucho: Sinônimo de cafeísta, seguidor político de Café Filho,<br />

correligionário.<br />

Enfieira: Fila. Alusão às audiências populares, durante muito tempo<br />

concedidas por Café Filho, em uma das salas do Palácio<br />

Tiradentes, no Rio.<br />

445


446<br />

Xereta: Amigo do peito, chaleira, puxa-saco, etc. Veja-se sinonímia<br />

dessa expressão, no Canto 3.<br />

Arvaluá: Do verbo avaliar.<br />

Ferrar: Assinar, subscrever.<br />

Mardando: Maldando, intencionando.<br />

Esses açudes de serra: Alusão aos grandes açudes. Em Secas do<br />

Nordeste, livro póstumo, publicado por seu filho, o escritor Oto Guerra,<br />

191 trinta dias após seu trespasse. Brito Guerra, embora aconselhando<br />

a grande açudagem, continua julgando “essencial” para a economia<br />

nordestina, a construção de pequenos açudes. Verbi gratia: 192<br />

[...] Não assim para aqueles que, desde anos, acompanham<br />

a ação precípua exercida pela IFOCS na economia<br />

da região seca, em decisiva luta, abrindo estradas,<br />

poços, incentivando a pequena açudagem, único<br />

remédio contra as grandes calamidades (Notas VII,<br />

p. 33, do Secas do Nordeste, edição do Centro de Imprensa<br />

S.A., 1951).<br />

P’ros queiro dos nossos netos: Alusão aos dentes de siso que,<br />

no sertão, se dizem queiros e cuja irrupção proverbialmente confere<br />

maioridade. Referência a futuro remoto.<br />

Mitrado: Sabido, ladino, escovado, mitrado, bargado.<br />

Chevrolé: Vide referências, em Notas ao Canto 1)<br />

Pau-pedra: pau-de-serrote, leguminosa (Hoffmanuseggia petra).<br />

Tavares de Lyra, em sua excelente Corografia do Rio Grande do Norte,<br />

já várias vezes citada nas presentes Notas, descreve o processo<br />

de utilização das raízes dessa árvore, pelos sertanejos (p.71):


As raízes mais tenras e tuberosas são raladas, e a massa<br />

resultante lavada em nove águas. Extrai-se assim<br />

uma goma de cor amarelada, que se come em mingaus,<br />

e é bastante alimentícia. É, porém, um produto<br />

de insignificante rendimento, sendo necessária uma<br />

grande porção de raízes para obter-se uma xícara de<br />

goma. O pau-pedra é um veneno enérgico, que ataca<br />

rapidamente a vista. Dizem os sertanejos que, não<br />

sendo lavado em nove águas, nem menos uma, o indivíduo<br />

que o come fica em poucas horas cego.<br />

Imbu: Ou umbu, umbuzeiro (anacardiácea Spondus tuberosa, Arr.<br />

Cam.). Árvore extraordinariamente resistente às secas e que mesmo<br />

depois de três anos, não conseguem fazê-la perder o viço e a<br />

frescura. Dá excelentes frutos, principalmente consumidos em<br />

forma de cambica 193 preparada em leite (imbuzada); mas é a batata,<br />

encontrada nas raízes finais, quase à flor da terra, que é utilizada,<br />

nas secas, como alimentação, apesar de pouco nutritiva. Descasca-se<br />

a batata, corta-se em aparas, e põe-se a secar ao sol. Quando<br />

seco, o produto é pisado ou ralado, transformado em farinha, e<br />

consumido em forma de pirão ou de sopa. O consumo prolongado<br />

da farinha de umbuzeiro produz inchação geral do indivíduo.<br />

Contina: Contínua (subst.), idéia fixa, serrazina.<br />

Ron-com-com: O passado, o tempo da onça, do ronca, dos<br />

Afonsinhos. 194<br />

Afeirar: Comprar ou vender, nas feiras. Em Cabaceiras, cidade dos<br />

Cariris paraibanos, registrou o Autor, em 1941, curiosíssima variante,<br />

agravar, no sentido expresso de fazer a feira: “Fulano, você já agravou?”.<br />

Quilotado: Ou aquilotado. 195 Repleto, upando. A expressão é<br />

usada, sempre, em acepção aumentativa.<br />

447


448<br />

Notas<br />

1 Ludwig Gumplowicz (Cracóvia/Polônia, 09.03.1838- Graz/Áustria,<br />

19.08.1909). Sociólogo polonês.<br />

2 Thomas Hobbes (Westport, Malmesbury/Reino Unido, 05.04.1588-<br />

Hardwick Hall/Reino Unido, 04.12.1679). Matemático, teórico político,<br />

e filósofo inglês, autor de Leviatã (1651) e Do cidadão (1651).<br />

3 Ver nota de OM.<br />

4 Idem, idem.<br />

5 Residência particular do então governador Sílvio Piza Pedroza. Deixando<br />

o governo, e mudando-se para o Rio de Janeiro, Sílvio Pedroza vendeu o<br />

imóvel, ainda existente, na Av. Hermes da Fonseca, ao Sr. Manoel de<br />

Medeiros Brito, conselheiro aposentado do TCE, e, anos depois, secretário<br />

de Segurança do Estado.<br />

6 Ver nota de OM.<br />

7 Do verbo judiar: atormentar, maltratar<br />

8 Dispara, estala, em seqüência, pipoca continuadamente.<br />

9 Em quantidade, muito (como abelhas).<br />

10 Ninho de vespa (Brachygastra lecheguana).<br />

11 De debulhar, explicar, dar conta.<br />

12 Em entrevista publicada no jornal O Poti, em 30.06.1985, Giocondo Dias,<br />

um dos comandantes do Levante de 1935, em Natal, e, depois, sucessor<br />

de Prestes na Secretaria-Geral do PCB, confirmou que o dinheiro retirado<br />

do Banco do Brasil foi repartido entre “participantes do governo revolucionário”,<br />

o que teria sido um “erro” do movimento.<br />

13 Ver nota de OM.<br />

14 Idem, idem.<br />

15 Boneco feito à imagem do apóstolo traidor ou de pessoa (geralmente<br />

político de terno e gravata) que cai na antipatia do povo, malhado e queimado<br />

no Sábado de Aleluia.<br />

16 Ver nota de OM.<br />

17 Abaixado, corcunda.<br />

18 Ver nota de OM.


19 Idem, idem.<br />

20 Corrutela de Ford (o caminhão).<br />

21 Ver nota de OM.<br />

22 Idem, idem.<br />

23 Idem.<br />

24 Coroa dos clérigos; corte redondo dos cabelos no topo da cabeça dos<br />

eclesiásticos, hoje em desuso; cercilho, tonsura. Cerimônia religiosa em<br />

que o bispo dá um corte no cabelo do ordenando ao conferir-lhe o primeiro<br />

grau do clericato, chamada também prima tonsura.<br />

25 Ver nota de OM.<br />

26 Idem, idem.<br />

27 Idem.<br />

28 Idem.<br />

29 Idem.<br />

30 Ver nota de OM.<br />

31 Ver nota de OM.<br />

32 Idem, idem.<br />

33 Idem.<br />

34 Idem.<br />

35 Ver nota de OM.<br />

36 Fute. Diabo, o demônio.<br />

37 O timbó, o veneno.<br />

38 Estado de penúria, de miséria; liso, duro, sem dinheiro.<br />

39 Ver nota de OM.<br />

40 Idem.<br />

41 Idem.<br />

42 Idem.<br />

43 Idem.<br />

44 Idem.<br />

45 Larápio, ladrão; ratazana.<br />

46 Embarbelou. Ver nota de OM.<br />

449


450<br />

47 Ver nota de OM.<br />

48 Idem, idem.<br />

49 Trocar, mudar, permutar; cambiar, vender.<br />

50 Ver nota de OM.<br />

51 Idem.<br />

52 Borzeguim, calçado fino, delicado, caro.<br />

53 Astúcia; esperteza, manha, sagacidade.<br />

54 Ver nota de OM.<br />

55 Xenxém. Antiga moeda de cobre, de dez réis, que circulou no Brasil<br />

algum tempo. “Aquilo era uma peste que não valia um xenxém” (Viriato<br />

Correia, Contos do sertão).<br />

56 Muito amigo, muito ligado.<br />

57 Ver nota de OM.<br />

58 Idem, idem.<br />

59 Nanja. Não; nunca; de maneira alguma.<br />

60 Ver nota de OM.<br />

61 Idem, idem.<br />

62 Mina Xiquexique, em Acari/RN. Nota de OM, retro, dando conta da<br />

presença de urânio no RN.<br />

63 Tingui. Ou timbó. O termo timbó pode ser a designação comum a várias<br />

plantas das famílias das leguminosas e das sapindáceas, geralmente as com<br />

casca e/ou raízes que possuem uma seiva tóxica, e que por isso são utilizadas<br />

para tinguijar (regionalismo usado no Norte e Nordeste para o ato<br />

de envenenar peixes jogando timbó ou tingui na água).<br />

64 Projétil acondicionado em carretéis (metralhadoras).<br />

65 Ver nota de OM.<br />

66 Idem.<br />

67 De carcamano, valendo estrangeiro, sujeito sabido, vendedor ambulante;<br />

adventício, galego, gringo.<br />

68 Ver nota de OM.<br />

69 Idem, idem.<br />

70 Requerido. Solicitado, exigido, pedido, requerido.


71 Carrança. Diz-se de ou de pessoa apegada ao passado, às tradições.<br />

72 Frucudo. Nota de OM.<br />

73 Quiri e Jucá. Idem.<br />

74 Ponta-limpa. Faceiro, frajola, ajanotado, empetecado.<br />

75 Eleva-se ou sobe; trepa; galga.<br />

76 Talhadão. Passagem estreita de rio entre paredes íngremes; talhado.<br />

77 Cadelo (é). Cachorro, cria de cão; cão novo e pequeno; filhote de outros<br />

animais que lembram o cão (geralmente mamíferos carnívoros), como<br />

lobo, onça, leão, hiena.<br />

78 Ver nota de OM.<br />

79 Idem, idem.<br />

80 Ver nota de OM.<br />

81 Canrobert Pereira da Costa (Rio de Janeiro/RJ, 18.10.1895-<br />

31.10.1955). Marechal (post mortem) do Exército, general da Artilharia,<br />

foi ministro da Guerra. Homem da sua época. Nos bastidores do poder foi<br />

mais político do que militar.<br />

82 Artur da Silva Bernardes (Viçosa/MG, 08.08.1875-Rio de Janeiro/<br />

RJ, 23.03.1955). Presidente do Brasil entre 15 de novembro de 1922 e<br />

15 de novembro de 1926.<br />

83 Virgolino Ferreira da Silva (Serra Talhada/PE, 07.07.1897-Poço Redondo/SE,<br />

28/07/1938), ou Virgulino. O bandido-cangaceiro Lampião<br />

ou Lampeão. Ver nota de OM.<br />

84 Francisco Solano López (Assunção/Paraguai, 24.07.1827-Cerro-<br />

Corá/Paraguai, 01.03.1870). Militar paraguaio, ditador-presidente de seu<br />

país de 1862 à data de sua morte. Figura controversa, provocou a Guerra<br />

do Paraguai (1864-1870).<br />

85 O grosso da tropa do Exército imperial constituíra-se, inicialmente, apenas<br />

com o efetivo oriundo das milícias da Guarda Nacional do Sul e Sudeste.<br />

Mais adiante, utilizaria o recrutamento. Este, no primeiro ano, quando<br />

a guerra era vista como uma “cruzada patriótica”, era voluntário. Depois, o<br />

caldo sangrento engrossou e, de fato, os escravos, os índios, os pobres, os<br />

migrantes, mendigos e vadios tornaram-se os principais alvos do alistamento.<br />

O recrutamento, forçado, atingiu os membros do partido opositor<br />

ao que estava no poder em cada província, os contrários à ordem política<br />

451


452<br />

e social vigente, os considerados desordeiros, perigosos, os presos e condenados<br />

por crimes, e principalmente a população pobre, os habitantes<br />

das cidades do interior, das zonas rurais. Para fugir à carnificina em terras<br />

longínquas, a esses “voluntários” sertanejos restavam a caatinga e as grotas,<br />

o “meio do mundo” – como bem anotou OM.<br />

86 Ver nota de OM.<br />

87 Idem, idem.<br />

88 Idem, idem.<br />

89 Idem.<br />

90 Idem.<br />

91 Zumbindo (ou zunindo), fazendo ruído ao esvoaçar (insetos).<br />

92 Arco celeste. Arco-íris, arco-da-chuva, olho-de-boi, conhecido em Portugal<br />

e no sul do Brasil como arco-da-velha. Sobre o arco-íris, Luis da<br />

Câmara Cascudo (<strong>In</strong>formação de história e etnografia): “O sertanejo não<br />

gosta do arco-íris porque furta água. No litoral se distrai bebendo água nos<br />

rios, lagoas, fontes. Não bebe água do mar como as nuvens. Ao princípio<br />

da sucção é fino, transparente, incolor. Depois fica largo, colorido, radioso.<br />

Farto, desaparece.”<br />

93 Ver nota de OM.<br />

94 Ver notas de OM.<br />

95 Averiguação, indagação, inquirição.<br />

96 Mariano Coelho (Assu/RN, 09.06.1899- Natal/RN, 09.10.1985).<br />

Médico, professor, poeta e político. Foi deputado estadual e membro da<br />

ANL.<br />

97 Corta, opera (paciente) através de cirurgia.<br />

98 Parturiente.<br />

99 Faca de lâmina muito aguçada, muito boa, de confiança. No caso, o bisturi<br />

do cirurgião.<br />

100 Nutrido, gordo, forte, robusto.<br />

101 Anda vestido luxuosamente.<br />

102 Ver nota de OM.<br />

103 Idem, idem.


104 Idem.<br />

105 “Mas a vereda dos justos é como a luz da aurora que vai brilhando mais e<br />

mais até ser dia perfeito.” (Provérbios 4.18)<br />

106 Ver notas de OM.<br />

107 Ceroula, cueca.<br />

108 Joaquim Teixeira de Moura. Referência velada, ferina, ao coronel da<br />

Polícia Militar do RN. Durante o relativamente curto período do governo<br />

(1928-1930) de Juvenal Lamartine de Faria (1874-1956), esse oficial<br />

notabilizou-se pela violenta repressão aos correligionários – e à própria<br />

família – do futuro presidente Café Filho, inimigo político do governador.<br />

Ficou célebre, quando tenente, em 1928, pelo frio assassinato de um<br />

certo Chico Pereira, acusado de roubo no interior do Estado e constituinte<br />

de João Café – que era advogado provisionado. Itamar de Souza, em A<br />

República Velha no Rio Grande do Norte, conta, com detalhes, a terrível façanha<br />

do militar. Outro escritor, Ivanaldo Lopes – por sinal, filho de um<br />

outro coronel –, no livro Oficiais da PM (1980), retrata Joaquim de<br />

Moura como “quase perverso por obrigação do ofício”, revelando que<br />

“[...] às vezes, quando o sacrifício era próximo a núcleos residenciais,<br />

sepultava o bandido em cova rasa, ainda vivo, mas inerte, mantendo apenas<br />

a respiração ofegante de moribundo. Tanto assim era, que, em muitos<br />

casos testemunhados por transeuntes, as reações da vida faziam surgir do<br />

túmulo um braço ou uma perna, denunciador de alguém ali sepultado.”<br />

109 Ver nota de OM.<br />

110 OM, nesta e na sextilha anterior, critica João Café Filho – que praticamente<br />

nada fez pelos amigos da primeira hora, esquecendo-os quando assumiu<br />

o poder. <strong>Othoniel</strong> foi um dos que se desiludiram das promessas do<br />

político.<br />

111 Ver nota de OM.<br />

112 Chiste. Dito espirituoso, gracejo; facécia, pilhéria.<br />

113 Ver nota de OM, no Canto 13.<br />

114 Ver nota de OM.<br />

115 Idem.<br />

116 Idem.<br />

117 Gegê. Apelido carinhoso usado pelos partidários de Getúlio Vargas. Apareceu<br />

logo após a revolução de 1930, no título de uma marchinha de<br />

453


454<br />

carnaval de Lamartine Babo, cantada por Almirante e o Bando dos Tangarás,<br />

gravada sob o selo Parlophon, no Rio de Janeiro.<br />

118 Ver nota de OM.<br />

119 Ademar Pereira de Barros (Piracicaba/SP, 22.04.1901-Paris/França,<br />

17.03.1969). Médico, duas vezes governador de São Paulo, fundador<br />

do PSP, deputado federal. Foi um dos mais influentes líderes civis do<br />

golpe de 1964. Foi cassado, por corrupção, pela própria “revolução redentora”,<br />

morrendo no sofisticado e rico exílio na “Cidade Luz” – fazendo<br />

jus ao aforismo anônimo: “Dinheiro não traz felicidade, mas ajuda a sofrer<br />

em Paris!”<br />

120 Danton Coelho (Porto Alegre/RS, 03.11.1906-Rio de Janeiro/RJ,<br />

19.04.1961) Político brasileiro, foi um dos principais articuladores da<br />

aliança PTB-PSP, a chamada Frente Populista, conseguindo que o nome<br />

de João Café Filho fosse aceito pelos trabalhistas para integrar a chapa<br />

como vice-presidente de Vargas.<br />

121 Nome da goma-elástica extraída de várias árvores do gênero Hévea. Milhares<br />

de nordestinos, desde 1877 – principalmente no Acre – aventuraram-se<br />

na Amazônia, em busca de fortuna. Poucos voltaram com dinheiro<br />

no bolso. A maioria sucumbiu ou por lá ficou.<br />

122 Uirapuru, irapuru, guirapuru, arapuru, irapurá, tangará, rendeira, pássarode-fandango,<br />

realejo. Diz a lenda que o pássaro é mágico, dando sorte,<br />

fortuna, felicidade.<br />

123 Pança, barriga.<br />

124 Ver nota de OM.<br />

125 Xiquexique. Planta (Pilocereus gounellei) da família das cactáceas, prostrada<br />

ou ramificada, revestida de espinhos e com frutos globosos; alastrado,<br />

xinane, xiquexique-do-sertão;<br />

126 Ver nota de OM.<br />

127 Idem, idem.<br />

128 Idem.<br />

129 Chulice, grosseria, chularia.<br />

130 Ver nota de OM.<br />

131 Ver nota de OM.


132 Designação popular de uma doença caracterizada por forte dor na boca do<br />

estômago, nas costas e pernas, além de um cansaço anormal que acomete<br />

o indivíduo, ao submeter-se a esforço físico. Também referida como<br />

“espinguela caída”, na Bahia, e “peito aberto”, em Pernambuco, ou ainda<br />

como “arca caída”. Segundo Chermont de Miranda, o conceito de espinhela<br />

caída existia entre os ameríndios, antes da chegada de Colombo: espinhela<br />

caía – pissum hoá – e os pagés a levantavam – pissum upi. Para se saber se a<br />

espinhela está caída, a rezadeira tira a “medida” do paciente. Com um fio de<br />

algodão ou uma toalha, mede o comprimento desde a ponta do dedinho à<br />

ponta do cotovelo ou o tamanho do braço em posição vertical e depois,<br />

de um ombro ao outro. Se coincidirem as medidas, a espinhela está normal.<br />

Se não, está caída. Constatada a doença, o tratamento consiste primeiro<br />

no benzimento e depois na utilização das “garrafadas” de gemadas. O<br />

benzedor é importante, mas a própria pessoa pode se benzer, se tiver fé e<br />

fizer uso das garrafadas.<br />

133 Pleuriz. Ou pleurisia. São derrames pleurais, resultados de processos<br />

inflamatórios infecciosos ou não. A maioria das infecções pulmonares<br />

pode provocar derrame pleural.<br />

134 Do verbo repugnar – não aceitar, recusar; causar repugnância, asco; inspirar<br />

antipatia ou aversão.<br />

135 Engulha. Sente engulho, náusea; ânsia de vômito, repugnância, asco, enjôo.<br />

136 Quizila. Importuna, aborrece, zanga.<br />

137 Imbono. Tumor, intumescência, inchação.<br />

138 Santo Lenho. Crendice sertaneja, herdada dos portugueses, alusiva a<br />

uma milagrosa (ou milagreira) relíquia da religião católica: um pequeno<br />

pedaço de madeira que se crê ter pertencido à cruz de Cristo. Em Portugal,<br />

uma dessas relíquias de grande prestígio é a do “Santo Lenho de<br />

Moreira”, encastoado em “esplêndido relicário representando uma cruz,<br />

em ouro e pedras preciosas”. Em 1085, o testamento de um tal de Gonçalo<br />

Guterres já dava notícia da sua chegada à Lusitânia, vinda do Oriente.<br />

Nas Memórias Paroquiais, de 1758, o então pároco de Moreira atribui à<br />

influência do milagroso pedaço de madeira o fato de o Mosteiro e as suas<br />

redondezas não terem sofrido dano algum no terremoto de 1755.<br />

139 Família Montenegro; clã de fazendeiros, políticos e profissionais liberais<br />

do Vale do Assu/RN.<br />

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456<br />

140 Recaída de doenças.<br />

141 Eleizon Cardoso. Médico epidemiologista do antigo Serviço Nacional<br />

da Malária no Rio Grande do Norte. OM trabalhou sob suas ordens, no<br />

Assu, em 1939-1940.<br />

142 Revência. Vale situado abaixo da barragem dos açudes e inundado pelas<br />

águas daqueles.<br />

143 Salobro. Água de salinidade inferior à das águas oceânicas e que contém<br />

em dissolução alguns sais ou substâncias que a fazem desagradável.<br />

144 Salitre.Nitrato de potássio; nitro.<br />

145 Sodoma. A cidade destruída por Deus, com fogo e enxofre.<br />

146 <strong>In</strong>haré. Rio no Município de Santa Cruz/RN.<br />

147 À locé. Com abastança.<br />

148 Ver nota de OM.<br />

149 Queiro. Dente de siso.<br />

150 Ver nota de OM.<br />

151 Gargalheiras. Açude Marechal Dutra. Barragem no rio Acauã (bacia<br />

Piranhas-Assu), em Acari/RN, com bacia hidráulica de 780 hectares, com<br />

capacidade máxima de armazenamento de 40 milhões de metros cúbicos.<br />

152 Tecidos de algodão.<br />

153 Cachopando. Brincando, zombando, debochando, mangando.<br />

154 Açude Gargalheiras, planejado no início do século XX, por “falta de<br />

verbas”, foi somente inaugurado em 1959, anos depois da publicação da<br />

primeira edição de Sertão de espinho e de flor (1952).<br />

155 No início dos anos 1960, quando Agnelo Alves era prefeito da Capital,<br />

mandou derrubar todas as árvores existentes na praça Pedro Velho e nas<br />

ruas Floriano Peixoto, Deodoro, Felipe Camarão, Princesa Isabel, Rio<br />

Branco, Largo do Mercado, entre outras ruas e avenidas todas bastante<br />

arborizadas com ficus benjamina. Natal, à época, era uma das cidades mais<br />

arborizadas do Brasil.<br />

156 João Ribeiro da Veiga Pessoa Júnior (João Pessoa/PB, 09.08.1892-<br />

João Pessoa/PB, 13.02.1975). Escritor, charadista, historiador e jornalista.<br />

Pertenceu à Academia Paraibana de Letras (sócio fundador) e ao <strong>In</strong>stituto<br />

Histórico da Paraíba.


157 A Hidra era uma serpente gigantesca e de muitas cabeças, que aterrorizava<br />

a região de Lerna, na Argólida. Filha de Equidna e Tífon, tinha por irmãos<br />

Cérbero, o cão do Hades; Ortro, o cão monstruoso de Gérion, e a Quimera.<br />

A picada da Hidra era extremamente venenosa, e contra o veneno<br />

não existia antídoto. Quando uma cabeça era cortada, outra nascia em seu<br />

lugar, e, além disso, uma delas era imortal. Venceu-a Héracles, num combate,<br />

com o auxílio do sobrinho Iolau, filho de seu meio-irmão Íficles.<br />

Hidra e o grande caranguejo – seu aliado na luta – foram, depois, colocados<br />

entre as estrelas, formando duas constelações vizinhas, respectivamente<br />

Hydra e Cancer. Hydra é a maior das 88 constelações conhecidas<br />

atualmente, e já estava presente no catálogo estelar de Ptolomeu.<br />

158 Braiar (o cavalo): mudar de andadura.<br />

159 Mula com um sinal na testa, tida como coiceira.<br />

160 Aluízio Alves (Angicos/RN, 11.08.1921-Natal/RN, 06.05.2006).Político,<br />

advogado e jornalista norte-rio-grandense, decano do poderoso – e<br />

rico – clã dos Alves, contrapartida política da família Maia (leia-se, também,<br />

Mariz e outros menos votados) num embate que há anos dominaa<br />

cena política potiguar, em especial a partir dos anos 1980. Foi deputado<br />

federal, governador do Estado e ministro (da Administração) dos governos<br />

de José Sarney e Itamar Franco. Em 7 de fevereiro de 1969, exercendo<br />

um dos mandatos de deputado, foi cassado pela ditadura militar, por<br />

corrupção. Como OM, foi membro da Academia Norte-Rio-Grandense<br />

de Letras. Tomou posse, ele; <strong>Othoniel</strong>, nunca pisou os pés no silogeu.<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> o conhecia desde os primeiros anos da década de 1930,<br />

quando ainda adolescente (aos doze, treze anos de idade) servia como<br />

secretário mirim do ex-governador José Augusto Bezerra de Medeiros e<br />

do jornalista e ex-senador Eloy de Souza. Redator, subgerente e mais<br />

tarde secretário do jornal A República, OM, nessa época, era procurado<br />

pelo lampinho Aluízio para entregar correspondências e notas, do grupo<br />

político a que servia – por sinal, da oposição –, para publicação no jornal<br />

oficial. Numa de suas idas ao velho casarão do início da rua Jovino Barreto,<br />

funcionários das oficinas do jornal, gráficos, com ele se desentenderam,<br />

submetendo-o a um "corredor polonês" nas escadarias. Chegou à mesa<br />

de OM chorando, a face avermelhada e a cabeça cheia de galos pelos<br />

tálitros recebidos. O poeta, imediatamente, tomou-lhe as dores e, de bengala<br />

em punho, desceu para tomar satisfações com os agressores. Não os<br />

457


458<br />

encontrando mais, puniu administrativamente pelos menos três deles,<br />

apontados por Aluízio – o que lhe acarretou inimizades para o resto da<br />

vida. Pelo menos dois desses funcionários – suspeitos, também, pelo<br />

desvio de chumbo das linotipos do jornal –, em 1936, vingar-se-iam de<br />

OM, testemunhando no processo do Tribunal de Segurança que o condenou<br />

pela redação do jornal da Revolta de 35 – A Liberdade. Um deles<br />

chegou ao cúmulo de declarar, nos autos, que <strong>Othoniel</strong> fora visto, "na Av.<br />

Tavares de Lyra, fardado de capitão, dirigindo o fogo!"<br />

Como ver-se-á, daqui por diante, pari passu, não começara bem – para o<br />

poeta, sublinhe-se! – a "amizade" com o então perrepista júnior, aprendiz<br />

de política.<br />

Nos primeiros anos da década de 40, o futuro oligarca, com pouco mais<br />

de 20 anos, inteligentíssimo e pobre, sempre metido nas lides partidárias,<br />

chefiava o Serviço Estadual de Reeducação e Assistência Social (SERAS),<br />

órgão mantenedor do Abrigo Melo Matos, destinado ao amparo de menores<br />

abandonados (localizado na vizinhança do Estádio Juvenal Lamartine,<br />

no Tirol). Procurou <strong>Othoniel</strong> – a quem visitava, regularmente, e que,<br />

nessa quadra, trabalhava com os americanos, em "Parnamirim Field" –,<br />

para, sem nenhuma remuneração, nos dias de sábados e domingos, ajudar<br />

na formação intelectual dos educandos, fazendo palestras. Atendendo,<br />

prazerosamente, à convocação, um dos adolescentes internados, entre<br />

muitos, chamou a atenção de OM pela inteligência e pelo comportamento<br />

correto. Era Benedito Maia, um jovem paraibano, filho de gente importante<br />

do vizinho Estado, abandonado ao "Deus dará", em terra estranha.<br />

Benedito, com a autorização do próprio Aluízio, passava os finais de semana<br />

na residência do poeta, a quem se afeiçoara, agradecido. Anos depois, na<br />

sua terra, seria jornalista importante, escritor, autor de muitos livros.<br />

Desde 1938, quando morava e estudava no Ceará – para onde foi mandado<br />

pelo pai, praticamente expulso tanto do Atheneu quanto do Colégio<br />

Marista, "por politicagem", segundo um professor, irmão marista (Aluízio<br />

Alves, p. 2-3 do livro O que eu não esqueci – Reminiscências Políticas, 2001,<br />

Editora Léo Christiano Editorial Ltda.) –, o futuro governador havia fundado,<br />

juntamente com José Augusto, em Fortaleza, uma Biblioteca de<br />

História Norte-Rio-Grandense.<br />

Na 2ª. edição de Angicos, publicada em 1977, pela Fundação José Augusto,<br />

Aluízio dá conta da linha de editoração do projeto, dando ênfase muito


especial aos autores, preferencialmente políticos, chegando a propor a<br />

publicação de "biografias de velhos chefes" (coronéis) da hinterlândia<br />

papa-jerimum. Em oitavo – e último lugar da lista –, "Livros de poetas,<br />

inéditos, ou já esgotados, e outros selecionados e encomendados".<br />

O presidente dessa biblioteca/editora era José Augusto Bezerra de<br />

Medeiros; Aluízio Alves ficava "com a responsabilidade administrativa e<br />

financeira"; Antônio Soares Filho e Vingt-un Rosado eram incumbidos da<br />

seleção dos livros.<br />

No livro O que eu não esqueci, rememora o zíngaro angicano que, partindo<br />

o seu guru político (José Augusto) de Fortaleza para o Rio de Janeiro,<br />

voltou a Natal, resolvendo, ipsis litteris, "cuidar da Biblioteca, iniciando as<br />

assinaturas, que chegaram a quase 1.500, garantindo capital de giro para os<br />

primeiros contratos". Mais adiante, sem citar títulos e/ou autores, assegura<br />

a publicação de sete livros, mas não os enumera.<br />

Logo sete? O sete das Sete Virtudes, o sete dos Sete Pecados Capitais, o<br />

sete das Sete Cabeças da Hidra? Errou, redondamente, na conta, Aluízio<br />

Alves. O Dicionário Biobibliográfico do Rio Grande do Norte, de Wandyr Villar<br />

(em preparo), anota, apenas, cinco volumes publicados pela Biblioteca de<br />

História Norte-Rio-Grandense:<br />

Vol.1 – Famílias seridoenses. Irmãos Pongetti Editores: Rio de Janeiro,<br />

1940. Autor: José Augusto Bezerra de Medeiros;<br />

Vol.2 – Angicos. Irmãos Pongetti Editores: Rio de Janeiro, 1940.<br />

Autor: Aluízio Alves.<br />

Vol.3 – Mossoró. Irmãos Pongetti Editores: Rio de Janeiro, 1940.<br />

Autor: Jerônimo Vingt-Un Rosado Maia.<br />

Vol.4 – Homens de Outr'ora. Irmãos Pongetti Editores: Rio de Janeiro,<br />

1941. Autor: Manoel Gomes de Medeiros Dantas.<br />

Vol.5 – História de Nísia Floresta. Irmãos Pongetti Editores: Rio de<br />

Janeiro, 1941. Autor: Adauto Miranda Raposo da Câmara<br />

Sobre o excelente Angicos, logo após o seu aparecimento, e durante muito<br />

tempo, muita gente falou mal do livro. <strong>In</strong>clusive alguns impávidos medalhões<br />

da intelligentzia paroquiana, dizendo-o um "plágio" de Aluízio –<br />

que teria recolhido, em Angicos, e usado, indevidamente, preciosas anotações<br />

do mestre Henrique Castriciano, redigidas durante os vários retiros<br />

que lá fez, em busca de cura para a tuberculose. Sabia-se que o boníssimo<br />

Henrique era, realmente, descuidado com livros e papéis, esquecido, um<br />

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460<br />

verdadeiro poeta – ligando pouco para coisas materiais. Essa particularidade<br />

deve ter influído nas elucubrações dos detratores do futuro deputado<br />

udenista. OM, ao contrário desses tantos, sempre gabou o autor, convencido<br />

do seu talento precoce, da sua inteligência – citando-o em Sertão<br />

de espinho e de flor e com ele trocando informações, prestigiando-o,<br />

pois, na nota à palavra Logradouro: "Aluízio Alves, autor de Angicos, geografia,<br />

etnografia e história do seu município (Pongetti, 1ª. edição, 1940),<br />

afirmou pessoalmente ao autor destas notas que, ali, a expressão significa,<br />

também, bebedouro de gado."<br />

O futuro ministro do governo de José Ribamar – o eterno Sarney de mil<br />

estripulias – arrematando, à sua maneira, o assunto, diz que "até 1945" –<br />

quando passou a se ocupar da candidatura à Câmara dos Deputados, apesar<br />

dos "sete livros publicados" e dos "recursos em caixa", muito ocupado,<br />

e, depois, já eleito à Constituinte, residindo no Rio de Janeiro, os seus<br />

"companheiros da Biblioteca não puderam manter o mesmo ritmo" por<br />

ele antes imprimido. "Tivemos de encerrar suas atividades" – finalizou,<br />

astutamente, impoluto.<br />

E por que Aluízio, o astuto, desde 1949 (ver adiante, texto de Antônio<br />

Pinto de Medeiros) – à exceção de uma única referência, num discurso<br />

em Palácio, em 1961 –, nenhuma alusão mais publicou, deu notícia, contou,<br />

rabiscou, seja lá o que fosse, publicamente, sobre Sertão de espinho e de<br />

flor, de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>? Logo ele que, nesses assuntos de promessas,<br />

sempre preferiu a prédica à prática, numas coisas sim, noutras nunca.<br />

Porque prometeu e não cumpriu! Porque traiu a estima do Poeta, prevaricou,<br />

torceu, mentiu, desrespeitou, ofendeu e, acima de tudo, como era<br />

do seu conhecidíssimo mau costume, perseguiu o autor deste livro, obrigando-o<br />

– para não se dobrar, pois homem de vergonha sempre foi – já<br />

doente e alquebrado, a se auto-exilar no Rio de Janeiro, saudoso da terra<br />

e dos poucos amigos, lá se findando, mas de cabeça erguida e espinha<br />

dorsal ereta. E ressalte-se que o poeta não era funcionário estadual, passível<br />

de transferência para São Miguel ou Pau dos Ferros. Mesmo depois de<br />

morto <strong>Othoniel</strong> – veremos adiante –, o milionário empresário Aluízio<br />

Alves, já septuagenário, continuou a espicaçar, como um corvo, a memória<br />

do esteta do Gérmen, do ensaísta de Ferreira Itajubá – O Drama da Vida de<br />

Província.<br />

A verdade, a mais límpida verdade, é que, em 1946, o futuro maior empresário<br />

das comunicações na Potiguarânia, acompanhado do escritor


Manoel Rodrigues de Melo, procurou <strong>Othoniel</strong> para pedir-lhe os originais<br />

de Sertão de espinho e de flor para publicação. A iniciativa foi dele, do<br />

deputado. OM nunca lhe pedira coisa nenhuma. E Aluízio nada lhe devia,<br />

a não ser os votos para a Constituinte, dele, poeta, e da sua Maria da<br />

Conceição, a companheira de todas as horas.<br />

Em poucos dias, o prefácio, de Câmara Cascudo, estava pronto. Faltavam<br />

algumas notas aos Cantos do longo poema. Sem máquina de escrever em<br />

casa, o autor da "Praieira" desdobrava-se nos dois expedientes de<br />

"Parnamirim Field", gastando papel e carbono dos americanos, para atender,<br />

exultante, o pedido do "amigo" parlamentar. Revisões e mais revisões,<br />

feitas à noite, na casa modesta da rua Felipe Camarão, muito café, vigília de<br />

Maria, muito cigarro Iolanda – e "o sangue e o suor do Pensamento!" (Ver o<br />

último terceto do soneto Os Burros, em Desenho animado, neste volume).<br />

Enfim, satisfeito, entregou os originais a Aluízio Alves, em mãos.<br />

Manoel Rodrigues espalhou a notícia. Congratulações, apertos de mão,<br />

batidinhas nas costas do Poeta. Afinal, o livro – prometera solenemente<br />

Aluízio – seria editado pela José Olympio, coisa chique. A Casa José<br />

Olympio era uma das principais editoras do Brasil, lançando títulos e<br />

autores que fizeram a história da nossa literatura. Lá ganharam abrangência<br />

nacional Jorge Amado, Sérgio Buarque de Holanda, Rubem Braga, Guilherme<br />

Figueiredo, Gilberto Freire e quase todos os clássicos brasileiros.<br />

E as ilustrações? Ah! Os desenhos seriam da lavra de Luiz Jardim, artista<br />

de – nada mais, nada menos – "renome internacional". Nos cafés da Tavares<br />

de Lira e da Doutor Barata, de Zé Areia ao Dr. Eutiquiano Reis, a novidade<br />

era comentada, com largo ufanismo papa-jerimum. OM, modesto, calado,<br />

arredio, sempre ao largo das patotas e das igrejinhas dos cafés, esperava,<br />

ansioso e confiante. O último título que publicara (Jardim tropical – ver<br />

neste volume) datava de 1923, vinte e dois anos decorridos.<br />

Aluízio Alves, recebido o livro, meses depois, desapareceu do mapa, tomou<br />

chá de sumiço! De vez em quando, um ano sim, outro não, mandava<br />

recados, mensagens. Nada por escrito, comprometedor, uma carta, um<br />

cartão, um bilhete sequer. Por mensageiros, mandava dizer que "a coisa<br />

estava indo, caminhando". Caminhando e indo coisa nenhuma, nada,<br />

bulhufas, brisa.<br />

TINHA PERDIDO O LIVRO, soube-se, muito depois! E, já importante,<br />

no Rio, reeleito, brilhando na Câmara e na imprensa carioca, não quis, não<br />

461


462<br />

teve a humildade de, nunca, confessar o pecado – o que teria evitado, no<br />

mínimo, a redação destas notas. Não se curvou, não se dobrou. Nunca<br />

deplorou essa falha, com <strong>Othoniel</strong> ou com ninguém.<br />

Entretanto, penitenciou-se pelo desaparecimento de outra "obra", esta<br />

de cunho político, certamente, para ele, muito mais substanciosa do que<br />

a de um poeta. Senão vejamos, ipsis litteris:" Deploro, mais uma vez, a<br />

minha desorganização pessoal: Marlene Otto, adversária ilustre que nos<br />

apoiou, colaborando com sugestões inteligentes, escreveu um livro sobre<br />

a campanha e me solicitou o prefácio, que eu faria com o maior prazer. Na<br />

Editora Nosso Tempo, que criamos para sobreviver, e a Tribuna, proibida de<br />

comprar papel no Nordeste, nos primeiros meses de nossa cassação, tivemos<br />

de procurar um meio de vida, após 24 anos de mandato de deputado<br />

federal. Terminamos perdendo o original. Tinha esperança de que ela tivesse<br />

guardado cópia. Não o fizera e, por minha culpa, a História do Rio<br />

Grande do Norte deixou de incorporar um documento minucioso e significativo<br />

daqueles quatro dias." (obra citada, p. 209-210).<br />

A <strong>Othoniel</strong> ele sequer pediu cópia. Mais valiam mexericos e arengas dos<br />

bastidores de campanhas políticas das "senadoras" mossoroenses que as<br />

magistrais sextilhas de um grande poeta sobre o sertão, envolvendo, nas<br />

"Notas", minuciosos estudos de sociologia, etnografia, folclore, psicologia,<br />

botânica, mitologia, geografia, história e antropologia.<br />

Em 1949, quatro anos depois da entrega dos originais, OM, ainda, coitado,<br />

"esperançoso", pediu a Antônio Pinto de Medeiros, seu admirador, que<br />

tinha uma coluna literária no A República, que procurasse ouvir o deputado.<br />

Eis o resultado, na coluna do autor do Um Poeta à Toa e Rio do Vento: "Deverá<br />

entrar em composição, neste mês de março, na Editora José Olympio, o<br />

livro de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, Sertão de espinho e de flor, prefaciado pelo<br />

eminente etnógrafo Câmara Cascudo e com desenhos de Luiz Jardim, um<br />

dos mais festejados ilustradores brasileiros, de fama internacional. Na próxima<br />

edição dominical, publicaremos alguns trechos do prefácio, uma<br />

linda página do mestre de Antologia do Folclore Brasileiro. Sertão de espinho e<br />

de flor, que é um poema septissilábico, em sextilhas, tem 16 Cantos, e fixa<br />

aspectos do panorama físico e social dos sertões nordestinos, especialmente<br />

do Seridó. A editar-se sob os auspícios da Biblioteca de História<br />

Norte-Rio-Grandense, associação cultural fundada há anos no Estado,<br />

por iniciativa do atual deputado Aluízio Alves, o livro de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>


será o 3º volume dessa bela coleção de História e Folclore, anteriormente<br />

já integrada por obras de outros escritores potiguares, entre eles o próprio<br />

sr. Aluízio Alves, com Angicos, a mais bela e a mais completa monografia<br />

da importante série." (A República, 06 de março de 1949)<br />

Foi o próprio Antônio Pinto que, em 1952, quando diretor do Departamento<br />

de Imprensa, sob o governo de Sílvio Pedroza, tomou a iniciativa de<br />

publicar uma 1ª. edição deste livro. Por falta de verba, o volume foi impresso<br />

em papel de imprensa.<br />

O tempo passou. OM, entre 1950/1951, morou no Rio de Janeiro, a<br />

chamado de Café Filho. Desconfiado, não procurou o deputado Aluízio.<br />

Com a ajuda do poeta José Jannini, amigo de infância, muito bem relacionado<br />

com vários intelectuais cariocas – entre eles Álvaro Mereyra – conseguiu<br />

obter a informação da direção da Editora José Olympio. Decepção<br />

total! O parlamentar angicano faltara com a verdade: o livro nunca fora<br />

entregue para publicação.<br />

Da raça irritável dos poetas (genus irritabili vatum), ferido nos brios, decepcionado,<br />

retornando a Natal, contou a decepcionante história para os<br />

mais íntimos – muitos poucos, por sinal – e aguardou uma oportunidade<br />

para, publicamente, desmascarar Aluízio. Passados meses, aparece para<br />

visitá-lo, na rua Correia Teles, o poeta e jornalista pernambucano Mauro<br />

Mota, com quem se correspondia há alguns anos. A ele, Mauro, na presença<br />

de Esmeraldo Siqueira, deu uma longa entrevista para um dos jornais<br />

do Recife. Aproveitando a oportunidade, descascou tudo, com detalhes!<br />

A partir daí, Aluízio Alves passaria a ser apenas uma lembrança, uma amizade<br />

que não tinha dado certo. Não por ele, <strong>Othoniel</strong> – que ainda recordava<br />

o menino vivo e inteligente, o mensageiro dos "perrés" espancado<br />

nas escadarias do jornal A República, o jovem brilhante que aos dezoito<br />

anos escrevera o Angicos.<br />

O governador que veio do sertão do Cabugi – um inovador da administração<br />

do Estado, reconheça-se –, era, sob outro prisma, sem sombra de<br />

dúvida, pouco fiel às suas amizades mais antigas.<br />

Eloy de Souza, varão sempre sereno e perspicaz, raposa "perrepista"<br />

juramentada, desde priscas e diluvianas eras, um ícone da política e do<br />

jornalismo potiguares, mistagogo maior do então neófito Aluízio – de<br />

calças curtas no Partido Popular e no jornal A Razão –, tinha lá, também,<br />

463


464<br />

o irmão do sereníssimo Henrique, as suas queixas do pupilo, antes tão<br />

devotado e prestimoso. <strong>In</strong> verbis: "Aproveito mais uma vez a pequena<br />

lamparina da memória para recordar que da redação d'A Razão saíram<br />

alguns jornalistas, um dos quais, Aluízio Alves, que ainda vestia calças<br />

curtas e tinha uma grande tristeza refletida nos olhos negros e graúdos.<br />

Foi a revelação do que é hoje, como homem de imprensa e representante<br />

do Rio Grande do Norte na Câmara dos Deputados. Esqueci os agravos<br />

que me fez anos depois e que a ele, mais do que a mim, na reflexão da<br />

maturidade devem pungir como pecados cometidos nos desvarios da<br />

política partidária" (Eloy de Souza, Memórias, 2ª. edição, Senado Federal,<br />

2008, p. 403-404)<br />

<strong>Othoniel</strong>, espiritualista, esoterista, kardecista, cristão, muito antes de partir<br />

para o Azul, em 1969 – tem certeza o autor destas anotações –, já havia<br />

olvidado, perdoado, os "agravos" recebidos. Aluízio, por sua vez, não esqueceria<br />

jamais a entrevista dada pelo Poeta a Mauro Mota.<br />

Eleito governador, no primeiro ano do mandato (1961), apesar das arengas<br />

todas, das retaliações contra o antecessor, Dinarte Mariz (as "vagas<br />

existentes", o "fecha não fecha" do Tribunal de Contas, as centenas de<br />

transferências punitivas de servidores e outras milongas mil), agendou<br />

um festivo 1º. Festival do Escritor Potiguar. O evento, realizado entre os<br />

dias 10 e 15 de dezembro daquele ano, patrocinado, também, pelo saudoso<br />

prefeito Djalma Maranhão, tinha a supervisão do secretário da Educação,<br />

Grimaldi Ribeiro (por sinal, parente de OM, pelo lado dos Ribeiro<br />

Dantas). A coordenação do conclave foi entregue ao jornalista Ticiano<br />

Duarte, diretor do Departamento de Imprensa – admirador de OM e<br />

uma das figuras mais polidas e cavalheirescas desta nossa pouco leal ocara<br />

de comedores de camarão.<br />

Convidados pelo Estado e Prefeitura, chegaram algumas estrelas das letras<br />

do Pindorama verde-amarelo: Jorge Amado, Dinah Silveira de Queiroz,<br />

Eneida, Simeão Leal, José Condé, Sebastião Nery (muito jovem); Peregrino<br />

Júnior, Jaime Adour da Câmara, Renard Perez, Homero Homem e<br />

outros tantos. Da Jerimunlândia, quase todo mundo, capitaneados esses<br />

por Câmara Cascudo e alguns lugares-tenentes: Newton Navarro, Veríssimo<br />

de Melo, Luiz Rabelo, Walflan de Queiroz, entre outros.<br />

Não se sabe de quem foi a idéia (possivelmente de Veríssimo de Melo e/<br />

ou Newton Navarro) de visitar o "Príncipe" doente e esquecido. E lá se


foram (quase um ror!), em comitiva, para a residência do Poeta. <strong>In</strong>válido,<br />

comovido, revendo velhos amigos de velhos tempos – entre os "de fora",<br />

inclusive –, acanhado, lento, nervoso, constrangido, chorou resignadamente,<br />

emocionado, a cabeça quase branca acariciada pela doce Maria, sob<br />

o pálio do olhar enternecido dos dois filhos rapazes.<br />

O professor Cláudio Galvão, biógrafo de OM, registra no seu O Príncipe<br />

Plebeu – Uma biografia de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>: "A Gota d'Água – Reúne-se em<br />

Natal o I Festival de Escritores Norte-Rio-Grandense. Um grupo de intelectuais<br />

decide fazer uma visita ao poeta. Numa pequena casa à rua Cussy<br />

de Almeida (antiga Rua do Arame) encontraram um homem abatido e<br />

doente. Ambiente modesto, cadeiras com estofado estragado. Rua muito<br />

estreita, não entravam automóveis. Visita rápida, até porque não havia assentos<br />

suficientes para todos. Tentativas de ânimo e reconforto. Saíram<br />

impressionados e decidiram apelar para o governo do Estado. Do contato<br />

com o governador Aluízio Alves resultou uma comunicação à Farmácia<br />

Santa Lígia (esquina das ruas João Pessoa com Princesa Isabel) autorizando-a<br />

a fornecer todos os medicamentos de que necessitasse. Eram nada<br />

mais que antiinflamatórios, pois acreditava estar sofrendo de reumatismo.<br />

O próprio secretário Estadual de Educação e Cultura, Grimaldi Ribeiro,<br />

foi à casa do poeta comunicar a boa nova. Meio constrangido, <strong>Othoniel</strong><br />

aceitou a ajuda assegurada e recebia na farmácia os remédios que lhe estavam<br />

prescritos. Tudo ia muito bem e já havia meses que os medicamentos<br />

lhe eram entregues, até que um dia, o proprietário da farmácia revelou ao<br />

irmão mais novo, João Cabral, sobrinho afim de <strong>Othoniel</strong>, que o governo<br />

nunca havia pago as despesas, conforme prometera. Este, com muito jeito,<br />

comunicou ao poeta. <strong>Othoniel</strong> sentiu como se levasse uma bofetada.<br />

Humilhado e decepcionado, voltou para casa e desabafou com Maria. Não<br />

poderia admitir semelhante desapreço. Era a última desconsideração que<br />

receberia em Natal: iria embora da cidade, mudar-se para o Rio de Janeiro,<br />

definitivamente. Esta dívida foi paga depois pelo industrial Luiz Lopes<br />

Varela, amigo de adolescência e colega do poeta no Atheneu no já distante<br />

1911."<br />

Grimaldi Ribeiro, na visita que fez ao parente, dourando a pílula em favor<br />

do seu chefe, descreveu a <strong>Othoniel</strong> o discurso do governador, no Palácio<br />

do Governo, à comissão dos literatos: na peroração, teatral, Aluízio, brandindo<br />

um exemplar de Sertão de espinho e de flor, afirmara à seletíssima<br />

platéia que o livro era "uma das cartilhas do seu governo [...]".<br />

465


466<br />

Relativamente ao pagamento dos remédios à farmácia, o Poeta morreu<br />

sem saber da homenagem que lhe fizera, discretamente, o velho amigo do<br />

Atheneu – também cafeísta –, Luiz Lopes Varela.<br />

A seguir, a transcrição de um breve trecho do autor das presentes notas,<br />

lido, em 2004, na Fundação Cícera Queiroz, entidade assistencial, sediada<br />

atualmente na casa da Rua das Laranjeiras, n. 16, onde nasceu <strong>Othoniel</strong>, na<br />

modesta solenidade da aposição das efígies do Poeta e do seu irmão, sargento<br />

(João) <strong>Menezes</strong> (de Melo), pioneiro e mártir da aviação brasileira,<br />

primeiro aviador do Rio Grande do Norte:<br />

"Em março de 1962, doente, sem diagnóstico, perseguido pelos caciques<br />

de então, <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, dolorosamente arrumou os pouquíssimos<br />

teréns e escapuliu para o Rio de Janeiro. Amava muito o seu torrão. Entretanto,<br />

alguns dos conterrâneos da chamada elite política e intelectual de<br />

então, barões assinalados, nunca lhe haviam perdoado a franqueza com que<br />

tratava certos figurões, além da circunstância de haver escrito, nas oficinas da<br />

velha A República, de cabo a rabo, o jornal oficial do Levante de 1935. Nunca<br />

foi comunista – como foi taxado e depois condenado a três anos de cadeia.<br />

Era, todos sabiam, socialista e amigo de Café Filho. Culto, pobre e probo,<br />

tinha consciência do próprio valor e disso se orgulhava – isso sim! Não<br />

suportava idiotices e bajulações, grupinhos, patotas. Nunca tomou posse na<br />

Academia. Aceitou a "imortalidade" por imposição de velhos e poucos<br />

amigos, notadamente do seu quase irmão/poeta Esmeraldo Siqueira. Não<br />

se candidatou, candidataram-no. Era uma velha dívida do Silogeu, contraída<br />

desde a sua fundação, em 1936. Resolveu, de vez, ir embora, depois da<br />

última desconsideração que lhe fora imposta pelo próprio governador do<br />

Estado, Aluízio Alves, no final de 1961. Ia cumprir o seu próprio vaticínio,<br />

seu destino! Maktub! Estava escrito nos seus próprios versos (Ver Canto<br />

Minha Viola a Chorar, neste livro). Amparou-se no braço amigo e sofrido da<br />

sua Maria e foi embora! Chorando, mas foi! E, lá, morreu, de repente, em<br />

1969, no Rio de Janeiro, no Catumbi, no apartamento de aluguel modesto,<br />

saudoso da sua Natal, dos ocasos do Potengi amado e da companheira querida<br />

– que o antecedera na partida para o Azul, oito meses antes."<br />

Poucos dias depois da partida de OM para o Rio de Janeiro, auxiliares de<br />

Aluízio – entre eles, ainda vivo, um jornalista que, à época, quase chegara<br />

à condição privilegiada de parente muito próximo do governador –, quando,<br />

nas mesas do Granada Bar, se falava no exílio do poeta, esses mucufas


dipsômanos de gabinetes, defendendo os bons salários que mamavam nas<br />

tetas do Estado, ofendiam-no, longe dos ouvidos deste anotador, apelidando-o<br />

de "gagá"! Foram testemunhas desse infeliz desrespeito, entre<br />

outros, Newton Navarro, Ítalo José de Medeiros Pinheiro, Érico de Souza<br />

Hackradt. A maioria desses circunstantes – infelizmente, todos mortos -<br />

reagia à aleivosia cruel, cavilosa, sub-reptícia.<br />

Passaram-se muitos anos. A Editora Universitária, da UFRN, com o selo<br />

Nossa Editora, publicou, em 1983, um opúsculo: Memória Viva – Aluízio<br />

Alves, contendo a transcrição do áudio, de uma entrevista dada pelo político,<br />

no programa do mesmo nome, na Televisão Universitária, em 18 de<br />

julho de 1983 e exibido em 3 de setembro do mesmo ano. O abegão<br />

Aluízio estava sem mandato. Perdera, no ano anterior, para José Agripino<br />

Maia, a disputa pelo governo do Estado. Diante dos cinco entrevistadores<br />

– pelo menos quatro, eternos correligionários –, lá pelas tantas, indagado<br />

sobre a Revolta de 1935, deitou falação, convenhamos, bastante estranha:<br />

"Eu tenho uma imagem que não esqueci. Fui a primeira pessoa a entrar na<br />

República, depois da revolução, onde imprimiram o jornal, A Liberdade.<br />

Mas, o jornal, praticamente, não chegou a ser distribuído. Encontrei a<br />

edição do jornal quase toda lá, e foram recolhidos à polícia. Mas, eu entro<br />

no jornal e vejo que ali não tinha, ninguém, entro no gabinete do diretor,<br />

e entre o gabinete do diretor e as oficinas havia um espaço aberto, um<br />

terraço, onde encontro um morto. Encontrei aquela figura morta, ali.<br />

Olho, e está, morto. Logo, depois, chega Edgar Barbosa, chegam outras<br />

pessoas e promovem a remoção daquela pessoa, que não me lembro<br />

quem era e como morreu. Sei que não era funcionário de A República e<br />

estava ali morto."<br />

É preciso lembrar, agora, que o futuro dono da TV Cabugi, em que pese a<br />

sua reconhecida precocidade, tinha apenas 14 anos de idade, completados<br />

há uns três meses antes de novembro de 1935. Como diacho esse adolescente<br />

– de "olhos negros e graúdos" – conseguiu, e por que cargas d'água,<br />

penetrar nas instalações de A República, antes da polícia de Rafael Fernandes,<br />

precedendo, naquela balbúrdia pós-revolucionária, também o próprio<br />

diretor do órgão, Edgar Barbosa? E o defunto, o morto não identificado, o<br />

defunto sem nome?<br />

Vem, agora, a pergunta maior: seria, o presunto, desovado naquele terraço<br />

pela cabeça gandava do rapazelho, uma vítima dos que fizeram A Liberdade,<br />

entre eles <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, responsável maior pela empreitada?<br />

467


468<br />

<strong>Othoniel</strong> – que evitava falar sobre A Liberdade, pois perdera a própria por<br />

um bom período e se tornara "maldito" na terra em que nasceu –, mesmo<br />

em casa, quando se tocava no assunto, em tempo algum, fez alusão à<br />

misteriosa e inidentificada "vítima". Tampouco, até nossos dias, a literatura<br />

sobre a Revolta jamais registrou o fato, inclusive brazilianists de renome.<br />

O autor destas linhas – que, tempestivamente, publicou uma nota na<br />

imprensa local sobre o assunto –, preocupado com a afirmação do entrevistado,<br />

cuidou de ouvir, em Natal, por ocasião de seminário realizado<br />

sobre o levante, organizado pela Fundação José Augusto, em 2005, o exgráfico<br />

mossoroense e último remanescente da jornada, Francisco Meneleu<br />

dos Santos (falecido aos 90 anos, em 2008). O lendário Meneleu negou,<br />

veementemente, a fantasiosa e inconseqüente afirmação do ex-governador<br />

do Estado. Nas proximidades do casarão do jornal A República, na rua<br />

São Tomé, houvera, sim, um tiroteio, refrega rápida, entre soldados da<br />

polícia e revoltosos, mas no primeiro dia da chamada <strong>In</strong>tentona, 23 de<br />

novembro, não havendo mortes. Apenas o cabo Giocondo Dias, um dos<br />

comandantes revolucionários, saiu ferido do recontro, levando três tiros.<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> e seus herdeiros, por outro lado, nunca deram maior<br />

atenção, nunca consideraram verídica uma versão aventuresca da participação<br />

do futuro dono da Ducal na "Revolução Comunista". A estória era<br />

contada, a princípio, abertamente, durante muitos anos, pelo líder comunista<br />

Pretextato José da Cruz, falecido, em 2008, aos 85 anos. Na velhice,<br />

o ex-estivador e sindicalista cassado em 1964, stalinista histórico, repetia,<br />

e dava notícia – apenas em off, não se sabe porque a mudança – de singular<br />

e curioso acontecimento: no primeiro dia da revolução, Luís Maranhão<br />

Filho – o saudoso jornalista e professor "subversivo", barbaramente assassinado<br />

pela "Redentora" – e Aluízio Alves (ambos com 14 anos) "passaram<br />

a noite de 23 para 24 de novembro de 1935 carregando latas d'água,<br />

subindo escadas, para refrigeração de uma metralhadora dos rebeldes,<br />

assestada, no telhado de uma casa, em direção ao Quartel da Polícia."<br />

Estória ou história? Pretextato, em 1935, tinha apenas 12 anos. <strong>In</strong>venção<br />

de adolescente – parece –, a empresa "revolucionária" dos dois frangotes.<br />

Aluízio, pelo que se sabe, nunca tocou no assunto...<br />

Na madrugada agitada, de intenso tiroteio, a bala comendo no meio do<br />

mundo, morando entre os dois quartéis das tropas em combate, na "terra<br />

de ninguém", Aluízio Alves apenas disse, na entrevista à TV, que "as balas


passavam por perto, nós ouvíamos a noite toda, deitados em casa." Nada<br />

de lata d'água na cabeça, pois, pois...!<br />

Quinze anos depois, editada em abril de 1998, pela Edufrn, a editora da<br />

UFRN, novamente aparece na praça, dividida, desta feita, em duas partes,<br />

a plaquete Memória Viva – Aluízio Alves. Na página 11 da Primeira Parte do<br />

volume, no rodapé, está o seguinte registro: "Íntegra do programa gravado<br />

na TV Universitária, Natal/RN, em 18 de julho de 1983, e exibido em<br />

3 de setembro do mesmo ano."<br />

Estranhamente, logo no frontispício da publicação, outra anotação desmente,<br />

por completo, àquela afirmação. Ei-la, in verbis: "2ª. edição revisada<br />

e ampliada pelo autor". Este segundo registro, uma clara contrafação,<br />

compromete a publicação anterior – a 1ª. edição – e, por extensão, atinge<br />

a todos os membros da cúpula universitária e do Conselho Editorial da<br />

UFRN da época, chanceladores do volume, solenemente nominados,<br />

todos, à exaustão, nos créditos, às fls. 4 dessa 2ª. edição. O texto, pelo que<br />

se denota, não é correspondente à gravação do áudio do primeiro programa,<br />

tampouco igual ao texto supostamente transcrito. O que houve?<br />

A transcrição dessa Primeira Parte da 2ª. edição, que devia ser cópia exata,<br />

reprodução fiel, rigorosa e imexível do áudio, foi, sem sombra de dúvida,<br />

no caso, visivelmente alterada pelo entrevistado Aluízio Alves – ou por<br />

alguém sob ordem deste – quando, na primeira edição, de 1983, referiuse<br />

à "visita" às dependências do jornal A República, no dia 27 de novembro<br />

de 1935. Foram acrescentadas, adicionadas, três linhas – redundando, a<br />

tropelia, numa cascata monumental. O remendo foi muito pior do que o<br />

"soneto" anterior (a estória do "defunto"):<br />

"[...] Antes da polícia chegar fui à sala de revisão. Verifiquei que os originais<br />

eram quase todos da autoria do poeta <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>. Escondi-os, e<br />

depois fui à sua casa levá-los de presente. Nada sofreu por isso."<br />

Com muito jeito e agrado, seria até plausível supor que, na ocasião, o ativo<br />

e desembaraçado secretário mirim de José Augusto e aprendiz de jornalista<br />

de Eloy de Souza, o futuro manda-chuva da Tribuna do Norte – antes<br />

mesmo da polícia e do diretor Edgar Barbosa chegarem às dependências<br />

do jornal oficial –, matreiramente, numa feliz incursão à sala de revisão,<br />

tivesse, muito expedito, se apropriado dos comprometedores rascunhos<br />

"comunistas" do poeta da "Praieira". Vá lá, vá lá!<br />

469


470<br />

Difícil – duro de roer! – seria acreditar ter ido à casa do poeta, presenteálo<br />

com as comprometedoras provas do grave delito subversivo e, mais<br />

complicado ainda – de arrepiar a descendência do vate! –, afirmar que o<br />

"felizardo" <strong>Othoniel</strong> "nada sofreu" sob os regimes de Rafael Fernandes e<br />

Getúlio Vargas. Rafael, representado pelo eficiente primo Aldo Fernandes;<br />

Getúlio, acolitado pelo truculento capitão Filinto Strubing Müller.<br />

A verdade cristalina – nua e crua – é que o editorialista e responsável<br />

maior pela publicação do jornal A Liberdade e nenhum dos seus familiares,<br />

jamais receberam, na época, a visita de Aluízio, levando "presente" algum.<br />

Antes de findar o dia 27, sabendo, já, do fracasso da revolução, o poeta<br />

fugiu para Recife, onde foi preso uns quatro dias depois. Já no dia seguinte,<br />

28, tinha sido demitido por Rafael Fernandes do Departamento de Imprensa<br />

(Ato n° 174, de 28 de novembro de 1935). Era a primeira punição.<br />

Capturado em dezembro de 1935, somente teve a prisão preventiva decretada<br />

em 4 de setembro de 1936, quase um ano depois da Revolta e do<br />

encarceramento.<br />

Para arrematar o assunto, transcreve-se o que escreveu o minucioso escritor<br />

Cláudio Galvão, no citado Príncipe Plebeu – Uma Biografia de <strong>Othoniel</strong><br />

<strong>Menezes</strong> (Edição FAPERN, 2010): "O julgamento de <strong>Othoniel</strong> somente<br />

se verificou a de 9 de agosto de 1938, em sessão do Tribunal de Segurança<br />

Nacional. Enquadrado nos artigos 1o, 49 e 50 da L. 38 S. N. e parágrafos<br />

2o, 4, e 14, art. 39 da C. L. P., tendo-se em vista os artigos 25 e 26 da citada<br />

L. 38 de S. N., foi condenado à pena de 3 anos de reclusão."<br />

Por conta deste Sertão de espinho e de flor, passou, ainda, o seu sofrido autor,<br />

um último e doloroso vexame, em 1967. <strong>Othoniel</strong> – até poucos anos<br />

antes de morrer, apesar da doença, das decepções, da companheira Maria<br />

cancerosa, exilado no Rio de Janeiro, sem embargo dessas vicissitudes<br />

todas, ao saber ser o novo governador da sua terra o monsenhor Walfredo<br />

Gurgel, a quem conhecera por intermédio do padre Monte, seu amigo e<br />

admirador –, pediu ao professor Rodrigues Alves, conterrâneo que morava<br />

no Rio e o visitava semanalmente, para interceder no sentido de a<br />

Fundação José Augusto republicar o livro – considerado, por ele, sua<br />

melhor obra, o carro-chefe de toda a sua extensa produção. Ao longo dos<br />

anos, desde 1952, vinha pacientemente, vagarosamente, apesar do Mal de<br />

Parkinson, revisando, corrigindo e, às vezes, acrescentando observações,<br />

notas e inserções, no único volume que lhe restara, manuscritas, a mão<br />

tremulante, em tinta de cor verde, da sua preferência, há muito tempo.


Contrariando a opinião do autor destas notas – nomeado, entre os filhos,<br />

guardião dos seus papéis –, <strong>Othoniel</strong>, fazendo mil recomendações, repassou<br />

aquele único exemplar ao amigo fiel, da mais inteira confiança. Não<br />

podendo Rodrigues Alves se deslocar para Natal, encarregou-se da tarefa,<br />

da embaixada junto à Fundação, uma amiga do saudoso professor, Stella<br />

Leonardos, poeta, dramaturga e tradutora, conhecedora de versos de<br />

<strong>Othoniel</strong> – que vinha ao Rio Grande do Norte, convidada pelo Governo.<br />

A intelectual carioca, sem sombra de dúvida, cumpriu, à risca, a missão<br />

que lhe fora outorgada, fazendo o pedido para a publicação e entregando<br />

o livro a um dos gestores da FJA.<br />

Qual deles? Até nossos dias, infelizmente, desconhecem-lhe a identidade<br />

os familiares do escritor. Isto porque, naquele ano – e até os dias presentes,<br />

lembremo-nos! – a desorganização campeava no órgão.<br />

O governador, no ano anterior (1966), segundo fontes da época, indispusera-se<br />

com o presidente (ou diretor) que viera da administração anterior<br />

(leia-se governo do bacharel das Alagoas, Aluízio Alves), nomeando uma<br />

"junta administrativa". Como sói nesse modelo de seres agrupados – uns<br />

querendo engolir os outros com picuinhas e arengas –, na confusão, no<br />

destrambelho, fatalmente um sabido, finório e velhaco, deve ter pedido<br />

"por empréstimo" a alguém importante o livro de <strong>Othoniel</strong>, sumindo<br />

com a preciosidade.<br />

Cláudio Galvão (ob.cit) anotou: "Tal edição jamais se concretizou. A cópia<br />

acrescentada com apontamentos do próprio punho do poeta, se não teve<br />

o destino inglório da cesta de lixo, deve hoje enriquecer a coleção de<br />

algum feliz bibliófilo, o que não é de todo mal [...]".<br />

Há quarenta e dois anos, o subscritor destas linhas, com bíblica paciência,<br />

reunindo sutis informações, herméticas pistas, segredosos indícios, "lambendo<br />

a rapadura", procura esse "feliz bibliófilo".<br />

Enfim, perdeu a cultura do Estado, perdeu a família, perderam os leitores."<br />

161 Cédulas de dinheiro.<br />

162 Fiscais federais, hoje denominados auditores fiscais do Ministério da Fazenda.<br />

163 Bolsa cara, refinada. O chamado couro-da-rússia é muito macio, impermeável<br />

e suavemente perfumado, por ser curtido com casca de bétula.<br />

471


472<br />

164 Escavações mais ou menos profundas, conforme a natureza do terreno,<br />

para mineração. Pequenas catas ao lado de outra maior.<br />

165 Práticos, sem formação acadêmica; empíricos.<br />

166 <strong>In</strong>divíduos louros, estrangeiros, gringos.<br />

167 Ver nota de rodapé em Gérmen, no soneto “Sugestão da Luz”.<br />

168 Coberta de poeira; empoeirada.<br />

169 Coisa sem importância; quantia insignificante; ninharia.<br />

170 Locutor.<br />

171 Alexandre José de Melo Morais Filho (Salvador/BA, 23.02.1943-<br />

Rio de Janeiro/RJ, 01.04.1919). Poeta, cronista, folclorista, médico (formado<br />

em Bruxelas/Bélgica), etnógrafo e folclorista. Publicou dezenas de<br />

livros. Tio-avô de Vinícius de Morais.<br />

172 Harold Sims. No Brasil, desde 1938, como vice-cônsul em Pernambuco.<br />

Chegou a Natal em 1943, como Cônsul. Andou pela China e Cuba, posteriormente.<br />

Sem sombra de dúvida, pertencia ao serviço de inteligência<br />

dos EUA.<br />

173 Doença de equídeos, produzida por bacilo, caracterizada por ulcerações<br />

na mucosa nasal, múltiplos nódulos subcutâneos e linfadenite, e que se<br />

pode transmitir ao homem, sendo a este, quase sempre, fatal.<br />

174 Poeta da escola provençal do século XIX.<br />

175 Floro Bartolomeu da Costa (Salvador/BA, 17.08.1876-Rio de Janeiro/RJ,<br />

08.03.1926). Foi sepultado, na então capital federal, com honras<br />

de general do Exército, como reconhecimento por sua fidelidade ao<br />

governo federal.<br />

176 Marcos Franco Rabelo (Fortaleza/CE, 25 de abril de 1851 – ?). Militar<br />

e político – mais político do que militar. Foi governador do Ceará, de<br />

14 de julho de 1912 a 14 de março de 1914.<br />

177 José da Penha Alves de Souza (Angicos/RN, 13.05.1875 – Miguel<br />

Calmon/CE, 22.02.1914). No Rio Grande do Norte, combateu a oligarquia<br />

de Pedro Velho. Tribuno vigoroso, brilhante.<br />

178 Cadmo. Filho de Agenor, rei da Fenícia, fundador de cidades gregas.<br />

Tornou-se rei de Tebas e seu reinado foi próspero e tranqüilo. Civilizou a<br />

Beócia e ensinou o alfabeto aos gregos. No final de sua vida, teve seus<br />

filhos e netos mortos como castigo por ter matado a serpente que era


consagrada a Marte. Cadmo, juntamente com Harmonia, foram transformados<br />

em serpentes.<br />

179 Joaquim Alencar Peixoto. Um dos líderes da emancipação política de<br />

Juazeiro do Norte. Nasceu no Crato, foi aluno do Seminário São José,<br />

ordenando-se em Olinda/PE. Sacerdote culto, deixou vários livros publicados,<br />

destacando-se Joaseiro do Cariry, escrito após seu rompimento<br />

com o antigo aliado, Padre Cícero. O desentendimento aconteceu porque<br />

Alencar queria ser o primeiro prefeito do novo município de Juazeiro.<br />

Cícero não abriu mão do cargo, enfurecendo o colega de batina.<br />

180 Da máxima latina Sedare dolorem opus divinum est: “Aliviar a dor é obra divina”.<br />

181 O historiador ítalo-americano Ralph della Cava da Universidade Columbia<br />

(EUA) e professor Honoris Causa da Universidade Regional do Cariri,<br />

autor do livro Milagre em Juazeiro , doou, em 2002, todo o seu acervo<br />

sobre o Padre Cícero (documentos pessoais, eclesiásticos, fotografias,<br />

folhetos de cordel, telegramas, livros e uma variada miscelânea) à Biblioteca<br />

George A. Smathers, da Universidade da Flórida. Dessa coleção, consta<br />

um flyer (boletim de propaganda, em inglês, – certamente um quadro<br />

emoldurado) com os seguintes dizeres: “Uma saudosa lembrança do velho<br />

amigo e antigo secretário do Revdmo. Padre Cícero Romão Batista”.<br />

182 Campos Sales. Município do estado do Ceará. Está localizado na<br />

microrregião da Chapada do Araripe, mesorregião do Sul Cearense.<br />

183 João Ferreira dos Santos. O único irmão de Virgolino a não entrar no<br />

cangaço.<br />

184 Homem de estatura elevada. Galalão, adaptado do francês Ganelon, personagem<br />

da canção de gesta “La Chanson de Roland”, com desnasalação. Ver<br />

nota sobre Carlos Magno e os Doze Pares de França.<br />

185 Manhas, ardis.<br />

186 Sigla da antiga <strong>In</strong>spetoria Federal de Obras Contra a Seca.<br />

187 Referência a Pedro Malazarte, herói malandro do folclore nordestino. Ver<br />

Contos tradicionais do Brasil, de Luis da Câmara Cascudo.<br />

188 Salitre originariamente significava, genericamente e por extensão, qualquer<br />

sal oxigenado nítrico, pois qualquer nitrato, usualmente alcalino,<br />

em especial nitrato de potássio.<br />

189 Sodoma e Gomorra são, de acordo com a Bíblia judaico-cristã, duas<br />

cidades que teriam sido destruídas por Deus com fogo e enxofre descido<br />

473


474<br />

do Céu. Segundo o relato bíblico, as cidades e os seus habitantes foram<br />

destruídos devido a prática de atos imorais. Os seus habitantes eram os<br />

cananeus.<br />

190 Cláudio Galvão, na biografia de OM (Príncipe Plebeu, no prelo, em 2009),<br />

anota: “Como ‘perrepistas’ eram apelidados os remanescentes do antigo<br />

Partido Republicano, que congregavam os partidários sob a liderança de<br />

José Augusto. Os seguidores de Mário Câmara eram chamados de ‘pélabuchos’”.<br />

Conta, ainda, o historiador que o Poeta, em 1931, numa das<br />

viagens que fez a Acari, não resistindo “à tentação de escrever no Acary” –<br />

jornal dirigido por seu irmão Francisco <strong>Menezes</strong>, promotor de Justiça da<br />

comarca, “publicou ali um artigo em que, transparecendo sua revolta,<br />

referia-se à canalha perrepista. O resultado foi uma drástica queda de<br />

vendas e prejuízos assumidos pelo Dr. Francisco <strong>Menezes</strong> [...]”.<br />

191 Oto de Brito Guerra (Mossoró/RN, 02.07.1912-Natal/RN,<br />

16.03.1996). Advogado, professor, jornalista e político. Comendador da<br />

igreja católica. Jovem ainda – orientado por Luis da Câmara Cascudo –, foi<br />

ardoroso defensor das idéias nazi-fascistas de Plínio Salgado, chegando a<br />

ser candidato à deputação estadual pela Aliança <strong>In</strong>tegralista Brasileira.<br />

Redimiu-se plenamente depois, defendendo com muita proficiência e<br />

entusiasmo perseguidos pelo golpe militar de 1964. Da ANRL.<br />

192 “Por exemplo”, em latim.<br />

193 Iguaria ou refresco de murici com açúcar e, às vezes, com farinha de<br />

mandioca.<br />

194 Afonsinhos é corruptela brasileira de Afonsinos. A dinastia de Borgonha,<br />

também chamada Afonsina (pelo elevado número – quatro – de soberanos<br />

com o nome de Afonso) foi a primeira dinastia do Reino de Portugal.<br />

Começou em 1096, ainda como mero condado (autonomizado em reino<br />

em 1139-1143) e terminou em 1383-1385. Daí a expressão. Eça de<br />

Queiroz, referindo-se à época em que passou o seu “exílio administrativo”<br />

em Leiria (Portugal), fazendo um estágio para ser nomeado cônsul e lá<br />

escrevendo O Crime de Padre Amaro, caracterizou a população da cidade<br />

como “gente do tempo dos afonsinos”.<br />

195 O Aurélio, hoje, registra habituado, acostumado. O Houaiss: que se acostumou;<br />

que se habituou; habituado.


Canto 12<br />

No tempo do ipsilone


Meu professor Jesuíno... 1<br />

A Carta do Landelino: 2<br />

– Um bê c’um a, bê-a-bá...<br />

“Argumento”, 3 às sextas-feiras,<br />

cruzado... pataca... Asneiras<br />

e, a palmatória – pá! pá!...<br />

Todos, fingíamos medo.<br />

Era autêntico Azevedo<br />

– botinas, quarenta-e-três...<br />

Mas, tão bom, tão generoso,<br />

que eu, gazeteiro, e teimoso,<br />

de bolos – só “comí” seis...<br />

– Vejo-o, ainda – ereto! – à banca,<br />

a cabeça toda branca,<br />

a meninada – a “cantar”.<br />

Disfarçados no concerto,<br />

miaus, risadas. Que aperto,<br />

era a conta de somar!<br />

– “Dois e dois são quatro!” – o mestre<br />

ensinava-me. Que adestre,<br />

vida em fora, essa impressão,<br />

jamais, como era na escola,<br />

terei quatro, na cachola,<br />

– e, a prova real, na mão...<br />

477


478<br />

O Livro de Felisberto 4<br />

– de quinta. Que céu aberto!<br />

como gostava de o ler!<br />

Gravuras lindas, sortidas<br />

– borboletas coloridas,<br />

cisnes... um trem, a correr...<br />

Hoje, há os grupos escolares;<br />

Pestalozzis 5 titulares,<br />

conforme ao tempo convém.<br />

– Sistema Bayer, 6 em tudo...<br />

Rapidez. À fava, o estudo!<br />

– não há o decreto 100? 7<br />

Junqueiro, em livro superno, 8<br />

“Velhice do Padre Eterno”,<br />

diz como um monstro se faz.<br />

– Sem a mínima poesia,<br />

dá, qualquer academia,<br />

cem burros, por ano, e mais.<br />

O “artista”, um gênio, no assunto,<br />

colando, ajeita ao bestunto<br />

tinturas chochas. Olé,<br />

Recife! Freqüência, nada!<br />

– É mão de bedel “molhada”,<br />

farra, prosa, cabaré...<br />

Currus, currus, 9 a carroça...<br />

Fica nisso. E a enchente engrossa.<br />

Que milagre, uma exceção!


E vence, o asno de canudo!<br />

– Um, já foi (sendo, antes, tudo)<br />

diretor... de Educação! 10<br />

Eu, sem diploma, sem cursos,<br />

escrevia-lhe os discursos<br />

e, tão feliz, neles, fui,<br />

que o burro – modéstia à parte –,<br />

ao lê-los, com ênfase e arte,<br />

nublou a fama de Rui... 11<br />

Como, afinal, não pudera<br />

negar que eu asas lhe dera,<br />

quadrupedou sobre mim<br />

zurrando, ao ver-me no enxurro:<br />

– Possui talento, pra burro,<br />

mas, quanto a freio, é ruim!<br />

Manes 12 de mestre Jesuíno!<br />

Deus me livre do destino<br />

que a tal burro deu laurel!<br />

Antes, ser poeta ou vaqueiro,<br />

do que – nascido sendeiro–, 13<br />

querer ser doutor de anel!<br />

Anel que, apenas, exprime<br />

um erro, um escárnio, um crime,<br />

contra o país e a nação<br />

– pois, em tal qual formatura,<br />

quanto perde a agricultura<br />

em café, milho ou feijão!<br />

479


480<br />

Em relação ao Direito,<br />

como é troncho, esse sujeito!<br />

Só o compreendo, afinal,<br />

egresso de academia 14<br />

que adotasse a hierarquia<br />

da... Guarda Nacional!<br />

Se dos teus doutores (desses),<br />

tu, pobre Brasil, colhesses<br />

os anéis, para vender<br />

– comprando milhões de enxadas,<br />

a mais, quantas toneladas<br />

de batatas irias ter!<br />

E é de pasmar, que o jumento<br />

já não tenha um monumento.<br />

(Que poeta, em Natal, o tem?).<br />

Cascudo! Esmeraldo! Jayme!<br />

Edinor! Jorge! 15 Escutai-me:<br />

– vamos ser burros, também!<br />

Que o Veríssimo registe, 16<br />

no folclore, essa triste<br />

variante do Que-é-que-é... 17<br />

Ajudo-o nesse trabalho:<br />

– já foi trunfo no baralho,<br />

o tal burro. Hoje, é melé... 18


Notas ao Canto 12<br />

Cascudo! Esmeraldo! Jayme!: Luis da Câmara Cascudo, historiador,<br />

etnógrafo, nome internacional, cerca de trinta obras<br />

publicadas; Esmeraldo Siqueira, autor de Caminhos Sonoros; Jayme<br />

dos Guimarães Wanderley, autor de Fogo Sagrado e Espinho de Jurema;<br />

Edinor Avelino, poeta de Sínteses; Jorge Fernandes, filiado à poesia<br />

modernista, publicou Livro de Poesias e peças de teatro. 19<br />

Que o Veríssimo registe: Veríssimo de Melo, 20 jovem e já notável<br />

mestre do folclore publicou Adivinhas (1948), Superstições de<br />

São João, Acalantos (1949), Parlendas, Rondas <strong>In</strong>fantis Brasileiras, Elogio<br />

de Jorge Fernandes. Tendo prontos: Superstições do Nordeste, Jogos <strong>In</strong>fantis,<br />

A chuva na tradição popular, etc.<br />

481


482<br />

Notas<br />

1 Jesuíno Idelfonso de Oliveira Azevedo (Sítio Sombrio, Jardim do<br />

Serido/RN, 04.08.1846- Jardim do Seridó/RN, 21.08.1929). Professor,<br />

proprietário rural, político, vereador, diretor escolar e prefeito. Seus<br />

antepassados foram os fundadores do município. Dedicou a maior parte<br />

da longa existência ao ensino. Aos dezoito anos, combateu na guerra do<br />

Paraguai.<br />

2 Landelino Rocha. Professor pernambucano do século 19, autor do<br />

Primeiro livro de leitura ou Carta do ABC para uso da infância. A segunda edição<br />

é datada de 1873.<br />

3 Exame, prova oral.<br />

4 Felisberto de Carvalho (Niterói/RJ, 09.08.1850-Rio de Janeiro/RJ,<br />

18.10.1898). Jornalista, músico, professor e autor de livros didáticos que<br />

deixaram marcas na memória nacional – editados pela Livraria Francisco<br />

Alves.<br />

5 Referência a João Henrique Pestalozzi, nascido em Zurique/Suiça no<br />

séc. XVIII (1746), considerado mentor e reformador da escola popular.<br />

6 Johannes Bayer (1564-1617). Astrônomo alemão que, em 1603, inventou<br />

um sistema (que levou seu nome) para classificar as estrelas de<br />

uma constelação, utilizando letras gregas.<br />

7 OM refere-se aos exames supletivos criados pelo Governo Federal.<br />

8 Muito elevado; superior; muito bom; ótimo, excelente.<br />

9 Currus. Em latim, significa carro romano de luxo, quadriga, carro de<br />

guerra e/ou carro do triunfo – por extensão (aplicação extensiva do sentido<br />

de uma palavra, locução ou frase): triunfo. Refinada e erudita ironia de<br />

OM, comparando o “triunfo” dos maus estudantes a uma simples e desengonçada<br />

carroça.<br />

10 Anfilóquio Carlos Soares da Câmara (Natal/RN, 25.10.1889 - Natal/RN,<br />

16.06.1957). Bacharel em Direito, professor e jornalista. Encontrou<br />

OM no Palácio do Governo, como primeiro-oficial do Gabinete,<br />

em 1925, no governo de José Augusto, quando assumiu a Secretaria Geral<br />

do Estado. Era o manda-chuva, uma vez que o governador se interessava<br />

tão-somente por politicagem. Foi, depois, já noutro governo, diretor do<br />

então Departamento de Educação (1933-1935).


11 Rui Barbosa. A “Águia de Haia”.<br />

12 Manes. Almas dos entes queridos falecidos, na mitologia romana.<br />

13 Cavalo ou muar velho e ruim. <strong>In</strong>divíduo desprezível por seu servilismo.<br />

14 Um vaticínio do poeta: Em 2009, egressos das dezenas de faculdades –<br />

públicas e particulares – existentes no Rio Grande do Norte, segundo a<br />

OAB-RN (Ordem dos Advogados do Brasil), apenas 29,7 % dos bacharéis<br />

em Direito formados conseguiram aprovação no exame da entidade:<br />

de 1083 candidatos, apenas 322 obtiveram êxito. Um dos dirigentes da<br />

entidade concluiu, enfático: “O nível baixo dos cursos em todo o país está<br />

refletindo negativamente no panorama do mercado profissional”.<br />

15 Ver nota de OM.<br />

16 O mesmo que registre.<br />

17 Brincadeira que consiste na proposição de enigmas fáceis para serem decifrados;<br />

adivinha.<br />

18 Curinga, pessoa esperta, sem escrúpulos, que tira partido de qualquer<br />

situação.<br />

19 Todos os intelectuais citados por OM tiveram seus dados atualizados nas<br />

notas deste volume.<br />

20 Veríssimo Pinheiro de Melo (Natal/RN, 09.07.1921 – 18.08.1996).<br />

Jornalista, magistrado, etnógrafo, folclorista, compositor, violonista, professor.<br />

483


Canto 13<br />

Novenário da Conceição


Na tarde branca e fagueira,<br />

ao levantar da bandeira,<br />

que tundé, 1 no patamar!<br />

Depois, a novena. E, note:<br />

vem morena, de magote,<br />

dos sítios – só namorar...<br />

Na matriz, tanto do povo,<br />

que ela mais parece um ovo<br />

– pois não! – comparando mal.<br />

Até Simplício de Bento,<br />

que é trunfo no Sacramento, 2<br />

conformou-se com um portal.<br />

Junto da sala da pia,<br />

houve ingonga, 3 houve arrelia:<br />

Dona Joaninha Galvão<br />

cadeira bem cômoda usa;<br />

pegando nela, uma intrusa<br />

infincou-lhe o muxicão... 4<br />

As tribunas – quilotadas! 5<br />

Na das cortinas bordadas,<br />

com laçarotes azuis,<br />

há tão garbosa morena<br />

que, se fora Madalena,<br />

não quisera, eu, ser Jesus!<br />

487


488<br />

Começou a ladainha...<br />

Pálida, a Excelsa Rainha<br />

é toda luz, no altar-mor.<br />

Do bogari, cravo branco,<br />

o enfeite geral (Ser franco:<br />

o Céu não terá melhor!)<br />

Numa arcada – a última –, sonso,<br />

pingando oriza, 6 Ildefonso<br />

faz cera 7 mais Izabel.<br />

A tia, embora não ouça,<br />

rosna, fanhosa, pra moça:<br />

–”Tem modo! Isto é lá papel?!”–<br />

Furando, a custo, o vestíbulo,<br />

o croinha, 8 com o turíbulo,<br />

lá vai, a brasa buscar...<br />

...e é brasa de catingueira! 9<br />

– como estala, como cheira,<br />

viva, assim, a balançar!<br />

(Uma andorinha anda, tonta,<br />

rente ao forro, ponta a ponta,<br />

bate o peito no vitral.<br />

– Imagem da Alma... – Criatura!<br />

Não é que, então, a essa altura,<br />

já eras sentimental?).<br />

Enfim, um fervor imenso.<br />

Casto, o perfume do incenso<br />

tudo envolve, no langor. 10<br />

Doce ovelha sertaneja!


tu inda crês que, na igreja,<br />

quem mora é Nosso Senhor!<br />

***<br />

Lá fora, fervilha o beco.<br />

É sequilho, 11 é doce-seco,<br />

filhós, bom-bocado, angu.<br />

Pr’uma toalha muito alva,<br />

atenta, a negra Rosalva<br />

tira alfenim, de um baú.<br />

De levado, furtou, Jóca,<br />

dez rosários de pipoca,<br />

e amufambou 12 no chapéu.<br />

Dá-lhe Zuza, u’a mofina: 13<br />

– “Lambão! 14 Tu hoje impanzina! 15<br />

“animal não vai p’ro céu!”–<br />

Bráh!... virou um tabuleiro...<br />

– “Ui! Cadê o arcoviteiro”? 16<br />

– T’aquí o fósco, rapaz!”–<br />

Mas, Tonho, a trinar de raiva,<br />

Diz, quase chorando, ao Paiva:<br />

– “Derramou-se todo o gás!”<br />

No patamar, seu Veríssimo<br />

bate no peito. É o Santíssimo. 17<br />

Repique. Rescende, o altar.<br />

Viva, a música sapeca 18<br />

uma polca de Tonhéca.<br />

Rompem cem fogos-do-ar.<br />

489


490<br />

Tudo quanto é de menino<br />

cerca Tota de Davino<br />

que chegou de São José<br />

e anda no pátio, afobado,<br />

revendo as peças, 19 ao lado<br />

do provedor, Zé Tomé.<br />

Esta novena é de arrojo!<br />

(A dos casados, fez nojo...)<br />

– “Cipriano, cadê você?<br />

“se de apostar ainda fala,<br />

perde o castão da bengala,<br />

os aro do pincenê! 20 "–<br />

Por capricho dos solteiros,<br />

há dez balões com letreiros.<br />

– “Já viu tanta roda 21 assim?”<br />

– “Diz-que é um calunga 22 que pula,<br />

“bate pilão de caçula 23<br />

“com um tiro baita, no fim!...”<br />

–”E, o mamulengo, 24 é lá nada!<br />

a ingrizia 25 mais topada,<br />

é aquele painé 26 da cruz!<br />

– Mostra, parando a carrera,<br />

a imagem da Padroera, 27<br />

cum trinta estrelas azuis!”–<br />

***<br />

Voz lindíssima, argentina, 28<br />

morre no coro, em surdina,


em louvor da Conceição.<br />

Finda, a noite. Mas é gente!<br />

– pelos oitões, pela frente,<br />

sai moça, de borbotão!<br />

– “Óia o chourisco! 29 O arrôi-doce”–<br />

– “Quero é castanha!”– “Cabou-se!”<br />

– “Compre canjica, seu Lau!”<br />

– “Tá beba, cabrocha? Figa!<br />

“compro lá dô de barriga?<br />

num vê qu’eu gasto mingau?”<br />

***<br />

Que putici, 30 lá na esquina!<br />

– é o cosmorama. 31 João China<br />

vai olhar, mais Punaré.<br />

(A “vista” é a Vênus de Milo).<br />

– “Cumpade! Ô farta de estilo!<br />

venha vê se toma pé...”<br />

O outro espia, desconfiado;<br />

gosta... Fica embasbacado,<br />

mas, conclui, cheio de dó:<br />

– “Muié dama 32 ... E foi doença!<br />

“Óia, é cega de nacença,<br />

e tem os braço cotó!”–<br />

Acácio furou um “fole”,<br />

mas apanhou que está mole...<br />

Vem preso – “Óia um bom freguêi!”–,<br />

diz o soldado. – “Num broma” 33 !<br />

491


492<br />

“lodaça 34 é fruita de goma,”<br />

“vai tê beiju no xadrêi”<br />

***<br />

A entrega da noite, 35 às nove.<br />

Fogo-de-lágrimas... 36 Chove<br />

verde... azul... chovem rubis...<br />

Duas “lágrimas” vermelhas<br />

caem, chiando, nas telhas<br />

da solitária matriz...<br />

Meigo, nos longes da estrada,<br />

fere Ilusão Desfolhada, 37<br />

um fole, chorando em lá...<br />

Voga, 38 na aragem do estio,<br />

um cheiro casto e macio<br />

de mofumbo e resedá.<br />

***<br />

O último dia. Os noivados:<br />

– os noivos, sempre engomados;<br />

as noivas – de olhos nos pés...<br />

.............................................<br />

Brada o leiloeiro, já rouco:<br />

– “dou-lhe três!...”– Valsa. Pipoco.<br />

– Um melão, por cem mil-réis!<br />

Na manhã quente e radiosa,<br />

trescalando a malva-rosa,


quanta saudade a boiar!<br />

Perpassam rojões 39 amenos<br />

de violas, repiques, trenos,<br />

risadas dispersas no ar...<br />

Às onze, a missa cantada<br />

foi linda, toda floreada<br />

nos tons menores de ré<br />

(– “Vi – contou-me Dona Dirce –<br />

mais de uma açucena abrir-se,<br />

no bastão de São José!”).<br />

A própria Virgem, dir-se-ia,<br />

pede ao Senhor, na harmonia<br />

do Seu sorriso sem véu:<br />

“Fique nas onze, parado,<br />

o sol, ponteiro dourado<br />

do omega 40 imenso do Céu”...<br />

Mas, logo é a tarde, o que resta!<br />

Não é que, em tempo de festa,<br />

o pêndulo, é o coração?<br />

Goza esses breves enganos,<br />

tu, que tens trezentos anos<br />

só de tristeza, Sertão!<br />

***<br />

O espiritista Macário<br />

quase briga com o vigário,<br />

por causa de Alan Kardé: 41<br />

493


494<br />

– era o nome do afilhado...<br />

Fez-se, enfim, o batizado;<br />

selou-se a paz – com rapé!<br />

Por que não, se o padre é um santo?<br />

Lidou tanto, perdoou tanto,<br />

que anda curvado, a tremer...<br />

A cabeça, alva, é um capulho, 42<br />

esgarçado ao sol de julho...<br />

– São Marcelino 43 há de ser.<br />

A procissão...Vai na frente,<br />

oscilando, docemente,<br />

a Virgem, no seu andor.<br />

De um lado e de outro, meninas.<br />

O sol acende cravinas 44<br />

nas pedras do resplendor... 45<br />

Colchas de seda, às janelas.<br />

Mais rica, entre todas elas,<br />

– que lindo contraste faz! –<br />

é a de damasco encarnado,<br />

no azulejo do sobrado<br />

do abagão 46 José Tomás.<br />

Quem não tem seda, se arranja<br />

com qualquer pano de franja,<br />

pois, o que voga, é a intenção.<br />

Mesmo uma singela toalha,<br />

quem é que diz que não valha<br />

este preito à Conceição?


Toca a Euterpe, 47 caprichosa,<br />

uma valsa bem cheirosa...<br />

– o conjunto é firme e é bom!<br />

Quinze figuras. Mas, vale!<br />

Essa banda é mesmo o diale, 48<br />

com João Aprígio ao pistom!<br />

Sopra o trombone-de-vara,<br />

Cadete Felipe (a cara<br />

papuda, que nem mamão).<br />

Fumaça é o do bombardino.<br />

Magro, alto, Antônio Sabino<br />

pinica 49 no carrilhão! 50<br />

Artur Aprígio é o da caixa,<br />

mas a pose não relaxa<br />

– e quanta inveja me faz!<br />

Por que inveja não sentires,<br />

do flautim de Heráclio Pires, 51<br />

tinindo 52 agudos marciais?<br />

Sobre a valsa, quando a quando,<br />

floreia um bemol, lembrando,<br />

na melodia louçã, 53<br />

um sabiá envultado 54<br />

no clarinete magoado<br />

do cabra José Canã...<br />

E há outras figuras grandes:<br />

o mestre Manoel Fernandes,<br />

o Mozart do Seridó,<br />

495


496<br />

aí trouxe a requinta à festa.<br />

Esse concurso que empresta,<br />

vale uma banda – ele, só!<br />

***<br />

Vejam! Baracho Condessa,<br />

com um tijolo na cabeça,<br />

reza, ao pé da santa cruz!<br />

Velho tutu 55 sertanejo!<br />

– quinze mortes, por um beijo!<br />

– João Valjean, 56 junto a Jesus...<br />

De opa 57 roxa, o velho Freitas<br />

esturra 58 com os nova-seitas, 59<br />

num tom rezingueiro 60 e mau...<br />

Berra o escrivão, da varanda:<br />

–”Capa-verde 61 aqui, não manda!”–<br />

E quase que havia pau...<br />

No sobradão da <strong>In</strong>tendência,<br />

somente por influência 62<br />

das meninas 63 do Juiz,<br />

baile – obrigado a quadrilha<br />

–”Trevessê!”– Que maravilha!<br />

Marca, “em francês”, seu Mariz...<br />

A pobre Rita da Rama<br />

tem um moleque de cama,<br />

morrendo de inflamação:<br />

foi apoitar 64 a taquara


de um foguete que falhara,<br />

e a bomba estourou na mão...<br />

Já a girândola, 65 domingo,<br />

comprado o fogo no gringo,<br />

Zuca Caloti, falhou.<br />

Por isso – bem empregado! –,<br />

Salitre falsificado,<br />

é o apelido que pegou...<br />

“Ah, fogueteiro porróia”–, 66<br />

disse o noiteiro, 67 João Góia,<br />

danado, a Pedro de Biu. 68<br />

Ajunta Tóta Germano:<br />

–”Afiná, é o intaliano<br />

mais ruim, que a <strong>In</strong>tália cuspiu!”–<br />

Fecham-se as casas, de novo...<br />

– dois terços ficam sem povo.<br />

Que tristeza, em tudo cai!<br />

Quanta cabeça fervendo!<br />

Quem fica – só mesmo vendo!<br />

– Que dirá de quem se vai?<br />

497


498<br />

Notas ao Canto 13<br />

Tundé: Vozeria, barulho. Veja-se o verbete “tribuzana”, em Notas<br />

ao Canto 5.<br />

<strong>In</strong>gonga: Complicação, encrenca. Veja-se anotação a angu, no<br />

Canto 11.<br />

Muxicão: Beliscão.<br />

Oriza: Óleo de toucador, finamente perfumado, de fabricação<br />

francesa e que, há 40 anos, foi muito usado pelos pacholas, 69<br />

bonitões do sertão. Com ele, se besuntavam vastamente a cabeleira<br />

e os bigodes...<br />

Cera: Veja sinonímia desta expressão, no Canto 7, Notas.<br />

Croinha: Menino ou rapagote que ajuda a missa, usando batina e<br />

sobrepeliz, 70 no ato. Espécie de auxiliar de sacristão.<br />

Catingueira: Leguminosa, Cesalpinea gardneriana. É, com o angico<br />

(Pithecolobium gummiferum), a mais famosa lenha do sertão.<br />

Amufumbar ou amofambar, 71 esconder, enfurnar, encafuar. Deriva<br />

de mofumbo (Viborgia polygaliformis), arbusto rasteiro, vicejando<br />

em tufos crespos, verde-cinza, à beira dos rios e córregos.<br />

Floresce em delicados corimbos 72 brancos, muito cheirosos.<br />

Alcoviteiro: Pequeno candieiro, de folha-de-flandres.<br />

Sapecar: Jogar com força, com vivacidade.<br />

Peça: Fogo de vista, “roda”, engenho pirotécnico, dos quais<br />

havia a mais caprichosa variedade, durante as noites de novenário<br />

da padroeira, em todas as cidades do sertão.


Mamulengo: Calunga, boneco (marionete). Alusão, na sextilha,<br />

a um dos fogos de artifício exibidos na festa.<br />

Putici (Potici): Grande quantidade, multidão.<br />

Mulher-dama: Prostituta.<br />

Bromar: Degenerar (desonerar), falhar.<br />

Lodaça: Veja-se anotação à palavra goga, em Notas ao Canto 4.<br />

Diale: Diabo. Veja-se anotação à palavra droga, no Canto 4.<br />

Pinicar: Beliscar. Bater rápido, miúdo. Significa, também, esporear<br />

vivamente a montada. No argot 73 automobilístico, a expressão,<br />

já de há muito circula pacificamente, na significação de acelerar<br />

a marcha, chispar, enrolar, queimar, pisar.<br />

Carrilhão: Lira. <strong>In</strong>strumento de percussão, usado antigamente<br />

nas bandas de música. Tinha o formato de uma lira, alongada, com<br />

barras paralelas, de metal niquelado, diminuindo de tamanho em<br />

direção ao ápice, e nas quais batia o músico, com uma hastezinha<br />

de ferro.<br />

São Marcelino: Todo este poema, desde a primeira página, vêse<br />

logo, é uma apologia, uma defesa do sertão e da admirável gente<br />

– vítimas, imbeles 74 e resignadas, do celerado abandono a que,<br />

de trezentos anos a esta época de atômica superfetação 75 da democracia,<br />

os relegaram, os políticos e o governo da república;<br />

vítimas da imbecil ironia de muitos “escritores’ e “poetas” grã-finos,<br />

irmãos desnaturados, caluniadores de Jeca Tatu e Manoel<br />

Xiquexique, que aqui continuam a lutar sozinhos, pegando queda<br />

de corpo com o sol, para gáudio do parasitismo dourado dos “mestiços<br />

neurastênicos do litoral”.<br />

499


500<br />

A expressão anotada inspira-se nas recordações de infância do<br />

Autor, quando via ele, na figura do pároco de uma freguesia, a<br />

encarnação da pureza e da bondade dos velhos ministros da Igreja,<br />

e cujas mãos eram beijadas, a cada encontro do dia, por todos<br />

os habitantes do lugar.<br />

Seguem umas notas biográficas, devidas à incansável<br />

prestimosidade do Dr. Heráclio Pires, que já ilustrou várias das<br />

presentes Notas. Delas ressalta, simpática e original, a personalidade<br />

do vigário de Jardim do Seridó, naquela época (1899-1908),<br />

e evocada no poema:<br />

Era paraibano, e chegou ao Jardim em fins de 1899,<br />

como vigário. Foi um dos melhores homens – padres,<br />

sobretudo – de quantos tenho conhecido. Quando<br />

aqui chegou, já beirava pelos oitenta anos, trazendo<br />

uma velha criada e uma moçoila, que era sua sobrinha.<br />

O padre Marcelino Rogério dos Santos Freire<br />

era tio legítimo do major Umbelino Freire de<br />

Gouveia Melo, que foi administrador dos Correios,<br />

em Natal. A indumentária do velho sacerdote era o<br />

que havia de mais pitoresco, e assim o vi milhares de<br />

vezes. Avalie o amigo como ele resolveu o caso do<br />

preço, então elevadíssimo, dos chapéus sacerdotais:<br />

chamou a um dos nossos mais hábeis “carapuceiros”<br />

(fabricantes de chapéu-de-couro), deu-lhe todas as<br />

medidas, e mandou fazer um chapéu de couro para o<br />

seu uso diário, com o formato dos chapéus de padre;<br />

depois de bem pintado a Nubian, 76 ficou mesmo um<br />

belo chapéu. Restava o caso da batina, o que, entretanto,<br />

não embraçou o nosso herói: mandou costurála<br />

de brim preto, com a dupla vantagem de ser mais<br />

fresca, neste rigoroso clima do sertão, e mais econômica!<br />

Veja que tudo ele resolveu sem ferir as exigências<br />

litúrgicas ou canônicas e, portanto, merecia


aplausos. Também conheci aqui um oficial da nossa<br />

polícia e que, um belo dia, me apareceu no balcão (o<br />

Dr. Heráclio manteve uma ótima farmácia, em Jardim,<br />

por alguns decênios) com uma farda... de brim<br />

preto! Com os respectivos galões e botões próprios;<br />

menos, apenas, o cinturão... Censurando, eu, a propósito,<br />

o mau gosto da nossa polícia, em adotar tal<br />

fazenda para os seus oficiais, ele me respondeu, com<br />

a maior naturalidade, que absolutamente não se tratava<br />

disso e, sim, que havia mandado confeccionar<br />

aquela farda funérea, porque lhe havia morrido o pai!<br />

[...]. Voltando ao padre Marcelino: aqui passou ele<br />

cerca de 8 a 10 anos, durante os quais amealhou alguma<br />

pecúnia. Voltou à Paraíba, onde D. Adauto o agraciou<br />

com o título de Cônego. Ali morreu, com mais<br />

de 90 anos de idade.<br />

<strong>In</strong>fluência: Jovialidade, comunicabilidade. Também significa namoro<br />

(Veja-se Nota à palavra “chamego”, no Canto 7). Lembre-se,<br />

aqui, que, no sertão, o termo influência só é tomado em acepção<br />

platônica.<br />

Menina: <strong>In</strong>variavelmente usado no plural. É um diminutivo familiar<br />

de filha. O matuto, em vez de – filhas – diz, sempre, e em<br />

especial se se trata da parentela ou de pessoa de sua amizade íntima,<br />

as meninas de Fulano ou de Beltrano, e por mais velhas que<br />

elas sejam. Somente se refere a filhas ou moças, em tratando de<br />

filhas de gente de categoria muito superior às do seu meio, e estranhos<br />

a este. Até mesmo as filhas do juiz de Direito da comarca<br />

mereciam o carinho geral do diminutivo, pois o juiz, embora a<br />

mais alta autoridade local, universalmente respeitada, consultada<br />

e querida, era, com raras exceções, pessoa do casco da fazenda, 77<br />

um filho do sertão, que fora “tirar a carta” 78 e viera morar entre a<br />

sua boa gente – com os mesmos hábitos, a mesma psicologia, os<br />

501


502<br />

mesmos recalques, os mesmos preconceitos, superstições, e<br />

cacoetes prosódicos.<br />

Porróia: Sem valia, ruim, desprezível (é adjetivo). Porqueira<br />

(Idem). Veja-se a palavra “tiborna” e sua sinonímia, em Notas ao<br />

Canto 4). 79


1 Ver nota de OM.<br />

Notas<br />

2 Sinal sagrado instituído por Jesus Cristo para distribuição da salvação divina<br />

àqueles que, recebendo-o, fazem uma profissão de fé. São sete: o batismo,<br />

a confirmação ou crisma, a eucaristia, a penitência ou confissão, a<br />

ordem, o matrimônio e a extrema-unção.<br />

3 Ver nota de OM.<br />

4 Idem.<br />

5 Idem, idem.<br />

6 Ver nota de OM.<br />

7 Idem.<br />

8 Idem.<br />

9 Idem.<br />

10 Languidez.<br />

11 Bolinho seco e farináceo, feito, em geral, de polvilho de araruta.<br />

12 Ver nota de OM.<br />

13 Repreensão, chamada, esporro, descompostura.<br />

14 Aquele que se lambuza ao comer; porcalhão, imundo.<br />

15 Empanzina-se, empanturra-se, abarrota-se.<br />

16 Alcoviteiro ou periquito: candeeiro de pequeno formato, feito de folhade-flandres<br />

e com pavio de algodão; bibiano, corriqueiro, fifó, mexeriqueiro.<br />

17 O sacramento da Eucaristia.<br />

18 Ver nota de OM.<br />

19 Idem.<br />

20 Óculos sem haste que uma mola prende no nariz.<br />

21 Roda-de-fogo, artefato pirotécnico.<br />

22 Boneco pequeno.<br />

23 Trabalho realizado por duas pessoas que socam ao pilão produtos como<br />

arroz, café, milho etc., alternando os movimentos de elevar a mão (peça<br />

do pilão) e de abaixá-la para amassar ou triturar o produto. Movimento<br />

característico dessa atividade ou trabalho; sula.<br />

503


504<br />

24 Ver nota de OM.<br />

25 <strong>In</strong>gresia, qualquer coisa complicada.<br />

26 Painel.<br />

27 A padroeira de Jardim do Seridó/RN: Nossa Senhora da Conceição<br />

28 De timbre fino como o da prata (voz, som).<br />

29 Chouriço. Enchido de porco, cujo recheio é misturado com sangue e<br />

curado ao fumo.<br />

30 Ver nota de OM.<br />

31 Série de fotografias de vários países observadas por aparelhos óticos que<br />

as ampliam. Aparelho com que se observam essas vistas. Lugar onde se<br />

expõem.<br />

32 Nota de OM. Sinonímia: acompanhante, abre-abre, alto bordo (das elites),<br />

andorinha, aranin, argentina (loura), ave, buceta de ouro (prostituta<br />

nova), bagaxa, bagaço, bagageira, bagaxa, balalaica, barca, baronesa (prostituta<br />

velha),barca, basila, BBC (boca, boceta, cu), bicha, biraia, biriba,<br />

bisca, biscaia, biscate, bofe, boi, bruaca (prostituta velha), boneja, brega,<br />

bregueira, broa, bucho, cabaço de todos, caborge, cação, caçarola, cachorra,<br />

cadela, camélia, canganha, canguicha, cantoneira, carapanã, carcaia,<br />

caridosa, carne nova, carniça (com doença venérea), carro novo (prostituta<br />

nova na atividade), casca de jaca, catenga, caterina, catraia,cabrinha, camélia,<br />

chandoca, china, chuteira, cipuína, clori, coco, cocote, comida,<br />

côngria, chobrega,coquinho, cotruvia, couro, couro de tambor, cróia, crota,<br />

cuia, culatrão, dadeira, dama, decaída, doidivana, égua, ervoeira, escrachada,<br />

escrava branca, escarradeira humana, esquinista, fadista, fardeira, feme,<br />

fêmea, findinga, frega, frete, frincha, fuampa, fubana, fuleira, fúnfia, fusa,<br />

gabirua, gado, galdéria, galinácea, galinha, galinha de pé roxo, galinha morta,<br />

galinha-polaca, galiquenta, galvinhão, ganapa, gansa, garota de programa,<br />

gata, gatuna, geobra, girafa, gira-bolsinha, giradora de bolsinha, guampa,<br />

guerreira, hetaira, horizontal, jereba, jerianta, jupira, juruveva, laranja-caída-na-estrada,<br />

lascada, léia, leona, libélula, livre, loba, loureira, madalena,<br />

madama, malote, mangue, maquininha, marafaia, marafona, marca, mariado-cais,<br />

mariposa, marmita, messalina, menina de programa, michê,<br />

michela, mija-homem, militriz, minestra, minólia, minota, miraia, moça,<br />

moça-dama, moça-do-facho, moça-do-fado, morubixaba, mosca, mulher,<br />

mulher alegre, mulher à-toa, mulher cabreira, mulher da comédia, , mu-


lher-duvidosa, mulher da zona, mulher de bará, mulher de janela, mulher<br />

porta aberta, mulher de porta de quartel, mulher-de-soldado, mulher de<br />

vida fácil, mulher do facho, mulher errada, mulher do fado, mulher do<br />

fandango, mulher do mundo, mulher do pala aberto, mulher errada,<br />

mulher perdida, mulher pública, mulher solteira, mulher da rua, mulher<br />

da rótula, mulher da zona, mulher-dama, mulher de amor, mulher do<br />

mundo, mulher de má-nota, mulher de ponta de rua, mulher perdida,<br />

mulher vadia, mundana, murixaba, muruxaba, na vida, orinéia, ostra,<br />

paloma, pataqueira, pécora, peixe fresco, pelherma, penga, perdida, perua,<br />

perva, perversa, piguancha, pinica, piniqueira, piranha, piranhuda,<br />

pirara, piroqueira, pistoleira, piturisca, polaca, prejereba, prima, putana,<br />

profissional do amor, puara, puriba, puta rampeira, putanesca, putanete,<br />

putéfia, putete, putinha, putona, quenga, querrenca, rabaceira, rampeira,<br />

rampideira, rapariga, rascoa, ratuína, reboque, respeitosa, roda-bolsinha,<br />

rota, rongó, run-run-run, solteira, surrubango, sutanha, taioba,<br />

tamanqueira, tambor de guerra, tampa, tia, tigrona, tiro-a-esmo, tolerada,<br />

torta, trabalhadeira, trabalhando no desvio, transviada, traviata, trepadeira,<br />

trem da central, tronga, uru, vaca, vagabunda, vaqueta, vasculho, veadinha,<br />

ventena, vênus de rua, vigarista, vigara, vulgífara, xandra, xerete, zabaneira,<br />

zoina, zunga.<br />

33 Ver nota de OM.<br />

34 Ver nota de OM.<br />

35 Entrega da noite. Horário do encerramento das práticas religiosas, no<br />

interior da igreja.<br />

36 Fogo-de-bengala. Fogo de artifício que, sem fazer barulho, arde produzindo<br />

belos efeitos multicoloridos.<br />

37 OM pode ter se enganado no título da música (Ilusão Desfolhada). Popular,<br />

na década de 1930, foi a valsa Rosa Desfolhada, de Zequinha de Abreu e<br />

Dino Castello, gravada, em 1929, pela Orquestra da Rádio Central, no<br />

Rio de Janeiro.<br />

38 Percorre, navega, flutua.<br />

39 Entre os cantadores de desafios, breves trechos musicais executados em<br />

viola e/ou em rabeca, antes de se iniciarem os versos, geralmente em<br />

andamento mais rápido que a cantoria; baião.<br />

40 Relógio Omega, suíço, de alta qualidade.<br />

505


506<br />

41 Allan Kardec. Ver no ensaio sobre Ferreira Itajubá.<br />

42 Cápsula dentro da qual se forma o alvo algodão.<br />

43 Padre Marcelino Rogério dos Santos Freire (Vigário de Pedra Lavrada/PB,<br />

de 1860 a 1870 e de Jardim do Seridó entre 1899 a 1908). Ver<br />

nota de OM.<br />

44 Planta ornamental, com muitos caules ramificados, da família das<br />

cariofiláceas (Dianthus plumarius), de cuja espécie se obtêm numerosas<br />

variedades; cravo-bordado.<br />

45 Peça, adereço, das imagens dos santos. Círculo dourado ou peça de metal<br />

circular com que pintores e escultores circundam muitas vezes a cabeça<br />

de Cristo, da Virgem e dos santos.<br />

46 Veríssimo de Melo – depois de OM, portanto –, em 1977, registrou para<br />

abagão: figurão, maioral, coronel (Folclore brasileiro: Rio Grande do Norte.<br />

Rio de Janeiro, Funarte, 1977, p.1416). Houaiss aponta abegão<br />

como”administrador ou feitor de quinta ou herdade e/ou encarregado de<br />

abegoaria”. Aurélio, também para abegão, diz se tratar de homem da abegoaria<br />

(lugar onde se recolhe gado e/ou se guardam utensílios de lavoura, carros,<br />

etc.) e/ou feitor de propriedade.<br />

47 Deusa da música e da poesia lírica. Nome comum dado às bandas de<br />

música, à época. Centenária, ainda existe, em Jardim do Seridó, a “Euterpe<br />

Jardinense”, de que trata a sextilha.<br />

48 Ver nota de OM.<br />

49 Idem,<br />

50 Idem, idem.<br />

51 Ver Notas ao Canto 1.<br />

52 Soando (o metal) aguda ou vibrantemente.<br />

53 Provida de adorno; enfeitada, louçainha, garrida, vistosa, ataviada.<br />

54 Escondido, enfeitiçado.<br />

55 Monstro imaginário com que se faz medo às crianças; bicho-papão, bitu,<br />

boitatá, coca (ô), coco (ô), cuca, imba, papa-gente e (bras.) manjaléu,<br />

mumuca, papa-figo.<br />

56 Jean Valjean. Personagem principal do celebrado romance Os Miseráveis<br />

(1862), de Victor Hugo, narrando a revolução política ocorrida em 1830,<br />

que derrubou o reinado de Luís Filipe I, da França, através da história de


um cidadão francês da época. Jean Valjean é preso e condenado a cinco<br />

anos de prisão por roubar um pão para alimentar-se, porém a pena estende-se<br />

devido às diversas tentativas de fuga, que lhe renderam longos 19<br />

anos de cárcere. O livro narra esse período de sua vida, bem como tudo o<br />

que aconteceu após Valjean ganhar liberdade condicional.<br />

57 Espécie de capa sem mangas, com aberturas por onde se enfiam os braços,<br />

usada pelas confrarias e irmandades religiosas.<br />

58 Resmunga, exalta-se, inflama-se.<br />

59 <strong>In</strong>divíduos que aderem ao protestantismo; crentes, “bíblias”.<br />

60 Rabugento, ranheta.<br />

61 O diabo.<br />

62 Ver nota de OM.<br />

63 Idem.<br />

64 O termo, formalmente, é de marinharia – lançar poita. Fundear em poita<br />

(espécie de âncora). Nos folguedos infantis significava correr atrás, disputando<br />

com os companheiros, a posse dos restos dos balões, das taquaras<br />

dos fogos de artifício, das pipas (corujas, papagaios), “cortadas” pelo cerol<br />

(mistura de cola de madeira e vidro moído que as crianças passam na linha<br />

dos papagaios para cortar as de outrem; cortante, preparo).<br />

65 Roda ou travessão em que se reúne certo número de foguetes, que sobem<br />

e estouram simultaneamente. O conjunto dos foguetes assim reunidos.<br />

66 Ver nota de OM.<br />

67 Cada uma das pessoas incumbidas de concorrer, financeiramente ou por<br />

outros meios, para o brilhantismo das noites de novena das festas públicas<br />

de uma igreja.<br />

68 Biu. Apelido de Severino, principalmente na Paraíba.<br />

69 Madraço, mandrião; farsola, farsante; patusco. <strong>In</strong>divíduo pedante, cheio<br />

de si. <strong>In</strong>divíduo de elegância duvidosa. Homem femeeiro, mulherengo.<br />

70 Veste branca, com rendas ou sem elas, usada pelos clérigos sobre a batina.<br />

71 Ocultar em lugar escuso, em mofumbo; esconder, ocultar. Amofumbar.<br />

72 <strong>In</strong>florescência em que as flores partem de alturas diferentes e alcançam o<br />

mesmo nível, na porção superior.<br />

507


508<br />

73 Palavra do idioma francês. Jargão ou linguagem específica, utilizada por<br />

um grupo de pessoas que compartilham algumas características comuns,<br />

como categoria social, profissão, procedência ou gostos.<br />

74 Que não é belicoso; não beligerante.<br />

75 Coisa que se acrescenta inutilmente a outra; excrescência, redundância.<br />

76 Antiga marca de tinta para calçados.<br />

77 No Ceará, a expressão “ficar no casco da situação”, significa, segundo o<br />

Aurélio, “perder (o fazendeiro), numa seca, todo o gado, restando-lhe só as<br />

terras da fazenda; perder ferro e sinal”.<br />

78 Formar-se, diplomar-se, “botar o anel no dedo”, geralmente em Recife/<br />

PE.<br />

79 O Houaiss regista forróia: égua velha.


Canto 14<br />

Roteiro dos diamantes


Foi meu primeiro segredo,<br />

flor de sorriso e de medo,<br />

corada ao sol do Jardim... 1<br />

(Que pena da sertaneja!)<br />

Acaso – se mais não seja –,<br />

lembra-se, às vezes, de mim...).<br />

Ó quadras da primavera!<br />

Tanto sonho! Quem me dera<br />

meus sonhos, todos – aí!<br />

Sim! Nessa estância serena,<br />

rever a esbelta morena,<br />

minha tímida Ceci! 2<br />

Paixão lírica, inocente,<br />

suspiros, ciúmes, somente<br />

– e um beijo, num malmequer...<br />

Deu-me um cacho de cabelo,<br />

um dia. – “Não vá perdê-lo!<br />

“queime ele, se não quiser!...”<br />

Serões do Natal, nas vilas,<br />

essas Betânias 3 tranquilas,<br />

cheias de aroma e clarão!<br />

Terços, fobós, 4 farinhadas...<br />

Moças de tranças floradas<br />

de cravo e manjericão!<br />

511


512<br />

Uma, vivaz, de olhos pretos,<br />

pediu-me “as Festas”. 5 – “Sonetos,<br />

queres menina?” – “Num sei...”–<br />

E, porque tal não bastasse,<br />

um beijo doido, na face,<br />

foi a “festa” que lhe dei...<br />

Fartura, paz, alegria!<br />

Nem, ao menos, se sabia<br />

do bom do Papai Noel...<br />

– Pra que, se a gente sambava<br />

toda a noite, e ainda esquipava 6<br />

na droga do carrossel?<br />

O mês de maio era um drama:<br />

– trinta e um dias em chama<br />

o coração a aspirar<br />

o cheiro de fruta brava<br />

que “ela”, passando, deixava<br />

na aragem crepuscular...<br />

Se escuto, ainda hoje, um sino,<br />

batendo triste, argentino,<br />

a um pôr-do-sol, no meu ser<br />

vibra a acústica dorida<br />

da Saudade – urna pendida<br />

dentro d’alma, a rescender...<br />

Sabiá, lira da tarde!<br />

Enquanto o crepúsculo arde,<br />

no flamboyant todo em flor,


na pauta da ave-maria,<br />

saudade e saudade envia,<br />

às donas do meu amor!<br />

Todas, lindas, todas, puras!<br />

Castas, esquivas criaturas,<br />

de olhos úmidos de luz...<br />

Ah, sertão rude e distante!<br />

– velha mina do diamante<br />

que tantas jóias produz!<br />

513


514<br />

Notas<br />

1 O município de Jardim do Seridó. Desmembrado de Acari/RN, em 1º de<br />

setembro de 1858, pela Lei nº 407, o povoado de Conceição (dos Azevedo)<br />

passou a município com a denominação de Jardim. A Lei Estadual<br />

703, de 27 de agosto de 1874, para diferenciar de Jardim de Angicos, o<br />

município passou a ser chamado de Jardim do Seridó.<br />

2 Diminutivo de Cecília, personagem de O Guarani, de José de Alencar, filha<br />

de D. Antônio de Mariz, fidalgo português; protegida e amada de Peri, o<br />

herói do romance, um índio.<br />

3 Referência à Betânia ou Bethânia, aldeia em Israel, próxima de Jerusalém<br />

e do Monte das Oliveiras. É mencionada diversas vezes (doze, mais exatamente)<br />

na Bíblia, como tendo sido visitada por Jesus Cristo. Deu origem<br />

a nomes de diversas localidades em todo o mundo, de acordo com as<br />

variantes em cada idioma, por exemplo, Bethany, em inglês. Originou igualmente<br />

o nome feminino Betânia, pois era onde morava a irmã de Lázaro,<br />

Maria de Betânia.<br />

4 Bailes populares; arrasta-pés; reuniões informais, geralmente familiares,<br />

para dançar.<br />

5 Presentes trocados especialmente por ocasião da passagem do Natal.<br />

6 Realizar (o cavalo) a andadura, denominada esquipado (andadura na qual<br />

este levanta simultaneamente o pé e a mão do mesmo lado).


Canto 15<br />

Minha viola a chorar


À tarde, o langor sidéreo 1<br />

cai no humilde cemitério,<br />

em vaporosas visões.<br />

Minha mãe dorme, a um cantinho...<br />

Sua alma de passarinho<br />

chora, nas minhas canções.<br />

Que, um dia, também, ao lado<br />

desse túmulo escalvado, 2<br />

possa – esquecido! – dormir!<br />

Nem pedra, nem cruz. Por cima,<br />

apenas, a agreste rima<br />

de uma jurema – a florir... 3<br />

(O corpo dorme. É outro, o ritmo<br />

da Alma – ardente logaritmo,<br />

que só com o Ideal condiz.<br />

Que vale, pois, um letreiro,<br />

sobre o nada passageiro<br />

da crisálida infeliz?).<br />

O epitáfio mais pomposo,<br />

a quem, porventura, o gozo<br />

do que não teve, dará?<br />

– Na vala comum, não dorme,<br />

o diamante rude e enorme<br />

do crânio de Itajubá? 4<br />

517


518<br />

E eis o que este te diria,<br />

sem a santa hipocrisia<br />

do que te disse – por Deus!<br />

Vê quão fiel se te ajusta,<br />

Natal, cidade-Locusta 5 ,<br />

Cornélia... 6 de filisteus!<br />

–”A terra onde tenho o nome,<br />

mata os poetas – de fome.<br />

Profeta, nenhum se viu...<br />

A parábola de Cristo<br />

não teve melhor registo,<br />

mais dura não se cumpriu!<br />

“Moura-torta 7 de poetas!<br />

Em minha vida, completas<br />

o que fizeste aos demais!<br />

Não venhas, depois, no trilho<br />

dos meus versos: – Ai, meu filho!–<br />

carpir, 8 madrasta mendaz! 9<br />

És linda. Iara 10 morena,<br />

pulando da água serena<br />

do Potengi, 11 a cantar,<br />

nua, à sombra dos coqueiros,<br />

perfumada de cajueiros<br />

– os seios furando o mar... 12<br />

–Jamais quiseste, entretanto,<br />

ouvir o amoroso canto<br />

de um filho. Formosa e cruel,


à míngua os matas. E, calma,<br />

lhes negas tivessem alma.<br />

És mãe – como a cascavel... 13<br />

Porventura, alguma estátua<br />

já ergueste, cabocla fátua, 14<br />

a quem fosse meu irmão?<br />

Se a políticos se faça,<br />

quando farás, e em que praça,<br />

a de Alberto Maranhão? 15<br />

Órfão de paz e conforto,<br />

que importa – depois de morto –<br />

teus remorsos merecer?<br />

Maldita sejas se, um dia,<br />

tentares, hiena impia,<br />

as cinzas me revolver! 16<br />

De resto, não m’as perdeste?<br />

Melhor destino, foi este,<br />

que o de um rótulo em latim<br />

– língua de enterro e de foro,<br />

em que se diz que foi de ouro<br />

tanta vasilha ruim...<br />

A glória a que aspiro – a única –,<br />

a que há de ser minha túnica,<br />

mais sagrada que a de um rei,<br />

posse, intangível, se planta<br />

na alma do povo – que canta<br />

as canções que lhe ensinei!<br />

519


520<br />

Conceito geral, que a História<br />

tem dado à palavra – glória –,<br />

Que pesas, sem a exceção?<br />

Quem, no tempo, é mais gigante:<br />

Francisco de Assis ou Dante?<br />

O Cérebro, ou o Coração?<br />

Nascido sobre palhinhas,<br />

mais humilde que as rolinhas<br />

– nu e Só, morre na Cruz...<br />

Que Papa, na História inteira,<br />

vale um átomo, da poeira<br />

das jornadas de Jesus?<br />

Feliz, quem possa, chegado<br />

do mundo, ao Céu estrelado,<br />

alto, à Consciência, dizer:<br />

– “Amei!” Por amor, somente,<br />

vir à terra, novamente,<br />

sofrer! Batalhar! Viver! 17


Notas ao Canto 15<br />

Itajubá: Manoel Virgílio Ferreira Itajubá, nascido em Natal,<br />

em 21 de agosto de 1875. Foi o maior poeta do Rio Grande<br />

do Norte, em todos os tempos; o legítimo criador de nossa poesia<br />

regionalista, renovador incontestável da lírica potiguar. E, tudo,<br />

franciscanamente desprovido de cultura literária – de cultura de<br />

qualquer natureza. Espécie de rude Burbank 18 da poesia, mago<br />

plebeu, enxertando no carcomido tronco do salgueiro<br />

portucalense – já transplantado da <strong>In</strong>glaterra, com Byron, e, da<br />

França, com Lamartine 19 e Chateaubriand –, 20 selvas olorosas,<br />

aromas acres e salubérrimos de cajueiros e maçarandubas agrestes.<br />

Arrastou – e, por que não? – uma existência misérrima, salteada<br />

de privações estomacais, de humilhações de toda espécie, negado,<br />

desamparado, ridicularizado, hostilizado pelos filisteus e pelos<br />

políticos. Estes, ao tempo, parece que premonitoriamente desconfiados<br />

dos flamantes discursos de Itajubá, em passeatas e greves<br />

de operários, apenas lhe não pespegaram a cominatória de<br />

“comunista”– 21 como a outros, depois, aconteceu – porque era<br />

temporã, 22 essa pecha, posteriormente a 1935 tão cômoda de<br />

aplicar ao canastro 23 dos que não liam pela cartilha dos “democratas”,<br />

dos “cristãos” no poder. 24<br />

Morreu no Rio, em leito de indigente, num hospital, em 30 de<br />

junho de 1912, “vítima de um médico que não acreditava na<br />

assepsia”, conforme o autorizado testemunho de Câmara Cascudo,<br />

em Alma Patrícia (1921).<br />

Seu enterro, numa aspérrima tarde de inverno carioca, foi feito<br />

às expensas de conterrâneos, pelo caridoso intermédio de<br />

Aristóteles Costa e Eloy de Souza. As cinzas, por este último<br />

trazidas para Natal, perderam-se, jogadas a uma vala comum, du-<br />

521


522<br />

rante a última reforma efetuada na Igreja do Bom Jesus das Dores,<br />

na Ribeira, onde tinham sido depositadas.<br />

Há dois livros de Itajubá, publicados: Terra Natal (1914), pela<br />

Tipografia do <strong>In</strong>stituto Histórico, e Harmonias do Norte (incluindo<br />

uma segunda edição do primeiro, e sob o título de Obras completas,<br />

1927). São livros muito raros, hoje, e cremos que não foi além de<br />

duzentos exemplares, cada tiragem.<br />

Eis uns versos, destacados do primeiro (Canto XXXII) e que<br />

bem eloqüentemente atestam o que sofreu Ferreira Itajubá “da<br />

moura-torta de poetas”:<br />

Caridade, não há, pois tenho padecido<br />

fome e sede, e sei como é viver mal vestido,<br />

e passar, na existência, uma semana inteira,<br />

pobre de pão na bolsa e água na cantareira!<br />

Uma canção, de Harmonias do Norte, que reúne as melhores<br />

poesias, inclusive seis a oito “modinhas”, lindíssimas, musicadas por<br />

Eduardo Medeiros, Cirilo Lopes, Virgílio Carneiro, e outros.<br />

Esta tem a solfa do primeiro desses compositores:<br />

BARCAROLA<br />

Não te recordas querida,<br />

Da noite em que nos beijamos,<br />

Sob a frescura dos ramos<br />

Da laranjeira florida?<br />

Gemia a viola na aldeia,<br />

A brisa um hino entoava,<br />

E a luz da lua inundava<br />

A terra – de rosas cheia.<br />

Lá na planície da serra,<br />

Junho alourava as espigas.<br />

Vinham de longe, as cantigas


Das moças de minha terra,<br />

Quando te vi, linda flor,<br />

E da noite à doce calma,<br />

Derramaste na minha alma<br />

O eflúvio do teu calor.<br />

Saudade! Quanta saudade<br />

Da noite em que, ao céu sereno,<br />

Tu me abriste o seio, pleno<br />

De aroma e de mocidade!<br />

A sombra da laranjeira,<br />

Por ti, visão da alegria,<br />

Do meu beijo a cotovia<br />

Cantou, pela primeira vez!<br />

Tu esqueceste os ditosos<br />

Domingos embalsamados,<br />

E os cantos apaixonados<br />

Dos jangadeiros saudosos<br />

Que, ao céu transparente e azul,<br />

Do estio nas tardes belas,<br />

Passavam, moldando as velas,<br />

Abertas ao vento sul!<br />

Tudo esqueceste, e mais nada<br />

Resta, em tua alma enganosa,<br />

Dessa paixão desditosa,<br />

Dessa ilusão desfolhada<br />

Que eu lembro todos os dias,<br />

Pensativo, a cada instante,<br />

Ó lavandisca inconstante<br />

Das areias alvadias!<br />

Talvez que essa alma não possa<br />

Acreditar, nunca mais,<br />

Nos teus beijos aromais,<br />

523


524<br />

Nos teus sorrisos de moça!<br />

Oh, meu doce malmequer,<br />

Que me deixaste em janeiro!<br />

como tudo é passageiro,<br />

no coração da mulher!<br />

O escritor José Bezerra Gomes, 25 autor de Os Brutos e Por que<br />

não se casa Doutor? (romances), publicou um excelente Retrato de<br />

Ferreira Itajubá, 26 e tem pronta para o prelo, minuciosa biografia<br />

do poeta. O professor Clementino Câmara, 27 membro da Academia<br />

Norte-Rio-Grandense de Letras e casado com uma sobrinha<br />

de Itajubá, tem também, pronta, a história do genial felibre. O<br />

Autor deste poema publicou, em 1948, no jornal O Democrata,<br />

uma série de trechos do ensaio que tem pronto, sobre o cantor de<br />

“Branca”, trabalho que tem o título de Ferreira Itajubá – O drama da<br />

vida de província. 28


1 Relativo aos astros, ou próprio deles; sideral.<br />

2 Falto de vegetação; árido, estéril, calvo, descalvado.<br />

Notas<br />

3 O Poeta – auto-exilado no Rio de Janeiro por conta das ingratidões e<br />

perseguições que lhes fizeram na sua própria terra –, apesar do poético<br />

desejo de voltar ao Estado, foi sepultado no Cemitério do Caju, na capital<br />

carioca. Espiritualista, repetidamente recomendou à família para nada fazer<br />

com os seus restos mortais – que ele considerava “simples matéria”.<br />

Anos depois, em Natal, o escritor Gumercindo Saraiva (1915-1988), em<br />

artigos publicados no jornal Tribuna do Norte, iniciou uma campanha para a<br />

trasladação dos ossos do “chorão da Praieira”. O autor destas notas, escrevendo<br />

ao musicólogo e historiador, agradecendo a lembrança, transmitiu<br />

a recomendação deixada pelo genitor, frustrando, dessa maneira, a homenagem.<br />

Até mesmo por saber o que aconteceu com “o diamante rude e<br />

enorme do crânio de Itajubá”.<br />

4 Ver nota de OM.<br />

5 Locusta. Ver nota em Jardim tropical.<br />

6 Colonia Cornelia Veneria Pompeianorum. Cidade romana de Pompéia,<br />

destruída por uma erupção do Vesúvio, no ano 79 d.C.<br />

7 Entidade fantástica do folclore português, personagem mourisca malfazeja,<br />

o oposto da moura-encantada.<br />

8 Arrancar (o cabelo) em sinal de dor. Tratar de, dizer, contar, exprimir,<br />

lamentando-se; queixar-se de; lamentar, chorar.<br />

9 Mentirosa, hipócrita, falsa. Traiçoeira, desleal, pérfida.<br />

10 Segundo Câmara Cascudo (Dicionário do Folclore Brasileiro – 9ª. edição,<br />

Global Editora), “Nome convencional e literário da mãe-d’água, iara, senhora”.<br />

A Enciclopédia Compacta Brasil – Larousse Cultural, Nova Cultura,<br />

1995, define-a como “figura mitológica difundida entre os indígenas e<br />

caboclos após o século XVII, de aculturação provavelmente européia e<br />

tendo suas raízes nas sereias. Loira e muito bonita, a mãe-d’água atrai os<br />

pescadores, ou quem quer que se aproxime de rio ou praia à noite, e leva<br />

o pretendente a afogar-se em busca de diversão. Em algumas comunidades<br />

é reputada como protetora das águas e pescas. Sendo meio peixe e<br />

meio mulher, apresenta-se a pentear os cabelos, a cantar ou mesmo con-<br />

525


526<br />

versando com algum passante. Encantado e quase que sob efeito hipnótico,<br />

o pretenso parceiro mergulha nas profundezas da água, onde sufoca e<br />

morre”.<br />

11 “Rio em cuja margem direita está a cidade do Natal. O mesmo Rio Grande<br />

do Norte, dando nome à Capitania, Província e Estado. De poti-gi, rio dos<br />

camarões” (Luis da Câmara Cascudo, Nomes da Terra, Fundação José<br />

Augusto, 1968). A “iara morena” de OM, hoje em dia, não se arriscaria a<br />

mergulhar nas águas do rio – o “Potengi amado” da “Serenata do pescador”<br />

(Ver O cancioneiro de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, neste volume). O mito folclórico,<br />

hoje, não resistiria à poluição do curso d’água, altamente comprometido<br />

por culpa da administração pública e da ganância empresarial. Bela e pobre<br />

iara!<br />

12 O poeta construiu a imagem dos “seios furando o mar” levando em conta<br />

o formato semicircular do litoral natalense entre as Pontas de Genipabu<br />

(ao Norte) e a do Pinto (ao Sul).<br />

13 A cascavel (Crotalus durissus) é ovovivípara (animal cujo ovo é incubado no<br />

interior do organismo materno, sem se nutrir à custa desse organismo).<br />

Os ovos se rompem dentro da fêmea e nascem as cobrinhas formadas.<br />

Diz-se, no sertão, que a mãe cascavel pratica o infanticídio, matando e<br />

devorando (canibalismo) os filhotes que se aproximam do seu focinho.<br />

14 Estulta; néscia, tola, insensata.<br />

15 Quase oitenta anos depois, Alberto Maranhão continua sem um broze em<br />

praça pública. Enquanto isso...<br />

16 Ver nota anterior, referente à segunda sextilha, neste Canto.<br />

17 O espiritualismo kardecista de OM fazia com que ele acreditasse na reencarnação.<br />

18 Ver nota anterior, no Canto 7, (“No Piso do Comboio”).<br />

19 Alphonse Marie Louis de Prat de Lamartine (Mâcon/França,<br />

21.10.1790-Paris/França, 28.02.1869) Escritor, poeta e político francês.<br />

Seus primeiros livros de poemas (Primeiras meditações poéticas, 1820, Novas<br />

meditações poéticas, 1823) celebrizaram o autor e influenciaram<br />

o Romantismo na França e em todo o mundo.<br />

20 François-René de Chateaubriand (Saint-MaloFrança, 04.09.1768-<br />

Paris/França, 04.07.1848). Seu nome completo é François René Auguste<br />

de Chateaubriand, também conhecido como visconde de Chateaubriand,


escritor, ensaísta, diplomata e político francês que se imortalizou pela<br />

magnífica obra literária de caráter pré-romântico. Pela força da sua imaginação<br />

e o brilho do seu estilo, que uniu a eloqüência ao colorido das<br />

descrições, Chateaubriand exerceu uma profunda influência na literatura<br />

romântica de raiz européia, incluindo a lusófona.<br />

21 Ver nota 329, no ensaio Ferreira Itajubá – O drama da vida de província, neste<br />

volume.<br />

22 Que vem ou acontece fora, ou antes, do tempo próprio; extemporâneo.<br />

23 O corpo humano, especialmente o tronco.<br />

24 Acusado de “comunista” ´,em 1935, por haver escrito o jornal revolucionário<br />

A Liberdade, OM foi preso e condenado, passando quase três anos<br />

nos porões da ditadura de Vargas.<br />

25 Ver nota nas dedicatórias de Sertão de espinho e de flor.<br />

26 A Editora da UFRN publicou, em 2008, na Coleção Talento e Polêmica,<br />

uma segunda edição da obra. A primeira foi de 1944.<br />

27 Nota no livro Gérmen, desta Obra reunida.<br />

28 Um dos livros deste volume.<br />

527


Canto 16<br />

Um juazeiro no céu


O martírio do homem, ali, é o reflexo de tortura maior, mais<br />

ampla, abrangendo a economia geral da vida. Nasce do martírio<br />

secular da terra [...]<br />

Os Sertões, p.61<br />

E o que há a combater, nos sertões do norte, é o deserto.<br />

Os Sertões, p.61<br />

A sua evolução psíquica, por mais demorada que esteja destinada<br />

a ser, tem, agora, a garantia de um tipo físico constituído<br />

e forte.<br />

Aquela raça cruzada surge autônoma e, de algum modo, original,<br />

transfigurando, pela própria combinação, todos os atributos<br />

herdados; de sorte que, despeada 1 afinal, da existência selvagem,<br />

pode alcançar a vida civilizada, por isto mesmo que<br />

não a atingiu de repente.<br />

[...] nos sertões, a integridade orgânica do mestiço desponta<br />

inteiriça e robusta, imune de estranhas mesclas, capaz de envolver,<br />

diferenciando-se, acomodando-se a novos e mais altos<br />

destinos, porque é a sólida base física do desenvolvimento<br />

moral do ulterior.<br />

Os Sertões, p. 112


Sertão das secas... Bem perto<br />

da última rua – é o deserto!<br />

– O xiquexique é o maná... 2<br />

Terra Mater Dolorosa!<br />

Mesmo exausta – generosa –,<br />

esse pão aos filhos dá!<br />

Rocha viva do Nordeste!<br />

Mão calosa, alma celeste!<br />

Bendito o Herói, que te deu<br />

esse impulso em que progrides!<br />

A metáfora de Euclides,<br />

realmente, é um símbolo teu!<br />

Gleba de luta e holocausto!<br />

Gota a gota, de hausto 3 em hausto,<br />

bebo fé no que serás!<br />

Prende a água arisca das chuvas,<br />

e estas pedras darão uvas... 4<br />

– Canaã, ressurgirás!<br />

Ah! Quem me dera, o tesouro<br />

da lira mágica, de ouro,<br />

que Apolo deu a Anfíon! 5<br />

Desses penhascos da serra,<br />

te ergueria, ó minha terra,<br />

portentoso Panteon! 6<br />

533


534<br />

Rente às nuvens, o idealizo:<br />

vaqueiros, de pé, no friso, 7<br />

um juazeiro, o coruchéu, 8<br />

emblema das tuas dores,<br />

verde, entre espinhos e flores,<br />

bebendo a chuva no Céu!


Notas ao Canto 16<br />

O xiquexique é o maná: Vejam-se as observações a esta palavra,<br />

em Notas ao Canto 1. O Dr. Raimundo Ferreira da Silva, em<br />

Relatório de 1910, apresentando à I.F.O.C.S., informa:<br />

Bendito o herói:<br />

A parte usada para a alimentação é o miolo. Para<br />

verificar se o xiquexique está em condições de ser<br />

aproveitado, os sertanejos cortam-lhe o “olho”: apresentando<br />

a ferida bolhas d’água, está “gordo”, e não<br />

serve; observando-se o contrário, está “magro”e,<br />

então, cortam os galhos, aparam a polpa espinhosa,<br />

que protege a medula, abem-na ao meio, seccionada<br />

em aparas, põe-se a secar ao sol. Quando bem seca,<br />

pisam-na reduzindo-a a massa que, lavada em muitas<br />

águas, até perder o amarujado, 9 é consumida sob a<br />

forma de cuscuz, beiju, bolo etc. Quando o xiquexique<br />

está bem enxuto, ou “magro”, algumas pessoas comem-no<br />

fresco, simplesmente assado. É uma alimentação<br />

forte, etc.<br />

Os cardos, o mandacaru, o xiquexique, o facheiro,<br />

não morrem; filhos da pedra e do areal, não sentem<br />

o efeito das secas. O matuto atira-os às braçadas em<br />

fogueiras, e quando o fogo já lhes queimou os duros<br />

espinhos, limpa-os para o gado comer. Os jumentos,<br />

comem-no com voracidade. O próprio homem, quando<br />

a miséria é grande, assa-o às brasas e devora-lhes<br />

o miolo branco, salobro, fofo (G. Barroso, Terra de<br />

Sol, p. 13, citado).<br />

Enfim, um dia, o gado começa a cair de fome, de<br />

sede e de fadiga. É a época mais terrível: é quando o<br />

535


536<br />

nortista mostra a sua energia inflexível, quando mais<br />

se acrisolam suas faculdades combativas, e mais se<br />

enrija, mais se robustece a sua titânica vitalidade.<br />

Um minuto a fraqueza, um momento de desânimo,<br />

um instante de desencorajamento – e o sertão esmaga-lo-á.<br />

Mas ele não abranda e nem se enverga.<br />

Só, contra a impassibilidade da natureza, luta, luta<br />

sempre. Alguns desertam as fileiras; mas os que ficam<br />

continuam o combate. E, daí, talvez não seja<br />

paradoxo o dizer – que a seca é um fator do progresso,<br />

porque forma e molda uma raça de fortes (G.<br />

Barroso, op. cit.).<br />

Prende a água arisca das chuvas: Alusão à pequena açudagem,<br />

a única solução prática e imediata, indicada à vitória do sertanejo<br />

sobre o flagelo climático, na opinião de todos os técnicos e estudiosos<br />

do problema, entre eles – e são dos mais eminentes – os<br />

Srs. Felipe Guerra e Eloy de Souza, autores de trabalhos clássicos,<br />

na especialidade. (Veja-se, em Notas ao Canto 11, a observação ao<br />

verso esses açudes de serra (sextilha 82a. ).<br />

Anfíon: Filho de Antíope e Júpiter. Apolo deu-lhe uma lira de<br />

ouro, a cujo som o semideus construiu, em algumas horas, as<br />

muralhas de Tebas. As pedras dos montes, sensibilizadas, eletrizadas<br />

pela harmonia, vinham alinhar-se espontaneamente sobre o traçado<br />

da obra colossal. E, assim, pelo simples prestígio do maravilhoso<br />

instrumento, ergueu Anfíon as fortificações da Cidade das Cem<br />

Portas.


1 Que se despeou, solta das peias; livre, desembaraçada, isenta.<br />

Notas<br />

2 Alimento que, segundo a Bíblia, Deus mandou, em forma de chuva, aos<br />

israelitas no deserto. Seria um líquen (Lecanora esculenta) ainda hoje comum<br />

na mesma região, e que, transportado pelo vento, cai à maneira de<br />

chuva e é usado como alimento.<br />

3 Sorvo, aspiração; ato de haurir.<br />

4 Vaticínio, premonição do vate. Hoje, sem dúvida, são realidades absolutas:<br />

a produção de uvas nas barrancas do rio São Francisco, as frutas de Assu e<br />

Mossoró, os perímetros irrigados em todo o Nordeste.<br />

5 Ver nota de nota de OM.<br />

6 Templo arredondado que, na Grécia e na Roma antigas, era dedicado a<br />

todos os deuses. Monumento arquitetônico destinado a perpetuar a memória<br />

de homens famosos (heróis nacionais, artistas, estadistas, etc.), e<br />

que, em geral, contém seus restos mortais.<br />

7 Baixo-relevo ou ornato em friso.<br />

8 Arremate pontiagudo que encima as partes elevadas de uma edificação,<br />

torre ou campanário; barrete cônico usado pelos penitentes condenados<br />

pelo tribunal da <strong>In</strong>quisição<br />

9 Ter amargura; ser levemente amargo.<br />

537


A canção da montanha<br />

[1955]


Prefácio da primeira edição<br />

Tenho aqui, sobre minha mesa de trabalho, um novo livro de<br />

versos de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> – A canção da montanha – que o poeta<br />

datilografou e remeteu, com o pedido de prefaciá-lo.<br />

Eu e o autor os conhecemos há cerca de vinte e cinco anos; a<br />

partir do dia em que, havendo eu publicado meus primeiros poemas,<br />

ele me aplaudiu e incentivou da maneira mais própria a conservar<br />

o entusiasmo do principiante.<br />

No decorrer desses cinco lustros, firmou-se entre nós, mercê<br />

da convivência quase diária, uma estima invulgar, cimentada na<br />

reciprocidade dos sentimentos e no intercâmbio das idéias. Cérebro<br />

e coração, em dueto, nos têm feito ouvir todo esse tempo a<br />

bela canção da amizade. Convencido dos grandes e profundos laços<br />

espirituais desta união, <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> buscou um nobre<br />

pretexto para realçá-la, incumbindo-me do prefácio do seu livro.<br />

Nossos nomes irão assim aparecer juntos, por satisfação fraternal,<br />

e não por vaidade literária.<br />

Está claro, pelo exposto, que não vamos escrever um prefácio<br />

nos moldes do estilo.<br />

Geralmente inúteis ou supérfluos, os prefácios contam poucos<br />

simpatizantes. Um livro bom vale por si mesmo; sendo mau, nenhum<br />

prefácio o salvará. Grossa asneira, além disso, tanto é apre-<br />

541


542<br />

sentar um autor sobejamente conhecido, como querer preconizar<br />

um pobre nome. De conseguinte, quem não nos tacharia de<br />

idiota qualquer apresentação do mais popular e consagrado dos<br />

nossos poetas?<br />

Do operário ao chefe do governo, passando por todas as camadas<br />

e posições sociais, só adventícios e forasteiros poderão desconhecer<br />

o autor da Praieira. Não se trataria, portanto, de simples<br />

apresentação, mas de estudar-lhe criteriosamente a obra e a personalidade.<br />

Esse estudo há de vir a tempo. Por enquanto, estamos<br />

apenas dando uma notícia do seu estro a propósito dos seus livros<br />

mais recentes.<br />

Desde o Gérmen, livro de estréia, publicado em 1918, <strong>Othoniel</strong><br />

<strong>Menezes</strong> não cessou, até hoje, de cultivar as Musas e de sacrificar<br />

Mamon ao divino Apolo. Os jornais e as revistas de Natal continuaram<br />

a estampar-lhe os lindos poemas, antes de se editar em 1923,<br />

o seu segundo livro – Jardim tropical – que sobrepujou o sucesso<br />

do primeiro e satisfez plenamente as esperanças de Henrique<br />

Castriciano que, no prefácio do Gérmen, augurara a <strong>Othoniel</strong> um<br />

glorioso futuro. O poeta, nos anos seguintes, não descansou sobre<br />

os louros conquistados. Prosseguindo em seu fecundo labor através<br />

de mil vicissitudes, organizou mais três volumes de poesias:<br />

Sertão de espinho e de flor, A cidade perdida e A canção da montanha.<br />

Dos dois primeiros, o segundo, ainda inédito, contém composições<br />

à altura das dos nossos melhores poetas nacionais, tal a substância<br />

do pensamento e o aticismo parnasiano. O primeiro, lisonjeiramente<br />

prefaciado por Luis da Câmara Cascudo, são setissílabos<br />

impecáveis que justificam em tudo o título do poema. Por fim, A<br />

canção da montanha, o volume que seguirá logo para o prelo, depois<br />

de terminadas estas palavras em forma de prefácio.<br />

A que escola poderá ser filiado este novo livro de <strong>Othoniel</strong><br />

<strong>Menezes</strong>?<br />

Não importa a discussão das escolas literárias.


Classificar o poeta nesta ou naquela escola é questão de segunda<br />

ordem.<br />

– <strong>Othoniel</strong> é passadista? É modernista? É futurista?<br />

Só interessa saber se ele é de fato um poeta, desses que trazem<br />

do berço a estrela da predestinação, a vivência que os torna capazes<br />

de romper os véus das aparências e revelar os segredos do ser,<br />

como os grandes inspirados, cujo canto reproduz os esplendores<br />

do universo visível e invisível. Só interessa saber se, de acordo<br />

com o pensamento de Platão, ele foi tocado do desejo das Musas<br />

e pôde aproximar-se do santuário da poesia, porque o verdadeiro<br />

poeta ultrapassa a arte e o seu canto é a expressão de uma “divina<br />

loucura”, e não o que os sábios mais esforçados poderiam realizar.<br />

Os versos de <strong>Othoniel</strong>, sejam da adolescência, sejam da juventude,<br />

sejam da maturidade, atestam esse destino privilegiado. Ele<br />

próprio o compreendeu e tem procurado preservá-lo contra todas<br />

as maquinações do Demônio.<br />

Do ponto de vista das idéias e do idealismo, <strong>Othoniel</strong> se acha<br />

perfeitamente integrado na época atual. Se não o considerarem modernista,<br />

quanto às exterioridades, – e, neste capítulo, o que se<br />

chama de modernismo ainda se debate no vago –, ele há de ser<br />

reconhecido como do mais modernos, pelo espírito humano e<br />

libertário dos seus versos. Seu lirismo não padece, como o de tantos<br />

autólatras, de obsessão egocêntrica. E uma larga simpatia que<br />

abraça e envolve o mundo. Já houve quem o comparasse ao de<br />

Whitman. Preferimos o de <strong>Othoniel</strong>, muito mais ardente e expressivo.<br />

Whitman nos parece difuso e enumerativo em excesso.<br />

Nos poemas de A canção da montanha, a musa do poeta é a Humanidade.<br />

A clarinada da primeira página do livro é um toque de<br />

rebate para a comunhão universal:<br />

Bardo! pendura a cítara dolente<br />

Em que choraste apenas o teu drama!<br />

Vão teus filhos bem cedo à barricada!<br />

543


544<br />

Todos os povos da terra são chamados a unir-se contra os<br />

escravocratas de hoje, herdeiros e continuadores dos de todas as<br />

épocas, beneficiários eternos do velho sofrimento humano.<br />

Por que, pois, não se salva a Humanidade<br />

com esta solução única e tão fácil – a Verdade,<br />

miseravelmente maltratada,<br />

pobre mãe esfaimada,<br />

catando conservas negras<br />

no lixo hediondo das Conferências?<br />

A pergunta do poeta, nesta hora de crise da civilização, também<br />

nos leva a interrogar sobre a possibilidade de salvação do<br />

mundo. Ariman calcará sempre vitorioso a justiça sob os pés? Nosso<br />

planeta nunca deixará de ser o inferno dos bons e dos humildes,<br />

ao mesmo tempo que o paraíso da mediocridade despótica e parasitária?<br />

Pascal, já no seu século, duvidava de que o bem pudesse um dia<br />

triunfar. Recordemos aquelas suas palavras que, retratando a alma<br />

do grande torturado, eram um convite resoluto, para o combate<br />

e uma formal condenação do repouso: A agonia de Jesus se prolongará<br />

até o fim do mundo: não poderemos ficar dormindo durante<br />

esse tempo.<br />

Santos e obras-primas, pensava René Bazin, só se fazem lentamente.<br />

O talento de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, cada vez mais depurado<br />

mediante longos anos de paciência; aí está palpitando nos seus últimos<br />

livros e manifestado nos seus traços mais distintivos e salientes.<br />

O poeta, contudo, sabe que ainda não atingiu no alvo todos os pontos<br />

de que é capaz. O livro de agora – A canção da montanha –, não<br />

será um canto de cisne, mas tão-somente uma etapa e um aspecto,<br />

novos na carreira poética de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>. Basta que ele possa<br />

viver, e ninguém se surpreenderá dos seus triunfos sucessivos.


Mas, não havíamos prometido nada além de uma notícia-prefácio<br />

sobre A canção da montanha. <strong>In</strong>sensivelmente, por sermos também,<br />

deste país, incorremos no gosto brasileiríssimo da verbosidade.<br />

Podem perdoar-nos os Aristarcos de Natal?<br />

Leiam-se atentamente os poemas de <strong>Othoniel</strong>. Não os mutilaremos<br />

para a citação de versos isolados. Assim, os leitores, se quiserem<br />

ouvir os cantos do poeta, só terão de virar a página.<br />

Desenho de Newton Navarro<br />

Esmeraldo Siqueira<br />

545


Prefácio da segunda edição<br />

Este livro inicia a coleção de livros básicos do Rio Grande do<br />

Norte. A valorização do Estado, meta prioritária da presente administração,<br />

é expressa, também, pelo novo plano editorial da<br />

universidade.<br />

Que é um livro básico? No mínimo, aquele que expressa uma<br />

época, que documenta um conjunto de atitudes formais e idéias<br />

vigentes em um determinado período de tempo. O que o consagra,<br />

no entanto, como produção cultural digna de ser preservada,<br />

é o situar-se além do valor documental. É a sua condição de permanência<br />

como fonte de informação científica ou estética. Um<br />

livro básico é um rio não-periódico. Fluir e renovar-se constituem<br />

os seus exclusivos compromissos com o tempo.<br />

A canção da montanha de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> é um desses livros.<br />

Publicado em 1955 e agora justificadamente reeditado.<br />

Não é raro encontrar-se um texto cientifico ou literário o que<br />

poderia se conceituar como expressão de um conhecimento inconsciente<br />

do autor sobre o exato valor do seu trabalho. <strong>Othoniel</strong><br />

<strong>Menezes</strong> define seu livro no primeiro verso: “Pela janela aberta<br />

para o mundo”.<br />

O livro é realmente uma janela aberta para o mundo na casa<br />

qualquer de uma rua provinciana. O texto documenta como esta<br />

547


548<br />

província recebeu as notícias da segunda guerra e das conferências<br />

de paz. Como as transformações sociais advindas do pós-guerra<br />

influíram nos padrões estéticos da inteligência provinciana, como<br />

as mercancias e negociações advindas do conflito também veicularam<br />

idéias.<br />

No plano pessoal, A canção da montanha é o documento do ritmo<br />

pelo qual nossos cânones artísticos chegam à província e são<br />

absorvidos no processo de evolução criadora de um de seus representantes.<br />

Este livro de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, autor da “Praieira”,<br />

hino pós-parnasiano da Cidade do Natal, é classificado como “modernista”<br />

em 1955.<br />

A permanência atemporal do texto – que o garante como básico,<br />

que o faz transcender as incontestáveis possibilidades documentais<br />

– está assegurada por não poucos poemas antológicos.<br />

Não caberia aqui um aprofundado inventário analítico. Este<br />

levantamento crítico é um desafio posterior e constitui certamente<br />

um dos grandes motivos desta reedição.<br />

Quando a Universidade Federal do Rio Grande do Norte decidiu<br />

iniciar uma coleção de livros básicos do Estado com um texto<br />

poético, não o fez apenas para contestar o insalubre preconceito<br />

contra outras formas de expressão intelectual para ir além do motivo<br />

acima referido, apenas o problema de preservação da memória,<br />

que constitui um dos projetos específicos da presente administração.<br />

O grande motivo da reedição de A canção da montanha, portanto,<br />

é ensejar às gerações jovens da Universidade Federal do Rio<br />

Grande do Norte exercícios de distanciamento crítico.<br />

O estudante é geralmente jovem e todo jovem é uma vítima da<br />

poesia, independente da área específica a que se dedique.<br />

A presente coleção se inicia oferecendo-lhes um texto rico de<br />

implicações colaterais à apreciação estética. Estudos sérios po-


dem ser despertados por esta reedição. Não seria demais sugerir o<br />

levantamento de traços ideológicos que influíram na evidente preocupação<br />

social do texto. O inventário da integração do potencial<br />

lingüístico nordestino à informação universalista presente no<br />

livro. O rastreamento de influências do ideário poético universal<br />

neste momento da poética de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, onde se evoca<br />

forçosamente alguns poetas norte-americanos. Qual a ligação precisa<br />

entre essas influências e a situação de Natal durante a segunda<br />

guerra?<br />

Qual o corte evolutivo da poética de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, comparado<br />

a precursores norte-rio-grandenses do modernismo, como<br />

Jorge Fernandes e João Lins Caldas?<br />

Política, ciência, história e até literatura no Rio Grande do<br />

Norte podem ser estudadas, universitária, e metodicamente, a<br />

partir da presente reedição. A canção da montanha continua a ser,<br />

hoje, uma janela aberta para vários mundos.<br />

Diógenes da Cunha Lima<br />

549


Esta não é a ocasião de acentuar a importância de desacordos<br />

religiosos, ainda que honestos. Esta é, antes, a ocasião de acentuar<br />

a importância do entendimento religioso. Nós, que temos<br />

fé, não podemos deixar que surjam disputas entre nós. O<br />

próprio estado do mundo é um chamamento para que permaneçamos<br />

unidos. Pois, da maneira como eu á compreendo, a<br />

questão religiosa mais importante não está na diferença entre<br />

as nossas várias crenças. Não é a vossa fé específica, ou a minha,<br />

que estão sendo postas em jogo, mas toda a fé. A religião está<br />

se defrontando, em amplas zonas da terra, com a irreligião;<br />

nossas crenças têm sido desafiadas. É por causa dessa ameaça<br />

que vós e eu devemos procurar-nos, por cima das linhas que<br />

separam nossos credos, apertar as mãos, e fazer frente comum.<br />

Franklin Delano Roosevelt<br />

(Discurso pelo rádio, em 23 de fevereiro de 1940)<br />

Se se deseja obter a harmonia social e moral no mundo, é<br />

necessário apelar para as autoridades espirituais que não pretendam<br />

formar partidos políticos para constituir poderes temporais,<br />

e sim se conservem alheias aos interesses materiais,<br />

preocupadas unicamente das supremas condições sociais e<br />

morais da Paz, no seio da Família, na Pátria e na Humanidade.<br />

Os três séculos transcorridos desde a Paz de Westfália tornaram<br />

já possível realizar-se essa aliança mundial das Religiões,<br />

aliança que não exige o abandono de nenhuma crença, mas<br />

apenas a aceitação dos princípios sociais e morais que sejam<br />

compatíveis com os diversos credos.<br />

Luis Lagarrigue1


Clarim<br />

Pela janela aberta para o mundo,<br />

onde a vida dos povos tumultua,<br />

arremessei o escopro 2 florentino<br />

com que talhava o molde dos sonetos.<br />

Que valem decassílabos à lua,<br />

quando tudo, aqui mesmo, anseia e sofre,<br />

e o destino das coisas mais sagradas<br />

quem mais armas possui, guarda no cofre?<br />

Bardo! pendura a cítara dolente<br />

em que choraste apenas o teu drama!<br />

Vão teus filhos bem cedo à barricada!<br />

Antes, porém, que os tome a vaga ardente,<br />

cai, cantando, no círculo de chamas,<br />

entre rimas, blasfêmias e granadas!<br />

553


554<br />

A canção da montanha<br />

A Protásio de Melo 3<br />

A Esmeraldo Siqueira<br />

Ventos que soprais da Europa,<br />

trazendo o fermento e a peste<br />

da montureira ibérica!<br />

Ventos que vindes da Ásia,<br />

horda hirsuta de bisões em tempestuosa tropa,<br />

arrastando o espectro chamejante de Mazzepa, 4<br />

trotando pela estepa descendo flagelada pelo<br />

granizo da estepa,<br />

e a ira de Tamerlão! 5<br />

Clamando as angústias da China, da Índia e do<br />

Japão!<br />

Arrastando o ciclone amarelo para o Leste...<br />

Ventos que soprais da África, com síncopes nas<br />

calmarias,<br />

arrebatando no bulcão pulverulento, 6<br />

entre azagaias e albornozes,<br />

rajadas de vozes<br />

e as estrofes ardentes<br />

de Castro Alves e dos poetas negros da América!<br />

– Cai, orvalho de sangue de escravo,<br />

Cai, orvalho, na face do algoz!


Cresce, cresce, seara vermelha,<br />

Cresce, cresce, vingança feroz!<br />

Trazendo o alarido gutural dos desertos e das<br />

cabildas 7 dolentes!<br />

Ventos que vindes da Austrália e de Madagáscar,<br />

cheirando a âmbar cinzento e a eucaliptos<br />

derrubados!<br />

Ventos do Norte, fulminando os abetos<br />

hiperbóreos! 8<br />

Ventos do Sul desarticulando carcaças de<br />

submarinos nos promontórios!<br />

Ventos do Leste, com o velho veneno de Santa<br />

Helena,<br />

com o novo ninho de falcão do paiol de Ascensão!<br />

Ventos do Oeste, por onde as ondas só murmuram<br />

traição!<br />

Ventos dos naufrágios, das catástrofes, de Singapura<br />

e de<br />

Dunkerque!<br />

Ventos do Golfo do México tresandando a petróleo,<br />

dolências<br />

de rumba, violência na arena!<br />

555


556<br />

Ventos da costa da Califórnia,<br />

arrebatando navios e árvores ciclópicas<br />

desenraizadas!<br />

Desventrando com a unha titânica do raio a floresta<br />

ululante de<br />

lobos e chamas!<br />

Ventos dos Andes rugindo poemas de Salvador<br />

Rueda 9 e Chocano, 10<br />

vergasta dos tiranos!<br />

Ventos da Escandinávia, cantando o trabalho e a<br />

união sob o sol<br />

da meia-noite!<br />

Ventos do Himalaia, com a voz suave de Gandhi<br />

conclamando<br />

a Humanidade<br />

à mansuetude de Gautama!<br />

Ventos dos Pireneus bradando às falanges de Franco<br />

as estrofes de Garcia Lorca sobre fuzis floridos de<br />

santelmos<br />

brancos!<br />

Ventos dos Alpes e dos Apeninos,<br />

ventos de Montese e Pistóia,<br />

onde fumou a raiva da jibóia,<br />

a boicininga 11 de fogo do Brasil,


– o caboclo bamba –,<br />

de alcantil a alcantil de vale em vale,<br />

plantando,<br />

orvalhada de sangue,<br />

(tocando viola, cantando o samba,<br />

escutando o sabiá<br />

no pé da laranjeira)<br />

a flor cheirosa de maracujá<br />

da Saudade brasileira,<br />

e matou alemão, de fuzil, de arrocho e de peixeira!<br />

Ventos das cordilheiras do Pacífico ventos de<br />

cabeleiras azuis,<br />

carregando canções de Pablo Neruda envoltas na<br />

flor vermelha<br />

do copihue! 12<br />

Ventos do mar, ventos da terra, ventos do mundo!<br />

Ventos da morte, ventos da revanche, ventos do<br />

medo!<br />

Em que turbilhão convulso,<br />

em que asa despedaçada,<br />

em que ângulo de inexpugnável, solitário rochedo,<br />

tímida, volteia,<br />

ou se esconde na penugem,<br />

ou dorme plácida na areia<br />

– simples, fecunda, bíblica, feraz –<br />

a sementezinha de mostarda da Paz?<br />

557


558<br />

As sereias<br />

A Raimundo Nonato Fernandes 13<br />

Eu vi a sereia!<br />

Vi a sereia e ela cantou com os lábios carmenos,<br />

com os olhos lagunares da boneca da valsa, 14<br />

românticos, serenos.<br />

Mas não eram azuis, são verdes, os olhos dessa que<br />

saiu lépida<br />

e multicor, do mar<br />

(que embalava o diáfano perispírito 15 das nuvens<br />

brancas esparsas)<br />

– nua como a lua,<br />

morena para a gente beber devagar, boa como<br />

vitamina de caju,<br />

uns cabelos que desciam até aos pés,<br />

pés perfeitos, de madrepérola, ungulados 16 de coral,<br />

o bico dos claros seios roxo como frutinha de<br />

guajiru,<br />

e um enduape 17 de golfões, penas de garças,<br />

no canitar penachos de canarana e a flor vermelha<br />

dos mururés.<br />

Cantou, à tona da angra sonora, onde flutua<br />

ancorada ao longo de um parracho enegrecido no<br />

temporal,<br />

a caravela cismadora, rainha das ondas...


Minha caravela de maratona equórea 18<br />

tem um halo crepitante de santelmos, ninho azul nas<br />

fosforescências,<br />

pios bravios de gaivotas,<br />

a sanguínea da grande cruz aventureira das grandes<br />

frotas,<br />

saudade e glória.<br />

Auréola romântica das descobertas, surtos<br />

fulmíneos de albatrozes<br />

cindindo o bojo fusco do canhoneio dos vendavais;<br />

cicatrizes de batalhas, abordagens ferozes;<br />

idílios de piratas, desembarques tumultuosos em<br />

cidades marmóreas,<br />

em negros arraiais sem história,<br />

cabildas, metrópoles, babilônias de povos<br />

tentaculares:<br />

gigantes, patibulares, agitando discos de pedra, em<br />

tropel na planura,<br />

dizendo-se o povo eleito para a posse do direito de<br />

primogenitura<br />

que é o lustre da legenda democrática da França.<br />

Voga na aragem do exílio a voz do maquis 19 fuzilado:<br />

Ecoutez, freres d’Algérie,<br />

nos baileschantent l ‘espérance...<br />

Ou je tire, Pécho dit France,<br />

ou meurs,renait la Patrie 20<br />

(Para as pequenas nações não há mais esperança!)<br />

559


560<br />

Naufrágios, à vista de altas falésias sinistras,<br />

ossiânicas, 21 solitárias,<br />

gritos aflitos de procelárias, 22<br />

rumor de beijos, gilvazes 23 negros de fachos e<br />

escopetas,<br />

tertúlias, vendetas,<br />

ninhos de flores, trópicos e geleiras, pocemas 24 nas<br />

praias,<br />

nostalgia de ilhas remotas,<br />

Liliputs e Brobindinags através da alegria e do<br />

terror contraditório<br />

das rotas.<br />

Pigmeus carregando elefantes com as teses de<br />

Rosemberg... 25<br />

A <strong>In</strong>glaterra, de âncoras despedaçadas, descendo,<br />

entre icebergs...<br />

(Churchill desabou do charuto, Stalin do samovar,<br />

cospem nas<br />

ondas, envenenam as ondas!).<br />

Um marujo, do Peloponeso em chamas, agita uma<br />

bandeira<br />

uniestrelada para o Ocidente,<br />

guiando o dragão amarelo – que traz o Capital em<br />

frangalhos, nos dentes.<br />

Tarzan, com os ombros a sangrar, de pé sobre o<br />

cadáver<br />

de um leopardo fulvo, sob as palmeiras<br />

da selva americana,


Açula chimpanzés – com batoques de dólares –<br />

para a caçada ao<br />

urso.<br />

Jeca-Tatu, faminto e ignaro, paga o filme e engole o<br />

discurso.<br />

Wallace, 26 espetacular, circense misto<br />

de Don-Quixote de La Mancha e Jesus Cristo,<br />

prega o sermão da montanha à raça de Pilatos,<br />

na encosta de um vulcão prestes a explodir na<br />

delenda 27 da Cruz...<br />

E mulheres trigueiras<br />

de ancas calipígias, 28 redondas,<br />

riem, ouvindo parábolas de um metodista – o<br />

espião! – entre os terebintos,<br />

enquanto a aura olente da tarde dedilha um<br />

epigrama de Li-Tai-Po 29<br />

catando a carapinha dos bambus.<br />

Resplandece acima das ondas,<br />

o Brasil, ainda úmido dos substantivos de Afonso<br />

Celso, 30<br />

país das uvas, depois da devastação universal desse<br />

novo dilúvio...<br />

Sesta de cismas além dos meus pensamentos comuns<br />

e dos meus instintos de marujo,<br />

a sonhar mais Índias, mais Golcondas!<br />

561


562<br />

A sereia cantou, mas não me levou,<br />

porque no meu mediterrâneo sou eu mesmo quem faz<br />

dos peixes, sereias:<br />

louras, irreais, portáteis Loreleys 31 diademadas de<br />

lilases,<br />

iaras de seios de dendê coroadas de mussambê,<br />

fosforescências ancestrais, temperamentais, fugazes.<br />

Quando quero, é assim – faço-as belas,<br />

largo-me de mar afora com elas.<br />

Faço mais:<br />

quando quero, faço-as feias,<br />

para sossego, virtuosidade, ver que existem sereias<br />

e sereias...<br />

Grumete que tanges tua viola, nostálgico, sob as<br />

estrelas!<br />

Lobo velho, tostado do sol, curtido de ventos,<br />

batido de areias,<br />

calmagens, procelas!<br />

– joga Nossa Senhora dos Navegantes em cima delas!<br />

Olha que o Sonho<br />

é a água-viva do mar que em nossas veias ondeia!<br />

E ainda te proponho<br />

velas arriba, e ao largo! ao largo, para vê-las,<br />

sob o frêmito de aventura e batalha que se levanta<br />

do mar,<br />

com a fascinação do aceno das mil e uma noites da<br />

lua cheia!


Arco-íris<br />

A Helen <strong>In</strong>gersoll 32<br />

Beijo do sol nos dedos da neblina,<br />

o arco-íris cromatizou-se no espaço<br />

– as duas pontas bebendo no arvoredo florido.<br />

Enormíssimo compasso<br />

com que um mágico, escondido<br />

num biombo pérola de musselina,<br />

vai girando...<br />

riscando círculos de cores na amplitude simbólica<br />

da campina,<br />

alva do agreste noivado das guabirabas cheirosas...<br />

Luz vestida com os sete véus de Salomé.<br />

Pavão espectral,<br />

de pé,<br />

abrindo o leque da cauda em aurora boreal,<br />

na proa do navio gaiola de Noé...<br />

Arco de triunfo de cristal<br />

refletindo a irisação<br />

– rosas, rosas, rosas, evanescentes rosas<br />

de todas as jóias da corte de Salomão...<br />

Pentagrama onde vibra em surdina de seda o clarim<br />

do verão!<br />

563


564<br />

Móbil prelúdio<br />

do adágio da canção de Vesta, 33 no interlúdio<br />

da festa da manhã que a nudez pagã, tímida, disfarça<br />

num sarongue de talagarça. 34<br />

Eis como te decompões, síntese absoluta da Cor,<br />

no meu prisma interior:<br />

ROXO – o Príncipe da Paz crucificado na livre<br />

América!<br />

VERMELHO – a estrela solitária da Geórgia sobre<br />

o Crescente, e<br />

subindo, ao Nascente!<br />

VERDE – Hitler, redivivo, tigre do asfalto, zumbi,<br />

impenitente,<br />

agitando um facho sulfúreo, na ala ibérica!<br />

AZUL – inocência na Patagônia, harmonia na<br />

Escandinávia,<br />

trabalho na industriosa Helvécia!<br />

ÍNDIGO – a blusa da bárbara Albion sobre os<br />

mármores da<br />

Grécia!<br />

LARANJA – o manto de Gandhi a acenar para a<br />

Humanidade descrente!


VIOLETA – a mão, que amaldiçoou a Caim,<br />

guiando, compassiva<br />

a heterogênea, a dolorosa comitiva<br />

dos povos escapos à incomparável carnificina,<br />

– para os portos da Austrália,<br />

– para a confusão paradisíaca do Brasil,<br />

– para uma pátria ainda incerta, na Palestina. . .<br />

Alegria de poetas, promessa de políticos, ciência de<br />

faquires,<br />

vai se apagando o arco-íris<br />

– televisão do Alhambra 35 através da opala diáfana<br />

dos repuxos.<br />

Tapete do Chiraz, 36<br />

levitado por bruxos.<br />

Parada de marajás<br />

com adagas a largar parábolas de gemas...<br />

Caramanchel de gerânios e malvões<br />

com Branca de Neve e os Sete Anões<br />

brincando de cirandinha no balcão das miragens.<br />

Paleta de Hokusai 37 sonhando paisagens<br />

e Tagore os poemas...<br />

Heptacórdio a que Rimbaud<br />

arrebatou matiz para as vogais:<br />

– A noir E blanc I rouge O bleu U vert...<br />

Zaimph de Salammbô 38<br />

a velar<br />

o coração de Mathô 39 a palpitar<br />

na ponta da lança de ouro e diamantes do sol...<br />

565


566<br />

Terra, infeliz Sheol 40 !<br />

todo o teu mal é o mal de seres esférica!<br />

o arco-íris é uma advertência feérica,<br />

ramo de oliveira do Ararat 41<br />

a arder em rosas e violetas no espaço!<br />

Imensíssimo compasso<br />

riscando as raias da Aliança,<br />

da milenária Esperança<br />

que desde o outro Gênesis – o segundo –<br />

o Deus dos Exércitos oferece inutilmente<br />

aos reconstrutores do Mundo!


Meus caminhos<br />

A Antônio Pinto de Medeiros<br />

Meus caminhos são maiores<br />

que os caminhos desvendados<br />

através dos sem-fins do mar,<br />

do mar, maior que a terra enegrecida, assoberbada<br />

de escombros<br />

– Atlas desgrenhado, São Cristóvão desesperado,<br />

carregando nos ombros<br />

o acervo esmagador das competições e dos<br />

desvarios humanos.<br />

Meus caminhos são maiores que os dos rios<br />

desenrolados plácidos<br />

nas planícies,<br />

rugindo Wagner nas cataratas,<br />

chorando Schubert nas serenatas das matas,<br />

cantando Catulo da Paixão Cearense 42 nos violões<br />

das cascatas,<br />

em bordões de prata...<br />

Os rios refletindo prados em flor,<br />

aldeias virgilianas, fortalezas,<br />

acrópoles com bandeiras nazistas, brancas ruínas<br />

dóricas,<br />

fenos rescendentes, ranchos álacres de camponesas,<br />

canhões e arados, rebanhos tosando a erva úmida<br />

entre as cerejas<br />

567


568<br />

e as abóboras, na orla da ravina<br />

onde o Stuka 43 arriou e ardeu, com mil galões de<br />

gasolina,<br />

dentro da poça de alumínio fundido...<br />

Cidades pletóricas<br />

de mercadores, apóstolos, bandidos,<br />

nevroses, ambições, renúncias, palácios, ruínas,<br />

orgias, estoicismo, desenganos sobre-humanos...<br />

Agora, com benevolência e ironia,<br />

olho o que era mistério, ânsia de espaço,<br />

interrogação, melancolia.<br />

Lá, bem longe, o céu de turquesa ou de bronze,<br />

simples mágica da Física – a velha Melusina1 44 –,<br />

que levanta o arco-íris e dejeta a lama para a mesma<br />

retina.<br />

O céu, limitando a longitude dos livres espaços da<br />

terra<br />

e do que deve estar além do âmbito periférico da<br />

terra,<br />

onde querem ganhar a Paz – com fórmulas e<br />

sofismas!<br />

Agora, os meus caminhos são maiores que todos<br />

esses<br />

caminhos da terra,<br />

que essas estradas do Céu, via-crúcis entre nuvens e<br />

estrelas,<br />

onde as hélices ainda são de cera.


Meu cavalo-de-pau morreu na guerra.<br />

A Passarola de Bartolomeu,<br />

o dirigível de Severo,<br />

o Zepelin europeu,<br />

Santos Dumont com tanta poesia ufanista e o<br />

aeroplano,<br />

La-Cierva, 45 Frankstein do autogiro – um<br />

gafanhoto!<br />

O avião-foguete norte-americano,<br />

o bombardeiro sem piloto,<br />

Morse, rádio, radar, televisão,<br />

o apocalipse da desintegração,<br />

o disco voador que ainda é uma presunção<br />

– tudo é sucata de museu,<br />

inclusive o pedaço de Bíblia podre com que<br />

Truman – um saduceu 46 –<br />

mandou pulverizar duas cidades do Japão,<br />

depois que Roosevelt morreu!<br />

Meus caminhos não têm mulheres de luto,<br />

desvairadas,<br />

crianças abandonadas, para sempre assombradas,<br />

tropeçando sempre nos corpos das mães<br />

mutiladas...<br />

Multidões famintas, furiosas, hediondas, sublimes,<br />

rebeladas,<br />

erguendo os braços em súplica, orando, bradando,<br />

rugindo,<br />

fechando os punhos em ameaça dantesca<br />

569


570<br />

à dourada, imperturbável canalha<br />

– vasa trágica e lastimosa da universalidade<br />

impiedosa da batalha –,<br />

construindo com as almas dilaceradas,<br />

com as mãos desesperadas,<br />

com todas as esperanças desesperadas,<br />

a Revolução, que é a alavanca dos partidos...<br />

E minha ironia<br />

é para os casuístas que brincam com o TNT 47 da<br />

Democracia...<br />

Quero asas nos meus caminhos,<br />

mas quero asas no pensamento e no coração!<br />

Não quero “fronteiras”, não quero “pátria”! não<br />

quero “nação”!<br />

Transmonto a geografia, integralmente,<br />

desminto a Relatividade – uma fórmula incoerente –<br />

que não importa à sexta dimensão, o Sonho!<br />

Mícrons e miriâmetros transponho,<br />

todos os mitos, superficiais,<br />

montanhas, coxilhas, vales, aconcáguas, planícies,<br />

estratosferas,<br />

zodíacos,<br />

abismos,<br />

cosmos, infinitos,<br />

desde o meridiano em cuja base, assente,<br />

minha casa – pequena como uma gaveta –


é o fulcro da minha nova ontologia 48 espiritualista<br />

do planeta.<br />

Faço meus filhos adormecerem sorrindo,<br />

dentro de uma grande esfera<br />

cor de manhã de veraneio (rosa) ou de tarde<br />

cheirosa (lilás),<br />

com uns passes circulares e frontais...<br />

(Ter fé em nós mesmos, é a Lei,<br />

para suportar, minorar, transpor as heranças do<br />

mundo).<br />

E enquanto na campina em plena primavera<br />

(em pleno inverno há isso, no Brasil)<br />

ficam eles sonhando,<br />

a chutar bolas douradas, brancas e azuis<br />

– eu, com os braços ambos sempre erguidos,<br />

surjo do oceano do éter universal,<br />

em todas as latitudes – do Potengi à Índia milenar<br />

da jângal -,<br />

radiante como Jesus,<br />

andando sobre as águas<br />

– para deitar uma gota de orvalho em todos as<br />

fráguas, 49<br />

para levantar a Fé em todos os vencidos...<br />

São mais longos, mais altos, mais floridos,<br />

os meus caminhos,<br />

que os das estepes lívidas onde erram lobos de olhos<br />

incendidos, 50<br />

571


572<br />

que os das montanhas solitárias onde hibernam os<br />

arminhos,<br />

que os da Cote d’Azur onde se dilui no ar a<br />

onipresença das rosas.<br />

A Europa morreu.<br />

A Ásia morreu.<br />

A África morreu.<br />

A América morreu!<br />

Existe o mundo jovem e comunicativo que<br />

Roosevelt ergueu<br />

nas suas inspirações generosas!<br />

Meus caminhos são através dos jardins das almas<br />

silenciosas!


Ouro sobre azul<br />

A Antônio Soares 51<br />

Há uma estrela – pálida como um suspiro –<br />

neste céu cor de malva.<br />

E tanta dor neste mundo<br />

por onde em vão se procura compreensão e<br />

tolerância!<br />

Já se eliminou, desde Wendell Wilkie, 52 o sofisma da<br />

distância.<br />

Todas as portas estão abertas.<br />

Todas as rotas estão descobertas.<br />

Todas as almas (mesmo as que fingem) estão<br />

despertas.<br />

Porque, pois, não se salva a Humanidade<br />

com esta solução única, tão fácil – a Verdade,<br />

miseravelmente maltratada,<br />

pobre mãe esfaimada,<br />

catando conservas negras no lixo hediondo das<br />

Conferências?<br />

O mundo precisa voltar à inocência.<br />

<strong>In</strong>voluir, para, então, evoluir harmoniosamente,<br />

substituindo à estratégia do átomo a lógica da<br />

semente.<br />

573


574<br />

Basta fazer parar a translação fremente do sol da<br />

Ciência...<br />

(Mas onde anda o Josué, para esse ato de<br />

consciência?)<br />

Entrementes, essa estrela a espiritualizar o<br />

perispírito 53 da tarde<br />

alumia, talvez,<br />

um berço onde palpita e arde<br />

o coração do Filho do Homem reencarnado outra<br />

vez...<br />

Quem sabe se essa estrela<br />

(aqui, ou onde for ainda mais ímpia a existência)<br />

não estará anunciando<br />

AQUELE que todas as nações sem esperança de<br />

Justiça estão esperando?


Caridade<br />

A Clóvis Jordão de Andrade 54<br />

Gobelino 55 deslumbrante, espetacular,<br />

esta noite colgada 56 de veludo e estrelas!<br />

E havia festas na cidade, e até árvores iluminadas<br />

nas chácaras fartas, deslumbrantes,<br />

dos que têm estrelas sonantes<br />

num céu de ferro amoedadas...<br />

Mas por onde eu caminhava pensativo,<br />

todas as choças misérrimas dormiam na solidão, na<br />

escuridão.<br />

E eu ouvia o ressonar dos operários exaustos,<br />

dos que têm o dia e a noite, e só, para o viver<br />

cativo!<br />

E ouvia a voz das mães famintas e adoráveis<br />

enganando o silêncio com uma canção:<br />

“Do céu caiu um cravo,<br />

no ar se desfolhou.<br />

O teu amor foi assim,<br />

tão puro, que se acabou.”<br />

E o armador da redinha no fio guinchava, soturno:<br />

– Acabou...ou ...ou ...<br />

575


576<br />

Senhora Nossa! quantas dessas lágrimas ignoradas<br />

dos que não vagam dentro da noite cheia de<br />

estrelas!<br />

E Jesus não anda mais a multiplicar os pães por essas<br />

estradas!<br />

Vós outros, apóstolos sedentários, vinde comigo<br />

haurir a longos haustos 57<br />

esta amarga boêmia através desses cafarnauns infaustos!<br />

Senhora Nossa! quantas lágrimas! Vinde vê-las, vinde vê-las!<br />

Os que choram, nessas choupanas apagadas,<br />

só têm, para chorar, a noite amoedada de estrelas!<br />

Relógio tardonho da insônia, ampulheta veloz<br />

das esperanças das almas crucificadas e sem voz!<br />

Noite, dia dos Mensageiros das tarefas sem férias!<br />

Gobelino de Deus sobre os alçapões da miséria!<br />

Boca de veludo do Silêncio<br />

embalando o sono de pedra de Jó,<br />

progênie maior que a das estrelas,<br />

que os grãos de areia de um turbilhão de pó!<br />

Urna de lágrimas das quedas...<br />

Angra da polinésia sidérea,<br />

porto das naus da fome com âncoras de ossadas,<br />

com os punhos algemados, com os dedos crispados,<br />

com as mãos postas para os mastros,


com teorias sombrias de sombras trágicas,<br />

ajoelhadas,<br />

de mães famintas, pobres mães famintas, esquálidas,<br />

acordadas, olhando os astros<br />

a girar no céu, sacudidos<br />

como punhados perdidos de moedas...<br />

577


578<br />

Desdobramento<br />

A J. A. Seabra de Melo 58<br />

Quem não quer ter duas mãos radiantes – para<br />

abençoar?<br />

Quero projetar-me nestes ares plácidos, flébeis,<br />

da tarde nostálgica onde a Vida – a cruel VIDA –<br />

balbucia, nos débeis,<br />

ruge, nos fortes,<br />

vivendo de mortes.<br />

Anseia, vibra e vibra, multíplice, repartida:<br />

avança, largando as asas de anjo no labirinto dos<br />

interplanos,<br />

para o abismo das novas gêneses do limo.<br />

Turbilhão convulso, expulso dos paraísos perdidos<br />

do Cosmos.<br />

Teorias translúcidas de Mensageiros,<br />

talvez já no cimo do conhecimento de todos os<br />

arcanos<br />

– a cabeça aureolada,<br />

a túnica ainda perfumada<br />

da passagem triunfal pelos astros felizes...<br />

Pólen divino das nebulosas,<br />

pus dos hospitais,<br />

lírios virginais,


santos e bandidos sofrendo!<br />

oblatas 59 e blasfêmias,<br />

afagos e cicatrizes,<br />

harmonia entre rivais,<br />

ódio cerval 60 nas almas gêmeas:<br />

– a VIDA, a Alma Eterna, metamórfica, vivendo!<br />

Ei-la, reflui agora, para lavar-se, compungida<br />

na luz da “face imóvel das essências”: 61<br />

do Tabor, 62 para a penumbra pávida 63 das<br />

catacumbas;<br />

vindo, das metrópoles resplandecentes,<br />

para o chão de escarro, adro infernal<br />

onde a polícia tortura os gatunos,<br />

encarcera crianças esquálidas e chorosas,<br />

com prostitutas e assassinos.<br />

Sentenças e hinos,<br />

essênios e hunos,<br />

juízes milionários e corruptos, sacerdotes<br />

caluniados,<br />

Iagos 64 dirigindo nações, Escobares 65 onipotentes,<br />

Tartufos assinando tratados...<br />

Ouro, ouro, ouro para o sorvedouro.<br />

Para os maus, o Poder. Para os bons, o desdouro.<br />

O avatar de Alexandre, num carro de fogo, cujas<br />

rodas são dólares.<br />

579


580<br />

Gurus de Jesus Cristo, Átilas dementes!<br />

Krishnamurtis 66 crucificados em todos os<br />

Continentes!<br />

Multidões luminosas<br />

brandindo espadas, despetalando invisíveis rosas,<br />

descendo das moradas opalescentes,<br />

afrontando o círculo formidando das<br />

sobrevivências,<br />

da nova babel das Raças,<br />

para ajudar a evolução espiritual das massas...<br />

Minha visão intuitiva da nova da futura Democracia:<br />

– o substratum da Fé<br />

alicerçando o mausoléu – arranha-céu de ossos – da<br />

Economia.<br />

O Amor Universal,<br />

Setenta e Sete Liberdades<br />

igualando as Cidades da Cristandade,<br />

unindo Gengis Khan, redimido, à mansuetude do<br />

Filho de Maria!<br />

Quero ir (só a parte pura e ainda inocente que<br />

restar em minha alma)<br />

desde Pasárgada 67 até o Spitzberg 68 dos funerários<br />

glaciários,<br />

desde o Havaí das mulheres-flores, até Cafarnaum,<br />

desde New York dos sky-scrapers 69 interplanetários,


até os amoquecados mocambos do povoado<br />

abandonado do Pium,<br />

do Quitandinha 70 aos guetos dos pescadores<br />

gregários,<br />

com uma túnica laranja<br />

(a cor com que meu Pai, amorável arquiteto,<br />

fez a alma de Petrarca, a asa diáfana da libélula,<br />

o sapo, o beija-flor, a ostra e a pérola,<br />

a mariposa dourada e o escorpião abjeto),<br />

um diadema azul-claro, visível ao homem comum,<br />

e as mãos longas, plásticas, magnéticas –<br />

distensíveis, leves como pétalas,<br />

como orquídeas ou lilases que rescendam<br />

um romântico perfume de Cântico,<br />

eflúvio nupcial de uma antemanhã flórea de<br />

primavera.<br />

E fique o aroma vibrando,<br />

vogando bíblico, na atmosfera<br />

das almas todas a sofrer na matéria,<br />

das almas todas a orar nas alturas:<br />

as mais impuras,<br />

as sub-almas obscuras;<br />

as mais iluminadas,<br />

e essas que pervagam, sangrando ainda,<br />

uivando ainda, loucas, pelas encruzilhadas;<br />

as que são ósculos de São Francisco nas açucenas;<br />

as homicidas, as suicidas, as nazarenas.<br />

581


582<br />

Das cubatas do Congo,<br />

ruminando o banzo, batendo o jongo,<br />

aos berços dos herdeiros reais,<br />

alvos de linhos, ricos de pedrarias, cantantes de<br />

cristais;<br />

cafres, escandinavos,<br />

patagões, esquimós,<br />

um, que foi meu amigo, e era do Turquestão;<br />

árabes da Costa do Ouro que aprisionaram<br />

Mermoz; 71<br />

japoneses escravos;<br />

chins sorridentes, heróis de Li-Yutang, 72<br />

cantando versos edênicos do Livro dos Poemas,<br />

caindo sob a metralha, como pendões de trigo<br />

maduro<br />

à passagem das ceifadeiras.<br />

Confúcio conversa com o dragão,<br />

à sombra perfumada das amendoeiras;<br />

americanos eugênicos<br />

fazendo a “Marcha da Fome” sob a canícula trágica<br />

de Bataão; 73<br />

párias, sudras, felás, coolies,<br />

resignados caipiras do Brasil, sem trabalho e sem<br />

pão<br />

– tudo, meu semelhante, tudo meu irmão!<br />

Almas e almas,<br />

em apoteoses, em lutas, farpas em corações, hóstias<br />

sobre gangrenas,


coroas de espinhos entre murtas e palmas,<br />

oásis e geenas.<br />

Almas, almas e almas,<br />

rodamoinhos, golfões, niágaras,<br />

fiats, 74 Amazonas, pororocas, gulf-streams, 75<br />

armagedons de almas<br />

– todas, a experimentar<br />

o contraste da lama expiatória do Mundo!<br />

Sístole e diástole do coração da vida, tão alto<br />

quanto profundo, a fremir<br />

– alçando-se para o Céu, a sorrir...<br />

– descendo para a Terra, a chorar...<br />

Quem não quer ter duas mãos radiantes – para<br />

abençoar?<br />

583


584<br />

Veneno da mandrágora<br />

A Berilo Wanderley 76<br />

O homem airado veio andando pelo campo verde<br />

Abrindo aos lírios os olhos enfarados<br />

E viu apenas o joio amargo.<br />

Entretanto os lírios da parábola da Boa-Nova<br />

Florescem ainda para todas as contemplações<br />

Dos que já foram despertados.


Confiteor 77<br />

A Myriam Coeli de Araújo 78<br />

Como no itinerário de outros homens vacilantes e<br />

falíveis<br />

muitas causas ficaram sem corpo no meu destino.<br />

Muitas atitudes imaterializadas na minha culposa<br />

displicência.<br />

Muitos gestos felizes<br />

morreram sem expressão na estática dos silêncios<br />

infecundos.<br />

Cantos que por timidez ou de cantar no fundo do<br />

poço<br />

deixei inaudíveis.<br />

Uma blasfêmia no momento do hino<br />

a abelha morta dentro da flor<br />

a Fé abaixo da Ciência<br />

– quando bastara o Amor.<br />

Agora penalizado em vão com as próprias cicatrizes<br />

vejo que tenho de andar mundos e mundos<br />

ainda<br />

(A Vida é uma espiral ascensional infinda da Alma)<br />

até que a todos os viventes<br />

– os inconscientes e os conscientes –<br />

585


586<br />

chegue a verdadeira mensagem que à Harmonia<br />

Universal<br />

deve toda perfeita <strong>In</strong>teligência.<br />

E não apenas esta ansiosa esta incerta volição 79<br />

sentimental<br />

de uma Alma que faliu para o Amor, nesta dolorosa<br />

experiência.


Correu a estrela<br />

A Luis da Câmara Cascudo<br />

Escorregou uma estrela,<br />

limalha da forja do Deus de Abrahão.<br />

Flexa que o Sagitário disparou por disparar<br />

de maratona pelo Zodíaco.<br />

Passou crepitando pelo lazuli da Via Lactea pedrada<br />

de astro maníaco<br />

espritado na assombração da escuridão...<br />

Alma penada que te vais purificar no mar,<br />

Deus te guie, zelação! 80<br />

Eu ficava de fôlego suspenso,<br />

a esperar, num fervor gostoso de iniciado,<br />

o retumbo longínquo do mar a efervescer a crescer<br />

além muito além do sertão imenso e encalmado,<br />

arremessando no silêncio<br />

montanhas de maretas<br />

solfataras 81 de espuma...<br />

Os mais velhos falavam vagamente de planetas<br />

desenrolando novelões frementes<br />

nos sudários da bruma<br />

– fogo para consumir todos os penitentes...<br />

587


588<br />

Deus te guie, zelação, alma penada,<br />

zumbi zonzo zebrando com a azagaia azarada<br />

o lajedão de ardósia da noite mal-assombrada!<br />

Por sinal que, um dia, meio adormecido<br />

no colo quentinho de Maria Isabel<br />

de quem por faz-de-conta era então o marido<br />

(ela me contava que histórias tão lindas com a sua<br />

voz de aluá e de mel!)<br />

– Deus te guie zelação! alinhavando o sinal-da-cruz<br />

uma ponta da estrela (aquela não soçobrara de vez)<br />

cegando tudo, de tão clara!<br />

espetando no ar<br />

– uma vinheta preta no vitral medieval da lua cheia –<br />

o bojo bambo de uma baleia<br />

com os contornos azuis,<br />

as barbatanas a vibrar<br />

gotejando pérolas, estalactites, de algas pálidas<br />

como crisálidas,<br />

escorrendo luz...<br />

Lá correu agora uma, devagar... devagar...<br />

Úmida e quérula, 82<br />

trêmula, lívida,<br />

tépida lágrima deslizando no crepe de um caixão...<br />

Deus te guie, visagem de minha dolorosa dívida,<br />

zumbi de Maria lsabel minha primeira paixão!


Rumba de flauta do feliz selvagem<br />

A Américo de Oliveira Costa 83<br />

Não levo à minha frente os lobos da Geórgia,<br />

não levo à minha frente esses búfalos do Dakota.<br />

Mas, para as relvas macias e verdes<br />

de hastes sumarentas e flocos de seda e sépia<br />

ondulando ao vento e ao sol<br />

e onde cantam as bocas vermelhas das anêmonas,<br />

onde riem os olhos azuis dos linhos em véspera de<br />

ceifa,<br />

toco o plácido rebanho das minhas ovelhas<br />

pensativas inofensivas<br />

erguendo sob as patas rítmicas o ouro trêmulo da<br />

planície...<br />

Vou quando quero, bebendo o mosto efervescente<br />

das auroras.<br />

Quando quero, retorno<br />

colhendo no coração os esparsos murmúrios da<br />

tarde:<br />

– no ermo a canção dos sabiás,<br />

uma voz indistinta ao longe tangendo o gado.<br />

Na cidade, o sussurro de onda da gente exausta e<br />

ansiosa.<br />

Porque nenhum mal fiz deliberadamente ao mundo,<br />

turista tranquilo,<br />

589


590<br />

sento-me deito-me em qualquer lugar dos que os<br />

ricos deixam à gente ignara<br />

– um ramo de mangueira em flor (andam lindas<br />

agora), uma<br />

pedra na velha calçada<br />

onde o garoto da rua<br />

deixou os vestígios da refeição boêmia,<br />

uma casca de fruta plebéia ainda exalando o aroma<br />

agreste.<br />

Ou na muralha do cais entre os canoeiros do rio.<br />

Com um grande um cordial um fraternal anseio<br />

de que todos os homens – aqui ou em<br />

Conchamblança 84 –<br />

tenham também uma boa mulher, dois filhos<br />

endiabrados, a<br />

História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França,<br />

um pedaço de pão e uma talha de água fria. Que vão<br />

à sua igreja.<br />

E uma paz que tenham, que não seja<br />

a do armento 85 entre os lobos,<br />

a do menino estrangeiro entre esses búfalos<br />

que outros estão levando para os campos<br />

onde jamais a relva crescerá...


Ela<br />

A Edson Régis 86<br />

Na única oportunidade da suprema aventura,<br />

ficaram perdidas<br />

como as nuvens da clara manhã sobre os ombros<br />

dos montes,<br />

dos montes,<br />

as meigas palavras que eu estive para lhe dizer.<br />

As palavras macias e perfumadas como flores,<br />

as palavras de cor (porque Ela era uma grande<br />

criança pensativa)<br />

As palavras musicais (Ela era espiritual e esbelta,<br />

como um lírio que andasse).<br />

As palavras de mel<br />

eram um vinho dourado, de uvas translúcidas<br />

para encher a campânula do seu coração sequioso<br />

correr nas suas veias azuis sob a pele de jambo,<br />

feito um rio de flamas...<br />

Dar-me-ia sorrindo um beijo de pétalas na face,<br />

tímido e casto como a Estrela da tarde a chorar<br />

sobre o lago.<br />

E havia de nascer sob cânticos dos anjos nas alturas<br />

o Amor em vão sonhado e que um poeta não teve<br />

jamais.<br />

591


592<br />

Porém as palavras ficaram para sempre perdidas<br />

e andam agora a procurar, em triste afago<br />

na dispersão das horas do impossível de outras<br />

criaturas<br />

a alma dessa que a gente encontra uma única vez na<br />

vida...


Irmã água<br />

A João Nesi 87<br />

Cada mistério inútil que teu espírito levanta<br />

Cai sobre ti como chuva de fogo<br />

Enquanto o que esperas jamais sobreviverá<br />

Até que sejas simples como o que fraterniza<br />

Com tudo neste mundo onde a Verdade é água<br />

Pura<br />

Adamantina<br />

Franciscana<br />

Que orando até o mais ignaro na própria lama<br />

encontrará.<br />

593


594<br />

Berceuse 88<br />

A Lilinha Fernandes 89<br />

Tinha um roupão encarnado<br />

estampado com ramagens,<br />

e tocava violão.<br />

Uma letrinha miúda que há tempo vi já desbotada<br />

no vetusto livro de orações<br />

de minha prima Conceição – com flores secas,<br />

pétalas fanadas, um pobre aroma de ilusões<br />

perdidas,<br />

imagens,<br />

cópias de ladainhas, de novenas;<br />

e foi com aquela caligrafia tão talhada tão serena<br />

que ela, 90 coitada, escreveu um poema<br />

quando eu nasci.<br />

O único poema que escreveu<br />

e que eu não li<br />

porque meu pai diz que perdeu!<br />

Na varanda do sobrado lá no sertão<br />

havia a gaiola de um canário belga esgalgo e louro,<br />

como um príncipe exilado, nevrosado,<br />

e que para enganar a nostalgia<br />

vibrava um sistro 91 cheio de guizos de ouro.<br />

Era aí, na minha entrecortada recordação,<br />

que ela, talvez já louca (mas, eu não sabia!)


cantava também acompanhando-se ao violão:<br />

– Oh pálida madona dos meus sonhos,<br />

doce filha dos cerros de Engadi... 92<br />

Ainda hoje acho lindo este nome de oásis.<br />

A sua música entressonho<br />

na sombra violácea dos aloendros.<br />

Um sheik de olhos úmidos, tristonho,<br />

cantando um gazel 93 de Hafiz 94<br />

enquanto o cameleiro junto ao poço,<br />

orlado de terebintos, tamareiras e aniz,<br />

dessedenta os tranquilos dromedários...<br />

Cruzam o céu escampo águias azuis, para as<br />

montanhas.<br />

A silhueta oblonga<br />

do minarete solitário<br />

na ondulação do areal fulvo e ardente se alonga...<br />

Dinheiro que dava<br />

a pobres rabugentos.<br />

Palavras de açúcar<br />

para meninos feridentos...<br />

E outras coisas, tantas, cuja imagem se apagou<br />

Na minha retentiva descontínua de esquizóide,<br />

e que revejo vagamente.<br />

Cenas semi-esquecidas de velho celulóide<br />

cuja heroína a gente amou<br />

apaixonadamente.<br />

595


596<br />

Alta, esbelta, os cabelos castanhos...<br />

Corre vertiginosa a vida,<br />

dissolve na caudal<br />

dimensões ciclos ângulos planos,<br />

como degraus de “terra-caída”.<br />

Senti-me de repente<br />

miserável folhinha no bulcão turvo da nortada<br />

quando Ela um dia se queimou.<br />

– “Quero ver meus filhos...”<br />

E eu, transido, sob o cheiro acre inesquecível<br />

da sua pobre carne incendiada,<br />

entrei no quarto onde Ela bebia água fria às<br />

colherinhas.<br />

Me abençoou sofrendo mas sorrindo<br />

e foi para Nosso Senhor<br />

fazer ingênuos poemas rezar novenas ladainhas...<br />

Sei que tinha um roupão encarnado<br />

estampado com florões.<br />

Era alta, esbelta, alva, os cabelos castanhos.<br />

– “Sua mãe era moça bonita!” – diziam-me os<br />

estranhos.<br />

E tocava violão.<br />

Ficou, no vago, oscilante, aéreo andor<br />

do meu inútil coração<br />

esborcinado como um velho monumento<br />

incendiado há milênios,


docemente desbotada quase,<br />

em contornos ingênuos,<br />

a pálida madona da canção.<br />

Vago encanto de beijos tristes, arrulhos indistintos<br />

de amorosas frases.<br />

Tímida ressonância de um arrabil 95 chorando no<br />

oásis...<br />

597


598<br />

Fuga<br />

Não queria mais encontrar<br />

na minha solidão perenemente perturbada<br />

e onde todas as vítimas do que também padeço<br />

estão presentes,<br />

o irmão que me procura (o errado!) para comentar<br />

a excelência do mundo!<br />

Basta para a cruel tortura de curtir crimes no<br />

itinerário interplanetário<br />

– se mais não fosse! – a catástrofe universal do rádio<br />

do vizinho!<br />

– síntese expressional da indigência e da imundície<br />

do morro das raças<br />

onde também talvez por justa expiação, sambando<br />

estou...<br />

Por caridade (ô... ô...) unicamente<br />

viver (grifando a carmim a mentirosa expressão)<br />

é ir morrendo feito um demente!<br />

Oh, não! não morrerei neste pátio trágico de semiinferno<br />

fervente,<br />

povoado de sombras promíscuas e confusas,<br />

carros-fantasmas que fonfonam,<br />

ricos idiotas que deitam pus, depois de vinte anos<br />

roubarem o algodão no sertão,<br />

moleques que ciscam o folhiço do chão,<br />

donas-mocinhas que criam e adulam cadelas,


pederastas com marujos e violão,<br />

marafonas com ares de Cinderelas,<br />

parasitas de cáqui da L. B. A. 96 (que é o “venha<br />

amanhã” dos que andam ao deus-dará):<br />

sub-almas inacessíveis às vibrações dos que não<br />

sejam Eleitos!<br />

gnomos que espionam meus mínimos gestos<br />

contrafeitos!<br />

Não! largar-me-ei, porque<br />

dentro dos olhos claros da minha suave<br />

companheira, a torturada,<br />

a martirizada nesta incomparável vida (e é uma vida,<br />

a sua, onde<br />

Espírito é uma esplêndida alvorada!)<br />

brilha uma inefável admoestação de tolerância e<br />

bondade,<br />

diante da minha tremenda contingência sentimental<br />

dentro desta humanidade<br />

que tanto custa a compreender como a suportou<br />

Jesus...<br />

(Oh ! tê-la-á suportado porque Ele era a própria<br />

Luz,<br />

a Luz que numa gota sobre o lodo engasta um<br />

diamante virginal).<br />

Que ansiosa irremediável saudade de uma sombra<br />

de árvore sem vizinhança mortal!<br />

Pássaros.Gente simples cortando lenha cheirosa.<br />

Flores silvestres.<br />

599


600<br />

Abelhas.<br />

Sabiás de Gonçalves Dias. Juritis de José de Alencar.<br />

Peixes de prata, jacarés, lontras lépidas, jibóias<br />

dormindo, garças vermelhas.<br />

Cajaranas. Fumo de coivaras nos roçados recémabertos<br />

no carrasco.<br />

Uma casa entre as sapucaias. E rebanhos de ovelhas.<br />

L’espoir d’arriver tard dans un sauvage lieu... 97<br />

Quilômetros sobre quilômetros de solidão!<br />

Miriâmetros e miriâmetros de libertação!<br />

V-I-D-A, afinal, afinal! e sem esta mortificante<br />

limitação!<br />

vida somente com as solidariedades e a sociabilidade<br />

idiossincrásica do meu coração<br />

– tão povoado das sugestões inquietas do meu<br />

Guia...<br />

Longe do rádio infame analfabeto!<br />

(Por que reencarnou a não ser na Espanha,<br />

essa turma meganha<br />

o fifi orlando silva chico alves o fufu<br />

ou em Honolulu?<br />

e o fanfão celestino 98<br />

por que não estourou quando ainda era menino<br />

ou com a tempestade atômica que celestinou o<br />

Japão?)<br />

Ah! longe do rádio infame que eu não o tenho!<br />

longe até dos dois laços hereditários do liame 99


que me prende (de longas romagens estelares<br />

dolorosas vindo)<br />

aos olhos claros, terra de poesia,<br />

aos olhos conversadores<br />

– oásis lindo lindo –<br />

os de Maria!<br />

601


602<br />

Madrigal triste<br />

A Maria de <strong>Othoniel</strong> 100<br />

Pérola das esposas sem jaça companheira flor<br />

Nas tuas mãos agora deformadas pelo trabalho<br />

E que foram lindas mais ainda que pétalas<br />

Deponho tímido o meu beijo que não é digno<br />

Do que elas fazem todo dia<br />

Por mim pelo Sonho e pela Poesia


S.O.S.<br />

A Lenine Pinto 101<br />

Declaro para os devidos fins<br />

e não por outro motivo qualquer<br />

(não tem importância aqui a pontuação<br />

que a vejo e muito em tantos versos ruins<br />

de passadista hora-da-saudade e moderníssimo<br />

existencialista)<br />

mas somente porque fiz sessão<br />

com uma sacerdotisa numerologista.<br />

A numerologia é uma ciência, e todas as outras<br />

ciências sem S<br />

estão fracassadas<br />

porque lhes falta consciência<br />

A bomba atômica de hidrogênio vem aí e é preciso<br />

dar a gente a mensagem<br />

antes que de novo a humanidade desça à última viagem.<br />

A pitonisa me disse puxando os SS muitas vezes<br />

– “Tire este Z do seu MENEZES” (com uma<br />

exclamação)<br />

Certo de que o vírus filtrável do Z<br />

tem sido todo o meu célebre azar<br />

declaro antes de ir ao tabelião<br />

e ao advogado<br />

porque não tenho ainda e sempre o dinheirão trocado,<br />

603


604<br />

– que sou Meneses com S.<br />

Muito há mais tempo seria se o soubesse.<br />

Meus amigos minha raça longe poetas que mandam<br />

abraços<br />

agora vai se acabar minha miséria eterna!<br />

O número OITO (8) o meu destino ela descobriu<br />

que governa!<br />

O misterioso Universo.<br />

e nós seus vermes e mesmo os semideuses os<br />

patrões ricaços<br />

os que pelo pão jamais exercitaram o humerus 102<br />

(rima rica do meu verso)<br />

– não nos regemos todos pelos números?<br />

Diga Z e terá 33 na respiração<br />

Diga S e até o STF lhe enviará o idealíssimo cifrão<br />

que é um S em cima de um corrimão!<br />

Vou-me pois embora e já para Pasárgada do Manuel<br />

Bandeira!<br />

Vou deixar de ser apenas o chorão que escreveu a<br />

Praieira!<br />

Vou ser monte-pascoal na próxima descoberta<br />

brasileira!<br />

Deixem portanto que neste edital comece<br />

a experimentar Meneses com S<br />

Vamos ver se a sorte desce!<br />

S. O. S.<br />

S.O.S.<br />

S.O. S


Coroa de beijos<br />

A Mauro Mota 103<br />

Com a rosa à mão direita a esquerda ao peito<br />

Dorme lembrando os séculos sofridos.<br />

Drama dos sete maternais sentidos<br />

Senhora dona a padecer no eito.<br />

Sofrer foi sempre seu amor perfeito<br />

Passos perdidos ideais perdidos<br />

Nossa Senhora dos desiludidos<br />

Dos humilhados órfãos contrafeitos.<br />

Seus sonhos andam todos pelos túmulos<br />

Olhou o céu em vão. Negrumes. Cumulus.<br />

Ganhando flor logo essa flor morria.<br />

No sorriso envolvendo o meu destino<br />

Toda vida a seus olhos fui menino.<br />

Bastou nascer como nasceu – Maria.<br />

605


606<br />

Translação<br />

Vinha a fitar os olhos nas estrelas<br />

E ficou no arsenal perambulando<br />

Quis esmagar as máquinas pensando<br />

Nas mãos radiosas uma a uma tê-las.<br />

Quis acionar as máquinas movê-las<br />

Para o caos de um futuro formidando.<br />

Caiu. Sonhando. Ergueu-se proclamando<br />

O pavor da balela das estrelas.<br />

Abre a chorar a seda da sacola<br />

Vai às mancheias sacudindo prata<br />

Porém o mundo lhe recusa a esmola.<br />

Prefere o mundo à máquina. Arrebata<br />

Às mãos do ilusionista a vara e a bola<br />

Nasce o primeiro sonho democrata


Relatividade<br />

A João Batista Pinto 104<br />

Perder-se no real tendo a esperança<br />

De ver a solução pelos caminhos<br />

Sonhos – espectros sombras de carinho<br />

Da amada antiga no crisol das tranças.<br />

Transpor o espaço e o tempo no cadinho<br />

Fora da cisma azul que a vista cansa<br />

Sair da luz gongórica da França<br />

Queimando no indireto os pergaminhos.<br />

Lenoras 105 e Julietas remanescem<br />

Nas lindes das saudades mas perecem<br />

Nirvanizadas pelos dias grandes.<br />

Cobalto já foi rima para asfalto<br />

Turris eburnea 106 toma-se de assalto<br />

Qualquer planície pode ser dos Andes.<br />

607


608<br />

Atlântida<br />

Dêem-me uma flor<br />

Sem ironia<br />

Quero ir ao túmulo de Walt Whitman<br />

O que sem Bíblia acreditou na fraternidade<br />

integral.<br />

Jesus andarilho de barbas ruivas ao vento das<br />

montanhas<br />

Sportman varonil despreocupado de discípulos<br />

Exemplificando e não pregando apenas<br />

O Amor que deve haver aqui e nos antípodas.<br />

Dêem-me uma flor sem ironia<br />

Para a grama desse parque da última Atlântida<br />

Que submergiu quando o poeta foi esquecido<br />

O poeta que viu até alguma poesia na política<br />

E o que disse não foi nela perdido.<br />

Uma flor sem ironia para a posteridade.


Banzo<br />

A Geraldo de Carvalho 107<br />

Dia azul para todas as criaturas<br />

Menos para mim.<br />

Suicídio não adianta que piora<br />

O bonde pararia. O ônibus. O lotação.<br />

De que serve viver pelo coração?<br />

A dor da morte deve também ser ilusão.<br />

Quem vive é que sente a evidência do fim.<br />

Rostos novos só nos outros planetas<br />

Dos discos benfazejos<br />

Aqui é tédio tudo. Risadas. Vendetas.<br />

Discos. Discos de sangue. E de cinza. Operetas.<br />

609


610<br />

Viração<br />

A Newton Navarro 108<br />

Amoravelmente taciturno<br />

São Francisco de Assis não pode ser<br />

Aquele espírito vagabundo que imagino<br />

De porta em porta procurando<br />

Os que precisam de Amor.<br />

Orar não é bastante é misticismo aos peixes<br />

E ao que anda acima das asas inquietas...<br />

Agir.<br />

Para ter um cofre bem cheio<br />

Orar então diante do ouro é bom.<br />

Este é o cântico do homem infeliz.


Banana<br />

A Luiz Rabelo 109<br />

Vou-me para Tegucigalpa<br />

Ou melhor para a Jamaica<br />

Num pau-de-arara analfabeto<br />

Vou até lá que avião e trem anda repleto caindo<br />

Onde deve haver mulheres-flores frutas<br />

É Tegucigalpa<br />

Não tem perigo de ser samba ou rumba<br />

Lá não tem rádio nem livro nem jornal<br />

Nem bacharel nem médico nem imortal<br />

Nem muita honra em conhecê-lo<br />

Lá tem é banana e macumba e da boa e sem gelo.<br />

Tegucigalpa nem sei bem onde é<br />

Mas só o nome quente e gostoso melhor café<br />

E de nomes é que se vive<br />

Dormir lá debaixo de que árvores sem Rousseau<br />

Com um terçado bem afiado à vista dos canaviais<br />

Tegucigalpa sem literatura<br />

Sem contradanças nas almas das criaturas<br />

Vou me mudar para Tegucigalpa<br />

Que só no México tem o complexo da rima<br />

Mando virar o caminhão pau-de-arara de letras para<br />

cima<br />

Não volto mais nunca mais.<br />

Porém muito melhor é que me vá para Jamaica<br />

Tanto faz<br />

611


612<br />

Os simples<br />

A Moacyr de Góes 110<br />

O Castelo ruiu na luz de Rembrandt da tarde<br />

E dois pombos vermelhos<br />

Subiram sonoramente para o etéreo<br />

incompreensível.<br />

Jogou-se o jogral contra as paredes verdoengas<br />

E esferas amarelas ficaram ricocheteando no chão.<br />

O homem estava deitado dormindo<br />

E em casa a mulher chorava.<br />

O castelo ruiu como uma rima de cartas que arde.<br />

E o sonho e o álcool estavam embalando os<br />

infelizes.<br />

Com todas as cores do prisma da necessidade.


Visão na casa dos mortos<br />

A Jorge Fernandes<br />

Não é que o cabotino nobelino do André Gide 111<br />

(Antônio Pinto 112 não o desminta il n’est pas<br />

candide 113 )<br />

arrasou com o xangô do pajé do Cacau? 114<br />

Babau<br />

Que importa? é letra morta na roça que corta a<br />

saúva graúda<br />

Qualquer de vós pode ser Mermoz qualquer<br />

Neruda pode ser Pintacuda! 115<br />

Se ninguém (digam quem) se ninguém, por maior,<br />

sabe lá para onde vai ame ou não ame<br />

se é p’ra Miami se é p’ra Xangai<br />

se é para a Sé se é p’ra terra da guerra ou de sonho<br />

do tristonho Maldoror 116<br />

ou p’ra Conchamblança ou p’ra França que inda<br />

está pior está finda.<br />

Tudo como está e estará quem doido ou doído não<br />

ficará?<br />

Puxa-saco feliz ou velhaco que diz que é livre livre<br />

tudo, ao todo, mesmo o mais cabeçudo, vai a rodo<br />

no Bateau-ivre 117 de Rimbaud.<br />

De la musique avant tout chose 118 se acabou (quem<br />

quiser verifique homem ou mulher)<br />

613


614<br />

A lua mesmo nua já não tressua mais madrigais<br />

Amarga a luz do sol Jesus estrada larga<br />

nem é na Fé o mar que anda como eu ando pando e<br />

pleno de veneno uivando a transbordar!<br />

Quem tem razão é o irmão Rimbaud<br />

e Shaw 119 o velho escaravelho sábio crapaud 120<br />

com a alma de rouxinol lá na calma do atol<br />

e que engrossa a troça a fundo sobre este<br />

cauchemar 121 profundo<br />

Era em que prospera Caifaz com tantos prantos e ais<br />

Tu grande guru Jesus Cristo não vês isto?<br />

Por que não nos vens, Irmão, salvar pobres reféns,<br />

do samovar que está aqui e lá fervendo,<br />

crescendo no porão imundo<br />

deste golfão desta galera de feras ébrias que é o<br />

mundo?


Cassino<br />

A água da Serenidade flui da montanha<br />

enquanto ela se banha no fulgor do vulcão<br />

Bate bate ó do bombo!<br />

– Bom! Bom! Bão!<br />

De que serve pensar pensar para sofrer<br />

se o futuro é de Deus e ninguém pode ver?<br />

Bate bate pandeiro!<br />

– sobe e desce a bater!<br />

Aproveita o momento aproveita o que há<br />

enquanto o que temes não vem para cá!<br />

Geme geme trombone chora em lá!<br />

Cai na roda da sorte, não deixes no chão<br />

o que a Vida te deu! tudo mais é ilusão!<br />

Bate bate ó do bombo<br />

– Bum! bum! bão!<br />

A água da Serenidade assim é que fluirá<br />

Madalena meus pés é que não lavará!<br />

Arremata ó pistom!<br />

– Ta-ra-rá! tarará!<br />

615


616<br />

Notas<br />

1 Luis Lagarrigue. Argentino, discípulo de Auguste Comte. Escreveu<br />

Catecismo Positivista Elementar.<br />

2 <strong>In</strong>strumento de ferro e aço com que se lavram madeiras, pedras, etc.;<br />

cinzel.<br />

3 Protásio Pinheiro de Melo (Natal/RN, 16.09.1914-Natal/RN,<br />

25.09.2006). Advogado, professor, foi diretor do Atheneu Norte-riograndense,<br />

escritor. Irmão do folclorista Veríssimo de Melo e do médico<br />

Pelúsio Melo.<br />

4 Ivan Stephanovich Mazzepa. General e governador dos Cossacos,<br />

ao tempo de Pedro, o Grande, Czar da Rússia.<br />

5 Tamerlão. Versão do nome turcomano, Timur-i-Lenk, ou “Timur, o Coxo”<br />

– Kish – Canato Chagatai, 1336-1405). Filho de pastores, agregou em<br />

torno de si diversas tribos graças à sua competência como guerreiro, sua<br />

astúcia como político e seu carisma como entusiasta da religião e das artes.<br />

Com a ajuda de um vasto exército, construiu um poderoso e agressivo<br />

império, conhecido como Império Timúrida, que não resistiria à sua morte<br />

em 1405.<br />

6 Coberto de poeira; empoeirado.<br />

7 Aldeia de mouros; tribo ou grupo de famílias que vivem no mesmo lugar;<br />

grupo nômade que vive mudando de lugar em busca de pasto.<br />

8 Do extremo norte da Terra; setentrionais.<br />

9 Salvador Rueda (Macharaviaya-Benaque/Espanha, 03.12.1857-<br />

Málaga/Espanha, 01.04.1933). Jornalista e poeta espanhol, precursor do<br />

Modernismo na Espanha.<br />

10 José Santos Chocano Gastañodi (Lima/Peru,1875-Santiago/Chile,1934).<br />

Escritor, diplomata e poeta peruano, assassinado no Chile.<br />

11 Cascavel.<br />

12 Flor nacional do Chile (Lapageria rosea), planta trepadeira da família das<br />

liláceas.<br />

13 Raimundo Nonato Fernandes (Pau dos Ferros/RN, 26.01.1918).<br />

Jurista de renome, advogado, especialista em direito administrativo, foi<br />

várias vezes consultor jurídico do RN. Atuou, como criminalista, no Tribunal<br />

do Júri. Um desembargador desavisado, quando presidente do Po-


der Judiciário, pespegou-lhe o honradíssimo nome a um presídio de Natal<br />

– um verdadeiro antro de sevícias policiais e de desorganização governamental.<br />

14 Referência à valsa-canção “Boneca”, de 1935, de autoria de Benedito<br />

Lacerda e Aldo Cabral, gravada originalmente, em 1938, por Sílvio Caldas<br />

(Gravadora Odeon).<br />

15 <strong>In</strong>vólucro fluido que serve de ligação entre o corpo e o espírito.<br />

16 Que tem forma de casco.<br />

17 Fraldão de penas usado pelos índios tupinambás.<br />

18 Referente ao mar ou ao alto-mar.<br />

19 Durante a Segunda Guerra, membro da Resistência Francesa. Vegetação<br />

espessa (arbustos, urzes, etc.) característica de certas regiões mediterrâneas.<br />

Na França, local de difícil acesso onde se reuniam os membros do<br />

movimento clandestino de resistência à ocupação alemã (1940-1944).<br />

20 Chanson du franc-tireur. Versos do poeta e escritor francês Louis<br />

Aragon (Paris/França, 03.10.1897- 04.12.1982).<br />

21 Relativo ao lendário guerreiro e poeta irlandês Ossian, ou aos poemas a<br />

ele atribuídos.<br />

22 Grandes aves oceânicas.<br />

23 Ferimentos ou cicatrizes na face.<br />

24 Gritos de guerra; cantos selvagens; vozearias, algazarras, clamores.<br />

25 Alfred Rosemberg (1893-1946). Um dos teóricos do nazismo, autor<br />

do livro Mito do século XX. Opunha-se radicalmente à tradição católicocristã,<br />

associando esta ao universalismo e ao judaísmo, defendendo uma<br />

nova religião do sangue e da raça. Foi condenado à morte, em Nuremberg.<br />

26 Henry Agard Wallace (Orient, Iowa/Estados Unidos, 07.10.1888-<br />

Danbury, Connecticut/Estados Unidos 18.11.1965). Político dos Estados<br />

Unidos. Foi o 33º vice-presidente, em plena Segunda Guerra Mundial<br />

(entre 1941 e 1945) na gestão do presidente Franklin D. Roosevelt. Com<br />

a morte deste, no pós-guerra, Truman o conservou no governo, como<br />

secretário de Agricultura. Rompendo com a nova administração, criticou<br />

o discurso de Churchill que iniciaria a Guerra Fria.<br />

27 Nome latino, significando, no caso, “destruição”.<br />

28 De belas nádegas; bundão formoso, pé-de-rabo, “raimunda”.<br />

617


618<br />

29 Li-Tai-Po ou Li Po (701-762). Poeta chinês, o mais festejado e popular<br />

da dinastia Tang, considerada a época de ouro da poesia chinesa.<br />

30 Afonso Celso de Assis Figueiredo Júnior (Ouro Preto/ Minas Gerais,<br />

31.03.1860-Rio de Janeiro/RJ, 11.07.1938). Professor, poeta, historiador<br />

e político. Um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras,<br />

onde ocupou a Cadeira nº 36. Dentre suas muitas obras, publicou Porque<br />

me ufano de meu país – título que gerou críticas e elogios e a popularidade<br />

da expressão “ufanismo”, de uso até os nossos dias.<br />

31 Diz uma lenda alemã, do Vale do Reno, que, num rochedo do rio – o São<br />

Goarshausen, localizado entre as cidades de Koblenz e Wiesbaden – vive<br />

uma bela moça, Loreley, espécie de feiticeira, com longos cabelos loiros<br />

que quando os penteia gosta de cantar. Sua voz melodiosa hipnotiza os<br />

capitães das embarcações que por lá navegam, desviando-lhes a atenção e<br />

fazendo-os soçobrar. A história original remonta ao poeta romântico<br />

Clemens Brentano (1778–1842), que, inspirado na crença popular, teria<br />

escrito uma balada – Zu Bacharach am Rheine – sobre o tema, em 1801.<br />

32 Helen <strong>In</strong>gersoll. Nasceu em Mossoró, em 13 de março de 1930, filha<br />

do mineiro canadense William John <strong>In</strong>gersoll, emigrado do Canadá que<br />

veio explorar uma mina de gipsita em Governador Dix-sept Rosado.<br />

William era viúvo e casou com a professora mossoroense Maria Elisa da<br />

Silva. Vive, Helen, há 60 anos, em Niterói/RJ, sem nunca ter retornado ao<br />

Rio Grande do Norte. Foi, muito jovem, professora primária, na sua terra.<br />

No final da década de 1940, vindo morar em Natal, vizinha da família de<br />

OM, foi pupila do poeta e da sua Maria, a pedido de Dona Maria Elisa. O<br />

autor destas linhas e um seu irmão mais velho um ano (Hermilo) aprenderam<br />

a andar de bicicleta com a jovem e extraordinária poeta. Lia muito,<br />

falava inglês com fluência, fumava muito, roía as unhas, bebia cerveja.<br />

Dorian Jorge Freire dizia ser ela “a primeira a escrever modernismo na<br />

terra de Baraúna”. Dizia-se que saíra de Mossoró por ser “avançada” para a<br />

época, na sua cidade. Em Natal, estudou no Atheneu e, por interferência<br />

de OM, escreveu crônicas e poemas, publicados em O Democrata. Era<br />

bonita, alta, de olhos verdes. Um dia, pegou um Catalina da NAB, no<br />

Potengi, e partiu para o Rio. Antes da morte de <strong>Othoniel</strong> e de sua Maria,<br />

visitava-os, vez por outra. Na “Cidade Maravilhosa” foi professora, funcionária<br />

do Banco do Brasil e advogada. Atualmente (março de 2008), aos 78<br />

anos, mora com uma filha, uma procuradora da Justiça do Trabalho (Heloíse<br />

<strong>In</strong>gersoll Sá – trabalhou, inclusive, em Natal) que, infelizmente, lhe nega


contato com quem quer que seja do Rio Grande do Norte e sequer – ela,<br />

a filha – não se digna a atender quaisquer contatos, sequer telefonemas.<br />

Helen é viúva do escultor maranhense Edson Sá.<br />

33 Vesta. Deusa romana do fogo sagrado, filha de Saturno e Cibele – correspondente<br />

à Héstia dos gregos.<br />

34 Tecido encorpado, de fios ralos, sobre o qual se borda.<br />

35 Alhambra. Forte e palácio em Granada (Espanha) construído pelos<br />

mouros na Idade Média.<br />

36 Chiraz. Cidade persa (no atual Irã), antiga capital da poesia e da filosofia,<br />

famosa por abrigar os túmulos de Hafez e Saadi, poetas consagrados do<br />

século XV.<br />

37 Katsushika Hokusai (1760-1849). Japonês, pintor, gravador e ilustrador<br />

de livros, considerado o mestre da escola ukiyo-e. Exerceu larga<br />

influência na arte ocidental (Van Gogh, Degas, Lautrec, Monet, Gauguin).<br />

38 Zaimph. Véu da deusa Tanit, a Lua e deusa da fecundidade dos cartagineses,<br />

referida no romance Salammbô, do escritor realista francês Gustave Flaubert<br />

(1821-1880).<br />

39 Mathô. Guerreiro líbio, enamorado de Salambô, filha do cartaginês<br />

Amílcar, no romance citado.<br />

40 Lugar dos mortos, inferno.<br />

41 Ararat. A mais alta montanha da Turquia onde, segundo a lenda, no seu<br />

topo, aportou a arca de Noé, depois do dilúvio.<br />

42 Violonista e seresteiro maranhense (São Luís/MA, 08.10.1863-Rio de<br />

Janeiro/RJ, 10.05.1946). Teatrólogo, poeta, músico, compositor e cantor<br />

brasileiro. Autor de “Luar do Sertão”.<br />

43 Avião-bombardeiro de mergulho alemão (JU87), muito eficiente durante<br />

as primeiras batalhas da Segunda Guerra Mundial.<br />

44 Fada medieval, feiticeira, bruxa.<br />

45 Juan de La Cierva (21.09.1895-9.l2.1936). Engenheiro aeronáutico<br />

espanhol. <strong>In</strong>ventou o autogiro (helicóptero), em 1919.<br />

46 Membro de uma seita judaica favorável ao helenismo e, posteriormente, à<br />

cultura romana, e cujos adeptos, pertencentes, em sua maioria, às famílias<br />

sacerdotais e à classe rica, rejeitavam as tradições dos antigos, a<br />

predestinação e só reconheciam como regra a lei escrita.<br />

619


620<br />

47 TNT. Sigla de trinitrotolueno, um potente explosivo. Possui coloração amarelo<br />

pálido e sofre fusão a 81°C. Faz parte de várias misturas explosivas,<br />

por exemplo, o amatol, uma mistura de TNT com nitrato de amônia.<br />

48 Segundo o aristotelismo, parte da filosofia que tem por objeto o estudo das<br />

propriedades mais gerais do ser, apartada da infinidade de determinações<br />

que, ao qualificá-lo particularmente, ocultam sua natureza plena e integral;<br />

metafísica ontológica. No heideggerianismo, reflexão a respeito do<br />

sentido abrangente do ser, como aquilo que torna possível as múltiplas<br />

existências Opõe-se à tradição metafísica que, em sua orientação teológica,<br />

teria transformado o ser em geral num mero ente com atributos divinos.<br />

49 Sorte adversa; infortúnio, amargura, pena.<br />

50 Que tem ou apresentam uma cor como a do fogo; vermelhos como brasas;<br />

rubros.<br />

51 Antônio Soares Filho (Natal/RN, 16.06.1914-03.08.1996). Advogado,<br />

político, professor, escritor e astrônomo amador. Foi membro das<br />

Academias Potiguar e Norte-rio-grandense de Letras. <strong>In</strong>tegralista, seguidor<br />

de Plínio Salgado.<br />

52 Wendell Lewis Willkie (18.02.1892-8.11.1944). Advogado, estadista<br />

e político norte-americano que se opôs a Roosevelt numa de suas eleições<br />

presidenciais(1940) e autor do livro de sucesso Um Mundo só.<br />

53 Perispírito. Segundo a Doutrina Espírita, o elemento intermediário que<br />

conecta a vontade que nasce do espírito com a percepção que direciona<br />

o cérebro.<br />

54 Clóvis Jordão de Andrade. Poeta potiguar, nascido em Macaíba em<br />

1903. Com o pseudônimo de “Clóvis Andrade”, publicou quatro livros<br />

de poemas: Imortalidade, Musa Amiga dos Sonhos, Versos Diversos e Clamor do<br />

Mundo. Foi Coletor Federal e espírita kardecista.<br />

55 Tapeçaria feita, a partir do século XVIII, em ricos tecidos ilustrados com<br />

notáveis composições, da Manufacture Nationale des Gobelins (França), até<br />

hoje em funcionamento.<br />

56 Enfeitada com colgadura (estofo ou peça de pano, vistosa e/ou rica, pendurada,<br />

pendente).<br />

57 Trago, gole; sorvo; aspiração.<br />

58 Ver Nota no livro Sertão de espinho e de flor, nas dedicatórias.


59 O que, na igreja, se dá a Deus ou aos santos (para as despesas do culto ou<br />

como remuneração de alguns serviços do sacerdote, esp. em funerais);<br />

oblações, obradas; oferenda piedosa; qualquer oferenda.<br />

60 Que denota ferocidade, agressividade; bravo, feroz.<br />

61 OM recorreu a um verso do poeta português Antero de Quental (1842-<br />

1891), no poema “Contemplações”: Sonho de olhos abertos, caminhando/<br />

Não entre as formas já e as aparências,/Mas vendo a face imóvel das essências,/<br />

Entre idéias e espíritos pairando...<br />

62 Monte, colina, na Galiléia, onde, segundo a Bíblia, Jesus mudou de aspecto,<br />

tornando-se resplandecente como o sol, na transfiguração.<br />

63 Tomada de pavor; demonstrando susto ou medo; assustada.<br />

64 <strong>In</strong>divíduo astuto, intrigante, falso, velhaco. Iago é uma personagem de um<br />

dos textos mais famosos de William Shakespeare, A Tragédia de Otelo, o<br />

Mouro de Veneza – um dos maiores vilões descritos por Shakespeare.<br />

65 O poeta parece fazer alusão ao general do Exército Popular Republicano<br />

espanhol Antônio Escobar Huertas, homem conservador e ligado ao clero,<br />

fuzilado, em 1940, por ordem direta de Franco, apesar dos apelos em<br />

seu favor pela cúpula católica.<br />

66 Jiddu Krishnamurti (Madanapalle/Índia, 11.05.1895-Ojai, California/<br />

EUA, 17.02.1986). Filósofo, escritor e místico indiano – uma das grandes<br />

admirações de OM.<br />

67 Cidade da antiga Pérsia. É atualmente um sítio arqueológico na província<br />

de Fars, no Irã, situado 87 km a nordeste de Persépolis. Foi a primeira<br />

capital da Pérsia Aqueménida, no tempo de Ciro II da Pérsia.<br />

68 Grande arquipélago norueguês de clima ártico.<br />

69 Arranha-céus (inglês).<br />

70 Antigo bar, na Praça Gentil Ferreira, no bairro do Alecrim, em Natal.<br />

Hotel luxuoso em Petrópolis/RJ.<br />

71 Jean Mermoz (Aubenton/Aisne, 09.12.1901-Atlântico Sul,<br />

7.12.1936), piloto francês, figura legendária da Aeropostale,<br />

conhecidíssimo em Natal, na década de 1930.<br />

72 Li Yutang (l0.10.1895-26.03.1976). Poeta chinês, filósofo, lingüista,<br />

escritor, autor de muitos livros.<br />

73 Ou Bataan. Nas Filipinas, foi tomada pelos japoneses em 09 de abril de<br />

1941. A guarnição norte-americana, aprisionada, foi obrigada a marchar<br />

621


622<br />

para o longo cativeiro nas selvas (Marcha da Morte). Em 1945, OM (funcionário<br />

da base aérea de Parnamirim Field) presenciou, comovido, a passagem,<br />

o retorno, aos Estados Unidos, dos reduzidos sobreviventes da jornada.<br />

74 Ordens, autorizações, comandos.<br />

75 Gulf Stream. A Corrente do Golfo (corrente de água no Oceano Atlântico<br />

que corre do México para a Europa e influência o clima nos países<br />

que estão no seu caminho).<br />

76 Francisco Berilo Pinheiro Wanderley (Natal/RN, 21.04.1934-<br />

20.07.1979). Jornalista, poeta. cronista, crítico, cinéfilo, advogado, professor<br />

e boêmio. Publicou Telhado do sonho, O menino e seu pai caçador e<br />

Revista da cidade (póstumo).<br />

77 Oração que principia por essa palavra, e recitada pelos católicos antes de<br />

confessarem os seus pecados ao padre.<br />

78 Miryam Coeli de Araújo Dantas da Silveira (Manaus/AM,<br />

19.11.1926-Natal/RN, 21.02.1982). Jornalista (especializada na<br />

Espanha), professora e poeta. A primeira mulher, no RN, a enfrentar o<br />

batente diário das redações. Foi cidadã de extrema candura e bondade.<br />

Casou com o também jornalista e poeta Celso da Silveira.<br />

79 Poder de escolher ou determinar; arbítrio, vontade; vontade imperfeita,<br />

sem resultado; veleidade.<br />

80 Estrela cadente.<br />

81 Terrenos em que se desenvolvem vapores sulfurosos ou em que se depositam<br />

enxofre; crateras de vulcões extintos de onde se exalam vapores de<br />

enxofre ou gás sulfídrico; sulfureira.<br />

82 Que se lamenta; plangente, queixosa.<br />

83 Américo de Oliveira Costa (Macau/RN, 22.10.1910-Natal/RN,<br />

01.07.1996). Escritor, professor, jornalista, político, diplomata (cônsul<br />

honorário), jurista. Apaixonado pela cultura francesa, foi um dos fundadores<br />

da Aliança Francesa no Estado. Durante a Segunda Guerra colaborou<br />

com a Resistência, recebendo comendas do governo francês. Foi<br />

integralista, na mocidade.<br />

84 Lugar, terra, “país” do acordo, ajuste, da combinação, do conchavo.<br />

85 Rebanho, principalmente de gado vacum; armentio.


86 Édson Régis de Andrade (Timbaúba/PE, 29.04.1923-Recife/PE,<br />

25.07.1965). Jornalista, poeta e advogado. Atuou na imprensa do Recife e<br />

publicou, entre outros, os livros: O deserto e os números e As condições<br />

ambientais. Secretário de Imprensa de Pernambuco morreu, tragicamente,<br />

durante um atentado à bomba ao Aeroporto dos Guararapes, em Recife.<br />

87 João Nesi Filho (Natal/RN, 07.10.1893-Natal/RN, 01.01.1986). Servidor<br />

público federal concursado, Delegado do Tribunal de Contas da<br />

União em vários Estados, inclusive no Rio Grande do Norte, onde se<br />

aposentou na compulsória. Foi colega de infância de OM, no Colégio<br />

Santo Antônio e amigo do poeta em todas as horas. Boêmio na mocidade,<br />

com a morte da noiva – com quem chegou a se casar in extremis – tornouse<br />

espiritualista, esotérico, seguidor dos ensinamentos de Jiddu<br />

Krisnamurti (1895-1986). Vegetariano, não usava nada de origem animal,<br />

seja na alimentação, seja no vestuário. Praticava jejuns. Era culto, lendo em<br />

vários idiomas. Sem alarde, discretamente, ajudou centenas de jovens,<br />

encaminhando-os na vida, nos estudos. Não lhes dava o peixe, ensinava-os<br />

a pescar. O autor destas notas foi um desses felizardos. OM o chamava de<br />

“São João Nesi” – o que o fazia enrubescer, sem jeito, modesto e bom que<br />

era.<br />

88 Acalento, acalanto; demonstração de afeto, conforto; ato de acalentar para<br />

adormecer criança.<br />

89 Lilinha Fernandes (Maria das Dores Fernandes Ribeiro). Poeta, trovadora<br />

e compositora carioca, “Rainha dos Trovadores do Brasil”. OM conheceu<br />

Lilinha no Rio de Janeiro, em 1950, apresentada pelo poeta potiguar José<br />

Janinni.<br />

90 Maria Clementina <strong>Menezes</strong> de Melo, mãe de OM. Suicidou-se em<br />

outubro de 1899, aos vinte e oito anos. O Poeta tinha pouco mais de<br />

quatro anos de idade (ver nota em Sertão de espinho e de flor).<br />

91 Trombeta aguda usada entre os egípcios, nos sacrifícios à deusa Ísis;<br />

antiqüíssimo chocalho; espécie de marimba.<br />

92 Modinha “Pensamento de Amor”, com versos de Castro Aves: “Ó pálida<br />

madona de meus sonhos,/Doce filha dos cerros de Engadí!.../Vem inspirar os<br />

cantos do poeta,/Rosa branca da lira de Davi!”.<br />

93 Gênero de poesia amorosa dos persas e dos árabes.<br />

623


624<br />

94 Chama al-Din Muhammad Hafiz (Chiraz, 1325-Id.1390), poeta lírico<br />

persa, era exímio no gazel (espécie de ode) e professor de exegese do<br />

Alcorão. Em suas obras uniu temas místicos à inspiração báquica e à<br />

exaltação da beleza.<br />

95 <strong>In</strong>strumento de arco, de origem árabe, com duas a cinco cordas; aiabeba,<br />

rabil.<br />

96 Sigla da Fundação Legião Brasileira de Assistência, autarquia, órgão da<br />

Administração indireta do Governo Federal.<br />

97 Alfred De Vigny. Poèmes philosophiques, La maison du berger.<br />

98 Antônio Vicente Filipe Celestino. Cantor, compositor e ator (“O<br />

ébrio”, filme), nasceu no Rio de Janeiro/RJ, em 12.9.1894 e faleceu em<br />

São Paulo, em 23.8.1968. Os outros dois cantores, citados por OM,<br />

foram: o “fifi,” Orlando Garcia da Silva, apelidado “Cantor das<br />

multidões”(Rio de Janeiro/RJ, 03.10.1915-07.08.1978) e o “fufu” Francisco<br />

de Moraes Alves (Rio de Janeiro/RJ, 19.8.1898-Pindamonhangaba/SP,<br />

28.09.1952), considerado o “Rei da voz”.<br />

99 Os dois filhos temporãos e travessos de OM e Maria da Conceição: Netinho<br />

(Hermilo Ferreira Neto) e Lelinho (Laélio Ferreira de Melo) estavam,<br />

à época em que o poema foi escrito, com 08 e 07 anos de idade,<br />

respectivamente. O primeiro é falecido; o segundo é o autor destas Notas.<br />

100 Maria da Conceição Ferreira da Silva. (Ceará-Mirim/RN,<br />

20.11.1899-Rio de Janeiro/RJ, 25.07.1968). A segunda e derradeira<br />

mulher do poeta. Sua companheira e musa durante 45 anos, mãe de quatro<br />

dos seus filhos: Washington (adotado por OM), Terezinha, Hermilo e<br />

Laélio. A sempre presente e solidária “boa formiga do meu inverno” – dizia<br />

dela <strong>Othoniel</strong>. A morte de Maria apressou a morte do poeta: faleceu oito<br />

meses depois.<br />

101 Lenine Barros Pinto (Recife/PE, 12.05.1930). Jornalista, advogado,<br />

historiador e escritor potiguar, nascido em Pernambuco. Foi aeroviário e<br />

servidor público do Senado Federal. Tem mais de uma dezena de livros<br />

publicados, dentre eles o discutido Reinvenção do Descobrimento – uma<br />

muito bem postada tese, na qual defende, com largueza de argumentos, a<br />

chegada dos portugueses ao município de Touros/RN, contrariando, frontalmente,<br />

a versão oficial. É membro da ANRL e de várias entidades literárias<br />

Brasil afora. Muito jovem, escrevendo nos jornais de Natal, privou<br />

da amizade de OM, freqüentando a casa do poeta.


102 Osso do braço.<br />

103 Ver nota em Sertão de espinho e de flor.<br />

104 Poeta, jornalista e professor universitário. Reside, há muitos anos, no Recife.<br />

105 Personagem de Edgar Allan Poe no poema “O corvo”.<br />

106 Turris Eburnea. Em latim, Torre de Marfim. É uma invocação atribuída<br />

a Nossa Senhora na Ladainha Lauretana. Um “lugar-estado” criado por<br />

Deus, a pedido de Maria, para pessoas que “deveriam se perder pelo grande<br />

mal que causaram no mundo”.<br />

107 Geraldo de Carvalho. Admirador de OM, companheiro e amigo, no<br />

meio teatral natalense, de Newton Navarro, Ticiano Duarte, Marcelo<br />

Fernandes e outros jovens, à época. Servidor dos Correios e Telégrafos.<br />

108 Newton Navarro Bilro (Natal/RN, 08.10.1928-Natal/RN,<br />

18.03.1991). Poeta, pintor, contista, cronista, orador e teatrólogo. Uma<br />

das mais brilhantes inteligências do Estado, em todos os tempos. Boêmio,<br />

irrequieto, conversador admirável. Chamava <strong>Othoniel</strong> de “primo”. Foi,<br />

com Veríssimo de Melo, uma das primeiras vozes a se levantar, na imprensa,<br />

contra os que perseguiram o poeta da “Praieira”, fazendo-o se autoexilar<br />

no Rio de Janeiro.<br />

109 Luiz Rabelo (Natal/RN, 04.03.1921-Natal/RN, 29.11.1996). Poeta,<br />

trovador, militar. Foi da Academia de Letras e do <strong>In</strong>stituto Histórico. Amigo<br />

e admirador de OM.<br />

110 Moacyr de Góes. Nasceu em Natal, em 1930. Bacharel em Direito,<br />

professor universitário, jornalista e escritor. Secretário Municipal de Educação<br />

em Natal e no Rio de Janeiro. Publicou mais de uma dezena de<br />

livros. Na década de 1960, sofreu perseguições e prisões, vítima do golpe<br />

de 1964, por ser auxiliar do inesquecível Prefeito Djalma Maranhão. Participou,<br />

ativamente, da implantação do vitorioso projeto “De pé no chão<br />

também se aprende a ler”, na capital do Estado. Antes, na década de 1950,<br />

foi colega de OM na Delegacia-Regional do <strong>In</strong>stituto do Sal, em Natal,<br />

tornando-se admirador e amigo do poeta.<br />

111 André Paul Guillaume Gide (Paris/França, 22.11.1869-<br />

19.01.1951). Escritor francês e vencedor do Prêmio Nobel de Literatura<br />

de 1947. Oriundo de uma família da alta burguesia, fundou a editora<br />

Gallimard e a revista Nouvelle Revue Française.<br />

625


626<br />

112 Antônio Pinto de Medeiros. Ver nota em Sertão de espinho e de flor.<br />

113 “Ele não é Cândido”, em francês. Certamente, alusão ao personagem<br />

Candide, de Voltaire (1694-1778). Cândido, otimista por excelência, continuamente<br />

se vê frente à maldade humana, no decurso de sua peregrinação<br />

pelo mundo.<br />

114 Referência jocosa ao escritor Jorge Amado (Itabuna/BA, 10.08.1912-<br />

Salvador, 6.08.2001), autor do romance Cacau (1933).<br />

115 Carlo Maria Pintacuda (Florença/Itália, 18.10.1900-Buenos Aires/<br />

Argentina, 08.03.1971), piloto italiano da Alfa Romeo. Ganhou o coração<br />

dos brasileiros ao vencer o GP da Cidade do Rio de Janeiro de 1938,<br />

disputado no Circuito da Gávea. Foi o suficiente para, durante muitos<br />

anos, a palavra “Pintacuda” virar sinônimo de bom piloto, para alguns, e de<br />

motorista abusado para outros. Em 1949, a gíria foi incluída na letra de<br />

uma marchinha de carnaval. Fez sucesso nos anos seguintes e ajudou a<br />

manter na memória nacional o nome do corredor.<br />

116 Les Chants de Maldoror. Os Cantos de Maldoror. Livro poético, escrito<br />

entre 1868 e 1869, pelo Conde de Lautréamont, pseudônimo de Isidore<br />

Ducasse (Montevidéu/Uruguai, 04.04.1846-Paris/França, 24.11.1870)<br />

poeta francês de origem uruguaia. É considerada uma das obras seminais<br />

da literatura fantástica, ainda que o seu universo estranho e mórbido seja<br />

de difícil classificação. Ducasse, para uns foi um gênio da literatura universal.<br />

André Breton considerava-o uma “revelação total que parece exceder<br />

as possibilidades humanas”; Já Léon Bloy, por seu lado, classificava-o como<br />

louco, “uma ruína humana completa”. Contudo, o autor foi tornando-se<br />

uma referência, principalmente para intelectuais apreciadores do gênero<br />

mais subversivo da literatura, tornando-se um autor de culto.<br />

117 Le Bateau Ivre. “O barco ébrio”, poema de Jean-Nicolas Arthur<br />

Rimbaud (Charleville/França, 20.10.1854-Marselha/França,<br />

10.11.1891).<br />

118 A música antes de qualquer coisa. Máxima de Paul Marie Verlaine<br />

(30.03.1844-08.01.1896), um dos maiores e mais populares poetas franceses.<br />

119 George Bernard Shaw (Dublin/Irlanda, 26.07.1856-Ayot Saint<br />

Lawrence, 01.11.1950), escritor, jornalista e dramaturgo irlandês.<br />

120 Sapo, em francês.<br />

121 Pesadelo, em francês.


Ara de fogo *<br />

[1988]<br />

* Publicação póstuma


Meu irmão <strong>Othoniel</strong><br />

prefácio à primeira edição<br />

É difícil para mim, aos noventa e seis anos de idade e considerando<br />

minha fragilidade física e emocional – além dos laços sanguíneos<br />

e afetivos que nos unem – falar do meu irmão <strong>Othoniel</strong>,<br />

Thony, na intimidade.<br />

Não querendo fugir da realidade de nossas vidas ou recuar diante<br />

do passado ou presente, reservo-me o direito de não ferir o meu<br />

“velho coração” com recordações de maneira que, tão-somente,<br />

lembrarei o mais tocante da sensibilidade de meu irmão para<br />

satisfazer o pedido de meu dileto amigo Cláudio Galvão,<br />

pesquisador da obra de <strong>Othoniel</strong>.<br />

Éramos quatro: Francisco, <strong>Othoniel</strong>, João e Gabriel. Entre nós<br />

esteve sempre presente a figura linda e humana de nossa mãe Maria<br />

Clementina Álvares de <strong>Menezes</strong>, que, por ocasião do nascimento<br />

de <strong>Othoniel</strong>, tivera a intuição divina que ele seria o poeta<br />

da nossa família.<br />

<strong>In</strong>felizmente, mamãe faleceu quatro anos após esse evento, privando-se,<br />

assim, de conhecer os dotes artísticos e literários de seu<br />

filho, Thony e, conseqüentemente, este deixou de ser “duplamente<br />

amado” por aquela que, sem dúvida, o teria como o seu poeta<br />

maior. O mais impressionante da personalidade de <strong>Othoniel</strong> foi a<br />

capacidade de memorizar tudo o quanto se relacionou com a vida<br />

629


630<br />

de nossa genitora em tão curta convivência do carinho materno.<br />

Uma absoluta e perfeita comunhão espiritual! A sua imagem é ternamente<br />

evocada nos versos de “Berceuse!” que, mais de cinqüenta<br />

anos depois de seu falecimento, ainda vivia nas emoções e saudades<br />

do poeta, recordada nas páginas de A canção da montanha:<br />

BERCEUSE (Trecho)<br />

Sei que tinha um roupão encarnado.<br />

estampado com florões.<br />

Era alta, esbelta, alva, os cabelos castanhos.<br />

– “Sua mãe era moça bonita!” – diziam-me os<br />

estranhos.<br />

E tocava violão.<br />

Ficou, no vago, oscilante, aéreo andor<br />

do meu inútil coração<br />

esborcinado como um velho monumento incendiado<br />

há milênios,<br />

docemente desbotada quase,<br />

em contornos ingênuos,<br />

a pálida madona da canção.<br />

Vago encanto de beijos tristes, arrulhos indistintos<br />

de amorosas frases,<br />

tímida ressonância de um arrabil chorando no oásis...<br />

Seus amores, tratou-os com extrema delicadeza, extravasando<br />

em versos de forma admiravelmente pura e sincera os seus sentimentos.<br />

Basta que o leitor se detenha nesses versos de sua juventude,<br />

trazidos pelos Ara de fogo, Abysmos e Esparsos, encontrará pedaços<br />

de sua alma, sua arte e um pouco de sua vida atribulada.<br />

Numa existência voltada para um mundo infinitamente seu, o poeta<br />

expressou seu sonho no Canto 15, sextilha n. 13 do seu livro Sertão<br />

de espinho e de flor (na minha opinião, sua obra-prima), escrito e<br />

inspirado na cidade de Jardim do Seridó, Rio Grande do Norte,


onde permaneceu durante a sua infância e adolescência, num gesto<br />

de sublime afeto:<br />

A glória a que aspiro – a única –,<br />

e que há de ser a minha túnica,<br />

mais sagrada que a de um rei,<br />

posse intangível se planta<br />

na alma do povo – que canta<br />

as canções que lhe ensinei!<br />

Natal, 22 de maio de 1988.<br />

Francisco <strong>Menezes</strong> de Melo<br />

631


Ara de fogo, Abysmos, Esparsos<br />

prefácio à segunda edição<br />

O ano de 1923 foi, sem dúvida, dos mais felizes da vida do<br />

poeta <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>. A publicação antecipada no jornal A República<br />

dos poemas que haveriam de compor o seu segundo livro,<br />

Jardim tropical, editado no fim daquele ano, levaram o poeta a sentir,<br />

pela primeira vez, o sabor da popularidade.<br />

Um desses poemas, a “Serenata do pescador”; recebera do<br />

conhecido músico Eduardo Medeiros, uma bela melodia que<br />

combinava perfeitamente com a beleza dos versos, contagiantes<br />

de comunicação emocional e cor local – pois construídos sob a<br />

inspiração de um fato de grande evidência local, um reide de<br />

pescadores norte-rio-grandenses que, em 1922, para comemorar<br />

o centenário da <strong>In</strong>dependência do Brasil, lançaram-se ao mar em<br />

denodada aventura, de Natal ao Rio de Janeiro.<br />

O poeta já sentira a boa fase que vivia, pois à página 51 do<br />

Jardim tropical , dizia: “Sei quanto é modesto o valor artístico destes<br />

versos. Feitos às pressas para serem recitados a pescadores,<br />

achou-os o inspirado musicista Eduardo Medeiros capazes de ser<br />

amparados pelo seu talento, valorizando-os com lindíssimo fado<br />

que a cidade repete, nas serenatas ou nos salões da aristocracia, de<br />

bairro a bairro. Por isso, e para satisfazer a pedidos muito gentis<br />

633


634<br />

que me orgulham e me confortam, publico no livro a minha ‘Praieira’,<br />

que me tem dado muitas vezes, noite alta, enquanto um<br />

violão soluça na rua solitária, a ilusão efêmera da popularidade”....<br />

A vibração positiva do momento deve ter animado o poeta à produção<br />

de novos versos que deveriam compor dois outros livros<br />

que teriam os títulos de Ara de fogo e Abysmos.<br />

Como era de praxe, na época, os versos eram primeiro submetidos<br />

à apreciação pública através dos jornais da cidade. Depois é que<br />

seriam definitivamente enfeixados em livros. Em 21 de janeiro de<br />

1923 sai publicado, no A República, o soneto “Clóris”, com a indicação<br />

do Ara de fogo. Até julho daquele ano, com a publicação do soneto<br />

“Mon Droit”, no mesmo jornal, <strong>Othoniel</strong> completou quatorze<br />

poemas que comporiam o Ara de fogo. Já em primeiro de agosto o<br />

soneto “Ruína Sagrada” indica a origem: Do Abysmos, conforme a<br />

grafia do momento. Foram ao todo cinco poemas publicados até<br />

janeiro de 1924, destinados àquele livro. Ainda em 1923 o jornal A<br />

República publica algumas outras poesias sem referência ao livro a<br />

que se destinavam. Seriam poesias esparsas ou, por engano ou omissão,<br />

pertenceriam também aos livros Ara de fogo ou Abysmos? Não é<br />

fácil saber-se. A coincidência com a publicação das poesias anteriores<br />

levam a crer que poderiam pertencer ao conjunto que formariam<br />

os dois livros planejados. Assim, concluiu-se por incluir, junto<br />

ao Ara de fogo e Abysmos, mais algumas produções de <strong>Othoniel</strong><br />

<strong>Menezes</strong>, com a segurança de que foram elas, igualmente, da lavra<br />

de 1923.<br />

Através desses antigos poemas poder-se-á reafirmar a qualidade<br />

da arte de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, que somente voltaria a se manifestar<br />

trinta anos mais tarde no Sertão de espinho e de flor e no livro A canção<br />

da montanha, seu último livro, publicado em 1955, com a segunda<br />

edição em 1980. À época da feitura dos poemas do Ara de fogo,<br />

Abysmos e destes Esparsos foi, portanto, o ano de 1923. Não é preci-


pitado afirmar-se que aquele ano foi um dos mais felizes da vida de<br />

<strong>Othoniel</strong>. Fora o casamento realizado em 1916 com a prima Maria<br />

do Carmo – Carmita – (1901-1984) que àquela altura, dava sinais<br />

de irrecuperáveis desajustes, o restante de sua vida transcorria em<br />

clima muito favorável. Os três filhos – Francisco Euryalo, Maria do<br />

Carmo e Maria de Lourdes – não foram bastante para evitar a separação<br />

do casal. Mas, a cidade toda o admirava e cantava, nos salões e<br />

nas noites de lua, a sua “Serenata do pescador” e era difícil saber-se o<br />

que era mais ouvido, se a “Praieira dos meus amores” ou se as queixas<br />

do “Viver de amor”. ( “Que importa, se não posso como outrora”),<br />

musicada por Olympio Baptista Filho, ou ainda se a bela “Alice”<br />

(“O teu nome inda guardo na minh’alma”), que recebera melodia<br />

de Carolina Wanderley. O poema “Sob as mangueiras” seria, mais<br />

tarde, musicado por Carmino Romano. Se existissem naquele tempo<br />

os recursos do rádio e da televisão, <strong>Othoniel</strong> teria estado, certamente,<br />

nas “paradas de sucessos”. Os jornais e a crítica literária local<br />

eram unânimes em elogiá-lo e enaltecer o valor da poesia. Ezequiel<br />

Wanderley o elogiava em seu Balões de Ensaio, de 1919, transcrevendo<br />

diversos de seus poemas. O jovem escritor Luis da Câmara<br />

Cascudo, em 1921, no seu primeiro livro Alma patrícia, extravasara<br />

a sua admiração pelo poeta em objetiva apreciação crítica.<br />

O Jardim tropical, que traz as datas “setembro de 1922 a janeiro<br />

de 1923”, só foi dado a público em novembro de 1923, recebendo<br />

os benefícios da Lei n. 145, de 1900, que possibilitava publicar,<br />

por conta do Estado, obras intelectuais de reconhecido valor.<br />

Na relação de obras do autor que aparece na última página de<br />

Jardim tropical encontra-se; além de Gérmen, seu primeiro livro e<br />

de Jardim tropical que, àquele momento se publicava, a seguinte<br />

indicação: “No prelo: Ara de fogo (versos). Em preparo: Abysmos<br />

(versos), Os últimos potiguares (poemeto heróico)”.<br />

635


636<br />

Não há, pois, dúvida quanto ao projeto do poeta de publicar os<br />

dois novos livros. Sobre Os últimos potiguares não foi possível se<br />

encontrar qualquer referência. Por que <strong>Othoniel</strong> não teria<br />

publicado aqueles dois novos livros? A informação de familiares<br />

do poeta é a de que ele teria perdido os originais sem deixar cópia.<br />

As mudanças ocorridas em sua vida nos anos subseqüentes teriam<br />

levado o projeto ao esquecimento. Graças aos arquivos do Estado<br />

– <strong>In</strong>stituto Histórico e Geográfico, Arquivo do Estado e<br />

Companhia Editora do RN – foi possível recolher-se das páginas<br />

dos velhos exemplares de A República e de A Notícia, os poemas –<br />

nem todos, certamente, que haveriam de compor o Ara de fogo e o<br />

Abysmos. O jornal A República tinha para ele as suas páginas à<br />

disposição, servindo de veículo às suas novas produções.<br />

Do ponto de vista financeiro, <strong>Othoniel</strong> nunca esteve tão bem<br />

em sua vida. Nomeado em 1918 para o cargo de segundo oficial da<br />

Secretaria de Governo do Estado, já em 1921 achava-se promovido<br />

a primeiro oficial, emprego esse que lhe rendia o salário, de trezentos<br />

mil réis por mês, abaixo apenas, naquela repartição, do salário<br />

do secretário-geral, que ganhava seiscentos mil réis por mês. Era<br />

um salário bem razoável para o nível dos empregos da pequena<br />

Natal daqueles tempos, além do prestígio pessoal que lhe conferia.<br />

Foi naquele momento que apareceu Maria – Maria da Conceição<br />

Ferreira (1900-1968), que se tornaria a companheira dedicada de<br />

todos os seus dias. Maria lhe deu mais quatro filhos: Washington<br />

(1920-1960), Teresinha (1926-2005), Hermilo (1939-1988) e Laélio<br />

(1939), que haveriam de compensar as tristezas e decepções do restante<br />

de sua vida, tornada inquieta e acidentada nos anos seguintes.<br />

Temperamento difícil e abraçando a boêmia com crescente dedicação,<br />

veio a perder, pouco depois, o emprego e, conseqüentemente,<br />

a segurança econômica de que desfrutava. Sua vida se torna mais<br />

difícil e a amargurada revolta que sentia era raramente contida. Somente<br />

em 1955 é que voltaria a se reencontrar com a poesia, lan-


çando o Sertão de espinho e de flor, versando uma temática totalmente<br />

diversa da que abordara antes.<br />

Os poemas dos livros Ara de fogo, Abysmos e Esparsos poderão<br />

aludir à compreensão da poesia de <strong>Othoniel</strong>, a ser complementada<br />

pelas obras a serem brevemente dadas a público. São eles, na<br />

fugacidade de sua mensagem, o que de concreto restou daquele<br />

distante ano de 1923, um dos mais felizes da vida do poeta <strong>Othoniel</strong><br />

<strong>Menezes</strong>.<br />

Cláudio Galvão<br />

637


Clóris 1<br />

A José Ferreira de Souza 2<br />

Quando desce ao jardim verde e florido<br />

da sua aristocrática vivenda,<br />

é uma deusa pagã, dentro da renda<br />

de um moderno, sacrílego vestido...<br />

Alta, branca, marchando pela senda<br />

saibrada da alameda, o colo erguido,<br />

roça nos lírios: – quérulo, um gemido<br />

eleva-se, de amor, sem que ela o entenda.<br />

Passeia, indiferente à sua glória.<br />

O sol, vivo, a dourar flores e ninhos,<br />

morde-lhe a nuca esplêndida, marmórea...<br />

E é bela, que as rosas, na alameda,<br />

rubras de ciúme, eriçam-se de espinhos,<br />

para rasgar-lhe a túnica de seda!<br />

639


640<br />

Paraíso perdido<br />

A Alberto Carrilho<br />

Arranco-me a este amor. O braço erguido<br />

contra mim, flamejando, a arma refece,<br />

mostra-me o arcanjo negro... Foragido<br />

do vergel que, hoje, em sonho, me aparece,<br />

contemplarei, de longe, a rósea messe 3<br />

que teu corpo divino e apetecido<br />

me prometia... Adeus! Doido e ferido,<br />

o coração não sara nem esquece!<br />

Gozo, porém, da glória que ambiciono:<br />

saber que um verso meu turbou teu sono,<br />

triste, ou contente, ou pálida te fez.<br />

Para viver de amor, basta a saudade!<br />

basta que esta ilusão seja verdade:<br />

– “Ela” pensou em mim alguma vez...


Os bem-te-vis<br />

A J. Gobat 4<br />

Ó Natureza!<br />

a única Bíblia verdadeira és tu!<br />

Guerra Junqueiro<br />

O Melro<br />

Moro num casarão. Verdes, serenas, perto,<br />

mais altas que as irmãs, moram cinco palmeiras,<br />

cheias de bem-te-vis. Estes, manhãs inteiras,<br />

vivem de amar, cantando. (É um paraíso aberto,<br />

à boêmia, à liberdade aos pássaros!) Por certo,<br />

são leigos em moral. Nas lânguidas soalheiras,<br />

beijam-se, abertamente, entre canções brejeiras.<br />

Nunca há de haver, aí, um ninho só deserto!<br />

Ontem, disse um amigo, a sorrir, reparando<br />

no verde gineceu: “– O tal noivado, em bando,<br />

à lei velha é o maior insulto que contemplo”.<br />

Bem que compreende o poeta, humorista ladino,<br />

que o alegre bem-te-vi é humaníssimo exemplo<br />

do Amor – o único bem mais forte que o destino!<br />

641


642<br />

Serenata<br />

A Deolindo Lima 5<br />

Tão claras, estas noites, que a avenida,<br />

sem viv’alma, silente, iluminada,<br />

a todo boêmio acreditar convida<br />

no sortilégio branco de uma fada.<br />

Dona Stella – há que tempo está deitada:<br />

sua casa, sem mais sinal de vida,<br />

lembra, erguendo no luar a ampla fachada,<br />

a história da “Princesa Adormecida”...<br />

Entretanto, aqui fora, que beleza!<br />

no silêncio, na paz da natureza!<br />

que misticismo salutar flutua!<br />

Branqueia o plenilúnio a noite bela,<br />

e, saudosa, uma voz canta na rua,<br />

ao longe: “Acorda... abre a janela... Stella”...


A catedral encantada<br />

A Nascimento Fernandes 6<br />

Branca, no ilhéu florido, avançando o zimbório 7<br />

perto do firmamento, a Catedral se erguia,<br />

murmurosa babel de sonho e de poesia,<br />

aos bíblicos pregões do mar, no promontório.<br />

Tudo orava, escutando, ao pôr do sol por,<br />

merencório,<br />

profundo, o carrilhão planger a Ave-maria...<br />

Eram – linho de altar a espuma casta e fria;<br />

os manacás em flor, trescalante incensório...<br />

Mas, uma vez perdida a fé nos livros santos,<br />

abriu-se o mar, fervendo, a água em montes<br />

conversa,<br />

e engolfou a ilha verde, entre salmos e prantos.<br />

Ouço ainda, da tarde aos clarões purpurinos<br />

– encantada no abismo –, a Catedral submersa<br />

levantando o clamor funerário dos sinos!<br />

643


644<br />

Quando o sonho morre<br />

Fiquei mais triste ao ver-te. Preferira<br />

que – miragem de amor na minha estrada –<br />

depois daquela noite iluminada,<br />

fosses a mesma esplêndida mentira...<br />

Hoje, que desencanto, extinta a pira,<br />

da glória, que supunha abrasada!<br />

O último sonho nosso, o último expira<br />

ao pé de minha lâmpada apagada...<br />

A ti, também, fora, mulher, decerto,<br />

não ver o que, de longe, em cismas, era<br />

nobre castelo – e é um túmulo, de perto...<br />

Antes não mais voltasses, primavera,<br />

canto, perfume, girassol aberto<br />

na penumbra saudosa da tapera!


A luz dos meus olhos<br />

A Oliveira Júnior 8<br />

Ontem, ao fim da luminosa tarde,<br />

ao meu encontro, sorridente, vieste,<br />

e eu, que não posso dessa luz celeste<br />

que os teus olhos me dão fazer alarde,<br />

fui mais feliz que um deus! Minh’alma guarde.<br />

até que durma em paz sob um cipreste,<br />

a glória de viver que, assim, me deste,<br />

– pira onde o incenso de meus amores arde!<br />

Quando te foste, comovida – juro –<br />

embora houvesse tanta estrela aberta,<br />

todo o céu para mim, tornou-se escuro!<br />

E eis-me; infeliz, as lágrimas contendo,<br />

ao ver que, pela estrada ampla e deserta,<br />

ia o teu vulto desaparecendo...<br />

645


646<br />

Poeta<br />

Para a tristeza e glória de Edinor Avelino 9<br />

Este que passa pela vida afora,<br />

fazendo versos, transformando em flores<br />

tudo que, nem nas trevas inferiores<br />

do último inferno, Dante viu, outrora,<br />

traz na fronte – crisol 10 de tantas dores –<br />

desde a primeira, agoniada aurora,<br />

o estigma passional dos sonhadores,<br />

– essa melancolia que o devora...<br />

Sofre? – deve cantar! Árvore-esfinge,<br />

da selva humana entre os madeiros brutos,<br />

no pântano se erguendo, o céu atinge...<br />

Abre-se em flores, para os infelizes.<br />

Mas, na polpa dulcíssima dos frutos,<br />

guarda o veneno e o travo das raízes...


Maio<br />

Para o romantismo de Adriel Lopes 11<br />

Maio vai se acabar! – punge dizê-lo!<br />

Quem não ama, este, só, não se envenena<br />

de saudade, esperando o pesadelo<br />

da última noite clara da novena!<br />

Tu, se não tens motivo de escondê-lo,<br />

tu, que me lês, dize se não faz pena<br />

não mais rezar aquela flor morena,<br />

sob o incenso pagão do seu cabelo!<br />

O amor, no mês de maio é suave prece:<br />

gorjeia trinta dias corda a corda, 12<br />

e, igual aos outros cânticos, fenece...<br />

Só o coração, turíbulo vivente<br />

– tanto de aroma ao pé do altar recorda...<br />

Fica esperando maio novamente!<br />

647


648<br />

Circo<br />

A Adolfo de França 13<br />

Quando vem, à tardinha da Ribeira,<br />

com o vestido salmão e a fina blusa,<br />

mademoiselle, 14 que me odeia, cruza<br />

a calçada e desvia-se, ligeira.<br />

Ao palestrar, da lâmina traiçoeira<br />

que traz na boca perfumada, abusa.<br />

– Espinho em flor! satanizada musa!<br />

panterazinha lúbrica e loureira! 15<br />

Para vingar-me, às vezes, noite morta,<br />

faço-a pensar em mim, por um instante<br />

– cantando um fado triste à sua porta.<br />

Gozo, ao vê-la fugir, sentir, deveras,<br />

queimar-lhe o corpo o látego vibrante<br />

do meu olhar de caçador de feras...


Mon droit 16<br />

A Uldarico Cavalcanti 17<br />

Isso de andar gemendo, em toda a parte,<br />

que és falsa – igual a todas as mulheres –<br />

que adianta ao meu espírito, se dar-te<br />

esse prazer, é tudo quanto queres<br />

para fingir de vítima? Tens arte<br />

de sereia e demônio! De encantar-te<br />

em punhal sob rosas, quando feres,<br />

oh mais falsa de todas as mulheres!<br />

Não me lamento e nem me arrependi<br />

de, embora tudo, ter-te amado tanto,<br />

ter esperado tanto bem de ti!<br />

Mas, o orgulho é brasão de muito preço!<br />

– Julgas-me indigno de tocar-te o manto?<br />

Salve, Princesa! Adeus! Também não desço!<br />

649


650<br />

1 Clóris. Ver nota 1, em Jardim tropical.<br />

Notas<br />

2 José Ferreira de Souza (Santa Cruz/RN, 10.09.1889-Rio de Janeiro/<br />

RJ, 15.05.1975). Advogado, jornalista, professor, deputado federal e senador,<br />

contemporâneo de OM nos bancos escolares do Colégio Diocesano<br />

Santo Antônio e do Atheneu Norte-Rio-Grandense.<br />

3 Seara em bom estado de se ceifar. Ceifa, colheita. Aquisição, conquista.<br />

4 José Gobat Ferreira do Nascimento (Santa Cruz/RN, 17.09.1889 - ?).<br />

Advogado, poeta e jornalista. Foi promotor público no Rio Grande do Sul e<br />

na Paraíba. No Estado vizinho, foi, também, Procurador-Geral do Estado e<br />

secretário do jornal A União. Retornou ao Rio Grande do Norte como fiscal<br />

de bancos. Em 1909, publicou um livro de versos: Asas.<br />

5 Deolindo Ferreira Souto dos Santos Lima (Assu/RN, 09.03.1885-<br />

Natal/RN, 10.04.1944). Poeta, jornalista, seresteiro, ator, teatrólogo,<br />

comerciante. Foi o primeiro ator a pisar o palco do Teatro Alberto<br />

Maranhão, no dia da sua inauguração (25.03.1904), apresentando um<br />

monólogo de Artur Azevedo (Rogério Brito). Excelente modinheiro (cantor<br />

de modinhas), amigo e admirador de OM, foi escolhido pelo poeta<br />

para, no mesmo tablado, no dia 16 de novembro de 1922, cantar, pela<br />

primeira vez, Praieira (Serenata do Pescador).<br />

6 Manoel do Nascimento Fernandes de Oliveira (Natal/RN, 1888 -<br />

?). Jornalista e poeta natalense, irmão dos também poetas Sebastião e<br />

Jorge Fernandes. Publicou, em 1913, O Livro de Matilde (versos).<br />

7 A parte superior, em geral convexa, que exteriormente remata a cúpula<br />

de um grande edifício, sobretudo de igrejas; domo.<br />

8 Olegário de Oliveira Júnior (Assu/RN, 22.09.1895 - ?). Jornalista,<br />

poeta, servidor público, agricultor (em Ceará-Mirim). Correligionário<br />

histórico de Café Filho, foi redator-chefe de vários jornais fundados pelo<br />

ex-presidente da República em Natal. Escreveu dois livros de versos:<br />

Cardos e Relicário. Amigo pessoal e colega de redação de OM.<br />

9 Ver nota em Sertão de espinho e de flor.<br />

10 Cadinho. Aquilo em que se apuram os sentimentos.<br />

11 Adriel Lopes Cardoso (Natal/RN, 24.01.1900-Natal-RN,<br />

20.01.1930). Poeta, desenhista, funcionário do Estado, grande boêmio<br />

no seu tempo. “Morreu e viveu depressa, como uma luz serena e tímida


num altar silencioso” – escreveu sobre ele Câmara Cascudo. Na fase mais<br />

boêmia de OM, nos primeiros anos da década de 1920, Adriel foi seu<br />

companheiro constante de farras. No carnaval de 1926, por exemplo,<br />

fizeram parte de um famoso bloco, “Os Quatro Perdidos”. Os outros dois<br />

componentes da borrachera quadra eram Olympio Baptista Filho e César<br />

Pelinca. A marcha-enredo da “agremiação”, com música de Olímpio<br />

Baptista, foi registrada no livro Falenas (Natal, 2007, impressão da Natal<br />

Gráfica Editora), organizado por Walter Batista de Andrade, filho do<br />

musicista, e apresentada pelo professor Cláudio Galvão.<br />

12 Corda a corda. No sentido de série, cadeia, fileira.<br />

13 Adolfo Elias de França (Natal/RN, 02.11.1901-Natal/RN,<br />

06.04.1974). Servidor público, violonista, compositor, seresteiro, líder<br />

católico, proficiente e sem exageros. Era parente próximo de OM, pelo<br />

lado dos Álvares de <strong>Menezes</strong>, povoadores do atual município de Nova<br />

Cruz. Foi, por trinta anos, Administrador da Casa de Detenção de Natal, ali<br />

realizando relevante obra social de amparo aos presos. Cafeísta convicto,<br />

foi suplente de vereador, assumindo algumas vezes o exercício do mandato.<br />

Ficaram famosas, em Natal, nos anos 1960, as suas diferenças políticas<br />

com o filho, deputado federal Erivan França, um dos líderes mais exaltados<br />

do governador Aluízio Alves. Adolfo sofreu represálias e ingratidões.<br />

14 Mademoiselle. Senhorita, em francês.<br />

15 Loureira. Diz-se de mulher provocante, sedutora, que procura agradar a<br />

todos.<br />

16 Mon droit. Meu direito, em francês.<br />

17 Uldarico Bezerra Cavalcanti (Natal/RN, ?-Rio de Janeiro/RJ,<br />

09.01.1955). Poeta, jornalista, servidor público federal, membro do Grêmio<br />

“Le Monde Marche”. Publicou Esmaltes (1900) e Bandolinatas (1903,<br />

Natal). Estudou Medicina e exerceu cargos importantes no Ministério da<br />

Fazenda, então sediado no Rio de Janeiro, representando o Brasil em vários<br />

eventos técnicos no exterior. Muito jovem – segundo Rômulo Wanderley,<br />

em Panorama da poesia norte-rio-grandense –, prestou serviços de guerra na<br />

Bahia, combatendo os jagunços de Antônio Conselheiro. Um poema de sua<br />

autoria, intitulado “Ao verme que primeiro tripudiar sobre o meu cadáver”,<br />

publicado em Recife, em abril de 1903, ao lado da obra de Augusto dos<br />

Anjos – e até de Cruz e Souza – tem suscitado vários estudos acadêmicos<br />

sobre a “poesia científica” da chamada Escola do Recife, cujo teórico maior<br />

teria sido José Izidoro Martins Júnior (1860-1904).<br />

651


Abysmos


Tristeza<br />

Ela, sabendo quanto um triste fado,<br />

de incerteza mortal me fez cativo,<br />

quis me dar seu amor – por ele, vivo<br />

a pensar que não sou tão desgraçado!<br />

Não me importa do mundo o iroso brado...<br />

O que de atroz pesar me dá motivo,<br />

é que me falte, um dia, o lenitivo<br />

dessa fonte do vinho suspirado!<br />

Fosse, o meu sangue o doloroso preço<br />

desta esperança, que a minh’alma invade,<br />

da glória, que não tenho e nem mereço!<br />

Morto – seria, ao menos, uma prece,<br />

uma lágrima, o aroma da saudade,<br />

que o seu piedoso coração tivesse!<br />

655


656<br />

Ruína sagrada<br />

O coração, de onde, hoje em dia, arranco<br />

funerais de esperanças, quando falo,<br />

já foi uma igrejinha – dói lembrá-lo!<br />

cheirando a malva-rosa e cravo branco.<br />

Teu altar por que não vieste ocupá-lo?!<br />

Viesses, que festas! que alvoroço franco<br />

dos sinos! quanta flor pelo barranco!<br />

procissões ao luar! missas do galo!<br />

Tardaste! a atroz descrença levou tudo!<br />

Só um monge, o sonho, pelas ruínas, mudo,<br />

chora do céu a malograda palma...<br />

E, sobre a torre negrejante, apenas,<br />

na luz das tardes tristes e serenas,<br />

voeja a andorinha branca de tua alma.


Elevação<br />

É por ti que algum bem ainda consigo<br />

– quando venço, calado, o meu tormento:<br />

quando perdôo, ou, com meu pão, sustento<br />

a miséria de um pálido mendigo.<br />

Se estudo, ou quando afronto algum perigo,<br />

quando é sonho e oração meu pensamento:<br />

por ti, calcando o coração violento,<br />

beijar a fronte do último inimigo!<br />

Por seres tu quem és, pura e perfeita,<br />

tudo que vem de ti minha alma aceita<br />

para libertação do meu inferno.<br />

Subiu, assim, do vórtice fremente,<br />

Dante, por Beatriz, gloriosamente,<br />

à própria essência mística do Eterno.<br />

657


658<br />

Rosa<br />

Alma cristã que, ao longe, me acompanhas,<br />

da minha vida no deserto escuro!<br />

Que nome hei de te dar, se, em vão, procuro<br />

um que exalte o esplendor em que te banhas?<br />

Antes não viesses a este mundo impuro,<br />

sofrer o horror de provações tamanhas!<br />

Flor da neve perpétua das montanhas,<br />

nostálgica, a brilhar sobre o monturo...<br />

Rosa de misticismo, ebúrnea e casta,<br />

que a via-crúcis do destino arrasta,<br />

despetalando um belo sonho morto...<br />

Rosa viva de amor, sem um espinho,<br />

aberta em preces, beijos e carinho,<br />

ao pé das oliveiras do meu horto.


Teus olhos tristes<br />

Teus olhos tristes! quem me dera ao menos,<br />

vê-los, de perto, a todo instante, para<br />

beijá-los, e cantar, em suaves trenos,<br />

as maravilhas dessa noite rara!<br />

Tenho bebido todos os venenos<br />

dos olhos das mulheres, mas, tão clara<br />

expressão, tanta luz – qual se compara<br />

à dos teus olhos negros e serenos?!<br />

Céu de amor, sobre o qual, triste, debruço<br />

a alma, e sondo, soluço por soluço,<br />

o rio de amarguras que te inunda...<br />

Fonte de pranto e de prazer oculto,<br />

refletindo, na flor da água profunda,<br />

a sombra cismativa de meu vulto.<br />

659


660<br />

Íxion 1<br />

E mais eleva o coração de um homem,<br />

ser de homem sempre e...ficar na terra e<br />

humanamente amar!<br />

Olavo Bilac<br />

Para contradição de teu sonho grandioso,<br />

tu nunca hás de encontrar a mulher que procuras,<br />

– amante, à hora do amor; mãe, nas horas escuras;<br />

coração, na miséria, e espírito, no gozo.<br />

De qual soubeste, já, que trouxesse as mãos puras<br />

do contato do mal fugaz, mas afrontoso,<br />

e conservasse, em meio a todas as loucuras,<br />

a lâmpada fiel para esperar o esposo?<br />

Teu cérebro por mais que em sofismas se adentre,<br />

conclui sempre que a planta à condição terrestre<br />

deve as flores e o sol comum para entretê-las...<br />

Sem dúvida, a mulher que procuras existe!<br />

– mas não sabe de ti, que andas perplexo e triste,<br />

a buscar o seu vulto humano entre as estrelas...


Nota<br />

1 Íxion. Rei da Tessália, desposou Clia. Mais tarde, a matou e ao seu pai,<br />

Deioneu. É pai dos centauros, nascidos dele e de uma nuvem. Por ter<br />

tentado violar Juno, esposa de Júpiter, foi parar no inferno, onde gira numa<br />

roda de fogo por toda a eternidade.<br />

661


Esparsos


Parte I<br />

[1923]


Índio<br />

Tu, cuja taba invicta, primeira,<br />

ergueste, primitiva, soberana,<br />

ao sol da livre plaga americana,<br />

– representas a glória brasileira!<br />

Orgulhoso da história e da bandeira<br />

cravejada de estrelas que se irmana<br />

à grandeza de tudo que promana<br />

da floresta, do mar, da cordilheira!<br />

Símbolo vivo, atlético, selvagem,<br />

da pujança e do sonho formidando<br />

que alenta a coragem de Peri. 1<br />

Flor de bronze da selva! escuta a aragem:<br />

a voz de Carlos Gomes, derramando<br />

o Amazonas ao som do Guarani! 2<br />

667


668<br />

Vesperal<br />

Oh silêncio dos ermos! voz saudosa<br />

das juritis, na solidão, perdida.<br />

A natureza, mater dolorosa,<br />

amparando a cabeça já sem vida<br />

do sol... A luz violeta refletida<br />

na largura... (Um coqueiro, ao longe, à rosa<br />

esparsa do arrebol, tristonho, goza,<br />

toda a beleza dessa despedida!)<br />

Gênio da tarde! esconde teus mistérios<br />

– na boca paralítica das fumas...<br />

– nos vales, nos vergéis, nos cemitérios...<br />

Na poesia universa que resumes,<br />

seres e coisas são divinas urnas<br />

de saudades! de cantos! de perfumes...


Poema da noite<br />

Repassada de augúrios e perfumes<br />

sobre a calma da terra adormecida<br />

e exausta de emoções, de ânsias, de vida<br />

– côncava, a noite azul reacende os lumes<br />

das estrelas. Milhões de vagalumes<br />

piscam, na treva. E, diáfana, expandida,<br />

a Via Lactea, a esplêndida avenida,<br />

desdobra, a fulgurar! Noite! resumes<br />

muitas das grandes gestações secretas<br />

da Natureza! A esta hora nascem rosas<br />

no teu sossego, noite imensa e bela!<br />

E a alma branca dos noivos e dos poetas,<br />

das crianças a dormir, das mães piedosas,<br />

toda em sonhos e beijos se constela!<br />

669


670<br />

Teus olhos claros...<br />

Os teus olhos castanhos são dois lagos,<br />

de leitos de ouro, entre sedosas filas<br />

de tinhorões rajados e tranquilas<br />

messes de crisântemos de tons vagos.<br />

Nadam tontos, aveludando afagos,<br />

os cisnezinhos negros das pupilas...<br />

Têm palácios de fadas e sibilas, 3<br />

festas, lindas histórias de reis magos.<br />

São dois topázios encantados, onde,<br />

a cada vibração de luz, responde<br />

de uma promessa o ardente magnetismo.<br />

Cego por eles, vou de olhos fechados,<br />

sentindo, alheio ao mal de outros pecados,<br />

meu coração cantar dentro do abismo.


Parte II<br />

Poesia inédita em livros


Atavismo 4<br />

I<br />

Para Jorge Fernandes<br />

Tic-tac! Tac-tac!<br />

– Rrac... crac...<br />

Olá, amigo vento, velha alma familiar e chorosa de<br />

Casimiro!<br />

velha gargalhada noctâmbula do salafrário Bocage!<br />

Avejão!... (rrac!)<br />

vulto branco!... (crac!)<br />

Tic-tac...<br />

Ferve, a cem léguas, o mar… uma zelação que<br />

desabou no mar!<br />

II<br />

Crac!... Crac!<br />

abriram a minha porta!<br />

Quando chega a hora aziaga e o horror no coração<br />

primitivo<br />

do primeiro pastor que viu a primeira estrela no<br />

céu, enorme,<br />

tic... tic... o coração é um relógio – tic... tic...<br />

tic...!<br />

673


674<br />

a hora sem nenhum pavor dos corujões rasgando a<br />

mortalha das horas<br />

sobre o sono dos pequeninos,<br />

centos de filisteus com plumagens índias,<br />

carregando uma urna de esmeralda, enflorada de<br />

corais e algas,<br />

a cabeça luminosa e gotejante de Gonçalves Dias,<br />

berram, mudos, epopéias americanas...<br />

Ferve, a duzentas léguas para o Ocidente: o mar!<br />

e foi quando os espectros de todas as poesias<br />

abriram a minha porta!<br />

III<br />

E morri no meu corpo imortal,<br />

e voei pela transparência da noite morta!<br />

Tudo morto!<br />

Para o Ocidente, para dentro da plaga imensa, ferve<br />

o mar!<br />

... mas, o meu irmão moinho, acordado ainda,<br />

geme no ermo: crac... crac...<br />

Era um mar morto, o mar diferente do mar que<br />

referve,<br />

e onde o último romântico, absorto, navegava,<br />

com um santelmo de saudade fátua iluminando a<br />

lira grega!


IV<br />

E o meu ágil fantasma,<br />

– rrac... rrac... rrac... –<br />

assustando os burgueses insones,<br />

de tanto ouro honesto e principal na vida<br />

– canalha cosmopolita, céu dos judeus dos<br />

miseráveis! –<br />

tic-tac...<br />

Hora boa dos miseráveis!<br />

V<br />

O meu fantasma arrastando uma braçada fria de<br />

horas,<br />

tac... uma! tac... duas! tac... multiplicando,<br />

vai deixando cair uma hora boa à porta dos<br />

miseráveis!<br />

beija um faminto filho de vagabundo que não sabe<br />

das horas,<br />

e traz um vagalume, para alumiar dez beijos nos<br />

meus filhos ressonando...<br />

VI<br />

Rrac... rac... rac...<br />

abriram a minha porta,<br />

675


676<br />

aqueles suaves fantasmas que são os meus<br />

pensamentos,<br />

numa eclosão constante de música, dentro de uma<br />

noite morta...<br />

VII<br />

Eu estou vivo no meu corpo,<br />

e o meu fantasma sensitivo<br />

radiografa para a estação circular do meu cérebro<br />

– tic... tic... –<br />

todas as impressões musicais das horas que morrem<br />

cantando.<br />

E eu sinto no estuário do meu coração<br />

a convergência, a refração<br />

da inquietação comum...<br />

VIII<br />

Tic... tac...<br />

Tictac:<br />

dez!<br />

tac –<br />

onze!<br />

tac –<br />

doze!...<br />

Às constelações mais belas, muito móveis<br />

no mostrador ciclópico da matriz do zodíaco.


so...<br />

no...<br />

ra...<br />

men...<br />

te<br />

gotejam:<br />

tic-tac... tic-tac:<br />

– luz maior que a luz do século,<br />

sobre os páramos dos sertões fetichistas e esquecidos:<br />

ah! as reticências de Euclides da Cunha,<br />

o Caçador de Esmeraldas de Bilac!<br />

Tic-tac...<br />

IX<br />

E eu, dentro da cidade que dorme,<br />

vigiada pela vigília inexorável das horas<br />

assombradas,<br />

e pelo cão danado do vento sul,<br />

que é um bandido e devasta o peito dos meus<br />

irmãos varredores das ruas,<br />

eu estou vivo!<br />

e vejo o FANTASMA!<br />

tic... tac!...<br />

o fantasma!...<br />

crac! crac!...<br />

o fantasma!<br />

dos meus próprios pensamentos. 5<br />

677


678<br />

Canção do exílio 6<br />

Poemazinho da esperança<br />

canta o soldado bagageiro:<br />

“Na Bahia diz que tem<br />

morenas de qualidade,<br />

que até no andar deixa saudade”<br />

Ai! A toada, que tristeza...<br />

até pareço português!<br />

Chegarei lá?<br />

Minha filhinha, eu sou criança,<br />

e nem te deixei chorar quando parti!<br />

Bato estas serras, brancas de bruma!<br />

Vejo uma igrejinha, eis-me a rezar...<br />

(os trens me arrastam) Irei voltar?<br />

Toca a sofrer, só de esperança!<br />

Vou fazer versos. Bem quisera<br />

Ser Casimiro Triste de Abreu:<br />

- O agreste sassafrás, à beira d’agua,<br />

perfuma o ermo... –<br />

Chi!... que esperança!<br />

Chegarei lá? ...<br />

Canta o soldado, mas ele canta<br />

é o poemazinho que me faz criança!


As sereias 7<br />

Na praia, diante do silêncio harmonioso do mar,<br />

uma tarde, romântico,<br />

silencioso, ouvindo clamor de naufrágio no<br />

coração,<br />

– velho corsário transatlântico –<br />

pus-me a traçar<br />

nomes vários de mulheres:<br />

uma constelação inteira, de Marias,<br />

Faustas, Edites, Esteres...<br />

umas louras, sonhadoras, metidas a inglesas, frias...<br />

outras ardentes! e havia u’a morena, maravilhosa,<br />

que era mentirosa! era mentirosa!<br />

Coração, que mais queres? Coração, que mais<br />

queres?<br />

Todo coração é um navio encantado,<br />

cheio, cheio, fantástico, iluminado,<br />

de nomes de mulheres...<br />

679


680<br />

Jorge e o dragão 8<br />

A Jorge Fernandes<br />

Quando todos cantavam soluçando<br />

Lívida lua sobre o rio montes<br />

Casimiros Bilacs e Lecontes 9<br />

Filtrando estrofes pelos pés contando<br />

Descobres nos penates 10 novas fontes<br />

– A noite era um felino ronronando 11<br />

A luz com a luz elétrica chegando<br />

Os violões só nos doutos horizontes<br />

Ergues na confusão do itinerário<br />

Teu cassetete revolucionário<br />

Contra o dragão de açúcar dos rondós 12<br />

Pagaste nunca a vida com tristeza<br />

Pela grade dos sonhos a Beleza<br />

Te deu destino além de todos nós


Ricardo da Cruz 13<br />

(A propósito do reide de iole 14 Natal-Rio) 15<br />

Artífice e piloto, desde a quilha,<br />

com as tuas próprias mãos, a nau fizeste<br />

– fina e leve. Na proa, airosa, brilha<br />

o pendão potiguar azul-celeste.<br />

Mais alguns dias, e abre-se a imensa trilha:<br />

a bombordo, a amplidão... Negro, a boreste,<br />

o arrecife... Porém teu pulso investe<br />

o rumo ao belo golfo – maravilha!<br />

No teu nome há um santelmo 16 alvissareiro:<br />

CRUZ da Fé! Nunca teve outro padrão,<br />

o heroísmo do povo brasileiro.<br />

Nossa Senhora da Apresentação<br />

guie teu barco, Vespúcio canguleiro<br />

– Rei dos peixes do mar de Camarão!<br />

681


682<br />

Henrique Castriciano<br />

Discretear com Renan e com Jesus,<br />

ser sábio e poeta. Que melhor destino,<br />

sob o céu deste berço pequenino,<br />

que seu estro imortal encheu de luz?<br />

Três Continentes mestre e peregrino,<br />

perlustrando, de volta, que conduz?<br />

– da Europa, outro evangelho para o Ensino,<br />

– da Ásia, o modelo para a própria cruz...<br />

Três livros, e uma Escola – que é o mais lindo<br />

poema que fez, sonhando, e desmentindo<br />

que os sonhos só de sonhos se coroam...<br />

A alma da Pátria perfumou teu Canto!<br />

– as mãos e as noivas, todas, te abençoam!<br />

– todos os poetas te proclamam Santo!


Marinha brasileira<br />

Troa ainda nas ribas 17 desoladas<br />

dos paranás do sul, o som vibrante<br />

do sinal que Barroso, a águia flamante,<br />

içou, num caos de frechas e granadas!<br />

Diga, depois, o Atlântico, as jornadas<br />

em que a voz rediviva do almirante<br />

levou a esquadra à esteira borbulhante<br />

dos polvos negros – de hélices gamadas!<br />

Ei-la, a cecém 18 dos mares, flor das frotas,<br />

leoa na batalha, hoje sonhando,<br />

entre ondinas, santelmos e gaivotas...<br />

Vedeta 19 do horizonte à luz dos astros<br />

sobre os rumos da América, levando<br />

o nome do Brasil – na Cruz dos mastros!<br />

683


684<br />

Caminhos de sangue 20<br />

O pé das caboclas descuidadas<br />

pisa agora a estrada da guerra<br />

onde eu sou milionário.<br />

Vão ao rio, descem ao vale ainda úmido,<br />

cheirando, sob a diáfana bafagem da névoa,<br />

a cajueiros em flor...<br />

Breve, talvez, esse bucólico itinerário<br />

onde há tinidos esparsos, sucupiras<br />

de mantos lilases, ubaias douradas e<br />

mel.<br />

Soldados, pequenos soldados pardos,<br />

ingênuos, cabeças de papel.<br />

Furiosos sob a metralha, atravessando a<br />

ponte, caindo como gafanhotos<br />

verdes na cachoeira.<br />

E somente restará, tímida, trêmula, sob<br />

a bananeira da margem silenciosa,<br />

a última da tribo dos mestiços da<br />

Ponte Velha,<br />

estúpida, olhando os heróis despedaçados<br />

na água do rio inocente refletindo


pobres flores azuis e pau-d’arqueiros<br />

com grandes túnicas de quaresma.<br />

Todas as estradas por onde ainda<br />

vagam sombras de sacrificados,<br />

são iguais a essa da Ponte Velha.<br />

Onde as caboclas felizes vão pela<br />

manhã a cachoeira.<br />

No vale onde estão ainda em paz<br />

e em flor os cajueiros...<br />

685


686<br />

Notas<br />

1 Peri. Companheiro e protetor de Ceci, cujo irmão matara, casualmente,<br />

uma índia da tribo Aimoré. Esse fato exaspera a família da índia que pretende<br />

vingar-se matando Ceci. Peri, vigilante, mata-os e, graças a ele, todo<br />

tipo de vingança contra a família de Ceci é desfeita. Peri, imaginando que<br />

poderia matar todos os Aimorés sozinho, toma veneno e se lança contra<br />

mais de duzentos índios. Quando já fizera grande mortandade, entrega-se<br />

como prisioneiro, porque conhecia o costume daqueles índios antropófagos<br />

de devorar o inimigo. estando ele envenenado, todos morreriam ao<br />

comer de seu corpo. (O guarani, de José de Alencar).<br />

2 O guarani. Uma das óperas do compositor brasileiro Antônio Carlos<br />

Gomes (1836-1896). Em quatro atos, com libreto de Antônio Scalvini,<br />

estreou no Teatro Scala de Milão, na Itália, em 19 de março de 1870,<br />

fazendo um grandioso sucesso. A Il guarany tem como maior destaque a<br />

sua abertura. Esta é até hoje muito interpretada, além de muito conhecida<br />

por ser o tema do programa radiofônico A Voz do Brasil.<br />

3 Profetisas, bruxas, feiticeiras.<br />

4 No livro Príncipe Plebeu – Uma biografia de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> (no prelo, em<br />

março de 2009), Cláudio Galvão – para espanto de muito “intelectual<br />

conterrâneo” e de alguns empolados mestres e doutores da nossa universidade<br />

– descobre, documentadamente, que, neste longo poema, publicado<br />

na revista Letras Novas, em setembro de 1925, “inesperadamente, e<br />

de forma diferente ao estilo poético sempre seguido, <strong>Othoniel</strong> aparece<br />

sem rima, sem métrica, utilizando uma linguagem nova e avançada, e empregando<br />

o artifício das onomatopéias e recorrendo a estratégias gráficas.<br />

Estas características foram amplamente empregadas pelo poeta Jorge<br />

Fernandes – nome maior do movimento modernista no Rio Grande do<br />

Norte – e seriam a sua forma preferencial de expressão poética. Entretanto,<br />

o primeiro poema moderno de Jorge Fernandes iria ser publicado em<br />

periódico cerca de três anos depois, na edição de 15 de março de 1928 do<br />

jornal A República – o “Remanescente”–, meses após o aparecimento do<br />

seu Livro de poemas. O poema “Atavismo” – por sinal dedicado a Jorge<br />

Fernandes – enquadra-se na maioria das tipicidades que caracterizaram o<br />

movimento modernista. Nele pode-se notar a ausência de métrica, de<br />

rimas e da forma usual dos “passadistas”, como o clássico soneto, que é<br />

substituída por um longo poema subdividido em nove partes. O tema –


um delírio do poeta – não é tão comum na época. Acrescente-se, ainda, a<br />

utilização de onomatopéias e recursos gráficos. Faltariam, para completar,<br />

a ambientação nacional e as cores “verde-amarelo”, para o total<br />

enquadramento. O ritmo clássico é desprezado, mas a pontuação é mantida<br />

“passadista”. É necessário ressaltar-se que “Atavismo” foi o primeiro poema<br />

moderno a ser publicado no Rio Grande do Norte, após o deflagrar da<br />

“Semana de Arte Moderna” de São Paulo, em 1922”. Depois de muitas<br />

outras observações acerca do poema e sua repercussão na época, arremata<br />

o profícuo historiador e biógrafo: “A publicação de “Atavismo” em 1925,<br />

na revista Letras Novas, é um fato a ser considerado pelos estudiosos do<br />

movimento modernista no Rio Grande do Norte. É bem provável que<br />

um exame mais atencioso possa levar os especialistas na área a dar a<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> a posição que parece merecer, entre os pioneiros do<br />

modernismo no Estado.”<br />

5 A presente formatação obedece à disposição das estrofes na publicação<br />

original (Letras Novas, número 03, de setembro de 1925).<br />

6 Publicado na revista Nossa Terra – Outras Terras, em junho de 1926 – <strong>Othoniel</strong><br />

“modernista”? A doutoranda de Literatura Comparada da UFRN, Maria<br />

Suely da Costa, escreveu sobre o poema (Ver “<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> diante<br />

da Canção do exílio” – revista Brouhaha – Natal, p. 76-77, 05 jun. 2007.)<br />

7 Publicado em 1926 (junho) na revista Nossa Terra – Outras Terras. <strong>Othoniel</strong><br />

moderno?<br />

8 O poema foi publicado no jornal A República, edição de 25.10.1956, na<br />

coluna do jornalista Antônio Pinto de Medeiros, encimado com a seguinte<br />

nota: “Um soneto de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> – Este suplemento tem, para<br />

com Jorge Fernandes, uma dívida que será saldada mais cedo ou mais<br />

tarde. Dívida de honra que se adiciona a outras de sua gente e de sua terra.<br />

Uma inteira edição deste caderno lhe será dedicada brevemente. Até lá,<br />

entretanto, não perderemos oportunidade de reverenciar a memória e o<br />

nome do autor do Livro de poemas. Assim é que, hoje, divulgamos o soneto<br />

que, em sua homenagem, escreveu <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, logo após sua<br />

morte.”<br />

9 Alusão ao poeta parnasiano e tradutor francês Charles Marie René<br />

Leconte de Lisle (Ilha da Reunião/França, 22.10.1818-Paris/França<br />

01.07.1894). Sucedeu a Victor Hugo na Academia Francesa. Seus versos<br />

são claros, realistas, sonoros, possuem movimento, são corretos no rit-<br />

687


688<br />

mo, cheios de cores exóticas e nomes selvagens. Além de seus poemas,<br />

publicou várias traduções de autores clássicos gregos.<br />

10 Deuses domésticos dos pagãos.<br />

11 Fazendo ronrom (o gato); resbunando.<br />

12 Composição poética com estribilho constante.<br />

13 Ricardo Severiano da Cruz (Rio do Fogo, então Touros/RN,<br />

17.02.1890-Natal/RN, 09.07.1979). Poeta, esportista, funcionário público.<br />

Amigo e vizinho de OM durante muitos anos. Era exímio carpinteiro<br />

naval. Alegre e folgazão praieiro, companheiro de Ferreira Itajubá, quando<br />

jovem. Memória privilegiada.<br />

14 Canoa estreita, leve e rápida, de uso nos esportes náuticos. <strong>Othoniel</strong>, nos<br />

originais dos versos acima, em manuscrito, transcreveu a seguinte quadra:<br />

“Que vai, esse ousado bando,/na Guanabara mostrar? – cinco caboclos, pegando/<br />

queda-de-corpo com o mar!”, anotando que Ricardo da Cruz “levou cópia<br />

datilografada e assinada do soneto e mais a trova acima copiada”.<br />

15 De uma publicação da época: “Da rampa do Sport Club Natal, às margens<br />

do rio Potengi, parte a reforçada yole a 4 remos ‘Rio Grande do Norte’,<br />

com bordas elevadas e compartimentos estanques nos castelos de proa e<br />

de popa, construída pelo carpinteiro naval Oscar Simões Filho, para tentar<br />

a travessia Natal-Rio de Janeiro a remo. <strong>In</strong>tegravam a guarnição os bravos<br />

remadores: Ricardo Severino da Cruz, 63 anos, timoneiro; Antônio de<br />

Souza Duarte, 49 anos, voga, Clodoaldo Becker, 59 anos, sota-voga; Francisco<br />

de Paula Madureira, 44 anos, sota-proa; Oscar Simões Filho, 39<br />

anos, proa, todos associados do Sport CIub Natal, com exceção de Antônio<br />

de Souza Duarte, filiado ao Centro Náutico Potengi. Em 16 de maio,<br />

alcançaram Mangue Seco, 42 quilômetros ao Sul de Estância, no Estado<br />

de Sergipe. Devido ao mau tempo e à necessidade de reparos no barco,<br />

permaneceram neste local até 2 de junho. Neste dia, as perspectivas de<br />

bom tempo induziram nos a reiniciar a viagem; porém, ao atingirem a<br />

barra, uma onda enorme partiu o barco ao meio, salvando-se os 5 tripulantes<br />

com incríveis dificuldades. Voltaram todos desolados a Natal, mas<br />

Ricardo Severiano da Cruz, apesar dos 63 anos, não se deu por vencido e<br />

incentivou os náufragos a não encerrar a travessia. Recebendo a colaboração<br />

das autoridades e do povo, conseguiram que o mestre naval Luís<br />

Enéas construísse nas oficinas da Base Naval, de 21 de outubro a 18 de<br />

dezembro, a yole ‘Rio Grande do Norte II’. Por motivos diversos, Fran-


cisco de Paula Madureira e Clodoaldo Becker foram substituídos pelos<br />

remadores Walter Fernandes e Luís Enéas, ambos do Sport CIube Natal.<br />

Em 18 de janeiro de 1953, os remadores e a yole partiram de Natal, no<br />

caça-minas ‘Piranha’, chegando a Aracaju em 8 de fevereiro, seguindo<br />

após até Mangue Seco, local da interrupção da primeira tentativa. Em 21<br />

de maio, festiva e gloriosamente foram recebidos no Rio de Janeiro os<br />

valorosos remadores potiguares.”<br />

16 Chama azulada que, sobretudo por ocasião de tempestade, surge no tope<br />

dos mastros dos navios, produzida pela eletricidade. [De Santo + Elmo<br />

(Elmo por Ermo, alter de Erasmo, santo invocado pelos marinheiros do<br />

Mediterrâneo quando, por ocasião das tempestades, aparecia esta chama)].<br />

17 Margem alta de um rio; ribanceira, arriba.<br />

18 Açucena.<br />

19 Lancha de linhas esguias, com uma cabina a ré, capaz de desenvolver<br />

velocidade incomum, e usada para transportar autoridades.<br />

20 O poema, certamente escrito durante a Segunda Guerra, não foi incluído<br />

por OM no livro A canção da montanha (1955), tendo sido publicado em<br />

1949, num dos jornais locais. O poeta fala em “estrada da guerra”, “Ponte<br />

Velha”, “caboclas descuidadas”, “cachoeira”, pintando um quadro – sem<br />

dúvida, crê o autor destas Notas – do que, diariamente via, ao se deslocar<br />

de Natal para Parnamirim, onde trabalhava, à época do conflito mundial.<br />

As caboclas eram a lavadeiras, a cachoeira a do rio Pitimbu e a ponte,<br />

chamada de “Velha”, modernizada pela engenharia dos americanos, obra<br />

d’arte da “Parnamirim Road”. O local, hoje em dia (2009), poluído e<br />

devastado por obra e graça de especuladores e de autoridades desonestas,<br />

não vale mais sequer um poema performático de algum maluco aqui da<br />

Jerimulândia...<br />

689


A cidade perdida


<strong>In</strong>trodução<br />

à primeira edição<br />

Numa manhã chuvosa de julho, dia 7 do ano de 1950, um ônibus<br />

percorria a pista asfaltada construída pelos americanos durante<br />

a segunda guerra mundial e tomava a direção da Base Aérea de<br />

Parnamirim. Levava, como o fazia todos os dias, os funcionários<br />

civis para o trabalho no Posto de Engenharia.<br />

Um dos funcionários, entretanto, não ia para o trabalho. O<br />

burocrata <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> desceria antes de todos, no aeroporto<br />

militar, sob as saudações, brincadeiras dos colegas e votos de<br />

boa viagem.<br />

Sob a chuva fina, o poeta recebeu a pequena mala e se dirigiu<br />

ao hangar. Ali, diversas pessoas, militares e civis esperavam embarcar<br />

no avião do Correio Aéreo Nacional, rumo ao sul do país. Um<br />

pouco mais e o C47-202226 deixava a pista molhada e rompia o<br />

cinzento da manhã de inverno.<br />

Lá dentro, meio desajeitado, o poeta procurava melhor acomodar-se<br />

na sobriedade do avião militar.<br />

Na Base Aérea do Galeão, no Rio Janeiro, estavam à sua espera<br />

a filha Terezinha e o marido Lauro Braga. E logo o táxi tomava a<br />

direção da residência do casal, no bairro de Marechal Hermes,<br />

onde ficaria hospedado.<br />

693


694<br />

Pelo caminho, uma agradável surpresa levou o poeta a inevitáveis<br />

reminiscências: as paredes de prédios e muros que passavam<br />

pela janela do automóvel estavam cobertas de cartazes com fotos<br />

e os nomes dos candidatos a presidente da República e vice, Getúlio<br />

Vargas e o seu velho amigo e companheiro João Café Filho.<br />

Recordava os tempos que se sucederam à revolução de 1930,<br />

quando Café Filho, depois de duras experiências nos sindicatos e<br />

política partidária, fora eleito deputado federal, em 1934, permanecendo<br />

no mandato até 1937 quando – que contra-senso! –,<br />

o seu companheiro de chapa Getúlio Vargas instaurava o Estado<br />

Novo e desencadeava forte perseguição aos seus adversários de<br />

então, obrigando Café a se exilar na Argentina.<br />

Ali, estavam os dois, juntos na mesma chapa, quando antes se<br />

opunham...<br />

E lembrava para a filha e o genro os acontecimentos do passado,<br />

até as inimizades que ganhara por ser cafeísta no seu Estado, a<br />

ponto de ser acusado de comunista em 1935, processado e preso<br />

durante mais de dois anos em Natal.<br />

“Tudo por ser amigo de Café”, comentava.<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> chegava ao Rio de Janeiro, a então capital da<br />

República, a menos de três meses das eleições de 3 de outubro<br />

que elegeriam Getúlio e Café. Estava em plena efervescência a<br />

campanha eleitoral.<br />

Café Filho demonstrou muito contentamento com a chegada<br />

de <strong>Othoniel</strong> mas, alegando os afazeres da campanha, marcou uma<br />

audiência para alguns dias depois.<br />

Enquanto esperava, <strong>Othoniel</strong> retirou da mala uma velha pasta<br />

na qual colecionara seus poemas e resolveu, para encher o tempo,<br />

passá-los a limpo. Para isso, utilizou uma caderneta de capa de<br />

tecido verde escuro e folhas pautadas Manufactured by U.S. Government<br />

Print Office, que trouxera da Base Aérea de Natal e começou a<br />

escrever o que havia trazido de sua produção poética.


Na primeira página e para intitular o livro, o título do primeiro<br />

poema: A cidade perdida.<br />

Eram 46 poemas, quase todos inéditos, alguns publicados em<br />

antigos jornais e revistas de Natal. Era um bom número e daria<br />

um pequeno livro. E se acrescentasse mais alguns? Na verdade os<br />

poemas restantes nada tinham a ver com a essência dos primeiros<br />

quarenta e seis. Eram sonetos críticos, irônicos, nos quais o poeta<br />

expunha as qualidades e defeitos dos animais, visualizava-lhes a intimidade,<br />

induzindo o leitor a compará-los com os seres humanos,<br />

portadores de idênticas caraterísticas. <strong>In</strong>teiramente diferentes<br />

de toda a sua poesia, os onze poemas de Desenho animado, 1 poderiam<br />

ser anexados à A cidade perdida.<br />

Chega o dia do esperado encontro com o amigo candidato a<br />

vice-presidente da República. <strong>Othoniel</strong> seguiu confiante e lembrava<br />

os tempos em que trabalhara na redação do jornal de Café,<br />

em Natal, que o ajudara a eleger-se deputado federal. Afinal, estava<br />

ali porque o próprio Café Filho o chamara por telegrama e, em<br />

anteriores conversas em Natal, prometera-lhe um emprego no<br />

Rio de Janeiro, à altura de seu nível intelectual, chegando a aventar<br />

a possibilidade de um cargo de chefia na Biblioteca Nacional.<br />

O encontro com Café foi dos mais amistosos mas, em vista dos<br />

atropelos do momento, o deputado pediu ao poeta que voltasse<br />

em outra ocasião para tratar o assunto emprego<br />

<strong>Othoniel</strong> despediu-se do amigo e marcou nova audiência com<br />

a secretária, voltando para Marechal Hermes. Revisou os poemas,<br />

burilou o que necessitava, corrigiu isso e aquilo. E já chegavam de<br />

Natal, via navio, a esposa Maria 2 e os filhos Laélio e Netinho, e o<br />

sogro Hermilo Abílio Ferreira. Certo de que o amigo não falharia,<br />

pede demissão do emprego na Base Aérea de Natal, em 22 de<br />

setembro.<br />

Àquele tempo, a saúde do Poeta começa a incomodá-lo. O<br />

atropelamento de que fora vítima em Natal, em 1947, parecia<br />

695


696<br />

agravar-lhe os sintomas do que lhe parecia um persistente reumatismo.<br />

Arredio e esquisito como sempre fora, detestava pedir favores<br />

e incomodar quem quer que fosse. A doença ainda mais lhe<br />

perturbava a serenidade de que necessitava para viver a poesia.<br />

Enfim, o novo encontro com Café Filho. Escritório cheio de<br />

gente, amigos e políticos, bajuladores e conterrâneos em busca<br />

de favores e empregos. Depois de alguma espera, o deputado acolheu<br />

o amigo com alegria, mas lhe pediu para voltar outra vez pois<br />

ainda não tinha tido tempo para tratar de seu assunto.<br />

“Café, você quer saber de uma coisa? Eu não vou mais chatear<br />

você com este assunto!”<br />

“Não, poeta! Você tem todo o direito de me chatear!”.<br />

“Eu não chateei você no tempo em que fazíamos comícios nas<br />

Rocas, nem no tempo em que passei preso como comunista por<br />

ser seu amigo... Então, não vou lhe chatear mais!”<br />

Retirou-se e não mais voltou à presença de Café Filho.<br />

Magoado e desiludido, relatou o acontecido à sua comadre,<br />

senhora Letícia Cerqueira (madrinha de Laélio), sogra de Jessé<br />

Café, irmão do deputado que, na ocasião, ocupava o cargo de<br />

superintendente do <strong>In</strong>stituto Nacional do Sal.<br />

A comadre não se deixou esperar. Telefonou para o genro, relatou<br />

o fato e exigiu um emprego para o poeta.<br />

Em 3 de outubro, Getúlio foi eleito e Café Filho era o vicepresidente,<br />

apesar da não simpatia do gaúcho companheiro de<br />

chapa. Em 31 de janeiro do ano seguinte dá-se a solene posse no<br />

Palácio do Catete. <strong>Othoniel</strong> e família continuam na casa de<br />

Terezinha, e espera a ajuda dos poderosos, que apenas chegou em<br />

13 de março, quando o poeta é nomeado escrevente- datilógrafo<br />

do <strong>In</strong>stituto Nacional do Sal. Um ofício do superintendente transcreve<br />

a Ordem P51/166, assinada por Raul de Góes, presidente<br />

do <strong>In</strong>stituto. Era uma função modesta, apenas para começar. Tanto


é que, em 15 de novembro do mesmo ano, é nomeado inspetor<br />

interino, através da Ordem P 51/227, assinada pelo mesmo RauI<br />

de Góes.<br />

Enfim, conseguira o tão desejado emprego. A vida agitada do<br />

Rio de Janeiro e a saúde a lhe perturbar a paciência e, certamente,<br />

as saudades, fazem o poeta decidir retomar a Natal,<br />

... aldeia lendária, adormecida<br />

aos suspiros do rio e aos trons do mar. 3<br />

Chegando a Natal em companhia da família, <strong>Othoniel</strong> assume<br />

suas funções e aproveita a oportunidade para prestar concurso<br />

para o cargo de inspetor efetivo, função na qual haveria de passar<br />

muitos aborrecimentos.<br />

Para encher o tempo, continuou na organização do livro de<br />

poemas. Decidiu reunir Desenho animado e A cidade perdida e incluir,<br />

ainda, mais três sonetos com o título de Esparsos, um poema<br />

em homenagem à Marinha Brasileira, outro ao seu ídolo e modelo<br />

cultural Henrique Castriciano e o terceiro, a Ricardo da Cruz,<br />

seu amigo de infância, a quem intitulara<br />

... Vespúcio canguleiro, 4<br />

Rei dos peixes do mar de Camarão 5<br />

Ricardo da Cruz fora um dos principais idealizadores do reide<br />

ao Rio de Janeiro, em iole a quatro remos que, em 3 de março de<br />

1952 e com o apoio do vice-presidente Café Filho, navegou de<br />

Natal à Baía da Guanabara. Pronto o caderno e utilizadas exatamente<br />

todas as suas folhas, <strong>Othoniel</strong>, como era natural, sonhou<br />

em vê-lo publicado, mas em março de 1956, doença, que julgava<br />

ser apenas de um reumatismo, ataca-o mais fortemente. No trabalho,<br />

o pagamento sofria constantes atrasos e o salário veio a rece-<br />

697


698<br />

ber um corte, trazendo-lhe de volta os problemas financeiros. Os<br />

filhos Laélio e Netinho (Hermilo Neto), trabalham e ajudam nas<br />

despesas e residem todos em modesta casa na rua Correia Teles. A<br />

saúde preocupa e os amigos e admiradores de Natal lançam campanha<br />

para ajudar o poeta. Em 1959 problemas administrativos<br />

(alguns alegaram perseguição pessoal), trazem-lhe uma redução<br />

em seus vencimentos. Muitos amigos e instituições culturais tentam<br />

ajudá-lo. O vereador Deoclécio Sérgio de Bulhões propõe e<br />

obtém, em novembro, na Câmara Municipal, a concessão de uma<br />

pensão no valor de cinco mil cruzeiros. O recebimento de ajudas<br />

constrangia o poeta. A caderneta de poemas continuava a envelhecer<br />

no fundo de uma gaveta. Ficaria para quando Deus desse<br />

bom tempo.<br />

Somente em 1959 consegue ser reclassificado no <strong>In</strong>stituto Nacional<br />

do Sal, melhora a situação econômica, recebe algum dinheiro<br />

atrasado e aposenta-se em 1960. Durante todo esse período<br />

de instabilidade pouco se sabe de sua poesia que, ao que tudo<br />

indica, não encontrava terreno fértil para reflorescer.<br />

Naquele ano, em Natal, ocorre o Primeiro Encontro Nacional<br />

de Escritores. Uma comissão visita o poeta. Impressionados com<br />

modéstia do ambiente em que vivia, contrastando com sua potencial<br />

riqueza intelectual, os escritores resolvem apelar para o Governo<br />

do Estado, no sentido de conseguir uma forma de ajudá-lo.<br />

Como resultado do apelo, um funcionário da Secretaria de Educação<br />

e Cultura acompanhou <strong>Othoniel</strong> até a farmácia Santa Lígia 6<br />

e comunicou ao proprietário que o Governo do Estado se responsabilizaria<br />

pelo pagamento de todos os remédios de que necessitasse.<br />

Satisfeito, <strong>Othoniel</strong> ainda chegou a adquirir alguns medicamentos<br />

até que, tempos depois, o proprietário da farmácia<br />

lhe disse que o governo nunca pagara nada do que fornecera.


Foi a gota d’água. Ofendido, <strong>Othoniel</strong> resolve retomar ao Rio<br />

de Janeiro e contatar o senador Dinarte Mariz, seu velho amigo e<br />

admirador. Lá chegando, em 25 de março de 1962, encontrou<br />

um carro oficial do Senado a esperá-lo no aeroporto e Dinarte o<br />

levou pessoalmente a um médico famoso, seu amigo, dando-lhe<br />

toda a assistência de que necessitava. Os exames a que se submeteu<br />

revelaram que era portador do Mal de Parkinson, enfermidade<br />

de difícil cura e custosa manutenção.<br />

Mesmo recebendo o que de melhor era possível no Rio de<br />

Janeiro, a saúde do poeta se agravava e sua poesia se restringia a<br />

versinhos circunstanciais e quadrinhas para as netas que chegavam<br />

para lhe dar a alegria que a sua cidade negara.<br />

Em 19 de abril de 1969, falece em sua residência, no apartamento<br />

201 da rua Queiroz Lima, 18, no bairro do Catumbi. Seu<br />

atestado de óbito indica edema agudo do pulmão e infarto do<br />

miocárdio. Foi sepultado no Cemitério São Francisco Xavier.<br />

Recolhendo os objetos e documentos que deixara sob sua guarda,<br />

seu filho Laélio encontrou a caderneta com as poesias, as páginas<br />

já amareladas, manchadas e emendadas com fita adesiva. Guardou-a<br />

carinhosamente, como lembrança viva de uma sensibilidade<br />

que morrera. Minucioso trabalho de recuperação feito por<br />

computador permitiu limpar o manuscrito de suas manchas. Depois,<br />

foi necessário reavivar-se o que escreveu, cobrindo-se com<br />

tinta cada letra de cada verso.<br />

Graças a isto, foi possível dar-se a público esta edição.<br />

Para que os leitores possam melhor lembrá-lo, além do seu<br />

conteúdo poético, eis o livro em edição fac-similar; a expressão<br />

da sua sensibilidade, por sua própria mão, poderá levar, ainda mais,<br />

a conhecer a intimidade informal do poeta.<br />

Cláudio Galvão<br />

699


700<br />

Notas *<br />

1 Sob a influência do livro Desenho animado, o seu grande amigo e poeta<br />

Esmeraldo Siqueira publicou Fauna contemporânea. Longe da sutileza de<br />

<strong>Othoniel</strong>, Esmeraldo caracteriza como animais seus inimigos pessoais de<br />

Natal, sugerindo quase que diretamente a quem se refere.<br />

2 Maria da Conceição Ferreira (Ceará-Mirim/RN 1899-Rio de Janeiro/<br />

RJ, 1968),<br />

3 Jardim tropical, p.146, Imprensa <strong>In</strong>dustrial, Recife, 1923.<br />

4 Habitante ou nascido no bairro da Ribeira, em Natal.<br />

5 Felipe Camarão.<br />

6 Na época, à esquina das ruas João Pessoa com Princesa Isabel.<br />

* De autoria de Cláudio Galvão


A cidade perdida<br />

A Cidade-fantasma, a Cidade-convento,<br />

com torres de faiança e carrilhões de prata,<br />

dorme, sob o lazúli irreal do firmamento,<br />

entre espinho e entre flor, no recesso da mata.<br />

Vindo o bárbaro, um dia, a rugir temulento, 1<br />

tudo, ao redor, destruiu... Serena, intemerata, 2<br />

ela restou, num belo e ideal recolhimento,<br />

fechada em seu dossel de Bretanha 3 – a cascata.<br />

Raro, um viandante esquivo atravessa a paragem.<br />

Orquídeas, manacás e baunilhas rescendem.<br />

Borboletas azuis cirandam na folhagem.<br />

E a cidade perdida, em sossego profundo,<br />

entre os altos ipês – tão floridos, que pendem –<br />

dorme, aquém da mercancia e das traições do<br />

mundo...<br />

701


702<br />

Solidão<br />

De estamenha 4 lilás e azul-celeste,<br />

soluça a tarde, no ombro da colina.<br />

Corre a Saudade o crepe da cortina,<br />

sobre o vale cheirando a incenso agreste.<br />

Cai de joelhos o sol, pela campina<br />

e, da palheta mágica, reveste<br />

de topázios e gerânios, todo o oeste,<br />

a torre negra, a olaia 5 purpurina...<br />

Náufraga... A sombra avança. Hirta, se esfuma,<br />

ao longe, a selva, no ermo do planalto,<br />

sob um livor de estrelas e de bruma.<br />

E o Sono – o Ariel 6 noctâmbulo do olvido –<br />

entorna o filtro de papoulas, do alto,<br />

na solidão do burgo adormecido...


Papai<br />

Setenta vezes quanto, em seu rumor de festa,<br />

passou Junho por ti, velhinho a quem adoro?<br />

Gênio bom do meu lar, no interlúdio sonoro<br />

das noites do São João que o homônimo te<br />

empresta!<br />

Creio que tanto mais ainda viver te resta,<br />

– auspício que ao Senhor dos Mundos hoje<br />

imploro.<br />

Circula no teu ser, do coração ao poro,<br />

o segredo que ao cedro esfibrou 7 , na floresta!<br />

Taumaturgo 8 otimista, Aladim milionário,<br />

sempre me devolveste, em troféus de esperança,<br />

as queixas que te fiz, curtindo o meu calvário...<br />

Também Goethe 9 a essa altura era robusto e jovem.<br />

Teu milagre vital – vibração que não cansa –,<br />

prova que as forças da alma é que a matéria movem!<br />

703


704<br />

Horóscopo 10<br />

O meu aniversário, hoje... Por certo,<br />

Creso, 11 no turbilhão de outra existência,<br />

expio, nesta rude penitência,<br />

o meu passado – de ouro e azul referto.<br />

Quando, às vezes, parece que vem perto<br />

o que sonhei – mais longe está, na essência.<br />

Sou um peregrino, olhando, da eminência,<br />

a esquisita tamareira do deserto...<br />

Meu brado de revolta ergo às estrelas...<br />

E elas dizem: – As lágrimas que choras,<br />

a tua própria boca há de bebê-las,<br />

até que, livre desse horror profundo,<br />

venhas cantar, na pompa das auroras,<br />

quanto carpiu teu coração, no mundo...


Serénade<br />

Haute, spéctrale, la lune ronde,<br />

somnambulique, marche ou nadir,<br />

telle une rose blême dans l’onde,<br />

une héroïne de Shakespeare.<br />

Ma plais dormante s’ouvre, s’innonde<br />

du sortilège... Pas bon, finir!<br />

Ah, coeur de poète, morne Golconde,<br />

hantée de rêves, de souvenirs!<br />

Combien je souffre l’antique émoi!<br />

Dans la lumière fade et plaintive,<br />

les doux fantômes prennent leur voix:<br />

– “Je suis la brune, t’aime toujours...”-<br />

– “Je suis la blonde...” – Qu’elle est naïve,<br />

la sérénade des vieux amours!<br />

705


706<br />

De longe...<br />

Serra altaneira! os teus lençóis de bruma,<br />

que os largos horizontes vêm velar,<br />

não podem esconder distância alguma,<br />

quando é do coração que nasce o olhar!<br />

Desde que o amor alta paixão resuma,<br />

céus transpõe, vinga 12 montes, vence o mar,<br />

repete ao mundo a velha história, em suma,<br />

das botas do Pequeno Polegar...<br />

Sete léguas, medindo uma passada...<br />

– “Suspiro, de onde vens?” – E ele responde:<br />

– “Vem dos braços da tua namorada!”<br />

É assim. E, embora a serra o inverno açoite,<br />

meu pensamento, à solidão que a esconde,<br />

vai e volta, cantando, toda noite...


A uns olhos<br />

(A pedido da própria dona)<br />

Os teus olhos castanhos são dois lagos,<br />

de leitos de ouro, entre sedosas filas<br />

de tinhorões rajados, e tranquilas<br />

messes 13 de crisântemos de tons vagos.<br />

Nadam à tona, aveludando afagos,<br />

os cisnezinhos negros das pupilas.<br />

Têm palácios de fadas e sibilas, 14<br />

festas, lindas histórias de reis magos...<br />

São dois topázios feiticeiros, onde,<br />

a cada vibração da luz, responde<br />

de uma promessa o ardente magnetismo...<br />

Cego por eles vou, de olhos fechados,<br />

sentindo, alheio ao mal de outros pecados,<br />

meu coração cantar dentro do abismo...<br />

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708<br />

Saudade<br />

Quando expira de tarde o último acento,<br />

dourando a copa escura da ingazeira,<br />

a juriti, num dúlcido lamento,<br />

chama ao ninho escondido a companheira.<br />

A amorosa saudade que alimento,<br />

encheu do teu perfume, a noite inteira,<br />

minha tristeza lírica e solteira,<br />

a ânsia de beijos do meu sofrimento.<br />

A pobre janelinha esburacada,<br />

aberta, assim, à espera, sobre a rua,<br />

ficou aberta, até de madrugada...<br />

Chove, agora. Amanhece... Airosa e fina,<br />

tua silhueta é um lírio, que flutua<br />

dentro do adágio etéreo da neblina...


O pintassilgo<br />

Para ter um irmão de cativeiro,<br />

viver, na tua ausência, menos triste,<br />

prendera um pintassilgo, o cancioneiro<br />

mais inspirado que, no campo, existe.<br />

Com teu sorriso de diabrete arteiro,<br />

chegaste, um dia e, em vez de dar-lhe alpiste,<br />

– tu, que és o meu risonho carcereiro! –<br />

a portinhola, prontamente, abriste!<br />

– “Tem pena deste poeta que enviúva!”-,<br />

disseste, meiga – “Olha: a primeira chuva<br />

“pôs tudo verde e em flor, pelos caminhos!” –<br />

Soltaste-o! E ele sabia do segredo!<br />

– Querendo falar em nós, entre o arvoredo,<br />

vai dizer tudo, aos outros passarinhos!<br />

709


710<br />

Canção de abril<br />

Vim ser pastor. Entre os sarçais do monte,<br />

vetusto colmo 15 há de me ser propício,<br />

bem longe das traições e do bulício<br />

da cidade – que esplende no horizonte...<br />

Um oitizeiro, coqueirais, defronte,<br />

a solidão! Bendigo o sacrifício<br />

que fiz, de toda pompa e todo vício,<br />

pela doçura da água azul da fonte!<br />

O pensamento e o coração estranhos<br />

ao que me fez o mundo, porventura<br />

dormirei, esquecido, entre os rebanhos.<br />

Até que, toda virgem de pecado,<br />

venha a que espero. E a laranjeira escura<br />

no chão estenda o linho perfumado...


Tebaida 16<br />

Princesinha, que espero todo dia,<br />

tu não virás bater à minha porta!<br />

A quem nasceu princesa, que lhe importa<br />

esta vida de rústico, erradia?<br />

A noite é negra. Um vento agreste corta<br />

o ermo, num sopro longo, de agonia...<br />

A cinza da lareira, há quanto, é fria!<br />

Os cravos brancos vão morrer, na horta!<br />

Balem por ti, no oitão, as ovelhinhas.<br />

Por que tardas? Disseste-me que vinhas,<br />

quando o rio afogasse a papa-ceia! 17<br />

Range a cancela... Escuto. Nada! o açoite<br />

do vento, enquanto a lua, alva, se alteia,<br />

– flor no caixão em que vai morta a noite...<br />

711


712<br />

Margareth<br />

(A uma alemã que, viajando pelo sertão, pedia<br />

meus versos a uma das minhas irmãs, para<br />

colecionar)<br />

Flor de um poema de Goethe, e que o destino<br />

de algum vale risonho, entre os ulmeiros,<br />

transplantou, pelas mãos de um peregrino,<br />

ao deserto onde o sol cresta os coqueiros!<br />

Que acerba nostalgia te imagino,<br />

loura edelweiss 18 , dos cimos altaneiros<br />

da tua fria pátria – quando o sino<br />

chora a morte da luz sobre os oiteiros.<br />

Busco expressão, no meu idioma rude,<br />

para louvar-te o espírito, a virtude,<br />

o rosto lindo, o coração gentil.<br />

Talvez que acerte enfim, te comparando<br />

a um lírio do Danúbio, alvo, sonhando<br />

ser saudade, num verso do Brasil...


Boêmios<br />

A noite, do ermo azul, sobre a avenida<br />

colhe a fímbria 19 da túnica estrelada.<br />

Mais triste que uma freira apaixonada,<br />

a lua branca anda no céu, perdida...<br />

Dona Stela, há que tempo está deitada!<br />

Sua casa, sem mais sinal de vida,<br />

lembra erguendo no luar a ampla fachada,<br />

a história da Princesa Adormecida...<br />

Entretanto, aqui fora, que beleza!<br />

na inocência feliz da Natureza,<br />

na alma das causas – quanta unção flutua!<br />

Das lembranças mais lindas, se constela<br />

o coração. Canta uma voz, na rua,<br />

ao longe: – “Acorda...abre a janela...Stela!”...<br />

713


714<br />

Sic transit 20<br />

Pobre árvore que outrora, sobranceira<br />

às frondes todas, mádida, 21 te abrias<br />

em campânulas brancas, harmonias<br />

de cigarras e pássaros! À beira<br />

da estrada luminosa e ampla, estendias<br />

calma sombra, que o sol, batendo a joeira 22<br />

das folhas, tamisava 23 de ouro em poeira,<br />

na eclosão potencial dos meios-dias!<br />

Ao pé do teu cadáver, ergo um canto<br />

a essa que, nos verões resplandecentes,<br />

força tranquila, te enfeitava o manto,<br />

e, entre perfumes, ruflos 24 de asa, amores<br />

de abelhas, espalhava-te as sementes,<br />

– abria, à luz do luar, teu céu de flores!


Miragem<br />

Plena de juventude e de ironia,<br />

orgulhosa do símbolo e da altura,<br />

a palmeira imperial reina e fulgura<br />

sobre a paisagem de ouro da baía.<br />

O mar, chofrando 25 pérolas, procura<br />

beijar-lhe os pés... Do altar de areia fria,<br />

indiferente ao rogo e à idolatria,<br />

mais, no seu esplendor, ela se apura...<br />

No entanto, ao sol da tarde – cinza e rosa –,<br />

em mil silhuetas trêmulas, revela,<br />

na água purpúrea, a efígie 26 luminosa.<br />

Sei de um lago longínquo, ermo e selvagem,<br />

que, há muito tempo, sonha assim com ela<br />

e – sem que a veja – lhe reflete a imagem...<br />

715


716<br />

Sinfonia vesperal<br />

Ó silêncios dos ermos! voz saudosa<br />

das juritis, na solidão perdida!<br />

A Natureza, mater dolorosa,<br />

amparando a cabeça já sem vida<br />

do sol! A luz violeta refletida<br />

na laguna! (Um coqueiro, ao longe, à rosa<br />

esparsa do arrebol, tristonho, goza<br />

toda a beleza dessa despedida!)<br />

Branca, Vésper te enfeita o andar sidéreo,<br />

ó tarde! E a boca estática das furnas<br />

fuma o incenso eleusino 27 ao teu mistério...<br />

Na poesia universa que resumes,<br />

seres e cousas são divinas urnas<br />

de saudades! de cantos! de perfumes!


Viagem sentimental<br />

A Esmeraldo Siqueira<br />

Toma o teu farnel, Razão provada,<br />

dia-a-dia, na análise do mundo,<br />

e vem comigo, que de paz me inundo,<br />

do Advento na efeméride sagrada!<br />

Verás como se expande, iluminada,<br />

a alma dos simples, num fervor profundo,<br />

ao pé do berço humílimo e jucundo 28<br />

que, apesar de Descartes, sobrenada...<br />

Acaso, nesta aspérrima existência,<br />

não é a dor a única evidência<br />

a que o Cogito 29 amargo nos reduz?<br />

Pois, de Tales 30 a Nietzsche 31 e Espinosa 32 ,<br />

que idéia mais sutil, mais ponderosa,<br />

que esta, de irmos – nós dois! – a ouvir Jesus?<br />

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718<br />

As andorinhas<br />

Jesus, quando andava ainda<br />

entre as outras criancinhas,<br />

fez essa cousa tão linda:<br />

– as tribos das andorinhas.<br />

Que o Evangelho o não consagre,<br />

é lenda da nossa fé<br />

que esse é o primeiro milagre<br />

do aprendiz de São José.<br />

Um dia, brincando, à frente<br />

da tenda humilde e tranquila,<br />

moldou, distraidamente,<br />

uns passarinhos da argila.<br />

Nossa Senhora sorria,<br />

em doce contemplação.<br />

(Dentro, rodava a polia,<br />

cortava, rijo, o formão).<br />

– “Que fazes disto?” – pergunta<br />

um fariseu vagabundo.<br />

Nas mãos, sorrindo, os ajunta<br />

o futuro Rei do Mundo.


E sacudindo-os nos ares,<br />

fez viver, soltos na luz,<br />

– aos milhares, aos milhares –,<br />

as andorinhas azuis...<br />

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720<br />

Os cravos brancos<br />

De um punhado de terra úmida e escura,<br />

em velho jarro enegrecido presa,<br />

rescende a hóstia floral da Natureza<br />

– o cravo branco –, de celeste alvura.<br />

Alma de paladino, altiva e pura,<br />

entre os punhais das folhas, casta e acesa<br />

em perfume e inocência, abre e fulgura,<br />

sorvendo, no ar azul, vida e beleza.<br />

Lembra um sonho de altar, de tão serena.<br />

Nasceu, quando Jesus, ressuscitado,<br />

sorrindo, aparecia a Madalena...<br />

Ela beijou-lhe as mãos, os pés, os flancos,<br />

e as cinco chagas do Crucificado<br />

abriram-se em florões de cravos brancos...


O último potiguara<br />

Na velha taba, pela noite morta,<br />

levanta-se Poti. Lesto e fremente,<br />

de morro em morro vai marchando, à frente<br />

de fera tribo, que ao combate exorta.<br />

Sofre um revés. Recua... Cisma, à porta<br />

da grande ocara... 33 Além, soturnamente,<br />

emudece o fortim. A voz pungente<br />

do mar, de gritos longos se entrecorta...<br />

Sobre a névoa do vale, o dia sangra.<br />

Fuma o igapó. A inúbia 34 de um guerreiro<br />

morto flutua, na água quieta da angra...<br />

E o Potengi – velho pajé nortista –,<br />

pranteia o potiguara derradeiro<br />

– o último ipê tombado na conquista!<br />

721


722<br />

Tríptico da seca<br />

I<br />

Delta<br />

Por desígnio cruel dos mesmos fados,<br />

o pobre, o triste, o doente, o peregrino<br />

– calmos, sem voz, inermes, humilhados –<br />

vão girando, ao redor do meu destino.<br />

Da terra adusta aos céus escancarados,<br />

morte à esperança! Dó perpétuo ao sino!<br />

(Tu, somente, Jesus, pastor divino,<br />

sondas o coração aos desgraçados!)<br />

Vêm... São levas escuras, pobre bando<br />

de aves de arribação. Fome e orfandade;<br />

– a inocência, sorrindo; o amor, chorando...<br />

E, ai de mim, que não posso o êxodo novo<br />

estancar! Eu sou o delta da Saudade,<br />

do infortúnio e do sonho do meu povo!


II<br />

A gruta<br />

Na soledade, onde soluça o treno<br />

da juriti maviosa, concertando<br />

com a voz das emas em moroso bando,<br />

a pedra ergue o perfil negro e sereno.<br />

Escancara-se em baixo, o formidando<br />

socavão da caverna. Ermo, o terreno<br />

alimenta espinhais. Dorme o veneno<br />

das fuscas 35 salamandras, hibernando.<br />

Na soturna paragem, só responde<br />

o urro das onças, ao lamento infindo<br />

das acauãs, chorando de onde em onde.<br />

Só o pastor, solitário e atento, escuta<br />

a alma êxul 36 do sertão, órfã carpindo<br />

a mãe-d’água 37 a gemer, presa na gruta...<br />

723


724<br />

III<br />

Juazeiro<br />

Bandeira do Nordeste! alto crisol,<br />

em que se afere o entorno à minha raça<br />

– mole, na rede; estóica na desgraça,<br />

grande Povo, em pleníssimo arrebol!<br />

Quando o sertão lembra infernal paiol,<br />

coivara imensa, a desprender fumaça,<br />

ergues o cromo altivo da couraça<br />

– ilha verde, no mar de ouro do sol!<br />

Para que Deus, enfim, tivesse pena<br />

de nossa terra – pobre mãe morena –,<br />

bastara ver, em meio ao fogaréu,<br />

o teu sinal de súplica e esperança,<br />

alma que sofre, mas também, não cansa<br />

de crer que a chuva há de cair do céu!


Auriverde pendão<br />

Pocema 38 guarani! Novembro em festa,<br />

vindo, como um tumulto, do passado!<br />

nesga de céu sem nuvens, estrelado,<br />

palpitando nas grimpas 39 da floresta!<br />

Ver uma árvore, é ver- te! ouvir o brado<br />

do oceano, é ver-te! Vejo-te, na aresta<br />

da montanha! A cachoeira a voz me empresta,<br />

para dar-te o meu canto apaixonado!<br />

Subo, do limo ubérrimo 40 dos vales,<br />

girassol de esperança e de alegria,<br />

bebendo os teus eflúvios no meu cálice...<br />

E sonho – sou Peri, sobre a palmeira –<br />

levar, ao sol do mais glorioso dia,<br />

teu beijo de Concórdia – à Terra inteira.<br />

725


726<br />

Paraíso da América estrelada<br />

Pátria! Por mais poluída, que inda estejas,<br />

por Judas e Caim, mais te amo e exalto,<br />

no íntimo e doloroso sobressalto<br />

vertam teu sangue, as fúrias malfazejas!<br />

Que Jesus Cristo te preserve, do Alto,<br />

as escolas, as tendas, as igrejas!<br />

– da urbe inquieta às choupas sertanejas!<br />

– do mar revolto às selvas do planalto!<br />

Oásis dos sedentos de bonança,<br />

coração do Ocidente! Ilha encantada<br />

que sobre o abismo, o palmeiral balança...<br />

Paraíso da América estrelada!<br />

– à tua porta, o gênio da Esperança<br />

levanta um ramo em flor, em vez da espada!


O maior mandamento<br />

Por certas noites de emoções sagradas,<br />

plenas do eflúvio açucenal do Cristo,<br />

quanto a alma sente o doloroso misto<br />

de luz e sombra, que há, pelas estradas<br />

do mundo louco! arranha-céus que assisto,<br />

erguendo às nuvens colossais fachadas,<br />

miseráveis choupanas apagadas,<br />

– tudo, é orgia ou lágrima – e só isto!<br />

Por que o rico não desce do palácio<br />

e, com ceitil 41 para o gazofilácio, 42<br />

traz o beijo de Amor, que deve a Jó?<br />

Com Amor – amor, somente! – é que Jesus<br />

pães multiplica, diviniza a Cruz,<br />

e ainda levanta os Lázaros, do pó!<br />

727


728<br />

Per angusta 43<br />

Na ascese 44 da hora morta, quando o vento<br />

traz do oceano o clamor dos naufragados,<br />

o silêncio interpreta o sofrimento<br />

dos que choram no mundo, resignados...<br />

Abre, na solidão, o pensamento,<br />

como um nelumbo 45 de ouro. Uivam pecados.<br />

E Deus, que tudo vê, do firmamento,<br />

manda a Nero e a Platão iguais cuidados...<br />

Éden bendito, o Céu! de canto a canto,<br />

arde em luz... Abre às dores, a acolhê-las,<br />

seu ninho azul, de sonho e de acalanto...<br />

E a alma pungida, na efusão da prece,<br />

voa... flutua e canta, entre as estrelas,<br />

buscando o que na terra não conhece!


Alba mística<br />

Prisioneiro de todas as cadeias:<br />

– as da miséria; as da justiça humana;<br />

as do amor; as da inveja; as do ódio – cheias<br />

da Dor original, que nos irmana;<br />

tu, que ofendeste a Jó, trazes nas veias<br />

uma febre diabólica e insana;<br />

tu, que mataste Abel, só te arreceias<br />

do fogo vivo que do céu dimana...<br />

Cativos das algemas da loucura;<br />

pobres, curvadas para o chão as frontes;<br />

cegas, sem norte, na geena escura:<br />

– a liberdade é a Fé! a mão do Eterno,<br />

que ergue os sóis, abre as flores, muda os montes,<br />

pode inundar de luz o nosso inferno!<br />

729


730<br />

Notas<br />

1 Aturdido, embriagado, estonteado, tonto.<br />

2 Íntegra, pura, incorrupta.<br />

3 Imponentes camas inglesas, com armação ornamental, saliente, forrada e<br />

franjada; sobrecéu. Ainda hoje, nos hotéis da Grã-Bretanha, seu uso pelos<br />

hóspedes é condicionado ao pagamento de uma taxa especial.<br />

4 Tecido comum de lã.<br />

5 Árvore-de-judas ou pata-de-vaca (Cercis siliquastrum). Árvore pequena<br />

com 10 a 15m de altura, nativa do sul da Europa e sudoeste asiático,<br />

comum na Península Ibérica, sul de França, Itália, Grécia e Ásia Menor.<br />

Diz-se que foi nesta árvore pequena e com poucos ramos que Judas<br />

Iscariotes se enforcou após ter traído Cristo, mas o seu nome poderá<br />

também derivar de “árvore da Judéia”, nome da região onde a árvore era<br />

vulgar.<br />

6 Ariel. Nome próprio de origem hebraica, significando Leão de Deus.<br />

Neutro, ele pode ser usado tanto para homens – como fez Shakespeare,<br />

na peça A tempestade, nomeando o Espírito do Ar, quanto para mulheres,<br />

como fez Hans Christian Andersen em A pequena sereia.<br />

7 Separou as fibras de; desfez em fibras.<br />

8 Pessoa que faz milagres.<br />

9 Johann Wolfgang von Goethe (Frankfurt am Main/Alemanha,<br />

28.08.1749-Weimar/Alemanha, 22.03.1832). Pensador e escritor alemão.<br />

Sua obra-prima: o poema-drama Fausto. Ensinou, numa frase famosa:<br />

“O que a mocidade deseja, a velhice o tem em abundância”. Faleceu aos 83<br />

anos.<br />

10 Publicado, em 27.03.1949, na imprensa, com o título: “10 de março”.<br />

11 Creso. O último rei da Lídia, da Dinastia Mermnada, famoso pela riqueza<br />

(560–546 a.C.). <strong>In</strong>terpretando mal uma advertência do Oráculo de<br />

Delfos, atacou Ciro II, imperador da Pérsia. Vencido na batalha do rio Hális<br />

foi prisioneiro em Sardes, sua própria capital, perdendo o império.<br />

12 Ultrapassa (espaço, distância); vence, transpõe.<br />

13 Colheita, safra; aquilo que se colhe, que se obtém; ganho, conquista.<br />

14 Profetisa, bruxa, feiticeira.<br />

15 Cobertura feita com colmos (palha comprida); colmado.


16 Retiro, profunda solidão; ermo. De ou relativo à cidade de Tebas, na Beócia,<br />

Grécia’; subst. lat. thebàis,ìdes ‘habitante da cidade de Tebas, no Egito’,<br />

p.ext.; ‘retiro, isolamento’, por terem vivido nessa região do Egito os<br />

eremitas dos primeiros tempos do cristianismo.<br />

17 Regionalismo. Estrela da tarde, estrela vespertina; o planeta Vênus, quando<br />

aparece à tarde;<br />

18 Edelvais. Tipo de planta ornamental própria de grandes altitudes<br />

(Leontopodium alpinum), espécie vegetal da família Asteraceae. Existem muitas<br />

lendas relacionadas à sua flor, por exemplo, que ela adveio das lágrimas de<br />

uma jovem virgem. Existe também uma lenda em que pessoas caem de<br />

abismos tentando colher uma edelvais.<br />

19 Franja, orla.<br />

20 Da expressão latina Sic transit gloria mundi:”As glorias do mundo são transitórias”.<br />

21 Levemente molhada; úmida, orvalhada.<br />

22 Peneira para separar o trigo do joio e de outras sementes com que está<br />

misturado; crivo.<br />

23 Coando, peneirando, passando por tamis (peneiras de seda usadas em<br />

farmácia ou laboratório).<br />

24 Rumores das asas das aves esvoaçando.<br />

25 Batendo de chofre, em cheio; indo de encontro; chocando-se.<br />

26 Imagem, figura (de pessoa).<br />

27 Relativo a Eleusis, cidade da Ática, famosa por seus cultos misteriosos.<br />

28 Alegre, aprazível, prazenteiro, jovial.<br />

29 Verdade e proposição fundamental do cartesianismo. Doutrina de René<br />

Descartes, filósofo, matemático e físico francês (1596-1650), e de seus<br />

seguidores, caracterizada pelo racionalismo, pela consideração do problema<br />

do método como garantia da obtenção da verdade, e pelo dualismo<br />

metafísico.<br />

30 Tales. De Mileto. Foi o primeiro filósofo ocidental de que se tem notícia,<br />

marco inicial da filosofia ocidental. Nasceu em Mileto, antiga colônia grega,<br />

na Ásia Menor, atual Turquia, por volta de 624 ou 625 a.C. e faleceu<br />

aproximadamente em 556 ou 558 a.C.. Fundou a Escola Jônica e firmou<br />

temas polêmicos dentro da filosofia, como a verdade, a totalidade, a ética<br />

731


732<br />

e a política, o que até hoje são temas discutidos. Não deixou nenhuma<br />

obra escrita a respeito de seus pensamentos, tudo o que se sabe sobre ele<br />

origina-se de citações de outros filósofos como Aristóteles, Platão e<br />

Diógenes Laércio.<br />

31 Ver nota 11 em Desenho animado.<br />

32 Espinosa. Ou Spinoza – Ver nota em Ferreira Itajubá.<br />

33 Praça no interior de aldeia indígena.<br />

34 <strong>In</strong>úbia ou membitarará, trombeta guerreira dos índios tupis-guaranis, feita<br />

de dois pedaços de maçaranduba, colados e unidos um ao outro por tranças<br />

de cipós fortes.<br />

35 Triste, melancólica.<br />

36 Exilada, desterrada, degredada.<br />

37 Mãe-d’água. Ente fantástico, espécie de sereia de rios e lagos; iara, uiara,<br />

aiuara-aiuara, boiaçu. Mito hídrico influenciado pela sereia européia, ser<br />

meio mulher, meio peixe, que habita rios e lagos.<br />

38 Grito de guerra, canto selvagem, vozearia, algazarra, clamor.<br />

39 Os pontos mais altos; cocurutos, cristas.<br />

40 Superlativo de úbere: abundante, farto.<br />

41 Quantia ínfima, insignificância, ninharia. Moeda portuguesa antiga, que<br />

valia um sexto de real.<br />

42 Lugar, no templo, onde se guardavam os vasos e recolhiam as oferendas;<br />

tesouro; cofre de jóias; escrínio.<br />

43 De Ad augusta per angusta (A resultados sublimes por veredas estreitas) -<br />

Palavras de sinal (a senha) dos conjurados, no ato IV do Hernani de Victor<br />

Hugo. Não se chega ao triunfo, sem que haja graves dificuldades a vencer.<br />

“Chegar a resultados magníficos por vias estreitas”.<br />

44 Exercício prático que leva à efetiva realização da virtude, à plenitude da<br />

vida moral.<br />

45 Nelumbo nucifera é uma planta aquática da gênero Nelumbo, conhecida vulgarmente<br />

como lótus ou flor-de-lótus.


Desenho animado


As borboletas<br />

Lenta, ascorosa, em curvas, a lagarta<br />

veio subindo. Pêndula e tristonha,<br />

é crisálida, agora: inerte, farta<br />

das seivas que bebeu. Espera e sonha...<br />

Antes que o sol luz, aos golfões, reparta,<br />

ela, um dia, a brilhar, se desenfronha<br />

– tão esquecida de que foi lagarta! –<br />

e ostenta as asas, na manhã risonha.<br />

Linda jóia animada! Só consiste,<br />

tamanha glória, em ter chegado tarde,<br />

a ave faminta, ao ramo a que fugiste!<br />

A força que o destino tem, na vida!<br />

– de sedas e ouro em pó fez tanto alarde<br />

quem foi lagarta anônima e perdida!<br />

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736<br />

Os pavões<br />

Tal pobretão, que fraternais ajudas,<br />

de minha casa, em tempos maus, levava,<br />

para o cardápio insípido – de fava –<br />

variar as crias tísicas, sambudas,<br />

é rico. A sabonete já se lava...<br />

Tem farpelas 1 inglesas, bem lanudas.<br />

(Ah! Vil metal! Quanto os amigos mudas!<br />

E eu, que ficar sozinho não pensava!)<br />

“Congoleum” 2 nos salões - cristais da estranja,<br />

móveis de imbuia. Mas, cochichos sofre:<br />

inda é o mesmo, o menu: pão com laranja...<br />

E eu, que posso fazer, senão ter calma,<br />

vendo que guarda o cabedal – no cofre,<br />

e os molambos de outrora dentro da alma?


Os sapos<br />

Alapardado numa pedra escura,<br />

espera o sapo a fresca da noitinha<br />

para ir granjear, na plantação vizinha,<br />

o sustento da vida de amargura.<br />

Quasímodo 3 glutão, pula... Esquadrinha,<br />

cauto, o arredor. Tranqüilo da fartura,<br />

o bom jantar, banquete de alta linha,<br />

com trezentos insetos, assegura.<br />

Sentinela das safras! Dó profundo<br />

faz, não seres gigante, no tamanho,<br />

em relação a bichos deste mundo,<br />

corja que a lei civil arma e garante,<br />

praga que rói, em desalmado assanho,<br />

toda semente boa que se plante...<br />

737


738<br />

Os carneiros<br />

Quando eu era menino, eras montada<br />

de São Jorge (ou São João), dentro da lua.<br />

La Fontaine, a seguir, pôs nua e crua<br />

tua sina – a de alarme da manada.<br />

Tudo quanto é de bicho, te degrada.<br />

O lobo – o mais hipócrita – insinua<br />

que és vermelho, que és verde, e andas na rua<br />

induzindo o rebanho à barricada...<br />

Tua resignação, tolo sublime,<br />

de que te serve, se encoraja o crime?<br />

Quem é manso, que a morte não mereça?<br />

Por que afinal, não largas de ser bobo<br />

– usando, contra a astúcia e o ódio do lobo,<br />

a energia que escondes na cabeça?


Os macacos<br />

Agricultura insana, a da cabeça!<br />

Urzes de fogo, abrolhos, de vencida,<br />

para uma flor, um fruto! Toda a vida,<br />

curvado sobre a terra úmida, espessa!<br />

Labuta, o semeador. Tensa, extendida,<br />

leva a charrua, 4 até que a noite desça<br />

e antes que, ao sol, enfim, tenra, apareça<br />

a folhinha verdoenga – quanta lida!<br />

Ronda o macaco, pela cercania...<br />

E, do que é sangue, e foi paciência e risco,<br />

o melhor, sobre os ramos, surrupia.<br />

Ladrão de idéia alheia! Tu, que me ouves,<br />

vê que na praça, te não colha o fisco<br />

o furto de maçãs, no uru 5 de couves!<br />

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740<br />

Os lobos<br />

Mestre lobo vai indo, para a luta...<br />

Armado de ambições e de fereza,<br />

só receia encontrar, na redondeza,<br />

lobo maior, de compleição mais bruta.<br />

A lã de que se veste, lhe transmuta,<br />

aos olhos do rebanho, a natureza.<br />

– Pulsa- lhe o instinto, na pupila acesa!<br />

Aspira os ventos, a narina astuta...<br />

Não janta bem, aliás, se não devora<br />

dois cordeiros na furna, convencido<br />

de ser o rei dos lobos, dentro e fora.<br />

Todavia, não cuida de uma cousa:<br />

que, entre os irmãos, acabará comido,<br />

se não aprende as artes da raposa...


Os papagaios<br />

Mimo da corte, airoso poliglota,<br />

tu já foste, Cirano 6 ou Pimpinela, 7<br />

o ai-jesus 8 de romântica donzela,<br />

branca flor de uma heráldica remota!<br />

Hoje, és um pobre diabo, louro idiota,<br />

repetindo, no canto da janela,<br />

o calão da criada tagarela,<br />

fino, apenas, nas petas da anedota.<br />

Nem pelas cores ricas da plumagem<br />

– verde, amarelo, azul, tons de vermelho -,<br />

levantas as antigas credenciais.<br />

Pobre bobo! Grã-fino é a tua imagem:<br />

belo, nas roupas, dentro do bedelho,<br />

currupaco, papaco... e nada mais!<br />

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742<br />

As águias<br />

Doutor Diniz, roaz 9 racionalista,<br />

acha que não existe Deus – pois que O não vê...<br />

E sentencia: “Tenho limpa, a vista!<br />

além das telhas, gato... e, mais o quê?”<br />

Defende, exalta o credo imperialista,<br />

só na matéria, só na força crê.<br />

E eis dos seus livros de ouro, ótima lista:<br />

Engels, 10 Nietzsche, 11 Strauss, 12 Binet, 13 Sanglé...<br />

Uma noite, enfermou, de pneumonia.<br />

Aflita, sem saber o que faria,<br />

rezava, no oratório, Mãe-Sinhá.<br />

Sentindo vir à boca um saibo 14 grosso,<br />

Diniz, a águia soberba, ergue o pescoço:<br />

– “Mas...pelo amor de Deus...tragam-me um chá!”


Os burros<br />

Burro, meu doce e torturado mano!<br />

dizem que esse teu lombo foi coberto<br />

pela cruz, desde quando, a passo lhano, 15<br />

conduziste Jesus, pelo deserto.<br />

Teria o bom Menino feito certo?<br />

Creio que andou num bem ingrato engano,<br />

pois que essa cruz é o teu destino aberto<br />

– o trabalho, e o chicote desumano.<br />

Como tu, há criaturas no planeta.<br />

(Que o relativo espiritual te valha!)<br />

– É bem duro viver de uma caneta...<br />

Nosso pão do Evangelho, irmão jumento,<br />

é o mesmo: tu morrendo na cangalha,<br />

nós – com o sangue e o suor do Pensamento!<br />

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744<br />

Os ursos<br />

Houve (que, até no Pólo, anda a maldade)<br />

esta conversa, entre um político e um urso:<br />

– “Amigo como vai tua irmandade?<br />

a fábula, no mundo, ainda tem curso?”<br />

– “Melhor que outrora! A deusa Liberdade<br />

reina e prospera... a pólvora e discurso;<br />

este, é que predispõe; a outra, persuade!<br />

e Judas participa do concurso...”<br />

– “Caramba! E Judas ainda vive?” – “Engorda!<br />

trinta centavos, cada cristo...” – “E... a corda?”<br />

– “Quem prova que ele usou? Expôs à venda!”<br />

“Vem comigo, ver isso!”- “Qual! No gelo,<br />

é que um urso de bem resguarda o pêlo!<br />

Confiar nos homens? Bruh! Deus me defenda!”


Os perus<br />

Orgulhoso, rondando no terreiro,<br />

o peru, pedagogo cem por cento,<br />

com o papo inflado, a arrebentar de vento,<br />

arrota redundância, o dia inteiro.<br />

Risquem-lhe em torno um círculo: o portento<br />

não avança; não sai do picadeiro.<br />

Fica ali, a dançar, pobre ponteiro, 16<br />

na estática animal do Pensamento.<br />

Somente no cacófato, completo<br />

seu tipo, o sapientíssimo sandeu: 17<br />

fabrica gás do milho do alfabeto...<br />

Não se acuse a justiça, de bufona:<br />

– fuão 18 peru é par do Silogeu, 19<br />

fazendo roda... em cima da poltrona!<br />

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746<br />

1 Vestimentas, roupas, ternos.<br />

Notas<br />

2 Tapete (de material plástico) importado, caro – uma novidade, na década<br />

de 1930, por ser lavável –, fabricado nos Estados Unidos pela Congoleum<br />

Company Of Delaware.<br />

3 <strong>In</strong>divíduo quasimodesco; pessoa disforme, mal proporcionada e/ou muito<br />

feia; monstro. personagem da obra Notre-Dame de Paris, de Vitor Hugo<br />

4 Arado grande, de ferro, com jogo dianteiro e uma só aiveca (cada uma das<br />

duas peças que sustentam a relha do arado, e que serve para alargar o<br />

sulco).<br />

5 Cesto de palha de carnaúba, com alça.<br />

6 Cyrano de Bergerac. Personagem de Edmond Rostand (1869-1918),<br />

poeta e dramaturgo francês, na peça do mesmo nome. A Editora Hachette,<br />

na descrição de uma das suas edições, em francês, comenta: “O valente<br />

espadachim e romântico poeta Cyrano de Bergerac não é fruto da imaginação<br />

criativa de Edmond Rostand: Saviniano Hercule Cyrano de Bergerac<br />

nasceu em Paris em 1619. Aos 19 anos abraça a carreira militar, tornandose<br />

cadete da Guarda de Paris. Participa de várias batalhas, inclusive do<br />

cerco de Arras, onde recebe forte golpe na garganta, o que encerra sua<br />

vida militar. Em 1653, passa a trabalhar na casa do duque de Arpajon,<br />

instalando-se no palácio de Marais, onde é ferido na cabeça devido à queda<br />

de um pedaço de madeira do teto. Em 1655, pressentindo a morte, vai<br />

para a casa de uma prima, a baronesa de Neuvillette, vindo a falecer cinco<br />

dias depois. Cyrano talvez não tenha tido a coragem, o heroísmo e a nobreza<br />

do personagem de Rostand. Mas era um homem polêmico e dedicado<br />

à cultura.”.<br />

7 Pimpinela (Escarlate). Personagem criada, em 1903, pela Baronesa<br />

Emmuska Orkzi (Tarnaörs/Hungria, 1865-Londres/<strong>In</strong>glaterra, 1947),<br />

escritora britânica de origem húngara, também conhecida como “Montague<br />

Barstow”, pseudônimo literário. O herói da novela (The Scarlet Pimpernel),<br />

era um espadachim inglês atuando na França, no século XVIII, para livrar<br />

da guilhotina fidalgos franceses durante o chamado Reinado do Terror,<br />

imposto pela revolução francesa.<br />

8 O queridinho; o predileto.


9 Destruidor, devastador.<br />

10 Friedrich Engels (Wuppertal/Alemanha, 28.11.1820-Londres/<strong>In</strong>glaterra<br />

05.08.1895). Filósofo alemão que junto com Karl Marx fundou o<br />

chamado socialismo científico ou marxismo.<br />

11 Friedrich Wilhelm Nietzsche (Röcken/Alemanha, 15.10.1844-<br />

Weimar/Alemanha, 25.09.1900). <strong>In</strong>fluente filósofo alemão do século<br />

19. Crítico da cultura ocidental e suas religiões e, conseqüentemente, da<br />

moral judaico-cristã.<br />

12 Leo Strauss (Essen/Alemanha, 20.09.1899-Annapolis/Estados Unidos,<br />

18.10.1973). Filósofo político teuto-americano de origem judaica.<br />

Visto por muitos, incluindo os liberais, como o ideólogo póstumo do<br />

neoconservadorismo nos Estados Unidos.<br />

13 Alfred Binet (Nice/França, 08.07.1857-Paris/França, 28.10.1911).<br />

Pedagogo e psicólogo francês. Ficou conhecido por sua contribuição à<br />

psicometria, a saber, foi o inventor do primeiro teste de inteligência, a base<br />

dos atuais testes de QI.<br />

Charles-Hippolyte-Jules-Louis, dito Binet-Sanglé (1868-1941). Professor,<br />

médico e psicólogo francês, ateu e defensor da eugênia. Escreveu<br />

dezenas de livros, entre os quais L’art de Mourir: arte de morrer: défense et<br />

tecnique du suicide secondé , Paris, A. Defesa técnica e suicídio assistido, (Editora<br />

A. Michel, 1919, 154 Michel, Paris,1919) e o celebérrimo A loucura<br />

de Jesus: hereditariedade, constituição e fisiologia (Paris, 1909, mesma editora).<br />

Afirmava que Jesus, fundador do cristianismo, “sofria de paranóia”.<br />

14 Sabor desagradável.<br />

15 Simples, despretensioso, desafetado; afável, amável, delicado.<br />

16 Qualquer agulha ou haste móvel, terminada em ponta, que percorre o<br />

mostrador dum aparelho a fim de fornecer indicação.<br />

17 Idiota, parvo, tolo, néscio, estúpido.<br />

18 Forma sincopada de fulano.<br />

19 Casa onde se reúnem associações literárias e/ou científicas. Certamente,<br />

OM fazia, maliciosamente, uma clara alusão às academias e aos acadêmicos,<br />

em geral.<br />

747


O cancioneiro de<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>


<strong>In</strong>trodução<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> foi, nas décadas de 1930 e 1940, o poeta<br />

mais popular de Natal. Esta popularidade se deve, além da qualidade<br />

e comunicabilidade de sua poesia, ao fato de muitos de seus<br />

poemas haverem sido transformados em canções, musicados por<br />

diversos de nossos compositores populares.<br />

Igualmente o foram, no seu tempo, os poetas Lourival Açucena<br />

(1827-1907), Segundo Wanderley (1860-1909), Ferreira Itajubá<br />

(1876-1912), Antônio Elias Álvares de França (1851-1915) e, mais<br />

tarde, Olympio Baptista Filho (1889-1942).<br />

Já em 1923, quando do lançamento do livro Jardim tropical, o<br />

poeta confessava, na página 51, certamente surpreso com a divulgação<br />

da Serenata do Pescador, musicada por Eduardo Medeiros:<br />

Sei quanto é modesto o valor artístico destes meus<br />

versos. Feitos às pressas, para serem recitados a pescadores,<br />

achou-os o inspirado musicista, Eduardo<br />

Medeiros, capazes de ser amparados pelo seu talento,<br />

valorizando-os com lindíssimo fado que a cidade<br />

repete, nas serenatas ou nos salões da aristocracia,<br />

de bairro a bairro. Por isso, e para satisfazer a pedidos<br />

muito gentis que me orgulham e me confortam,<br />

publico no livro a minha “Praieira”, que me tem dado,<br />

muitas vezes, noite alta, enquanto um violão soluça<br />

751


752<br />

na rua solitária, a ilusão efêmera e perigosa da popularidade<br />

[...]<br />

Natal, nos fins do século XIX e começo do século XX , foi uma<br />

cidade de musicistas, que se dividiam entre música de salão, em<br />

geral pianistas (que tocavam pela partitura) e “pianeiros” (que tocavam<br />

“de ouvido” – em solos ou acompanhamentos). A outra parte<br />

era a dos violonistas, tocadores e acompanhadores “de ouvido”,<br />

em geral boêmios e responsáveis pela vida seresteira da cidade.<br />

Os saraus familiares eram evento obrigatório entre a classe mais<br />

alta da população – os pais reuniam amigos para ouvirem seus<br />

filhos declamarem poesias, cantarem árias eruditas ou modinhas<br />

populares, tocando violino, bandolim, flauta e o sempre obrigatório<br />

piano. O repertório era importado do sul ou mesmo do<br />

estrangeiro e predominavam as valsas langorosas, as polcas saltitantes,<br />

as alegres quadrilhas e mais tarde, as músicas chegadas via<br />

disco (a partir de 1902), através do rádio (depois de 1922) e com<br />

a chegada do cinema sonoro (1927 ); épocas em que serenata começou<br />

a declinar.<br />

Os compositores locais tinham também sua vez e disputavam o<br />

seu lugar, imprimindo partituras em outras cidades e passando<br />

cópias manuscritas.<br />

As retretas das bandas de música em praças públicas eram um<br />

ocorrido ponto de encontro da população da pequena cidade,<br />

que ali acorriam para ouvir e também passear, desfilar, namorar.<br />

Já os boêmios e seresteiros tinham sua atividade separada. Animadores,<br />

também, de festas familiares, tinham na rua deserta fracamente<br />

iluminada pelos lampiões de azeite (1859), querosene<br />

(1883), e gás acetileno (1905), antes da chegada da luz elétrica<br />

(1911), inundada do clarão pálido da lua, o ambiente propício<br />

para a sua criação artística. A serenata era, na Natal do passado,<br />

um hábito constante. Não apenas o cantor solitário que cantava


suas mágoas ou exaltava a sua amada atrás da janela mas, também,<br />

os grupos que peregrinavam pelas ruas desertas, cantavam diante<br />

das casas das famílias, sendo por elas prazerosamente recebidos<br />

para os “comes”e os mais desejados “bebes”.<br />

Nesse último grupo, pontificou, nos fins do século XIX, Lourival<br />

Açucena, o primeiro poeta norte-rio-grandense conhecido. A<br />

partir do século XX, passam a se destacar Heronides de França,<br />

Deolindo Lima (1885-1944), Ferreira Itajubá, Antônio Elias Álvares<br />

de França, e o maior dos nossos compositores seresteiros,<br />

Olympio Baptista Filho.<br />

Como não podia deixar de ser, <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> foi, também,<br />

boêmio e seresteiro. Tocava o violão necessário para cantar em<br />

casa ou entre amigos e participava de serenatas que se estendiam<br />

até as madrugadas, sempre regadas da indispensável bebida,<br />

estimulante e inspiradora. Admirador dos boêmios e cantores da<br />

cidade, era por eles igualmente admirado e teve onze de suas<br />

poesias musicadas e popularizadas mais ainda, pela benéfica<br />

associação da melodia. Note-se o conteúdo seresteiro dos poemas,<br />

o que reforça a imagem do <strong>Othoniel</strong> boêmio e sensível ao soluçar<br />

de um violão na rua deserta sob a palidez da lua.<br />

Dois de seus poemas figuram nesta publicação sem a partitura.<br />

Por mais que se pesquisasse, não foi possível encontrar-se quem<br />

conhecesse a melodia de “Minha mãe”, música composta por Maria<br />

Umbelina de Souza e “Sob as mangueiras”, música de Carmino<br />

Romano. Vão eles, assim mesmo registrados, na expectativa de<br />

que ainda se possa encontrar alguém que se lembre de suas<br />

melodias.<br />

Vale salientar que nenhuma dessas composições teve sua melodia<br />

escrita e foram recolhidas graças a pessoas que as cantaram. É<br />

possível que Eduardo Medeiros, que conhecia música, tenha escrito<br />

as suas partituras que não foram, entretanto, encontradas.<br />

Objetivando-se o resgate e a divulgação dessas canções, foi ideali-<br />

753


754<br />

zada esta publicação, seguindo-se a moda atual dos songbooks e<br />

no intuito de lembrar ainda mais o poeta, na passagem do seu<br />

centenário de nascimento.<br />

Cláudio Galvão


FONTES<br />

Música: Diversas<br />

Letra : Jardim topical<br />

Partitura de Serenata do pescador<br />

Música: Eduardo Medeiros<br />

Letra: <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>


756<br />

Serenata do pescador<br />

Os perigos da tormenta<br />

não se comparam, querida,<br />

às dores que experimenta<br />

a alma, na dor perdida,<br />

– nas ânsias da partida!<br />

Adeus à luz que desmaia,<br />

nos coqueirais ao sol-por...<br />

e, bem pertinho da praia,<br />

o albergue, o ninho, o amor<br />

do humilde pescador!<br />

Quem vê ao longe, passando<br />

uma vela, panda, ao vento,<br />

não sabe quanto lamento<br />

vai nela soluçando,<br />

– a pátria procurando!<br />

Praieira, meu pensamento,<br />

linda flor, vem me escutar<br />

a história do sofrimento<br />

de um nauta, a recordar<br />

Amores, sobre o mar!<br />

Praieira, linda entre as flores<br />

deste jardim potiguar!<br />

Não há mais fundos horrores,<br />

iguais a estes do mar,


– passados a lembrar!<br />

A mais cruel noite escura,<br />

nortadas e cerração,<br />

não trazem tanta amargura<br />

como a recordação,<br />

que aperta o coração!<br />

Se, às vezes, seguindo a frota, pairava uma gaivota,<br />

logo eu pensava, bem triste:<br />

- “O amor que lá deixei,<br />

quem sabe se inda existe?!”<br />

Ela, então, gritava, triste:<br />

– “Não chores! não sei! não sei...<br />

“E eu, sempre e sempre mais triste, rezava, a<br />

murmurar:<br />

– “Meu Deus! quero voltar!”<br />

Praieira do meu pecado,<br />

morena flor, não te escondas,<br />

quero, ao sussurro das ondas<br />

do Potengi amado,<br />

– dormir sempre a teu lado ...<br />

Depois de haver dominado<br />

o mar profundo e bravio,<br />

à margem verde do rio<br />

serei teu pescador,<br />

oh, pérola do amor!<br />

757


758<br />

Nota comentada<br />

Um grupo de pescadores natalenses, pertencentes à Colônia José<br />

Bonifácio” resolve realizar um raid em três pequenos barcos – República,<br />

Íris e Pinta – de Natal ao Rio de Janeiro, em comemoração à passagem do<br />

1° Centenário da <strong>In</strong>dependência do Brasil. Realizada a façanha sob as emoções<br />

populares, retomaram a Natal, em 19 de outubro do mesmo ano.<br />

À partida dos pescadores, entre as homenagens prestadas pelos natalenses;<br />

Edinor Avelino recitou “<strong>In</strong>timoratos” e <strong>Othoniel</strong>, “Sobre as ondas”. Os<br />

anúncios da volta levaram <strong>Othoniel</strong> a pensar em homenageá-los com<br />

outra poesia. Numa noitada boêmia com vários amigos no Paço da Pátria<br />

escreveu, na noite de 18 de outubro de 1922, as seis longas estrofes de<br />

“Serenata do pescador”. No dia seguinte, o navio que trazia os pescadores<br />

esperava a baixa da maré para atracar no porto. <strong>Othoniel</strong> curado da<br />

carraspana, leu e releu o poema e o sentiu muito lírico para o momento,<br />

que exigia um caráter épico na homenagem.<br />

Ao atracar o navio Maranguape, dá-se o desembarque dos “heróis”. Aclamados<br />

por onde desfilaram e, ao passarem pela frente dos clubes náuticos da rua<br />

Chile, <strong>Othoniel</strong> recitou “Cântico da vitória”, em vez da “Serenata do pescador”.<br />

Retomando das festas. mostrou o poema ao amigo e também poeta Joaquim<br />

Alves Bezerra Júnior (1890-1957) que, sensibilizado pela sua beleza,<br />

anteviu como ficaria bonito se musicado e sugeriu que <strong>Othoniel</strong> encomendasse<br />

uma melodia ao conhecido musicista Eduardo Medeiros (1887-<br />

1961). Composta a música, Eduardo, profissional que era, recebeu como<br />

pagamento a quantia de vinte mil réis.<br />

Cantada pela primeira vez em público no Teatro Carlos Gomes por<br />

Deolindo Lima no dia 16 de dezembro, o sucesso da música “Praieira” foi<br />

rápido e abrangente. Pela sua característica essencialmente natalense, a<br />

canção foi considerada “Canção Tradicional de Natal”, pelo Decreto<br />

Legislativo n° 12. de 22 de novembro de 1971.<br />

“Serenata do pescador” foi a canção natalense que teve, sem dúvida, a maior<br />

evidência. Foi gravada por Paulo Tito no long play “Reencontro”, em 1975;<br />

pelo Madrigal da UFRN, com arranjo de Orlando Leite, em 1976; e pelo<br />

Quarteto de Cordas da UFRN, no CD Quarteto da Cidade do Sol, em 1993.<br />

Foi ainda tema da opereta “Praieira de meus amores”, texto de Jayme dos<br />

Guimarães Wanderley e música do maestro Garibaldi Romano, encenada<br />

no Teatro Alberto Maranhão, de 24 a 29 de novembro de 1967.


FONTES<br />

Música: José de Almeida<br />

Letra: Jardim tropical<br />

Partitura de Alice<br />

Música: Carolina Wanderley<br />

Letra: <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>


760<br />

Alice<br />

Ao deserto beiral do meu castelo<br />

por que voltas, qual célere andorinha.<br />

– se já não podes prometer ser minha?<br />

– se já não posso beijar teu colo belo?<br />

Tu és a glória, o sol do meu passado!<br />

Teu nome é incenso virgem, rescendendo!<br />

Asa branca de pássaro, batendo<br />

no silêncio de um templo abandonado<br />

Muita saudade no meu peito resta,<br />

amo-te ainda, meu amor primeiro!<br />

Andorinha que torna da floresta,<br />

– canta de novo sobre o meu telheiro!


Nota comentada<br />

Por volta de 1910, <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, com 15 anos de idade, já se iniciava<br />

na poesia. Visitava costumeiramente o poeta Gothardo Neto e lhe levava<br />

suas primeiras produções, recebendo do poeta do livro Folhas Mortas,<br />

orientação e o incentivo de que necessitava. Gotardo, naquela altura, já<br />

irremediavelmente tuberculoso, recebia-o numa rede, vestido em um<br />

pijama e já muito pálido; morreria no ano seguinte.<br />

Durante os anos de 1911 e 1913, <strong>Othoniel</strong> cursou, paralelamente ao<br />

Atheneu Norte-Rio-Grandense, a Escola Normal, que funcionava no prédio<br />

do Grupo Escolar Augusto Severo, na Ribeira, cujas aulas, sob a direção<br />

do professor Nestor Lima, funcionavam apenas no turno da manhã.<br />

Não se sabe com segurança se uma vocação para o magistério levou o<br />

jovem poeta a prestar exame de admissão naquela escola, já que não passou<br />

do segundo ano.<br />

Na mesma classe, estudava a jovem Alice de Brito, filha de Pedro Paulo e<br />

Maria Leopolda Pereira de Brito, quarta filha de uma família de sete irmãos,<br />

cujo primeiro, Abner de Brito, se destacaria como poeta e o sétimo,<br />

Henrique, como hábil violonista e compositor.<br />

Alice despertaria, pela primeira vez, o amor no coração do poeta de 16<br />

anos de idade. Todos os colegas de classe sabiam da paixão dele por ela,<br />

mas não há referência da reciprocidade de sentimentos. É provável, pois,<br />

que o poeta não tenha sido correspondido em seu afeto.<br />

Em janeiro de 1913 <strong>Othoniel</strong> deixa a Escola Normal e ingressa no Exército,<br />

licenciando-se em 1914.<br />

Depois de uma permanência na cidade de Macau, onde escreveu muitos<br />

poemas e teve problemas sentimentais, <strong>Othoniel</strong> regressa a Natal, onde<br />

encontra a prima Carmita (Maria do Carmo Bonfim, Nova Cruz/RN,<br />

1901-Brasília/DF, 1984 ) com quem foge e se casa em 1916.<br />

Alice continuou na Escola Normal e concluiu seu curso em 1918, no<br />

mesmo ano em que <strong>Othoniel</strong> publicou Gérmen, seu primeiro livro.<br />

Naquele mesmo ano, o governador (1914-1920) Ferreira Chaves nomeou<br />

<strong>Othoniel</strong> para o cargo de segundo oficial da Secretaria de Governo<br />

do Estado, sendo promovido a primeiro oficial em 1921, já no governo<br />

(1920-1924) de Antônio de Souza.<br />

761


762<br />

A Secretaria de Governo estava instalada ao lado esquerdo do Palácio, em<br />

frente ao velho sobradinho da rua da Conceição. No andar térreo funcionava<br />

o Tesouro do Estado. Numa tarde de novembro de 1922, estava o<br />

poeta debruçado na sacada de uma das janelas de sua seção, quando lhe<br />

pareceu identificar uma jovem que, sem notar a presença do poeta no<br />

primeiro andar, dirigiu-se ao Tesouro para receber seus vencimentos. Era<br />

Alice, sim. <strong>Othoniel</strong> há nove anos não a via. O vulto delicado da moça fez<br />

o senhor casado e com filhos retroceder aos bons tempos da Escola Normal<br />

e o coração bater apressadamente. Dirigiu-se, imediatamente, a sua<br />

máquina datilográfica e escreveu o poema “Alice”.<br />

Ali, no primeiro andar, no “deserto beiral do meu castelo”, o poeta se<br />

indagava: “Por que voltas, qual célere andorinha? / Se já não podes prometer<br />

ser minha? / Se já não posso beijar teu colo belo?”; e confessava “O<br />

teu nome inda guardo em minh’alma”; e que, apesar de tudo o que vivera<br />

“Muita saudade no meu peito resta,/ amo-te ainda, meu amor primeiro!”.<br />

O poema “Alice” foi publicado em A República, de 11 de novembro daquele<br />

ano e incluído na página 90 do livro Jardim tropical. É provável que<br />

Carolina Wander1ey (1891- 1976), poeta e pianista, o tenha musicado no<br />

mesmo ano de sua publicação.<br />

A professora Alice Brito faleceu solteira, em 21 de dezembro de 1929, na<br />

casa de seus pais, na rua Princesa Isabel, 448. A canção que inspirou é uma<br />

das mais belas e sugestivas páginas do cancioneiro norte-rio-grandense.


FONTES<br />

Música: José de Almeida<br />

Letra: A República;<br />

Ara de fogo, Abysmos<br />

Partitura de Luar de agosto<br />

Música: Eduardo Medeiros<br />

Letra: <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>


764<br />

Luar de agosto<br />

Enquanto a lua te ilumina o rosto<br />

e a tua voz de puro amor me fala,<br />

quanto sonho feliz se despetala,<br />

na transparência do luar de agosto!<br />

Uma simples choupana entre boninas<br />

quem nos dera, alva flor do meu calvário<br />

e, nestas noites plácidas, divinas,<br />

as orações da cruz do teu rosário!<br />

A flor de reseda que nós amamos,<br />

quando agosto morrer, querida ingrata<br />

quem sabe se, a brilhar sempre nos ramos,<br />

dará perfume ainda em serenata?<br />

Teu coração é belo, mas ventura<br />

não cabe ao que nasceu para o desgosto...<br />

– minh’alma é abismo de uma noite escura,<br />

dentro da noite alvíssima de agosto!<br />

Quando a lua voltar, prateando os ermos,<br />

e abrindo os resedás, veigas em fora,<br />

quantos descridos corações enfermos<br />

terão sentido o que me punge agora!<br />

Quanto amor acabado soluçando!<br />

Quanta agonia no silêncio triste!<br />

– lua piedosa!dize-me até quando<br />

o amor, que ela jurou eterno, existe!...


Nota comentada<br />

Eduardo Medeiros (Touros/RN, 21.06.1887-Natal/RN, 20.06.1961)<br />

foi o músico profissional mais conhecido de seu tempo. Violonista bem<br />

conceituado, percorreu todo o Estado tocando em festas, bailes e solenidades<br />

religiosas. Conhecido na cidade pelas suas valsas, choros e canções<br />

para poemas de seus conterrâneos, divide com <strong>Othoniel</strong> a popularidade<br />

da música “Serenata do pescador”, composta no final de 1922.<br />

Foi premiado ao participar do concurso que o governo Antônio de Souza<br />

realizou para destacar compositores que musicassem poemas de autores<br />

locais. Eduardo foi classificado com uma bela melodia para o poema “Caminho<br />

do sertão”, de Auta de Souza. <strong>Othoniel</strong> reconheceu o seu valor e<br />

atribuiu a ele grande parte do sucesso de “Praieira”. A melodia que compôs<br />

para “Luar de agosto” é tipicamente seresteira e se destaca como um<br />

dos mais belos exemplares da modinha norte-rio-grandense.<br />

765


FONTES<br />

Música: Walter Baptista de Andrade<br />

Letra: Familiares do compositor<br />

Partitura de Jasmineiro<br />

Música: Olympio Baptista Filho<br />

Letra: <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>


Jasmineiro<br />

Nosso amor puro, inocente,<br />

É suspiro, é dor somente,<br />

É desejo e não carinho.<br />

Ficarás aqui chorando<br />

Linda musa, interrogando<br />

A esperança do caminho.<br />

Mimosa, dália roxa perfumosa.<br />

Ah, quem me dera um dia te levar<br />

No meu peito a palpitar!<br />

Nota comentada<br />

Olympio Baptista Filho (Natal/RN, 13.05.1889-15.08.1942), figura<br />

conhecidíssima e estimada na velha Natal, Olympio Baptista é o autor de<br />

mais de 50 melodias para letras suas e de outros poetas. Suas melodias,<br />

simples, mas fortemente comunicativas eram por ele mesmo divulgadas<br />

em saraus familiares e em serenatas, nas quais Olympio fazia soar sua voz<br />

forte e marcante pelas ruas desertas da cidade enluarada. Amigo íntimo de<br />

<strong>Othoniel</strong>, foi denominado em versos pelo poeta como “Cigarra das serenatas<br />

/das noites claras de minha terra”.<br />

767


FONTES<br />

Música: Carmem Baptista de Andrade<br />

Letra: Familiares do compositor<br />

Partitura de Sereia<br />

Música: Olympio Baptista Filho<br />

Letra: <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>


Sereia<br />

Ah, não respondas, não<br />

respondas,<br />

Que este passado já morreu<br />

E que nos abismos dessas ondas<br />

Muita jangada se perdeu.<br />

Sereia, sereia,<br />

Por teus claros olhos belos<br />

Quantos castelos, quantos<br />

Há de levar rumo perdido<br />

Qualquer jangada que alvorar,<br />

Vela da cor do teu vestido<br />

E por teus olhos se guiar.<br />

Sereia, sereia, etc...<br />

Nota comentada<br />

Os poemas com temas praieiros que tanto caracterizaram a poesia de<br />

Ferreira Itajubá, encontram em <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> um feliz continuador.<br />

O poema inédito “Sereia” é um bom exemplo dessa sua vertente e foi<br />

gravado por Fátima Brito no LP “Cancioneiro potiguar”.<br />

769


FONTE<br />

Música e Letra: José de Almeida<br />

Partitura de Mimosa<br />

Música: Eduardo Medeiros<br />

Letra: <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>


Mimosa<br />

Chego na rua plácida e deserta.<br />

Ressoa ã minha voz entristecida.<br />

Bem sei que estás por mim sempre desperta.<br />

Luz do caminho desta ingrata vida.<br />

As noites mais saudosas bem quisera,<br />

Arrancar ao violão, cantar beleza.<br />

Porque as estrelas de uma a uma acesas<br />

Dizem que o amor fiel me espera.<br />

Teu seio é um canteiro, é um ninho, é um vale<br />

Entre colinas, florido, risonho.<br />

Ao menos na ilusão aí resvale<br />

A minha fronte bêbada de sonho.<br />

Linda, como o teu rosto, oh, sempre amado<br />

A estrela d’ alva brilha sobre a serra,<br />

E a casinha onde dormes sossegada,<br />

É um pedaço de céu aqui na terra.<br />

Nota comentada<br />

Poema caracteristicamente seresteiro, foi musicado por Olympio Baptista<br />

Filho. Publicado pela primeira vez na primeira edição deste O Cancioneiro<br />

de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> (1995).<br />

771


FONTE<br />

Música e letra: Mabel Botclho de Souza<br />

Partitura de Versos<br />

Música: Pedro Brito<br />

Letra: <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>


Versos<br />

A noite se cobre<br />

De um manto alvacento.<br />

A fonte ao relento<br />

Mais terna desliza.<br />

A relva não sente<br />

Do sol os queimares.<br />

Revivem as flores<br />

Aos beijos da brisa.<br />

As moitas florentes<br />

Odores trescalam,<br />

Os bosques exalam<br />

Silvestres perfumes.<br />

A lua desponta<br />

Tão meiga e tão bela,<br />

Somente eu por ela<br />

Soluço queixumes<br />

Nas horas caladas<br />

De maior tristeza<br />

Quando a natureza<br />

Parece sonhar.<br />

As mágoas que tenho<br />

Não posso contê-Ias<br />

E triste às estrelas<br />

Me ponho a contar.<br />

773


774<br />

Não quero do mundo<br />

Riqueza nem glória.<br />

A pompa ilusória<br />

De sonhos gentis<br />

Somente com ela<br />

Dormindo a meu lado<br />

Até desgraçado<br />

Seria feliz.<br />

Nota comentada<br />

Violonista de grande conceito, Pedro Brito, também poeta, é responsável<br />

pela letra de diversas canções musicadas por seu irmão Henrique Brito,<br />

tais como “Olhos de Helena”, publicada pela Edições A Melodia e gravada<br />

por Augusto Calheiros, na Victor; “O preço do café”, editado pela Casa<br />

Viúva Guerreiro; “Viola triste”, também publicada por Edições A Melodia<br />

e gravada na Victor por Albenzio Perrone; e “Alma em pedaços”, publicada<br />

pela Casa Vieira Machado.<br />

Versos é uma composição de estilo plenamente seresteiro.


FONTES<br />

Música: José de Almeida<br />

Letra: A República<br />

Partitura de Viver de amor<br />

Música: Olympio Baptista Filho<br />

Letra: <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>


776<br />

Viver de amor<br />

Durmas sob as estrelas ou nos mares...<br />

numa concha de pérola, quem há de<br />

impedir que te conte meus pesares?<br />

– Para viver de amor basta a saudade!<br />

Muita poesia a ausência, oh, flor, resume.<br />

A noite escura – quanta luz invade!<br />

Murcha a branca cecém, fica o perfume...<br />

– Para viver de amor basta a saudade!<br />

Porque há tempo não me aprecias<br />

ontem quando te vi – felicidade!<br />

– Tenho ventura para muitos dias!<br />

– Para viver de amor basta a saudade!<br />

É um sonho que me inspira e me conforta:<br />

– Ao fugir-me da vida a claridade.<br />

– Ir cantar como um cisne à tua porta!<br />

– Para viver de amor basta a saudade!<br />

Quando eu morrer, palpitará, disperso,<br />

talvez algum pesar pela cidade...<br />

mas tu’ alma guardará meu verso:<br />

– Para viver de amor basta a saudade!


Nota comentada<br />

O poema foi publicado no jornal A República, de 9 de maio de 1923 e traz<br />

a observação: “Nota do autor: As estrofes assinaladas por asterisco têm<br />

uma linda música de Olympio Baptista Filho”. É dedicado ao compositor<br />

e foi republicado em Ara de fogo/ Abysmos. O motivo do poema é francamente<br />

pessimista e cada estrofe finaliza com a afirmação: “Para viver de<br />

amor basta a saudade”.<br />

<strong>Othoniel</strong> era muito ciumento de suas obras e ficava furioso quando alguém<br />

cantava errado uma de suas canções, “assassinando-as”, como costumava<br />

se expressar. Em certa ocasião quase tem um infarto quando ouviu<br />

a sua empregada doméstica cantar, enquanto trabalhava, “para viver de<br />

amor basta um sordado”, no lugar de “para viver de amor basta a saudade!”.<br />

A pobre doméstica não perdeu o seu emprego graças a intervenção de<br />

Maria, esposa de <strong>Othoniel</strong>.<br />

777


FONTES<br />

Música: José de Almeida<br />

Letra: A República<br />

Partitura de Viver de Amor (Antítese)<br />

Música: Olympio Baptista Filho<br />

Letra: <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>


Viver de amor (Antítese)<br />

Não me deras, ainda, alma celeste,<br />

O sol do teu amor que me ilumina<br />

E faz brotar, no meu calvário agreste,<br />

De uma flor de cicuta, uma bonina!<br />

Cravo branco a florir na fantasia<br />

De minha lira rude e apaixonada!<br />

Que tormento, se fores, algum dia,<br />

Uma saudade roxa e envenenada.<br />

Senhora de minh’alma e destes versos.<br />

Escuta o que a ilusão canta em meu peito:<br />

– “Teus olhos nos meus olhos sempre imersos!<br />

um sonho só de amor e o mesmo leito!”<br />

Um momento sem ti – que mágoa imensa!<br />

Que tempo imenso de infelicidade!<br />

– Para viver de amor, só a presença;<br />

– Para viver de amor... nunca a saudade<br />

Longe do teu amor sincero e amante<br />

A saudade não basta à minha dor:<br />

Quero ver-te de perto, instante a instante!<br />

– Para viver de amor... só mesmo o amor!<br />

779


780<br />

Nota comentada<br />

Neste poema, <strong>Othoniel</strong> responde a si próprio o que disse no anterior<br />

“Viver de amor”, concluindo: “Para viver de amor... só mesmo o amor!”<br />

Foi publicado, inicialmente, no jornal A República, de 24 de outubro de<br />

1923; depois, em Ara de fogo/Abysmos.<br />

O escritor Luis da Câmara Cascudo relatou ao autor destas notas que esta<br />

canção era muito querida dos seresteiros natalenses. O grupo, do qual<br />

participava José Ivo Cavalcanti (mais tarde conceituado médico), tinha<br />

uma peculiaridade: quando cantavam, na rua deserta, sob janela de alguém,<br />

o verso “Cravo branco a florir na fantasia”, José Ivo gritava: De<br />

Joelhos! E todos se ajoelhavam, cantando o verso. O futuro médico justificava<br />

que era o mais belo verso da composição e por isto tinha que ser<br />

cantado de joelhos.


Sob as mangueiras*<br />

* Sem partitura.<br />

A Carmino Romano<br />

À sombra destas mangueiras<br />

sussurrantes, altaneiras,<br />

pensativo, horas inteiras,<br />

me enterneço, a recordar,<br />

e não sei porque este sonho,<br />

tão querido, tão risonho,<br />

de te ver e de te amar,<br />

– veio em lágrimas findar.<br />

Foi ao cantar destes ramos<br />

que, muitas vez, nos amamos,<br />

da tarde morna ao cair...<br />

– branca de medo e cansaço,<br />

reclinavas no meu braço<br />

a cabecinha a sorrir...<br />

Não sei se lembras ainda<br />

aquela noite, tão linda.<br />

em que, ao luar, tu me deste<br />

tanto beijo que, entre olores,<br />

voltou crivado de flores<br />

teu vestido azul celeste...<br />

781


782<br />

As mangueiras perfumosas,<br />

belas, serenas, frondosas,<br />

cheias de mangas e ninhos,<br />

eram do nosso noivado<br />

o virginal cortinado,<br />

verde, sonoro, encantado,<br />

repleto de passarinhos!<br />

Perto, os vem-vens e as cigarras<br />

faziam coro e algazarras<br />

dos teus irmãos a brincar.<br />

Vinha dos morros fronteiros<br />

o aroma dos cajueiros,<br />

a voz sentida do mar!<br />

Enchias as saias curtas<br />

de guabirabas e murtas,<br />

que me davas com langor,<br />

– mais cheirosas que no galho –,<br />

embalsamadas de orvalho<br />

da tua boca em flor...<br />

Íamos ver, pela praia.<br />

a hora em que o sol desmaia,<br />

e a brisa as margens refresca,<br />

retomarem, de uma em uma,<br />

com as proas brancas de espuma,<br />

as jangadinhas de pesca.


Dizias olhando as velas:<br />

– “Se eu fosse um dia com elas,<br />

e não pudesse voltar?<br />

Eu tornava: – “Triste e quedo,<br />

sozinho neste rochedo,<br />

morreria... a te esperar!”<br />

Quanta poesia vivida,<br />

na quadra nunca esquecida,<br />

das nossas juras primeiras!<br />

– Os idílios pelo monte...<br />

O verde mar no horizonte...<br />

A casinha entre mangueiras...<br />

Hoje, entretanto, que resta<br />

dessa antiga e doce festa,<br />

da natureza ao fulgor?<br />

– só as mangueiras ao vento...<br />

e a saudade, que é tormento<br />

dos que sofrem o mal do amor!<br />

783


784<br />

Minha mãe*<br />

Vivo contraste mostra-me o destino,<br />

a minha dor de agora comparando<br />

a esse passado, todo de amores, quando<br />

brincava em teu colo, pequenino!<br />

Faz muito tempo, minha mãe querida,<br />

que os anjos te levaram para o céu,<br />

e sobre o lago azul de minha vida<br />

a saudade estendeu pesado véu!<br />

Um coração de mãe jamais repousa!<br />

– morta, embora–, ele pulsa pelo filho:<br />

sim! bem que o vejo palpitar no brilho<br />

das “perpétuas” em flor da tua lousa!<br />

Sei que voltas do céu, de quando em quando,<br />

pois, muitas noites, pálida e tristonho,<br />

vejo-te, oh santa, dentro de meu sonho,<br />

– o teu manto de estrelas arrastando...<br />

* Este poema foi publicado em A República, em 11.07.1923, e em Ara de<br />

fogo /Abysmos/Esparso. Musicado pela professora Maria Umbelina de Souza,<br />

foi cantado por Bernadete Manso, em 13 de maio de 1923, na primeira<br />

comemoração do Dia das Mães, em Natal, realizada na Escola Mista Augusto<br />

Leite, mantida pelo Centro Operário Natalense.


Na minha fronte cismadora, ainda<br />

– oh açucena do azul celeste! –<br />

vibra a harmonia suave, que não finda,<br />

do último beijo triste que me deste!<br />

Corresse um mar de pranto, o mais pungente,<br />

em redor do teu túmulo querido,<br />

não traduzira, ao menos, vagamente<br />

o desespero de haver perdido!<br />

Vive entre os anjos, meu amor eterno,<br />

da Via Lactea na serena estância<br />

Estrela da manhã da minha infância,<br />

– brilha na treva deste imenso inferno!<br />

785


Prosa<br />

Marize Castro [ 787 ]


A Liberdade


Ano 1 – Número 1 *<br />

Órgão do Governo Popular Revolucionário<br />

Rio Grande do Norte – Natal, Quarta-feira, 27 de novembro de<br />

1935<br />

Enfim, pelo esforço invencível dos oprimidos de ontem, pela colaboração<br />

decidida e unânime do povo, legitimamente representado<br />

por soldados, marinheiros e camponeses, inaugura-se no Brasil<br />

a Era da Liberdade, sonhada por tantos mártires, centralizada e<br />

corporificada na figura legendária – onipresente no amor e na<br />

confiança divinatória dos humildes – de LUIZ CARLOS PRES-<br />

TES, o “Cavaleiro da Esperança”!<br />

SOB A ALELUIA NACIONAL DA LIBERDADE<br />

Os que, com o coração trepidante de esperanças e júbilo, traçamos<br />

agora estas linhas, escrevíamos nesta mesma coluna, em 8 de<br />

outubro de 1930, ao ruir fragorosamente, sob o clamor popular,<br />

apodrecida geringonça do regime washingtoniano: – Não pode<br />

mais haver lugar para tergiversações nem esperanças absurdas. Nada<br />

se delibera mais, fora do âmbito nacional da Revolução, em cuja<br />

atmosfera a vibrante alma popular, há tanto tempo ludibriada e<br />

opressa, respira enfim o ozone vivificador da Liberdade. Em nome<br />

desta, e com insanável ludíbrio ao nome do país – não esqueçamos<br />

–, vinham sendo descaroavelmente 1 perpetrados processos<br />

tão inverossímeis de política e administração, que não era possível<br />

permanecessem os destinos do regime à discrição tirânica dos<br />

responsáveis pelo descalabro, chegando a tal ponto, que os mais<br />

passivos, os mais obscuros, os mais humildes elementos do povo,<br />

emergindo do silêncio, do sofrimento e da revolta constantemente<br />

e impiedosamente açaimada, 2 despedaçaram as cadeias e vie-<br />

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792<br />

ram confraternizar nas ruas, num transbordamento de festa e patriotismo,<br />

com as forças revolucionárias vitoriosas.<br />

E é ótimo repetir que nada se libera mais, doravante. Fora do<br />

âmbito de chamas da rebeldia nacional, gloriosamente iniciada no<br />

Rio Grande do Norte, a 23 do corrente, e vitoriosa em todo o<br />

território brasileiro.<br />

Porque era o mesmo, por assim dizer, apenas mais carregado de<br />

sombras e laivado 3 de sangue, o panorama político-social desta pobre<br />

grande pátria, entregue à insaciável camarilha que acabamos de<br />

varrer das posições cinicamente ocupadas, explorada pelos seus patrões<br />

estrangeiros, que havemos de enxotar inexoravelmente, arrancando-lhes<br />

às garras vulpinas 4 o que arrebataram do sangue e do<br />

suor do povo!<br />

Carcomidos, até á alma, pelo vírus do interesse mais mesquinho,<br />

mais estomacal; vendidos às empresas dos países imperialistas<br />

papa-terra; cavalgados pelos leões famélicos do latifúndio;<br />

conluiados, na sombra de leis celeradas e exclusivistas, com os<br />

plínios salgados e seus asseclas de roupeta; 5 ajudados, nessa orgia<br />

tenebrosa, por muitos revolucionários em absoluto indignos desse<br />

nome, – os políticos profissionais, cujo símbolo mais próprio e<br />

mais caricato é Getúlio Vargas e sua farândola 6 de bonecos, estavam<br />

a pique de entregar o Brasil, de pés e mãos atados, à temerosa<br />

cainçalha 7 adventícia, representada pelos credores europeus e americanos<br />

e suas formidáveis empresas de exploração, espionagem e<br />

boicote.<br />

Nós temos o propósito de arrancar a venda aos olhos do Gigante<br />

algemado, nós que temos visto por ele, nós que estávamos,<br />

estamos e estaremos alerta contra toda essa chusma de patriotas<br />

invertidos e estrangeiros gananciosos.<br />

Vamos confiscar as duvidosas fortunas desses ladrões internacionais,<br />

fazê-los trabalhar e produzir, ou arrepiar caminho para os


desertos de onde vieram para aqui enriquecer e malsinar nossas<br />

coisas e nossa gente.<br />

Vamos fazer produzirem nossos campos. Explorar as nossas<br />

minas formidáveis de ferro, de ouro, de tudo que a Natureza nos<br />

deu da maneira mais privilegiada no mundo. Aproveitar nossas<br />

imensas quedas d’água, nossas florestas imensíssimas. Dar crédito<br />

ao agricultor, até agora miseravelmente tratado como servo de<br />

gleba. Desenvolver a pecuária. Estimular a indústria, criando as<br />

grandes usinas de metalurgia para fabricarmos, aqui dentro, as<br />

nossas máquinas, os nossos aviões, a nossa munição para resistir a<br />

quem quer que se aventure a reduzir-nos a colônia.<br />

Reformar, pela base, a burocracia, que é um dos cancros mais<br />

terríveis à ilharga da Nação. Aparelhar o Exército e a Marinha,<br />

dignificar-lhes a missão dentro do país e em sua função essencial<br />

de defesa e garantia permanente do nosso prestígio internacional.<br />

Dividiremos as terras. Garantiremos o direito ao trabalho. Ninguém<br />

despenderá um real para aprender a ler e completar sua<br />

cultura. Reformaremos os códigos, estabelecendo, sob o regímen<br />

da racionalização e renovação do Direito, tudo que temos prometido<br />

para libertação do país, tonificação de suas fontes econômicas,<br />

felicidade de seu povo martirizado e capaz das maiores conquistas.<br />

A Vitória, conseguida agora, sabê-la-emos solidificar, para que<br />

frutifique o sonho dos que nos antecederam, tombando nas trincheiras<br />

diante dos quartéis do absolutismo aniquilado para sempre.<br />

Estamos fortes, estamos firmes, estamos vigilantes, porque nossos<br />

olhos são os milhões de olhos do povo desperto e desagravado<br />

pela nossa metralha.<br />

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794<br />

Ninguém se engane. Ninguém desanime. Desmoraliza-se de uma<br />

vez o boato, cujos responsáveis puniremos sem papelão.<br />

Soou a hora esperada pela consciência nacional.<br />

Não há mais lugar nem motivo para tergiversações, sim e sim!<br />

Para os que nos quiserem auxiliar com sinceridade, aqui estamos.<br />

Para os que tentarem, por qualquer forma perceptível, subverter<br />

as ordens que implantamos no Rio Grande do Norte, amparados na<br />

energia indômita do nosso ideal, nas armas do glorioso 21º B. C., no<br />

coração do povo – teremos o castigo que merecem todos os traidores,<br />

todos os pusilânimes, todos os burgueses vendidos à canalha<br />

internacional e de mãos dadas aos inimigos internos do Brasil.<br />

Viva a Liberdade!<br />

Viva Luiz Carlos Prestes!<br />

Viva a Aliança Nacional Libertadora! 8<br />

* Transcrição de alguns textos da primeira página do jornal A Liberdade


1 Sem carinho ou caridade, descarinhoso.<br />

2 Amordaçada, silenciada, reprimida, subjugada.<br />

3 Manchado, emporcalhado, sujo.<br />

4 Relativo a ou próprio de raposa; astuta, traiçoeira.<br />

5 <strong>In</strong>dumentária dos sacerdotes, batina; sacerdote.<br />

Notas<br />

6 Grupo de pessoas que se movem em fila; bando de indivíduos de má<br />

fama.<br />

7 Agrupamento ou matilha de cães; canzoeira. Súcia de gente ordinária, vil.<br />

8 Cronologia (elaborada por Cláudio Galvão):<br />

1935<br />

26 de novembro: Funcionários da Imprensa Estadual são convocados<br />

para prepararem a primeira edição do jornal revolucionário A Liberdade,<br />

lançado na manhã de 27 de novembro. Fracassado o movimento, iniciamse<br />

as perseguições. <strong>Othoniel</strong> é responsabilizado como redator principal<br />

do jornal.<br />

28 de novembro: <strong>Othoniel</strong> é demitido da função de secretário de A República.<br />

<strong>Othoniel</strong> foge para o Recife, mas suspeitando de que estava sendo seguido,<br />

desembarca do trem em Canguaretama, refugiando-se na casa do irmão<br />

Francisco, juiz de Direito da Comarca.<br />

Segue para Recife e se esconde na casa de um primo; preso em seguida, é<br />

transferido para 1ª Delegacia da Ribeira, em Natal.<br />

1936<br />

4 de setembro: Decretada sua prisão preventiva.<br />

1938<br />

9 de agosto: Condenado a três anos de reclusão pelo Tribunal de Segurança<br />

Nacional.<br />

29 de setembro: Apelando da decisão, é absolvido e libertado.<br />

795


Ferreira Itajubá 1<br />

(Trechos de um Ensaio) 2


O drama da vida de província<br />

Com o pecado original de haver nascido na Esquina 3 venceram,<br />

até hoje, Rodolfo Garcia, 4 Antônio de Sousa (Policarpo<br />

Feitosa), Peregrino Júnior 5 e seu irmão Umberto, 6 Angyone Costa,<br />

7 José Wanderley, 8 Nilo Pereira, 9 Adauto da Câmara, 10 Salomão<br />

Filgueira 11 e alguns outros, bem raros. Porque bateram o pó das<br />

sandálias, conforme a receita evangélica.<br />

José Bezerra Gomes, 12 tendo decifrado a esfinge Pongetti 13 com<br />

uma boa edição de Por que não se casa, doutor?, anda por aqui agora,<br />

vulnerável ao “óxido monetário” denunciado por Balzac, em Illusions<br />

Perdues, a arriscar no chão fatídico, reverso do chão de Anteu, 14 as<br />

vantagens adquiridas na fuga que já àqueles próvidos emigrados<br />

foi a única salvação verificável. Esquecido, o vigoroso retratista<br />

de Ferreira Itajubá, de que na hégira 15 é que se objetiva o êxito do<br />

profeta...<br />

Abner de Brito, 16 a quem o discreto Armando Seabra 17<br />

adjetivou de “genial”, autor admirável de Ossário e Confissão (quem<br />

tem notícias desse adorável maluco?), raspou-se tardiamente para<br />

o Rio, onde se perdeu no turbilhão, sem dúvida incapacitado para<br />

lutar, a fibra exaurida por trinta anos de inútil, insana, inglória<br />

recalcitrância contra a abjeta negociocracia de Jerimulândia.<br />

Damasceno Bezerra 18 paga bem caro o sinistro privilégio de<br />

haver nascido, grande poeta, em terra de mercadores, e onde,<br />

mais que em qualquer outra latitude, tem curso proverbial e<br />

vigente o sarcasmo do dístico lafontaineano – D’un Magistrat<br />

ignorant c’est la robe qu’on salue, (o que, traduzido para “português<br />

de rico”, significa: um patife bem vestido não é um patife). Lírico<br />

delicioso, sem rival entre todos, autor do Dias de sol, sem a mínima<br />

esperança de editá-lo, há muito abandonou o estéril combate em<br />

que nos esfalfamos, e rola, por aí, a padecer com a família (uma<br />

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800<br />

pobre esposa semilouca e duas filhas na idade de Cosette de Os<br />

miseráveis), órfão da pomada de Elmerick, 19 carregando a cruz de<br />

veneno que desgraçou os destinos de Poe, de Gérard de Nerval, 20<br />

de Lima Barreto, 21 encarnando, au grand complet, 22 a boêmia<br />

democrática do soneto de Hermes Fontes, “sem lar, sem pão, sem<br />

traje” e, irremediavelmente,”ufano e ledo”<br />

vivendo vida igual à vida de Quevedo 23<br />

vivendo vida igual à vida de Bocage. 24<br />

Carolina Wanderley, ai de nós, is dead 25 há muito tempo, doce e<br />

penserosa 26 violeta, a hibernar solitária, abafada no carcavão 27 de<br />

urtigas, sobre cuja crista fulva 28 e causticante sorri ainda, por vezes,<br />

o girassol de um soneto ou de uma quadrinha de aniversário;<br />

de Palmyira – mais um girassol desmaiado, sem a seiva das opulentas<br />

flores de Roseira brava, heliotrópio de fim de estação, na paisagem<br />

triste. O ar mefítico 29 da província até a esta nossa Regina<br />

poetarum 30 vai racionando o oxigênio, embora, desde o berço, jamais<br />

tenha ela tido necessidade de lutar no mercado, para comprálo.<br />

E esta é uma questão tremendamente vital, na “Sala de visitas<br />

da Europa”, 31 onde meia dúzia de filisteus ameaça instituir o câmbio<br />

negro desse gênero de primeira necessidade...<br />

Didi Câmara Cardoso 32 que, uma vez publicado o seu primeiro<br />

livro, será proclamada digna de diademar a fronte com a mesma<br />

auréola que resplende sobre a de Gilka Machado 33 e a de Cecília<br />

Meireles, 34 não conseguiu, em janeiro deste ano, reunir no Teatro<br />

“Carlos Gomes” mais de trinta ouvintes para um recital em que<br />

declamou alguns dos seus extraordinários poemas esotéricos. Os<br />

“18 de Copacabana”, que lá viveram essa hora de incomparável<br />

deslumbramento espiritual, sabem quanto é extremo de exagero<br />

o nosso prognóstico sobre o futuro intelectual da autora de Chamas.<br />

Ela, porém, não se deixará asfixiar aqui. Despertada à voz


cordial de Whitman – que desvenda a todos os poetas o panorama<br />

dinâmico do mundo – consta que vai para São Paulo. E ainda há<br />

sujeitos indignados, beatamente, com Vargas Vila 35 porque afirmara<br />

que a Colômbia era ambiente muito mesquinho para o seu gênio!<br />

Como se um ninho de tico-ticos ou de cucos fosse pouso<br />

para uma águia; para uma ave-do-paraíso, ou de uma cotovia, um<br />

leirão de couves...<br />

Mas... e os que, embora com o pé de trincheira deste<br />

provincianismo congelador, não se conformaram, senão por força<br />

de circunstâncias irrecusáveis – daquelas que fizeram a Galileu<br />

dobrar os joelhos diante do oficialismo tonsurado e renegar a verdade<br />

científica –, com o chá de mastruço da literatura doméstica,<br />

com a prisão de ventre crônica e as férias de estômago da burocracia,<br />

reagindo cruentamente, secretamente desiludidos,<br />

recalcitrando na faina sisífica 36 de sapo no pé do boi:<br />

Câmara Cascudo, Hércules acorrentado no socavão do forte<br />

dos Santos Reis, Briareu 37 a biscatear com um dedo das cem<br />

manoplas, São Cristóvão bonacheirão, escrevendo prefácios para<br />

livros de cordel, os largos ombros cheios de macaquinhos e sagüis<br />

assombrados com a correnteza; Esmeraldo Siqueira (este, poderia<br />

dizer: Heureux qui, comme Ulysses, a fait un beau voyage!, 38 mas voltou<br />

a Barataria 39 ); Edinor Avelino, embatatado, em Macau, com a<br />

prebenda de uma inspetoria agrícola; Edgar Barbosa; 40 Manoel<br />

Rodrigues de Melo; 41 Bezerra Júnior; Israel Nazareno; 42 Américo<br />

de Oliveira Costa; Rivaldo Pinheiro; 43 Rui Câmara; 44 Raimundo<br />

Nonato Fernandes? 45<br />

Lindamente ilhados (e menos do resto do Brasil e do mundo,<br />

que dos próprios íncolas da ilha ilustre), consolando-se melancolicamente,<br />

com a platônica, desenxabida recreação espiritual a<br />

trautear, cada qual sob o seu coqueirinho robsoniano, a solfazita<br />

radiofônica do tango “Renúncia”. Desmentindo, com um sorriso<br />

amarelo, o aquila non capita muscas! 46 dos romanos...<br />

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802<br />

Esta, sim, é a vidoca inexpressiva, apática e estanque, dos “clérigos”,<br />

no caravançará 47 de Mercúrio, tenda cáqui do novo Midas<br />

do hemisfério; mais liliputiana, ainda – fora do império gordo da<br />

barganha e do roubo no peso –, que aquele vilarejo sorna 48 e<br />

estercorário da anedota: tão pequeno que, quando os vagões entravam<br />

na estaçãozinha, a locomotiva resfolegava no distrito de<br />

outro município...<br />

Para essa mal-aventurada turma de amigos de Romain Rolland 49<br />

(e queremos significar, na expressão, a persistência apostólica no<br />

idealismo puro, de âmbito universal), somente haveria recurso,<br />

fora da aventura política, que está fazendo periclitar, hediondamente,<br />

o lindo destino intelectual de Romildo Gurgel 50 – na<br />

meditação dos transcendentais tratados de mestre Kardec. 51 Para<br />

uma “fezinha” na roleta da Reencarnação!<br />

Reparem que bom: em regressando ao cadinho do planeta,<br />

curado da lepra do talento, que incompatibiliza irremissivelmente<br />

com a ambiência solecística e utilitarista da província, realizar o<br />

ideal decantado por Des Essarts 52 (La vie lumineuse):<br />

Sur le blanc piédestal de la sérénité,<br />

sans élan surhumain, sans orgueilleuse envie,<br />

heureux d’un ídéal visible et limité, 53<br />

controlando seus anseios, poupando a seus sonhos quedas das<br />

nuvens ou dos arranha-céus, ritmando sanchamente a existência<br />

au soleil fugitif, au mois, à la saison,<br />

à tout ce qui se voit, à tout ce qui s’achève,<br />

aux contours arrêtés d’un petit horizon,<br />

exatamente como se dá com o mais desalmado, o mais xucro,<br />

o mais intestinal nesses invejáveis burgueses do “Trampolim”...


Afigura-se-nos bem admissível estejam ruminando o sublime<br />

problema, a estas alturas da “hecatombe”, preferindo as frutíferas<br />

hipóteses da palingenesia 54 ao atroz, compulsório exercício da literatura<br />

de sueltos sobre a carestia e notinhas genetilíacas, 55 um<br />

poeta como “foi” Jorge Fernandes, um crítico literário como “foi”<br />

Nascimento Fernandes, 56 um jornalista, um estilista como “foi”<br />

Bruno Pereira, 57 e j’en passe et des meilleurs. 58 Aliás, também, ao fim<br />

desta nossa rápida vilegiatura através dos eremitérios do atol, temos<br />

a registrar a apostasia de Edgar Barbosa – a pena que escreveu<br />

aquele belíssimo poema das “Cidades mortas”! – e que se arranjou<br />

com uma toga, na roça, entre os perigos e os estímulos<br />

realistas do território continental, urbi sunt leonis. 59<br />

Aos que ainda levam a sério a literatura, sirva-lhes de<br />

escarmento, 60 para se corrigirem da pertinácia sedentária, o exemplo<br />

de Ferreira Itajubá.<br />

Tarde, demais, fugido da ilhota bloqueada, onde viveu com um<br />

despertador a alarmar no estômago, morreu de miséria, de lirismo<br />

confiante, de fome progressiva, num catre de indigente, enjeitado<br />

da terra cuja amarga, implacável ingratidão, contrastou ele<br />

com filial abnegação, cantando, entre as lágrimas do ostracismo<br />

mais pungente:<br />

Numa nesga da pátria, onde em noites de lua,<br />

parece um lampadário a Natureza nua...<br />

Lembrem-se do formoso Satã das mentiras e das verdades mais<br />

bem vestidas da literatura inglesa, Oscar Wilde, 61 com bem pouca<br />

justiça fora da moda. Lapidarmente, caracterizou, ele, em <strong>In</strong>tenções,<br />

o tipo psicológico do torturante drama em cuja terefa sucumbiu<br />

o meigo cantor da nossa gesta lírica, e onde hão de ainda<br />

sucumbir os outros: “La sociedad perdona a veces al criminal, pero non<br />

perdona al soñador”.<br />

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No tempo de mecenas<br />

Era o tempo da construção das primeiras estradas de rodagem<br />

para a hinterlândia, estradas embora ainda primitivas – carroçáveis,<br />

na terminologia dos técnicos –, mas estendendo no rude sistema<br />

circulatório da província, através da caatinga que só os tardos comboios<br />

devassavam, as artérias por onde os brutais GMCs e os<br />

fordecos abelhudos foram levando aos sertanejos os segredos da<br />

Civilização... Era o tempo da desobstrução da barra do Potengi e<br />

a dinamite andava desventrando fragorosamente a “Baixinha”, 62<br />

visando-se a atual acessibilidade ao porto. Iluminação e tração elétricas.<br />

Criação da Escola Doméstica, 63 o mais belo dos grandes<br />

poemas de Henrique Castriciano. <strong>In</strong>stituição dos grupos escolares<br />

modelo e da Escola Normal.<br />

Herculano Ramos, 64 atraído da Bahia por Alberto Maranhão, e<br />

que era um maravilhoso arquiteto, um poeta da geometria, urbanista,<br />

gentilíssimo, levantava esse madrigal a Melpômene e Tália, 65<br />

que é a linda fachada do Teatro Carlos Gomes; filigranava em<br />

arabescos e florões de caprichosa leveza e graça oriental, os<br />

caramanchões dos jardins da cidade.<br />

O governador, centro dessa fase efervescente e fecunda da nossa<br />

cultura, esplêndido padrão de democracia espontânea e de beleza<br />

física, eugênico antecessor da sorridente irradiação pessoal que,<br />

quatro decênios adiante, faria de Roosevelt o mais popular, o mais<br />

humanamente representativo dos cidadãos do mundo; medularmente<br />

comunicativo, acessível ao trato do último plebeu do burgo<br />

republicano, confraternizava com a inquieta juventude dos grupos<br />

literários; escrevia na Tribuna, no Oásis, era sócio militante do<br />

Le Monde Marche, 66 do Centro Polimático, 67 da Divisão Branca<br />

(sodalício diversional, cujos membros adotavam os nomes dos<br />

navios da nossa esquadra desde a primeira visita feita por esta ao


porto). Tomava drinks de espiridina, 68 em comum com os mais<br />

humildes funcionários de Palácio, fazia piqueniques nos quais admitia<br />

o gozoso 69 solidarismo dos repórteres do órgão oficial, cavaqueando<br />

com eles à sombra das perfumadas jabuticabeiras do<br />

coronel Estevão Moura, 70 morubixaba de São Gonçalo. Finíssimo<br />

aristocrata de espírito, conservando galhardamente, em qualquer<br />

oportunidade, o respeito e o pundonor da alta função pública e<br />

social que encarnava. Cedia sempre, nesses interlúdios encantadores,<br />

àquele imperativo de sua bossa 71 igualitária, do seu generoso,<br />

exuberante humanismo – quase um recalque, um resíduo psicológico<br />

da sua consangüinidade com os rudes Albuquerques, que<br />

na defesa da capitania, haviam pelejado contra os mandatários de<br />

duas cabeças coroadas da Europa. Embora jamais tivesse chegado<br />

ao extremo romântico em que Câmara Cascudo, remexendo no<br />

baú da História, apanhou aquele notável presidente de província,<br />

72 autor da formosa serranilha 73 “As andorinhas,” 74 ombro a<br />

ombro, com Antônio Elias, 75 contínuo de Palácio, e autor da solfa,<br />

numa farra, na Rua do Fogo, 76 assinando o expediente em cima<br />

do violão de jacarandá...<br />

Alberto Maranhão mandara buscar, no Velho Mundo, os componentes<br />

da celebrada orquestra sinfônica do Carlos Gomes; o<br />

pianista Russell, o violoncelista Babini, 77 o violinista Nicolino<br />

Milano, 78 Smido, 79 notabilidade como compositor e que, mais de<br />

trinta anos após, falecia no Rio de Janeiro, aureolado pelo pressuposto<br />

de uma gesta heráldica: fora figura da mais extreme aristocracia,<br />

ligada ao tronco genealógico da família reinante. O maestro<br />

espanhol José Bernardo Borrajo era o regente da banda musical<br />

da Polícia. Tota Paulino 80 (ainda agora semivivo e ensinando<br />

no “<strong>In</strong>stituto” que Waldemar de Almeida 81 tenta desesperadamente<br />

salvar do cupim indígena do “já teve”) inventava a flauta vertical<br />

e trazia do Pará a maravilhosa novidade do xilofone. Junqueira<br />

Ayres, 82 ádvena baiano, deputado federal pelo partido do gover-<br />

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806<br />

no, era o árdego Chantecler 83 da tribuna política, patativa dos salões<br />

no floreio dos brindes, paladino flamante do grão-senhor do<br />

condado, e sempre com uma rosa de retórica na ponta do florete.<br />

Antônio de Souza (o “Polycarpo Feitosa” que, depois, escreveu<br />

Flor do sertão, Gizinha, Gente arrancada, Moluscos, magníficos romances<br />

regionais que não lograram, nem podiam lograr, na “Esquina”,<br />

o julgamento que lhes tributou, entre outros, um Afrânio Peixoto)<br />

assinava um artigo diário na A República, e muitos deles em<br />

adorável francês. Eloy de Souza, autor e defensor, na Câmara Federal,<br />

do projeto de combate às secas – obra vigorosa, de síntese<br />

científica e sóbria beleza literária –, elogiada por especialista da<br />

altura de Roderic Crandall; 84 egresso da Europa e do Egito, aonde<br />

fora em estudos experimentais do problema, já brilhava singularmente,<br />

com todas as poderosas e complexas qualidades inatas<br />

que lhe conquistaram o justo título de mestre, entre os nossos<br />

jornalistas. Castriciano, no recato do florido pseudônimo de Rosa<br />

Romariz, firmava crônicas deliciosas, eruditas, em puro estilo<br />

renaniano, quanto à forma, enquanto que, no substractum 85 espiritual,<br />

docemente impregnado de sutil religiosidade, de penetrante<br />

misticismo cristão aflorando, como a redolência 86 dos jasmins na<br />

mansuetude da tarde, nas páginas incomparáveis que então escreveu,<br />

ao regressar da Palestina. Talvez já sob os favores da Lei 145,<br />

de 6 de agosto de 1900 – que obriga o Tesouro a custear a edição<br />

de livros de escritores do Estado ou nele residentes há mais de<br />

dez anos, 87 – publicava Iriações, Vibrações, Ruínas, Mãe.<br />

Saíam à luz o Horto, de santa Auta de Souza, com um mesquinho,<br />

centimetral prefácio de Olavo Bilac (perante Castriciano, mais<br />

tarde, o nababo da Via Lactea penitenciou-se da sovinice, confessando<br />

que era o suavíssimo oblacionário 88 da “cotovia mística das<br />

rimas” o seu livro de cabeceira); Cismas, do irrequieto Juvenal<br />

Antunes, 89 vivaz antecedência doméstica de Pitigrilli, 90 traduzido


em decassílabos; Santelmos, todo em meias-tintas delicadíssimas,<br />

sobre tons indecisos na paisagem dolente, do meigo Francisco<br />

Palma; 91 Alma deserta, escrito com punhos de renda da Bretanha,<br />

do aristocrático Sebastião Fernandes, 92 deslumbrante orador,<br />

causeur 93 irresistível, otimista gentil, acima das cruéis incidências<br />

da neurastenia hereditária (diante de fosse que fosse, em aflição<br />

pela iniqüidade dos contrastes da vida, sempre encontrou recurso<br />

fácil e persuasivo, na sua maravilhosa feitiçaria verbal, para convencer<br />

o interlocutor de que era possível tenir en cage 94 o ambicionado<br />

pássaro azul de Maeterlink 95 ); Severino Silva, 96 muitos anos<br />

após coroado “príncipe dos poetas paraenses”, dava Poemas de um<br />

doido que, de resto nem de longe indiciava os futuros triunfos; Ivo<br />

Filho, 97 com uma indefectível la france na lapela, flamejava em<br />

madrigais, com os Crisântemos; Ana Lima, 98 à sombra plácida dos<br />

penates, na doçura e no silêncio do vergel familiar cujo delicado<br />

perfume era do seu coração que vinha, todo Clóris 99 católica, compunha<br />

os graciosos ramalhetes das Verbenas. Homem de Siqueira, 100<br />

carregando nos ombros ciclópicos uma legenda romântica de bravura<br />

à D’Artagnan, nos entreveros de estudantes com esbirros<br />

dos caudilhos pernambucanos, condiscípulo de Castro Alves e<br />

Tobias, 101 publicava sonetos, que ainda hoje são lidos; Josué Silva,<br />

102 Deolindo Lima, 103 Antônio Glicério, 104 picotavam o confete<br />

policolor das trovas; João Estevão Gomes da Silva, 105 com este<br />

nome de bodegueiro, fazia um humorismo salubérrimo, ainda vivaz<br />

e saboroso, soltando vadiamento da palestra, sob aquela fachada<br />

macambúzia e dispéptica em que esconde o talento, como uma<br />

velha carapaça de uruá uma vespa de ouro. Segundo Wanderley 106<br />

era o “Papá Hugo” municipal, festejado e querido, a cabeça branca<br />

diademada pela fama do Naufrágio do vapor Bahia; encontrando<br />

esta imagem, digna do formidável malabarista do Verbo, criador<br />

de Gilliat:<br />

807


808<br />

De cerúleo alcantil águia tombada<br />

mergulha o sol no Letes 107 do ocidente<br />

A dalila 108 sobredourava o ritmo espiritual das quintas-feiras<br />

em casa de Pedro Velho, 109 ele próprio ao piano, entre dez a doze<br />

rapazes de talento, que recitavam Lamartine, 110 trechos dos<br />

Châtiments, Stecchetti, 111 Byron, 112 Castro Alves, Luís Delfino, 113<br />

Guerra Junqueiro. 114<br />

Lourival Açucena, 115 leão da fauna social do subplano, chefiava<br />

pândegas sensacionais, tratado e amimado a biscoito “Pilar” e vinho<br />

do Porto do mais genuíno. Catulo da Paixão Cearense havia<br />

lançado na serenata o “Talento e formosura”. 116 Antônio Marinho,<br />

117 com uma faca na cava do colete, e a pena acerada, agitava<br />

polêmicas, nessa Versailles tapuia.<br />

Na esquerda, entrincheirados no Diário do Natal e na Gazeta do<br />

Comércio – que os puxa-sacos de Pedro Velho, afinal, destruíram –,<br />

pontificava Pedro Avelino, 118 fenomenal matuto angicano, até hoje<br />

a maior figura que tivemos, na imprensa, liderando aguerrida e<br />

cintilante falange. Sua lúcida vanguarda era formada por Pedro<br />

Alexandrino, 119 antigo operário de tear e marceneiro, analfabeto<br />

aos 25 anos, e, agora, reputado professor, vernaculista destríssimo,<br />

cronista policrômico, escritor consumado (os verrineiros 120 oficiais<br />

xingavam-no de Professor Jaqueira, em conseqüência de uma<br />

glissade 121 célebre na conjugação do verbo francês acquérir, 122 durante<br />

seus exames de preparatórios, no Ateneu). Pedro<br />

Alexandrino publicava, nos intervalos da polêmica política,<br />

rutilantes páginas literárias, muitas delas versando temas controversos<br />

de filosofia, cheias de caprichos e virtuosidades lingüísticas<br />

– esta, “sem verbos”, essoutra, “sem qualificativos”, aquela, “sem<br />

pronomes”... Elias Souto, 123 o Marat 124 da rua da Conceição, doente,<br />

mirradinho, paralítico, chumbado à sua cadeira de rodas,<br />

mas terrível, impiedoso, pertinaz, brocando e metendo pólvora


nos alicerces do Hotel Rambouillet 125 pedrovelhista. Francisco Pereira<br />

126 e Augusto Leite, 127 poetas ambos: o primeiro ainda vivo,<br />

residente no Rio, é autor dos aplaudidos, canoros Sonetos Amazônicos<br />

e, Augusto, uma alma de cecém 128 dos vales, perfumando um<br />

caráter adamantino, mártir da vida sedentária e azucrinada da tipografia<br />

de caixetas, antes da luz elétrica e do linotipo, autor da<br />

imortal modinha “Profundo dissabor me envolve a vida”.<br />

Mais tarde, e ainda sob o prestígio eletrizante desses signos<br />

criadores que sazonavam a atmosfera da província, floresceram<br />

Gothardo Neto, 129 Ponciano Barbosa, 130 Murilo Aranha 131 (estes,<br />

esperando tranquilamente nos seus túmulos, a justiça da posteridade),<br />

e mais outros, todos eles aclamados, integrados na elite<br />

citadina, a não ser os que, voluntariamente, dela se conservavam<br />

segredados. Era o caso de Gothardo Neto, que um amor contrariado<br />

por preconceitos de família transformara em cenobita, 132 escondido<br />

em casa do pai, 133 onde constantemente lhe chegava a<br />

manifestação do carinho popular, em pedidos de sonetos para festas,<br />

de crônicas – belas crônicas, num vernáculo de boa veia metálica,<br />

sonoro e parecendo trabalhado em prata –, para os numerosos<br />

pequenos periódicos literários e humorísticos; de discursos<br />

que ele, estacionada a multidão das passeatas diante da hoje<br />

legendária casinha da Rua do Quatorze, 134 pronunciava da janela,<br />

barba hirsuta como a de um pastor macedônio, trêmulo, pálido, a<br />

agitar a mão translúcida, envergando um roupão de chita estampada<br />

– ídolo indiscutível da mocidade estudiosa desse tempo.<br />

Era Natal, assim, verdadeiramente, por força de tanto progresso,<br />

daquela imigração ilustre, e dessa dinâmica agitação cultural,<br />

desse ritmo vital de seleção e de estímulo, a “Esquina do Mundo”,<br />

muito antes do crisma que a literatura de guerra, por outros motivos<br />

infinitamente menos propícios, lhe arranjou. A literatura; e<br />

a ironia, que tantas vezes acerta.<br />

809


810<br />

E, no entretanto, cusparando melancolicamente no piso de<br />

um casebre de taipa da Ribeira, fazendo versos eternos,<br />

cantando o mar sereno, o fogo das lareiras,<br />

e o verde milharal nas risonhas clareiras.<br />

Ferreira Itajubá, o renovador da poesia lírica norte-riograndense,<br />

preso à tipóia pelo indecoroso estado das botinas, falhava<br />

à tertúlia do costume, em casa do autor de Folhas mortas. 135


Poesia versus gramática<br />

Antes de Ferreira Itajubá, nenhum poeta, entre nós, exercitara<br />

os temas inspirados na intimidade, na ternura, na interpenetração<br />

da paisagem nativa, endosmose 136 sentimental, orientada para a<br />

serenidade placentária da gleba, ansiosa aspiração da plenitude no<br />

sonho, e que Raimundo Correia 137 já sublimara num soneto inesquecível:<br />

E a terra, a mãe comum, que eu amo tanto,<br />

para a nudeza me cobrir dos ossos,<br />

rasgue alguns palmos do seu verde manto.<br />

As pequeninas cenas familiares da vida cotidiana da província,<br />

antes que a lâmpada incandescente do Aladim norte-americano 138<br />

tivesse posto a nu aquela inocente mentira do “calor ideal da<br />

lamparina acesa”. Deliciosos flagrantes do convívio popular nos arrabaldes.<br />

Festas da igreja, noivados cheirando a cravo branco e<br />

manjerona. Bacorinha, 139 calças de brim HJ 140 e fraque, trunfa 141<br />

com brilhantina Fleur d´Amour, oriza 142 no bigode, a lapela com uma<br />

rosa ou um raminho de melindre; 143 sapatos Luís XV, meias de fio<br />

da Escócia, blusa de fustão, fichu 144 para as velhas, echarpe de seda<br />

para as moças, uma cravina ou um estefanote, 145 no bandó, 146 fita<br />

de seda ou gorgorão no ébano das tranças... Piqueniques, colheitas<br />

de milho verde e gergelim nas beiradas, folias juninas, semanas<br />

modinheiras atrapalhando luas-de-mel. Presepes, entrudos,<br />

consoadas. 147 Domingos católicos romanos cheios do sol o de sinos<br />

festivos, terços de maio enchendo de melodias e aromas voluptuosos<br />

a languidez das tardes. Comunicabilidade radiante, liturgia, democrática,<br />

doce carolismo nivelador, “namoro para casa”, a<br />

envolvente sugestão do cheiro do incenso e alecrim, nos altares<br />

resplandecentes do senhor Bom Jesus das Dores, sangrando – so-<br />

811


812<br />

mente para as beatas – no gólgota de ouro do altar-mor... Pescarias,<br />

ao rojão das violas maneiras, nas praias transfiguradas pelos espetaculares<br />

plenilúnios de agosto. Idílios na “solidão tristíssima dos morros”.<br />

Nomes de frutas agrestes, ainda goticuladas de orvalho,<br />

ressumando 148 a seiva redolente, 149 coberta de abelhas, picadas de<br />

sanhaços. Apólogos de velhos cajueiros “derribados na vindima”. 150<br />

Costumes, sentimentos, amarguras resignadas, quadros romanescos,<br />

lendas e abusões simples da riba do mar e do sertão – em cujos céus<br />

cálidos e diáfanos as avoetes pareciam ao poeta<br />

nuvens despedaçadas,<br />

bandeiras leves<br />

desenroladas,<br />

leques abrindo,<br />

leques fechando,<br />

novelos fofos<br />

no céu rolando,<br />

alma em busca<br />

dos sonhos seus,<br />

lenços abertos<br />

dizendo adeus.<br />

E as sombrazinhas hospitaleiras de oitões batidos do nordeste?<br />

E os tresmalhos a enxugar do vuco-vuco dos lanços, à ilharga dos<br />

alpendres florados de boas-noites e malvões vermelhos? Tríduos<br />

rumorosos, nos Santos Reis da Limpa, com devoção e arruaças,<br />

com os bisonhos ulanos 151 de Joca do Pará, 152 a voz de Deolindo<br />

Lima numa barraca a fervilhar de morenas, cachaça com caju da<br />

Redinha, o governador fazendo parede com voador assado; Jonas<br />

Cardoso, numa roda de poetas, floreando discursos a Jesus e ao<br />

mar. Namoradas que eram limas “de carne, rosas da culpa”. Branca,<br />

153 Mireille 154 desse mestre analfabeto, Iracema desse Alencar<br />

encadernado em zuarte, 155 mimosa e desdenhada heroína do Terra


Natal, morta de saudade aqui, entre as floridas laranjeiras e rosais<br />

da mãe do poeta, enquanto ele, na reencarnação quimérica de<br />

um marujo de Loti 156 ou Bernardin de Saint-Pierre, 157 por climas<br />

alheios, num veleiro batel, fundia em canoros alexandrinos, a escorrerem<br />

lágrimas como a proa do barco fantástico a água amarga<br />

das ondas, a odisséia pungente.<br />

Uma quadra assim, desarraigada do pobre coração a sangrar,<br />

quando na mansarda soturna, já sem o consolo da presença materna,<br />

mensagem povoada de meigos abantesmas 158 doloridos, tímida<br />

purpuresce 159 a evocativa madrugada das horas amenas, e a<br />

lua sobe, oeil d’immemorial ennui, 160 desfigurada na sua palidez<br />

shakespeariana, “como se tivesse erguido de uma moléstia”:<br />

Corre, pranto invernoso! orvalha a grade<br />

Da solidão do meu viver incerto!<br />

Como sangra o punhal desta saudade!<br />

– que mal me fez este postigo aberto!<br />

E, tudo isso, impregnado de constante indefinição plástica,<br />

impreciso, flutuante, perispírito 161 de uma poética virtualmente<br />

vigorosa e original, a que sua deplorável carência de cultura lhe<br />

impediu desse corpo hígido e harmonioso, comunicasse a essas<br />

descrições certo objetivismo, viável mesmo através do seu permanente<br />

orgasmo romântico, objetivismo que à sua obra teria<br />

conferido valor folclórico.<br />

Mas, quão sensível, a beleza e a novidade dessa poética, na evidência<br />

do tônus pessoal, seiva de mata virgem quintessenciada em<br />

aromas vagantes, espinho cheirando a flor, obrigando a reações de<br />

alarme a viciada glândula olfativa do mais presto em captar a presença<br />

de qualquer das tinturas arcádicas, de exportação peninsular,<br />

e que até então andavam almiscarando a lírica indígena! Gênio<br />

telúrico, a expluir 162 em estro imaginativo, colorido vibrante,<br />

dulcíssimo amavio vernacular, perfumado de reminiscências bíblicas;<br />

813


814<br />

embora, aqui e ali, para angustioso contraste – boninas a vicejar e a<br />

rescender sobre esterco – amiúde reponte aquela inevitável tendência<br />

plebéia, aquela crassa diátese 163 do solecismo, que tanto lhe<br />

inquinou o estilo, e era tão notável modalidade na sua palestra.<br />

Para Baudelaire, 164 entretanto, a poesia era a inocência reencontrada<br />

– La poésie est l’enfance retrouvée. 165 Pois, inocência, antes<br />

de tudo, muita inocência interior, candura lírica, musicalidade<br />

campesina, grâce trouvere, 166 naturalidade integral – eis as características<br />

potenciais do estro itajubalino. Primarismo ingênito, misticismo<br />

pastoral, infantil despreocupação das torturas da cafua<br />

lexicológica. Ilustração viva, total, personalíssima, do postulado<br />

spinoziano 167 do velho Briand 168 que, antes de fino político, era,<br />

como todo francês de elite, pensador e artista consumado: “A Arte<br />

foi inventada para corromper a Natureza: uma pobre árvore vale<br />

bem duas estátuas”. Assim é que, por exemplo, não se pode negar<br />

beleza a uma trova de Fabião das Queimadas: 169<br />

O nome de mãe é doce,<br />

que nem a fruita madura;<br />

o doce da fruita passa,<br />

o doce de mãe atura...<br />

Em plano mais realista, mais direto – desabusadamente experimental<br />

–, confirmava, na mesma época, o insuspeito Vargas Vila,<br />

acre e inflexível professor de liberdade: El hombre de genio no se dá<br />

la pena de violar leys fictícias de linguagem; las olvida: eso es todo.<br />

E aí está, porventura, uma simpática justificativa – mais uma –<br />

em prol de Ferreira Itajubá, para quem sempre constituía a gramática<br />

a mais longínqua abstração. Por que ele foi em toda a extensão<br />

daquele postulado revolucionário, e mais que outro qualquer<br />

poeta, na história das nossas letras, o exemplo do que, no<br />

conceito Lasserre 170 (citado por Grieco, 171 em Vivos e Mortos), vale<br />

a superioridade do “gênio sem estudos e da inspiração sem arte”.


A última flor do lácio inculta e bela...<br />

A poesia de Ferreira Itajubá, profundamente temperamental,<br />

intimamente ligada aos seres e causas do pequenino universo nativo,<br />

tem o travo gostoso de folha de camboim e murta esmagada<br />

entre as narinas e os lábios, pisadinha sob os pés nus de uma estúrdia<br />

172 e ofegante praieira, a bater mato, em manhã de neblina e sol.<br />

Graça e fragrância vernal 173 de rama de pitangueira, agitada pelo<br />

vento marinho, espalhando no chão do terreiro pitangas e flor.<br />

Bem ao contrário do que, então e ainda muito tempo depois<br />

dele, se fazia, procurando, num extemporâneo e pedante<br />

peregrinismo, 174 animar temas e exaurir processos literários havia<br />

vinte anos em voga na Europa, a geografia, nos seus poemas, não<br />

saiu do âmbito azul e ensolarado das nossas praias.<br />

Mesmo com o pensamento – que é capaz de fechar num périplo<br />

de segundos a circunavegação do <strong>In</strong>finito – nunca foi além do<br />

Pará. Quando mais longe, e apenas em pensamento, viajou. Era<br />

marinheiro de água doce.<br />

De Natal a Galinhos; daí a Touros ou a Pititinga e ao Rio das<br />

Garças, seu ilusório navio de aventuras nunca ultrapassou, em tonelagem<br />

e raio marítimo, a modesta realidade do pequeno bote<br />

de pescadores, com duas velas amorenadas pelo sol, pelos ventos<br />

e pela salsugem da costa, a encalhar nas enseadas deslumbrantes,<br />

ao plenilúnio; abicando às rampas hospitaleiras das aldeias praianas,<br />

para uma canção às namoradas:<br />

Sejas feliz entre as famílias<br />

Que te cercam, nas praias arejadas...<br />

Uma perninha num coco, ao som da viola ou do ganzá,<br />

um casamento ruidoso, na choupana de velho amigo, certo<br />

Nemrod 175 marinho, com anedotas de pescaria de tartarugas nos<br />

815


816<br />

baixios, e onde o seu verbo devia deslumbrar os circunstantes,<br />

como São Francisco outrora aos pássaros e aos lobos, o bom Santo<br />

Antônio de Lisboa aos peixes ávidos da isca do Evangelho.<br />

Uma geografia humilde, bairrista e familiar, balizada por veneráveis<br />

cajueiros em flor, “pelos coqueiros misteriosos, plantados<br />

por frei João do Amor Divino”, pelos cabeços de dunas alvinitentes,<br />

sobre cujo contorno, azulado pela distância de meia dúzia de milhas,<br />

fazem os pescadores o rumo cotidiano de ida e volta sobre o<br />

mar.<br />

Se tivesse nascido com a bossa naturalista, teria de muito superado<br />

a Hercules Florence, 176 espécie de grande poeta, irrevelado<br />

pelos versos, explorador romântico, meio gira, e que, segundo<br />

Rocha Pombo, 177 andou pela Amazônia, no piso de não nos ocorre<br />

agora qual dos pioneiros da selva humboldtiana, 178 anotando<br />

no pentagrama o canto das aves, serenissimamente desatento aos<br />

demais trabalhos científicos da expedição, 179 indiferente às outras<br />

mil e uma vozes do fecundo mistério e da bárbara poesia da jungle<br />

equatorial.<br />

Se empunhara o pincel, impressionista deslumbrado com a luz<br />

feiticeira de que se douram e acatassolam 180 todos os quadrantes<br />

do nosso clima, teria pintado, com mais frescura e mais vida do<br />

que o fez Edouard Manet, 181 o Le Déjeuneur sur l’herbe. 182 Era um<br />

dipsômano 183 da bebedeira verde, que Agripino Grieco 184 descobriu<br />

em Castro Alves, toda vez que o monstro sublime de A Cachoeira<br />

de Paulo Afonso mergulhava o plectro 185 na palheta do sol, para<br />

cantar a natureza...<br />

Porque nasceu simples e puro poeta, justificando e elevando<br />

até as lindes aclaradas e eternas da Beleza o liberal conceito da<br />

quadrinha famosa,<br />

Rio Grande do Norte,<br />

a capital é Natal:


em cada esquina um poeta,<br />

em cada rua um jornal<br />

celebrou essas coisas e esses aspectos íntimos e familiares da<br />

nossa paisagem, do nosso espírito ingênuo e impressionável, tão<br />

sensível ao colorido e à musicalidade; do nosso incoercível saudosismo<br />

– herança anímica da nossa trilogia ancestral, coordenada<br />

étnica que é ainda uma fatalidade, evidente mesmo, segundo o<br />

testemunho de Graça Aranha, 186 no intelectualismo, no<br />

universalismo à outrance, 187 no hermetismo apenas formal dos chamados<br />

futuristas, ou seja, modernistas.<br />

Tais qualidades de expressão e interpretação fizeram de Itajubá<br />

o nosso poeta mais característico, o mais acessível ao visceral<br />

emotivismo do nosso povo. O mais representativo da sua apaixonada<br />

maneira de compreender, reagir aos sentimentos, e expressálos;<br />

de viver, em toda a linha, a plenitude deles, na conformidade<br />

dos seus inesperados recursos de exteriorização emocional e artística.<br />

(Ainda no ano passado, escrevendo sobre o São João na praia,<br />

Ricardo da Cruz, 188 poeta popular, contemporâneo e amigo do<br />

minnersinger 189 do Terra Natal, disse que a sanfona é um piano de<br />

vento. Itajubá não só classificaria esta imagem de “trabáio limpo”,<br />

abraçando ruidosamente o autor; ter-se-ia sentido feliz e orgulhoso<br />

de inventá-la, metendo-a num soneto).<br />

Não devemos fugir à oportunidade de transcrever-lhe:<br />

DESTINO<br />

– Viajor, para onde vais? – Para as sombras doridas<br />

que rolam, negrejando, a argila das ossadas.<br />

Levo na alma a visão das alegres jornadas<br />

que fiz, ao pálio azul das noites divertidas.<br />

817


818<br />

Asa que o vento leva a plagas desconhecidas,<br />

nunca me esquecerei das verduras frondeadas.<br />

A neve ainda me cai das messes derribadas,<br />

o corpo ainda me dói do leito das perdidas.<br />

Fica, lá, na choupana onde o amor me brotara,<br />

um lírio – minha Mãe que, pelo filho amado,<br />

rega o chão da saudade em flor que ele deixara.<br />

E minha triste irmã? E minha noiva, olhando<br />

o rumo que tomei? Deus, que nos muda o fado,<br />

– Deus se lembre dos três lírios roxos chorando!<br />

Não possuímos Harmonias do Norte, livro através de cujo texto<br />

original, aliás – sabemo-lo todos –, andou mão estranha, numa<br />

fúria de heresia necrófoba, emendando, substituindo,<br />

desnaturando, de acordo com o maldito espírito gramatical, muitas<br />

expressões, muitas imagens, versos inteiros que, na forma daí<br />

por diante postos, muito perderam do virginal, saboroso, inimitável<br />

pitoresco da primitiva publicação. 190<br />

Importa-nos, de resto, nestas transcrições, exclusivamente, a<br />

versão conhecida antes do livro, a qual estava autenticada pela<br />

presença do poeta. Preferimos seus defeitos, que lhe não<br />

desnaturam, não lhe escondem a personalidade, às desfigurações,<br />

às mutilações, às interpolações que lhe descaracterizaram muitas<br />

páginas, tanta água choca lhe adicionaram ao capitoso do vinho –<br />

espumante mosto de caju vermelho, de Igapó ou Guarapes, aperitivo<br />

e sensual, entrando nas veias como um beliscão de cabocla...<br />

O soneto acima reproduzido possibilita apreciação persuasiva<br />

e suficiente – além dos exemplos que ainda exporemos – das características<br />

em que se conforma (ou se desconforma, segundo o<br />

postulado goetheano) o estilo à manière 191 de Itajubá: o meneio da<br />

frase: certas expressões, a cujo imediato sentido lexicológico im-


põe ele, vê-se que por mera intuição, significado muito mais lato,<br />

neológico; certas construções sintáticas, amiúde empregadas –<br />

no verso ou na prosa; um conjunto elocutivo tendendo ao modismo<br />

a uma espécie de argot 192 perifrástico, de lógica e arquitetura<br />

aqui e ali espantosamente rebeldes ao Corpus Juris 193 acadêmico,<br />

mas revelando material riquíssimo, garimpado a mancheias à orla<br />

da opulenta mina de ouro e pedraria do idioma. Barulho de lapinha<br />

e serenata, no ateneu da Semântica. Uru 194 cheiroso, tecido de<br />

espatas 195 de coqueiro ainda úmidas, e repleto de frutas silvestres<br />

– rubi das maçarandubas, ônix das guabirobas, topázio nas ameixas,<br />

guajirus 196 de ametista queimada – , cachos dourados a reluzir,<br />

espigas túrgidas como seios pubescentes, indo da roça fecunda,<br />

sob o frêmito germinal das madrugadas, entre cantigas e risos,<br />

“na tapada de Damião de Góis”...<br />

Coisas que podem estar à margem da Arte com “A” maiúscula,<br />

à margem da Gramática cinerária 197 e tardigrada 198 dos medalhões;<br />

mas que estão, indiscutivelmente, dentro da Poesia – com o seu<br />

sadio nativismo, com a sua cardial, tenaz rusticidade, vibração<br />

poderosa, contribuição criadora do gênio, inestimável aquisição<br />

para o patrimônio do nosso espírito, sangue jovem na dessorada 199<br />

fibra lírica do nosso parnasianismo, do nosso classicismo mimético<br />

e livresco.<br />

Tudo, enfim, novo e belo, original, revolucionário – sem que<br />

ele soubesse ou quisesse – e quando ainda tão quente, em todo o<br />

Brasil, a influência de Castro Alves, que a tantos talentos algures<br />

fecundou, concomitantemente forçando a se revelarem tantas<br />

mediocridades incapazes de sobrevoar a cerquinha de melão-desão-caetano,<br />

o muro de cacos de vidro da província.<br />

Tudo que, antes dele, não tivemos a coragem – nem a felicidade<br />

– de dizer, nós outros, poetas ditos cultos, prisioneiros dos<br />

belos vocábulos, epígonos atormentados do velho diabo-artesão<br />

819


820<br />

de Salambô, 200 devotos de frei Renan, do mágico sorridente de Le<br />

livre de mon ami, 201 de Banville, 202 de Bilac, e também de Eça de<br />

Queirós, possessos irredentos 203 desta nevrose trágica da Perfeição<br />

– cruz sem domingo.<br />

Constituem, por isso mesmo, o estilo e o vocabulário de Ferreira<br />

Itajubá, tema dos mais fascinantes. Crítica, exegese filológica, biografia,<br />

folclore, psicologia, psicanálise e, se quiserem, filosofia,<br />

combinados, no sentido de explicar, justificar, defender, mesmo,<br />

o porquê de muitas locuções, da surpreendente novidade de<br />

adjetivação, das perífrases que exigem pesquisas sobre o dicionário<br />

compulsado pelo poeta; das parábolas – verdadeiras parábolas<br />

– , no seu obscuro, sibilino significado específico, repontantes<br />

em centenas de estrofes suas.<br />

Página à página, é o Terra Natal exaustivo documentário dessas<br />

peculiaridades, que esperamos estejam superiormente<br />

minudenciadas, à luz da moderna filologia, pelo seu sapiente biógrafo,<br />

professor Clementino Câmara.<br />

A originalidade da elocução itajubalina, na sua agreste, genuína<br />

beleza – espécie de pico no agridoce da baunilha das bromélias da<br />

várzea – , irrecusavelmente impõe essa tarefa aos naturalistas do<br />

idioma, aos botânicos da “última flor do Lácio, inculta e bela”.<br />

Uma estimulante oportunidade, que se lhes antoja, 204 de sentir<br />

quão pessimista logo parece o conceito do rígido escultor de<br />

Eurico, 205 o atrabiliário anacoreta 206 de Val de Lobos, ao afirmar<br />

que o Português é “o túmulo do pensamento”.


Variações sobre um conceito de Álvaro Lins<br />

Amplamente, podemos aplicar à poesia de Ferreira Itajubá –<br />

uma poesia toda realizada dentro dos domínios da sensibilidade (e<br />

por isso é que ele foi um romântico, um moderno, em pleno<br />

parnasianismo, no classicismo a que estavam os demais contemporâneos,<br />

filiados de casca e nó) – o conceito que, a propósito da<br />

obra poética do Sr. Augusto Frederico Schmidt, 207 expendeu Álvaro<br />

Lins, 208 na 1ª série do seu reputado Jornal de Crítica:<br />

Esta sensação de vida e de mistério não se revela só<br />

na substância poética, mas na forma em que se exprime...<br />

Será inevitável, então, a sua incontinência<br />

verbal, e a ânsia com que multiplica as palavras para<br />

que transmitam os sentimentos e as idéias. Mesmo<br />

assim, ainda será preciso que adivinhemos o que está<br />

para além das palavras. É que em todo verdadeiro<br />

poema [continua o límpido analista da História Literária<br />

de Eça de Queirós] há de ser notada uma certa<br />

imprecisão de palavras. Esta impressão é visível nos<br />

mais belos e poderosos poemas de Baudelaire. André<br />

Gide lembra que também será notada no mais clássico<br />

de todos os franceses, Racine; e Verlaine fazia<br />

dela uma condição mesma da realidade poética. É<br />

que, em certos casos [conclui o crítico] a palavra pode<br />

não ter o que chamamos prosaicamente “propriedade”,<br />

mas terá o que se chama, poeticamente,<br />

‘superpropriedade’.<br />

Eis aqui o termo que define, à maravilha, a poética itajubalina.<br />

Ela impõe, logo ao primeiro contato, a procura desse “super-sentido”,<br />

não apenas nos versos, mas nas palavras com que são<br />

construídos, se quisermos compreender, não o poeta em si, o<br />

821


822<br />

homem cujo talento não encontrou estímulo, antes e depois de se<br />

manifestar, no meio em que sempre foi um indesejável, um<br />

inadaptado, um espoliado (esta é a tarefa da justiça histórica, da<br />

moral sociológica) e, sim, captar, receber em espírito e verdade a<br />

beleza da mensagem que ele nos transmitiu – a volta ao natural, o<br />

culto da terra fecunda, a presença da paisagem ridente, a alegria<br />

de viver o amor sem ironia e sem artificialidade, interpretados<br />

com a mais profunda e cordial efusão de um ego pletórico de<br />

comunicabilidade e simpatia, visceralmente rousseauniano, enamorado<br />

da Natureza.<br />

Esta, segundo Novalis, 209 pode ser comparada a um instrumento<br />

cujos sons correspondem, todos, a outras tantas cordas secretas,<br />

que vibram em nosso coração. E não foi mais longe, ainda,<br />

Tolstoi, 210 observando que tudo que há de mau no coração humano<br />

deve desaparecer ao toque da natureza, essa expressão imediata<br />

do belo e do bom?<br />

E o coração de Ferreira Itajubá foi uma vibração perpétua,<br />

melodia virgiliana, ressonância de ária pastoral, evocação dionisíaca<br />

sobre a paisagem florescida, sobre o mistério melancólico da anima<br />

rerum 211 circundante.<br />

Como Dom Quixote na sua invencível lança, não só acreditava,<br />

fanaticamente, na poesia. Viveu mergulhado nela. Cigarra, ela<br />

foi seu dia de verão dourado, água-viva para o peixe, céu para a<br />

andorinha boêmia, luz para a clorofila, noiva para a saudade, mangueira<br />

em flor para a canção do sabiá.<br />

Por força de misteriosa fatalidade, selo psíquico da infinita,<br />

progressiva revivescência dos avatares no planeta, e a que os hindus<br />

chamam de carma, 212 nasceu marcado por aqueles belos estigmas<br />

imponderáveis que, em Tonio Kröger, identificou Thomas Mann 213<br />

em certos aspectos particulares da fisionomia do poeta – facilmente<br />

reconhecível, entre os outros homens “como um príncipe<br />

no meio da multidão”...


Chegado ao país dos lotófagos, 214 o peregrino, em participando<br />

da alimentação dos nativos, irremissivelmente, e aos poucos,<br />

esquecia a pátria. A flor feiticeira do Ideal, que sustenta a chama<br />

interior, na vida diferente aos sonhadores, fá-los distanciarem-se<br />

da terra, das realidades e condições imediatas dentro das quais<br />

tem todo mortal comum de atuar, como o ladino Jacó das Escrituras,<br />

215 para o granjeio 216 das lentilhas...<br />

Estar em presença de Manoel Ferreira – indiquemo-lo agora,<br />

pelo patronímico popular entre os da sua convivência ordinária,<br />

o nome do “conhecido da rua”, resumo do melancólico<br />

inexpressivo ou das dramáticas contradições do registro civil, do<br />

Itajubá terra-a-terra, do viciado no vulgar dos gestos e do vocabulário,<br />

sem nada do sortilégio daquela homonímia ilustre da qual<br />

jamais se apercebeu (chamava-se Manoel Virgílio Ferreira Itajubá)<br />

– estar em presença dele, dizíamos, era encontrar a Poesia. Sentir<br />

a sua transubstanciação, o prestígio da sua estuante e irradiadora<br />

potencialidade, revelada sensivelmente no indivíduo prosaico e<br />

tangível.<br />

Se quiséssemos concordar com os que consideram essa identificação,<br />

por assim dizer somática, esse metamorfismo eufórico entre<br />

a poesia e o poeta, o grande empecilho ao triunfo na luta econômica,<br />

ipso facto 217 na vida social, poderíamos dizer que a poesia o<br />

devorou.<br />

Amável passatempo, pecado de mocidade de bissextos (os que,<br />

na famosa descoberta de Manuel Bandeira, apenas perpetraram<br />

um ou outro poemazinho inofensivo, na vida), é ela uma túnica de<br />

Nessus, 218 para quem lhe fizer o sacerdócio. Flor venenosa,<br />

drósera 219 infernal, tentadora na magnificente coloração das pétalas,<br />

irresistível na suavidade oriental do perfume, mas escondendo,<br />

no dulçor do nectário, a alma astuta de Lucrécia Bórgia. 220<br />

Itajubá, poeta trezentos por cento – perdoem-me os tubarões<br />

da praça esta alusão, sem eiva de malícia, à sua nobre arte de pros-<br />

823


824<br />

perar – , teria sido o coleóptero guloso, apanhado de cheio no<br />

alçapão do grande lírio carnívoro. Bômbyx 221 incauto, hedonista<br />

do Sonho, o poeta se envolveu todo no seu casulo de ouro, onde<br />

o mundo acabou por asfixiá-lo indiferente à sua agonia, no bojo<br />

devorador da autoclave dos fatos...<br />

Verlaine, le pauvre Lélian, 222 cidadão desse Flos Sanctorum 223 de<br />

que a Igreja de Roma nunca tomou conhecimento, com exceção<br />

do caso do nosso amável confrade Francesco Bernardone 224 , o<br />

meigo panteísta da Umbria, bem que se inteirara, e logo num dos<br />

poemas de Bonheur, 225 dos percalços desse metabolismo singular,<br />

mas espontâneo, entre a individualidade temporal do poeta e a<br />

transcendência dos valores místicos da poesia:<br />

L’eunui de vivre avec les gens et dans les choses<br />

fait souvent ma parole et mon regard moroses.<br />

Teria provindo a derrota de Ferreira Itajubá, desse insulamento<br />

ingênito da realidade material, dessa avassaladora, irredutível, insana<br />

idiossincrasia para as coisas positivas do cotidiano social, para a<br />

ação utilitária pura, que foram o complexo de inferioridade de<br />

Ariel, 226 em face das vitórias de Calibã. 227 Digamo-lo, com alguma<br />

generosidade, para dirimente 228 dos que, a meia-nau entre o<br />

anjo e o subdemônio da criação shakespeariana, homens apenas,<br />

mas instalados na posse fácil das disponibilidades, podendo minorar-lhe<br />

o peso da cruz, o não fizeram!<br />

Era o poeta. Na terra, que tão amorosamente decantou, nem<br />

ao menos lhe permitiram a posse razoável daquele limitado contingente<br />

ideal celebrado por Plantin: 229<br />

Posséder seul sans bruit une femme fidele... 230<br />

Seja como for – e a história, urbi et orbi, anda comoventemente<br />

ilustrada com essas obscuras tragédias – melhor que ao do jorna-


lismo, valera aplicar ao exercício da poesia o conceito de<br />

Girardin: 231 “de que é bom, contanto que se saia dele a tempo”.<br />

Alertado pelo seu bom instinto animal, Humberto de Campos,<br />

232 um ótimo exemplo, largou a poesia na poeira, preferindo<br />

os ambientes requintadamente darwinianos e ultra-reais, em que<br />

filigranou, na pele da fauna da alta sociedade, tatuando-a com o<br />

acerado estilete da anedota, a prosa do Conselheiro X. Porque<br />

menos incômoda, de certo, a censura que pela prudente opção<br />

logo lhe assacaram certos lunáticos decepcionados com ela, que a<br />

pecha impiedosa de “poeta”, aplicada pela ironia dos filisteus, e<br />

com a qual explicam jocosamente todos os fracassos alheios, na<br />

vida prática. (O diabo é que alguns desses açambarcadores do bom<br />

senso, afocinhando algum dicionário antigo, pelo capricho de ver<br />

figuras, entre um acordo de ensopado de cioba e uma baforada de<br />

havana, teriam descoberto – como Cabral, por acaso – que o<br />

Hélicon, 233 morada de Apolo e das Nove Musas, ficava na<br />

Beócia... 234 )<br />

Cá na aldeola, safou-se prestes das armadilhas da sedutora<br />

dionéia, 235 e do azar do apelido, o Sr. Américo de Oliveira Costa,<br />

passando-se, com armas e bagagens, para a terra das formigas. E<br />

que delicado, sutil poeta lírico perdemos, hélas!, 236 com essa fuga<br />

da ideal cidade de Mnemosina, 237 onde ficamos, quelques pauvres<br />

petits, 238 olhando a lua, seguindo nas estrelas o rumo do delírio<br />

dos outros enfeitiçados, deslumbrados com os braceletes de pérolas<br />

de Sherazade, 239 enquanto ela, em ademanes harmoniosos –<br />

na voz a melodia dormente e sensual das cítaras – vai contando:<br />

“Era uma vez...”.<br />

Voltemos, entrementes, à apreciação propriamente literária do<br />

nosso assunto, tirando- o da languidez deste prolongado banhomaria<br />

sentimental.<br />

Mesmo através de rápida leitura do seu primeiro livro, estamos<br />

tentando uma interpretação muito eclética, repitamo-la e, não<br />

825


826<br />

fazendo análise crítica da obra de Itajubá, respingamos várias passagens<br />

confirmativas do que temos asseverado, páginas corridas,<br />

sobre ser, o Terra Natal, rico documentário da amena virtuosidade,<br />

mas, também, da extrema desenvoltura com que manejava o autor<br />

o idioma “em que Camões chorou, no exílio amargo, o gênio<br />

sem ventura e o amor sem brilho”. 240<br />

Dirá, por exemplo, ali, cingir a carne, para significar abraço;<br />

navio é lenho; à mãe, viúva, chama de roxa dália. Descreve o fastio,<br />

de que estava sofrendo, pela ausência de Branca:<br />

O mar é:<br />

...o trigo marujava na boca sanguinosa; o líquido<br />

amargava<br />

a esmeralda jogando os navios franzinos<br />

Esta é uma das suas visões do estio:<br />

Quando a terra se abria em dálias encarnadas,<br />

Exclama, recordando os plenilúnios:<br />

E o céu, que se estendia, além, sem nos tocar,<br />

fosse um manto de anil sobre marés de luar!<br />

Nossos crepúsculos sensacionais lhe inspiraram este quadro,<br />

digno da paleta de Ticiano: 241<br />

Maio,<br />

Entre ruínas te escrevo... A tarde pesarosa<br />

em sangue se desfaz... morre tuberculosa...<br />

róseo e festivo, outra vez nos voltava,


fértil em chuvas de ouro e vales de açucena,<br />

alegre como um templo em noite de novena.<br />

Evocando sua boêmia através das praias:<br />

Como é doce o rojão das violas nas aldeias:<br />

a lua alva de abril refrescando as areias!<br />

Todo um romance de Fenimore Cooper, 242 numa pequena aquarela:<br />

Ah! quem me dera ver, saudade que me perdes,<br />

– leve – o bando gazil 243 dos periquitos verdes!<br />

Terra, no sentido físico, é argila:<br />

e o mar, da cor do anil, embalava as jangadas,<br />

as chuvas abençoadas,<br />

que levantam da argila as searas alouradas.<br />

Falando do sono, acha uma expressão espírita, “a carne vai dormir”,<br />

repetida, depois, no Harmonias do Norte, na poesia “É cedo,<br />

fica!”:<br />

As pálpebras da carne se fechavam ao céu.<br />

O soneto “Por janeiro”, a começar da construção da epígrafe,<br />

na qual poderia ele ter empregado outra preposição (em por exemplo),<br />

afigura-se-nos amostra bem típica do fato, posto em equação,<br />

linhas atrás, pela argúcia do jovem crítico brasileiro; principalmente<br />

nos tercetos, onde precisamos tentar apreender o que<br />

está além das palavras:<br />

Noites ungidas de claros vinhos,<br />

Plenas de rosas, noites lavadas,<br />

827


828<br />

cheias de idílios pelas quebradas,<br />

de eflúvios raros pelos caminhos.<br />

Noites de insônias e desalinhos,<br />

de serenatas pelas calçadas;<br />

noites de trovas abemoladas, 244<br />

como gorjeios de verdelinhos. 245<br />

Trazei-me sempre, noites de enfeite,<br />

todas as coisas dessa redoma,<br />

– chuvas de incenso, marés de leite,<br />

matando os germes do desengano<br />

que me tortura, noites de goma, 246<br />

primeiras noites claras do ano!<br />

Gothardo Neto, então no auge da fama, seu amigo íntimo, e<br />

com ele partilhando, dentro da mais fraternal emulação criadora,<br />

o calor dos aplausos que a ambos tributavam os espíritos esclarecidos<br />

da cidade, cheia de jornais e associações literárias, escrevia<br />

segundo os cânones clássicos em voga:<br />

A voz do vento, a lágrima da terra,<br />

que oculta a flor, no cálice odorante,<br />

a tristeza da tarde agonizante,<br />

o monte, a veiga, 247 o descampado, a serra;<br />

esse pavor que a soledade encerra,<br />

esse anseio do pélago espumante,<br />

fundas lamentações de ave emigrante,<br />

que o calor da canícula desterra;<br />

lagos, florestas, sonorosos rios,<br />

dolências de crepúsculos sombrios,<br />

os ciprestes, os túmulos e as lousas;


em todo esse mistério que me encanta,<br />

sinto que vibra, que soluça e canta<br />

a alma saudosa e virginal das cousas.<br />

Ponciano Barbosa cinzelava sonetos deste puro sainete 248<br />

ático: 249<br />

Dulce, trajando o seu quimono suave,<br />

fica, a meus olhos, parecida uma gueixa.<br />

Eu, japonês respeitador, que deixa<br />

no portal os sapatos, entro, grave,<br />

à sua casa, impressionante nave,<br />

que tem um cheiro lúbrico de ameixa...<br />

Altanava-se, 250 tentando seguir o sulco chamejante das asas da<br />

águia de Espumas Flutuantes, o velho Segundo:<br />

Corria a noite em meio. Em plácida derrota,<br />

ia um barco a vogar, qual célere gaivota,<br />

por sobre o dorso azul da vaga boreal.<br />

Vênus bela ostentava a sideral grinalda.<br />

Sorria embaixo o mar, abismo de esmeralda,<br />

sorria em cima o céu, abismo de cristal.<br />

Aí está, particularizado na diferenciação estilística, na qualidade<br />

e no jogo das imagens, um paralelo marcantemente ilustrativo<br />

– um trailer em tecnicolor – da novidade, do revolucionário que<br />

Itajubá trazia à composição, à linguagem, à temática, à própria<br />

natureza íntima da poesia contemporânea.<br />

829


830<br />

Ele era senhor do sábado<br />

De uma pobreza franciscana, quanto à cultura literária – o que<br />

lhe não impediu vitória incontestável, numa polêmica travada com<br />

o vidrento Antônio Marinho, que era a palmatória de sucupira da<br />

época; pessoalmente, um rústico, de hábitos, indumentária e<br />

linguajar plebeus, foi péssimo artista, sem o conhecimento, sem a<br />

preocupação, ao menos, das mais comezinhas exigências da técnica<br />

vernacular, dos cânones gramaticais, dos segredos estéticos, etc.,<br />

em que se deve enquadrar a academicíssima, enfarante<br />

arquitetônica do estilo.<br />

Dizia o divino Goethe que “a forma verdadeiramente artística<br />

é a condição essencial de sobrevivência da obra de arte”, isto é,<br />

que trabalhando dentro dos limites, é como se revela o mestre, <strong>In</strong><br />

der Beschrank ung zeigt erst der Melster (relevem a sustança, meio rançosa,<br />

desta citação em original, candidamente surrupiada a um<br />

prestimoso almanaquezinho da Bayer. Não vá a revisão, como tantas<br />

vezes tem acontecido no decurso desta viagem sentimental<br />

pelo mundo itajubalino, me baralhar as línguas).<br />

Graças, tão somente, às sobrenaturais virtuosidades plásticas<br />

do gênio, conseguiu Itajubá fixar um estilo, e inimitável. <strong>In</strong>conscientemente;<br />

mediunicamente, se nos permitem o termo.<br />

O próprio Nietzsche, insuspeito para os racionalistas, acreditava<br />

no fenômeno. Confessa o seu próprio caso, não nos ocorre<br />

agora se no Ecce Homo:<br />

Haverá alguém, no fim do século 19, que tenha um<br />

conceito daquilo que os poetas das grandes épocas<br />

chamavam inspiração? Por pequeno que seja o restante<br />

de superstição que permaneça em nós [prossegue<br />

o criador de Zarastustra] seria difícil afastar a idéia<br />

de que somos apenas a encarnação, o porta-voz, os


médiuns de potências superiores. O conceito da revelação,<br />

no sentido que, improvisadamente, com<br />

segurança e finura indizíveis, alguma coisa se torna<br />

visível e audível, alguma causa que subverte e agita<br />

profundamente, é a simples expressão da verdade.<br />

Sente-se, não se procura; toma-se, não se indaga quem<br />

dá. Como um relâmpago, reluz súbito um pensamento,<br />

necessariamente assim sem hesitação na forma:<br />

eu nunca tive necessidade de fazer uma escolha<br />

[remata o extrênuo 251 iconoclasta de A Gaia Ciência].<br />

Foi esse, toda a vida, o drama do estilo de Ferreira Itajubá.<br />

Ouçamos “De Natal ao Pará”, um trecho do Cântico dos Cânticos,<br />

escrito à sombra de algum arejado alpendre das Rocas, cheio de<br />

moças, bemóis de violão (Eduardo Medeiros ainda mora lá), e a<br />

água da maré do rio lavando o barro batido das estivas 252 das<br />

casinholas do arrabalde:<br />

Adeus! Vão-se acabar as noites claras,<br />

as trovas ao violão, pelos telheiros!<br />

– planta das minhas últimas searas,<br />

– corpo dos meus pecados derradeiros!<br />

O tempo voa. A ceifa das espigas<br />

voltará, para dar-nos mais cuidados,<br />

– terra das minhas últimas cantigas<br />

– vale dos meus prazeres acabados!<br />

Adeus – sejas feliz, entre as famílias<br />

que te cercam, nas praias alvejadas<br />

– carne das minhas últimas vigílias,<br />

urna das minhas crenças desfolhadas!<br />

Mais um beijo dos teus que das alturas<br />

soa o momento! E atira-me o rosário<br />

831


832<br />

– horto das minhas últimas torturas!<br />

– cruz em que subirei para o calvário!<br />

Também, quanta simplicidade, quanta pureza e fluidez<br />

expressional, quanta transparência lírica, emoção comunicativa,<br />

euforia musical, plasticidade clássica, em<br />

BARCAROLA<br />

Não te recordas, querida,<br />

da noite em que nos amamos,<br />

sob a frescura dos ramos<br />

da laranjeira florida?<br />

Gemia a viola na aldeia,<br />

a brisa um hino entoava<br />

e a luz da lua inundava<br />

a terra, de rosas cheia!<br />

Lá na planície da serra,<br />

junho alourava as espigas,<br />

vinham de longe as cantigas<br />

das moças de minha terra,<br />

quando te vi, linda flor,<br />

e da noite à doce calma,<br />

derramaste na minha alma<br />

o eflúvio do teu calor!<br />

Saudade! quanta saudade<br />

da noite em que, ao céu sereno,<br />

tu me abriste o seio, pleno<br />

de aroma e de mocidade!<br />

À sombra da laranjeira,<br />

por ti, visão da alegria,<br />

do meu beijo a cotovia<br />

cantou, pela vez primeira!


Tu esqueceste os ditosos<br />

domingos embalsamados,<br />

e os cantos apaixonados<br />

dos jangadeiros saudosos<br />

que, ao céu transparente e azul<br />

do estio nas tardes belas,<br />

passavam, molhando as velas,<br />

abertas ao vento sul!<br />

Tudo esqueceste, e mais nada<br />

resta em tua alma enganosa,<br />

dessa paixão desditosa,<br />

dessa ilusão desfolhada,<br />

que lembro todos os dias,<br />

pensativo, a cada instante,<br />

ó lavandisca 253 inconstante<br />

das areias alvadias!<br />

Talvez que esta alma não possa<br />

acreditar, nunca mais,<br />

nos teus beijos aromais,<br />

nos teus sorrisos de moça!<br />

Ai, meu doce malmequer,<br />

que me deixaste em janeiro<br />

– como tudo é passageiro<br />

no coração da mulher!<br />

Pena é não podermos transmitir, ao mesmo tempo a beleza, o<br />

amavio, a lânguida eloqüência tropical das duas solfas, ambas da<br />

autoria do grande violonista Eduardo Medeiros, e com as quais se<br />

popularizaram estas maravilhosas canções do Teócrito 254 potiguar.<br />

Ainda, na estrofe a seguir, respigada 255 de “Um marujo parte”<br />

(Harmonias do Norte, p. 165), firma-se em suas excepcionais,<br />

taumatúrgicas qualidades de expressão e transmissão, do estado<br />

de graça lírico:<br />

833


834<br />

Adeus, areias em que andei na infância,<br />

brisas das horas em que o sol não arde,<br />

moitas das dunas de sutil fragrância,<br />

lagoas brancas, bem-te-vis da tarde!<br />

O “caso Ferreira Itajubá” é inquestionável; se enquadra, de fond<br />

en comble, 256 na premissa da lapidar assertiva estética de Henri<br />

Brémond: 257 Il y a des poètes qui savent faire des vers, parce qu’ils sont<br />

poètes; et il y a des poètas qui sont poètes parce qui`ls savent faire des vers.<br />

E Jacques Maritain 258 não afirmava – e com que ponderável<br />

autoridade! – que a poesia na sua pura essência espiritual, transcende<br />

toda técnica; transcende a própria arte? Pectus est quod disertos<br />

facit 259 não é, em prisco latim, o mesmo que em adamantino 260<br />

francês, disse o espiritualíssimo visionário de Namauna e Nuits, 261<br />

Ah! Frappé-toi le coeur, c’est là qu’ est le génie! 262<br />

<strong>In</strong>conscientemente, repitamos – por que não dizermos<br />

subconscientemente?–, sempre amparado no colo da fada de sua<br />

inocência de bárbaro não sofreu Itajubá a tirania pânica da gramática,<br />

a sinistra sibila, egressa dos pulverulentos hipogeus do Mediterrâneo,<br />

e a que o próprio João Ribeiro 263 “chamava de esgoto<br />

que recolhe a atrabílis e as revoltas dos desequilíbrios mentais”.<br />

Cáspite! Nenhum de nós outros, desde Lourival Açucena, irrequieto<br />

Anacreonte 264 dos suaves convívios pelos numerosos<br />

caramanchões do Barro Vermelho e da Passagem, nos princípios<br />

deste século, velho fauno latinista, canário e garnizé da cabocla<br />

Porangaba, até esse superestesiado, paradoxal, poliédrico<br />

Esmeraldo Siqueira, dispensando no bate-papo dos cafés a joalheria<br />

de mil e uma noites de um estro celinesco 265 e uma formidável<br />

cultura literária – nenhum de nós, reconheçamos sem falsas modéstias,<br />

desencantou coisas mais lindas.


Coisas, conforme o Novo Testamento, “escondidas aos sábios e<br />

entendidos e reveladas aos pequeninos”. Paisagens de Millet 266<br />

sorrindo sobre trapos. Cruciantes estados d’alma, saltando do bojo<br />

de um prosaico, residuoso e infame tinteiro de quitanda. Florada<br />

nupcial de bogaris em cepa de cajueiro bravio.<br />

Ainda, como acontecia ao tempo dos prodígios, com o testemunho<br />

visual de S. Mateus, cap.12, ele era “senhor do sábado”, 267<br />

fazendo milagres – transformando em vinho generoso a água-decheiro<br />

de velhos temas puídos por algumas gerações de lamartinistas<br />

lamurientos, semeando trigo onde havia beldroega e mata-pasto;<br />

reproduzindo, sobre o nosso lirismo enfaixado nos linhos pútridos<br />

do espólio europeu, a ressurreição de Lázaro –, acima da legalidade<br />

restritiva e formalística do Sinédrio. 268<br />

835


836<br />

A ilha do tesouro e as aranhas de Vautrin<br />

<strong>In</strong>felizmente, para Ferreira Itajubá – e para nós – não contou<br />

ele com um instrumento de expressão à altura do seu extraordinário<br />

talento poético, o que lhe teria permitido, sem a perpétua<br />

humilhação dessa aflorante, sensível ajuda geral da piedade e tolerância<br />

pela sua incultura, projetar-se no cenário nacional, dominado<br />

literariamente, pelos perfeccionistas da geração Bilac – que<br />

podia exclamar, nessa época faisandée 269 de aristocracias e turris<br />

eburneas: 270<br />

Torce, aprimora, alteia, lima<br />

a frase: e enfim,<br />

no verso de ouro engasta a rima,<br />

como um rubim.<br />

Quando o encontro com Baudalaire e os parnasianos foi o divino<br />

estalo para o Eça, que aconselhava, férvido, a Luis de Magalhães:<br />

271<br />

Mas, por quem é, trabalhe essa forma! Pula-a, cinzele-a,<br />

cristalize-a! O sentimento mais artificial, posto<br />

num verso maravilhosamente bem feito é uma<br />

obra d’arte; o mais verdadeiro grito de paixão, num<br />

verso alexandrino desajeitado, é uma sensaboria. Só<br />

há beleza onde há ordem!<br />

Hermes Fontes, 272 Sansão num corpo torturado de gnomo,<br />

lançava o pânico nos arraiais dos filisteus de Portugal e do Brasil<br />

ao publicar Apoteoses, revolucionando a técnica do verso, já então<br />

dificílimo, não se permitindo rimar, na mesma composição, quando<br />

esta era o soneto – e, a rigor, na mesma estrofe – palavras de<br />

categoria gramatical idêntica:


Viajar – disse-lhe alguém – é esquecer; olha a Grécia,<br />

é um sonho; a Itália é um ninho; a França é uma delícia...<br />

Ser-te-á eterna a mágoa, e a esperança fictícia?<br />

Parte, distrai-te, goza e, por síntese, esquece-a.<br />

O mestre de O caçador de esmeraldas que, no soneto “Consolação”,<br />

chegou a rimar doze substantivos, mostrou-se sensível a esse<br />

extrênuo 273 virtuoso verbal do prodigioso artista, em muitas das<br />

poesias da Tarde.<br />

Entre os poetas norte-rio-grandenses, somente Edinor Avelino<br />

se mantém, com um pundonor, uma galhardia de fidelidade<br />

bayardiana, 274 à rigidez da vertical estética levantada pelo inesquecível<br />

sergipense. Aliás, a partir do seu terceiro livro, Hermes<br />

Fontes contemporizou com essa arquitetônica, certamente sentindo<br />

que ela lhe inquinava o estro de uma tal ou qual artificialidade<br />

– de um tal ou qual artesanismo, pelo menos – de um<br />

bizantinismo 275 que se não pode deixar de sentir, em toda sua<br />

produção dessa primeira fase; embora salva, esplêndida e inteiriça,<br />

pela virtude da riqueza das idéias e do fulgor e novidade de imagens<br />

da sua profunda e clamante humanidade, do que representa<br />

em função da luta contemporânea pela democracia.<br />

Como se haveria de arranjar com o futuro, nesse ar misto de<br />

Atenas e Florença, quem, após incursionar pela segunda ou terceira<br />

série letiva de Felisberto de Carvalho, 276 não teria, no ciclo<br />

da autodidática, 277 ultrapassado A velhice do Padre Eterno, os profetas,<br />

e o tamancal 278 Simões da Fonseca? 279<br />

Do chão raso e arenoso, do ninho tosco e ao nível dos<br />

estendais 280 de oró 281 e carrapicho, onde se emplumara, não pode,<br />

o belo condor solitário, órfão do oxigênio e das majestosas perspectivas<br />

espaciais da montanha, fazer agir a possante envergadura<br />

das asas, embaraçadas na erva daninha do apedeutismo 282 provinciano.<br />

837


838<br />

Continuará por isso mesmo, talvez por muito tempo ainda,<br />

região lendária, ilha perdida, incógnita e despicienda 283 à geografia<br />

preferencial e bem penteada dos cardeais da crítica, dos corifeus<br />

do escalpelo e do gongo e que, no Rio, decretam consagrações,<br />

ou degradam, até ao piso dos limbos subterrâneos da nulidade,<br />

onde há choro e ranger de dentes, os desventurados candidatos à<br />

posse da coroa de rosas.<br />

Por muito tempo, ainda, até que, para esse urupê 284 luminoso,<br />

fosforescendo no tronco de perfumado cajueiro sob cuja ramagem<br />

suspira o suave fantasma de Branca, reponte por ventura o<br />

oportunismo e o interesse político de um Rui Barbosa; a<br />

consagradora, inquieta, insaciável curiosidade de um Agripino<br />

Grieco. Até que, para esse Endimião, 285 de há longos anos docemente<br />

adormecido na carinhosa penumbra da nossa saudade –<br />

uma saudade inoperante e acovardada com os aspectos vulneráveis<br />

desse noivo da lua sem genealogia helênica – se obtenha o<br />

passe mágico, tão difícil, de qualquer desses intangíveis exorcistas<br />

da Fama, caprichosos fabricantes de anões e semideuses, cada qual<br />

encarnando, nesta era crassíssima da Realidade, a hibridação anacrônica<br />

de Galeno 286 e Hahnemann: 287 sempre a prescrever<br />

colagogos 288 alopáticos, de alta posologia, aos clientes com quem<br />

simpatizam; tratando os estranhos com homeopatia em quinta<br />

centesimal. 289<br />

Há cerca de trinta anos, perante Henrique Castriciano, que lhe<br />

levara o Terra Natal, ter-se-ia Vicente de Carvalho 290 escusado de<br />

escrever uma página sobre Ferreira Itajubá, alegando a feitura em<br />

grande parte inartística dos alexandrinos, embora reconhecesse a<br />

profunda substância lírica revelada através de todo o poema. E<br />

assim perdeu, a ilha bárbara e sonora, povoada de pintassilgos e<br />

trescalante de bogaris e laranjeiras, a oportunidade de entrar no<br />

mapa dos mares do Sul...


Enquanto que, no Estado, onde viveu “pobre de pão na bolsa e<br />

água na Cantareira”, é,sempre, incontestavelmente, indestronavelmente,<br />

o maior, no coração do povo, de cujo complexo psicológico<br />

e sentimental foi o fluentíssimo, insuperável, intérprete;<br />

o pioneiro, digamos inconsciente, dos seus então apenas vagos<br />

anseios ideológicos, muito antes que a legislação trabalhista (que<br />

o Sr. Oliveira Viana, 291 bastão de ditadores, com vasta responsabilidade<br />

na respectiva sociologia, confessa ter sido calcada sobre a<br />

doutrina papal da Rerum Novarum e da Quadragesimo Anno), 292 tivesse,<br />

bem ou “malamente”, permitido ao operário brasileiro a atual<br />

organização sindicalista e, mais ainda – agora por força do<br />

aceleramento do problema social do mundo – ameaçar o sistema<br />

burguês, com suas “células”, seus congressos, sua imprensa, seu<br />

partido marxista, ainda até há pouco instalado constitucionalissimamente<br />

na feira política.<br />

Não lastimemos Itajubá, por lhe não podermos pespegar o rótulo<br />

de “Ilustre”. Equacionemo-lo com o “meio”, já exaustivamente<br />

nestas maravalhas 293 posto em evidência; com a lastimável relatividade<br />

dos “meios” que teve para lutar.<br />

Antes, filosoficamente, admitamos, compreendamos o “amigo<br />

da onça” (que há de ter nestas páginas um capitulozinho à parte),<br />

que se ombreou com ele muitas vezes, que o admirava com<br />

recalcado despeito, que presumivelmente lhe invejava o talento,<br />

irritava-se no âmago das vísceras humoradas com a carga de séculos<br />

de servilismo ancestral, com aquela maravilhosa e irredutível<br />

altaneria de mestre-cantor, e que o abandonou afinal às urtigas,<br />

depois de lhe regatear um lugar de bedel, no Ateneu, com 150<br />

mil réis mensais. Que lhe sabotou as raras oportunidades de preencher<br />

seu magnífico destino. 294<br />

Também a época, em que dolorosamente cumpriu sua provação<br />

existencial, era conceituada sobre a sistemática exploração<br />

839


840<br />

dos pequenos pelos grandes: afeiçoada, jesuiticamente, ao princípio<br />

que, por simplista e grosseiro, não deixa de definir, de maneira<br />

muito objetiva, muito eloqüente, talvez ainda por séculos,<br />

irremissível, aquilo que nem todos os esforços dos idealistas, nem<br />

as revoluções mais decisivas em brutalidade e quotas de sangue<br />

aos povos, estatísticas sibilinas, diplomacia churchiliana, política<br />

de “equilíbrio de forças”, concessões ao nazismo, portas trancadas<br />

aos judeus, miserável hipocrisia e “tática do jejum” perante a China<br />

estóica e dessangrada – poderão, nunca, jamais, modificar substancialmente<br />

no seio da humanidade, mais do que ontem, desentendida<br />

e retalhada em zonas de influência, barreiras territoriais,<br />

discrepâncias, oratórias, incompatibilidades de raças: “A sociedade<br />

é composta de duas classes: a dos que têm mais jantares do que<br />

apetite, e a dos que têm mais apetites do que jantares”.<br />

Achando-se na ponta negativa do dilema a que poderia ter tido<br />

direito Ferreira Itajubá, membro militante da Liga Artístico-Operária<br />

Norte-Rio-Grandense, e quando, muito mais evidentemente<br />

do que hoje, qualquer pensador medíocre podia afinar pelo<br />

diapasão em que Stäel, 295 ladina aristocrata, concluía, de observações<br />

realizadas na França e através de suas viagens: “A ordem social<br />

e a paz do mundo repousam sobre a paciência e a resignação<br />

dos pobres”.<br />

É verdade que essa paciência se esgotou; essa resignação adquiriu<br />

tonalidade universal de consciência de direitos, e não há como<br />

reunir toda essa gente num campo de concentração colossal, deitando-se-lhe<br />

dez bombas atômicas em cima do canastro. 296<br />

Itajubá, de resto, nada tem a ver com o melodrama, pois só nos<br />

seus discursos e na sua “falta de estilo” foi um suspeito aos empresários<br />

da “ordem social” de Madame Stäel. Não o podem matar de<br />

novo. Até, pelo contrário, está começando a viver das compensações<br />

da morte, numa dilucular 297 ressurreição através das almas e


do tempo, marcha póstuma para o porvir, justiça superior à alçada<br />

dos corrilhos 298 da moral de Nazaré, que desorbitou e aviltou o<br />

“santo de casa”.<br />

Sofreu, foi infeliz, porque “foi poeta, sonhou e amou na vida”, 299<br />

that is the question. 300<br />

Porque não quis ou não soube ser também aranha, segundo o<br />

avisado Vautrin 301 dentro do boião 302 de vidro da província, onde<br />

as aranhas se entredevoram, numa sinfonia surdinada e eliminatória,<br />

de palpos, 303 mandíbulas e abdômenes...<br />

841


842<br />

O amigo da onça e o convite de Walt Whitman<br />

Ele próprio, Ferreira Itajubá, desventurado Lucien Chardon<br />

sem David Sechard e sem D’Arthez, 304 intercalara no ofertório<br />

do seu mavioso poema – tão generosamente hipócrita – a íntima<br />

evidência da verdadeira verdade, grito de naufragado do barco<br />

alvissareiro em que não quis partir, na hora mais propícia:<br />

Trinta e quatro anos tenho, entre escolhos, vivido,<br />

sofrendo angústias cruéis. Ah! que tempo perdido!<br />

Fui muito néscio em crer nos pregões da ventura.<br />

Nunca um astro fulgiu, na imensa noite escura<br />

que a areia me invernou da estrada dolorida.<br />

Que resta hoje a teu filho? a sombra espavorida<br />

do cipreste esgalhado, onde o mocho agourento<br />

pousa de ramo em ramo, ao cair do relento...<br />

.....................................................................<br />

E nem quero um letreiro à compaixão futura.<br />

um sinal, uma cruz, no pó da sepultura...<br />

Realmente nenhuma dessas postiças, curiais, inanimadas<br />

exteriorizações póstumas, mais ou menos irônicas, mais ou menos<br />

desmoralizadas pela rotina, mentira sacrílega para a comédia<br />

do egoísta e do soberbo, tardio laurel para o holocausto do herói<br />

ou do santo, poderia, jamais, corresponder à altura condoreira e<br />

ao sereno fulgor da glória do grande felibre. 305<br />

Não se tivessem malogrado, tão dolorosamente, os altos desígnios<br />

trazidos do berço, bem coerente lhe fora, como aconteceu a<br />

Thummel, 306 célebre poeta alemão, cujas cinzas repousam dentro<br />

do tronco de um carvalho centenário, na sua cidadezinha natal de<br />

Noeblenitz – se se tivesse reintegrado com a Natureza, a que tanto<br />

amou e cantou docemente, pelo harmonioso, incorruptível


intermédio das raízes, da seiva e das flores de um desses veneráveis<br />

pau-d’arqueiros dos nossos morros, contemporâneos das suas<br />

canções inimitáveis.<br />

Nenhum poeta do Rio Grande do Norte, em todos os tempos,<br />

mais do que ele, mereceu o símile 307 do epitáfio escrito por<br />

Antípatro, 308 o coríntio, em honra do divino evocador de Ílion: 309<br />

Aqui jaz Homero. Que dizes? Sabes tu, acaso, se ele<br />

jaz aqui ou<br />

além, na terra ou no mar? Homero está aqui e além,<br />

está no ar que<br />

passa. E aí tens, viajante, o motivo porque respiras<br />

poesia no ar que<br />

passa. Deixa-me, pois, escrever – Aqui jaz Homero,<br />

que morreu em<br />

plena mocidade, porque morreu poeta.<br />

Na hora suprema da bela tentativa migratória, a ele e a nós<br />

outros, há muito comprometidos, irremissivelmente, na sinistra<br />

farsa das competições ideológicas e da concorrência à feira das<br />

mesquinhas vaidades distritais, enleados na trama pragmática e<br />

delirante da conquista da caloria, mutuando 310 hostilidades e mexericos<br />

de zeladoras: – incompreendidos e incompreendendo,<br />

habendo vendido nuestro derecho de primogenitura por um plato de<br />

hechos, 311 faltou-nos a voz galvanizadora e cordial de Walt Whitman,<br />

conclamando os pioneiros:<br />

Sai dos negros limites, sai de entre as cortinas!<br />

Vem! O caminho está aberto à nossa frente!<br />

Que as folhas fiquem abertas sobre a escrivaninha,<br />

e o livro sem abrir no seu armário!<br />

Que os instrumentos permaneçam nas oficinas!<br />

Que o dinheiro permaneça sem ser ganho!<br />

843


844<br />

Que repouse a escola! Não importam os brados dos<br />

mestres!<br />

Que o pregador pregue em sua cátedra!<br />

Que arrazoe o advogado no tribunal, e o juiz exponha<br />

a lei.<br />

Camarada, dá-me a tua mão!<br />

Eu te dou meu afeto, mais precioso que o dinheiro.<br />

Eu te dou a mim mesmo, em vez de prédicas e de<br />

leis.<br />

Queres dar-te a mim? Queres seguir comigo?<br />

Seguiremos juntos, um ao lado do outro,<br />

enquanto durarem nossas vidas!<br />

Alerta sempre! Sempre para frente!<br />

Esta, entretanto, é a voz de um poeta, e tão cedo não poderia<br />

ser percebida, sob o clamor do colossal mercado onde poderíamos<br />

lobrigar, num ângulo momentaneamente livre do angustioso<br />

aperto da multidão desvairada no delírio da traficância, a sombra<br />

sarcástica do velho Ibsen, 312 os óculos na ponta do nariz rubicundo,<br />

a anotar no seu canhenho 313 pessimista: “Vejo ventres, mãos, cabeças,<br />

mas não vejo um único homem na terra”.<br />

Na terra onde é furiosamente importante a gente ilustrar, em<br />

sessão contínua, o<br />

Rien me m’oblige à faire un livre,<br />

mais la raizon m’oblige à vivre... 314<br />

Perdoa a essa raça de víboras, Ferreira Itajubá, que há trinta e<br />

cinco anos, estás emancipado do demônio do struggle for life, 315<br />

desta<br />

...necessidade de “horroroso”,<br />

que é talvez propriedade do carbono, 316


conforme dizia com a sua dilacerante experiência de convívio<br />

com as feras humanas, Augusto dos Anjos, ainda aduzindo uma<br />

escusa biológica para a malvadez dos que te apodavam de “poeta”!<br />

Foste derrotado na praça, entre os sub-homens do acerbo<br />

ironista de Espectros, por que não trocaste tuas barras de ouro pelas<br />

moedinhas de cobre que eles fazem circular, no câmbio da<br />

exaltação das mediocridades bem-aventuradas. Mais a hora dos<br />

Poetas chegará. O Dinheiro não pode salvar o mundo. E vale a<br />

pena ir passando fome. Sursum corda! 317<br />

Caído em extrema penúria, ao cabo de sofrimentos físicos e<br />

morais incomportáveis; egresso do presídio, onde diariamente<br />

provou o chicote dos guardas, “expiando por toda a humanidade”,<br />

conforme confidenciou a Cécile Sorel, 318 o incomparável lapidário<br />

de O Retrato de Dorian Gray foi levado, pelos últimos devotos, a um<br />

dos mais luxuosos nosocômios de Paris. Moribundo, apático, ruína<br />

lancinante do maravilhoso espírito que encarnara o Vivian de<br />

A Decadência da Mentira, 319 a olhar em roda os cristais, os imaculados<br />

reposteiros de linho, o brilho e o grande ar de conforto burguês,<br />

do leito em que jazia, ele, que fora o mais festejado, o mais invejado,<br />

o mais impertinente dos dândis da pátria de Brummel, 320 gravando<br />

nas vitrinas das joalharias, com o diamante do anel, os nomes<br />

das arquiduquesas conquistadas, exclamou, dolorosamente:<br />

“Morro como sempre vivi: acima das minhas possibilidades...”.<br />

Viveu, e morreu, infinitamente abaixo das suas possibilidades,<br />

antítese enervante, o Bernardim 321 potiguar.<br />

Tinha também amigos, como aconteceu à onça da gostosa inventiva<br />

humorística de Péricles Maranhão. 322 Que o não cercaram,<br />

na hora trágica da adversidade; não o levaram a nenhum hospital<br />

onde houvesse morrido como Wilde. Amigos, daqueles, nos<br />

Quatrains Moraux que Guy de Faur, senhor de Pibrac, 323 comparava<br />

a melões: 324<br />

845


846<br />

Les amis de l’heure présente<br />

ont le naturel du melon:<br />

il faut en essayer cinquante,<br />

avant d’en rencontrer un bon. 325<br />

Ora, pois. Entre esses quarenta e nove “melões” do Sr. Pibrac,<br />

um havia cujo coração, todo de mel, estaria agora a secretar tintura<br />

de losna, 326 serodiamente compenetrado de que, político na<br />

maior evidência, deputado federal 327 de fulgurante expressão no<br />

país, amigo íntimo e conselheiro de Alberto Maranhão, teria podido,<br />

a um simples aceno, mudar o aspérrimo declive ao drama<br />

excruciante.<br />

Não estamos formulando acusações gratuitas. 328 Nem nos compete,<br />

por igual, espicaçar velhos remorsos hibernados. São bichos<br />

feios e bravios, a rosnar baixinho nos bolorentos subterrâneos,<br />

nas criptas sumerianas dessa deusa ignota, a que os casuístas do<br />

espiritualismo deram o vago apelido de “consciência”. E, por bichos<br />

serem, já nos bastam –Santo Deus! – os que, vez por outra,<br />

na penumbra confessional daquela paragem de introspecções e<br />

flagícios, 329 nos olham nos olhos e nos arreganham as fauces. 330<br />

Por que, então, iríamos cutucar tigres, assanhar lobisomens, cloroformizados,<br />

nas jaulas alheias?<br />

Sem nenhum vínculo estomacal com qualquer dos partidos<br />

atualmente propostos a fazer do Brasil um formal paraíso<br />

jeffersoniano, externamos de própria conta uma verdade conhecida<br />

de todos os contemporâneos de Itajubá, e até agora por ventura<br />

apenas “congelada” em homenagem ao preconceituoso imperativo<br />

de conveniências que, a propósito do assunto, aliás, já o<br />

escritor José Bezerra Gomes 331 começou a destruir, submetendo<br />

a vigoroso critério histórico o estudo do “caso”. Conveniências,<br />

afinal, somente respeitáveis no consenso daqueles cujo<br />

honestíssimo “Ideal” é o de “vencer na vida”, embora engolindo


facas e escorpiões, pilulazinhas de veneno, Alcestes 332 convictos<br />

de que só travestidos de Orontes e Filintes atingirão a bemaventurança<br />

dos diretores de bancos, dos ministros, dos empresários<br />

de pife-pafes...<br />

Voltando aos “melões”: foi, aquele ardente admirador 333 de<br />

Ferreira Itajubá, no Rio, quando parlamentar, uma espécie de cônsul<br />

da boa vontade, acolhedor, generoso, acessibilíssimo, amigo<br />

ideal (diz-se que a amizade é o ideal, e que os amigos são a realidade).<br />

Quem teria definido tão bem o que Montaigne tanto exaltou?<br />

Amigo ideal, concedamos, de todos os comprovincianos 334 em<br />

apuros, e aos quais distribuía todo o subsídio, mesmo aos que não<br />

rezavam pela cartilha do abaeté 335 Pedro Velho. É este um dos prediletos<br />

argumentos com que se explica, vez por outra, sua notória<br />

pobreza.<br />

Diga-se, todavia, francamente – e para não perder esta oportunidade<br />

– mal chegou a tempo para os funerais do poeta; funerais<br />

de terceira classe...<br />

E para escrever, anos muito depois, com muita emoção, a história<br />

do pária sublime, que viveu toda a sua pobre e atribulada<br />

vida, sem que mecenas, pelo prestimoso, altruístico, tão viável<br />

intermédio dos seus convivas, tivesse jamais notícia daquela iníqua<br />

indigência – mancha vergonhosa, escárnio sem nome, infamante<br />

exceção, em meio às benesses de que se propiciavam os mais felizes,<br />

às pingues 336 propinas liberalizadas aos mais espertos: tertúlias<br />

e saraus de gala, paradas resplandecentes, jogos florais, a borbulhar<br />

à tona dessa famosa era da nossa Renascença social, artística e<br />

literária, sintetizada na esplêndida estampa centralizadora de<br />

Alberto Maranhão.<br />

847


848<br />

Notas<br />

1 a) A Revista da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, Ano XIX, maio de<br />

1970, que publicou o trabalho, registra: “Este ensaio de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>,<br />

publicado em primeira mão, nas páginas d’O Democrata, desta capital, em<br />

1947, reaparece, agora, nesta Revista, em homenagem à memória do consagrado<br />

autor de Sertão de espinho e de flor. Os recortes do presente trabalho<br />

nos foram oferecidos pelo Dr. João Cabral Fagundes Filho, parente<br />

afim do homenageado”.<br />

b) João Jerônimo Cabral Fagundes Filho (Goianinha/RN,<br />

12.06.1917-Natal/RN, 28.07.2002). Advogado e intelectual, leitor assíduo<br />

de boa literatura, inspetor do <strong>In</strong>stituto Nacional do Sal (colega de<br />

repartição de OM) e depois do INSS. Era amigo fraterno, casado com uma<br />

sobrinha do poeta, Maria de Lourdes <strong>Menezes</strong> Cabral, filha do magistrado<br />

Francisco <strong>Menezes</strong> de Melo (Ver nota neste volume em Sertão de espinho<br />

e de flor), irmão de <strong>Othoniel</strong>. Os diretores da revista, na época, eram os<br />

acadêmicos Aderbal de França, Edgar Barbosa, Alvamar Furtado de Mendonça<br />

e José Tavares da Silva.<br />

c) OM, no Sertão de espinho e de flor, nas Notas ao Canto 15 (Minha Viola a<br />

Chorar), publicado em 1952, afirma haver publicado o presente ensaio<br />

em 1948, um ano após, portanto, do que registrou a anotação da Academia<br />

de Letras, neste ensaio. Fiquemos, pois, com o Autor.<br />

2 OM considerava inacabado o trabalho sobre Ferreira Itajubá. Nas Notas ao<br />

Canto 15, do Sertão de espinho e de flor, escreveu: “O Autor deste poema<br />

publicou, em 1948, no jornal O Democrata, uma série de trechos do ensaio<br />

que tem pronto, sobre o cantor de “Branca”, trabalho que tem o título de<br />

Ferreira Itajubá – O drama da vida de província.<br />

3 Esquina. Um dos apelidos que OM dava ao RN, notadamente a Natal, em<br />

função da posição geográfica no mapa do continente. Foi o primeiro a<br />

chamar Natal de Jerimunlândia. Outros topônimos da Capital: Cidade dos<br />

Reis, Cidade de Santiago, Natalópolis, Nova Amsterdã, Trampolim da Vitória,<br />

Londres Nordestina e Cidade Espacial.<br />

4 Rodolfo Augusto de Amorim Garcia (Ceará-Mirim/RN<br />

25.05.1873-Rio de Janeiro/RJ, 14.11.1949). Doutor em Direito, professor,<br />

historiador, bibliófilo. Diretor do Museu Histórico Nacional e da<br />

Biblioteca Nacional. Membro da Academia Brasileira de Letras.


5 Peregrino Júnior. Ver nota no Prefácio à 2ª. edição do Sertão de espinho e<br />

de flor.<br />

6 General Umberto Peregrino Seabra Fagundes. Ver nota no Prefácio<br />

à 2ª. edição do Sertão de espinho e de flor.<br />

7 João Angyone Costa (RN, 1888-RJ, 1954). Jornalista, professor, arqueólogo,<br />

etnógrafo, antropólogo, ensaísta, historiador, museólogo,<br />

indigenista, crítico de arte, professor. Publicou dezenas de livros, entre<br />

esses A <strong>In</strong>quietação das Abelhas (1927), <strong>In</strong>diologia e <strong>In</strong>trodução à Arqueologia<br />

Brasileira (1933). Algumas dessas obras fundamentais foram traduzidas<br />

para vários idiomas e muitas vezes reeditadas no Brasil. Na sua especialidade,<br />

deve ser o escritor potiguar mais lido nos meios acadêmicos.<br />

8 José dos Guimarães Wanderley (Natal/RN, 19.12.1905-Rio de Janeiro/RJ,<br />

20.12.1975). O teatrólogo potiguar de maior sucesso da ribalta<br />

nacional. Deixou, muito jovem, o Rio Grande do Norte e, no Rio de<br />

Janeiro, escreveu e traduziu dezenas de peças, muitas em parceria com<br />

Mário Lago, Daniel Rocha e Dias Gomes, algumas encenadas pelos mais<br />

importantes atores do país. Foi servidor público do <strong>In</strong>stituto Nacional do<br />

Teatro e dirigente da SBAT – tendo, nessa condição, representado o Brasil<br />

em congressos internacionais sobre arrecadação de direitos autorais na<br />

Espanha e Suiça.<br />

9 Nilo de Oliveira Pereira (Ceará-Mirim/RN, 11.12.1909-Recife/PE,<br />

23.01.1992). Jornalista, ensaísta, político, advogado, professor universitário,<br />

escritor. Cedo, aos 21 anos, foi para Pernambuco. Exerceu vários<br />

cargos na administração pública, presidindo importantes órgãos. Foi da<br />

Academia Pernambucana de Letras e da Academia Norte-Rio-Grandense<br />

de Letras, dos <strong>In</strong>stitutos Históricos pernambucano e norte-rio-grandense.<br />

10 Adauto Miranda Raposo da Câmara (Mossoró/RN, 14.03.1898-<br />

Rio de Janeiro/RJ, 17.10.1952). Professor, advogado, político, jornalista,<br />

historiador, biógrafo. Da ANRL. Em 1930, tangido pelos acontecimentos<br />

da revolução, transferiu-se de Natal para o Rio de Janeiro, fundando,<br />

ali, o Colégio Metropolitano. Escreveu sobre a Guerra do Paraguai e sobre<br />

a escritora Nísia Floresta.<br />

11 Salomão Augusto de Vasconcelos Filgueira. Literato e jornalista<br />

potiguar. Coletor Federal, radicou-se em Recife, escrevendo na imprensa<br />

pernambucana sob o pseudônimo de Jota Parnamirim.<br />

12 José Bezerra Gomes. Ver nota em Sertão de espinho e de flor.<br />

849


850<br />

13 Irmãos Pongetti Editora. Editora carioca.<br />

14 Segundo a mitologia grega, herói invencível enquanto tocava a Terra (Gea),<br />

sua mãe, que lhe dava novas forças. Netuno (ou Poseidon) era o seu pai.<br />

Foi vencido por Hércules.<br />

15 Longa viagem ou travessia, especialmente quando realizada para escapar<br />

de um perigo ou de uma situação indesejável; êxodo, fuga. Do árabe hidjra<br />

(significando fuga, emigração). Al-hidjra refere-se especificamente à emigração<br />

de Maomé. Especialistas acham que seria melhor usar o vocábulo<br />

fuga de Maomé, uma vez que ele estava sendo perseguido e foi obrigado a<br />

sair de Meca.<br />

16 Abner de Brito. Poeta parnasiano, jornalista, orador, bacharel em Direito,<br />

magistrado (Caicó/RN, 29.11.1890-Curitiba/PR, 24.01.1951). Residiu<br />

muitos anos em Ceará-Mirim, mudando-se para o Rio de Janeiro e<br />

depois para o Paraná. Ficou famoso, em todo o país, por ser autor do<br />

soneto erótico “O Enterro do Pecado”.<br />

17 Armando Augusto Seabra de Melo (Natal/RN, 17.03.1892-<br />

22.08.1920). Jornalista, filólogo, escritor, precursor da crítica literária no<br />

Estado (Ensaios de Crítica e Literatura – 1923). Estudou medicina na Bahia<br />

e no Rio de Janeiro.<br />

18 Antônio Damasceno Bezerra (Natal/RN, 22.09.1902-14.09.1947).<br />

Jornalista, poeta, boêmio. Morreu na miséria, tuberculoso, numa casinha<br />

de taipa e chão batido, no final da ladeira hoje chamada “do Sol”, no início<br />

da Praia do Meio. OM estava entre os pouquíssimos amigos que o visitavam,<br />

amparando-o de alguma forma. Admirável poeta, ficou conhecido e<br />

lembrado, entretanto, até os dias atuais, pelos sonetos fesceninos que<br />

escreveu (A Cagada e Merda).<br />

19 Ungüento milagroso para a cura de todos os males.<br />

20 Gérard de Nerval (Paris/França, 02.05.1808-Paris/França, 25.01.<br />

1855). Importante poeta francês, traduziu Fausto, de Goethe, aos 20 anos<br />

de idade. Esquizofrênico e alcoólatra, suicidou-se em um beco, em Paris.<br />

Seu admirador, OM várias vezes usou o pseudônimo de “Geraldo Nerval”.<br />

21 Afonso Henriques de Lima Barreto (Rio de Janeiro/RJ, 13.05.1881-<br />

Rio de Janeiro/RJ, 01.11.1922). Jornalista, mulato (neto de escravos),<br />

funcionário público, anarco-socialista, e um dos mais importantes escritores<br />

brasileiros de todos os tempos. Alcoólatra, levou vida atribulada,


internado várias vezes em clínicas psiquiátricas. Triste fim de Policarpo Quaresma<br />

(1915) foi a sua maior obra. Os seus romances, de temática social,<br />

privilegiavam os pobres, os boêmios e os arruinados. Foi severamente<br />

criticado pelos contemporâneos parnasianos pelo estilo despojado, fluente<br />

e coloquial que acabou influenciando os escritores modernistas.<br />

22 Na totalidade, integralmente; em peso.<br />

23 Francisco Gómez de Quevedo y Santibáñez Villegas (Madri/<br />

Espanha, 17.09.1580-Villanueva de los <strong>In</strong>fantes/Espanha, 08.09.1645).<br />

Fidalgo espanhol. Poeta, filósofo, político, crítico literário, satírico, antisemita<br />

– famoso pela vida desregrada que levava. Superdotado intelectualmente,<br />

tinha os pés disformes, era coxo de uma perna, gordo e curto de<br />

vista. Em 1635, os seus inimigos – e eram muitos – fizeram aparecer, em<br />

Valência, o mais importante dos libelos destinados a difamá-lo: El tribunal<br />

de la justa venganza, erigido contra los escritos de Francisco de Quevedo, maestro<br />

de errores, doctor en desverguenzas, licenciado en bufonerías, bachiller en suciedades,<br />

catedrático de vicios y protodiablo entre los hombres [...].<br />

24 Manuel Maria de Barbosa l’Hedois du Bocage (Setúbal/Portugal,<br />

15.09.1765-Lisboa/Portugal, 21.12.1805). Primoroso poeta português<br />

e, possivelmente, o maior representante do arcadismo lusitano.<br />

Foi oficial da Marinha Real Portuguesa. Como Damasceno e Quevedo,<br />

levou existência atribulada e boêmia, popularizando-se, muito mais, pelos<br />

geniais versos satíricos e fesceninos que escreveu.<br />

25 “Está morta”, em inglês.<br />

26 Pensativa.<br />

27 Depressão úmida e sombria nas encostas; grota, biboca.<br />

28 Tirante a amarelo tostado; alourada<br />

29 Que tem cheiro nocivo; podre, fétido, pestilencial, pestilento.<br />

30 “Rainha dos poetas”, em latim. Cognome carinhoso dado a Palmyra<br />

Wanderley por OM, nos anos 1920.<br />

31 Natal, à época (1947), recebia – em razão da situação geográfica e das<br />

instalações e equipamentos deixados pelos americanos em Parnamirim –<br />

todo o fluxo aéreo internacional destinado ao Brasil e países vizinhos.<br />

32 Julita Câmara Cardoso (Natal/RN, ?-Rio de Janeiro/RJ, ?). Poeta,<br />

dramaturga e atriz. <strong>In</strong>tegrou e fundou grupos amadores de teatro, na década<br />

de 1940. Casada com Fernando Cardoso – colega de OM na Base de<br />

851


852<br />

Parnamirim, durante a Segunda Guerra –, também ator e prestidigitador.<br />

O casal, nos espetáculos de magia, usavam os pseudônimos de Aladim e<br />

Salambô. Didi Câmara, antes de migrar para o Sul do país, escreveu e<br />

encenou, pelo menos, no então Teatro Carlos Gomes, duas peças: Os Filhos<br />

do Mar e Divino Mestre.<br />

33 Gilka da Costa de Melo Machado (Rio de Janeiro/RJ, 12.03.1893-<br />

Rio de Janeiro/RJ, 11.12.1980). Poeta simbolista, escreveu versos considerados<br />

escandalosos, na sua época, pelo marcante erotismo.<br />

34 Cecília Benevides de Carvalho Meireles (Rio de Janeiro/RJ,<br />

07.11.1901-Rio de Janeiro/RJ, 09.11.1964). Poeta, professora e jornalista<br />

brasileira, premiada pela ABL.<br />

35 José Maria Vargas Vila (Bogotá/Colômbia, 23.07.1860-Barcelona/<br />

Espanha, 23.05.1933). Pensador, romancista, jornalista, diplomata e escritor.<br />

36 Contínua, repetida, extenuante.<br />

37 Um dos três Cem-Braços, irmão dos Cíclopes e dos Titãs, filho de Urano<br />

e Gaia, tinha cinqüenta cabeças. A pedido da ninfa Tétis, fez as pazes com<br />

Netuno, ajudando o deus do mar a vencer a rebelião das divindades incentivada<br />

por Juno.<br />

38 “Feliz que, como Ulisses, fez uma bela viagem” . Título e primeiro verso<br />

do primeiro quarteto de um célebre soneto de Joachim du Bellay<br />

(1522-1560), poeta francês, fundador, com Pierre de Ronsard (1524-<br />

1585), da Plêiade (grupo de sete poetas, cujo objetivo era a defesa da<br />

substituição do latim pelo francês na literatura francesa, e o enriquecimento<br />

da língua vernácula através da imitação do melhor da literatura<br />

antiga grega e latina).<br />

39 A ilha de Sancho Pança (Dom Quixote, Cervantes, Capítulo XLV – “De<br />

como Sancho Pança tomou posse da sua ilha, e do modo como principiou<br />

a governá-la”).<br />

40 Edgar Ferreira Barbosa (Ceará-Mirim/RN, 15.02.1909-Natal/RN,<br />

06.08.1976). Jornalista, magistrado, professor universitário, poeta bissexto,<br />

escritor de renome. Sua mãe, Joana Ferreira Barbosa, era prima<br />

legítima de Maria da Conceição Ferreira, mulher de <strong>Othoniel</strong> e genitora<br />

do autor destas Notas. A primeira aparição pública do futuro Juiz, ainda de<br />

calças curtas, deu-se numa festa escolar, em Natal, recitando um soneto<br />

de OM, “Pindorama” (Ver Jardim tropical)


41 Manoel Rodrigues de Melo (Pendências/RN, 07.07.1912-Natal/<br />

RN, 29.12.1996). Advogado, contabilista, professor, pesquisador e escritor.<br />

Foi vereador em Natal, por um mandato. Na década de 1930, ardoroso<br />

seguidor do movimento integralista. Presidiu, durante muitos anos,<br />

com competência, a Academia Norte-Rio-Grandense de Letras. Na sua<br />

gestão, construiu o edifício do “Silogeu Potiguar”. Apesar das diferenças<br />

políticas, sempre foi amigo e admirador de OM.<br />

42 Israel Nazareno de Souza. Bacharel em Direito, magistrado, filólogo,<br />

jornalista, professor de Literatura de várias gerações no Atheneu Norte-<br />

Rio-Grandense. Ticiano Duarte (Tribuna do Norte, 02.07.2008), seu exaluno,<br />

pintou-lhe retrato fiel – ao mesmo tempo deliciosamente jocoso:<br />

“Culto, purista da língua portuguesa. Conhecia os clássicos da literatura e<br />

os citava. Foi diretor e editorialista de A República”. Juiz municipal e depois<br />

Procurador do Estado, Israel Nazareno foi, em 1932, um dos fundadores<br />

da Ordem dos Advogados do Brasil, no RN.<br />

43 Rivaldo Pinheiro. Advogado, professor e jornalista, um dos fundadores,<br />

em 18 de setembro de 1939, do Diário de Natal.<br />

44 Rui Garcia da Câmara, poeta e cronista potiguar. Trabalhou com OM<br />

na Base Aérea de Parnamirim, na década de 1940.<br />

45 Ver nota no livro (neste volume) A canção da montanha.<br />

46 "A águia não apanha moscas”. Um espírito superior não se ocupa de coisas<br />

menores.<br />

47 Grande abrigo, no Oriente Médio, para hospedagem gratuita de caravanas,<br />

e que, de ordinário, consta de quatro pavilhões em volta de um pátio.<br />

48 Fingido, hipócrita, manhoso, aborrecido, fastidioso, maçante, indolente<br />

por astúcia, desacreditado, desqualificado, vagaroso.<br />

49 Romain Rolland. Doutor em Arte, escritor, professor, novelista, biógrafo<br />

e músico francês (França, 1866-1944). Recebeu o Prêmio Nobel<br />

de Literatura em 1915. Fez importante observação sobre o livro O Futuro<br />

de uma Ilusão, de Sigmund Freud. Esta observação foi a premissa usada por<br />

Freud para escrever o livro seguinte O Mal-estar na Civilização. Quando o<br />

filósofo político italiano Antônio Gramsci escreveu, na prisão, que o “pessimismo<br />

da inteligência” não deveria abalar o “otimismo da vontade”, estava<br />

citando Roman Rolland.<br />

50 Romildo Fernandes Gurgel (Natal/RN, 05.05.1929-Natal/RN,<br />

31.05.1995). Jornalista, advogado, conselheiro, político, professor uni-<br />

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854<br />

versitário. Foi secretário de Educação e presidente do Tribunal de Contas<br />

do Estado. Dirigiu a República, o Jornal do Comércio e O Democrata – jornal<br />

que publicou, em capítulos, este ensaio de OM.<br />

51 Alan Kardec (Lyon/França, 03.10.1804-Paris/França, 31.03.1869).<br />

Pseudônimo de Hippolyte Léon Denizard Rivail. Pedagogo e escritor.<br />

Notabilizou-se como o codificador do Espiritismo, também denominado<br />

de Doutrina Espírita. OM <strong>Menezes</strong> era espírita, admirador e estudioso da<br />

obra do grande pensador.<br />

52 Emmanuel-Adolphe Langlois Des Essarts (Paris/França,<br />

05.02.1839-Lempdes-Haute-Loire/França, 17.10.1909). Poeta e escritor.<br />

Defensor do espiritualismo cristão, liberal republicano, professor e<br />

amigo de Hugo, Gautier, Leconte de Lisle, Banville, Sainte-Beuve, Laprade,<br />

Quinet. Admirador e também amigo de Walt Whitman.<br />

53 “Sobre o branco pedestal da serenidade / Sem impulso sobre-humano,<br />

sem soberba, inveja,/ Todo o prazer de um ideal visível e limitado.”<br />

54 Retorno à vida, renascimento, regeneração. Eterno retorno. Segundo<br />

Schopenhauer, renascimento sucessivo dos mesmos indivíduos.<br />

55 Que celebram o nascimento de alguém, o aniversário.<br />

56 Manoel do Nascimento Fernandes de Oliveira (Natal/RN,<br />

24.12.1888 - ?). Poeta, crítico literário e jornalista. Funcionário público<br />

estadual, irmão de Jorge e Sebastião Fernandes. Publicou, em 1913, um<br />

volume de versos: Livro de Matilde.<br />

57 Francisco Bruno Pereira (Mossoró/RN, 06.10.1896-Natal/RN,<br />

01.04.1979). Jornalista, professor, político, magistrado (Justiça do Trabalho).<br />

Fundou jornais em Natal, Recife e no Rio de Janeiro. Panfletário,<br />

combateu às oligarquias da província, sofrendo perseguições. Foi deputado<br />

estadual.<br />

58 “A lista é longa, sobre os melhores” – expressão idiomática francesa, empregada<br />

por Vitor Hugo na peça teatral Ernani (1830).<br />

59 “A terra onde vivem os leões”, em latim.<br />

60 Correção, castigo, punição; escaldadura.<br />

61 Oscar Fingal O’Flahertie Wills Wilde (Dublin/Irlanda, 16.10.1854-<br />

Paris/França, 30.11.1900). Escritor, poeta e teatrólogo irlandês. O Retrato<br />

de Dorian Gray (1890) foi o único romance que escreveu. Bissexual,


sofreu duramente, à época, condenado à prisão por sodomia. Chamou a<br />

homossexualidade de “o amor que não ousa dizer o nome”.<br />

62 Pedra da Baixinha. Rochedo submerso, na barra do Rio Potengi, em<br />

Natal.<br />

63 Escola Doméstica de Natal. Fundada em 1º de setembro de 1914 e<br />

mantida, muitos anos, pela Liga de Ensino do Rio Grande do Norte. Em<br />

1959, integrou-se à UFRN, como órgão complementar. Nos primeiros<br />

anos de atividades, serviu, sempre, às filhas da elite endinheirada do Estado.<br />

64 Herculano Ramos. Arquiteto, engenheiro-civil mineiro (Belo Horizonte/MG,<br />

26.03.1854-Belo Horizonte/MG, 17.01.1928). Servindo às<br />

ordens do governador Alberto Maranhão, reiniciou a construção do Teatro<br />

Carlos Gomes, projetou e construiu a Praça Augusto Severo (Jardim<br />

Público), o Palacete do Congresso (sede atual da Prefeitura Municipal de<br />

Natal), o ajardinamento da Praça André de Albuquerque, a reforma do<br />

Cais Tavares de Lira e a construção do Grupo Escolar Augusto Severo.<br />

Trabalhou, ainda, no Ceará, na Bahia, em Recife e no Rio de Janeiro.<br />

65 Duas das musas gregas, irmãs. Melpômene (significando “coro”), a musa<br />

da tragédia, usualmente representada com uma máscara trágica e usando<br />

os coturnos (botas tradicionalmente gastas e usadas pelos atores). Algumas<br />

vezes, segura uma faca ou bastão em uma mão, e a máscara na outra.<br />

Tália (significando “festividade”), preside a comédia e a poesia leve. Seus<br />

símbolos são a máscara cômica e um cajado de pastor. Tália também é o<br />

nome de uma das Graças (Cáritas).<br />

66 Grêmio literário natalense. Editava a revista Oásis. Em 1894, publicou os<br />

primeiros versos de Auta de Souza.<br />

67 Outra organização literária, ativa entre os anos de 1920 e 1924. Publicava,<br />

também, uma revista.<br />

68 Traçado de aguardente com vermute ou quinado.<br />

69 Em que há, ou que revela ou constitui gozo.<br />

70 Estevão José Barbosa de Moura (1810-1891). Vice-presidente da<br />

província do Rio Grande do Norte, tendo assumido a presidência interinamente<br />

por três vezes, de 6 de julho a 4 de dezembro de 1841, de 31 de<br />

março a 31 de maio de 1842 e de 15 de novembro de 1842 a 7 de julho de<br />

1843. Coronel da Guarda Nacional, senhor de terras, muito rico, cons-<br />

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856<br />

truiu o Solar do Ferreiro Torto, no engenho do mesmo nome, à margem<br />

direita do rio Jundiaí, em Macaíba. Governando a Província um certo<br />

Manoel Ribeiro da Silva Lisboa (1807-1838), vulgarmente conhecido<br />

como “Parrudo”, tido como “prepotente e libidinoso”, e ofendendo este a<br />

honra do coronel Estevão Moura, foi assassinado às ordens deste, por<br />

escravos “de confiança”, em 11 de abril de 1838.<br />

71 Aptidão, queda, pendor, vocação.<br />

72 Joaquim Xavier da Silveira Júnior (Santos/SP, 11.10.1854-Rio de<br />

Janeiro/RJ, ?). Tinha 26 anos quando governou o Rio Grande do Norte,<br />

de 10 de março a 19 de setembro de 1890.<br />

73 Canção pastoril dos antigos trovadores portugueses; serrana.<br />

74 OM enganou-se. O autor dos versos da modinha era o pai do presidente,<br />

Joaquim Xavier da Silveira, político paulista importante.<br />

75 Antônio Elias Álvares de França (Nova Cruz/RN, 23.05.1854-Natal/RN,<br />

25.08.1915). Músico e poeta bissexto, servidor público, animador<br />

cultural, parente próximo da família materna de OM (os Álvares de<br />

<strong>Menezes</strong>). Dele, disseram, na imprensa (A República), troçando: “É ótimo<br />

marido, excelente pai, avô carinhoso e péssimo poeta”.<br />

76 Atual Rua Padre Pinto, na Cidade Alta.<br />

77 Tommaso Babini (Faenza/Itália, 10.01.1885-Recife/PE, 1949).<br />

Violoncelista, professor da Escola de Música do Teatro Alberto Maranhão<br />

e da Escola Doméstica. Viveu mais de trinta anos em Natal.<br />

78 Nicolino Milano (Lorena/SP, 25.06.1876-Rio de Janeiro/RJ,<br />

01.10.1962). <strong>In</strong>strumentista, professor, compositor. Estudou no Rio de<br />

Janeiro. Viveu parte de sua vida na corte portuguesa, onde foi muito<br />

prestigiado pelo Rei D. Carlos (penúltimo rei de Portugal, 1863/1908),<br />

que o presenteou com um precioso violino e o nomeou instrumentista da<br />

Real Câmara. Autor do fado “Liró” (1908), melodia na qual Eduardo<br />

Medeiros confessava se haver inspirado para musicar os versos da “Praieira”<br />

(“Serenata do Pescador”) de OM.<br />

79 Luigi Maria Smido (ou Luigi Maria Schmidt und <strong>In</strong>sbruck). Nascido<br />

na Itália, falecido no Rio de Janeiro/RJ, em 13 de agosto de 1943. Maestro<br />

e professor, esteve em Natal em várias oportunidades. A primeira em<br />

1903, dirigindo a Orquestra do Teatro, o departamento de música da Escola<br />

Doméstica e a banda do Batalhão de Segurança (Polícia Militar). Tra-


alhou no Ceará e, em 1936, no Rio de Janeiro. Foi professor catedrático<br />

de <strong>In</strong>strumentação e Composição. Diziam-no pertencer à nobreza européia,<br />

“descendente de São Luís Gonzaga e amigo de infância do rei Vittorio<br />

Emanuelle II, tendo estudado em Leipzig e Viena”.<br />

80 Antônio Paulino de Andrade (Tota Andrade ou Tota Paulino). “Nasceu<br />

em São José de Mipibu, em 2 de julho de 1866. Em 3 de junho de<br />

1893, quando da organização da banda de música da Polícia Militar (criada<br />

em 1870), Antônio Paulino de Andrade foi contratado, como 3º sargento<br />

músico, para exercer a regência do conjunto. Sua primeira apresentação<br />

parece ter sido em 12 de junho de 1897, quando participou de um concerto,<br />

juntamente com diversos músicos locais. Em 7 de julho de 1903,<br />

no concerto do barítono Corbiniano Vilaça, realizado no Palácio do Governo,<br />

Tota Andrade executou o Andante do 7º Concerto para flauta, de<br />

Ch. Beriot, acompanhado ao piano por Amália de Paula, que se tornaria,<br />

posteriormente, sua esposa. No mesmo evento, participou do trio, com<br />

Joaquim Scipião e Amália de Paula, tocando La fille du Regiment, de Ernest<br />

Alder. Desde 1906 oferecia seus serviços de afinação de pianos, o que<br />

faria por muitos anos. Em junho, nas comemorações do centenário de<br />

Frei Miguelinho, desfilou a banda de música Antônio Andrade, de Macaíba,<br />

regida por Enéas Hipólito Dantas. Em 1922 estava em Belém, onde realizou<br />

um concerto no Teatro da Paz, em 17 de agosto, quando apresentou<br />

instrumentos musicais de sua invenção: um xilofone, uma flauta vertical<br />

com mais quatro chaves, indo ao sol gravíssimo, (que ele intitulou “Flauta<br />

Centenária”, em homenagem ao centenário da <strong>In</strong>dependência do Brasil) e<br />

uma bateria mecânica - a bateria “Natalense” (notícia veiculada por A Folha<br />

do Norte, de Belém). Citado no livro Música e Músicos do Pará, informa-se<br />

que, naquela cidade “dedicava-se ao ensino de piano e flauta, afinação de<br />

pianos, regeu orquestras populares. Foi organista em igrejas em Belém.<br />

Recuperou o órgão da Basílica de Nazaré e fez parte da orquestra do<br />

Centro Musical Paraense”. O mesmo livro cita como suas composições:<br />

“Beijo Dourado”, xote, 1907, “Club das Moças”, xote, 1907, “Cocota”,<br />

valsa, 1902, “Rosas sobre Rosas”, valsa, “<strong>In</strong>ailan”, tango, “Souvenir do Pará”,<br />

fantasia, “Paraense”, grande marcha. Durante sua estada em Belém, publicou,<br />

pela Livraria Bittencourt: “Rosas sobre rosas” (valsa), “Arsildi”, “Moças<br />

e flores”, “Club Tracema” (quadrilha). Em 8 de março de 1923, com<br />

acompanhamento ao piano de sua esposa Amália Andrade, apresentou um<br />

concerto no Teatro Carlos Gomes, onde demonstrou os instrumentos de<br />

857


858<br />

sua invenção, flauta vertical, aparelho rítmico para substituir as baquetas<br />

em tambor comum, um xilofone e sistema moderno de timbales. Concluiu<br />

tocando o Hino Nacional, com a orquestra do teatro, para apresentar<br />

a bateria por ele inventada. Em novembro de 1932 tomou parte na reunião<br />

que definiu a criação do <strong>In</strong>stituto de Música e, em fevereiro de 1933,<br />

está relacionado entre os professores, lecionando flauta e instrumentos<br />

de sopro e apresentado como tendo sido o 1ª flauta na orquestra de Belém.<br />

Em 8 de março tocou xilofone, serrote, e bateria mecânica, acompanhado<br />

pela esposa, no serviço de alto-falantes da cidade. Na estréia do Departamento<br />

Musical do Conjunto Teatral Potiguar, em 22 de outubro de 1943,<br />

apresentou-se, com Amália, tocando serrote, xilofone e flauta vertical.<br />

Além dos instrumentos de sua invenção já mencionados, há notícias de<br />

um violoncelo de tamanho reduzido que, além de diminuir o espaço<br />

tomado pelo instrumento, teria ainda a vantagem de eliminar a dificuldade<br />

de obtenção dos sons agudos. Faleceu em Natal, em 17 de outubro de<br />

1950" (Verbete transcrito do livro Música e Músicos do RN, de Cláudio<br />

Galvão, em preparo).<br />

81 Waldemar de Almeida (Macau/RN, 24.08.1904-São Paulo/SP,<br />

26.05.1975). Pianista, maestro e professor. Estudou na Europa e fundou,<br />

na década de 1930, o <strong>In</strong>stituto de Música do RN.<br />

82 Luís Francisco Junqueira Ayres de Almeida (Salvador/BA, 1860-<br />

Recife/PE, 10.05.1896). Engenheiro, jornalista, orador e deputado federal<br />

pela Bahia e pelo RN, apadrinhado político de Pedro Velho de<br />

Albuquerque Maranhão.<br />

83 Chantecler. Acreditava-se que o canto desse galo era o responsável pelo<br />

nascer do sol. Personagem da peça teatral do mesmo nome, de Edmond<br />

Rostand (1868-1918), escritor, poeta e dramaturgo francês – autor,<br />

também, de Cyrano de Bergerac, obra imortal.<br />

84 Roderic Crandall. Geólogo californiano (EUA,1885-1967), consultor<br />

do governo brasileiro. Escreveu sobre a sua especialidade: Geografia,<br />

geologia, suprimento d’água, transportes e açudagem dos Estados Orientais do<br />

Norte do Brasil: Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba – 4ª. Edição/Ufersa.<br />

85 A essência, o princípio da coisa (latim).<br />

86 Qualidade, estado ou condição de redolente: de aroma agradável; olorosa,<br />

rescendente.


87 Dizia, o único artigo do diploma legal: “é o governador autorizado a premiar<br />

livros de ciência e literatura produzidos por filhos domiciliados no<br />

Rio Grande do Norte, ou naturais de outros Estados quando neste tenham<br />

fixa e definitiva a sua residência”.<br />

88 Relativo a oblação; que envolve ou vale por oblação (ato de fazer uma<br />

oferta a Deus ou aos santos).<br />

89 Juvenal Antunes de Oliveira (Ceará-Mirim/RN, 29.04.1883-<br />

Manaus/AM, 29.04.1941). Bacharel em Direito, promotor público, jornalista.<br />

Morou muitos anos no Acre. Esmeraldo Siqueira, homenageando-o,<br />

escreveu Juvenal Antunes, o <strong>In</strong>olvidável Boêmio (Editora Nordeste,<br />

2000). Famoso pelo poema “Elogio da Preguiça”, tornou-se personagem<br />

da minissérie “Amazônia”, da Rede Globo de Televisão, escrita por Glória<br />

Perez.<br />

90 Pseudônimo do jornalista, poeta e escritor satírico italiano Dino Segre<br />

(Turim/Itália, 09.05.1883-Turim/Itália, 08.05.1975). Morou na Argentina<br />

e na França.<br />

91 Francisco Tavares Pereira Palma (Timbaúba/PE, 01.12.1875-Natal/RN,<br />

18.05.1952). Poeta, teatrólogo, jornalista e funcionário do Tesouro<br />

Estadual. Publicou Santelmos e Luz e Cinza (versos). Um dos fundadores<br />

da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras.<br />

92 Sebastião Fernandes de Oliveira (Natal/RN, 11.03.1880-Natal/RN,<br />

29.05.1941). Poeta, teatrólogo, magistrado. Foi secretário-geral do Estado<br />

e presidiu o Tribunal de Justiça. Irmão do poeta Jorge Fernandes, compôs<br />

versos para famosas modinhas.<br />

93 Que desenvolve conversa brilhante, sedutora (francês).<br />

94 “Prender, conter na gaiola” (francês).<br />

95 Referência à peça “O Pássaro Azul”, de Maurice Maeterlink, dramaturgo e<br />

ensaísta belga de língua francesa, e principal expoente do teatro simbolista<br />

(Ver nota anterior sobre esse autor).<br />

96 Severino Silva (PB, 09.08.1887-Rio de Janeiro/RJ, 1962). Poeta, jornalista,<br />

pastor protestante e bacharel em Direito, nascido na Paraíba de<br />

família potiguar. Estudou no Atheneu, formou-se em Direito em Belém<br />

do Pará. Membro da Academia Paraense de Letras. “Príncipe dos Poetas<br />

Paraenses”, migrou para o Rio de Janeiro, onde, por concurso público, foi<br />

nomeado comissário de Polícia do então Distrito Federal.<br />

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97 Francisco Ivo Cavalcanti (Natal/RN, 26.08.1885-Natal/RN,<br />

11.03.1969). conhecido como Chico Ivo ou Ivo Filho. Professor, poeta,<br />

jornalista e advogado. Seu livro de poesias, Crisântemos, foi publicado em<br />

1906.<br />

98 Ana Lima Souto dos Santos Lima (Assu/RN, 16.05.1882- Natal/<br />

RN, 18.01.1918). Poeta. Seu livro Verbenas (1901) foi prefaciado pelo<br />

jornalista Pedro Avelino. Foi casada com o professor Celestino Pimentel.<br />

99 Clóris. Deusa das flores, esposa de Zéfiro, também chamada de Flora.<br />

100 Joaquim Homem de Siqueira Cavalcanti (Recife/PE, 08.06.1876-<br />

Natal/RN, 27.10.1952). Magistrado (desembargador), jornalista e poeta.<br />

Escrevia sob vários pseudônimos: René de Vincy, Henrique Selva, Ego,<br />

Cicinato, Memo. Pai dos poetas Esmeraldo, Carlos e Milton Siqueira,<br />

além do desembargador Oscar Siqueira.<br />

101 Tobias Barreto de <strong>Menezes</strong> ((Vila de Campos do Rio Real/SE,<br />

07.06.1839-Recife/PE, 26.06.1889). Filósofo, poeta, crítico e jurista<br />

brasileiro; fervoroso integrante da Escola do Recife (movimento filosófico<br />

de grande força calcado no monismo e evolucionismo europeu). Fundador<br />

do condoreirismo brasileiro e patrono da cadeira nº 38 da Academia<br />

Brasileira de Letras.<br />

102 Josué Tabira da Silva (Natal/RN, 1889-Maceió/AL, 21.08.1976).<br />

Poeta, trovador, jornalista e advogado. Morou em Sergipe e Alagoas. Formou-se<br />

em Direito na Terra dos Marechais, na mesma turma de um dos<br />

filhos. O autor destas notas, entristecido, viu, em Maceió, depois da morte<br />

do poeta, vários dos livros da sua biblioteca vendidos numa calçada. Foi<br />

da Academia Sergipana de Letras.<br />

103 Deolindo Ferreira Souto dos Santos Lima. Ver nota 5, em Ara de fogo<br />

(neste volume).<br />

104 Antônio Glicério das Chagas (Ceará-Mirim/RN, 02.07.1881-Santo<br />

Antônio/RN, 05.06.1921). Poeta, gráfico, boêmio. Deixou inédito um<br />

livro de versos: Cantilenas<br />

105 João Estevão Gomes da Silva. Poeta, gráfico, político, líder operário<br />

(Natal/RN, 16.12.1883-Natal/RN, 07.05.1969). Fundador de Centro<br />

Operário de Natal, deputado estadual – o primeiro eleito, no Estado, pela<br />

classe operária. Com Josué (Tabira da) Silva e Emídio Fagundes, colaborou<br />

e imprimiu uma pesquisa sobre a maçonaria no RN.


106 Manoel Segundo Wanderley (Natal/RN, 06.04.1860-Natal-RN,<br />

14.01.1909). Poeta, médico, dramaturgo, jornalista. Rocha Pombo achava<br />

que era “o primeiro dos poetas potiguares”. Já o conterrâneo Antônio<br />

Marinho chamou-o de “condoreiro démodé”.<br />

107 O rio Letes localiza-se, de acordo com a mitologia clássica, no inferno<br />

(Hades),onde os mortos se banhavam e esqueciam sua existência anterior.<br />

Na Comédia de Dante, Letes é um rio do purgatório, onde as almas<br />

penitentes se banham e se purificam, para que possam ter acesso ao Paraíso.<br />

Letes também é o córrego que flui através da gruta que Virgílio e<br />

Dante atravessam para chegar do inferno ao purgatório (Canto XXXIV).<br />

108 Fundo musical – discreto, de pouca intensidade – para a recitação de<br />

poesia nos saraus.<br />

109 Ver nota em Notas ao Canto 8, do Sertão de espinho e de flor.<br />

110 Alphonse Marie Louis de Prat de Lamartine (Mâcon/França,<br />

21.10.1790-Paris/França, 28.02.1869). Escritor, poeta e político francês.<br />

Seus primeiros livros de poemas (Primeiras Meditações Poéticas, 1820 e<br />

Novas Meditações Poéticas, 1823) celebrizaram o autor e influenciaram o<br />

Romantismo na França e em todo o mundo.<br />

111 Lorenzo Stecchetti. Pseudônimo com que se celebrizou o poeta italiano<br />

Olindo Guerrini (S. Alberto de Ravena/Itália, 14.10.1845-Turim/<br />

Itália 22.10.1916).<br />

112 George Gordon Byron (Londres/<strong>In</strong>glaterra, 22.01.1788-<br />

Missolonghi/Grécia, 19.04.1824). 6º barão Byron melhor conhecido<br />

como lorde Byron. Poeta britânico e uma das figuras mais influentes do<br />

Romantismo. Famoso por obras-primas como Peregrinação de Childe Harold<br />

e Don Juan. A fama de Byron não se deve somente aos seus escritos, mas<br />

também a sua vida – amplamente considerada extravagante — que inclui<br />

numerosas amantes, dívidas, separações e alegações de incesto. Dizem os<br />

entendidos ter sido um dos primeiros escritores a descrever os efeitos da<br />

maconha. Lady Caroline Lamb – com quem teve um “caso”, dizia-no<br />

“louco, mau e perigoso para se conhecer”. Curiosamente, sua filha, Ada<br />

Lovelace, colaborou com Charles Babbage para o “engenho analítico”,<br />

um passo importante na história dos computadores.<br />

113 Luís Delfino dos Santos (Desterro/Florianópolis/SC, 25.08.1834-<br />

Rio de Janeiro/RJ, 31.01.1910). Médico, político (foi senador, na República<br />

Velha) e poeta brasileiro. Não publicou livros. Parnasiano, envere-<br />

861


862<br />

dou, depois para o simbolismo, a exemplo do seu conterrâneo Cruz e<br />

Souza.<br />

114 Ver nota ao poema “Via-Crúcis”, no livro Gérmen (neste volume).<br />

115 Joaquim Eduvirges de Melo Açucena (Natal/RN, 17.10.1827-<br />

Natal/RN, 28.03.1907). Dito Lourival Açucena. Poeta, compositor, músico,<br />

cantor, dramaturgo e boêmio afamado. É patrono de uma das cadeiras<br />

da Academia de Letras do RN.<br />

116 Modinha lançada, no Rio de Janeiro, em 1905. Versos de Catulo da Paixão,<br />

com música de Edmundo Otávio Ferreira.<br />

117 Antônio Marinho Pessoa (Natal/RN, 06.08.1878-Angicos/RN,<br />

04.05.1902). Jornalista, funcionário público. Polemista iconoclasta, considerado<br />

o primeiro crítico literário do Estado, escrevia sob o pseudônimo<br />

de Anthero Marialva. Numa conferência, nublou a fama de Segundo<br />

Wanderley, considerado, à época, o maior poeta conterrâneo. Morreu aos<br />

24 anos, tuberculoso.<br />

118 Pedro Celestino da Costa Avelino (Angicos/RN, 19.05.1861-Rio<br />

de Janeiro/RJ, 20.06.1923). Jornalista, político, servidor público. Republicano<br />

ardoroso, fundou e dirigiu jornais em Recife, Natal e no Rio. Foi<br />

prefeito nomeado no Acre e tesoureiro do Ministério da Viação e Obras<br />

Públicas.<br />

119 Ver nota no livro Gérmen (neste volume).<br />

120 Aqueles que fazem verrinas; verrinistas. Censores violentos, críticos apaixonados.<br />

De verrina – Cada um dos discursos de Cícero (106-43 a. C.),<br />

político e escritor, o maior dos oradores romanos, contra Caio Verres (c.<br />

120-43 a. C.), procônsul romano (II-I séc. a. C.).<br />

121 Deslize, escorregadela (francês).<br />

122 Adquirir, conseguir (francês).<br />

123 Elias Antônio Ferreira Souto (Assu/RN, 25.01.1848-Natal/RN,<br />

17.05.1906). Poeta, professor, jornalista. Fundou e dirigiu jornais em<br />

Assu, Macau, São José e Natal. Na capital, criou a primeira folha diária do<br />

Estado – o Diário de Natal (que não é o atual, fundado em 1939). Monarquista<br />

e abolicionista.<br />

124 Jean-Paul Marat (Boudry/Suíça, 24.05.1743-Paris/França,<br />

13.06.1793). Médico, cientista e jornalista francês. No ano da eclosão da<br />

Revolução Francesa, 1789, fundou o jornal L’Ami du Peuple (O Amigo do


Povo), em que se revelava defensor das causas populares. Condenado<br />

várias vezes, era visto como o porta-voz do partido jacobino, a ala mais<br />

radical da revolução. Considerado fora-da-lei, refugiou-se na <strong>In</strong>glaterra<br />

em 1790 e no verão de 1791, retornando então a Paris. Foi um dos dirigentes<br />

da Comuna de Paris.<br />

125 Residência de Madame de Rambouillet. De 1607 até a sua morte, em<br />

1665, recebia, nos seus salões, a elite francesa.<br />

126 Francisco Pereira da Silva (Guamaré/RN, 07.09.1890-Manaus/AM,<br />

10.09.1973). Poeta, jornalista, político, secretário de Estado. Foi para o<br />

Amazonas ainda adolescente. Deputado federal por quatro mandatos.<br />

Idealizador da Zona Franca de Manaus. Publicou Poemas Amazônicos (1927).<br />

127 Augusto César Leite (Natal/RN, 15.03.1863-Natal/RN, 20.02.1921).<br />

Líder operário, tipógrafo, jornalista e poeta, autor de modinhas.<br />

128 Açucena, lírio.<br />

129 José Gotardo Emerenciano Neto (Natal/RN, 24.07.1881-Natal-RN,<br />

07-05-1911). Poeta, jornalista, funcionário público (da Capitania dos Portos).<br />

A ele, em 1909 (aos 14 anos, aluno do Atheneu e da Escola Normal),<br />

OM mostrou os primeiros versos, recebendo incentivo e orientação.<br />

Depois de Gotardo, <strong>Othoniel</strong> procuraria abrigo e conselho na cultura e na<br />

inteligência de Henrique Castriciano.<br />

130 Ponciano de Morais Barbosa (Natal/RN, 19.11.1889-Natal/RN,<br />

12.01.1919). Poeta, advogado, político, cronista e dramaturgo. Na sua<br />

época, era um verdadeiro dândi, vestindo-se com apuro.<br />

131 Murilo Aranha (Macaíba/RN, 1890-Lajes/RN, 1919). Poeta e jornalista.<br />

Estudou Odontologia no Rio de Janeiro e fez jornalismo no Correio<br />

da Noite e em várias revistas. Tuberculoso, retornou ao RN e foi viver em<br />

Lages, esperando curar-se pelo clima. Fundou e dirigiu em Lages o jornal<br />

A Pátria, falecendo pouco depois. Publicou César Bórgia e Nevroses (poesia).<br />

Deixou inédito outro livro: A Catedral.<br />

132 Monge, indivíduo que leva vida retirada.<br />

133 O professor Zuza (José Idelfonso Emerenciano), mestre de muitas gerações,<br />

nome de rua em Natal.<br />

134 Imóvel, hoje descaracterizado, na esquina (lado leste) das ruas Felipe Camarão<br />

e Professor Zuza, na Cidade Alta (no Centro de Natal).<br />

135 Título do único livro de Gothardo Neto, publicado, postumamente, em 1913.<br />

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864<br />

136 Corrente de fora para dentro, entre dois líquidos de densidades diversas<br />

separados por uma membrana ou placa porosa.<br />

137 Raimundo da Mota Azevedo Correia (Maranhão, 13.05.1860-Paris/França,<br />

13/09/1911). Raimundo Correia nasceu a bordo do navio<br />

São Luiz, ancorado em águas maranhenses. Poeta, professor e magistrado,<br />

considerado o maior parnasiano brasileiro.<br />

138 Referência a Thomas Alva Edison (Milan, Ohio/Estados Unidos,<br />

11.02.1847-West Orange, Nova Jersey/Estados Unidos, 18.10.1931)<br />

Empresário e inventor da lâmpada elétrica.<br />

139 Chapéu alto, de feltro duro.<br />

140 Tecido de linho, caro, brim da marca inglesa HJ: “[...] na volta de buquê<br />

nas mãos e riso nos olhos, ao lado de Laurindo, meu marido, ele de terno<br />

branco de linho HJ, um cravo rajado na lapela.” (Nossos Clássicos, Raquel<br />

de Queiroz por Heloísa Buarque de Hollanda, Editora Agir).<br />

141 Madeixa, mecha, bendengó.<br />

142 Cosmético à base do óleo da oriza (planta amazônica, semelhante ao<br />

Patchouli asiático), muito usado, à época, como condicionador e fixador<br />

das pontas dos avantajados bigodes da época.<br />

143 Coisa frágil, delicada.<br />

144 Triângulo de tecido leve usado pelas mulheres para cobrir os ombros ou<br />

a cabeça.<br />

145 Cravina ou estefanote – jóias ou bijuterias, em forma de flor e/ou folhas,<br />

providas de um alfinete longo ou de fecho que, comumente, se usavam ao<br />

peito para prender e/ou enfeitar uma peça de vestuário.<br />

146 Ver nota em Sertão de espinho e de flor.<br />

147 Ceias da noite de Natal.<br />

148 Deixando cair gota a gota; gotejando, destilando, ressudando.<br />

149 Que tem cheiro agradável; aromática.<br />

150 Colheita de qualquer fruto.<br />

151 Lanceiros de alguns antigos exércitos europeus.<br />

152 Apelido do capitão da Força Pública – hoje Polícia Militar – João<br />

Fernandes de Almeida. Comandou, por longos anos, o Esquadrão de<br />

Cavalaria e a Seção de <strong>In</strong>cêndio da corporação. Quando tenente, em 1913,<br />

participou do grave tiroteio com os correligionários de José da Penha, na


Ribeira. Num poema feito no exílio do Uruguai, Djalma Maranhão classificou<br />

Joca do Pará como “o primeiro Sherlock que a cidade conheceu”.<br />

153 Branca. A musa de Itajubá, Emília – segundo José Bezerra Gomes –, “a<br />

moça que partiu noiva do poeta para o Pará e que lá morreria de saudade<br />

por ele, coberta de luto, colecionando-lhes as poesias num papelão que<br />

depois mandou emoldurar num quadro e que foi também a grande paixão<br />

amorosa do Poeta.”<br />

154 Mireille. A modelo amada e preferida, musa do pintor francês Toulouse-<br />

Lautrec (1864-1901). Era prostituta da Rue des Moulins, na Paris do fim do<br />

século XIX.<br />

155 Mescla de algodão encorpado, rústico, com fios brancos e azuis; azulão.<br />

156 Pierre Loti. Pseudônimo do escritor e oficial da marinha francês Julien<br />

Viaud (Rochefort, 1850-Hendaye, 1923). Foi autor de textos autobiográficos<br />

impregnados de um exotismo nostálgico: Le Mariage de Loti (1882),<br />

Mon frère Yves (1883), Pêcheur d’Islande (1886), Madame Chrysanthème (1887)<br />

e Ramuntcho (1897).<br />

157 Jacques-Henri Bernardin de Saint-Pierre (Le Havre/França,19.01.1737-Éragny/França,<br />

21.01.1814). Escritor, naturalista, engenheiro,<br />

romancista, militar e viajante.<br />

158 Almas do outro mundo, fantasmas, espectros; aparições desagradáveis,<br />

repugnantes.<br />

159 Tinge-se de púrpura (da cor).<br />

160 “Olho de enfado imemorial” (francês).<br />

161 Organismo homogêneo que desempenha, conforme os espíritas, todas as<br />

funções da vida psíquica ou da vida separada do corpo, funções essas<br />

correspondentes, na vida terrena, a outros tantos sentidos.<br />

162 Explodir, detonar, estourar, desabrochar, irromper.<br />

163 Disposição ou tendência moral mórbida.<br />

164 Charles-Pierre Baudelaire (Paris/França-09.04.1821-Paris/França,<br />

31.08.1867). Poeta simbolista e crítico de arte. Um gênio. Dependente<br />

químico, levou vida desregrada e infeliz.<br />

165 “A poesia é a infância reencontrada” (francês).<br />

166 “Graça de bardo, de trovador” (francês).<br />

167 Referência a Bento (ou Benedictus, ou Benedito, ou Baruch) de Spinoza<br />

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866<br />

(Amsterdã/Holanda, 24.11.1632-Haia/Holanda, 21.02.1677). Filósofo,<br />

fundador do criticismo bíblico moderno.<br />

168 Aristide Briand (Nantes/França, 28.03.1862-Paris/França,<br />

07.03.1932). Político francês, ocupou o cargo de primeiro-ministro da<br />

França seis vezes. Foi premiado com o Nobel da Paz em 1926.<br />

169 Fabião Hermenegildo Ferreira da Rocha (Santa Cruz/RN, 1848-<br />

Barcelona/RN, 1928). Dito Fabião das Queimadas. Poeta popular,<br />

improvisador admirável, rabequeiro famoso. Ex-escravo, comprou a própria<br />

alforria com os rendimentos da sua arte. Como era de costume,<br />

adotou os sobrenomes (Ferreira da Rocha) do antigo dono.<br />

170 Pierre Lasserre (1867-1930). Crítico literário francês, jornalista e<br />

ensaísta.<br />

171 Agripino Grieco (Paraíba do Sul/RJ, 15.10.1888-Rio de Janeiro/RJ,<br />

25.08.1973). Poeta e crítico literário. O mais ferino examinador das obras<br />

e nomes da literatura nacional. Dizia ele: “Medíocre algum recebeu de<br />

mim palavras de louvor à sua obra”; ou “Nenhum muar ficou impune nos<br />

meus cinqüenta anos de crítica literária, exercitada não apenas em colaborações<br />

nos jornais, mas também através de conferências que proferi em<br />

todos os Estados do Brasil”.<br />

172 Travessa; irrequieta, buliçosa, traquina.<br />

173 Primaveril, jovem, de pouca idade.<br />

174 Emprego de vocábulo ou frase estranha à língua vernácula, ou de uso raro;<br />

estrangeirismo.<br />

175 Nimrod. Também grafado Ninrode ou Nemrod. Personagem bíblico<br />

descrito como o primeiro poderoso na terra (Gênesis 10:8; 1 Crônicas<br />

1:10). Filho de Cush, que era filho de Cam, que era filho de Noé.<br />

176 Antoine Hercule Romuald Florence (Nice/França, 29.02.1804-Campinas/SP,<br />

27.03.1879). Conhecido entre nós, como Hércules Florence.<br />

Polígrafo e desenhista francês que passou a maior parte de sua vida no Brasil, na<br />

cidade de Campinas. Um dos pioneiros da fotografia na América Latina. Responsável<br />

por diversas invenções, além da zoofonia (método para a transcrição<br />

do canto dos pássaros). Foi ainda pioneiro da imprensa no Brasil, ao fundar, em<br />

1836, O Paulista, primeiro jornal do interior da província de São Paulo.<br />

177 José Francisco da Rocha Pombo (Morretes/PR, 04.12.1857-Rio de<br />

Janeiro/RJ, 26.06.1933). Jornalista, professor, historiador, político e es-


critor brasileiro. Abolicionista e republicano, professor do Colégio Pedro<br />

II, membro do IHGB.<br />

178 Relativo a Friedrich Heinrich Alexander, barão de Humboldt<br />

(Berlim/Alemanha, 14.09.1769-Berlim/Alemanha, 06.05.1859), mais<br />

conhecido como Alexander von Humboldt, naturalista e explorador alemão.<br />

Foi etnógrafo, antropólogo, físico, geógrafo, geólogo, mineralogista,<br />

botânico, vulcanólogo e humanista<br />

179 Expedição Langsdorff. Barão Georg Heinrich von Langsdorff<br />

(Wollstein, Hesse/Alemanha, 18.02.1774- Friburgo em Brisgóvia/Alemanha,<br />

29.06.1852). Médico e explorador alemão. Hercules Florence o<br />

acompanhou, como desenhista, entre 1825 e 1829.<br />

180 Mudam de cor, trocam de uma cor para outra.<br />

181 Édouard Manet (Paris/França 23.01.1832-Paris/França, 30.04.1883).<br />

Pintor e artista gráfico francês; uma das figuras mais importantes da arte<br />

do século XIX.<br />

182 “O almoço sobre a relva” (francês).<br />

183 Aquele que tem necessidade incontrolável de ingerir bebida alcoólica.<br />

184 Ver nota 171, retro.<br />

185 Varinha de madeira, ouro ou marfim, para fazer vibrar as cordas da lira.<br />

186 José Pereira da Graça Aranha (São Luís/MA, 21.06.1868-Rio de<br />

Janeiro/RJ, 26.01.1931). Escritor e diplomata brasileiro, imortal da Academia<br />

Brasileira de Letras. Participou da Semana de Arte Moderna de<br />

1922, rompendo com a Academia em 1924 – que acusou de passadista,<br />

dotada de total imobilismo literário. Sua obra Canaã é um marco do chamado<br />

pré-modernismo, publicada em 1902, junto com a obra Os Sertões,<br />

de Euclides da Cunha.<br />

187 A todo o transe; sem tréguas; até o fim.<br />

188 Ver nota no livro Esparsos (neste volume), no soneto “Ricardo da Cruz”.<br />

189 Poeta romântico, trovador (inglês).<br />

190 A queixa de OM procedia. Na década de 1920 – muito antes da edição do<br />

Poesias Completas: Terra Natal e Harmonias do Norte (Natal, Imprensa<br />

Diocesana, 1927) –, foi procurado por Henrique Castriciano para revisar<br />

os versos do seu ídolo Itajubá. Não se sabe, detalhadamente, porque não<br />

conseguiu fazê-lo. OM atribuía o fato à interferência de Eloy de Souza. A<br />

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partir daí – em que pese a admiração pela obra de Eloy como estudioso,<br />

dos maiores, das coisas do sertão, nesse aspecto louvando-o sempre e<br />

sempre –, passou a, acidamente, criticá-lo nos campos político e<br />

jornalístico, responsabilizando-o muito mais, e com muita ironia, pelo<br />

que deixou de fazer por Itajubá, no Rio de Janeiro, “o anopheles gambiae da<br />

literatura... potiguar!” (Ver neste volume, adiante, Velhas Cartas).<br />

191 Maneira, jeito, modo; costume, hábito (francês).<br />

192 Gíria, calão (francês).<br />

193 Constituição; organização.<br />

194 Cesto de palha de carnaúba, com alça.<br />

195 Cascas que envolvem a inflorescência de diversas plantas; podem ser<br />

membranosas, como ocorre nas aráceas, ou lenhosas, como nas palmeiras.<br />

196 Ou Guajuru (Chrysobalanus icaco). Arbusto ou árvore de até 10 metros, da<br />

família das crisobalanáceas. Possui folhas variadas, flores em racemos,<br />

geralmente esbranquiçadas, e frutos comestíveis, especialmente quando<br />

postas em conservas. Também é conhecida pelos nomes de: ajuru, apioba,<br />

engmo (Angola), icaco, jingimo (Angola), mafua (Angola). Muito comum<br />

no litoral nordestino, junto às lagoas.<br />

197 Relativa a cinzas. Que contém os restos mortais de alguém.<br />

198 Que caminha lentamente.<br />

199 Enfraquecida, entibiada; enlanguescida.<br />

200 Livro de Joseph Ernest Renan. Ver nota em Gérmen, primeiro livro<br />

desta Obra reunida.<br />

201 “O livro do meu amigo”, de Anatole France (Jacques Anatole François<br />

Thibault). Escritor francês, membro da Academia Francesa e Prêmio<br />

Nobel de Literatura (1921). Um dos fundadores da Liga dos Direitos do<br />

Homem.<br />

202 Théodore de Banville (Moulins/França, 14.03.1823-Paris/França,<br />

13.03.1891). Poeta, dramaturgo e escritor, discípulo de Vitor Hugo.<br />

203 Que não foram resgatados; que não se libertaram.<br />

204 Provoca tédio, aborrecimento; enfastia.<br />

205 Referência a Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo (Lisboa/<br />

Portugal, 28.3.1810-Vale de Lobos, Santarém/Portugal, 18.9.1877).


Poeta, romancista, historiador e ensaísta português. Escreveu muitos livros,<br />

dentre eles, Eurico, o Presbítero, 1844 (romance), citado por OM.<br />

206 Religioso ou penitente que vive na solidão, em vida contemplativa; pessoa<br />

que vive afastada do convívio social; monge.<br />

207 Augusto Frederico Schmidt (Rio de Janeiro-RJ, 18.04.1906-Rio de<br />

Janeiro/RJ, 08.02.1965). Poeta carioca, da segunda geração do modernismo.<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, nas cavaqueiras diárias com Esmeraldo Siqueira,<br />

ironicamente dizia que Schmidt era o “único poeta que havia dado certo”<br />

no Brasil de então: “Tinha deixado o integralismo, como editor havia publicado<br />

Gilberto Freire e Graciliano Ramos, escrevia discursos para o<br />

presidente Juscelino, e era podre de rico (dono da rede de supermercados<br />

DISCO)”. Sempre “politicamente incorreto”, algumas das suas idéias<br />

vieram a ser realizadas, como a criação da Operação Pan-Americana, iniciativa<br />

que iria inspirar a Aliança para o Progresso, criada pelos Estados<br />

Unidos na administração Kennedy. Foi delegado do Brasil na ONU e<br />

Embaixador na Comunidade Econômica Européia.<br />

208 Álvaro de Barros Lins (Caruaru/PE,14.12.1912-Rio de Janeiro/RJ,<br />

14.06.1970). Advogado, jornalista, professor e crítico literário brasileiro,<br />

membro da Academia Brasileira de Letras.<br />

209 Georg Philipp Friedrich von Hardenberg (Oberwiederstedt, Harz/<br />

Prússia, 02.05.1772 - Weibenfels/Aemanha, 25.03.1801). Freiherr (Barão)<br />

von Hardenberg, mais conhecido pelo pseudônimo Novalis, foi um<br />

dos mais importantes representantes do romantismo alemão de finais<br />

do século XVIII e o criador da Flor Azul, um dos símbolos mais duráveis<br />

do movimento romântico.<br />

210 Conde Lev Nikolayevich Tolstoi (1828-1910). Genial escritor russo,<br />

autor de Guerra e Paz.<br />

211 Vida das coisas (em latim).<br />

212 Carma (do sânscrito karmam; em pali, kamma) significa ação. O termo<br />

tem uso religioso dentro das doutrinas budista, hinduísta e jainista. Foi<br />

posteriormente adotado também pela Teosofia, pelo Espiritismo e por um<br />

subgrupo significativo do movimento New Age.<br />

213 Thomas Mann (Lubeck/Alemanha, 06.06.1875-Zurique/Alemanha,<br />

12.08.1955). Um dos maiores romancistas do século XX, detentor do<br />

Prêmio Nobel de Literatura (1929).<br />

869


870<br />

214 Lotófagos. São, na mitologia grega, membros de uma tribo existente<br />

numa ilha perto do Norte da África. O seu nome advém de se alimentarem<br />

da planta de lótus (das suas flores e frutos), existentes na ilha. As<br />

plantas são narcóticas, causando um sono pacífico aos habitantes da ilha.<br />

215 Gênesis 25:29-34. Jacó com um prato de lentilhas comprou a<br />

primogenitura de Esaú, seu irmão.<br />

216 Colheita de produtos agrícolas.<br />

217 Expressão latina: “pelo próprio fato”, como resultado da evidência do<br />

fato, como sua conseqüência natural; ela é usualmente empregada, então,<br />

com o sentido de “por isso mesmo, conseqüentemente, por via de conseqüência,<br />

naturalmente”.<br />

218 Nessus. Centauro da mitologia greco-romana. Após os 12 trabalhos,<br />

Hércules, que havia esposado Déjanire, teve de se exilar com ela, após<br />

um acidente grave. Durante a viagem, o centauro Nessus quis violar a<br />

jovem. Hércules matou-o com as suas flechas. Mas, agonizante, Nessus<br />

ofereceu a Dyanis um filtro de fidelidade que, na realidade, era um veneno.<br />

Dyanis derramou-o em cima da túnica de Hércules, ela pegou fogo e<br />

matou o herói. A túnica de Nessus representa, pois, várias coisas: presente<br />

envenenado, símbolo das paixões, constrangimento.<br />

219 Designação comum às ervas insetívoras do gênero drósera, nativa das regiões<br />

úmidas da Austrália.<br />

220 Lucrécia Bórgia (Subiaco/Itália, 18.04.1480-Ferrara/Itália,<br />

24.06.1519). Filha natural de Rodrigo Bórgia, importante personagem<br />

espanhol do Renascimento, que viria a se tornar o papa Alexandre VI. O<br />

irmão de Lucrécia foi o conhecido déspota César Bórgia. A família Bórgia<br />

acabou por representar na história a política maquiavélica e a corrupção<br />

sexual consideradas como características dos papados no período do<br />

Renascimento.<br />

221 Mariposa; bicho-da-seda.<br />

222 Pobre Lélian. Paul Verlaine, em 1884, escreveu o ensaio Les poétes maudits,<br />

sobre seis poetas, incluindo-se na obra com esse nome imaginário.<br />

223 O Flos Sanctorum “é considerado a mais fecunda e útil antologia moral em<br />

língua espanhola, comparável à Legenda Áurea, livro do século XIII, de<br />

autoria do dominicano Jacobus de Voragine. O livro de Alonso de Villegas<br />

é composto de relatos sobre a Vida dos Santos, conforme o Breviário do


Concílio, a Vida dos Santos do Velho Testamento, A Vida de Santos diversos<br />

com o de Varões Ilustres, Discursos sobre os Evangelhos de todo o ano e<br />

a Quinta parte, que aparece como integrante do volume intitulado Fructus<br />

Sanctorus, que é livro de exemplos, também de santos, com parte dedicada<br />

a Santa Maria, a mãe de Jesus. O Flos Sanctorum integrava a estante primitiva<br />

do Brasil, livros que eram trazidos de Portugal e da Espanha, cujos títulos<br />

ficaram conhecidos com a Visitação da Bahia (que incluía Sergipe), de<br />

1592, confiada ao licenciado, capelão, fidalgo de sua majestade, do seu<br />

desembargo e visitador apostólico Heitor Furtado de Mendonça”.<br />

224 São Francisco de Assis (Assis/Itália, 1181-1226). Nascido Giovanni<br />

Bernardone. Uma das maiores admirações do espiritualista OM.<br />

225 Com Bonheur (Paris, Léon Vanier, 1891), primeira edição de 1.650 exemplares),<br />

Paul Verlaine (1844-1896) completou a sua série de quatro volumes<br />

de poesia.<br />

226 Ariel. Anjo do dito primeiro escalão da hierarquia angelical; possuidor de<br />

dons apropriados à musica, escrita, e dinamismo com os ao seu redor.<br />

Peça chave na guerra angelical pois defenderia com sua “vida” seu posto –<br />

o terceiro, antes do Senhor.<br />

227 Calibã. Personagem, de William Shakespeare, em A Tempestade. Um escravo<br />

selvagem e deformado, tratado com desdém e alvo de chacotas.<br />

Segundo alguns críticos, um dos personagens mais complexos de<br />

Shakespeare, embora não lhe seja reservado nenhum papel relevante.<br />

Como coadjuvante, combina o todo e o tudo da obra, do autor e do<br />

mundo em geral.<br />

228 Causa excludente de culpabilidade; justificativa.<br />

229 Christophe Plantin (Saint Avertin, perto de Tours/França, 1514-Antuérpia/Bélgica,<br />

1589). Impressor e poeta, sua obra-prima foi uma bíblia<br />

poliglota, cujo texto está distribuído em colunas paralelas em latim, grego,<br />

hebraico e caldeu. A oficina Plantin-Moretus existiu até o ano de<br />

1867, altura em que foi vendida ao município de Antuérpia, onde foi<br />

instalado o famoso Museu Plantin-Moretus, talvez o mais completo museu<br />

gráfico do mundo.<br />

230 “Ter apenas uma mulher fiel calmamente” – quarto verso da primeira<br />

estrofe do soneto “A felicidade deste mundo” (Le Bonheur de ce Monde),<br />

escrito por Christophe Plantin.<br />

871


872<br />

231 Emile de Girardin (1806-1881). Publicista e político francês, redator<br />

do jornal La Presse, o primeiro jornal político de sucesso comercial, graças<br />

à publicidade e aos anúncios. Antes da revolução de 1848, encontrava-se<br />

na oposição ao governo de Guizot; durante a revolução foi republicano<br />

burguês; deputado à Assembleia Legislativa (1850-1851), mais tarde foi<br />

bonapartista. Desprovido de convicções políticas, Girardin foi, antes de<br />

tudo, um homem de negócios astuto e pouco escrupuloso.<br />

232 Humberto de Campos Veras (Miritiba/MA, 25.10.1886-Rio de Janeiro/RJ,<br />

05.12.1934) Jornalista, poeta, cronista, político e escritor. Tornou-se<br />

famoso sob o pseudônimo de Conselheiro XX. Quando adoeceu,<br />

mudou completamente seu estilo: de mordaz e cômico, transformou-se<br />

num arauto em defesa dos menos favorecidos, encontrando, nessa nova<br />

fase, consolo por parte dos mais pobres. Morreu cego, abandonado por<br />

parentes e amigos.<br />

233 Montanha, ao Sul da Grécia.<br />

234 Beócia. Região da antiga Grécia, ao Norte e Noroeste da Ática, a cujos<br />

habitantes os atenienses atribuíam características de indiferença à cultura,<br />

inteligência limitada, grosseria.<br />

235 Dionéia. Dionaea muscipula é uma planta carnívora que pega e digere<br />

presa animal (normalmente insetos e aracnídeos). A estrutura de captura<br />

é formada por dois lóbulos unidos pela base e presos na ponta de cada<br />

uma das folhas. A planta também é conhecida como Vênus papa-moscas,<br />

em alusão à deusa grega do amor e da fertilidade (inclusive vegetal).<br />

236 <strong>In</strong>terjeição que exprime queixa, dor, saudade, etc.<br />

237 Mnemosina. A deusa da Memória, na mitologia grega, em cujo poço até<br />

os mortos podiam recuperar as imagens do passado perdido. Foi também<br />

ela quem gerou (com Zeus) todas as nove musas a quem se deve a inspiração<br />

do saber e da arte.<br />

238 “Algumas crianças pobres” (francês).<br />

239 Sherazade. A narradora das Mil e uma noites.<br />

240 OM transcreve os dois últimos versos do segundo terceto (fecho, ou<br />

chave de ouro) do soneto A Língua Portuguesa, de Olavo Bilac.<br />

241 Tiziano Vecellio ou Vecelli (Pieve di Cadore/Itália, cerca de 1490-<br />

Veneza Itália, 27.08.1576). Um dos principais representantes da escola<br />

veneziana no Renascimento, antecipando diversas características


do Barroco e até do Modernismo. Conhecido como Tizian Vecellio De<br />

Gregorio, Ticiano, Titian ou ainda como Titien.<br />

242 James Fenimore Cooper (Burlington, New Jersey/Estados Unidos,<br />

15.09.1789-Cooperstown, Nova Iorque, Estados Unidos, 14.09.1851).<br />

Escritor e crítico literário norte-americano. Vigoroso novelista que escreveu<br />

diversas histórias marítimas e romances históricos. Autor do consagrado<br />

The Last of the Mohicans (O último dos moicanos), que muitos consideram<br />

sua obra-prima.<br />

243 Airoso, elegante.<br />

244 Suave, doce, branda.<br />

245 Designação comum a dois passarinhos, um cerebídeo (Dacnis cayana) e<br />

outro traupídeo (Tangara cayana flava).<br />

246 “Goma” no sentido de fanfarrice, compadrada, prosa, quixotice, farra, boêmia.<br />

247 Várzea.<br />

248 Comédia curta, de duas ou três personagens.<br />

249 Elegante, sóbrio (estilo)<br />

250 Erguia-se, alteava-se.<br />

251 Valente, corajoso, altivo.<br />

252 Pontes feitas de um só pau, sobre forquilhas, em terrenos alagadiços ou<br />

pantanosos.<br />

253 Ave praieira, lavandeira (Motacilla alba).<br />

254 Teócrito. Poeta grego de maior destaque no período helenístico (cerca<br />

de 310 a.C. - 250 a.C.). Nasceu em Siracusa e deve ter conhecido vários<br />

lugares da Magna Grécia, inclusive o Egito, o que se pode inferir de seus<br />

poemas. Seus versos revelam preocupação com a forma, mas, ao contrário<br />

de seus contemporâneos, a linguagem utilizada é simples (como a de<br />

Ferreira Itajubá), influenciando fortemente a poesia bucólica posterior,<br />

como a de Virgílio e a poesia ácade. Mas a poesia de Teócrito é natural e<br />

realista, ao contrário da poesia posterior, grandemente idealizada.<br />

255 Coligida, compilada.<br />

256 De baixo acima; inteiramente.<br />

257 Henri Bremond (Aix-en-Provence/França, 31.07.1865-Paris/França,<br />

17.08.1933). Sacerdote (jesuíta), crítico literário, jornalista, escritor e<br />

873


874<br />

filósofo francês. Imortal da Academia Francesa. Como crítico, escreveu A<br />

pura poesia (1926) e Oração e poesia, (1927), obras nas quais tentou demonstrar<br />

a dimensão mística da poesia e sua analogia com alguma forma<br />

de oração.<br />

258 Jacques Maritain (Paris/França, 18.11.1882-Toulouse/França,<br />

28.04.1973). Filósofo de orientação católica (tomista). Suas obras influenciaram<br />

a ideologia da democracia cristã.<br />

259 “É o coração que faz os eloqüentes”.<br />

260 Marcado pela firmeza, pela integridade; inatacável, incorruptível.<br />

261 Les Nuits (Nuits de mai, d’août, d’octobre, de décembre), em torno de temáticas<br />

relacionadas com o sofrimento amoroso, o amor e a inspiração. Estas<br />

poesias, muitos sentimentais, são hoje consideradas como as obras mais<br />

representativas do romantismo francês.<br />

262 “Ah! Frappe-toi le coeur, c’est là qu’est le génie” – “Golpeado até o coração, é<br />

aí que está o gênio! ” – Alfred de Musset (Paris/França, 1810-Paris/<br />

França, 1857). Dramaturgo, poeta e novelista.Premières Poésies (1838), A<br />

mon ami Edouard Boucher.<br />

263 “João Batista Ribeiro de Andrade Fernandes (1860-1934). Jornalista,<br />

crítico, filólogo, historiador, pintor, tradutor, nasceu em Laranjeiras,<br />

província de Sergipe e faleceu no Rio de janeiro, onde fez carreira depois de<br />

cursar Medicina, sem concluir o curso, na Bahia. Por concurso público,<br />

trabalhou na Biblioteca Nacional e depois no renomado Colégio Pedro II, na<br />

cadeira de Português. Estudioso de Filologia, o que o levou a ter um papel<br />

decisivo nas reformas da própria língua nacional. Chegou a fazer estudos de<br />

pintura na Europa e a expor seus quadros, mas foi no jornalismo e na literatura<br />

que recebeu o reconhecimento por sua contribuição. Foi membro da<br />

Academia Brasileira de Letras. Obra poética: Tenebrosa lux (1881), Dias de sol<br />

(1884), Avena e cítara (1885) e Versos (1885) (Fonte: http://www.<br />

Antôniomiranda.com.br/poesia_brasis/sergipe/joao_ribeiro.html).<br />

264 Anacreonte (Teos, 563 a.C. - id., 478 a.C.). Poeta lírico grego. Conselheiro<br />

de Polícrates, tirano de Samos. Cantava às musas, a Dionísio e ao amor. Foi<br />

muito apreciado pelos contemporâneos, e seu estilo, posteriormente conhecido<br />

como “anacreôntico”, muito imitado ao longo da antiguidade e do<br />

período bizantino, tendo nos chegado diversas odes anacreônticas.<br />

265 Referência a Benvenuto Cellini (Florença/Itália, 03.11.1500-Florença/Itália,<br />

13.02.1571). Artista da Renascença, escultor, ourives e escritor


italiano. Mostrando suas paixões, deleites, sua arte, bem como auto-elogios<br />

e extravagância, com a autobiografia que escreveu, criou um dos mais<br />

singulares e fascinantes livros jamais escrito, com passagens verídicas e<br />

outras fantasiosas, crimes e anjos, demônios, na mais importante autobiografia<br />

da Renascença.<br />

266 Ver nota em Gérmen – primeiro livro deste volume.<br />

267 Mateus, 12, versículo 8: “Porque o Filho do homem até do sábado é o<br />

Senhor.”<br />

268 “Assembléia reunida em sessão” – Entre os antigos judeus, tribunal, em<br />

Jerusalém, formado por sacerdotes, anciãos e escribas, o qual julgava as<br />

questões criminais ou administrativas referentes a uma tribo ou a uma<br />

cidade, os crimes políticos importantes, etc.<br />

269 Mofada, retrógrada, ultrapassada, reacionária (francês).<br />

270 “Torre de Marfim”, em latim. Ver nota ao poema “Relatividade”, em Canção<br />

da Montanha, neste volume.<br />

271 Luís Cipriano Coelho de Magalhães (Lisboa/Portugal, 1859-1935).<br />

Poeta, romancista e político português de inspiração monárquica e nacionalista.<br />

Fundou, com Antônio Feijó, a Revista Científica e Literária (1880-1881).<br />

272 Nota retro, em Sertão de espinho e de flor.<br />

273 Valente, corajoso, denodado.<br />

274 Referência a Hippolyte Bayard (Breteuil-sur-Noye/França,<br />

20.01.1801-Nemours/França, 14.05.1887). Pioneiro francês da fotografia<br />

275 <strong>In</strong>teresse por discussões frívolas ou insignificantes, sem resultado prático,<br />

como as questões tratadas pelos teólogos bizantinos; bizantinice.<br />

276 Felisberto de Carvalho (Niterói/RJ, 09.08.1850-Rio de Janeiro/RJ,<br />

18.10.1898). Foi jornalista, músico, professor e autor de livros didáticos<br />

que deixaram marcas na memória nacional.<br />

277 Autodidática. Segundo o Dicionário Aurélio Eletrônico, é também conhecida<br />

como autodidaticismo, é o ensino pela auto-educação ou autodirecionamento.<br />

“Um autodidata geralmente é uma pessoa que aprendeu<br />

algo sozinha, tipicamente um entusiasta de alguma área do conhecimento.<br />

Tal habilidade tem levado ao sucesso pessoas famosas e de certo prestígio.”<br />

OM, assim como Ferreira Itajubá, não tinha “anel no dedo”, era um<br />

juramentado autodidata. Aqui e acolá, de quando em vez, dos pínáculos<br />

875


876<br />

acadêmicos da Jerimunlândia atual, como se, de considerável altitude, de<br />

luneta em punho, mirassem o rés dos tabuleiros, algumas sumidades pós<br />

graduadas (há honrosas exceções) pespegam-lhe, ironicamente – depois<br />

de examinarem dois ou três poemas do Poeta –, o adjetivo, para eles<br />

desconsagrador, calculam. Nessa linha, um par desses cosmonautas<br />

antologistas, não faz muito tempo, classificou <strong>Othoniel</strong> como “um rapaz<br />

esforçado”, mas que sofria de grave defeito: defendia, nos escritos, na<br />

prosa, nos textos jornalísticos, “o amparo do Estado à cultura.” Esqueceu,<br />

a impávida dupla, que a antologia que publicou foi patrocinada com recursos<br />

oficiais, decorrentes de renúncia fiscal de impostos devidos por empresas<br />

privadas. Na contracapa do volume, denunciador, luzente, muito<br />

bem bolado, o logotipo de uma conhecida marca de café...<br />

278 Precipitado, alinhavado, atamancado.<br />

279 Gastão Simões da Fonseca. Ou Gaston Simoes de Fonseca (Rio de<br />

Janeiro/RJ, 18.10.1874-Paris/França, 18.06.1943). Pintor, desenhista,<br />

restaurador, ilustrador e professor brasileiro, naturalizado francês, radicado<br />

em Paris onde exerceu importante cargo no museu do Louvre.<br />

Autor de certo Nouveau Dictionnaire Français –portugaise, ilustrado.<br />

280 Superfícies amplas, extensas.<br />

281 Trepadeira lenhosa (Phaseolus panduratus) da família das leguminosas.<br />

282 Qualidade, condição ou estado de apedeuto; nescidade, insciência, ignorância.<br />

283 Que merece desprezo; desprezível, desdenhável.<br />

284 Fungo da família das poliporáceas (Polyporus sanguineus); orelha-de-pau,<br />

pironga.<br />

285 Endimião. Na mitologia grega, um pastor ou caçador. Selene, a deusa que<br />

personificava a lua, apaixonou-se por ele e o visitava todas as noites, assim<br />

que ele adormecia numa caverna. Ela lhe deu 50 filhas, mas colocou-o<br />

para dormir eternamente de modo que somente assim ele lhe pertenceria<br />

para sempre.<br />

286 Galeno (129-200 d.C). Nasceu em Pérgamo quando esta era colônia<br />

romana e lá estudou Medicina. Foi médico de gladiadores e foi viver em<br />

Roma em 161, aonde veio a atingir uma posição conceituada, sendo nomeado<br />

médico do filho do imperador Marco Aurélio, Cômodo, que foi<br />

igualmente imperador em 180. Galeno baseou-se na Medicina hipocrática


para criar um sistema de patologia e terapêutica de grande complexidade<br />

e coerência interna.<br />

287 Christian Friedrich Samuel Hahnemann (Meissen/Saxônia, 1755-<br />

Paris/França, 1843). Fundou a Homeopatia em 1789. Publicou O Organon<br />

da Arte de Curar (inicialmente, O Organon da Ciência Médica Racional). Expôs<br />

sua teoria na frase em latim similia similibus curentur (semelhante cura<br />

semelhante) ou melhor ainda, doenças semelhantes curam doenças semelhantes,<br />

pois ele achava que determinadas substâncias causavam, quando<br />

tomadas, uma doença artificial no doente, que fazia o corpo curar a<br />

doença verdadeira, sendo este o princípio da similitude ou a Lei da<br />

Similitude, apresentada ao mundo em 1796. José Bonifácio de Andrada<br />

e Silva (1763-1838), o Patriarca da <strong>In</strong>dependência, em 1818, correspondia-se<br />

com Hahnemann, interessado pela Homeopatia. Mais tarde, o<br />

francês Benois Jules Mure e o brasileiro Vicente Martins, em 1840, introduziram<br />

no Brasil a nova terapia.<br />

288 Medicamentos excitantes da secreção biliar.<br />

289 Cinco vezes a centesimal hahnemaniana: diluição de uma parte do medicamento<br />

para 99 partes de água/álcool ou só água, com as sucussões (ato<br />

ou efeito de sacudir; abalos, sacudidelas feitas a mão).<br />

290 Vicente Augusto de Carvalho (Santos/SP, 05.04.1866-São Paulo/<br />

SP, 22.04.1924). Advogado, jornalista, político, magistrado, poeta e contista<br />

brasileiro. Membro do movimento parnasianista, o seu grande tema<br />

era o mar, recebendo a alcunha de “Poeta do Mar”.<br />

291 Francisco José de Oliveira Viana (Saquarema/RJ, 20.06.1883-<br />

Niterói/RJ, 28.03.1951). Professor, jurista, historiador e sociólogo brasileiro,<br />

imortal da Academia Brasileira de Letras. Foi um dos ideólogos da<br />

eugenia racial no Brasil. Combateu a vinda de imigrantes japoneses. Ficou<br />

notoriamente reconhecido pela autoria de frases como “os 200 milhões<br />

de hindus não valem o pequeno punhado de ingleses que os dominam” e<br />

“o japonês é como enxofre: insolúvel”.<br />

292 Encíclicas (cartas circulares pontifícias), ditas “sociais”: A Rerum Novarum<br />

(1891), de Leão XIII, e a Quadragesimo Anno ( 1931), de Pio XI. Em 1961,<br />

considerando a realidade do Terceiro Mundo (países subdesenvolvidos),<br />

incluindo o desequilíbrio entre nações ricas e pobres e as duras condições<br />

dos trabalhadores nas sociedades não industrializadas, o inesquecível Papa<br />

877


878<br />

João XXIII (Angelo Giuseppe (1881-1963), com nova encíclica – a Mater<br />

et Magistra – revisou o ensino social da Rerum Novarum, da Quadragésimo<br />

Anno e as posições sobre a propriedade particular de Pio XII. Descreveu as<br />

novas circunstâncias econômicas, sociais e políticas que tornavam necessária<br />

a nova encíclica.<br />

293 Pedacinhos; fragmentos; ninharias.<br />

294 Refere-se, OM, a Eloy de Souza; deputado federal e senador da República,<br />

da fina flor da oligarquia fundada por Pedro Velho de Albuquerque<br />

Maranhão.<br />

295 Baronesa De Staël-Holstein, nascida Anne Louise Germaine<br />

Necker (Paris/França, 22.04.1766- Paris/França, 14.07.1817). Escritora<br />

francesa que incorporou como poucas mulheres francesas o espírito<br />

do Iluminismo. O seu famoso salão literário reunia alguns dos grandes<br />

nomes da vida cultural e política parisiense, na França das vésperas da<br />

Revolução.<br />

296 O corpo humano, especialmente o tronco.<br />

297 Do, ou relativo ao dilúculo: Crepúsculo matutino; alvorada.<br />

298 Reuniões sigilosas de grupos facciosos; conluios, conciliábulos, aglomerações;<br />

agrupamentos agitados de pessoas.<br />

299 Do poema Lembrança de Morrer, de Manuel Antônio Álvares de Azevedo<br />

(São Paulo/SP, 12.10.1831- 25.04.1852). Morreu aos vinte anos<br />

de idade, vítima de tuberculose, deixando uma obra relativamente extensa,<br />

para quem viveu tão pouco.<br />

300 “Essa é a questão; (ou) essa é a pergunta” – William Shakespeare, em Hamlet.<br />

301 Vautrin. Personagem importante na Comédia Humana, de Honoré de<br />

Balzac (1799-1850). Corrutor, misterioso, de passado criminoso, aparece<br />

no romance O Pai Goriot como o cínico aconselhador do jovem Eugène<br />

de Rastignac. Referindo-se à sociedade parisiense, a certa altura, diz ao<br />

jovem estudante que “como não há cinqüenta bons lugares, vocês terão de<br />

devorar-se uns aos outros, como aranhas num frasco...”.<br />

302 Vaso bojudo de barro, vidro, etc., de boca larga, usado para guardar doces,<br />

conservas, etc.<br />

303 O segundo par de apêndices dos aracnídeos com que estes sujeitam suas<br />

presas para nelas inserir as quelíceras (extremidades curvas com um orifício<br />

por onde sai o veneno de glândula situada na base do apêndice).


304 Chardon, Sechard e D’Arthez. Personagens de Balzac em Ilusões Perdidas<br />

(1843), volume fundamental da Comédia Humana, considerada “a<br />

obra capital dentro da obra” do grande romancista.<br />

305 Poeta da escola provençal do século XIX.<br />

306 Moritz August von Thummel (1738-1817). Poeta satírico, contista e<br />

advogado alemão. Sob influência de outro poeta germânico, Christoph<br />

Martin Wieland (1733-1813), escreveu 10 volumes de uma “Viagem<br />

Sentimental às Províncias da França nos anos 1785-1786”. Foi elogiado<br />

por Schiller (1759-1803), importante poeta, dramaturgo e filósofo alemão.<br />

307 Qualidade de semelhante; comparação de coisas que tenham similitude<br />

entre si.<br />

308 Antipatro de Sidon (Século II a.C). Poeta e escritor grego, autor de<br />

epigramas, contemporâneo de Catulo e de Crasso. Escreveu, também, o<br />

epitáfio de Anacreonte e a ele é atribuída a primeira relação das sete (número<br />

mágico, entre os gregos) maravilhas do mundo. Morreu muito velho.<br />

Foi mencionado por Cícero.<br />

309 Ílion. Um dos nomes de Tróia. O nome da Ilíada, o poema de Homero, é<br />

derivado dessa palavra, a forma portuguesa do grego “Iliás”, vindo pelo<br />

latim da Ásia Menor. Divide-se a obra em 24 cantos, contendo 15.000<br />

versos hexâmetros. Apesar de seu argumento ser extraído da famosa guerra<br />

troiana, não a narra por completo.<br />

310 Trocar entre si (tratando-se de mais de um indivíduo ou coisa, ou de<br />

coletividades); permutar, reciprocar.<br />

311 “Vendendo nosso direito de progenitura por um prato de coisas” (Ver<br />

Gênesis 25:29-34: “Jacó com um prato de lentilhas comprou a<br />

primogenitura de Esaú, seu irmão.”).<br />

312 Henrik Johan Ibsen (Skien/Noruega, 20.03.1828-Kristiania/Noruega,<br />

23.05.1906). Teatrólogo nórdico, considerado um dos criadores do<br />

teatro realista moderno.<br />

313 Caderneta, registro de lembranças, diário.<br />

314 “Nada me obriga a escrever um livro/mas a razão me obriga a viver” –<br />

Jean de la Fontaine (Chateau-Thierry/França 08.07.1621 - Paris, 13/<br />

04/1695). Poeta e fabulista francês.<br />

315 “Luta pela vida”.<br />

879


880<br />

316 Versos do poema “Monólogo de uma Sombra”, do Eu e outras poesias.<br />

317 “Corações ao alto!”, expressão latina. Ver nota ao poema “Estâncias”, em<br />

Jardim tropical, neste volume.<br />

318 Céline Emilie Seurre, condessa de Ségur (Paris/França, 07.09.1873-<br />

Trouville-sur-Mer, Calvados/França, 03.09.1966). Com o nome artístico<br />

de Cécile Sorel foi atriz famosa e uma das mulheres mais bonitas da<br />

França, uma celebridade mundial. Legendária, apresentou-se no Rio e no<br />

Teatro Municipal de São Paulo, aos 65 anos de idade, com sua grande<br />

companhia de comédias.<br />

319 “A Decadência da Mentira”. Ensaio de Oscar Wilde, publicado em 1891.<br />

320 George Bryan Brummel (Londres/<strong>In</strong>glaterra, 1778-1840). Fidalgo<br />

inglês, representava o supra-sumo, a quinta-essência da elegância masculina.<br />

Foi o máximo expoente do dandismo. Gastou tanto com roupas,<br />

adereços e penduricalhos que morreu pobre.<br />

321 Bernardim Ribeiro (Torrão/Portugal, 1482? - 1552?). Poeta e escritor<br />

renascentista. Pertenceu à roda dos poetas palacianos, juntamente com<br />

Sá de Miranda, Gil Vicente e outros. Teria freqüentado a corte de Lisboa,<br />

colaborando no Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende.<br />

322 Péricles de Andrade Maranhão (Recife/PE, 14.08.1924-Rio de<br />

Janeiro/RJ, 31.12.1961). Desenhista e humorista brasileiro de grande<br />

sucesso nos anos 1940 e 1950. Em outubro de 1943, a revista O Cruzeiro<br />

começou a publicar os cartuns do Amigo da Onça, que se transformaria,<br />

durante dezessete anos, num dos personagens mais populares do país.<br />

Alcoólatra, atormentado, solitário, Péricles suicidou-se, num final de ano,<br />

abrindo a torneira do gás, num apartamento de Copacabana. Antes do ato<br />

extremo, afixou na porta um cartaz no qual se lia: “Não risquem fósforos”.<br />

323 Guy du Faur (1529-1584). Senhor de Pribac, jurista, diplomata e poeta<br />

francês.<br />

324 “Quadras Moralistas”.<br />

325 “Os amigos da hora presente são como os melões: para encontrar um<br />

bom, há que se experimentar cinqüenta” (Pribac). Quadra semelhante é<br />

atribuída a outro poeta francês do mesmo século, Claude Mermet, nascido<br />

em 1550, com ligeira variação: “Amigos são como melões; devo te<br />

dizer porque? Para encontrar um bom você precisa provar cem.”


326 Absinto. Sentimento de tristeza; amargura (sentido figurado).<br />

327 OM, ao que tudo indica, “segurou” as acusações ao “Doutor Eloy” até a<br />

morte de Henrique Castriciano (26 de julho de 1947) – irmão do político<br />

e amigo fraterno, manso, bom, superior, seu sereno “Mestre” enquanto<br />

viveu. Eloy de Souza, por sua vez, aparentemente, não deu atenção, não<br />

reagiu, pelo menos de pronto – ver-se-á, adiante –, aos ataques, publicados<br />

nos dois últimos capítulos do ensaio, quinzenalmente, em 1948. Preferiu<br />

ignorá-los para não polemizar. Ou, matreiramente, aceitou a carapuça.<br />

Por outro lado, não foi possível precisar as datas, no jornal O Democrata.<br />

Não encontrou este anotador a coleção do jornal, apesar dos esforços. Em<br />

27 de outubro do ano citado (1948), uma carta de Eloy a Adauto Câmara<br />

(Uma Viagem Pelo Arquivo Epistolar de Adauto da Câmara, Raimundo Soares<br />

de Brito, 2ª. Edição, 2001 – Coleção Mossoroense) dá notícia sobre versos,<br />

manuscritos, de Henrique Castriciano – certamente a pedido do próprio,<br />

antes de morrer –, confiados “a <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, a quem entreguei<br />

uma lente para facilitar a tarefa”, revelando que “todo o trabalho já<br />

está quase feito e uma parte já está datilografada”. Adiante, aludia, ainda, o<br />

festejado autor do Calvário das Secas, à “letra miudinha e trêmula que deu<br />

trabalho ao poeta <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>”. Antes, ou depois, das verrinas<br />

othonielianas? As diferenças entre “Doutor Eloy” e o poeta da “Praieira”<br />

não se cingiam apenas ao “caso Itajubá”. Filho de republicano, João<br />

Felismino de Melo – correligionário e amigo de Pedro Velho, representante<br />

da oligarquia no Seridó, administrador de Mesas de Rendas, delegado<br />

de Polícia, chefe político, casado com uma prima legítima de José<br />

Augusto, compadre de Juvenal Lamartine e amigo do próprio Eloy –<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, à exceção de Alberto Maranhão, como jornalista e<br />

sem levar em conta todas essas ligações, sempre combateu, duramente, o<br />

clã de Pedro Velho e seus representantes. Depois da Revolução de 1930,<br />

cafeísta (“péla-bucho”), continuou a fustigar os grupos remanescentes, os<br />

“decaídos”, os “perrepistas” – e Eloy de Souza era um desses, de carteirinha.<br />

A verdade é que, apesar de todos esses pesares, os dois “contendores”, em<br />

tempo algum se intrigaram, definitivamente. Cumprimentavam-se<br />

educadamente, respeitosamente, quando se encontravam. Mesmo depois<br />

de Eloy ir à forra, solenemente. A história era contada como estória, e<br />

narrada sob boa dose de risadas, inclusive as do próprio <strong>Othoniel</strong>. Presidente<br />

da Caixa Econômica no Rio Grande do Norte, cargo equivalente,<br />

hoje, a superintendente regional do banco estatal, um belo dia, por insis-<br />

881


882<br />

tência de Esmeraldo Siqueira, que já havia obtido pleníssimo sucesso num<br />

empréstimo, “Doutor Eloy”, recebe a dupla de poetas. Depois das amenidades,<br />

do animado bate-papo sobre literatura, recordações mil sobre<br />

Henrique Castriciano, <strong>Othoniel</strong>, desconfiado, pleiteou o papagaio, para a<br />

devida e competente consignação em folha. Foi um desastre: o velho<br />

perrepista Eloy, mandando servir o cafezinho de praxe, negou, sumariamente,<br />

os poucos cruzeiros almejados e, de lambuja, sereno, sentenciou:<br />

“Nada posso fazer, poeta <strong>Othoniel</strong>. Lembre-se de que, para Vossa Mercê,<br />

sou um mosquito africano, um mero anopheles gambiae da literatura...<br />

potiguar!”. E nada mais disse, nem nada mais lhe foi perguntado (Ver,<br />

adiante, nota em Velhas cartas).<br />

328 OM, pela idade, não logrou interagir com Itajubá. Era, este, 19 (ou 20)<br />

anos mais velho. No entanto, conhecia-lhe as agruras, o que lhe acontecera<br />

no Rio de Janeiro, pois foi amigo de dezenas de companheiros, de<br />

íntimos do poeta de Branca. E havia conhecido, pessoalmente, de longe,<br />

seu ídolo Manoel Virgílio Ferreira. Em textos inéditos que produziu para<br />

este ensaio – preciosidades hoje em poder do autor destas notas, que não<br />

sabe porque seu pai não os publicou –, um desses revela a juvenil admiração<br />

que tinha pelo cantor da “Barcarola”. Em 1908 (ou 1909), aos 13 ou<br />

14 anos de idade: “[...] durante uma passeata de operários da Great Western<br />

em greve [escreveu OM], vimo-lo, ovacionado freneticamente, assomar a<br />

uma das janelas do sobrado da Estação, transfigurado, a fronte escantoada<br />

[que tem os ossos muito salientes; ossuda], formosíssima, iluminada pelos<br />

divinos eflúvios do gênio, aqui e ali engasgado pelo escachoar dos<br />

vocábulos, bradando para a praça onde o povo fervilhava [...]”. OM sabia,<br />

por exemplo, que muitos anos depois da morte do vate, existia no Bairro<br />

Anchieta, logradouro da comunidade operária das Rocas, uma célula de<br />

estivadores do PCB, antigos companheiros, com o nome de “Ferreira<br />

Itajubá”. Na sede do núcleo comunista – enquanto esteve na legalidade o<br />

partido do senador Carlos Prestes, o retrato do tribuno fundador da Liga<br />

Operária Norte-Rio-Grandense ali estivera, ao lado das grandes figuras<br />

representativas do credo marxista. Nessas anotações inéditas, OM revela,<br />

também, outro fato importante sobre Ferreira Itajubá no Rio de Janeiro:<br />

Henrique Castriciano lhe contara que o poeta, num encontro, “confessou<br />

achar-se em preparativos e entendimentos, junto a um certo prócer em<br />

oposição ao situacionismo pedrovelhista, para vir fundar um jornal de<br />

combate, e derrubar a oligarquia.”.


329 <strong>In</strong>fâmias, opróbrios, ignomínias; torturas, tormentos, flagelos.<br />

330 Gargantas, goelas.<br />

331 Ver nota no Sertão de espinho e de flor, neste volume.<br />

332 Alceste, Felinte e Oronte. Personagens de Molière, na peça O Misantropo.<br />

Alceste é, na obra, um homem revoltado com a sociedade hipócrita e<br />

tortuosamente simples em que se insere.<br />

333 Eloy Castriciano de Souza. Deputado federal de 1895 a 1914. Ver<br />

Notas ao Canto 15, do Sertão de espinho e de flor.<br />

334 Que ou os que são da mesma província que outros.<br />

335 Homem bom e de palavra; forte, grande, bruto.<br />

336 Polpudas, vultosas, consideráveis, fartas.<br />

883


Luis da Câmara Cascudo:<br />

estilista *


* Texto publicado em Luis da Câmara Cascudo – Depoimentos – Homenagem<br />

dos seus amigos, em abril de 1947, pelo Centro de Imprensa Ltd, em Natal.


Apesar de toda a nossa simpatia pelos autênticos valores<br />

“modernistas”, não podemos voltar as costas por completo ao<br />

passado, pois ele teima em manifestar-se em muitas das mais<br />

substanciais aquisições e exteriorizações da nossa personalidade.<br />

E não deve ser, a literatura, como tão bem a define o<br />

moderníssimo escritor de Jornal de Crítica, 1 “uma atividade a que<br />

se deve consagrar toda uma existência, vendo-a como uma realização<br />

do espírito, capaz de exprimir a fisionomia dos homens e o<br />

caráter das sociedades; capaz de ser a imagem, a representação e a<br />

alma de uma nacionalidade, pela sua natureza ao mesmo tempo<br />

psicológica e sociológica”?<br />

Como executar honestamente e satisfatoriamente essa tarefa,<br />

vestido e calçado de asbesto, 2 no bojo devorador da subversão<br />

artística, isolado da eletricidade terrestre, matando de contenção,<br />

no esforço da exegese, aos que têm o direito de esperar alimento<br />

fácil e sadio para o espírito?<br />

Há, irrecusavelmente, paladares e sensibilidades que afinam à<br />

maravilha pela nova estética. A harmonia dos mundos – e do nosso<br />

mundo, também – se processa por miríades de desarmonias, de<br />

contrastes, de dissociações, de metamorfoses, em todas as manifestações,<br />

tanto as físicas quanto as anímicas, e isto é que faz a<br />

transcendência e a grandeza da vida, nos seus dois planos<br />

ponderáveis à nossa modesta percepção humana.<br />

Devemos esperar alguma coisa, relativa aos nossos vivazes<br />

anseios de sabedoria e de paz, desse rumoroso canjirão 3 de alquimistas<br />

da modernidade, agora alvoroçados em busca de fórmulas<br />

novíssimas já em plena equação no invencionismo, movimento<br />

que vem da Argentina, noticiado no Brasil por Carlos Drummond<br />

de Andrade (página literária do Jornal do Comércio, do Recife, de 8<br />

deste mês).<br />

Já não convém considerar, depois de Macunaíma e História da<br />

Música, 4 e tão auspiciosamente, a contribuição de um Manuel Ban-<br />

887


888<br />

deira, de um Jorge de Lima 5 (com Essa negra Fulô), do poeta de<br />

Rosa do Povo? 6<br />

Prescindindo, preliminarmente, da consideração de “estilo”,<br />

que, a rigor, não existe na obra de qualquer desses corifeus, 7 ela<br />

constitui, não há negar, persuasivo convite a esperanças otimistas,<br />

da parte de nós outros, devotos de Flaubert, 8 de France, 9 de<br />

Baudelaire 10 (tão citado pelo Sr. Álvaro Lins), de Eça de Queiroz, 11<br />

retardatários que ainda nos preocupamos com a cor, com a música,<br />

com a alma, com a magia que é a substância sobrenatural das<br />

palavras Le mot createur... (C’etait a Mégare, au mois du Nizam, dans les<br />

jardins d’Amilcar...).<br />

Ensina-nos, de resto, a História que, ao final das contas, antigos<br />

e modernos nos encontraremos, distribuído a cada qual, acima de<br />

métodos, fórmulas, doutrinas, escolas, partidos, de galardão intelectualmente<br />

reservado, pela posteridade – e é esta quem diz a<br />

última palavra – a quem quer que trabalhe com sinceridade e com<br />

fé, para construir aquele mundo, a que se referia D’Annunzio, 12<br />

“perpetuamente a crescer em força e beleza, dádiva dos que receberam<br />

do destino a generosa tarefa de pensar.”<br />

Sustentar sua posição, enquanto na consciência de que somente<br />

ela corresponde ao seu conceito individual dessa tarefa, eis a<br />

única atitude digna do que razoavelmente se permite presumir de<br />

“caniço pensante” 13 . Nesta tese, cremos que esteja simpaticamente<br />

explicada e justificada a ação “modernista”. E a nossa, aliás.<br />

Confirmamos, assim, bem ou mal, dentro do plano literário<br />

em que luta, sonha e constrói a nossa geração, da qual é radioso<br />

expoente Luis da Câmara Cascudo. Este, persistiu galhardamente<br />

fiel às inspirações da sua formação artística, um largo, profundo e<br />

cordial ecletismo literário, sem vigílias sobre Antônio Albalat, 14<br />

patacoadas 15 de Camilo, 16 casmurrices de Cândido de Figueiredo. 17<br />

Um doce, sorridente, meio desencantado humanismo, através de


escritores e poetas franceses – o feiticeiro de L’ile des Pingouins, 18<br />

todos os livros de Flaubert, o Verlaine, de Sagesse; 19 através de<br />

Ramalho 20 e Eça (este, sobretudo). <strong>In</strong>termináveis tertúlias, das<br />

quais tivemos a honra de participar muitas vezes, naquele histórico<br />

e inesquecido casarão do Tirol, entre garfadas olímpicas no<br />

bacalhau à portuguesa e berros de apoio ou controvérsias a conceitos<br />

de Fradique, 21 de João da Ega, 22 de Carlos da Maia; 23 A<br />

Relíqua e O Mandarim 24 lidos de um fôlego, três, quatro horas a fio,<br />

revezando-nos, os dois, naquele amoroso, consciencioso<br />

deletrear 25 do “pobre homem da Póvoa de Varzim”.<br />

Dispersou-nos, logo depois, miseravelmente, esta vida miserável,<br />

que arrasta aqui, no Trampolim da Vitória, todos os que continuamos<br />

a fazer de Rocinante o único meio de transporte, quando<br />

anda tudo tão apressado, sem nenhum daqueles transcendentais<br />

motivos que justificavam, no Cavaleiro da Triste Figura, o sangue<br />

e o suor derramados na lide...<br />

Deixamo-lo com aqueles adoráveis companheiros de suas vigílias<br />

desse tempo, e não sabemos de outros, que tão salutarmente<br />

lhe hajam vincado o estilo. A não ser que a leitura em inglês, idioma<br />

cujo domínio adquiriu muito depois desses anos de nossa convivência,<br />

e que lhe tem permitido familiarizar-se amplamente com<br />

a moderna literatura norte-americana, haja modificado, no seu<br />

estilo, aquelas primeiras influências, tão sensíveis, quando é o cronista,<br />

o maravilhoso cronista, que aparece, na sua famosa coluna<br />

da Acta Diurna. 26 Modificação, prossigamos com franqueza, que<br />

não poderia ter deixado de vulnerar, a fundo, a beleza peculiar à<br />

esplêndida manière 27 revelada por esse poderoso evocador, esse<br />

vitalizador sutil, colorista rembrandtesco, 28 animando quadros a<br />

pulular de luz e cambiantes gentilíssimos, Aladim na câmara de<br />

cinzas da História, da lama canalha da anedota trazendo cerâmicas<br />

de Tânagra 29 e orquídeas imaculadas; fazendo justiça aos heróis,<br />

889


890<br />

deixando em paz a soberba aos tolos, descobrindo bondade nos<br />

homens, a verdade perdida nos labirintos da lenda...<br />

De resto, nessa agoniada tentativa de interpretação, em luta<br />

com o demônio da síntese, sem um livro do extraordinário prosador<br />

para compulsar, violando, brutalmente, a determinação do<br />

espaço que nos foi reservado, urge nos desinteressar do estilo do<br />

historiador, que se encontra ainda em plena beleza, selon 30 Eça de<br />

Queiroz, em muitas de suas páginas nessa atividade literária; mas,<br />

sobre o qual, bem se vê, não nos poderíamos demorar. Receamos,<br />

a propósito, não esteja o grande escritor a esta altura, quando se<br />

deu à faina sobre-humana de escrever um Dicionário de Folclore,<br />

inclinado a achar razoável, para contar História ou estórias, o estilo<br />

da nova escola do Recife. Como se fosse indispensável, para<br />

servir-se à Democracia, que é o tema da moda, descoser de tal<br />

maneira o estilo, que nada esteja valendo, para condigna defesa<br />

dos postulados, pelos quais morreram Garcia Lorca, Quintino,<br />

Euclides, o próprio Pompéia, José Américo...<br />

Exaltemos, no autor de Joio, de Alma Patrícia, no ourives<br />

flaubertiano e humaníssimo de Acta Diurna – a parte de sua vigorosa<br />

obra que mais decisivamente lhe caracteriza o tônus artístico<br />

–, a glória de oferecer, passo a passo, na cunhagem da sua límpida<br />

moeda, paralelo com a do grão-senhor do cinzel, 31 desencarnado<br />

há meio século, entre um raio de sol matinal e o perfume das tílias<br />

de Paris, e cujo impávido monóculo ainda chispeia 32 de todas as<br />

páginas que filigranou, no ouro mais extreme – um guapo, irônico,<br />

eugênico triunfador, no meio da modernidade alvoroçada com<br />

a magnífica presença do indestronável revenant, 33 rindo dessa procura<br />

pânica do inacessível absoluto das fórmulas, no imponderável<br />

do tempo e do espaço...<br />

E rematemos com um cotejo bem intuitivo, quase estatístico,<br />

em dois excertos colhidos ao acaso:


A tarde descia, calma, radiosa, sem um estremecimento<br />

de folhagem, Do lado do mar subia uma maravilhosa<br />

cor de ouro polido, que ia no alto diluir o<br />

azul, dava-lhe um branco indeciso e opalino, um tom<br />

de desmaio doce, e o arvoredo cobria-se todo de uma<br />

tinta loura, delicada e dormente. Todos os rumores<br />

formavam uma suavidade de suspiro perdido. Nenhum<br />

contorno se movia, como na imobilidade de<br />

um êxtase. E as casas, voltadas para o poente...<br />

Este é o velho Eça.<br />

Com o mesmo número de palavras, escreveu Câmara Cascudo,<br />

sur les genoux. 34 de uma prosaica viagem ao sertão:<br />

[...] O olhar se espraia, intérmino, naquele cenário<br />

verde-lodo, pesado e morno de fecundidade. O companheiro<br />

fazia parar o auto, empolgado com a paisagem<br />

absorvente. Até os claros horizontes distantes,<br />

denso, maciço, compacto, agitando as palmas hirtas,<br />

como leques de cerimônia oriental, surdeava 35 o mar<br />

montante dos carnaubais. A aragem fria da chapada<br />

descia, silvando, para o cadinho ardente, onde uma<br />

população álacre e viva se fixara, para existir com a<br />

vida daquelas árvores ásperas e lindas.<br />

Isto é Arte, e assim se constroem as obras eternas.<br />

891


892<br />

Notas<br />

1 Referência a Álvaro de Barros Lins (Caruaru/PE, 14.12.1912-Rio de<br />

Janeiro/RJ, 04.06.1970). Advogado, jornalista, professor e crítico literário,<br />

membro da Academia Brasileira de Letras. O seu Jornal de Crítica foi<br />

publicado numa série de 7 volumes, de 1941 a 1963.<br />

2 Amianto, material resistente ao fogo, refratário.<br />

3 Jarro de boca larga, em geral para vinho; coisa grande e desajeitada<br />

4 Livros de Mário de Andrade, publicados, respectivamente, em 1928 e<br />

1929.<br />

5 Jorge Mateus de Lima (União dos Palmares/AL, 23.04.1893-Rio de<br />

Janeiro/RJ, 15.11.1953). Poeta, médico, romancista, biógrafo, político,<br />

ensaísta, tradutor e pintor. Segundo a crítica, seu melhor livro foi A <strong>In</strong>venção<br />

de Orfeu (poesia). Entre 1937 e 1945 teve sua candidatura à Academia<br />

Brasileira de Letras recusada por seis vezes. Para o imortal Ivan Junqueira,<br />

“a Academia cometeu uma imperdoável injustiça com o autor, cujo trabalho<br />

literário foi excepcionalmente bem recebido pela crítica e pelo público.”<br />

6 O mais extenso e variado dos livros (55 poemas, alguns longos) de Carlos<br />

Drummond de Andrade (1902-1987). Escrito nos anos sombrios da ditadura<br />

de Vargas e da Segunda Guerra Mundial foi publicado em 1941.<br />

“Livro difícil”– disseram os críticos –, é, ainda, um dos mais discutidos e<br />

apreciados da poesia moderna brasileira.<br />

7 Mestre do coro, na tragédia e comédia antigas, o qual exercia a função de<br />

principal representante do povo e de intermediário entre os coreutas (na<br />

Grécia antiga, cada um dos membros do coro do teatro grego; corista)e as<br />

personagens principais; indivíduo que ocupa o primeiro lugar ou que se<br />

destaca dos demais em uma arte, profissão, categoria, etc.<br />

8 Gustave Flaubert (Ruen/França, 12.12.1821-Croisset/França.<br />

08.05.1880). Um dos maiores escritores ocidentais. A obra mais famosa,<br />

de Flaubert é Madame Bovary, que provocou um processo por “obra<br />

execrável sob o ponto de vista moral”. O processo terminou finalmente<br />

com a absolvição do autor em 7 de fevereiro de 1857. Em 1866, recebeu<br />

a Legião de Honra do governo francês.<br />

9 Anatole France. Ver no ensaio sobre Ferreira Itajubá.


10 Charles-Pierre Baudelaire. Ver no ensaio sobre Ferreira Itajubá.<br />

11 José Maria de Eça de Queiroz [ou Queirós] (Póvoa de Varzim/Portugal,<br />

25.11.1845-Paris/França-FR, 16/08/1900) Considerado o melhor<br />

escritor realista português do século XIX. Foi autor, entre outros<br />

romances de importância reconhecida, de Os Maias e O crime do Padre<br />

Amaro. Viveu anos na <strong>In</strong>glaterra, como diplomata.<br />

12 Gabriele d’Annunzio (Pescara/Itália, 12.03.1863-Gardone Riviera/<br />

Itália, 01.03.1938). Grande poeta e dramaturgo italiano, símbolo do<br />

decadentismo. Herói de guerra, foi piloto de caça aliado na Primeira Guerra<br />

Mundial e ferido em combate. Teve uma excêntrica carreira política, sendo<br />

considerado um precursor dos ideais e técnicas do fascismo italiano.<br />

Benito Mussolini aprendeu e imitou de D’Annunzio: seu método de governo<br />

em Fiume, a economia do estado corporativo, grandes e emotivos<br />

rituais nacionalistas, a saudação romana, seguidores devotados com camisas<br />

negras, respostas brutais e uma forte repressão contra a dissidência.<br />

Embora tenha tido uma forte influência na ideologia de Benito Mussolini,<br />

nunca se envolveu diretamente com a política do governo fascista na Itália.<br />

13 “O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um<br />

caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagálo:<br />

um vapor, uma gota de água bastam para matá-lo. Mas, mesmo que o<br />

universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que quem o<br />

mata, porque sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele;<br />

o universo desconhece tudo isso. Toda a nossa dignidade consiste, pois, no<br />

pensamento. Daí que é preciso nos elevarmos, e não do espaço e da duração,<br />

que não podemos preencher. Trabalhemos, pois, para bem pensar; eis<br />

o princípio da moral. Não é no espaço que devo buscar minha dignidade,<br />

mas na ordenação de meu pensamento. Não terei mais, possuindo terras;<br />

pelo espaço, o universo me abarca e traga como um ponto; pelo pensamento,<br />

eu o abarco” (Blaise Pascal, Clermont-Ferrand/França,<br />

19.06.1623-Paris/França, 19.07.1662 – filósofo religioso, físico e matemático<br />

francês. Criou uma das afirmações mais pronunciadas pela humanidade<br />

nos séculos posteriores: “O coração tem razões que a própria<br />

razão desconhece”).<br />

14 Antônio (Antoine) Albalat (Brignales/França, 1856 - ?). Romancista,<br />

crítico literário e jornalista francês. Autor do livro A arte de escrever em 20<br />

893


894<br />

lições (1899), publicado na França, Portugal e Alemanha, depois no Brasil.<br />

Dizia o editor, na apresentação: “O livro sugere com inteligência, os princípios<br />

básicos: como usar a própria fantasia, evitar a banalidade, ser si<br />

mesmo e permitir ao leitor melhorar notavelmente sua capacidade de<br />

expressão. Não é um livro de gramática e nem prescreve regras sintáticas.<br />

Simplesmente o Autor acha que uma pessoa consegue falar, da mesma<br />

forma que consegue escrever. Afinal, escrever ou falar, o que muda verdadeiramente<br />

é somente a maneira da comunicação”.<br />

15 Dito ou ação ilógica; disparate, tolice.<br />

16 Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco (Lisboa/Portugal,<br />

16.03.1825-São Miguel de Seide/Portugal, 01.06.1890). Romancista<br />

português, além de cronista, crítico, dramaturgo, historiador, poeta e tradutor.<br />

Teve vida atribulada que lhe serviu muitas vezes de inspiração para<br />

as suas novelas. Foi o primeiro escritor de língua portuguesa a viver exclusivamente<br />

dos seus escritos literários.<br />

17 Antônio Cândido de Figueiredo (Lobão da Beira,Tondela/Portugal,<br />

19.09.1846-Lisboa, 16.09.1925). Filólogo, jornalista, poeta, advogado,<br />

escritor, servidor público. Autor do Novo Dicionário da Língua Portuguesa,<br />

originalmente publicado em 1899. Destacou-se como lexicólogo e<br />

lingüista, tendo feito parte da comissão que foi encarregada em 1891 de<br />

fixar as bases da ortografia da língua portuguesa. Sócio correspondente da<br />

Academia Brasileira de Letras.<br />

18 Livro de Anatole France, A ilha dos pinguins, publicado em 1908.<br />

19 Sagesse (1880). Livro de Paul Verlaine. A palavra pode ser traduzida<br />

como: inteligência; compreensão; conhecimento; bom senso; fala inteligente.<br />

20 José Duarte Ramalho Ortigão (Porto/Portugal, 24.10.1836-Lisboa-Portugal,<br />

27.09.1915). Escritor, professor e jornalista português.<br />

Escreveu em parceria com Eça de Queiroz, de quem foi mestre, O mistério<br />

da estrada de Sintra (1870) e os folhetos As Farpas (1871), reunidos depois<br />

com o título de Uma campanha alegre. Quando ainda morava no Porto,<br />

onde nasceu, envolveu-se na Questão Coimbrã com o folheto Literatura<br />

de Hoje, acabando por enfrentar Antero de Quental num duelo de espadas,<br />

saindo ferido no combate.<br />

21 Fradique Mendes. Poeta fictício, exótico personagem, culto, viajado,<br />

aventureiro, sempre a par das novidades da ciência, excêntrico e irreverente.


Personagem inventado pelo grupo Cenáculo (notavelmente por Eça de<br />

Queirós e Ramalho Ortigão), um poeta satânico à maneira de Baudelaire.<br />

O grupo produziu um livro chamado Poemas do Macadame.<br />

22 Ver nota no ensaio sobre Ferreira Itajubá.<br />

23 Carlos da Maia. É um dos personagens principais do romance Os Maias,<br />

de Eça de Queirós. Amante da ciência e das mulheres.<br />

24 Dois dos livros de Eça de Queiroz. A relíquia, publicado em 1887, é o mais<br />

irreverente do grande mestre. Trata-se de uma crítica e uma sátira hilariante<br />

do catolicismo em Portugal. O mandarim, de 1880, é uma novela fantástica,<br />

em cujo enredo tem participação decisiva uma figura declaradamente<br />

romântica: o diabo.<br />

25 Ler letra por letra; soletrar.<br />

26 Vide nota no Canto 8, do “Sertão de Espinho e de Flor”.<br />

27 Maneira, jeito, modo; costume, hábito.<br />

28 Relativo a Rembrandt (Harmenszoon van Rijn), influente artista<br />

holandês do século XVII (1606-1669), ou o que é próprio do seu estilo;<br />

relativo à obra de Rembrandt ou que a evoca.<br />

29 Durante escavações arqueológicas em uma cidade da Grécia antiga chamada<br />

Tânagra, foram encontradas estatuetas de cerâmica policromada,<br />

datadas do século IV a.C., reproduzindo corpos femininos com extrema<br />

delicadeza, perfeição e elegância. A elas foi dado o nome da cidade onde<br />

foram descobertas e se eternizaram como símbolo da perfeição humana<br />

nelas encontradas.<br />

30 “De acordo com” (em francês)<br />

31 Grão-senhor do cinzel. Alusão a Eça de Queiroz<br />

32 Faísca, lampeja, brilha, cintila.<br />

33 Espectro, aparição; pessoa que retorna após longa ausência; fantasma (francês<br />

e inglês).<br />

34 Sobre os joelhos, em cima dos joelhos (francês).<br />

35 Emitia sons surdos; sussurrava, cochichava.<br />

895


Velhas cartas 1<br />

[1929-1939]


Pesqueira 2 , 10.4.1929.<br />

Meu caro poeta Esmeraldo.<br />

Abraços.<br />

Cheguei em paz. Estimo que esteja você já livre. Deixei aí meu<br />

velho álbum; guarde-o, por favor, até que haja oportunidade boa<br />

para mandar buscá-lo.<br />

Aqui, recebi uma carta de Maria, dizendo que, desde o dia da<br />

minha partida, Terezinha não dorme, não se alimenta, ultimamente<br />

adoeceu. Por uma dessas noites, insone, perguntou: “Mamãe,<br />

porque Tanel não levou a filhinha dele?”. E, ouvindo lá fora a chuva,<br />

acrescentou: “Tanel, quando voltar, vem todo molhado!”.<br />

Imagine você, meu caro, em que estado de nervos me deixam<br />

essas notícias. Escrevi a Maria, proibindo-as.<br />

Relativamente à minha situação aqui, parece que são promissores<br />

os prognósticos. O chefão da terra, proprietário da celebérrima<br />

fábrica de goiabada, 3 já amigo de <strong>Menezes</strong>, garantiu a este que me<br />

arranjaria bem na Prefeitura. Comunicar-te-ei qualquer novidade<br />

neste particular.<br />

Terá ficado o Alfredo satisfeito com o pagamento?<br />

<strong>In</strong>cluo no teu envelope um recado para Enock, 4 a cujas mãos,<br />

te peço, faça chegar: é um “aviso” 5 para Natal.<br />

Lembranças a Adauto 6 e ao excelente Machado.<br />

Abraços de<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>.<br />

899


900<br />

Natal, 7.5.1930.<br />

Recebi duas cartas tuas, a última pessoalmente, de Dario. 7 Conforme<br />

verás, dei cumprimento às tuas ordens. Entreguei ao próprio<br />

Aderbal 8 o teu soneto ALMA SONORA, que sairá nestes dias,<br />

sem a dedicatória, circunstância que Aderbal me explica ser praxe<br />

do responsável pela seção VIDA SOCIAL. Sistematicamente,<br />

por esse motivo, tem sido forçado a recusar outras dedicatórias.<br />

Com a mais sincera simpatia pelo teu talento (o que é verdade,<br />

segundo aquela carta que te mostrei sobre a não publicação de<br />

MESSALINA), lamentava não poder aceitar de público o teu oferecimento,<br />

que intimamente agradece. São coisas desses<br />

semideuses da nossa imprensa. Cela va sans dire... 9 O Cirano 10 escreveu<br />

uma rápida, mas expressiva crônica em torno do teu soneto<br />

DOR. Parece-me que ele apreendeu o sentido psicológico da<br />

tua individualidade literária, filiando-te ao mistagogo 11 imenso do<br />

EU e ao Jesus amargo e agnóstico que se chamou Antero de<br />

Quental.<br />

***<br />

Há dias, desde fins do mês passado, estou trabalhando em A<br />

REPÚBLICA como auxiliar de redação (é um eufemismo, que,<br />

pelo menos, me chega para consolo do que, na realidade, devo ser<br />

aqui), com a gratificação de duzentos mil reis mensais.<br />

No último sábado, por ocasião do pagamento geral, o gerente<br />

me entregou 120$000, descontando apenas os 80$000 que “ganhara”<br />

por meio das crônicas (?). Fiquei pasmado... mas lá em casa<br />

foi um “tatu subiu no pau”! Terezinha a me exigir (textualmente):<br />

uma bolsa, um chapéu, um sapato cor de besouro, um anel, uma<br />

pulseira, uma sombrinha, um vestido... Santo Deus! Pobre filhi-


nha! No domingo, fui em pessoa fazer uma feira formidável, escandalosa,<br />

e que me entrou em casa num cesto, um autêntico<br />

cesto atopetado de carne seca, ossada, tripa, toucinho, feijão, batata,<br />

– uma tragédia!<br />

Conseqüentemente, tenho peidado mais que de costume, com<br />

risadagem para Terezinha e Washington, 12 e consumo de chá de<br />

louro, erva-doce, casca de laranja e similares...<br />

Estou de botas novas!<br />

Adeus. Manda-me os sonetos e deixa o marfim correr. 13<br />

Velho amigo dedicado e grato,<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong><br />

901


902<br />

Natal, 22.5.1930.<br />

Devo-te resposta a duas cartas. Aqui me tens. Sairá por esses<br />

dias o teu artigo, comprometendo-me eu a o enviar-te sob registro.<br />

Há de ser colocado em lugar de destaque, conforme mereces.<br />

A fim de facilitar-lhe a composição, vou passá-lo a máquina:<br />

temos uma nova e boa na gerência.<br />

Aderbal e Cirano cientes do que lhes mandaste dizer.<br />

Contas aqui a admiração sincera e natural de todos.<br />

Espero continues a enviar colaboração em prosa ou verso, a<br />

teu juízo.<br />

Continuo a vir diariamente à minha banca, mais pelo café e<br />

pela prosa. Diz Dostoievski, o Dante moderno, nas suas terríveis e<br />

divinas Recordações da Casa dos Mortos, a páginas tantas, que o homem<br />

“é o animal que se adapta”: – definição digna da experiência<br />

formidável do gênio e na qual me louvo, esperando confiantemente<br />

me seja dado rivalizar, daqui a pouco tempo, com os<br />

turiferários, 14 com os zangãos mais famosos deste bem-aventurado<br />

cortiço de... “superioridades...” E assuntando se me duplicam<br />

a migalha!<br />

Só isso, Ah! e se não fora Terezinha!<br />

Adeus. Coragem, meu poeta. Pode ser que ainda tenhamos dinheiro!...<br />

Aqui fica, estimando-te e admirando-te muito afetuosamente.<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>


Natal, 17.9.1930.<br />

Meu grande poeta:<br />

Coragem!<br />

(Grito-te isso, porque é precisamente o que me falta).<br />

Deves levar à conta da vida danada que levo – cada dia pior – o<br />

meu silêncio.<br />

Há dias – há uns dois dias – estive com Cirano, que me mostrou<br />

uma carta tua, datada de 10, reclamando a publicação do<br />

artigo que deixaste aos meus cuidados. Aí o tens, publicado há<br />

mais de um mês.<br />

Correm falaços aqui a respeito da ascenção de Eloy ao Ministério<br />

da Agricultura. Por conta disto, tenho andado a devanear... A<br />

mim mesmo, várias vezes já, quando atravessava a avenida, mais só<br />

do que se atravessasse a estepa, me tenho surpreendido numa pose<br />

de... oficial de gabinete!<br />

Não te disse sempre que ando a esperar diariamente uma grande<br />

coisa na vida?!<br />

Ai de nós... Como nos deixamos enganar neste mundo!<br />

Adia o teu suicídio e crê no abraço do velho<br />

<strong>Othoniel</strong><br />

903


904<br />

Ceará-Mirim, 18.09.1939.<br />

Depois de 28 dias a esbofar-me sobre um Everest de papéis<br />

pululantes de gambiae, nyshorrinchus, anophelinas, albitarsis, aedes aegyptis<br />

et caterva, sob o mais inclemente dos climas tórridos do planeta,<br />

eis-me desterrado novamente e de nariz aproado sobre um<br />

Popocatépetl 15 de boletins antilarvários, resumos semanais de capturas<br />

domiciliares, relatórios de verde-paris, 16 o diabo que os carregue!<br />

Ainda não consegui os milagres que a inteligência superior<br />

de um filho de Sérgio Freire – o homem da Casa São Vicente de<br />

Paulo – de há muito arrancou dessa rocha mosaica, decifrando 17 a<br />

contento dos eleisons cardoso toda a tremendíssima trapalhada<br />

dessa mosquitama. E ando receoso da opinião, já externada indiretamente,<br />

em minha presença, do mesmíssimo Eleison, 18 de que<br />

“certos indivíduos, famosos na terra como intelectuais, dão água, 19<br />

em contato com um serviço tão tolo, como o de classificar mosquitos,<br />

remexer sabiamente em vales, depressões, tanques, etc., etc.!”...<br />

Ai de mim!<br />

***<br />

Queria que você me ajudasse a salvar o meu filhinho Laélio, 20<br />

há tempo sob os cuidados de Calafange. 21 Este tem sido de uma<br />

dedicação e de uma generosidade comovedoras, pois mesmo as<br />

receitas tem feito despachar. Entretanto, sua opinião, de que está<br />

sendo muito artificial o tratamento do doentinho, casa-se perfeitamente<br />

com a minha, já externada a Maria.<br />

Peço o concurso, não só da sua amizade, como do seu talento,<br />

em favor de meu pobre ratinho. Por intermédio de Antônio<br />

Emerenciano, 22 que muito nos tem ajudado, sugeri a Calafange<br />

uma junta médica, composta por você, ele e o Vilaça, 23 a quem<br />

não conheço pessoalmente, mas a respeito de cujo espírito de<br />

caridade tive as mais carinhosas notícias.


Combinados o dia e a hora, o menino será levado ao gabinete<br />

do Abelardo, ou dar-se-á o congresso mesmo lá em casa, naquelas<br />

velhas, hemiplégicas “poltronas” tão vastamente ilustradas pelas<br />

nossas cavaqueiras.<br />

Espero sua breve resposta, pelo correio, a fim de pôr o<br />

Emerenciano nas pegadas do Vilaça. De resto, espero que você<br />

próprio fale com este; desde que lhe quero poupar o aborrecimento<br />

de pedir-lhe a iniciativa.<br />

Vou escrever também ao Abelardo.<br />

***<br />

Li, há pouco, no O Malho, 24 uma resposta do Cabuhí a seu projeto<br />

dos versos em espanhol.<br />

Li, achando-os lindíssimos, os seus versos líricos publicados no<br />

jornal do Eloy 25 – o anopheles gambiae 26 da literatura... potiguar! E<br />

pur se muove! 27 Mesmo sobre a vasa, 28 as pérolas são pérolas!<br />

***<br />

Quero sua opinião sobre o destino do mundo, como o fato,<br />

para mim estarrecedor, da invasão da Polônia pela U.R.S.S. 29<br />

Escreva.<br />

Do velho<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong><br />

905


906<br />

Notas<br />

1 Correspondência de OM com Esmeraldo Siqueira, publicada em 1969<br />

(Velhas cartas, Editora Pongetti). Esmeraldo, de OM, apenas publicou as<br />

cartas em português. Comumente, escreviam-se em francês (Esmeraldo,<br />

no volume citado, transcreve algumas das suas ao poeta, naquele idioma).<br />

2 Município situado na divisa com o Estado da Paraíba, entre o agreste e o<br />

sertão de Pernambuco.<br />

3 Carlos de Brito. Titular da conhecida fábrica Peixe, primeira unidade<br />

industrial de porte instalada no Nordeste. Fundada, no município de Pesqueira<br />

em 1898, por Maria da Conceição Cavalcanti de Brito (Dona Yayá)<br />

que decidiu investir na fabricação de goiabada caseira.<br />

4 Enock de Amorim Garcia (São José de Mipibu/RN, 01.09.1901-<br />

Natal/RN, 07.02.1989). Bacharel em Direito e político, secretário de<br />

Estado (Agricultura e Segurança Pública), fundador da Escola Agrícola de<br />

Macaíba. À época, estudante em Recife e telegrafista da repartição de<br />

Correios e Telégrafos, amigo de OM e de Esmeraldo.<br />

5 “Aviso” era uma mensagem telegráfica interna, isenta de taxação.<br />

6 Certamente, Adauto Miranda Raposo da Câmara. Ver nota no ensaio<br />

sobre Ferreira Itajubá, neste volume.<br />

7 Dario Jordão de Andrade (Macaíba/RN, 1911-Natal/RN, 2005).<br />

Magistrado macaibense, irmão do poeta Clóvis Jordão de Andrade. Estudante<br />

de Direito, no Recife, à época.<br />

8 Aderbal de França. Ver nota em Sertão de espinho e de flor.<br />

9 Escusado será dizer (francês).<br />

10 Pseudônimo de Edgar Ferreira Barbosa. Ver nota no ensaio sobre<br />

Ferreira Itajubá, neste volume<br />

11 Entre os antigos gregos, sacerdote que iniciava os neófitos nos mistérios<br />

de Elêusis; antigo sacerdote que ensinava as cerimônias e os ritos de uma<br />

religião; mestre dos mistérios; iniciador, mentor.<br />

12 Filhos de OM: Terezinha, então com quatro anos, e Washington, com<br />

nove.<br />

13 Expressão antiga, adágio: “Deixar correr o marfim” – deixar pra lá, deixar<br />

correr frouxo; não interferir.


14 Aqueles que vivem incensando ou adulando alguém.<br />

15 Estratovulcão ativo, localizado a 60 km a sudeste da capital mexicana. O<br />

seu cume atinge 5.482 metros de altitude e é o segundo mais alto<br />

do México.<br />

16 <strong>In</strong>seticida preparado com um pó verde-claro, altamente venenoso, cuja<br />

base é o arsênico. OM trabalhava, à época, nos serviços burocráticos do<br />

antigo Serviço Nacional de Malária.<br />

17 OM refere-se à habilidade do filho do dono (Sérgio Freire) de uma farmácia<br />

natalense, “especialista” na decifração da grafia empregada pelos médicos.<br />

18 Eleison Cardoso. Médico epidemiologista, chefe de <strong>Othoniel</strong> no Serviço<br />

de Malária, no Rio Grande do Norte (Ver nota de OM no Canto 11, do<br />

Sertão de espinho e de flor, neste volume).<br />

19 Fracassam, falham, complicam-se, enrolam-se.<br />

20 O autor destas notas estava, na data da carta, com dois meses e alguns dias<br />

de nascido.<br />

21 Abelardo Calafange (Canguaretama/RN, 27.06.1904-Natal/RN,<br />

05.05.1974). Médico, político e jornalista. Concluindo o curso de Medicina<br />

no Rio de Janeiro, foi redator do Diário da Noite, Jornal das Moças, O<br />

Malho, A Batalha, O Debate. Antes, ainda universitário no Recife, fundou a<br />

Revista Acadêmica e colaborou em vários jornais. Escreveu, também, no<br />

jornal A República. Foi deputado estadual e federal, como suplente (1951),<br />

secretário de Estado. Compadre de OM, padrinho do autor destas notas.<br />

22 Antônio Emerenciano. Irmão de Gotardo Emerenciano, filho do professor<br />

Zuza. Poeta e jornalista, amigo e contemporâneo de Ferreira Itajubá,<br />

foi diretor (administrativo) do Departamento de Saúde Pública do Estado<br />

por muitos anos. Amigo e compadre de OM – a exemplo do Dr. Calafange<br />

–, padrinho de Laélio (autor destas notas).<br />

23 Manuel Cordeiro Vilaça (Natal/RN, 1915-Brasília/DF, 1971). Médico<br />

e político norte-rio-grandense, senador da República e ministro da<br />

Saúde do governo parlamentarista de João Goulart. Diplomado pela Escola<br />

de Medicina da Universidade de Recife, fez cursos de administração,<br />

puericultura, alimentação, fisiologia e de dietética no Ministério da Saúde,<br />

além do curso de proteção social à infância, no Centro <strong>In</strong>tegral da <strong>In</strong>fância,<br />

em Paris, na França. Trabalhou poucos anos no Estado.<br />

907


908<br />

24 O Malho foi uma revista humorística brasileira criada por Crispim do Amaral,<br />

em 1902. A sua especialidade era satirizar fatos políticos, e entre os seus<br />

desenhistas e caricaturistas destacaram-se J.Carlos, Angelo Agostini, Max<br />

Yantok, K. Lixto e Theo. Circulou, com sucesso, até 1952.<br />

25 A Razão, dirigido pelo ex-senador Eloy Castriciano de Souza. A folha rezava<br />

pela cartilha dos “perrés”. Ver Nota de OM, no Canto 11, do Sertão de<br />

espinho e de flor. OM era do partido “péla-bucho”, ou seja, cafeísta.<br />

26 Mosquito pertencente ao gênero Anopheles, de origem africana. Hospedeiro<br />

e transmissor da malária, sendo principal vetor da doença na África.<br />

Tem o hábito de viver dentro das habitações humanas e ter o homem<br />

como vítima principal. Ver outras notas sobre Eloy de Souza, no ensaio<br />

sobre Ferreira Itajubá, neste volume.<br />

27 “E, contudo, ela se move!”. Frase atribuída a Galileu Galilei (1564-<br />

1642), referindo-se à Terra. resmungada após a abjuração da sua teoria<br />

heliocêntrica, questionada pela <strong>In</strong>quisição, em Roma.<br />

28 Espécie de lama, fina e inconsistente, característica de certos fundos oceânicos,<br />

constituída por carapaças microscópicas de animais ou de<br />

diatomáceas ou elementos minerais; camadas viciosas, corrompidas, degradadas<br />

(duma sociedade).<br />

29 A primeira manifestação de OM – o admirador do socialismo cristão –<br />

contra o totalitarismo da União Soviética. Ele, que pouco tempo antes da<br />

missiva, tinha saído dos porões do Estado Novo, onde estivera preso,<br />

taxado de “comunista,” no Levante de 35, por ser correligionário de João<br />

Café Filho e admirador do “Cavaleiro da Esperança”, Luís Carlos Prestes.


A poesia oculta de <strong>Othoniel</strong><br />

<strong>Menezes</strong> 1<br />

Celso da Silveira 2


<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> (1895-1969), cognominado “príncipe dos<br />

poetas norte-rio-grandenses”, autor de meia dúzia de livros de<br />

poemas, a maioria de sonetos, imortalizou-se, entretanto, pela<br />

canção que se popularizou com o nome de “Praieira” ou “Serenata<br />

do pescador”, musicada por Eduardo Medeiros, um músico autodidata<br />

que não ficou esquecido graças a essa “pérola do amor” que<br />

é o poema de <strong>Othoniel</strong>.<br />

<strong>Othoniel</strong> viveu uma vida nômade a partir de tenra idade, sendo<br />

vítima de infortúnios mais de que de aventuras.<br />

Menino, teve de se deslocar da terra natal para o sertão<br />

seridoense feito carga em lombo de animal, fazendo uma retirada<br />

ao inverso, num comboio de burros, quase imitando a fuga de<br />

Jesus para o Egito, para salvar-se. Sofrera, ainda no ventre materno,<br />

os efeitos da bexiga contraída por sua mãe na gravidez e foi<br />

acometido de varíola com menos de dois anos de idade. Foi servidor<br />

público mal remunerado, carregou uma velhice de pobreza<br />

até o extremo de precisar da ajuda de amigos e do Lions Clube de<br />

Natal, quando residia, quase esquecido e doente, à rua Correia<br />

Teles, Cidade Alta, em Natal, onde nos idos da década de 1950,<br />

como repórter de A República, fui entrevistá-lo por conta da repercussão<br />

de suas necessidades para sobreviver, denunciadas na<br />

Assembléia Legislativa pelo então deputado Túlio Fernandes. 3<br />

Foi a partir desse momento que conheci o <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong><br />

amargurado, que fora amigo do meu pai – João Celso Filho 4 – em<br />

Assu, quando ali esteve à frente da Mesa de Rendas Estaduais.<br />

<strong>Othoniel</strong> contou, na entrevista, que o seu livro Sertão de espinho<br />

e de flor, premiado com a publicação por força de uma Lei Estadual 5<br />

há cerca de doze anos, só fora editado pelos esforços e boa vontade<br />

do diretor da Imprensa Oficial, e também poeta Antônio Pinto de<br />

Medeiros, mas censurava muito a qualidade do papel em que foi<br />

impresso – papel jornal.<br />

911


912<br />

Esse livro não deve passar sem uma reedição, porque constituiu<br />

a obra poética mais importante do autor potiguar. É um canto<br />

ao “sertão selvagem de Euclides”, como ele preconizou numa<br />

sextilha septissilábica no Canto I, um documento testemunhal de<br />

uma época no interior do estado nordestino, um trabalho de antropologia<br />

cultural, a descrição de costumes, práticas e comportamentos<br />

sertanejos, num Rio Grande do Norte primitivo e rude,<br />

palmilhado apenas por cascos de animais. Sertão de espinho e de flor,<br />

guardadas as devidas proporções e a geografia do espaço onde se<br />

desenrolam as cenas e situações enfocadas, eu diria que equivale à<br />

Ilíada e mesmo o situaria como nossa divina comédia.<br />

Mas, não é o <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> do Jardim tropical (1923), da<br />

Canção de montanha (1955) e do Sertão de espinho e de flor, (1952)<br />

que trago para este registro de sua obra. Aqui desejo revelar um<br />

<strong>Othoniel</strong> ocultado, desconhecido, ignorado, insuspeitado, salvo<br />

revelar presença de espírito de João de Oliveira Fonseca (1917-<br />

1989), seu colega, como funcionário da construção da Base Americana<br />

de Parnamirim e, como poeta, um assuense que voltou à<br />

terra natal para jamais abandoná-la até à morte. Aqui me refiro ao<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong> fescenino, pornográfico, proibido, indiscreto,<br />

impublicável.<br />

O poeta João Fonseca é autor da trova que anda nas antologias<br />

dos trovadores nacionais: “Amor é ver mordidura / de aranha<br />

caranguejeira / se não mata a criatura / aleija pra vida inteira”. A<br />

esta trova <strong>Othoniel</strong> respondeu:<br />

Diz Fonseca – A Terra inteira 6<br />

não és Tu, Deus, quem governas!<br />

É a aranha caranguejeira<br />

que a mulher tem entre as pernas.<br />

A verdade que isto encerra<br />

nada tem de ímpia ou estranha


o Sol, que domina a terra<br />

tem a forma de uma aranha!<br />

<strong>Othoniel</strong>, cujo convívio tive o privilégio de privar, juntamente,<br />

ao de Jayme Wanderley (outro grande poeta esquecido, autor<br />

de Espinho de jurema, partícipe da turma de Jorge Fernandes e<br />

Cascudinho, em 1928), sempre se revelou uma pessoa sofrida,<br />

magoada, amargurada e descontente com a sua pobreza. Orgulhoso<br />

de sua obra poética, como ser humano não se dobrava a ninguém<br />

para pedir o que quer que fosse. Em sua passagem pela construção<br />

da Base, alguém observou que ele vestia uma camisa com o<br />

colarinho puído 7 e ele não demorou na condenação ao observador<br />

maledicente:<br />

E segue:<br />

A camisa rota, oh corno<br />

e tal qual só você viu<br />

foi de uma foda no torno<br />

com a puta que lhe pariu...<br />

Ninguém deve ser julgado<br />

pela camisa que veste:<br />

mesmo bem encadernado<br />

sacana é coisa que preste?<br />

Melhor é andar maltrapilho<br />

viver-se do que se ganhe<br />

do que, cafetão e não filho,<br />

luxar com o suor da mãe...<br />

Ouve agora a eterna lei:<br />

todo de seda ou no enxurro,<br />

um poeta é sempre um rei<br />

– e um burro é sempre um burro!.<br />

913


914<br />

Na Base, em 1943, parece que <strong>Othoniel</strong> era apenas um burocrata<br />

encarregado de preencher as requisições de materiais solicitados<br />

pelos engenheiros ou mestres-de-obras. Nessa época era funcionário<br />

da Base, o jovem Gumercindo que, segundo informação<br />

de João Fonseca, era o próprio Gumercindo Saraiva, 8 que se tornou<br />

pesquisador, escritor, musicista, folclorista, ensaísta, autodidata<br />

que pertenceu à Academia Norte-Rio-Grandense de Letras<br />

e faleceu tocando seu instrumento predileto – o violino (1915-<br />

1988), porque Gumercindo, como encarregado do depósito de<br />

material, espécie de almoxarife, às vezes fazia restrições aos pedidos<br />

preenchidos pelo poeta. Certa vez <strong>Othoniel</strong> foi cáustico com<br />

o outro:<br />

E esta outra quadrinha:<br />

Cagando mais do que come,<br />

só tem um jeito você:<br />

substituir, no seu nome,<br />

a inicial por um “C”!<br />

Se merda entrasse na obra,<br />

Gumercindo, abrindo o tampo,<br />

forneceria, com sobra,<br />

cimento pra todo o Campo.<br />

16.02.43<br />

Dessa mesma fase há algumas quadrinhas em que o poeta fustiga,<br />

causticamente, as figuras que não se enquadravam na sua empatia<br />

afetiva. Não há história a contar, mas as duas quadras que seguem<br />

fazem sentido por si mesmas, mostrando que o poeta não suportava<br />

os erros matemáticos do colega:


Beata velha xibiu,<br />

cu velho birrento e arcaico,<br />

em que compêndio é que viu<br />

metro ao cubo de mosaico?<br />

Pomboca não multiplica!<br />

Fruta velha não dá goma!<br />

Diga se foi com tal pica<br />

que andou brochando esta soma!<br />

Mas, a face maldita do poeta de “Praieira” não estancou aí. Parece<br />

que ele estava com furor mórbido para condenar Deus e o<br />

Diabo na terra do Sol. No rol dos colegas, na Base de Parnamirim,<br />

só Fonseca foi poupado. Quem fizesse qualquer restrição, ou tecesse<br />

comentário desairoso ao trabalho de <strong>Othoniel</strong>, sofria as conseqüências<br />

do seu tacape arrasador. Por esse mau pedaço passou<br />

um certo “censor”, sobre quem ele aconselha a assumir a mesma<br />

atitude de Apeles – não passar dos sapatos. Vejam só:<br />

Suas funções não confunda,<br />

dos seus tamancos não desça,<br />

– você só pensa com a bunda,<br />

só caga pela cabeça!<br />

Pobre de quem o poeta não simpatizasse. Contra esses, ele usava<br />

sua verruma afiada, sem meias palavras, como um ditador absoluto<br />

usa seu poder exterminador:<br />

A ensinar-lhe higiene, eu entro<br />

com um conselho em que insisto:<br />

abra o cu e escarre dentro<br />

que ele só serve pra isto.<br />

915


916<br />

Aí está um outro <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, “príncipe” da pornografia<br />

– uma poesia mal compreendida no RN, onde nem sempre a<br />

intelectualidade está informada de estudos muito sérios de autores<br />

responsáveis que pesquisaram poetas greco-romanos e latinos<br />

da antiguidade clássica, sem falar no poeta Manoel Maria Barbosa<br />

du Bocage, neles detectando palavrões da fala do povo, como “pica”,<br />

“corno”, “greta”, “puta”, “teta”, ou não leu em Eça de Queiroz a<br />

descrição de uma cena de minete, ou desconhece um poeta da<br />

seriedade de Carlos Drummond de Andrade, algumas vezes indicado<br />

para Prêmio Nobel de literatura, que tem um poema<br />

intitulado “A língua lambe” 9 , recentemente publicado no jornal<br />

“Folha de São Paulo”, em que faz a apologia da língua como instrumento<br />

sexual.<br />

Como nota final, acrescento: <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, Jayme<br />

Wanderley, Meira Pires 10 e eu, todas as manhãs, a partir de 9 horas,<br />

em 1952, reuníamo-nos em torno de uma mesa do Tabuleiro<br />

da Baiana, à Praça Augusto Severo, servidos pelo garçom Fumaça,<br />

para cafezinhos e conversas. Eu estava com o livro de estréia no<br />

prelo da Tipografia Vilar, na atual rua Câmara Cascudo – 26 Poemas<br />

do Menino Grande 11 – e ele me estimulou muito a escrever.<br />

Visitou, com Jayme – que a gente chamava “Poetajeime” -, a tipografia<br />

para acompanhar a composição, impressão e confecção do<br />

livro.<br />

Tanto ele quanto Jayme fumavam um cigarro atrás do outro, às<br />

vezes acendendo o novo cigarro com a ponta do que acabavam de<br />

fumar. Escondia suas privações, mas não podia esconder a amargura<br />

de não ter um lugar ao Sol e não ter sido contemplado com<br />

uma situação econômica que o livrasse das dificuldades financeiras<br />

porque passava.<br />

<strong>Othoniel</strong> e Jayme tiveram suas musas inesquecíveis, cuja memória<br />

era sempre evocada por eles: Maria, de <strong>Othoniel</strong>, e Miriam,<br />

a primeira esposa de Jayme.


Notas<br />

1 Matéria publicada no jornal O Poti edição do dia 27 de outubro de 1991,<br />

um domingo. OM, em casa, nunca proferiu uma palavra chula, obscena,<br />

pornofônica. Era exigente com os filhos, nesse aspecto. “Fresco” e/ou<br />

“veado”, na sua boca, no lar, não passava de “pederasta” – e olhe lá!<br />

2 Celso Dantas da Silveira (Assu/RN, 25.10.1929/Natal-RN,<br />

02.01.2005). Jornalista, professor, ator teatral, poeta, escritor, editor e<br />

boêmio. Escreveu ou organizou dezenas de livros. Seu maior sucesso editorial<br />

– considerado até os dias de hoje como o maior best-seller potiguar,<br />

com quatro edições (uma delas, a última, não autorizada pelos herdeiros)<br />

– foi Glosa glosarum, uma coletânea de glosas fesceninas por ele organizada.<br />

Celso, ainda que fosse um ótimo poeta moderno, não escrevia glosas<br />

(décimas). Era, sim, um construtor de motes deliciosos, provocando os<br />

glosadores. O “gordo Celso” – como lhe chamavam os amigos – era<br />

prodigioso causeur. Bebia bem e comia ainda melhor, alegre, amigo, brilhante.<br />

Foi casado com a inesquecível poetisa Myriam Coely de Araújo<br />

(ver nota 79, em A canção da montanha).<br />

3 Túlio Fernandes de Oliveira. Bacharel em Direito e político, filho do<br />

poeta e magistrado Sebastião Fernandes, sobrinho de Jorge Fernandes.<br />

Casado com a educadora e jornalista Chicuta Nolasco Fernandes. Foi deputado<br />

estadual em vários mandatos.<br />

4 João Celso Filho morreu na Fazenda Limoeiro, de sua propriedade, em<br />

14 de novembro de 1943, no Assu-RN. Advogado, professor, proprietário<br />

rural, dramaturgo, contista, orador e poeta. O edifício do Fórum, em<br />

Assu, tem o seu nome. Fazia glosas fesceninas.<br />

5 Lei Estadual n. 145, de 1900, já citada.<br />

6 João Fonseca, durante décadas, guardou os fesceninos do amigo, ciosamente.<br />

O autor destas notas os leu a primeira vez, em Assu, em 1957.<br />

7 Publicada em vários jornais do Estado (RN), uma crônica do autor destas<br />

notas revela detalhes do acontecimento:<br />

A CAMISA DO POETA<br />

No tempo da guerra, muita gente se empregou em “Parnamirim Field”.<br />

Dentre esses pioneiros burocratas – recrutados, diziam, sob o olhar atento<br />

do pastor batista doutor Mateus, tido como coronel da inteligência da<br />

USAF –, estavam <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, o poeta da “Praieira”; “seu” Galvão,<br />

917


918<br />

pai do professor Cláudio Galvão – este, escritor e pesquisador emérito;<br />

Deoclécio Sérgio de Bulhões, homeopata, homem boníssimo e caridoso<br />

que mais tarde seria vereador em Natal, por muitas legislaturas; Agenor<br />

Ribeiro, depois empresário; Rômulo “Minha gata” que, deixando<br />

Parnamirim, foi para o Banco do Brasil; Emanuel Rivadávia, também, posteriormente,<br />

servidor do BB, no México e nos Estados Unidos. Fluente<br />

em inglês, traduziu e leu para o general Eisenhower, em 1945, um discurso<br />

escrito por <strong>Othoniel</strong>, saudando o futuro presidente dos Estados Unidos,<br />

em nome do pessoal civil da Base. Misturando-se a essa boa gente,<br />

para lá também acorreram alguns “artistas” do Grande Ponto, filhinhos de<br />

papai, arranhando inglês, charlando, dançando fox no Aero, bodando na<br />

praça Pedro Velho.<br />

Na sopa (ônibus), guiada por “Charuto”, negão forte e valente, embarcava<br />

o pessoal na Pracinha (“Pedro Velho”, hoje “Cívica”) e embiocava na<br />

“Parnamirim Road”, a “Pista”. Fazia pit stop no portão da Base, ia em frente<br />

e deixava os “porcos” no Post of Engineers.<br />

“Porco”, era o apelido dado aos funcionários subalternos, operários, que<br />

viajavam nas carrocerias dos caminhões – alcunha que depois se generalizou.<br />

De Natal à Base, no ônibus, não viajando criança ou mulher – o que<br />

era raro – a esculhambação era grossa. Vida alheia, anedotas cabeludas,<br />

acenos para as peniqueiras no trajeto, algazarra, esbórnia total.<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>, arredio, desconfiado, da raça irritável dos poetas, como<br />

afirmava Virgílio, somente com os mais íntimos trocava piadas. Era sofrido,<br />

pobre – mas, altivo, culto e probo. Jornalista de renome, secretário do<br />

jornal A República, amigo de Café Filho, socialista, admirador de Luiz Carlos<br />

Prestes, escrevera em 1935, praticamente sozinho, o jornal A Liberdade. Tachado<br />

de “comunista”, passou quase três anos na cadeia. Em Parnamirim,<br />

não ligava para o apelido de “Ipecacuanha” (tinha mania por chá caseiro!).<br />

Deu o troco ao autor da proeza, o colega Deoclécio Bulhões, caridoso<br />

esoterista e homeopata, que tinha uma imponente trunfa: sapecou-lhe a<br />

alcunha de “Professor Bendengó”! Prudente, o vate guardava distância dos<br />

“artistas” do Grande Ponto, alguns deles, até, filhos de amigos e parentes.<br />

O diabo, porém, atenta! Quando não dá o ar da graça, de corpo presente,<br />

manda um secretário. Um belo dia, na rebarba de uma daquelas algazarras,<br />

do fundo do coletivo, ouviu, clara e maliciosa, a acaçapante e maldosa<br />

agressão: “<strong>Othoniel</strong>, poeta da camisa rasgada!”


Vilipendiado, trêmulo, em cima da bucha, levantou-se e partiu pra briga.<br />

Era homem de coragem comprovada. Não conseguiu chegar à patota. Os<br />

amigos não deixaram. A cotiada camisa que vestia, cerzida e passada, engomada,<br />

pelas mãos da sua Maria, era tão-só o espelho da sua pobreza respeitável<br />

e resignada. Não lhe pisassem! Não conseguiu identificar o autor da<br />

agressão gratuita. Nunca soube quem foi, nunca lhe disseram.<br />

Minutos depois, já no Post of Engineers, ainda pálido, calado, à vista dos<br />

companheiros solidários, sentou-se à mesa e, a manuscrito, em letras<br />

garrafais, numa folha de cartolina made in USA – depois afixada no Quadro<br />

de Avisos – fulminou o gaiato:<br />

A camisa rota, oh corno,<br />

e tal qual só você viu,<br />

foi de uma foda no torno<br />

com a puta que lhe pariu!<br />

“Ipecacuanha”, então, esboçou um acanhado sorriso para o futuro vereador<br />

– o “Professor Bendengó” – e encerrou, para sempre, “o assunto”.<br />

8 João Fonseca e Celso da Silveira enganaram-se. O “alvo” de OM não era, à<br />

época, o futuro escritor e musicólogo. O Gumercindo era outro, sujeito<br />

muito gordo e avermelhado, chefe dos bombeiros (encanadores) do Posto<br />

de Engenharia da Base Aérea. Sobre Saraiva, ver nota, em Sertão de<br />

espinho e de flor.<br />

9 O poema de Drummond: “A língua lambe as pétalas vermelhas/ da rosa<br />

pluriaberta; a língua lavra/ certo oculto botão, e vai tecendo/ lépidas<br />

variações de leves ritmos./E lambe, lambilonga, lambilenta,/E lambe,<br />

lambilonga, lambilenta,/a licorina gruta cabeluda,/ e quando mais<br />

lambente, mais ativa,/ atinge o céu do céu, entre gemidos,/ entre gemidos,<br />

balidos e rugidos/ de leões na floresta, enfurecidos”.<br />

10 <strong>In</strong>ácio Meira Pires (Ceará-Mirim/RN, 15.03.1928-Natal/RN,<br />

18.11.1982). Ator e teatrólogo. Diretor, por longos anos, do então Teatro<br />

Carlos Gomes, em Natal. Mudou o nome da casa de espetáculos para<br />

Teatro Alberto Maranhão. Participou do Conselho de Cultura do Estado<br />

e da Academia de Letras. Por breve tempo, chegou a ser diretor do Serviço<br />

Nacional de Teatro.<br />

11 Publicado em 1952, com impressão da Tipografia Vilar, Natal.<br />

919


Este livro foi editorado nas fontes Perpétua, Venetian e Castle,<br />

no escritório da Una, em Natal/RN.<br />

Impresso na Gráfica Moura Ramos, em João Pessoa/PB,<br />

em março de 2011.


SOBRE O ORGANIZADOR<br />

Laélio Ferreira de Melo (1939) é<br />

graduado em Administração, foi Chefe<br />

dos serviços administrativos do Posto<br />

Florestal de Assu, do Ministério da<br />

Agricultura, hoje IBAMA (1957) e<br />

Secretário dos Acordos Florestais no<br />

RN (1959). Auditor Federal concursado<br />

do Tribunal de Contas da União.<br />

Delegado do TCU nos estados de Santa<br />

Catarina, Alagoas, Paraíba e Rio Grande<br />

do Norte. Aposentou-se na Corte de<br />

Contas como Secretário de Controle<br />

Externo. Jornalista (repórter e<br />

correspondente) na Tribuna da Imprensa,<br />

Associated Press e Última Hora, no Rio de<br />

Janeiro e em Brasília. Colaborador da<br />

imprensa potiguar e de muitos blogues,<br />

poeta, cronista e pesquisador de<br />

História, com matérias publicadas na<br />

revista Ciência Sempre e nos livros Bom<br />

Dia Café e Bom Dia Sertões. Participou,<br />

como poeta fescenino, da primeira<br />

edição (1979) do Glosa Glosarum,<br />

antologia recolhida por Celso da<br />

Silveira. Organizador dos livros 1935,<br />

Setenta anos depois e desta Obra Reunida<br />

do seu pai, <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>. No<br />

prelo, coletânea de glosas fesceninas<br />

autoral (Glosando o Mundo). Várias<br />

participações em seminários, mesasredondas,<br />

fóruns de debates sobre<br />

literatura potiguar, e sobre a poesia de<br />

<strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>.


A reunião de toda a obra publicada e dispersa de <strong>Othoniel</strong><br />

<strong>Menezes</strong>, “príncipe dos poetas potiguares”, além de ser, desde já,<br />

um marco para a literatura do Rio Grande do Norte, é também<br />

um reencontro de um pai com seu filho: sem o esforço incondicional<br />

de Laélio Ferreira de Melo este livro não seria editado e as<br />

novas e futuras gerações seguiriam impossibilitadas de conhecer<br />

a indispensável produção poética e ensaística de <strong>Menezes</strong>, autor<br />

dos mais clássicos versos da nossa literatura, a Serenata do pescador,<br />

mais conhecido como “Praieira dos meus amores”. Estão aqui<br />

incluídos, ainda, o fascinante e único Sertão de espinho e flor e o<br />

lúcido ensaio sobre o poeta Ferreira Itajubá, que, por si sós,<br />

justificam o principado de <strong>Othoniel</strong> <strong>Menezes</strong>. A presente edição<br />

é enriquecida também pelos textos de Murilo Melo Filho,<br />

Tarcísio Gurgel e Cláudio Galvão e pelas notas de Laélio Ferreira<br />

de Melo, súditos de “um poeta dos maiores do Brasil”, na definição<br />

do amigo e admirador Câmara Cascudo.<br />

Mário Ivo Cavalcanti<br />

ISBN 978-85-60036-11-0<br />

9 788560 036110

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