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Estrategicamente situada entre dois grandes blocos: por um lado,<br />

romantismo, realismo e simbolismo, e. por outro, o modernismo de 22 e<br />

seus desdobramentos, a análise de Sylvia Helena incursiona por uma<br />

produção literária ainda mal definida pelo termo "pré-modernista".<br />

Vistas sob o ângulo do passado, pode-se dizer que as obras desse<br />

período revelam traços conservadores que realimentavam antigas formas<br />

de sensibilidade do leitor, ao passo que. se examinadas a partir das produções<br />

dos modernistas - então ainda não concretizadas -. lhe antecipariam<br />

algumas de suas principais invenções: uma linguagem variada.<br />

mais ágil e próxima do real, uma temática que incorpora tipos e situa<br />

do nosso meio. propiciando, em certos casos, um salto para a consciência<br />

crítica das relações entre a literatura e seu meio sociocultural e histórico.<br />

A opção por uma ou outra dessas perspectivas tem feito os estudiosos<br />

oscilarem da recusa ao período como um todo. por sua falta de originalidade<br />

literária, à recuperação e ao reestudo entusiasmado de algumas de<br />

suas obras, salvando-as do esquecimento e do rótulo comum que as<br />

englobava. Tais são, para lembrar apenas dois autores, as obras de Euclides<br />

da Cunha e de Lima Barreto, pela força com que falaram da realidade.<br />

O estudo de Sylvia pressupõe que. em vez de partir das implicações<br />

contidas nos prefixos "pós" ou "pré" para compreender as criações do<br />

período, será mais produtivo conhecer de perto e em detalhes algumas de<br />

suas obras, situando-as ao mesmo tempo no contexto histórico-cultural<br />

em que foram produzidas, bem como na relação que elas mantêm entre<br />

si e com outras formas de expressão da época. Para isso. a pesquisadora<br />

concentra suas análises em personagens-tipo cujas estórias eram muito<br />

lidas e apreciadas: Jeca Tatu (de Monteiro Lobato). Joaquim Bentinho<br />

(de Cornélio Pires). Juó Bananére (de Alexandre Ribeiro Marcondes<br />

Machado) e Madame Pommery (de Hilário Tácito, "persona" do escritor<br />

José Maria de Toledo Malta). É bom esclarecer, contudo, que essas figuras<br />

não se esgotam em suas funções de representar temas então em<br />

voga em São Paulo: o homem do campo. o emigrante, a prostituição etc...<br />

mas compõem - no sentido arqueológico do termo - um conjunto de elementos<br />

que configuram uma história viva das idéias e dos problemas que<br />

emergiam no processo de transformação por que passavam os paulistas<br />

e que, em última instância, refletiam a realidade de todo o país.<br />

Seguindo as pistas abertas pelo trabalho de Sylvia, podemos dizer<br />

que a densidade ideológica, social e política que as figuras analisadas<br />

encarnam, as fazem valer por si próprias no contexto em que atuaram e<br />

significaram, sem perder, contudo, suas relações com outros períodos e<br />

obras em que a síntese literária e estética entre formas e conteúdos tenha<br />

se realizado mais plenamente.<br />

ROBERTO DE OLIVEIRA BRANDÃO


FIGURA 1 - LIMA, H. História da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963. v.I, p.9.


CHAPÉUS DE PALHA, PANAMÁS,<br />

PLUMAS, CARTOLAS


FUNDAÇÃO EDITORA UNESP<br />

Presidente do Conselho Curador<br />

Arthur Roquete de Macedo<br />

Diretor-Presidente<br />

José Castilho Marques Neto<br />

Conselho Editorial Acadêmico<br />

Aguinaldo José Gonçalves<br />

Anna Maria Martinez Corrêa<br />

Antonio Carlos Massabni<br />

Antonio Celso Wagner Zanin<br />

Antonio Manoel dos Santos Silva<br />

Carlos Erivany Fantinati<br />

Fausto Foresti<br />

José Ribeiro Júnior<br />

José Roberto Ferreira<br />

Roberto Kraenkel<br />

Editor Executivo<br />

Tulio Y. Kawata<br />

Editores Assistentes<br />

José Aluysio Reis de Andrade<br />

Maria Apparecida F. M. Bussolotti


CHAPÉUS DE PALHA, PANAMÁS,<br />

PLUMAS, CARTOLAS:<br />

A CARICATURA NA LITERATURA PAULISTA (1900-1920)<br />

SYLVIA HELENA TELAROLLI DE ALMEIDA LEITE


Copyright © 1996 by Fundação Editora da UNESP<br />

Direitos de publicação reservados à Fundação Editora da UNESP.<br />

Av. Rio Branco, 1210<br />

01206-904 - São Paulo - SP<br />

Tel./Fax: (011)223-9560<br />

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)<br />

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)<br />

Leite, Sylvia Helena Telarolli de Almeida<br />

Chapéus de palha, panamás, plumas, cartolas: a caricatura na literatura<br />

paulista (1900-1920) / Sylvia Helena Telarolli de Almeida Leite. -<br />

São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1996. - (Prismas)<br />

Bibliografia.<br />

ISBN 85-7139-118-1<br />

1. Caricatura - São Paulo 2. Literatura brasileira I. Título.<br />

II. Série.<br />

96-1779 CDD-869.9709<br />

Índices para catálogo sistemático:<br />

1. Caricatura: Escritores Paulistas: Literatura brasileira:<br />

História e crítica 869.9709<br />

Este livro é publicado pelo<br />

Projeto Edição de Textos de Docentes e Pós-Graduandos da UNESP -<br />

Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da UNESP (PROPP),<br />

Fundação Editora da UNESP.


Para<br />

Cyro, Maria Luísa e Marina.


SUMÁRIO<br />

APRESENTAÇÃO 13<br />

1 CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS<br />

SOBRE A CARICATURA 19<br />

Caricatura e degradação 19<br />

Caricatura e paródia 22<br />

Entre o louvor e a rejeição 24<br />

Do particular ao geral 27<br />

Da síntese à ampliação 27<br />

A imagem grotesca 28<br />

A caricatura na literatura 31<br />

Personagens esquemáticas X personagens complexas 32<br />

Caricatura e tipo 34<br />

Recursos expressivos 35<br />

2 A CARICATURA NA LITERATURA PAULISTA<br />

(1900-1920) 39<br />

O Pré-modernismo 39<br />

O sertão e a cidade 42<br />

A literatura paulista 46<br />

Delimitações 46<br />

As vertentes 47


O "grupo paulista" 59<br />

Motivações para a caricatura na literatura paulista 61<br />

3 MONTEIRO LOBATO, PALMATÓRIA DO MUNDO 73<br />

Caricatura e doutrina 75<br />

O Jeca Tatu 75<br />

A gênese do Jeca 76<br />

Recursos expressivos e persuasão 79<br />

O Jeca Tatuzinho 82<br />

O Zé Brasil 84<br />

Um paralelo 85<br />

A caricatura nos contos 88<br />

A caricatura como recurso para uma literatura mais popular 91<br />

Temas 93<br />

Recursos expressivos 103<br />

Motivações para a caricatura na literatura de Monteiro Lobato 110<br />

Conclusões 112<br />

4 CORNÉLIO PIRES: O CAIPIRA ENTRE A ANEDOTA<br />

E A LOUVAÇÃO 115<br />

O "ativista cultural" 115<br />

A literatura de Cornélio Pires 119<br />

A crônica do universo caipira 119<br />

A tendência à estilização e ao pitoresco 121<br />

A estilização nos poemas 125<br />

Tipos 127<br />

Caricaturas 128<br />

A estilização de personagens não caipiras 136<br />

A língua como recurso caricaturesco 137<br />

Conclusões 140<br />

5 JUÓ BANANÉRE: O RIGALEGIO TRADUZ A CIDADE 145<br />

A gênese de Juó Bananére 145<br />

Juó Bananére em versão verbal 147<br />

A "máscara" e as caricaturas 153<br />

A máscara que desmascara 153<br />

Caricaturas e caricaturados 157<br />

A paródia macarrônica 169<br />

A linguagem 172<br />

Conclusões 175


6 MADAME POMMERY: UM DIÁLOGO DE SOMBRAS 181<br />

Efeitos de Pommery 181<br />

Hilário Tácito, a persona 183<br />

Recursos expressivos para o delineamento da persona 186<br />

Madame Pommery: a caricatura de São Paulo 192<br />

Personagens secundárias 202<br />

Conclusões 206<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS 211<br />

APÊNDICES 217<br />

1 Amostra de textos satíricos de Moacir Piza 219<br />

2 Série de textos sobre "A Grizia Pulittica" do PRP 231<br />

3 O arquiteto Alexandre Ribeiro Marcondes Machado<br />

em Araraquara 241<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 245


APRESENTAÇÃO<br />

Neste livro analiso a composição de caricaturas na literatura de escritores<br />

paulistas cuja produção mais significativa foi empreendida entre 1900 e 1920.<br />

Achei oportuno tratar de escritores paulistas do período que, por falta de designação<br />

mais adequada, se tem rotulado "pre-modernismo" (questão mal resolvida)<br />

justamente por serem raros os estudos a respeito.<br />

A partir da década de 1910, já tendo consolidado a supremacia na política e<br />

na economia nacionais, São Paulo começa também a se projetar no cenário<br />

cultural: com a Revista do Brasil, formal, pesada, mas inovadora ao voltar-se com<br />

seriedade para questões nacionais; com um razoável movimento editorial, estimulado<br />

e fomentado cm grande parte por Monteiro Lobato; com uma série de<br />

publicações mais alternativas e efêmeras do gênero d'O Pirralho, d'O Queixoso,<br />

d'O Parafuso. Isso tudo prepara o clima para a efervescência dos anos 20 e 30,<br />

quando se projetariam Mário e Oswald de Andrade, Alcântara Machado, os<br />

regionalistas da "geração de 30", e muitos outros cuja produção direta ou<br />

indiretamente, confessada ou inconfessadamente, foi marcada por essa literatura<br />

ambígua, de mediação, que a antecede.<br />

Quanto à delimitação do período analisado, justifica-se pela freqüência e<br />

expressividade das caricaturas, marca registrada da literatura híbrida, produzida<br />

entre 1900 e 1920, vincada pela estilização, oscilante entre o documento<br />

e o arabesco, dividida entre a crítica mais refletida e a crônica superficial.<br />

Nada mais propício à estilização e à necessária rapidez exigida pelos novos


tempos que a caricatura, forma sintética e incisiva, persuasiva, exemplar, de<br />

compor personagens.<br />

De todo modo, a delimitação do período não será sempre inteiramente<br />

obedecida: impossível ignorar, tratando-se de caricaturas, de Lobato, o Jeca<br />

Tatuzinho (1924), o Zé Brasil (1948) e mesmo alguns contos, escritos a maior<br />

parte antes de 1920, mas refeitos, revisados depois; de Cornélio Pires, o popularíssimo<br />

Joaquim Bentinho, o queima-campo, de 1924. A anexação ao fim do<br />

trabalho de algumas crônicas de Juó Bananére sobre a política paulista, publicadas<br />

em O Estado de S.Paulo, no mês de fevereiro de 1924, justifica-se não só<br />

pelo que têm de ilustrativo com relação à sua produção posterior, mas também<br />

pelo interesse em contribuir para a divulgação de seu trabalho, tão interessante e<br />

sugestivo, tão pouco conhecido.<br />

Dedico um capítulo a Monteiro Lobato, focalizando contos e artigos reunidos<br />

em Urupês, Cidades mortas e Negrinha. Uma leitura superficial já atesta a<br />

construção de caricaturas visando especialmente à sátira do caipira e dos hábitos<br />

interioranos; todavia, fazendo a crítica dos costumes, ora ácida e impiedosa, ora<br />

patética e quase comovida, Lobato revela muito mais do que inicialmente se<br />

supõe.<br />

Cornélio Pires percorre caminho diverso, em caricaturas que transitam entre<br />

a anedota cordial e pitoresca e a louvação mais declarada, buscando sempre<br />

conhecer e divulgar mais do caipira e sua vida; a expressividade e a popularidade<br />

do "caboclismo" precursor de Cornélio fazem seus textos referência obrigatória<br />

a quem estuda a literatura paulista e o regionalismo.<br />

Juó Bananére e Hilário Tácito mostram a outra face de São Paulo, a da cidade<br />

que se expande e se transforma num ritmo intenso. Juó é a persona irreverente,<br />

adotada por Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, resgatando o riso escrachado<br />

do bufão; Hilário Tácito é a face reversa, persona aristocrática, mais refinada,<br />

criada por José Maria de Toledo Malta, retomando a vertente da sátira próxima<br />

ao humor. O primeiro é o cronista do "Baixo Piques" que macarronicamente se<br />

expressa como o ítalo-paulista, vituperando os desmandos da política local e<br />

nacional. O segundo é a persona culta, que toca com muita agudeza e ironia em<br />

questões nevrálgicas da urbe que cresce e aparece: as transformações dos costumes,<br />

no burburinho que é também cenário das exuberantes "polacas", autênticas<br />

ou não; a crônica dos bordéis elegantes, freqüentados por coronéis, aristocratas<br />

e burgueses "levantados na poeira da véspera".<br />

Considerei a contribuição dos estudos literários mais recentes, mas procurei,<br />

na medida do possível, compreender a literatura desses escritores sem perder de


vista a sua motivação e significação, no momento em que foi produzida, tentando<br />

evitar o anacronismo de abordá-la apenas sob a visão contemporânea. Compreende-se,<br />

por isso, a par da preocupação constante em informar e analisar, a ênfase<br />

na necessária contextualização histórica.<br />

É o momento em que ocorre uma abertura para atender à demanda de faixa<br />

mais extensa de leitores, ampliando o campo da recepção, "democratizando" a<br />

literatura: isso se evidencia especialmente no caipirismo mais popular de Cornélio,<br />

empenhado nas exigências do espetáculo, na adequação do texto ao ritmo da<br />

encenação, à performance do contador de anedotas e cantador de modas, despreocupado<br />

da qualidade propriamente literária dos contos e poemas; e também<br />

se reflete no dialeto das ruas, macarrônico, híbrido, expressão da enorme massa<br />

de imigrados italianos que ocupa São Paulo, utilizado por Juó Bananére, assim<br />

como na literatura simples, às vezes convencional, mas ao mesmo tempo à<br />

vontade, irreverente, de Monteiro Lobato.<br />

Escritores-jornalistas, jornalistas-escritores: transformam-se os meios de<br />

disseminação da cultura, intensificando o processo de formação da opinião<br />

pública, muda o estilo, a expressão. Predominam as narrativas curtas, sintéticas,<br />

tensas, enxutas, contos-casos, textos-relâmpagos. Edgar Allan Poe já detectara<br />

bem antes o espírito dessas mudanças com observações acerca da literatura<br />

americana, mas que servem também para o nosso caso:<br />

O Progresso realizado em alguns anos pelas revistas e magazines não deve ser<br />

interpretado como quereriam certos críticos. Não é uma decadência do gosto... É, antes,<br />

um sinal dos tempos; é o primeiro indício de uma era em que se irá caminhar para o que<br />

é breve, condensado, bem digerido, e se irá abandonar a bagagem volumosa; é o advento<br />

do jornalismo e a decadência da dissertação. Começa-se a preferir a artilharia ligeira às<br />

grandes peças. Não afirmarei que os homens de hoje tenham o pensamento mais profundo<br />

do que há um século, mas, indubitavelmente, eles o têm mais ágil, mais rápido, mais<br />

reto... (Poe, 1986, p.986)<br />

Ao final do trabalho, o saldo de enfrentar com gosto e paixão um gênero à<br />

margem, a sátira, voz dos inconformados; um período desconsiderado, esgarçado<br />

entre o "pós" e o "pré", para o qual não há sequer uma designação adequada; e<br />

autores quase ignorados ou subestimados, varrendo um pouco a poeira do tempo<br />

e do esquecimento.


O Ser que quis multiplicar sua imagem não colocou<br />

de modo algum na boca do homem os dentes do leão, mas<br />

o homem morde com o riso; nem nos seus olhos toda a<br />

astúcia encantadora da serpente, mas ele seduz com as<br />

lágrimas...<br />

(Baudelaire, C. De l'essence du rire, in: Curiosités<br />

esthétiques: L'art romantique et autres oeuvres critiques,<br />

p.245).


CARICATURA E DEGRADAÇÃO<br />

1 CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS<br />

SOBRE A CARICATURA<br />

A deformação é palco da virtude ...<br />

(Hansen, J. A. A sátira e o engenho, p.233)<br />

A caricatura é criação associada ao cômico, apesar de nem sempre provocar<br />

o riso, podendo despertar o medo ou o horror. Recurso especialmente explorado<br />

nas artes visuais (charges em jornais, revistas e livros), pode também ser construída<br />

com outros elementos, que associam o visual e o verbal (cinema, teatro,<br />

quadros humorísticos e novelas de TV) ou mesmo restringindo-se ao material<br />

verbal (contos, novelas, romances, crônicas, poemas).<br />

O prazer experimentado na observação de uma caricatura provavelmente<br />

advém da "economia em energia mental" e das "relações com a vida infantil",<br />

pois a caricatura parte de uma economia de pensamento, ao associar numa mesma<br />

imagem uma comparação cômica e o efeito de uma tendência engenhosamente<br />

oculta, que resulta na "reprodução deformada de uma semelhança reconhecível".<br />

Assim, a deformação da imagem evidencia uma deformação do original (Kris,<br />

1964, p.10-26).<br />

O efeito cômico é produzido pelo "reconhecimento da semelhança no dessemelhante";<br />

portanto, requisita especialmente a participação do receptor. O efeito


das caricaturas é repentino, explosivo, c tende a desaparecer, diferentemente de<br />

retratos mais elaborados ou personagens mais densas, cujo efeito é duradouro<br />

(Kris, 1964,p.34-54).<br />

A caricatura (caricare, do italiano carregar ou sobrecarregar, a partir de traços<br />

distintivos) aparece tardiamente na arte ocidental. O termo caricatura e sua prática<br />

datam de fins do século XVI; os inventores desse gênero de retrato jocoso, de<br />

zombaria, foram os irmãos Carracci, artistas sofisticados da Academia de Bolonha.<br />

A construção caricaturesca joga fundamentalmente com a diferença entre<br />

semelhança e equivalência, pois "procura o máximo de semelhança com o<br />

conjunto da pessoa retratada", ao mesmo tempo que, por brincadeira ou zombaria,<br />

os defeitos dos traços copiados são exagerados e acentuados desproporcionalmente, de<br />

modo que, no todo, o retrato é o do modelo, enquanto que seus componentes são mudados.<br />

(Gombrich, 1986, p.289-313)<br />

A equivalência não se encontra propriamente na semelhança entre caricaturado<br />

e traços caricaturantes, mas reside na identidade evidenciada entre eles, por<br />

isso, a caricatura é máscara que desmascara, enfatizando a dissolução de unidade<br />

ou a disjunção no caricaturado (entre aparência c essência, entre forma e conteúdo,<br />

entre simulação e realidade).<br />

O caricaturista faz um perfil de poucas linhas, empreendendo a deformação<br />

deliberada do original, com propósitos jocosos. Joles caracteriza o cômico pela<br />

potencialidade para "desatar" objetos (forma de desfazer o insuficiente e descarregar<br />

uma tensão), afirmando: "o universo do cômico c um universo em que todas<br />

coisas se atam, ao desfazerem-se ou ao desatarem-se"; seguindo essa linha de<br />

pensamento, define caricaturas como "objetos em que o desenlace se faz num<br />

único ponto", compondo uma imagem que<br />

ataca um caráter mediante uma reprodução jocosa (caricato), sublinhando e exagerando<br />

certos traços (carica) para tentar deslindar a compleição física e mental do visado. (Joles,<br />

1976,p.205-16)<br />

Como se observa, a caricatura parte de um "desenlace" (o desvio, a descontinuidade,<br />

a disjunção), que desnuda a insuficiência, desconstruindo a imagem<br />

do caricaturado ao mesmo tempo que reconstrói um "outro", revelador das<br />

incongruências do original; por isso é reprodução negativa, às avessas.<br />

A caricatura humilha porque amplia os desvios, a incongruência (como se o<br />

seu observador usasse lentes de aumento), e faz deles a norma. A arte do


caricaturista consiste cm apreender o que há de "rígido" (no corpo, caráter ou<br />

espírito do caricaturado):<br />

é risível certa rigidez mecânica onde deveria haver a maleabilidade atenta e a flexibilidade<br />

viva de uma pessoa. (Bergson, 1983, p.15)<br />

daí o cômico do "desajeitamento"; é necessário que o produtor da caricatura<br />

consiga captar o desequilíbrio e a desarmonia (muitas vezes quase imperceptíveis),<br />

tornando-os visíveis a todos os olhos, mediante a sua "ampliação". Por outro lado,<br />

é preciso que o exagero não pareça ser o seu fim único, mas deve ficar evidente<br />

que é simples meio de que se vale o desenhista para tornar manifestas aos nossos<br />

olhos as contorções que ele percebe se insinuarem na natureza. É como se o<br />

caricaturista fizesse o próprio traço disforme "caretear" (Bergson, 1983, p.21-2).<br />

O cômico da caricatura em grande parte reside nessa mesclagem de domínios,<br />

ao imputar movimento ao que inicialmente era só forma; nessa, mais do que em<br />

qualquer outra manifestação, a comicidade aflora pela revelação do mecânico,<br />

do artificial, da rigidez, do que é "hábito adquirido e conservado", especialmente<br />

quando traço involuntário, retirando do humano sua mais cara conquista, a<br />

liberdade e o arbítrio. Mais cômico e denso se tornará esse recurso se esse desvio<br />

apresentado, inicialmente referindo-se à esfera do físico, se associar a algum<br />

desvio fundamental, do íntimo da pessoa. Quanto mais fundo a caricatura<br />

penetrar, no sentido do superficial (o físico, os gestos, o olhar, as maneiras, o<br />

comportamento) para o substancial (traços do caráter, do temperamento, valores<br />

etc), mais intenso será seu poder de corrosão.<br />

Para que o delineamento da caricatura tenha eficácia cômica, é necessário o<br />

tratamento ridículo de um defeito que ordinariamente inspira compaixão. Para isso<br />

contribuem alguns artifícios: 1. o defeito deve ser isolado "em meio à alma do personagem",<br />

como se fosse um parasita "dotado de existência independente"; 2. a<br />

impressão produzida pela apresentação dessa discrepância deve ser acentuada -<br />

serão enfatizados os gestos (atitudes, movimentos, discursos) e não as ações da personagem;<br />

3. c preciso acentuar-se o que há de inconsciente e involuntário, o automático<br />

e o mecânico que fazem a personagem ridícula (Bergson, 1983, p.22-3).<br />

Na criação caricaturesca é cômico o que há de revelação; é a insurreição<br />

daquilo que de algum modo se disfarçava e, à revelia da vítima, torna-se evidente<br />

e explícito.<br />

Enquanto produção que visa à degradação, c recurso comum na caricatura<br />

associar ou aproximar, conjugando, "duas diferentes estruturas de referência",<br />

habitualmente o exaltado (uma figura pública, alguém de projeção) e o humilde<br />

(um animal, um vegetal, imagens minerais, figuras mecânicas).


Para a maior eficácia desmistificadora, é fundamental que se explore a<br />

dissociação entre as idéias, pensamentos ou intenções do satirizado e suas<br />

atitudes e palavras.<br />

A caricatura 6 um eficiente instrumento depreciativo, pois deixa uma marca<br />

funda como uma cicatriz, que pode ser eventualmente atenuada, mas jamais<br />

esquecida. Toda vez que o caricaturado for olhado por alguém que tenha prévio<br />

conhecimento de seu "retrato caricaturesco" será sobreposto à sua imagem real<br />

o perfil cômico dele traçado.<br />

É célebre a seqüência feita por Philipon, em que aproxima o rosto do rei Luís<br />

Felipe à imagem de uma pêra (em francês, poire, que, ao mesmo tempo, denomina<br />

a fruta e adjetiva o tolo). As conseqüências do episódio não foram pequenas,<br />

mostrando o constrangimento e o desconforto do criticado ante a caricatura.<br />

Como se observa, a degradação do eminente não comporta a posição respeitosa<br />

ou servil do caricaturista.<br />

Segundo Freud, a caricatura degrada, extraindo do conjunto do eminente um<br />

traço isolado, que se torna cômico, mas que antes, como parte do todo, estava<br />

despercebido. Com esse recurso, a comicidade compromete a totalidade da<br />

imagem; nos casos em que não existe o fato risível, ele deverá ser criado pela<br />

caricatura, exagerando um aspecto que não era cômico por si. O curioso é que "o<br />

efeito da caricatura não é essencialmente afetado por tal falsificação da realidade"<br />

(Freud, 1952, p.175-6).<br />

CARICATURA E PARÓDIA<br />

A caricatura é recurso comumente empregado em produções de cunho<br />

satírico, dado o seu caráter demolidor e desmistificador, assim como a paródia,<br />

que também funciona como uma caricatura do material que a inspira. Entretanto,<br />

o centro de interesse da paródia são as produções humanas (peças de teatro,<br />

filmes, programas de TV, discursos, literatura etc), enquanto a caricatura explora<br />

os mais diferentes traços que caracterizam o próprio homem (pode-se fazer a<br />

caricatura de animais, por exemplo, mas ela só terá sentido como uma projeção<br />

de atributos humanos).<br />

Há dois tipos de caricatura, uma que deforma grotescamente, ou com certa<br />

sutileza delineia o perfil às avessas de figuras reais, de carne e osso, que povoam<br />

o cenário da história de um momento, e outra que espraia a crítica em imagens<br />

que caracterizam vícios e costumes perniciosos ou ridículos, que devem ser<br />

evitados, desdenhados, definindo o reflexo, não de um indivíduo, mas de todo


um grupo social. O primeiro tipo de caricatura é freqüente, bastando lembrar da<br />

sátira dos políticos, clérigos e figuras eminentes da Bahia colonial registrada nos<br />

poemas de Gregório de Matos; o segundo tipo pode ser encontrado na crítica de<br />

costumes, por exemplo, dentre a galeria de personagens compostas por Molière,<br />

como é o caso do Senhor e da Senhora Jourdain ou das "preciosas ridículas".<br />

Comumente, o retrato físico da personagem caricaturesca se faz num eixo<br />

vertical, da cabeça aos pés, acompanhando o percurso do olhar. Não tem a<br />

minúcia nem a nitidez do desenho; de perto apresenta-se como um borrão,<br />

exigindo para um maior aproveitamento uma visão a distância.<br />

A composição de retratos caricaturescos resulta de trabalho intelectual,<br />

extremamente racional, obedecendo a preceitos predeterminados, mas o seu<br />

efeito, para agradar, deve simular ingenuidade e falta de artifício (Hansen, 1990,<br />

p.10). A caricatura, portanto, deforma seguindo uma certa ordem, segundo<br />

paradigmas convencionados para a depreciação. Compõem a caricatura os aspectos<br />

do corpo (características e defeitos físicos, trajes e acessórios), os gestos, o<br />

comportamento (tiques, manias, hábitos), o modo de pensar, o modo de se<br />

expressar (tiques verbais, falhas, incorreções, afetações); esses traços são ampliados<br />

e deformados, provocando o riso.<br />

Segundo Pirandelo (1968, p.65), a intenção paródica sempre "comunica<br />

forçosamente a forma à caricatura", pois para uma imitação eficiente é necessário<br />

tomar os traços mais destacados do imitado e insistir sobre eles; esta insistência<br />

é que "engendra, inevitavelmente, a caricatura". O autor chama também a atenção<br />

para a impossibilidade de se desconsiderar o dado referencial nesse gênero de<br />

criação, pois quem faz uma caricatura ou uma paródia insiste em qualidades que<br />

naturalmente sobressaem no objeto, sendo necessário, para entender sua verdade<br />

e beleza, "examiná-lo em relação com o modelo" (p.97-8).<br />

A paródia pode desempenhar o papel de um traço, dentre outros, num perfil<br />

caricaturesco (isso especialmente nas artes que total ou parcialmente se utilizam<br />

do material verbal). Ao delinear uma personagem caricaturesca, o autor poderá<br />

recorrer, além da ampliação risível de traços do físico e do caráter, à ênfase no<br />

discurso utilizado pela personagem. Assim, a expressão lingüística de personagens<br />

pode ser a paródia de um gênero de discurso a ser criticado. Esse recurso é<br />

utilizado por Lima Barreto, por exemplo, ao compor caricaturas de políticos da<br />

Primeira República, em Numa e a ninfa, como atestam Bogóloff:<br />

Por meio de uma alimentação adequada, consigo porcos do tamanho de bois e bois do<br />

tamanho de elefantes... (Barreto, 1956c, p. 161)<br />

e Xandu Costale:


O que nos falta é o frio. Ah! A sua Rússia! Eu, se quero ser sempre ativo, tomo todo o<br />

dia um banho frio. Sabe como? Tenho em casa uma câmara frigorífica, oito graus abaixo<br />

de zero, onde me meto todas as manhãs... O frio é o elemento essencial às civilizações...<br />

(Barreto, 1956c,p.161)<br />

que se expressam por meio de clichês que satirizam o evolucionismo e o<br />

determinismo que impregnavam o pensamento do período.<br />

ENTRE 0 LOUVOR E A REJEIÇÃO<br />

O riso, manifestação física por meio da qual avaliamos a eficácia cômica,<br />

tem um caráter duplo: há um riso de acolhida (cômico) e um riso de exclusão<br />

(ridículo). Portanto, o texto cômico não exerce sempre um papel hostil ou<br />

agressivo; pode provocar também no leitor uma reação mais branda, de simpatia,<br />

condescendência ou mesmo solidariedade, seja com relação a pessoas ou fatos<br />

tratados no texto, seja com relação ao próprio texto ou a seu produtor (Olbrechts-<br />

Tyteca, 1974).<br />

Existem duas formas de cômico, uma mais rara, de regozijo e comunhão,<br />

ligada ao riso de acolhida, regenerador, fundamentalmente lúdico e cordial, e outra<br />

mais comum, forma de punição c recusa ao anômalo ou ao estranho, geradora do<br />

riso de rejeição. A primeira apenas constata, a segunda interfere, corrige.<br />

O impulso satírico não é, portanto, requisito obrigatório na composição de<br />

uma caricatura. É possível, apesar de mais rara, a criação de caricaturas que se<br />

classificam como cordiais, e, pela simpatia que expressam, não são mal vistas<br />

pelos caricaturados, apresentando-os favoravelmente, com uma imagem neutra,<br />

mais próxima ou infensa, que ressalta ou cria traços de afinidade e identidade<br />

com o público.<br />

A caricatura de Rui Barbosa, em que o jurista é desenhado com uma cabeça<br />

enorme, que contém uma biblioteca, o que enfatiza a inteligência e o preparo do<br />

magistrado, 1 é bastante conhecida. Há caricaturas de J. Carlos em que ele fixa<br />

com graça e simpatia, em minúsculas figurinhas, as imagens de Rodrigues Alves<br />

e Afonso Pena (Lustosa, 1989); também eram comuns caricaturas afáveis de<br />

Getúlio Vargas. Desse modo, é possível observar que há caricaturas que geram<br />

o "riso de exclusão", assim como há outras, a menor parte, responsáveis pelo<br />

"riso de acolhida".<br />

A par de um caráter punitivo, destrutivo, é preciso lembrar que a caricatura<br />

pode ter também uma função regeneradora, pois, se reflete a decadência e a<br />

morte, por isso mesmo garante um lugar privilegiado ao desvelamento, à revela-


ção, formas de renascimento; afora isso, abre também espaço à experimentação,<br />

à livre fantasia, ao empenho lúdico, geradores do riso espontâneo e aberto, de<br />

regozijo, sem o amargor e o sarcasmo do satirista.<br />

FIGURA 2 - Caricatura cordial, quase afetuosa, feita por Raul e Kalixto. Foi capa de O Malho (julho de<br />

1903), "com reprodução do cartão de felicitações enviado pela redação da revista ao eminente chefe da<br />

nação (Rodrigues Alves), no dia de seu aniversário natalício" (Lustosa, 1989, p.62).


FIGURA 3 - Caricatura de J. Carlos, que explora com simpatia a macrocefalia de Rui Barbosa, tematizando<br />

a primeira campanha civilista (Lima, 1963, v.3, p. 1075).


DO PARTICULAR AO GERAL<br />

Cumprindo função crítica ou "homenageando" o caricaturado, a caricatura<br />

será comumente marcada pela transitoriedade, pois é produção datada, comprometida<br />

com homens, episódios ou fatos circunscritos a limites bastante precisos.<br />

Todavia, ocorrem criações caricaturescas que ocupam espaço privilegiado universalizando-se,<br />

perenizadas na lembrança do público. Isso normalmente acontece<br />

quando superam o mero retrato (de rechaça ou aprovação) de indivíduos ou<br />

tipos, tematizando instituições, valores e comportamentos que se revestem de<br />

certa generalidade e por isso tomam uma feição mais ampla. Não se pode dizer<br />

que Tartufo é apenas uma caricatura que registra costumes do século XVII, pois<br />

as ambigüidades que o caracterizam transcendem limites espaço-temporais. A<br />

existência de tantos derivados semânticos dicionarizados ("tartufaria", "tartufismo",<br />

"tartuficar", "tartufice") para designar traços da personagem (a hipocrisia,<br />

a dissimulação) atestam a sua ressonância.<br />

Baudelaire identifica dois tipos de caricatura: aquelas que "só valem pelo que<br />

representam" - interessam ao historiador, ao arqueólogo, ao filósofo e, "como as<br />

folhas soltas do jornalismo, elas desaparecem levadas pelo sopro incessante que<br />

as renova" -; e as outras, que "contêm um elemento misterioso, durável, eterno,<br />

que as recomenda à atenção dos artistas, pois trazem consigo esse elemento<br />

inapreensível do belo, mesmo nas obras destinadas a representar ao homem sua<br />

própria feiúra moral e física" (Baudelaire, 1962, p.242).<br />

DA SÍNTESE À AMPLIAÇÃO<br />

Na comédia é recurso constante a construção de personagens estereotipadas,<br />

tendentes à tipificação, pois a redução na densidade da personagem que encarna<br />

vícios a serem condenados intensifica a crítica. O cômico não admite a dispersão<br />

(aceita apenas se tiver função risível), por isso a personagem ridícula deve<br />

concentrar e cristalizar atributos.<br />

A comicidade da personagem reside em grande parte no potencial de síntese,<br />

tornando o objeto muito mais risível do que em uma abordagem analítica, pois a<br />

síntese, evidenciando e ampliando a distração cômica, "faz que vejamos como<br />

maior a rigidez do sujeito" (Bousono, 1976, p.25).<br />

Na personagem caricaturesca é motivo de riso a ênfase em toda forma de<br />

rigidez e inflexibilidade, não só referente aos vícios, mas também às virtudes,


pois "um vício maleável seria menos fácil de ridicularizar do que uma virtude<br />

inflexível"(Bergson, 1983, p.74). Lembre-se, a propósito, a melancólica comicidade<br />

de Policarpo Quaresma, sacrificado por um intransigente patriotismo, ou o<br />

tratamento dado por Lobato à honestidade excessiva, em "Um homem de consciência"<br />

e em "Um homem honesto" ou aos exageros do vezo vernaculizante, em<br />

"O colocador de pronomes".<br />

Por outro lado, se a comédia evidencia o ridículo das personagens a partir do<br />

que nelas é contrastante ou incongruente, apontando a descontinuidade ou a<br />

ruptura com a norma, dialeticamente, ao mesmo tempo, busca relevar o que há<br />

de genérico no risível: "A comédia pinta caracteres com que deparamos antes,<br />

com que deparamos ainda em nosso caminho. Ela assinala semelhanças..."<br />

(Bergson, 1983, p.85).<br />

Assim, tudo pode ser objeto do riso, inclusive o que não é propositadamente<br />

cômico. Todos nós (nossas fisionomias, gestos e comportamentos) podemos nos<br />

tornar cômicos, ser alvo de caricatura, dependendo sobretudo do ângulo de visão<br />

que se exponha ao espectador, e de seu ânimo de espírito. "O cômico, a potência<br />

do riso existe naquele que ri e não no objeto do riso" (Baudelaire, 1962, p.251).<br />

Entretanto, o universo do humor é calcado sobre convenções; há situações,<br />

comportamentos e atitudes que são convencionalmente cômicas, e são esses os<br />

aspectos comumente ressaltados e explorados na personagem risível. Essa característica<br />

é que abre espaço para a estilização e a redução da personagem estereotipada;<br />

são, por exemplo, sempre risíveis, quando oportunamente enfatizados,<br />

isto é, quando desprovidos de qualquer indício que mesmo vagamente incite o<br />

sentimento de solidariedade, pena ou compaixão, certos vícios e caracteres: a<br />

avareza, a gula, a ganância. Na comédia, quase sempre as sogras são inoportunas,<br />

os maridos traídos são crédulos, os adúlteros são matreiros etc.<br />

A IMAGEM GROTESCA<br />

Como marca grotesca modelando a construção da caricatura, é freqüente o<br />

recurso à dimensão da máscara que revela, que mesmo incorporando o estigma<br />

satírico da destruição e da morte, abre espaço para o seu reverso, forma de<br />

nascimento, a renovação da consciência por ela motivada. Desse modo, a máscara<br />

se esboça pela dimensão do mundo ao revés, com procedimentos que evidenciam<br />

o nivelamento ou a inversão de posições (rebaixamento do eminente, exaltação<br />

do medíocre ou vulgar); é recorrente no delineamento caricaturesco a presença


do baixo corpóreo ou material (Bakhtin, 1987) - explicitamente exposto ou<br />

apenas sugerido, por meio de alusões — mas normalmente cumprindo o propósito<br />

da degradação.<br />

É também herança grotesca a ênfase no disforme e no híbrido, tocando os<br />

limites da monstruosidade, da estranheza e da excentricidade e chegando eventualmente<br />

às raias do absurdo, em aproximações com animais repelentes, vegetais,<br />

objetos; essa mesclagem de atributos dá lugar a criaturas repulsivas, medonhas<br />

ou desbragadamente cômicas. Há também construções caricaturescas calcadas<br />

sobre a identificação com seres míticos, que habitam o folclore e o<br />

imaginário popular (lobisomens, bruxas, vampiros, caiporas) resultando em<br />

verdadeiros demônios, delineados na junção de características de diferentes<br />

criaturas.<br />

FIGURA 4 - Caricatura monstruosa: a alegoria, feita por Pedro Américo(A comédia social, em 17.11.1870),<br />

mostra "a raça latina afogada num mar de sangue por um brutamontes de uniforme alemão e horrenda<br />

catadura" (Lima, 1963, v.3, p.842).<br />

Um traço do caricaturado, muitas vezes inessencial, é ampliado e levado ao<br />

exagero, relacionando-se comparativamente com elementos com os quais guarda


a mais ínfima ou esdrúxula identidade; esse recurso compromete e desfoca<br />

grotescamente a imagem criada. O grotesco freqüentemente resulta do desmesuramento<br />

do símile na metáfora cômica (Bousono, 1976, p.21), evidenciando a<br />

inadequação entre comparante e comparado, tornada razoável apenas como parte<br />

de um contexto que a solicita e justifica, e atuando, na maior parte das construções<br />

cômicas, especialmente no da caricatura, como recurso retórico.<br />

O grotesco marca não apenas caricaturas construídas com fins satíricos, mas<br />

também aquelas em que se sobrepõe a bufonaria, numa comicidade mais solta e<br />

desabrida, provocadora do riso de regozijo e prazer. E o que se evidencia, por<br />

exemplo, na concepção de Alna, personagem caricaturesca delineada por Shakespeare,<br />

em A comédia dos erros, cujas dimensões excessivas dão ensejo a<br />

imagens hilariantes, exploradas no diálogo entre Drômio e Antífolo de Siracusa,<br />

quando o escravo traça ao senhor uma caricatura da cozinheira que insistentemente<br />

o assedia; as metáforas identificam, num processo de dissecção grotesca,<br />

partes do corpo da mulher com diferentes países e regiões do mundo, de acordo<br />

com suas peculiaridades. Para um maior aproveitamento da comicidade da<br />

situação, é preciso identificarem-se também elementos paródicos, lembrando que<br />

na época era comum os poetas compararem partes do corpo da mulher amada<br />

com partes do mundo que deveriam ser conhecidas e exploradas.<br />

Antífolo de Siracura - Como se chama ela?<br />

Drômio de Siracusa - Alna, senhor, e seu nome triplicado não a mediria de um<br />

quadril a outro.<br />

Antífolo de Siracusa - É assim tão ampla?<br />

Drômio de Siracusa - Não é maior da cabeça aos pés do que de quadril a quadril. É<br />

esférica, como um globo: até poderia achar países nela.<br />

Antífolo de Siracusa - Em que parte do corpo dela fica a Irlanda?<br />

Drômio de Siracusa - Por Deus, senhor, nas nádegas; eu a reconheci pelos pântanos.<br />

Antífolo de Siracusa - E a Escócia?<br />

Drômio de Siracusa - Eu a reconheci pela aridez. Áspera na palma da mão.<br />

Antífolo de Siracusa - E a França?<br />

Drômio de Siracusa - Na fronte armada e enfurecida, continuamente em guerra<br />

contra a própria cabeça.<br />

Antífolo de Siracusa - E onde fica a Inglaterra?<br />

Drômio de Siracusa - Procurei as rochas calcárias, mas não pude nelas reconhecer<br />

qualquer brancura; conjecturo, entretanto, que podia encontrar-se no queixo, pelo fluxo<br />

salgado que corria entre a França e ela.<br />

Antífolo de Siracusa - Onde está a Espanha?<br />

Drônio de Siracusa - Por minha fé, não a vi; mas senti no calor de seu hálito.<br />

Antífolo de Siracusa - Onde estão a América e as Índias?


Drômio de Siracusa - Oh! senhor! No nariz dela, radiante de rubis, de carbúnculos,<br />

de safiras, inclinando a rica perspectiva em direção ao hálito quente da Espanha, a qual<br />

enviava armadas inteiras de caracas para receberem lastro do nariz.<br />

Antífolo de Siracusa - Onde estão situados a Bélgica e os Países Baixos?<br />

Drômio de Siracusa - Oh! senhor! Não olhei tão para baixo. (Shakespeare, 1988,<br />

p.226)<br />

Algumas das caricaturas produzidas mais recentemente, em princípios do<br />

século XX, trazem ainda resquícios desse caráter renovador, vincado pela dimensão<br />

da mobilidade que regenera, valendo-se de elementos da alegria espontânea<br />

e natural do cômico popular. É o que se pode detectar em alguns momentos de<br />

Juó Bananére (especialmente nos "Grimos celebros"), ou em passagens de<br />

Macunaíma (a chegada a São Paulo, por exemplo), ou de Lima Barreto ("Miss<br />

Edith e seu tio"; "O homem que sabia javanês"; personagens de Numa e a ninfa,<br />

- Xandu Costale, Bogóloff, Genelício, o próprio Numa), pelo olhar arrevesado<br />

que dirigem ao estabelecido. Trata-se de personagens dotadas de inconfundível<br />

potencial desmistificador, desnudando irreverentemente hipocrisias, condutas,<br />

hábitos e um modo de pensar correntes no tempo e altamente compromissados<br />

com o ponto de vista da manutenção de uma ordem que favorece a bem poucos.<br />

É a máscara que não encobre, mas revela e provoca, aguçando a percepção e<br />

fazendo pensar.<br />

A CARICATURA NA LITERATURA<br />

Aspectos que indiscriminadamente caracterizam as produções caricaturescas,<br />

independentemente de seu código de expressão, foram abordados até agora;<br />

todavia, há peculiaridades que dizem respeito especificamente ao signo verbal.<br />

Na literatura é comum o registro de personagens e situações caricaturescas,<br />

ampliadas, distorcidas, farsescas. Basicamente, o que diferencia a caricatura<br />

verbal da visual é o material expressivo, são os recursos e peculiaridades do<br />

código do qual se vale. A caricatura visual pode ser feita graficamente, com traços<br />

riscados no papel, ou plasticamente, modelando figuras em argila, gesso e outros<br />

materiais, para delinear um perfil caricaturesco. Já como realização verbal, o<br />

perfil caricaturesco se delineará a partir da palavra, do arranjo e articulação da<br />

língua em seus diferentes níveis (fonético, morfológico, sintático e semântico),<br />

mesmo que muitas vezes construindo imagens que conduzem a uma configuração<br />

visual da personagem, recriada na imaginação do leitor.


As técnicas de composição de personagens caricaturescas são coincidentes:<br />

a ampliação, a distorção, o rebaixamento e o nivelamento, visando à degradação,<br />

à ênfase no que e automático ou mecânico, à "gesticulação inconsciente" e<br />

involuntária, ao grotesco e ao ridículo, ao tratamento depreciativo. Os recursos<br />

utilizados para desenvolver essas técnicas é que distinguem as duas formas de<br />

expressão.<br />

Graças às diferenças de código, haverá modos distintos de apreensão e<br />

expressão da mensagem proposta pelo receptor: a caricatura visual produz um<br />

efeito de impacto - uma rápida vista d'olhos permite a imediata apreensão do<br />

conteúdo proposto, dispensando qualquer comentário escrito, seu efeito é global;<br />

a caricatura verbal não tem um efeito imediato e não causa, portanto, impacto tão<br />

forte, num primeiro momento, dadas as peculiaridades do código lingüístico, que<br />

exige uma apreensão gradual do conteúdo (é necessário que o leitor introjete os<br />

dados c componha uma imagem pessoal do caricaturado).<br />

A caricatura verbal exige uma participação maior do leitor, e por isso mesmo<br />

seu efeito pode ser mais extenso e duradouro. Por outro lado, é mais restrita, pois<br />

exige que produtor e receptor do texto dominem um saber comum, não apenas<br />

no que diz respeito à identificação do objeto da caricatura, mas em especial com<br />

relação ao nível de domínio do código, que varia tanto individual como socialmente;<br />

por esse motivo, é determinante a seleção e combinação dos signos, que<br />

deverá ser adequada à expectativa e aos conhecimentos do leitor potencial,<br />

levando sempre em conta um repertório comum (Jakobson, 1977).<br />

A caricatura verbal, assim como a visual, exige engenho para a criação e a<br />

decodificação das imagens persuasivas, que deverão ser tão claras quanto sugestivas,<br />

sendo para isso recursos privilegiados as figuras de linguagem.<br />

Personagens esquemáticas x personagens complexas<br />

Estabelecendo critérios para a análise da caricatura verbal, é necessário<br />

retomar alguns parâmetros. Forster (1969) procede à clássica distinção entre<br />

personagens planas e esféricas: as personagens "planas" são construídas ao redor<br />

de uma única idéia ou qualidade, podendo ser expressas por uma só frase; são<br />

reconhecidas com facilidade pelo leitor sempre que aparecem; e posteriormente<br />

"são facilmente lembradas pelo leitor", pois "permanecem inalteráveis em sua<br />

mente pelo fato de não terem sido transformadas pelas circunstâncias, movendo-se<br />

através delas". Segundo o autor, estas personagens "não são, em si, realizações


tão notáveis quanto as redondas", e "são melhores quando cômicas", pois "uma<br />

personagem plana séria ou trágica tende a tornar-se enfadonha".<br />

As personagens esféricas não são muito claramente delineadas; sua definição<br />

é "implícita" à das personagens planas, constituindo-se num teste para elas o "ser<br />

capaz de surpreender de modo convincente". Por oposição à definição proposta<br />

por Forster para a personagem plana, pode-se concluir que a esférica deverá<br />

comportar diferentes qualidades e tendências, apresentando uma complexidade<br />

que impossibilita a simplificação (Brait, 1985, p.89). Portanto, essas têm uma<br />

composição mais dinâmica que aquelas, definidas de modo estático.<br />

Essa classificação não é muito distinta da elaborada por Johnson, no século<br />

XVIII, constatando a existência de "personagens de costumes" e "personagens de<br />

natureza". As primeiras são<br />

muito divertidas; mas podem ser mais bem compreendidas por um observador superficial<br />

do que as de natureza, nas quais é preciso ser capaz de mergulhar nos recessos do coração<br />

humano. (Candido, 1968, p.53-80)<br />

Segundo Antonio Candido, as "personagens de costumes" englobam a caricatura,<br />

o tipo e envolvem a caracterização de personagens cômicos ou pitorescos,<br />

são, portanto, apresentadas por meio de traços distintivos, fortemente escolhidos e<br />

marcados; por meio, em suma, de tudo aquilo que os distingue vistos de fora. Estes traços<br />

são fixados de uma vez para sempre e cada vez que a personagem surge na ação, basta<br />

invocar um deles...<br />

o seu processo de delineamento é fundamentalmente esquemático. Já as<br />

personagens de natureza são apresentadas, além dos traços superficiais, pelo seu modo<br />

íntimo de ser, e isto impede que tenham a regularidade dos outros...<br />

a sua composição é diferenciada, "analítica, não pitoresca" (Candido, 1968,<br />

p.53-80).<br />

A distinção, que marca as diferenças entre as "personagens de costumes" ou<br />

"planas" e as "de natureza" ou "esféricas", reitera a visão das primeiras com uma<br />

feição esquemática, tendente à estilização, indo ao encontro da visão da caricatura<br />

e do tipo como versão redutora e reduzida de personagem, o que em boa parte<br />

dos casos parece ser verdadeiro. São criações que melhor se prestam ao tratamento<br />

satírico, crítico, ou a fins cômicos, pelos propósitos edificantes que regem o<br />

gênero, buscando espraiar a crítica do particular ao geral, por intermédio do que<br />

assoma como discrepante. Todavia, nem toda personagem esquemática ou redu-


zida é necessariamente cômica, assim como nem toda personagem cômica será<br />

obrigatoriamente uma caricatura ou um tipo. Basta lembrar Cyrano de Bergerac<br />

ou Dom Quixote, dentre várias outras personagens mutáveis, cômicas em algumas<br />

passagens, trágicas em outras, cuja grandeza e complexidade não admitem<br />

esse gênero de enquadramento.<br />

A caricatura e o tipo são comumente formas menores de personagens,<br />

colocadas em segundo plano. Todavia, o próprio Forster, comentando a obra de<br />

Dickens, aventa a possibilidade de se conseguirem, com as personagens planas,<br />

"efeitos que não são mecânicos, e uma visão de humanidade que não é superficial",<br />

afirmando que o imenso sucesso com tipos alcançado por esse autor "sugere<br />

que pode existir no plano algo além do que os críticos mais severos admitem"<br />

(Forster, 1969, p.57). São possivelmente casos em que a função simbólica ou<br />

mesmo arquetípica das personagens se superpõe à redução tipificadora; é possível<br />

encontrarem-se exemplos desse gênero de personagens em textos de Machado<br />

de Assis: os irmãos que se embatem em Esaú e Jacó, o ex-escravo Prudêncio, D.<br />

Plácida, Damasceno, em Memórias póstumas de Brás Cubas.<br />

Possivelmente, esse descrédito reservado às personagens cômicas também<br />

se relacione à "ideologia da seriedade" de que trata Luís Felipe B. Neves (1974);<br />

afinal, não será esta também uma questão ligada à gradação do sério em detrimento<br />

do cômico? Possivelmente essa valoração na avaliação das personagens,<br />

em escala decrescente do sério para o cômico, se vincule à marginalização da<br />

arte de caráter popular - realmente muitas vezes mais esquemática, superficial,<br />

simplificadora -, apreciada pelos desprovidos e compulsoriamente considerada<br />

de mau gosto.<br />

Caricatura e tipo<br />

Explicitar algumas diferenças entre a caricatura e o tipo é indispensável, já<br />

que as afinidades são patentes: ambas são personagens estilizadas, construídas<br />

com ênfase cm poucos atributos.<br />

O tipo tem feição mais genérica e amena, diluindo com isso as restrições que<br />

eventualmente expresse; toma como matéria comportamentos, hábitos e valores<br />

que são gerais (uma profissão, um segmento social), enquanto a caricatura<br />

costuma ser mais particularizada, tendo como matéria um indivíduo, comportamentos<br />

ou idéias mais definidos; o tipo tende ao coletivo, a caricatura normalmente<br />

é a individualização do tipo.


A caricatura comumente visa à degradação, tem caráter agressivo, carrega<br />

crítica mais dura e feroz, e por isso mesmo é quase sempre risível, o que não<br />

acontece necessariamente com o tipo. A caricatura é freqüentemente empregada<br />

como arma satírica, ora com traços mais sutis, ora como escrachada máscara bufa,<br />

mas quase sempre vinculada ao riso de zombaria; o tipo se presta a construções<br />

cômicas menos incisivas, provocadoras do riso cordial ou de humor, dada a<br />

generalidade que permeia a sua concepção. Segundo Baudelaire (1962, p.247),<br />

uma caricatura será para nós mais apetitosa se for "cheia de fel e de rancor", como<br />

somente a sabe fazer "uma sociedade perspicaz e entediada".<br />

A caricatura implica a ampliação intencional do traço básico que a sustenta,<br />

exigindo necessariamente o exagero, a deformação, a distorção, e uma configuração<br />

grotesca; isso não se verifica no tipo. Na construção da caricatura, um<br />

atributo considerado fundamental é enfatizado e ampliado, assumindo as outras<br />

marcas um papel acessório; há um efeito de contaminação da parte ampliada para<br />

o conjunto da personagem, espraiando-se o efeito de desgaste daquilo que é<br />

propositadamente distorcido para toda a figura do caricaturado.<br />

O tipo tem afinidades com a estilização, da mesma forma que a caricatura se<br />

irmana à paródia. O tipo é o desvio tolerável; a caricatura é o desvio máximo; o<br />

tipo se enquadra no eixo das semelhanças, pois guarda certa fidelidade ao objeto,<br />

enquanto a caricatura se encontra no eixo das diferenças, dos contrastes, pela<br />

ampliação deformante que a caracteriza.<br />

A caricatura individualiza por meio de marcas características, mas essas<br />

marcas podem-se esgarçar de modo a aproximá-la da generalidade do tipo. O<br />

tipo, construção mais genérica, tendente à universalização, pode ser concretizado<br />

por meio da caricatura - temos, por exemplo, um tipo comumente explorado pela<br />

comédia, o avarento, que permanecerá irrealizado antes da sua projeção caricaturesca<br />

no misantropo, Euclião, Harpagão, ou Euricão Árabe. O tipo pode realizar<br />

a conciliação entre o universal e o particular, o que nem sempre a caricatura<br />

alcança ou almeja.<br />

RECURSOS EXPRESSIVOS<br />

Nas produções satíricas, os recursos expressivos serão sempre utilizados em<br />

consonância com os objetivos que conduzem a produção do texto. A caricatura<br />

não escapa a essa perspectiva; portanto, é patente em sua construção o registro<br />

cômico, tratando de "modo rasteiro assuntos importantes", ou de modo enfático


assuntos vulgares (Aristóteles, s.d., p.l87). Esse artifício evidencia o deslocamento,<br />

ao revelar a inadequação entre expressão e objeto e servindo à degradação.<br />

A aproximação do caricaturado (figura em geral de alguma importância e<br />

projeção social) com o humilde ou desprovido de valor é freqüente, visando ao<br />

rebaixamento do eminente ou ao engrandecimento do medíocre ou vulgar, e<br />

com isso forçando um nivelamento que efetivamente não existe na rotina e no<br />

cotidiano.<br />

Para maior eficácia cômico-persuasiva da caricatura, ela é usualmente delineada<br />

com o inabitual, com o diferenciado, visando provocar certo estranhamento<br />

construído na ênfase ao que significa uma quebra na rotina de nossos hábitos —<br />

inclusive os lingüísticos -, gerando rupturas, incongruências. Por isso, o mais forte<br />

recurso para a construção caricaturesca em sua feição verbal é o emprego de figuras<br />

de linguagem.<br />

O delineamento da caricatura pelas figuras de linguagem segue especialmente<br />

dois eixos: o da similaridade - explorando, evidenciando ou forjando os pontos<br />

de afinidade e identidade entre o caricaturado e os atributos caricaturantes -; para<br />

isso são figuras especialmente apropriadas a comparação, que explicita e evidencia,<br />

a metáfora, comparação elíptica e sugestiva, os símbolos, a catacrese,<br />

eventualmente a alegoria; o da contigiiidade, que espraia um efeito de contaminação:<br />

o atributo fundamental impregna ou engloba as características secundárias<br />

revestindo a totalidade do objeto; para isso são meios especialmente eficazes: a<br />

metonímia, a sinédoque, a antonomásia.<br />

Desnecessário é frisar a importância da hipérbole para a composição de caricaturas.<br />

A caricatura, da mesma forma que exagera, também omite (elipse), ou<br />

diminui ao extremo. Como elementos acessórios, mas de grande importância, há<br />

a antítese (reafirmando contrastes e incompatibilidades), a ironia, o paradoxo, a<br />

alusão.<br />

É certamente no âmbito das figuras de pensamento que com maior intensidade<br />

se detecta o papel fecundo da adjetivação para o delineamento caricaturesco.<br />

Com ela, acentuam-se os contrastes, por meio dela se expressam as incompatibilidades<br />

- atente-se nesse caso para o uso de superlativos, aumentativos e diminutivos.<br />

O segmento adjetivador pode ser um elemento do léxico, um adjetivo,<br />

ou qualquer outra classe de palavras com função adjetiva; pode ser também uma<br />

oração, um período, um capítulo inteiro. O adjetivo é o veículo mais espontâneo,<br />

natural e eficaz para se tecer uma caricatura, mas não é a única classe de palavras<br />

para isso reservada; qualquer outra poderá desempenhar papel de relevo (substantivos,<br />

verbos, pronomes, artigos, advérbios) sendo mais eficaz o tratamento


cômico se implicar alguma forma de desvio ao habitual (um advérbio de significação<br />

sensorial ligado a ato de motivação abstrata, por exemplo).<br />

A repetição (de atributos, atitudes, gestos, expressões e tiques físicos e<br />

lingüísticos) pode ampliar a distorção da personagem. A repetição se associa<br />

ao cômico da irrelevância, amplamente requisitado na pintura de caráter;<br />

será cômica a repetição de aspecto ou ação que pareça ser desnecessário ou<br />

deslocado.<br />

Não se deve negligenciar a importância (especialmente na caricatura verbal)<br />

da linguagem do caricaturado, pois por intermédio dela claramente se patenteiam<br />

desvios, defeitos, enfim, traços característicos. Uma expressão destoante, uma<br />

palavra deslocada do espaço habitual ou esperado pode assumir grande peso e<br />

proporções inesperadas; um homem culto falando de modo incorreto ou inadequado<br />

poderá se tornar ridículo, o mesmo pode ocorrer com alguém inculto, tolo<br />

ou pretensioso que se expresse de maneira diferente daquela que lhe permitem<br />

suas possibilidades. Nesse caso, o cômico se estabelece pela constatação da<br />

impropriedade, ao revelar a incongruência entre o teor do discurso e a vivência<br />

daquele que o profere (uma fala moralista na boca de uma pessoa de vida imoral,<br />

por exemplo). A linguagem empregada pelo caricaturado funciona como índice,<br />

revelando algo que até então estava oculto (origem social, nível intelectual,<br />

caráter etc.)<br />

A demonstração de incoerências, ampliando contrastes e contradições, é<br />

recurso fecundo para o desnudamento; a caricatura é a máscara que desmascara,<br />

tendo como função revelar o que a vida procura esconder.<br />

Toda forma de disfarce poderá ser cômica, especialmente quando o caricaturado<br />

se acreditar convincente sem o ser realmente. Cabe ao caricaturista<br />

evidenciar ao leitor e explorar ao máximo a lacuna que existe entre intenções e<br />

gestos do criticado; quanto maior for a distância entre os dois, mais ridículo ele<br />

se tornará.<br />

Pode ser também elemento de auxílio para uma configuração caricaturesca<br />

mais precisa e eficaz a recorrência a figuras que exploram a modificação do<br />

aspecto gráfico ou sonoro do vocábulo: rimas, aliterações, onomatopéias, assonâncias<br />

etc, bem como as que alteram a estrutura da frase: anáforas, paralelismos,<br />

elipses, silepses, hipérbatos, sínqueses etc.<br />

As figuras de linguagem, incorporadas à expressão do texto caricaturizante<br />

e da persona satírica, ou infiltradas no próprio discurso do caricaturado, sempre<br />

contribuirão decisivamente para a definição ridícula de personagens. Não é<br />

exagero dizer que sem elas é impossível delinear um perfil caricaturesco.


FIGURA 5 - LIMA, II. História da caricatura no Brasil, 1963, v.1, p.279.<br />

NOTA<br />

1 Alfredo Cândido, em charge publicada no primeiro número de Larva (18.9.1903), faz uma caricatura<br />

de Rui Barbosa "com a imensa cabeça, transformada em Biblioteca Nacional, e o Barão de Rio Branco,<br />

de chapéu na mão, indagando do porteiro instalado ao pé da escadaria que leva ao cérebro do grande<br />

homem se lhe seria possível consultar uma obra sobre a Questão do Acre" (Lima, H. História da<br />

caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963, 4v., v.1, p.279).


0 PRÉ-MODERNISMO<br />

2 A CARICATURA NA LITERATURA<br />

PAULISTA (1900-1920)<br />

Mais do que julgadores, os caricaturistas<br />

são verazes e indispensáveis<br />

testemunhas da história.<br />

(Álvarus, Caricatura e caricaturistas, p.2).<br />

O termo pré-modernismo foi criado por Alceu Amoroso Lima, na Contribuição<br />

à história do modernismo. O pré-modernismo de 1939, para referir-se à<br />

produção literária do primeiro vintênio do século XX, mais especificamente entre<br />

o começo do século e a realização da Semana de Arte Moderna, em 1922.<br />

A definição e a delimitação mais precisa do termo seria, entretanto, empreendida<br />

por Alfredo Bosi, de 1966 (s.d., p.l 1), ao apontar os dois sentidos possíveis<br />

para a interpretação da literatura do período: 1. "dando ao prefixo 'pré' uma<br />

conotação meramente temporal de anterioridade"; 2. "dando ao mesmo elemento<br />

um sentido forte de precedência temática e formal em relação à literatura<br />

modernista".<br />

José Paulo Paes, mais recentemente, desenvolveu interessante trabalho estabelecendo<br />

um paralelo entre a literatura e as artes plásticas, em que optou por<br />

designar a produção artística do período como art nouveau, identificando-a como<br />

"arte típica da chamada belle époque", marcada pela exuberância ornamental e


pelo pendor à estilização. No Brasil, esse novo estilo de arte foi especialmente<br />

adequado ao momento vivido, ajustando-se a uma espécie de belle époque local:<br />

o Rio de Janeiro, então capital federal, transforma seu perfil, sofrendo um<br />

processo de modernização e mudança na topografia física e social, estabelecendo-se<br />

novos valores que repercutiriam consideravelmente sobre a produção<br />

cultural (Paes, 1985, p.70).<br />

Estudiosos que se dedicam a trabalhar com a literatura do período são<br />

unânimes em reconhecer a complexidade e a heterogeneidade da produção<br />

cultural desse tempo, o que requisitaria ainda muita dedicação e empenho para a<br />

análise e compreensão do que tem sido chamado pré-modernismo.<br />

Com efeito, esse relativamente curto período de nossa literatura percorre uma<br />

gama extensa e variada de caminhos, que abrange desde a literatura mundana e<br />

superficial, identificada por Afrânio Peixoto como "sorriso da sociedade" — e<br />

que, segundo José Paulo Paes, ambiguamente transita entre o sorriso e o esgar,<br />

com uma feição mórbida e grotesca de que o sorriso eventualmente se reveste -,<br />

abarca também toda uma estética néo (parnasiana, simbolista, romântica) e uma<br />

vertente nacional-localista, bem representada pela ficção e pela poesia regionalista,<br />

de razoável expressão no período. Ao mesmo tempo, essa literatura abrange<br />

também uma produção satírica, crítica, de considerável ressonância, expressa<br />

quase que com espírito militante, por escritores como Juó Bananére, Moacir Piza,<br />

Lima Barreto, Monteiro Lobato, Ivan Subiroff etc. nos semanários, nas revistas<br />

e na grande imprensa.<br />

Desnecessário é frisar a fecundidade e a importância de alguns dos escritores<br />

do período, cuja análise, se apenas reduzida a uma estética que os rotulasse, seria<br />

bastante empobrecedora, como é o caso, por exemplo, de Euclides da Cunha ou<br />

Augusto dos Anjos.<br />

De modo geral, parece predominar entre os críticos a visão da literatura desse<br />

momento como pouco renovadora ou criativa, uma espécie de extensão dos<br />

preceitos estéticos vigentes entre 1880e 1900. Antonio Candido (1976b, p.l 12-3)<br />

classifica-a como "literatura de permanência", que pertenceria ao período pósromântico<br />

(de 1880 a 1922), conservando e elaborando "traços desenvolvidos<br />

depois do Romantismo, sem dar origem a desenvolvimentos novos", correspondendo,<br />

portanto, "às expectativas oficiais de uma cultura de fachada" (Candido,<br />

1987a, p. 186), destinada aos estrangeiros, bem no espírito da República Velha.<br />

Em outra perspectiva, há trabalhos que procuram desenvolver uma crítica<br />

mais detida dessa literatura (Bosi representa bem essa linha), a partir de sua feição<br />

pré-moderna, isto é, são avaliados obras e escritores predominantemente em


azão do papel mediador ou antecipador que desempenham com relação à estética<br />

modernista e moderna disseminada nos anos 20 e 30.<br />

Esse critério, que abre uma nova possibilidade para a compreensão da<br />

produção cultural do período, torna-se, entretanto, insuficiente, ao enfatizar<br />

prioritariamente as relações que mantém com o modernismo, valorizando talvez<br />

em excesso as inovações introduzidas a partir de 1922, em detrimento de uma<br />

interpretação mais centrada nessa literatura anterior. Segundo essa perspectiva,<br />

a literatura pré-moderna assume importância apenas como precursora da literatura<br />

modernista ou da moderna.<br />

Manuel Bandeira (apud Guimarães, 1988), participante periférico dos eventos<br />

modernistas, mas engajado em suas propostas, interpreta o Modernismo como<br />

expressão de transformações que já se delineavam anteriormente:<br />

Não estou tão certo quanto Mário de que o movimento modernista tenha sido o<br />

"prenunciador", o preparador e por muitas partes o criador de um estado de espírito<br />

nacional: tenho-o antes na conta de um alto-falante desse estado de espírito, que já existia<br />

difuso e nele encontrou a sua expressão literária. Interpretar o Brasil com rude franqueza,<br />

como já o fizera Lobato, falar ao Brasil com os estouros das campanhas civilistas de Rui,<br />

mas aplicando às artes a nova técnica - eis o ponto capital na folha de serviço dessa<br />

geração, na qual foi Mário de Andrade o pioneiro e aquele que mais sacrificou de seu<br />

bem-estar e de sua própria criação artística, (p.59)<br />

Desse modo, a própria utilização do termo pré-modernismo vê-se hoje<br />

excessivamente marcada. Lígia Chiappini M. Leite associa a designação a uma<br />

visão evolucionista da história<br />

conduzida pela noção de progresso que só entende o novo como fruto de uma lenta<br />

preparação, pressupondo sempre a precariedade nas obras anteriores, em relação à<br />

modernidade das posteriores. (Leite, 1988, p.l48)<br />

Regina Zilberman interpreta o termo como classificação segregadora da produção<br />

literária da virada do século, que assim viveria uma espécie de "diáspora<br />

histórico-literária", sendo alguns adotados pelo Parnasianismo, outros pelo Simbolismo<br />

e alguns outros (como Euclides da Cunha, Lima Barreto ou Augusto dos<br />

Anjos),<br />

reunidos sob a classificação que lhes retira toda e qualquer identidade: a de Pré-Modernismo,<br />

denominação insatisfatória porque os arruma na história da literatura pelo que<br />

seus herdeiros virão eventualmente a ser. (Zilberman, 1988, p.139)


Flora Sussekind detecta "uma estranha suspensão de sentido" na literatura<br />

brasileira entre 1890 e 1920, ao se tomar contato com a superficialidade da crítica,<br />

que só compreende a literatura do período "enquanto pré ou pós alguma coisa",<br />

bipartindo-a entre a "vampirização diluidora de marcas e estilos anteriores" e a<br />

função de "embrião de traços modernistas futuros" (Sussekind, 1988, p.33).<br />

O caminho mais conveniente ao enfrentamento dessas dificuldades certamente<br />

deverá passar pela análise detida e cada vez mais aprofundada de obras<br />

significativas do período, pelo que significam isoladamente e pelas relações que<br />

guardam entre si e com o tempo em que foram concebidas. Todavia, continua<br />

ainda sem solução a busca de uma designação mais adequada e precisa para esse<br />

período, na literatura brasileira.<br />

0 SERTÃO E A CIDADE<br />

O início do século XX, na vida brasileira, representa um momento de<br />

mudanças, com um acelerado processo de industrialização, uma intensificação<br />

do surto imigratório, a premente necessidade de atualização do país com o que<br />

se passava no mundo; observa-se a "obsessiva construção de uma utopia da<br />

modernização", responsável pela remodelação urbana e o "esboço de um horizonte<br />

técnico nas grandes cidades do país" (Hardman, 1988, p.40). Nesse quadro<br />

de remodelação da vida nacional, com um dinamismo crescente nas três primeiras<br />

décadas do século, inserem-se a campanha higienista, as campanhas pela alfabetização<br />

em massa, uma visão regeneradora da educação, o incremento dos meios<br />

de comunicação. Mudam-se "as coordenadas espaço-temporais" do habitante<br />

das grandes cidades brasileiras, com intensas reformas urbanas, bondes elétricos,<br />

automóveis, expansão da rede ferroviária, "difusão de tabuletas e anúncios<br />

pelas ruas e fachadas", distanciando cada vez mais "uma visão estável do mundo,<br />

uma definição espiritualizada da arte e do artista" e assomando com força a<br />

sensação de instabilidade e mobilidade, com a proeminência da técnica (Sussekind,<br />

1988, p.33).<br />

E tempo de transformações, de tensões e crises. Detenhamo-nos aleatoriamente<br />

num desses momentos de tensão, após quase 30 anos de vida republicana.<br />

Dentre os incontáveis relatos sobre as condições de vida na cidade de São Paulo,<br />

por exemplo, presentes nas páginas de estudos de história social e política do<br />

período, a seguinte descrição das condições de trabalho em 1917 certamente não<br />

é indicativa de uma sociedade livre de grandes turbulências:


As máquinas se amontoavam ao lado umas das outras e suas correias e engrenagens<br />

giravam sem proteção alguma. Os acidentes se amiudavam porque os trabalhadores<br />

cansados, que trabalhavam às vezes além do horário sem aumento de salário, ou<br />

trabalhavam aos domingos, eram multados por indolência ou pelos erros cometidos, se<br />

fossem adultos, ou surrados, se fossem crianças... As fotografias ocasionais do revezamento<br />

de turmas numa ou noutra fábrica nos exibem uma horda de espectros descarnados<br />

e andrajosos, apinhados à saída, precedidos de crianças descalças e raquíticas com os<br />

rostos inexpressivos voltados para a câmara ou para o chão. (Dean, 1971, p.164)<br />

A respeito das condições de vida na São Paulo de 1917, quando ocorreu a<br />

greve geral, a "manifestação política urbana mais impressionante da Primeira<br />

República", diria La guerra suciale, jornal anarquista, que se tratava mais de uma<br />

"greve ligada à fome do que ao trabalho" (Pinheiro & Hall, 1979, p.232-4).<br />

No limiar da década em que se precipitou a crise que desembocaria no<br />

desabamento da Primeira República, um soneto anarquista de 1920 demonstra as<br />

cruéis perspectivas reservadas às meninas das classes despossuídas:<br />

Costureirinha meiga e mansa<br />

tu, que tens de ouro o coração<br />

Trabalhadora e frágil criança<br />

Vida sem luz, boca sem pão<br />

Será de dores tua estigma<br />

e o teu destino há de oscilar<br />

nas duas pontas do dilema<br />

Tuberculose ou Lupanar!<br />

(Foot & Leonadi, 1982, p.184)<br />

Todavia, esse é ainda o tempo de reuniões provincianas, saraus bem-comportados,<br />

em que as famílias, mesmo nas grandes cidades, encenam peças<br />

didáticas, com fins edificantes, para amigos e parentes, em que recatadas senhoritas,<br />

ao som do piano tocado pelas mães, declamam poemas de Casimiro ou<br />

Bilac, acompanhados de canapés e doces, regados com sucos de frutas da estação.<br />

É também ainda o tempo dos coronéis, de terno de linho e chapéu panamá,<br />

envolvidos em sangrentas batalhas por dissensões pessoais, políticas e eleitoreiras,<br />

empenhados vaidosa e muitas vezes desinteressadamente na construção da<br />

escola, da igreja-matriz ou da casa de saúde do seu vilarejo. Ao mesmo tempo, é<br />

a sua benemerência que lhes assegura nas mãos as rédeas do poder irrestrito sobre<br />

a consciência e a vontade de caipiras desdentados, de chapéu de palha e pé no<br />

chão, muito parecidos com o Jeca Tatu e o Joaquim Bentinho, embrenhados pelo<br />

interior de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas, Paraná, Mato Grosso, Goiás. O café


passa por crises periódicas e constantes, mas ainda continua dando as cartas,<br />

abrindo caminhos, fundando cidades, para sugar até a última gota da nova terra<br />

vermelha, ao mesmo tempo em que abandona atrás de si as cidades mortas. A<br />

Noroeste e a Araraquarense vão sulcando sem pena com seus trilhos de ferro o<br />

interior de São Paulo.<br />

Os barões decadentes, de fraque e cartola, trafegam impávidos pela São Paulo<br />

que aos poucos vai sendo dominada por novos ricos de língua enrolada, de terno<br />

berrante e satisfeita bigodeira. As fábricas impacientes, túrgidas de gente, apitam,<br />

engolindo vorazmente os habitantes dos subúrbios.<br />

Nesse Brasil tão vasto, dilacerado entre a mudança e o marasmo, convivem<br />

se desconhecendo as mais recentes modas e sofisticações importadas diretamente<br />

da Europa e o bentinho de baeta; a farda engalanada e o trabuco sertanejo; o<br />

automóvel e o carro de boi; o apito da fábrica e a festa do divino, a cartola e o<br />

panamá, o fraque e o chapéu de palha.<br />

A literatura produzida na Primeira República, do início aos anos 20, como<br />

toda literatura, direta ou implicitamente, traz as marcas de seu tempo, exprimindo<br />

simbolicamente suas tensões. Antiga dicotomia impressa na nossa cultura, presentifica-se<br />

nesses tempos pré-modernos com redobrada justificativa o confronto<br />

entre o sertão e a cidade, figurado ora no tom regionalista ou na simples cor local,<br />

ora na exaltação da cosmópole europeizada ou em sua crônica mundana, ou ainda<br />

como libertador canto às avessas, na satírica paródia do sertão e da cidade, que<br />

desvela a artificialidade do sertanismo elegante e a afetação do cosmopolitismo<br />

smart.<br />

Também nesse momento, com intensidade se traduz na literatura dos melhores<br />

e dos piores a antinomia entre o velho e o novo; nos piores, como trejeito<br />

inconvincente, que simplesmente junta requentado sertanismo ou mundanismo<br />

superficial a uma forma preciosa e empolada, descritiva e anacrônica de expressão;<br />

nos melhores, transfigurado em doloroso embate que enriquece o texto de inusitadas<br />

nuanças, como no convívio entre barroca ornamentação, filosofia mal digerida,<br />

enternecida humanidade e aguda consciência, encontrado n'Os Sertões ou no<br />

aparente desleixo, simplificação-popularização da literatura expressa aos retalhos<br />

na crônica solidária e autêntica do subúrbio, empreendida por Lima Barreto.<br />

Novas formas de produção e disseminação das artes, por meio da imprensa,<br />

revistas ilustradas, cinema e reclames, associadas à definição e à necessária<br />

conquista de uma parcela mais abrangente do parco público ledor, exigirão por<br />

parte dos mais atentos uma reordenação na concepção e na realização do fazer<br />

literário.<br />

Antonio Candido apresenta números significativos sobre a questão:


Os analfabetos eram no Brasil, em 1890, cerca de 84%; em 1920 passaram a 75%;<br />

em 1940 eram 57%. A possibilidade de leitura aumentou, pois, consideravelmente...<br />

e com ela o número relativo de leitores, gerando<br />

novos laços entre escritor e público, com uma tendência crescente para a redução dos<br />

laços que antes o prendiam (o escritor) aos grupos restritos de diletantes e conhecedores<br />

(Candido, 1976b, p.l37)<br />

Especificamente sobre São Paulo, no primeiro vintênio do século, Terezinha<br />

A. Del Florentino informa:<br />

No Estado de São Paulo o índice [de iletrados] era de setenta por cento, enquanto<br />

sua capital ostentava quarenta e dois por cento de iletrados. Contava-se, portanto, no<br />

interior do Estado com uma população letrada de apenas trinta por cento e na cidade de<br />

São Paulo com uma potencialidade de leitores avaliada em cinqüenta e oito por cento<br />

dos seus habitantes. (Del Florentino, 1982, p.3-4)<br />

A prática editorial de Monteiro Lobato, por exemplo, assim como a sofreguidão<br />

com que se empenha programaticamente na busca de um estilo pessoal mais<br />

popular e compatível com os novos tempos, patente já nas preocupações expressas<br />

na correspondência que mantém com Godofredo Rangel, verdadeira declaração<br />

de princípios, e o modo como investe com tanta insistência e sucesso no<br />

público infantil, reduto a ser conquistado e preservado, dão significativa amostra<br />

dessa mudança de atitude perante a literatura visando a desliteratizá-la.<br />

Nos anos 10 e 20 já se achava em marcha um processo de modernização do<br />

país, com o "estreitamento de relações entre literatura e aparelhos modernos,<br />

criação cultural e inovações industriais". É a partir desse momento, que se começa<br />

a encarar "o livro como objeto gráfico" (Sussekind, 1988, p.42), modificando as<br />

relações entre escritor e público.<br />

Persiste, todavia, o embate entre o novo e o velho: os escritores se empenham<br />

numa profissionalização de sua atividade, modificando as relações de "produção<br />

e circulação dos bens culturais", despindo a literatura da aura mística que a<br />

cercava, ao mesmo tempo em que se observa um processo de institucionalização<br />

da literatura, valorizada por ocupar um status elevado e nobre - a fundação da<br />

Academia Brasileira de Letras, por exemplo, representa bem essa segunda atitude<br />

(Zilberman, 1988, p.133).<br />

Novos tempos, nova literatura? As coisas não são assim tão simples, tão<br />

mecânicas, nem tão rápidas. Por largo tempo convivem, mesmo bem depois da<br />

Semana de Arte Moderna, uma produção acadêmica, de feição conservadora,


preciosa, vincada por eruditismos, apoiada na norma culta e ainda bastante<br />

apreciada por razoável parcela do público, e uma literatura mais renovada e afeita<br />

aos novos tempos, nem sempre tão radical, nem sempre muito bem compreendida<br />

e apreciada.<br />

A LITERATURA PAULISTA<br />

Delimitações<br />

Falar de uma literatura paulista, mineira, gaúcha ou baiana soa sempre muito<br />

estranho, pois, antes de mais nada, o que existe é uma literatura brasileira, que,<br />

entretanto, indubitavelmente se manifesta "de modo diferente nos diferentes<br />

Estados" (Candido, 1976c, p.l39), dada a vastidão e a heterogeneidade do<br />

território nacional.<br />

Quando nos referimos à literatura paulista, pensamos na literatura produzida<br />

sobre São Paulo - não necessariamente em São Paulo, por escritores nascidos no<br />

local -, cujos temas tocam a paisagem física e social do Estado, voltando-se para<br />

o homem da região, mesmo que tomado na impessoalidade e indiferenciação do<br />

espaço das grandes cidades.<br />

A maior parte das obras que serão aqui tratadas foi composta no Estado de<br />

São Paulo, por escritores paulistas, mas isso não constituiu requisito eliminatório<br />

na seleção dos textos.<br />

Quanto à delimitação do universo paulista, não se leva em conta um critério<br />

estritamente geográfico, baseado nas regiões naturais, ou um parâmetro políticoadministrativo.<br />

A paisagem abarca sempre duas instâncias, a dos objetos naturais,<br />

não produzidos sob o influxo humano, e a dos objetos sociais, resultantes da<br />

interferência humana, por isso, "a paisagem não tem nada de fixo, de imóvel",<br />

adaptando-se sempre às novas necessidades da sociedade (Santos, 1982, p.37).<br />

Assim, a noção de região não pode hoje ser uma concepção estanque, devendo<br />

incorporar certa maleabilidade e dinamicidade.<br />

Ainda hoje é possível existirem espaços geográficos delimitados por "uma<br />

interação íntima entre grupo humano e base geográfica", mas são situações de<br />

exceção, em geral resultantes de "uma falta de dinamismo social"; atualmente<br />

está em crise a clássica noção de região, "pois os progressos no campo dos<br />

transportes e das comunicações, a internacionalização da economia, descartam a<br />

imobilidade" (Santos, 1980,p.23).


No começo do século, certamente o ritmo das mutações econômicas e sociais<br />

era mais lento, podendo-se pensar em características regionais mais definidas e<br />

peculiares, pois até mesmo a comunicação entre distantes espaços geográficos<br />

era precária e difícil, estando eles imunes ainda nesse tempo à homogeneização<br />

cultural empreendida posteriormente pelos meios de comunicação de massa.<br />

Quando se fala em região paulista no começo do século, em grande parte há<br />

uma correspondência com o território do Estado. Todavia, mesmo no que se<br />

refere à análise do tratamento literário da região, empreendido nesse tempo, é<br />

necessário certo cuidado; há escritores, por exemplo, cuja produção tem como<br />

matéria o universo caipira - como é o caso de Lobato ou Cornélio Pires -, que<br />

não se restringia apenas ao território do Estado de São Paulo, mas também se<br />

encontrava em regiões limítrofes de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná e Mato<br />

Grosso. Obviamente, isso não impede o enquadramento da produção desses<br />

escritores como literatura paulista.<br />

As vertentes<br />

A literatura paulista, como parte da literatura brasileira, guarda as mesmas<br />

características da literatura nacional no período: a mesma oscilação entre o velho<br />

e o novo, a mesma feição conservadora predominante, o mesmo movimento<br />

pendular entre o espírito nacionalista e a forte atração pela cultura européia.<br />

As linhas de força que darão a tônica à literatura paulista do período são<br />

também semelhantes: o regionalismo, a sátira política e de costumes, o tom<br />

mundano. Aqui em São Paulo, como de modo geral em nossa literatura, observa-se<br />

o pendor à estilização, associado à ornamentação, expresso, por exemplo,<br />

nos rococós dialetais de Valdomiro, na tipificação das personagens de Cornélio,<br />

num "costumismo de superfície" (Paes, 1985, p.72) que impregna a sátira de<br />

costumes de Hilário Tácito e Léo Vaz.<br />

O regionalismo<br />

A literatura regionalista produzida sobre São Paulo, aproximadamente entre<br />

1890 e 1920, de um modo geral se atém a requisitos estéticos do realismo-naturalismo<br />

- reprodução mimética da natureza e do homem, programática busca de<br />

veracidade, tocando os limites do documento -, associados a certa sedução do<br />

pitoresco, provável resquício do sertanismo romântico, evidente no exotismo das


descrições de aspectos da natureza, de hábitos e costumes locais, da atitude<br />

peculiar de personagens tipificadas, flagradas em episódios superficiais; daí, com<br />

certeza, a proeminência de contos-casos, narrativas mais rápidas e sintéticas.<br />

Esse caboclismo comumente oscila entre o registro documental e a idealização,<br />

entre o ornamento e a anedota, manifestações no fundo muito próximas de<br />

uma mesma causa, a discriminação do diferente, responsável pela apresentação<br />

pouco convincente de aspectos locais, estigmatizados em marcas distintivas das<br />

peculiaridades regionais-nacionais, a serem contrapostos à ficção urbana, mais<br />

homogeneizadora.<br />

Esse regionalismo parte do contraste entre campo e cidade, sobrelevando-se<br />

o primeiro como espaço de reencontro homem-natureza, forma de resgate da<br />

integridade perdida na cidade. Em suma, com raras exceções, é literatura sobre<br />

o campo, feita na cidade, por e para citadinos.<br />

E o regionalismo "de fachada, pitoresco e elegante", de que fala Alfredo Bosi,<br />

em que se observa um "verbalismo de efeito" (Bosi, s.d., p.72), funcionando o<br />

registro dialetal como enfeite a disfarçar "a penúria da matéria propriamente ficcional"<br />

(Paes, 1985, p.73). A perspectiva dessa literatura é passadista, nostálgica,<br />

a opção deliberada é por um recuo no tempo, idealizando o passado e evitando abordar<br />

os acontecimentos históricos contemporâneos na sua globalidade,<br />

o que, mesmo nos melhores, impede "que as tensões subam à tona" (Zilberman,<br />

1988,p.l37).<br />

No que se refere à linguagem, acentua-se o pitoresco no confronto entre dois<br />

discursos dissonantes: o tom erudito, formal, elaborado com base na norma culta,<br />

utilizado pelo narrador, oposto à expressão coloquial, dialetal, próxima à oralidade,<br />

em geral aspeada, utilizada pelas personagens. Registra-se o diferente como<br />

anômalo, recurso no fundo muito próximo à idealização e à perspectiva anedótica,<br />

todas distintas máscaras de uma mesma atitude, a alteridade.<br />

Raras são as exceções - Simões Lopes Neto e, num certo sentido, Valdomiro<br />

Silveira - que expõem visão mais solidária, espraiando no tecido da narração a<br />

expressão lingüística do interiorano, amalgamada à voz do narrador, vincada de<br />

arcaísmos, nivelando e aproximando indiferenciadamente as duas expressões.<br />

O tratamento convincente da igualdade na diversidade será, todavia, caminho<br />

sempre penoso e raro, cheio de armadilhas e enganos, pois<br />

Com aspas ou sem aspas, no discurso direto, em itálico no indireto livre (colando,<br />

portanto, a fala do narrador e do narrado - forma tradicionalmente lida como de solidariedade<br />

daquele a este), o discurso do pobre na nossa literatura pode constituir uma última


forma de expropriação, na medida em que não é o pobre o sujeito deste discurso sobre<br />

ele... (Lajolo, 1983,p.l04)<br />

Perene é a contradição inerente à literatura regionalista: é valorizada somente<br />

ao transcender os limites que a peculiarizam, inserindo-se o dado local no<br />

conjunto da nacionalidade, ou transfigurando-se como universal (Zilberman,<br />

1988,p.l38-9).<br />

O regionalismo desse tempo em São Paulo será em grande parte identificado<br />

com um caboclismo superficial. Mário da Silva Brito sintetiza bem as nuanças<br />

que tem a literatura regional em São Paulo:<br />

A princípio bem representado por Valdomiro Silveira, com as suas experiências<br />

lingüísticas e de expressão psicológica de Os Caboclos, o gênero passa pelas contribuições<br />

decorativas dos versos de Paulo Setúbal e anedóticas de Cornélio Pires, para, em<br />

seguida, descambar num processo fácil e falso, em que pululam mediocridades sem conta.<br />

(Brito, 1964, p.141)<br />

A impressão de mesmice nesse regionalismo pré-moderno ocorre especialmente<br />

pelo fato de - mesmo ao se registrarem aspectos novos da região - o<br />

escritor valer-se de um código esgotado, pois não se cria uma nova literatura<br />

apenas com novos assuntos, sem uma forma nova de expressá-los.<br />

A literatura regionalista retira muito de sua substância dos contrastes, das<br />

diferenças, dos aspectos distintivos; compreende-se, assim, a seleção de temas e<br />

motivos relacionados ao universo natural e cultural do interior, onde se encontram<br />

definidas com maior evidência as características regionais.<br />

Wilson Martins, referindo-se a comentário sobre a literatura de Juó Bananére<br />

e Cornélio Pires, publicado na Revista do Brasil, em fevereiro de 1921, e assinado<br />

por Breno Ferraz (o crítico o identifica como tendo sido escrito por Monteiro<br />

Lobato), detecta nas "letras dialetais de Juó Bananére" a expressão de uma<br />

espécie de "regionalismo urbano e industrial, paralelo e correspondente ao<br />

regionalismo rural e agrícola de Cornélio Pires" (Martins, 1978, v.6, p.173).<br />

Mesmo levando-se em conta a fortíssima presença dos imigrantes, especialmente<br />

italianos, em São Paulo - em 1905, estatística publicada em artigo sobre a Língua<br />

nacional, no jornal O Estado de S.Paulo no dia 25.11.1905, aponta os seguintes<br />

dados sobre a natalidade em 1904: nasceram na capital do Estado de São Paulo<br />

1.813 filhos de brasileiros para 7.380 filhos de estrangeiros; proporção semelhante<br />

ocorre no interior (em Araraquara, 284 brasileiros para 891 estrangeiros;<br />

Campinas, 1.182 brasileiros para 1.957 estrangeiros; Ribeirão Preto, 468 brasileiros<br />

para 1.647 estrangeiros; repetindo-se a mesma correspondência em Bebe-


douro, Casa Branca, Dois Córregos, Sertãozinho, Jaboticabal, Jaú, Limeira,<br />

Piracicaba etc.) - o enquadramento dessa literatura macarrônica como regionalista<br />

soa um tanto forçado. Talvez neste caso seja mais adequado falar em "um<br />

localismo de tipo urbano" (Lima, 1971, p.86), que valeria tanto para Juó como<br />

para Hilário Tácito ou Lima Barreto, por exemplo.<br />

No caso específico dos escritores selecionados para este trabalho sobre a<br />

caricatura na literatura paulista entre 1900 c 1920, é possível identificar uma<br />

regionalização dentro do próprio Estado de São Paulo: Monteiro Lobato trata<br />

predominantemente das cidades mortas do Vale do Paraíba; Cornélio Pires tem<br />

como referencial o caipira do sul do estado, que vivia nas cercanias de Tietê, terra<br />

natal do escritor; Juó Bananére e Hilário Tácito fazem a crônica satírica da<br />

industriosa capital do estado, tomando espaços sociais distintos: o primeiro, em<br />

certo sentido, expressa o ponto de vista do subúrbio, é habitante do Baixo Piques;<br />

o segundo atinge aristocratas decadentes, coronéis acaipirados e burgueses promissores<br />

e emergentes, que freqüentam com assiduidade os bordéis das polacas.<br />

Motivações<br />

O regionalismo literário produzido em fins do século XIX e inícios do XX<br />

sabidamente mantém estreitas ligações com as transformações decorrentes da<br />

Proclamação da República, quando ocorre um processo de estadualização, de<br />

federalização da ordem política, em que São Paulo desempenha papel vanguardeiro:<br />

graças ao café, é o estado economicamente mais poderoso do país, sendo<br />

a descentralização altamente conveniente aos barões que dirigem a economia e<br />

a política paulista, possibilidade que lhes ampliaria o comando das decisões.<br />

A expansão desta literatura local em São Paulo liga-se, portanto, na época, a<br />

um certo paulistismo bastante disseminado, espécie de ufanismo regional, que<br />

eventualmente toma a feição de anseio separatista, facilmente observável na<br />

leitura de manchetes de jornais ou em declarações e publicações de alguns<br />

próceres da política local, como evidencia, por exemplo, o livro de Alberto Salles,<br />

significativamente nomeado A pátria paulista (1887), ainda antes da Proclamação<br />

da República. Esse estado de ânimo só seria favorecido com o advento do<br />

federalismo republicano, que em outras palavras significava a autonomia dos<br />

estados.<br />

Uma economia estadual forte, sólida e expansionista será também fator de<br />

estímulo ao surto regionalista, mais aguçado nessas regiões. Dante Moreira Leite<br />

fala em "nacionalismos estaduais" ou "estadualismos" (Leite, 1976, p.232), que<br />

seriam expressão desse ânimo separatista, desenvolvido em núcleos economica-


mente mais avançados. No período, São Paulo se firma cada vez mais como região<br />

economicamente muito forte:<br />

Já era o maior produtor de café, e durante a 2- década do século transforma-se no<br />

maior centro industrial. Em 1920, o valor da produção paulista passava da metade da<br />

produção geral da união. (Galvão, 1975, p.16)<br />

Paradoxalmente, a motivação, que estimula esse regionalismo tão próximo<br />

ao separatismo, tem como nascedouro o nacionalismo, como expressão da "ideologia<br />

de país novo e promissor", ou antecipando a expressão de uma amena<br />

consciência do atraso nacional (Candido, 1987a, p.142). A Primeira Grande<br />

Guerra Mundial, forçando a reflexão sobre o país, também impulsiona essa<br />

retomada do nacionalismo.<br />

No campo propriamente da circulação e da divulgação da literatura, Monteiro<br />

Lobato desempenha papel estimulante, ao intensificar o setor editorial paulista,<br />

a partir de 1918, publicando textos voltados para a realidade nacional e regional,<br />

em cujo espírito se enquadra a produção da maior parte desse regionalismo<br />

paulista. 1<br />

A sátira<br />

A sátira, na literatura paulista do período aqui estudado, dedica-se fundamentalmente,<br />

como é comum nesse gênero de literatura, à política e aos costumes.<br />

A sátira política tem como um de seus momentos privilegiados a década de<br />

1910. 2 Vários são os acontecimentos que a sustentam e estimulam, provocados<br />

por uma conjuntura complexa: a Primeira Guerra Mundial, a aceleração do<br />

processo de industrialização, o crescimento do movimento operário, desencadeando<br />

uma onda de greves entre 1917 e 1920. São conseqüências da guerra, para<br />

o Brasil: a superação da crise econômica de 1913, a aceleração da produção<br />

industrial, a partir de 1915 - entre 1914 e 1920, o número de operários cresce de<br />

153.163 para 2.036.000. Esse intenso processo de transformação da paisagem<br />

social gera graves problemas: falta de moradias, baixos salários, custo de vida<br />

elevado, reivindicações de direitos sociais; em uma palavra, uma sociedade em<br />

ebulição, impulsionada por graves tensões sociais.<br />

Edgard Carone (1991) refere-se ainda a dois outros acontecimentos relevantes<br />

no período: a revolta dos sargentos, em 1915 e 1916, e a crise institucional da<br />

oligarquia paulista. A sátira produzida em São Paulo nos anos 10-20 alimentarse-á<br />

em grande parte dessa crise interna ao PRP. Como se sabe, a geração que


participara da Proclamação da República (Campos Sales, Quintino Bocaiúva,<br />

Rodrigues Alves etc.) desempenharia função de destaque na política, até a década<br />

de 1910, enquanto uma nova geração da oligarquia (Getúlio Vargas, Washington<br />

Luís, Altino Arantes e tantos outros) ia também se definindo a partir do início do<br />

século, passando a ocupar maior espaço político na década de 1910.<br />

Essa nova geração da oligarquia paulista ascenderia ao poder, apoiada por<br />

Rodrigues Alves, um dos próceres da velha geração. Entre 1912 e 1916, Rodrigues<br />

Alves ocupara o governo do Estado, como solução conciliatória, por ser uma<br />

figura neutra, mais confiável para Hermes da Fonseca, então presidente - durante<br />

a campanha civilista, em que São Paulo se engaja maciçamente a favor de Rui<br />

Barbosa, e Minas adere a Hermes da Fonseca, Rodrigues Alves se mantivera<br />

neutro. A facção de Júlio de Mesquita preferia Carlos Guimarães para ocupar o<br />

cargo, e a de Jorge Tibiriçá pugnava por Fernando Prestes. Assim, em sua última<br />

gestão estadual, isolado, Rodrigues Alves se aproxima de políticos pertencentes<br />

à nova geração, beneficiando-a no momento da sucessão com a indicação de<br />

Altino Arantes, que ocuparia a presidência do Estado de São Paulo entre 1916 e<br />

1920, seguido depois por Washington Luís, Carlos de Campos, Júlio Prestes etc.<br />

A indicação de Altino Arantes gera uma crise, formando-se uma dissidência<br />

na política paulista, liderada por Júlio de Mesquita - dono do jornal O Estado de<br />

S.Paulo, ao qual de alguma maneira se ligam Monteiro Lobato, Alexandre<br />

Marcondes Machado, José Maria de Toledo Malta, Léo Vaz, Moacir Piza,<br />

Voltolino etc, todos fundadores do Estadinho, edição vespertina do jornal. Ao<br />

final da dissensão, sai fortalecida a geração mais jovem do Partido Republicano<br />

Paulista, que ocuparia a partir daí espaço privilegiado na política do período.<br />

A crise desencadeada com os episódios acima referidos terá mais à frente<br />

como conseqüências a formação do Partido da Mocidade, em 1922, e do Partido<br />

Democrático, em 1926. Antes disso, como resultado da dissensão referida, duas<br />

correntes oposicionistas se projetam mais expressivamente: 1. A Liga Nacionalista,<br />

que surge em 1915 e desaparece com a Revolução de 1924; são seus líderes<br />

Sarti Prado, Júlio Mesquita Filho, Clóvis Ribeiro etc; defende a regeneração<br />

de costumes políticos, a educação cívica, a ser empreendida pelas classes dirigentes<br />

e intelectuais; apregoa um nacionalismo que priorize o interesse social,<br />

colocado acima do individual. Como é fácil observar, luta por valores cívicos,<br />

e não contra o sistema oligárquico, com o qual de certa maneira se identifica,<br />

pois dele se origina, não representando, portanto, maior risco ao grupo assentado<br />

no poder. Essa situação toma outra feição em 1926, quando algumas<br />

facções de oposição à oligarquia se unem em torno do Partido Democrático.<br />

2. O grupo de indivíduos "de tendência ou sentido pequeno burguês, que utilizam


o instrumento literário de caráter satírico, contra o Partido Republicano Paulista<br />

no poder" (Carone, 1991).<br />

A primeira é sisuda; a segunda se vale da sátira jocosa para o desgaste dos<br />

políticos situacionistas, funcionando como arma de controle; os satiristas não<br />

fazem parte da dissidência do partido, mas dela se beneficiam e a ela favorecem,<br />

tomando como tema os envolvidos na crise<br />

não fazem parte dos grupos dominantes da oligarquia, mas tomam posição a favor de um<br />

dos lados, utilizando instrumento próprio e representando posição particular ... são<br />

indivíduos de atividade liberal, pertencentes à classe média, traduzindo no seu pensamento<br />

e na sua ação frutos da "praxis" dessa classe. (Carone, 1991, p.129-30)<br />

Esses intelectuais não constituíram um grupo organizado, plenamente articulado,<br />

mas com certeza partilharam ideais, objetivos, experiências. As posições<br />

defendidas por esses escritores-profissionais liberais (advogados, dentistas, engenheiros)<br />

não eram substancialmente muito diferentes das propaladas no discurso<br />

"sério" da Liga Nacionalista, em sua maior parte composta por dissidentes<br />

do PRP; possivelmente por isso Edgard Carone (1991) atribui às manifestações<br />

desses satíricos o papel de "força auxiliar da oligarquia", reforçando ou favorecendo<br />

as facções oposicionistas do PRP, que pugnavam por propostas regeneradoras,<br />

mais conservadoras, ao voltar a crítica satírica "para o ocasional, não o<br />

fundamental", atingindo indivíduos, antes do sistema de poder, visando ao<br />

circunstancial e não ao estrutural.<br />

Não se deve desconsiderar, todavia, o eventual desgaste promovido por essa<br />

sátira, publicada em jornais e revistas bastante lidos (O Pirralho, O Parafuso, O<br />

Estado de S.Paulo), sendo alguns de seus produtores figuras populares. Ao<br />

retratar criticamente o circunstancial, a sátira não deixa de desnudar fraquezas<br />

das instituições; quando Juó Bananére debocha do queixo de Altino Arantes ou<br />

da "urucubaca" de Hermes da Fonseca, do maquiavelismo de Pinheiro Machado<br />

ou da senilidade de Rodrigues Alves, alguma coisa do poder constituído também<br />

se desfaz nesse riso; quando Nereu Rangel Pestana cria como persona um russo<br />

"bolchevique" para avaliar negativamente a oligarquia, ou quando Moacir Piza<br />

lava publicamente a "roupa suja" do PRP, é difícil avaliar em que medida o efeito<br />

dessas críticas se restringe a um reforço à facção dissidente da Oligarquia, pois,<br />

como um bumerangue, elas se voltam também contra as fraquezas daqueles que<br />

aparentemente favorecem. Apreendendo nas caricaturas a contorção grotesca das<br />

contradições de homens públicos ou parodiando o discurso empolado e vazio dos<br />

bacharéis, a sátira, às avessas, desvela muito da vida do tempo; desnudando


publicamente a fragilidade de indivíduos proeminentes, revela também, por<br />

extensão, os limites das instituições que os mantêm, e as tensões da sociedade em<br />

que atuam.<br />

Por isso, mesmo sendo a produção literária desses satíricos aparentemente<br />

limitada, é problemático apenas avaliá-la como conservadora, reduzindo seu<br />

alcance ao papel de força auxiliar, alinhada com segmentos da burguesia paulista,<br />

pois o efeito demolidor e desmistificador da sátira não se limita ao que se supõe<br />

terem sido as intenções de seus produtores. É inerente à sátira o repúdio indiscriminado<br />

ao poder: "sátira é um gênero avesso a qualquer manifestação de poder",<br />

e é justamente essa característica que amplia seu alcance corrosivo e demolidor,<br />

e lhe permite "pôr a todos em questão" (Roncari, 1989, p.202).<br />

Edgar Carone se vale de um "esquema literário", criado por Antonio Candido,<br />

para situar a sátira produzida em São Paulo na década de 1910; separando em<br />

níveis distintos alguns dos textos mais expressivos, esquematiza:<br />

lº) "trabalhos puramente polêmicos cujos fatos estão explícitos, e que são<br />

apresentados diretamente". Nesse nível se enquadram Oligarquia paulista, de<br />

Ivan Subiroff, e Roupa suja, de Moacir Piza;<br />

2°) "mistura deliberada de polêmica e literatura". Nesse caso se enquadram,<br />

por exemplo, as poesias de Moacir Piza (Vespeiro, Galabaro etc);<br />

3º) "restringe-se à corrente de elaboração literária" (e por essa razão interessa<br />

mais especialmente a este trabalho). Aqui se enquadra a poesia de Juó Bananére<br />

e a ficção de Hilário Tácito, em que se observam "elementos polêmicos implícitos"<br />

(Carone, 1991, p.133-4).<br />

Ivan Subiroff é pseudônimo utilizado por Nereu Rangel Pestana (1879-1951).<br />

Formado em Odontologia pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, dedicou-se,<br />

todavia, com grande intensidade à imprensa; foi, juntamente com seu<br />

irmão Acilino Rangel Pestana, fundador do jornal O Combate, vespertino que<br />

circulou em São Paulo; colaborou com freqüência nas colunas de O Estado de<br />

S.Paulo e em vários outros jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro (Melo, 1954,<br />

p.470). Publicou diariamente uma série de reportagens em O Estado de S.Paulo,<br />

compondo um perfil da "classe política no poder", realizado de modo arguto,<br />

entre fevereiro e julho de 1919; essas reportagens estão enfeixadas no livro<br />

Oligarquia paulista, publicado pelas Oficinas do Estado de S.Paulo, no mesmo<br />

ano. Todavia, o jornal não se comprometia com as idéias expressas nos artigos,<br />

publicados em "seção vária", espaço pago, em que aparecem textos sobre cuja<br />

responsabilidade o jornal não responde. Para Edgard Carone, a perspectiva desses<br />

textos é mais profunda, por não se limitar ao tratamento da política, atingindo<br />

também o sistema econômico.


Já no terreno da sátira política, encontram-se especialmente Juó Bananére<br />

(Alexandre Ribeiro Marcondes Machado), a ser tratado mais à frente, em capítulo<br />

à parte, e Moacir de Toledo Piza.<br />

Toledo Piza (1891-1923) era advogado, tendo se dedicado com assiduidade<br />

ao jornalismo, utilizando-se algumas vezes do pseudônimo "Antonio Paes";<br />

dirigiu-se também à literatura, especialmente a de feição satírica, manifestando<br />

pronunciado interesse pela política. Colaborou na imprensa do Rio de<br />

Janeiro e de São Paulo, foi um dos fundadores do Estadinho e depois,<br />

juntamente com Alexandre Marcondes e Voltolino, fundou O Queixoso, órgão<br />

de sátira e oposição a Altino Arantes. Publicou em 1916 seu primeiro livro,<br />

Sátiras; em 1917, escreveu Galabaro, em co-autoria com Juó Bananére,<br />

criticando o cônego Valois de Castro, deputado federal por São Paulo (PRP),<br />

por este ter manifestado simpatia pelo jornal Diário Alemão, que publicara<br />

"notícia provocativa contra o Brasil" (Carone, 1991, p.155); a atitude do<br />

jornal, e, por extensão, a do cônego, figura impopular, foram hostilizadas pela<br />

opinião pública na época.<br />

Vespeiro (1923) é obra póstuma, com prefácio de Hilário Tácito, reunindo<br />

versos humorísticos, satíricos (aqui se incluem críticas a Altino Arantes, Rodrigues<br />

Alves, Coronel José Piedade etc, e a segunda parte dos textos publicados<br />

em Galabaro, escrita por Moacir Piza em português, enquanto a primeira parte<br />

foi escrita por Juó, em dialeto macarrônico) e poemas sérios, convencionais,<br />

marcados por certo apuro formal e precioso, bem típico da literatura acadêmica,<br />

apreciada no tempo, tratando de temas amorosos e existenciais, como exemplificam<br />

os poemas Velho estilo e Várias, dentre outros.<br />

Roupa suja, polêmica alegre (1923), num tom oscilante entre o ácido e o<br />

irônico, faz denúncias e críticas referentes especialmente à prática política dos<br />

situacionistas do PRP de então (Júlio Prestes, Washington Luís etc). Moacir Piza<br />

se lançara como candidato independente a deputado estadual por Capivari, sendo<br />

derrotado; em outras oportunidades já tentara se eleger, sem resultado positivo.<br />

O livro Três campanhas, de 1920, já se referia acidamente a essas tentativas,<br />

sendo retomado o tema em Roupa suja. Texto definido pelo próprio autor como<br />

"farsa", é obra de crítica desabusada, com tom agressivo e frontal, "onde o<br />

situacionismo é vituperado ... a situação é apresentada em nível o mais baixo,<br />

moral e pessoal" (Carone, 1991, p.151).<br />

Moacir Piza era um temperamento apaixonado, traço que repercutiu fortemente<br />

em sua atividade política e em sua vida pessoal, tendo se envolvido em<br />

constantes entreveros - era delegado de Santa Branca, quando, por razões<br />

políticas, exonera-se do cargo, remetendo ao Secretário da Justiça e Segurança


Pública um ofício desaforado; indivíduo temido e evitado por "governados e<br />

governador", tentam afastá-lo de São Paulo, enviando-o em missão cultural ao<br />

México, para evitar a virulência de sua crítica (Melo, 1954, p.484-5) - e mantendo<br />

relacionamento turbulento com Nenê Romano, mulher de vida livre, ela também<br />

envolvida em episódios tempestuosos, numa relação que se interromperia com o<br />

fim trágico da vida de ambos.<br />

O passionalismo das atitudes do homem talvez ajude a compreender um<br />

pouco da verve crítica do escritor; contudo, seria engano reduzir a militância feroz<br />

de sua sátira apenas às contingências do temperamento e da vida pessoal.<br />

O soneto Judas, que finaliza a série de textos destinados à crítica do padre<br />

Valois de Castro, dá uma idéia do tom utilizado pelo escritor na parte que lhe<br />

cabe do opúsculo Galabaro:<br />

JUDAS<br />

(A um senador, germanófilo até a<br />

medula, que faz anos hoje)<br />

Hoje, decerto, levantaste cedo<br />

E, tomando entre as unhas o breviário<br />

Rezaste, pelo teu aniversário,<br />

Uma oração angélica, em segredo.<br />

Depois, calado, como de ordinário,<br />

Nutrindo pelo inferno um grande medo,<br />

Foste, em jejum, com um ar solene e tredo<br />

Lavar a alminha no confissionário.<br />

Das culpas todo o rol, enfim, desfiaste.<br />

Contudo, eu, vendo confessar-te, ri-me<br />

Porque notei que ao padre não contaste<br />

Que eras réu, ante Deus e a Pátria inteira,<br />

Do mesmo atroz, do mesmo hediondo crime<br />

Que deu com teu colega na figueira...<br />

No que se refere à caricatura de políticos proeminentes do situacionismo, o<br />

soneto O queixo, visando atingir Altino Arantes, constitui-se em significativa<br />

amostra, sendo todavia necessário observar que falta à sátira de Moacir Piza o<br />

talento para o cômico encontrado nos textos de Alexandre M. Machado:


O Queixo<br />

Tomo da pena. Deixo-a, desolado,<br />

Pois a tarefa exige outro instrumento,<br />

A minha concepção, o meu intento<br />

Demanda, pelo menos... um machado!<br />

Tomo-o nas mãos - E, resoluto, assento<br />

De talhar, num soneto, o queixo amado.<br />

Procuro executar o plano ideado;<br />

Mas em vão me extenuo e me atormento.<br />

Em vão me esforço e com afã trabalho.<br />

Em vão a idéia encolho e o verso estico:<br />

- Todo o serviço, todo o esforço é falho.<br />

Pois, em seguida ao labutar de uma hora,<br />

Crendo findo o trabalho, verifico<br />

Que metade do queixo está de fora...<br />

Outros textos de Moacir Piza, autor pouco conhecido, mas representativo da<br />

vertente satírica do período, estão reunidos no Apêndice 1.<br />

Como sátira de costumes são expressivas a "crônica muito verídica e memória<br />

filosófica" de Hilário Tácito, Madame Pommery (1919), que será alvo de<br />

análise mais detida em capítulo à parte, e o romance O professor Jeremias (1920),<br />

de Léo Vaz (Leonel Vaz de Barros, 1890-1973). O segundo dedicou-se por algum<br />

tempo ao magistério, que abandonou por confessada falta de vocação<br />

Fora eu, até aquele tempo, desanimado mestre-escola de grupo escolar, no interior.<br />

Já antes, por várias vezes, e outras tantas vias tentara sacudir a carga do magistério primário<br />

e ingressar na imprensa da Capital ou do Rio... (Vaz, 1948, p.51-60)<br />

desenvolvendo a partir de então predominantemente atividades jornalísticas no<br />

interior e na cidade de São Paulo, e em jornais e revistas de todo o país. Nessa<br />

opção foi estimulado e favorecido inicialmente por Oswald de Andrade, que o<br />

convidou a freqüentar sua garçonière na rua Libero Badaró e o indicou como<br />

substituto nas funções de redator teatral que exercia, apresentando-o e recomendando-o<br />

depois a Monteiro Lobato, que o empregaria como redator da Revista<br />

do Brasil e o indicaria para a redação de O Estado de S.Paulo. A convite do<br />

escritor de Urupês, foi encarregado também da orientação e supervisão da<br />

Revista do Brasil. No campo propriamente literário, publicou O professor Jere-


mias, romance (1920), Ritinha e outros casos, contos (1923), O burrico Lúcio,<br />

romance (1951).<br />

Ambos, Hilário Tácito e Léo Vaz, de certa maneira seguem a escola de<br />

Machado de Assis, espraiando a sátira de costumes, apoiada sobre referências<br />

locais e circunstanciais, num gênero de humor sutil, que também visa ao tratamento<br />

de questões humanas, mais universais e abrangentes.<br />

O primeiro faz a crônica satírica da vida paulistana, proximamente aos anos<br />

20, explorando as consideráveis mudanças por que passam hábitos e costumes<br />

na urbe que se transforma, a partir do ponto de vista de um elemento fortemente<br />

desestabilizador e dinâmico, as polacas, prostitutas de alto bordo, o que autoriza<br />

e fundamenta a apresentação às avessas do tema. O segundo, em O professor<br />

Jeremias, traça o perfil da vida insípida que leva um mestre-escola exilado em<br />

vilarejos do interior do Estado, no começo do século.<br />

Os protótipos desses vilarejos são, no presente, Ararucá, no passado, Pirassaguera.<br />

O texto registra um localismo difuso, com esparsas informações sobre<br />

os hábitos disseminados nas pequenas cidades do interior de São Paulo: a festa<br />

de formatura ("Pobre Clotilde!"), as reduzidas possibilidades do jornalismo local<br />

("A imprensa"), a ausência de opções culturais, o ritmo monótono da vida,<br />

quebrado apenas pela conversa entabulada todo fim de tarde na farmácia, e pelos<br />

eventuais escândalos farejados no cotidiano pela cuidadosa vigilância das senhoras<br />

("Dona Candinha"). Há capítulos que são espécies de parábolas, narrativas<br />

exemplares, de caráter autônomo, geralmente enunciadas com entonação amarga<br />

e jocosa ("Os peixinhos", "A justiça social", "Eu era assim").<br />

O artifício empregado pelo escritor para a composição da obra é utilizar como<br />

persona a figura de um mestre-escola amargurado, solitário, estranho à vida local<br />

- e por isso atento a suas peculiaridades. O narrador expõe experiências e<br />

impressões ao filho distante, que vive com a mãe, separada do professor. O<br />

interlocutor aparente é um menino, o que justifica e avaliza as digressões didáticas<br />

e filosóficas do narrador, visando ensinar a criança a partir de suas experiências<br />

pessoais.<br />

O conformismo amargurado e irônico que permeia a narração lembra a<br />

perspectiva desesperançada e impotente utilizada por Galeão Coutinho, mais à<br />

frente, nos anos 30 e 40, ao desfiar as desditas que ocorrem na vida de Simão, o<br />

Caolho.<br />

Ainda no que diz respeito à sátira de costumes, é expressivo o papel desempenhado<br />

pelos contos de Monteiro Lobato, que em algumas situações associa<br />

com muito talento a referência local à crítica das mazelas nacionais ("O luzeiro


agrícola", "O colocador de pronomes"), universalizando o particular ("O comprador<br />

de fazendas", "O jardineiro Timóteo", "Negrinha"), tratando o regional e<br />

o nacional com humanidade, ao desreificá-los, num tratamento que casa o ridículo<br />

e o patético, dosando com equilíbrio sátira, humor e comoção.<br />

A sátira e o regionalismo nesse período, na verdade, podem ser lidos como<br />

reações distintas a um mesmo estímulo, o intenso processo de industrializaçãourbanização<br />

que a cidade sofre no começo do século; o segundo encarna a<br />

tendência à evasão diante das transformações, e a primeira expressa a necessidade<br />

de enfrentamento ou recusa da nova situação. Monteiro Lobato é o único que,<br />

por razões peculiares, junta as duas coisas, produzindo uma espécie de regionalismo<br />

satírico.<br />

0 "GRUPO PAULISTA"<br />

Como é fácil depreender da leitura de ensaios, depoimentos e correspondência<br />

de contemporâneos, foi determinante à literatura produzida em São Paulo o<br />

papel desempenhado por Monteiro Lobato, especialmente entre 1916 (quando<br />

começa a colaborar na Revista do Brasil, então recém-fundada, a partir do terceiro<br />

número, com contos, artigos, resenhas) e 1924 - quando vai à falência a Editora<br />

Monteiro Lobato & Cia.<br />

Em 1917, após vender a fazenda que herdara do avô, Lobato muda-se para<br />

São Paulo com a família; em maio de 1918, compra a Revista do Brasil e publica<br />

em julho, com grande sucesso, seu primeiro livro, Urupês. Sabe-se que antes<br />

disso cogitara por certo tempo publicar como primeiro lançamento da revista o<br />

volume de contos Os caboclos, de Valdomiro Silveira, o que faria mais à frente,<br />

em 1920.<br />

Léo Vaz conta sobre o prestígio da Revista do Brasil, em São Paulo e em<br />

todo o país, constituindo-se suas instalações em ponto de encontro obrigatório<br />

para "tudo quanto era escritor, artista, jornalista, poeta, pensador ou mero 'sapo'<br />

em alguns desses setores". Lá se reuniam os mais<br />

variados, heterogênos e desencontrados espécimes intelectuais: Martim Francisco, Artur<br />

Neiva, Manequinho Lopes, Plínio Barreto, Felinto Lopes, Paulo Setúbal, Hilário Tácito,<br />

Raul de Freitas, Quinzinho Correia, Indalécio Aguiar, Armando Rodrigues, Júlio Cesar<br />

da Silva, Wasth Rodrigues, Roberto Moreira, Ricardo Cipicchia, Voltolino, Cornélio Pires,<br />

Sílvio Floreal, Amadeu Amaral, Simões Pinto, Cândido Fontoura, Gelásio Pimenta,<br />

Oswald de Andrade, Jairo de Góes, Mário Pinto Serva, Moacir Piza, René Thiollier, Re-


ouças, Pinheiro Junior, Assis Cintra, Antônio Figueiredo, Jacomino Define, Adalgiso<br />

Pereira etc. Do interior, do Rio, de outros estados, intelectuais e artistas que vinham a<br />

São Paulo sempre passavam pela redação da Revista. (Vaz, 1948, p.57-8)<br />

O ambiente era informal, o clima era de república de estudantes, irreverente e<br />

despreocupado: discutia-se política, filosofia, contavam-se anedotas, propagavam-se<br />

boatos.<br />

Lobato mesmo, em correspondência com Godofredo Rangel, faz referências<br />

aos freqüentadores da Revista, algumas delas bem jocosas, como em carta 3 que<br />

descreve passagem "prodigiosamente cômica" ocorrida em jantar de homenagem<br />

a Malta (José Maria de Toledo): após vários discursos - inclusive um "monumental<br />

do Moacir Piza" - o escritor de Madame Pommery, que sofria de deficiência<br />

auditiva, levanta-se para discursar e agradecer; sentado ao lado de Raul<br />

[de Freitas], velho companheiro do "Minarete", também o seu tanto surdo, por<br />

brincadeira Lobato afirma que o orador lhe dirigia críticas, induzindo-o a defender-se;<br />

terminado o discurso do homenageado, levanta-se Raul de Freitas para<br />

responder ao suposto ataque, ficando Toledo Malta sem entender o que acontecia.<br />

As brincadeiras evidenciam o grau de liberdade e intimidade que havia entre<br />

os freqüentadores mais assíduos da Revista; todavia, pilhérias à parte, fica<br />

evidente ao observador o papel aglulinador desempenhado pelo escritor de<br />

Urupês com relação a intelectuais seus contemporâneos, em São Paulo. Afora o<br />

carisma pessoal e o envolvente entusiasmo que cercam a figura humana e intelectual<br />

de Lobato, é patente que realmente houve troca de informações, idéias e<br />

influências políticas, filosóficas, estéticas entre esses escritores, todos nacionalistas,<br />

cada qual a seu modo voltado para as coisas do Brasil e de São Paulo.<br />

O fato de Monteiro Lobato, como editor, ter estimulado e publicado obras<br />

compostas por esses escritores, muitas vezes independentemente do seu mérito<br />

propriamente literário, valorizando-as e fazendo sua propaganda, comprova,<br />

além da viabilidade comercial, no mínimo, a existência de afinidades entre eles.<br />

Os textos dos escritores aglutinados cm torno de Lobato foram publicados<br />

na maior parte pela Editora Monteiro Lobato & Cia., entre 1918 e 1922, mas é<br />

certo que, como ocorre com Valdomiro Silveira, Cornélio Pires e o próprio<br />

Lobato, essa literatura "paulista" já se vinha delineando bem antes disso, sendo<br />

produzida desde os primeiros anos do século. Os textos oscilam entre um<br />

regionalismo de exaltação, nostálgico e passadista, a anedota superficial e amena,<br />

e a sátira, dividida entre costumes e política, em que se encontra desde o<br />

tratamento de fragilidades particulares de indivíduos até a crítica diluída num<br />

humor mais abrangente, que toca a coletividade. Essa literatura constituía-se em


novidade para a época, ao tomar temas locais e/ou nacionais, desenvolvendo-os<br />

de modo mais distenso do que era usual, em linguagem mais simples e criativa,<br />

tocando eventualmente em questões delicadas.<br />

Benjamim de Garay (1922, p.70) fala de um "movimento paulista", anterior<br />

ao modernismo, congregado em torno de Monteiro Lobato, que procurava reatar<br />

"as tradições indianistas da segunda metade do século XIX", ao invés de "imitar<br />

a literatura estrangeira de pacotilha", e que tratava das qualidades e defeitos da<br />

nação, citando dentre esses escritores Léo Vaz, Hilário Tácito, Menotti Del<br />

Picchia, Paulo Setúbal, Veiga Miranda, Valdomiro Silveira, Ribeiro Couto, como<br />

"aqueles que oferecem uma modalidade que é filha da terra".<br />

Alguns deles obtiveram grande sucesso editorial, destacando-se, além das<br />

criações de Lobato, O professor Jeremias e Madame Pommery (Del Florentino,<br />

1982, p.92), o que no mínimo confirma a eficiência e a novidade da proposta por<br />

eles realizada.<br />

As reservas expressas por Lobato à direção que tomava a Revista do Brasil,<br />

entre fins de 1917 e inícios de 1918, pouco antes de dispor-se a comprá-la,<br />

esclarecem bem qual o espírito que motiva a literatura desses paulistas, expondo<br />

os objetivos nacionalistas que os nortearam, pelos desvios que visavam evitar:<br />

tudo mais é coisa forasteira. Anda a nossa gente tão viciada em só dar atenção às coisas<br />

exóticas, que mesmo uma Revista do Brasil vira logo de Paris ou da China. Nascida para<br />

espelho de coisas desta terra vai refletindo só coisas de fora. (Cavalheiro, 1955, p.8)<br />

A editora fundada por Lobato, que publicaria as obras da maior parte desses<br />

paulistas, é, inicialmente, como se sabe, uma espécie de desmembramento da<br />

Revista do Brasil por ele dirigida, visando, portanto, executar os objetivos<br />

nacionalistas e apenas moderadamente inovadores no terreno da estética - e por<br />

isso comercialmente eficazes -, almejados por Lobato para a Revista quando a<br />

assumira.<br />

MOTIVAÇÕES PARA A CARICATURA NA LITERATURA PAULISTA<br />

É claro que em todos os momentos da história há sempre figuras humanas e<br />

fatos motivadores para a caricatura: por isso, pensar no primeiro vintênio do<br />

século como um período privilegiado apenas pelas personagens que o povoaram<br />

é com certeza um engano. Certamente é bastante cômica e propícia à verve<br />

caricaturesca a imagem do Marechal Hermes da Fonseca, então presidente da


República, dançando entusiasmado o corta-jaca com a jovem e sofisticada esposa<br />

da haute gomme Nair de Tefé; também é risível imaginar-se Pinheiro Machado,<br />

poderoso e influente político gaúcho, tentando entrar a cavalo nas luxuosas<br />

instalações da Exposição Nacional, importante evento realizado no Rio de<br />

Janeiro, em 1908. Contudo, não reside apenas nos caricaturados a motivação para<br />

o recurso constante à caricatura na literatura desse tempo.<br />

Como se depreende do que foi expresso anteriormente, as duas primeiras<br />

décadas do século XX correspondem a um período conturbado no Brasil e em<br />

São Paulo, com uma sociedade experimentando transformações, com o afluxo<br />

intenso de imigrantes e uma urbanização e industrialização aceleradas.<br />

A efervescente capital não é um mundo estanque; é apenas uma das faces de<br />

um universo em movimento. O perfil do interior do estado também está em franca<br />

transformação. E a energia básica que impulsiona esse movimento vem do café,<br />

que constrói vias férreas para levar a sacaria ao porto, trazer gente, mercadorias<br />

e as novidades do mundo, que sacode velhas e modorrentas vilas, abre novas<br />

cidades, desbrava e povoa sertões ignorados. É no mar crespo dos cafezais dos<br />

recônditos do território paulista que se fazem e se acumulam as grandes riquezas<br />

que transformarão a capital e tornarão cada vez mais forte o poder político de São<br />

Paulo.<br />

Por outro lado, há crises e turbulências na política e na economia. Há<br />

dissidências políticas em 1901, em 1915 e 1916, 1920 e 1926. E, tão ondulante<br />

quanto os cafezais, a economia nacional vive em altos e baixos, dependente que<br />

é seu principal produto das vicissitudes da natureza e do mercado internacional.<br />

As mudanças que ocorrem cobram seu preço, nem sempre muito baixo: não<br />

só em São Paulo, como em todo o país, há períodos marcados por desemprego,<br />

inflação, greves; enfim, tensões sociais, insatisfações e conflitos.<br />

A sátira é filha do caos, e terá sempre como espaço privilegiado o burburinho<br />

efervescente e desordenado das cidades ou mesmo o silêncio dos campos decadentes,<br />

oferecendo ambos férteis condições para a insatisfação e, conseqüentemente,<br />

para a crítica.<br />

A opção pela sátira obviamente já se expressa nos fins do século XIX, "mas<br />

ganha impulso inaudito no século XX, quando a exacerbação das contradições<br />

sociais e a consciência humana se ampliam e aprofundam no contexto literário<br />

brasileiro"; é o momento em que "a ironia passa a ser um princípio de composição<br />

textual, reorganizando o sintagma poético" (Brayner, 1979, p.125).<br />

A caricatura, presença marcante na literatura dos vinte primeiros anos do<br />

século, portanto, é recurso para a crítica satírica, como facilmente se observa na


obra de Lobato, Lima Barreto, Hilário Tácito, para falar apenas dos mais<br />

expressivos. Porém, não reside apenas nesse aspecto a sua explicação.<br />

Praticamente todos os escritores do período desenvolvem uma experiência<br />

intelectual bastante ligada à imprensa; quase todos são escritores e também<br />

jornalistas, quando não o são primeiramente jornalistas. Para falar apenas no<br />

núcleo paulista, Lobato é conhecido inicialmente por artigos publicados com<br />

vários pseudônimos na imprensa do interior e da capital, assim como é n'O Estado<br />

de S.Paulo que publica "Velha Praga", "Urupês", e boa parte dos artigos, ensaios,<br />

polêmicas, que depois reuniria em volumes como Problema vital, A onda verde<br />

e O escândalo do petróleo e ferro.<br />

Alexandre Marcondes Machado, antes de ser literato, é jornalista, popularizando<br />

Juó Bananére nas páginas de O Pirralho e em outras publicações esporádicas;<br />

apenas mais à frente é que reuniria em livro as crônicas e paródias<br />

macarrônicas. Cornélio Pires também milita com constância nos quadros da<br />

imprensa. Valdomiro Silveira desenvolve extensa publicação de crônicas e<br />

contos cm jornais e revistas - muitos de seus trabalhos são conhecidos via<br />

imprensa, antes da apresentação em livros. Moacir Piza (Antônio Paes), Nereu<br />

Rangel Pestana (Ivan Subiroff) são antes de tudo homens de imprensa.<br />

Alceu Amoroso Lima (apud Del Florentino, 1982) arrola justificativas para<br />

esse trânsito jornalismo-literatura na nossa cultura, observando que isso ocorre<br />

não só em 1920, mas em vários outros momentos:<br />

Em 1920, como em outro momento qualquer da nossa evolução literária, abundaram<br />

os livros de crônicas, artigos ou fragmentos publicados em jornais e reunidos em volume.<br />

Sintoma de vida difícil, de público apressado, de gosto de publicidade, de impaciência<br />

criadora e cultura atropelada, não é possível desdenhá-lo em qualquer estudo consciencioso<br />

do nosso fenômeno literário, (p.41-2)<br />

Além de ser este um período em que "literatura e imprensa se confundiam",<br />

é expressiva também a atuação de literatos e caricaturistas plásticos (como ocorre<br />

com Voltolino, por exemplo) em atividades de propaganda.<br />

Bilac receberia cem mil réis por uma quadrinha proclamando a qualidade de<br />

determinada marca de fósforos. No século XX e na fase inicial de que tratamos, Emílio<br />

de Menezes redigia anúncios em versos para determinada marca de cerveja; Hermes<br />

Fontes forjou soneto destinado a um laboratório que fabricava xarope para a tosse ... O<br />

precursor dos escritores atualmente empregados em agências de publicidade foi, porém,<br />

Bastos Tigre, que herdou de Emílio de Menezes o cargo de anunciante de importante<br />

cervejaria, em que chegou a aposentar-se. (Sodré, 1966, p. 322-3)


Desse modo, é impossível isolar a práxis jornalística e publicitária desses<br />

escritores do gênero de literatura que produziram (Lobato, por exemplo, até bem<br />

recentemente foi o mais eficaz propagandista do Laboratório Fontoura, com os<br />

conhecidíssimos folhetos que fazem a versão comercial do Jeca Tatu).<br />

O apogeu da caricatura gráfica e a modernização-tecnicização que contamina<br />

os meios de expressão artística atuarão decisivamente como fator de estímulo à<br />

fixação de elementos caricaturais na literatura.<br />

A vida urbana, aliada aos novos artefatos técnicos, molda um novo homem<br />

de letras. A imprensa traduz a vida em flashes fotográficos e delineia um novo<br />

escritor. A composição literária tematiza a cidade, mesclando irreverência, cor<br />

local, pitoresco e recursos modernos (dentre eles a caricatura, a fotografia).<br />

Os "flashes" urbanos não são mais panoramas amplos e detalhados da realidade,<br />

onde a veracidade dos fatos está em sua extensão ... o recurso à síntese, ao estilo enxuto<br />

cria um novo diálogo entre o mundo urbano e a personagem de ficção. (Janovitch, 1991,<br />

p.l1-2)<br />

Antes do século XIX, a caricatura gráfica tinha divulgação precária, com<br />

reduzidas cópias às quais uma minoria tinha acesso; somente com o advento da<br />

litografia é que adquiriria "os foros de arte eminentemente popular", com maiores<br />

tiragens que ampliavam a possibilidade de divulgação junto ao público. No Brasil,<br />

as primeiras caricaturas registradas são de 1837 (no Jornal do Comércio), observando-se<br />

a partir de então a progressiva fixação do gênero em várias publicações<br />

especializadas, mas seria somente no início do século XX que a caricatura teria<br />

seu apogeu, divulgada mais amplamente, em grandes publicações, mais populares<br />

e duradouras (como é o caso, por exemplo, de O Malho e A Careta) (Álvarus,<br />

1973,p.6-7).<br />

A caricatura verbal ocupa espaço privilegiado na literatura do período também<br />

como uma espécie de extensão do que se fazia nos jornais e nas revistas<br />

ilustradas. Nas revistas a caricatura já tinha um lugar assegurado em charges que<br />

associavam o código verbal ao gráfico ou em perfis delineados com econômicos<br />

traços, criados por Voltolino, J. Carlos, muito apreciados, dando continuidade ao<br />

que faziam nas revistas do século XIX Ângelo Agostini, Bordalo Pinheiro e<br />

outros, os mais recentes com traços mais leves, estilizados, diferentemente dos<br />

precursores, que se valiam de linhas mais pesadas, densas, num estilo mimético<br />

e detalhista, próximo à fotografia, lembrando os mestres europeus.<br />

Afora as motivações acima apontadas para a profusão de caricaturas na<br />

literatura do primeiro vintênio, uma rápida vista d'olhos nos jornais do período<br />

também permite constatar o estilo frontal virulento, para usar uma expressão da


época, dos textos jornalísticos, especialmente sobre temas da política. As críticas<br />

são desabusadas, rebaixando com violência, sem meias-palavras, homens públicos<br />

proeminentes; do mesmo modo que não se economizam encômios em<br />

extensos e subservientes laudatórios, também não há contenção nos termos da<br />

crítica, quase sempre pessoal e desabrida, como demonstram os seguintes exemplos,<br />

colhidos ao acaso, que reproduzem o tom corrente nos jornais, especialmente<br />

em períodos de decisão:<br />

RÚSSIA<br />

Já não se fala do direito do voto, porque seria uma utopia pensar que o cidadão paulista<br />

tem o direito a escolher os seus candidatos para a administração municipal e do Estado!<br />

Somos um povo de escravos, um povo que recebe o chicote em plena face e lambe as<br />

mãos que vibram a arma aviltante. (O popular, Araraquara, 15.12.1907, por ocasião de<br />

eleições municipais)<br />

Piracicaba<br />

O pleito eleitoral corre renhidíssimo. O dinheiro do ministério da agricultura está sendo<br />

derramado há muitos dias, para corrupção dos eleitores, que estão sendo pagos a 500$000<br />

e 600$000 para votarem. (Correio paulistano, São Paulo, 30.10.1910; eleições municipais<br />

e campanha civilista)<br />

Política de bugre<br />

As sanguinosas tragédias de Igarapava - o governo de São Paulo foi o responsável pela<br />

série de assassínios. (Manchete de O Combate, São Paulo, 19.1.1916)<br />

Conseqüências de um caso de honra na família Junqueira<br />

Os Srs. Altino Arantes, Raphael Sampaio e Oscar Rodrigues Alves trabalham para<br />

libertar a perversa delinqüente.<br />

(Manchete de O Combate, São Paulo, 13.8.1920)<br />

(sobre o Crime de Cravinhos, em que D. Iria Junqueira, poderosa fazendeira do<br />

interior de São Paulo, é acusada como mandante do assassinato de um homem,<br />

ocorrido em maio de 1920).<br />

O caso Nenê Romano; Os autos estavam em casa do Sr. Altino Arantes.<br />

O que importa salientar é que os autos não se achavam em uma repartição pública.<br />

Estavam em casa do sr. Altino Arantes, que, assim, conspurcando o cargo que exercia,<br />

se tornava solidário com celerados e comparsa de cenas de alcova...<br />

É evidente que, depois disso, o ex-presidente do Estado não póde manter-se na atividade<br />

política. Colhido nas malhas de tamanho escândalo, falta-lhe autoridade para apresentar-se<br />

aos olhos de seus concidadãos como digno da sua confiança para o exercício de<br />

qualquer função pública. (O Combate, 31.8.1920, São Paulo)


(sobre a retomada do caso Nenê Romano, episódio acontecido em 1918: Romilda<br />

Macchiaverini, prostituta de luxo, conhecida como Nenê Romano, é atacada e<br />

ferida a navalhadas no rosto e no braço por dois capangas, a mando de Sinhazinha<br />

Junqueira, rica fazendeira de Cravinhos, por vingança amorosa. O prestígio da<br />

família da mandante do crime explica a repercussão dos fatos e o envolvimento<br />

de autoridades no caso).<br />

Muito sugestivo pelo estilo desabrido e frontal com que ataca os governantes<br />

são os dois segmentos seguintes, retirados da primeira página, espécie de editorial,<br />

de O Pirralho n. 135 (21.3.1914), tematizando os desmandos decorrentes do<br />

estado de sítio decretado por Hermes da Fonseca. É preciso lembrar que muitos<br />

dos escritores paulistas do período tiveram textos publicados nas páginas desse<br />

jornal, desde Alexandre Marcondes Machado e Cornélio Pires, mais assíduos,<br />

até Ricardo Gonçalves, Monteiro Lobato, Paulo Setúbal, dentre outros, menos<br />

freqüentes.<br />

O último crime do marechal<br />

À série enorme de crimes que o Marechal Hermes da Fonseca vem praticando por ordem<br />

do ignominioso bandido Pinheiro Machado, desde que assumiu o governo, juntou-se<br />

mais um nestes últimos dias, e esse dos mais torpes e vergonhosos, porque além de tudo<br />

foi um crime que teve a sua justificativa num decreto assinado pelo Presidente da<br />

República e referendado pelo atual ministro do interior, o inepto e imoral Herculano de<br />

Freitas.<br />

Parece que é impossível ir além, porque este governo bateu o "Record" da velhacaria e<br />

do banditismo. Encheu o Brasil de sangue e de lama, rasgou a nossa constituição,<br />

prostituiu tudo quanto havia de grande e de belo nas nossas instituições e preparou o<br />

esfacelamento da nossa nacionalidade.<br />

Na mesma página, logo abaixo, está a manchete:<br />

Governo canalha<br />

A prepotência desse miserável, que ouço chamar de Hermes da Fonseca - mas que sei<br />

que foi ilegalmente colocado no Palácio do Catete - pouco a pouco se vai estendendo<br />

aos Estados onde a vil politicagem, num moto-contínuo, ameaça a cada instante a paz e<br />

a tranqüilidade da família.<br />

É que o deputado fulano de tal ou o senador beltrano, mancomunado que vive com as<br />

baixezas emanadas do Morro da Graça, não titubeia antes de um ato de banditismo para<br />

que esse ato de heroísmo lhe sirva para promoção na política chefiada pelo ignóbil<br />

caudilho general Pente Fino.


Assim, é possível também detectar uma influência do estilo utilizado na<br />

imprensa, tão próximo à caricatura (amplificador, deformante, agressivo, conciso,<br />

incisivo), sobre a linguagem utilizada na literatura, que se vai tornando mais<br />

sintética, objetiva, simples, estilisticamente menos cuidada, mais descontraída,<br />

desabusada.<br />

A par disso, as inovações operadas com a maior automatização da vida e da<br />

cultura (reclames, fotos, cinema, revistas etc.) também levam a uma ênfase no<br />

aspecto plástico, visual, e não se pode esquecer de que a caricatura, mesmo<br />

quando construída por meio do código verbal, é uma forma de apresentação visual<br />

da personagem, mais instantânea, rápida, incisiva, talvez mais enquadrada no<br />

ritmo dinâmico que exige o modo de vida desse novo homem que se vai<br />

delineando especialmente a partir de inícios do século XX.<br />

Nessa linha, poder-se-ia ler a caricatura como um dos recursos que fazem a<br />

mediação entre dois gêneros distintos de literatura, a do século XIX, mais<br />

conservadora, que alguns já buscavam superar no começo do século, e a pós-<br />

1922, já prenunciada nesses tempos pré-modernos. Assim, a caricatura seria<br />

também expressão antecipatória, na literatura, da modernidade dos novos tempos.<br />

Alie-se a isso o caráter transgressor de que a caricatura se investe, como forma<br />

irreverente, debochada, deformadora e grotesca de apresentar os homens e a vida<br />

de uma dada sociedade. Essa forma mais libertária e lúdica de encarar a arte<br />

acarreta a queda da visão tragicizante substituída pelo grotesco, interpenetração do sério<br />

e do risível, humor basicamente ambíguo como iluminação do sentido da vida. (Carelli,<br />

1985,p.l90)<br />

No momento em que a literatura convencional e séria já esgotara suas<br />

possibilidades, a caricatura pode ter sido, dentre outros, um recurso renovador,<br />

mesmo que bastante antigo, justamente pelo caráter rebelde, demolidor, irreverente<br />

que a caracteriza.<br />

Por outro lado, a literatura desse momento é também comumente lida como<br />

pouco inovadora, forma de conservação do que se fazia nas últimas décadas do<br />

século XIX, produção estilisticamente limitada. Entretanto, o descuido que os<br />

críticos comumente condenam no estilo de Lima Barreto, ou a estilização constatada<br />

na construção de personagens dos contos regionalistas, a superficialidade<br />

da crítica presente nas sátiras, enfim, uma baixa freqüência de problematização,<br />

que é tônica geral do texto dos autores comumente rotulados pré-modernos,<br />

talvez não seja apenas deficiência, falta de recursos ou ranço passadista, mas além<br />

de se explicar como uma extensão do que faziam nos jornais, também se justifica


como uma forma de popularizar, simplificar, produzindo uma literatura mais<br />

informal.<br />

Desse modo, poder-se-ia avaliar sob um novo ângulo essa tendência à simplificação<br />

constatada, e condenada, nos escritores do pré-modernismo - de que<br />

a caricatura é também manifestação -, pois<br />

a preocupação de tornar o texto mais inteligível não deve ser considerada estranha ao<br />

fazer artístico... O texto simples pode ser um texto questionador, assim como o texto complexo<br />

pode ser um repetidor ideológico. (Paulino, 1983, p.57-8)<br />

A opção por estórias curtas de ação, pela oralidade, pela estilização de<br />

personagens, pela abordagem pitoresca de situações não deveria ser lida somente<br />

como forma de estagnação ou retrocesso, pois pode expressar também o objetivo<br />

de simplificar a literatura, tornando-a mais acessível e atraente ao leitor.<br />

O tradicionalismo de sua narrativa é, pois, funcional... Seu ponto de chegada era<br />

outro: atingir o leitor comum, e seu universo avesso a mudanças radicais. (Paulino, 1983,<br />

p.57-8)<br />

A tendência à tipificação e à caricaturização de situações e personagens<br />

observada na literatura pré-moderna também se associa ao estilo art nouveau que<br />

se dissemina nas artes plásticas e na literatura do período. Segundo José Paulo<br />

Paes, a estética "art nouveau" acentua os "traços de contorno" (1985, p.68-9),<br />

constituindo-se numa "arte por assim dizer esqueletal", em que mesmo o pendor<br />

ornamental serve "não para esconder, mas para realçar o estrutural". Essa estética<br />

definiu o perfil do pré-modernismo e se encontrava em toda parte: salas de<br />

refeições, escritórios, praças, cemitérios, ferrovias, costumes e também nas revistas<br />

{Seleta, Careta, Fon-fon, Kosmos, O Pirralho etc), evidenciando-se bem<br />

nas charges de Voltolino e J. Carlos.<br />

Não deixando de ser uma literatura algumas vezes superficial pelo excesso<br />

ornamental e pela estilização redutora, é preciso considerar-se que essa estética<br />

definida como art nouveau traz implícita também a revelação de tensões —<br />

assumia como missão, por meio da arte, aproximar ciência e técnica do mundo<br />

da natureza, como resposta ao divórcio entre artificial e natural motivado pela<br />

mecanização (Paes, 1985, p.68-9). Essa oposição auxilia, por exemplo, a compreender<br />

a oscilação entre estilização e ornamentação que caracteriza a maior<br />

parte da produção regionalista do período. Desse modo, a caricaturização presen-


te nos contos de Lobato, a tipificação encontrada nos textos de Cornélio Pires<br />

remetem a uma recusa às novas condições de vida prefiguradas, ao mesmo tempo<br />

em que buscam resgatar um equilíbrio homem-meio natural irremediavelmente<br />

perdido.<br />

A estética art nouveau, por um lado, favorece a tipificação, a estereotipia, e,<br />

por outro, dissemina uma dimensão híbrida na arte, que certamente passa pelo<br />

grotesco, e daí ao caricaturesco.<br />

É importante notar que esse hibridismo não se restringe à concepção das<br />

personagens, mas também se estende pelo tecido da linguagem, como se observa,<br />

por exemplo, no amálgama entre o dialeto caipira e a norma culta realizado por<br />

Valdomiro, ou na estilização macarrônica criada por Juó Bananére.<br />

A caricaturização de personagens, situações e instituições na literatura produzida<br />

em São Paulo, como de resto ocorre com a literatura brasileira de um modo<br />

geral no período estudado, é obviamente recurso satírico, depreciativo, desempenhando,<br />

paralelamente, uma função transgressora c libertária, se forem consideradas<br />

as inovações temáticas e estilísticas que alguns desses satiristas realizam<br />

às avessas.<br />

A caricatura na literatura do primeiro vintênio do século se liga às novas<br />

formas de produção e circulação da cultura, que determinam e exigem mudanças;<br />

portanto, expressa certa modernidade, ao mesmo tempo em que busca a popularização<br />

dessa literatura junto ao público. Constitui-se, de resto, sempre, em<br />

instrumento retórico, persuasivo, para a revelação aos leitores ora rápida e<br />

incisiva, ora sutil e alegórica, das mistificações e das contradições da sociedade<br />

contemporânea.<br />

A seguir, estudaremos isoladamente algumas caricaturas e caricaturistas, cuja<br />

significação é expressiva na literatura do período.


FIGURA 6 - Alguns tipos criados por J. Carlos (LIMA, H. História da caricatura no Brasil, v.3, p.1084-5).


FIGURA 7 - "A Senhora das Rosas", criação de J. Carlos, cujo excesso ornamental exemplifica essa face da<br />

estética art nouveau (LIMA, H. História da caricatura no Brasil, v.3, p. 1089).


NOTAS<br />

1 Maiores detalhes sobre a atividade editorial de Monteiro Lobato encontram-se em DEL FLORENTI-<br />

NO, T. A. Prosa de ficção em São Paulo: produção e consumo (1900-1920), São Paulo: Hucitec,<br />

Secretaria do Estado da Cultura, 1982; e KOSHIYAMA, A. M. Monteiro Lobato, intelectual,<br />

empresário, editor. São Paulo: Queiroz Editor, 1982.<br />

2 A respeito, são curiosas as informações presentes no artigo "Humor e política na Primeira República",<br />

de Isabel Lustosa, Revista USP, São Paulo, p.53-64. set./out./nov. 1989.<br />

3 Carta de 29.11.1920. In: A barca de Gleyre. São Paulo: Brasiliense, 1959a (Obras Completas de<br />

Monteiro Lobato, v.12, t.2), p.220-3.


3 MONTEIRO LOBATO,<br />

PALMATÓRIA DO MUNDO<br />

A controvérsia em tomo do caipirismo pode render mais.<br />

Está no ceme da cultura nacional, que é predominantemente<br />

regionalista (e caipira).<br />

... Releia o Cornélio Pires e o Monteiro Lobato.<br />

Confira como é que age o caipira ... Tem aí muito pano para mangas.<br />

Até eu gostaria de dar palpite. Ao debate, senhores.<br />

(Rezende, O. L. Enfim um bom tema. Folha de S.Paulo, 8.11.1991, p.1-2).<br />

Monteiro Lobato (1882-1948) é um escritor sobre o qual os estudiosos desenvolvem<br />

opiniões bastante distintas, muitas vezes antagônicas. Registra-se desde a<br />

louvação apaixonada ou ingênua até o desmerecimento integral de sua obra.<br />

Uma explicação possível para tamanha diversidade de posições pode estar<br />

no fato de comumente se ter como referencial para a avaliação muito mais<br />

as atitudes do homem público ou o temperamento do indivíduo, do que uma<br />

serena análise da obra do escritor. Esses desencontros são compreensíveis, porque<br />

Lobato realmente foi uma figura tão carismática e envolvente como controversa.<br />

Na produção de Lobato nos interessa sobremaneira a configuração satírica,<br />

especialmente a construção caricaturesca do universo tematizado. Esse interesse<br />

justifica o recorte do corpus: as três versões do Jeca (1914, 1924, 1947),<br />

verdadeiros marcos no gênero, e os contos reunidos em Urupês (1918), Cidades<br />

mortas (1919) e Negrinha (1920).<br />

Lobato é um caso curioso, porque a sua produção (contos, crônicas, ensaios,<br />

literatura infantil, polêmicas etc.) funciona como um verdadeiro radar, que<br />

expressa as diferentes ideologias disseminadas no tempo em que viveu.


De 1914 a 1947, Monteiro Lobato parece ter percorrido quase todas as posições<br />

ideológicas disponíveis para um intelectual de seu tempo. (Lajolo, 1983, p.101)<br />

O escritor veste a máscara das diferentes ideologias com as quais conviveu:<br />

o pessimismo determinista, herança do evolucionismo do século XIX, que vê na<br />

miséria e desalento do povo um fadário atávico a ser cumprido e cuja expressão<br />

mais significativa consta dos artigos "Velha praga" e "Urupês", publicados em<br />

O Estado de S.Paulo, em 1914; a visão higienista, segundo a qual as mazelas da<br />

nação seriam resultantes fundamentalmente do descaso com a saúde pública, o<br />

saneamento básico - é desse tempo a retomada do Jeca "higienizado", versão<br />

mais conhecida e popularizada por meio dos folhetos fartamente distribuídos pelo<br />

país em campanha do Biotônico Fontoura. Exemplificam bem essa fase do pensamento<br />

lobatiano as crônicas e artigos constantes em O problema vital (1918);<br />

a perspectiva nacional-desenvolvimentista, economicista, já na década de 1930,<br />

associada à experiência do escritor nos Estados Unidos (de 1927 a 1931, Lobato<br />

reside em Nova York, onde trabalha como adido comercial brasileiro) e responsável<br />

pelo comprometimento com a campanha do ferro e do petróleo (textos que<br />

expõem e defendem as idéias dessa fase encontram-se reunidos em O escândalo<br />

do petróleo e o ferro (1936)).<br />

Paralelamente, Lobato se identificaria com o georgismo (teorias econômicas<br />

de Henry George, economista e reformador norte-americano que viveu no século<br />

passado) - essa, segundo Cassiano Nunes, teria sido a sua opção definitiva<br />

(Zilberman, 1983, p.67-88); e se solidarizaria, circunstancialmente, com a bandeira<br />

do PCB - exemplifica essa simpatia o "Zé Brasil", versão mais conscientizada<br />

do Jeca.<br />

Revendo, mesmo que superficialmente, esse percurso, chamam a atenção de<br />

imediato a discrepância e a heterogeneidade das posições assumidas pelo escritor,<br />

além do tom dos artigos, altamente didático, e o modo de construção dos Jecas<br />

(Tatu, Tatuzinho e Zé Brasil), com traços fortes, bem marcados, eminentemente<br />

caricaturescos, o que certamente atende ao objetivo de persuadir o leitor acerca<br />

das posições defendidas ao tempo da produção dos textos.<br />

A organização das idéias, o estilo, as figuras de linguagem, os recursos utilizados<br />

são competentemente articulados para a composição de verdadeiras peças<br />

retóricas. São textos que dialogam entre si e se confrontam com textos contemporâneos<br />

à sua produção. O Jeca Tatu procura fazer o contraponto ao caboclismo,<br />

muito popular e apreciado no começo do século; o Jeca Tatuzinho é uma resposta<br />

ao Jeca Tatu, assim como o Zé Brasil é uma resposta aos dois primeiros Jecas.<br />

A seguir, detalharemos alguns aspectos da composição dos três Jecas.


CARICATURA E DOUTRINA<br />

O Jeca Tatu<br />

É muito provável que a repercussão do primeiro livro de contos de Lobato,<br />

Urupês, cuja primeira edição é de 1918, tenha sido decorrente da polêmica<br />

instaurada a partir da publicação dos dois artigos - "Velha Praga" (transcrito em<br />

60 jornais) e "Urupês", que não gratuitamente constam no final desse volume de<br />

contos. Esses textos, escritos e publicados em 1914, sem a menor dúvida<br />

contribuem para a inusitada vendagem do livro, mas a sua inserção no volume<br />

certamente se justifica também por funcionarem como uma espécie de declaração<br />

de princípios do autor, atuando como matrizes ou reiterações da concepção acerca<br />

do caipira expressa em alguns contos.<br />

Inúmeras posições se desenvolveram, fazendo o contraponto ao Jeca Tatu;<br />

uma das mais conhecidas é o artigo "Urupês e o sertanejo brasileiro", de Leônidas<br />

de Loyola (Martins, 1978, v.6, p.145); foram criados personagens-símbolos,<br />

como "Mané Chique-Chique", de Ildefonso Albano, "Juca Leão", de Rocha<br />

Pombo e em certo sentido "Juca Mulato", de Menotti del Picchia. O certo,<br />

entretanto, é que nenhuma dessas respostas alcançou sequer vagamente a popularidade<br />

atingida pelo original, até os dias de hoje bem nosso conhecido.<br />

Não é gratuita a popularidade dessa personagem. Afora as diferentes sortes<br />

de manipulação que vem sofrendo no decorrer do tempo, há alguma coisa no tom<br />

utilizado, nos traços escolhidos pelo autor para compor esse perfil, que o faz muito<br />

próximo e de fácil reconhecimento.<br />

A repercussão do Jeca Tatu é comumente ligada ao discurso de Rui Barbosa,<br />

proferido em 20 de março de 1919, por ocasião da abertura da segunda campanha<br />

civilista, no Teatro Lírico do Rio de Janeiro, em que o eminente jurista abre sua<br />

fala com a questão "Conheceis porventura o Jeca Tatu, dos Urupês, de Monteiro<br />

Lobato, o admirável escritor paulista? ..." (Barbosa, 1960, p.429); esse fato<br />

realmente parece ter contribuído para as sucessivas edições do livro. Lobato<br />

mesmo o confirma na correspondência que mantém com Rangel: "O discurso de<br />

Rui foi um pé de vento que deu nos Urupês. Não ficou um para remédio, dos sete<br />

mil!" (Lobato, 1959a, t.2, p.194). Entretanto, no momento mesmo em que Rui<br />

Barbosa proferia o discurso, Urupês já se encontrava na terceira edição. É certo<br />

que Lobato, como editor de seu primeiro livro, promoveu também algumas<br />

novidades no ramo, que auxiliariam muitíssimo na divulgação de Urupês e dos<br />

outros volumes lançados pela Gráfica c Editora Monteiro Lobato & Cia., ao tratar


o livro como mercadoria a ser consumida, despojando-o da "aura mística" que o<br />

cercava. 1<br />

Com relação ao papel inovador desempenhado pelo escritor paulista no ramo<br />

editorial, é elucidativo o depoimento de um contemporâneo:<br />

Quando Monteiro Lobato apareceu anunciando seus livros pelos jornais, foi um<br />

escândalo de grandes proporções, pois ninguém compreendia que o livro fosse uma<br />

mercadoria anunciável... Lobato veio revolucionar todo esse comércio da inteligência,<br />

mostrando, para o espanto geral, que o livro devia ser escrito e lido por toda gente, vendido<br />

em toda parte e devia circular tanto como qualquer jornal. (Travassos, 1964, p.130-2)<br />

No que se refere à relação Rui Barbosa-Urupês, há, também, uma outra face<br />

da questão a ser considerada, apontada por Gilberto Freyre, contemporâneo da<br />

publicação do livro e voraz leitor da obra: O milagre, realizado por Lobato, ao<br />

ter feito Rui Barbosa, já velho, voltar-se do alto do seu gabinete, com olhos espantados<br />

e quase de menino - menino doente, criado o tempo todo dentro de casa - para aquele<br />

Brasil áspero que os brasileiros de hoje estudam com um amor que seus avós bacharéis<br />

e doutores, quase desconheceram... Foi por obra e graça de Urupês que o maior campeão<br />

sul-americano da inocência de Dreyfus, verdadeiramente descobriu que a poucas léguas<br />

da rua São Clemente havia quem sofresse mais do que o remoto mártir do anti-semitismo<br />

europeu; sofresse de dores que o "habeas corpus" não cura, não alivia sequer. (Dantas,<br />

1982,p.239-40)<br />

A citação de Lobato no discurso de Rui pode ter sido, portanto, muito mais<br />

a consagração de um autor já razoavelmente conhecido, do que o lançamento de<br />

um escritor ignorado. É certo, todavia, que a divulgação do Jeca foi muito maior<br />

a partir da sua fixação no livro e da polêmica já não mais estritamente estética,<br />

mas agora social e política instaurada com o discurso do candidato civilista à<br />

presidência da República.<br />

O Jeca Tatu, de toda forma, favoreceu a percepção de que a visão do Brasil<br />

belle époque estava se tornando obsoleta, ao expressar verdades sobre o lado<br />

ignorado da nação (os dilemas do homem do campo, a miséria de grande parcela<br />

da população, a decadência de amplas zonas do interior de São Paulo) já intuídas<br />

mas ainda não enfrentadas e reconhecidas publicamente. Daí a sua ressonância e<br />

penetração, daí as contrárias vozes ufanistas.<br />

A gênese do Jeca<br />

Reduzir o Jeca Tatu 2 a um mero desabafo do fazendeiro insatisfeito com o<br />

mau encaminhamento de seus negócios é com certeza um engano. O Jeca muito


possivelmente registra o pensamento de um setor considerável da oligarquia<br />

paulista no início do século, com ele ressoando "toda a insatisfação dos velhos<br />

fazendeiros paulistas que, artífices da República, consideravam-se lesados pela<br />

política em vigor" (Lajolo, 1983, p.28), assim como expressa uma atitude típica<br />

do evolucionismo, aqui sob óptica pessimista, ao "atribuir às classes mais pobres<br />

- onde se localizam os mestiços - as deficiências do Brasil" (Leite, 1976, p.236).<br />

A "gestação" da personagem, entretanto, é um pouco mais complexa. Em carta<br />

endereçada a Godofredo Rangel (20.10.1914), anterior à publicação da "Velha<br />

praga" (12.11.1914), o fazendeiro amargurado pincela alguns traços constitutivos<br />

da personagem, antecipando trechos inteiros do artigo, possivelmente já pronto<br />

ou esboçado e detendo-se especialmente no percurso vital da personagem, desde<br />

a fase de "lêndea" até a fase adulta, comparado ao piolho, especialmente no que<br />

se refere ao relacionamento predatório que mantém com a natureza.<br />

Nessa carta, entretanto, o autor toca numa questão que recorrentemente aflora<br />

ao analisar-se o tratamento dispensado pelos produtores do saber às questões<br />

nacionais, especialmente na época aqui estudada - a distorção na abordagem das<br />

nossas peculiaridades, detectando um sério desvio: "... entre os olhos dos brasileiros<br />

cultos e as coisas da terra há um maldito prisma que desnatura as realidades..."<br />

-; era necessário, portanto, sacudir essa literatura "fabricada nas cidades<br />

por sujeitos que não penetram nos campos de medo dos carrapatos", tendentes<br />

sempre, com embotada visão, por comodismo, no contato com o novo cenário, a<br />

perpetuar "o velho caboclo romântico já cristalizado". Por isso, urgia retificarlhes<br />

a visão (Lobato, 1959a, t.l, p.362-5).<br />

Com essas afirmações, o escritor explicita claramente a intenção desmistificatória<br />

e polemizadora subjacente ao artigo, reiterada depois com a publicação<br />

de Urupês (23.12.1914), texto que é a retomada e a confirmação das posições<br />

firmadas no primeiro momento. Assim, o alvo visado é também o "surto caboclista",<br />

responsável por literatura local-ufanista apreciada e difundida na época,<br />

que fazia do caboclo estandarte de bandeira nacionalista, exaltado de modo<br />

pitoresco, motivo de louvação idílica, idealizadora ou, no outro extremo, personagem<br />

de anedotário ambíguo, que oscila entre a apresentação do caipira como<br />

finório e espertalhão ou como capiau tolo e ingênuo. O protótipo significativamente<br />

apontado e criticado é Cornélio Pires, possivelmente em virtude da<br />

popularidade desfrutada pelo escritor tieteense:<br />

A história de caboclismo... Aquilo foi fabricação histórica para bulir com o Cornélio<br />

Pires, que anda convencido de ter descoberto o caboclo ... O caboclo do Cornélio é uma<br />

bonita estilização - sentimental, poética, ultra-romântica, fulgurante de piadas - e rendosa.<br />

O Cornélio vive, e passa bem, ganha dinheiro gordo, com as exibições que faz do


"seu caboclo". Dá caboclo em conferências a 5 mil réis a cadeira e o público mija de<br />

tanto rir... Ora, meu Urupês veio estragar o caboclo do Cornélio - estragar o caboclismo.<br />

(Lobato, 1959a, t.2, p.50)<br />

É certo, todavia, que Cornélio era apenas o alvo mais exposto e talvez mais<br />

frágil, pois a crítica de Lobato visava a muito mais gente, incluindo-se aí Coelho<br />

Neto, Júlia Lopes, implicitamente o ufanismo nacionalista de Bilac, e mesmo<br />

Euclides da Cunha, escritor muito admirado e apreciado pelo criador do Jeca,<br />

mas que vira no sertanejo "antes de tudo um forte", enquanto para Lobato "o<br />

sertanejo era acima de tudo um fraco" (Athayde, 1948).<br />

Cornélio Pires assume a voz antagônica, respondendo por meio de artigo<br />

publicado em um jornal de São Paulo, e com um poema "P'ro Monteiro Lobato",<br />

publicado em Mixórdia (1927).<br />

O fundamental é que, sendo o resultado de um olhar patronal, desabafo do<br />

fazendeiro frustrado e insatisfeito, ou sendo uma sátira de intenção desmistificadora,<br />

ou mesmo as duas coisas juntas, o Jeca Tatu se constitui no registro<br />

hiperbólico, mas autêntico, de facetas do caipira que não deixavam de trazer sua<br />

verdade, e vale, segundo Viana Moog, mais "para a exata compreensão de nossos<br />

problemas, que todos os relatórios com que anualmente os pensadores administrativos<br />

homenageiam as traças dos arquivos" (Dantas, 1982, p.78).<br />

Curiosamente, buscando registrar um modo de vida determinado, apreendido<br />

na observação da realidade regional, local, em um momento delimitado da<br />

história de São Paulo, a personagem tem seu alcance ampliado, atingindo abrangência<br />

nacional, e se espraiando na linha do tempo. O Jeca congrega traços ainda<br />

hoje identificados em muitos brasileiros, não sendo, portanto, gratuita a constante<br />

retomada, sob diferentes roupagens, desse anti-herói, constituído em símbolo e<br />

síntese de razoável parcela da população, verdadeiro índice da sub-raça que<br />

compõe grande parte da nação.<br />

A caricatura cumpre aqui, claramente, a função de máscara que desmascara,<br />

fazendo a denúncia e a revelação de uma forma de vida negligenciada e, portanto,<br />

auxiliando no combate à "ignorância em que andamos de nós mesmos" (Lobato,<br />

1959a, t.2, p. 10). Observe-se que, se a caricatura do Jeca é inovadora no assunto<br />

que tematiza, ela o é também no modo de tratar esse assunto, pelo estilo e recursos<br />

utilizados.<br />

O limite maior que se constata nesse momento do pensamento lobatiano é o<br />

restringir-se à apresentação dos problemas, sem uma reflexão mais detida sobre<br />

suas causas e motivações profundas, o que parcialmente será superado num<br />

momento posterior.


Recursos expressivos e persuasão<br />

O Jeca Tatu ("Velha praga" e "Urupês" - Lobato, 1959i) é uma caricatura<br />

muito bem urdida do caipira que, atendendo de modo eficaz aos propósitos de<br />

seu criador, cumpre uma função satírico-depreciativa, provocadora do riso de<br />

exclusão.<br />

Como é habitual nesse gênero de composição, a caricatura aqui apóia-se<br />

sobre o rebaixamento, em aproximações e comparações Jeca-sarcoptes mutans<br />

(piolho da terra) e Jeca-porrigo decalvans (parasita do couro cabeludo), Jecasapé,<br />

numa escala sempre decrescente que identifica o satirizado por meio de<br />

traços cada vez mais depreciativos (o parasita, o vegetal), agindo à revelia da<br />

reflexão, por puro instinto de sobrevivência, como o mais desprezível dos<br />

animais. Evidencia-se a reificação do satirizado, na aproximação agregado-arapuca<br />

("E de vê-lo surgir a um sítio novo para nele armar a sua arapuca de<br />

agregado"), o que mais ainda contribui para o processo de desumanização da<br />

personagem. O contorno da caricatura nessas passagens, obviamente, se faz por<br />

similaridade.<br />

Paralelamente enfatiza-se a relação homem-natureza, retratando de modo<br />

hiperbólico o comportamento predatório<br />

começam as requisições. Com a picapau o caboclo limpa a floresta das aves incautas ...<br />

Depois ataca a floresta. Roça e derruba, não perdoando o mais belo pau,<br />

o hábito da queimada ("a queimada é o grande espetáculo do ano, supremo regalo<br />

dos olhos e dos ouvidos"). O rebaixamento aqui se realiza na linha da contigiiidade:<br />

a negatividade do caboclo contamina o universo circundante: "O caboclo<br />

é uma quantidade negativa. Tala cincoenta alqueires de terra para extrair dele o<br />

com que passar fome e frio durante o ano" - espraiando-se a atividade predatória<br />

com as labaredas do fogo em seu percurso de esterilização da terra. Há uma intensa<br />

carga emotiva na descrição da ação do fogo, que "engole" a mata, "invade"<br />

a floresta, "caminha" sem tréguas, "galga" montes, "é" traiçoeiro, imputando-selhe<br />

vida por meio das prosopopéias.<br />

O fogo tem vida própria e uma malícia e malignidade humanas: ele "esgueira-se",<br />

"ladeia o obstáculo", "é implacável", "amordaçado por uma chuva repentina,<br />

alapa-se nas piúcas, quieto e invisível", cumpre uma "faina carbonizante".<br />

Realiza-se aqui um processo de contaminação, num efeito extensivo, uma espécie<br />

de prolongamento cm que se identifica aquele que faz a queimada, o caipira, ao<br />

próprio fogo em sua ação destrutiva, o que contribui para uma intensa corrosão<br />

da imagem do caricaturado, que se estorce fulminado e reduzido a cinzas. Neste


caso o narrador percorre o processo inverso ao usual na sátira: não se trata da<br />

zoomorfização ou reificação do humano, mas da antropomorfização do inanimado,<br />

que, identificando-se ao satirizado, contamina e desgasta sua imagem.<br />

No texto encontra-se também a quebra de expectativas, recurso comum na<br />

literatura cômica: "Barreada a casa, pendurado o santo, está lavrada..." não a terra,<br />

como era de esperar, mas a "sentença de morte daquela paragem", o que também<br />

contribui para ampliar a negatividade na imagem projetada do caricaturado. O<br />

caboclo cisma à porta da cabana "não devaneios líricos, mas jeitos de transgredir<br />

as posturas com a responsabilidade a salvo".<br />

A descrição dos hábitos da personagem (a caça, a troca de produtos, a<br />

construção da moradia), de seu físico e comportamento é bastante direta, não<br />

restando espaço para a alusão ou a ironia; há um jeito frontal e acintoso de<br />

apresentar o caipira sem maior sutileza, o que amplia o caráter retórico do texto,<br />

com a superposição da persuasão à estética.<br />

Reiterando esse caráter persuasivo, mais evidente nas crônicas e artigos<br />

jornalísticos do escritor, mas também presente nos contos, há interferências<br />

explícitas do narrador: ("Se a natureza fosse capaz de criar coisas tão feias"); a<br />

par da carga depreciativa dos verbos, definidores da ação da personagem ("o<br />

caboclo limpa a floresta das aves incautas, o caboclo ataca a mata") e da<br />

associação arrasadora entre certos adjetivos e substantivos, nunca gratuitamente<br />

aproximados (a "insigne preguiça", a "velha malignidade").<br />

Ao final, o escritor reitera o conteúdo expresso no desenvolvimento da<br />

crônica - a afirmação do caboclo como "quantidade negativa", reduzido a nada<br />

- após a cruzada nômade, após a passagem do caipira, só resta o sapé (que antes<br />

já se encontrava ali) e mais nada que ateste sua presença.<br />

Urupês se apóia na caracterização da cultura caipira a partir dos mínimos<br />

vitais, traço típico de sua cultura de subsistência: "Calcula as sementeiras pelo<br />

máximo de sua resistência às privações" (atente-se à carga expressiva da antítese<br />

máximo de resistência/privações); "Dando para passar fome, sem virem a morrer<br />

disso, ele, a mulher e o cachorro - está tudo muito bem". Explora-se aqui até<br />

mesmo a economia de reações da personagem diante da vida, o que deixa entrever<br />

um processo de interiorização da apatia exterior:<br />

Nada o esperta. Nenhuma ferrotoada o põe de pé. Social, como individualmente, em<br />

todos os atos da vida, Jeca, antes de agir, acocora-se ... seu grande cuidado é espremer<br />

todas as conseqüências da lei do menor esforço - e nisto vai longe.<br />

A apatia se reitera também na minuciosa descrição da choça que habita, dos<br />

trastes que usa, da alimentação precária: "Da terra só quer a mandioca, o milho


e a cana", do hábito das barganhas, do "mobiliário cerebral do Jeca", que "à parte<br />

o suculento recheio de superstições, vale o do casebre", da medicina elementar,<br />

que "corre parelhas com o civismo e a mobília — em qualidade", das crendices,<br />

da arte rústica, encerrando-se a representação do caipira com a fixação da marca<br />

da inércia, que se radicaliza na identificação com o vegetal (urupês), sem vida<br />

própria e discernimento, e pior que tudo, vegetal parasita: "... o caboclo é o<br />

sombrio Urupê de pau podre, a modorrar silencioso no recesso das grotas".<br />

Nos dois textos há um processo de dissecção da personagem, e, por extensão<br />

de sua cultura, dos traços físicos ao substrato psíquico, dos hábitos às reações,<br />

recurso também típico da literatura satírica, tudo sempre convergindo para a<br />

definição do Jeca e de sua experiência alicerçada nos mínimos vitais - o Jeca é<br />

o "sacerdote da grande lei do menor esforço". A imagem projetada não é<br />

inverídica, como claramente se confirma, por exemplo, no clássico estudo de<br />

Antonio Candido acerca da cultura caipira, no qual são apresentados os traços<br />

constitutivos desse universo (o nomadismo, o lazer, a alimentação precária, o<br />

sistema de trabalho esparso, a violência, a inadaptação a certas condições de vida)<br />

associando-os justamente aos mínimos vitais, ou seja, representando o universo<br />

caipira como<br />

Cultura ligada a formas de sociabilidade e de subsistência que se apoiavam, por<br />

assim dizer, em soluções mínimas, apenas suficientes para manter a vida dos indivíduos<br />

e a coesão dos bairros. (Candido, 1977, p.78)<br />

Essa questão é fundamental porque evidencia o papel revelador que o Jeca<br />

cumpriu no tempo de sua divulgação, quando o tom dominante ao se tratar do<br />

universo caipira era o da idealização e do pitoresco, resultantes de uma abordagem<br />

superficial e equivocada do assunto. Sem a menor dúvida, o Jeca Tatu fixa<br />

uma imagem bastante verdadeira do caipira, tornada injusta à medida que apenas<br />

constata fatos, sem buscar a causalidade profunda da imagem projetada.<br />

De resto, o sucesso do Jeca Tatu e a sua permanência no imaginário popular<br />

devem-se em grande parte justamente ao fato de ser ele uma caricatura: delineada<br />

em grossos e rápidos traços, de forma sintética e incisiva, superficial, grotesca e<br />

extremamente plástica, visual. Correspondendo à economia que rege a vida do<br />

Jeca, o seu criador construiu uma caricatura muito popular, com o mínimo de<br />

traços necessários, falando à economia de memória do povo, que não decora uma<br />

página, uma frase, mas decora o nome de uma personagem, especialmente<br />

quando humorística (Grieco, 1981, p.l88).<br />

O alcance da imagem projetada é ampliado pelo talentoso amálgama entre<br />

comicidade e tristeza. É exatamente como caricatura e porque uma caricatura que


essa sátira do caipira realiza simultaneamente a destruição, através da dessacralização,<br />

da desmistificação e a construção, ao revelar, desnudando aos leitores,<br />

uma das faces negadas da nação.<br />

0 Jeca Tatuzinho<br />

Ao apresentar a quarta edição de Urupês, em 1919, com o texto "Uma<br />

explicação desnecessária", Monteiro Lobato faz uma revisão de posição anterior<br />

sobre o Jeca; reiterando a veracidade da personagem, mas penitenciando-se,<br />

procura apontar responsáveis para o constatado:<br />

Cumpre-me, todavia, implorar perdão ao pobre Jeca.<br />

Eu ignorava que era assim, meu caro Tatu, por motivo de doenças tremendas. Está<br />

provado que tem no sangue e nas tripas um jardim zoológico da pior espécie. É essa<br />

bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte.<br />

Tens culpa disso? Claro que não. Assim, é com piedade infinita que te encara hoje<br />

o ignorantão que outrora só via em ti mamparra e ruindade.<br />

Perdoa-me, pois, pobre opilado, e crê no que te digo ao ouvido: és tudo isso que eu<br />

disse, sem tirar uma vírgula, mas ainda és a melhor coisa que há no país. Os outros, que<br />

falam francês, dançam o tango, pitam havanas, e, senhores de tudo, te mantêm nessa<br />

geena dolorosa, para que possam a seu salvo viver vida folgada à custa do teu penoso<br />

trabalho, esses, caro Jeca, têm na alma todas as verminoses que tu só tens no corpo.<br />

Doente por doente, antes como tu, doente só do corpo. (Lobato, 1944)<br />

A visão da questão social expressa nessa autocrítica claramente se associa à<br />

perspectiva higienista já muito disseminada na época, consistindo, em traços<br />

gerais, na busca de explicações e soluções para os problemas nacionais com base<br />

nas deficiências da saúde pública.<br />

Essa é uma das linhas de força da campanha pela regeneração nacional, que<br />

pedia o voto secreto, revitalização das instituições, mudanças nos costumes, como<br />

reação ao desencanto e à desilusão com a república ("Esta não é a República que<br />

queremos"), ao constatar-se que com o novo regime havia se concretizado muito<br />

pouco ou muito menos do que o idealizado. O país continuava atrasado, presa da<br />

dominação atrabiliária em proveito de grupos oligárquicos que insistiam em<br />

ignorar os magnos e crônicos problemas de interesse popular, também em nome<br />

dos quais a propaganda republicana se fizera. Passados trinta anos da queda do<br />

Império, a elite dominante continuava obstinadamente aferrada aos interesses de<br />

momento, com uma miopia imediatista que a impedia de enxergar pouco adiante,<br />

e desse modo a cegava em relação a seus próprios interesses. É certo que a questão<br />

social já surgira como palavra de ordem desde a campanha de Rui Barbosa, em<br />

1919, mas


Era menos fruto de reivindicações operárias postas em bandeiras de contestação e<br />

mais um prudente cuidado das elites em acomodá-la e dar-lhe um sentido. (Casalecchi,<br />

1987, p.244)<br />

Como se observa, nada mudara de Campos Sales - que dizia, em 1896, que<br />

"uma boa polícia é condição de um bom governo" - a Washington Luís — em<br />

1920, para quem o "estado de uma sociedade é, antes de tudo, uma questão que<br />

interessa mais à ordem pública que à ordem social" (Casalecchi, 1987, p.230).<br />

A perspectiva higienista e o enaltecimento da educação como fatores potencialmente<br />

responsáveis por transformações necessárias, alicerçando-se na inspiração<br />

dos ideais liberais europeus, constituía-se, entretanto, num engano, ao tratar<br />

como causas o que era mera conseqüência.<br />

É desse período o livro Problema vital, publicado em 1918, que congrega<br />

artigos sobre diferentes temas ligados à saúde pública e procura explicações e<br />

responsabilidades para as condições de miséria reinantes; nesses textos, de tom<br />

candente c incendiário, Lobato chegou a propor que se entregasse a direção do<br />

país a higienistas e engenheiros.<br />

Foi depois incluído nesse volume um artigo de 1924, que faz uma retomada<br />

também caricaturesca do Jeca Tatu, agora higienizado, e ficou bastante conhecida<br />

- mais popular ainda que o Jeca de 1914 - como Jeca Tatuzinho. O diminutivo<br />

tanto expressa certa afetividade - segundo Marisa Lajolo, essa versão do Jeca é<br />

a que se fixou no coração do povo (Lajolo, 1983) - quanto pode associar-se ao<br />

paternalismo embutido nessa retomada, assim como ainda se justifica pelo<br />

reduzido tamanho do folheto produzido como propaganda para o Laboratório<br />

Fontoura, e amplamente distribuído por todo o território nacional. Em fins da<br />

década de 1930, segundo o próprio autor declara em entrevista, já haviam sido<br />

impressos cerca de 6 milhões e 15 mil exemplares (Peixoto, 1971, p.74).<br />

Nos textos constantes dos folhetos distribuídos pelo Laboratório Fontoura<br />

são incorporadas ilustrações bastante sugestivas e informações de divulgação do<br />

produto comercial propagandeado: a fazenda do Jeca se chama "Fazenda Biotônico",<br />

onde a personagem já recuperada monta postos de "Maleitosan" e "Ankilostomina",<br />

aparecendo até o "Liqüida-Insetos chamado Detefon".<br />

Como texto de propaganda, não se dissimula o intuito persuasivo, a preocupação<br />

em convencer o leitor: o tom é didático, professoral, a linguagem é<br />

extremamente simples; os parágrafos são curtos, os diálogos auxiliam na fluência<br />

da narrativa; as figuras de linguagem estão praticamente ausentes na urdidura do<br />

texto. Quanto à concepção, a personagem tem um perfil caricaturesco: é também<br />

hiperbólica, marcada pela ampliação, risível, superficial, sofrendo radical e


inverossímil transformação operada pelo remédio, ministrado ao se detectar a<br />

verminose:<br />

Jeca, que era um medroso, virou valente. Não tinha mais medo de nada, nem de<br />

onça! Uma vez, ao entrar no mato, ouviu um miado estranho.<br />

- Onça! exclamou ele. É onça e eu aqui sem nem uma faca! ... Mas não perdeu a<br />

coragem. Esperou a onça de pé firme. Quando a fera o atacou, ele ferrou-lhe tamanho<br />

murro na cara, que a bicha rolou no chão, tonta. Jeca avançou de novo, agarrou-a pelo<br />

pescoço e estrangulou-a.<br />

- Conheceu, papuda? Você pensa então que está lidando com algum pinguço<br />

opilado? Fique sabendo que tomei remédio do bom, e uso botina ringideira...<br />

A companheira da onça, ao ouvir tais palavras, não quis saber de histórias - azulou!<br />

Dizem que até hoje está correndo... (Lobato, 1959e, p.335)<br />

A composição esquemática e superficial da caricatura nesse caso se adapta<br />

com perfeição ao caráter propagandístico do texto, fixando-se fortemente na<br />

memória e na simpatia popular.<br />

0 Zé Brasil<br />

Em 1947 nasce o Zé Brasil, tendo ainda como ponto de partida o Jeca Tatu,<br />

resgatado, entretanto, sob perspectiva antagônica. Expressa o apoio circunstancial<br />

devotado a Luiz Carlos Prestes, 3 enfatizando a sua imagem de "salvador" e<br />

cavaleiro da esperança:<br />

- Não é assim, Zé. Apareceu um homem que pensa em você, que por causa de você<br />

já foi condenado pela lei desses ricos que mandam em tudo - e passou nove anos num<br />

cárcere.<br />

- Quem é esse homem?<br />

- Luiz Carlos Prestes... (Lobato, 1959c, p.319)<br />

O tom do artigo é semelhante ao do Jeca Tatuzinho: altamente persuasivo,<br />

esquemático, didático. A freqüência dos diálogos solidifica também aqui o<br />

doutrinarismo do texto. Vale-se o autor, bem menos, todavia, da construção<br />

caricaturesca da personagem central; aqui o teor do discurso se modifica. O Zé<br />

Brasil é mais sombrio e triste, e como antagonistas enfrenta não só o amarelão,<br />

mas também a saúva, a falta de recursos e o coronel Tatuíra, componentes<br />

crônicos do Brasil tradicional. O novo Jeca não é mais o predador dos recursos<br />

naturais ou um tipo apático, mas tem potencial para enfrentar oponentes muito<br />

fortes.<br />

O imigrante não é mais o contraponto utilizado para rebaixar, nem é o modelo<br />

bem-sucedido a ser imitado, mas aqui o autor apenas evidencia o tratamento


diferenciado dispensado pelo governo ao estrangeiro, respaldado por algumas<br />

garantias, enquanto o natural da terra, desprotegido da sorte e do governo,<br />

sujeita-se à ambição dos Tatuíras.<br />

Nesta versão do Jeca predomina o tom melancólico, está ausente o riso e o<br />

delineamento grotesco. O tom é reivindicativo, modifícando-se apenas quando<br />

apresenta de modo messiânico a figura de Prestes como solução para os problemas<br />

do homem do campo.<br />

Este é o Jeca menos popular, o que em parte se deve à proscrição e à<br />

perseguição do Partido Comunista e de Luiz Carlos Prestes, com a apreensão dos<br />

panfletos que narram a história do Zé Brasil, divulgada em edições clandestinas.<br />

Mas talvez a própria ausência da configuração risível, que imputa força à<br />

personagem caricaturesca, faça desse Jeca uma figura muito mais fosca, despida<br />

do brilho, do colorido e, por que não dizer, do encanto dos outros dois.<br />

Um paralelo<br />

Os três Jecas são imagens fortemente engajadas e refletem um percurso<br />

ideológico, registrando transformações na visão de mundo de seu criador e não<br />

deixando de expressar certa gradação qualitativa: a primeira personagem é<br />

apresentada tendo como traço básico a negatividade, a apatia - é um derrotado,<br />

responsabilizado por sua sorte social; o segundo é inicialmente um perdedor,<br />

recuperado depois pela cura dos males físicos e pelos cuidados com a higiene,<br />

coroando-se a vitória do Jeca Tatuzinho com a sua inserção no esquema produtivo<br />

e o enquadramento nas solicitações do capital: é um vencedor porque torna-se<br />

um fazendeiro bem-sucedido; o terceiro poderá ser um derrotado, condicionando-se<br />

sua recuperação à tomada de consciência (ainda falseada porque a consciência<br />

aqui ainda reflete uma perspectiva messiânica), mas de toda forma<br />

alterando-se o foco de visão do pessoal, individual, para o coletivo, resultado da<br />

infiltração de um ponto de vista socializante e de um deslocamento do terreno<br />

predominantemente material para o das idéias.<br />

Lobato passa da fase ideológica, de filiação determinista, cuja explicação<br />

para a vida brasileira é psicológica ou racial, para a explicação cientificista,<br />

até chegar à explicação econômica, resultante do entusiasmo gerado pelo contato<br />

com o enorme progresso, a intensa industrialização experimentados nos<br />

EUA, claramente expressa na campanha do petróleo e do ferro, o que não<br />

descarta de permeio a profissão de fé socialista ou humanitária propalada já<br />

no fim da vida. 4


Os oponentes a serem enfrentados pelas personagens também refletem as<br />

transformações do percurso: no primeiro momento há males e vícios atávicos (a<br />

preguiça, a inércia) e insuperáveis; no segundo momento o Jeca Tatuzinho se<br />

confronta com a necessidade de enfrentar e transformar condições precárias de<br />

existência, que não dependem apenas de sua vontade. Nesse período já se<br />

vislumbram vetores externos ao Jeca como responsáveis pela má sorte da personagem,<br />

apontando-se soluções ainda parciais; a óptica predominante aqui é<br />

paternalista. No terceiro momento as personagens, mais do que caricaturas, são<br />

símbolos de segmentos antagônicos numa ordem social que deve necessariamente<br />

ser transformada; há uma definição clara do oponente, o coronel Tatuíra,<br />

poderoso, ambicioso, insaciável, que deve ser enfrentado por Zé Brasil, de modo<br />

coletivo, organizado, sendo a consciência e o conhecimento os vetores da<br />

transformação.<br />

Vocês são a maioria. Vocês são os milhões; os Tatuíras não passam de centenas. Se<br />

sendo tão poucos os Tatuíras dominam e exploram a vocês que são milhões, isso vem<br />

duma coisa só: falta de conhecimento por parte de vocês. É que vocês não sabem! E o<br />

remédio é um só: procurar saber. (Lobato, 1959c, p.334-5)<br />

O Jeca de 1914 é matriz não apenas dos contos, escritos a maior parte em<br />

primeira versão em período próximo, mas também dos outros dois Jecas. No<br />

confronto entre o Jeca Tatu e o Jeca Tatuzinho, já se observa um desfibramento<br />

da personagem, que perde em brilho e intensidade expressiva, perda mais<br />

acentuada no Zé Brasil. Isso ocorre também por ser o primeiro um texto bem<br />

cuidado, de estilo elaborado, literário mesmo, o que auxilia na sua eficácia<br />

retórica, sendo mais convincente e afetando mais incisivamente a opinião do<br />

receptor. Isso justifica a ênfase aqui dada à matriz, a nosso ver, muito mais<br />

significativa.<br />

O primeiro Jeca é uma caricatura composta com recursos comuns no gênero<br />

satírico, e por isso é tão incisivo; o segundo, não sendo tão risível ou grotesco,<br />

comparativamente ao primeiro perde cm ênfase - seu objetivo é primeiramente<br />

fazer propaganda, vender o produto e não crítica social. No terceiro texto, mais<br />

sisudo, panfletário, dogmático, estão praticamente ausentes o humor, a ampliação,<br />

a deformação, característicos da concepção da caricatura.<br />

A opção pela caricatura como construção de personagens e situações, até<br />

mesmo em textos que não são estritamente literários, deve-se ao efeito comunicativo<br />

visado, procurando atingir um público tão mais numeroso quanto possível.<br />

A busca de um discurso mais popular, nesse caso, é resultante do enquadramento<br />

desses textos como produção do publicista ("alguém que discute temas de


evidente interesse coletivo"), visando a um tipo bem amplo de audiência e,<br />

portanto, segundo Merquior, utilizando uma linguagem que sistematicamente se<br />

articula para atingir o grande público, e conseqüentemente evita o hermetismo,<br />

a prolixidade, um maior aprofundamento das questões (Zilberman, 1983, p.l3),<br />

sendo a estilização - satírica, cômica ou "séria", caricaturesca ou tipificadora -<br />

utilizada na concepção dos três Jecas, mais conveniente e propícia aos objetivos<br />

persuasivos dos três textos.<br />

JECA TATU, visto por Osvaldo e considerado por Monteiro Lobato a melhor encarnação do seu famoso<br />

personagem.<br />

Capa do D. Quixote(18.11.1925).


DEPOIS, O DILÚVIO...<br />

Jeca - E quando o meu dinheiro cabá, seu doutô?<br />

Carlos Sampaio - O seu já acabou. Este é emprestado.<br />

J. Carlos. O malho (29.4.1922).<br />

(A caricatura alude às despesas com o desmonte do Morro do Castelo, nos preparativos para as grandes festas<br />

do Centenário da Independência. Carlos Sampaio era o Prefeito do Distrito Federal, no governo de Epitácio.)<br />

FIGURAS 8 e 9 - Algumas versões do Jeca Tatu constantemente retomado pelos caricaturistas:<br />

(LIMA, H. História da caricatura no Brasil, v.3 e 4).<br />

A CARICATURA NOS CONTOS<br />

Monteiro Lobato, como grande parte dos homens de pensamento da Primeira<br />

República, é um escritor francamente dividido entre o apelo do passado e o anseio


pelo novo. A fatura dos contos, o estilo empregado, a concepção de personagens<br />

refletem em grande parte esse embate.<br />

O apelo passadista é responsável pelo "ranço camiliano", recorrentemente<br />

apontado pelos críticos como traço característico de seu estilo, por uma expressão<br />

um tanto amarrada, lusitanizante - certamente resultado do contato freqüente com<br />

a literatura de autores portugueses: Fialho d'Almeida, Camilo Castelo Branco<br />

(admirado com fervor), Eça de Queirós - que soa forçada especialmente ao ser<br />

confrontada com as inovações registradas no tratamento dos assuntos. A busca<br />

do novo se expressa numa linguagem pouco usual para a época: a frase vincada<br />

de brasileirismos e regionalismos, o tom direto e incisivo, um jeito "mal comportado"<br />

e irreverente de falar das coisas, metáforas inusitadas, aproximações<br />

discrepantes de substantivos e adjetivos não encontrados juntos usualmente, um<br />

estilo mais próximo ao coloquial e à distensão, enfim, a opção pelo descarte da<br />

prosa ornamental, cheia de atavios e torneios verbais, resquícios da estética art<br />

nouveau, ainda tão apreciada na época.<br />

O crítico Antonio Candido tem razão quando chama a atenção para o fato de<br />

o escritor não se ter apercebido de que não bastava para uma mais abrangente<br />

renovação na literatura apenas a novidade do assunto, mas era imprescindível que<br />

esta se fizesse acompanhar de uma ruptura também formal. O torneio alambicado<br />

da frase lobatiana realmente impõe alguns limites a uma prosa que se queria tão<br />

radicalmente nova: "gesto uma obra literária, Rangel, que, realizada, será algo<br />

nuevo neste país" (Lobato, 1959a, t.l, p.362). Entretanto, parece indiscutível o<br />

revigoramento para a literatura da época que representou o lançamento de<br />

Urupês, facilmente constatado na leitura da crítica contemporânea à publicação<br />

(Agripino Grieco, Alceu Amoroso Lima, Sud Mennucci etc.), que evidencia o<br />

entusiasmo com que foi recebida a obra.<br />

A filiação naturalista do escritor<br />

Minha literatura não é de imaginação - é pensamento descritivo; não cria - copia<br />

do natural... Quando escrevo, pinto menos mal do que com o pincel. Copista, portanto,<br />

e só. (Lobato, 1959a, t.l, p.315)<br />

no que se refere à representação do universo tematizado à sua concepção<br />

mimética de literatura é algo novo somente porque expresso numa linguagem<br />

pouco usual, bem diferente da utilizada pelos bacharéis quando falavam de sua<br />

terra, mais clara, direta, incisiva, despojada. Restrições também se podem fazer<br />

a um certo tom patético que atravessa a fatura de alguns contos ("O estigma",<br />

"Colcha de retalhos", "Bucólica"), ou ao fundo excessivamente trágico, beirando<br />

o sinistro, de um conto como "Bocatorta" ou "O mata-pau".


No que diz respeito ao conto "Bocatorta" é preciso notar que essa configuração<br />

grotesca — permeada pelo detalhamento sinistro que pode identificá-lo à<br />

estética naturalista pela reprodução tão intensa da personagem desprezível, até<br />

atingir a distorção -, compondo um cenário tétrico de pesadelo, acaba por<br />

aproximar o texto ao tratamento expressionista.<br />

Resta saber se tanto a representação mimética do assunto, quanto o patético<br />

e um certo gênero de tragicidade um tanto forçada espraiados no interior de alguns<br />

contos, especialmente os reunidos em Urupês, não se enquadrariam - programaticamente<br />

expressos naquela língua viva, ágil, nervosa - numa opção mais<br />

popular de literatura, 5 visando atingir e ser consumida por uma parcela maior<br />

que a do parco público ledor do momento. É certo que a grande maioria da<br />

população era composta de analfabetos e, portanto, distanciada da literatura;<br />

entretanto, havia uma camada média (pouco culta, pouco ilustrada) dessa<br />

minoria de alfabetizados, que poderia ser conquistada por uma literatura mais<br />

fácil, convencional.<br />

A associação entre resquícios passadistas e novidades, evidente nos textos<br />

de Monteiro Lobato, pode não ser, portanto, apenas limitação de escritor moldado<br />

pelas acadêmicas propostas estéticas vigentes em fins do século XIX; é possível<br />

também interpretá-la como uma opção de quem queria desfazer a literatura de<br />

sua aura circunspecta, território canonizado, lançando-a nas ruas, objeto de<br />

consumo, mas sem muitos excessos experimentais, com a moderação necessária<br />

à aceitação por uma parcela mais ampla do público, um tanto arredia àquela<br />

literatura cristalizada, conservadora, bacharelesca, afetada, assim como o seria<br />

aos estranhos modismos vanguardeiros. Significaria, portanto, uma concessão<br />

intencional ao gosto e à expectativa desse público novo (a campanha de alfabetização<br />

em massa amplia a faixa de potenciais leitores) a ser conquistado.<br />

Fábio Lucas chama a atenção para o fato de Lobato, nas narrativas "apelar<br />

para truques de fácil efeito" (como é o caso da caricatura, do gracejo, ou do<br />

patético de cenas melodramáticas), por meio de "uma linguagem menos rígida e<br />

convencional", o que expressaria "uma consciência da palavra como autêntico<br />

veículo de comunicação, ao invés de mera exibição de louçanias e artifícios<br />

verbais" (Lucas, 1989, p.l 16).<br />

A popularidade alcançada por Urupês (nenhum livro de contos até então tinha<br />

atingido o seu índice de vendagem) evidencia o sucesso da proposta, permitindo<br />

vislumbrar no texto do escritor uma modernidade muito maior do que se supõe,<br />

inclusive quando "fixa a aceitação do gênero na vontade popular" (Lucas, 1989,<br />

p.72). Jorge Amado também enfatiza a importância do papel desempenhado por<br />

Lobato para a popularização do conto (Dantas, 1982, p.55-6).


O sucesso desse primeiro livro, e também dos seguintes, não se deve,<br />

portanto, apenas às inovações operadas no mercado livreiro por Lobato-editor ou<br />

à popularidade alcançada sob o influxo do discurso de Rui Barbosa. Não negligenciando<br />

o papel dessas forças propulsoras, há que se considerar a novidade<br />

realizada pelo escritor ao "simplificar o texto". Afinal, o próprio Lobato afirma:<br />

"o certo em literatura é escrever com o mínimo possível de literatura" (Lobato,<br />

1959a, t.2,p.339).<br />

O mesmo empenho em "popularizar" a literatura pode ser observado em<br />

outros escritores contemporâneos de Lobato, e da mesma forma relegados, por<br />

circunstâncias externas à sua produção, também afetados pela "estética de<br />

exclusão" empreendida pelo Modernismo (Lucas, 1989, p.71); é o que ocorre<br />

também, por exemplo, com Lima Barreto, Simões Lopes Neto, Valdomiro<br />

Silveira, cuja reavaliação e conseqüente revalorização é razoavelmente recente.<br />

A CARICATURA COMO RECURSO PARA<br />

UMA LITERATURA MAIS POPULAR<br />

A configuração caricaturesca que marca considerável parcela das personagens<br />

lobatianas resulta em grande parte da opção, do empenho sistemático em<br />

simplificar o texto; 6 não reflete, portanto, apenas dificuldade em delinear personagens<br />

densas, explorando-se aspectos de uma psicologia mais rica e profunda.<br />

Apóia-se especialmente numa almejada empatia com o gosto popular — que<br />

obriga a buscar o mais simples, a evitar o complexo - e numa forte preocupação<br />

corretiva, exemplar, além, logicamente, do desenvolvimento de uma função<br />

também expressiva, estética.<br />

No que se refere à preocupação com uma maior popularização da literatura,<br />

parece evidente que a prática efetivada nos diferentes ramos de atividade aos<br />

quais o escritor se dedicou sempre converge para esse fim: a atuação como editor<br />

(sistema de vendas por consignação nos mais retirados rincões do país, preocupação<br />

reiteradamente expressa com o preço da mercadoria, com a aparência<br />

necessariamente atraente do produto, chegando mesmo a referir-se à necessidade<br />

de títulos mais sugestivos para as obras, assumindo o tratamento do livro como<br />

produto comercial); o investimento no público infantil, formando muitas e muitas<br />

gerações de apaixonados pela literatura; a produção do cronista e mesmo do<br />

panfletário doutrinador dos artigos jornalísticos.<br />

A correspondência do autor, especialmente a mantida por quarenta anos com<br />

o amigo Godofredo Rangel, é o mais irrefutável testemunho dessa quase que


obsessiva preocupação com uma maior e melhor divulgação e distribuição da produção<br />

literária, reivindicando sempre a necessária popularização do texto, como<br />

produto a ser vendido, mas também como veículo de idéias a serem propagadas e<br />

difundidas, numa linguagem agradável e compreensível. Daí, programática e intencionalmente,<br />

numa atitude militante, muitos dos atos, quase todas as intenções.<br />

A par disso, como o próprio escritor explicita em artigo antológico, a<br />

caricatura é "maldade velha... um meio de matar às claras, matar moralmente, já<br />

se vê ...", vendo o hábito muito nosso de rir uns dos outros como uma faceta da<br />

"higiene humana". A caricatura é, portanto, para o escritor, indissociada da sátira,<br />

forma de punição, de assepsia social e moral, um corretivo, "gênero de primeira<br />

necessidade, indispensável ao fígado da civilização" (Lobato, 1959d, p.7). O<br />

escritor atribui à caricatura um grande potencial de transformação, constituindose<br />

também numa significativa expressão da alma nacional, como uma espécie de<br />

resumo ou síntese do modo de pensar coletivo.<br />

A caricatura nos contos de Lobato também desempenha às vezes apenas<br />

função documental, atuando como recurso, para registrar hábitos, valores, o modo<br />

de vida e o pensamento de setores da população, sem uma preocupação crítica<br />

mais explícita. O autor de Urupês a valoriza também como requisito estético -<br />

sempre associado à necessária receptividade do público -, especialmente pelo<br />

apelo visual imprescindível à concepção desse gênero de personagens; essa<br />

proposta é evidente, por exemplo, quando tece considerações acerca da obra de<br />

Menotti del Picchia: "Flama e argila não é livro vulgar, mas não fixa tipos. Li-o<br />

e conservo nomes na cabeça, mas 'não vejo' as criaturas. Tem tido crítica ótima,<br />

mas o Menotti me disse que se vende pouco" (Lobato, 1959a, t.2, p.216).<br />

Assim, a caricatura na produção do criador do Jeca Tatu cumpre distintas<br />

funções, e dessa forma se configura de diferentes modos: pode apontar o desvio,<br />

a distorção a ser evitada, sendo aí recurso satírico, corretivo, exemplar; pode<br />

apenas expressar um modo de ser ou de viver, aproximando-se do simples registro,<br />

assim como pode ser também recurso estético para a fixação de personagens.<br />

As três funções convergem para a concessão ao gosto médio do receptor, formas<br />

de fácil aproximação, mas não se pode restringir sua significação apenas a isso,<br />

pois uma observação mais detida também aponta para um papel revelador, jeito<br />

provocativo de instigar à reflexão, visando ao conhecimento.<br />

Curiosamente, mirando o objeto desfocado, deformado pela pena do escritor,<br />

mesmo o mais incauto leitor intui que algo estranho se passa ao seu redor. E por<br />

meio dessa escrita dissonante, distorciva, de desagregação, evita-se o "prisma<br />

que desnatura as realidades" (Lobato, 1959a, t.l, p.362), forma de burlar a<br />

ignorância das questões nacionais.


Temas<br />

O espaço que delineia os contos de Monteiro Lobato é o interior do Estado<br />

de São Paulo; são especialmente as "cidades mortas" e decadentes do Vale do<br />

Paraíba, por onde o café já passara, e não as zonas novas, as prósperas regiões<br />

do nordeste e oeste do estado, cobiçados e promissores territórios de futuro e<br />

riqueza. Por isso, nos contos de Lobato, o tempo é moroso e quieto, a rotina não<br />

faz concessões, tudo é marasmo e abandono.<br />

"Oblivion" e "Itaoca" são protótipos baseados em Areias, Bananal, Taubaté,<br />

Pindamonhangaba, Guaratinguetá, nos primeiros decênios do século XX. A<br />

apresentação da cidade nos contos já é uma caricatura, que sintetiza e abrange o<br />

que há de mais característico nesses vilarejos:<br />

A cidadezinha onde moro lembra soldado que fraqueasse na marcha e, não podendo<br />

acompanhar o batalhão, à beira do caminho se deixasse ficar, exausto e só, com os olhos<br />

pousados na nuvem de poeira erguida além. ("A vida em Oblivion" - CM, p.9) 7<br />

Também é sugestiva a alusão à "sua vida de vovó entrevada, sem netos, sem<br />

esperança", encontrada no mesmo conto.<br />

A bonomia expressa eventualmente na voz do narrador, que às vezes interfere<br />

na apresentação dos fatos, não encobre o que há de risível nessas vidas degradadas:<br />

os três únicos livros La mare d'anteuil, de Paulo de Kock, "Uns volumes<br />

trucados do Rocambole " e Ilha maldita de Bernardo Guimarães consumidos por<br />

gerações e gerações de habitantes, embrutecidos pelo isolamento, nos serões; os<br />

"perturbadores do silêncio": o sino da igreja, a capina trimensal das ruas, a<br />

algazarra das crianças no término das aulas e o carrinho da câmara, conduzido<br />

por Issac Factotum - também o condutor uma caricatura pincelada em dois traços:<br />

"um mulato retaco, grosso e curto como certas tatoranas" (CM, p.l6) -; o lazer<br />

modesto: as touradas, o circo de cavalinhos, o teatrinho, cuja campainha é "uma<br />

enxada velha pendurada de um arame, com um parafuso de cama" (p.23), o<br />

menino que usa apenas um pé de sapato por vez por "inconomia", e o domingo,<br />

único dia da semana com feição própria, caracterizado "pela roupa limpa, roupa<br />

nova, roupa preta - que surge pelas ruas" (observe-se a caricatura de costumes,<br />

delineada pela sugestiva metonímia); o funcionamento do júri na roça.<br />

Os habitantes dos pequenos vilarejos, nas mais diferentes posições sociais,<br />

são flagrados em distintas situações, quase sempre cômicas: o reverendo acomodado,<br />

que se constrange com a visita formal que não lhe permite usar seu pito,<br />

velho hábito prazeroso ("O pito do reverendo" - CM); a moça simplória, de


enorme cabelo e curta inteligência - não gratuitamente o reverso das viçosas e<br />

trigueiras caboclas idealizadas na ficção regional, desde o sertanismo romântico<br />

até o caboclismo contemporâneo ao texto:<br />

A natureza pôs-lhe na cabeça um tablóide homeopático de inteligência, um grânulo<br />

de memória, uma pitada de raciocínio - e plantou a cabeleira por cima...<br />

A descrição do intelecto é superada apenas pela desoladora apresentação do<br />

físico:<br />

por fora ornou-lhe [a natureza] a asa do nariz com um grão de ervilha que ela modestamente<br />

denomina verruga, arrebitou-lhe as ventas, rasgou-lhe boca de dimensões comprometedoras<br />

e deu-lhe uns pés... ("Cabelos compridos" - CM, p.59)<br />

o pobre Lucas, casado com uma mulher que se transforma em verdadeiro<br />

tormento, arrependido dos versos a ela dedicados durante o noivado; o hilariante<br />

episódio do espião alemão, que confunde e agita os patrióticos brios de Itaoca; o<br />

pobre estafeta, torturado no trabalho entre duas cidades vizinhas não ligadas por<br />

via férrea ("Um suplício moderno", U).<br />

A caricatura de caipiras, como habitantes dos bairros rurais, como trabalhadores<br />

de sitiocas, ou como fazendeiros mais abastados ou remediados, tem como<br />

matriz facilmente identificável o Jeca Tatu, sendo em geral apreendidos em sua<br />

feição risível ou enfatizando-se sua sorte trágica. Na "Vingança da Peroba" (U),<br />

João Nunes retoma o caipira como quantidade negativa: inapto para o trabalho,<br />

alcoólatra, violento, desenvolve comportamento predatório com relação ao meio<br />

natural; seu rebento, Pernambi, é a própria expressão do que é possível realizarem<br />

os "vagos atavismos"; "Bebia e fumava muito sorna com ares palermas de quem<br />

não é deste mundo. Também usava faca de ponta à cinta" (p.l36), o resto da<br />

descendência de João Nunes se reduz a uma "récula de 'famílias mulheres'... um<br />

rosário de oito mariquinhas de saia comprida". Atenua-se o rebaixamento do<br />

caipira sistematicamente empreendido nesse conto, no paralelo com a figura de<br />

Pedro Porunga, vizinho odiado e invejado "mestre monjoleiro de larga fama",<br />

que encarna a face reversa, o Jeca às avessas: o homem do trabalho, de vida<br />

organizada e promissora.<br />

A covardia é o traço mais forte explorado na caracterização de Pedro Pereira<br />

de Souza (caricatura apoiada também na figura do Jeca, mas com face risível),<br />

chamado depois Pedro Pichorra por sua identidade delineada pelo medo, herança<br />

do avô materno.<br />

O exagero nos "causos", ampliados à exaustão, é explorado no episódio da<br />

"Anta que berra" (CM). A violência, outra característica típica do universo


caipira, é traço evidente no "O mata-pau" (U), história do filho adotivo que leva<br />

os pais à destruição, no "Meu conto de Maupassant" (U), ambos marcados pela<br />

morte e pela desagregação.<br />

Também a ingenuidade ou a tolice simplória é traço fundamental no perfil<br />

de Das Dores ("Cabelos compridos" - CM) e de Zilda ("O comprador de<br />

fazendas" - U), versão cômica de Madame Bovary: "Menina galante, porém<br />

sentimental mais do que manda a razão e pede o sossego da casa" (p.234).<br />

A atitude predatória do Jeca com relação à natureza reaparece no comportamento<br />

do maleitoso Urunduva, em "Bucólica" (U): após serem descritas com<br />

requintes de poeta romântico a beleza e a majestade de uma paineira em flor,<br />

introduz-se diálogo sugestivo entre o caboclo doente e o patrão-narrador, em que<br />

o primeiro expressa intenção de derrubar a árvore para comprar remédios, recurso<br />

mais fácil que colher e vender a paina. Finaliza o episódio uma significativa<br />

reflexão do narrador:<br />

Aquela maleita ambulante é "dona" da árvore. O Urunduva está classificado no<br />

gênero "homo", goza de direitos. E rei da criação e dizem que é feito à imagem e<br />

semelhança de Deus. (p.196-7, U)<br />

De modo geral, as caricaturas de caipiras delineadas nos contos se constroem<br />

a partir de traços dominantes, que são marcas peculiares de um protótipo,<br />

baseadas em uma imagem estereotipada. Talvez não haja nelas maior inverdade,<br />

mas não deixam de ser a fixação de imagens cristalizadas, que contribuem para<br />

a disseminação de uma visão preconceituosa acerca do objeto representado. É o<br />

que ocorre com a covardia e a preguiça, por exemplo.<br />

O Jeca Tatu é matriz de Bocatorta ("Bocatorta", 1915), projeção grotesca do<br />

caipira degradado, reduzido à condição máxima de miséria; é matriz de Urunduva<br />

("Bucólica", 1915), personagem que grotescamente encarna a relação predatória<br />

com a natureza, traço também explorado no comportamento de João Nunes ("A<br />

vingança da peroba", s.d.), personagem a que se agrega também a preguiça, o<br />

amarelão, a vadiagem, traços inerentes ao Jeca. Pedro Pichorra é a projeção do<br />

medo, da covardia; "O mata-pau" (1915) traduz na ficção a violência, a decadência.<br />

Todos eles, simbolicamente, expressam a degradação, o abandono e a<br />

ausência de perspectivas do universo caipira em extinção, o que abre espaço<br />

privilegiado às tensões, aos conflitos, à tristeza, à desagregação, e à miséria social<br />

(como em "Colcha de retalhos", 1915) que imperceptivelmente se espraia na<br />

miséria humana ("O estigma", 1915).<br />

A tendência à estereotipia é decorrência de um impasse constante na literatura<br />

que tem como objeto o "diferente", pois o equilíbrio possível na abordagem do


"outro" como um igual - mas sem desconsiderar as peculiaridades que o tipificam<br />

- tem um limite muito tênue. Há traços que são realmente peculiares ao caipira,<br />

e não gratuitamente compõem marcas do estereótipo que dele se faz. Resta saber<br />

como uma literatura que se queria desmistificatória e reveladora poderia ou<br />

deveria trabalhar esses traços.<br />

O caipira de melhor condição social já não é tão autêntico Jeca Tatu quanto<br />

João Nunes ou Pedro Pichorra, como se observa na família de Davi Moreira de<br />

Souza, o fazendeiro que obstinadamente, sob todas as formas, procura livrar-se<br />

das improdutivas terras do Espigão ("O comprador de fazendas" - U).<br />

Imagens que exploram a aparência física, a indumentária e o comportamento<br />

dos velhos coronéis do interior, matreiros e hábeis na dissimulação, são traçadas<br />

com a segurança de quem conhece o tema, e com grande dose de humor:<br />

Um barbaças de óculos e cachenê de lã ringiu o portão de ferro e galgou a passos<br />

trôpegos a escadinha que levava ao alpendre de Ipomeias. Lá o aguardava, de cara amável,<br />

um segundo barbaças, o Coronel Liberato, vestido numa farda consentânea com a sua<br />

belicosidade: chambre de palha de seda, chinelo cara de gato e gorro de veludo negro<br />

com cercadura de ponto russo. ("A 'cruz de ouro'", CM, p.145)<br />

A ironia é eficiente recurso para a crítica que, extrapolando os costumes,<br />

ferroa o coronelismo, ainda vigoroso no sistema de poder do universo rural e<br />

interiorano vigente na Primeira República. O narrador explicita, por exemplo, o<br />

critério econômico que determina a dotação "aos velhos urumbevas" das cobiçadas<br />

divisas militares:<br />

O que subia também era coronel. Coronel Antonio Leão Carneiro Lobo de Souza<br />

Guerra, ou simplesmente nhô Gué. Chegaram ambos àquele alto posto militar pela razão<br />

estratégica de colherem para mais de dez mil arrobas de café. Se em vez de dez colhessem<br />

apenas cinco mil, seriam majores ou capitães. Este inteligentíssimo critério econômico<br />

do nosso militarismo é garantia de paz muito mais segura do que a Liga das Nações.<br />

(p.145)<br />

Mais à frente, casualmente, o narrador joga a informação de que os dois<br />

velhos coronéis fazem parte do diretório situacionista, "colunas fortíssimas que<br />

eram da força governamental no distrito" (p.149).<br />

Os fatos narrados nesse conto registram hábito corriqueiro na vida das<br />

pequenas cidades do interior: os comentários acerca da rotina da comunidade e<br />

o especial preconceito reservado às prostitutas, criticadas com veemência na<br />

conversa da sala de visitas, pelos dois coronéis, em dia claro, e solicitadas com<br />

insistência, às escondidas, no escuro da noite.


Não se dissimula, entretanto, o objetivo mais forte visado: o registro e a crítica<br />

de costumes, a preocupação documental, eventualmente levada ao excesso da<br />

fotografia:<br />

A sala do coronel Liberato merece relatório para que a posteridade se deleite em<br />

conhecer como era uma sala de visitas de coronel brasileiro no século XX. Cadeiras<br />

austríacas, sofá e cadeiras de balanço, tudo enfeitado com os crochezinhos das filhas. Mesinha<br />

central de cipó com embrechados, obra de um "curioso" do lugar. Duas almofadas<br />

no sofá, uma tendo um gato estufado, de lã, com olhos de vidro; outra, um papagaio de<br />

missanga verde - maravilhas feitas por certa afilhada prendadíssima. Dois aparadores<br />

com vasos para flores artificiais, figurinhas de louça ... (p.146)<br />

Curiosa é também a forma como no conto "Café! Café!" desenvolve-se o<br />

perfil de Mimbuia, velho coronel monarquista, decadente, fazendo-se especialmente<br />

um caricare de suas idéias, protótipo do pensamento conservador dos<br />

velhos mandachuvas, que viveram toda uma vida apoiada no latifúndio, na<br />

escravidão e na monocultura do café e se tornam criaturas inadaptáveis e<br />

anacrônicas, ao resistirem e se recusarem às mudanças exigidas pelos novos<br />

tempos. Observe-se que a força expressiva do perfil traçado se apóia sobre o<br />

paralelo rebaixador e cômico entre o arraigado e rústico pensamento do velho e<br />

uma ruinosa moradia de caboclo. Vale a pena transcrever na íntegra o trecho<br />

extenso que retrata a edificação mental do coronel, dado o seu teor exemplar,<br />

como caricatura de idéias:<br />

Todo ele rescendia a passado e rotina. Na cabeça já branca habitavam idéias de<br />

pedra. Como essas famílias de caboclos que vegetam ao pé dos morros numa casa de<br />

palha, cercada de taquara, com um terreirinho, moenda e o chiqueiro e toda a imensidade<br />

azul e verde das serras e dos céus a insulá-las da civilização, assim a cabeça do major.<br />

As primeiras idéias que ali abicaram, a isso já de sessenta anos, nas remotas eras do<br />

B-a-bá na escola do Ganimedes, meteram a foice na capoeira, fincaram os paus da cerca,<br />

aprumaram os esteios da morada, cobriram-na de sapé; e lentamente, à medida que<br />

vinham entrando, compelidas pela vara de marmelo e a rija palmatória do feroz pedagogo,<br />

foram erigindo a casa mental do nosso herói. Depois, no começo da vida prática, como<br />

administrador da fazenda paterna, novas idéias e novos conhecimentos, filhos da experiência,<br />

tiveram guarida na choça daquele cérebro, acrescendo-o de mais uns puxados ou<br />

telheirinhos. Juízos sobre o governo, apreciações sobre Suas Majestades, conceitos<br />

transmitidos por pais de família e coronéis da Guarda Nacional, idéias religiosas<br />

embutidas pelo roliço padre Pimenta, oráculo da família, receitas para quebrantos, a<br />

trenzama toda moral e intelectual da sua psíquica de matuto ricaço, por lá se arrumou<br />

com o tempo, apesar do acanhamento da choça e das dependências. Para o chiqueirinho<br />

foram as anedotas frescas e as chalaças pesadas aprendidas na botica do Zeca Pirula. E<br />

ficou nisso o meu major; se uma ideiazita nova voava para ele, batia de peito em seus


ouvidos moucos, como rolinhas em paredes caiadas, caindo morta no chão; ou como<br />

borboleta em casa aberta, entrava por uma orelha e saía por outra. (p.177-8)<br />

A pintura de Pedro Venâncio, uma espécie de versão paulista de Policarpo<br />

Quaresma ("A nuvem de gafanhotos" - CM) também oferece interesse: é um<br />

funcionário público visionário, que, ganhando um prêmio na loteria, resolve<br />

estabelecer-se como sitiante, visando colocar em prática toda a teoria acerca da<br />

agricultura - que apregoara em acaloradas discussões com o grupo de amigos<br />

com os quais se reunia para uma palestra na farmácia, todo fim de expediente.<br />

Como é de esperar, o empreendimento não corresponde às expectativas idealizadas.<br />

O conto é interessante justamente pelo modo como esvazia a concepção<br />

idealista que normalmente contamina o tratamento do universo rural, empreendido<br />

por citadinos ("sujeitos que não penetram nos campos de medo dos carrapatos"),<br />

apresentando hiperbolicamente a face reversa da fantasia.<br />

O tratamento da vida na cidade maior, a apresentação e a crítica de hábitos<br />

disseminados nos centros urbanos mais populosos é menos freqüente. Aparece a<br />

descrição de episódio localizado em São Paulo num dos primeiros contos do<br />

autor, "Gens ennuyeux" (1904), vencedor do concurso promovido pelo Centro<br />

Acadêmico 11 de Agosto e caracterizado por certa amenidade que o aproxima da<br />

crônica; o tom é um pouco belle époque, o seu tanto superficial, epidérmico, mas<br />

já deixa entrever o pendor à crítica, na caricatura de situações e de personagens,<br />

evidente no modo distanciado e irônico com que apresenta o comportamento do<br />

conferencista, e a composição da platéia que assiste à conferência.<br />

Já de outro momento, e revelando escritor bem mais maduro é o conto "O<br />

fisco", de 1918, (N), que retrata tipos e situações de vida numa São Paulo que se<br />

transforma rapidamente. O espaço onde se passam os fatos narrados é o Brás,<br />

personificado em brilhante identificação com seu mais típico habitante, o imigrante<br />

italiano:<br />

O Brás devora tudo, ruidosa, alegremente, e com massagens ajeitadoras do abdômen<br />

sai impando bemaventurança estomacal. Caroços de azeitonas, palitos de camarões,<br />

guardanapos de papel, pratos de papelão seguem nas munhecas da petizada como<br />

lembrança da festa e consolo do bersalherzinho que lá ficou de castigo em casa, berrando<br />

com goela de Caruso, (p.58)<br />

O perfil do bairro se define pela identificação com traços do temperamento<br />

de seus habitantes:<br />

O Brás chora nos lances lacrimogêneos da Bertini e ri nas comédias a gás hilariante<br />

da RKO mais do que autorizam os mil e cem da entrada, (p.58)


A identidade do bairro se delineia a partir das características mais evidentes de<br />

seus habitantes: o gosto pela farta alimentação, a espantosa fecundidade, a<br />

espalhafatosa expansividade dos sentimentos, a inesgotável capacidade para o<br />

trabalho. A descrição do bairro se faz com traços rápidos, nervosos, numa<br />

linguagem incisiva e ágil, que pouco deixa a desejar ao gosto do mais radical<br />

modernista dos tempos "heróicos".<br />

O Brás é o imigrante italiano, e a sua descrição traduz bem claramente as<br />

inexoráveis mudanças que transformaram radicalmente a pacata São Paulo do<br />

século XIX. O ritmo acelerado na apresentação do espaço, dos fatos e das personagens,<br />

assim como a estruturação da narrativa, em módulos independentes mas<br />

interligados ("Prólogo", "O Brás", "Pedrinho, sem ser consultado, nasce", "A<br />

vida", "Epílogo? Não! Primeiro ato..."), estabelecendo rupturas, acompanha e<br />

expressa a rapidez e o vertiginoso compasso das transformações que ocorriam.<br />

Observe-se, a título de exemplo, a feição moderna, semelhante à dos capítulosrelâmpagos<br />

de Memórias sentimentais de João Miramar- guardadas as evidentes<br />

diferenças de estilo - no módulo "Pedrinho, sem ser consultado, nasce":<br />

Viram-se ele e ela. Namoraram-se. Casaram.<br />

Casados, proliferaram.<br />

Eram dois. O amor transformou-os em três. Depois<br />

em quatro, em cinco, em seis...<br />

Chamava-se Pedrinho o filho mais velho, (p.60)<br />

No que se refere à construção caricaturesca das personagens, é sugestiva a<br />

pintura das autoridades de menor escalão, mais arbitrárias porque de menor<br />

significância, como a aversiva figura do fiscal da câmara "cariado canino da<br />

Maxila Fiscal", em que se evidencia o abuso da força no confronto desigual entre<br />

a fragilidade da criança maltrapilha e assustada, cuja infração é engraxar sapatos<br />

em praça pública sem a devida licença, e a ação truculenta do fiscal, que domina<br />

a situação:<br />

- Então, seo cachorrinho, sem licença, hein? exclamava entre colérico e vitorioso o<br />

mastim policial, focinho muito nosso conhecido. E um que não é um mas sim legião, e<br />

sabe ser tigre ou cordeiro conforme o naipe do contraventor, (p.54)<br />

Já a caricatura do policial, mais do que aversão, provoca no leitor o riso e o<br />

conseqüente desdém, motivados pelas referências ao físico, rebaixadoras, aproximando<br />

seus traços aos de um macaco:


Este glóbulo branco era preto. Tinha beiço de sobejar e nariz invasor de meia cara,<br />

aberto em duas ventas acesas, relembrativas das cavernas de Trofônio. Aproximou-se e<br />

rompeu o magote com napoleônico - "Espallha!"<br />

Humildes alas se abriram àquele Sésamo, e a Autoridade, avançando, interpelou o Fisco:<br />

"- Que encrenca é esta, chefe?" (p.54)<br />

Observa-se a força expressiva da aproximação ventas acesas/cavernas de<br />

Trofônio, que enfatiza o medo e a estupefação do menino e dos circundantes, que<br />

assistiam ao entrevero, diante da figura demoníaca da "autoridade". Também com<br />

função enfática e rebaixadora, o escritor identifica o policial a Napoleão (pequeno<br />

homem, investido de enorme poder), assim como utiliza a referência a Sésamo,<br />

transformando a palavra mágica que abre as portas à riqueza na senha que desvela<br />

a arbitrariedade.<br />

Intensificando o ridículo do perfil, o escritor explora a fala da personagem,<br />

bem coloquial, vincada de incorreções, num tom chulo, não condizente com a<br />

impressão de superioridade que a "autoridade" quer causar e, portanto, reveladora<br />

de uma real condição de igualdade, com relação aos "paisanos" que o temem.<br />

Com esse recurso, o autor desnuda a incongruência, a descontinuidade entre as<br />

intenções e a performance da personagem:<br />

"- Que encrenca é esta, chefe?"; É isso mesmo. Casca-lhe!; Circula, paisanada! É<br />

"purivido" ajuntamentos de mais de um.<br />

Nesse conto, Lobato realiza em parte a proposta de diversificar temas na<br />

literatura, expressa em carta a Rangel (9.11.1911), em que enfatiza a riqueza e a<br />

novidade de assuntos ligados a São Paulo que, num processo de vertiginosa<br />

transformação, congrega as mais heterogêneas possibilidades.<br />

O trecho seguinte faz a síntese de importantes temas presentes na ficção de<br />

Monteiro Lobato e na de alguns outros paulistas seus contemporâneos; tem<br />

caráter desbravador, apontando caminhos, e novamente demonstrando a aguda<br />

sensibilidade do escritor, ao tatear o novo, como verdadeira "antena" de seu<br />

tempo.<br />

Uma das vantagens do romancista brasileiro é poder lidar só com virgindades.<br />

...Tudo está por fazer. Aqui em São Paulo, quanto elemento de primeira ordem à espera<br />

dos Balzacs e Zolas, pedreiros que saibam assentar tijolos! A Terra Roxa, o caboclo<br />

queimador de mato, o bandoleiro "avant coureur" da civilização representada pelo colono<br />

italiano: o bandoleiro espanta o "barba-rala" e permite que o calabrês se fixe na terra<br />

grilada; a invasão italiana nas cidades - o Brás, o Bom Retiro; a fusão das raças nas<br />

camadas baixas - e na alta; o norte de São Paulo invadido pela decadência do Estado do<br />

Rio e a migração dos fortes para o Oeste. (Lobato, 1959a, t.l, p.317)


Temas como o abuso de poder, centro irradiador da crítica tecida em "O fisco"<br />

são constantes nos contos de Lobato, visando à sátira de vícios institucionalizados<br />

nos costumes da época. O empreguismo e o favorecimento ilícito, praticados por<br />

políticos, são caricaturescamente apresentados, com grande comicidade, em "O<br />

luzeiro agrícola" (CM): Sizenando Capistrano, pretensioso e afetado poeta de<br />

aldeia, "à força de pistolões guindou-se às cumeadas do Morro da Graça",<br />

alcançando o favor almejado, isto é, "acarrapatar-se ao Estado". Alargando a<br />

crítica, o escritor compara o Estado a um boi gordo,<br />

semelhante àquela estátua eqüestre de Hidenburg, feita de madeira, em que os alemães<br />

pregavam pregos de ouro. A diferença está em que no Estado, em vez de tachas de ouro,<br />

pregam-se Capistranos vivos, (p.l33)<br />

A crítica se amplia no absurdo e hilariante diálogo entre o poeta e Pinheiro<br />

Machado, que resulta na designação do rapaz para o cargo de inspetor agrícola,<br />

cuja atribuição será escrever relatórios que nunca serão lidos e fazer discursos<br />

tão empolados quanto inúteis. Exacerba-se o ridículo da situação com a chegada<br />

da personagem ao vigésimo distrito, para onde havia sido designada, apegando-se<br />

o narrador aos menores detalhes da recepção da comunidade à "autoridade" (a<br />

banda, os discursos, as atitudes dos próceres locais). Finaliza o conto a apresentação<br />

do total fracasso das atividades do poeta-inspetor:<br />

meses mais tarde procedeu-se à colheita. As cebolas haviam apodrecido na terra, devido<br />

às chuvas; os alhos vieram sem dentes, devido ao sol; as batatas não foram por diante,<br />

devido às vaquinhas; as outras "policulturas" negaram fogo devido à saúva, à quenquem,<br />

à geada, a isto e, mais aquilo.<br />

Não obstante, seguiu para o Rio um soporoso relatório de trezentas páginas, (p. 143)<br />

Dentre as caricaturas "corretivas", forma de castigo, visando à crítica do<br />

comportamento a não ser imitado, assumidas pelo contista como resultantes de<br />

puro desabafo, 8 ressalta a imagem de Aldrovando Cantagallo ("O colocador de<br />

pronomes" - N), de triste sina, cujo nascimento, vida e morte são condicionados<br />

pela gramática; a crítica aos excessos dos puristas, à "gramatiquice" vigente na<br />

República dos Bacharéis é evidente.<br />

A par da política e do funcionalismo público, a medicina é campo que ocupa<br />

um espaço privilegiado na crítica desenvolvida pelo autor, sendo os médicos<br />

normalmente apresentados com restrições, como registram os contos "A policitemia<br />

de D. Lindoca" (N) e "Pollice verso" (U), cujas tramas em grande parte se<br />

apóiam na ausência de seriedade e no despreparo desses profissionais.


Há, por outro lado, a caricatura que ultrapassa o domínio do universo local<br />

ou mesmo nacional, elaborada por meio do tratamento de problemas humanos,<br />

universais, mesmo quando tratados de modo bastante risível, como no episódio<br />

farsesco de "O fígado indiscreto" (CM), que explora as conseqüências da excessiva<br />

timidez da personagem, ou em "O plágio" (CM), caso do funcionário público<br />

de inteligência e preparo medíocres, reconhecido como aspirante a literato; o<br />

mesmo ocorre em "O romance do chopim" (CM), que parte da dimensão de<br />

mundo ao revés, ao explorar a relação da mulher dominadora com o marido frágil.<br />

Textos que também caminham nessa linha são "Um homem de consciência" (CM)<br />

e "Um homem honesto" (CM), os títulos já sintetizando a temática dos contos.<br />

Esses últimos exemplos se referem a caricaturas que se aproximam bastante<br />

da construção de tipos, porque visam apreender caracteres genéricos, inseridas<br />

num contexto que exige um maior aprofundamento psicológico. Entretanto, a<br />

força expressiva da maior parte das caricaturas criadas por Lobato, é necessário<br />

frisar, parece extrair muito de sua substância justamente do dado episódico e<br />

circunstancial - o que, de resto, é típico do gênero -, sendo muitas vezes as<br />

caricaturas dirigidas para episódios e características mais reduzidas justamente<br />

as mais expressivas e interessantes.<br />

Dentre a vasta gama de personagens criadas pelo autor de Urupês, registramse<br />

ainda caricaturas permeadas, em detrimento do ridículo ou apesar dele, por um<br />

tom melancólico - como em "O engraçado arrependido" (U) ou "O bom marido"<br />

(N) -, mais próximas das sutilezas do humor que da transparência da sátira. Não<br />

é ainda o caso de narrativas integralmente trágicas como "Negrinha" (N) ou<br />

"Bugio moqueado" (N). Nesses textos, estando praticamente ausente o tom<br />

jocoso que atravessa a maior parte dos contos do escritor, as raras caricaturas<br />

tomam uma coloração sombria, não mais desenvolvendo a crítica de questões<br />

locais ou nacionais, mas visando expor fraquezas e perversidades que são<br />

inerentes ao homem de um modo geral, como se evidencia na apresentação de D.<br />

Inácia, tutora e algoz de Negrinha, caricatura cujo delineamento joga com a<br />

oposição entre a aparência virtuosa da "patroa", respeitada pelo padre e pelas<br />

amigas religiosas, e a essência perversa, que se entrevê inicialmente na referência<br />

à aversão ao choro de crianças, mais à frente explicitada no contraste semântico:<br />

"A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças".<br />

Observe-se que a construção das caricaturas delineadas por Lobato comumente<br />

associa aspectos do físico das personagens a elementos psicológicos e<br />

morais. Há, entretanto, caricaturas em que a caracterização do interior das<br />

personagens se sobrepõe aos dados exteriores: é o que ocorre com João Pereira<br />

("Um homem honesto") e com João Teodoro ("Um homem de consciência"), e<br />

daí talvez decorra a maior amplitude humana evidenciada nesses casos.


Caso digno de nota é o de Maricota ("Sorte grande" - N), figura disforme,<br />

que sofre de um mal cujo sintoma é o crescimento constante do nariz; toda a ação<br />

da narrativa gira em torno dessa característica peculiar, ou seja, a história é<br />

inteiramente pautada sobre o fato de ser a moça uma verdadeira caricatura viva.<br />

O curioso é que Maricota é uma espécie de Cyrano de Bergerac às avessas, pois<br />

opostamente a ele, sua boa sorte e de toda a família será determinada exatamente<br />

pela desproporção e desarmonia de seu físico.<br />

Resta ao final dessa apresentação parcial dos temas retratados pelas caricaturas<br />

delineadas nos contos de Monteiro Lobato a constatação da abrangência da<br />

sátira empreendida, tanto no que se refere aos costumes, quanto no que diz<br />

respeito à política e às instituições, sendo inusitado o fato de irradiar-se a crítica<br />

especialmente a partir de componentes do universo rural e interiorano. São<br />

apontados os pequenos ridículos das figuras menores que habitam os campos e<br />

vilarejos do Estado de São Paulo, assim como, por intermédio de situações<br />

aparentemente de reduzida significância, vislumbram-se vícios e tensões de<br />

maior monta, tornados mais e mais nítidos a cada releitura.<br />

Contando de hábitos cristalizados nas pequenas cidades, do vazio deixado<br />

pelo café nas esgotadas terras de vilarejos abandonados, do comportamento dos<br />

matutos de retirados sertões, dos anseios dos pequenos funcionários públicos, das<br />

fazendas decadentes, enfim, das mais diferentes formas de resistência às mudanças,<br />

o escritor nos fala de um momento de transição entre a velha república dos<br />

coronéis, de um São Paulo agrário e conservador, para um tempo novo, da<br />

indústria e dos automóveis, das luzes e dos ruídos da cidade, dos imigrantes, dos<br />

operários, das máquinas, aspectos todos que explícita ou implicitamente estão<br />

presentes na ficção de Lobato.<br />

Não se trata, como fica evidente, de retratar o interior do país pelo prisma<br />

desnaturador da metrópole, mas, pelo contrário, de expressar o modo como o<br />

interior vivencia esse tempo de transformações e de crise.<br />

Recursos expressivos<br />

A literatura de Lobato tem um de seus pontos altos na provocação, no riso,<br />

quando o autor dá vazão à verve cômica e sarcástica. Certamente não é gratuita<br />

a preferência manifesta de alguns críticos por Cidades mortas, obra na qual,<br />

curiosamente, há textos que se aproximam mais de crônicas que de contos, com<br />

uma construção mais simples, idéias nem sempre muito articuladas, puro registro<br />

de impressões esparsas. Algumas vezes o enredo é puro pretexto para apresentar


com maior detalhe facetas do cotidiano da vida local (o circo de cavalinhos, a<br />

festa de São João), característica de resto presente em considerável parte da<br />

literatura regionalista do período, que visa ao registro documental de aspectos do<br />

universo tematizado. Todavia, há muito menos afetação nesses textos, há maior<br />

naturalidade no tom, que ganha em espontaneidade. É possível, por meio desses<br />

contos-crônicas, vislumbrar as "cidades mortas" numa perspectiva panorâmica,<br />

sem se deter em profundos males, em conflitos metafísicos, mas o registro<br />

daquela vida decadente, pequena, abandonada e humilde, por vezes ridícula, fica<br />

para sempre fixado na memória do leitor.<br />

As personagens caricaturescas definidas por Monteiro Lobato apóiam-se<br />

sobre alguns recursos clássicos no gênero, que serão a seguir enumerados:<br />

• Ampliação de um traço característico que, levado ao exagero, provoca o riso,<br />

desdém ou compaixão. Exemplo: Jeca Tatu, João Nunes (preguiça); Reverendo<br />

(acomodação); Sizenando Capistrano (afetação); Ernesto d'Olivais (mediocridade);<br />

Das Dores (boazinha/pouco inteligente); Coronel Mimbuia (teimosia)<br />

etc.<br />

• Hipertrofia do traço ampliado que, absorvendo e dominando a narrativa, chega<br />

às raias do grotesco, do hediondo (exemplo: Boca Torta/disformidade do<br />

exterior e do interior da personagem), do absurdo (exemplo: Aldrovando<br />

Cantagallo/vezo gramatical; Coronel Lupércio Moura/cupidez argentária -<br />

"Herdeiro de si mesmo" - N).<br />

• Efeito metonímico de contaminação, por contigiiidade:<br />

a) da parte para o todo, reduzindo-se o conjunto da personagem e seus atos à<br />

parte ampliada. Exemplo: aspecto físico - as narinas acesas do policial negro<br />

("O fisco") são ampliadas até que sua imagem seja engolfada por esse traço e<br />

a ele se reduza; aspecto intelectual - o mesmo ocorre com a pouca inteligência<br />

de Das Dores ("Cabelos compridos"), que determina o seu modo de ser; aspecto<br />

moral - a maldade de Dona Inácia ("Negrinha"), que domina completamente<br />

seus atos; o mesmo ocorre com o Coronel Teotônio, homem possessivo e brutal<br />

("Bugio moqueado" - N);<br />

b) do todo para a parte: todas as partes que compõem o conjunto da caricatura<br />

são dominadas por um atributo homogeneizador. Exemplo: a preguiça do Jeca,<br />

que rege seus hábitos de trabalho, alimentação, lazer, convívio etc. ou a<br />

covardia de Pedro Pereira de Souza, que domina seu espírito e conduz a ação,<br />

tornando-o Pedro Pichorra pelo estigma do medo.<br />

• Identificação extensiva entre características físicas e morais:<br />

a) o corpo reflete o caráter da personagem. Exemplo: Coronel Teotônio -


Olhos de Cobra/atitude de carrasco; esposa de Fausto ("O estigma" - U) feições<br />

duras, olhar de ave de rapina, nariz agudo/maldade; Nhá Veva ("Bucólica")<br />

feições horrendas/impiedade.<br />

É comum percorrer-se o caminho inverso, isto é: a ênfase na disjunção entre<br />

a aparência sugerida e a essência negada. Nesse caso, a caricatura é mais<br />

reveladora, desnudando o que deveria estar oculto. Exemplos: atitude dos coronéis<br />

cm "A 'cruz de ouro'", cujo discurso na sala de visitas não corresponde à<br />

prática vivida no escuro da noite.<br />

Também é comum a ênfase na expressão diferenciada do caricaturado,<br />

elemento de auxílio na definição de seu perfil, observando-se:<br />

1 incorreções aspeadas ("Não vê que", "É purivido"), conotando uma condição<br />

de inferioridade na implícita comparação com o tom do narrador;<br />

2 uma expressão excessivamente cuidada ou artificial, que contrasta com o<br />

tom distenso e à vontade do narrador, pela oposição evidenciando a estranheza<br />

ou o ridículo do caricaturado ("O luzeiro agrícola"; "O colocador de pronomes");<br />

b) a disformidade do interior da personagem é como um reflexo da disformidade<br />

física: exemplo sugestivo é "Bocatorta", cuja demência e instintos<br />

descontrolados são indissociados do físico grotesco e repulsivo.<br />

• Redução e rebaixamento do caricaturado por meio da identificação com<br />

aspectos caricaturantes dotados de alta negatividade:<br />

animais de carga (Mariana/besta de carga - "O fisco"); animais repulsivos<br />

(Aldrovando Cantagallo/porco - "fossando à luz do lampeão os pronomes" -<br />

"O colocador de pronomes"); animais desprezíveis: Izé Biriba, o pobre estafeta<br />

("Um suplício moderno" - U) é caracterizado como "um caranguejo humano",<br />

e o funcionalismo público é identificado como carrapato e como tatorana;<br />

animais peçonhentos (cobras, aranhas/Nhá Veva e Coronel Teotônio) - a<br />

apresentação de Nhá Veva é exemplar, primeiramente identificada com um<br />

sapo, pela reiterada referência ao papo; depois, com a aranha, mais à frente com<br />

a irada, e por fim com uma tatorana, numa escala sempre decrescente do<br />

peçonhento para o desprezível e o repulsivo, refletindo-se esse percurso no<br />

campo espacial, da verticalidade para a horizontalidade: o pulo do sapo se<br />

transmuta no arrastar da tatorana; enquanto a menina aleijada, sacrificada pela<br />

maldade da mãe, num percurso inverso, de elevação, é identificada como "um<br />

passarico", e depois como "um anjo"; animais agressivos (Buldogue/ fiscal -<br />

"O fisco"); vegetais parasitas: Manoel Aparecido ("O mata-pau - U) é aproximado<br />

ao cipó, que envolve, suga e mata a planta que lhe deu abrigo.


É comum também serem as personagens desprovidas de sua carga de humanidade,<br />

reificadas, constituindo-se num exemplo cômico a concepção de Inácio<br />

("O fígado indiscreto"), cuja timidez desencadeia um processo desumanizador,<br />

muito cômico que o transforma numa verdadeira máquina recitativa.<br />

• Dilatação ou o espraiamento da carga risível ou depreciativa do caricaturado,<br />

por meio de referências intertextuais (míticas, históricas ou literária: Nhá<br />

Veva/Sicórax ("Bucólica"); ventas do policial/cavernas de Trofônio ("O fisco");<br />

atitude despótica do policial/Napoleão Bonaparte ("O fisco"); aproximação<br />

entre médico e ajudante/Don Quixote e Sancho Pança - o idealismo e a<br />

ingenuidade do médico que narra tem sempre como contraponto o bom senso<br />

e o realismo de Geremário ("O rapto" - CM).<br />

Recurso semelhante é utilizado com fins não cômicos, isto é, colaborando<br />

para a ênfase dramática, em "O estigma": a personagem central chama-se Fausto<br />

e, como o Fausto de Goethe, entrega a alma ao diabo, neste caso metaforicamente,<br />

ao casar com mulher rica por causa do dote, tendo uma vida exemplarmente<br />

infeliz.<br />

• Metáforas que se apóiam na concretização do abstrato ou na materialização do<br />

informe:<br />

A rua é a artéria; os passantes, o sangue. O desordeiro, o bêbado, o gatuno são os<br />

micróbios maléficos, perturbadores do ritmo circulatório ... (p.53 - N);... a Itália vazou<br />

para cá a espuma da sua transbordante taça de vida ... (p.56-N);... Uma Itália agregada<br />

como um bócio recente e autônomo a uma "Urbs" antiga, filha do país... (p.57 - N); Era<br />

o latejar do furúnculo filológico que o determinaria na vida, para matá-lo, afinal... ("O<br />

colocador de pronomes" - N, p.121)<br />

• A antítese, o jogo contrastivo das oposições na caracterização, eventualmente<br />

levada ao paradoxo. Exemplo: "O engraçado arrependido", cujo percurso tem<br />

como ponto de partida o riso, e como ponto final um desencadeamento trágico.<br />

• O descritivismo, que permeia quase todas as narrativas, decorrente de uma<br />

caracterização predominantemente visual.<br />

O foco narrativo dominante nos contos é a terceira pessoa, com o narrador<br />

onisciente, o que gera um certo distanciamento dos sucessos que envolvem as<br />

personagens, desenvolvendo um ritmo pouco tenso e favorecendo a superficialidade<br />

na caracterização psicológica, fatores que são propícios ao riso e ao humor.<br />

Como se observa, em linhas gerais, poder-se-ia agrupar o instrumental<br />

utilizado por Lobato na definição de suas caricaturas, enquadrando-o nos dois<br />

eixos propostos por Jakobson (1977): a similitude, evidente na recorrência de


metáforas e comparações, e a contigiiidade, expressa no eixo metonímico, o que<br />

de resto não é privilégio desse escritor, nem apenas do gênero de formulação de<br />

personagens aqui analisados, mas parece ser inerente às mais distintas manifestações<br />

de linguagem artística.<br />

Elemento auxiliar, que acirra ainda mais o ridículo, forte recurso da literatura<br />

cômica, é o contrastivo convívio entre o sublime e o prosaico, o elevado e o<br />

vulgar, forçando um rebaixamento de tom que enfatiza, por exemplo, a artificialidade<br />

das musas:<br />

A palidez de Capistrano, sua cabeleira à Alcides Maia, sua magreza à Fagundes<br />

Varela, seu "spleen" à Lord Byron e suas atitudes fatais, ao invés de lhe aureolarem a<br />

face dos nimbos da poesia, comiseravam o burguês, que, ao vê-lo deslizar como alma<br />

penada pela cidade, horas mortas, de mãos no bolso e olho nostalgicamente ferrado na<br />

lua, murmurava condoído:<br />

- Não é poesia, não, coitado, é fome... ("O luzeiro agrícola" - CM, p.131)<br />

A paródia é importante elemento para a configuração risível, contribuindo<br />

para reiterar o que há de caricaturesco, por exemplo, na vida provinciana, ao<br />

enfatizar o estilo convencional, o tom anacrônico e artificial do jornaleco da<br />

cidade:<br />

Quando o astro-rei, desdobrando as róseas gases da aurora, espargiu sobre a orbe os<br />

seus primeiros raios - como esplendidamente disse mais tarde "O Lírio", historiando os<br />

fatos... ("O espião alemão" - CM, p.l68-9)<br />

A identificação entre o objeto da sátira e referências que remetem ao baixo<br />

corporal, recorrente recurso no gênero, é também utilizada pelo escritor: "O<br />

mártir da língua materna meteu a gramática entre as pernas e moscou-se" ("O<br />

colocador de pronomes"); é óbvia aqui a identificação gramática/rabo, o que<br />

reduz a importância da gramática e de seu pregador, ao rebaixá-lo à escala animal,<br />

como dotado de cauda.<br />

Nas sátiras empreendidas pelo autor de Negrinha, encontra-se também a<br />

construção lúdica, evidente, por exemplo, no contraponto clímax/anticlímax, que<br />

joga com a estrutura do texto e perturba o leitor - "O engraçado arrependido" é<br />

construído com esse último recurso, narrando as sucessivas tentativas e fracassos<br />

de Pontes para, de um modo progressivamente tenso, ir exasperando e<br />

sustendo o leitor e fazendo do que seria uma estória cômica uma narrativa carregada<br />

de tensão. Exemplo também interessante está em "O comprador de fazendas"<br />

(U), em que a oposição clímax/anticlímax se constrói com o recurso do<br />

acaso na ficção, efeito que, dialeticamente, segundo Josué Montello, será justa-


mente o responsável pela quebra da "vulgaridade da narrativa" (Ciência e<br />

Trópico, 1981, p.263).<br />

Nos contos de Monteiro Lobato, no que diz respeito especialmente ao<br />

trabalho com a estrutura do texto, registra-se a presença da ficção dentro da ficção,<br />

sendo exemplo curioso "O resto de onça" (CM), em que mais explicitamente<br />

interfere o narrador expressando juízos sobre a literatura e conceitos estéticos.<br />

- Está enganado. Tem todas as qualidades do conto e tem a principal: poder ser<br />

contado adiante, de modo a interessar por um momento o auditório, (p.72)<br />

O "causo" do "resto de onça" é apenas um pretexto, que funciona como<br />

argumento comprobatório da tese defendida pelo narrador: para interessar ao<br />

leitor o texto deve ter algo a contar, e deve fazê-lo com simplicidade.<br />

O recurso à inserção da estória na estória encontra-se também no conto "Duas<br />

cavalgaduras" (N), que a par disso explora também a quebra de expectativas: o<br />

narrador dirige a trama de tal modo que, ao encarar o belchior, o leitor está certo<br />

de defrontar-se com o antagonista, e é surpreendido por uma densidade humana<br />

e uma bondade inesperada, que não condizem com as informações inicialmente<br />

apresentadas.<br />

A ficção dentro da ficção aparece também em "Meu conto de Maupassant"<br />

(U) e em "O romance do chopim" (CM), sendo neste último muito curioso o modo<br />

com que o romance narrado dia a dia por D. Zenobia a suas colegas de magistério,<br />

como se fosse de autoria do marido, passa gradualmente a ocupar o centro da<br />

ação, relegando, com a expectativa gerada não só nas professoras, mas também<br />

no leitor, a um segundo plano o que aparentemente seria o tema central do conto:<br />

a prosaica estória do "chopim" Eduardo e sua esposa Zenobia; esse recurso<br />

imputa ao texto uma irresistível comicidade, por explorar também a dimensão de<br />

mundo ao revés, calcada aqui no contraste entre a personalidade dominadora e<br />

autoritária da professora e o comportamento humilde e servil do marido. O<br />

romance criado pela professora como de autoria do marido dominado é uma<br />

espécie de paródia do que há de mais lugar-comum no gênero: é um romance "A<br />

moda antiga, em vários volumes, sistema Rocambole", que descreve um amor<br />

"descabelado", o que mais acirra o tom ridículo. O escritor, nessa bem-urdida<br />

sátira aos costumes e à subliteratura, joga até mesmo com a metalinguagem, ao<br />

inserir na narrativa comentários da personagem que narra, avaliando a fatura do<br />

romance: "- Não pode. Prejudicaria o desfecho e, ademais, não é estético,<br />

respondeu preciosamente dona Zenobia" (p.l27).


Algumas passagens dos contos lobatianos registram ironia mais sutil, um tom<br />

mais filosófico, que chega a lembrar vagamente Machado de Assis, escritor muito<br />

apreciado e valorizado por Lobato ("A policitemia de D. Lindoca" - N; "O bom<br />

marido", N), especialmente quando ocorrem interferências do narrador, dirigindo-se<br />

ao leitor: "Põe em ti o caso, leitor, e vai estudando desde já uma saída<br />

honrosa para a hipótese de te suceder o mesmo" ("A policitemia de D. Lindoca"<br />

-N,p.l74).<br />

Trabalho mais radical, no que se refere à experimentação, é o desenvolvido<br />

em "Marabá" (N) (1923), narrativa que joga com a paródia (aqui à apologia<br />

indianista), a referência cinematográfica, a metalinguagem, a ficção dentro da<br />

ficção, compondo um texto extremamente moderno e instigante. É preciso<br />

observar que "Marabá" pode ser lido como paródia de um discurso ultrapassado,<br />

o indianismo, do mesmo modo que se constitui também num canto às avessas da<br />

modernidade, pois a apresentação apologética do novo é também cercada pela<br />

ironia.<br />

O conto tem como referência intertextual o poema "Marabá", de Gonçalves<br />

Dias, que narra a desdita da moça rejeitada pelos guerreiros da tribo, por ter olhos<br />

azuis e pele clara, numa curiosa inversão que explora a alteridade, mas sob o<br />

ponto de vista do índio - nesse poema do escritor romântico o diferente, o<br />

desvalorizado é o branco.<br />

A metalinguagem evidencia-se no texto de Lobato especialmente pelas<br />

interferências do narrador:<br />

Nada disso. Sejamos da época. A época é apressada, automobilística, aviatória,<br />

cinematográfica, e esta minha Marabá, no andamento em que começou, não chegaria<br />

nunca ao epílogo. Abreviemo-la, pois, transformando-a em entrecho de filme. (N, p.223)<br />

Ressalte-se, enfim, que a presença do pitoresco é incomum, mas não ausente<br />

na concepção das caricaturas empreendidas por Lobato, associando-se em algumas<br />

passagens à solicitação documental no tratamento do objeto, exigência típica<br />

da estética naturalista, cuja concepção mimética era ainda bem forte nos dois<br />

primeiros decênios deste século, presentificando-se também eventualmente nos<br />

contos de Lobato, como nesta descrição que introduz o conto "Pedro Pichorra"<br />

(CM), ao apresentar uma "sitioca pitoresca":<br />

casebre de palha, terreirinho de chão limpo, mastro de Santo Antônio com os desenhos<br />

já escorridos pela chuva e a bandeira rota trapejante ao vento. Dois mamoeiros em redor<br />

e mangericões entreverados. Um pé de girassol, magro e desenxabido, a sopesar no alto<br />

a rodela cor de canário; laranjeiras semi-mortas sob o toucado da erva-de-passarinho.<br />

(N, p.52)


E necessário observar, todavia, a função irônica da descrição pitoresca que<br />

introduz o conto, pois é nesse mesmo local sedutor e simples que habita a<br />

"pichorrada", uma estirpe de medrosos. O desenvolvimento da narrativa é, pois,<br />

a negação do que o intróito sugere, decepcionando a expectativa do leitor de<br />

defrontar-se com uma visão amena e condescendente do caipira. Esse jogo por<br />

si só favorece a perspectiva desmistificadora.<br />

A exemplificação que acompanha as considerações aqui desenvolvidas acerca<br />

dos temas e dos recursos expressivos utilizados para a concepção das caricaturas<br />

comprova a predominância da sátira especialmente nos contos reunidos em<br />

Cidades mortas. É certo que Urupês também reúne contos com passagens em<br />

que se manifesta o vezo satírico; o tom esporadicamente jocoso, entretanto, é<br />

ofuscado por uma dramaticidade não raras vezes forçada e artificial. Negrinha<br />

mescla os dois gêneros: reúne textos de configuração satírica e outros mais<br />

densos, que atendem ao apelo dramático. No cômputo geral dos contos do<br />

escritor, parecem ser mais convincentes, e por isso não gratuitamente alvo de<br />

maior atenção, os textos que se valem do humor, do sarcasmo, ou apenas de<br />

referências cômicas, nos quais com maior segurança e desembaraço se evidencia<br />

o talento de Lobato.<br />

Motivações para a caricatura na literatura<br />

de Monteiro Lobato<br />

Para uma maior clareza, visando organizar as idéias expostas, é necessário<br />

retomar hipóteses já apresentadas, agregando quando necessário algumas outras,<br />

para procurar respostas à motivação para a caricatura na literatura do autor de<br />

Urupês.<br />

É patente no estilo de Monteiro Lobato um apelo plástico, visual (associado<br />

ao interesse e à prática da pintura? herança da formação acadêmica, típica do<br />

século XIX, que propagava uma concepção mimética de arte?). O autor constrói<br />

uma literatura pictural, evidente especialmente no descritivismo das cenas, paisagens,<br />

situações e personagens.<br />

Associadas a essa caracterização plástica do universo retratado há imagens<br />

que se apóiam na materialização de idéias, na concretização do abstrato, daí as<br />

insólitas aproximações, as metáforas dissonantes. Essa tendência se evidencia<br />

não apenas nos contos do escritor, mas também nas crônicas, na literatura infantil<br />

(nesse caso também justificada pela necessidade de atender às exigências desse


eceptor diferenciado) e especialmente nas cartas, questão para a qual Cassiano<br />

Nunes chama a atenção, atribuindo essa característica ao que denomina filiação<br />

"organicista do escritor" (1982, p.l3).<br />

No que se refere ainda à afinidade de Lobato com as artes visuais, é bastante<br />

provável que a construção caricaturesca das personagens tenha sido decorrência<br />

também do interesse que a caricatura visual desperta no Brasil, a partir de meados<br />

do século XIX, propagada nas revistas ilustradas. São conhecidos pelo escritor os<br />

clássicos da caricatura universal (Daumier, Gavarni) e as mais expressivas<br />

produções dos caricaturistas nacionais, chegando mesmo a se dedicar a estudo<br />

mais sistemático do tema, ao escrever e publicar o interessante ensaio, já citado<br />

("A caricatura no Brasil", 1959d), em que aponta, analisa e caracteriza com muita<br />

acuidade elementos de interesse acerca da questão.<br />

A tendência à estilização é característica muito corrente na literatura do<br />

começo do século, patente na obra da maior parte dos escritores da belle époque,<br />

abordando temática urbana ou regional. Na literatura lobatiana, esse pendor<br />

parece encontrar um terreno bastante fértil, radicalizando-se no tratamento caricaturesco<br />

e associando-se:<br />

• à opção pela simplificação, por um texto leve, distenso, menos formal, visando<br />

desenvolver uma literatura mais popular, de maior eficácia comunicativa;<br />

• à feição retórica de sua sátira (palmatória do mundo), de caráter educativo,<br />

visando à correção de hábitos e costumes, à busca do equilíbrio perdido - por<br />

um lado, evidenciando um prisma mais conservador, no castigo ao desvio da<br />

norma estabelecida, mas, por outro, desempenhando intensa função desmistificadora,<br />

forma de riso higiênico, de efeito profilático, que desnuda e revela<br />

faces negadas na nação;<br />

• a uma peculiaridade do estilo do escritor, que freqüentemente se apóia em<br />

recursos (exagero, fantasia, repetição, redução etc.) especialmente férteis nos<br />

dois campos em que Lobato é costumeiramente mais apreciado: a sátira e a<br />

literatura infantil;<br />

• a eventuais limites na concepção de personagens e situações mais densas, o que<br />

se evidencia no gênero das narrativas: curtas, episódicas, oscilando entre o<br />

conto e a crônica.<br />

Saber se o escritor de Urupês poderia ou não ter feito uma literatura mais<br />

inovadora, sob o ponto de vista formal, e, mais especialmente, se a ruptura que<br />

realiza de maneira nem sempre sistemática poderia ser mais radical, nessa obra<br />

de feição irregular, é questão de difícil solução, que fica relegada ao âmbito das<br />

especulações; o que verdadeiramente interessa é a obra consumada, que o autor


ealizou, e ainda hoje perdura. Os contos se enquadram numa literatura de caráter<br />

mais popular do que era usual na época, de modo quase sempre engajado, às vezes<br />

doutrinário, visando transmitir alguma forma de ensinamento (objetivo plenamente<br />

realizado na literatura infantil).<br />

No todo, é uma literatura dotada de alto teor provocativo, instigante - para o<br />

que muito contribuem as caricaturas: cômicas, frontais, desabusadas -, que teve<br />

forte significação ao tempo de sua divulgação, trazendo até hoje ressonâncias que<br />

justificam no mínimo uma releitura cuidadosa.<br />

CONCLUSÕES<br />

Monteiro Lobato é na verdade um escritor bem mais moderno do que se<br />

supõe; por isso, é injustamente redutora a solução de apenas rotulá-lo como<br />

"pré-moderno". A sua obra é dotada de uma complexidade e heterogeneidade que<br />

exige estudo detido, minucioso, isento e preferencialmente global, para uma<br />

compreensão mais abrangente.<br />

Graças à extensão e à heterogeneidade da produção e da experiência do autor<br />

de Urupês, é comum e compreensível desenvolverem-se análises e críticas que<br />

privilegiam momentos da vida do homem público (o trabalho editorial, a fase<br />

higienista, a campanha do petróleo) ou aspectos da criação do escritor (a literatura<br />

infantil, a crônica, o panfleto, a literatura destinada aos adultos).<br />

As sucessivas leituras da vasta produção de Monteiro Lobato, assim como<br />

da extensa crítica a seu respeito, evidenciam a dificuldade em tratar-se apenas de<br />

aspectos isolados da atividade do escritor ou de sua obra, pois tudo isso com<br />

certeza compõe um conjunto indissociável. Não há vários Monteiros Lobatos,<br />

mas as diferentes faces e fases do escritor se amalgamam, compondo um mosaico<br />

que resulta num perfil único. Entretanto, dadas as propostas e conseqüentes<br />

limites deste trabalho, a análise aqui desenvolvida deteve-se apenas em considerações<br />

acerca da sátira empreendida pelo autor, como parte de estudo que visa<br />

compreender a construção da caricatura na literatura paulista das duas primeiras<br />

décadas do século.<br />

Curiosamente, a atualidade da obra de Monteiro Lobato parece-nos associarse<br />

especialmente à sua configuração satírica. O paradoxo é apenas aparente: se a<br />

sátira comumente é gênero fadado à desconsideração dos pósteros pela dificuldade<br />

em compreenderem-se muitos de seus componentes, que exigem uma<br />

contextualização histórica, no caso da obra de Lobato será ela justamente um dos


fatores responsáveis pela permanência do texto. O modo como faz a sátira de seu<br />

tempo, transitando da perspectiva individual para a coletiva, da particular para a<br />

universal (e vice-versa), é que peculiariza a literatura do autor de Urupês.<br />

Se, por um lado, muitos dos problemas denunciados nos textos de Lobato foram<br />

superados ou estão hoje ausentes, por outro, não é preciso ser um arguto<br />

observador para saber que a sociedade brasileira padece ainda de crônicos<br />

problemas e contradições que atravessaram o século; há ainda vícios, condutas,<br />

fraquezas e pensamentos que são de todos os homens, em todos os tempos. E a<br />

caricatura é sempre instrumento muito adequado ao registro crítico.<br />

O estilo utilizado por Monteiro Lobato para construir a sátira é fundamental:<br />

se, já próximo aos anos 20, a expressão do autor nem sempre trazia propostas tão<br />

radicais quanto as realizadas mais à frente por Mário ou Oswald de Andrade, não<br />

implicando, portanto, maiores rupturas, é, por outro prisma, indubitável que a<br />

equilibrada mesclagem entre o clássico e o popular, a união entre uma escrita de<br />

tom lusitano e uma expressão regional, brasileira, seria responsável - sem<br />

choques, sem grandes sustos - pela calorosa recepção do público, agradando ao<br />

gosto do leitor médio, pelo jeito novo de dizer as coisas - muito mais distenso,<br />

coloquial, vincado de neologismos e curiosas metáforas, tão comunicativas -, e<br />

quem sabe mesmo conquistando uma considerável parcela de novos consumidores,<br />

renovando a literatura, já saturada pela retórica enfática, pelo preciosismo,<br />

pelo convencionalismo, responsáveis pela pesada dicção da literatura oficial.<br />

E o riso, provocado por meio da rápida estocada irônica, do sarcasmo<br />

corrosivo, ou da tirada chistosa, de humor, é um elemento de comunhão e<br />

cumplicidade, que certamente desempenhou papel considerável para a boa aceitação<br />

da literatura de Lobato. Se o tom c o torneio da expressão lobatiana são um<br />

tanto anacrônicos, se os coronéis já não usam hoje chapéu panamá e terno de<br />

linho, e os caipiras não se cobrem com chapéu de palha e roupa de chita, agora<br />

transformados em bóias-frias e favelados, que buscam sua identidade no padrão<br />

ditado pela televisão, resta ainda, no mínimo, o riso, que faz pensar, resgata a<br />

vida e aproxima os homens.<br />

NOTAS<br />

1 A Gráfica e Editora Monteiro Lobato & Cia., fundada em 1918, é conseqüência da compra da Revista<br />

do Brasil, realizada em maio deste mesmo ano.<br />

Os procedimentos efetivados pelo editor-Lobato resumem-se à proposta, a donos de lojas, farmácias,<br />

estabelecimentos comerciais os mais variados, de venda de livros por consignação. Na época, no Brasil<br />

todo, não havia mais que 40 ou 50 livrarias; com a proposta do novo editor, os postos de vendas de


livros teriam passado a cerca de 1.300. Maiores detalhes a respeito encontram-se em entrevista dada<br />

a Silveira Peixoto, em Falam os escritores, 2.ed. São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, Coleção<br />

Textos e Documentos, 1971, v.1, p.l5-27, e na entrevista "Lobato, editor revolucionário", dada à<br />

revista Leitura, que está em Prefácios e entrevistas, São Paulo: Brasiliense, 1959e, Obras completas<br />

de Monteiro Lobato, v.13, p.251-63.<br />

2 O batismo da personagem como Jeca Tatu deve-se ao nome do neto de uma agregada da antiga Fazenda<br />

do Paraíso, propriedade do pai de Lobato. Jeca, muito valorizado por sua avó, foi uma verdadeira<br />

decepção quando apresentado ao escritor: feio, desengonçado, desconfiado. Quanto ao Tatu, ao<br />

compor a personagem, Lobato se lembra de queixa recente do capataz da fazenda sobre a destruição<br />

feita na roça por alguns tatus. (Entrevista dada a Silveira Peixoto, da Gazeta Magazine, in Prefácios<br />

e entrevistas, p. 169).<br />

3 Lobato declara, em entrevista, que apóia o comunismo por uma questão muito mais de solidariedade<br />

democrática do que por afinidades políticas:<br />

"- É verdade que é comunista?<br />

- Não. Sou georgista por convicção absoluta, mas sempre tive muita simpatia pelo comunismo. Agora,<br />

entretanto, que vejo o comunismo proscrito e perseguido, e proibido pelos governos, sou forçado a<br />

acolhê-lo no coração, porque nunca admiti que governo nenhum determine as idéias que os homens<br />

devem ter. Idéia é a única coisa realmente sagrada que há ..." (Entrevista coletiva concedida por<br />

Monteiro Lobato em 9.5.1947. In: Conferências, artigos e crônicas. Obras completas de Monteiro<br />

Lobato, v.l5,p.319).<br />

4 "A nossa ordem social é um imenso canteiro em que as classes privilegiadas são as flores e a imensa<br />

massa da maioria é apenas o esterco que engorda essas flores"; "Nasci na classe privilegiada e nela<br />

vivi até hoje, mas o que vi de miséria silenciosa nos campos e cidades me força a repudiar uma ordem<br />

social que está contente com isso e arma-se até com armas celestes contra qualquer mudança" (Lobato,<br />

M„ apud Bruno, E. S. In: Dantas, 1982, p.79-80).<br />

5 Não é com certeza gratuito o falo de Catulo da Paixão Cearense escolher o conto "A colcha de retalhos"<br />

para dele fazer uma adaptação para a poesia. E motivo de recorrente apelo popular o desencaminhamento<br />

da mulher, tratado freqüentemente de modo passional e emocionado, bastando lembrar as<br />

inumeráveis canções, modas, poemas e casos que abordam o assunto, as repetidas encenações que<br />

desenvolvem o tema e tanto agradam aos leitores ouvintes. (In: Poemas bravios, 11 .ed. Rio de Janeiro:<br />

Bedeschi, s.d., p.191-226).<br />

6 "Preocupação dominante de Lobato, como escritor, é fazer que sua linguagem seja acessível a todas<br />

as inteligências, mesmo as mais rudimentares ...<br />

Lembro-me de que uma vez, em seu escritório, quando estava ele escrevendo as provas de um de seus<br />

livros, a dado instante parou, franziu as sobrancelhas, voltou-se para mim, que o estava esperando<br />

para irmos tomar um café, e disse:<br />

- Imagine você o que escrevi aqui! Uma palavra arrevesada, uma coisa incompreensível: inopinadamente!<br />

Qual é a cozinheira que vai entender isto? I-no-pi-na-da-men-te! Bolas! De repente, é que<br />

é!..." (Peixoto, 1971, v.1, p.19).<br />

7 As citações das páginas dos contos virão entre parênteses, acompanhadas da abreviação do título das<br />

obras em que se encontram: U (Urupês); CM (Cidades Mortas); N (Negrinha). A edição consultada<br />

é a Obra completa de Monteiro Lobato, publicada pela Brasiliense, em 1959.<br />

8 "Meus contos foram, todos eles, vingancinhas pessoais, desabafos ...<br />

Eu sentia a necessidade de vingar-me de um sujeito qualquer e essa necessidade não cessava, enquanto<br />

eu não pintasse o 'freguês' numa situação cômica ou trágica, que me fizesse rir..." (Lobato, M., apud<br />

Peixoto, 1971, v.1, p.20).


0 "ATIVISTA CULTURAL"<br />

4 CORNÉLIO PIRES: O CAIPIRA ENTRE<br />

A ANEDOTA E A LOUVAÇÃO<br />

Teria sido, assim, Cornélio Pires<br />

o cronista de um mundo perdido?<br />

Eu diria que de um mundo quase perdido...<br />

(Bruno, E. S. Cornélio Pires,<br />

o cronista de um mundo quase perdido).<br />

Cornélio Pires (1884-1954) faz parte do grupo de intelectuais que freqüentavam<br />

as dependências da Revista do Brasil, local depois utilizado para abrigar<br />

a Editora Monteiro Lobato & Cia. Também foi colaborador de O Pirralho,<br />

possivelmente convidado por Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (Dantas,<br />

1976, p.88), em que publicou diversos poemas e se responsabilizaria pelas<br />

"Cartas de um caipira", seção escrita em dialeto caipira, assinada com pseudônimo<br />

Fidêncio Jusé da Costa, na qual comentava, criticava ou apenas registrava<br />

aspectos do cotidiano da época.<br />

A contribuição em O Pirralho, periódico de prestígio, destinado às camadas<br />

mais ilustradas, foi importante para a divulgação e o reconhecimento do escritor<br />

e do humorista; durante todo o tempo de existência do jornal (1911-1917), o<br />

escritor-humorista tieteense contribuiu com suas cartas caipiras.<br />

Alguns contatos foram fundamentais para a formação de Cornélio Pires:<br />

a relação que manteve com Amadeu Amaral, seu primo, cuja crítica e estímulo


foram de grande valia (por outro lado, Cornélio é em parte responsável pela<br />

decisão do parente de escrever o interessante O dialeto caipira, dedicado a ele, a<br />

Valdomiro Silveira e a Alberto Faria, e que conta com inúmeras citações de textos<br />

dos dois primeiros, escritores regionalistas); a intensa amizade e convívio com o<br />

caricaturista Voltolino, firmada em noitadas no Café Guarani, importante ponto<br />

de encontro de artistas e intelectuais, e no Bar Baron, em São Paulo (em 1914,<br />

Cornélio publica "O monturo", com ilustrações de Voltolino). O caricaturista<br />

chegou a se empenhar na crítica à Academia Paulista de Letras, pleiteando vagas<br />

para Cornélio Pires e Emílio de Menezes, o poeta satírico, que haviam sido<br />

recusados. É desse tempo a cômica charge publicada em O Pirralho (19.4.1913),<br />

que mostra Cornélio em pé, diante do cavalo, dizendo: "Num vê que eu sô mais<br />

troixa (sic): agora eu vou a pé, porque outra vez o cavalo entrou e eu fui barrado".<br />

O poeta caboclista desenvolve intensa colaboração na imprensa, chegando a<br />

ser repórter policial d'O Comércio de São Paulo e a trabalhar como jornalista no<br />

A cidade de Santos. Aproxima-se de Afonso Arinos e Augusto Bayon, nomes<br />

expressivos do jornalismo; é conhecido no "Minarete" (república onde moravam<br />

Lobato, Godofredo Rangel, José Antônio Nogueira, Ricardo Gonçalves e outros,<br />

no tempo de estudantes), e no litoral entra em contato com Martins Fontes e os<br />

Silveira (família de Valdomiro Silveira) (Amaral, 1977, p.34-5 e Veiga, 1961).<br />

A relação entre Cornélio e Lobato é ambígua. Como já foi mencionado<br />

anteriormente, o Jeca Tatu, segundo testemunho de seu criador, é em parte uma<br />

provocação a Cornélio e a seus apreciadores, sendo motivo de crítica a idealização<br />

e o pitoresco que marcam o caboclismo do escritor. Lobato se refere com<br />

restrições aos espetáculos "caipiras", pagos, encenados pelo humorista. Cornélio,<br />

por sua vez, escreve um poema-resposta ao Jeca Tatu.<br />

Mais à frente, Lobato parece rever, ao menos parcialmente, sua posição: em<br />

carta sem data endereçada a Cornélio Pires, faz elogiosas considerações sobre<br />

Joaquim Bentinho, personagem muito popular criada em 1924 pelo escritor:<br />

Mas já comprei as "Aventuras" e li-as e venho dar-te um abraço e ao mesmo tempo<br />

confirmar-lhe minha imensa admiração pela tua obra, inda não bem compreendida pela<br />

crítica. Você, Cornélio, é um dos pouquíssimos que vão ficar. Há tanta verdade nos teus<br />

tipos, tanta vida, há tanto humanismo na tua obra, há tanta beleza, e tanta originalidade<br />

em teu estilo que estás garantido, estás à prova do tempo que varre impiedosamente o<br />

que é medíocre. Um sincero abraço! (Araújo, 1968, p.128)<br />

Há, entretanto, radicais diferenças entre o perfil intelectual de Cornélio Pires<br />

e o das pessoas com as quais conviveu na cidade de São Paulo. Filho de sitiantes<br />

humildes do interior, componente de prole numerosa, foi bem jovem obrigado a


ganhar a vida; aos 15 anos de idade já trabalhava como caixeiro, tendo antes se<br />

empregado como tipógrafo. Aos 17 anos, muda-se para São Paulo, com o objetivo<br />

de dedicar-se aos estudos; malsucedido na tentativa de admissão na Faculdade<br />

de Farmácia, decide enveredar pelo jornalismo.<br />

O poeta caboclista tem completas apenas as primeiras letras (sequer chegou<br />

a finalizar o curso primário), numa escolarização deficiente, à qual não se dedicou<br />

com muito empenho; sua caligrafia era ilegível, não manifestava maior gosto pela<br />

leitura, apenas apreciava escrever poemas (em 1905, o semanário O Tietê publica<br />

o seu primeiro soneto, cujo tema é o amor, um texto bem convencional, vincado<br />

de lugares-comuns). Obviamente, Cornélio Pires não tem maior erudição ou<br />

cultura mais sólida, deficiência (tendo em vista o gênero de atividade a que se<br />

dedicou) parcialmente compensada no convívio constante com gente de considerável<br />

formação intelectual e pela intensa vivência, pela sensibilidade e dedicação<br />

com que se empenhou no conhecimento do universo caipira, tema mais<br />

marcante de sua produção.<br />

Talvez também por essas deficiências, no que se refere a uma formação mais<br />

acadêmica, o escritor não tenha sido muito bem visto pela crítica, desfrutando,<br />

todavia, de grande popularidade junto ao público, empatia de resto reforçada pelas<br />

outras atividades culturais desenvolvidas (espetáculos, gravação de discos).<br />

Posição firmada por Paulo Duarte, em carta a Mário de Andrade, mostra bem a<br />

atitude reservada diante da obra do escritor, ao mesmo tempo em que faz<br />

referência à calorosa recepção do público à sua literatura:<br />

Quererá você que eu compare, por exemplo, o Câmara Cascudo com o Cornélio<br />

Pires? Não, não consigo. Mas o engraçado e analfabeto Cornélio está consagrado como<br />

o melhor novelista do mundo ... E o Cascudo, apesar das irremediáveis lacunas do<br />

autodidatismo e falta de cultura humanística de base, quase supre tudo com intuição,<br />

observação honesta e até talento. (Duarte, 1985, p.20)<br />

A produção do autor é bastante ampla, incluindo, a par das constantes<br />

contribuições em jornais e revistas, diversas publicações em prosa e poesia, 1<br />

inúmeras tournées, com espetáculos nos quais contavam anedotas e encenavam<br />

episódios de tema caipira, entoando-se cantigas típicas, com a apresentação de<br />

violeiros e grupos musicais - Cornélio é o precursor, com a "Turma caipira<br />

Cornélio Pires", dos espetáculos sertanejos que se popularizaram depois nos<br />

circos, teatros e no rádio, tão apreciados ainda hoje, mas certamente já muito<br />

diferentes do original -; o escritor organizava tournées pelo interior de São Paulo,<br />

Minas Gerais, Goiás, exibindo-se com assiduidade a partir de 1914. Reforçando<br />

o trabalho desenvolvido na ribalta, participa de programas de rádio, grava vários


discos 2 e chega mesmo a fazer filmes. 3 A sátira dos costumes políticos do tempo,<br />

especialmente contra o perrepismo, Cornélio registrou em seus discos.<br />

Cornélio não demonstra nas declarações ter maiores pretensões no que diz<br />

respeito à importância de sua literatura; em entrevista a Silveira Peixoto, faz<br />

algumas afirmações curiosas e esclarecedoras. Sendo encontrado pelo jornalista<br />

à porta de um café e tendo este solicitado que se submetesse à entrevista,<br />

manifesta surpresa, dizendo:<br />

não sei explicar-me por que você vem pedir-me uma entrevista ... Sou uma espécie de<br />

"corpo estranho", no mundo literário e intelectual de São Paulo. Vivo muito quieto, no<br />

meu cantinho, recolhido à minha insignificância ... Sinceramente, isso até me comove.<br />

(Peixoto, 1971, v.1, p.207)<br />

O humorista demonstra ter consciência de seus limites no que se refere à<br />

produção de uma literatura mais cultivada, ao analisar com argúcia a razão do<br />

sucesso alcançado por seus livros; questão que, segundo ele, se associaria "ao<br />

fato de não escrever para letrados, num país de iletrados". A explicação é um<br />

tanto populista: "Escrevo para o povo e o povo sabe apreciar os meus trabalhos",<br />

mas revela objetivos e pretensões modestos:<br />

Também sei que muita gente começou lendo as minhas borracheiras e evoluiu para<br />

melhores livros. Ao menos essa utilidade têm os meus trabalhos. (Peixoto, 1971, v.1,<br />

P-214)<br />

Os objetivos visados pela produção escrita de Cornélio são expostos de modo<br />

um tanto defensivo, colocando-se numa cômoda posição de descompromisso; no<br />

prefácio às As estrambóticas aventuras do Joaquim Bentinho, o queima campo,<br />

o autor diz escrever apenas para a "sua gente", e não para a crítica; com o pretexto<br />

de narrar "casos e mentiras", visa a "o registro do linguajar do roceiro" e de sua<br />

"vida rústica", e da paisagem peculiar. (Pires, 1927, p.3-4).<br />

É evidente, de toda forma, que a literatura foi apenas uma das atividades desse<br />

homem múltiplo, que escrevia com descuido, sem rascunhar os textos, sem maior<br />

apuro ou cuidado - afirmava que jamais relia o que escrevia e que produzia seus<br />

livros no máximo em 15 dias cada um -, mas que sabia perfeitamente quais os<br />

requisitos necessários ao êxito comercial de um livro:<br />

deve ser escrito em linguagem simples, sem rebuscamentos de vocábulos, sem ostentações<br />

eruditas e em períodos e capítulos bem curtos. (Peixoto, 1971, v.1, p.215)


Este jornalista irrequieto e despretensioso, como se vê, teve uma vida<br />

dinâmica e agitada, dedicada às mais distintas atividades: foi professor de<br />

Educação Física em Botucatu; foi expulso de São Manoel, perseguido por<br />

capangas de coronéis do PRP local, por dirigir um jornal de oposição; foi feitor<br />

da Limpeza Pública; inventor - criou um cantil de formato anatômico, que<br />

tornava potável qualquer água -; e chegou a montar, em São Paulo, com o lucro<br />

dos espetáculos, uma loja de curiosidades brasileiras, que vendia artigos exóticos,<br />

desde cinzeiros feitos de asas de borboleta até bolsas feitas com cascas de tatu.<br />

Melhor do que ninguém, Antonio Candido define o papel desse artista<br />

eclético na "Carta-prefácio", que introduz e comenta o rico e exaustivo estudo<br />

acerca do escritor, Cornélio Pires, criação e riso, de Macedo Dantas:<br />

Cornélio Pires foi, mais do que escritor eminente que seria preciso defender, uma<br />

extraordinária personalidade de ativista cultural. Meio escritor, meio ator, meio animador;<br />

generoso, combativo, empreendedor, simpático - a sua maior obra foi a ação nos<br />

palcos, nas palestras, na literatura falada, que perde bastante quando é lida. Como os<br />

oradores, como certo tipo de poetas, como os repentistas e os velhos glosadores do mote,<br />

a dele foi uma literatura de ação e comunhão, feita para o calor do momento e a<br />

comunicação direta, eletrizante, com o público. (Dantas, 1976, p.l 1-2)<br />

A LITERATURA DE CORNÉLIO PIRES<br />

O objetivo deste trabalho, a análise da caricatura produzida na literatura<br />

paulista anterior ao Modernismo, determina a seleção dos textos de Cornélio Pires<br />

que serão aqui tratados. Assim, serão abordados contos e crônicas de Quem conta<br />

um conto..., de 1916, e Conversas ao pé do fogo, de 1921, e alguns poemas de<br />

Cenas e paisagens de minha terra, de 1921. Joaquim Bentinho (As estrambóticas<br />

aventuras do Joaquim Bentinho, o queima campo) interessa muito pela sua<br />

expressividade e pela popularidade que alcançou; todavia, foi publicado em 1924,<br />

e, ao que tudo indica, sua criação data do mesmo ano (Dantas, 1976, p.123). É,<br />

portanto, posterior ao Modernismo, sendo alvo de nosso interesse, mas devendo<br />

incorporar-se ao painel com o cuidado de não se negligenciar o momento da<br />

publicação e produção do texto.<br />

A crônica do universo caipira<br />

Na literatura de Cornélio Pires é aspecto prioritário o interesse e a preocupação<br />

com o registro e a divulgação do universo caipira. Esse compromisso pode


ser constatado já num primeiro exame dos textos, e certamente é um dos motivos<br />

para a proximidade entre alguns contos e a linguagem cronística, entre a narração<br />

e os "causos" contados por caboclos ao pé do fogo. O mesmo pode ser observado<br />

no que se refere à linguagem, que incorpora fortes marcas do dialeto utilizado<br />

pelos caipiras.<br />

Cornélio Pires manteve com o caipira um intenso e constante contato, em<br />

longas permanências no interior do Estado de São Paulo, especialmente nas<br />

proximidades de sua terra de origem, Tietê, na região Sul do estado, zona velha<br />

e tradicional, em períodos nos quais observava e registrava hábitos, costumes,<br />

crenças, casos, lendas e a linguagem do interiorano; por isso é comum que<br />

aspectos de contos e ensaios do escritor constem de estudos desenvolvidos por<br />

folcloristas e estudiosos do caipira. 4<br />

O livro Sambas e cateretês (1932) é uma espécie de amostra que reúne<br />

razoável produção dos "poetas do sertão", em que o escritor chega a classificá-los<br />

de acordo com o gênero das modas: "orgulhoso, amoroso, saudoso, jocoso,<br />

observador, crítico, vaidoso ... etc". O escritor também foi responsável pela<br />

"urbanização da viola caipira", pois pela primeira vez apresentou nos teatros da<br />

capital<br />

uma turma composta de oito caipiras, escolhendo os diversos tipos de roceiros, desde o<br />

loiro de olhos azuis, aos caboclos tapuio, cafuso, sarará, mulato, fusco e preto. Levou,<br />

com surpreendente interesse das platéias, sempre repletas, demonstrações de: fandango,<br />

cateretê, cururu, passa-pachola, cana verde, roda morena, São Gonçalo, mandado,<br />

samba-lenço, sambacaipira. (Rovai, 1978, p.57)<br />

Para Alberto Rovai, Conversas ao pé do fogo é uma verdadeira "obra-prima<br />

de antropologia cultural" (Rovai, 1978, p.57).<br />

A visão de mundo expressa por este contador de "causos" abriga, contudo,<br />

posições discrepantes: se pode ser lido como o registro amoroso c até ingênuo<br />

que divulga aos citadinos facetas da vida ignorada do desconhecido homem do<br />

interior, ou como o contraponto - especialmente nos "estudinhos" reunidos no<br />

ensaio denominado "O caipira como ele é" (Conversas ao pé do fogo) - à ácida<br />

crítica ao caipira desenvolvida por Lobato com o Jeca Tatu, também pode ser<br />

interpretado como abordagem mistificadora do caipira, quando se constata um<br />

tratamento do seu universo em que predomina um gênero de estilização oscilante<br />

entre o anedótico e o exótico, a idealização e o pitoresco.<br />

Cornélio Pires edita seu primeiro livro, uma reunião de poemas, Musa<br />

caipira, em 1910, alcançando já então considerável sucesso. Será ele, a partir de<br />

então, juntamente com Catulo da Paixão Cearense, um incansável defensor e


propagador da literatura regionalista. Por isso, os dois são apontados como<br />

precursores no gênero, juntamente com Afonso Arinos, Simões Lopes Neto e<br />

Valdomiro Silveira. A receptividade do público a essa literatura certamente se<br />

deve à novidade do assunto e do tom, laudatório e sentimental, extremamente<br />

oportuno em tempos de ufanismo patrioteiro, em que um nacionalismo exaltado<br />

se projeta como alternativa ao pessimismo crítico - cujos exemplos mais significativos<br />

são Euclides da Cunha, Lima Barreto, podendo-se incluir aí também<br />

Monteiro Lobato.<br />

A tendência à estilização e ao pitoresco<br />

No que se refere à construção de personagens, é evidente na literatura de<br />

Cornélio Pires o pendor para a estilização. Não são investidas as personagens de<br />

caráter simbólico mais abrangente; o escritor tende a explorar diferenças individuais<br />

ou étnicas, registrando peculiaridades de subgrupos que se englobam no<br />

grupo maior, o caipira.<br />

É difícil detectar em que medida a estilização de personagens, especialmente<br />

quando registra diferenças sociais ou étnicas, é o ponto de partida de estereótipos,<br />

ou em que proporção já é resultante de estereótipos disseminados anteriormente<br />

à produção dos textos, apenas auxiliando na sua propagação. Ou seja, é complexo<br />

saber em que medida a caricatura cria clichês e quando apenas registra, amplia e<br />

propaga imagens já anteriormente cristalizadas. Com o Jeca Tatu, Monteiro<br />

Lobato criou e disseminou uma imagem-símbolo do caipira que até hoje perdura;<br />

o escritor forjou uma imagem do Jeca, cuja repercussão, é necessário reconhecer,<br />

talvez se deva também à verdade que traz, ocorrendo significativas coincidências<br />

entre a imagem caricaturesca e o caricaturado.<br />

O Jeca Tatu é também o nascedouro da imagem do caipira projetada por<br />

Cornélio Pires, que dialoga com o Jeca, como se depreende de declarações do<br />

próprio escritor:<br />

O nosso caipira tem sido vítima de alguns escritores patrícios, que não vacilam em<br />

deprimir o menos poderoso dos homens para aproveitar figuras interessantes e frases<br />

felizes como jogo de palavras.<br />

Sem conhecimento direto do assunto, baseados em rápidas observações sobre<br />

"mumbavas" e "agregados" ... certos escritores dão campo ao seu pessimismo, julgando<br />

o "todo" pela parte, justamente a parte podre, apresentando-nos o camponês brasileiro<br />

coberto de ridículo, inútil, vadio, ladrão, bêbado, idiota e "nhampan"! (Pires, 1987, p.3)


No mesmo texto, Cornélio desenvolve uma contradefinição laudatória do<br />

caipira: é trabalhador, forte, tímido em contato com os da cidade, folgazão e alegre<br />

em seu meio, de rara inteligência e argúcia, tem maleabilidade para todo serviço,<br />

é dócil, amoroso, sincero e afetivo, desanimando apenas quando não trabalha em<br />

terra de sua propriedade (nesse momento o escritor toca em questão importante,<br />

ao procurar causas para o comportamento indolente do caipira). No confronto<br />

com o trabalhador estrangeiro, o caipira de Cornélio Pires ganha em envergadura,<br />

ao enfatizarem-se as garantias e facilidades asseguradas ao imigrante, o que não<br />

ocorreria com o trabalhador nativo.<br />

O autor de Musa caipira era um profundo conhecedor do universo caipira,<br />

um observador constante e apaixonado, que optou por percorrer caminho inverso<br />

ao do autor de Urupês. Este parte de um epítome da raça, de um tipo significativo,<br />

mas não único, e o generaliza à condição de amostra coletiva; aquele procura, em<br />

resposta, partir do geral para uma caracterização particularizada, e por isso menos<br />

reificadora.<br />

Ao mostrar, em Conversas ao pé do fogo, "O caipira como ele é", Cornélio<br />

Pires o faz por meio da apresentação de diferentes tipos: o caipira branco, o caipira<br />

caboclo, o caipira preto, o caipira mulato. Trata-se de um "estudinho", que é o<br />

resultado da pura observação empírica, sem maior rigor científico. A definição<br />

dos tipos obedece a um roteiro comum: inicia-se com a genealogia, seguida depois<br />

da descrição de características físicas exteriores (o corpo, a face, as roupas),<br />

culturais (comportamentos, crenças) e sociais (a relação entre os membros da<br />

comunidade, a relação com o trabalho).<br />

Curiosamente, mesmo ao apresentar o caipira de modo mais abrangente, com<br />

uma observação que se declara isenta, Cornélio Pires não discrepa muito da<br />

caricatura traçada por Lobato. Quando se refere ao "caipira caboclo", reitera a<br />

imagem fixada pelo criador do Jeca, no físico:<br />

Cabelos grossos e espetados que não tiveram contato com o pente, a barba rala,<br />

"sameada" no queixo, fios espetados aqui e ali... (CPF, p.20) 5<br />

no comportamento:<br />

Inteligentes e preguiçosos, velhados e "mantosos", barganhadores como ciganos,<br />

desleixados, sujos e esmulambados ... são valentes, brigadores e ladrões de cavalos...<br />

(CPF,p.21)<br />

no trabalho:


Geralmente os caipiras caboclos são madraços. Arranjando um cantinho no sítio do<br />

branco, ou numa fazenda, lá ficam "mumbaveando", tolerados pelos patrões... aos quais<br />

não prestam serviço. (CPF, p.22)<br />

A negatividade do Jeca é ampliada e reiterada no "caipira caboclo" de<br />

Cornélio:<br />

O traje do caboclo é repelente. Sua casa é imunda, de paredes esburacadas, coberta<br />

de sapé velhíssimo e podre ... A miséria envolve-lhes o lar ...<br />

O caboclo...<br />

Ei-lo de "cócre" à margem suja do ribeirão... (CPF, p.23)<br />

Entretanto, o foco adotado por Cornélio não é satírico; contrariamente ao<br />

efeito risível, o texto toma um tom solidário e condescendente:<br />

Coitado do meu patrício!... Só ele, o "caboclo" ficou "mumbava", sujo e ruim! Ele<br />

não tem culpa ... Ele nada sabe. (CPF, p.25)<br />

O objetivo do ensaísta é procurar causas e soluções, ainda que ingênuas,<br />

paternalistas, certamente motivadas pelo ideário do liberalismo, tão forte na<br />

década de 1910, com a campanha higienista, a defesa da alfabetização em massa,<br />

a apologia da educação e da saúde pública como soluções para os males sociais,<br />

a bandeira da moralização da política etc:<br />

Ainda não estão perdidos os caipiras caboclos. Para salvá-los bastam duas coisas<br />

tomadas a sério: a escola e a obrigatoriedade do ensino ... mas de verdade! (CPF, p.26)<br />

Nesse mesmo capítulo, o narrador acusa o engano de Monteiro Lobato: ao<br />

observar o caipira caboclo, registrando-o na literatura, tomou-o como representante<br />

do caipira em geral.<br />

Em Conversas ao pé do fogo, os contos-casos ("Crendospadre"), anedotas<br />

("Quiá-quiá-quiá-quiá") e pequenos ensaios ("Alimentação dos roceiros"; "Abusões";<br />

"Assombramento"; "Poetas caipiras") programaticamente visam revelar<br />

aspectos da cultura caipira. Daí o didatismo que impregna os textos. Os três<br />

segmentos introdutórios ("O caipira como ele é"; "Fazenda velha" e "Os moradores")<br />

propõem as teses a serem "defendidas": o caipira não se reduz à figura<br />

do Jeca Tatu; o caipira detém um tipo de saber que é diferente, mas pode e deve<br />

ser valorizado; a vida no campo tem encantos que o citadino desconhece, e perde<br />

com isso etc. Os textos seguintes funcionam como exemplos, provas e argumentos<br />

das teses apresentadas nos textos iniciais. O último capítulo, "Poetas caipiras",<br />

é uma seleta de letras de "modas" entremeadas de rápidos comentários valorati-


vos da parte do narrador, numa espécie de peroração, que amarra esta obra-dissertação<br />

com um argumento final: por meio de sua mais expressiva forma de<br />

criação artística, é ouvida integralmente a voz do caipira, que ascende à condição<br />

de sujeito, visto como um igual, sem desconsiderarem-se as diferenças que o<br />

tipificam.<br />

O que unifica especialmente os textos, que atendem ao apelo programático<br />

de registrar as peculiaridades dessa cultura diferenciada, além do tema comum -<br />

o universo caipira - é o fio condutor da persona, que presencia os episódios<br />

descritos e deles participa: é um citadino em descanso, que visita e se hospeda na<br />

"Fazenda velha", habitada por personagens bem características.<br />

O narrador-personagem é um observador privilegiado, estranho ao meio,<br />

recurso que autoriza o pitoresco, fortemente marcado na oposição entre a expressão<br />

lingüística do citadino, simples, mas apoiada na norma culta, e a expressão<br />

dos caipiras, vincada por traços dialetais:<br />

Nhô Tomé está bem disposto. Hoje deu para bulir com os pretos, agradando os<br />

piázinhos que rodeiam o fogo em suas tripeças.<br />

- Dicto! - perguntou ele a um dos crioulinhos de seus doze anos - ocê sabe porque<br />

é que os home e as muié não tem a mesma cor?<br />

- Nha - não.<br />

- Puis eu vô contá; botem bem o sintido... ("Água virtuosa" - CPF, p.81)<br />

É necessário observar que a descontinuidade registrada na oposição entre os<br />

dois níveis de expressão também está presente no interior do discurso do<br />

narrador, quando nele se destacam com aspas as expressões e termos tipicamente<br />

caipiras, seguidos da explicação ao leitor, presumidamente desconhecedor do seu<br />

significado:<br />

Ao "pé do fogo" as crianças temendo a escuridão, esperando o "cubu", bolo de<br />

frigideira, tostado por cima com um testo de brasas ... ("Fazenda velha" - CPF, p.43)<br />

Esse mesmo narrador-observador também legitima o exótico, nas didáticas<br />

digressões que desvendam aos leitores-citadinos as particularidades do interior,<br />

enfatizadas pela explicitação do confronto entre os malefícios da vida na cidade<br />

e o ritmo idílico da vida no campo:<br />

E eu, que neste sítio abandonado e tranqüilo vim curar minh'alma envenenada pela<br />

cidade, ao ouvir "histórias" e versos roceiros, cá estou, deitado na minha rede, balançando<br />

à noite, de cigarro caipira no canto da boca, embebido no passado, colhendo estas<br />

impressões ao ouvir as Conversas ao pé do fogo. ("Os moradores" - CPF, p.44)


A estilização nos poemas<br />

O pendor à estilização observado na literatura de Cornélio Pires é compreensível,<br />

dado o caráter demonstrativo que a impregna, e a conseqüente necessidade<br />

de exemplificação didática, obedecendo ao fim documental do registro.<br />

Em Cenas e paisagens da minha terra (1921), reedição de Musa caipira<br />

(1910), acrescida de O monturo (1911) e Versos (1912), livro de poemas, é bem<br />

evidente a amostragem de aspectos-padrão da vivência caipira, como, por exemplo,<br />

em "Casa rústica", poema que descreve a habitação, enfatizando a rusticidade<br />

e o despojamento:<br />

Eis a casa de um homem das florestas<br />

as paredes apenas barreadas;<br />

solo cheio de covas; pelas frestas<br />

entram réstias de sol esfumaçadas.<br />

As paredes da sala, para as festas<br />

São de anúncios e santos enfeitadas;<br />

mobílias toscas, frágeis e modestas,<br />

tripeças pelo uso envernizadas. (p.25)<br />

Esta pode ser a casa de qualquer sertanejo ("Eis a casa do Bino ou do Mendonça");<br />

a generalização motiva e explica a estilização.<br />

As modestas pretensões da vida humilde, apoiada nos "mínimos vitais", estão<br />

registradas no antológico "Ideal de caboclo":<br />

Ai, seu moço, eu só quiria<br />

p'ra minha felicidade,<br />

um bão fandango por dia,<br />

e um pala de qualidade, (p.26)<br />

"O enterro" documenta um funeral caipira:<br />

Vai-se levar à vila o corpo de Nhá Cóta,<br />

balouçando na rede a uma vara amarrada... (p.31)<br />

A "Origem do caboclo" reivindica um tratamento igualitário: perguntado o<br />

caboclo se não descenderia de bugres que moravam na região, responde:<br />

Nois num temo parente portugueis,<br />

nem mico, nem cuati, nem capivara...<br />

Semo fio de Deus cumo vanceis! (p.32)


Alguns poemas registram hábitos característicos: a caçada ("Caçada de<br />

veado"), a conversa fiada ("Prosa fiada"), a violência ("Ameaças", "O assassínio",<br />

"Vingança fracassada"), o lazer ("O truco", "Um bom cigarro", "Pescaria",<br />

"A festa de S. João"), o amor ("Desalento", "Em busca da noiva", "Noivos<br />

caipiras") num tom em que se sobrepõe o ritmo da prosa, com descrições ou<br />

narrações de episódios. A poesia de Cenas e paisagens da minha terra compõe<br />

um painel pitoresco, que permite ao citadino um suave contato com a vida<br />

sertaneja, como atestam "Quadro roceiro", "Lar caipira", "O almoço do muchirão",<br />

"Inverno na roça" etc. Manifesta-se também a tendência à evasão, na<br />

imagem da cidade nefasta que se opõe ao campo idealizado:<br />

Eu não quero um palacete<br />

com frisos e torreões,<br />

com jarras e com tapete, e mil cristais nos salões;<br />

Quero um um sítio retirado,<br />

com uma casinha modesta, telha vã, rio de um lado,<br />

e de outro lado a floresta.<br />

("Meu ideal", p.91-92)<br />

Enfarado da vida da cidade,<br />

fugindo ao desespero da peleja,<br />

eu venho em busca de tranqüilidade<br />

na vida sertaneja...<br />

("Na roça", p.l15)<br />

A amenidade do tom não descarta, entretanto, a presença de tensões, como<br />

registram especialmente os textos que abordam a violência das relações sociais,<br />

assim como é possível vislumbrar a crítica no tratamento anedótico de um dos<br />

pilares de sustentação das oligarquias, o coronelismo, cuja força motriz é o voto<br />

de cabresto, garantido pela condição de dependência do agregado:<br />

Fiquei meio atrapaiado:<br />

fui votá co' Coroné<br />

que pagô o dotor formado<br />

que curô minha muié,<br />

Quano chegô nhô Travasso,<br />

p'ra quem devo treis favô,<br />

e me pegano p'ro braço,<br />

disse: "Este é meu eleitô"


Tipos<br />

Votei cô' elle, que fazê?<br />

A gente ganha sapato,<br />

ganha ropa de algodão,<br />

come frango, come pato,<br />

quano é dia de inleição<br />

("O dia de eleição")<br />

No que diz respeito especificamente à construção de personagens, a estilização<br />

se observa especialmente no delineamento de tipos: são personagens reduzidas,<br />

pinceladas com poucos traços, resultantes de um tratamento despretensioso,<br />

apressado, superficial, que visa à fixação de protótipos, sem, entretanto, tornarem-se<br />

grotescas, hiperbólicas, ridículas. É o que ocorre com a negra velha,<br />

escrava liberta:<br />

a tia Polycena, bonanchona e escadeiruda, arrastando seus restos de chinelos de liga,<br />

fumando seu pito de barro de longo canudo; com sua saia de algodão grosso, camisa de<br />

algodãozinho, deixando ver pelo enorme "decote" balouçantes e escorrupichadas maminhas<br />

... ("Os moradores" - CPF, p.42-3)<br />

o "capitão-do-mato", caçador de negros fugidos:<br />

E alisava o cavanhaque, "frangindo" a testa, já que não podia enrugar os sobr'olhos<br />

polpudos, salientes e duros de homem mau, de criminoso nato ... ("Uma santa" - CPF,<br />

p.47)<br />

a caipirinha trigueira e alegre (não gratuitamente imagem oposta à "sarcopte<br />

fêmea", ou à Das Dores, de Lobato):<br />

Maria, a linda filhinha do José Corrêa, moreninha jambeada, olhos amendoados,<br />

negros e límpidos, longos cabelos, nariz perfeito, alvos dentes expostos em risos francos<br />

... ("Escola escamungada" - CPF, p.90)<br />

o caipira jovem, sadio e trabalhador (anti-Jeca?);<br />

Guapo e sadio crescia desempenado o filho do Cardoso, o Durvalino, rapagão de<br />

boa estatura, desenleado no serviço e "quatro-paus" nas festas e fandangos, em sambas<br />

e desafios. Não perdia "sucia" com seu lenço cor de rosa barrado de ramos roxos, ao<br />

pescoço ... ("Escola escamungada" - CPF, p.91)


a "moça-de-estrada" (Carula), filha de "um caboclo vadio", "desleixado e sujo",<br />

e de mulher "esguedelhada, desdentada e marota", possíveis reiterações da versão<br />

Jeca do caipira; a menina é<br />

criada pelas estradas, bonita e dengosa, elegante no andar, chibante nos seus farrapos ...<br />

Pidonha e cínica... ("Fuzilô u'a cacetada" - CPF, p.l 13-4)<br />

Certamente predominam os tipos sobre as caricaturas por não se detectarem<br />

na literatura de Cornélio Pires objetivos satíricos. Pelo contrário, como facilmente<br />

se constata, o escritor visa à defesa e à exaltação de uma figura humana que julga<br />

injustiçada, pela qual quer motivar empatia e identificação.<br />

Caricaturas<br />

Há algumas personagens, entretanto, que tendem ao delineamento caricaturesco;<br />

é necessário, todavia, observar que a concepção dessas personagens como<br />

caricaturas - reduzidas e sintéticas, calcadas sobre poucos traços característicos,<br />

dotadas de feição cômica ou ridícula - não parece ter fins agressivos visando<br />

especialmente à depreciação ou ao rebaixamento, pois provocam um riso mais<br />

gratuito, que apenas ameniza ou distensiona a narrativa, em passagens pitorescas.<br />

É o que se observa, por exemplo, na apresentação de nhô Tomé:<br />

É ele o nho Tomé, muito alto, magruço, barba branca embramada, bigodes cor de<br />

sarro de cigarro de palha, cigarro que não lhe sai da boca em que só se vê um dentão<br />

amarelo, o canino.<br />

É feliz e pachorrento, sossegado, boa memória, meio fantasista, meio mentiroso,<br />

mais crédulo que mentiroso. ("Os moradores" - CPF, p.42)<br />

Juquita exemplifica o caipira - fazendeiro bem-sucedido, desconfiado quando<br />

fora de seu hábitat, mas esperto e matreiro, conseguindo mesmo enganar um<br />

finório malandro da cidade:<br />

Juquita, apesar de desenleado e garboso freqüentador de bailes na cidade de Canindé,<br />

não parecendo caipira na "sua" terra, ao chegar a São Paulo, como sucede aos moradores<br />

de cidades do interior, perdia a "linha" e dava logo a perceber que não era da capital.<br />

Ereto no seu terno preto, subia pela rua de S. Bento, mal relanceando os olhos pelas<br />

vitrinas, andando quase a se esfregar pelas paredes à passagem de um bonde ou de um<br />

"auto". De chapéu claro, botina "cri-cri" ringideira, gravatinha preta entalada no colarinho<br />

"Santos Dumont", deixava ver, atravessando a barriga, amarela e pesada corrente de<br />

ouro, com a sua indispensável medalha cravejada de brilhantes, estrelejando ao sol.<br />

("Quiá-quiá-quiá-quiá" - CPF, p.65)


João Balduíno ("Uma festa de caridade" - CPF) é a caricatura do sujeito<br />

gabola, sitiante popular na vila que, defrontado com o perigo, não controla o medo<br />

e passa por situação constrangedora. O narrador apresenta-o primeiro fisicamente:<br />

João Balduíno era um caipira troncudo, grandalhão, de bochechas bambas, enrugadas<br />

ao chegar à papada; bigodudo, olhos calmos e superiores, engastados entre os refegos<br />

gordos das maçãs do rosto e os sobr'olhos cerrados; testa regular em forma de "M grande<br />

de mão" encimando o nariz chimbeva. (p.l35-6)<br />

A seguir, o narrador aborda o comportamento da personagem:<br />

Como todo homenzarrão, tinha um ar bonanchão, gestos largos e pesados, falava<br />

com calma, mas era gabola até ali. (p.136)<br />

O traço ampliado nessa personagem caricaturesca é sua marca mais característica,<br />

a gabolice:<br />

Era um convencido do muque ... Mas, apesar de dado a valente e corajoso, nunca<br />

dera a prova. Fanfarronava ... (p.137)<br />

que enfatiza o ridículo do seu comportamento:<br />

João Balduíno, gabola e sempre "garganta", dado a corajoso, escaramuçava, fora, o<br />

Destrago, esparramando gente e quase trepando pelos taboleiros das quitandeiras, com<br />

grande gáudio da molecada perereca. (p.143)<br />

A narração conclui, comicamente, quando o valente se defronta com o touro<br />

bravo e cai do cavalo, lamentando: "- Se sangue féde... eu tô firido!" (p.147).<br />

A anedota "A Carolina" faz a caricatura do hábito freqüentemente observado<br />

no caipira de inventar "causos" fantasiosos: um caipira conta que, estando<br />

"impaxada" uma senhora, toma ela por engano um copo de "Carolina" (creolina),<br />

sofrendo forte diarréia; desde então, a mulher passa a evacuar diariamente pura<br />

"Carolina", enriquecendo o marido à custa da venda do produto.<br />

O caso em si não oferece maior interesse, o que vale a pena notar é o fato de<br />

o episódio ser narrado por uma personagem bastante caricaturesca, o Joaquim,<br />

"vulgo queima-campo", sujeito que "mente por quantas juntas tem". A anedota<br />

é na verdade um pretexto para a apresentação desse mentiroso de fama, esboço<br />

do Joaquim Bentinho {As estrambóticas aventuras do Joaquim Bentinho, o<br />

queima campo), que seria com muita comicidade retomado em versão mais<br />

acabada em 1924:


O Joaquim é miudinho, pernas finas, de "garrões" salientes, magrinho, barbica rala<br />

e lisa, cabeçudinho, olhinhos vivíssimos, narigudinho, tererequinha, bochechinhas chupadas,<br />

falante como o diabo e cuspinhador sem alívio ... "P'ros seiscentos!" Fala que é<br />

um advogado ... É uma cachoeira! (CPF, p.107-8)<br />

Joaquim Bentinho<br />

Aqui vale a pena fazer um parêntese para tratar d'As estrambóticas aventuras<br />

do Joaquim Bentinho, o queima campo de 1924, obra que foi sucesso de<br />

vendagem durante anos, em sucessivas reedições, e que motivaria o autor a<br />

escrever uma seqüência: Continuação das estrambóticas aventuras do Joaquim<br />

Bentinho (o queima campo), em 1929 - os dois livros juntos alcançaram a tiragem<br />

total de 50 mil exemplares. Mário de Andrade, em Louvação da tarde, poema<br />

escrito em 1925 e publicado em 1930, faz referência que atesta o sucesso dessa<br />

personagem, cuja simples citação, na época, certamente tinha forte apelo junto<br />

ao público, como figura conhecida, sobre a qual se dispensam explicações<br />

(Candido, 1990):<br />

Não te prefiro ao dia em que me agito,<br />

Porém contigo é que imagino e escrevo<br />

O rodapé do meu sonhar, romance<br />

Em que o Joaquim Bentinho dos desejos<br />

Mente, mente, remente impávido essa<br />

Mentirada gentil do que me falta.<br />

(Andrade, 1987, p.238)<br />

A gênese da personagem se reporta a várias fontes: a lembrança da graça e<br />

da fértil imaginação de Raimundo Pires, pai do escritor, a observação de tipos<br />

semelhantes com os quais Cornélio conviveu - Joaquim Capivara, tipo muito<br />

popular em Botucatu; Francisco Lopes de Moraes, inspetor de quarteirão, conhecido<br />

como Lopinho etc. (Dantas, 1976, p.l 19-20) -, mas o certo é que Joaquim<br />

Bentinho é de fato a síntese de muitos brasileiros "patranheiros" como ele ("Esses<br />

são os tipos mais apreciados nos muchirões e fandangos" - EAJB, p.l3), numa<br />

caricatura delineada com poucos, mas intensos caracteres, tendente ao exagero e<br />

à deformação.<br />

As estrambóticas aventuras... retomam o fio de Conversas ao pé do fogo:<br />

para iniciar a estória, o narrador volta à Fazenda Velha, e ao convívio com seus<br />

habitantes - nhô Tomé, Tia Polycena, Zabé, Flora, tios Romualdo, Militão,<br />

Ponciano etc. -, pois "ao pé do fogo" é que Joaquim Bentinho narra suas façanhas.


A personagem é uma caricatura, já definida inicialmente pelo atributobase<br />

que a identifica, "queima campo": "... é o indivíduo que, a propósito de<br />

tudo, e até fora de propósito, tem um caso a contar, uma mentira engatilhada"<br />

(EAJB, p.10).<br />

O físico da personagem retoma e espraia as marcas do Joaquim de "A<br />

Carolina", e pode corresponder à descrição de qualquer caboclo:<br />

É um caboclinho mirradinho, olhinhos vivos, barbica em três capões: dois de banda<br />

e um no queixo; bigodes podados a dente, desiguais e sarrentos; nariz de bodoque,<br />

aquilino, recurvo, fino, entre bochechinhas chupadas; dois dentões amarelos, os caninos,<br />

que só aparecem quando ri, quais velhos moirões de porteira abandonados; rosto em<br />

longo triângulo; cabeçudinho; cabelos emaranhados; orelhinhas cabanas, cada qual<br />

suportando o seu toco de cigarro, amarelentos e babados. (EAJB, p.16)<br />

A roupa da personagem é também padrão; camisa de algodão riscado, uma<br />

penca de "bentinhos", favas e patuás pendurados ao pescoço. O comportamento<br />

é inquieto: "é um serelepe, espertinho e perereca".<br />

É curioso observar, todavia, que, se Joaquim Bentinho não deixa de ser<br />

cômico e pitoresco, a sua apresentação não é depreciativa, não visa a rebaixá-lo<br />

ou a desdenhá-lo. Quem descreve o caricaturado identifica-se com ele, e visa<br />

despertar a simpatia e a solidariedade em quem lê, objetivo evidente, por<br />

exemplo, no emprego afetuoso dos diminutivos que o qualificam (caboclinho,<br />

olhinhos) e nas explicações e justificativas que o narrador apresenta para o<br />

comportamento da personagem:<br />

Entre os caipiras a mentira, quase sempre, é um jogo de espírito.<br />

Mentem por passatempo, para empulhar o próximo, principalmente se esse próximo<br />

é da cidade, (p.14)<br />

O criador da personagem procede a uma inversão: utiliza-se do perfil caricaturesco<br />

para provocar a simpatia, e não a aversão. Provoca o riso de regozijo,<br />

gratuito e distensionador de ânimos; não visa ao riso como corretivo satírico.<br />

Cornélio Pires se vale da caricatura para exaltar os méritos da personagem-protótipo-caipira:<br />

Há caipiras mentirosos de uma fecundidade de imaginação assombrosa! Não sabendo<br />

escrever, não podendo escrever suas novelas e romances, criações próprias, o caipira<br />

desanda a mentir. (p.15)<br />

É certo que rimos ao enxergar o outro-objeto do riso numa condição de<br />

inferioridade ou fragilidade, que de algum modo nos eleva. Entretanto, há


também um riso que não rejeita, mas acolhe, ao constatar no outro a condição<br />

humana que nos iguala. Parece ser essa segunda e mais rara forma de humor,<br />

provocadora do riso de acolhida, o que Cornélio Pires visa com suas caricaturas<br />

do caipira.<br />

A referência intertextual para a concepção de Joaquim Bentinho é o Barão<br />

de Munkhausen:<br />

E enquanto o Bentinho tira fogo no isqueiro, para acender o eterno toco de cigarro,<br />

fico a pensar, cada vez mais convencido, de que é um fato o "Europa curvou-se ante o<br />

Brasil..." e vejo que a Alemanha foi mais uma vez vencida. O Queima Campo bateu longe<br />

o Munkhausen, (p.96)<br />

Não se trata, entretanto, de paródia, pois não se detectam no texto de Cornélio<br />

Pires referências questionadoras ou desmistificadoras com relação ao Barão de<br />

Munckhausen; é possível antes pensar-se numa paráfrase sertaneja do barão:<br />

ambos são exageradamente fantasiosos e cômicos.<br />

Joaquim Bentinho é caricatura traçada para compor uma espécie de protótipo<br />

de uma das faces do caipira, o que se evidencia na sua revelação "sob formas<br />

diversas":<br />

Como todos os mentirosos, o Joaquim Bentinho ora é pai de muitos filhos, ora os<br />

filhos morreram, ora é viúvo, e ora é casado, (p.101)<br />

É necessário lembrar também que o caipira mente para fugir à rotina e às<br />

carências do seu cotidiano, como demonstração e afirmação de poder aos seus<br />

iguais e aos estranhos que o ouvem. Além disso, não se deve esquecer de que a<br />

mentira é parte da arte de contar, tão cara ao caipira, que é mestre no prodígio<br />

de exagerar e carregar nas cores.<br />

Por outro lado, o hábito de fantasiar está presente na vida do caipira, mas não<br />

é seu privilégio. Aqui Cornélio Pires resgata também a tradição da própria<br />

literatura, como "arte de inventar e contar estórias".<br />

Caricaturas e clichês: Quem conta um conto...<br />

O tratamento do universo caipira efetivado por Cornélio Pires oscila entre o<br />

registro documental, bem típico da literatura do tempo, mais evidente nas<br />

passagens didáticas, explicativas, ou apenas descritivas, como bem se observa,<br />

por exemplo, nos "estudinhos" de Conversas ao pé do fogo; a idealização,<br />

fortemente marcada na apresentação dos hábitos alimentares, do lazer e especial-


mente na oposição entre a positividade da vida no campo e a negatividade da vida<br />

nas cidades; e o anedótico, normalmente com função valorativa: o caipira é o<br />

sujeito "esperto", que manipula o citadino, e detém um saber diferenciado, mas<br />

válido.<br />

A pobreza, a violência, as carências materiais, a instabilidade e a insegurança<br />

da vida cotidiana não estão ausentes dos contos e poemas; superpõe-se, entretanto,<br />

no tratamento desses assuntos, a perspectiva da mediocridade áurea, comum<br />

na apresentação do rústico encetada por estranhos ao meio, mesmo quando<br />

profundos e íntimos conhecedores do universo tratado, como se observa no trecho<br />

a seguir:<br />

Percebi logo. Depois daquelas palavras de saudade, aquele "depois iê conto", podia<br />

jurar que se tratava de um criminoso foragido, tão comum em todos os sertões, onde,<br />

valente e misterioso, se transforma, ao lado dos bons caboclos, em ótimo campeiro,<br />

criador de gado e porcos. ("A história de um campeiro" - QCUC, p.63)<br />

Quem conta um conto... (1916) reúne textos que se enquadram antes como<br />

"causos" que como contos mais acabados, com predominância da cor local, nos<br />

quais não está ausente um didatismo às vezes comprometedor. É o que se observa<br />

nas minuciosas explicações dirigidas ao leitor sobre a paisagem e os costumes<br />

característicos que se entremeiam à narração:<br />

O "muchirão", "mutirão" ou "puchirão" é a mais bela instituição cabocla. É o<br />

trabalho aliado à festa; é o socorro ao necessitado, aliado à folgança; é o serviço prestado,<br />

sem interesse, aliado à alegria deliciosamente franca da caipirada. ("O que é de raça..."<br />

-QCUC, p.l58)<br />

Segue-se uma minuciosa descrição do mutirão caipira, com modas cantadas<br />

pelos violeiros, a reza que finaliza o trabalho do dia, o jantar, a folgança.<br />

Ao oscilar, no tratamento das personagens, entre a caricatura risível e a<br />

estilização tipificadora, gênero de composição de personagens dominante nesses<br />

contos de 1916, o autor favorece a disseminação de estereótipos.<br />

É o que retrata o perfil de Chico Mandinga ("P'ra mim foi pizadêra"),<br />

ex-caçador de negros fugidos, "espalhafatoso narrador de proezas de almas do<br />

outro mundo" (QCUC, p.8), cujo comportamento é padrão:<br />

tirando o isqueiro de taquara, ajeitou a pedra-de-fogo, arredondada, tirou fogo, chegou<br />

o cigarro, correu a mão pela barba, cuspiu pr'uma banda que nem pato, e pôs-se a fazer<br />

hora. (p.8)<br />

Imagem também típica, aproximando-se ao clichê, é a do caboclo Quirino:


O Quirino era um caboclinho meio sunga-munga que não valia uma pitada de fumo:<br />

não agüentava um esbarro de gente e nem sequer merecia um pé d'ouvido. ("To rente"<br />

-QCUC,p.93)<br />

A inconstância na política e a ladinice são comportamentos constantes na<br />

apresentação dos caipiras:<br />

Alistado o bocó do Quirino, sumiu-se e tornou-se vasqueiro, tendo tido a coragem<br />

de votar no partido do João Queixume, velho adversário do Ferruja, a troco de um pala<br />

e um par de chinelas de liga. (p.93)<br />

Esses traços são compreensíveis ao lembrar a manipulação que o caipira sofria,<br />

por ocasião dos pleitos, a nenhuma autonomia de pensamento e ação decorrente<br />

da dependência do homem do campo (colono, camarada, agregado) aos donos da<br />

terra, consagrada no próprio léxico, que se vale de expressões que identificam a<br />

situação do eleitor à condição de dominação sobre o animal, como em "voto de<br />

cabresto" e "curral eleitoral", componentes do sistema político.<br />

A violência também é traço marcante no perfil da personagem, característica<br />

que viria muito depois a ser objeto do clássico estudo de Maria Sylvia de Carvalho<br />

Franco (1976):<br />

O caboclinho, vadio e medroso, era em casa uma fera...<br />

Quirino, por qualquer contrariedade, virava bicho e espancava a pobre mãe. (p.94)<br />

No mesmo conto, é cômica a caricatura de instituições locais:<br />

A força pública do lugar se compunha de dois soldados e um escrivão, que acumulava<br />

os cargos de secreta, capanga, substituindo, em casos de perigo, o delegado, (p.95)<br />

Personagem também próxima à estereotipia, tendência acentuada talvez pela<br />

função desempenhada na comunidade, o curandeirismo, é Chico Cambao, figura<br />

mais amedrontadora que risível:<br />

um caboclo alto, cabeludo, arcado como quem recebe um soco na boca do estômago,<br />

olhos safadamente ligeiros e inquiridores nos momentos necessários, desdentado, bochechas<br />

chupadas, como que dependuradas aos lados do nariz acarneirado, como um picuá<br />

vazio, a cavalo na bicanca de fossas cabeludas. O homem era rengo e cambaio da perna<br />

direita, defeito de que adviria o apelido detestado. ("Passe os vinte" - QCUC, p.99)<br />

Há uma correspondência entre o físico e os sentimentos da personagem: "Curandeiro<br />

por profissão e feiticeiro por vingança, era o caboclo temido naquelas<br />

vizinhanças" (QCUC, p.l00).


Em Quem conta um conto..., entretanto, já se manifesta a preocupação em<br />

evitar generalizações acerca do caipira, marcando-se algumas diferenças (étnicas,<br />

sociais e morais), que distinguem os indivíduos que compõem a coletividade. No<br />

conto "Atira Juca", encontram-se os "chuvas", caboclos ociosos, "filantes, aproveitadores<br />

de roceiros honestos", que "escancaravam a boca cantinguenta, exibindo<br />

dentes amarelos, comidos de tártaro, num gozo imbecil" (p.141-2) e, como<br />

contraponto, há o João Claudino,<br />

fumeiro afamado, caboclo sério até ali, tipo trabalhador e íntegro, que se indigna ao<br />

presenciar o desrespeito com os mais fracos.<br />

No que se refere ao registro das diferenças sociais, a par do caipira sem<br />

recursos, agregado ou camarada, encontra-se também o rábula manhoso, encarnado<br />

pelo Coronel Pedroso: "barrigudo solicitador, mestre em insinuações de<br />

testemunhas e defesas sustentadas a murro" ("Implicância", p.l09) e o "sitiante<br />

remediado" ("Nunca mais!")<br />

que justa camaradas por dia ou por mês; que com eles trabalha e tem, no seu pasto, mais<br />

três ou quatro casinhas, para empregados, compadres e meio-agregados. (p. 122)<br />

cujo protótipo é o Jeca Ribeiro (outra face do antiJeca?): "bom caipira remediado,<br />

amigo de livros, jornais e almanaques da botica que o deleitavam todas as noites"<br />

(p.l22).<br />

O caipira é tratado não apenas indistintamente como grupo, mas a partir de<br />

diferenças individuais que caracterizam os componentes da coletividade; esse<br />

procedimento revela a preocupação em despertar no leitor uma visão mais<br />

solidária com relação ao outro, tratado de modo não reificado, como objeto<br />

pitoresco, mas como sujeito, que detém e cultiva um saber e carrega uma<br />

identidade característica.<br />

Como já foi visto, as relações estabelecidas e determinadas pela ética do<br />

coronelismo são assunto não apenas da poesia de Cornélio Pires, mas também<br />

são tema freqüente dos contos ("Tô rente...", "Escola escamungada"). Exemplo<br />

muito expressivo encontra-se no texto "E a diferença que hai...", dada a aguda<br />

crítica ao sistema de votação, baseado no aliciamento, e na cabala, como se<br />

evidencia no diálogo que segue:<br />

- Dá pr'a i ino inté as inleição, pois na votação dos camarista vai havê impenho e<br />

eu espero ganhá um burro de cada partido...<br />

-Ocê é veiaco!<br />

- Os chefre mermo é que aporveitam da povresa dos cabocro, deixano nóis sem<br />

vergonha...<br />

- Puis que paguem bem.


É preciso atentar para a inversão desveladora e risível a que o texto procede,<br />

colocando na condição de manipulador o caipira, e o coronel, poderoso, detentor<br />

da vida de seus agregados, na humilhante condição de manipulado.<br />

Na prática não é essa, porém, a regra. Ao eleitor ladino, os antídotos eram<br />

muitos; da vigilância do cabo eleitoral à surra exemplar. A regra era a fidelidade;<br />

pois é<br />

perfeitamente compreensível que o eleitor da roça obedeça a orientação de quem tudo<br />

lhe paga e, com insistência, para praticar um ato que lhe é completamente indiferente.<br />

(Leal, 1975, p.36)<br />

E é justamente pela dimensão às avessas impressa na versão de Cornélio que<br />

sobressai a comicidade da situação.<br />

A estilização de personagens não caipiras<br />

A tendência ao delineamento de tipos e caricaturas observada na literatura<br />

de Cornélio Pires não se restringe ao tratamento do caipira, mas atinge também<br />

o citadino, este, sim, comumente em situação depreciativa. E o que se constata<br />

na figura do filho de fazendeiro, estudante da cidade e conquistador vulgar:<br />

O Albino Abrantes, segundanista de direito, figurinha apagada e toda cheia de<br />

elegâncias, vagava pelos bairros da capital, de paletó cintado, calça curta, chapéu<br />

enterrado até as orelhas, exibindo os seus chumaços em forma de muque, num morder<br />

de lábios irritante, lançando olhares úmidos, com aqueles olhinhos de coelho, às moças<br />

dos sobrados. ("Assustô. 7 " - QCUC, p.31)<br />

Situação semelhante, próxima à depreciação, é a do "cavador" Fontes da Rocha,<br />

sujeito<br />

Bem falante e inteligente, sem um "tusta" no bolso, comia com um amigo cavado<br />

no dia da chegada e dormia em qualquer lugar.<br />

Águia em casos de necessidade. ("Maria! Credo!" - QCUC, p.73)<br />

O imigrante italiano é também abordado, em distintas situações: como<br />

oponente no entrevero - "Cie intaliano... cuidado;/ p'ra me chamá de veiaco"<br />

("Ameaças" - CPMT); como lavrador bem-sucedido, beneficiado por garantias<br />

que não existem para o caboclo - o que poderia explicar as tensões entre os<br />

imigrados e os naturais da terra indiciadas nas "Ameaças" - e como elemento em


adaptação ao novo meio, já aculturado, absorvendo as influências do universo<br />

caipira, bem representado na simpática imagem do vendeiro:<br />

O vendeiro, um robusto camponês italiano, morador velho do lugar, barrigudo<br />

comedor de polenta com passarinho e pratadas de macarrão, não abandonando o almeirão<br />

amargo, abundante no talhão fronteiro, do cafezal vizinho, era um espírito simples e<br />

aprendeu com os caipiras a acreditar em almas do outro mundo e façanhas de feiticeiros<br />

mandiguentos. ("Passe os vinte" - QCUC, 103)<br />

A propósito, essa passagem reitera afirmação de contemporâneos a respeito<br />

da resistência às mudanças típica da cultura caipira, que assim chegaria a marcar<br />

fortemente os hábitos, as crenças e até a expressão lingüística do italiano. 6<br />

A presença do imigrante italiano nos textos de Cornélio Pires denota uma<br />

visão dinâmica e atenta do processo de transformação que ocorria no interior do<br />

Estado de São Paulo, pois o autor empreende o registro do universo caipira<br />

incorporando um de seus mais expressivos fatores de mudança.<br />

Evidência do humor do criador do Joaquim Bentinho encontra-se em "Um<br />

pedaço da vida do poeta Tibúrcio", texto de caráter autobiográfico (Cornélio Pires<br />

era conhecido em Tietê pelo apelido Tibúrcio), que narra um caso de amor<br />

malsucedido: o escritor desenvolve uma espécie de autocaricatura, descrevendo<br />

com humor a personagem central, o poeta Tibúrcio, com traços que correspondem<br />

a suas características pessoais:<br />

O poeta era feio, de testa curta, cabelos à Gorki, nariz pequeno e arrebitado, maxilar<br />

inferior saliente, beiçudo e de olhos muito azuis, uns olhos de criança. Dizem que era<br />

puro de alma e limpo de coração e algibeiras. (QCUC, p.l88)<br />

A língua como recurso caricaturesco<br />

Importante recurso para o delineamento de personagens caricaturescas,<br />

concebidas por Cornélio Pires, apóia-se sobre a linguagem. Como elemento<br />

distintivo das personagens, o escritor se vale de sua expressão lingüística peculiar.<br />

Em Cornélio Pires, esse registro se faz enfatizando por oposições a face<br />

risível da expressão dialetal característica do caipira, o que é forte elemento de<br />

auxílio para a composição do clima pitoresco.<br />

Como já foi afirmado anteriormente, o pitoresco da língua utilizada por<br />

personagens é ampliado, caricaturado, especialmente pela oposição ao tom mais


culto e convencional do narrador, enfatizando com isso a "incorreção" e a<br />

"incultura" que marcam sua fala. Para o riso basta a simples constatação das<br />

diferenças entre as duas vozes dissonantes:<br />

As crianças tímidas, mãos na boca, rodeiam as mães; os maiores sentam-se nas<br />

tripeças ou nas beiradas do velho e alto escabelo.<br />

- O quar é esse?<br />

- É o Chico...<br />

-Tá crescido!<br />

- E o seu de peito cumo chama, Nh' Ana?<br />

- Botaro um nome estúrdio... foi o padrinho... chama 0'che. - Percebi que era Washington.<br />

("Manhã de inverno" - CPF, p.l26)<br />

Procedimento também muito freqüente 6 entremear no discurso do narrador<br />

expressões típicas do caipira. Há, entretanto, entre os dois discursos, uma descontinuidade,<br />

evidenciada nas expressões caipiras aspeadas ou escritas com tipo<br />

gráfico diferente, enfatizando a expressão do outro como desvio, como se observa<br />

nos trechos a seguir:<br />

Os jogadores mais crédulos, antes do jogo, deixavam sobre os braços da cruz as<br />

azinhavradas moedas de "dois zintem" p'ras "arma", contando com o ajutório dos santos.<br />

("Não paga a pena..." - QCUC, p.l3)<br />

Macaia, que fora escravo do capitão Tigre, fazendeiro do tempo-de-dante entre Porto<br />

Feliz e Capivari, sabia curar que nem "dotor-formado de mérco". ("Passe os vinte..." -<br />

QCUC, p.l24)<br />

É necessário observar que a descontinuidade risível entre os dois níveis de<br />

expressão reside particularmente no nível fonético e semântico, explorando<br />

especialmente o léxico peculiar e as expressões e interjeições características.<br />

Os títulos de muitos contos baseiam-se em marcas do léxico típico do caipira<br />

- "Escola escamungada", "A Carolina" -, ou se apóiam no registro de sugestivas<br />

expressões peculiares: "Crendospadre!", "Gadeiúda dos quinto...", "É a diferença<br />

que hai..." etc. Os próprios títulos dos contos e crônicas já antecipam o caráter<br />

anedótico ou pitoresco das narrativas.<br />

O registro da expressão lingüística diferenciada do caipira incorpora um<br />

léxico eventualmente ininteligível aos estranhos ao meio, o que justifica o<br />

glossário que se encontra ao final dos livros de contos e de poemas. O trecho<br />

seguinte evidencia bem essa dificuldade:<br />

Assim falando o caipira abriu a "guaiaca" da cinta e puxou um "massuruca", enleado<br />

numa "pelega" de cem, para pagar a despesa. ("Viu como eu sô valente?" - QCUC, p.172)


O confronto entre os dois níveis distintos de expressão também se observa<br />

nos poemas do escritor:<br />

Quando voltavam da raia<br />

o Zico e o Tingo, zangados.<br />

no Manequinho da Praia<br />

bebiam desapontados<br />

- Aquele Bino é um canaia...<br />

(concordavam exaltados)<br />

tratô o cavalo cum páia...<br />

(E acenavam revoltados)<br />

("Depois das 'parelhas'", p.48)<br />

Todavia, nem todos os textos de poesia são marcados por essa descontinuidade.<br />

Há poemas inteiros em que se expressa apenas a voz culta que narra ou<br />

descreve:<br />

Num recanto da choça esburacada,<br />

O resto da sanzala, uma tapéra,<br />

se contorce abatida e abandonada,<br />

a negra-velha que só a morte espera<br />

("Abandonada", p.l8)<br />

Também há poemas cuja única voz é a do caipira, seja expressando seus<br />

modestos anseios ("Ideal do caboclo"), as tensões da vida instável ("Ameaças"),<br />

narrando o jogo de truco ("O truco"), os seus males de amor ("Confidência") ou<br />

mesmo descrevendo violeiro de renome ("Fama de violeiro") e comentando<br />

episódio burlesco:<br />

- Strodia o tar nho Tóte,<br />

um moço tudo intojado,<br />

inciô cô sirigote<br />

o seu cavalo bragado;<br />

saiu socano no trote,<br />

entrô na vila ingarbado,<br />

mais o macho deu um pinote,<br />

largano o cabra espichado!<br />

("Perdeu o requebrado", p.55)<br />

Esses são momentos em que o caipira se expressa com maior liberdade, e por<br />

isso são textos muito interessantes pela naturalidade e espontaneidade do tom e<br />

pela oportunidade na escolha dos temas.


A caricatura da linguagem, entretanto, não toca apenas a expressão caipira,<br />

mas se encontra também como uma das marcas do imigrante italiano:<br />

Eh! Nhô-Juó! Io non fize nada p'ro sinhore! Chega um poquinho!<br />

Me faça o favore, sô Juó! Io le pago venti-mila-rei... Me tira as mandiniga... me tira<br />

as mandiniga! (QCUC, p.105-6)<br />

Mais à frente, quando Cornélio Pires opta definitivamente pela vertente<br />

anedótica - constituindo-se seus últimos trabalhos escritos praticamente apenas<br />

em coletas de chistes e piadas (Patacoadas, 1926; Mixórdia, 1927; Tarrafadas,<br />

1932) - cuja opção temática não se restringe mais ao universo caipira, mas toma<br />

também como objeto o homem da cidade e os tipos originários de diferentes<br />

nacionalidades, que vão ocupando o interior de São Paulo (hoteleiros, comerciantes,<br />

viajantes etc), o humorista continua a utilizar-se do referencial lingüístico<br />

como reforço caricaturesco. É o que se observa nos trechos seguintes:<br />

Óóó.. O Telles já acordou, o Telles abriu os olhos, o Telles está a bucejare, o Telles<br />

está a se espreguiçare ... o Telles vai pelo corredore, o Telles introu no banheiro, o Telles<br />

está despido, o Telles está a se ensaboare ... ("Entre viajantes e hoteleiros" - Tarrafadas,<br />

p.54-5)<br />

O Tavares, jeitoso representante da casa, que sabia levar os devedores rebeldes com<br />

grande diplomacia, dirigiu-se ao Mrade Habib, abraçou-o afetuosamente, sempre expansivo:<br />

-Bob dia, Mrade:::<br />

- Baun dia, Tivare... cumo vae ocê? (Ibidem, p.67)<br />

Mas nesse momento a caricatura já é muito mais um recurso do piadista, do<br />

contador de anedotas, do que do escritor, definitivamente relegado a um segundo<br />

plano.<br />

CONCLUSÕES<br />

Cornélio Pires se apresenta em espetáculos, palestras e encenações nos<br />

teatros, de modo sistemático, desde 1914. Nesse momento, tinha publicado<br />

apenas um livro de poemas, Musa caipira. Toda a sua produção escrita é posterior<br />

ou simultânea à experiência nos palcos, e certamente foi por ela influenciada.


Como afirma com acuidade Pedro F. do Amaral, toda "sua obra publicada é<br />

uma imensa reportagem" oriunda da observação da vida caipira, registrando<br />

impressões e descrevendo seus usos e costumes (Amaral, 1977, p.42). A vivência<br />

no palco pode auxiliar em parte a explicação para a literatura do escritor: a<br />

superficialidade das personagens estilizadas, o traçado anedótico dos "causos",<br />

a preocupação com o registro documental de costumes e da linguagem caipira,<br />

visando apresentar e divulgar nas cidades um pouco da vida na roça, a feição<br />

pitoresca que impregna o regionalismo dos textos, o fundo popularesco e paternalista<br />

- "sentimental e idealizante, patriótico e compensatório" - desse regionalismo,<br />

apontado por Wilson Martins (1977/1978, v.5, p.446).<br />

De todo modo, as características acima arroladas não resultam apenas dessa<br />

experiência específica do escritor, pois podem ser também encontradas em maior<br />

ou menor escala em grande parte dos autores regionalistas desse mesmo tempo<br />

e certamente se devem ainda a questões outras mais abrangentes: ao nacionalismo<br />

ufanista dos tempos da guerra e, no caso de São Paulo, ao pronunciado paulistismo<br />

que se propaga com o federalismo republicano, no discurso dos políticos, na<br />

imprensa local e também nas letras. O intenso processo de urbanização que a<br />

cidade de São Paulo vê acelerar-se desde o começo do século, paradoxalmente,<br />

será também motivação para o surto regionalista verificado no período, pois "se<br />

dermos uma vista d'olhos na história da poesia bucólica, verificamos que ela tem<br />

vingado sempre em ambientes de requintada cultura urbana" (Bosi, 1978b, p.64).<br />

A popularidade desfrutada por essa literatura, com certeza, se associa à<br />

atividade nos palcos, ao contato constante e próximo com o público, mas também<br />

se deve à oportunidade do gênero, adequado às solicitações do momento. Segundo<br />

Dante Moreira Leite, autores como Cornélio Pires c Catulo da Paixão Cearense,<br />

que a rigor deveriam ser enquadrados na subliteratura, "tiveram na época um<br />

relevo que hoje somos incapazes de avaliar corretamente". Cornélio Pires vendeu<br />

cerca de trezentos mil livros (Leite, 1976, p.212). Todavia, é compreensível que,<br />

esgotado o caboclismo, já na década de 1940, os espetáculos, as edições e<br />

reedições de Cornélio Pires tenham sido "fracassos do ponto de vista financeiro"<br />

(Dantas, 1976, p.l52-3).<br />

Os que se dedicam ao estudo da obra do autor de Musa caipira expõem a<br />

respeito conclusões distintas, para não dizer antagônicas. De modo geral, a crítica<br />

favorável enfatiza a sua contribuição para os estudos do folclore, com as coletas<br />

de modas típicas (especialmente em Sambas e cateretês, de 1932) e para a<br />

composição de um perfil mais matizado e fidedigno do caipira (especialmente<br />

em Conversas ao pé do fogo, de 1921), em que se arrolam as diferenças étnicas,<br />

hábitos e costumes do caipira. Não sendo o escritor um erudito, e não escondendo


certa dificuldade para o estudo sistemático, apesar de ser um observador constante<br />

e atento do universo caipira, é necessário estar o leitor atento para possíveis<br />

enganos ou exageros, especialmente ao considerar-se o carinho que o escritor<br />

devotava aos "seus caipiras".<br />

De todo modo, é inegável o papel precursor desempenhado por Cornélio Pires<br />

com seus espetáculos, discos e textos escritos, ao colocar em cena e registrar em<br />

contos e poemas o caipira, então muito pouco conhecido.<br />

A atuação de Cornélio Pires como "ativista cultural" e escritor estimulou o<br />

interesse também por um regionalismo mais elaborado, como o de Valdomiro<br />

Silveira e Afonso Arinos, escritores que já produziam antes mesmo da publicação<br />

de Musa caipira, mas não haviam ainda conquistado maior projeção; assim "a<br />

popularidade que desde logo cercou os livros e as conferências de Cornélio Pires"<br />

teria fundamental importância para a propagação da voga regionalista, fato que<br />

"pode não nos agradar, mas nem por isso é menos verdadeiro" (Martins, 1978,<br />

v.6,p.173-4).<br />

O surto regionalista anterior ao Modernismo, que teve grande força em São<br />

Paulo, não deixaria de se beneficiar da atmosfera favorável, uma espécie de<br />

nacionalismo caboclo, propiciada pela atuação literária e cultural de Cornélio<br />

Pires.<br />

Nesse sentido, a atuação de Cornélio Pires, ao garantir no cenário cultural<br />

um espaço privilegiado para o universo sertanejo, utilizando-se da própria expressão<br />

dialetal para retratar a vida do caipira, da mesma forma que Juó Bananére<br />

fazia com o ítalo-paulista, certamente com sentido bastante diverso, mas partilhando<br />

do instigante objetivo comum de forçar a abertura para registros lingüísticos<br />

e culturais desconsiderados, como códigos manipulados por segmentos<br />

marginalizados, pode ser visto como "trecho do rio subterrâneo que solapou o<br />

academicismo" (Dantas, 1976, p.77).<br />

Não é gratuita a popularidade de que ambos desfrutaram, em grande parte<br />

graças ao caráter dialetal e humorístico da caricatura lingüística por eles realizada,<br />

como enfatiza Sud Menucci, crítico contemporâneo.<br />

Cornélio Pires e Juó Bananére são os dois mais legítimos representantes de duas<br />

correntes do falar paulista: a do tipo indígena ... e a do tipo alienígena.<br />

E Cornélio Pires e Juó Bananére são humoristas. Literatos lidos com avidez por toda<br />

a população de São Paulo, com diversos livros publicados ambos. (Mennucci, 1934)<br />

Não se deve ignorar, contudo, que este tratamento do caipira, oscilando entre<br />

a anedota e a idealização, como um tipo de bairrismo, insere-se também numa


tendência à evasão, muito perigosa, que tende a camuflar e a encobrir a realidade<br />

nada pitoresca, na verdade muito trágica, do sertão brasileiro.<br />

Por outro lado, mesmo com as eventuais ressalvas que possam ser feitas à<br />

literatura de Cornélio Pires, é necessário levar-se em conta a considerável contribuição<br />

do escritor, ao procurar empreender o registro lúcido, visando à divulgação<br />

desse universo já naquele tempo em transformação e gradativa extinção.<br />

- Trabalhei tres ano; não me pagaro; rasgaro minha sanfona; me quebrara uma viola na cabeça. Mas deixo esta<br />

fazenda com saudade. Fui bem feliz aqui. Tive tres casamentos quasi... Mas faiaro!...<br />

Osvaldo. Careta (19.6.1926).<br />

FIGURA 10 - LIMA, H. História da caricatura no Brasil, v.3.<br />

NOTAS<br />

1 Livros de Cornélio Pires: Musa caipira (1910); O monturo (1911); Versos (1912); Tragédia cabocla<br />

(1914); Quem conta um conto... (1916); Cenas e paisagens da minha terra (1921); Conversas ao pé<br />

do fogo (1921); As estrambóticas aventuras do Joaquim Bentinho, o queima campo (1924); Patacoadas<br />

(1926); Seleta caipira (1926); Almanaque d'O Sacy (1927); Mixórdia (1927); Meu samburá<br />

(1928); Continuação das estrambóticas aventuras do Joaquim Bentinho, o queima-campo (1929);<br />

Tarrafadas (1932); Sambas e cateretês (1932); Chorando e rindo (1933); Só rindo (1934); Quem<br />

conta um conto... e outros contos (1943); Coisas d'outro mundo (1944); Onde estás, ó Morte? (1944);<br />

Enciclopédia de anedotas e curiosidades (1945).<br />

2 Sobre a discografia de Cornélio Pires as informações são controversas; Macedo Dantas (1976,<br />

p.331-4) enumera 48 discos de 78 rpm.


2 Sobre a discografia de Cornélio Pires as informações são controversas; Macedo Dantas (1976,<br />

p.331-4) enumera 48 discos de 78 rpm.<br />

3 Filmes de Cornélio Pires: Brasil pitoresco (1923); Vamos passear (1934). Filmes baseados em estórias<br />

de Cornélio Pires: Curandeiro (1918), roteiro extraído do conto "Passe os vinte", de Quem conta um<br />

conto...; Sertão em festa (1970), baseado na novela "Sacrificados", de Meu samburá.<br />

4 Segundo Pedro Ferraz do Amaral, o professor Roger Bastide, ao lecionar à sua primeira turma de<br />

alunos na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, teria recomendado a leitura das<br />

primeiras páginas de Conversas ao pé do fogo (1977, p.41-2).<br />

5 Para os livros de Cornélio Pires, como foi feito com os outros escritores estudados, serão usadas siglas,<br />

compostas das iniciais das palavras que integram o título. Assim, para Musa caipira (MC), para Conversas<br />

ao pé do fogo (CPF), para Quem conta um conto... (QCUC), para As estrambóticas aventuras ...<br />

(EAJB) etc.<br />

6 Segundo Candido Mota Filho ("Lobato, Rosa..."), os italianos teriam sofrido influência do caipira "de<br />

tal sorte que os italianos, com todos os seus usos e costumes, com uma carga pesada de tradições e<br />

preconceitos, pouco tempo depois de chegarem a Tietê para trabalhar na roça, falavam como um<br />

caipira de Tietê (Dantas, 1982, p.143).<br />

A visão do descendente do italiano acerca da mesma questão já é bastante diversa, como se depreende<br />

de depoimento de filho de imigrantes registrado por Ecléa Bosi: "Os italianos não pegaram os hábitos<br />

do caboclo; pelo contrário, eram os caboclos que assimilavam os hábitos dos italianos." (BOSI, E.<br />

Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1987 p. 165-6. (Parece pouco<br />

arriscado afirmar que a verdade está na mesclagem de influências.)


A GÊNESE DE JUÓ BANANÉRE<br />

5 JUÓ BANANÉRE: O RIGALEGIO<br />

TRADUZ A CIDADE<br />

Era então São Paulo<br />

uma cidade puramente paulista,<br />

hoje é uma cidade italiana!<br />

São Paulo, quem te viu e quem te vê!<br />

(Pinto, A. M. A cidade de São Paulo<br />

em 1900. v.14, p.9)<br />

De 1910 aos anos 20, Juó Bananére foi uma figura muito popular na cidade<br />

de São Paulo. Faltam, entretanto, informações mais precisas sobre seus criadores,<br />

Lemmo Lemmi (Voltolino, 1884-1926) e Alexandre Ribeiro Marcondes Machado<br />

(1892-1933). 1<br />

Inicialmente criada como caricatura gráfica de Voltolino, a personagem já<br />

encarna a imagem do ítalo-paulista: gorducho, baixo, com vastos bigodes, espalhafatoso,<br />

às vezes sentimental ou melancólico, quase sempre preocupado em<br />

alcançar alguma projeção social (Belluzzo, s.d., p.99). Possivelmente a caricatura<br />

foi inspirada em figura conhecida na época: segundo Pettinatti, contemporâneo,<br />

teria traços de Francisco Jachio,<br />

humorista, conhecido como Don Ciccio, inseparável amigo de Voltolino: "Don Ciccio,<br />

importador de vinho em perdidos tempos, teve uma indomável paixão pelo jornal, ou<br />

melhor dizendo, pelo ambiente e autoridade do jornal, com a redação no velho estilo,<br />

acessível e cordial. Em matéria de estudos não tinha ido além do elementar, mas em


compensação era intuitivo e tenaz, e compreendia que para penetrar no mundo do teatro,<br />

seu velho sonho, precisava da senha de um cotidiano. Queria ser um jornalista, 'fare il<br />

gionalista , tornar-se um daqueles personagens convidados que têm entrada livre nos<br />

camarins, dão de tudo à 'prima dona' e tratam com desprezo os principiantes; um crítico<br />

teatral, com lugar especial na opereta e no teatro de variedades. (Belluzzo, s.d., p.107)<br />

O Juó Bananére criado por Voltolino veste diferentes roupagens: é faroleiro,<br />

barulhento, mas deixa entrever um lado mais sentimental e humano. É figura travestida<br />

de diferentes modos, de acordo com as distintas funções desempenhadas:<br />

como tocador de realejo, como barbeiro do Baixo Piques, como aquele que se quer<br />

fazer de jornalista, às vezes como o simplório que posa empertigado com o terno<br />

berrante, ou como o oportunista, que vive de cavação (Belluzzo, s.d., p.109-10).<br />

A caricatura gráfica delineada por Voltolino, e já na época bastante conhecida<br />

como uma das fortes expressões da colônia italiana, seria fixada e popularizada<br />

ao tomar voz com a persona adotada por Alexandre Ribeiro Marcondes Machado<br />

em suas crônicas. Denominadas do mesmo modo (João Bananeiro, Juó Bananére,<br />

apelido muito comum nos bairros de imigrados), compõem, entretanto, a caricatura<br />

visual e a verbal, tipos que guardam algumas diferenças.<br />

A criação de Voltolino é mais fluida e móvel, desempenhando o seu Juó uma<br />

série distinta de ocupações, e cobrindo uma gama variada de atitudes e comportamentos,<br />

todos eles bem típicos do ítalo-paulista, especialmente o mais humilde,<br />

habitante dos bairros suburbanos da São Paulo de inícios do século XX, mas não<br />

só desse segmento: encontra-se também a figuração do imigrante italiano ou do<br />

seu descendente que alcança alguma ascensão social, sendo, nesse caso, risível<br />

o modo ostensivo como arroga a sua italianitá. 1<br />

O Juó de Voltolino não é na verdade uma só personagem: são várias<br />

personagens, em diferentes situações, com uma aparência física mais ou menos<br />

homogênea, cuja função precípua é, por meio da apreensão de atitudes características<br />

do ítalo-paulista expressas nas caricaturas, tecer a crônica da vida do<br />

imigrante italiano e seus descendentes na cidade de São Paulo, o que certamente<br />

contribuiu para uma maior aceitação desse elemento estranho no corpo social,<br />

cumprindo uma função integradora, apesar de logicamente enfatizar também as<br />

diferenças e peculiaridades desse novo elemento. Voltolino distingue-se por ter<br />

sido "o fotógrafo ambulante do ítalo-paulista", cumprindo o papel de "linhagista<br />

e historiador de sua gente" (Machado, 1940, p.248), compromisso que certamente<br />

determina a feição de suas caricaturas.<br />

A persona criada por Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, e que viria a<br />

encobrir e dominar a própria imagem do criador, fazendo dele um total desconhecido<br />

já em seu tempo, e mais ainda hoje, tem uma feição diferente. Pelas<br />

peculiaridades do código utilizado, o verbal, é logicamente imprescindível, traço


fundamental na constituição do "Juó literário", a sua forma característica de<br />

expressão, mesclando o português e o italiano. A par disso, o Juó Bananére fixado<br />

e popularizado em "As Cartas d'Abax'o Piques", e em O Rigalegio - página<br />

independente d' O Pirralho, criada por Marcondes Machado e assinada por Juó,<br />

a partir do número de lº.3.1913 - já tem um perfil mais fixo, definido: é<br />

"barbieri", "giurnalista", "gandidato à Gademia Baolista de Letras", e a partir<br />

dessas ocupações e especialmente das pretensões expressas é que se constrói sua<br />

imagem. Esses traços pouco mudam nos vários anos de publicação das crônicas.<br />

A persona criada por Alexandre Ribeiro, mesmo tendo também desempenhado<br />

uma função integradora com relação ao ítalo-paulista (pois são dele a<br />

expressão macarrônica e também alguns dos pontos de vista explanados), visa<br />

fundamentalmente a outros fins: é recurso para a sátira da vida política, social e<br />

literária de São Paulo e do Brasil na década de 1910; a. persona não constitui,<br />

portanto, um fim em si, mas é utilizada como instrumento para a crítica.<br />

As duas configurações caricaturescas, a plástica e a verbal, guardam, entretanto,<br />

um traço fundamental em comum: expressam cada qual a seu modo a<br />

"polêmica cultural do imigrado", entrelaçando "a necessidade de reconhecimento<br />

social com a de detenção de poder" (Belluzzo, s.d., p.107), questões que seriam<br />

mais à frente literariamente exploradas e elaboradas por Antonio de Alcântara<br />

Machado, em narrativas centradas sobre a figura do ítalo-paulista ("Gaetaninho",<br />

"Carmela", "A sociedade"), ele mesmo grande apreciador e divulgador da obra<br />

de Voltolino e Alexandre Ribeiro. A esse respeito, interessa observar que o registro<br />

nas artes de tipos italianos, especialmente de feição caricaturesca, é também<br />

índice de que "naquela época as relações com os imigrados oscilavam entre a luta<br />

e a benevolência, ambas resgatadas pelo humor" (Carelli, 1985, p.190).<br />

Como este trabalho se circunscreve aos limites da caricatura verbal, interessa<br />

aqui a produção de Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, a ser analisada a seguir.<br />

JUÓ BANANÉRE EM VERSÃO VERBAL<br />

Algumas informações paralelas são necessárias à localização do leitor: o Juó<br />

Bananére "verbal" surge nas páginas de O Pirralho (12.8.1911 a 15.10.1917), assinando<br />

"As Cartas d'Abax'o Pigues", 3 como sucessor de Annibale Scipione (pseudônimo<br />

utilizado por Oswald de Andrade), que se responsabilizaria por essa seção<br />

do primeiro ao oitavo número do jornal. No número dez surge Juó Bananére, fazendo<br />

o contraponto com Annibale; a partir do número onze, a coluna já está sob a<br />

responsabilidade de Juó Bananare, depois definitivamente batizado Juó Bananére.<br />

Marcondes Machado é o criador de O Rigalegio - Organo Independente do<br />

Abax'o Piques i do Bó Retiro, que surge no número oitenta de O Pirralho


(lº.3.1913), como "Propietá da sucietá anonima Juó Bananére & Cumpania". Este<br />

"Dromedario Inlustrato" tem como divisas: "Anarchia, sucialismo, literatura, vervia,<br />

futurismo, cavaçó". A folha independente publica anúncios (de bares, marcas<br />

de geléias, guaranás), "imitando os jornais humorísticos ilustrados e a imprensa<br />

italiana da cidade" (Chalmers, 1990, p.33). O Rigalegio foi publicado sem interrupções<br />

até O Pirralho n.137 (4.4.1914); no nº 139, aparece com outro cabeçalho, e<br />

Juó Bananére exime o jornal de responsabilidades acerca do que escreve:<br />

Diclaro tambê che stó cumpretamenti in disacordimo com a attuale direççó i<br />

orientaçó distu giornale i as coluna du Rigalegio stà a disposiçó dos amigo p'rá tutta i<br />

qualquere recramaçó c'ora migna intêra rispunsabilitá. No Rigalegio sò chi scrivo sò io<br />

i maise ninguê i sò o unico risponsabile p'relli. (Chalmers, 1990, p.34)<br />

Juó assina a folha apenas em mais alguns números, sendo depois substituído<br />

por pouco tempo por Domenico Caguira; O Rigalegio é fechado pouco adiante.<br />

Possivelmente, o desaparecimento da seção, assim como a substituição do barbeiro-jornalista<br />

foram decorrentes da "pressão da censura hermista" (Chalmers, 1990,<br />

p.42). A partir do n.l55(3.10.1914), Bananére volta a assinar as "Cartas d' Abax' o<br />

Pigues", fazendo a crônica humorística da Primeira Guerra Mundial.<br />

É possível que dissensões pessoais também tenham contribuído para o<br />

afastamento de Marcondes Machado; é dele a seguinte declaração, que acompanha<br />

"As Cartas d'Abaix'o Piques" (3.10.1914):<br />

Tendo deixado há tempos de escrever no "Pirralho", por incompatibilidade com o<br />

seu diretor, sr. Baby de Andrade e com a sua péssima orientação, volto agora a escrever<br />

a esta querida revista por ter cessado, com a retirada do sr. Baby de Andrade, o motivo<br />

que dela me afastava.<br />

Hoje o "Pirralho" é novamente dirigido por Define, Dolor e Oswaldo, o que basta para<br />

garantir a sua boa conduta.<br />

Assim sendo, cá estou de novo, firme no posto.<br />

Curiosamente, nesse esclarecimento o jornalista não se utiliza da linguagem<br />

macarrônica, mas assina Juó Bananére, colocando embaixo uma nota cômica:<br />

"Chi fiz a traduçó distu artigulo fui o dott. Vap'relli, traduttore uficiali di tuttas<br />

linguas viva e morta".<br />

Alexandre Ribeiro foi convidado por Oswald de Andrade a integrar o quadro<br />

de colaboradores de O Pirralho, mas a sua coluna atingiu uma popularidade bem<br />

maior que a alcançada por "Annibale Scipione", chegando mesmo a encarnar a<br />

alma do jornal (Carelli, 1985, p.105). Esse fato talvez justifique a primeira<br />

avaliação pouco elogiosa (ressentida?) expressa por Oswald acerca do jornalista:<br />

Eu iniciara em dialeto ítalo-paulista as "Cartas d'Abax'o Piques", que encontraram<br />

um sucessor em Juó Bananére. Parecia ele um moço tímido e quase burro mas seu êxito


foi enorme quando tomou conta da página da revista intitulada O Rigalegio. Chamava-se<br />

Alexandre Marcondes e era primo do futuro Ministro do Trabalho. (Andrade, 1976, p.58)<br />

Mais à frente, como era do seu feitio, o escritor manifesta opinião bem<br />

distinta, numa conferência sobre A sátira na Literatura Brasileira, pronunciada<br />

no auditório da Biblioteca Pública Municipal de São Paulo, em 1945:<br />

Nessa luta [campanha civilista], em que ocupamos [Oswald e Voltolino] a primeira<br />

trincheira, tomou posição excepcional um mestre da sátira no Brasil. Foi Juó Bananére.<br />

Chamava-se Alexandre Marcondes Machado. O mesmo nome do Ministro do Trabalho<br />

de quem era primo. Era um moço tímido, de grandes qualidades morais. Casmurro e<br />

incapaz de fazer uma piada em português. (Andrade, 1947, p.46-7)<br />

A linguagem criada por Annibale já era o português macarrônico, uma mescla<br />

de português e italiano, que estilizava a expressão utilizada pelos imigrados e<br />

seus descendentes, mas ainda sem a graça e o desembaraço que popularizariam<br />

Juó Bananére, fazendo dele o cronista mais popular da cidade.<br />

Como se sabe, O Pirralho não foi uma publicação tão radical, congregando<br />

em seus quadros gente de formação e posições políticas e estéticas muito<br />

diferentes, como Amadeu Amaral, Cornélio Pires, Emílio de Menezes, Paulo<br />

Setúbal, Ricardo Gonçalves, Coelho Neto c Olavo Bilac, além de Oswald de<br />

Andrade e Alexandre Ribeiro. Em 1915,0 Pirralho "nada tinha de revolucionário"<br />

(Chalmers, 1976, p.22-3), contribuindo bastante para um tom mais moderno,<br />

irreverente e debochado, os textos de Juó Bananére, "cujas crônicas de inventiva<br />

desopilante prepararam terreno para o modernismo, ridicularizando muitos valores<br />

formais em que repousava então a nossa literatura" (Broca, 1960, p.240).<br />

Em 1915, Alexandre Ribeiro desliga-se do jornal, não sendo muito claras as<br />

explicações para o seu afastamento, em geral associadas ao desagrado de figuras<br />

eminentes, por ele satirizadas. A seguir, O Pirralho lança "Juó Laranjére"<br />

(pseudônimo de Geswaldo Castiglione) como substituto, sem alcançar maior<br />

expressividade.<br />

A militância jornalística do criador de Juó Bananére não se esgota, entretanto,<br />

com o afastamento de O Pirralho: em 1915, juntamente com Voltolino, contribui<br />

na revista ilustrada O Queixoso, de efêmera duração - "cujo nome deve-se às<br />

queixas e ao queixo de Altino Arantes, lançado então para a presidência do<br />

Estado" (Belluzzo, s.d., p.31-33); em 1917 publica, juntamente com Antonio Paes<br />

(Moacir Piza), o panfleto Galabaro, Libro di Saneamento Suciale, em que se<br />

desenvolve uma crítica ferrenha ao cônego Valois de Castro, "figura impopular,<br />

criticado por suas posições germanófilas" (Casalecchi, 1987, p. 149). O padre é<br />

apresentado como traidor - era tempo de guerra - e, como sugere o título da<br />

publicação, é identificado à personagem histórica Calabar.


Marcondes Machado mantém intensa atividade jornalística, tornando-se,<br />

entre 1917 e 1930, "o terror dos políticos", e contribuiu, juntamente com Júlio de<br />

Mesquita Filho, Moacir Piza, Hilário Tácito, dentre outros, para a fundação de 0<br />

Estadinho, edição vespertina d'0 Estado de S.Paulo.<br />

A prática do escritor é bastante diversificada: são também de suas criações<br />

as peças teatrais Sustenta a nota, de 1917 e Você vai ver..., cuja autoria partilha com<br />

Danton Vampré e Euclides de Andrade; La divina increnca, comédia cuja encenação<br />

alcança grande sucesso em 1918; Aluga-se um quarto, de 1919,e A ceia dos avaccagliado<br />

(que consta entre os textos selecionados para a composição da antologia La<br />

divina increnca, em sua versão definitiva). Em 1931, lança dois discos, em que<br />

recita textos paródicos, canta e faz discursos políticos (Carelli, 1985, p.l 12-3).<br />

As crônicas e paródias de Alexandre Ribeiro são sempre escritas nessa<br />

expressão mesclada, macarrônica, e assinadas com o pseudônimo Juó Bananére.<br />

Essa personagem teve forte presença na vida cultural de São Paulo, respondendo<br />

até mesmo a "enquetes" - hábito comum então era dirigirem-se questões polêmicas<br />

a figuras de relevo na vida pública, para que expressassem opinião a<br />

respeito. 4 Juó chega também a assinar sugestivas sátiras acerca de episódios<br />

ligados à crise do PRP, em 1924, publicadas em O Estado de S.Paulo (Anexo II).<br />

Na época era freqüente a publicação de crônicas escritas numa linguagem<br />

híbrida, registrando a expressão de distintos segmentos da sociedade, por meio<br />

de suas peculiaridades lingüísticas e culturais. Em O Pirralho encontram-se, por<br />

exemplo, "As cartas de um caipira", textos construídos com expressões do dialeto<br />

caipira, sob a responsabilidade de Cornélio Pires; "O Biralha (xornal allemong)",<br />

além das "crônicas d'Abax'o Piques". Poucas criações desse gênero, todavia,<br />

alcançam a repercussão e a popularidade dessa última; Juó Bananére faz escola,<br />

e chega a ter imitadores no interior do Estado de São Paulo. 5<br />

Há indicações de que haveria também trabalhos esparsos assinados por Juó<br />

Bananére e publicados em jornais do interior do Estado (Melo, 1954, p.327).<br />

E provável que isso tenha ocorrido, pois Alexandre Ribeiro Marcondes Machado<br />

tinha familiares no interior, em Araraquara, Campinas, Pindamonhangaba<br />

(sua terra de origem). O arquiteto visitava com freqüência a cidade de Araraquara,<br />

onde é responsável pelo projeto de alguns edifícios e praças (formou-se pela Escola<br />

Politécnica em 1917), como o Clube Araraquarense e o Hotel Municipal (ambos<br />

ainda hoje em boas condições de conservação), o projeto do novo ajardinamento da<br />

Praça da Matriz, a planta para o ajardinamento da Praça da República (hoje Praça<br />

Pedro de Toledo) etc. O estilo das edificações projetadas pelo arquiteto é<br />

convencional, com uma feição neoclássica, de influência francesa e italiana, típica<br />

do estilo "belle époque", ensinado na época na Escola Politécnica. 6 Sobre a presença<br />

do escritor na cidade de Araraquara, há maiores informações no Apêndice 3.


FIGURA 11 - Cópia do "Dromedario Inlustrato" O Rigalegio (13.12.1913) assinado por Juó Bananére, e<br />

ilustrado por Voltolino, com cabeçalho que mostra o jornalista tocando a "viúva alegre", no realejo. Neste<br />

número, a folha trata jocosamente do casamento de Hermes da Fonseca.


FIGURA 12 - Caricatura de Voltolino, que mostra O Pirralho travestido à Hermes da Fonseca (O Pirralho<br />

23.11.1912).


A "MÁSCARA" E AS CARICATURAS<br />

A máscara que desmascara<br />

A análise das caricaturas delineadas por Alexandre Marcondes Machado será<br />

baseada no material reunido em La divina increnca, 7 graças ao interesse em<br />

compor uma amostra significativa do gênero na literatura paulista produzida entre<br />

1900 e 1920, e também como decorrência das dificuldades em recolher e ter<br />

acesso à produção esparsa do escritor (as publicações de Bananére estão todas<br />

esgotadas, e em sua maior parte são textos raros, como ocorre com as peças de<br />

teatro, os panfletos e os jornais mais esporádicos). Todavia, a edição consultada<br />

(1966) apresenta alguns problemas: não há referências aos jornais e ao local onde<br />

primeiramente apareceram os textos, nem à data de sua publicação, assim como<br />

não são expressos os critérios utilizados para a composição dessa antologia, que<br />

possivelmente reúne predominantemente trabalhos divulgados em O Pirralho,<br />

entre 1911 e 1915, e em O Queixoso.<br />

Outra séria dificuldade a ser enfrentada pelo estudioso diz respeito à homogeneização<br />

da grafia de certos termos (vizioso/ viziozo; strella/estrella; avaccagliado/avacagliado),<br />

que variam em diferentes contextos, na mesma obra.<br />

Sabe-se que a sátira se alicerça no tratamento crítico das mazelas do presente,<br />

justificando-se a repercussão alcançada na atualidade dos episódios referidos; a<br />

sátira sempre seleciona, portanto, como alvos, as figuras mais presentes e, por<br />

isso, mais notórias. Tomando como base os temas das sátiras e as figuras políticas<br />

caricaturadas ou criticadas (Hermes da Fonseca, Nair de Teffé, Fonseca Hermes,<br />

Altino Arantes, José Piedade, Rodolfo Miranda, Freitas Vale, Rodrigues Alves,<br />

Venceslau Brás), deduz-se que a maior parte dos textos foi escrita entre 1911 e<br />

1920, período que abarca o mandato de Hermes da Fonseca na presidência do<br />

Brasil (1910-1914), e o de Venceslau Brás no mesmo cargo (1914-1918), assim<br />

como a gestão de Rodrigues Alves (1912-1916) e de Altino Arantes (1916-1920)<br />

na presidência do Estado de São Paulo e a presença de Rodolfo Miranda no<br />

cenário político (candidato à presidência do estado em 1911, integrante da<br />

comissão diretora do PRP em 1916 etc).<br />

Ao empreender a crítica desveladora de aspectos da vida política e literária<br />

do tempo, o jornalista se utiliza do pseudônimo Juó Bananére. Não se trata,<br />

todavia, apenas da escolha de um nome diferente e sugestivo como pseudônimo<br />

para assinar os textos, encobrindo a identidade de seu produtor, mas da criação<br />

de um narrador caricaturesco, com características e um perfil definido, a desempenhar<br />

o papel de persona.


Esse procedimento é típico da literatura de feição satírica, podendo ser<br />

observado em Cândido, de Voltaire, nas Viagens de Gulliver, de Swift, nas Cartas<br />

chilenas, de Gonzaga, e até mesmo nas Memórias de um burro, da Condessa de<br />

Ségur, dentre vários outros exemplos. Trata-se de um narrador-personagem, que<br />

descreve, comenta, direta ou indiretamente avalia e eventualmente participa dos<br />

eventos narrados, algumas vezes mais intensamente, em outros momentos apenas<br />

presenciando os fatos como observador privilegiado e guardando um certo<br />

distanciamento e isenção. Em algumas situações é um tipo ingênuo ou simplório,<br />

que apresenta dificuldade em compreender fatos cuja significação profunda não<br />

apreende (e nessa situação, apenas registrando constatações, a persona cumpre<br />

um papel intensamente revelador das contradições); em outras condições toma<br />

um tom malicioso, irônico ou ambíguo, desempenhando também nesse caso uma<br />

função bastante crítica.<br />

Juó Bananére é um "paulistaliano" - "neologismo feliz e oportuno utilizado<br />

por Monteiro Lobato ao referir-se a ele" (Ferreira, 1975) -, de profissão humilde<br />

(é barbeiro), habitante da zona suburbana (é o cronista do Baixo Piques), ocupada<br />

pelas famílias de imigrantes italianos, requisitados fundamentalmente como<br />

mão-de-obra nas indústrias que se formavam ou como profissionais independentes,<br />

mas de pouca valorização social (pequenos artesãos, mecânicos, sapateiros,<br />

barbeiros, alfaiates etc). A personagem já se autodefine de modo paradoxal:<br />

associa uma ocupação humilde a pretensões mais "elevadas" - "fui poeta, barbieri<br />

i giurnaliste!" ("Tristezza", p.47), assumindo-se "candidato à Gademia Baolista<br />

de Letras".<br />

A persona é, portanto, um homem simples, de vida modesta, mas que, de<br />

modo muito característico entre os menos privilegiados, nesse caso específico os<br />

descendentes de imigrantes, deixa transparecer a já referida "necessidade de<br />

reconhecimento social" e o desejo de estar próximo aos poderosos, evidente, por<br />

exemplo, na ênfase dada ao contato, como barbeiro, com personalidades de<br />

projeção na vida pública.<br />

Juó Bananére é um homem do povo, transparente em suas atitudes, que fala<br />

claramente muitas verdades, sem eufemismos, de modo incisivo c direto; toma<br />

essa liberdade porque é esse o único modo a ele possível de se expressar e também<br />

porque se coloca como cúmplice dos criticados, pois partilha de sua intimidade.<br />

Juó Bananére possuía influência eleitoral, freqüentava os meios governamentais,<br />

roncava grosso. Não batia na porta dos importantes; recebia-os em seu salão de barbeiro.<br />

Com a autoridade de amigo do peito e compadre, dava conselhos, repreendia, discutia,<br />

saía na rua de braço dado. E aí é que estava a vaia. (Machado, 1940, p.256)


A grande popularidade atingida por Juó Bananére certamente se deve à<br />

empatia entre ele e o leitor, ambos "homens do povo", ao modo deslavado como<br />

fala dos poderosos, às claras, o que todos murmuram às escondidas, e fundamentalmente<br />

à irresistível comicidade de sua expressão híbrida, macarrônica.<br />

Esses elementos associados é que imputaram tanta vida à persona, permitindo<br />

que ela encobrisse a imagem de seu criador. Essa superposição é apontada por<br />

Antônio de Alcântara Machado (1940) como verdadeira expressão de "glória<br />

literária".<br />

A par disso, Juó desempenha também o papel de uma espécie de porta-voz<br />

da colônia italiana; 8 não falava do italiano, mas falava como italiano ao utilizar<br />

sua forma característica de linguagem, e também ao adotar parcialmente o seu<br />

ponto de vista, expressando opiniões, sentimentos, aspirações e idéias que lhe<br />

eram peculiares. Exemplifica bem esse procedimento o texto "O studenti do Bó<br />

Retiro", em que, fazendo a paródia do poema "O estudante alsaciano", de<br />

Verhaeren, muito popular na época, de fundo patriótico, a persona nivela o<br />

estudante do Bom Retiro ao estudante alsaciano, apresentando o primeiro em<br />

situação idêntica ao segundo, mas registrando na paródia o confronto entre os<br />

bairros de São Paulo na época, e não entre a Alemanha e a Alsácia, como no<br />

poema original; o professor defende o Belenzinho e o aluno diz: "O distrito che<br />

io maise dimiro, - É o Bó Ritiro", solicitando o mestre que o aluno aponte no<br />

mapa do Brás o Bom Retiro, o menino se levanta e batendo a mão no coração,<br />

diz: "O Bó Ritiro Stá aqui!".<br />

Afora a comicidade inerente à linguagem utilizada e ao nivelamento estudante<br />

alsaciano-estudante do Bom Retiro, que rebaixa o primeiro, ao elevar o<br />

segundo, o poema tem um tom aparentemente mais sério, expressando o amor<br />

do descendente italiano ao bairro onde nasceu e vive. Todavia, trata-se de um<br />

patriotismo um tanto ambíguo: não se sabe ao certo se o menino do Bom Retiro<br />

ama o bairro onde nasceu como parte integrante da nova pátria que seus pais<br />

adotaram, ou se essa nova terra de adoção se reduz ao bairro habitado por seus<br />

iguais, que identifica como pátria.<br />

Por ser o cronista da cidade e do seu tempo, predomina, entretanto, a intenção<br />

ridicularizadora nas sátiras de Bananére, provocativas, insolentes, visando ao<br />

castigo do vício e da corrupção, de modo antiexemplar, em mordazes caricaturas,<br />

por meio do riso de rejeição, e o desvelamento de estruturas arcaicas de<br />

pensamento ainda vigentes, detectados na afetação da literatura ultrapassada, mas<br />

ainda apreciada na época, e satirizada pelo escritor em paródias inclementes.<br />

A persona satírica adotada por Alexandre Marcondes Machado é a expressão<br />

do bom senso, é a voz do homem do povo, que por ser simples não dissimula,


não aceita subterfúgios e por isso revela e desnuda, cumprindo uma função<br />

desmistificadora:<br />

Sobre os acontecimentos e os homens ele dava a opinião da rua. Desabusada e<br />

segura. Palmatória do mundo às vezes maldosa, em regra justiceira. Depois ele próprio,<br />

Juó Bananére, era um sarcasmo. Símbolo cômico e ridículo do imigrante que aqui se faz<br />

gente, vira importante, dá opiniões... Nele e através dele o paulista se vingava. (Machado,<br />

1940,p.255)<br />

O autor de La divina increnca, portanto, constrói a sátira sobre dois níveis de<br />

abordagem: o primeiro é a criação e incorporação da persona Juó Bananére - que<br />

é ele próprio uma caricatura: é risível, um tanto grotesca, e se apóia especialmente<br />

num único traço, a necessidade de reconhecimento social, que determina e<br />

domina todos os outros —, adotando o seu discurso e só por meio dele se<br />

expressando; o segundo é calcado na elaboração de caricaturas, e paródias que<br />

são convencionalmente aceitas e apreciadas pelo leitor como produções da<br />

persona. Temos, portanto, uma caricatura que faz caricaturas, ou a caricatura na<br />

caricatura e é nesse recurso que se localiza em grande parte a expressividade, a<br />

comicidade e a grande força persuasiva da produção do satirista.<br />

Deve-se considerar, todavia, que a persona se reveste de certa ambigüidade.<br />

Por um lado, como já foi colocado, é porta-voz do imigrante italiano, e de modo<br />

apenas aparentemente ingênuo assume o papel de máscara que desmascara,<br />

desnudando e expondo muitas das contradições do tempo. Por outro lado, a<br />

persona cumpre um papel rebaixador c depreciativo também com relação ao<br />

ítalo-paulista, ao empregar sua expressão híbrida, fortemente vincada pela oralidade<br />

(que faz até hoje as crônicas de Juó tão risíveis), estilizando o português<br />

macarrônico, código utilizado, no geral, por gente muito humilde, como recurso<br />

para empreender a sátira.<br />

Retomando essa idéia de um modo mais claro: ao caricaturar figurões, e ao<br />

parodiar textos literários muito apreciados pelo público, na linguagem híbrida e<br />

desprezada dos imigrantes humildes, no geral trabalhadores braçais e pouco<br />

ilustrados, a persona aguça a comicidade e atinge o rebaixamento visado. Na<br />

incorporação de peculiaridades significativas do perfil do imigrado italiano para<br />

empreender a sátira do tempo, a persona revela mais do que se supõe num<br />

primeiro momento: expressa a aceitação e a absorção das mudanças, do diferente,<br />

mas expressa também a rejeição ao "outro-imigrante", cujas marcas culturais são<br />

instrumento utilizado para depreciar facetas da vida brasileira.<br />

Apesar das muitas afinidades existentes entre eles, o ponto de vista de<br />

Alexandre Ribeiro Marcondes Machado é bem diferente, por exemplo, do de


Voltolino - ele mesmo um ítalo-paulista de segunda geração - que faz prioritariamente<br />

a crônica do imigrante italiano e seus descendentes; o caminho de<br />

Voltolino mais à frente será trilhado e aprofundado na literatura por Antônio de<br />

Alcântara Machado, que chega a recriar personagens com marcas delineadas em<br />

caricaturas do chargista, como é o caso de Gaetaninho (Belluzzo, s.d., p.106).<br />

Juó Bananére fala do ítalo-paulista e num certo sentido como ítalo-paulista,<br />

mas só em parte. Segundo Vera Chalmers, a sátira de O Rigalegio, mesmo sendo<br />

expressa por meio da "língua do imigrante que se proletariza na cidade", na<br />

verdade "exprime o ponto de vista da elite a respeito da política". Desse modo,<br />

Juó não veicula apenas posições dominantes na colônia, pois o "macarrônico é<br />

uma máscara cômica do bairrismo da elite paulista" (1990, p.35-6).<br />

Alexandre Marcondes é antes de tudo um satírico inclemente, cuja aguda<br />

crítica visa à vida brasileira, à correção de seus desvios, e para isso utiliza uma<br />

persona ítalo-paulista. As marcas do imigrante italiano não são para ele um fim,<br />

motivo de registro, objeto de sua produção, como no caso de Voltolino ou<br />

Alcântara Machado, mas são um meio, um recurso satírico. Por outro lado, como<br />

já se disse, ao caricaturar em Juó Bananére o ítalo-paulista, o autor revela<br />

sensibilidade, com a percepção desse novo elemento como um forte fator de<br />

transformações, que inexoravelmente marcariam a feição de São Paulo. Assim,<br />

o Juó Bananére literário é ambíguo (como ambíguos são os sentimentos dos<br />

naturais com relação aos imigrados): ao mesmo tempo em que é revolucionariamente<br />

desmistificador, expressa também uma conservadora rejeição ao diferente.<br />

A constatação dessa ambigüidade, todavia, não diminui a significação de suas<br />

criações.<br />

Caricaturas e caricaturados<br />

O tema mais freqüente das caricaturas expressas pela persona são as figuras<br />

de projeção na política da época.<br />

Há textos que são inteiramente dedicados ao delineamento caricaturesco de<br />

personagens: é o que ocorre em "O Dudu", poema baseado em Hermes da<br />

Fonseca, uma das figuras preferidas por Juó, 9 cujo subtítulo é "C'oa cabocla do<br />

Caxangá". Não fica muito claro se é para se cantar a composição de Juó com a<br />

música da "Caboca di Caxangá", composição de Catulo da Paixão Cearense,<br />

muito popular na época, ou se a referência é dirigida à esposa do presidente, Nair<br />

de Teffé, presença também constante na sátira de Juó - o pedido de casamento<br />

foi feito em Caxambu, como atesta o poema satírico "Garibu", sendo oportuno


notar a semelhança de sons Caxambu/Caxangá, e o enlace realizou-se no palácio<br />

Rio Negro, em Petrópolis, no dia 8 de dezembro de 1913. Também é possível<br />

pensar numa alusão ao apelido "caboclo", utilizado por antigos companheiros<br />

militares ao referirem-se a Hermes da Fonseca, mas o mais provável é que se<br />

devam considerar todas essas referências juntas.<br />

O texto "O Dudu" é um panegírico às avessas, pois se inicia com a afirmação<br />

de que no momento de sua produção se comemora o quarto ano da gestão Hermes<br />

(portanto, deve ter sido escrito em 1914), e identifica o presidente como "xirosa<br />

griatura", constituindo-se numa anti-homenagem, que se apropria da designação<br />

utilizada por poeta contemporâneo para louvar o presidente, 10 com função satírica,<br />

depreciativa. O texto retoma o percurso da gestão Hermes da Fonseca,<br />

apoiando-se sempre em referências negativas: a posse ante protestos, a primeira<br />

campanha civilista, liderada por Rui Barbosa, a tentativa de intervenção em São<br />

Paulo, rechaçada por Washington Luís. Ao retomar as críticas da imprensa ao<br />

marechal, Juó Bananére expressa também suas restrições:<br />

O Dudu pobre goitado<br />

apparicia um cão sê dono.<br />

Tuttos giurnale só xamava illo di vaca<br />

Di gretino, urucubacca,<br />

Di goió, gara di mono...<br />

e aponta para a única solução encontrada pelo presidente:<br />

Dista maniêra insgugliambado in tuttas parte<br />

o Dudu virô "smarti",<br />

I pigô di anamurá.<br />

Segundo o cronista, mesmo nessa opção o presidente será malsucedido, pois<br />

a noiva<br />

Indominô o namurado<br />

I o Hermeze goitadigno<br />

Gaiu come um pattigno.<br />

A referência a esse aspecto da vida pessoal do presidente é utilizada para<br />

rebaixá-lo duplamente: primeiro como homem fraco, dominado pela mulher, num<br />

país e num tempo especialmente regidos pelo código machista, instaurando-se a<br />

dimensão às avessas, e segundo, mais sutilmente, como homem que divide a<br />

mulher com apaniguados políticos:


I un die se gazàro com festanza<br />

I fizera una liança<br />

ella o Pignêro i o maresciallo.<br />

O satírico conclui o poema reiterando o enorme mal que teria significado para o<br />

Brasil a gestão Hermes:<br />

I desdi intó o gotadigno du Brasile<br />

Apparéci un covile<br />

Di gatuno di gavallo.<br />

Goitadigna da Naçó<br />

Gaiu na bocca do lió...<br />

I o Brasile goitado!<br />

Ficó pilado, pilado!!...<br />

Observe-se como essa caricatura do comportamento político e pessoal do<br />

presidente Hermes da Fonseca se apóia sobre recursos muito freqüentes na sátira:<br />

a inversão de função do texto (homenagem/anti-homenagem), o rebaixamento à<br />

escala animal (cão sem dono, vaca, cara de mono), a ênfase na ausência de<br />

condições de reflexão do caricaturado (cretino, coió), e de vontade própria (é<br />

dominado pela mulher e manipulado por Pinheiro Machado). Esse sistemático<br />

rebaixamento do caricaturado resulta num desgaste significativo do homem<br />

público e do indivíduo, também expressando restrições às instituições que favorecem<br />

a situação criticada; além disso, o cronista certamente expressa o que<br />

deveria ser comentário corrente entre boa parte da população.<br />

Procedimento semelhante é desenvolvido por Juó Bananére ao delinear a<br />

grotesca caricatura de Altino Arantes ("O Quexo"), apoiada fundamentalmente<br />

sobre um traço físico do caricaturado - então presidente do Estado de São Paulo -,<br />

neste caso o queixo proeminente. O texto, calcado em ampliações e exageros,<br />

lembra no tom deslavado e hiperbólico os poemas dedicados por Gregório de<br />

Matos ao governador Antônio de Souza de Menezes: o queixo é tão colossal, que<br />

Si un dia gaísse inzima da Lemagna,<br />

O formidave inzército allemó<br />

Ficaria riduzido in pó;<br />

o queixo é um monte, um barranco, é maior que o céu, poderia servir para uma<br />

catedral ou para um galinheiro; é espantoso, um colosso, poderia ser utilizado<br />

como um belvedere, é comparado a um repolho e a uma abóbora e, ao final, é<br />

tido como fatal, igual a uma jaca, sendo o signo da "eterna urucubacca"; a<br />

similitude entre o queixo e a abóbora, o repolho e a jaca, frutas irregulares,


delineia e amplia a disformidade do traço físico criticado, dando à personagem<br />

uma feição grotesca. O subtítulo do poema "Traduçó du Cirano" já estabelece a<br />

referência intertextual: "O Quexo" é uma versão carnavalizada, às avessas, do<br />

Cyrano de Bergerac, de Rostand, cujo nariz proeminente, no desenvolvimento da<br />

peça, se faz acompanhar de uma intensa valoração humana da personagem; o<br />

mesmo não ocorre com a caricatura feita por Juó, que intencionalmente se<br />

restringe ao registro e à ênfase na disformidade física, nesse caso possível reflexo<br />

da disformidade moral.<br />

Os recursos para o delineamento caricaturesco encetado por Bananére são<br />

recorrentes: o exagero, o deslocamento grotesco (metonimicamente Altino Arantes<br />

é reduzido a um enorme queixo), as aproximações rebaixadoras (com vegetais,<br />

animais, edificações, radicalizadas na imagem que imputa ao queixo a função de<br />

servir como "banchetó p'r'arguns millió di rato" e na identificação com o estigma<br />

"urucubacca").<br />

Conservando o mesmo tom e também visando Altino Arantes há o texto "P'ra<br />

guerre" ("Didicado p'ru 'Quexoso'"), que se baseia em atributos ou funções<br />

bélicas do enorme queixo:<br />

Che si o seu quexo fô torpediado,<br />

Quebra o torpedo!<br />

podendo servir também para "gupolla di forte", "gasco di navio" e "buxa di<br />

gagnó". Reduzido o queixo de Altino Arantes à condição de objeto, desenvolve-se<br />

por extensão um processo de reificação depreciativa do seu portador. É<br />

óbvio que, rebaixando a imagem física do então presidente do estado, Juó Bananére<br />

empreende também o rebaixamento moral e político do homem público.<br />

Como poema inteiramente reservado ao tratamento de um personagem da<br />

época, é curioso o texto "Ella" (um "Sunetto didicado p'ra Nairia"). Não se trata<br />

aqui de caricatura, e nem mesmo de sátira mais agressiva, pois o soneto é marcado<br />

predominantemente por um tom irreverente e brincalhão - como aliás ocorre na<br />

maior parte das vezes em que Juó se refere a Nair de Teffé, então futura esposa<br />

de Hermes da Fonseca, 11 tratada, por exemplo, como "lindigna murena" ("O<br />

Dudu"). É certo, todavia, que o modo de se referir à "em breve primeira dama"<br />

não é sempre o mais respeitoso:<br />

É bella come una idisgraziata... Bella<br />

Piore d'una caçina<br />

Apparece una gulombina<br />

Pindurada na Gianella...


entretanto, o traço enfatizado, a beleza, atenua a agressividade da crítica. Não<br />

fica muito claro também se o narrador que dá o tom ao poema fala como Juó<br />

Bananére, ou como se adotasse o ponto de vista de Hermes da Fonseca, expressando-se<br />

na língua de Juó ("Quano io si gazá/ Nu cumeço do meise chi vê/ Giunto<br />

coella ..."); se o texto for lido com base nesse segundo ponto de vista, ganhará<br />

em comicidade e ridículo. Os poemas "Ella" (P'ra Nairia), "Elli" (P'ru Hermeze)<br />

e "Tragédia" (P'ru Piedadó) foram publicados juntos, na mesma página d'O<br />

Pirralho (15.11.1913).<br />

Afora alguns raros poemas, não há em La divina increnca outros textos<br />

inteiramente dedicados a desenvolver caricaturas de políticos e figuras de projeção<br />

da época; entretanto, nas paródias de fábulas e de poemas, na paródia-noticiário<br />

"Grime rroroso" (em cuja personagem central, o Semanigno, Décio Pignatari<br />

encontra afinidades com Macunaíma (apud Lemos, 1979, p.50), ou na<br />

peça-paródia A ceia dos avaccagliado (paródia da Ceia dos cardeais, de Júlio<br />

Dantas e possivelmente baseada na paródia A ceia dos coronéis, de Bastos Tigre),<br />

entremeiam-se constantemente referências satíricas a figuras públicas da época,<br />

muitas delas para nós hoje apagadas, diluídas, ou até mesmo irreconhecíveis por<br />

se referirem a personagens secundárias ou a episódios menores, cuja contextualização<br />

histórica é no presente mais difícil, passados já setenta, oitenta anos, mas<br />

que certamente tiveram em seu tempo um sabor tão agradavelmente catártico<br />

quanto em qualquer outro tempo as charges de políticos provocam.<br />

Alguns exemplos:<br />

O poema "Circolo viziozo" (O Pirralho, 27.9.1913), dedicado "Pru Maxado<br />

di Assize" (paródia de poema de mesmo nome feito pelo homenageado), em que<br />

Juó Bananére se utiliza do desvio satírico para ridicularizar e evidenciar as<br />

falcatruas ("cavaçó") dos políticos da época. O "Círculo Vicioso" de Machado<br />

tem um fundo filosófico, tratando da perene insatisfação humana, simbolizada<br />

no desejo manifesto pelas personagens de sempre serem diferentes; a paródia de<br />

Juó joga também com um percurso de insatisfações, mas referentes sempre a<br />

questões menores, prosaicas, ou a ambições materiais: o Hermes quer ser a rosa<br />

pendurada nos cabelos da sua namorada; a rosa quer ser como um cachorrinho,<br />

o cachorrinho quer ser como o "Piedadô" (Coronel José Piedade, político da<br />

época), que por sua vez gostaria de ser o "Dudu" (Hermes da Fonseca), fechando-se<br />

o círculo vicioso.<br />

As referências a "Rodorfo" (senador Rodolfo Miranda, candidato à presidência<br />

do Estado de São Paulo, em 1911, apoiado por Pinheiro Machado; em 1916<br />

era membro da Comissão Diretora do PRP, integrante da minoria dissidente<br />

paulista favorável à candidatura Hermes) são constantes, como essa em que é


comparado ao corvo ("O gorvo i o raposo", paródia da fábula homônima de La<br />

Fontaine), graças à vaidade e presunção. O homem público é comparado ao salão<br />

do berbeiro Juó, pois ambos têm má sorte: "O Capitô tê caguira/ O migno salô<br />

tambê". ("Versignos"), assim como ambos (Capitô e Juó) não têm dinheiro. O<br />

rebaixamento aqui é evidente na aproximação com o animal desprezível e<br />

também com o barbeiro humilde do Piques.<br />

Figura constante nas sátiras é também o professor Spencer Vampré<br />

("Vapr'elli"), sempre associado à cartola (certamente utilizada pelo professor,<br />

mas também encarnando uma atitude convencional, conservadora - o caricaturado<br />

é professor da Faculdade de Direito e membro da Academia Paulista de<br />

Letras):<br />

Quano Gristo<br />

fiz o mondo,<br />

Uguali come una bolla,<br />

O Spensero Vapr'elli<br />

Andava giá de gartolla. ("Versignos")<br />

Juó insere a cartola do Vapr'elli nos mais absurdos e cômicos contextos. Ao<br />

ridicularizar o marechal Hermes da Fonseca, fá-lo usar a cartola, que murmura<br />

um trecho de paródia de canção popular, no poema "A Garibu" (referência a<br />

Carabu, índia que é personagem da canção). A cartola é utilizada como veículo<br />

para conduzir Hermes da Fonseca para o céu ("Elli"), em um soneto futurista<br />

dedicado ao presidente, que descreve um sonho de Juó Bananére (e por isso se<br />

presta à apresentação de uma série de absurdos).<br />

Juó recorre também à aproximação Vapr'elli/satirizados para enfatizar a<br />

depreciação dos dois:<br />

Ai, ai! oglia a cara delli<br />

Parece até o Vapr'elli. ("O Dudu")<br />

Na paródia da "Canção do exílio", de Gonçalves Dias ("Migna terra"), Juó<br />

também apresenta a figura do professor e acadêmico como elemento típico (e<br />

ridículo) de sua terra:<br />

Na migna terra tê parmeras<br />

Dove ganta a galligna dangola;<br />

Na migna terra tê o Vapr'elli,<br />

Chi só anda di gartolla.


Nos textos encontram-se também referências depreciativas ao tabelião Fonseca<br />

Hermes, irmão de Hermes da Fonseca: João Severiano da Fonseca Hermes<br />

foi líder do governo na Câmara, durante a gestão do irmão; antes fora secretário<br />

do Governo Provisório e deputado à constituinte republicana pelo Estado do Rio<br />

de Janeiro; é como deputado pelo Distrito Federal que assume a liderança da<br />

Câmara, depois abandonando a política. Com a ascensão de Hermes da Fonseca,<br />

durante o governo de Rodrigues Alves, obtivera um cartório no Distrito Federal,<br />

sendo nomeado tabelião público. O irmão do presidente é explicitamente apresentado<br />

como ladrão:<br />

Infió as mó nu borso du Zé Povo,<br />

tirô di lá tuttos aramo qui incontrô ...<br />

("A greaçó da Iglia Francesca", paródia do<br />

"Gênesis", de Guerra Junqueiro, publicada<br />

em O Pirralho, de 11.4.1914)<br />

Esse texto é particularmente curioso, pois, ao figurar as etapas da Criação da<br />

Ilha Francesa, o satírico se apóia cm referências a características de tipos humanos<br />

populares na época, o que torna a criação muito cômica: o Giangotte (apelido<br />

utilizado em família para referir-se ao Tabelião Fonseca Hermes) usa todos os<br />

cabelos de Don Ciccio, sabidamente careca, para criar o mato da ilha; usa também<br />

os animais do "xalé" do Amanço (proprietário de grande chalé de loterias, na<br />

capital), para criar os animais da Ilha e finaliza a empresa com a criação do<br />

"Maresciallo" (Hermes da Fonseca, no poema, uma espécie de similar de Adão),<br />

figurado como o resultado do amálgama entre "un giacá di estupideiz" e um<br />

"papagallo", enfatizando a ausência de inteligência do caricaturado, ao identificá-lo<br />

a animal que apenas repete o que lhe ensinam, sem condições de reflexão,<br />

portanto, comicamente Sobrelevando a ausência de determinação e independência<br />

do governante. Nair de Teffé é apresentada como "una bunequigna tagarella",<br />

também reificada na condição de brinquedo, fantoche, que serve ao entretenimento,<br />

"que fala muito, e à toa"(Fcrreira, 1996, p.1640); portanto, sem pensar.<br />

Como figuras secundárias aparecem o general Pinheiro Machado (militar<br />

gaúcho, assassinado em 8 de setembro de 1915, hábil articulador político,<br />

eminência parda na gestão Hermes), chamado de "Pentefigno" (evidente alusão<br />

à corrupção), "gaxôrro" ("O Dudu"); o coronel Piedade, Washington Luís (então<br />

prefeito de São Paulo), Venceslau Brás, vice-presidente na gestão Hermes e<br />

presidente da República entre 1914 e 1918: "I u Wenceslau é um banana"<br />

("Versignos popularo"). Rodrigues Alves (presidente do Estado de São Paulo


entre 1912 e 1916, e do Brasil entre março de 1918 e janeiro de 1919, quando<br />

vem a falecer) e o senador Freitas Vale também povoam as sátiras de Bananére.<br />

A coincidência da crítica empreendida na década de 1910 por Juó, com a<br />

sátira feita por Moacir Piza (especialmente em Roupa suja, polêmica alegre, de<br />

1922-1923), mais à frente, atingindo fundamentalmente figuras proeminentes da<br />

política paulista (Washington Luís, então presidente do estado, Freitas Vale,<br />

Rodolfo Miranda etc), evidencia não apenas a permanência por algum tempo<br />

dessas figuras no cenário político, mas também reitera a empatia política entre os<br />

dois satiristas; deve-se notar, todavia, que a excessiva amargura e agressividade<br />

na crítica que comprometem a feição cômica dos textos do polemista de Vespeira,<br />

nas composições de Juó estão ausentes, amenizadas pelo humor "macarrônico"<br />

da persona, o que acaba por tornar mais eficaz a crítica do ítalo-paulista, despida<br />

do ressentimento que transparece nos textos de Piza.<br />

Os "Grimos celebros" têm data definida na versão por nós consultada: "Istas<br />

cronnaca furo impubricate nu 'Pirralho' in 1914, andove stava io o migliore<br />

ingollaboradore" (Bananére, 1966, p.l22). É possível que Marcondes Machado<br />

tenha se confundido a respeito da data, pois "A tragédia nu Laro" e o "Grimo<br />

rroroso" vieram a público n'O Pirralho, mas em 1913: "Io amatê a Juoquina" é<br />

de 17.5.1913 e continua no número de 24.5.1913; "O guirio - A bicorviçó" é de<br />

7.6.1913. "Grimo rroroso" foi publicado em 19.7.1913, continuando em números<br />

posteriores. A ceia dos avaccagliado se passa durante o "Guvernimo du principe<br />

Kaká" (Dr. Oscar Rodrigues Alves), portanto, possivelmente foi escrita entre<br />

1912 e l919.<br />

As personagens que dialogam nessa comédia de um ato são: o Capitó<br />

(senador Rodolfo Miranda), o Garonello (Coronel José Piedade) e o Bigudigno<br />

(personagem não identificada por nós, apresentada apenas como "veterano da<br />

guerre co Paraguaio", o que certamente na época era referência suficiente à<br />

identificação do caricaturado). Os diálogos expõem fundamentalmente a decadência<br />

dos satirizados no presente, a saudade do passado, quando detinham algum<br />

tipo de poder, perdido no momento, e exploram de modo caricato a ridícula<br />

situação de serem esses figurantes eternos postulantes a cargos eletivos.<br />

Essa ambição também atribuída ao coronel José Piedade ocupa o centro do<br />

poema "Otro sunetto futuríssimo", paródia cômica do diálogo dramático e tétrico<br />

mantido entre a morte e alguém que sofre sem esperança em "A balada do desesperado",<br />

de Castro Alves. No poema original, a morte, em condição de anonimato,<br />

bate à porta do desesperado, desenvolvendo-se um diálogo entre os dois, ele<br />

dentro da casa e ela na soleira da porta, finalizando o poema com a entrada da<br />

morte na casa. A sátira de Juó Bananére apresenta alguém que bate insistente-


mente à porta da Prefeitura, com uma "brutta afriçó", revelando ao final quem<br />

deseja entrar: "Sô io, o garonello che istó quireno/ Intrá! ...", e recebendo a<br />

resposta de uma voz anônima (possível registro de comentário que ridicularizava<br />

nas ruas as pretensões do político): "... che garadura/ Isto Piedadó".<br />

São raras as sátiras contidas em La divina increnca nas quais não se fazem<br />

referências, mesmo que breves, a Hermes da Fonseca ou a Altino Arantes. A<br />

negatividade das duas figuras públicas, especialmente do primeiro, é intensificada<br />

e reiterada nas mais diferentes oportunidades. Exemplo curioso é "A stória du<br />

Tiratenteso", em que o insucesso da Conjuração Mineira é atribuído a Hermes<br />

da Fonseca; utilizando-se da liberdade de criação, em expressiva fantasia satírica,<br />

o escritor desloca a ênfase da performance nefasta do presidente da atualidade,<br />

pela linha do tempo, extemporizando-o no episódio histórico referido, quando<br />

encarna a traição:<br />

Má o Hermeze indisgraziato,<br />

Deu parti pru diligado<br />

I a galinha agorô no ovo.<br />

Personagens menores da vida pública, cuja projeção foi bem mais fugaz,<br />

estão presentes na sátira de Juó, que registra também o momentâneo, o circunstancial:<br />

um maestro que critica Guiomar Novaes ("O uómo indiferente"), o<br />

"Muque", que<br />

desde aquilio tombo,<br />

Nunga maise quiz sabe di avuá. ("As pompigna")<br />

Na época da publicação das sátiras, esses dados de circunstância certamente<br />

acentuavam a comicidade das paródias, mas com o passar do tempo, desconhecendo-se<br />

o referencial histórico, muito da graça e da vida dessas sátiras datadas<br />

se perde.<br />

Washington Luís (presidente do Estado de São Paulo entre 1920 e 1924) será<br />

personagem central em algumas sátiras de Juó Bananére, publicadas em 1924,<br />

n'O Estado de S.Paulo. O presidente protagoniza a "Grizia pulittica", em momento<br />

de cisão no Partido Republicano Paulista. O ponto de vista utilizado nessas<br />

sátiras é bastante revelador: Juó analisa "por dentro" a política do Estado de São<br />

Paulo; apresentando-se como amigo e cúmplice dos poderosos, o barbeiro<br />

desnuda os desmandos do PRP. A sátira aborda o autoritarismo do presidente do<br />

estado, alcunhado "Mussolino di Macaé", evidenciando a conduta atrabiliária dos<br />

oligarcas e a truculência dos coronéis, explicitada, por exemplo, nas referências


a Ataliba Leonel, cujo nome muitas vezes foi lembrado por jornais e políticos de<br />

oposição como um protagonista-protótipo dos procedimentos violentos adotados<br />

na prática eleitoral interiorana pelo oficialismo: "U Taliba Lionelo livó guatros<br />

covêro da Gonçolaçó p'ra rinforçá um pissoalo du cimitero di Biragiú". Essas<br />

sátiras encontram-se em anexo pelo interesse que despertam aos estudiosos de<br />

Juó Bananére, mas a sua análise extrapolaria a delimitação imposta a este<br />

trabalho.<br />

Como já foi afirmado anteriormente, há textos de Juó Bananére calcados em<br />

marcas mais específicas do ítalo-paulista: sobre a infância nos bairros suburbanos,<br />

discorre não só no poema "O studenti du Bó Retiro" (O Pirralho,<br />

27.12.1913), mas também no texto "Os meus Otto anno" (obviamente uma<br />

paródia de "Meus oito anos", de Casimiro de Abreu, poema muito popular, e<br />

certamente por isso tão freqüentemente visado pelos parodistas), que descreve<br />

hábitos dos meninos do Largo d'Abax'o Piques, versão às avessas do menino<br />

bem-comportado de Casimiro, frisando especialmente a desobediência, a descompostura,<br />

o desassossego:<br />

A migna gaza vivia<br />

Xiingna di genti, assim!!...<br />

Che iva da parti di mim.<br />

Sembrava c'um gabinetto<br />

Di quexa i regramaçó...<br />

O poema "Sodades de Zan Paolo" (paródia de "Versos de um viajante", de<br />

Castro Alves, que homenageia as mulheres de São Paulo) não exalta a beleza e<br />

a graça "das filhas do país do sul", mas de modo um tanto ambíguo reverencia<br />

as "bellas figlia la du Bó Ritiro".<br />

Na fatura de todos os textos, como já se viu anteriormente, patenteia-se a<br />

presença do ítalo-paulista, personificado em Juó Bananére:<br />

Ai che mi dera<br />

Che o meu úrtimo sospiro<br />

Fosse lá nu Bó Ritiro<br />

I o meu túmbolo também.<br />

Ficá p'ra sempre<br />

giunto das italianignas<br />

Cada quar mais bunitignha,<br />

Maise bó non pode avê...


("Ao luar", cançoneta para ser acompanhada "co'a música do Luar du Sertó").<br />

Nessa paródia Juó desenvolve um contraponto ao caboclismo idílico tão apreciado<br />

no tempo, compondo uma versão ítalo-paulista do poema de Catulo da Paixão<br />

Cearense.<br />

A seqüência de "Crimos celebros" passa-se inteiramente no Abaix'o Piques,<br />

protagonizada por Juó Bananére. Além de a narração dos crimes ser paródia de<br />

textos da grande imprensa dedicados a esse tema, os "Crimos celebros" têm<br />

também uma feição lúdica, ao envolver como componentes da trama elementos<br />

da vida contemporânea à sua produção: o jornal O Pirralho, o poeta Emílio de<br />

Menezes, (também redator desse jornal). As citações constantes de episódios e<br />

fatos da atualidade permitem ao leitor o reencontro do próximo e do conhecido,<br />

provocadores do prazer do reconhecimento em que se esperava encontrar o<br />

estranho motivando o riso.<br />

São narrativas certamente muito semelhantes às encontradas na grande<br />

imprensa, residindo a comicidade especialmente no tom fantasioso e afetadamente<br />

dramático, beirando o absurdo e o nonsense, que lembra episódios encenados<br />

no teatro popular, muito proximamente aparentados às encenações do circo e aos<br />

"pastelões" do cinema, todos marcados pelo exagero, pela apresentação hiperbólica<br />

de sentimentos, pelo tom pateticamente sentimental. Juó Bananére mata sua<br />

mulher com<br />

settes tiro na gabeza. I disposa che illa giá stava nu chó quase morrido io preguê inda<br />

maise quattros facadas no goraçó della, (p.l06)<br />

Atente-se para a comicidade da situação, que envolve os seguintes precedentes:<br />

Fá uno mes e meio o duos mese, o "Pirralhu" impubricó una nutiça dizendo che o<br />

poeta futuriste, signoro Milio di Menezo vigna tuttas settimana qui in Zan Paolo pur<br />

causa di anamurá a Juóquina mia molhére. (p.103-4)<br />

Trata-se, portanto, de um crime passional, bem nos moldes da imagem<br />

caricaturescamente arrebatada que se propaga dos italianos.<br />

Nesse texto também não se perde a oportunidade da sátira política: após o<br />

crime, estão presentes no julgamento de Juó Bananére elementos ligados à política<br />

e representantes das instituições, desde Rodrigues Alves, então presidente do<br />

estado, até um "burrinho preto", "ripresentano o Hermeze da Funzega", e também<br />

ministros, a Academia de Letras, a Beneficência Portuguesa, "também o capitó<br />

(Rodolfo Miranda) amontado ingoppa a gartola du Vapr'elli" etc. (p.l 10-1).


Entremeiam-se à narrativa, acentuando a comicidade, os dados de atualidade:<br />

o Lacarato (doutor Antonio Naccarato, antigo delegado de polícia de São Paulo)<br />

também está presente no julgamento; Juó se refere ao assassinato do tenente<br />

"Galigna", certamente tendo como base episódio da época; encontra-se também<br />

a paródia ridicularizando o discurso jurídico:<br />

Das gunsideraçó intrinsicca dus fatto, i gunsiderano tambê a pinió piletica i trencendente<br />

di Mittikinixopp, Lumbrose, Gorpu di Giuris: Joan Koppinga, Standio i Dikke,<br />

Ering, Ruio Barboza i otres giuriste notabilis, amuntáno in goppa o direito civile e<br />

gomerciale, nu diretto chi Gristo organizô p'ru povolo in goppa da çarça ardentis, só<br />

certo de biçorviçò do réu. (p.l 13)<br />

Apesar de criminoso e farsescamente ridículo, Juó Bananére é absolvido ao<br />

final do julgamento, o que, dadas as suas ligações com os poderosos, reforça a<br />

crítica da impunidade a eles reservada.<br />

O segundo episódio descreve o "Grime rroroso" cometido pelo neto de Juó<br />

Bananére, que esfaqueia a Gumerligna, sua mãe. Além da linguagem caricaturesca,<br />

risível, o que ameniza a narrativa, tornando-a extremamente cômica são os<br />

dados de circunstância e a evidência do absurdo dos fatos:<br />

O çaçino é o Semanigno Santo, figlio da Gurmeligna, con quasi un anno de indade.<br />

Apesar da piquéna índole é giá un grande griminoso istu indisgraziato! (p.l 17)<br />

O escritor se vale também da paródia desmistificadora de resquícios do<br />

cientificismo e do determinismo, presentes no pensamento do tempo, evidente<br />

especialmente em "Os mutive scientifico", em que Juó se propõe a explicar as<br />

causas do crime:<br />

O Semanigno é un "atarado"!... fui una vittima du tavismo.<br />

Si signore, pur causa che io sò çacino, o Semanigno é migno nipoto, lògo illo tenia<br />

di sê çaçino por causa do tavisimo! (p.l 18)<br />

Finalizando, é necessário observar que Juó Bananére, como outros escritores<br />

do tempo, também faz concessões ao leitor, primeiramente ao utilizar um gênero<br />

de expressão lingüística marginal, mas popular, o dialeto macarrônico, e também<br />

ao recorrer a um tipo de literatura também à margem, mas apreciada pelo público,<br />

a sátira, 12 utilizando-se de recursos bem típicos da comicidade presente no teatro<br />

popular (o exagero, o absurdo, o patético e personagens de feição caricaturesca)<br />

e, finalmente, ao entremear nos textos referências elogiosas ao ítalo-paulista, com<br />

certeza seu fiel leitor (a beleza das filhas do Bom Retiro, o brio dos pequenos<br />

"paulistalianos"), e ao paulista de modo geral ("Mais o baolista chi é un pissoalo<br />

di valôre" - "Dudu").


A PARÓDIA MACARRÔNICA<br />

A caricatura e a paródia são os mais evidentes recursos da sátira de Juó<br />

Bananére. Aparecem em geral associadas: são paródias os textos em que se<br />

delineiam as caricaturas; as paródias nada mais são do que caricaturas feitas em<br />

dialeto macarrônico de textos muito conhecidos e apreciados na época.<br />

O desvio parodístico realizado nos textos de Juó tem como ponto de partida<br />

uma estrutura comum entre texto parodiado e texto parodiante, estabelecendo-se<br />

a descontinuidade ou a ruptura:<br />

a) fundamentalmente pelo trabalho empreendido com o hibridismo da linguagem,<br />

por si só descaracterizador ou rebaixador dos propósitos do original;<br />

b) pelo arrevezamento ou pela inversão das idéias expressas no original,<br />

comumente deslocando o conteúdo para o universo do ítalo-paulista.<br />

Alguns exemplos: "O gondoleiro do amor", de Castro Alves, é rebaixado à<br />

condição d'"O varredore da rua", no poema de Juó. Os "Versos de um viajante"<br />

em que o poeta abolicionista enaltece os méritos das "belas filhas do país do sul",<br />

transfiguram-se na paródia "Sodades de Zan Paolo", em que Juó canta as "bellas<br />

figlia lá du Bó Ritiro", enfatizando especialmente alguns aspectos picantes: os<br />

"begigno ardenti", "o collo ardenti"... (não se deve ignorar que o bairro humilde<br />

abrigava costureirinhas, operárias, e também prostitutas). O caráter exemplar da<br />

fábula "O lobo e o cordeirinho" de La Fontaine, que expõe o embate entre a força<br />

arbitrária do lobo e a indefesa fragilidade do cordeiro, na paródia de Juó<br />

amolda-se ao confronto entre o "Gargamano" e a "Incelência".<br />

A popularidade do texto-matriz é requisito imprescindível à eficácia da<br />

produção paródica; diluídas as referências intertextuais, é possível apenas uma<br />

compreensão parcial do texto, que perde a identidade, transformado num outro<br />

texto, com o desvirtuamento de seus propósitos. Os poemas parodiados por Juó<br />

eram bastante populares ao tempo da publicação das paródias; era hábito corrente<br />

serem decorados e declamados sonetos de Olavo Bilac, Raimundo Correia,<br />

Castro Alves, Casimiro de Abreu. Qualquer pessoa que tivesse algum dia freqüentado<br />

a escola certamente teria decorado muitos poemas desses escritores;<br />

Patrício Teixeira, intérprete popular, cantava para os ouvintes uma versão musical<br />

de "Versos de um viajante", de Castro Alves. Guerra Junqueiro ("O gazua e a<br />

polizia", publicado em O Pirralho de 4.9.1915, lembra o "A caridade e a justiça",<br />

do poeta português) não era, como hoje, um poeta quase desconhecido.<br />

No que se refere à expressão de ressalvas com relação a figuras eminentes da<br />

política, é exemplarmente cômica a versão paródica "Os migno Otto annoses (Versos<br />

futuriste)" (O Pirralho, 13.6.1914), em que a persona fala como se fosse o<br />

próprio Hermes da Fonseca, recordando com saudade os bons tempos da infância:


O' chi sodades che io tegno<br />

Da quillos tempo passado<br />

Che io faceva o surdato<br />

Gordo i disprocupatto<br />

Como um carrapatto.<br />

A paródia de Juó Bananére desempenha distintas funções. A mais evidente<br />

é a crítica desmistificatória, forma de libertação da "aura mística" que cercava<br />

um certo tipo de literatura "consagrada". A crítica toca também a política contemporânea,<br />

questão já exaustivamente apontada, cujas referências se enredam no<br />

discurso parodiante, mas fundamentalmente atinge limitações da obra parodiada:<br />

Juó Bananére só precisa ouvir as expressões nobres de Bilac... para sentir a falsidade<br />

dessa nobreza e traduzir para seu idioma de plebeus. (Carpeaux, 1958, p.202)<br />

Basta verter para o dialeto ítalo-paulista a literatura preciosa dos parnasianos<br />

("Che scuitá strella, ne meia strella!" - "Uvi Strella"); a grandiloqüência de Castro<br />

Alves ("Boanotte Raule! Io vô s'imbora!/ Boanotte, boanotte, ó Bananére..." -<br />

"Boanotte Raule", paródia de "Boa noite, Maria"), o tom alambicado e queixoso<br />

de um certo tipo de poesia romântica:<br />

Io dexo da vida come um tirburêro<br />

Chi dêxa as ruas sê cavá frigueiz;<br />

Come um pobri d'un indisgraziato,<br />

Chi giá ando na Centrale arguna veiz<br />

("Tristezza", paródia de "Lembrança de morrer",<br />

de Álvares de Azevedo)<br />

a artificial ingenuidade dos "poemas caboclos" ou das singelas quadrinhas<br />

populares, feitas por eruditos da cidade:<br />

Piga-pau é passarigno,<br />

O papagallo tambê<br />

Tico-tico non te denti,<br />

Migna avó tambê non tê.<br />

("Versignos")<br />

O Bacate é una fruitinha<br />

chi tuttos munno cunhece;<br />

a gente mexe bê elli<br />

I disposa... o che parece?<br />

("Becedário poético")


A paródia de Bananére, em algumas situações mais raras, também se aproxima<br />

da estilização, aparentando-se nesses casos a uma espécie de homenagem,<br />

como se observa, por exemplo, em "Sunetto crássico" (O Pirralho, 4.9.1915),<br />

paródia do "Sete anos de pastor Jacó servia", de Camões; ocorre, entretanto, uma<br />

descontinuidade com relação ao tom "sério" do poema original, graças à linguagem<br />

híbrida e à inserção de marcas bem fortes da oralidade, de um léxico<br />

coloquial, na versão paródica: "sparrela", "garó di arara", "quibrava a gara",<br />

responsável por uma certa distensão jocosa.<br />

Há, por fim, algumas outras paródias, também raras, cuja fatura tem apenas<br />

feição lúdica, "de efeito inofensivamente humorístico" (Carpeaux, 1958, p.201);<br />

em textos que não manifestam maior hostilidade, pois são despojados de intenção<br />

satírica, sendo cômica aqui especialmente a utilização do discurso paródico como<br />

uma espécie de brincadeira de estudantes, um jogo entre iguais. É o que se observa<br />

em "O gorvo" (paródia de "O corvo", de Poe), e em "Boanotte Raule": em ambos<br />

os poemas Juó Bananére se dirige a um interlocutor, "Raule", possivelmente um<br />

companheiro de trabalho ou de estudo:<br />

Raul! mi impresta duzentó p'ru bondi,<br />

I non seugliamba dispois faccia o favore.<br />

("Boanotte Raule!")<br />

É certo que, ridicularizando a "expressão literária da classe dominante, da<br />

velha oligarquia dos 'cartolas'"(Carpeaux, 1958, p.202), Juó Bananére motiva o<br />

desgaste e a desmoralização de estruturas ultrapassadas de pensamento que seriam<br />

empreendidos mais sistematicamente na literatura dos jovens de 1922. Entretanto,<br />

em certo sentido, esse "poeta" e "giurnaliste" vai ainda mais além dos modernistas,<br />

ao revelar a artificialidade de sua própria dicção na fase inicial, ainda fortemente<br />

apoiada nos modismos lançados pelas vanguardas européias. Juó Bananére faz<br />

sonetos que denomina "Sunetto futuriste" ou "Sunetto futuríssimo", cuja seqüência<br />

de disparates cômicos e aproximações absurdas é bastante reveladora:<br />

Tegno una brutta paxó<br />

P'rus suos gabello gor di banana,<br />

I p'ros suos zoglios uguali dos lampió<br />

Lá da Igreja di Santanna.<br />

É necessário, portanto, rever com cuidado a proposição de Otto M. Carpeaux<br />

(1958, p.201), quando afirma que o alvo preferido de Juó Bananére são os<br />

parnasianos, pois o rastreamento das relações intertextuais estabelecidas nas


paródias mostra uma indiscriminada preocupação em provocar o canonizado, o<br />

estabelecido - seja ele parnasiano, romântico ou pseudopopular -, assim como<br />

em desvelar o artificialismo (mesmo que travestido de modernidade), instigando<br />

à polêmica, ao expressar a provável visão do homem do povo diante das novas<br />

modas. É o que se detecta na resposta dada por Bananére à questão acerca de<br />

Marinetti, em que a persona, apenas constatando evidências, revela a impermeabilidade<br />

dos mais simples ao arrojamento das novas estéticas:<br />

Io axo chi u Marinetti é um numaro!... O futurismo é una tioria literária chi manda<br />

aprantá batata tuttas tradiçó, a storia, u passato i tutto chi é veglio. (Carelli, 1985, p.l 17)<br />

Como se observa, o humor de Juó Bananére explora justamente o contraste<br />

entre o "provincianismo bairrista" e uma certa modernidade "compulsória e meio<br />

canhestra da São Paulo da época" (Saliba, 1991, p.8).<br />

A LINGUAGEM<br />

Como é possível notar até mesmo nas citações e exemplos já referidos, Juó<br />

Bananére cria uma linguagem híbrida, procedendo à mesclagem entre português<br />

e italiano, para compor uma espécie de dialeto ítalo-paulista, expressão macarrônica<br />

que se aproxima da utilizada pelos imigrados italianos e seus descendentes.<br />

Otto Maria Carpeaux (1958, p.202-3) desenvolve a respeito dessa linguagem<br />

híbrida uma teoria interessante, definindo a expressão macarrônica por suas<br />

manifestações em diferentes momentos da literatura universal. Identifica no<br />

macarronismo um objetivo comum, ligado à função artística que desempenha,<br />

como técnica literária que mistura intencionalmente duas línguas para fins<br />

parodísticos.<br />

No que se refere especificamente à expressão utilizada por Alexandre Ribeiro,<br />

o ensaísta encontra seu significado na relação entre língua e classe:<br />

Há uma relação entre língua e classe. As classes sociais têm, cada uma, sua própria<br />

língua. A língua parnasiana dos "cartolas" de São Paulo não podia ser a mesma da classe<br />

mais pobre do Estado, dos recém-imigrados italianos. Deliberadamente ou não, Juó<br />

Bananére usou a língua macarrônica, ítalo-portuguesa, dessa gente, para ridicularizar os<br />

"cartolas", cujo reino acabou em 1929. (Carpeaux, 1958, p.204)<br />

Sobre a fidelidade do registro lingüístico presente nos textos, desenvolvem-se<br />

posições distintas: Miroel Silveira (1976, p.165) vê nele a expressão fiel da


linguagem do imigrante na primeira fase; Ana Maria de Moraes Belluzzo (s.d.,<br />

p. 106) o avalia como reelaboração literária, constituindo uma terceira língua que<br />

não era dialetal, era caricatural, e se situaria "entre o italiano falado em São Paulo<br />

e o português falado pelos italianos." Sud Mennucci (1934, p.225) pensa em uma<br />

linguagem "com deformações surpreendentes", que é "caricatural na caricatura,<br />

paródica na paródia". Alcântara Machado (1940, p.259) vê Juó como o grande<br />

estilista do português macarrônico dos italianos de São Paulo. Parece, portanto,<br />

haver um certo consenso entre os críticos no que se refere à interpretação da<br />

linguagem utilizada por Juó Bananére como reelaboração literária, resultante de<br />

um processo de estilização-caricaturização do dialeto macarrônico.<br />

É certo que a linguagem utilizada pelo jornalista guarda grande semelhança<br />

com a utilizada pelos ítalo-paulistas (evidente nas interjeições, nos xingamentos,<br />

nas expressões: "avaccagliado", "indisgraziato", "troxa", "indisgambé" etc.), e<br />

justamente nessa correspondência se encontra muito de sua eficácia cômica.<br />

Entretanto, uma leitura mais atenta deixa entrever um processo de estilização, um<br />

trabalho de recriação literária. Assim, não se trata apenas do registro documental<br />

da fala do imigrante, mas o escritor procede à elaboração de uma língua caricaturesca,<br />

utilizada como expressão peculiar dessa persona também caricaturesca.<br />

O código lingüístico utilizado pela persona compõe uma das facetas (certamente<br />

a mais marcante) de sua personalidade. Essa relação avaliza as imagens<br />

prosaicas e mesmo vulgares que vincam os poemas-paródias:<br />

Bê difronti adondi io móro<br />

Móra un ómi indifferenti;<br />

Quano a genti passa lá<br />

Illo gospi inzima da a genti.<br />

("Versignos popularo")<br />

recorrendo a aproximações rebaixadoras ou cômicas: lua/pomarolla, pesigno/passarigno,<br />

"pinta amarella" (do rosto da namorada)/ "carrapatto" etc. Desse<br />

modo, a par da estocada no tom aguado e lugar-comum das esgotadas imagens<br />

parodiadas, o léxico selecionado e reajustado em aproximações absurdas e<br />

grotescas também é índice que auxilia o delineamento desse ridículo e simpático<br />

bufão que é Juó Bananére.<br />

A caricaturização na linguagem criada por Marcondes Machado tem como<br />

marca característica "a técnica do exagero cômico, ao jogar com as expressões<br />

populares" - livê mesimo nu arto da cabeça (a expressão "levar na cabeça" é<br />

ampliada comicamente como "nu arto") (Carelli, 1985, p.l 14-5) - e a ênfase na<br />

discrepância entre o significado almejado e o significante efetivamente registra-


do, gerador de ambigüidades, denotando limitações no domínio do código,<br />

desfoque comum na fala de estrangeiros, e também na de naturais com menor<br />

escolarização ou analfabetos: "A abóbora celestia" por abóbada celeste, "peoraçó"<br />

por peroração; "un uómo indifferente" por um homem diferente; "O estado<br />

da vítima é morto gravi", por "O estado da vítima é muito grave". Esse último<br />

recurso torna-se ainda mais cômico ao considerarem-se as pretensões intelectuais<br />

da persona, que se considera poeta, diz-se jornalista, e pretende ingressar na<br />

Academia Paulista de Letras.<br />

A linguagem híbrida de Juó incorpora também apelidos e elementos da gíria<br />

corrente nos setores mais populares: "Briosa" (Guarda nacional); "Viúva alegre"<br />

(ambulância); "urucubacca" (azar, má sorte); "Dudu" (Hermes da Fonseca);<br />

"Kaká" (Oscar Rodrigues Alves) etc, o que certamente na época tornava seu<br />

texto mais cômico e próximo do receptor, que reconhecia como seu o jargão<br />

utilizado, sentindo-se íntimo e cúmplice do emissor.<br />

Quanto à fonética, Mário Carelli (1985, p.l 19-20) se incumbe da síntese de<br />

alguns aspectos marcantes, identificando especialmente a reprodução gráfica de<br />

tudo que é captado pela audição:<br />

as palavras italianas mais correntes (signore, molto, migliore), misturadas com palavras<br />

em português, em particular os verbos; as palavras não alteradas são comuns às duas<br />

línguas (gente, quanto, caro)<br />

a italianização não só do vocabulário, mas também de construções, incluindo-se<br />

aí a reprodução quase que fonética das diferenças mais evidentes entre as duas<br />

línguas, com ênfase especial para a versão italiana:<br />

o e inicial elidido (squisito), a última vogai deformada (elli), o artigo definido sem<br />

contração depois de certas preposições (do o Piques), os finais em -om e ém desfigurados<br />

para ô e ê (bô, tambê), o ditongo nasal português ão sistematicamente adaptado -ó (nó,<br />

una pinió, purçó)<br />

substituições consonantais (cirgolo vizioso) e substituições vocálicas (barbuleta,<br />

pindurada); acréscimo ou supressão de vogais (mesima; rastera) etc. As alterações<br />

assinaladas são obviamente resultantes da observação e do registro da língua<br />

falada, evidenciando a preferência pelas formas populares, mas não se restringindo<br />

apenas a "uma vil reprodução".<br />

Juó Bananére escreve de modo próximo à maneira como o ítalo-paulista fala,<br />

por isso sua marca registrada, o traço mais forte da caricatura lingüística empreendida,<br />

é a aproximação à oralidade.


Elias Thomé Saliba (1991, p.8) constata a presença de um "lastro cultural<br />

caipira" na expressão utilizada por Juó Bananére. Comprovando a hipótese,<br />

aponta algumas marcas registradas por Amadeu Amaral, em O dialeto caipira,<br />

encontráveis no dialeto criado por Marcondes Machado:"... no aspecto fonético,<br />

as formas sincréticas de consoantes (b e v)e de vogais (a/u - ão/on) e, na sintaxe,<br />

as construções arrevezadas do tipo: 'A pulitica é maise migliore di bó' ou 'si o<br />

meu carculo non erra', 'temos fazido'" etc.<br />

Desse modo, o historiador confirma a interpretação desse código como<br />

versão caricaturesca, "língua estropiada", que mistura o italiano, o português e<br />

assimila o linguajar caipira (presente na literatura regionalista; em crônicas<br />

híbridas freqüentes na imprensa; falado nas ruas; e certamente bem-conhecido<br />

por Alexandre Machado, que passou a infância e a adolescência no interior do<br />

Estado de São Paulo), definindo-o como registro do "caldo de cultura híbrido e<br />

instável, típico da belle époque paulista".<br />

Vera Chalmers (1990, p.35) amplia os componentes dessa língua arrevezada,<br />

observando que o dialeto falado pelos imigrantes de origem italiana em São<br />

Paulo,<br />

misturava o calabrês, o napolitano e o Vêneto com o português falado pela população<br />

mestiça e negra, e pelo caipira, todos recém-chegados à metrópole.<br />

A pesquisadora chama a atenção também para o fato de restar desta língua<br />

oral apenas "o registro escrito, através da inversão paródica, que é evidentemente<br />

uma criação da língua culta e escrita de Oswald de Andrade e Alexandre<br />

Marcondes Machado".<br />

E realmente admirável que um intelectual de classe média, de castiça origem<br />

portuguesa, descendente de tradicional cepa paulista, dominando com perfeição<br />

a norma culta e cultivando considerável erudição, tenha se interessado tanto por<br />

esse novo e discriminado componente da cidade, utilizando-o como elemento<br />

cômico, caricaturesco, recurso satírico, mas sem deixar de registrar seu pensamento,<br />

facetas de sua psicologia característica, por meio de sua linguagem<br />

peculiar. Marcondes Machado teve sensibilidade para perceber o que muitos<br />

ainda ignoravam: o imigrado italiano como um forte componente da transformação<br />

que marcaria profundamente o perfil de São Paulo.<br />

CONCLUSÕES<br />

Independentemente do valor propriamente estético dos textos coligidos em<br />

La divina increnca, é inegável a sua importância histórica, como registro satírico


de uma época. Valem eles muito também como expressão de uma concepção e<br />

de uma prática mais libertária de literatura. Nesse sentido, como poeta humorístico<br />

e macarrônico, Juó Bananére é único, e compõe "uma categoria 'per se',<br />

modesta, mas na qual não tem companheiros" (Carpeaux, 1958, p.200).<br />

Alexandre Ribeiro é um inovador na irreverência, no modo debochado como<br />

toca em tabus consagrados, mas também, e principalmente, na experimentação<br />

lingüística empreendida. As crônicas de Juó Bananére e as caricaturas de Voltolino<br />

são o nascedouro de onde Antônio de Alcântara Machado retirou muito da<br />

substância dos seus textos; é certo, todavia, que o autor de Brás, Bexiga e Barra<br />

Funda procede a uma "deglutição antropofágica dos estrangeiros" (Carelli, 1985,<br />

p.191), superando assim os procedimentos caricaturescos de seus precursores, ao<br />

utilizar-se do humor, mas como recurso que garantisse o almejado distanciamento<br />

para a composição de sua versão, mais ágil, dinâmica e mais literária, do<br />

ítalo-paulista.<br />

Juó Bananére é o precursor de toda uma linhagem de produções que trazem<br />

as marcas deixadas pelo imigrante italiano, e abrange desde "O fisco", de<br />

Monteiro Lobato, até a expressão lingüística e o registro cultural peculiares<br />

expressos nas letras de Adoniran Barbosa, o tema de Filhos do destino, de Hernani<br />

Donato, um pouco do jeito do Bronco, encarnado por Ronald Golias, e até mesmo,<br />

bem mais recentemente, certas canções cômicas cantadas por grupos musicais,<br />

como Domingão, interpretada pelo Premeditando o Breque, ou Conchetta, interpretada<br />

pelo Língua de Trapo.<br />

A obra de Alexandre Ribeiro foi analisada com distintos critérios, e portanto<br />

trilhando percursos diferentes: Carpeaux vê nela uma feição pré-moderna, como<br />

uma espécie de literatura de mediação, que antecipa aspectos da modernidade.<br />

Wilson Martins (1978, v.6, p.337) detecta duas tendências antagônicas nos textos<br />

de Juó: por um lado, atenderia aos compromissos do Modernismo com a grande<br />

cidade (e, no caso, com as peculiaridades paulistas), por outro, oporia "um<br />

desmentido sardônico ao nacionalismo programático dos modernistas"; essa oposição<br />

se associa ao que o crítico denominou "regionalismo urbano e dialetal", que<br />

floresceria depois mais intensamente na obra de Antônio de Alcântara Machado.<br />

Mário Carelli (1985, p. 115-6) insinua uma possível relação entre a subversão<br />

de valores praticada por Juó e as idéias anarquistas ambientes, sugerindo também<br />

uma leitura da dimensão satírica da obra de Bananére "como uma carnavalização da<br />

vida política", para ao final defini-lo como herdeiro da tradição do teatro popular.<br />

Décio Pignatari (apud Lemos, 1979, p.50) liga Juó ao mundo da subliteratura,<br />

como portador de um estilo meio kitsch, tendo exercido influência nas publicações<br />

humorísticas, nos programas de rádio e até na música popular. Chama a


atenção, também, para o fato de ser "o único com o espírito de 22 que chegou às<br />

massas" e explica o fato pela opção jornalística do escritor, que nunca se dedicou<br />

a uma obra mais séria.<br />

Maria Rita E. Galvão (1975, p.l7) pensa a produção de Bananére como um<br />

gênero de subcultura, uma espécie de "esboço de cultura proletária", que se<br />

desenvolve ao lado da cultura da elite, nos fins da década de 1910:<br />

na mesma época em que a Semana de 22 se apresenta no Teatro Municipal, o Juó<br />

Bananére é expulso até mesmo das "cortinas" dos cinemas de segunda classe. A primeira<br />

subsiste, o segundo morreu de morte matada, condenado pelo imperdoável crime de<br />

vulgaridade.<br />

A disparidade nas interpretações no mínimo revela o interesse e a urgência<br />

de estudos mais detidos e de uma edição mais completa e cuidada que reúna<br />

também a produção esparsa do jornalista. Mesmo a leitura mais superficial de La<br />

divina increnca identifica nos textos um tom que antecipa muito do espírito de<br />

22: na irreverência, no deboche, na experimentação lingüística, na incorporação<br />

do novo, dos elementos transformadores, mas constata também certa reserva com<br />

relação à modernidade de aparato, evidenciada no necessário distanciamento do<br />

satirista, independente nos seus propósitos de crítica, que indiscriminadamente a<br />

todos atinge, apontando, já antes de 1922, limites comprometedores até mesmo<br />

em alguns excessos modernistas.<br />

O pendor caricaturesco, se aproxima o texto desse escritor à subliteratura,<br />

por isso mesmo é também a expressão de uma opção mais popular, do jornalista<br />

que escreve no calor da hora, para ser lido e compreendido rapidamente, pelo<br />

maior número possível de leitores.<br />

Com argúcia e graça a sátira de Juó Bananére flagrou o momento efervescente<br />

em que se processava o amálgama cultural e lingüístico que gerou o<br />

ítalo-paulista. Essa circunstância explica o aparente paradoxo da permanência<br />

dos seus textos, pois, se de um lado sua sátira foi desbotada pelo tempo, de outro,<br />

sobrevive solidamente, 13 por meio do riso que a pereniza, porque são ainda hoje<br />

marcantes os traços da cultura ítalo-paulista definidos na época e caricaturescamente<br />

registrados por Alexandre Marcondes Machado.<br />

NOTAS<br />

1 A respeito de Voltolino há interessantíssima tese de mestrado, Voltolino e as raízes do modernismo,<br />

feita pela professora Ana Maria de Moraes Belluzzo, e apresentada à Escola de Comunicações e Artes<br />

da Universidade de São Paulo.


2 Esse sentimento de italianidade, evidenciado em algumas caricaturas de Voltolino, é traço mais cômico,<br />

patético, quando nos apercebemos de seu caráter defensivo, constituindo uma resposta ao tratamento<br />

discriminatório muitas vezes dispensado ao imigrante. Torna-se risível na caricatura a<br />

artificialidade desse comportamento, pois é aqui, já em franco processo de adaptação à nova pátria de<br />

adoção, que o imigrante desenvolveria mais fortemente esse sentimento de apego à sua terra de origem.<br />

Exemplo antológico é IIXX Settembre, em que o caricaturista flagra o típico colono italiano enriquecido<br />

no Brasil, comemorando espalhafatosamente a data significativa para os italianos, vestindo o<br />

filho constrangido de bersaglière.<br />

3 A coluna foi criada inicialmente por Oswald de Andrade, que assinava "Annibale Scipione"; o nome<br />

é "referência ao bairro do Brás, antiga região que, segundo se sabe, integrava amplas posses da<br />

abastada família Piques, da tradicional nobiliarquia paulistana. A área, em que pese a denominação<br />

nascente de Brás, ainda continuava indicada como o Piques, segundo alguns por força da expressão<br />

ter pique com alguém, isto é, implicar com alguém, o que teria inspirado Oswald". (HOHFELDT, A.<br />

A cultura italiana e a literatura brasileira. In: BONI, L. A. de (Org.) A presença italiana no Brasil.<br />

Porto Alegre: Escola Superior de Tecnologia, 1987. p.416).<br />

4 A propósito, é bastante cômica a irreverente resposta dada por Juó à questão acerca de Fradique<br />

Mendes, criação de Eça de Queirós, em enquete promovida por Oswald de Andrade; em O Pirralho<br />

(a resposta de Juó está no jornal de 1º.5.1915). Eram dirigidas aos escritores as seguintes questões:<br />

"Acha Fradique Mendes um tipo representativo de vida superior? Em caso contrário, qual na sua<br />

opinião o tipo perfeito?" Brito Broca transcreve e comenta alguns trechos: "Mas já então Juó Bananére<br />

(Alexandre Marcondes Machado) no seu dialeto ítalo-brasileiro atingia em vivo o formalismo 'raffiné'<br />

de Fradique. Começava declarando: 'A pergunta inzima non sta bê feita, pur causa che si podi intendê<br />

divaras manièra. Podi sê rappresentativo d'aquilos chi tê inzislença reale, aripresentada inzima da a<br />

Sucietà"'. E concluía que o "Frederico Mendeso - 'non passa di um tippo indiale, uma criaçó<br />

literarima, sé pé nê cabeza'" -juízo decerto justo, que muitos críticos de Eça, como atualmente João<br />

Gaspar Simões, assinariam.<br />

Não sendo Fradique um tipo representativo de vida superior, qual, pois, na opinião de Juó Bananére<br />

o tipo perfeito? "Na migna pinió - responde ele - 'un uómo p'ra sê perfetto pricisa te cinco qualidadi:<br />

1) non sê molhere; 2) sê xique e inleganti; 3) tê talentimo; 4) sabê p'ra burro; 5) afazê a barba nu<br />

migno saló.' Depois disso, seria difícil ao 'Frederico Mendeso' resistir." (BROCA, B.A vida literária<br />

no Brasil -1900, 2.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960. p.124-5.)<br />

5 Leia-se, a propósito, o poema "Nò mi spia assi", assinado por Juó Garrapato, na Gazeta do Povo<br />

(26.2.1926), de Araraquara.<br />

6 A respeito das atividades do arquiteto em Araraquara, encontram-se algumas informações no texto<br />

"Juó Bananére, architecto", de René Antônio Nusdeu, apresentado na Faculdade de Arquitetura e<br />

Urbanismo da Universidade de São Paulo, como trabalho para o curso "Estruturas ambientais<br />

urbanas", em julho de 1978. (Mimeogr.)<br />

7 Miroel Silveira, em A contribuição italiana ao teatro brasileiro (1895-1964) (São Paulo: Quíron/Brasflia:<br />

INL. 1976, p.l66) refere-se à primeira edição at La divina increnca como sendo de 1924.Mário<br />

Carelli (1985) e Vera Chalmers (1990) reportam-se a uma primeira edição possivelmente ainda incompleta,<br />

de Ia divina increnca, com 44 páginas, de 1915, seguida de outras edições e estando em<br />

1924 já na 8ª (com 134 páginas). A versão por nós consultada é a da Folco Masucci, publicada em<br />

São Paulo, em 1966, com prefácio de Mário Leite, provavelmente baseada nas edições de 1924 e 1925,<br />

publicadas pela Globo.<br />

8 A respeito, é sugestivo o depoimento de Décio Pignatari "Era um caricaturista verbal, muito lido pela<br />

classe média. Lembro-me do pessoal mais velho, com quem eu convivia na minha infância, que lia e<br />

comentava Juó Bananére. Ele era o porta-voz do Bexiga, ou melhor, da colônia italiana de São Paulo"<br />

(apud LEMOS, 1979, p.50).<br />

9 Não só por Juó, pois, segundo Nelson W. Sodré, esse é um tempo extremamente fecundo e inspirador<br />

à verve caricaturesca: "o governo Hermes da Fonseca assinalou o apogeu da crítica política em caricatura<br />

no nosso país" (SODRÉ, N. W. A história da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização<br />

Brasileira, 1966. p.379).


10 Segundo Wilson Martins, a afirmação seria uma referência paródica a soneto em que Bernardino da<br />

Costa Lopes (1859-1916) homenageia o presidente Hermes da Fonseca, chamando-o "Bonito herói!<br />

Cheirosa criatura!" (Martins, 1978, v.6, p.337).<br />

11 O tratamento distinto reservado a Nair de Teffé pode se explicar pela conveniência em poupar a figura<br />

feminina, parecendo pouco cavalheiresca uma abordagem muito agressiva, ou talvez se justifique por<br />

uma motivação mais particular, ligada à própria vida da satirizada: sabe-se que Nair de Teffé não<br />

tinha um comportamento muito convencional para a época: dedicava-se ela também a delinear<br />

caricaturas, espécies de ponrait-charges de figuras da alta sociedade que freqüentava, tendo mesmo<br />

chegado a enfrentar a oposição do pai, o Barão de Teffé, quando decidiu dedicar-se mais assiduamente<br />

a essas atividades. Colaborou com trabalhos em famosos periódicos ilustrados (Fon-fon, Careta,<br />

edição dominical da Gazeta de Notícias), assinando os trabalhos com o pseudônimo Rian. Sua<br />

trajetória artística foi curta, mas intensa (de 1908 a 1913, quando se casa com o Marechal Hermes da<br />

Fonseca). A vida dessa caricaturista-cronista social registra alguns episódios sensacionais para a<br />

época, e que denotam um temperamento irrequieto: já esposa do presidente da República, um dia<br />

comparece a uma reunião ministerial trajando um vestido de baile, motivo de escândalo, com as<br />

caricaturas dos ministros feitas por ela na roda da saia; introduz o violão nas recepções oficiais do<br />

Catete; ordena à orquestra a execução, em soirée de gala, do chorinho popular Corta-jaca, de<br />

Chiquinha Gonzaga etc. Essas atitudes da então primeira-dama se provocavam escândalo entre os<br />

mais conservadores, muito possivelmente deviam ser encaradas com simpatia pelos mais irreverentes,<br />

o que talvez possa explicar esse tratamento mais cordial destinado à esposa de Hermes da Fonseca.<br />

12 Alexandre M. Machado sacrifica com isso inclusive uma possível valoração de sua obra pela crítica.<br />

O preconceito corrente contra a literatura satírica está evidente até mesmo no "Prefácio" (feito por<br />

Mário Leite, antigo companheiro na Escola Politécnica, à edição de La divina increnca publicada pela<br />

Folco Masucci, em 1966), quando afirma ter faltado ao escritor-jornalista conselheiros que o<br />

induzissem a voltar-se também para uma literatura "enquadrada na pureza e sobriedade da língua,<br />

criadora de imortais" (p.10). Sintetizando: para ser um escritor de valor, seria necessário que<br />

Marcondes Machado tivesse se dedicado a uma literatura mais bem comportada, talvez nos moldes<br />

daquela que Juó parodiava.<br />

13 Leituras recentes de textos de Juó Bananére atestam a sua permanência, pelo riso:"... Um macarrônico<br />

desgraçado que mata a gente de rir, mesmo quando ignoramos quem são os alvos das sátiras. Curioso<br />

esse fenômeno da literatura competente. Ela persiste ótima ainda quando os temas e motes caíram de<br />

podres ..." (AMÂNCIO, M. F. Concerto para viola caipira e violino. Memória. São Paulo: Departamento<br />

de Patrimônio Histórico da Eletropaulo, ano 4, n.l3, out.91/mar.92, p.46).<br />

Na bela tese de doutoramento As Cartas d'Abax'o Pigues de Juó Bananere, o professor Benedito<br />

Antunes (1996) resgata expressiva parte da produção de Marcondes Machado, desentranhando d'O<br />

Pirralho textos inéditos que, analisados sob um ponto de vista literário, deixam entrever uma certa<br />

unidade ficcional, podendo-se ainda enquadrá-los numa espécie de "gênero macarrônico", marcado<br />

pela mistura, pela mobilidade e fragmentação, que se espraiam da linguagem para a composição de<br />

personagens e para a estruturação do texto. Essa leitura ilumina novos elementos da produção do<br />

satirista, colaborando para a explicação do interesse que ainda hoje desperta.


EFEITOS DE POMMERY<br />

6 MADAME POMMERY.<br />

UM DIÁLOGO DE SOMBRAS<br />

Precisamos colonizar o Brasil.<br />

O que faremos importando francesas<br />

muito louras, de pele macia,<br />

alemãs gordas, russas nostálgicas para<br />

"garçonettes" dos restaurantes noturnos.<br />

E virão sírias fidelíssimas.<br />

Não convém desprezar as japonesas...<br />

(ANDRADE, C. D. "Hino Nacional",<br />

In: Reunião: 10 livros de poesia)<br />

Madame Pommery foi publicado em 1919, pela Editora Monteiro Lobato e<br />

Companhia. 1 A crítica recebeu o livro com indiferença e frieza, exceção feita a<br />

alguns poucos: Alceu Amoroso Lima, Sud Mennucci, o próprio Lobato, Lima<br />

Barreto. A propósito, Lobato tece algumas considerações interessantes na correspondência<br />

que mantém com Lima Barreto:<br />

Já a Pommery merece o teu apoio. É finíssimo e está sendo vítima do silêncio covarde<br />

da crítica. Ninguém - hás de crer? - atreve-se aqui a falar dele! Recordarás, falando dele,<br />

o tempo em que comíamos içás... 2<br />

Nessa correspondência, os dois escritores fazem algumas referências à obra<br />

assinada por Hilário Tácito, e Lima Barreto chega mesmo a cogitar se não teria


sido Lobato o autor incógnito da sátira, tão apreciada pelo criador de Policarpo<br />

Quaresma, ao que Lobato responde com seu humor característico:<br />

Lima.<br />

Sinto muito não ser o autor da Pommery, que é uma obra deliciosa de finura, estilo<br />

e humorismo. Infelizmente não é certa a informação que te deram no botequim (pouah!).<br />

O outro é Hilário porque ri e Tácito porque faz história. Deve atrás dele existir um<br />

engenheiro que talvez se chame José Maria, porque as obras finais vêm sempre dos Zés<br />

Marias (Eça, Machado etc). Lá vai o livro, e logo irei eu também passar um mês aí e<br />

tomar uma pinga com goma no teu informativo botequim.<br />

Adeus. (Barreto, 1956a, t.2, p.75)<br />

Já o público foi mais caloroso, talvez pelo mesmo motivo que tenha desmotivado<br />

a crítica: o tema picante e delicado. O tratamento da prostituição na<br />

literatura da época não era maior novidade, mas falar, em 1920, da alta prostituição<br />

em São Paulo, praticada por estrangeiras muito hábeis e requintadas na profissão,<br />

especialmente importadas para isso, algumas delas transformadas depois em damas<br />

inatacáveis de famílias quatrocentonas, era questão no mínimo surpreendente.<br />

Certamente esse é o maior motivo da atenção do público, cuja curiosidade<br />

seria decepcionada por um tratamento "aristocrático" de tema tão embaraçoso<br />

(Mennucci, s.d., p.230). De todo modo, o interesse pela novidade é evidente; Lima<br />

Barreto (1956a, t.2, p.76) afirma em carta dirigida a Lobato ter notícias de que<br />

até mesmo Rui Barbosa comprara um exemplar da obra no Briguiet.<br />

De José Maria de Toledo Malta (1885 - 1951), criador de Pommery, muito<br />

pouca coisa se conhece: nasceu em Araraquara, fez o curso secundário em Itu,<br />

no Colégio São Luiz, freqüentou a Escola Politécnica e dedicou-se com sucesso<br />

à engenharia 3 na cidade de São Paulo. Sabe-se que era grande amigo de Monteiro<br />

Lobato: pertencia ao grupo que freqüentava as instalações da Revista do Brasil.<br />

De Lobato mesmo são poucas as referências ao companheiro de partidas de<br />

xadrez: em toda a vasta correspondência mantida com Godofredo Rangel por<br />

mais de 40 anos, podem-se pinçar apenas algumas alusões elogiosas à sua única<br />

obra literária conhecida, e referências a uma progressiva surdez que teria acometido<br />

Toledo Malta. Sabe-se também, por informação do próprio Lobato a Mário<br />

Donato, que a idéia central de O Narizinho arrebitado lhe teria sido dada pelo<br />

criador de Pommery, naquele primeiro escritório da companhia editora (Dantas,<br />

1982, p.l 18-9).<br />

Quanto às atividades propriamente literárias, registra-se não muita coisa: a<br />

concepção de Madame Pommery, a tradução de Ensaios, de Montaigne, alguns<br />

prefácios. É possível constatar, de todo modo, na parca produção literária conhe-


cida desse engenheiro formado pela Escola Politécnica em 1908, a erudição e o<br />

íntimo contato com os clássicos da literatura e do pensamento universal. Esse<br />

fato não deve surpreender, pois o Relatório acerca do exame de admissão à Escola<br />

Politécnica, realizado pela primeira vez no ano de 1912, e apresentado ao Dr.<br />

Francisco de Paula Rodrigues Alves, então presidente do estado, pelo secretário<br />

do Interior, Altino Arantes, fornece informações elucidativas sobre o nível dos<br />

alunos que ingressavam na Escola Politécnica proximamente ao tempo em que<br />

o escritor cursou-a. 4<br />

Além disso, o jovem José Maria de Toledo Malta certamente teve situação<br />

privilegiada no que se refere à formação cultural e ao contato com um universo<br />

rico de informações. Era filho de Francisco de Toledo Malta, advogado intensamente<br />

dedicado ao jornalismo, que exerceu a função de Juiz Municipal em<br />

Araraquara no ano de 1882, eleito depois com a Proclamação da República<br />

deputado estadual, e a seguir deputado federal; foi secretário da Fazenda no<br />

governo Rodrigues Alves, foi membro do Instituto Histórico e Geográfico, e autor<br />

do Manifesto de apoio a Prudente de Morais, e de um trabalho de economia<br />

política: A crise e seu remédio, de 1899. Era homem de sólida formação intelectual,<br />

perfeitamente enquadrado no perfil do publicista, compromissado com<br />

questões da coletividade, típico dos políticos e intelectuais dos primeiros tempos<br />

da República Velha (Melo, 1954, p.340).<br />

HILÁRIO TÁCITO, A PERSONA<br />

Sobre Hilário Tácito talvez se possa falar um pouco mais, pois sua presença<br />

em Madame Pommery é quase tão marcante quanto a da personagem central.<br />

Todo o primeiro capítulo "Em que se trata do autor da história e dos motivos que<br />

teve para a escrever" é dedicado ao delineamento da persona, que muito machadianamente<br />

se dirige ao leitor, mantendo com ele um constante diálogo.<br />

Hilário Tácito, como Juó Bananére, não é apenas um pseudônimo sob o qual<br />

se esconde o autor da sátira picante. É uma persona com vida e vontade própria,<br />

um narrador - personagem que expõe os fatos e indiretamente participa da ação<br />

da trama. A função assumida é a mesma desempenhada pelas personas satíricas<br />

de um modo geral: a quase didática apresentação e denúncia de fato do tempo; a<br />

crítica desmistificadora e persuasiva; a correção de hábitos e costumes. Hilário<br />

Tácito não é, entretanto, uma caricatura; seu delineamento não é grotesco,<br />

hiperbólico, nem ao menos intensamente ridículo. Ridículas são as personagens<br />

e os fatos por ele apresentados.


Hilário é sóbrio, simula seriedade, e se aproxima mais de uma estilização,<br />

resultante de um processo de apropriação intertextual: é uma espécie de síntese<br />

que congrega atitudes e procedimentos recorrentes nas sátiras convencionais. A<br />

referência é Montaigne, mas não se descartam componentes picarescos e a<br />

influência de Machado de Assis.<br />

A ambigüidade que atravessa toda a narrativa já se observa no nome da<br />

persona — "Tácito, porque aquilo é história, e Hilário porque é história alegre"<br />

(Lobato, 1959a, t.2, p.215) - e instaura a tensão entre o registro histórico e a<br />

fantasia, entre o "sério" e o cômico, presente na composição do texto.<br />

Hilário Tácito é "um homem de bem", dotado de cultura superior, com um<br />

gosto clássico:<br />

Não se imagine agora que eu pertença a essa classe de peralvilhos das letras, que ao<br />

desejo de parecer originais tudo sacrificam, o bom senso, a compostura, até a decência.<br />

São estas qualidades, ao contrário, que, juntamente com a simplicidade e a clareza, sei<br />

estimar acima de quaisquer outras. (1977, p.13)<br />

É um narrador que aparentemente se mantém a uma segura distância dos fatos<br />

narrados; é a voz do bom senso, o educador que visa formar as novas gerações;<br />

é, paradoxalmente, um homem "sério", que se propõe a registrar e enaltecer os<br />

feitos "exemplares" de Madame Pommery.<br />

A persona deseja que o seu estilo escorreito sirva de escola aos jovens, assim<br />

como afirma acreditar que os fatos narrados são exemplos a serem seguidos.<br />

Afirma ter encaminhado um requerimento ao Senhor Doutor Secretário do<br />

Interior solicitando que sua obra seja adotada nas escolas públicas. A persona se<br />

apresenta como alguém carregado de boas intenções:<br />

Com isto depara-se-me a ocasião de observar que a boa-fé, o amor à sinceridade, é<br />

o que me leva a tratar de minha humilde pessoa neste capítulo inicial, (p. 14)<br />

A persona afirma que a sua auto-apresentação nesse capítulo só se justifica<br />

por querer mostrar-se<br />

um cronista não desproporcionado para registrar as altas e maravilhosas aventuras de<br />

Madame Pommery, (p.14)<br />

É um erudito, atento às "louçanias vernáculas", escrevendo em "português<br />

de lei, com pronomes policiados" (a face Tácito), mas é também assíduo freqüentador<br />

do Bar do Municipal, que bebe o "champanha fatal" de Pommery, e usa<br />

roupas finas, feitas no alfaiate da moda (a face Hilário). Essa ambígua discrepân-


cia que compõe um perfil intencionalmente paradoxal, associando na imagem do<br />

narrador o purista do vernáculo e o smart homem da vida e das coisas do seu<br />

tempo, o pedagogo e o pervertido, é uma marca constante na concepção da<br />

persona, homem de múltiplas faces. É também uma forma de despiste: quanto<br />

mais Hilário Tácito se expõe e aparenta revelar-se, mais esquiva e difusa se torna<br />

sua imagem.<br />

A ironia é a marca mais funda na elaboração do texto, de modo que ao leitor<br />

só resta a desconfiança. Nada deve ser lido como absoluto em Madame Pommery.<br />

O texto é móvel e fluido, toda afirmação da persona sugere ou deixa entrever o<br />

seu reverso, o que enfatiza o caráter convencional e arbitrário, essencialmente<br />

lúdico, forma de revelação e engodo, simulação e despiste, que é típico deste texto<br />

e de resto é também característica típica do gênero satírico.<br />

A partir desse convívio constante entre a revelação e a dissimulação, pedra<br />

de toque de Madame Pommery (na configuração das personagens, no desenvolvimento<br />

da ação, na construção do texto, sempre intencionalmente oscilando<br />

entre o acobertamento e o desvendamento da referência intertextual), é que brota<br />

a percepção dessa obra única, mas muito bem urdida, de José Maria de Toledo<br />

Malta, como um diálogo de sombras.<br />

A persona é amoral: não condena, não julga, não expõe preceitos, não<br />

desenvolve normas... que não sejam para valorizar a envergadura e os feitos da<br />

protagonista. E é obviamente um elogio às avessas, porque, fazendo a exaltação<br />

de Madame Pommery, desenvolve-se a crônica satírica dos costumes paulistas<br />

nas duas primeiras décadas do século XX, de um modo altamente revelador:<br />

apresentam-se os vícios de dentro para fora, pois o ponto de vista incorporado<br />

pela persona é aparentemente o do universo criticado - o objetivo da obra,<br />

segundo Hilário Tácito, é "registrar as altas e maravilhosas aventuras de Madame<br />

Pommery" (p.l3) -, é o da dimensão "negativa", estabelecendo o desvio como<br />

norma e implicitamente a norma como desvio. O que deveria ser exceção é<br />

assumido como padrão, porque essa estória registra o lado negado da história de<br />

muitos vencedores. Mas, por outro lado, esta também é uma pseudo-história<br />

fica estabelecido este ponto: -que Madame Pommery vive e respira, tão real e efetivamente<br />

como eu, que escrevo, e o leitor que me lê, apenas com muito mais apetite e fôlego, (p.30)<br />

que conta estórias verídicas da República do Café.<br />

Ao incorporar como seu o ponto de vista de Pommery, a persona revela e<br />

expõe as contradições do universo em que se dá a luta e a vitória da personagem.


O narrador conhece muito bem a protagonista e seu percurso, apresentado<br />

com riqueza de detalhes, mas curiosamente, no desenrolar da narrativa, o leitor<br />

vai conhecendo mais do narrador que dos fatos narrados; ao desvendar os<br />

mistérios de Pommery, a persona revela também muito dos seus próprios segredos.<br />

A sátira, atingindo Pommery, num efeito de ricocheteio, espelha o próprio<br />

satirizador e o atinge também, promovendo uma espécie de dissecção da persona.<br />

E à medida que Hilário Tácito é uma persona-síntese das vozes narrativas<br />

convencionalmente utilizadas nos clássicos da sátira, pode-se pensar também em<br />

Madame Pommery como uma metassátira, numa dimensão autocentrada, menos<br />

evidente, mas seguramente presente no texto; ou seja, é possível interpretá-la<br />

como uma obra que visa, a par da crítica aos elementos exteriores claramente<br />

percebidos numa primeira leitura, uma reavaliação do próprio discurso satírico.<br />

Sintetizando: pode-se pensar cm Madame Pommery: a) como uma sátira de<br />

costumes, questão já evidente numa leitura de superfície; b) como uma sátira<br />

da literatura convencional (visível no detalhamento e no descritivismo exaustivo<br />

à Flaubert, no excesso de citações e referências, nas digressões simulando<br />

erudição, no recorte purista e no vezo vernaculizante expresso pela persona),<br />

evidente numa leitura um pouco mais detida; c) como uma metassátira ou uma<br />

sátira da própria sátira, e aqui é que se amplia muito da sua significação, evidente<br />

especialmente na estilização do tom e dos procedimentos recorrentes na sátira<br />

convencional.<br />

Recursos expressivos para o delineamento da persona<br />

ironia<br />

A mais intensa marca que rege a concepção do texto de Hilário Tácito é a<br />

Vale (o livro) sobretudo pela suculenta ironia de que está recheado, ironia muito<br />

complexa, que vai da simples malícia ao mais profundo "humor", em que assenta afinal<br />

o fundo de sua inspiração geral. (Barreto, 1956b, p.l16)<br />

Essa é a marca registrada da persona satírica, que por exemplo freqüentemente<br />

explicita a necessidade de referendar e expor seu saber e erudição,<br />

fazendo-o, entretanto, de modo a sempre rebaixar o conhecimento aceito e<br />

estabelecido:<br />

a) nas referências (que são às vezes paródias, outras vezes paráfrases,<br />

apropriações ou simples comentários) ao pensamento filosófico disseminado no<br />

tempo:


eu rezo pela cartilha do Taine darwinista e já lhe irão lembrando a influência do meio, a<br />

série de quatro termos e quejandas pedantarias ... (p. 17; os grifos são do autor)<br />

b) na recorrência à mitologia grecolatina para a depreciação<br />

enquanto, como na fábula de Júpiter quando gerou Minerva, me vem brotando do cérebro<br />

este livro divino ... - fruto, talvez espúrio, mas fruto, de outras orgias, muito<br />

diferentes... (p.18)<br />

É preciso observar que Hilário estabelece uma equivalência entre ele e<br />

Júpiter, do mesmo modo que Pommery equivale a Minerva, propondo um<br />

nivelamento que rebaixa o elevado, comicamente enaltecendo o degradado;<br />

c) nas reiteradas e freqüentes referências aos clássicos da literatura, de cujo<br />

estilo faz paródia, paráfrase ou apenas se apropria em colagens ou citações<br />

(Montaigne, Shakespeare, Eça de Queirós, Machado de Assis, Malherbe, Flaubert,<br />

Camões, Virgílio, Homero etc), compondo uma miscelânea que evidencia<br />

o intuito desmistificatório, desvelador, ao fazer a paródia da atitude pernóstica e<br />

afetada dos eruditos e por conseqüência despindo a literatura e o saber oficializado<br />

de sua "aura mística":<br />

Valha-me o conselheiro Acácio!... (p. 18)<br />

Pois ainda é tempo de acrescentar que muitas outras coisas há e houve por esse<br />

mundo de Cristo, além das que nos contam as vaníssimas histórias... (p.16)<br />

Basta lembrar Camões com os seus Lusíadas:<br />

As armas e os barões assinalados<br />

Que da Ocidental praia lusitana<br />

E Virgílio com a Eneida, já citada:<br />

"Arma, virunque cano, Trojoe quei primus ab oris..." (p.27)<br />

Esse recurso, ao mesmo tempo em que afetadamente expõe a erudição da<br />

persona, é também ambiguamente forma de homenagem aos clássicos e alerta<br />

contra a adesão ao estabelecido, apenas porque majoritariamente aceito, quando<br />

rebaixa autores e textos consagrados utilizando-os para legitimar a estória de<br />

Pommery;<br />

d) nos paradoxos e aproximações rebaixadoras:<br />

e prometo doravante contar as coisas sem mais rodeios eruditos, naquele estilo natural,<br />

singelo e pitoresco, que se aprende nas cartas das marafonas e nos melhores escritores!<br />

(p.19) (o grifo é nosso)


e) na ruptura imposta pelas expectativas decepcionadas:<br />

o meu espírito vai retrocedendo pelos caminhos do tempo, até chegar àquela idade, tão<br />

celebrada dos poetas, em que comecei a curtir as náuseas dos primeiros cigarros e as<br />

conseqüências das primeiras dentadas no fruto proibido, e quase sempre deteriorado...<br />

(p.19) (o grifo é nosso)<br />

A persona ironicamente declara a sua filiação clássica, o gosto pela sobriedade<br />

e pela contenção e, curiosamente, opta pelo discurso do desequilíbrio, o<br />

gênero do desprestígio, a expressão à margem, isto é, a sátira.<br />

Os preceitos defendidos são negados pela prática literária efetivamente<br />

encetada no texto:<br />

Nisto, como em vários pontos, outro mérito não tenho além de continuar as tradições<br />

greco-latinas - fora das quais só existe o erro, o mau gosto e a confusão, (p.52)<br />

O discurso da persona é rede tecida por afirmações que se negam, por<br />

negativas que arrevezadamente afirmam preceitos.<br />

f) na descontinuidade cômica gerada:<br />

• pela infiltração na expressão culta do narrador de termos e expressões da gíria<br />

bordelenga:<br />

Os patos, todavia, recebiam-na e despachavam-na. (p.24) (grifo do autor)<br />

É verdade que os poetas, e sobretudo os antigos, entoaram louvores ao bom vinho<br />

e à própria carraspana. (p.89) (grifo nosso)<br />

como exemplos terrificantes aos devotos da garrafeira. (p.89) (grifo nosso)<br />

• pela infiltração de expressões da língua francesa na fala vulgar ou prosaica de<br />

personagens, geradoras de uma descontinuidade ridícula:<br />

mas queixava-se ao doutor de tonturas e dor no ventre "après diner". (p.91)<br />

A Nenéa intrometeu-se na consulta, dizendo que nunca teve outra doença além de<br />

fome; e pediu um filé com "petit-pois". (p.91)<br />

- Água de Janos! Um petit-verre ao levantar. Tomar todos os dias; ça suffit. (p.91)<br />

b) nas digressões (algumas vezes cansativas pela repetição e extensão), que<br />

eventualmente se transformam em verdadeiras dissertações, como o paralelo<br />

traçado pela persona entre Pommery e Ninon de Lenclos ou a assertiva sobre<br />

os diferentes gêneros de leitores (leitores-pássaros, leitores-ruminantes etc.)<br />

(p.39-41).


As digressões são entremeadas por imagens sugestivas, hiperbólicas e cômicas,<br />

como no sonho-presságio em que Pommery se vê subindo<br />

peias escadas acima cavalgando no bojo de uma colossal garrafa de champanha, carregada<br />

sobre os ombros dos homens, encasacados, vergados e sorridentes ... (p.25)<br />

O autor também se vale de metonímias e antíteses que enfatizam ridiculamente<br />

a cristalização de hábitos e costumes:<br />

O teatro municipal já estava inaugurado. Vieram aí o Titta Ruffo, o Bonci, a<br />

Graziella Paretto, o Cirino & companhia e cantaram meia dúzia de óperas velhas para<br />

algumas dúzias de vestidos novos, (p.104) (grifo nosso)<br />

• nos recortes descritivos e dissertativos, digressões ampliadas, que se transformam<br />

em verdadeiras narrativas abrigadas no corpo da narrativa maior, bem<br />

exemplificados na preleção grotesco-cômica da persona, que impõe a dimensão<br />

às avessas, instaurada pela óptica carnavalesca, ao exaltar os benefícios do<br />

alcoolismo, especialmente para o funcionamento do bordel, num verdadeiro<br />

panegírico a Baco (p.88-90), e na espécie de encenação teatral, também<br />

marcada pela cosmovisão carnavalesca, que mostra um diálogo entre as discípulas<br />

de Pommery e os assíduos freqüentadores do bordel, o doutor Mangancha<br />

e o doutor Narciso. Essa passagem da narrativa toma aos poucos um ritmo<br />

acelerado e nonsense, compondo uma espécie de conversa de alucinados, no<br />

qual antropofagicamente se deglute: a modinha carnavalesca, teorias científicas,<br />

Goethe, Beethoven, interjeições e expressões francesas, numa desconversa<br />

em que se entrecruzam e embolam todos esses elementos. O narrador evita o<br />

caos completo com chamadas de personagens seguidas de suas respectivas<br />

falas, como no teatro. Observe-se também que nessa passagem há dois discursos<br />

superpostos: o das meretrizes que ridicularizam os doutores e o dos doutores<br />

que procuram simular seriedade - e são somente ridículos -, o que intensifica<br />

a dimensão de mundo ao revés, ao colocar os freqüentadores do bordel<br />

reificados na condição de objetos manipuláveis pelas prostitutas, inversão de<br />

resto freqüentemente operada pela persona;<br />

• nas afirmações que sugerem e informam fatos e despistam o leitor, negaceio<br />

que simula encobrir para revelar mais intensamente:<br />

nada posso dizer sobre o que se passou no gabinete reservado. Quem quiser imaginar,<br />

imagine. Eu só escrevo fatos, e não imaginações, (p.108)


• na ambigüidade maliciosa que explora e expõe o tratamento dúbio socialmente<br />

reservado à prostituição, absorvida na prática, e hipocritamente negada no<br />

discurso:<br />

Mas, por mais fundamental, por mais impenetrável, por mais cimentada que estivesse<br />

a pedra básica (família, "pedra angular da sociedade"), não pôde deixar de<br />

estremecer e de vibrar enquanto Madame Pommery, num maxixe descabelado à frente<br />

de sua tropa, ia trepando às sumidades do edifício, mas estremeceu só. Não chegou a<br />

arrebentar. Daí, é possível que estremeceu mais de gozo, que do susto, (p.148)<br />

Observe-se, no jogo de palavras, como os termos e expressões grifados intencionalmente<br />

conduzem a imaginação do leitor às atividades com que Pommery<br />

ganha a vida.<br />

• na máscara do filósofo sarcástico e desencantado:<br />

Porque os homens e as mulheres ainda não compreenderam as vantagens de se<br />

multiplicarem, simplesmente, como o bolor e como os cogumelos: com tranqüilidade, e<br />

com estupidez, (p.108)<br />

• na voz sábia, que por meio do senso comum expressa verdades:<br />

de modo que a meretriz vale de fato, não o que parece valer, mas o que se faz pagar.<br />

(p.75)<br />

A última moda, quando nasce, parece às vezes de uma extravagância intolerável;<br />

mas, com alguma decisão, aceita-se e fica sendo logo depois uma coisa encantadora.<br />

(p.l22)<br />

Daí bem que os bons moralistas são filósofos medíocres, (p.l25)<br />

• na imagem que zoomorfiza o abstrato, identificando-o com animal de montaria:<br />

O senso comum raciocina assim, com esta simplicidade. E depois sai trotando, muito<br />

contente de si e muito firme nos pés. Mas não se irá desta vez sem que eu o puxe pelo<br />

rabo de repente. Quero desemperrar aquela bronca firmeza ... (p.52)<br />

• no descritivismo, talvez intencionalmente excessivo, que atravessa todo o texto,<br />

paródia caricaturesca do estilo naturalista;<br />

• no desenvolvimento de uma metalinguagem que reflete e questiona sobre o<br />

fazer literário:


Nada me obriga, na verdade, a iniciar cada capítulo com termos análogos ao que se<br />

promete no título. Tal era, é certo, o uso dos antigos escritores, que nos legaram livros<br />

célebres e imortais, (p.27)<br />

Por isso, vamos agora aos saltos, que é a maneira clássica de rematar histórias boas,<br />

e histórias bem escritas, (p.141)<br />

A persona também rebaixa o vezo vernaculizante, quando se dedica prazenteiramente<br />

à busca do epíteto adequado para referir-se às prostitutas:<br />

A hesitação é natural, diante da extraordinária exuberância da língua portuguesa,<br />

em termos apropriados a todas as espécies e a todas as categorias da mulher perdida. Uma<br />

estirada ladainha de mais de quarenta nomes ou epítetos de infinita variedade: desde a<br />

conselheira, a faniqueira, a cantoneira, miseráveis, até a miquela, a rascoa, a patrajona,<br />

desaforadas; desde a loureira, a madalena, a horizontal, interessantes, até a sereia, a<br />

hetera, a cortesã, ruidosas e magníficas, (p.l28-9)<br />

Aqui é necessário observar que a persona retoma recurso muito usado por<br />

Rabelais, as extensas enumerações, dando exemplo de "como um procedimento<br />

arcaico pode ser atualizado e soar com toda modernidade" (as palavras são de<br />

Luiz Roncari (1989, p.204), referindo-se a passagens de Macunaíma, mas podem<br />

também se adequar ao trecho de Madame Pommery acima transcrito).<br />

É recurso rebaixador também a paródia do tom afetadamente humilde,<br />

comumente utilizado pelos narradores de textos "sérios" ao se referirem à própria<br />

produção para valorizá-la, por meio desse trejeito caricaturesco, o autor evidencia<br />

a pretensão encoberta:<br />

o tema é mesmo ouriçado de asperezas, difícil de manear, rebelde aos temperos artificiosos<br />

da linguagem. Tentarei, não obstante, arrostar as dificuldades temerosas da<br />

empresa, só por não se privarem os contemporâneos destes frutos maduros de meditações<br />

profundas e demoradas, nas quais precocemente encaneci, (p.l26-7)<br />

É necessário frisar, por fim, que a definição da persona necessariamente se<br />

apóia no ininterrupto diálogo que Hilário Tácito mantém com o leitor, quando ao<br />

mesmo tempo se expõe e se esquiva, firmando e negando posições éticas e<br />

estéticas, e dissimulando a amargura do olhar agudo do satírico na complacente<br />

ironia.<br />

A ênfase na figura de Hilário Tácito é natural, pois a persona satírica é por<br />

natureza narcísica: ao ler As viagens de Gulliver, ficamos sabendo tanto do<br />

narrador quanto das novas terras visitadas, das aventuras vividas; ao ler As cartas<br />

chilenas, sabemos muito mais de Critilo que de Fanfarrão Minésio.


A persona se define no permanente diálogo com o leitor, no diálogo paródico<br />

com os clássicos da literatura, e por fim no diálogo-desafio lúdico que mantém<br />

com os clássicos da própria sátira, com eles esgrimindo recursos e processos,<br />

numa constante "recontextualização ou atualização de procedimentos", que dá o<br />

tom oscilante entre o arcaico e o moderno ao texto (Roncari, 1989, p.209).<br />

A narração das aventuras de Madame Pommery é, assim, em parte, apenas o<br />

pretexto para o delineamento da persona, que é uma espécie de síntese às avessas<br />

das personas satíricas de textos clássicos, o que abre espaço à sugestão de uma<br />

leitura possível do texto como sátira da própria sátira.<br />

Hilário Tácito, ao mesmo tempo em que faz referências explícitas aos clássicos<br />

- na maior parte das vezes paródica, porque retoma negativamente o<br />

original, invertendo ou degradando seus propósitos — também resgata procedimentos<br />

da tradição satírica, apropriando-se deles e recontextualizando-os, de<br />

acordo com as solicitações do percurso de Pommery. Assim, num processo<br />

dialógico, que oscila entre o embate e a aproximação, a persona obriga o leitor a<br />

uma reflexão sobre a própria sátira.<br />

MADAME POMMERY: A CARICATURA DE SÃO PAULO<br />

Segundo informações colhidas por Margareth Rago (1991, p.170), Toledo<br />

Malta teria se inspirado, para compor o perfil de Pommery, na figura humana de<br />

Madame Sanchez, rica cafetina da belle époque paulista.<br />

Segundo os documentos do período, ela fora uma meretriz da baixa prostituição,<br />

que enriquecera "explorando coronéis e vendendo champagne". Tornara-se proprietária<br />

de inúmeros prédios da avenida São João, dos quais o mais importante - o Palais de<br />

Cristal - situava-se na rua Amador Bueno, n 9 10. (p.170)<br />

Madame Sanchez, como Pommery, enriquece com a prostituição, e "alguns<br />

sugerem que também como traficante de drogas" (p. 125).<br />

De toda forma, satisfeita a curiosidade do leitor sobre as possíveis conexões<br />

entre a personagem da estória e a da história, o que há de mais marcante é a<br />

simbologia encarnada por Pommery, isto é, o que ela pode representar, como<br />

empresária capitalista. O capítulo do trabalho de Rago destinado à análise do texto<br />

de Hilário Tácito não gratuitamente é denominado "A máquina de Eva", e dá<br />

especial atenção ao romance por "privilegiar a função 'civilizadora' da prostitui-


ção na cidade em processo de modernização e por focalizar a vida e as fantasias<br />

que movimentavam um bordel de luxo" (p. 169-70).<br />

A historiadora enfatiza um dado significativo: nos discursos mordentes da<br />

imprensa da época, Madame Sanchez aparece como uma "caftina ameaçadora",<br />

enquanto a literatura de Hilário Tácito apresenta versão amoral, em imagem<br />

inversa, às avessas da oficial:<br />

seu bordel é apresentado como um espaço de sociabilidade elegante, lugar do prazer e<br />

da festa, como o nome indica, onde todos se divertiam ao som de valsas e maxixes bem<br />

tocados, na companhia de mulheres formosas, numa atmosfera próxima à que evoca o<br />

memorialista Cícero Marques, (p.171)<br />

Madame Pommery registra um momento de transformação, em que a prostituição<br />

de alto luxo vai se definindo em moldes mais profissionais (da cerveja ao<br />

champanhe, da ausência de regras mais rigorosas às leis impostas por Pommery<br />

em seu conventilho), como máquina capitalista, e também apresenta "a importância<br />

do bordel de alta prostituição enquanto 'escola de civilidade'", onde se lançam<br />

as modas (inclusive para as moças e rapazes "de família") e se aprendem códigos<br />

de comportamento e interação social no submundo (Rago, 1991, p.172).<br />

O espaço do bordel assume importância na vida social da cidade, e essa<br />

importância se deve em grande parte "às habilidades e perspicácia da cafetina";<br />

era necessário que esta desenvolvesse algumas qualidades: diplomacia, sutileza,<br />

discrição e estivesse sempre bem informada: sobre os bastidores da política local,<br />

as preferências dos clientes etc.<br />

Madame Pommery não se envolve diretamente com os fregueses; como<br />

empresária, mantém e preserva "uma relação de exterioridade com o desejo".<br />

Esse papel é peculiar à cafetina no cenário da belle époque paulista (e não apenas<br />

nesse momento e local), que não vivencia diretamente, mas promove a prostituição<br />

de alto luxo, atenta e solícita à demanda do mercado<br />

cercando-a com todo um arsenal de erotismo, criando um ambiente voluptuoso em que<br />

abundam espelhos, tapetes, gravuras eróticas, bebidas afrodisíacas, drogas e literatura<br />

pornográfica, (p.192)<br />

A personagem Madame Pommery é uma caricatura articulada com traços<br />

pouco usuais na configuração desse gênero de personagens. Comumente, a<br />

caricatura é recurso satírico, e assim tem uma feição clara, direta, hiperbólica,<br />

frontal, que permite imediatamente a identificação do caricaturado (pessoa, vício,<br />

instituição, segmento social etc.)


Ao mesmo tempo em que Pommery tem algumas características definidas, o<br />

leitor vê o perfil da protagonista delinear-se com traços etéreos, diluidores, que<br />

a revelam mais como um símbolo que propriamente uma caricatura, questão que<br />

será tratada à frente, com mais vagar.<br />

O texto em questão não é propriamente uma sátira, ou melhor, não é apenas<br />

uma sátira. Madame Pommery, mesmo fazendo também a crítica de costumes, é<br />

um texto que predominantemente se aproxima do humor. E aqui faz-se necessária<br />

uma breve distinção entre esses dois gêneros de expressão aparentados ao cômico.<br />

A sátira normalmente se define como uma espécie de zombaria maledicente,<br />

dura, sem solidariedade, que atinge mais diretamente os alvos visados e tem um<br />

fundo de antipatia. O satírico costuma selecionar indivíduos ou aspectos característicos<br />

a serem criticados; em suma, a sátira é mais particular, e por isso<br />

costuma ser mais datada, circunstancial - lembremo-nos aqui, por exemplo, das<br />

caricaturas de Juó Bananére, ou da sátira política empreendida por Lima Barreto,<br />

em Numa e a ninfa. O humor já é uma espécie de crítica cordial, benevolente,<br />

que gera certo sentimento de simpatia, beirando a compaixão; o humorista é mais<br />

impessoal, aparenta um maior distanciamento e isenção, zomba do outro e de si<br />

mesmo, enfim, o humor tem um caráter abrangente e genérico, e nesse sentido é<br />

mais universal -, a literatura de Machado de Assis, por exemplo, registra inúmeras<br />

passagens de humor.<br />

Madame Pommery é uma composição que se aproxima muito do humor, por<br />

isso as personagens, especialmente a protagonista, extrapolam os parâmetros<br />

comumente utilizados na construção de personagens caricaturescas.<br />

O texto constitui-se numa espécie de humor satírico. Essa feição mesclada,<br />

híbrida, que associa sátira e humor, ocorre fundamentalmente como conseqüência<br />

do estilo utilizado, que se alimenta substancialmente da ironia e do paradoxo,<br />

gerando um gênero de comicidade indulgente, ao expressar de um modo aparentemente<br />

sério idéias e situações bastante cômicas e risíveis.<br />

A ironia, em oposição à sátira, implica um distanciamento com o "objeto<br />

repreensível desfeito", admitindo até certa simpatia e compaixão; há nela um<br />

sentido de integração e solidariedade, pois "o trocista também é afetado por aquilo<br />

de que zomba" (Joles, 1976, p.211). A ironia ameniza ou neutraliza o ressentimento,<br />

a agressividade e a rudeza que comumente marcam o discurso satírico.<br />

Esse fundo irônico que atravessa todo o texto já se observa no título: Madame<br />

Pommery, chronica muito verídica e memória philosophica de sua vida, esclarecendo-se<br />

a seguir que a narrativa se baseia em "documentos inéditos, memórias<br />

próprias e no testemunho respeitável de várias pessoas abalizadas que mais se<br />

avantajaram no seu trato e intimidade", e certamente por isso a obra é dedicada


ao Instituto Histórico e Geográfico, à Academia Paulista de Letras, à Sociedade<br />

Eugênica e mais associações pensantes de São Paulo.<br />

A dicotomia risível entre a aparente seriedade do tom e a sua essência ridícula<br />

- com a afirmação de veracidade pelo narrador -já se estabelece, portanto, na<br />

página de rosto, deixando entrever o tom dominante no texto. A ironia se<br />

apresenta como paradoxo, e o paradoxo gera e nutre a ambigüidade — o "testemunho<br />

respeitável" das figuras abalizadas acerca do percurso de Pommery<br />

referenda e imputa alguma confiabilidade ao narrado. Por outro lado, o "trato e<br />

a intimidade" dessas autoridades com Pommery faz que o leitor repense seus<br />

conceitos sobre a respeitabilidade dessas figuras. Assim, uma mesma informação<br />

traz sempre, no mínimo, duas leituras, o que desestabiliza as certezas do leitor,<br />

obrigando-o incessantemente a duvidar e a questionar-se sobre as verdades<br />

estabelecidas.<br />

Madame Pommery é uma espécie de símbolo:<br />

O romance situa claramente a cronologia e a localização geográfica e histórica dos<br />

acontecimentos, enquanto generaliza e abstrai nomes e situações reais. (Carone, 1991,<br />

p.141)<br />

e nesse sentido é personagem que se aproxima mais do tipo que da caricatura. A<br />

ambigüidade que está presente em toda a obra já se patenteia no nome da<br />

protagonista, que é também o título do livro: o nome Madame Pommery pode ser<br />

lido de diferentes modos:<br />

a) como paródia de Madame Bovary, ao descrever o percurso da personagem<br />

original às avessas — a personagem de Flaubert é sonhadora e tem como atributo-base<br />

a tendência à evasão, Pommery é realista, extremamente prática e tem<br />

como atitude básica o enfrentamento dos desafios; Emma é a mulher derrotada<br />

pela sociedade, Pommery é a mulher empreendedora e vitoriosa sobre um meio<br />

hostil, segundo Antonio Dimas:<br />

Ida é calculista e profissional ... Ela é mulher de capacidade organizatória e<br />

empresarial afiada. Tão afiada que derruba um capitalista como seu primeiro namorado.<br />

Desse modo, ela se converte em ameaça não apenas à família constituída, enquanto<br />

prostituta, mas também ao orgulho machista que se arroga o direito exclusivo de gerir<br />

empresas. Num meio extremamente masculinizado, Madame Pommery é uma cabeça<br />

empresarial. (Zilberman, 1983, p.130)<br />

b) como uma referência a pomme (no francês, maçã), o fruto proibido,<br />

associado à profissão com a qual Ida ganha a vida e ascende socialmente. Essa


ligação também se reporta à origem européia de grande parte das prostitutas que<br />

chegaram ao Brasil no começo do século;<br />

c) como abreviação do sobrenome da personagem, Pommerykowsky;<br />

d) como "a transposição nominal da marca de champagne 'Pommery'"<br />

(Chamie, 1970, p.27), apreciado pela personagem e vendido a peso de ouro no<br />

seu estabelecimento.<br />

Edgard Carone aponta a ligação entre o início do reinado de Madame<br />

Pommery e o<br />

fim do provincianismo dos cabarés, simbolizado pelo domínio da cerveja, e cujo custo<br />

variava, conforme o estabelecimento, entre 2$000 e 2$500, para outra bebida, a champagne,<br />

de maior status e naturalmente, de maior preço; bebida bem mais cara, seria consumida<br />

por fregueses mais ricos, por coronéis. (Carone, 1991, p.144)<br />

e) como "a composição de Pompadour e Bovary" (Chamie, 1970, p.27).<br />

Osmar Pimentel, na "Nota Explicativa" que introduz a edição de Madame<br />

Pommery publicada em 1977 pela Academia Paulista de Letras (p.8), chama a<br />

atenção para o caráter híbrido da obra, "um misto de crônica e memorialismo",<br />

que retrata muito dos costumes paulistas no começo do século, vendo a personagem<br />

principal apenas como "um pretexto", pois por meio de "sua biografia<br />

levemente acenada" se sobrelevaria a "crítica bonachona, mas contundente, da<br />

sociedade dos coronéis e políticos da chamada civilização do café".<br />

Mario Chamie (1970) enfatiza o papel precursor desempenhado por José<br />

Maria de Toledo Malta, ao<br />

lançar as coordenadas básicas de uma literatura cujo centro de interesse crítico passou a<br />

ser a aristocracia rural paulista em estado de desagregação, tendo por isso sofrido por<br />

parte da sociedade visada na obra uma plena e insuperável sabotagem, (p.191)<br />

De todo modo, é evidente que Madame Pommery é apenas um meio, um dos<br />

recursos utilizados por seu criador para desenvolver a crítica, não apenas à<br />

prostituição, mas especialmente à sociedade de seu tempo. O autor não visa à<br />

correção do desvio moral, individual, mas sim dos vícios coletivos, sociais.<br />

Assim, não chega a ser motivo de maior interesse saber, por exemplo, se Madame<br />

Pommery realmente existiu, e como ela era, pois o texto registra fortemente e<br />

revela com agudeza a sátira abrangente de costumes do tempo, não sendo seu<br />

objetivo apenas a caricatura de circunstância.<br />

Ao finalizar a leitura de Madame Pommery, resta ao leitor muito pouco das<br />

características individuais das personagens, inclusive da protagonista, um pouco


mais definida, mas à qual falta precisão. Os traços físicos, morais, psicológicos,<br />

das personagens são de um modo geral indefinidos e vagos. As caricaturas<br />

traçadas por Hilário Tácito são tênues, sutis, levemente delineadas, semelhando<br />

vultos ou sombras, pois sendo as personagens espécies de símbolos, é oportuno<br />

que certas facetas suas sejam vagas e imprecisas. O único perfil mais definido no<br />

texto é o do grupo mais abastado da cidade de São Paulo, expresso por meio de<br />

seus hábitos escusos. Por outro lado, o narrador observa em Pommery "naturais<br />

disposições para a caricatura viva" (p.48), constatação exemplificada no cômico<br />

episódio do torneio feminino de luta romana, em que a protagonista é consagrada<br />

campeã dos pesos-fortes.<br />

Há algumas marcas ampliadas de Pommery que definem o traço caricaturesco:<br />

no físico, a gordura, a decadência (Pommery já tem "trinta e cinco primaveras<br />

vicejantes", p.24); no espírito, a esperteza, o senso de oportunidade:<br />

Madame Pommery desembarcou um belo dia em São Paulo, com as suas roliças<br />

enxundias, quatro cançonetas realejadas, um fato de toureador e dois baús. Começou<br />

pobremente. Depois cresceu e se multiplicou; granjeou fortuna, importância e honrosa<br />

fama, alargando-se cada vez mais por toda a terra seduzida o insidioso influxo de sua<br />

personalidade, (p.l8)<br />

Observe-se aqui novamente o caráter simbólico, de protótipo, da personagem,<br />

que é precursora, é padrão e matriz das outras suas iguais: Pommery cresce<br />

e se multiplica.<br />

Por isso Pommery tem raízes indefinidas, sua origem é imprecisa: é figura<br />

universal, internacional, criação de todos os povos; sua marca é a mobilidade -<br />

tem costumes nômades, é mulher volúvel, é dinâmica, empreendedora:<br />

Duas nações, a Espanha cavalheiresca e a Polônia das baladas, disputam-se a glória<br />

de lhe ter sido berço. Pois parece averiguado que foi seu pai um polaco israelita de nome<br />

Ivan Pommerikowsky, de profissão lambe-feras num circo de ciganos. Sua mãe era<br />

espanhola... (p.31)<br />

E preciso considerar também que o nomadismo é um dos mais característicos<br />

traços da prostituta:<br />

Nômade, a prostituta não se fixa num único bordel, não se sedentariza numa única<br />

relação, muda constantemente de identidade. Nomadismo geográfico, que a leva a viajar<br />

insistentemente ou a mudar-se com freqüência ... Nomadismo sexual dos corpos: não<br />

apenas pela troca rápida dos fregueses, mas pelos usos sexuais do próprio corpo.<br />

Nomadismo de identidade: ora "francesa", ora "polaca", ora "brasileira", ruiva, loira ou<br />

morena, ela vive suas fantasias e as expectativas do freguês. (Rago, 1991, p.198)


É curioso observar que referências bíblicas são constantemente retomadas<br />

para sugerir equivalências aproximativas com o universo de Pommery. Esse<br />

procedimento, calcado na dimensão de mundo às avessas, simultaneamente<br />

enfatiza a grandeza dos feitos de Pommery, ao mesmo tempo em que rebaixa o<br />

universo religioso. Esse recurso é muito comum nas sátiras e já se registra<br />

inicialmente no texto, ao se delinear o perfil do narrador:<br />

É verdade, conquanto nem todos o saibam, que Jesus, filho de Siraque, também<br />

começa nas Escrituras tratando de si próprio. Mas este escriba era um simples tradutor;<br />

ao passo que eu, por ser autor, sou muito mais do que ele. Donde decorre a superioridade<br />

deste livro sobre o eclesiástico da Bíblia, (p.l3)<br />

Mais à frente, ao enaltecer o importante papel catequético desempenhado<br />

pela protagonista, o autor se vale do mesmo recurso:<br />

Cumpria-lhe o dever apostólico de remodelar esta gentilidade, anunciando-lhe a<br />

Nova Lei do amor corrupto, feito limpo, decoroso e sublimado pelo batismo do champanha.<br />

(p.25)<br />

É necessário atentar ao paralelo empreendido pelo narrador entre a atuação<br />

"colonizadora" (doutrinadora e transformadora) de Pommery e os jesuítas das<br />

missões: Ida tinha uma "fé inabalável nessa Missão que os Fados lhe apontavam",<br />

aceitava resignadamente os desígnios do destino e lutava contra "aqueles desmanchos<br />

graves da prostituição indígena", sentindo-se "condoída da nossa bárbara<br />

estultícia" (p.25). Leve-se em conta que Hilário Tácito se diz natural de<br />

Botucúndia e o poderoso coronel Pacheco Izidro, casado com a prostituta Zoraida<br />

e freqüentador do bordel de Pommery, é chefe político de Botuquara. Assim, o<br />

autor explora as evidentes afinidades entre os nativos aqui encontrados por Ida e<br />

os botocudos doutrinados pelos jesuítas - a par da designação ligada a tribos<br />

indígenas o termo também significa "caipira" c "selvagem"; e nesses dois últimos<br />

significados se enquadra perfeitamente o perfil da São Paulo provinciana encontrada<br />

e transformada pela protagonista.<br />

Como ênfase ao papel radicalmente transformador e desestabilizador desempenhado<br />

por Pommery na São Paulo do começo do século, o autor recorre a<br />

aproximações que revelam características empreendedoras da personagem, programaticamente<br />

organizadas, como numa empresa ou numa indústria:<br />

Foi ela [Pommery] na verdade a única de todos os economistas, que pressentiu esta<br />

evidência: -que era rematada inépcia valorizar-se um produto sem a correlata valorização<br />

do produtor, (p.22)<br />

Porque Madame Pommery já elaborava planos. Tinha o coronel, matéria-prima; o braço<br />

e a iniciativa. Só lhe faltava o capital... (p.50)


Sobrelevando das mais diferentes formas a missão transformadora, "desbotucudizadora"<br />

de Pommery, o texto sugere uma identificação entre a personagem<br />

e as radicais mudanças operadas na cidade de São Paulo, nos inícios do século.<br />

Nessa perspectiva, Ida é símbolo ou índice dessa face renovadora da cidade.<br />

Realiza-se, por outro lado, um intenso rebaixamento da industriosa cidade de São<br />

Paulo, instaurando-se a dimensão carnavalesca, de mundo ao revés, quando as<br />

transformações e os novos costumes mais cosmopolitas disseminados são apresentados<br />

como a resultante direta de interferências e designações de uma meretriz<br />

de coronéis:<br />

As transformações dos costumes de São Paulo, de que agora se trata, são mais da<br />

espécie artificial do que da natural. Eu tive a fortuna de ser testemunha delas e observador<br />

não desatento. Conheço o gênio de Madame Pommery, de que todos derivam finalmente,<br />

por linha reta ou linha torta ...<br />

Que uma simples rameira arrufianada haja influído nos bons ou maus costumes de<br />

uma capital como São Paulo, é verdade que pode passar por ousadia aos olhos de pessoas<br />

inespertas, ou mal informadas sobre os bastidores da civilização, (p.l 17)<br />

O percurso de Ida Pommerikowsky, como um espelho, é ao mesmo tempo o<br />

avesso negado e o reflexo veraz da São Paulo do tempo:<br />

Ao lado desse processo de industrialização pelo qual passava a cidade, temos, em<br />

nível subjacente, a industrialização do amor ... nesse sentido, o narrador revela um lado<br />

menos nobre da cidade. Não é a cidade apenas dos bandeirantes, das mulheres quatrocentonas,<br />

dos edifícios altos, do dinheiro solto, das chaminés orgulhosas, das indústrias<br />

vorazes, da cultura concentrada. E também o lugar do bordel mais famoso do país, lugar<br />

onde se requinta o vício. (Dimas, In: Zilberman, 1982, p. 131)<br />

Pommery é a imagem tão distorcida como verdadeira da nova São Paulo, e<br />

por isso se define por antíteses e paradoxos: possui "caracteres contraditórios",<br />

infundidos pela hereditariedade; congrega a disposição para a disciplina - traço<br />

herdado da mãe, uma noviça reclusa num convento espanhol - e "taras patológicas<br />

de insofrível concupiscência"; da parte do pai, além do nariz adunco, herda<br />

"o gosto das finanças, a cupidez e o faro mercantil" (p.323).<br />

Por paradoxo também é definida a ética amoral de Pommery, expressa na<br />

divisa assumida como lema:<br />

Con arte y con engano<br />

Vivo la mitad del ano<br />

y con engano y arte<br />

vivo la otra parte, (p.50)


Observe-se que muito da personagem se revela nos dogmas por ela adotados,<br />

como este, que expõe a ética financeira: "Faze tudo que quiseres" e "Paga tudo<br />

que fizeres". O narrador se refere também ao "temperamento poético de Pommery,<br />

evidente na escolha do nome do bordel 'Paradis retrouvé'", e depois enfatiza<br />

a sua ganância e disciplina. Jogando com os opostos, o narrador aproxima também<br />

a monja e a meretriz, pois "embora em polos antípodas, são as que oferecem a<br />

máxima impenetrabilidade ao sentimento de amor" (p.l09).<br />

Acentuando o tom irônico utilizado pelo narrador, a imagem de Pommery<br />

define-se por aproximações inusitadas e risíveis, visando sempre elevar a imagem<br />

da prostituta, rebaixando figuras e valores conceituados: a par das já citadas<br />

referências ao estatuto religioso, desenvolve-se um paralelo entre Pedro Alvares<br />

Cabral e Pommery:<br />

porque Cabral era um homem-bólido, como Madame Pommery é uma mulher-meteoro,<br />

ambos arremessados a estas plagas por mãos da Divina Providência... (p.46)<br />

O mesmo se observa na identificação Malherbe/Pommery, ambos precursores<br />

e inovadores, o primeiro na poesia francesa, a segunda na nossa boêmia<br />

libertina.<br />

Projetadas no percurso de Pommery, lêem-se as modificações operadas na<br />

cidade. Por isso, o caráter híbrido da narrativa, que oscila entre o romance e a<br />

crônica, entre a crônica e o registro memorialista, entre a sobriedade e o deboche.<br />

Madame Pommery revela a mediação entre dois momentos, empreendendo uma<br />

espécie de ritual de passagem. O ponto de partida é o passado, idílica e ironicamente<br />

apresentado, mas já superado:<br />

Naquele tempo tudo era diferente! Os bondes elétricos constituíam ainda uma<br />

novidade, cujas vantagens se encareciam diariamente nas palestras. Um automóvel que<br />

passasse por uma rua sossegada fazia abrir repentinamente todas as janelas, cheias no<br />

instante de caras assustadas e curiosas, (p.l9)<br />

É o tempo em que toda a vida paulistana gravitava em torno da Casa Seleta,<br />

no Largo do Rosário, é época primitiva, de cervejadas, quando ainda não se<br />

instituíra o "champanha na qualidade de acompanhamento obrigatório das troças<br />

de alto bordo", hábitos revistos e transformados por Pommery, ao desenvolver e<br />

praticar o seu programa de "profissionalização do vício" (Dimas, In: Zilberman,<br />

1982, p.171), encarado e praticado apenas como negócio lucrativo:<br />

As mulheres ouviam-na discorrer, e aceitavam sua teoria, segundo a qual o bem<br />

estar e a regeneração de todas elas estavam unicamente em saber explorar o Coronel,<br />

segundo os métodos do Paradis. Mas, se apesar de tantas exortações, alguma prevaricava<br />

e se entretinha com gigolôs - olho da rua! (p.l 10) (grifos nossos)


É preciso, entretanto, sempre desconfiar, pois Tácito não se restringe apenas<br />

à crônica memorialista, mas faz dela a paródia. Do confronto entre os cacos de<br />

recordações e as mudanças efetivadas pelo tempo, potencial motivo de consternação<br />

para os saudosistas, emerge da ironia a máscara hilária, que revela:<br />

Das antigas instituições que possuía, somente o Castelões conserva, ainda agora,<br />

alguns traços apagados da feição antiga. O resto lá se foi, levado pelo progresso e primazia<br />

dos costumes novos. E, com franqueza, não merece as duas lágrimas de saudade que o<br />

leitor está esperando, mas que eu retenho sensatamente para transes mais idôneos, (p.20)<br />

Desfilam à frente do leitor os tipos que freqüentavam o alto bordo paulistano,<br />

suas taras e manias; registram-se por intermédio das alunas de Pommery as manhas<br />

das rufionas ao "depenar" os coronéis, os artifícios para o máximo lucro, como se<br />

constata na observação das personagens que fazem o pano de fundo da narrativa.<br />

FIGURA 13 - Versão de Madame Pommery feita por Patrício Bisso, para a peça homônima, apresentada pelo<br />

Grupo da Província (In: RAGO, 1991, p.179).


PERSONAGENS SECUNDÁRIAS<br />

As personagens secundárias delineadas por Hilário Tácito, como a protagonista,<br />

tendem à estilização, desempenhando também um papel simbólico. São<br />

tipos cuja definição parte do espaço por eles ocupado na ordem social; a primeira<br />

informação apresentada ao leitor é a da profissão praticada ou da ocupação que<br />

desenvolvem: o Coronel Pinto Gouveia é "comissário de café, sujeito de sessenta<br />

anos e abalizado comerciante"; o Dr. Filipe Mangancha é "tesoureiro da Companhia<br />

Paulista de Teatros e Passatempos", assim como é também ilustre cirurgião,<br />

conhecido pela alcunha "o Magarefe", como "alusão à fúria carniceira do seu<br />

bisturi contra as vísceras do próximo..."; o bacharel Romeu de Camarinhas é<br />

"almoxarife da Intendência" e recebe um salário atraente, o que justifica a<br />

receptividade a ele dispensada, e, como o seu nome sugere, é o mais romântico<br />

dos três - o primeiro nome obviamente faz lembrar a clássica tragédia de<br />

Shakespeare; o segundo nome bruscamente obriga o leitor a descer das alturas<br />

do amor desprendido e sublime do entrecho clássico para a "baixeza" do corpo,<br />

as necessidades da carne, face negada do amor, domínio de Pommery: camarinhas<br />

(diminutivo de câmara), dentre outras coisas, significa quarto de dormir.<br />

Os três amantes de Pommery são componentes ou servidores da aristocracia<br />

local, os três são "adoradores" de Madame Pommery, os três são sócios potenciais<br />

em seus negócios; cada um a seu tempo, e de acordo com o espaço ocupado na<br />

ordem social, será de grande utilidade aos renovadores empreendimentos programados<br />

por Pommery.<br />

Em consonância com cada estágio da vida da personagem na nova terra e,<br />

conseqüentemente, com os distintos momentos da vida airada paulistana, a<br />

protagonista, com o senso de oportunidade que a peculiariza, procurará associarse<br />

a cada um dos pretendentes, de acordo com os objetivos almejados: o coronel<br />

é o primeiro "sócio", que com seus recursos econômicos e relações sociais dá o<br />

impulso inicial ao "Paradis retrouvé"; superado esse primeiro momento, Pommery<br />

o descarta, ligando-se ao Dr. Filipe Mangancha: é o tempo em que a prostituição<br />

paulistana tem no "teatro de variedades", mais especificamente no Teatro<br />

Casino e no Politeama, seu cartão de apresentação, local em que as damas do alto<br />

bordo se exibem aos consumidores. O médico é diretor e tesoureiro da Cia.<br />

Paulista de Teatros e Passatempos, garantindo para Pommery e suas discípulas<br />

"uma distinção especialíssima". Mais à frente, ao entrar o Casino e o Politeama<br />

em decadência (deixando de desempenhar importante papel no "mercado de<br />

luxúrias"), e sendo local da moda o Bar do Municipal, definido pelo autor como


"balcão de requebros", será o momento de nova troca de parceiro, pois "Os negócios<br />

do Paraíso tinham muito a ver, naquele instante, com as leis do município"<br />

(p.l06). Como se observa, os amores de Pommery são intimamente orquestrados<br />

por seus negócios.<br />

Pommery exerce um "influxo civilizador" sobre a cidade, e há uma fase em<br />

que é sinônimo de elegância, desembaraço, "smartismo" ser freqüentador do<br />

"Paradis retrouvé".<br />

Os freqüentadores mais assíduos do alto bordo dos primeiros tempos são<br />

também caracterizados numa figura, o Sequeirinha, uma estilização do boêmio,<br />

típico da época:<br />

Quem conheceu o Sequeirinha, o maior estróina, o peralta mais casquilho do tempo<br />

das cervejadas, não lhe esquecerá nunca o jeito, nem a fama escandalosa das suas<br />

dissipações com o mulherio ... O Sequeirinha já está gravado. E não fará má figura com<br />

o seu casacão até os joelhos e o chapelinho de palha quase sem aba, perfeitamente "smart'<br />

e "up to date" como se dizia naquela época dos primeiros automóveis, (p.l 15-6)<br />

Esse boêmio-protótipo é apresentado como contraponto irônico ao coronel<br />

Pinto Gouveia, evidenciando as intensas transformações no volume financeiro<br />

absorvido pela alta prostituição. Com isso se reflete a passagem de um tempo<br />

artesanal, mais primitivo e desordenado, para um momento de intensa capitalização<br />

no ramo; modificação que se observa também nos costumes: Sequeirinha<br />

provocava escândalo com o esbanjamento de uma mesada de 500$000 (quinhentos<br />

mil réis), o Coronel é desalojado do "Paradis" com uma conta devedora de<br />

12:914$400 (doze contos, novecentos e quatorze mil, e quatrocentos réis),<br />

provocando apenas alguns sorrisos coniventes na sociedade.<br />

O freqüentador-protótipo do bordel dos novos tempos de intensa capitalização<br />

no ramo é Sigefredo: "um alemão vindiço, cara de Cristo de Alberto Durer,<br />

com um pincenê de ouro sobre uns olhos de carneiro". Ele se diz industrial, estuda<br />

empresas grandiosas e dissipa "no jogo e na gandaia o juro e os capitais das suas<br />

indústrias futuras" (p.80).<br />

Quanto às "internas do colégio", também são elas concebidas num processo<br />

de estilização, são tipos que fixam padrões:<br />

A Leda Roskoff, loura eslava, madura e muito grande, decotada até a cintura, exibia<br />

sobre a carne de açucena muito creme de rainha, pó de arroz cheiroso, e uma parte do<br />

milhão de jóias que um grão-duque lhe dera na gloriosa mocidade.(p.79)<br />

A Isolda Bogary era "muito graciosa francesinha"; a italiana Coralina é<br />

descrita como "rechonchuda popolana, que dava umas risadas malandras com os<br />

trinta e dois dentes fora e as ventas para o teto" (p.80).


É preciso atentar também às alusões implícitas no sobrenome Roskoff, que<br />

traz ambíguas conotações: roscofe é adjetivo associado a "má qualidade" e é<br />

empregado também na expressão chula "dar o roscofe", que se aplica a pederastas<br />

passivos. Ambos os sentidos são carregados de significação, levando-se em conta<br />

a atividade profissional de Leda. É cômica também a aproximação do nome Isolda<br />

- que reporta à personagem da ópera romântica de Wagner Tristão e Isolda - ao<br />

sobrenome Bogari, denominação de um "arbusto trepador" (novamente de ambígua<br />

conotação), uma espécie de jasmim muito cheiroso e alvo.<br />

No quadro das figuras secundárias, apresenta-se também o Chico Lambisco,<br />

um simples redator de jornal, "sujeito útil aos políticos de cima, quando mandam,<br />

pouco temível aos debaixo, que ainda poderão mandar" (p.140), cuja função no<br />

desenrolar da ação será a intermediação entre Pommery e Justiniano Sacramento.<br />

Justiniano Sacramento é uma caricatura cômica; terceiro lançador da prefeitura,<br />

trabalha nas horas vagas com a revisão de anúncios em jornais; é um funcionário<br />

público exemplar e incorruptível, sujeito opiniático e de idéias emperradas.<br />

Coloca o dever acima das paixões c seus mais insignificantes atos se<br />

inspiram na religião católica e na Constituição de 24 de fevereiro. É uma figura<br />

marcada pela redução grotesca:<br />

Tinha os seus dias de florir e aparecer à luz, com pompa e solenidade. Justiniano<br />

florescia e Justiniano se ostentava, nos dias de procissão e de festas nacionais.<br />

Sair de opa e estandarte na procissão de Corpus Christi, envergar a sobrecasaca, pôr<br />

cartola e cumprimentar o presidente no dia 15 de novembro, eram os acontecimentos<br />

mais festivos, as grandes funçanatas de toda a sua existência, (p. 141)<br />

Justiniano é o obstáculo maior a ser enfrentado por Pommery, pois é "um<br />

lançador inexorável, zeloso de se não burlarem num vintém que fosse os direitos<br />

do Erário público ..." e lhe cabe a vistoria e o lançamento de imposto sobre o<br />

"Paradis retrouvé", qualificado como "pensão".<br />

É cômica e desveladora a apresentação da atitude incorruptível do funcionário,<br />

nessa trama que carnavaliza e inverte valores, mostrando o honesto, o<br />

honorável como ridículo. O paradoxo se evidencia, por exemplo, na indignação<br />

do Exmo. Coronel Fidêncio Pacheco Izidro, M. D. Ministro dos Impostos, com<br />

a atitude do subalterno que pensa agir de modo exemplar, exigindo do funcionário<br />

uma ação mais moderada: "diga p'r' aquele sarambé pra fazer as coisas na ordem"<br />

(p. 142). E a "ordem", nesse mundo "às avessas", logicamente está com Pommery,<br />

não com o erário público.


A caricatura do funcionário exemplar se delineia também no registro da<br />

expressão lingüística por ele utilizada, de modo afetado e formal, como na fala<br />

em que é apresentado a Pommery, em visita ao "Paradis":<br />

Sou apenas, excelentíssima senhora, um ínfimo servidor de V. Exa., que se sente<br />

sobremaneira honrado em ser admitido entre a brilhante coorte dos fervorosos admiradores<br />

de V. Exa. (p.144)<br />

O ridículo do confronto entre o excessivo formalismo e seriedade de Justiniano<br />

e a atitude debochada das prostitutas sobreleva-se na passagem que explora<br />

o encontro do funcionário com as "discípulas" de Pommery:<br />

Ele não descurava as amabilidades e gentilezas do estilo. Oferecia-lhes champanha,<br />

gabava-lhes a distinção e o gosto, e queria saber de cada uma a igreja que freqüentava.<br />

(p.144)<br />

O velho funcionário termina por gastar no prostíbulo suas economias, encontrando-se<br />

em estado de total penúria, quando, num novo paradoxo, é salvo por<br />

um aumento em seus vencimentos salariais, decorrente da interferência de<br />

Pommery junto a Pacheco Izidro. 5<br />

Pommery é o signo da mudança: daí ser caricalura-símbolo, cuja marca mais<br />

contundente é o dinamismo ("mulher-meteoro"). Nada mais natural que seus<br />

primeiros namorados na Botucúndia, cada qual oportunamente descartado, sejam<br />

figuras oriundas ou associadas à aristocracia rural decadente e que seus últimos<br />

pretendentes (agora para o matrimônio), significativamente, sejam caricaturas de<br />

novos ricos, componentes da nova burguesia empreendedora e emergente: um é<br />

negociante de couros, o outro c droguista de vinhos e o outro comissário de<br />

mamona. A riqueza dessa burguesia nova provém "das negociatas de guerra", e<br />

por isso ela é tão vulnerável, podendo assim Pommery "exercer mais facilmente<br />

a fascinação de sua audácia" (p.l54).<br />

Os três são "sujeitos levantados da poeira na véspera, ainda meio tontos da<br />

altura cm que se viam"; os três são protótipos que representam os bem-sucedidos<br />

recém-enriquecidos, na nova São Paulo que a todos abriga. Não têm nome, não<br />

apresentam qualquer indício que os personalize: são imagens reificadas, próximas<br />

a fantoches, designadas pela ocupação desempenhada e caracterizadas<br />

apenas pela origem étnica e social:<br />

Dizem que o do óleo de rícino era libanês, armênio, sírio ou turco, de uma dessas<br />

raças indeterminadas que infestam a orla esquerda da Várzea do Carmo...<br />

O químico das pipas começara a indústria há muitos anos, compondo e multiplicando<br />

modestamente chiantes, grignolinos e barberas, na sua bodega do Bom Retiro...<br />

Quanto ao das couramas, era filho de um mondongueiro e escorchador do matadouro,<br />

onde esfolou muito boi morto... (p.154)


O que os homogeneiza entre si é o comportamento grotesco: "uma tendência<br />

muito acentuada a se abeirarem da gente fina, cujas maneiras copiavam grotescamente,<br />

numas paródias ridículas".<br />

O narrador não esconde a função de amostra social desempenhada pelos<br />

prováveis maridos de Pommery: "um dos três estava fisgado. Se não, paciência, e<br />

era passar adiante; que há novos ricos aos magotes por esse Bar Municipal" (p.155).<br />

É curioso como todas as personagens, sem qualquer exceção, atuam como<br />

bonecos manipulados pelos dedos ágeis da persona, instância mediadora, que<br />

enfatiza o caráter convencional, arbitrário, simbólico da narrativa. Por isso, ler<br />

Madame Pommery é saber muito mais da São Paulo dos anos 20, e de Hilário<br />

Tácito, a sua persona satírica, que saber detalhes das personagens, reduzidas a<br />

sombras esvanecidas.<br />

Esse sombreamento na apresentação das personagens é intencional e se deve<br />

ao caráter híbrido que permeia a concepção do texto, dividido entre o velho e o<br />

novo ["Hilário Tácito com linguagem (intencionalmente) velha escalpela o fato<br />

novo..."] (Chamie, 1970, p.192).<br />

Madame Pommery é uma sátira aguda c irreverente dos costumes, que faz<br />

paralelamente a crítica desmistificadora da concepção acadêmica de literatura, e<br />

aí assume feição mais transgressora e libertária:<br />

A "Biografia de tão conspícua senhora" vem feita com todos os requisitos de uma<br />

antiga crônica e imitante, até nos títulos, o estilo poeirento em que os nossos maiores<br />

costumavam contar os sucessos de seu tempo... Seguir-lhes a maneira contrafazendo-lhes<br />

os torneios, imitando-lhes mesmo o bolcio do frasear, mas eivando-o ao gosto e sentir<br />

contemporâneo. (Mennucci, s.d., p.226-7)<br />

O texto não esconde, entretanto, uma certa intenção moralizadora subjacente<br />

à crítica, que visa à correção de excessos e desvios sociais, e mesmo à preservação<br />

de algumas normas e hierarquias, evidentes, por exemplo, na acintosa rejeição<br />

dos "novos ricos", de origem indefinida, "sujeitos levantados da poeira na véspera<br />

... e muito encoscorados do cascão da gleba" (p.154).<br />

Se a aristocracia não inspira confiança, muito menos crédito merecerão seus<br />

substitutos, apresentados como imitadores vulgares. Como se vê, o prognóstico<br />

de Hilário Tácito é arrasador, enão deixa espaço para qualquer ilusão.<br />

CONCLUSÕES<br />

No tempo da publicação de Madame Pommery, a crítica de um modo geral<br />

se mantém alheia ou tímida com relação à obra. Entretanto, os poucos que tratam


desse texto, na época e depois, fazem-no com discernimento. Vale a pena retomar<br />

alguns aspectos apontados.<br />

Lima Barreto, contemporâneo à publicação, toca em questão fundamental ao<br />

chamar a atenção para a dificuldade de análise do texto no que se refere ao<br />

enquadramento do gênero literário, evidência significativa da modernidade do<br />

trabalho, que transcende os preceitos usuais:<br />

Seria estulto querer encarar semelhante obra pelo modelo clássico de romance, à<br />

moda de Flaubert ou mesmo de Balzac. Nós não temos mais tempo, nem o péssimo critério<br />

de fixar rígidos gêneros literários ... Os gêneros que herdamos e que criamos estão<br />

a toda hora a se entrelaçar, a se enxertar, para variar e atrair. O livro do senhor Hilário<br />

Tácito obedece a esse espírito e é esse o seu encanto máximo: tem de tudo. É rico e sem<br />

modelo. (1956b, p.l16)<br />

O escritor carioca atenta para o caráter misto (de crônica e romance) do texto<br />

e considera residir nesse aspecto o seu maior interesse.<br />

Realmente, a mistura e a fluidez de limites é característica bem peculiar de<br />

Madame Pommery, assim como também é característica típica da sátira de um<br />

modo geral - o termo sátira origina-se de lanx satura, do latim, cuja significação<br />

se reporta ao prato cheio e diversificado de frutos oferecidos a Ceres (Moisés,<br />

1992, p.469-71), portanto, associando-se à idéia de excesso e pluralidade. Certamente<br />

por esse motivo é que Mário Chamie detecta uma identidade entre a<br />

expressão "da idéia de uma superação da crise da prosa" e o gênero de literatura<br />

escolhido pelo autor, que "sem pensar em transformação, satura, satiricamente,<br />

os processos dos grandes modelos"; essa saturação, segundo o crítico, far-se-ia<br />

"por um uso paralelo, culto e limpo de técnicas de estilo": de Rabelais, o escritor<br />

adota o sistema de dar nomes aos capítulos e de explicar genealogicamente o<br />

herói; de Montaigne, incorpora o "ceticismo (às vezes cinismo) e a sutileza condescendente";<br />

de Flaubert, é a "minúcia descritiva"; no próprio nome da personagem<br />

encontrar-se-ia "a soma de estilos resolvida homogeneamente" (Chamie,<br />

1970,p.l934).<br />

Graças à heterogeneidade e à fluidez (intencionais) verificadas no estilo de<br />

Hilário Tácito, composto como uma espécie de "enxerto de formas", é que Alfredo<br />

Bosi sugere (para uma abordagem propriamente literária do texto) que se<br />

trate da questão do gênero.<br />

A contigiiidade das partes lembra o modo de compor da crônica, mas o tom geral<br />

supõe a distância da sátira, esta, por sua vez, escolhe nas filigranas da sintaxe e do<br />

vocabulário as formas de uma paródia cujo ponto de referência é o purismo que então<br />

dominava o trabalho de elocução. (Bosi, 1978a, p.311)


Para esse estudioso do pré-modernismo, há um sentido de continuidade entre a<br />

paródia empreendida no nível propriamente literário e os costumes do tempo,<br />

satirizados.<br />

Em uma linguagem que imita com leveza os sestros vernaculistas do tempo, a<br />

crônica incide sobre o clima devasso dos grã-finos de dupla moral que freqüentavam o<br />

Paradis retrouvé de Madame Pommery ... A respeitabilidade dos coronelões paulistas<br />

tem o mesmo ar postiço do pedantismo oficial. A paródia de um serve para desmascarar<br />

o outro. (Bosi, 1978a, p.311)<br />

Esse caráter híbrido da obra de José Maria de Toledo Malta, especialmente<br />

no que se refere aos gêneros e ao estilo, é decorrência, dentre outros motivos, do<br />

campo literário adotado, a sátira, mas certamente atende também a uma intenção<br />

bastante definida. No "Prólogo Dispensável", introdução feita por Malta a Vida<br />

ociosa, de Godofredo Rangel, o escritor faz esclarecedora afirmação de autonomia<br />

com relação ao modismo das escolas literárias ou à imitação dos clássicos:<br />

O realismo, o romantismo, o classicismo, até o cubismo podem ser bons, contanto<br />

que sirvam para a cultura de um temperamento, jamais para a sujeição. (Tácito, s.d., p.15)<br />

O ponto de vista tão claramente colocado por Hilário Tácito ao prefaciar a<br />

obra de Godofredo Rangel não deixa de ser uma pista importante para a compreensão<br />

da paródia empreendida em Madame Pommery, como uma recriação<br />

artística, numa elaborada colagem que se apropria com intimidade e desenvoltura<br />

dos clássicos para reapresentá-los de forma bastante pessoal.<br />

E certo que uma releitura mais atenta constata afinidades entre Hilário Tácito<br />

e Léo Vaz na ironia pelos dois utilizada, e denuncia claramente a influência de<br />

Machado de Assis, no tom aparentemente benevolente que se espraia num humor<br />

abrangente; ambos atingem antes uma dimensão humana, não se restringindo à<br />

pura sátira localizada, datada e circunstancial. Wilson Martins (1978, v.6, p.152<br />

e p.l80) observa a influência de José Agudo, autor também de uma memória<br />

filosófica, na concepção de Madame Pommery, questão cuja confirmação exigiria<br />

um estudo mais detido. De toda forma, é incontestável a renovação representada<br />

pela obra de Hilário Tácito.<br />

A novidade do tom e do assunto, apontada já no momento da publicação do<br />

texto, é certamente a causa da sua leitura como obra precursora, que em muitos<br />

aspectos antecede produções do modernismo. Antônio Dimas considera marcante<br />

o fato de a obra revelar "novas feições e novas possibilidades" para a literatura<br />

que se criaria logo em seguida (Zilberman, 1983, p.126). Mário Chamie (1964,<br />

p.l89), na busca de "uma situação para Oswald", contextualiza a linguagem e a<br />

criação desse escritor modernista associando-as à produção de Adelino Maga-


lhães, Antônio de Alcântara Machado e Hilário Tácito. Na aproximação entre a<br />

obra de Toledo Malta e a de Oswald de Andrade, constata afinidades:<br />

a) o sentido de sátira e de paródia; b) a visão do literato e do beletrismo; c) Botocúndia,<br />

antropofagia e marco zero; d) aculturação e invasão européia; e) a simbologia da viagem;<br />

f) a crise do café; g) sexologia e primitivismo; h) permanência (incidental) do texto<br />

arcaico; i) biografia e pantagruelismo.<br />

Assim, Madame Pommery poderia ser lida em parte como o nascedouro do<br />

estilo de Machado Penumbra (1924), trazendo algumas sugestões para a poesia<br />

pau-brasil (1925) e guardando afinidades com a paráfrase empreendida na "Carta<br />

pras Icamiabas", de Mário de Andrade (Chamie, 1964, p.l93-4).<br />

Entretanto, para Chamie (1964, p.193), o "ensaio satírico" exposto por<br />

Hilário Tácito também representa o esgotamento a que chegara "o linguajar arcaico<br />

e arcaicizante" — assim, Hilário apenas indicaria uma transição, enquanto<br />

Oswald, "com o conflito estabelecido parte para a transformação da prosa".<br />

Sem descartar a importância de Madame Pommery como texto precursor ou<br />

antecipador, mediando a literatura acadêmica produzida no começo do século e<br />

as inovações empreendidas pelos jovens modernistas, é preciso lembrar que a<br />

criação de Toledo Malta merece e exige uma leitura mais atenta, que não se<br />

restrinja apenas a rotulá-la como "pré-moderna".<br />

Os limites evidentes numa primeira leitura do livro, já apontados e sintetizados<br />

especialmente por Sud Mennucci (s.d., p.229-30) e Alceu Amoroso Lima<br />

(1948, p.232) — a irregularidade na composição, que decai, especialmente nos<br />

capítulos finais, e a monotonia da narrativa, o excesso de citações e digressões,<br />

que dão um tom hesitante ao texto - com certeza não justificam o descaso a que<br />

a obra tem sido relegada.<br />

Afora o caráter precursor do texto, ao tratar com irreverência temas delicados,<br />

ao dilatar a crítica na corrosão dos modelos clássicos, empreendendo o rebaixamento<br />

e o questionamento de valores sociais e culturais consagrados e estabelecidos,<br />

aproximando e amalgamando no espaço ficcional o sagrado e o profano,<br />

o sério e o cômico, o sublime e o desprezível, é necessário levar-se em conta o<br />

caráter desestabilizador, dialógico, carnavalesco, que o texto assume ao desenvolver<br />

a sátira da própria sátira, compondo uma espécie de metassátira, que se<br />

autoquestiona incessantemente, exigindo sempre novas e novas leituras.<br />

Aspecto por fim peculiar, que deve também ser considerado, diz respeito à<br />

configuração de Madame Pommery como sátira de costumes que se aproxima de<br />

um gênero de humor que aborda o local e o circunstancial pela lente abrangente<br />

do tratamento da miséria humana.


NOTAS<br />

1 Há depois a edição publicada pela Academia Paulista de Letras, em 1977, como parte da Biblioteca<br />

Academia Paulista de Letras (v.6), utilizada para as referências deste estudo. Mais recentemente<br />

(1992), a Editora da Unicamp e a Fundação Casa de Rui Barbora associaram-se para republicar a obra,<br />

com introdução, estabelecimento do texto e notas de Júlio Castanon Guimarães.<br />

2 Carta de Monteiro Lobato a Lima Barreto, de 31.5.1920. In: Barreto, 1956a, v.17, t.2, p.75.<br />

3 Publicou duas obras técnicas: Cimento armado - cálculo rápido, e Lajes, vigas e pilares de cimento<br />

armado, ambas em 1925; foi chefe do escritório técnico da Repartição de Águas e Esgotos de São<br />

Paulo. Projetou obras de relevo: uma rede especial para irrigação da cidade de São Paulo, o<br />

observatório de Água Branca, a ponte da Mooca (Tamanduateí), o reservatório da Lapa, a barragem<br />

de "Pedro Beicht" (Adução do Cotia), a retificação do canal do Tietê; trabalhou em 1922 na construção<br />

do dique e do cais da Ilha das Cobras; depois de aposentado dirigiu a equipe que projetou e calculou<br />

a estrutura do Edifício Mauá, no viaduto D. Paulina. Foi presidente do Instituto de Engenharia de São<br />

Paulo no biênio 1939-1940. (Cf. Melo, 1954, p.340).<br />

4 A Escola Politécnica, fundada em 1896, realiza exames de admissão à matrícula pela primeira vez,<br />

em 1912, de acordo com as disposições do Decreto n.2.166, de 16.11.1911.<br />

O exame consta de cinco séries nas quais se distribuem as matérias constitutivas das provas de<br />

admissão. O programa é amplo e abrangente: a par das disciplinas específicas da habilitação procurada<br />

pelo aluno, era necessário submeter-se às provas de Português (ditado, composição, leitura, análise<br />

gramatical e de lógica, dissertação sobre matéria de gramática, Selecta clássica, de João Ribeiro. Os<br />

Lusíadas); prova escrita e oral de francês, inglês, alemão (era necessário estar apto à leitura, à tradução,<br />

versão, análise gramatical e lógica, descrição na língua de um tema dado e dissertação sobre matéria<br />

de gramática). A quarta série abrange um extenso programa de Geografia, Cosmografia, História Geral<br />

e História do Brasil.<br />

Como se observa, o exame de admissão, mesmo sendo considerado pelo relator como "relativamente<br />

pouco exigente, muito menos sobrecarregado do que os correspondentes a essas matérias nos ginásios<br />

estaduais", requisitava considerável erudição e preparo do candidato.<br />

(Relatório apresentado ao Dr. Francisco de Paula Rodrigues Alves, presidente do Estado, pelo<br />

secretário do interior - Altino Arantes - ano de 1912. São Paulo: Tipographia Brazil de Rothschild<br />

&Cia., 1914).<br />

5 Testemunhando sobre o trânsito das prostitutas de luxo nas altas esferas da vida pública e política,<br />

mas ao mesmo tempo mostrando a enorme carga de preconceito existente com relação a elas, a sátira<br />

de Moacir Piza (Roupa suja, polêmica alegre) nana episódio ocorrido em uma festa no palácio do<br />

governo de São Paulo, durante a gestão de Washington Luís, em que, levada por um político ligado<br />

às hostes do governo, uma dama "elegante, bela, quase divina e, mais que tudo, alegre" (p.66) participa<br />

incógnita da comemoração. Depois vêm a saber a que tipo de atividade se dedica a dama e todos<br />

julgam mais conveniente ignorar o ocorrido. Nos dois capítulos (VI e VII) em que o narrador comenta<br />

com extrema ironia o ocorrido, faz ele referências elogiosas a Madame Pommery: com sarcasmo<br />

afirma ser a obra livro de cabeceira do governador, assim como lastima o fato de Washington Luís<br />

tomar contato com o texto de Hilário Tácito somente depois de escrever A capitania de São Paulo,<br />

pois se isso tivesse ocorrido antes, certamente o governador teria escrito uma obra-prima (p.845). A<br />

utilização de Madame Pommery como elemento que favorece a sátira, rebaixando o governante,<br />

certamente evidencia o mal-estar diante do tema do livro.<br />

Mal sabia o satirista que, ironicamente, por ocasião de sua morte brusca, em trágicas condições, os<br />

jornais estampariam manchetes bombásticas que traduziam enorme preconceito diante da mesma<br />

questão, ao referir-se a Nenê Romano: "Matou-se Moacir Piza, o brilhante, o audaz, o valoroso<br />

escriptor que todo São Paulo admirava. Matou-se depois de ter matado Nenê Romano, a mulher fatal,<br />

que tinha um rosto de anjo e uma alma perversa" (O Combate, São Paulo, 26.10.1923).


CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Há momentos da história de um povo que são mais propícios ao aparecimento<br />

da sátira e, conseqüentemente, da caricatura. É quando as contradições e tensões<br />

sociais com maior intensidade se aguçam, motivando a crítica, em períodos de<br />

transformações e mudanças, momentos intermediários, fases de transição, com<br />

uma natural turbulência, geradora de um forte sentimento de insegurança e<br />

instabilidade, enfim, de conflitos.<br />

E o que se observa, no Brasil, a partir da segunda metade do século passado,<br />

no Segundo Reinado, bem retratado pela pena inspirada e aguda de Ângelo<br />

Agostini, na Revista Ilustrada. Essa tendência à sátira se espraiará na literatura<br />

pelos fins do século XIX até a década de 1920, e inícios de 1930, por exemplo,<br />

com as estiletadas de Oswald de Andrade e Murilo Mendes (História do Brasil,<br />

de 1932). A verdade é que a vida nacional brasileira sempre foi um campo fecundo<br />

para a caricatura, pois raros são os momentos de estabilidade, e daí raro ser em<br />

nossas artes o tempo sem espaço à criação caricaturesca.<br />

Na segunda metade do século XIX a caricatura, na Europa, passa por um<br />

processo de afirmação com o aperfeiçoamento das técnicas de litogravura e com<br />

a possibilidade de uma difusão mais intensa, sendo valorizada na França, Inglaterra,<br />

Itália, o que se comprova mesmo com o artigo de Baudelaire acerca do<br />

tema, publicado em 1855, reivindicando um espaço de relevo para a caricatura<br />

no terreno das artes plásticas.<br />

No Brasil, a caricatura será fortemente impulsionada pela difusão da imprensa<br />

(jornais e revistas), mesmo que restrita ainda a insignificantes parcelas das po-


pulações urbanas. Também o tom da imprensa da época é estímulo ao delineamento<br />

caricaturesco: agressivo, frontal, pasquinesco, chegando às vezes, no<br />

confronto das posições políticas, às raias da brutalidade dos ataques pessoais.<br />

As caricaturas gráficas, como charges ou retratos, com verbetes ou não,<br />

encontram um público extremamente receptivo, tornando-se populares, graças à<br />

facilidade de decodificação da mensagem, bastante clara, em que quase nada c<br />

sugerido; o conteúdo é sempre bem explicitado, dando pouca margem a dúvidas<br />

nas identificações de personagens e episódios da política do período.<br />

A par da crença na possibilidade de mudanças e do ânimo para a transformação,<br />

associados a uma forte empatia de idéias e sentimentos entre emissor e<br />

receptor da sátira, o florescimento da caricatura exige a existência de relativa<br />

liberdade para a crítica, pois "sem liberdade da mais ampla a caricatura fenece<br />

como a gramínea, que tem sobre si um tijolo. Perde a clorofila. Descora" (Lobato,<br />

1959d, p.21). Esse é o motivo insinuado por Lobato como responsável pelo<br />

empobrecimento do gênero no primeiro momento da Proclamação da República.<br />

Os componentes necessários ao pleno florescimento da caricatura são, portanto:<br />

liberdade, modelos inspiradores, clima de instabilidade, gerado pela efervescência<br />

dos conflitos c transformações sociais, ânimo para interferir, alimentado<br />

pela crença na mudança, um público preparado política e esteticamente para<br />

a decodificação da mensagem c receptivo à proposta por ela expressa. Enfim, é<br />

preciso ter-se consciência das contradições e revolta diante delas, mas também o<br />

necessário distanciamento para torná-las objeto de riso.<br />

Todavia, é certo que, mesmo compondo imensa maioria, não existe apenas<br />

a caricatura satírica, depreciativa, rebaixadora, provocadora do riso de rejeição.<br />

E possível encontrarem-se caricaturas - raras, é verdade -, imbuídas de uma<br />

comicidade mais gratuita, apenas prazerosa, sem a amargura do olhar do satírico,<br />

provocadoras de um riso de acolhida e simpatia, mesmo que eventualmente se<br />

aproximando de uma visão paternalista, condescendente ou idealizadora do<br />

caricaturado. É o que se observa, por exemplo, na imagem do caipira projetada<br />

por Cornélio Pires, especialmente Joaquim Bentinho -, desleixado, subnutrido,<br />

doentio, mas extremamente esperto, vivo, malicioso; um perdedor, mas nem<br />

tanto.<br />

Juó Bananére, a persona satírica adotada por Alexandre Marcondes Machado,<br />

também passa fatalmente por caminho semelhante, pois não deixa de expressar<br />

a aceitação, com simpatia, do diferente, do novo, definido com exagero, pelos<br />

sentimentos e atitudes exacerbados, pela bizarria dos modos, próximos ao do<br />

bufão, cômico, farsesco; Juó é esperto, oportunista e simplório, mas por isso<br />

mesmo é simpático, humano.


No que se refere especificamente ao momento aqui estudado, o período<br />

compreendido entre 1900 e 1920, é também fundamental que se considerem as<br />

relações entre as artes e a "paisagem técnica" emergente, entre a literatura e o<br />

reclame, a literatura e as máquinas, a literatura e as artes visuais, mais ainda, entre<br />

a literatura e as revistas ilustradas, entre a literatura e a imprensa, pois<br />

Além de ampliar o número de interlocutores para o texto literário, a colaboração na<br />

imprensa se apresentava, no período, como a única trilha concreta em direção à profissionalização<br />

para os escritores. (Sussekind, 1987, p.74)<br />

No início do século há, nas revistas ilustradas, uma superposição da imagem<br />

ao texto, sendo possível pensar numa infiltração-contaminação do campo imagético,<br />

visual para o terreno da literatura e, nesse campo, nada mais oportuno que<br />

a concepção de personagens caricaturescas, tipificadas. Com isso, o leitor desenvolve<br />

uma "percepção distraída, fragmentária", desatenta, favorecendo uma<br />

espécie de estética do descarte, à qual perfeitamente se ajusta a crônica amena,<br />

os "contos-causos" breves, as sátiras superficiais, povoadas por personagens<br />

"quase figurinos de revista, propositadamente sem fundo, só-superfície" (Sussekind,<br />

1988, p.45-6). Assim, há um deslocamento da percepção em duas dimensões,<br />

linha e plano, das charges e fotos de jornais e revistas, para o texto literário.<br />

A literatura produzida no primeiro vintênio do século, inclusive a dos<br />

paulistas tratados nesse livro, deve interessar não apenas por seu caráter antecipador<br />

ou mediador com relação à literatura anterior ou posterior a ela, dando<br />

continuidade a traços do romantismo ou do realismo-naturalismo-parnasianismo,<br />

ou ainda antecipando o nacionalismo e as experimentações estéticas propagadas<br />

a partir de 1922, firmando uma visão mais consciente e crítica acerca do Brasil,<br />

que se encontraria com maior intensidade no regionalismo de 1930.<br />

Essa literatura de entre-tempos vale também por si mesma, como expressão<br />

do pensamento, da visão de mundo de uma época, fazendo o registro (crítico,<br />

irreverente ou documental) de costumes, da vida de seu tempo, além de favorecer<br />

e abrir espaço à experimentação e à novidade pela própria liberdade e descompromisso<br />

que caracterizam a criação satírica. E a caricatura, concepção grotesca,<br />

hiperbólica, mesmo que superficial, é extremamente adequada a esse propósito.<br />

Ao mesmo tempo em que flagra no calor do momento as tensões de uma sociedade,<br />

a construção caricaturesca exige um razoável distanciamento do objeto,<br />

reconstruído como um "outro", motivo de riso (de acolhida ou rejeição). E, nesse<br />

caso, não sendo apenas documento estrito da verdade histórica, constituindo-se<br />

também como criação que extrapola os limites da referência datada, circunstan-


cial, a caricatura talvez ganhe também em grandeza, máscara disforme que não<br />

encobre, mas revela nossas fraquezas humanas.<br />

Prescindível é agora explanar com muito vagar as especificidades dos autores<br />

aqui analisados, pois ao fim do capítulo destinado a cada um deles já foram<br />

retomadas as conclusões necessárias; apenas alguns elementos mais marcantes<br />

nessa produção serão sublinhados, a seguir.<br />

A configuração caricaturesca que delineia considerável parcela das personagens<br />

de Monteiro Lobato parece resultar de uma opção consciente, que atende ao<br />

objetivo de criar uma literatura mais próxima ao gosto popular, do leitor médio,<br />

que o escritor sistematicamente, nas mais distintas áreas de atuação (imprensa,<br />

atividade editorial, literatura) se empenha em conquistar e manter.<br />

Além disso, a caricatura em seus textos desempenha função corretiva, exemplar,<br />

associada à sátira como forma de assepsia moral e social "gênero de primeira<br />

necessidade, indispensável ao fígado da civilização" (Lobato, 1959d, p.7).<br />

A definição de tipos é também identificada por Lobato na correspondência<br />

com Godofredo Rangel como requisito estético fundamental ao texto literário,<br />

sugerindo a necessidade de fixação por parte do leitor da imagem das personagens<br />

em sua memória. Desse modo, observa-se que a caricatura cumpre distintos<br />

papéis na ficção do criador do Jeca Tatu: recurso satírico, recurso estético,<br />

concessão ao gosto do leitor, forma de revelação e conhecimento de facetas<br />

ignoradas ou negligenciadas da nação. Assim, a caricatura, recurso freqüente na<br />

literatura de Monteiro Lobato, é motivada por diversos fatores: o pendor plástico,<br />

visual, patente no conjunto da obra do escritor a disseminação da caricatura visual<br />

no Brasil, acompanhada de perto por ele a tendência à estilização, evidenciada<br />

na literatura contemporânea à publicação dos contos; a opção por uma literatura<br />

mais simples, informal e popular; a feição retórica, persuasiva, com que o escritor<br />

delineia o seu texto.<br />

Quanto ao tratamento do universo caipira efetivado por Cornélio Pires,<br />

evidencia-se uma oscilação entre o registro documental, a idealização e o anedótico.<br />

É certo que, ao oscilar no tratamento das personagens entre a caricatura<br />

risível c a estilização tipificadora, o autor favorece a disseminação de estereótipos.<br />

Se, por um lado, há justificadas reservas à superficialidade e ao esquematismo<br />

de personagens, situações e linguagem em sua literatura, por outro é inegável<br />

a importância do escritor ao contribuir para um maior conhecimento do caipira e<br />

de seu universo em contos-casos-anedotas e poemas-modas, talhados antes para<br />

a vivacidade do palco que para o sossego das bibliotecas.<br />

Nas sátiras de Juó Bananére sobressai o traço ridicularizador, visando à<br />

exposição e à punição, de modo antiexemplar dos excessos da vida social e


política, em mordazes caricaturas de políticos e figuras proeminentes na vida<br />

nacional e local. Também se constata, nas paródias da literatura acadêmica,<br />

convencional, tão apreciada na época, o "desvelamento de estruturas arcaicas de<br />

pensamento" apontado por Otto M. Carpeaux (1958). Trata-se, portanto, de uma<br />

persona satírica que faz caricaturas e paródias de valores quase que incondicionalmente<br />

aceitos ao tempo da publicação dos textos.<br />

A utilização da expressão lingüística e das marcas culturais do ítalo-paulista<br />

para satirizar é dúbia, pois, ao mesmo tempo que evidencia a aceitação e a<br />

absorção do diferente, do novo componente que se agrega à vida paulistana,<br />

revela a rejeição desse novo elemento, ao valer-se de suas peculiaridades culturais<br />

como recurso depreciativo.<br />

Juó apenas eventualmente fala do italiano, pois sua prioridade é tomar a<br />

expressão do italiano como recurso, a crônica do imigrante italiano não foi para<br />

Marcondes Machado o objetivo fundamental - como fizeram Voltolino ou<br />

Antônio de Alcântara Machado - mas foi utilizada como um meio para a sátira.<br />

Necessário é observar que o satírico (muito mais jornalista que literato), como<br />

Lobato, também faz significativas concessões ao leitor: ao valer-se de um gênero<br />

de expressão lingüística à margem, mas popular; ao expressar-se por meio de<br />

crônicas rápidas e simples; ao fazer sátiras claras, diretas, compondo um tipo de<br />

literatura muito apreciado pelo público; e utilizando-se de recursos bem típicos<br />

da comicidade presente no teatro popular (exageros, absurdos, patético etc). O<br />

resultado desse trabalho são textos muito interessantes como registro às avessas<br />

de um tempo, e também como expressão de uma concepção e de uma prática mais<br />

libertária e inovadora de literatura, que incorpora a experimentação com o<br />

hibridismo lingüístico e cultural (italiano-português-caipira) e pode ser vista<br />

como o nascedouro de toda uma literatura que traz as marcas da presença italiana<br />

em São Paulo.<br />

Para a compreensão de Madame Pommery é fundamental que se considere<br />

especialmente a persona satírica que narra, figura tão ou mais marcante que a<br />

personagem central; Hilário Tácito não é, entretanto, uma persona caricaturesca:<br />

não tem um delineamento grotesco, hiperbólico; aproxima-se mais da estilização,<br />

resultante de um processo de apropriação intertextual - é uma espécie de síntese<br />

que congrega características recorrentes nas personas de sátiras clássicas. A<br />

referência é Montaigne, mas também se agregam componentes picarescos e um<br />

tom machadiano.<br />

O perfil da persona se constrói num processo dialógico: confabulando com<br />

textos e autores clássicos da sátira, dialogando com um leitor indeterminado,<br />

difuso, desenvolvendo extensas e monótonas digressões, apenas aparentemente


desnecessárias. Hilário Tácito compõe um perfil indefinido, fluido, num verdadeiro<br />

diálogo de sombras, que admite a leitura desta "crônica verídica" como uma<br />

metassátira.<br />

Por outro lado, Pommery pode ser identificada como imagem, tão distorcida<br />

quanto verdadeira, da nova São Paulo, que se define proximamente aos anos 20<br />

- mutável, ágil, empreendedora - e certamente por isso se constrói por meio de<br />

antíteses e paradoxos, de aproximações inusitadas e risíveis, que elevam a<br />

imagem da prostituta, rebaixando figuras reverenciadas e valores estabelecidos.<br />

As modificações operadas na cidade podem ser reconhecidas no percurso de<br />

Pommery; isso justifica o caráter híbrido da narrativa, que oscila entre o romance<br />

e a crônica, entre a crônica e o registro memorialista, entre a sobriedade e o<br />

deboche.<br />

A expressividade dos autores e textos tratados neste livro, que têm em grande<br />

parte como sustentação o traçado caricaturesco, reside no fato de, independentemente<br />

de quaisquer limitações impostas por compromissos menores com a<br />

política de circunstância, terem sido capazes, percorrendo os caminhos da sátira e<br />

do humor, de detectar e expor, ora didaticamente, ora debochadamente, nossas<br />

peculiaridades, o ridículo das instituições, a fragilidade dos valores estabelecidos.<br />

Assim, com talento, criatividade e ousadia deram continuidade ao percurso do riso,<br />

que sempre fertiliza e enriquece a literatura, trilhando o caminho da resistência,<br />

jamais abandonado na nossa literatura, mesmo que eventualmente despovoado.


APÊNDICES


Capa de O Parafuso (21.3.1920). (O Secretário da Agricultura do Estado de São Paulo, Rodolfo Miranda, é o<br />

semeador. Os "grilos" são políticos paulistas.)<br />

FIGURA 14 - LIMA, H. História da caricatura no Brasil, v.3, p.l242.


SÁTIRA POLÍTICA<br />

1 AMOSTRA DE TEXTOS SATÍRICOS<br />

I<br />

DE MOACIR PIZA<br />

Mais nous ne dirons jamais assez<br />

d'injuries au desreglement de notre<br />

esprit. Montaigne. Essais.<br />

Se vierem contar-te que alguém diz coisas desagradaveis de ti, não procures<br />

desmentil-o, nem fazer a tua propria apologia; mas responde, tranquillamente:<br />

- Este homem não sabe que eu tenho muitos outros defeitos: muito mais<br />

haveria que falar de mim, se melhor me conhecesse.<br />

Acabava eu de lêr este conselho de Epicteto, quando me vieram referir que<br />

o sr. Julio Prestes, agachado atraz da Camara de Capivary, decidira anniquilar-me<br />

com aquelle pedaço de prosa immorlal.<br />

Li-o, e sorri. Li-o, porque a prosa era do sr. Julio Prestes, e eu não dispenso<br />

a leitura dos escriptos do sr. Julio Prestes; sorri, pela coincidencia de encontrar,<br />

tão depressa, a prova da razão de Epicteto...<br />

Realmente, o sr. Julio Prestes não me conhecia. Chamou-me, simplesmente,<br />

alma de esgoto, quando me poderia ter chamado collega illustre, ou coisa muito


peior. Eu, que o conheço, nunca seria capaz de qualifical-o, para o não fazer<br />

insufficientemente. Digo, apenas, que é o lcader do governo do sr. Washington<br />

Luis, e tenho dito tudo...<br />

Esta é, de facto, a qualidade que melhor o distingue, e extrema, das almas de<br />

esgoto. Faz-lhe suppôr uma candura tal de sentimentos c princípios, que a gente<br />

chega a suspeitar, albergada naquelle corpanzil de latagão magano, uma alminha<br />

de donzella!<br />

O sr. Júlio Prestes donzella!<br />

Foi, de certo, por isso, que o sr. Washington Luis sympathisou com elle. A<br />

virilidade pelluda dos antropopithecos tem, ás vezes, umas predilecções morbidas<br />

pela innocencia immaculada.<br />

Attracção dos contrastes...<br />

("A lavagem". In: Roupa suja: polêmica alegre.<br />

São Paulo: Editor A. F. de Moraes, 1923, p.29-31).<br />

O Sodalício<br />

Foi um solenne pagode<br />

A assembléa desse dia.<br />

Bocage a celebraria,<br />

Se fôra vivo, numa óde.<br />

Com justo motivo póde<br />

Regosijar-se o finado:<br />

Pois culto mais elevado<br />

Não teve o grande patrício<br />

Que o do illustre sodalício<br />

Conservando-se calado...<br />

Num paiz onde a eloquencia<br />

É soberana virtude<br />

E desaba como alude<br />

Na ultima sessão do Instituto Historico o dr.<br />

Alfredo de Toledo propoz que, em homenagem a<br />

Teixeira de Freitas, cujo centenario se commemorava,<br />

todas as pessoas presentes, conservando-se<br />

de pé, pensassem durante cinco minutos em silencio,<br />

na obra do grande jurisconsulto. A proposta<br />

foi unanimemente approvada.<br />

(Dos jornaes)


Sobre a misera assistencia,<br />

Exhibir tal continencia<br />

- Cinco minutos! - de facto,<br />

Não ha duvida que é um acto<br />

Maravilhoso, estupendo,<br />

Que só se acredita vendo,<br />

Como eu vi, estupefacto!...<br />

Certo haverá gente fôfa<br />

Que, troçando o autor da idéa,<br />

Critique a nobre assembléa<br />

E ria, com ar de môfa;<br />

Porém a opinião balôfa<br />

Da récua futil e ignara,<br />

Que tudo no mundo encara<br />

A sorrir com um riso estulto,<br />

Não póde offuscar o vulto<br />

De uma homenagem tão rara...<br />

Porque, enfim, esse mutismo<br />

- Digam embora o contrario -<br />

Seja ou não extraordinario,<br />

Não denota cretinismo;<br />

Por minha parte, até scismo<br />

Que foi um bello expediente,<br />

Com que o illustre presidente<br />

Quiz livrar os seus consocios<br />

Dos vãos conceitos beócios<br />

De algum discurso imminente.<br />

Que, entre os membros do Instituto,<br />

Ha talentos formidandos<br />

E que os sabios são aos bandos<br />

- É coisa que não discuto:<br />

Cá por mim, até reputo<br />

Em grande conta os taes sabios,<br />

Peritos nos astrolabios<br />

E mecánica dos mundos,<br />

Mas ainda mais profundos<br />

Quando não abrem os labios...<br />

Ha muita gente erudita<br />

Na austera communidade;<br />

Mais de uma celebridade


Conheço, que a felicita:<br />

Pois não é pequena dita<br />

- Entre outras muitas que, a medo,<br />

Aponta o publico a dedo -<br />

Ter á testa uma figura<br />

Com as barbas e a compostura,<br />

De um Alfredo de Toledo!...<br />

Poucos serão, além disto,<br />

Os congressos (não engrosso...)<br />

Que possuam, como o nosso,<br />

Um benedicto Calixto:<br />

A cujo lado registo<br />

Um Deusdedit Araujo,<br />

Padre-philosopho e cujo<br />

Talento e modos ufanos<br />

São o pasmo dos profanos<br />

E do vulgacho sabujo...<br />

E o Passalacqua? E a madura<br />

D. Maria Renotte,<br />

Que de taes sabios no lote<br />

Não faz, certo, má figura?...<br />

E aquelle de pelle escura,<br />

Conego Hygino chamado?<br />

E o Ernesto Goulart Penteado?<br />

E o Ludgero famoso,<br />

Que morreria de goso<br />

Se chegasse a deputado?...<br />

E o Oscar Marcondes? - Se cito<br />

Tantos nomes de respeito,<br />

Tem este todo o direito<br />

De aqui figurar inscripto. -<br />

Nem monsenhor Benedicto<br />

Com seus robustos talentos<br />

Tem tantos merecimentos<br />

Como os que elle em si presume<br />

Cada vez que deita a lume<br />

Os seus partos succulentos!<br />

O seu voto esclarecido<br />

Sobre incas e bandeirantes<br />

O Cantinho e o Altino Arantes


Botou de queixo cahido!<br />

O mais que tem produzido<br />

Sobre o chá, o queijo e o matte,<br />

Lhe constitue o remate<br />

De uma obra esplendida, incrível,<br />

Que o eleva, de facto, ao nivel<br />

Dos campeões do disparate.<br />

Ora bem: se realmente<br />

Ha no Instituto taes ssbios,<br />

Aquella inercia de labios<br />

Não deve pasmar a gente;<br />

Pois, embora ella apparente<br />

Uma tolice que espanta,<br />

Ha por ahi quem garanta<br />

- E eu affirmo, sem receio -<br />

Não foi por falta de meio,<br />

Nem por falta de garganta...<br />

Sim: qualquer dos portadores<br />

Daquellas frontes eleitas<br />

Sobre Teixeira de Freitas<br />

Podia dizer primores.<br />

Eu sei, alli, de oradores<br />

Tão versados nas sciencias<br />

Que um só fez dez conferencias<br />

Para provar aos confrades<br />

Que o celibato dos frades<br />

É de graves consequencias...<br />

De outro que Dias se chama<br />

Sei que esgotou mil recursos,<br />

Fazendo trinta discursos<br />

Para mostrar, como é fama,<br />

Que barro é o mesmo que lama;<br />

E que, dando-lhe na cuia<br />

Provar que, em lingua tapuia,<br />

Piracaia é peixe pôdre,<br />

Falou, mas cheio que um ôdre,<br />

Do Carvanal á Alleluia!<br />

Em summa: applaudo a altitude


Do inegualavel congresso,<br />

A cujo bom senso peço<br />

Que de systema não mude.<br />

Ponha-se logo um açude<br />

Á oratoria avacalhada:<br />

Pois seria idéa azada<br />

Que, em vez de dizer tolice,<br />

O Instituto persistisse<br />

Sempre de bocca fechada...<br />

MARRADAS<br />

I<br />

Não te offendas, Emilio, se na escura,<br />

Na torva estancia onde o teu corpo jaz,<br />

Tenta escoucear-te uma cavalgadura,<br />

Numa explosão de colera minaz.<br />

Tu, sonhador, alma gloriosa e pura,<br />

Na memoria das gentes viverás,<br />

Tu não foste de todo á sepultura!<br />

Não te offendas, Emilio; dorme em paz...<br />

Deixa-o marrar, na Camara ou na praça;<br />

Deixa ganir o excelso parvoeirão,<br />

Com mil esgares da figura baça.<br />

É natural, não causa admiração,<br />

Que, roendo-te uns vermes na carcassa,<br />

Outros te roam na reputação...<br />

(Vespeiro, p.3-10)<br />

(O vereador Joaquim Marra fez, na última<br />

sessão da Camara Municipal, um discurso insultuoso<br />

á memoria de Emilio de Menezes.)<br />

(Vespeiro, p.26)


PERIGO AMARELLO<br />

Tenho ouvido, varias vezes,<br />

Censurar, em verso e prosa,<br />

A lembrança luminosa<br />

De importarmos japoneses.<br />

Penso nisto, ha muitos meses,<br />

E chego a crêr insensata<br />

A opinião que desacata<br />

Tão opportuna medida,<br />

Pelo engenho concebida<br />

De D. Candido Batata.<br />

Confesso que não atino<br />

Com as razões de tal censura,<br />

De que tóca, por ventura,<br />

Bôa parte ao proprio Altino.<br />

Pois só mesmo algum cretino<br />

Podia achar imprudente<br />

A immigração de uma gente,<br />

Que, se a linguagem baralha,<br />

Comendo o arroz, deixa a palha,<br />

- Vantagem mais que evidente.<br />

Vantagem não despicienda,<br />

A qual, talvez, suavise<br />

As aperturas da crise,<br />

Dia a dia mais tremenda.<br />

Vantagem grande, estupenda,<br />

De benefícios a rôdo,<br />

E que, sendo um bello engôdo,<br />

Aproveita - dá na vista -<br />

A muito nóbre estadista,<br />

Talvez ao governo todo...<br />

A raça é feia... Não digo<br />

Que o não seja, nem discuto.<br />

Mas semelhante attributo<br />

Não oferece perigo.<br />

Feio é - el nuestro bueno amigo,<br />

A falta de braços obrigou o governo de S.<br />

Paulo a contractar com uma companhia nipponica<br />

o transporte, para o nosso Estado, de cincoenta mil<br />

japonezes.


Contador de patarata,<br />

El mui noble diplomata,<br />

Señor Leopoldo de Freitas;<br />

É feio o Altino ás direitas;<br />

Feio, o Candido Batata.<br />

Feio, feio, feio, feio,<br />

De infinita fealdade,<br />

É o Zé Brazil Piedade,<br />

Da "briosa" antigo esteio;<br />

Feio que causa receio,<br />

Mais feio do que um aborto,<br />

É o boticario Oscar Porto.<br />

Pasmo infunde, mette susto<br />

O Seabra (Demetrio Justo),<br />

Que, sobre ser feio, é torto.<br />

Se fealdade doesse,<br />

Em constante berraria<br />

Muita gente viveria,<br />

Se de chorar não morresse.<br />

O Gusmão (coitado desse!)<br />

Certo, poria o Senado<br />

Em tres tempos alagado,<br />

Fazendo com elle coro<br />

O Lins, num sentido choro<br />

De bezerro desmamado.<br />

Em pranto, o dia inteiro,<br />

Commovendo todo o mundo,<br />

Causariam dó profundo<br />

O Virgílio e o Conselheiro.<br />

Com o Káká por companheiro,<br />

Chorariam tanto e tanto,<br />

Que não era para espanto<br />

Vel-os a patria querida<br />

Afogar, perder a vida<br />

na enxurrada do seu pranto...<br />

O capitão... Que desdita,<br />

Rodolpho, seria a tua!<br />

Inundavas toda a rua,<br />

Desgraçando a gente afflicta.<br />

E, á falta de um paú de pita,


Em que escapasses, medroso,<br />

Ao diluvio pavoroso,<br />

Tu mesmo estarias fresco,<br />

Com o teu topete claunesco<br />

E o teu prestigio famoso...<br />

Melhor sorte não tivera<br />

O triste Mario Tavares,<br />

Cujos comicos esgares<br />

Lhe dão visos de megéra.<br />

Mais feio que elle não era<br />

A avó-torta de Rolando!<br />

Pois ninguem o excede quando<br />

Marca a heroica dentadura,<br />

Ou na palestra se apura,<br />

Perdigotos disparando.<br />

Também por bello não passa<br />

(Que é feio como quinhentos!)<br />

O illustre auctor dos REBENTOS<br />

De memoravel caraça,<br />

A elegancia, o gesto, a graça,<br />

Que elle imita de Petronio,<br />

Nem com a ajuda do demonio<br />

Corrigem a natureza,<br />

Ou minoram a rudeza<br />

Do seu todo de bolonio.<br />

Com suas rezas ao Demo,<br />

Do proprio Demo é o retrato<br />

O poetarrão Wencesgato,<br />

Ante cujos versos tremo.<br />

Pope, feio em tanto extremo,<br />

Que chegava a ser disforme,<br />

Ao ver-lhe o carão enorme,<br />

Um Adonis se creria.<br />

Quasimodo sorriria<br />

Do seu todo desconforme.<br />

Cara côr de rapadura,<br />

Ou de caboclo opilado,<br />

Está o Gomide arrolado<br />

Entre os de ruim catadura.<br />

Tem tal geito, tal figura<br />

227


SÁTIRA DE COSTUMES<br />

Que, tomado de improviso,<br />

Fica um homem indeciso<br />

Ante este grave problema:<br />

- Se é mais feio do que o Zema,<br />

Se mais feio que o Adalgiso.<br />

Nem todos (isto se entende<br />

Como cousa muito clara)<br />

Do Gabriel de Rezende.<br />

A belleza não depende<br />

Da vontade da pessôa.<br />

Quem feio nasceu, é átôa...<br />

Não ha geito, nem maneira:<br />

Feio fica a vida inteira,<br />

Tal qual o Zéca Lisbôa...<br />

Esta, a verdade. E, pois, creio<br />

Que, em bôa logica, é infame<br />

Que a gente se insurja e clame<br />

Contra um pôvo, por ser feio.<br />

A idéa a seu tempo veio,<br />

Que é tempo de ter juizo.<br />

Pois, segundo o que diviso,<br />

E mostram certos manatas,<br />

Onde tanto sobram patas<br />

De braços é que é preciso...<br />

DESASTRES...<br />

São coisas desagradaveis<br />

- Sobre isso ninguem duvida -<br />

Porém... são coisas da vida,<br />

E coisas inevitaveis.<br />

(Vespeiro, p.55-62)<br />

(No último grande baile, arrebentaram os botões<br />

de certa peça intima da "toilette" de uma<br />

senhorita. A peça cahiu no meio da sala, com<br />

desenxabimento geral dos circumstantes. - D'A<br />

Cigarra.


A gente que vae ás festas<br />

E se exhibe nos salões,<br />

Está sujeita a uma destas<br />

De arrebentar os botões...<br />

Que a moça não se apoquente:<br />

Coisas mais graves do que isto<br />

Por este mundo de Christo<br />

Succedem frequentemente.<br />

Haja vista - o caso, li-o<br />

Relatado nos jornaes -<br />

O que aconteceu no Rio,<br />

Nos ultimos carnavaes.<br />

A coisa, lá, foi tremenda,<br />

Pois, segundo se proclama,<br />

Appareceram na lama<br />

Quinhentas calças de renda!...<br />

E todinhas, todas ellas<br />

- Não se sabe de excepções -<br />

Eram calças de donzellas:<br />

Tinham perdido os botões...<br />

O CREDO<br />

(Vespeiro, p.53)<br />

Credo in unum Deum pairem omnpotentem,<br />

factorem coeli et terrae.<br />

Creio em Deus Padre, todo poderoso,<br />

E em seu filho - Jesus,<br />

Que nos livour das garras do Tinhoso,<br />

Morrendo numa cruz.<br />

Creio na Virgem-Mãe santificada<br />

E admiro São José,<br />

Exemplo da paciencia illimitada<br />

Dos homens que têm fé...<br />

Creio ainda no céu, creio no inferno,<br />

Onde, por nosso mal,


Pedro Botelho atiça o fogo eterno<br />

Da caldeira fatal:<br />

Dessa caldeira immensa em que elle frege,<br />

O Gabiso feroz,<br />

As almas dos atheus, da gente herége<br />

E siurda á nossa voz.<br />

Creio no papa, nos cardeaes, no clero<br />

E na sua missão.<br />

Creio que Deus é assim como um Cerbéro.<br />

Do mundo eterno espião.<br />

Creio na pacovice dos burgueses,<br />

Excelsos parvoeirões.<br />

Aos quaes a igreja arranca muitas vezes<br />

Os ultimos tostões...<br />

Creio que a ignorancia e a ingenuidade<br />

Têm vantagens de truz,<br />

Visto que a seára que a sciencia invade<br />

Nunca jamais produz...<br />

Creio nas leis da Santa Madre Igreja<br />

E na resurreição<br />

Da came... que, peccado embora seja,<br />

É sempre um petiscão...<br />

Que o diga o Santo Borgia, puritano<br />

Á Biblia tão fiel,<br />

Que chegou a mudar o Vaticano<br />

Num sagrado bordel.<br />

Creio que a pança cheia é uma delicia<br />

E a vida faz amar,<br />

Quando não custa mais do que a malícia,<br />

Que intruja o mundo alvar.<br />

Creio que a hypocrisia é uma belleza,<br />

Pois, se não fosse assim,<br />

Veria a padrecada, com certeza,<br />

Perdido o seu latim.<br />

Creio que muito vale a sacra astucia,<br />

Que os homens presos tem.<br />

Bemdita a estupidez e a santa sucia<br />

Louvada seja. Amen!<br />

(Vespeiro, p.152-4)


2 SÉRIE DE TEXTOS SOBRE "A GRIZIA PULITTICA"<br />

DO PRP, PUBLICADOS EM FEVEREIRO DE 1924,<br />

A GRIZIA PULITTICA<br />

N'O ESTADO DE S.PAULO<br />

As digraraçó du Mussolino di Macahé - Isto é un sofismico - Va'ta Piá'u<br />

Bôio - Quero asabê se istas digraraçó é Indiflnida e Indifinitivia<br />

SEGONDO CASO<br />

A Mussolino di Macaé fiz nu sabatto una digraraçó p'ru Curréu Baolisdano<br />

dizéno: - "Chi non fui, non é i non sará gandidato c'oa prizidenza da a<br />

Ripubliga"\<br />

Istu inveiz non tê importanza pur causa che illo podi non sê gandidato c'oa<br />

prizidenza ma podi sê prizidentimo.<br />

Sê gandidato, é una cósa i sê prizidentimo é otra cósa.<br />

Istu, na scienza da Logia si xame um "sofismico". Per inzemplo: o Soaros<br />

do Côto fiz una digraraçó chi é gandidato p'ra disputado, non é? Isso non quére<br />

dizê che illo vae sé disputado! Molto pelo gontrario, illo vai sê adirrotado! Otro<br />

inzemplo: o Luigi di Quiroiz dissi inda a Gamera Municipale, chi, apezar di tê si<br />

avaccagliato intráno p'ra xiapa du guvernimo, illo séno integido á di sê indipendenti<br />

c'oa pinió du PRP (Põi, raspa, põi), inveiz nó pur causa chi desdi u die che<br />

illo intrô p'ra xiapa du guvenimo illo non pregô maise né un alunzio inzima us<br />

poste di luiz inletrica.


Maise un inzemplo: tuttas genti anda dizéno chi u Totó Lacerdimo non tê<br />

talentimo, ma istu, non quére dizê che illo segia burro!<br />

Di adondi si concrué chi né tutto chi é luiz é ôra i né tutti chi inlumina é<br />

lamparina.<br />

O Mussolino di Macaé dizéno chi non é gandidato p'ra prizidentimo, non<br />

dissi chi, non sará prizidentimo.<br />

As tale digraraçó<br />

digraraçó du Curréu Baolisdano só una tapiaçó p'rus troxa ma io é chi non<br />

vô na onda pur causa chi giá fui invacinado trez veiz: gontra a bixighia, gontra a<br />

febrimarella i gontra as storia da garoxina.<br />

I tê maise, seu Mussolino! Quano a genti quére alugá uma gasa a genti péga<br />

un pidaço di papelo bê grandi, scrive assi: "lugase ista. Si trata na a Benha, xiaves<br />

nu Billezigno", i pindura bê na gianella da a frente i non inda a porta da a guzigna<br />

pur causa che sinó ninguê non inxerga. Vucê inveiz fiz as tale digraraçó i amandô<br />

impubricá nu Curreu Baolistano chi ningê lê. Io queriva chi vucê mandassi<br />

impubricá na "Sessó livria" du "Stá di San Baolo", ai si che io avia di creditá chi<br />

saria una dicraraçó indifinida i indifmitivia. Buttáno alunzio inda a porta da<br />

guzigna, seu Mussolino, vucê non aluga a gasa.<br />

Manhá tê maise.<br />

Juó Bananére<br />

Poete, barbiére i giurnaliste, moradore c'oa rua Oxinto Luigi n.0B.<br />

Arrigonheço a firma sopra coa tistimonia da Virdadi Pietro Gaporale, tabcllio<br />

provisóro di Macaé.<br />

(O Estado de S.Paulo, 12.2.1924, p.8)<br />

UNA PIQUENA CIRCUMFERENZA INZIMA<br />

DU MUSSOLINO DI MACAÉ<br />

TERCÊRO GAXO<br />

- Bondie sô Mussolino!<br />

- Bondie Bananére! O che manda?<br />

- Io sô dottore!? Io non mando nada! Chi manda aqui nista gapitania é u<br />

signore!<br />

- É modestia sô Bananére!<br />

- Intó io sô besta?! Intó io non tô veno!? U signore quizi sê segretario da<br />

polizia, e fui! Quisi sê Guvernatore da città, i fui! Quizi sê Guvernatore du Stá di


San Baolo, i fui! Quizi sê Storiadore, i fui! Aóra u signore stá quireno sê<br />

Prisidentimo da a Republiga i à di sê, i si um signore quizê sê Papa tambê à di sê,<br />

perché San Pietro non éra no importanti come u signore fui!!<br />

Chi ti vê oggi i che ti viu! Chigné chi á di dizê chi vucê gia fui barítono abarato<br />

in Batatalo, vucê che oggi ganta di gallo nu Brasile intêro, i ninguê ganta maise<br />

artu chi vucê?!<br />

- Você vai vê io gantá di gallo é nu die 17! Aí é chi vucê vai vê chigné um<br />

figlio di meu paio!<br />

- Intó non tê pirighio du signore aperdê as inleçó?<br />

- Che speranza! Giá tumê tuttas pruvidenza! U Valuá... vucê si alembra du<br />

padri Valuá?...<br />

- Uh! si mi alembro! Aquillo padri indisgraziato<br />

chi atraiu a patria na casió da guerre cos allamó?<br />

- Issu mesimo! U Valuá fui p' ra Tobaté con centos vinte surdado p' ra agaranti<br />

p'ru inlettorado a liberdadi di vutá, "in quem io quizé"! U Taliba Lionélo livó<br />

guatros covêro da Gonsolaçó p'ra rinforçá um pissoalo du cimitéro di Biragiú.<br />

- Si signore! Vucê é un bixo!<br />

-I tê maise só Bananére! Disposa da dirrota da Galligaçó io vó dá una brutta<br />

festa nu Pallazzo i u Totó Lacerdimo vai afazê un brutto disgurso.<br />

- Discurpe só dottore! Io credito tutto chi u signore mi cuntá! Ingulo tutto<br />

chi u signore quizé! Ingulo até um viaduttimo du xá, ma o disgurso du Totó<br />

Lacerdimo, isso io non ingulo! Si quizé podi manda tirá midida di mim, mandi<br />

afazê u gaxó i xame u Taliba Lionélo, ma io non ingulo u disgurso!!!<br />

I fui simbóra!<br />

Maná tê maise.<br />

Juó Bananére<br />

Poéte, barbiére i giurnaliste, moradore c'oa rua Oxinto Luigi n. OB.<br />

Arrigonheço a firma sopra coa tistimonia da virdadi Pietro Gaporale, tabellio<br />

provisóro di Macaé.<br />

(O Estado de S.Paulo, 13.2.1924)<br />

AS GARANTIA DU PROSSIMO PRETO - A CIRCULARA DU XICO RIBÉRO<br />

GUARTO GAXO<br />

O dottore Xico Ribêro, inlustro segretario de Polizia du onrado guvernimo<br />

di sua incellenza u dottore Oxinton Stradêro, eis futuro presidentimo da a


Ripubliga, amandô onti una circulara p'rus indeligatu du intcriore ingoncibida<br />

nas seguinte parola:<br />

"Signore indiligato di polizia.<br />

Di ordia du onrado dottore presidentimo du Stá, acumunico p'ru signore chi<br />

você devi si disimpenhá u maise pussiver p'ra insigurá a libertá das prossimas<br />

inleçó. Si argunos alementes disordiére da oposiçó quizé perturbá as ordie du<br />

preto vuceis devi agi, porê com moita gautela!! Vuceis devi mandá amatá primiére<br />

p'ra adisposa interrá. Non dexi inteira ninguê vivo, sinó podi argun incominciá<br />

di gridá im baxo da a terra i disposa a opposiçó chi é molto linguaruda é gapaze<br />

di dizê chi fui a genti chi mandô amatá.<br />

U onrado prisidentimo du Stá feiz speciali guestó di invitá o tutto transimo<br />

quarquére dirramamento di sangue. Si agazo segia priciso amatá arguê, é migliore<br />

manda torce u piscoço! Ma si istu non fô inpussive, intó mandi gortá u piscoço i<br />

tampá con cera p'ra invitá dirramamento di sangue.<br />

Nista guestó di derramamento di sangue u onrado presidente tê una pinió<br />

'indifinida e indifinitiva.'"<br />

U onrado prisidentimo quére chi segia rispetado nas prossimas inleçó aquillo<br />

celebro versigno da sua lavria, impubrigato na "Storia das Gapitania":<br />

Io só gabre pirighioso<br />

Quano pego a pirighiá!...<br />

Amato sê fazê sangue, morena!<br />

Ingulo sê mastigá!!...<br />

Nisto sintido giá sigui instruçós tambê p'ru Taliba Lionelo.<br />

U onrado prisidentimo du Stá tambê tê una pinió "indifinide i indifinitiva"<br />

sobri u talento du Totô Lacerdimo. Si apparecê aí arguê chi aduvide du arifirido<br />

tatentimo non sisqueça du versigno da "Storia das Gapitania".<br />

U nivelo intelettuale du Totó é molto maise arto chi u nivelo du Damanduateí<br />

in dies di inxurrada!<br />

Saluti e figlio masculo!<br />

"Impregato du Oxinto Stradêro con treiz conto; pur meze, sê gama i mesa i<br />

né roba lavada, maise con diretto a ottimobile i con diretto di insisti as nauguraçó<br />

das Strada di rodagia."<br />

Manhá tê maise!<br />

Poéte, barbiére i giurnaliste, moradore c'oa rua Oxinto Luigi n. OB.<br />

Juó Bananére


Arrigonheço a firma sopra coa tistimonia da virdadi Pietro Gaporale, tabellio<br />

provisóro di Macaé.<br />

(O Estado de S.Paulo, 14.2.1924)<br />

IN DIFESA DI SUA INCELLENZIA - CHE INGRATTIDÓ DU POVO BAOLISTA<br />

QUINTO GAXO<br />

Us nimighio du onrado prisidentimo du Stá, signore dottore Mussolino di<br />

Macaé ándano dizéno che illo non fiz nisciuno binifizio p'ru Stá duranti a sua<br />

indigestó nu guvernimo. Mintira! Intrigues de opposiçó! Invegia distu pissoalo<br />

chi non tê u talentimo p'ra burro di sua Incellenza. Ma aqui stá u Bananére p'ra<br />

difendê u onrado guvernimo di Mussolino di Macaé numaro I. Iscuita só come é<br />

che si tampa a bocca da opposiçó!...<br />

Quanto é chi costava un sacco di fijó antes du guvernimo di Mussolino di<br />

Macaé? Costava quindicis milaréis. Quanto gosta oggi? Centos vinte milaréis.<br />

Un sacco di assucaro chi primièro costava trintas mila reis oggi costa centos mila<br />

reis. Un ghilo di arroso chi primièro costava duzentó oggi costa dieci testó. As<br />

banana chi costava diece uno testó coste oggi testó gada una. Tuttos prodotto<br />

anazionalo oggi stó maise avalorizado. I perche? Chi fui che fiz estu milagro?<br />

Fui illo! Fui o dottore Mussolino di Macaé.<br />

Fui u caso chi as Strada di ferro stávano quirêno cumpra maise vagô p'ra inxê<br />

u mergato di mergatoria i dismoralizá us precio. Intó u dottore Mussolino fico<br />

safato, pigô u dignêro da a Sorocabana i amandô afazê stradaza di rodagia; non<br />

dexô as Strada de ferro particolare afazê imprestimo i pronto! Tutto subi di precio<br />

chi fui una billeza! A genti chi aprantava dieci sacco di fijó pranta oggi uno solo, i<br />

gagna a mesima cósa. É virdade chi a vida oggi stá moita gára i a genti tê de prantá<br />

vintes sacco p'rá podê avivê, ma si a vita stá gara a corpa non é di sua Incellenza!<br />

A corpa é de guérre c'oa Orópa!<br />

Antigamcnti a genti tenia un nigozio in giundiais, per inzempro! Teria de<br />

tumá u bondi, i na staçó, spera u trenhes, inbargá, livava un brutto tempo pra xigá<br />

lá, disposa tenia de aspettá u trenhes di novamente ecc, ecc. i ainda apagava dieci<br />

mila reis uno apassagio di seconda ida i vorta. Oggi inveiz nó! Oggi é una cangia!<br />

A genti xame uno attomobile, apaga dois gonto di réis, vai p'ra Giundiais i vorta<br />

i u trenhes ainda né xigô na staçó!<br />

Non tivessi as Strada di rodagia chi u onrado guvernimo du dottore Mussolino<br />

mandô afazê i una óva chi a genti p'ra Giundiais di automóver!<br />

Antigamente chi é chi rappresentava u guvernimo di San Baolo nu Rio du<br />

Gianére? Chi era u "lidere"? Era u Arvo di Garvaglio, un troxa!


U dottore Mussolino chi só gosta di genti di talentimo come illo, mandô<br />

simbóra u Arvo i vai buttá nu lugáro delli u Totó Lacerdimo chi é un bixo p'ra<br />

afazê un disgorso!! Quano aparla u Totó até us paralilepipe das rua si alivanta i<br />

grida: - Ai migno ermo! Mostra p'ra oposiçó chi vucê é un batuta!!!<br />

I aóra queri vê chi é gapaze di arripiti chi o onrado guvernimo di sua<br />

Incellanzia non prestô! Quale é u ingrato chi tê curagio di dizê chi u Mussolino<br />

di Macaé non é un bixo! Un uómo chi fui segretario prefetto, prisidentimo du Stá<br />

e chi desdi chi screveu a "Storia das Gapitania" apassó a sê un uómo preistórico!<br />

Io si fossi u Mussolino adianti di tamagna ingratidó vurtava p'ra Macaé!!!<br />

Manhá tê maise.<br />

Juó Bananére<br />

Poéte, barbiére i giurnaliste, moradore c'oa rua Oxinto Luigi n. OB.<br />

Arrigonhcço a firma sopra coa tistimonia da virdadi Pietro Gaporale, tabellio<br />

provisóro di Macaé.<br />

{O Estado de S.Paulo, 15.2.1924, p.8)<br />

IO TAMBÊ VIRÊ GAZAKA - U PARTIDO DU GUVERNIMO É U MIGLIORE -<br />

TUTTOS MUNO VIRA A GAZAKA PERCHE CHE IO TAMBÊ<br />

NON POSSO VIRÁ - QUERO SÊ BURRO CO GUVERNIMO<br />

I NON QUERO TÊ TALENTIMO C'OA OPOSIÇÔ!<br />

SESTIMO GAXO<br />

Venho oggi acummunicá p'rus mignos amigos che io tambê virê gazaka! Istu<br />

nigozio di stá na oposiçó no vali nada! Non vê u Luigi di Quirois che virô a gazaka<br />

i giá vai sê disputado federalo giunto co guvernimo? I u Totó Lacerdimo intó chi<br />

era partidario do Arvo i fui só virá a gazaka giá gagnó un imprego di senadore<br />

federalo?!<br />

U dono dus imprego é u Guvernimo, u dono dos aramo du Tisôro é u Guvernimo,<br />

u dono da a gadeia é u Guvernimo e u dono du Guvernimo é u Mussolino, intó, io<br />

chi non sô di ferro, mandê a oposiçó pranta batata e aóra sô também du partido du<br />

Mussolino! Evviva u Mussolino di Macaé! Cô Guvernimo a gente tê aramí, imprego<br />

pubrico, passi di bondi, tutti di meagára i podi quibrá a gabeza da oposiçó, podi sê<br />

ladró di galligna, podi sê burro, sim virgogna, tutto! i non vai p'ra gadeia!!<br />

A genti c'oa oposiçó apanha, perdi a inleçó i ainda inzima di tutto vai p'ra<br />

gadeia! Co Guvernimo inveiz nó! Si un posicionista quére avutá contra agente é só<br />

axamá u Xico Ribêro i dizê: — Xico! prenda istu soggettigno na a gadeia!... i pronto!


Io giá sê chi a oposiçó vai mi chamá di burro, ma non s'importo! Vô sê burro<br />

giunto cô Totó Lacerdimo, giunto co Giulio Presta, co Fretas Valle, vô se<br />

avaccalhato giunto co Luigi di Queirois i vô sê cangacêro giunto co Taliba<br />

Lionelo man non ê di sê maise posicionista!<br />

Quéro sê burro cô guvernimo, i non quero sê un talentimo na oposiçó!<br />

Io dicraro aqui pubricamente chi ingulo tutto chi dissi gontra o dottore<br />

Mussolino!... Chi fui chi dissi che illo nascê in Macaé?! Che nascê in Macaé u<br />

che! Sua Incellenza nascê proprio nu Braiz i fui inrigistrado inda a igreja du o<br />

Billezigno i chi inrigistrô elli fui un tio du Dino Bueno xamado padri Tobia. Io<br />

fui testimonia distus fatto! Tambê istive lá u padri Valuá-Galabaro ecc, ecc.<br />

Aóra que io só du Guvernimo io vô afazê una brutta cavaçó:<br />

- Comme u dottore Mussolino non quére maise sê Prisidentimo da a Republiga<br />

io vô pidi p'ra illo cavá isto imprego p'ra mim!<br />

Manhá tê maise.<br />

Juó Bananére<br />

Poéte, barbiére i giurnaliste, moradore c'oa rua Oxinto Luigi n. OB.<br />

Arrigonheço a firma sopra coa tistimonia da virdadi Pietro Gaporale, tabellio<br />

provisóro di Macaé.<br />

(O Estado de S.Paulo, 16.2.1924, p.8)<br />

OGGI CHI NOIS VAMO VÊ CHI É CHI TÊ GARAFA VASIA P'RA VENDÊ - NU<br />

ABAIX'O PIQUES TUTTOS MUNDO VOTA C'OA XIAPA DU GUVERNIMO - IO<br />

GOSTO MOLTO DI SUA INCELLENZA - NOIS DUGUVERNIMO<br />

VAMOS AFAZÊ UN FREGIO OGGI<br />

SETTIMO GAXO<br />

É oggi chi nois vamo vê chi é chi tê garafa vasia p'ra vendê! Chi stá con nois<br />

du guvernimo stá, chi non stá, va nu Rodovaglio tirá as midida! Axo bó tratá<br />

tambê di cavá u gamignó.<br />

Nu Abaix'o Piques, dove stó'io u xefe da Gomissó Direttora, chi non vota<br />

c'oa xiapa du guvernimo vae p'ra gadeia.<br />

Sua Incellenza quére i tê di sê! Io tambê sô assi! Con nois du guvernimo é<br />

asi! Pon, pon! quegio i marmelada!...<br />

Si come as cosa stó meio pretta io giá inriquisitê un batagliô de a forza publiga<br />

p'ra agaranti a liberdadi di vóto nu Abaix'o Piques. Sua Incellenza quire chi tuttos<br />

muno possa avuta livrimenti na xiapa du guvernimo!


Oggi, nois du guvernimo stamos tambê admittindo tuttos funzionáro publigo<br />

chi stavo queréno avotá c'oa opposiçó. Chi non vóta c'oa genti non é amigo da<br />

a genti i chi non é amigo da a genti é nimigo da a genti i chi é nimigo da a genti é<br />

nimigo du presidenti e chi é nimigo du Prisidenti é nimigo du guvernino e chi é nimigo<br />

du guvernimo non podi sê impregato du guvernimo! É lógimo... i pur istu amutive<br />

vae p'ro oglio da a rua.<br />

Nois du guvernimo non queremos sabê di voto segreto! Tê di vutá na a frente<br />

di tuttos munno p'ra non atraí a genti.<br />

Sô ordias du xefe! Chi manda aqui nista gapitania é u dottore Mussolino!<br />

Io tambê mando un pochigno, maise é só lá nu Abaix'o Piques.<br />

Nois du guvernimo tambê vamos mandá una purçó di surdado segreto prigá<br />

u pau nu pissoalo chi andaro dizéno chi sua Incellenza nascê in Macaé. Io non vô<br />

apanhá tambê pur causa che io giá inguli tutto chi dissi contra Sua Incelleza! I se<br />

illo quizé io ingulo tutto otraveiz.<br />

Io gosto molto du dottore Mussolino pur causa che illo é un uómo grandi,<br />

bunito, barbadigno, valenti e xiroso.<br />

Manhá té maise una ganginha!<br />

Juó Bananére<br />

Poéte, barbiére i giurnaliste, moradore c'oa rua Oxinto Luigi n. OB.<br />

Arrigonheço a firma sopra coa tistimonia da virdadi Pietro Gaporale, tabellio<br />

provisóro di Macaé.<br />

(O Estado de S.Paulo, 17.2.1924, p.12)<br />

A GANGIGNACHE IO PROMETTI - IO DIVIRÕ A GAZAKA<br />

OTRAVEIS - U GUVERNIMO LIVÔ NA A GABEZA, 0 MUSSOLINO<br />

TAMBÊ E O VALUÁ TAMBÊ - SÔ INTRÔ U TOTÔ PUR CAUSA CHI<br />

TÊ TALLENTIMO - MANHÁ NON TÊ MAISE<br />

Conforme anuticiê altrodie io virê a gazaka gontra u pissoalo da colligaçó<br />

pur causa chi du lado duguvernimo a genti stava mais agarantido; oggi inveiz<br />

tegno de acumunicá chi disvirê a gazaka de novo! Io sô chi né u Totó! Viro i<br />

disviro a gazaka come chi mangia u pidaço di pon.<br />

Io virê a gazaka co guvernimo tambê pur causa che io pinsava chi u<br />

guvernimo iva gagná as inleçó, inveiz u guvernimo livô mesimo nu arto da a<br />

gabeza!...


U pissoalo da colligaçó intró tuttos inveiz chi u guvernimo tive seis agandidato<br />

dirrotado. Dista veiz u Mussolino prendeu chi né tutto chi é luiz é óro i né<br />

tutto chi inlumina é lamparina!<br />

Se stava io un Prisidentimo, i si levassi un gontravapore come u Mussolino,<br />

giuro p'ra arma du migno avó chi apidia indimissó mediatamente! Si aóra che<br />

illo é Prisidentimo giá stá avaccagliado dista maniéra guano illo asai da a<br />

prisidenza pricisa a genti butta a mó nu narizi quano apassá aperto delle. Illo non<br />

pedi adimissó du guvernimo di medo di non cavá un passi i tê di vurtá di tercêra<br />

crassia p'ra Macaé... Io uvi acunta tambê chi u Valuá vai livá nu certo da a gabeza!<br />

Uh! che bó! Se illo fô indigolato io vô apindurá a gabeza dilli bê nu arto du mastro<br />

du Parana! I vô mandá a banda di muziga tuccá u inno allemó.<br />

Du pissoalo du guvernimo só intró u Totó pur causa che illo si, tê valore p'ra<br />

burro i talentimo intó ne si parla! É o che si podi adizê un gamarada podri di<br />

talentimo! É un talentimo "indifinido i indifinitivo".<br />

San Baolo con una pareglia come u Totó co Margolino na gamara afederala<br />

é gapaze di acunduzi u gamignó du guvernimo come ningué!<br />

Con istus dois, o nivelo intelletuale da arripresentaçó paulista attingi un<br />

nivello intellectuale di sua Incelleza Mussolino Macaé numaro 1.<br />

Quano u Mussolino vutá p'ra Macaé io vô na staçó acumpanhá elli i vô xurá<br />

p'ra burro! Quano u trenhes aparti io vô dizê p'ra elli assi: - Dexi stá giacaré! a<br />

lagôa à di seccá i vucê á di sê prisidentimo da a Republiga una óva!...<br />

Manhá non tê maise. Cabô!<br />

Juó Bananére.<br />

Poéte, barbiére i giurnaliste, moradore c'oa rua Oxinto Luigi n. OB.<br />

Arrigonhcço a firma sopra coa tistimonia da virdadi Pietro Gaporale, tabellio<br />

provisóro di Macaé.<br />

(O Estado de S.Paulo, 20.2.1924, p.10)


3 O ARQUITETO ALEXANDRE RIBEIRO<br />

MARCONDES MACHADO EM ARARAQUARA<br />

O registro da presença de Alexandre Ribeiro em Araraquara diz respeito<br />

especialmente à sua atividade como arquiteto.<br />

Alexandre era primo e cunhado de Trajano Machado (José Trajano Marcondes<br />

Machado). Trajano casou-se com uma prima, que era irmã do arquiteto; sendo<br />

ele órfão de pai, é possível supor que a família numerosa tenha vindo para<br />

Araraquara viver sob os cuidados do casal. Alexandre Ribeiro viveu parte de sua<br />

infância nessa cidade (Melo, 1954, p.327-8).<br />

Trajano era advogado e, pelo menos desde os 25 anos de idade, atuou em<br />

Araraquara, aparecendo em processo-crime como advogado no ano de 1905.<br />

Viveu no local até 1926, tendo se retirado por pressão do grupo político que deteve<br />

o poder desde 1908. Atuara como advogado desse grupo (dos filhos do coronel<br />

Antônio Joaquim de Carvalho, morto em 1897) em que a liderança foi exercida<br />

por Tito de Carvalho, Dario de Carvalho e depois Plínio de Carvalho, com o qual<br />

Trajano se incompatibilizou em 1924, depois de ter sido um componente importante<br />

do PRP local.<br />

Os projetos e desenhos produzidos por Alexandre Machado em Araraquara<br />

datam de 1918 e 1922; são, portanto, da fase de prestígio de Trajano na cidade,<br />

o que pode permitir supor que seria por instância, por pedido seu, que o jovem<br />

recém-formado pela Escola Politécnica teria atuado na arquitetura local. Os<br />

desenhos e projetos estão todos datados de São Paulo, mas alguns, como o da<br />

remodelação do Jardim da Matriz (2.4.1918), contêm detalhes que indicam um


contato direto com o local (detalhes que foram concretizados e podem ser constatados<br />

ainda hoje, em 1995).<br />

Os projetos encontrados nos arquivos da Prefeitura Municipal de Araraquara,<br />

que trazem a assinatura de Alexandre Machado, são os seguintes:<br />

• Projeto para o novo jardim da Praça da Matriz (São Paulo, 2.4.1918, assinado<br />

Alexandre Machado, engenheiro civil).<br />

• Escola Pública de Rincão (São Paulo, 9.10.1918, assinado por Alexandre<br />

Machado, engenheiro civil).<br />

• Projeto para o Clube Araraquarense e jardim (São Paulo, lº.l. 1919).<br />

• Projeto para a Escola Profissional de Araraquara (Escola normal de artes e<br />

ofícios) (São Paulo, 5.4.1921). É o projeto da parte velha da atual Escola de<br />

Farmácia e Odontologia.<br />

• Projeto para o Stadium Municipal (arquibancadas) (São Paulo, 3.11.1921).<br />

• Projeto para o Stadium Municipal de Araraquara - campo de futebol, bosque,<br />

duas quadras de tênis e espaço para natação (3.11.1921).<br />

• Projeto para Casa operária Tipo A, feito para a Câmara Municipal de Araraquara<br />

(São Paulo, 12.1.1922).<br />

• O mesmo projeto, só que colorido, em papelão branco ondulado.<br />

• Projeto para o Internato do Araraquara College (São Paulo, 29.8.1922, assinado<br />

por Sampaio & Machado, Escritório técnico dos engenheiros Octávio F.<br />

Sampaio e Alexandre R. M. Machado). O projeto tem a planta baixa com os<br />

cômodos do pavimento térreo e do sobrado (Rua São Bento, entre avenidas<br />

Prudente de Moraes e Bandeirantes).<br />

• Projeto para o Internato do Araraquara College (São Paulo, 2.9.1922), fachada<br />

principal.<br />

ESCRITOS DE JUÓ BANANÉRE EM ARARAQUARA<br />

Não há qualquer registro de escritos de Juó Bananére na imprensa local. Isso<br />

não significa que nada tenha publicado; nada foi encontrado nas coleções mais<br />

significativas que são as do O Araraquarense (entre 1912 e 1917), Jornal de<br />

Notícias (de 1906 a 1910) e Gazeta do Povo (de 1925 a 1927). Há outros jornais<br />

com coleções menores; o mais importante deles foi O Popular, que atuou como<br />

porta-voz do grupo que esteve no poder até 1930. Esse jornal teve suas oficinas<br />

empasteladas em outubro de 1930 pelos adversários do grupo que detinha o poder.<br />

O jornal funcionava numa oficina na Avenida Brasil, largo da Matriz, e junto com<br />

as máquinas foi também queimada no Largo a coleção dos números publicados.


FIGURA 15 - LIMA, H. História da caricatura no Brasil, v.1, p.199.


Livros e Teses<br />

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SOBRE O LIVRO<br />

Coleção: Prismas<br />

Formato: 16 x 23 cm<br />

Mancha: 29 x 47 paicas<br />

Tipologia: Times 11/14<br />

Papel: Offset 75 g/m 2 (miolo)<br />

Cartão Super 6 250 g/m 2 (capa)<br />

Matriz: Laserfilm<br />

Impressão: Cromoset<br />

Tiragem: 1.000<br />

1ª edição: 1996<br />

EQUIPE DE REALIZAÇÃO<br />

Produção Gráfica<br />

Edson Francisco dos Santos (Assistente)<br />

Edição de Texto<br />

Fábio Gonçalves (Assistente Editorial)<br />

Nelson Luis Barbosa (Preparação de Original)<br />

Vera Luciana M. R. da Silva e<br />

Ada Santos Seles (Revisão)<br />

Editoração Eletrônica<br />

Lourdes Guacira da Silva Simonelli (Supervisão)<br />

José Vicente Pimenta (Edição de Imagens)<br />

Edmilson Gonçalves (Diagramação)<br />

Projeto Visual<br />

Lourdes Guacira da Silva Simonelli


"Neste livro analiso a composição<br />

de caricaturas na literatura de escritores<br />

paulistas cuja produção mais significativa foi<br />

empreendida entre 1900 e 1920 ... nada mais<br />

propício à estilização e à necessária rapidez<br />

exigida pelos novos tempos que a caricatura,<br />

forma sintética e incisiva, persuasiva,<br />

exemplar de compor personagens."

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