guimarães rosa - Academia Mineira de Letras
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REVISTA DA<br />
ACADEMIA<br />
MINEIRA<br />
DE LETRAS<br />
ANO 85º - VOLUME XLIX - JULHO, AGOSTO, SETEMBRO - 2008
ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Fundada em 25 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1909<br />
Rua da Bahia, 1466 – Telefax (OXX31) 3222-5764<br />
www.aca<strong>de</strong>miamineira<strong>de</strong>letras.org.br<br />
atendimento@aca<strong>de</strong>miamineira<strong>de</strong>letras.org.br<br />
CEP 30160-011 - Belo Horizonte-MG<br />
Presi<strong>de</strong>nte: Murilo Badaró<br />
1° Vice-presi<strong>de</strong>nte: Miguel Augusto<br />
Gonçalves <strong>de</strong> Souza<br />
2° Vice-presi<strong>de</strong>nte: Orlando Vaz<br />
Secretário Honorário: Oiliam José<br />
DIRETORIA AML<br />
Secretário-Geral: Aloísio Garcia<br />
1° Secretário: Fábio Doyle<br />
2° Secretário: Elizabeth Rennó<br />
Tesoureiro: Márcio Garcia Vilela<br />
1° Tesoureiro: José Henrique Santos<br />
2° Tesoureiro: Bonifácio Andrada<br />
REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Publicação trimestral<br />
Diretor: Murilo Badaró<br />
Conselho Editorial: Aluísio Pimenta, Antenor Pimenta e Eduardo Almeida Reis.<br />
Revisão: Pedro Sérgio Lozar<br />
Digitação: Marília Moura Guilherme<br />
Capa: Liu Lopes<br />
Diagramação e impressão: O Lutador<br />
Assessoria <strong>de</strong> Divulgação: Petrônio Souza Gonçalves<br />
Ficha Catalográfica<br />
Revista da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> – Ano 85° – volume XLVII<br />
Revista da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>/<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> / V. XLVIII/ 2008<br />
Belo Horizonte: <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, 2008.<br />
julho/agosto/setembro <strong>de</strong> 2008.<br />
Fundada em 1922<br />
l. Literatura – Periódico. 2. Obras Literárias l. <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong><br />
ISSN 1982-6680
ÍNDICE<br />
Apresentação ....................................................................................................... 7<br />
GUIMARÃES ROSA<br />
Cícero Sandroni .................................................................................................. 9<br />
JOÃO GUIMARÃES ROSA, MEU PAI<br />
Vilma Guimarães Rosa ..................................................................................... 13<br />
OS JAGUNÇOS E O RIO DO CHICO NO GRANDE SERTÃO: VEREDAS<br />
Letícia Malard ................................................................................................... 35<br />
CORPO DE BAILE: DE MIGUILIM A MIGUEL<br />
Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães .......................................................................... 49<br />
A INQUIETANTE ESTRANHEZA EM A TERCEIRA MARGEM<br />
DO RIO<br />
Marco Aurélio Baggio ...................................................................................... 65<br />
MIGUILIM: UMA OUTRA EPOPÉIA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />
Alaor Barbosa ................................................................................................... 75<br />
GRANDE SERTÃO: VEREDAS<br />
Antônio Olinto ................................................................................................... 99<br />
POR QUE GUIMARÃES ROSA?<br />
Fábio Lucas ..................................................................................................... 105<br />
AS RAÍZES MINEIRAS DE GUIMARÃES ROSA<br />
Guimarães Rosa .............................................................................................. 111<br />
A MULHER GEOMÉTRICA – UMA INCURSÃO OUSADA<br />
NO TEXTO DE JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />
Onofre <strong>de</strong> Freitas ............................................................................................ 113
GUIMARÃES ROSA: O SERTÃO E O HOMEM<br />
Luiz Au<strong>de</strong>bert Delage Filho................................................................................ 9<br />
Perfil acadêmico – HUMOR INTELIGENTE E CRÍTICO<br />
NA DOSE CERTA<br />
Beatriz Teixeira <strong>de</strong> Salles ............................................................................... 127<br />
PERMANÊNCIA DE CECÍLIA<br />
Pe. Paschoal Rangel ....................................................................................... 133<br />
MINAS LIBERTÁRIA<br />
Patrus Ananias ................................................................................................ 153<br />
Perfil sentimental – PEDRO PAULO MOREIRA, UM MERCADOR<br />
DA CULTURA<br />
Um tributo <strong>de</strong> seus sobrinhos José Maria e<br />
Pedro Rogério Couto Moreira........................................................................ 157<br />
VITORINO NEMÉSIO, POETA EM BELO HORIZONTE<br />
ALGUMAS NOTAS PESSOAIS E IMPESSOAIS<br />
Heitor Martins ................................................................................................. 161<br />
Discurso acadêmico – TIJUCO - LENDAS E TRADIÇÕES<br />
Edgard Matta Machado .................................................................................. 169<br />
Teatro – ALBEE: HISTÓRIA DO ZOOLÓGICO<br />
Jota Dangelo ................................................................................................... 197<br />
Cinema – GUIMARÃES ROSA E O CINEMA<br />
Paulo Augusto Gomes ..................................................................................... 203<br />
Música – MÁRIO DE ANDRADE E JACQUES MARITAIN<br />
Paulo Sérgio Malheiros dos Santos ............................................................... 209<br />
Artes Plásticas – SÉRGIO TELLES - UM CLÁSSICO<br />
Carlos Perktold ............................................................................................... 221
BRACHER, A ARTE E OS ENIGMAS ENTRE O HOMEM<br />
E O ARTISTA<br />
Mauro Werkema .............................................................................................. 225<br />
A SANTIDADE NOS CAMINHOS DE MINAS<br />
José Luís Lira .................................................................................................. 231<br />
ORAÇÃO DA NOITE<br />
Pe. João Batista Megale ................................................................................. 241<br />
ESCREVER UM POEMA<br />
Petrônio Souza Gonçalves .............................................................................. 245<br />
BIRIBIRI<br />
Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Dias Reis ........................................................................... 247<br />
SÍLVIA RUBIÃO: A CONTIDA LINGUAGEM DA EMOÇÃO<br />
Fábio Lucas ..................................................................................................... 249
APRESENTAÇÃO<br />
Esta nova edição da Revista da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> é <strong>de</strong>dicada<br />
às comemorações do centenário <strong>de</strong> nascimento do escritor Guimarães Rosa.<br />
Neste volume estão publicados os textos das principais palestras<br />
proferidas durante a semana comemorativa do evento, seguidas <strong>de</strong> intensos e<br />
interessantes <strong>de</strong>bates que contaram com a participação <strong>de</strong> conferencistas <strong>de</strong><br />
renome nacional e a presença estimulante do alunado <strong>de</strong> cursos universitários<br />
que se <strong>de</strong>dicam ao exame da obra do imortal escritor brasileiro.<br />
O próximo número da Revista será <strong>de</strong>dicado a Machado <strong>de</strong> Assis, para o<br />
que solicitamos a colaboração ampla dos acadêmicos brasileiros.<br />
Pelo índice se comprova a vocação nacional da Revista, em seu XLIX<br />
volume do 85° ano.
8 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
GUIMARÃES ROSA*<br />
Cícero Sandroni**<br />
O que se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong> do relato daqueles que conviveram com Guimarães<br />
Rosa é que ele era extremamente afetuoso, <strong>de</strong> um afeto, diríamos mesmo,<br />
caudaloso e cheio <strong>de</strong> magia como uma “terceira margem” <strong>de</strong> um rio, mas<br />
retraído e reservado a um só tempo, pouco afeito aos círculos literários. Essas<br />
características da personalida<strong>de</strong> do autor <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão:Veredas<br />
transparecem no <strong>de</strong>svelar/velar <strong>de</strong> seus personagens – sejam estes pessoas,<br />
bichos, coisas ou paisagens.<br />
Isto porque, escritor fabulista e fabuloso, como já o <strong>de</strong>finiram, há uma<br />
intimida<strong>de</strong> latente <strong>de</strong> Rosa com a linguagem literária, a ponto <strong>de</strong> sua narrativa,<br />
em sua apreensão da realida<strong>de</strong>, confundir-se com a própria poesia em uma<br />
mitologia rosiana. Ao lê-lo, sobrevém-nos a sensação <strong>de</strong> que os vocábulos são<br />
íntimos, tão íntimos como aquelas pessoas que, em vida, mereceram seu afeto.<br />
Guimarães Rosa é provavelmente o documento literário mais contun<strong>de</strong>nte<br />
e <strong>de</strong>finitivo sobre a realida<strong>de</strong> brasileira. Queremos dizer com isto que, na<br />
mesma medida em que Dante Alighieri estabeleceu a língua italiana mo<strong>de</strong>rna<br />
ao escrever A Divina Comédia no toscano, ao invés da língua cultural e literária<br />
<strong>de</strong> sua época, o latim, Guimarães Rosa, segundo Per Johns – um dos conferencistas<br />
do ciclo do centenário do seu nascimento, na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong><br />
<strong>Letras</strong> – “transfigurou artisticamente o idioma português em português do<br />
Brasil”. Neste sentido, po<strong>de</strong>mos afirmar sobre sua obra que é uma das maiores<br />
expressões da cultura brasileira em todos os tempos.<br />
Artista <strong>de</strong> índole fortemente expressionista, foi um dos escritores que<br />
mais transgrediu a gramática, <strong>de</strong>srespeitando-a com superiores fins estéticos,<br />
mas aceitando a lógica da língua – sobretudo em Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, sua<br />
obra máxima. O seu vocabulário é <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> riqueza, dos mais ricos da<br />
* Palavras pronunciadas na abertura da Semana Guimarães Rosa, em comemoração ao centenário <strong>de</strong> seu<br />
nascimento, entre os dias 18 e 22 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008, no Auditório Vivaldi Moreira da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />
<strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />
**Presi<strong>de</strong>nte da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.
10 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
literatura brasileira, composto <strong>de</strong> palavras comuns, palavras existentes e vivas,<br />
assim como as pouco usadas e os puros arcaísmo, além <strong>de</strong> um imenso léxico da<br />
nossa natureza, nomes <strong>de</strong> pássaros, peixes, árvores, sem esquecer os topônimos<br />
e os neologismos.<br />
Seu primeiro, Sagarana, <strong>de</strong> 1946, já trazia no título um neologismo,<br />
construído pela aglutinação <strong>de</strong> saga, no sentido <strong>de</strong> lenda, <strong>de</strong> narrativa épica e<br />
rana, sufixo tupi, significando semelhante à. São nove contos on<strong>de</strong> presenciamos<br />
a mais alta elaboração lingüística aliada ao uso expressionista da fala<br />
popular, uma das características mais marcante <strong>de</strong> sua obra.<br />
Em 1956, vem à luz Corpo <strong>de</strong> Baile, dois volumes perfazendo 822<br />
páginas, com sete histórias longas. A partir da terceira edição, <strong>de</strong>sdobra-se em<br />
três volumes autônomos, em que figura Corpo <strong>de</strong> Baile como subtítulo – 1°<br />
volume: Manuelzão e Miguelim; 2° volume: No Urubuquaquá, no Pinhém; 3º<br />
volume: Noites do Sertão. Segundo o próprio Guimarães Rosa, “são sete<br />
novelas (que o doutor chama também <strong>de</strong> ‘poemas’ ou <strong>de</strong> ‘romances’ ou<br />
‘contos’), <strong>de</strong>senrolados na região dos campos-gerais, ou dos gerais... narrações<br />
sertanejas, <strong>de</strong> temática universal... revelações sobre a realida<strong>de</strong> social <strong>de</strong> nossos<br />
trabalhadores <strong>de</strong> gleba”.<br />
Publicado no mesmo ano <strong>de</strong>ste livro, Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas é um<br />
romance que se constitui marco sem igual <strong>de</strong> nossa literatura e que dá a<br />
Guimarães Rosa um lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque na historiografia literária universal. A<br />
partir daí, essa revolução no uso das potencialida<strong>de</strong>s da língua inva<strong>de</strong> as<br />
experiências e realizações <strong>de</strong> outros escritores, abrindo uma nova fase na<br />
literatura brasileira.<br />
Em 1962, publica Primeiras estórias, seis anos após a consagração <strong>de</strong><br />
Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, on<strong>de</strong>, apesar da menor incidência <strong>de</strong> palavras e<br />
expressões típicas do sertão, o tratamento artístico dado ao material lingüístico<br />
prossegue o caminho iniciado em Sagarana.<br />
Poucos meses antes da morte <strong>de</strong> Guimarães Rosa foi publicado, em julho<br />
<strong>de</strong> 1967, as quarenta histórias extremamente sintéticas, escritas para jornal, <strong>de</strong><br />
Tutaméia (Terceiras estórias) que, apesar da estranheza que causou, mantém as<br />
mesmas características <strong>de</strong> linguagem dos <strong>de</strong>mais títulos <strong>de</strong> sua obra.<br />
Toda a obra rosiana está perpassada por questionamentos existenciais<br />
que, por meio <strong>de</strong> uma elaborada linguagem, se revelam através da fala <strong>de</strong> seus<br />
personagens – sobretudo, a eterna luta entre o Bem e o Mal, o Amor (ou a<br />
Vida) e a Morte, etc. Especialmente em Gran<strong>de</strong> Sertão:Veredas, on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>mos<br />
perceber com niti<strong>de</strong>z, a partir das perguntas que Riobaldo faz a si próprio, uma<br />
profunda interrogação sobre a existência humana.
Guimarães Rosa __________________________________________________________________ Cícero Sandroni 11<br />
Em novembro <strong>de</strong> 1969, dois anos após a morte <strong>de</strong> João Guimarães Rosa,<br />
a Livraria José Olympio Editora publicou Estas Estórias, reunindo cinco textos<br />
publicados em vida pelo autor e quatro inéditos. Nas palavras iniciais do livro,<br />
a filha Vilma Guimarães Rosa expressa toda a importância <strong>de</strong>ste gênio da<br />
literatura brasileira e universal: “Estas Estórias não são a <strong>de</strong>spedida <strong>de</strong> João<br />
Guimarães Rosa, mas a certeza <strong>de</strong> que ele vive, intensa e maravilhosamente, na<br />
obra <strong>de</strong> sua sensibilida<strong>de</strong>, do seu gênio. E que durará o tempo <strong>de</strong> uma<br />
Imortalida<strong>de</strong>.”<br />
Com Gran<strong>de</strong> Sertão:Veredas – maior livro, ao lado <strong>de</strong> Os sertões, da<br />
nacionalida<strong>de</strong> brasileira – João Guimarães Rosa atingiu o ponto mais alto <strong>de</strong><br />
toda a história da ficção em língua portuguesa. Ainda que sendo um romance,<br />
trata-se, na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> um verda<strong>de</strong>iro poema épico em p<strong>rosa</strong>, <strong>de</strong> ressonâncias<br />
humanas e filosóficas inesgotáveis, monumento inigualado na literatura do<br />
Novo Mundo, que eleva o seu autor ao pequeno círculo dos maiores gênios da<br />
literatura universal.
JOÃO GUIMARÃES ROSA, MEU PAI*<br />
Vilma Guimarães Rosa**<br />
Falar sobre meu pai para os que admiram sua obra e reverenciam sua<br />
memória é para mim motivo <strong>de</strong> orgulho e um <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção.<br />
Questionando sobre os mistérios que envolvem uma existência, procurarei<br />
sintetizar os episódios que <strong>de</strong>finem a personalida<strong>de</strong> carismática e a<br />
profunda filosofia <strong>de</strong> vida do gênio maravilhosamente humano que foi meu pai.<br />
Pelo seu espírito a luz perpassa, iluminando a magia que acompanha a<br />
sua lembrança.<br />
Tendo percorrido numa dimensão espiritual os mundos que projetaria em<br />
cada uma <strong>de</strong> suas estórias, ele satisfez os <strong>de</strong>sejos fundamentais <strong>de</strong> expressão da<br />
verda<strong>de</strong> e da beleza.<br />
Era ele um homem que cumpria o seu <strong>de</strong>ver procurando fazê-lo acima e<br />
além do que normalmente se lhe po<strong>de</strong>ria exigir. Manifestou sempre o mais<br />
integral <strong>de</strong>votamento a tudo o que fazia: uma página escrita, um relatório<br />
funcional, o estudo <strong>de</strong> um problema técnico ou um <strong>de</strong>senho para os netos.<br />
Teve amigos, e <strong>de</strong>dicados. E a eles se <strong>de</strong>dicou. Gostava imensamente <strong>de</strong><br />
conversar. Era um notável conversador. Costumava dizer que durante uma boa<br />
conversa, sempre se apren<strong>de</strong>. Na realida<strong>de</strong> era ele quem ensinava.<br />
Era <strong>de</strong> se absorver inteiramente na contemplação da vida, buscando,<br />
conjeturando, ou simplesmente fruindo o lado positivo das coisas.<br />
Lembro-me do estímulo que dava aos novos escritores. A mim, inclusive,<br />
sempre me revelando o seu entusiasmo pelos meus escritos.<br />
Ele foi, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo, incluído entre as expressões maiores <strong>de</strong> nossa<br />
literatura. O <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> sua Obra confirmou-lhe o valor, universalizando-lhe<br />
o nome. A crítica nacional e também a internacional o aplau<strong>de</strong>m,<br />
louvando a sua Obra.<br />
* Palestra proferida na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em 18 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008, <strong>de</strong>ntro da Semana Cultural<br />
Guimarães Rosa, comemorativa do seu centenário <strong>de</strong> nascimento.<br />
**Escritora, filha e biógrafa <strong>de</strong> Guimarães Rosa.
14 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Tristão <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rou-o tecelão <strong>de</strong> “admirável e incomparável<br />
tapeçaria”, tecida com a fibra mais tipicamente nacional que po<strong>de</strong>mos fornecer;<br />
e ao mesmo tempo, com uma nota <strong>de</strong> humanismo universal tão completa que<br />
explica o mistério <strong>de</strong> sua repercussão no exterior.<br />
Meu pai, realmente, foi um caráter transoceânico. Mensageiro <strong>de</strong> uma<br />
renovação artística, e assim o conhecem <strong>de</strong>ntro e fora do Brasil.<br />
Nôma<strong>de</strong> e se<strong>de</strong>ntário, instável e estável, rígido e suave, severo e doce.<br />
Ele foi assim. Nôma<strong>de</strong>, na irrefreada curiosida<strong>de</strong> que sempre o caracterizou.<br />
Se<strong>de</strong>ntário, no <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> paz, no amor ao silêncio das horas <strong>de</strong> trabalho.<br />
Instável, na inquietação constante <strong>de</strong> seu espírito, em busca da perfeição.<br />
Estável, na sua esplêndida ternura, na constância <strong>de</strong> sua afetivida<strong>de</strong>, na firmeza<br />
<strong>de</strong> suas convicções, na consciente fixação <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>votamento ao trabalho.<br />
Rígido, na coragem tantas vezes <strong>de</strong>monstrada, na <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> sua vonta<strong>de</strong><br />
enérgica, no cumprimento <strong>de</strong> suas obrigações. Suave no convívio, nas horas<br />
mansas, suave no trato, no sorriso, no coração. Severo, quando a vida impunha<br />
severida<strong>de</strong>, sem jamais abandonar aquela sua doçura tão acentuada, tão<br />
presente em seus atos. Nôma<strong>de</strong> confesso, procurou a carreira diplomática,<br />
disposto a ver o mundo distante. Era-lhe, porém, indispensável intervalar o<br />
nomadismo, viver longas pausas <strong>de</strong> tranqüilida<strong>de</strong> produtiva. Mas não po<strong>de</strong>ria<br />
jamais renunciar ao seu impulso <strong>de</strong> observação direta das coisas e das pessoas,<br />
movimentando-se pela vida. Amou a natureza. Enternecia-se com as crianças e<br />
sentia respeito e curiosida<strong>de</strong> pelos animais. Andou pensando sempre nos que<br />
precisam <strong>de</strong> proteção e compreensão. Tentou sempre enten<strong>de</strong>r e proteger. Papai<br />
foi assim, na complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua figura humana. Em viagens, viu os muitos<br />
rostos da humanida<strong>de</strong>, conheceu expressões <strong>de</strong> cultura e <strong>de</strong> comportamento<br />
moral, enriquecendo a sua experiência.<br />
Havia nele um certo mistério, em parte espontâneo, em parte cultivado<br />
como elemento <strong>de</strong> encanto. Minha mãe costumava dizer que ele era permanente<br />
reserva <strong>de</strong> surpresas, muito à semelhança <strong>de</strong> seus personagens.<br />
Quero prestar um tributo à memória <strong>de</strong> Lygia, minha mãe, sua gran<strong>de</strong><br />
companheira durante os anos em que estiveram casados, e sua fiel amiga,<br />
sempre.<br />
Mulher brilhante, projetava a sua inteligência e cultura com a maior<br />
graça. Seu notável dinamismo muito ajudou meu pai. Ela estimulou-o na Medicina,<br />
aplaudiu-o na Diplomacia, transmitindo a sua enorme Fé no Escritor que<br />
então <strong>de</strong>spontava.<br />
Enterneciam-me a Amiza<strong>de</strong>, o Respeito e a Confiança mútua que se<br />
<strong>de</strong>dicaram. Sempre escutei <strong>de</strong> cada um o que o outro tinha <strong>de</strong> melhor.
João Guimarães Rosa, meu pai _______________________________________________ Vilma Guimarães Rosa 15<br />
O <strong>de</strong>stino conduz as pessoas, e po<strong>de</strong> até separá-las fisicamente. Porém, a<br />
soli<strong>de</strong>z da afeição verda<strong>de</strong>ira, Deus eterniza.<br />
Com minha Mãe e meu Pai, aprendi importantes lições <strong>de</strong> vida, que eles<br />
souberam ensinar-me com gene<strong>rosa</strong> sabedoria.<br />
“Contar é muito, muito dificultoso”, disse Riobaldo, jagunço dos<br />
Campos Gerais, Mestre-Narrador, e personagem <strong>de</strong> Guimarães Rosa.<br />
Gostaria <strong>de</strong> contar-lhes um abreviado da vida <strong>de</strong> meu Pai, embora ache<br />
isto muito dificultoso, porque falarei com o coração; e quando se fala com o<br />
coração, a interferência da sauda<strong>de</strong> é um <strong>de</strong>safio à própria sensibilida<strong>de</strong>. Mas,<br />
como sauda<strong>de</strong>ar é trazer para perto os entes queridos que se encontram longe<br />
<strong>de</strong> nós, eu tentarei.<br />
O infindável fio da vida entrepreen<strong>de</strong> os homens na travessia das épocas.<br />
O escritor percebe e reconta, olhando o fio, <strong>de</strong>senovelando-o, tecendo tramas,<br />
rebordando tapeçarias finas. É o seu encargo.<br />
Um homem é a soma dos seus acertos e <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>feitos. E, muito<br />
especialmente, é a síntese dos amores que o dominaram, dos amores a que<br />
dominou. Das tendências que seguiu, dos rumos que <strong>de</strong>senhou.<br />
Afirmações e negações, alternativas e escolhas, o homem se <strong>de</strong>fine nos<br />
dias <strong>de</strong> sua vida. Assim se me<strong>de</strong> a sua estatura, assim se me<strong>de</strong> a estatura <strong>de</strong><br />
meu Pai.<br />
Terra e tempo <strong>de</strong>ixam marcas na estruturação interior <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong> nós.<br />
Cordisburgo, antes chamada Vista Alegre, foi uma primeira influência telúrica,<br />
<strong>de</strong>finitiva, não mais esquecida por ele. Não <strong>de</strong>ixou dissolverem-se as<br />
lembranças das suas primeiras visões do mundo, em comovente fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao<br />
lugar pequenino on<strong>de</strong> nasceu. Primeira e última palavra do seu discurso <strong>de</strong><br />
Posse, na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, três dias antes que a sua mão<br />
<strong>de</strong>scansasse <strong>de</strong> escrever, está nos seus livros como esteve em sua vida: relembrada<br />
docemente, luminosa permanência na memória.<br />
Cordisburgo, as três Igrejas abençoadas pela vastidão <strong>de</strong> um céu quase<br />
sempre azul. A singela estação. Casas bonitas e belas fazendas, com o gado<br />
pastando nos pitorescos campos. Os buritis, as árvores e as flores. Tudo muito<br />
pincelado pelos pictóricos tons da poesia.<br />
Des<strong>de</strong> os tempos do Padre João <strong>de</strong> Santo Antonio, <strong>de</strong> origem alemã,<br />
fundador da cida<strong>de</strong>zinha, batizando-a com o nome que originalmente significa:<br />
– Cordis: coração; Burgo: cida<strong>de</strong> – Cordisburgo: cida<strong>de</strong> do coração.<br />
O amanhecer <strong>de</strong> Joãozito – como era chamado pela família – aconteceu<br />
no dia 27 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1908.
16 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Nesta bucólica paisagem, a estória da vida <strong>de</strong> meu pai começou. A mansidão<br />
dos campos pontificando o mistério da Gruta <strong>de</strong> Maquiné, um mundo <strong>de</strong><br />
fantasia cintilante on<strong>de</strong> meu pai-menino costumava brincar com os irmãos.<br />
De Maquiné, “milmaravilha”, saiu a pedra branca <strong>de</strong> sua pia batismal. E<br />
as águas do rio Urucuia o batizaram, na Matriz do Sagrado Coração <strong>de</strong> Jesus,<br />
padroeiro da cida<strong>de</strong>.<br />
Maria Francisca, minha Vovó Chiquitinha, entre muitos irmãos, era a<br />
única filha <strong>de</strong> Dona Mariazinha e do Patriarca Luiz Guimarães, homem <strong>de</strong><br />
letras muito conceituado nos meios intelectuais mineiros. Moravam em Belo<br />
Horizonte e passavam as férias na fazenda que possuíam em Cordisburgo.<br />
Vovô Florduardo – nome que po<strong>de</strong>ria ser personagem das estórias do<br />
filho – era imensamente querido e popular na região. Eu diria até: um jovem<br />
coronel, daqueles que li<strong>de</strong>ram uma pequena cida<strong>de</strong>. Juiz <strong>de</strong> paz, vereador e<br />
comerciante por profissão, e caçador por diversão, possuía uma sensacional<br />
coleção <strong>de</strong> espingardas e outra coleção <strong>de</strong> estórias <strong>de</strong> caçador e caçadas. A<br />
matilha <strong>de</strong> cães sempre o acompanhava. Com uma letra linda e <strong>de</strong>senhada, anos<br />
mais tar<strong>de</strong> se correspon<strong>de</strong>ria com o filho diplomata, narrando-lhe estórias<br />
interessantíssimas acontecidas no sertão e na Serra do Cabral, on<strong>de</strong> costumava<br />
caçar. Várias vezes ouvi <strong>de</strong> meu pai a afirmação <strong>de</strong> que o Vovô também<br />
<strong>de</strong>veria ter sido escritor. Papai dramatizava a seu modo algumas daquelas<br />
estórias, colocando-as em seus livros e jamais fazia disto segredo. Muito se<br />
orgulhava em <strong>de</strong>senvolver a inspiração, criando estórias das estórias que seu<br />
pai lhe transmitia.<br />
Chiquitinha e Florduardo se casaram muito jovens, e ela <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong>finitivamente<br />
Belo Horizonte, a fim <strong>de</strong> morar em Cordisburgo. Foi uma união<br />
muito feliz, que durou até anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> celebrarem as Bodas <strong>de</strong> Ouro.<br />
Bisavô Luiz Guimarães mandou então abrir a primeira rua da cida<strong>de</strong>,<br />
oferecendo uma casa à vovó e construindo outras para cada um dos outros<br />
filhos.<br />
No armazém dos meus avós as tropas a caminho do interior se<br />
abasteciam. E isto constituía um acontecimento na cida<strong>de</strong>zinha.<br />
No dia 30 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1974 esta casa on<strong>de</strong> nasceu papai virou museu.<br />
Inaugurá-lo, foi uma gran<strong>de</strong> emoção para mim e minha família. Graças à feliz<br />
<strong>de</strong>cisão do então Governador <strong>de</strong> Minas, Senhor Rondon Pacheco, adquirindo a<br />
casa <strong>de</strong> meus avós e entregando-a ao Patrimônio Histórico, o Museu pô<strong>de</strong> ali<br />
ser organizado. O Professor Luciano Amedée Peret dirigiu a restauração da<br />
casa, procurando usar o máximo <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao estilo anterior. A inauguração,<br />
presidida pelo Governador Rondon Pacheco, foi muito bonita e animada,
João Guimarães Rosa, meu pai _______________________________________________ Vilma Guimarães Rosa 17<br />
levando a Cordisburgo inúmeras personalida<strong>de</strong>s ilustres. E algumas <strong>de</strong>las<br />
especiais, pois tendo sido amigos <strong>de</strong> infância <strong>de</strong> meu pai, se tornaram personagens<br />
<strong>de</strong> suas estórias.<br />
Joãozito era um menino sábio, contava-me vovó. Apren<strong>de</strong>u a ler e a<br />
escrever muito cedo, para saciar a sua intensa curiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecimentos.<br />
Mestre Candinho, o professor que ia nas casas ensinar, profetizava um notável<br />
futuro para seu pequeno aluno.<br />
Papai era o mais velho dos irmãos, e gostava <strong>de</strong> levá-los para explorarem<br />
os campos, em folguedos junto aos buritis.<br />
Maria Luiza, Maria José, Maria Auxiliadora, José Luiz e Oswaldo, seus<br />
irmãos, o consi<strong>de</strong>ravam um lí<strong>de</strong>r, sempre inventando aventuras e brinquedos. E<br />
sempre foram muito unidos.<br />
Míope, antes que cedo o soubesse, Joãozito tentava adivinhar os recortes<br />
da realida<strong>de</strong> meio in<strong>de</strong>finida. Brincava, buscando maior proximida<strong>de</strong> das<br />
coisas, forcejando por ver mais <strong>de</strong> perto a substância e as formas <strong>de</strong> tudo.<br />
Examinava, um elo <strong>de</strong> cada vez, a corrente da vida.<br />
Um dia, ganhou lentes para os olhos. Deslumbrou-se com a mágica do<br />
mundo! Ele se habituara a se acercar das coisas, tocá-las, trazê-las muito perto,<br />
para sentir-lhes a essência. Já era íntimo da vida. Agora, <strong>de</strong>svendava suas<br />
perspectivas, no conjunto da paisagem <strong>de</strong>senevoada.<br />
A miopia do menino Miguilim, seu personagem, e a <strong>de</strong>scoberta das<br />
minúcias do vísível – amo<strong>rosa</strong>mente <strong>de</strong>scrita – é uma experiência pessoal. A<br />
explosão <strong>de</strong> cores e formas, o mundo a se expandir até os confins do horizonte<br />
que se afastam e projetam, nas distâncias, outrora somente pressentidas.<br />
Joãozito mudara os seus conceitos ao enxergar mais longe. O mundo crescera!<br />
No conto “Manuelzão e Miguilim”, obra-prima que criaria mais tar<strong>de</strong>,<br />
confun<strong>de</strong>m-se autor e personagem, Joãozito e Miguilim.<br />
Após as suas primeiras aulas com Mestre Candinho, e um curto tempo <strong>de</strong><br />
internato em São João <strong>de</strong>l-Rei, Joãozito foi estudar em Belo Horizonte, no<br />
tradicional Colégio Arnaldo, on<strong>de</strong> teve colegas que se tornariam famosos<br />
expoentes em diferentes profissões, se reencontrando anos mais tar<strong>de</strong>.<br />
Estudando no colégio Arnaldo, em Belo Horizonte, ele fora morar com<br />
seus avós maternos, também seus padrinhos, recebendo <strong>de</strong>les uma profunda<br />
influência artística e cultural. Especialmente literária, da parte do seu avô Luiz<br />
Guimarães, já famoso escritor e ensaísta. Na sua residência aconteciam saraus<br />
semanais, com a presença <strong>de</strong> escritores, artistas plásticos e personalida<strong>de</strong>s que<br />
se <strong>de</strong>dicavam à cultura. Joãozito cresceu neste ambiente, <strong>de</strong>le tirando o maior<br />
proveito.
18 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Ainda menino, estudou música e ganhou um violino. Gostava <strong>de</strong> tocar<br />
para uma <strong>de</strong> suas primas, que apelidara <strong>de</strong> Benzinho e que o acompanhava<br />
cantando.<br />
Foi minha avó quem contou-me isto, confi<strong>de</strong>nciando-me ter sido papai<br />
um rapazinho romântico, o que afinal, ela mesma, uma romântica, apreciava.<br />
Nas férias, e nos fins <strong>de</strong> semana, Joãozito continuava freqüentando<br />
Cordisburgo, ou <strong>de</strong>ixava-se ficar em Belo Horizonte.<br />
Uma <strong>de</strong> suas diversões foi o jornalismo caseiro. Publicava jornaizinhos,<br />
sendo responsável por todas as seções, as ilustrações e a distribuição entre as<br />
crianças da família. E também era o tesoureiro.<br />
Menino incomum, diversificava seus próprios divertimentos. Um dos<br />
seus professores, Frei Canízio Zoetmul<strong>de</strong>r, fra<strong>de</strong> franciscano holandês, ensinou-lhe<br />
este idioma, e o francês. Certamente influenciado por Frei Canízio, ele<br />
brincava <strong>de</strong> celebrar missa na capelinha da casa <strong>de</strong> seus avós, usando o<br />
“Goffiné”, missal relíquia da bisavó, escrito em latim. Ela só o emprestava ao<br />
padrezinho faz-<strong>de</strong>-conta porque acreditava tratar-se <strong>de</strong> uma precoce afirmação<br />
vocacional. Convidava os irmãos para ajudá-lo, e ele mesmo, paramentado com<br />
arranjos <strong>de</strong> roupas, recitava em latim, impressionando as crianças e os criados.<br />
Anos mais tar<strong>de</strong>, seria coroinha dos padres re<strong>de</strong>ntoristas, na igreja <strong>de</strong> São José.<br />
Com a mesada <strong>de</strong> dois mil réis, Joãozito comprava aos domingos<br />
empadinhas e garrafas <strong>de</strong> limonada, indo se refugiar na Biblioteca Pública <strong>de</strong><br />
Belo Horizonte para <strong>de</strong>vorar os livros. Certa vez, alguém se queixou daquele<br />
“piquenique” ao encarregado, que já havia se tornado amigo <strong>de</strong> Joãozito, e que<br />
retrucou: “– O senhor já viu o que o menino está lendo? Vai dar uma olhadinha;<br />
a gente não tem coragem <strong>de</strong> impedir que o menino engordure um livro<br />
tão difícil!”<br />
Meu pai, com apenas sete anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, tranqüilamente, estava lendo<br />
um clássico francês. Este caso, contado a todos pelo bibliotecário, tornou-se o<br />
assunto da família e dos amigos.<br />
Durante uma época papai interessou-se, também, pelos esportes. E<br />
gostava <strong>de</strong> contar, com a malícia <strong>de</strong> quem sabe que vai surpreen<strong>de</strong>r, ter sido<br />
centro-avante do time <strong>de</strong> futebol do colégio.<br />
Descobriu muito cedo a literatura, dinamizando a sua enorme curiosida<strong>de</strong>.<br />
Além do estudo <strong>de</strong> línguas, tão extraordinariamente começado na infância,<br />
costumava traduzir as revistas francesas que seus avós recebiam. Prendiase<br />
na observação das plantas e dos animais, interessava-se pela botânica, pela<br />
entomologia, pela geologia, para melhor conhecer as coisas que amava. Era o<br />
gran<strong>de</strong> livro da Criação <strong>de</strong> Deus que precisava percorrer indagadoramente.
João Guimarães Rosa, meu pai _______________________________________________ Vilma Guimarães Rosa 19<br />
Mais tar<strong>de</strong>, mesmerizado pelo que chamou “o canto e a plumagem das palavras”,<br />
dilataria o seu interesse lingüístico.<br />
Apren<strong>de</strong>u vários outros idiomas, como o russo e o japonês. E até o<br />
Esperanto, idioma internacional <strong>de</strong> Zamenhof.<br />
Quando perguntei-lhe se era fácil apren<strong>de</strong>r o esperanto, papai informoume,<br />
brincando sério: “– Sim, se você conhecer o grego, o latim, inglês, francês,<br />
russo, italiano e espanhol e um pouco das gramáticas <strong>de</strong> outros idiomas, tornase<br />
facílimo.”<br />
Anos mais tar<strong>de</strong>, já ingressado na Carreira Diplomática, surpreen<strong>de</strong>ria os<br />
seus chefes e colegas saudando uma <strong>de</strong>legação oficial japonesa, com impecável<br />
discurso em japonês.<br />
Meu Pai, ainda menino, e seu professor Frei Canízio ficavam ambos<br />
horas e horas <strong>de</strong>bruçados sobre os mapas, conjeturando táticas e discutindo o<br />
movimento das tropas alemãs e aliadas, durante a Primeira Gran<strong>de</strong> Guerra<br />
Mundial. Entusiasmavam-se, espalhando alfinetes sobre os campos <strong>de</strong> batalha.<br />
Certa vez, Joãozito sugeriu que se os aliados agissem <strong>de</strong> forma tal, certamente<br />
ganhariam a Batalha. E foi o que aconteceu. Isto, <strong>de</strong> certa forma, celebrizou-o<br />
entre os mestres e os colegas. Alguns padres re<strong>de</strong>ntoristas quiseram, então<br />
conhecê-lo pessoalmente.<br />
Terminado o ginásio no colégio Arnaldo, <strong>de</strong>cidiu-se pela Medicina. Era<br />
uma das faixas <strong>de</strong> sua vocação, da sua vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> servir. Seu i<strong>de</strong>al era salvar a<br />
vida <strong>de</strong> pessoas que <strong>de</strong>le precisassem.<br />
Graduou-se com brilhantismo, orador e primeiro da turma, tendo recebido<br />
convites <strong>de</strong> vários professores catedráticos para com eles trabalhar.<br />
Entretanto, i<strong>de</strong>alista, preferiu fazer a interiorização da Medicina, escolhendo a<br />
cida<strong>de</strong>zinha <strong>de</strong> Itaguara, no Município <strong>de</strong> Itaúna, para abrir uma 1ª clínica, já<br />
que ali não havia médicos.<br />
Os dois anos vividos em Itaguara influíram enormemente na produção<br />
literária <strong>de</strong> meu pai. Inspirado pela Terra, os costumes, as pessoas e as<br />
acontecências do cotidiano, ele os colecionava, anotando as terminologias dos<br />
seus ditos e falas, a fim <strong>de</strong> distribuí-los pelas estórias que certamente já estava<br />
escrevendo.<br />
Recém-casado com Lygia Cabral Penna, filha da professora Julia Cabral<br />
e do político e proprietário <strong>de</strong> Colégio Antônio Affonso Penna, papai tornou-se<br />
o primeiro médico da região. Minha mãe era muito jovem, mas sua personalida<strong>de</strong><br />
já era forte e bem <strong>de</strong>finida. Pelo amor ao marido, <strong>de</strong>ixou sua família e a<br />
vida agradável, cheia <strong>de</strong> conforto e amiza<strong>de</strong>s, na capital, acompanhando-o com<br />
coragem. E ajudou-o a vencer as inevitáveis dificulda<strong>de</strong>s surgidas. Durante as
20 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
consultas, se fazia <strong>de</strong> enfermeira e sua secretária. Papai contou-me que, às<br />
vezes, ela curava melhor do que ele, especialmente os doentes imaginários,<br />
para os quais preparava xarope <strong>de</strong> groselha, avisando tratar-se <strong>de</strong> um eficaz<br />
elixir. Os pagamentos que lhes faziam muitas vezes eram sob a forma <strong>de</strong> aves e<br />
ovos, doces, bolos e frutas.<br />
Foi nesta singela e pitoresca Itaguara que eu nasci, numa casa-fazenda;<br />
minha mãe, assistida no parto pelo meu pai. E ele sempre me dizia, com<br />
orgulho, que meu primeiro banho foram as suas lágrimas <strong>de</strong> alegria.<br />
Ele galopava, às vezes até durante a noite, para aten<strong>de</strong>r doentes nas<br />
fazendas das redon<strong>de</strong>zas, ou nos casebres. Eram eles o Dr. Rosa e a D. Lili,<br />
muito amados por todos, e padrinhos <strong>de</strong> quase todos os recém-nascidos do<br />
lugar.<br />
Meu pai, contudo, ficava <strong>de</strong>primido e profundamente angustiado ante a<br />
impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> salvar alguma vida.<br />
Em 1932, ele tomou parte na Revolução Constitucionalista, atuando<br />
como médico voluntário da Força Pública <strong>de</strong> Minas, no setor do Túnel.<br />
Mais tar<strong>de</strong>, em 1934, prestou concurso e foi promovido a capitão médico.<br />
Fomos então morar em Barbacena, on<strong>de</strong> nasceu Agnes, minha irmã.<br />
A angústia provocada pela sua extrema sensibilida<strong>de</strong>, no convívio com a<br />
doença e a morte, que algumas vezes, apesar <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>sesperados esforços não<br />
conseguia impedir, levou-o a abandonar a Medicina.<br />
O seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> mais saber e mais ver afastava-o, progressivamente, <strong>de</strong><br />
Minas Gerais. Além da enorme curiosida<strong>de</strong> em conhecer novas terras e novos<br />
tipos <strong>de</strong> pessoas, queria <strong>de</strong>scobrir outros mundos que pu<strong>de</strong>ssem saciar-lhe a<br />
eterna busca.<br />
A Medicina, sem dúvida, foi uma força vocacional marcante em seu<br />
caráter. Entretanto, aumentavam os impulsos <strong>de</strong> sua inquietação intelectual, o<br />
seu amor pela literatura, a sua universal curiosida<strong>de</strong>.<br />
Quando <strong>de</strong>ixou Itaguara e <strong>de</strong>pois Barbacena, repetiu-se, talvez em escala<br />
diversa, a <strong>de</strong>spedida <strong>de</strong> Cordisburgo.<br />
Papai tivera um violino, estudara e amava a música, mas não era músico;<br />
possuía um diploma universitário, estudara e exercia a medicina, mas outro<br />
seria o seu caminho.<br />
Ele conseguiu prêmios literários, competindo em concursos <strong>de</strong> contos a<br />
trezentos mil-réis cada um, da revista O Cruzeiro. Iniciava uma espécie <strong>de</strong> préliteratura<br />
<strong>de</strong> curtíssima duração. Depois, uma pausa, uma espera na procura do<br />
i<strong>de</strong>al: a tentativa <strong>de</strong> encontrar “o ponto <strong>de</strong> interseção da eternida<strong>de</strong> e o tempo”,<br />
como <strong>de</strong>sejo e <strong>de</strong>ver, tal qual no poema <strong>de</strong> Eliot.
João Guimarães Rosa, meu pai _______________________________________________ Vilma Guimarães Rosa 21<br />
Mamãe o estimulava nesses concursos, e ficavam ansiosos à espera do<br />
resultado.<br />
Recém-casados, visitaram o Rio, a fim <strong>de</strong> receberem o prêmio literário<br />
que ele conquistara da revista O Cruzeiro. Ela, cicerone. Ele, extasiado, pois<br />
era a sua primeira vez. Atravessando a baía na velha barca, ele inspirava<br />
profundamente o mar, tentando prendê-lo <strong>de</strong> cor, como se estivesse <strong>de</strong>corando<br />
poesia. Queria guardar na memória o cheiro exótico e a paisagem nova e bela.<br />
Vieram os dois, muito jovens e entusiasmados. Parados diante da escadinha,<br />
aos pés do sobrado on<strong>de</strong> funcionava naquele tempo a se<strong>de</strong> da revista<br />
O Cruzeiro, ele hesitava em subir. Vencera os concursos <strong>de</strong> contos, já<br />
publicadas as suas estórias; só lhe faltava receber o dinheiro dos prêmios, para<br />
eles uma verda<strong>de</strong>ira pequena fortuna, que ele não se <strong>de</strong>cidia a receber, por<br />
timi<strong>de</strong>z. Não fosse o entusiástico senso prático <strong>de</strong> minha mãe, talvez ele não<br />
tivesse tomado coragem. Ela possuía o dom <strong>de</strong> transmitir-lhe segurança. Aliás,<br />
a todos nós.<br />
Após ter trabalhado no serviço <strong>de</strong> Proteção ao Índio (1933 a 1935), papai<br />
dispôs-se ao ingresso no Itamarati, o que lhe permitiria percorrer estradas<br />
novas, chegando a todas as margens do mar.<br />
O ecletismo <strong>de</strong> seu espírito esten<strong>de</strong>ra-lhe a cultura por muitos campos do<br />
conhecimento. Aprendia com facilida<strong>de</strong>, graças à constância <strong>de</strong> seus exercícios<br />
intelectuais. Rápido, assenhoreou-se da informação jurídica necessária para o<br />
novo concurso. História, idiomas, cultura geral, não lhe seriam obstáculos. Em<br />
pouco tempo <strong>de</strong>frontaria os examinadores, classificando-se brilhantemente.<br />
Mamãe, minha irmã e eu estávamos em Belo Horizonte, aguardando as<br />
novida<strong>de</strong>s. Dois telegramas e uma carta, longa e divertida, na qual comentava<br />
as provas e os exames, papai anunciava os ótimos resultados, e nos chamava<br />
com urgência. Viajamos imediatamente. Morar no Rio foi maravilhoso! Quantas<br />
belas caminhadas fazíamos, com ele nos dando interessantes lições <strong>de</strong><br />
História e Geografia...<br />
Após o necessário estágio na Secretaria <strong>de</strong> Estado, no Rio, <strong>de</strong>signaramlhe<br />
o Consulado, em Hamburgo, na Alemanha.<br />
Papai foi, emocionado, porque era a sua primeira viagem ao exterior. A<br />
família seguiria mais tar<strong>de</strong>, quando ele já tivesse se estabelecido e encontrado a<br />
nossa casa e o colégio i<strong>de</strong>al para suas meninas.<br />
Além dos seus encargos oficiais e nos prováveis entretempos, meu pai<br />
teria finalmente um contato direto com a cultura alemã, que tanto o seduzia:<br />
Hoffmann, Heine, Schiller, Goethe, Rilke, Kafka e outros mais. Todos o<br />
haviam muito cedo fascinado.
22 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Suas cartinhas e postais nos chegavam com freqüência, e as <strong>de</strong>scrições<br />
das novida<strong>de</strong>s que ele ia conhecendo, com a promessa <strong>de</strong> que, num<br />
futuro próximo, nós também iríamos conhecer, amenizavam nossa imensa<br />
sauda<strong>de</strong>.<br />
Enquanto foi possível, papai nos enviava malas recheadas <strong>de</strong> presentes:<br />
bonecas e seus guarda-roupas completos, e sobretudo livros lindos, com atraentes<br />
gravuras, <strong>de</strong> escritores alemães, franceses e ingleses, que passei para meus<br />
filhos e minha neta. Veio até um carimbo para organizar minha primeira<br />
biblioteca. Tudo isso me incentivou a estudar idiomas, e inspirou-me, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
pequena, a escrever também minhas estórias.<br />
Para nosso entusiasmo, mamãe preparava o que ela chamava “nosso<br />
enxoval para a viagem”.<br />
Papai, antes <strong>de</strong> partir, lhe confiara os originais <strong>de</strong> Sagarana, e aquele<br />
monte <strong>de</strong> folhas <strong>de</strong> papel, envolto em celofane, constituía para nós uma relíquia<br />
preciosa que ela guardava cuidadosamente. Nas cartas que papai lhe escrevia,<br />
havia sempre o <strong>de</strong>svelado conselho:<br />
“– Se me acontecer algo, Lili, tenta publicar. Po<strong>de</strong> ser que dê algum<br />
dinheirinho para ajudar na educação das meninas...”<br />
Mas não era <strong>de</strong> paz o clima político europeu. Na Alemanha, queimavamse<br />
livros, proscreviam-se escritores. Stefan Zweig, Thomas Mann, Jacob<br />
Wassermann, Franz Werfel, tal como Kafka e tantos outros, eram nomes<br />
proibidos. Inúmeros intelectuais <strong>de</strong>ixavam a Alemanha, refugiando-se na<br />
Inglaterra ou em países da América. Havia névoas e opressões, muitos não<br />
sabendo ou não querendo ver, talvez acreditando que tudo não passasse <strong>de</strong> uma<br />
conturbação temporária, o limiar <strong>de</strong> uma fase nova, com as naturais incertezas<br />
que prece<strong>de</strong>m as gran<strong>de</strong>s transformações históricas.<br />
Chamberlain, sorri<strong>de</strong>nte após o pacto <strong>de</strong> Munique, anunciara:<br />
“– Paz para o nosso Tempo!”<br />
Porém, o jovem cônsul brasileiro, em seus relatórios, <strong>de</strong>scria. Protegia<br />
aqueles que <strong>de</strong>sejavam emigrar para o Brasil, sobretudo os ju<strong>de</strong>us perseguidos<br />
pelo nazismo, assinando a permissão do visto em seus passaportes. Só ele tinha<br />
o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> concedê-lo, e o fazia antes mesmo <strong>de</strong> receber a licença oficial do<br />
Ministério.<br />
Há pouco tempo, fui convidada para fazer uma palestra sobre meu pai,<br />
na homenagem que a ARI (Associação Religiosa Israelita) lhe prestou, durante<br />
a cerimônia <strong>de</strong> Recordação do Holocausto, na Sinagoga <strong>de</strong> Botafogo.<br />
Compareceram inúmeros filhos e netos <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>us que papai havia salvado, e fui<br />
presenteada com cópias dos passaportes com sua assinatura. Conheci também
João Guimarães Rosa, meu pai _______________________________________________ Vilma Guimarães Rosa 23<br />
um senhora <strong>de</strong> 99 anos, que abraçou-me em prantos, dizendo que não queria<br />
morrer sem antes agra<strong>de</strong>cer à filha <strong>de</strong> seu salvador.<br />
Sinto orgulho do espírito solidário <strong>de</strong> meu pai. Como dizia Josué<br />
Montello, nosso querido amigo, “a vida é um processo <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong><br />
natural”.<br />
Mamãe, Agnes e eu ficamos profundamente tristes quando o Ministério<br />
do Exterior cancelou nossa viagem, assim como <strong>de</strong> outras famílias <strong>de</strong> diplomatas,<br />
por motivo <strong>de</strong> segurança. As que já se encontravam na Alemanha foram<br />
chamadas <strong>de</strong> volta ao Brasil.<br />
Afinal, rompeu-se o que restava da paz. Durante a neutralida<strong>de</strong> brasileira,<br />
entre 1939 e 1942, aumentavam as responsabilida<strong>de</strong>s do posto. Por amor<br />
à liberda<strong>de</strong>, meu pai sofria e servia. Devido à sua memória fotográfica, atuou<br />
como correio-verbal das mensagens cifradas, entre as nossas representações <strong>de</strong><br />
Berlim e Lisboa.<br />
Em Hamburgo, durante as longas horas em que ele se refugiava nos<br />
abrigos antiaéreos, contou-me que meditava, rezando fervo<strong>rosa</strong>mente pelos que<br />
sofriam, e pela sua sobrevivência, a fim <strong>de</strong> que pu<strong>de</strong>sse regressar ao Brasil.<br />
Meu pai possuía uma fé profunda. Acreditava em Deus e na força da<br />
oração.<br />
A educação católica que recebeu quando criança, e pela qual, mais tar<strong>de</strong>,<br />
optou, fixou-se <strong>de</strong>finitivamente em seu espírito.<br />
Ecumênico no seu respeito às outras religiões, tendo investigado sobre<br />
todas elas, era estudioso do sobrenatural, interessando-se pela parapsicologia. E<br />
possuía um po<strong>de</strong>roso controle da mente.<br />
Certa madrugada, em Hamburgo, <strong>de</strong>spertou com uma necessida<strong>de</strong><br />
imensa <strong>de</strong> fumar, logo <strong>de</strong>scobrindo que não tinha sequer um cigarro.<br />
Vestiu o sobretudo sobre o pijama e <strong>de</strong>sceu, indo ao Café da esquina que ficava<br />
aberto a noite inteira. Comprou o maço, e logo se ouviu a sirene, avisando o<br />
próximo bombar<strong>de</strong>io. Ele se refugiou no abrigo, e ao sair, horas mais tar<strong>de</strong>,<br />
dirigiu-se ao pequeno prédio <strong>de</strong> apartamentos on<strong>de</strong> morava. Mas só encontrou<br />
escombros.<br />
Ao <strong>de</strong>screver-me este capítulo dramático <strong>de</strong> sua vida, comentou comigo:<br />
– O cigarro po<strong>de</strong> matar, Vilminha. Mas aquele salvou a minha vida.<br />
Dias <strong>de</strong>pois, o Consulado foi semi-<strong>de</strong>struído durante outro bombar<strong>de</strong>io, e<br />
proibida a entrada dos funcionários, pelo risco <strong>de</strong> <strong>de</strong>sabamento da parte que<br />
ficara <strong>de</strong> pé. Burlando a vigilância dos bombeiros e policiais, papai conseguiu<br />
entrar, abrindo o cofre e salvando importantes documentos oficiais. Mal saíra, o<br />
resto da casa ruiu, com estrondo.
24 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Estes dois fatos o impressionaram terrivelmente. Ao relembrá-los,<br />
costumava dizer que Deus lhe poupara a vida, porque lhe reservava alguma<br />
outra missão maior.<br />
Estes acontecimentos contribuíram para emergir do seu espírito um<br />
sentimento místico, que tanto o influenciou, sobretudo na literatura.<br />
Anos mais tar<strong>de</strong>, meu pai receberia uma con<strong>de</strong>coração especial do<br />
Governo Brasileiro, pelo seu ato <strong>de</strong> heroísmo.<br />
Foi nesta época <strong>de</strong> insegurança e incertezas que ele conheceu Aracy<br />
Moebius <strong>de</strong> Carvalho, funcionária do Consulado, que o assessorava.<br />
Homem sensível, longe da mulher e das filhinhas, papai acabou tendo,<br />
com Aracy, um relacionamento que o ajudou a suportar a solidão. Mas só<br />
vieram a se unir publicamente, anos mais tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> seu Posto em nossa<br />
Embaixada em Bogotá, na Colômbia, para on<strong>de</strong> foi sozinho.<br />
Apesar da separação, embora amigável, <strong>de</strong> meus pais, continuamos nós<br />
quatro: mamãe, Agnes, ele e eu, uma família unida pela compreensão, carinho e<br />
respeito. Amoroso, com sua <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za nata, que tão bem combinava com<br />
mamãe, ele nos visitava quase que diariamente, nos levando bombons e livros;<br />
mas sempre três <strong>rosa</strong>s, para cada uma <strong>de</strong> nós.<br />
Foi quando papai me confi<strong>de</strong>nciou:<br />
– O coração sabe pulsar direitinho diferentes amores...<br />
Ele costumava ter, comigo, longas conversas, e transbordava <strong>de</strong> emoção<br />
ao contar-me sua vivência na Alemanha, durante a guerra.<br />
Em Ba<strong>de</strong>n-Ba<strong>de</strong>n, pitoresca cida<strong>de</strong>zinha alemã que fora elegante estação<br />
<strong>de</strong> águas, antes da guerra, ele e outros diplomatas brasileiros ficaram internados<br />
no luxuoso Brener Park Hotel, como reféns especiais, à espera da troca pelos<br />
diplomatas alemães que ainda estavam no Brasil.<br />
Sem maiores explicações, certo dia foram todos convidados, então, a<br />
<strong>de</strong>ixar Ba<strong>de</strong>n-Ba<strong>de</strong>n, seguindo <strong>de</strong> trem para Lisboa, a fim <strong>de</strong> tomarem o navio<br />
que os levaria <strong>de</strong> volta à pátria.<br />
Daqueles antigos tempos meu pai guardava uma lembrança quase febril:<br />
a viagem no navio todo iluminado, Diplomatic escrito em gran<strong>de</strong>s letras<br />
luminosas. Os passageiros, tensos, dominados pela angústia, atingindo o<br />
<strong>de</strong>sespero quando dois navios cruzaram caminho, pois po<strong>de</strong>ria haver a<br />
sabotagem <strong>de</strong> um torpe<strong>de</strong>amento, alguma traição.<br />
Ele comovia-se, ao contar-me a estória <strong>de</strong>sta viagem dramática e os<br />
exercícios <strong>de</strong> fé a que se obrigava. Eu o escutava também emocionada,<br />
compartilhando com ele daquela fase <strong>de</strong> sua vida que não me pertencera, mas<br />
que me impressionava enormemente.
João Guimarães Rosa, meu pai _______________________________________________ Vilma Guimarães Rosa 25<br />
Foi para nós uma divina surpresa a noticia da chegada do navio, no Rio<br />
<strong>de</strong> Janeiro. Pelo receio <strong>de</strong> sabotagem, havíamos ficado longo tempo sem<br />
notícias, e as famílias só foram avisadas quando o navio entrou na Baía <strong>de</strong><br />
Guanabara.<br />
Grupos foram levados <strong>de</strong> lanchas até perto do navio ancorado.<br />
Mamãe ergueu a Agnes nos braços, sendo imitada pelas outras mães, e<br />
eu subi na caixa do motor. Beijinhos se cruzavam no espaço, e ouvia-se, em<br />
uníssono: – Papai! Papai!<br />
Emocionante e enternecedor o reencontro das mulheres e crianças com<br />
os pais e maridos que não viam há quase dois anos! Lágrimas e risos se<br />
misturavam, eles no convés e nós, nas lanchas, recebendo-os com alegria.<br />
Relembraríamos nos anos futuros a sua chegada, que ele chamava <strong>de</strong><br />
milag<strong>rosa</strong>, pois para todos eles, a viagem fora ameaçada pelas dúvidas.<br />
Quando, no meu último aniversário que festejamos juntos, em junho do<br />
ano em que Deus o chamou, papai <strong>de</strong>u-me <strong>de</strong> presente suas duas ca<strong>de</strong>rnetas<br />
com anotações colhidas na Alemanha, ele fez um discursinho diante <strong>de</strong> todos<br />
ali presentes, dizendo que eu as merecia porque fora sempre muito interessada<br />
em sua vivência durante a guerra.<br />
Perguntei-lhe por que nunca as havia publicado, argumentando que tais<br />
anotações constituíam importante <strong>de</strong>poimento histórico. Papai, com sua<br />
habitual discrição, explicou-me que anotações íntimas lhe serviam <strong>de</strong> fonte, e<br />
que preferia não publicá-las. E acrescentou que naquelas ca<strong>de</strong>rnetas eu<br />
encontraria o complemento <strong>de</strong> seus relatos sobre os quais tanto gostávamos <strong>de</strong><br />
conversar.<br />
Estávamos, naquela noite, festejando meu aniversário em casa <strong>de</strong><br />
Chiquita Marcon<strong>de</strong>s Bernar<strong>de</strong>s, que esteve ligada afetivamente ao papai nos<br />
últimos <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> sua vida, e que sempre se manteve discreta, apesar <strong>de</strong> ter<br />
sido importante para ele, não só pela compreensão com que o recebia em sua<br />
aconchegante casa no Alto Leblon, como também pela sua inteligência<br />
brilhante, com quem ele gostava <strong>de</strong> conversar. Foi a única amiga que ele<br />
apresentou à nossa família, e vovó Chiquitinha, mãe <strong>de</strong> meu pai, se hospedou<br />
conosco várias vezes na fazenda que Chiquita possuía no Estado do Rio. Agnes<br />
e eu lhe somos gratas pela paz e alegria que ela <strong>de</strong>dicou ao papai, principalmente<br />
nos seus últimos meses, quando ele se mostrava <strong>de</strong>primido, talvez<br />
pressentindo um fim muito próximo. Agnes a chama <strong>de</strong> “amor <strong>de</strong> outono” do<br />
papai. E o mais interessante é a semelhança <strong>de</strong> Chiquita com mamãe, física e<br />
intelectualmente... Realmente, conforme ele me explicou, “o coração sabe<br />
pulsar direitinho, amores diferentes”.
26 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Guardo estas ca<strong>de</strong>rnetas com especial carinho. Costumo ler seus<br />
magníficos textos. Pretendo publicá-los, algum dia, quando for sua hora e vez.<br />
Foi o que aconteceu com Magma, seu único livro <strong>de</strong> poemas. Tendo<br />
recebido o primeiro prêmio do Concurso Literário, promovido pela <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />
Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> em 1936, papai jamais publicou-o.<br />
Magma foi consi<strong>de</strong>rado, no concurso, tão superior, que nem houve um<br />
segundo prêmio.<br />
Minha irmã e eu sempre respeitamos a sua vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> não publicá-lo.<br />
Seus amigos, seus admiradores, e nosso editor, tentaram, durante anos, nos<br />
convencer a publicar o livro. Finalmente concluímos que as Obras <strong>de</strong> João<br />
Guimarães Rosa não pertencem somente a nós, suas her<strong>de</strong>iras e guardiãs <strong>de</strong> sua<br />
imagem e <strong>de</strong> seu nome, porém à toda a humanida<strong>de</strong>.<br />
Os poemas <strong>de</strong> Magma, que publicamos há poucos anos, são filigranas <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e sensibilida<strong>de</strong>.<br />
Quando papai se foi, foram-me entregues a sua biblioteca e os textos<br />
originais que se encontravam em sua casa. Aconselhada a doar para alguma<br />
entida<strong>de</strong> que, mostrando interesse em possuí-los, cuidaria <strong>de</strong> todo o acervo com<br />
<strong>de</strong>svelo, <strong>de</strong>cidi doá-los à USP, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, a única entida<strong>de</strong> que<br />
se mostrou naquela ocasião interessada em possuir acervo <strong>de</strong> meu pai. Não me<br />
arrependo, pois ele está no lugar certo, acessível aos estudantes, leitores e<br />
admiradores da Obra <strong>de</strong> João Guimarães Rosa, e cuidam do acervo com gran<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>dicação.<br />
Também naquela triste ocasião, logo após a morte <strong>de</strong> meu pai, entreguei<br />
os originais <strong>de</strong> seus livros póstumos Ave Palavra e Estas Estórias ao nosso<br />
querido amigo e naquela época nosso editor, José Olympio Pereira. Papai já me<br />
havia dito que após mais uma releitura, pretendia publicá-los. E eu me apressei<br />
em satisfazer a sua vonta<strong>de</strong>.<br />
Hoje, suas Obras estão na Editora Nova Fronteira, e Agnes e eu acompanhamos<br />
com interesse as excelentes publicações.<br />
Papai me chamava <strong>de</strong> sua “secretária para assuntos especiais”, e uma <strong>de</strong><br />
minhas funções era representá-lo nas reuniões sociais que ele <strong>de</strong>testava, nas<br />
conferências e outros eventos que lhe tiravam o tempo <strong>de</strong> escrever. Pois ele<br />
gostava mesmo era <strong>de</strong> ficar em casa, vestindo o pijama e batendo à maquina, à<br />
sua maneira peculiar, com dois <strong>de</strong>dos apenas. Eu o representava, mas <strong>de</strong>pois<br />
tinha <strong>de</strong> contar-lhe o evento, com <strong>de</strong>talhes. E ele achava graça no comentário<br />
que eu lhe fazia:<br />
– As reuniões sociais me divertem, papai, pois vou encontrando nelas os<br />
meus futuros personagens. Afinal, tudo tem sua hora e sua vez...
João Guimarães Rosa, meu pai _______________________________________________ Vilma Guimarães Rosa 27<br />
Seu posto na Colômbia também foi bastante agitado pelas conturbações<br />
políticas do país. Ele nos escrevia falando <strong>de</strong> sua vida e <strong>de</strong> seu trabalho, mas<br />
sempre com o tempero da graça e do humor, para minimizar o perigo das<br />
contínuas greves e agitações que abalavam o povo.<br />
Voltando ao Brasil, foi convidado, por duas vezes, para ser o Chefe <strong>de</strong><br />
Gabinete do seu fraterno amigo João Neves da Fontoura, então Ministro das<br />
Relações Exteriores. Papai atuou com o costumeiro brilho, como Membro<br />
Especial da Delegação à Conferência da Paz, em Paris. E como Secretário<br />
Geral da IX Conferência Interamericana, em Bogotá.<br />
Nomeado Conselheiro <strong>de</strong> nossa Embaixada em Paris, logo que chegamos<br />
ele matriculou-me na Universida<strong>de</strong> Sorbonne e na Alliance Française, acompanhando<br />
os meus estudos com especial atenção, como sempre o fizera quando<br />
Agnes e eu estudávamos no Rio. Ele nos aconselhava a ler os autores que<br />
julgava melhores, nos presenteava com livros ótimos e nos aconselhava:<br />
“– É preciso muito estudo e muita leitura! Nada <strong>de</strong> namoro! Casamento, só<br />
<strong>de</strong>pois dos 40 anos!...”<br />
Ele sempre foi muito alegre e brincalhão e intercalava os momentos <strong>de</strong><br />
serieda<strong>de</strong> com seu senso <strong>de</strong> humor apurado.<br />
Quando morávamos em Paris, papai começou a escrever Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />
Veredas. Assim que terminava uma página, pedia para que eu a lesse, algumas<br />
vezes atrasando meus compromissos sociais, à noite. Da primeira vez, apressada,<br />
passei os olhos no papel e elogiei: “– Está ótimo!” Ele então reclamou:<br />
“– Você não leu coisa alguma, Vilminha. Leia agora em voz alta.”<br />
Comentei com sincerida<strong>de</strong> que, realmente, lido em voz alta, o texto se<br />
realçava surgindo musical e entendível. Ele aprovou o meu comentário, e <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
então eu praticamente tinha que <strong>de</strong>clamar cada página. Até hoje, gosto <strong>de</strong> reler<br />
alguns trechos <strong>de</strong> seus livros, em voz alta. Fico fascinada pela sua musicalida<strong>de</strong>.<br />
Ao perguntar-lhe como conseguia escrever sobre o sertão sem conhecêlo,<br />
pois Cordisburgo on<strong>de</strong> ele nascera, e Itaguara on<strong>de</strong> clinicara durante algum<br />
tempo, não ficavam na zona sertaneja; e afinal, estávamos na França, tão longe<br />
do Brasil. Ele me respon<strong>de</strong>u, tocando na testa com a ponta do indicador:<br />
– Meu sertão é metafísico, Vilminha. Ele está aqui. Eu o crio e vou galopando,<br />
vivendo nele as minhas estórias.<br />
Portanto, a única vez em que meu pai visitou durante mais tempo o<br />
sertão, foi a convite do seu amigo, o jornalista e proprietário <strong>de</strong> jornais Assis<br />
Chateaubriand. Em Caldas do Cipó, na Bahia, formaram na Guarda-Vaqueira<br />
que foi ao aeroporto receber outro amigo, o Presi<strong>de</strong>nte Getúlio Vargas. Ao
28 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
papai coube comandar os vaqueiros <strong>de</strong> Soure e <strong>de</strong> Cipó. Houve <strong>de</strong>pois um<br />
<strong>de</strong>sfile grandioso nos anais sertanejos. Todos vestidos a caráter, usando roupas<br />
<strong>de</strong> couro.<br />
Ao perguntar-me o que <strong>de</strong>veria usar na ocasião, sugeri que ele<br />
comprasse uma calça jeans, um casaco <strong>de</strong> couro e botas. Mas telefonei ao<br />
Dr Chateaubriand, querendo saber se eu havia dado o conselho certo. Este<br />
me pediu que não me preocupasse. Com gene<strong>rosa</strong> gentileza, enviou ao<br />
papai um traje completo <strong>de</strong> vaqueiro. À noite recebi seu animado<br />
telefonema:<br />
– Venha correndo, Vilminha! Eu estou parecendo o John Wayne, me<br />
sinto um personagem <strong>de</strong> filme <strong>de</strong> faroeste!<br />
Fui admirar <strong>de</strong> perto sua nova imagem, e comentei: – Está um John<br />
Wayne um pouco gorducho, papai. Mas impressiona!<br />
Sua alegria era autêntica, e ansiava pela gran<strong>de</strong> aventura no sertão, em<br />
companhia dos amigos.<br />
A foto <strong>de</strong>le, vestindo a roupa <strong>de</strong> vaqueiro, não retrata o verda<strong>de</strong>iro<br />
Guimarães Rosa, pois foi apenas a fantasia que usou naquele dia. O terno<br />
escuro e a gravata borboleta é que retratam meu pai, na realida<strong>de</strong>.<br />
Ao retomar o contato com a terra brasileira, além da viagem a Caldas do<br />
Cipó, na Bahia, ele fez uma interessante excursão ao Pantanal <strong>de</strong> Mato Grosso,<br />
que lhe inspirou a reportagem “Com o Vaqueiro Mariano”, publicada no Rio e<br />
em São Paulo.<br />
O seu primeiro livro já nascera, sob pseudônimo, poucos sabendo<br />
disso. Eram os “Contos” que em 1937 haviam concorrido ao Prêmio<br />
Humberto <strong>de</strong> Campos, da livraria José Olympio Editora, conquistando o<br />
segundo lugar.<br />
Ainda assim, ele permaneceu mais sete anos refazendo o escrito,<br />
repolindo linguagem e estruturas. Era um perfeccionista. Pensava talvez como<br />
Rousseau, também tardio estreante na literatura:<br />
“A meta<strong>de</strong> da vida não basta para compor um bom livro, nem a outra<br />
meta<strong>de</strong> para o corrigir”.<br />
Em abril <strong>de</strong> 1946, Sagarana é publicado pela Editora Universal, do<br />
amigo Caio Pinheiro. Foi um estrondoso sucesso. O <strong>de</strong>flagrar <strong>de</strong> uma revolução<br />
literária. Duas edições seguidas esgotadas, e o Prêmio da Socieda<strong>de</strong> Felipe<br />
d’Oliveira. Sagarana foi consagrada pela crítica como uma importantíssima<br />
obra <strong>de</strong> ficção. A palavra título <strong>de</strong>ste seu primeiro livro, Sagarana, foi<br />
construída pela expressiva do nórdico vocábulo: saga, com a <strong>de</strong>sinência<br />
indicadora <strong>de</strong> semelhança, em Tupi: rana.
João Guimarães Rosa, meu pai _______________________________________________ Vilma Guimarães Rosa 29<br />
De Sagarana em diante, estreitam-se as intimida<strong>de</strong>s entre o autor e a<br />
obra, <strong>de</strong> tal modo que se chega, sem muito esforço, a encontrar em cada um dos<br />
seus livros um reflexo exato <strong>de</strong> sua personalida<strong>de</strong>.<br />
Por exemplo: TATARANA (um dos personagens <strong>de</strong> GR – T (prefixo <strong>de</strong><br />
classe superior) + ATÁ (fogo) + RANA (semelhante). O Tupi é língua aglutinante.<br />
O espírito do autor se transmitiu à obra e nela se <strong>de</strong>sescon<strong>de</strong>u meu pai,<br />
em seu natural, página por página, por trás das palavras ou adiante <strong>de</strong>las, no<br />
sentido das coisas que disse. Pesquisável e encontrável. Por vezes surgindo<br />
espontâneo, sem precisão <strong>de</strong> pesquisa, e por vezes sussurrando a sua verda<strong>de</strong><br />
interior, para que se chegue mais perto e mais atenção se ponha na conversa.<br />
Em 1956 foi lançado o fabuloso Corpo <strong>de</strong> Baile, com suas sete novelas,<br />
numa linguagem rica em beleza e força <strong>de</strong> estilo. Este livro foi posteriormente<br />
dividido em três volumes: Noites do Sertão, Manuelzão e Minguilim e No<br />
Urubuquaquá, no Pinhém.<br />
Ano produtivo, pois o Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, seu único romance –<br />
pois papai foi essencialmente um contista – também apresentado aos leitores,<br />
tornou-se imediatamente um sucesso. Criou verda<strong>de</strong>iro impacto, não só no<br />
Brasil, mas também nos países em cujas línguas foi traduzido. Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />
Veredas possui técnica e linguagem especialíssimas, e um profundo conhecimento<br />
psicológico da alma <strong>de</strong> seus personagens. Além das críticas consagradoras,<br />
surgiram ataques violentos, e papai os <strong>de</strong>safiava, recortando os<br />
artigos e colando-os no álbum, <strong>de</strong> cabeça para baixo.<br />
Ensinou-me, então, algo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância, que jamais esqueci:<br />
– Você <strong>de</strong>ve temer apenas um crítico: você mesma. Se estiver achando<br />
tudo o que escreve, ótimo, cuidado. Descanse o material numa gaveta e <strong>de</strong>pois<br />
o releia, com outro espírito. Sem pressa. Lembre-se, não se fabricam livros<br />
como se faz macarrão. Qualida<strong>de</strong> é sempre mais importante do que quantida<strong>de</strong>.<br />
E se você algum dia quiser <strong>de</strong>struir o que escreveu, achando tudo horrível,<br />
atenção! Você talvez já esteja atingindo a perfeição.<br />
Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas recebeu três prêmios: “Machado <strong>de</strong> Assis”, do<br />
instituto Nacional do Livro, “Carmem Dolores Barbosa”, <strong>de</strong> São Paulo e “Paula<br />
Brito”, da Municipalida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
Muito merecidamente promovido a Embaixador, em 1958, recusou<br />
postos disputados, no Exterior, que lhe eram oferecidos pelo próprio Presi<strong>de</strong>nte<br />
Juscelino Kubitschek, seu amigo e colega <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos da Força Pública <strong>de</strong><br />
Minas. Preferia continuar tranqüilamente nas suas funções no Ministério e dar<br />
expansão à sua criativida<strong>de</strong>, escrevendo novas estórias.
30 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Foi então convidado para ser Vice-Presi<strong>de</strong>nte do Congresso <strong>de</strong> Escritores,<br />
no México. Participou da comissão <strong>de</strong> outorga do Prêmio Walmap. Para o<br />
Conselho Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Cultura, que integrava, elaborou extenso pronunciamento<br />
sobre novo acordo ortográfico e as diversida<strong>de</strong>s lingüísticas do português, nas<br />
duas margens do Atlântico. Participou com brilhantismo <strong>de</strong> algumas<br />
Conferências pela Paz.<br />
Meu pai sempre se <strong>de</strong>dicou ao trabalho com o mesmo entusiasmo com<br />
que se entregava à literatura.<br />
Em janeiro <strong>de</strong> 1962, assumindo pelo próprio pedido a chefia do Serviço<br />
<strong>de</strong> Demarcação <strong>de</strong> Fronteiras, do Itamarati, ali encontrou o ambiente i<strong>de</strong>al para<br />
o trabalho, ao qual se <strong>de</strong>dicou com fervor, tendo ajudado a resolver problemas<br />
<strong>de</strong> importância internacional, relacionados com nossas fronteiras.<br />
Papai agigantou-se na chefia daquela Divisão, na incessante lida com<br />
problemas surgidos com o Pico da Neblina e o Salto das Sete Quedas. Noites a<br />
fio, no Ministério do Exterior, ele expediu documentos, preparou instruções,<br />
cotejando mapas e documentos históricos. Vibrou em <strong>de</strong>fesa da terra. Seu fino<br />
trato <strong>de</strong> diplomata apaziguou os ânimos. Esclareceu on<strong>de</strong> havia dúvidas e repôs<br />
a exatidão no incerto. Com patriotismo, mas amor ao direito. E mantendo uma<br />
fé inabalável na solução pacífica das controvérsias.<br />
Foi um diplomata <strong>de</strong>dicado e talentoso. Sua carreira não interferiu,<br />
todavia, na sua <strong>de</strong>voção à literatura. E ele conseguiu conciliar, com sucesso, o<br />
título <strong>de</strong> Embaixador brilhante e <strong>de</strong> genial escritor, consi<strong>de</strong>rado um dos maiores<br />
expoentes do século. E recentemente eleito, no Exterior, um dos <strong>de</strong>z maiores<br />
escritores do mundo.<br />
Já era, então, consagrado Mestre da Literatura Brasileira, e seus livros<br />
aclamados por leitores e críticos brasileiros e <strong>de</strong> outros países.<br />
Foi então que <strong>de</strong>clarou, com humilda<strong>de</strong>:<br />
“– Mestre é aquele que <strong>de</strong> repente também apren<strong>de</strong>.”<br />
Dedicava-se, <strong>de</strong> modo especial ao próximo livro, Tatuméia, Terceiras<br />
Estórias, que conseguiu publicar um mês antes <strong>de</strong> morrer.<br />
Tutaméia chegou aos leitores com o mesmo gran<strong>de</strong> sucesso <strong>de</strong> seus<br />
outros livros. Obra hermética, possuindo quatro prefácios e um conjunto <strong>de</strong><br />
estórias que sobressaem pelo refinamento do estilo.<br />
Num dos prefácios <strong>de</strong> Tutaméia, papai revelou: “Só sei que há mistérios<br />
<strong>de</strong>mais, em torno dos livros e <strong>de</strong> quem os lê, e <strong>de</strong> quem os escreve; mas<br />
convindo, principalmente a uns e outros, a humilda<strong>de</strong>”.<br />
Num outro prefácio <strong>de</strong> Tatuméia, papai confessou que sua vida, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os<br />
primeiros anos, foi dirigida por fatos misteriosos. Premonições reveladas em
João Guimarães Rosa, meu pai _______________________________________________ Vilma Guimarães Rosa 31<br />
sonhos, telepatia, intuição, série <strong>de</strong> acontecimentos fortuitos interligados, toda<br />
sorte <strong>de</strong> avisos e pressentimentos.<br />
Declarou também que muitos <strong>de</strong> seus contos eram sonhados por ele,<br />
antes <strong>de</strong> escritos. Segundo as suas próprias palavras eles o perseguiam, com<br />
insistência, na ansieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> serem escritos. Definiu o mistério da inspiração<br />
como um divino estado <strong>de</strong> transe, assim como o dom da criativida<strong>de</strong>.<br />
Ele buscava sempre uma introvisão da linguagem, a radiografia das<br />
palavras. Brincava com os sentidos vários <strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>las, <strong>de</strong>ixando em<br />
Tutaméia muitos exemplos. Experimentava. Recolhia um plural <strong>de</strong> idéias numa<br />
frase só, e, mesmo, numa só palavra. O aparente e o pesquisável, misturados<br />
entre o pensamento e as letras.<br />
– Por que não houve Segundas Estórias? – quis eu saber, já que das<br />
Primeiras Estórias, uma coletânea <strong>de</strong> 21 contos curtos, verda<strong>de</strong>iros poemas em<br />
p<strong>rosa</strong>, ele saltara para Tutaméia, Terceiras Estórias.”<br />
Ele fez uma <strong>de</strong> suas costumeiras expressões <strong>de</strong> mistério e explicou:<br />
– É para provocar a curiosida<strong>de</strong> do leitor!”<br />
Meu pai tinha um gran<strong>de</strong> interesse nas realida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um mundo imaterial<br />
e no significado da criação.<br />
Sempre procurou a conexão entre o visível e o invisível. E sua filosofia<br />
pessoal está sempre presente em suas obras. Durante toda a sua vida, meditou<br />
profundamente sobre a eternida<strong>de</strong>.<br />
Numa bela carta escrita ao Dr. Joaquim Montezuma <strong>de</strong> Carvalho, famoso<br />
escritor português que morava na África, e que fez um profundo estudo <strong>de</strong> sua<br />
Obra, levando-a figurar em Les Écrivains Célèbres, publicado em Paris, há um<br />
trecho especial:<br />
“Quanto mais leio e vivo e medito, mais perplexo a vida, a literatura e a<br />
meditação me põem. Tudo é mistério. A vida é só mistério.”<br />
E mais adiante:<br />
“...À parte o que Cristo nos ensinou, só há meias verda<strong>de</strong>s...<br />
“Rezo, escrevo, amo, cumpro, suporto, vivo – mas só me interessando<br />
pela eternida<strong>de</strong>...<br />
“...Quando faço arte, é para que se transforme algo em mim, para que o<br />
espírito cresça.”<br />
Dr. Montezuma <strong>de</strong> Carvalho gentilmente enviou-me esta carta, há alguns<br />
anos. Gosto <strong>de</strong> relê-la e <strong>de</strong> meditar sobre a sua essência filosófica.<br />
Parafraseando o Padre Vieira, “O homem é sobretudo a sua Obra”.<br />
Em sua Obra, papai transmitiu a sua mensagem espiritual, a mensagem<br />
<strong>de</strong> sua vida.
32 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Ele criou uma linguagem livre das garras do convencional, <strong>de</strong>senvolta<br />
sintaxe alforriada, transferindo emoções, transportando-as sem <strong>de</strong>svio ou<br />
<strong>de</strong>scaminho. Pensava como Paul Valéry:<br />
“A sintaxe é uma faculda<strong>de</strong> da alma”. E lembrava a velha máxima Tibetana:<br />
“A palavra <strong>de</strong>ve vestir-se como uma <strong>de</strong>usa, e erguer-se como um pássaro”.<br />
Nos próprios neologismos que criou, sente-se a sedução da palavra inventada.<br />
Lembrando Mallarmé, costumava dizer que as palavras são <strong>de</strong> carne e<br />
osso, seres vivos. A carne macia das vogais e a ossatura das consoantes.<br />
Meu pai sempre foi ele mesmo, sendo em sentido e em som. Por espontaneida<strong>de</strong><br />
repolida, para inteira exatidão. Exerceu influências duradouras, ao<br />
romper caminhos novos, surgindo como <strong>de</strong>scobridor das possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma<br />
língua impressentidamente plástica.<br />
Naquele ano <strong>de</strong> 1967, na Europa, lembravam-lhe o nome para o Prêmio<br />
Nobel. João Guimarães Rosa transportara-se a outras terras, levando ao<br />
Exterior a vigo<strong>rosa</strong> imagem do Brasil.<br />
Quando começou a escrever, o enredo <strong>de</strong> suas estórias se passava<br />
em países que o fascinavam, mas que ele ainda não conhecia. Alguns <strong>de</strong>sses<br />
contos foram premiados e publicados em várias revistas conhecidas da época.<br />
Mais tar<strong>de</strong> preferiu o cenário brasileiro como fonte <strong>de</strong> inspiração <strong>de</strong> suas<br />
Obras.<br />
Ele tinha a realização do sonho por objetivo; a vonta<strong>de</strong> como instrumento,<br />
e o estímulo da esperança.<br />
Não se ateve à pele da vida.<br />
Aquela semana <strong>de</strong> novembro, em 1967, os jornais a chamavam <strong>de</strong><br />
“Semana dos Guimarães Rosa”. Eu estava transbordando <strong>de</strong> alegria pela<br />
realização <strong>de</strong> um antigo sonho: meu primeiro livro, Acontecências, fora publicado,<br />
e seria lançado na segunda-feira 13, com noite <strong>de</strong> autógrafos organizada<br />
pelo Peter, meu marido. Papai, também feliz, contando a todos da família e<br />
entre os amigos o quanto estava orgulhoso. Mas avisou-me que ele não <strong>de</strong>veria<br />
comparecer, para não roubar cena da estrela da festa”. Insisti, mas ele parecia<br />
<strong>de</strong>cidido. Eu, que sempre lhe havia mostrado a minha literatura, não o <strong>de</strong>ixara<br />
ler os originais do meu livro, movida pelo orgulho <strong>de</strong> principiante, teme<strong>rosa</strong> <strong>de</strong><br />
que uma possível influência sua pu<strong>de</strong>sse interferir no meu estilo ou na minha<br />
temática. Um ano antes, eu enviara os originais ao José Olympio, que ainda não<br />
me conhecia, ocultando a minha i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> sob pseudônimo. Não queria que<br />
meu livro fosse publicado sob proteção paterna.<br />
Papai escreveu-me uma carta linda, que está hoje emoldurada sobre<br />
minha mesa <strong>de</strong> trabalho. Ele pediu que seu amigo, o escritor Geraldo França <strong>de</strong>
João Guimarães Rosa, meu pai _______________________________________________ Vilma Guimarães Rosa 33<br />
Lima, que me conhecia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequenina, lesse a carta em voz alta, durante a<br />
noite <strong>de</strong> autógrafos. Os jornalistas presentes a copiaram e ela foi publicada em<br />
diferentes jornais.<br />
Afinal, ele compareceu. Com a cumplicida<strong>de</strong> do meu marido, papai<br />
sentou-se, oculto pela vegetação que <strong>de</strong>corava a pérgola do Iate Clube, assistindo,<br />
<strong>de</strong>leitado, ao <strong>de</strong>senrolar da minha noite <strong>de</strong> autógrafos.<br />
Mais tar<strong>de</strong> saiu do escon<strong>de</strong>rijo, e surgiu todo risonho diante <strong>de</strong> mim.<br />
Abraçou-me com carinho chamando-me “lépida, límpida e luminosa colega <strong>de</strong><br />
letras”, e aquele foi, realmente, meu momento <strong>de</strong> glória. Ele costumava nos<br />
dizer, à Agnes e a mim, que <strong>de</strong>veríamos sempre cultivar a arte <strong>de</strong> sermos<br />
“lépida, límpida e luminosa”, a fim <strong>de</strong> melhor, e com mais sucesso, enfrentarmos<br />
a vida. Então eu senti que, <strong>de</strong> alguma forma, pelo menos naquela noite,<br />
eu o conseguira, na opinião <strong>de</strong> meu pai.<br />
Combinamos, então, para a semana seguinte, uma sessão <strong>de</strong> leitura do<br />
meu livro, a quatro olhos, sujeita a alguma crítica construtiva, o que infelizmente<br />
não foi possível acontecer. Muito antes, ao lhe participar o título<br />
Acontecências, ele tentara, em vão, convencer-me a trocá-lo, pois “o achava ser<br />
Guimarães Rosa <strong>de</strong>mais”, po<strong>de</strong>riam pensar que tivesse sido ele o criador da<br />
palavra “Acontecências”. Mas não me convenceu. Disse-lhe o quanto frustrante<br />
seria, para mim, se eu <strong>de</strong>sistisse <strong>de</strong> minhas próprias criações, receando<br />
críticas. Ele confessou admirar a minha coragem. Também revelou que não<br />
resistira e já lera o meu livro, pois fora avisado pelo José Olympio assim que os<br />
primeiros volumes haviam chegado à editora. O importante, para mim, é que<br />
papai estava entusiasmado, aprovando o meu estilo direto e gostando das<br />
minhas estórias!<br />
Ele vinha adiando a sua Posse na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, já por<br />
quatro anos. Recebi pedidos para convencê-lo, mas quando eu tocava no<br />
assunto, ele criava <strong>de</strong>sculpas quase convincentes.<br />
Afinal, papai escolheu o dia 16 daquele mês, data <strong>de</strong> nascimento do<br />
gran<strong>de</strong> amigo e colega <strong>de</strong> Carreira, João Neves da Fontoura, para cuja vaga, na<br />
Ca<strong>de</strong>ira número dois da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, ele fora eleito.<br />
De repente, logo após a animação e a alegria da minha noite <strong>de</strong> autógrafos,<br />
papai não conseguia disfarçar uma expressão triste e preocupada. Pensei<br />
que fosse o excesso <strong>de</strong> emoção, ou até mesmo a própria timi<strong>de</strong>z, temendo ser o<br />
centro das atenções, e aparecer todo engalanado, com o fardão acadêmico. Ao<br />
perguntar-lhe o que andava sentindo, ele respon<strong>de</strong>u-me:<br />
– Estou com sauda<strong>de</strong>s da eternida<strong>de</strong>...<br />
Mas parecia muito seguro <strong>de</strong> si, durante a solenida<strong>de</strong> da Posse.
34 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
No seu belíssimo discurso, ressaltou muito especialmente a evocação da<br />
vida e dos seus valores fundamentais:<br />
“– A gente morre, para provar que viveu...”<br />
E lá está também a morte, em i<strong>de</strong>al conceituação, enfatizada pela sua<br />
<strong>de</strong>finição lúdica:<br />
“– As pessoas não morrem, ficam encantadas.”<br />
A pedido <strong>de</strong> um jornalista, eu havia retribuído sua linda carta com um<br />
poeminha que foi publicado no Diário <strong>de</strong> Notícias daquele domingo 19, Dia da<br />
Ban<strong>de</strong>ira, que ele tanto reverenciava. Papai telefonou-me, agra<strong>de</strong>cendo-me,<br />
visivelmente emocionado. Conversamos longamente, mas eu sentia um tom<br />
nostálgico em sua voz. Creio que ele já pressentia o próprio encantamento...<br />
Naquela noite, repentinamente, Deus chamou-o, acolhendo-o no<br />
encantamento eterno.<br />
Chegara ao fim a semana Guimarães Rosa.<br />
Sem que o soubéssemos, aquela troca <strong>de</strong> mensagens – a sua carta e o<br />
meu poeminha – haviam sido a nossa <strong>de</strong>spedida.<br />
A reprojeção da sauda<strong>de</strong> é a permanência da beleza vista, da beleza<br />
sentida.<br />
Lucio Cardoso, no seu Diário Completo, escreveu:<br />
“Só permanece o pensamento criador que nasce <strong>de</strong> uma experiência<br />
funda, pessoal. O resto, esparso no ar, o vento das épocas carrega para longe...”<br />
Meu pai permanece por seu pensamento e trabalho. Persiste na sua Obra<br />
maravilhosa e nos i<strong>de</strong>ais que o animaram. Experiências fundas, pessoais, <strong>de</strong> um<br />
amor intenso à sua família, à sua Terra, ao acima dos homens: o Deus que hoje<br />
o guarda como o guardou em vida.<br />
Parafraseando Ben Johnson, fico feliz em dizer:<br />
Pelo amor ao meu pai,<br />
Honrarei a sua memória.<br />
Ele não foi <strong>de</strong> uma época,<br />
Mas para todo o sempre.
OS JAGUNÇOS E O RIO DO CHICO NO<br />
GRANDE SERTÃO: VEREDAS*<br />
Letícia Malard**<br />
Não é novida<strong>de</strong> para os leitores e estudiosos do Gran<strong>de</strong> Sertão:Veredas<br />
que nesse romance se <strong>de</strong>senha toda uma geografia aquática: além <strong>de</strong> veredas<br />
em sentido estrito, mapeiam-se rios, riachos, ribeirões, córregos, lagoas e<br />
cachoeiras. Muitos existem na realida<strong>de</strong> e com o mesmo nome. Outros tantos<br />
também existem, mas com nome ligeiramente modificado. E vários outros<br />
foram criados por Guimarães Rosa, apesar <strong>de</strong> alguns leitores da obra que<br />
conhecem o real da região afirmarem que o autor não inventou nenhum<br />
topônimo. Esses aci<strong>de</strong>ntes geográficos relativos à água não servem apenas para<br />
compor a paisagem sertaneja. Servem principalmente para articular ou<br />
relacionar entre si os episódios da caótica narrativa, numa perfeita simbiose do<br />
homem com o sertão, da terra com a água.<br />
O título do romance já assinala a importância <strong>de</strong>sse universo aquático. O<br />
substantivo comum “vereda (s)” aparece 77 vezes no livro, quase todas fazendo<br />
par com outro substantivo comum – “buriti”, um tipo <strong>de</strong> palmeira, árvore<br />
querida por Guimarães Rosa. Para o buriti se <strong>de</strong>senvolver, é necessária uma<br />
gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> água. Isso significa que o escritor faz questão <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar<br />
uma característica inconfundível da paisagem do nosso sertão – que não é o<br />
sertão seco do Nor<strong>de</strong>ste – mas um sertão molhado, irrigado pela própria<br />
natureza. Sobrepondo os buritis às veredas, o escritor agrega ao sertão<br />
“su<strong>de</strong>stino” a plasticida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma aquarela carregada no ver<strong>de</strong> com pinceladas<br />
em azul, mesclando vegetação e água.<br />
* Palestra proferida na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em 19 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008, <strong>de</strong>ntro da Semana Cultural<br />
Guimarães Rosa, comemorativa do seu centenário <strong>de</strong> nascimento.<br />
**Professora Emérita <strong>de</strong> Literatura Brasileira da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais. Seus últimos<br />
livros são Um Amor Literário (romance) e Literatura e Dissidência Política (ensaios).
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Na correspondência trocada com Edoardo Bizzarri, seu tradutor italiano,<br />
Guimarães Rosa esclarece:<br />
“[as veredas] São vales <strong>de</strong> chão argiloso ou turfo-argiloso, on<strong>de</strong> aflora a<br />
água absorvida. Nas veredas há sempre o buriti. De longe, a gente avista os<br />
buritis, e já sabe: lá se encontra água. A vereda é um oásis. [...] <strong>de</strong> belo ver<strong>de</strong>claro,<br />
aprazível, macio. O capim é verdinho-claro, bom. [...]<br />
[Há] Veredas com uma lagoa; com um brejo ou pântano; com pântanos<br />
<strong>de</strong> on<strong>de</strong> se formam e vão escoando e crescendo as nascentes dos rios; [...] com<br />
córrego, ribeirão ou riacho. (Por isso, também, em certas partes da região,<br />
passaram a chamar também <strong>de</strong> veredas os ribeirões, riachos e córregos – para<br />
aumentar nossa confusão.[...]<br />
Nas veredas há às vezes gran<strong>de</strong>s matas, comuns. Mas, o centro, o íntimo<br />
vivinho e colorido da vereda, é sempre ornado <strong>de</strong> buritis [...] à beira da água; as<br />
veredas são sempre belas!” (1)<br />
Assim, apesar das diversas significações que “vereda” po<strong>de</strong> ter, inclusive<br />
a <strong>de</strong> “caminho”, acreditamos que no romance signifique sempre “cabeceira e<br />
curso <strong>de</strong> água orlados <strong>de</strong> buritis, especialmente na zona são-franciscana”,<br />
conforme a acepção 9. do Dicionário Aurélio Século XXI.<br />
Dessa forma, o buriti po<strong>de</strong> representar o “jagunço” vegetal das veredas,<br />
assim como o homem é o jagunço “animal” do sertão. O Paredão [<strong>de</strong> Minas],<br />
arraial em que Diadorim morre e jaz enterrada, um distrito <strong>de</strong> Pirapora, na<br />
geografia real a partir <strong>de</strong> 1963 passou a ser distrito <strong>de</strong> Buritizeiro. Buritizeiro é<br />
uma terra <strong>de</strong> buritis, vila figurante em textos do escritor, plantada à margem<br />
esquerda do São Francisco. Buritis é também nome <strong>de</strong> outra cida<strong>de</strong>, no mapa<br />
real. Sabe-se que a palavra “buriti” aparece em vários textos <strong>de</strong> Rosa. E não foi<br />
gratuito o fato <strong>de</strong>, na véspera <strong>de</strong> sua morte, ele ter pedido que um bonito buriti<br />
ilustrasse a publicação do seu discurso <strong>de</strong> posse na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong><br />
<strong>Letras</strong>, morte ocorrida três dias <strong>de</strong>pois da posse. Com efeito: numa página<br />
esquerda, na primeira edição, lá está a palmeira, <strong>de</strong>stacando-se <strong>de</strong> outras, no<br />
belo <strong>de</strong>senho em preto e branco <strong>de</strong> Percy Lau. (2)<br />
Ao falar das águas do sertão, o autor e o narrador se unem em uma<br />
mesma entida<strong>de</strong>, quanto aos sentimentos experimentados ante o chamado “rio<br />
da unida<strong>de</strong> nacional”. Da parte da realida<strong>de</strong> do autor, há um bilhete à filha<br />
Vilma, a propósito <strong>de</strong> uma conferência que ela fazia. Aí ele <strong>de</strong>senhou o próprio<br />
rosto, chorando <strong>de</strong> emoção, saindo dos olhos uma corrente <strong>de</strong> lágrimas on<strong>de</strong><br />
escreveu “Rio São Francisco”.(3) Da parte da ficção, Riobaldo confirma: “Rio<br />
é só o São Francisco. O resto pequeno é vereda”.(4) Riobaldo também evoca “o<br />
po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>le, [do São Francisco] largas águas, seu <strong>de</strong>stino”.(5) Esse rio se
Os Jagunços e o Rio do Chico no Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas _______________________________ Letícia Malard 37<br />
constitui em um ingrediente cenográfico e afetivo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> impacto no<br />
romance. É na sua margem, e em seguida na sua travessia, que Riobaldo e<br />
Diadorim se conhecem, transformando a travessia literal do rio em outras<br />
travessias <strong>de</strong> caráter metafórico em todo o romance.<br />
Lembre-se que em 1952, quando estava adiantado o projeto <strong>de</strong> sua<br />
produção literária, Guimarães Rosa também realizou sua travessia literal por<br />
uma parte do sertão: ele percorreu cerca <strong>de</strong> 120 quilômetros no norte <strong>de</strong> Minas,<br />
acompanhando uma boiada que partiu da Fazenda da Sirga ou Selga – hoje<br />
localizada no município <strong>de</strong> Três Marias – à beira do São Francisco, chegando<br />
até Araçaí (não confundir com outra cida<strong>de</strong> mineira, Araçuaí) – próximo <strong>de</strong><br />
Cordisburgo. Essa fazenda é mencionada no romance. Durante a viagem, na<br />
companhia <strong>de</strong> vaqueiros, o autor fez muitas anotações em ca<strong>de</strong>rnetas, com o<br />
objetivo <strong>de</strong> aproveitá-las em seus textos. Um <strong>de</strong>sses, do livro Corpo <strong>de</strong> Baile, é<br />
o conto “Uma estória <strong>de</strong> amor”, também conhecido como “A festa <strong>de</strong><br />
Manuelzão”, cujo protagonista é o vaqueiro Manuel Nárdi, que o escritor<br />
conhecera naquela viagem. Nela também conheceu o Zito, outro personagem.<br />
O médico Guimarães Rosa, recém-formado e muito jovem, clinicou em<br />
Itaguara, município <strong>de</strong> Itaúna, e em Barbacena. Nessas localida<strong>de</strong>s teria consultado<br />
arquivos sobre jaguncismo. São hipóteses, pois sua biografia oficial ainda<br />
está para ser feita.(6) No entanto, acreditamos que aquela viagem pela região<br />
são-franciscana do norte <strong>de</strong> Minas tenha sido indispensável para um mais<br />
efetivo contato com lendas sobre jagunços e com o São Francisco, que partiu a<br />
vida <strong>de</strong> Riobaldo em duas partes, como <strong>de</strong>clarou esse personagem. (7) O<br />
contato proporcionado pela viagem po<strong>de</strong> ter sido fundamental na confecção do<br />
romance, que foi publicado menos <strong>de</strong> quatro anos <strong>de</strong>pois.<br />
No Gran<strong>de</strong> sertão:veredas, o São Francisco, talvez por ser o maior rio<br />
dos Gerais e ser também muito querido tanto pelo autor quanto pelo narrador,<br />
vê, ouve e sente os inesquecíveis episódios da narrativa. Aparece cerca <strong>de</strong><br />
cinqüenta vezes, quer pelo nome oficial, quer pelos íntimos e carinhosos “Rio<br />
do Chico” ou simplesmente “o do Chico”. Estranho que não apareça também<br />
com outros nomes utilizados pelos ribeirinhos no mundo real – “São Chico” e<br />
“Velho Chico”. Ele serpenteia por todo o romance: da segunda página, quando<br />
surge pela primeira vez e é <strong>de</strong>nominado “Rio do Chico”, até à última página,<br />
<strong>de</strong>pois da morte <strong>de</strong> Diadorim, quando Riobaldo se casa com Otacília, indo<br />
morar e envelhecer em um incerto lugar à beira do rio querido.<br />
Assim o São Francisco – suas águas ora barrentas, ora claras, arrastandose<br />
em curvas pelo gran<strong>de</strong> sertão – acaba por impregnar a matéria narrada, ou<br />
melhor dizendo, a “matéria vertente”, usando a expressão rosiana, para
38 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
gran<strong>de</strong>za e miséria dos atores do romance. Como se a história <strong>de</strong> Riobaldo<br />
vertesse tal qual aquele rio, como se ela fosse também um rio, vertente e<br />
afluente do São Francisco, tal a importância <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>ntro do romance. É bem<br />
verda<strong>de</strong> que o Urucuia é o “rio <strong>de</strong> amor” <strong>de</strong> Riobaldo, <strong>de</strong>vido a alguns<br />
episódios <strong>de</strong> sua vida que não vêm ao caso. Mas o São Francisco acaba<br />
engolindo o rio menor – que é seu afluente – e assume a regência da narrativa.<br />
Um dos primeiros autores <strong>de</strong> livro sobre o escritor foi Alan Viggiano.<br />
Este chama a atenção para o fato <strong>de</strong> que, no lado direito do rio, acontecem<br />
todos os conflitos entre jagunços e militares. Do lado esquerdo, os jagunços<br />
vivem fora da lei, mas não correm maiores perigos <strong>de</strong> perseguição da polícia.<br />
(8) Se, por um lado, não fomos conferir a informação, por outro lado não temos<br />
elementos para <strong>de</strong>sacreditar <strong>de</strong>la, <strong>de</strong>vido ao trabalho <strong>de</strong> pesquisa <strong>de</strong> campo<br />
realizado por Viggiano. Entretanto, ele não analisou o fato, dando-nos a oportunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> fazê-lo, ao rastrear a presença do São Francisco no romance.(9)<br />
Po<strong>de</strong>-se indagar se haveria aí, mesmo que <strong>de</strong> forma diluída, inconsciente ou<br />
subconsciente, um aceno para a nomenclatura política “esquerda e direita”, bem<br />
como suas conceituações. Se tudo no romance é e não é, se o objeto do maior<br />
amor <strong>de</strong> Riobaldo é o homem Reinaldo que também é a mulher Deodorina,<br />
diríamos que Sim e que Não. Por quê?<br />
Vejamos <strong>de</strong> início argumentos para o Sim: o tempo da narrativa é<br />
bastante impreciso. No nível explícito do ficcional, as datas são praticamente<br />
inexistentes. Sabe-se que Maria Deodorina foi batizada em “1800 e tantos”, o<br />
que nada esclarece. No nível da apropriação <strong>de</strong> fatos reais, Riobaldo conta<br />
estripulias da Coluna Prestes em Goiás. A Coluna foi um movimento políticomilitar<br />
chefiado por Luís Carlos Prestes, com o objetivo <strong>de</strong> reivindicar<br />
progressos sociais, que percorreu boa parte do país e chegou até a Bolívia.<br />
Passou por Goiás em outubro <strong>de</strong> 1926.<br />
Há, também, referência a uma “estrada rodageira” sendo construída entre<br />
Pirapora e Paracatu, estrada que não conseguimos localizar, pelo menos em<br />
ligação direta entre as duas cida<strong>de</strong>s. Elas situam-se em linha horizontal<br />
praticamente reta, traçada à esquerda do mapa do estado. Entretanto, hoje, para<br />
ir-se <strong>de</strong> Pirapora a Paracatu, pelo asfalto, precisa-se <strong>de</strong>scer pela BR 365 e<br />
<strong>de</strong>pois subir pela BR 040, que vai para a capital fe<strong>de</strong>ral. Assim, não se trata,<br />
propriamente, <strong>de</strong> uma estrada ligando Pirapora a Paracatu.<br />
Outra referência <strong>de</strong> Riobaldo é Brasília, mas essa não é a capital, como<br />
muita gente pensa, e sim Brasília <strong>de</strong> Minas, que já se chamava Vila <strong>de</strong> Brasília<br />
em 1901. Uma cida<strong>de</strong> que aparece com nome antigo é Brejo das Almas, que<br />
chegou a dar título ao segundo livro <strong>de</strong> poemas <strong>de</strong> Drummond (1934). Esse
Os Jagunços e o Rio do Chico no Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas _______________________________ Letícia Malard 39<br />
nome já <strong>de</strong>signava, em 1826, a atual região da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Francisco Sá, que<br />
sofreu as seguintes transformações: poucos anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 26 se torna distrito<br />
<strong>de</strong> Minas Novas; <strong>de</strong>pois, freguesia, sob jurisdição <strong>de</strong> Grão Mogol, com o nome<br />
<strong>de</strong> São Gonçalo do Brejo das Almas. Em 1923, passa a município, chamado<br />
apenas <strong>de</strong> Brejo das Almas. A partir <strong>de</strong> 1938, é conhecida por Francisco Sá, em<br />
homenagem ao ilustre mineiro, político da República Velha. (10)<br />
Todavia, essa evolução pouco ajuda a <strong>de</strong>svendar a duração do narrado.<br />
Se, como vimos, Brejo das Almas se torna Francisco Sá em 1938, isso não<br />
significa que a narrativa po<strong>de</strong>ria passar-se até àquele ano. O cotidiano nos<br />
ensina que a mudança <strong>de</strong> um topônimo não garante o seu uso pela população.<br />
Sempre nos <strong>de</strong>frontamos com logradouros que continuam sendo chamados por<br />
suas <strong>de</strong>signações antigas, muitas vezes ignorando-se as novas. Se isso ocorre<br />
no real, imagine-se no ficcional.<br />
Esses dados parecem comprovar que está correto dizer que a ação<br />
completa do romance po<strong>de</strong> esten<strong>de</strong>r-se <strong>de</strong> qualquer ponto do século XIX ou do<br />
XX, até praticamente ao ano anterior à publicação, em 1958. Existem pesquisadores<br />
que já queimaram as pestanas na tentativa <strong>de</strong> se estabelecerem datas,<br />
mas certeza absoluta ninguém tem, não só <strong>de</strong> quando se passa o romance mas<br />
também do período em que foi escrito. (11) Devido a essas imprecisões, os<br />
contestadores da or<strong>de</strong>m política estabelecida – os jagunços, no caso – foram<br />
tidos por alguns estudiosos como esquerdistas, ao passo que as forças<br />
repressoras seriam direitistas. Por isso afirmamos que Sim, quanto aos jagunços<br />
serem “<strong>de</strong> esquerda”, e os soldados serem “<strong>de</strong> direita”, uma vez que essa<br />
nomenclatura se originou na Revolução Francesa, mas não conseguimos<br />
verificar quando começou a ser usada no Brasil. (12)<br />
A favor do Não, quer dizer, que estar na margem esquerda ou na direita<br />
do rio não tem simbologia política, pesa o fato <strong>de</strong> que o binarismo “esquerda”<br />
versus “direita” po<strong>de</strong> ter um significado mais amplo, menos redutor se<br />
comparado ao sentido político dos termos. E ainda: os jagunços não são pobres<br />
revolucionários, em sentido estrito; vários <strong>de</strong>les são homens ricos, políticos<br />
“<strong>de</strong>spolitizados”, proprietários <strong>de</strong> terras e entraram para o bando com o<br />
objetivo <strong>de</strong> enriquecer-se mais ainda. Portanto, não nos parece a<strong>de</strong>quado<br />
aplicar-lhes um rótulo que os caracterize como conservadores ou progressistas,<br />
politicamente falando. Vamos examinar mais aprofundadamente o binarismo,<br />
porém antes abor<strong>de</strong>mos questões <strong>de</strong>finitórias <strong>de</strong> “jagunço”.<br />
Em Guimarães Rosa, ser jagunço é rebelar-se contra o sistema políticoeconômico,<br />
qualquer que seja ele. É posicionar-se contra o governo, também<br />
qualquer que seja ele. É viver perigosamente: “viver é muito perigoso” – um
40 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
slogan repetido com variações no romance. A vida perigosa é uma busca dos<br />
valores do sertão, quer para o bem, quer para o mal. Interessante notar que, na<br />
ação romanesca, não comparecem nem os políticos que manobram os jagunços,<br />
nem os soldados. O narrador não lhes dá voz, e a percepção que se tem <strong>de</strong>les é<br />
através do que o narrador, um ex-jagunço, e <strong>de</strong>mais jagunços dizem – percepção<br />
negativa, evi<strong>de</strong>ntemente. O autor se concentra no mundo da jagunçagem,<br />
<strong>de</strong>scartando os militares, pois o sertão que lhe interessa não é o <strong>de</strong><br />
Eucli<strong>de</strong>s da Cunha nem o <strong>de</strong> Afonso Arinos, por exemplo. É um sertão em<br />
processo <strong>de</strong> reengenharia <strong>de</strong> leis e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, sertão narrado numa primeira<br />
pessoa que é o protagonista-observador-analista dos fatos, sem o misticismo do<br />
Antônio Conselheiro euclidiano e sem a ingenuida<strong>de</strong> dos tropeiros <strong>de</strong> Afonso<br />
Arinos. É um sertão feito <strong>de</strong> linguagens, como nunca se viu na arte literária<br />
brasileira.<br />
Tal como governantes e soldados, também não estão mapeadas as<br />
cida<strong>de</strong>s on<strong>de</strong> as forças da repressão se concentram, exceto o Paredão, para o<br />
confronto e a luta final. Só aparecem os jagunços, em bandos inimigos entre si,<br />
obe<strong>de</strong>cendo a seus chefes e suas leis, comportando-se como traidores e traídos.<br />
No caso <strong>de</strong> Riobaldo, assomam preocupações amo<strong>rosa</strong>s e religiosas mais<br />
aprofundadas, pois, afinal, é ele “o dono” das histórias. Então, se é verda<strong>de</strong> que<br />
os jagunços são perseguidos no lado direito do Rio São Francisco e<br />
praticamente não são incomodados no lado esquerdo, as causas se mostram<br />
mais amplas que a simples oposição binária política “esquerda versus direita.”<br />
Vejamos: a vida pregressa <strong>de</strong> jagunços famosos do Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />
Veredas nos informa das razões que os levaram à jagunçagem. Ninguém nasce<br />
jagunço, exceto o Hermógenes, símbolo do diabo, “homem humano”.<br />
Entretanto, como Riobaldo especula sobre a existência ou não do <strong>de</strong>mônio em<br />
todo o <strong>de</strong>senrolar da narrativa, já nas primeiras páginas também duvida do<br />
caráter <strong>de</strong>moníaco da categoria “jagunço”. Diz ele: “[...] quem <strong>de</strong> si <strong>de</strong> ser<br />
jagunço se entrete, já é por alguma competência entrante do <strong>de</strong>mônio. Será<br />
não? Será?” (13) Assim <strong>de</strong>fine a profissão: “Jagunço – criatura paga para<br />
crimes, impondo o sofrer no quieto arruado dos outros, matando e roupilhando.”(14)<br />
Aqui a dúvida se <strong>de</strong>sfaz, e a avaliação é extremamente negativa.<br />
A certa altura chega à conceituação máxima, numa síntese invejável: “Jagunço<br />
é o sertão.” (15) Por tabela, está dito que o sertão rosiano é terra sem lei, mas<br />
essa <strong>de</strong>finição só faz sentido se se enten<strong>de</strong> o que querem os jagunços.<br />
O objetivo primordial <strong>de</strong> todos é consertar o mundo em seus <strong>de</strong>sconsertos<br />
e <strong>de</strong>sacertos, cada qual a sua maneira, sem normatizações pré-<strong>de</strong>finidas. A<br />
vingança com as próprias mãos, que movem Diadorim e Riobaldo além <strong>de</strong>
Os Jagunços e o Rio do Chico no Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas _______________________________ Letícia Malard 41<br />
outros jagunços, é <strong>de</strong> certa forma um mecanismo para submeter a socieda<strong>de</strong> ao<br />
império <strong>de</strong> alguma lei, quase sempre a punição com a morte e por crimes<br />
julgados subjetivamente. Não nos esqueçamos <strong>de</strong> que a pena <strong>de</strong> morte no Brasil<br />
foi expressamente abolida para crimes comuns somente com a Proclamação da<br />
República, mas, a partir <strong>de</strong> 1876, o imperador comutava todas as sentenças<br />
capitais. No romance, os julgamentos ou <strong>de</strong>cisões dos chefes, que po<strong>de</strong>m<br />
resultar na pena máxima, reforçam a autonomia <strong>de</strong> que eles se investem para<br />
ignorar a lei oficial ou para mimetizar o que fazia o po<strong>de</strong>r governamental,<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> quando se passa a história. Mutatis mutandis, seria uma<br />
situação equivalente à que acontece hoje na chamada Guerra do Tráfico, suas<br />
gangues rivais, seus julgamentos e execuções. Há gran<strong>de</strong>s diferenças, é claro,<br />
que ainda estão por merecer um estudo aprofundado.<br />
Relembremos, então, as razões pelas quais alguns chefes se tornaram<br />
indivíduos acima da Lei. Joca Ramiro, político rico, criatura cuja origem se<br />
<strong>de</strong>sconhece, e pai <strong>de</strong> Diadorim, incita a filha, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância, a amar e a<br />
praticar a violência. Veste-a <strong>de</strong> homem, como a prepará-la para vingar sua<br />
morte futura, levando-a com ele para o bando. O melhor exemplo da violência<br />
passada, cultivada por Ramiro, é quando o menino-menina esfaqueia os<br />
genitais <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sconhecido, à beira do São Francisco, porque esse insinuara<br />
uma relação homossexual entre Diadorim e Riobaldo, quando crianças,<br />
querendo participar <strong>de</strong>la. Já naquele momento, Diadorim transmite a Riobaldo<br />
o conselho do pai: “carece <strong>de</strong> ter coragem”. Coragem <strong>de</strong> agredir, morrer ou<br />
matar, coragem <strong>de</strong> jagunço, sua travessia.<br />
Sô Can<strong>de</strong>lário vive um trauma <strong>de</strong>sesperador: olha-se constantemente no<br />
espelho, examinando o corpo à procura <strong>de</strong> sinais que fariam <strong>de</strong>le um portador<br />
do mal <strong>de</strong> Hansen, uma vez que viu seus pais e irmãos morrerem <strong>de</strong> “lepra”.<br />
Assim, a doença mais temida do sertão, à época em que era incurável, violência<br />
ao próprio corpo que se <strong>de</strong>formava com a perda paulatina dos membros, fazia o<br />
jagunço rebelar-se também contra essa forma <strong>de</strong> injustiça. De que modo?<br />
Respon<strong>de</strong>ndo à possível violência repugnante, infringida ao corpo pelo <strong>de</strong>stino,<br />
com a violência na perseguição e morte do Outro.<br />
Me<strong>de</strong>iro Vaz, “o rei dos Gerais”, simboliza a violência como instrumento<br />
<strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção: reza sempre o terço e faz o sinal-da-cruz antes <strong>de</strong> mandar matar<br />
alguém. No passado, foi um incendiário: <strong>de</strong>senten<strong>de</strong>u-se com a família, pôs<br />
fogo em sua boa proprieda<strong>de</strong> e a<strong>de</strong>riu ao jaguncismo. Conta que nem precisava<br />
das cinzas: ficava escutando o barulho das coisas caindo e estralando, sem<br />
ninguém para acudir, num comportamento sado-masoquista. Ídolo <strong>de</strong> Riobaldo,<br />
<strong>de</strong>ci<strong>de</strong> passar-lhe o comando. Ambos se espelham nos lances <strong>de</strong> violência. Sua
42 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
morte, cercada pelo bando inconsolável, é uma das mais belas páginas do<br />
romance.<br />
Zé Bebelo, homem do po<strong>de</strong>r oficial, que pren<strong>de</strong> jagunços com vista a<br />
realizar um sonho, ou seja, tornar-se <strong>de</strong>putado, acaba virando jagunço e <strong>de</strong>pois<br />
volta a ser fazen<strong>de</strong>iro. Bebelo fora preso e julgado em Minas, por um bando <strong>de</strong><br />
jagunços, consegue livrar-se da morte e ser exilado para Goiás ou Bahia, mas<br />
retorna transformado.<br />
O próprio Riobaldo, <strong>de</strong>pois alçado a chefe e “batizado” <strong>de</strong> Urutu Branco,<br />
a<strong>de</strong>re à marginalida<strong>de</strong> da Lei por motivos fúteis aliados ao amor: era professor<br />
<strong>de</strong> Zé Bebelo, e foge da fazenda <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ficar penalizado pelos jagunços<br />
que Bebelo pren<strong>de</strong>ra. Na fuga, encontra Diadorim e entra para o cangaço<br />
por seu amor, um amor marginal pelos padrões da época. Além do mais, antes<br />
<strong>de</strong> tudo isso Riobaldo vivia sem conflitos junto do padrinho Selorico Men<strong>de</strong>s,<br />
mas foge <strong>de</strong> casa ao saber que Men<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>ria ser o seu pai, <strong>de</strong> fato e <strong>de</strong><br />
direito, como a negar que existisse alguém que pu<strong>de</strong>sse exercer po<strong>de</strong>res<br />
maiores sobre ele: um padrinho, tudo bem; mas um pai... a autorida<strong>de</strong> imposta<br />
teria outro nível <strong>de</strong> força e po<strong>de</strong>r.<br />
Segundo afirmamos em ensaio antes referenciado, todas essas causas se<br />
ligam a <strong>de</strong>sacertos nas relações familiares, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>staca a figura do Pai ou<br />
<strong>de</strong> sua representação. Fazendo uma superficial incursão pela Psicanálise,<br />
acreditamos que esses personagens, ao a<strong>de</strong>rirem ao jaguncismo, transferem o<br />
conflito não resolvido com o pai biológico ou com seus substitutos na família –<br />
o padrinho, irmãos, até o filho – para o pai nas relações sociais, ou seja, um<br />
ídolo, a Lei, a Or<strong>de</strong>m, o Governo.<br />
Por esse motivo, interpretamos, os jagunços são perseguidos preferencialmente<br />
no lado direito do Rio São Francisco: ali se instalam os representantes<br />
do Po<strong>de</strong>r oficial, contra o qual a jagunçagem costuma lutar. Em compensação,<br />
na margem esquerda seus componentes se sentem livres da pressão, da<br />
perseguição e da contestação paterna e <strong>de</strong> seus representantes, na sua fantasia<br />
<strong>de</strong> contrapor-se à Lei e à Or<strong>de</strong>m estabelecidas. Assim, Riobaldo, no final do<br />
romance, se coloca como homem “da margem direita”, ao <strong>de</strong>clarar que está<br />
caminhando para a velhice “com or<strong>de</strong>m e trabalho”, tranqüilamente casado<br />
com Otacília, a quem ama, e na certeza <strong>de</strong> que o diabo não existe, mas o<br />
homem-humano Hermógenes (que matara Diadorim). À esquerda do São<br />
Francisco, se instalam Diadorim e Hermógenes:<br />
“[Diadorim] símbolo da <strong>de</strong>s-lei amo<strong>rosa</strong>, objeto <strong>de</strong> amor proibido, e o<br />
Hermógenes, efígie da <strong>de</strong>s-lei religiosa, o <strong>de</strong>mônio encarnado, ficaram mortos
Os Jagunços e o Rio do Chico no Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas _______________________________ Letícia Malard 43<br />
e enterrados. Separando-os <strong>de</strong> Riobaldo, as imensas pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> terra vermelha<br />
que dão nome ao Paredão, e o Rio São Francisco – um pau grosso, em pé,<br />
enorme – sem dúvida um símbolo fálico, obscuro objeto do <strong>de</strong>sejo interdito no<br />
passado <strong>de</strong> Riobaldo.” (16)<br />
Passemos agora a analisar as articulações que se estabelecem entre o<br />
narrador especificamente e o São Francisco. Como dissemos, foi à beira <strong>de</strong>le<br />
que Riobaldo e Diadorim se conheceram ainda crianças, que o atravessaram<br />
“numa canoa afunda<strong>de</strong>ira”. Tal fato aconteceu on<strong>de</strong> o <strong>de</strong>-Janeiro <strong>de</strong>ságua no<br />
São Francisco, no baixio da Sirga. Assim a travessia passa a adquirir importância<br />
ímpar na narrativa, a ponto <strong>de</strong> ser sua última palavra. Cruzando o rio<br />
daquela forma, Riobaldo morre <strong>de</strong> medo, ao passo que Diadorim dá exemplo <strong>de</strong><br />
coragem e valentia, divertindo-se com o temor do companheiro, em exibição <strong>de</strong><br />
superiorida<strong>de</strong>.<br />
Mais tar<strong>de</strong>, já integrados ao bando <strong>de</strong> jagunços, Diadorim sempre<br />
mostrando-se mais corajoso do que o amigo, Riobaldo vai dizer que na<br />
companhia <strong>de</strong>ste não teme os soldados e embarcaria até na prancha <strong>de</strong> Pirapora.<br />
Esse tipo <strong>de</strong> embarcação – prancha – que levava carga, bem maior do que a<br />
canoa, era mais perigoso do que esta, por dois motivos: primeiro, pelas condições<br />
do próprio veículo – balsa <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, no geral <strong>de</strong>scoberta, que viajava<br />
sob o impulso da correnteza, “solta à toa”, como diziam seus tripulantes;(17)<br />
segundo, porque os embarcados seriam facilmente vistos pela repressão legal.<br />
Então, quanto mais se intensifica a ligação amo<strong>rosa</strong> entre Riobaldo e Diadorim,<br />
mais aumenta a coragem <strong>de</strong> Riobaldo pela influência do amigo: nesse par, são<br />
trocados, <strong>de</strong> forma sempre crescente, amor por amor, e covardia por coragem.<br />
Assim, a travessia tem vários sentidos no romance, mas esse especificamente<br />
remete àquele primeiro encontro na margem do rio, à aventura <strong>de</strong><br />
atravessá-lo – ponto <strong>de</strong> partida do amor interdito, ao ser relembrado. A vonta<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> esquecer Diadorim é <strong>de</strong>signada <strong>de</strong> “tristonha travessia, água <strong>de</strong> rio que se<br />
arrasta”. (18) A interdição amo<strong>rosa</strong> é chamada <strong>de</strong> “travessia <strong>de</strong> minha vida.”<br />
(19) E o forte e verda<strong>de</strong>iro amor é evocado nesta bela frase: “O real não está na<br />
saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.” (20)<br />
Márcia Marques <strong>de</strong> Morais interpreta o encontro <strong>de</strong> Diadorim e Riobaldo<br />
na travessia do rio, pela ótica <strong>de</strong> um mundo misturado: “o si mesmo e o outro; o<br />
feminino e o masculino; medo e coragem; alegria e tristeza; interiorida<strong>de</strong> e<br />
exteriorida<strong>de</strong>; o bem e o mal – tudo misturado.” (21) Tal mistura é uma<br />
interpretação muito feliz. Complementando, vejo-a esten<strong>de</strong>ndo-se a todo o<br />
romance, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>para com vários níveis <strong>de</strong> travessia, inclusive naquele
44 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
episódio antropofágico, em que os jagunços famintos <strong>de</strong>voraram um homem<br />
negro achando tratar-se <strong>de</strong> um macaco. Note-se que a cena não indicia<br />
nenhuma forma <strong>de</strong> racismo, ainda mais porque vários jagunços são negros bem<br />
integrados no bando. Indicia, sim, esse mundo misturado, confuso, em que até<br />
o animal e o homem adquirem posições intercambiáveis, mistura para a qual<br />
Márcia Morais chama a atenção.<br />
A travessia metafórica <strong>de</strong> Diadorim e Riobaldo dá continuida<strong>de</strong> à travessia<br />
literal, na beira do rio, na Guararavacã do Guaicuí, no momento em que<br />
Diadorim fica sabendo da morte <strong>de</strong> Joca Ramiro, seu pai. Deci<strong>de</strong> vingar-se,<br />
Riobaldo se une a ele no plano <strong>de</strong> vingança e só irão separar-se pela morte.<br />
Po<strong>de</strong>-se dizer que aí começa a travessia metafórica <strong>de</strong> ambos: a <strong>de</strong> Diadorim<br />
consiste em reprimir o amor e planejar escon<strong>de</strong>r a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> até à consecução<br />
da vingança; a <strong>de</strong> Riobaldo é remoer a culpabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> amar a um igual,<br />
tentando ultrapassar o paradoxo através do porto seguro <strong>de</strong> uma diferente, a<br />
noiva Otacília.<br />
A essa travessia dos personagens po<strong>de</strong>r-se-ia acrescentar a do próprio<br />
escritor, quer dizer, a viagem com a boiada e seus vaqueiros pelo sertão<br />
mineiro, atravessando-o a cavalo. Outra viagem similar fez à Bahia, com o<br />
jornalista Assis Chateaubriand. Em ambas, recolheu informações preciosas,<br />
com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> enriquecer sua literatura, sua travessia para a maior obra<br />
produzida em nosso país.<br />
Além das travessias literais e metafóricas, o rio plantou na vida <strong>de</strong> Riobaldo<br />
um dualismo, diz ele ao doutor, seu ouvinte. Esse dualismo no romance<br />
remete às duas vidas vividas pelo narrador, sob o signo <strong>de</strong> Diadorim: jagunço,<br />
fora da Lei, no passado; fazen<strong>de</strong>iro or<strong>de</strong>iro e trabalhador, no presente. Remete,<br />
também, à duplicida<strong>de</strong> do sexo <strong>de</strong> Diadorim, ao coração dividido <strong>de</strong> Riobaldo<br />
entre este e Otacília, e à gran<strong>de</strong> dúvida metafísica que perpassa toda a narrativa,<br />
ou seja, a existência ou não do <strong>de</strong>mônio. Se foi na beira do São Francisco que<br />
Riobaldo conheceu o seu amor interdito, quando criança, também foi na beira<br />
do rio que foi morar com Otacília, seu amor permitido. E o Rio do Chico<br />
sempre avança, correndo como personagem viva, exuberante, testemunha e<br />
participante da vida e do amor dos jagunços. Quando, na tentativa <strong>de</strong> esquecer<br />
Diadorim, Riobaldo conversa sobre mulheres, ele pergunta se o São Francisco<br />
não é sempre turvo. Aponta não só para a condição <strong>de</strong> suas águas, como<br />
também para a situação obscura e indistinta do amor pelo companheiro.<br />
O rio testemunha várias ações periféricas ao tema central da obra – o<br />
amor. É ponto <strong>de</strong> referência para a movimentação dos jagunços em sua eterna<br />
guerra. Titão Passos e outros chefes aconselham os guerreiros a seguir uma rota
Os Jagunços e o Rio do Chico no Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas _______________________________ Letícia Malard 45<br />
“o mais encostado possível no São Francisco” (22), para não per<strong>de</strong>rem <strong>de</strong> vista<br />
o inimigo nem serem vistos pelos soldados. Hermógenes se arrancha com seus<br />
homens “da banda <strong>de</strong> lá do Rio do Chico” (23). A fazenda <strong>de</strong> Rotílio Manduca,<br />
sanguinário responsável pela morte <strong>de</strong> duzentas pessoas, situa-se num barranco<br />
do rio. O velho Chico até se personifica em um romântico namorado, ao olhar<br />
com melhor amor a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Francisco, porque ela tem o seu nome.<br />
Assim é o Gran<strong>de</strong> Sertão:Veredas: romance do amor proibido e <strong>de</strong><br />
amores permitidos, <strong>de</strong> míticos jagunços, <strong>de</strong> uma natureza milionária em águas e<br />
buritis, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>staca o seu maior e encantado rio. Esse conjunto nos traz<br />
uma “noção mágica do universo”, apropriando-nos da expressão usada por<br />
Guimarães Rosa, no mencionado discurso <strong>de</strong> posse na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong><br />
<strong>Letras</strong>, em referência a Cordisburgo e sua etimologia – cida<strong>de</strong> do coração. É<br />
um romance-universo mágico, bem amarrado em seus <strong>de</strong>samarros, pois, afinal,<br />
“as coisas estão amarradinhas é em Deus”, como diziam as avós do escritor –<br />
Dona Graciana do Paredão do Urucuia, e Dona Chiquinha <strong>de</strong> Traíras, hoje<br />
Santana <strong>de</strong> Pirapama. (24)<br />
Notas:<br />
1. ROSA, J. Guimarães: Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo<br />
Bizzarri. São Paulo: T. A. Queiroz – Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro,<br />
1980. p. 22-23.<br />
2. Cf. O verbo & o logos: discurso <strong>de</strong> posse <strong>de</strong> João Guimarães Rosa na<br />
sessão <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1967. In: EM MEMÓRIA DE JOÃO<br />
GUIMARÃES ROSA. Rio <strong>de</strong> Janeiro: José Olympio, 1968. p. 86-87.<br />
3. Cf. ROSA, Vilma Guimarães. Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu<br />
pai. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p. 361.<br />
4. ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. II. Gran<strong>de</strong> sertão: veredas.<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 96.<br />
5. ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. II. Gran<strong>de</strong> sertão: veredas, op.<br />
cit., p. 429.<br />
6. Ressalte-se a existência <strong>de</strong> duas obras extensas, escritas por uma filha e por<br />
um amigo do escritor, respectivamente. Embora ricas <strong>de</strong> elementos sobre<br />
sua vida, não po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>radas uma biografia em sentido estrito. São<br />
elas: ROSA, Vilma Guimarães. Relembramentos: João Guimarães Rosa,<br />
meu pai. (1 ed., 1983; 3 ed., revista e ampliada. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova<br />
Fronteira, 2008, 586 p., cit. e BARBOSA, Alaor. Sinfonia Minas Gerais: a
46 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
vida e a literatura <strong>de</strong> João Guimarães Rosa, t. I. Brasília: R. G. E. Ed., 2007.<br />
388 p.<br />
7. ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. II. Gran<strong>de</strong> sertão: veredas, op.<br />
cit., p. 436.<br />
8. Cf. VIGGIANO, Alan. Itinerário <strong>de</strong> Riobaldo Tatarana. Belo Horizonte-<br />
Brasília: Comunicação-INL, 1974. p. 42-58.<br />
9. Cf. MALARD, Letícia. O Rio São Francisco em Gran<strong>de</strong> sertão: veredas.<br />
Corrente, Pirapora-MG, 31 <strong>de</strong> maio a 06 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1985. p. 12. Esse<br />
pequeno texto se constitui em uma análise da presença do São Francisco no<br />
romance roseano. Foi <strong>de</strong>senvolvido em MALARD, Letícia. Minas Gerais<br />
em Guimarães Rosa. In: GROSSMANN, Judith, et al. O espaço geográfico<br />
no romance brasileiro. Salvador: Fundação Casa <strong>de</strong> Jorge Amado, 1993. p.<br />
31-50. Posteriormente, outros pesquisadores também abordaram o assunto.<br />
Citamos em especial “Imagens da água no romance Gran<strong>de</strong> sertão:<br />
veredas, <strong>de</strong> João Guimarães Rosa”, dissertação <strong>de</strong> mestrado <strong>de</strong> João Batista<br />
Santos Sobrinho, Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>. Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> da UFMG,<br />
2003. Disponível em www.ana.gov.br/aguaecultura/anexos/guimaraes<br />
<strong>rosa</strong>.pdf. Agora voltamos ao tema, ampliando-o, aprofundando-o e<br />
inserindo-lhe novos elementos.<br />
10. Cf. http://www.franciscosa.mg.probrasil.com.br/ Acesso em 15 <strong>de</strong> agosto<br />
<strong>de</strong> 2008.<br />
11. Em palestra na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, aos 18 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008, a<br />
que assistimos, Vilma Guimarães Rosa informou que o romance começou a<br />
ser escrito em Paris, mas não mencionou o ano. Disse, ainda, que, naquela<br />
ocasião, perguntou ao pai se conhecia o sertão, para estar escrevendo sobre<br />
ele. Guimarães Rosa respon<strong>de</strong>u que não conhecia, que o sertão estava<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua cabeça.<br />
12. “Os termos “esquerda” e “direita”, nos seus significados políticos, foram<br />
utilizados pela primeira vez na França. Naquele país, era tradição que os<br />
<strong>de</strong>putados que apoiavam o governo sempre se sentassem do lado direito do<br />
parlamento, enquanto que os <strong>de</strong> oposição, sempre do lado esquerdo. Com o<br />
passar do tempo, sedimentou-se a tradição <strong>de</strong> chamar-se <strong>de</strong> “direitistas” os<br />
<strong>de</strong>putados <strong>de</strong> situação e <strong>de</strong> “esquerdistas” os <strong>de</strong> oposição, em referência às<br />
ca<strong>de</strong>iras que ocupavam no parlamento. Neste período, era um contrassenso<br />
falar-se em “governo <strong>de</strong> esquerda”, pois se um partido “esquerdista” (nesta<br />
acepção do termo) ganhasse as eleições, este partido passaria a ser<br />
situacionista e, portanto, a ocupar as ca<strong>de</strong>iras do lado direito do parlamento.<br />
Automaticamente teria galgado a posição <strong>de</strong> “direitista” enquanto que o ex-
Os Jagunços e o Rio do Chico no Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas _______________________________ Letícia Malard 47<br />
ocupante <strong>de</strong>sta posição passaria a ser oposicionista e, portanto, esquerdista.”<br />
Cf. http://www.geocities.com/CapitolHill/Senate/6412/esqdir.html.<br />
Acesso em 15 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008.<br />
13. ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. II. Gran<strong>de</strong> sertão: veredas, op.<br />
cit., p. 6.<br />
14. ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. II. Gran<strong>de</strong> sertão: veredas, op.<br />
cit., p. 306.<br />
15. ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. II. Gran<strong>de</strong> sertão: veredas, op.<br />
cit., p. 438.<br />
16. MALARD, Letícia. Op. cit., p. 42-43.<br />
17. Cf. NEVES, Zanoni. Na carreira do Rio São Francisco: trabalho e<br />
sociabilida<strong>de</strong> dos vapozeiros. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 2006. p. 138.<br />
18. ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. II. Gran<strong>de</strong> sertão: veredas.<br />
Op. cit., p.323.<br />
19. ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. II. Gran<strong>de</strong> sertão: veredas.<br />
Op. cit., p.406.<br />
20. ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. II. Gran<strong>de</strong> sertão: veredas.<br />
Op. cit., p. 85.<br />
21. MORAIS, Márcia Marques <strong>de</strong>. Encontros <strong>de</strong> Riobaldo: travessias do<br />
sujeito. Scripta, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, 2º. sem. 98, p. 207.<br />
22. ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. II. Gran<strong>de</strong> sertão: veredas.<br />
Op. cit., p. 401.<br />
23. ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. II. Gran<strong>de</strong> sertão: veredas.<br />
Op. cit., p. 428.<br />
24. Cf. O verbo & o logos: discurso <strong>de</strong> posse <strong>de</strong> João Guimarães Rosa na<br />
sessão <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1967 In: EM MEMÓRIA DE JOÃO<br />
GUIMARÃES ROSA, op. cit., p. 75-76.
48 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
CORPO DE BAILE:<br />
DE MIGUILIM A MIGUEL*<br />
Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães**<br />
Situar Guimarães Rosa no cenário literário do país e fora <strong>de</strong>le, ainda<br />
hoje, não é tarefa simples. Des<strong>de</strong> 1946, quando surgiu Sagarana, o escritor<br />
mineiro tornou-se alvo <strong>de</strong> interesse específico e da crítica. Fora um abalo<br />
possante nas letras pátrias, marcando uma terceira investida contra o discurso<br />
tradicional da ficção brasileira, a partir da Semana <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rna em São<br />
Paulo. A obra do escritor mineiro perfila-se <strong>de</strong>ntro da “geração do instrumentalismo”,<br />
por questões diversas, entre outras, a preocupação da estética do texto<br />
e a exploração das potencialida<strong>de</strong>s do discurso. Quis ele sempre imprimir maior<br />
ênfase sobre o distenso, já usada em romances nor<strong>de</strong>stinos, em cujos textos, por<br />
vezes, é encontrado um veio <strong>de</strong>scritivo épico, <strong>de</strong>nunciador <strong>de</strong> situações trazidas<br />
por a<strong>de</strong>ptos do Real-Naturalismo. Curioso é que Rosa se utiliza do realismo<br />
fantástico transfigurado em temas da vida real, como tônica fundamental <strong>de</strong><br />
várias <strong>de</strong> suas criações. Às vezes, imaginamos que Guimarães Rosa escreva<br />
uma estória para seu <strong>de</strong>leite, usando a expressão sertaneja como um veículo <strong>de</strong><br />
criação literária e não para exprimir situações e personagens. Sua palavra fazse,<br />
por vezes, maior e mais atuante do que o argumento do reconto.<br />
Tudo que se apresenta novo causa algum tipo <strong>de</strong> surpresa, às vezes se<br />
<strong>de</strong>finindo em concordância, outras se levantando em leve ou ardoroso protesto.<br />
Assim aconteceu com a forte expressão inovadora da escrita rosiana, quando os<br />
leitores e críticos se <strong>de</strong>pararam com a fala mesclada <strong>de</strong> regionalismos e<br />
arcaísmos no talentoso dizer do cordisburguês. O homem queria mesmo<br />
renovar, sacudir o marasmo das frases prontas, dos lugares-comuns e das<br />
analogias transoceânicas <strong>de</strong> berço. Estava ali um autêntico artesão, e já se disse,<br />
* Palestra proferida na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em 20 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008,<strong>de</strong>ntro da Semana Cultural<br />
Guimarães Rosa, comemorativa do seu centenário <strong>de</strong> nascimento.<br />
**Escritora, Presi<strong>de</strong>nte Emérita da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Feminina <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.
50 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
ourives, que, com suas ferramentas lingüísticas afiadas e prontas para os<br />
acertos, cortes, acréscimos e criações <strong>de</strong> sintaxe e estilo movimentava-se<br />
confortavelmente no universo sertanejo <strong>de</strong> sua terra, embora sem a vivência<br />
daquela realida<strong>de</strong>. Rosa apossou-se dos embriões vocabulares, <strong>de</strong>scongelou-os,<br />
<strong>de</strong>u-lhes calado, ambiência propícia ao <strong>de</strong>senvolvimento lírico ou romântico,<br />
ampliou-lhes as locações germinativas e bafejou-os com a filosofia <strong>de</strong> todos os<br />
tempos. Guimarães Rosa serviu-se da natureza rústica do sertão, do universo<br />
lúdico circunstancial para criar a estrutura <strong>de</strong> um monumento <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong>s<br />
avassaladoras, que ultrapassavam limites e fronteiras da linguagem informal e<br />
corriqueira até então entendidas e usadas. O discurso tradicional brasileiro<br />
estava abalado com o audacioso golpe: substancial, po<strong>de</strong>roso e irreversível. O<br />
homem retirara o barro natal da palavra, assoprara a poeira do tempo, <strong>de</strong>scristalizara<br />
a alma do termo, garimpando-a para o buril revelador. Não haveria<br />
meios outros que viessem a <strong>de</strong>tê-lo no intento <strong>de</strong> criação. Rosa tornava-se<br />
pioneiro resoluto na intrepi<strong>de</strong>z da façanha, inovador. Ele mesmo <strong>de</strong>clarara a<br />
Gunther Lorenz (na oportunida<strong>de</strong> do Congresso <strong>de</strong> Escritores Latino-<br />
Americano, em Gênova, p. 46, Ficção Completa, Nova Aguilar): “Primeiro, há<br />
meu método que implica a utilização <strong>de</strong> cada palavra como se ela tivesse<br />
acabado <strong>de</strong> nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e<br />
reduzi-la a seu sentido original”. Muitos brados soaram <strong>de</strong> inconformismo,<br />
porém não se tratava aquela <strong>de</strong> uma simples aventura sem maiores propósitos.<br />
O escritor <strong>de</strong>finia-se com critério, e sua erudição complementava a <strong>de</strong>senvoltura<br />
batalhadora a que se propôs, a razão do sucesso, marcada na universalida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> sua obra. Ainda hoje, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tantos anos <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>saparecimento,<br />
(41), parece que sua criação ressurge a cada dia, com seus livros sendo<br />
reeditados, no Brasil e alhures. Fora-se, <strong>de</strong> uma vez por todas, a era do<br />
“romance do engajamento social”.<br />
Quando Corpo <strong>de</strong> Baile e Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas surgiram, recru<strong>de</strong>sceram<br />
as críticas contrárias, e um painel <strong>de</strong> luz começou a <strong>de</strong>sanuviar as<br />
impressões <strong>de</strong> ocasionais primários conceitos. O autor mesmo fez questão <strong>de</strong><br />
alertar na orelha do novo trabalho, surgido em 1956, que as novelas, contos e<br />
romances que compunham Corpo <strong>de</strong> Baile (antes <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>smembrado),<br />
formavam um todo orgânico e harmonioso, como se lhe tivessem saído da pena<br />
no mesmo instante. Acrescenta o escritor que sentiu-se como que “tomado”, e<br />
que o texto vinha quase pronto, e ele o escrevera <strong>de</strong> um só fôlego. Imaginemos<br />
as <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> estórias que sua pena traduzia com limpi<strong>de</strong>z maiúscula em cada<br />
capítulo, como se o homem estivesse vivendo ali no sertão, no vale do Urucuia,<br />
entre chapadas e chapadões, veredas, grotas e grotões, vales, torrentes, brejos e
Corpo <strong>de</strong> Baile: <strong>de</strong> Miguilim a Miguel ___________________________________ Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães 51<br />
cursos <strong>de</strong> água, com o encanto dos buritis alinhados em filas <strong>de</strong> ver<strong>de</strong> e vida.<br />
Os buritis <strong>de</strong> seus encantos.<br />
O autor <strong>de</strong> Corpo <strong>de</strong> Baile alerta para o título do livro, afirmando que é<br />
apenas “simbólico, justificado numa epígrafe <strong>de</strong> Plotino, e pelo motivo da<br />
dança, reiterado como uma constante. “Corpo <strong>de</strong> Baile são narrações sertanejas<br />
<strong>de</strong> temática universal, com extraordinária pulsação <strong>de</strong> vida, enredos inéditos,<br />
empolgantes, e novas revelações sobre a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nossos trabalhadores da<br />
gleba”, acentua.<br />
Guimarães Rosa costumava afirmar que esse livro servia como uma<br />
preparação para Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, que viria a seguir, meses após o<br />
lançamento <strong>de</strong> Corpo <strong>de</strong> Baile. Com ele, sedimentava-se o território, <strong>de</strong>marcava-se<br />
alegoricamente o universo <strong>de</strong> sua linguagem, no que saboreava-se o<br />
viver em universo <strong>de</strong> sertão áspero, e ao mesmo tempo, lúdico. O escritor não<br />
se preocupava tanto com o enredo, com a tessitura do argumento, com a estória<br />
em si. Por vezes, invadia a narrativa e centrava-se como figurante, cuidando<br />
mais da forma e da psicologia do personagem e realçando a analogia íntima <strong>de</strong><br />
sua linguagem com as criaturas do texto. Ele se servia do dizer rosiano e<br />
congregava ambiência, riqueza material <strong>de</strong> forma e beleza, a poesia e os laivos<br />
filosóficos, para expressar o seu pessoal “em-ser”, o seu “estar”, no envolvimento<br />
sertanejo.<br />
Tomaremos o caminho dos campos gerais, no nor<strong>de</strong>ste mineiro. Será<br />
apenas uma leitura linear, nuamente apresentada, na epi<strong>de</strong>rme <strong>de</strong> uma verificação<br />
não crítica, <strong>de</strong> Corpo <strong>de</strong> Baile.<br />
A primeira novela, Campo Geral, com a extraordinária narrativa que o<br />
autor faz <strong>de</strong> um pequeno personagem, uma obra-prima da ficção sertaneja,<br />
Miguilim, oferece traços biográficos do escritor, ao tempo em que sua pouca<br />
vista lhe tolhia a visão material das coisas e dos seres, mas lhe proporcionava<br />
um universo filosófico <strong>de</strong> muita riqueza. A saga sofredora <strong>de</strong> uma criança pura,<br />
sensível, inocente, com instigantes questões a respeito da vivência calcada na<br />
malda<strong>de</strong> e bruteza da vida. O menino do conto não aceitava os rigores da lida<br />
<strong>de</strong> criaturas que compunham sua faina cotidiana. Questionava-se a respeito da<br />
violência dos adultos, da opressão do forte sobre o fraco in<strong>de</strong>feso, mesmo <strong>de</strong><br />
animais domésticos ou rurais. A covardia que se praticara contra a cachorrinha<br />
Pingo-<strong>de</strong>-Ouro, o tatu sangrado para que o seu sangue escorresse por cima do<br />
corpo doente <strong>de</strong>le próprio, e lhe <strong>de</strong>sse saú<strong>de</strong>, e a imposição truculenta do pátrio<br />
po<strong>de</strong>r. Pai mandava, <strong>de</strong>smandava, batia, quase tirando o viço da criança. Seu<br />
Aristeu era aquele que ensinava, sem saber, um caminho novo para os pensamentos<br />
do pequeno, com a criação <strong>de</strong> estórias; um conhecedor da saú<strong>de</strong> e da
52 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
doença das pessoas. Um homem gran<strong>de</strong>, <strong>de</strong>susado <strong>de</strong> bonito, alto, alegre,<br />
mesmo sendo roceiro assim, mais “parecia <strong>de</strong>sinventado <strong>de</strong> uma estória”. E<br />
animava o garoto, que se julgava à beira da morte: “Miguilim – bom <strong>de</strong> tudo é<br />
que tu tá: levanta, levanta, ligeiro e são, Miguilim...” Sentia- se livre do mal, e<br />
ouvia o homem instruir o pai: “Tísica nem não dá nestes gerais, o ar aqui não<br />
consente, seo Berno!”. Isso tudo <strong>de</strong>pois da visita do seo Deográcias, outro<br />
conhecedor dos segredos das curas, mas que se escusava <strong>de</strong> ensinar a Miguilim<br />
as letras e os números.<br />
E buscamos em altos relevos da narrativa a <strong>de</strong>sesperança do personagem<br />
mirim da novela, quando adoeceu seriamente seu idolatrado irmãozinho, Dito,<br />
que pisara, <strong>de</strong>savisado, em um caco <strong>de</strong> vidro, e contraíra o tétano. E então se<br />
finou o pequenino, irmão <strong>de</strong> Miguel, Miguilim, que ficou ferido <strong>de</strong> morte no<br />
seu peito amoroso. “Pai <strong>de</strong>senrolou a re<strong>de</strong>zinha <strong>de</strong> buriti. Mas aí Mãe exclamou<br />
que não, queria o filhinho <strong>de</strong>la no lençol <strong>de</strong> alvura”.<br />
As novelas apresentam um narrador onisciente. Vezes, oferecem a palavra<br />
<strong>de</strong> primeira pessoa a um e outro personagem do enredo. E as vozes se<br />
alternam.<br />
Com sincerida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>mos afirmar que o livro, (tal como apareceu em<br />
sua 2ª. edição, em 1960, e é a <strong>de</strong> que nos valemos), perfazendo 513 páginas, na<br />
soli<strong>de</strong>z gráfica, sem <strong>de</strong>senhos ou fotos, tira-nos um pouco o fôlego, <strong>de</strong>snorteianos<br />
nesse universo <strong>de</strong> rusticida<strong>de</strong> quase irreal. Estamos, porém, <strong>de</strong>cididos a<br />
enveredar por essas brenhas rosianas. Não sabemos, <strong>de</strong> início, em que pegar, no<br />
que tomar para estudo. É <strong>de</strong> preencher-se a cabeça, com tantas e quantas idéias.<br />
Temos o ar, as árvores, os bichos do mato e os pássaros; seus cantos e gorjeios,<br />
a brutalida<strong>de</strong> do homem contra o ser vivente irracional; a faina bestial do<br />
trabalhador da terra e das coisas da terra, quando, ao contrário, ressurge a<br />
beleza do cenário que o meio inculto oferece; a rotina incansável do servidor<br />
que nasce e morre <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um <strong>de</strong>stino já traçado. Descobre-se a euforia do<br />
autor, sempre encantado com a palmeira <strong>de</strong>marcadora <strong>de</strong> território <strong>de</strong> suas<br />
estórias: o buriti. Estas árvores firmam-se altaneiras, em fila quase indiana,<br />
abeirando-se <strong>de</strong> lagoas e charcos, ou nascidas ali mesmo, por força da corrente<br />
que as traz cativas. Sobreleva-se o Buriti gran<strong>de</strong>, que <strong>de</strong>ixou nome forte em<br />
novela que fecha o livro. Depois <strong>de</strong>sta, “Cara <strong>de</strong> Bronze” se insinua, mas já em<br />
outras roupagens: é uma peça teatral autêntica, com solertes diálogos e<br />
cantorias. Em gran<strong>de</strong> parte das <strong>de</strong>mais novelas ou contos, ou poesias, como os<br />
quer o autor, até mesmo romances, o lirismo dos compositores pastoris faz-se<br />
presente. E as intenções postas em terceira dimensão, <strong>de</strong> outros idiomas e <strong>de</strong><br />
outras gentes, na erudita memória <strong>de</strong> Rosa, enriquecem a obra.
Corpo <strong>de</strong> Baile: <strong>de</strong> Miguilim a Miguel ___________________________________ Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães 53<br />
O tratado é para ser lido sem pressa, no tempo da colheita <strong>de</strong> cultura<br />
literária, na <strong>de</strong>gustação da palavra novinha em forma, criada ou recriada, ou na<br />
percepção do vocábulo enxotado <strong>de</strong> há muito das pare<strong>de</strong>s lingüísticas <strong>de</strong> nossa<br />
literatura. Saboreia-se a idéia e a criação da idéia, assim <strong>de</strong>fendida e resguardada<br />
do ostracismo <strong>de</strong>saconselhado. O escritor escrevia <strong>de</strong>vagar, agilmente,<br />
pensando o pensar do personagem. Descrevia o corpo, a imagem, o vulto com a<br />
presença viva gerada pelo intelecto. Levantava-se ali, diante <strong>de</strong>le, e <strong>de</strong> nós leitores,<br />
um ser vivo, pessoa criada com amor e raça; parava na idéia do homem bom ou<br />
mau, no caráter e na índole, com a palavra que o trazia para fora do texto e o<br />
figurava humano. O termo vinha buscado com precisão, distante <strong>de</strong> seu tempo,<br />
mas próximo daquela criatura que sempre vivera na terra estranha das gerais.<br />
Quem tiver pressa, não leia o homem <strong>de</strong> Cordisburgo. De arranco,<br />
apenas para conhecer o final da estória, não é o recomendado. Os contos, as<br />
novelas e os romances <strong>de</strong> Guimarães Rosa não guardam finais felizes! Na<br />
verda<strong>de</strong>, o que menos se <strong>de</strong>ve buscar nessas leituras é um happy end. O enredo<br />
se envolve com as peripécias reais da vida e se per<strong>de</strong> no turbilhão <strong>de</strong> notícias e<br />
casos circunstanciais. Quando se espera a recuperação <strong>de</strong> um atalho <strong>de</strong> estória,<br />
surge uma nova, empanando o <strong>de</strong>stino daquela primeira.<br />
O índice do livro, que temos para estudos, abre-se <strong>de</strong>sta forma: Os<br />
Poemas: Campo Geral, Uma Estória <strong>de</strong> Amor, A Estória <strong>de</strong> Lélio e Lina, O<br />
Recado do Morro, Lão-Dalalão (Dão-Dalalão), “Cara <strong>de</strong> Bronze” e Buriti.<br />
A referência a Plotino, feita por Guimarães Rosa, vem expressa na<br />
introdução <strong>de</strong> seu livro. Cita-o:<br />
Porque, em todas as circunstâncias da vida real, não é a alma <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />
nós, mas sua sombra, o homem exterior, que geme, se lamenta e <strong>de</strong>sempenha<br />
todos os papéis neste teatro <strong>de</strong> palcos múltiplos, que é a terra inteira.<br />
Seu ato, é pois, um ato <strong>de</strong> artista, comparável ao movimento do<br />
dançador; o dançador é a imagem <strong>de</strong>sta vida, que proce<strong>de</strong> com arte; a arte da<br />
dança dirige seus movimentos; a vida age semelhantemente com o vivente.<br />
E nos perguntamos: o que estaria insinuando o autor com essas referências?<br />
Talvez quisesse dizer que seu julgamento a respeito dos personagens <strong>de</strong><br />
suas estórias era apenas superficial, ilusório; que estabelecia com eles um<br />
gran<strong>de</strong> balé <strong>de</strong> vida rural na periferia sertaneja, e que caberia a nós, leitores, a<br />
avaliação real <strong>de</strong> suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s.<br />
O livro dá a palavra inicial à novela Campo Geral, como se disse, e o<br />
autor traça a infância <strong>de</strong> Miguel, o Miguilim, nascido nos confins dos gerais,
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<strong>de</strong>pois da Vereda-do-Frango-d´Agua, no Mutum, terra que o pequeno não<br />
conhecia em <strong>de</strong>talhes, antes das lentes dos óculos do médico visitante, o Dr.<br />
José Lourenço. O <strong>de</strong>senrolar da estória revela os personagens recrutados em<br />
espaço pequeno <strong>de</strong>ntro do enredo: mãe, pai, tio, irmãos, avó e uma criatura<br />
exótica, Mãitina, das que jamais foram esquecidas em quase todas as novelas<br />
<strong>de</strong> Rosa, e que se apartava da trama, servindo apenas <strong>de</strong> figuração criadora.<br />
Guimarães Rosa escreveu o livro sem a intenção <strong>de</strong> <strong>de</strong>smembrá-lo, razão<br />
pela qual Miguilim e seus irmãos ressurgem em novelas outras do mesmo livro:<br />
Tomé, o amásio da Jini, Drelina, esposa do Fradim, e a Chica, “que era branca<br />
quase como leite, com os olhos azuis, uma beleza muito <strong>de</strong>licada”, e tinha sido<br />
trazida pelo irmão ali para o Pinhém, e assim eles aparecem na novela Lélio e<br />
Lina. Miguel, formado veterinário, compõe o enredo <strong>de</strong> um outro texto, Buriti,<br />
mas não <strong>de</strong>ixa o leitor antever o seu futuro feliz ou não com a Glorinha. E fala<br />
<strong>de</strong> um seu irmão, Dico, que morreu menino.<br />
Em muitas estórias, o autor fazia questão <strong>de</strong> introduzir tipos característicos,<br />
com as taras e os cacoetes próprios dos “diferentes”, inscritos como<br />
marginalizados na esfera do “senso comum”. Cita-os Eduardo F. Coutinho:<br />
“loucos, cegos, doentes em geral, criminosos, feiticeiros, artistas populares, e<br />
muitos outros (...). Lúcidos em sua loucura, ou sensatos em sua aparente<br />
insensatez”.<br />
Em Corpo <strong>de</strong> Baile, Guimarães Rosa <strong>de</strong>dica-se com gran<strong>de</strong>s cuidados às<br />
pessoas dos vaqueiros <strong>de</strong> suas estórias. Conta-lhes da filiação, dos antece<strong>de</strong>ntes,<br />
do viver cotidiano amoroso, das rivalida<strong>de</strong>s, e acima <strong>de</strong> tudo, dita-lhes<br />
os nomes e os sobrenomes, ao contrário do que se dá em Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />
Veredas, quando a maioria dos jagunços era <strong>de</strong>signada apenas pelos apelidos.<br />
Diferentemente em “Cara <strong>de</strong> Bronze”, Rosa pluralizou diálogos dos trabalhadores,<br />
congraçou-lhes opiniões, indicando os boia<strong>de</strong>iros, vaqueiros ou peões<br />
apenas pelas alcunhas.<br />
Dois maravilhosos contos <strong>de</strong> Corpo <strong>de</strong> Baile, A Estória <strong>de</strong> Lélio e Lina e<br />
o Recado do Morro, imprimem na criação literária <strong>de</strong> Guimarães Rosa um<br />
ponto altíssimo, com a varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> tipos, as diversas situações nos conflitos<br />
psicológicos, os inesperados enredos, tudo refletido no ágil ritmo da riqueza <strong>de</strong><br />
estilo e forma.<br />
Curioso é que, nas cida<strong>de</strong>s interioranas, as ruas recebem cidadãos<br />
<strong>de</strong>sestruturados social e psicologicamente, e que se tornam parte integrante do<br />
folclore da comunida<strong>de</strong>. Rosa tinha o olhar muito arguto a respeito <strong>de</strong> tais<br />
personagens. Em O Recado do Morro, uma série <strong>de</strong>ssas pessoas se <strong>de</strong>staca e<br />
chega a formar o corpo central da trama novelística: o Gorgulho, o Catraz, o
Corpo <strong>de</strong> Baile: <strong>de</strong> Miguilim a Miguel ___________________________________ Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães 55<br />
Guegue, o Jubileu ou Santos Olhos, o Dominedomine. E eram esses que sabiam<br />
e interpretavam o significado do Recado, o que o Morro das Garças enviava.<br />
No romance Buriti, o Mestre Zaqueu confirma a preocupação <strong>de</strong> Rosa com as<br />
criaturas especiais, tendo o autor assinalado também, com fortes traços <strong>de</strong><br />
feiúra e excentricida<strong>de</strong>, a personagem <strong>de</strong> Maria Behu, irmã da bela Glorinha,<br />
namorada <strong>de</strong> Miguel, chegando a eliminá-la no final do conto.<br />
Em Uma Estória <strong>de</strong> Amor, ali na festa <strong>de</strong> Manuelzão, sobressaía o João<br />
Urugem, “que morava numa choupana, acomodada em árvores e moitas”. Mas<br />
o narrador se <strong>de</strong>mora na <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> quantos surgiam nas comemorações. A<br />
novela não é uma estória <strong>de</strong> amor, <strong>de</strong>ssas que se escrevem com dois<br />
personagens encantados um com o outro. O texto fala do cumprimento <strong>de</strong> uma<br />
promessa feita por vaqueiro religioso a sua querida mãe, já falecida, a qual<br />
seria a da construção <strong>de</strong> uma capelinha <strong>de</strong>dicada a Nossa Senhora do Perpétuo<br />
Socorro. E o local nem se compunha como o <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira fazenda, mas<br />
só “um reposto, um currais-<strong>de</strong>-gado”. “Aqui era umas araraquaras. A Terra do<br />
Boi-Solto”. Nele surgiu a figura carismática <strong>de</strong> Manuelzão, alcunha real <strong>de</strong><br />
homem rústico das li<strong>de</strong>s sertanistas, e que comandara excursão do escritor aos<br />
rincões mineiros, no acompanhamento <strong>de</strong> uma boiada. Essa figura não saiu da<br />
vida real para a ficção, mas <strong>de</strong>sentranhou-se das páginas daquela novela para o<br />
contexto rosiano que lhe <strong>de</strong>u notorieda<strong>de</strong>. O homem agigantado, com traços<br />
característicos bem <strong>de</strong>finidos, perfil nobre e barba respeitável, movimentava-se<br />
com <strong>de</strong>sembaraço nos meios culturais que o requisitavam para entrevistas. E<br />
ele era <strong>de</strong>senvolto no falar, espontâneo nas palavras e expressões encontradiças<br />
no texto <strong>de</strong> Rosa. E a estória era a da festa. Com dois dias <strong>de</strong> antecedência, o<br />
povo <strong>de</strong> todas as beiradas já chegava. Traziam <strong>de</strong> tudo, aqueles crentes, alguns<br />
estranhos, que antes mesmo <strong>de</strong> apear <strong>de</strong> seus cavalos, já louvavam os santos e a<br />
Virgem, em altos brados. Vinham aleijados, vultos ciganos, más mulheres,<br />
lindas moças. E se arranchavam na casa e na aba da casa <strong>de</strong> Manuelzão, on<strong>de</strong><br />
sempre cabia mais um. Ali era a Samarra, que não pertencia ao vaqueiro, pois<br />
ele trabalhava para o seu Fe<strong>de</strong>rico Freyre, que não aparecia nas suas terras,<br />
proporcionando com sua ausência força e domínio aparente a Manuelzão. O<br />
ruim é que o festeiro estava com um machucado no pé, e por esta razão quase<br />
não <strong>de</strong>smontava. O homem não se casara, mas a providência <strong>de</strong>ra-lhe um filho<br />
natural, “nascido <strong>de</strong> um curto acaso”, lá no Porto Andorinhas, cidadão que era<br />
casado e tinha sete meninos, e se chamava A<strong>de</strong>lço <strong>de</strong> Tal. Manuelzão foi<br />
buscá-lo e ele veio com todos. Era a <strong>de</strong>cepção da família: preguiçoso e lerdaço,<br />
mas com a garantia <strong>de</strong> ter escolhido a melhor e mais nobre das mulheres: a<br />
Leonísia.
56 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Beleza nessa novela é a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> um fato notório, acontecido <strong>de</strong><br />
repente, sem que ninguém esperasse, quando cada um sentiu “no coração o<br />
estalo do silenciozinho”, causado pela falta do barulhinho, da toada do fluviol,<br />
um pequeno riacho que escorria da encosta para cair no Córrego das Pedras.<br />
Acordaram, porque era noite. As crianças correram, e até os cachorros latiram.<br />
Todos “se levantaram, caçaram o quintal, saíram com luz, para espiar o que não<br />
havia”. E Manuelzão, “segurando a tocha <strong>de</strong> carnaúba, o peito batendo com um<br />
estranho diferente, ele se <strong>de</strong>bruçou e esclareceu. Ainda viu o <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro fiapo<br />
<strong>de</strong> água escorrer, estilar, cair <strong>de</strong>grau <strong>de</strong> altura, a <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira gota, o bilbo”. O<br />
riacho soluço se estancou. “Era como se um menino sozinho tivesse morrido”.<br />
Poesia no ar da palavra rosiana.<br />
Essas estórias, havidas na novela, são muitas. O autor confirma no correr<br />
da narrativa, presenças <strong>de</strong> alto valor <strong>de</strong>ntro da relação <strong>de</strong> figurantes na festa da<br />
padroeira. O padre estrangeiro, “o frei Petroaldo, alimpado e louro, com<br />
polainas e culotes <strong>de</strong>baixo do guarda-pó, com o cálice e os paramentos nos<br />
alforjes. Ali presentes, o velho Camilo, nos adjutórios, e o Promitivo. Haja a<br />
notória personagem do Senhor do Vilamão, <strong>de</strong> barba andó, o cabelo total<br />
embranquecido, trajado <strong>de</strong> vestimenta que não se usava mais, o cavour, que se<br />
compunha com um sobretudo preto e uma sobre-capinha <strong>de</strong>scendo até o<br />
cotovelo. Ele já estava quase cego, e Manuelzão levava o velhinho para <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong> casa, on<strong>de</strong> as mulheres se ajuntavam na cozinha com as caçarolas do <strong>de</strong><br />
comer. Rezava-se o terço, a pedido do festeiro; lá fora, a procissão seguia, a<br />
filha do A<strong>de</strong>lço e da Leonísia carregava a imagem da Santa. O <strong>de</strong>stino daquela<br />
imagem ninguém ainda não sabia se seria milag<strong>rosa</strong>. Depois <strong>de</strong> algum tempo,<br />
caso não surgissem milagres, ela seria trocada por outra. Os cantos eram<br />
seguidos e intermináveis. Aquele sussurro <strong>de</strong> fé, repetido assim por um coro<br />
solene e encorpado, perdurara durante toda a vida na memória religiosa <strong>de</strong><br />
Manuelzão, trazidos, presumivelmente, das lembranças infantis do autor. Ele<br />
costumava ouvi-lo em seus momentos mais fervorosos: “Ó Senhora do<br />
Socooorro...”. Alegrando o continuado da noite <strong>de</strong> vésperas da festa, e mesmo<br />
no dia <strong>de</strong>la, o prazer <strong>de</strong> todos eram as estórias, que se contavam <strong>de</strong>moradamente.<br />
O velho Camilo contou a <strong>de</strong>le, com <strong>de</strong>talhes, mas estoriadora, mesmo,<br />
era a Joana Xaviel, uma Sheraza<strong>de</strong> sertaneja.<br />
Soropita entra na novela Dão-Lalalão já um homem feliz. O autor faz<br />
questão <strong>de</strong> <strong>de</strong>linear-lhe traços <strong>de</strong>licados, sensíveis. Fala dos cuidados com a<br />
montaria, o toque sutil das esporas no flanco do animal que montava, o<br />
Caboclin. Rosa sempre gostou <strong>de</strong> provocar impacto no andamento e nos<br />
arremates <strong>de</strong> suas novelas. Talvez seja a única estória no livro com idílios e
Corpo <strong>de</strong> Baile: <strong>de</strong> Miguilim a Miguel ___________________________________ Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães 57<br />
armações amo<strong>rosa</strong>s no seu começo. Tudo o mais na maioria dos textos rosianos<br />
advém por conta dos <strong>de</strong>vaneios dos vaqueiros: sonhos e <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> amores<br />
eternos, suspiros <strong>de</strong> paixões inventadas, ou a peleja gulosa do machismo<br />
necessário e da virilida<strong>de</strong> dos homens sertanejos. As mulheres “públicas”<br />
também laboram com muito prazer, nos enredos. Elas são uma constante em<br />
todas as estórias. E Rosa perdura nelas veementes comentários, com seus<br />
artifícios. Por outro lado, tece enredos platônicos, criados por puro gosto <strong>de</strong><br />
impossíveis paixões, que na verda<strong>de</strong>, formavam só imaginação. Mas no caso <strong>de</strong><br />
Soropita, as coisas eram outras. No momento, ao <strong>de</strong>ixar Andrequicé, on<strong>de</strong> ia<br />
comprar, conversar, saber e escutar as novelas do rádio para transmiti-las aos<br />
tantos curiosos e interessados, seus pensamentos já o levavam para os braços <strong>de</strong><br />
Doralda: sua esposa, <strong>de</strong> casamento com papel passado, no religioso e no civil,<br />
alianças e o mais. Naquele dia, hospedara-se na casa do Jõe Aguial, que se<br />
mudara para o Ão, mas conservava aquela moradia ali. O homem dirigia-se<br />
agora para sua casa, “num vão, num saco da Serra dos Gerais”, on<strong>de</strong> seu amor<br />
o esperava “na regra do primor”. Na verda<strong>de</strong>, Soropita era agora mais um<br />
“encostado”. Deixara a lida <strong>de</strong> boia<strong>de</strong>iro, não supria mais viagens tangendo<br />
gado, tinha adquirido herança <strong>de</strong> família. Vivia um romance real, com a presença<br />
<strong>de</strong> Doralda, seu cheiro e sua beleza. Quando a convidou para ir com ele<br />
embora, <strong>de</strong>ixar a casa das raparigas, ela aceitou <strong>de</strong> pronto. E o escritor,<br />
naqueles tempos do enredo, vai procurar uma colossal encrenca, em reviravolta<br />
<strong>de</strong>ntro da novela. Eis que se aproxima da casa <strong>de</strong> Sorropita um bando <strong>de</strong><br />
homens não muito cre<strong>de</strong>nciados. À frente do grupo, um Dalberto, antigo<br />
companheiro <strong>de</strong> Soropita, que muito sabia das estripulias do ex-boia<strong>de</strong>iro, com<br />
varias mortes nas costas, julgamentos, sentenças e alívio <strong>de</strong> lei, pois falavam<br />
que era Soropita um mandado do Governo, porque ele só estripava gente que<br />
precisava mesmo era <strong>de</strong> sumir. “Liquidou apenas cabras <strong>de</strong> fama, só faleceu<br />
valentões arrespeitados... E ele tirou da circulação uns João Carcará, Antônio<br />
Riachão e o Dengengo, pra diante <strong>de</strong> Januária...” E saiu absolvido, mesmo nos<br />
outros júris, em três comarcas...”<br />
Era <strong>de</strong> se esperar para um final, uma refrega com lances trágicos. A<br />
estória reserva <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> páginas <strong>de</strong> armação <strong>de</strong> tormenta. Questões <strong>de</strong> ciúme<br />
e arquitetura mental doentia. Formava-se um terrível temporal, com nuvens<br />
carregadas e trovões aterrorizadores. A borrasca estava próxima. A revolta do<br />
homem se sobrepunha, na intolerância do ex-vaqueiro, matador. Ele via a<br />
mulher, Doralda, nos braços daqueles todos, e em especial, no <strong>de</strong>boche das<br />
garras <strong>de</strong> um negro, o Iládio, que era quem recebia a <strong>de</strong>scarga maior do ódio<br />
insano <strong>de</strong> Soropita. E nem o pobre era culpado <strong>de</strong> nada, pois a própria Doralda
58 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
o absolvera <strong>de</strong> ter estado com ela. Mas a fúria <strong>de</strong>moníaca do homem não queria<br />
saber. E ali adiante, no arruado, e rente da venda, on<strong>de</strong> a animalada se reunira,<br />
com todos armados, Iládio no meio <strong>de</strong>les, o belzebu, amontado na besta preta:<br />
“– Ah, maldito, vai tapar os cal<strong>de</strong>irões do inferno!” – gritava Soropita, <strong>de</strong> arma<br />
em punho. Depois do suspense geral, a estória se esfria com as súplicas <strong>de</strong><br />
misericórdia do con<strong>de</strong>nado, já <strong>de</strong>caído na poeira do chão: “Tomo benção...tomo<br />
benção...” e sua <strong>de</strong>bandada embora foi-se por mil anos. Soropita, altaneiro,<br />
diverge. E pergunta aos do Ão: “Tem hoje quem vai no Andrequicé ouvir o<br />
restante da novela do rádio? – Tem não. – Pois vou. Passo em casa para bem<br />
almoçar, e vou”.<br />
A Estória <strong>de</strong> Lélio e Lina é suave. Não se trata <strong>de</strong> amor-paixão. Tudo<br />
começa com a chegada do vaqueiro “foriço”: “rapaz moço, boa cara e comum<br />
jeito”, sem barba ou <strong>de</strong>mais novida<strong>de</strong>s. Vinha da Tromba-Danta, para on<strong>de</strong> não<br />
gostaria <strong>de</strong> voltar jamais. Era esta ali a fazenda do Pinhém, nos Gerais, e o seo<br />
Senclér, que governava, inquiriu o moço, e <strong>de</strong>le se agradou. Por informação, o<br />
vaqueiro Aristó <strong>de</strong>clarou que o rapaz era filho do Higino <strong>de</strong> Sás, com nome<br />
bom assentado <strong>de</strong> vaqueiro-mestre por todo aquele sertão do Urucuia.<br />
Como real sertanejo, o Lélio não esmorecia nos pensamentos amorosos.<br />
Lembrava-se com muita firmeza da Mocinha que tinha viajado para o Paracatu,<br />
quando ele ia junto, contratado para serviços. “Ela era toda pequenina,<br />
brancaflor, <strong>de</strong>sajeitadinha, garbosinha, escorregosa <strong>de</strong> se ver”. Parecia uma<br />
menina. Constituíam estes os seus pensamentos, que lhe diziam que ela era<br />
moça fina <strong>de</strong> luxo, rica, viajando com a família cidadoa. Gente acima <strong>de</strong> sua<br />
iguala. Mostravam-se esses os amores suspirosos do rapaz geralista que se<br />
entretinha repetindo: “Minha-Menina, a Mocinhazinha, Sinhá-Linda...” Em<br />
pouco tempo, já o vaqueiro tomava gosto pelo viver carnal, orientado por<br />
aqueles outros da lida. Ia sempre com os novos companheiros procurar as “tias,<br />
Lin<strong>de</strong>lena, a Tomásia e a Conceição. Com pouco, veio atormentar a calma do<br />
Lélio a figura da Jini, amásia do Tomé Cássio. Era essa uma rapariguinha que<br />
lhe tirava o fôlego, o que não formava correto pela amiza<strong>de</strong> com o amigo. A<br />
Jini, “seus olhos sumo ver<strong>de</strong>-ver<strong>de</strong>, que cresciam e tudo tapavam, maiores do<br />
que pessoa”. É, não <strong>de</strong>via, mas podia, ao menos, pensar. E ele a revia, “no<br />
figuro da mulatinha cor <strong>de</strong> violeta que mandava em todas as partes on<strong>de</strong> batia<br />
seu sangue”. Havia também as moças solteiras casadouras, a Mariinha e a<br />
Manuela. Mas a verda<strong>de</strong>ira intenção do autor não se podia alcançar. Que estaria<br />
imaginando Rosa ao <strong>de</strong>sfazer <strong>de</strong> todo interesse do rapaz com relação às moças<br />
do Pinhém? E não se via nem chegavam sequer notícias da Menina <strong>de</strong> Paracatu.<br />
E entrara no texto uma senhora muito sensata, cordial e conselheira <strong>de</strong> Lélio.
Corpo <strong>de</strong> Baile: <strong>de</strong> Miguilim a Miguel ___________________________________ Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães 59<br />
O começo já arremeda uma artimanha do escritor, <strong>de</strong>clarando que Lélio<br />
encontrara no caminho “uma mocinha”, que não era uma mocinha, e que Lélio<br />
não se assustou ao vê-la retornar a cara, mostrando a face <strong>de</strong> uma velha. Era a<br />
Lina, que estava <strong>de</strong> costas, quando ele a avistou pela primeira vez. Daí para a<br />
frente, o reconto se fixa na filial amiza<strong>de</strong> do boia<strong>de</strong>iro pela velhinha, e com<br />
certeza algo muito especial se escon<strong>de</strong> atrás da trama, para ser <strong>de</strong>svendado,<br />
porque há insinuações <strong>de</strong> que Lélio <strong>de</strong>clarara a si mesmo que “o conhecimento<br />
<strong>de</strong>la po<strong>de</strong>ria puxar lembrança comprida”. No mais, das moças do lugar, a<br />
Manuela era noiva do Canuto, mas este a ofereceu ao Lélio, por já ter se<br />
servido <strong>de</strong>la. E <strong>de</strong>pois se casou com a mesma. Restou a Mariinha para que o<br />
vaqueiro firmasse sua vida naqueles gerais escondidos. Mas Rosa não tinha<br />
inclinação para acabar bem suas estórias, e fê-la apaixonar-se pelo seo Senclér.<br />
E seu Senclér e a sua linda e elegante esposa, a dona Rute, iam-se embora. E a<br />
Mariinha teve um <strong>de</strong>scompasso nas <strong>de</strong>spedidas e gritou que queria que a<br />
levassem junto. Mas a justeza <strong>de</strong> caráter do homem e a fidalguia da mulher<br />
fizeram a caravana tocar, “admitindo-se um estado <strong>de</strong> silêncio. E todos respeitaram,<br />
como se tivesse havido ali uma morte ou um acontecimento <strong>de</strong> louco”.<br />
Vê-se que a estória guarda outras interpretações, quando se percebe que o<br />
escritor põe nos fechos a <strong>de</strong>bandada dos principais figurantes do texto. Dona<br />
Rosalina, a Lina, vai-se embora para o Peixe-Manso, pois conhecia o dono<br />
<strong>de</strong>la, e, <strong>de</strong> repente, o Lélio se <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> a acompanhá-la muito praze<strong>rosa</strong>mente.<br />
“– Que é que você vai fazer com uma velha às costas? Mas você não se<br />
arrepen<strong>de</strong> não, meu Mocinho? Vão falar que você roubou uma Velhinha<br />
velha!.” – insinua Lina. “– Mãe, vamos!” Foram. “Olharam para trás: a estrela<br />
Dalva saiu do chão e brilhou, enorme.” Se estivéssemos lendo uma daquelas<br />
estórias infantis, po<strong>de</strong>ríamos jurar que por um passe <strong>de</strong> mágica a velhinha se<br />
<strong>de</strong>sencantaria em uma belíssima donzela e se casaria com o Lino.<br />
Era do gosto <strong>de</strong> Rosa <strong>de</strong>ixar o leitor às voltas com <strong>de</strong>cisões inesperadas<br />
nos enredos <strong>de</strong> suas estórias. Não se encontra um <strong>de</strong>senrolar tranqüilo nos<br />
idílios das novelas que compõem sua obra. No livro Corpo <strong>de</strong> Baile, suce<strong>de</strong>m-se<br />
casos e tramas as mais diversas, mas o homem não afrouxa a mão. Todas se<br />
distanciam do corriqueiro <strong>de</strong> finais venturosos. Até mesmo no Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />
Veredas, encontramos um forte exemplo <strong>de</strong>ssa teimosia do escritor <strong>de</strong> excluir<br />
finais alegres e felizes para seus contos e romances. Por que, na batalha final,<br />
quando Reinaldo sangra o satanás dos sertões, o Hermógenes, Guimarães Rosa<br />
não salvou Diadorim para <strong>de</strong>svestir-se em mulher e casar-se com Riobaldo? Ela<br />
mesma, em tempos passados, não havia insinuado ao Tatarana: “– Riobaldo, o<br />
cumprir <strong>de</strong> nossa vingança vem perto... Daí, quando tudo estiver repago e
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refeito, um segredo, uma coisa, vou contar a você...” (p. 324, II v. O. C, Nova<br />
Aguilar). Mas o jagunço não captou a mensagem. Quem sabe, se ele tivesse<br />
insistido na revelação <strong>de</strong>ste segredo, a estória teria tido outro fim? Um final<br />
feliz, talvez, se Rosa o tivesse permitido!<br />
O Recado do Morro é uma viagem pelo interior mineiro, lembrando<br />
alguns estudiosos que o enredo po<strong>de</strong> formar uma estória <strong>de</strong>senvolvida por<br />
pessoas que encarnam uma alegoria da formação do país. É que caminham em<br />
excursão um naturalista estrangeiro, um religioso e um homem ajuizado e <strong>de</strong><br />
muita cabeça. Daí as comparações com os <strong>de</strong>sbravadores do Brasil. Esses<br />
personagens que participam da estória são rica e cuidadosamente <strong>de</strong>scritos por<br />
Guimarães Rosa, a partir do guia, enxa<strong>de</strong>iro Pedro Orósio, o Pê-Boi, homem<br />
imenso, que “nem lhe faltavam cinco centímetros para ter o talhe <strong>de</strong> um<br />
gigante”; o “seo Alquiste ou Olquiste, um alemão-rama – espigo, <strong>de</strong> cabelo e<br />
barba <strong>de</strong> milho mais a cara <strong>de</strong> barata <strong>de</strong>scascada”. Via-se que era <strong>de</strong> fora. Era<br />
doutor, sim, dos bons. Queria levar o Pê-Boi com ele. Na verda<strong>de</strong>, esse Pê-Boi,<br />
que ia <strong>de</strong>scalço à frente do heterogênio grupo, <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m, mostrava<br />
excelente fôlego: era capaz <strong>de</strong> levantar do chão um jumento arreado. Atrás <strong>de</strong>le<br />
vinham os três patrões, “gente <strong>de</strong> pessoa”. Ao lado do seo Alquiste, um fra<strong>de</strong><br />
louro – frei Sinfrão, e mais o seu Jujuca do Açu<strong>de</strong>, fazen<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> gado. Derra<strong>de</strong>iro,<br />
um camarada também a cavalo e que permanecia tangendo os burros<br />
cargueiros. A viagem percorre fazendas e segue bor<strong>de</strong>jando morros e contornando<br />
escarpas e colinas. A nomenclatura <strong>de</strong>ssas fazendas está fixada na<br />
astrologia. Cada fazen<strong>de</strong>iro e seus vaqueiros também tinham nomes relacionados<br />
com os dias da semana – mesmo em língua estrangeira. Estabeleceu-se<br />
correlação entre Apolinário (Apolo), Nhá Selena (Lua), Marciano (Marte), Nhô<br />
Hermes (Mercúrio), Jove (Zeus), dona Vininha (Venus) e Juca Saturnino<br />
(Saturno). O autor aconselha a que se cui<strong>de</strong> da astrologia, da filosofia e da<br />
poesia para uma boa interpretação do texto.<br />
O recado que o morro transmitia era um grito surdo, audível e entendido<br />
apenas pelos ouvidos <strong>de</strong>sgovernados <strong>de</strong> personagens aloucados. Na verda<strong>de</strong>, a<br />
notícia que o recado traduzia em sua toada reveladora era uma <strong>de</strong>nuncia <strong>de</strong><br />
trama urdida contra o Pê-Boi, o Pedro Orósio, e que <strong>de</strong>veria culminar com sua<br />
morte. Essa mensagem é <strong>de</strong>clarada pelo Gorgulho, em linguagem <strong>de</strong>sconexa e<br />
fragmentada, quando esse estranho morador <strong>de</strong> uma gruta, uma espécie <strong>de</strong><br />
ermitão, afirma tê-la escutado do morro. É um aviso <strong>de</strong> traição, i<strong>de</strong>ntificado por<br />
uma caveira, misturado com festivida<strong>de</strong>, e que envolveria o Pedro Orósio. O<br />
anunciante era “um homenzinho terém-terém, pon<strong>de</strong>radinho no andar, todo<br />
arcaico”, diz o escritor. A mensagem é passada pelo perturbado raciocínio <strong>de</strong>
Corpo <strong>de</strong> Baile: <strong>de</strong> Miguilim a Miguel ___________________________________ Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães 61<br />
um louco e segue adiante por outros <strong>de</strong>mentes até chegar aos ouvidos do<br />
Lau<strong>de</strong>lin, cantor e compositor, um sujeito “alegre e avulso”, que o interpreta<br />
em seus versos. O final da estória dá-se em Cordisburgo, on<strong>de</strong> haveria as<br />
comemorações religiosas. Nominedomine, o Santos Olhos, se atreveu a subir ao<br />
altar e fazer terríveis previsões <strong>de</strong> final dos tempos, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> repicar loucamente<br />
os sinos. Mas antes que se tomassem providências, chegaram os fra<strong>de</strong>s, e<br />
o frei Florduardo bastou levantar a mão e acalmou-se o apocalíptico pregador.<br />
Pedro Orósio tinha uma gran<strong>de</strong> sauda<strong>de</strong> dos seus campos-gerais. Só se<br />
garantia em po<strong>de</strong>r voltar para a lin<strong>de</strong>za do território on<strong>de</strong> nascera. E ali,<br />
guardava olhos apenas para as moças. Era um conquistador inveterado, e por<br />
causa disto provocava a inveja e o ciúme <strong>de</strong> todos os homens, razão por que<br />
estava sendo jurado <strong>de</strong> morte. Em frente ao hotel do Sinval, on<strong>de</strong> o Lau<strong>de</strong>lin<br />
governava, foi que se ouviu sua mais recente “composição”, que <strong>de</strong>u ao Pê-Boi<br />
o exato enredo da mensagem. E o homem virou mesmo foi um bicho feroz:<br />
“Morrer à traição? Toma, cão!” E foi só o que se viu, logo <strong>de</strong>pois que o Nemes<br />
gritou: “Pega, mata logo, gente, o bruto já <strong>de</strong>sconfiou! Melhor matar logo!” E o<br />
Pedro acordou para <strong>de</strong>bandar o grupo, sovando e rachando homem, achatando e<br />
pisando num e noutro. Foi uma guerra <strong>de</strong> todos contra um, mas acabou com<br />
Pedro Orório se recompondo. Quase rindo, ainda perguntou: “Terei matado<br />
algum?” Daí, mesmo com a noite, esquipou, abriu pernas. Mediu o mundo. Por<br />
tantas serras, pulando <strong>de</strong> estrela em estrela, até aos seus gerais (o que nos faz<br />
lembrar o Gigante das Botas <strong>de</strong> Sete Léguas, da literatura infantil). Heloísa<br />
Vilhena interpreta o final da novela como se o Pê-Boi tivesse morrido, o que se<br />
justifica, pois Rosa <strong>de</strong>ixou sua obra aberta a juízos, os mais diversos.<br />
Em Cara <strong>de</strong> Bronze, o escritor inova, <strong>de</strong>senvolvendo uma narrativa<br />
teatral. As conversas dialogadas são o ponto alto, além das muitas intervenções<br />
<strong>de</strong> trovas, na exaltação poética sistemática do buriti e das boiadas. Há uma<br />
intenção sombreada em suas criações, vendo-se citadas, em análise, as estrofes<br />
<strong>de</strong> Dante – Inferno XIII, 64-65 e Purgatório XXXII, 148 a150.<br />
O Grivo é o personagem que abre a estória, ao chegar à fazenda-<strong>de</strong>-gado,<br />
a maior, no meio, no Urubuquaquá. Vencendo um oceano <strong>de</strong> urucúias, montes,<br />
fundões e brejos, apeia o viajante, naqueles dias <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro, quando a<br />
chusma <strong>de</strong> vaqueiros operava a apartação do gado. E daí se abrem as conversas<br />
intermináveis. Os vaqueiros são tantos, com nomes mesmo <strong>de</strong> vaqueiros: Zazo,<br />
José Uéua, Adino, Mainarte, Muçapira, Raimundo Pio e Fi<strong>de</strong>lis, Moimeichego<br />
e o Cicica. E começam a inquirir sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do Cara-<strong>de</strong>-Bronze, dono<br />
da Fazenda, e como era mesmo que ele se chamava? – Segisbé, Jizisbéu<br />
Saturnim Velho, confirma o vaqueiro Adino, que era antigo na fazenda. E tudo
62 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
e sobre tudo conversavam e queriam tomar conhecimento. Por on<strong>de</strong> andara o<br />
Grivo, nesses dois anos <strong>de</strong> caminhar, sob or<strong>de</strong>ns do Cara-<strong>de</strong>-Bronze? “Subiu<br />
serras, terras tristes, caminho mau... beirou a caatinga alta, semi<strong>de</strong>iros. Sertão<br />
seco, lagoas secas...” Mas o bem mandado não esbarrou viagem. Chegou a<br />
topar com a Inhorinhá, mulher fácil, personagem que iria reaparecer lá no<br />
Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, sendo um dos amores <strong>de</strong> Riobaldo. E o Grivo po<strong>de</strong>ria<br />
até mais tar<strong>de</strong> se arrepen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> não a prezar, mas tocou viagem, pois estava era<br />
a mando do Cara-<strong>de</strong> Bronze. Falava-se que o Grivo tinha se casado, e que<br />
“trouxe a mulherzinha <strong>de</strong>le, até... Que <strong>de</strong>ixou a moça na Virada, em casa <strong>de</strong><br />
Dona Zesuína...” mas que a mulher era para o fazen<strong>de</strong>iro. É o que seria a<br />
verda<strong>de</strong>? Até o final da estória, não se teve a comprovação da notícia, embora o<br />
Cara-<strong>de</strong>-Bronze tivesse perguntado ao Grivo: “Como é a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> moça – que<br />
moça noiva recebe, quando se casa?” E ele respon<strong>de</strong>u: “É uma re<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>,<br />
branca, com varandas <strong>de</strong> labirinto...” Mais uma vez, o leitor terá que pôr os<br />
arremates nos enredos <strong>de</strong> Rosa, interrompidos, assim, sumariamente.<br />
A fantástica novela, Buriti, que o autor chama <strong>de</strong> romance, e que revive<br />
em carne e osso a figura <strong>de</strong> Miguel, o Miguilim <strong>de</strong> Campo Geral, já mereceu<br />
interpretações <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s críticos. Os cuidados que Rosa teve no capítulo<br />
inicial, quando introduziu a família <strong>de</strong> seo Bernardo Caz, a família Cessim Caz,<br />
não estão claros no texto que dá continuida<strong>de</strong> à estória <strong>de</strong> Miguilim.<br />
Buriti se inicia, quando o moço Miguel, formado em veterinária, retorna<br />
à fazenda do Buriti Gran<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> o iô Liodoro reina absoluto. Ali ele estivera<br />
antes, e prometera voltar. Sob a proteção e comando do fazen<strong>de</strong>iro estão as<br />
mulheres da casa, suas duas filhas, Maria da Glória e Maria Behu, e a nora<br />
Dona Lalinha, a Leandra, cujo marido, iô Irvino, parece que endoidara, pois<br />
fugiu com outra mulher. Dizemos que ele per<strong>de</strong>u o juízo, porque a mulher é<br />
<strong>de</strong>scrita como <strong>de</strong> uma beleza estonteante. Há um personagem <strong>de</strong>ntro do enredo,<br />
como não podia faltar às estórias <strong>de</strong> Rosa, o Mestre Zequiel, que não dormia e<br />
vigiava o monjolo noite e dia.<br />
A novela é narrada por uma terceira voz, que muito sabe do rapaz<br />
visitante e <strong>de</strong> outros personagens secundários, e que em <strong>de</strong>terminado momento,<br />
assumem a cena principal do texto, como o Nhô Gualberto Gaspar. É este um<br />
homem que se faz amigo <strong>de</strong> Miguel, mas que vem tumultuar a estória com seu<br />
jeito sarcástico <strong>de</strong> ser, e que <strong>de</strong>svirtua a trama. E o fazen<strong>de</strong>iro vizinho sempre<br />
se mantém por perto, armando uma petulância, um modo um tanto falso <strong>de</strong><br />
proce<strong>de</strong>r. Depois da chegada do jovem rapaz à fazenda do Buriti Gran<strong>de</strong>, o<br />
encontro <strong>de</strong> Miguel com os seus moradores e o envolvimento sentimental <strong>de</strong>le<br />
com a Glorinha, num momento fugaz, porém <strong>de</strong> um certo entendimento entre
Corpo <strong>de</strong> Baile: <strong>de</strong> Miguilim a Miguel ___________________________________ Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães 63<br />
os jovens, há a promessa <strong>de</strong> que o rapaz voltaria. Antes <strong>de</strong> vê-la, com a sua<br />
timi<strong>de</strong>z, pressentiu-a na sala, e segurou o olhar, nem mesmo sabendo por que a<br />
evitava. Dentro dos poucos dias que permaneceu na fazenda, cuidando dos<br />
animais e vacinando o gado, fazia-se necessário um impulso <strong>de</strong> coragem, para<br />
levar os olhos a Maria da Glória, pois receava que ela pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>scobrir tudo o<br />
que ele sentia e <strong>de</strong>le zombasse. E Miguel pensava, mais tar<strong>de</strong>, que se pu<strong>de</strong>sse<br />
amaria Maria da Glória “<strong>de</strong>satinadamente, tão a bom esmo, dia vale dia. Amar,<br />
não pensando com palavras, sem tomar memória” E ele ainda se disse:<br />
“Quando encontrei Maria da Glória, aqui, foi como se terminasse, <strong>de</strong> repente,<br />
uma gran<strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>, que eu não sabia que existia.”<br />
As estórias <strong>de</strong>ntro do romance Buriti são inúmeras. Vai crescer um<br />
enredo muito elaborado, <strong>de</strong> paixão fulminante. Tudo leva à realização <strong>de</strong> um<br />
sentimento que envolve duas criaturas essenciais no texto: Lalinha, a nora, e o<br />
iô Liodoro, o pai <strong>de</strong> iô Irvino, Os dois jogavam cartas todas as noites, e houve<br />
um momento em que se viram envolvidos <strong>de</strong>ntro da trama que Rosa criou para<br />
gran<strong>de</strong> interesse <strong>de</strong> seus leitores. As emoções caminharam em um crescendo,<br />
com ritmo emocionante, mas, no exato instante em que tudo <strong>de</strong>veria consumarse,<br />
chega uma carta do marido <strong>de</strong>saparecido, contando do nascimento <strong>de</strong> um<br />
filho seu. E o fazen<strong>de</strong>iro reverte a situação, enviando <strong>de</strong> volta à cida<strong>de</strong> a<br />
mulher que quase o faz cair, e levar a família à <strong>de</strong>sonra.<br />
O retorno <strong>de</strong> Miguel à fazenda marca o início da novela, e que se<br />
<strong>de</strong>senrola sem sua presença. Ele chega <strong>de</strong> coração aberto. E vai ao encontro <strong>de</strong><br />
sua amada, Glorinha, mas que não era mais aquela donzela que prometera um<br />
dia esperá-lo, <strong>de</strong>srespeitada, agora, pelo traidor Nhô Gualberto Gaspar. E o<br />
romance não finda como a do Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, que diz: “Aqui a estória<br />
se acabou. Aqui a estória acabada. Aqui a estória acaba”. Miguel, Miguilim,<br />
não aparecerá mais em outros textos. A estória se acabou? On<strong>de</strong> encontrar<br />
ainda a personagem ímpar, humil<strong>de</strong>, bondosa e cativante que cresceu homemhumano<br />
e que não se saberá jamais se encontrou, <strong>de</strong> fato, a gloria <strong>de</strong> sua vida, e<br />
a realização <strong>de</strong> seu amor, nos belos braços da Glorinha, da fazenda do Buriti<br />
Gran<strong>de</strong>?<br />
Corpo <strong>de</strong> Baile é uma arca <strong>de</strong> preciosida<strong>de</strong>s. A linguagem, a criação <strong>de</strong><br />
estilo e a forma personalizada do dizer sertanejo emolduram a idéia que se<br />
firma na erudição do autor, buscada na filosofia, na metafísica e na poesia.
64 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
BIBLIOGRAFIA<br />
ROSA, João Guimarães. Corpo <strong>de</strong> Baile – Rio <strong>de</strong> Janeiro: José Olympio<br />
Editora, 1960.<br />
IN MEMORIAM, JOÃO GUIMARÃES ROSA. Rio <strong>de</strong> Janeiro: José Olympio<br />
Editora, 1968.<br />
ROSA, João Guimarães. Ficção Completa – I e II vols.: Rio <strong>de</strong> Janeiro, Editora<br />
Nova Aguilar S.A., 1994.<br />
VILHENA, Heloisa Araújo. O Roteiro <strong>de</strong> Deus: São Paulo, Mandarim, 1996.<br />
ROSA, João Guimarães. Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas – 5ª ed., Rio <strong>de</strong> Janeiro: José<br />
Olympio Editora,1967.
A INQUIETANTE ESTRANHEZA EM<br />
A TERCEIRA MARGEM DO RIO*<br />
Marco Aurélio Baggio**<br />
Este conto monotemático é o mais insólito, estúrdio e perturbador <strong>de</strong><br />
toda a obra <strong>de</strong> João Guimarães Rosa. Nenhum rio possui uma terceira margem.<br />
Ao propor isso, Guimarães Rosa comete um absurdo. Um excessus linguae.<br />
Típico <strong>de</strong> Rosa, geógrafo das fronteiras, literato capaz <strong>de</strong> extrapolá-las pela<br />
fulguração da linguagem, criando uma geografia psíquica expandida e<br />
inusitada. Provocativo, o título do conto incita os neurônios do leitor logo a se<br />
perguntar e a querer saber:<br />
– O que quer dizer “a terceira margem do rio?”.<br />
O real, a p<strong>rosa</strong>ica realida<strong>de</strong> serve <strong>de</strong> base para o autor construir sua<br />
elucubração. A linguagem comporta a criação <strong>de</strong> um mundo ficcional,<br />
i<strong>de</strong>alístico e fictício, que ultrapassa aquilo que o bom senso chancela como<br />
sendo o meramente possível.<br />
O rio é um fluxo perene <strong>de</strong> água <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> suas fontes. Segue o<br />
trajeto <strong>de</strong> menor resistência, sinuoso embora, rumo a seu <strong>de</strong>stino, o mar. Ele é<br />
contigenciado por duas margens contra as quais se esbatem suas torrentes.<br />
Disso resulta apenas um <strong>de</strong>slizar, um fluxo escoante para diante. Então o que é,<br />
on<strong>de</strong> está, para que serve, o que significa a estranha terceira margem do rio?<br />
Devaneio ficcional <strong>de</strong> uma mente fértil? Po<strong>de</strong> ser que.<br />
Metáfora transcen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> uma irrealida<strong>de</strong> presumida?<br />
“Jogue o texto para o alto, o mais alto possível e você acertará”,<br />
recomendava Guimarães Rosa a seus tradutores: Edoardo Bizzarri, Curt Meyer-<br />
Clason, Jean-Jacques Villard, Harriet <strong>de</strong> Onis.” “Persigo sempre as formas<br />
mais altas”.<br />
* Palestra proferida na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em 21 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008, <strong>de</strong>ntro da Semana Cultural<br />
Guimarães Rosa, comemorativa do seu centenário <strong>de</strong> nascimento.<br />
** Psiquiatra. Psicanalista. Presi<strong>de</strong>nte da Arcádia <strong>de</strong> Minas Gerais. Autor do livro Um abreviado do<br />
Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, 2ª ed. Santa Clara, 2006.
66 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Segundo Agnucha, sua segunda filha Agnes, Guimarães Rosa era espiritualista,<br />
apreciador do hinduísmo e <strong>de</strong> Krishnamurti. Ele afirmou: “Eu creio<br />
firmemente em ressurreição e no infinito. Reporto-me ao transcen<strong>de</strong>nte. Sou<br />
profundamente, essencialmente religioso. Sou místico, pelo menos acho que<br />
sou. Vivo no infinito; o momento não conta”.<br />
Este é o quadro sinóptico das crenças e das convicções do maior escritor<br />
brasileiro/português. Para ele, o mundo é mágico e o mistério está sempre<br />
aguardando um milagre para se resolver.<br />
Um autor bem menor, mas com a mesma cepa <strong>de</strong> buscar conhecer o real<br />
e o absoluto, vai aqui interpretar o que quer significar “a terceira margem do rio.”<br />
A primeira margem do rio é aquela na qual nascemos, crescemos e estamos<br />
como sujeito-a-nós-mesmos. Aqui nos situamos, com nosso embornal <strong>de</strong><br />
apetrechamentos, ávidos do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> buscar algo mais, melhor, postado lá,<br />
alhures, na e para diante da segunda margem do rio. Os objetos <strong>de</strong> nossos<br />
<strong>de</strong>sejos, emergentes <strong>de</strong> nossas incompletu<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> nossas carências, imploram<br />
para serem amortizados ou mesmo preenchidos por novos objetos <strong>de</strong><br />
completu<strong>de</strong> indicados pela concupisciência <strong>de</strong> nossos <strong>de</strong>sbragados <strong>de</strong>sejos.<br />
Desejo é um renitente nostálgico que está sempre hiante, aberto, a buscar<br />
o objeto qualquer, porém a<strong>de</strong>quado, capaz <strong>de</strong> encaixar-se e preencher a carência<br />
do sujeito. Para tanto, o indivíduo terá que ousar arrostar a correnteza e a<br />
profundida<strong>de</strong> do rio, atravessando-o, com medo e com coragem, em bamba<br />
canoa. Do lado <strong>de</strong> lá, na segunda margem do rio, a pessoa encontra e locupletase<br />
do outro – semelhante-<strong>de</strong>ssemelhante – novida<strong>de</strong>iro, <strong>de</strong>safiante e, ao mesmo<br />
tempo, completador e enriquecedor. Constitui-se assim uma corriqueira trama<br />
<strong>de</strong> vida. Então por quê, on<strong>de</strong> está a terceira margem do rio?<br />
Vamos especular. Todo ser vivo <strong>de</strong>ve uma morte à natureza. A teleologia,<br />
a finalida<strong>de</strong> da vida é a morte pessoal do façanhudo sujeito. Viver é, a cada<br />
momento, aproximar-se mais da própria morte. A morte é a única interrogação<br />
séria a ser feita por quem é vivo. O evento futuro da morte pessoal é o motor <strong>de</strong><br />
todas as cogitações filosóficas.<br />
O pai – semiologicamente tido por louco, leproso, calado, silencioso,<br />
possuído por vertigens – nada disso o <strong>de</strong>fine. O pai é a sã consciência lúcida da<br />
assunção da angústia – do estreitamento das livres disponibilida<strong>de</strong>s do ser<br />
vivente. Resolve antecipar-se ao inexorável <strong>de</strong>stino tomando atitu<strong>de</strong> para todos<br />
incognoscível. Seu comportamento é estranho, insólito, inapreensível para<br />
todos nós, aqueles que, meramente, utilizam o rio como vau <strong>de</strong> passagem<br />
daqui-prali e <strong>de</strong> lá pra cá. O pai posta-se em canoa no meio da corrente do rio.<br />
Instala-se parado em meio ao fluxo incessante. Compõe a paralisia do ser em
A inquietante estranheza em A Terceira Margem do Rio ___________________________ Marco Aurélio Baggio 67<br />
pleno movimento das águas roladoras. O pai cria um <strong>de</strong>lírio fluvial, a um só<br />
tempo estático – em permanência parada – e extático – encantado, suspenso por<br />
sobre si e por sobre o mundo sensível, por efeito <strong>de</strong> uma convicção do temor<br />
reverente e arrebatador do <strong>de</strong>stino que é a espera da própria morte. O pai<br />
maravilhou-se com aquilo – a morte – que sempre, todos nós, arredamos <strong>de</strong><br />
nós, o mais possível. A morte para nós, p<strong>rosa</strong>icos barranqueiros, é a encarnação,<br />
a entronização do mal em escala maior. A morte é o maior mal que, um<br />
dia, irá nos engolfar.<br />
“Mire veja: o que é ruim, <strong>de</strong>ntro da gente a gente perverte sempre por<br />
arredar mais <strong>de</strong> si. Para isso é que o muito se fala?”.<br />
O pai encantou-se com seu <strong>de</strong>stino – a morte. Foi cumpri-lo em vida. Aí,<br />
o insólito, o inusitado, a estranheza. O inquietante para todos nós.<br />
Para nós, os ripuários, aqueles que vivem vagabun<strong>de</strong>antes, ora numa ora<br />
noutra margem do rio, a atitu<strong>de</strong> do pai causa uma Unheimlich - uma inquietante<br />
estranheza.<br />
O feito do pai tem por mérito o ter sido feito. Seu motivo, seu propósito é<br />
postar-se na contramão da cultura. Ele involuiu, regrediu, em um ousado<br />
<strong>de</strong>smanche do mundo da cultura. Cria um escandaloso possível. Provoca um<br />
brutal choque com o p<strong>rosa</strong>ico bem-posto. Insere-se em isolamento evi<strong>de</strong>nte, no<br />
entanto, pública e explícitamente. A um só tempo, visível e inacessível. O pai<br />
pioneiro, encantado e obstinado, assume a travessia que todo homem terá que<br />
fazer – <strong>de</strong> má vonta<strong>de</strong> embora – do momento presente ao <strong>de</strong>vir, visando a<br />
cumprir sua alta tarefa, qual seja, ir <strong>de</strong> encontro com o não-ser, mergulhar na<br />
dissolução da morte. Trata-se <strong>de</strong> mera vicissitu<strong>de</strong> característica da biologia. A<br />
morte apenas, sem mistificação.<br />
Muitos sempre quiseram e querem edulcorar a morte como sendo algo<br />
metafísico, transcen<strong>de</strong>nte, e, até, metempsicótico. João Guimarães Rosa é um<br />
crente nesses tipos <strong>de</strong> transcendência. Tais concepções místicas e mistificadas<br />
são belas e altamente consoladoras.<br />
Como tudo que é i<strong>de</strong>alista e imaginário cria, sempre, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
uma estética baseada no mistério. Parece que parcela da humanida<strong>de</strong> está<br />
prestes a se cansar <strong>de</strong> acreditar em <strong>de</strong>uses. Muitos preferem creditar ao homem<br />
– ao vero homem humano – com suas vicissitu<strong>de</strong>s e suas trampolinagens os<br />
fenômenos e os fatos da vida. Do divinolente, da divinatorieda<strong>de</strong> é necessário<br />
cometer-se um salto mortale e <strong>de</strong>scair todo no plano do humano, simplesmente<br />
humano: Pirlimpsiquice.<br />
Voltemos ao centro do rio. Rio po<strong>de</strong> ser palavra mágica para conjugar<br />
futuro. Rio é via, estrada, vereda, caminho, um dos lugares possíveis <strong>de</strong> trânsito
68 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
para o Viator, para o homem viajante, sempre insatisfeito com aquilo que o<br />
constitui e que conforma seu ser. Assim, parte, aventuroso, rumo ao excitante<br />
novida<strong>de</strong>iro renovador enriquecedor. Caminhar é preciso.<br />
Tudo muda o tempo todo nas águas do rio, tal qual Heráclito afirmou.<br />
Não se banha os pés pela segunda vez na mesma água do rio. O cosmos está em<br />
mudança constante.<br />
Nada muda por sobre as águas do rio, tal qual, afirmou Parmêni<strong>de</strong>s. O<br />
pai feitoriza a imobilida<strong>de</strong>. “Pai calado, rio calado.” Insere a paralisia no<br />
movimento.<br />
O pai, ativa e solitariamente, fun<strong>de</strong>-se em simbiose ao rio, <strong>de</strong> uma forma<br />
inexplicável e inexprimível.<br />
Aos 14 anos, o enfezado e incompreendido esquizói<strong>de</strong> Joãozito <strong>de</strong>cidiu<br />
<strong>de</strong>itar e nunca mais se levantar. Dado biográfico relatado por ele, João Rosa<br />
(8).<br />
O pai, com sua <strong>de</strong>finição, cria uma aporia, uma dificulda<strong>de</strong> filosófica<br />
para o filho e para todos os <strong>de</strong>mais. Ao inovar em comportamento, o pai gera<br />
um dilema: o quê torna-se interrogação: – Por quê?<br />
Esta é a paixão do filho. Ele é colocado em drama, em busca inútil para<br />
obter uma explicação ou uma justificação para o feito do pai. Debal<strong>de</strong>. O filho<br />
<strong>de</strong>senvolvera um comportamento <strong>de</strong> apego para com o pai. Complexo <strong>de</strong> Édipo<br />
mais especial apego, vinculou o filho em admiração ao pai. Um potente liame<br />
uniu o filho ao pai, mediante um familiar processo intrapsíquico <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação<br />
introjetiva.<br />
“Mas, por afeto mesmo, <strong>de</strong> respeito, sempre que às vezes me louvavam,<br />
por causa <strong>de</strong> algum meu bom procedimento, eu falava: – “Foi pai que um dia<br />
me ensinou a fazer assim...”; o que não era o certo, exato, mas, que era mentira<br />
por verda<strong>de</strong>”.<br />
Todo o acervo intrapsíquico <strong>de</strong> boa qualida<strong>de</strong> que o filho colecionara<br />
estava referido ao exemplo e ao ensinamento do pai. Houvera sintonia entre<br />
os dois: “Espiou manso para mim, me acenando <strong>de</strong> vir também por uns<br />
passos”. O filho acatou internamente o convite do pai, mas se conteve por<br />
temor da mãe.<br />
“Não cito (os autores que leio), mas absorvo”. Assim se explica Guimarães<br />
Rosa.<br />
Os mecanismos <strong>de</strong> operação psíquicos <strong>de</strong> preenchimento do vazio em<br />
tabula rasa do psiquismo infante são, em seqüência, comer o seio, comer a mãe,<br />
comer o outro, o que se conceitua, em psicodinâmica, como sendo incorporação;<br />
imitar os a<strong>de</strong>manes do outro, o que se <strong>de</strong>nomina introjeção.
A inquietante estranheza em A Terceira Margem do Rio ___________________________ Marco Aurélio Baggio 69<br />
A apropriação por parte do ego do sujeito <strong>de</strong> atributo ou proprieda<strong>de</strong> do<br />
mundo externo, o qual se instala, tal qual, a partir daí, em seu psiquismo, é<br />
conceituado, em psicanálise, como sendo internalização.<br />
Em estágio mais avançado, o filho <strong>de</strong>senvolve uma i<strong>de</strong>ntificação<br />
introjetiva maciça para com seu pai, tornando-se como sujeito psíquico, em<br />
gran<strong>de</strong> parte igual/tal qual à imagem e parecença do pai. Faltou-lhe tão somente<br />
o encantamento e a coragem <strong>de</strong> ir “da parte <strong>de</strong> além” No momento <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão<br />
faltou-lhe tutano. A não se <strong>de</strong>ixar encantar, aterrorizou-se com “o além.”<br />
“Ah, a algum, isso é que é, a gente tem <strong>de</strong> vassalar”.<br />
Quem melhor senão ao bom pai?<br />
“Nosso pai era homem cumpridor, or<strong>de</strong>iro, positivo; do que eu mesmo<br />
me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros,<br />
conhecidos nossos. Só quieto.” A atitu<strong>de</strong> do pai <strong>de</strong> se internar em canoa <strong>de</strong><br />
vinhático na terceira margem do rio – seu permanente fluxo – esticou o<br />
psiquismo do filho até gerar um estado persistente e impregnante <strong>de</strong> angústia.<br />
Ficou capturado na teia paterna. Não encontrando explicação para a trama, o<br />
filho ficou a<strong>de</strong>rido à gosma da servidão, restando-lhe prestar vassalagem ao<br />
gran<strong>de</strong> senhor do rio. Encarregou-se <strong>de</strong> abastecer o pai dos alimentos e das<br />
roupas <strong>de</strong> que ele, pai, vinha <strong>de</strong>sentocar, para se manter vivo enquanto as<br />
forças não lhe faltassem.<br />
“Mostrei o <strong>de</strong> comer, <strong>de</strong>positei num oco <strong>de</strong> pedra do barranco, a salvo <strong>de</strong><br />
bicho mexer e a seco <strong>de</strong> chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos<br />
a fora.”<br />
Os anos passaram. “Os tempos mudavam, no <strong>de</strong>vagar <strong>de</strong>pressa dos<br />
tempos.” “Eu fiquei aqui, <strong>de</strong> resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu<br />
permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia <strong>de</strong> mim, eu sei – na<br />
vagação, no rio no ermo – sem dar razão <strong>de</strong> seu feito”.<br />
Fixado no pai, fisgado por sua postura imperscrutável, fascinado por sua<br />
misteriosa e inquietante atitu<strong>de</strong>, o filho permanece capturado pelo mandato <strong>de</strong><br />
nutrir e <strong>de</strong> zelar, no possível, pelo espectro do pai. É assim que o filho adquire<br />
uma forte e significativa razão <strong>de</strong> ser e <strong>de</strong> viver. Este, seu emprego e sua<br />
profissão, malgré elle même.<br />
O filho torna-se uma versão vassala, submissa <strong>de</strong> um pai portentoso em<br />
sua inovação. Assim, pouco evoluído no que tange a erigir sua própria<br />
pessoalida<strong>de</strong>, o filho adquire cabelos brancos e torna-se homem <strong>de</strong> tristes<br />
palavras. Castrado por não po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>sabrochar suas livres disponibilida<strong>de</strong>s ao<br />
não seguir vida própria, por seu querer governada, o filho é invadido pela<br />
culpa.
70 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
“De que era que eu tinha tanta, tanta culpa?”<br />
Por hipótese, po<strong>de</strong>mos supor um afluente <strong>de</strong> culpa <strong>de</strong>rivada do<br />
empecilho <strong>de</strong> o filho não vir-a-ser aquilo que po<strong>de</strong>ria ter sido. Culpa <strong>de</strong> não ser<br />
o que se pu<strong>de</strong>sse querer vir-a-ser. Essa, a culpa endógena.<br />
O outro manancial <strong>de</strong> culpa, provém do contato constante <strong>de</strong> apego do<br />
filho ao pai, ao participar ativamente do drama. O tempo é o infiel <strong>de</strong> todas as<br />
traições. “Ah, o tempo é o mágico <strong>de</strong> todas as traições...” escreve Guimarães<br />
Rosa no conto O espelho, que é o articulador e o fulcro <strong>de</strong>ste tratado pessoal <strong>de</strong><br />
filosofia <strong>de</strong> que trata Primeiras Estórias. O tempo corrói a disponibilida<strong>de</strong> e a<br />
boa vonta<strong>de</strong> do filho. Como a correnteza ero<strong>de</strong> o casco da canoa poitada em<br />
três décadas.<br />
Sabe-se que a culpa é péssima conselheira. Ela <strong>de</strong>strói, por impregnação,<br />
as capacida<strong>de</strong>s do sujeito tomar atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> avanço e <strong>de</strong> auto-realização. Culpa<br />
diminui e acovarda a pessoa. Além disso, é inesgotável se não for carpida em<br />
a<strong>de</strong>quado processo <strong>de</strong> luto.<br />
Se o pai se acha na terceira margem do rio, o filho, por sua vez, se per<strong>de</strong><br />
postado na primeira margem. Vivia <strong>de</strong>pletado: “esta vida era só o <strong>de</strong>moramento.”<br />
O filho sabe <strong>de</strong> sua impotência. O drama po<strong>de</strong> resvalar para o falimento,<br />
para a tragédia.<br />
Guimarães Rosa emprega, a meu ver, apenas três termos inusitados no<br />
conto. Neologismos? Nem por isso.<br />
Diluso quer dizer vislumbrado, entrevisto, pouco nítido.<br />
Bubuiasse é bubuiar, boiar ao sabor da corrente, sobrenadar. Provém do<br />
tupi: be’bui – algo leve, flutuante.<br />
Tororoma, do tupi toro´rom, significando corrente fluvial forte e ruidosa.<br />
Nada <strong>de</strong> neologismos. Apenas o conhecimento <strong>de</strong> línguas.<br />
“Eu não escrevo difícil. EU SEI O NOME DAS COISAS”. Eis o que<br />
afirma <strong>de</strong> modo categórico nosso querido escritor.<br />
A mãe tem papel marginal na estória. “Nossa mãe era quem regia,”<br />
“Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente<br />
alva <strong>de</strong> pálida, mascou o beiço e bramou:<br />
“– Cê vai, ocê fique, você nunca volte!”<br />
“– Cê vai” é aceitação da resolução <strong>de</strong> um íntimo, o marido.<br />
“– Ocê fique” é o tratamento explícito a um outro diferente.<br />
“– Você nunca volte!” é a exclamação <strong>de</strong> protesto pela rejeição<br />
inflingida a ela, “nossa mãe”, que assim rompe <strong>de</strong> vez com ele, marido, pai:<br />
“você.”
A inquietante estranheza em A Terceira Margem do Rio ___________________________ Marco Aurélio Baggio 71<br />
“Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura;”<br />
Tempos <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong>sistida “Nossa mãe terminou indo também, <strong>de</strong> uma<br />
vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida.” A mãe cumpre a sina <strong>de</strong><br />
porcentagem <strong>de</strong> mulheres que acolhem o sexo do homem, procriam e, lá um<br />
dia, são abandonadas por ele, com a prole.<br />
As mulheres são tratadas, muitas vezes, como um belo complemento. Os<br />
homens fazem o que querem, no fim e ao cabo.<br />
Po<strong>de</strong>-se agora examinar a terceira margem do rio comparando-o com<br />
alguns mitologemas.<br />
Noé recebeu aviso do próximo dilúvio e o mandato <strong>de</strong> construir a arca. O<br />
pai não recebeu nenhuma revelação profética. Apenas teve o insight, a iluminação<br />
súbita <strong>de</strong> que <strong>de</strong>via uma morte à natureza. E <strong>de</strong>cidiu cumpri-la.<br />
Caronte é o barqueiro autorizado a transportar as almas dos mortos em<br />
sua barca pelo rio Aqueronte, que era a porta <strong>de</strong> entrada dos infernos. O pai<br />
transportava apenas a si mesmo em um rio largo e comum.<br />
Apenas que, é bom lembrar, todo rio em Guimarães Rosa possui três<br />
margens.<br />
Ulisses, o Odisseu navegador, cometeu uma enorme seqüência <strong>de</strong> peripécias<br />
e participou <strong>de</strong> <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> aventuras. Suas navegações caracterizam pela<br />
intencionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir sempre adiante, numa constante impermanência. O pai é<br />
bem mais p<strong>rosa</strong>ico. Sua peripécia envolve apenas a si e ao filho, subsidiariamente.<br />
Sua odisséia é mínima, porém mais perturbadora e inquietante.<br />
Iô, a peregrina transformada em novilha por Zeus, seu amante, <strong>de</strong>u nome<br />
ao golfo <strong>de</strong> Jônio e ao Bósforo – “Passagem da vaca” – em suas andanças<br />
tentando fugir das perseguições <strong>de</strong> Hera, ciumenta esposa <strong>de</strong> Zeus, pouco tem a<br />
ver com a monomania fluvial do Pai. Des<strong>de</strong> Millôr Fernan<strong>de</strong>s, sabe-se que Bos/<br />
Ox significa boi; Foro/Ford é estreito. Assim, Bósforo e Oxford é o estreito do<br />
boi ou, mitologicamente, a passagem da vaca Iô.<br />
Prometeu, o façanhudo raptor do fogo dos <strong>de</strong>uses e doador do fogo aos<br />
homens, era “aquele que pensa antes <strong>de</strong> cometer o feito.” Nisso, o pai certamente<br />
equivale a este herói da mitologia grega.<br />
Por fim, uma <strong>de</strong>ida<strong>de</strong> simbólica grega – Tánatos – personificava o fim da<br />
existência humana. Tánatos ou a Morte é a representação da reintegração do ser<br />
no poço ctônico cósmico, retornando, átomo por átomo, ao repositório da mãenatureza.<br />
Tánatos expressa o <strong>de</strong>smantelamento das formas, em um catabolismo<br />
em dissolução, num retorno ao estado seminal da existência.<br />
É nesse sentido que, certamente, o pai fora possuído pela iluminação<br />
súbita <strong>de</strong> que chegara o momento <strong>de</strong> postar-se em A terceira margem do rio.
72 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Ele intuiu, mais antecipadamente que nós, que era hora <strong>de</strong> vivenciar o eterno<br />
ainda em vida. Coisa a que se propôs o filho, em hora extrema e que não teve<br />
substância, homência <strong>de</strong> substituir o pai na canoa. “Ele que parecia vir: da parte<br />
<strong>de</strong> além.”<br />
“Temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo.”<br />
Mais um fracasso, mais uma traição ao pai. A gente jamais cuida<br />
totalmente do outro querido. A morte, qualquer morte, é um libelo que <strong>de</strong>nuncia<br />
nossas falhas. O filho rompe o vínculo, quebra a comparsaria que manteve,<br />
por anos, com o pai. A culpa aumenta em conseqüência, transmuda-se:<br />
“Sofri o grave frio dos medos, adoeci.” Psicossomatizou em sintomas <strong>de</strong><br />
tristeza e <strong>de</strong> falimento pessoal.<br />
Por fim, se constituiu em negativo, em melancolia: “sou o que não foi,”.<br />
Melancolia <strong>de</strong>corre da perda <strong>de</strong> um bem concreto, alegórico, imaginário ou da<br />
or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> um valor.<br />
Perda acarreta tristeza. Tristeza é o sentimento a-menos <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong><br />
um bem amado que se foi. “Sei que ninguém soube mais <strong>de</strong>le.”<br />
O objeto <strong>de</strong> fascínio, <strong>de</strong> apego ao qual está i<strong>de</strong>ntificado, perpetra um<br />
feito estúrdio. Cria um dilema: ou o abandona, como fizeram “nossa mãe, a<br />
filha, o irmão.” Ou atreve-se a partilhar a experiência do impon<strong>de</strong>rável e do<br />
ignoto. Para obter o saber do pai será necessário entrar só na canoa, em<br />
substituição ao <strong>de</strong>sgrenhado e macilento fantasma do pai. A inquietante<br />
estranheza da <strong>de</strong>caída figura do pai, transitando pela margem da morte, é<br />
<strong>de</strong>mais para quase todos nós. Sejamos compassivos para com a fuga do filho.<br />
Só João Guimarães Rosa obteve autorização para lidar com essas extremas<br />
dimensões. Ele soube usar sua língua pessoal na plenitu<strong>de</strong> da função <strong>de</strong><br />
produzir uma realida<strong>de</strong> sublimada.<br />
Todo ser humano tem uma canoa em meio ao rio a sua espera em áurea<br />
hora. Auroras.<br />
A gente morre para provar que viveu.<br />
Alguns querem, com pertinência, ler e enten<strong>de</strong>r o conto A terceira<br />
margem do rio como sendo a façanha <strong>de</strong> Rosa tornar a língua portuguesa<br />
consciente <strong>de</strong> si mesma, assumindo função produtora <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> ficcional e<br />
<strong>de</strong> criação <strong>de</strong> mundos possíveis. No que tange à primeira margem do idioma<br />
português, ele está voltado para o mar oceano e está inserido nas bibliotecas. A<br />
segunda margem é dada pelos sertões brasileiros, com sua linguagem mais rica<br />
e mais formosa. Dessas duas margens, Guimarães Rosa insinua/vislumbra uma<br />
terceira margem lingüística que é o campo <strong>de</strong>sbravado para se fazer um pensar<br />
novo, mais síntono com as complexida<strong>de</strong>s da vida <strong>de</strong> hoje. A obra em monu-
A inquietante estranheza em A Terceira Margem do Rio ___________________________ Marco Aurélio Baggio 73<br />
mento <strong>de</strong> João Guimarães Rosa cuida <strong>de</strong> criar uma língua própria, pessoal,<br />
enormemente enriquecedora das duas margens da língua portuguesa-brasileira.<br />
Rosa é o feiticeiro da língua, inovador e renovador do idioma. Possui o<br />
porte <strong>de</strong> um Dante, <strong>de</strong> um Camões, <strong>de</strong> um Cervantes, <strong>de</strong> um Shakespeare.<br />
Duas palavras ainda. As concepções <strong>de</strong> Sigmund Freud ( ). atravessaram<br />
o século XX e umas três dúzias <strong>de</strong>las mantém-se como fecundas bases para se<br />
pensar aspectos do psiquismo do homem.<br />
O fato <strong>de</strong> que se po<strong>de</strong> interpretar “A terceira margem do rio” a partir <strong>de</strong><br />
uma visão não <strong>de</strong>vocional da transcendência humana, permite escoimar o conto<br />
<strong>de</strong> boa parte <strong>de</strong> suas abstrusida<strong>de</strong>s. O que fiz foi buscar sua hermenêutica<br />
utilizando o falquejo, o <strong>de</strong>sbastamento das formas misteriosas, <strong>de</strong>smentindo os<br />
milagres que não se vê nem se pega e que, infelizmente, nem sequer acontecem.<br />
Já é hora <strong>de</strong> creditar a atuação do espírito humano sem edulcorações,<br />
balangandãs ou penduricalhos.<br />
Sem culpa.<br />
Com reverência ao autor forte antecessor.<br />
Com a dignida<strong>de</strong> do autor menor sucessor.
74 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
MIGUILIM: UMA OUTRA EPOPÉIA<br />
DE JOÃO GUIMARÃES ROSA*<br />
Alaor Barbosa**<br />
Ter sido convocado pela <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> para falar sobre<br />
João Guimarães Rosa em uma ocasião tão grata – a comemoração do<br />
centenário do seu nascimento – constitui-se em um dos mais importantes<br />
acontecimentos da minha já longa trajetória <strong>de</strong> perseverante lidador – o sábio<br />
Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> diria lutador – com palavras. É comovido que<br />
agra<strong>de</strong>ço à <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> por me haver proporcionado a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta<br />
honrosíssima participação. Aqui compareço com aquele sentimento que me<br />
vem e com aquela atitu<strong>de</strong> que adoto toda vez que a<strong>de</strong>ntro e piso terras <strong>de</strong> Minas<br />
ou com o mundo <strong>de</strong> Minas me ponho em algum tipo <strong>de</strong> relação direta:<br />
sentimento <strong>de</strong> profunda reverência e atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> vigilante atenção. Reverência,<br />
primeiro porque Minas representa, para mim, a <strong>de</strong>nsa e profunda região da<br />
latência das minhas lembranças indiretas, certamente plantadas no meu<br />
inconsciente por meus ancestrais mineiros: do lado do meu pai, minhas raízes<br />
afundam até ao trisavô do meu pai, um português Barbosa transplantado para a<br />
zona dos contrafortes da Serra da Canastra, habitante nas terras do Espírito-<br />
Santo-da-Forquilha, ao lado da atual represa <strong>de</strong> Peixotos, no rio Gran<strong>de</strong>, perto<br />
da divisa com São Paulo. Por esse fortíssimo motivo, em chão <strong>de</strong> Minas sinto a<br />
presença nas camadas mais profundas do meu ser <strong>de</strong> obscuras forças e<br />
indistintas lembranças querendo aflorar à tona da consciência: algo assim como<br />
um rever mais do que ver, um tornar a sentir o já sentido, um reviver o vivido.<br />
Reverência também porque foi em Minas que surgiram e principalmente<br />
atuaram algumas das principais personalida<strong>de</strong>s que muito e permanentemente<br />
* Palestra proferida na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, na tar<strong>de</strong>-noite <strong>de</strong> 21 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008, quinta-feira,<br />
<strong>de</strong>ntro da Semana Cultural Guimarães Rosa, comemorativa do seu centenário <strong>de</strong> nascimento.<br />
**Escritor, advogado. Resi<strong>de</strong> em Brasília.
76 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
me têm influído no espírito. Atenção, porque sei que em Minas e <strong>de</strong> Minas<br />
po<strong>de</strong>-se sempre haurir nutritivas e alentadoras lições: basta po<strong>de</strong>r e saber ver,<br />
ouvir, ler. Dentre as nume<strong>rosa</strong>s lições com que muito se po<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r na terra<br />
– relevem-me incidir no lugar-comum <strong>de</strong> evocar representativos venerandos<br />
nomes, mas somente alguns daqueles que já saíram do convívio dos vivos – na<br />
terra <strong>de</strong> Cláudio Manoel da Costa, Aleijadinho, Ataí<strong>de</strong>, Bernardo Vasconcelos,<br />
Bernardo Guimarães, Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens, Vital Brasil Mineiro <strong>de</strong> Campanha,<br />
Carlos Chagas, Juscelino Kubitschek <strong>de</strong> Oliveira, Carlos Drummond <strong>de</strong><br />
Andra<strong>de</strong>, João Guimarães Rosa e Tancredo <strong>de</strong> Almeida Neves, saliento<br />
principalmente duas. A primeira: a do amor às coisas do espírito. Em Minas são<br />
totalmente e a<strong>de</strong>quadamente amadas e praticadas as duas ativida<strong>de</strong>s que mais<br />
criam e dignificam o Homem: a Arte e a Ciência. A outra lição é a <strong>de</strong> três virtu<strong>de</strong>s<br />
que, exigindo-se reciprocamente, na prática se adunam: coragem, sem a<br />
qual nada se faz <strong>de</strong> válido nesta vida, e prudência e perseverança, com as quais<br />
a coragem se exercita. Foi com coragem, prudência e perseverança que os<br />
gran<strong>de</strong>s homens <strong>de</strong> Minas, tão numerosos, construíram o seu fecundo,<br />
benéfico, positivo legado. Repetindo, pois, o magistral poeta <strong>de</strong> Itabira que<br />
tanto tem me ensinado vida a fora, reverentemente eu peço: “Espírito <strong>de</strong> Minas,<br />
me visita” com “teu claro raio or<strong>de</strong>nador”.<br />
Os dicionários <strong>de</strong>finem o termo epopéia como narrativa <strong>de</strong> ações heróicas.<br />
Essa <strong>de</strong>finição remete ao conceito <strong>de</strong> ação heróica. Que é ação heróica?<br />
Que é heroísmo? O dicionário Caldas Aulete, ao <strong>de</strong>finir heroísmo, comete o<br />
erro <strong>de</strong> colocar na <strong>de</strong>finição o mesmo conceito a ser <strong>de</strong>finido: diz que heroísmo<br />
é “qualida<strong>de</strong> do que é heróico” e dá <strong>de</strong> heróico esta <strong>de</strong>finição: “próprio <strong>de</strong><br />
herói, em manifesta heroicida<strong>de</strong>, que <strong>de</strong>nota heroísmo”. Felizmente, <strong>de</strong> herói<br />
ele fornece <strong>de</strong>finição clara: “homem notável pelas suas qualida<strong>de</strong>s extraordinárias,<br />
pelo seu valor e coragem acima do vulgar, pelas altas qualida<strong>de</strong>s guerreiras,<br />
atos <strong>de</strong> bravura, magnanimida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>nodo, etc.”.<br />
Reflitamos.<br />
Do conceito <strong>de</strong> herói po<strong>de</strong>-se inferir que não é somente a posse <strong>de</strong> “altas<br />
qualida<strong>de</strong>s guerreiras” que constitui a essência distintiva do herói: para ser<br />
herói, basta possuir “qualida<strong>de</strong>s extraordinárias”, “valor e coragem acima do<br />
vulgar”. Portanto, herói é quem possui qualida<strong>de</strong>s bastantes para viver –<br />
vencendo o medo, que é um fenômeno natural – as diversas situações que se<br />
lhe se apresentam em seu viver diário. Essa idéia se ajusta e serve à minha<br />
concepção <strong>de</strong> heroísmo. Pois há muito tempo que eu penso que po<strong>de</strong> haver<br />
autêntico heroísmo, por exemplo, em um homem que, mesmo vivendo vida<br />
humil<strong>de</strong>, realiza, a cada dia, as suas tarefas e obrigações e enfrenta, com
Miguilim: uma outra epopéia <strong>de</strong> João Guimarães Rosa ___________________________________ Alaor Barbosa 77<br />
coragem ou com superação do medo, os <strong>de</strong>safios inerentes à vida. Sendo o<br />
homem, e é, na exata formulação <strong>de</strong> Ortega y Gasset, ele e sua circunstância,<br />
bem po<strong>de</strong> acontecer que, vivendo uma vida comum e sem portentosos,<br />
extraordinários acontecimentos, não tenha nunca ocasião <strong>de</strong> atuar com outra<br />
gran<strong>de</strong>za que a <strong>de</strong> ser válido e eficaz conforme as pequenas circunstâncias em<br />
que lhe <strong>de</strong>corre a vida; mas esse homem po<strong>de</strong> ser, penso eu, consi<strong>de</strong>rado herói.<br />
O seu heroísmo é que é o verda<strong>de</strong>iro heroísmo <strong>de</strong> que necessita o Homem.<br />
Aquela outra espécie <strong>de</strong> heroísmo – o das virtu<strong>de</strong>s guerreiras – po<strong>de</strong> ser,<br />
alguma vez, uma necessida<strong>de</strong> inelutável. Mas pertence à Pré-História do<br />
Homem. Pré-História em que ainda <strong>de</strong>scontrolados navegamos, e que ainda<br />
estaremos a atravessar, muito infelizes, enquanto houver guerras, explorações e<br />
alienações em nossa vida individual e em nossa vida nacional e internacional.<br />
Quanto a mim, alimento no meu incansável espírito a esperança <strong>de</strong> que o<br />
Homem termine superando, mas não sei quando, esta fase teneb<strong>rosa</strong> da sua<br />
trajetória e venha a erigir como valores primaciais da sua vida o trabalho<br />
construtivo, a abnegação e a solidarieda<strong>de</strong> em lugar da coragem que serve à<br />
<strong>de</strong>strutivida<strong>de</strong> bélica. Quando o Homem valorizar <strong>de</strong> modo certo e justo o<br />
verda<strong>de</strong>iro heroísmo humano, estará enfim livre da tendência e prática atuais <strong>de</strong><br />
imaginar <strong>de</strong>uses e heróis com que entreter suas esperanças e i<strong>de</strong>ais.<br />
Finalmente, mais uma observação preliminar: a epopéia literária na sua<br />
forma antiga e tradicional <strong>de</strong>sapareceu há muito tempo <strong>de</strong> quase todas as<br />
literaturas, e foi substituída e sucedida por um novo tipo <strong>de</strong> epopéia – em que<br />
não existem, embora possam existir, heróis na também antiga concepção <strong>de</strong><br />
heroísmo. Eu disse “quase” por me lembrar do caso da brasileira epopéia que<br />
se chama Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, – uma meia exceção solitária no panorama<br />
literário oci<strong>de</strong>ntal dos últimos 300 anos. A <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira epopéia do Oci<strong>de</strong>nte foi,<br />
aliás, uma anti-epopéia: a daquele estranho, pobre e lamentável herói, ou antiherói,<br />
cuja história principia com aquelas palavras famosas que sabemos: “En<br />
un lugar <strong>de</strong> La Mancha, <strong>de</strong> que no quiero acordarme...” Na epopéia mo<strong>de</strong>rna,<br />
sucessora da antiga, o personagem herói foi substituído pelo “personagem<br />
principal”, que, muita vez, não passa <strong>de</strong> um anti-herói, ou mesmo um nãoherói:<br />
uma personalida<strong>de</strong> vencida. Posso citar duas epopéias <strong>de</strong>ssas: uma,<br />
Ilusões perdidas, <strong>de</strong> Honoré <strong>de</strong> Balzac, conta a história <strong>de</strong> um personagem<br />
per<strong>de</strong>dor, Lucien <strong>de</strong> Rubempré; a outra, Crime e castigo, <strong>de</strong> Fiódor<br />
Doistoievski, narra também a trajetória <strong>de</strong> um personagem, Raskólnikov,<br />
igualmente <strong>de</strong>rrotado, mas que consegue se redimir graças ao advento <strong>de</strong> um<br />
amor salvador em sua dramática vida. Riobaldo Tatarana, o protagonista mor<br />
Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, também po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado, apesar dos seus
78 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
momentos <strong>de</strong> corajosa atuação guerreira, uma personalida<strong>de</strong> vencida: um<br />
per<strong>de</strong>dor.<br />
Escrevendo sobre Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas quase 30 anos atrás, <strong>de</strong>i ao<br />
meu livro este título: A epopéia brasileira ou: Para ler Guimarães Rosa. Com<br />
efeito, Gran<strong>de</strong> Sertão:Veredas é uma narrativa com alguns elementos próprios<br />
<strong>de</strong> epopéia. Mas não é, evi<strong>de</strong>ntemente, uma epopéia na forma clássica <strong>de</strong><br />
epopéia. É um romance escrito em p<strong>rosa</strong> – p<strong>rosa</strong> que em inúmeros passos se faz<br />
intensamente poética. Não tem, da epopéia convencional, a proposição, a<br />
invocação às Musas, a <strong>de</strong>dicatória. Ainda bem. Invocar as Musas é uma bobagem<br />
que hoje em dia se po<strong>de</strong> apenas relevar e perdoar em poetas vítimas dos<br />
antigos erros, ilusões e enganos intelectuais da Humanida<strong>de</strong> – os quais,<br />
infelizmente, prosseguem existindo m nossa época. Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas é<br />
uma epopéia original, diferente das <strong>de</strong>mais epopéias antigas: já é uma epopéia<br />
mo<strong>de</strong>rna. Falta-lhe mesmo um outro ingrediente para po<strong>de</strong>r enquadrar-se nos<br />
mol<strong>de</strong>s convencionais do gênero épico: a nobreza da origem do herói protagonista.<br />
De fato, esse requisito parece participar <strong>de</strong> quase todas as narrativas<br />
que, nas diversas literaturas nacionais, têm sido classificadas <strong>de</strong> épicas. O<br />
principal (pois não é o único) herói <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, o jagunçopoeta-filósofo<br />
Riobaldo Tatarana, é um homem <strong>de</strong> origem muito humil<strong>de</strong>: filho<br />
bastardo <strong>de</strong> um fazen<strong>de</strong>iro, Selorico Men<strong>de</strong>s, com uma mulher humílima (até<br />
no apelido, Bigri), habitante <strong>de</strong> um lugarzinho perdido no sertão <strong>de</strong> Minas<br />
Gerais, perto do rio <strong>de</strong> São Francisco.<br />
Mas Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas não é a única epopéia escrita por João<br />
Guimarães Rosa. Das outras narrativas que ele produziu, algumas po<strong>de</strong>m ser<br />
também classificadas como epopéias, se examinadas à luz do reconceito, por<br />
mim proposto, <strong>de</strong> epopéia. Dentre tais narrativas, sobressaem as novelas dos<br />
dois volumes integrantes do livro Corpo <strong>de</strong> baile, editado no ano <strong>de</strong> 1956,<br />
poucos meses antes <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas. Aqui, hoje, nesta tar<strong>de</strong>-noite<br />
para mim inesquecível, vou me referir especialmente à novela-poema-romance<br />
“Campo geral”, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a primeira leitura, em 1958 (há, portanto, 50 anos!),<br />
passei a referir simplificadamente com o nome Miguilim. Miguilim é um hipocorístico<br />
<strong>de</strong> Miguel (que em Goiás, observo, seria Miguelim ou Miguelzim).<br />
Observemos, entre parênteses, um pormenor dotado <strong>de</strong> alguma significação:<br />
Guimarães Rosa, que tudo fazia com intenções, chama as peças que<br />
compõem Corpo <strong>de</strong> Baile, sob o título da página <strong>de</strong> rosto, <strong>de</strong> “Sete novelas”; no<br />
sumário, ele as classifica <strong>de</strong> “Os poemas”; e no sumário colocado no fim do 2º<br />
volume – no qual divi<strong>de</strong> o livro em duas partes, em que as peças se suce<strong>de</strong>m<br />
em or<strong>de</strong>m alternada, diversamente da da seqüência dos volumes, uma intitulada
Miguilim: uma outra epopéia <strong>de</strong> João Guimarães Rosa ___________________________________ Alaor Barbosa 79<br />
“Gerais” e a outra “Parábase” – ele classifica <strong>de</strong> “Os romances” as novelas<br />
“Campo geral”, “A estória <strong>de</strong> Lélio e Lina”, “Dão-Lalalão” e “Buriti”, e <strong>de</strong><br />
contos as novelas “Uma estória <strong>de</strong> amor”, “O Recado do Morro”, “Cara <strong>de</strong><br />
Bronze”. Vamos repetir, recapitulando: a estória <strong>de</strong> Miguilim em “Campo<br />
geral” é classificada por João Guimarães Rosa, sucessivamente, <strong>de</strong> novela, <strong>de</strong><br />
poema, <strong>de</strong> romance.<br />
Certa vez, talvez no ano <strong>de</strong> 1961, conversando com João Guimarães<br />
Rosa no seu gabinete <strong>de</strong> trabalho, no Palácio do Itamaraty, no Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />
cometi uma ousadia, bem própria do rapazinho <strong>de</strong> 21 anos que eu era: a <strong>de</strong><br />
afirmar a ele que a sua mais perfeita criação literária era Miguilim. Reparei bem<br />
na atenção seriíssima que Guimarães Rosa prestou à minha afirmação. Ele me<br />
indagou logo se eu pensava mesmo aquilo: “Você acha mesmo, Alaor?” Eu<br />
confirmei que sim. Ele me pareceu – no seu profundo silêncio meditativo –<br />
intensamente sensibilizado por minha afirmativa. Hoje eu não faria afirmação<br />
assim tão peremptória. Digo, sim, que Miguilim é uma das melhores e mais<br />
comovedoras criações literárias <strong>de</strong> João Guimarães Rosa.<br />
A estória <strong>de</strong> Miguilim menino passa no lugar <strong>de</strong>nominado Mutum<br />
(vocábulo que Guimarães Rosa acentua com acento agudo), nos Gerais <strong>de</strong><br />
Minas. Em outra novela, “A estória <strong>de</strong> Lélio e Lina”, informa-se que o lugar<br />
mais perto <strong>de</strong> Mutum é Barra-da-Vaca – atualmente Arinos: no Noroeste <strong>de</strong><br />
Minas, não muito longe (cerca <strong>de</strong> cem quilômetros) do atual Parque Nacional<br />
Gran<strong>de</strong> Sertão Veredas. Barra-da-Vaca foi um porto no rio Urucúia. Fica a<br />
poucos quilômetros abaixo do porto <strong>de</strong> Morrinhos, que também é mencionado<br />
em Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas. O Urucuia, <strong>de</strong>ve-se registrar, é o rio mais falado<br />
<strong>de</strong>ntro do universo das estórias <strong>de</strong> Guimarães Rosa.<br />
Falo <strong>de</strong> Miguilim menino porque existe também, em Corpo <strong>de</strong> Baile,<br />
uma outra novela, “Buriti”, em que reaparece o personagem Miguilim já adulto<br />
e vivendo, sem o saber, um trecho que po<strong>de</strong> ser (ou não) terrível transe em sua<br />
vida. Formado em veterinária, mora em Belo Horizonte e exerce a profissão no<br />
sertão <strong>de</strong> Minas. Ele volta à fazenda Buriti Bom, <strong>de</strong> Iô Liodoro, a fim <strong>de</strong> se<br />
casar com uma filha <strong>de</strong>le, Maria da Glória. Ele a conhecera um ano e pouco<br />
antes ali no Buriti Bom. Prometera voltar. A novela começa contando a volta<br />
<strong>de</strong>le: inocentemente ignorante <strong>de</strong> marcantes fatos acontecidos <strong>de</strong>pois que ele<br />
voltara para Belo Horizonte.<br />
Po<strong>de</strong>rá alguém contradizer-me argumentando: “Campo geral” é romance,<br />
é novela, é poema, é drama e é tragédia, epopéia é que não. Este é um argumento<br />
forte, pon<strong>de</strong>rável, do ponto <strong>de</strong> vista da estrutura e aci<strong>de</strong>ntes dos gêneros<br />
literários. Argumento, <strong>de</strong> resto, oponível também à classificação <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong>
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Sertão: Veredas como epopéia. Ocorrem dramas e tragédias durante aquele<br />
breve trecho <strong>de</strong> vida – pedaço da infância – <strong>de</strong> Miguilim, um menino ultrasensitivo<br />
nascido nos Gerais <strong>de</strong> Minas. A mãe <strong>de</strong>le, “que era linda e com os<br />
cabelos pretos e compridos”, não ama o marido, Bero, Bernardo: ela ama<br />
mesmo o cunhado Terêz, irmão <strong>de</strong>le. Bero nota e briga com ela constantemente.<br />
Parece que Miguilim é filho mesmo não daquele que atua como seu pai,<br />
mas sim do Tio Terêz. Além disso, a mãe parece que tem uma relação<br />
suspeitável com um empregado do casal, Luisaltino. O pai <strong>de</strong> Miguilim acaba<br />
matando Luisaltino. Logo em seguida, o pai <strong>de</strong> Miguilim suicida. A tia da mãe<br />
<strong>de</strong> Miguilim, chamada Vovó Izidra (por ser irmã da mãe da mãe <strong>de</strong> Miguilim,<br />
que se chamava Vó Benvinda e, quando moça, fora prostituta, “mulher atôa),<br />
vê e compreen<strong>de</strong> tudo o que acontece e toma posições firmes e pratica atos e<br />
profere palavras incisivas em favor da moralida<strong>de</strong> que se impõe necessária no<br />
âmbito daquela dramática família. Mas Vovó Izidra não tem forças para<br />
impedir a consumação dos dramas e tragédias. São incontroláveis as causas dos<br />
acontecimentos. Um <strong>de</strong>les, a morte do irmãozinho dileto <strong>de</strong> Miguilim, Dito, um<br />
precoce conhecedor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>s da vida, um sábio-mirim, um menino filósofo.<br />
Expedito morre novinho, com seus seis-sete anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, vítima <strong>de</strong> tétano<br />
contraído ao cortar o pé em um caco <strong>de</strong> pote <strong>de</strong> barro. Mesmo Miguilim<br />
atravessa uma doença que o paralisou na cama durante longo tempo e quase o<br />
matou também. Sim, são numerosos, simultâneos e sucessivos. Dramas<br />
tremendos, tragédias terríveis.<br />
A narrativa é uma formidável epopéia <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> gente humil<strong>de</strong>, obscura,<br />
pobre, em um lugar dos Gerais <strong>de</strong> Minas. Aquela familiazinha é uma gente<br />
<strong>de</strong>sprotegida. Tem o pai, Bero <strong>de</strong> Cássio, a mãe, os irmãos Dito, Drelina, Chica<br />
e Tomezinho, a Vovó Izidra, o Tio Terêz, uma preta, Mãitina, que vem do<br />
tempo da escravidão, o vaqueiro Luisaltino. O pai <strong>de</strong> Miguilim nem é o dono<br />
da terra on<strong>de</strong> mora, mas sim empregado do dono da fazenda. Miguilim tem oito<br />
anos quando começa a narrativa. O pai cuida das plantações e do gado,<br />
trabalhando junto com enxa<strong>de</strong>iros e vaqueiros. Ele tem dívida, que não po<strong>de</strong><br />
pagar, e recebe cobrança apertada. A vida é dura, ganhada no eito. A casa é<br />
pobre. Da precarieda<strong>de</strong> material da casa a narrativa fornece uma informação<br />
expressiva:<br />
– Daí <strong>de</strong>u trovão maior, que assustava. O trovão da Serra do Mutum-<br />
Mutum, o pior do mundo todo, – que fosse como podia estatelar os paus da<br />
casa.<br />
“Corda-<strong>de</strong>-vento entrava pelas gretas das janelas, empurrava água.<br />
Molhava o chão. Miguilim e Dito a curto tinham olho no teto, on<strong>de</strong> o barulho
Miguilim: uma outra epopéia <strong>de</strong> João Guimarães Rosa ___________________________________ Alaor Barbosa 81<br />
remoía. A casa era muito envelhecida, uma vez o chuvão tinha <strong>de</strong>sabado no<br />
meio do corredor, com um tapume do telhado. Trovoeira. Que os trovões a mau<br />
retumbavam”.<br />
A narração dos acontecimentos e as referências às coisas – casas <strong>de</strong><br />
morada, os eitos on<strong>de</strong> se trabalha, as roças, os morros, os matos, os cerrados, os<br />
animais domésticos, os bichos ferozes – tudo, enfim, na estória, se apresenta<br />
através da percepção e sensitivida<strong>de</strong> do menino Miguilim: coisas e acontecimentos<br />
são captações dos olhos e ouvidos <strong>de</strong> Miguilim. Todavia, a narrativa,<br />
misturando técnicas diversas, faz-se em completa liberda<strong>de</strong> em relação a<br />
rigi<strong>de</strong>zes estruturais: ora fala um narrador onisciente (“Um certo Miguilim<br />
morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui, muito <strong>de</strong>pois<br />
da Vereda-do-Frango-d’Água e <strong>de</strong> outras veredas sem nome ou pouco conhecidas,<br />
em ponto remoto, no Mutum”), ora mergulha a narrativa em memórias<br />
diretas (“A gente podia ficar tempo, era bom, junto com o gato Sossõe”; “Tudo<br />
era bom, às tar<strong>de</strong>s a gente a cavalo, buscando vacas”); ora fala rasgadamente na<br />
primeira pessoa singular (“Ah, o pai não ralhava – ele tinha <strong>de</strong>mudado, <strong>de</strong><br />
repente, soável risonho; mesmo tudo ali no instante, às asas; o ar, essas pessoas,<br />
as coisas – leve, leve, tudo <strong>de</strong>mudava simples, sem <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, o pai gostava <strong>de</strong><br />
mamãe”).<br />
Aqui, cabe uma hipótese. Pungente é a reconstituição, rica em gran<strong>de</strong>s e<br />
em miúdas verda<strong>de</strong>s, da infância <strong>de</strong> Miguilim, que é a infância <strong>de</strong> todos nós<br />
que nascemos no sertão ou nas imediações do sertão. O autor sucumbe às vezes<br />
ao impulso forte <strong>de</strong> fazer memória direta, até mesmo mediante a primeira<br />
pessoa singular. Talvez resida nisso uma das causas por que Guimarães Rosa,<br />
conforme confessou uma vez, não podia conter lágrimas <strong>de</strong> choro profundo<br />
quando relia a narrativa <strong>de</strong> Miguilim menino.)<br />
Mutum era um lugar muito isolado. Povoado e ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> muitas espécies<br />
<strong>de</strong> animais: bois (zebus e curraleiros, brabezas) e vacas e bezerros, cavalos<br />
e burros e mulas, porcos, galos e galinhas, cabritos, papagaios, rãs, cães, gatos,<br />
ratos, gambás, patos, galinhas-d’angola, iraras, teiús (em Goiás se pronuncia<br />
tiú), tamanduás, cobras <strong>de</strong> várias espécies (principalmente jibóia e sucuri,<br />
referida como sucuriú), formigas (salientemente as cabeçudas), tatus (tatu-peva,<br />
tatu-galinha, tatu-canastra), perdizes, seriemas, emas, marrecas-caboclas,<br />
abelhas-do-reino, abelhinhas, marimbondos. Havia lá numeras espécies <strong>de</strong><br />
bichos, alguns mesmo perigosos e ferozes: onça, lobo, raposa anta, macaco,<br />
caxinguelê (serelepe), sonhim, mico-estrela, veado (<strong>de</strong> várias espécies), paca,<br />
capivara, sapo, besouro. Nas árvores e no chão e no ar do céu, apareciam<br />
constantes pássaros e bichinhos: sanhaço, sabiá-do-peito-vermelho, tico-tico,
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gaturamo, tucano, coruja, perua, periquito, arara, alma-<strong>de</strong>-gato, bem-te-vi,<br />
passo-preto, nhambu, maitaca (em Goiás: maritaca), pica-pau, gavião, morcego,<br />
guache (em Goiás se diz guacho), curió (Guimarães Rosa registra curiol),<br />
borboletas, mosquitos, vespas (ele diz: avespa), urubu, coruja-branca, vagalumes,<br />
maria-preta, patativo, canarinho-cabeça-<strong>de</strong>-fogo, papa-capim, encontro,<br />
tatoranas-ratas, lagartixas, minhocas... Nos corgos e ribeirões e rios, peixes:<br />
piaba, timburé, bagre....<br />
É o narrador quem conta:<br />
– Entretanto, Miguilim não era do Mutúm. Tinha nascido ainda mais<br />
longe, também em buraco <strong>de</strong> mato, lugar chamado Pau-Roxo, na beira do<br />
Saririnhém. De lá, separadamente, se recordava <strong>de</strong> sumidas coisas, lembranças<br />
que ainda hoje o assustavam.<br />
Dessas lembranças mais remotas do Pau-Rôxo, que o assustavam, “sumidas<br />
coisas”, uma era a <strong>de</strong> uma pedrada que um Menino Gran<strong>de</strong> lhe acertara na<br />
cabeça, na testa; outra, <strong>de</strong> um banho em sangue <strong>de</strong> tatu que lhe <strong>de</strong>ram para<br />
curá-lo <strong>de</strong> uma doença, “para ele po<strong>de</strong>r vingar”, ele “nu, <strong>de</strong>ntro da bacia”. Se<br />
recordava também <strong>de</strong> que “umas moças chei<strong>rosa</strong>s, limpas, os claros risos<br />
bonitos pegavam nele, o levavam para a beira duma mesa, ajudavam-no a<br />
provar, <strong>de</strong> uma xícara gran<strong>de</strong>, goles <strong>de</strong> um <strong>de</strong>-beber quente, que cheirava a<br />
clarida<strong>de</strong>”. Mais: “Depois, na alegria num jardim, <strong>de</strong>ixavam-no engatinhar no<br />
chão, meio àquele fresco das folhas, ele apreciava o cheiro da terra, das folhas,<br />
mas o mais lindo era o das frutinhas vermelhas escondidas por entre as folhas –<br />
cheiro pingado, respingado, risonho, cheiro <strong>de</strong> alegriazinha. As frutas que a<br />
gente comia. Mas a mãe explicava que aquilo não havia sido no Pau-Rôxo, e<br />
bem nas Pindaíbas-<strong>de</strong>-Baixo-e-<strong>de</strong>-Cima, a fazenda gran<strong>de</strong> dos Barbóz, aon<strong>de</strong><br />
tinham ido <strong>de</strong> passeio”.<br />
Miguilim, assim criado longe <strong>de</strong> tudo, não sabia o que é teatro e circo,<br />
coisas que mãe <strong>de</strong>le, no entanto, conhecera uma vez, parece que em uma vila, e<br />
tentou uma vez explicar a ele o que são.<br />
A mãe era natural do Quartel-Geral-do-Abaeté. O pai, <strong>de</strong> Buritis-do-<br />
Urucúia. (Será a atual Buritis, não muito distante <strong>de</strong> Arinos?)<br />
O pai <strong>de</strong> Miguilim é um homem difícil, susceptível <strong>de</strong> ficar nervoso e<br />
<strong>de</strong>sequilibrado por pouca coisa, mesmo com pequenos inci<strong>de</strong>ntes comuns da<br />
penosa vida diária <strong>de</strong> fazenda sertaneja. Assim, por exemplo, quando alguma<br />
rês se machuca rasgando a barriga nas pontas <strong>de</strong> uma aroeira. Miguilim,<br />
recordando, <strong>de</strong>põe:<br />
– Como o pai ficava furioso: até quase chorava <strong>de</strong> raiva! Exclamava que<br />
ele era pobre, em ponto <strong>de</strong> virar miserável, pedidor <strong>de</strong> esmola, a casa não era
Miguilim: uma outra epopéia <strong>de</strong> João Guimarães Rosa ___________________________________ Alaor Barbosa 83<br />
<strong>de</strong>le, as terras ali não eram <strong>de</strong>le, o trabalho era <strong>de</strong>mais, e só tinha prejuízo<br />
sempre, acabava não po<strong>de</strong>ndo nem tirar para sustento <strong>de</strong> comida da família.<br />
Não tinha posse nem para retelhar a casa velha, estragada por mão <strong>de</strong>sses<br />
ventos e chuvas, nem recurso para mandar fazer uma boa cerca <strong>de</strong> réguas, era<br />
só cerca <strong>de</strong> achas e paus pontudos, perigosa para a criação. Que não podia<br />
arranjar um garrote com algum bom sangue casteado, era só contentar com o<br />
Rio-Negro, touro do <strong>de</strong>mônio, sem raça nenhuma quase. Em, tanto nem<br />
conseguia remediar com qualquer zebu ordinário, touro cancréje, que é gado<br />
bravo, miúdo ruim leiteiro, <strong>de</strong> chifres gran<strong>de</strong>s, mas sempre é zebu mesmo, cor<br />
queimada, parecendo com o guzerate.<br />
E Miguilim acrescenta esta memória dura: “Dava vergonha no coração<br />
da gente, o que o pai assim falava”.<br />
Da relação tormentosa entre o pai e a mãe, Miguilim tinha percepções,<br />
entrevisões, vislumbres; e recebia informações da parte do irmãozinho Dito,<br />
bem mais enxergador e perspicaz do que ele. “– Pai está brigando com Mãe.<br />
Está xingando ofensa, muito, muito. Estou com medo, ele queira dar em<br />
Mamãe...” E Dito completou a informação: “– Eu acho, Pai não quer que Mãe<br />
converse mais nunca com o tio Terêz... Mãe está soluçando em pranto, <strong>de</strong>mais<br />
da conta”. Um dia, Miguilim viu a Vovó Izidra mandar tio Terêz embora da<br />
casa e advertir que era por causa daquela espécie <strong>de</strong> coisas que “há questão <strong>de</strong><br />
brigas e mortes, <strong>de</strong>smanchando com as famílias”. Outro dia, Miguilim ouviu o<br />
vaqueiro Luisaltino comentar com Mãe que era um erro pai casar filha com<br />
quem ela não quer; ele aludia ao casamento <strong>de</strong>la com o pai <strong>de</strong> Miguilim.<br />
Terminou acontecendo que tio Terêz saiu da casa e foi morar em outro lugar,<br />
no Tabuleiro-Branco; Dito, que soubera do fato por fala do vaqueiro Saluz, foi<br />
quem contou a Miguilim.<br />
Miguilim captava em fragmentos a realida<strong>de</strong> que se <strong>de</strong>senrolava em<br />
redor <strong>de</strong>le. Realida<strong>de</strong> muitas vezes dura, conflituosa, bruta mesmo. Ele e as<br />
<strong>de</strong>mais crianças percebiam, entreviam, sentiam, captavam notavam, viam a<br />
realida<strong>de</strong> entretecida <strong>de</strong> problemas entre as pessoas.<br />
Miguilim sofria com o que via e sabia. Lento é o seu processo <strong>de</strong> amadurecimento<br />
e autolibertação. Nesse processo, interferem e colaboram com o<br />
passar do tempo três acontecimentos que muito o marcaram: a morte do irmão<br />
Dito, a ruptura moral com o pai que tanto o rejeitava, a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> sair <strong>de</strong> casa.<br />
A morte <strong>de</strong> Dito foi um abalo em sua sensibilida<strong>de</strong>. Logo <strong>de</strong>pois ele compreen<strong>de</strong>u<br />
que <strong>de</strong>via ir embora daquela casa.<br />
Um acaso o ajudou a sair: apareceu um dia na fazenda um médico <strong>de</strong><br />
Curvelo, doutor José Lourenço, que logo ao chegar lhe <strong>de</strong>scobriu a miopia. Os
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óculos que o médico tirou <strong>de</strong> si e lhe pôs nos olhos lhe revelaram, <strong>de</strong> repente,<br />
novas dimensões e cores da realida<strong>de</strong> física do mundo. Em arremate, doutor<br />
Lourenço o levou dali daquele lugar, para viver com ele e estudar, com o<br />
consentimento enternecido da mãe viúva agora unida, conjugalmente, ao tio<br />
Terêz.<br />
As novelas <strong>de</strong> Corpo <strong>de</strong> Baile constituem-se minuciosos documentos e<br />
registros da vida rural, primitiva e difícil, com suas complexas relações humanas,<br />
em um trecho <strong>de</strong> um dos vários sertões <strong>de</strong> Minas. Documento e registro,<br />
também, naturalmente, da época em que <strong>de</strong>correm as estórias. Época ainda <strong>de</strong><br />
carros-<strong>de</strong>-bois, lamparinas, can<strong>de</strong>ias, lampiões, enxadas, cisternas, bal<strong>de</strong>s,<br />
banhos em bacias, trabalhos braçais duríssimos, doenças – uma <strong>de</strong>las o tétano –<br />
que matam com escassa resistência, por falta <strong>de</strong> medidos e medicamentos.<br />
Quando Miguilim, agora adulto e veterinário profissional, retorna ao Buriti<br />
Bom – que fica em outra zona, um tanto distante do Mutum – a fim <strong>de</strong> pedir<br />
Maria da Glória em casamento, o fazen<strong>de</strong>iro que o hospeda antes d’ele chegar<br />
lá, Nhô Gualberto, afirma a ele que aquela era a primeira vez que ali chegava<br />
um jipe. Vocábulo que Guimarães Rosa grafa ainda na forma original inglesa:<br />
jeep. Isto indica ser palavra recentemente introduzida na língua portuguesa.<br />
A estória <strong>de</strong> Miguilim, como todas as <strong>de</strong> Corpo <strong>de</strong> Baile, é psicologicamente<br />
riquíssima. E nela abundam ambigüida<strong>de</strong>s, com as quais João Guimarães<br />
Rosa <strong>de</strong>monstra compreen<strong>de</strong>r que na vida nem tudo se <strong>de</strong>cifra: muito mistério e<br />
muita dúvida na vida não se esclarecem nunca, ou por impossibilida<strong>de</strong> ou<br />
mesmo por inconveniência ou <strong>de</strong>sistência.<br />
A linguagem também é rica e eficaz – e escoimada dos hermetismos e<br />
dos <strong>de</strong>sconcertantes – inesperáveis – lugares-comuns encontradiços, com<br />
variável freqüência, em outras novelas: por exemplo, em “Uma estória <strong>de</strong><br />
amor” e “Buriti”.<br />
São duas as estórias <strong>de</strong> Miguilim, repito: “Campo geral” se continua em<br />
“Buriti”. As duas se completam uma à outra. Miguilim, que muito sofreu em<br />
menino, reaparece para continuar sua vida com talvez mais sofrimento. Não se<br />
sabe. Só se po<strong>de</strong> conjecturar. A verda<strong>de</strong> dolo<strong>rosa</strong> é que a leitura <strong>de</strong> “Buriti”<br />
produz – em mim produziu, nas quatro vezes que a li – um sentimento <strong>de</strong><br />
infinita, profunda, amaríssima tristeza. Tristeza resultante da constatação <strong>de</strong><br />
quanto a vida humana po<strong>de</strong> conter <strong>de</strong> enganos, equívocos, cegueiras, frustrações,<br />
esperanças infundas, ilusões; e <strong>de</strong> que é completamente ilusória, tanta<br />
vez, a confiança na pureza <strong>de</strong> sentimentos do “bicho da terra tão pequeno”.<br />
Nesse aspecto, a cena <strong>de</strong> “Buriti” em que Miguilim, agora Miguel, conversando<br />
com Nhô Gualberto, lhe conta que voltou para pedir Maria da Glória em
Miguilim: uma outra epopéia <strong>de</strong> João Guimarães Rosa ___________________________________ Alaor Barbosa 85<br />
casamento, é uma das mais substantivamente patéticas da literatura universal. A<br />
ingenuida<strong>de</strong> e retidão <strong>de</strong> Miguel contraposta à astúcia, dissimulação e solércia<br />
<strong>de</strong> Nhô Gualberto! Pobre Miguel! Não sabia <strong>de</strong> nada, o coitado... Ia casar<br />
enganado sobre a personalida<strong>de</strong> e experiências pregressas da mulher amada –<br />
experiências acontecidas durante aquele um ano <strong>de</strong> sua ausência. Pobre<br />
Miguel! Pobre filho dos Gerais <strong>de</strong> Minas! Sua condição <strong>de</strong> vítima nos faz<br />
pensar: Pobre humanida<strong>de</strong>! Pobre humanida<strong>de</strong>, no entanto heróica e valente,<br />
apesar <strong>de</strong> tudo; e merecedora <strong>de</strong> tudo o que sonha <strong>de</strong> bom e positivo. A<br />
ingenuida<strong>de</strong>, boa-fé e retidão <strong>de</strong> Miguel, se é que existem (pois a narrativa não<br />
nos revela a sua história e verda<strong>de</strong> íntima <strong>de</strong>pois que saiu menino do Mutum<br />
para Curvelo) talvez seja uma indicação <strong>de</strong> esperança.
86 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
SAGARANA: ANÚNCIO E AMOSTRA DE<br />
UMA REVOLUÇÃO LITERÁRIA*<br />
Ângela Vaz Leão**<br />
Agra<strong>de</strong>cendo ao Dr. Murilo Badaró o honroso convite para participar<br />
<strong>de</strong>sta série <strong>de</strong> homenagens da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> a Guimarães Rosa,<br />
quero congratular-me com todos os membros <strong>de</strong>sta Casa por essa mineira<br />
vigilância do seu Presi<strong>de</strong>nte, sempre atento às marcas que pontuam, no<br />
calendário, a história cultural das nossas Minas Gerais. Este ano <strong>de</strong> 2008<br />
constitui uma <strong>de</strong>ssas marcas, pois assinala o centenário do nascimento <strong>de</strong><br />
Guimarães Rosa, o mais mineiro <strong>de</strong> todos os escritores, o mais autêntico<br />
representante daquilo que se enten<strong>de</strong> por mineirida<strong>de</strong>.<br />
Comemorar o centenário do nascimento <strong>de</strong> Guimarães Rosa neste ano<br />
corrente <strong>de</strong> 2008, não nos exime, entretanto, <strong>de</strong> lembrar que a primeira<br />
publicação <strong>de</strong> Sagarana, ocorrida em 1946, completa os seus bem vividos<br />
sessenta e dois anos. Ao contrário, essa lembrança me parece, além <strong>de</strong> justa, <strong>de</strong><br />
fundamental importância para a compreensão do fenômeno da elaboração<br />
literária, que não se faz do nada como no mito bíblico da criação do mundo,<br />
mas se faz <strong>de</strong> trabalho persistente, à custa <strong>de</strong> muito emendar e substituir, ou <strong>de</strong><br />
muita “poda e lima”, no dizer <strong>de</strong> Antônio Ferreira, um <strong>de</strong> nossos gran<strong>de</strong>s<br />
clássicos do século XVI. Guimarães Rosa não escapou a isso. Seu texto é, ao<br />
contrário, um dos melhores exemplos que se conhece do fenômeno da<br />
elaboração literária.<br />
Com efeito, por mais revolucionário que seja o romance Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />
Veredas em matéria <strong>de</strong> língua e <strong>de</strong> estilo, po<strong>de</strong>-se dizer que não há nele uma<br />
inovação lingüística ou estilística sequer que não se encontre já, em germe ou<br />
* Trabalho apresentado na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em agosto <strong>de</strong> 2008, em homenagem ao centenário<br />
<strong>de</strong> nascimento <strong>de</strong> Guimarães Rosa.<br />
**Professora emérita da UFMG e professora titular da PUC-Minas
88 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
embrião, no volume inaugural <strong>de</strong> contos Sagarana. É evi<strong>de</strong>nte que os <strong>de</strong>z anos<br />
que me<strong>de</strong>iam entre a publicação das duas obras geram uma diferença nos<br />
recursos explorados, diferença se não qualitativa, pelo menos quantitativa. Nem<br />
po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong> outra forma, num autor tão escrupuloso e ao mesmo tempo tão<br />
ciente e consciente das virtualida<strong>de</strong>s da língua portuguesa quanto Guimarães<br />
Rosa.<br />
Em carta a João Condé, conta Guimarães Rosa que pensou muito, certo<br />
dia, quando chegou a hora <strong>de</strong> o Sagarana ser escrito. Depois <strong>de</strong> refletir sobre<br />
tudo que representava a palavra arte e <strong>de</strong> estabelecer algumas relações<br />
literárias, teve <strong>de</strong> escolher o terreno em que localizaria suas histórias. E acabou<br />
escolhendo o pedaço <strong>de</strong> Minas Gerais que era mais <strong>de</strong>le mesmo. Ouçamos as<br />
suas palavras:<br />
(...) E foi o que preferi. Porque tinha muitas sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> lá.<br />
Porque conhecia um pouco melhor a terra, a gente, bichos,<br />
árvores. Porque o povo do interior – sem convenções, “poses” –<br />
dá melhores personagens <strong>de</strong> parábolas: lá se vêem bem as<br />
reações humanas e a ação do <strong>de</strong>stino; lá se vê bem um rio cair na<br />
cachoeira ou contornar a montanha, e as gran<strong>de</strong>s árvores<br />
estalarem sob o raio, e cada talo do capim humano rebrotar com<br />
a chuva ou estorricar com a seca. (Carta a João Condé, in<br />
Sagarana, 64ª. Edição, 2006, p. 25).<br />
Continuando seu relato epistolar ao Amigo, assim Guimarães Rosa<br />
sintetiza a escolha da ambientação dos seus contos:<br />
(...) Bem, resumindo: ficou resolvido que o livro se passaria no<br />
interior <strong>de</strong> Minas Gerais. E compor-se-ia <strong>de</strong> 12 novelas. Aqui,<br />
meu caro Condé, findava a fase <strong>de</strong> premeditação. Restava agir.<br />
Então, passei horas <strong>de</strong> dias, fechado no quarto, cantando cantigas<br />
sertanejas, dialogando com vaqueiros <strong>de</strong> velha lembrança,<br />
“revendo” paisagens da minha terra, e aboiando para um gado<br />
imenso. (Ibi<strong>de</strong>m, p. 25)<br />
Passada essa fase <strong>de</strong> quase ruminação do livro, Guimarães Rosa começa<br />
a escrevê-lo. Na mesma carta, diz: lembro-me <strong>de</strong> que foi num domingo, <strong>de</strong><br />
manhã (p. 25). E conta ainda que o livro foi escrito em sete meses, quase todo<br />
na cama, a lápis, em ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> 100 folhas. (p. 25). Contratada uma
Sagarana: anúncio e amostra <strong>de</strong> uma revolução literária ________________________________ Ângela Vaz Leão 89<br />
datilógrafa para passá-lo a limpo, pô<strong>de</strong> Guimarães Rosa, no último dia do ano<br />
<strong>de</strong> 1937, entregar os originais à Livraria José Olympio que teve <strong>de</strong> esperar<br />
ainda alguns anos pela or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> sua publicação.<br />
As histórias somavam o total <strong>de</strong> doze, número que se reduziria<br />
posteriormente a nove. Guimarães Rosa eliminaria três <strong>de</strong>las – “Questões <strong>de</strong><br />
Família”, “Uma História <strong>de</strong> Amor” e “Bicho Mau”, O Autor justifica a exclusão<br />
na mesma carta a João Condé, da primeira história por ser meio autobiográfica,<br />
da segunda por não ter sido <strong>de</strong>senvolvida razoavelmente e da terceira<br />
por não ter parentesco profundo com as nove outras conservadas.<br />
Depois, conta o nosso Autor que o livro não foi publicado logo, mas<br />
repousou durante sete anos; e, em 1945, foi retrabalhado em cinco meses,<br />
cinco meses <strong>de</strong> reflexão e <strong>de</strong> luci<strong>de</strong>z. (Ibi<strong>de</strong>m, p. 25)<br />
Após esse longo processo, já relatado pelo próprio Autor, publica-se em<br />
1946 a primeira edição da obra, com o título <strong>de</strong> Sagarana.<br />
Se consi<strong>de</strong>rarmos os meses <strong>de</strong> composição dos contos, entre 1937 e<br />
1938, passando pelo longo período em que foram retrabalhados e <strong>de</strong>pois pelos<br />
vários anos <strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, até o ano <strong>de</strong> sua primeira<br />
publicação em 1956, vamos encontrar um intervalo <strong>de</strong> perto <strong>de</strong> duas décadas.<br />
São duas décadas <strong>de</strong> observação e <strong>de</strong> exercício da linguagem, <strong>de</strong> emendas<br />
constantes, <strong>de</strong> auto-disciplina e auto-superação ou, para usar uma comparação<br />
esportiva neste tempo <strong>de</strong> Olimpíadas, <strong>de</strong> aquecimento para o gran<strong>de</strong> salto.<br />
Não pretendo analisar aqui essa longa preparação através <strong>de</strong> um<br />
confronto estilístico <strong>de</strong> originais sucessivamente retocados. Pretendo apenas<br />
voltar a Sagarana, com três objetivos: dar uma visão rápida <strong>de</strong> sua história<br />
editorial; pôr em <strong>de</strong>staque algumas <strong>de</strong> suas inovações na concepção da<br />
narrativa; e sugerir que tais inovações já prenunciam a gran<strong>de</strong> revolução<br />
literária que virá com o romance Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas.<br />
Escrito sob o pseudônimo Viator, isto é, ‘caminhante, viandante’, pseudônimo<br />
aliás muito apropriado, o volume, a princípio intitulado simplesmente<br />
Contos, concorre, em 1938, ao Prêmio Humberto <strong>de</strong> Campos, da Livraria José<br />
Olympio. Obtém o segundo lugar, per<strong>de</strong>ndo para Maria Perigosa, <strong>de</strong> Luiz Jardim.<br />
Só oito anos <strong>de</strong>pois, em abril <strong>de</strong> 1946, os contos <strong>de</strong> Rosa vêm à luz, pela<br />
Editora Universal do Rio <strong>de</strong> Janeiro, com o novo título, Sagarana, agora sob o<br />
nome civil do autor, assinado J. Guimarães Rosa, com o prenome abreviado. A<br />
coletânea recebe o Prêmio da Socieda<strong>de</strong> Felipe <strong>de</strong> Oliveira, com gran<strong>de</strong><br />
repercussão nos meios literários brasileiros, como se comprova pelo fato <strong>de</strong> sua<br />
primeira edição esgotar-se em poucos meses, publicando-se a segunda ainda<br />
em 1946, pela mesma Editora Universal, hoje inexistente.
90 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
O aparecimento da segunda edição dá-se cinco anos <strong>de</strong>pois, isto é, em<br />
setembro <strong>de</strong> 1951, pela Editora José Olympio, que se torna <strong>de</strong>tentora da tarefa e<br />
do privilégio <strong>de</strong> editar, daí por diante, todas as obras <strong>de</strong> Guimarães Rosa, o que<br />
fez, aliás, até que os per<strong>de</strong>sse – a tarefa e o privilégio – para a Editora Nova<br />
Fronteira.<br />
Embora a terceira edição tenha sido fruto <strong>de</strong> um minucioso trabalho <strong>de</strong><br />
revisão por parte do Autor, mais minuciosa ainda foi a revisão <strong>de</strong> que ela foi<br />
objeto <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> publicada. Assim, passados mais cinco anos, a quarta edição<br />
vem a público em janeiro <strong>de</strong> 1956, com profundas alterações e com a<br />
<strong>de</strong>claração <strong>de</strong> versão <strong>de</strong>finitiva, firmada agora por João Guimarães Rosa,<br />
escrevendo-se o prenome João por extenso, com o qual o Autor passará a<br />
assinar a sua obra <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então.<br />
Mas, parodiando Eduardo Frieiro, que viu o diabo na livraria do<br />
Cônego, o crítico <strong>de</strong> hoje talvez veja o diabo nos originais <strong>de</strong> Guimarães Rosa.<br />
Declarar a quarta edição como <strong>de</strong>finitiva pouco significaria para esse<br />
endiabrado perfeccionista, que impulsionava a máquina <strong>de</strong> escrever e <strong>de</strong>pois,<br />
sobre a página datilografada, passava e repassava a caneta. Afinal <strong>de</strong> contas,<br />
que compromisso tão coercitivo assumiria ele com seus leitores e seus editores,<br />
ao <strong>de</strong>finir uma edição como <strong>de</strong>finitiva? Que compromisso o impediria <strong>de</strong><br />
submeter a obra a mais uma série <strong>de</strong> correções? Nenhum. Nenhum compromisso,<br />
nem mesmo a palavra <strong>de</strong>finitiva, o impedia <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r a outra e mais<br />
outra acurada revisão. Assim, a quinta edição sai em abril <strong>de</strong> 1958, com<br />
revisões e com a nova <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> retocada – forma <strong>de</strong>finitiva. Aí, sim, valeu<br />
a promessa. Porque, na sexta edição, <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1964, faz ele apenas alguns<br />
pequenos retoques, que serão os últimos. Esse texto, o da sexta edição, po<strong>de</strong> ser<br />
consi<strong>de</strong>rado o texto <strong>de</strong>finitivo <strong>de</strong> Sagarana. A partir daí, a obra será objeto <strong>de</strong><br />
duas reimpressões ainda em vida do Autor, isto é, até a oitava, em maio<br />
<strong>de</strong> 1967, vindo ele a falecer em 19 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong>sse mesmo ano. Mas o<br />
impacto da obra não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> crescer, chegando a nume<strong>rosa</strong>s reproduções<br />
póstumas, a partir da nona, que se dá ainda em 1967, um mês <strong>de</strong>pois da morte<br />
do Escritor.<br />
Hoje, temos diante <strong>de</strong> nós a sexagésima quarta impressão, feita em 2006,<br />
pela Editora Nova Fronteira. Aliás, a ficha catalográfica <strong>de</strong> abertura do livro<br />
assinala a data <strong>de</strong> 2001. Porém, creio ser mais confiável a data que se lê no<br />
colofão, 2006. Ora, <strong>de</strong> 1946, data da primeira edição até hoje, 2006, temos<br />
sessenta anos. Não há como negar: sessenta e quatro edições em sessenta anos<br />
atestam o sucesso editorial <strong>de</strong> Sagarana, cifrado na expressiva média <strong>de</strong> mais<br />
<strong>de</strong> uma edição por ano.
Sagarana: anúncio e amostra <strong>de</strong> uma revolução literária ________________________________ Ângela Vaz Leão 91<br />
Essa é, em resumo, a história das sucessivas reelaborações e simples<br />
reimpressões que fizeram dos contos <strong>de</strong> Sagarana o que eles são hoje.<br />
Magnífica lição para alguns escritores aprendizes, que, às vezes, preten<strong>de</strong>m<br />
“produzir” um texto <strong>de</strong> uma só penada, ou melhor, <strong>de</strong> uma só digitada, sem se<br />
darem ao trabalho sequer <strong>de</strong> uma releitura! Pelo menos, é nessas condições que<br />
muitos universitários apresentam hoje seus trabalhos ao professor: digitados<br />
(ou digitalizados), sim, chiquemente digitalizados, mas sem nenhuma correção<br />
ou simples revisão, num estado lingüístico lamentável. A palavra redação até<br />
<strong>de</strong>sapareceu da nomenclatura pedagógica, diante da pressão consumista e <strong>de</strong><br />
seu termo mágico, produção. Falar em redação hoje é o mesmo que assinar um<br />
auto-atestado <strong>de</strong> velhice. Não se redige mais. Produz-se um texto, como se<br />
produz batata ou soja. Mas é preciso reconhecer que os estudantes – coitados! –<br />
são os menos responsáveis por tal situação.<br />
Pois bem, Guimarães Rosa não produziu seus textos: ele os redigiu. E os<br />
jovens <strong>de</strong>veriam ter conhecimento disso. Que se mostrem, pois, os originais do<br />
gran<strong>de</strong> estilista da língua portuguesa aos nossos estudantes! Nesse sentido, os<br />
professores <strong>de</strong> Filologia e <strong>de</strong> História da Língua po<strong>de</strong>riam fazer importante<br />
trabalho, se, nas aulas <strong>de</strong> crítica textual, além <strong>de</strong> estudar manuscritos<br />
medievais, estudassem também originais <strong>de</strong> Guimarães Rosa.<br />
Graciliano Ramos, na crônica Conversa <strong>de</strong> bastidores, publicada<br />
originalmente na revista A casa, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, em junho <strong>de</strong> 1946, e<br />
reproduzida em 1968, no volume Em memória <strong>de</strong> João Guimarães Rosa, <strong>de</strong><br />
responsabilida<strong>de</strong> da editora José Olympio, relata como se <strong>de</strong>u a atribuição do<br />
Prêmio Humberto <strong>de</strong> Campos a Luiz Jardim, ficando os Contos do <strong>de</strong>sconhecido<br />
Viator em segundo lugar. Narra <strong>de</strong>pois o seu primeiro encontro com<br />
Guimarães Rosa, em fins <strong>de</strong> 1944, quando finalmente i<strong>de</strong>ntifica quem era o tal<br />
Viator. Passa a interessantíssimas observações sobre Sagarana, falando<br />
justamente da capina e da <strong>de</strong>puração operada no original dos contos primitivos<br />
pelo seu autor. Quase que à guisa <strong>de</strong> conclusão, diz Graciliano Ramos:<br />
A arte <strong>de</strong> Rosa é terrivelmente difícil. Esse antimo<strong>de</strong>rnista repele o<br />
improviso. Com imenso esforço escolhe palavras simples e nos dá<br />
a impressão <strong>de</strong> vida numa nesga <strong>de</strong> catinga, num gesto <strong>de</strong><br />
caboclo, numa conversa cheia <strong>de</strong> provérbios matutos. O seu<br />
diálogo é rebuscadamente natural: <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nha o recurso ingênuo <strong>de</strong><br />
cortar “ss”, “ll” e “rr” finais, <strong>de</strong> <strong>de</strong>turpar flexões, e aproxima-se,<br />
tanto quanto possível, da língua do interior. (op. cit, p. 45)
92 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Realmente, a linguagem <strong>de</strong> Guimarães Rosa é uma estilização culta do<br />
dialeto do sertão. Ele não reproduz o falar sertanejo, mas o estiliza, sem fazer<br />
concessões a vulgarismos, sem abdicar <strong>de</strong> sua responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escritor que<br />
se quer comprometido com a sua língua.<br />
Associando esse compromisso lingüístico a um invulgar domínio da<br />
técnica da narrativa, Guimarães Rosa constrói Sagarana. Para quem já leu e<br />
releu várias vezes esse conjunto admirável <strong>de</strong> contos, torna-se difícil <strong>de</strong>stacar<br />
um entre todos, pelas suas qualida<strong>de</strong>s literárias. Seria “A hora e vez <strong>de</strong> Augusto<br />
Matraga” o melhor <strong>de</strong>les? Ou “Corpo fechado”? Ou “Duelo”? Ou “O burrinho<br />
pedrês”? Qualquer resposta não passaria <strong>de</strong> uma escolha, pessoal e subjetiva,<br />
como costumam ser todas as escolhas. Ou <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria talvez das circunstâncias<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado momento, como o <strong>de</strong> agora.<br />
Pois, neste momento, aqui e agora, sem nenhuma razão lógica aparente, a<br />
minha preferência vai para “Duelo”, muitas vezes lido na décima edição <strong>de</strong><br />
Sagarana <strong>de</strong> 1968. Desta serão retiradas todas as citações <strong>de</strong>ste trabalho.<br />
“Duelo” é uma história que tem como protagonista Turíbio Todo, seleiro<br />
<strong>de</strong> profissão, papudo, vagabundo, vingativo e mau (p. 159), e sua mulher, Dona<br />
Silivana, com belos olhos gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cabra tonta (p. 147). O antagonista <strong>de</strong><br />
Turíbio, e ao mesmo tempo amante <strong>de</strong> Silivana, é o ex-soldado Cassiano<br />
Gomes, que se diz ex-anspeçada do 1º pelotão da 2ª Companhia, do 5º Batalhão<br />
<strong>de</strong> Infantaria da Força Pública, capaz <strong>de</strong> manejar até metralhadora pesada<br />
(p. 141). O marido traído tenta assassinar o rival, mas é o irmão <strong>de</strong>ste, Levindo<br />
Gomes, que é assassinado em seu lugar. Participa ainda do enredo o capiau<br />
Timpim, que preferia ser chamado <strong>de</strong> Vinte-e-Um, porque a mãe tivera vinte e<br />
um filhos e ele era o <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro (p. 159). Com menor relevo, várias personagens<br />
mais aparecem na narrativa, como o Chico Barqueiro, o Clodino Preto, o<br />
Exaltino-<strong>de</strong>-Trás-da-Igreja, o Seu Raimundo boticário e alguns anônimos, tais<br />
um pedidor-<strong>de</strong>-esmolas, um ladrão <strong>de</strong> cavalos e outros que ajudam a compor a<br />
história, mas não fazem nem bem nem mal ao seu <strong>de</strong>senvolvimento.<br />
O título do conto, “Duelo”, parece uma estratégia do autor para <strong>de</strong>spertar<br />
e manter a curiosida<strong>de</strong> dos leitores. Com efeito, a leitura nos <strong>de</strong>ixa sempre na<br />
expectativa <strong>de</strong> um enfrentamento entre o protagonista, o seleiro Turíbio Todo, e<br />
o antagonista, o soldado Cassiano Gomes, empenhado em vingar a morte do<br />
irmão, Levindo Gomes. Esse encontro, entretanto, nunca acontece entre os<br />
dois, que passam a história toda em perseguição mútua sem resultados,<br />
verda<strong>de</strong>iro jogo <strong>de</strong> escon<strong>de</strong>-escon<strong>de</strong>, em que nenhum acha o outro, portanto,<br />
nenhum mata o outro. O fim <strong>de</strong> Turíbio Todo vai ser obra <strong>de</strong> Timpim Vinte-eum,<br />
o capiauzinho com ar <strong>de</strong> bobo, protegido e pago pelo ex-anspeçada
Sagarana: anúncio e amostra <strong>de</strong> uma revolução literária ________________________________ Ângela Vaz Leão 93<br />
Cassiano Gomes. Este, não resistindo aos males cardíacos que o atormentam<br />
durante toda a história, também morre, mas morre na cama, não obstante os<br />
esforços do médico e do padre. Quanto ao minúsculo Timpim, que recebe <strong>de</strong><br />
Cassiano Gomes moribundo dinheiro suficiente para salvar o filho recémnascido,<br />
e que, por gratidão, vingará a morte <strong>de</strong> Levindo Gomes, faz parte da<br />
gente miúda, amarelenta ou amaleitada (p. 158), daquelas paragens, e tem um<br />
sorrizinho cheio <strong>de</strong> cacos <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes (p. 164). Mas no final da história, vira<br />
outro. Timpim se agiganta pela ação, a sua voz torna-se firme e crescida, outra<br />
voz que Turíbio ainda não tinha escutado ao capiau (p. 167). E é com essa voz<br />
que ele anuncia a Turíbio que havia chegado a sua hora <strong>de</strong> morrer. Personagem<br />
e situação nos fazem pensar no mirrado Xixi Piriá da primeira página <strong>de</strong> Vila<br />
dos Confins, <strong>de</strong> Mário Palmério, que <strong>de</strong>pois aparece agigantado na última<br />
página do romance. Mas o texto <strong>de</strong> Guimarães Rosa é muito mais forte, talvez<br />
em virtu<strong>de</strong> da concentração do conto como gênero e da proximida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntro do<br />
enredo, entre o aparecimento <strong>de</strong> Timpim e o <strong>de</strong>sfecho trágico.<br />
Ao intimar Turíbio Todo, o matuto Timpim, que parecia insignificante<br />
até no nome, assume o papel do antagonista e cumpre a promessa feita a seu<br />
benfeitor agonizante, Cassiano Gomes, <strong>de</strong> quem se tornara compadre quase à<br />
hora <strong>de</strong> sua morte, entre lágrimas e rezas. Timpim mata Turíbio Todo. E não o<br />
mata à traição, não <strong>de</strong> emboscada, mas após longa marcha pela estrada aberta,<br />
ambos a cavalo, lado a lado, trocando conversa amena. O esperto capiau<br />
espreita Turíbio e é espreitado por ele, enquanto vai picando seu fumo <strong>de</strong> rolo<br />
e enrolando seu cigarrinho <strong>de</strong> palha. Mas <strong>de</strong> repente Turíbio se assusta com a<br />
voz alta, firme e <strong>de</strong>cidida do matuto, a lhe dizer – Seu Turíbio! Se apeie e reza,<br />
que agora vou lhe matar! (p. 167). E sem respon<strong>de</strong>r às interrogações<br />
estupefatas <strong>de</strong> Turíbio, o homenzinho, garrucha velha na mão, torna a gritar: –<br />
Se apeie <strong>de</strong>pressa, seu Turíbio! O sobressalto não faz Turíbio apear. Segue-se<br />
um diálogo tenso, a princípio com ameaças e propostas do malandro papudo,<br />
<strong>de</strong>pois com súplicas suas ao capiau e à Virgem Santíssima. Até que, da<br />
garrucha <strong>de</strong> Timpim, partem duas balas, uma acertando Turíbio na cara<br />
esquerda e a outra na testa (p. 108).<br />
Segue-se o <strong>de</strong>sfecho: O cavalo correu; o pé do <strong>de</strong>funto se soltou do<br />
estribo, o corpo prancheou, pronou, e ficou estatelado (p. 108). Enquanto isso,<br />
o capiauzinho Timpim <strong>de</strong>saparece da estrada e da cena, e <strong>de</strong>scem as cortinas do<br />
último ato do conto, que o narrador/contra-regra encerra com estas palavras:<br />
Então o caguincho Timpim Vinte-e-um fez também o em-nome-do-padre e abriu<br />
os joelhos, esporeando. E o cavalinho pampa se meteu, <strong>de</strong> galope, por um<br />
trilho entre os itapicurus e os canudos-<strong>de</strong>-pito fugindo do estradão. (p. 168).
94 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Assim termina o conto, on<strong>de</strong>, entre todas as personagens importantes, só<br />
Silivana, o móvel do crime, não sofre mudança. Enquanto o marido valentão<br />
Turíbio Todo é assassinado pelo capiau Timpim Vinte-e-um, o amante<br />
Cassiano Gomes morre doente, assistido por médico e padre, <strong>de</strong>sfazendo-se<br />
então o triângulo amoroso. Já Timpim, o capiauzinho com cara <strong>de</strong> bobo,<br />
<strong>de</strong>saparece nas últimas linhas da narrativa sem que se saiba o seu <strong>de</strong>stino. Fácil<br />
é, porém, adivinhá-lo. Talvez Timpim vá ao encontro da mulher com o filho<br />
recém-nascido, para caírem no mato antes que o prendam, talvez vá gastar com<br />
as mezinhas da botica o dinheiro que lhe <strong>de</strong>u Cassiano Gomes na hora <strong>de</strong><br />
morrer. Não se sabe. Para Timpim, o final é aberto.<br />
Só Silivana, eu dizia, não sofre mudança. Reiteradamente é evocada no<br />
conto sempre por um só traço físico, os olhos, que eram gran<strong>de</strong>s e pareciam <strong>de</strong><br />
cabra tonta, e que <strong>de</strong>viam impressionar, ou melhor, subjugar tanto o marido<br />
quanto o amante. Observe-se a maestria com que Guimarães Rosa, através da<br />
reiteração, nos dá conta <strong>de</strong>sse traço da beleza <strong>de</strong> Silivana e da paixão dos dois<br />
homens por ela. O marido Turíbio Todo, ao <strong>de</strong>scobrir o adultério, logo o aceita<br />
graças aos belos olhos da mulher: Nem por sonhos pensou em exterminar a<br />
esposa (Dona Silivana tinha gran<strong>de</strong>s olhos bonitos, <strong>de</strong> cabra tonta) (p. 142):<br />
Algumas páginas <strong>de</strong>pois, lê-se que o marido (...) estava com sauda<strong>de</strong>s da<br />
mulher, Dona Silivana – aquela mesma, que tinha belos olhos gran<strong>de</strong>s, <strong>de</strong><br />
cabra tonta (p. 147). Quanto a Cassiano Gomes, o amante, diz o narrador: (...)<br />
Cassiano continuava se encontrando com a mulher fatal da história, aquela<br />
mesma que tinhas olhos cada vez maiores, mais pretos e mais <strong>de</strong> cabra tonta<br />
(p. 157). Voltando ainda ao marido, reitera o narrador pela última vez: (...)<br />
estava com pressa, porque Dona Silivana tinha olhos bonitos, sempre gran<strong>de</strong>s<br />
olhos, <strong>de</strong> cabra tonta (p. 163).<br />
Assim, nas vinte e nove páginas do conto, da décima edição, por quatro<br />
vezes mencionam-se os belos olhos <strong>de</strong> cabra tonta da personagem feminina,<br />
que se tornam, por esse procedimento, um dos motivos poéticos ou um<br />
Leitmotiv da narrativa.<br />
Esse fato nos parece comprovar o domínio da arte <strong>de</strong> narrar que tinha<br />
Guimarães Rosa, da mesma forma que o comprovam as várias expressões<br />
metalingüísticas com que o autor vai monitorando a nossa leitura. Logo no<br />
início do conto, por exemplo, Guimarães Rosa nos apresenta Turíbio Todo,<br />
com todos os seus <strong>de</strong>feitos, e termina o primeiro parágrafo por uma oração<br />
adversativa, contendo um sintagma adverbial – no começo <strong>de</strong>sta história – que,<br />
ao sugerir o <strong>de</strong>senrolar do tempo, também nos faz esperar por mudanças e<br />
surpresas: Mas, no começo <strong>de</strong>sta história, ele estava com a razão (p. 139).
Sagarana: anúncio e amostra <strong>de</strong> uma revolução literária ________________________________ Ângela Vaz Leão 95<br />
Uma página <strong>de</strong>pois, insiste o narrador: Assim, pois, <strong>de</strong> qualquer maneira, nesta<br />
história, pelo menos no começo – e o começo é tudo – Turíbio Todo estava com<br />
a razão (p. 140). Na mesma página, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> qualificar o conto metalingüísticamente<br />
como estória (p. 139) e história (p. 140), portanto, ficção, mas ficção<br />
fi<strong>de</strong>digna, o Autor se refere à <strong>de</strong>scoberta do adultério pelo marido e, entre<br />
parênteses, afirma a veracida<strong>de</strong> dos fatos: (com perdão da palavra, mas é<br />
verídica a narrativa) (p. 141). E ficamos sem saber: historia acontecida? ou<br />
história inventada? Mas, afinal, que importância tem isso, diante da excelência<br />
do conto? É essa excelência que produz a ilusão <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. É o estilo, e não<br />
uma prova documental ou testemunhal, que faz do conto uma história<br />
fi<strong>de</strong>digna.<br />
As marcações temporais, ou alusões ao tempo narrativo, também<br />
consi<strong>de</strong>radas metalingüísticas, são tão freqüentes que seria difícil enumerá-las<br />
aqui, na totalida<strong>de</strong>. O seu alto índice nos obriga a reduzi-las a uns poucos<br />
exemplos: E isso foi na quarta-feira. ... (p. 141) Quinta-feira pela manhã... (p.<br />
141). (...) Bem quinta-feira <strong>de</strong> manhã,... (p. 142). E continuam as localizações<br />
temporais explícitas, com a função metalingüística <strong>de</strong> pontuar e esclarecer a<br />
narrativa, para ajudar o leitor a acompanhá-la. Mais adiante lê-se ainda: (...)<br />
durante dois meses, (p. 145), (...) nesse <strong>de</strong>pois, (p. 145); (...) já durava cinco<br />
ou cinco meses e meio a correria, monótona e sem <strong>de</strong>sfecho (p. 148). E por aí<br />
vai o autor, sempre pontuando a leitura e monitorando o leitor, lembrando as<br />
seqüências e as intermitências dos fatos, <strong>de</strong> modo que não se perca o fio da<br />
meada.<br />
Essas e outras qualida<strong>de</strong>s literárias presentes no conto “Duelo” marcam<br />
toda a obra <strong>de</strong> Guimarães Rosa, justificando-se a sua indiscutível posição <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>staque em relação às literaturas <strong>de</strong> língua portuguesa. E, <strong>de</strong>ntro do conjunto<br />
da narrativa rosiana, se Sagarana não se emparelha com Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />
Veredas, também não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ocupar um lugar importante, quando nada pela<br />
sua situação ímpar no que diz respeito a uma revolução estilística então<br />
<strong>de</strong>sconhecida nessas literaturas. Na verda<strong>de</strong>, os contos <strong>de</strong> Sagarana<br />
representam um anúncio, mas também dão uma amostra, da revolução<br />
lingüística e literária que se efetivará, <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong>pois, no romance Gran<strong>de</strong><br />
Sertão: Veredas.<br />
Essa foi a leitura que pu<strong>de</strong> fazer <strong>de</strong> Sagarana, para apresentá-la aqui, nos<br />
limites <strong>de</strong> uma palestra. Espero que ela tenha servido, pelo menos, para<br />
<strong>de</strong>spertar nos ouvintes o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ler ou <strong>de</strong> reler o conto “Duelo”, que foi meu<br />
objeto central e que representa, juntamente com os outros contos do livro, um<br />
dos altos momentos da p<strong>rosa</strong> em língua portuguesa.
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GRANDE SERTÃO: VEREDAS<br />
* Crítico literário, escritor. Ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 8 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />
Antônio Olinto*<br />
Histórias, o povo as contou sempre. Des<strong>de</strong> os primeiros tempos da<br />
linguagem humana, os indivíduos e as coletivida<strong>de</strong>s, no viver seus dias, no<br />
realizar suas tarefas, no usar as mãos, no conhecer coisas, muito tiveram que<br />
relatar e sempre em tal sentiram prazer. Um <strong>de</strong> nossos mistérios, e <strong>de</strong> nossas<br />
alegrias, é o sermos tão diferentes uns dos outros e, no entanto, ao mesmo<br />
tempo, com <strong>de</strong>nominadores tão comuns, que as histórias, ou a História, <strong>de</strong><br />
gente viva, conseguem <strong>de</strong>spertar em nós um ímpeto <strong>de</strong> reconhecimento, por<br />
estranhas que sejam à experiência e às aspirações particulares <strong>de</strong> cada uma. Os<br />
heróis <strong>de</strong> Homero, <strong>de</strong> Cervantes, <strong>de</strong> Rabelais, <strong>de</strong> Boccaccio, <strong>de</strong> Goethe, <strong>de</strong><br />
Voltaire, <strong>de</strong> Balzac, <strong>de</strong> Dostoiévski, <strong>de</strong> Hardy, <strong>de</strong> Machado, têm atitu<strong>de</strong>s e<br />
vivem acontecimentos que, em maior ou menor grau, são os da vida que continua<br />
sendo vivida hoje. É por esse caráter vital que a história contada se separa<br />
<strong>de</strong> seu autor e atinge fundo os que <strong>de</strong>la tomam conhecimento.<br />
Durante muito tempo, o romance – que se tornou a mais comum das<br />
formas <strong>de</strong> história contada – viveu <strong>de</strong> fatos essenciais, ligados às coisas básicas:<br />
o amor, a comida, a casa, a terra.<br />
Aventuras, lutas, viagens, retiradas, avanços; tudo isto fazia parte <strong>de</strong>ssa<br />
essencialida<strong>de</strong>, em que entravam como elementos <strong>de</strong> tessitura, a cobiça, a<br />
ambição, a inveja, ou a ironia, ou a bonda<strong>de</strong>, a ternura, a solidarieda<strong>de</strong>. Os símbolos<br />
não tinham muitas nuanças; eram mesmo aquilo que <strong>de</strong>sejavam ser. O<br />
romantismo trouxe ao romance uma nova dimensão, porque vinha revelar algo<br />
que o homem tinha em si e que as condições do mundo <strong>de</strong> então punham à<br />
mostra. O movimento realista, que parecia apenas uma reação contra o romantismo,<br />
não o era. Ao invés disto, conquistava outra dimensão, abrindo à<br />
narrativa um campo – em si, nem melhor, nem pior – que Boccacio e Rabelais<br />
não tinham percorrido. E o fin <strong>de</strong> siècle, com seus quarenta e tantos anos <strong>de</strong> paz
100 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
européia, criou um espírito algo superficial que era uma <strong>de</strong>corrência direta do<br />
realismo.<br />
Enquanto, em outros setores, Rimbaud rasgava as veias <strong>de</strong> uma nova<br />
poesia e os impressionistas iniciavam o movimento que veio acabar, e continuar,<br />
na pintura mo<strong>de</strong>rna, e Debussy dava tons novos à música - o romance<br />
ficava, apesar <strong>de</strong> Kafka, Joyce, Hermann Hesse e Virginia Woolf, na narrativa<br />
imediatamente tradicional, então, como agora ainda muito, sob a forma do<br />
psicologismo.<br />
O Brasil passou também por esses caminhos. O que nos faltou, durante<br />
muito tempo, foi consciência <strong>de</strong> povo. O expoente <strong>de</strong> nossa literatura, Machado<br />
<strong>de</strong> Assis, foi profundamente brasileiro, mas um brasileiro citadino, cujas<br />
personagens, por mais nacionais que fossem, participavam, <strong>de</strong> algum modo, da<br />
normal <strong>de</strong>snacionalização da classe média <strong>de</strong> qualquer cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>. Isto não<br />
era um mal em si, nem impediu que o escritor fosse ao ponto alto que realmente<br />
atingiu, mas o povo, cuja unificação se consolidara em meados do século passado,<br />
continuava à espera <strong>de</strong> outros livros. Na mesma época em que Machado<br />
escrevia seus melhores romances, a revolta <strong>de</strong> Canudos espantava a nação e<br />
exigia um tipo diferente <strong>de</strong> contador <strong>de</strong> histórias. Como, para cada tarefa, há<br />
sempre alguém apto a realizá-la, Euc1i<strong>de</strong>s da Cunha tomou a si a obrigação e<br />
narrou o caso <strong>de</strong> Canudos. Ali, nos Sertões, estava, pela primeira vez, um povo<br />
inteiro, com raízes que, sem que muita gente o soubesse, tinham ido bem<br />
fundo.<br />
O que fora feito <strong>de</strong> uma vez, em sentido total, continuou, mais tar<strong>de</strong>,<br />
sendo realizado aos poucos, em pequenas tomadas <strong>de</strong> consciência, em José<br />
Lins do Rêgo, Jorge Amado, Graciliano Ramos, todos com obras em que o<br />
povo surgia ao natural, embora muitas vezes tocado <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong><br />
romantismo mo<strong>de</strong>rno.<br />
Agora, aparece-nos João Guimarães Rosa com seu Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />
Veredas. E po<strong>de</strong>mos dizer que o romance brasileiro <strong>de</strong>u, com isto, um gran<strong>de</strong><br />
passo. Pela segunda vez, e em plano diferente, temos o Brasil <strong>de</strong> corpo inteiro<br />
numa narrativa. Vejamos, em primeiro lugar, a importância, digamos, geográfica,<br />
em que se situa o livro <strong>de</strong> Guimarães Rosa. A região do São Francisco,<br />
perto do Urucuia, pegando o Norte <strong>de</strong> Minas, o Sul da Bahia e o Leste <strong>de</strong><br />
Goiás, é, sob vários aspectos, o centro do Brasil. As andanças <strong>de</strong> suas personagens<br />
por essa região formam um resumo <strong>de</strong> todo o país. Nenhum dos habitantes<br />
do romance pensa em cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> – talvez o maior agrupamento humano,<br />
citado em Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas seja Montes Claros. Nem a capital do<br />
Estado, Belo Horizonte, nem o Rio <strong>de</strong> Janeiro, nem qualquer outra cida<strong>de</strong>
Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas ____________________________________________________________ Antônio Olinto 101<br />
maior, aparecem ali, concentrando-se a ação em território a que pouquíssimos<br />
brasileiros <strong>de</strong> outras zonas tinham, até agora, dado atenção. Essa configuração<br />
geográfica do enredo já é sintomática, levando-nos a achar que, com o trabalho<br />
<strong>de</strong> Guimarães Rosa, incorporamos mais um pedaço <strong>de</strong> terra ao país. E sintomático<br />
também é que as personagens não tenham o problema da terra, tal como a<br />
visão romântico-econômica <strong>de</strong> uma fase <strong>de</strong> nossa literatura nos vinha mostrando.<br />
Aí, as pessoas andam, brigam, amam. Fazem as coisas essenciais <strong>de</strong><br />
modo, senão primitivo, pelo menos primário. A vingança e o amor, motivadores<br />
das caminhadas dos heróis gregos, <strong>de</strong>terminam também os movimentos<br />
<strong>de</strong> Riobaldo, Diadorim, Zé Bebelo, Joca Ramiro.<br />
Queremos, em segundo lugar, chamar a atenção para a unida<strong>de</strong> da<br />
narrativa, ou melhor, para a sua unicida<strong>de</strong>. A fórmula rítmica do romance<br />
tradicional, dividido em capítulos, <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> existir em Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />
Veredas, para dar lugar a um relato ininterrupto, coeso, fechado sobre si<br />
mesmo. E a concatenação, o ent<strong>rosa</strong>mento entre as diversas fases do romance, a<br />
passagem <strong>de</strong> um acontecimento a outro, tudo isto é feito com espantosa<br />
riqueza, tanto <strong>de</strong> vocabulário como <strong>de</strong> técnica <strong>de</strong> narração. O simples fato <strong>de</strong><br />
escrever uma história corrida, sem capítulos, não bastaria para fazer do<br />
romance uma obra extraordinária, não fosse a cadência larga em que <strong>de</strong>correm<br />
os acontecimentos, fazendo lembrar os rios da região, tão importantes na<br />
<strong>de</strong>marcação literária do trabalho <strong>de</strong> Guimarães Rosa como o são no traçar<br />
limites naturais nas terras que banham.<br />
O que faz, contudo, <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas uma obra-prima é o fato<br />
<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa justeza técnica, revelar um povo, mostrar-nos a nós mesmos,<br />
dar-nos uma consciência <strong>de</strong> existir, como raros trabalhos literários brasileiros o<br />
tinham feito até agora. É a nossa gran<strong>de</strong> epopéia, no mais lato e, ao mesmo<br />
tempo, exato sentido da palavra. As batalhas do romance são <strong>de</strong>scritas num tom<br />
épico, tom <strong>de</strong> heroísmo que não se pren<strong>de</strong> a palavras, mas a pessoas e ao que<br />
elas fazem. Guimarães Rosa não se per<strong>de</strong> em literatizar seus acontecimentos,<br />
sua gente ou suas coisas. Tudo o que está no livro é natural e aparece contado<br />
por um narrador que, vivendo no meio, não se espanta com o mundo que é seu.<br />
O maior <strong>de</strong>feito <strong>de</strong> bons romances brasileiros é o <strong>de</strong> darem eles a impressão <strong>de</strong><br />
que seus autores estão visitando os lugares em que os fatos acontecem, o que os<br />
leva a se comportarem como repórteres que, tomados <strong>de</strong> espanto <strong>de</strong>sandam a<br />
fazer má literatura <strong>de</strong>scritiva. O espanto, quando existe, <strong>de</strong>ve vir <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro do<br />
próprio romance, e não a ele ser artificialmente imposto pelo escritor.<br />
O <strong>de</strong>senvolvimento e a fixação dos tipos humanos do livro são <strong>de</strong> absoluta<br />
niti<strong>de</strong>z. Diadorim, por exemplo, ficará como das gran<strong>de</strong>s criações <strong>de</strong> nossa
102 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
literatura. Mesmo os tipos inci<strong>de</strong>ntais, como o alemão Vulpes, Seu Rabão, as<br />
damas da al<strong>de</strong>ia, o homem amedrontado no meio do caminho, o leproso, têm,<br />
todos eles, uma força <strong>de</strong> traços que daria para que dali fossem extraídos outros<br />
romances. Os encontros e <strong>de</strong>sencontros entre os personagens apresentam um<br />
tom <strong>de</strong> flagrante macheza, <strong>de</strong>ssa masculinida<strong>de</strong> inerente às coisas primitivas. O<br />
passeio <strong>de</strong>le na canoa <strong>de</strong> Riobaldo com o menino, o julgamento <strong>de</strong> Zé Bebelo,<br />
o ataque à fazenda, o primeiro. O contato com os catrumanos, o pacto com o<br />
diabo, todas as páginas seguintes ao momento em que Riobaldo assume o<br />
comando dos jagunços, a parada na fazenda <strong>de</strong> Josafá Ornelas, a luta contra<br />
Ricardão e, acima <strong>de</strong> tudo, a batalha final contra Hermógenes, com a revelação<br />
do verda<strong>de</strong>iro Diadorim, são trechos da mais alta literatura, numa narrativa que<br />
põe o máximo <strong>de</strong> acontecimentos num mínimo <strong>de</strong> palavras.<br />
Outro lado raro do livro é a linguagem. Temos, enfim, um escritor <strong>de</strong><br />
linguagem absolutamente pessoal que, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa pessoalida<strong>de</strong>, concentra a<br />
fala <strong>de</strong> uma região. Po<strong>de</strong>-se imaginar o trabalho <strong>de</strong> requinte <strong>de</strong> Guimarães<br />
Rosa para escrever como o fez. Tudo o que a gente do interior, daquele<br />
interior do romance, é capaz <strong>de</strong> dizer, em frases típicas, em poucos momentos<br />
<strong>de</strong> uma vida inteira, o romancista colocou numa narrativa ininterrupta <strong>de</strong><br />
quase seiscentas páginas. O importante, no caso, é saber, <strong>de</strong> um lado, se a<br />
linguagem é a<strong>de</strong>quada ao romance e, do outro, se atinge largo plano literário.<br />
Quanto, ao primeiro, po<strong>de</strong>mos dizer, a narrativa falada <strong>de</strong> Guimarães Rosa, e<br />
sua corrente interna <strong>de</strong> significados, são inseparáveis. As palavras, e a forma<br />
como são usadas, não constituem, ai, mero recurso externo. A ligação entre o<br />
conteúdo do relato e sua exteriorização vem <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro, <strong>de</strong> uma fase anterior à<br />
sua fixação formal, tornando-os <strong>de</strong> tal modo inconsúteis, que a história,<br />
contada como o foi, não o po<strong>de</strong>ria ter sido <strong>de</strong> outra maneira. Quanto ao<br />
segundo, nunca atingiu, a língua portuguesa falada no Brasil, nível <strong>de</strong> tanta<br />
beleza. Há partes do romance que, <strong>de</strong> tão espantosas, obrigam o leitor a se<br />
<strong>de</strong>ter um pouco, para se convencer <strong>de</strong> que não se enganou com o inesperado<br />
da imagem ou da expressão.<br />
Os brasileirismos <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas parecem confirmar as<br />
palavras <strong>de</strong> Rui Barbosa em sua Réplica, <strong>de</strong> que as inovações <strong>de</strong> uma fala<br />
nacional nada mais são às vezes do que, “formas clássicas há muito<br />
envelhecidas e extintas”. Não cremos que se tenha, até agora, comparado o<br />
estilo <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas com o português antigo. Pois vamos fazê-lo,<br />
e escolhendo, para essa comparação, o primeiro documento <strong>de</strong> nossa História: a<br />
carta <strong>de</strong> Pêro Vaz <strong>de</strong> Caminha. Vejamos algo da sintaxe <strong>de</strong> Guimarães Rosa<br />
neste trecho da carta:
Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas ____________________________________________________________ Antônio Olinto 103<br />
“Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa-vonta<strong>de</strong>, a qual<br />
bem certo creia que, para aformosentar nem afear, a que não há <strong>de</strong> por mais do<br />
que aquilo que vi e que me pareceu. Da marinhagem e das singraduras do<br />
caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza – porque o não saberei fazer – e<br />
os pilotos <strong>de</strong>vem ter este cuidado.”<br />
A linguagem <strong>de</strong> Riobaldo e Diadorim se assemelha, sob muitos aspectos,<br />
às <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> Pêro Vaz <strong>de</strong> Caminha. Eis como falava o cronista da Descoberta<br />
respeito dos nossos índios:<br />
“Os cabelos <strong>de</strong>les são corredios. E andavam tosquiados, <strong>de</strong> tosquia alta<br />
antes do que sobrepente <strong>de</strong> boa gran<strong>de</strong>za, rapados, todavia por cima das<br />
orelhas. E um <strong>de</strong>les trazia por baixo da covinha, <strong>de</strong> fonte a fonte, na parte <strong>de</strong><br />
trás, uma espécie <strong>de</strong> cabeleira, <strong>de</strong> penas <strong>de</strong> ave amarela, que seria do comprimento<br />
<strong>de</strong> um côto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as<br />
orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena por pena, com uma confeição<br />
branda como cera (mas não era cera), <strong>de</strong> maneira tal que a cabeleira era mui<br />
redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a<br />
levantar.”<br />
Num dos períodos finais da carta se torna mais evi<strong>de</strong>nte a afinida<strong>de</strong>, com<br />
ela, <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas:<br />
“E <strong>de</strong>sta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta terra vi. E<br />
se a um pouco me alonguei, Ela me perdoe. Porque o <strong>de</strong>sejo que tinha <strong>de</strong> vos<br />
tudo dizer, mo fez pôr assim pelo miúdo.”<br />
A expressão “pelo miúdo”, por exemplo, é muito usada no romance <strong>de</strong><br />
Guimarães Rosa, cuja sintaxe se aproxima da <strong>de</strong> Pêro Vaz <strong>de</strong> Caminha, como<br />
da linguagem portuguesa comum na época do <strong>de</strong>scobrimento do Brasil. As<br />
modificações por que passa um idioma em terra estranha – como o português<br />
no Brasil – são fundamentais em todos os sentidos, inclusive no <strong>de</strong> conservar<br />
termos e modos muito antigos, que a língua-mãe já per<strong>de</strong>u. Os homens que<br />
percorrem o sertão do Urucuia, insulados em suas jagunçagens, renovam as<br />
palavras, mas têm um manancial <strong>de</strong> expressões, e <strong>de</strong> maneiras <strong>de</strong> as colocar em<br />
frases, que po<strong>de</strong>m datar do tempo em que os portugueses aportaram ao Brasil.<br />
Sendo fiel a uma fala que parecia perdida, Guimarães Rosa inova. As<br />
semelhanças que nele encontro, com uma linguagem velha, não significam<br />
imitação. Ao contrário. São a marca <strong>de</strong> uma tradição <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um meio<br />
revolucionário <strong>de</strong> expressão. A invenção literária não está em arrancar formas<br />
do nada. Consiste, sim, no insuflar um espírito novo em matéria que po<strong>de</strong>ria<br />
sugerir morte. Aí se encontram as “raízes profundas” <strong>de</strong> que falou Douglas<br />
Bush:
104 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
“Aqueles que mais eficazmente se rebelaram contra convenções gastas<br />
não <strong>de</strong>ram as costas a todas as tradições, mas saltaram por sobre seus<br />
pre<strong>de</strong>cessores mais imediatos para atingir tradições mais antigas que tinham<br />
sido perdidas ou esquecidas – como Eliot, Coleridge e Wordsworth. A originalida<strong>de</strong><br />
que perdura tem sempre raízes profundas.”<br />
Estávamos precisando <strong>de</strong> uma renovação que fosse retomar o fio primitivo<br />
da narrativa. Este, o trabalho <strong>de</strong> Guimarães Rosa. Arrancou ele do povo<br />
mais representativo do Brasil uma crônica <strong>de</strong> guerra que torna a aproveitar os<br />
velhos temas do homem. Um país que começa a ser gente tem, muitas vezes, <strong>de</strong><br />
repetir antigas experiências da humanida<strong>de</strong>, numa espécie <strong>de</strong> nomadismo que<br />
se transplanta para o plano literário. O nomadismo dos personagens <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong><br />
Sertão: Veredas acaba por influir nas palavras do autor e por levá-lo à criação<br />
<strong>de</strong> uma linguagem que tenha a substantivida<strong>de</strong> do que precisa ser dito. É por<br />
isso que o romance <strong>de</strong> Guimarães Rosa, fincado <strong>de</strong> agora em diante em nossa<br />
literatura, vem alargar os planos em que os escritos <strong>de</strong> um povo se fundam.
POR QUE GUIMARÃES ROSA?<br />
Fábio Lucas*<br />
Deportado do gregarismo, que faz e refaz o mesmo, Guimarães Rosa<br />
promulgou a sentença <strong>de</strong> morte da maneira européia <strong>de</strong> obrar a ficção, todavia<br />
sem <strong>de</strong>sgarrar-se do Totem carcomido, arruinado. Fez renascer a crença no<br />
vazio das religiões! Pa<strong>de</strong>ceu dos excessos, sem jamais poupar maravilhas.<br />
Teve <strong>de</strong> tornar-se exceção para ser o maior <strong>de</strong> todos. Fundou o território<br />
geopoético <strong>de</strong> Minas tão semelhante às cores do Brasil, que nação e região<br />
viraram sinônimos.<br />
No seu processo crítico-inventor, Guimarães Rosa cita, conceitua e cria<br />
<strong>de</strong> tal modo que a forma se torna maior que a função. Isto é: a arte predomina<br />
sobre o mar <strong>de</strong> lugares-comuns.<br />
A linguagem <strong>de</strong> Guimarães Rosa é a mesma do embuçado nas manhãs<br />
frias <strong>de</strong> Ouro Preto. Traz um segredo, a mensagem do mistério ainda in<strong>de</strong>cifrado.<br />
Quanto a Riobaldo, o narrador incontido <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, a<br />
sua paz é sua guerra, mas o inverso é também verda<strong>de</strong>iro: a sua guerra é a sua<br />
paz.<br />
O gran<strong>de</strong> lance <strong>de</strong> Guimarães Rosa foi transcen<strong>de</strong>r a ciência dos povos e<br />
procurar investir na valida<strong>de</strong> das microações inúteis, módulos existenciais <strong>de</strong><br />
romper, com o <strong>de</strong>sprograma, o dia-a-dia homogêneo, tediosamente programado.<br />
Ou seja, ele jogou no risco <strong>de</strong> existir nas minúcias <strong>de</strong> cada instante, <strong>de</strong><br />
modo contado, relatado, reconstituído, tornando verda<strong>de</strong> a mentira da ficção.<br />
Praticou, portanto, a alquimia das palavras, mesmo insistindo na fragilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
tudo, já que viver é muito perigoso.<br />
* Professor, ensaísta, autor <strong>de</strong>: Do Barroco ao Mo<strong>de</strong>rno, <strong>Mineira</strong>nças, O Poeta e a Mídia? Carlos<br />
Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto, Lições <strong>de</strong> Literatura Nor<strong>de</strong>stina, Ética e Estética<br />
<strong>de</strong> Érico Veríssimo. Da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> (ca<strong>de</strong>ira 22).
106 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Guimarães Rosa ofertou a si e aos leitores um real expandido. Parecia<br />
ecoar a lição <strong>de</strong> Gonçalves Dias, em I-Juca Pirama: “O sonho e a vida são dois<br />
galhos gêmeos”.<br />
De par com o seu gran<strong>de</strong> rival, Machado <strong>de</strong> Assis, po<strong>de</strong> ser lido e <strong>de</strong>gustado<br />
por qualquer leitor europeu, estaduni<strong>de</strong>nse ou hispanoamericano. Machado<br />
<strong>de</strong> Assis, numa vasqueira fantasia do pensamento, po<strong>de</strong>ria ser até um escritor<br />
europeu, estaduni<strong>de</strong>nse ou hispanoamericano, tais os condicionamentos eurocêntricos<br />
<strong>de</strong> sua p<strong>rosa</strong> e sua inserção na mundivivência urbana oci<strong>de</strong>ntal.<br />
Mas com Guimarães Rosa será diferente, não obstante tornar-se cada vez<br />
mais lido e admirado nos idiomas para os quais tem sido transposto. Pois não se<br />
po<strong>de</strong> fantasiar, num salto da imaginação, o nosso Guimarães Rosa a ficcionar<br />
como um escritor europeu, estaduni<strong>de</strong>nse ou hispanoamericano.<br />
É que, fora da língua portuguesa ao estilo brasileiro, sertanejo, assim o<br />
cremos, Guimarães Rosa, com toda a sua plasticida<strong>de</strong>, todo o seu aparato <strong>de</strong><br />
poliglota, todas as suas tonalida<strong>de</strong>s cambiantes, per<strong>de</strong> suas veredas, será peixe<br />
fora da água, estará fadado a um <strong>de</strong>snutrido exemplo exótico.<br />
J. L. Borges? É possível conceber Borges como escritor <strong>de</strong> língua<br />
inglesa. Mostras ele <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong>ssa possibilida<strong>de</strong>. Por exemplo, ao compor, com<br />
extrema finura, um soneto em castelhano, <strong>de</strong>dicado a Camões (<strong>de</strong> quem se<br />
julgou aparentado, conforme o poema “Los Borges” <strong>de</strong> El Hacedor: “Nada o<br />
muy poço se’ <strong>de</strong> mis mayores/Portugueses, los Borges”...). Igualmente em<br />
castelhano está todo o universo imagético com que o poeta e p<strong>rosa</strong>dor se<br />
projetou no panorama literário internacional. Mas Os Lusíadas <strong>de</strong> que ele se<br />
utilizou não foi o <strong>de</strong> língua portuguesa, mas o da tradução <strong>de</strong> Richard Burton<br />
para o inglês. E compôs o soneto “A Luís <strong>de</strong> Camões”, <strong>de</strong>nominando “Eneida<br />
lusitana” à epopéia camoneana. Aliás, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> zombar abertamente das<br />
vanguardas, escritas e visuais no poema “Invocación a Joyce”, <strong>de</strong> Elogio <strong>de</strong> la<br />
sombra: “Fruímos el imagismo, el cubismo/ los convertículos y sectas/ que las<br />
crédulas universida<strong>de</strong>s veneran./ Inventamos la falta <strong>de</strong> puntuación/ la omisión<br />
<strong>de</strong> mayúsculas,/ las estrofas en forma <strong>de</strong> paloma/ <strong>de</strong> los bibliotecarios <strong>de</strong><br />
Alexandria.”<br />
Enquanto isso, Gran<strong>de</strong> Sertão:Veredas somente po<strong>de</strong>ria ser redigido em<br />
Português. É o que <strong>de</strong>ixam sentir alguns dos tradutores do romance. O mesmo<br />
não se diria <strong>de</strong> El Aleph (1949). Aliás, Jorge Luis Borges, em entrevista<br />
concedida em 1962, <strong>de</strong>clara: “Tudo o que tenho escrito po<strong>de</strong>ria ser encontrado<br />
em Poe, Stevenson, Wells, Chesterton e alguns outros.” (cf. verbete <strong>de</strong> Jaime<br />
Alazraki, “Jorge Luis Borges”, em Latin American Writers, Vol. II, New York,<br />
Charles Scribner’s Sons, 1989, p. 851).
Por que Guimarães Rosa? _____________________________________________________________ Fábio Lucas 107<br />
Aliás, diga-se em consi<strong>de</strong>ração ao ficcionista argentino que este se agastou<br />
com o comentário <strong>de</strong>preciativo <strong>de</strong> Américo Castro a respeito do “Espanhol”<br />
usado em Buenos Aires, que não passaria <strong>de</strong> áspero e <strong>de</strong>sprimoroso “lunfardo”.<br />
Logo a seguir, Borges foi à forra e verberou o Castelhano <strong>de</strong> alguns espanhóis.<br />
Em suma: Guimarães Rosa é mais intérprete do sertão do que Borges<br />
seja o aedo do orbe gaúcho ou do espaço riopratense.<br />
Recor<strong>de</strong>-se que Américo Castro, em La peculiarid lingüística rioplatense<br />
y su sentido histórico (Buenos Aires: Losada, 1941), usou <strong>de</strong> expressões e<br />
juízos <strong>de</strong> valor que feriram a sensibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> J. L. Borges. E este, no capítulo<br />
“Los alarmas <strong>de</strong>l Doctor Américo Castro” (cf. Otras Inquisiociones, 1952, em<br />
Obras Completas, vol. 2 – 1952/1972 – Buenos Aires: Emecé Editores, 1990, p.<br />
31) contesta o erudito espanhol, que fala <strong>de</strong> um “<strong>de</strong>sbarajuste lingüístico en<br />
Buenos Aires” e, até, da hipótese do “lunfardismo” e da “mística gauchofilia.”<br />
Guimarães Rosa guardou no seu linguajar um po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> ruptura tão<br />
distante do convencional que logrou revolucionar a p<strong>rosa</strong> escrita em Português<br />
<strong>de</strong> modo mais radical do que o fizeram José <strong>de</strong> Alencar e Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>.<br />
Alencar, Machado e Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> mexeram na p<strong>rosa</strong> e dotaram a narrativa<br />
<strong>de</strong> meneios sutis e englobantes, mais conforme com a chave da oralida<strong>de</strong> e com<br />
os ritmos da emoção do que os aplaudidos “mestres do bom vernáculo”.<br />
Guimarães Rosa foi mais além: embruteceu o encanto das palavras, restituiu-lhes<br />
certo condão primitivo carregado da poesia mítica, ancestral e nostálgica.<br />
Eis que... “a língua é um alvo em movimento”, como o quer o psicólogo<br />
evolucionista Steven Pinter, professor <strong>de</strong> Harvard (U.S.A.), autor <strong>de</strong> O Instinto<br />
da Linguagem (São Paulo; Martins Fontes; cf. entrevista ao escritor inglês Ian<br />
McEwan na revista Areté, traduzida em “Mais”, Folha <strong>de</strong> S. Paulo <strong>de</strong> 27 <strong>de</strong><br />
abril <strong>de</strong> 2008, pp. 4-7).<br />
Guimarães Rosa <strong>de</strong>senvolveu a noção <strong>de</strong> que “o idioma é a única porta<br />
para o infinito, mas infelizmente está oculta sob montanha <strong>de</strong> cinzas”.<br />
Curioso é que J. L. Borges não dispensa, na linguagem, o empenhamento<br />
fabril do artesão. Sustenta a gramaticalida<strong>de</strong>, mais do que a textualida<strong>de</strong>, em<br />
“Indagación <strong>de</strong> la palabra”, constante da obra El idioma <strong>de</strong> los argentinos<br />
(Buenos Aires: Seix Barral/Biblioteca Breve, 1994, p. 11). Borges se queixa<br />
dos que censuram suas “gramatiquerías” e solicitam <strong>de</strong>le uma obra “humana”:<br />
“yo po<strong>de</strong>ría contestar que lo más humano (esto es, lo menos mineral, vegetal,<br />
animal y aun angelical) es precisamente la gramática.”<br />
Durante uma análise, palavra por palavra, <strong>de</strong> um trecho muito conhecido<br />
do D. Quijote, comenta: “Es <strong>de</strong>cir, las palabras no son la realidad <strong>de</strong>l lenguaje,<br />
la palabras – sueltas – no existen.” (ob. cit., p. 15). Acrescenta: “Esa es la
108 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
doctrina crociana.” E vai adiante: “Croce, para fundamentarlas, niega las partes<br />
<strong>de</strong> la oración y asevera que son una intromisión <strong>de</strong> la lógica, una insolencia.”<br />
(ob. Cit., p. 15). “La oración (arguye) es indivisible y las categorías gramaticales<br />
que la <strong>de</strong>sarman son abstracciones añadidas a la realidad.” (ob. Cit.,<br />
p. 15).<br />
Guimarães Rosa, parece-nos, revolucionou mais a sua tradição do que<br />
Borges o fez. E, a<strong>de</strong>mais, enfrentou uma Literatura que já produzira o seu mais<br />
elevado p<strong>rosa</strong>dor, Machado <strong>de</strong> Assis. Na passagem do século XIX para o<br />
século XX, o Brasil experimentou a calma revolução <strong>de</strong> um gênio inabordável<br />
pelas regalias da moda e do aplauso ligeiro. Estava à altura dos mo<strong>de</strong>los exemplares<br />
que nos eram impostos pela dominação européia.<br />
Prossigamos um pouco mais no paralelo da obra <strong>de</strong> Guimarães Rosa com<br />
a <strong>de</strong> J.L. Borges, na seqüência das tradições nacionais do Brasil e da Argentina.<br />
Perlustrando alguns trechos <strong>de</strong> Jorge Luis Borges, um escritor na periferia <strong>de</strong><br />
Beatriz Sarlo, na tradução <strong>de</strong> Samuel Titam Jr. (São Paulo: Iluminuras, 2008),<br />
sintamos a localização do escritor na cartografia do planeta literário. Diz a<br />
autora: “Se Balzac e Bau<strong>de</strong>laire, se Dickens e Jane Austen pareciam inseparáveis<br />
<strong>de</strong> alguma coisa que se chama ‘literatura francesa’ ou ‘literatura inglesa’,<br />
Borges, ao contrário, navega na corrente universalista da ‘literatura oci<strong>de</strong>ntal’.”<br />
A fim <strong>de</strong> reforçar o seu argumento, Beatriz Sarlo o contrabalança com o<br />
que se per<strong>de</strong>ria se se abandonasse o lado riopratense do genial escritor argentino:<br />
“Com efeito, Borges po<strong>de</strong> ser lido na Europa sem uma única alusão à<br />
região periférica em que escreveu toda sua obra. O que se obtém, assim, é um<br />
Borges inteligível nos termos da cultura oci<strong>de</strong>ntal e das versões do Oriente que<br />
esta cultura formulou, e o que se <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> lado é um Borges igualmente inteligível<br />
nos termos da cultura argentina e, em especial, da formação riopratense.”<br />
No cômputo geral, conclui a autora <strong>de</strong> Jorge Luis Borges, um escritor na<br />
periferia que “Po<strong>de</strong>-se ler Borges sem remetê-lo ao Martín Fierro, a Sarmiento<br />
ou a Lugones: lá estão os temas filosóficos; lá está a relação tensa, mas<br />
contínua com a literatura inglesa; lã estão o sistema <strong>de</strong> citações, a erudição<br />
extraída das minúcias das enciclopédias, o trabalho <strong>de</strong> escritor sobre o corpo da<br />
literatura européia e sobre as versões que esta construiu do ‘Oriente’...” Mas,<br />
todavia, não será o bastante, segundo a visão <strong>de</strong> Beatriz Sarlo. É que a<br />
dimensão riopratense brota inesperadamente para <strong>de</strong>salojar a literatura<br />
oci<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong> sua centralida<strong>de</strong>. A obra <strong>de</strong> Borges, portanto, se torna conflitiva.<br />
Não será o caso <strong>de</strong> Guimarães Rosa. Mesmo que busquemos nela os<br />
caminhos da Filosofia Oci<strong>de</strong>ntal e os resíduos da cultura oriental conduzidos<br />
pelos povos intermediários, que os transplantaram à península ibérica e aos
Por que Guimarães Rosa? _____________________________________________________________ Fábio Lucas 109<br />
<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes da herança greco-latina, é mais difícil questionar a literatura<br />
roseana como estrela da constelação oci<strong>de</strong>ntal do que auri-la na sua nascente,<br />
nas fontes das veredas encasteladas no gran<strong>de</strong> sertão.
110 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
AS RAÍZES MINEIRAS<br />
DE GUIMARÃES ROSA<br />
Guimarães Rosa<br />
A carta que abaixo publicamos, datada <strong>de</strong> 23 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1963, foi<br />
escrita por Guimarães Rosa para o curvelano Paulo Emílio Pereira Diniz,<br />
profundo conhecedor da obra literária do saudoso escritor.<br />
O texto talvez não tenha para o leitor uma significação maior, embora<br />
apresente trechos nitidamente rosianos e outros tantos <strong>de</strong> singelas evocações<br />
<strong>de</strong> personagens e cida<strong>de</strong>s que povoaram o atraente universo do ilustre mineiro.<br />
Entretanto sua publicação agora se justifica, por se tratar <strong>de</strong> uma correspondência<br />
inédita, como também por coincidir com as expressivas comemorações<br />
do centenário <strong>de</strong> nascimento do autor <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas.<br />
Meu caro Paulo Emílio Pereira Diniz,<br />
J B T S<br />
Sua forte, bela carta – viva em simpatia e crepitando <strong>de</strong> sincerida<strong>de</strong> – foi<br />
para mim uma alegria, mesmo, diferente, real, das mais, no meio dêstes* dias<br />
com barulhinho <strong>de</strong> festejo. Quero logo agra<strong>de</strong>cê-la, muito. Mensagens assim,<br />
pelo espontâneo, pelo calor que trazem, fazem, é que valem, <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, para<br />
pagar a gente. Gratíssimo, pois, meu caro Paulo Emílio.<br />
E, ainda, peço-lhe, no quando tenha ocasião, dizer <strong>de</strong> mim a êsses outros<br />
Amigos, <strong>de</strong> que me fala: Dr. Dalton Canabrava, Dr. José Olímpio Borges Filho,<br />
Dr. Morse Belém Teixeira (o nosso Cyro dos Anjos já me falara nêle,<br />
entusiasmando-me), Jeovah Amaral, Ulisses Batista <strong>de</strong> Oliveira, Telmo Lívio<br />
Couto e Silva, Hélio Adjunto Botelho (<strong>de</strong>ve ser um daqueles bons paracatuanos,<br />
<strong>de</strong> longa estirpe), Valter Andra<strong>de</strong>, Dr. Juvenal Gonzaga, o Juquita <strong>de</strong><br />
Matos – que estarão sempre comigo na animadora lembrança fértil, amigos <strong>de</strong><br />
chão a fora e livro a <strong>de</strong>ntro.<br />
* Mantida a ortografia original.
112 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Decerto, gosto, tiro estímulo <strong>de</strong> ver que sou lido e sentido tanto, aí,<br />
pulsadamente, por espíritos parentes, <strong>de</strong> escolha gran<strong>de</strong>, Mas, principalmente,<br />
por gente minha, daí. Dessa parte vasta <strong>de</strong> Minas, nossa, que puxa sempre o<br />
afeto da gente, em apertos concêntricos. CURVELO, por exemplo (e como<br />
Você disse bem: “capital do país” <strong>de</strong> meus livros, ponto nuclear <strong>de</strong>ssa paisagem<br />
terrestre e humana que amo), é para mim uma amiza<strong>de</strong>, um exemplo e um<br />
símbolo. De clarida<strong>de</strong>, firmeza, otimismo, franqueza, coragem, valor. Por isto,<br />
mesmo, nem sei dizer-lhe como exultei com o que me adianta: a gene<strong>rosa</strong> idéia<br />
<strong>de</strong> darem, lá, o meu nome a uma rua. Júbilo <strong>de</strong> bom orgulho. De Curvelo, até a<br />
poeira vermelha enriquece a minha imaginação. Curvelo, sempre a senti bem<br />
junto com Cordisburgo. Vocês são nobres, gran<strong>de</strong>s, como gran<strong>de</strong> há <strong>de</strong> ser a<br />
minha gratidão.<br />
Já, quanto a homenagem, com a minha presença – e como me sentirei<br />
fortemente feliz <strong>de</strong> lá po<strong>de</strong>r ir, em qualquer tempo – teremos <strong>de</strong> conversar. Não<br />
saberia dizer quando me vai ser possível fazer essa viagem. Por vários motivos,<br />
<strong>de</strong> compromissos <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong> <strong>de</strong>veres aqui, <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, este ano ela não seria,<br />
<strong>de</strong> todo exequível,<br />
Porque, tendo <strong>de</strong>ixado acumular muita ausência, ver-me-ia obrigado, na<br />
ocasião, a passar também por Sete Lagoas, Cordisburgo, e outros lugares<br />
queridos, com os quais tomei compromisso. Teria <strong>de</strong> ir a Itaguara. A Paraopeba,<br />
A várias fazendas <strong>de</strong> parentes. A Barbacena. E, tudo isto, não contando<br />
os dias que teria <strong>de</strong> passar em Belo Horizonte, que seriam, calculando por<br />
baixo, pelo menos uma quinzena, dias que <strong>de</strong> há muito, já estou <strong>de</strong>vendo. Veja,<br />
só. De tudo isso, tão bom, tão do coração, não po<strong>de</strong>ria me esquivar; e os prazos<br />
me asfixiam. Tudo terá <strong>de</strong> ficar, pois, para os meados do ano que vem. É o que,<br />
sincero, sinto.<br />
Mas, como Você me anuncia, hei <strong>de</strong> vê-lo, <strong>de</strong>ntro em breve, por aqui.<br />
Venha ver-me, no Itamaraty, on<strong>de</strong> mourejo quase as 24 horas <strong>de</strong> cada dia. Terei<br />
prazer puro. (Já da outra vez, lembro-me fiquei com pena <strong>de</strong> não nos<br />
avistarmos, conforme disse à nossa amiguinha Staël Alves Pequeno.) E, então,<br />
abraçarei, sempre grato, êsse “curvelano <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> cem anos, Mascarenhas,<br />
Diniz, e Ferreira <strong>de</strong> Traíras”, com outro possante, sincero abraço, como êste,<br />
que vai aqui,<br />
do<br />
seu<br />
Guimarães Rosa
A MULHER GEOMÉTRICA – UMA<br />
INCURSÃO OUSADA NO TEXTO<br />
DE JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />
Onofre <strong>de</strong> Freitas*<br />
O narrador <strong>de</strong> “Minha Gente” (Rosa: 1974, p. 173 – 223) é um narradorpersonagem,<br />
do tipo intradiegético <strong>de</strong> que fala Gerard Genette (Genette: s. d.,<br />
p. 28 e sg.). Apesar <strong>de</strong> ser o protagoninsta da ação central, permanece inominado,<br />
do começo ao fim, apenas i<strong>de</strong>ntificado pelo “eu” falante. E é pelo seu<br />
olhar um tanto exterior a tudo – quero dizer: um quê apenas, penetrante na<br />
substância das coisas – que po<strong>de</strong>mos seguir o ponto <strong>de</strong> vista narrativo<br />
comprometido, parece-me, em nos induzir a ler os fatos pela superficialida<strong>de</strong>.<br />
Ou seja: estamos frente a um narrador jocoso (não no sentido <strong>de</strong> alegre e<br />
engraçado, mas no sentido primitivo <strong>de</strong> gostar <strong>de</strong> jogar); sim, um narrador que<br />
nos quer enganar, forçando-nos, como narratários, a entrar no jogo.<br />
A primeira informação que o narrador nos traz é para apresentar Santana<br />
– «que era também inspetor escolar, itinerante, com uma lista <strong>de</strong> <strong>de</strong>z ou doze<br />
municípios a percorrer – era o meu sempre-encontrável, o meu “até-as-pedrasse-encontram”<br />
– espécie esta <strong>de</strong> pessoa que todos em sua vida têm.»<br />
Sendo assim, Santana será o seu companheiro <strong>de</strong> viagem até próximo à<br />
fazenda dos Tucanos para on<strong>de</strong> o narrador se dirige em visita ao Tio Emílio.<br />
Companheiro <strong>de</strong> viagem e parceiro <strong>de</strong> jogo, porque Santana é viciado em<br />
xadrez. Conduz sempre consigo uma cartela furada <strong>de</strong> papelão on<strong>de</strong> as peças<br />
são cravadas, permitindo disputar-se uma partida mesmo em movimento em<br />
cima dos cavalos. De pronto, ficamos sabendo que Santana é do tipo introvertido,<br />
homem só intelecto, continuamente absorto pelas <strong>de</strong>duções e cálculos<br />
do jogo – ponto único <strong>de</strong> convergência <strong>de</strong> seus interesses e atenções. O<br />
* Professor Universitário, advogado. Presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> O Ateneu – Centro Mineiro <strong>de</strong> Estudos Literários.
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narrador inominado, ao contrário, é do tipo distraído, voltado para a beleza e os<br />
<strong>de</strong>talhes da paisagem. Desse modo, também <strong>de</strong> imediato, já temos por<br />
<strong>de</strong>lineada a sua pessoa, pouco afeita às preocupações do espírito e às canseiras<br />
do intelecto, um extrovertido bon vivant. Pois não?<br />
Ao apresentar o tio Emílio, entretanto, o extrovertido narrador, tão alheio<br />
aos aspectos estruturais da alma humana, parecia-me assim anteriormente, até<br />
que revela certo grau <strong>de</strong> senso <strong>de</strong> observador, expondo, com análise e proprieda<strong>de</strong><br />
crítica, as mudanças percebidas nos modos e ações do tio que o hospeda.<br />
Mas isso não nos convence <strong>de</strong> que ele costuma ir fundo na apreciação dos<br />
fatos, das coisas, das pessoas. O seu magno propósito é tão só visitar e valorizar<br />
as magnitu<strong>de</strong>s físicas. Tanto assim que, ao nos apresentar Maria Irma sua<br />
prima, esse mesmo narrador (para nós continua anônimo – nunca diz o seu<br />
nome) confirmará a primeira impressão que já <strong>de</strong> si nos <strong>de</strong>u – a <strong>de</strong> homem das<br />
exteriorida<strong>de</strong>s.<br />
Maria Irma, na linha <strong>de</strong> importância diegética, é a segunda personagem<br />
mais importante. Contracena com ele narrador, com quem forma o par amoroso<br />
da história central, que se <strong>de</strong>sdobrará como um jogo <strong>de</strong> interesses e traições.<br />
Para cumprir seu papel <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse xadrez amoroso, Maria Irma representa um<br />
tipo oposto ao temperamento e sentimentos do parceiro-narrador. Vale dizer:<br />
ela encarna a pessoa mentalmente ativa, preservando valores morais e intelectuais,<br />
po<strong>de</strong>ndo-se tê-la portanto como mulher liberada, culta e dominadora.<br />
Sabe o que quer e põe o que sente no que faz para ter o que <strong>de</strong>seja.<br />
Recor<strong>de</strong>-se como nos é apresentada:<br />
«Tio Emílio tem duas filhas. A mais velha, Helena, está casada e não<br />
mora aqui. A outra, Maria Irma, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser bastante bonita. Em outros<br />
tempos, fomos namorados. Desta vez me recebeu com ar <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança. Mas<br />
é alarmantemente simpática. Principalmente graciosa. A própria pessoa da<br />
graça. Graciosíssima. O perfil é assim meio romano: camafeu em cornalina...<br />
<strong>de</strong>pois, cintura fina, abrangível; corpo triangular <strong>de</strong> princesinha egípcia... Mas a<br />
sua maior beleza está nos olhos, olhos gran<strong>de</strong>s, pretíssimos, <strong>de</strong> fenda ampla e<br />
um tanto oblíqua, eletromagnéticos, rasgados quasemente até às têmporas, um<br />
infinitesimalzinho irregulares; lindos! tão lindos, que só po<strong>de</strong>m ser os tais olhos<br />
Ásia-na-América <strong>de</strong> uma pernambucana – pelo menos <strong>de</strong> uma filha <strong>de</strong><br />
pernambucanos, quando nada <strong>de</strong> meia ascendência chegada do Recife...»<br />
Salta aos olhos a beleza física <strong>de</strong> Maria Irma. O seu potencial sedutor.<br />
Com toda essa combinação <strong>de</strong> partes proporcionais e «infinitesimalmente»<br />
assimétricas, há <strong>de</strong> resultar um todo irresistível aos olhos masculinos, que só <strong>de</strong><br />
o contemplar se antepara em êxtase com o gozo dos sentidos enamorados. É <strong>de</strong>
A mulher geométrica – uma incursão ousada no texto <strong>de</strong> João Guimarães Rosa ____________ Onofre <strong>de</strong> Freitas 115<br />
espontânea percepção que o narrador só tem olhos para a beleza física da sua<br />
eleita. Posto que mais adiante se vá referir ao estágio <strong>de</strong>la no internato colegial,<br />
a expressão mais saliente e <strong>de</strong>finitiva que encontra para <strong>de</strong>fini-la é a <strong>de</strong> «minha<br />
<strong>de</strong>liciosa priminha, sendo assim tão “tão”... »<br />
Tão certinha, tão geométrica. Corpo triangular. Olhar oblíquo. A sua<br />
«<strong>de</strong>liciosa priminha», no entanto, lhe resistia com a firmeza <strong>de</strong> «uma gameleira<br />
digna <strong>de</strong> drúidas e bardos».<br />
É preciso buscar explicações e o nosso herói – ele mesmo nos contando –<br />
segue tecendo, comentando fatos, vidas dos outros, enquanto a sua própria<br />
fermenta na espectativa <strong>de</strong> novida<strong>de</strong>s. E uma coisa séria, grave, <strong>de</strong> impacto<br />
<strong>de</strong>cisivo em questões <strong>de</strong> amor... acontece afinal. Tem um nome: Ramiro!<br />
Ramiro é um jovem – noivo <strong>de</strong> Armanda, amiga <strong>de</strong> Maria Irma. O<br />
narrador vai saber disso por informação da própria Maria Irma, que tenta assim<br />
acalmar a reação <strong>de</strong> ciúme <strong>de</strong> seu pretenso namorado e primo. Eis a cena:<br />
«O rapaz trouxe livros para minha prima. Penso mesmo que ele os traz<br />
freqüentemente, porque ouvi Maria Irma falar-lhe em restituir outros. Livros<br />
em francês... Nunca pensei que minha prima os lesse. Também, ela hoje<br />
está toda diferente, mais bonita; por ocasião da minha chegada não se<br />
enfeitou assim! Entre Maria Irma e esse moço há qualquer coisa. Exaspero-me.<br />
Detesto-os!»<br />
Daí até rejeitar o doce – «o doce tinha sido feito para o meu rival».<br />
– cresce a estranheza pela presença do outro. O nosso rejeitado personagem-narrador<br />
não se apercebe do seu erro por nunca ter perguntado a Maria<br />
Irma se ela gostava ou não <strong>de</strong> ler... e coisas mais.<br />
O narrador, todavia, permanece inocente, sem atinar com que Maria<br />
Irma, inteligente tanto quanto bonita, tramava para aproximar <strong>de</strong>le Armanda,<br />
noiva <strong>de</strong> Ramiro. Nos seus planos, os dois se igualavam e plenamente se<br />
mereciam. Enten<strong>de</strong>-se, pois, que Maria Irma pensasse que a amiga Armanda<br />
não merecia Ramiro, o qual se i<strong>de</strong>ntificava melhor com ela – Maria Irma.<br />
Nesse ínterim, o narrador inominado traça uma estratégia <strong>de</strong> retirada e<br />
vai-se embora para a fazenda <strong>de</strong> seu outro tio – Juca Soares. Estando ele pois<br />
ausente, Maria Irma fica livre para ultimar suas tramas no xadrez do amor.<br />
Tempo <strong>de</strong>pois, não muito, o narrador – em princípio amante em retirada<br />
– recebe duas cartas: uma, do tio Emílio, contando sua vitória nas eleições;<br />
outra, <strong>de</strong> Santana, dando continuida<strong>de</strong> ao jogo interrompido no último encontro.<br />
Diz na carta que não existe jogada perdida, e impõe termo à partida, ofere-
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cendo irresistível xeque-mate. O narrador apaixonado per<strong>de</strong>u a contenda <strong>de</strong><br />
xadrez, mas isso lhe põe em mente a convicção sugerida <strong>de</strong> que não existe jogo<br />
perdido, dando-lhe ânimo para recomeçar o xadrez do amor em que a sua<br />
parceira «vale qualquer sacrifício», pois é a sua «<strong>de</strong>liciosa priminha».<br />
Ato contínuo abandona tudo e volta para a fazenda do tio Emílio.<br />
Ao chegar, é logo surpreendido por uma jogada in<strong>de</strong>fensável. Maria Irma<br />
trazia pronto seu imediato xeque-mate. Apresenta-lhe Armanda – aquela que<br />
era noiva <strong>de</strong> Ramiro. Reconstruo a movimentação das peças com as palavras<br />
mesmas do jocoso narrador:<br />
« – On<strong>de</strong> está Maria Irma? – perguntei.<br />
Estava no jardim, e tinha mesmo <strong>de</strong> estar no jardim.<br />
Mas não estava só.<br />
Ruborizou-se. Ofegou. E apresentou-me à outra.<br />
– Meu primo... Armanda...<br />
Armanda tinha uma expressão severa, e foi muito inóspito o seu olhar.<br />
Quase uma zanga.<br />
– Com cada um <strong>de</strong> vocês já falei muito do outro... – acrescentou Maria<br />
Irma.<br />
Hesitei. Armanda recuara um passo, e fingiu olhar o jasmineiro. Murmurei:<br />
– Então, Maria Irma, surpreendi você com a minha volta...<br />
– Fico alegre...<br />
– De verda<strong>de</strong>?<br />
– Não começa outra vez. Você não compreen<strong>de</strong>...<br />
Alguém riu. Era Armanda, a <strong>de</strong> maravilhosa bôca e olhos esplêndidos.<br />
– Vou ver, papai chamou... Me esperem... – explicou Maria Irma,<br />
abrindo vôo.<br />
– Prefiro caminhar. Quer? – perguntou-me Armanda.<br />
Quis. Andamos. Calados. Crescia em mim uma coisa <strong>de</strong>finitiva, assim<br />
com a impressão <strong>de</strong> já conhecê-la, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito, muito tempo. Nossas mãos se<br />
encontraram, <strong>de</strong> repente, e eu senti que ela também estremeceu.<br />
– Você está querendo tomar-me o pêlo?!<br />
– Que é isso, Armanda?<br />
– Nada. Vamos!<br />
Uma lava<strong>de</strong>ira cantava, lá na beira do rego:
A mulher geométrica – uma incursão ousada no texto <strong>de</strong> João Guimarães Rosa ____________ Onofre <strong>de</strong> Freitas 117<br />
De madrugada,<br />
quando a lua se escondia...<br />
o sol raiava<br />
na janela <strong>de</strong> Maria...<br />
Vinha um odor duro, das flores carminadas. Os aloendros, em fila, nos<br />
separavam do mundo. Pensamentos me agitavam. Queria...<br />
– Você gosta <strong>de</strong> Maria Irma?<br />
– Não...<br />
– De quem?<br />
– De você... Sempre gostei. Sempre! Antes <strong>de</strong> saber que você existia...<br />
– É engraçado...<br />
– É verda<strong>de</strong>.<br />
– Não... Não é isso...<br />
Armanda jogou fora o botão <strong>de</strong> bogari, e entrecruzou os <strong>de</strong>dos. E disse:<br />
– É com você que eu vou casar.<br />
– Comigo?!...<br />
– Então, por que você não me beija? Porque aqui na roça não é uso?<br />
♦ ♦ ♦<br />
«E foi assim que fiquei noivo <strong>de</strong> Armanda, com quem me casei, no mês<br />
<strong>de</strong> maio, ainda antes do matrimônio da minha prima Maria Irma com o moço<br />
Ramiro Gouvêia, dos Gouvêias da fazenda da Brejaúba, no Todo-Fim-É-Bom.»<br />
Só me resta concluir.<br />
Amor repentino não nasce <strong>de</strong> convivência nem <strong>de</strong> conhecimento profundo,<br />
certo? É uma reação <strong>de</strong> corpos, não <strong>de</strong> almas, certo? O que prepon<strong>de</strong>ra é<br />
a atração física – fator importante – capaz <strong>de</strong> atar dois <strong>de</strong>stinos humanos mas<br />
nem sempre duradouro, certo? Ao que se <strong>de</strong>duz, o nosso herói amoroso<br />
valorizava tal circunstância... mais do que outras. Para ele valiam não as<br />
qualida<strong>de</strong>s intelectivas, mas sim as da beleza corporal. Num dito sintético:<br />
proclamava o reino da – MULHER GEOMÉTRICA!<br />
Apenas mais um comentário:<br />
Atente o leitor-narratário para a especiosida<strong>de</strong> do topônimo do lugar para<br />
on<strong>de</strong> foram morar Ramiro e Maria Irma... – essa a última cartada do narrador<br />
nesse jogo textual!
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Referências Bibliográficas<br />
CARVALHO, Alfredo Leme Coelho <strong>de</strong>. Foco narrativo e fluxo da consciência<br />
— Questões <strong>de</strong> teoria literária. São Paulo: Pioneira, 1981.<br />
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 3. ed. São Paulo: Ática,<br />
1995. Coleção Princípios.<br />
GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins.<br />
Lisboa: Vega, s. d.<br />
LEITE, Lígia Chiappini Moraes. O foco narrativo. 3. ed. São Paulo: Ática,<br />
1987. Coleção Princípios.<br />
NIEL, André. A análise estrutural <strong>de</strong> textos. Literatura, imprensa, publicida<strong>de</strong>.<br />
Trad. <strong>de</strong> Álvaro Lorencini e Sandra Nitrini. São Paulo: Cultrix, 1978.<br />
ROSA, Guimarães João. Sagarana. 17. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Livraria José<br />
Olympio Editora, 1974. Coleção Sagarana. V. 1.<br />
ROSA, Guimarães João. Sagarana. 5. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Livraria José<br />
Olympio Editora, 1958. Coleção Sagarana. V. 1.<br />
SAFADY, Naief. Introdução à análise <strong>de</strong> texto. 4. ed. Belo Horizonte: Edições<br />
Júpiter, 1972.
GUIMARÃES ROSA:<br />
O SERTÃO E O HOMEM<br />
Luiz Au<strong>de</strong>bert Delage Filho*<br />
Solicitou-me a direção do jornal A Semana, <strong>de</strong> Pirapora, escrevesse um<br />
“breve ensaio” sobre Guimarães Rosa e sua obra-prima Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />
Veredas, que está sendo adaptada para filmagens pela Re<strong>de</strong> Globo <strong>de</strong> Televisão,<br />
numa gran<strong>de</strong> parte do Norte <strong>de</strong> Minas e, em especial, no Distrito <strong>de</strong><br />
Paredão <strong>de</strong> Minas, on<strong>de</strong> teria ocorrido, no romance, às margens do legendário<br />
Rio do Sono, a batalha final entre os grupos <strong>de</strong> jagunços na disputa da hegemonia<br />
do sertão.<br />
De um lado, Riobaldo, o herói antes problemático e <strong>de</strong>pois resoluto,<br />
chefiando o bando <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iro Vaz – “O Rei dos Gerais” – e <strong>de</strong> outro<br />
Hermógenes, pactário, traidor <strong>de</strong> Joca Ramiro a quem matara traiçoeira e<br />
covar<strong>de</strong>mente, aliado a Ricardão, trazendo com isso a cisão do bando e<br />
angariando, até o fim, o ódio mortal <strong>de</strong> Diadorim, filha <strong>de</strong> Joca Ramiro.<br />
Ela, durante todo o romance é o jagunço Reinaldo, por quem Riobaldo<br />
mantém uma atração amo<strong>rosa</strong>, a todo custo sufocada, porque não admissível<br />
entre... “homens <strong>de</strong> armas e brios”..., segredo que somente ao final se <strong>de</strong>svenda,<br />
com Diadorim morta, em combate a faca com Hermógenes, a quem também<br />
mata, vingando a morte do pai que a criara <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequena como homem,<br />
<strong>de</strong>stinando-a às duras guerras do sertão. Na pia do batismo recebera o nome<br />
Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins... “que nasceu para o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong><br />
guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo <strong>de</strong> amor”...<br />
Difícil é sintetizar Guimarães Rosa e sua obra-prima Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />
Veredas, pois o escritor e a obra <strong>de</strong>vem ser enfocados sob o aspecto da<br />
genialida<strong>de</strong>. Procurei valer-me, para <strong>de</strong>sincumbência da tarefa, além <strong>de</strong><br />
* Desembargador do Tribunal <strong>de</strong> Justiça do Estado <strong>de</strong> Minas Gerais.
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consultas ao texto básico do romance, na 14ª edição, 1980, do trabalho <strong>de</strong><br />
Franklin <strong>de</strong> Oliveira, publicado em a Literatura no Brasil, direção <strong>de</strong> Afrânio<br />
Coutinho – Volume 5; da obra do Mineiro <strong>de</strong> Inhapim, Alan Viggiano –<br />
Itinerário <strong>de</strong> Riobaldo Tatarana; e do livro <strong>de</strong> Leonardo Arroyo – A Cultura<br />
Popular em Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas.<br />
Franklin <strong>de</strong> Oliveira menciona que, em Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, a<br />
estória é contada sob a aparência <strong>de</strong> diálogo, mas, na verda<strong>de</strong>, é um colossal<br />
monólogo. É a estória <strong>de</strong> Riobaldo, quando não é mais jagunço, quando já<br />
<strong>de</strong>ixou a jagunçagem para ser estável fazen<strong>de</strong>iro a passar o melhor <strong>de</strong> seu<br />
tempo no bem-bom do “range-re<strong>de</strong>”, em recordações e dúvidas, sendo a maior<br />
<strong>de</strong>las a existência do diabo, (“O diabo na rua, no meio do re<strong>de</strong>moinho”) –<br />
refrão do livro e se realmente ele, Riobaldo, se tornara pactário, ao ven<strong>de</strong>r a<br />
alma, à meia noite, nas “veredas mortas”, pelas glórias do comando.<br />
Na realida<strong>de</strong>, há três Riobaldos: o jagunço, herói problemático; o fáustico,<br />
pactário – herói resoluto, mas que se trai a si mesmo; e o místico, herói<br />
frustrado, a partir do qual é dada a narrativa. O romance começa, e todo ele é a<br />
evocação <strong>de</strong> sua vida, portanto, não mais a estória <strong>de</strong> um homem <strong>de</strong> ação, mas<br />
<strong>de</strong> um homem que se interroga. De algum modo, um romance <strong>de</strong> ilusões<br />
perdidas.<br />
Riobaldo era garoto pobre no vale do São Francisco, vivendo na região<br />
em que se localizava a “Fazenda Sirga”, nas proximida<strong>de</strong>s do “rio <strong>de</strong> Janeiro”,<br />
afluente do gran<strong>de</strong> rio. Certo dia, saíra para pagar promessa, quando se<br />
encontra com um menino. Com esse menino, apren<strong>de</strong> a lição suprema: a da<br />
Coragem. O menino, mais tar<strong>de</strong> o moço Reinaldo, acompanha Joca Ramiro,<br />
guerrilheiro <strong>de</strong> alta glória. Por pura afetivida<strong>de</strong> a Reinaldo, agora Diadorim, o<br />
ex-menimo engaja-se na jagunçagem. Morre Me<strong>de</strong>iro Vaz, outro “Par-<strong>de</strong>-<br />
França” dos sertões <strong>de</strong> Minas. Ao morrer, Me<strong>de</strong>iro Vaz o escolhe, com um<br />
gesto <strong>de</strong> “herói <strong>de</strong> gesta”, para a chefia. Recusa o comando. A tantas, surge Zé<br />
Bebelo, chefe. As andanças guerrilheiras.<br />
O inimigo, Hermógenes, que à traição assassinara Joca Ramiro, era<br />
pactário. Ação luciferina, <strong>de</strong>mônio <strong>de</strong> armas e tocaia. A obsessão <strong>de</strong> Diadorim,<br />
sortilégio forte sobre Riobaldo, era liquidar Hermógenes. Uma fascinação que a<br />
Riobaldo parecia <strong>de</strong>moníaca. Contudo, resolve ser também pactário. Nas<br />
“Veredas Mortas”, meia-noite, ven<strong>de</strong> a alma ao diabo, pelas glórias do Comando<br />
– subjacentemente, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> liquidar Hermógenes, para crescer aos<br />
olhos <strong>de</strong> Diadorim, – a relação ambígua.<br />
Pacto feito, Riobaldo não é mais o herói problemático, irresoluto. Assume<br />
o comando, com fortes po<strong>de</strong>res. O mundo, agora, em suas mãos, é um
Guimarães Rosa: o sertão e o homem ______________________________________ Luiz Au<strong>de</strong>bert Delage Filho 121<br />
brinquedo. As façanhas – a travessia do “Liso do Sussuarão”, por exemplo –<br />
em que fracassara o Gran<strong>de</strong> Chefe, paradigma <strong>de</strong> todos, ele a realiza tranqüilo.<br />
Tem, <strong>de</strong>pois do pacto, a armadura, a envergadura do super-homem. Antes, que<br />
era? O protótipo do herói problemático, dilacerado entre terríveis contradições.<br />
Ana Nhorinhá, polo <strong>de</strong> atração erótica – pensa que com a doce prostituta<br />
po<strong>de</strong>ria unir-se para sempre. Chega a perguntar: ela o queria salvar? Mas ama<br />
OTACÍLIA, visão branca <strong>de</strong> paz, longínqua, romanticamente <strong>de</strong>sejada. E ama,<br />
numa tremenda confusão <strong>de</strong> sentimentos, Diadorim – atração e repulsa: ignora,<br />
ainda, que Diadorim é mulher – o mito da mulher vestida <strong>de</strong> guerreiro.<br />
Pacto feito, comando assumido, guerra travada para ser <strong>de</strong> extermínio<br />
dos “Hero<strong>de</strong>s Hermógenes”, à hora do combate <strong>de</strong>finitivo, no entrevero do<br />
Paredão, Riobaldo ausenta-se da luta. Apenas da janela do sobrado assiste ao<br />
duelo entre Diadorim e Hermógenes, no qual morrem os dois. Eis que é quando<br />
<strong>de</strong>scobre que Diadorim, filha <strong>de</strong> Joca Ramiro, po<strong>de</strong>ria ser seu amor, no normal,<br />
amor nascido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a misteriosa atração, nas margens do São Francisco, na<br />
barra do “<strong>de</strong> Janeiro” on<strong>de</strong> começara a estória.<br />
Alan Viggiano, no Itinerário <strong>de</strong> Riobaldo Tatarana, i<strong>de</strong>ntifica e localiza<br />
180 das quase 230 localida<strong>de</strong>s citadas em Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, como<br />
etapas da odisséia <strong>de</strong> Riobaldo pelo Sertão. Com a rápida expansão do sistema<br />
rodoviário iniciada <strong>de</strong>pois da construção <strong>de</strong> Brasília, muitos trechos <strong>de</strong>sse<br />
mundo fechado, lendário <strong>de</strong> tão inacessível, ficaram <strong>de</strong>ntro do alcance do<br />
viajante comum. A vereda do Tamanduá, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>u o primeiro recontro dos<br />
bandos <strong>de</strong> Riobaldo e Hermógenes fica, segundo afirma Alan, a poucos<br />
quilômetros da estrada Brasília-Belo Horizonte. Talvez, acrescenta, “num<br />
futuro não muito distante se organizem excursões turísticas aos pontos essenciais<br />
do universo rosiano”.<br />
As principais cida<strong>de</strong>s compreendidas no território perlustrado por<br />
Riobaldo Tatarana, enumeradas por Viggiano, são: Sete Lagoas; Curvelo;<br />
Corinto; Lassance; Várzea da Palma (Córrego do Batistério); Pirapora; Montes<br />
Claros; Brasília <strong>de</strong> Minas; São Romão; São Francisco; Januária; Monte Azul;<br />
Grão Mogol; Araçuai; Jequitaí, e evi<strong>de</strong>ntemente o município <strong>de</strong> Buritizeiro,<br />
on<strong>de</strong> se localiza o distrito <strong>de</strong> Paredão <strong>de</strong> Minas.<br />
Outras localida<strong>de</strong>s são citadas, ou pelas antigas <strong>de</strong>nominações, ou pelos<br />
nomes atuais, pois conforme lamenta o narrador, os lugares não <strong>de</strong>veriam<br />
mudar <strong>de</strong> nome, para garantia dos que neles nasceram, e exemplifica: São<br />
Romão não já foi Vila Risonha?<br />
São citados: Córrego do Batistério (em Várzea da Palma); Serra da Onça;<br />
Rio Jequitaí; Córrego do Mocambo: Córrego do Canabrava; Córrego Barra (ou
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Barro); Serra da Jaíba; Angicos; Poço Triste; Gorutuba; Quem-Quem; Guararavacã<br />
do Guaicuí; Alto Amoipira; Malhada Gran<strong>de</strong>; Mingu; Brejo dos Mártires;<br />
Barra do Urucuia; Serra das Araras; Lagoa Suçuarana; Rio Pardo; Rio<br />
Acari; Rio Piratinga; Rio São Domingos.<br />
Mas é aos rios que o roteiro <strong>de</strong> Riobaldo Tatarana está sempre ligado. O<br />
São Francisco é o maior <strong>de</strong> todos, ponto <strong>de</strong> referência. O Paracatu e o das<br />
Velhas são rios importantes na vida do jagunço. Ao Urucuia “on<strong>de</strong> tanto boi<br />
berra”, ele está preso pelo amor. “... Confusa é a vida da gente. Como esse meu<br />
Urucuia vai se levar ao mar. Rio meu, <strong>de</strong> amor, é o Urucuia”.<br />
O itinerário dos cangaceiros (jagunços) procurava naturalmente fugir das<br />
gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s, on<strong>de</strong> havia proteção contra eles. Mas seu sonho é tomar <strong>de</strong><br />
assalto – bando <strong>de</strong> centenas, uma inteira, para provar seu po<strong>de</strong>rio. Pirapora ou<br />
Januária, por exemplo. No geral, entretanto, eles percorrem as barrancas dos<br />
rios – pelos quais se orientam – saqueando as pequenas vilas in<strong>de</strong>fesas ou<br />
cobrando dízimos dos fazen<strong>de</strong>iros.<br />
O legendário “Rio do Sono” é palco dos mais emocionantes episódios <strong>de</strong><br />
Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas. Nasce no sul do município <strong>de</strong> João Pinheiro, atravessa<br />
rumo ao norte todo esse município e vai <strong>de</strong>saguar no Rio Paracatu, na<br />
divisa com Buritizeiro, próximo à localida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paredão <strong>de</strong> Minas, vila que<br />
formou as gambiarras do combate final entre os dois bandos <strong>de</strong> cangaceiros, no<br />
final do romance.<br />
Demonstra Viggiano que, quem viaja, hoje, pela estrada asfaltada <strong>de</strong><br />
Belo Horizonte até Brasília, logo adiante da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> João Pinheiro, atravessará<br />
uma ponte sobre o Rio do Sono e sentirá, certamente, o clima emocional<br />
das histórias do escritor mineiro. E se o viajante largar a estrada e tomar o rio<br />
abaixo, vai passar nos fundos das casas <strong>de</strong> um lugar que ROSA imaginou para<br />
o combate final dos jagunços: Paredão. Hoje, Paredão <strong>de</strong> Minas, distrito <strong>de</strong><br />
Buritizeiro, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>senvolvem atualmente as filmagens da Re<strong>de</strong> Globo.<br />
Sobre Guimarães Rosa, Alceu Amoroso Lima afirmou tratar-se <strong>de</strong><br />
“Autor absolutamente inqualificável, a não ser na categoria dos gênios, isto é,<br />
dos gran<strong>de</strong>s isolados”.<br />
Sérgio Buarque <strong>de</strong> Holanda, falando <strong>de</strong> e sobre Guimarães Rosa, dizia<br />
ter medo <strong>de</strong> tentar comparações e não diria, por isso, que a obra <strong>de</strong> G. R. é a<br />
maior da literatura brasileira <strong>de</strong> todos os tempos. Diria, porém, que nenhuma<br />
outra, <strong>de</strong> nenhum escritor, entre brasileiros, po<strong>de</strong> dar-lhe a mesma idéia <strong>de</strong><br />
tratar-se <strong>de</strong> criação absolutamente genial.<br />
Guimarães Rosa é consi<strong>de</strong>rado como integrante do Instrumentalismo,<br />
<strong>de</strong>ntro do Mo<strong>de</strong>rnismo, reunindo os escritores que, a partir <strong>de</strong> 1945, se
Guimarães Rosa: o sertão e o homem ______________________________________ Luiz Au<strong>de</strong>bert Delage Filho 123<br />
preocuparam em realizar sua obra através <strong>de</strong> uma redução da ficção à pesquisa<br />
formal e <strong>de</strong> linguagem, e se voltam para “os seus instrumentos <strong>de</strong> trabalho”.<br />
Em Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, a palavra per<strong>de</strong>u sua característica <strong>de</strong><br />
termo, entida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contorno unívoco, para converter-se em plurissigno, realida<strong>de</strong><br />
multissignificativa, policonotativa. A língua Rosiana <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser unidimensional,<br />
convertendo-se em idioma no qual os objetos flutuam numa atmosfera<br />
em que o significado <strong>de</strong> cada coisa está em contínua mutação.<br />
A palavra “Sertão”, por exemplo, é apresentada como: realida<strong>de</strong> geográfica;<br />
realida<strong>de</strong> social; realida<strong>de</strong> política; dimensão folclórica; dimensão psicológica<br />
conectada com o subconsciente humano; dimensão metafísica apontando<br />
para as surpreen<strong>de</strong>ntes virtualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>moníacas da alma humana; dimensão<br />
ontológica referida à solidão existencial; tendo pois infinitas possibilida<strong>de</strong>s<br />
significativas.<br />
Algumas citações sobre o Sertão:<br />
“O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado<br />
sertão é por os campos-gerais a fora a <strong>de</strong>ntro, eles dizem, fim <strong>de</strong> rumo, terras<br />
altas, <strong>de</strong>mais do Urucuia. Toleima. Para os <strong>de</strong> Corinto e do Curvelo, então, o<br />
aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior. Lugar sertão se divulga: é on<strong>de</strong> os<br />
pastos carecem <strong>de</strong> fechos; on<strong>de</strong> um po<strong>de</strong> torar <strong>de</strong>z, quinze léguas, sem topar<br />
com casa <strong>de</strong> morador; e on<strong>de</strong> criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do<br />
arrocho <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>”. (pg 9)<br />
... “No sertão, até enterro simples é festa.”<br />
... “O sertão é do tamanho do mundo.”<br />
... “Sertão é o penal, criminal. Sertão é on<strong>de</strong> homem tem <strong>de</strong> ter a dura<br />
nuca e mão quadrada”.<br />
... “e muitas idas e marchas: sertão sempre. Sertão é isto: o senhor<br />
empurra para trás, mas <strong>de</strong> repente ele volta a ro<strong>de</strong>ar o senhor dos lados. Sertão<br />
é quando menos se espera; digo.”<br />
... “Sertão é <strong>de</strong>ntro da gente.”<br />
... “Homem a pé, esses Gerais comem.”
124 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
... “O sertão é bom. Tudo aqui é perdido, tudo aqui é achado. O sertão é<br />
confusão em gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>masiado sossego.”<br />
... “Meu sertão, meu regozijo.”<br />
... “O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor<br />
bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa.”<br />
Algumas citações sobre o HOMEM:<br />
... “Criatura gente é não e questão, corda <strong>de</strong> três tentos, três tranços.”<br />
... “Dia <strong>de</strong> gente <strong>de</strong>sexistir é um certo <strong>de</strong>creto, por isso que ainda hoje o<br />
senhor aqui me vê.”<br />
... “Um homem consegue intrujar <strong>de</strong> tudo; só <strong>de</strong> ser inteligente e valente<br />
é que muito não po<strong>de</strong>.”<br />
... “Pessoa limpa, pensa limpo.”<br />
... “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem <strong>de</strong> repente apren<strong>de</strong>.”<br />
... “Para as coisas que há <strong>de</strong> pior, a gente não alcança fechar as portas”.<br />
... “A primeira coisa, que um para ser alto nesta vida tem <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r, é<br />
topar firme as invejas dos outros restantes.”<br />
... “Urucuiano conversa com o peixe para vir no anzol – o povo diz.”<br />
... “Homem com homem, <strong>de</strong> mãos dadas, só se a valentia <strong>de</strong>les for<br />
enorme”.<br />
... “Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que<br />
outras, <strong>de</strong> mais recente data”.<br />
... “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria,<br />
aperta e daí afrouxa, sossega e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sinquieta. O que ela quer da gente é<br />
coragem”.
Guimarães Rosa: o sertão e o homem ______________________________________ Luiz Au<strong>de</strong>bert Delage Filho 125<br />
Dados biográficos <strong>de</strong> Guimarães Rosa.<br />
JOÃO GUIMARÃES ROSA (Cordisburgo, MG, 1908 – Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />
1967, fez as primeiras letras na cida<strong>de</strong> natal, e o curso ginasial no Colégio<br />
Arnaldo, em Belo Horizonte, on<strong>de</strong> também cursou a Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Medicina,<br />
diplomando-se em 1930, passando a exercer a profissão no interior do estado.<br />
Foi médico da Força Pública <strong>de</strong> Minas (Polícia Militar <strong>de</strong> Minas Gerais).<br />
Nos vagares da profissão no interior, <strong>de</strong>dicava-se a estudar línguas<br />
estrangeiras. Já então escrevia contos e versos.<br />
Em 1934, entra para a carreira diplomática, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> concurso em que<br />
obteve o segundo lugar.<br />
Viveu em diversos países, em serviço diplomático, tendo sido internado<br />
como prisioneiro na Alemanha, durante a guerra.<br />
Foi membro da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, tendo falecido três dias<br />
após ser empossado.<br />
A obra <strong>de</strong> Guimarães Rosa – Livros.<br />
Sagarana – 1ª ed. 1946<br />
Corpo <strong>de</strong> Baile – 1ª Ed. 1956, 2 vols. 2ª, 1960. O livro passa a ser<br />
editado em 3 vols. in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, figurando Corpo <strong>de</strong> Baile com o sub título –<br />
1º vol. Manuelzão e Miguilim (uma estória <strong>de</strong> Amor e Campo Geral. – 2º vol.<br />
No Urubuquaquá, no Pinhém (Lélio e Lina, O recado do Morro – Cara <strong>de</strong><br />
Bronze). – 3º vol. Noites do Sertão (Lão-Dalalão, Buriti.)<br />
Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas – (“O diabo na rua, no meio do re<strong>de</strong>moinho”) –<br />
1ª ed. 1956.<br />
Primeiras Estórias – 1ª ed. 1962.<br />
Tutaméia – (Terceiras Estórias) – 1ª ed. 1967.<br />
Estas Estórias (Póstumo) – 1ª ed. 1969.<br />
Ave, Palavra (Póstumo) – 1ª ed. 1970.
126 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Perfil acadêmico<br />
HUMOR INTELIGENTE E<br />
CRÍTICO NA DOSE CERTA<br />
Beatriz Teixeira <strong>de</strong> Salles*<br />
Ele não é criador <strong>de</strong> ornitorrincos em Salto da Divisa nem<br />
domador <strong>de</strong> abelhas em Piripiri – <strong>de</strong>signações no estilo das que<br />
costuma usar para se apresentar ao final <strong>de</strong> suas crônicas. O<br />
acadêmico Eduardo Almeida Reis, ocupante da ca<strong>de</strong>ira nº 24 da<br />
<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, faz da ironia sua arma junto ao<br />
teclado. Bem informado e, antes <strong>de</strong> tudo, bem-humorado, ele é<br />
daqueles que conseguem, a partir dos fatos cotidianos – e ele mesmo lembra<br />
que o Brasil é pródigo em inspiração –, escrever crônicas sabo<strong>rosa</strong>s que são<br />
momentos <strong>de</strong> pura <strong>de</strong>scontração para seus leitores. Em entrevista, Eduardo<br />
Almeida Reis fala <strong>de</strong> suas andanças por aí, antes <strong>de</strong> aportar em Belo Horizonte,<br />
literatura, criação e um pouco mais.<br />
Nascido no Rio, você se mudou para Belo Horizonte apenas na<br />
década <strong>de</strong> 90. O que o trouxe para cá?<br />
Meus patrões sediados aqui. Mu<strong>de</strong>i-me em 1998 porque <strong>de</strong>sejava,<br />
também, participar da vida acadêmica.<br />
Escrever com ironia parece ser um <strong>de</strong>safio maior do que a escrita<br />
“séria”. Principalmente com regularida<strong>de</strong>, como é seu caso. On<strong>de</strong> encontra<br />
tanta inspiração?<br />
A ironia é o lirismo da <strong>de</strong>silusão (Rangel Coelho, poeta). Quanto à<br />
inspiração, o país ajuda. No dia em que assumi o compromisso <strong>de</strong> “cronicar”<br />
* Jornalista
128 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
diariamente, fui informado, em tempo real, <strong>de</strong> que o ministro Cabral havia<br />
fugido com a ministra Zélia – e escrevi: “O ministro fugiu com a ministra”.<br />
Minha fonte: um amigo que os viu passeando <strong>de</strong> mãos dadas numa praça <strong>de</strong><br />
Nova Iorque e telefonou, na hora, do orelhão da praça. Mais “tempo real” que<br />
isso é impossível.<br />
O autor <strong>de</strong> textos irônicos seria um bem ou mal-humorado, diante<br />
das questões da vida?<br />
Acho que sou bem-humorado, porque sou alegre e <strong>de</strong> bem com a vida,<br />
amigo <strong>de</strong> minhas ex-companheiras, pai <strong>de</strong> três filhas estudiosas, trabalhadoras,<br />
virgens <strong>de</strong> pós e ervas, que curtem (como o pai) uma cervejinha.<br />
Como apreciador da cerveja, você é assíduo freqüentador <strong>de</strong> bares?<br />
Fui bacharelado, mestrado e doutorado nos botequins da vida, mas estou<br />
aposentado: só bebo em casa. Com esta onda <strong>de</strong> assaltos, e seqüestros – com a<br />
violência infinita que se vê por aí – prefiro ficar em casa, até porque sou muito<br />
gran<strong>de</strong> para caber na mala <strong>de</strong> um carro.<br />
Você é neto <strong>de</strong> Alice Brant, a Helena Morley, pai <strong>de</strong> Ana Cristina<br />
Reis, também jornalista e escritora. A literatura é mesmo uma pre<strong>de</strong>stinação<br />
familiar?<br />
De repente, em vez <strong>de</strong> pre<strong>de</strong>stinação é uma “imitação”. Meu avô paterno,<br />
que não conheci, publicou quase 30 livros sobre coisas do mar (era comandante<br />
do Lói<strong>de</strong> Brasileiro); meu avô materno, marido <strong>de</strong> Alice Brant, foi jornalista e<br />
tinha um livro divertidíssimo, Viagem a Buenos Aires, como correspon<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />
O Imparcial, numa viagem realizada em 1916, quando o navio da marinha <strong>de</strong><br />
guerra, que escoltava o navio em que viajou o conselheiro Rui Barbosa,<br />
enguiçou no caminho. Dá para imaginar um navio <strong>de</strong> escolta enguiçado?<br />
Sua avó escreveu o clássico Minha vida <strong>de</strong> menina, aos 14 anos. Você<br />
também começou cedo na escrita? Como foi esse começo?<br />
Comecei aos 27 com O pinto e a sra. sua mãe (a arte <strong>de</strong> empobrecer<br />
criando galinhas), quando fui acusado <strong>de</strong> plagiar The egg and I, <strong>de</strong> uma autora<br />
americana, que não li até hoje.
Humor inteligente e crítico na dose certa _____________________________________ Beatriz Teixeira <strong>de</strong> Salles 129<br />
Fale um pouco sobre sua trajetória literária e jornalística. Quais<br />
foram os “caminhos tortuosos” que seguiu até chegar a cronista do Estado<br />
<strong>de</strong> Minas?<br />
Comecei no Globo em 1966, repórter da Geral, quando já tinha dois<br />
livros publicados. Depois, comecei a fazer crônicas (sempre fui péssimo<br />
repórter). Em 1969 mu<strong>de</strong>i-me para o interior, quando fazia crônicas (oito<br />
mensais) para as maiores publicações agropecuárias do Brasil, pago a peso <strong>de</strong><br />
ouro, porque trocava as matérias pela publicida<strong>de</strong> do gado que vendia. O<br />
jornalismo diário, gênero crônica, só começou em 1990 (no Hoje em Dia,<br />
sediado em BH, quando eu morava em Juiz <strong>de</strong> Fora). Em 2005, fui convidado<br />
para o Estado <strong>de</strong> Minas, on<strong>de</strong> passei quase três anos escrevendo sobre futebol:<br />
<strong>de</strong>testo esportes que não sejam hípicos. Necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sobrevivência. Vivo<br />
exclusivamente <strong>de</strong> escrever para fora, sem aposentadorias, pensões, aluguéis,<br />
sem nada <strong>de</strong> coisa alguma. Felizmente, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 33 meses tentando escrever<br />
sobre Atlético e Cruzeiro, num período em que os dois times jogavam pedrinhas,<br />
a diretoria <strong>de</strong> redação me <strong>de</strong>slocou para o ca<strong>de</strong>rno Gerais, para “cronicar”<br />
sobre o dia-a-dia. “Ser cronista é viver em voz alta” (Manuel Ban<strong>de</strong>ira).<br />
Gosto <strong>de</strong> viver em voz alta...<br />
Você começou escrevendo no ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Esportes do EM e <strong>de</strong>pois<br />
passou para o Gerais. A cida<strong>de</strong> ren<strong>de</strong> mais assunto do que o esporte, nestes<br />
tempos <strong>de</strong> futebol-cifrão?<br />
Como expliquei aí atrás, <strong>de</strong>testo esportes: sofri o diabo. Na minha<br />
primeira noite <strong>de</strong> Mineirão, um colega da tribuna da imprensa, que nunca me<br />
viu mais gordo, foi tratando <strong>de</strong> avisar: “Se o Galo per<strong>de</strong>r, escon<strong>de</strong> o crachá<br />
que eles batem na gente”. Eles, no caso, são os cavalheiros das torcidas<br />
organizadas. Que se po<strong>de</strong> esperar <strong>de</strong> um cavalheiro que pertence, que faz parte,<br />
que dirige uma torcida organizada? Que se po<strong>de</strong> esperar <strong>de</strong> gente que faz<br />
arruaça e quebra ônibus, automóveis, postes <strong>de</strong> luz – mesmo nos dias em que<br />
seu time vence?<br />
O que representa, para você, fazer parte da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Letras</strong>?<br />
É o ponto culminante da carreira <strong>de</strong> um sujeito que vive <strong>de</strong> escrever para<br />
fora. Nunca fui um intelectual, mas simples autor <strong>de</strong> (por enquanto) 16 livros.
130 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
A <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em vésperas <strong>de</strong> completar 100 anos, é uma<br />
Casa em que ninguém bate nossa carteira, composta <strong>de</strong> pessoas que se <strong>de</strong>stacaram,<br />
<strong>de</strong> uma ou <strong>de</strong> outra forma, no cenário mineiro. Quando fui eleito, em<br />
1995, costumava dizer que os acadêmicos eram escolhidos por seu peso<br />
intelectual, por seu peso político, isto é, por sua expressão na administração<br />
pública estadual e fe<strong>de</strong>ral, ou por seu próprio peso. No meu caso, por volta <strong>de</strong><br />
130kg. Resumindo: somos 40 acadêmicos e há, nas calçadas, nas ruas, nas<br />
estradas, nos 853 municípios <strong>de</strong> Minas 20 milhões <strong>de</strong> mineiros falando mal da<br />
Instituição, mas doidos para nela ingressar.<br />
Você costuma acompanhar as ativida<strong>de</strong>s acadêmicas?<br />
Eu gostaria <strong>de</strong> acompanhar as ativida<strong>de</strong>s acadêmicas <strong>de</strong> perto: mu<strong>de</strong>i-me<br />
<strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora para Belo Horizonte pensando secretariar, ajudar o muito<br />
saudoso Vivaldi Moreira, mas trabalho tanto, em diversos empregos – Estado<br />
<strong>de</strong> Minas, Correio Braziliense, revista A Granja, rádio e TV (noves fora livros<br />
<strong>de</strong> encomenda, discursos etc.) que pouco posso participar das ativida<strong>de</strong>s<br />
acadêmicas. Quando participo, levo meu uísque: não me dou bem com o chá.<br />
Quem são seus autores prediletos – influências ou não.<br />
Em língua portuguesa, Eça <strong>de</strong> Queirós. No gênero crônica, uma porção<br />
<strong>de</strong> gente. Fiquemos com os estrangeiros para não ferir suscetibilida<strong>de</strong>s, porque<br />
no Brasil existem “cronistas” que fazem tudo – omeletes, feijoadas, caipirinhas<br />
– menos crônicas. Entre os estrangeiros <strong>de</strong>staco Bill Bryson, Mattew Shirts e o<br />
diabo <strong>de</strong> um Coutinho, português <strong>de</strong> 34 anos que escreve na Folha.<br />
Na literatura atual, você <strong>de</strong>stacaria algum nome?<br />
Vários, com ênfase para Zé Rubem Fonseca, porque vive quieto e não<br />
faz noites <strong>de</strong> autógrafos. Tenho horror às noites <strong>de</strong> autógrafos. Penitencio-me<br />
das muitas que <strong>de</strong>i. Se pu<strong>de</strong>sse, pediria perdão, <strong>de</strong> joelhos, aos amigos que tirei<br />
<strong>de</strong> suas casas nas minhas noites <strong>de</strong> autógrafos. Se fosse religioso, mandaria<br />
rezar missas pelos amigos que morreram, não propriamente durante os meus<br />
autógrafos, mas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>les.<br />
O que é mais difícil, escrever livros ou a obrigação regular <strong>de</strong> criar<br />
crônicas jornalísticas (se é que é possível fazer esta comparação)?
Humor inteligente e crítico na dose certa _____________________________________ Beatriz Teixeira <strong>de</strong> Salles 131<br />
Meus livrinhos são uma espécie <strong>de</strong> catarse: escrevo romances em 15<br />
dias, 50 laudas por dia. A obrigação regular <strong>de</strong> fazer crônicas (no momento, 41<br />
mensais) nunca foi um trabalho, mas um prazer. Tenho sorte <strong>de</strong> trabalhar no<br />
que gosto; adoro o “fazimento”, isto é, o ato <strong>de</strong> fazer.<br />
Certa vez, Fernando Sabino disse que o trabalho diário numa<br />
redação <strong>de</strong> jornal inviabiliza o exercício da literatura. Na época em que<br />
trabalhou em redação, você conseguia escrever textos literários?<br />
Nos anos em que batalhei numa redação não tinha tempo para mais nada.<br />
Entrava no jornal às 7h da matina e voltava para casa às 21h, recém-casado,<br />
uma filha pequena.<br />
Gostaria que falasse um pouco sobre sua vida rural. Você viveu em<br />
fazendas por algum tempo, não?<br />
Vivi na roça gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> minha vida adulta, primeiro solteiro (na<br />
fronteira com o Paraguai e no Oeste <strong>de</strong> Minas), <strong>de</strong>pois casado, quatro ou cinco<br />
anos morando num alto <strong>de</strong> serra, sem luz, telefone e estradas, três filhas<br />
pequenas. Só voltei à cida<strong>de</strong> quando as três filhas eram obrigadas a sair da<br />
fazenda antes das 6h e voltavam às 19h – colégio, cursos <strong>de</strong> inglês, natação,<br />
alemão etc. – porque os horários eram diferentes e umas ficavam fazendo hora,<br />
na cida<strong>de</strong>, esperando o término das aulas das irmãs.<br />
Mu<strong>de</strong>i-me, então, para Juiz <strong>de</strong> Fora: mulher e filhas na cida<strong>de</strong>, o<br />
fazen<strong>de</strong>iro sozinho na roça distante duas horas <strong>de</strong> automóvel. Nos finais <strong>de</strong><br />
semana, as meninas viajavam para a fazenda. Mais tar<strong>de</strong>, tinham namorados em<br />
JF, festinhas nos finais <strong>de</strong> semana, os tais arrasta-pés. Até chegar à fase dos<br />
candidatos a genros visitando a fazenda. Futuro genro não passeia a cavalo: só<br />
sabe galopar feito um doido. E não cai do cavalo. Acorda tar<strong>de</strong>. E o fazen<strong>de</strong>iro<br />
não po<strong>de</strong> comer o salaminho, o queijinho, o suquinho, os ovinhos com bacon<br />
dos cafés da manhã – tomados ao meio-dia – preparados para os namorados.<br />
Acabei dando sorte com os três genros, cavalheiros finíssimos, mas sofri o<br />
diabo com os vários candidatos que andaram na minha roça.<br />
Vinguei-me <strong>de</strong>les. No dia em que lá estiveram quatro engenheiros do<br />
ITA, botei os quatro no alto <strong>de</strong> um morro, ao sol <strong>de</strong> uma hora da tar<strong>de</strong> (logo<br />
<strong>de</strong>pois do café da manhã), procurando sinal <strong>de</strong> televisão. Acharam o sinal e um<br />
trilhão <strong>de</strong> carrapatos. Dois <strong>de</strong>les se revezavam carregando uma bateria <strong>de</strong><br />
automóvel, um carregava o televisor e o outro uma antena que mais parecia um<br />
poste da Cemig.
132 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Dados biográficos<br />
Eduardo Almeida Reis nasceu no Rio <strong>de</strong> Janeiro, em 8 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong><br />
1937. É filho <strong>de</strong> José Cândido Almeida dos Reis e Sara Cal<strong>de</strong>ira Brant. Casouse<br />
com Christina Ribeiro Lunar<strong>de</strong>lli, com quem teve três filhas. Divorciou-se<br />
em 1999 e casou novamente, com Cibele Maria Andra<strong>de</strong> Ruas.<br />
Estudou o curso primário no Externato Guy <strong>de</strong> Fontgalland, no Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> fez ainda os cursos ginasial e científico, no Instituto<br />
Educacional Brasil-América. Formou-se bacharel em Ciências Jurídicas e<br />
Sociais, pela Universida<strong>de</strong> do Estado da Guanabara, atual UERJ, em 1961.<br />
Seu primeiro livro, O pinto e a sra. sua mãe (a arte <strong>de</strong> empobrecer<br />
criando galinhas), foi lançado em 1965. Nos anos seguintes publicou De<br />
Colombo a Kubitschek, Histórias do Brasil (Historiae Brasiliae a Columbo<br />
usque Nonô), (1967), Zebu para principiantes (1972), A arte <strong>de</strong> amolar o boi –<br />
Manual do proprietário <strong>de</strong> sítios e fazendas (1974), As vacas leiteiras e os<br />
animais que as possuem (1981), Mulher, eleição e eucalipto (1981), O aprendiz<br />
<strong>de</strong> fazen<strong>de</strong>iro (1982), O papagaio cibernético (1984), A dieta inteligente<br />
(1986), Amazônia Legal & Ilegal (1992), Bumerangue (1995), Pau-<strong>de</strong>-tinta<br />
(memória <strong>de</strong> um país em construção) (1995), Burrice emocional (1999), Amor<br />
sincero custa caro (2002) e Muito ajuda quem não atrapalha.<br />
Com seu humor “botequineiro” aliado à fina ironia, Eduardo Almeida<br />
Reis já mereceu da crítica os seguintes comentários: “O mais divertido<br />
humorista brasileiro” (Guilherme <strong>de</strong> Figueiredo, O Globo), “Gênio rural”<br />
(David Nasser, revista Manchete), “Montaigne porra-louca” (João Ubaldo<br />
Ribeiro, O Globo), “O rei dos chatos” (um leitor da revista A Granja), “Não sei<br />
<strong>de</strong> nenhum que lhe possa ombrear e igualar o fulgor <strong>de</strong> sua graça e, mais do<br />
que isso, do seu estilo” (Abgar Renault), “Eduardo Almeida Reis foi uma das<br />
gratas surpresas, nestes 20 anos <strong>de</strong> meu batente <strong>de</strong> crítica literária, no registro<br />
<strong>de</strong> livros. Tem estilo personalíssimo, linguagem <strong>de</strong>spojada, enxuta, ensina e<br />
critica sob o riso benfazejo. Não o percam” (Osvaldo Lopes <strong>de</strong> Brito, Diário da<br />
Manhã).<br />
Não foram poucos os lugares por on<strong>de</strong> Eduardo Almeida Reis passou,<br />
em viagem ou como local <strong>de</strong> moradia – Rio <strong>de</strong> Janeiro, Estados Unidos da<br />
América, Miranda, no Mato Grosso do Sul, a mineira Lagoa da Prata, fazendas<br />
no interior do Estado do Rio, Juiz <strong>de</strong> Fora (MG) – até fincar pé em Belo<br />
Horizonte.
1. Introdução<br />
PERMANÊNCIA DE CECÍLIA<br />
Pe. Paschoal Rangel*<br />
Oito anos faz, a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> quis prestar uma homenagem<br />
a Cecília Meireles, cujo centenário <strong>de</strong> nascimento transcorreu a 7 <strong>de</strong><br />
novembro <strong>de</strong> 2001. E o Reitor e a Coor<strong>de</strong>nadora da Universida<strong>de</strong> Livre – órgão<br />
da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> – pediram-me que falasse sobre a “Permanência <strong>de</strong> Cecília”. A<br />
“provocação”, quase jornalística, vou procurar transformá-la em algo mais<br />
perdurável. Pois, na verda<strong>de</strong>, a permanência <strong>de</strong> Cecília é a própria permanência<br />
da Poesia. Ela é, antes e acima <strong>de</strong> qualquer outra coisa, Poesia. E se a Poesia é<br />
inerradicável, também Cecília Meireles o será.<br />
Otto Maria Carpeaux escreveu, certa vez, que não conhecia “outro poeta<br />
brasileiro – nem sequer entre os maiores – cuja inspiração lírica se tenha<br />
mantido invariavelmente e sem <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, sempre na mesma altura”. E o<br />
mestre, historiador da Literatura mundial e crítico literário, acrescentava: “O<br />
que seria necessário fazer, nesta data [eram vésperas <strong>de</strong> seus 63 anos, que ela<br />
passou internada no hospital, vindo a falecer dois dias <strong>de</strong>pois – Nota minha] e<br />
em todas as datas futuras, é uma exegese estilística <strong>de</strong> uma centena das mais<br />
belas poesias <strong>de</strong> Cecília Meireles, talvez <strong>de</strong> muito mais que uma centena.” (1)<br />
Para Carpeaux, a Poesia morava como em sua própria casa, nos poemas<br />
da poeta.<br />
Ela era absolutamente excepcional. Tinha razão Cassiano Ricardo,<br />
quando afirmava, ao votar nela para receber o Prêmio Olavo Bilac, da<br />
<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em 1938, pelo seu livro Viagem, que ela <strong>de</strong>veria<br />
receber o primeiro e o único lugar naquele concurso. Nenhum outro<br />
concorrente – pensava o fogoso acadêmico – se podia comparar com ela. Por<br />
* Prof. <strong>de</strong> Filosofia e Teologia. Acadêmico da AML, ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 27.
134 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
isso – era esse seu parecer – naquele ano, a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>de</strong>via realçar a<br />
homenagem, não distribuindo segundo prêmio nem menção hon<strong>rosa</strong> aos <strong>de</strong>mais<br />
candidatos. “Eles [os concorrentes] serão suficientemente poetas para compreen<strong>de</strong>r<br />
e admirar o valor solitário <strong>de</strong> Cecília Meireles, <strong>de</strong>ixando – a que cante<br />
sozinha.” Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> aplaudiu o voto em artigo em que dizia que “a<br />
<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> acabava <strong>de</strong> ser premiada por Cecília Meireles”. (2)<br />
Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> era outro encantado com a poeta. Num<br />
dos epigramas que andava publicando na época, na imprensa, sob a epígrafe<br />
“Fotos ¾ <strong>de</strong> ontem”, <strong>de</strong>ixou este retrato <strong>de</strong>la:<br />
CECÍLIA MEIRELES.<br />
Existe. Que presente <strong>de</strong> Deus!<br />
E na orelha da Seleta em P<strong>rosa</strong> e Verso <strong>de</strong> Cecília Meireles, ele registrou<br />
esta nota <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong> poética: ela “não me parecia uma criatura<br />
inquestionavelmente real”.<br />
Há coisas no verda<strong>de</strong>iro poeta, como na verda<strong>de</strong>ira poesia, que gozam <strong>de</strong><br />
uma semi-realida<strong>de</strong> meio mágica. E é isto que faz <strong>de</strong>les seres simultaneamente<br />
“inúteis” e “indispensáveis” e levou Jean Cocteau a afirmar: “Je sais que la<br />
poésie est indispensable. Mais je ne sais pas à quoi” (Eu sei que a poesia é<br />
indispensável. Mas não sei para quê.”) Sem poesia, o mundo fica inabitável.<br />
Não sei por quê, mas fica.<br />
Por isso mesmo, Cecília não po<strong>de</strong> passar, virar sombra, ser esquecida.<br />
Justifiquemos, porém, melhor esta afirmação.<br />
2.<br />
Cassiano Ricardo comenta longamente a frase <strong>de</strong> Cocteau em Viagem no<br />
Tempo e no Espaço – Memórias (3), mas está longe <strong>de</strong> concordar com ela.<br />
Chegou mesmo a escrever um estudo sobre “A Função da Poesia”. Para ele, a<br />
poesia é um instrumento <strong>de</strong> investigação tão válido quanto o instrumento<br />
lógico. Certamente, diríamos nós, a poesia tem uma relação íntima com a<br />
intuição, com uma espécie <strong>de</strong> conhecimento por “simpatia”. Dizemos<br />
“simpatia” no sentido etimológico, ou seja, conhecer assim é como ser<br />
“tocado”, quase “ferido” pela realida<strong>de</strong>, pela coisa (res = a coisa), não através<br />
da imagem figurativa, mas através <strong>de</strong> um “pathos”, uma “paixão”, um quase<br />
“sofrimento”, que nos faz “entir” as coisas como que penetrando em nós,<br />
empaticamente.
Permanência <strong>de</strong> Cecília ________________________________________________________ Pe. Paschoal Rangel 135<br />
Esse tipo <strong>de</strong> conhecimento poético nos livra da ditadura da razão iluminista,<br />
que se mancomuna com a civilização tecnológica, robotiza o homem, e o<br />
submete à lógica do utilitarismo e da eficiência. Assim, a “função da poesia”<br />
será, hoje mais que em outras épocas, mostrar ao homem mo<strong>de</strong>rno que nem<br />
tudo é eficiência mecânica ou econômica, po<strong>de</strong>r e administração. “Há mais<br />
coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia.” “Para isso tudo é<br />
que serve a poesia” – conclui Cassiano Ricardo.<br />
Talvez nosso Cassiano não tenha percebido que estava caindo no buraco<br />
que ele mesmo cavara para Cocteau, pois querer justificar a existência da<br />
poesia mostrando que ela tem a “função” disso ou daquilo na socieda<strong>de</strong>, é<br />
tombar no utilitarismo, na lógica da eficiência. A poesia tem, <strong>de</strong> fato, esse<br />
po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> libertação, mas não é isso que a legitima e a torna indispensável. Sua<br />
indispensabilida<strong>de</strong> vem <strong>de</strong> ela fazer parte do ser do homem. O homem não<br />
po<strong>de</strong> existir sem ela. Se alguém pega um livro <strong>de</strong> Cecília e começa a ler seus<br />
poemas – percebe logo que estão ali suas raízes. Que ali ele se nutre <strong>de</strong> sua<br />
própria seiva. Ele não saberá talvez explicar o que está acontecendo, mas sente<br />
que é isto que está acontecendo. É um exercício daquilo que Pascal chamou um<br />
dia “la logique du coeur”. E é por isso que Maiakovski lembrava que há na<br />
socieda<strong>de</strong> problemas que só po<strong>de</strong>rão ser resolvidos poeticamente.(4)<br />
Cecília era, antes <strong>de</strong> tudo, Poesia – disse eu no princípio <strong>de</strong>ste estudo.<br />
Por isso, quando entrava em estado poético (se é que alguma vez saía<br />
<strong>de</strong>le), ficava-lhe difícil escrever sobre temas sociais, sobretudo fazer da poesia<br />
uma espécie <strong>de</strong> tribuna, como alguns poetas fizeram – com inegável e<br />
dificilmente explicável arte. Seria o caso <strong>de</strong> Castro Alves ou Ferreira Gullar.<br />
Como, por outro lado, ela era uma educadora nata, foi professora na Escola<br />
Normal do Rio <strong>de</strong> Janeiro e <strong>de</strong>pois na Universida<strong>de</strong> do Distrito Fe<strong>de</strong>ral (Rio) e,<br />
durante três ou quatro anos, escreveu seguidamente, no Diário <strong>de</strong> Notícias<br />
(1930-1934), sobre o ensino e seus problemas, artigos até mesmo polêmicos,<br />
viveu íntimos conflitos, por não ser um poeta “participante”. Certa vez,<br />
admitiu, “respon<strong>de</strong>ndo a um curioso”, como escreveu, meio irritado, Carlos<br />
Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, ser seu principal <strong>de</strong>feito “uma certa ausência do<br />
mundo”.<br />
Seria, <strong>de</strong> fato, um <strong>de</strong>feito? (Andam dizendo mais ou menos a mesma<br />
coisa <strong>de</strong> Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens. Já tive oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r a essa<br />
questão, a propósito <strong>de</strong> Alphonsus, por ocasião – se não me engano – do<br />
cinqüentenário <strong>de</strong> sua morte.) Ou o simples fato <strong>de</strong> ser poeta <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, com a<br />
profun<strong>de</strong>za com que o foi Cecília, já é uma forma <strong>de</strong> presença e participação?<br />
A poesia po<strong>de</strong> mudar o mundo, sem precisar <strong>de</strong> mais nada senão <strong>de</strong>la mesma.
136 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Ou melhor dizendo: sem ter <strong>de</strong> estar a serviço <strong>de</strong> uma causa; sem precisar <strong>de</strong><br />
ser algo mais que poesia.<br />
3.<br />
Po<strong>de</strong>-se, então, falar – no caso <strong>de</strong> Cecília – que havia nela e em seus<br />
poemas “uma certa ausência do mundo” ?<br />
Respon<strong>de</strong> Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, que <strong>de</strong> poesia sabia tudo: “Do<br />
mundo como teatro, em que cada espectador se sente impelido a tomar parte<br />
frenética no espetáculo, sim; não, porém, do mundo <strong>de</strong> essências, em que a vida<br />
é mais intensa porque se <strong>de</strong>senvolve em estado puro, sem atritos, liberta das<br />
contradições da existência. Um estado em que sabedoria e beleza se integram e<br />
se dissolvem na perfeição da paz.” (5)<br />
Nesse sentido, a presença <strong>de</strong>la “no fundo do mundo” (para usar uma<br />
expressão <strong>de</strong> Guimarães Rosa), uma presença que se difun<strong>de</strong> e se distribui no<br />
amor e na partilha da beleza, é quase visível, quase palpável. Sempre que abrimos<br />
um livro <strong>de</strong> Cecília, sentimos uma espécie <strong>de</strong> beijo <strong>de</strong> paz, suave, dorido,<br />
mas sem aflições nem <strong>de</strong>sesperanças, reconstituindo em nós o que andava<br />
fendido ou espedaçado: Cecília é reconciliação e reconstrução. Sem precisar <strong>de</strong><br />
falar nisso explicitamente, sem nenhuma pregação, sem nenhuma pretensão <strong>de</strong><br />
convencimento. Vejam só como a poesia fala (e isto já em Viagem (1939):<br />
MOTIVO<br />
Eu canto porque o instante existe<br />
e a minha vida está completa.<br />
Não sou alegre nem sou triste:<br />
sou poeta.<br />
Irmão das coisas fugidias,<br />
não sinto gozo nem tormento.<br />
Atravesso noites e dias<br />
no vento..<br />
Se <strong>de</strong>smorono ou se edifico,<br />
se permaneço ou me <strong>de</strong>sfaço,<br />
– não sei, não sei. Não sei se fico<br />
ou passo.
Permanência <strong>de</strong> Cecília ________________________________________________________ Pe. Paschoal Rangel 137<br />
Sei que canto. E a canção é tudo.<br />
Tem sangue eterno a asa ritmada.<br />
E um dia sei que estarei mudo:<br />
– mais nada. (6)<br />
O tempo existe no instante. Um instante que passa. Um instante que virá.<br />
E porque o instante existe, eu canto, tu cantas, nós cantamos. E a canção é tudo.<br />
Todo o ser, todas as coisas que são, que foram, que serão têm uns jeitos <strong>de</strong><br />
existir na canção. A canção é coisa <strong>de</strong> poetas. Mas o poeta é coisa <strong>de</strong> homem.<br />
Como ser homem integral, sem a poesia? Sem a canção? Tudo é, <strong>de</strong> algum<br />
modo, canção. A canção é o ritmo, o número perfeito, o invisível do visível, a<br />
palavra alada. Ave, Palavra, como diria Guimarães Rosa, num título <strong>de</strong>liberadamente<br />
polissêmico, que po<strong>de</strong> significar uma saudação, uma homenagem ou<br />
a transfiguração da palavra em pássaro – ou talvez mais travessamente, em pássara.<br />
Canção, observa Darcy Damasceno em Poesia e P<strong>rosa</strong> <strong>de</strong> Cecília Meireles,<br />
constitui “um tipo <strong>de</strong> composição lírica peculiar”, “sem estrutura rígida”,<br />
que “se tornará uma constante na criação poética <strong>de</strong> Cecília Meireles”. (7)<br />
Mas esse tema da canção em Cecília merece um aprofundamento.<br />
4. Cecília e a canção<br />
– Como notava Darcy Damasceno (e o citamos há pouco), a canção é um<br />
tipo <strong>de</strong> composição lírica que se tornou uma constante na criação poética <strong>de</strong><br />
Cecília Meireles.<br />
Em Cecília, poesia e música – uma música <strong>de</strong> “encantamento”, como<br />
disse Drummond (8) – se misturam, fazem quase uma coisa só. Não é<br />
certamente em todos os poetas que isto acontece. Alguns – como foi o caso dos<br />
nossos primeiros mo<strong>de</strong>rnistas – fizeram até da ruptura com a musicalida<strong>de</strong> uma<br />
ban<strong>de</strong>ira programática, ao menos durante um certo período mais iconoclástico<br />
ou antropofágico. Mas isso era mais revolução do que poesia. Nela, poesia é<br />
“vaga música”, é “viagem”, é “solombra”, são “baladas para El-Rei”, são<br />
“Noturnos <strong>de</strong> Holanda”. Ouçam este “Epigrama n.º 1”, que é o primeiro poema<br />
<strong>de</strong> Viagem:<br />
Pousa sobre esses espetáculos infatigáveis<br />
uma sonora ou silenciosa canção:<br />
flor do espírito, <strong>de</strong>sinteressada e efêmera.
138 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Por ela, os homens te conhecerão;<br />
por ela, os tempos versáteis saberão<br />
que o mundo ficou mais belo, ainda que inutilmente,<br />
quando por ele andou teu coração.<br />
Abramos o ouvido, acendamos o coração e a mente: a canção – pássara<br />
voando – “pousa” sobre “espetáculos infatigáveis”. Que po<strong>de</strong> significar, para a<br />
lógica cartesiana, uma expressão <strong>de</strong>ssas? Claro que não estamos com os pés no<br />
chão, no plano da geometria euclidiana. Canções que voam, canções sonoras ou<br />
silenciosas – esses realismos ou irrealismos pouco importam ao poeta “encantado”,<br />
que anda no mundo <strong>de</strong> outras “essências”. O mundo das realida<strong>de</strong>s<br />
terrestres terra-a-terra nos apresenta, contudo, “espetáculos infatigáveis”. Esses<br />
espetáculos po<strong>de</strong>m ser “infatigáveis”, mas os espectadores talvez precisem <strong>de</strong><br />
uma pausa. A pausa e o pouso da canção. Canção, “flor do espírito” – vinda <strong>de</strong><br />
um mundo escondido, mas substancial e indispensável, que o poeta está<br />
encarregado <strong>de</strong> trazer aos outros homens, sem querer “catequizá-los”, no mau<br />
sentido da palavra. Ela vem “<strong>de</strong>sinteressada e efêmera”. O “efêmero” é o<br />
“instante”, o que “insta”, o que está aqui. No velho e riquíssimo grego,<br />
eph’émeros vem <strong>de</strong> epi + heméra = <strong>de</strong> um dia, do que não dura mais <strong>de</strong> um<br />
dia. Apesar <strong>de</strong>ssa frágil transitorieda<strong>de</strong>, “por ela, os homens te conhecerão; /<br />
por ela, os tempos versáteis saberão/ que o mundo ficou mais belo, ainda que<br />
inutilmente/ quando por ele andou teu coração”.<br />
“Ainda que inutilmente”. A inutilida<strong>de</strong> da beleza... Aristóteles falava da<br />
“inutilida<strong>de</strong> da metafísica”, no sentido que ela não é utilitária e, sim, gratuita,<br />
acima dos interesses imediatos, da eficiência do útil. Nosso Tristão <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong>,<br />
ou seja, o Dr. Alceu Amoroso Lima tem uma página bonita e instigante sobre a<br />
importância das coisas aparentemente <strong>de</strong>simportantes. Certo escritor oriental<br />
contou um dia uma espécie <strong>de</strong> parábola, lembra T. <strong>de</strong> A. no 2º volume <strong>de</strong> seus<br />
Estudos. “No meio da mata virgem, uma admirável cascata. Chega um hindu e,<br />
contemplando aquela maravilha, mergulha-se em meditações tão transcen<strong>de</strong>ntes<br />
que se esquece <strong>de</strong> olhar para a cascata. Chega um chinês e, tão encantado<br />
se sente, que vai logo procurar uns amigos para, em companhia <strong>de</strong>les,<br />
melhor apreciar a beleza das águas. Chega, afinal, um oci<strong>de</strong>ntal e exclama<br />
logo: ‘Ah! Mas que pena! Uma força <strong>de</strong>ssas aqui <strong>de</strong>saproveitada! Quantos<br />
cavalos-vapor não daria!” (9) E Tristão comentava: “Julgo que nenhum leitor,<br />
imitando nosso compatriota [oci<strong>de</strong>ntal], acredite ainda na inutilida<strong>de</strong> das coisas<br />
inúteis.” Infelizmente, é provável que haja mais incrédulos e ateus da <strong>de</strong>usa<br />
Beleza pura do que imaginava o generoso cérebro do Dr. Alceu. Mas
Permanência <strong>de</strong> Cecília ________________________________________________________ Pe. Paschoal Rangel 139<br />
felizmente os poetas continuam existindo e, na medida em que, como Cecília,<br />
pousam suas canções sobre os espetáculos das guerras, das maldições, dos<br />
ódios, das vinganças, dos negócios <strong>de</strong>sumanos, eles reconciliam e reconstroem<br />
o mundo. Para usar uma frase profunda e bem achada do Pe. Leonel Franca, o<br />
mundo mo<strong>de</strong>rno, que morreria do que afirma, continua a viver do que nega. E<br />
assim, por ela (a canção) “os homens te conhecerão; / por ela, os tempos versáteis<br />
saberão/ que o mundo ficou mais belo, ainda que inutilmente,/ quando por<br />
ela andou teu coração”.<br />
Cecília vai ajudar o mundo a viver, levando o mundo a escapar da<br />
cru<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> e da barbárie que o envolve em sangue e sujeira. Mesmo que, para<br />
isso, tenha <strong>de</strong> cantar até morrer:<br />
5 – Cecília e a canção (2)<br />
A mulher do canto lindo<br />
ajuda o mundo a sonhar<br />
com o canto que a vai matando<br />
ai!<br />
E morrerá <strong>de</strong> cantar. (10)<br />
A poesia ceciliana não é simplesmente intimista, na linha do simbolismo,<br />
mas é, sim, no conjunto, incompreensível sem o traço <strong>de</strong> um neo-simbolismo,<br />
que se caracteriza por um corte místico, uma poética do eu profundo, mais<br />
voltada para o mundo interior. O próprio mundo externo, presente em muitos<br />
<strong>de</strong> seus livros, especialmente em Mar Absoluto e Outros Poemas, em Retrato<br />
Natural, com tantas <strong>de</strong>scrições bucólicas: “Madrugada no campo”, “Madrugada<br />
na al<strong>de</strong>ia”, “Campo”, “Pastorzinho mexicano” (todos <strong>de</strong> Mar Absoluto), está ali<br />
mais como ponto <strong>de</strong> partida para uma “viagem” ao mundo interior. “Lembrança<br />
rural” (<strong>de</strong> Vaga Música) mostra bem sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “ver”, “olfactar”,<br />
“apalpar” o mundo em volta. Não <strong>de</strong>ixa, porém, <strong>de</strong> ser verda<strong>de</strong> que “sua praia”<br />
é outra. Ela vive mais naturalmente a música interior, a paisagem da alma. O<br />
mundo é, para ela, antes uma ocasião <strong>de</strong> meditar, <strong>de</strong> experimentar as sensações<br />
internas, o sentimento da precarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> todas as coisas, da sua provisorieda<strong>de</strong>.<br />
No começo <strong>de</strong> sua vida, ela era mais católica, ligou-se a movimentos<br />
literários <strong>de</strong> grupos católicos, como o da revista Árvore Nova, ou o <strong>de</strong> Terra do<br />
Sol e o da revista Festa. Alguns motivos a foram distanciando da Igreja – creio
140 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
que, principalmente, a luta pela reforma do ensino no Brasil, tendo ela se unido<br />
ao grupo da chamada Escola Nova, <strong>de</strong> Anísio Teixeira, Fernando Azevedo,<br />
Lourenço Filho etc., ligados ao pensamento <strong>de</strong> John Dewey, isto é, a uma visão<br />
da educação baseada no pragmatismo, no individualismo, no neutralismo<br />
religioso (nem tão neutro assim, porque se proibia na escola todo ensino<br />
religioso, e mesmo “qualquer preocupação <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m religiosa”, como diz<br />
Valéria Lamego) (11), no privilegiamento da escola pública contra a escola<br />
privada e no emprego <strong>de</strong> um método e uma filosofia educacional escolhidos e<br />
impostos pelo Estado, enquanto a Igreja, tendo à frente o Pe. Leonel Franca,<br />
S.J., Tristão <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong>, o Car<strong>de</strong>al Leme, o grupo do Centro Dom Vital e da<br />
Ação Católica, tomava posição contrária, a partir <strong>de</strong> uma filosofia fundamentada<br />
na PESSOA humana, na liberda<strong>de</strong> pedagógica, no direito <strong>de</strong> a família<br />
escolher a escola <strong>de</strong> seus filhos etc. Cecília Meireles <strong>de</strong>ve ter ficado magoada e<br />
estremecida com a Igreja Católica.<br />
Sua religiosida<strong>de</strong>, porém, continuou aguçada, embora mais influenciada<br />
agora pela mística oriental, por poetas religiosos tão gran<strong>de</strong>s quanto o encantado<br />
e encantador “príncipe” hindu, Rabindranath Tagore, <strong>de</strong> quem ela traduziu<br />
vários livros em p<strong>rosa</strong> e verso. O coração <strong>de</strong> Cecília ficou mais melancólico,<br />
mais pessimista, com traços, aqui e ali, <strong>de</strong> niilismo. Para ela, a vida vira ilusão<br />
e ela “contempla niilisticamente a morte como adormecimento”, segundo<br />
observa Darcy Damasceno. (12) São ecos do “nirvana”, <strong>de</strong> “maya”; <strong>de</strong> modo<br />
geral, do hinduísmo, para o qual “o mundo fenomenal é uma ilusão”. “Tudo o<br />
que não é Braman não existe. A multiplicida<strong>de</strong>, varieda<strong>de</strong> e fluxo contínuo dos<br />
seres é uma gran<strong>de</strong> fantasmagoria, uma criação ilusória dos sentidos.” (13)<br />
Mas Cecília não se “converteu” a nenhum bramanismo ortodoxo, <strong>de</strong>ixouse<br />
apenas tomar poeticamente <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong> seus sentimentos e idéias. Não tinha<br />
nenhuma vocação ao niilismo, embora tivesse uma alma essencialmente<br />
melancólica, por um sentimento radical da transitorieda<strong>de</strong> e precarieda<strong>de</strong> do<br />
mundo e dos sentidos. E, assim, ela, aos poucos, reencontrou o equilíbrio entre<br />
“a apreensão do real e a <strong>de</strong>scrença nele”. E foi a Poesia, especialmente a<br />
Canção que lhe forneceu a fórmula capaz <strong>de</strong> “reinventar a vida”. Darcy Damasceno,<br />
que faz ou sugere essas reflexões, acrescenta que “o instrumento <strong>de</strong> tal<br />
reinvenção é o canto, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo constituiu para Cecília Meireles profissão<br />
<strong>de</strong> fé”. Isso não lhe tira a fina ponta da melancolia, que vem <strong>de</strong> uma contemplação<br />
do “nada” <strong>de</strong>ste mundo, do insatisfatório das coisas <strong>de</strong>ste éon. Ora, este<br />
é um sentimento profundamente cristão, já expresso por S. Paulo: Transit enim<br />
figura hujus mundi. Isto é, passa, e passa muito rápido, a figura <strong>de</strong>ste mundo.<br />
Apegar-se a isso que a cada instante nos escapa e nos engana, não vale a pena.
Permanência <strong>de</strong> Cecília ________________________________________________________ Pe. Paschoal Rangel 141<br />
Saber disso po<strong>de</strong> ser sabedoria. Mas dá uma certa tristeza também. Por outro<br />
lado, sem uma certa melancolia, que não tira a esperança, mas <strong>de</strong>ixa uma dor<br />
serena na raiz da alma, não há nenhuma poesia, que mereça este nome. Por<br />
isso, ela canta. E vai morrer <strong>de</strong> cantar.<br />
6 – A música interior da “canção” (1)<br />
Víamos que a única porta <strong>de</strong> saída para o niilismo, que andou rondando o<br />
universo <strong>de</strong> Cecília Meireles, meio <strong>de</strong>cepcionada com a Igreja Católica e<br />
atraída pelo hinduísmo, era a “reinvenção da vida” e que o instrumento <strong>de</strong> tal<br />
reinvenção, como disse Darcy Damasceno, foi para ela “o canto”, que lhe<br />
constituiu, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo, profissão <strong>de</strong> fé.<br />
A canção, em Cecília, é uma música interior, que a embala e move, e se<br />
mistura com a idéia e a sensação <strong>de</strong> “viagem”: “Vaga Música” parece absorver,<br />
num título <strong>de</strong> livro, canto e mobilida<strong>de</strong>. Esse “vaga” não aponta apenas para o<br />
in<strong>de</strong>finido. Parece incluir – especialmente na poeta – uma <strong>de</strong>liberada alusão a<br />
“vagar”, andar por aí, viajar... E ela vai, mas vai cantando. E, cantando, ajuda o<br />
mundo. Po<strong>de</strong> espantar os homens práticos que alguém se proponha ajudar o<br />
mundo a “sonhar”. Mas o sonho po<strong>de</strong> assumir o papel da “utopia”, no melhor<br />
sentido da palavra. Sonhar, neste sentido, alimenta o coração e a vonta<strong>de</strong> e<br />
po<strong>de</strong> levar à ação. Des<strong>de</strong> que se saiba que o sonho é sonho.<br />
Mas o mundo está dormindo<br />
em travesseiros <strong>de</strong> luar.<br />
A mulher do canto lindo<br />
Ajuda o mundo a sonhar,<br />
Com o canto que a vai matando,<br />
ai!<br />
E morrerá <strong>de</strong> cantar. (“Sereia” in Viagem) (14)<br />
A mulher do canto lindo (um pouco sereia, e seduz; e atrai; um pouco<br />
cigarra, e morre do canto com que ajuda o mundo), canta e não se nega a<br />
ir morrendo à medida que canta para ajudar o mundo a sonhar, isto é, a manter<br />
vivas suas utopias estimulantes. Diante <strong>de</strong> um mundo adverso, que se<br />
escon<strong>de</strong> ao amor, que se escusa e foge, ela acaba fazendo um ato <strong>de</strong> “aceitação”:<br />
se o mundo não a quer, ela “viaja”. Vai “vagar” e cantar, vai “morar”<br />
na canção:
142 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Não me interessam mais nem as estrelas, nem as formas<br />
[do mar,<br />
nem tu.<br />
Desenrolei <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro do tempo a minha canção:<br />
não tenho inveja às cigarras: também vou morrer <strong>de</strong><br />
cantar.<br />
(“Aceitação”, in Viagem, O.c., p. 21.)<br />
A alma <strong>de</strong> Cecília – que é, afinal, a alma da humanida<strong>de</strong> – diante da<br />
recusa, da insensibilida<strong>de</strong>, da indiferença do mundo, não o<strong>de</strong>ia, não se revolta,<br />
não <strong>de</strong>sespera, nem apela para o nada. “Aceita”, encontra no canto outra forma<br />
<strong>de</strong> viver, <strong>de</strong> amar. Mas não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> sentir a dor, “a melancolia <strong>de</strong> saber<br />
inexorável o <strong>de</strong>curso do tempo e precário todo empreendimento humano”.<br />
“Nessa melancolia precisamente – diz Darcy Damasceno – vamos encontrar a<br />
essência da canção ceciliana.” (15)<br />
Aqui me ocorre um pensamento <strong>de</strong> Edgar Allan Poe: para ele, poesia é,<br />
antes <strong>de</strong> tudo, “beleza”. Mas – pergunta ele – em que tom a beleza poética se<br />
manifesta? E respon<strong>de</strong>: “Todas as experiências têm <strong>de</strong>monstrado que esse tom<br />
é o da tristeza. A beleza <strong>de</strong> qualquer espécie, em seu <strong>de</strong>senvolvimento<br />
supremo, invariavelmente, provoca na alma sensitiva as lágrimas. A melancolia<br />
é, assim, o mais legítimo <strong>de</strong> todos os tons poéticos.”(16) Cecília encontrou esse<br />
tom, o mais genuíno dos tons poéticos.<br />
7 – A música interior da “canção” (2)<br />
O “canto” foi, pois, para Cecília, a ponte <strong>de</strong> ligação com a vida e o<br />
<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> viver, que parecia perdido no pessimismo hinduísta, trocado por uma<br />
aspiração niilista ao nirvana. Foi através <strong>de</strong>le que se <strong>de</strong>u, para ela, a reinvenção<br />
da esperança. Sem per<strong>de</strong>r o tom melancólico <strong>de</strong> quem experimentou muito<br />
profundamente o precário e ilusório das coisas <strong>de</strong>ste mundo dos sentidos; um<br />
mundo que a experiência sensorial e as ciências atingem e, <strong>de</strong> algum modo, nos<br />
impingem como a única realida<strong>de</strong>. O canto ceciliano reconquista as sutis<br />
amarras da gente com a vida.<br />
É bom notar, porém, que a música na poesia <strong>de</strong> Cecília Meireles não é<br />
apenas uma questão <strong>de</strong> forma, <strong>de</strong> ritmo mecânico ou matemático. Cecília era
Permanência <strong>de</strong> Cecília ________________________________________________________ Pe. Paschoal Rangel 143<br />
inteiramente “música”. A música tinha muito a ver com sua preferência pelas<br />
“razões do coração” e uma certa nebulosida<strong>de</strong> e vaguidão; por sua necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> “vagar” sem rumo muito <strong>de</strong>finido, livremente: “Andar, andar, que um<br />
poeta/ não necessita <strong>de</strong> casa”, “sem programa,/ sem rumo/ sem nenhum itinerário”.<br />
O poeta caminha assim, “sem lenço e sem documento”, como diria mais<br />
tar<strong>de</strong> Caetano Veloso; não, porém, por anarquismo, mas porque este mundo em<br />
que ela tem <strong>de</strong> viver é um mundo instável e sem <strong>de</strong>finições. Então, em vez <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sesperar atrás <strong>de</strong> traçados que não existem, ela resolveu seguir a geografia<br />
interior da música que toca <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la. Ela po<strong>de</strong> não ter um rumo, mas tem um<br />
ritmo, tem seus radares psicológicos que a salvaguardam das rotas <strong>de</strong> colisão.<br />
No poema “Discurso” (Viagem) ela diz com toda sua experiência<br />
pessoal:<br />
Um poeta é sempre irmão do vento e da água:<br />
Deixa seu ritmo por on<strong>de</strong> passa.<br />
O poeta não é como os outros homens práticos, geométricos, que fazem<br />
mapas <strong>de</strong> estradas e ruas, <strong>de</strong> constelações e galáxias. Ele é irmão do vento, que<br />
“ninguém sabe don<strong>de</strong> vem nem para on<strong>de</strong> vai”, como disse Cristo, e que “sopra<br />
on<strong>de</strong> quer”; mas não quer arbitrariamente; é irmão da água, que faz seu<br />
caminho enquanto escorre nas enxurradas. O vento, a água e o poeta não<br />
<strong>de</strong>ixam rumos, mas <strong>de</strong>ixam ritmos. Em seguida, continua a poeta:<br />
Venho <strong>de</strong> longe e vou para longe:<br />
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho<br />
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes andaram.<br />
Para mostrar mais claramente que o poeta não é um rebel<strong>de</strong> sem causa,<br />
nem busca a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m pela <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, o “poema-discurso” acrescenta:<br />
Também procurei no céu a indicação <strong>de</strong> uma trajetória,<br />
mas houve sempre muitas nuvens.<br />
E suicidaram-se os operários <strong>de</strong> Babel.<br />
O caos, a incomunicação, as “muitas nuvens” estão nas coisas que se<br />
apóiam na razão geométrica, naquilo que Pascal chamava “esprit <strong>de</strong><br />
géométrie”, e opunha ao “esprit <strong>de</strong> finesse”. A confusão entre aqueles que<br />
apostam tudo no “logos”, na “razão” transformada em <strong>de</strong>usa, chegou, em nosso
144 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
mundo, ao clímax: “suicidaram-se os operários <strong>de</strong> Babel”. No momento, a<br />
poeta também estava só, insegura. Mas, apesar <strong>de</strong> tudo, apesar <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>r<br />
esperar muito do que era e do que dizia, ela ia repetindo: “Aqui estou, cantando.”<br />
Se não podia <strong>de</strong>ixar para os outros um caminho, <strong>de</strong>ixaria ao menos um<br />
ritmo. O ritmo <strong>de</strong> quem ama e espera <strong>de</strong> quem ainda acredita na canção, na<br />
beleza, nas coisas suaves, por morada do homem.<br />
Acredito que ela subscreveria a frase <strong>de</strong> Rubem Alves: “Algum dia, o<br />
po<strong>de</strong>r será dado à ternura.” Nesse dia, a música <strong>de</strong> Cecília será ouvida e o<br />
mundo vai ficar mais bonito.<br />
8 – Cecília Meireles e Tagore (1)<br />
Uma leitura <strong>de</strong> Cecília Meireles – Teria vonta<strong>de</strong>, agora, <strong>de</strong> convidá-los<br />
para lermos juntos e juntos comentarmos alguns poemas <strong>de</strong> Cecília. Na impossibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> levar muito adiante, no momento, esse projeto, ou antes, esse<br />
sonho, peço que ouçam, mesmo sem som, esta pequena obra-prima, que extraio<br />
dos “Poemas Escritos na Índia” (17) e que se chama, <strong>de</strong>licadamente, “Cançãozinha<br />
para Tagore”. Uma jóia, como tantíssimas outras <strong>de</strong> sua obra poética.<br />
Àquele lado do tempo<br />
on<strong>de</strong> abre a <strong>rosa</strong> da aurora,<br />
chegaremos <strong>de</strong> mãos dadas,<br />
cantando canções <strong>de</strong> roda<br />
com palavras encantadas.<br />
Para além <strong>de</strong> hoje e <strong>de</strong> outrora,<br />
veremos os Reis ocultos<br />
senhores da Vida toda,<br />
em cuja etérea Cida<strong>de</strong><br />
fomos lágrima e sauda<strong>de</strong><br />
por seus nomes e seus vultos.<br />
Àquele lado do tempo<br />
on<strong>de</strong> abre a <strong>rosa</strong> da aurora,<br />
e on<strong>de</strong> mais que a ventura<br />
a dor é perfeita e pura,<br />
chegaremos <strong>de</strong> mãos dadas.
Permanência <strong>de</strong> Cecília ________________________________________________________ Pe. Paschoal Rangel 145<br />
Chegaremos <strong>de</strong> mãos dadas,<br />
Tagore, ao divino mundo<br />
em que o amor eterno mora<br />
e on<strong>de</strong> a alma é o sonho profundo<br />
da <strong>rosa</strong> <strong>de</strong>ntro da aurora.<br />
Chegaremos <strong>de</strong> mãos dadas<br />
cantando canções <strong>de</strong> roda.<br />
E então nossa vida toda<br />
será das coisas amadas.<br />
Sabemos todos quanto Cecília foi atraída, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito jovem até o fim<br />
da vida, aos 63 anos, pela espiritualida<strong>de</strong> e pelo misticismo, cristão sem dúvida,<br />
mas também hindu e orientalista em geral. Um misticismo certamente poético,<br />
mas também religioso, no sentido próprio do termo. Justificando a influência <strong>de</strong><br />
Tagore no Brasil, na primeira meta<strong>de</strong> do século XX, ela observava que,<br />
“malgrado a diferente formação religiosa do autor” em relação à do povo<br />
brasileiro, “o Deus <strong>de</strong> Tagore é <strong>de</strong> tal modo Deus que se i<strong>de</strong>ntifica com o<br />
sentimento profundo <strong>de</strong> divinda<strong>de</strong>, próprio <strong>de</strong> todos os homens; e, assim,<br />
esquecidos <strong>de</strong> acessórios que por acaso os distraiam, os leitores <strong>de</strong> Tagore<br />
chegam diretamente à essência do pensamento do Poeta, na qual todos se<br />
encontram e da qual todos participam”, como está na “Apresentação” que fez<br />
<strong>de</strong> Çaturanga, <strong>de</strong> Rabindranath Tagore, para a Coleção dos Prêmios Nobel <strong>de</strong><br />
Literatura (Rio <strong>de</strong> Janeiro, Editora Delta, 1962, p. 80). Tagore foi seguramente<br />
o mais amado e admirado dos mestres orientais <strong>de</strong> Cecília Meireles. Dele<br />
traduziu muitos poemas e livros em p<strong>rosa</strong>. Sobre ele escreveu páginas lindas e<br />
comovidas, como “Um retrato <strong>de</strong> Rabindranath Tagore”, publicadas em<br />
Ca<strong>de</strong>rnos Brasileiros (18) Além da proximida<strong>de</strong> interior, eles – ele e ela – se<br />
aproximavam também pelos i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> vida.<br />
Cecília Meireles e Tagore (2)<br />
Radicalmente religioso e místico, além <strong>de</strong> ético por formação, Tagore<br />
cultivava, ao lado disso ou misturado com isso, sentimentos idílicos e sensações<br />
religiosas. O ambiente familiar criara-lhe uma atmosfera onírica, por on<strong>de</strong><br />
pairavam artistas, músicos, dramaturgos, poetas, santos. Lembra Cecília Meireles,<br />
a respeito, que “seu avô fora «o Príncipe»; seu pai ia-se tornando «o<br />
Santo»; não ia ele ser «o Poeta»?” Nesse clima, o menino foi-se fazendo ado-
146 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
lescente, “com nenhuma inclinação para as ativida<strong>de</strong>s práticas e as profissões<br />
proveitosas”. Começou a poetar vigo<strong>rosa</strong>, embora imaturamente. Mais tar<strong>de</strong> se<br />
arrepen<strong>de</strong>ria <strong>de</strong> ter publicado os poemas da mocida<strong>de</strong>. Mas continua a fazer<br />
versos e versos, e mais, a pôr música em suas letras. Pergunta Cecília Meireles:<br />
“Gostaria, talvez, <strong>de</strong> ser menestrel, <strong>de</strong> andar <strong>de</strong> al<strong>de</strong>ia em al<strong>de</strong>ia a cantar suas<br />
composições, acompanhado por instrumentos nativos, com seu grupo <strong>de</strong> músicos<br />
ambulantes?” Seu pai lhe pusera o nome <strong>de</strong> Rabindra (Rabi, na língua <strong>de</strong>les, era<br />
o nome do Sol), <strong>de</strong>sejando mesmo que ele saísse pelo mundo a espalhar a sua<br />
luz. Tendo viajado por muitos países oci<strong>de</strong>ntais, e estudado na Inglaterra, sentia<br />
os apelos do Oci<strong>de</strong>nte; mas era indiano <strong>de</strong>mais para ser um oci<strong>de</strong>ntal.<br />
Nessa altura, “começa a apren<strong>de</strong>r «a ver»”. Até então, seus olhos<br />
estavam voltados para <strong>de</strong>ntro. Agora, ele já enxerga as coisas: a luz do dia, o<br />
olhar das crianças, a cor <strong>de</strong> uma tar<strong>de</strong>. A terra está repleta <strong>de</strong> belezas. E não só<br />
<strong>de</strong> colorido e forma, proporção e dissimetrias, mas <strong>de</strong> “acontecimentos”<br />
impon<strong>de</strong>ráveis: “um grão <strong>de</strong> orvalho carrega todo o sol, e uma criancinha po<strong>de</strong><br />
dar lições ao mais sábio dos ascetas”.<br />
É nesse momento que ele <strong>de</strong>scobre a mulher e o amor. Cecília chama a<br />
atenção sobre o assombro que a mulher lhe causa, no seio <strong>de</strong> uma Índia que<br />
cerca <strong>de</strong> adoração esse ser singular: “Ó mulher, não és apenas a obra-prima <strong>de</strong><br />
Deus” – escreve Tagore – “mas também a dos homens. Estes te enfeitam com a<br />
beleza do seu coração. / Os poetas tecem os teus véus com os fios <strong>de</strong> ouro <strong>de</strong><br />
sua fantasia: os pintores imortalizam as formas <strong>de</strong> teu corpo. / Dá suas pérolas<br />
o mar, as minas dão seu ouro, dão suas flores os jardins estivais – para que<br />
sejas mais linda e mais preciosa. / O <strong>de</strong>sejo do homem coroa <strong>de</strong> glória a tua<br />
mocida<strong>de</strong>. / És meta<strong>de</strong> mulher, meta<strong>de</strong> sonho.” (19)<br />
Por mais encantado que ele estivesse com a mulher e o amor humano,<br />
seu amor místico era maior e irreprimível. E ele acaba exclamando um dia:<br />
“Minha amada, noite e dia o meu coração ar<strong>de</strong> por te encontrar, como<br />
se encontra a morte <strong>de</strong>voradora. / Quem me <strong>de</strong>ra ser varrido por ti como por<br />
uma tempesta<strong>de</strong>! / Toma tudo quanto tenho; <strong>de</strong>strói meu sono e arrebata os<br />
meus sonhos. Tira-me a vida! / Por essa <strong>de</strong>vastação, por essa provação total<br />
da minha alma, formemos um único ser <strong>de</strong> beleza! “<br />
Aí, porém, ele se interrompe e exclama:<br />
“Ah! Como é vão o meu <strong>de</strong>sejo! On<strong>de</strong> a esperança da comunhão<br />
completa senão em ti, meu Deus!”
Permanência <strong>de</strong> Cecília ________________________________________________________ Pe. Paschoal Rangel 147<br />
Fascinado por esse Ser misterioso, “ele aceita seu ofício <strong>de</strong> poeta aos pés<br />
<strong>de</strong> Deus e a serviço dos homens” – escreve Cecília Meireles. E canta:<br />
Vida <strong>de</strong> minha vida, tratarei <strong>de</strong> trazer sempre puro o meu corpo,<br />
sabendo que o teu tato pousa sobre todos os meus membros. / Tratarei <strong>de</strong><br />
trazer sempre longe <strong>de</strong> meus pensamentos qualquer falsida<strong>de</strong>, sabendo que és<br />
tu essa verda<strong>de</strong> que acen<strong>de</strong> a luz da razão no meu espírito.”<br />
Talvez tenha pesado (“meu peso é leve”, disse um dia Jesus) sobre ele o<br />
exemplo <strong>de</strong> ascetismo e <strong>de</strong> mística <strong>de</strong> seu pai, “o Santo”. Ele pedia<br />
instantemente: “Fere, fere no meu coração a raiz da miséria” E “ele, o poeta,<br />
que canta, percebe estar cantando as canções do seu Senhor” (Cecília<br />
Meireles.) Mas Tagore não é um <strong>de</strong>sprezador do mundo, da natureza, que é<br />
obra do Criador. Ele é “um amoroso da vida, um amoroso <strong>de</strong> Deus”. Por isso,<br />
alegria ou tristeza não o atingem no que ele tem <strong>de</strong> mais profundo. Ele talvez<br />
dissesse como Cecília: “Não sou alegre nem sou triste, / sou poeta.”<br />
Acho que esses poucos dados poético-biográficos <strong>de</strong> Rabindranath<br />
Tagore, sorvidos em textos <strong>de</strong> Cecília Meireles, nos ajudarão a ler a “Cançãozinha<br />
para Tagore” que transcrevemos há pouco.<br />
Cecília Meireles e Tagore (3)<br />
Pensando no que Cecília Meireles nos disse <strong>de</strong> Rabindranath Tagore;<br />
pensando sobretudo no jeito com que ela fala <strong>de</strong>le, tal como acabamos <strong>de</strong> ver,<br />
enten<strong>de</strong>remos melhor a “Cançãozinha para Tagore”, que se encontra nos<br />
Poemas Escritos na Índia. (20)<br />
Tagore foi uma das gran<strong>de</strong>s paixões “místico-poéticas” na vida <strong>de</strong><br />
Cecília. Por tudo isso, quando um dia se encontrassem “àquele lado do tempo /<br />
on<strong>de</strong> abre a <strong>rosa</strong> da aurora”, chegariam <strong>de</strong> mãos dadas. Com a pureza das<br />
crianças, “cantando canções <strong>de</strong> roda”, e com a magia dos poetas, “com palavras<br />
encantadas”. Lá estarão do outro lado do tempo, “on<strong>de</strong> abre a <strong>rosa</strong> da aurora”,<br />
tempo e lugar das manhãs, um tempo sem tempo e um lugar mágico, <strong>de</strong> manhãs<br />
inespaciais, “para além <strong>de</strong> hoje e <strong>de</strong> outrora”, on<strong>de</strong> encontrarão os Reis ocultos<br />
(o encanto <strong>de</strong> “um céu e uma terra novos”), pelos quais os dois, um dia, foram<br />
(note-se no poema o verbo “fomos”) lágrimas e sauda<strong>de</strong>s.<br />
E o 1º e 2º versos da primeira estrofe se repetem – observe-se a anáfora,<br />
que retornará na 3ª e na 4ª estrofes, com o verso “chegaremos <strong>de</strong> mãos dadas”...<br />
A múltipla repetição, o entrelaçamento dos versos em estrofes diferentes vão
148 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
tecendo (tecendo mesmo) o tapete do poema, tapete que se completa com o<br />
gesto “<strong>de</strong> mãos dadas”.<br />
O poema termina com um pensamento belíssimo e cheio <strong>de</strong> paz:<br />
Chegaremos <strong>de</strong> mãos dadas<br />
cantando canções <strong>de</strong> roda.<br />
E então nossa vida toda<br />
será <strong>de</strong> coisas amadas<br />
A esperança é <strong>de</strong> chegar ao “divino mundo”, em que “o amor eterno<br />
mora”; <strong>de</strong> escapar à penúria do tempo <strong>de</strong> agora. Aí a alma é um ser encantado,<br />
sonho <strong>de</strong> <strong>rosa</strong> <strong>de</strong>ntro da aurora.<br />
Po<strong>de</strong>r sonhar assim por alguns momentos nos refaz <strong>de</strong> todas as feridas. E<br />
isso é um mimo da Poesia. Dessa “Poesia”, que Cecília, como Tagore, e alguns<br />
outros abençoados encantados encantadores viveram e nos po<strong>de</strong>m ajudar a<br />
viver.<br />
A “magia”, a “vaga música”, a “viagem” <strong>de</strong> Cecília Meireles têm um<br />
po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> “ressurreição” para aqueles que entram no seu clima. Mais<br />
profundamente do que isso, atingindo um nível que vai muito além do puro<br />
psiquismo, a Poesia po<strong>de</strong> abrir caminho para experiências autenticamente<br />
espirituais, como aconteceu com Tagore e espero tenha acontecido também<br />
com Cecília, quando ela se ren<strong>de</strong> ao encantamento do poeta, traçando-lhe o<br />
retrato:<br />
“O que eu vi é insuperável – seja esta, quando eu partir daqui, a minha<br />
palavra <strong>de</strong> a<strong>de</strong>us.”<br />
E que foi que ele viu? Mais que ver, ele fez a experiência do<br />
sobrenatural: “Eu provei o mel secreto <strong>de</strong>sse lótus que viceja no oceano da luz<br />
e, por isso, fui abençoado. Seja esta minha palavra <strong>de</strong> a<strong>de</strong>us.” E acrescenta: “O<br />
meu corpo e os meus membros todos vibraram ao contato daquele que está<br />
acima do tato. Se o meu fim tiver <strong>de</strong> vir aqui, que venha! – Seja esta minha<br />
palavra <strong>de</strong> a<strong>de</strong>us.” (21)<br />
Como se fosse um excurso.<br />
Temos chamado, várias vezes, Cecília Meireles <strong>de</strong> poeta. Alguns leitores<br />
já me perguntaram por que isso, uma vez que existe a palavra poetisa, que é o
Permanência <strong>de</strong> Cecília ________________________________________________________ Pe. Paschoal Rangel 149<br />
feminino <strong>de</strong> poeta. Interessante – e vocês <strong>de</strong>vem ter notado o fato – no poema<br />
“Motivo”, logo no início <strong>de</strong> Viagem, Cecília diz:<br />
Eu canto porque o instante existe,<br />
e a minha vida está completa.<br />
Não sou alegre nem sou triste:<br />
sou poeta.<br />
Ela se chama poeta e não foi por necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> rimar, evi<strong>de</strong>ntemente.<br />
Mas poetisa”, já dizia Tristão <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong>, é “... para mim das palavras mais<br />
antipáticas que conheço.” (22) E o notável crítico literário acaba fazendo uma<br />
gracinha (ele não é muito disso): “Poetisa... Ou será que a gramática, tal como<br />
as leis, seja obra <strong>de</strong> homens (penso que não há mulheres gramáticas, ao menos<br />
entre nós... (até os anos 30, acrescentamos nós) e o termo “poeta”, como a<br />
terminação indica, já seja um termo feminino? E nesse caso o masculino é que<br />
seria pouco atraente...” (23) Na época, poucos – exceção feita dos mo<strong>de</strong>rnistas<br />
revolucionários – ousariam ir <strong>de</strong>liberadamente contra a gramática. A gran<strong>de</strong>za<br />
<strong>de</strong> Cecília, contudo, foi tamanha que, um dia, nas vésperas <strong>de</strong> sua morte, o<br />
famoso crítico, ensaísta e historiador da literatura mundial Otto Maria<br />
Carpeaux, querendo homenagear Cecília Meireles em seu sexagésimo terceiro<br />
aniversário, que ocorreu em 7 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1964 (e ela morreria dois dias<br />
<strong>de</strong>pois), escreveu um artigo para a revista Leitura, <strong>de</strong> outubro/novembro <strong>de</strong><br />
1964, intitulado “Cecília Meireles, Poeta”. E resolveu discutir a questão do<br />
vocábulo “poeta” ou “poetisa”. Para as mulheres, dizia ele, “inventaram a<br />
palavra ‘poetisa’. É preciso acabar com esse absurdo (sic!). (24) Poesia é feita<br />
por poetas e por mais ninguém. Quem não sabe fazê-la, não merece o nome <strong>de</strong><br />
poeta, mesmo que tenha escrito cem volumes <strong>de</strong> versos; é – isto sim –<br />
poetastro, e são legião. Os poetas são raros, sem diferença <strong>de</strong> sexo. Cecília<br />
Meireles não é poetisa. É poeta, como Teresa <strong>de</strong> Ávila e Emily Dickinson<br />
foram poetas. Assim pensamos no gran<strong>de</strong> poeta Cecília Meireles no<br />
aniversários <strong>de</strong> seu nascimento.” (25) Talvez alguém não concor<strong>de</strong> com<br />
Carpeaux ou Tristão <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong>. E ninguém está obrigado a isso. É uma<br />
questão <strong>de</strong> gosto e preferência.<br />
Se ultrapassarmos, porém, essa questão vocabular e semântica, teremos<br />
<strong>de</strong> dar razão a Otto Maria Carpeaux em outro ponto: “O que seria necessário<br />
fazer (...) é uma exegese estilística <strong>de</strong> uma centena das mais belas poesias <strong>de</strong><br />
Cecília Meireles, talvez muito mais do que uma centena, pois não conheço<br />
outro poeta brasileiro – nem sequer entre os maiores – cuja inspiração lírica se
150 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
tenha mantido, invariavelmente e sem <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, sempre na mesma altura.<br />
E talvez nenhuma outra poesia brasileira se preste tanto a ser lida com<br />
instrumentos da explication <strong>de</strong>s textes...” (26)<br />
Uma “viagem” a Cecília, uma tentativa <strong>de</strong> compreensão <strong>de</strong> sua obra e <strong>de</strong><br />
sua contribuição à literatura e “à humanização da humanida<strong>de</strong>” – eis uma<br />
proposta que seu centenário <strong>de</strong> nascimento reaviva entre nós. Sua obra em<br />
p<strong>rosa</strong> está sendo editada pela Nova Fronteira. A mesma Nova Fronteira editou,<br />
em fins do ano passado, sua POESIA COMPLETA, em dois volumes,<br />
organizada, apresentada e com estabelecimento <strong>de</strong> texto <strong>de</strong> Antônio Carlos<br />
Secchin. Secchin organizou os poemas em or<strong>de</strong>m cronológica <strong>de</strong> publicação,<br />
teve a boa idéia <strong>de</strong> fazer um “Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> imagens”, com fotos <strong>de</strong> Cecília,<br />
familiares e amigos, apesar <strong>de</strong> Cecília Meireles não ser muito atraída por<br />
fotografias. Viajava muito e fotografava pouco; preferia escrever sobre os<br />
lugares a reproduzi-los com uma objetiva. Mas as fotos que Secchin reuniu são<br />
muito informativas, além <strong>de</strong> mostrar a figura física excepcionalmente bonita da<br />
poeta. O primeiro volume traz ainda uma boa introdução à poesia <strong>de</strong> Cecília<br />
Meireles, feita por Miguel Sanches Neto; uma excelente Bibliografia da autora,<br />
acrescida <strong>de</strong> uma “Bibliografia crítica e comentada <strong>de</strong> Cecília Meireles”, que<br />
seria melhor chamar <strong>de</strong> Bibliografia crítica e comentada sobre Cecília Meireles.<br />
O trabalho é caprichado.<br />
Graficamente, porém, <strong>de</strong>ixa a <strong>de</strong>sejar: os textos transcritos em cor azulada<br />
ficam, em certos lugares, quase ilegíveis. A formatação do Sumário<br />
dificulta a procura dos poemas. São pequenos <strong>de</strong>feitos, mas lamentáveis numa<br />
obra <strong>de</strong>sse quilate, realizada por uma gran<strong>de</strong> editora, que não tem o direito <strong>de</strong><br />
errar em coisas tão palmares. O texto em cor preta, <strong>de</strong> qualquer maneira, está<br />
razoavelmente bem impresso. Não tenho encontrado erros <strong>de</strong> revisão (isto é<br />
fundamental) e, tirante os títulos dos poemas, a leitura é fácil.<br />
NOTAS:<br />
1. CARPEAUX, Otto Maria. “Cecília Meireles, Poeta”, in Leitura (revista),<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro, out/nov <strong>de</strong> 1964, p. 11.<br />
2. Cf. RICARDO, Cassiano. Viagem no Tempo e no Espaço – Memórias, Rio<br />
<strong>de</strong> Janeiro, José Olímpio, 1970, p. 117 e seguintes.<br />
3. RICARDO, Cassiano. Viagem no Tempo e no Espaço – Memórias, Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, José Olympio, 1970, p. 273-277.<br />
4. Ver RICARDO, Cassiano. O.c., p. 276.
Permanência <strong>de</strong> Cecília ________________________________________________________ Pe. Paschoal Rangel 151<br />
5. In Cecília Meireles – Seleta em P<strong>rosa</strong> e Verso, Rio <strong>de</strong> Janeiro, José<br />
Olympio, 2ª ed., 1975, na “orelha” do livro.<br />
6. MEIRELES, Cecília. Poesias Completas - Vol. I: Viagem – Vaga Música,<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro, Civilização Brasileira, 2ª ed., 1976, p. 5. – Cf. MEIRELES,<br />
Cecília. Poesia ompleta – Vol. I, Edição do Centenário, Organização <strong>de</strong><br />
Antônio Carlos Secchin, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2001, p.<br />
227.<br />
7. DAMASCENO, Darcy. “Poesia e P<strong>rosa</strong> <strong>de</strong> Cecília Meireles”, in Cecília<br />
Meireles – Seleta em P<strong>rosa</strong> e Verso, Rio, José Olympio, 2ª ed., 1975, p. 193.<br />
8. Cf. orelha <strong>de</strong> Cecília Meireles – Seleta em P<strong>rosa</strong> e Verso, O. c.: “Falo <strong>de</strong><br />
encantamento no sentido original da palavra, <strong>de</strong> que há muitos exemplos<br />
nos livros <strong>de</strong> cavalaria e poetas.” Por ex., quando Orfeu “encantava” com<br />
música e som os animais, e os “paralisava” com sua suavida<strong>de</strong> e seu<br />
“canto”.<br />
9. ATHAYDE, Tristão <strong>de</strong>. Estudos – 2ª série, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Civilização<br />
Brasileira, 1934, p. 34.<br />
10. “Sereia” in Viagem, Poesias Completas <strong>de</strong> Cecília Meireles, Vol. 1:<br />
Viagem – Vaga Música, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Civilização Brasileira, 1976, p.<br />
62.<br />
11. LAMEGO, Valéria. A Farpa na Lira – Cecília Meireles na Revolução <strong>de</strong><br />
30, Rio/S.Paulo, Record, 1996, p. 65. Veja-se todo o capítulo 5, 6 e 7.<br />
12. DAMASCENO, Darcy. Cecília Meireles: o Mundo Contemplado, Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, Orfeu, 1967, p. 126.<br />
13. FRANCA, Leonel. Noções <strong>de</strong> História da Filosofia, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Agir,<br />
1964, p. 21.<br />
14. Cf. Poesias Completas <strong>de</strong> Cecília Meireles. Vol. I: Viagem – Vaga Música,<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro, Civilização Brasileira, 1976, 2ª edição, p. 62.<br />
15. DAMASCENO, Darcy. Cecília Meireles: o mundo contemplado, Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, Orfeu, 1967, p. 127.<br />
16. POE, Edgar Allan. Obras Completas – Poesia e P<strong>rosa</strong>, “O Corvo” –<br />
Filosofia da Composição, p. 80-81.<br />
17. In: MEIRELES, Cecília. Poesias Completas – Vol. III, Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />
Civilização Brasileira, 1976.<br />
18. Ca<strong>de</strong>rnos Brasileiros – Revista Trimesral, Ano III, n.º 2, abril/junho, 1961,<br />
p. 39-46.<br />
19. Ver Cecília MEIRELES. “Um Retrato <strong>de</strong> Radindranath Tagore”, in<br />
Ca<strong>de</strong>rnos Brasileiros – Revista Trimestral, Ano III, n.º 2, abril/junho,<br />
1961, p. 40 e 41. O grifo no texto é nosso.
152 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
20. O leitor encontrará esse livro em Cecília Meireles. Poesias Completas, Vol.<br />
III, Rio, Civilização Brasileira, 1973-1976, 2ª edição, pp. 33-94. Ou em<br />
Cecília Meireles. Poesia Completa, Volume II, Rio, Nova Fronteira,<br />
Edição do Centenário, 2001, pp. 971-1042. A primeira edição <strong>de</strong> “Poemas<br />
Escritos na Índia” é <strong>de</strong> 1953, onze anos antes <strong>de</strong> sua morte, e foi feita pela<br />
Livraria São José, Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
21. MEIRELES, Cecília. “Um Retrato <strong>de</strong> Rabindranath Tagore”, in Ca<strong>de</strong>rnos<br />
Brasileiros, O.c., p. 45.<br />
22. ATHAYDE, Tristão <strong>de</strong>. (Dr. Alceu Amoroso Lima). Estudos, 5ª Série, Rio<br />
<strong>de</strong> Janeiro, Civilização Brasileira, 1933, p. 149.<br />
23. IDEM, ib., p. 151.<br />
24. Parece-me que chamar “absurda” essa palavra é um <strong>de</strong>stempero. Po<strong>de</strong> ser<br />
feio o vocábulo, po<strong>de</strong> ser antipático, mas “absurdo” é um exagero.<br />
25. Revista “Leitura”, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Boa Leitura Editora, Ano XXIII, out/<br />
nov 1964, p.11.<br />
26. IDEM, ib., p. 11.
MINAS LIBERTÁRIA<br />
Patrus Ananias*<br />
Em evento recente, uma pessoa amiga me disse, em tom <strong>de</strong> lamento, que<br />
o último oposicionista em Minas havia morrido enforcado, numa referência a<br />
Tira<strong>de</strong>ntes, herói da nossa história. Discordo. A afirmação não proce<strong>de</strong> porque<br />
a política mineira não termina na repressão do movimento dos inconfi<strong>de</strong>ntes;<br />
além da permanência e do legado <strong>de</strong> Tira<strong>de</strong>ntes, quem viveu foi ele e não aqueles<br />
que o mataram. A história <strong>de</strong> Minas foi sempre uma história comprometida<br />
com os valores da liberda<strong>de</strong> e da justiça.<br />
Tivemos no Império uma figura notável, Bernardo Pereira <strong>de</strong> Vasconcelos<br />
que, segundo Raimundo Faoro, José Murilo <strong>de</strong> Carvalho e outros gran<strong>de</strong>s<br />
historiadores brasileiros, foi o fundador do parlamento no Brasil. Quando D.<br />
Pedro I <strong>de</strong>u posse, em 1826, aos <strong>de</strong>putados eleitos em 1824, tinha a convicção<br />
<strong>de</strong> que seria um parlamento sob o seu controle, como foi a própria constituinte<br />
dissolvida por ele mesmo em 1823. O po<strong>de</strong>r legislativo no Brasil se afirmou<br />
graças à ação extraordinária <strong>de</strong> Bernardo Pereira <strong>de</strong> Vasconcelos, que não só<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u os valores do parlamento, em estado embrionário no Brasil, mas<br />
<strong>de</strong>senvolveu procedimentos, <strong>de</strong>monstrando vasto conhecimento <strong>de</strong> Direito<br />
Constitucional, e confrontou os posicionamentos arbitrários e autoritários <strong>de</strong> D.<br />
Pedro I. Atitu<strong>de</strong>s assim que levaram ao famoso 7 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1831, quando o<br />
imperador foi forçado a abdicar porque já havia um profundo distanciamento<br />
com a nação brasileira. Como lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong>sse processo estava Bernardo Pereira <strong>de</strong><br />
Vasconcelos. Foi ele que um dia, recebendo o imperador, lançou o princípio:<br />
“Viva o imperador enquanto constitucional”.<br />
Em 1842, outra resistência parte <strong>de</strong> Minas contra excessos autoritários e<br />
centralizadores do Império: é a Revolução Liberal <strong>Mineira</strong>, li<strong>de</strong>rada por outra<br />
figura inestimável, como político e empreen<strong>de</strong>dor, que foi Teófilo Otoni.<br />
* Acadêmico, Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 39 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />
<strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.
154 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Na República Velha, <strong>de</strong>ntre outras figuras <strong>de</strong> resistência, <strong>de</strong>staca-se o<br />
trabalho <strong>de</strong> um verda<strong>de</strong>iro estadista do período, João Pinheiro, que morreu<br />
prematuramente como presi<strong>de</strong>nte do Estado <strong>de</strong> Minas – na época falava-se<br />
presi<strong>de</strong>nte e não governador. Homem <strong>de</strong> idéias largas e gene<strong>rosa</strong>s, vinha<br />
processando gran<strong>de</strong>s mudanças econômicas e sociais no Estado.<br />
Depois, tivemos Minas mais uma vez confrontando o po<strong>de</strong>r e participando<br />
ativamente da Revolução <strong>de</strong> 1930, esse marco histórico importante na<br />
história do Brasil. Logo em seguida, na época do Estado Novo, mais uma vez<br />
os mineiros voltaram a firmar o seu compromisso com a liberda<strong>de</strong> por meio do<br />
Manifesto dos Mineiros. Alguns intelectutais, como Edgar da Matta Machado,<br />
afrontavam a ditadura ao mesmo tempo em que <strong>de</strong>fendiam a preservação e<br />
ampliação dos direitos trabalhistas e sociais consolidados no período do Estado<br />
Novo.<br />
Mais à frente, no período da <strong>de</strong>mocracia, Minas Gerais teve uma fase <strong>de</strong><br />
disputa <strong>de</strong>mocrática muito instigante, com duas gran<strong>de</strong>s li<strong>de</strong>ranças, que se<br />
respeitavam, mas se enfrentavam politicamente <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>mocrática: Juscelino<br />
Kubitschek e Milton Campos. Vários outros momentos reeditaram interessantes<br />
disputas, com em 1960, com Magalhães Pinto versus Tancredo Neves.<br />
Em Minas há uma tradição muito boa <strong>de</strong> prevalecer o respeito. As<br />
pessoas não brigam, mas as idéias disputam, os projetos são colocados com<br />
clareza. É o exercício <strong>de</strong> um valioso valor <strong>de</strong>mocrático: o conflito, tão importante<br />
para o <strong>de</strong>senvolvimento das instituições, para o <strong>de</strong>senvolvimento social e<br />
econômico. Certamente, para cumprir esse propósito, é necessários que ele seja<br />
processado pacificamente pelas vias legais, institucionais e <strong>de</strong>ntro dos canais<br />
éticos e <strong>de</strong>mocráticos. Mas é importante lembrar sempre que vivemos em uma<br />
socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> diferentes e diferenças, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais e regionais, e é<br />
fundamental que essas diferenças sejam colocadas por meio <strong>de</strong> projetos que<br />
expressem propostas, interesses e concepções para que a socieda<strong>de</strong> possa fazer<br />
a sua escolha.<br />
Faz parte do princípio republicano o compromisso com o bem comum,<br />
que tem sido uma marca das políticas públicas, especialmente das políticas<br />
sociais do governo do Presi<strong>de</strong>nte Lula e, especificamente do Ministério do<br />
Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Trabalhamos com governos estaduais,<br />
municipais <strong>de</strong> todos os partidos, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> critérios estabelecidos pela<br />
Constituição e pelas leis, <strong>de</strong>ntro dos princípios do Pacto Fe<strong>de</strong>rativo. Não<br />
discriminamos ninguém e da mesma forma buscamos, também, com critérios<br />
objetivos, parcerias com as organizações não governamentais, empresários,<br />
igrejas e universida<strong>de</strong>s comprometidos com o interesse coletivo. No entanto,
Minas Libertária __________________________________________________________________ Patrus Ananias 155<br />
para que a <strong>de</strong>mocracia se mantenha, é essencial o fortalecimento dos partidos<br />
políticos, dos movimentos sociais, e que esses canais possam explicitar projetos<br />
e concepções. Caso contrário, corremos o risco <strong>de</strong> cair em uma nova espécie <strong>de</strong><br />
ditadura ou <strong>de</strong> constrangimento que é a ditadura do pensamento único, um<br />
pensamento que se preten<strong>de</strong> hegemônico e dono da verda<strong>de</strong>. Como sabemos<br />
que ninguém é dono da verda<strong>de</strong>, alcançamos patamares superiores <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>s<br />
possíveis exatamente no embate <strong>de</strong>mocrático das idéias, dos projetos,<br />
que se traduzem também em experiências concretas no exercício do po<strong>de</strong>r<br />
político.<br />
Fiel a esse tradicional traço mineiro, segue extensa a lista dos <strong>de</strong>stacados<br />
<strong>de</strong>fensores da liberda<strong>de</strong>. Lembro-me ainda que tivemos em Minas, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
64, o testemunho exemplar do já mencionado professor Edgar da Mata<br />
Machado. No dia do golpe, 31 <strong>de</strong> março/1º <strong>de</strong> abril, ele renuncia à Secretaria do<br />
Trabalho e Cultura Popular, dizendo ao então governador Magalhães Pinto que<br />
estava no governo representando os trabalhadores, os estudantes e, como os<br />
trabalhadores e estudantes começaram a ser perseguidos nas suas li<strong>de</strong>ranças<br />
maiores, outro caminho não lhe restava senão acompanhá-los. Disse: “Eu fico<br />
com meu filho, José Carlos da Mata Machado”, que <strong>de</strong>pois foi sacrificado pela<br />
ditadura, morreu sob tortura e sua memória fica em homenagem aos muitos<br />
brasileiros que resistiram à ditadura pela via revolucionária. Também outros<br />
mineiros ilustres com forte experiência política, como Tancredo Neves, optaram<br />
pelo caminho da oposição e resistência <strong>de</strong>mocrática.<br />
Minas produziu uma figura extraordinária como Dazinho, lí<strong>de</strong>r sindical<br />
dos mineiros <strong>de</strong> Nova Lima. Quando eleito <strong>de</strong>putado estadual pelos trabalhadores,<br />
optou por exercer o mandato com o salário que ganhava na mina,<br />
mantendo sua condição <strong>de</strong> operário e homem pobre. Foi preso, junto com<br />
outros dois <strong>de</strong>putados operários – Clodsmith Riani e Sinval Bambirra – e,<br />
<strong>de</strong>pois que saiu da ca<strong>de</strong>ia, continuou militando sempre com uma fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong><br />
rigo<strong>rosa</strong> ao seu compromisso com os pobres, com os trabalhadores, com a<br />
justiça social, militando no Partido dos Trabalhadores, em movimentos sociais<br />
e também ligados à Igreja.<br />
Na retomada do movimento sindical nos anos 1970, Minas <strong>de</strong>u várias<br />
contribuições. Com os jornalistas, temos Dídimo Paiva; entre os metalúrgicos a<br />
atuação <strong>de</strong> João Paulo Pires <strong>de</strong> Vasconcelos a partir <strong>de</strong> João Monleva<strong>de</strong>; entre<br />
os professores o hoje ministro Luiz Dulci, junto com tantas outras jovens<br />
li<strong>de</strong>ranças do movimento.<br />
Não há dúvidas <strong>de</strong> que uma coisa importante é a dimensão mineira da<br />
escuta, do diálogo, da p<strong>rosa</strong> universal, da dimensão da tolerância, firmada em
156 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
princípios e convicções. Valorizamos o caráter mineiro da conciliação. Mas<br />
queremos uma conciliação que não abafe o clamor dos pobres. Se “o primeiro<br />
compromisso <strong>de</strong> Minas é com a liberda<strong>de</strong>”, está implícito o direito aos <strong>de</strong>bates<br />
e disputas <strong>de</strong>mocráticas.
Minas Libertária __________________________________________________________________ Patrus Ananias 157<br />
Perfil sentimental<br />
PEDRO PAULO MOREIRA,<br />
UM MERCADOR DA CULTURA<br />
Um tributo <strong>de</strong> seus sobrinhos<br />
José Maria* e Pedro Rogério Couto Moreira**<br />
Pedro Paulo Moreira ingressou no comércio <strong>de</strong> livros<br />
quando o mundo encantava-se pela velocida<strong>de</strong>. Era a geração<br />
James Dean. Para caracterizá-la, Pedro Paulo tinha a sua motocicleta<br />
e ostentava seu blusão <strong>de</strong> couro. Com a moto, completava<br />
seu figurino elegante e sua graça no charmoso Cassino da<br />
Pampulha, com alegres acompanhantes, ou comparecia a finais<br />
<strong>de</strong> boxe no popular Estádio do Paissandu. Era o herói dos sobrinhos – os filhos<br />
<strong>de</strong> seu irmão mais velho – Vivaldi. Mas aquela geração também <strong>de</strong>scobriu na<br />
velocida<strong>de</strong> uma ferramenta <strong>de</strong> trabalho – sobretudo para os self-ma<strong>de</strong>-men,<br />
como era o caso <strong>de</strong> Pedro Paulo. Tudo havia <strong>de</strong> ser rápido, tal como o motor <strong>de</strong><br />
sua possante máquina. Ela veio a ser ferramenta <strong>de</strong> trabalho naquela Belo<br />
Horizonte barroca – nem tanto pela arquitetura da cida<strong>de</strong> – mas pelos modos<br />
gentis e donairosos que a socieda<strong>de</strong> praticava. Pedro Paulo, ali no início da<br />
década <strong>de</strong> 50, iniciava a sua gloriosa carreira <strong>de</strong> livreiro, com a moto e uma<br />
sala alugada nas alturas do edifício IAPI. Numa época em que o Brasil ainda<br />
não atingira o patamar <strong>de</strong> 50 milhões <strong>de</strong> habitantes e lia muito mais do que hoje<br />
com 200 milhões, Pedro Paulo representava coleções famosas, como as<br />
editadas pelo bom Samuel Koogan, cuja lembrança nos <strong>de</strong>ixou junto às <strong>de</strong> dono<br />
<strong>de</strong> um Jaguar veloz e impru<strong>de</strong>nte. Para impulsionar os negócios, atraiu o irmão<br />
Edison, já poeta e aluno <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> Clássicas da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia.<br />
* Procurador do Estado <strong>de</strong> Minas Gerais,<br />
** Jornalista, ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 38 da AML.
158 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Nesta etapa, Pedro Paulo conheceu Leni Andra<strong>de</strong>, jovem <strong>de</strong>tentora <strong>de</strong><br />
todas as virtu<strong>de</strong>s que sua fina educação lhe realçou. Filha do respeitável<br />
coronel Paulo René <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, do mesmo berço diamantinense <strong>de</strong> Juscelino<br />
Kubistchek, <strong>de</strong> quem foi contemporâneo na Polícia Militar e que o fez comandante-geral<br />
do Corpo <strong>de</strong> Bombeiros <strong>de</strong> Minas Gerais em seu glorioso<br />
quatriênio no Palácio da Liberda<strong>de</strong>. Leni, tão logo casou-se, passou a ajudar o<br />
marido na empresa.<br />
Já então Pedro Paulo havia passado por todo um aprendizado, discípulo<br />
fiel que foi <strong>de</strong> Roberto Canavarro Costa, proprietário da Livraria Cultura<br />
Brasileira, homem <strong>de</strong> pouca cobiça e <strong>de</strong> muito espírito cívico, algumas vezes<br />
recolhido pela amável chefia <strong>de</strong> polícia pelos seus <strong>de</strong>stemperos em favor do<br />
i<strong>de</strong>ário comunista.<br />
Em 1955, Pedro Paulo <strong>de</strong>u mais um passo importante em sua ascensão<br />
como livreiro. Até então representante comercial, atilou que era a hora <strong>de</strong> abrir<br />
uma loja <strong>de</strong> livros que correspon<strong>de</strong>sse ao seu tirocínio <strong>de</strong> comerciante. Nossa<br />
cida<strong>de</strong> sempre teve inúmeras e boas livrarias. E conheceria mais uma: a Livraria<br />
Itatiaia. Pedro Paulo se transferiu da acanhada sala do edifício IAPI para a<br />
mesma Avenida Amazonas, mas agora na “chic” e recém instalada galeria do<br />
Edifício Dantés.<br />
Rapidamente cresceu o seu negócio. Decidiu entrar no ramo editorial. E<br />
passou a ser livreiro e editor. A Editora Itatiaia consagrou-se como a mais<br />
atuante <strong>de</strong> Minas e já então marcando presença no cenário nacional. Naquela<br />
Belo Horizonte charmosa dos anos 50, a loja do edifício Dantés promoveu<br />
centenas <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>s (etílicas) <strong>de</strong> autógrafos <strong>de</strong> autores mineiros, on<strong>de</strong> os amigos<br />
do livro confraternizavam comedidamente.<br />
O sucesso crescente obrigou-o a uma nova mudança <strong>de</strong> en<strong>de</strong>reço, <strong>de</strong>sta<br />
vez para a mundana, boêmia e trepidante Rua da Bahia, o centro do universo<br />
para gran<strong>de</strong> parte da população belorizontina naquele 1960. A moda, já dizia o<br />
poeta Rômulo Paes em famosa marchinha <strong>de</strong> carnaval, era <strong>de</strong>scer Bahia e subir<br />
Floresta.<br />
Pedro Paulo, correspon<strong>de</strong>ndo ao crescente mercado livreiro, adquiriu o<br />
Bar Estrela, o segundo com este nome (o primeiro está retratado por Carlos<br />
Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>), na Rua da Bahia 916. Depois <strong>de</strong> esgotado o estoque<br />
<strong>de</strong> comes e bebes, pôs abaixo a construção antiga e ergueu ali a nova Itatiaia,<br />
reaproveitando o ma<strong>de</strong>irame da <strong>de</strong>molição que revelava o autêntico e<br />
magnífico pinho <strong>de</strong> Riga, com que revestiu a nova se<strong>de</strong>. Era uma ampla loja,<br />
uma das maiores livrarias do país, capaz <strong>de</strong> rivalizar com as gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Buenos<br />
Aires, <strong>de</strong> Lisboa e <strong>de</strong> Paris. Logo a loja se transformou num dos “points”
Minas Libertária __________________________________________________________________ Patrus Ananias 159<br />
marcantes da capital mineira. Os mais eminentes homens públicos <strong>de</strong> Minas –<br />
políticos, jornalistas, escritores, magistrados, clérigos, e mais dondocas e<br />
<strong>de</strong>slumbradas – todo mundo se encontrava nas tar<strong>de</strong>s da Itatiaia, festivas <strong>de</strong><br />
humanismo, on<strong>de</strong> a inteligência, a cultura e a graça eram régua e compasso.<br />
A socieda<strong>de</strong> dos irmãos Moreira ia <strong>de</strong> vento em popa. Enquanto o poeta<br />
e humanista Edison exercia muito bem o seu papel <strong>de</strong> relações-públicas à frente<br />
da loja e dos eventos literários que ali ocorriam com enorme repercussão, Pedro<br />
Paulo preferia o recolhimento <strong>de</strong> seu gabinete, on<strong>de</strong> pontificava na gestão<br />
financeira e editorial do empreendimento.<br />
A Itatiaia somou mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z mil títulos publicados, entre os quais<br />
avulta, pelo ruidoso sucesso que provocou, o Doutor Jivago, do russo Boris<br />
Pasternak, ganhador do Nobel. Era o tempo da Guerra Fria, e o editor Pedro<br />
Paulo <strong>de</strong>scobriu um filão, editando no Brasil romancistas que confrontavam a<br />
vida nos países socialistas com o american way of life, pelo que recebia bons<br />
incentivos por parte <strong>de</strong> organismos culturais do governo americano.<br />
Quando seu irmão e sócio Edison foi eleito acadêmico, vindo a juntar-se<br />
ao outro irmão Vivaldi na Casa <strong>de</strong> Alphonsus, o escritor Moacyr Andra<strong>de</strong>, que<br />
apreciava uma tirada, disse que estávamos agora diante da “<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Moreira<br />
<strong>de</strong> <strong>Letras</strong>”. O chiste fez fama na época e ainda profetisa, pois o filho Pedro<br />
Rogério cá está na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>. Mas o fato é que Moacyr tornara-se amigo e<br />
confi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Pedro Paulo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o editor relançou seus dois gran<strong>de</strong>s<br />
romances, Memórias <strong>de</strong> um chauffeur <strong>de</strong> praça e República Decroly. No dia<br />
seguinte à publicação da balela pelo colunista Wilson Fra<strong>de</strong>, o mesmo<br />
jornalista dava espaço para esta nota: “Inquirido sobre o assunto, o sr. Pedro<br />
Paulo Moreira nos respon<strong>de</strong>u que se <strong>de</strong>dica a outra aca<strong>de</strong>mia, a <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>...<br />
Promissórias!”<br />
Como tudo passa, passou também o tempo da loja prazenteira da Rua da<br />
Bahia número 916, freqüentada nos fins <strong>de</strong> tar<strong>de</strong> pelos notáveis, assim como<br />
Milton Campos, Pedro Aleixo, Tancredo, Magalhães Pinto, Alberto Deodato,<br />
Djalma e Moacyr Andra<strong>de</strong>, Fausto Alvim, Mário Matos. PSD e UDN, em<br />
recíprocas amenida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>ixavam <strong>de</strong> lado suas diferenças políticas.<br />
Em meados da década <strong>de</strong> 1970, a Itatiaia mudou-se para o seu terceiro<br />
en<strong>de</strong>reço, na mesma Rua da Bahia, agora o edifício Park Royal, obra-prima<br />
daquela arquitetura característica da fundação da nova capital mineira, hoje<br />
tombado pelo Patrimônio Histórico. No terceiro andar do majestoso monumento,<br />
o saudoso JK lá se reunia com os intelectuais mineiros, festejando todos<br />
a antecipação da glória daquele gran<strong>de</strong> brasileiro. Foi naquele en<strong>de</strong>reço que<br />
Pedro Paulo, pioneiramente, <strong>de</strong>u voz e vez aos tradutores (<strong>de</strong>pois eméritos) <strong>de</strong>
160 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
nosso estado. Assim aconteceu com Neil Ferreira, hoje resi<strong>de</strong>nte nos EE.UU.,<br />
Milton Amado, Oscar Men<strong>de</strong>s (tradutor da Divina Comédia) e muitos outros.<br />
Nas últimas quatro décadas, o editor acabou suplantando o livreiro.<br />
Pedro Paulo ampliou bastante a sua presença no mercado editorial brasileiro,<br />
adquirindo importantes editoras, <strong>de</strong>tentoras elas <strong>de</strong> títulos célebres, como a<br />
Garnier & Briguiet e a Vila Rica Editora.<br />
Marcava presença, anualmente, em gran<strong>de</strong>s centros da indústria da<br />
mo<strong>de</strong>rna impressão digital, como Santiago do Chile e Barcelona, on<strong>de</strong> imprimia<br />
em alto padrão gráfico as obras ilustradas a cores <strong>de</strong>dicadas à leitura<br />
infanto-juvenil.<br />
Homem do mundo, ele jamais <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> manter os vínculos com o chão<br />
natal ou com a cultura que primeiro conheceu, a da terra e do gado. Nascido a<br />
29 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1926, em Carangola, Pedro Paulo era um nostálgico <strong>de</strong> sua<br />
paisagem <strong>de</strong> infância. Há alguns anos, tendo entrado também na pecuária e<br />
criação <strong>de</strong> cavalos, adquiriu naquele município uma proprieda<strong>de</strong> que vinha a<br />
ser vizinha ao lugar mais amoroso <strong>de</strong> sua vida, a Parada General. Quando as<br />
estradas <strong>de</strong> ferro <strong>de</strong>sempenhavam papel vital na economia brasileira, e a<br />
Leopoldina Railways transportava o progresso, a Parada General era o<br />
epicentro da família Moreira. O “misto” para Porciúncula ou o “rápido” para o<br />
distante Rio <strong>de</strong> Janeiro faziam ali uma rápida parada, tempo certo para o<br />
menino Pedro Paulo oferecer aos passageiros os quitutes feitos por sua mãe<br />
Tita, para ajudar o marido, o comerciante <strong>de</strong> café Pedro Moreira, a se levantar<br />
da queda ocasionada pelo efeito dominó do famoso crack da Bolsa <strong>de</strong> Nova<br />
Iorque, <strong>de</strong> 1929.<br />
Foi nesta paisagem da infância querida, e por ela suspirando, é que lá<br />
viveu seu momento <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro, <strong>de</strong> uma vida <strong>de</strong> trabalho e otimismo. Fechou-se<br />
o círculo no último dia 28 <strong>de</strong> junho. Pedro Paulo há muito tempo não exibia<br />
mais o prazer da velocida<strong>de</strong>, tão ao gosto <strong>de</strong> sua geração. Mas conservava o<br />
sentido da pressa, tão caro aos self-ma<strong>de</strong>-men. Excitado por aguardar o seu fiel<br />
e antigo companheiro (das li<strong>de</strong>s campestres) Folia, personagem saído <strong>de</strong> uma<br />
página <strong>de</strong> Guimarães Rosa, que o protegia há trinta anos, Pedro Paulo o <strong>de</strong>ixou,<br />
substituindo-o no volante <strong>de</strong> sua “Ranger” para visitar um vizinho. Daí a<br />
ocorrência trágica. Nem corria, pois James Dean ficara para trás.<br />
Revelar tudo o que foi Pedro Paulo Moreira para a cultura e para a<br />
indústria do livro no Brasil nestas páginas é como comprimir um gigante. Sim,<br />
ele foi um gigante dos livros. Um homem que acreditou no livro como veículo<br />
máximo <strong>de</strong> cidadania.
VITORINO NEMÉSIO,<br />
POETA EM BELO HORIZONTE<br />
ALGUMAS NOTAS PESSOAIS E IMPESSOAIS<br />
Heitor Martins*<br />
O primeiro semestre <strong>de</strong> 1952 marca a passagem <strong>de</strong> Vitorino Nemésio por<br />
Belo Horizonte. O fato não é muito importante na biografia do poeta açoriano.<br />
Sua viagem ao Brasil é mais produtiva, tanto do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> sua permanência<br />
e contribuição cultural para o país, quanto <strong>de</strong> sua própria criativida<strong>de</strong>,<br />
naquelas áreas costeiras on<strong>de</strong> esteve mais tempo e on<strong>de</strong> formou laços mais<br />
profundos <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>, Rio <strong>de</strong> Janeiro e Salvador, Bahia. Mesmo em Minas<br />
Gerais, seu interesse foi muito maior por Ouro Preto e pelas velhas cida<strong>de</strong>s<br />
coloniais do que pela capital do estado. Mas Belo Horizonte é que lhe dá, neste<br />
primeiro contacto com o Brasil, a terceira parte <strong>de</strong> uma trinda<strong>de</strong> sobre a qual<br />
baseia sua interpretação do país, que, <strong>de</strong> certa maneira, é também sua<br />
interpretação do contributo cultural da civilização lusitana. É exatamente isto<br />
que este pequeno trabalho preten<strong>de</strong> mostrar.<br />
No primeiro semestre <strong>de</strong> 1952, este autor <strong>de</strong> agora, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um exame<br />
vestibular, matriculava-se na então Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Minas Gerais para cursar um programa <strong>de</strong> Línguas Neolatinas. Ainda nos seus<br />
primeiros dias <strong>de</strong> calouro bisonho, uma <strong>de</strong> suas classes foi transformada em<br />
auditório para um conferencista português que estava <strong>de</strong> visita à cida<strong>de</strong>, por<br />
convite do governo mineiro. Dois dias antes da conferência, um dos professores<br />
falara rapidamente sobre o importante escritor português que íamos ouvir.<br />
Talvez por razões que diziam respeito ao conhecimento que aquele professor<br />
tinha do palestrante, a ênfase foi dada ao seu trabalho como historiador literário<br />
e quase nada se falou <strong>de</strong> sua obra <strong>de</strong> ficcionista e poeta. Para nós, naquele<br />
momento, Vitorino Nemésio era o autor <strong>de</strong> A Mocida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Herculano.<br />
* Escritor mineiro, critico literário, leciona atualmente na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Indiana, nos Estados Unidos.
162 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
A memória que ainda temos da conferência é pouco transparente.<br />
Lembramo-nos <strong>de</strong> que enten<strong>de</strong>mos muito pouco do que ele dizia. Ainda que<br />
com ascen<strong>de</strong>ntes portugueses ainda vivos naquela época, o sotaque que nos era<br />
familiar vinha das proximida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Coimbra, <strong>de</strong> um Lugar das Agras, perto <strong>de</strong><br />
Arouca, e não o que era, para nós, criados na molície <strong>de</strong> uma linguagem ainda<br />
não <strong>de</strong> todo urbanizada e pasteurizada pela televisão, um cerrado português<br />
açoriano. Menos ainda enten<strong>de</strong>ram nossos colegas para quem o português<br />
europeu já começava a ser algo um pouco distante. Vitorino Nemésio foi a<br />
nossa primeira lição <strong>de</strong> dialetologia portuguesa.<br />
Saídos da conferência, fomos buscar alguma obra <strong>de</strong> Nemésio para ler.<br />
Na pobreza do acervo da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Minas Gerais, só encontramos um<br />
livro do autor, um exemplar dos dois volumes <strong>de</strong> A Mocida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Herculano, na<br />
biblioteca especial da reitoria. E esta foi a gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> nossos<br />
primeiros anos universitários. Vista com quase meio século <strong>de</strong> distância, foi a<br />
tese doutoral <strong>de</strong> Vitoriono Nemésio que nos <strong>de</strong>u a noção do que era o estudo<br />
rigoroso da literatura, até então reduzido quase exclusivamente aos manuais<br />
escolares <strong>de</strong> história literária e um que outro artigo <strong>de</strong> suplemento dominical <strong>de</strong><br />
jornal. Mais do que qualquer outra influência inicial, foi o livro <strong>de</strong> Vitorino<br />
Nemésio que nos assegurou que a literatura podia ser também tratada com um<br />
rigor intelectual que igualava nossas preocupações, como “scholars”, às <strong>de</strong><br />
nossos colegas <strong>de</strong> outras áreas humanísticas, da História ou da Filosofia.<br />
Bastante pro domo mea neste momento.<br />
Em 1952, Belo Horizonte era um símbolo brasileiro – ou luso-brasileiro<br />
– <strong>de</strong> expansão interiorana, tanto quanto será, anos <strong>de</strong>pois, Brasília. Foi assim<br />
que Vitorino Nemésio percebeu a cida<strong>de</strong>: uma “Babel <strong>de</strong> lumes”, com “castelos<br />
<strong>de</strong> apartamentos”, uma “cida<strong>de</strong> abstrata”, à qual faltava a pátina do tempo e da<br />
tradição. Mais <strong>de</strong> vinte anos <strong>de</strong>pois repetirá a mesma sensação, ao dizer-se<br />
“<strong>de</strong>slumbrado” por Brasília, embora qualifique este <strong>de</strong>slumbramento como<br />
imagem <strong>de</strong> algo que pertence a todo “homem mo<strong>de</strong>rno”, mas cuja distância<br />
com relação ao vivido não po<strong>de</strong> exprimir.<br />
Ao chegar a Belo Horizonte, Vitorino Nemésio reconhece imediatamente<br />
uma pequena parte <strong>de</strong> sua história pessoal. A avenida Afonso Pena, que<br />
atravessa a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ponta a ponta – e em cujo centro se encontrava aquela<br />
Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia on<strong>de</strong> ele teve seu auditório – lembra-lhe o tio que<br />
emigrara para a Bahia, e que ele <strong>de</strong>screve em outra oportunida<strong>de</strong>:<br />
“A minha Baía imaginária já vinha traçada <strong>de</strong> antes. Lembro-me muito<br />
bem. Era o en<strong>de</strong>reço semestral <strong>de</strong> meu velho tio José, que veio em menino<br />
labutar no atacado <strong>de</strong> ‘seu’ João Borges do Rego, morador no Caquen<strong>de</strong>, e que
Vitorino Nemésio, poeta em Belo Horizonte ___________________________________________ Heitor Martins 163<br />
<strong>de</strong> lá reemigrou, ao chamo da borracha, para a Manaus radiosa das peúgas <strong>de</strong><br />
seda e da Ópera <strong>de</strong> ouro e <strong>de</strong> mármore.”<br />
Este “en<strong>de</strong>reço” do tio José sobrevive concretamente na memória do poeta<br />
na imagem <strong>de</strong> Afonso Pena, um dos criadores <strong>de</strong> Belo Horizonte, imagem<br />
(...) que um dia<br />
Minha avó regou <strong>de</strong> lágrimas<br />
No selo berilo e <strong>rosa</strong><br />
Da carta do filho ausente.<br />
O escritor açoriano permanece poucos dias em Belo Horizonte e, <strong>de</strong> certa<br />
maneira, talvez por <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> seus hospe<strong>de</strong>iros, a cida<strong>de</strong> serve-lhe principalmente<br />
como eixo <strong>de</strong> uma peregrinação pelos muitos lugares históricos <strong>de</strong><br />
Minas Gerais. Com exceção <strong>de</strong> algumas referências em crônicas, a nomeação<br />
<strong>de</strong> alguns amigos locais e um poema, posterior e curiosamente incluído entre os<br />
9 Romances da Bahia, nos Poemas Brasileiros, Belo Horizonte parece<br />
arrefecer no interesse brasileiro <strong>de</strong> Vitorino Nemésio. Mas nem por isso sua<br />
primeira visão <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ter um valor documental para a compreensão <strong>de</strong> como<br />
se faz sua interpretação do Brasil:<br />
“(...) parece-nos que trepámos <strong>de</strong> um Rio magnífico, mas estrangulado<br />
em morros e brumas tropicais, a uma coisa <strong>de</strong> sonho, um acampamento etéreo<br />
<strong>de</strong> pastores <strong>de</strong> zebus fugidos, on<strong>de</strong> faíscam vidraças <strong>de</strong> palácios irreais (...)”<br />
Esta imagem <strong>de</strong> “acampamento etéreo <strong>de</strong> pastores <strong>de</strong> zebus fugidos” é,<br />
entretanto, completada por outra afirmação, menos positiva:<br />
“De volta a Belo Horizonte, do automóvel envolto numa nuvem <strong>de</strong> pó<br />
ferruginoso vejo o Bezerro <strong>de</strong> Ouro humil<strong>de</strong>mente encantado num novilho <strong>de</strong><br />
zebu que muge ao longe.”<br />
Voltemos um pouco atrás em nossas consi<strong>de</strong>rações. A viagem a Minas<br />
Gerais vem mostrar a Vitorino Nemésio um Brasil e um brasileiro que não<br />
encontrara na costa. Se na Bahia o português, por ter “a Baía no sangue”, percebe<br />
Que isto <strong>de</strong> ser brasileiro<br />
É questão <strong>de</strong> começar,<br />
em Minas<br />
“o português cá chegado é logo brasileiro: o mineiro mais nativo é um<br />
português do Poente americano.”
164 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
O mineiro que Nemésio i<strong>de</strong>ntifica é principalmente o das pequenas<br />
cida<strong>de</strong>s coloniais, aquelas on<strong>de</strong> a tradição portuguesa se encontra arraigada<br />
pela tradicionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tipos <strong>de</strong> vida que pouco mudaram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século<br />
XVIII e que, nos idos <strong>de</strong> 1952, ainda são <strong>de</strong> difícil acesso. Em Ouro Preto –<br />
“Vila Rica do Ouro Preto, a mais viva entre todas as cida<strong>de</strong>s mortas do Mundo”<br />
– Vitorino Nemésio encontra o Portugal antigo, quer pessoal quer coletivo:<br />
“Os sinos <strong>de</strong> Ouro Preto soam-me com o timbre <strong>de</strong> menino, do outro<br />
lado da vida. (...) Estou em Minas Gerais, e é como se estivesse num Portugal<br />
cal<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> vilas do Norte e do Sul. A ponte, à Casa dos Contos, parece<br />
esten<strong>de</strong>r-se sobre o Tâmega e colocar-nos na vila <strong>de</strong> Amarante. A rua do Con<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Boba<strong>de</strong>la, que trepa ao Largo do Paço (Tira<strong>de</strong>ntes), parece <strong>de</strong> Montemor-o-<br />
Novo, quando se vai para Évora. Não fora este ar <strong>de</strong> Calvário abolido e sentiame<br />
no Minho ou no Alentejo.”<br />
Vinte anos <strong>de</strong>pois, em 1972, a mesma imagem ainda vai aparecer:<br />
“E Minas? – perguntarão. E as Gerais? Pois Minas Gerais mantinha-se –<br />
sulina sim, mas reclusa, aportuguesada no seu Rio das Velhas e no seu Rio das<br />
Contas, em sua Vila Rica, meta<strong>de</strong> como que Amarante, e Montemor-o-Novo a<br />
outra meta<strong>de</strong>...”.<br />
Em cada cida<strong>de</strong>zinha que visita, Nemésio encontra Portugal:<br />
“Sabará é tão nobre como a Viseu dos corregedores.”<br />
“Estamos numa antiga Vila Real, como a <strong>de</strong> Trás-os-Montes ou a <strong>de</strong><br />
Santo António da Riba do Guadiana. Esta é Vila Real <strong>de</strong> Nossa Senhora da<br />
Conceição <strong>de</strong> Sabará (...)”<br />
“Mariana parece-me uma espécie da nossa Lousã, a cavalo entre a serra e<br />
a baixada.”<br />
Esta idéia <strong>de</strong> permanência, tradicionalida<strong>de</strong>, informa o comentário<br />
agridoce que faz <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma visita a uma famosa instituição ouro-pretana, e<br />
no qual traz Belo Horizonte à baila, para comparação, num contexto em que o<br />
nome <strong>de</strong> Nova Iorque também é lembrado:<br />
“Na Escola <strong>de</strong> Minas – que o estudo entranhado e o saber politécnico dos<br />
primeiros mestres, franceses, fez mo<strong>de</strong>lar e oposta ao êxodo progressivo das
Vitorino Nemésio, poeta em Belo Horizonte ___________________________________________ Heitor Martins 165<br />
pessoas – há uma coleção <strong>de</strong> cristais <strong>de</strong> quartzo mais rica que a <strong>de</strong> Nova York e<br />
uma galeria <strong>de</strong> retratos <strong>de</strong> velhos professores em que parece ler-se a resistência<br />
da terra ao canto <strong>de</strong> sereia dos lados <strong>de</strong> Belo Horizonte, e logo a resignação<br />
perfeita das vidas que bem se preencheram.”<br />
Num artigo em que analisa a poesia como modo <strong>de</strong> ser para Vitorino<br />
Nemésio, Duarte Faria chama atenção para a tradicionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua obra, na<br />
qual “não radicaliza a originalida<strong>de</strong>, não cultiva a ruptura como porta-voz <strong>de</strong><br />
uma vanguarda, não afronta a História na i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> acto poético e acto<br />
<strong>de</strong> contestação do passado. (...) nela a primazia é a tradicionalida<strong>de</strong>, isto é, o<br />
po<strong>de</strong>r transmissor <strong>de</strong> um antes para um <strong>de</strong>pois sem que, com isso, se transfira o<br />
bloco <strong>de</strong> valores.”<br />
A parte “brasileira” da obra do poeta açoriano é uma intensa e profunda<br />
perquirição sobre este tema da tradição. Sua visão parece-nos ser a <strong>de</strong> uma<br />
constante interação entre o passado, fonte do futuro, e o tempo presente que se<br />
ausculta, para usar a palavra <strong>de</strong> Duarte Faria. Estes três tempos se interrogam<br />
permanentemente, numa divisão espacial, correspon<strong>de</strong>nte à viagem brasileira<br />
do poeta. Nesta viagem, em que se encontra com aquele que é o Outro mas que,<br />
membro da mesma família, compartilha o sangue e a História, Vitorino<br />
Nemésio i<strong>de</strong>ntifica também os três tempos <strong>de</strong> sua tradição pessoal e nacional. À<br />
parte presente correspon<strong>de</strong> a costa; mas on<strong>de</strong> se chocam passado e futuro é no<br />
interior, neste passado que é um “Poente americano” i<strong>de</strong>ntificado em Ouro<br />
Preto, e no futuro visto como “acampamento”, “imaginação”, “irrealida<strong>de</strong>”,<br />
“pretexto” – palavras que usa para <strong>de</strong>screver Belo Horizonte e cujas fronteiras<br />
semânticas implicam em transitorieda<strong>de</strong> e virtualida<strong>de</strong>.<br />
Num outro texto da mesma época, resumindo sua peregrinação <strong>de</strong> cinco<br />
meses pelo Brasil, o poeta consi<strong>de</strong>ra Lisboa como seu ponto <strong>de</strong> partida e Belo<br />
Horizonte como o extremo espacial atingido, a primeira construída pela lenda<br />
ulisséia e a outra “gizada a cor<strong>de</strong>l e compasso há pouco mais <strong>de</strong> meio século”.<br />
Ouro Preto e as velhas cida<strong>de</strong>s coloniais mineiras são o passado que dá<br />
base ao futuro; Belo Horizonte – e <strong>de</strong>pois Brasília – são os “rubis imaginários”<br />
do porvir.<br />
Em nenhum momento, o poeta parece ter melhor expresso este conjunto<br />
<strong>de</strong> lucubrações do que no poema “No Cemitério <strong>de</strong> Santa Efigênia <strong>de</strong> Ouro<br />
Preto”, inicialmente publicado como introdução à secção intitulada “O Segredo<br />
<strong>de</strong> Ouro Preto” do livro do mesmo nome, claramente separado da secção do<br />
“Romanceiro da Baía”, ao qual <strong>de</strong>pois vai ser incorporado. O poema – que é o<br />
único escrito sobre Minas Gerais – é uma longa meditação sobre as relações<br />
entre Belo Horizonte e Ouro Preto, consi<strong>de</strong>radas como cida<strong>de</strong>s-símbolo.
166 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Belo Horizonte é quem lhe dá o primeiro movimento – é lá que “sangue<br />
e <strong>de</strong>stino” são transformados em rubis imaginários. A virtualida<strong>de</strong> do sonho<br />
que pretextava construções <strong>de</strong> cristal acaba por produzir castelos <strong>de</strong><br />
apartamentos em concreto. A cida<strong>de</strong> foi construída por “engenheiros<br />
velhinhos” (o que é quase adynata) e através <strong>de</strong>les o poeta integra sua<br />
experiência pessoal – o retrato <strong>de</strong> Afonso Pena no selo postal, lembrança<br />
familiar da emigração. A partir <strong>de</strong> Belo Horizonte o poeta revive a experiência<br />
<strong>de</strong> outrora, como “urubu estampado / Nos calvários <strong>de</strong> Ouro Preto.” A aventura<br />
que constrói o futuro é semeada <strong>de</strong> “cobiça e perjúrio”, como na experiência<br />
daquele Fernão Dias que enforcou o filho na fazenda do Sumidouro, ali mesmo,<br />
a poucos quilômetros do centro <strong>de</strong> Belo Horizonte, pelo crime maior <strong>de</strong> não<br />
acreditar no sonho do pai. Tudo é memória, como o faiscar da tar<strong>de</strong> nas<br />
vidraças <strong>de</strong>sta Babel <strong>de</strong> lumes. Memória encerrada, como em espelho, naquele<br />
cemitério <strong>de</strong> negros <strong>de</strong> Santa Efigênia, entre flores e palavras que transitam do<br />
passado para o futuro. Ali, o túmulo do menino Elci lembra ao peregrino, na<br />
contradição que representa a morte <strong>de</strong> uma criança, a própria contradição da<br />
experiência humana, em busca <strong>de</strong> uma paz ao longe e que, existindo perto, não<br />
chega a ser “merecida” pelo que a busca. A eternida<strong>de</strong> a que aspira a<br />
transitorieda<strong>de</strong> do ser humano é o sono daquela criança. Nemésio se enamora<br />
mais daquela paisagem costeira, on<strong>de</strong> a presença portuguesa aflora no meio do<br />
exotismo <strong>de</strong> raças e ambientes diferentes. Português <strong>de</strong> sete partidas, sua<br />
emoção cristaliza esta simbiose do exótico e do natural, da mestiçagem já<br />
i<strong>de</strong>ntificável em seus valores próprios, expressas na visão poética e concreta<br />
que tem <strong>de</strong>stes ambientes e <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> erotização mental que o leva a<br />
poetizar quase exclusivamente o Brasil baiano e carioca. Minas Gerais é outra<br />
coisa – ancestralida<strong>de</strong> lusitana, História com a qual convive e que procura<br />
enten<strong>de</strong>r e explicar mas que percebe muito mais intelectualmente como<br />
memória do que como “sentir do próprio tempo”. Ao exotismo do português já<br />
transformado em algo novo que se vê na costa – “Lá no varejo da Rampa /<br />
Aquele moleque sou eu” – Minas contrapõe o “segredo” da permanência, a<br />
linha <strong>de</strong> “sangue e <strong>de</strong>stino” que continua a fluir sempre nas velhas cida<strong>de</strong>s<br />
coloniais – “Ouro Preto... foco <strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntalida<strong>de</strong>” – e que são a fonte do<br />
milagre vital que é o momento mesmo da criação do novo – “Ó céu <strong>de</strong> Belo<br />
Horizonte, / Que futuro me daria / Teu movimento secreto?”<br />
Ao jovem estudante que, em 1952, numa sala universitária no centro <strong>de</strong><br />
uma cida<strong>de</strong> que era ponta <strong>de</strong> lança da expansão <strong>de</strong> uma cultura a que pertencia<br />
por “sangue e <strong>de</strong>stino”, sentava-se pela primeira vez para ouvir a voz exemplar<br />
<strong>de</strong> um escritor importante, Vitorino Nemésio dava uma lição <strong>de</strong> mistério – o
Vitorino Nemésio, poeta em Belo Horizonte ___________________________________________ Heitor Martins 167<br />
seu difícil sotaque açoriano – e uma lição <strong>de</strong> clareza – o interesse pela tradição<br />
como produtora do presente e fonte das virtualida<strong>de</strong>s do futuro. Não po<strong>de</strong>ria<br />
pedir mais a este que foi ali – honro-me ao dizê-lo – meu professor por alguns<br />
momentos.<br />
Notas:<br />
i. “A imagem global <strong>de</strong> Brasília é uma das que o homem mo<strong>de</strong>rno, em<br />
qualquer ponto da Terra, leva no seu transcolor... mas, daí ao vivido, que<br />
distância! E não sei como enchê-la <strong>de</strong> palavras.” (“Brasília-Cristalina”.<br />
Vitorino Nemésio. Jornal do Observador. Lisboa; Verbo, 1974, pág.<br />
331. A citação é <strong>de</strong> crônica datada <strong>de</strong> 8-9-1972.)<br />
ii. Vitorino Nemésio.O Segredo <strong>de</strong> Ouro Preto e Outros Caminhos. Lisboa:<br />
Livraria Bertrand, s. d. [1954], pág. 123.<br />
iii. Nemésio, Segredo, pág. 209.<br />
iv Nemésio, Segredo, pág. 320.<br />
v. Nemésio, Segredo, pág. 256.<br />
vi. Nemésio, Segredo, págs. 186 e 190.<br />
vii. Nemésio, Segredo, págs. 251-152. Curiosamente, o primeiro nome dado<br />
a um português que retorna do Brasil, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ver cumprido seu sonho<br />
<strong>de</strong> fortuna, é o <strong>de</strong> “mineiro”. Antônio José da Silva já <strong>de</strong>finia, em 1737,<br />
como “mineiro velho que veio das minas o ano passado” um dos<br />
personagens <strong>de</strong> Guerras do Alecrim e Mangerona (Antônio José da<br />
Silva, o Ju<strong>de</strong>u. Obras Completas. Ed. por José Pereira Tavares. Vol. III.<br />
Lisboa: Sá da Costa, 1958, pág. 168.)<br />
viii. Nemésio, Segredo, pág. 224.<br />
ix. Nemésio, Segredo, págs. 228-229.<br />
x. Nemésio, Jornal do Observador, pág. 315. (A citação é <strong>de</strong> crônica<br />
datada <strong>de</strong> 28-4-1972.)<br />
xii. Nemésio, Segredo, pág. 271.<br />
.xiii. Nemésio, Segredo, pág. 251.<br />
xiv. Nemésio, Segredo, pág. 312.<br />
xv. Nemésio, Segredo, pág. 219.<br />
xvi. Duarte Faria. “Vitorino Nemésio: Da Poesia Como Modo <strong>de</strong> Ser. In<br />
Maria Margarida Maia Gouveia. Vitorino Nemésio; Estudo e Antologia.<br />
Lisboa: Instituto <strong>de</strong> Cultura e Língua Portuguesa / Ministério da<br />
Educação e Cultura, 1986, pág. 531.
168 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
xvii. Nemésio, Segredo, pág. 362.<br />
xviii. O poema foi publicado inicialmente em Nem Toda a Noite a Vida<br />
(Lisboa: Ática, 1953, págs. 151-158). Foi reproduzido a seguir em O<br />
Segredo <strong>de</strong> Ouro Preto e Outros Caminhos (págs. 209-211), versão que<br />
preferimos por razões óbvias. O texto <strong>de</strong>finitivo encontra-se na edição<br />
crítica <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Fátima Freitas Morna (Vitorino Nemésio.<br />
Obras Completas. Vol. II – Poesia. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da<br />
Moeda, 1989, págs. 485-487).<br />
xix. Duarte Faria. “Vitorino Nemésio”, pág. 531.<br />
xx. Nemésio, Segredo, pág. 185.<br />
xxi. Nemésio, Segredo, pág. 368.<br />
xxi. Nemésio, Segredo, pág. 210.
Discurso Acadêmico<br />
TIJUCO – LENDAS E TRADIÇÕES<br />
Edgard Matta Machado<br />
Edgard da Matta Machado (nome literário Edgard Matta) nasceu em<br />
Ouro Preto a 21 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1878 (1) e faleceu em Diamantina a 26 <strong>de</strong><br />
fevereiro <strong>de</strong> 1907 com apenas 28 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Filho <strong>de</strong> João da Matta<br />
Machado e <strong>de</strong> Luiza Henriqueta Bessa da Matta Machado.<br />
Poeta e p<strong>rosa</strong>dor participante do movimento estético e literário<br />
<strong>de</strong>nominado Simbolismo.<br />
Pronunciou a palestra Tijuco — lendas e tradições no dia 19 <strong>de</strong><br />
setembro <strong>de</strong> 1900 nos salões do Clube das Violetas, em Belo Horizonte, Minas<br />
Gerais, época em que fazia parte do grupo, constituído naquela cida<strong>de</strong>, que se<br />
intitulou <strong>de</strong> Jardineiros do I<strong>de</strong>al. Tijuco era o nome antigo da atual cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Diamantina (MG).<br />
Compunham o grupo doze intelectuais — jornalistas, acadêmicos,<br />
engenheiros e advogados — que se reuniram e formaram um centro com a<br />
finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realizar uma série <strong>de</strong> palestras. Pretendiam <strong>de</strong>senvolver os meios<br />
para estimular a literatura e para produzirem mais e o melhor possível no<br />
romance, na história, no conto, na comédia. Os doze Jardineiros do I<strong>de</strong>al<br />
eram: Afonso Pena Júnior, Artur Lobo, Assis das Chagas, Aurélio Pires,<br />
Edgard Matta, Ernesto Cerqueira, Ismael Franzen, Josaphat Bello, Lindolpho<br />
Azevedo, padre João Pio, Prado Lopes e Salvador Pinto Júnior. Publicaram<br />
um pequeno jornal <strong>de</strong> nome Violeta.<br />
Proferiram <strong>de</strong>z palestras no Clube das Violetas no período <strong>de</strong> 18 <strong>de</strong><br />
julho a 19 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1900. A convite dos Jardineiros mais duas<br />
1. Andra<strong>de</strong> Muricy, em Panorama do movimento simbolista brasileiro, diz que a data do nascimento <strong>de</strong><br />
Edgard foi 19 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1878, e viveu “28 anos, quatro meses e sete dias”.
170 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
conferências foram feitas por convidados não membros do grupo, e o ciclo se<br />
encerrou a 10 <strong>de</strong> outubro. O jornal Minas Gerais publicou o conteúdo integral<br />
<strong>de</strong> umas palestras e a quase totalida<strong>de</strong> do teor <strong>de</strong> outras.<br />
O texto Tijuco — lendas e tradições que ora divulgamos foi publicado no<br />
jornal Minas Gerais <strong>de</strong> 21 a 24 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1900. É para nós o texto-fonte.<br />
Na transcrição, o organizador adotou os seguintes critérios básicos:<br />
a) atualizou a ortografia, <strong>de</strong> acordo com o sistema vigente em 2008;<br />
b) emendou os lapsos tipográficos e os lapsos <strong>de</strong> pena óbvios;<br />
c) respeitou rigo<strong>rosa</strong>mente a pontuação original;<br />
e) manteve, <strong>de</strong> regra, o emprego das iniciais maiúsculas pelo autor,<br />
tendo em mente o valor <strong>de</strong> seu uso entre os simbolistas. Fizemos poucas<br />
alterações, quando o vocábulo nos pareceu não estar sendo utilizado em<br />
sentido elevado ou simbólico.<br />
Estamos incluindo a matéria publicada naquele mesmo jornal em 20-9-<br />
1900 sobre Edgard Matta e sua palestra.<br />
Nossos agra<strong>de</strong>cimentos a Eduardo <strong>de</strong> Miranda Mata Machado por ter<br />
colocado disponível para esta publicação a fotografia <strong>de</strong> Edgard Matta.<br />
Somos gratos a Pablo Barros Dias pela conferência do texto por nós<br />
digitado em computador com o original publicado no jornal Minas Gerais e<br />
pelas correções indicadas.<br />
Agra<strong>de</strong>cemos também a Ivan Luiz da Matta Machado, Lúcia da Mata<br />
Barbosa (in memoriam), Maria Apparecida da Matta Machado Avvad, Newton<br />
<strong>de</strong> Figueiredo, Reinaldo da Matta Machado e Vera Matta Machado Diniz a<br />
pesquisa com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> obter uma outra fotografia do poeta, além da<br />
agora publicada.<br />
♦ ♦ ♦<br />
Fernando da Matta Machado<br />
Quando me vi forçado a procurar um tema para a palestra <strong>de</strong> hoje, meu<br />
espírito oscilou in<strong>de</strong>ciso e senti que a esterilida<strong>de</strong> subjetiva se refletia em todos<br />
os terrenos tornando áridos esses campos ubérrimos que só esperam o pólen<br />
fecundador da Idéia para a germinação fron<strong>de</strong>nte das gran<strong>de</strong>s obras <strong>de</strong> Arte.<br />
Invejei o artista que sabe <strong>de</strong>scobrir o embrião <strong>de</strong> um poema na tênue<br />
modalida<strong>de</strong> do aroma e da cor que cria a Epopéia do Verme como criaria a dos<br />
<strong>de</strong>uses, que aproveita o episódio insignificante da análise como as abstrações<br />
universais da síntese mais ampla.
Tijuco – lendas e tradições ____________________________________________________ Edgar Matta Machado 171<br />
Num tantalismo doloroso contemplando em aparições difusas todas as<br />
gran<strong>de</strong>s épocas da história, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> esta ida<strong>de</strong> remotíssima e velha que vemos,<br />
sem <strong>de</strong>lineamentos nítidos <strong>de</strong> figura e <strong>de</strong> forma, nas fronteiras impenetráveis do<br />
Sonho e do Mistério, meu espírito vagou absorto vendo o <strong>de</strong>sfilar apoteósico<br />
<strong>de</strong>sses gran<strong>de</strong>s titãs da ida<strong>de</strong> antiga cujos assombrosos feitos nos soam hoje aos<br />
ouvidos como inverossímeis legendas <strong>de</strong> epopéias divinas.<br />
As pirâmi<strong>de</strong>s do Egito projetaram sobre mim, acabrunhadoramente, as<br />
sombras pesadas <strong>de</strong> seus perfis gigantescos, causticados pelos sóis priscos das<br />
eras, imóveis no <strong>de</strong>serto como páginas abertas <strong>de</strong> um livro <strong>de</strong> granito on<strong>de</strong> se lê<br />
ainda hoje a história emocionante das civilizações primitivas.<br />
Das ruínas <strong>de</strong> Tebas soprava uma brisa embalsamada <strong>de</strong> legendas, mas<br />
<strong>de</strong>ssa abundante seara já colhida, nada restava para o segador bisonho.<br />
No berço do mundo vi surgir o esplendor oriental <strong>de</strong> Babilônia, e logo<br />
após a Índia num Policromismo <strong>de</strong> lendas <strong>de</strong> religiões estranhas, <strong>de</strong> tradições<br />
fabulosas, entre as quais parecia errar a figura sentimental <strong>de</strong> Çakia-Muni, o<br />
Buda, pregando a religião igualitária, a abolição das castas, espalhando por<br />
todos os sofrimentos o bálsamo anestesiante das resignações supremas.<br />
E Purna, o seu discípulo amado, numa melancolia <strong>de</strong> contemplativo, tem<br />
um sorriso <strong>de</strong> perdão para todos os Males, e flutua entre nimbos nirvânicos <strong>de</strong><br />
aniquilamento, a alma <strong>de</strong>sprendida do corpo que as paixões não inflamam, no<br />
quietismo sublime da Religião Sombria.<br />
Mas, exmas. senhoras, sobre o Oriente falou nesta sala Ernesto <strong>de</strong><br />
Cerqueira, e eu não me animaria a vir perturbar a impressão sonora que o seu<br />
talento <strong>de</strong>ixou, nem a sugestão mágica <strong>de</strong>ssa terra <strong>de</strong> Sonhos que ele soube<br />
<strong>de</strong>certo fazer nascer em cada uma <strong>de</strong> vós que o ouvistes.<br />
Pensei, e ser-vos-ia talvez mais grato, em vos trazer aqui trechos das<br />
gran<strong>de</strong>s epopéias dos Árias, <strong>de</strong>stacar <strong>de</strong>sses livros imortais, pérolas e diamantes<br />
<strong>de</strong> inestimável valor, dando-vos uma vaga noção da Alma artística que vibra<br />
sonora e emocionante nas páginas do Mahabharata.<br />
Mas para isso necessário seria um conhecimento completo <strong>de</strong>ssas obras,<br />
e só assim po<strong>de</strong>ria provar-vos que a obra <strong>de</strong> Arte não se aniquila e envelhece<br />
com a sucessão do tempo e das escolas, se bem que essas correspondam às<br />
necessida<strong>de</strong>s emotivas <strong>de</strong> cada época.<br />
Só assim vereis que essa moral perfeita que o cristianismo implantou,<br />
vivia já nessas épocas remotas com seus dogmas imperecíveis, com seus princípios<br />
eternos; que os mesmos sentimentos, as mesmas emoções, os mesmos<br />
<strong>de</strong>sejos que fazem vibrar os nossos corações, existiam na alma <strong>de</strong>sses nossos<br />
irmãos <strong>de</strong> séculos perdidos. O amor, as abnegações pelo próximo, os afetos,
172 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
vemo-los <strong>de</strong>scritos com uma intensida<strong>de</strong> talvez ainda maior que nos dias <strong>de</strong><br />
agora, em que infelizmente se têm levantado catedrais ao egoísmo, nas quais o<br />
oficiante adora o próprio ídolo.<br />
Mas abandonando esse assunto e continuando a pesquisa transpus o<br />
Peristilo Gótico da Ida<strong>de</strong> Média e ouvi ainda o surdo rumor longínquo, dum<br />
<strong>de</strong>smoronamento <strong>de</strong> Impérios; mas <strong>de</strong>ntro em pouco todos os gran<strong>de</strong>s acontecimentos<br />
políticos velaram-se, <strong>de</strong>svaneceram-se através <strong>de</strong> uma nuvem <strong>de</strong>nsa<br />
<strong>de</strong> incensos religiosos por on<strong>de</strong> flutuam cânticos e rezas <strong>de</strong> um misticismo<br />
fanático. Em laboratórios estranhos homens envelheciam nas maquinações<br />
inúteis <strong>de</strong> uma ciência infantil.<br />
Em tudo pesava uma atmosfera <strong>de</strong>nsa e irrespirável resultante da fusão<br />
<strong>de</strong> elementos heterogêneos, necessitando <strong>de</strong> uma ação <strong>de</strong> presença para que as<br />
afinida<strong>de</strong>s se manifestassem e a homogeneida<strong>de</strong> surgisse anunciando uma era<br />
<strong>de</strong> luz e <strong>de</strong> progresso. Essa ação necessária <strong>de</strong> presença foi trazida pelos gran<strong>de</strong>s<br />
acontecimentos: A Descoberta da América e caminho das Índias, a revolução<br />
artística <strong>de</strong> Rafael e Miguel Ângelo, a revolução científica <strong>de</strong> Copérnico, a<br />
Descoberta da Imprensa e finalmente a voz <strong>de</strong> Lutero cindindo o Catolicismo.<br />
Foi assim, minhas senhoras, que meu espírito <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vagar perdido<br />
pelo terreno da história como aquele que melhores elementos po<strong>de</strong>ria fornecer<br />
a quem se sentia fraco para as criações originais, <strong>de</strong>scobriu bem perto <strong>de</strong> si, no<br />
próprio torrão natal, o assunto nacional <strong>de</strong> indiscutíveis interesses, e que<br />
certamente vos proporcionaria uma palestra agradável, se tratado por outro.<br />
Como <strong>de</strong>veis saber, ocupar-me-ei nesta palestra das tradições do Tijuco e<br />
sucintamente <strong>de</strong> um período <strong>de</strong> sua história, história dolo<strong>rosa</strong> <strong>de</strong> Lágrimas e <strong>de</strong><br />
Agonias, tradições <strong>de</strong> heroísmo e <strong>de</strong> martírio, a que certo não po<strong>de</strong>rei, como<br />
<strong>de</strong>sejava, emprestar a narração emocionante, para que, senhoritas, os vossos<br />
olhos se magoassem na contemplação <strong>de</strong> uma das mais dolo<strong>rosa</strong>s páginas da<br />
nossa história colonial.<br />
É do Tijuco, senhoritas, que vem gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>ssas pedras preciosíssimas<br />
com que vos adornais para as festas, e o oiro dos vossos braceletes dormiu<br />
outrora ignorado nas serras alcantiladas daquela terra infeliz.<br />
Perdoar-me-eis, por certo, se em vos apresentando um diamante <strong>de</strong><br />
subido valor, fizer <strong>de</strong>saparecer o sorriso que a vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sperta, contando-vos<br />
que o diamante do Tijuco é a cristalização <strong>de</strong> uma lágrima, e que essa lágrima<br />
correu talvez por uma face tão gentil e tão meiga como as vossas.<br />
Tereis <strong>de</strong>certo mais carinho, para as vossas jóias, quando souber<strong>de</strong>s que<br />
cada pedaço <strong>de</strong> oiro representa uma epopéia <strong>de</strong> dor, que cada pedra rutilante<br />
que trazeis nos anéis custou, antes <strong>de</strong> algumas moedas, agonia sacrificadora <strong>de</strong>
Tijuco – lendas e tradições ____________________________________________________ Edgar Matta Machado 173<br />
um povo irmão. E quantas vezes a maldição dos perseguidos tombou sobre o<br />
metal e a pedra que o convencionalismo e o luxo valorizaram!<br />
Quanta lágrima, quanto soluço poupado, quanta injustiça inclemente, não<br />
se teria consumado se o solo abençoado daquela terra não tivesse escondidas<br />
essas preciosida<strong>de</strong>s inúteis!<br />
Bandos <strong>de</strong> aventureiros que a ambição movia <strong>de</strong>stemidos e fortes,<br />
embrenhavam-se pelas florestas seculares e virgens, afrontando sacrifícios e<br />
perigos, sem que nada os <strong>de</strong>tivesse na carreira maldita, indo ao recesso íntimo<br />
das tabas arrancar o gentio leal para o martírio sem nome do cativeiro perpétuo.<br />
A resistência natural agindo, travavam-se mortíferas guerras e o solo da<br />
Pátria bebia o primeiro sangue iniquamente <strong>de</strong>rramado; num <strong>de</strong>sprezo cruel<br />
para com todas as leis da Justiça e da Moral, esses bandos ferozes arrancavam<br />
das Missões Jesuíticas os selvagens que se haviam entregado à catequese e que<br />
abraçavam a religião Santíssima da Cruz.<br />
Foi numa <strong>de</strong>ssas correrias injustificáveis, que um aventureiro encontrou<br />
a primeira mina <strong>de</strong> oiro, e espalhada essa nova, <strong>de</strong> todos os pontos da colônia<br />
afluíram homens na procura difícil do precioso metal.<br />
O primeiro oiro foi encontrado na Capitania <strong>de</strong> São Paulo e as ban<strong>de</strong>iras<br />
que se formavam buscavam os <strong>de</strong>sertos, revolvendo terras, <strong>de</strong>sviando rios,<br />
penetrando em cavernas, na se<strong>de</strong> insaciável <strong>de</strong> riquezas, <strong>de</strong> régias fortunas, <strong>de</strong><br />
opulências Nababescas.<br />
Para Minas dirigiram-se diversas ban<strong>de</strong>iras e em vários pontos da<br />
Capitania o metal amarelo brilhou no fundo das bateias; na comarca do Serro<br />
Frio, <strong>de</strong>scobriram-se riquíssimas jazidas, mas a nevrose do oiro impelia esses<br />
homens a novas <strong>de</strong>scobertas, como se não houvesse na terra riqueza bastante<br />
para saciar-lhes a ambição sem limites.<br />
Nas Memórias do Distrito Diamantino, do finado e saudoso dr. Joaquim<br />
Felício dos Santos, o único importante manancial <strong>de</strong> crônica do Tijuco,<br />
encontra-se a <strong>de</strong>scrição minuciosa da <strong>de</strong>scoberta das lavras e fundação do<br />
Tijuco.<br />
Portugueses, mamelucos e sertanistas <strong>de</strong> São Paulo, vindos não se sabe<br />
ao certo <strong>de</strong> on<strong>de</strong>, chegaram em uma tar<strong>de</strong> fatigados da mais penosa das<br />
viagens, por uma das regiões mais agrestes da Capitania, à confluência <strong>de</strong><br />
dois córregos, sem que um juízo qualquer os impelisse a tomar esse ou aquele<br />
caminho, esses homens ru<strong>de</strong>s, fatalistas como todos que levam essa<br />
vida arriscada <strong>de</strong> nôma<strong>de</strong>, confiantes no acaso, <strong>de</strong>sfraldaram a ban<strong>de</strong>ira que<br />
tomou a direção da nascente <strong>de</strong> um dos córregos, posteriormente <strong>de</strong>nominado<br />
Pururuca.
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Pouco acima da confluência lavando a terra <strong>de</strong>scobriram oiro, e um<br />
povoado <strong>de</strong> colmado e choupanas surgiu rapidamente.<br />
Algum tempo mais tar<strong>de</strong> outra ban<strong>de</strong>ira chegou à confluência dos<br />
mesmos córregos, e como Pururuca já estava ocupado, seguiu pelo outro que,<br />
diz dr. Felício dos Santos, foi enfaticamente <strong>de</strong>nominado Rio Gran<strong>de</strong>, por ser<br />
um pouco mais volumoso que aquele.<br />
As lavras exploradas por esses ban<strong>de</strong>irantes produziram oiro em tal<br />
abundância que, <strong>de</strong> todas as partes da Capitania, começaram a chegar levas e<br />
levas <strong>de</strong> exploradores e em pouco tempo aquele <strong>de</strong>serto apresentou o aspecto<br />
risonho <strong>de</strong> um arraial florescente, possuindo uma capela, e on<strong>de</strong> todos viviam<br />
numa abundância feliz.<br />
Estava fundado o Tijuco, e daí <strong>de</strong>veria sair o oiro e diamante para as<br />
munificências Salomônicas da Corte Portuguesa e do Vaticano <strong>de</strong> Roma; daí<br />
<strong>de</strong>veriam sair os quatrocentos e cinqüenta milhões <strong>de</strong> cruzados com que d. João<br />
V obteve o título pomposo <strong>de</strong> Majesta<strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>líssima.<br />
Em troca <strong>de</strong>ssa oriental opulência, <strong>de</strong>ssa riqueza que assombrou o<br />
mundo, a colônia reservava para o mísero <strong>de</strong>scobridor, para o infeliz habitante<br />
<strong>de</strong>ssa terra a tirania suprema e as opressões iníquas.<br />
Nos primeiros anos seqüentes à <strong>de</strong>scoberta, os benefícios havidos pelo<br />
real erário não obe<strong>de</strong>ciam a um processo fixo <strong>de</strong> arrecadação, variando entre a<br />
cobrança do quinto nas casas <strong>de</strong> fundição e a capitação, notando-se, entretanto,<br />
a tendência <strong>de</strong> onerar mais e mais o mineiro em proveito da coroa.<br />
Até o ano <strong>de</strong> 1729 as lavras do Tijuco foram consi<strong>de</strong>radas como<br />
puramente auríferas; ninguém cogitava, sequer, no diamante, embora nas<br />
escavações das lavras se encontrassem em gran<strong>de</strong> abundância certas pedras <strong>de</strong><br />
uma cristalização especial, <strong>de</strong> brilho notável, que, recolhidas como objetos <strong>de</strong><br />
curiosida<strong>de</strong>, serviam nos serões <strong>de</strong> família como tentos <strong>de</strong> jogo.<br />
É portanto impossível <strong>de</strong>terminar-se o lugar em que foi encontrado o<br />
primeiro diamante, assim como nomear o <strong>de</strong>scobridor.<br />
Quanto ao nome do que naquelas pedras consi<strong>de</strong>radas inúteis conheceu a<br />
cristalização preciosíssima do carbono, oscila incerta a crônica, dizendo uns ter<br />
sido Bernardo da Fonseca Lobo, explorador <strong>de</strong> oiro, e que efetivamente reclamou<br />
do governo da Metrópole alvíssaras pelo auspicioso <strong>de</strong>scobrimento,<br />
querendo outros tenha sido um fra<strong>de</strong> da Congregação da Terra Santa, que havia<br />
estado em Golconda, e que chegando ao Tijuco reconheceu o diamante nos tentos<br />
<strong>de</strong> jogo e retirou-se <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> haver feito silenciosamente uma abundante colheita.<br />
O certo, porém, é que esse reconhecimento <strong>de</strong>veria marcar o início do<br />
sofrimento <strong>de</strong> um povo; a Corte Portuguesa, aurise<strong>de</strong>nta lançaria em breve os
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olhares ambiciosos e toda uma re<strong>de</strong> maquiavélica <strong>de</strong> perseguições envolveu o<br />
Tijuco para que aquela abundância fosse ter diretamente aos cofres portugueses.<br />
E efetivamente tombou como um raio sobre a população pacífica o<br />
bando iníquo do governo da Capitania, lançando interdição sobre todas as<br />
lavras.<br />
Vem a propósito contar a lenda dos diamantes que a tradição popular<br />
guarda, e que foi aproveitada por Joaquim Felício no seu romance Acaiaca.<br />
Quando os primeiros exploradores se estabeleceram no Tijuco, viviam<br />
nas gran<strong>de</strong>s florestas que circundavam o <strong>de</strong>scoberto, as tribos selvagens<br />
indômitas que jamais haviam sentido o peso opressor do braço português.<br />
É certo que <strong>de</strong> longe em longe o selvagem havia lobrigado o vulto <strong>de</strong> um<br />
aventureiro branco, carabina a tiracolo, olhar arguto e vivaz, seguindo por uma<br />
rota ignorada em busca <strong>de</strong> esmeraldas ou <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>ssas quimeras que<br />
povoaram o cérebro dos arrojados sertanistas.<br />
Como a vaga noção <strong>de</strong> in<strong>de</strong>finida ameaça, corria entre eles na brumosida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> lendas, a história <strong>de</strong> guerreiros brancos vindos <strong>de</strong> terras remotas, que<br />
venciam na selva o guerreiro feliz; mas até então, a vida <strong>de</strong>ssas tribos corria na<br />
plena liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus vastos domínios entre os episódios da caça e da guerra,<br />
sem outras preocupações que as apoteoses da vitória e os festejos da paz.<br />
Foi então que os <strong>de</strong>scobridores do Tijuco fixaram-se nas vertentes do Rio<br />
Gran<strong>de</strong>, e o gentio da Ibitira sentiu o perigo próximo a conjurar.<br />
Nessa tribo dominadora havia a superstição fabulosa <strong>de</strong> que todo o seu<br />
po<strong>de</strong>rio dimanava <strong>de</strong> um talismã venerado, uma gran<strong>de</strong> Árvore Sagrada, a que<br />
a lenda atribuía uma antigüida<strong>de</strong> imemorial.<br />
Chamavam-na Acaiaca; era um cedro prodigioso, como outro não se<br />
encontrava naquelas regiões, que erguia a fron<strong>de</strong> ver<strong>de</strong>jante à inacreditável<br />
altura por on<strong>de</strong>, nas noites tormentosas a nevrostenia dos ventos uivava dolo<strong>rosa</strong>mente.<br />
E as nuvens <strong>de</strong>nsas das estações hibernais tocadas pelo Norte rijo,<br />
dilaceravam-se nas grimpas elevadas da Acaiaca, <strong>de</strong>ixando gran<strong>de</strong>s fragmentos<br />
brancos como farrapos antigos <strong>de</strong> uma ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Paz.<br />
As gran<strong>de</strong>s tormentas <strong>de</strong> setembro blasfemavam à noite na impotência <strong>de</strong><br />
vencê-la, e a Árvore Sagrada, ao <strong>de</strong>spontar clarinante do Sol, mostrava-se<br />
úmida e ver<strong>de</strong> num espanejamento matinal <strong>de</strong> força e <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.<br />
Enquanto Acaiaca vivesse, <strong>de</strong> pé, como um titã invencível, protegendo<br />
em sua sombra o Conselho dos Pajés e dos Chefes, guardando junto às raízes os<br />
corpos sem vida dos guerreiros finados, a tribo contaria as vitórias pelos
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combates e o seu nome soaria na taba inimiga como um brado <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição e<br />
<strong>de</strong>rrota.<br />
Enquanto a Acaiaca florisse ao sorriso consolador das primaveras cantantes,<br />
e em seus braços protetores a ave nidificasse, o emboaba não dominaria<br />
o solo em que tinha nascido, lutado e morrido toda uma raça <strong>de</strong> fortes, não os<br />
expulsaria dali, para que <strong>de</strong>sprezados e errantes vagassem pelas terras estranhas<br />
sem família e sem taba, a mãe protegendo o filhinho e o filho conduzindo o pai<br />
cego como os guerreiros Tupis do I- Juca-Pirama.<br />
Mas a traição conduziu o emboava ao pé do gigante, na noite nupcial <strong>de</strong><br />
Cajubi, enquanto a tribo se entregava aos prazeres da festa, e a embriaguez do<br />
Cauim perturbava todos os cérebros.<br />
Cururupeba, o chefe da tribo, que nessa noite entregava sua filha aos<br />
braços fortes <strong>de</strong> um guerreiro, sentado num velho tronco, mostrava a expressão<br />
sisuda <strong>de</strong> quem reflete e pensa.<br />
Deslocado no meio daquela alegria <strong>de</strong>lirante, único que não havia<br />
molhado os lábios no embriagante licor, quedava-se absorvido em pensamentos<br />
obscuros, sentindo passar <strong>de</strong> quando em quando no espírito abismado as asas<br />
<strong>de</strong> luto <strong>de</strong> um presságio tremendo.<br />
Pesava sobre ele a sugestão <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>sgraça latente, que não apresentava<br />
ainda formas <strong>de</strong>finidas e teme<strong>rosa</strong>s por isso mesmo que não podia ser<br />
conjurada, que não podia ser afastada.<br />
Das bandas em que se erguia a Acaiaca, vinha na asa da brisa um rumor<br />
surdo e vago, que seus ouvidos atiladíssimos <strong>de</strong> selvagem não sabiam <strong>de</strong>terminar,<br />
trazendo alguma cousa <strong>de</strong> ameaçador que se diluía e espalhava na noite,<br />
envolvendo-o, oprimindo-o.<br />
Um gargalhar sinistro <strong>de</strong> ave noturna e agoureira vibrava no espaço,<br />
irônica e pressaga, ao mesmo tempo que, dos lados da Ibitira, um ruído abafado<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>sabamento chegava.<br />
Cururupeba ergueu-se, <strong>de</strong>sempenou a estatura <strong>de</strong> atleta à baça luz<br />
cambiante <strong>de</strong> fogueiras a se extinguir, e o som clarinante da menobiapava (2)<br />
vibrou estri<strong>de</strong>nte, amortecido <strong>de</strong> eco em eco, diluiu-se vago, assutilado nas<br />
montanhas distantes que uma bruma encobria.<br />
Era o sinal da guerra!<br />
2. Em uma das crônicas <strong>de</strong>nominadas “Ecos”, Edgard usa, <strong>de</strong> novo, a palavra menobiapava. Entretanto, no<br />
romance Acayaca, <strong>de</strong> Joaquim Felício dos Santos, edições <strong>de</strong> 1866 e <strong>de</strong> 1894, constam membyapara e<br />
membyapaba, em trechos diferentes.
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E aquela multidão cambaleante e ébria precipitou-se em seguimento do<br />
chefe que partira em direção ao planalto, on<strong>de</strong> dormiam os valentes guerreiros<br />
da tribo, à sombra abrigadora da gran<strong>de</strong> árvore sagrada.<br />
A Acaiaca já não era <strong>de</strong> pé e sua queda arrastaria fatalmente a dispersão<br />
e o aniquilamento da tribo; tombava com ela todo um passado glorioso <strong>de</strong><br />
vitórias e esse po<strong>de</strong>r ignoto que governa os orbes escrevera a sentença do<br />
gentio indomável.<br />
Os bravos e os fortes ergueram-se armados, lançando a maldição sobre<br />
os profanadores da ibicoara da taba, jurando a <strong>de</strong>struição do Tijuco. A superstição<br />
prendia os braços a alguns e tendo <strong>de</strong>saparecido com a queda da árvore<br />
simbólica a coesão molecular, dissensões se levantaram no seio da tribo antes<br />
unida e uma luta tremenda, sanguinosa e fratricida assombrou a gran<strong>de</strong> noite<br />
muda, anuviada por nimbos pesados, pressagiando tormentas, por entre os<br />
quais assomava vaga<strong>rosa</strong> a face angustiada <strong>de</strong> uma Lua sinistra.<br />
Um raio incendiou a Acaiaca e o velho pajé sábio que a vira florir 152<br />
vezes, sepultou-se nas chamas, murmurando uma maldição teme<strong>rosa</strong>:<br />
“Vamos, guerreiros! que das cinzas da Acaiaca surjam as <strong>de</strong>sgraças dos<br />
peros.<br />
“Segui-me: eu sou o instrumento <strong>de</strong> anhangá, eu sou anhangá, sou mais<br />
cruel do que ele, mais feroz, mais inexorável, mais sem pieda<strong>de</strong>!...<br />
“É chegada a hora da vingança!<br />
“Maldição sobre os peros!...”<br />
Arrastados pelas águas os carvões da gran<strong>de</strong> árvore foram se <strong>de</strong>positar<br />
nos leitos dos rios, nas encostas dos montes, nos vales profundos; e no dia<br />
seguinte, quando os mineiros se dirigiam para as lavras, colheram, revolvendo a<br />
terra, os primeiros diamantes.<br />
A tribo lá ficara aniquilada e morta, junto à ibicoara sagrada dos guerreiros<br />
fortes.<br />
A maldição do pajé tombou cruelmente sobre o povo do Tijuco; interditas<br />
as lavras, proibida a única indústria existente, o <strong>de</strong>salento avassalou o<br />
ânimo forte daqueles sertanistas, que jamais se haviam vergado ante insuperáveis<br />
obstáculos da natureza selvagem, do gentio antropófago, das feras<br />
carniceiras, e que se curvavam humil<strong>de</strong>s, resignados aos <strong>de</strong>cretos da tirania<br />
maldita, sem um protesto, guardando tão somente o direito <strong>de</strong> súplica ao qual<br />
mostravam ouvidos inclementes os ambiciosos governos.<br />
Demarcado o Distrito Diamantino, nomeadas autorida<strong>de</strong>s especiais,<br />
formou o Tijuco um Estado no Estado, sujeito a leis particulares, opressoras e
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iníquas, e os habitantes viviam sob a pressão dolo<strong>rosa</strong> <strong>de</strong> penas rigorosíssimas,<br />
aplicadas por processos sumários don<strong>de</strong> era completamente excluída a <strong>de</strong>fesa.<br />
Todo o empenho da Metrópole estava em <strong>de</strong>scobrir um sistema engenhoso<br />
<strong>de</strong> encher <strong>de</strong> riqueza o real erário, <strong>de</strong>ixando aos povos da colônia o<br />
estrito necessário para levarem uma vida humil<strong>de</strong>, sem bem-estar e sem luxo,<br />
conservando-lhes tão somente a força muscular necessária para que extraíssem<br />
das entranhas da terra os diamantes e oiro com os quais o rei <strong>de</strong>vasso saldava<br />
do Vaticano seu débito colossal <strong>de</strong> pecados remotos.<br />
Patrulhas e dragões percorriam dia e noite os córregos e as lavras,<br />
evitando a mineração furtiva; e uma leve suspeita <strong>de</strong> contrabando era punida<br />
com o confisco dos bens e <strong>de</strong>gredo para os rochedos da África.<br />
Dia a dia, o braço férreo da tirania lançava sobre o povo um <strong>de</strong>creto<br />
opressor. Foram <strong>de</strong>spejadas todas as fazendas e casas situadas em terrenos<br />
minerais, e isso sem que se in<strong>de</strong>nizassem os prejuízos, <strong>de</strong>srespeitando os<br />
direitos adquiridos e as eternas e supremas leis da humanida<strong>de</strong> e da justiça.<br />
Como acima dissemos, foi conservado um direito inútil aos povos do<br />
Tijuco – o direito <strong>de</strong> súplica.<br />
Em uma petição dirigida ao governo da Metrópole, peça redigida com<br />
talento, em cujas entrelinhas untuosas <strong>de</strong> humilda<strong>de</strong> ressumbram ironismos<br />
dolorosos, lemos o seguinte memorável trecho.<br />
“... que a execução que na forma sobredita se <strong>de</strong>u às or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> V.<br />
Majesta<strong>de</strong>, não parece própria da reta e justa intenção real <strong>de</strong> V. Majesta<strong>de</strong> nem<br />
<strong>de</strong> sua natural pieda<strong>de</strong>, real clemência, e amor paternal <strong>de</strong> seus vassalos.”<br />
Que sorriso amarelo e travoroso pairou nos lábios do redator <strong>de</strong>ssas<br />
linhas: Era o amor paternal do Rei, que atirava a plagas longínquas um pai,<br />
<strong>de</strong>ixando no Brasil os filhos implumes, na miséria mais negra! Era a sua natural<br />
pieda<strong>de</strong> que con<strong>de</strong>nava, a trabalhos perpétuos, o suspeito sobre o qual só<br />
pesava uma <strong>de</strong>núncia inimiga, era finalmente uma real clemência que pesava<br />
sobre os habitantes do Tijuco, como um manto <strong>de</strong> chumbo.<br />
Po<strong>de</strong>ria, se o quisesse, citar inúmeros fatos comprobatórios da tirania que<br />
subjugava a colônia, principalmente o Distrito Diamantino submetido à lei <strong>de</strong><br />
exceção, mas basta dizer-vos que os arquivos <strong>de</strong> nossa terra estão atulhados <strong>de</strong><br />
processos, cujo só exame, forneceria o libelo acusatório do <strong>de</strong>spotismo português.<br />
E a tradição popular que corre <strong>de</strong> boca em boca, nos fala <strong>de</strong>sse tempo<br />
como <strong>de</strong> uma era maldita em que o ar respirado trazia um perfume <strong>de</strong> lágrimas,<br />
e a água cristalina dos regatos tinha ressaibo <strong>de</strong> sangue.<br />
Em 1739 <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter estado no Tijuco o governador geral da Capitania,<br />
e <strong>de</strong> combinar com o dr. Rafael Pardinho o meio mais prático <strong>de</strong> exploração
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das jazidas <strong>de</strong> diamantes, ficou resolvido que sua extração fosse dada em hasta<br />
pública, a quem melhores vantagens oferecesse.<br />
Foi firmado o primeiro contrato com João Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira, que o<br />
renovou passados quatro anos.<br />
Podiam os arrematantes minerar com 600 escravos, mediante pagamento<br />
anual <strong>de</strong> 230$000, sendo-lhes expressamente proibido empregar maior<br />
número.<br />
Esse novo regímen veio agravar a situação dos tijuquenses, que já então<br />
tinham permissão <strong>de</strong> minerar em algumas lavras puramente auríferas, e uma<br />
nova fase <strong>de</strong> perseguição começou para eles.<br />
Aos contratadores era permitido, como aos arrematadores <strong>de</strong> impostos, o<br />
direito <strong>de</strong> cobrar executivamente <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>vedores, daí a penhora e o tronco<br />
para os que não podiam satisfazer seus compromissos.<br />
O contrato mantinha um corpo <strong>de</strong> pe<strong>de</strong>stres, que fiscalizava as lavras, e<br />
se por acaso caía sobre algum indivíduo a suspeita <strong>de</strong> contrabando, eram-lhe os<br />
bens confiscados, meta<strong>de</strong> para o real erário e outra meta<strong>de</strong> para o contratador.<br />
Do mesmo privilégio, isto é, da partida dos bens confiscados, gozava<br />
qualquer particular que <strong>de</strong>nunciava a mineração furtiva: era a traição premiada,<br />
a recompensa da infâmia, mas que importava isso se o oiro confiscado não<br />
perdia o seu valor.<br />
Manda, entretanto, a justiça dizer que, como que salvaguardando os<br />
princípios da moral, os bandos que <strong>de</strong>terminavam o prêmio da <strong>de</strong>lação, assim<br />
rezavam “...e confiscados os bens, uma parte pertencerá ao real erário, e outra<br />
ao vil <strong>de</strong>nunciador.”<br />
E assim ficavam satisfeitas aquelas almas <strong>de</strong> moral elástica.<br />
A <strong>de</strong>núncia verbal do contratador dava lugar a um processo sumário<br />
secreto, que terminava invariavelmente pela con<strong>de</strong>nação do acusado, o que vale<br />
dizer, que o contratador era um novo tirano para os tijuquenses.<br />
O primeiro arrematador, João Fernan<strong>de</strong>s não <strong>de</strong>ve ser confundido com o<br />
<strong>de</strong>sembargador, seu homônimo, e filho <strong>de</strong> que nos ocuparemos adiante.<br />
Vamos agora tratar <strong>de</strong> um dos pontos mais interessantes da história do<br />
Tijuco, em volta do qual a lenda aparece em glorificações <strong>de</strong> martírios, em<br />
relevos <strong>de</strong> valor, <strong>de</strong> generosida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> amplos e vastos sentimentos bons.<br />
Referimo-nos ao garimpeiro, àquele que exercia a mineração furtiva,<br />
indo <strong>de</strong> encontro às mais severas or<strong>de</strong>ns da Colônia, afetando diretamente seus<br />
interesses.<br />
O garimpeiro não é a nosso ver o indivíduo ousado que afronta as leis<br />
estabelecidas, fraudando os cofres do Estado e a socieda<strong>de</strong> em geral.
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Ele é o primeiro assomo <strong>de</strong> vitalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um povo adormentado que se<br />
revolta contra a iniqüida<strong>de</strong> do tributo lançado não consoante às necessida<strong>de</strong>s<br />
públicas mas <strong>de</strong> acordo com as ambições e opulências <strong>de</strong> uma Corte <strong>de</strong>vassa.<br />
Foi o brado da primeira reação contra a tirania, foi o primeiro que se<br />
sentindo oprimido teve a coragem inaudita <strong>de</strong> reagir e lutar.<br />
Estudando o caráter e a índole do garimpeiro convencemo-nos <strong>de</strong> que ele<br />
seria o herói <strong>de</strong> uma luta libertadora, se as condições especiais <strong>de</strong> meio e <strong>de</strong><br />
época permitissem a germinação <strong>de</strong>ssa idéia.<br />
É necessário dizer que o garimpeiro tinha como único crime o <strong>de</strong>sprezo<br />
das <strong>de</strong>terminações proibitivas do governo; na sua vida nôma<strong>de</strong> nem sempre<br />
rendosa muitas vezes a miséria e a fome po<strong>de</strong>riam guiá-lo aos atentados<br />
infames; ele jamais se confundiu com o salteador <strong>de</strong> estradas, com o invasor <strong>de</strong><br />
fazendas e povoações inermes.<br />
O viajante não sentia o mais leve temor nos lugares mais ermos,<br />
carregados <strong>de</strong> riqueza, encontrava um bando <strong>de</strong> mineradores furtivos.<br />
Eles não queriam o oiro que representava um esforço e um trabalho:<br />
reclamavam para si o que a natureza guardava para todos.<br />
Isolados e sempre perseguidos nas grimpas alcantiladas das serras do<br />
Tijuco, levando uma existência quase selvagem, o caráter <strong>de</strong>sses homens se<br />
acrisolou na virtu<strong>de</strong>, na lealda<strong>de</strong>, numa coragem indômita <strong>de</strong> leões, qualida<strong>de</strong>s<br />
que formam o traço característico da vida do garimpeiro.<br />
Nas tradições populares <strong>de</strong> Diamantina <strong>de</strong>stacam-se os vultos simpáticos<br />
<strong>de</strong> João da Costa, José Basílio e Isidoro, tendo o primeiro <strong>de</strong>sses sido consi<strong>de</strong>rado<br />
injustamente por Júlio Verne em o seu romance A jangada como um<br />
vulgar criminoso salteador e ladrão.<br />
Vamos citar a lenda <strong>de</strong> José Basílio, uma das mais cheias <strong>de</strong> episódios.<br />
José Basílio, natural da vizinha cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Santa Luzia, garimpava nas<br />
lavras do Tijuco, quando foi preso durante a intendência <strong>de</strong> Luiz Beltrão.<br />
Conseguiu evadir-se subornando o carcereiro com meia oitava <strong>de</strong><br />
diamantes. Preso pela segunda vez em 1784, foi con<strong>de</strong>nado a trabalhar <strong>de</strong>z<br />
anos no serviço da extração no Jequitinhonha, ligado por correntes a um outro<br />
garimpeiro sentenciado — João Bago.<br />
Um dia mandaram do Tijuco um pequeno embrulho contendo algum<br />
oiro, umas limas e uma faca.<br />
No gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>salento que minava a alma forte do garimpeiro, sorriu-lhe<br />
um doce Luar <strong>de</strong> Esperança, e numa visão saudosa ele viu aparecer perto a vida<br />
aventureira que dantes levara, sob o pálio suavizante das estrelas e dormiu<br />
embalado por Sonhos brumosos <strong>de</strong> Liberda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> amor.
Tijuco – lendas e tradições ____________________________________________________ Edgar Matta Machado 181<br />
O galé que se julgava abandonado tinha palpitando por ele um coração<br />
piedoso; é que a alma nacional fatigada <strong>de</strong> sofrer, tinha infinitos afetos para o<br />
garimpeiro rebel<strong>de</strong>. Uma noite quando a tropa dormia e o sono cerrava as<br />
pálpebras vigilantes das sentinelas, os dois aventureiros, num anseio <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>,<br />
limavam pacientemente as correntes dos pés. Livres os passos, os<br />
sentenciados abandonaram a choupana, como se <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> lhes ter farolado no<br />
espírito uma idéia <strong>de</strong> fuga, não pu<strong>de</strong>ssem mais respirar a atmosfera pesada que<br />
cerca os prisioneiros.<br />
A buzina soou, anunciando o alarma; os fugitivos precipitaram-se para as<br />
bandas do Jequitinhonha, incendiando na passagem, os colmados para que a<br />
confusão no acampamento lhes permitisse a fuga. Entre os clarões fumarentos<br />
daquele incêndio lembravam fantasmas <strong>de</strong> criminosos, unidos na Xifopagia da<br />
Pena.<br />
Acercaram-se do Jequitinhonha e o rio, naquela hora erma da noite,<br />
rolava as águas negras num soluço eterno <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nado.<br />
Os dragões, no encalço dos fugitivos, aproximavam-se sempre: era<br />
necessário agir. No espírito dos garimpeiros <strong>de</strong>senvolveram-se perspectivas<br />
sombrias, suce<strong>de</strong>ndo-se rápidas: <strong>de</strong> um lado, novo encarceramento, novas<br />
correntes pren<strong>de</strong>ndo-lhes os passos, <strong>de</strong>pois uma longa viagem, o embalo das<br />
águas, por longos dias silentes, e no fundo do quadro os areais da África, os<br />
rochedos estéreis, o <strong>de</strong>gredo perpétuo; do outro, as águas do rio turbilhonando<br />
na cheia, a Agonia cruel dos afogados, a Morte, a Morte sempre...<br />
E os dois corpos ligados precipitaram-se na torrente...<br />
O Jequitinhonha corre nesse ponto entre negros rochedos escarpados,<br />
rápido e espumaroso; os dois galés unidos ainda pelo pescoço nadavam rio<br />
abaixo num esforço tremendo; aproximando-se das margens os braços hirtos<br />
dos nadadores procuravam em vão apoio nos rochedos nus; os <strong>de</strong>dos<br />
escorregavam no limo úmido, a corrente pesada fazia-os mergulhar <strong>de</strong> quando<br />
em quando para surgirem além mais fatigados ainda.<br />
A luta não se podia prolongar e em breve aqueles corpos iriam dormir<br />
nas areias do Jequitinhonha, entre os diamantes e o oiro.<br />
Da margem, uma árvore estendia os braços sobre as águas, Basílio<br />
agarrou-se a ela, num supremo esforço: era a salvação, a liberda<strong>de</strong>, o garimpo,<br />
a riqueza...<br />
No silêncio trágico da noite, só interrompido pelo salmodiar da torrente,<br />
soaram sinistras duas <strong>de</strong>tonações.<br />
Basílio sentiu na argola que lhe cingia o pescoço uma pancada violenta e<br />
um gran<strong>de</strong> peso, partindo o galho da árvore, precipitou-o nas águas.
182 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Seu companheiro tivera o crânio varado por uma bala e agora ele se via<br />
ligado a um cadáver que o arrastava, pesado como chumbo, para as profun<strong>de</strong>zas<br />
do rio.<br />
A luta recomeçou; Basílio levado para as camadas inferiores, agarrou-se<br />
a um rochedo que se elevava até a superfície e, num esforço sobre-humano,<br />
arrastando-se, e ao companheiro morto, voltou à tona e agarrou-se à anfractuosida<strong>de</strong><br />
duma pedra.<br />
Daí viu os dragões que se retiravam sacudindo gran<strong>de</strong>s fachos acesos,<br />
julgando-os mortos e sepultados nas águas marulhosas do opulento Jequitinhonha.<br />
João Bago tombou realmente nessa tentativa <strong>de</strong> fuga, mas Basílio viveu<br />
ainda porque para mais tar<strong>de</strong> estava marcada sua hora.<br />
No dia seguinte chegou à serra da Barra do Rio Manso, on<strong>de</strong> morava um<br />
parente ferreiro que fez do ferro das correntes dois almocafres e uma alavanca<br />
com que José Basílio continuou o garimpo.<br />
Foi ainda por seis anos o terror das tropas da extração, e em 1791,<br />
trabalhando no Brumadinho com outros companheiros, após uma resistência<br />
heróica, foi preso, ferido gravemente.<br />
Durante o interrogatório não <strong>de</strong>nunciou nenhum <strong>de</strong> seus cúmplices.<br />
Justificando-se plenamente <strong>de</strong> outros crimes que lhe eram imputados, só<br />
foi con<strong>de</strong>nado como extraviador <strong>de</strong> diamantes, a <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> <strong>de</strong>gredo para<br />
Angola.<br />
E nada mais reza a crônica sobre esse célebre garimpeiro, cuja lenda foi<br />
reduzida a belíssima forma pelo talento <strong>de</strong> Afonso Arinos.<br />
Porém no ciclo glorioso das lendas do Tijuco sobressai, em primeiro<br />
plano, a figura simpática <strong>de</strong> Isidoro, – o mártir que ainda hoje vive na memória<br />
do povo diamantinense.<br />
Corria a Intendência do Câmara, único inten<strong>de</strong>nte brasileiro e o primeiro<br />
que chamou sobre sua memória a amiza<strong>de</strong> do povo e que a par <strong>de</strong> atos <strong>de</strong><br />
generosida<strong>de</strong> fidalga, e gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> ânimo tem maculando-lhe a vida, o<br />
episódio doloroso <strong>de</strong> Isidoro, o Garimpeiro.<br />
Era esse um pardo, escravo <strong>de</strong> frei Rangel, que vivia da mineração.<br />
Processado como contrabandista, foi confiscado a seu senhor e con<strong>de</strong>nado ao<br />
trabalho, no serviço da extração, como galé.<br />
Não po<strong>de</strong>ndo suportar a pena Isidoro, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> várias tentativas,<br />
conseguiu evadir-se, reunindo-se a 50 garimpeiros que formaram o bando mais<br />
terrível <strong>de</strong> mineradores clan<strong>de</strong>stinos. Isidoro, como chefe, mantinha no grupo a<br />
mais severa disciplina, e se por acaso, algum dos companheiros infringia as
Tijuco – lendas e tradições ____________________________________________________ Edgar Matta Machado 183<br />
normas estabelecidas, era entregue, quando escravo, a seu senhor, para que<br />
sofresse a punição merecida.<br />
“Respeitavam, diz o dr. Felício, a proprieda<strong>de</strong> dos brancos que lhes<br />
haviam roubado o mais precioso dos bens – a Liberda<strong>de</strong>.”<br />
Nunca sobre Isidoro, pesou uma <strong>de</strong>núncia infamante; estimado por todos,<br />
hábil mineiro, recolhia abundantes resultados do seu trabalho, e entretinha<br />
relações comerciais com os principais habitantes do Tijuco.<br />
Para citar um fato característico, transcreveremos das Memórias do<br />
Distrito Diamantino o seguinte trecho:<br />
Tendo fala em uma certa casa da Rua da Romana, Isidoro apareceu<br />
disfarçado à noite, e pediu para conversar, em particular, com o dono da casa.<br />
Em um gabinete secreto teve lugar o diálogo que se segue:<br />
– O senhor me conhece? pergunta o nosso herói.<br />
– Conheço; é Isidoro, o Garimpeiro.<br />
– É verda<strong>de</strong>; e nem consta que eu tenha feito mal a pessoa alguma.<br />
– É certo.<br />
– O senhor tem uma escrava?<br />
– Tenho algumas.<br />
– Uma fugida?<br />
– Sim.<br />
– Chamada Maria?<br />
– Sim.<br />
– Sabe que não fui eu quem a aliciou a que fugisse <strong>de</strong> sua casa?<br />
– Sei que para fugir ela não precisa <strong>de</strong> quem a alicie.<br />
– Quanto o senhor quer pela sua liberda<strong>de</strong>?<br />
– Por ter o <strong>de</strong>feito <strong>de</strong> fugitiva, só vale 200 oitavas.<br />
– Mas ela está com filho.<br />
– Então quero 220.<br />
– Mas o filho é meu.<br />
– Então só quero 200.<br />
– Eu trouxe 600 oitavas para a liberda<strong>de</strong> da mãe e do filho; o dinheiro<br />
aplicado para a liberda<strong>de</strong> é sagrado. Peço-lhe que distribua as 400 restantes<br />
para os pobres.<br />
Isidoro recebeu a carta <strong>de</strong> alforria e saiu.<br />
No dia seguinte os pobres do Tijuco receberam 400 oitavas <strong>de</strong> esmola e<br />
só posteriormente se soube a sua origem.<br />
Esse diálogo vem <strong>de</strong>monstrar o que acima dissemos.
184 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
O caráter <strong>de</strong>sse homem, que havia sido escravo, transparece puro como<br />
os diamantes através <strong>de</strong>ssas frases sinceras.<br />
Não era nem podia ser um criminoso esse que manifestava os mais<br />
elevados sentimentos, uma Moral sã, princípios retos <strong>de</strong> Justiça.<br />
Isidoro foi muito perseguido durante a intendência <strong>de</strong> João Ignácio, que<br />
prece<strong>de</strong>u à do Câmara, sua cabeça foi posta a prêmio; entretanto ele vivia quase<br />
publicamente nas povoações e ninguém o prendia.<br />
Câmara, o mais acérrimo perseguidor dos garimpeiros <strong>de</strong>clarou-lhe uma<br />
guerra encarniçada, disseminou patrulhas por toda a parte, bateu em diferentes<br />
lugares, empregou meios <strong>de</strong> sedução, ameaça e violência com as pessoas que<br />
supunha protegê-lo.<br />
Burlando todos esses planos, Isidoro escapava às perseguições <strong>de</strong> Câmara,<br />
que, dotado <strong>de</strong> excessivo amor-próprio, fez ponto <strong>de</strong> honra da prisão do<br />
garimpeiro.<br />
Depois <strong>de</strong> muitos anos garimpar, nas proximida<strong>de</strong>s do Tijuco, sempre<br />
perseguido, ora vencedor generoso, ora vencido e foragido nos <strong>de</strong>sertos, até<br />
que organizasse novamente seu bando e pu<strong>de</strong>sse continuar o garimpo, entrou<br />
um dia, em 1809, preso no Tijuco.<br />
O povo que o conhecia em as gran<strong>de</strong>s manifestações <strong>de</strong> sua Alma <strong>de</strong><br />
Justo, acompanhou-o pelas ruas e um murmúrio unânime <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong> fugia<br />
daqueles peitos.<br />
Ferido, amarrado sobre o cavalo, as vestes rotas, manchadas <strong>de</strong> sangue,<br />
Isidoro simbolizava em sua dolo<strong>rosa</strong> Via Crucis, o sofrimento longo e inconsolável<br />
daquele povo oprimido.<br />
Os olhos gran<strong>de</strong>s magoados vinham cheios <strong>de</strong> uma resignação celeste;<br />
nem uma contração da face, indicando a impotência do ódio – ele o forte, o<br />
ousado lutador que tantas vezes vencera os dragões da Extração, que jamais<br />
sentira falsear-lhe a energia na iminência trágica do perigo – mostra então a<br />
coragem excelsa do martírio, essa que só <strong>de</strong> longe em longe aparece na História.<br />
E a multidão <strong>de</strong> homens magoados e mulheres lacrimejantes segue o<br />
préstito, dizendo: “Ei-lo, o inocente, ei-lo, o Justo”.<br />
No interrogatório, <strong>de</strong>morado, e rigoroso a que o submeteu Câmara, não<br />
<strong>de</strong>nunciou um só <strong>de</strong> seus cúmplices, mostrando a mesma obstinação <strong>de</strong><br />
Tira<strong>de</strong>ntes em chamar para si todas as responsabilida<strong>de</strong>s e Penas.<br />
Perguntando-se-lhe se conhecia seu crime, respon<strong>de</strong>u que não era criminoso<br />
“os diamantes são <strong>de</strong> Deus e não julgo <strong>de</strong>lito extraí-los”.<br />
Em vista da obstinação calma e serena, negando-se sempre a <strong>de</strong>nunciar<br />
culpados, foi, a mandado <strong>de</strong> Câmara, submetido à tortura; preso a uma escada,
Tijuco – lendas e tradições ____________________________________________________ Edgar Matta Machado 185<br />
<strong>de</strong> cabeça para baixo, os membros sangrando ainda pelas feridas do combate,<br />
os movimentos tolhidos e pe<strong>de</strong>stres robustos dilaceravam-lhe as carnes com os<br />
látegos cortantes do bacalhau.<br />
O povo compungido assistia o Martírio, mas dos lábios <strong>de</strong> Isidoro nem<br />
uma blasfêmia fugia, nem uma palavra <strong>de</strong> <strong>de</strong>sesperação e <strong>de</strong> Ódio.<br />
De um segundo açoitamento foi transportado moribundo para o cárcere e<br />
então mostrou <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> conversar com Câmara, tinha um pedido a fazer-lhe e<br />
uma revelação importante.<br />
O inten<strong>de</strong>nte era um espírito adiantado, dotado <strong>de</strong> altas qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
Coração e Alma, mas em quem um gênio arrebatado e impulsivo o levava a<br />
lamentáveis excessos, dos quais se penitenciava <strong>de</strong>pois. Foi assim que, quando<br />
o garimpeiro agonizava, vítima dos açoitamentos iníquos, dirigiu-se à prisão e<br />
disse ao moribundo: “Isidoro, peço-te perdão pelo muito que te fiz sofrer”. O<br />
infeliz tentou erguer-se, murmurou sons inarticulados e tombou; – terminara<br />
para ele a dolo<strong>rosa</strong> peregrinação na vida transitória.<br />
A memória <strong>de</strong>sse Mártir vive e viverá sempre na recordação do povo que<br />
o venera.<br />
Ele é um canonizado da consciência pública, e seu nome invocado nos<br />
momentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero, como se sua Alma sofredora na terra, seja agora nos<br />
Céus a proteção e o amparo dos que choram!...<br />
Dizem que na Procissão <strong>de</strong> Passos, quando o andor do Crucificado passa<br />
pelas ruínas da ca<strong>de</strong>ia velha, torna-se pesado, como se o garimpeiro, invisível<br />
aos olhares profanos, seguisse no andor acorrentado e sangrento ao lado <strong>de</strong><br />
Jesus, Gran<strong>de</strong> Mártir lendário.<br />
Vamos <strong>de</strong>screver um episódio importante sucedido no Tijuco, durante o<br />
governo do marquês do Pombal.<br />
Felisberto Cal<strong>de</strong>ira Brant, <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte direto <strong>de</strong> D. João III, duque <strong>de</strong><br />
Brabant, (1355), bisavô do marquês <strong>de</strong> Barbacena, era um contratador popularíssimo<br />
pela con<strong>de</strong>scendência com que olhou para o contrabando e mineração furtiva,<br />
se bem que <strong>de</strong> sua repressão pu<strong>de</strong>ssem advir vantagens e lucros para o contrato.<br />
O dr. Rodrigo Otávio, no seu recente romance histórico – Felisberto<br />
Cal<strong>de</strong>ira Brant – baseado em um trecho <strong>de</strong> uma memória da Capitania, trabalho<br />
escrito em época pouco posterior à vida daquele contratador, diz que seria<br />
ele consi<strong>de</strong>rado como um criminoso vulgar, se o dr. Joaquim Felício não lhe<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>sse a memória.<br />
Pedimos ao ilustre literato vênia para dizer que o contratador Felisberto<br />
Cal<strong>de</strong>ira nunca foi consi<strong>de</strong>rado um criminoso, e sim uma vítima simpática da<br />
tirania portuguesa.
186 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Possuidor <strong>de</strong> uma enorme fortuna adquirida nos sertões <strong>de</strong> Goiás e<br />
Paracatu, Felisberto Cal<strong>de</strong>ira assinou no Tijuco o terceiro contrato, no qual<br />
eram associados seus três irmãos.<br />
Foi esse o período áureo do Distrito <strong>de</strong>marcado; prosperavam indústrias<br />
e todos os ramos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>.<br />
A principesca opulência dos Cal<strong>de</strong>iras, a popularida<strong>de</strong> que os cercava,<br />
começaram a preocupar os governos da Metrópole que receavam as gran<strong>de</strong>s<br />
potências da Colônia, e aproveitando <strong>de</strong>núncias, infundadas talvez, principiaram<br />
a mover-lhes perseguições, <strong>de</strong> que afinal foram vítimas.<br />
Um inci<strong>de</strong>nte havido na matriz do arraial durante as festas da Semana<br />
Santa, provocado pelo modo <strong>de</strong>srespeitoso com que o ouvidor da Vila do<br />
Príncipe tratou uma gentil mocinha, prima <strong>de</strong> Felisberto, inci<strong>de</strong>nte este que <strong>de</strong>u<br />
lugar à iminência <strong>de</strong> um grave conflito entre dragões, populares e pe<strong>de</strong>stres,<br />
evitado entretanto pelo padre oficiante, que meteu-se entre o povo, pedindo a<br />
paz em nome <strong>de</strong> Jesus, fez com que o governador da Capitania, tendo recebido<br />
or<strong>de</strong>m da Metrópole, se dirigisse em pessoa para o Tijuco.<br />
Felisberto preparou para sua chegada uma recepção majestosa, e tendo<br />
<strong>de</strong>la notícia, saiu-lhe ao encontro acompanhado <strong>de</strong> seu irmão e <strong>de</strong> todas as<br />
pessoas notáveis do arraial.<br />
Chegados ao ribeirão do Inferno, avistaram os tijuquenses a luzida<br />
comitiva do general.<br />
Conta-se que nessa ocasião o cavalo fogoso <strong>de</strong> Felisberto, dando um passo<br />
em falso, atirou fora da sela o hábil cavaleiro, que se levantou pálido, dizendo:<br />
“Meus amigos, é a primeira vez que isto me acontece, pressagio alguma<br />
<strong>de</strong>sgraça que me está para suce<strong>de</strong>r”.<br />
De fato, daí a pouco, encontraram o general, seguido <strong>de</strong> numeroso séquito.<br />
Cumprimentando-o amavelmente, Felisberto, <strong>de</strong>u-lhe aquele voz <strong>de</strong><br />
prisão, cercando-o os dragões <strong>de</strong> espadas <strong>de</strong>sembainhadas.<br />
Dali mesmo seguiu para a Vila Rica e <strong>de</strong>pois para a Metrópole, sem que<br />
lhe fosse permitido <strong>de</strong>spedir-se da família.<br />
A notícia espalhando-se no Tijuco, causou profunda impressão, porque<br />
<strong>de</strong>ntro do arraial impossível seria sua prisão.<br />
O fisco seqüestrou à família todos os bens <strong>de</strong> Felisberto; e sua mulher e<br />
filhos viram-se forçados a procurar hospitalida<strong>de</strong> em casas amigas.<br />
Conta-se que, quando em casa <strong>de</strong> Felisberto faziam para o confisco o<br />
arrolamento <strong>de</strong> seus bens, o governador voltando-se para as senhoras que<br />
assistiram ao ato, disse-lhes que podiam adornar-se com suas jóias prediletas<br />
que seriam respeitadas.
Tijuco – lendas e tradições ____________________________________________________ Edgar Matta Machado 187<br />
Aquelas damas orgulhosas e nobres, habituadas às riquezas, não podiam<br />
aceitar a generosida<strong>de</strong> irrisória do fisco.<br />
Por um gesto simultâneo, movidas pelo mesmo sentimento, <strong>de</strong>spojaram-se<br />
das próprias jóias que as adornavam então, para que nem mesmo aquelas<br />
insignificâncias per<strong>de</strong>sse a coroa.<br />
Conduzido para a prisão do Limoeiro, em Lisboa, Felisberto assistiu ao<br />
terremoto, e narra a lenda que, quando os habitantes, presas da <strong>de</strong>solação,<br />
fugiam, nas ruínas da ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>smoronada, a figura pálida <strong>de</strong> Felisberto erguiase<br />
bradando: “Ladrões... restituí-me o dinheiro que me roubastes!”<br />
Para terminar a história do infeliz contratador, transcrevemos o seguinte<br />
trecho <strong>de</strong> Rodrigo Otávio: “... e, só <strong>de</strong>pois que um sinistro silêncio suce<strong>de</strong>u à<br />
confusão e tumulto das primeiras horas, o velho presidiário <strong>de</strong>sceu lentamente<br />
do alto das ruínas, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> contemplara o <strong>de</strong>plorável panorama da <strong>de</strong>struição, e<br />
se per<strong>de</strong>u no labirinto solitário das ruas <strong>de</strong>smoronadas.<br />
“Nesse andar chegou o ancião à casa em que, foi informado, estava o<br />
marquês <strong>de</strong> Pombal, cercado <strong>de</strong> outros ministros do rei, tomando as<br />
providências imediatas que tamanha <strong>de</strong>sgraça exigia.<br />
“Levado à presença do po<strong>de</strong>roso ministro, disse o velho: – “Senhor! Eu<br />
sou Felisberto Cal<strong>de</strong>ira Brant, o contratador dos diamantes do Tijuco, preso nos<br />
segredos do Limoeiro, e à espera, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1753, da liquidação <strong>de</strong> minhas contas.<br />
“Como a prisão em que me achava <strong>de</strong>sabou e restituiu-me à luz do dia,<br />
que não via <strong>de</strong>s<strong>de</strong> tanto tempo, venho pedir à Vossa Excelência que <strong>de</strong>signe<br />
outra prisão, a que me <strong>de</strong>va recolher e aguardar a liquidação <strong>de</strong> meu débito e o<br />
levantamento do seqüestro <strong>de</strong> meus bens, o que já tantas vezes tenho requerido<br />
e <strong>de</strong> novo requeiro.”<br />
Surpreso com o estranho proce<strong>de</strong>r do mineiro, quando todos os outros se<br />
haviam prevalecido do sucesso para reconquistar a liberda<strong>de</strong> comprometida por<br />
algum crime ou malversação, Sebastião Joseph <strong>de</strong> Carvalho replicou: “– Não<br />
precisa que se lhe aponte prisão quem tão nobremente proce<strong>de</strong>.<br />
– Recolhei-vos aon<strong>de</strong> vos aprouver e quando houver passado esse<br />
primeiro tempo <strong>de</strong> extraordinárias preocupações, que esta <strong>de</strong>sgraça <strong>de</strong> hoje veio<br />
trazer para o serviço d’El-Rei, procurai-nos <strong>de</strong> novo que vamos prover acerca<br />
do vosso justo requerimento.”<br />
Falando no terremoto <strong>de</strong> Lisboa, lembramo-nos <strong>de</strong> uma lenda que corre<br />
em Diamantina, e que narraremos em largos traços.<br />
Quando em Lisboa, como se uma maldição tremenda pesasse sobre a<br />
cida<strong>de</strong> opressora, os palácios <strong>de</strong>smoronavam abalados nos fundos alicerces, e o<br />
povo assombrado errava pelas ruas, invadindo as Igrejas, como se no recesso
188 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
sagrado as epilepsias geológicas não atingissem o homem, uma senhora, cujo<br />
solar fidalgo se havia abatido, penetrou em uma Igreja <strong>de</strong>serta e em orações<br />
contritas pedia aos céus que a salvassem daquela tremenda catástrofe.<br />
O templo estremeceu como se fosse <strong>de</strong>sabar e tendo-se fendido a pare<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> pedra, um raio <strong>de</strong> luz coada através <strong>de</strong> nuvens <strong>de</strong>nsas e plúmbeas, infiltrouse<br />
pela fenda do muro, indo aureolar <strong>de</strong> uma clarida<strong>de</strong> estranha a cabeça<br />
cismadora <strong>de</strong> uma imagem da Virgem.<br />
O terreno continuava a mover-se, as torres inclinavam-se, <strong>de</strong> pé ainda<br />
por um milagroso equilíbrio, e <strong>de</strong> longe, como um rumor <strong>de</strong> tormentas, os<br />
ruídos do <strong>de</strong>smoronamento chegavam; e gritos <strong>de</strong> mágoa subiam para os céus<br />
inclementes, como últimas preces dolo<strong>rosa</strong>s e aflitas.<br />
A mulher que rezava precipitou-se para a senhora que parecia fitá-la<br />
compassiva, beijando-lhe os pés; e num voto <strong>de</strong> salvação prometeu <strong>de</strong>dicar sua<br />
vida e fortuna na criação <strong>de</strong> um Asilo <strong>de</strong> órfãs e recolhimento on<strong>de</strong> quer que o<br />
<strong>de</strong>stino a levasse.<br />
Acalmado o terremoto, Thereza <strong>de</strong> Jesus Perpétua Corte Real retirou-se<br />
<strong>de</strong> Lisboa para o Brasil, fixou-se no Tijuco, on<strong>de</strong> em cumprimento da promessa,<br />
fundou o recolhimento <strong>de</strong> Nossa Senhora da Luz, mais tar<strong>de</strong> transformado<br />
em estabelecimento <strong>de</strong> educação <strong>de</strong> meninas.<br />
Thereza <strong>de</strong> Jesus, espírito místico, chegando a avançada ida<strong>de</strong>, atacada<br />
<strong>de</strong> amolecimento cerebral senil, tornou-se uma contemplativa visitada por<br />
visões beatíficas.<br />
Dizem que uma tar<strong>de</strong> quando soava o toque emocionante do Ângelus<br />
Sonoro, sobre as serras distantes morriam os <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iros vasquejamentos fulvos<br />
<strong>de</strong> um sol agonizante, e pelas estradas <strong>de</strong>sertas mugiam saudosamente os<br />
velhos bois sonolentos, reunidas na Capela do Convento começavam as Orações<br />
do Ritual as freiras e as noviças, quando uma <strong>de</strong>ssas sentindo-se doente<br />
pediu à madre diretora que lhe permitisse orar em sua cela.<br />
Terminada a Prece na hora silenciosa do ressurgimento <strong>de</strong> Vésper,<br />
quando o impon<strong>de</strong>rável das cousas parece ser a nota dominante, Thereza <strong>de</strong><br />
Jesus, tendo ainda a embalar-lhe as últimas notas dos Salmos soluçantes,<br />
dirigiu-se para a cela da noviça doente.<br />
E uma visão estranha lhe <strong>de</strong>slumbra o olhar fatigado.<br />
Era talvez um santo guerreiro, <strong>de</strong>sses que haviam feito as campanhas<br />
piedosas da Ida<strong>de</strong> Média, e sucumbido beijando a terra sagrada que guarda o<br />
sepulcro <strong>de</strong> Cristo.<br />
E enquanto Thereza <strong>de</strong> joelhos humilhava-se ante a aparição celeste, essa<br />
se <strong>de</strong>svanecia na sombra <strong>de</strong>nsa dos longos corredores claustrais.
Tijuco – lendas e tradições ____________________________________________________ Edgar Matta Machado 189<br />
Há entretanto quem afirme que <strong>de</strong>ssa vez não foi a religiosa vítima <strong>de</strong><br />
uma mera visão subjetiva <strong>de</strong> seu espírito doente. Mais tar<strong>de</strong>, quando se<br />
procedia a transformação do antigo Recolhimento na atual Igreja da Luz<br />
(conserto lamentável que perturbou o velho estilo imponente do edifício) ficou<br />
o trabalho em meio, as pare<strong>de</strong>s abertas aos vendavais e chuvas.<br />
Um operário, <strong>de</strong> nome João, que nela trabalhava, contou que, indo fazer<br />
uma oração, ouviu os lábios <strong>de</strong> pedra <strong>de</strong> São Francisco murmurarem suplicantes:<br />
“João... ao menos barro!...” E então o povo concorreu com esmolas para<br />
que as pare<strong>de</strong>s se levantassem, não somente <strong>de</strong> barro, como pedia o mo<strong>de</strong>sto<br />
Santo, mas <strong>de</strong> cal e areia.<br />
Um dos tipos mais característicos do Tijuco colonial é o célebre nababo<br />
<strong>de</strong>sembargador João Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira, <strong>de</strong> cuja vida aci<strong>de</strong>ntada e cheia <strong>de</strong><br />
episódios rapidamente nos ocuparemos.<br />
Do modo e da facilida<strong>de</strong> com que adquiriu a sua colossal fortuna que<br />
parecia, como se <strong>de</strong> longa data já lhe fosse <strong>de</strong>stinada, entrava-lhe pelas portas<br />
a<strong>de</strong>ntro como que dirigida por um po<strong>de</strong>r oculto, um simples fato, que passamos<br />
a narrar, nos dará uma idéia precisa.<br />
Encetando a exploração <strong>de</strong> uma das suas jazidas, quando apenas começava<br />
o <strong>de</strong>smonte, removendo a vegetação rasteira que cobria a superfície da<br />
terra, os diamantes estrelavam <strong>de</strong> tal maneira que o ambicioso <strong>de</strong>sembargador,<br />
aterrado, lançou-se <strong>de</strong> joelhos exclamando: “– Senhor, se tanta riqueza tem <strong>de</strong><br />
ser a causa da minha perdição, fazei que todos esses diamantes se transformem<br />
em carvões.”<br />
De todos contratadores foi o que maiores benefícios retirou, acumulando<br />
a maior fortuna do Tijuco.<br />
Orgulhoso, recebendo a vassalagem que prestavam à sua fortuna, o<br />
<strong>de</strong>sembargador era autoritário, antipático ao povo em geral, e só se curvava<br />
humil<strong>de</strong> ante as caprichosas vonta<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sua amante, a célebre Xica da Silva,<br />
mulher que não tinha atrativos que justificassem tal paixão.<br />
Na encosta da Serra, lugar hoje <strong>de</strong>nominado Palha, erguia-se o Castelo<br />
do Contratador, vasto edifício <strong>de</strong> arquitetura medieval, posteriormente <strong>de</strong>molido,<br />
ato <strong>de</strong> vandalismo que, diz o dr. Felício, fez <strong>de</strong>saparecer o edifício mais<br />
importante da época feudal do Tijuco.<br />
Havia nesse solar fidalgo uma vasta Capela riquissimamente adornada e<br />
também um teatro on<strong>de</strong> se representavam peças ao sabor da época, nos dias <strong>de</strong><br />
festivida<strong>de</strong>.<br />
O parque era <strong>de</strong> um trabalho artístico digno <strong>de</strong> ser admirado, povoado <strong>de</strong><br />
flores e árvores exóticas, cheio <strong>de</strong> córregos <strong>de</strong> águas cristalinas correndo sobre
190 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
conchas marinhas, grutas, cascatas volumosas que espalhavam na penumbra do<br />
bosque uma eterna (3) música sono<strong>rosa</strong>.<br />
Um dia Xica da Silva, que nascera no Tijuco, e ouvira falar no mar e nos<br />
navios como cousas fabulosas, <strong>de</strong>sejou, por um capricho <strong>de</strong> mulher amada,<br />
possuir um navio, não sobre as águas do oceano, mas sob o céu do Tijuco.<br />
O <strong>de</strong>sembargador, cuja fortuna colossal não encontrava impossíveis,<br />
mandou cavar um vastíssimo tanque em terreno próximo à sua morada,<br />
trazendo para o Tijuco armadores que construíram um pequeno navio, armado<br />
em brigue, no qual Xica da Silva passeava às tar<strong>de</strong>s no gran<strong>de</strong> lago artificial.<br />
João Fernan<strong>de</strong>s edificou a Igreja do Carmo, templo suntuoso que ainda<br />
hoje existe mostrando sua <strong>de</strong>cadência gloriosa.<br />
Mas apesar disso o capricho <strong>de</strong> Xica da Silva, que lhe ditara a realização<br />
<strong>de</strong>ssa obra, não pô<strong>de</strong> ser satisfeito: a Irmanda<strong>de</strong> do Carmo não permitia em seu<br />
seio indivíduos que não fossem <strong>de</strong> pura raça caucasiana e nem todo o po<strong>de</strong>r do<br />
contratador conseguiu vencer esse preconceito secular, tolo e ridículo, digamos<br />
<strong>de</strong> passagem.<br />
Esse célebre contratador aproveitou-se para as suas explorações da<br />
tibieza <strong>de</strong> ânimo do inten<strong>de</strong>nte Francisco José Pinto <strong>de</strong> Mendonça, o qual por<br />
ser muito friorento e andar freqüentemente aquecendo-se ao sol, sobre umas<br />
pedras, vestido <strong>de</strong> um largo mandrião, recebeu do povo o apelido <strong>de</strong> Mocó.<br />
Refere a crônica que, um dia, dizendo-lhe alguém que o povo lhe pusera<br />
tal alcunha, respon<strong>de</strong>u com o sotaque português: “Mucó ou não mucó sou eu<br />
quem os guberna”. Por esse tempo começava no Tijuco o fermento revolucionário,<br />
alimentado pelas idéias francesas e pela notícia das guerras da<br />
América Inglesa.<br />
O espírito revolucionário encontrou terreno favorável ali, aplicando-selhe<br />
o célebre dístico da Companhia das Índias:<br />
“Florebo quocumque ferar.”<br />
Conhecida essa agitação, Pombal manda ao Tijuco, para sindicar dos<br />
fatos, o governador, con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Valadares, que tinha também a incumbência <strong>de</strong><br />
or<strong>de</strong>nar ao <strong>de</strong>sembargador um passeio a Lisboa.<br />
Chegado ao Tijuco o governador João Fernan<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>sconfiando das suas<br />
intenções, recebeu-o principescamente, hospedando-o em seu palácio com<br />
magnificência régia.<br />
3. No texto <strong>de</strong> base do jornal Minas Gerais está eterna. Parece-nos que etérea seria mais do uso <strong>de</strong> Edgard<br />
Matta.
Tijuco – lendas e tradições ____________________________________________________ Edgar Matta Machado 191<br />
Todos os dias à sobremesa dos lautos banquetes, o criado, trajando<br />
riquíssima libré, colocava ao lado do governador uma riquíssima salva <strong>de</strong> prata<br />
cheia <strong>de</strong> belíssimas pepitas <strong>de</strong> oiro.<br />
O governador, em vista da cortesia e gentileza, não se animava a transmitir<br />
a or<strong>de</strong>m da Metrópole, e necessitando fazê-lo recorreu a um estratagema<br />
que o <strong>de</strong>sculpasse perante o contratador.<br />
Pombal cortava, assim, as asas a mais esse condor do Tijuco.<br />
O <strong>de</strong>sembargador morreu em Lisboa em 1799, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter estabelecido<br />
o célebre morgado do Grijó, e construído, por or<strong>de</strong>m do marquês, duas ruas <strong>de</strong><br />
Lisboa <strong>de</strong>struídas pelo terremoto.<br />
Alguns <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes vivem ainda cretinos e <strong>de</strong>generados,<br />
arrastando sua miséria pelos hospitais do Norte, quando po<strong>de</strong>riam viver na<br />
opulência se lhes restituísse o governo português a herança a que têm incontestável<br />
direito.<br />
Pouco antes <strong>de</strong> surgirem as idéias <strong>de</strong> Liberda<strong>de</strong> em Vila Rica já no<br />
Tijuco se reuniam pessoas importantes e esclarecidas que sonhavam com a<br />
in<strong>de</strong>pendência e preparavam elementos para a revolução.<br />
Entre essas se <strong>de</strong>stacam os nomes <strong>de</strong> José Vieira Couto e o padre Rolim.<br />
Nesse tempo regia aqueles povos o célebre Código Draconiano, chamado Livro<br />
da Capa Ver<strong>de</strong>, que continha o regimento da <strong>de</strong>marcação diamantina.<br />
O dr. José Vieira Couto foi enviado à Metrópole como emissário das<br />
queixas dos tijuquenses, sendo preso em Lisboa.<br />
O ca<strong>de</strong>te Vieira Couto morreu no Tijuco, vitimado por uma enfermida<strong>de</strong><br />
apanhada na ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Vila Rica.<br />
Teve um enterro pomposo.<br />
O padre Rolim é muito conhecido pela parte saliente que tomou na<br />
Inconfidência <strong>Mineira</strong>.<br />
Fracassou assim o plano revolucionário, urdido no Tijuco, pouco antes<br />
da gloriosa epopéia <strong>de</strong> Tira<strong>de</strong>ntes. Quando Junot entrou em Lisboa, abriu as<br />
prisões e em uma <strong>de</strong>las encontrou o dr. José Vieira Couto, a quem disse:<br />
“Senhor, já o conhecia, sei que o seu crime é ser maçom, também maçom<br />
é o imperador meu amo.”<br />
Consta que Couto morreu assassinado em Portugal.<br />
Deixando <strong>de</strong> parte a repercussão que teve no Tijuco a revolução do<br />
Porto, e a manifestação do sentimento bairrista dos tijuquenses com a expulsão<br />
do inten<strong>de</strong>nte João Ignácio, passemos à figura simpática <strong>de</strong> Manoel Ferreira da<br />
Câmara Bitencourt e Sá, 12 o dos inten<strong>de</strong>ntes, e o primeiro brasileiro que<br />
ocupou tal cargo.
192 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Espírito culto, tendo percorrido as principais cida<strong>de</strong>s da Europa, Câmara<br />
foi um inten<strong>de</strong>nte humano e bondoso, embora inexorável no cumprimento do<br />
seu <strong>de</strong>ver e <strong>de</strong> gênio, por vezes, autoritário e <strong>de</strong>spótico.<br />
Intitulava-se pai do povo.<br />
Contam-se, a seu respeito, as seguintes anedotas, a segunda das quais<br />
vem referida nas Memórias do Distrito Diamantino, obra que nos tem sido o<br />
mais importante subsídio para confecção <strong>de</strong>sta palestra e que <strong>de</strong>ixarão patentes<br />
essas duas feições do seu caráter.<br />
Um dia o inten<strong>de</strong>nte teve notícia <strong>de</strong> que um indivíduo guardava em sua<br />
casa, diamantes extraídos clan<strong>de</strong>stinamente.<br />
Mandou efetuar incontinênti rigo<strong>rosa</strong> busca na casa do suspeito. Quando,<br />
porém, o escrivão partia para cumprir suas or<strong>de</strong>ns, disse-lhe o inten<strong>de</strong>nte ao<br />
ouvido: “Lembrai-vos <strong>de</strong> que o <strong>de</strong>nunciado é, como vós, pai <strong>de</strong> nume<strong>rosa</strong><br />
família”. É inútil dizer qual o resultado da diligência.<br />
Câmara in<strong>de</strong>feriu o requerimento <strong>de</strong> um mineiro, que voltou à carga<br />
alegando disposições do Livro da Capa Ver<strong>de</strong> e obteve o seguinte <strong>de</strong>spacho:<br />
“Aponte-me leis que eu lhe apontarei léguas.”<br />
Introduziu e aclimou no Tijuco animais e plantas européias e criou um<br />
horto botânico, que foi elogiado pelo gran<strong>de</strong> naturalista Saint-Hilaire, quando<br />
por lá passou. Foi também o primeiro a fundir o ferro na Capitania <strong>de</strong> Minas,<br />
montando a fábrica do Morro do Gaspar Soares.<br />
Retirando-se do Tijuco, caso único, aquele inten<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>ixou sauda<strong>de</strong>s e<br />
<strong>de</strong>dicações no povo que governava.<br />
Prestou ainda em outra esfera <strong>de</strong> ação relevantíssimos serviços.<br />
Fundou na Bahia importante Instituto Agronômico.<br />
Deputado à Constituinte em 1823 e posteriormente senador do Império,<br />
morreu nesse posto aos 13 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1835.<br />
Sobre a vida <strong>de</strong>sse brasileiro notável pesa entretanto um crime, o bárbaro<br />
martírio <strong>de</strong> Isidoro, o Garimpeiro, motivado, é verda<strong>de</strong>, pelo gran<strong>de</strong> interesse<br />
que tinha em dar cumprimento às or<strong>de</strong>ns recebidas e em conhecer os contrabandistas<br />
pela <strong>de</strong>núncia <strong>de</strong> Isidoro, mas isso não o justifica, porque como disse<br />
Santeuil: “Quando vai a penalida<strong>de</strong> além do <strong>de</strong>lito e sai a justiça fora das raias<br />
a que a levam as necessida<strong>de</strong>s públicas e as normas morais, não há <strong>de</strong>fesa<br />
possível nem atenuações ou <strong>de</strong>sculpas”.<br />
Tratemos agora da fundação da Imprensa no Tijuco, elevado a paróquia,<br />
em 1817.<br />
É um acontecimento notável porque todo o material tipográfico – prelo,<br />
tipos, etc., foi produzido no Tijuco por dois jovens que jamais haviam
Tijuco – lendas e tradições ____________________________________________________ Edgar Matta Machado 193<br />
conhecido um prelo e que, diz o dr. Felício, “da Imprensa só sabiam que ela<br />
fulmina os déspotas.”<br />
Cumpre acrescentar que o Tijuco foi o terceiro lugar <strong>de</strong> Minas em que<br />
apareceu o portentoso invento <strong>de</strong> Gutenberg.<br />
O primeiro periódico que se publicou ali foi o Eco do Serro, em 1828.<br />
Seguiram-se posteriormente muitos outros periódicos, sendo a Diamantina,<br />
<strong>de</strong>pois da gloriosa Velha Capital, a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Minas que mais jornais tem<br />
dado à luz.<br />
Pela lei <strong>de</strong> 13 <strong>de</strong> outubro foi o Tijuco elevado à vila, com o nome <strong>de</strong> Vila<br />
Diamantina; à categoria <strong>de</strong> cida<strong>de</strong> foi erguida, sete anos <strong>de</strong>pois, pela lei <strong>de</strong> 6 <strong>de</strong><br />
março <strong>de</strong> 1838.<br />
Daí por diante começa já a história da Diamantina contemporânea, que<br />
não entra na esfera da nossa palestra.<br />
Eis aí, meus senhores, em um ligeiro esboço e sem o colorido forte e<br />
sugestivo que o assunto pedia, a narração das principais lendas e tradições que<br />
possui o Tijuco.<br />
Creio ter-vos dado uma noção, ainda que incompleta, do sentimento e<br />
caráter do povo diamantinense, assim como provado que aquela terra tem sido<br />
o abrigo <strong>de</strong> todas as idéias liberais, com uma peregrinação <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início do<br />
Tijuco até a Aurora dos tempos mo<strong>de</strong>rnos.<br />
Parodiando um escritor francês, direi:<br />
Se empilhásseis todas as lágrimas vertidas pelo povo diamantinense em<br />
prol da Liberda<strong>de</strong>, elas se cristalizariam em monumentos superiores, mais altos<br />
que as pirâmi<strong>de</strong>s do Egito!<br />
O gran<strong>de</strong> edifício da Liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma Nação repousa fatalmente sobre a<br />
opressão e a tirania exercidas contra o povo em tempos mais ou menos afastados.<br />
É por isso, senhores, que os diamantinenses guardam sempre as avançadas<br />
<strong>de</strong> todos os empreendimentos liberais, on<strong>de</strong> os po<strong>de</strong>reis divisar nos mais<br />
arriscados postos do combate.<br />
Outro fato característico, apanágio dos povos oprimidos, é essa união<br />
que se nota entre seus filhos, esse carinho pela Cida<strong>de</strong> Natal, tão bem sentido<br />
nos versos <strong>de</strong> Aureliano Lessa:<br />
Vês lá na encosta do monte,<br />
Mil casas em grupozinhos,<br />
Alvas, como cor<strong>de</strong>irinhos<br />
Que se lavaram na fonte ?!...
194 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Não vês <strong>de</strong>itado <strong>de</strong>fronte<br />
Qual dragão petrificado<br />
Aquele serro curvado<br />
Que mura a Cida<strong>de</strong>zinha,<br />
Pois essa cida<strong>de</strong> é minha<br />
É meu berço idolatrado!...<br />
Ali meus olhos se abriram<br />
À Luz matinal da vida,<br />
Lá primeiro à Mãe querida<br />
Meus lábios <strong>de</strong> Amor sorriram...<br />
Lá seu nome proferiram<br />
Antes do nome <strong>de</strong> Deus !...<br />
Lá tentei os passos meus<br />
Da vida na estrada ru<strong>de</strong><br />
Lá aprendi a Virtu<strong>de</strong><br />
Minha Mãe, dos lábios teus.<br />
Olha como ela se inclina<br />
Pela esmeralda do monte<br />
Molhando os pés numa fonte<br />
De água fresca e cristalina.<br />
Olha como ela domina<br />
Esses serros alcantis<br />
Com seus ares senhoris<br />
Com seu cofre <strong>de</strong> Diamantes<br />
No meio <strong>de</strong> seus Amantes<br />
Distribuindo rubis.<br />
Salve Atenas tão risonha<br />
Da ver<strong>de</strong> e saudosa Minas<br />
Rainha <strong>de</strong>ssas colinas<br />
Que banha o Jequitinhonha<br />
Teu vassalo; ele nem sonha<br />
Quebrar-te o jugo real...<br />
E vem, a um leve sinal,<br />
Com seus Rubis, com seu Oiro<br />
Derramar no teu tesoiro<br />
O seu tributo anual.
Tijuco – lendas e tradições ____________________________________________________ Edgar Matta Machado 195<br />
Feliz quem no seio teu<br />
O sopro da Providência<br />
Faz brotar a Inteligência,<br />
Pérola fina do Céu,<br />
Como da Noite no véu<br />
Faz mil pérolas fulgir<br />
Tu tens ó rival <strong>de</strong> Ofir,<br />
Outras jóias, outros brilhos<br />
Teu tesoiro são teus filhos,<br />
Tua glória é seu porvir.<br />
Seu Porvir, sim, que amanhece<br />
Lá nos longes do Futuro,<br />
Não o meu, que um Fado escuro<br />
De negros fios só tece...<br />
Pátria! tudo me falece<br />
Para erguer teu esplendor<br />
Mas do pobre trovador<br />
Terás o óbolo pobre<br />
No peito um Coração nobre<br />
Na lira um canto <strong>de</strong> Amor!...<br />
Referências bibliográficas<br />
Festas e diversões. Minas Gerais. Órgão Oficial dos Po<strong>de</strong>res do Estado, Minas,<br />
ano IX, n o 211, 13 ago. 1900. p. 4, c. 1-2.<br />
Festas e diversões. Minas Gerais. Órgão Oficial dos Po<strong>de</strong>res do Estado, Minas,<br />
ano IX, n o 248, quinta-feira, 20 set. 1900. p. 13, c. 4 e p. 14, c. 1<br />
Matta, Edgard. Tijuco – lendas e tradições. In: Festas e diversões. Minas<br />
Gerais. Órgão Oficial dos Po<strong>de</strong>res do Estado, Minas, ano IX, n o 249, 21 set.<br />
1900. p. 10, c. 3-4; p. 11, c. 1-3. n o 250, 22 set. 1900. p. 3, c. 2-4; p. 4, c. 1-<br />
2. n o 251, 23 set. 1900. p. 3, c. 3-4; p. 4, c. 1. n o 252, 24 set. 1900. p. 3, c. 2-<br />
4; p. 4, c. 1-2.<br />
Festas e diversões. Minas Gerais. Órgão Oficial dos Po<strong>de</strong>res do Estado, Minas,<br />
ano IX, n o 253, 25 set. 1900. p. 3, c. 4 e p. 4, c. 1.
196 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Teatro _______________________________________________<br />
ALBEE:<br />
HISTÓRIA DO ZOOLÓGICO<br />
Jota Dangelo*<br />
As peças <strong>de</strong> um ato, assim como os monólogos, com raras exceções,<br />
nunca chamaram muito a atenção dos encenadores. Do mesmo modo, no final<br />
da década <strong>de</strong> 50 do século passado, raramente era possível assistir a um<br />
espetáculo <strong>de</strong> teatro com apenas dois personagens. E foi justamente em 59 que<br />
Edward Albee escreveu The zoo story, uma pequena obra-prima, com apenas<br />
dois personagens: Jerry, um jovem <strong>de</strong>sajustado do mundo, vítima <strong>de</strong> uma<br />
socieda<strong>de</strong> que se construiu com os olhos voltados para o lucro a qualquer<br />
preço, e Peter, o representante <strong>de</strong>sta mesma socieda<strong>de</strong> conformada, estável,<br />
egoísta e sem qualquer vestígio <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> humana. Talvez, por esta<br />
razão mesma, a peça não estreou nos Estados Unidos, pátria <strong>de</strong> seu autor, mas<br />
na Alemanha, em Berlim, num programa duplo: a outra peça, além <strong>de</strong> Zoo, era<br />
Krapp’s last tape, <strong>de</strong> Samuel Beckett. O sucesso <strong>de</strong> Albee foi imediato e <strong>de</strong><br />
reconhecimento mundial. Nos Estados Unidos, logo apareceram os críticos que<br />
o colocaram como sucessor <strong>de</strong> Arthur Miller, O´Neill e Tennesse Williams,<br />
embora sua dramaturgia estivesse mais próxima <strong>de</strong> Harold Pinter e do próprio<br />
Beckett.<br />
A história do zoológico narra o encontro casual <strong>de</strong> Jerry e Peter num<br />
local qualquer do Central Parque <strong>de</strong> New York. Peter está lendo o seu jornal<br />
num dos bancos do parque e Jerry está vindo, segundo ele, do zoológico. A<br />
intenção <strong>de</strong> Albee, neste diálogo, difícil <strong>de</strong> ser estabelecido, entre um<br />
* Diretor teatral, ator, professor universitário aposentado, diretor do BDMG Cultural.
198 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
representante do sistema e alguém contrário ao sistema, é, <strong>de</strong> acordo com o<br />
dramaturgo, “examinar o cenário americano, atacar a substituição <strong>de</strong> valores<br />
verda<strong>de</strong>iros da socieda<strong>de</strong> norte-americana por valores artificiais, con<strong>de</strong>nar a<br />
complacência, a cruelda<strong>de</strong>, a emasculação e a vacuida<strong>de</strong>, assumir uma posição<br />
contra a ficção que reveste tudo nesta socieda<strong>de</strong>”. Esta é, aliás, a tônica <strong>de</strong><br />
todos os seus outros trabalhos posteriores. Embora eles possam, aparentemente,<br />
ser realistas, um certo surrealismo perva<strong>de</strong> sua dramaturgia. Vencedor <strong>de</strong> três<br />
prêmios Pulitzer, em 1966 com “A <strong>de</strong>licate balance”, em 1975 com<br />
“Seascape” e em 1994 com “Three Tall Women”, Albee assumiu. Des<strong>de</strong><br />
sua primeira peça teatral, lugar <strong>de</strong> relevo no cenário literário dos Estados<br />
Unidos.<br />
Isolamento em “Zoo Story” transpira em cada linha do diálogo e é predicado<br />
dominante <strong>de</strong> seus personagens. Mas Peter é inconsciente <strong>de</strong> sua solidão e<br />
Jerry tem a luci<strong>de</strong>z necessária para lutar contra a sua. Na é suficiente afirmar<br />
que o mundo é um zoológico on<strong>de</strong> gra<strong>de</strong>s separam os homens: é preciso ir além<br />
e <strong>de</strong>scobrir que homens como Peter estão separados também <strong>de</strong> sua natureza<br />
animal. É por esta razão que Peter “possui uma invejável inocência”. Nunca lhe<br />
ocorreu que seus gatos po<strong>de</strong>riam <strong>de</strong>vorar seus periquitos... Ele não é apenas a<br />
versão mo<strong>de</strong>rada <strong>de</strong> “Everyman” em termos <strong>de</strong> classe média; é também o<br />
estereotipo burguês só i<strong>de</strong>ntificado pela carteira <strong>de</strong> motorista, o homem<br />
estatístico, o “Life-and-Time-man”, a média aritmética do comportamento<br />
condicionado, com esposa, duas filhas, dois gatos, dois periquitos, duas<br />
televisões, o emprego certo, o gosto literário “consi<strong>de</strong>rado razoável”, o<br />
apartamento no lado “aconselhável” do parque. Enfim, Peter representa tudo<br />
que Albee parece odiar: a letargia e a “gentileza” da socieda<strong>de</strong> americana, on<strong>de</strong><br />
a expressão <strong>de</strong> uma emoção é mais importante que a emoção em si, a forma<br />
prioritária sobre o conteúdo. E neste ponto o criticismo social <strong>de</strong> Albee parece<br />
<strong>de</strong>rivar <strong>de</strong> seus ódios particulares: trata-se <strong>de</strong> uma revolta pessoal, mais que <strong>de</strong><br />
uma consciência social, embora seja difícil separar as duas. No prefácio <strong>de</strong><br />
“The american dream” ele afirma que é seu <strong>de</strong>sejo “ofen<strong>de</strong>r, tanto quanto<br />
divertir”, acrescentando que “toda obra honesta é pessoal, um atestado individual<br />
<strong>de</strong> dor ou <strong>de</strong> prazer” e que espera que a sua transcenda estes limites e se<br />
misture com a angústia <strong>de</strong> todos nós.<br />
Bens materiais e idéias pré-fabricadas são as substâncias que Peter toma<br />
emprestadas à organização social americana para construir as gra<strong>de</strong>s atrás das<br />
quais se isola <strong>de</strong> seus semelhantes e se distancia <strong>de</strong> si próprio. No seu domínio<br />
particular a entrada é proibida: ele não permite nenhum diálogo que escape ao<br />
convencionalismo superficial do bate-papo mais trivial. Dispõe-se a escutar
Albee: História do Zoológico _________________________________________________________ Jota Dangelo 199<br />
Jerry porque não seria educado dar-lhe as costas e porque, para ser coerente<br />
com a máscara que usa, falta-lhe coragem para dizer, simplesmente, que não<br />
está interessado nos problemas particulares <strong>de</strong> quem quer que seja. Mas quando<br />
Jerry tenta forçar a entrada e estabelecer um contato real indo um pouco além<br />
<strong>de</strong> perguntas inconseqüentes, Peter <strong>de</strong>svia o assunto, eventualmente com<br />
brutalida<strong>de</strong>, temeroso <strong>de</strong> que seu interlocutor possa ter <strong>de</strong>scoberto um ponto<br />
fraco na sua armadura. Inci<strong>de</strong>ntalmente, são estas reações ocasionais que<br />
garantem a Jerry que ele encontrou o homem e o caminho certos para consumar<br />
o seu plano:<br />
Jerry – E vocês não vão mais ter filhos?<br />
Peter – (um pouco distante). Não, não vamos mais (volta-se, preocupado)<br />
– Por que você perguntou isso? Como é que você soube disto?<br />
Jerry – A sua maneira <strong>de</strong> cruzar as pernas, talvez; alguma coisa na sua<br />
voz. Ou talvez eu esteja só adivinhando. É a sua mulher?<br />
Peter – (furioso) Não é da sua conta!<br />
O que mais surpreen<strong>de</strong> e perturba Peter é que Jerry não se enquadra em<br />
nenhum dos esquemas que ele leu nos manuais <strong>de</strong> “Psicologia para todos”<br />
distribuídos pelo “Club Room” do qual ele faz parte. A lógica falha, a anedota<br />
não funciona, as premissas não levam inevitavelmente a uma conclusão única<br />
e, sobre tudo, Peter <strong>de</strong>scobre que Jerry é o primeiro americano que ele conhece<br />
que não faz uso do eufemismo.<br />
Peter – Oh, você mora em Greenwhich Village<br />
Jerry – Não, não moro...<br />
Peter – (quase <strong>de</strong> mau humor) Oh, eu pensei que você morasse no<br />
Village.<br />
Jerry – O que você está tentando fazer? Dar sentido às coisas, or<strong>de</strong>nálas?<br />
Como processo <strong>de</strong> auto<strong>de</strong>fesa Peter obriga-se a construir um universo<br />
que não proporciona gran<strong>de</strong>s prazeres, mas também evita maiores sofrimentos:<br />
uma espécie <strong>de</strong> caricato estoicismo; mas enquanto o autêntico situa o homem<br />
acima do prazer e da dor, esta corrompida versão burguesa protege, anestesiando-o<br />
com a mediocrida<strong>de</strong> do lugar comum.<br />
Por outro lado, Jerry é o animal consciente <strong>de</strong> sua natureza que luta<br />
contra a absurda separação. Em parte, sua solidão lhe é imposta, mas gran<strong>de</strong><br />
parcela nasce <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>terminação em <strong>de</strong>scobrir a natureza essencial da<br />
condição humana, da sua obsessão pela verda<strong>de</strong>. Seu reflexo imediato é<br />
eliminar as relações obvias e estabelecer laços mais complexos e mais puros.<br />
Assim, Jerry possui coisas ou que são essenciais à sua manutenção física
200 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
(1 faca, 2 garfos, 2 colheres, 3 pratos, 1 xícara, 1 pires, 1 copo) ou que mantém<br />
<strong>de</strong>sperta sua consciência <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>: molduras sem retratos, que simbolizam a<br />
obvieda<strong>de</strong> das relações familiares e sentimentaloi<strong>de</strong>s; um baralho <strong>de</strong> cartas<br />
pornográficas, que faz presente a diferença entre amor e <strong>de</strong>sejo sexual; uma<br />
caixa sem fechadura (que lembra sua vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> abrir-se para o mundo) com<br />
um conteúdo contraditório representado pela inutilida<strong>de</strong> das cartas convencionais<br />
e pela silenciosa, mas infinita pureza <strong>de</strong> pedras apanhadas na praia num<br />
tempo <strong>de</strong> pureza infinita como o da infância. É <strong>de</strong>ste modo que Albee utiliza o<br />
simbolismo. É interessante notar que, tendo falhado suas relações familiares e<br />
suas experiências hetero e homossexuais, Jerry recusa-se a sentimentalizá-las e<br />
nem procura justificar-se pela cômoda invocação <strong>de</strong> uma infância infeliz. Ele se<br />
conhece <strong>de</strong>mais e sabe que a solidão existe a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> tudo; que o contato<br />
po<strong>de</strong> ser raramente conseguido, é sempre doloroso e difícil, e não há nenhuma<br />
segurança quanto à sua durabilida<strong>de</strong>. Sobre estas dificulda<strong>de</strong>s, sobre esta<br />
insegurança, é que ele disserta na sua História <strong>de</strong> Jerry e o cachorro. As peças<br />
<strong>de</strong> Albee têm sempre uma “história” narrada por um dos personagens. Em<br />
Who’s afraid of Virginia Wolff ela é a “novela” <strong>de</strong> George; em Bessie Smith são<br />
os longos monólogos <strong>de</strong> Jack; em American Dream é a simbólica e bizarra<br />
narrativa <strong>de</strong> Grandma. Em Zoo Story ela trata, em resumo, das tentativas <strong>de</strong><br />
contato <strong>de</strong> Jerry com o cachorro que pertence à proprietária do apartamento<br />
on<strong>de</strong> ele vive. O cão, naturalmente é o mitológico Cerberus guardando as<br />
portas <strong>de</strong> um inferno mais mo<strong>de</strong>rno on<strong>de</strong> <strong>de</strong>finham os recusados pela<br />
socieda<strong>de</strong>. Mas o simbolismo é mais complexo: Jerry só é atacado pelo cão<br />
quando entra, nunca quando sai. O cachorro tem o seu domínio, como Peter<br />
tem o seu universo particular <strong>de</strong> preconceitos e lugar-comum. Mais tar<strong>de</strong>, Peter<br />
faria do banco do parque parte do seu universo. Tanto ele como o cachorro<br />
estão dispostos a impedir qualquer invasão dos seus territórios. Na verda<strong>de</strong>,<br />
Jerry reconhece no cão as mesmas qualificações que ele observa nos animais <strong>de</strong><br />
sua própria espécie: ódio, falsida<strong>de</strong>, exploração, <strong>de</strong>sconfiança, traição. Para<br />
estabelecer um contato é necessário atingir o cerne animal on<strong>de</strong> as emoções não<br />
po<strong>de</strong>m ser distinguidas com clareza, on<strong>de</strong> prazer e dor se misturam, on<strong>de</strong><br />
bonda<strong>de</strong> e cruelda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ter limites precisos. Duas dúzias <strong>de</strong> “hamburgers”<br />
não compram a simpatia da fera: é preciso também envenená-los.<br />
E mesmo assim o entendimento, a comunicação, são momentâneos, nada<br />
po<strong>de</strong> assegurar sua permanência: “o que é ganho é perdido”. Após o envenenamento<br />
fracassado, as relações <strong>de</strong> Jerry com o cão atingem apenas um novo<br />
estágio, o mesmo estágio que George e Martha atingem no final <strong>de</strong> Who’s<br />
afraid: trata-se <strong>de</strong> um compromisso, o <strong>de</strong> não amar nem ferir, porque nenhum
Albee: História do Zoológico _________________________________________________________ Jota Dangelo 201<br />
dos dois tenta alcançar o outro. Mas também há, implicitamente, a afirmação<br />
tácita <strong>de</strong> que, pelo menos, é possível conviver a mesma solidão.<br />
Para transmitir esta experiência a Peter, Jerry usa os mesmos processos<br />
que utilizou com o cachorro. Percebendo que Peter não po<strong>de</strong> ser alcançado por<br />
palavras, que cada tentativa para invadir seu território apenas serve ao levantamento<br />
<strong>de</strong> novas barreiras, Jerry tenta atingi-lo abaixo do nível consciente.<br />
Cócega é uma experiência mista <strong>de</strong> prazer-dor: Jerry começa fazendo cócegas<br />
em Peter. Esta cena marca uma segunda fase em Zoo Story. Antes <strong>de</strong>la toda<br />
tentativa <strong>de</strong> contato é exclusivamente racional. O contato físico que ela implica<br />
<strong>de</strong>monstra a natureza animal das cenas subseqüentes: o caminho para a violência<br />
foi aberto.<br />
Por um momento Peter confun<strong>de</strong> os seus critérios e valores: sob o efeito<br />
das cócegas, gatos, periquitos, filhos e esposa se misturam porque representam<br />
apenas objetos que disfarçam o vazio e a alienação <strong>de</strong> sua existência. É apenas<br />
necessário continuar o jogo, <strong>de</strong>spertar a potencialida<strong>de</strong> animal <strong>de</strong> Peter, em<br />
toda a sua força: Jerry “conquista” o banco; Peter revida a esta invasão <strong>de</strong> seu<br />
“território” com a mesma ferocida<strong>de</strong> do cão e termina como cúmplice no<br />
suicídio <strong>de</strong> Jerry. Tecnicamente, a “progressão” em Zoo Story <strong>de</strong>riva <strong>de</strong> uma<br />
contínua revelação do abismo que separa os dois personagens. O ato <strong>de</strong><br />
violência fecha o abismo e estabelece um contato cuja implicação moral é<br />
obvia: um homem per<strong>de</strong> a vida, o outro começa a ver a sua, pois é lícito supor<br />
que Peter jamais voltará a existir no mesmo nível superficial em que sempre<br />
existiu.<br />
A responsabilida<strong>de</strong> que lhe cabe na morte <strong>de</strong> Jerry garante a durabilida<strong>de</strong><br />
possível do contato efetuado. Jerry po<strong>de</strong>ria ter fechado os olhos com o mesmo<br />
grito <strong>de</strong> Calígula, <strong>de</strong> Camus, “eu ainda estou vivo”.<br />
The Zoo Story tem um grave <strong>de</strong>feito, a meu ver. Seus cinco minutos<br />
finais são <strong>de</strong>snecessariamente, melodramáticos: as palavras finais <strong>de</strong> Jerry,<br />
além <strong>de</strong> injustificavelmente sentimentais, são obviamente explicáveis, quando<br />
na verda<strong>de</strong>, não há mais nada a explicar. Parece-me que Albee se sentiu na<br />
obrigação <strong>de</strong> fazer uma síntese ou fornecer uma pista <strong>de</strong>finitiva ao espectador<br />
menos avisado.<br />
O gran<strong>de</strong> mérito <strong>de</strong> Albee está na técnica que ele usa para fundir realismo<br />
e simbolismo, fazendo do segundo parte atuante da própria construção<br />
dramática e assim esten<strong>de</strong>ndo e aprofundando a idéia expressa pelo primeiro. O<br />
drama simbolista <strong>de</strong> O’Neill, por exemplo, cuja influência em toda a dramaturgia<br />
ianque posterior é inegável, chama a atenção para o símbolo como<br />
símbolo e não sobre a estrutura dramática como um todo, que merece a atenção
202 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
do crítico, do dramaturgo e <strong>de</strong> todo indivíduo preocupado com uma possível<br />
renovação do drama.<br />
The Zoo Story conta a história <strong>de</strong> um homem consciente <strong>de</strong> sua condição<br />
bivalente e, por esta razão mesma, absurda, cônscio <strong>de</strong> suas limitações e<br />
prisioneiro <strong>de</strong> si mesmo. Nestas circunstâncias, o indivíduo é forçado a provar<br />
suas relações com todas as coisas e todas as pessoas; provando-as ele se <strong>de</strong>fine,<br />
revela sua humanida<strong>de</strong> e transcen<strong>de</strong> seus próprios limites, estabelecendo uma<br />
comunhão com a natureza: isto só é possível ao animal que carrega <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si<br />
uma centelha <strong>de</strong> divinda<strong>de</strong>. Jerry <strong>de</strong>scobre, afinal, que só é possível <strong>de</strong>struir as<br />
muralhas que o isolam dos seus semelhantes por um ato <strong>de</strong> amor, um sacrifício<br />
que necessariamente, implica uma violência e, obrigatoriamente, liberta-o ao<br />
mesmo tempo que o <strong>de</strong>strói. Em outras palavras, a alusão é bíblica, o novo<br />
Cristo volta ao Calvário, tradicionais símbolos cristãos são revividos. Não é<br />
surpreen<strong>de</strong>nte que no texto apareçam alocuções bíblicas como “Sob be it”, “it<br />
came to pass” e que um dos personagens se chame Peter, isto é, Pedro.<br />
Analogias indiscutíveis po<strong>de</strong>m ser encontradas no texto.<br />
Em última análise, The Zoo Story é uma Moralida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna e a<br />
História <strong>de</strong> Jerry e o cachorro, uma parábola. A primeira peça <strong>de</strong> Albee é também<br />
uma obra <strong>de</strong>finitiva na dramaturgia norte-americana.
Cinema _______________________________________________<br />
GUIMARÃES ROSA E O CINEMA<br />
Paulo Augusto Gomes*<br />
É sabido que Guimarães Rosa gostava muito <strong>de</strong> cinema, era fascinado<br />
pelas imagens em movimento. Mas não apenas por elas: em sua narrativa<br />
inovadora, chegou mesmo a utilizar ferramentas cinematográficas na elaboração<br />
<strong>de</strong> seus textos. É o que se observa na novela “Cara <strong>de</strong> Bronze”, que integra<br />
o monumental Corpo <strong>de</strong> Baile em seu segundo volume (“No Urubuquaquá, no<br />
Pinhém”), em que parte do texto é escrita sob a forma <strong>de</strong> roteiro cinematográfico<br />
com o qual, vê-se, o escritor era intimamente familiarizado.<br />
Naturalmente um indivíduo vaidoso, ficava feliz a cada vez que uma<br />
obra sua era transposta para o mundo das imagens. Valho-me do testemunho <strong>de</strong><br />
Geraldo Santos Pereira e da correspondência que ele me mostrou, na qual um<br />
entusiasmado Rosa aposta na adaptação cinematográfica que Geraldo e seu<br />
irmão gêmeo Renato fariam <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas.<br />
No entanto, o cinema quase sempre tratou mal a obra rosiana. Dos quase<br />
<strong>de</strong>z filmes feitos a partir dos textos do escritor, a gran<strong>de</strong> maioria é <strong>de</strong> uma<br />
<strong>de</strong>soladora incompetência. Muitos fatores contribuíram para isso: em primeiro<br />
lugar, o <strong>de</strong>snível qualitativo entre Rosa e seu gênio, <strong>de</strong> um lado, e a pobreza<br />
intelectual <strong>de</strong> quase todos os diretores e roteiristas que se aventuraram pelos<br />
sertões do escritor.<br />
Para se chegar ao universo rosiano, é preciso navegar com muito cuidado<br />
pelas trilhas que ele abriu. Esta é a gran<strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>. Inventor <strong>de</strong> uma<br />
linguagem própria, única, sua, Guimarães Rosa como que protege seu mundo<br />
<strong>de</strong> invasões estrangeiras. As palavras que emprega parecem, todas, ter raízes<br />
* Cineasta, membro do Centro <strong>de</strong> Pesquisadores do Cinema Brasileiro.
204 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
fincadas no sertão – e em boa parte acontece isso – mas são também produto do<br />
elevado conhecimento lingüístico que ele tinha, falando, escrevendo, dominando<br />
um sem-número <strong>de</strong> idiomas. Em rigor, ninguém fala daquela maneira em<br />
lugar nenhum do mundo, muito menos em qualquer parte dos Gerais. O que<br />
Rosa fez em seus livros equivale ao que Villa-Lobos criou com suas cirandas e<br />
choros: aproveitou temas folclóricos e canções populares e <strong>de</strong>u-lhes ar <strong>de</strong><br />
erudição. A forma popular está lá – mas trabalhada, acrescida do talento do<br />
autor.<br />
Qualquer diretor <strong>de</strong> cinema que se disponha a adaptar um texto <strong>de</strong> Rosa<br />
terá, necessariamente, que começar por traí-lo; do contrário, será traído por ele.<br />
A forma <strong>de</strong> qualquer categoria <strong>de</strong> arte pertence apenas àquele tipo <strong>de</strong> arte. É<br />
tarefa das mais complexas transformar palavras em dança, escultura ou cinema;<br />
ainda mais se essas palavras são revolucionárias. Sobra, assim, ao cinema –<br />
como a qualquer outro tipo <strong>de</strong> arte narrativa – o chamado conteúdo, a história.<br />
As histórias <strong>de</strong> Guimarães Rosa são belíssimas, mas em muitas <strong>de</strong>las não<br />
acontece rigo<strong>rosa</strong>mente nada em termos <strong>de</strong> ação, centradas que são em um<br />
mundo interior, in<strong>de</strong>ne a manifestações físicas. Tome-se como exemplo a<br />
maravilhosa “Campo Geral”, em que o menino Miguilim passa a ver o mundo<br />
<strong>de</strong>pois que começa a usar um par <strong>de</strong> óculos, ou então o conto “Um Moço Muito<br />
Branco”, no qual toda a trama gira em torno da possível presença <strong>de</strong> um<br />
alienígena em pleno sertão. Ainda assim, é possível transformar esses textos em<br />
imagens, como já <strong>de</strong>monstrou Carlos Alberto Prates Correia, ao fazer <strong>de</strong><br />
“Sorôco, sua Mãe, sua Filha” o trecho final <strong>de</strong> seu “Cabaré Mineiro”.<br />
A melhor maneira <strong>de</strong> se manter fiel a Guimarães Rosa é tentar recriar seu<br />
mundo. Acreditava que o sertão está em toda parte e não hesitava em apontar<br />
sertanejos europeus e <strong>de</strong> outras latitu<strong>de</strong>s. O gran<strong>de</strong> sertão é isso: o mundo e<br />
suas diversida<strong>de</strong>s. Embora fizesse uso <strong>de</strong> linguagem própria, não se <strong>de</strong>scuidava,<br />
um momento que fosse, da continuida<strong>de</strong> narrativa. Ele mesmo dizia que<br />
tinha <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si milhares <strong>de</strong> estórias e que precisava viver o tempo suficiente<br />
para escrevê-las. A narrativa rosiana nunca é solta, fragmentada, embora<br />
sempre composta por episódios com vida in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, como se observa no<br />
Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas que, a grosso modo, po<strong>de</strong> ser transformado em um<br />
novelo <strong>de</strong> novelas, mas que adquire sua verda<strong>de</strong>ira dimensão quando essas<br />
mesmas novelas são interligadas umas às outras e amarradas em <strong>de</strong>terminada<br />
or<strong>de</strong>m, a que o autor concebeu.<br />
A verda<strong>de</strong>ira or<strong>de</strong>m dos escritos <strong>de</strong> Rosa é ditada pela própria vida.<br />
Assim, não faz sentido imaginar que a arte revolucionária do escritor encontre<br />
melhor forma em uma adaptação livre. O enca<strong>de</strong>amento é parte integrante,
Guimarães Rosa e o cinema ___________________________________________________ Paulo Augusto Gomes 205<br />
fundamental, do texto rosiano. Sob este aspecto, o cinema narrativo é um<br />
veículo apropriado para as estórias do escritor. Não é por outro motivo, aliás,<br />
que mais <strong>de</strong> um cineasta já tentou reunir muitos contos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes em um<br />
único filme, a exemplo <strong>de</strong> Nélson Pereira dos Santos em A Terceira Margem<br />
do Rio e Pedro Bial em Outras Estórias.<br />
Não se po<strong>de</strong> dizer que os resultados finais tenham sido satisfatórios:<br />
enca<strong>de</strong>ar não é apenas juntar estórias, mas dar-lhes organicida<strong>de</strong>. Mais uma<br />
vez, o exemplo é Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, exato e preciso em seu <strong>de</strong>senrolar.<br />
Quanto ao autor cinematográfico, <strong>de</strong>ve ter ele certa audácia para inverter<br />
e mesmo subverter a narrativa rosiana. Mas é preciso cautela: quando os irmãos<br />
Santos Pereira <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m revelar a condição feminina <strong>de</strong> Diadorim no meio do<br />
filme, cometem um equívoco terrível e banalizam uma situação que, no romance,<br />
é momento crucial: é o momento em que Riobaldo tem a revelação do<br />
mistério e a explicação do tormento que vivia, quando vê o corpo <strong>de</strong> sua amada<br />
estirado sobre a mesa, próximo ao final do livro.<br />
Muitas das adaptações ao cinema <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> Guimarães Rosa nem<br />
sequer merecem referência. Mas algumas são dignas <strong>de</strong> menção, a começar<br />
pela primeira <strong>de</strong>las, A Hora e Vez <strong>de</strong> Augusto Matraga <strong>de</strong> Roberto Santos,<br />
realizada em 1965, que contou em sua equipe técnica com alguns cineastas<br />
mineiros, então em início <strong>de</strong> carreira. Santos vinha <strong>de</strong> uma bem sucedida<br />
experiência na linha do neo-realismo com O Gran<strong>de</strong> Momento, filmado em São<br />
Paulo, sua terra natal, com Gianfrancesco Guarnieri. Para seu segundo filme,<br />
escolheu o último dos contos <strong>de</strong> Sagarana, sobre o senhor <strong>de</strong> terras e homens<br />
que, após espancado e humilhado por seus adversários, reconstrói sua vida em<br />
outro patamar até reconquistar, na morte, sua condição <strong>de</strong> homem.<br />
Sagarana, como primeira obra, ainda não traz em si toda a complexida<strong>de</strong><br />
que se observaria posteriormente em textos como Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas ou<br />
Meu Tio o Iauaretê. Isso, evi<strong>de</strong>ntemente, facilitou a adaptação, permitindo que<br />
Roberto Santos lhe acrescentasse uma série <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes que se somaram<br />
perfeitamente ao universo rosiano. Como exemplo, está a excepcional trilha<br />
sonora <strong>de</strong> Geraldo Vandré, composta por canções que, embora com apelo<br />
popular, não são exatamente folclóricas. Nunca mais o compositor sequer<br />
chegou perto do resultado obtido em função do filme, com músicas como<br />
Cantiga Brava e Réquiem para Matraga. Cabe também lembrar um elenco<br />
homogêneo, com resultados <strong>de</strong> on<strong>de</strong> talvez não fosse lícito esperar muita coisa.<br />
Leonardo Villar, ator vindo do teatro paulista, compõe um Augusto Matraga<br />
irretocável, talvez superado apenas pelo nor<strong>de</strong>stino Jofre Soares, perfeito como<br />
“seu” Joãozinho Bem-Bem. O roteiro <strong>de</strong> Santos é sóbrio e segue a narrativa <strong>de</strong>
206 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Rosa, embora haja momentos em que não consegue – nem po<strong>de</strong> – igualar a<br />
contenção do escritor, a exemplo do antológico final “Depois, morreu”.<br />
Cabaré Mineiro não é baseado em Guimarães Rosa. Sua narrativa,<br />
porém, aproxima-se da maneira rosiana <strong>de</strong> ver o mundo, através <strong>de</strong> episódios<br />
aparentemente soltos que compõem um painel <strong>de</strong> riqueza impressionante.<br />
Nesse mosaico, a pedra final é exatamente “Sorôco, sua Mãe, sua Filha”, que<br />
Carlos Alberto Prates Correia foi buscar nas Primeiras Estórias. O personagem<br />
principal <strong>de</strong> Cabaré, Paixão, o aventureiro e jogador vivido por Nélson Dantas,<br />
assiste ao momento em que o <strong>de</strong>solado Soroco coloca sua mãe e sua filha no<br />
trem-prisão que vai levá-las ao hospício <strong>de</strong> Barbacena, ao som <strong>de</strong> uma<br />
marujada montesclarense, para lá terminarem seus dias internadas. Carlos<br />
Alberto integra seu mundo ao <strong>de</strong> Guimarães Rosa (afinal, Montes Claros é um<br />
dos marcos do sertão), presta-lhe respeitosa e belíssima homenagem e consegue<br />
momentos do melhor cinema. O resultado ficou tão bom que ele mesmo não<br />
logrou repetir a façanha em Noites do Sertão, transposição para o cinema <strong>de</strong><br />
“Buriti”, uma das novelas do Corpo <strong>de</strong> Baile. O que, em Rosa, é somente<br />
sugestão – a relação lésbica entre Lalinha e Maria da Glória – ganha tonalida<strong>de</strong>s<br />
mais claras no filme e per<strong>de</strong> força. A isso, soma-se um equívoco lamentável<br />
na escolha <strong>de</strong> vários nomes do elenco, no qual atores <strong>de</strong> televisão não<br />
conseguem sequer enten<strong>de</strong>r as motivações e a maneira <strong>de</strong> ser <strong>de</strong> pessoas tão<br />
afastadas da cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>.<br />
No entanto, filmes que em nenhum momento se baseiam em textos <strong>de</strong><br />
Guimarães Rosa estão entre os mais rosianos já produzidos pelo cinema. Isso é<br />
fácil <strong>de</strong> explicar. Poucos escritores exerce(ra)m influência tão forte sobre<br />
criadores <strong>de</strong> imagens como Guimarães Rosa – ele, certamente o maior <strong>de</strong> todos<br />
esses criadores. A beleza e a poesia <strong>de</strong> suas narrativas sempre fascinaram<br />
autores <strong>de</strong> gerações diversas e, mesmo que alguns, seja por que motivo for, não<br />
tenham podido utilizar seus contos ou novelas, certamente viram-se impregnados<br />
pelo sertão e os seres que nele habitam. Ao filmar essas histórias<br />
originais, a sombra po<strong>de</strong><strong>rosa</strong> <strong>de</strong> Rosa se mostra onipresente.<br />
É o caso <strong>de</strong> O Homem do Corpo Fechado, primeiro longa-metragem<br />
dirigido por Schubert Magalhães em 1972. Toda a ação se passa nos lugares<br />
que o escritor conheceu e <strong>de</strong>screveu muito bem, mas argumento, roteiro e<br />
diálogos são <strong>de</strong> única responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Schubert. Como nas narrativas<br />
roseanas, a ação po<strong>de</strong> ser resumida em poucas palavras. Se, por exemplo, “A<br />
Estória <strong>de</strong> Lélio e Lina” po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>scrita como um caso <strong>de</strong> amor entre um<br />
vaqueiro e uma velha, se o conto “Famigerado” fala da visita <strong>de</strong> um temível<br />
fora-da-lei a um letrado para saber o significado da palavra-título, “O Homem
Guimarães Rosa e o cinema ___________________________________________________ Paulo Augusto Gomes 207<br />
do Corpo Fechado” narra a trajetória do vaqueiro João <strong>de</strong> Deus, empregado do<br />
coronel Trajano dos Reis, que mantém sob sua guarda, quase presa, a moça<br />
Dinorá. João e ela <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m fugir e são perseguidos por capangas do coronel.<br />
Ele consegue se livrar <strong>de</strong> todos, inclusive do ex-patrão e, ao final, vai embora<br />
com sua amada sertão afora. Não é muito, mas Schubert, como Rosa, sabia que<br />
o segredo não estava na seqüência <strong>de</strong> ações dos personagens e sim na forma<br />
com que emoções e sentimentos eram exprimidos.<br />
O sertão, onipresente, mostra toda a sua gran<strong>de</strong>za na maneira como<br />
Schubert o filma, integrando seus personagens na beleza do lugar. Escolhe<br />
minuciosamente cada plano em função do que a paisagem exprime e opta quase<br />
sempre por planos <strong>de</strong> conjunto, ou seja, aqueles em que as figuras humanas são<br />
pouco mais que um <strong>de</strong>talhe no todo. Raros são os planos aproximados ou<br />
closes, como se diz na linguagem cinematográfica. Também extremamente<br />
funcional é a música <strong>de</strong> Tavinho Moura, na qual a viola caipira tem importante<br />
presença.<br />
De início, o filme <strong>de</strong> Schubert parece se filiar diretamente a Rosa. Afinal,<br />
um dos contos do escritor em Sagarana tem exatamente o nome <strong>de</strong> Corpo<br />
Fechado. Esse, aliás, era o nome original do filme, modificado em favor <strong>de</strong><br />
uma possível melhor bilheteria, algo que acabou não acontecendo. O cineasta<br />
parte do mesmo motivo dramático e ainda coloca como epígrafe uma citação <strong>de</strong><br />
Rosa mas, a partir daí, o relacionamento se dá pela apropriação do sertão<br />
rosiano por Schubert. Seu filme é direto, sem ro<strong>de</strong>ios, na linha em que também<br />
trabalhou o escritor. Acontece que, no caso, além do escritor, outra influência<br />
forte também se faz presente: a do western americano, que Schubert também<br />
admirava muito. É <strong>de</strong>ssa mistura bem trabalhada que surge a beleza <strong>de</strong> O<br />
Homem do Corpo Fechado.<br />
Não se trata <strong>de</strong> exemplo isolado. Outros po<strong>de</strong>riam ser lembrados na<br />
filmografia brasileira, com resultados igualmente felizes. Assim como,<br />
tomando como base textos <strong>de</strong> Rosa, muitos cineastas per<strong>de</strong>ram-se do seu<br />
universo, é igualmente possível a outros, mais talentosos, encontrar uma<br />
aproximação com o escritor por meio da captação sensível do seu universo. São<br />
esses os filmes que interessam, no caso. Não é difícil imaginar que João<br />
Guimarães Rosa teria se orgulhado das sementes que plantou na cultura<br />
brasileira.
208 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Música _____________________________________________<br />
MÁRIO DE ANDRADE<br />
E JACQUES MARITAIN<br />
Paulo Sérgio Malheiros dos Santos*<br />
Este artigo apresenta alguns paralelos entre o tomismo <strong>de</strong> Jacques<br />
Maritain e o pensamento estético <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, um dos principais<br />
críticos musicais brasileiros da primeira meta<strong>de</strong> do século XX. Uma síntese,<br />
ainda que superficial, do pensamento <strong>de</strong> Maritain torna-se um po<strong>de</strong>roso<br />
auxiliar, quase indispensável, para uma melhor compreensão do pensamento<br />
andradiano. Em 1920, quando Jacques Maritain publicou seu livro Art et<br />
scolastique, as vicissitu<strong>de</strong>s do período entre as duas gran<strong>de</strong>s guerras provocavam<br />
uma mudança nos rumos das vanguardas do começo dos anos <strong>de</strong><br />
1900. Há nelas, agora, uma tendência geral à institucionalização, à consolidação<br />
dos processos construtivos, suplantando a tendência iconoclasta e<br />
<strong>de</strong>strutiva dos primeiros momentos. A fase neo-clássica adotada por músicos<br />
como Stravinsky, Villa-Lobos e outros gran<strong>de</strong>s compositores torna-se um<br />
exemplo, entre muitos possíveis, do retorno à or<strong>de</strong>m percebido na obra<br />
<strong>de</strong> artistas cuja fama inicial associara-se a escândalos pour épater la<br />
bourgeoisie.<br />
Umberto Eco, em A <strong>de</strong>finição da arte (1960), observa a importância <strong>de</strong><br />
Art et Scolastique (1920), do filósofo francês Jacques Maritain, no contexto da<br />
década:<br />
* Professor <strong>de</strong> História da Música na UEMG, pianista e doutor em Literaturas <strong>de</strong> Língua Portuguesa pela<br />
PUC-MG.
210 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Pensemos no clima do momento: os movimentos <strong>de</strong> vanguarda<br />
suce<strong>de</strong>m-se em turbilhão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há quarenta anos. (...) Art et<br />
scolastique é o livro <strong>de</strong> um homem mo<strong>de</strong>rno, (...) <strong>de</strong> um medieval<br />
que crê em Cocteau, se entusiasma com Satie, Milhaud, Poulenc,<br />
com a pintura <strong>de</strong> Severine e com o medievalismo tão imbuído <strong>de</strong><br />
mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> pictórica <strong>de</strong> Rouault.(...)<br />
Não se põe o problema do que está vivo no pensamento medieval:<br />
evi<strong>de</strong>ntemente, tudo está vivo, porque, em pleno século vinte, ele<br />
pensa como um medieval. (...) a Ida<strong>de</strong> Média não é uma ilha<br />
histórica, mas uma dimensão do espírito. (...) A cultura contemporânea<br />
<strong>de</strong>scobriu assim, graças a ele, a existência <strong>de</strong> uma estética<br />
medieval (...) um instrumento que, ao que parecia, podia atuar no<br />
mais vivo das polêmicas artísticas da época. (ECO, 1972: 101)<br />
Segundo Eco, o “primitivismo” <strong>de</strong> Maritain exercia função libertadora<br />
em relação a tantas hipóteses românticas e <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes que pesavam sobre uma<br />
reflexão estética ditada, sobretudo, pela sensibilida<strong>de</strong>. A cultura mo<strong>de</strong>rna<br />
tomou como novo o que Maritain tomara <strong>de</strong> empréstimo à tradição escolástica<br />
medieval.<br />
Como o filósofo francês, Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> adota uma avaliação histórica<br />
para a arte oci<strong>de</strong>ntal, a partir da qual o advento do Cristianismo, marco<br />
<strong>de</strong>cisivo, separa o Oriente e o Oci<strong>de</strong>nte. Interessa-se, sobretudo, pelo nascimento<br />
<strong>de</strong> um novo conceito <strong>de</strong> Artista – agora valorizado, no mundo<br />
oci<strong>de</strong>ntal, em sua individualida<strong>de</strong> – e pela simultânea procura da Beleza por si<br />
mesma, <strong>de</strong>svinculada dos outros objetivos utilitários que a acompanhavam na<br />
Antigüida<strong>de</strong>. Em um artigo, <strong>de</strong> 1926, sobre o canto gregoriano, incluído<br />
<strong>de</strong>pois no livro Música, doce música (1934), Mário apresenta o conceito <strong>de</strong><br />
consciência individual característico do mundo oci<strong>de</strong>ntal como obra do<br />
cristianismo:<br />
Quem trouxe a idéia prática do homem-só, <strong>de</strong>struindo a base em<br />
que se organizara as civilizações da Antigüida<strong>de</strong>, foi Jesus,<br />
passeando a sua imensa divinda<strong>de</strong> solitária sobre a terra. E com<br />
isso um i<strong>de</strong>al novo <strong>de</strong> civilização ia nascer, provindo não mais do<br />
conceito <strong>de</strong> Socieda<strong>de</strong>, porém do <strong>de</strong> Humanida<strong>de</strong>. Porque só<br />
mesmo a realida<strong>de</strong> do indivíduo, que o exame <strong>de</strong> consciência<br />
cristão evi<strong>de</strong>nciava, traz a idéia <strong>de</strong> Humanida<strong>de</strong>; ao passo que a
Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e Jacques Maritain ________________________________ Paulo Sérgio Malheiros dos Santos 211<br />
eficiência do homem coletivo <strong>de</strong> antes <strong>de</strong>spertava só a <strong>de</strong><br />
Socieda<strong>de</strong>, o que não é a mesma coisa. Os homens antigos possuíram<br />
noção nítida e agente <strong>de</strong> socialização, porém tiveram idéias<br />
imperfeitas, quase sempre vagas e divagantes, sobre o que seja<br />
humanização e igualda<strong>de</strong> humana. (ANDRADE, Música, doce<br />
música: 25)<br />
Mário ratificará essa mesma idéia, quase com as mesmas palavras, em<br />
sua Pequena história da música (1928). Os objetivos didáticos do livro,<br />
visando <strong>de</strong> imediato os alunos do Conservatório, reforçam a importância<br />
conferida pelo autor a esse momento histórico divisor <strong>de</strong> dois mundos. A<br />
associação do individualismo oci<strong>de</strong>ntal ao advento do cristianismo tem<br />
importância <strong>de</strong>cisiva para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> suas teorias estéticas e, como<br />
foi dito anteriormente, torna-se um consenso entre os dois autores aqui<br />
focalizados.<br />
Jacques Maritain apresenta um painel da relação do Homem com a<br />
Beleza, seguindo uma cronologia histórica – o mesmo procedimento expositivo<br />
adotado por Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> para sua aula inaugural dos cursos da<br />
Universida<strong>de</strong> do Distrito Fe<strong>de</strong>ral, <strong>de</strong>pois publicada com o título O artista e o<br />
artesão.<br />
Como ponto <strong>de</strong> partida da viagem pelas formas artísticas no <strong>de</strong>correr dos<br />
séculos, o filósofo francês diferencia a Arte e a Poesia. A Arte <strong>de</strong>fine-se por<br />
uma ativida<strong>de</strong> criadora, produtora ou fabricadora, própria do espírito humano.<br />
A Poesia (e não se trata aqui apenas da arte <strong>de</strong> fazer versos) <strong>de</strong>fine-se por um<br />
processo – a intercomunicação entre o ser interior das Coisas e o ser interior do<br />
Eu Humano. Embora diferenciadas, Arte e Poesia mantêm-se indissoluvelmente<br />
relacionadas. Pelas manifestações artísticas po<strong>de</strong>mos perceber a<br />
Poesia – a união das Coisas com o Homem, o mútuo entrelaçamento entre a<br />
Natureza e o Homem, o encontro entre o Mundo e o Eu. Na História, em diversos<br />
momentos e civilizações, <strong>de</strong>vemos buscar as múltiplas formas do esforço<br />
criador humano. Nessa mirada secular, um primeiro contraste logo se constata:<br />
a diferença entre o Oriente e o Oci<strong>de</strong>nte quanto à percepção do Mundo – da<br />
natureza, das Coisas – e o Eu do artista. De modo geral, a arte do Oriente opõe-se<br />
diretamente ao individualismo oci<strong>de</strong>ntal. Há, na raiz <strong>de</strong>ssa diferença, um<br />
aspecto religioso. Sem a noção <strong>de</strong> individualida<strong>de</strong> instaurada pelo cristianismo,<br />
não interessa à arte oriental a subjetivida<strong>de</strong> do artista criador. Como as religiões<br />
às quais se ligou, essa arte serve à comunida<strong>de</strong>, transformando as Coisas em<br />
símbolos sagrados, aumentando-lhes a eficácia ritual. Na arte do Oriente
212 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Antigo, o indivíduo não tem vida própria, pois a obra só existe enquanto<br />
encontro <strong>de</strong> dois espíritos, o do artista e o do contemplador. O artista oriental<br />
vê as Coisas <strong>de</strong> maneira a torná-las comunicáveis aos outros, segundo um<br />
padrão comum, esquecendo-se <strong>de</strong> si. Maritain continua seu raciocínio,<br />
observando que a arte oriental, embora voltada e dominada pelas Coisas,<br />
abomina o realismo, pois, como toda a arte verda<strong>de</strong>ira, transforma seu objeto<br />
em símbolo. Cabe ainda notar que, para exemplificar o Oriente, Jacques<br />
Maritain estuda as artes hindu e chinesa, enquanto Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, em O<br />
artista e o artesão, elege, para a mesma finalida<strong>de</strong>, a arte do Egito.<br />
O poeta paulista observa que a arte egípcia, cujo aspecto <strong>de</strong> impessoalida<strong>de</strong><br />
coletiva é notável, caracteriza-se por um princípio utilitário. Mais que a<br />
beleza interessa-lhe a durabilida<strong>de</strong>. O objetivo <strong>de</strong> perdurar em imagens uma<br />
vida eterna suplantava o <strong>de</strong>sejo pessoal do artista <strong>de</strong> busca da beleza por si<br />
mesma. E os egípcios, atentos a seu ofício, trataram <strong>de</strong> garantir a imortalida<strong>de</strong><br />
dos mortos mais que a própria imortalida<strong>de</strong> pela fama ou pela glória (cf.<br />
ANDRADE, op. cit.:16). Em nenhuma civilização percebe-se uma fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong><br />
tão duradoura às formas estabelecidas, compromisso com uma expressão<br />
artística consi<strong>de</strong>rada perfeita e correspon<strong>de</strong>nte aos seus propósitos notadamente<br />
religiosos. Um dos aspectos da religião egípcia distinguia, entre os elementos<br />
componentes do ser humano, o “ka”, réplica imaterial do corpo. O “ka” po<strong>de</strong>ria<br />
sobreviver numa réplica do corpo, esculpida em material duradouro, um retrato<br />
ou uma efígie. O <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> sobrevivência, tão ar<strong>de</strong>nte nos egípcios, dominalhes<br />
a arte sacra e a imortalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>termina a escolha dos materiais e as<br />
proporções da obra: a forma geométrica da pirâmi<strong>de</strong> é das mais estáveis, resiste<br />
ao vento e à areia; e a pedra, como material i<strong>de</strong>al pela durabilida<strong>de</strong>, impõe-se.<br />
Certas convenções da escultura e da arquitetura nasceram do respeito às suas<br />
exigências específicas, resultando em uma nobre, austera e i<strong>de</strong>alizada estilização<br />
das formas. A arte do Antigo Egito impressiona pela regularida<strong>de</strong>, a<br />
mesma das enchentes do rio Nilo e da monotonia do <strong>de</strong>serto, impessoal e<br />
permanente.<br />
Em outras manifestações artísticas, também comandadas pelo princípio<br />
utilitário, sobretudo religioso, impera o anonimato. Na música, po<strong>de</strong>ríamos<br />
lembrar o canto gregoriano, com sua função litúrgica, submisso ao cerimonial e<br />
à inteligibilida<strong>de</strong> do texto latino. O exemplo torna-se particularmente interessante<br />
pela sua posição histórica, her<strong>de</strong>ira das teorias gregas e da salmodia<br />
hebraica, e primeira manifestação da música oci<strong>de</strong>ntal. Em Música, doce<br />
música, Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> observa que, como a arte popular, o gregoriano é<br />
por essência anônimo:
Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e Jacques Maritain ________________________________ Paulo Sérgio Malheiros dos Santos 213<br />
O que faz a intensida<strong>de</strong> concentrada da arte popular é a maneira<br />
com que as fórmulas melódicas e rítmicas se vão generalizando,<br />
per<strong>de</strong>ndo tudo que é individual, ao mesmo tempo que concentram<br />
em sínteses inconscientes as qualida<strong>de</strong>s, os caracteres duma raça<br />
ou dum povo. A gente bem sabe que uma melodia popular foi<br />
criada por um indivíduo. Porém esse indivíduo, capaz <strong>de</strong> criar<br />
uma fórmula sonora que iria ser <strong>de</strong> todos, já tinha <strong>de</strong> ser tão<br />
pobre <strong>de</strong> sua individualida<strong>de</strong>, que se pu<strong>de</strong>sse tornar assim, menos<br />
que um homem, um humano. E inda não basta. Rarissimamente<br />
um canto <strong>de</strong>veras popular, é obra dum homem apenas. O canto<br />
que vai se tornar popular, nesse sentido legítimo <strong>de</strong> pertencer a<br />
todos, <strong>de</strong> ser obra anônima e realmente representativa da alma<br />
coletiva e <strong>de</strong>spercebida, se <strong>de</strong> primeiro foi criado por um<br />
indivíduo (...) vai se transformando um pouco ou muito, num som,<br />
numa disposição rítmica, gradativamente, e não se fixa quase<br />
nunca, porque também a alma do povo não se fixa. Porém, <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong>ssa mobilida<strong>de</strong> exterior, o canto popular conserva uma<br />
estabilida<strong>de</strong> essencial, em que as características mais legítimas e<br />
perenes <strong>de</strong> tal povo se vão guardar. Dentro da mobilida<strong>de</strong> exterior<br />
<strong>de</strong>le, o canto popular é imóvel. Assim o cantochão. Tem essa<br />
mobilida<strong>de</strong> virtual da música popular. Descobriu e realizou<br />
aquelas formas sintéticas perfeitas, em que guardou as essências<br />
mais puras da religião católica. (ANDRADE, Música, doce<br />
música: 33).<br />
Seguindo seu raciocínio, Mário aponta algumas características técnicas<br />
comuns ao gregoriano e à música popular – fórmulas melódicas curtas, pouco<br />
nume<strong>rosa</strong>s e repetitivas se combinando em organizações novas. No caso do<br />
cantochão, o anonimato era conseqüência, sobretudo, <strong>de</strong> sua função litúrgica,<br />
uma arte que não pretendia comover nem impressionar, encantar ou distrair.<br />
Sua função era integrar o crente ao ofício religioso e se a música não importava<br />
por si mesma, menos ainda importava algum improvável autor.<br />
Para Jacques Maritain, na arte oriental, existe uma supremacia das Coisas<br />
sobre o Eu Humano. Mas, apesar <strong>de</strong>ssa supremacia, mesmo nessa arte<br />
profundamente funcional e comunitária, a varieda<strong>de</strong> entre as culturas atesta,<br />
com suas diferenças, a presença humana da mão do artista. Trata-se, porém, <strong>de</strong><br />
um artista genérico, não i<strong>de</strong>ntificável enquanto indivíduo, apenas um elemento<br />
caracterizador e diferenciador <strong>de</strong> culturas.
214 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Em contraste com o Eu Coletivo oriental, o Oci<strong>de</strong>nte revelará o mistério<br />
interior da personalida<strong>de</strong> individual. Conforme as citações anteriores – a <strong>de</strong><br />
Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e a <strong>de</strong> Jacques Maritain – o dogma cristão <strong>de</strong> um Deus que<br />
se fez homem e a idéia da salvação como conquista única e pessoal foram<br />
<strong>de</strong>cisivos para essa mudança <strong>de</strong> perspectiva na visão do lugar ocupado pela<br />
pessoa humana no mundo. O processo foi lento, diversificado e Maritain<br />
divi<strong>de</strong>-o em quatro fases, indo dos primórdios do cristianismo aos tempos<br />
atuais.<br />
Na primeira fase da arte oci<strong>de</strong>ntal analisada por Maritain, correspon<strong>de</strong>nte<br />
a um período que culmina na arte bizantina e se esten<strong>de</strong> até à arte medieval, a<br />
pessoa humana aparece ainda como um objeto no mundo das Coisas. Mas<br />
torna-se transcen<strong>de</strong>nte a esse mundo – um objeto glorificado, em mosaicos<br />
grandiosos, na figura <strong>de</strong> Cristos <strong>de</strong> uma realeza impressionante. A pessoa<br />
humana apresenta-se transfigurada por uma simbologia dogmática, intelectualizada<br />
e concretizada em imagens sagradas. A divinda<strong>de</strong> do Cristo domina sua<br />
figura humana e a visão do homem retratado pelos artistas espelha-se nesse<br />
i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> glorificação. A pessoa humana torna-se “assunto”, mas nela percebe-se<br />
o <strong>de</strong>sapego do corpo e da vida terrestre em proveito da vida da alma criada para<br />
a eternida<strong>de</strong>; e seu retrato exprime-se em figuras planas, sem relevo, em<br />
<strong>de</strong>senho esquemático. As roupagens e o fundo do quadro se prodigalizam em<br />
arabescos e linhas <strong>de</strong>corativas caprichosas, repletos <strong>de</strong> motivos sagrados como<br />
as folhas da parreira e os peixes – criptograma <strong>de</strong> Cristo, já que as primeiras<br />
letras da expressão grega “Jesus Cristo, filho <strong>de</strong> Deus Salvador”, formavam a<br />
palavra ichthýs. Os mosaicos <strong>de</strong> pedra ou <strong>de</strong> vidro colorido criam uma <strong>de</strong>coração<br />
policrômica exuberante que, nas igrejas, quase sempre converge para o<br />
altar, para on<strong>de</strong> conduz a atenção dos fiéis. As figuras humanas, reduzidas a<br />
formas <strong>de</strong>corativas, ignoram a realida<strong>de</strong> física e tornam-se pura abstração.<br />
Na segunda fase, época da arte gótica e <strong>de</strong> São Francisco <strong>de</strong> Assis, o<br />
aspecto humano vai marcar a face do Cristo anteriormente divinizado e<br />
glorioso. Nessa arte, ainda profundamente religiosa, valoriza-se o sofrimento<br />
do Re<strong>de</strong>ntor, sua dor física, sua dolo<strong>rosa</strong> condição <strong>de</strong> homem. As catedrais<br />
enfeitam-se com a vida humana retratada nos seus afazeres diários, seus artífices,<br />
seus mercados, com todas suas ativida<strong>de</strong>s sacralizadas. A natureza<br />
comparece com seus frutos, flores e animais. A arte gótica nasceu com as<br />
cida<strong>de</strong>s em cujo centro, a Catedral, realiza-se a maior parte das ativida<strong>de</strong>s<br />
humanas. A construção do templo unia o sentimento religioso ao orgulho cívico<br />
e as cida<strong>de</strong>s disputavam, em rivalida<strong>de</strong> acirrada, a altura <strong>de</strong> suas abóbadas, com<br />
a participação ativa <strong>de</strong> seus habitantes. O gótico apresenta-nos, assim, um
Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e Jacques Maritain ________________________________ Paulo Sérgio Malheiros dos Santos 215<br />
mundo imensamente secular, humanizado; mas, ao mesmo tempo, nele tudo<br />
ainda é sagrado, redimido pelo sangue do Re<strong>de</strong>ntor e nenhum outro estilo<br />
arquitetônico exprime tamanha exaltação mística. A cida<strong>de</strong> vive em função <strong>de</strong><br />
sua catedral que faz a ponte do humano ao divino e está para seu mundo como<br />
o teatro estava para a ética dos gregos. Aos poucos, essa sagração do Universo,<br />
congregada pela cristanda<strong>de</strong> medieval, vai se dissolver; e <strong>de</strong>samparado <strong>de</strong> sua<br />
religiosida<strong>de</strong>, o homem “existencialista” do fim do século XV começa a<br />
“procurar em terra hostil um lugar para sua autonomia recém <strong>de</strong>scoberta”.<br />
(MARITAIN, 1999: 34).<br />
A terra hostil se revelará, <strong>de</strong>pois, fértil. E uma terceira fase inicia-se com<br />
o Renascimento. São várias as conquistas a justificar tal nome – os progressos<br />
científicos, o conhecimento astronômico e da própria Terra, revelada pelas<br />
gran<strong>de</strong>s navegações, o estudo da anatomia, a perspectiva na pintura. Um<br />
sentimento <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> ambição concorre para a explosão do individualismo.<br />
Sob esse aspecto, inicia-se a Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. O homem percebe-se como criador.<br />
As Coisas, a natureza, quando o homem as retrata, servem-lhe apenas <strong>de</strong><br />
pretexto para a criação <strong>de</strong> um universo imaginário e pessoal. Mais que o objeto<br />
representado, valoriza-se subjetivamente o modo segundo o qual o artista<br />
realiza o retrato. E este traz, necessariamente, a marca individual <strong>de</strong> seu autor<br />
(cf. MARITAIN, op. cit.: 36).<br />
Aparece o <strong>de</strong>sejo da fama; o artista <strong>de</strong>seja ser conhecido e admirado em<br />
vida e entre os vivos. Dois gêneros artísticos, <strong>de</strong> pouca conta até então, tornamse<br />
comuns, testemunhando o apreço à vida temporal: o retrato pessoal, quase<br />
inexistente na Ida<strong>de</strong> Média, aparece, então, com a exigência <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao<br />
mo<strong>de</strong>lo; e as biografias, inclusive as <strong>de</strong> artistas – como o livro <strong>de</strong> Vasari sobre<br />
arquitetos, pintores e escultores italianos – substituem as edificantes Vidas dos<br />
Santos. Em muitas pinturas religiosas, o retrato do pintor ou do seu patrono<br />
convive com as figuras sagradas. O corpo humano, vestido no período anterior,<br />
<strong>de</strong>snuda-se pelo exemplo da Antigüida<strong>de</strong> e é estudado cientificamente, bastando-nos<br />
lembrar as dissecações encomendadas por Leonardo da Vinci. Ou<br />
seja, o corpo humano <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> representar uma dimensão do divino e passa a<br />
ser observado, não só no seu exterior, mas também interiormente, com interesse<br />
anatômico.<br />
Nos séculos seguintes, contrastando com esse período <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobertas e<br />
criativida<strong>de</strong>, há uma forte tendência à normatização, à ditadura <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los<br />
impostos e padronizados. Mas nem a tendência clássica para o aca<strong>de</strong>mismo,<br />
para o naturalismo mimético e o gosto pela perfeição dos meios, característicos<br />
dos dois séculos posteriores, foram insuficientes para <strong>de</strong>struir a afirmação da
216 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
personalida<strong>de</strong> do artista, pelo menos nas gran<strong>de</strong>s obras dos gran<strong>de</strong>s autores. E<br />
como reação a esse aca<strong>de</strong>mismo institucionalizado, preparada pelo romantismo<br />
do século XIX, inicia-se a gran<strong>de</strong> época da pintura mo<strong>de</strong>rna, elevando ao<br />
máximo a consciência individual do artista, abrindo a quarta fase <strong>de</strong>ssa evolução<br />
histórica analisada por Jacques Maritain: “O sentido interior das Coisas é<br />
enigmaticamente apreendido através do Eu do artista, e ambos se manifestam<br />
juntos na obra. É o momento em que a poesia toma consciência <strong>de</strong> si mesma.”<br />
(MARITAIN, op. cit.: 39).<br />
Da Antigüida<strong>de</strong> Oriental até a meta<strong>de</strong> do século XX, em linhas gerais e<br />
esquemáticas, essas são as gran<strong>de</strong>s fases históricas contempladas por Jacques<br />
Maritain. Fases, aliás, bastante i<strong>de</strong>ntificáveis em vários compêndios <strong>de</strong> História<br />
da Arte. O que torna interessante seu pensamento é a atenção dada à posição do<br />
Homem nessa cronologia, passando <strong>de</strong> assunto retratável sob enfoques diversos,<br />
até à consciência <strong>de</strong> uma individualida<strong>de</strong> criadora.<br />
Em Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, uma divisão histórica semelhante incidirá, principalmente,<br />
sobre os aspectos coletivos ou individualistas da criação artística. O<br />
ponto nevrálgico <strong>de</strong>ssa caminhada cronológica, pelo menos no que diz respeito<br />
à História da Música (o terreno mais seguro das reflexões estéticas andradianas),<br />
será o Romantismo, quando a figura do artista sobrepõe-se à própria<br />
obra <strong>de</strong> arte.<br />
Jacques Maritain observa que os doutores medievais valorizavam<br />
igualmente o artista e o artesão, pois o trabalho <strong>de</strong> ambos tinha, para eles, uma<br />
mesma dignida<strong>de</strong>, advinda não da força dos músculos e da <strong>de</strong>streza dos <strong>de</strong>dos,<br />
ou do fato <strong>de</strong> ambos realizarem um trabalho manual, mas da certeza <strong>de</strong> que a<br />
origem comum <strong>de</strong> suas ativida<strong>de</strong>s estava no intelecto. Mais que um simples<br />
a<strong>de</strong>stramento mecânico, consi<strong>de</strong>rava-se a arte que praticavam uma ativida<strong>de</strong><br />
intelectual. Evi<strong>de</strong>ntemente, existem diferenças entre o artesão, o artista, as<br />
“artes úteis” e “as belas artes”. Para estabelecê-las, Jacques Maritain propõenos<br />
um exemplo bastante simples, imaginando a construção da primeira jangada<br />
inventada pelo homem, quando nem a palavra ou a idéia <strong>de</strong> jangada<br />
existiam ainda. Nos posteriores aperfeiçoamentos <strong>de</strong>ssa primeira jangada, o<br />
homem acumulou as regras anteriormente <strong>de</strong>scobertas enquanto <strong>de</strong>scobria<br />
outras novas.<br />
Com esse exemplo, Maritain evi<strong>de</strong>ncia algumas verda<strong>de</strong>s simples, mas<br />
importantes. A primeira verda<strong>de</strong> estabelece que as regras não são normas préelaboradas;<br />
ao contrário, surgem durante o próprio processo <strong>de</strong> criação e a<br />
teoria apóia-se na experimentação, tanto para o artista quanto para o artesão.<br />
Com o tempo, essas regras ten<strong>de</strong>m a se transformarem em normas, “tornam-se,
Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e Jacques Maritain ________________________________ Paulo Sérgio Malheiros dos Santos 217<br />
então, ao mesmo tempo que ajuda, obstáculo à vida da arte.” (MARITAIN,<br />
2001: 18). Outra conclusão, também tirada da história do aperfeiçoamento das<br />
jangadas, diz respeito ao trabalho do artesão. Por mais que suas <strong>de</strong>scobertas<br />
técnicas tornem-se engenhosas e aperfeiçoadas, a sua regra maior permanecerá<br />
sempre a primeira, segundo a qual seu trabalho <strong>de</strong>verá satisfazer o princípio da<br />
necessida<strong>de</strong> que o originou. Todas as outras regras, por mais sofisticadas e<br />
refinadas, tornam-se secundárias. Ainda quando há uma inegável preocupação<br />
com a beleza, essa aparece <strong>de</strong> maneira indireta, aci<strong>de</strong>ntal, exigência da criativida<strong>de</strong><br />
do espírito humano sobre a produção <strong>de</strong> um objeto utilitário. Pela mesma<br />
submissão à regra primeira, a beleza das linhas <strong>de</strong> um automóvel, exemplo das<br />
mo<strong>de</strong>rnas artes mecânicas, curva-se às exigências primordiais do bom funcionamento<br />
da sua máquina, assim como um lindo pote <strong>de</strong> argila <strong>de</strong>corado <strong>de</strong>ve<br />
armazenar e conservar a água potável.<br />
Nas belas-artes, diferentemente, o princípio primordial, a regra inicial<br />
que impulsiona o artista, não pertence a um mundo exterior ao intelecto – é a<br />
própria libertação da criativida<strong>de</strong> do espírito na busca da beleza. O intelecto<br />
esforça-se por produzir uma obra ao mesmo tempo material e espiritual, criada<br />
à imagem e semelhança do homem, e na qual permaneça um pouco da alma <strong>de</strong><br />
seu criador. A ativida<strong>de</strong> artística, nas belas-artes, encontra-se em estado puro, livre<br />
<strong>de</strong> elementos acessórios, para além do domínio do útil. Sua finalida<strong>de</strong> primeira<br />
i<strong>de</strong>ntifica-se com a própria natureza do espírito, proce<strong>de</strong> do domínio do intelecto<br />
e não <strong>de</strong> uma necessida<strong>de</strong> do mundo utilitário. “A intelectualida<strong>de</strong> da arte<br />
encontra-se, portanto, nas belas artes (apesar <strong>de</strong> mais ligada aos po<strong>de</strong>res sensíveis<br />
e emocionais), em grau mais elevado que na arte do artesão” (MARITAIN,<br />
op. cit.: 20). Daí, a noção <strong>de</strong> regra, que nas artes úteis torna-se facilmente uma<br />
aquisição normativa estável e, nas artes do belo, transforma-se consi<strong>de</strong>ravelmente,<br />
exigindo permanente renovação, acima <strong>de</strong> qualquer cânone. Pois a<br />
beleza nunca se esgota com os meios <strong>de</strong> atingi-la, seja pela adaptação das<br />
regras já consagradas ou pela criação <strong>de</strong> novas e surpreen<strong>de</strong>ntes possibilida<strong>de</strong>s.<br />
Sob esse aspecto, cada obra <strong>de</strong> arte torna-se um caso único, sem prece<strong>de</strong>ntes.<br />
Se falta ao artista a “intuição criadora”, a obra, mesmo tecnicamente perfeita,<br />
não significará nada; ao contrário, muitas realizações <strong>de</strong>feituosas trazem a marca do<br />
seu criador e impõem-se pelo o que têm a dizer (cf. MARITAIN, op. cit.: 22).<br />
As relações da teoria, domínio das regras, com a criativida<strong>de</strong> artística,<br />
domínio da intuição pessoal, sempre ocuparam o pensamento <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong><br />
Andra<strong>de</strong>. Em 1926, um artigo do escritor sobre o canto gregoriano <strong>de</strong>senvolve<br />
o tema, no sub-título O criador tem normas e o repetidor teorias, do qual<br />
transcrevemos alguns trechos, importantes para a continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse estudo:
218 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
A eterna luta da Arte não é propriamente contra a Teoria, porém,<br />
apesar da teoria... Os criadores geniais estabelecem um ou outro<br />
princípio teórico, mas, esses princípios não têm pra eles função<br />
básica <strong>de</strong> teoria. Exercem antes uma função normalizadora,<br />
estabilizadora <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>, ou <strong>de</strong> tendências mais ou menos<br />
coletivas. Isso quer dizer que, pros artistas gran<strong>de</strong>s, a teoria existe<br />
em função da Arte, e não tem nem cheiro leve <strong>de</strong> lei. É norma. Só<br />
nos períodos <strong>de</strong> estratificação duma modalida<strong>de</strong> artística, é que<br />
verda<strong>de</strong>iramente a Teoria se organiza, tirando das criações do<br />
passado, regras que se fingem <strong>de</strong> leis. Mas então essas leis não<br />
servem mais, geralmente, porque provindas duma arte caduca,<br />
arte que também não serve mais. (...) Ao lado <strong>de</strong>ssas leis, surgem<br />
tendências novas com formas novas, tímidas no começo, confusas,<br />
abandonadas às vezes, retomada as vezes, manifestações ainda<br />
precárias da inteligência organizadora, que tanto custa a se a<br />
fazer com as mudanças pererecas da sensibilida<strong>de</strong> da vida social.<br />
E essas tendências novas, essas normas novas, são abafadas,<br />
martirizadas, pela inércia natural dos teoristas e artistinhos<br />
repetidores, que só po<strong>de</strong>m encontrar no caminho freqüentado do<br />
passado aquela pasmaceira <strong>de</strong> vitalida<strong>de</strong> a que se afazem tão bem<br />
os comedores <strong>de</strong> cadáveres e os que têm braços caídos. (ANDRA-<br />
DE, Música, doce música: 30).<br />
Na seqüência do artigo, Mário reconhece a importância <strong>de</strong> teóricos<br />
geniais, como Guido d’Arezzo, cuja obra ilumina o passado com compreensão<br />
crítica e facilita o futuro, reconhecendo-lhes as teorizações como um gran<strong>de</strong><br />
trabalho criativo <strong>de</strong> síntese. Comparando-se a citação acima com as<br />
consi<strong>de</strong>rações anteriores <strong>de</strong> Jacques Maritain, percebemos nos dois autores a<br />
primazia da criativida<strong>de</strong> sobre a teorização, a última só se justificando<br />
posteriormente, quando alicerçada nas ousadas experiências <strong>de</strong> criadores<br />
geniais <strong>de</strong> uma época anterior. Nota-se também, no texto <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>,<br />
uma característica comum a vários <strong>de</strong> seus escritos – a tendência <strong>de</strong> <strong>de</strong>sviar-se<br />
do assunto para se concentrar em exemplos pessoais. Assim, mais que <strong>de</strong> teoria<br />
ou arte, o escritor fala <strong>de</strong> teóricos e artistas. Do filósofo francês, interessa-lhe,<br />
sobretudo, a vinculação escolástica da Arte ao Fazer e a idéia <strong>de</strong> que o bem da<br />
obra <strong>de</strong> arte importa mais que o bem do artista.<br />
Mário não segue até o final o pensamento <strong>de</strong> Maritain expresso em Art et<br />
scolastique. Apropria-se do que lhe parece funcional para seus propósitos,
Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e Jacques Maritain ________________________________ Paulo Sérgio Malheiros dos Santos 219<br />
acrescentando-o a um imenso repertório teórico, procedimento semelhante aos<br />
vários losangos literários que costura em sua vestimenta arlequinal <strong>de</strong> poeta.<br />
Bibliografia<br />
ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Introdução à estética musical. São Paulo: Hucitec,<br />
1995.<br />
____ Música, doce música. 2 ed.. São Paulo: Martins, 1963.<br />
____ O baile das quatro artes. 2 ed. São Paulo: Martins, 1963.<br />
____ Pequena história da música. 7 ed.. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.<br />
ECO, Umberto. A <strong>de</strong>finição da arte. Lisboa: Edições 70, 1972.<br />
MARITAIN, Jacques. A poesia, o homem e as coisas. Trad. Moacyr e Léa<br />
Laterza. Belo Horizonte: PUC-Minas, 1999.<br />
____ A razão operária. Trad. Moacyr e Léa Laterza. Belo Horizonte: PUC-<br />
Minas, 2001.<br />
____ Art et scolastique. Paris: Rouart et Fils, 1935.
220 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Artes Plásticas ________________________________________<br />
SÉRGIO TELLES – UM CLÁSSICO<br />
Carlos Perktold*<br />
Noite <strong>de</strong>stas, tendo adormecido pensando em pintores, músicos e<br />
escritores talentosos, sonhei com uma revoada <strong>de</strong> anjos barrocos que, em jogral<br />
e em poema póstumo <strong>de</strong> Drummond, explicavam o critério <strong>de</strong> Deus para<br />
entregar para alguém aquilo que o inglês chama <strong>de</strong> gift of God: o talento. O<br />
poema era lindo; a explicação, <strong>de</strong> simplicida<strong>de</strong> franciscana e, resumidamente,<br />
ocorre assim: em um <strong>de</strong>terminado momento <strong>de</strong> uma medida <strong>de</strong> tempo que<br />
<strong>de</strong>sconhecemos, em uma das suas tarefas cotidianas, o Todo-Po<strong>de</strong>roso aponta<br />
para um sortudo nascituro e uma luz <strong>de</strong> matiz divina acen<strong>de</strong> em um <strong>de</strong>partamento<br />
celestial. Naquele momento, todos os integrantes do jogral sabem que<br />
um potencial gênio nasceu, mas nenhum <strong>de</strong>les sabe a que o rebento foi <strong>de</strong>stinado.<br />
Isso fica armazenado num lugar <strong>de</strong>ntro do presenteado que apenas Ele<br />
conhece. Se aquele é contemporâneo <strong>de</strong> si mesmo, nasceu em família que compreen<strong>de</strong>u<br />
seu <strong>de</strong>stino e tem condições <strong>de</strong> auxiliá-lo a seguir suas <strong>de</strong>sventuras, o<br />
tempo lhe mostrará o significado daquela luz e ele será imortal no que fará.<br />
Como vêem, os talentosos precisam <strong>de</strong> outras ajudas, além daquela <strong>de</strong> Deus.<br />
Daí, a explicação por que há tantos Mozart, Bach, Manet e Cézanne que jamais<br />
serão conhecidos nem terão a sorte <strong>de</strong>stes. Esta talvez seja uma glândula congênita,<br />
ainda <strong>de</strong>sconhecida da Medicina e, no futuro, os cientistas explicarão por<br />
que apenas alguns nascem com ela. Conta a lenda que, quando Sergio Telles<br />
nasceu, duas luzes se ace<strong>de</strong>ram no Paraíso: elas representavam a vida artística e<br />
a diplomática (nesta or<strong>de</strong>m), dois talentos ímpares do guerreiro da vida.<br />
O imaginário nacional fantasia que a vida dos habitantes do Itamaraty<br />
seja tudo o que pediram a Deus: verba disponível para gastar à vonta<strong>de</strong>, lugares<br />
* Psicanalista e crítico <strong>de</strong> arte. Integra o CPMG, a ABCA e a AICA.
222 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
lindos para morar, carro com placa CD autorizando estacionar on<strong>de</strong> quiser,<br />
tempo para ler e escrever longas cartas, ou melhor, e-mails, chofer particular e,<br />
acima <strong>de</strong> tudo, muito glamour à noite, regado a bons vinhos e nenhum trabalho<br />
burocrático, político ou comercial. Tudo, é claro, com muita elegância <strong>de</strong>ntro<br />
do circuito Londres, Paris e New York. Alguns abençoados do Itamaraty<br />
trabalham e recebem essas benesses, mas é importante lembrar que o Brasil tem<br />
várias embaixadas em lugares on<strong>de</strong> o tédio passa férias e o diabo tem<br />
residência fixa. E vários diplomatas estão lá neste momento, <strong>de</strong>smentindo<br />
aquele imaginário.<br />
Por certo, as duas estrela-guias <strong>de</strong> Sergio Telles serviram <strong>de</strong> bússola<br />
orientadora e ele brilhou no Rio <strong>de</strong> Janeiro e em locais tão encantadores e<br />
privilegiados, que se pôs a pintá-los. E aquelas luzes celestiais, acessas quando<br />
ele nasceu, foram se intensificando pela sua vida afora e ele, generoso, as<br />
transferiu para suas telas. Daí a beleza <strong>de</strong> suas telas. Mas que ninguém imagine<br />
ser essa ativida<strong>de</strong> um lazer na época da vida na qual po<strong>de</strong>mos nos dar ao luxo<br />
<strong>de</strong> ócio com dignida<strong>de</strong>. Sua trajetória <strong>de</strong> artista é tão anterior àquela <strong>de</strong><br />
diplomata que, aos <strong>de</strong>zoito anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, era contemplado com o Prêmio <strong>de</strong><br />
Viagem ao País pela Escola <strong>de</strong> Belas Artes do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Ser premiado<br />
com essa ida<strong>de</strong>, por certo, é o resultado <strong>de</strong> garra, <strong>de</strong>terminação. Por isso, se ele<br />
não tivesse seguido carrière e pelo talento <strong>de</strong> que é possuidor, continuaria<br />
sendo quem é há muito: um artista <strong>de</strong> primeira linha, que não ce<strong>de</strong> a modismos<br />
pós-mo<strong>de</strong>rnos, elaborando a arte do <strong>de</strong>senho, aquarela e pintura como ele<br />
acredita, conhece e sabe.<br />
O espectador <strong>de</strong>spreparado po<strong>de</strong> se surpreen<strong>de</strong>r com a simplicida<strong>de</strong><br />
enganosa, própria <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s artistas, e imaginar que o que está na tela é<br />
ativida<strong>de</strong> fácil: bastam algumas pinceladas bem marcadas e cheias <strong>de</strong> cores na<br />
tela. Ser simples é ativida<strong>de</strong> que requer árduo exercício intelectual e é privilégio<br />
<strong>de</strong> poucos. Matisse, em célebre carta <strong>de</strong> 14 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1948 e dirigida<br />
a Henry Clifford, diretor do Museu <strong>de</strong> Arte da Filadélfia, <strong>de</strong>monstrou toda<br />
preocupação que a sua monumental retrospectiva po<strong>de</strong>ria causar nos jovens<br />
artistas que viriam seus trabalhos e os imaginariam simples <strong>de</strong>mais, sem<br />
calcularem o custo emocional <strong>de</strong>les. Dizia Matisse: Como interpretarão eles a<br />
impressão <strong>de</strong> aparente facilida<strong>de</strong> que lhes produzirá uma visão geral e rápida<br />
e até mesmo superficial, <strong>de</strong> minhas pinturas e <strong>de</strong>senhos? Havia então na<br />
pergunta do mestre francês e há hoje entre o gran<strong>de</strong> público, o risco <strong>de</strong><br />
imaginar o resultado com simplicida<strong>de</strong> como algo <strong>de</strong> fácil feitura. Com os<br />
trabalhos <strong>de</strong> Manet, Monet, Duffy, Cézanne e dos nossos Guignard, Ianelli,<br />
Marcier, Vicente do Rego, Gomi<strong>de</strong>, Sergio Telles e outros privilegiados
Sérgio Telles – um clássico ________________________________________________________ Carlos Perktold 223<br />
pintores brasileiros, corre-se o mesmo risco e permanece o mesmo e velho<br />
receio <strong>de</strong> Matisse.<br />
Este grupo <strong>de</strong> artistas nacionais e estrangeiros, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> longas guerrilhas<br />
interpessoais, criou obras que se apresentam como se fossem suas próprias<br />
impressões digitais, reconhecidas <strong>de</strong> longe a olho nu, tão gran<strong>de</strong> é a unida<strong>de</strong><br />
dos trabalhos <strong>de</strong> cada um. Para chegar a esse resultado, é preciso fazer como<br />
Sergio Telles fez: <strong>de</strong>scobrir cedo o significado daquela luz divina, <strong>de</strong>senhar<br />
intensa e literalmente todos os dias, freqüentar escolas e ter professores do<br />
porte <strong>de</strong> Oswaldo Teixeira, Levino Fanzeres, Rodolfo Chamberlland, Gagarin<br />
ou Nivouliès <strong>de</strong> Pierrefort, todos craques no <strong>de</strong>senho e no pincel. Estes, com<br />
altruísmo, repassaram seus conhecimentos ao aluno, que se tornou mais<br />
importante que seus mestres. É essa a função do aprendiz: ser, no futuro,<br />
melhor que seus lentes. Aqueles professores e a freqüência na Escola <strong>de</strong> Belas<br />
Artes do Rio <strong>de</strong> Janeiro foram dois dos elementos <strong>de</strong> uma constelação que<br />
cresceu no país e no exterior e que enobreceram o pintor-diplomata. Freqüentar<br />
aquela Escola durante alguns anos era a certeza <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a técnica apurada<br />
do <strong>de</strong>senho, do uso e mistura das cores, criadora <strong>de</strong> imagens com ritmo, tensão<br />
e cuidado com o elemento que se pinta no ponto <strong>de</strong> fuga da composição. São<br />
marinhas, naturezas-mortas e paisagens <strong>de</strong> lugares on<strong>de</strong> Sergio Telles morou e<br />
que foram fixadas em aquarela, <strong>de</strong>senhos e óleos com unida<strong>de</strong> ímpar: Paris, Lisboa,<br />
Líbano, Itália, Rio <strong>de</strong> Janeiro ou <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s históricas mineiras. Nestas telas o<br />
espectador sentirá o amarelo da laranja madura, o azul do céu <strong>de</strong> Brasília, o<br />
ocre <strong>de</strong> difícil colocação e a luminosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma ensolarada Ouro Preto, todas<br />
acompanhadas do mistério que toda boa pintura <strong>de</strong>ve conter, da mesma forma<br />
como há texto subjacente em cada obra literária <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>. Cabe ao espectador<br />
<strong>de</strong>cifrá-lo, porque a pintura é também uma escrita. E em sendo, alguns pintores<br />
são comparados a alguns escritores: poucos escrevem poemas avassaladores.<br />
Não são apenas esses atributos que imprimem aos trabalhos <strong>de</strong> Sergio<br />
Telles a gran<strong>de</strong>za que têm: são raras as suas obras nas quais o ser humano está<br />
ausente, <strong>de</strong>talhe crítico <strong>de</strong>monstrador <strong>de</strong> seu humanismo. São personagens<br />
literários com vitalida<strong>de</strong> pictórica e cheia <strong>de</strong> movimentos, sugeridos com<br />
<strong>de</strong>licadas pinceladas como faziam os impressionistas, ratificadas por Duffy e<br />
confirmadas pelo nosso Guignard.<br />
O espectador ou o colecionador experiente se certificará <strong>de</strong> todas essas<br />
afirmativas se folhear apenas um dos vinte e dois livros editados sobre suas<br />
obras, ou ler os textos sobre seus trabalhos, todos <strong>de</strong> críticos exigentes. O<br />
neófito em pintura e que tiver a sorte <strong>de</strong> encontrar seus quadros numa exposição,<br />
terá a vantagem <strong>de</strong> começar vendo um clássico.
224 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
BRACHER, A ARTE E OS ENIGMAS<br />
ENTRE O HOMEM E O ARTISTA<br />
Mauro Werkema*<br />
A arte tem muitos enigmas. Eles são seu fascínio e seu mistério. Menos<br />
ou mais enigmas surgem das diferenças da percepção/fruição por parte do<br />
espectador. Observar, no sentido <strong>de</strong> ver, nem sempre permite envolver-se,<br />
sentir. Mas, se há talento, refletido na obra, expresso numa espécie <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>/atributo,<br />
nem sempre <strong>de</strong> fácil i<strong>de</strong>ntificação e <strong>de</strong>finição, este é que vai qualificar<br />
o olhar e permitir que passe do simples enxergar para o sentir. Eis que o<br />
talento surge, então, entre todos os enigmas, como característica nem sempre<br />
facilmente percebível, embora real, mas quase in<strong>de</strong>cifrável porque está na<br />
or<strong>de</strong>m do pessoal, das sensações próprias <strong>de</strong> cada um. A natureza <strong>de</strong>ste<br />
fenômeno, as condições <strong>de</strong> sua manifestação, o alcance <strong>de</strong> sua expressão, o seu<br />
trânsito entre a razão e a emoção, a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> medição, ou da <strong>de</strong>codificação<br />
i<strong>de</strong>ntitária e pessoal, entre vários outras características e condicionantes,<br />
<strong>de</strong>safiam os que se <strong>de</strong>dicam a estudar o fenômeno da criação artística. É<br />
questão antiga, mas <strong>de</strong> remissão obrigatória em qualquer reflexão sobre o tema.<br />
Dom inato, até que ponto po<strong>de</strong> ser aprendido ou aperfeiçoado (é possível<br />
o ensino da arte?), estado alterado <strong>de</strong> consciência, percepção extra-sensorial ou<br />
exacerbação <strong>de</strong> uma sensibilida<strong>de</strong>, exteriorização do inconsciente, pela quebra<br />
da couraça armada pela introjeção das normas sociais <strong>de</strong> conduta impostas ao<br />
homem civilizado ou universalizado, capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> percepção diferenciada,<br />
tudo isto são conceitos ou tentativas <strong>de</strong> entendimento que diferentes escolas <strong>de</strong><br />
pensamento vão elaborando sobre o gran<strong>de</strong> enigma da arte.<br />
O fato é que o talento é um bem precioso, e não só para a criação<br />
artística. Revalorizado, entronizado como diferencial para a obra <strong>de</strong> arte, o<br />
talento vive um novo tempo, mais exigente, em que a ampliação da informação<br />
* Jornalista.
226 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
exacerba as condições <strong>de</strong> crítica, cada vez mais questionadoras da obra <strong>de</strong> arte<br />
sem arte, do objeto aleatório, das performances e intervenções, da arte<br />
conceitual e outros vanguardismos. Reivindica-se o retorno à arte como pregam<br />
artigos recentes <strong>de</strong> Ferreira Gullar e Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’Anna. Romano,<br />
em texto recente, lembra fala do maestro Lorin Maazel, que diz que o gran<strong>de</strong><br />
problema que “vitimou gran<strong>de</strong> parte da arte mo<strong>de</strong>rna, é que <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser arte<br />
para ser conceito. Conceitos que, ao serem <strong>de</strong>molidos, não <strong>de</strong>ixam nenhuma<br />
arte atrás <strong>de</strong> si”.<br />
Po<strong>de</strong>-se compreen<strong>de</strong>r a arte conceitual, ou a criação/exibição <strong>de</strong> algum<br />
objeto como expondo algum pensamento/conceito, com conteúdo i<strong>de</strong>ológico ou<br />
criação <strong>de</strong> forma. Ou po<strong>de</strong>-se enten<strong>de</strong>r o meramente ornamental. Mas a arte vai<br />
além. Já Ferreira Gullar, mais contun<strong>de</strong>nte, no seu A expressivida<strong>de</strong> da forma,<br />
<strong>de</strong> 1993, diz que “se qualquer forma traçada sobre uma tela expressa alguma<br />
coisa, não importa mais nem o talento nem o conhecimento técnico; todo<br />
mundo é artista e ninguém o é. Se toda forma é expressão e se a arte, livre <strong>de</strong><br />
qualquer princípio ou <strong>de</strong>finição, não é mais do que forma expressiva, então não<br />
se po<strong>de</strong> mais distinguir entre uma obra <strong>de</strong> arte e outra coisa qualquer, outro<br />
objeto qualquer”. Há que se retornar, portanto, à arte, talvez a arte que<br />
<strong>de</strong>monstre virtuosida<strong>de</strong> e criativida<strong>de</strong>, permanência, inovação.<br />
Estas são questões inerentes a uma conversa com Carlos Bracher e sua<br />
vivência, o homem e o artista, vida e obra. Para ele, como primeira condição<br />
para se compreen<strong>de</strong>r a ocorrência da arte-talento, este visto como condição<br />
realizadora, está a indissolubilida<strong>de</strong> entre o artista e o homem, que julga muito<br />
clara em sua trajetória <strong>de</strong> vida e pintura. Sua arte é o seu sentimento e esta vem<br />
da sua experiência no mundo. É por aí que po<strong>de</strong> ver o quanto o talento é<br />
atributo do que po<strong>de</strong>ríamos chamar <strong>de</strong> “humano profundo”. A sua visão do<br />
mundo, do homem e da socieda<strong>de</strong>, vida e morte, as relações nas or<strong>de</strong>ns política<br />
e econômica, condicionam seu “encantamento”. Não compreen<strong>de</strong> o artista frio,<br />
indiferente. Não vê a arte como resultante <strong>de</strong> um eterno sofrimento. A emoção,<br />
triste ou alegre, se dá pela condição vivencial, pelo envolvimento espiritual,<br />
pela capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver e envolver, <strong>de</strong> perceber as coisas do mundo. O perigo<br />
maior é o empobrecimento da sensibilida<strong>de</strong> e do humanismo, o embrutecimento,<br />
a <strong>de</strong>scrença.<br />
Olívio Tavares <strong>de</strong> Araújo, prefaciando livro sobre Bracher, diz: “Meu<br />
primeiro conceito é a convicção <strong>de</strong> que talento existe – por mais difícil que seja<br />
<strong>de</strong>fini-lo – e é uma coisa com a qual se nasce ou não”. E conclui: “Não estou<br />
reduzindo o artista a um fenômeno genético. Se fosse só assim, não haveria<br />
como compreen<strong>de</strong>r, racionalmente, certas concentrações ou momentos <strong>de</strong>
Bracher, a arte e os enigmas entre o homem e o artista _________________________________ Mauro Werkema 227<br />
esplendor, dos quais o exemplo mais evi<strong>de</strong>nte é o classicismo vienense na<br />
música do século XVIII. Num intervalo <strong>de</strong> 65 anos, nascem quatro dos maiores<br />
gênios da música: Haydn, Mozart, Beethoven e Schubert”. Herdado, aprendizado,<br />
estimulado pelo entorno que propicia o “insight”, o talento é tudo isto.<br />
É possível tentar encontrá-lo para qualificar a obra <strong>de</strong> arte?”<br />
Uma segunda or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> pensamento encontra-se no que Bracher chama<br />
<strong>de</strong> “liberalismo original”, herança <strong>de</strong> sua formação familiar e essencial no seu<br />
modo <strong>de</strong> ver o mundo. Não é o liberalismo paternalista ou apenas generoso,<br />
que força a aceitação do contraditório por mera educação intelectual, mas algo<br />
<strong>de</strong> raiz, genuíno, autêntico, efetivamente exercido na sua plenitu<strong>de</strong>. Sem esta<br />
condição não há sensibilida<strong>de</strong> plena, condição difícil, quase inalcançável, neste<br />
mundo <strong>de</strong>sigual e estimulador do raciocínio discriminatório. Neste campo, é<br />
possível falar numa nova sensibilida<strong>de</strong>, a que surge com a “<strong>de</strong>sconstrução” que<br />
se opera em tudo. Desfazer-se <strong>de</strong> amarras, <strong>de</strong>spojar-se <strong>de</strong> preconceitos e modos<br />
clássicos <strong>de</strong> pensar, abrir-se para o novo, tornar-se espírito liberto, <strong>de</strong>ixar que a<br />
paixão se torne a libertação do que oprime.<br />
Aos que o conhecem, estes traços se tornam perceptíveis. E se revelam,<br />
em Bracher, no seu ato <strong>de</strong> pintar. Vê-lo é uma emoção. “Equivale a observar<br />
um médium incorporando espíritos: com movimentos circulares que esboçam<br />
quase-formas moduladas em sentido horário”, diz João Adolfo Hansen, em<br />
insuperável exegese da obra <strong>de</strong> Bracher. Em movimentos rápidos, resultantes<br />
<strong>de</strong> uma articulação miocinestésica, que comanda o braço energizado, sob<br />
estímulos <strong>de</strong> um cérebro movido a impulsos, tudo isto fazendo com que vá<br />
“irrompendo finalmente na tela, como uma aparição escapada da ponta <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>dos on<strong>de</strong> um corpo imaginário se concentra”. Revela-se, com concretu<strong>de</strong><br />
didática, o que é o talento. Po<strong>de</strong>-se perceber, a cada gesto, o admirável dom<br />
artístico. Suce<strong>de</strong>m-se as pinceladas, às vezes substituídas pela espátula e a<br />
própria bisnaga da tinta, em gestos aparentemente aleatórios e informais. Mas<br />
que, gradativamente, para encanto do observador, vão dando forma e vida,<br />
numa mágica combinação <strong>de</strong> cores. Hansen vai além: “Em vários documentários,<br />
aliás, é costume referir-se à profundida<strong>de</strong> meio misteriosa e incondicionada<br />
da experiência existencial do pintor, restituindo-se a disposta unida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> sua psicologia como princípio causal e explicativo para o dinamismo <strong>de</strong> suas<br />
telas”. Conhecida e ressalvada a imensa, antiga e complexa discussão que a<br />
questão envolve, em Bracher, para Hansen, no entanto, não há dúvida <strong>de</strong> que<br />
“as intensida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> suas telas são vestígios <strong>de</strong> <strong>de</strong>scargas pulsionais”. E avança:<br />
“Se falasse, aqui a pintura diria o “não tenho palavras”, do mito romântico do<br />
indizível”.
228 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
O artista Bracher, com seu método e estilo, começa acariciando a tela,<br />
seu espaço <strong>de</strong> trabalho, emociona-se, acelera a respiração, se entrega ao<br />
pulsional, empunha o crayon e retrata sua “impressão primeira” do objeto,<br />
ataca com trincha e espátula e dá-se o mistério do talento. Vai-se revelando<br />
uma forma, em tempo curto, no jogo <strong>de</strong> movimentos, com cores e luzes, originados<br />
<strong>de</strong> pinceladas fortes, enérgicas, com relevos e extensões. O gesto é<br />
brusco, não estudado, ou medido e refletido, a busca da tinta é quase aleatória<br />
nos sucessivos e rápidos golpes com que ataca a tela, mas tudo vai formando<br />
imagens, com as visões e <strong>de</strong>formações que, afinal, vão compor a obra. Moacir<br />
Laterza, que <strong>de</strong>bruçou-se na interpretação <strong>de</strong> Bracher, diz que “caucionada por uma<br />
singular vivência estética, a práxis artística <strong>de</strong> Bracher manifesta essa estranha<br />
dialética interna da verda<strong>de</strong> do ser”. E mais: “É esta mediação da intimida<strong>de</strong><br />
pessoal que <strong>de</strong>termina a qualida<strong>de</strong> da sua obra. Procurando <strong>de</strong>svendar o enigma<br />
do mundo, Bracher resgata <strong>de</strong> certo modo sua realida<strong>de</strong> circundante e, a um só<br />
tempo, encontra a pista para a <strong>de</strong>cifração do enigma do seu próprio eu”.<br />
Para Bracher, falando do seu processo, “pintar é um processo anímico, é<br />
uma <strong>de</strong>tonação”. E mais: “É preciso misturar poesia e alucinação, com a<br />
expressão, possível, da força criativa, do talento, que já nasce com as limitações<br />
da personalida<strong>de</strong>. O quanto esta limitação vai prepon<strong>de</strong>rar é que dará a técnica<br />
e o estilo. O que nos leva a indagar até que ponto a transgressão absoluta não é<br />
construtiva”. Bracher se diz “expressionista essencialmente, composto por uma<br />
estética tensa, dramática, sempre uma transferência das interiorida<strong>de</strong>s. Mas o<br />
motivo, o élan, o impulso profundo é sempre <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> algum envolvimento<br />
psicológico, visto como estímulo a uma reação. A profusão <strong>de</strong> cores e<br />
formas é uma convulsão, uma eclosão imprevisível, condicionada pela emoção<br />
<strong>de</strong> cada instante.”<br />
“Não é cerebral nem intelectual. Fica no intuitivo. É como uma reação<br />
diante da vida. O fluxo <strong>de</strong> paixão é que vai produzindo gestos e imagens, que<br />
vão surgindo na tela. Não se pensa nem na cor, que vai compondo o conjunto,<br />
ajudando na vida e na forma, escolhida sob o impacto da emoção”, completa<br />
Bracher sobre o seu processo criativo. Esta fala nos remete ao pensamento <strong>de</strong><br />
que, em Bracher, o instinto é o seu talento. E também aí resi<strong>de</strong> o seu enigma. A<br />
força e o sentido do gesto, que se realiza na articulação entre o músculo e o<br />
movimento, impulsionado emocionalmente, instintivamente dirigido, compõem<br />
uma misteriosa concatenação criativa.<br />
“É da essência da linguagem verbal ser simbólica. A essência da linguagem<br />
visual não é a mesma; uma pintura não dispensa conceitos, mas também<br />
não sobrevive <strong>de</strong>les. Fala direto à percepção, que é biologicamente uma relação
Bracher, a arte e os enigmas entre o homem e o artista _________________________________ Mauro Werkema 229<br />
entre a sensibilida<strong>de</strong> (sistema límbico) e o intelecto (córtex)”, diz Daniel Piza<br />
em comentário crítico ao artigo “Argumentação contra a morte da arte”, <strong>de</strong><br />
Ferreira Gullar. E avança: quando a imagem chega à retina, aciona reação<br />
neural e química cerebral. E afirma: “Disso se conclui, por exemplo, que como<br />
o olho possui estrutura harmônica, não é à toa que temos um senso harmônico,<br />
um gosto pela harmonia”. A presença <strong>de</strong>sta “harmonia” – vista como relações<br />
simétricas e a opção pela linha reta ou com a exatidão entre o real e o retratado<br />
– com o classicismo e o impressionismo, têm sido motivo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> discussão<br />
na teoria da arte. De toda esta questão, Merleau-Ponty nos dá leituras profundas<br />
na sua obra sobre a relação entre o vi<strong>de</strong>nte e o visível, em especial em O olho e<br />
o espírito e O visível e o invisível.<br />
Em Bracher, a arte é um gran<strong>de</strong> “exercício humano e espiritual”. Demonstra<br />
a beleza e o mistério do espírito humano, em que “a sensibilida<strong>de</strong>,<br />
como capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> perceber e emocionar-se”, é condição fundamental: “É o<br />
ato inaugural”, diz Bracher. “Po<strong>de</strong> ser aprimorado pela cultura”, diz, mas com a<br />
advertência <strong>de</strong> que o processo educacional nunca po<strong>de</strong>rá ser autoritário ou<br />
limitativo das eclosões instintivas. Na boa escola <strong>de</strong> arte, o aluno <strong>de</strong>ve<br />
suplantar o professor, indo além dos processos <strong>de</strong> padronização e universalização,<br />
ou <strong>de</strong> implantar um conhecimento único, características inerentes ao que<br />
se chama educar. “Os eixos culturais são nossos signos condicionantes. Mas<br />
que precisam ser <strong>de</strong>tonados para se conseguir em canais <strong>de</strong> expressão. É algo<br />
que tem a ver com a afirmativa <strong>de</strong> que cante sua província e serás universal, se<br />
mantida a sua singularida<strong>de</strong> ou matricida<strong>de</strong>”.<br />
O artista será sempre um ser em perplexida<strong>de</strong>: “Tem uma dor permanente<br />
<strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> não ser o que gostaria <strong>de</strong> ser. Vive momentos <strong>de</strong> tristeza e<br />
alegria, ambos sendo condição para a arte”. Mas não será possível irromper o<br />
processo criativo sem “a <strong>de</strong>sconstrução, palavra-chave do nosso mundo em<br />
transformação, que só se realiza a partir <strong>de</strong> um “inconformismo”, gerador <strong>de</strong><br />
energia interna, que se exterioriza em impulsos criativos”. É algo como <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r-se<br />
do padronizado, do comum, propiciando a paixão explosiva.<br />
Com uma nova trajetória artística, Carlos Bracher trabalha intensamente.<br />
Escreveu um “roteiro da sensibilida<strong>de</strong>” sobre Ouro Preto, com pinturas em<br />
guache expressando sua visão sobre a velha cida<strong>de</strong>. Completou a Série Brasília<br />
e publicou livro com texto e pinturas exaltando a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Juscelino, Niemeyer<br />
e Lúcio Costa. Realizou exposições, nos últimos três meses, no Museu da<br />
República, em Brasília, na Abadia <strong>de</strong> Neumünster, em Luxemburgo, no Palácio<br />
dos Governadores, em Bruges, na Bélgica, na Galeria da Embaixada Brasileira,<br />
em Buxelas, e prepara mostras em Frankfurt, Zürich, Oslo e Praga.
230 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
A SANTIDADE NOS<br />
CAMINHOS DE MINAS<br />
José Luís Lira *<br />
Se fôssemos eleger o povo mais católico do Brasil, certamente a escolha<br />
recairia sobre o mineiro. Minas Gerais, a terra <strong>de</strong> Aleijadinho, escultor respeitado<br />
mundialmente, se constitui uma jóia da arte sacra a céu aberto. Suas<br />
igrejas espalhadas por todas as cida<strong>de</strong>s, das menores às maiores, são das mais<br />
belas.<br />
É difícil ir a Ouro Preto, Mariana, São João <strong>de</strong>l-Rei, Tira<strong>de</strong>ntes, Diamantina<br />
e não se encantar com suas igrejas tão lindamente trabalhadas, sem<br />
esquecer o Santuário <strong>de</strong> Bom Jesus do Matosinhos, on<strong>de</strong> estão os famosos<br />
profetas <strong>de</strong> Aleijadinho, em Congonhas, suas capelas e, ainda, as monumentais<br />
igrejas existentes em Belo Horizonte.<br />
A Capital <strong>Mineira</strong> serviu <strong>de</strong> palco para a primeira beatificação, no Brasil,<br />
obe<strong>de</strong>cendo às novas regras, editadas pelo Papa Bento XVI, pelas quais po<strong>de</strong> o<br />
Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos presidir à Cerimônia <strong>de</strong><br />
Beatificação <strong>de</strong> um Servo <strong>de</strong> Deus. A entronização do Padre Eustáquio van<br />
Lieshout nos altares mineiros <strong>de</strong>u-se no dia 15 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2006, em solenida<strong>de</strong><br />
presidida pelo Arcebispo Metropolitano <strong>de</strong> Belo Horizonte, Dom Walmor<br />
Oliveira, coadjuvado pelo Car<strong>de</strong>al José Saraiva Martins, então prefeito da Congregação<br />
para as Causas dos Santos, representando sua santida<strong>de</strong> o Papa Bento<br />
XVI, por Dom Odilo Scherer, então secretário-geral da CNBB, e uma gran<strong>de</strong><br />
quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outros bispos, sacerdotes e fiéis.<br />
O público silenciou quando o músico Marcus Viana, acompanhado da<br />
Orquestra Transfônica, Coral Sesiminas e Coral <strong>de</strong> Contagem, apresentou a<br />
música-tema Terra <strong>de</strong> Minas. Após as execuções dos hinos Nacional Brasileiro<br />
* Advogado, especialista em Direito Constitucional, professor universitário, fundador da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />
Fortalezense <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> e da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> Hagiologia. Publicou vários livros, entre os quais<br />
Candidatos ao Altar, Brasileiro com alma africana: Antonio Olinto. Resi<strong>de</strong> em Fortaleza.
232 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
e Pontifício, do Vaticano, ao som <strong>de</strong> Ave-Maria, os quinhentos sacerdotes e<br />
cem bispos entraram no gramado do Mineirão, on<strong>de</strong> já se encontravam<br />
representações paroquiais e familiares do Padre Eustáquio, além da imprensa e<br />
convidados especiais. Sinos repicaram anunciando o início da beatificação do<br />
Servo <strong>de</strong> Deus Padre Eustáquio.<br />
Após o pedido formal, feito pelo Arcebispo Dom Walmor, precedido <strong>de</strong><br />
leitura da biografia do Servo <strong>de</strong> Deus, pelo vice-postular da beatificação, Padre<br />
Lúcio Dummont, o Car<strong>de</strong>al Saraiva Martins, pontualmente às 16h30min, leu a<br />
Carta Apostólica, com a qual o Papa Bento XVI inscreveu no livro dos Bem-<br />
Aventurados da Igreja Católica o Padre Eustáquio van Lieshout, <strong>de</strong>clarando-o,<br />
finalmente, beato e anunciando sua celebração litúrgica anual para 30 <strong>de</strong><br />
agosto. Em seguida, foram <strong>de</strong>scerrados dois painéis contendo a figura do novo<br />
beato Eustáquio, ato que emocionou aos presentes, que aplaudiram e <strong>de</strong>ram<br />
vivas.<br />
Do jeito que só os mineiros sabem fazer, a solenida<strong>de</strong> se revestiu <strong>de</strong><br />
beleza e riqueza, com coreografias apresentadas por 650 crianças e jovens da<br />
Escola Padre Eustáquio no gramado que tinha ao centro um altar em forma <strong>de</strong><br />
cruz grega, simbolizando a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos. Merece ressaltar, também, a<br />
artística interpretação da composição Cálix Bento, <strong>de</strong> Pena Branca e Xavantinho,<br />
do folclore mineiro, pelo cantor Terê, após a elevação na oração eucarística.<br />
Depois da comunhão, as luzes do Mineirão se apagaram e as velas acesas<br />
iluminaram o estádio, transformado numa extensão da Praça <strong>de</strong> São Pedro, pela<br />
gran<strong>de</strong>za do evento.<br />
Quando, por volta <strong>de</strong> 2001, comecei a investigar os candidatos à santida<strong>de</strong><br />
no Brasil, fato que se aprofundou quando juntamente com Matusahila<br />
Santiago fun<strong>de</strong>i a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> Hagiologia e as pesquisas feitas<br />
<strong>de</strong>ram origem ao livro Candidatos ao Altar (ABRHAGI, 2006), constatei que,<br />
individualmente, Minas Gerais é o Estado brasileiro que mais futuros santos<br />
possui.<br />
O novo Catecismo da Igreja Católica estabelece que “O dia da morte<br />
inaugura para o cristão, ao final <strong>de</strong> sua vida sacramental, a consumação <strong>de</strong> seu<br />
novo nascimento iniciado no Batismo, a ‘semelhança’ <strong>de</strong>finitiva à ‘imagem do<br />
Filho’, conferida pela unção do Espírito Santo, e a participação na festa do<br />
Reino, antecipada na Eucaristia, mesmo necessitando <strong>de</strong> últimas purificações<br />
para vestir a roupa nupcial” (§ 1682 do Catecismo da Igreja Católica).<br />
A Pátria do Santo é <strong>de</strong>terminada pelo local do seu novo nascimento, do<br />
seu falecimento ou retorno à Casa do Pai, e, ainda, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolveu suas<br />
ativida<strong>de</strong>s, exercendo as virtu<strong>de</strong>s cristãs. Por isso observamos que existem
A santida<strong>de</strong> nos caminhos <strong>de</strong> Minas ___________________________________________________ José Luís Lira 233<br />
candidatos <strong>de</strong> outras nacionalida<strong>de</strong>s em Minas, mas que no contexto geral é<br />
Causa <strong>de</strong> Beatificação <strong>Mineira</strong>.<br />
São 19 causas que tramitam envolvendo pessoas que viveram em Minas<br />
ou mineiros espalhados Brasil afora, com a autorização requerida no Vaticano,<br />
algumas ainda aguardando o nihil obstat (nada obsta). Abaixo as relacionamos,<br />
por or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> falecimento do candidato:<br />
1) Dom Antônio Ferreira Viçoso (*Lisboa, 13 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1787; † 7 <strong>de</strong><br />
julho <strong>de</strong> 1875, em Mariana, MG). Sétimo bispo <strong>de</strong> Mariana. Protetor <strong>de</strong><br />
escravos e órfãos, inclusive agindo em <strong>de</strong>fesa da or<strong>de</strong>nação do Padre Francisco<br />
Vitor, discriminado por ser ex-escravo. É, ainda, o responsável pela vinda das<br />
primeiras Irmãs <strong>de</strong> Carida<strong>de</strong> (Companhia das Filhas da Carida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São<br />
Vicente <strong>de</strong> Paulo) para o Brasil. O Vaticano validou a abertura <strong>de</strong> seu processo<br />
<strong>de</strong> beatificação em 10 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1986 e a Arquidiocese <strong>de</strong> Mariana é a<br />
responsável pela causa.<br />
2) Francisca <strong>de</strong> Paula <strong>de</strong> Jesus Isabel – Nhá Chica (*São João <strong>de</strong>l -Rei,<br />
MG, 1808; † 14 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1895, em Baependi, MG). Leiga, não alfabetizada,<br />
Nhá Chica viveu praticando a fé e a carida<strong>de</strong>. A fama <strong>de</strong> suas virtu<strong>de</strong>s cresceu,<br />
tornando-a conhecida pelo povo que nela ia <strong>de</strong>positando confiança, passando a<br />
consultá-la sobre suas revelações clarivi<strong>de</strong>ntes. O processo <strong>de</strong> sua beatificação<br />
teve a abertura autorizada em 17 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1992, sob a responsabilida<strong>de</strong> da<br />
Fundação Nhá Chica.<br />
3) Padre Francisco <strong>de</strong> Paula Vitor (*Campanha, MG, 12 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong><br />
1827; † 23 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1905, em Três Pontas, MG). Filho <strong>de</strong> escravos,<br />
alfaiate e o primeiro sacerdote ex-escravo do Brasil, or<strong>de</strong>nado aos 24 anos.<br />
Dirigiu e lecionou, por mais <strong>de</strong> 30 anos, num colégio em Três Pontas, on<strong>de</strong><br />
paroquiou a Igreja <strong>de</strong> Nossa Senhora da Ajuda, por 53 anos ininterruptos. O<br />
processo <strong>de</strong> sua beatificação teve a abertura autorizada em 10 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong><br />
1992, sob a responsabilida<strong>de</strong> da Paróquia <strong>de</strong> Nossa Senhora da Ajuda, <strong>de</strong> Três<br />
Pontas.<br />
4) Monsenhor José Silvério Horta (*Fazenda Monte Alegre, município<br />
<strong>de</strong> Mariana, MG, 20 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1859; † 30 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1933, em Mariana,<br />
MG). Or<strong>de</strong>nado sacerdote em 1886, foi secretário do bispado <strong>de</strong> Mariana entre<br />
1898 e 1928, ocupando, interinamente, o lugar <strong>de</strong> Vigário-Geral entre 1919 e<br />
1923. O processo <strong>de</strong> sua beatificação teve a abertura autorizada em 15 <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2004, sob a responsabilida<strong>de</strong> da Arquidiocese <strong>de</strong> Mariana.<br />
5) Padre Eustáquio van Lieshout (*Aarle Rixtel, Holanda, a 3 <strong>de</strong><br />
novembro <strong>de</strong> 1890; † 30 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1943, em Belo Horizonte, MG). Sua ação<br />
pastoral se <strong>de</strong>senvolveu com <strong>de</strong> obras materiais e espirituais e todos o tinham
234 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
por santo, notadamente no Estado <strong>de</strong> Minas Gerais. O Vaticano validou a<br />
abertura <strong>de</strong> seu processo <strong>de</strong> beatificação em 12 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1986, <strong>de</strong>clarando-o<br />
venerável em 12 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2003. Foi beatificado em 15 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong><br />
2006, no Mineirão. A Congregação dos Padres dos Sagrados Corações é a<br />
responsável pela causa.<br />
6) Irmã Maria Beata, nome religioso da holan<strong>de</strong>sa Wilhelmina Lauwen<br />
(* Etten, Noord-Brabant – Holanda, 29 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1879; † 8 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong><br />
1952, Belo Horizonte, MG). Religiosa da Congregação das Irmãs do Sagrado<br />
Coração <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong> Berlaar. O processo <strong>de</strong> sua beatificação foi solicitado ao<br />
Vaticano pelas Irmãs do Sagrado Coração <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong> Berlaar <strong>de</strong> Belo<br />
Horizonte, MG, mas, não conseguimos informações acerca da concessão do<br />
nihil obstat.<br />
7) Madre Vicenta Guilarte Alonso (*Rojas <strong>de</strong> Bureba, Burgos, Espanha,<br />
21 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1879; † 6 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1960, em Leopoldina, MG). Religiosa da<br />
Congregação das Filhas <strong>de</strong> Jesus. Recebeu o hábito <strong>de</strong> Filha <strong>de</strong> Jesus no dia 8<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1901, permanecendo em sua Pátria até 1911 quando, no mês <strong>de</strong><br />
outubro, embarcou com seis outras religiosas para o Brasil. Desempenhou<br />
diversas funções na sua Congregação, das mais simples às mais nobres. O<br />
processo <strong>de</strong> sua beatificação teve a abertura autorizada em 12 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1992,<br />
sob a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua Congregação, centrada no Colégio Imaculada<br />
Conceição em Leopoldina (MG).<br />
8) Padre Donizetti Tavares <strong>de</strong> Lima (*Santa Rita <strong>de</strong> Cássia, MG, 3 <strong>de</strong><br />
janeiro <strong>de</strong> 1882; † 16 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1961, em Tambaú, SP). Or<strong>de</strong>nado sacerdote<br />
em 12 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1908 e, logo em seguida, <strong>de</strong>signado vigário na paróquia <strong>de</strong><br />
São Caetano da Vargem Gran<strong>de</strong> (MG). Após passar por outras paróquias, em<br />
12 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1926, assumiu a Paróquia <strong>de</strong> Santo Antônio, em Tambaú, on<strong>de</strong><br />
exerceu gran<strong>de</strong> apostolado até o seu retorno à Casa do Pai. O processo <strong>de</strong> sua<br />
beatificação teve a abertura autorizada em 2 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1996, sob a<br />
responsabilida<strong>de</strong> da Associação <strong>de</strong> Fiéis do Padre Donizetti, em Tambaú, SP.<br />
9) Cônego Lafayette da Costa Coelho (*Serro, MG, 10 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong><br />
1886; † 21 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1961, em Santa Maria do Suaçuí, MG). Permaneceu<br />
na Paróquia Santa Maria Eterna, <strong>de</strong> Santa Maria do Suaçuí (MG), por 44 anos,<br />
pregando com o exemplo e a santida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, realizando profícua missão,<br />
cativando seu povo pela fé e exemplo <strong>de</strong> humilda<strong>de</strong>. O processo <strong>de</strong> sua beatificação<br />
teve a abertura autorizada em 13 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2000, sob a responsabilida<strong>de</strong><br />
do Memorial Cônego Lafayette, da Diocese <strong>de</strong> Guanhães, MG.<br />
10) Dom Antônio <strong>de</strong> Almeida Lustosa (*São João <strong>de</strong>l-Rei, MG, 11 <strong>de</strong><br />
fevereiro <strong>de</strong> 1886; † 14 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1974, em Carpina, PE). Segundo Arce-
A santida<strong>de</strong> nos caminhos <strong>de</strong> Minas ___________________________________________________ José Luís Lira 235<br />
bispo <strong>de</strong> Fortaleza e fundador da Congregação das Irmãs Josefinas. Nomeado<br />
bispo <strong>de</strong> Uberaba (MG), em 1925, pastoreou Corumbá (MT), Belém (PA) e<br />
Fortaleza (CE). Deixou várias obras escritas e criou diversas instituições,<br />
vivendo humil<strong>de</strong>mente. O processo <strong>de</strong> sua beatificação teve a abertura<br />
autorizada em 10 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1992, sob a responsabilida<strong>de</strong> da Arquidiocese <strong>de</strong><br />
Fortaleza, CE.<br />
11) Padre Miguel Afonso <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> Leite (*distrito <strong>de</strong> São Miguel do<br />
Cajuru, São João <strong>de</strong>l-Rei, MG, 29 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1912; † 30 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong><br />
1976, São João <strong>de</strong>l-Rei, MG). Sacerdote diocesano. Consta que no velório, o<br />
corpo <strong>de</strong>le quase que ficou <strong>de</strong>spido no caixão, já que os fiéis tentavam cortar a<br />
sua batina e levar para casa os pequeninos retalhos, os quais se transformaram<br />
em relíquias milag<strong>rosa</strong>s. O processo <strong>de</strong> sua beatificação foi solicitado ao<br />
Vaticano pela Diocese <strong>de</strong> São João <strong>de</strong>l-Rei, MG, mas não conseguimos<br />
informações acerca da concessão do nihil obstat.<br />
12) Padre Al<strong>de</strong>rígi Maria Torriani (*Jacutinga, MG, 13 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong><br />
1895; † 3 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1977, em Santa Rita <strong>de</strong> Caldas, MG). Professor <strong>de</strong><br />
geografia e diretor do Ginásio São José, em Pouso Alegre (MG), em 1927,<br />
Mons. Al<strong>de</strong>rígi tomou posse na Paróquia <strong>de</strong> Santa Rita <strong>de</strong> Caldas (MG),<br />
permanecendo na função durante cinqüenta anos, período em que conquistou a<br />
admiração e o respeito <strong>de</strong> todos os que o conheceram. O processo <strong>de</strong> sua<br />
beatificação teve a abertura autorizada em 26 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2000, sob a<br />
responsabilida<strong>de</strong> Paróquia <strong>de</strong> Santa Rita <strong>de</strong> Caldas.<br />
13) Padre Libério Rodrigues Moreira (*Lagoa Santa, MG, 30 <strong>de</strong> junho<br />
<strong>de</strong> 1884; † 21 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1980, Divinópolis, MG). Foi pároco nas<br />
paróquias <strong>de</strong> Pitangui, Pequi, Nova Serrana, São José da Varginha, Leandro<br />
Ferreira e Pará <strong>de</strong> Minas. Responsável pela construção <strong>de</strong> duas gran<strong>de</strong>s igrejas,<br />
a Igreja-Matriz <strong>de</strong> São Sebastião em Leandro Ferreira e a Matriz <strong>de</strong> São José da<br />
Varginha. Nos últimos meses <strong>de</strong> sua vida (em julho <strong>de</strong> 1980), transferiu-se para<br />
Divinópolis. O processo <strong>de</strong> sua beatificação foi solicitado ao Vaticano pela<br />
Diocese <strong>de</strong> Divinópolis, MG, mas, não conseguimos informações acerca da<br />
concessão do nihil obstat.<br />
14) Irmã Benigna Victima <strong>de</strong> Jesus, nome religioso <strong>de</strong> Maria da<br />
Conceição Santos (*Diamantina, 16 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1907; † 16 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong><br />
1981, Belo Horizonte, MG). Religiosa da Congregação das Irmãs Auxiliares <strong>de</strong><br />
Nossa Senhora da Pieda<strong>de</strong>. Trabalhou junto aos mais carentes e necessitados<br />
em hospitais, asilos e escolas, doando-se, por completo, amparada na fé, unindo<br />
às orações as ações <strong>de</strong> renúncia e carida<strong>de</strong>. O processo <strong>de</strong> sua beatificação foi<br />
solicitado ao Vaticano pelas Irmãs Auxiliares <strong>de</strong> Nossa Senhora da Pieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>
236 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Belo Horizonte e pela Associação dos Amigos <strong>de</strong> Irmã Benigna, mas não<br />
conseguimos informações acerca da concessão do nihil obstat.<br />
15) Isabel Cristina Mrad Campos (*Barbacena, MG, 29 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong><br />
1962; † 1º <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1982, em Juiz <strong>de</strong> Fora, MG). No início <strong>de</strong> 1982,<br />
transferiu-se para Juiz <strong>de</strong> Fora (MG), a fim <strong>de</strong> se preparar para o vestibular <strong>de</strong><br />
medicina. No dia 1º <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1982, alguém entrou no seu apartamento e<br />
tentou violentá-la. Foi amordaçada, atada com uma corda <strong>de</strong> bacalhau, uma<br />
cinta e, finalmente, atingida com quinze facadas, mas resistiu, morrendo<br />
virgem. O processo <strong>de</strong> sua beatificação teve a abertura autorizada em 18 <strong>de</strong><br />
novembro <strong>de</strong> 2000, sob a responsabilida<strong>de</strong> Arquidiocese <strong>de</strong> Mariana.<br />
16) Padre Vítor Coelho <strong>de</strong> Almeida (*Sacramento, MG, 22 <strong>de</strong> setembro<br />
<strong>de</strong> 1899; † 22 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1987, em Aparecida, SP). Missionário da Congregação<br />
dos Missionários Re<strong>de</strong>ntoristas exerceu seu apostolado, principalmente,<br />
no Santuário Nacional <strong>de</strong> Aparecida, responsável por sua Causa <strong>de</strong> Beatificação.<br />
Após curar-se <strong>de</strong> tuberculose, fato que ele atribuía a uma bênção do Padre<br />
Eustáquio, além <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicar-se ao anúncio da palavra <strong>de</strong> Deus no Santuário,<br />
passou a atuar na Rádio Aparecida. O processo <strong>de</strong> sua beatificação teve a<br />
abertura autorizada em 3 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1998.<br />
17) Irmã Maria Imaculada da Santíssima Trinda<strong>de</strong>, nome religioso<br />
<strong>de</strong> Maria Giselda Villela (*Maria da Fé, MG, 8 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1909; † 20 <strong>de</strong><br />
janeiro <strong>de</strong> 1988, Pouso Alegre, MG). Religiosa da Congregação das Carmelitas<br />
Descalças do Carmelo da Sagrada Família <strong>de</strong> Pouso Alegre. O processo <strong>de</strong> sua<br />
beatificação teve a abertura autorizada em 11 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2006, sob a responsabilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> sua Congregação, centrada na Diocese <strong>de</strong> Pouso Alegre (MG).<br />
18) Madre Maria dos Anjos <strong>de</strong> Santa Terezinha, nome religioso <strong>de</strong><br />
Dinah Amorim (*Cláudio, MG, 8 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1917; † 1º <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1988,<br />
em Santa Cruz, RJ). Ingressou no Instituto <strong>de</strong> Filhas <strong>de</strong> Maria, Religiosas das<br />
Escolas Pias – Escolápias, on<strong>de</strong> três <strong>de</strong> suas irmãs já eram freiras, em 1939.<br />
Também professora, exerceu sua missão religiosa em várias casas das Irmãs<br />
Escolápias. Com conhecimento <strong>de</strong> música e poesia, compôs letras para cânticos<br />
e regeu um coral que fundou em Oliveira (MG). Transferida para Santa Cruz,<br />
no Rio <strong>de</strong> Janeiro, em 1981, Madre dos Anjos prosseguiu seu apostolado até ser<br />
acometida <strong>de</strong> câncer. O processo <strong>de</strong> sua beatificação teve a abertura autorizada<br />
em 16 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1993, sob a responsabilida<strong>de</strong> das Irmãs Escolápias,<br />
sediadas no Bairro Floresta, em Belo Horizonte, MG.<br />
19) Floripes Dornellas <strong>de</strong> Jesus – Lola (*Mercês, MG, 27 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong><br />
1911; † 9 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1999, em Rio Pomba, MG). Em 30 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1934,<br />
caiu <strong>de</strong> uma jabuticabeira, ficando paralítica, passando a conviver até o final <strong>de</strong>
A santida<strong>de</strong> nos caminhos <strong>de</strong> Minas ___________________________________________________ José Luís Lira 237<br />
sua vida com fortes dores. Deitada numa cama, Lola, a partir <strong>de</strong> 1943, passou a<br />
recusar toda espécie <strong>de</strong> comida ou bebida, por rejeição natural <strong>de</strong> seu<br />
organismo, vivendo em jejum quase completo, recebendo diariamente a Eucaristia,<br />
sua única alimentação. O processo <strong>de</strong> sua beatificação teve a abertura<br />
autorizada em 30 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2005, sob a responsabilida<strong>de</strong> da Arquidiocese<br />
<strong>de</strong> Mariana.<br />
Vemos, portanto, que não só <strong>de</strong> padres e freiras é composto o elenco da<br />
santida<strong>de</strong> nas Gerais. Existem leigos; uma analfabeta e uma vestibulanda;<br />
<strong>de</strong>fensores da liberda<strong>de</strong>, tão presentes em Minas, a ponto <strong>de</strong> ser o primeiro<br />
sacerdote negro do Brasil um mineiro; uma freira que era musicista e poeta; um<br />
bispo que <strong>de</strong>ixou obras literárias <strong>de</strong> valor, tendo pertencido a entida<strong>de</strong>s culturais,<br />
entre outros.<br />
Por tantos e ilustres filhos, além do patrimônio cultural e artístico pelos<br />
quais Minas é reconhecida em todo o mundo, para nós, católicos, o Estado<br />
possui este outro patrimônio que dizemos imaterial, o da Santida<strong>de</strong>, que<br />
percorreu e percorre os caminhos das Minas Gerais rumo à eternida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />
esperamos que esses seres iluminados intercedam a Deus por nós.<br />
Bibliografia<br />
Catecismo da Igreja Católica. Edição Típica Vaticana. São Paulo: Loyola,<br />
2000.<br />
LIRA, José Luís. Candidatos ao Altar. Fortaleza: ABRHAGI, 2006.
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240 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
ORAÇÃO DA NOITE<br />
Senhor, se esta noite, ao me <strong>de</strong>itar,<br />
No meu coração houver<br />
A mágoa <strong>de</strong> uma ofensa recebida,<br />
A dor <strong>de</strong> uma partida,<br />
O tédio das horas <strong>de</strong> um dia <strong>de</strong> trabalho sem prazer,<br />
A solidão dos meus passos sem companhia<br />
E da minha ternura retida,<br />
O peso da minha consciência que não praticou o bem,<br />
O vazio da minha alma que não se elevou<br />
Na contemplação da tua beleza e da tua bonda<strong>de</strong>,<br />
O medo <strong>de</strong> fechar as pálpebras sem saber<br />
Se uma nova aurora vai surgir...<br />
Eu te peço, Senhor, que, ao <strong>de</strong>spertar amanhã,<br />
Ainda experimente a alegria <strong>de</strong> viver através<br />
Do sorriso <strong>de</strong> um rosto amigo,<br />
Da expectativa <strong>de</strong> um reencontro,<br />
Da luz do sol batendo na janela do meu quarto,<br />
Do brilho <strong>de</strong> um olhar pousando sobre meus olhos,<br />
Do propósito <strong>de</strong> amar o meu próximo,<br />
Do gesto <strong>de</strong> adoração que me une a Ti,<br />
Da confiança nos teus braços que me sustentam<br />
Na escuridão.<br />
E, se nesta noite, ao me <strong>de</strong>itar,<br />
Tudo está bem, feliz te bendigo,<br />
E em tudo e por tudo, obrigado!<br />
E boa noite, meu Senhor!<br />
* Acadêmico, faleceu no dia 8 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2008. Ocupou a ca<strong>de</strong>ira nº 26.<br />
Pe. João Batista Megale*
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TRÊS GRAÇAS EM DISCUSSÃO<br />
Disse a francesa convicta:<br />
Paris dá felicida<strong>de</strong>!<br />
Minha França tem, invicta,<br />
As chaves da liberda<strong>de</strong>.<br />
Respon<strong>de</strong>u a italiana<br />
cheia <strong>de</strong> sincerida<strong>de</strong>:<br />
Roma é eterna! Soberana<br />
Em beleza e magesta<strong>de</strong>.<br />
A portuguesa sorrindo<br />
Disse com justa vaida<strong>de</strong>:<br />
Vocês, <strong>de</strong> um mundo tão lindo,<br />
Não sabem dizer “sauda<strong>de</strong>”...<br />
José Crux Rodrigues Vieira*<br />
* Advogado, historiador, escritor. Ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 33 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.
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ESCREVER UM POEMA<br />
É ser triste.<br />
Viver o que não existe.<br />
Colher nas horas<br />
O dia que nunca virá.<br />
Escrever um poema<br />
É ser triste;<br />
E riscar, riscar, arriscar<br />
E se entregar ao mundo<br />
Que nunca existirá.<br />
* Jornalista e escritor.<br />
Petrônio Souza Gonçalves*
246 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
BIRIBIRI<br />
Lugar tão belo perdido entre montanhas<br />
Terra formosa mais linda que já vi<br />
Com as belezas tão raras e tamanhas<br />
Este recanto é o Biribiri.<br />
Bem lá do alto eu te enxergo sobranceiro<br />
Tuas casinhas pintadas em azuis<br />
Parece até um presépio brasileiro<br />
Com esta beleza natal que tu possuis<br />
Como são belas as tuas cachoeiras<br />
A <strong>de</strong>slizar entre as pedras coloridas<br />
Mostrando as águas que são hospitaleiras<br />
On<strong>de</strong> renascem as plantas e outras vidas<br />
Tu aconchegas tão bem o visitante<br />
E o recebes com gesto maternal<br />
E <strong>de</strong>monstrando um amor tão radiante<br />
A transbordar <strong>de</strong> forma tão carnal<br />
Este lugar mais parece um monumento<br />
Na clarida<strong>de</strong> da manhã tão cristalina<br />
É uma estrela do céu no firmamento<br />
Um pedacinho <strong>de</strong> nossa Diamantina<br />
Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Dias Reis*<br />
*Professora, escritora. Da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Feminina <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 39.
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Livro do trimestre<br />
SÍLVIA RUBIÃO: A CONTIDA<br />
LINGUAGEM DA EMOÇÃO<br />
Fábio Lucas*<br />
A arte da poesia será talvez o equilíbrio harmonioso da inteligência<br />
(razão cerebral) com as emoções do coração.<br />
Para aqueles que acreditam fervo<strong>rosa</strong>mente na arte-construção, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
da cultura-repertório somada ao rigor crítico, pouco importa que a<br />
emoção transbor<strong>de</strong> do artefato literário. Caso típico em que a versificação,<br />
<strong>de</strong>spojada dos versos intencionalmente metrificados e dos expedientes retóricos<br />
<strong>de</strong> cunho mimético, ou referencial, ou meramente <strong>de</strong> valores semânticos motivados,<br />
se aproxima e até se confun<strong>de</strong> com a p<strong>rosa</strong>. Teríamos poesia que se<br />
produz sob encomenda, antagônica da inspiração, mas sujeita a uma íntima<br />
gramática normativa.<br />
De outro modo, alinham-se os poetas que apelam antes <strong>de</strong> tudo para a<br />
resposta emocional, e praticam os recursos mais imediatos da sedução verbal,<br />
na busca do aplauso instantâneo. Estes sobrelevitam à superfície, incapazes <strong>de</strong><br />
conduzir o leitor ao mergulho nas profun<strong>de</strong>zas da expressão. Conduzem-se<br />
como poetas movidos pelo arrebatamento.<br />
Quando qualquer um <strong>de</strong>sses percorre a temática mais consagrada da série<br />
lírica, não vai além do canto confessional <strong>de</strong> situações <strong>de</strong> abandono, solidão e<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>scrédito das pulsões vitais. Geralmente explora o trivial da experiência<br />
humana, numa textura redundante, <strong>de</strong>sgastada. A esta altura, o verbo se mostra<br />
enfraquecido, e o texto ponteado <strong>de</strong> lugares-comuns sobre a condição existencial.<br />
* Professor, ensaísta, autor <strong>de</strong>: Do Barroco ao Mo<strong>de</strong>rno, <strong>Mineira</strong>nças, O Poeta e a Mídia? Carlos<br />
Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto, Lições <strong>de</strong> Literatura Nor<strong>de</strong>stina, Ética e Estética<br />
<strong>de</strong> Érico Veríssimo. Da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> (ca<strong>de</strong>ira 22).
250 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
A<strong>de</strong>mais, índices locativos <strong>de</strong>nunciam o uso racional do espaço, indicador<br />
das circunstâncias <strong>de</strong> tempo e lugar compartilhados com o leitor, num gesto<br />
referencial <strong>de</strong> baixa <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> significativa.<br />
No entanto, o leitor espera do autor que lhe ofereça o prazer da evocação,<br />
mediante o agrupamento <strong>de</strong> vocábulos e sentenças que inebriam os ouvidos,<br />
estimulam a memória afetiva e acalentam a ilusão literária. Sim, o leitor<br />
espera os versos que ativem a reflexão ou que incen<strong>de</strong>iem a mente.<br />
Quando tomamos conhecimento da coletânea Tangências (Rio, 7 <strong>Letras</strong>,<br />
2005), <strong>de</strong> Sílvia Rubião, sentimos que um novo nome se acrescentou ao rol dos<br />
poetas mineiros. O primeiro poema, “Memória <strong>de</strong> água”, já nos motivou para a<br />
leitura e avaliação crítica do restante.<br />
Prega-se hoje a morte do livro, da expressão lírica, quer nos mol<strong>de</strong>s do<br />
verso livre, quer nos gêneros consagrados pela tradição; anuncia-se o fim do<br />
romance e da centralida<strong>de</strong> do sujeito, por mais que a poesia renasça em mil<br />
recantos do planeta, sob as mais variadas formas. Estão vivos, mais do que<br />
nunca, o impulso da criação poética e a fome <strong>de</strong> leitura dos melhores escritores.<br />
Sílvia Rubião organiza cada composição com segurança <strong>de</strong> linguagem,<br />
vocabulário rico e próprio, arranjos a<strong>de</strong>quados para exprimir uma situação<br />
lírica aberta à invasão das carências humanas. Explora um “eu lírico”<br />
angustiado, um <strong>de</strong>sencanto generalizado mediante composições verbais <strong>de</strong> alta<br />
energia dramática.<br />
O segundo poema, “O ouro da rua”, é tão expressivo quanto o primeiro,<br />
numa atmosfera <strong>de</strong> crepuscular visão-<strong>de</strong>-mundo. A poetisa cria uma ambientação<br />
evocativa, <strong>de</strong>serta <strong>de</strong> esperanças, enfileirando sintagmas ambíguos que<br />
projetam submersos e remotos <strong>de</strong>sejos: “Reencontrar a dupla fonte do meu rio”,<br />
numa era <strong>de</strong> outono, numa tar<strong>de</strong> em que “as cigarras enchem as tar<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
lamentos”, e uma circunstância <strong>de</strong> “subir a serra recortada no azul”.<br />
Ora, “O ouro da rua” imprime na memória do belorizontino a Rua do<br />
Ouro e o faz recordar, na mente, a escalada do bairro da Serra, com “S” maiúsculo:<br />
“Lá on<strong>de</strong> o meu cálice brilha e não há resposta”, conclui o poema.<br />
Com rigor e boa alquimia, a poetisa mobiliza os vários arquétipos da<br />
imemorial herança dos povos, valendo-se das suas convenções culturais. Exemplo:<br />
o “cálice” que brilha no final do poema aponta para a sensação <strong>de</strong> dor e<br />
sofrimento.<br />
Um dos recursos utilizados por Sílvia Rubião é a aproximação <strong>de</strong><br />
imagens contrastivas (freqüente, por exemplo, em Carlos Drummond <strong>de</strong><br />
Andra<strong>de</strong>, que adotou um oxímoro para nomear uma <strong>de</strong> suas obras: Claro<br />
Enigma). Enquanto, no outono <strong>de</strong> “O ouro da rua”, “tudo se revela <strong>de</strong>finitivo e
Sílvia Rubião: a contida linguagem da emoção ___________________________________________ Fábio Lucas 251<br />
inútil”, no poema seguinte, “Repouso”, começa-se pela pergunta-e-resposta<br />
surpreen<strong>de</strong>nte e paradoxal: “Conheces a trilha do inferno?/ Leva-me.” Basta<br />
esse enunciado inicial para contrariar a expectativa criada pelo título do poema,<br />
“Repouso”. O <strong>de</strong>sconforto existencial explo<strong>de</strong> ao término da composição:<br />
“Deixa repousar ali/ meu coração vassalo/ o tempo <strong>de</strong> uma noite quente/ e sem<br />
Deus.”<br />
O tema da ausência da pessoa amada é forte nos poemas <strong>de</strong> Sílvia<br />
Rubião. Daí não ser surpresa uma composição com o título “Partida” (p. 27),<br />
sugestão que se repete a seguir, no poema “Voragem” (p. 28), inserido na<br />
quarta capa, cujo término é: “E ao partires na voragem da noite/ repara a<br />
<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m das estrelas.” Diga-se que a idéia da <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m mais <strong>de</strong> uma vez<br />
magnifica o texto.<br />
Seguinte a “Voragem” temos o poema “Ausência”, que assim se encerra:<br />
“O armário aberto/ o cabi<strong>de</strong> <strong>de</strong>pendurado/ a toalha molhada/ o copo vazio/ um<br />
rastro <strong>de</strong> aromas/ Tanta presença/ tanta ausência.” Uma das mais belas<br />
composições do conjunto. Tão perfeita na sua resumida essência quanto<br />
“Tangências”, <strong>de</strong> amplo fôlego, que empresta o nome à obra. Os poemas<br />
“Círculo”, “Fim <strong>de</strong> tudo”, “Por muito pouco” dramatizam o <strong>de</strong>sencontro e a<br />
perda, exploram aquele tema que Rodin esculpiu com o título Fugit amor.<br />
O livro Tangência se fecha sintomaticamente com o poema “Solidão”,<br />
segundo se <strong>de</strong>clara no primeiro verso: “A solidão tem asas <strong>de</strong> ferro”, ainda que<br />
se reconheça, no final, tratar-se <strong>de</strong> “Florada sem cor”. As amostras acima<br />
bastam para indicar o alto po<strong>de</strong>r imagístico <strong>de</strong> Sílvia Rubião e traduzem a<br />
tensão dramática com que os poemas se constroem.
252 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
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reservando-se a análise quanto à conveniência da publicação, sem data<br />
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3 – Os artigos <strong>de</strong>verão vir digitados na fonte Times New Roman, corpo<br />
12, em folha A4.<br />
4 – Notas <strong>de</strong> rodapé <strong>de</strong>verão constar no final do artigo, numeradas <strong>de</strong><br />
acordo com a referência no texto.<br />
5 – As referências bibliográficas trarão todas as informações, observando-se<br />
os critérios abaixo; títulos e nomes não são abreviados.<br />
VIEIRA, José Crux Rodrigues. Obra Poética I. Belo Horizonte: Editora<br />
B, 2006. 444 p.<br />
BOSCHI, Caio; MORENO, Carmen; FIGUEIREDO, Luciano. Inventário<br />
da Coleção Casa dos Contos. Belo Horizonte: Editora PUC, 2006. 560 p.<br />
IGLESIAS, Francisco. “Política Econômica do Estado <strong>de</strong> Minas Gerais<br />
(1890-1930)”. In V Seminário <strong>de</strong> Estudos Mineiros. Belo Horizonte: Editora<br />
UFMG, 1982.<br />
(Observar esta or<strong>de</strong>m: sobrenome do autor em letras maiúsculas; título em<br />
itálico; tratando-se <strong>de</strong> capítulo ou parte <strong>de</strong> obra, entre aspas, ficando em itálico<br />
o título geral; cida<strong>de</strong> (dois pontos), editora, data, número <strong>de</strong> páginas (se<br />
indicado).<br />
6 – Dados pessoais:<br />
a. nome completo; pseudônimo, se houver;<br />
b. en<strong>de</strong>reço completo (logradouro, número, bairro, CEP, cida<strong>de</strong>, estado,<br />
telefone);<br />
c. títulos universitários, quando houver: graduação, área, faculda<strong>de</strong>,<br />
local, tese;<br />
d. ativida<strong>de</strong> atual, natureza e local;<br />
e. obras ou trabalhos publicados: título, cida<strong>de</strong>, editora ou órgão, data.
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for publicado.<br />
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5764.