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guimarães rosa - Academia Mineira de Letras

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REVISTA DA<br />

ACADEMIA<br />

MINEIRA<br />

DE LETRAS<br />

ANO 85º - VOLUME XLIX - JULHO, AGOSTO, SETEMBRO - 2008


ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Fundada em 25 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1909<br />

Rua da Bahia, 1466 – Telefax (OXX31) 3222-5764<br />

www.aca<strong>de</strong>miamineira<strong>de</strong>letras.org.br<br />

atendimento@aca<strong>de</strong>miamineira<strong>de</strong>letras.org.br<br />

CEP 30160-011 - Belo Horizonte-MG<br />

Presi<strong>de</strong>nte: Murilo Badaró<br />

1° Vice-presi<strong>de</strong>nte: Miguel Augusto<br />

Gonçalves <strong>de</strong> Souza<br />

2° Vice-presi<strong>de</strong>nte: Orlando Vaz<br />

Secretário Honorário: Oiliam José<br />

DIRETORIA AML<br />

Secretário-Geral: Aloísio Garcia<br />

1° Secretário: Fábio Doyle<br />

2° Secretário: Elizabeth Rennó<br />

Tesoureiro: Márcio Garcia Vilela<br />

1° Tesoureiro: José Henrique Santos<br />

2° Tesoureiro: Bonifácio Andrada<br />

REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Publicação trimestral<br />

Diretor: Murilo Badaró<br />

Conselho Editorial: Aluísio Pimenta, Antenor Pimenta e Eduardo Almeida Reis.<br />

Revisão: Pedro Sérgio Lozar<br />

Digitação: Marília Moura Guilherme<br />

Capa: Liu Lopes<br />

Diagramação e impressão: O Lutador<br />

Assessoria <strong>de</strong> Divulgação: Petrônio Souza Gonçalves<br />

Ficha Catalográfica<br />

Revista da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> – Ano 85° – volume XLVII<br />

Revista da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>/<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> / V. XLVIII/ 2008<br />

Belo Horizonte: <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, 2008.<br />

julho/agosto/setembro <strong>de</strong> 2008.<br />

Fundada em 1922<br />

l. Literatura – Periódico. 2. Obras Literárias l. <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong><br />

ISSN 1982-6680


ÍNDICE<br />

Apresentação ....................................................................................................... 7<br />

GUIMARÃES ROSA<br />

Cícero Sandroni .................................................................................................. 9<br />

JOÃO GUIMARÃES ROSA, MEU PAI<br />

Vilma Guimarães Rosa ..................................................................................... 13<br />

OS JAGUNÇOS E O RIO DO CHICO NO GRANDE SERTÃO: VEREDAS<br />

Letícia Malard ................................................................................................... 35<br />

CORPO DE BAILE: DE MIGUILIM A MIGUEL<br />

Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães .......................................................................... 49<br />

A INQUIETANTE ESTRANHEZA EM A TERCEIRA MARGEM<br />

DO RIO<br />

Marco Aurélio Baggio ...................................................................................... 65<br />

MIGUILIM: UMA OUTRA EPOPÉIA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />

Alaor Barbosa ................................................................................................... 75<br />

GRANDE SERTÃO: VEREDAS<br />

Antônio Olinto ................................................................................................... 99<br />

POR QUE GUIMARÃES ROSA?<br />

Fábio Lucas ..................................................................................................... 105<br />

AS RAÍZES MINEIRAS DE GUIMARÃES ROSA<br />

Guimarães Rosa .............................................................................................. 111<br />

A MULHER GEOMÉTRICA – UMA INCURSÃO OUSADA<br />

NO TEXTO DE JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />

Onofre <strong>de</strong> Freitas ............................................................................................ 113


GUIMARÃES ROSA: O SERTÃO E O HOMEM<br />

Luiz Au<strong>de</strong>bert Delage Filho................................................................................ 9<br />

Perfil acadêmico – HUMOR INTELIGENTE E CRÍTICO<br />

NA DOSE CERTA<br />

Beatriz Teixeira <strong>de</strong> Salles ............................................................................... 127<br />

PERMANÊNCIA DE CECÍLIA<br />

Pe. Paschoal Rangel ....................................................................................... 133<br />

MINAS LIBERTÁRIA<br />

Patrus Ananias ................................................................................................ 153<br />

Perfil sentimental – PEDRO PAULO MOREIRA, UM MERCADOR<br />

DA CULTURA<br />

Um tributo <strong>de</strong> seus sobrinhos José Maria e<br />

Pedro Rogério Couto Moreira........................................................................ 157<br />

VITORINO NEMÉSIO, POETA EM BELO HORIZONTE<br />

ALGUMAS NOTAS PESSOAIS E IMPESSOAIS<br />

Heitor Martins ................................................................................................. 161<br />

Discurso acadêmico – TIJUCO - LENDAS E TRADIÇÕES<br />

Edgard Matta Machado .................................................................................. 169<br />

Teatro – ALBEE: HISTÓRIA DO ZOOLÓGICO<br />

Jota Dangelo ................................................................................................... 197<br />

Cinema – GUIMARÃES ROSA E O CINEMA<br />

Paulo Augusto Gomes ..................................................................................... 203<br />

Música – MÁRIO DE ANDRADE E JACQUES MARITAIN<br />

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos ............................................................... 209<br />

Artes Plásticas – SÉRGIO TELLES - UM CLÁSSICO<br />

Carlos Perktold ............................................................................................... 221


BRACHER, A ARTE E OS ENIGMAS ENTRE O HOMEM<br />

E O ARTISTA<br />

Mauro Werkema .............................................................................................. 225<br />

A SANTIDADE NOS CAMINHOS DE MINAS<br />

José Luís Lira .................................................................................................. 231<br />

ORAÇÃO DA NOITE<br />

Pe. João Batista Megale ................................................................................. 241<br />

ESCREVER UM POEMA<br />

Petrônio Souza Gonçalves .............................................................................. 245<br />

BIRIBIRI<br />

Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Dias Reis ........................................................................... 247<br />

SÍLVIA RUBIÃO: A CONTIDA LINGUAGEM DA EMOÇÃO<br />

Fábio Lucas ..................................................................................................... 249


APRESENTAÇÃO<br />

Esta nova edição da Revista da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> é <strong>de</strong>dicada<br />

às comemorações do centenário <strong>de</strong> nascimento do escritor Guimarães Rosa.<br />

Neste volume estão publicados os textos das principais palestras<br />

proferidas durante a semana comemorativa do evento, seguidas <strong>de</strong> intensos e<br />

interessantes <strong>de</strong>bates que contaram com a participação <strong>de</strong> conferencistas <strong>de</strong><br />

renome nacional e a presença estimulante do alunado <strong>de</strong> cursos universitários<br />

que se <strong>de</strong>dicam ao exame da obra do imortal escritor brasileiro.<br />

O próximo número da Revista será <strong>de</strong>dicado a Machado <strong>de</strong> Assis, para o<br />

que solicitamos a colaboração ampla dos acadêmicos brasileiros.<br />

Pelo índice se comprova a vocação nacional da Revista, em seu XLIX<br />

volume do 85° ano.


8 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS


GUIMARÃES ROSA*<br />

Cícero Sandroni**<br />

O que se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong> do relato daqueles que conviveram com Guimarães<br />

Rosa é que ele era extremamente afetuoso, <strong>de</strong> um afeto, diríamos mesmo,<br />

caudaloso e cheio <strong>de</strong> magia como uma “terceira margem” <strong>de</strong> um rio, mas<br />

retraído e reservado a um só tempo, pouco afeito aos círculos literários. Essas<br />

características da personalida<strong>de</strong> do autor <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão:Veredas<br />

transparecem no <strong>de</strong>svelar/velar <strong>de</strong> seus personagens – sejam estes pessoas,<br />

bichos, coisas ou paisagens.<br />

Isto porque, escritor fabulista e fabuloso, como já o <strong>de</strong>finiram, há uma<br />

intimida<strong>de</strong> latente <strong>de</strong> Rosa com a linguagem literária, a ponto <strong>de</strong> sua narrativa,<br />

em sua apreensão da realida<strong>de</strong>, confundir-se com a própria poesia em uma<br />

mitologia rosiana. Ao lê-lo, sobrevém-nos a sensação <strong>de</strong> que os vocábulos são<br />

íntimos, tão íntimos como aquelas pessoas que, em vida, mereceram seu afeto.<br />

Guimarães Rosa é provavelmente o documento literário mais contun<strong>de</strong>nte<br />

e <strong>de</strong>finitivo sobre a realida<strong>de</strong> brasileira. Queremos dizer com isto que, na<br />

mesma medida em que Dante Alighieri estabeleceu a língua italiana mo<strong>de</strong>rna<br />

ao escrever A Divina Comédia no toscano, ao invés da língua cultural e literária<br />

<strong>de</strong> sua época, o latim, Guimarães Rosa, segundo Per Johns – um dos conferencistas<br />

do ciclo do centenário do seu nascimento, na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong> – “transfigurou artisticamente o idioma português em português do<br />

Brasil”. Neste sentido, po<strong>de</strong>mos afirmar sobre sua obra que é uma das maiores<br />

expressões da cultura brasileira em todos os tempos.<br />

Artista <strong>de</strong> índole fortemente expressionista, foi um dos escritores que<br />

mais transgrediu a gramática, <strong>de</strong>srespeitando-a com superiores fins estéticos,<br />

mas aceitando a lógica da língua – sobretudo em Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, sua<br />

obra máxima. O seu vocabulário é <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> riqueza, dos mais ricos da<br />

* Palavras pronunciadas na abertura da Semana Guimarães Rosa, em comemoração ao centenário <strong>de</strong> seu<br />

nascimento, entre os dias 18 e 22 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008, no Auditório Vivaldi Moreira da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

<strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />

**Presi<strong>de</strong>nte da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.


10 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

literatura brasileira, composto <strong>de</strong> palavras comuns, palavras existentes e vivas,<br />

assim como as pouco usadas e os puros arcaísmo, além <strong>de</strong> um imenso léxico da<br />

nossa natureza, nomes <strong>de</strong> pássaros, peixes, árvores, sem esquecer os topônimos<br />

e os neologismos.<br />

Seu primeiro, Sagarana, <strong>de</strong> 1946, já trazia no título um neologismo,<br />

construído pela aglutinação <strong>de</strong> saga, no sentido <strong>de</strong> lenda, <strong>de</strong> narrativa épica e<br />

rana, sufixo tupi, significando semelhante à. São nove contos on<strong>de</strong> presenciamos<br />

a mais alta elaboração lingüística aliada ao uso expressionista da fala<br />

popular, uma das características mais marcante <strong>de</strong> sua obra.<br />

Em 1956, vem à luz Corpo <strong>de</strong> Baile, dois volumes perfazendo 822<br />

páginas, com sete histórias longas. A partir da terceira edição, <strong>de</strong>sdobra-se em<br />

três volumes autônomos, em que figura Corpo <strong>de</strong> Baile como subtítulo – 1°<br />

volume: Manuelzão e Miguelim; 2° volume: No Urubuquaquá, no Pinhém; 3º<br />

volume: Noites do Sertão. Segundo o próprio Guimarães Rosa, “são sete<br />

novelas (que o doutor chama também <strong>de</strong> ‘poemas’ ou <strong>de</strong> ‘romances’ ou<br />

‘contos’), <strong>de</strong>senrolados na região dos campos-gerais, ou dos gerais... narrações<br />

sertanejas, <strong>de</strong> temática universal... revelações sobre a realida<strong>de</strong> social <strong>de</strong> nossos<br />

trabalhadores <strong>de</strong> gleba”.<br />

Publicado no mesmo ano <strong>de</strong>ste livro, Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas é um<br />

romance que se constitui marco sem igual <strong>de</strong> nossa literatura e que dá a<br />

Guimarães Rosa um lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque na historiografia literária universal. A<br />

partir daí, essa revolução no uso das potencialida<strong>de</strong>s da língua inva<strong>de</strong> as<br />

experiências e realizações <strong>de</strong> outros escritores, abrindo uma nova fase na<br />

literatura brasileira.<br />

Em 1962, publica Primeiras estórias, seis anos após a consagração <strong>de</strong><br />

Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, on<strong>de</strong>, apesar da menor incidência <strong>de</strong> palavras e<br />

expressões típicas do sertão, o tratamento artístico dado ao material lingüístico<br />

prossegue o caminho iniciado em Sagarana.<br />

Poucos meses antes da morte <strong>de</strong> Guimarães Rosa foi publicado, em julho<br />

<strong>de</strong> 1967, as quarenta histórias extremamente sintéticas, escritas para jornal, <strong>de</strong><br />

Tutaméia (Terceiras estórias) que, apesar da estranheza que causou, mantém as<br />

mesmas características <strong>de</strong> linguagem dos <strong>de</strong>mais títulos <strong>de</strong> sua obra.<br />

Toda a obra rosiana está perpassada por questionamentos existenciais<br />

que, por meio <strong>de</strong> uma elaborada linguagem, se revelam através da fala <strong>de</strong> seus<br />

personagens – sobretudo, a eterna luta entre o Bem e o Mal, o Amor (ou a<br />

Vida) e a Morte, etc. Especialmente em Gran<strong>de</strong> Sertão:Veredas, on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>mos<br />

perceber com niti<strong>de</strong>z, a partir das perguntas que Riobaldo faz a si próprio, uma<br />

profunda interrogação sobre a existência humana.


Guimarães Rosa __________________________________________________________________ Cícero Sandroni 11<br />

Em novembro <strong>de</strong> 1969, dois anos após a morte <strong>de</strong> João Guimarães Rosa,<br />

a Livraria José Olympio Editora publicou Estas Estórias, reunindo cinco textos<br />

publicados em vida pelo autor e quatro inéditos. Nas palavras iniciais do livro,<br />

a filha Vilma Guimarães Rosa expressa toda a importância <strong>de</strong>ste gênio da<br />

literatura brasileira e universal: “Estas Estórias não são a <strong>de</strong>spedida <strong>de</strong> João<br />

Guimarães Rosa, mas a certeza <strong>de</strong> que ele vive, intensa e maravilhosamente, na<br />

obra <strong>de</strong> sua sensibilida<strong>de</strong>, do seu gênio. E que durará o tempo <strong>de</strong> uma<br />

Imortalida<strong>de</strong>.”<br />

Com Gran<strong>de</strong> Sertão:Veredas – maior livro, ao lado <strong>de</strong> Os sertões, da<br />

nacionalida<strong>de</strong> brasileira – João Guimarães Rosa atingiu o ponto mais alto <strong>de</strong><br />

toda a história da ficção em língua portuguesa. Ainda que sendo um romance,<br />

trata-se, na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> um verda<strong>de</strong>iro poema épico em p<strong>rosa</strong>, <strong>de</strong> ressonâncias<br />

humanas e filosóficas inesgotáveis, monumento inigualado na literatura do<br />

Novo Mundo, que eleva o seu autor ao pequeno círculo dos maiores gênios da<br />

literatura universal.


JOÃO GUIMARÃES ROSA, MEU PAI*<br />

Vilma Guimarães Rosa**<br />

Falar sobre meu pai para os que admiram sua obra e reverenciam sua<br />

memória é para mim motivo <strong>de</strong> orgulho e um <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção.<br />

Questionando sobre os mistérios que envolvem uma existência, procurarei<br />

sintetizar os episódios que <strong>de</strong>finem a personalida<strong>de</strong> carismática e a<br />

profunda filosofia <strong>de</strong> vida do gênio maravilhosamente humano que foi meu pai.<br />

Pelo seu espírito a luz perpassa, iluminando a magia que acompanha a<br />

sua lembrança.<br />

Tendo percorrido numa dimensão espiritual os mundos que projetaria em<br />

cada uma <strong>de</strong> suas estórias, ele satisfez os <strong>de</strong>sejos fundamentais <strong>de</strong> expressão da<br />

verda<strong>de</strong> e da beleza.<br />

Era ele um homem que cumpria o seu <strong>de</strong>ver procurando fazê-lo acima e<br />

além do que normalmente se lhe po<strong>de</strong>ria exigir. Manifestou sempre o mais<br />

integral <strong>de</strong>votamento a tudo o que fazia: uma página escrita, um relatório<br />

funcional, o estudo <strong>de</strong> um problema técnico ou um <strong>de</strong>senho para os netos.<br />

Teve amigos, e <strong>de</strong>dicados. E a eles se <strong>de</strong>dicou. Gostava imensamente <strong>de</strong><br />

conversar. Era um notável conversador. Costumava dizer que durante uma boa<br />

conversa, sempre se apren<strong>de</strong>. Na realida<strong>de</strong> era ele quem ensinava.<br />

Era <strong>de</strong> se absorver inteiramente na contemplação da vida, buscando,<br />

conjeturando, ou simplesmente fruindo o lado positivo das coisas.<br />

Lembro-me do estímulo que dava aos novos escritores. A mim, inclusive,<br />

sempre me revelando o seu entusiasmo pelos meus escritos.<br />

Ele foi, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo, incluído entre as expressões maiores <strong>de</strong> nossa<br />

literatura. O <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> sua Obra confirmou-lhe o valor, universalizando-lhe<br />

o nome. A crítica nacional e também a internacional o aplau<strong>de</strong>m,<br />

louvando a sua Obra.<br />

* Palestra proferida na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em 18 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008, <strong>de</strong>ntro da Semana Cultural<br />

Guimarães Rosa, comemorativa do seu centenário <strong>de</strong> nascimento.<br />

**Escritora, filha e biógrafa <strong>de</strong> Guimarães Rosa.


14 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Tristão <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rou-o tecelão <strong>de</strong> “admirável e incomparável<br />

tapeçaria”, tecida com a fibra mais tipicamente nacional que po<strong>de</strong>mos fornecer;<br />

e ao mesmo tempo, com uma nota <strong>de</strong> humanismo universal tão completa que<br />

explica o mistério <strong>de</strong> sua repercussão no exterior.<br />

Meu pai, realmente, foi um caráter transoceânico. Mensageiro <strong>de</strong> uma<br />

renovação artística, e assim o conhecem <strong>de</strong>ntro e fora do Brasil.<br />

Nôma<strong>de</strong> e se<strong>de</strong>ntário, instável e estável, rígido e suave, severo e doce.<br />

Ele foi assim. Nôma<strong>de</strong>, na irrefreada curiosida<strong>de</strong> que sempre o caracterizou.<br />

Se<strong>de</strong>ntário, no <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> paz, no amor ao silêncio das horas <strong>de</strong> trabalho.<br />

Instável, na inquietação constante <strong>de</strong> seu espírito, em busca da perfeição.<br />

Estável, na sua esplêndida ternura, na constância <strong>de</strong> sua afetivida<strong>de</strong>, na firmeza<br />

<strong>de</strong> suas convicções, na consciente fixação <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>votamento ao trabalho.<br />

Rígido, na coragem tantas vezes <strong>de</strong>monstrada, na <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> sua vonta<strong>de</strong><br />

enérgica, no cumprimento <strong>de</strong> suas obrigações. Suave no convívio, nas horas<br />

mansas, suave no trato, no sorriso, no coração. Severo, quando a vida impunha<br />

severida<strong>de</strong>, sem jamais abandonar aquela sua doçura tão acentuada, tão<br />

presente em seus atos. Nôma<strong>de</strong> confesso, procurou a carreira diplomática,<br />

disposto a ver o mundo distante. Era-lhe, porém, indispensável intervalar o<br />

nomadismo, viver longas pausas <strong>de</strong> tranqüilida<strong>de</strong> produtiva. Mas não po<strong>de</strong>ria<br />

jamais renunciar ao seu impulso <strong>de</strong> observação direta das coisas e das pessoas,<br />

movimentando-se pela vida. Amou a natureza. Enternecia-se com as crianças e<br />

sentia respeito e curiosida<strong>de</strong> pelos animais. Andou pensando sempre nos que<br />

precisam <strong>de</strong> proteção e compreensão. Tentou sempre enten<strong>de</strong>r e proteger. Papai<br />

foi assim, na complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua figura humana. Em viagens, viu os muitos<br />

rostos da humanida<strong>de</strong>, conheceu expressões <strong>de</strong> cultura e <strong>de</strong> comportamento<br />

moral, enriquecendo a sua experiência.<br />

Havia nele um certo mistério, em parte espontâneo, em parte cultivado<br />

como elemento <strong>de</strong> encanto. Minha mãe costumava dizer que ele era permanente<br />

reserva <strong>de</strong> surpresas, muito à semelhança <strong>de</strong> seus personagens.<br />

Quero prestar um tributo à memória <strong>de</strong> Lygia, minha mãe, sua gran<strong>de</strong><br />

companheira durante os anos em que estiveram casados, e sua fiel amiga,<br />

sempre.<br />

Mulher brilhante, projetava a sua inteligência e cultura com a maior<br />

graça. Seu notável dinamismo muito ajudou meu pai. Ela estimulou-o na Medicina,<br />

aplaudiu-o na Diplomacia, transmitindo a sua enorme Fé no Escritor que<br />

então <strong>de</strong>spontava.<br />

Enterneciam-me a Amiza<strong>de</strong>, o Respeito e a Confiança mútua que se<br />

<strong>de</strong>dicaram. Sempre escutei <strong>de</strong> cada um o que o outro tinha <strong>de</strong> melhor.


João Guimarães Rosa, meu pai _______________________________________________ Vilma Guimarães Rosa 15<br />

O <strong>de</strong>stino conduz as pessoas, e po<strong>de</strong> até separá-las fisicamente. Porém, a<br />

soli<strong>de</strong>z da afeição verda<strong>de</strong>ira, Deus eterniza.<br />

Com minha Mãe e meu Pai, aprendi importantes lições <strong>de</strong> vida, que eles<br />

souberam ensinar-me com gene<strong>rosa</strong> sabedoria.<br />

“Contar é muito, muito dificultoso”, disse Riobaldo, jagunço dos<br />

Campos Gerais, Mestre-Narrador, e personagem <strong>de</strong> Guimarães Rosa.<br />

Gostaria <strong>de</strong> contar-lhes um abreviado da vida <strong>de</strong> meu Pai, embora ache<br />

isto muito dificultoso, porque falarei com o coração; e quando se fala com o<br />

coração, a interferência da sauda<strong>de</strong> é um <strong>de</strong>safio à própria sensibilida<strong>de</strong>. Mas,<br />

como sauda<strong>de</strong>ar é trazer para perto os entes queridos que se encontram longe<br />

<strong>de</strong> nós, eu tentarei.<br />

O infindável fio da vida entrepreen<strong>de</strong> os homens na travessia das épocas.<br />

O escritor percebe e reconta, olhando o fio, <strong>de</strong>senovelando-o, tecendo tramas,<br />

rebordando tapeçarias finas. É o seu encargo.<br />

Um homem é a soma dos seus acertos e <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>feitos. E, muito<br />

especialmente, é a síntese dos amores que o dominaram, dos amores a que<br />

dominou. Das tendências que seguiu, dos rumos que <strong>de</strong>senhou.<br />

Afirmações e negações, alternativas e escolhas, o homem se <strong>de</strong>fine nos<br />

dias <strong>de</strong> sua vida. Assim se me<strong>de</strong> a sua estatura, assim se me<strong>de</strong> a estatura <strong>de</strong><br />

meu Pai.<br />

Terra e tempo <strong>de</strong>ixam marcas na estruturação interior <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong> nós.<br />

Cordisburgo, antes chamada Vista Alegre, foi uma primeira influência telúrica,<br />

<strong>de</strong>finitiva, não mais esquecida por ele. Não <strong>de</strong>ixou dissolverem-se as<br />

lembranças das suas primeiras visões do mundo, em comovente fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao<br />

lugar pequenino on<strong>de</strong> nasceu. Primeira e última palavra do seu discurso <strong>de</strong><br />

Posse, na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, três dias antes que a sua mão<br />

<strong>de</strong>scansasse <strong>de</strong> escrever, está nos seus livros como esteve em sua vida: relembrada<br />

docemente, luminosa permanência na memória.<br />

Cordisburgo, as três Igrejas abençoadas pela vastidão <strong>de</strong> um céu quase<br />

sempre azul. A singela estação. Casas bonitas e belas fazendas, com o gado<br />

pastando nos pitorescos campos. Os buritis, as árvores e as flores. Tudo muito<br />

pincelado pelos pictóricos tons da poesia.<br />

Des<strong>de</strong> os tempos do Padre João <strong>de</strong> Santo Antonio, <strong>de</strong> origem alemã,<br />

fundador da cida<strong>de</strong>zinha, batizando-a com o nome que originalmente significa:<br />

– Cordis: coração; Burgo: cida<strong>de</strong> – Cordisburgo: cida<strong>de</strong> do coração.<br />

O amanhecer <strong>de</strong> Joãozito – como era chamado pela família – aconteceu<br />

no dia 27 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1908.


16 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Nesta bucólica paisagem, a estória da vida <strong>de</strong> meu pai começou. A mansidão<br />

dos campos pontificando o mistério da Gruta <strong>de</strong> Maquiné, um mundo <strong>de</strong><br />

fantasia cintilante on<strong>de</strong> meu pai-menino costumava brincar com os irmãos.<br />

De Maquiné, “milmaravilha”, saiu a pedra branca <strong>de</strong> sua pia batismal. E<br />

as águas do rio Urucuia o batizaram, na Matriz do Sagrado Coração <strong>de</strong> Jesus,<br />

padroeiro da cida<strong>de</strong>.<br />

Maria Francisca, minha Vovó Chiquitinha, entre muitos irmãos, era a<br />

única filha <strong>de</strong> Dona Mariazinha e do Patriarca Luiz Guimarães, homem <strong>de</strong><br />

letras muito conceituado nos meios intelectuais mineiros. Moravam em Belo<br />

Horizonte e passavam as férias na fazenda que possuíam em Cordisburgo.<br />

Vovô Florduardo – nome que po<strong>de</strong>ria ser personagem das estórias do<br />

filho – era imensamente querido e popular na região. Eu diria até: um jovem<br />

coronel, daqueles que li<strong>de</strong>ram uma pequena cida<strong>de</strong>. Juiz <strong>de</strong> paz, vereador e<br />

comerciante por profissão, e caçador por diversão, possuía uma sensacional<br />

coleção <strong>de</strong> espingardas e outra coleção <strong>de</strong> estórias <strong>de</strong> caçador e caçadas. A<br />

matilha <strong>de</strong> cães sempre o acompanhava. Com uma letra linda e <strong>de</strong>senhada, anos<br />

mais tar<strong>de</strong> se correspon<strong>de</strong>ria com o filho diplomata, narrando-lhe estórias<br />

interessantíssimas acontecidas no sertão e na Serra do Cabral, on<strong>de</strong> costumava<br />

caçar. Várias vezes ouvi <strong>de</strong> meu pai a afirmação <strong>de</strong> que o Vovô também<br />

<strong>de</strong>veria ter sido escritor. Papai dramatizava a seu modo algumas daquelas<br />

estórias, colocando-as em seus livros e jamais fazia disto segredo. Muito se<br />

orgulhava em <strong>de</strong>senvolver a inspiração, criando estórias das estórias que seu<br />

pai lhe transmitia.<br />

Chiquitinha e Florduardo se casaram muito jovens, e ela <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong>finitivamente<br />

Belo Horizonte, a fim <strong>de</strong> morar em Cordisburgo. Foi uma união<br />

muito feliz, que durou até anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> celebrarem as Bodas <strong>de</strong> Ouro.<br />

Bisavô Luiz Guimarães mandou então abrir a primeira rua da cida<strong>de</strong>,<br />

oferecendo uma casa à vovó e construindo outras para cada um dos outros<br />

filhos.<br />

No armazém dos meus avós as tropas a caminho do interior se<br />

abasteciam. E isto constituía um acontecimento na cida<strong>de</strong>zinha.<br />

No dia 30 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1974 esta casa on<strong>de</strong> nasceu papai virou museu.<br />

Inaugurá-lo, foi uma gran<strong>de</strong> emoção para mim e minha família. Graças à feliz<br />

<strong>de</strong>cisão do então Governador <strong>de</strong> Minas, Senhor Rondon Pacheco, adquirindo a<br />

casa <strong>de</strong> meus avós e entregando-a ao Patrimônio Histórico, o Museu pô<strong>de</strong> ali<br />

ser organizado. O Professor Luciano Amedée Peret dirigiu a restauração da<br />

casa, procurando usar o máximo <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao estilo anterior. A inauguração,<br />

presidida pelo Governador Rondon Pacheco, foi muito bonita e animada,


João Guimarães Rosa, meu pai _______________________________________________ Vilma Guimarães Rosa 17<br />

levando a Cordisburgo inúmeras personalida<strong>de</strong>s ilustres. E algumas <strong>de</strong>las<br />

especiais, pois tendo sido amigos <strong>de</strong> infância <strong>de</strong> meu pai, se tornaram personagens<br />

<strong>de</strong> suas estórias.<br />

Joãozito era um menino sábio, contava-me vovó. Apren<strong>de</strong>u a ler e a<br />

escrever muito cedo, para saciar a sua intensa curiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecimentos.<br />

Mestre Candinho, o professor que ia nas casas ensinar, profetizava um notável<br />

futuro para seu pequeno aluno.<br />

Papai era o mais velho dos irmãos, e gostava <strong>de</strong> levá-los para explorarem<br />

os campos, em folguedos junto aos buritis.<br />

Maria Luiza, Maria José, Maria Auxiliadora, José Luiz e Oswaldo, seus<br />

irmãos, o consi<strong>de</strong>ravam um lí<strong>de</strong>r, sempre inventando aventuras e brinquedos. E<br />

sempre foram muito unidos.<br />

Míope, antes que cedo o soubesse, Joãozito tentava adivinhar os recortes<br />

da realida<strong>de</strong> meio in<strong>de</strong>finida. Brincava, buscando maior proximida<strong>de</strong> das<br />

coisas, forcejando por ver mais <strong>de</strong> perto a substância e as formas <strong>de</strong> tudo.<br />

Examinava, um elo <strong>de</strong> cada vez, a corrente da vida.<br />

Um dia, ganhou lentes para os olhos. Deslumbrou-se com a mágica do<br />

mundo! Ele se habituara a se acercar das coisas, tocá-las, trazê-las muito perto,<br />

para sentir-lhes a essência. Já era íntimo da vida. Agora, <strong>de</strong>svendava suas<br />

perspectivas, no conjunto da paisagem <strong>de</strong>senevoada.<br />

A miopia do menino Miguilim, seu personagem, e a <strong>de</strong>scoberta das<br />

minúcias do vísível – amo<strong>rosa</strong>mente <strong>de</strong>scrita – é uma experiência pessoal. A<br />

explosão <strong>de</strong> cores e formas, o mundo a se expandir até os confins do horizonte<br />

que se afastam e projetam, nas distâncias, outrora somente pressentidas.<br />

Joãozito mudara os seus conceitos ao enxergar mais longe. O mundo crescera!<br />

No conto “Manuelzão e Miguilim”, obra-prima que criaria mais tar<strong>de</strong>,<br />

confun<strong>de</strong>m-se autor e personagem, Joãozito e Miguilim.<br />

Após as suas primeiras aulas com Mestre Candinho, e um curto tempo <strong>de</strong><br />

internato em São João <strong>de</strong>l-Rei, Joãozito foi estudar em Belo Horizonte, no<br />

tradicional Colégio Arnaldo, on<strong>de</strong> teve colegas que se tornariam famosos<br />

expoentes em diferentes profissões, se reencontrando anos mais tar<strong>de</strong>.<br />

Estudando no colégio Arnaldo, em Belo Horizonte, ele fora morar com<br />

seus avós maternos, também seus padrinhos, recebendo <strong>de</strong>les uma profunda<br />

influência artística e cultural. Especialmente literária, da parte do seu avô Luiz<br />

Guimarães, já famoso escritor e ensaísta. Na sua residência aconteciam saraus<br />

semanais, com a presença <strong>de</strong> escritores, artistas plásticos e personalida<strong>de</strong>s que<br />

se <strong>de</strong>dicavam à cultura. Joãozito cresceu neste ambiente, <strong>de</strong>le tirando o maior<br />

proveito.


18 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Ainda menino, estudou música e ganhou um violino. Gostava <strong>de</strong> tocar<br />

para uma <strong>de</strong> suas primas, que apelidara <strong>de</strong> Benzinho e que o acompanhava<br />

cantando.<br />

Foi minha avó quem contou-me isto, confi<strong>de</strong>nciando-me ter sido papai<br />

um rapazinho romântico, o que afinal, ela mesma, uma romântica, apreciava.<br />

Nas férias, e nos fins <strong>de</strong> semana, Joãozito continuava freqüentando<br />

Cordisburgo, ou <strong>de</strong>ixava-se ficar em Belo Horizonte.<br />

Uma <strong>de</strong> suas diversões foi o jornalismo caseiro. Publicava jornaizinhos,<br />

sendo responsável por todas as seções, as ilustrações e a distribuição entre as<br />

crianças da família. E também era o tesoureiro.<br />

Menino incomum, diversificava seus próprios divertimentos. Um dos<br />

seus professores, Frei Canízio Zoetmul<strong>de</strong>r, fra<strong>de</strong> franciscano holandês, ensinou-lhe<br />

este idioma, e o francês. Certamente influenciado por Frei Canízio, ele<br />

brincava <strong>de</strong> celebrar missa na capelinha da casa <strong>de</strong> seus avós, usando o<br />

“Goffiné”, missal relíquia da bisavó, escrito em latim. Ela só o emprestava ao<br />

padrezinho faz-<strong>de</strong>-conta porque acreditava tratar-se <strong>de</strong> uma precoce afirmação<br />

vocacional. Convidava os irmãos para ajudá-lo, e ele mesmo, paramentado com<br />

arranjos <strong>de</strong> roupas, recitava em latim, impressionando as crianças e os criados.<br />

Anos mais tar<strong>de</strong>, seria coroinha dos padres re<strong>de</strong>ntoristas, na igreja <strong>de</strong> São José.<br />

Com a mesada <strong>de</strong> dois mil réis, Joãozito comprava aos domingos<br />

empadinhas e garrafas <strong>de</strong> limonada, indo se refugiar na Biblioteca Pública <strong>de</strong><br />

Belo Horizonte para <strong>de</strong>vorar os livros. Certa vez, alguém se queixou daquele<br />

“piquenique” ao encarregado, que já havia se tornado amigo <strong>de</strong> Joãozito, e que<br />

retrucou: “– O senhor já viu o que o menino está lendo? Vai dar uma olhadinha;<br />

a gente não tem coragem <strong>de</strong> impedir que o menino engordure um livro<br />

tão difícil!”<br />

Meu pai, com apenas sete anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, tranqüilamente, estava lendo<br />

um clássico francês. Este caso, contado a todos pelo bibliotecário, tornou-se o<br />

assunto da família e dos amigos.<br />

Durante uma época papai interessou-se, também, pelos esportes. E<br />

gostava <strong>de</strong> contar, com a malícia <strong>de</strong> quem sabe que vai surpreen<strong>de</strong>r, ter sido<br />

centro-avante do time <strong>de</strong> futebol do colégio.<br />

Descobriu muito cedo a literatura, dinamizando a sua enorme curiosida<strong>de</strong>.<br />

Além do estudo <strong>de</strong> línguas, tão extraordinariamente começado na infância,<br />

costumava traduzir as revistas francesas que seus avós recebiam. Prendiase<br />

na observação das plantas e dos animais, interessava-se pela botânica, pela<br />

entomologia, pela geologia, para melhor conhecer as coisas que amava. Era o<br />

gran<strong>de</strong> livro da Criação <strong>de</strong> Deus que precisava percorrer indagadoramente.


João Guimarães Rosa, meu pai _______________________________________________ Vilma Guimarães Rosa 19<br />

Mais tar<strong>de</strong>, mesmerizado pelo que chamou “o canto e a plumagem das palavras”,<br />

dilataria o seu interesse lingüístico.<br />

Apren<strong>de</strong>u vários outros idiomas, como o russo e o japonês. E até o<br />

Esperanto, idioma internacional <strong>de</strong> Zamenhof.<br />

Quando perguntei-lhe se era fácil apren<strong>de</strong>r o esperanto, papai informoume,<br />

brincando sério: “– Sim, se você conhecer o grego, o latim, inglês, francês,<br />

russo, italiano e espanhol e um pouco das gramáticas <strong>de</strong> outros idiomas, tornase<br />

facílimo.”<br />

Anos mais tar<strong>de</strong>, já ingressado na Carreira Diplomática, surpreen<strong>de</strong>ria os<br />

seus chefes e colegas saudando uma <strong>de</strong>legação oficial japonesa, com impecável<br />

discurso em japonês.<br />

Meu Pai, ainda menino, e seu professor Frei Canízio ficavam ambos<br />

horas e horas <strong>de</strong>bruçados sobre os mapas, conjeturando táticas e discutindo o<br />

movimento das tropas alemãs e aliadas, durante a Primeira Gran<strong>de</strong> Guerra<br />

Mundial. Entusiasmavam-se, espalhando alfinetes sobre os campos <strong>de</strong> batalha.<br />

Certa vez, Joãozito sugeriu que se os aliados agissem <strong>de</strong> forma tal, certamente<br />

ganhariam a Batalha. E foi o que aconteceu. Isto, <strong>de</strong> certa forma, celebrizou-o<br />

entre os mestres e os colegas. Alguns padres re<strong>de</strong>ntoristas quiseram, então<br />

conhecê-lo pessoalmente.<br />

Terminado o ginásio no colégio Arnaldo, <strong>de</strong>cidiu-se pela Medicina. Era<br />

uma das faixas <strong>de</strong> sua vocação, da sua vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> servir. Seu i<strong>de</strong>al era salvar a<br />

vida <strong>de</strong> pessoas que <strong>de</strong>le precisassem.<br />

Graduou-se com brilhantismo, orador e primeiro da turma, tendo recebido<br />

convites <strong>de</strong> vários professores catedráticos para com eles trabalhar.<br />

Entretanto, i<strong>de</strong>alista, preferiu fazer a interiorização da Medicina, escolhendo a<br />

cida<strong>de</strong>zinha <strong>de</strong> Itaguara, no Município <strong>de</strong> Itaúna, para abrir uma 1ª clínica, já<br />

que ali não havia médicos.<br />

Os dois anos vividos em Itaguara influíram enormemente na produção<br />

literária <strong>de</strong> meu pai. Inspirado pela Terra, os costumes, as pessoas e as<br />

acontecências do cotidiano, ele os colecionava, anotando as terminologias dos<br />

seus ditos e falas, a fim <strong>de</strong> distribuí-los pelas estórias que certamente já estava<br />

escrevendo.<br />

Recém-casado com Lygia Cabral Penna, filha da professora Julia Cabral<br />

e do político e proprietário <strong>de</strong> Colégio Antônio Affonso Penna, papai tornou-se<br />

o primeiro médico da região. Minha mãe era muito jovem, mas sua personalida<strong>de</strong><br />

já era forte e bem <strong>de</strong>finida. Pelo amor ao marido, <strong>de</strong>ixou sua família e a<br />

vida agradável, cheia <strong>de</strong> conforto e amiza<strong>de</strong>s, na capital, acompanhando-o com<br />

coragem. E ajudou-o a vencer as inevitáveis dificulda<strong>de</strong>s surgidas. Durante as


20 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

consultas, se fazia <strong>de</strong> enfermeira e sua secretária. Papai contou-me que, às<br />

vezes, ela curava melhor do que ele, especialmente os doentes imaginários,<br />

para os quais preparava xarope <strong>de</strong> groselha, avisando tratar-se <strong>de</strong> um eficaz<br />

elixir. Os pagamentos que lhes faziam muitas vezes eram sob a forma <strong>de</strong> aves e<br />

ovos, doces, bolos e frutas.<br />

Foi nesta singela e pitoresca Itaguara que eu nasci, numa casa-fazenda;<br />

minha mãe, assistida no parto pelo meu pai. E ele sempre me dizia, com<br />

orgulho, que meu primeiro banho foram as suas lágrimas <strong>de</strong> alegria.<br />

Ele galopava, às vezes até durante a noite, para aten<strong>de</strong>r doentes nas<br />

fazendas das redon<strong>de</strong>zas, ou nos casebres. Eram eles o Dr. Rosa e a D. Lili,<br />

muito amados por todos, e padrinhos <strong>de</strong> quase todos os recém-nascidos do<br />

lugar.<br />

Meu pai, contudo, ficava <strong>de</strong>primido e profundamente angustiado ante a<br />

impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> salvar alguma vida.<br />

Em 1932, ele tomou parte na Revolução Constitucionalista, atuando<br />

como médico voluntário da Força Pública <strong>de</strong> Minas, no setor do Túnel.<br />

Mais tar<strong>de</strong>, em 1934, prestou concurso e foi promovido a capitão médico.<br />

Fomos então morar em Barbacena, on<strong>de</strong> nasceu Agnes, minha irmã.<br />

A angústia provocada pela sua extrema sensibilida<strong>de</strong>, no convívio com a<br />

doença e a morte, que algumas vezes, apesar <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>sesperados esforços não<br />

conseguia impedir, levou-o a abandonar a Medicina.<br />

O seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> mais saber e mais ver afastava-o, progressivamente, <strong>de</strong><br />

Minas Gerais. Além da enorme curiosida<strong>de</strong> em conhecer novas terras e novos<br />

tipos <strong>de</strong> pessoas, queria <strong>de</strong>scobrir outros mundos que pu<strong>de</strong>ssem saciar-lhe a<br />

eterna busca.<br />

A Medicina, sem dúvida, foi uma força vocacional marcante em seu<br />

caráter. Entretanto, aumentavam os impulsos <strong>de</strong> sua inquietação intelectual, o<br />

seu amor pela literatura, a sua universal curiosida<strong>de</strong>.<br />

Quando <strong>de</strong>ixou Itaguara e <strong>de</strong>pois Barbacena, repetiu-se, talvez em escala<br />

diversa, a <strong>de</strong>spedida <strong>de</strong> Cordisburgo.<br />

Papai tivera um violino, estudara e amava a música, mas não era músico;<br />

possuía um diploma universitário, estudara e exercia a medicina, mas outro<br />

seria o seu caminho.<br />

Ele conseguiu prêmios literários, competindo em concursos <strong>de</strong> contos a<br />

trezentos mil-réis cada um, da revista O Cruzeiro. Iniciava uma espécie <strong>de</strong> préliteratura<br />

<strong>de</strong> curtíssima duração. Depois, uma pausa, uma espera na procura do<br />

i<strong>de</strong>al: a tentativa <strong>de</strong> encontrar “o ponto <strong>de</strong> interseção da eternida<strong>de</strong> e o tempo”,<br />

como <strong>de</strong>sejo e <strong>de</strong>ver, tal qual no poema <strong>de</strong> Eliot.


João Guimarães Rosa, meu pai _______________________________________________ Vilma Guimarães Rosa 21<br />

Mamãe o estimulava nesses concursos, e ficavam ansiosos à espera do<br />

resultado.<br />

Recém-casados, visitaram o Rio, a fim <strong>de</strong> receberem o prêmio literário<br />

que ele conquistara da revista O Cruzeiro. Ela, cicerone. Ele, extasiado, pois<br />

era a sua primeira vez. Atravessando a baía na velha barca, ele inspirava<br />

profundamente o mar, tentando prendê-lo <strong>de</strong> cor, como se estivesse <strong>de</strong>corando<br />

poesia. Queria guardar na memória o cheiro exótico e a paisagem nova e bela.<br />

Vieram os dois, muito jovens e entusiasmados. Parados diante da escadinha,<br />

aos pés do sobrado on<strong>de</strong> funcionava naquele tempo a se<strong>de</strong> da revista<br />

O Cruzeiro, ele hesitava em subir. Vencera os concursos <strong>de</strong> contos, já<br />

publicadas as suas estórias; só lhe faltava receber o dinheiro dos prêmios, para<br />

eles uma verda<strong>de</strong>ira pequena fortuna, que ele não se <strong>de</strong>cidia a receber, por<br />

timi<strong>de</strong>z. Não fosse o entusiástico senso prático <strong>de</strong> minha mãe, talvez ele não<br />

tivesse tomado coragem. Ela possuía o dom <strong>de</strong> transmitir-lhe segurança. Aliás,<br />

a todos nós.<br />

Após ter trabalhado no serviço <strong>de</strong> Proteção ao Índio (1933 a 1935), papai<br />

dispôs-se ao ingresso no Itamarati, o que lhe permitiria percorrer estradas<br />

novas, chegando a todas as margens do mar.<br />

O ecletismo <strong>de</strong> seu espírito esten<strong>de</strong>ra-lhe a cultura por muitos campos do<br />

conhecimento. Aprendia com facilida<strong>de</strong>, graças à constância <strong>de</strong> seus exercícios<br />

intelectuais. Rápido, assenhoreou-se da informação jurídica necessária para o<br />

novo concurso. História, idiomas, cultura geral, não lhe seriam obstáculos. Em<br />

pouco tempo <strong>de</strong>frontaria os examinadores, classificando-se brilhantemente.<br />

Mamãe, minha irmã e eu estávamos em Belo Horizonte, aguardando as<br />

novida<strong>de</strong>s. Dois telegramas e uma carta, longa e divertida, na qual comentava<br />

as provas e os exames, papai anunciava os ótimos resultados, e nos chamava<br />

com urgência. Viajamos imediatamente. Morar no Rio foi maravilhoso! Quantas<br />

belas caminhadas fazíamos, com ele nos dando interessantes lições <strong>de</strong><br />

História e Geografia...<br />

Após o necessário estágio na Secretaria <strong>de</strong> Estado, no Rio, <strong>de</strong>signaramlhe<br />

o Consulado, em Hamburgo, na Alemanha.<br />

Papai foi, emocionado, porque era a sua primeira viagem ao exterior. A<br />

família seguiria mais tar<strong>de</strong>, quando ele já tivesse se estabelecido e encontrado a<br />

nossa casa e o colégio i<strong>de</strong>al para suas meninas.<br />

Além dos seus encargos oficiais e nos prováveis entretempos, meu pai<br />

teria finalmente um contato direto com a cultura alemã, que tanto o seduzia:<br />

Hoffmann, Heine, Schiller, Goethe, Rilke, Kafka e outros mais. Todos o<br />

haviam muito cedo fascinado.


22 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Suas cartinhas e postais nos chegavam com freqüência, e as <strong>de</strong>scrições<br />

das novida<strong>de</strong>s que ele ia conhecendo, com a promessa <strong>de</strong> que, num<br />

futuro próximo, nós também iríamos conhecer, amenizavam nossa imensa<br />

sauda<strong>de</strong>.<br />

Enquanto foi possível, papai nos enviava malas recheadas <strong>de</strong> presentes:<br />

bonecas e seus guarda-roupas completos, e sobretudo livros lindos, com atraentes<br />

gravuras, <strong>de</strong> escritores alemães, franceses e ingleses, que passei para meus<br />

filhos e minha neta. Veio até um carimbo para organizar minha primeira<br />

biblioteca. Tudo isso me incentivou a estudar idiomas, e inspirou-me, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

pequena, a escrever também minhas estórias.<br />

Para nosso entusiasmo, mamãe preparava o que ela chamava “nosso<br />

enxoval para a viagem”.<br />

Papai, antes <strong>de</strong> partir, lhe confiara os originais <strong>de</strong> Sagarana, e aquele<br />

monte <strong>de</strong> folhas <strong>de</strong> papel, envolto em celofane, constituía para nós uma relíquia<br />

preciosa que ela guardava cuidadosamente. Nas cartas que papai lhe escrevia,<br />

havia sempre o <strong>de</strong>svelado conselho:<br />

“– Se me acontecer algo, Lili, tenta publicar. Po<strong>de</strong> ser que dê algum<br />

dinheirinho para ajudar na educação das meninas...”<br />

Mas não era <strong>de</strong> paz o clima político europeu. Na Alemanha, queimavamse<br />

livros, proscreviam-se escritores. Stefan Zweig, Thomas Mann, Jacob<br />

Wassermann, Franz Werfel, tal como Kafka e tantos outros, eram nomes<br />

proibidos. Inúmeros intelectuais <strong>de</strong>ixavam a Alemanha, refugiando-se na<br />

Inglaterra ou em países da América. Havia névoas e opressões, muitos não<br />

sabendo ou não querendo ver, talvez acreditando que tudo não passasse <strong>de</strong> uma<br />

conturbação temporária, o limiar <strong>de</strong> uma fase nova, com as naturais incertezas<br />

que prece<strong>de</strong>m as gran<strong>de</strong>s transformações históricas.<br />

Chamberlain, sorri<strong>de</strong>nte após o pacto <strong>de</strong> Munique, anunciara:<br />

“– Paz para o nosso Tempo!”<br />

Porém, o jovem cônsul brasileiro, em seus relatórios, <strong>de</strong>scria. Protegia<br />

aqueles que <strong>de</strong>sejavam emigrar para o Brasil, sobretudo os ju<strong>de</strong>us perseguidos<br />

pelo nazismo, assinando a permissão do visto em seus passaportes. Só ele tinha<br />

o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> concedê-lo, e o fazia antes mesmo <strong>de</strong> receber a licença oficial do<br />

Ministério.<br />

Há pouco tempo, fui convidada para fazer uma palestra sobre meu pai,<br />

na homenagem que a ARI (Associação Religiosa Israelita) lhe prestou, durante<br />

a cerimônia <strong>de</strong> Recordação do Holocausto, na Sinagoga <strong>de</strong> Botafogo.<br />

Compareceram inúmeros filhos e netos <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>us que papai havia salvado, e fui<br />

presenteada com cópias dos passaportes com sua assinatura. Conheci também


João Guimarães Rosa, meu pai _______________________________________________ Vilma Guimarães Rosa 23<br />

um senhora <strong>de</strong> 99 anos, que abraçou-me em prantos, dizendo que não queria<br />

morrer sem antes agra<strong>de</strong>cer à filha <strong>de</strong> seu salvador.<br />

Sinto orgulho do espírito solidário <strong>de</strong> meu pai. Como dizia Josué<br />

Montello, nosso querido amigo, “a vida é um processo <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong><br />

natural”.<br />

Mamãe, Agnes e eu ficamos profundamente tristes quando o Ministério<br />

do Exterior cancelou nossa viagem, assim como <strong>de</strong> outras famílias <strong>de</strong> diplomatas,<br />

por motivo <strong>de</strong> segurança. As que já se encontravam na Alemanha foram<br />

chamadas <strong>de</strong> volta ao Brasil.<br />

Afinal, rompeu-se o que restava da paz. Durante a neutralida<strong>de</strong> brasileira,<br />

entre 1939 e 1942, aumentavam as responsabilida<strong>de</strong>s do posto. Por amor<br />

à liberda<strong>de</strong>, meu pai sofria e servia. Devido à sua memória fotográfica, atuou<br />

como correio-verbal das mensagens cifradas, entre as nossas representações <strong>de</strong><br />

Berlim e Lisboa.<br />

Em Hamburgo, durante as longas horas em que ele se refugiava nos<br />

abrigos antiaéreos, contou-me que meditava, rezando fervo<strong>rosa</strong>mente pelos que<br />

sofriam, e pela sua sobrevivência, a fim <strong>de</strong> que pu<strong>de</strong>sse regressar ao Brasil.<br />

Meu pai possuía uma fé profunda. Acreditava em Deus e na força da<br />

oração.<br />

A educação católica que recebeu quando criança, e pela qual, mais tar<strong>de</strong>,<br />

optou, fixou-se <strong>de</strong>finitivamente em seu espírito.<br />

Ecumênico no seu respeito às outras religiões, tendo investigado sobre<br />

todas elas, era estudioso do sobrenatural, interessando-se pela parapsicologia. E<br />

possuía um po<strong>de</strong>roso controle da mente.<br />

Certa madrugada, em Hamburgo, <strong>de</strong>spertou com uma necessida<strong>de</strong><br />

imensa <strong>de</strong> fumar, logo <strong>de</strong>scobrindo que não tinha sequer um cigarro.<br />

Vestiu o sobretudo sobre o pijama e <strong>de</strong>sceu, indo ao Café da esquina que ficava<br />

aberto a noite inteira. Comprou o maço, e logo se ouviu a sirene, avisando o<br />

próximo bombar<strong>de</strong>io. Ele se refugiou no abrigo, e ao sair, horas mais tar<strong>de</strong>,<br />

dirigiu-se ao pequeno prédio <strong>de</strong> apartamentos on<strong>de</strong> morava. Mas só encontrou<br />

escombros.<br />

Ao <strong>de</strong>screver-me este capítulo dramático <strong>de</strong> sua vida, comentou comigo:<br />

– O cigarro po<strong>de</strong> matar, Vilminha. Mas aquele salvou a minha vida.<br />

Dias <strong>de</strong>pois, o Consulado foi semi-<strong>de</strong>struído durante outro bombar<strong>de</strong>io, e<br />

proibida a entrada dos funcionários, pelo risco <strong>de</strong> <strong>de</strong>sabamento da parte que<br />

ficara <strong>de</strong> pé. Burlando a vigilância dos bombeiros e policiais, papai conseguiu<br />

entrar, abrindo o cofre e salvando importantes documentos oficiais. Mal saíra, o<br />

resto da casa ruiu, com estrondo.


24 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Estes dois fatos o impressionaram terrivelmente. Ao relembrá-los,<br />

costumava dizer que Deus lhe poupara a vida, porque lhe reservava alguma<br />

outra missão maior.<br />

Estes acontecimentos contribuíram para emergir do seu espírito um<br />

sentimento místico, que tanto o influenciou, sobretudo na literatura.<br />

Anos mais tar<strong>de</strong>, meu pai receberia uma con<strong>de</strong>coração especial do<br />

Governo Brasileiro, pelo seu ato <strong>de</strong> heroísmo.<br />

Foi nesta época <strong>de</strong> insegurança e incertezas que ele conheceu Aracy<br />

Moebius <strong>de</strong> Carvalho, funcionária do Consulado, que o assessorava.<br />

Homem sensível, longe da mulher e das filhinhas, papai acabou tendo,<br />

com Aracy, um relacionamento que o ajudou a suportar a solidão. Mas só<br />

vieram a se unir publicamente, anos mais tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> seu Posto em nossa<br />

Embaixada em Bogotá, na Colômbia, para on<strong>de</strong> foi sozinho.<br />

Apesar da separação, embora amigável, <strong>de</strong> meus pais, continuamos nós<br />

quatro: mamãe, Agnes, ele e eu, uma família unida pela compreensão, carinho e<br />

respeito. Amoroso, com sua <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za nata, que tão bem combinava com<br />

mamãe, ele nos visitava quase que diariamente, nos levando bombons e livros;<br />

mas sempre três <strong>rosa</strong>s, para cada uma <strong>de</strong> nós.<br />

Foi quando papai me confi<strong>de</strong>nciou:<br />

– O coração sabe pulsar direitinho diferentes amores...<br />

Ele costumava ter, comigo, longas conversas, e transbordava <strong>de</strong> emoção<br />

ao contar-me sua vivência na Alemanha, durante a guerra.<br />

Em Ba<strong>de</strong>n-Ba<strong>de</strong>n, pitoresca cida<strong>de</strong>zinha alemã que fora elegante estação<br />

<strong>de</strong> águas, antes da guerra, ele e outros diplomatas brasileiros ficaram internados<br />

no luxuoso Brener Park Hotel, como reféns especiais, à espera da troca pelos<br />

diplomatas alemães que ainda estavam no Brasil.<br />

Sem maiores explicações, certo dia foram todos convidados, então, a<br />

<strong>de</strong>ixar Ba<strong>de</strong>n-Ba<strong>de</strong>n, seguindo <strong>de</strong> trem para Lisboa, a fim <strong>de</strong> tomarem o navio<br />

que os levaria <strong>de</strong> volta à pátria.<br />

Daqueles antigos tempos meu pai guardava uma lembrança quase febril:<br />

a viagem no navio todo iluminado, Diplomatic escrito em gran<strong>de</strong>s letras<br />

luminosas. Os passageiros, tensos, dominados pela angústia, atingindo o<br />

<strong>de</strong>sespero quando dois navios cruzaram caminho, pois po<strong>de</strong>ria haver a<br />

sabotagem <strong>de</strong> um torpe<strong>de</strong>amento, alguma traição.<br />

Ele comovia-se, ao contar-me a estória <strong>de</strong>sta viagem dramática e os<br />

exercícios <strong>de</strong> fé a que se obrigava. Eu o escutava também emocionada,<br />

compartilhando com ele daquela fase <strong>de</strong> sua vida que não me pertencera, mas<br />

que me impressionava enormemente.


João Guimarães Rosa, meu pai _______________________________________________ Vilma Guimarães Rosa 25<br />

Foi para nós uma divina surpresa a noticia da chegada do navio, no Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro. Pelo receio <strong>de</strong> sabotagem, havíamos ficado longo tempo sem<br />

notícias, e as famílias só foram avisadas quando o navio entrou na Baía <strong>de</strong><br />

Guanabara.<br />

Grupos foram levados <strong>de</strong> lanchas até perto do navio ancorado.<br />

Mamãe ergueu a Agnes nos braços, sendo imitada pelas outras mães, e<br />

eu subi na caixa do motor. Beijinhos se cruzavam no espaço, e ouvia-se, em<br />

uníssono: – Papai! Papai!<br />

Emocionante e enternecedor o reencontro das mulheres e crianças com<br />

os pais e maridos que não viam há quase dois anos! Lágrimas e risos se<br />

misturavam, eles no convés e nós, nas lanchas, recebendo-os com alegria.<br />

Relembraríamos nos anos futuros a sua chegada, que ele chamava <strong>de</strong><br />

milag<strong>rosa</strong>, pois para todos eles, a viagem fora ameaçada pelas dúvidas.<br />

Quando, no meu último aniversário que festejamos juntos, em junho do<br />

ano em que Deus o chamou, papai <strong>de</strong>u-me <strong>de</strong> presente suas duas ca<strong>de</strong>rnetas<br />

com anotações colhidas na Alemanha, ele fez um discursinho diante <strong>de</strong> todos<br />

ali presentes, dizendo que eu as merecia porque fora sempre muito interessada<br />

em sua vivência durante a guerra.<br />

Perguntei-lhe por que nunca as havia publicado, argumentando que tais<br />

anotações constituíam importante <strong>de</strong>poimento histórico. Papai, com sua<br />

habitual discrição, explicou-me que anotações íntimas lhe serviam <strong>de</strong> fonte, e<br />

que preferia não publicá-las. E acrescentou que naquelas ca<strong>de</strong>rnetas eu<br />

encontraria o complemento <strong>de</strong> seus relatos sobre os quais tanto gostávamos <strong>de</strong><br />

conversar.<br />

Estávamos, naquela noite, festejando meu aniversário em casa <strong>de</strong><br />

Chiquita Marcon<strong>de</strong>s Bernar<strong>de</strong>s, que esteve ligada afetivamente ao papai nos<br />

últimos <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> sua vida, e que sempre se manteve discreta, apesar <strong>de</strong> ter<br />

sido importante para ele, não só pela compreensão com que o recebia em sua<br />

aconchegante casa no Alto Leblon, como também pela sua inteligência<br />

brilhante, com quem ele gostava <strong>de</strong> conversar. Foi a única amiga que ele<br />

apresentou à nossa família, e vovó Chiquitinha, mãe <strong>de</strong> meu pai, se hospedou<br />

conosco várias vezes na fazenda que Chiquita possuía no Estado do Rio. Agnes<br />

e eu lhe somos gratas pela paz e alegria que ela <strong>de</strong>dicou ao papai, principalmente<br />

nos seus últimos meses, quando ele se mostrava <strong>de</strong>primido, talvez<br />

pressentindo um fim muito próximo. Agnes a chama <strong>de</strong> “amor <strong>de</strong> outono” do<br />

papai. E o mais interessante é a semelhança <strong>de</strong> Chiquita com mamãe, física e<br />

intelectualmente... Realmente, conforme ele me explicou, “o coração sabe<br />

pulsar direitinho, amores diferentes”.


26 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Guardo estas ca<strong>de</strong>rnetas com especial carinho. Costumo ler seus<br />

magníficos textos. Pretendo publicá-los, algum dia, quando for sua hora e vez.<br />

Foi o que aconteceu com Magma, seu único livro <strong>de</strong> poemas. Tendo<br />

recebido o primeiro prêmio do Concurso Literário, promovido pela <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> em 1936, papai jamais publicou-o.<br />

Magma foi consi<strong>de</strong>rado, no concurso, tão superior, que nem houve um<br />

segundo prêmio.<br />

Minha irmã e eu sempre respeitamos a sua vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> não publicá-lo.<br />

Seus amigos, seus admiradores, e nosso editor, tentaram, durante anos, nos<br />

convencer a publicar o livro. Finalmente concluímos que as Obras <strong>de</strong> João<br />

Guimarães Rosa não pertencem somente a nós, suas her<strong>de</strong>iras e guardiãs <strong>de</strong> sua<br />

imagem e <strong>de</strong> seu nome, porém à toda a humanida<strong>de</strong>.<br />

Os poemas <strong>de</strong> Magma, que publicamos há poucos anos, são filigranas <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e sensibilida<strong>de</strong>.<br />

Quando papai se foi, foram-me entregues a sua biblioteca e os textos<br />

originais que se encontravam em sua casa. Aconselhada a doar para alguma<br />

entida<strong>de</strong> que, mostrando interesse em possuí-los, cuidaria <strong>de</strong> todo o acervo com<br />

<strong>de</strong>svelo, <strong>de</strong>cidi doá-los à USP, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, a única entida<strong>de</strong> que<br />

se mostrou naquela ocasião interessada em possuir acervo <strong>de</strong> meu pai. Não me<br />

arrependo, pois ele está no lugar certo, acessível aos estudantes, leitores e<br />

admiradores da Obra <strong>de</strong> João Guimarães Rosa, e cuidam do acervo com gran<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>dicação.<br />

Também naquela triste ocasião, logo após a morte <strong>de</strong> meu pai, entreguei<br />

os originais <strong>de</strong> seus livros póstumos Ave Palavra e Estas Estórias ao nosso<br />

querido amigo e naquela época nosso editor, José Olympio Pereira. Papai já me<br />

havia dito que após mais uma releitura, pretendia publicá-los. E eu me apressei<br />

em satisfazer a sua vonta<strong>de</strong>.<br />

Hoje, suas Obras estão na Editora Nova Fronteira, e Agnes e eu acompanhamos<br />

com interesse as excelentes publicações.<br />

Papai me chamava <strong>de</strong> sua “secretária para assuntos especiais”, e uma <strong>de</strong><br />

minhas funções era representá-lo nas reuniões sociais que ele <strong>de</strong>testava, nas<br />

conferências e outros eventos que lhe tiravam o tempo <strong>de</strong> escrever. Pois ele<br />

gostava mesmo era <strong>de</strong> ficar em casa, vestindo o pijama e batendo à maquina, à<br />

sua maneira peculiar, com dois <strong>de</strong>dos apenas. Eu o representava, mas <strong>de</strong>pois<br />

tinha <strong>de</strong> contar-lhe o evento, com <strong>de</strong>talhes. E ele achava graça no comentário<br />

que eu lhe fazia:<br />

– As reuniões sociais me divertem, papai, pois vou encontrando nelas os<br />

meus futuros personagens. Afinal, tudo tem sua hora e sua vez...


João Guimarães Rosa, meu pai _______________________________________________ Vilma Guimarães Rosa 27<br />

Seu posto na Colômbia também foi bastante agitado pelas conturbações<br />

políticas do país. Ele nos escrevia falando <strong>de</strong> sua vida e <strong>de</strong> seu trabalho, mas<br />

sempre com o tempero da graça e do humor, para minimizar o perigo das<br />

contínuas greves e agitações que abalavam o povo.<br />

Voltando ao Brasil, foi convidado, por duas vezes, para ser o Chefe <strong>de</strong><br />

Gabinete do seu fraterno amigo João Neves da Fontoura, então Ministro das<br />

Relações Exteriores. Papai atuou com o costumeiro brilho, como Membro<br />

Especial da Delegação à Conferência da Paz, em Paris. E como Secretário<br />

Geral da IX Conferência Interamericana, em Bogotá.<br />

Nomeado Conselheiro <strong>de</strong> nossa Embaixada em Paris, logo que chegamos<br />

ele matriculou-me na Universida<strong>de</strong> Sorbonne e na Alliance Française, acompanhando<br />

os meus estudos com especial atenção, como sempre o fizera quando<br />

Agnes e eu estudávamos no Rio. Ele nos aconselhava a ler os autores que<br />

julgava melhores, nos presenteava com livros ótimos e nos aconselhava:<br />

“– É preciso muito estudo e muita leitura! Nada <strong>de</strong> namoro! Casamento, só<br />

<strong>de</strong>pois dos 40 anos!...”<br />

Ele sempre foi muito alegre e brincalhão e intercalava os momentos <strong>de</strong><br />

serieda<strong>de</strong> com seu senso <strong>de</strong> humor apurado.<br />

Quando morávamos em Paris, papai começou a escrever Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />

Veredas. Assim que terminava uma página, pedia para que eu a lesse, algumas<br />

vezes atrasando meus compromissos sociais, à noite. Da primeira vez, apressada,<br />

passei os olhos no papel e elogiei: “– Está ótimo!” Ele então reclamou:<br />

“– Você não leu coisa alguma, Vilminha. Leia agora em voz alta.”<br />

Comentei com sincerida<strong>de</strong> que, realmente, lido em voz alta, o texto se<br />

realçava surgindo musical e entendível. Ele aprovou o meu comentário, e <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

então eu praticamente tinha que <strong>de</strong>clamar cada página. Até hoje, gosto <strong>de</strong> reler<br />

alguns trechos <strong>de</strong> seus livros, em voz alta. Fico fascinada pela sua musicalida<strong>de</strong>.<br />

Ao perguntar-lhe como conseguia escrever sobre o sertão sem conhecêlo,<br />

pois Cordisburgo on<strong>de</strong> ele nascera, e Itaguara on<strong>de</strong> clinicara durante algum<br />

tempo, não ficavam na zona sertaneja; e afinal, estávamos na França, tão longe<br />

do Brasil. Ele me respon<strong>de</strong>u, tocando na testa com a ponta do indicador:<br />

– Meu sertão é metafísico, Vilminha. Ele está aqui. Eu o crio e vou galopando,<br />

vivendo nele as minhas estórias.<br />

Portanto, a única vez em que meu pai visitou durante mais tempo o<br />

sertão, foi a convite do seu amigo, o jornalista e proprietário <strong>de</strong> jornais Assis<br />

Chateaubriand. Em Caldas do Cipó, na Bahia, formaram na Guarda-Vaqueira<br />

que foi ao aeroporto receber outro amigo, o Presi<strong>de</strong>nte Getúlio Vargas. Ao


28 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

papai coube comandar os vaqueiros <strong>de</strong> Soure e <strong>de</strong> Cipó. Houve <strong>de</strong>pois um<br />

<strong>de</strong>sfile grandioso nos anais sertanejos. Todos vestidos a caráter, usando roupas<br />

<strong>de</strong> couro.<br />

Ao perguntar-me o que <strong>de</strong>veria usar na ocasião, sugeri que ele<br />

comprasse uma calça jeans, um casaco <strong>de</strong> couro e botas. Mas telefonei ao<br />

Dr Chateaubriand, querendo saber se eu havia dado o conselho certo. Este<br />

me pediu que não me preocupasse. Com gene<strong>rosa</strong> gentileza, enviou ao<br />

papai um traje completo <strong>de</strong> vaqueiro. À noite recebi seu animado<br />

telefonema:<br />

– Venha correndo, Vilminha! Eu estou parecendo o John Wayne, me<br />

sinto um personagem <strong>de</strong> filme <strong>de</strong> faroeste!<br />

Fui admirar <strong>de</strong> perto sua nova imagem, e comentei: – Está um John<br />

Wayne um pouco gorducho, papai. Mas impressiona!<br />

Sua alegria era autêntica, e ansiava pela gran<strong>de</strong> aventura no sertão, em<br />

companhia dos amigos.<br />

A foto <strong>de</strong>le, vestindo a roupa <strong>de</strong> vaqueiro, não retrata o verda<strong>de</strong>iro<br />

Guimarães Rosa, pois foi apenas a fantasia que usou naquele dia. O terno<br />

escuro e a gravata borboleta é que retratam meu pai, na realida<strong>de</strong>.<br />

Ao retomar o contato com a terra brasileira, além da viagem a Caldas do<br />

Cipó, na Bahia, ele fez uma interessante excursão ao Pantanal <strong>de</strong> Mato Grosso,<br />

que lhe inspirou a reportagem “Com o Vaqueiro Mariano”, publicada no Rio e<br />

em São Paulo.<br />

O seu primeiro livro já nascera, sob pseudônimo, poucos sabendo<br />

disso. Eram os “Contos” que em 1937 haviam concorrido ao Prêmio<br />

Humberto <strong>de</strong> Campos, da livraria José Olympio Editora, conquistando o<br />

segundo lugar.<br />

Ainda assim, ele permaneceu mais sete anos refazendo o escrito,<br />

repolindo linguagem e estruturas. Era um perfeccionista. Pensava talvez como<br />

Rousseau, também tardio estreante na literatura:<br />

“A meta<strong>de</strong> da vida não basta para compor um bom livro, nem a outra<br />

meta<strong>de</strong> para o corrigir”.<br />

Em abril <strong>de</strong> 1946, Sagarana é publicado pela Editora Universal, do<br />

amigo Caio Pinheiro. Foi um estrondoso sucesso. O <strong>de</strong>flagrar <strong>de</strong> uma revolução<br />

literária. Duas edições seguidas esgotadas, e o Prêmio da Socieda<strong>de</strong> Felipe<br />

d’Oliveira. Sagarana foi consagrada pela crítica como uma importantíssima<br />

obra <strong>de</strong> ficção. A palavra título <strong>de</strong>ste seu primeiro livro, Sagarana, foi<br />

construída pela expressiva do nórdico vocábulo: saga, com a <strong>de</strong>sinência<br />

indicadora <strong>de</strong> semelhança, em Tupi: rana.


João Guimarães Rosa, meu pai _______________________________________________ Vilma Guimarães Rosa 29<br />

De Sagarana em diante, estreitam-se as intimida<strong>de</strong>s entre o autor e a<br />

obra, <strong>de</strong> tal modo que se chega, sem muito esforço, a encontrar em cada um dos<br />

seus livros um reflexo exato <strong>de</strong> sua personalida<strong>de</strong>.<br />

Por exemplo: TATARANA (um dos personagens <strong>de</strong> GR – T (prefixo <strong>de</strong><br />

classe superior) + ATÁ (fogo) + RANA (semelhante). O Tupi é língua aglutinante.<br />

O espírito do autor se transmitiu à obra e nela se <strong>de</strong>sescon<strong>de</strong>u meu pai,<br />

em seu natural, página por página, por trás das palavras ou adiante <strong>de</strong>las, no<br />

sentido das coisas que disse. Pesquisável e encontrável. Por vezes surgindo<br />

espontâneo, sem precisão <strong>de</strong> pesquisa, e por vezes sussurrando a sua verda<strong>de</strong><br />

interior, para que se chegue mais perto e mais atenção se ponha na conversa.<br />

Em 1956 foi lançado o fabuloso Corpo <strong>de</strong> Baile, com suas sete novelas,<br />

numa linguagem rica em beleza e força <strong>de</strong> estilo. Este livro foi posteriormente<br />

dividido em três volumes: Noites do Sertão, Manuelzão e Minguilim e No<br />

Urubuquaquá, no Pinhém.<br />

Ano produtivo, pois o Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, seu único romance –<br />

pois papai foi essencialmente um contista – também apresentado aos leitores,<br />

tornou-se imediatamente um sucesso. Criou verda<strong>de</strong>iro impacto, não só no<br />

Brasil, mas também nos países em cujas línguas foi traduzido. Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />

Veredas possui técnica e linguagem especialíssimas, e um profundo conhecimento<br />

psicológico da alma <strong>de</strong> seus personagens. Além das críticas consagradoras,<br />

surgiram ataques violentos, e papai os <strong>de</strong>safiava, recortando os<br />

artigos e colando-os no álbum, <strong>de</strong> cabeça para baixo.<br />

Ensinou-me, então, algo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância, que jamais esqueci:<br />

– Você <strong>de</strong>ve temer apenas um crítico: você mesma. Se estiver achando<br />

tudo o que escreve, ótimo, cuidado. Descanse o material numa gaveta e <strong>de</strong>pois<br />

o releia, com outro espírito. Sem pressa. Lembre-se, não se fabricam livros<br />

como se faz macarrão. Qualida<strong>de</strong> é sempre mais importante do que quantida<strong>de</strong>.<br />

E se você algum dia quiser <strong>de</strong>struir o que escreveu, achando tudo horrível,<br />

atenção! Você talvez já esteja atingindo a perfeição.<br />

Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas recebeu três prêmios: “Machado <strong>de</strong> Assis”, do<br />

instituto Nacional do Livro, “Carmem Dolores Barbosa”, <strong>de</strong> São Paulo e “Paula<br />

Brito”, da Municipalida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

Muito merecidamente promovido a Embaixador, em 1958, recusou<br />

postos disputados, no Exterior, que lhe eram oferecidos pelo próprio Presi<strong>de</strong>nte<br />

Juscelino Kubitschek, seu amigo e colega <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos da Força Pública <strong>de</strong><br />

Minas. Preferia continuar tranqüilamente nas suas funções no Ministério e dar<br />

expansão à sua criativida<strong>de</strong>, escrevendo novas estórias.


30 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Foi então convidado para ser Vice-Presi<strong>de</strong>nte do Congresso <strong>de</strong> Escritores,<br />

no México. Participou da comissão <strong>de</strong> outorga do Prêmio Walmap. Para o<br />

Conselho Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Cultura, que integrava, elaborou extenso pronunciamento<br />

sobre novo acordo ortográfico e as diversida<strong>de</strong>s lingüísticas do português, nas<br />

duas margens do Atlântico. Participou com brilhantismo <strong>de</strong> algumas<br />

Conferências pela Paz.<br />

Meu pai sempre se <strong>de</strong>dicou ao trabalho com o mesmo entusiasmo com<br />

que se entregava à literatura.<br />

Em janeiro <strong>de</strong> 1962, assumindo pelo próprio pedido a chefia do Serviço<br />

<strong>de</strong> Demarcação <strong>de</strong> Fronteiras, do Itamarati, ali encontrou o ambiente i<strong>de</strong>al para<br />

o trabalho, ao qual se <strong>de</strong>dicou com fervor, tendo ajudado a resolver problemas<br />

<strong>de</strong> importância internacional, relacionados com nossas fronteiras.<br />

Papai agigantou-se na chefia daquela Divisão, na incessante lida com<br />

problemas surgidos com o Pico da Neblina e o Salto das Sete Quedas. Noites a<br />

fio, no Ministério do Exterior, ele expediu documentos, preparou instruções,<br />

cotejando mapas e documentos históricos. Vibrou em <strong>de</strong>fesa da terra. Seu fino<br />

trato <strong>de</strong> diplomata apaziguou os ânimos. Esclareceu on<strong>de</strong> havia dúvidas e repôs<br />

a exatidão no incerto. Com patriotismo, mas amor ao direito. E mantendo uma<br />

fé inabalável na solução pacífica das controvérsias.<br />

Foi um diplomata <strong>de</strong>dicado e talentoso. Sua carreira não interferiu,<br />

todavia, na sua <strong>de</strong>voção à literatura. E ele conseguiu conciliar, com sucesso, o<br />

título <strong>de</strong> Embaixador brilhante e <strong>de</strong> genial escritor, consi<strong>de</strong>rado um dos maiores<br />

expoentes do século. E recentemente eleito, no Exterior, um dos <strong>de</strong>z maiores<br />

escritores do mundo.<br />

Já era, então, consagrado Mestre da Literatura Brasileira, e seus livros<br />

aclamados por leitores e críticos brasileiros e <strong>de</strong> outros países.<br />

Foi então que <strong>de</strong>clarou, com humilda<strong>de</strong>:<br />

“– Mestre é aquele que <strong>de</strong> repente também apren<strong>de</strong>.”<br />

Dedicava-se, <strong>de</strong> modo especial ao próximo livro, Tatuméia, Terceiras<br />

Estórias, que conseguiu publicar um mês antes <strong>de</strong> morrer.<br />

Tutaméia chegou aos leitores com o mesmo gran<strong>de</strong> sucesso <strong>de</strong> seus<br />

outros livros. Obra hermética, possuindo quatro prefácios e um conjunto <strong>de</strong><br />

estórias que sobressaem pelo refinamento do estilo.<br />

Num dos prefácios <strong>de</strong> Tutaméia, papai revelou: “Só sei que há mistérios<br />

<strong>de</strong>mais, em torno dos livros e <strong>de</strong> quem os lê, e <strong>de</strong> quem os escreve; mas<br />

convindo, principalmente a uns e outros, a humilda<strong>de</strong>”.<br />

Num outro prefácio <strong>de</strong> Tatuméia, papai confessou que sua vida, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os<br />

primeiros anos, foi dirigida por fatos misteriosos. Premonições reveladas em


João Guimarães Rosa, meu pai _______________________________________________ Vilma Guimarães Rosa 31<br />

sonhos, telepatia, intuição, série <strong>de</strong> acontecimentos fortuitos interligados, toda<br />

sorte <strong>de</strong> avisos e pressentimentos.<br />

Declarou também que muitos <strong>de</strong> seus contos eram sonhados por ele,<br />

antes <strong>de</strong> escritos. Segundo as suas próprias palavras eles o perseguiam, com<br />

insistência, na ansieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> serem escritos. Definiu o mistério da inspiração<br />

como um divino estado <strong>de</strong> transe, assim como o dom da criativida<strong>de</strong>.<br />

Ele buscava sempre uma introvisão da linguagem, a radiografia das<br />

palavras. Brincava com os sentidos vários <strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>las, <strong>de</strong>ixando em<br />

Tutaméia muitos exemplos. Experimentava. Recolhia um plural <strong>de</strong> idéias numa<br />

frase só, e, mesmo, numa só palavra. O aparente e o pesquisável, misturados<br />

entre o pensamento e as letras.<br />

– Por que não houve Segundas Estórias? – quis eu saber, já que das<br />

Primeiras Estórias, uma coletânea <strong>de</strong> 21 contos curtos, verda<strong>de</strong>iros poemas em<br />

p<strong>rosa</strong>, ele saltara para Tutaméia, Terceiras Estórias.”<br />

Ele fez uma <strong>de</strong> suas costumeiras expressões <strong>de</strong> mistério e explicou:<br />

– É para provocar a curiosida<strong>de</strong> do leitor!”<br />

Meu pai tinha um gran<strong>de</strong> interesse nas realida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um mundo imaterial<br />

e no significado da criação.<br />

Sempre procurou a conexão entre o visível e o invisível. E sua filosofia<br />

pessoal está sempre presente em suas obras. Durante toda a sua vida, meditou<br />

profundamente sobre a eternida<strong>de</strong>.<br />

Numa bela carta escrita ao Dr. Joaquim Montezuma <strong>de</strong> Carvalho, famoso<br />

escritor português que morava na África, e que fez um profundo estudo <strong>de</strong> sua<br />

Obra, levando-a figurar em Les Écrivains Célèbres, publicado em Paris, há um<br />

trecho especial:<br />

“Quanto mais leio e vivo e medito, mais perplexo a vida, a literatura e a<br />

meditação me põem. Tudo é mistério. A vida é só mistério.”<br />

E mais adiante:<br />

“...À parte o que Cristo nos ensinou, só há meias verda<strong>de</strong>s...<br />

“Rezo, escrevo, amo, cumpro, suporto, vivo – mas só me interessando<br />

pela eternida<strong>de</strong>...<br />

“...Quando faço arte, é para que se transforme algo em mim, para que o<br />

espírito cresça.”<br />

Dr. Montezuma <strong>de</strong> Carvalho gentilmente enviou-me esta carta, há alguns<br />

anos. Gosto <strong>de</strong> relê-la e <strong>de</strong> meditar sobre a sua essência filosófica.<br />

Parafraseando o Padre Vieira, “O homem é sobretudo a sua Obra”.<br />

Em sua Obra, papai transmitiu a sua mensagem espiritual, a mensagem<br />

<strong>de</strong> sua vida.


32 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Ele criou uma linguagem livre das garras do convencional, <strong>de</strong>senvolta<br />

sintaxe alforriada, transferindo emoções, transportando-as sem <strong>de</strong>svio ou<br />

<strong>de</strong>scaminho. Pensava como Paul Valéry:<br />

“A sintaxe é uma faculda<strong>de</strong> da alma”. E lembrava a velha máxima Tibetana:<br />

“A palavra <strong>de</strong>ve vestir-se como uma <strong>de</strong>usa, e erguer-se como um pássaro”.<br />

Nos próprios neologismos que criou, sente-se a sedução da palavra inventada.<br />

Lembrando Mallarmé, costumava dizer que as palavras são <strong>de</strong> carne e<br />

osso, seres vivos. A carne macia das vogais e a ossatura das consoantes.<br />

Meu pai sempre foi ele mesmo, sendo em sentido e em som. Por espontaneida<strong>de</strong><br />

repolida, para inteira exatidão. Exerceu influências duradouras, ao<br />

romper caminhos novos, surgindo como <strong>de</strong>scobridor das possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma<br />

língua impressentidamente plástica.<br />

Naquele ano <strong>de</strong> 1967, na Europa, lembravam-lhe o nome para o Prêmio<br />

Nobel. João Guimarães Rosa transportara-se a outras terras, levando ao<br />

Exterior a vigo<strong>rosa</strong> imagem do Brasil.<br />

Quando começou a escrever, o enredo <strong>de</strong> suas estórias se passava<br />

em países que o fascinavam, mas que ele ainda não conhecia. Alguns <strong>de</strong>sses<br />

contos foram premiados e publicados em várias revistas conhecidas da época.<br />

Mais tar<strong>de</strong> preferiu o cenário brasileiro como fonte <strong>de</strong> inspiração <strong>de</strong> suas<br />

Obras.<br />

Ele tinha a realização do sonho por objetivo; a vonta<strong>de</strong> como instrumento,<br />

e o estímulo da esperança.<br />

Não se ateve à pele da vida.<br />

Aquela semana <strong>de</strong> novembro, em 1967, os jornais a chamavam <strong>de</strong><br />

“Semana dos Guimarães Rosa”. Eu estava transbordando <strong>de</strong> alegria pela<br />

realização <strong>de</strong> um antigo sonho: meu primeiro livro, Acontecências, fora publicado,<br />

e seria lançado na segunda-feira 13, com noite <strong>de</strong> autógrafos organizada<br />

pelo Peter, meu marido. Papai, também feliz, contando a todos da família e<br />

entre os amigos o quanto estava orgulhoso. Mas avisou-me que ele não <strong>de</strong>veria<br />

comparecer, para não roubar cena da estrela da festa”. Insisti, mas ele parecia<br />

<strong>de</strong>cidido. Eu, que sempre lhe havia mostrado a minha literatura, não o <strong>de</strong>ixara<br />

ler os originais do meu livro, movida pelo orgulho <strong>de</strong> principiante, teme<strong>rosa</strong> <strong>de</strong><br />

que uma possível influência sua pu<strong>de</strong>sse interferir no meu estilo ou na minha<br />

temática. Um ano antes, eu enviara os originais ao José Olympio, que ainda não<br />

me conhecia, ocultando a minha i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> sob pseudônimo. Não queria que<br />

meu livro fosse publicado sob proteção paterna.<br />

Papai escreveu-me uma carta linda, que está hoje emoldurada sobre<br />

minha mesa <strong>de</strong> trabalho. Ele pediu que seu amigo, o escritor Geraldo França <strong>de</strong>


João Guimarães Rosa, meu pai _______________________________________________ Vilma Guimarães Rosa 33<br />

Lima, que me conhecia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequenina, lesse a carta em voz alta, durante a<br />

noite <strong>de</strong> autógrafos. Os jornalistas presentes a copiaram e ela foi publicada em<br />

diferentes jornais.<br />

Afinal, ele compareceu. Com a cumplicida<strong>de</strong> do meu marido, papai<br />

sentou-se, oculto pela vegetação que <strong>de</strong>corava a pérgola do Iate Clube, assistindo,<br />

<strong>de</strong>leitado, ao <strong>de</strong>senrolar da minha noite <strong>de</strong> autógrafos.<br />

Mais tar<strong>de</strong> saiu do escon<strong>de</strong>rijo, e surgiu todo risonho diante <strong>de</strong> mim.<br />

Abraçou-me com carinho chamando-me “lépida, límpida e luminosa colega <strong>de</strong><br />

letras”, e aquele foi, realmente, meu momento <strong>de</strong> glória. Ele costumava nos<br />

dizer, à Agnes e a mim, que <strong>de</strong>veríamos sempre cultivar a arte <strong>de</strong> sermos<br />

“lépida, límpida e luminosa”, a fim <strong>de</strong> melhor, e com mais sucesso, enfrentarmos<br />

a vida. Então eu senti que, <strong>de</strong> alguma forma, pelo menos naquela noite,<br />

eu o conseguira, na opinião <strong>de</strong> meu pai.<br />

Combinamos, então, para a semana seguinte, uma sessão <strong>de</strong> leitura do<br />

meu livro, a quatro olhos, sujeita a alguma crítica construtiva, o que infelizmente<br />

não foi possível acontecer. Muito antes, ao lhe participar o título<br />

Acontecências, ele tentara, em vão, convencer-me a trocá-lo, pois “o achava ser<br />

Guimarães Rosa <strong>de</strong>mais”, po<strong>de</strong>riam pensar que tivesse sido ele o criador da<br />

palavra “Acontecências”. Mas não me convenceu. Disse-lhe o quanto frustrante<br />

seria, para mim, se eu <strong>de</strong>sistisse <strong>de</strong> minhas próprias criações, receando<br />

críticas. Ele confessou admirar a minha coragem. Também revelou que não<br />

resistira e já lera o meu livro, pois fora avisado pelo José Olympio assim que os<br />

primeiros volumes haviam chegado à editora. O importante, para mim, é que<br />

papai estava entusiasmado, aprovando o meu estilo direto e gostando das<br />

minhas estórias!<br />

Ele vinha adiando a sua Posse na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, já por<br />

quatro anos. Recebi pedidos para convencê-lo, mas quando eu tocava no<br />

assunto, ele criava <strong>de</strong>sculpas quase convincentes.<br />

Afinal, papai escolheu o dia 16 daquele mês, data <strong>de</strong> nascimento do<br />

gran<strong>de</strong> amigo e colega <strong>de</strong> Carreira, João Neves da Fontoura, para cuja vaga, na<br />

Ca<strong>de</strong>ira número dois da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, ele fora eleito.<br />

De repente, logo após a animação e a alegria da minha noite <strong>de</strong> autógrafos,<br />

papai não conseguia disfarçar uma expressão triste e preocupada. Pensei<br />

que fosse o excesso <strong>de</strong> emoção, ou até mesmo a própria timi<strong>de</strong>z, temendo ser o<br />

centro das atenções, e aparecer todo engalanado, com o fardão acadêmico. Ao<br />

perguntar-lhe o que andava sentindo, ele respon<strong>de</strong>u-me:<br />

– Estou com sauda<strong>de</strong>s da eternida<strong>de</strong>...<br />

Mas parecia muito seguro <strong>de</strong> si, durante a solenida<strong>de</strong> da Posse.


34 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

No seu belíssimo discurso, ressaltou muito especialmente a evocação da<br />

vida e dos seus valores fundamentais:<br />

“– A gente morre, para provar que viveu...”<br />

E lá está também a morte, em i<strong>de</strong>al conceituação, enfatizada pela sua<br />

<strong>de</strong>finição lúdica:<br />

“– As pessoas não morrem, ficam encantadas.”<br />

A pedido <strong>de</strong> um jornalista, eu havia retribuído sua linda carta com um<br />

poeminha que foi publicado no Diário <strong>de</strong> Notícias daquele domingo 19, Dia da<br />

Ban<strong>de</strong>ira, que ele tanto reverenciava. Papai telefonou-me, agra<strong>de</strong>cendo-me,<br />

visivelmente emocionado. Conversamos longamente, mas eu sentia um tom<br />

nostálgico em sua voz. Creio que ele já pressentia o próprio encantamento...<br />

Naquela noite, repentinamente, Deus chamou-o, acolhendo-o no<br />

encantamento eterno.<br />

Chegara ao fim a semana Guimarães Rosa.<br />

Sem que o soubéssemos, aquela troca <strong>de</strong> mensagens – a sua carta e o<br />

meu poeminha – haviam sido a nossa <strong>de</strong>spedida.<br />

A reprojeção da sauda<strong>de</strong> é a permanência da beleza vista, da beleza<br />

sentida.<br />

Lucio Cardoso, no seu Diário Completo, escreveu:<br />

“Só permanece o pensamento criador que nasce <strong>de</strong> uma experiência<br />

funda, pessoal. O resto, esparso no ar, o vento das épocas carrega para longe...”<br />

Meu pai permanece por seu pensamento e trabalho. Persiste na sua Obra<br />

maravilhosa e nos i<strong>de</strong>ais que o animaram. Experiências fundas, pessoais, <strong>de</strong> um<br />

amor intenso à sua família, à sua Terra, ao acima dos homens: o Deus que hoje<br />

o guarda como o guardou em vida.<br />

Parafraseando Ben Johnson, fico feliz em dizer:<br />

Pelo amor ao meu pai,<br />

Honrarei a sua memória.<br />

Ele não foi <strong>de</strong> uma época,<br />

Mas para todo o sempre.


OS JAGUNÇOS E O RIO DO CHICO NO<br />

GRANDE SERTÃO: VEREDAS*<br />

Letícia Malard**<br />

Não é novida<strong>de</strong> para os leitores e estudiosos do Gran<strong>de</strong> Sertão:Veredas<br />

que nesse romance se <strong>de</strong>senha toda uma geografia aquática: além <strong>de</strong> veredas<br />

em sentido estrito, mapeiam-se rios, riachos, ribeirões, córregos, lagoas e<br />

cachoeiras. Muitos existem na realida<strong>de</strong> e com o mesmo nome. Outros tantos<br />

também existem, mas com nome ligeiramente modificado. E vários outros<br />

foram criados por Guimarães Rosa, apesar <strong>de</strong> alguns leitores da obra que<br />

conhecem o real da região afirmarem que o autor não inventou nenhum<br />

topônimo. Esses aci<strong>de</strong>ntes geográficos relativos à água não servem apenas para<br />

compor a paisagem sertaneja. Servem principalmente para articular ou<br />

relacionar entre si os episódios da caótica narrativa, numa perfeita simbiose do<br />

homem com o sertão, da terra com a água.<br />

O título do romance já assinala a importância <strong>de</strong>sse universo aquático. O<br />

substantivo comum “vereda (s)” aparece 77 vezes no livro, quase todas fazendo<br />

par com outro substantivo comum – “buriti”, um tipo <strong>de</strong> palmeira, árvore<br />

querida por Guimarães Rosa. Para o buriti se <strong>de</strong>senvolver, é necessária uma<br />

gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> água. Isso significa que o escritor faz questão <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar<br />

uma característica inconfundível da paisagem do nosso sertão – que não é o<br />

sertão seco do Nor<strong>de</strong>ste – mas um sertão molhado, irrigado pela própria<br />

natureza. Sobrepondo os buritis às veredas, o escritor agrega ao sertão<br />

“su<strong>de</strong>stino” a plasticida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma aquarela carregada no ver<strong>de</strong> com pinceladas<br />

em azul, mesclando vegetação e água.<br />

* Palestra proferida na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em 19 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008, <strong>de</strong>ntro da Semana Cultural<br />

Guimarães Rosa, comemorativa do seu centenário <strong>de</strong> nascimento.<br />

**Professora Emérita <strong>de</strong> Literatura Brasileira da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais. Seus últimos<br />

livros são Um Amor Literário (romance) e Literatura e Dissidência Política (ensaios).


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Na correspondência trocada com Edoardo Bizzarri, seu tradutor italiano,<br />

Guimarães Rosa esclarece:<br />

“[as veredas] São vales <strong>de</strong> chão argiloso ou turfo-argiloso, on<strong>de</strong> aflora a<br />

água absorvida. Nas veredas há sempre o buriti. De longe, a gente avista os<br />

buritis, e já sabe: lá se encontra água. A vereda é um oásis. [...] <strong>de</strong> belo ver<strong>de</strong>claro,<br />

aprazível, macio. O capim é verdinho-claro, bom. [...]<br />

[Há] Veredas com uma lagoa; com um brejo ou pântano; com pântanos<br />

<strong>de</strong> on<strong>de</strong> se formam e vão escoando e crescendo as nascentes dos rios; [...] com<br />

córrego, ribeirão ou riacho. (Por isso, também, em certas partes da região,<br />

passaram a chamar também <strong>de</strong> veredas os ribeirões, riachos e córregos – para<br />

aumentar nossa confusão.[...]<br />

Nas veredas há às vezes gran<strong>de</strong>s matas, comuns. Mas, o centro, o íntimo<br />

vivinho e colorido da vereda, é sempre ornado <strong>de</strong> buritis [...] à beira da água; as<br />

veredas são sempre belas!” (1)<br />

Assim, apesar das diversas significações que “vereda” po<strong>de</strong> ter, inclusive<br />

a <strong>de</strong> “caminho”, acreditamos que no romance signifique sempre “cabeceira e<br />

curso <strong>de</strong> água orlados <strong>de</strong> buritis, especialmente na zona são-franciscana”,<br />

conforme a acepção 9. do Dicionário Aurélio Século XXI.<br />

Dessa forma, o buriti po<strong>de</strong> representar o “jagunço” vegetal das veredas,<br />

assim como o homem é o jagunço “animal” do sertão. O Paredão [<strong>de</strong> Minas],<br />

arraial em que Diadorim morre e jaz enterrada, um distrito <strong>de</strong> Pirapora, na<br />

geografia real a partir <strong>de</strong> 1963 passou a ser distrito <strong>de</strong> Buritizeiro. Buritizeiro é<br />

uma terra <strong>de</strong> buritis, vila figurante em textos do escritor, plantada à margem<br />

esquerda do São Francisco. Buritis é também nome <strong>de</strong> outra cida<strong>de</strong>, no mapa<br />

real. Sabe-se que a palavra “buriti” aparece em vários textos <strong>de</strong> Rosa. E não foi<br />

gratuito o fato <strong>de</strong>, na véspera <strong>de</strong> sua morte, ele ter pedido que um bonito buriti<br />

ilustrasse a publicação do seu discurso <strong>de</strong> posse na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong>, morte ocorrida três dias <strong>de</strong>pois da posse. Com efeito: numa página<br />

esquerda, na primeira edição, lá está a palmeira, <strong>de</strong>stacando-se <strong>de</strong> outras, no<br />

belo <strong>de</strong>senho em preto e branco <strong>de</strong> Percy Lau. (2)<br />

Ao falar das águas do sertão, o autor e o narrador se unem em uma<br />

mesma entida<strong>de</strong>, quanto aos sentimentos experimentados ante o chamado “rio<br />

da unida<strong>de</strong> nacional”. Da parte da realida<strong>de</strong> do autor, há um bilhete à filha<br />

Vilma, a propósito <strong>de</strong> uma conferência que ela fazia. Aí ele <strong>de</strong>senhou o próprio<br />

rosto, chorando <strong>de</strong> emoção, saindo dos olhos uma corrente <strong>de</strong> lágrimas on<strong>de</strong><br />

escreveu “Rio São Francisco”.(3) Da parte da ficção, Riobaldo confirma: “Rio<br />

é só o São Francisco. O resto pequeno é vereda”.(4) Riobaldo também evoca “o<br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>le, [do São Francisco] largas águas, seu <strong>de</strong>stino”.(5) Esse rio se


Os Jagunços e o Rio do Chico no Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas _______________________________ Letícia Malard 37<br />

constitui em um ingrediente cenográfico e afetivo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> impacto no<br />

romance. É na sua margem, e em seguida na sua travessia, que Riobaldo e<br />

Diadorim se conhecem, transformando a travessia literal do rio em outras<br />

travessias <strong>de</strong> caráter metafórico em todo o romance.<br />

Lembre-se que em 1952, quando estava adiantado o projeto <strong>de</strong> sua<br />

produção literária, Guimarães Rosa também realizou sua travessia literal por<br />

uma parte do sertão: ele percorreu cerca <strong>de</strong> 120 quilômetros no norte <strong>de</strong> Minas,<br />

acompanhando uma boiada que partiu da Fazenda da Sirga ou Selga – hoje<br />

localizada no município <strong>de</strong> Três Marias – à beira do São Francisco, chegando<br />

até Araçaí (não confundir com outra cida<strong>de</strong> mineira, Araçuaí) – próximo <strong>de</strong><br />

Cordisburgo. Essa fazenda é mencionada no romance. Durante a viagem, na<br />

companhia <strong>de</strong> vaqueiros, o autor fez muitas anotações em ca<strong>de</strong>rnetas, com o<br />

objetivo <strong>de</strong> aproveitá-las em seus textos. Um <strong>de</strong>sses, do livro Corpo <strong>de</strong> Baile, é<br />

o conto “Uma estória <strong>de</strong> amor”, também conhecido como “A festa <strong>de</strong><br />

Manuelzão”, cujo protagonista é o vaqueiro Manuel Nárdi, que o escritor<br />

conhecera naquela viagem. Nela também conheceu o Zito, outro personagem.<br />

O médico Guimarães Rosa, recém-formado e muito jovem, clinicou em<br />

Itaguara, município <strong>de</strong> Itaúna, e em Barbacena. Nessas localida<strong>de</strong>s teria consultado<br />

arquivos sobre jaguncismo. São hipóteses, pois sua biografia oficial ainda<br />

está para ser feita.(6) No entanto, acreditamos que aquela viagem pela região<br />

são-franciscana do norte <strong>de</strong> Minas tenha sido indispensável para um mais<br />

efetivo contato com lendas sobre jagunços e com o São Francisco, que partiu a<br />

vida <strong>de</strong> Riobaldo em duas partes, como <strong>de</strong>clarou esse personagem. (7) O<br />

contato proporcionado pela viagem po<strong>de</strong> ter sido fundamental na confecção do<br />

romance, que foi publicado menos <strong>de</strong> quatro anos <strong>de</strong>pois.<br />

No Gran<strong>de</strong> sertão:veredas, o São Francisco, talvez por ser o maior rio<br />

dos Gerais e ser também muito querido tanto pelo autor quanto pelo narrador,<br />

vê, ouve e sente os inesquecíveis episódios da narrativa. Aparece cerca <strong>de</strong><br />

cinqüenta vezes, quer pelo nome oficial, quer pelos íntimos e carinhosos “Rio<br />

do Chico” ou simplesmente “o do Chico”. Estranho que não apareça também<br />

com outros nomes utilizados pelos ribeirinhos no mundo real – “São Chico” e<br />

“Velho Chico”. Ele serpenteia por todo o romance: da segunda página, quando<br />

surge pela primeira vez e é <strong>de</strong>nominado “Rio do Chico”, até à última página,<br />

<strong>de</strong>pois da morte <strong>de</strong> Diadorim, quando Riobaldo se casa com Otacília, indo<br />

morar e envelhecer em um incerto lugar à beira do rio querido.<br />

Assim o São Francisco – suas águas ora barrentas, ora claras, arrastandose<br />

em curvas pelo gran<strong>de</strong> sertão – acaba por impregnar a matéria narrada, ou<br />

melhor dizendo, a “matéria vertente”, usando a expressão rosiana, para


38 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

gran<strong>de</strong>za e miséria dos atores do romance. Como se a história <strong>de</strong> Riobaldo<br />

vertesse tal qual aquele rio, como se ela fosse também um rio, vertente e<br />

afluente do São Francisco, tal a importância <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>ntro do romance. É bem<br />

verda<strong>de</strong> que o Urucuia é o “rio <strong>de</strong> amor” <strong>de</strong> Riobaldo, <strong>de</strong>vido a alguns<br />

episódios <strong>de</strong> sua vida que não vêm ao caso. Mas o São Francisco acaba<br />

engolindo o rio menor – que é seu afluente – e assume a regência da narrativa.<br />

Um dos primeiros autores <strong>de</strong> livro sobre o escritor foi Alan Viggiano.<br />

Este chama a atenção para o fato <strong>de</strong> que, no lado direito do rio, acontecem<br />

todos os conflitos entre jagunços e militares. Do lado esquerdo, os jagunços<br />

vivem fora da lei, mas não correm maiores perigos <strong>de</strong> perseguição da polícia.<br />

(8) Se, por um lado, não fomos conferir a informação, por outro lado não temos<br />

elementos para <strong>de</strong>sacreditar <strong>de</strong>la, <strong>de</strong>vido ao trabalho <strong>de</strong> pesquisa <strong>de</strong> campo<br />

realizado por Viggiano. Entretanto, ele não analisou o fato, dando-nos a oportunida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> fazê-lo, ao rastrear a presença do São Francisco no romance.(9)<br />

Po<strong>de</strong>-se indagar se haveria aí, mesmo que <strong>de</strong> forma diluída, inconsciente ou<br />

subconsciente, um aceno para a nomenclatura política “esquerda e direita”, bem<br />

como suas conceituações. Se tudo no romance é e não é, se o objeto do maior<br />

amor <strong>de</strong> Riobaldo é o homem Reinaldo que também é a mulher Deodorina,<br />

diríamos que Sim e que Não. Por quê?<br />

Vejamos <strong>de</strong> início argumentos para o Sim: o tempo da narrativa é<br />

bastante impreciso. No nível explícito do ficcional, as datas são praticamente<br />

inexistentes. Sabe-se que Maria Deodorina foi batizada em “1800 e tantos”, o<br />

que nada esclarece. No nível da apropriação <strong>de</strong> fatos reais, Riobaldo conta<br />

estripulias da Coluna Prestes em Goiás. A Coluna foi um movimento políticomilitar<br />

chefiado por Luís Carlos Prestes, com o objetivo <strong>de</strong> reivindicar<br />

progressos sociais, que percorreu boa parte do país e chegou até a Bolívia.<br />

Passou por Goiás em outubro <strong>de</strong> 1926.<br />

Há, também, referência a uma “estrada rodageira” sendo construída entre<br />

Pirapora e Paracatu, estrada que não conseguimos localizar, pelo menos em<br />

ligação direta entre as duas cida<strong>de</strong>s. Elas situam-se em linha horizontal<br />

praticamente reta, traçada à esquerda do mapa do estado. Entretanto, hoje, para<br />

ir-se <strong>de</strong> Pirapora a Paracatu, pelo asfalto, precisa-se <strong>de</strong>scer pela BR 365 e<br />

<strong>de</strong>pois subir pela BR 040, que vai para a capital fe<strong>de</strong>ral. Assim, não se trata,<br />

propriamente, <strong>de</strong> uma estrada ligando Pirapora a Paracatu.<br />

Outra referência <strong>de</strong> Riobaldo é Brasília, mas essa não é a capital, como<br />

muita gente pensa, e sim Brasília <strong>de</strong> Minas, que já se chamava Vila <strong>de</strong> Brasília<br />

em 1901. Uma cida<strong>de</strong> que aparece com nome antigo é Brejo das Almas, que<br />

chegou a dar título ao segundo livro <strong>de</strong> poemas <strong>de</strong> Drummond (1934). Esse


Os Jagunços e o Rio do Chico no Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas _______________________________ Letícia Malard 39<br />

nome já <strong>de</strong>signava, em 1826, a atual região da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Francisco Sá, que<br />

sofreu as seguintes transformações: poucos anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 26 se torna distrito<br />

<strong>de</strong> Minas Novas; <strong>de</strong>pois, freguesia, sob jurisdição <strong>de</strong> Grão Mogol, com o nome<br />

<strong>de</strong> São Gonçalo do Brejo das Almas. Em 1923, passa a município, chamado<br />

apenas <strong>de</strong> Brejo das Almas. A partir <strong>de</strong> 1938, é conhecida por Francisco Sá, em<br />

homenagem ao ilustre mineiro, político da República Velha. (10)<br />

Todavia, essa evolução pouco ajuda a <strong>de</strong>svendar a duração do narrado.<br />

Se, como vimos, Brejo das Almas se torna Francisco Sá em 1938, isso não<br />

significa que a narrativa po<strong>de</strong>ria passar-se até àquele ano. O cotidiano nos<br />

ensina que a mudança <strong>de</strong> um topônimo não garante o seu uso pela população.<br />

Sempre nos <strong>de</strong>frontamos com logradouros que continuam sendo chamados por<br />

suas <strong>de</strong>signações antigas, muitas vezes ignorando-se as novas. Se isso ocorre<br />

no real, imagine-se no ficcional.<br />

Esses dados parecem comprovar que está correto dizer que a ação<br />

completa do romance po<strong>de</strong> esten<strong>de</strong>r-se <strong>de</strong> qualquer ponto do século XIX ou do<br />

XX, até praticamente ao ano anterior à publicação, em 1958. Existem pesquisadores<br />

que já queimaram as pestanas na tentativa <strong>de</strong> se estabelecerem datas,<br />

mas certeza absoluta ninguém tem, não só <strong>de</strong> quando se passa o romance mas<br />

também do período em que foi escrito. (11) Devido a essas imprecisões, os<br />

contestadores da or<strong>de</strong>m política estabelecida – os jagunços, no caso – foram<br />

tidos por alguns estudiosos como esquerdistas, ao passo que as forças<br />

repressoras seriam direitistas. Por isso afirmamos que Sim, quanto aos jagunços<br />

serem “<strong>de</strong> esquerda”, e os soldados serem “<strong>de</strong> direita”, uma vez que essa<br />

nomenclatura se originou na Revolução Francesa, mas não conseguimos<br />

verificar quando começou a ser usada no Brasil. (12)<br />

A favor do Não, quer dizer, que estar na margem esquerda ou na direita<br />

do rio não tem simbologia política, pesa o fato <strong>de</strong> que o binarismo “esquerda”<br />

versus “direita” po<strong>de</strong> ter um significado mais amplo, menos redutor se<br />

comparado ao sentido político dos termos. E ainda: os jagunços não são pobres<br />

revolucionários, em sentido estrito; vários <strong>de</strong>les são homens ricos, políticos<br />

“<strong>de</strong>spolitizados”, proprietários <strong>de</strong> terras e entraram para o bando com o<br />

objetivo <strong>de</strong> enriquecer-se mais ainda. Portanto, não nos parece a<strong>de</strong>quado<br />

aplicar-lhes um rótulo que os caracterize como conservadores ou progressistas,<br />

politicamente falando. Vamos examinar mais aprofundadamente o binarismo,<br />

porém antes abor<strong>de</strong>mos questões <strong>de</strong>finitórias <strong>de</strong> “jagunço”.<br />

Em Guimarães Rosa, ser jagunço é rebelar-se contra o sistema políticoeconômico,<br />

qualquer que seja ele. É posicionar-se contra o governo, também<br />

qualquer que seja ele. É viver perigosamente: “viver é muito perigoso” – um


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slogan repetido com variações no romance. A vida perigosa é uma busca dos<br />

valores do sertão, quer para o bem, quer para o mal. Interessante notar que, na<br />

ação romanesca, não comparecem nem os políticos que manobram os jagunços,<br />

nem os soldados. O narrador não lhes dá voz, e a percepção que se tem <strong>de</strong>les é<br />

através do que o narrador, um ex-jagunço, e <strong>de</strong>mais jagunços dizem – percepção<br />

negativa, evi<strong>de</strong>ntemente. O autor se concentra no mundo da jagunçagem,<br />

<strong>de</strong>scartando os militares, pois o sertão que lhe interessa não é o <strong>de</strong><br />

Eucli<strong>de</strong>s da Cunha nem o <strong>de</strong> Afonso Arinos, por exemplo. É um sertão em<br />

processo <strong>de</strong> reengenharia <strong>de</strong> leis e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, sertão narrado numa primeira<br />

pessoa que é o protagonista-observador-analista dos fatos, sem o misticismo do<br />

Antônio Conselheiro euclidiano e sem a ingenuida<strong>de</strong> dos tropeiros <strong>de</strong> Afonso<br />

Arinos. É um sertão feito <strong>de</strong> linguagens, como nunca se viu na arte literária<br />

brasileira.<br />

Tal como governantes e soldados, também não estão mapeadas as<br />

cida<strong>de</strong>s on<strong>de</strong> as forças da repressão se concentram, exceto o Paredão, para o<br />

confronto e a luta final. Só aparecem os jagunços, em bandos inimigos entre si,<br />

obe<strong>de</strong>cendo a seus chefes e suas leis, comportando-se como traidores e traídos.<br />

No caso <strong>de</strong> Riobaldo, assomam preocupações amo<strong>rosa</strong>s e religiosas mais<br />

aprofundadas, pois, afinal, é ele “o dono” das histórias. Então, se é verda<strong>de</strong> que<br />

os jagunços são perseguidos no lado direito do Rio São Francisco e<br />

praticamente não são incomodados no lado esquerdo, as causas se mostram<br />

mais amplas que a simples oposição binária política “esquerda versus direita.”<br />

Vejamos: a vida pregressa <strong>de</strong> jagunços famosos do Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />

Veredas nos informa das razões que os levaram à jagunçagem. Ninguém nasce<br />

jagunço, exceto o Hermógenes, símbolo do diabo, “homem humano”.<br />

Entretanto, como Riobaldo especula sobre a existência ou não do <strong>de</strong>mônio em<br />

todo o <strong>de</strong>senrolar da narrativa, já nas primeiras páginas também duvida do<br />

caráter <strong>de</strong>moníaco da categoria “jagunço”. Diz ele: “[...] quem <strong>de</strong> si <strong>de</strong> ser<br />

jagunço se entrete, já é por alguma competência entrante do <strong>de</strong>mônio. Será<br />

não? Será?” (13) Assim <strong>de</strong>fine a profissão: “Jagunço – criatura paga para<br />

crimes, impondo o sofrer no quieto arruado dos outros, matando e roupilhando.”(14)<br />

Aqui a dúvida se <strong>de</strong>sfaz, e a avaliação é extremamente negativa.<br />

A certa altura chega à conceituação máxima, numa síntese invejável: “Jagunço<br />

é o sertão.” (15) Por tabela, está dito que o sertão rosiano é terra sem lei, mas<br />

essa <strong>de</strong>finição só faz sentido se se enten<strong>de</strong> o que querem os jagunços.<br />

O objetivo primordial <strong>de</strong> todos é consertar o mundo em seus <strong>de</strong>sconsertos<br />

e <strong>de</strong>sacertos, cada qual a sua maneira, sem normatizações pré-<strong>de</strong>finidas. A<br />

vingança com as próprias mãos, que movem Diadorim e Riobaldo além <strong>de</strong>


Os Jagunços e o Rio do Chico no Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas _______________________________ Letícia Malard 41<br />

outros jagunços, é <strong>de</strong> certa forma um mecanismo para submeter a socieda<strong>de</strong> ao<br />

império <strong>de</strong> alguma lei, quase sempre a punição com a morte e por crimes<br />

julgados subjetivamente. Não nos esqueçamos <strong>de</strong> que a pena <strong>de</strong> morte no Brasil<br />

foi expressamente abolida para crimes comuns somente com a Proclamação da<br />

República, mas, a partir <strong>de</strong> 1876, o imperador comutava todas as sentenças<br />

capitais. No romance, os julgamentos ou <strong>de</strong>cisões dos chefes, que po<strong>de</strong>m<br />

resultar na pena máxima, reforçam a autonomia <strong>de</strong> que eles se investem para<br />

ignorar a lei oficial ou para mimetizar o que fazia o po<strong>de</strong>r governamental,<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> quando se passa a história. Mutatis mutandis, seria uma<br />

situação equivalente à que acontece hoje na chamada Guerra do Tráfico, suas<br />

gangues rivais, seus julgamentos e execuções. Há gran<strong>de</strong>s diferenças, é claro,<br />

que ainda estão por merecer um estudo aprofundado.<br />

Relembremos, então, as razões pelas quais alguns chefes se tornaram<br />

indivíduos acima da Lei. Joca Ramiro, político rico, criatura cuja origem se<br />

<strong>de</strong>sconhece, e pai <strong>de</strong> Diadorim, incita a filha, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância, a amar e a<br />

praticar a violência. Veste-a <strong>de</strong> homem, como a prepará-la para vingar sua<br />

morte futura, levando-a com ele para o bando. O melhor exemplo da violência<br />

passada, cultivada por Ramiro, é quando o menino-menina esfaqueia os<br />

genitais <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sconhecido, à beira do São Francisco, porque esse insinuara<br />

uma relação homossexual entre Diadorim e Riobaldo, quando crianças,<br />

querendo participar <strong>de</strong>la. Já naquele momento, Diadorim transmite a Riobaldo<br />

o conselho do pai: “carece <strong>de</strong> ter coragem”. Coragem <strong>de</strong> agredir, morrer ou<br />

matar, coragem <strong>de</strong> jagunço, sua travessia.<br />

Sô Can<strong>de</strong>lário vive um trauma <strong>de</strong>sesperador: olha-se constantemente no<br />

espelho, examinando o corpo à procura <strong>de</strong> sinais que fariam <strong>de</strong>le um portador<br />

do mal <strong>de</strong> Hansen, uma vez que viu seus pais e irmãos morrerem <strong>de</strong> “lepra”.<br />

Assim, a doença mais temida do sertão, à época em que era incurável, violência<br />

ao próprio corpo que se <strong>de</strong>formava com a perda paulatina dos membros, fazia o<br />

jagunço rebelar-se também contra essa forma <strong>de</strong> injustiça. De que modo?<br />

Respon<strong>de</strong>ndo à possível violência repugnante, infringida ao corpo pelo <strong>de</strong>stino,<br />

com a violência na perseguição e morte do Outro.<br />

Me<strong>de</strong>iro Vaz, “o rei dos Gerais”, simboliza a violência como instrumento<br />

<strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção: reza sempre o terço e faz o sinal-da-cruz antes <strong>de</strong> mandar matar<br />

alguém. No passado, foi um incendiário: <strong>de</strong>senten<strong>de</strong>u-se com a família, pôs<br />

fogo em sua boa proprieda<strong>de</strong> e a<strong>de</strong>riu ao jaguncismo. Conta que nem precisava<br />

das cinzas: ficava escutando o barulho das coisas caindo e estralando, sem<br />

ninguém para acudir, num comportamento sado-masoquista. Ídolo <strong>de</strong> Riobaldo,<br />

<strong>de</strong>ci<strong>de</strong> passar-lhe o comando. Ambos se espelham nos lances <strong>de</strong> violência. Sua


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morte, cercada pelo bando inconsolável, é uma das mais belas páginas do<br />

romance.<br />

Zé Bebelo, homem do po<strong>de</strong>r oficial, que pren<strong>de</strong> jagunços com vista a<br />

realizar um sonho, ou seja, tornar-se <strong>de</strong>putado, acaba virando jagunço e <strong>de</strong>pois<br />

volta a ser fazen<strong>de</strong>iro. Bebelo fora preso e julgado em Minas, por um bando <strong>de</strong><br />

jagunços, consegue livrar-se da morte e ser exilado para Goiás ou Bahia, mas<br />

retorna transformado.<br />

O próprio Riobaldo, <strong>de</strong>pois alçado a chefe e “batizado” <strong>de</strong> Urutu Branco,<br />

a<strong>de</strong>re à marginalida<strong>de</strong> da Lei por motivos fúteis aliados ao amor: era professor<br />

<strong>de</strong> Zé Bebelo, e foge da fazenda <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ficar penalizado pelos jagunços<br />

que Bebelo pren<strong>de</strong>ra. Na fuga, encontra Diadorim e entra para o cangaço<br />

por seu amor, um amor marginal pelos padrões da época. Além do mais, antes<br />

<strong>de</strong> tudo isso Riobaldo vivia sem conflitos junto do padrinho Selorico Men<strong>de</strong>s,<br />

mas foge <strong>de</strong> casa ao saber que Men<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>ria ser o seu pai, <strong>de</strong> fato e <strong>de</strong><br />

direito, como a negar que existisse alguém que pu<strong>de</strong>sse exercer po<strong>de</strong>res<br />

maiores sobre ele: um padrinho, tudo bem; mas um pai... a autorida<strong>de</strong> imposta<br />

teria outro nível <strong>de</strong> força e po<strong>de</strong>r.<br />

Segundo afirmamos em ensaio antes referenciado, todas essas causas se<br />

ligam a <strong>de</strong>sacertos nas relações familiares, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>staca a figura do Pai ou<br />

<strong>de</strong> sua representação. Fazendo uma superficial incursão pela Psicanálise,<br />

acreditamos que esses personagens, ao a<strong>de</strong>rirem ao jaguncismo, transferem o<br />

conflito não resolvido com o pai biológico ou com seus substitutos na família –<br />

o padrinho, irmãos, até o filho – para o pai nas relações sociais, ou seja, um<br />

ídolo, a Lei, a Or<strong>de</strong>m, o Governo.<br />

Por esse motivo, interpretamos, os jagunços são perseguidos preferencialmente<br />

no lado direito do Rio São Francisco: ali se instalam os representantes<br />

do Po<strong>de</strong>r oficial, contra o qual a jagunçagem costuma lutar. Em compensação,<br />

na margem esquerda seus componentes se sentem livres da pressão, da<br />

perseguição e da contestação paterna e <strong>de</strong> seus representantes, na sua fantasia<br />

<strong>de</strong> contrapor-se à Lei e à Or<strong>de</strong>m estabelecidas. Assim, Riobaldo, no final do<br />

romance, se coloca como homem “da margem direita”, ao <strong>de</strong>clarar que está<br />

caminhando para a velhice “com or<strong>de</strong>m e trabalho”, tranqüilamente casado<br />

com Otacília, a quem ama, e na certeza <strong>de</strong> que o diabo não existe, mas o<br />

homem-humano Hermógenes (que matara Diadorim). À esquerda do São<br />

Francisco, se instalam Diadorim e Hermógenes:<br />

“[Diadorim] símbolo da <strong>de</strong>s-lei amo<strong>rosa</strong>, objeto <strong>de</strong> amor proibido, e o<br />

Hermógenes, efígie da <strong>de</strong>s-lei religiosa, o <strong>de</strong>mônio encarnado, ficaram mortos


Os Jagunços e o Rio do Chico no Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas _______________________________ Letícia Malard 43<br />

e enterrados. Separando-os <strong>de</strong> Riobaldo, as imensas pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> terra vermelha<br />

que dão nome ao Paredão, e o Rio São Francisco – um pau grosso, em pé,<br />

enorme – sem dúvida um símbolo fálico, obscuro objeto do <strong>de</strong>sejo interdito no<br />

passado <strong>de</strong> Riobaldo.” (16)<br />

Passemos agora a analisar as articulações que se estabelecem entre o<br />

narrador especificamente e o São Francisco. Como dissemos, foi à beira <strong>de</strong>le<br />

que Riobaldo e Diadorim se conheceram ainda crianças, que o atravessaram<br />

“numa canoa afunda<strong>de</strong>ira”. Tal fato aconteceu on<strong>de</strong> o <strong>de</strong>-Janeiro <strong>de</strong>ságua no<br />

São Francisco, no baixio da Sirga. Assim a travessia passa a adquirir importância<br />

ímpar na narrativa, a ponto <strong>de</strong> ser sua última palavra. Cruzando o rio<br />

daquela forma, Riobaldo morre <strong>de</strong> medo, ao passo que Diadorim dá exemplo <strong>de</strong><br />

coragem e valentia, divertindo-se com o temor do companheiro, em exibição <strong>de</strong><br />

superiorida<strong>de</strong>.<br />

Mais tar<strong>de</strong>, já integrados ao bando <strong>de</strong> jagunços, Diadorim sempre<br />

mostrando-se mais corajoso do que o amigo, Riobaldo vai dizer que na<br />

companhia <strong>de</strong>ste não teme os soldados e embarcaria até na prancha <strong>de</strong> Pirapora.<br />

Esse tipo <strong>de</strong> embarcação – prancha – que levava carga, bem maior do que a<br />

canoa, era mais perigoso do que esta, por dois motivos: primeiro, pelas condições<br />

do próprio veículo – balsa <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, no geral <strong>de</strong>scoberta, que viajava<br />

sob o impulso da correnteza, “solta à toa”, como diziam seus tripulantes;(17)<br />

segundo, porque os embarcados seriam facilmente vistos pela repressão legal.<br />

Então, quanto mais se intensifica a ligação amo<strong>rosa</strong> entre Riobaldo e Diadorim,<br />

mais aumenta a coragem <strong>de</strong> Riobaldo pela influência do amigo: nesse par, são<br />

trocados, <strong>de</strong> forma sempre crescente, amor por amor, e covardia por coragem.<br />

Assim, a travessia tem vários sentidos no romance, mas esse especificamente<br />

remete àquele primeiro encontro na margem do rio, à aventura <strong>de</strong><br />

atravessá-lo – ponto <strong>de</strong> partida do amor interdito, ao ser relembrado. A vonta<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> esquecer Diadorim é <strong>de</strong>signada <strong>de</strong> “tristonha travessia, água <strong>de</strong> rio que se<br />

arrasta”. (18) A interdição amo<strong>rosa</strong> é chamada <strong>de</strong> “travessia <strong>de</strong> minha vida.”<br />

(19) E o forte e verda<strong>de</strong>iro amor é evocado nesta bela frase: “O real não está na<br />

saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.” (20)<br />

Márcia Marques <strong>de</strong> Morais interpreta o encontro <strong>de</strong> Diadorim e Riobaldo<br />

na travessia do rio, pela ótica <strong>de</strong> um mundo misturado: “o si mesmo e o outro; o<br />

feminino e o masculino; medo e coragem; alegria e tristeza; interiorida<strong>de</strong> e<br />

exteriorida<strong>de</strong>; o bem e o mal – tudo misturado.” (21) Tal mistura é uma<br />

interpretação muito feliz. Complementando, vejo-a esten<strong>de</strong>ndo-se a todo o<br />

romance, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>para com vários níveis <strong>de</strong> travessia, inclusive naquele


44 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

episódio antropofágico, em que os jagunços famintos <strong>de</strong>voraram um homem<br />

negro achando tratar-se <strong>de</strong> um macaco. Note-se que a cena não indicia<br />

nenhuma forma <strong>de</strong> racismo, ainda mais porque vários jagunços são negros bem<br />

integrados no bando. Indicia, sim, esse mundo misturado, confuso, em que até<br />

o animal e o homem adquirem posições intercambiáveis, mistura para a qual<br />

Márcia Morais chama a atenção.<br />

A travessia metafórica <strong>de</strong> Diadorim e Riobaldo dá continuida<strong>de</strong> à travessia<br />

literal, na beira do rio, na Guararavacã do Guaicuí, no momento em que<br />

Diadorim fica sabendo da morte <strong>de</strong> Joca Ramiro, seu pai. Deci<strong>de</strong> vingar-se,<br />

Riobaldo se une a ele no plano <strong>de</strong> vingança e só irão separar-se pela morte.<br />

Po<strong>de</strong>-se dizer que aí começa a travessia metafórica <strong>de</strong> ambos: a <strong>de</strong> Diadorim<br />

consiste em reprimir o amor e planejar escon<strong>de</strong>r a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> até à consecução<br />

da vingança; a <strong>de</strong> Riobaldo é remoer a culpabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> amar a um igual,<br />

tentando ultrapassar o paradoxo através do porto seguro <strong>de</strong> uma diferente, a<br />

noiva Otacília.<br />

A essa travessia dos personagens po<strong>de</strong>r-se-ia acrescentar a do próprio<br />

escritor, quer dizer, a viagem com a boiada e seus vaqueiros pelo sertão<br />

mineiro, atravessando-o a cavalo. Outra viagem similar fez à Bahia, com o<br />

jornalista Assis Chateaubriand. Em ambas, recolheu informações preciosas,<br />

com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> enriquecer sua literatura, sua travessia para a maior obra<br />

produzida em nosso país.<br />

Além das travessias literais e metafóricas, o rio plantou na vida <strong>de</strong> Riobaldo<br />

um dualismo, diz ele ao doutor, seu ouvinte. Esse dualismo no romance<br />

remete às duas vidas vividas pelo narrador, sob o signo <strong>de</strong> Diadorim: jagunço,<br />

fora da Lei, no passado; fazen<strong>de</strong>iro or<strong>de</strong>iro e trabalhador, no presente. Remete,<br />

também, à duplicida<strong>de</strong> do sexo <strong>de</strong> Diadorim, ao coração dividido <strong>de</strong> Riobaldo<br />

entre este e Otacília, e à gran<strong>de</strong> dúvida metafísica que perpassa toda a narrativa,<br />

ou seja, a existência ou não do <strong>de</strong>mônio. Se foi na beira do São Francisco que<br />

Riobaldo conheceu o seu amor interdito, quando criança, também foi na beira<br />

do rio que foi morar com Otacília, seu amor permitido. E o Rio do Chico<br />

sempre avança, correndo como personagem viva, exuberante, testemunha e<br />

participante da vida e do amor dos jagunços. Quando, na tentativa <strong>de</strong> esquecer<br />

Diadorim, Riobaldo conversa sobre mulheres, ele pergunta se o São Francisco<br />

não é sempre turvo. Aponta não só para a condição <strong>de</strong> suas águas, como<br />

também para a situação obscura e indistinta do amor pelo companheiro.<br />

O rio testemunha várias ações periféricas ao tema central da obra – o<br />

amor. É ponto <strong>de</strong> referência para a movimentação dos jagunços em sua eterna<br />

guerra. Titão Passos e outros chefes aconselham os guerreiros a seguir uma rota


Os Jagunços e o Rio do Chico no Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas _______________________________ Letícia Malard 45<br />

“o mais encostado possível no São Francisco” (22), para não per<strong>de</strong>rem <strong>de</strong> vista<br />

o inimigo nem serem vistos pelos soldados. Hermógenes se arrancha com seus<br />

homens “da banda <strong>de</strong> lá do Rio do Chico” (23). A fazenda <strong>de</strong> Rotílio Manduca,<br />

sanguinário responsável pela morte <strong>de</strong> duzentas pessoas, situa-se num barranco<br />

do rio. O velho Chico até se personifica em um romântico namorado, ao olhar<br />

com melhor amor a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Francisco, porque ela tem o seu nome.<br />

Assim é o Gran<strong>de</strong> Sertão:Veredas: romance do amor proibido e <strong>de</strong><br />

amores permitidos, <strong>de</strong> míticos jagunços, <strong>de</strong> uma natureza milionária em águas e<br />

buritis, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>staca o seu maior e encantado rio. Esse conjunto nos traz<br />

uma “noção mágica do universo”, apropriando-nos da expressão usada por<br />

Guimarães Rosa, no mencionado discurso <strong>de</strong> posse na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong>, em referência a Cordisburgo e sua etimologia – cida<strong>de</strong> do coração. É<br />

um romance-universo mágico, bem amarrado em seus <strong>de</strong>samarros, pois, afinal,<br />

“as coisas estão amarradinhas é em Deus”, como diziam as avós do escritor –<br />

Dona Graciana do Paredão do Urucuia, e Dona Chiquinha <strong>de</strong> Traíras, hoje<br />

Santana <strong>de</strong> Pirapama. (24)<br />

Notas:<br />

1. ROSA, J. Guimarães: Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo<br />

Bizzarri. São Paulo: T. A. Queiroz – Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro,<br />

1980. p. 22-23.<br />

2. Cf. O verbo & o logos: discurso <strong>de</strong> posse <strong>de</strong> João Guimarães Rosa na<br />

sessão <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1967. In: EM MEMÓRIA DE JOÃO<br />

GUIMARÃES ROSA. Rio <strong>de</strong> Janeiro: José Olympio, 1968. p. 86-87.<br />

3. Cf. ROSA, Vilma Guimarães. Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu<br />

pai. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p. 361.<br />

4. ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. II. Gran<strong>de</strong> sertão: veredas.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 96.<br />

5. ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. II. Gran<strong>de</strong> sertão: veredas, op.<br />

cit., p. 429.<br />

6. Ressalte-se a existência <strong>de</strong> duas obras extensas, escritas por uma filha e por<br />

um amigo do escritor, respectivamente. Embora ricas <strong>de</strong> elementos sobre<br />

sua vida, não po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>radas uma biografia em sentido estrito. São<br />

elas: ROSA, Vilma Guimarães. Relembramentos: João Guimarães Rosa,<br />

meu pai. (1 ed., 1983; 3 ed., revista e ampliada. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova<br />

Fronteira, 2008, 586 p., cit. e BARBOSA, Alaor. Sinfonia Minas Gerais: a


46 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

vida e a literatura <strong>de</strong> João Guimarães Rosa, t. I. Brasília: R. G. E. Ed., 2007.<br />

388 p.<br />

7. ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. II. Gran<strong>de</strong> sertão: veredas, op.<br />

cit., p. 436.<br />

8. Cf. VIGGIANO, Alan. Itinerário <strong>de</strong> Riobaldo Tatarana. Belo Horizonte-<br />

Brasília: Comunicação-INL, 1974. p. 42-58.<br />

9. Cf. MALARD, Letícia. O Rio São Francisco em Gran<strong>de</strong> sertão: veredas.<br />

Corrente, Pirapora-MG, 31 <strong>de</strong> maio a 06 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1985. p. 12. Esse<br />

pequeno texto se constitui em uma análise da presença do São Francisco no<br />

romance roseano. Foi <strong>de</strong>senvolvido em MALARD, Letícia. Minas Gerais<br />

em Guimarães Rosa. In: GROSSMANN, Judith, et al. O espaço geográfico<br />

no romance brasileiro. Salvador: Fundação Casa <strong>de</strong> Jorge Amado, 1993. p.<br />

31-50. Posteriormente, outros pesquisadores também abordaram o assunto.<br />

Citamos em especial “Imagens da água no romance Gran<strong>de</strong> sertão:<br />

veredas, <strong>de</strong> João Guimarães Rosa”, dissertação <strong>de</strong> mestrado <strong>de</strong> João Batista<br />

Santos Sobrinho, Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>. Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> da UFMG,<br />

2003. Disponível em www.ana.gov.br/aguaecultura/anexos/guimaraes<br />

<strong>rosa</strong>.pdf. Agora voltamos ao tema, ampliando-o, aprofundando-o e<br />

inserindo-lhe novos elementos.<br />

10. Cf. http://www.franciscosa.mg.probrasil.com.br/ Acesso em 15 <strong>de</strong> agosto<br />

<strong>de</strong> 2008.<br />

11. Em palestra na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, aos 18 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008, a<br />

que assistimos, Vilma Guimarães Rosa informou que o romance começou a<br />

ser escrito em Paris, mas não mencionou o ano. Disse, ainda, que, naquela<br />

ocasião, perguntou ao pai se conhecia o sertão, para estar escrevendo sobre<br />

ele. Guimarães Rosa respon<strong>de</strong>u que não conhecia, que o sertão estava<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua cabeça.<br />

12. “Os termos “esquerda” e “direita”, nos seus significados políticos, foram<br />

utilizados pela primeira vez na França. Naquele país, era tradição que os<br />

<strong>de</strong>putados que apoiavam o governo sempre se sentassem do lado direito do<br />

parlamento, enquanto que os <strong>de</strong> oposição, sempre do lado esquerdo. Com o<br />

passar do tempo, sedimentou-se a tradição <strong>de</strong> chamar-se <strong>de</strong> “direitistas” os<br />

<strong>de</strong>putados <strong>de</strong> situação e <strong>de</strong> “esquerdistas” os <strong>de</strong> oposição, em referência às<br />

ca<strong>de</strong>iras que ocupavam no parlamento. Neste período, era um contrassenso<br />

falar-se em “governo <strong>de</strong> esquerda”, pois se um partido “esquerdista” (nesta<br />

acepção do termo) ganhasse as eleições, este partido passaria a ser<br />

situacionista e, portanto, a ocupar as ca<strong>de</strong>iras do lado direito do parlamento.<br />

Automaticamente teria galgado a posição <strong>de</strong> “direitista” enquanto que o ex-


Os Jagunços e o Rio do Chico no Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas _______________________________ Letícia Malard 47<br />

ocupante <strong>de</strong>sta posição passaria a ser oposicionista e, portanto, esquerdista.”<br />

Cf. http://www.geocities.com/CapitolHill/Senate/6412/esqdir.html.<br />

Acesso em 15 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008.<br />

13. ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. II. Gran<strong>de</strong> sertão: veredas, op.<br />

cit., p. 6.<br />

14. ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. II. Gran<strong>de</strong> sertão: veredas, op.<br />

cit., p. 306.<br />

15. ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. II. Gran<strong>de</strong> sertão: veredas, op.<br />

cit., p. 438.<br />

16. MALARD, Letícia. Op. cit., p. 42-43.<br />

17. Cf. NEVES, Zanoni. Na carreira do Rio São Francisco: trabalho e<br />

sociabilida<strong>de</strong> dos vapozeiros. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 2006. p. 138.<br />

18. ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. II. Gran<strong>de</strong> sertão: veredas.<br />

Op. cit., p.323.<br />

19. ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. II. Gran<strong>de</strong> sertão: veredas.<br />

Op. cit., p.406.<br />

20. ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. II. Gran<strong>de</strong> sertão: veredas.<br />

Op. cit., p. 85.<br />

21. MORAIS, Márcia Marques <strong>de</strong>. Encontros <strong>de</strong> Riobaldo: travessias do<br />

sujeito. Scripta, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, 2º. sem. 98, p. 207.<br />

22. ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. II. Gran<strong>de</strong> sertão: veredas.<br />

Op. cit., p. 401.<br />

23. ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. II. Gran<strong>de</strong> sertão: veredas.<br />

Op. cit., p. 428.<br />

24. Cf. O verbo & o logos: discurso <strong>de</strong> posse <strong>de</strong> João Guimarães Rosa na<br />

sessão <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1967 In: EM MEMÓRIA DE JOÃO<br />

GUIMARÃES ROSA, op. cit., p. 75-76.


48 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS


CORPO DE BAILE:<br />

DE MIGUILIM A MIGUEL*<br />

Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães**<br />

Situar Guimarães Rosa no cenário literário do país e fora <strong>de</strong>le, ainda<br />

hoje, não é tarefa simples. Des<strong>de</strong> 1946, quando surgiu Sagarana, o escritor<br />

mineiro tornou-se alvo <strong>de</strong> interesse específico e da crítica. Fora um abalo<br />

possante nas letras pátrias, marcando uma terceira investida contra o discurso<br />

tradicional da ficção brasileira, a partir da Semana <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rna em São<br />

Paulo. A obra do escritor mineiro perfila-se <strong>de</strong>ntro da “geração do instrumentalismo”,<br />

por questões diversas, entre outras, a preocupação da estética do texto<br />

e a exploração das potencialida<strong>de</strong>s do discurso. Quis ele sempre imprimir maior<br />

ênfase sobre o distenso, já usada em romances nor<strong>de</strong>stinos, em cujos textos, por<br />

vezes, é encontrado um veio <strong>de</strong>scritivo épico, <strong>de</strong>nunciador <strong>de</strong> situações trazidas<br />

por a<strong>de</strong>ptos do Real-Naturalismo. Curioso é que Rosa se utiliza do realismo<br />

fantástico transfigurado em temas da vida real, como tônica fundamental <strong>de</strong><br />

várias <strong>de</strong> suas criações. Às vezes, imaginamos que Guimarães Rosa escreva<br />

uma estória para seu <strong>de</strong>leite, usando a expressão sertaneja como um veículo <strong>de</strong><br />

criação literária e não para exprimir situações e personagens. Sua palavra fazse,<br />

por vezes, maior e mais atuante do que o argumento do reconto.<br />

Tudo que se apresenta novo causa algum tipo <strong>de</strong> surpresa, às vezes se<br />

<strong>de</strong>finindo em concordância, outras se levantando em leve ou ardoroso protesto.<br />

Assim aconteceu com a forte expressão inovadora da escrita rosiana, quando os<br />

leitores e críticos se <strong>de</strong>pararam com a fala mesclada <strong>de</strong> regionalismos e<br />

arcaísmos no talentoso dizer do cordisburguês. O homem queria mesmo<br />

renovar, sacudir o marasmo das frases prontas, dos lugares-comuns e das<br />

analogias transoceânicas <strong>de</strong> berço. Estava ali um autêntico artesão, e já se disse,<br />

* Palestra proferida na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em 20 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008,<strong>de</strong>ntro da Semana Cultural<br />

Guimarães Rosa, comemorativa do seu centenário <strong>de</strong> nascimento.<br />

**Escritora, Presi<strong>de</strong>nte Emérita da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Feminina <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.


50 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

ourives, que, com suas ferramentas lingüísticas afiadas e prontas para os<br />

acertos, cortes, acréscimos e criações <strong>de</strong> sintaxe e estilo movimentava-se<br />

confortavelmente no universo sertanejo <strong>de</strong> sua terra, embora sem a vivência<br />

daquela realida<strong>de</strong>. Rosa apossou-se dos embriões vocabulares, <strong>de</strong>scongelou-os,<br />

<strong>de</strong>u-lhes calado, ambiência propícia ao <strong>de</strong>senvolvimento lírico ou romântico,<br />

ampliou-lhes as locações germinativas e bafejou-os com a filosofia <strong>de</strong> todos os<br />

tempos. Guimarães Rosa serviu-se da natureza rústica do sertão, do universo<br />

lúdico circunstancial para criar a estrutura <strong>de</strong> um monumento <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong>s<br />

avassaladoras, que ultrapassavam limites e fronteiras da linguagem informal e<br />

corriqueira até então entendidas e usadas. O discurso tradicional brasileiro<br />

estava abalado com o audacioso golpe: substancial, po<strong>de</strong>roso e irreversível. O<br />

homem retirara o barro natal da palavra, assoprara a poeira do tempo, <strong>de</strong>scristalizara<br />

a alma do termo, garimpando-a para o buril revelador. Não haveria<br />

meios outros que viessem a <strong>de</strong>tê-lo no intento <strong>de</strong> criação. Rosa tornava-se<br />

pioneiro resoluto na intrepi<strong>de</strong>z da façanha, inovador. Ele mesmo <strong>de</strong>clarara a<br />

Gunther Lorenz (na oportunida<strong>de</strong> do Congresso <strong>de</strong> Escritores Latino-<br />

Americano, em Gênova, p. 46, Ficção Completa, Nova Aguilar): “Primeiro, há<br />

meu método que implica a utilização <strong>de</strong> cada palavra como se ela tivesse<br />

acabado <strong>de</strong> nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e<br />

reduzi-la a seu sentido original”. Muitos brados soaram <strong>de</strong> inconformismo,<br />

porém não se tratava aquela <strong>de</strong> uma simples aventura sem maiores propósitos.<br />

O escritor <strong>de</strong>finia-se com critério, e sua erudição complementava a <strong>de</strong>senvoltura<br />

batalhadora a que se propôs, a razão do sucesso, marcada na universalida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> sua obra. Ainda hoje, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tantos anos <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>saparecimento,<br />

(41), parece que sua criação ressurge a cada dia, com seus livros sendo<br />

reeditados, no Brasil e alhures. Fora-se, <strong>de</strong> uma vez por todas, a era do<br />

“romance do engajamento social”.<br />

Quando Corpo <strong>de</strong> Baile e Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas surgiram, recru<strong>de</strong>sceram<br />

as críticas contrárias, e um painel <strong>de</strong> luz começou a <strong>de</strong>sanuviar as<br />

impressões <strong>de</strong> ocasionais primários conceitos. O autor mesmo fez questão <strong>de</strong><br />

alertar na orelha do novo trabalho, surgido em 1956, que as novelas, contos e<br />

romances que compunham Corpo <strong>de</strong> Baile (antes <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>smembrado),<br />

formavam um todo orgânico e harmonioso, como se lhe tivessem saído da pena<br />

no mesmo instante. Acrescenta o escritor que sentiu-se como que “tomado”, e<br />

que o texto vinha quase pronto, e ele o escrevera <strong>de</strong> um só fôlego. Imaginemos<br />

as <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> estórias que sua pena traduzia com limpi<strong>de</strong>z maiúscula em cada<br />

capítulo, como se o homem estivesse vivendo ali no sertão, no vale do Urucuia,<br />

entre chapadas e chapadões, veredas, grotas e grotões, vales, torrentes, brejos e


Corpo <strong>de</strong> Baile: <strong>de</strong> Miguilim a Miguel ___________________________________ Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães 51<br />

cursos <strong>de</strong> água, com o encanto dos buritis alinhados em filas <strong>de</strong> ver<strong>de</strong> e vida.<br />

Os buritis <strong>de</strong> seus encantos.<br />

O autor <strong>de</strong> Corpo <strong>de</strong> Baile alerta para o título do livro, afirmando que é<br />

apenas “simbólico, justificado numa epígrafe <strong>de</strong> Plotino, e pelo motivo da<br />

dança, reiterado como uma constante. “Corpo <strong>de</strong> Baile são narrações sertanejas<br />

<strong>de</strong> temática universal, com extraordinária pulsação <strong>de</strong> vida, enredos inéditos,<br />

empolgantes, e novas revelações sobre a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nossos trabalhadores da<br />

gleba”, acentua.<br />

Guimarães Rosa costumava afirmar que esse livro servia como uma<br />

preparação para Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, que viria a seguir, meses após o<br />

lançamento <strong>de</strong> Corpo <strong>de</strong> Baile. Com ele, sedimentava-se o território, <strong>de</strong>marcava-se<br />

alegoricamente o universo <strong>de</strong> sua linguagem, no que saboreava-se o<br />

viver em universo <strong>de</strong> sertão áspero, e ao mesmo tempo, lúdico. O escritor não<br />

se preocupava tanto com o enredo, com a tessitura do argumento, com a estória<br />

em si. Por vezes, invadia a narrativa e centrava-se como figurante, cuidando<br />

mais da forma e da psicologia do personagem e realçando a analogia íntima <strong>de</strong><br />

sua linguagem com as criaturas do texto. Ele se servia do dizer rosiano e<br />

congregava ambiência, riqueza material <strong>de</strong> forma e beleza, a poesia e os laivos<br />

filosóficos, para expressar o seu pessoal “em-ser”, o seu “estar”, no envolvimento<br />

sertanejo.<br />

Tomaremos o caminho dos campos gerais, no nor<strong>de</strong>ste mineiro. Será<br />

apenas uma leitura linear, nuamente apresentada, na epi<strong>de</strong>rme <strong>de</strong> uma verificação<br />

não crítica, <strong>de</strong> Corpo <strong>de</strong> Baile.<br />

A primeira novela, Campo Geral, com a extraordinária narrativa que o<br />

autor faz <strong>de</strong> um pequeno personagem, uma obra-prima da ficção sertaneja,<br />

Miguilim, oferece traços biográficos do escritor, ao tempo em que sua pouca<br />

vista lhe tolhia a visão material das coisas e dos seres, mas lhe proporcionava<br />

um universo filosófico <strong>de</strong> muita riqueza. A saga sofredora <strong>de</strong> uma criança pura,<br />

sensível, inocente, com instigantes questões a respeito da vivência calcada na<br />

malda<strong>de</strong> e bruteza da vida. O menino do conto não aceitava os rigores da lida<br />

<strong>de</strong> criaturas que compunham sua faina cotidiana. Questionava-se a respeito da<br />

violência dos adultos, da opressão do forte sobre o fraco in<strong>de</strong>feso, mesmo <strong>de</strong><br />

animais domésticos ou rurais. A covardia que se praticara contra a cachorrinha<br />

Pingo-<strong>de</strong>-Ouro, o tatu sangrado para que o seu sangue escorresse por cima do<br />

corpo doente <strong>de</strong>le próprio, e lhe <strong>de</strong>sse saú<strong>de</strong>, e a imposição truculenta do pátrio<br />

po<strong>de</strong>r. Pai mandava, <strong>de</strong>smandava, batia, quase tirando o viço da criança. Seu<br />

Aristeu era aquele que ensinava, sem saber, um caminho novo para os pensamentos<br />

do pequeno, com a criação <strong>de</strong> estórias; um conhecedor da saú<strong>de</strong> e da


52 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

doença das pessoas. Um homem gran<strong>de</strong>, <strong>de</strong>susado <strong>de</strong> bonito, alto, alegre,<br />

mesmo sendo roceiro assim, mais “parecia <strong>de</strong>sinventado <strong>de</strong> uma estória”. E<br />

animava o garoto, que se julgava à beira da morte: “Miguilim – bom <strong>de</strong> tudo é<br />

que tu tá: levanta, levanta, ligeiro e são, Miguilim...” Sentia- se livre do mal, e<br />

ouvia o homem instruir o pai: “Tísica nem não dá nestes gerais, o ar aqui não<br />

consente, seo Berno!”. Isso tudo <strong>de</strong>pois da visita do seo Deográcias, outro<br />

conhecedor dos segredos das curas, mas que se escusava <strong>de</strong> ensinar a Miguilim<br />

as letras e os números.<br />

E buscamos em altos relevos da narrativa a <strong>de</strong>sesperança do personagem<br />

mirim da novela, quando adoeceu seriamente seu idolatrado irmãozinho, Dito,<br />

que pisara, <strong>de</strong>savisado, em um caco <strong>de</strong> vidro, e contraíra o tétano. E então se<br />

finou o pequenino, irmão <strong>de</strong> Miguel, Miguilim, que ficou ferido <strong>de</strong> morte no<br />

seu peito amoroso. “Pai <strong>de</strong>senrolou a re<strong>de</strong>zinha <strong>de</strong> buriti. Mas aí Mãe exclamou<br />

que não, queria o filhinho <strong>de</strong>la no lençol <strong>de</strong> alvura”.<br />

As novelas apresentam um narrador onisciente. Vezes, oferecem a palavra<br />

<strong>de</strong> primeira pessoa a um e outro personagem do enredo. E as vozes se<br />

alternam.<br />

Com sincerida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>mos afirmar que o livro, (tal como apareceu em<br />

sua 2ª. edição, em 1960, e é a <strong>de</strong> que nos valemos), perfazendo 513 páginas, na<br />

soli<strong>de</strong>z gráfica, sem <strong>de</strong>senhos ou fotos, tira-nos um pouco o fôlego, <strong>de</strong>snorteianos<br />

nesse universo <strong>de</strong> rusticida<strong>de</strong> quase irreal. Estamos, porém, <strong>de</strong>cididos a<br />

enveredar por essas brenhas rosianas. Não sabemos, <strong>de</strong> início, em que pegar, no<br />

que tomar para estudo. É <strong>de</strong> preencher-se a cabeça, com tantas e quantas idéias.<br />

Temos o ar, as árvores, os bichos do mato e os pássaros; seus cantos e gorjeios,<br />

a brutalida<strong>de</strong> do homem contra o ser vivente irracional; a faina bestial do<br />

trabalhador da terra e das coisas da terra, quando, ao contrário, ressurge a<br />

beleza do cenário que o meio inculto oferece; a rotina incansável do servidor<br />

que nasce e morre <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um <strong>de</strong>stino já traçado. Descobre-se a euforia do<br />

autor, sempre encantado com a palmeira <strong>de</strong>marcadora <strong>de</strong> território <strong>de</strong> suas<br />

estórias: o buriti. Estas árvores firmam-se altaneiras, em fila quase indiana,<br />

abeirando-se <strong>de</strong> lagoas e charcos, ou nascidas ali mesmo, por força da corrente<br />

que as traz cativas. Sobreleva-se o Buriti gran<strong>de</strong>, que <strong>de</strong>ixou nome forte em<br />

novela que fecha o livro. Depois <strong>de</strong>sta, “Cara <strong>de</strong> Bronze” se insinua, mas já em<br />

outras roupagens: é uma peça teatral autêntica, com solertes diálogos e<br />

cantorias. Em gran<strong>de</strong> parte das <strong>de</strong>mais novelas ou contos, ou poesias, como os<br />

quer o autor, até mesmo romances, o lirismo dos compositores pastoris faz-se<br />

presente. E as intenções postas em terceira dimensão, <strong>de</strong> outros idiomas e <strong>de</strong><br />

outras gentes, na erudita memória <strong>de</strong> Rosa, enriquecem a obra.


Corpo <strong>de</strong> Baile: <strong>de</strong> Miguilim a Miguel ___________________________________ Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães 53<br />

O tratado é para ser lido sem pressa, no tempo da colheita <strong>de</strong> cultura<br />

literária, na <strong>de</strong>gustação da palavra novinha em forma, criada ou recriada, ou na<br />

percepção do vocábulo enxotado <strong>de</strong> há muito das pare<strong>de</strong>s lingüísticas <strong>de</strong> nossa<br />

literatura. Saboreia-se a idéia e a criação da idéia, assim <strong>de</strong>fendida e resguardada<br />

do ostracismo <strong>de</strong>saconselhado. O escritor escrevia <strong>de</strong>vagar, agilmente,<br />

pensando o pensar do personagem. Descrevia o corpo, a imagem, o vulto com a<br />

presença viva gerada pelo intelecto. Levantava-se ali, diante <strong>de</strong>le, e <strong>de</strong> nós leitores,<br />

um ser vivo, pessoa criada com amor e raça; parava na idéia do homem bom ou<br />

mau, no caráter e na índole, com a palavra que o trazia para fora do texto e o<br />

figurava humano. O termo vinha buscado com precisão, distante <strong>de</strong> seu tempo,<br />

mas próximo daquela criatura que sempre vivera na terra estranha das gerais.<br />

Quem tiver pressa, não leia o homem <strong>de</strong> Cordisburgo. De arranco,<br />

apenas para conhecer o final da estória, não é o recomendado. Os contos, as<br />

novelas e os romances <strong>de</strong> Guimarães Rosa não guardam finais felizes! Na<br />

verda<strong>de</strong>, o que menos se <strong>de</strong>ve buscar nessas leituras é um happy end. O enredo<br />

se envolve com as peripécias reais da vida e se per<strong>de</strong> no turbilhão <strong>de</strong> notícias e<br />

casos circunstanciais. Quando se espera a recuperação <strong>de</strong> um atalho <strong>de</strong> estória,<br />

surge uma nova, empanando o <strong>de</strong>stino daquela primeira.<br />

O índice do livro, que temos para estudos, abre-se <strong>de</strong>sta forma: Os<br />

Poemas: Campo Geral, Uma Estória <strong>de</strong> Amor, A Estória <strong>de</strong> Lélio e Lina, O<br />

Recado do Morro, Lão-Dalalão (Dão-Dalalão), “Cara <strong>de</strong> Bronze” e Buriti.<br />

A referência a Plotino, feita por Guimarães Rosa, vem expressa na<br />

introdução <strong>de</strong> seu livro. Cita-o:<br />

Porque, em todas as circunstâncias da vida real, não é a alma <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />

nós, mas sua sombra, o homem exterior, que geme, se lamenta e <strong>de</strong>sempenha<br />

todos os papéis neste teatro <strong>de</strong> palcos múltiplos, que é a terra inteira.<br />

Seu ato, é pois, um ato <strong>de</strong> artista, comparável ao movimento do<br />

dançador; o dançador é a imagem <strong>de</strong>sta vida, que proce<strong>de</strong> com arte; a arte da<br />

dança dirige seus movimentos; a vida age semelhantemente com o vivente.<br />

E nos perguntamos: o que estaria insinuando o autor com essas referências?<br />

Talvez quisesse dizer que seu julgamento a respeito dos personagens <strong>de</strong><br />

suas estórias era apenas superficial, ilusório; que estabelecia com eles um<br />

gran<strong>de</strong> balé <strong>de</strong> vida rural na periferia sertaneja, e que caberia a nós, leitores, a<br />

avaliação real <strong>de</strong> suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s.<br />

O livro dá a palavra inicial à novela Campo Geral, como se disse, e o<br />

autor traça a infância <strong>de</strong> Miguel, o Miguilim, nascido nos confins dos gerais,


54 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

<strong>de</strong>pois da Vereda-do-Frango-d´Agua, no Mutum, terra que o pequeno não<br />

conhecia em <strong>de</strong>talhes, antes das lentes dos óculos do médico visitante, o Dr.<br />

José Lourenço. O <strong>de</strong>senrolar da estória revela os personagens recrutados em<br />

espaço pequeno <strong>de</strong>ntro do enredo: mãe, pai, tio, irmãos, avó e uma criatura<br />

exótica, Mãitina, das que jamais foram esquecidas em quase todas as novelas<br />

<strong>de</strong> Rosa, e que se apartava da trama, servindo apenas <strong>de</strong> figuração criadora.<br />

Guimarães Rosa escreveu o livro sem a intenção <strong>de</strong> <strong>de</strong>smembrá-lo, razão<br />

pela qual Miguilim e seus irmãos ressurgem em novelas outras do mesmo livro:<br />

Tomé, o amásio da Jini, Drelina, esposa do Fradim, e a Chica, “que era branca<br />

quase como leite, com os olhos azuis, uma beleza muito <strong>de</strong>licada”, e tinha sido<br />

trazida pelo irmão ali para o Pinhém, e assim eles aparecem na novela Lélio e<br />

Lina. Miguel, formado veterinário, compõe o enredo <strong>de</strong> um outro texto, Buriti,<br />

mas não <strong>de</strong>ixa o leitor antever o seu futuro feliz ou não com a Glorinha. E fala<br />

<strong>de</strong> um seu irmão, Dico, que morreu menino.<br />

Em muitas estórias, o autor fazia questão <strong>de</strong> introduzir tipos característicos,<br />

com as taras e os cacoetes próprios dos “diferentes”, inscritos como<br />

marginalizados na esfera do “senso comum”. Cita-os Eduardo F. Coutinho:<br />

“loucos, cegos, doentes em geral, criminosos, feiticeiros, artistas populares, e<br />

muitos outros (...). Lúcidos em sua loucura, ou sensatos em sua aparente<br />

insensatez”.<br />

Em Corpo <strong>de</strong> Baile, Guimarães Rosa <strong>de</strong>dica-se com gran<strong>de</strong>s cuidados às<br />

pessoas dos vaqueiros <strong>de</strong> suas estórias. Conta-lhes da filiação, dos antece<strong>de</strong>ntes,<br />

do viver cotidiano amoroso, das rivalida<strong>de</strong>s, e acima <strong>de</strong> tudo, dita-lhes<br />

os nomes e os sobrenomes, ao contrário do que se dá em Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />

Veredas, quando a maioria dos jagunços era <strong>de</strong>signada apenas pelos apelidos.<br />

Diferentemente em “Cara <strong>de</strong> Bronze”, Rosa pluralizou diálogos dos trabalhadores,<br />

congraçou-lhes opiniões, indicando os boia<strong>de</strong>iros, vaqueiros ou peões<br />

apenas pelas alcunhas.<br />

Dois maravilhosos contos <strong>de</strong> Corpo <strong>de</strong> Baile, A Estória <strong>de</strong> Lélio e Lina e<br />

o Recado do Morro, imprimem na criação literária <strong>de</strong> Guimarães Rosa um<br />

ponto altíssimo, com a varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> tipos, as diversas situações nos conflitos<br />

psicológicos, os inesperados enredos, tudo refletido no ágil ritmo da riqueza <strong>de</strong><br />

estilo e forma.<br />

Curioso é que, nas cida<strong>de</strong>s interioranas, as ruas recebem cidadãos<br />

<strong>de</strong>sestruturados social e psicologicamente, e que se tornam parte integrante do<br />

folclore da comunida<strong>de</strong>. Rosa tinha o olhar muito arguto a respeito <strong>de</strong> tais<br />

personagens. Em O Recado do Morro, uma série <strong>de</strong>ssas pessoas se <strong>de</strong>staca e<br />

chega a formar o corpo central da trama novelística: o Gorgulho, o Catraz, o


Corpo <strong>de</strong> Baile: <strong>de</strong> Miguilim a Miguel ___________________________________ Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães 55<br />

Guegue, o Jubileu ou Santos Olhos, o Dominedomine. E eram esses que sabiam<br />

e interpretavam o significado do Recado, o que o Morro das Garças enviava.<br />

No romance Buriti, o Mestre Zaqueu confirma a preocupação <strong>de</strong> Rosa com as<br />

criaturas especiais, tendo o autor assinalado também, com fortes traços <strong>de</strong><br />

feiúra e excentricida<strong>de</strong>, a personagem <strong>de</strong> Maria Behu, irmã da bela Glorinha,<br />

namorada <strong>de</strong> Miguel, chegando a eliminá-la no final do conto.<br />

Em Uma Estória <strong>de</strong> Amor, ali na festa <strong>de</strong> Manuelzão, sobressaía o João<br />

Urugem, “que morava numa choupana, acomodada em árvores e moitas”. Mas<br />

o narrador se <strong>de</strong>mora na <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> quantos surgiam nas comemorações. A<br />

novela não é uma estória <strong>de</strong> amor, <strong>de</strong>ssas que se escrevem com dois<br />

personagens encantados um com o outro. O texto fala do cumprimento <strong>de</strong> uma<br />

promessa feita por vaqueiro religioso a sua querida mãe, já falecida, a qual<br />

seria a da construção <strong>de</strong> uma capelinha <strong>de</strong>dicada a Nossa Senhora do Perpétuo<br />

Socorro. E o local nem se compunha como o <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira fazenda, mas<br />

só “um reposto, um currais-<strong>de</strong>-gado”. “Aqui era umas araraquaras. A Terra do<br />

Boi-Solto”. Nele surgiu a figura carismática <strong>de</strong> Manuelzão, alcunha real <strong>de</strong><br />

homem rústico das li<strong>de</strong>s sertanistas, e que comandara excursão do escritor aos<br />

rincões mineiros, no acompanhamento <strong>de</strong> uma boiada. Essa figura não saiu da<br />

vida real para a ficção, mas <strong>de</strong>sentranhou-se das páginas daquela novela para o<br />

contexto rosiano que lhe <strong>de</strong>u notorieda<strong>de</strong>. O homem agigantado, com traços<br />

característicos bem <strong>de</strong>finidos, perfil nobre e barba respeitável, movimentava-se<br />

com <strong>de</strong>sembaraço nos meios culturais que o requisitavam para entrevistas. E<br />

ele era <strong>de</strong>senvolto no falar, espontâneo nas palavras e expressões encontradiças<br />

no texto <strong>de</strong> Rosa. E a estória era a da festa. Com dois dias <strong>de</strong> antecedência, o<br />

povo <strong>de</strong> todas as beiradas já chegava. Traziam <strong>de</strong> tudo, aqueles crentes, alguns<br />

estranhos, que antes mesmo <strong>de</strong> apear <strong>de</strong> seus cavalos, já louvavam os santos e a<br />

Virgem, em altos brados. Vinham aleijados, vultos ciganos, más mulheres,<br />

lindas moças. E se arranchavam na casa e na aba da casa <strong>de</strong> Manuelzão, on<strong>de</strong><br />

sempre cabia mais um. Ali era a Samarra, que não pertencia ao vaqueiro, pois<br />

ele trabalhava para o seu Fe<strong>de</strong>rico Freyre, que não aparecia nas suas terras,<br />

proporcionando com sua ausência força e domínio aparente a Manuelzão. O<br />

ruim é que o festeiro estava com um machucado no pé, e por esta razão quase<br />

não <strong>de</strong>smontava. O homem não se casara, mas a providência <strong>de</strong>ra-lhe um filho<br />

natural, “nascido <strong>de</strong> um curto acaso”, lá no Porto Andorinhas, cidadão que era<br />

casado e tinha sete meninos, e se chamava A<strong>de</strong>lço <strong>de</strong> Tal. Manuelzão foi<br />

buscá-lo e ele veio com todos. Era a <strong>de</strong>cepção da família: preguiçoso e lerdaço,<br />

mas com a garantia <strong>de</strong> ter escolhido a melhor e mais nobre das mulheres: a<br />

Leonísia.


56 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Beleza nessa novela é a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> um fato notório, acontecido <strong>de</strong><br />

repente, sem que ninguém esperasse, quando cada um sentiu “no coração o<br />

estalo do silenciozinho”, causado pela falta do barulhinho, da toada do fluviol,<br />

um pequeno riacho que escorria da encosta para cair no Córrego das Pedras.<br />

Acordaram, porque era noite. As crianças correram, e até os cachorros latiram.<br />

Todos “se levantaram, caçaram o quintal, saíram com luz, para espiar o que não<br />

havia”. E Manuelzão, “segurando a tocha <strong>de</strong> carnaúba, o peito batendo com um<br />

estranho diferente, ele se <strong>de</strong>bruçou e esclareceu. Ainda viu o <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro fiapo<br />

<strong>de</strong> água escorrer, estilar, cair <strong>de</strong>grau <strong>de</strong> altura, a <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira gota, o bilbo”. O<br />

riacho soluço se estancou. “Era como se um menino sozinho tivesse morrido”.<br />

Poesia no ar da palavra rosiana.<br />

Essas estórias, havidas na novela, são muitas. O autor confirma no correr<br />

da narrativa, presenças <strong>de</strong> alto valor <strong>de</strong>ntro da relação <strong>de</strong> figurantes na festa da<br />

padroeira. O padre estrangeiro, “o frei Petroaldo, alimpado e louro, com<br />

polainas e culotes <strong>de</strong>baixo do guarda-pó, com o cálice e os paramentos nos<br />

alforjes. Ali presentes, o velho Camilo, nos adjutórios, e o Promitivo. Haja a<br />

notória personagem do Senhor do Vilamão, <strong>de</strong> barba andó, o cabelo total<br />

embranquecido, trajado <strong>de</strong> vestimenta que não se usava mais, o cavour, que se<br />

compunha com um sobretudo preto e uma sobre-capinha <strong>de</strong>scendo até o<br />

cotovelo. Ele já estava quase cego, e Manuelzão levava o velhinho para <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong> casa, on<strong>de</strong> as mulheres se ajuntavam na cozinha com as caçarolas do <strong>de</strong><br />

comer. Rezava-se o terço, a pedido do festeiro; lá fora, a procissão seguia, a<br />

filha do A<strong>de</strong>lço e da Leonísia carregava a imagem da Santa. O <strong>de</strong>stino daquela<br />

imagem ninguém ainda não sabia se seria milag<strong>rosa</strong>. Depois <strong>de</strong> algum tempo,<br />

caso não surgissem milagres, ela seria trocada por outra. Os cantos eram<br />

seguidos e intermináveis. Aquele sussurro <strong>de</strong> fé, repetido assim por um coro<br />

solene e encorpado, perdurara durante toda a vida na memória religiosa <strong>de</strong><br />

Manuelzão, trazidos, presumivelmente, das lembranças infantis do autor. Ele<br />

costumava ouvi-lo em seus momentos mais fervorosos: “Ó Senhora do<br />

Socooorro...”. Alegrando o continuado da noite <strong>de</strong> vésperas da festa, e mesmo<br />

no dia <strong>de</strong>la, o prazer <strong>de</strong> todos eram as estórias, que se contavam <strong>de</strong>moradamente.<br />

O velho Camilo contou a <strong>de</strong>le, com <strong>de</strong>talhes, mas estoriadora, mesmo,<br />

era a Joana Xaviel, uma Sheraza<strong>de</strong> sertaneja.<br />

Soropita entra na novela Dão-Lalalão já um homem feliz. O autor faz<br />

questão <strong>de</strong> <strong>de</strong>linear-lhe traços <strong>de</strong>licados, sensíveis. Fala dos cuidados com a<br />

montaria, o toque sutil das esporas no flanco do animal que montava, o<br />

Caboclin. Rosa sempre gostou <strong>de</strong> provocar impacto no andamento e nos<br />

arremates <strong>de</strong> suas novelas. Talvez seja a única estória no livro com idílios e


Corpo <strong>de</strong> Baile: <strong>de</strong> Miguilim a Miguel ___________________________________ Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães 57<br />

armações amo<strong>rosa</strong>s no seu começo. Tudo o mais na maioria dos textos rosianos<br />

advém por conta dos <strong>de</strong>vaneios dos vaqueiros: sonhos e <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> amores<br />

eternos, suspiros <strong>de</strong> paixões inventadas, ou a peleja gulosa do machismo<br />

necessário e da virilida<strong>de</strong> dos homens sertanejos. As mulheres “públicas”<br />

também laboram com muito prazer, nos enredos. Elas são uma constante em<br />

todas as estórias. E Rosa perdura nelas veementes comentários, com seus<br />

artifícios. Por outro lado, tece enredos platônicos, criados por puro gosto <strong>de</strong><br />

impossíveis paixões, que na verda<strong>de</strong>, formavam só imaginação. Mas no caso <strong>de</strong><br />

Soropita, as coisas eram outras. No momento, ao <strong>de</strong>ixar Andrequicé, on<strong>de</strong> ia<br />

comprar, conversar, saber e escutar as novelas do rádio para transmiti-las aos<br />

tantos curiosos e interessados, seus pensamentos já o levavam para os braços <strong>de</strong><br />

Doralda: sua esposa, <strong>de</strong> casamento com papel passado, no religioso e no civil,<br />

alianças e o mais. Naquele dia, hospedara-se na casa do Jõe Aguial, que se<br />

mudara para o Ão, mas conservava aquela moradia ali. O homem dirigia-se<br />

agora para sua casa, “num vão, num saco da Serra dos Gerais”, on<strong>de</strong> seu amor<br />

o esperava “na regra do primor”. Na verda<strong>de</strong>, Soropita era agora mais um<br />

“encostado”. Deixara a lida <strong>de</strong> boia<strong>de</strong>iro, não supria mais viagens tangendo<br />

gado, tinha adquirido herança <strong>de</strong> família. Vivia um romance real, com a presença<br />

<strong>de</strong> Doralda, seu cheiro e sua beleza. Quando a convidou para ir com ele<br />

embora, <strong>de</strong>ixar a casa das raparigas, ela aceitou <strong>de</strong> pronto. E o escritor,<br />

naqueles tempos do enredo, vai procurar uma colossal encrenca, em reviravolta<br />

<strong>de</strong>ntro da novela. Eis que se aproxima da casa <strong>de</strong> Sorropita um bando <strong>de</strong><br />

homens não muito cre<strong>de</strong>nciados. À frente do grupo, um Dalberto, antigo<br />

companheiro <strong>de</strong> Soropita, que muito sabia das estripulias do ex-boia<strong>de</strong>iro, com<br />

varias mortes nas costas, julgamentos, sentenças e alívio <strong>de</strong> lei, pois falavam<br />

que era Soropita um mandado do Governo, porque ele só estripava gente que<br />

precisava mesmo era <strong>de</strong> sumir. “Liquidou apenas cabras <strong>de</strong> fama, só faleceu<br />

valentões arrespeitados... E ele tirou da circulação uns João Carcará, Antônio<br />

Riachão e o Dengengo, pra diante <strong>de</strong> Januária...” E saiu absolvido, mesmo nos<br />

outros júris, em três comarcas...”<br />

Era <strong>de</strong> se esperar para um final, uma refrega com lances trágicos. A<br />

estória reserva <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> páginas <strong>de</strong> armação <strong>de</strong> tormenta. Questões <strong>de</strong> ciúme<br />

e arquitetura mental doentia. Formava-se um terrível temporal, com nuvens<br />

carregadas e trovões aterrorizadores. A borrasca estava próxima. A revolta do<br />

homem se sobrepunha, na intolerância do ex-vaqueiro, matador. Ele via a<br />

mulher, Doralda, nos braços daqueles todos, e em especial, no <strong>de</strong>boche das<br />

garras <strong>de</strong> um negro, o Iládio, que era quem recebia a <strong>de</strong>scarga maior do ódio<br />

insano <strong>de</strong> Soropita. E nem o pobre era culpado <strong>de</strong> nada, pois a própria Doralda


58 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

o absolvera <strong>de</strong> ter estado com ela. Mas a fúria <strong>de</strong>moníaca do homem não queria<br />

saber. E ali adiante, no arruado, e rente da venda, on<strong>de</strong> a animalada se reunira,<br />

com todos armados, Iládio no meio <strong>de</strong>les, o belzebu, amontado na besta preta:<br />

“– Ah, maldito, vai tapar os cal<strong>de</strong>irões do inferno!” – gritava Soropita, <strong>de</strong> arma<br />

em punho. Depois do suspense geral, a estória se esfria com as súplicas <strong>de</strong><br />

misericórdia do con<strong>de</strong>nado, já <strong>de</strong>caído na poeira do chão: “Tomo benção...tomo<br />

benção...” e sua <strong>de</strong>bandada embora foi-se por mil anos. Soropita, altaneiro,<br />

diverge. E pergunta aos do Ão: “Tem hoje quem vai no Andrequicé ouvir o<br />

restante da novela do rádio? – Tem não. – Pois vou. Passo em casa para bem<br />

almoçar, e vou”.<br />

A Estória <strong>de</strong> Lélio e Lina é suave. Não se trata <strong>de</strong> amor-paixão. Tudo<br />

começa com a chegada do vaqueiro “foriço”: “rapaz moço, boa cara e comum<br />

jeito”, sem barba ou <strong>de</strong>mais novida<strong>de</strong>s. Vinha da Tromba-Danta, para on<strong>de</strong> não<br />

gostaria <strong>de</strong> voltar jamais. Era esta ali a fazenda do Pinhém, nos Gerais, e o seo<br />

Senclér, que governava, inquiriu o moço, e <strong>de</strong>le se agradou. Por informação, o<br />

vaqueiro Aristó <strong>de</strong>clarou que o rapaz era filho do Higino <strong>de</strong> Sás, com nome<br />

bom assentado <strong>de</strong> vaqueiro-mestre por todo aquele sertão do Urucuia.<br />

Como real sertanejo, o Lélio não esmorecia nos pensamentos amorosos.<br />

Lembrava-se com muita firmeza da Mocinha que tinha viajado para o Paracatu,<br />

quando ele ia junto, contratado para serviços. “Ela era toda pequenina,<br />

brancaflor, <strong>de</strong>sajeitadinha, garbosinha, escorregosa <strong>de</strong> se ver”. Parecia uma<br />

menina. Constituíam estes os seus pensamentos, que lhe diziam que ela era<br />

moça fina <strong>de</strong> luxo, rica, viajando com a família cidadoa. Gente acima <strong>de</strong> sua<br />

iguala. Mostravam-se esses os amores suspirosos do rapaz geralista que se<br />

entretinha repetindo: “Minha-Menina, a Mocinhazinha, Sinhá-Linda...” Em<br />

pouco tempo, já o vaqueiro tomava gosto pelo viver carnal, orientado por<br />

aqueles outros da lida. Ia sempre com os novos companheiros procurar as “tias,<br />

Lin<strong>de</strong>lena, a Tomásia e a Conceição. Com pouco, veio atormentar a calma do<br />

Lélio a figura da Jini, amásia do Tomé Cássio. Era essa uma rapariguinha que<br />

lhe tirava o fôlego, o que não formava correto pela amiza<strong>de</strong> com o amigo. A<br />

Jini, “seus olhos sumo ver<strong>de</strong>-ver<strong>de</strong>, que cresciam e tudo tapavam, maiores do<br />

que pessoa”. É, não <strong>de</strong>via, mas podia, ao menos, pensar. E ele a revia, “no<br />

figuro da mulatinha cor <strong>de</strong> violeta que mandava em todas as partes on<strong>de</strong> batia<br />

seu sangue”. Havia também as moças solteiras casadouras, a Mariinha e a<br />

Manuela. Mas a verda<strong>de</strong>ira intenção do autor não se podia alcançar. Que estaria<br />

imaginando Rosa ao <strong>de</strong>sfazer <strong>de</strong> todo interesse do rapaz com relação às moças<br />

do Pinhém? E não se via nem chegavam sequer notícias da Menina <strong>de</strong> Paracatu.<br />

E entrara no texto uma senhora muito sensata, cordial e conselheira <strong>de</strong> Lélio.


Corpo <strong>de</strong> Baile: <strong>de</strong> Miguilim a Miguel ___________________________________ Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães 59<br />

O começo já arremeda uma artimanha do escritor, <strong>de</strong>clarando que Lélio<br />

encontrara no caminho “uma mocinha”, que não era uma mocinha, e que Lélio<br />

não se assustou ao vê-la retornar a cara, mostrando a face <strong>de</strong> uma velha. Era a<br />

Lina, que estava <strong>de</strong> costas, quando ele a avistou pela primeira vez. Daí para a<br />

frente, o reconto se fixa na filial amiza<strong>de</strong> do boia<strong>de</strong>iro pela velhinha, e com<br />

certeza algo muito especial se escon<strong>de</strong> atrás da trama, para ser <strong>de</strong>svendado,<br />

porque há insinuações <strong>de</strong> que Lélio <strong>de</strong>clarara a si mesmo que “o conhecimento<br />

<strong>de</strong>la po<strong>de</strong>ria puxar lembrança comprida”. No mais, das moças do lugar, a<br />

Manuela era noiva do Canuto, mas este a ofereceu ao Lélio, por já ter se<br />

servido <strong>de</strong>la. E <strong>de</strong>pois se casou com a mesma. Restou a Mariinha para que o<br />

vaqueiro firmasse sua vida naqueles gerais escondidos. Mas Rosa não tinha<br />

inclinação para acabar bem suas estórias, e fê-la apaixonar-se pelo seo Senclér.<br />

E seu Senclér e a sua linda e elegante esposa, a dona Rute, iam-se embora. E a<br />

Mariinha teve um <strong>de</strong>scompasso nas <strong>de</strong>spedidas e gritou que queria que a<br />

levassem junto. Mas a justeza <strong>de</strong> caráter do homem e a fidalguia da mulher<br />

fizeram a caravana tocar, “admitindo-se um estado <strong>de</strong> silêncio. E todos respeitaram,<br />

como se tivesse havido ali uma morte ou um acontecimento <strong>de</strong> louco”.<br />

Vê-se que a estória guarda outras interpretações, quando se percebe que o<br />

escritor põe nos fechos a <strong>de</strong>bandada dos principais figurantes do texto. Dona<br />

Rosalina, a Lina, vai-se embora para o Peixe-Manso, pois conhecia o dono<br />

<strong>de</strong>la, e, <strong>de</strong> repente, o Lélio se <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> a acompanhá-la muito praze<strong>rosa</strong>mente.<br />

“– Que é que você vai fazer com uma velha às costas? Mas você não se<br />

arrepen<strong>de</strong> não, meu Mocinho? Vão falar que você roubou uma Velhinha<br />

velha!.” – insinua Lina. “– Mãe, vamos!” Foram. “Olharam para trás: a estrela<br />

Dalva saiu do chão e brilhou, enorme.” Se estivéssemos lendo uma daquelas<br />

estórias infantis, po<strong>de</strong>ríamos jurar que por um passe <strong>de</strong> mágica a velhinha se<br />

<strong>de</strong>sencantaria em uma belíssima donzela e se casaria com o Lino.<br />

Era do gosto <strong>de</strong> Rosa <strong>de</strong>ixar o leitor às voltas com <strong>de</strong>cisões inesperadas<br />

nos enredos <strong>de</strong> suas estórias. Não se encontra um <strong>de</strong>senrolar tranqüilo nos<br />

idílios das novelas que compõem sua obra. No livro Corpo <strong>de</strong> Baile, suce<strong>de</strong>m-se<br />

casos e tramas as mais diversas, mas o homem não afrouxa a mão. Todas se<br />

distanciam do corriqueiro <strong>de</strong> finais venturosos. Até mesmo no Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />

Veredas, encontramos um forte exemplo <strong>de</strong>ssa teimosia do escritor <strong>de</strong> excluir<br />

finais alegres e felizes para seus contos e romances. Por que, na batalha final,<br />

quando Reinaldo sangra o satanás dos sertões, o Hermógenes, Guimarães Rosa<br />

não salvou Diadorim para <strong>de</strong>svestir-se em mulher e casar-se com Riobaldo? Ela<br />

mesma, em tempos passados, não havia insinuado ao Tatarana: “– Riobaldo, o<br />

cumprir <strong>de</strong> nossa vingança vem perto... Daí, quando tudo estiver repago e


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refeito, um segredo, uma coisa, vou contar a você...” (p. 324, II v. O. C, Nova<br />

Aguilar). Mas o jagunço não captou a mensagem. Quem sabe, se ele tivesse<br />

insistido na revelação <strong>de</strong>ste segredo, a estória teria tido outro fim? Um final<br />

feliz, talvez, se Rosa o tivesse permitido!<br />

O Recado do Morro é uma viagem pelo interior mineiro, lembrando<br />

alguns estudiosos que o enredo po<strong>de</strong> formar uma estória <strong>de</strong>senvolvida por<br />

pessoas que encarnam uma alegoria da formação do país. É que caminham em<br />

excursão um naturalista estrangeiro, um religioso e um homem ajuizado e <strong>de</strong><br />

muita cabeça. Daí as comparações com os <strong>de</strong>sbravadores do Brasil. Esses<br />

personagens que participam da estória são rica e cuidadosamente <strong>de</strong>scritos por<br />

Guimarães Rosa, a partir do guia, enxa<strong>de</strong>iro Pedro Orósio, o Pê-Boi, homem<br />

imenso, que “nem lhe faltavam cinco centímetros para ter o talhe <strong>de</strong> um<br />

gigante”; o “seo Alquiste ou Olquiste, um alemão-rama – espigo, <strong>de</strong> cabelo e<br />

barba <strong>de</strong> milho mais a cara <strong>de</strong> barata <strong>de</strong>scascada”. Via-se que era <strong>de</strong> fora. Era<br />

doutor, sim, dos bons. Queria levar o Pê-Boi com ele. Na verda<strong>de</strong>, esse Pê-Boi,<br />

que ia <strong>de</strong>scalço à frente do heterogênio grupo, <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m, mostrava<br />

excelente fôlego: era capaz <strong>de</strong> levantar do chão um jumento arreado. Atrás <strong>de</strong>le<br />

vinham os três patrões, “gente <strong>de</strong> pessoa”. Ao lado do seo Alquiste, um fra<strong>de</strong><br />

louro – frei Sinfrão, e mais o seu Jujuca do Açu<strong>de</strong>, fazen<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> gado. Derra<strong>de</strong>iro,<br />

um camarada também a cavalo e que permanecia tangendo os burros<br />

cargueiros. A viagem percorre fazendas e segue bor<strong>de</strong>jando morros e contornando<br />

escarpas e colinas. A nomenclatura <strong>de</strong>ssas fazendas está fixada na<br />

astrologia. Cada fazen<strong>de</strong>iro e seus vaqueiros também tinham nomes relacionados<br />

com os dias da semana – mesmo em língua estrangeira. Estabeleceu-se<br />

correlação entre Apolinário (Apolo), Nhá Selena (Lua), Marciano (Marte), Nhô<br />

Hermes (Mercúrio), Jove (Zeus), dona Vininha (Venus) e Juca Saturnino<br />

(Saturno). O autor aconselha a que se cui<strong>de</strong> da astrologia, da filosofia e da<br />

poesia para uma boa interpretação do texto.<br />

O recado que o morro transmitia era um grito surdo, audível e entendido<br />

apenas pelos ouvidos <strong>de</strong>sgovernados <strong>de</strong> personagens aloucados. Na verda<strong>de</strong>, a<br />

notícia que o recado traduzia em sua toada reveladora era uma <strong>de</strong>nuncia <strong>de</strong><br />

trama urdida contra o Pê-Boi, o Pedro Orósio, e que <strong>de</strong>veria culminar com sua<br />

morte. Essa mensagem é <strong>de</strong>clarada pelo Gorgulho, em linguagem <strong>de</strong>sconexa e<br />

fragmentada, quando esse estranho morador <strong>de</strong> uma gruta, uma espécie <strong>de</strong><br />

ermitão, afirma tê-la escutado do morro. É um aviso <strong>de</strong> traição, i<strong>de</strong>ntificado por<br />

uma caveira, misturado com festivida<strong>de</strong>, e que envolveria o Pedro Orósio. O<br />

anunciante era “um homenzinho terém-terém, pon<strong>de</strong>radinho no andar, todo<br />

arcaico”, diz o escritor. A mensagem é passada pelo perturbado raciocínio <strong>de</strong>


Corpo <strong>de</strong> Baile: <strong>de</strong> Miguilim a Miguel ___________________________________ Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães 61<br />

um louco e segue adiante por outros <strong>de</strong>mentes até chegar aos ouvidos do<br />

Lau<strong>de</strong>lin, cantor e compositor, um sujeito “alegre e avulso”, que o interpreta<br />

em seus versos. O final da estória dá-se em Cordisburgo, on<strong>de</strong> haveria as<br />

comemorações religiosas. Nominedomine, o Santos Olhos, se atreveu a subir ao<br />

altar e fazer terríveis previsões <strong>de</strong> final dos tempos, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> repicar loucamente<br />

os sinos. Mas antes que se tomassem providências, chegaram os fra<strong>de</strong>s, e<br />

o frei Florduardo bastou levantar a mão e acalmou-se o apocalíptico pregador.<br />

Pedro Orósio tinha uma gran<strong>de</strong> sauda<strong>de</strong> dos seus campos-gerais. Só se<br />

garantia em po<strong>de</strong>r voltar para a lin<strong>de</strong>za do território on<strong>de</strong> nascera. E ali,<br />

guardava olhos apenas para as moças. Era um conquistador inveterado, e por<br />

causa disto provocava a inveja e o ciúme <strong>de</strong> todos os homens, razão por que<br />

estava sendo jurado <strong>de</strong> morte. Em frente ao hotel do Sinval, on<strong>de</strong> o Lau<strong>de</strong>lin<br />

governava, foi que se ouviu sua mais recente “composição”, que <strong>de</strong>u ao Pê-Boi<br />

o exato enredo da mensagem. E o homem virou mesmo foi um bicho feroz:<br />

“Morrer à traição? Toma, cão!” E foi só o que se viu, logo <strong>de</strong>pois que o Nemes<br />

gritou: “Pega, mata logo, gente, o bruto já <strong>de</strong>sconfiou! Melhor matar logo!” E o<br />

Pedro acordou para <strong>de</strong>bandar o grupo, sovando e rachando homem, achatando e<br />

pisando num e noutro. Foi uma guerra <strong>de</strong> todos contra um, mas acabou com<br />

Pedro Orório se recompondo. Quase rindo, ainda perguntou: “Terei matado<br />

algum?” Daí, mesmo com a noite, esquipou, abriu pernas. Mediu o mundo. Por<br />

tantas serras, pulando <strong>de</strong> estrela em estrela, até aos seus gerais (o que nos faz<br />

lembrar o Gigante das Botas <strong>de</strong> Sete Léguas, da literatura infantil). Heloísa<br />

Vilhena interpreta o final da novela como se o Pê-Boi tivesse morrido, o que se<br />

justifica, pois Rosa <strong>de</strong>ixou sua obra aberta a juízos, os mais diversos.<br />

Em Cara <strong>de</strong> Bronze, o escritor inova, <strong>de</strong>senvolvendo uma narrativa<br />

teatral. As conversas dialogadas são o ponto alto, além das muitas intervenções<br />

<strong>de</strong> trovas, na exaltação poética sistemática do buriti e das boiadas. Há uma<br />

intenção sombreada em suas criações, vendo-se citadas, em análise, as estrofes<br />

<strong>de</strong> Dante – Inferno XIII, 64-65 e Purgatório XXXII, 148 a150.<br />

O Grivo é o personagem que abre a estória, ao chegar à fazenda-<strong>de</strong>-gado,<br />

a maior, no meio, no Urubuquaquá. Vencendo um oceano <strong>de</strong> urucúias, montes,<br />

fundões e brejos, apeia o viajante, naqueles dias <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro, quando a<br />

chusma <strong>de</strong> vaqueiros operava a apartação do gado. E daí se abrem as conversas<br />

intermináveis. Os vaqueiros são tantos, com nomes mesmo <strong>de</strong> vaqueiros: Zazo,<br />

José Uéua, Adino, Mainarte, Muçapira, Raimundo Pio e Fi<strong>de</strong>lis, Moimeichego<br />

e o Cicica. E começam a inquirir sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do Cara-<strong>de</strong>-Bronze, dono<br />

da Fazenda, e como era mesmo que ele se chamava? – Segisbé, Jizisbéu<br />

Saturnim Velho, confirma o vaqueiro Adino, que era antigo na fazenda. E tudo


62 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

e sobre tudo conversavam e queriam tomar conhecimento. Por on<strong>de</strong> andara o<br />

Grivo, nesses dois anos <strong>de</strong> caminhar, sob or<strong>de</strong>ns do Cara-<strong>de</strong>-Bronze? “Subiu<br />

serras, terras tristes, caminho mau... beirou a caatinga alta, semi<strong>de</strong>iros. Sertão<br />

seco, lagoas secas...” Mas o bem mandado não esbarrou viagem. Chegou a<br />

topar com a Inhorinhá, mulher fácil, personagem que iria reaparecer lá no<br />

Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, sendo um dos amores <strong>de</strong> Riobaldo. E o Grivo po<strong>de</strong>ria<br />

até mais tar<strong>de</strong> se arrepen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> não a prezar, mas tocou viagem, pois estava era<br />

a mando do Cara-<strong>de</strong> Bronze. Falava-se que o Grivo tinha se casado, e que<br />

“trouxe a mulherzinha <strong>de</strong>le, até... Que <strong>de</strong>ixou a moça na Virada, em casa <strong>de</strong><br />

Dona Zesuína...” mas que a mulher era para o fazen<strong>de</strong>iro. É o que seria a<br />

verda<strong>de</strong>? Até o final da estória, não se teve a comprovação da notícia, embora o<br />

Cara-<strong>de</strong>-Bronze tivesse perguntado ao Grivo: “Como é a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> moça – que<br />

moça noiva recebe, quando se casa?” E ele respon<strong>de</strong>u: “É uma re<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>,<br />

branca, com varandas <strong>de</strong> labirinto...” Mais uma vez, o leitor terá que pôr os<br />

arremates nos enredos <strong>de</strong> Rosa, interrompidos, assim, sumariamente.<br />

A fantástica novela, Buriti, que o autor chama <strong>de</strong> romance, e que revive<br />

em carne e osso a figura <strong>de</strong> Miguel, o Miguilim <strong>de</strong> Campo Geral, já mereceu<br />

interpretações <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s críticos. Os cuidados que Rosa teve no capítulo<br />

inicial, quando introduziu a família <strong>de</strong> seo Bernardo Caz, a família Cessim Caz,<br />

não estão claros no texto que dá continuida<strong>de</strong> à estória <strong>de</strong> Miguilim.<br />

Buriti se inicia, quando o moço Miguel, formado em veterinária, retorna<br />

à fazenda do Buriti Gran<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> o iô Liodoro reina absoluto. Ali ele estivera<br />

antes, e prometera voltar. Sob a proteção e comando do fazen<strong>de</strong>iro estão as<br />

mulheres da casa, suas duas filhas, Maria da Glória e Maria Behu, e a nora<br />

Dona Lalinha, a Leandra, cujo marido, iô Irvino, parece que endoidara, pois<br />

fugiu com outra mulher. Dizemos que ele per<strong>de</strong>u o juízo, porque a mulher é<br />

<strong>de</strong>scrita como <strong>de</strong> uma beleza estonteante. Há um personagem <strong>de</strong>ntro do enredo,<br />

como não podia faltar às estórias <strong>de</strong> Rosa, o Mestre Zequiel, que não dormia e<br />

vigiava o monjolo noite e dia.<br />

A novela é narrada por uma terceira voz, que muito sabe do rapaz<br />

visitante e <strong>de</strong> outros personagens secundários, e que em <strong>de</strong>terminado momento,<br />

assumem a cena principal do texto, como o Nhô Gualberto Gaspar. É este um<br />

homem que se faz amigo <strong>de</strong> Miguel, mas que vem tumultuar a estória com seu<br />

jeito sarcástico <strong>de</strong> ser, e que <strong>de</strong>svirtua a trama. E o fazen<strong>de</strong>iro vizinho sempre<br />

se mantém por perto, armando uma petulância, um modo um tanto falso <strong>de</strong><br />

proce<strong>de</strong>r. Depois da chegada do jovem rapaz à fazenda do Buriti Gran<strong>de</strong>, o<br />

encontro <strong>de</strong> Miguel com os seus moradores e o envolvimento sentimental <strong>de</strong>le<br />

com a Glorinha, num momento fugaz, porém <strong>de</strong> um certo entendimento entre


Corpo <strong>de</strong> Baile: <strong>de</strong> Miguilim a Miguel ___________________________________ Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães 63<br />

os jovens, há a promessa <strong>de</strong> que o rapaz voltaria. Antes <strong>de</strong> vê-la, com a sua<br />

timi<strong>de</strong>z, pressentiu-a na sala, e segurou o olhar, nem mesmo sabendo por que a<br />

evitava. Dentro dos poucos dias que permaneceu na fazenda, cuidando dos<br />

animais e vacinando o gado, fazia-se necessário um impulso <strong>de</strong> coragem, para<br />

levar os olhos a Maria da Glória, pois receava que ela pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>scobrir tudo o<br />

que ele sentia e <strong>de</strong>le zombasse. E Miguel pensava, mais tar<strong>de</strong>, que se pu<strong>de</strong>sse<br />

amaria Maria da Glória “<strong>de</strong>satinadamente, tão a bom esmo, dia vale dia. Amar,<br />

não pensando com palavras, sem tomar memória” E ele ainda se disse:<br />

“Quando encontrei Maria da Glória, aqui, foi como se terminasse, <strong>de</strong> repente,<br />

uma gran<strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>, que eu não sabia que existia.”<br />

As estórias <strong>de</strong>ntro do romance Buriti são inúmeras. Vai crescer um<br />

enredo muito elaborado, <strong>de</strong> paixão fulminante. Tudo leva à realização <strong>de</strong> um<br />

sentimento que envolve duas criaturas essenciais no texto: Lalinha, a nora, e o<br />

iô Liodoro, o pai <strong>de</strong> iô Irvino, Os dois jogavam cartas todas as noites, e houve<br />

um momento em que se viram envolvidos <strong>de</strong>ntro da trama que Rosa criou para<br />

gran<strong>de</strong> interesse <strong>de</strong> seus leitores. As emoções caminharam em um crescendo,<br />

com ritmo emocionante, mas, no exato instante em que tudo <strong>de</strong>veria consumarse,<br />

chega uma carta do marido <strong>de</strong>saparecido, contando do nascimento <strong>de</strong> um<br />

filho seu. E o fazen<strong>de</strong>iro reverte a situação, enviando <strong>de</strong> volta à cida<strong>de</strong> a<br />

mulher que quase o faz cair, e levar a família à <strong>de</strong>sonra.<br />

O retorno <strong>de</strong> Miguel à fazenda marca o início da novela, e que se<br />

<strong>de</strong>senrola sem sua presença. Ele chega <strong>de</strong> coração aberto. E vai ao encontro <strong>de</strong><br />

sua amada, Glorinha, mas que não era mais aquela donzela que prometera um<br />

dia esperá-lo, <strong>de</strong>srespeitada, agora, pelo traidor Nhô Gualberto Gaspar. E o<br />

romance não finda como a do Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, que diz: “Aqui a estória<br />

se acabou. Aqui a estória acabada. Aqui a estória acaba”. Miguel, Miguilim,<br />

não aparecerá mais em outros textos. A estória se acabou? On<strong>de</strong> encontrar<br />

ainda a personagem ímpar, humil<strong>de</strong>, bondosa e cativante que cresceu homemhumano<br />

e que não se saberá jamais se encontrou, <strong>de</strong> fato, a gloria <strong>de</strong> sua vida, e<br />

a realização <strong>de</strong> seu amor, nos belos braços da Glorinha, da fazenda do Buriti<br />

Gran<strong>de</strong>?<br />

Corpo <strong>de</strong> Baile é uma arca <strong>de</strong> preciosida<strong>de</strong>s. A linguagem, a criação <strong>de</strong><br />

estilo e a forma personalizada do dizer sertanejo emolduram a idéia que se<br />

firma na erudição do autor, buscada na filosofia, na metafísica e na poesia.


64 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

ROSA, João Guimarães. Corpo <strong>de</strong> Baile – Rio <strong>de</strong> Janeiro: José Olympio<br />

Editora, 1960.<br />

IN MEMORIAM, JOÃO GUIMARÃES ROSA. Rio <strong>de</strong> Janeiro: José Olympio<br />

Editora, 1968.<br />

ROSA, João Guimarães. Ficção Completa – I e II vols.: Rio <strong>de</strong> Janeiro, Editora<br />

Nova Aguilar S.A., 1994.<br />

VILHENA, Heloisa Araújo. O Roteiro <strong>de</strong> Deus: São Paulo, Mandarim, 1996.<br />

ROSA, João Guimarães. Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas – 5ª ed., Rio <strong>de</strong> Janeiro: José<br />

Olympio Editora,1967.


A INQUIETANTE ESTRANHEZA EM<br />

A TERCEIRA MARGEM DO RIO*<br />

Marco Aurélio Baggio**<br />

Este conto monotemático é o mais insólito, estúrdio e perturbador <strong>de</strong><br />

toda a obra <strong>de</strong> João Guimarães Rosa. Nenhum rio possui uma terceira margem.<br />

Ao propor isso, Guimarães Rosa comete um absurdo. Um excessus linguae.<br />

Típico <strong>de</strong> Rosa, geógrafo das fronteiras, literato capaz <strong>de</strong> extrapolá-las pela<br />

fulguração da linguagem, criando uma geografia psíquica expandida e<br />

inusitada. Provocativo, o título do conto incita os neurônios do leitor logo a se<br />

perguntar e a querer saber:<br />

– O que quer dizer “a terceira margem do rio?”.<br />

O real, a p<strong>rosa</strong>ica realida<strong>de</strong> serve <strong>de</strong> base para o autor construir sua<br />

elucubração. A linguagem comporta a criação <strong>de</strong> um mundo ficcional,<br />

i<strong>de</strong>alístico e fictício, que ultrapassa aquilo que o bom senso chancela como<br />

sendo o meramente possível.<br />

O rio é um fluxo perene <strong>de</strong> água <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> suas fontes. Segue o<br />

trajeto <strong>de</strong> menor resistência, sinuoso embora, rumo a seu <strong>de</strong>stino, o mar. Ele é<br />

contigenciado por duas margens contra as quais se esbatem suas torrentes.<br />

Disso resulta apenas um <strong>de</strong>slizar, um fluxo escoante para diante. Então o que é,<br />

on<strong>de</strong> está, para que serve, o que significa a estranha terceira margem do rio?<br />

Devaneio ficcional <strong>de</strong> uma mente fértil? Po<strong>de</strong> ser que.<br />

Metáfora transcen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> uma irrealida<strong>de</strong> presumida?<br />

“Jogue o texto para o alto, o mais alto possível e você acertará”,<br />

recomendava Guimarães Rosa a seus tradutores: Edoardo Bizzarri, Curt Meyer-<br />

Clason, Jean-Jacques Villard, Harriet <strong>de</strong> Onis.” “Persigo sempre as formas<br />

mais altas”.<br />

* Palestra proferida na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em 21 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008, <strong>de</strong>ntro da Semana Cultural<br />

Guimarães Rosa, comemorativa do seu centenário <strong>de</strong> nascimento.<br />

** Psiquiatra. Psicanalista. Presi<strong>de</strong>nte da Arcádia <strong>de</strong> Minas Gerais. Autor do livro Um abreviado do<br />

Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, 2ª ed. Santa Clara, 2006.


66 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Segundo Agnucha, sua segunda filha Agnes, Guimarães Rosa era espiritualista,<br />

apreciador do hinduísmo e <strong>de</strong> Krishnamurti. Ele afirmou: “Eu creio<br />

firmemente em ressurreição e no infinito. Reporto-me ao transcen<strong>de</strong>nte. Sou<br />

profundamente, essencialmente religioso. Sou místico, pelo menos acho que<br />

sou. Vivo no infinito; o momento não conta”.<br />

Este é o quadro sinóptico das crenças e das convicções do maior escritor<br />

brasileiro/português. Para ele, o mundo é mágico e o mistério está sempre<br />

aguardando um milagre para se resolver.<br />

Um autor bem menor, mas com a mesma cepa <strong>de</strong> buscar conhecer o real<br />

e o absoluto, vai aqui interpretar o que quer significar “a terceira margem do rio.”<br />

A primeira margem do rio é aquela na qual nascemos, crescemos e estamos<br />

como sujeito-a-nós-mesmos. Aqui nos situamos, com nosso embornal <strong>de</strong><br />

apetrechamentos, ávidos do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> buscar algo mais, melhor, postado lá,<br />

alhures, na e para diante da segunda margem do rio. Os objetos <strong>de</strong> nossos<br />

<strong>de</strong>sejos, emergentes <strong>de</strong> nossas incompletu<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> nossas carências, imploram<br />

para serem amortizados ou mesmo preenchidos por novos objetos <strong>de</strong><br />

completu<strong>de</strong> indicados pela concupisciência <strong>de</strong> nossos <strong>de</strong>sbragados <strong>de</strong>sejos.<br />

Desejo é um renitente nostálgico que está sempre hiante, aberto, a buscar<br />

o objeto qualquer, porém a<strong>de</strong>quado, capaz <strong>de</strong> encaixar-se e preencher a carência<br />

do sujeito. Para tanto, o indivíduo terá que ousar arrostar a correnteza e a<br />

profundida<strong>de</strong> do rio, atravessando-o, com medo e com coragem, em bamba<br />

canoa. Do lado <strong>de</strong> lá, na segunda margem do rio, a pessoa encontra e locupletase<br />

do outro – semelhante-<strong>de</strong>ssemelhante – novida<strong>de</strong>iro, <strong>de</strong>safiante e, ao mesmo<br />

tempo, completador e enriquecedor. Constitui-se assim uma corriqueira trama<br />

<strong>de</strong> vida. Então por quê, on<strong>de</strong> está a terceira margem do rio?<br />

Vamos especular. Todo ser vivo <strong>de</strong>ve uma morte à natureza. A teleologia,<br />

a finalida<strong>de</strong> da vida é a morte pessoal do façanhudo sujeito. Viver é, a cada<br />

momento, aproximar-se mais da própria morte. A morte é a única interrogação<br />

séria a ser feita por quem é vivo. O evento futuro da morte pessoal é o motor <strong>de</strong><br />

todas as cogitações filosóficas.<br />

O pai – semiologicamente tido por louco, leproso, calado, silencioso,<br />

possuído por vertigens – nada disso o <strong>de</strong>fine. O pai é a sã consciência lúcida da<br />

assunção da angústia – do estreitamento das livres disponibilida<strong>de</strong>s do ser<br />

vivente. Resolve antecipar-se ao inexorável <strong>de</strong>stino tomando atitu<strong>de</strong> para todos<br />

incognoscível. Seu comportamento é estranho, insólito, inapreensível para<br />

todos nós, aqueles que, meramente, utilizam o rio como vau <strong>de</strong> passagem<br />

daqui-prali e <strong>de</strong> lá pra cá. O pai posta-se em canoa no meio da corrente do rio.<br />

Instala-se parado em meio ao fluxo incessante. Compõe a paralisia do ser em


A inquietante estranheza em A Terceira Margem do Rio ___________________________ Marco Aurélio Baggio 67<br />

pleno movimento das águas roladoras. O pai cria um <strong>de</strong>lírio fluvial, a um só<br />

tempo estático – em permanência parada – e extático – encantado, suspenso por<br />

sobre si e por sobre o mundo sensível, por efeito <strong>de</strong> uma convicção do temor<br />

reverente e arrebatador do <strong>de</strong>stino que é a espera da própria morte. O pai<br />

maravilhou-se com aquilo – a morte – que sempre, todos nós, arredamos <strong>de</strong><br />

nós, o mais possível. A morte para nós, p<strong>rosa</strong>icos barranqueiros, é a encarnação,<br />

a entronização do mal em escala maior. A morte é o maior mal que, um<br />

dia, irá nos engolfar.<br />

“Mire veja: o que é ruim, <strong>de</strong>ntro da gente a gente perverte sempre por<br />

arredar mais <strong>de</strong> si. Para isso é que o muito se fala?”.<br />

O pai encantou-se com seu <strong>de</strong>stino – a morte. Foi cumpri-lo em vida. Aí,<br />

o insólito, o inusitado, a estranheza. O inquietante para todos nós.<br />

Para nós, os ripuários, aqueles que vivem vagabun<strong>de</strong>antes, ora numa ora<br />

noutra margem do rio, a atitu<strong>de</strong> do pai causa uma Unheimlich - uma inquietante<br />

estranheza.<br />

O feito do pai tem por mérito o ter sido feito. Seu motivo, seu propósito é<br />

postar-se na contramão da cultura. Ele involuiu, regrediu, em um ousado<br />

<strong>de</strong>smanche do mundo da cultura. Cria um escandaloso possível. Provoca um<br />

brutal choque com o p<strong>rosa</strong>ico bem-posto. Insere-se em isolamento evi<strong>de</strong>nte, no<br />

entanto, pública e explícitamente. A um só tempo, visível e inacessível. O pai<br />

pioneiro, encantado e obstinado, assume a travessia que todo homem terá que<br />

fazer – <strong>de</strong> má vonta<strong>de</strong> embora – do momento presente ao <strong>de</strong>vir, visando a<br />

cumprir sua alta tarefa, qual seja, ir <strong>de</strong> encontro com o não-ser, mergulhar na<br />

dissolução da morte. Trata-se <strong>de</strong> mera vicissitu<strong>de</strong> característica da biologia. A<br />

morte apenas, sem mistificação.<br />

Muitos sempre quiseram e querem edulcorar a morte como sendo algo<br />

metafísico, transcen<strong>de</strong>nte, e, até, metempsicótico. João Guimarães Rosa é um<br />

crente nesses tipos <strong>de</strong> transcendência. Tais concepções místicas e mistificadas<br />

são belas e altamente consoladoras.<br />

Como tudo que é i<strong>de</strong>alista e imaginário cria, sempre, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

uma estética baseada no mistério. Parece que parcela da humanida<strong>de</strong> está<br />

prestes a se cansar <strong>de</strong> acreditar em <strong>de</strong>uses. Muitos preferem creditar ao homem<br />

– ao vero homem humano – com suas vicissitu<strong>de</strong>s e suas trampolinagens os<br />

fenômenos e os fatos da vida. Do divinolente, da divinatorieda<strong>de</strong> é necessário<br />

cometer-se um salto mortale e <strong>de</strong>scair todo no plano do humano, simplesmente<br />

humano: Pirlimpsiquice.<br />

Voltemos ao centro do rio. Rio po<strong>de</strong> ser palavra mágica para conjugar<br />

futuro. Rio é via, estrada, vereda, caminho, um dos lugares possíveis <strong>de</strong> trânsito


68 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

para o Viator, para o homem viajante, sempre insatisfeito com aquilo que o<br />

constitui e que conforma seu ser. Assim, parte, aventuroso, rumo ao excitante<br />

novida<strong>de</strong>iro renovador enriquecedor. Caminhar é preciso.<br />

Tudo muda o tempo todo nas águas do rio, tal qual Heráclito afirmou.<br />

Não se banha os pés pela segunda vez na mesma água do rio. O cosmos está em<br />

mudança constante.<br />

Nada muda por sobre as águas do rio, tal qual, afirmou Parmêni<strong>de</strong>s. O<br />

pai feitoriza a imobilida<strong>de</strong>. “Pai calado, rio calado.” Insere a paralisia no<br />

movimento.<br />

O pai, ativa e solitariamente, fun<strong>de</strong>-se em simbiose ao rio, <strong>de</strong> uma forma<br />

inexplicável e inexprimível.<br />

Aos 14 anos, o enfezado e incompreendido esquizói<strong>de</strong> Joãozito <strong>de</strong>cidiu<br />

<strong>de</strong>itar e nunca mais se levantar. Dado biográfico relatado por ele, João Rosa<br />

(8).<br />

O pai, com sua <strong>de</strong>finição, cria uma aporia, uma dificulda<strong>de</strong> filosófica<br />

para o filho e para todos os <strong>de</strong>mais. Ao inovar em comportamento, o pai gera<br />

um dilema: o quê torna-se interrogação: – Por quê?<br />

Esta é a paixão do filho. Ele é colocado em drama, em busca inútil para<br />

obter uma explicação ou uma justificação para o feito do pai. Debal<strong>de</strong>. O filho<br />

<strong>de</strong>senvolvera um comportamento <strong>de</strong> apego para com o pai. Complexo <strong>de</strong> Édipo<br />

mais especial apego, vinculou o filho em admiração ao pai. Um potente liame<br />

uniu o filho ao pai, mediante um familiar processo intrapsíquico <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação<br />

introjetiva.<br />

“Mas, por afeto mesmo, <strong>de</strong> respeito, sempre que às vezes me louvavam,<br />

por causa <strong>de</strong> algum meu bom procedimento, eu falava: – “Foi pai que um dia<br />

me ensinou a fazer assim...”; o que não era o certo, exato, mas, que era mentira<br />

por verda<strong>de</strong>”.<br />

Todo o acervo intrapsíquico <strong>de</strong> boa qualida<strong>de</strong> que o filho colecionara<br />

estava referido ao exemplo e ao ensinamento do pai. Houvera sintonia entre<br />

os dois: “Espiou manso para mim, me acenando <strong>de</strong> vir também por uns<br />

passos”. O filho acatou internamente o convite do pai, mas se conteve por<br />

temor da mãe.<br />

“Não cito (os autores que leio), mas absorvo”. Assim se explica Guimarães<br />

Rosa.<br />

Os mecanismos <strong>de</strong> operação psíquicos <strong>de</strong> preenchimento do vazio em<br />

tabula rasa do psiquismo infante são, em seqüência, comer o seio, comer a mãe,<br />

comer o outro, o que se conceitua, em psicodinâmica, como sendo incorporação;<br />

imitar os a<strong>de</strong>manes do outro, o que se <strong>de</strong>nomina introjeção.


A inquietante estranheza em A Terceira Margem do Rio ___________________________ Marco Aurélio Baggio 69<br />

A apropriação por parte do ego do sujeito <strong>de</strong> atributo ou proprieda<strong>de</strong> do<br />

mundo externo, o qual se instala, tal qual, a partir daí, em seu psiquismo, é<br />

conceituado, em psicanálise, como sendo internalização.<br />

Em estágio mais avançado, o filho <strong>de</strong>senvolve uma i<strong>de</strong>ntificação<br />

introjetiva maciça para com seu pai, tornando-se como sujeito psíquico, em<br />

gran<strong>de</strong> parte igual/tal qual à imagem e parecença do pai. Faltou-lhe tão somente<br />

o encantamento e a coragem <strong>de</strong> ir “da parte <strong>de</strong> além” No momento <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão<br />

faltou-lhe tutano. A não se <strong>de</strong>ixar encantar, aterrorizou-se com “o além.”<br />

“Ah, a algum, isso é que é, a gente tem <strong>de</strong> vassalar”.<br />

Quem melhor senão ao bom pai?<br />

“Nosso pai era homem cumpridor, or<strong>de</strong>iro, positivo; do que eu mesmo<br />

me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros,<br />

conhecidos nossos. Só quieto.” A atitu<strong>de</strong> do pai <strong>de</strong> se internar em canoa <strong>de</strong><br />

vinhático na terceira margem do rio – seu permanente fluxo – esticou o<br />

psiquismo do filho até gerar um estado persistente e impregnante <strong>de</strong> angústia.<br />

Ficou capturado na teia paterna. Não encontrando explicação para a trama, o<br />

filho ficou a<strong>de</strong>rido à gosma da servidão, restando-lhe prestar vassalagem ao<br />

gran<strong>de</strong> senhor do rio. Encarregou-se <strong>de</strong> abastecer o pai dos alimentos e das<br />

roupas <strong>de</strong> que ele, pai, vinha <strong>de</strong>sentocar, para se manter vivo enquanto as<br />

forças não lhe faltassem.<br />

“Mostrei o <strong>de</strong> comer, <strong>de</strong>positei num oco <strong>de</strong> pedra do barranco, a salvo <strong>de</strong><br />

bicho mexer e a seco <strong>de</strong> chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos<br />

a fora.”<br />

Os anos passaram. “Os tempos mudavam, no <strong>de</strong>vagar <strong>de</strong>pressa dos<br />

tempos.” “Eu fiquei aqui, <strong>de</strong> resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu<br />

permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia <strong>de</strong> mim, eu sei – na<br />

vagação, no rio no ermo – sem dar razão <strong>de</strong> seu feito”.<br />

Fixado no pai, fisgado por sua postura imperscrutável, fascinado por sua<br />

misteriosa e inquietante atitu<strong>de</strong>, o filho permanece capturado pelo mandato <strong>de</strong><br />

nutrir e <strong>de</strong> zelar, no possível, pelo espectro do pai. É assim que o filho adquire<br />

uma forte e significativa razão <strong>de</strong> ser e <strong>de</strong> viver. Este, seu emprego e sua<br />

profissão, malgré elle même.<br />

O filho torna-se uma versão vassala, submissa <strong>de</strong> um pai portentoso em<br />

sua inovação. Assim, pouco evoluído no que tange a erigir sua própria<br />

pessoalida<strong>de</strong>, o filho adquire cabelos brancos e torna-se homem <strong>de</strong> tristes<br />

palavras. Castrado por não po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>sabrochar suas livres disponibilida<strong>de</strong>s ao<br />

não seguir vida própria, por seu querer governada, o filho é invadido pela<br />

culpa.


70 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

“De que era que eu tinha tanta, tanta culpa?”<br />

Por hipótese, po<strong>de</strong>mos supor um afluente <strong>de</strong> culpa <strong>de</strong>rivada do<br />

empecilho <strong>de</strong> o filho não vir-a-ser aquilo que po<strong>de</strong>ria ter sido. Culpa <strong>de</strong> não ser<br />

o que se pu<strong>de</strong>sse querer vir-a-ser. Essa, a culpa endógena.<br />

O outro manancial <strong>de</strong> culpa, provém do contato constante <strong>de</strong> apego do<br />

filho ao pai, ao participar ativamente do drama. O tempo é o infiel <strong>de</strong> todas as<br />

traições. “Ah, o tempo é o mágico <strong>de</strong> todas as traições...” escreve Guimarães<br />

Rosa no conto O espelho, que é o articulador e o fulcro <strong>de</strong>ste tratado pessoal <strong>de</strong><br />

filosofia <strong>de</strong> que trata Primeiras Estórias. O tempo corrói a disponibilida<strong>de</strong> e a<br />

boa vonta<strong>de</strong> do filho. Como a correnteza ero<strong>de</strong> o casco da canoa poitada em<br />

três décadas.<br />

Sabe-se que a culpa é péssima conselheira. Ela <strong>de</strong>strói, por impregnação,<br />

as capacida<strong>de</strong>s do sujeito tomar atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> avanço e <strong>de</strong> auto-realização. Culpa<br />

diminui e acovarda a pessoa. Além disso, é inesgotável se não for carpida em<br />

a<strong>de</strong>quado processo <strong>de</strong> luto.<br />

Se o pai se acha na terceira margem do rio, o filho, por sua vez, se per<strong>de</strong><br />

postado na primeira margem. Vivia <strong>de</strong>pletado: “esta vida era só o <strong>de</strong>moramento.”<br />

O filho sabe <strong>de</strong> sua impotência. O drama po<strong>de</strong> resvalar para o falimento,<br />

para a tragédia.<br />

Guimarães Rosa emprega, a meu ver, apenas três termos inusitados no<br />

conto. Neologismos? Nem por isso.<br />

Diluso quer dizer vislumbrado, entrevisto, pouco nítido.<br />

Bubuiasse é bubuiar, boiar ao sabor da corrente, sobrenadar. Provém do<br />

tupi: be’bui – algo leve, flutuante.<br />

Tororoma, do tupi toro´rom, significando corrente fluvial forte e ruidosa.<br />

Nada <strong>de</strong> neologismos. Apenas o conhecimento <strong>de</strong> línguas.<br />

“Eu não escrevo difícil. EU SEI O NOME DAS COISAS”. Eis o que<br />

afirma <strong>de</strong> modo categórico nosso querido escritor.<br />

A mãe tem papel marginal na estória. “Nossa mãe era quem regia,”<br />

“Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente<br />

alva <strong>de</strong> pálida, mascou o beiço e bramou:<br />

“– Cê vai, ocê fique, você nunca volte!”<br />

“– Cê vai” é aceitação da resolução <strong>de</strong> um íntimo, o marido.<br />

“– Ocê fique” é o tratamento explícito a um outro diferente.<br />

“– Você nunca volte!” é a exclamação <strong>de</strong> protesto pela rejeição<br />

inflingida a ela, “nossa mãe”, que assim rompe <strong>de</strong> vez com ele, marido, pai:<br />

“você.”


A inquietante estranheza em A Terceira Margem do Rio ___________________________ Marco Aurélio Baggio 71<br />

“Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura;”<br />

Tempos <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong>sistida “Nossa mãe terminou indo também, <strong>de</strong> uma<br />

vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida.” A mãe cumpre a sina <strong>de</strong><br />

porcentagem <strong>de</strong> mulheres que acolhem o sexo do homem, procriam e, lá um<br />

dia, são abandonadas por ele, com a prole.<br />

As mulheres são tratadas, muitas vezes, como um belo complemento. Os<br />

homens fazem o que querem, no fim e ao cabo.<br />

Po<strong>de</strong>-se agora examinar a terceira margem do rio comparando-o com<br />

alguns mitologemas.<br />

Noé recebeu aviso do próximo dilúvio e o mandato <strong>de</strong> construir a arca. O<br />

pai não recebeu nenhuma revelação profética. Apenas teve o insight, a iluminação<br />

súbita <strong>de</strong> que <strong>de</strong>via uma morte à natureza. E <strong>de</strong>cidiu cumpri-la.<br />

Caronte é o barqueiro autorizado a transportar as almas dos mortos em<br />

sua barca pelo rio Aqueronte, que era a porta <strong>de</strong> entrada dos infernos. O pai<br />

transportava apenas a si mesmo em um rio largo e comum.<br />

Apenas que, é bom lembrar, todo rio em Guimarães Rosa possui três<br />

margens.<br />

Ulisses, o Odisseu navegador, cometeu uma enorme seqüência <strong>de</strong> peripécias<br />

e participou <strong>de</strong> <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> aventuras. Suas navegações caracterizam pela<br />

intencionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir sempre adiante, numa constante impermanência. O pai é<br />

bem mais p<strong>rosa</strong>ico. Sua peripécia envolve apenas a si e ao filho, subsidiariamente.<br />

Sua odisséia é mínima, porém mais perturbadora e inquietante.<br />

Iô, a peregrina transformada em novilha por Zeus, seu amante, <strong>de</strong>u nome<br />

ao golfo <strong>de</strong> Jônio e ao Bósforo – “Passagem da vaca” – em suas andanças<br />

tentando fugir das perseguições <strong>de</strong> Hera, ciumenta esposa <strong>de</strong> Zeus, pouco tem a<br />

ver com a monomania fluvial do Pai. Des<strong>de</strong> Millôr Fernan<strong>de</strong>s, sabe-se que Bos/<br />

Ox significa boi; Foro/Ford é estreito. Assim, Bósforo e Oxford é o estreito do<br />

boi ou, mitologicamente, a passagem da vaca Iô.<br />

Prometeu, o façanhudo raptor do fogo dos <strong>de</strong>uses e doador do fogo aos<br />

homens, era “aquele que pensa antes <strong>de</strong> cometer o feito.” Nisso, o pai certamente<br />

equivale a este herói da mitologia grega.<br />

Por fim, uma <strong>de</strong>ida<strong>de</strong> simbólica grega – Tánatos – personificava o fim da<br />

existência humana. Tánatos ou a Morte é a representação da reintegração do ser<br />

no poço ctônico cósmico, retornando, átomo por átomo, ao repositório da mãenatureza.<br />

Tánatos expressa o <strong>de</strong>smantelamento das formas, em um catabolismo<br />

em dissolução, num retorno ao estado seminal da existência.<br />

É nesse sentido que, certamente, o pai fora possuído pela iluminação<br />

súbita <strong>de</strong> que chegara o momento <strong>de</strong> postar-se em A terceira margem do rio.


72 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Ele intuiu, mais antecipadamente que nós, que era hora <strong>de</strong> vivenciar o eterno<br />

ainda em vida. Coisa a que se propôs o filho, em hora extrema e que não teve<br />

substância, homência <strong>de</strong> substituir o pai na canoa. “Ele que parecia vir: da parte<br />

<strong>de</strong> além.”<br />

“Temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo.”<br />

Mais um fracasso, mais uma traição ao pai. A gente jamais cuida<br />

totalmente do outro querido. A morte, qualquer morte, é um libelo que <strong>de</strong>nuncia<br />

nossas falhas. O filho rompe o vínculo, quebra a comparsaria que manteve,<br />

por anos, com o pai. A culpa aumenta em conseqüência, transmuda-se:<br />

“Sofri o grave frio dos medos, adoeci.” Psicossomatizou em sintomas <strong>de</strong><br />

tristeza e <strong>de</strong> falimento pessoal.<br />

Por fim, se constituiu em negativo, em melancolia: “sou o que não foi,”.<br />

Melancolia <strong>de</strong>corre da perda <strong>de</strong> um bem concreto, alegórico, imaginário ou da<br />

or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> um valor.<br />

Perda acarreta tristeza. Tristeza é o sentimento a-menos <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong><br />

um bem amado que se foi. “Sei que ninguém soube mais <strong>de</strong>le.”<br />

O objeto <strong>de</strong> fascínio, <strong>de</strong> apego ao qual está i<strong>de</strong>ntificado, perpetra um<br />

feito estúrdio. Cria um dilema: ou o abandona, como fizeram “nossa mãe, a<br />

filha, o irmão.” Ou atreve-se a partilhar a experiência do impon<strong>de</strong>rável e do<br />

ignoto. Para obter o saber do pai será necessário entrar só na canoa, em<br />

substituição ao <strong>de</strong>sgrenhado e macilento fantasma do pai. A inquietante<br />

estranheza da <strong>de</strong>caída figura do pai, transitando pela margem da morte, é<br />

<strong>de</strong>mais para quase todos nós. Sejamos compassivos para com a fuga do filho.<br />

Só João Guimarães Rosa obteve autorização para lidar com essas extremas<br />

dimensões. Ele soube usar sua língua pessoal na plenitu<strong>de</strong> da função <strong>de</strong><br />

produzir uma realida<strong>de</strong> sublimada.<br />

Todo ser humano tem uma canoa em meio ao rio a sua espera em áurea<br />

hora. Auroras.<br />

A gente morre para provar que viveu.<br />

Alguns querem, com pertinência, ler e enten<strong>de</strong>r o conto A terceira<br />

margem do rio como sendo a façanha <strong>de</strong> Rosa tornar a língua portuguesa<br />

consciente <strong>de</strong> si mesma, assumindo função produtora <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> ficcional e<br />

<strong>de</strong> criação <strong>de</strong> mundos possíveis. No que tange à primeira margem do idioma<br />

português, ele está voltado para o mar oceano e está inserido nas bibliotecas. A<br />

segunda margem é dada pelos sertões brasileiros, com sua linguagem mais rica<br />

e mais formosa. Dessas duas margens, Guimarães Rosa insinua/vislumbra uma<br />

terceira margem lingüística que é o campo <strong>de</strong>sbravado para se fazer um pensar<br />

novo, mais síntono com as complexida<strong>de</strong>s da vida <strong>de</strong> hoje. A obra em monu-


A inquietante estranheza em A Terceira Margem do Rio ___________________________ Marco Aurélio Baggio 73<br />

mento <strong>de</strong> João Guimarães Rosa cuida <strong>de</strong> criar uma língua própria, pessoal,<br />

enormemente enriquecedora das duas margens da língua portuguesa-brasileira.<br />

Rosa é o feiticeiro da língua, inovador e renovador do idioma. Possui o<br />

porte <strong>de</strong> um Dante, <strong>de</strong> um Camões, <strong>de</strong> um Cervantes, <strong>de</strong> um Shakespeare.<br />

Duas palavras ainda. As concepções <strong>de</strong> Sigmund Freud ( ). atravessaram<br />

o século XX e umas três dúzias <strong>de</strong>las mantém-se como fecundas bases para se<br />

pensar aspectos do psiquismo do homem.<br />

O fato <strong>de</strong> que se po<strong>de</strong> interpretar “A terceira margem do rio” a partir <strong>de</strong><br />

uma visão não <strong>de</strong>vocional da transcendência humana, permite escoimar o conto<br />

<strong>de</strong> boa parte <strong>de</strong> suas abstrusida<strong>de</strong>s. O que fiz foi buscar sua hermenêutica<br />

utilizando o falquejo, o <strong>de</strong>sbastamento das formas misteriosas, <strong>de</strong>smentindo os<br />

milagres que não se vê nem se pega e que, infelizmente, nem sequer acontecem.<br />

Já é hora <strong>de</strong> creditar a atuação do espírito humano sem edulcorações,<br />

balangandãs ou penduricalhos.<br />

Sem culpa.<br />

Com reverência ao autor forte antecessor.<br />

Com a dignida<strong>de</strong> do autor menor sucessor.


74 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS


MIGUILIM: UMA OUTRA EPOPÉIA<br />

DE JOÃO GUIMARÃES ROSA*<br />

Alaor Barbosa**<br />

Ter sido convocado pela <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> para falar sobre<br />

João Guimarães Rosa em uma ocasião tão grata – a comemoração do<br />

centenário do seu nascimento – constitui-se em um dos mais importantes<br />

acontecimentos da minha já longa trajetória <strong>de</strong> perseverante lidador – o sábio<br />

Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> diria lutador – com palavras. É comovido que<br />

agra<strong>de</strong>ço à <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> por me haver proporcionado a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta<br />

honrosíssima participação. Aqui compareço com aquele sentimento que me<br />

vem e com aquela atitu<strong>de</strong> que adoto toda vez que a<strong>de</strong>ntro e piso terras <strong>de</strong> Minas<br />

ou com o mundo <strong>de</strong> Minas me ponho em algum tipo <strong>de</strong> relação direta:<br />

sentimento <strong>de</strong> profunda reverência e atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> vigilante atenção. Reverência,<br />

primeiro porque Minas representa, para mim, a <strong>de</strong>nsa e profunda região da<br />

latência das minhas lembranças indiretas, certamente plantadas no meu<br />

inconsciente por meus ancestrais mineiros: do lado do meu pai, minhas raízes<br />

afundam até ao trisavô do meu pai, um português Barbosa transplantado para a<br />

zona dos contrafortes da Serra da Canastra, habitante nas terras do Espírito-<br />

Santo-da-Forquilha, ao lado da atual represa <strong>de</strong> Peixotos, no rio Gran<strong>de</strong>, perto<br />

da divisa com São Paulo. Por esse fortíssimo motivo, em chão <strong>de</strong> Minas sinto a<br />

presença nas camadas mais profundas do meu ser <strong>de</strong> obscuras forças e<br />

indistintas lembranças querendo aflorar à tona da consciência: algo assim como<br />

um rever mais do que ver, um tornar a sentir o já sentido, um reviver o vivido.<br />

Reverência também porque foi em Minas que surgiram e principalmente<br />

atuaram algumas das principais personalida<strong>de</strong>s que muito e permanentemente<br />

* Palestra proferida na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, na tar<strong>de</strong>-noite <strong>de</strong> 21 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008, quinta-feira,<br />

<strong>de</strong>ntro da Semana Cultural Guimarães Rosa, comemorativa do seu centenário <strong>de</strong> nascimento.<br />

**Escritor, advogado. Resi<strong>de</strong> em Brasília.


76 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

me têm influído no espírito. Atenção, porque sei que em Minas e <strong>de</strong> Minas<br />

po<strong>de</strong>-se sempre haurir nutritivas e alentadoras lições: basta po<strong>de</strong>r e saber ver,<br />

ouvir, ler. Dentre as nume<strong>rosa</strong>s lições com que muito se po<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r na terra<br />

– relevem-me incidir no lugar-comum <strong>de</strong> evocar representativos venerandos<br />

nomes, mas somente alguns daqueles que já saíram do convívio dos vivos – na<br />

terra <strong>de</strong> Cláudio Manoel da Costa, Aleijadinho, Ataí<strong>de</strong>, Bernardo Vasconcelos,<br />

Bernardo Guimarães, Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens, Vital Brasil Mineiro <strong>de</strong> Campanha,<br />

Carlos Chagas, Juscelino Kubitschek <strong>de</strong> Oliveira, Carlos Drummond <strong>de</strong><br />

Andra<strong>de</strong>, João Guimarães Rosa e Tancredo <strong>de</strong> Almeida Neves, saliento<br />

principalmente duas. A primeira: a do amor às coisas do espírito. Em Minas são<br />

totalmente e a<strong>de</strong>quadamente amadas e praticadas as duas ativida<strong>de</strong>s que mais<br />

criam e dignificam o Homem: a Arte e a Ciência. A outra lição é a <strong>de</strong> três virtu<strong>de</strong>s<br />

que, exigindo-se reciprocamente, na prática se adunam: coragem, sem a<br />

qual nada se faz <strong>de</strong> válido nesta vida, e prudência e perseverança, com as quais<br />

a coragem se exercita. Foi com coragem, prudência e perseverança que os<br />

gran<strong>de</strong>s homens <strong>de</strong> Minas, tão numerosos, construíram o seu fecundo,<br />

benéfico, positivo legado. Repetindo, pois, o magistral poeta <strong>de</strong> Itabira que<br />

tanto tem me ensinado vida a fora, reverentemente eu peço: “Espírito <strong>de</strong> Minas,<br />

me visita” com “teu claro raio or<strong>de</strong>nador”.<br />

Os dicionários <strong>de</strong>finem o termo epopéia como narrativa <strong>de</strong> ações heróicas.<br />

Essa <strong>de</strong>finição remete ao conceito <strong>de</strong> ação heróica. Que é ação heróica?<br />

Que é heroísmo? O dicionário Caldas Aulete, ao <strong>de</strong>finir heroísmo, comete o<br />

erro <strong>de</strong> colocar na <strong>de</strong>finição o mesmo conceito a ser <strong>de</strong>finido: diz que heroísmo<br />

é “qualida<strong>de</strong> do que é heróico” e dá <strong>de</strong> heróico esta <strong>de</strong>finição: “próprio <strong>de</strong><br />

herói, em manifesta heroicida<strong>de</strong>, que <strong>de</strong>nota heroísmo”. Felizmente, <strong>de</strong> herói<br />

ele fornece <strong>de</strong>finição clara: “homem notável pelas suas qualida<strong>de</strong>s extraordinárias,<br />

pelo seu valor e coragem acima do vulgar, pelas altas qualida<strong>de</strong>s guerreiras,<br />

atos <strong>de</strong> bravura, magnanimida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>nodo, etc.”.<br />

Reflitamos.<br />

Do conceito <strong>de</strong> herói po<strong>de</strong>-se inferir que não é somente a posse <strong>de</strong> “altas<br />

qualida<strong>de</strong>s guerreiras” que constitui a essência distintiva do herói: para ser<br />

herói, basta possuir “qualida<strong>de</strong>s extraordinárias”, “valor e coragem acima do<br />

vulgar”. Portanto, herói é quem possui qualida<strong>de</strong>s bastantes para viver –<br />

vencendo o medo, que é um fenômeno natural – as diversas situações que se<br />

lhe se apresentam em seu viver diário. Essa idéia se ajusta e serve à minha<br />

concepção <strong>de</strong> heroísmo. Pois há muito tempo que eu penso que po<strong>de</strong> haver<br />

autêntico heroísmo, por exemplo, em um homem que, mesmo vivendo vida<br />

humil<strong>de</strong>, realiza, a cada dia, as suas tarefas e obrigações e enfrenta, com


Miguilim: uma outra epopéia <strong>de</strong> João Guimarães Rosa ___________________________________ Alaor Barbosa 77<br />

coragem ou com superação do medo, os <strong>de</strong>safios inerentes à vida. Sendo o<br />

homem, e é, na exata formulação <strong>de</strong> Ortega y Gasset, ele e sua circunstância,<br />

bem po<strong>de</strong> acontecer que, vivendo uma vida comum e sem portentosos,<br />

extraordinários acontecimentos, não tenha nunca ocasião <strong>de</strong> atuar com outra<br />

gran<strong>de</strong>za que a <strong>de</strong> ser válido e eficaz conforme as pequenas circunstâncias em<br />

que lhe <strong>de</strong>corre a vida; mas esse homem po<strong>de</strong> ser, penso eu, consi<strong>de</strong>rado herói.<br />

O seu heroísmo é que é o verda<strong>de</strong>iro heroísmo <strong>de</strong> que necessita o Homem.<br />

Aquela outra espécie <strong>de</strong> heroísmo – o das virtu<strong>de</strong>s guerreiras – po<strong>de</strong> ser,<br />

alguma vez, uma necessida<strong>de</strong> inelutável. Mas pertence à Pré-História do<br />

Homem. Pré-História em que ainda <strong>de</strong>scontrolados navegamos, e que ainda<br />

estaremos a atravessar, muito infelizes, enquanto houver guerras, explorações e<br />

alienações em nossa vida individual e em nossa vida nacional e internacional.<br />

Quanto a mim, alimento no meu incansável espírito a esperança <strong>de</strong> que o<br />

Homem termine superando, mas não sei quando, esta fase teneb<strong>rosa</strong> da sua<br />

trajetória e venha a erigir como valores primaciais da sua vida o trabalho<br />

construtivo, a abnegação e a solidarieda<strong>de</strong> em lugar da coragem que serve à<br />

<strong>de</strong>strutivida<strong>de</strong> bélica. Quando o Homem valorizar <strong>de</strong> modo certo e justo o<br />

verda<strong>de</strong>iro heroísmo humano, estará enfim livre da tendência e prática atuais <strong>de</strong><br />

imaginar <strong>de</strong>uses e heróis com que entreter suas esperanças e i<strong>de</strong>ais.<br />

Finalmente, mais uma observação preliminar: a epopéia literária na sua<br />

forma antiga e tradicional <strong>de</strong>sapareceu há muito tempo <strong>de</strong> quase todas as<br />

literaturas, e foi substituída e sucedida por um novo tipo <strong>de</strong> epopéia – em que<br />

não existem, embora possam existir, heróis na também antiga concepção <strong>de</strong><br />

heroísmo. Eu disse “quase” por me lembrar do caso da brasileira epopéia que<br />

se chama Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, – uma meia exceção solitária no panorama<br />

literário oci<strong>de</strong>ntal dos últimos 300 anos. A <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira epopéia do Oci<strong>de</strong>nte foi,<br />

aliás, uma anti-epopéia: a daquele estranho, pobre e lamentável herói, ou antiherói,<br />

cuja história principia com aquelas palavras famosas que sabemos: “En<br />

un lugar <strong>de</strong> La Mancha, <strong>de</strong> que no quiero acordarme...” Na epopéia mo<strong>de</strong>rna,<br />

sucessora da antiga, o personagem herói foi substituído pelo “personagem<br />

principal”, que, muita vez, não passa <strong>de</strong> um anti-herói, ou mesmo um nãoherói:<br />

uma personalida<strong>de</strong> vencida. Posso citar duas epopéias <strong>de</strong>ssas: uma,<br />

Ilusões perdidas, <strong>de</strong> Honoré <strong>de</strong> Balzac, conta a história <strong>de</strong> um personagem<br />

per<strong>de</strong>dor, Lucien <strong>de</strong> Rubempré; a outra, Crime e castigo, <strong>de</strong> Fiódor<br />

Doistoievski, narra também a trajetória <strong>de</strong> um personagem, Raskólnikov,<br />

igualmente <strong>de</strong>rrotado, mas que consegue se redimir graças ao advento <strong>de</strong> um<br />

amor salvador em sua dramática vida. Riobaldo Tatarana, o protagonista mor<br />

Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, também po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado, apesar dos seus


78 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

momentos <strong>de</strong> corajosa atuação guerreira, uma personalida<strong>de</strong> vencida: um<br />

per<strong>de</strong>dor.<br />

Escrevendo sobre Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas quase 30 anos atrás, <strong>de</strong>i ao<br />

meu livro este título: A epopéia brasileira ou: Para ler Guimarães Rosa. Com<br />

efeito, Gran<strong>de</strong> Sertão:Veredas é uma narrativa com alguns elementos próprios<br />

<strong>de</strong> epopéia. Mas não é, evi<strong>de</strong>ntemente, uma epopéia na forma clássica <strong>de</strong><br />

epopéia. É um romance escrito em p<strong>rosa</strong> – p<strong>rosa</strong> que em inúmeros passos se faz<br />

intensamente poética. Não tem, da epopéia convencional, a proposição, a<br />

invocação às Musas, a <strong>de</strong>dicatória. Ainda bem. Invocar as Musas é uma bobagem<br />

que hoje em dia se po<strong>de</strong> apenas relevar e perdoar em poetas vítimas dos<br />

antigos erros, ilusões e enganos intelectuais da Humanida<strong>de</strong> – os quais,<br />

infelizmente, prosseguem existindo m nossa época. Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas é<br />

uma epopéia original, diferente das <strong>de</strong>mais epopéias antigas: já é uma epopéia<br />

mo<strong>de</strong>rna. Falta-lhe mesmo um outro ingrediente para po<strong>de</strong>r enquadrar-se nos<br />

mol<strong>de</strong>s convencionais do gênero épico: a nobreza da origem do herói protagonista.<br />

De fato, esse requisito parece participar <strong>de</strong> quase todas as narrativas<br />

que, nas diversas literaturas nacionais, têm sido classificadas <strong>de</strong> épicas. O<br />

principal (pois não é o único) herói <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, o jagunçopoeta-filósofo<br />

Riobaldo Tatarana, é um homem <strong>de</strong> origem muito humil<strong>de</strong>: filho<br />

bastardo <strong>de</strong> um fazen<strong>de</strong>iro, Selorico Men<strong>de</strong>s, com uma mulher humílima (até<br />

no apelido, Bigri), habitante <strong>de</strong> um lugarzinho perdido no sertão <strong>de</strong> Minas<br />

Gerais, perto do rio <strong>de</strong> São Francisco.<br />

Mas Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas não é a única epopéia escrita por João<br />

Guimarães Rosa. Das outras narrativas que ele produziu, algumas po<strong>de</strong>m ser<br />

também classificadas como epopéias, se examinadas à luz do reconceito, por<br />

mim proposto, <strong>de</strong> epopéia. Dentre tais narrativas, sobressaem as novelas dos<br />

dois volumes integrantes do livro Corpo <strong>de</strong> baile, editado no ano <strong>de</strong> 1956,<br />

poucos meses antes <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas. Aqui, hoje, nesta tar<strong>de</strong>-noite<br />

para mim inesquecível, vou me referir especialmente à novela-poema-romance<br />

“Campo geral”, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a primeira leitura, em 1958 (há, portanto, 50 anos!),<br />

passei a referir simplificadamente com o nome Miguilim. Miguilim é um hipocorístico<br />

<strong>de</strong> Miguel (que em Goiás, observo, seria Miguelim ou Miguelzim).<br />

Observemos, entre parênteses, um pormenor dotado <strong>de</strong> alguma significação:<br />

Guimarães Rosa, que tudo fazia com intenções, chama as peças que<br />

compõem Corpo <strong>de</strong> Baile, sob o título da página <strong>de</strong> rosto, <strong>de</strong> “Sete novelas”; no<br />

sumário, ele as classifica <strong>de</strong> “Os poemas”; e no sumário colocado no fim do 2º<br />

volume – no qual divi<strong>de</strong> o livro em duas partes, em que as peças se suce<strong>de</strong>m<br />

em or<strong>de</strong>m alternada, diversamente da da seqüência dos volumes, uma intitulada


Miguilim: uma outra epopéia <strong>de</strong> João Guimarães Rosa ___________________________________ Alaor Barbosa 79<br />

“Gerais” e a outra “Parábase” – ele classifica <strong>de</strong> “Os romances” as novelas<br />

“Campo geral”, “A estória <strong>de</strong> Lélio e Lina”, “Dão-Lalalão” e “Buriti”, e <strong>de</strong><br />

contos as novelas “Uma estória <strong>de</strong> amor”, “O Recado do Morro”, “Cara <strong>de</strong><br />

Bronze”. Vamos repetir, recapitulando: a estória <strong>de</strong> Miguilim em “Campo<br />

geral” é classificada por João Guimarães Rosa, sucessivamente, <strong>de</strong> novela, <strong>de</strong><br />

poema, <strong>de</strong> romance.<br />

Certa vez, talvez no ano <strong>de</strong> 1961, conversando com João Guimarães<br />

Rosa no seu gabinete <strong>de</strong> trabalho, no Palácio do Itamaraty, no Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

cometi uma ousadia, bem própria do rapazinho <strong>de</strong> 21 anos que eu era: a <strong>de</strong><br />

afirmar a ele que a sua mais perfeita criação literária era Miguilim. Reparei bem<br />

na atenção seriíssima que Guimarães Rosa prestou à minha afirmação. Ele me<br />

indagou logo se eu pensava mesmo aquilo: “Você acha mesmo, Alaor?” Eu<br />

confirmei que sim. Ele me pareceu – no seu profundo silêncio meditativo –<br />

intensamente sensibilizado por minha afirmativa. Hoje eu não faria afirmação<br />

assim tão peremptória. Digo, sim, que Miguilim é uma das melhores e mais<br />

comovedoras criações literárias <strong>de</strong> João Guimarães Rosa.<br />

A estória <strong>de</strong> Miguilim menino passa no lugar <strong>de</strong>nominado Mutum<br />

(vocábulo que Guimarães Rosa acentua com acento agudo), nos Gerais <strong>de</strong><br />

Minas. Em outra novela, “A estória <strong>de</strong> Lélio e Lina”, informa-se que o lugar<br />

mais perto <strong>de</strong> Mutum é Barra-da-Vaca – atualmente Arinos: no Noroeste <strong>de</strong><br />

Minas, não muito longe (cerca <strong>de</strong> cem quilômetros) do atual Parque Nacional<br />

Gran<strong>de</strong> Sertão Veredas. Barra-da-Vaca foi um porto no rio Urucúia. Fica a<br />

poucos quilômetros abaixo do porto <strong>de</strong> Morrinhos, que também é mencionado<br />

em Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas. O Urucuia, <strong>de</strong>ve-se registrar, é o rio mais falado<br />

<strong>de</strong>ntro do universo das estórias <strong>de</strong> Guimarães Rosa.<br />

Falo <strong>de</strong> Miguilim menino porque existe também, em Corpo <strong>de</strong> Baile,<br />

uma outra novela, “Buriti”, em que reaparece o personagem Miguilim já adulto<br />

e vivendo, sem o saber, um trecho que po<strong>de</strong> ser (ou não) terrível transe em sua<br />

vida. Formado em veterinária, mora em Belo Horizonte e exerce a profissão no<br />

sertão <strong>de</strong> Minas. Ele volta à fazenda Buriti Bom, <strong>de</strong> Iô Liodoro, a fim <strong>de</strong> se<br />

casar com uma filha <strong>de</strong>le, Maria da Glória. Ele a conhecera um ano e pouco<br />

antes ali no Buriti Bom. Prometera voltar. A novela começa contando a volta<br />

<strong>de</strong>le: inocentemente ignorante <strong>de</strong> marcantes fatos acontecidos <strong>de</strong>pois que ele<br />

voltara para Belo Horizonte.<br />

Po<strong>de</strong>rá alguém contradizer-me argumentando: “Campo geral” é romance,<br />

é novela, é poema, é drama e é tragédia, epopéia é que não. Este é um argumento<br />

forte, pon<strong>de</strong>rável, do ponto <strong>de</strong> vista da estrutura e aci<strong>de</strong>ntes dos gêneros<br />

literários. Argumento, <strong>de</strong> resto, oponível também à classificação <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong>


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Sertão: Veredas como epopéia. Ocorrem dramas e tragédias durante aquele<br />

breve trecho <strong>de</strong> vida – pedaço da infância – <strong>de</strong> Miguilim, um menino ultrasensitivo<br />

nascido nos Gerais <strong>de</strong> Minas. A mãe <strong>de</strong>le, “que era linda e com os<br />

cabelos pretos e compridos”, não ama o marido, Bero, Bernardo: ela ama<br />

mesmo o cunhado Terêz, irmão <strong>de</strong>le. Bero nota e briga com ela constantemente.<br />

Parece que Miguilim é filho mesmo não daquele que atua como seu pai,<br />

mas sim do Tio Terêz. Além disso, a mãe parece que tem uma relação<br />

suspeitável com um empregado do casal, Luisaltino. O pai <strong>de</strong> Miguilim acaba<br />

matando Luisaltino. Logo em seguida, o pai <strong>de</strong> Miguilim suicida. A tia da mãe<br />

<strong>de</strong> Miguilim, chamada Vovó Izidra (por ser irmã da mãe da mãe <strong>de</strong> Miguilim,<br />

que se chamava Vó Benvinda e, quando moça, fora prostituta, “mulher atôa),<br />

vê e compreen<strong>de</strong> tudo o que acontece e toma posições firmes e pratica atos e<br />

profere palavras incisivas em favor da moralida<strong>de</strong> que se impõe necessária no<br />

âmbito daquela dramática família. Mas Vovó Izidra não tem forças para<br />

impedir a consumação dos dramas e tragédias. São incontroláveis as causas dos<br />

acontecimentos. Um <strong>de</strong>les, a morte do irmãozinho dileto <strong>de</strong> Miguilim, Dito, um<br />

precoce conhecedor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>s da vida, um sábio-mirim, um menino filósofo.<br />

Expedito morre novinho, com seus seis-sete anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, vítima <strong>de</strong> tétano<br />

contraído ao cortar o pé em um caco <strong>de</strong> pote <strong>de</strong> barro. Mesmo Miguilim<br />

atravessa uma doença que o paralisou na cama durante longo tempo e quase o<br />

matou também. Sim, são numerosos, simultâneos e sucessivos. Dramas<br />

tremendos, tragédias terríveis.<br />

A narrativa é uma formidável epopéia <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> gente humil<strong>de</strong>, obscura,<br />

pobre, em um lugar dos Gerais <strong>de</strong> Minas. Aquela familiazinha é uma gente<br />

<strong>de</strong>sprotegida. Tem o pai, Bero <strong>de</strong> Cássio, a mãe, os irmãos Dito, Drelina, Chica<br />

e Tomezinho, a Vovó Izidra, o Tio Terêz, uma preta, Mãitina, que vem do<br />

tempo da escravidão, o vaqueiro Luisaltino. O pai <strong>de</strong> Miguilim nem é o dono<br />

da terra on<strong>de</strong> mora, mas sim empregado do dono da fazenda. Miguilim tem oito<br />

anos quando começa a narrativa. O pai cuida das plantações e do gado,<br />

trabalhando junto com enxa<strong>de</strong>iros e vaqueiros. Ele tem dívida, que não po<strong>de</strong><br />

pagar, e recebe cobrança apertada. A vida é dura, ganhada no eito. A casa é<br />

pobre. Da precarieda<strong>de</strong> material da casa a narrativa fornece uma informação<br />

expressiva:<br />

– Daí <strong>de</strong>u trovão maior, que assustava. O trovão da Serra do Mutum-<br />

Mutum, o pior do mundo todo, – que fosse como podia estatelar os paus da<br />

casa.<br />

“Corda-<strong>de</strong>-vento entrava pelas gretas das janelas, empurrava água.<br />

Molhava o chão. Miguilim e Dito a curto tinham olho no teto, on<strong>de</strong> o barulho


Miguilim: uma outra epopéia <strong>de</strong> João Guimarães Rosa ___________________________________ Alaor Barbosa 81<br />

remoía. A casa era muito envelhecida, uma vez o chuvão tinha <strong>de</strong>sabado no<br />

meio do corredor, com um tapume do telhado. Trovoeira. Que os trovões a mau<br />

retumbavam”.<br />

A narração dos acontecimentos e as referências às coisas – casas <strong>de</strong><br />

morada, os eitos on<strong>de</strong> se trabalha, as roças, os morros, os matos, os cerrados, os<br />

animais domésticos, os bichos ferozes – tudo, enfim, na estória, se apresenta<br />

através da percepção e sensitivida<strong>de</strong> do menino Miguilim: coisas e acontecimentos<br />

são captações dos olhos e ouvidos <strong>de</strong> Miguilim. Todavia, a narrativa,<br />

misturando técnicas diversas, faz-se em completa liberda<strong>de</strong> em relação a<br />

rigi<strong>de</strong>zes estruturais: ora fala um narrador onisciente (“Um certo Miguilim<br />

morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui, muito <strong>de</strong>pois<br />

da Vereda-do-Frango-d’Água e <strong>de</strong> outras veredas sem nome ou pouco conhecidas,<br />

em ponto remoto, no Mutum”), ora mergulha a narrativa em memórias<br />

diretas (“A gente podia ficar tempo, era bom, junto com o gato Sossõe”; “Tudo<br />

era bom, às tar<strong>de</strong>s a gente a cavalo, buscando vacas”); ora fala rasgadamente na<br />

primeira pessoa singular (“Ah, o pai não ralhava – ele tinha <strong>de</strong>mudado, <strong>de</strong><br />

repente, soável risonho; mesmo tudo ali no instante, às asas; o ar, essas pessoas,<br />

as coisas – leve, leve, tudo <strong>de</strong>mudava simples, sem <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, o pai gostava <strong>de</strong><br />

mamãe”).<br />

Aqui, cabe uma hipótese. Pungente é a reconstituição, rica em gran<strong>de</strong>s e<br />

em miúdas verda<strong>de</strong>s, da infância <strong>de</strong> Miguilim, que é a infância <strong>de</strong> todos nós<br />

que nascemos no sertão ou nas imediações do sertão. O autor sucumbe às vezes<br />

ao impulso forte <strong>de</strong> fazer memória direta, até mesmo mediante a primeira<br />

pessoa singular. Talvez resida nisso uma das causas por que Guimarães Rosa,<br />

conforme confessou uma vez, não podia conter lágrimas <strong>de</strong> choro profundo<br />

quando relia a narrativa <strong>de</strong> Miguilim menino.)<br />

Mutum era um lugar muito isolado. Povoado e ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> muitas espécies<br />

<strong>de</strong> animais: bois (zebus e curraleiros, brabezas) e vacas e bezerros, cavalos<br />

e burros e mulas, porcos, galos e galinhas, cabritos, papagaios, rãs, cães, gatos,<br />

ratos, gambás, patos, galinhas-d’angola, iraras, teiús (em Goiás se pronuncia<br />

tiú), tamanduás, cobras <strong>de</strong> várias espécies (principalmente jibóia e sucuri,<br />

referida como sucuriú), formigas (salientemente as cabeçudas), tatus (tatu-peva,<br />

tatu-galinha, tatu-canastra), perdizes, seriemas, emas, marrecas-caboclas,<br />

abelhas-do-reino, abelhinhas, marimbondos. Havia lá numeras espécies <strong>de</strong><br />

bichos, alguns mesmo perigosos e ferozes: onça, lobo, raposa anta, macaco,<br />

caxinguelê (serelepe), sonhim, mico-estrela, veado (<strong>de</strong> várias espécies), paca,<br />

capivara, sapo, besouro. Nas árvores e no chão e no ar do céu, apareciam<br />

constantes pássaros e bichinhos: sanhaço, sabiá-do-peito-vermelho, tico-tico,


82 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

gaturamo, tucano, coruja, perua, periquito, arara, alma-<strong>de</strong>-gato, bem-te-vi,<br />

passo-preto, nhambu, maitaca (em Goiás: maritaca), pica-pau, gavião, morcego,<br />

guache (em Goiás se diz guacho), curió (Guimarães Rosa registra curiol),<br />

borboletas, mosquitos, vespas (ele diz: avespa), urubu, coruja-branca, vagalumes,<br />

maria-preta, patativo, canarinho-cabeça-<strong>de</strong>-fogo, papa-capim, encontro,<br />

tatoranas-ratas, lagartixas, minhocas... Nos corgos e ribeirões e rios, peixes:<br />

piaba, timburé, bagre....<br />

É o narrador quem conta:<br />

– Entretanto, Miguilim não era do Mutúm. Tinha nascido ainda mais<br />

longe, também em buraco <strong>de</strong> mato, lugar chamado Pau-Roxo, na beira do<br />

Saririnhém. De lá, separadamente, se recordava <strong>de</strong> sumidas coisas, lembranças<br />

que ainda hoje o assustavam.<br />

Dessas lembranças mais remotas do Pau-Rôxo, que o assustavam, “sumidas<br />

coisas”, uma era a <strong>de</strong> uma pedrada que um Menino Gran<strong>de</strong> lhe acertara na<br />

cabeça, na testa; outra, <strong>de</strong> um banho em sangue <strong>de</strong> tatu que lhe <strong>de</strong>ram para<br />

curá-lo <strong>de</strong> uma doença, “para ele po<strong>de</strong>r vingar”, ele “nu, <strong>de</strong>ntro da bacia”. Se<br />

recordava também <strong>de</strong> que “umas moças chei<strong>rosa</strong>s, limpas, os claros risos<br />

bonitos pegavam nele, o levavam para a beira duma mesa, ajudavam-no a<br />

provar, <strong>de</strong> uma xícara gran<strong>de</strong>, goles <strong>de</strong> um <strong>de</strong>-beber quente, que cheirava a<br />

clarida<strong>de</strong>”. Mais: “Depois, na alegria num jardim, <strong>de</strong>ixavam-no engatinhar no<br />

chão, meio àquele fresco das folhas, ele apreciava o cheiro da terra, das folhas,<br />

mas o mais lindo era o das frutinhas vermelhas escondidas por entre as folhas –<br />

cheiro pingado, respingado, risonho, cheiro <strong>de</strong> alegriazinha. As frutas que a<br />

gente comia. Mas a mãe explicava que aquilo não havia sido no Pau-Rôxo, e<br />

bem nas Pindaíbas-<strong>de</strong>-Baixo-e-<strong>de</strong>-Cima, a fazenda gran<strong>de</strong> dos Barbóz, aon<strong>de</strong><br />

tinham ido <strong>de</strong> passeio”.<br />

Miguilim, assim criado longe <strong>de</strong> tudo, não sabia o que é teatro e circo,<br />

coisas que mãe <strong>de</strong>le, no entanto, conhecera uma vez, parece que em uma vila, e<br />

tentou uma vez explicar a ele o que são.<br />

A mãe era natural do Quartel-Geral-do-Abaeté. O pai, <strong>de</strong> Buritis-do-<br />

Urucúia. (Será a atual Buritis, não muito distante <strong>de</strong> Arinos?)<br />

O pai <strong>de</strong> Miguilim é um homem difícil, susceptível <strong>de</strong> ficar nervoso e<br />

<strong>de</strong>sequilibrado por pouca coisa, mesmo com pequenos inci<strong>de</strong>ntes comuns da<br />

penosa vida diária <strong>de</strong> fazenda sertaneja. Assim, por exemplo, quando alguma<br />

rês se machuca rasgando a barriga nas pontas <strong>de</strong> uma aroeira. Miguilim,<br />

recordando, <strong>de</strong>põe:<br />

– Como o pai ficava furioso: até quase chorava <strong>de</strong> raiva! Exclamava que<br />

ele era pobre, em ponto <strong>de</strong> virar miserável, pedidor <strong>de</strong> esmola, a casa não era


Miguilim: uma outra epopéia <strong>de</strong> João Guimarães Rosa ___________________________________ Alaor Barbosa 83<br />

<strong>de</strong>le, as terras ali não eram <strong>de</strong>le, o trabalho era <strong>de</strong>mais, e só tinha prejuízo<br />

sempre, acabava não po<strong>de</strong>ndo nem tirar para sustento <strong>de</strong> comida da família.<br />

Não tinha posse nem para retelhar a casa velha, estragada por mão <strong>de</strong>sses<br />

ventos e chuvas, nem recurso para mandar fazer uma boa cerca <strong>de</strong> réguas, era<br />

só cerca <strong>de</strong> achas e paus pontudos, perigosa para a criação. Que não podia<br />

arranjar um garrote com algum bom sangue casteado, era só contentar com o<br />

Rio-Negro, touro do <strong>de</strong>mônio, sem raça nenhuma quase. Em, tanto nem<br />

conseguia remediar com qualquer zebu ordinário, touro cancréje, que é gado<br />

bravo, miúdo ruim leiteiro, <strong>de</strong> chifres gran<strong>de</strong>s, mas sempre é zebu mesmo, cor<br />

queimada, parecendo com o guzerate.<br />

E Miguilim acrescenta esta memória dura: “Dava vergonha no coração<br />

da gente, o que o pai assim falava”.<br />

Da relação tormentosa entre o pai e a mãe, Miguilim tinha percepções,<br />

entrevisões, vislumbres; e recebia informações da parte do irmãozinho Dito,<br />

bem mais enxergador e perspicaz do que ele. “– Pai está brigando com Mãe.<br />

Está xingando ofensa, muito, muito. Estou com medo, ele queira dar em<br />

Mamãe...” E Dito completou a informação: “– Eu acho, Pai não quer que Mãe<br />

converse mais nunca com o tio Terêz... Mãe está soluçando em pranto, <strong>de</strong>mais<br />

da conta”. Um dia, Miguilim viu a Vovó Izidra mandar tio Terêz embora da<br />

casa e advertir que era por causa daquela espécie <strong>de</strong> coisas que “há questão <strong>de</strong><br />

brigas e mortes, <strong>de</strong>smanchando com as famílias”. Outro dia, Miguilim ouviu o<br />

vaqueiro Luisaltino comentar com Mãe que era um erro pai casar filha com<br />

quem ela não quer; ele aludia ao casamento <strong>de</strong>la com o pai <strong>de</strong> Miguilim.<br />

Terminou acontecendo que tio Terêz saiu da casa e foi morar em outro lugar,<br />

no Tabuleiro-Branco; Dito, que soubera do fato por fala do vaqueiro Saluz, foi<br />

quem contou a Miguilim.<br />

Miguilim captava em fragmentos a realida<strong>de</strong> que se <strong>de</strong>senrolava em<br />

redor <strong>de</strong>le. Realida<strong>de</strong> muitas vezes dura, conflituosa, bruta mesmo. Ele e as<br />

<strong>de</strong>mais crianças percebiam, entreviam, sentiam, captavam notavam, viam a<br />

realida<strong>de</strong> entretecida <strong>de</strong> problemas entre as pessoas.<br />

Miguilim sofria com o que via e sabia. Lento é o seu processo <strong>de</strong> amadurecimento<br />

e autolibertação. Nesse processo, interferem e colaboram com o<br />

passar do tempo três acontecimentos que muito o marcaram: a morte do irmão<br />

Dito, a ruptura moral com o pai que tanto o rejeitava, a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> sair <strong>de</strong> casa.<br />

A morte <strong>de</strong> Dito foi um abalo em sua sensibilida<strong>de</strong>. Logo <strong>de</strong>pois ele compreen<strong>de</strong>u<br />

que <strong>de</strong>via ir embora daquela casa.<br />

Um acaso o ajudou a sair: apareceu um dia na fazenda um médico <strong>de</strong><br />

Curvelo, doutor José Lourenço, que logo ao chegar lhe <strong>de</strong>scobriu a miopia. Os


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óculos que o médico tirou <strong>de</strong> si e lhe pôs nos olhos lhe revelaram, <strong>de</strong> repente,<br />

novas dimensões e cores da realida<strong>de</strong> física do mundo. Em arremate, doutor<br />

Lourenço o levou dali daquele lugar, para viver com ele e estudar, com o<br />

consentimento enternecido da mãe viúva agora unida, conjugalmente, ao tio<br />

Terêz.<br />

As novelas <strong>de</strong> Corpo <strong>de</strong> Baile constituem-se minuciosos documentos e<br />

registros da vida rural, primitiva e difícil, com suas complexas relações humanas,<br />

em um trecho <strong>de</strong> um dos vários sertões <strong>de</strong> Minas. Documento e registro,<br />

também, naturalmente, da época em que <strong>de</strong>correm as estórias. Época ainda <strong>de</strong><br />

carros-<strong>de</strong>-bois, lamparinas, can<strong>de</strong>ias, lampiões, enxadas, cisternas, bal<strong>de</strong>s,<br />

banhos em bacias, trabalhos braçais duríssimos, doenças – uma <strong>de</strong>las o tétano –<br />

que matam com escassa resistência, por falta <strong>de</strong> medidos e medicamentos.<br />

Quando Miguilim, agora adulto e veterinário profissional, retorna ao Buriti<br />

Bom – que fica em outra zona, um tanto distante do Mutum – a fim <strong>de</strong> pedir<br />

Maria da Glória em casamento, o fazen<strong>de</strong>iro que o hospeda antes d’ele chegar<br />

lá, Nhô Gualberto, afirma a ele que aquela era a primeira vez que ali chegava<br />

um jipe. Vocábulo que Guimarães Rosa grafa ainda na forma original inglesa:<br />

jeep. Isto indica ser palavra recentemente introduzida na língua portuguesa.<br />

A estória <strong>de</strong> Miguilim, como todas as <strong>de</strong> Corpo <strong>de</strong> Baile, é psicologicamente<br />

riquíssima. E nela abundam ambigüida<strong>de</strong>s, com as quais João Guimarães<br />

Rosa <strong>de</strong>monstra compreen<strong>de</strong>r que na vida nem tudo se <strong>de</strong>cifra: muito mistério e<br />

muita dúvida na vida não se esclarecem nunca, ou por impossibilida<strong>de</strong> ou<br />

mesmo por inconveniência ou <strong>de</strong>sistência.<br />

A linguagem também é rica e eficaz – e escoimada dos hermetismos e<br />

dos <strong>de</strong>sconcertantes – inesperáveis – lugares-comuns encontradiços, com<br />

variável freqüência, em outras novelas: por exemplo, em “Uma estória <strong>de</strong><br />

amor” e “Buriti”.<br />

São duas as estórias <strong>de</strong> Miguilim, repito: “Campo geral” se continua em<br />

“Buriti”. As duas se completam uma à outra. Miguilim, que muito sofreu em<br />

menino, reaparece para continuar sua vida com talvez mais sofrimento. Não se<br />

sabe. Só se po<strong>de</strong> conjecturar. A verda<strong>de</strong> dolo<strong>rosa</strong> é que a leitura <strong>de</strong> “Buriti”<br />

produz – em mim produziu, nas quatro vezes que a li – um sentimento <strong>de</strong><br />

infinita, profunda, amaríssima tristeza. Tristeza resultante da constatação <strong>de</strong><br />

quanto a vida humana po<strong>de</strong> conter <strong>de</strong> enganos, equívocos, cegueiras, frustrações,<br />

esperanças infundas, ilusões; e <strong>de</strong> que é completamente ilusória, tanta<br />

vez, a confiança na pureza <strong>de</strong> sentimentos do “bicho da terra tão pequeno”.<br />

Nesse aspecto, a cena <strong>de</strong> “Buriti” em que Miguilim, agora Miguel, conversando<br />

com Nhô Gualberto, lhe conta que voltou para pedir Maria da Glória em


Miguilim: uma outra epopéia <strong>de</strong> João Guimarães Rosa ___________________________________ Alaor Barbosa 85<br />

casamento, é uma das mais substantivamente patéticas da literatura universal. A<br />

ingenuida<strong>de</strong> e retidão <strong>de</strong> Miguel contraposta à astúcia, dissimulação e solércia<br />

<strong>de</strong> Nhô Gualberto! Pobre Miguel! Não sabia <strong>de</strong> nada, o coitado... Ia casar<br />

enganado sobre a personalida<strong>de</strong> e experiências pregressas da mulher amada –<br />

experiências acontecidas durante aquele um ano <strong>de</strong> sua ausência. Pobre<br />

Miguel! Pobre filho dos Gerais <strong>de</strong> Minas! Sua condição <strong>de</strong> vítima nos faz<br />

pensar: Pobre humanida<strong>de</strong>! Pobre humanida<strong>de</strong>, no entanto heróica e valente,<br />

apesar <strong>de</strong> tudo; e merecedora <strong>de</strong> tudo o que sonha <strong>de</strong> bom e positivo. A<br />

ingenuida<strong>de</strong>, boa-fé e retidão <strong>de</strong> Miguel, se é que existem (pois a narrativa não<br />

nos revela a sua história e verda<strong>de</strong> íntima <strong>de</strong>pois que saiu menino do Mutum<br />

para Curvelo) talvez seja uma indicação <strong>de</strong> esperança.


86 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS


SAGARANA: ANÚNCIO E AMOSTRA DE<br />

UMA REVOLUÇÃO LITERÁRIA*<br />

Ângela Vaz Leão**<br />

Agra<strong>de</strong>cendo ao Dr. Murilo Badaró o honroso convite para participar<br />

<strong>de</strong>sta série <strong>de</strong> homenagens da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> a Guimarães Rosa,<br />

quero congratular-me com todos os membros <strong>de</strong>sta Casa por essa mineira<br />

vigilância do seu Presi<strong>de</strong>nte, sempre atento às marcas que pontuam, no<br />

calendário, a história cultural das nossas Minas Gerais. Este ano <strong>de</strong> 2008<br />

constitui uma <strong>de</strong>ssas marcas, pois assinala o centenário do nascimento <strong>de</strong><br />

Guimarães Rosa, o mais mineiro <strong>de</strong> todos os escritores, o mais autêntico<br />

representante daquilo que se enten<strong>de</strong> por mineirida<strong>de</strong>.<br />

Comemorar o centenário do nascimento <strong>de</strong> Guimarães Rosa neste ano<br />

corrente <strong>de</strong> 2008, não nos exime, entretanto, <strong>de</strong> lembrar que a primeira<br />

publicação <strong>de</strong> Sagarana, ocorrida em 1946, completa os seus bem vividos<br />

sessenta e dois anos. Ao contrário, essa lembrança me parece, além <strong>de</strong> justa, <strong>de</strong><br />

fundamental importância para a compreensão do fenômeno da elaboração<br />

literária, que não se faz do nada como no mito bíblico da criação do mundo,<br />

mas se faz <strong>de</strong> trabalho persistente, à custa <strong>de</strong> muito emendar e substituir, ou <strong>de</strong><br />

muita “poda e lima”, no dizer <strong>de</strong> Antônio Ferreira, um <strong>de</strong> nossos gran<strong>de</strong>s<br />

clássicos do século XVI. Guimarães Rosa não escapou a isso. Seu texto é, ao<br />

contrário, um dos melhores exemplos que se conhece do fenômeno da<br />

elaboração literária.<br />

Com efeito, por mais revolucionário que seja o romance Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />

Veredas em matéria <strong>de</strong> língua e <strong>de</strong> estilo, po<strong>de</strong>-se dizer que não há nele uma<br />

inovação lingüística ou estilística sequer que não se encontre já, em germe ou<br />

* Trabalho apresentado na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em agosto <strong>de</strong> 2008, em homenagem ao centenário<br />

<strong>de</strong> nascimento <strong>de</strong> Guimarães Rosa.<br />

**Professora emérita da UFMG e professora titular da PUC-Minas


88 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

embrião, no volume inaugural <strong>de</strong> contos Sagarana. É evi<strong>de</strong>nte que os <strong>de</strong>z anos<br />

que me<strong>de</strong>iam entre a publicação das duas obras geram uma diferença nos<br />

recursos explorados, diferença se não qualitativa, pelo menos quantitativa. Nem<br />

po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong> outra forma, num autor tão escrupuloso e ao mesmo tempo tão<br />

ciente e consciente das virtualida<strong>de</strong>s da língua portuguesa quanto Guimarães<br />

Rosa.<br />

Em carta a João Condé, conta Guimarães Rosa que pensou muito, certo<br />

dia, quando chegou a hora <strong>de</strong> o Sagarana ser escrito. Depois <strong>de</strong> refletir sobre<br />

tudo que representava a palavra arte e <strong>de</strong> estabelecer algumas relações<br />

literárias, teve <strong>de</strong> escolher o terreno em que localizaria suas histórias. E acabou<br />

escolhendo o pedaço <strong>de</strong> Minas Gerais que era mais <strong>de</strong>le mesmo. Ouçamos as<br />

suas palavras:<br />

(...) E foi o que preferi. Porque tinha muitas sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> lá.<br />

Porque conhecia um pouco melhor a terra, a gente, bichos,<br />

árvores. Porque o povo do interior – sem convenções, “poses” –<br />

dá melhores personagens <strong>de</strong> parábolas: lá se vêem bem as<br />

reações humanas e a ação do <strong>de</strong>stino; lá se vê bem um rio cair na<br />

cachoeira ou contornar a montanha, e as gran<strong>de</strong>s árvores<br />

estalarem sob o raio, e cada talo do capim humano rebrotar com<br />

a chuva ou estorricar com a seca. (Carta a João Condé, in<br />

Sagarana, 64ª. Edição, 2006, p. 25).<br />

Continuando seu relato epistolar ao Amigo, assim Guimarães Rosa<br />

sintetiza a escolha da ambientação dos seus contos:<br />

(...) Bem, resumindo: ficou resolvido que o livro se passaria no<br />

interior <strong>de</strong> Minas Gerais. E compor-se-ia <strong>de</strong> 12 novelas. Aqui,<br />

meu caro Condé, findava a fase <strong>de</strong> premeditação. Restava agir.<br />

Então, passei horas <strong>de</strong> dias, fechado no quarto, cantando cantigas<br />

sertanejas, dialogando com vaqueiros <strong>de</strong> velha lembrança,<br />

“revendo” paisagens da minha terra, e aboiando para um gado<br />

imenso. (Ibi<strong>de</strong>m, p. 25)<br />

Passada essa fase <strong>de</strong> quase ruminação do livro, Guimarães Rosa começa<br />

a escrevê-lo. Na mesma carta, diz: lembro-me <strong>de</strong> que foi num domingo, <strong>de</strong><br />

manhã (p. 25). E conta ainda que o livro foi escrito em sete meses, quase todo<br />

na cama, a lápis, em ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> 100 folhas. (p. 25). Contratada uma


Sagarana: anúncio e amostra <strong>de</strong> uma revolução literária ________________________________ Ângela Vaz Leão 89<br />

datilógrafa para passá-lo a limpo, pô<strong>de</strong> Guimarães Rosa, no último dia do ano<br />

<strong>de</strong> 1937, entregar os originais à Livraria José Olympio que teve <strong>de</strong> esperar<br />

ainda alguns anos pela or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> sua publicação.<br />

As histórias somavam o total <strong>de</strong> doze, número que se reduziria<br />

posteriormente a nove. Guimarães Rosa eliminaria três <strong>de</strong>las – “Questões <strong>de</strong><br />

Família”, “Uma História <strong>de</strong> Amor” e “Bicho Mau”, O Autor justifica a exclusão<br />

na mesma carta a João Condé, da primeira história por ser meio autobiográfica,<br />

da segunda por não ter sido <strong>de</strong>senvolvida razoavelmente e da terceira<br />

por não ter parentesco profundo com as nove outras conservadas.<br />

Depois, conta o nosso Autor que o livro não foi publicado logo, mas<br />

repousou durante sete anos; e, em 1945, foi retrabalhado em cinco meses,<br />

cinco meses <strong>de</strong> reflexão e <strong>de</strong> luci<strong>de</strong>z. (Ibi<strong>de</strong>m, p. 25)<br />

Após esse longo processo, já relatado pelo próprio Autor, publica-se em<br />

1946 a primeira edição da obra, com o título <strong>de</strong> Sagarana.<br />

Se consi<strong>de</strong>rarmos os meses <strong>de</strong> composição dos contos, entre 1937 e<br />

1938, passando pelo longo período em que foram retrabalhados e <strong>de</strong>pois pelos<br />

vários anos <strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, até o ano <strong>de</strong> sua primeira<br />

publicação em 1956, vamos encontrar um intervalo <strong>de</strong> perto <strong>de</strong> duas décadas.<br />

São duas décadas <strong>de</strong> observação e <strong>de</strong> exercício da linguagem, <strong>de</strong> emendas<br />

constantes, <strong>de</strong> auto-disciplina e auto-superação ou, para usar uma comparação<br />

esportiva neste tempo <strong>de</strong> Olimpíadas, <strong>de</strong> aquecimento para o gran<strong>de</strong> salto.<br />

Não pretendo analisar aqui essa longa preparação através <strong>de</strong> um<br />

confronto estilístico <strong>de</strong> originais sucessivamente retocados. Pretendo apenas<br />

voltar a Sagarana, com três objetivos: dar uma visão rápida <strong>de</strong> sua história<br />

editorial; pôr em <strong>de</strong>staque algumas <strong>de</strong> suas inovações na concepção da<br />

narrativa; e sugerir que tais inovações já prenunciam a gran<strong>de</strong> revolução<br />

literária que virá com o romance Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas.<br />

Escrito sob o pseudônimo Viator, isto é, ‘caminhante, viandante’, pseudônimo<br />

aliás muito apropriado, o volume, a princípio intitulado simplesmente<br />

Contos, concorre, em 1938, ao Prêmio Humberto <strong>de</strong> Campos, da Livraria José<br />

Olympio. Obtém o segundo lugar, per<strong>de</strong>ndo para Maria Perigosa, <strong>de</strong> Luiz Jardim.<br />

Só oito anos <strong>de</strong>pois, em abril <strong>de</strong> 1946, os contos <strong>de</strong> Rosa vêm à luz, pela<br />

Editora Universal do Rio <strong>de</strong> Janeiro, com o novo título, Sagarana, agora sob o<br />

nome civil do autor, assinado J. Guimarães Rosa, com o prenome abreviado. A<br />

coletânea recebe o Prêmio da Socieda<strong>de</strong> Felipe <strong>de</strong> Oliveira, com gran<strong>de</strong><br />

repercussão nos meios literários brasileiros, como se comprova pelo fato <strong>de</strong> sua<br />

primeira edição esgotar-se em poucos meses, publicando-se a segunda ainda<br />

em 1946, pela mesma Editora Universal, hoje inexistente.


90 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

O aparecimento da segunda edição dá-se cinco anos <strong>de</strong>pois, isto é, em<br />

setembro <strong>de</strong> 1951, pela Editora José Olympio, que se torna <strong>de</strong>tentora da tarefa e<br />

do privilégio <strong>de</strong> editar, daí por diante, todas as obras <strong>de</strong> Guimarães Rosa, o que<br />

fez, aliás, até que os per<strong>de</strong>sse – a tarefa e o privilégio – para a Editora Nova<br />

Fronteira.<br />

Embora a terceira edição tenha sido fruto <strong>de</strong> um minucioso trabalho <strong>de</strong><br />

revisão por parte do Autor, mais minuciosa ainda foi a revisão <strong>de</strong> que ela foi<br />

objeto <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> publicada. Assim, passados mais cinco anos, a quarta edição<br />

vem a público em janeiro <strong>de</strong> 1956, com profundas alterações e com a<br />

<strong>de</strong>claração <strong>de</strong> versão <strong>de</strong>finitiva, firmada agora por João Guimarães Rosa,<br />

escrevendo-se o prenome João por extenso, com o qual o Autor passará a<br />

assinar a sua obra <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então.<br />

Mas, parodiando Eduardo Frieiro, que viu o diabo na livraria do<br />

Cônego, o crítico <strong>de</strong> hoje talvez veja o diabo nos originais <strong>de</strong> Guimarães Rosa.<br />

Declarar a quarta edição como <strong>de</strong>finitiva pouco significaria para esse<br />

endiabrado perfeccionista, que impulsionava a máquina <strong>de</strong> escrever e <strong>de</strong>pois,<br />

sobre a página datilografada, passava e repassava a caneta. Afinal <strong>de</strong> contas,<br />

que compromisso tão coercitivo assumiria ele com seus leitores e seus editores,<br />

ao <strong>de</strong>finir uma edição como <strong>de</strong>finitiva? Que compromisso o impediria <strong>de</strong><br />

submeter a obra a mais uma série <strong>de</strong> correções? Nenhum. Nenhum compromisso,<br />

nem mesmo a palavra <strong>de</strong>finitiva, o impedia <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r a outra e mais<br />

outra acurada revisão. Assim, a quinta edição sai em abril <strong>de</strong> 1958, com<br />

revisões e com a nova <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> retocada – forma <strong>de</strong>finitiva. Aí, sim, valeu<br />

a promessa. Porque, na sexta edição, <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1964, faz ele apenas alguns<br />

pequenos retoques, que serão os últimos. Esse texto, o da sexta edição, po<strong>de</strong> ser<br />

consi<strong>de</strong>rado o texto <strong>de</strong>finitivo <strong>de</strong> Sagarana. A partir daí, a obra será objeto <strong>de</strong><br />

duas reimpressões ainda em vida do Autor, isto é, até a oitava, em maio<br />

<strong>de</strong> 1967, vindo ele a falecer em 19 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong>sse mesmo ano. Mas o<br />

impacto da obra não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> crescer, chegando a nume<strong>rosa</strong>s reproduções<br />

póstumas, a partir da nona, que se dá ainda em 1967, um mês <strong>de</strong>pois da morte<br />

do Escritor.<br />

Hoje, temos diante <strong>de</strong> nós a sexagésima quarta impressão, feita em 2006,<br />

pela Editora Nova Fronteira. Aliás, a ficha catalográfica <strong>de</strong> abertura do livro<br />

assinala a data <strong>de</strong> 2001. Porém, creio ser mais confiável a data que se lê no<br />

colofão, 2006. Ora, <strong>de</strong> 1946, data da primeira edição até hoje, 2006, temos<br />

sessenta anos. Não há como negar: sessenta e quatro edições em sessenta anos<br />

atestam o sucesso editorial <strong>de</strong> Sagarana, cifrado na expressiva média <strong>de</strong> mais<br />

<strong>de</strong> uma edição por ano.


Sagarana: anúncio e amostra <strong>de</strong> uma revolução literária ________________________________ Ângela Vaz Leão 91<br />

Essa é, em resumo, a história das sucessivas reelaborações e simples<br />

reimpressões que fizeram dos contos <strong>de</strong> Sagarana o que eles são hoje.<br />

Magnífica lição para alguns escritores aprendizes, que, às vezes, preten<strong>de</strong>m<br />

“produzir” um texto <strong>de</strong> uma só penada, ou melhor, <strong>de</strong> uma só digitada, sem se<br />

darem ao trabalho sequer <strong>de</strong> uma releitura! Pelo menos, é nessas condições que<br />

muitos universitários apresentam hoje seus trabalhos ao professor: digitados<br />

(ou digitalizados), sim, chiquemente digitalizados, mas sem nenhuma correção<br />

ou simples revisão, num estado lingüístico lamentável. A palavra redação até<br />

<strong>de</strong>sapareceu da nomenclatura pedagógica, diante da pressão consumista e <strong>de</strong><br />

seu termo mágico, produção. Falar em redação hoje é o mesmo que assinar um<br />

auto-atestado <strong>de</strong> velhice. Não se redige mais. Produz-se um texto, como se<br />

produz batata ou soja. Mas é preciso reconhecer que os estudantes – coitados! –<br />

são os menos responsáveis por tal situação.<br />

Pois bem, Guimarães Rosa não produziu seus textos: ele os redigiu. E os<br />

jovens <strong>de</strong>veriam ter conhecimento disso. Que se mostrem, pois, os originais do<br />

gran<strong>de</strong> estilista da língua portuguesa aos nossos estudantes! Nesse sentido, os<br />

professores <strong>de</strong> Filologia e <strong>de</strong> História da Língua po<strong>de</strong>riam fazer importante<br />

trabalho, se, nas aulas <strong>de</strong> crítica textual, além <strong>de</strong> estudar manuscritos<br />

medievais, estudassem também originais <strong>de</strong> Guimarães Rosa.<br />

Graciliano Ramos, na crônica Conversa <strong>de</strong> bastidores, publicada<br />

originalmente na revista A casa, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, em junho <strong>de</strong> 1946, e<br />

reproduzida em 1968, no volume Em memória <strong>de</strong> João Guimarães Rosa, <strong>de</strong><br />

responsabilida<strong>de</strong> da editora José Olympio, relata como se <strong>de</strong>u a atribuição do<br />

Prêmio Humberto <strong>de</strong> Campos a Luiz Jardim, ficando os Contos do <strong>de</strong>sconhecido<br />

Viator em segundo lugar. Narra <strong>de</strong>pois o seu primeiro encontro com<br />

Guimarães Rosa, em fins <strong>de</strong> 1944, quando finalmente i<strong>de</strong>ntifica quem era o tal<br />

Viator. Passa a interessantíssimas observações sobre Sagarana, falando<br />

justamente da capina e da <strong>de</strong>puração operada no original dos contos primitivos<br />

pelo seu autor. Quase que à guisa <strong>de</strong> conclusão, diz Graciliano Ramos:<br />

A arte <strong>de</strong> Rosa é terrivelmente difícil. Esse antimo<strong>de</strong>rnista repele o<br />

improviso. Com imenso esforço escolhe palavras simples e nos dá<br />

a impressão <strong>de</strong> vida numa nesga <strong>de</strong> catinga, num gesto <strong>de</strong><br />

caboclo, numa conversa cheia <strong>de</strong> provérbios matutos. O seu<br />

diálogo é rebuscadamente natural: <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nha o recurso ingênuo <strong>de</strong><br />

cortar “ss”, “ll” e “rr” finais, <strong>de</strong> <strong>de</strong>turpar flexões, e aproxima-se,<br />

tanto quanto possível, da língua do interior. (op. cit, p. 45)


92 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Realmente, a linguagem <strong>de</strong> Guimarães Rosa é uma estilização culta do<br />

dialeto do sertão. Ele não reproduz o falar sertanejo, mas o estiliza, sem fazer<br />

concessões a vulgarismos, sem abdicar <strong>de</strong> sua responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escritor que<br />

se quer comprometido com a sua língua.<br />

Associando esse compromisso lingüístico a um invulgar domínio da<br />

técnica da narrativa, Guimarães Rosa constrói Sagarana. Para quem já leu e<br />

releu várias vezes esse conjunto admirável <strong>de</strong> contos, torna-se difícil <strong>de</strong>stacar<br />

um entre todos, pelas suas qualida<strong>de</strong>s literárias. Seria “A hora e vez <strong>de</strong> Augusto<br />

Matraga” o melhor <strong>de</strong>les? Ou “Corpo fechado”? Ou “Duelo”? Ou “O burrinho<br />

pedrês”? Qualquer resposta não passaria <strong>de</strong> uma escolha, pessoal e subjetiva,<br />

como costumam ser todas as escolhas. Ou <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria talvez das circunstâncias<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado momento, como o <strong>de</strong> agora.<br />

Pois, neste momento, aqui e agora, sem nenhuma razão lógica aparente, a<br />

minha preferência vai para “Duelo”, muitas vezes lido na décima edição <strong>de</strong><br />

Sagarana <strong>de</strong> 1968. Desta serão retiradas todas as citações <strong>de</strong>ste trabalho.<br />

“Duelo” é uma história que tem como protagonista Turíbio Todo, seleiro<br />

<strong>de</strong> profissão, papudo, vagabundo, vingativo e mau (p. 159), e sua mulher, Dona<br />

Silivana, com belos olhos gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cabra tonta (p. 147). O antagonista <strong>de</strong><br />

Turíbio, e ao mesmo tempo amante <strong>de</strong> Silivana, é o ex-soldado Cassiano<br />

Gomes, que se diz ex-anspeçada do 1º pelotão da 2ª Companhia, do 5º Batalhão<br />

<strong>de</strong> Infantaria da Força Pública, capaz <strong>de</strong> manejar até metralhadora pesada<br />

(p. 141). O marido traído tenta assassinar o rival, mas é o irmão <strong>de</strong>ste, Levindo<br />

Gomes, que é assassinado em seu lugar. Participa ainda do enredo o capiau<br />

Timpim, que preferia ser chamado <strong>de</strong> Vinte-e-Um, porque a mãe tivera vinte e<br />

um filhos e ele era o <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro (p. 159). Com menor relevo, várias personagens<br />

mais aparecem na narrativa, como o Chico Barqueiro, o Clodino Preto, o<br />

Exaltino-<strong>de</strong>-Trás-da-Igreja, o Seu Raimundo boticário e alguns anônimos, tais<br />

um pedidor-<strong>de</strong>-esmolas, um ladrão <strong>de</strong> cavalos e outros que ajudam a compor a<br />

história, mas não fazem nem bem nem mal ao seu <strong>de</strong>senvolvimento.<br />

O título do conto, “Duelo”, parece uma estratégia do autor para <strong>de</strong>spertar<br />

e manter a curiosida<strong>de</strong> dos leitores. Com efeito, a leitura nos <strong>de</strong>ixa sempre na<br />

expectativa <strong>de</strong> um enfrentamento entre o protagonista, o seleiro Turíbio Todo, e<br />

o antagonista, o soldado Cassiano Gomes, empenhado em vingar a morte do<br />

irmão, Levindo Gomes. Esse encontro, entretanto, nunca acontece entre os<br />

dois, que passam a história toda em perseguição mútua sem resultados,<br />

verda<strong>de</strong>iro jogo <strong>de</strong> escon<strong>de</strong>-escon<strong>de</strong>, em que nenhum acha o outro, portanto,<br />

nenhum mata o outro. O fim <strong>de</strong> Turíbio Todo vai ser obra <strong>de</strong> Timpim Vinte-eum,<br />

o capiauzinho com ar <strong>de</strong> bobo, protegido e pago pelo ex-anspeçada


Sagarana: anúncio e amostra <strong>de</strong> uma revolução literária ________________________________ Ângela Vaz Leão 93<br />

Cassiano Gomes. Este, não resistindo aos males cardíacos que o atormentam<br />

durante toda a história, também morre, mas morre na cama, não obstante os<br />

esforços do médico e do padre. Quanto ao minúsculo Timpim, que recebe <strong>de</strong><br />

Cassiano Gomes moribundo dinheiro suficiente para salvar o filho recémnascido,<br />

e que, por gratidão, vingará a morte <strong>de</strong> Levindo Gomes, faz parte da<br />

gente miúda, amarelenta ou amaleitada (p. 158), daquelas paragens, e tem um<br />

sorrizinho cheio <strong>de</strong> cacos <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes (p. 164). Mas no final da história, vira<br />

outro. Timpim se agiganta pela ação, a sua voz torna-se firme e crescida, outra<br />

voz que Turíbio ainda não tinha escutado ao capiau (p. 167). E é com essa voz<br />

que ele anuncia a Turíbio que havia chegado a sua hora <strong>de</strong> morrer. Personagem<br />

e situação nos fazem pensar no mirrado Xixi Piriá da primeira página <strong>de</strong> Vila<br />

dos Confins, <strong>de</strong> Mário Palmério, que <strong>de</strong>pois aparece agigantado na última<br />

página do romance. Mas o texto <strong>de</strong> Guimarães Rosa é muito mais forte, talvez<br />

em virtu<strong>de</strong> da concentração do conto como gênero e da proximida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntro do<br />

enredo, entre o aparecimento <strong>de</strong> Timpim e o <strong>de</strong>sfecho trágico.<br />

Ao intimar Turíbio Todo, o matuto Timpim, que parecia insignificante<br />

até no nome, assume o papel do antagonista e cumpre a promessa feita a seu<br />

benfeitor agonizante, Cassiano Gomes, <strong>de</strong> quem se tornara compadre quase à<br />

hora <strong>de</strong> sua morte, entre lágrimas e rezas. Timpim mata Turíbio Todo. E não o<br />

mata à traição, não <strong>de</strong> emboscada, mas após longa marcha pela estrada aberta,<br />

ambos a cavalo, lado a lado, trocando conversa amena. O esperto capiau<br />

espreita Turíbio e é espreitado por ele, enquanto vai picando seu fumo <strong>de</strong> rolo<br />

e enrolando seu cigarrinho <strong>de</strong> palha. Mas <strong>de</strong> repente Turíbio se assusta com a<br />

voz alta, firme e <strong>de</strong>cidida do matuto, a lhe dizer – Seu Turíbio! Se apeie e reza,<br />

que agora vou lhe matar! (p. 167). E sem respon<strong>de</strong>r às interrogações<br />

estupefatas <strong>de</strong> Turíbio, o homenzinho, garrucha velha na mão, torna a gritar: –<br />

Se apeie <strong>de</strong>pressa, seu Turíbio! O sobressalto não faz Turíbio apear. Segue-se<br />

um diálogo tenso, a princípio com ameaças e propostas do malandro papudo,<br />

<strong>de</strong>pois com súplicas suas ao capiau e à Virgem Santíssima. Até que, da<br />

garrucha <strong>de</strong> Timpim, partem duas balas, uma acertando Turíbio na cara<br />

esquerda e a outra na testa (p. 108).<br />

Segue-se o <strong>de</strong>sfecho: O cavalo correu; o pé do <strong>de</strong>funto se soltou do<br />

estribo, o corpo prancheou, pronou, e ficou estatelado (p. 108). Enquanto isso,<br />

o capiauzinho Timpim <strong>de</strong>saparece da estrada e da cena, e <strong>de</strong>scem as cortinas do<br />

último ato do conto, que o narrador/contra-regra encerra com estas palavras:<br />

Então o caguincho Timpim Vinte-e-um fez também o em-nome-do-padre e abriu<br />

os joelhos, esporeando. E o cavalinho pampa se meteu, <strong>de</strong> galope, por um<br />

trilho entre os itapicurus e os canudos-<strong>de</strong>-pito fugindo do estradão. (p. 168).


94 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Assim termina o conto, on<strong>de</strong>, entre todas as personagens importantes, só<br />

Silivana, o móvel do crime, não sofre mudança. Enquanto o marido valentão<br />

Turíbio Todo é assassinado pelo capiau Timpim Vinte-e-um, o amante<br />

Cassiano Gomes morre doente, assistido por médico e padre, <strong>de</strong>sfazendo-se<br />

então o triângulo amoroso. Já Timpim, o capiauzinho com cara <strong>de</strong> bobo,<br />

<strong>de</strong>saparece nas últimas linhas da narrativa sem que se saiba o seu <strong>de</strong>stino. Fácil<br />

é, porém, adivinhá-lo. Talvez Timpim vá ao encontro da mulher com o filho<br />

recém-nascido, para caírem no mato antes que o prendam, talvez vá gastar com<br />

as mezinhas da botica o dinheiro que lhe <strong>de</strong>u Cassiano Gomes na hora <strong>de</strong><br />

morrer. Não se sabe. Para Timpim, o final é aberto.<br />

Só Silivana, eu dizia, não sofre mudança. Reiteradamente é evocada no<br />

conto sempre por um só traço físico, os olhos, que eram gran<strong>de</strong>s e pareciam <strong>de</strong><br />

cabra tonta, e que <strong>de</strong>viam impressionar, ou melhor, subjugar tanto o marido<br />

quanto o amante. Observe-se a maestria com que Guimarães Rosa, através da<br />

reiteração, nos dá conta <strong>de</strong>sse traço da beleza <strong>de</strong> Silivana e da paixão dos dois<br />

homens por ela. O marido Turíbio Todo, ao <strong>de</strong>scobrir o adultério, logo o aceita<br />

graças aos belos olhos da mulher: Nem por sonhos pensou em exterminar a<br />

esposa (Dona Silivana tinha gran<strong>de</strong>s olhos bonitos, <strong>de</strong> cabra tonta) (p. 142):<br />

Algumas páginas <strong>de</strong>pois, lê-se que o marido (...) estava com sauda<strong>de</strong>s da<br />

mulher, Dona Silivana – aquela mesma, que tinha belos olhos gran<strong>de</strong>s, <strong>de</strong><br />

cabra tonta (p. 147). Quanto a Cassiano Gomes, o amante, diz o narrador: (...)<br />

Cassiano continuava se encontrando com a mulher fatal da história, aquela<br />

mesma que tinhas olhos cada vez maiores, mais pretos e mais <strong>de</strong> cabra tonta<br />

(p. 157). Voltando ainda ao marido, reitera o narrador pela última vez: (...)<br />

estava com pressa, porque Dona Silivana tinha olhos bonitos, sempre gran<strong>de</strong>s<br />

olhos, <strong>de</strong> cabra tonta (p. 163).<br />

Assim, nas vinte e nove páginas do conto, da décima edição, por quatro<br />

vezes mencionam-se os belos olhos <strong>de</strong> cabra tonta da personagem feminina,<br />

que se tornam, por esse procedimento, um dos motivos poéticos ou um<br />

Leitmotiv da narrativa.<br />

Esse fato nos parece comprovar o domínio da arte <strong>de</strong> narrar que tinha<br />

Guimarães Rosa, da mesma forma que o comprovam as várias expressões<br />

metalingüísticas com que o autor vai monitorando a nossa leitura. Logo no<br />

início do conto, por exemplo, Guimarães Rosa nos apresenta Turíbio Todo,<br />

com todos os seus <strong>de</strong>feitos, e termina o primeiro parágrafo por uma oração<br />

adversativa, contendo um sintagma adverbial – no começo <strong>de</strong>sta história – que,<br />

ao sugerir o <strong>de</strong>senrolar do tempo, também nos faz esperar por mudanças e<br />

surpresas: Mas, no começo <strong>de</strong>sta história, ele estava com a razão (p. 139).


Sagarana: anúncio e amostra <strong>de</strong> uma revolução literária ________________________________ Ângela Vaz Leão 95<br />

Uma página <strong>de</strong>pois, insiste o narrador: Assim, pois, <strong>de</strong> qualquer maneira, nesta<br />

história, pelo menos no começo – e o começo é tudo – Turíbio Todo estava com<br />

a razão (p. 140). Na mesma página, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> qualificar o conto metalingüísticamente<br />

como estória (p. 139) e história (p. 140), portanto, ficção, mas ficção<br />

fi<strong>de</strong>digna, o Autor se refere à <strong>de</strong>scoberta do adultério pelo marido e, entre<br />

parênteses, afirma a veracida<strong>de</strong> dos fatos: (com perdão da palavra, mas é<br />

verídica a narrativa) (p. 141). E ficamos sem saber: historia acontecida? ou<br />

história inventada? Mas, afinal, que importância tem isso, diante da excelência<br />

do conto? É essa excelência que produz a ilusão <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. É o estilo, e não<br />

uma prova documental ou testemunhal, que faz do conto uma história<br />

fi<strong>de</strong>digna.<br />

As marcações temporais, ou alusões ao tempo narrativo, também<br />

consi<strong>de</strong>radas metalingüísticas, são tão freqüentes que seria difícil enumerá-las<br />

aqui, na totalida<strong>de</strong>. O seu alto índice nos obriga a reduzi-las a uns poucos<br />

exemplos: E isso foi na quarta-feira. ... (p. 141) Quinta-feira pela manhã... (p.<br />

141). (...) Bem quinta-feira <strong>de</strong> manhã,... (p. 142). E continuam as localizações<br />

temporais explícitas, com a função metalingüística <strong>de</strong> pontuar e esclarecer a<br />

narrativa, para ajudar o leitor a acompanhá-la. Mais adiante lê-se ainda: (...)<br />

durante dois meses, (p. 145), (...) nesse <strong>de</strong>pois, (p. 145); (...) já durava cinco<br />

ou cinco meses e meio a correria, monótona e sem <strong>de</strong>sfecho (p. 148). E por aí<br />

vai o autor, sempre pontuando a leitura e monitorando o leitor, lembrando as<br />

seqüências e as intermitências dos fatos, <strong>de</strong> modo que não se perca o fio da<br />

meada.<br />

Essas e outras qualida<strong>de</strong>s literárias presentes no conto “Duelo” marcam<br />

toda a obra <strong>de</strong> Guimarães Rosa, justificando-se a sua indiscutível posição <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>staque em relação às literaturas <strong>de</strong> língua portuguesa. E, <strong>de</strong>ntro do conjunto<br />

da narrativa rosiana, se Sagarana não se emparelha com Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />

Veredas, também não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ocupar um lugar importante, quando nada pela<br />

sua situação ímpar no que diz respeito a uma revolução estilística então<br />

<strong>de</strong>sconhecida nessas literaturas. Na verda<strong>de</strong>, os contos <strong>de</strong> Sagarana<br />

representam um anúncio, mas também dão uma amostra, da revolução<br />

lingüística e literária que se efetivará, <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong>pois, no romance Gran<strong>de</strong><br />

Sertão: Veredas.<br />

Essa foi a leitura que pu<strong>de</strong> fazer <strong>de</strong> Sagarana, para apresentá-la aqui, nos<br />

limites <strong>de</strong> uma palestra. Espero que ela tenha servido, pelo menos, para<br />

<strong>de</strong>spertar nos ouvintes o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ler ou <strong>de</strong> reler o conto “Duelo”, que foi meu<br />

objeto central e que representa, juntamente com os outros contos do livro, um<br />

dos altos momentos da p<strong>rosa</strong> em língua portuguesa.


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GRANDE SERTÃO: VEREDAS<br />

* Crítico literário, escritor. Ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 8 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />

Antônio Olinto*<br />

Histórias, o povo as contou sempre. Des<strong>de</strong> os primeiros tempos da<br />

linguagem humana, os indivíduos e as coletivida<strong>de</strong>s, no viver seus dias, no<br />

realizar suas tarefas, no usar as mãos, no conhecer coisas, muito tiveram que<br />

relatar e sempre em tal sentiram prazer. Um <strong>de</strong> nossos mistérios, e <strong>de</strong> nossas<br />

alegrias, é o sermos tão diferentes uns dos outros e, no entanto, ao mesmo<br />

tempo, com <strong>de</strong>nominadores tão comuns, que as histórias, ou a História, <strong>de</strong><br />

gente viva, conseguem <strong>de</strong>spertar em nós um ímpeto <strong>de</strong> reconhecimento, por<br />

estranhas que sejam à experiência e às aspirações particulares <strong>de</strong> cada uma. Os<br />

heróis <strong>de</strong> Homero, <strong>de</strong> Cervantes, <strong>de</strong> Rabelais, <strong>de</strong> Boccaccio, <strong>de</strong> Goethe, <strong>de</strong><br />

Voltaire, <strong>de</strong> Balzac, <strong>de</strong> Dostoiévski, <strong>de</strong> Hardy, <strong>de</strong> Machado, têm atitu<strong>de</strong>s e<br />

vivem acontecimentos que, em maior ou menor grau, são os da vida que continua<br />

sendo vivida hoje. É por esse caráter vital que a história contada se separa<br />

<strong>de</strong> seu autor e atinge fundo os que <strong>de</strong>la tomam conhecimento.<br />

Durante muito tempo, o romance – que se tornou a mais comum das<br />

formas <strong>de</strong> história contada – viveu <strong>de</strong> fatos essenciais, ligados às coisas básicas:<br />

o amor, a comida, a casa, a terra.<br />

Aventuras, lutas, viagens, retiradas, avanços; tudo isto fazia parte <strong>de</strong>ssa<br />

essencialida<strong>de</strong>, em que entravam como elementos <strong>de</strong> tessitura, a cobiça, a<br />

ambição, a inveja, ou a ironia, ou a bonda<strong>de</strong>, a ternura, a solidarieda<strong>de</strong>. Os símbolos<br />

não tinham muitas nuanças; eram mesmo aquilo que <strong>de</strong>sejavam ser. O<br />

romantismo trouxe ao romance uma nova dimensão, porque vinha revelar algo<br />

que o homem tinha em si e que as condições do mundo <strong>de</strong> então punham à<br />

mostra. O movimento realista, que parecia apenas uma reação contra o romantismo,<br />

não o era. Ao invés disto, conquistava outra dimensão, abrindo à<br />

narrativa um campo – em si, nem melhor, nem pior – que Boccacio e Rabelais<br />

não tinham percorrido. E o fin <strong>de</strong> siècle, com seus quarenta e tantos anos <strong>de</strong> paz


100 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

européia, criou um espírito algo superficial que era uma <strong>de</strong>corrência direta do<br />

realismo.<br />

Enquanto, em outros setores, Rimbaud rasgava as veias <strong>de</strong> uma nova<br />

poesia e os impressionistas iniciavam o movimento que veio acabar, e continuar,<br />

na pintura mo<strong>de</strong>rna, e Debussy dava tons novos à música - o romance<br />

ficava, apesar <strong>de</strong> Kafka, Joyce, Hermann Hesse e Virginia Woolf, na narrativa<br />

imediatamente tradicional, então, como agora ainda muito, sob a forma do<br />

psicologismo.<br />

O Brasil passou também por esses caminhos. O que nos faltou, durante<br />

muito tempo, foi consciência <strong>de</strong> povo. O expoente <strong>de</strong> nossa literatura, Machado<br />

<strong>de</strong> Assis, foi profundamente brasileiro, mas um brasileiro citadino, cujas<br />

personagens, por mais nacionais que fossem, participavam, <strong>de</strong> algum modo, da<br />

normal <strong>de</strong>snacionalização da classe média <strong>de</strong> qualquer cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>. Isto não<br />

era um mal em si, nem impediu que o escritor fosse ao ponto alto que realmente<br />

atingiu, mas o povo, cuja unificação se consolidara em meados do século passado,<br />

continuava à espera <strong>de</strong> outros livros. Na mesma época em que Machado<br />

escrevia seus melhores romances, a revolta <strong>de</strong> Canudos espantava a nação e<br />

exigia um tipo diferente <strong>de</strong> contador <strong>de</strong> histórias. Como, para cada tarefa, há<br />

sempre alguém apto a realizá-la, Euc1i<strong>de</strong>s da Cunha tomou a si a obrigação e<br />

narrou o caso <strong>de</strong> Canudos. Ali, nos Sertões, estava, pela primeira vez, um povo<br />

inteiro, com raízes que, sem que muita gente o soubesse, tinham ido bem<br />

fundo.<br />

O que fora feito <strong>de</strong> uma vez, em sentido total, continuou, mais tar<strong>de</strong>,<br />

sendo realizado aos poucos, em pequenas tomadas <strong>de</strong> consciência, em José<br />

Lins do Rêgo, Jorge Amado, Graciliano Ramos, todos com obras em que o<br />

povo surgia ao natural, embora muitas vezes tocado <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong><br />

romantismo mo<strong>de</strong>rno.<br />

Agora, aparece-nos João Guimarães Rosa com seu Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />

Veredas. E po<strong>de</strong>mos dizer que o romance brasileiro <strong>de</strong>u, com isto, um gran<strong>de</strong><br />

passo. Pela segunda vez, e em plano diferente, temos o Brasil <strong>de</strong> corpo inteiro<br />

numa narrativa. Vejamos, em primeiro lugar, a importância, digamos, geográfica,<br />

em que se situa o livro <strong>de</strong> Guimarães Rosa. A região do São Francisco,<br />

perto do Urucuia, pegando o Norte <strong>de</strong> Minas, o Sul da Bahia e o Leste <strong>de</strong><br />

Goiás, é, sob vários aspectos, o centro do Brasil. As andanças <strong>de</strong> suas personagens<br />

por essa região formam um resumo <strong>de</strong> todo o país. Nenhum dos habitantes<br />

do romance pensa em cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> – talvez o maior agrupamento humano,<br />

citado em Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas seja Montes Claros. Nem a capital do<br />

Estado, Belo Horizonte, nem o Rio <strong>de</strong> Janeiro, nem qualquer outra cida<strong>de</strong>


Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas ____________________________________________________________ Antônio Olinto 101<br />

maior, aparecem ali, concentrando-se a ação em território a que pouquíssimos<br />

brasileiros <strong>de</strong> outras zonas tinham, até agora, dado atenção. Essa configuração<br />

geográfica do enredo já é sintomática, levando-nos a achar que, com o trabalho<br />

<strong>de</strong> Guimarães Rosa, incorporamos mais um pedaço <strong>de</strong> terra ao país. E sintomático<br />

também é que as personagens não tenham o problema da terra, tal como a<br />

visão romântico-econômica <strong>de</strong> uma fase <strong>de</strong> nossa literatura nos vinha mostrando.<br />

Aí, as pessoas andam, brigam, amam. Fazem as coisas essenciais <strong>de</strong><br />

modo, senão primitivo, pelo menos primário. A vingança e o amor, motivadores<br />

das caminhadas dos heróis gregos, <strong>de</strong>terminam também os movimentos<br />

<strong>de</strong> Riobaldo, Diadorim, Zé Bebelo, Joca Ramiro.<br />

Queremos, em segundo lugar, chamar a atenção para a unida<strong>de</strong> da<br />

narrativa, ou melhor, para a sua unicida<strong>de</strong>. A fórmula rítmica do romance<br />

tradicional, dividido em capítulos, <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> existir em Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />

Veredas, para dar lugar a um relato ininterrupto, coeso, fechado sobre si<br />

mesmo. E a concatenação, o ent<strong>rosa</strong>mento entre as diversas fases do romance, a<br />

passagem <strong>de</strong> um acontecimento a outro, tudo isto é feito com espantosa<br />

riqueza, tanto <strong>de</strong> vocabulário como <strong>de</strong> técnica <strong>de</strong> narração. O simples fato <strong>de</strong><br />

escrever uma história corrida, sem capítulos, não bastaria para fazer do<br />

romance uma obra extraordinária, não fosse a cadência larga em que <strong>de</strong>correm<br />

os acontecimentos, fazendo lembrar os rios da região, tão importantes na<br />

<strong>de</strong>marcação literária do trabalho <strong>de</strong> Guimarães Rosa como o são no traçar<br />

limites naturais nas terras que banham.<br />

O que faz, contudo, <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas uma obra-prima é o fato<br />

<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa justeza técnica, revelar um povo, mostrar-nos a nós mesmos,<br />

dar-nos uma consciência <strong>de</strong> existir, como raros trabalhos literários brasileiros o<br />

tinham feito até agora. É a nossa gran<strong>de</strong> epopéia, no mais lato e, ao mesmo<br />

tempo, exato sentido da palavra. As batalhas do romance são <strong>de</strong>scritas num tom<br />

épico, tom <strong>de</strong> heroísmo que não se pren<strong>de</strong> a palavras, mas a pessoas e ao que<br />

elas fazem. Guimarães Rosa não se per<strong>de</strong> em literatizar seus acontecimentos,<br />

sua gente ou suas coisas. Tudo o que está no livro é natural e aparece contado<br />

por um narrador que, vivendo no meio, não se espanta com o mundo que é seu.<br />

O maior <strong>de</strong>feito <strong>de</strong> bons romances brasileiros é o <strong>de</strong> darem eles a impressão <strong>de</strong><br />

que seus autores estão visitando os lugares em que os fatos acontecem, o que os<br />

leva a se comportarem como repórteres que, tomados <strong>de</strong> espanto <strong>de</strong>sandam a<br />

fazer má literatura <strong>de</strong>scritiva. O espanto, quando existe, <strong>de</strong>ve vir <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro do<br />

próprio romance, e não a ele ser artificialmente imposto pelo escritor.<br />

O <strong>de</strong>senvolvimento e a fixação dos tipos humanos do livro são <strong>de</strong> absoluta<br />

niti<strong>de</strong>z. Diadorim, por exemplo, ficará como das gran<strong>de</strong>s criações <strong>de</strong> nossa


102 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

literatura. Mesmo os tipos inci<strong>de</strong>ntais, como o alemão Vulpes, Seu Rabão, as<br />

damas da al<strong>de</strong>ia, o homem amedrontado no meio do caminho, o leproso, têm,<br />

todos eles, uma força <strong>de</strong> traços que daria para que dali fossem extraídos outros<br />

romances. Os encontros e <strong>de</strong>sencontros entre os personagens apresentam um<br />

tom <strong>de</strong> flagrante macheza, <strong>de</strong>ssa masculinida<strong>de</strong> inerente às coisas primitivas. O<br />

passeio <strong>de</strong>le na canoa <strong>de</strong> Riobaldo com o menino, o julgamento <strong>de</strong> Zé Bebelo,<br />

o ataque à fazenda, o primeiro. O contato com os catrumanos, o pacto com o<br />

diabo, todas as páginas seguintes ao momento em que Riobaldo assume o<br />

comando dos jagunços, a parada na fazenda <strong>de</strong> Josafá Ornelas, a luta contra<br />

Ricardão e, acima <strong>de</strong> tudo, a batalha final contra Hermógenes, com a revelação<br />

do verda<strong>de</strong>iro Diadorim, são trechos da mais alta literatura, numa narrativa que<br />

põe o máximo <strong>de</strong> acontecimentos num mínimo <strong>de</strong> palavras.<br />

Outro lado raro do livro é a linguagem. Temos, enfim, um escritor <strong>de</strong><br />

linguagem absolutamente pessoal que, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa pessoalida<strong>de</strong>, concentra a<br />

fala <strong>de</strong> uma região. Po<strong>de</strong>-se imaginar o trabalho <strong>de</strong> requinte <strong>de</strong> Guimarães<br />

Rosa para escrever como o fez. Tudo o que a gente do interior, daquele<br />

interior do romance, é capaz <strong>de</strong> dizer, em frases típicas, em poucos momentos<br />

<strong>de</strong> uma vida inteira, o romancista colocou numa narrativa ininterrupta <strong>de</strong><br />

quase seiscentas páginas. O importante, no caso, é saber, <strong>de</strong> um lado, se a<br />

linguagem é a<strong>de</strong>quada ao romance e, do outro, se atinge largo plano literário.<br />

Quanto, ao primeiro, po<strong>de</strong>mos dizer, a narrativa falada <strong>de</strong> Guimarães Rosa, e<br />

sua corrente interna <strong>de</strong> significados, são inseparáveis. As palavras, e a forma<br />

como são usadas, não constituem, ai, mero recurso externo. A ligação entre o<br />

conteúdo do relato e sua exteriorização vem <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro, <strong>de</strong> uma fase anterior à<br />

sua fixação formal, tornando-os <strong>de</strong> tal modo inconsúteis, que a história,<br />

contada como o foi, não o po<strong>de</strong>ria ter sido <strong>de</strong> outra maneira. Quanto ao<br />

segundo, nunca atingiu, a língua portuguesa falada no Brasil, nível <strong>de</strong> tanta<br />

beleza. Há partes do romance que, <strong>de</strong> tão espantosas, obrigam o leitor a se<br />

<strong>de</strong>ter um pouco, para se convencer <strong>de</strong> que não se enganou com o inesperado<br />

da imagem ou da expressão.<br />

Os brasileirismos <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas parecem confirmar as<br />

palavras <strong>de</strong> Rui Barbosa em sua Réplica, <strong>de</strong> que as inovações <strong>de</strong> uma fala<br />

nacional nada mais são às vezes do que, “formas clássicas há muito<br />

envelhecidas e extintas”. Não cremos que se tenha, até agora, comparado o<br />

estilo <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas com o português antigo. Pois vamos fazê-lo,<br />

e escolhendo, para essa comparação, o primeiro documento <strong>de</strong> nossa História: a<br />

carta <strong>de</strong> Pêro Vaz <strong>de</strong> Caminha. Vejamos algo da sintaxe <strong>de</strong> Guimarães Rosa<br />

neste trecho da carta:


Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas ____________________________________________________________ Antônio Olinto 103<br />

“Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa-vonta<strong>de</strong>, a qual<br />

bem certo creia que, para aformosentar nem afear, a que não há <strong>de</strong> por mais do<br />

que aquilo que vi e que me pareceu. Da marinhagem e das singraduras do<br />

caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza – porque o não saberei fazer – e<br />

os pilotos <strong>de</strong>vem ter este cuidado.”<br />

A linguagem <strong>de</strong> Riobaldo e Diadorim se assemelha, sob muitos aspectos,<br />

às <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> Pêro Vaz <strong>de</strong> Caminha. Eis como falava o cronista da Descoberta<br />

respeito dos nossos índios:<br />

“Os cabelos <strong>de</strong>les são corredios. E andavam tosquiados, <strong>de</strong> tosquia alta<br />

antes do que sobrepente <strong>de</strong> boa gran<strong>de</strong>za, rapados, todavia por cima das<br />

orelhas. E um <strong>de</strong>les trazia por baixo da covinha, <strong>de</strong> fonte a fonte, na parte <strong>de</strong><br />

trás, uma espécie <strong>de</strong> cabeleira, <strong>de</strong> penas <strong>de</strong> ave amarela, que seria do comprimento<br />

<strong>de</strong> um côto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as<br />

orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena por pena, com uma confeição<br />

branda como cera (mas não era cera), <strong>de</strong> maneira tal que a cabeleira era mui<br />

redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a<br />

levantar.”<br />

Num dos períodos finais da carta se torna mais evi<strong>de</strong>nte a afinida<strong>de</strong>, com<br />

ela, <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas:<br />

“E <strong>de</strong>sta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta terra vi. E<br />

se a um pouco me alonguei, Ela me perdoe. Porque o <strong>de</strong>sejo que tinha <strong>de</strong> vos<br />

tudo dizer, mo fez pôr assim pelo miúdo.”<br />

A expressão “pelo miúdo”, por exemplo, é muito usada no romance <strong>de</strong><br />

Guimarães Rosa, cuja sintaxe se aproxima da <strong>de</strong> Pêro Vaz <strong>de</strong> Caminha, como<br />

da linguagem portuguesa comum na época do <strong>de</strong>scobrimento do Brasil. As<br />

modificações por que passa um idioma em terra estranha – como o português<br />

no Brasil – são fundamentais em todos os sentidos, inclusive no <strong>de</strong> conservar<br />

termos e modos muito antigos, que a língua-mãe já per<strong>de</strong>u. Os homens que<br />

percorrem o sertão do Urucuia, insulados em suas jagunçagens, renovam as<br />

palavras, mas têm um manancial <strong>de</strong> expressões, e <strong>de</strong> maneiras <strong>de</strong> as colocar em<br />

frases, que po<strong>de</strong>m datar do tempo em que os portugueses aportaram ao Brasil.<br />

Sendo fiel a uma fala que parecia perdida, Guimarães Rosa inova. As<br />

semelhanças que nele encontro, com uma linguagem velha, não significam<br />

imitação. Ao contrário. São a marca <strong>de</strong> uma tradição <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um meio<br />

revolucionário <strong>de</strong> expressão. A invenção literária não está em arrancar formas<br />

do nada. Consiste, sim, no insuflar um espírito novo em matéria que po<strong>de</strong>ria<br />

sugerir morte. Aí se encontram as “raízes profundas” <strong>de</strong> que falou Douglas<br />

Bush:


104 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

“Aqueles que mais eficazmente se rebelaram contra convenções gastas<br />

não <strong>de</strong>ram as costas a todas as tradições, mas saltaram por sobre seus<br />

pre<strong>de</strong>cessores mais imediatos para atingir tradições mais antigas que tinham<br />

sido perdidas ou esquecidas – como Eliot, Coleridge e Wordsworth. A originalida<strong>de</strong><br />

que perdura tem sempre raízes profundas.”<br />

Estávamos precisando <strong>de</strong> uma renovação que fosse retomar o fio primitivo<br />

da narrativa. Este, o trabalho <strong>de</strong> Guimarães Rosa. Arrancou ele do povo<br />

mais representativo do Brasil uma crônica <strong>de</strong> guerra que torna a aproveitar os<br />

velhos temas do homem. Um país que começa a ser gente tem, muitas vezes, <strong>de</strong><br />

repetir antigas experiências da humanida<strong>de</strong>, numa espécie <strong>de</strong> nomadismo que<br />

se transplanta para o plano literário. O nomadismo dos personagens <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong><br />

Sertão: Veredas acaba por influir nas palavras do autor e por levá-lo à criação<br />

<strong>de</strong> uma linguagem que tenha a substantivida<strong>de</strong> do que precisa ser dito. É por<br />

isso que o romance <strong>de</strong> Guimarães Rosa, fincado <strong>de</strong> agora em diante em nossa<br />

literatura, vem alargar os planos em que os escritos <strong>de</strong> um povo se fundam.


POR QUE GUIMARÃES ROSA?<br />

Fábio Lucas*<br />

Deportado do gregarismo, que faz e refaz o mesmo, Guimarães Rosa<br />

promulgou a sentença <strong>de</strong> morte da maneira européia <strong>de</strong> obrar a ficção, todavia<br />

sem <strong>de</strong>sgarrar-se do Totem carcomido, arruinado. Fez renascer a crença no<br />

vazio das religiões! Pa<strong>de</strong>ceu dos excessos, sem jamais poupar maravilhas.<br />

Teve <strong>de</strong> tornar-se exceção para ser o maior <strong>de</strong> todos. Fundou o território<br />

geopoético <strong>de</strong> Minas tão semelhante às cores do Brasil, que nação e região<br />

viraram sinônimos.<br />

No seu processo crítico-inventor, Guimarães Rosa cita, conceitua e cria<br />

<strong>de</strong> tal modo que a forma se torna maior que a função. Isto é: a arte predomina<br />

sobre o mar <strong>de</strong> lugares-comuns.<br />

A linguagem <strong>de</strong> Guimarães Rosa é a mesma do embuçado nas manhãs<br />

frias <strong>de</strong> Ouro Preto. Traz um segredo, a mensagem do mistério ainda in<strong>de</strong>cifrado.<br />

Quanto a Riobaldo, o narrador incontido <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, a<br />

sua paz é sua guerra, mas o inverso é também verda<strong>de</strong>iro: a sua guerra é a sua<br />

paz.<br />

O gran<strong>de</strong> lance <strong>de</strong> Guimarães Rosa foi transcen<strong>de</strong>r a ciência dos povos e<br />

procurar investir na valida<strong>de</strong> das microações inúteis, módulos existenciais <strong>de</strong><br />

romper, com o <strong>de</strong>sprograma, o dia-a-dia homogêneo, tediosamente programado.<br />

Ou seja, ele jogou no risco <strong>de</strong> existir nas minúcias <strong>de</strong> cada instante, <strong>de</strong><br />

modo contado, relatado, reconstituído, tornando verda<strong>de</strong> a mentira da ficção.<br />

Praticou, portanto, a alquimia das palavras, mesmo insistindo na fragilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

tudo, já que viver é muito perigoso.<br />

* Professor, ensaísta, autor <strong>de</strong>: Do Barroco ao Mo<strong>de</strong>rno, <strong>Mineira</strong>nças, O Poeta e a Mídia? Carlos<br />

Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto, Lições <strong>de</strong> Literatura Nor<strong>de</strong>stina, Ética e Estética<br />

<strong>de</strong> Érico Veríssimo. Da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> (ca<strong>de</strong>ira 22).


106 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Guimarães Rosa ofertou a si e aos leitores um real expandido. Parecia<br />

ecoar a lição <strong>de</strong> Gonçalves Dias, em I-Juca Pirama: “O sonho e a vida são dois<br />

galhos gêmeos”.<br />

De par com o seu gran<strong>de</strong> rival, Machado <strong>de</strong> Assis, po<strong>de</strong> ser lido e <strong>de</strong>gustado<br />

por qualquer leitor europeu, estaduni<strong>de</strong>nse ou hispanoamericano. Machado<br />

<strong>de</strong> Assis, numa vasqueira fantasia do pensamento, po<strong>de</strong>ria ser até um escritor<br />

europeu, estaduni<strong>de</strong>nse ou hispanoamericano, tais os condicionamentos eurocêntricos<br />

<strong>de</strong> sua p<strong>rosa</strong> e sua inserção na mundivivência urbana oci<strong>de</strong>ntal.<br />

Mas com Guimarães Rosa será diferente, não obstante tornar-se cada vez<br />

mais lido e admirado nos idiomas para os quais tem sido transposto. Pois não se<br />

po<strong>de</strong> fantasiar, num salto da imaginação, o nosso Guimarães Rosa a ficcionar<br />

como um escritor europeu, estaduni<strong>de</strong>nse ou hispanoamericano.<br />

É que, fora da língua portuguesa ao estilo brasileiro, sertanejo, assim o<br />

cremos, Guimarães Rosa, com toda a sua plasticida<strong>de</strong>, todo o seu aparato <strong>de</strong><br />

poliglota, todas as suas tonalida<strong>de</strong>s cambiantes, per<strong>de</strong> suas veredas, será peixe<br />

fora da água, estará fadado a um <strong>de</strong>snutrido exemplo exótico.<br />

J. L. Borges? É possível conceber Borges como escritor <strong>de</strong> língua<br />

inglesa. Mostras ele <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong>ssa possibilida<strong>de</strong>. Por exemplo, ao compor, com<br />

extrema finura, um soneto em castelhano, <strong>de</strong>dicado a Camões (<strong>de</strong> quem se<br />

julgou aparentado, conforme o poema “Los Borges” <strong>de</strong> El Hacedor: “Nada o<br />

muy poço se’ <strong>de</strong> mis mayores/Portugueses, los Borges”...). Igualmente em<br />

castelhano está todo o universo imagético com que o poeta e p<strong>rosa</strong>dor se<br />

projetou no panorama literário internacional. Mas Os Lusíadas <strong>de</strong> que ele se<br />

utilizou não foi o <strong>de</strong> língua portuguesa, mas o da tradução <strong>de</strong> Richard Burton<br />

para o inglês. E compôs o soneto “A Luís <strong>de</strong> Camões”, <strong>de</strong>nominando “Eneida<br />

lusitana” à epopéia camoneana. Aliás, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> zombar abertamente das<br />

vanguardas, escritas e visuais no poema “Invocación a Joyce”, <strong>de</strong> Elogio <strong>de</strong> la<br />

sombra: “Fruímos el imagismo, el cubismo/ los convertículos y sectas/ que las<br />

crédulas universida<strong>de</strong>s veneran./ Inventamos la falta <strong>de</strong> puntuación/ la omisión<br />

<strong>de</strong> mayúsculas,/ las estrofas en forma <strong>de</strong> paloma/ <strong>de</strong> los bibliotecarios <strong>de</strong><br />

Alexandria.”<br />

Enquanto isso, Gran<strong>de</strong> Sertão:Veredas somente po<strong>de</strong>ria ser redigido em<br />

Português. É o que <strong>de</strong>ixam sentir alguns dos tradutores do romance. O mesmo<br />

não se diria <strong>de</strong> El Aleph (1949). Aliás, Jorge Luis Borges, em entrevista<br />

concedida em 1962, <strong>de</strong>clara: “Tudo o que tenho escrito po<strong>de</strong>ria ser encontrado<br />

em Poe, Stevenson, Wells, Chesterton e alguns outros.” (cf. verbete <strong>de</strong> Jaime<br />

Alazraki, “Jorge Luis Borges”, em Latin American Writers, Vol. II, New York,<br />

Charles Scribner’s Sons, 1989, p. 851).


Por que Guimarães Rosa? _____________________________________________________________ Fábio Lucas 107<br />

Aliás, diga-se em consi<strong>de</strong>ração ao ficcionista argentino que este se agastou<br />

com o comentário <strong>de</strong>preciativo <strong>de</strong> Américo Castro a respeito do “Espanhol”<br />

usado em Buenos Aires, que não passaria <strong>de</strong> áspero e <strong>de</strong>sprimoroso “lunfardo”.<br />

Logo a seguir, Borges foi à forra e verberou o Castelhano <strong>de</strong> alguns espanhóis.<br />

Em suma: Guimarães Rosa é mais intérprete do sertão do que Borges<br />

seja o aedo do orbe gaúcho ou do espaço riopratense.<br />

Recor<strong>de</strong>-se que Américo Castro, em La peculiarid lingüística rioplatense<br />

y su sentido histórico (Buenos Aires: Losada, 1941), usou <strong>de</strong> expressões e<br />

juízos <strong>de</strong> valor que feriram a sensibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> J. L. Borges. E este, no capítulo<br />

“Los alarmas <strong>de</strong>l Doctor Américo Castro” (cf. Otras Inquisiociones, 1952, em<br />

Obras Completas, vol. 2 – 1952/1972 – Buenos Aires: Emecé Editores, 1990, p.<br />

31) contesta o erudito espanhol, que fala <strong>de</strong> um “<strong>de</strong>sbarajuste lingüístico en<br />

Buenos Aires” e, até, da hipótese do “lunfardismo” e da “mística gauchofilia.”<br />

Guimarães Rosa guardou no seu linguajar um po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> ruptura tão<br />

distante do convencional que logrou revolucionar a p<strong>rosa</strong> escrita em Português<br />

<strong>de</strong> modo mais radical do que o fizeram José <strong>de</strong> Alencar e Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>.<br />

Alencar, Machado e Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> mexeram na p<strong>rosa</strong> e dotaram a narrativa<br />

<strong>de</strong> meneios sutis e englobantes, mais conforme com a chave da oralida<strong>de</strong> e com<br />

os ritmos da emoção do que os aplaudidos “mestres do bom vernáculo”.<br />

Guimarães Rosa foi mais além: embruteceu o encanto das palavras, restituiu-lhes<br />

certo condão primitivo carregado da poesia mítica, ancestral e nostálgica.<br />

Eis que... “a língua é um alvo em movimento”, como o quer o psicólogo<br />

evolucionista Steven Pinter, professor <strong>de</strong> Harvard (U.S.A.), autor <strong>de</strong> O Instinto<br />

da Linguagem (São Paulo; Martins Fontes; cf. entrevista ao escritor inglês Ian<br />

McEwan na revista Areté, traduzida em “Mais”, Folha <strong>de</strong> S. Paulo <strong>de</strong> 27 <strong>de</strong><br />

abril <strong>de</strong> 2008, pp. 4-7).<br />

Guimarães Rosa <strong>de</strong>senvolveu a noção <strong>de</strong> que “o idioma é a única porta<br />

para o infinito, mas infelizmente está oculta sob montanha <strong>de</strong> cinzas”.<br />

Curioso é que J. L. Borges não dispensa, na linguagem, o empenhamento<br />

fabril do artesão. Sustenta a gramaticalida<strong>de</strong>, mais do que a textualida<strong>de</strong>, em<br />

“Indagación <strong>de</strong> la palabra”, constante da obra El idioma <strong>de</strong> los argentinos<br />

(Buenos Aires: Seix Barral/Biblioteca Breve, 1994, p. 11). Borges se queixa<br />

dos que censuram suas “gramatiquerías” e solicitam <strong>de</strong>le uma obra “humana”:<br />

“yo po<strong>de</strong>ría contestar que lo más humano (esto es, lo menos mineral, vegetal,<br />

animal y aun angelical) es precisamente la gramática.”<br />

Durante uma análise, palavra por palavra, <strong>de</strong> um trecho muito conhecido<br />

do D. Quijote, comenta: “Es <strong>de</strong>cir, las palabras no son la realidad <strong>de</strong>l lenguaje,<br />

la palabras – sueltas – no existen.” (ob. cit., p. 15). Acrescenta: “Esa es la


108 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

doctrina crociana.” E vai adiante: “Croce, para fundamentarlas, niega las partes<br />

<strong>de</strong> la oración y asevera que son una intromisión <strong>de</strong> la lógica, una insolencia.”<br />

(ob. Cit., p. 15). “La oración (arguye) es indivisible y las categorías gramaticales<br />

que la <strong>de</strong>sarman son abstracciones añadidas a la realidad.” (ob. Cit.,<br />

p. 15).<br />

Guimarães Rosa, parece-nos, revolucionou mais a sua tradição do que<br />

Borges o fez. E, a<strong>de</strong>mais, enfrentou uma Literatura que já produzira o seu mais<br />

elevado p<strong>rosa</strong>dor, Machado <strong>de</strong> Assis. Na passagem do século XIX para o<br />

século XX, o Brasil experimentou a calma revolução <strong>de</strong> um gênio inabordável<br />

pelas regalias da moda e do aplauso ligeiro. Estava à altura dos mo<strong>de</strong>los exemplares<br />

que nos eram impostos pela dominação européia.<br />

Prossigamos um pouco mais no paralelo da obra <strong>de</strong> Guimarães Rosa com<br />

a <strong>de</strong> J.L. Borges, na seqüência das tradições nacionais do Brasil e da Argentina.<br />

Perlustrando alguns trechos <strong>de</strong> Jorge Luis Borges, um escritor na periferia <strong>de</strong><br />

Beatriz Sarlo, na tradução <strong>de</strong> Samuel Titam Jr. (São Paulo: Iluminuras, 2008),<br />

sintamos a localização do escritor na cartografia do planeta literário. Diz a<br />

autora: “Se Balzac e Bau<strong>de</strong>laire, se Dickens e Jane Austen pareciam inseparáveis<br />

<strong>de</strong> alguma coisa que se chama ‘literatura francesa’ ou ‘literatura inglesa’,<br />

Borges, ao contrário, navega na corrente universalista da ‘literatura oci<strong>de</strong>ntal’.”<br />

A fim <strong>de</strong> reforçar o seu argumento, Beatriz Sarlo o contrabalança com o<br />

que se per<strong>de</strong>ria se se abandonasse o lado riopratense do genial escritor argentino:<br />

“Com efeito, Borges po<strong>de</strong> ser lido na Europa sem uma única alusão à<br />

região periférica em que escreveu toda sua obra. O que se obtém, assim, é um<br />

Borges inteligível nos termos da cultura oci<strong>de</strong>ntal e das versões do Oriente que<br />

esta cultura formulou, e o que se <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> lado é um Borges igualmente inteligível<br />

nos termos da cultura argentina e, em especial, da formação riopratense.”<br />

No cômputo geral, conclui a autora <strong>de</strong> Jorge Luis Borges, um escritor na<br />

periferia que “Po<strong>de</strong>-se ler Borges sem remetê-lo ao Martín Fierro, a Sarmiento<br />

ou a Lugones: lá estão os temas filosóficos; lá está a relação tensa, mas<br />

contínua com a literatura inglesa; lã estão o sistema <strong>de</strong> citações, a erudição<br />

extraída das minúcias das enciclopédias, o trabalho <strong>de</strong> escritor sobre o corpo da<br />

literatura européia e sobre as versões que esta construiu do ‘Oriente’...” Mas,<br />

todavia, não será o bastante, segundo a visão <strong>de</strong> Beatriz Sarlo. É que a<br />

dimensão riopratense brota inesperadamente para <strong>de</strong>salojar a literatura<br />

oci<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong> sua centralida<strong>de</strong>. A obra <strong>de</strong> Borges, portanto, se torna conflitiva.<br />

Não será o caso <strong>de</strong> Guimarães Rosa. Mesmo que busquemos nela os<br />

caminhos da Filosofia Oci<strong>de</strong>ntal e os resíduos da cultura oriental conduzidos<br />

pelos povos intermediários, que os transplantaram à península ibérica e aos


Por que Guimarães Rosa? _____________________________________________________________ Fábio Lucas 109<br />

<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes da herança greco-latina, é mais difícil questionar a literatura<br />

roseana como estrela da constelação oci<strong>de</strong>ntal do que auri-la na sua nascente,<br />

nas fontes das veredas encasteladas no gran<strong>de</strong> sertão.


110 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS


AS RAÍZES MINEIRAS<br />

DE GUIMARÃES ROSA<br />

Guimarães Rosa<br />

A carta que abaixo publicamos, datada <strong>de</strong> 23 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1963, foi<br />

escrita por Guimarães Rosa para o curvelano Paulo Emílio Pereira Diniz,<br />

profundo conhecedor da obra literária do saudoso escritor.<br />

O texto talvez não tenha para o leitor uma significação maior, embora<br />

apresente trechos nitidamente rosianos e outros tantos <strong>de</strong> singelas evocações<br />

<strong>de</strong> personagens e cida<strong>de</strong>s que povoaram o atraente universo do ilustre mineiro.<br />

Entretanto sua publicação agora se justifica, por se tratar <strong>de</strong> uma correspondência<br />

inédita, como também por coincidir com as expressivas comemorações<br />

do centenário <strong>de</strong> nascimento do autor <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas.<br />

Meu caro Paulo Emílio Pereira Diniz,<br />

J B T S<br />

Sua forte, bela carta – viva em simpatia e crepitando <strong>de</strong> sincerida<strong>de</strong> – foi<br />

para mim uma alegria, mesmo, diferente, real, das mais, no meio dêstes* dias<br />

com barulhinho <strong>de</strong> festejo. Quero logo agra<strong>de</strong>cê-la, muito. Mensagens assim,<br />

pelo espontâneo, pelo calor que trazem, fazem, é que valem, <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, para<br />

pagar a gente. Gratíssimo, pois, meu caro Paulo Emílio.<br />

E, ainda, peço-lhe, no quando tenha ocasião, dizer <strong>de</strong> mim a êsses outros<br />

Amigos, <strong>de</strong> que me fala: Dr. Dalton Canabrava, Dr. José Olímpio Borges Filho,<br />

Dr. Morse Belém Teixeira (o nosso Cyro dos Anjos já me falara nêle,<br />

entusiasmando-me), Jeovah Amaral, Ulisses Batista <strong>de</strong> Oliveira, Telmo Lívio<br />

Couto e Silva, Hélio Adjunto Botelho (<strong>de</strong>ve ser um daqueles bons paracatuanos,<br />

<strong>de</strong> longa estirpe), Valter Andra<strong>de</strong>, Dr. Juvenal Gonzaga, o Juquita <strong>de</strong><br />

Matos – que estarão sempre comigo na animadora lembrança fértil, amigos <strong>de</strong><br />

chão a fora e livro a <strong>de</strong>ntro.<br />

* Mantida a ortografia original.


112 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Decerto, gosto, tiro estímulo <strong>de</strong> ver que sou lido e sentido tanto, aí,<br />

pulsadamente, por espíritos parentes, <strong>de</strong> escolha gran<strong>de</strong>, Mas, principalmente,<br />

por gente minha, daí. Dessa parte vasta <strong>de</strong> Minas, nossa, que puxa sempre o<br />

afeto da gente, em apertos concêntricos. CURVELO, por exemplo (e como<br />

Você disse bem: “capital do país” <strong>de</strong> meus livros, ponto nuclear <strong>de</strong>ssa paisagem<br />

terrestre e humana que amo), é para mim uma amiza<strong>de</strong>, um exemplo e um<br />

símbolo. De clarida<strong>de</strong>, firmeza, otimismo, franqueza, coragem, valor. Por isto,<br />

mesmo, nem sei dizer-lhe como exultei com o que me adianta: a gene<strong>rosa</strong> idéia<br />

<strong>de</strong> darem, lá, o meu nome a uma rua. Júbilo <strong>de</strong> bom orgulho. De Curvelo, até a<br />

poeira vermelha enriquece a minha imaginação. Curvelo, sempre a senti bem<br />

junto com Cordisburgo. Vocês são nobres, gran<strong>de</strong>s, como gran<strong>de</strong> há <strong>de</strong> ser a<br />

minha gratidão.<br />

Já, quanto a homenagem, com a minha presença – e como me sentirei<br />

fortemente feliz <strong>de</strong> lá po<strong>de</strong>r ir, em qualquer tempo – teremos <strong>de</strong> conversar. Não<br />

saberia dizer quando me vai ser possível fazer essa viagem. Por vários motivos,<br />

<strong>de</strong> compromissos <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong> <strong>de</strong>veres aqui, <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, este ano ela não seria,<br />

<strong>de</strong> todo exequível,<br />

Porque, tendo <strong>de</strong>ixado acumular muita ausência, ver-me-ia obrigado, na<br />

ocasião, a passar também por Sete Lagoas, Cordisburgo, e outros lugares<br />

queridos, com os quais tomei compromisso. Teria <strong>de</strong> ir a Itaguara. A Paraopeba,<br />

A várias fazendas <strong>de</strong> parentes. A Barbacena. E, tudo isto, não contando<br />

os dias que teria <strong>de</strong> passar em Belo Horizonte, que seriam, calculando por<br />

baixo, pelo menos uma quinzena, dias que <strong>de</strong> há muito, já estou <strong>de</strong>vendo. Veja,<br />

só. De tudo isso, tão bom, tão do coração, não po<strong>de</strong>ria me esquivar; e os prazos<br />

me asfixiam. Tudo terá <strong>de</strong> ficar, pois, para os meados do ano que vem. É o que,<br />

sincero, sinto.<br />

Mas, como Você me anuncia, hei <strong>de</strong> vê-lo, <strong>de</strong>ntro em breve, por aqui.<br />

Venha ver-me, no Itamaraty, on<strong>de</strong> mourejo quase as 24 horas <strong>de</strong> cada dia. Terei<br />

prazer puro. (Já da outra vez, lembro-me fiquei com pena <strong>de</strong> não nos<br />

avistarmos, conforme disse à nossa amiguinha Staël Alves Pequeno.) E, então,<br />

abraçarei, sempre grato, êsse “curvelano <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> cem anos, Mascarenhas,<br />

Diniz, e Ferreira <strong>de</strong> Traíras”, com outro possante, sincero abraço, como êste,<br />

que vai aqui,<br />

do<br />

seu<br />

Guimarães Rosa


A MULHER GEOMÉTRICA – UMA<br />

INCURSÃO OUSADA NO TEXTO<br />

DE JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />

Onofre <strong>de</strong> Freitas*<br />

O narrador <strong>de</strong> “Minha Gente” (Rosa: 1974, p. 173 – 223) é um narradorpersonagem,<br />

do tipo intradiegético <strong>de</strong> que fala Gerard Genette (Genette: s. d.,<br />

p. 28 e sg.). Apesar <strong>de</strong> ser o protagoninsta da ação central, permanece inominado,<br />

do começo ao fim, apenas i<strong>de</strong>ntificado pelo “eu” falante. E é pelo seu<br />

olhar um tanto exterior a tudo – quero dizer: um quê apenas, penetrante na<br />

substância das coisas – que po<strong>de</strong>mos seguir o ponto <strong>de</strong> vista narrativo<br />

comprometido, parece-me, em nos induzir a ler os fatos pela superficialida<strong>de</strong>.<br />

Ou seja: estamos frente a um narrador jocoso (não no sentido <strong>de</strong> alegre e<br />

engraçado, mas no sentido primitivo <strong>de</strong> gostar <strong>de</strong> jogar); sim, um narrador que<br />

nos quer enganar, forçando-nos, como narratários, a entrar no jogo.<br />

A primeira informação que o narrador nos traz é para apresentar Santana<br />

– «que era também inspetor escolar, itinerante, com uma lista <strong>de</strong> <strong>de</strong>z ou doze<br />

municípios a percorrer – era o meu sempre-encontrável, o meu “até-as-pedrasse-encontram”<br />

– espécie esta <strong>de</strong> pessoa que todos em sua vida têm.»<br />

Sendo assim, Santana será o seu companheiro <strong>de</strong> viagem até próximo à<br />

fazenda dos Tucanos para on<strong>de</strong> o narrador se dirige em visita ao Tio Emílio.<br />

Companheiro <strong>de</strong> viagem e parceiro <strong>de</strong> jogo, porque Santana é viciado em<br />

xadrez. Conduz sempre consigo uma cartela furada <strong>de</strong> papelão on<strong>de</strong> as peças<br />

são cravadas, permitindo disputar-se uma partida mesmo em movimento em<br />

cima dos cavalos. De pronto, ficamos sabendo que Santana é do tipo introvertido,<br />

homem só intelecto, continuamente absorto pelas <strong>de</strong>duções e cálculos<br />

do jogo – ponto único <strong>de</strong> convergência <strong>de</strong> seus interesses e atenções. O<br />

* Professor Universitário, advogado. Presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> O Ateneu – Centro Mineiro <strong>de</strong> Estudos Literários.


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narrador inominado, ao contrário, é do tipo distraído, voltado para a beleza e os<br />

<strong>de</strong>talhes da paisagem. Desse modo, também <strong>de</strong> imediato, já temos por<br />

<strong>de</strong>lineada a sua pessoa, pouco afeita às preocupações do espírito e às canseiras<br />

do intelecto, um extrovertido bon vivant. Pois não?<br />

Ao apresentar o tio Emílio, entretanto, o extrovertido narrador, tão alheio<br />

aos aspectos estruturais da alma humana, parecia-me assim anteriormente, até<br />

que revela certo grau <strong>de</strong> senso <strong>de</strong> observador, expondo, com análise e proprieda<strong>de</strong><br />

crítica, as mudanças percebidas nos modos e ações do tio que o hospeda.<br />

Mas isso não nos convence <strong>de</strong> que ele costuma ir fundo na apreciação dos<br />

fatos, das coisas, das pessoas. O seu magno propósito é tão só visitar e valorizar<br />

as magnitu<strong>de</strong>s físicas. Tanto assim que, ao nos apresentar Maria Irma sua<br />

prima, esse mesmo narrador (para nós continua anônimo – nunca diz o seu<br />

nome) confirmará a primeira impressão que já <strong>de</strong> si nos <strong>de</strong>u – a <strong>de</strong> homem das<br />

exteriorida<strong>de</strong>s.<br />

Maria Irma, na linha <strong>de</strong> importância diegética, é a segunda personagem<br />

mais importante. Contracena com ele narrador, com quem forma o par amoroso<br />

da história central, que se <strong>de</strong>sdobrará como um jogo <strong>de</strong> interesses e traições.<br />

Para cumprir seu papel <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse xadrez amoroso, Maria Irma representa um<br />

tipo oposto ao temperamento e sentimentos do parceiro-narrador. Vale dizer:<br />

ela encarna a pessoa mentalmente ativa, preservando valores morais e intelectuais,<br />

po<strong>de</strong>ndo-se tê-la portanto como mulher liberada, culta e dominadora.<br />

Sabe o que quer e põe o que sente no que faz para ter o que <strong>de</strong>seja.<br />

Recor<strong>de</strong>-se como nos é apresentada:<br />

«Tio Emílio tem duas filhas. A mais velha, Helena, está casada e não<br />

mora aqui. A outra, Maria Irma, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser bastante bonita. Em outros<br />

tempos, fomos namorados. Desta vez me recebeu com ar <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança. Mas<br />

é alarmantemente simpática. Principalmente graciosa. A própria pessoa da<br />

graça. Graciosíssima. O perfil é assim meio romano: camafeu em cornalina...<br />

<strong>de</strong>pois, cintura fina, abrangível; corpo triangular <strong>de</strong> princesinha egípcia... Mas a<br />

sua maior beleza está nos olhos, olhos gran<strong>de</strong>s, pretíssimos, <strong>de</strong> fenda ampla e<br />

um tanto oblíqua, eletromagnéticos, rasgados quasemente até às têmporas, um<br />

infinitesimalzinho irregulares; lindos! tão lindos, que só po<strong>de</strong>m ser os tais olhos<br />

Ásia-na-América <strong>de</strong> uma pernambucana – pelo menos <strong>de</strong> uma filha <strong>de</strong><br />

pernambucanos, quando nada <strong>de</strong> meia ascendência chegada do Recife...»<br />

Salta aos olhos a beleza física <strong>de</strong> Maria Irma. O seu potencial sedutor.<br />

Com toda essa combinação <strong>de</strong> partes proporcionais e «infinitesimalmente»<br />

assimétricas, há <strong>de</strong> resultar um todo irresistível aos olhos masculinos, que só <strong>de</strong><br />

o contemplar se antepara em êxtase com o gozo dos sentidos enamorados. É <strong>de</strong>


A mulher geométrica – uma incursão ousada no texto <strong>de</strong> João Guimarães Rosa ____________ Onofre <strong>de</strong> Freitas 115<br />

espontânea percepção que o narrador só tem olhos para a beleza física da sua<br />

eleita. Posto que mais adiante se vá referir ao estágio <strong>de</strong>la no internato colegial,<br />

a expressão mais saliente e <strong>de</strong>finitiva que encontra para <strong>de</strong>fini-la é a <strong>de</strong> «minha<br />

<strong>de</strong>liciosa priminha, sendo assim tão “tão”... »<br />

Tão certinha, tão geométrica. Corpo triangular. Olhar oblíquo. A sua<br />

«<strong>de</strong>liciosa priminha», no entanto, lhe resistia com a firmeza <strong>de</strong> «uma gameleira<br />

digna <strong>de</strong> drúidas e bardos».<br />

É preciso buscar explicações e o nosso herói – ele mesmo nos contando –<br />

segue tecendo, comentando fatos, vidas dos outros, enquanto a sua própria<br />

fermenta na espectativa <strong>de</strong> novida<strong>de</strong>s. E uma coisa séria, grave, <strong>de</strong> impacto<br />

<strong>de</strong>cisivo em questões <strong>de</strong> amor... acontece afinal. Tem um nome: Ramiro!<br />

Ramiro é um jovem – noivo <strong>de</strong> Armanda, amiga <strong>de</strong> Maria Irma. O<br />

narrador vai saber disso por informação da própria Maria Irma, que tenta assim<br />

acalmar a reação <strong>de</strong> ciúme <strong>de</strong> seu pretenso namorado e primo. Eis a cena:<br />

«O rapaz trouxe livros para minha prima. Penso mesmo que ele os traz<br />

freqüentemente, porque ouvi Maria Irma falar-lhe em restituir outros. Livros<br />

em francês... Nunca pensei que minha prima os lesse. Também, ela hoje<br />

está toda diferente, mais bonita; por ocasião da minha chegada não se<br />

enfeitou assim! Entre Maria Irma e esse moço há qualquer coisa. Exaspero-me.<br />

Detesto-os!»<br />

Daí até rejeitar o doce – «o doce tinha sido feito para o meu rival».<br />

– cresce a estranheza pela presença do outro. O nosso rejeitado personagem-narrador<br />

não se apercebe do seu erro por nunca ter perguntado a Maria<br />

Irma se ela gostava ou não <strong>de</strong> ler... e coisas mais.<br />

O narrador, todavia, permanece inocente, sem atinar com que Maria<br />

Irma, inteligente tanto quanto bonita, tramava para aproximar <strong>de</strong>le Armanda,<br />

noiva <strong>de</strong> Ramiro. Nos seus planos, os dois se igualavam e plenamente se<br />

mereciam. Enten<strong>de</strong>-se, pois, que Maria Irma pensasse que a amiga Armanda<br />

não merecia Ramiro, o qual se i<strong>de</strong>ntificava melhor com ela – Maria Irma.<br />

Nesse ínterim, o narrador inominado traça uma estratégia <strong>de</strong> retirada e<br />

vai-se embora para a fazenda <strong>de</strong> seu outro tio – Juca Soares. Estando ele pois<br />

ausente, Maria Irma fica livre para ultimar suas tramas no xadrez do amor.<br />

Tempo <strong>de</strong>pois, não muito, o narrador – em princípio amante em retirada<br />

– recebe duas cartas: uma, do tio Emílio, contando sua vitória nas eleições;<br />

outra, <strong>de</strong> Santana, dando continuida<strong>de</strong> ao jogo interrompido no último encontro.<br />

Diz na carta que não existe jogada perdida, e impõe termo à partida, ofere-


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cendo irresistível xeque-mate. O narrador apaixonado per<strong>de</strong>u a contenda <strong>de</strong><br />

xadrez, mas isso lhe põe em mente a convicção sugerida <strong>de</strong> que não existe jogo<br />

perdido, dando-lhe ânimo para recomeçar o xadrez do amor em que a sua<br />

parceira «vale qualquer sacrifício», pois é a sua «<strong>de</strong>liciosa priminha».<br />

Ato contínuo abandona tudo e volta para a fazenda do tio Emílio.<br />

Ao chegar, é logo surpreendido por uma jogada in<strong>de</strong>fensável. Maria Irma<br />

trazia pronto seu imediato xeque-mate. Apresenta-lhe Armanda – aquela que<br />

era noiva <strong>de</strong> Ramiro. Reconstruo a movimentação das peças com as palavras<br />

mesmas do jocoso narrador:<br />

« – On<strong>de</strong> está Maria Irma? – perguntei.<br />

Estava no jardim, e tinha mesmo <strong>de</strong> estar no jardim.<br />

Mas não estava só.<br />

Ruborizou-se. Ofegou. E apresentou-me à outra.<br />

– Meu primo... Armanda...<br />

Armanda tinha uma expressão severa, e foi muito inóspito o seu olhar.<br />

Quase uma zanga.<br />

– Com cada um <strong>de</strong> vocês já falei muito do outro... – acrescentou Maria<br />

Irma.<br />

Hesitei. Armanda recuara um passo, e fingiu olhar o jasmineiro. Murmurei:<br />

– Então, Maria Irma, surpreendi você com a minha volta...<br />

– Fico alegre...<br />

– De verda<strong>de</strong>?<br />

– Não começa outra vez. Você não compreen<strong>de</strong>...<br />

Alguém riu. Era Armanda, a <strong>de</strong> maravilhosa bôca e olhos esplêndidos.<br />

– Vou ver, papai chamou... Me esperem... – explicou Maria Irma,<br />

abrindo vôo.<br />

– Prefiro caminhar. Quer? – perguntou-me Armanda.<br />

Quis. Andamos. Calados. Crescia em mim uma coisa <strong>de</strong>finitiva, assim<br />

com a impressão <strong>de</strong> já conhecê-la, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito, muito tempo. Nossas mãos se<br />

encontraram, <strong>de</strong> repente, e eu senti que ela também estremeceu.<br />

– Você está querendo tomar-me o pêlo?!<br />

– Que é isso, Armanda?<br />

– Nada. Vamos!<br />

Uma lava<strong>de</strong>ira cantava, lá na beira do rego:


A mulher geométrica – uma incursão ousada no texto <strong>de</strong> João Guimarães Rosa ____________ Onofre <strong>de</strong> Freitas 117<br />

De madrugada,<br />

quando a lua se escondia...<br />

o sol raiava<br />

na janela <strong>de</strong> Maria...<br />

Vinha um odor duro, das flores carminadas. Os aloendros, em fila, nos<br />

separavam do mundo. Pensamentos me agitavam. Queria...<br />

– Você gosta <strong>de</strong> Maria Irma?<br />

– Não...<br />

– De quem?<br />

– De você... Sempre gostei. Sempre! Antes <strong>de</strong> saber que você existia...<br />

– É engraçado...<br />

– É verda<strong>de</strong>.<br />

– Não... Não é isso...<br />

Armanda jogou fora o botão <strong>de</strong> bogari, e entrecruzou os <strong>de</strong>dos. E disse:<br />

– É com você que eu vou casar.<br />

– Comigo?!...<br />

– Então, por que você não me beija? Porque aqui na roça não é uso?<br />

♦ ♦ ♦<br />

«E foi assim que fiquei noivo <strong>de</strong> Armanda, com quem me casei, no mês<br />

<strong>de</strong> maio, ainda antes do matrimônio da minha prima Maria Irma com o moço<br />

Ramiro Gouvêia, dos Gouvêias da fazenda da Brejaúba, no Todo-Fim-É-Bom.»<br />

Só me resta concluir.<br />

Amor repentino não nasce <strong>de</strong> convivência nem <strong>de</strong> conhecimento profundo,<br />

certo? É uma reação <strong>de</strong> corpos, não <strong>de</strong> almas, certo? O que prepon<strong>de</strong>ra é<br />

a atração física – fator importante – capaz <strong>de</strong> atar dois <strong>de</strong>stinos humanos mas<br />

nem sempre duradouro, certo? Ao que se <strong>de</strong>duz, o nosso herói amoroso<br />

valorizava tal circunstância... mais do que outras. Para ele valiam não as<br />

qualida<strong>de</strong>s intelectivas, mas sim as da beleza corporal. Num dito sintético:<br />

proclamava o reino da – MULHER GEOMÉTRICA!<br />

Apenas mais um comentário:<br />

Atente o leitor-narratário para a especiosida<strong>de</strong> do topônimo do lugar para<br />

on<strong>de</strong> foram morar Ramiro e Maria Irma... – essa a última cartada do narrador<br />

nesse jogo textual!


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Referências Bibliográficas<br />

CARVALHO, Alfredo Leme Coelho <strong>de</strong>. Foco narrativo e fluxo da consciência<br />

— Questões <strong>de</strong> teoria literária. São Paulo: Pioneira, 1981.<br />

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 3. ed. São Paulo: Ática,<br />

1995. Coleção Princípios.<br />

GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins.<br />

Lisboa: Vega, s. d.<br />

LEITE, Lígia Chiappini Moraes. O foco narrativo. 3. ed. São Paulo: Ática,<br />

1987. Coleção Princípios.<br />

NIEL, André. A análise estrutural <strong>de</strong> textos. Literatura, imprensa, publicida<strong>de</strong>.<br />

Trad. <strong>de</strong> Álvaro Lorencini e Sandra Nitrini. São Paulo: Cultrix, 1978.<br />

ROSA, Guimarães João. Sagarana. 17. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Livraria José<br />

Olympio Editora, 1974. Coleção Sagarana. V. 1.<br />

ROSA, Guimarães João. Sagarana. 5. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Livraria José<br />

Olympio Editora, 1958. Coleção Sagarana. V. 1.<br />

SAFADY, Naief. Introdução à análise <strong>de</strong> texto. 4. ed. Belo Horizonte: Edições<br />

Júpiter, 1972.


GUIMARÃES ROSA:<br />

O SERTÃO E O HOMEM<br />

Luiz Au<strong>de</strong>bert Delage Filho*<br />

Solicitou-me a direção do jornal A Semana, <strong>de</strong> Pirapora, escrevesse um<br />

“breve ensaio” sobre Guimarães Rosa e sua obra-prima Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />

Veredas, que está sendo adaptada para filmagens pela Re<strong>de</strong> Globo <strong>de</strong> Televisão,<br />

numa gran<strong>de</strong> parte do Norte <strong>de</strong> Minas e, em especial, no Distrito <strong>de</strong><br />

Paredão <strong>de</strong> Minas, on<strong>de</strong> teria ocorrido, no romance, às margens do legendário<br />

Rio do Sono, a batalha final entre os grupos <strong>de</strong> jagunços na disputa da hegemonia<br />

do sertão.<br />

De um lado, Riobaldo, o herói antes problemático e <strong>de</strong>pois resoluto,<br />

chefiando o bando <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iro Vaz – “O Rei dos Gerais” – e <strong>de</strong> outro<br />

Hermógenes, pactário, traidor <strong>de</strong> Joca Ramiro a quem matara traiçoeira e<br />

covar<strong>de</strong>mente, aliado a Ricardão, trazendo com isso a cisão do bando e<br />

angariando, até o fim, o ódio mortal <strong>de</strong> Diadorim, filha <strong>de</strong> Joca Ramiro.<br />

Ela, durante todo o romance é o jagunço Reinaldo, por quem Riobaldo<br />

mantém uma atração amo<strong>rosa</strong>, a todo custo sufocada, porque não admissível<br />

entre... “homens <strong>de</strong> armas e brios”..., segredo que somente ao final se <strong>de</strong>svenda,<br />

com Diadorim morta, em combate a faca com Hermógenes, a quem também<br />

mata, vingando a morte do pai que a criara <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequena como homem,<br />

<strong>de</strong>stinando-a às duras guerras do sertão. Na pia do batismo recebera o nome<br />

Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins... “que nasceu para o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong><br />

guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo <strong>de</strong> amor”...<br />

Difícil é sintetizar Guimarães Rosa e sua obra-prima Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />

Veredas, pois o escritor e a obra <strong>de</strong>vem ser enfocados sob o aspecto da<br />

genialida<strong>de</strong>. Procurei valer-me, para <strong>de</strong>sincumbência da tarefa, além <strong>de</strong><br />

* Desembargador do Tribunal <strong>de</strong> Justiça do Estado <strong>de</strong> Minas Gerais.


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consultas ao texto básico do romance, na 14ª edição, 1980, do trabalho <strong>de</strong><br />

Franklin <strong>de</strong> Oliveira, publicado em a Literatura no Brasil, direção <strong>de</strong> Afrânio<br />

Coutinho – Volume 5; da obra do Mineiro <strong>de</strong> Inhapim, Alan Viggiano –<br />

Itinerário <strong>de</strong> Riobaldo Tatarana; e do livro <strong>de</strong> Leonardo Arroyo – A Cultura<br />

Popular em Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas.<br />

Franklin <strong>de</strong> Oliveira menciona que, em Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, a<br />

estória é contada sob a aparência <strong>de</strong> diálogo, mas, na verda<strong>de</strong>, é um colossal<br />

monólogo. É a estória <strong>de</strong> Riobaldo, quando não é mais jagunço, quando já<br />

<strong>de</strong>ixou a jagunçagem para ser estável fazen<strong>de</strong>iro a passar o melhor <strong>de</strong> seu<br />

tempo no bem-bom do “range-re<strong>de</strong>”, em recordações e dúvidas, sendo a maior<br />

<strong>de</strong>las a existência do diabo, (“O diabo na rua, no meio do re<strong>de</strong>moinho”) –<br />

refrão do livro e se realmente ele, Riobaldo, se tornara pactário, ao ven<strong>de</strong>r a<br />

alma, à meia noite, nas “veredas mortas”, pelas glórias do comando.<br />

Na realida<strong>de</strong>, há três Riobaldos: o jagunço, herói problemático; o fáustico,<br />

pactário – herói resoluto, mas que se trai a si mesmo; e o místico, herói<br />

frustrado, a partir do qual é dada a narrativa. O romance começa, e todo ele é a<br />

evocação <strong>de</strong> sua vida, portanto, não mais a estória <strong>de</strong> um homem <strong>de</strong> ação, mas<br />

<strong>de</strong> um homem que se interroga. De algum modo, um romance <strong>de</strong> ilusões<br />

perdidas.<br />

Riobaldo era garoto pobre no vale do São Francisco, vivendo na região<br />

em que se localizava a “Fazenda Sirga”, nas proximida<strong>de</strong>s do “rio <strong>de</strong> Janeiro”,<br />

afluente do gran<strong>de</strong> rio. Certo dia, saíra para pagar promessa, quando se<br />

encontra com um menino. Com esse menino, apren<strong>de</strong> a lição suprema: a da<br />

Coragem. O menino, mais tar<strong>de</strong> o moço Reinaldo, acompanha Joca Ramiro,<br />

guerrilheiro <strong>de</strong> alta glória. Por pura afetivida<strong>de</strong> a Reinaldo, agora Diadorim, o<br />

ex-menimo engaja-se na jagunçagem. Morre Me<strong>de</strong>iro Vaz, outro “Par-<strong>de</strong>-<br />

França” dos sertões <strong>de</strong> Minas. Ao morrer, Me<strong>de</strong>iro Vaz o escolhe, com um<br />

gesto <strong>de</strong> “herói <strong>de</strong> gesta”, para a chefia. Recusa o comando. A tantas, surge Zé<br />

Bebelo, chefe. As andanças guerrilheiras.<br />

O inimigo, Hermógenes, que à traição assassinara Joca Ramiro, era<br />

pactário. Ação luciferina, <strong>de</strong>mônio <strong>de</strong> armas e tocaia. A obsessão <strong>de</strong> Diadorim,<br />

sortilégio forte sobre Riobaldo, era liquidar Hermógenes. Uma fascinação que a<br />

Riobaldo parecia <strong>de</strong>moníaca. Contudo, resolve ser também pactário. Nas<br />

“Veredas Mortas”, meia-noite, ven<strong>de</strong> a alma ao diabo, pelas glórias do Comando<br />

– subjacentemente, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> liquidar Hermógenes, para crescer aos<br />

olhos <strong>de</strong> Diadorim, – a relação ambígua.<br />

Pacto feito, Riobaldo não é mais o herói problemático, irresoluto. Assume<br />

o comando, com fortes po<strong>de</strong>res. O mundo, agora, em suas mãos, é um


Guimarães Rosa: o sertão e o homem ______________________________________ Luiz Au<strong>de</strong>bert Delage Filho 121<br />

brinquedo. As façanhas – a travessia do “Liso do Sussuarão”, por exemplo –<br />

em que fracassara o Gran<strong>de</strong> Chefe, paradigma <strong>de</strong> todos, ele a realiza tranqüilo.<br />

Tem, <strong>de</strong>pois do pacto, a armadura, a envergadura do super-homem. Antes, que<br />

era? O protótipo do herói problemático, dilacerado entre terríveis contradições.<br />

Ana Nhorinhá, polo <strong>de</strong> atração erótica – pensa que com a doce prostituta<br />

po<strong>de</strong>ria unir-se para sempre. Chega a perguntar: ela o queria salvar? Mas ama<br />

OTACÍLIA, visão branca <strong>de</strong> paz, longínqua, romanticamente <strong>de</strong>sejada. E ama,<br />

numa tremenda confusão <strong>de</strong> sentimentos, Diadorim – atração e repulsa: ignora,<br />

ainda, que Diadorim é mulher – o mito da mulher vestida <strong>de</strong> guerreiro.<br />

Pacto feito, comando assumido, guerra travada para ser <strong>de</strong> extermínio<br />

dos “Hero<strong>de</strong>s Hermógenes”, à hora do combate <strong>de</strong>finitivo, no entrevero do<br />

Paredão, Riobaldo ausenta-se da luta. Apenas da janela do sobrado assiste ao<br />

duelo entre Diadorim e Hermógenes, no qual morrem os dois. Eis que é quando<br />

<strong>de</strong>scobre que Diadorim, filha <strong>de</strong> Joca Ramiro, po<strong>de</strong>ria ser seu amor, no normal,<br />

amor nascido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a misteriosa atração, nas margens do São Francisco, na<br />

barra do “<strong>de</strong> Janeiro” on<strong>de</strong> começara a estória.<br />

Alan Viggiano, no Itinerário <strong>de</strong> Riobaldo Tatarana, i<strong>de</strong>ntifica e localiza<br />

180 das quase 230 localida<strong>de</strong>s citadas em Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, como<br />

etapas da odisséia <strong>de</strong> Riobaldo pelo Sertão. Com a rápida expansão do sistema<br />

rodoviário iniciada <strong>de</strong>pois da construção <strong>de</strong> Brasília, muitos trechos <strong>de</strong>sse<br />

mundo fechado, lendário <strong>de</strong> tão inacessível, ficaram <strong>de</strong>ntro do alcance do<br />

viajante comum. A vereda do Tamanduá, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>u o primeiro recontro dos<br />

bandos <strong>de</strong> Riobaldo e Hermógenes fica, segundo afirma Alan, a poucos<br />

quilômetros da estrada Brasília-Belo Horizonte. Talvez, acrescenta, “num<br />

futuro não muito distante se organizem excursões turísticas aos pontos essenciais<br />

do universo rosiano”.<br />

As principais cida<strong>de</strong>s compreendidas no território perlustrado por<br />

Riobaldo Tatarana, enumeradas por Viggiano, são: Sete Lagoas; Curvelo;<br />

Corinto; Lassance; Várzea da Palma (Córrego do Batistério); Pirapora; Montes<br />

Claros; Brasília <strong>de</strong> Minas; São Romão; São Francisco; Januária; Monte Azul;<br />

Grão Mogol; Araçuai; Jequitaí, e evi<strong>de</strong>ntemente o município <strong>de</strong> Buritizeiro,<br />

on<strong>de</strong> se localiza o distrito <strong>de</strong> Paredão <strong>de</strong> Minas.<br />

Outras localida<strong>de</strong>s são citadas, ou pelas antigas <strong>de</strong>nominações, ou pelos<br />

nomes atuais, pois conforme lamenta o narrador, os lugares não <strong>de</strong>veriam<br />

mudar <strong>de</strong> nome, para garantia dos que neles nasceram, e exemplifica: São<br />

Romão não já foi Vila Risonha?<br />

São citados: Córrego do Batistério (em Várzea da Palma); Serra da Onça;<br />

Rio Jequitaí; Córrego do Mocambo: Córrego do Canabrava; Córrego Barra (ou


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Barro); Serra da Jaíba; Angicos; Poço Triste; Gorutuba; Quem-Quem; Guararavacã<br />

do Guaicuí; Alto Amoipira; Malhada Gran<strong>de</strong>; Mingu; Brejo dos Mártires;<br />

Barra do Urucuia; Serra das Araras; Lagoa Suçuarana; Rio Pardo; Rio<br />

Acari; Rio Piratinga; Rio São Domingos.<br />

Mas é aos rios que o roteiro <strong>de</strong> Riobaldo Tatarana está sempre ligado. O<br />

São Francisco é o maior <strong>de</strong> todos, ponto <strong>de</strong> referência. O Paracatu e o das<br />

Velhas são rios importantes na vida do jagunço. Ao Urucuia “on<strong>de</strong> tanto boi<br />

berra”, ele está preso pelo amor. “... Confusa é a vida da gente. Como esse meu<br />

Urucuia vai se levar ao mar. Rio meu, <strong>de</strong> amor, é o Urucuia”.<br />

O itinerário dos cangaceiros (jagunços) procurava naturalmente fugir das<br />

gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s, on<strong>de</strong> havia proteção contra eles. Mas seu sonho é tomar <strong>de</strong><br />

assalto – bando <strong>de</strong> centenas, uma inteira, para provar seu po<strong>de</strong>rio. Pirapora ou<br />

Januária, por exemplo. No geral, entretanto, eles percorrem as barrancas dos<br />

rios – pelos quais se orientam – saqueando as pequenas vilas in<strong>de</strong>fesas ou<br />

cobrando dízimos dos fazen<strong>de</strong>iros.<br />

O legendário “Rio do Sono” é palco dos mais emocionantes episódios <strong>de</strong><br />

Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas. Nasce no sul do município <strong>de</strong> João Pinheiro, atravessa<br />

rumo ao norte todo esse município e vai <strong>de</strong>saguar no Rio Paracatu, na<br />

divisa com Buritizeiro, próximo à localida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paredão <strong>de</strong> Minas, vila que<br />

formou as gambiarras do combate final entre os dois bandos <strong>de</strong> cangaceiros, no<br />

final do romance.<br />

Demonstra Viggiano que, quem viaja, hoje, pela estrada asfaltada <strong>de</strong><br />

Belo Horizonte até Brasília, logo adiante da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> João Pinheiro, atravessará<br />

uma ponte sobre o Rio do Sono e sentirá, certamente, o clima emocional<br />

das histórias do escritor mineiro. E se o viajante largar a estrada e tomar o rio<br />

abaixo, vai passar nos fundos das casas <strong>de</strong> um lugar que ROSA imaginou para<br />

o combate final dos jagunços: Paredão. Hoje, Paredão <strong>de</strong> Minas, distrito <strong>de</strong><br />

Buritizeiro, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>senvolvem atualmente as filmagens da Re<strong>de</strong> Globo.<br />

Sobre Guimarães Rosa, Alceu Amoroso Lima afirmou tratar-se <strong>de</strong><br />

“Autor absolutamente inqualificável, a não ser na categoria dos gênios, isto é,<br />

dos gran<strong>de</strong>s isolados”.<br />

Sérgio Buarque <strong>de</strong> Holanda, falando <strong>de</strong> e sobre Guimarães Rosa, dizia<br />

ter medo <strong>de</strong> tentar comparações e não diria, por isso, que a obra <strong>de</strong> G. R. é a<br />

maior da literatura brasileira <strong>de</strong> todos os tempos. Diria, porém, que nenhuma<br />

outra, <strong>de</strong> nenhum escritor, entre brasileiros, po<strong>de</strong> dar-lhe a mesma idéia <strong>de</strong><br />

tratar-se <strong>de</strong> criação absolutamente genial.<br />

Guimarães Rosa é consi<strong>de</strong>rado como integrante do Instrumentalismo,<br />

<strong>de</strong>ntro do Mo<strong>de</strong>rnismo, reunindo os escritores que, a partir <strong>de</strong> 1945, se


Guimarães Rosa: o sertão e o homem ______________________________________ Luiz Au<strong>de</strong>bert Delage Filho 123<br />

preocuparam em realizar sua obra através <strong>de</strong> uma redução da ficção à pesquisa<br />

formal e <strong>de</strong> linguagem, e se voltam para “os seus instrumentos <strong>de</strong> trabalho”.<br />

Em Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, a palavra per<strong>de</strong>u sua característica <strong>de</strong><br />

termo, entida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contorno unívoco, para converter-se em plurissigno, realida<strong>de</strong><br />

multissignificativa, policonotativa. A língua Rosiana <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser unidimensional,<br />

convertendo-se em idioma no qual os objetos flutuam numa atmosfera<br />

em que o significado <strong>de</strong> cada coisa está em contínua mutação.<br />

A palavra “Sertão”, por exemplo, é apresentada como: realida<strong>de</strong> geográfica;<br />

realida<strong>de</strong> social; realida<strong>de</strong> política; dimensão folclórica; dimensão psicológica<br />

conectada com o subconsciente humano; dimensão metafísica apontando<br />

para as surpreen<strong>de</strong>ntes virtualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>moníacas da alma humana; dimensão<br />

ontológica referida à solidão existencial; tendo pois infinitas possibilida<strong>de</strong>s<br />

significativas.<br />

Algumas citações sobre o Sertão:<br />

“O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado<br />

sertão é por os campos-gerais a fora a <strong>de</strong>ntro, eles dizem, fim <strong>de</strong> rumo, terras<br />

altas, <strong>de</strong>mais do Urucuia. Toleima. Para os <strong>de</strong> Corinto e do Curvelo, então, o<br />

aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior. Lugar sertão se divulga: é on<strong>de</strong> os<br />

pastos carecem <strong>de</strong> fechos; on<strong>de</strong> um po<strong>de</strong> torar <strong>de</strong>z, quinze léguas, sem topar<br />

com casa <strong>de</strong> morador; e on<strong>de</strong> criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do<br />

arrocho <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>”. (pg 9)<br />

... “No sertão, até enterro simples é festa.”<br />

... “O sertão é do tamanho do mundo.”<br />

... “Sertão é o penal, criminal. Sertão é on<strong>de</strong> homem tem <strong>de</strong> ter a dura<br />

nuca e mão quadrada”.<br />

... “e muitas idas e marchas: sertão sempre. Sertão é isto: o senhor<br />

empurra para trás, mas <strong>de</strong> repente ele volta a ro<strong>de</strong>ar o senhor dos lados. Sertão<br />

é quando menos se espera; digo.”<br />

... “Sertão é <strong>de</strong>ntro da gente.”<br />

... “Homem a pé, esses Gerais comem.”


124 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

... “O sertão é bom. Tudo aqui é perdido, tudo aqui é achado. O sertão é<br />

confusão em gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>masiado sossego.”<br />

... “Meu sertão, meu regozijo.”<br />

... “O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor<br />

bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa.”<br />

Algumas citações sobre o HOMEM:<br />

... “Criatura gente é não e questão, corda <strong>de</strong> três tentos, três tranços.”<br />

... “Dia <strong>de</strong> gente <strong>de</strong>sexistir é um certo <strong>de</strong>creto, por isso que ainda hoje o<br />

senhor aqui me vê.”<br />

... “Um homem consegue intrujar <strong>de</strong> tudo; só <strong>de</strong> ser inteligente e valente<br />

é que muito não po<strong>de</strong>.”<br />

... “Pessoa limpa, pensa limpo.”<br />

... “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem <strong>de</strong> repente apren<strong>de</strong>.”<br />

... “Para as coisas que há <strong>de</strong> pior, a gente não alcança fechar as portas”.<br />

... “A primeira coisa, que um para ser alto nesta vida tem <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r, é<br />

topar firme as invejas dos outros restantes.”<br />

... “Urucuiano conversa com o peixe para vir no anzol – o povo diz.”<br />

... “Homem com homem, <strong>de</strong> mãos dadas, só se a valentia <strong>de</strong>les for<br />

enorme”.<br />

... “Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que<br />

outras, <strong>de</strong> mais recente data”.<br />

... “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria,<br />

aperta e daí afrouxa, sossega e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sinquieta. O que ela quer da gente é<br />

coragem”.


Guimarães Rosa: o sertão e o homem ______________________________________ Luiz Au<strong>de</strong>bert Delage Filho 125<br />

Dados biográficos <strong>de</strong> Guimarães Rosa.<br />

JOÃO GUIMARÃES ROSA (Cordisburgo, MG, 1908 – Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

1967, fez as primeiras letras na cida<strong>de</strong> natal, e o curso ginasial no Colégio<br />

Arnaldo, em Belo Horizonte, on<strong>de</strong> também cursou a Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Medicina,<br />

diplomando-se em 1930, passando a exercer a profissão no interior do estado.<br />

Foi médico da Força Pública <strong>de</strong> Minas (Polícia Militar <strong>de</strong> Minas Gerais).<br />

Nos vagares da profissão no interior, <strong>de</strong>dicava-se a estudar línguas<br />

estrangeiras. Já então escrevia contos e versos.<br />

Em 1934, entra para a carreira diplomática, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> concurso em que<br />

obteve o segundo lugar.<br />

Viveu em diversos países, em serviço diplomático, tendo sido internado<br />

como prisioneiro na Alemanha, durante a guerra.<br />

Foi membro da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, tendo falecido três dias<br />

após ser empossado.<br />

A obra <strong>de</strong> Guimarães Rosa – Livros.<br />

Sagarana – 1ª ed. 1946<br />

Corpo <strong>de</strong> Baile – 1ª Ed. 1956, 2 vols. 2ª, 1960. O livro passa a ser<br />

editado em 3 vols. in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, figurando Corpo <strong>de</strong> Baile com o sub título –<br />

1º vol. Manuelzão e Miguilim (uma estória <strong>de</strong> Amor e Campo Geral. – 2º vol.<br />

No Urubuquaquá, no Pinhém (Lélio e Lina, O recado do Morro – Cara <strong>de</strong><br />

Bronze). – 3º vol. Noites do Sertão (Lão-Dalalão, Buriti.)<br />

Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas – (“O diabo na rua, no meio do re<strong>de</strong>moinho”) –<br />

1ª ed. 1956.<br />

Primeiras Estórias – 1ª ed. 1962.<br />

Tutaméia – (Terceiras Estórias) – 1ª ed. 1967.<br />

Estas Estórias (Póstumo) – 1ª ed. 1969.<br />

Ave, Palavra (Póstumo) – 1ª ed. 1970.


126 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS


Perfil acadêmico<br />

HUMOR INTELIGENTE E<br />

CRÍTICO NA DOSE CERTA<br />

Beatriz Teixeira <strong>de</strong> Salles*<br />

Ele não é criador <strong>de</strong> ornitorrincos em Salto da Divisa nem<br />

domador <strong>de</strong> abelhas em Piripiri – <strong>de</strong>signações no estilo das que<br />

costuma usar para se apresentar ao final <strong>de</strong> suas crônicas. O<br />

acadêmico Eduardo Almeida Reis, ocupante da ca<strong>de</strong>ira nº 24 da<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, faz da ironia sua arma junto ao<br />

teclado. Bem informado e, antes <strong>de</strong> tudo, bem-humorado, ele é<br />

daqueles que conseguem, a partir dos fatos cotidianos – e ele mesmo lembra<br />

que o Brasil é pródigo em inspiração –, escrever crônicas sabo<strong>rosa</strong>s que são<br />

momentos <strong>de</strong> pura <strong>de</strong>scontração para seus leitores. Em entrevista, Eduardo<br />

Almeida Reis fala <strong>de</strong> suas andanças por aí, antes <strong>de</strong> aportar em Belo Horizonte,<br />

literatura, criação e um pouco mais.<br />

Nascido no Rio, você se mudou para Belo Horizonte apenas na<br />

década <strong>de</strong> 90. O que o trouxe para cá?<br />

Meus patrões sediados aqui. Mu<strong>de</strong>i-me em 1998 porque <strong>de</strong>sejava,<br />

também, participar da vida acadêmica.<br />

Escrever com ironia parece ser um <strong>de</strong>safio maior do que a escrita<br />

“séria”. Principalmente com regularida<strong>de</strong>, como é seu caso. On<strong>de</strong> encontra<br />

tanta inspiração?<br />

A ironia é o lirismo da <strong>de</strong>silusão (Rangel Coelho, poeta). Quanto à<br />

inspiração, o país ajuda. No dia em que assumi o compromisso <strong>de</strong> “cronicar”<br />

* Jornalista


128 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

diariamente, fui informado, em tempo real, <strong>de</strong> que o ministro Cabral havia<br />

fugido com a ministra Zélia – e escrevi: “O ministro fugiu com a ministra”.<br />

Minha fonte: um amigo que os viu passeando <strong>de</strong> mãos dadas numa praça <strong>de</strong><br />

Nova Iorque e telefonou, na hora, do orelhão da praça. Mais “tempo real” que<br />

isso é impossível.<br />

O autor <strong>de</strong> textos irônicos seria um bem ou mal-humorado, diante<br />

das questões da vida?<br />

Acho que sou bem-humorado, porque sou alegre e <strong>de</strong> bem com a vida,<br />

amigo <strong>de</strong> minhas ex-companheiras, pai <strong>de</strong> três filhas estudiosas, trabalhadoras,<br />

virgens <strong>de</strong> pós e ervas, que curtem (como o pai) uma cervejinha.<br />

Como apreciador da cerveja, você é assíduo freqüentador <strong>de</strong> bares?<br />

Fui bacharelado, mestrado e doutorado nos botequins da vida, mas estou<br />

aposentado: só bebo em casa. Com esta onda <strong>de</strong> assaltos, e seqüestros – com a<br />

violência infinita que se vê por aí – prefiro ficar em casa, até porque sou muito<br />

gran<strong>de</strong> para caber na mala <strong>de</strong> um carro.<br />

Você é neto <strong>de</strong> Alice Brant, a Helena Morley, pai <strong>de</strong> Ana Cristina<br />

Reis, também jornalista e escritora. A literatura é mesmo uma pre<strong>de</strong>stinação<br />

familiar?<br />

De repente, em vez <strong>de</strong> pre<strong>de</strong>stinação é uma “imitação”. Meu avô paterno,<br />

que não conheci, publicou quase 30 livros sobre coisas do mar (era comandante<br />

do Lói<strong>de</strong> Brasileiro); meu avô materno, marido <strong>de</strong> Alice Brant, foi jornalista e<br />

tinha um livro divertidíssimo, Viagem a Buenos Aires, como correspon<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />

O Imparcial, numa viagem realizada em 1916, quando o navio da marinha <strong>de</strong><br />

guerra, que escoltava o navio em que viajou o conselheiro Rui Barbosa,<br />

enguiçou no caminho. Dá para imaginar um navio <strong>de</strong> escolta enguiçado?<br />

Sua avó escreveu o clássico Minha vida <strong>de</strong> menina, aos 14 anos. Você<br />

também começou cedo na escrita? Como foi esse começo?<br />

Comecei aos 27 com O pinto e a sra. sua mãe (a arte <strong>de</strong> empobrecer<br />

criando galinhas), quando fui acusado <strong>de</strong> plagiar The egg and I, <strong>de</strong> uma autora<br />

americana, que não li até hoje.


Humor inteligente e crítico na dose certa _____________________________________ Beatriz Teixeira <strong>de</strong> Salles 129<br />

Fale um pouco sobre sua trajetória literária e jornalística. Quais<br />

foram os “caminhos tortuosos” que seguiu até chegar a cronista do Estado<br />

<strong>de</strong> Minas?<br />

Comecei no Globo em 1966, repórter da Geral, quando já tinha dois<br />

livros publicados. Depois, comecei a fazer crônicas (sempre fui péssimo<br />

repórter). Em 1969 mu<strong>de</strong>i-me para o interior, quando fazia crônicas (oito<br />

mensais) para as maiores publicações agropecuárias do Brasil, pago a peso <strong>de</strong><br />

ouro, porque trocava as matérias pela publicida<strong>de</strong> do gado que vendia. O<br />

jornalismo diário, gênero crônica, só começou em 1990 (no Hoje em Dia,<br />

sediado em BH, quando eu morava em Juiz <strong>de</strong> Fora). Em 2005, fui convidado<br />

para o Estado <strong>de</strong> Minas, on<strong>de</strong> passei quase três anos escrevendo sobre futebol:<br />

<strong>de</strong>testo esportes que não sejam hípicos. Necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sobrevivência. Vivo<br />

exclusivamente <strong>de</strong> escrever para fora, sem aposentadorias, pensões, aluguéis,<br />

sem nada <strong>de</strong> coisa alguma. Felizmente, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 33 meses tentando escrever<br />

sobre Atlético e Cruzeiro, num período em que os dois times jogavam pedrinhas,<br />

a diretoria <strong>de</strong> redação me <strong>de</strong>slocou para o ca<strong>de</strong>rno Gerais, para “cronicar”<br />

sobre o dia-a-dia. “Ser cronista é viver em voz alta” (Manuel Ban<strong>de</strong>ira).<br />

Gosto <strong>de</strong> viver em voz alta...<br />

Você começou escrevendo no ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Esportes do EM e <strong>de</strong>pois<br />

passou para o Gerais. A cida<strong>de</strong> ren<strong>de</strong> mais assunto do que o esporte, nestes<br />

tempos <strong>de</strong> futebol-cifrão?<br />

Como expliquei aí atrás, <strong>de</strong>testo esportes: sofri o diabo. Na minha<br />

primeira noite <strong>de</strong> Mineirão, um colega da tribuna da imprensa, que nunca me<br />

viu mais gordo, foi tratando <strong>de</strong> avisar: “Se o Galo per<strong>de</strong>r, escon<strong>de</strong> o crachá<br />

que eles batem na gente”. Eles, no caso, são os cavalheiros das torcidas<br />

organizadas. Que se po<strong>de</strong> esperar <strong>de</strong> um cavalheiro que pertence, que faz parte,<br />

que dirige uma torcida organizada? Que se po<strong>de</strong> esperar <strong>de</strong> gente que faz<br />

arruaça e quebra ônibus, automóveis, postes <strong>de</strong> luz – mesmo nos dias em que<br />

seu time vence?<br />

O que representa, para você, fazer parte da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong>?<br />

É o ponto culminante da carreira <strong>de</strong> um sujeito que vive <strong>de</strong> escrever para<br />

fora. Nunca fui um intelectual, mas simples autor <strong>de</strong> (por enquanto) 16 livros.


130 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

A <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em vésperas <strong>de</strong> completar 100 anos, é uma<br />

Casa em que ninguém bate nossa carteira, composta <strong>de</strong> pessoas que se <strong>de</strong>stacaram,<br />

<strong>de</strong> uma ou <strong>de</strong> outra forma, no cenário mineiro. Quando fui eleito, em<br />

1995, costumava dizer que os acadêmicos eram escolhidos por seu peso<br />

intelectual, por seu peso político, isto é, por sua expressão na administração<br />

pública estadual e fe<strong>de</strong>ral, ou por seu próprio peso. No meu caso, por volta <strong>de</strong><br />

130kg. Resumindo: somos 40 acadêmicos e há, nas calçadas, nas ruas, nas<br />

estradas, nos 853 municípios <strong>de</strong> Minas 20 milhões <strong>de</strong> mineiros falando mal da<br />

Instituição, mas doidos para nela ingressar.<br />

Você costuma acompanhar as ativida<strong>de</strong>s acadêmicas?<br />

Eu gostaria <strong>de</strong> acompanhar as ativida<strong>de</strong>s acadêmicas <strong>de</strong> perto: mu<strong>de</strong>i-me<br />

<strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora para Belo Horizonte pensando secretariar, ajudar o muito<br />

saudoso Vivaldi Moreira, mas trabalho tanto, em diversos empregos – Estado<br />

<strong>de</strong> Minas, Correio Braziliense, revista A Granja, rádio e TV (noves fora livros<br />

<strong>de</strong> encomenda, discursos etc.) que pouco posso participar das ativida<strong>de</strong>s<br />

acadêmicas. Quando participo, levo meu uísque: não me dou bem com o chá.<br />

Quem são seus autores prediletos – influências ou não.<br />

Em língua portuguesa, Eça <strong>de</strong> Queirós. No gênero crônica, uma porção<br />

<strong>de</strong> gente. Fiquemos com os estrangeiros para não ferir suscetibilida<strong>de</strong>s, porque<br />

no Brasil existem “cronistas” que fazem tudo – omeletes, feijoadas, caipirinhas<br />

– menos crônicas. Entre os estrangeiros <strong>de</strong>staco Bill Bryson, Mattew Shirts e o<br />

diabo <strong>de</strong> um Coutinho, português <strong>de</strong> 34 anos que escreve na Folha.<br />

Na literatura atual, você <strong>de</strong>stacaria algum nome?<br />

Vários, com ênfase para Zé Rubem Fonseca, porque vive quieto e não<br />

faz noites <strong>de</strong> autógrafos. Tenho horror às noites <strong>de</strong> autógrafos. Penitencio-me<br />

das muitas que <strong>de</strong>i. Se pu<strong>de</strong>sse, pediria perdão, <strong>de</strong> joelhos, aos amigos que tirei<br />

<strong>de</strong> suas casas nas minhas noites <strong>de</strong> autógrafos. Se fosse religioso, mandaria<br />

rezar missas pelos amigos que morreram, não propriamente durante os meus<br />

autógrafos, mas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>les.<br />

O que é mais difícil, escrever livros ou a obrigação regular <strong>de</strong> criar<br />

crônicas jornalísticas (se é que é possível fazer esta comparação)?


Humor inteligente e crítico na dose certa _____________________________________ Beatriz Teixeira <strong>de</strong> Salles 131<br />

Meus livrinhos são uma espécie <strong>de</strong> catarse: escrevo romances em 15<br />

dias, 50 laudas por dia. A obrigação regular <strong>de</strong> fazer crônicas (no momento, 41<br />

mensais) nunca foi um trabalho, mas um prazer. Tenho sorte <strong>de</strong> trabalhar no<br />

que gosto; adoro o “fazimento”, isto é, o ato <strong>de</strong> fazer.<br />

Certa vez, Fernando Sabino disse que o trabalho diário numa<br />

redação <strong>de</strong> jornal inviabiliza o exercício da literatura. Na época em que<br />

trabalhou em redação, você conseguia escrever textos literários?<br />

Nos anos em que batalhei numa redação não tinha tempo para mais nada.<br />

Entrava no jornal às 7h da matina e voltava para casa às 21h, recém-casado,<br />

uma filha pequena.<br />

Gostaria que falasse um pouco sobre sua vida rural. Você viveu em<br />

fazendas por algum tempo, não?<br />

Vivi na roça gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> minha vida adulta, primeiro solteiro (na<br />

fronteira com o Paraguai e no Oeste <strong>de</strong> Minas), <strong>de</strong>pois casado, quatro ou cinco<br />

anos morando num alto <strong>de</strong> serra, sem luz, telefone e estradas, três filhas<br />

pequenas. Só voltei à cida<strong>de</strong> quando as três filhas eram obrigadas a sair da<br />

fazenda antes das 6h e voltavam às 19h – colégio, cursos <strong>de</strong> inglês, natação,<br />

alemão etc. – porque os horários eram diferentes e umas ficavam fazendo hora,<br />

na cida<strong>de</strong>, esperando o término das aulas das irmãs.<br />

Mu<strong>de</strong>i-me, então, para Juiz <strong>de</strong> Fora: mulher e filhas na cida<strong>de</strong>, o<br />

fazen<strong>de</strong>iro sozinho na roça distante duas horas <strong>de</strong> automóvel. Nos finais <strong>de</strong><br />

semana, as meninas viajavam para a fazenda. Mais tar<strong>de</strong>, tinham namorados em<br />

JF, festinhas nos finais <strong>de</strong> semana, os tais arrasta-pés. Até chegar à fase dos<br />

candidatos a genros visitando a fazenda. Futuro genro não passeia a cavalo: só<br />

sabe galopar feito um doido. E não cai do cavalo. Acorda tar<strong>de</strong>. E o fazen<strong>de</strong>iro<br />

não po<strong>de</strong> comer o salaminho, o queijinho, o suquinho, os ovinhos com bacon<br />

dos cafés da manhã – tomados ao meio-dia – preparados para os namorados.<br />

Acabei dando sorte com os três genros, cavalheiros finíssimos, mas sofri o<br />

diabo com os vários candidatos que andaram na minha roça.<br />

Vinguei-me <strong>de</strong>les. No dia em que lá estiveram quatro engenheiros do<br />

ITA, botei os quatro no alto <strong>de</strong> um morro, ao sol <strong>de</strong> uma hora da tar<strong>de</strong> (logo<br />

<strong>de</strong>pois do café da manhã), procurando sinal <strong>de</strong> televisão. Acharam o sinal e um<br />

trilhão <strong>de</strong> carrapatos. Dois <strong>de</strong>les se revezavam carregando uma bateria <strong>de</strong><br />

automóvel, um carregava o televisor e o outro uma antena que mais parecia um<br />

poste da Cemig.


132 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Dados biográficos<br />

Eduardo Almeida Reis nasceu no Rio <strong>de</strong> Janeiro, em 8 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong><br />

1937. É filho <strong>de</strong> José Cândido Almeida dos Reis e Sara Cal<strong>de</strong>ira Brant. Casouse<br />

com Christina Ribeiro Lunar<strong>de</strong>lli, com quem teve três filhas. Divorciou-se<br />

em 1999 e casou novamente, com Cibele Maria Andra<strong>de</strong> Ruas.<br />

Estudou o curso primário no Externato Guy <strong>de</strong> Fontgalland, no Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> fez ainda os cursos ginasial e científico, no Instituto<br />

Educacional Brasil-América. Formou-se bacharel em Ciências Jurídicas e<br />

Sociais, pela Universida<strong>de</strong> do Estado da Guanabara, atual UERJ, em 1961.<br />

Seu primeiro livro, O pinto e a sra. sua mãe (a arte <strong>de</strong> empobrecer<br />

criando galinhas), foi lançado em 1965. Nos anos seguintes publicou De<br />

Colombo a Kubitschek, Histórias do Brasil (Historiae Brasiliae a Columbo<br />

usque Nonô), (1967), Zebu para principiantes (1972), A arte <strong>de</strong> amolar o boi –<br />

Manual do proprietário <strong>de</strong> sítios e fazendas (1974), As vacas leiteiras e os<br />

animais que as possuem (1981), Mulher, eleição e eucalipto (1981), O aprendiz<br />

<strong>de</strong> fazen<strong>de</strong>iro (1982), O papagaio cibernético (1984), A dieta inteligente<br />

(1986), Amazônia Legal & Ilegal (1992), Bumerangue (1995), Pau-<strong>de</strong>-tinta<br />

(memória <strong>de</strong> um país em construção) (1995), Burrice emocional (1999), Amor<br />

sincero custa caro (2002) e Muito ajuda quem não atrapalha.<br />

Com seu humor “botequineiro” aliado à fina ironia, Eduardo Almeida<br />

Reis já mereceu da crítica os seguintes comentários: “O mais divertido<br />

humorista brasileiro” (Guilherme <strong>de</strong> Figueiredo, O Globo), “Gênio rural”<br />

(David Nasser, revista Manchete), “Montaigne porra-louca” (João Ubaldo<br />

Ribeiro, O Globo), “O rei dos chatos” (um leitor da revista A Granja), “Não sei<br />

<strong>de</strong> nenhum que lhe possa ombrear e igualar o fulgor <strong>de</strong> sua graça e, mais do<br />

que isso, do seu estilo” (Abgar Renault), “Eduardo Almeida Reis foi uma das<br />

gratas surpresas, nestes 20 anos <strong>de</strong> meu batente <strong>de</strong> crítica literária, no registro<br />

<strong>de</strong> livros. Tem estilo personalíssimo, linguagem <strong>de</strong>spojada, enxuta, ensina e<br />

critica sob o riso benfazejo. Não o percam” (Osvaldo Lopes <strong>de</strong> Brito, Diário da<br />

Manhã).<br />

Não foram poucos os lugares por on<strong>de</strong> Eduardo Almeida Reis passou,<br />

em viagem ou como local <strong>de</strong> moradia – Rio <strong>de</strong> Janeiro, Estados Unidos da<br />

América, Miranda, no Mato Grosso do Sul, a mineira Lagoa da Prata, fazendas<br />

no interior do Estado do Rio, Juiz <strong>de</strong> Fora (MG) – até fincar pé em Belo<br />

Horizonte.


1. Introdução<br />

PERMANÊNCIA DE CECÍLIA<br />

Pe. Paschoal Rangel*<br />

Oito anos faz, a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> quis prestar uma homenagem<br />

a Cecília Meireles, cujo centenário <strong>de</strong> nascimento transcorreu a 7 <strong>de</strong><br />

novembro <strong>de</strong> 2001. E o Reitor e a Coor<strong>de</strong>nadora da Universida<strong>de</strong> Livre – órgão<br />

da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> – pediram-me que falasse sobre a “Permanência <strong>de</strong> Cecília”. A<br />

“provocação”, quase jornalística, vou procurar transformá-la em algo mais<br />

perdurável. Pois, na verda<strong>de</strong>, a permanência <strong>de</strong> Cecília é a própria permanência<br />

da Poesia. Ela é, antes e acima <strong>de</strong> qualquer outra coisa, Poesia. E se a Poesia é<br />

inerradicável, também Cecília Meireles o será.<br />

Otto Maria Carpeaux escreveu, certa vez, que não conhecia “outro poeta<br />

brasileiro – nem sequer entre os maiores – cuja inspiração lírica se tenha<br />

mantido invariavelmente e sem <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, sempre na mesma altura”. E o<br />

mestre, historiador da Literatura mundial e crítico literário, acrescentava: “O<br />

que seria necessário fazer, nesta data [eram vésperas <strong>de</strong> seus 63 anos, que ela<br />

passou internada no hospital, vindo a falecer dois dias <strong>de</strong>pois – Nota minha] e<br />

em todas as datas futuras, é uma exegese estilística <strong>de</strong> uma centena das mais<br />

belas poesias <strong>de</strong> Cecília Meireles, talvez <strong>de</strong> muito mais que uma centena.” (1)<br />

Para Carpeaux, a Poesia morava como em sua própria casa, nos poemas<br />

da poeta.<br />

Ela era absolutamente excepcional. Tinha razão Cassiano Ricardo,<br />

quando afirmava, ao votar nela para receber o Prêmio Olavo Bilac, da<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em 1938, pelo seu livro Viagem, que ela <strong>de</strong>veria<br />

receber o primeiro e o único lugar naquele concurso. Nenhum outro<br />

concorrente – pensava o fogoso acadêmico – se podia comparar com ela. Por<br />

* Prof. <strong>de</strong> Filosofia e Teologia. Acadêmico da AML, ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 27.


134 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

isso – era esse seu parecer – naquele ano, a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>de</strong>via realçar a<br />

homenagem, não distribuindo segundo prêmio nem menção hon<strong>rosa</strong> aos <strong>de</strong>mais<br />

candidatos. “Eles [os concorrentes] serão suficientemente poetas para compreen<strong>de</strong>r<br />

e admirar o valor solitário <strong>de</strong> Cecília Meireles, <strong>de</strong>ixando – a que cante<br />

sozinha.” Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> aplaudiu o voto em artigo em que dizia que “a<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> acabava <strong>de</strong> ser premiada por Cecília Meireles”. (2)<br />

Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> era outro encantado com a poeta. Num<br />

dos epigramas que andava publicando na época, na imprensa, sob a epígrafe<br />

“Fotos ¾ <strong>de</strong> ontem”, <strong>de</strong>ixou este retrato <strong>de</strong>la:<br />

CECÍLIA MEIRELES.<br />

Existe. Que presente <strong>de</strong> Deus!<br />

E na orelha da Seleta em P<strong>rosa</strong> e Verso <strong>de</strong> Cecília Meireles, ele registrou<br />

esta nota <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong> poética: ela “não me parecia uma criatura<br />

inquestionavelmente real”.<br />

Há coisas no verda<strong>de</strong>iro poeta, como na verda<strong>de</strong>ira poesia, que gozam <strong>de</strong><br />

uma semi-realida<strong>de</strong> meio mágica. E é isto que faz <strong>de</strong>les seres simultaneamente<br />

“inúteis” e “indispensáveis” e levou Jean Cocteau a afirmar: “Je sais que la<br />

poésie est indispensable. Mais je ne sais pas à quoi” (Eu sei que a poesia é<br />

indispensável. Mas não sei para quê.”) Sem poesia, o mundo fica inabitável.<br />

Não sei por quê, mas fica.<br />

Por isso mesmo, Cecília não po<strong>de</strong> passar, virar sombra, ser esquecida.<br />

Justifiquemos, porém, melhor esta afirmação.<br />

2.<br />

Cassiano Ricardo comenta longamente a frase <strong>de</strong> Cocteau em Viagem no<br />

Tempo e no Espaço – Memórias (3), mas está longe <strong>de</strong> concordar com ela.<br />

Chegou mesmo a escrever um estudo sobre “A Função da Poesia”. Para ele, a<br />

poesia é um instrumento <strong>de</strong> investigação tão válido quanto o instrumento<br />

lógico. Certamente, diríamos nós, a poesia tem uma relação íntima com a<br />

intuição, com uma espécie <strong>de</strong> conhecimento por “simpatia”. Dizemos<br />

“simpatia” no sentido etimológico, ou seja, conhecer assim é como ser<br />

“tocado”, quase “ferido” pela realida<strong>de</strong>, pela coisa (res = a coisa), não através<br />

da imagem figurativa, mas através <strong>de</strong> um “pathos”, uma “paixão”, um quase<br />

“sofrimento”, que nos faz “entir” as coisas como que penetrando em nós,<br />

empaticamente.


Permanência <strong>de</strong> Cecília ________________________________________________________ Pe. Paschoal Rangel 135<br />

Esse tipo <strong>de</strong> conhecimento poético nos livra da ditadura da razão iluminista,<br />

que se mancomuna com a civilização tecnológica, robotiza o homem, e o<br />

submete à lógica do utilitarismo e da eficiência. Assim, a “função da poesia”<br />

será, hoje mais que em outras épocas, mostrar ao homem mo<strong>de</strong>rno que nem<br />

tudo é eficiência mecânica ou econômica, po<strong>de</strong>r e administração. “Há mais<br />

coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia.” “Para isso tudo é<br />

que serve a poesia” – conclui Cassiano Ricardo.<br />

Talvez nosso Cassiano não tenha percebido que estava caindo no buraco<br />

que ele mesmo cavara para Cocteau, pois querer justificar a existência da<br />

poesia mostrando que ela tem a “função” disso ou daquilo na socieda<strong>de</strong>, é<br />

tombar no utilitarismo, na lógica da eficiência. A poesia tem, <strong>de</strong> fato, esse<br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> libertação, mas não é isso que a legitima e a torna indispensável. Sua<br />

indispensabilida<strong>de</strong> vem <strong>de</strong> ela fazer parte do ser do homem. O homem não<br />

po<strong>de</strong> existir sem ela. Se alguém pega um livro <strong>de</strong> Cecília e começa a ler seus<br />

poemas – percebe logo que estão ali suas raízes. Que ali ele se nutre <strong>de</strong> sua<br />

própria seiva. Ele não saberá talvez explicar o que está acontecendo, mas sente<br />

que é isto que está acontecendo. É um exercício daquilo que Pascal chamou um<br />

dia “la logique du coeur”. E é por isso que Maiakovski lembrava que há na<br />

socieda<strong>de</strong> problemas que só po<strong>de</strong>rão ser resolvidos poeticamente.(4)<br />

Cecília era, antes <strong>de</strong> tudo, Poesia – disse eu no princípio <strong>de</strong>ste estudo.<br />

Por isso, quando entrava em estado poético (se é que alguma vez saía<br />

<strong>de</strong>le), ficava-lhe difícil escrever sobre temas sociais, sobretudo fazer da poesia<br />

uma espécie <strong>de</strong> tribuna, como alguns poetas fizeram – com inegável e<br />

dificilmente explicável arte. Seria o caso <strong>de</strong> Castro Alves ou Ferreira Gullar.<br />

Como, por outro lado, ela era uma educadora nata, foi professora na Escola<br />

Normal do Rio <strong>de</strong> Janeiro e <strong>de</strong>pois na Universida<strong>de</strong> do Distrito Fe<strong>de</strong>ral (Rio) e,<br />

durante três ou quatro anos, escreveu seguidamente, no Diário <strong>de</strong> Notícias<br />

(1930-1934), sobre o ensino e seus problemas, artigos até mesmo polêmicos,<br />

viveu íntimos conflitos, por não ser um poeta “participante”. Certa vez,<br />

admitiu, “respon<strong>de</strong>ndo a um curioso”, como escreveu, meio irritado, Carlos<br />

Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, ser seu principal <strong>de</strong>feito “uma certa ausência do<br />

mundo”.<br />

Seria, <strong>de</strong> fato, um <strong>de</strong>feito? (Andam dizendo mais ou menos a mesma<br />

coisa <strong>de</strong> Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens. Já tive oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r a essa<br />

questão, a propósito <strong>de</strong> Alphonsus, por ocasião – se não me engano – do<br />

cinqüentenário <strong>de</strong> sua morte.) Ou o simples fato <strong>de</strong> ser poeta <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, com a<br />

profun<strong>de</strong>za com que o foi Cecília, já é uma forma <strong>de</strong> presença e participação?<br />

A poesia po<strong>de</strong> mudar o mundo, sem precisar <strong>de</strong> mais nada senão <strong>de</strong>la mesma.


136 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Ou melhor dizendo: sem ter <strong>de</strong> estar a serviço <strong>de</strong> uma causa; sem precisar <strong>de</strong><br />

ser algo mais que poesia.<br />

3.<br />

Po<strong>de</strong>-se, então, falar – no caso <strong>de</strong> Cecília – que havia nela e em seus<br />

poemas “uma certa ausência do mundo” ?<br />

Respon<strong>de</strong> Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, que <strong>de</strong> poesia sabia tudo: “Do<br />

mundo como teatro, em que cada espectador se sente impelido a tomar parte<br />

frenética no espetáculo, sim; não, porém, do mundo <strong>de</strong> essências, em que a vida<br />

é mais intensa porque se <strong>de</strong>senvolve em estado puro, sem atritos, liberta das<br />

contradições da existência. Um estado em que sabedoria e beleza se integram e<br />

se dissolvem na perfeição da paz.” (5)<br />

Nesse sentido, a presença <strong>de</strong>la “no fundo do mundo” (para usar uma<br />

expressão <strong>de</strong> Guimarães Rosa), uma presença que se difun<strong>de</strong> e se distribui no<br />

amor e na partilha da beleza, é quase visível, quase palpável. Sempre que abrimos<br />

um livro <strong>de</strong> Cecília, sentimos uma espécie <strong>de</strong> beijo <strong>de</strong> paz, suave, dorido,<br />

mas sem aflições nem <strong>de</strong>sesperanças, reconstituindo em nós o que andava<br />

fendido ou espedaçado: Cecília é reconciliação e reconstrução. Sem precisar <strong>de</strong><br />

falar nisso explicitamente, sem nenhuma pregação, sem nenhuma pretensão <strong>de</strong><br />

convencimento. Vejam só como a poesia fala (e isto já em Viagem (1939):<br />

MOTIVO<br />

Eu canto porque o instante existe<br />

e a minha vida está completa.<br />

Não sou alegre nem sou triste:<br />

sou poeta.<br />

Irmão das coisas fugidias,<br />

não sinto gozo nem tormento.<br />

Atravesso noites e dias<br />

no vento..<br />

Se <strong>de</strong>smorono ou se edifico,<br />

se permaneço ou me <strong>de</strong>sfaço,<br />

– não sei, não sei. Não sei se fico<br />

ou passo.


Permanência <strong>de</strong> Cecília ________________________________________________________ Pe. Paschoal Rangel 137<br />

Sei que canto. E a canção é tudo.<br />

Tem sangue eterno a asa ritmada.<br />

E um dia sei que estarei mudo:<br />

– mais nada. (6)<br />

O tempo existe no instante. Um instante que passa. Um instante que virá.<br />

E porque o instante existe, eu canto, tu cantas, nós cantamos. E a canção é tudo.<br />

Todo o ser, todas as coisas que são, que foram, que serão têm uns jeitos <strong>de</strong><br />

existir na canção. A canção é coisa <strong>de</strong> poetas. Mas o poeta é coisa <strong>de</strong> homem.<br />

Como ser homem integral, sem a poesia? Sem a canção? Tudo é, <strong>de</strong> algum<br />

modo, canção. A canção é o ritmo, o número perfeito, o invisível do visível, a<br />

palavra alada. Ave, Palavra, como diria Guimarães Rosa, num título <strong>de</strong>liberadamente<br />

polissêmico, que po<strong>de</strong> significar uma saudação, uma homenagem ou<br />

a transfiguração da palavra em pássaro – ou talvez mais travessamente, em pássara.<br />

Canção, observa Darcy Damasceno em Poesia e P<strong>rosa</strong> <strong>de</strong> Cecília Meireles,<br />

constitui “um tipo <strong>de</strong> composição lírica peculiar”, “sem estrutura rígida”,<br />

que “se tornará uma constante na criação poética <strong>de</strong> Cecília Meireles”. (7)<br />

Mas esse tema da canção em Cecília merece um aprofundamento.<br />

4. Cecília e a canção<br />

– Como notava Darcy Damasceno (e o citamos há pouco), a canção é um<br />

tipo <strong>de</strong> composição lírica que se tornou uma constante na criação poética <strong>de</strong><br />

Cecília Meireles.<br />

Em Cecília, poesia e música – uma música <strong>de</strong> “encantamento”, como<br />

disse Drummond (8) – se misturam, fazem quase uma coisa só. Não é<br />

certamente em todos os poetas que isto acontece. Alguns – como foi o caso dos<br />

nossos primeiros mo<strong>de</strong>rnistas – fizeram até da ruptura com a musicalida<strong>de</strong> uma<br />

ban<strong>de</strong>ira programática, ao menos durante um certo período mais iconoclástico<br />

ou antropofágico. Mas isso era mais revolução do que poesia. Nela, poesia é<br />

“vaga música”, é “viagem”, é “solombra”, são “baladas para El-Rei”, são<br />

“Noturnos <strong>de</strong> Holanda”. Ouçam este “Epigrama n.º 1”, que é o primeiro poema<br />

<strong>de</strong> Viagem:<br />

Pousa sobre esses espetáculos infatigáveis<br />

uma sonora ou silenciosa canção:<br />

flor do espírito, <strong>de</strong>sinteressada e efêmera.


138 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Por ela, os homens te conhecerão;<br />

por ela, os tempos versáteis saberão<br />

que o mundo ficou mais belo, ainda que inutilmente,<br />

quando por ele andou teu coração.<br />

Abramos o ouvido, acendamos o coração e a mente: a canção – pássara<br />

voando – “pousa” sobre “espetáculos infatigáveis”. Que po<strong>de</strong> significar, para a<br />

lógica cartesiana, uma expressão <strong>de</strong>ssas? Claro que não estamos com os pés no<br />

chão, no plano da geometria euclidiana. Canções que voam, canções sonoras ou<br />

silenciosas – esses realismos ou irrealismos pouco importam ao poeta “encantado”,<br />

que anda no mundo <strong>de</strong> outras “essências”. O mundo das realida<strong>de</strong>s<br />

terrestres terra-a-terra nos apresenta, contudo, “espetáculos infatigáveis”. Esses<br />

espetáculos po<strong>de</strong>m ser “infatigáveis”, mas os espectadores talvez precisem <strong>de</strong><br />

uma pausa. A pausa e o pouso da canção. Canção, “flor do espírito” – vinda <strong>de</strong><br />

um mundo escondido, mas substancial e indispensável, que o poeta está<br />

encarregado <strong>de</strong> trazer aos outros homens, sem querer “catequizá-los”, no mau<br />

sentido da palavra. Ela vem “<strong>de</strong>sinteressada e efêmera”. O “efêmero” é o<br />

“instante”, o que “insta”, o que está aqui. No velho e riquíssimo grego,<br />

eph’émeros vem <strong>de</strong> epi + heméra = <strong>de</strong> um dia, do que não dura mais <strong>de</strong> um<br />

dia. Apesar <strong>de</strong>ssa frágil transitorieda<strong>de</strong>, “por ela, os homens te conhecerão; /<br />

por ela, os tempos versáteis saberão/ que o mundo ficou mais belo, ainda que<br />

inutilmente/ quando por ele andou teu coração”.<br />

“Ainda que inutilmente”. A inutilida<strong>de</strong> da beleza... Aristóteles falava da<br />

“inutilida<strong>de</strong> da metafísica”, no sentido que ela não é utilitária e, sim, gratuita,<br />

acima dos interesses imediatos, da eficiência do útil. Nosso Tristão <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong>,<br />

ou seja, o Dr. Alceu Amoroso Lima tem uma página bonita e instigante sobre a<br />

importância das coisas aparentemente <strong>de</strong>simportantes. Certo escritor oriental<br />

contou um dia uma espécie <strong>de</strong> parábola, lembra T. <strong>de</strong> A. no 2º volume <strong>de</strong> seus<br />

Estudos. “No meio da mata virgem, uma admirável cascata. Chega um hindu e,<br />

contemplando aquela maravilha, mergulha-se em meditações tão transcen<strong>de</strong>ntes<br />

que se esquece <strong>de</strong> olhar para a cascata. Chega um chinês e, tão encantado<br />

se sente, que vai logo procurar uns amigos para, em companhia <strong>de</strong>les,<br />

melhor apreciar a beleza das águas. Chega, afinal, um oci<strong>de</strong>ntal e exclama<br />

logo: ‘Ah! Mas que pena! Uma força <strong>de</strong>ssas aqui <strong>de</strong>saproveitada! Quantos<br />

cavalos-vapor não daria!” (9) E Tristão comentava: “Julgo que nenhum leitor,<br />

imitando nosso compatriota [oci<strong>de</strong>ntal], acredite ainda na inutilida<strong>de</strong> das coisas<br />

inúteis.” Infelizmente, é provável que haja mais incrédulos e ateus da <strong>de</strong>usa<br />

Beleza pura do que imaginava o generoso cérebro do Dr. Alceu. Mas


Permanência <strong>de</strong> Cecília ________________________________________________________ Pe. Paschoal Rangel 139<br />

felizmente os poetas continuam existindo e, na medida em que, como Cecília,<br />

pousam suas canções sobre os espetáculos das guerras, das maldições, dos<br />

ódios, das vinganças, dos negócios <strong>de</strong>sumanos, eles reconciliam e reconstroem<br />

o mundo. Para usar uma frase profunda e bem achada do Pe. Leonel Franca, o<br />

mundo mo<strong>de</strong>rno, que morreria do que afirma, continua a viver do que nega. E<br />

assim, por ela (a canção) “os homens te conhecerão; / por ela, os tempos versáteis<br />

saberão/ que o mundo ficou mais belo, ainda que inutilmente,/ quando por<br />

ela andou teu coração”.<br />

Cecília vai ajudar o mundo a viver, levando o mundo a escapar da<br />

cru<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> e da barbárie que o envolve em sangue e sujeira. Mesmo que, para<br />

isso, tenha <strong>de</strong> cantar até morrer:<br />

5 – Cecília e a canção (2)<br />

A mulher do canto lindo<br />

ajuda o mundo a sonhar<br />

com o canto que a vai matando<br />

ai!<br />

E morrerá <strong>de</strong> cantar. (10)<br />

A poesia ceciliana não é simplesmente intimista, na linha do simbolismo,<br />

mas é, sim, no conjunto, incompreensível sem o traço <strong>de</strong> um neo-simbolismo,<br />

que se caracteriza por um corte místico, uma poética do eu profundo, mais<br />

voltada para o mundo interior. O próprio mundo externo, presente em muitos<br />

<strong>de</strong> seus livros, especialmente em Mar Absoluto e Outros Poemas, em Retrato<br />

Natural, com tantas <strong>de</strong>scrições bucólicas: “Madrugada no campo”, “Madrugada<br />

na al<strong>de</strong>ia”, “Campo”, “Pastorzinho mexicano” (todos <strong>de</strong> Mar Absoluto), está ali<br />

mais como ponto <strong>de</strong> partida para uma “viagem” ao mundo interior. “Lembrança<br />

rural” (<strong>de</strong> Vaga Música) mostra bem sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “ver”, “olfactar”,<br />

“apalpar” o mundo em volta. Não <strong>de</strong>ixa, porém, <strong>de</strong> ser verda<strong>de</strong> que “sua praia”<br />

é outra. Ela vive mais naturalmente a música interior, a paisagem da alma. O<br />

mundo é, para ela, antes uma ocasião <strong>de</strong> meditar, <strong>de</strong> experimentar as sensações<br />

internas, o sentimento da precarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> todas as coisas, da sua provisorieda<strong>de</strong>.<br />

No começo <strong>de</strong> sua vida, ela era mais católica, ligou-se a movimentos<br />

literários <strong>de</strong> grupos católicos, como o da revista Árvore Nova, ou o <strong>de</strong> Terra do<br />

Sol e o da revista Festa. Alguns motivos a foram distanciando da Igreja – creio


140 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

que, principalmente, a luta pela reforma do ensino no Brasil, tendo ela se unido<br />

ao grupo da chamada Escola Nova, <strong>de</strong> Anísio Teixeira, Fernando Azevedo,<br />

Lourenço Filho etc., ligados ao pensamento <strong>de</strong> John Dewey, isto é, a uma visão<br />

da educação baseada no pragmatismo, no individualismo, no neutralismo<br />

religioso (nem tão neutro assim, porque se proibia na escola todo ensino<br />

religioso, e mesmo “qualquer preocupação <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m religiosa”, como diz<br />

Valéria Lamego) (11), no privilegiamento da escola pública contra a escola<br />

privada e no emprego <strong>de</strong> um método e uma filosofia educacional escolhidos e<br />

impostos pelo Estado, enquanto a Igreja, tendo à frente o Pe. Leonel Franca,<br />

S.J., Tristão <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong>, o Car<strong>de</strong>al Leme, o grupo do Centro Dom Vital e da<br />

Ação Católica, tomava posição contrária, a partir <strong>de</strong> uma filosofia fundamentada<br />

na PESSOA humana, na liberda<strong>de</strong> pedagógica, no direito <strong>de</strong> a família<br />

escolher a escola <strong>de</strong> seus filhos etc. Cecília Meireles <strong>de</strong>ve ter ficado magoada e<br />

estremecida com a Igreja Católica.<br />

Sua religiosida<strong>de</strong>, porém, continuou aguçada, embora mais influenciada<br />

agora pela mística oriental, por poetas religiosos tão gran<strong>de</strong>s quanto o encantado<br />

e encantador “príncipe” hindu, Rabindranath Tagore, <strong>de</strong> quem ela traduziu<br />

vários livros em p<strong>rosa</strong> e verso. O coração <strong>de</strong> Cecília ficou mais melancólico,<br />

mais pessimista, com traços, aqui e ali, <strong>de</strong> niilismo. Para ela, a vida vira ilusão<br />

e ela “contempla niilisticamente a morte como adormecimento”, segundo<br />

observa Darcy Damasceno. (12) São ecos do “nirvana”, <strong>de</strong> “maya”; <strong>de</strong> modo<br />

geral, do hinduísmo, para o qual “o mundo fenomenal é uma ilusão”. “Tudo o<br />

que não é Braman não existe. A multiplicida<strong>de</strong>, varieda<strong>de</strong> e fluxo contínuo dos<br />

seres é uma gran<strong>de</strong> fantasmagoria, uma criação ilusória dos sentidos.” (13)<br />

Mas Cecília não se “converteu” a nenhum bramanismo ortodoxo, <strong>de</strong>ixouse<br />

apenas tomar poeticamente <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong> seus sentimentos e idéias. Não tinha<br />

nenhuma vocação ao niilismo, embora tivesse uma alma essencialmente<br />

melancólica, por um sentimento radical da transitorieda<strong>de</strong> e precarieda<strong>de</strong> do<br />

mundo e dos sentidos. E, assim, ela, aos poucos, reencontrou o equilíbrio entre<br />

“a apreensão do real e a <strong>de</strong>scrença nele”. E foi a Poesia, especialmente a<br />

Canção que lhe forneceu a fórmula capaz <strong>de</strong> “reinventar a vida”. Darcy Damasceno,<br />

que faz ou sugere essas reflexões, acrescenta que “o instrumento <strong>de</strong> tal<br />

reinvenção é o canto, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo constituiu para Cecília Meireles profissão<br />

<strong>de</strong> fé”. Isso não lhe tira a fina ponta da melancolia, que vem <strong>de</strong> uma contemplação<br />

do “nada” <strong>de</strong>ste mundo, do insatisfatório das coisas <strong>de</strong>ste éon. Ora, este<br />

é um sentimento profundamente cristão, já expresso por S. Paulo: Transit enim<br />

figura hujus mundi. Isto é, passa, e passa muito rápido, a figura <strong>de</strong>ste mundo.<br />

Apegar-se a isso que a cada instante nos escapa e nos engana, não vale a pena.


Permanência <strong>de</strong> Cecília ________________________________________________________ Pe. Paschoal Rangel 141<br />

Saber disso po<strong>de</strong> ser sabedoria. Mas dá uma certa tristeza também. Por outro<br />

lado, sem uma certa melancolia, que não tira a esperança, mas <strong>de</strong>ixa uma dor<br />

serena na raiz da alma, não há nenhuma poesia, que mereça este nome. Por<br />

isso, ela canta. E vai morrer <strong>de</strong> cantar.<br />

6 – A música interior da “canção” (1)<br />

Víamos que a única porta <strong>de</strong> saída para o niilismo, que andou rondando o<br />

universo <strong>de</strong> Cecília Meireles, meio <strong>de</strong>cepcionada com a Igreja Católica e<br />

atraída pelo hinduísmo, era a “reinvenção da vida” e que o instrumento <strong>de</strong> tal<br />

reinvenção, como disse Darcy Damasceno, foi para ela “o canto”, que lhe<br />

constituiu, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo, profissão <strong>de</strong> fé.<br />

A canção, em Cecília, é uma música interior, que a embala e move, e se<br />

mistura com a idéia e a sensação <strong>de</strong> “viagem”: “Vaga Música” parece absorver,<br />

num título <strong>de</strong> livro, canto e mobilida<strong>de</strong>. Esse “vaga” não aponta apenas para o<br />

in<strong>de</strong>finido. Parece incluir – especialmente na poeta – uma <strong>de</strong>liberada alusão a<br />

“vagar”, andar por aí, viajar... E ela vai, mas vai cantando. E, cantando, ajuda o<br />

mundo. Po<strong>de</strong> espantar os homens práticos que alguém se proponha ajudar o<br />

mundo a “sonhar”. Mas o sonho po<strong>de</strong> assumir o papel da “utopia”, no melhor<br />

sentido da palavra. Sonhar, neste sentido, alimenta o coração e a vonta<strong>de</strong> e<br />

po<strong>de</strong> levar à ação. Des<strong>de</strong> que se saiba que o sonho é sonho.<br />

Mas o mundo está dormindo<br />

em travesseiros <strong>de</strong> luar.<br />

A mulher do canto lindo<br />

Ajuda o mundo a sonhar,<br />

Com o canto que a vai matando,<br />

ai!<br />

E morrerá <strong>de</strong> cantar. (“Sereia” in Viagem) (14)<br />

A mulher do canto lindo (um pouco sereia, e seduz; e atrai; um pouco<br />

cigarra, e morre do canto com que ajuda o mundo), canta e não se nega a<br />

ir morrendo à medida que canta para ajudar o mundo a sonhar, isto é, a manter<br />

vivas suas utopias estimulantes. Diante <strong>de</strong> um mundo adverso, que se<br />

escon<strong>de</strong> ao amor, que se escusa e foge, ela acaba fazendo um ato <strong>de</strong> “aceitação”:<br />

se o mundo não a quer, ela “viaja”. Vai “vagar” e cantar, vai “morar”<br />

na canção:


142 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Não me interessam mais nem as estrelas, nem as formas<br />

[do mar,<br />

nem tu.<br />

Desenrolei <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro do tempo a minha canção:<br />

não tenho inveja às cigarras: também vou morrer <strong>de</strong><br />

cantar.<br />

(“Aceitação”, in Viagem, O.c., p. 21.)<br />

A alma <strong>de</strong> Cecília – que é, afinal, a alma da humanida<strong>de</strong> – diante da<br />

recusa, da insensibilida<strong>de</strong>, da indiferença do mundo, não o<strong>de</strong>ia, não se revolta,<br />

não <strong>de</strong>sespera, nem apela para o nada. “Aceita”, encontra no canto outra forma<br />

<strong>de</strong> viver, <strong>de</strong> amar. Mas não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> sentir a dor, “a melancolia <strong>de</strong> saber<br />

inexorável o <strong>de</strong>curso do tempo e precário todo empreendimento humano”.<br />

“Nessa melancolia precisamente – diz Darcy Damasceno – vamos encontrar a<br />

essência da canção ceciliana.” (15)<br />

Aqui me ocorre um pensamento <strong>de</strong> Edgar Allan Poe: para ele, poesia é,<br />

antes <strong>de</strong> tudo, “beleza”. Mas – pergunta ele – em que tom a beleza poética se<br />

manifesta? E respon<strong>de</strong>: “Todas as experiências têm <strong>de</strong>monstrado que esse tom<br />

é o da tristeza. A beleza <strong>de</strong> qualquer espécie, em seu <strong>de</strong>senvolvimento<br />

supremo, invariavelmente, provoca na alma sensitiva as lágrimas. A melancolia<br />

é, assim, o mais legítimo <strong>de</strong> todos os tons poéticos.”(16) Cecília encontrou esse<br />

tom, o mais genuíno dos tons poéticos.<br />

7 – A música interior da “canção” (2)<br />

O “canto” foi, pois, para Cecília, a ponte <strong>de</strong> ligação com a vida e o<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> viver, que parecia perdido no pessimismo hinduísta, trocado por uma<br />

aspiração niilista ao nirvana. Foi através <strong>de</strong>le que se <strong>de</strong>u, para ela, a reinvenção<br />

da esperança. Sem per<strong>de</strong>r o tom melancólico <strong>de</strong> quem experimentou muito<br />

profundamente o precário e ilusório das coisas <strong>de</strong>ste mundo dos sentidos; um<br />

mundo que a experiência sensorial e as ciências atingem e, <strong>de</strong> algum modo, nos<br />

impingem como a única realida<strong>de</strong>. O canto ceciliano reconquista as sutis<br />

amarras da gente com a vida.<br />

É bom notar, porém, que a música na poesia <strong>de</strong> Cecília Meireles não é<br />

apenas uma questão <strong>de</strong> forma, <strong>de</strong> ritmo mecânico ou matemático. Cecília era


Permanência <strong>de</strong> Cecília ________________________________________________________ Pe. Paschoal Rangel 143<br />

inteiramente “música”. A música tinha muito a ver com sua preferência pelas<br />

“razões do coração” e uma certa nebulosida<strong>de</strong> e vaguidão; por sua necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> “vagar” sem rumo muito <strong>de</strong>finido, livremente: “Andar, andar, que um<br />

poeta/ não necessita <strong>de</strong> casa”, “sem programa,/ sem rumo/ sem nenhum itinerário”.<br />

O poeta caminha assim, “sem lenço e sem documento”, como diria mais<br />

tar<strong>de</strong> Caetano Veloso; não, porém, por anarquismo, mas porque este mundo em<br />

que ela tem <strong>de</strong> viver é um mundo instável e sem <strong>de</strong>finições. Então, em vez <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sesperar atrás <strong>de</strong> traçados que não existem, ela resolveu seguir a geografia<br />

interior da música que toca <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la. Ela po<strong>de</strong> não ter um rumo, mas tem um<br />

ritmo, tem seus radares psicológicos que a salvaguardam das rotas <strong>de</strong> colisão.<br />

No poema “Discurso” (Viagem) ela diz com toda sua experiência<br />

pessoal:<br />

Um poeta é sempre irmão do vento e da água:<br />

Deixa seu ritmo por on<strong>de</strong> passa.<br />

O poeta não é como os outros homens práticos, geométricos, que fazem<br />

mapas <strong>de</strong> estradas e ruas, <strong>de</strong> constelações e galáxias. Ele é irmão do vento, que<br />

“ninguém sabe don<strong>de</strong> vem nem para on<strong>de</strong> vai”, como disse Cristo, e que “sopra<br />

on<strong>de</strong> quer”; mas não quer arbitrariamente; é irmão da água, que faz seu<br />

caminho enquanto escorre nas enxurradas. O vento, a água e o poeta não<br />

<strong>de</strong>ixam rumos, mas <strong>de</strong>ixam ritmos. Em seguida, continua a poeta:<br />

Venho <strong>de</strong> longe e vou para longe:<br />

mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho<br />

e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes andaram.<br />

Para mostrar mais claramente que o poeta não é um rebel<strong>de</strong> sem causa,<br />

nem busca a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m pela <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, o “poema-discurso” acrescenta:<br />

Também procurei no céu a indicação <strong>de</strong> uma trajetória,<br />

mas houve sempre muitas nuvens.<br />

E suicidaram-se os operários <strong>de</strong> Babel.<br />

O caos, a incomunicação, as “muitas nuvens” estão nas coisas que se<br />

apóiam na razão geométrica, naquilo que Pascal chamava “esprit <strong>de</strong><br />

géométrie”, e opunha ao “esprit <strong>de</strong> finesse”. A confusão entre aqueles que<br />

apostam tudo no “logos”, na “razão” transformada em <strong>de</strong>usa, chegou, em nosso


144 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

mundo, ao clímax: “suicidaram-se os operários <strong>de</strong> Babel”. No momento, a<br />

poeta também estava só, insegura. Mas, apesar <strong>de</strong> tudo, apesar <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>r<br />

esperar muito do que era e do que dizia, ela ia repetindo: “Aqui estou, cantando.”<br />

Se não podia <strong>de</strong>ixar para os outros um caminho, <strong>de</strong>ixaria ao menos um<br />

ritmo. O ritmo <strong>de</strong> quem ama e espera <strong>de</strong> quem ainda acredita na canção, na<br />

beleza, nas coisas suaves, por morada do homem.<br />

Acredito que ela subscreveria a frase <strong>de</strong> Rubem Alves: “Algum dia, o<br />

po<strong>de</strong>r será dado à ternura.” Nesse dia, a música <strong>de</strong> Cecília será ouvida e o<br />

mundo vai ficar mais bonito.<br />

8 – Cecília Meireles e Tagore (1)<br />

Uma leitura <strong>de</strong> Cecília Meireles – Teria vonta<strong>de</strong>, agora, <strong>de</strong> convidá-los<br />

para lermos juntos e juntos comentarmos alguns poemas <strong>de</strong> Cecília. Na impossibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> levar muito adiante, no momento, esse projeto, ou antes, esse<br />

sonho, peço que ouçam, mesmo sem som, esta pequena obra-prima, que extraio<br />

dos “Poemas Escritos na Índia” (17) e que se chama, <strong>de</strong>licadamente, “Cançãozinha<br />

para Tagore”. Uma jóia, como tantíssimas outras <strong>de</strong> sua obra poética.<br />

Àquele lado do tempo<br />

on<strong>de</strong> abre a <strong>rosa</strong> da aurora,<br />

chegaremos <strong>de</strong> mãos dadas,<br />

cantando canções <strong>de</strong> roda<br />

com palavras encantadas.<br />

Para além <strong>de</strong> hoje e <strong>de</strong> outrora,<br />

veremos os Reis ocultos<br />

senhores da Vida toda,<br />

em cuja etérea Cida<strong>de</strong><br />

fomos lágrima e sauda<strong>de</strong><br />

por seus nomes e seus vultos.<br />

Àquele lado do tempo<br />

on<strong>de</strong> abre a <strong>rosa</strong> da aurora,<br />

e on<strong>de</strong> mais que a ventura<br />

a dor é perfeita e pura,<br />

chegaremos <strong>de</strong> mãos dadas.


Permanência <strong>de</strong> Cecília ________________________________________________________ Pe. Paschoal Rangel 145<br />

Chegaremos <strong>de</strong> mãos dadas,<br />

Tagore, ao divino mundo<br />

em que o amor eterno mora<br />

e on<strong>de</strong> a alma é o sonho profundo<br />

da <strong>rosa</strong> <strong>de</strong>ntro da aurora.<br />

Chegaremos <strong>de</strong> mãos dadas<br />

cantando canções <strong>de</strong> roda.<br />

E então nossa vida toda<br />

será das coisas amadas.<br />

Sabemos todos quanto Cecília foi atraída, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito jovem até o fim<br />

da vida, aos 63 anos, pela espiritualida<strong>de</strong> e pelo misticismo, cristão sem dúvida,<br />

mas também hindu e orientalista em geral. Um misticismo certamente poético,<br />

mas também religioso, no sentido próprio do termo. Justificando a influência <strong>de</strong><br />

Tagore no Brasil, na primeira meta<strong>de</strong> do século XX, ela observava que,<br />

“malgrado a diferente formação religiosa do autor” em relação à do povo<br />

brasileiro, “o Deus <strong>de</strong> Tagore é <strong>de</strong> tal modo Deus que se i<strong>de</strong>ntifica com o<br />

sentimento profundo <strong>de</strong> divinda<strong>de</strong>, próprio <strong>de</strong> todos os homens; e, assim,<br />

esquecidos <strong>de</strong> acessórios que por acaso os distraiam, os leitores <strong>de</strong> Tagore<br />

chegam diretamente à essência do pensamento do Poeta, na qual todos se<br />

encontram e da qual todos participam”, como está na “Apresentação” que fez<br />

<strong>de</strong> Çaturanga, <strong>de</strong> Rabindranath Tagore, para a Coleção dos Prêmios Nobel <strong>de</strong><br />

Literatura (Rio <strong>de</strong> Janeiro, Editora Delta, 1962, p. 80). Tagore foi seguramente<br />

o mais amado e admirado dos mestres orientais <strong>de</strong> Cecília Meireles. Dele<br />

traduziu muitos poemas e livros em p<strong>rosa</strong>. Sobre ele escreveu páginas lindas e<br />

comovidas, como “Um retrato <strong>de</strong> Rabindranath Tagore”, publicadas em<br />

Ca<strong>de</strong>rnos Brasileiros (18) Além da proximida<strong>de</strong> interior, eles – ele e ela – se<br />

aproximavam também pelos i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> vida.<br />

Cecília Meireles e Tagore (2)<br />

Radicalmente religioso e místico, além <strong>de</strong> ético por formação, Tagore<br />

cultivava, ao lado disso ou misturado com isso, sentimentos idílicos e sensações<br />

religiosas. O ambiente familiar criara-lhe uma atmosfera onírica, por on<strong>de</strong><br />

pairavam artistas, músicos, dramaturgos, poetas, santos. Lembra Cecília Meireles,<br />

a respeito, que “seu avô fora «o Príncipe»; seu pai ia-se tornando «o<br />

Santo»; não ia ele ser «o Poeta»?” Nesse clima, o menino foi-se fazendo ado-


146 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

lescente, “com nenhuma inclinação para as ativida<strong>de</strong>s práticas e as profissões<br />

proveitosas”. Começou a poetar vigo<strong>rosa</strong>, embora imaturamente. Mais tar<strong>de</strong> se<br />

arrepen<strong>de</strong>ria <strong>de</strong> ter publicado os poemas da mocida<strong>de</strong>. Mas continua a fazer<br />

versos e versos, e mais, a pôr música em suas letras. Pergunta Cecília Meireles:<br />

“Gostaria, talvez, <strong>de</strong> ser menestrel, <strong>de</strong> andar <strong>de</strong> al<strong>de</strong>ia em al<strong>de</strong>ia a cantar suas<br />

composições, acompanhado por instrumentos nativos, com seu grupo <strong>de</strong> músicos<br />

ambulantes?” Seu pai lhe pusera o nome <strong>de</strong> Rabindra (Rabi, na língua <strong>de</strong>les, era<br />

o nome do Sol), <strong>de</strong>sejando mesmo que ele saísse pelo mundo a espalhar a sua<br />

luz. Tendo viajado por muitos países oci<strong>de</strong>ntais, e estudado na Inglaterra, sentia<br />

os apelos do Oci<strong>de</strong>nte; mas era indiano <strong>de</strong>mais para ser um oci<strong>de</strong>ntal.<br />

Nessa altura, “começa a apren<strong>de</strong>r «a ver»”. Até então, seus olhos<br />

estavam voltados para <strong>de</strong>ntro. Agora, ele já enxerga as coisas: a luz do dia, o<br />

olhar das crianças, a cor <strong>de</strong> uma tar<strong>de</strong>. A terra está repleta <strong>de</strong> belezas. E não só<br />

<strong>de</strong> colorido e forma, proporção e dissimetrias, mas <strong>de</strong> “acontecimentos”<br />

impon<strong>de</strong>ráveis: “um grão <strong>de</strong> orvalho carrega todo o sol, e uma criancinha po<strong>de</strong><br />

dar lições ao mais sábio dos ascetas”.<br />

É nesse momento que ele <strong>de</strong>scobre a mulher e o amor. Cecília chama a<br />

atenção sobre o assombro que a mulher lhe causa, no seio <strong>de</strong> uma Índia que<br />

cerca <strong>de</strong> adoração esse ser singular: “Ó mulher, não és apenas a obra-prima <strong>de</strong><br />

Deus” – escreve Tagore – “mas também a dos homens. Estes te enfeitam com a<br />

beleza do seu coração. / Os poetas tecem os teus véus com os fios <strong>de</strong> ouro <strong>de</strong><br />

sua fantasia: os pintores imortalizam as formas <strong>de</strong> teu corpo. / Dá suas pérolas<br />

o mar, as minas dão seu ouro, dão suas flores os jardins estivais – para que<br />

sejas mais linda e mais preciosa. / O <strong>de</strong>sejo do homem coroa <strong>de</strong> glória a tua<br />

mocida<strong>de</strong>. / És meta<strong>de</strong> mulher, meta<strong>de</strong> sonho.” (19)<br />

Por mais encantado que ele estivesse com a mulher e o amor humano,<br />

seu amor místico era maior e irreprimível. E ele acaba exclamando um dia:<br />

“Minha amada, noite e dia o meu coração ar<strong>de</strong> por te encontrar, como<br />

se encontra a morte <strong>de</strong>voradora. / Quem me <strong>de</strong>ra ser varrido por ti como por<br />

uma tempesta<strong>de</strong>! / Toma tudo quanto tenho; <strong>de</strong>strói meu sono e arrebata os<br />

meus sonhos. Tira-me a vida! / Por essa <strong>de</strong>vastação, por essa provação total<br />

da minha alma, formemos um único ser <strong>de</strong> beleza! “<br />

Aí, porém, ele se interrompe e exclama:<br />

“Ah! Como é vão o meu <strong>de</strong>sejo! On<strong>de</strong> a esperança da comunhão<br />

completa senão em ti, meu Deus!”


Permanência <strong>de</strong> Cecília ________________________________________________________ Pe. Paschoal Rangel 147<br />

Fascinado por esse Ser misterioso, “ele aceita seu ofício <strong>de</strong> poeta aos pés<br />

<strong>de</strong> Deus e a serviço dos homens” – escreve Cecília Meireles. E canta:<br />

Vida <strong>de</strong> minha vida, tratarei <strong>de</strong> trazer sempre puro o meu corpo,<br />

sabendo que o teu tato pousa sobre todos os meus membros. / Tratarei <strong>de</strong><br />

trazer sempre longe <strong>de</strong> meus pensamentos qualquer falsida<strong>de</strong>, sabendo que és<br />

tu essa verda<strong>de</strong> que acen<strong>de</strong> a luz da razão no meu espírito.”<br />

Talvez tenha pesado (“meu peso é leve”, disse um dia Jesus) sobre ele o<br />

exemplo <strong>de</strong> ascetismo e <strong>de</strong> mística <strong>de</strong> seu pai, “o Santo”. Ele pedia<br />

instantemente: “Fere, fere no meu coração a raiz da miséria” E “ele, o poeta,<br />

que canta, percebe estar cantando as canções do seu Senhor” (Cecília<br />

Meireles.) Mas Tagore não é um <strong>de</strong>sprezador do mundo, da natureza, que é<br />

obra do Criador. Ele é “um amoroso da vida, um amoroso <strong>de</strong> Deus”. Por isso,<br />

alegria ou tristeza não o atingem no que ele tem <strong>de</strong> mais profundo. Ele talvez<br />

dissesse como Cecília: “Não sou alegre nem sou triste, / sou poeta.”<br />

Acho que esses poucos dados poético-biográficos <strong>de</strong> Rabindranath<br />

Tagore, sorvidos em textos <strong>de</strong> Cecília Meireles, nos ajudarão a ler a “Cançãozinha<br />

para Tagore” que transcrevemos há pouco.<br />

Cecília Meireles e Tagore (3)<br />

Pensando no que Cecília Meireles nos disse <strong>de</strong> Rabindranath Tagore;<br />

pensando sobretudo no jeito com que ela fala <strong>de</strong>le, tal como acabamos <strong>de</strong> ver,<br />

enten<strong>de</strong>remos melhor a “Cançãozinha para Tagore”, que se encontra nos<br />

Poemas Escritos na Índia. (20)<br />

Tagore foi uma das gran<strong>de</strong>s paixões “místico-poéticas” na vida <strong>de</strong><br />

Cecília. Por tudo isso, quando um dia se encontrassem “àquele lado do tempo /<br />

on<strong>de</strong> abre a <strong>rosa</strong> da aurora”, chegariam <strong>de</strong> mãos dadas. Com a pureza das<br />

crianças, “cantando canções <strong>de</strong> roda”, e com a magia dos poetas, “com palavras<br />

encantadas”. Lá estarão do outro lado do tempo, “on<strong>de</strong> abre a <strong>rosa</strong> da aurora”,<br />

tempo e lugar das manhãs, um tempo sem tempo e um lugar mágico, <strong>de</strong> manhãs<br />

inespaciais, “para além <strong>de</strong> hoje e <strong>de</strong> outrora”, on<strong>de</strong> encontrarão os Reis ocultos<br />

(o encanto <strong>de</strong> “um céu e uma terra novos”), pelos quais os dois, um dia, foram<br />

(note-se no poema o verbo “fomos”) lágrimas e sauda<strong>de</strong>s.<br />

E o 1º e 2º versos da primeira estrofe se repetem – observe-se a anáfora,<br />

que retornará na 3ª e na 4ª estrofes, com o verso “chegaremos <strong>de</strong> mãos dadas”...<br />

A múltipla repetição, o entrelaçamento dos versos em estrofes diferentes vão


148 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

tecendo (tecendo mesmo) o tapete do poema, tapete que se completa com o<br />

gesto “<strong>de</strong> mãos dadas”.<br />

O poema termina com um pensamento belíssimo e cheio <strong>de</strong> paz:<br />

Chegaremos <strong>de</strong> mãos dadas<br />

cantando canções <strong>de</strong> roda.<br />

E então nossa vida toda<br />

será <strong>de</strong> coisas amadas<br />

A esperança é <strong>de</strong> chegar ao “divino mundo”, em que “o amor eterno<br />

mora”; <strong>de</strong> escapar à penúria do tempo <strong>de</strong> agora. Aí a alma é um ser encantado,<br />

sonho <strong>de</strong> <strong>rosa</strong> <strong>de</strong>ntro da aurora.<br />

Po<strong>de</strong>r sonhar assim por alguns momentos nos refaz <strong>de</strong> todas as feridas. E<br />

isso é um mimo da Poesia. Dessa “Poesia”, que Cecília, como Tagore, e alguns<br />

outros abençoados encantados encantadores viveram e nos po<strong>de</strong>m ajudar a<br />

viver.<br />

A “magia”, a “vaga música”, a “viagem” <strong>de</strong> Cecília Meireles têm um<br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> “ressurreição” para aqueles que entram no seu clima. Mais<br />

profundamente do que isso, atingindo um nível que vai muito além do puro<br />

psiquismo, a Poesia po<strong>de</strong> abrir caminho para experiências autenticamente<br />

espirituais, como aconteceu com Tagore e espero tenha acontecido também<br />

com Cecília, quando ela se ren<strong>de</strong> ao encantamento do poeta, traçando-lhe o<br />

retrato:<br />

“O que eu vi é insuperável – seja esta, quando eu partir daqui, a minha<br />

palavra <strong>de</strong> a<strong>de</strong>us.”<br />

E que foi que ele viu? Mais que ver, ele fez a experiência do<br />

sobrenatural: “Eu provei o mel secreto <strong>de</strong>sse lótus que viceja no oceano da luz<br />

e, por isso, fui abençoado. Seja esta minha palavra <strong>de</strong> a<strong>de</strong>us.” E acrescenta: “O<br />

meu corpo e os meus membros todos vibraram ao contato daquele que está<br />

acima do tato. Se o meu fim tiver <strong>de</strong> vir aqui, que venha! – Seja esta minha<br />

palavra <strong>de</strong> a<strong>de</strong>us.” (21)<br />

Como se fosse um excurso.<br />

Temos chamado, várias vezes, Cecília Meireles <strong>de</strong> poeta. Alguns leitores<br />

já me perguntaram por que isso, uma vez que existe a palavra poetisa, que é o


Permanência <strong>de</strong> Cecília ________________________________________________________ Pe. Paschoal Rangel 149<br />

feminino <strong>de</strong> poeta. Interessante – e vocês <strong>de</strong>vem ter notado o fato – no poema<br />

“Motivo”, logo no início <strong>de</strong> Viagem, Cecília diz:<br />

Eu canto porque o instante existe,<br />

e a minha vida está completa.<br />

Não sou alegre nem sou triste:<br />

sou poeta.<br />

Ela se chama poeta e não foi por necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> rimar, evi<strong>de</strong>ntemente.<br />

Mas poetisa”, já dizia Tristão <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong>, é “... para mim das palavras mais<br />

antipáticas que conheço.” (22) E o notável crítico literário acaba fazendo uma<br />

gracinha (ele não é muito disso): “Poetisa... Ou será que a gramática, tal como<br />

as leis, seja obra <strong>de</strong> homens (penso que não há mulheres gramáticas, ao menos<br />

entre nós... (até os anos 30, acrescentamos nós) e o termo “poeta”, como a<br />

terminação indica, já seja um termo feminino? E nesse caso o masculino é que<br />

seria pouco atraente...” (23) Na época, poucos – exceção feita dos mo<strong>de</strong>rnistas<br />

revolucionários – ousariam ir <strong>de</strong>liberadamente contra a gramática. A gran<strong>de</strong>za<br />

<strong>de</strong> Cecília, contudo, foi tamanha que, um dia, nas vésperas <strong>de</strong> sua morte, o<br />

famoso crítico, ensaísta e historiador da literatura mundial Otto Maria<br />

Carpeaux, querendo homenagear Cecília Meireles em seu sexagésimo terceiro<br />

aniversário, que ocorreu em 7 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1964 (e ela morreria dois dias<br />

<strong>de</strong>pois), escreveu um artigo para a revista Leitura, <strong>de</strong> outubro/novembro <strong>de</strong><br />

1964, intitulado “Cecília Meireles, Poeta”. E resolveu discutir a questão do<br />

vocábulo “poeta” ou “poetisa”. Para as mulheres, dizia ele, “inventaram a<br />

palavra ‘poetisa’. É preciso acabar com esse absurdo (sic!). (24) Poesia é feita<br />

por poetas e por mais ninguém. Quem não sabe fazê-la, não merece o nome <strong>de</strong><br />

poeta, mesmo que tenha escrito cem volumes <strong>de</strong> versos; é – isto sim –<br />

poetastro, e são legião. Os poetas são raros, sem diferença <strong>de</strong> sexo. Cecília<br />

Meireles não é poetisa. É poeta, como Teresa <strong>de</strong> Ávila e Emily Dickinson<br />

foram poetas. Assim pensamos no gran<strong>de</strong> poeta Cecília Meireles no<br />

aniversários <strong>de</strong> seu nascimento.” (25) Talvez alguém não concor<strong>de</strong> com<br />

Carpeaux ou Tristão <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong>. E ninguém está obrigado a isso. É uma<br />

questão <strong>de</strong> gosto e preferência.<br />

Se ultrapassarmos, porém, essa questão vocabular e semântica, teremos<br />

<strong>de</strong> dar razão a Otto Maria Carpeaux em outro ponto: “O que seria necessário<br />

fazer (...) é uma exegese estilística <strong>de</strong> uma centena das mais belas poesias <strong>de</strong><br />

Cecília Meireles, talvez muito mais do que uma centena, pois não conheço<br />

outro poeta brasileiro – nem sequer entre os maiores – cuja inspiração lírica se


150 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

tenha mantido, invariavelmente e sem <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, sempre na mesma altura.<br />

E talvez nenhuma outra poesia brasileira se preste tanto a ser lida com<br />

instrumentos da explication <strong>de</strong>s textes...” (26)<br />

Uma “viagem” a Cecília, uma tentativa <strong>de</strong> compreensão <strong>de</strong> sua obra e <strong>de</strong><br />

sua contribuição à literatura e “à humanização da humanida<strong>de</strong>” – eis uma<br />

proposta que seu centenário <strong>de</strong> nascimento reaviva entre nós. Sua obra em<br />

p<strong>rosa</strong> está sendo editada pela Nova Fronteira. A mesma Nova Fronteira editou,<br />

em fins do ano passado, sua POESIA COMPLETA, em dois volumes,<br />

organizada, apresentada e com estabelecimento <strong>de</strong> texto <strong>de</strong> Antônio Carlos<br />

Secchin. Secchin organizou os poemas em or<strong>de</strong>m cronológica <strong>de</strong> publicação,<br />

teve a boa idéia <strong>de</strong> fazer um “Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> imagens”, com fotos <strong>de</strong> Cecília,<br />

familiares e amigos, apesar <strong>de</strong> Cecília Meireles não ser muito atraída por<br />

fotografias. Viajava muito e fotografava pouco; preferia escrever sobre os<br />

lugares a reproduzi-los com uma objetiva. Mas as fotos que Secchin reuniu são<br />

muito informativas, além <strong>de</strong> mostrar a figura física excepcionalmente bonita da<br />

poeta. O primeiro volume traz ainda uma boa introdução à poesia <strong>de</strong> Cecília<br />

Meireles, feita por Miguel Sanches Neto; uma excelente Bibliografia da autora,<br />

acrescida <strong>de</strong> uma “Bibliografia crítica e comentada <strong>de</strong> Cecília Meireles”, que<br />

seria melhor chamar <strong>de</strong> Bibliografia crítica e comentada sobre Cecília Meireles.<br />

O trabalho é caprichado.<br />

Graficamente, porém, <strong>de</strong>ixa a <strong>de</strong>sejar: os textos transcritos em cor azulada<br />

ficam, em certos lugares, quase ilegíveis. A formatação do Sumário<br />

dificulta a procura dos poemas. São pequenos <strong>de</strong>feitos, mas lamentáveis numa<br />

obra <strong>de</strong>sse quilate, realizada por uma gran<strong>de</strong> editora, que não tem o direito <strong>de</strong><br />

errar em coisas tão palmares. O texto em cor preta, <strong>de</strong> qualquer maneira, está<br />

razoavelmente bem impresso. Não tenho encontrado erros <strong>de</strong> revisão (isto é<br />

fundamental) e, tirante os títulos dos poemas, a leitura é fácil.<br />

NOTAS:<br />

1. CARPEAUX, Otto Maria. “Cecília Meireles, Poeta”, in Leitura (revista),<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, out/nov <strong>de</strong> 1964, p. 11.<br />

2. Cf. RICARDO, Cassiano. Viagem no Tempo e no Espaço – Memórias, Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro, José Olímpio, 1970, p. 117 e seguintes.<br />

3. RICARDO, Cassiano. Viagem no Tempo e no Espaço – Memórias, Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, José Olympio, 1970, p. 273-277.<br />

4. Ver RICARDO, Cassiano. O.c., p. 276.


Permanência <strong>de</strong> Cecília ________________________________________________________ Pe. Paschoal Rangel 151<br />

5. In Cecília Meireles – Seleta em P<strong>rosa</strong> e Verso, Rio <strong>de</strong> Janeiro, José<br />

Olympio, 2ª ed., 1975, na “orelha” do livro.<br />

6. MEIRELES, Cecília. Poesias Completas - Vol. I: Viagem – Vaga Música,<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, Civilização Brasileira, 2ª ed., 1976, p. 5. – Cf. MEIRELES,<br />

Cecília. Poesia ompleta – Vol. I, Edição do Centenário, Organização <strong>de</strong><br />

Antônio Carlos Secchin, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2001, p.<br />

227.<br />

7. DAMASCENO, Darcy. “Poesia e P<strong>rosa</strong> <strong>de</strong> Cecília Meireles”, in Cecília<br />

Meireles – Seleta em P<strong>rosa</strong> e Verso, Rio, José Olympio, 2ª ed., 1975, p. 193.<br />

8. Cf. orelha <strong>de</strong> Cecília Meireles – Seleta em P<strong>rosa</strong> e Verso, O. c.: “Falo <strong>de</strong><br />

encantamento no sentido original da palavra, <strong>de</strong> que há muitos exemplos<br />

nos livros <strong>de</strong> cavalaria e poetas.” Por ex., quando Orfeu “encantava” com<br />

música e som os animais, e os “paralisava” com sua suavida<strong>de</strong> e seu<br />

“canto”.<br />

9. ATHAYDE, Tristão <strong>de</strong>. Estudos – 2ª série, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Civilização<br />

Brasileira, 1934, p. 34.<br />

10. “Sereia” in Viagem, Poesias Completas <strong>de</strong> Cecília Meireles, Vol. 1:<br />

Viagem – Vaga Música, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Civilização Brasileira, 1976, p.<br />

62.<br />

11. LAMEGO, Valéria. A Farpa na Lira – Cecília Meireles na Revolução <strong>de</strong><br />

30, Rio/S.Paulo, Record, 1996, p. 65. Veja-se todo o capítulo 5, 6 e 7.<br />

12. DAMASCENO, Darcy. Cecília Meireles: o Mundo Contemplado, Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, Orfeu, 1967, p. 126.<br />

13. FRANCA, Leonel. Noções <strong>de</strong> História da Filosofia, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Agir,<br />

1964, p. 21.<br />

14. Cf. Poesias Completas <strong>de</strong> Cecília Meireles. Vol. I: Viagem – Vaga Música,<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, Civilização Brasileira, 1976, 2ª edição, p. 62.<br />

15. DAMASCENO, Darcy. Cecília Meireles: o mundo contemplado, Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, Orfeu, 1967, p. 127.<br />

16. POE, Edgar Allan. Obras Completas – Poesia e P<strong>rosa</strong>, “O Corvo” –<br />

Filosofia da Composição, p. 80-81.<br />

17. In: MEIRELES, Cecília. Poesias Completas – Vol. III, Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

Civilização Brasileira, 1976.<br />

18. Ca<strong>de</strong>rnos Brasileiros – Revista Trimesral, Ano III, n.º 2, abril/junho, 1961,<br />

p. 39-46.<br />

19. Ver Cecília MEIRELES. “Um Retrato <strong>de</strong> Radindranath Tagore”, in<br />

Ca<strong>de</strong>rnos Brasileiros – Revista Trimestral, Ano III, n.º 2, abril/junho,<br />

1961, p. 40 e 41. O grifo no texto é nosso.


152 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

20. O leitor encontrará esse livro em Cecília Meireles. Poesias Completas, Vol.<br />

III, Rio, Civilização Brasileira, 1973-1976, 2ª edição, pp. 33-94. Ou em<br />

Cecília Meireles. Poesia Completa, Volume II, Rio, Nova Fronteira,<br />

Edição do Centenário, 2001, pp. 971-1042. A primeira edição <strong>de</strong> “Poemas<br />

Escritos na Índia” é <strong>de</strong> 1953, onze anos antes <strong>de</strong> sua morte, e foi feita pela<br />

Livraria São José, Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

21. MEIRELES, Cecília. “Um Retrato <strong>de</strong> Rabindranath Tagore”, in Ca<strong>de</strong>rnos<br />

Brasileiros, O.c., p. 45.<br />

22. ATHAYDE, Tristão <strong>de</strong>. (Dr. Alceu Amoroso Lima). Estudos, 5ª Série, Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro, Civilização Brasileira, 1933, p. 149.<br />

23. IDEM, ib., p. 151.<br />

24. Parece-me que chamar “absurda” essa palavra é um <strong>de</strong>stempero. Po<strong>de</strong> ser<br />

feio o vocábulo, po<strong>de</strong> ser antipático, mas “absurdo” é um exagero.<br />

25. Revista “Leitura”, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Boa Leitura Editora, Ano XXIII, out/<br />

nov 1964, p.11.<br />

26. IDEM, ib., p. 11.


MINAS LIBERTÁRIA<br />

Patrus Ananias*<br />

Em evento recente, uma pessoa amiga me disse, em tom <strong>de</strong> lamento, que<br />

o último oposicionista em Minas havia morrido enforcado, numa referência a<br />

Tira<strong>de</strong>ntes, herói da nossa história. Discordo. A afirmação não proce<strong>de</strong> porque<br />

a política mineira não termina na repressão do movimento dos inconfi<strong>de</strong>ntes;<br />

além da permanência e do legado <strong>de</strong> Tira<strong>de</strong>ntes, quem viveu foi ele e não aqueles<br />

que o mataram. A história <strong>de</strong> Minas foi sempre uma história comprometida<br />

com os valores da liberda<strong>de</strong> e da justiça.<br />

Tivemos no Império uma figura notável, Bernardo Pereira <strong>de</strong> Vasconcelos<br />

que, segundo Raimundo Faoro, José Murilo <strong>de</strong> Carvalho e outros gran<strong>de</strong>s<br />

historiadores brasileiros, foi o fundador do parlamento no Brasil. Quando D.<br />

Pedro I <strong>de</strong>u posse, em 1826, aos <strong>de</strong>putados eleitos em 1824, tinha a convicção<br />

<strong>de</strong> que seria um parlamento sob o seu controle, como foi a própria constituinte<br />

dissolvida por ele mesmo em 1823. O po<strong>de</strong>r legislativo no Brasil se afirmou<br />

graças à ação extraordinária <strong>de</strong> Bernardo Pereira <strong>de</strong> Vasconcelos, que não só<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u os valores do parlamento, em estado embrionário no Brasil, mas<br />

<strong>de</strong>senvolveu procedimentos, <strong>de</strong>monstrando vasto conhecimento <strong>de</strong> Direito<br />

Constitucional, e confrontou os posicionamentos arbitrários e autoritários <strong>de</strong> D.<br />

Pedro I. Atitu<strong>de</strong>s assim que levaram ao famoso 7 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1831, quando o<br />

imperador foi forçado a abdicar porque já havia um profundo distanciamento<br />

com a nação brasileira. Como lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong>sse processo estava Bernardo Pereira <strong>de</strong><br />

Vasconcelos. Foi ele que um dia, recebendo o imperador, lançou o princípio:<br />

“Viva o imperador enquanto constitucional”.<br />

Em 1842, outra resistência parte <strong>de</strong> Minas contra excessos autoritários e<br />

centralizadores do Império: é a Revolução Liberal <strong>Mineira</strong>, li<strong>de</strong>rada por outra<br />

figura inestimável, como político e empreen<strong>de</strong>dor, que foi Teófilo Otoni.<br />

* Acadêmico, Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 39 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

<strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.


154 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Na República Velha, <strong>de</strong>ntre outras figuras <strong>de</strong> resistência, <strong>de</strong>staca-se o<br />

trabalho <strong>de</strong> um verda<strong>de</strong>iro estadista do período, João Pinheiro, que morreu<br />

prematuramente como presi<strong>de</strong>nte do Estado <strong>de</strong> Minas – na época falava-se<br />

presi<strong>de</strong>nte e não governador. Homem <strong>de</strong> idéias largas e gene<strong>rosa</strong>s, vinha<br />

processando gran<strong>de</strong>s mudanças econômicas e sociais no Estado.<br />

Depois, tivemos Minas mais uma vez confrontando o po<strong>de</strong>r e participando<br />

ativamente da Revolução <strong>de</strong> 1930, esse marco histórico importante na<br />

história do Brasil. Logo em seguida, na época do Estado Novo, mais uma vez<br />

os mineiros voltaram a firmar o seu compromisso com a liberda<strong>de</strong> por meio do<br />

Manifesto dos Mineiros. Alguns intelectutais, como Edgar da Matta Machado,<br />

afrontavam a ditadura ao mesmo tempo em que <strong>de</strong>fendiam a preservação e<br />

ampliação dos direitos trabalhistas e sociais consolidados no período do Estado<br />

Novo.<br />

Mais à frente, no período da <strong>de</strong>mocracia, Minas Gerais teve uma fase <strong>de</strong><br />

disputa <strong>de</strong>mocrática muito instigante, com duas gran<strong>de</strong>s li<strong>de</strong>ranças, que se<br />

respeitavam, mas se enfrentavam politicamente <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>mocrática: Juscelino<br />

Kubitschek e Milton Campos. Vários outros momentos reeditaram interessantes<br />

disputas, com em 1960, com Magalhães Pinto versus Tancredo Neves.<br />

Em Minas há uma tradição muito boa <strong>de</strong> prevalecer o respeito. As<br />

pessoas não brigam, mas as idéias disputam, os projetos são colocados com<br />

clareza. É o exercício <strong>de</strong> um valioso valor <strong>de</strong>mocrático: o conflito, tão importante<br />

para o <strong>de</strong>senvolvimento das instituições, para o <strong>de</strong>senvolvimento social e<br />

econômico. Certamente, para cumprir esse propósito, é necessários que ele seja<br />

processado pacificamente pelas vias legais, institucionais e <strong>de</strong>ntro dos canais<br />

éticos e <strong>de</strong>mocráticos. Mas é importante lembrar sempre que vivemos em uma<br />

socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> diferentes e diferenças, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais e regionais, e é<br />

fundamental que essas diferenças sejam colocadas por meio <strong>de</strong> projetos que<br />

expressem propostas, interesses e concepções para que a socieda<strong>de</strong> possa fazer<br />

a sua escolha.<br />

Faz parte do princípio republicano o compromisso com o bem comum,<br />

que tem sido uma marca das políticas públicas, especialmente das políticas<br />

sociais do governo do Presi<strong>de</strong>nte Lula e, especificamente do Ministério do<br />

Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Trabalhamos com governos estaduais,<br />

municipais <strong>de</strong> todos os partidos, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> critérios estabelecidos pela<br />

Constituição e pelas leis, <strong>de</strong>ntro dos princípios do Pacto Fe<strong>de</strong>rativo. Não<br />

discriminamos ninguém e da mesma forma buscamos, também, com critérios<br />

objetivos, parcerias com as organizações não governamentais, empresários,<br />

igrejas e universida<strong>de</strong>s comprometidos com o interesse coletivo. No entanto,


Minas Libertária __________________________________________________________________ Patrus Ananias 155<br />

para que a <strong>de</strong>mocracia se mantenha, é essencial o fortalecimento dos partidos<br />

políticos, dos movimentos sociais, e que esses canais possam explicitar projetos<br />

e concepções. Caso contrário, corremos o risco <strong>de</strong> cair em uma nova espécie <strong>de</strong><br />

ditadura ou <strong>de</strong> constrangimento que é a ditadura do pensamento único, um<br />

pensamento que se preten<strong>de</strong> hegemônico e dono da verda<strong>de</strong>. Como sabemos<br />

que ninguém é dono da verda<strong>de</strong>, alcançamos patamares superiores <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>s<br />

possíveis exatamente no embate <strong>de</strong>mocrático das idéias, dos projetos,<br />

que se traduzem também em experiências concretas no exercício do po<strong>de</strong>r<br />

político.<br />

Fiel a esse tradicional traço mineiro, segue extensa a lista dos <strong>de</strong>stacados<br />

<strong>de</strong>fensores da liberda<strong>de</strong>. Lembro-me ainda que tivemos em Minas, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

64, o testemunho exemplar do já mencionado professor Edgar da Mata<br />

Machado. No dia do golpe, 31 <strong>de</strong> março/1º <strong>de</strong> abril, ele renuncia à Secretaria do<br />

Trabalho e Cultura Popular, dizendo ao então governador Magalhães Pinto que<br />

estava no governo representando os trabalhadores, os estudantes e, como os<br />

trabalhadores e estudantes começaram a ser perseguidos nas suas li<strong>de</strong>ranças<br />

maiores, outro caminho não lhe restava senão acompanhá-los. Disse: “Eu fico<br />

com meu filho, José Carlos da Mata Machado”, que <strong>de</strong>pois foi sacrificado pela<br />

ditadura, morreu sob tortura e sua memória fica em homenagem aos muitos<br />

brasileiros que resistiram à ditadura pela via revolucionária. Também outros<br />

mineiros ilustres com forte experiência política, como Tancredo Neves, optaram<br />

pelo caminho da oposição e resistência <strong>de</strong>mocrática.<br />

Minas produziu uma figura extraordinária como Dazinho, lí<strong>de</strong>r sindical<br />

dos mineiros <strong>de</strong> Nova Lima. Quando eleito <strong>de</strong>putado estadual pelos trabalhadores,<br />

optou por exercer o mandato com o salário que ganhava na mina,<br />

mantendo sua condição <strong>de</strong> operário e homem pobre. Foi preso, junto com<br />

outros dois <strong>de</strong>putados operários – Clodsmith Riani e Sinval Bambirra – e,<br />

<strong>de</strong>pois que saiu da ca<strong>de</strong>ia, continuou militando sempre com uma fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong><br />

rigo<strong>rosa</strong> ao seu compromisso com os pobres, com os trabalhadores, com a<br />

justiça social, militando no Partido dos Trabalhadores, em movimentos sociais<br />

e também ligados à Igreja.<br />

Na retomada do movimento sindical nos anos 1970, Minas <strong>de</strong>u várias<br />

contribuições. Com os jornalistas, temos Dídimo Paiva; entre os metalúrgicos a<br />

atuação <strong>de</strong> João Paulo Pires <strong>de</strong> Vasconcelos a partir <strong>de</strong> João Monleva<strong>de</strong>; entre<br />

os professores o hoje ministro Luiz Dulci, junto com tantas outras jovens<br />

li<strong>de</strong>ranças do movimento.<br />

Não há dúvidas <strong>de</strong> que uma coisa importante é a dimensão mineira da<br />

escuta, do diálogo, da p<strong>rosa</strong> universal, da dimensão da tolerância, firmada em


156 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

princípios e convicções. Valorizamos o caráter mineiro da conciliação. Mas<br />

queremos uma conciliação que não abafe o clamor dos pobres. Se “o primeiro<br />

compromisso <strong>de</strong> Minas é com a liberda<strong>de</strong>”, está implícito o direito aos <strong>de</strong>bates<br />

e disputas <strong>de</strong>mocráticas.


Minas Libertária __________________________________________________________________ Patrus Ananias 157<br />

Perfil sentimental<br />

PEDRO PAULO MOREIRA,<br />

UM MERCADOR DA CULTURA<br />

Um tributo <strong>de</strong> seus sobrinhos<br />

José Maria* e Pedro Rogério Couto Moreira**<br />

Pedro Paulo Moreira ingressou no comércio <strong>de</strong> livros<br />

quando o mundo encantava-se pela velocida<strong>de</strong>. Era a geração<br />

James Dean. Para caracterizá-la, Pedro Paulo tinha a sua motocicleta<br />

e ostentava seu blusão <strong>de</strong> couro. Com a moto, completava<br />

seu figurino elegante e sua graça no charmoso Cassino da<br />

Pampulha, com alegres acompanhantes, ou comparecia a finais<br />

<strong>de</strong> boxe no popular Estádio do Paissandu. Era o herói dos sobrinhos – os filhos<br />

<strong>de</strong> seu irmão mais velho – Vivaldi. Mas aquela geração também <strong>de</strong>scobriu na<br />

velocida<strong>de</strong> uma ferramenta <strong>de</strong> trabalho – sobretudo para os self-ma<strong>de</strong>-men,<br />

como era o caso <strong>de</strong> Pedro Paulo. Tudo havia <strong>de</strong> ser rápido, tal como o motor <strong>de</strong><br />

sua possante máquina. Ela veio a ser ferramenta <strong>de</strong> trabalho naquela Belo<br />

Horizonte barroca – nem tanto pela arquitetura da cida<strong>de</strong> – mas pelos modos<br />

gentis e donairosos que a socieda<strong>de</strong> praticava. Pedro Paulo, ali no início da<br />

década <strong>de</strong> 50, iniciava a sua gloriosa carreira <strong>de</strong> livreiro, com a moto e uma<br />

sala alugada nas alturas do edifício IAPI. Numa época em que o Brasil ainda<br />

não atingira o patamar <strong>de</strong> 50 milhões <strong>de</strong> habitantes e lia muito mais do que hoje<br />

com 200 milhões, Pedro Paulo representava coleções famosas, como as<br />

editadas pelo bom Samuel Koogan, cuja lembrança nos <strong>de</strong>ixou junto às <strong>de</strong> dono<br />

<strong>de</strong> um Jaguar veloz e impru<strong>de</strong>nte. Para impulsionar os negócios, atraiu o irmão<br />

Edison, já poeta e aluno <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> Clássicas da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia.<br />

* Procurador do Estado <strong>de</strong> Minas Gerais,<br />

** Jornalista, ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 38 da AML.


158 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Nesta etapa, Pedro Paulo conheceu Leni Andra<strong>de</strong>, jovem <strong>de</strong>tentora <strong>de</strong><br />

todas as virtu<strong>de</strong>s que sua fina educação lhe realçou. Filha do respeitável<br />

coronel Paulo René <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, do mesmo berço diamantinense <strong>de</strong> Juscelino<br />

Kubistchek, <strong>de</strong> quem foi contemporâneo na Polícia Militar e que o fez comandante-geral<br />

do Corpo <strong>de</strong> Bombeiros <strong>de</strong> Minas Gerais em seu glorioso<br />

quatriênio no Palácio da Liberda<strong>de</strong>. Leni, tão logo casou-se, passou a ajudar o<br />

marido na empresa.<br />

Já então Pedro Paulo havia passado por todo um aprendizado, discípulo<br />

fiel que foi <strong>de</strong> Roberto Canavarro Costa, proprietário da Livraria Cultura<br />

Brasileira, homem <strong>de</strong> pouca cobiça e <strong>de</strong> muito espírito cívico, algumas vezes<br />

recolhido pela amável chefia <strong>de</strong> polícia pelos seus <strong>de</strong>stemperos em favor do<br />

i<strong>de</strong>ário comunista.<br />

Em 1955, Pedro Paulo <strong>de</strong>u mais um passo importante em sua ascensão<br />

como livreiro. Até então representante comercial, atilou que era a hora <strong>de</strong> abrir<br />

uma loja <strong>de</strong> livros que correspon<strong>de</strong>sse ao seu tirocínio <strong>de</strong> comerciante. Nossa<br />

cida<strong>de</strong> sempre teve inúmeras e boas livrarias. E conheceria mais uma: a Livraria<br />

Itatiaia. Pedro Paulo se transferiu da acanhada sala do edifício IAPI para a<br />

mesma Avenida Amazonas, mas agora na “chic” e recém instalada galeria do<br />

Edifício Dantés.<br />

Rapidamente cresceu o seu negócio. Decidiu entrar no ramo editorial. E<br />

passou a ser livreiro e editor. A Editora Itatiaia consagrou-se como a mais<br />

atuante <strong>de</strong> Minas e já então marcando presença no cenário nacional. Naquela<br />

Belo Horizonte charmosa dos anos 50, a loja do edifício Dantés promoveu<br />

centenas <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>s (etílicas) <strong>de</strong> autógrafos <strong>de</strong> autores mineiros, on<strong>de</strong> os amigos<br />

do livro confraternizavam comedidamente.<br />

O sucesso crescente obrigou-o a uma nova mudança <strong>de</strong> en<strong>de</strong>reço, <strong>de</strong>sta<br />

vez para a mundana, boêmia e trepidante Rua da Bahia, o centro do universo<br />

para gran<strong>de</strong> parte da população belorizontina naquele 1960. A moda, já dizia o<br />

poeta Rômulo Paes em famosa marchinha <strong>de</strong> carnaval, era <strong>de</strong>scer Bahia e subir<br />

Floresta.<br />

Pedro Paulo, correspon<strong>de</strong>ndo ao crescente mercado livreiro, adquiriu o<br />

Bar Estrela, o segundo com este nome (o primeiro está retratado por Carlos<br />

Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>), na Rua da Bahia 916. Depois <strong>de</strong> esgotado o estoque<br />

<strong>de</strong> comes e bebes, pôs abaixo a construção antiga e ergueu ali a nova Itatiaia,<br />

reaproveitando o ma<strong>de</strong>irame da <strong>de</strong>molição que revelava o autêntico e<br />

magnífico pinho <strong>de</strong> Riga, com que revestiu a nova se<strong>de</strong>. Era uma ampla loja,<br />

uma das maiores livrarias do país, capaz <strong>de</strong> rivalizar com as gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Buenos<br />

Aires, <strong>de</strong> Lisboa e <strong>de</strong> Paris. Logo a loja se transformou num dos “points”


Minas Libertária __________________________________________________________________ Patrus Ananias 159<br />

marcantes da capital mineira. Os mais eminentes homens públicos <strong>de</strong> Minas –<br />

políticos, jornalistas, escritores, magistrados, clérigos, e mais dondocas e<br />

<strong>de</strong>slumbradas – todo mundo se encontrava nas tar<strong>de</strong>s da Itatiaia, festivas <strong>de</strong><br />

humanismo, on<strong>de</strong> a inteligência, a cultura e a graça eram régua e compasso.<br />

A socieda<strong>de</strong> dos irmãos Moreira ia <strong>de</strong> vento em popa. Enquanto o poeta<br />

e humanista Edison exercia muito bem o seu papel <strong>de</strong> relações-públicas à frente<br />

da loja e dos eventos literários que ali ocorriam com enorme repercussão, Pedro<br />

Paulo preferia o recolhimento <strong>de</strong> seu gabinete, on<strong>de</strong> pontificava na gestão<br />

financeira e editorial do empreendimento.<br />

A Itatiaia somou mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z mil títulos publicados, entre os quais<br />

avulta, pelo ruidoso sucesso que provocou, o Doutor Jivago, do russo Boris<br />

Pasternak, ganhador do Nobel. Era o tempo da Guerra Fria, e o editor Pedro<br />

Paulo <strong>de</strong>scobriu um filão, editando no Brasil romancistas que confrontavam a<br />

vida nos países socialistas com o american way of life, pelo que recebia bons<br />

incentivos por parte <strong>de</strong> organismos culturais do governo americano.<br />

Quando seu irmão e sócio Edison foi eleito acadêmico, vindo a juntar-se<br />

ao outro irmão Vivaldi na Casa <strong>de</strong> Alphonsus, o escritor Moacyr Andra<strong>de</strong>, que<br />

apreciava uma tirada, disse que estávamos agora diante da “<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Moreira<br />

<strong>de</strong> <strong>Letras</strong>”. O chiste fez fama na época e ainda profetisa, pois o filho Pedro<br />

Rogério cá está na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>. Mas o fato é que Moacyr tornara-se amigo e<br />

confi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Pedro Paulo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o editor relançou seus dois gran<strong>de</strong>s<br />

romances, Memórias <strong>de</strong> um chauffeur <strong>de</strong> praça e República Decroly. No dia<br />

seguinte à publicação da balela pelo colunista Wilson Fra<strong>de</strong>, o mesmo<br />

jornalista dava espaço para esta nota: “Inquirido sobre o assunto, o sr. Pedro<br />

Paulo Moreira nos respon<strong>de</strong>u que se <strong>de</strong>dica a outra aca<strong>de</strong>mia, a <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>...<br />

Promissórias!”<br />

Como tudo passa, passou também o tempo da loja prazenteira da Rua da<br />

Bahia número 916, freqüentada nos fins <strong>de</strong> tar<strong>de</strong> pelos notáveis, assim como<br />

Milton Campos, Pedro Aleixo, Tancredo, Magalhães Pinto, Alberto Deodato,<br />

Djalma e Moacyr Andra<strong>de</strong>, Fausto Alvim, Mário Matos. PSD e UDN, em<br />

recíprocas amenida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>ixavam <strong>de</strong> lado suas diferenças políticas.<br />

Em meados da década <strong>de</strong> 1970, a Itatiaia mudou-se para o seu terceiro<br />

en<strong>de</strong>reço, na mesma Rua da Bahia, agora o edifício Park Royal, obra-prima<br />

daquela arquitetura característica da fundação da nova capital mineira, hoje<br />

tombado pelo Patrimônio Histórico. No terceiro andar do majestoso monumento,<br />

o saudoso JK lá se reunia com os intelectuais mineiros, festejando todos<br />

a antecipação da glória daquele gran<strong>de</strong> brasileiro. Foi naquele en<strong>de</strong>reço que<br />

Pedro Paulo, pioneiramente, <strong>de</strong>u voz e vez aos tradutores (<strong>de</strong>pois eméritos) <strong>de</strong>


160 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

nosso estado. Assim aconteceu com Neil Ferreira, hoje resi<strong>de</strong>nte nos EE.UU.,<br />

Milton Amado, Oscar Men<strong>de</strong>s (tradutor da Divina Comédia) e muitos outros.<br />

Nas últimas quatro décadas, o editor acabou suplantando o livreiro.<br />

Pedro Paulo ampliou bastante a sua presença no mercado editorial brasileiro,<br />

adquirindo importantes editoras, <strong>de</strong>tentoras elas <strong>de</strong> títulos célebres, como a<br />

Garnier & Briguiet e a Vila Rica Editora.<br />

Marcava presença, anualmente, em gran<strong>de</strong>s centros da indústria da<br />

mo<strong>de</strong>rna impressão digital, como Santiago do Chile e Barcelona, on<strong>de</strong> imprimia<br />

em alto padrão gráfico as obras ilustradas a cores <strong>de</strong>dicadas à leitura<br />

infanto-juvenil.<br />

Homem do mundo, ele jamais <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> manter os vínculos com o chão<br />

natal ou com a cultura que primeiro conheceu, a da terra e do gado. Nascido a<br />

29 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1926, em Carangola, Pedro Paulo era um nostálgico <strong>de</strong> sua<br />

paisagem <strong>de</strong> infância. Há alguns anos, tendo entrado também na pecuária e<br />

criação <strong>de</strong> cavalos, adquiriu naquele município uma proprieda<strong>de</strong> que vinha a<br />

ser vizinha ao lugar mais amoroso <strong>de</strong> sua vida, a Parada General. Quando as<br />

estradas <strong>de</strong> ferro <strong>de</strong>sempenhavam papel vital na economia brasileira, e a<br />

Leopoldina Railways transportava o progresso, a Parada General era o<br />

epicentro da família Moreira. O “misto” para Porciúncula ou o “rápido” para o<br />

distante Rio <strong>de</strong> Janeiro faziam ali uma rápida parada, tempo certo para o<br />

menino Pedro Paulo oferecer aos passageiros os quitutes feitos por sua mãe<br />

Tita, para ajudar o marido, o comerciante <strong>de</strong> café Pedro Moreira, a se levantar<br />

da queda ocasionada pelo efeito dominó do famoso crack da Bolsa <strong>de</strong> Nova<br />

Iorque, <strong>de</strong> 1929.<br />

Foi nesta paisagem da infância querida, e por ela suspirando, é que lá<br />

viveu seu momento <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro, <strong>de</strong> uma vida <strong>de</strong> trabalho e otimismo. Fechou-se<br />

o círculo no último dia 28 <strong>de</strong> junho. Pedro Paulo há muito tempo não exibia<br />

mais o prazer da velocida<strong>de</strong>, tão ao gosto <strong>de</strong> sua geração. Mas conservava o<br />

sentido da pressa, tão caro aos self-ma<strong>de</strong>-men. Excitado por aguardar o seu fiel<br />

e antigo companheiro (das li<strong>de</strong>s campestres) Folia, personagem saído <strong>de</strong> uma<br />

página <strong>de</strong> Guimarães Rosa, que o protegia há trinta anos, Pedro Paulo o <strong>de</strong>ixou,<br />

substituindo-o no volante <strong>de</strong> sua “Ranger” para visitar um vizinho. Daí a<br />

ocorrência trágica. Nem corria, pois James Dean ficara para trás.<br />

Revelar tudo o que foi Pedro Paulo Moreira para a cultura e para a<br />

indústria do livro no Brasil nestas páginas é como comprimir um gigante. Sim,<br />

ele foi um gigante dos livros. Um homem que acreditou no livro como veículo<br />

máximo <strong>de</strong> cidadania.


VITORINO NEMÉSIO,<br />

POETA EM BELO HORIZONTE<br />

ALGUMAS NOTAS PESSOAIS E IMPESSOAIS<br />

Heitor Martins*<br />

O primeiro semestre <strong>de</strong> 1952 marca a passagem <strong>de</strong> Vitorino Nemésio por<br />

Belo Horizonte. O fato não é muito importante na biografia do poeta açoriano.<br />

Sua viagem ao Brasil é mais produtiva, tanto do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> sua permanência<br />

e contribuição cultural para o país, quanto <strong>de</strong> sua própria criativida<strong>de</strong>,<br />

naquelas áreas costeiras on<strong>de</strong> esteve mais tempo e on<strong>de</strong> formou laços mais<br />

profundos <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>, Rio <strong>de</strong> Janeiro e Salvador, Bahia. Mesmo em Minas<br />

Gerais, seu interesse foi muito maior por Ouro Preto e pelas velhas cida<strong>de</strong>s<br />

coloniais do que pela capital do estado. Mas Belo Horizonte é que lhe dá, neste<br />

primeiro contacto com o Brasil, a terceira parte <strong>de</strong> uma trinda<strong>de</strong> sobre a qual<br />

baseia sua interpretação do país, que, <strong>de</strong> certa maneira, é também sua<br />

interpretação do contributo cultural da civilização lusitana. É exatamente isto<br />

que este pequeno trabalho preten<strong>de</strong> mostrar.<br />

No primeiro semestre <strong>de</strong> 1952, este autor <strong>de</strong> agora, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um exame<br />

vestibular, matriculava-se na então Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Minas Gerais para cursar um programa <strong>de</strong> Línguas Neolatinas. Ainda nos seus<br />

primeiros dias <strong>de</strong> calouro bisonho, uma <strong>de</strong> suas classes foi transformada em<br />

auditório para um conferencista português que estava <strong>de</strong> visita à cida<strong>de</strong>, por<br />

convite do governo mineiro. Dois dias antes da conferência, um dos professores<br />

falara rapidamente sobre o importante escritor português que íamos ouvir.<br />

Talvez por razões que diziam respeito ao conhecimento que aquele professor<br />

tinha do palestrante, a ênfase foi dada ao seu trabalho como historiador literário<br />

e quase nada se falou <strong>de</strong> sua obra <strong>de</strong> ficcionista e poeta. Para nós, naquele<br />

momento, Vitorino Nemésio era o autor <strong>de</strong> A Mocida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Herculano.<br />

* Escritor mineiro, critico literário, leciona atualmente na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Indiana, nos Estados Unidos.


162 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

A memória que ainda temos da conferência é pouco transparente.<br />

Lembramo-nos <strong>de</strong> que enten<strong>de</strong>mos muito pouco do que ele dizia. Ainda que<br />

com ascen<strong>de</strong>ntes portugueses ainda vivos naquela época, o sotaque que nos era<br />

familiar vinha das proximida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Coimbra, <strong>de</strong> um Lugar das Agras, perto <strong>de</strong><br />

Arouca, e não o que era, para nós, criados na molície <strong>de</strong> uma linguagem ainda<br />

não <strong>de</strong> todo urbanizada e pasteurizada pela televisão, um cerrado português<br />

açoriano. Menos ainda enten<strong>de</strong>ram nossos colegas para quem o português<br />

europeu já começava a ser algo um pouco distante. Vitorino Nemésio foi a<br />

nossa primeira lição <strong>de</strong> dialetologia portuguesa.<br />

Saídos da conferência, fomos buscar alguma obra <strong>de</strong> Nemésio para ler.<br />

Na pobreza do acervo da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Minas Gerais, só encontramos um<br />

livro do autor, um exemplar dos dois volumes <strong>de</strong> A Mocida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Herculano, na<br />

biblioteca especial da reitoria. E esta foi a gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> nossos<br />

primeiros anos universitários. Vista com quase meio século <strong>de</strong> distância, foi a<br />

tese doutoral <strong>de</strong> Vitoriono Nemésio que nos <strong>de</strong>u a noção do que era o estudo<br />

rigoroso da literatura, até então reduzido quase exclusivamente aos manuais<br />

escolares <strong>de</strong> história literária e um que outro artigo <strong>de</strong> suplemento dominical <strong>de</strong><br />

jornal. Mais do que qualquer outra influência inicial, foi o livro <strong>de</strong> Vitorino<br />

Nemésio que nos assegurou que a literatura podia ser também tratada com um<br />

rigor intelectual que igualava nossas preocupações, como “scholars”, às <strong>de</strong><br />

nossos colegas <strong>de</strong> outras áreas humanísticas, da História ou da Filosofia.<br />

Bastante pro domo mea neste momento.<br />

Em 1952, Belo Horizonte era um símbolo brasileiro – ou luso-brasileiro<br />

– <strong>de</strong> expansão interiorana, tanto quanto será, anos <strong>de</strong>pois, Brasília. Foi assim<br />

que Vitorino Nemésio percebeu a cida<strong>de</strong>: uma “Babel <strong>de</strong> lumes”, com “castelos<br />

<strong>de</strong> apartamentos”, uma “cida<strong>de</strong> abstrata”, à qual faltava a pátina do tempo e da<br />

tradição. Mais <strong>de</strong> vinte anos <strong>de</strong>pois repetirá a mesma sensação, ao dizer-se<br />

“<strong>de</strong>slumbrado” por Brasília, embora qualifique este <strong>de</strong>slumbramento como<br />

imagem <strong>de</strong> algo que pertence a todo “homem mo<strong>de</strong>rno”, mas cuja distância<br />

com relação ao vivido não po<strong>de</strong> exprimir.<br />

Ao chegar a Belo Horizonte, Vitorino Nemésio reconhece imediatamente<br />

uma pequena parte <strong>de</strong> sua história pessoal. A avenida Afonso Pena, que<br />

atravessa a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ponta a ponta – e em cujo centro se encontrava aquela<br />

Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia on<strong>de</strong> ele teve seu auditório – lembra-lhe o tio que<br />

emigrara para a Bahia, e que ele <strong>de</strong>screve em outra oportunida<strong>de</strong>:<br />

“A minha Baía imaginária já vinha traçada <strong>de</strong> antes. Lembro-me muito<br />

bem. Era o en<strong>de</strong>reço semestral <strong>de</strong> meu velho tio José, que veio em menino<br />

labutar no atacado <strong>de</strong> ‘seu’ João Borges do Rego, morador no Caquen<strong>de</strong>, e que


Vitorino Nemésio, poeta em Belo Horizonte ___________________________________________ Heitor Martins 163<br />

<strong>de</strong> lá reemigrou, ao chamo da borracha, para a Manaus radiosa das peúgas <strong>de</strong><br />

seda e da Ópera <strong>de</strong> ouro e <strong>de</strong> mármore.”<br />

Este “en<strong>de</strong>reço” do tio José sobrevive concretamente na memória do poeta<br />

na imagem <strong>de</strong> Afonso Pena, um dos criadores <strong>de</strong> Belo Horizonte, imagem<br />

(...) que um dia<br />

Minha avó regou <strong>de</strong> lágrimas<br />

No selo berilo e <strong>rosa</strong><br />

Da carta do filho ausente.<br />

O escritor açoriano permanece poucos dias em Belo Horizonte e, <strong>de</strong> certa<br />

maneira, talvez por <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> seus hospe<strong>de</strong>iros, a cida<strong>de</strong> serve-lhe principalmente<br />

como eixo <strong>de</strong> uma peregrinação pelos muitos lugares históricos <strong>de</strong><br />

Minas Gerais. Com exceção <strong>de</strong> algumas referências em crônicas, a nomeação<br />

<strong>de</strong> alguns amigos locais e um poema, posterior e curiosamente incluído entre os<br />

9 Romances da Bahia, nos Poemas Brasileiros, Belo Horizonte parece<br />

arrefecer no interesse brasileiro <strong>de</strong> Vitorino Nemésio. Mas nem por isso sua<br />

primeira visão <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ter um valor documental para a compreensão <strong>de</strong> como<br />

se faz sua interpretação do Brasil:<br />

“(...) parece-nos que trepámos <strong>de</strong> um Rio magnífico, mas estrangulado<br />

em morros e brumas tropicais, a uma coisa <strong>de</strong> sonho, um acampamento etéreo<br />

<strong>de</strong> pastores <strong>de</strong> zebus fugidos, on<strong>de</strong> faíscam vidraças <strong>de</strong> palácios irreais (...)”<br />

Esta imagem <strong>de</strong> “acampamento etéreo <strong>de</strong> pastores <strong>de</strong> zebus fugidos” é,<br />

entretanto, completada por outra afirmação, menos positiva:<br />

“De volta a Belo Horizonte, do automóvel envolto numa nuvem <strong>de</strong> pó<br />

ferruginoso vejo o Bezerro <strong>de</strong> Ouro humil<strong>de</strong>mente encantado num novilho <strong>de</strong><br />

zebu que muge ao longe.”<br />

Voltemos um pouco atrás em nossas consi<strong>de</strong>rações. A viagem a Minas<br />

Gerais vem mostrar a Vitorino Nemésio um Brasil e um brasileiro que não<br />

encontrara na costa. Se na Bahia o português, por ter “a Baía no sangue”, percebe<br />

Que isto <strong>de</strong> ser brasileiro<br />

É questão <strong>de</strong> começar,<br />

em Minas<br />

“o português cá chegado é logo brasileiro: o mineiro mais nativo é um<br />

português do Poente americano.”


164 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

O mineiro que Nemésio i<strong>de</strong>ntifica é principalmente o das pequenas<br />

cida<strong>de</strong>s coloniais, aquelas on<strong>de</strong> a tradição portuguesa se encontra arraigada<br />

pela tradicionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tipos <strong>de</strong> vida que pouco mudaram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século<br />

XVIII e que, nos idos <strong>de</strong> 1952, ainda são <strong>de</strong> difícil acesso. Em Ouro Preto –<br />

“Vila Rica do Ouro Preto, a mais viva entre todas as cida<strong>de</strong>s mortas do Mundo”<br />

– Vitorino Nemésio encontra o Portugal antigo, quer pessoal quer coletivo:<br />

“Os sinos <strong>de</strong> Ouro Preto soam-me com o timbre <strong>de</strong> menino, do outro<br />

lado da vida. (...) Estou em Minas Gerais, e é como se estivesse num Portugal<br />

cal<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> vilas do Norte e do Sul. A ponte, à Casa dos Contos, parece<br />

esten<strong>de</strong>r-se sobre o Tâmega e colocar-nos na vila <strong>de</strong> Amarante. A rua do Con<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Boba<strong>de</strong>la, que trepa ao Largo do Paço (Tira<strong>de</strong>ntes), parece <strong>de</strong> Montemor-o-<br />

Novo, quando se vai para Évora. Não fora este ar <strong>de</strong> Calvário abolido e sentiame<br />

no Minho ou no Alentejo.”<br />

Vinte anos <strong>de</strong>pois, em 1972, a mesma imagem ainda vai aparecer:<br />

“E Minas? – perguntarão. E as Gerais? Pois Minas Gerais mantinha-se –<br />

sulina sim, mas reclusa, aportuguesada no seu Rio das Velhas e no seu Rio das<br />

Contas, em sua Vila Rica, meta<strong>de</strong> como que Amarante, e Montemor-o-Novo a<br />

outra meta<strong>de</strong>...”.<br />

Em cada cida<strong>de</strong>zinha que visita, Nemésio encontra Portugal:<br />

“Sabará é tão nobre como a Viseu dos corregedores.”<br />

“Estamos numa antiga Vila Real, como a <strong>de</strong> Trás-os-Montes ou a <strong>de</strong><br />

Santo António da Riba do Guadiana. Esta é Vila Real <strong>de</strong> Nossa Senhora da<br />

Conceição <strong>de</strong> Sabará (...)”<br />

“Mariana parece-me uma espécie da nossa Lousã, a cavalo entre a serra e<br />

a baixada.”<br />

Esta idéia <strong>de</strong> permanência, tradicionalida<strong>de</strong>, informa o comentário<br />

agridoce que faz <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma visita a uma famosa instituição ouro-pretana, e<br />

no qual traz Belo Horizonte à baila, para comparação, num contexto em que o<br />

nome <strong>de</strong> Nova Iorque também é lembrado:<br />

“Na Escola <strong>de</strong> Minas – que o estudo entranhado e o saber politécnico dos<br />

primeiros mestres, franceses, fez mo<strong>de</strong>lar e oposta ao êxodo progressivo das


Vitorino Nemésio, poeta em Belo Horizonte ___________________________________________ Heitor Martins 165<br />

pessoas – há uma coleção <strong>de</strong> cristais <strong>de</strong> quartzo mais rica que a <strong>de</strong> Nova York e<br />

uma galeria <strong>de</strong> retratos <strong>de</strong> velhos professores em que parece ler-se a resistência<br />

da terra ao canto <strong>de</strong> sereia dos lados <strong>de</strong> Belo Horizonte, e logo a resignação<br />

perfeita das vidas que bem se preencheram.”<br />

Num artigo em que analisa a poesia como modo <strong>de</strong> ser para Vitorino<br />

Nemésio, Duarte Faria chama atenção para a tradicionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua obra, na<br />

qual “não radicaliza a originalida<strong>de</strong>, não cultiva a ruptura como porta-voz <strong>de</strong><br />

uma vanguarda, não afronta a História na i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> acto poético e acto<br />

<strong>de</strong> contestação do passado. (...) nela a primazia é a tradicionalida<strong>de</strong>, isto é, o<br />

po<strong>de</strong>r transmissor <strong>de</strong> um antes para um <strong>de</strong>pois sem que, com isso, se transfira o<br />

bloco <strong>de</strong> valores.”<br />

A parte “brasileira” da obra do poeta açoriano é uma intensa e profunda<br />

perquirição sobre este tema da tradição. Sua visão parece-nos ser a <strong>de</strong> uma<br />

constante interação entre o passado, fonte do futuro, e o tempo presente que se<br />

ausculta, para usar a palavra <strong>de</strong> Duarte Faria. Estes três tempos se interrogam<br />

permanentemente, numa divisão espacial, correspon<strong>de</strong>nte à viagem brasileira<br />

do poeta. Nesta viagem, em que se encontra com aquele que é o Outro mas que,<br />

membro da mesma família, compartilha o sangue e a História, Vitorino<br />

Nemésio i<strong>de</strong>ntifica também os três tempos <strong>de</strong> sua tradição pessoal e nacional. À<br />

parte presente correspon<strong>de</strong> a costa; mas on<strong>de</strong> se chocam passado e futuro é no<br />

interior, neste passado que é um “Poente americano” i<strong>de</strong>ntificado em Ouro<br />

Preto, e no futuro visto como “acampamento”, “imaginação”, “irrealida<strong>de</strong>”,<br />

“pretexto” – palavras que usa para <strong>de</strong>screver Belo Horizonte e cujas fronteiras<br />

semânticas implicam em transitorieda<strong>de</strong> e virtualida<strong>de</strong>.<br />

Num outro texto da mesma época, resumindo sua peregrinação <strong>de</strong> cinco<br />

meses pelo Brasil, o poeta consi<strong>de</strong>ra Lisboa como seu ponto <strong>de</strong> partida e Belo<br />

Horizonte como o extremo espacial atingido, a primeira construída pela lenda<br />

ulisséia e a outra “gizada a cor<strong>de</strong>l e compasso há pouco mais <strong>de</strong> meio século”.<br />

Ouro Preto e as velhas cida<strong>de</strong>s coloniais mineiras são o passado que dá<br />

base ao futuro; Belo Horizonte – e <strong>de</strong>pois Brasília – são os “rubis imaginários”<br />

do porvir.<br />

Em nenhum momento, o poeta parece ter melhor expresso este conjunto<br />

<strong>de</strong> lucubrações do que no poema “No Cemitério <strong>de</strong> Santa Efigênia <strong>de</strong> Ouro<br />

Preto”, inicialmente publicado como introdução à secção intitulada “O Segredo<br />

<strong>de</strong> Ouro Preto” do livro do mesmo nome, claramente separado da secção do<br />

“Romanceiro da Baía”, ao qual <strong>de</strong>pois vai ser incorporado. O poema – que é o<br />

único escrito sobre Minas Gerais – é uma longa meditação sobre as relações<br />

entre Belo Horizonte e Ouro Preto, consi<strong>de</strong>radas como cida<strong>de</strong>s-símbolo.


166 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Belo Horizonte é quem lhe dá o primeiro movimento – é lá que “sangue<br />

e <strong>de</strong>stino” são transformados em rubis imaginários. A virtualida<strong>de</strong> do sonho<br />

que pretextava construções <strong>de</strong> cristal acaba por produzir castelos <strong>de</strong><br />

apartamentos em concreto. A cida<strong>de</strong> foi construída por “engenheiros<br />

velhinhos” (o que é quase adynata) e através <strong>de</strong>les o poeta integra sua<br />

experiência pessoal – o retrato <strong>de</strong> Afonso Pena no selo postal, lembrança<br />

familiar da emigração. A partir <strong>de</strong> Belo Horizonte o poeta revive a experiência<br />

<strong>de</strong> outrora, como “urubu estampado / Nos calvários <strong>de</strong> Ouro Preto.” A aventura<br />

que constrói o futuro é semeada <strong>de</strong> “cobiça e perjúrio”, como na experiência<br />

daquele Fernão Dias que enforcou o filho na fazenda do Sumidouro, ali mesmo,<br />

a poucos quilômetros do centro <strong>de</strong> Belo Horizonte, pelo crime maior <strong>de</strong> não<br />

acreditar no sonho do pai. Tudo é memória, como o faiscar da tar<strong>de</strong> nas<br />

vidraças <strong>de</strong>sta Babel <strong>de</strong> lumes. Memória encerrada, como em espelho, naquele<br />

cemitério <strong>de</strong> negros <strong>de</strong> Santa Efigênia, entre flores e palavras que transitam do<br />

passado para o futuro. Ali, o túmulo do menino Elci lembra ao peregrino, na<br />

contradição que representa a morte <strong>de</strong> uma criança, a própria contradição da<br />

experiência humana, em busca <strong>de</strong> uma paz ao longe e que, existindo perto, não<br />

chega a ser “merecida” pelo que a busca. A eternida<strong>de</strong> a que aspira a<br />

transitorieda<strong>de</strong> do ser humano é o sono daquela criança. Nemésio se enamora<br />

mais daquela paisagem costeira, on<strong>de</strong> a presença portuguesa aflora no meio do<br />

exotismo <strong>de</strong> raças e ambientes diferentes. Português <strong>de</strong> sete partidas, sua<br />

emoção cristaliza esta simbiose do exótico e do natural, da mestiçagem já<br />

i<strong>de</strong>ntificável em seus valores próprios, expressas na visão poética e concreta<br />

que tem <strong>de</strong>stes ambientes e <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> erotização mental que o leva a<br />

poetizar quase exclusivamente o Brasil baiano e carioca. Minas Gerais é outra<br />

coisa – ancestralida<strong>de</strong> lusitana, História com a qual convive e que procura<br />

enten<strong>de</strong>r e explicar mas que percebe muito mais intelectualmente como<br />

memória do que como “sentir do próprio tempo”. Ao exotismo do português já<br />

transformado em algo novo que se vê na costa – “Lá no varejo da Rampa /<br />

Aquele moleque sou eu” – Minas contrapõe o “segredo” da permanência, a<br />

linha <strong>de</strong> “sangue e <strong>de</strong>stino” que continua a fluir sempre nas velhas cida<strong>de</strong>s<br />

coloniais – “Ouro Preto... foco <strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntalida<strong>de</strong>” – e que são a fonte do<br />

milagre vital que é o momento mesmo da criação do novo – “Ó céu <strong>de</strong> Belo<br />

Horizonte, / Que futuro me daria / Teu movimento secreto?”<br />

Ao jovem estudante que, em 1952, numa sala universitária no centro <strong>de</strong><br />

uma cida<strong>de</strong> que era ponta <strong>de</strong> lança da expansão <strong>de</strong> uma cultura a que pertencia<br />

por “sangue e <strong>de</strong>stino”, sentava-se pela primeira vez para ouvir a voz exemplar<br />

<strong>de</strong> um escritor importante, Vitorino Nemésio dava uma lição <strong>de</strong> mistério – o


Vitorino Nemésio, poeta em Belo Horizonte ___________________________________________ Heitor Martins 167<br />

seu difícil sotaque açoriano – e uma lição <strong>de</strong> clareza – o interesse pela tradição<br />

como produtora do presente e fonte das virtualida<strong>de</strong>s do futuro. Não po<strong>de</strong>ria<br />

pedir mais a este que foi ali – honro-me ao dizê-lo – meu professor por alguns<br />

momentos.<br />

Notas:<br />

i. “A imagem global <strong>de</strong> Brasília é uma das que o homem mo<strong>de</strong>rno, em<br />

qualquer ponto da Terra, leva no seu transcolor... mas, daí ao vivido, que<br />

distância! E não sei como enchê-la <strong>de</strong> palavras.” (“Brasília-Cristalina”.<br />

Vitorino Nemésio. Jornal do Observador. Lisboa; Verbo, 1974, pág.<br />

331. A citação é <strong>de</strong> crônica datada <strong>de</strong> 8-9-1972.)<br />

ii. Vitorino Nemésio.O Segredo <strong>de</strong> Ouro Preto e Outros Caminhos. Lisboa:<br />

Livraria Bertrand, s. d. [1954], pág. 123.<br />

iii. Nemésio, Segredo, pág. 209.<br />

iv Nemésio, Segredo, pág. 320.<br />

v. Nemésio, Segredo, pág. 256.<br />

vi. Nemésio, Segredo, págs. 186 e 190.<br />

vii. Nemésio, Segredo, págs. 251-152. Curiosamente, o primeiro nome dado<br />

a um português que retorna do Brasil, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ver cumprido seu sonho<br />

<strong>de</strong> fortuna, é o <strong>de</strong> “mineiro”. Antônio José da Silva já <strong>de</strong>finia, em 1737,<br />

como “mineiro velho que veio das minas o ano passado” um dos<br />

personagens <strong>de</strong> Guerras do Alecrim e Mangerona (Antônio José da<br />

Silva, o Ju<strong>de</strong>u. Obras Completas. Ed. por José Pereira Tavares. Vol. III.<br />

Lisboa: Sá da Costa, 1958, pág. 168.)<br />

viii. Nemésio, Segredo, pág. 224.<br />

ix. Nemésio, Segredo, págs. 228-229.<br />

x. Nemésio, Jornal do Observador, pág. 315. (A citação é <strong>de</strong> crônica<br />

datada <strong>de</strong> 28-4-1972.)<br />

xii. Nemésio, Segredo, pág. 271.<br />

.xiii. Nemésio, Segredo, pág. 251.<br />

xiv. Nemésio, Segredo, pág. 312.<br />

xv. Nemésio, Segredo, pág. 219.<br />

xvi. Duarte Faria. “Vitorino Nemésio: Da Poesia Como Modo <strong>de</strong> Ser. In<br />

Maria Margarida Maia Gouveia. Vitorino Nemésio; Estudo e Antologia.<br />

Lisboa: Instituto <strong>de</strong> Cultura e Língua Portuguesa / Ministério da<br />

Educação e Cultura, 1986, pág. 531.


168 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

xvii. Nemésio, Segredo, pág. 362.<br />

xviii. O poema foi publicado inicialmente em Nem Toda a Noite a Vida<br />

(Lisboa: Ática, 1953, págs. 151-158). Foi reproduzido a seguir em O<br />

Segredo <strong>de</strong> Ouro Preto e Outros Caminhos (págs. 209-211), versão que<br />

preferimos por razões óbvias. O texto <strong>de</strong>finitivo encontra-se na edição<br />

crítica <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Fátima Freitas Morna (Vitorino Nemésio.<br />

Obras Completas. Vol. II – Poesia. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da<br />

Moeda, 1989, págs. 485-487).<br />

xix. Duarte Faria. “Vitorino Nemésio”, pág. 531.<br />

xx. Nemésio, Segredo, pág. 185.<br />

xxi. Nemésio, Segredo, pág. 368.<br />

xxi. Nemésio, Segredo, pág. 210.


Discurso Acadêmico<br />

TIJUCO – LENDAS E TRADIÇÕES<br />

Edgard Matta Machado<br />

Edgard da Matta Machado (nome literário Edgard Matta) nasceu em<br />

Ouro Preto a 21 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1878 (1) e faleceu em Diamantina a 26 <strong>de</strong><br />

fevereiro <strong>de</strong> 1907 com apenas 28 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Filho <strong>de</strong> João da Matta<br />

Machado e <strong>de</strong> Luiza Henriqueta Bessa da Matta Machado.<br />

Poeta e p<strong>rosa</strong>dor participante do movimento estético e literário<br />

<strong>de</strong>nominado Simbolismo.<br />

Pronunciou a palestra Tijuco — lendas e tradições no dia 19 <strong>de</strong><br />

setembro <strong>de</strong> 1900 nos salões do Clube das Violetas, em Belo Horizonte, Minas<br />

Gerais, época em que fazia parte do grupo, constituído naquela cida<strong>de</strong>, que se<br />

intitulou <strong>de</strong> Jardineiros do I<strong>de</strong>al. Tijuco era o nome antigo da atual cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Diamantina (MG).<br />

Compunham o grupo doze intelectuais — jornalistas, acadêmicos,<br />

engenheiros e advogados — que se reuniram e formaram um centro com a<br />

finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realizar uma série <strong>de</strong> palestras. Pretendiam <strong>de</strong>senvolver os meios<br />

para estimular a literatura e para produzirem mais e o melhor possível no<br />

romance, na história, no conto, na comédia. Os doze Jardineiros do I<strong>de</strong>al<br />

eram: Afonso Pena Júnior, Artur Lobo, Assis das Chagas, Aurélio Pires,<br />

Edgard Matta, Ernesto Cerqueira, Ismael Franzen, Josaphat Bello, Lindolpho<br />

Azevedo, padre João Pio, Prado Lopes e Salvador Pinto Júnior. Publicaram<br />

um pequeno jornal <strong>de</strong> nome Violeta.<br />

Proferiram <strong>de</strong>z palestras no Clube das Violetas no período <strong>de</strong> 18 <strong>de</strong><br />

julho a 19 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1900. A convite dos Jardineiros mais duas<br />

1. Andra<strong>de</strong> Muricy, em Panorama do movimento simbolista brasileiro, diz que a data do nascimento <strong>de</strong><br />

Edgard foi 19 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1878, e viveu “28 anos, quatro meses e sete dias”.


170 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

conferências foram feitas por convidados não membros do grupo, e o ciclo se<br />

encerrou a 10 <strong>de</strong> outubro. O jornal Minas Gerais publicou o conteúdo integral<br />

<strong>de</strong> umas palestras e a quase totalida<strong>de</strong> do teor <strong>de</strong> outras.<br />

O texto Tijuco — lendas e tradições que ora divulgamos foi publicado no<br />

jornal Minas Gerais <strong>de</strong> 21 a 24 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1900. É para nós o texto-fonte.<br />

Na transcrição, o organizador adotou os seguintes critérios básicos:<br />

a) atualizou a ortografia, <strong>de</strong> acordo com o sistema vigente em 2008;<br />

b) emendou os lapsos tipográficos e os lapsos <strong>de</strong> pena óbvios;<br />

c) respeitou rigo<strong>rosa</strong>mente a pontuação original;<br />

e) manteve, <strong>de</strong> regra, o emprego das iniciais maiúsculas pelo autor,<br />

tendo em mente o valor <strong>de</strong> seu uso entre os simbolistas. Fizemos poucas<br />

alterações, quando o vocábulo nos pareceu não estar sendo utilizado em<br />

sentido elevado ou simbólico.<br />

Estamos incluindo a matéria publicada naquele mesmo jornal em 20-9-<br />

1900 sobre Edgard Matta e sua palestra.<br />

Nossos agra<strong>de</strong>cimentos a Eduardo <strong>de</strong> Miranda Mata Machado por ter<br />

colocado disponível para esta publicação a fotografia <strong>de</strong> Edgard Matta.<br />

Somos gratos a Pablo Barros Dias pela conferência do texto por nós<br />

digitado em computador com o original publicado no jornal Minas Gerais e<br />

pelas correções indicadas.<br />

Agra<strong>de</strong>cemos também a Ivan Luiz da Matta Machado, Lúcia da Mata<br />

Barbosa (in memoriam), Maria Apparecida da Matta Machado Avvad, Newton<br />

<strong>de</strong> Figueiredo, Reinaldo da Matta Machado e Vera Matta Machado Diniz a<br />

pesquisa com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> obter uma outra fotografia do poeta, além da<br />

agora publicada.<br />

♦ ♦ ♦<br />

Fernando da Matta Machado<br />

Quando me vi forçado a procurar um tema para a palestra <strong>de</strong> hoje, meu<br />

espírito oscilou in<strong>de</strong>ciso e senti que a esterilida<strong>de</strong> subjetiva se refletia em todos<br />

os terrenos tornando áridos esses campos ubérrimos que só esperam o pólen<br />

fecundador da Idéia para a germinação fron<strong>de</strong>nte das gran<strong>de</strong>s obras <strong>de</strong> Arte.<br />

Invejei o artista que sabe <strong>de</strong>scobrir o embrião <strong>de</strong> um poema na tênue<br />

modalida<strong>de</strong> do aroma e da cor que cria a Epopéia do Verme como criaria a dos<br />

<strong>de</strong>uses, que aproveita o episódio insignificante da análise como as abstrações<br />

universais da síntese mais ampla.


Tijuco – lendas e tradições ____________________________________________________ Edgar Matta Machado 171<br />

Num tantalismo doloroso contemplando em aparições difusas todas as<br />

gran<strong>de</strong>s épocas da história, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> esta ida<strong>de</strong> remotíssima e velha que vemos,<br />

sem <strong>de</strong>lineamentos nítidos <strong>de</strong> figura e <strong>de</strong> forma, nas fronteiras impenetráveis do<br />

Sonho e do Mistério, meu espírito vagou absorto vendo o <strong>de</strong>sfilar apoteósico<br />

<strong>de</strong>sses gran<strong>de</strong>s titãs da ida<strong>de</strong> antiga cujos assombrosos feitos nos soam hoje aos<br />

ouvidos como inverossímeis legendas <strong>de</strong> epopéias divinas.<br />

As pirâmi<strong>de</strong>s do Egito projetaram sobre mim, acabrunhadoramente, as<br />

sombras pesadas <strong>de</strong> seus perfis gigantescos, causticados pelos sóis priscos das<br />

eras, imóveis no <strong>de</strong>serto como páginas abertas <strong>de</strong> um livro <strong>de</strong> granito on<strong>de</strong> se lê<br />

ainda hoje a história emocionante das civilizações primitivas.<br />

Das ruínas <strong>de</strong> Tebas soprava uma brisa embalsamada <strong>de</strong> legendas, mas<br />

<strong>de</strong>ssa abundante seara já colhida, nada restava para o segador bisonho.<br />

No berço do mundo vi surgir o esplendor oriental <strong>de</strong> Babilônia, e logo<br />

após a Índia num Policromismo <strong>de</strong> lendas <strong>de</strong> religiões estranhas, <strong>de</strong> tradições<br />

fabulosas, entre as quais parecia errar a figura sentimental <strong>de</strong> Çakia-Muni, o<br />

Buda, pregando a religião igualitária, a abolição das castas, espalhando por<br />

todos os sofrimentos o bálsamo anestesiante das resignações supremas.<br />

E Purna, o seu discípulo amado, numa melancolia <strong>de</strong> contemplativo, tem<br />

um sorriso <strong>de</strong> perdão para todos os Males, e flutua entre nimbos nirvânicos <strong>de</strong><br />

aniquilamento, a alma <strong>de</strong>sprendida do corpo que as paixões não inflamam, no<br />

quietismo sublime da Religião Sombria.<br />

Mas, exmas. senhoras, sobre o Oriente falou nesta sala Ernesto <strong>de</strong><br />

Cerqueira, e eu não me animaria a vir perturbar a impressão sonora que o seu<br />

talento <strong>de</strong>ixou, nem a sugestão mágica <strong>de</strong>ssa terra <strong>de</strong> Sonhos que ele soube<br />

<strong>de</strong>certo fazer nascer em cada uma <strong>de</strong> vós que o ouvistes.<br />

Pensei, e ser-vos-ia talvez mais grato, em vos trazer aqui trechos das<br />

gran<strong>de</strong>s epopéias dos Árias, <strong>de</strong>stacar <strong>de</strong>sses livros imortais, pérolas e diamantes<br />

<strong>de</strong> inestimável valor, dando-vos uma vaga noção da Alma artística que vibra<br />

sonora e emocionante nas páginas do Mahabharata.<br />

Mas para isso necessário seria um conhecimento completo <strong>de</strong>ssas obras,<br />

e só assim po<strong>de</strong>ria provar-vos que a obra <strong>de</strong> Arte não se aniquila e envelhece<br />

com a sucessão do tempo e das escolas, se bem que essas correspondam às<br />

necessida<strong>de</strong>s emotivas <strong>de</strong> cada época.<br />

Só assim vereis que essa moral perfeita que o cristianismo implantou,<br />

vivia já nessas épocas remotas com seus dogmas imperecíveis, com seus princípios<br />

eternos; que os mesmos sentimentos, as mesmas emoções, os mesmos<br />

<strong>de</strong>sejos que fazem vibrar os nossos corações, existiam na alma <strong>de</strong>sses nossos<br />

irmãos <strong>de</strong> séculos perdidos. O amor, as abnegações pelo próximo, os afetos,


172 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

vemo-los <strong>de</strong>scritos com uma intensida<strong>de</strong> talvez ainda maior que nos dias <strong>de</strong><br />

agora, em que infelizmente se têm levantado catedrais ao egoísmo, nas quais o<br />

oficiante adora o próprio ídolo.<br />

Mas abandonando esse assunto e continuando a pesquisa transpus o<br />

Peristilo Gótico da Ida<strong>de</strong> Média e ouvi ainda o surdo rumor longínquo, dum<br />

<strong>de</strong>smoronamento <strong>de</strong> Impérios; mas <strong>de</strong>ntro em pouco todos os gran<strong>de</strong>s acontecimentos<br />

políticos velaram-se, <strong>de</strong>svaneceram-se através <strong>de</strong> uma nuvem <strong>de</strong>nsa<br />

<strong>de</strong> incensos religiosos por on<strong>de</strong> flutuam cânticos e rezas <strong>de</strong> um misticismo<br />

fanático. Em laboratórios estranhos homens envelheciam nas maquinações<br />

inúteis <strong>de</strong> uma ciência infantil.<br />

Em tudo pesava uma atmosfera <strong>de</strong>nsa e irrespirável resultante da fusão<br />

<strong>de</strong> elementos heterogêneos, necessitando <strong>de</strong> uma ação <strong>de</strong> presença para que as<br />

afinida<strong>de</strong>s se manifestassem e a homogeneida<strong>de</strong> surgisse anunciando uma era<br />

<strong>de</strong> luz e <strong>de</strong> progresso. Essa ação necessária <strong>de</strong> presença foi trazida pelos gran<strong>de</strong>s<br />

acontecimentos: A Descoberta da América e caminho das Índias, a revolução<br />

artística <strong>de</strong> Rafael e Miguel Ângelo, a revolução científica <strong>de</strong> Copérnico, a<br />

Descoberta da Imprensa e finalmente a voz <strong>de</strong> Lutero cindindo o Catolicismo.<br />

Foi assim, minhas senhoras, que meu espírito <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vagar perdido<br />

pelo terreno da história como aquele que melhores elementos po<strong>de</strong>ria fornecer<br />

a quem se sentia fraco para as criações originais, <strong>de</strong>scobriu bem perto <strong>de</strong> si, no<br />

próprio torrão natal, o assunto nacional <strong>de</strong> indiscutíveis interesses, e que<br />

certamente vos proporcionaria uma palestra agradável, se tratado por outro.<br />

Como <strong>de</strong>veis saber, ocupar-me-ei nesta palestra das tradições do Tijuco e<br />

sucintamente <strong>de</strong> um período <strong>de</strong> sua história, história dolo<strong>rosa</strong> <strong>de</strong> Lágrimas e <strong>de</strong><br />

Agonias, tradições <strong>de</strong> heroísmo e <strong>de</strong> martírio, a que certo não po<strong>de</strong>rei, como<br />

<strong>de</strong>sejava, emprestar a narração emocionante, para que, senhoritas, os vossos<br />

olhos se magoassem na contemplação <strong>de</strong> uma das mais dolo<strong>rosa</strong>s páginas da<br />

nossa história colonial.<br />

É do Tijuco, senhoritas, que vem gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>ssas pedras preciosíssimas<br />

com que vos adornais para as festas, e o oiro dos vossos braceletes dormiu<br />

outrora ignorado nas serras alcantiladas daquela terra infeliz.<br />

Perdoar-me-eis, por certo, se em vos apresentando um diamante <strong>de</strong><br />

subido valor, fizer <strong>de</strong>saparecer o sorriso que a vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sperta, contando-vos<br />

que o diamante do Tijuco é a cristalização <strong>de</strong> uma lágrima, e que essa lágrima<br />

correu talvez por uma face tão gentil e tão meiga como as vossas.<br />

Tereis <strong>de</strong>certo mais carinho, para as vossas jóias, quando souber<strong>de</strong>s que<br />

cada pedaço <strong>de</strong> oiro representa uma epopéia <strong>de</strong> dor, que cada pedra rutilante<br />

que trazeis nos anéis custou, antes <strong>de</strong> algumas moedas, agonia sacrificadora <strong>de</strong>


Tijuco – lendas e tradições ____________________________________________________ Edgar Matta Machado 173<br />

um povo irmão. E quantas vezes a maldição dos perseguidos tombou sobre o<br />

metal e a pedra que o convencionalismo e o luxo valorizaram!<br />

Quanta lágrima, quanto soluço poupado, quanta injustiça inclemente, não<br />

se teria consumado se o solo abençoado daquela terra não tivesse escondidas<br />

essas preciosida<strong>de</strong>s inúteis!<br />

Bandos <strong>de</strong> aventureiros que a ambição movia <strong>de</strong>stemidos e fortes,<br />

embrenhavam-se pelas florestas seculares e virgens, afrontando sacrifícios e<br />

perigos, sem que nada os <strong>de</strong>tivesse na carreira maldita, indo ao recesso íntimo<br />

das tabas arrancar o gentio leal para o martírio sem nome do cativeiro perpétuo.<br />

A resistência natural agindo, travavam-se mortíferas guerras e o solo da<br />

Pátria bebia o primeiro sangue iniquamente <strong>de</strong>rramado; num <strong>de</strong>sprezo cruel<br />

para com todas as leis da Justiça e da Moral, esses bandos ferozes arrancavam<br />

das Missões Jesuíticas os selvagens que se haviam entregado à catequese e que<br />

abraçavam a religião Santíssima da Cruz.<br />

Foi numa <strong>de</strong>ssas correrias injustificáveis, que um aventureiro encontrou<br />

a primeira mina <strong>de</strong> oiro, e espalhada essa nova, <strong>de</strong> todos os pontos da colônia<br />

afluíram homens na procura difícil do precioso metal.<br />

O primeiro oiro foi encontrado na Capitania <strong>de</strong> São Paulo e as ban<strong>de</strong>iras<br />

que se formavam buscavam os <strong>de</strong>sertos, revolvendo terras, <strong>de</strong>sviando rios,<br />

penetrando em cavernas, na se<strong>de</strong> insaciável <strong>de</strong> riquezas, <strong>de</strong> régias fortunas, <strong>de</strong><br />

opulências Nababescas.<br />

Para Minas dirigiram-se diversas ban<strong>de</strong>iras e em vários pontos da<br />

Capitania o metal amarelo brilhou no fundo das bateias; na comarca do Serro<br />

Frio, <strong>de</strong>scobriram-se riquíssimas jazidas, mas a nevrose do oiro impelia esses<br />

homens a novas <strong>de</strong>scobertas, como se não houvesse na terra riqueza bastante<br />

para saciar-lhes a ambição sem limites.<br />

Nas Memórias do Distrito Diamantino, do finado e saudoso dr. Joaquim<br />

Felício dos Santos, o único importante manancial <strong>de</strong> crônica do Tijuco,<br />

encontra-se a <strong>de</strong>scrição minuciosa da <strong>de</strong>scoberta das lavras e fundação do<br />

Tijuco.<br />

Portugueses, mamelucos e sertanistas <strong>de</strong> São Paulo, vindos não se sabe<br />

ao certo <strong>de</strong> on<strong>de</strong>, chegaram em uma tar<strong>de</strong> fatigados da mais penosa das<br />

viagens, por uma das regiões mais agrestes da Capitania, à confluência <strong>de</strong><br />

dois córregos, sem que um juízo qualquer os impelisse a tomar esse ou aquele<br />

caminho, esses homens ru<strong>de</strong>s, fatalistas como todos que levam essa<br />

vida arriscada <strong>de</strong> nôma<strong>de</strong>, confiantes no acaso, <strong>de</strong>sfraldaram a ban<strong>de</strong>ira que<br />

tomou a direção da nascente <strong>de</strong> um dos córregos, posteriormente <strong>de</strong>nominado<br />

Pururuca.


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Pouco acima da confluência lavando a terra <strong>de</strong>scobriram oiro, e um<br />

povoado <strong>de</strong> colmado e choupanas surgiu rapidamente.<br />

Algum tempo mais tar<strong>de</strong> outra ban<strong>de</strong>ira chegou à confluência dos<br />

mesmos córregos, e como Pururuca já estava ocupado, seguiu pelo outro que,<br />

diz dr. Felício dos Santos, foi enfaticamente <strong>de</strong>nominado Rio Gran<strong>de</strong>, por ser<br />

um pouco mais volumoso que aquele.<br />

As lavras exploradas por esses ban<strong>de</strong>irantes produziram oiro em tal<br />

abundância que, <strong>de</strong> todas as partes da Capitania, começaram a chegar levas e<br />

levas <strong>de</strong> exploradores e em pouco tempo aquele <strong>de</strong>serto apresentou o aspecto<br />

risonho <strong>de</strong> um arraial florescente, possuindo uma capela, e on<strong>de</strong> todos viviam<br />

numa abundância feliz.<br />

Estava fundado o Tijuco, e daí <strong>de</strong>veria sair o oiro e diamante para as<br />

munificências Salomônicas da Corte Portuguesa e do Vaticano <strong>de</strong> Roma; daí<br />

<strong>de</strong>veriam sair os quatrocentos e cinqüenta milhões <strong>de</strong> cruzados com que d. João<br />

V obteve o título pomposo <strong>de</strong> Majesta<strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>líssima.<br />

Em troca <strong>de</strong>ssa oriental opulência, <strong>de</strong>ssa riqueza que assombrou o<br />

mundo, a colônia reservava para o mísero <strong>de</strong>scobridor, para o infeliz habitante<br />

<strong>de</strong>ssa terra a tirania suprema e as opressões iníquas.<br />

Nos primeiros anos seqüentes à <strong>de</strong>scoberta, os benefícios havidos pelo<br />

real erário não obe<strong>de</strong>ciam a um processo fixo <strong>de</strong> arrecadação, variando entre a<br />

cobrança do quinto nas casas <strong>de</strong> fundição e a capitação, notando-se, entretanto,<br />

a tendência <strong>de</strong> onerar mais e mais o mineiro em proveito da coroa.<br />

Até o ano <strong>de</strong> 1729 as lavras do Tijuco foram consi<strong>de</strong>radas como<br />

puramente auríferas; ninguém cogitava, sequer, no diamante, embora nas<br />

escavações das lavras se encontrassem em gran<strong>de</strong> abundância certas pedras <strong>de</strong><br />

uma cristalização especial, <strong>de</strong> brilho notável, que, recolhidas como objetos <strong>de</strong><br />

curiosida<strong>de</strong>, serviam nos serões <strong>de</strong> família como tentos <strong>de</strong> jogo.<br />

É portanto impossível <strong>de</strong>terminar-se o lugar em que foi encontrado o<br />

primeiro diamante, assim como nomear o <strong>de</strong>scobridor.<br />

Quanto ao nome do que naquelas pedras consi<strong>de</strong>radas inúteis conheceu a<br />

cristalização preciosíssima do carbono, oscila incerta a crônica, dizendo uns ter<br />

sido Bernardo da Fonseca Lobo, explorador <strong>de</strong> oiro, e que efetivamente reclamou<br />

do governo da Metrópole alvíssaras pelo auspicioso <strong>de</strong>scobrimento,<br />

querendo outros tenha sido um fra<strong>de</strong> da Congregação da Terra Santa, que havia<br />

estado em Golconda, e que chegando ao Tijuco reconheceu o diamante nos tentos<br />

<strong>de</strong> jogo e retirou-se <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> haver feito silenciosamente uma abundante colheita.<br />

O certo, porém, é que esse reconhecimento <strong>de</strong>veria marcar o início do<br />

sofrimento <strong>de</strong> um povo; a Corte Portuguesa, aurise<strong>de</strong>nta lançaria em breve os


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olhares ambiciosos e toda uma re<strong>de</strong> maquiavélica <strong>de</strong> perseguições envolveu o<br />

Tijuco para que aquela abundância fosse ter diretamente aos cofres portugueses.<br />

E efetivamente tombou como um raio sobre a população pacífica o<br />

bando iníquo do governo da Capitania, lançando interdição sobre todas as<br />

lavras.<br />

Vem a propósito contar a lenda dos diamantes que a tradição popular<br />

guarda, e que foi aproveitada por Joaquim Felício no seu romance Acaiaca.<br />

Quando os primeiros exploradores se estabeleceram no Tijuco, viviam<br />

nas gran<strong>de</strong>s florestas que circundavam o <strong>de</strong>scoberto, as tribos selvagens<br />

indômitas que jamais haviam sentido o peso opressor do braço português.<br />

É certo que <strong>de</strong> longe em longe o selvagem havia lobrigado o vulto <strong>de</strong> um<br />

aventureiro branco, carabina a tiracolo, olhar arguto e vivaz, seguindo por uma<br />

rota ignorada em busca <strong>de</strong> esmeraldas ou <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>ssas quimeras que<br />

povoaram o cérebro dos arrojados sertanistas.<br />

Como a vaga noção <strong>de</strong> in<strong>de</strong>finida ameaça, corria entre eles na brumosida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> lendas, a história <strong>de</strong> guerreiros brancos vindos <strong>de</strong> terras remotas, que<br />

venciam na selva o guerreiro feliz; mas até então, a vida <strong>de</strong>ssas tribos corria na<br />

plena liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus vastos domínios entre os episódios da caça e da guerra,<br />

sem outras preocupações que as apoteoses da vitória e os festejos da paz.<br />

Foi então que os <strong>de</strong>scobridores do Tijuco fixaram-se nas vertentes do Rio<br />

Gran<strong>de</strong>, e o gentio da Ibitira sentiu o perigo próximo a conjurar.<br />

Nessa tribo dominadora havia a superstição fabulosa <strong>de</strong> que todo o seu<br />

po<strong>de</strong>rio dimanava <strong>de</strong> um talismã venerado, uma gran<strong>de</strong> Árvore Sagrada, a que<br />

a lenda atribuía uma antigüida<strong>de</strong> imemorial.<br />

Chamavam-na Acaiaca; era um cedro prodigioso, como outro não se<br />

encontrava naquelas regiões, que erguia a fron<strong>de</strong> ver<strong>de</strong>jante à inacreditável<br />

altura por on<strong>de</strong>, nas noites tormentosas a nevrostenia dos ventos uivava dolo<strong>rosa</strong>mente.<br />

E as nuvens <strong>de</strong>nsas das estações hibernais tocadas pelo Norte rijo,<br />

dilaceravam-se nas grimpas elevadas da Acaiaca, <strong>de</strong>ixando gran<strong>de</strong>s fragmentos<br />

brancos como farrapos antigos <strong>de</strong> uma ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Paz.<br />

As gran<strong>de</strong>s tormentas <strong>de</strong> setembro blasfemavam à noite na impotência <strong>de</strong><br />

vencê-la, e a Árvore Sagrada, ao <strong>de</strong>spontar clarinante do Sol, mostrava-se<br />

úmida e ver<strong>de</strong> num espanejamento matinal <strong>de</strong> força e <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.<br />

Enquanto Acaiaca vivesse, <strong>de</strong> pé, como um titã invencível, protegendo<br />

em sua sombra o Conselho dos Pajés e dos Chefes, guardando junto às raízes os<br />

corpos sem vida dos guerreiros finados, a tribo contaria as vitórias pelos


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combates e o seu nome soaria na taba inimiga como um brado <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição e<br />

<strong>de</strong>rrota.<br />

Enquanto a Acaiaca florisse ao sorriso consolador das primaveras cantantes,<br />

e em seus braços protetores a ave nidificasse, o emboaba não dominaria<br />

o solo em que tinha nascido, lutado e morrido toda uma raça <strong>de</strong> fortes, não os<br />

expulsaria dali, para que <strong>de</strong>sprezados e errantes vagassem pelas terras estranhas<br />

sem família e sem taba, a mãe protegendo o filhinho e o filho conduzindo o pai<br />

cego como os guerreiros Tupis do I- Juca-Pirama.<br />

Mas a traição conduziu o emboava ao pé do gigante, na noite nupcial <strong>de</strong><br />

Cajubi, enquanto a tribo se entregava aos prazeres da festa, e a embriaguez do<br />

Cauim perturbava todos os cérebros.<br />

Cururupeba, o chefe da tribo, que nessa noite entregava sua filha aos<br />

braços fortes <strong>de</strong> um guerreiro, sentado num velho tronco, mostrava a expressão<br />

sisuda <strong>de</strong> quem reflete e pensa.<br />

Deslocado no meio daquela alegria <strong>de</strong>lirante, único que não havia<br />

molhado os lábios no embriagante licor, quedava-se absorvido em pensamentos<br />

obscuros, sentindo passar <strong>de</strong> quando em quando no espírito abismado as asas<br />

<strong>de</strong> luto <strong>de</strong> um presságio tremendo.<br />

Pesava sobre ele a sugestão <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>sgraça latente, que não apresentava<br />

ainda formas <strong>de</strong>finidas e teme<strong>rosa</strong>s por isso mesmo que não podia ser<br />

conjurada, que não podia ser afastada.<br />

Das bandas em que se erguia a Acaiaca, vinha na asa da brisa um rumor<br />

surdo e vago, que seus ouvidos atiladíssimos <strong>de</strong> selvagem não sabiam <strong>de</strong>terminar,<br />

trazendo alguma cousa <strong>de</strong> ameaçador que se diluía e espalhava na noite,<br />

envolvendo-o, oprimindo-o.<br />

Um gargalhar sinistro <strong>de</strong> ave noturna e agoureira vibrava no espaço,<br />

irônica e pressaga, ao mesmo tempo que, dos lados da Ibitira, um ruído abafado<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sabamento chegava.<br />

Cururupeba ergueu-se, <strong>de</strong>sempenou a estatura <strong>de</strong> atleta à baça luz<br />

cambiante <strong>de</strong> fogueiras a se extinguir, e o som clarinante da menobiapava (2)<br />

vibrou estri<strong>de</strong>nte, amortecido <strong>de</strong> eco em eco, diluiu-se vago, assutilado nas<br />

montanhas distantes que uma bruma encobria.<br />

Era o sinal da guerra!<br />

2. Em uma das crônicas <strong>de</strong>nominadas “Ecos”, Edgard usa, <strong>de</strong> novo, a palavra menobiapava. Entretanto, no<br />

romance Acayaca, <strong>de</strong> Joaquim Felício dos Santos, edições <strong>de</strong> 1866 e <strong>de</strong> 1894, constam membyapara e<br />

membyapaba, em trechos diferentes.


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E aquela multidão cambaleante e ébria precipitou-se em seguimento do<br />

chefe que partira em direção ao planalto, on<strong>de</strong> dormiam os valentes guerreiros<br />

da tribo, à sombra abrigadora da gran<strong>de</strong> árvore sagrada.<br />

A Acaiaca já não era <strong>de</strong> pé e sua queda arrastaria fatalmente a dispersão<br />

e o aniquilamento da tribo; tombava com ela todo um passado glorioso <strong>de</strong><br />

vitórias e esse po<strong>de</strong>r ignoto que governa os orbes escrevera a sentença do<br />

gentio indomável.<br />

Os bravos e os fortes ergueram-se armados, lançando a maldição sobre<br />

os profanadores da ibicoara da taba, jurando a <strong>de</strong>struição do Tijuco. A superstição<br />

prendia os braços a alguns e tendo <strong>de</strong>saparecido com a queda da árvore<br />

simbólica a coesão molecular, dissensões se levantaram no seio da tribo antes<br />

unida e uma luta tremenda, sanguinosa e fratricida assombrou a gran<strong>de</strong> noite<br />

muda, anuviada por nimbos pesados, pressagiando tormentas, por entre os<br />

quais assomava vaga<strong>rosa</strong> a face angustiada <strong>de</strong> uma Lua sinistra.<br />

Um raio incendiou a Acaiaca e o velho pajé sábio que a vira florir 152<br />

vezes, sepultou-se nas chamas, murmurando uma maldição teme<strong>rosa</strong>:<br />

“Vamos, guerreiros! que das cinzas da Acaiaca surjam as <strong>de</strong>sgraças dos<br />

peros.<br />

“Segui-me: eu sou o instrumento <strong>de</strong> anhangá, eu sou anhangá, sou mais<br />

cruel do que ele, mais feroz, mais inexorável, mais sem pieda<strong>de</strong>!...<br />

“É chegada a hora da vingança!<br />

“Maldição sobre os peros!...”<br />

Arrastados pelas águas os carvões da gran<strong>de</strong> árvore foram se <strong>de</strong>positar<br />

nos leitos dos rios, nas encostas dos montes, nos vales profundos; e no dia<br />

seguinte, quando os mineiros se dirigiam para as lavras, colheram, revolvendo a<br />

terra, os primeiros diamantes.<br />

A tribo lá ficara aniquilada e morta, junto à ibicoara sagrada dos guerreiros<br />

fortes.<br />

A maldição do pajé tombou cruelmente sobre o povo do Tijuco; interditas<br />

as lavras, proibida a única indústria existente, o <strong>de</strong>salento avassalou o<br />

ânimo forte daqueles sertanistas, que jamais se haviam vergado ante insuperáveis<br />

obstáculos da natureza selvagem, do gentio antropófago, das feras<br />

carniceiras, e que se curvavam humil<strong>de</strong>s, resignados aos <strong>de</strong>cretos da tirania<br />

maldita, sem um protesto, guardando tão somente o direito <strong>de</strong> súplica ao qual<br />

mostravam ouvidos inclementes os ambiciosos governos.<br />

Demarcado o Distrito Diamantino, nomeadas autorida<strong>de</strong>s especiais,<br />

formou o Tijuco um Estado no Estado, sujeito a leis particulares, opressoras e


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iníquas, e os habitantes viviam sob a pressão dolo<strong>rosa</strong> <strong>de</strong> penas rigorosíssimas,<br />

aplicadas por processos sumários don<strong>de</strong> era completamente excluída a <strong>de</strong>fesa.<br />

Todo o empenho da Metrópole estava em <strong>de</strong>scobrir um sistema engenhoso<br />

<strong>de</strong> encher <strong>de</strong> riqueza o real erário, <strong>de</strong>ixando aos povos da colônia o<br />

estrito necessário para levarem uma vida humil<strong>de</strong>, sem bem-estar e sem luxo,<br />

conservando-lhes tão somente a força muscular necessária para que extraíssem<br />

das entranhas da terra os diamantes e oiro com os quais o rei <strong>de</strong>vasso saldava<br />

do Vaticano seu débito colossal <strong>de</strong> pecados remotos.<br />

Patrulhas e dragões percorriam dia e noite os córregos e as lavras,<br />

evitando a mineração furtiva; e uma leve suspeita <strong>de</strong> contrabando era punida<br />

com o confisco dos bens e <strong>de</strong>gredo para os rochedos da África.<br />

Dia a dia, o braço férreo da tirania lançava sobre o povo um <strong>de</strong>creto<br />

opressor. Foram <strong>de</strong>spejadas todas as fazendas e casas situadas em terrenos<br />

minerais, e isso sem que se in<strong>de</strong>nizassem os prejuízos, <strong>de</strong>srespeitando os<br />

direitos adquiridos e as eternas e supremas leis da humanida<strong>de</strong> e da justiça.<br />

Como acima dissemos, foi conservado um direito inútil aos povos do<br />

Tijuco – o direito <strong>de</strong> súplica.<br />

Em uma petição dirigida ao governo da Metrópole, peça redigida com<br />

talento, em cujas entrelinhas untuosas <strong>de</strong> humilda<strong>de</strong> ressumbram ironismos<br />

dolorosos, lemos o seguinte memorável trecho.<br />

“... que a execução que na forma sobredita se <strong>de</strong>u às or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> V.<br />

Majesta<strong>de</strong>, não parece própria da reta e justa intenção real <strong>de</strong> V. Majesta<strong>de</strong> nem<br />

<strong>de</strong> sua natural pieda<strong>de</strong>, real clemência, e amor paternal <strong>de</strong> seus vassalos.”<br />

Que sorriso amarelo e travoroso pairou nos lábios do redator <strong>de</strong>ssas<br />

linhas: Era o amor paternal do Rei, que atirava a plagas longínquas um pai,<br />

<strong>de</strong>ixando no Brasil os filhos implumes, na miséria mais negra! Era a sua natural<br />

pieda<strong>de</strong> que con<strong>de</strong>nava, a trabalhos perpétuos, o suspeito sobre o qual só<br />

pesava uma <strong>de</strong>núncia inimiga, era finalmente uma real clemência que pesava<br />

sobre os habitantes do Tijuco, como um manto <strong>de</strong> chumbo.<br />

Po<strong>de</strong>ria, se o quisesse, citar inúmeros fatos comprobatórios da tirania que<br />

subjugava a colônia, principalmente o Distrito Diamantino submetido à lei <strong>de</strong><br />

exceção, mas basta dizer-vos que os arquivos <strong>de</strong> nossa terra estão atulhados <strong>de</strong><br />

processos, cujo só exame, forneceria o libelo acusatório do <strong>de</strong>spotismo português.<br />

E a tradição popular que corre <strong>de</strong> boca em boca, nos fala <strong>de</strong>sse tempo<br />

como <strong>de</strong> uma era maldita em que o ar respirado trazia um perfume <strong>de</strong> lágrimas,<br />

e a água cristalina dos regatos tinha ressaibo <strong>de</strong> sangue.<br />

Em 1739 <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter estado no Tijuco o governador geral da Capitania,<br />

e <strong>de</strong> combinar com o dr. Rafael Pardinho o meio mais prático <strong>de</strong> exploração


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das jazidas <strong>de</strong> diamantes, ficou resolvido que sua extração fosse dada em hasta<br />

pública, a quem melhores vantagens oferecesse.<br />

Foi firmado o primeiro contrato com João Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira, que o<br />

renovou passados quatro anos.<br />

Podiam os arrematantes minerar com 600 escravos, mediante pagamento<br />

anual <strong>de</strong> 230$000, sendo-lhes expressamente proibido empregar maior<br />

número.<br />

Esse novo regímen veio agravar a situação dos tijuquenses, que já então<br />

tinham permissão <strong>de</strong> minerar em algumas lavras puramente auríferas, e uma<br />

nova fase <strong>de</strong> perseguição começou para eles.<br />

Aos contratadores era permitido, como aos arrematadores <strong>de</strong> impostos, o<br />

direito <strong>de</strong> cobrar executivamente <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>vedores, daí a penhora e o tronco<br />

para os que não podiam satisfazer seus compromissos.<br />

O contrato mantinha um corpo <strong>de</strong> pe<strong>de</strong>stres, que fiscalizava as lavras, e<br />

se por acaso caía sobre algum indivíduo a suspeita <strong>de</strong> contrabando, eram-lhe os<br />

bens confiscados, meta<strong>de</strong> para o real erário e outra meta<strong>de</strong> para o contratador.<br />

Do mesmo privilégio, isto é, da partida dos bens confiscados, gozava<br />

qualquer particular que <strong>de</strong>nunciava a mineração furtiva: era a traição premiada,<br />

a recompensa da infâmia, mas que importava isso se o oiro confiscado não<br />

perdia o seu valor.<br />

Manda, entretanto, a justiça dizer que, como que salvaguardando os<br />

princípios da moral, os bandos que <strong>de</strong>terminavam o prêmio da <strong>de</strong>lação, assim<br />

rezavam “...e confiscados os bens, uma parte pertencerá ao real erário, e outra<br />

ao vil <strong>de</strong>nunciador.”<br />

E assim ficavam satisfeitas aquelas almas <strong>de</strong> moral elástica.<br />

A <strong>de</strong>núncia verbal do contratador dava lugar a um processo sumário<br />

secreto, que terminava invariavelmente pela con<strong>de</strong>nação do acusado, o que vale<br />

dizer, que o contratador era um novo tirano para os tijuquenses.<br />

O primeiro arrematador, João Fernan<strong>de</strong>s não <strong>de</strong>ve ser confundido com o<br />

<strong>de</strong>sembargador, seu homônimo, e filho <strong>de</strong> que nos ocuparemos adiante.<br />

Vamos agora tratar <strong>de</strong> um dos pontos mais interessantes da história do<br />

Tijuco, em volta do qual a lenda aparece em glorificações <strong>de</strong> martírios, em<br />

relevos <strong>de</strong> valor, <strong>de</strong> generosida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> amplos e vastos sentimentos bons.<br />

Referimo-nos ao garimpeiro, àquele que exercia a mineração furtiva,<br />

indo <strong>de</strong> encontro às mais severas or<strong>de</strong>ns da Colônia, afetando diretamente seus<br />

interesses.<br />

O garimpeiro não é a nosso ver o indivíduo ousado que afronta as leis<br />

estabelecidas, fraudando os cofres do Estado e a socieda<strong>de</strong> em geral.


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Ele é o primeiro assomo <strong>de</strong> vitalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um povo adormentado que se<br />

revolta contra a iniqüida<strong>de</strong> do tributo lançado não consoante às necessida<strong>de</strong>s<br />

públicas mas <strong>de</strong> acordo com as ambições e opulências <strong>de</strong> uma Corte <strong>de</strong>vassa.<br />

Foi o brado da primeira reação contra a tirania, foi o primeiro que se<br />

sentindo oprimido teve a coragem inaudita <strong>de</strong> reagir e lutar.<br />

Estudando o caráter e a índole do garimpeiro convencemo-nos <strong>de</strong> que ele<br />

seria o herói <strong>de</strong> uma luta libertadora, se as condições especiais <strong>de</strong> meio e <strong>de</strong><br />

época permitissem a germinação <strong>de</strong>ssa idéia.<br />

É necessário dizer que o garimpeiro tinha como único crime o <strong>de</strong>sprezo<br />

das <strong>de</strong>terminações proibitivas do governo; na sua vida nôma<strong>de</strong> nem sempre<br />

rendosa muitas vezes a miséria e a fome po<strong>de</strong>riam guiá-lo aos atentados<br />

infames; ele jamais se confundiu com o salteador <strong>de</strong> estradas, com o invasor <strong>de</strong><br />

fazendas e povoações inermes.<br />

O viajante não sentia o mais leve temor nos lugares mais ermos,<br />

carregados <strong>de</strong> riqueza, encontrava um bando <strong>de</strong> mineradores furtivos.<br />

Eles não queriam o oiro que representava um esforço e um trabalho:<br />

reclamavam para si o que a natureza guardava para todos.<br />

Isolados e sempre perseguidos nas grimpas alcantiladas das serras do<br />

Tijuco, levando uma existência quase selvagem, o caráter <strong>de</strong>sses homens se<br />

acrisolou na virtu<strong>de</strong>, na lealda<strong>de</strong>, numa coragem indômita <strong>de</strong> leões, qualida<strong>de</strong>s<br />

que formam o traço característico da vida do garimpeiro.<br />

Nas tradições populares <strong>de</strong> Diamantina <strong>de</strong>stacam-se os vultos simpáticos<br />

<strong>de</strong> João da Costa, José Basílio e Isidoro, tendo o primeiro <strong>de</strong>sses sido consi<strong>de</strong>rado<br />

injustamente por Júlio Verne em o seu romance A jangada como um<br />

vulgar criminoso salteador e ladrão.<br />

Vamos citar a lenda <strong>de</strong> José Basílio, uma das mais cheias <strong>de</strong> episódios.<br />

José Basílio, natural da vizinha cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Santa Luzia, garimpava nas<br />

lavras do Tijuco, quando foi preso durante a intendência <strong>de</strong> Luiz Beltrão.<br />

Conseguiu evadir-se subornando o carcereiro com meia oitava <strong>de</strong><br />

diamantes. Preso pela segunda vez em 1784, foi con<strong>de</strong>nado a trabalhar <strong>de</strong>z<br />

anos no serviço da extração no Jequitinhonha, ligado por correntes a um outro<br />

garimpeiro sentenciado — João Bago.<br />

Um dia mandaram do Tijuco um pequeno embrulho contendo algum<br />

oiro, umas limas e uma faca.<br />

No gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>salento que minava a alma forte do garimpeiro, sorriu-lhe<br />

um doce Luar <strong>de</strong> Esperança, e numa visão saudosa ele viu aparecer perto a vida<br />

aventureira que dantes levara, sob o pálio suavizante das estrelas e dormiu<br />

embalado por Sonhos brumosos <strong>de</strong> Liberda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> amor.


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O galé que se julgava abandonado tinha palpitando por ele um coração<br />

piedoso; é que a alma nacional fatigada <strong>de</strong> sofrer, tinha infinitos afetos para o<br />

garimpeiro rebel<strong>de</strong>. Uma noite quando a tropa dormia e o sono cerrava as<br />

pálpebras vigilantes das sentinelas, os dois aventureiros, num anseio <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>,<br />

limavam pacientemente as correntes dos pés. Livres os passos, os<br />

sentenciados abandonaram a choupana, como se <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> lhes ter farolado no<br />

espírito uma idéia <strong>de</strong> fuga, não pu<strong>de</strong>ssem mais respirar a atmosfera pesada que<br />

cerca os prisioneiros.<br />

A buzina soou, anunciando o alarma; os fugitivos precipitaram-se para as<br />

bandas do Jequitinhonha, incendiando na passagem, os colmados para que a<br />

confusão no acampamento lhes permitisse a fuga. Entre os clarões fumarentos<br />

daquele incêndio lembravam fantasmas <strong>de</strong> criminosos, unidos na Xifopagia da<br />

Pena.<br />

Acercaram-se do Jequitinhonha e o rio, naquela hora erma da noite,<br />

rolava as águas negras num soluço eterno <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nado.<br />

Os dragões, no encalço dos fugitivos, aproximavam-se sempre: era<br />

necessário agir. No espírito dos garimpeiros <strong>de</strong>senvolveram-se perspectivas<br />

sombrias, suce<strong>de</strong>ndo-se rápidas: <strong>de</strong> um lado, novo encarceramento, novas<br />

correntes pren<strong>de</strong>ndo-lhes os passos, <strong>de</strong>pois uma longa viagem, o embalo das<br />

águas, por longos dias silentes, e no fundo do quadro os areais da África, os<br />

rochedos estéreis, o <strong>de</strong>gredo perpétuo; do outro, as águas do rio turbilhonando<br />

na cheia, a Agonia cruel dos afogados, a Morte, a Morte sempre...<br />

E os dois corpos ligados precipitaram-se na torrente...<br />

O Jequitinhonha corre nesse ponto entre negros rochedos escarpados,<br />

rápido e espumaroso; os dois galés unidos ainda pelo pescoço nadavam rio<br />

abaixo num esforço tremendo; aproximando-se das margens os braços hirtos<br />

dos nadadores procuravam em vão apoio nos rochedos nus; os <strong>de</strong>dos<br />

escorregavam no limo úmido, a corrente pesada fazia-os mergulhar <strong>de</strong> quando<br />

em quando para surgirem além mais fatigados ainda.<br />

A luta não se podia prolongar e em breve aqueles corpos iriam dormir<br />

nas areias do Jequitinhonha, entre os diamantes e o oiro.<br />

Da margem, uma árvore estendia os braços sobre as águas, Basílio<br />

agarrou-se a ela, num supremo esforço: era a salvação, a liberda<strong>de</strong>, o garimpo,<br />

a riqueza...<br />

No silêncio trágico da noite, só interrompido pelo salmodiar da torrente,<br />

soaram sinistras duas <strong>de</strong>tonações.<br />

Basílio sentiu na argola que lhe cingia o pescoço uma pancada violenta e<br />

um gran<strong>de</strong> peso, partindo o galho da árvore, precipitou-o nas águas.


182 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Seu companheiro tivera o crânio varado por uma bala e agora ele se via<br />

ligado a um cadáver que o arrastava, pesado como chumbo, para as profun<strong>de</strong>zas<br />

do rio.<br />

A luta recomeçou; Basílio levado para as camadas inferiores, agarrou-se<br />

a um rochedo que se elevava até a superfície e, num esforço sobre-humano,<br />

arrastando-se, e ao companheiro morto, voltou à tona e agarrou-se à anfractuosida<strong>de</strong><br />

duma pedra.<br />

Daí viu os dragões que se retiravam sacudindo gran<strong>de</strong>s fachos acesos,<br />

julgando-os mortos e sepultados nas águas marulhosas do opulento Jequitinhonha.<br />

João Bago tombou realmente nessa tentativa <strong>de</strong> fuga, mas Basílio viveu<br />

ainda porque para mais tar<strong>de</strong> estava marcada sua hora.<br />

No dia seguinte chegou à serra da Barra do Rio Manso, on<strong>de</strong> morava um<br />

parente ferreiro que fez do ferro das correntes dois almocafres e uma alavanca<br />

com que José Basílio continuou o garimpo.<br />

Foi ainda por seis anos o terror das tropas da extração, e em 1791,<br />

trabalhando no Brumadinho com outros companheiros, após uma resistência<br />

heróica, foi preso, ferido gravemente.<br />

Durante o interrogatório não <strong>de</strong>nunciou nenhum <strong>de</strong> seus cúmplices.<br />

Justificando-se plenamente <strong>de</strong> outros crimes que lhe eram imputados, só<br />

foi con<strong>de</strong>nado como extraviador <strong>de</strong> diamantes, a <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> <strong>de</strong>gredo para<br />

Angola.<br />

E nada mais reza a crônica sobre esse célebre garimpeiro, cuja lenda foi<br />

reduzida a belíssima forma pelo talento <strong>de</strong> Afonso Arinos.<br />

Porém no ciclo glorioso das lendas do Tijuco sobressai, em primeiro<br />

plano, a figura simpática <strong>de</strong> Isidoro, – o mártir que ainda hoje vive na memória<br />

do povo diamantinense.<br />

Corria a Intendência do Câmara, único inten<strong>de</strong>nte brasileiro e o primeiro<br />

que chamou sobre sua memória a amiza<strong>de</strong> do povo e que a par <strong>de</strong> atos <strong>de</strong><br />

generosida<strong>de</strong> fidalga, e gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> ânimo tem maculando-lhe a vida, o<br />

episódio doloroso <strong>de</strong> Isidoro, o Garimpeiro.<br />

Era esse um pardo, escravo <strong>de</strong> frei Rangel, que vivia da mineração.<br />

Processado como contrabandista, foi confiscado a seu senhor e con<strong>de</strong>nado ao<br />

trabalho, no serviço da extração, como galé.<br />

Não po<strong>de</strong>ndo suportar a pena Isidoro, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> várias tentativas,<br />

conseguiu evadir-se, reunindo-se a 50 garimpeiros que formaram o bando mais<br />

terrível <strong>de</strong> mineradores clan<strong>de</strong>stinos. Isidoro, como chefe, mantinha no grupo a<br />

mais severa disciplina, e se por acaso, algum dos companheiros infringia as


Tijuco – lendas e tradições ____________________________________________________ Edgar Matta Machado 183<br />

normas estabelecidas, era entregue, quando escravo, a seu senhor, para que<br />

sofresse a punição merecida.<br />

“Respeitavam, diz o dr. Felício, a proprieda<strong>de</strong> dos brancos que lhes<br />

haviam roubado o mais precioso dos bens – a Liberda<strong>de</strong>.”<br />

Nunca sobre Isidoro, pesou uma <strong>de</strong>núncia infamante; estimado por todos,<br />

hábil mineiro, recolhia abundantes resultados do seu trabalho, e entretinha<br />

relações comerciais com os principais habitantes do Tijuco.<br />

Para citar um fato característico, transcreveremos das Memórias do<br />

Distrito Diamantino o seguinte trecho:<br />

Tendo fala em uma certa casa da Rua da Romana, Isidoro apareceu<br />

disfarçado à noite, e pediu para conversar, em particular, com o dono da casa.<br />

Em um gabinete secreto teve lugar o diálogo que se segue:<br />

– O senhor me conhece? pergunta o nosso herói.<br />

– Conheço; é Isidoro, o Garimpeiro.<br />

– É verda<strong>de</strong>; e nem consta que eu tenha feito mal a pessoa alguma.<br />

– É certo.<br />

– O senhor tem uma escrava?<br />

– Tenho algumas.<br />

– Uma fugida?<br />

– Sim.<br />

– Chamada Maria?<br />

– Sim.<br />

– Sabe que não fui eu quem a aliciou a que fugisse <strong>de</strong> sua casa?<br />

– Sei que para fugir ela não precisa <strong>de</strong> quem a alicie.<br />

– Quanto o senhor quer pela sua liberda<strong>de</strong>?<br />

– Por ter o <strong>de</strong>feito <strong>de</strong> fugitiva, só vale 200 oitavas.<br />

– Mas ela está com filho.<br />

– Então quero 220.<br />

– Mas o filho é meu.<br />

– Então só quero 200.<br />

– Eu trouxe 600 oitavas para a liberda<strong>de</strong> da mãe e do filho; o dinheiro<br />

aplicado para a liberda<strong>de</strong> é sagrado. Peço-lhe que distribua as 400 restantes<br />

para os pobres.<br />

Isidoro recebeu a carta <strong>de</strong> alforria e saiu.<br />

No dia seguinte os pobres do Tijuco receberam 400 oitavas <strong>de</strong> esmola e<br />

só posteriormente se soube a sua origem.<br />

Esse diálogo vem <strong>de</strong>monstrar o que acima dissemos.


184 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

O caráter <strong>de</strong>sse homem, que havia sido escravo, transparece puro como<br />

os diamantes através <strong>de</strong>ssas frases sinceras.<br />

Não era nem podia ser um criminoso esse que manifestava os mais<br />

elevados sentimentos, uma Moral sã, princípios retos <strong>de</strong> Justiça.<br />

Isidoro foi muito perseguido durante a intendência <strong>de</strong> João Ignácio, que<br />

prece<strong>de</strong>u à do Câmara, sua cabeça foi posta a prêmio; entretanto ele vivia quase<br />

publicamente nas povoações e ninguém o prendia.<br />

Câmara, o mais acérrimo perseguidor dos garimpeiros <strong>de</strong>clarou-lhe uma<br />

guerra encarniçada, disseminou patrulhas por toda a parte, bateu em diferentes<br />

lugares, empregou meios <strong>de</strong> sedução, ameaça e violência com as pessoas que<br />

supunha protegê-lo.<br />

Burlando todos esses planos, Isidoro escapava às perseguições <strong>de</strong> Câmara,<br />

que, dotado <strong>de</strong> excessivo amor-próprio, fez ponto <strong>de</strong> honra da prisão do<br />

garimpeiro.<br />

Depois <strong>de</strong> muitos anos garimpar, nas proximida<strong>de</strong>s do Tijuco, sempre<br />

perseguido, ora vencedor generoso, ora vencido e foragido nos <strong>de</strong>sertos, até<br />

que organizasse novamente seu bando e pu<strong>de</strong>sse continuar o garimpo, entrou<br />

um dia, em 1809, preso no Tijuco.<br />

O povo que o conhecia em as gran<strong>de</strong>s manifestações <strong>de</strong> sua Alma <strong>de</strong><br />

Justo, acompanhou-o pelas ruas e um murmúrio unânime <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong> fugia<br />

daqueles peitos.<br />

Ferido, amarrado sobre o cavalo, as vestes rotas, manchadas <strong>de</strong> sangue,<br />

Isidoro simbolizava em sua dolo<strong>rosa</strong> Via Crucis, o sofrimento longo e inconsolável<br />

daquele povo oprimido.<br />

Os olhos gran<strong>de</strong>s magoados vinham cheios <strong>de</strong> uma resignação celeste;<br />

nem uma contração da face, indicando a impotência do ódio – ele o forte, o<br />

ousado lutador que tantas vezes vencera os dragões da Extração, que jamais<br />

sentira falsear-lhe a energia na iminência trágica do perigo – mostra então a<br />

coragem excelsa do martírio, essa que só <strong>de</strong> longe em longe aparece na História.<br />

E a multidão <strong>de</strong> homens magoados e mulheres lacrimejantes segue o<br />

préstito, dizendo: “Ei-lo, o inocente, ei-lo, o Justo”.<br />

No interrogatório, <strong>de</strong>morado, e rigoroso a que o submeteu Câmara, não<br />

<strong>de</strong>nunciou um só <strong>de</strong> seus cúmplices, mostrando a mesma obstinação <strong>de</strong><br />

Tira<strong>de</strong>ntes em chamar para si todas as responsabilida<strong>de</strong>s e Penas.<br />

Perguntando-se-lhe se conhecia seu crime, respon<strong>de</strong>u que não era criminoso<br />

“os diamantes são <strong>de</strong> Deus e não julgo <strong>de</strong>lito extraí-los”.<br />

Em vista da obstinação calma e serena, negando-se sempre a <strong>de</strong>nunciar<br />

culpados, foi, a mandado <strong>de</strong> Câmara, submetido à tortura; preso a uma escada,


Tijuco – lendas e tradições ____________________________________________________ Edgar Matta Machado 185<br />

<strong>de</strong> cabeça para baixo, os membros sangrando ainda pelas feridas do combate,<br />

os movimentos tolhidos e pe<strong>de</strong>stres robustos dilaceravam-lhe as carnes com os<br />

látegos cortantes do bacalhau.<br />

O povo compungido assistia o Martírio, mas dos lábios <strong>de</strong> Isidoro nem<br />

uma blasfêmia fugia, nem uma palavra <strong>de</strong> <strong>de</strong>sesperação e <strong>de</strong> Ódio.<br />

De um segundo açoitamento foi transportado moribundo para o cárcere e<br />

então mostrou <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> conversar com Câmara, tinha um pedido a fazer-lhe e<br />

uma revelação importante.<br />

O inten<strong>de</strong>nte era um espírito adiantado, dotado <strong>de</strong> altas qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

Coração e Alma, mas em quem um gênio arrebatado e impulsivo o levava a<br />

lamentáveis excessos, dos quais se penitenciava <strong>de</strong>pois. Foi assim que, quando<br />

o garimpeiro agonizava, vítima dos açoitamentos iníquos, dirigiu-se à prisão e<br />

disse ao moribundo: “Isidoro, peço-te perdão pelo muito que te fiz sofrer”. O<br />

infeliz tentou erguer-se, murmurou sons inarticulados e tombou; – terminara<br />

para ele a dolo<strong>rosa</strong> peregrinação na vida transitória.<br />

A memória <strong>de</strong>sse Mártir vive e viverá sempre na recordação do povo que<br />

o venera.<br />

Ele é um canonizado da consciência pública, e seu nome invocado nos<br />

momentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero, como se sua Alma sofredora na terra, seja agora nos<br />

Céus a proteção e o amparo dos que choram!...<br />

Dizem que na Procissão <strong>de</strong> Passos, quando o andor do Crucificado passa<br />

pelas ruínas da ca<strong>de</strong>ia velha, torna-se pesado, como se o garimpeiro, invisível<br />

aos olhares profanos, seguisse no andor acorrentado e sangrento ao lado <strong>de</strong><br />

Jesus, Gran<strong>de</strong> Mártir lendário.<br />

Vamos <strong>de</strong>screver um episódio importante sucedido no Tijuco, durante o<br />

governo do marquês do Pombal.<br />

Felisberto Cal<strong>de</strong>ira Brant, <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte direto <strong>de</strong> D. João III, duque <strong>de</strong><br />

Brabant, (1355), bisavô do marquês <strong>de</strong> Barbacena, era um contratador popularíssimo<br />

pela con<strong>de</strong>scendência com que olhou para o contrabando e mineração furtiva,<br />

se bem que <strong>de</strong> sua repressão pu<strong>de</strong>ssem advir vantagens e lucros para o contrato.<br />

O dr. Rodrigo Otávio, no seu recente romance histórico – Felisberto<br />

Cal<strong>de</strong>ira Brant – baseado em um trecho <strong>de</strong> uma memória da Capitania, trabalho<br />

escrito em época pouco posterior à vida daquele contratador, diz que seria<br />

ele consi<strong>de</strong>rado como um criminoso vulgar, se o dr. Joaquim Felício não lhe<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>sse a memória.<br />

Pedimos ao ilustre literato vênia para dizer que o contratador Felisberto<br />

Cal<strong>de</strong>ira nunca foi consi<strong>de</strong>rado um criminoso, e sim uma vítima simpática da<br />

tirania portuguesa.


186 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Possuidor <strong>de</strong> uma enorme fortuna adquirida nos sertões <strong>de</strong> Goiás e<br />

Paracatu, Felisberto Cal<strong>de</strong>ira assinou no Tijuco o terceiro contrato, no qual<br />

eram associados seus três irmãos.<br />

Foi esse o período áureo do Distrito <strong>de</strong>marcado; prosperavam indústrias<br />

e todos os ramos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>.<br />

A principesca opulência dos Cal<strong>de</strong>iras, a popularida<strong>de</strong> que os cercava,<br />

começaram a preocupar os governos da Metrópole que receavam as gran<strong>de</strong>s<br />

potências da Colônia, e aproveitando <strong>de</strong>núncias, infundadas talvez, principiaram<br />

a mover-lhes perseguições, <strong>de</strong> que afinal foram vítimas.<br />

Um inci<strong>de</strong>nte havido na matriz do arraial durante as festas da Semana<br />

Santa, provocado pelo modo <strong>de</strong>srespeitoso com que o ouvidor da Vila do<br />

Príncipe tratou uma gentil mocinha, prima <strong>de</strong> Felisberto, inci<strong>de</strong>nte este que <strong>de</strong>u<br />

lugar à iminência <strong>de</strong> um grave conflito entre dragões, populares e pe<strong>de</strong>stres,<br />

evitado entretanto pelo padre oficiante, que meteu-se entre o povo, pedindo a<br />

paz em nome <strong>de</strong> Jesus, fez com que o governador da Capitania, tendo recebido<br />

or<strong>de</strong>m da Metrópole, se dirigisse em pessoa para o Tijuco.<br />

Felisberto preparou para sua chegada uma recepção majestosa, e tendo<br />

<strong>de</strong>la notícia, saiu-lhe ao encontro acompanhado <strong>de</strong> seu irmão e <strong>de</strong> todas as<br />

pessoas notáveis do arraial.<br />

Chegados ao ribeirão do Inferno, avistaram os tijuquenses a luzida<br />

comitiva do general.<br />

Conta-se que nessa ocasião o cavalo fogoso <strong>de</strong> Felisberto, dando um passo<br />

em falso, atirou fora da sela o hábil cavaleiro, que se levantou pálido, dizendo:<br />

“Meus amigos, é a primeira vez que isto me acontece, pressagio alguma<br />

<strong>de</strong>sgraça que me está para suce<strong>de</strong>r”.<br />

De fato, daí a pouco, encontraram o general, seguido <strong>de</strong> numeroso séquito.<br />

Cumprimentando-o amavelmente, Felisberto, <strong>de</strong>u-lhe aquele voz <strong>de</strong><br />

prisão, cercando-o os dragões <strong>de</strong> espadas <strong>de</strong>sembainhadas.<br />

Dali mesmo seguiu para a Vila Rica e <strong>de</strong>pois para a Metrópole, sem que<br />

lhe fosse permitido <strong>de</strong>spedir-se da família.<br />

A notícia espalhando-se no Tijuco, causou profunda impressão, porque<br />

<strong>de</strong>ntro do arraial impossível seria sua prisão.<br />

O fisco seqüestrou à família todos os bens <strong>de</strong> Felisberto; e sua mulher e<br />

filhos viram-se forçados a procurar hospitalida<strong>de</strong> em casas amigas.<br />

Conta-se que, quando em casa <strong>de</strong> Felisberto faziam para o confisco o<br />

arrolamento <strong>de</strong> seus bens, o governador voltando-se para as senhoras que<br />

assistiram ao ato, disse-lhes que podiam adornar-se com suas jóias prediletas<br />

que seriam respeitadas.


Tijuco – lendas e tradições ____________________________________________________ Edgar Matta Machado 187<br />

Aquelas damas orgulhosas e nobres, habituadas às riquezas, não podiam<br />

aceitar a generosida<strong>de</strong> irrisória do fisco.<br />

Por um gesto simultâneo, movidas pelo mesmo sentimento, <strong>de</strong>spojaram-se<br />

das próprias jóias que as adornavam então, para que nem mesmo aquelas<br />

insignificâncias per<strong>de</strong>sse a coroa.<br />

Conduzido para a prisão do Limoeiro, em Lisboa, Felisberto assistiu ao<br />

terremoto, e narra a lenda que, quando os habitantes, presas da <strong>de</strong>solação,<br />

fugiam, nas ruínas da ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>smoronada, a figura pálida <strong>de</strong> Felisberto erguiase<br />

bradando: “Ladrões... restituí-me o dinheiro que me roubastes!”<br />

Para terminar a história do infeliz contratador, transcrevemos o seguinte<br />

trecho <strong>de</strong> Rodrigo Otávio: “... e, só <strong>de</strong>pois que um sinistro silêncio suce<strong>de</strong>u à<br />

confusão e tumulto das primeiras horas, o velho presidiário <strong>de</strong>sceu lentamente<br />

do alto das ruínas, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> contemplara o <strong>de</strong>plorável panorama da <strong>de</strong>struição, e<br />

se per<strong>de</strong>u no labirinto solitário das ruas <strong>de</strong>smoronadas.<br />

“Nesse andar chegou o ancião à casa em que, foi informado, estava o<br />

marquês <strong>de</strong> Pombal, cercado <strong>de</strong> outros ministros do rei, tomando as<br />

providências imediatas que tamanha <strong>de</strong>sgraça exigia.<br />

“Levado à presença do po<strong>de</strong>roso ministro, disse o velho: – “Senhor! Eu<br />

sou Felisberto Cal<strong>de</strong>ira Brant, o contratador dos diamantes do Tijuco, preso nos<br />

segredos do Limoeiro, e à espera, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1753, da liquidação <strong>de</strong> minhas contas.<br />

“Como a prisão em que me achava <strong>de</strong>sabou e restituiu-me à luz do dia,<br />

que não via <strong>de</strong>s<strong>de</strong> tanto tempo, venho pedir à Vossa Excelência que <strong>de</strong>signe<br />

outra prisão, a que me <strong>de</strong>va recolher e aguardar a liquidação <strong>de</strong> meu débito e o<br />

levantamento do seqüestro <strong>de</strong> meus bens, o que já tantas vezes tenho requerido<br />

e <strong>de</strong> novo requeiro.”<br />

Surpreso com o estranho proce<strong>de</strong>r do mineiro, quando todos os outros se<br />

haviam prevalecido do sucesso para reconquistar a liberda<strong>de</strong> comprometida por<br />

algum crime ou malversação, Sebastião Joseph <strong>de</strong> Carvalho replicou: “– Não<br />

precisa que se lhe aponte prisão quem tão nobremente proce<strong>de</strong>.<br />

– Recolhei-vos aon<strong>de</strong> vos aprouver e quando houver passado esse<br />

primeiro tempo <strong>de</strong> extraordinárias preocupações, que esta <strong>de</strong>sgraça <strong>de</strong> hoje veio<br />

trazer para o serviço d’El-Rei, procurai-nos <strong>de</strong> novo que vamos prover acerca<br />

do vosso justo requerimento.”<br />

Falando no terremoto <strong>de</strong> Lisboa, lembramo-nos <strong>de</strong> uma lenda que corre<br />

em Diamantina, e que narraremos em largos traços.<br />

Quando em Lisboa, como se uma maldição tremenda pesasse sobre a<br />

cida<strong>de</strong> opressora, os palácios <strong>de</strong>smoronavam abalados nos fundos alicerces, e o<br />

povo assombrado errava pelas ruas, invadindo as Igrejas, como se no recesso


188 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

sagrado as epilepsias geológicas não atingissem o homem, uma senhora, cujo<br />

solar fidalgo se havia abatido, penetrou em uma Igreja <strong>de</strong>serta e em orações<br />

contritas pedia aos céus que a salvassem daquela tremenda catástrofe.<br />

O templo estremeceu como se fosse <strong>de</strong>sabar e tendo-se fendido a pare<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> pedra, um raio <strong>de</strong> luz coada através <strong>de</strong> nuvens <strong>de</strong>nsas e plúmbeas, infiltrouse<br />

pela fenda do muro, indo aureolar <strong>de</strong> uma clarida<strong>de</strong> estranha a cabeça<br />

cismadora <strong>de</strong> uma imagem da Virgem.<br />

O terreno continuava a mover-se, as torres inclinavam-se, <strong>de</strong> pé ainda<br />

por um milagroso equilíbrio, e <strong>de</strong> longe, como um rumor <strong>de</strong> tormentas, os<br />

ruídos do <strong>de</strong>smoronamento chegavam; e gritos <strong>de</strong> mágoa subiam para os céus<br />

inclementes, como últimas preces dolo<strong>rosa</strong>s e aflitas.<br />

A mulher que rezava precipitou-se para a senhora que parecia fitá-la<br />

compassiva, beijando-lhe os pés; e num voto <strong>de</strong> salvação prometeu <strong>de</strong>dicar sua<br />

vida e fortuna na criação <strong>de</strong> um Asilo <strong>de</strong> órfãs e recolhimento on<strong>de</strong> quer que o<br />

<strong>de</strong>stino a levasse.<br />

Acalmado o terremoto, Thereza <strong>de</strong> Jesus Perpétua Corte Real retirou-se<br />

<strong>de</strong> Lisboa para o Brasil, fixou-se no Tijuco, on<strong>de</strong> em cumprimento da promessa,<br />

fundou o recolhimento <strong>de</strong> Nossa Senhora da Luz, mais tar<strong>de</strong> transformado<br />

em estabelecimento <strong>de</strong> educação <strong>de</strong> meninas.<br />

Thereza <strong>de</strong> Jesus, espírito místico, chegando a avançada ida<strong>de</strong>, atacada<br />

<strong>de</strong> amolecimento cerebral senil, tornou-se uma contemplativa visitada por<br />

visões beatíficas.<br />

Dizem que uma tar<strong>de</strong> quando soava o toque emocionante do Ângelus<br />

Sonoro, sobre as serras distantes morriam os <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iros vasquejamentos fulvos<br />

<strong>de</strong> um sol agonizante, e pelas estradas <strong>de</strong>sertas mugiam saudosamente os<br />

velhos bois sonolentos, reunidas na Capela do Convento começavam as Orações<br />

do Ritual as freiras e as noviças, quando uma <strong>de</strong>ssas sentindo-se doente<br />

pediu à madre diretora que lhe permitisse orar em sua cela.<br />

Terminada a Prece na hora silenciosa do ressurgimento <strong>de</strong> Vésper,<br />

quando o impon<strong>de</strong>rável das cousas parece ser a nota dominante, Thereza <strong>de</strong><br />

Jesus, tendo ainda a embalar-lhe as últimas notas dos Salmos soluçantes,<br />

dirigiu-se para a cela da noviça doente.<br />

E uma visão estranha lhe <strong>de</strong>slumbra o olhar fatigado.<br />

Era talvez um santo guerreiro, <strong>de</strong>sses que haviam feito as campanhas<br />

piedosas da Ida<strong>de</strong> Média, e sucumbido beijando a terra sagrada que guarda o<br />

sepulcro <strong>de</strong> Cristo.<br />

E enquanto Thereza <strong>de</strong> joelhos humilhava-se ante a aparição celeste, essa<br />

se <strong>de</strong>svanecia na sombra <strong>de</strong>nsa dos longos corredores claustrais.


Tijuco – lendas e tradições ____________________________________________________ Edgar Matta Machado 189<br />

Há entretanto quem afirme que <strong>de</strong>ssa vez não foi a religiosa vítima <strong>de</strong><br />

uma mera visão subjetiva <strong>de</strong> seu espírito doente. Mais tar<strong>de</strong>, quando se<br />

procedia a transformação do antigo Recolhimento na atual Igreja da Luz<br />

(conserto lamentável que perturbou o velho estilo imponente do edifício) ficou<br />

o trabalho em meio, as pare<strong>de</strong>s abertas aos vendavais e chuvas.<br />

Um operário, <strong>de</strong> nome João, que nela trabalhava, contou que, indo fazer<br />

uma oração, ouviu os lábios <strong>de</strong> pedra <strong>de</strong> São Francisco murmurarem suplicantes:<br />

“João... ao menos barro!...” E então o povo concorreu com esmolas para<br />

que as pare<strong>de</strong>s se levantassem, não somente <strong>de</strong> barro, como pedia o mo<strong>de</strong>sto<br />

Santo, mas <strong>de</strong> cal e areia.<br />

Um dos tipos mais característicos do Tijuco colonial é o célebre nababo<br />

<strong>de</strong>sembargador João Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira, <strong>de</strong> cuja vida aci<strong>de</strong>ntada e cheia <strong>de</strong><br />

episódios rapidamente nos ocuparemos.<br />

Do modo e da facilida<strong>de</strong> com que adquiriu a sua colossal fortuna que<br />

parecia, como se <strong>de</strong> longa data já lhe fosse <strong>de</strong>stinada, entrava-lhe pelas portas<br />

a<strong>de</strong>ntro como que dirigida por um po<strong>de</strong>r oculto, um simples fato, que passamos<br />

a narrar, nos dará uma idéia precisa.<br />

Encetando a exploração <strong>de</strong> uma das suas jazidas, quando apenas começava<br />

o <strong>de</strong>smonte, removendo a vegetação rasteira que cobria a superfície da<br />

terra, os diamantes estrelavam <strong>de</strong> tal maneira que o ambicioso <strong>de</strong>sembargador,<br />

aterrado, lançou-se <strong>de</strong> joelhos exclamando: “– Senhor, se tanta riqueza tem <strong>de</strong><br />

ser a causa da minha perdição, fazei que todos esses diamantes se transformem<br />

em carvões.”<br />

De todos contratadores foi o que maiores benefícios retirou, acumulando<br />

a maior fortuna do Tijuco.<br />

Orgulhoso, recebendo a vassalagem que prestavam à sua fortuna, o<br />

<strong>de</strong>sembargador era autoritário, antipático ao povo em geral, e só se curvava<br />

humil<strong>de</strong> ante as caprichosas vonta<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sua amante, a célebre Xica da Silva,<br />

mulher que não tinha atrativos que justificassem tal paixão.<br />

Na encosta da Serra, lugar hoje <strong>de</strong>nominado Palha, erguia-se o Castelo<br />

do Contratador, vasto edifício <strong>de</strong> arquitetura medieval, posteriormente <strong>de</strong>molido,<br />

ato <strong>de</strong> vandalismo que, diz o dr. Felício, fez <strong>de</strong>saparecer o edifício mais<br />

importante da época feudal do Tijuco.<br />

Havia nesse solar fidalgo uma vasta Capela riquissimamente adornada e<br />

também um teatro on<strong>de</strong> se representavam peças ao sabor da época, nos dias <strong>de</strong><br />

festivida<strong>de</strong>.<br />

O parque era <strong>de</strong> um trabalho artístico digno <strong>de</strong> ser admirado, povoado <strong>de</strong><br />

flores e árvores exóticas, cheio <strong>de</strong> córregos <strong>de</strong> águas cristalinas correndo sobre


190 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

conchas marinhas, grutas, cascatas volumosas que espalhavam na penumbra do<br />

bosque uma eterna (3) música sono<strong>rosa</strong>.<br />

Um dia Xica da Silva, que nascera no Tijuco, e ouvira falar no mar e nos<br />

navios como cousas fabulosas, <strong>de</strong>sejou, por um capricho <strong>de</strong> mulher amada,<br />

possuir um navio, não sobre as águas do oceano, mas sob o céu do Tijuco.<br />

O <strong>de</strong>sembargador, cuja fortuna colossal não encontrava impossíveis,<br />

mandou cavar um vastíssimo tanque em terreno próximo à sua morada,<br />

trazendo para o Tijuco armadores que construíram um pequeno navio, armado<br />

em brigue, no qual Xica da Silva passeava às tar<strong>de</strong>s no gran<strong>de</strong> lago artificial.<br />

João Fernan<strong>de</strong>s edificou a Igreja do Carmo, templo suntuoso que ainda<br />

hoje existe mostrando sua <strong>de</strong>cadência gloriosa.<br />

Mas apesar disso o capricho <strong>de</strong> Xica da Silva, que lhe ditara a realização<br />

<strong>de</strong>ssa obra, não pô<strong>de</strong> ser satisfeito: a Irmanda<strong>de</strong> do Carmo não permitia em seu<br />

seio indivíduos que não fossem <strong>de</strong> pura raça caucasiana e nem todo o po<strong>de</strong>r do<br />

contratador conseguiu vencer esse preconceito secular, tolo e ridículo, digamos<br />

<strong>de</strong> passagem.<br />

Esse célebre contratador aproveitou-se para as suas explorações da<br />

tibieza <strong>de</strong> ânimo do inten<strong>de</strong>nte Francisco José Pinto <strong>de</strong> Mendonça, o qual por<br />

ser muito friorento e andar freqüentemente aquecendo-se ao sol, sobre umas<br />

pedras, vestido <strong>de</strong> um largo mandrião, recebeu do povo o apelido <strong>de</strong> Mocó.<br />

Refere a crônica que, um dia, dizendo-lhe alguém que o povo lhe pusera<br />

tal alcunha, respon<strong>de</strong>u com o sotaque português: “Mucó ou não mucó sou eu<br />

quem os guberna”. Por esse tempo começava no Tijuco o fermento revolucionário,<br />

alimentado pelas idéias francesas e pela notícia das guerras da<br />

América Inglesa.<br />

O espírito revolucionário encontrou terreno favorável ali, aplicando-selhe<br />

o célebre dístico da Companhia das Índias:<br />

“Florebo quocumque ferar.”<br />

Conhecida essa agitação, Pombal manda ao Tijuco, para sindicar dos<br />

fatos, o governador, con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Valadares, que tinha também a incumbência <strong>de</strong><br />

or<strong>de</strong>nar ao <strong>de</strong>sembargador um passeio a Lisboa.<br />

Chegado ao Tijuco o governador João Fernan<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>sconfiando das suas<br />

intenções, recebeu-o principescamente, hospedando-o em seu palácio com<br />

magnificência régia.<br />

3. No texto <strong>de</strong> base do jornal Minas Gerais está eterna. Parece-nos que etérea seria mais do uso <strong>de</strong> Edgard<br />

Matta.


Tijuco – lendas e tradições ____________________________________________________ Edgar Matta Machado 191<br />

Todos os dias à sobremesa dos lautos banquetes, o criado, trajando<br />

riquíssima libré, colocava ao lado do governador uma riquíssima salva <strong>de</strong> prata<br />

cheia <strong>de</strong> belíssimas pepitas <strong>de</strong> oiro.<br />

O governador, em vista da cortesia e gentileza, não se animava a transmitir<br />

a or<strong>de</strong>m da Metrópole, e necessitando fazê-lo recorreu a um estratagema<br />

que o <strong>de</strong>sculpasse perante o contratador.<br />

Pombal cortava, assim, as asas a mais esse condor do Tijuco.<br />

O <strong>de</strong>sembargador morreu em Lisboa em 1799, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter estabelecido<br />

o célebre morgado do Grijó, e construído, por or<strong>de</strong>m do marquês, duas ruas <strong>de</strong><br />

Lisboa <strong>de</strong>struídas pelo terremoto.<br />

Alguns <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes vivem ainda cretinos e <strong>de</strong>generados,<br />

arrastando sua miséria pelos hospitais do Norte, quando po<strong>de</strong>riam viver na<br />

opulência se lhes restituísse o governo português a herança a que têm incontestável<br />

direito.<br />

Pouco antes <strong>de</strong> surgirem as idéias <strong>de</strong> Liberda<strong>de</strong> em Vila Rica já no<br />

Tijuco se reuniam pessoas importantes e esclarecidas que sonhavam com a<br />

in<strong>de</strong>pendência e preparavam elementos para a revolução.<br />

Entre essas se <strong>de</strong>stacam os nomes <strong>de</strong> José Vieira Couto e o padre Rolim.<br />

Nesse tempo regia aqueles povos o célebre Código Draconiano, chamado Livro<br />

da Capa Ver<strong>de</strong>, que continha o regimento da <strong>de</strong>marcação diamantina.<br />

O dr. José Vieira Couto foi enviado à Metrópole como emissário das<br />

queixas dos tijuquenses, sendo preso em Lisboa.<br />

O ca<strong>de</strong>te Vieira Couto morreu no Tijuco, vitimado por uma enfermida<strong>de</strong><br />

apanhada na ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Vila Rica.<br />

Teve um enterro pomposo.<br />

O padre Rolim é muito conhecido pela parte saliente que tomou na<br />

Inconfidência <strong>Mineira</strong>.<br />

Fracassou assim o plano revolucionário, urdido no Tijuco, pouco antes<br />

da gloriosa epopéia <strong>de</strong> Tira<strong>de</strong>ntes. Quando Junot entrou em Lisboa, abriu as<br />

prisões e em uma <strong>de</strong>las encontrou o dr. José Vieira Couto, a quem disse:<br />

“Senhor, já o conhecia, sei que o seu crime é ser maçom, também maçom<br />

é o imperador meu amo.”<br />

Consta que Couto morreu assassinado em Portugal.<br />

Deixando <strong>de</strong> parte a repercussão que teve no Tijuco a revolução do<br />

Porto, e a manifestação do sentimento bairrista dos tijuquenses com a expulsão<br />

do inten<strong>de</strong>nte João Ignácio, passemos à figura simpática <strong>de</strong> Manoel Ferreira da<br />

Câmara Bitencourt e Sá, 12 o dos inten<strong>de</strong>ntes, e o primeiro brasileiro que<br />

ocupou tal cargo.


192 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Espírito culto, tendo percorrido as principais cida<strong>de</strong>s da Europa, Câmara<br />

foi um inten<strong>de</strong>nte humano e bondoso, embora inexorável no cumprimento do<br />

seu <strong>de</strong>ver e <strong>de</strong> gênio, por vezes, autoritário e <strong>de</strong>spótico.<br />

Intitulava-se pai do povo.<br />

Contam-se, a seu respeito, as seguintes anedotas, a segunda das quais<br />

vem referida nas Memórias do Distrito Diamantino, obra que nos tem sido o<br />

mais importante subsídio para confecção <strong>de</strong>sta palestra e que <strong>de</strong>ixarão patentes<br />

essas duas feições do seu caráter.<br />

Um dia o inten<strong>de</strong>nte teve notícia <strong>de</strong> que um indivíduo guardava em sua<br />

casa, diamantes extraídos clan<strong>de</strong>stinamente.<br />

Mandou efetuar incontinênti rigo<strong>rosa</strong> busca na casa do suspeito. Quando,<br />

porém, o escrivão partia para cumprir suas or<strong>de</strong>ns, disse-lhe o inten<strong>de</strong>nte ao<br />

ouvido: “Lembrai-vos <strong>de</strong> que o <strong>de</strong>nunciado é, como vós, pai <strong>de</strong> nume<strong>rosa</strong><br />

família”. É inútil dizer qual o resultado da diligência.<br />

Câmara in<strong>de</strong>feriu o requerimento <strong>de</strong> um mineiro, que voltou à carga<br />

alegando disposições do Livro da Capa Ver<strong>de</strong> e obteve o seguinte <strong>de</strong>spacho:<br />

“Aponte-me leis que eu lhe apontarei léguas.”<br />

Introduziu e aclimou no Tijuco animais e plantas européias e criou um<br />

horto botânico, que foi elogiado pelo gran<strong>de</strong> naturalista Saint-Hilaire, quando<br />

por lá passou. Foi também o primeiro a fundir o ferro na Capitania <strong>de</strong> Minas,<br />

montando a fábrica do Morro do Gaspar Soares.<br />

Retirando-se do Tijuco, caso único, aquele inten<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>ixou sauda<strong>de</strong>s e<br />

<strong>de</strong>dicações no povo que governava.<br />

Prestou ainda em outra esfera <strong>de</strong> ação relevantíssimos serviços.<br />

Fundou na Bahia importante Instituto Agronômico.<br />

Deputado à Constituinte em 1823 e posteriormente senador do Império,<br />

morreu nesse posto aos 13 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1835.<br />

Sobre a vida <strong>de</strong>sse brasileiro notável pesa entretanto um crime, o bárbaro<br />

martírio <strong>de</strong> Isidoro, o Garimpeiro, motivado, é verda<strong>de</strong>, pelo gran<strong>de</strong> interesse<br />

que tinha em dar cumprimento às or<strong>de</strong>ns recebidas e em conhecer os contrabandistas<br />

pela <strong>de</strong>núncia <strong>de</strong> Isidoro, mas isso não o justifica, porque como disse<br />

Santeuil: “Quando vai a penalida<strong>de</strong> além do <strong>de</strong>lito e sai a justiça fora das raias<br />

a que a levam as necessida<strong>de</strong>s públicas e as normas morais, não há <strong>de</strong>fesa<br />

possível nem atenuações ou <strong>de</strong>sculpas”.<br />

Tratemos agora da fundação da Imprensa no Tijuco, elevado a paróquia,<br />

em 1817.<br />

É um acontecimento notável porque todo o material tipográfico – prelo,<br />

tipos, etc., foi produzido no Tijuco por dois jovens que jamais haviam


Tijuco – lendas e tradições ____________________________________________________ Edgar Matta Machado 193<br />

conhecido um prelo e que, diz o dr. Felício, “da Imprensa só sabiam que ela<br />

fulmina os déspotas.”<br />

Cumpre acrescentar que o Tijuco foi o terceiro lugar <strong>de</strong> Minas em que<br />

apareceu o portentoso invento <strong>de</strong> Gutenberg.<br />

O primeiro periódico que se publicou ali foi o Eco do Serro, em 1828.<br />

Seguiram-se posteriormente muitos outros periódicos, sendo a Diamantina,<br />

<strong>de</strong>pois da gloriosa Velha Capital, a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Minas que mais jornais tem<br />

dado à luz.<br />

Pela lei <strong>de</strong> 13 <strong>de</strong> outubro foi o Tijuco elevado à vila, com o nome <strong>de</strong> Vila<br />

Diamantina; à categoria <strong>de</strong> cida<strong>de</strong> foi erguida, sete anos <strong>de</strong>pois, pela lei <strong>de</strong> 6 <strong>de</strong><br />

março <strong>de</strong> 1838.<br />

Daí por diante começa já a história da Diamantina contemporânea, que<br />

não entra na esfera da nossa palestra.<br />

Eis aí, meus senhores, em um ligeiro esboço e sem o colorido forte e<br />

sugestivo que o assunto pedia, a narração das principais lendas e tradições que<br />

possui o Tijuco.<br />

Creio ter-vos dado uma noção, ainda que incompleta, do sentimento e<br />

caráter do povo diamantinense, assim como provado que aquela terra tem sido<br />

o abrigo <strong>de</strong> todas as idéias liberais, com uma peregrinação <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início do<br />

Tijuco até a Aurora dos tempos mo<strong>de</strong>rnos.<br />

Parodiando um escritor francês, direi:<br />

Se empilhásseis todas as lágrimas vertidas pelo povo diamantinense em<br />

prol da Liberda<strong>de</strong>, elas se cristalizariam em monumentos superiores, mais altos<br />

que as pirâmi<strong>de</strong>s do Egito!<br />

O gran<strong>de</strong> edifício da Liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma Nação repousa fatalmente sobre a<br />

opressão e a tirania exercidas contra o povo em tempos mais ou menos afastados.<br />

É por isso, senhores, que os diamantinenses guardam sempre as avançadas<br />

<strong>de</strong> todos os empreendimentos liberais, on<strong>de</strong> os po<strong>de</strong>reis divisar nos mais<br />

arriscados postos do combate.<br />

Outro fato característico, apanágio dos povos oprimidos, é essa união<br />

que se nota entre seus filhos, esse carinho pela Cida<strong>de</strong> Natal, tão bem sentido<br />

nos versos <strong>de</strong> Aureliano Lessa:<br />

Vês lá na encosta do monte,<br />

Mil casas em grupozinhos,<br />

Alvas, como cor<strong>de</strong>irinhos<br />

Que se lavaram na fonte ?!...


194 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Não vês <strong>de</strong>itado <strong>de</strong>fronte<br />

Qual dragão petrificado<br />

Aquele serro curvado<br />

Que mura a Cida<strong>de</strong>zinha,<br />

Pois essa cida<strong>de</strong> é minha<br />

É meu berço idolatrado!...<br />

Ali meus olhos se abriram<br />

À Luz matinal da vida,<br />

Lá primeiro à Mãe querida<br />

Meus lábios <strong>de</strong> Amor sorriram...<br />

Lá seu nome proferiram<br />

Antes do nome <strong>de</strong> Deus !...<br />

Lá tentei os passos meus<br />

Da vida na estrada ru<strong>de</strong><br />

Lá aprendi a Virtu<strong>de</strong><br />

Minha Mãe, dos lábios teus.<br />

Olha como ela se inclina<br />

Pela esmeralda do monte<br />

Molhando os pés numa fonte<br />

De água fresca e cristalina.<br />

Olha como ela domina<br />

Esses serros alcantis<br />

Com seus ares senhoris<br />

Com seu cofre <strong>de</strong> Diamantes<br />

No meio <strong>de</strong> seus Amantes<br />

Distribuindo rubis.<br />

Salve Atenas tão risonha<br />

Da ver<strong>de</strong> e saudosa Minas<br />

Rainha <strong>de</strong>ssas colinas<br />

Que banha o Jequitinhonha<br />

Teu vassalo; ele nem sonha<br />

Quebrar-te o jugo real...<br />

E vem, a um leve sinal,<br />

Com seus Rubis, com seu Oiro<br />

Derramar no teu tesoiro<br />

O seu tributo anual.


Tijuco – lendas e tradições ____________________________________________________ Edgar Matta Machado 195<br />

Feliz quem no seio teu<br />

O sopro da Providência<br />

Faz brotar a Inteligência,<br />

Pérola fina do Céu,<br />

Como da Noite no véu<br />

Faz mil pérolas fulgir<br />

Tu tens ó rival <strong>de</strong> Ofir,<br />

Outras jóias, outros brilhos<br />

Teu tesoiro são teus filhos,<br />

Tua glória é seu porvir.<br />

Seu Porvir, sim, que amanhece<br />

Lá nos longes do Futuro,<br />

Não o meu, que um Fado escuro<br />

De negros fios só tece...<br />

Pátria! tudo me falece<br />

Para erguer teu esplendor<br />

Mas do pobre trovador<br />

Terás o óbolo pobre<br />

No peito um Coração nobre<br />

Na lira um canto <strong>de</strong> Amor!...<br />

Referências bibliográficas<br />

Festas e diversões. Minas Gerais. Órgão Oficial dos Po<strong>de</strong>res do Estado, Minas,<br />

ano IX, n o 211, 13 ago. 1900. p. 4, c. 1-2.<br />

Festas e diversões. Minas Gerais. Órgão Oficial dos Po<strong>de</strong>res do Estado, Minas,<br />

ano IX, n o 248, quinta-feira, 20 set. 1900. p. 13, c. 4 e p. 14, c. 1<br />

Matta, Edgard. Tijuco – lendas e tradições. In: Festas e diversões. Minas<br />

Gerais. Órgão Oficial dos Po<strong>de</strong>res do Estado, Minas, ano IX, n o 249, 21 set.<br />

1900. p. 10, c. 3-4; p. 11, c. 1-3. n o 250, 22 set. 1900. p. 3, c. 2-4; p. 4, c. 1-<br />

2. n o 251, 23 set. 1900. p. 3, c. 3-4; p. 4, c. 1. n o 252, 24 set. 1900. p. 3, c. 2-<br />

4; p. 4, c. 1-2.<br />

Festas e diversões. Minas Gerais. Órgão Oficial dos Po<strong>de</strong>res do Estado, Minas,<br />

ano IX, n o 253, 25 set. 1900. p. 3, c. 4 e p. 4, c. 1.


196 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS


Teatro _______________________________________________<br />

ALBEE:<br />

HISTÓRIA DO ZOOLÓGICO<br />

Jota Dangelo*<br />

As peças <strong>de</strong> um ato, assim como os monólogos, com raras exceções,<br />

nunca chamaram muito a atenção dos encenadores. Do mesmo modo, no final<br />

da década <strong>de</strong> 50 do século passado, raramente era possível assistir a um<br />

espetáculo <strong>de</strong> teatro com apenas dois personagens. E foi justamente em 59 que<br />

Edward Albee escreveu The zoo story, uma pequena obra-prima, com apenas<br />

dois personagens: Jerry, um jovem <strong>de</strong>sajustado do mundo, vítima <strong>de</strong> uma<br />

socieda<strong>de</strong> que se construiu com os olhos voltados para o lucro a qualquer<br />

preço, e Peter, o representante <strong>de</strong>sta mesma socieda<strong>de</strong> conformada, estável,<br />

egoísta e sem qualquer vestígio <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> humana. Talvez, por esta<br />

razão mesma, a peça não estreou nos Estados Unidos, pátria <strong>de</strong> seu autor, mas<br />

na Alemanha, em Berlim, num programa duplo: a outra peça, além <strong>de</strong> Zoo, era<br />

Krapp’s last tape, <strong>de</strong> Samuel Beckett. O sucesso <strong>de</strong> Albee foi imediato e <strong>de</strong><br />

reconhecimento mundial. Nos Estados Unidos, logo apareceram os críticos que<br />

o colocaram como sucessor <strong>de</strong> Arthur Miller, O´Neill e Tennesse Williams,<br />

embora sua dramaturgia estivesse mais próxima <strong>de</strong> Harold Pinter e do próprio<br />

Beckett.<br />

A história do zoológico narra o encontro casual <strong>de</strong> Jerry e Peter num<br />

local qualquer do Central Parque <strong>de</strong> New York. Peter está lendo o seu jornal<br />

num dos bancos do parque e Jerry está vindo, segundo ele, do zoológico. A<br />

intenção <strong>de</strong> Albee, neste diálogo, difícil <strong>de</strong> ser estabelecido, entre um<br />

* Diretor teatral, ator, professor universitário aposentado, diretor do BDMG Cultural.


198 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

representante do sistema e alguém contrário ao sistema, é, <strong>de</strong> acordo com o<br />

dramaturgo, “examinar o cenário americano, atacar a substituição <strong>de</strong> valores<br />

verda<strong>de</strong>iros da socieda<strong>de</strong> norte-americana por valores artificiais, con<strong>de</strong>nar a<br />

complacência, a cruelda<strong>de</strong>, a emasculação e a vacuida<strong>de</strong>, assumir uma posição<br />

contra a ficção que reveste tudo nesta socieda<strong>de</strong>”. Esta é, aliás, a tônica <strong>de</strong><br />

todos os seus outros trabalhos posteriores. Embora eles possam, aparentemente,<br />

ser realistas, um certo surrealismo perva<strong>de</strong> sua dramaturgia. Vencedor <strong>de</strong> três<br />

prêmios Pulitzer, em 1966 com “A <strong>de</strong>licate balance”, em 1975 com<br />

“Seascape” e em 1994 com “Three Tall Women”, Albee assumiu. Des<strong>de</strong><br />

sua primeira peça teatral, lugar <strong>de</strong> relevo no cenário literário dos Estados<br />

Unidos.<br />

Isolamento em “Zoo Story” transpira em cada linha do diálogo e é predicado<br />

dominante <strong>de</strong> seus personagens. Mas Peter é inconsciente <strong>de</strong> sua solidão e<br />

Jerry tem a luci<strong>de</strong>z necessária para lutar contra a sua. Na é suficiente afirmar<br />

que o mundo é um zoológico on<strong>de</strong> gra<strong>de</strong>s separam os homens: é preciso ir além<br />

e <strong>de</strong>scobrir que homens como Peter estão separados também <strong>de</strong> sua natureza<br />

animal. É por esta razão que Peter “possui uma invejável inocência”. Nunca lhe<br />

ocorreu que seus gatos po<strong>de</strong>riam <strong>de</strong>vorar seus periquitos... Ele não é apenas a<br />

versão mo<strong>de</strong>rada <strong>de</strong> “Everyman” em termos <strong>de</strong> classe média; é também o<br />

estereotipo burguês só i<strong>de</strong>ntificado pela carteira <strong>de</strong> motorista, o homem<br />

estatístico, o “Life-and-Time-man”, a média aritmética do comportamento<br />

condicionado, com esposa, duas filhas, dois gatos, dois periquitos, duas<br />

televisões, o emprego certo, o gosto literário “consi<strong>de</strong>rado razoável”, o<br />

apartamento no lado “aconselhável” do parque. Enfim, Peter representa tudo<br />

que Albee parece odiar: a letargia e a “gentileza” da socieda<strong>de</strong> americana, on<strong>de</strong><br />

a expressão <strong>de</strong> uma emoção é mais importante que a emoção em si, a forma<br />

prioritária sobre o conteúdo. E neste ponto o criticismo social <strong>de</strong> Albee parece<br />

<strong>de</strong>rivar <strong>de</strong> seus ódios particulares: trata-se <strong>de</strong> uma revolta pessoal, mais que <strong>de</strong><br />

uma consciência social, embora seja difícil separar as duas. No prefácio <strong>de</strong><br />

“The american dream” ele afirma que é seu <strong>de</strong>sejo “ofen<strong>de</strong>r, tanto quanto<br />

divertir”, acrescentando que “toda obra honesta é pessoal, um atestado individual<br />

<strong>de</strong> dor ou <strong>de</strong> prazer” e que espera que a sua transcenda estes limites e se<br />

misture com a angústia <strong>de</strong> todos nós.<br />

Bens materiais e idéias pré-fabricadas são as substâncias que Peter toma<br />

emprestadas à organização social americana para construir as gra<strong>de</strong>s atrás das<br />

quais se isola <strong>de</strong> seus semelhantes e se distancia <strong>de</strong> si próprio. No seu domínio<br />

particular a entrada é proibida: ele não permite nenhum diálogo que escape ao<br />

convencionalismo superficial do bate-papo mais trivial. Dispõe-se a escutar


Albee: História do Zoológico _________________________________________________________ Jota Dangelo 199<br />

Jerry porque não seria educado dar-lhe as costas e porque, para ser coerente<br />

com a máscara que usa, falta-lhe coragem para dizer, simplesmente, que não<br />

está interessado nos problemas particulares <strong>de</strong> quem quer que seja. Mas quando<br />

Jerry tenta forçar a entrada e estabelecer um contato real indo um pouco além<br />

<strong>de</strong> perguntas inconseqüentes, Peter <strong>de</strong>svia o assunto, eventualmente com<br />

brutalida<strong>de</strong>, temeroso <strong>de</strong> que seu interlocutor possa ter <strong>de</strong>scoberto um ponto<br />

fraco na sua armadura. Inci<strong>de</strong>ntalmente, são estas reações ocasionais que<br />

garantem a Jerry que ele encontrou o homem e o caminho certos para consumar<br />

o seu plano:<br />

Jerry – E vocês não vão mais ter filhos?<br />

Peter – (um pouco distante). Não, não vamos mais (volta-se, preocupado)<br />

– Por que você perguntou isso? Como é que você soube disto?<br />

Jerry – A sua maneira <strong>de</strong> cruzar as pernas, talvez; alguma coisa na sua<br />

voz. Ou talvez eu esteja só adivinhando. É a sua mulher?<br />

Peter – (furioso) Não é da sua conta!<br />

O que mais surpreen<strong>de</strong> e perturba Peter é que Jerry não se enquadra em<br />

nenhum dos esquemas que ele leu nos manuais <strong>de</strong> “Psicologia para todos”<br />

distribuídos pelo “Club Room” do qual ele faz parte. A lógica falha, a anedota<br />

não funciona, as premissas não levam inevitavelmente a uma conclusão única<br />

e, sobre tudo, Peter <strong>de</strong>scobre que Jerry é o primeiro americano que ele conhece<br />

que não faz uso do eufemismo.<br />

Peter – Oh, você mora em Greenwhich Village<br />

Jerry – Não, não moro...<br />

Peter – (quase <strong>de</strong> mau humor) Oh, eu pensei que você morasse no<br />

Village.<br />

Jerry – O que você está tentando fazer? Dar sentido às coisas, or<strong>de</strong>nálas?<br />

Como processo <strong>de</strong> auto<strong>de</strong>fesa Peter obriga-se a construir um universo<br />

que não proporciona gran<strong>de</strong>s prazeres, mas também evita maiores sofrimentos:<br />

uma espécie <strong>de</strong> caricato estoicismo; mas enquanto o autêntico situa o homem<br />

acima do prazer e da dor, esta corrompida versão burguesa protege, anestesiando-o<br />

com a mediocrida<strong>de</strong> do lugar comum.<br />

Por outro lado, Jerry é o animal consciente <strong>de</strong> sua natureza que luta<br />

contra a absurda separação. Em parte, sua solidão lhe é imposta, mas gran<strong>de</strong><br />

parcela nasce <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>terminação em <strong>de</strong>scobrir a natureza essencial da<br />

condição humana, da sua obsessão pela verda<strong>de</strong>. Seu reflexo imediato é<br />

eliminar as relações obvias e estabelecer laços mais complexos e mais puros.<br />

Assim, Jerry possui coisas ou que são essenciais à sua manutenção física


200 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

(1 faca, 2 garfos, 2 colheres, 3 pratos, 1 xícara, 1 pires, 1 copo) ou que mantém<br />

<strong>de</strong>sperta sua consciência <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>: molduras sem retratos, que simbolizam a<br />

obvieda<strong>de</strong> das relações familiares e sentimentaloi<strong>de</strong>s; um baralho <strong>de</strong> cartas<br />

pornográficas, que faz presente a diferença entre amor e <strong>de</strong>sejo sexual; uma<br />

caixa sem fechadura (que lembra sua vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> abrir-se para o mundo) com<br />

um conteúdo contraditório representado pela inutilida<strong>de</strong> das cartas convencionais<br />

e pela silenciosa, mas infinita pureza <strong>de</strong> pedras apanhadas na praia num<br />

tempo <strong>de</strong> pureza infinita como o da infância. É <strong>de</strong>ste modo que Albee utiliza o<br />

simbolismo. É interessante notar que, tendo falhado suas relações familiares e<br />

suas experiências hetero e homossexuais, Jerry recusa-se a sentimentalizá-las e<br />

nem procura justificar-se pela cômoda invocação <strong>de</strong> uma infância infeliz. Ele se<br />

conhece <strong>de</strong>mais e sabe que a solidão existe a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> tudo; que o contato<br />

po<strong>de</strong> ser raramente conseguido, é sempre doloroso e difícil, e não há nenhuma<br />

segurança quanto à sua durabilida<strong>de</strong>. Sobre estas dificulda<strong>de</strong>s, sobre esta<br />

insegurança, é que ele disserta na sua História <strong>de</strong> Jerry e o cachorro. As peças<br />

<strong>de</strong> Albee têm sempre uma “história” narrada por um dos personagens. Em<br />

Who’s afraid of Virginia Wolff ela é a “novela” <strong>de</strong> George; em Bessie Smith são<br />

os longos monólogos <strong>de</strong> Jack; em American Dream é a simbólica e bizarra<br />

narrativa <strong>de</strong> Grandma. Em Zoo Story ela trata, em resumo, das tentativas <strong>de</strong><br />

contato <strong>de</strong> Jerry com o cachorro que pertence à proprietária do apartamento<br />

on<strong>de</strong> ele vive. O cão, naturalmente é o mitológico Cerberus guardando as<br />

portas <strong>de</strong> um inferno mais mo<strong>de</strong>rno on<strong>de</strong> <strong>de</strong>finham os recusados pela<br />

socieda<strong>de</strong>. Mas o simbolismo é mais complexo: Jerry só é atacado pelo cão<br />

quando entra, nunca quando sai. O cachorro tem o seu domínio, como Peter<br />

tem o seu universo particular <strong>de</strong> preconceitos e lugar-comum. Mais tar<strong>de</strong>, Peter<br />

faria do banco do parque parte do seu universo. Tanto ele como o cachorro<br />

estão dispostos a impedir qualquer invasão dos seus territórios. Na verda<strong>de</strong>,<br />

Jerry reconhece no cão as mesmas qualificações que ele observa nos animais <strong>de</strong><br />

sua própria espécie: ódio, falsida<strong>de</strong>, exploração, <strong>de</strong>sconfiança, traição. Para<br />

estabelecer um contato é necessário atingir o cerne animal on<strong>de</strong> as emoções não<br />

po<strong>de</strong>m ser distinguidas com clareza, on<strong>de</strong> prazer e dor se misturam, on<strong>de</strong><br />

bonda<strong>de</strong> e cruelda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ter limites precisos. Duas dúzias <strong>de</strong> “hamburgers”<br />

não compram a simpatia da fera: é preciso também envenená-los.<br />

E mesmo assim o entendimento, a comunicação, são momentâneos, nada<br />

po<strong>de</strong> assegurar sua permanência: “o que é ganho é perdido”. Após o envenenamento<br />

fracassado, as relações <strong>de</strong> Jerry com o cão atingem apenas um novo<br />

estágio, o mesmo estágio que George e Martha atingem no final <strong>de</strong> Who’s<br />

afraid: trata-se <strong>de</strong> um compromisso, o <strong>de</strong> não amar nem ferir, porque nenhum


Albee: História do Zoológico _________________________________________________________ Jota Dangelo 201<br />

dos dois tenta alcançar o outro. Mas também há, implicitamente, a afirmação<br />

tácita <strong>de</strong> que, pelo menos, é possível conviver a mesma solidão.<br />

Para transmitir esta experiência a Peter, Jerry usa os mesmos processos<br />

que utilizou com o cachorro. Percebendo que Peter não po<strong>de</strong> ser alcançado por<br />

palavras, que cada tentativa para invadir seu território apenas serve ao levantamento<br />

<strong>de</strong> novas barreiras, Jerry tenta atingi-lo abaixo do nível consciente.<br />

Cócega é uma experiência mista <strong>de</strong> prazer-dor: Jerry começa fazendo cócegas<br />

em Peter. Esta cena marca uma segunda fase em Zoo Story. Antes <strong>de</strong>la toda<br />

tentativa <strong>de</strong> contato é exclusivamente racional. O contato físico que ela implica<br />

<strong>de</strong>monstra a natureza animal das cenas subseqüentes: o caminho para a violência<br />

foi aberto.<br />

Por um momento Peter confun<strong>de</strong> os seus critérios e valores: sob o efeito<br />

das cócegas, gatos, periquitos, filhos e esposa se misturam porque representam<br />

apenas objetos que disfarçam o vazio e a alienação <strong>de</strong> sua existência. É apenas<br />

necessário continuar o jogo, <strong>de</strong>spertar a potencialida<strong>de</strong> animal <strong>de</strong> Peter, em<br />

toda a sua força: Jerry “conquista” o banco; Peter revida a esta invasão <strong>de</strong> seu<br />

“território” com a mesma ferocida<strong>de</strong> do cão e termina como cúmplice no<br />

suicídio <strong>de</strong> Jerry. Tecnicamente, a “progressão” em Zoo Story <strong>de</strong>riva <strong>de</strong> uma<br />

contínua revelação do abismo que separa os dois personagens. O ato <strong>de</strong><br />

violência fecha o abismo e estabelece um contato cuja implicação moral é<br />

obvia: um homem per<strong>de</strong> a vida, o outro começa a ver a sua, pois é lícito supor<br />

que Peter jamais voltará a existir no mesmo nível superficial em que sempre<br />

existiu.<br />

A responsabilida<strong>de</strong> que lhe cabe na morte <strong>de</strong> Jerry garante a durabilida<strong>de</strong><br />

possível do contato efetuado. Jerry po<strong>de</strong>ria ter fechado os olhos com o mesmo<br />

grito <strong>de</strong> Calígula, <strong>de</strong> Camus, “eu ainda estou vivo”.<br />

The Zoo Story tem um grave <strong>de</strong>feito, a meu ver. Seus cinco minutos<br />

finais são <strong>de</strong>snecessariamente, melodramáticos: as palavras finais <strong>de</strong> Jerry,<br />

além <strong>de</strong> injustificavelmente sentimentais, são obviamente explicáveis, quando<br />

na verda<strong>de</strong>, não há mais nada a explicar. Parece-me que Albee se sentiu na<br />

obrigação <strong>de</strong> fazer uma síntese ou fornecer uma pista <strong>de</strong>finitiva ao espectador<br />

menos avisado.<br />

O gran<strong>de</strong> mérito <strong>de</strong> Albee está na técnica que ele usa para fundir realismo<br />

e simbolismo, fazendo do segundo parte atuante da própria construção<br />

dramática e assim esten<strong>de</strong>ndo e aprofundando a idéia expressa pelo primeiro. O<br />

drama simbolista <strong>de</strong> O’Neill, por exemplo, cuja influência em toda a dramaturgia<br />

ianque posterior é inegável, chama a atenção para o símbolo como<br />

símbolo e não sobre a estrutura dramática como um todo, que merece a atenção


202 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

do crítico, do dramaturgo e <strong>de</strong> todo indivíduo preocupado com uma possível<br />

renovação do drama.<br />

The Zoo Story conta a história <strong>de</strong> um homem consciente <strong>de</strong> sua condição<br />

bivalente e, por esta razão mesma, absurda, cônscio <strong>de</strong> suas limitações e<br />

prisioneiro <strong>de</strong> si mesmo. Nestas circunstâncias, o indivíduo é forçado a provar<br />

suas relações com todas as coisas e todas as pessoas; provando-as ele se <strong>de</strong>fine,<br />

revela sua humanida<strong>de</strong> e transcen<strong>de</strong> seus próprios limites, estabelecendo uma<br />

comunhão com a natureza: isto só é possível ao animal que carrega <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si<br />

uma centelha <strong>de</strong> divinda<strong>de</strong>. Jerry <strong>de</strong>scobre, afinal, que só é possível <strong>de</strong>struir as<br />

muralhas que o isolam dos seus semelhantes por um ato <strong>de</strong> amor, um sacrifício<br />

que necessariamente, implica uma violência e, obrigatoriamente, liberta-o ao<br />

mesmo tempo que o <strong>de</strong>strói. Em outras palavras, a alusão é bíblica, o novo<br />

Cristo volta ao Calvário, tradicionais símbolos cristãos são revividos. Não é<br />

surpreen<strong>de</strong>nte que no texto apareçam alocuções bíblicas como “Sob be it”, “it<br />

came to pass” e que um dos personagens se chame Peter, isto é, Pedro.<br />

Analogias indiscutíveis po<strong>de</strong>m ser encontradas no texto.<br />

Em última análise, The Zoo Story é uma Moralida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna e a<br />

História <strong>de</strong> Jerry e o cachorro, uma parábola. A primeira peça <strong>de</strong> Albee é também<br />

uma obra <strong>de</strong>finitiva na dramaturgia norte-americana.


Cinema _______________________________________________<br />

GUIMARÃES ROSA E O CINEMA<br />

Paulo Augusto Gomes*<br />

É sabido que Guimarães Rosa gostava muito <strong>de</strong> cinema, era fascinado<br />

pelas imagens em movimento. Mas não apenas por elas: em sua narrativa<br />

inovadora, chegou mesmo a utilizar ferramentas cinematográficas na elaboração<br />

<strong>de</strong> seus textos. É o que se observa na novela “Cara <strong>de</strong> Bronze”, que integra<br />

o monumental Corpo <strong>de</strong> Baile em seu segundo volume (“No Urubuquaquá, no<br />

Pinhém”), em que parte do texto é escrita sob a forma <strong>de</strong> roteiro cinematográfico<br />

com o qual, vê-se, o escritor era intimamente familiarizado.<br />

Naturalmente um indivíduo vaidoso, ficava feliz a cada vez que uma<br />

obra sua era transposta para o mundo das imagens. Valho-me do testemunho <strong>de</strong><br />

Geraldo Santos Pereira e da correspondência que ele me mostrou, na qual um<br />

entusiasmado Rosa aposta na adaptação cinematográfica que Geraldo e seu<br />

irmão gêmeo Renato fariam <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas.<br />

No entanto, o cinema quase sempre tratou mal a obra rosiana. Dos quase<br />

<strong>de</strong>z filmes feitos a partir dos textos do escritor, a gran<strong>de</strong> maioria é <strong>de</strong> uma<br />

<strong>de</strong>soladora incompetência. Muitos fatores contribuíram para isso: em primeiro<br />

lugar, o <strong>de</strong>snível qualitativo entre Rosa e seu gênio, <strong>de</strong> um lado, e a pobreza<br />

intelectual <strong>de</strong> quase todos os diretores e roteiristas que se aventuraram pelos<br />

sertões do escritor.<br />

Para se chegar ao universo rosiano, é preciso navegar com muito cuidado<br />

pelas trilhas que ele abriu. Esta é a gran<strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>. Inventor <strong>de</strong> uma<br />

linguagem própria, única, sua, Guimarães Rosa como que protege seu mundo<br />

<strong>de</strong> invasões estrangeiras. As palavras que emprega parecem, todas, ter raízes<br />

* Cineasta, membro do Centro <strong>de</strong> Pesquisadores do Cinema Brasileiro.


204 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

fincadas no sertão – e em boa parte acontece isso – mas são também produto do<br />

elevado conhecimento lingüístico que ele tinha, falando, escrevendo, dominando<br />

um sem-número <strong>de</strong> idiomas. Em rigor, ninguém fala daquela maneira em<br />

lugar nenhum do mundo, muito menos em qualquer parte dos Gerais. O que<br />

Rosa fez em seus livros equivale ao que Villa-Lobos criou com suas cirandas e<br />

choros: aproveitou temas folclóricos e canções populares e <strong>de</strong>u-lhes ar <strong>de</strong><br />

erudição. A forma popular está lá – mas trabalhada, acrescida do talento do<br />

autor.<br />

Qualquer diretor <strong>de</strong> cinema que se disponha a adaptar um texto <strong>de</strong> Rosa<br />

terá, necessariamente, que começar por traí-lo; do contrário, será traído por ele.<br />

A forma <strong>de</strong> qualquer categoria <strong>de</strong> arte pertence apenas àquele tipo <strong>de</strong> arte. É<br />

tarefa das mais complexas transformar palavras em dança, escultura ou cinema;<br />

ainda mais se essas palavras são revolucionárias. Sobra, assim, ao cinema –<br />

como a qualquer outro tipo <strong>de</strong> arte narrativa – o chamado conteúdo, a história.<br />

As histórias <strong>de</strong> Guimarães Rosa são belíssimas, mas em muitas <strong>de</strong>las não<br />

acontece rigo<strong>rosa</strong>mente nada em termos <strong>de</strong> ação, centradas que são em um<br />

mundo interior, in<strong>de</strong>ne a manifestações físicas. Tome-se como exemplo a<br />

maravilhosa “Campo Geral”, em que o menino Miguilim passa a ver o mundo<br />

<strong>de</strong>pois que começa a usar um par <strong>de</strong> óculos, ou então o conto “Um Moço Muito<br />

Branco”, no qual toda a trama gira em torno da possível presença <strong>de</strong> um<br />

alienígena em pleno sertão. Ainda assim, é possível transformar esses textos em<br />

imagens, como já <strong>de</strong>monstrou Carlos Alberto Prates Correia, ao fazer <strong>de</strong><br />

“Sorôco, sua Mãe, sua Filha” o trecho final <strong>de</strong> seu “Cabaré Mineiro”.<br />

A melhor maneira <strong>de</strong> se manter fiel a Guimarães Rosa é tentar recriar seu<br />

mundo. Acreditava que o sertão está em toda parte e não hesitava em apontar<br />

sertanejos europeus e <strong>de</strong> outras latitu<strong>de</strong>s. O gran<strong>de</strong> sertão é isso: o mundo e<br />

suas diversida<strong>de</strong>s. Embora fizesse uso <strong>de</strong> linguagem própria, não se <strong>de</strong>scuidava,<br />

um momento que fosse, da continuida<strong>de</strong> narrativa. Ele mesmo dizia que<br />

tinha <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si milhares <strong>de</strong> estórias e que precisava viver o tempo suficiente<br />

para escrevê-las. A narrativa rosiana nunca é solta, fragmentada, embora<br />

sempre composta por episódios com vida in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, como se observa no<br />

Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas que, a grosso modo, po<strong>de</strong> ser transformado em um<br />

novelo <strong>de</strong> novelas, mas que adquire sua verda<strong>de</strong>ira dimensão quando essas<br />

mesmas novelas são interligadas umas às outras e amarradas em <strong>de</strong>terminada<br />

or<strong>de</strong>m, a que o autor concebeu.<br />

A verda<strong>de</strong>ira or<strong>de</strong>m dos escritos <strong>de</strong> Rosa é ditada pela própria vida.<br />

Assim, não faz sentido imaginar que a arte revolucionária do escritor encontre<br />

melhor forma em uma adaptação livre. O enca<strong>de</strong>amento é parte integrante,


Guimarães Rosa e o cinema ___________________________________________________ Paulo Augusto Gomes 205<br />

fundamental, do texto rosiano. Sob este aspecto, o cinema narrativo é um<br />

veículo apropriado para as estórias do escritor. Não é por outro motivo, aliás,<br />

que mais <strong>de</strong> um cineasta já tentou reunir muitos contos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes em um<br />

único filme, a exemplo <strong>de</strong> Nélson Pereira dos Santos em A Terceira Margem<br />

do Rio e Pedro Bial em Outras Estórias.<br />

Não se po<strong>de</strong> dizer que os resultados finais tenham sido satisfatórios:<br />

enca<strong>de</strong>ar não é apenas juntar estórias, mas dar-lhes organicida<strong>de</strong>. Mais uma<br />

vez, o exemplo é Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, exato e preciso em seu <strong>de</strong>senrolar.<br />

Quanto ao autor cinematográfico, <strong>de</strong>ve ter ele certa audácia para inverter<br />

e mesmo subverter a narrativa rosiana. Mas é preciso cautela: quando os irmãos<br />

Santos Pereira <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m revelar a condição feminina <strong>de</strong> Diadorim no meio do<br />

filme, cometem um equívoco terrível e banalizam uma situação que, no romance,<br />

é momento crucial: é o momento em que Riobaldo tem a revelação do<br />

mistério e a explicação do tormento que vivia, quando vê o corpo <strong>de</strong> sua amada<br />

estirado sobre a mesa, próximo ao final do livro.<br />

Muitas das adaptações ao cinema <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> Guimarães Rosa nem<br />

sequer merecem referência. Mas algumas são dignas <strong>de</strong> menção, a começar<br />

pela primeira <strong>de</strong>las, A Hora e Vez <strong>de</strong> Augusto Matraga <strong>de</strong> Roberto Santos,<br />

realizada em 1965, que contou em sua equipe técnica com alguns cineastas<br />

mineiros, então em início <strong>de</strong> carreira. Santos vinha <strong>de</strong> uma bem sucedida<br />

experiência na linha do neo-realismo com O Gran<strong>de</strong> Momento, filmado em São<br />

Paulo, sua terra natal, com Gianfrancesco Guarnieri. Para seu segundo filme,<br />

escolheu o último dos contos <strong>de</strong> Sagarana, sobre o senhor <strong>de</strong> terras e homens<br />

que, após espancado e humilhado por seus adversários, reconstrói sua vida em<br />

outro patamar até reconquistar, na morte, sua condição <strong>de</strong> homem.<br />

Sagarana, como primeira obra, ainda não traz em si toda a complexida<strong>de</strong><br />

que se observaria posteriormente em textos como Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas ou<br />

Meu Tio o Iauaretê. Isso, evi<strong>de</strong>ntemente, facilitou a adaptação, permitindo que<br />

Roberto Santos lhe acrescentasse uma série <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes que se somaram<br />

perfeitamente ao universo rosiano. Como exemplo, está a excepcional trilha<br />

sonora <strong>de</strong> Geraldo Vandré, composta por canções que, embora com apelo<br />

popular, não são exatamente folclóricas. Nunca mais o compositor sequer<br />

chegou perto do resultado obtido em função do filme, com músicas como<br />

Cantiga Brava e Réquiem para Matraga. Cabe também lembrar um elenco<br />

homogêneo, com resultados <strong>de</strong> on<strong>de</strong> talvez não fosse lícito esperar muita coisa.<br />

Leonardo Villar, ator vindo do teatro paulista, compõe um Augusto Matraga<br />

irretocável, talvez superado apenas pelo nor<strong>de</strong>stino Jofre Soares, perfeito como<br />

“seu” Joãozinho Bem-Bem. O roteiro <strong>de</strong> Santos é sóbrio e segue a narrativa <strong>de</strong>


206 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Rosa, embora haja momentos em que não consegue – nem po<strong>de</strong> – igualar a<br />

contenção do escritor, a exemplo do antológico final “Depois, morreu”.<br />

Cabaré Mineiro não é baseado em Guimarães Rosa. Sua narrativa,<br />

porém, aproxima-se da maneira rosiana <strong>de</strong> ver o mundo, através <strong>de</strong> episódios<br />

aparentemente soltos que compõem um painel <strong>de</strong> riqueza impressionante.<br />

Nesse mosaico, a pedra final é exatamente “Sorôco, sua Mãe, sua Filha”, que<br />

Carlos Alberto Prates Correia foi buscar nas Primeiras Estórias. O personagem<br />

principal <strong>de</strong> Cabaré, Paixão, o aventureiro e jogador vivido por Nélson Dantas,<br />

assiste ao momento em que o <strong>de</strong>solado Soroco coloca sua mãe e sua filha no<br />

trem-prisão que vai levá-las ao hospício <strong>de</strong> Barbacena, ao som <strong>de</strong> uma<br />

marujada montesclarense, para lá terminarem seus dias internadas. Carlos<br />

Alberto integra seu mundo ao <strong>de</strong> Guimarães Rosa (afinal, Montes Claros é um<br />

dos marcos do sertão), presta-lhe respeitosa e belíssima homenagem e consegue<br />

momentos do melhor cinema. O resultado ficou tão bom que ele mesmo não<br />

logrou repetir a façanha em Noites do Sertão, transposição para o cinema <strong>de</strong><br />

“Buriti”, uma das novelas do Corpo <strong>de</strong> Baile. O que, em Rosa, é somente<br />

sugestão – a relação lésbica entre Lalinha e Maria da Glória – ganha tonalida<strong>de</strong>s<br />

mais claras no filme e per<strong>de</strong> força. A isso, soma-se um equívoco lamentável<br />

na escolha <strong>de</strong> vários nomes do elenco, no qual atores <strong>de</strong> televisão não<br />

conseguem sequer enten<strong>de</strong>r as motivações e a maneira <strong>de</strong> ser <strong>de</strong> pessoas tão<br />

afastadas da cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>.<br />

No entanto, filmes que em nenhum momento se baseiam em textos <strong>de</strong><br />

Guimarães Rosa estão entre os mais rosianos já produzidos pelo cinema. Isso é<br />

fácil <strong>de</strong> explicar. Poucos escritores exerce(ra)m influência tão forte sobre<br />

criadores <strong>de</strong> imagens como Guimarães Rosa – ele, certamente o maior <strong>de</strong> todos<br />

esses criadores. A beleza e a poesia <strong>de</strong> suas narrativas sempre fascinaram<br />

autores <strong>de</strong> gerações diversas e, mesmo que alguns, seja por que motivo for, não<br />

tenham podido utilizar seus contos ou novelas, certamente viram-se impregnados<br />

pelo sertão e os seres que nele habitam. Ao filmar essas histórias<br />

originais, a sombra po<strong>de</strong><strong>rosa</strong> <strong>de</strong> Rosa se mostra onipresente.<br />

É o caso <strong>de</strong> O Homem do Corpo Fechado, primeiro longa-metragem<br />

dirigido por Schubert Magalhães em 1972. Toda a ação se passa nos lugares<br />

que o escritor conheceu e <strong>de</strong>screveu muito bem, mas argumento, roteiro e<br />

diálogos são <strong>de</strong> única responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Schubert. Como nas narrativas<br />

roseanas, a ação po<strong>de</strong> ser resumida em poucas palavras. Se, por exemplo, “A<br />

Estória <strong>de</strong> Lélio e Lina” po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>scrita como um caso <strong>de</strong> amor entre um<br />

vaqueiro e uma velha, se o conto “Famigerado” fala da visita <strong>de</strong> um temível<br />

fora-da-lei a um letrado para saber o significado da palavra-título, “O Homem


Guimarães Rosa e o cinema ___________________________________________________ Paulo Augusto Gomes 207<br />

do Corpo Fechado” narra a trajetória do vaqueiro João <strong>de</strong> Deus, empregado do<br />

coronel Trajano dos Reis, que mantém sob sua guarda, quase presa, a moça<br />

Dinorá. João e ela <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m fugir e são perseguidos por capangas do coronel.<br />

Ele consegue se livrar <strong>de</strong> todos, inclusive do ex-patrão e, ao final, vai embora<br />

com sua amada sertão afora. Não é muito, mas Schubert, como Rosa, sabia que<br />

o segredo não estava na seqüência <strong>de</strong> ações dos personagens e sim na forma<br />

com que emoções e sentimentos eram exprimidos.<br />

O sertão, onipresente, mostra toda a sua gran<strong>de</strong>za na maneira como<br />

Schubert o filma, integrando seus personagens na beleza do lugar. Escolhe<br />

minuciosamente cada plano em função do que a paisagem exprime e opta quase<br />

sempre por planos <strong>de</strong> conjunto, ou seja, aqueles em que as figuras humanas são<br />

pouco mais que um <strong>de</strong>talhe no todo. Raros são os planos aproximados ou<br />

closes, como se diz na linguagem cinematográfica. Também extremamente<br />

funcional é a música <strong>de</strong> Tavinho Moura, na qual a viola caipira tem importante<br />

presença.<br />

De início, o filme <strong>de</strong> Schubert parece se filiar diretamente a Rosa. Afinal,<br />

um dos contos do escritor em Sagarana tem exatamente o nome <strong>de</strong> Corpo<br />

Fechado. Esse, aliás, era o nome original do filme, modificado em favor <strong>de</strong><br />

uma possível melhor bilheteria, algo que acabou não acontecendo. O cineasta<br />

parte do mesmo motivo dramático e ainda coloca como epígrafe uma citação <strong>de</strong><br />

Rosa mas, a partir daí, o relacionamento se dá pela apropriação do sertão<br />

rosiano por Schubert. Seu filme é direto, sem ro<strong>de</strong>ios, na linha em que também<br />

trabalhou o escritor. Acontece que, no caso, além do escritor, outra influência<br />

forte também se faz presente: a do western americano, que Schubert também<br />

admirava muito. É <strong>de</strong>ssa mistura bem trabalhada que surge a beleza <strong>de</strong> O<br />

Homem do Corpo Fechado.<br />

Não se trata <strong>de</strong> exemplo isolado. Outros po<strong>de</strong>riam ser lembrados na<br />

filmografia brasileira, com resultados igualmente felizes. Assim como,<br />

tomando como base textos <strong>de</strong> Rosa, muitos cineastas per<strong>de</strong>ram-se do seu<br />

universo, é igualmente possível a outros, mais talentosos, encontrar uma<br />

aproximação com o escritor por meio da captação sensível do seu universo. São<br />

esses os filmes que interessam, no caso. Não é difícil imaginar que João<br />

Guimarães Rosa teria se orgulhado das sementes que plantou na cultura<br />

brasileira.


208 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS


Música _____________________________________________<br />

MÁRIO DE ANDRADE<br />

E JACQUES MARITAIN<br />

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos*<br />

Este artigo apresenta alguns paralelos entre o tomismo <strong>de</strong> Jacques<br />

Maritain e o pensamento estético <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, um dos principais<br />

críticos musicais brasileiros da primeira meta<strong>de</strong> do século XX. Uma síntese,<br />

ainda que superficial, do pensamento <strong>de</strong> Maritain torna-se um po<strong>de</strong>roso<br />

auxiliar, quase indispensável, para uma melhor compreensão do pensamento<br />

andradiano. Em 1920, quando Jacques Maritain publicou seu livro Art et<br />

scolastique, as vicissitu<strong>de</strong>s do período entre as duas gran<strong>de</strong>s guerras provocavam<br />

uma mudança nos rumos das vanguardas do começo dos anos <strong>de</strong><br />

1900. Há nelas, agora, uma tendência geral à institucionalização, à consolidação<br />

dos processos construtivos, suplantando a tendência iconoclasta e<br />

<strong>de</strong>strutiva dos primeiros momentos. A fase neo-clássica adotada por músicos<br />

como Stravinsky, Villa-Lobos e outros gran<strong>de</strong>s compositores torna-se um<br />

exemplo, entre muitos possíveis, do retorno à or<strong>de</strong>m percebido na obra<br />

<strong>de</strong> artistas cuja fama inicial associara-se a escândalos pour épater la<br />

bourgeoisie.<br />

Umberto Eco, em A <strong>de</strong>finição da arte (1960), observa a importância <strong>de</strong><br />

Art et Scolastique (1920), do filósofo francês Jacques Maritain, no contexto da<br />

década:<br />

* Professor <strong>de</strong> História da Música na UEMG, pianista e doutor em Literaturas <strong>de</strong> Língua Portuguesa pela<br />

PUC-MG.


210 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Pensemos no clima do momento: os movimentos <strong>de</strong> vanguarda<br />

suce<strong>de</strong>m-se em turbilhão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há quarenta anos. (...) Art et<br />

scolastique é o livro <strong>de</strong> um homem mo<strong>de</strong>rno, (...) <strong>de</strong> um medieval<br />

que crê em Cocteau, se entusiasma com Satie, Milhaud, Poulenc,<br />

com a pintura <strong>de</strong> Severine e com o medievalismo tão imbuído <strong>de</strong><br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> pictórica <strong>de</strong> Rouault.(...)<br />

Não se põe o problema do que está vivo no pensamento medieval:<br />

evi<strong>de</strong>ntemente, tudo está vivo, porque, em pleno século vinte, ele<br />

pensa como um medieval. (...) a Ida<strong>de</strong> Média não é uma ilha<br />

histórica, mas uma dimensão do espírito. (...) A cultura contemporânea<br />

<strong>de</strong>scobriu assim, graças a ele, a existência <strong>de</strong> uma estética<br />

medieval (...) um instrumento que, ao que parecia, podia atuar no<br />

mais vivo das polêmicas artísticas da época. (ECO, 1972: 101)<br />

Segundo Eco, o “primitivismo” <strong>de</strong> Maritain exercia função libertadora<br />

em relação a tantas hipóteses românticas e <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes que pesavam sobre uma<br />

reflexão estética ditada, sobretudo, pela sensibilida<strong>de</strong>. A cultura mo<strong>de</strong>rna<br />

tomou como novo o que Maritain tomara <strong>de</strong> empréstimo à tradição escolástica<br />

medieval.<br />

Como o filósofo francês, Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> adota uma avaliação histórica<br />

para a arte oci<strong>de</strong>ntal, a partir da qual o advento do Cristianismo, marco<br />

<strong>de</strong>cisivo, separa o Oriente e o Oci<strong>de</strong>nte. Interessa-se, sobretudo, pelo nascimento<br />

<strong>de</strong> um novo conceito <strong>de</strong> Artista – agora valorizado, no mundo<br />

oci<strong>de</strong>ntal, em sua individualida<strong>de</strong> – e pela simultânea procura da Beleza por si<br />

mesma, <strong>de</strong>svinculada dos outros objetivos utilitários que a acompanhavam na<br />

Antigüida<strong>de</strong>. Em um artigo, <strong>de</strong> 1926, sobre o canto gregoriano, incluído<br />

<strong>de</strong>pois no livro Música, doce música (1934), Mário apresenta o conceito <strong>de</strong><br />

consciência individual característico do mundo oci<strong>de</strong>ntal como obra do<br />

cristianismo:<br />

Quem trouxe a idéia prática do homem-só, <strong>de</strong>struindo a base em<br />

que se organizara as civilizações da Antigüida<strong>de</strong>, foi Jesus,<br />

passeando a sua imensa divinda<strong>de</strong> solitária sobre a terra. E com<br />

isso um i<strong>de</strong>al novo <strong>de</strong> civilização ia nascer, provindo não mais do<br />

conceito <strong>de</strong> Socieda<strong>de</strong>, porém do <strong>de</strong> Humanida<strong>de</strong>. Porque só<br />

mesmo a realida<strong>de</strong> do indivíduo, que o exame <strong>de</strong> consciência<br />

cristão evi<strong>de</strong>nciava, traz a idéia <strong>de</strong> Humanida<strong>de</strong>; ao passo que a


Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e Jacques Maritain ________________________________ Paulo Sérgio Malheiros dos Santos 211<br />

eficiência do homem coletivo <strong>de</strong> antes <strong>de</strong>spertava só a <strong>de</strong><br />

Socieda<strong>de</strong>, o que não é a mesma coisa. Os homens antigos possuíram<br />

noção nítida e agente <strong>de</strong> socialização, porém tiveram idéias<br />

imperfeitas, quase sempre vagas e divagantes, sobre o que seja<br />

humanização e igualda<strong>de</strong> humana. (ANDRADE, Música, doce<br />

música: 25)<br />

Mário ratificará essa mesma idéia, quase com as mesmas palavras, em<br />

sua Pequena história da música (1928). Os objetivos didáticos do livro,<br />

visando <strong>de</strong> imediato os alunos do Conservatório, reforçam a importância<br />

conferida pelo autor a esse momento histórico divisor <strong>de</strong> dois mundos. A<br />

associação do individualismo oci<strong>de</strong>ntal ao advento do cristianismo tem<br />

importância <strong>de</strong>cisiva para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> suas teorias estéticas e, como<br />

foi dito anteriormente, torna-se um consenso entre os dois autores aqui<br />

focalizados.<br />

Jacques Maritain apresenta um painel da relação do Homem com a<br />

Beleza, seguindo uma cronologia histórica – o mesmo procedimento expositivo<br />

adotado por Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> para sua aula inaugural dos cursos da<br />

Universida<strong>de</strong> do Distrito Fe<strong>de</strong>ral, <strong>de</strong>pois publicada com o título O artista e o<br />

artesão.<br />

Como ponto <strong>de</strong> partida da viagem pelas formas artísticas no <strong>de</strong>correr dos<br />

séculos, o filósofo francês diferencia a Arte e a Poesia. A Arte <strong>de</strong>fine-se por<br />

uma ativida<strong>de</strong> criadora, produtora ou fabricadora, própria do espírito humano.<br />

A Poesia (e não se trata aqui apenas da arte <strong>de</strong> fazer versos) <strong>de</strong>fine-se por um<br />

processo – a intercomunicação entre o ser interior das Coisas e o ser interior do<br />

Eu Humano. Embora diferenciadas, Arte e Poesia mantêm-se indissoluvelmente<br />

relacionadas. Pelas manifestações artísticas po<strong>de</strong>mos perceber a<br />

Poesia – a união das Coisas com o Homem, o mútuo entrelaçamento entre a<br />

Natureza e o Homem, o encontro entre o Mundo e o Eu. Na História, em diversos<br />

momentos e civilizações, <strong>de</strong>vemos buscar as múltiplas formas do esforço<br />

criador humano. Nessa mirada secular, um primeiro contraste logo se constata:<br />

a diferença entre o Oriente e o Oci<strong>de</strong>nte quanto à percepção do Mundo – da<br />

natureza, das Coisas – e o Eu do artista. De modo geral, a arte do Oriente opõe-se<br />

diretamente ao individualismo oci<strong>de</strong>ntal. Há, na raiz <strong>de</strong>ssa diferença, um<br />

aspecto religioso. Sem a noção <strong>de</strong> individualida<strong>de</strong> instaurada pelo cristianismo,<br />

não interessa à arte oriental a subjetivida<strong>de</strong> do artista criador. Como as religiões<br />

às quais se ligou, essa arte serve à comunida<strong>de</strong>, transformando as Coisas em<br />

símbolos sagrados, aumentando-lhes a eficácia ritual. Na arte do Oriente


212 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Antigo, o indivíduo não tem vida própria, pois a obra só existe enquanto<br />

encontro <strong>de</strong> dois espíritos, o do artista e o do contemplador. O artista oriental<br />

vê as Coisas <strong>de</strong> maneira a torná-las comunicáveis aos outros, segundo um<br />

padrão comum, esquecendo-se <strong>de</strong> si. Maritain continua seu raciocínio,<br />

observando que a arte oriental, embora voltada e dominada pelas Coisas,<br />

abomina o realismo, pois, como toda a arte verda<strong>de</strong>ira, transforma seu objeto<br />

em símbolo. Cabe ainda notar que, para exemplificar o Oriente, Jacques<br />

Maritain estuda as artes hindu e chinesa, enquanto Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, em O<br />

artista e o artesão, elege, para a mesma finalida<strong>de</strong>, a arte do Egito.<br />

O poeta paulista observa que a arte egípcia, cujo aspecto <strong>de</strong> impessoalida<strong>de</strong><br />

coletiva é notável, caracteriza-se por um princípio utilitário. Mais que a<br />

beleza interessa-lhe a durabilida<strong>de</strong>. O objetivo <strong>de</strong> perdurar em imagens uma<br />

vida eterna suplantava o <strong>de</strong>sejo pessoal do artista <strong>de</strong> busca da beleza por si<br />

mesma. E os egípcios, atentos a seu ofício, trataram <strong>de</strong> garantir a imortalida<strong>de</strong><br />

dos mortos mais que a própria imortalida<strong>de</strong> pela fama ou pela glória (cf.<br />

ANDRADE, op. cit.:16). Em nenhuma civilização percebe-se uma fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong><br />

tão duradoura às formas estabelecidas, compromisso com uma expressão<br />

artística consi<strong>de</strong>rada perfeita e correspon<strong>de</strong>nte aos seus propósitos notadamente<br />

religiosos. Um dos aspectos da religião egípcia distinguia, entre os elementos<br />

componentes do ser humano, o “ka”, réplica imaterial do corpo. O “ka” po<strong>de</strong>ria<br />

sobreviver numa réplica do corpo, esculpida em material duradouro, um retrato<br />

ou uma efígie. O <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> sobrevivência, tão ar<strong>de</strong>nte nos egípcios, dominalhes<br />

a arte sacra e a imortalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>termina a escolha dos materiais e as<br />

proporções da obra: a forma geométrica da pirâmi<strong>de</strong> é das mais estáveis, resiste<br />

ao vento e à areia; e a pedra, como material i<strong>de</strong>al pela durabilida<strong>de</strong>, impõe-se.<br />

Certas convenções da escultura e da arquitetura nasceram do respeito às suas<br />

exigências específicas, resultando em uma nobre, austera e i<strong>de</strong>alizada estilização<br />

das formas. A arte do Antigo Egito impressiona pela regularida<strong>de</strong>, a<br />

mesma das enchentes do rio Nilo e da monotonia do <strong>de</strong>serto, impessoal e<br />

permanente.<br />

Em outras manifestações artísticas, também comandadas pelo princípio<br />

utilitário, sobretudo religioso, impera o anonimato. Na música, po<strong>de</strong>ríamos<br />

lembrar o canto gregoriano, com sua função litúrgica, submisso ao cerimonial e<br />

à inteligibilida<strong>de</strong> do texto latino. O exemplo torna-se particularmente interessante<br />

pela sua posição histórica, her<strong>de</strong>ira das teorias gregas e da salmodia<br />

hebraica, e primeira manifestação da música oci<strong>de</strong>ntal. Em Música, doce<br />

música, Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> observa que, como a arte popular, o gregoriano é<br />

por essência anônimo:


Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e Jacques Maritain ________________________________ Paulo Sérgio Malheiros dos Santos 213<br />

O que faz a intensida<strong>de</strong> concentrada da arte popular é a maneira<br />

com que as fórmulas melódicas e rítmicas se vão generalizando,<br />

per<strong>de</strong>ndo tudo que é individual, ao mesmo tempo que concentram<br />

em sínteses inconscientes as qualida<strong>de</strong>s, os caracteres duma raça<br />

ou dum povo. A gente bem sabe que uma melodia popular foi<br />

criada por um indivíduo. Porém esse indivíduo, capaz <strong>de</strong> criar<br />

uma fórmula sonora que iria ser <strong>de</strong> todos, já tinha <strong>de</strong> ser tão<br />

pobre <strong>de</strong> sua individualida<strong>de</strong>, que se pu<strong>de</strong>sse tornar assim, menos<br />

que um homem, um humano. E inda não basta. Rarissimamente<br />

um canto <strong>de</strong>veras popular, é obra dum homem apenas. O canto<br />

que vai se tornar popular, nesse sentido legítimo <strong>de</strong> pertencer a<br />

todos, <strong>de</strong> ser obra anônima e realmente representativa da alma<br />

coletiva e <strong>de</strong>spercebida, se <strong>de</strong> primeiro foi criado por um<br />

indivíduo (...) vai se transformando um pouco ou muito, num som,<br />

numa disposição rítmica, gradativamente, e não se fixa quase<br />

nunca, porque também a alma do povo não se fixa. Porém, <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong>ssa mobilida<strong>de</strong> exterior, o canto popular conserva uma<br />

estabilida<strong>de</strong> essencial, em que as características mais legítimas e<br />

perenes <strong>de</strong> tal povo se vão guardar. Dentro da mobilida<strong>de</strong> exterior<br />

<strong>de</strong>le, o canto popular é imóvel. Assim o cantochão. Tem essa<br />

mobilida<strong>de</strong> virtual da música popular. Descobriu e realizou<br />

aquelas formas sintéticas perfeitas, em que guardou as essências<br />

mais puras da religião católica. (ANDRADE, Música, doce<br />

música: 33).<br />

Seguindo seu raciocínio, Mário aponta algumas características técnicas<br />

comuns ao gregoriano e à música popular – fórmulas melódicas curtas, pouco<br />

nume<strong>rosa</strong>s e repetitivas se combinando em organizações novas. No caso do<br />

cantochão, o anonimato era conseqüência, sobretudo, <strong>de</strong> sua função litúrgica,<br />

uma arte que não pretendia comover nem impressionar, encantar ou distrair.<br />

Sua função era integrar o crente ao ofício religioso e se a música não importava<br />

por si mesma, menos ainda importava algum improvável autor.<br />

Para Jacques Maritain, na arte oriental, existe uma supremacia das Coisas<br />

sobre o Eu Humano. Mas, apesar <strong>de</strong>ssa supremacia, mesmo nessa arte<br />

profundamente funcional e comunitária, a varieda<strong>de</strong> entre as culturas atesta,<br />

com suas diferenças, a presença humana da mão do artista. Trata-se, porém, <strong>de</strong><br />

um artista genérico, não i<strong>de</strong>ntificável enquanto indivíduo, apenas um elemento<br />

caracterizador e diferenciador <strong>de</strong> culturas.


214 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Em contraste com o Eu Coletivo oriental, o Oci<strong>de</strong>nte revelará o mistério<br />

interior da personalida<strong>de</strong> individual. Conforme as citações anteriores – a <strong>de</strong><br />

Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e a <strong>de</strong> Jacques Maritain – o dogma cristão <strong>de</strong> um Deus que<br />

se fez homem e a idéia da salvação como conquista única e pessoal foram<br />

<strong>de</strong>cisivos para essa mudança <strong>de</strong> perspectiva na visão do lugar ocupado pela<br />

pessoa humana no mundo. O processo foi lento, diversificado e Maritain<br />

divi<strong>de</strong>-o em quatro fases, indo dos primórdios do cristianismo aos tempos<br />

atuais.<br />

Na primeira fase da arte oci<strong>de</strong>ntal analisada por Maritain, correspon<strong>de</strong>nte<br />

a um período que culmina na arte bizantina e se esten<strong>de</strong> até à arte medieval, a<br />

pessoa humana aparece ainda como um objeto no mundo das Coisas. Mas<br />

torna-se transcen<strong>de</strong>nte a esse mundo – um objeto glorificado, em mosaicos<br />

grandiosos, na figura <strong>de</strong> Cristos <strong>de</strong> uma realeza impressionante. A pessoa<br />

humana apresenta-se transfigurada por uma simbologia dogmática, intelectualizada<br />

e concretizada em imagens sagradas. A divinda<strong>de</strong> do Cristo domina sua<br />

figura humana e a visão do homem retratado pelos artistas espelha-se nesse<br />

i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> glorificação. A pessoa humana torna-se “assunto”, mas nela percebe-se<br />

o <strong>de</strong>sapego do corpo e da vida terrestre em proveito da vida da alma criada para<br />

a eternida<strong>de</strong>; e seu retrato exprime-se em figuras planas, sem relevo, em<br />

<strong>de</strong>senho esquemático. As roupagens e o fundo do quadro se prodigalizam em<br />

arabescos e linhas <strong>de</strong>corativas caprichosas, repletos <strong>de</strong> motivos sagrados como<br />

as folhas da parreira e os peixes – criptograma <strong>de</strong> Cristo, já que as primeiras<br />

letras da expressão grega “Jesus Cristo, filho <strong>de</strong> Deus Salvador”, formavam a<br />

palavra ichthýs. Os mosaicos <strong>de</strong> pedra ou <strong>de</strong> vidro colorido criam uma <strong>de</strong>coração<br />

policrômica exuberante que, nas igrejas, quase sempre converge para o<br />

altar, para on<strong>de</strong> conduz a atenção dos fiéis. As figuras humanas, reduzidas a<br />

formas <strong>de</strong>corativas, ignoram a realida<strong>de</strong> física e tornam-se pura abstração.<br />

Na segunda fase, época da arte gótica e <strong>de</strong> São Francisco <strong>de</strong> Assis, o<br />

aspecto humano vai marcar a face do Cristo anteriormente divinizado e<br />

glorioso. Nessa arte, ainda profundamente religiosa, valoriza-se o sofrimento<br />

do Re<strong>de</strong>ntor, sua dor física, sua dolo<strong>rosa</strong> condição <strong>de</strong> homem. As catedrais<br />

enfeitam-se com a vida humana retratada nos seus afazeres diários, seus artífices,<br />

seus mercados, com todas suas ativida<strong>de</strong>s sacralizadas. A natureza<br />

comparece com seus frutos, flores e animais. A arte gótica nasceu com as<br />

cida<strong>de</strong>s em cujo centro, a Catedral, realiza-se a maior parte das ativida<strong>de</strong>s<br />

humanas. A construção do templo unia o sentimento religioso ao orgulho cívico<br />

e as cida<strong>de</strong>s disputavam, em rivalida<strong>de</strong> acirrada, a altura <strong>de</strong> suas abóbadas, com<br />

a participação ativa <strong>de</strong> seus habitantes. O gótico apresenta-nos, assim, um


Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e Jacques Maritain ________________________________ Paulo Sérgio Malheiros dos Santos 215<br />

mundo imensamente secular, humanizado; mas, ao mesmo tempo, nele tudo<br />

ainda é sagrado, redimido pelo sangue do Re<strong>de</strong>ntor e nenhum outro estilo<br />

arquitetônico exprime tamanha exaltação mística. A cida<strong>de</strong> vive em função <strong>de</strong><br />

sua catedral que faz a ponte do humano ao divino e está para seu mundo como<br />

o teatro estava para a ética dos gregos. Aos poucos, essa sagração do Universo,<br />

congregada pela cristanda<strong>de</strong> medieval, vai se dissolver; e <strong>de</strong>samparado <strong>de</strong> sua<br />

religiosida<strong>de</strong>, o homem “existencialista” do fim do século XV começa a<br />

“procurar em terra hostil um lugar para sua autonomia recém <strong>de</strong>scoberta”.<br />

(MARITAIN, 1999: 34).<br />

A terra hostil se revelará, <strong>de</strong>pois, fértil. E uma terceira fase inicia-se com<br />

o Renascimento. São várias as conquistas a justificar tal nome – os progressos<br />

científicos, o conhecimento astronômico e da própria Terra, revelada pelas<br />

gran<strong>de</strong>s navegações, o estudo da anatomia, a perspectiva na pintura. Um<br />

sentimento <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> ambição concorre para a explosão do individualismo.<br />

Sob esse aspecto, inicia-se a Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. O homem percebe-se como criador.<br />

As Coisas, a natureza, quando o homem as retrata, servem-lhe apenas <strong>de</strong><br />

pretexto para a criação <strong>de</strong> um universo imaginário e pessoal. Mais que o objeto<br />

representado, valoriza-se subjetivamente o modo segundo o qual o artista<br />

realiza o retrato. E este traz, necessariamente, a marca individual <strong>de</strong> seu autor<br />

(cf. MARITAIN, op. cit.: 36).<br />

Aparece o <strong>de</strong>sejo da fama; o artista <strong>de</strong>seja ser conhecido e admirado em<br />

vida e entre os vivos. Dois gêneros artísticos, <strong>de</strong> pouca conta até então, tornamse<br />

comuns, testemunhando o apreço à vida temporal: o retrato pessoal, quase<br />

inexistente na Ida<strong>de</strong> Média, aparece, então, com a exigência <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao<br />

mo<strong>de</strong>lo; e as biografias, inclusive as <strong>de</strong> artistas – como o livro <strong>de</strong> Vasari sobre<br />

arquitetos, pintores e escultores italianos – substituem as edificantes Vidas dos<br />

Santos. Em muitas pinturas religiosas, o retrato do pintor ou do seu patrono<br />

convive com as figuras sagradas. O corpo humano, vestido no período anterior,<br />

<strong>de</strong>snuda-se pelo exemplo da Antigüida<strong>de</strong> e é estudado cientificamente, bastando-nos<br />

lembrar as dissecações encomendadas por Leonardo da Vinci. Ou<br />

seja, o corpo humano <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> representar uma dimensão do divino e passa a<br />

ser observado, não só no seu exterior, mas também interiormente, com interesse<br />

anatômico.<br />

Nos séculos seguintes, contrastando com esse período <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobertas e<br />

criativida<strong>de</strong>, há uma forte tendência à normatização, à ditadura <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los<br />

impostos e padronizados. Mas nem a tendência clássica para o aca<strong>de</strong>mismo,<br />

para o naturalismo mimético e o gosto pela perfeição dos meios, característicos<br />

dos dois séculos posteriores, foram insuficientes para <strong>de</strong>struir a afirmação da


216 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

personalida<strong>de</strong> do artista, pelo menos nas gran<strong>de</strong>s obras dos gran<strong>de</strong>s autores. E<br />

como reação a esse aca<strong>de</strong>mismo institucionalizado, preparada pelo romantismo<br />

do século XIX, inicia-se a gran<strong>de</strong> época da pintura mo<strong>de</strong>rna, elevando ao<br />

máximo a consciência individual do artista, abrindo a quarta fase <strong>de</strong>ssa evolução<br />

histórica analisada por Jacques Maritain: “O sentido interior das Coisas é<br />

enigmaticamente apreendido através do Eu do artista, e ambos se manifestam<br />

juntos na obra. É o momento em que a poesia toma consciência <strong>de</strong> si mesma.”<br />

(MARITAIN, op. cit.: 39).<br />

Da Antigüida<strong>de</strong> Oriental até a meta<strong>de</strong> do século XX, em linhas gerais e<br />

esquemáticas, essas são as gran<strong>de</strong>s fases históricas contempladas por Jacques<br />

Maritain. Fases, aliás, bastante i<strong>de</strong>ntificáveis em vários compêndios <strong>de</strong> História<br />

da Arte. O que torna interessante seu pensamento é a atenção dada à posição do<br />

Homem nessa cronologia, passando <strong>de</strong> assunto retratável sob enfoques diversos,<br />

até à consciência <strong>de</strong> uma individualida<strong>de</strong> criadora.<br />

Em Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, uma divisão histórica semelhante incidirá, principalmente,<br />

sobre os aspectos coletivos ou individualistas da criação artística. O<br />

ponto nevrálgico <strong>de</strong>ssa caminhada cronológica, pelo menos no que diz respeito<br />

à História da Música (o terreno mais seguro das reflexões estéticas andradianas),<br />

será o Romantismo, quando a figura do artista sobrepõe-se à própria<br />

obra <strong>de</strong> arte.<br />

Jacques Maritain observa que os doutores medievais valorizavam<br />

igualmente o artista e o artesão, pois o trabalho <strong>de</strong> ambos tinha, para eles, uma<br />

mesma dignida<strong>de</strong>, advinda não da força dos músculos e da <strong>de</strong>streza dos <strong>de</strong>dos,<br />

ou do fato <strong>de</strong> ambos realizarem um trabalho manual, mas da certeza <strong>de</strong> que a<br />

origem comum <strong>de</strong> suas ativida<strong>de</strong>s estava no intelecto. Mais que um simples<br />

a<strong>de</strong>stramento mecânico, consi<strong>de</strong>rava-se a arte que praticavam uma ativida<strong>de</strong><br />

intelectual. Evi<strong>de</strong>ntemente, existem diferenças entre o artesão, o artista, as<br />

“artes úteis” e “as belas artes”. Para estabelecê-las, Jacques Maritain propõenos<br />

um exemplo bastante simples, imaginando a construção da primeira jangada<br />

inventada pelo homem, quando nem a palavra ou a idéia <strong>de</strong> jangada<br />

existiam ainda. Nos posteriores aperfeiçoamentos <strong>de</strong>ssa primeira jangada, o<br />

homem acumulou as regras anteriormente <strong>de</strong>scobertas enquanto <strong>de</strong>scobria<br />

outras novas.<br />

Com esse exemplo, Maritain evi<strong>de</strong>ncia algumas verda<strong>de</strong>s simples, mas<br />

importantes. A primeira verda<strong>de</strong> estabelece que as regras não são normas préelaboradas;<br />

ao contrário, surgem durante o próprio processo <strong>de</strong> criação e a<br />

teoria apóia-se na experimentação, tanto para o artista quanto para o artesão.<br />

Com o tempo, essas regras ten<strong>de</strong>m a se transformarem em normas, “tornam-se,


Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e Jacques Maritain ________________________________ Paulo Sérgio Malheiros dos Santos 217<br />

então, ao mesmo tempo que ajuda, obstáculo à vida da arte.” (MARITAIN,<br />

2001: 18). Outra conclusão, também tirada da história do aperfeiçoamento das<br />

jangadas, diz respeito ao trabalho do artesão. Por mais que suas <strong>de</strong>scobertas<br />

técnicas tornem-se engenhosas e aperfeiçoadas, a sua regra maior permanecerá<br />

sempre a primeira, segundo a qual seu trabalho <strong>de</strong>verá satisfazer o princípio da<br />

necessida<strong>de</strong> que o originou. Todas as outras regras, por mais sofisticadas e<br />

refinadas, tornam-se secundárias. Ainda quando há uma inegável preocupação<br />

com a beleza, essa aparece <strong>de</strong> maneira indireta, aci<strong>de</strong>ntal, exigência da criativida<strong>de</strong><br />

do espírito humano sobre a produção <strong>de</strong> um objeto utilitário. Pela mesma<br />

submissão à regra primeira, a beleza das linhas <strong>de</strong> um automóvel, exemplo das<br />

mo<strong>de</strong>rnas artes mecânicas, curva-se às exigências primordiais do bom funcionamento<br />

da sua máquina, assim como um lindo pote <strong>de</strong> argila <strong>de</strong>corado <strong>de</strong>ve<br />

armazenar e conservar a água potável.<br />

Nas belas-artes, diferentemente, o princípio primordial, a regra inicial<br />

que impulsiona o artista, não pertence a um mundo exterior ao intelecto – é a<br />

própria libertação da criativida<strong>de</strong> do espírito na busca da beleza. O intelecto<br />

esforça-se por produzir uma obra ao mesmo tempo material e espiritual, criada<br />

à imagem e semelhança do homem, e na qual permaneça um pouco da alma <strong>de</strong><br />

seu criador. A ativida<strong>de</strong> artística, nas belas-artes, encontra-se em estado puro, livre<br />

<strong>de</strong> elementos acessórios, para além do domínio do útil. Sua finalida<strong>de</strong> primeira<br />

i<strong>de</strong>ntifica-se com a própria natureza do espírito, proce<strong>de</strong> do domínio do intelecto<br />

e não <strong>de</strong> uma necessida<strong>de</strong> do mundo utilitário. “A intelectualida<strong>de</strong> da arte<br />

encontra-se, portanto, nas belas artes (apesar <strong>de</strong> mais ligada aos po<strong>de</strong>res sensíveis<br />

e emocionais), em grau mais elevado que na arte do artesão” (MARITAIN,<br />

op. cit.: 20). Daí, a noção <strong>de</strong> regra, que nas artes úteis torna-se facilmente uma<br />

aquisição normativa estável e, nas artes do belo, transforma-se consi<strong>de</strong>ravelmente,<br />

exigindo permanente renovação, acima <strong>de</strong> qualquer cânone. Pois a<br />

beleza nunca se esgota com os meios <strong>de</strong> atingi-la, seja pela adaptação das<br />

regras já consagradas ou pela criação <strong>de</strong> novas e surpreen<strong>de</strong>ntes possibilida<strong>de</strong>s.<br />

Sob esse aspecto, cada obra <strong>de</strong> arte torna-se um caso único, sem prece<strong>de</strong>ntes.<br />

Se falta ao artista a “intuição criadora”, a obra, mesmo tecnicamente perfeita,<br />

não significará nada; ao contrário, muitas realizações <strong>de</strong>feituosas trazem a marca do<br />

seu criador e impõem-se pelo o que têm a dizer (cf. MARITAIN, op. cit.: 22).<br />

As relações da teoria, domínio das regras, com a criativida<strong>de</strong> artística,<br />

domínio da intuição pessoal, sempre ocuparam o pensamento <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong><br />

Andra<strong>de</strong>. Em 1926, um artigo do escritor sobre o canto gregoriano <strong>de</strong>senvolve<br />

o tema, no sub-título O criador tem normas e o repetidor teorias, do qual<br />

transcrevemos alguns trechos, importantes para a continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse estudo:


218 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

A eterna luta da Arte não é propriamente contra a Teoria, porém,<br />

apesar da teoria... Os criadores geniais estabelecem um ou outro<br />

princípio teórico, mas, esses princípios não têm pra eles função<br />

básica <strong>de</strong> teoria. Exercem antes uma função normalizadora,<br />

estabilizadora <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>, ou <strong>de</strong> tendências mais ou menos<br />

coletivas. Isso quer dizer que, pros artistas gran<strong>de</strong>s, a teoria existe<br />

em função da Arte, e não tem nem cheiro leve <strong>de</strong> lei. É norma. Só<br />

nos períodos <strong>de</strong> estratificação duma modalida<strong>de</strong> artística, é que<br />

verda<strong>de</strong>iramente a Teoria se organiza, tirando das criações do<br />

passado, regras que se fingem <strong>de</strong> leis. Mas então essas leis não<br />

servem mais, geralmente, porque provindas duma arte caduca,<br />

arte que também não serve mais. (...) Ao lado <strong>de</strong>ssas leis, surgem<br />

tendências novas com formas novas, tímidas no começo, confusas,<br />

abandonadas às vezes, retomada as vezes, manifestações ainda<br />

precárias da inteligência organizadora, que tanto custa a se a<br />

fazer com as mudanças pererecas da sensibilida<strong>de</strong> da vida social.<br />

E essas tendências novas, essas normas novas, são abafadas,<br />

martirizadas, pela inércia natural dos teoristas e artistinhos<br />

repetidores, que só po<strong>de</strong>m encontrar no caminho freqüentado do<br />

passado aquela pasmaceira <strong>de</strong> vitalida<strong>de</strong> a que se afazem tão bem<br />

os comedores <strong>de</strong> cadáveres e os que têm braços caídos. (ANDRA-<br />

DE, Música, doce música: 30).<br />

Na seqüência do artigo, Mário reconhece a importância <strong>de</strong> teóricos<br />

geniais, como Guido d’Arezzo, cuja obra ilumina o passado com compreensão<br />

crítica e facilita o futuro, reconhecendo-lhes as teorizações como um gran<strong>de</strong><br />

trabalho criativo <strong>de</strong> síntese. Comparando-se a citação acima com as<br />

consi<strong>de</strong>rações anteriores <strong>de</strong> Jacques Maritain, percebemos nos dois autores a<br />

primazia da criativida<strong>de</strong> sobre a teorização, a última só se justificando<br />

posteriormente, quando alicerçada nas ousadas experiências <strong>de</strong> criadores<br />

geniais <strong>de</strong> uma época anterior. Nota-se também, no texto <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>,<br />

uma característica comum a vários <strong>de</strong> seus escritos – a tendência <strong>de</strong> <strong>de</strong>sviar-se<br />

do assunto para se concentrar em exemplos pessoais. Assim, mais que <strong>de</strong> teoria<br />

ou arte, o escritor fala <strong>de</strong> teóricos e artistas. Do filósofo francês, interessa-lhe,<br />

sobretudo, a vinculação escolástica da Arte ao Fazer e a idéia <strong>de</strong> que o bem da<br />

obra <strong>de</strong> arte importa mais que o bem do artista.<br />

Mário não segue até o final o pensamento <strong>de</strong> Maritain expresso em Art et<br />

scolastique. Apropria-se do que lhe parece funcional para seus propósitos,


Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e Jacques Maritain ________________________________ Paulo Sérgio Malheiros dos Santos 219<br />

acrescentando-o a um imenso repertório teórico, procedimento semelhante aos<br />

vários losangos literários que costura em sua vestimenta arlequinal <strong>de</strong> poeta.<br />

Bibliografia<br />

ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Introdução à estética musical. São Paulo: Hucitec,<br />

1995.<br />

____ Música, doce música. 2 ed.. São Paulo: Martins, 1963.<br />

____ O baile das quatro artes. 2 ed. São Paulo: Martins, 1963.<br />

____ Pequena história da música. 7 ed.. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.<br />

ECO, Umberto. A <strong>de</strong>finição da arte. Lisboa: Edições 70, 1972.<br />

MARITAIN, Jacques. A poesia, o homem e as coisas. Trad. Moacyr e Léa<br />

Laterza. Belo Horizonte: PUC-Minas, 1999.<br />

____ A razão operária. Trad. Moacyr e Léa Laterza. Belo Horizonte: PUC-<br />

Minas, 2001.<br />

____ Art et scolastique. Paris: Rouart et Fils, 1935.


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Artes Plásticas ________________________________________<br />

SÉRGIO TELLES – UM CLÁSSICO<br />

Carlos Perktold*<br />

Noite <strong>de</strong>stas, tendo adormecido pensando em pintores, músicos e<br />

escritores talentosos, sonhei com uma revoada <strong>de</strong> anjos barrocos que, em jogral<br />

e em poema póstumo <strong>de</strong> Drummond, explicavam o critério <strong>de</strong> Deus para<br />

entregar para alguém aquilo que o inglês chama <strong>de</strong> gift of God: o talento. O<br />

poema era lindo; a explicação, <strong>de</strong> simplicida<strong>de</strong> franciscana e, resumidamente,<br />

ocorre assim: em um <strong>de</strong>terminado momento <strong>de</strong> uma medida <strong>de</strong> tempo que<br />

<strong>de</strong>sconhecemos, em uma das suas tarefas cotidianas, o Todo-Po<strong>de</strong>roso aponta<br />

para um sortudo nascituro e uma luz <strong>de</strong> matiz divina acen<strong>de</strong> em um <strong>de</strong>partamento<br />

celestial. Naquele momento, todos os integrantes do jogral sabem que<br />

um potencial gênio nasceu, mas nenhum <strong>de</strong>les sabe a que o rebento foi <strong>de</strong>stinado.<br />

Isso fica armazenado num lugar <strong>de</strong>ntro do presenteado que apenas Ele<br />

conhece. Se aquele é contemporâneo <strong>de</strong> si mesmo, nasceu em família que compreen<strong>de</strong>u<br />

seu <strong>de</strong>stino e tem condições <strong>de</strong> auxiliá-lo a seguir suas <strong>de</strong>sventuras, o<br />

tempo lhe mostrará o significado daquela luz e ele será imortal no que fará.<br />

Como vêem, os talentosos precisam <strong>de</strong> outras ajudas, além daquela <strong>de</strong> Deus.<br />

Daí, a explicação por que há tantos Mozart, Bach, Manet e Cézanne que jamais<br />

serão conhecidos nem terão a sorte <strong>de</strong>stes. Esta talvez seja uma glândula congênita,<br />

ainda <strong>de</strong>sconhecida da Medicina e, no futuro, os cientistas explicarão por<br />

que apenas alguns nascem com ela. Conta a lenda que, quando Sergio Telles<br />

nasceu, duas luzes se ace<strong>de</strong>ram no Paraíso: elas representavam a vida artística e<br />

a diplomática (nesta or<strong>de</strong>m), dois talentos ímpares do guerreiro da vida.<br />

O imaginário nacional fantasia que a vida dos habitantes do Itamaraty<br />

seja tudo o que pediram a Deus: verba disponível para gastar à vonta<strong>de</strong>, lugares<br />

* Psicanalista e crítico <strong>de</strong> arte. Integra o CPMG, a ABCA e a AICA.


222 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

lindos para morar, carro com placa CD autorizando estacionar on<strong>de</strong> quiser,<br />

tempo para ler e escrever longas cartas, ou melhor, e-mails, chofer particular e,<br />

acima <strong>de</strong> tudo, muito glamour à noite, regado a bons vinhos e nenhum trabalho<br />

burocrático, político ou comercial. Tudo, é claro, com muita elegância <strong>de</strong>ntro<br />

do circuito Londres, Paris e New York. Alguns abençoados do Itamaraty<br />

trabalham e recebem essas benesses, mas é importante lembrar que o Brasil tem<br />

várias embaixadas em lugares on<strong>de</strong> o tédio passa férias e o diabo tem<br />

residência fixa. E vários diplomatas estão lá neste momento, <strong>de</strong>smentindo<br />

aquele imaginário.<br />

Por certo, as duas estrela-guias <strong>de</strong> Sergio Telles serviram <strong>de</strong> bússola<br />

orientadora e ele brilhou no Rio <strong>de</strong> Janeiro e em locais tão encantadores e<br />

privilegiados, que se pôs a pintá-los. E aquelas luzes celestiais, acessas quando<br />

ele nasceu, foram se intensificando pela sua vida afora e ele, generoso, as<br />

transferiu para suas telas. Daí a beleza <strong>de</strong> suas telas. Mas que ninguém imagine<br />

ser essa ativida<strong>de</strong> um lazer na época da vida na qual po<strong>de</strong>mos nos dar ao luxo<br />

<strong>de</strong> ócio com dignida<strong>de</strong>. Sua trajetória <strong>de</strong> artista é tão anterior àquela <strong>de</strong><br />

diplomata que, aos <strong>de</strong>zoito anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, era contemplado com o Prêmio <strong>de</strong><br />

Viagem ao País pela Escola <strong>de</strong> Belas Artes do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Ser premiado<br />

com essa ida<strong>de</strong>, por certo, é o resultado <strong>de</strong> garra, <strong>de</strong>terminação. Por isso, se ele<br />

não tivesse seguido carrière e pelo talento <strong>de</strong> que é possuidor, continuaria<br />

sendo quem é há muito: um artista <strong>de</strong> primeira linha, que não ce<strong>de</strong> a modismos<br />

pós-mo<strong>de</strong>rnos, elaborando a arte do <strong>de</strong>senho, aquarela e pintura como ele<br />

acredita, conhece e sabe.<br />

O espectador <strong>de</strong>spreparado po<strong>de</strong> se surpreen<strong>de</strong>r com a simplicida<strong>de</strong><br />

enganosa, própria <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s artistas, e imaginar que o que está na tela é<br />

ativida<strong>de</strong> fácil: bastam algumas pinceladas bem marcadas e cheias <strong>de</strong> cores na<br />

tela. Ser simples é ativida<strong>de</strong> que requer árduo exercício intelectual e é privilégio<br />

<strong>de</strong> poucos. Matisse, em célebre carta <strong>de</strong> 14 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1948 e dirigida<br />

a Henry Clifford, diretor do Museu <strong>de</strong> Arte da Filadélfia, <strong>de</strong>monstrou toda<br />

preocupação que a sua monumental retrospectiva po<strong>de</strong>ria causar nos jovens<br />

artistas que viriam seus trabalhos e os imaginariam simples <strong>de</strong>mais, sem<br />

calcularem o custo emocional <strong>de</strong>les. Dizia Matisse: Como interpretarão eles a<br />

impressão <strong>de</strong> aparente facilida<strong>de</strong> que lhes produzirá uma visão geral e rápida<br />

e até mesmo superficial, <strong>de</strong> minhas pinturas e <strong>de</strong>senhos? Havia então na<br />

pergunta do mestre francês e há hoje entre o gran<strong>de</strong> público, o risco <strong>de</strong><br />

imaginar o resultado com simplicida<strong>de</strong> como algo <strong>de</strong> fácil feitura. Com os<br />

trabalhos <strong>de</strong> Manet, Monet, Duffy, Cézanne e dos nossos Guignard, Ianelli,<br />

Marcier, Vicente do Rego, Gomi<strong>de</strong>, Sergio Telles e outros privilegiados


Sérgio Telles – um clássico ________________________________________________________ Carlos Perktold 223<br />

pintores brasileiros, corre-se o mesmo risco e permanece o mesmo e velho<br />

receio <strong>de</strong> Matisse.<br />

Este grupo <strong>de</strong> artistas nacionais e estrangeiros, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> longas guerrilhas<br />

interpessoais, criou obras que se apresentam como se fossem suas próprias<br />

impressões digitais, reconhecidas <strong>de</strong> longe a olho nu, tão gran<strong>de</strong> é a unida<strong>de</strong><br />

dos trabalhos <strong>de</strong> cada um. Para chegar a esse resultado, é preciso fazer como<br />

Sergio Telles fez: <strong>de</strong>scobrir cedo o significado daquela luz divina, <strong>de</strong>senhar<br />

intensa e literalmente todos os dias, freqüentar escolas e ter professores do<br />

porte <strong>de</strong> Oswaldo Teixeira, Levino Fanzeres, Rodolfo Chamberlland, Gagarin<br />

ou Nivouliès <strong>de</strong> Pierrefort, todos craques no <strong>de</strong>senho e no pincel. Estes, com<br />

altruísmo, repassaram seus conhecimentos ao aluno, que se tornou mais<br />

importante que seus mestres. É essa a função do aprendiz: ser, no futuro,<br />

melhor que seus lentes. Aqueles professores e a freqüência na Escola <strong>de</strong> Belas<br />

Artes do Rio <strong>de</strong> Janeiro foram dois dos elementos <strong>de</strong> uma constelação que<br />

cresceu no país e no exterior e que enobreceram o pintor-diplomata. Freqüentar<br />

aquela Escola durante alguns anos era a certeza <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a técnica apurada<br />

do <strong>de</strong>senho, do uso e mistura das cores, criadora <strong>de</strong> imagens com ritmo, tensão<br />

e cuidado com o elemento que se pinta no ponto <strong>de</strong> fuga da composição. São<br />

marinhas, naturezas-mortas e paisagens <strong>de</strong> lugares on<strong>de</strong> Sergio Telles morou e<br />

que foram fixadas em aquarela, <strong>de</strong>senhos e óleos com unida<strong>de</strong> ímpar: Paris, Lisboa,<br />

Líbano, Itália, Rio <strong>de</strong> Janeiro ou <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s históricas mineiras. Nestas telas o<br />

espectador sentirá o amarelo da laranja madura, o azul do céu <strong>de</strong> Brasília, o<br />

ocre <strong>de</strong> difícil colocação e a luminosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma ensolarada Ouro Preto, todas<br />

acompanhadas do mistério que toda boa pintura <strong>de</strong>ve conter, da mesma forma<br />

como há texto subjacente em cada obra literária <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>. Cabe ao espectador<br />

<strong>de</strong>cifrá-lo, porque a pintura é também uma escrita. E em sendo, alguns pintores<br />

são comparados a alguns escritores: poucos escrevem poemas avassaladores.<br />

Não são apenas esses atributos que imprimem aos trabalhos <strong>de</strong> Sergio<br />

Telles a gran<strong>de</strong>za que têm: são raras as suas obras nas quais o ser humano está<br />

ausente, <strong>de</strong>talhe crítico <strong>de</strong>monstrador <strong>de</strong> seu humanismo. São personagens<br />

literários com vitalida<strong>de</strong> pictórica e cheia <strong>de</strong> movimentos, sugeridos com<br />

<strong>de</strong>licadas pinceladas como faziam os impressionistas, ratificadas por Duffy e<br />

confirmadas pelo nosso Guignard.<br />

O espectador ou o colecionador experiente se certificará <strong>de</strong> todas essas<br />

afirmativas se folhear apenas um dos vinte e dois livros editados sobre suas<br />

obras, ou ler os textos sobre seus trabalhos, todos <strong>de</strong> críticos exigentes. O<br />

neófito em pintura e que tiver a sorte <strong>de</strong> encontrar seus quadros numa exposição,<br />

terá a vantagem <strong>de</strong> começar vendo um clássico.


224 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS


BRACHER, A ARTE E OS ENIGMAS<br />

ENTRE O HOMEM E O ARTISTA<br />

Mauro Werkema*<br />

A arte tem muitos enigmas. Eles são seu fascínio e seu mistério. Menos<br />

ou mais enigmas surgem das diferenças da percepção/fruição por parte do<br />

espectador. Observar, no sentido <strong>de</strong> ver, nem sempre permite envolver-se,<br />

sentir. Mas, se há talento, refletido na obra, expresso numa espécie <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>/atributo,<br />

nem sempre <strong>de</strong> fácil i<strong>de</strong>ntificação e <strong>de</strong>finição, este é que vai qualificar<br />

o olhar e permitir que passe do simples enxergar para o sentir. Eis que o<br />

talento surge, então, entre todos os enigmas, como característica nem sempre<br />

facilmente percebível, embora real, mas quase in<strong>de</strong>cifrável porque está na<br />

or<strong>de</strong>m do pessoal, das sensações próprias <strong>de</strong> cada um. A natureza <strong>de</strong>ste<br />

fenômeno, as condições <strong>de</strong> sua manifestação, o alcance <strong>de</strong> sua expressão, o seu<br />

trânsito entre a razão e a emoção, a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> medição, ou da <strong>de</strong>codificação<br />

i<strong>de</strong>ntitária e pessoal, entre vários outras características e condicionantes,<br />

<strong>de</strong>safiam os que se <strong>de</strong>dicam a estudar o fenômeno da criação artística. É<br />

questão antiga, mas <strong>de</strong> remissão obrigatória em qualquer reflexão sobre o tema.<br />

Dom inato, até que ponto po<strong>de</strong> ser aprendido ou aperfeiçoado (é possível<br />

o ensino da arte?), estado alterado <strong>de</strong> consciência, percepção extra-sensorial ou<br />

exacerbação <strong>de</strong> uma sensibilida<strong>de</strong>, exteriorização do inconsciente, pela quebra<br />

da couraça armada pela introjeção das normas sociais <strong>de</strong> conduta impostas ao<br />

homem civilizado ou universalizado, capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> percepção diferenciada,<br />

tudo isto são conceitos ou tentativas <strong>de</strong> entendimento que diferentes escolas <strong>de</strong><br />

pensamento vão elaborando sobre o gran<strong>de</strong> enigma da arte.<br />

O fato é que o talento é um bem precioso, e não só para a criação<br />

artística. Revalorizado, entronizado como diferencial para a obra <strong>de</strong> arte, o<br />

talento vive um novo tempo, mais exigente, em que a ampliação da informação<br />

* Jornalista.


226 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

exacerba as condições <strong>de</strong> crítica, cada vez mais questionadoras da obra <strong>de</strong> arte<br />

sem arte, do objeto aleatório, das performances e intervenções, da arte<br />

conceitual e outros vanguardismos. Reivindica-se o retorno à arte como pregam<br />

artigos recentes <strong>de</strong> Ferreira Gullar e Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’Anna. Romano,<br />

em texto recente, lembra fala do maestro Lorin Maazel, que diz que o gran<strong>de</strong><br />

problema que “vitimou gran<strong>de</strong> parte da arte mo<strong>de</strong>rna, é que <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser arte<br />

para ser conceito. Conceitos que, ao serem <strong>de</strong>molidos, não <strong>de</strong>ixam nenhuma<br />

arte atrás <strong>de</strong> si”.<br />

Po<strong>de</strong>-se compreen<strong>de</strong>r a arte conceitual, ou a criação/exibição <strong>de</strong> algum<br />

objeto como expondo algum pensamento/conceito, com conteúdo i<strong>de</strong>ológico ou<br />

criação <strong>de</strong> forma. Ou po<strong>de</strong>-se enten<strong>de</strong>r o meramente ornamental. Mas a arte vai<br />

além. Já Ferreira Gullar, mais contun<strong>de</strong>nte, no seu A expressivida<strong>de</strong> da forma,<br />

<strong>de</strong> 1993, diz que “se qualquer forma traçada sobre uma tela expressa alguma<br />

coisa, não importa mais nem o talento nem o conhecimento técnico; todo<br />

mundo é artista e ninguém o é. Se toda forma é expressão e se a arte, livre <strong>de</strong><br />

qualquer princípio ou <strong>de</strong>finição, não é mais do que forma expressiva, então não<br />

se po<strong>de</strong> mais distinguir entre uma obra <strong>de</strong> arte e outra coisa qualquer, outro<br />

objeto qualquer”. Há que se retornar, portanto, à arte, talvez a arte que<br />

<strong>de</strong>monstre virtuosida<strong>de</strong> e criativida<strong>de</strong>, permanência, inovação.<br />

Estas são questões inerentes a uma conversa com Carlos Bracher e sua<br />

vivência, o homem e o artista, vida e obra. Para ele, como primeira condição<br />

para se compreen<strong>de</strong>r a ocorrência da arte-talento, este visto como condição<br />

realizadora, está a indissolubilida<strong>de</strong> entre o artista e o homem, que julga muito<br />

clara em sua trajetória <strong>de</strong> vida e pintura. Sua arte é o seu sentimento e esta vem<br />

da sua experiência no mundo. É por aí que po<strong>de</strong> ver o quanto o talento é<br />

atributo do que po<strong>de</strong>ríamos chamar <strong>de</strong> “humano profundo”. A sua visão do<br />

mundo, do homem e da socieda<strong>de</strong>, vida e morte, as relações nas or<strong>de</strong>ns política<br />

e econômica, condicionam seu “encantamento”. Não compreen<strong>de</strong> o artista frio,<br />

indiferente. Não vê a arte como resultante <strong>de</strong> um eterno sofrimento. A emoção,<br />

triste ou alegre, se dá pela condição vivencial, pelo envolvimento espiritual,<br />

pela capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver e envolver, <strong>de</strong> perceber as coisas do mundo. O perigo<br />

maior é o empobrecimento da sensibilida<strong>de</strong> e do humanismo, o embrutecimento,<br />

a <strong>de</strong>scrença.<br />

Olívio Tavares <strong>de</strong> Araújo, prefaciando livro sobre Bracher, diz: “Meu<br />

primeiro conceito é a convicção <strong>de</strong> que talento existe – por mais difícil que seja<br />

<strong>de</strong>fini-lo – e é uma coisa com a qual se nasce ou não”. E conclui: “Não estou<br />

reduzindo o artista a um fenômeno genético. Se fosse só assim, não haveria<br />

como compreen<strong>de</strong>r, racionalmente, certas concentrações ou momentos <strong>de</strong>


Bracher, a arte e os enigmas entre o homem e o artista _________________________________ Mauro Werkema 227<br />

esplendor, dos quais o exemplo mais evi<strong>de</strong>nte é o classicismo vienense na<br />

música do século XVIII. Num intervalo <strong>de</strong> 65 anos, nascem quatro dos maiores<br />

gênios da música: Haydn, Mozart, Beethoven e Schubert”. Herdado, aprendizado,<br />

estimulado pelo entorno que propicia o “insight”, o talento é tudo isto.<br />

É possível tentar encontrá-lo para qualificar a obra <strong>de</strong> arte?”<br />

Uma segunda or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> pensamento encontra-se no que Bracher chama<br />

<strong>de</strong> “liberalismo original”, herança <strong>de</strong> sua formação familiar e essencial no seu<br />

modo <strong>de</strong> ver o mundo. Não é o liberalismo paternalista ou apenas generoso,<br />

que força a aceitação do contraditório por mera educação intelectual, mas algo<br />

<strong>de</strong> raiz, genuíno, autêntico, efetivamente exercido na sua plenitu<strong>de</strong>. Sem esta<br />

condição não há sensibilida<strong>de</strong> plena, condição difícil, quase inalcançável, neste<br />

mundo <strong>de</strong>sigual e estimulador do raciocínio discriminatório. Neste campo, é<br />

possível falar numa nova sensibilida<strong>de</strong>, a que surge com a “<strong>de</strong>sconstrução” que<br />

se opera em tudo. Desfazer-se <strong>de</strong> amarras, <strong>de</strong>spojar-se <strong>de</strong> preconceitos e modos<br />

clássicos <strong>de</strong> pensar, abrir-se para o novo, tornar-se espírito liberto, <strong>de</strong>ixar que a<br />

paixão se torne a libertação do que oprime.<br />

Aos que o conhecem, estes traços se tornam perceptíveis. E se revelam,<br />

em Bracher, no seu ato <strong>de</strong> pintar. Vê-lo é uma emoção. “Equivale a observar<br />

um médium incorporando espíritos: com movimentos circulares que esboçam<br />

quase-formas moduladas em sentido horário”, diz João Adolfo Hansen, em<br />

insuperável exegese da obra <strong>de</strong> Bracher. Em movimentos rápidos, resultantes<br />

<strong>de</strong> uma articulação miocinestésica, que comanda o braço energizado, sob<br />

estímulos <strong>de</strong> um cérebro movido a impulsos, tudo isto fazendo com que vá<br />

“irrompendo finalmente na tela, como uma aparição escapada da ponta <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>dos on<strong>de</strong> um corpo imaginário se concentra”. Revela-se, com concretu<strong>de</strong><br />

didática, o que é o talento. Po<strong>de</strong>-se perceber, a cada gesto, o admirável dom<br />

artístico. Suce<strong>de</strong>m-se as pinceladas, às vezes substituídas pela espátula e a<br />

própria bisnaga da tinta, em gestos aparentemente aleatórios e informais. Mas<br />

que, gradativamente, para encanto do observador, vão dando forma e vida,<br />

numa mágica combinação <strong>de</strong> cores. Hansen vai além: “Em vários documentários,<br />

aliás, é costume referir-se à profundida<strong>de</strong> meio misteriosa e incondicionada<br />

da experiência existencial do pintor, restituindo-se a disposta unida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> sua psicologia como princípio causal e explicativo para o dinamismo <strong>de</strong> suas<br />

telas”. Conhecida e ressalvada a imensa, antiga e complexa discussão que a<br />

questão envolve, em Bracher, para Hansen, no entanto, não há dúvida <strong>de</strong> que<br />

“as intensida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> suas telas são vestígios <strong>de</strong> <strong>de</strong>scargas pulsionais”. E avança:<br />

“Se falasse, aqui a pintura diria o “não tenho palavras”, do mito romântico do<br />

indizível”.


228 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

O artista Bracher, com seu método e estilo, começa acariciando a tela,<br />

seu espaço <strong>de</strong> trabalho, emociona-se, acelera a respiração, se entrega ao<br />

pulsional, empunha o crayon e retrata sua “impressão primeira” do objeto,<br />

ataca com trincha e espátula e dá-se o mistério do talento. Vai-se revelando<br />

uma forma, em tempo curto, no jogo <strong>de</strong> movimentos, com cores e luzes, originados<br />

<strong>de</strong> pinceladas fortes, enérgicas, com relevos e extensões. O gesto é<br />

brusco, não estudado, ou medido e refletido, a busca da tinta é quase aleatória<br />

nos sucessivos e rápidos golpes com que ataca a tela, mas tudo vai formando<br />

imagens, com as visões e <strong>de</strong>formações que, afinal, vão compor a obra. Moacir<br />

Laterza, que <strong>de</strong>bruçou-se na interpretação <strong>de</strong> Bracher, diz que “caucionada por uma<br />

singular vivência estética, a práxis artística <strong>de</strong> Bracher manifesta essa estranha<br />

dialética interna da verda<strong>de</strong> do ser”. E mais: “É esta mediação da intimida<strong>de</strong><br />

pessoal que <strong>de</strong>termina a qualida<strong>de</strong> da sua obra. Procurando <strong>de</strong>svendar o enigma<br />

do mundo, Bracher resgata <strong>de</strong> certo modo sua realida<strong>de</strong> circundante e, a um só<br />

tempo, encontra a pista para a <strong>de</strong>cifração do enigma do seu próprio eu”.<br />

Para Bracher, falando do seu processo, “pintar é um processo anímico, é<br />

uma <strong>de</strong>tonação”. E mais: “É preciso misturar poesia e alucinação, com a<br />

expressão, possível, da força criativa, do talento, que já nasce com as limitações<br />

da personalida<strong>de</strong>. O quanto esta limitação vai prepon<strong>de</strong>rar é que dará a técnica<br />

e o estilo. O que nos leva a indagar até que ponto a transgressão absoluta não é<br />

construtiva”. Bracher se diz “expressionista essencialmente, composto por uma<br />

estética tensa, dramática, sempre uma transferência das interiorida<strong>de</strong>s. Mas o<br />

motivo, o élan, o impulso profundo é sempre <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> algum envolvimento<br />

psicológico, visto como estímulo a uma reação. A profusão <strong>de</strong> cores e<br />

formas é uma convulsão, uma eclosão imprevisível, condicionada pela emoção<br />

<strong>de</strong> cada instante.”<br />

“Não é cerebral nem intelectual. Fica no intuitivo. É como uma reação<br />

diante da vida. O fluxo <strong>de</strong> paixão é que vai produzindo gestos e imagens, que<br />

vão surgindo na tela. Não se pensa nem na cor, que vai compondo o conjunto,<br />

ajudando na vida e na forma, escolhida sob o impacto da emoção”, completa<br />

Bracher sobre o seu processo criativo. Esta fala nos remete ao pensamento <strong>de</strong><br />

que, em Bracher, o instinto é o seu talento. E também aí resi<strong>de</strong> o seu enigma. A<br />

força e o sentido do gesto, que se realiza na articulação entre o músculo e o<br />

movimento, impulsionado emocionalmente, instintivamente dirigido, compõem<br />

uma misteriosa concatenação criativa.<br />

“É da essência da linguagem verbal ser simbólica. A essência da linguagem<br />

visual não é a mesma; uma pintura não dispensa conceitos, mas também<br />

não sobrevive <strong>de</strong>les. Fala direto à percepção, que é biologicamente uma relação


Bracher, a arte e os enigmas entre o homem e o artista _________________________________ Mauro Werkema 229<br />

entre a sensibilida<strong>de</strong> (sistema límbico) e o intelecto (córtex)”, diz Daniel Piza<br />

em comentário crítico ao artigo “Argumentação contra a morte da arte”, <strong>de</strong><br />

Ferreira Gullar. E avança: quando a imagem chega à retina, aciona reação<br />

neural e química cerebral. E afirma: “Disso se conclui, por exemplo, que como<br />

o olho possui estrutura harmônica, não é à toa que temos um senso harmônico,<br />

um gosto pela harmonia”. A presença <strong>de</strong>sta “harmonia” – vista como relações<br />

simétricas e a opção pela linha reta ou com a exatidão entre o real e o retratado<br />

– com o classicismo e o impressionismo, têm sido motivo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> discussão<br />

na teoria da arte. De toda esta questão, Merleau-Ponty nos dá leituras profundas<br />

na sua obra sobre a relação entre o vi<strong>de</strong>nte e o visível, em especial em O olho e<br />

o espírito e O visível e o invisível.<br />

Em Bracher, a arte é um gran<strong>de</strong> “exercício humano e espiritual”. Demonstra<br />

a beleza e o mistério do espírito humano, em que “a sensibilida<strong>de</strong>,<br />

como capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> perceber e emocionar-se”, é condição fundamental: “É o<br />

ato inaugural”, diz Bracher. “Po<strong>de</strong> ser aprimorado pela cultura”, diz, mas com a<br />

advertência <strong>de</strong> que o processo educacional nunca po<strong>de</strong>rá ser autoritário ou<br />

limitativo das eclosões instintivas. Na boa escola <strong>de</strong> arte, o aluno <strong>de</strong>ve<br />

suplantar o professor, indo além dos processos <strong>de</strong> padronização e universalização,<br />

ou <strong>de</strong> implantar um conhecimento único, características inerentes ao que<br />

se chama educar. “Os eixos culturais são nossos signos condicionantes. Mas<br />

que precisam ser <strong>de</strong>tonados para se conseguir em canais <strong>de</strong> expressão. É algo<br />

que tem a ver com a afirmativa <strong>de</strong> que cante sua província e serás universal, se<br />

mantida a sua singularida<strong>de</strong> ou matricida<strong>de</strong>”.<br />

O artista será sempre um ser em perplexida<strong>de</strong>: “Tem uma dor permanente<br />

<strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> não ser o que gostaria <strong>de</strong> ser. Vive momentos <strong>de</strong> tristeza e<br />

alegria, ambos sendo condição para a arte”. Mas não será possível irromper o<br />

processo criativo sem “a <strong>de</strong>sconstrução, palavra-chave do nosso mundo em<br />

transformação, que só se realiza a partir <strong>de</strong> um “inconformismo”, gerador <strong>de</strong><br />

energia interna, que se exterioriza em impulsos criativos”. É algo como <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r-se<br />

do padronizado, do comum, propiciando a paixão explosiva.<br />

Com uma nova trajetória artística, Carlos Bracher trabalha intensamente.<br />

Escreveu um “roteiro da sensibilida<strong>de</strong>” sobre Ouro Preto, com pinturas em<br />

guache expressando sua visão sobre a velha cida<strong>de</strong>. Completou a Série Brasília<br />

e publicou livro com texto e pinturas exaltando a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Juscelino, Niemeyer<br />

e Lúcio Costa. Realizou exposições, nos últimos três meses, no Museu da<br />

República, em Brasília, na Abadia <strong>de</strong> Neumünster, em Luxemburgo, no Palácio<br />

dos Governadores, em Bruges, na Bélgica, na Galeria da Embaixada Brasileira,<br />

em Buxelas, e prepara mostras em Frankfurt, Zürich, Oslo e Praga.


230 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS


A SANTIDADE NOS<br />

CAMINHOS DE MINAS<br />

José Luís Lira *<br />

Se fôssemos eleger o povo mais católico do Brasil, certamente a escolha<br />

recairia sobre o mineiro. Minas Gerais, a terra <strong>de</strong> Aleijadinho, escultor respeitado<br />

mundialmente, se constitui uma jóia da arte sacra a céu aberto. Suas<br />

igrejas espalhadas por todas as cida<strong>de</strong>s, das menores às maiores, são das mais<br />

belas.<br />

É difícil ir a Ouro Preto, Mariana, São João <strong>de</strong>l-Rei, Tira<strong>de</strong>ntes, Diamantina<br />

e não se encantar com suas igrejas tão lindamente trabalhadas, sem<br />

esquecer o Santuário <strong>de</strong> Bom Jesus do Matosinhos, on<strong>de</strong> estão os famosos<br />

profetas <strong>de</strong> Aleijadinho, em Congonhas, suas capelas e, ainda, as monumentais<br />

igrejas existentes em Belo Horizonte.<br />

A Capital <strong>Mineira</strong> serviu <strong>de</strong> palco para a primeira beatificação, no Brasil,<br />

obe<strong>de</strong>cendo às novas regras, editadas pelo Papa Bento XVI, pelas quais po<strong>de</strong> o<br />

Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos presidir à Cerimônia <strong>de</strong><br />

Beatificação <strong>de</strong> um Servo <strong>de</strong> Deus. A entronização do Padre Eustáquio van<br />

Lieshout nos altares mineiros <strong>de</strong>u-se no dia 15 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2006, em solenida<strong>de</strong><br />

presidida pelo Arcebispo Metropolitano <strong>de</strong> Belo Horizonte, Dom Walmor<br />

Oliveira, coadjuvado pelo Car<strong>de</strong>al José Saraiva Martins, então prefeito da Congregação<br />

para as Causas dos Santos, representando sua santida<strong>de</strong> o Papa Bento<br />

XVI, por Dom Odilo Scherer, então secretário-geral da CNBB, e uma gran<strong>de</strong><br />

quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outros bispos, sacerdotes e fiéis.<br />

O público silenciou quando o músico Marcus Viana, acompanhado da<br />

Orquestra Transfônica, Coral Sesiminas e Coral <strong>de</strong> Contagem, apresentou a<br />

música-tema Terra <strong>de</strong> Minas. Após as execuções dos hinos Nacional Brasileiro<br />

* Advogado, especialista em Direito Constitucional, professor universitário, fundador da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

Fortalezense <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> e da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> Hagiologia. Publicou vários livros, entre os quais<br />

Candidatos ao Altar, Brasileiro com alma africana: Antonio Olinto. Resi<strong>de</strong> em Fortaleza.


232 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

e Pontifício, do Vaticano, ao som <strong>de</strong> Ave-Maria, os quinhentos sacerdotes e<br />

cem bispos entraram no gramado do Mineirão, on<strong>de</strong> já se encontravam<br />

representações paroquiais e familiares do Padre Eustáquio, além da imprensa e<br />

convidados especiais. Sinos repicaram anunciando o início da beatificação do<br />

Servo <strong>de</strong> Deus Padre Eustáquio.<br />

Após o pedido formal, feito pelo Arcebispo Dom Walmor, precedido <strong>de</strong><br />

leitura da biografia do Servo <strong>de</strong> Deus, pelo vice-postular da beatificação, Padre<br />

Lúcio Dummont, o Car<strong>de</strong>al Saraiva Martins, pontualmente às 16h30min, leu a<br />

Carta Apostólica, com a qual o Papa Bento XVI inscreveu no livro dos Bem-<br />

Aventurados da Igreja Católica o Padre Eustáquio van Lieshout, <strong>de</strong>clarando-o,<br />

finalmente, beato e anunciando sua celebração litúrgica anual para 30 <strong>de</strong><br />

agosto. Em seguida, foram <strong>de</strong>scerrados dois painéis contendo a figura do novo<br />

beato Eustáquio, ato que emocionou aos presentes, que aplaudiram e <strong>de</strong>ram<br />

vivas.<br />

Do jeito que só os mineiros sabem fazer, a solenida<strong>de</strong> se revestiu <strong>de</strong><br />

beleza e riqueza, com coreografias apresentadas por 650 crianças e jovens da<br />

Escola Padre Eustáquio no gramado que tinha ao centro um altar em forma <strong>de</strong><br />

cruz grega, simbolizando a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos. Merece ressaltar, também, a<br />

artística interpretação da composição Cálix Bento, <strong>de</strong> Pena Branca e Xavantinho,<br />

do folclore mineiro, pelo cantor Terê, após a elevação na oração eucarística.<br />

Depois da comunhão, as luzes do Mineirão se apagaram e as velas acesas<br />

iluminaram o estádio, transformado numa extensão da Praça <strong>de</strong> São Pedro, pela<br />

gran<strong>de</strong>za do evento.<br />

Quando, por volta <strong>de</strong> 2001, comecei a investigar os candidatos à santida<strong>de</strong><br />

no Brasil, fato que se aprofundou quando juntamente com Matusahila<br />

Santiago fun<strong>de</strong>i a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> Hagiologia e as pesquisas feitas<br />

<strong>de</strong>ram origem ao livro Candidatos ao Altar (ABRHAGI, 2006), constatei que,<br />

individualmente, Minas Gerais é o Estado brasileiro que mais futuros santos<br />

possui.<br />

O novo Catecismo da Igreja Católica estabelece que “O dia da morte<br />

inaugura para o cristão, ao final <strong>de</strong> sua vida sacramental, a consumação <strong>de</strong> seu<br />

novo nascimento iniciado no Batismo, a ‘semelhança’ <strong>de</strong>finitiva à ‘imagem do<br />

Filho’, conferida pela unção do Espírito Santo, e a participação na festa do<br />

Reino, antecipada na Eucaristia, mesmo necessitando <strong>de</strong> últimas purificações<br />

para vestir a roupa nupcial” (§ 1682 do Catecismo da Igreja Católica).<br />

A Pátria do Santo é <strong>de</strong>terminada pelo local do seu novo nascimento, do<br />

seu falecimento ou retorno à Casa do Pai, e, ainda, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolveu suas<br />

ativida<strong>de</strong>s, exercendo as virtu<strong>de</strong>s cristãs. Por isso observamos que existem


A santida<strong>de</strong> nos caminhos <strong>de</strong> Minas ___________________________________________________ José Luís Lira 233<br />

candidatos <strong>de</strong> outras nacionalida<strong>de</strong>s em Minas, mas que no contexto geral é<br />

Causa <strong>de</strong> Beatificação <strong>Mineira</strong>.<br />

São 19 causas que tramitam envolvendo pessoas que viveram em Minas<br />

ou mineiros espalhados Brasil afora, com a autorização requerida no Vaticano,<br />

algumas ainda aguardando o nihil obstat (nada obsta). Abaixo as relacionamos,<br />

por or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> falecimento do candidato:<br />

1) Dom Antônio Ferreira Viçoso (*Lisboa, 13 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1787; † 7 <strong>de</strong><br />

julho <strong>de</strong> 1875, em Mariana, MG). Sétimo bispo <strong>de</strong> Mariana. Protetor <strong>de</strong><br />

escravos e órfãos, inclusive agindo em <strong>de</strong>fesa da or<strong>de</strong>nação do Padre Francisco<br />

Vitor, discriminado por ser ex-escravo. É, ainda, o responsável pela vinda das<br />

primeiras Irmãs <strong>de</strong> Carida<strong>de</strong> (Companhia das Filhas da Carida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São<br />

Vicente <strong>de</strong> Paulo) para o Brasil. O Vaticano validou a abertura <strong>de</strong> seu processo<br />

<strong>de</strong> beatificação em 10 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1986 e a Arquidiocese <strong>de</strong> Mariana é a<br />

responsável pela causa.<br />

2) Francisca <strong>de</strong> Paula <strong>de</strong> Jesus Isabel – Nhá Chica (*São João <strong>de</strong>l -Rei,<br />

MG, 1808; † 14 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1895, em Baependi, MG). Leiga, não alfabetizada,<br />

Nhá Chica viveu praticando a fé e a carida<strong>de</strong>. A fama <strong>de</strong> suas virtu<strong>de</strong>s cresceu,<br />

tornando-a conhecida pelo povo que nela ia <strong>de</strong>positando confiança, passando a<br />

consultá-la sobre suas revelações clarivi<strong>de</strong>ntes. O processo <strong>de</strong> sua beatificação<br />

teve a abertura autorizada em 17 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1992, sob a responsabilida<strong>de</strong> da<br />

Fundação Nhá Chica.<br />

3) Padre Francisco <strong>de</strong> Paula Vitor (*Campanha, MG, 12 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong><br />

1827; † 23 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1905, em Três Pontas, MG). Filho <strong>de</strong> escravos,<br />

alfaiate e o primeiro sacerdote ex-escravo do Brasil, or<strong>de</strong>nado aos 24 anos.<br />

Dirigiu e lecionou, por mais <strong>de</strong> 30 anos, num colégio em Três Pontas, on<strong>de</strong><br />

paroquiou a Igreja <strong>de</strong> Nossa Senhora da Ajuda, por 53 anos ininterruptos. O<br />

processo <strong>de</strong> sua beatificação teve a abertura autorizada em 10 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong><br />

1992, sob a responsabilida<strong>de</strong> da Paróquia <strong>de</strong> Nossa Senhora da Ajuda, <strong>de</strong> Três<br />

Pontas.<br />

4) Monsenhor José Silvério Horta (*Fazenda Monte Alegre, município<br />

<strong>de</strong> Mariana, MG, 20 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1859; † 30 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1933, em Mariana,<br />

MG). Or<strong>de</strong>nado sacerdote em 1886, foi secretário do bispado <strong>de</strong> Mariana entre<br />

1898 e 1928, ocupando, interinamente, o lugar <strong>de</strong> Vigário-Geral entre 1919 e<br />

1923. O processo <strong>de</strong> sua beatificação teve a abertura autorizada em 15 <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2004, sob a responsabilida<strong>de</strong> da Arquidiocese <strong>de</strong> Mariana.<br />

5) Padre Eustáquio van Lieshout (*Aarle Rixtel, Holanda, a 3 <strong>de</strong><br />

novembro <strong>de</strong> 1890; † 30 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1943, em Belo Horizonte, MG). Sua ação<br />

pastoral se <strong>de</strong>senvolveu com <strong>de</strong> obras materiais e espirituais e todos o tinham


234 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

por santo, notadamente no Estado <strong>de</strong> Minas Gerais. O Vaticano validou a<br />

abertura <strong>de</strong> seu processo <strong>de</strong> beatificação em 12 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1986, <strong>de</strong>clarando-o<br />

venerável em 12 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2003. Foi beatificado em 15 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong><br />

2006, no Mineirão. A Congregação dos Padres dos Sagrados Corações é a<br />

responsável pela causa.<br />

6) Irmã Maria Beata, nome religioso da holan<strong>de</strong>sa Wilhelmina Lauwen<br />

(* Etten, Noord-Brabant – Holanda, 29 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1879; † 8 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong><br />

1952, Belo Horizonte, MG). Religiosa da Congregação das Irmãs do Sagrado<br />

Coração <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong> Berlaar. O processo <strong>de</strong> sua beatificação foi solicitado ao<br />

Vaticano pelas Irmãs do Sagrado Coração <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong> Berlaar <strong>de</strong> Belo<br />

Horizonte, MG, mas, não conseguimos informações acerca da concessão do<br />

nihil obstat.<br />

7) Madre Vicenta Guilarte Alonso (*Rojas <strong>de</strong> Bureba, Burgos, Espanha,<br />

21 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1879; † 6 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1960, em Leopoldina, MG). Religiosa da<br />

Congregação das Filhas <strong>de</strong> Jesus. Recebeu o hábito <strong>de</strong> Filha <strong>de</strong> Jesus no dia 8<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1901, permanecendo em sua Pátria até 1911 quando, no mês <strong>de</strong><br />

outubro, embarcou com seis outras religiosas para o Brasil. Desempenhou<br />

diversas funções na sua Congregação, das mais simples às mais nobres. O<br />

processo <strong>de</strong> sua beatificação teve a abertura autorizada em 12 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1992,<br />

sob a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua Congregação, centrada no Colégio Imaculada<br />

Conceição em Leopoldina (MG).<br />

8) Padre Donizetti Tavares <strong>de</strong> Lima (*Santa Rita <strong>de</strong> Cássia, MG, 3 <strong>de</strong><br />

janeiro <strong>de</strong> 1882; † 16 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1961, em Tambaú, SP). Or<strong>de</strong>nado sacerdote<br />

em 12 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1908 e, logo em seguida, <strong>de</strong>signado vigário na paróquia <strong>de</strong><br />

São Caetano da Vargem Gran<strong>de</strong> (MG). Após passar por outras paróquias, em<br />

12 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1926, assumiu a Paróquia <strong>de</strong> Santo Antônio, em Tambaú, on<strong>de</strong><br />

exerceu gran<strong>de</strong> apostolado até o seu retorno à Casa do Pai. O processo <strong>de</strong> sua<br />

beatificação teve a abertura autorizada em 2 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1996, sob a<br />

responsabilida<strong>de</strong> da Associação <strong>de</strong> Fiéis do Padre Donizetti, em Tambaú, SP.<br />

9) Cônego Lafayette da Costa Coelho (*Serro, MG, 10 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong><br />

1886; † 21 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1961, em Santa Maria do Suaçuí, MG). Permaneceu<br />

na Paróquia Santa Maria Eterna, <strong>de</strong> Santa Maria do Suaçuí (MG), por 44 anos,<br />

pregando com o exemplo e a santida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, realizando profícua missão,<br />

cativando seu povo pela fé e exemplo <strong>de</strong> humilda<strong>de</strong>. O processo <strong>de</strong> sua beatificação<br />

teve a abertura autorizada em 13 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2000, sob a responsabilida<strong>de</strong><br />

do Memorial Cônego Lafayette, da Diocese <strong>de</strong> Guanhães, MG.<br />

10) Dom Antônio <strong>de</strong> Almeida Lustosa (*São João <strong>de</strong>l-Rei, MG, 11 <strong>de</strong><br />

fevereiro <strong>de</strong> 1886; † 14 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1974, em Carpina, PE). Segundo Arce-


A santida<strong>de</strong> nos caminhos <strong>de</strong> Minas ___________________________________________________ José Luís Lira 235<br />

bispo <strong>de</strong> Fortaleza e fundador da Congregação das Irmãs Josefinas. Nomeado<br />

bispo <strong>de</strong> Uberaba (MG), em 1925, pastoreou Corumbá (MT), Belém (PA) e<br />

Fortaleza (CE). Deixou várias obras escritas e criou diversas instituições,<br />

vivendo humil<strong>de</strong>mente. O processo <strong>de</strong> sua beatificação teve a abertura<br />

autorizada em 10 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1992, sob a responsabilida<strong>de</strong> da Arquidiocese <strong>de</strong><br />

Fortaleza, CE.<br />

11) Padre Miguel Afonso <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> Leite (*distrito <strong>de</strong> São Miguel do<br />

Cajuru, São João <strong>de</strong>l-Rei, MG, 29 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1912; † 30 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong><br />

1976, São João <strong>de</strong>l-Rei, MG). Sacerdote diocesano. Consta que no velório, o<br />

corpo <strong>de</strong>le quase que ficou <strong>de</strong>spido no caixão, já que os fiéis tentavam cortar a<br />

sua batina e levar para casa os pequeninos retalhos, os quais se transformaram<br />

em relíquias milag<strong>rosa</strong>s. O processo <strong>de</strong> sua beatificação foi solicitado ao<br />

Vaticano pela Diocese <strong>de</strong> São João <strong>de</strong>l-Rei, MG, mas não conseguimos<br />

informações acerca da concessão do nihil obstat.<br />

12) Padre Al<strong>de</strong>rígi Maria Torriani (*Jacutinga, MG, 13 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong><br />

1895; † 3 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1977, em Santa Rita <strong>de</strong> Caldas, MG). Professor <strong>de</strong><br />

geografia e diretor do Ginásio São José, em Pouso Alegre (MG), em 1927,<br />

Mons. Al<strong>de</strong>rígi tomou posse na Paróquia <strong>de</strong> Santa Rita <strong>de</strong> Caldas (MG),<br />

permanecendo na função durante cinqüenta anos, período em que conquistou a<br />

admiração e o respeito <strong>de</strong> todos os que o conheceram. O processo <strong>de</strong> sua<br />

beatificação teve a abertura autorizada em 26 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2000, sob a<br />

responsabilida<strong>de</strong> Paróquia <strong>de</strong> Santa Rita <strong>de</strong> Caldas.<br />

13) Padre Libério Rodrigues Moreira (*Lagoa Santa, MG, 30 <strong>de</strong> junho<br />

<strong>de</strong> 1884; † 21 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1980, Divinópolis, MG). Foi pároco nas<br />

paróquias <strong>de</strong> Pitangui, Pequi, Nova Serrana, São José da Varginha, Leandro<br />

Ferreira e Pará <strong>de</strong> Minas. Responsável pela construção <strong>de</strong> duas gran<strong>de</strong>s igrejas,<br />

a Igreja-Matriz <strong>de</strong> São Sebastião em Leandro Ferreira e a Matriz <strong>de</strong> São José da<br />

Varginha. Nos últimos meses <strong>de</strong> sua vida (em julho <strong>de</strong> 1980), transferiu-se para<br />

Divinópolis. O processo <strong>de</strong> sua beatificação foi solicitado ao Vaticano pela<br />

Diocese <strong>de</strong> Divinópolis, MG, mas, não conseguimos informações acerca da<br />

concessão do nihil obstat.<br />

14) Irmã Benigna Victima <strong>de</strong> Jesus, nome religioso <strong>de</strong> Maria da<br />

Conceição Santos (*Diamantina, 16 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1907; † 16 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong><br />

1981, Belo Horizonte, MG). Religiosa da Congregação das Irmãs Auxiliares <strong>de</strong><br />

Nossa Senhora da Pieda<strong>de</strong>. Trabalhou junto aos mais carentes e necessitados<br />

em hospitais, asilos e escolas, doando-se, por completo, amparada na fé, unindo<br />

às orações as ações <strong>de</strong> renúncia e carida<strong>de</strong>. O processo <strong>de</strong> sua beatificação foi<br />

solicitado ao Vaticano pelas Irmãs Auxiliares <strong>de</strong> Nossa Senhora da Pieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>


236 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

Belo Horizonte e pela Associação dos Amigos <strong>de</strong> Irmã Benigna, mas não<br />

conseguimos informações acerca da concessão do nihil obstat.<br />

15) Isabel Cristina Mrad Campos (*Barbacena, MG, 29 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong><br />

1962; † 1º <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1982, em Juiz <strong>de</strong> Fora, MG). No início <strong>de</strong> 1982,<br />

transferiu-se para Juiz <strong>de</strong> Fora (MG), a fim <strong>de</strong> se preparar para o vestibular <strong>de</strong><br />

medicina. No dia 1º <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1982, alguém entrou no seu apartamento e<br />

tentou violentá-la. Foi amordaçada, atada com uma corda <strong>de</strong> bacalhau, uma<br />

cinta e, finalmente, atingida com quinze facadas, mas resistiu, morrendo<br />

virgem. O processo <strong>de</strong> sua beatificação teve a abertura autorizada em 18 <strong>de</strong><br />

novembro <strong>de</strong> 2000, sob a responsabilida<strong>de</strong> Arquidiocese <strong>de</strong> Mariana.<br />

16) Padre Vítor Coelho <strong>de</strong> Almeida (*Sacramento, MG, 22 <strong>de</strong> setembro<br />

<strong>de</strong> 1899; † 22 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1987, em Aparecida, SP). Missionário da Congregação<br />

dos Missionários Re<strong>de</strong>ntoristas exerceu seu apostolado, principalmente,<br />

no Santuário Nacional <strong>de</strong> Aparecida, responsável por sua Causa <strong>de</strong> Beatificação.<br />

Após curar-se <strong>de</strong> tuberculose, fato que ele atribuía a uma bênção do Padre<br />

Eustáquio, além <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicar-se ao anúncio da palavra <strong>de</strong> Deus no Santuário,<br />

passou a atuar na Rádio Aparecida. O processo <strong>de</strong> sua beatificação teve a<br />

abertura autorizada em 3 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1998.<br />

17) Irmã Maria Imaculada da Santíssima Trinda<strong>de</strong>, nome religioso<br />

<strong>de</strong> Maria Giselda Villela (*Maria da Fé, MG, 8 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1909; † 20 <strong>de</strong><br />

janeiro <strong>de</strong> 1988, Pouso Alegre, MG). Religiosa da Congregação das Carmelitas<br />

Descalças do Carmelo da Sagrada Família <strong>de</strong> Pouso Alegre. O processo <strong>de</strong> sua<br />

beatificação teve a abertura autorizada em 11 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2006, sob a responsabilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> sua Congregação, centrada na Diocese <strong>de</strong> Pouso Alegre (MG).<br />

18) Madre Maria dos Anjos <strong>de</strong> Santa Terezinha, nome religioso <strong>de</strong><br />

Dinah Amorim (*Cláudio, MG, 8 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1917; † 1º <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1988,<br />

em Santa Cruz, RJ). Ingressou no Instituto <strong>de</strong> Filhas <strong>de</strong> Maria, Religiosas das<br />

Escolas Pias – Escolápias, on<strong>de</strong> três <strong>de</strong> suas irmãs já eram freiras, em 1939.<br />

Também professora, exerceu sua missão religiosa em várias casas das Irmãs<br />

Escolápias. Com conhecimento <strong>de</strong> música e poesia, compôs letras para cânticos<br />

e regeu um coral que fundou em Oliveira (MG). Transferida para Santa Cruz,<br />

no Rio <strong>de</strong> Janeiro, em 1981, Madre dos Anjos prosseguiu seu apostolado até ser<br />

acometida <strong>de</strong> câncer. O processo <strong>de</strong> sua beatificação teve a abertura autorizada<br />

em 16 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1993, sob a responsabilida<strong>de</strong> das Irmãs Escolápias,<br />

sediadas no Bairro Floresta, em Belo Horizonte, MG.<br />

19) Floripes Dornellas <strong>de</strong> Jesus – Lola (*Mercês, MG, 27 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong><br />

1911; † 9 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1999, em Rio Pomba, MG). Em 30 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1934,<br />

caiu <strong>de</strong> uma jabuticabeira, ficando paralítica, passando a conviver até o final <strong>de</strong>


A santida<strong>de</strong> nos caminhos <strong>de</strong> Minas ___________________________________________________ José Luís Lira 237<br />

sua vida com fortes dores. Deitada numa cama, Lola, a partir <strong>de</strong> 1943, passou a<br />

recusar toda espécie <strong>de</strong> comida ou bebida, por rejeição natural <strong>de</strong> seu<br />

organismo, vivendo em jejum quase completo, recebendo diariamente a Eucaristia,<br />

sua única alimentação. O processo <strong>de</strong> sua beatificação teve a abertura<br />

autorizada em 30 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2005, sob a responsabilida<strong>de</strong> da Arquidiocese<br />

<strong>de</strong> Mariana.<br />

Vemos, portanto, que não só <strong>de</strong> padres e freiras é composto o elenco da<br />

santida<strong>de</strong> nas Gerais. Existem leigos; uma analfabeta e uma vestibulanda;<br />

<strong>de</strong>fensores da liberda<strong>de</strong>, tão presentes em Minas, a ponto <strong>de</strong> ser o primeiro<br />

sacerdote negro do Brasil um mineiro; uma freira que era musicista e poeta; um<br />

bispo que <strong>de</strong>ixou obras literárias <strong>de</strong> valor, tendo pertencido a entida<strong>de</strong>s culturais,<br />

entre outros.<br />

Por tantos e ilustres filhos, além do patrimônio cultural e artístico pelos<br />

quais Minas é reconhecida em todo o mundo, para nós, católicos, o Estado<br />

possui este outro patrimônio que dizemos imaterial, o da Santida<strong>de</strong>, que<br />

percorreu e percorre os caminhos das Minas Gerais rumo à eternida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

esperamos que esses seres iluminados intercedam a Deus por nós.<br />

Bibliografia<br />

Catecismo da Igreja Católica. Edição Típica Vaticana. São Paulo: Loyola,<br />

2000.<br />

LIRA, José Luís. Candidatos ao Altar. Fortaleza: ABRHAGI, 2006.


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240 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS


ORAÇÃO DA NOITE<br />

Senhor, se esta noite, ao me <strong>de</strong>itar,<br />

No meu coração houver<br />

A mágoa <strong>de</strong> uma ofensa recebida,<br />

A dor <strong>de</strong> uma partida,<br />

O tédio das horas <strong>de</strong> um dia <strong>de</strong> trabalho sem prazer,<br />

A solidão dos meus passos sem companhia<br />

E da minha ternura retida,<br />

O peso da minha consciência que não praticou o bem,<br />

O vazio da minha alma que não se elevou<br />

Na contemplação da tua beleza e da tua bonda<strong>de</strong>,<br />

O medo <strong>de</strong> fechar as pálpebras sem saber<br />

Se uma nova aurora vai surgir...<br />

Eu te peço, Senhor, que, ao <strong>de</strong>spertar amanhã,<br />

Ainda experimente a alegria <strong>de</strong> viver através<br />

Do sorriso <strong>de</strong> um rosto amigo,<br />

Da expectativa <strong>de</strong> um reencontro,<br />

Da luz do sol batendo na janela do meu quarto,<br />

Do brilho <strong>de</strong> um olhar pousando sobre meus olhos,<br />

Do propósito <strong>de</strong> amar o meu próximo,<br />

Do gesto <strong>de</strong> adoração que me une a Ti,<br />

Da confiança nos teus braços que me sustentam<br />

Na escuridão.<br />

E, se nesta noite, ao me <strong>de</strong>itar,<br />

Tudo está bem, feliz te bendigo,<br />

E em tudo e por tudo, obrigado!<br />

E boa noite, meu Senhor!<br />

* Acadêmico, faleceu no dia 8 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2008. Ocupou a ca<strong>de</strong>ira nº 26.<br />

Pe. João Batista Megale*


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TRÊS GRAÇAS EM DISCUSSÃO<br />

Disse a francesa convicta:<br />

Paris dá felicida<strong>de</strong>!<br />

Minha França tem, invicta,<br />

As chaves da liberda<strong>de</strong>.<br />

Respon<strong>de</strong>u a italiana<br />

cheia <strong>de</strong> sincerida<strong>de</strong>:<br />

Roma é eterna! Soberana<br />

Em beleza e magesta<strong>de</strong>.<br />

A portuguesa sorrindo<br />

Disse com justa vaida<strong>de</strong>:<br />

Vocês, <strong>de</strong> um mundo tão lindo,<br />

Não sabem dizer “sauda<strong>de</strong>”...<br />

José Crux Rodrigues Vieira*<br />

* Advogado, historiador, escritor. Ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 33 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.


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ESCREVER UM POEMA<br />

É ser triste.<br />

Viver o que não existe.<br />

Colher nas horas<br />

O dia que nunca virá.<br />

Escrever um poema<br />

É ser triste;<br />

E riscar, riscar, arriscar<br />

E se entregar ao mundo<br />

Que nunca existirá.<br />

* Jornalista e escritor.<br />

Petrônio Souza Gonçalves*


246 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS


BIRIBIRI<br />

Lugar tão belo perdido entre montanhas<br />

Terra formosa mais linda que já vi<br />

Com as belezas tão raras e tamanhas<br />

Este recanto é o Biribiri.<br />

Bem lá do alto eu te enxergo sobranceiro<br />

Tuas casinhas pintadas em azuis<br />

Parece até um presépio brasileiro<br />

Com esta beleza natal que tu possuis<br />

Como são belas as tuas cachoeiras<br />

A <strong>de</strong>slizar entre as pedras coloridas<br />

Mostrando as águas que são hospitaleiras<br />

On<strong>de</strong> renascem as plantas e outras vidas<br />

Tu aconchegas tão bem o visitante<br />

E o recebes com gesto maternal<br />

E <strong>de</strong>monstrando um amor tão radiante<br />

A transbordar <strong>de</strong> forma tão carnal<br />

Este lugar mais parece um monumento<br />

Na clarida<strong>de</strong> da manhã tão cristalina<br />

É uma estrela do céu no firmamento<br />

Um pedacinho <strong>de</strong> nossa Diamantina<br />

Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Dias Reis*<br />

*Professora, escritora. Da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Feminina <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 39.


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Livro do trimestre<br />

SÍLVIA RUBIÃO: A CONTIDA<br />

LINGUAGEM DA EMOÇÃO<br />

Fábio Lucas*<br />

A arte da poesia será talvez o equilíbrio harmonioso da inteligência<br />

(razão cerebral) com as emoções do coração.<br />

Para aqueles que acreditam fervo<strong>rosa</strong>mente na arte-construção, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />

da cultura-repertório somada ao rigor crítico, pouco importa que a<br />

emoção transbor<strong>de</strong> do artefato literário. Caso típico em que a versificação,<br />

<strong>de</strong>spojada dos versos intencionalmente metrificados e dos expedientes retóricos<br />

<strong>de</strong> cunho mimético, ou referencial, ou meramente <strong>de</strong> valores semânticos motivados,<br />

se aproxima e até se confun<strong>de</strong> com a p<strong>rosa</strong>. Teríamos poesia que se<br />

produz sob encomenda, antagônica da inspiração, mas sujeita a uma íntima<br />

gramática normativa.<br />

De outro modo, alinham-se os poetas que apelam antes <strong>de</strong> tudo para a<br />

resposta emocional, e praticam os recursos mais imediatos da sedução verbal,<br />

na busca do aplauso instantâneo. Estes sobrelevitam à superfície, incapazes <strong>de</strong><br />

conduzir o leitor ao mergulho nas profun<strong>de</strong>zas da expressão. Conduzem-se<br />

como poetas movidos pelo arrebatamento.<br />

Quando qualquer um <strong>de</strong>sses percorre a temática mais consagrada da série<br />

lírica, não vai além do canto confessional <strong>de</strong> situações <strong>de</strong> abandono, solidão e<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>scrédito das pulsões vitais. Geralmente explora o trivial da experiência<br />

humana, numa textura redundante, <strong>de</strong>sgastada. A esta altura, o verbo se mostra<br />

enfraquecido, e o texto ponteado <strong>de</strong> lugares-comuns sobre a condição existencial.<br />

* Professor, ensaísta, autor <strong>de</strong>: Do Barroco ao Mo<strong>de</strong>rno, <strong>Mineira</strong>nças, O Poeta e a Mídia? Carlos<br />

Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto, Lições <strong>de</strong> Literatura Nor<strong>de</strong>stina, Ética e Estética<br />

<strong>de</strong> Érico Veríssimo. Da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> (ca<strong>de</strong>ira 22).


250 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

A<strong>de</strong>mais, índices locativos <strong>de</strong>nunciam o uso racional do espaço, indicador<br />

das circunstâncias <strong>de</strong> tempo e lugar compartilhados com o leitor, num gesto<br />

referencial <strong>de</strong> baixa <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> significativa.<br />

No entanto, o leitor espera do autor que lhe ofereça o prazer da evocação,<br />

mediante o agrupamento <strong>de</strong> vocábulos e sentenças que inebriam os ouvidos,<br />

estimulam a memória afetiva e acalentam a ilusão literária. Sim, o leitor<br />

espera os versos que ativem a reflexão ou que incen<strong>de</strong>iem a mente.<br />

Quando tomamos conhecimento da coletânea Tangências (Rio, 7 <strong>Letras</strong>,<br />

2005), <strong>de</strong> Sílvia Rubião, sentimos que um novo nome se acrescentou ao rol dos<br />

poetas mineiros. O primeiro poema, “Memória <strong>de</strong> água”, já nos motivou para a<br />

leitura e avaliação crítica do restante.<br />

Prega-se hoje a morte do livro, da expressão lírica, quer nos mol<strong>de</strong>s do<br />

verso livre, quer nos gêneros consagrados pela tradição; anuncia-se o fim do<br />

romance e da centralida<strong>de</strong> do sujeito, por mais que a poesia renasça em mil<br />

recantos do planeta, sob as mais variadas formas. Estão vivos, mais do que<br />

nunca, o impulso da criação poética e a fome <strong>de</strong> leitura dos melhores escritores.<br />

Sílvia Rubião organiza cada composição com segurança <strong>de</strong> linguagem,<br />

vocabulário rico e próprio, arranjos a<strong>de</strong>quados para exprimir uma situação<br />

lírica aberta à invasão das carências humanas. Explora um “eu lírico”<br />

angustiado, um <strong>de</strong>sencanto generalizado mediante composições verbais <strong>de</strong> alta<br />

energia dramática.<br />

O segundo poema, “O ouro da rua”, é tão expressivo quanto o primeiro,<br />

numa atmosfera <strong>de</strong> crepuscular visão-<strong>de</strong>-mundo. A poetisa cria uma ambientação<br />

evocativa, <strong>de</strong>serta <strong>de</strong> esperanças, enfileirando sintagmas ambíguos que<br />

projetam submersos e remotos <strong>de</strong>sejos: “Reencontrar a dupla fonte do meu rio”,<br />

numa era <strong>de</strong> outono, numa tar<strong>de</strong> em que “as cigarras enchem as tar<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

lamentos”, e uma circunstância <strong>de</strong> “subir a serra recortada no azul”.<br />

Ora, “O ouro da rua” imprime na memória do belorizontino a Rua do<br />

Ouro e o faz recordar, na mente, a escalada do bairro da Serra, com “S” maiúsculo:<br />

“Lá on<strong>de</strong> o meu cálice brilha e não há resposta”, conclui o poema.<br />

Com rigor e boa alquimia, a poetisa mobiliza os vários arquétipos da<br />

imemorial herança dos povos, valendo-se das suas convenções culturais. Exemplo:<br />

o “cálice” que brilha no final do poema aponta para a sensação <strong>de</strong> dor e<br />

sofrimento.<br />

Um dos recursos utilizados por Sílvia Rubião é a aproximação <strong>de</strong><br />

imagens contrastivas (freqüente, por exemplo, em Carlos Drummond <strong>de</strong><br />

Andra<strong>de</strong>, que adotou um oxímoro para nomear uma <strong>de</strong> suas obras: Claro<br />

Enigma). Enquanto, no outono <strong>de</strong> “O ouro da rua”, “tudo se revela <strong>de</strong>finitivo e


Sílvia Rubião: a contida linguagem da emoção ___________________________________________ Fábio Lucas 251<br />

inútil”, no poema seguinte, “Repouso”, começa-se pela pergunta-e-resposta<br />

surpreen<strong>de</strong>nte e paradoxal: “Conheces a trilha do inferno?/ Leva-me.” Basta<br />

esse enunciado inicial para contrariar a expectativa criada pelo título do poema,<br />

“Repouso”. O <strong>de</strong>sconforto existencial explo<strong>de</strong> ao término da composição:<br />

“Deixa repousar ali/ meu coração vassalo/ o tempo <strong>de</strong> uma noite quente/ e sem<br />

Deus.”<br />

O tema da ausência da pessoa amada é forte nos poemas <strong>de</strong> Sílvia<br />

Rubião. Daí não ser surpresa uma composição com o título “Partida” (p. 27),<br />

sugestão que se repete a seguir, no poema “Voragem” (p. 28), inserido na<br />

quarta capa, cujo término é: “E ao partires na voragem da noite/ repara a<br />

<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m das estrelas.” Diga-se que a idéia da <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m mais <strong>de</strong> uma vez<br />

magnifica o texto.<br />

Seguinte a “Voragem” temos o poema “Ausência”, que assim se encerra:<br />

“O armário aberto/ o cabi<strong>de</strong> <strong>de</strong>pendurado/ a toalha molhada/ o copo vazio/ um<br />

rastro <strong>de</strong> aromas/ Tanta presença/ tanta ausência.” Uma das mais belas<br />

composições do conjunto. Tão perfeita na sua resumida essência quanto<br />

“Tangências”, <strong>de</strong> amplo fôlego, que empresta o nome à obra. Os poemas<br />

“Círculo”, “Fim <strong>de</strong> tudo”, “Por muito pouco” dramatizam o <strong>de</strong>sencontro e a<br />

perda, exploram aquele tema que Rodin esculpiu com o título Fugit amor.<br />

O livro Tangência se fecha sintomaticamente com o poema “Solidão”,<br />

segundo se <strong>de</strong>clara no primeiro verso: “A solidão tem asas <strong>de</strong> ferro”, ainda que<br />

se reconheça, no final, tratar-se <strong>de</strong> “Florada sem cor”. As amostras acima<br />

bastam para indicar o alto po<strong>de</strong>r imagístico <strong>de</strong> Sílvia Rubião e traduzem a<br />

tensão dramática com que os poemas se constroem.


252 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS


NORMAS PARA OS COLABORADORES<br />

l – A Revista da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> recebe colaborações,<br />

reservando-se a análise quanto à conveniência da publicação, sem data<br />

<strong>de</strong>terminada.<br />

2 – As colaborações serão enviadas ao Conselho Editorial, por correio<br />

eletrônico – atendimento@aca<strong>de</strong>miamineira<strong>de</strong>letras.org.br, ou em CD para o<br />

en<strong>de</strong>reço: <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> — Rua da Bahia, 1466 (Lour<strong>de</strong>s) –<br />

30160-011 Belo Horizonte MG. Telefax: (31) 3222-5764.<br />

3 – Os artigos <strong>de</strong>verão vir digitados na fonte Times New Roman, corpo<br />

12, em folha A4.<br />

4 – Notas <strong>de</strong> rodapé <strong>de</strong>verão constar no final do artigo, numeradas <strong>de</strong><br />

acordo com a referência no texto.<br />

5 – As referências bibliográficas trarão todas as informações, observando-se<br />

os critérios abaixo; títulos e nomes não são abreviados.<br />

VIEIRA, José Crux Rodrigues. Obra Poética I. Belo Horizonte: Editora<br />

B, 2006. 444 p.<br />

BOSCHI, Caio; MORENO, Carmen; FIGUEIREDO, Luciano. Inventário<br />

da Coleção Casa dos Contos. Belo Horizonte: Editora PUC, 2006. 560 p.<br />

IGLESIAS, Francisco. “Política Econômica do Estado <strong>de</strong> Minas Gerais<br />

(1890-1930)”. In V Seminário <strong>de</strong> Estudos Mineiros. Belo Horizonte: Editora<br />

UFMG, 1982.<br />

(Observar esta or<strong>de</strong>m: sobrenome do autor em letras maiúsculas; título em<br />

itálico; tratando-se <strong>de</strong> capítulo ou parte <strong>de</strong> obra, entre aspas, ficando em itálico<br />

o título geral; cida<strong>de</strong> (dois pontos), editora, data, número <strong>de</strong> páginas (se<br />

indicado).<br />

6 – Dados pessoais:<br />

a. nome completo; pseudônimo, se houver;<br />

b. en<strong>de</strong>reço completo (logradouro, número, bairro, CEP, cida<strong>de</strong>, estado,<br />

telefone);<br />

c. títulos universitários, quando houver: graduação, área, faculda<strong>de</strong>,<br />

local, tese;<br />

d. ativida<strong>de</strong> atual, natureza e local;<br />

e. obras ou trabalhos publicados: título, cida<strong>de</strong>, editora ou órgão, data.


254 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

O autor <strong>de</strong> artigo receberá três exemplares do número da Revista em que<br />

for publicado.<br />

Outras informações po<strong>de</strong>rão ser solicitadas pelo telefone (31) 3222-<br />

5764.

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